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Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
HISTÓRIA GERAL
DA ÁFRICA
II
África Antiga
EDITOR GAMAL MOKHTAR
UNESCO Representação no BRASIL
Ministério da Educação do BRASIL
Universidade Federal de São Carlos
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HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA
II
África antiga
Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
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Coleção História Geral da África da UNESCO
Volume I Metodologia e pré-história da África
(Editor J. Ki-Zerbo)
Volume II África antiga
(Editor G. Mokhtar)
Volume III África do século VII ao XI
(Editor M. El Fasi)
(Editor Assistente I. Hrbek)
Volume IV África do século XII ao XVI
(Editor D. T. Niane)
Volume V África do século XVI ao XVIII
(Editor B. A. Ogot)
Volume VI África do século XIX à década de 1880
(Editor J. F. A. Ajayi)
Volume VII África sob dominação colonial, 1880-1935
(Editor A. A. Boahen)
Volume VIII África desde 1935
(Editor A. A. Mazrui)
(Editor Assistente C. Wondji)
Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro,
bem como pelas opiniões nele expressas, que o são necessariamente as da UNESCO,
nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e apresentação do
material ao longo deste livro o implicam a manifestação de qualquer opinião por parte
da UNESCO a respeito da condão judica de qualquer ps, território, cidade, rego
ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
Comitê Cientíco Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
HISTÓRIA GERAL
DA ÁFRICA
II
África antiga
EDITOR GAMAL MOKHTAR
Organização
das Nações Unidas
para a Educação,
a Ciência e a Cultura
História geral da África, II: África antiga / editado por Gamal Mokhtar. – 2.ed. rev.
Brasília : UNESCO, 2010.
1008 p.
ISBN: 978-85-7652-124-2
1. História 2. História antiga 3. História africana 4. Culturas africanas 5. Norte da África
6. Leste da África 7. Oeste da África 8. Sul da África 9. África Central 10. África
I. Mokhtar, Gamal II. UNESCO III. Brasil. Ministério da Educação IV. Universidade
Federal de São Carlos
Esta versão em português é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil, a
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação do
Brasil (Secad/MEC) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Título original: General History of Africa, II: Ancient Civilizations of Africa. Paris: UNESCO;
Berkley, CA: University of California Press; London: Heinemann Educational Publishers Ltd., 1981.
(Primeira edição publicada em inglês).
© UNESCO 2010 (versão em português com revisão ortográca e revisão técnica)
Coordenação geral da edição e atualização: Valter Roberto Silvério
Preparação de texto: Eduardo Roque dos Reis Falcão
Revisão técnica: Kabengele Munanga
Revisão e atualização ortográca: Cibele Elisa Viegas Aldrovandi
Projeto gráco e diagramação: Marcia Marques / Casa de Ideias; Edson Fogaça e Paulo Selveira /
UNESCO no Brasil
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO)
Representação no Brasil
SAUS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO,andar
70070-912 – Brasília DF – Brasil
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Fax: (55 61) 3322-4261
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Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
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13565-905 – São Carlos – SP – Brasil
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Impresso no Brasil
SUMÁRIO
Apresentação ...................................................................................VII
Nota dos Tradutores ..........................................................................IX
Cronologia .......................................................................................XI
Lista de Figuras .............................................................................XIII
Prefácio ..........................................................................................XXI
Apresentação do Projeto ..............................................................XXVII
Introdução Geral ......................................................................... XXXI
Capítulo 1 Origem dos antigos egípcios .................................................. 1
Capítulo 2 O Egito faraônico ................................................................. 37
Capítulo 3 O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura ................ 69
Capítulo 4 Relações do Egito com o resto da África ............................. 97
Capítulo 5 O legado do Egito faraônico .............................................. 119
Capítulo 6 O Egito na época helenística .............................................. 161
Capítulo 7 O Egito sob dominação romana ......................................... 191
Capítulo 8 A importância da Núbia: um elo entre a África central
e o Mediterrâneo................................................................. 213
Capítulo 9 A Núbia antes de Napata (3100 a 750 antes da Era
Cristã) ................................................................................. 235
Capítulo 10 O Império de Kush: Napata e Méroe .............................. 273
VI
África antiga
Capítulo 11 A civilização de Napata e Méroe ...................................... 297
Capítulo 12 A cristianização da Núbia ................................................. 333
Capítulo 13 A cultura pré -axumita ...................................................... 351
Capítulo 14 A civilização de Axum do século I ao século VII ............ 375
Capítulo 15 Axum do século I ao século IV: economia,
sistema político e cultura .................................................. 399
Capítulo 16 Axum cristão ..................................................................... 425
Capítulo 17 Os protoberberes .............................................................. 451
Capítulo 18 O período cartaginês ........................................................ 473
Capítulo 19 O período romano e pós -romano na África do Norte ...... 501
PARTE I O período romano ....................................... 501
PARTE II De Roma ao Islã ......................................... 547
Capítulo 20 O Saara durante a Antiguidade clássica ........................... 561
Capítulo 21 Introdução ao fim da Pré -História na África
subsaariana ........................................................................ 585
Capítulo 22 A costa da África oriental e seu papel no comércio
marítimo .......................................................................... 607
Capítulo 23 A África oriental antes do século VII ............................... 627
Capítulo 24 A África ocidental antes do século VII ............................ 657
Capítulo 25 A África central ............................................................... 691
Capítulo 26 A África meridional: caçadores e coletores ...................... 713
Capítulo 27 Início da Idade do Ferro na África meridional ................ 749
Capítulo 28 Madagáscar ...................................................................... 773
Capítulo 29 As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro
Antiga .............................................................................. 803
Anexo Síntese do colóquio “O povoamento do antigo Egito e a
decifração da escrita meroíta ..................................................... 821
Conclusão ................................................................................................ 857
Membros do Comitê Científico Internacional para a Redação de
uma História Geral da África................................................... 865
Dados Biográficos dos Autores do Volume II ........................................ 867
Abreviações e Listas de Periódicos ......................................................... 871
Referências Bibliográficas ...................................................................... 879
Índice Remissivo ..................................................................................... 939
“Outra exigência imperativa é de que a história (e a cultura) da África devem pelo menos ser
vistas de dentro, não sendo medidas por réguas de valores estranhos... Mas essas conexões
têm que ser analisadas nos termos de trocas mútuas, e influências multilaterais em que algo
seja ouvido da contribuição africana para o desenvolvimento da espécie humana”. J. Ki-Zerbo,
História Geral da África, vol. I, p. LII.
A Representação da UNESCO no Brasil e o Ministério da Educação têm a satis-
fação de disponibilizar em português a Coleção da História Geral da África. Em seus
oito volumes, que cobrem desde a pré-história do continente africano até sua história
recente, a Coleção apresenta um amplo panorama das civilizações africanas. Com sua
publicação em língua portuguesa, cumpre-se o objetivo inicial da obra de colaborar para
uma nova leitura e melhor compreensão das sociedades e culturas africanas, e demons-
trar a importância das contribuições da África para a história do mundo. Cumpre-se,
também, o intuito de contribuir para uma disseminação, de forma ampla, e para uma
visão equilibrada e objetiva do importante e valioso papel da África para a humanidade,
assim como para o estreitamento dos laços históricos existentes entre o Brasil e a África.
O acesso aos registros sobre a história e cultura africanas contidos nesta Coleção se
reveste de significativa importância. Apesar de passados mais de 26 anos após o lança-
mento do seu primeiro volume, ainda hoje sua relevância e singularidade são mundial-
mente reconhecidas, especialmente por ser uma história escrita ao longo de trinta anos
por mais de 350 especialistas, sob a coordenação de um comitê científico internacional
constituído por 39 intelectuais, dos quais dois terços africanos.
A imensa riqueza cultural, simbólica e tecnológica subtraída da África para o conti-
nente americano criou condições para o desenvolvimento de sociedades onde elementos
europeus, africanos, das populações originárias e, posteriormente, de outras regiões do
mundo se combinassem de formas distintas e complexas. Apenas recentemente, tem-
se considerado o papel civilizatório que os negros vindos da África desempenharam
na formação da sociedade brasileira. Essa compreensão, no entanto, ainda está restrita
aos altos estudos acadêmicos e são poucas as fontes de acesso público para avaliar este
complexo processo, considerando inclusive o ponto de vista do continente africano.
APRESENTAÇÃO
VIII
África antiga
A publicação da Coleção da História Geral da África em português é também resul-
tado do compromisso de ambas as instituições em combater todas as formas de desigual-
dades, conforme estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),
especialmente no sentido de contribuir para a prevenção e eliminação de todas as formas
de manifestação de discriminação étnica e racial, conforme estabelecido na Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial de 1965.
Para o Brasil, que vem fortalecendo as relações diplomáticas, a cooperação econô-
mica e o intercâmbio cultural com aquele continente, essa iniciativa é mais um passo
importante para a consolidação da nova agenda política. A crescente aproximação com
os países da África se reflete internamente na crescente valorização do papel do negro
na sociedade brasileira e na denúncia das diversas formas de racismo. O enfrentamento
da desigualdade entre brancos e negros no país e a educação para as relações étnicas
e raciais ganhou maior relevância com a Constituição de 1988. O reconhecimento da
prática do racismo como crime é uma das expressões da decisão da sociedade brasileira
de superar a herança persistente da escravidão. Recentemente, o sistema educacional
recebeu a responsabilidade de promover a valorização da contribuição africana quando,
por meio da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e
com a aprovação da Lei 10.639 de 2003, tornou-se obrigatório o ensino da história e
da cultura africana e afro-brasileira no currículo da educação básica.
Essa Lei é um marco histórico para a educação e a sociedade brasileira por criar, via
currículo escolar, um espaço de diálogo e de aprendizagem visando estimular o conheci-
mento sobre a história e cultura da África e dos africanos, a história e cultura dos negros
no Brasil e as contribuições na formação da sociedade brasileira nas suas diferentes
áreas: social, econômica e política. Colabora, nessa direção, para dar acesso a negros e
não negros a novas possibilidades educacionais pautadas nas diferenças socioculturais
presentes na formação do país. Mais ainda, contribui para o processo de conhecimento,
reconhecimento e valorização da diversidade étnica e racial brasileira.
Nessa perspectiva, a UNESCO e o Ministério da Educação acreditam que esta publica-
ção estimulará o necesrio avanço e aprofundamento de estudos, debates e pesquisas sobre
a temática, bem como a elaboração de materiais pedagógicos que subsidiem a formação
inicial e continuada de professores e o seu trabalho junto aos alunos. Objetivam assim com
esta edição em português da Hisria Geral da África contribuir para uma efetiva educação
das relões étnicas e raciais no país, conforme orienta as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da Hisria e Cultura Afro-
brasileira e Africana aprovada em 2004 pelo Conselho Nacional de Educação.
Boa leitura e sejam bem-vindos ao Continente Africano.
Vincent Defourny Fernando Haddad
Representante da UNESCO no Brasil Ministro de Estado da Educação do Brasil
IX
NOTA DOS TRADUTORES
NOTA DOS TRADUTORES
A Conferência de Durban ocorreu em 2001 em um contexto mundial dife-
rente daquele que motivou as duas primeiras conferências organizadas pela
ONU sobre o tema da discriminação racial e do racismo: em 1978 e 1983 em
Genebra, na Suíça, o alvo da condenação era o apartheid.
A conferência de Durban em 2001 tratou de um amplo leque de temas, entre
os quais vale destacar a avaliação dos avanços na luta contra o racismo, na luta
contra a discriminação racial e as formas correlatas de discriminação; a avaliação
dos obstáculos que impedem esse avanço em seus diversos contextos; bem como
a sugestão de medidas de combate às expressões de racismo e intolerâncias.
Após Durban, no caso brasileiro, um dos aspectos para o equacionamento
da questão social na agenda do governo federal é a implementação de políticas
públicas para a eliminação das desvantagens raciais, de que o grupo afrodescen-
dente padece, e, ao mesmo tempo, a possibilidade de cumprir parte importante
das recomendações da conferência para os Estados Nacionais e organismos
internacionais.
No que se refere à educação, o diagnóstico realizado em novembro de 2007,
a partir de uma parceria entre a UNESCO do Brasil e a Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (SECAD/
MEC), constatou que existia um amplo consenso entre os diferentes participan-
tes, que concordavam, no tocante a Lei 10.639-2003, em relação ao seu baixo
grau de institucionalização e sua desigual aplicação no território nacional. Entre
X
África antiga
os fatores assinalados para a explicação da pouca institucionalização da lei estava
a falta de materiais de referência e didáticos voltados à História de África.
Por outra parte, no que diz respeito aos manuais e estudos disponíveis sobre
a História da África, havia um certo consenso em afirmar que durante muito
tempo, e ainda hoje, a maior parte deles apresenta uma imagem racializada e
eurocêntrica do continente africano, desfigurando e desumanizando especial-
mente sua história, uma história quase inexistente para muitos até a chegada
dos europeus e do colonialismo no século XIX.
Rompendo com essa visão, a História Geral da África publicada pela UNESCO
é uma obra coletiva cujo objetivo é a melhor compreensão das sociedades e cul-
turas africanas e demonstrar a importância das contribuições da África para a
história do mundo. Ela nasceu da demanda feita à UNESCO pelas novas nações
africanas recém-independentes, que viam a importância de contar com uma his-
tória da África que oferecesse uma visão abrangente e completa do continente,
para além das leituras e compreensões convencionais. Em 1964, a UNESCO
assumiu o compromisso da preparação e publicação da História Geral da África.
Uma das suas características mais relevantes é que ela permite compreender
a evolução histórica dos povos africanos em sua relação com os outros povos.
Contudo, até os dias de hoje, o uso da História Geral da África tem se limitado
sobretudo a um grupo restrito de historiadores e especialistas e tem sido menos
usada pelos professores/as e estudantes. No caso brasileiro, um dos motivos
desta limitação era a ausência de uma tradução do conjunto dos volumes que
compõem a obra em língua portuguesa.
A Universidade Federal de São Carlos, por meio do Núcleo de Estudos
Afrobrasileiros (NEAB/UFSCar) e seus parceiros, ao concluir o trabalho de
tradução e atualização ortográfica do conjunto dos volumes, agradece o apoio
da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD),
do Ministério da Educação (MEC) e da UNESCO por terem propiciado as
condições para que um conjunto cada vez maior de brasileiros possa conhecer e
ter orgulho de compartilhar com outros povos do continente americano o legado
do continente africano para nossa formação social e cultural.
Na apresentação das datas da pré -história convencionou -se adotar dois tipos
de notação, com base nos seguintes critérios:
• Tomando como ponto de partida a época atual, isto é, datas B.P. (before
present), tendo como referência o ano de + 1950; nesse caso, as datas são
todas negativas em relação a + 1950.
• Usando como referencial o início da Era Cristã; nesse caso, as datas
são simplesmente precedidas dos sinais - ou +. No que diz respeito aos
séculos, as menções “antes de Cristo” e depois de Cristo são substituídas
por “antes da Era Cristã”, “da Era Cristã”.
Exemplos:
(i) 2300 B.P. = -350
(ii) 2900 a.C. = -2900
1800 d.C. = +1800
(iii) século V a.C. = século V antes da Era Cristã
século III d.C. = século III da Era Cristã
CRONOLOGIA
XIII
Lista de Figuras
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 O Nilo, fotografado por um satélite Landsat em órbita a 920 km da
Terra ........................................................................................................... XXXVII
Figura 2 A Pedra de Palermo. .......................................................................................... XLI
Figura 3 O Papiro de Turim ............................................................................................XLII
Figura 4 Cheias sazonais do Nilo ................................................................................. XLVII
Figura 5 A Paleta em xisto de Narmer, I dinastia, face anterior e posterior .......................LII
Figura 6 Estátua do escriba sentado, Knubaf .................................................................LVIII
Figura 1.1 Representação proto -histórica de Tera -Neter, um nobre negro da raça dos
Anu, primeiros habitantes do Egito .......................................................................7
Figura 1.2 Estatuetas pré -dinásticas ........................................................................................7
Figura 1.3 Cabo da faca de Dje
bel el -Arak, Pré -Di
nástico Tardio ...................................... 14
Figura 1.4 Cativos semitas do tempo dos faraós. Rocha do Sinai
.......................................14
Figura 1.5 Cativos indo -europeus ......................................................................................... 15
Figura 1.6 Cativo indo -europeu ............................................................................................ 15
Figura 1.7 Quéops, faraó da IV dinastia, construtor da Grande Pirâmide ............................19
Figura 1.8 Faraó Mentuhotep I ............................................................................................. 20
Figura 1.9 Ramsés II e um Batutsi moderno ........................................................................23
Figura 1.10 A Esfinge, tal como foi encontrada pela primeira missão científica francesa
no século XIX ....................................................................................................23
Figuras 1.11, 1.12, 1.13 e 1.14 Quatro tipos indo -europeus .................................................24
Figura 1.15 Dois semitas ....................................................................................................... 24
Figura 1.16 Estrangeiro ......................................................................................................... 28
XIV
África antiga
Figura 1.17 Fechadura de porta, de Hieracâmpolis. I dinastia egípcia ...................................28
Figura 1.18 Prisioneiro líbio ..................................................................................................28
Figura 1.19 Um faraó da I dinastia egípcia ...........................................................................29
Figura 1. 20 Zoser, típico negro, faraó da III dinastia ...........................................................29
Figura 2.1 O Nilo, da Terceira Catarata até o Mediterrâneo ................................................40
Figura 2.2 Cronologia da história egípcia .............................................................................41
Figura 2.3 Tesouro de Tutancâmon. Anúbis na entrada do tesouro ......................................44
Figura 2.4 Quéfren ................................................................................................................49
Figura 2.5 Rainha Hatshepsut sentada..................................................................................59
Figura 2.6 Aquenáton diante do Sol ..................................................................................... 61
Figura 2.7 Tesouro de Tutancâmon ....................................................................................... 64
Figura 2.8 Howard Carter, o arqueólogo que descobriu o túmulo de Tutancâmon ..............64
Figura 3.1 Empilhamento do feno ........................................................................................71
Figura 3.2 Colheita ...............................................................................................................71
Figura 3.3 Caça ao hipopótamo ............................................................................................ 73
Figura 3.4 Pesca com rede ..................................................................................................... 73
Figura 3.5 Abastecimento dos celeiros (desenho) .................................................................80
Figura 3.6 Prestação de contas ..............................................................................................80
Figura 3.7 Tributo de prisioneiros líbios do Antigo Império ................................................ 85
Figura 3.8 Séti I matando um chefe líbio. ............................................................................ 85
Figura 3.9 Vindima e espre medura .......................................................................................90
Figura 4.1 O Chifre da África e as regiões vizinhas na Antiguidade ..................................100
Figura 4.2 Pelicanos domesticados ......................................................................................103
Figura 4.3 Operações navais ................................................................................................ 103
Figura 4.4 Tributo núbio de Rekhmira. ...............................................................................109
Figura 4.5 Habitações do reino de Punt. ............................................................................ 114
Figura 4.6 Tributo de Punt. ................................................................................................. 114
Figura 5.1 Fabricação de tijolos ...........................................................................................122
Figura 5.2 Fabricação de vasos de metal ............................................................................. 125
Figura 5.3 Fabricação da cerveja. Antigo Império ............................................................... 128
Figura 5.4 Modelo de uma oficina de tecelagem. XII dinastia, c. - 2000 ............................ 128
Figura 5.5 Marceneiros trabalhando.................................................................................... 129
Figura 5.6 Colunas protodóricas de Deir el -Bahari ............................................................ 132
Figura 5.7 As pirâmides de Snefru, no Dachur ................................................................... 132
Figura 5.8 Carnac: câmara do barco de Âmon .................................................................... 134
Figura 5.9 Gisé: câmara do barco de Quéops. ..................................................................... 134
Figura 5.10 Ramsés II (técnica dos fluidos) ........................................................................136
Figura 5.11 e 5.12 Vista parcial de Mirgissa, fortaleza militar construída
aproximadamente 4 mil anos ...........................................................................145
Figura 5.13 Colunas fasciculadas do templo de Sacará .......................................................146
XV
Lista de Figuras
Figura 5.14 e 5.15 Mirgissa: Rampa para barcos. ................................................................148
Figura 5.16 Um jardim egípcio ...........................................................................................149
Figura 5.17 Urbanismo: planta da cidade de Illahun (Kahun) ............................................149
Figura 5.18 Mirgissa ...........................................................................................................151
Figura 5.19 Mirgissa ...........................................................................................................151
Figura 5.20 Mirgissa, Muralha externa ............................................................................... 153
Figura 5.21 Mirgissa. Muralha setentrional ........................................................................ 153
Figura 5.22 Mirgissa. Casa particular ..................................................................................155
Figura 5.23 Modelo de uma casa do Médio Império .......................................................... 155
Figura 5.24 A deusa Hátor .................................................................................................. 157
Figura 6.1 Relevo representando a deusa Ísis com o filho Harpócrates em segundo
plano. ..................................................................................................................167
Figura 6.2 Cabeça de Alexandre, o Grande. ........................................................................ 170
Figura 6.3 O Farol de Alexandria. .......................................................................................173
Figura 6.4 O mundo segundo Heródoto e Hecateu ............................................................179
Figura 6.5 Ulisses fugindo de Polifemo, escondido sob o ventre de um carneiro. ............... 182
Figura 6.6 Pintura do túmulo de Anfushi, Alexandria ........................................................182
Figura 6.7 Fragmento de um balsamário em bronze ...........................................................184
Figura 6.8 Cabeça grotesca .................................................................................................. 184
Figura 6.9 Estatueta (fragmento): “acendedor de candeeiro negro, caminhando,
vestindo uma túnica e carregando uma pequena escada no braço esquerdo
(faltam o braço direito e os pés) .........................................................................184
Figura 6.10 Cleópatra VII ................................................................................................... 188
Figura 7.1 Cabeça de tetrarca ..............................................................................................194
Figura 7.2 Cabeça de Vespasiano ........................................................................................199
Figura 7.3 Termas romanas e hipocausto ............................................................................201
Figura 7.4 O corredor que circunda o teatro romano .......................................................... 201
Figura 7.5 Estatueta de um gladiador negro em pé, vestindo uma túnica, couraça e
elmo, armado de escudo e adaga ......................................................................... 204
Figura 7.6 Estatueta de um soldado negro em pé, empunhando um machado duplo .........204
Figura 7.7 Ladrilho de cerâmica: negro ajoelhado, soprando um instrumento musical ...... 204
Figura 7.8 Pintura de Baouit ...............................................................................................211
Figura 7.9 Mosteiro de Mari -Mina. .................................................................................... 211
Figura 8.1 O vale do Nilo e o Corredor Núbio ...................................................................214
Figura 8.2 A Núbia antiga................................................................................................... 216
Figura 8.3 A Alta Núbia sudanesa ...................................................................................... 217
Figura 8.4 Monumentos núbios de Filas em reconstrução na ilha vizinha de Agilkia ........ 220
Figura 8.5 O templo de Ísis em reconstrução em Agilkia ................................................... 220
Figura 9.1 A Núbia e o Egito .............................................................................................237
Figura 9.2 Tipos de sepulturas do Grupo A .......................................................................239
XVI
África antiga
Figura 9.3 Inscrição do rei Djer em Djebel Sheikh Suliman .............................................. 239
Figura 9.4 Tipos de cerâmica do Grupo A ......................................................................... 239
Figura 9.5 Sepulturas típicas do Grupo C .......................................................................... 244
Figura 9.6 Tipos de cerâmica do Grupo C .........................................................................244
Figura 9.7 A Núbia, 1580 antes da Era Cristã .................................................................... 247
Figura 9.8 As fortificações ocidentais de uma fortaleza do Médio Império em Buhen ...... 249
Figuras 9.9, 9.10 e 9.11 Cerâmica de Kerma ......................................................................251
Figuras 9.12 e 9.13 Cerâmica de Kerma ............................................................................. 253
Figura 9.14 Kerma: o Dufufa do Leste, com uma sepultura no primeiro plano ................. 255
Figura 9.15
Sepultura de Kerma ......................................................................................... 255
Figuras 9.16 e 9.17 Cerâmica de Kerma ............................................................................. 258
Figura 9.18 Ornamentos pessoais........................................................................................ 260
Figura 9.19 Cerâmica de Kerma ......................................................................................... 260
Figura 9.20 A Núbia durante o Novo Império ...................................................................262
Figura 9.21 O templo de Amenófis III em Soleb ...............................................................265
Figuras 9.22 e 9.23 Tipos de sepulturas do Novo Império. .................................................270
Figura 10.1 Saqia ................................................................................................................. 279
Figura 10.2 Estátua do rei Aspelta, em granito negro da Etiópia ....................................... 281
Figura 10.3 Detalhe (busto) ................................................................................................ 281
Figura 10.4 A rainha Amanishaketo: relevo da pirâmide Beg N6 de Méroe ...................... 287
Figura 10.5 Artigo de vidro azul pintado, de Sedinga .........................................................291
Figura 10.6 Coroa de Ballana ..............................................................................................291
Figura 10.7 Sítios meroítas .................................................................................................. 293
Figura 11.1 Carneiro de granito em Naga ..........................................................................301
Figura 11.2 Pirâmide do rei Natakamani em Méroe, com ruínas de capela e pilono
em primeiro plano ............................................................................................ 301
Figura 11.3 Placa de arenito representando o príncipe Arikankharor massacrando seus
inimigos (possivelmente do século II da Era Cristã) .......................................307
Figura 11.4 Rei Arnekhamani (templo dos leões em Mussawarat es -Sufra) ......................307
Figura 11.5 Recipientes de bronze originários de Méroe .................................................... 315
Figura 11.6 Várias peças de cerâmica meroíta ..................................................................... 321
Figura 11.7 Joias de ouro da rainha Amanishaketo (-41 a -12) .......................................... 323
Figura 11.8 O deus Apedemak conduzindo outros deuses meroítas ................................... 329
Figura 11.9 O deus meroíta Sebiumeker (templo dos leões em Mussawarat es -Sufra) ......329
Figura 12.1 O Nilo da Primeira à Sexta Catarata ............................................................... 335
Figura 12.2 Arcadas da fachada leste da igreja de Qasr Ibrim ............................................ 337
Figura 12.3 Catedral de Faras ............................................................................................. 337
Figura 12.4 Planta geral do sítio no interior das muralhas.................................................. 343
Figura 12.5 Edifícios cristãos descobertos pela expedição polonesa (1961 -1964) ...............343
Figura 12.6 Cabeça de Santa Ana: mural da nave norte da catedral de Faras
(século VIII) ..................................................................................................... 345
XVII
Lista de Figuras
Figura 12.7 Faras: verga de porta decorada do início da Era Cristã (segunda metade do
século VI ou início do século VII) ...................................................................... 345
Figura 12.8 Fragmento de um friso decorativo em arenito do abside da catedral de
Faras (primeira metade do século VII)............................................................. 347
Figura 12.9 Faras: Capitel de arenito (primeira metade do século VII) .............................. 347
Figura 12.10 Janela em terracota da Igreja das Colunas de Granito na Velha Dongola,
Sudão (fim do século VII) ............................................................................. 348
Figura 12.11 Cerâmica da Núbia cristã ............................................................................... 348
Figura 13.1 A Etiópia no período sul -arábico .....................................................................353
Figura 13.2 O “trono ou “naos” de Haúlti .......................................................................... 356
Figura 13.3 Estátua de Haúlti ............................................................................................. 358
Figura 13.4 Altar de incenso em Addi Galamo ..................................................................358
Figura 13. 5 A Etiópia no período pré -axumita intermediário ...........................................369
Figura 13.6 Touro em bronze, Mahabere Dyogwe ..............................................................373
Figuras 13.7, 13.8 e 13.9 Marcas de identidade em bronze de Yeha, em forma de
pássaro, de leão e de ca brito montês ................................................................. 373
Figura 14.1 Fotografia aérea de Axum. (Foto Instituto Etíope de Arqueologia.) ...............378
Figura 14.2 Leoa esculpida na parte lateral de uma rocha, período axumita .......................384
Figura 14.3 Matara: alicerce de um edifício axumita...........................................................384
Figura 14.4 Base de um trono .............................................................................................390
Figura 14.5 Matara: inscrição do século II da Era Cristã ................................................... 390
Figura 14.6 Gargalo de jarro ............................................................................................... 393
Figura 14.7 Incensório de estilo alexandrino .......................................................................393
Figura 14.8 Presa de elefante ............................................................................................... 393
Figura 15.1 Mapa da expansão axumita .............................................................................. 402
Figura 15.2
Moeda de ouro do rei Endybis (século III da Era Cristã) ................................407
Figura 15.3 Moeda de ouro do reino de Ousanas ............................................................... 407
Figura 15.4 Inscrição grega de Ezana (século IV) .............................................................. 416
Figura 15.5 Inscrição em caracteres pseudo -sabeanos de Wa’Zaba (século VI) .................. 422
Figura 16.1 O bispo Frumêncio, o rei Abraha (Ezana) e seu irmão Atsbaha, igreja de
Abraba we Atsbaha (século XVII) ...................................................................433
Figura 16.2 Debre -Damo visto a distância. ......................................................................... 437
Figura 16.3 O acesso ao convento em Debre -Damo. .......................................................... 437
Figura 16.4 Pintura da igreja de Goh: os Apóstolos (século XV) .......................................440
Figura 16.5 Igreja de Abba Aregawi em Debre -Damo ....................................................... 449
Figura 16.6 Chantres inclinando -se religiosamente ............................................................ 449
Figura 17.1 Crânio de Columnata ......................................................................................455
Figura 17.2 Homem de Champlain: crânio ibero -maurusiense ..........................................457
Figura 17.3 Crânio de homem capsiense ............................................................................ 457
Figura 17.4 Leões de Kbor Roumia ..................................................................................... 468
Figura 17.5 Estela líbia de Abizar (sudeste de Tigzirt) ....................................................... 471
XVIII
África antiga
Figura 19.1 As províncias romanas da África do Norte no final do século II da Era
Cristã................................................................................................................503
Figura 19.2 Timgad (antiga Thamugadi, Argélia): Avenida e Arco de Trajano .................. 505
Figura 19.3 Mactar (antiga Mactaris, Tunísia): Arco de Trajano, entrada do fórum ...........505
Figura 19.4 As províncias romanas da África do Norte no final do século IV da Era
Cristã................................................................................................................511
Figura 19.5 O aqueduto de Chercell (Argélia) ....................................................................520
Figura 19.6 Sabrata (Líbia): Frons scaenae do teatro romano .............................................. 520
Figura 19.7 Mosaico de Susa: Virgílio escrevendo a “Eneida” ............................................. 529
Figura 19.8 Djemila (antiga Cuicul, Argélia): centro da cidade ..........................................535
Figura 19.9 Lebda (antiga Leptis Magna, Líbia): trabalhos em curso no anfiteatro
romano ............................................................................................................. 535
Figura 19.10 Mosaico de Chebba: Triunfo de Netuno ....................................................... 539
Figura 19.11 Trípoli (antiga Oea, Líbia): Arco do Triunfo de Marco Aurélio .................... 543
Figura 19.12 Timgad (Argélia): Fortaleza bizantina, século VI .......................................... 555
Figura 19.13 e 19.14 Haidra (Tunísia): Fortaleza bizantina, século VI. Detalhe e
vista geral ....................................................................................................... 557
Figura 19.15 Sbeitla (Tunísia): Prensa de azeite instalada numa antiga rua da cidade
romana (séculos VI a VII) ..................................................................................559
Figura 19.16 Djedar de Ternaten, perto de Frenda (Argélia): Câmara funerária,
século VI. ....................................................................................................... 559
Figura 20.1 Esqueleto da “rainha Tin Hinan .....................................................................572
Figura 20.2 Bracelete de ouro da “rainha Tin Hinan ......................................................... 572
Figura 20.3 O túmulo da “rainha Tin Hinan em Abalessa................................................. 575
Figura 20.4 Tipos “garamantes” num mosaico romano de Zliten, Tripolitânia ................... 579
Figuras 20.5 e 20.6 A avaliação da idade das pinturas rupestres baseia -se em critérios
de estilo e de pátina .......................................................................................... 581
Figura 21.1 Hipóteses da origem dos Bantu e do início da metalurgia do ferro ................. 587
Figura 21.2 Jazidas de cobre e rotas de caravana através do Saara ...................................... 599
Figura 23.1 África oriental: mapa político e mapa indicativo da distribuição de línguas
e povos ............................................................................................................. 629
Figura 23.2 Agrupamentos de línguas africanas ocidentais e suas relações de parentesco. .. 642
Figura 24.1 África ocidental: sítios pré -históricos importantes ...........................................663
Figura 24.2 Saara: mapa do relevo ......................................................................................664
Figura 24.3 Complexo do vale de Tilemsi........................................................................... 667
Figura 24.4 Região de Tichitt .............................................................................................670
Figura 24.5 Montículos de detritos do Firki ....................................................................... 685
Figura 25.1 Mapa da África central com a indicação dos lugares mencionados
no texto. ............................................................................................................692
Figura 25.2 Mapa da África Central com a indicação das regiões de ocupação
neolítica” e da “Idade do Ferro Antiga ........................................................... 695
Figura 25.3 Machado polido uelense (hematita) ................................................................. 698
XIX
Lista de Figuras
Figura 25.4 Objetos encontrados no sítio de Batalimo, no sul de Bangui
(República Centro -Africana) ......................................................................... 703
Figura 25.5 Objetos encontrados em Sanga ........................................................................ 705
Figura 26.1 Pintura rupestre: mulheres com bastões de cavar lastreados por pedras
perfuradas ........................................................................................................... 723
Figura 26.2 Grupo de homens com arcos, flechas e aljavas .................................................723
Figura 26.3 Cena de pesca de Tsoelike, Lesoto ................................................................... 723
Figura 26.4 Grupo de caçadores em sua caverna, cercados por uma série de bastões
de cavar, bolsas, aljavas e arcos..........................................................................729
Figura 26.5 Grande grupo de figuras, a maioria delas visivelmente masculinas,
provavelmente numa cena de dança ................................................................. 729
Figura 26.6 Os encontros ocasionais de grupos são assinalados muito mais pelo
conflito do que pela cooperação ....................................................................... 729
Figura 26.7 Mapa da África meridional mostrando a distribuição de sítios da Idade
da Pedra Recente ................................................................................................ 737
Figura 26.8 As mais antigas datas conhecidas para o aparecimento da cerâmica e
dos animais domésticos nos contextos da Idade da Pedra Recente na
África austral .................................................................................................... 738
Figura 26.9 Rebanho de carneiros de cauda grossa .............................................................742
Figura 26.10 Galeão pintado nas montanhas do Cabo ocidental ........................................ 742
Figura 26.11 Carroças, cavalos e trekkers (migrantes) observados quando se dirigiam
para as pastagens entre montanhas do Cabo ocidental no princípio
do século XVIII da Era Cristã ......................................................................747
Figura 26.12 Grupo de pequenos ladrões de gado armados com arcos e flechas,
defendendo sua presa contra figuras maiores munidas de escudos e
lanças .............................................................................................................747
Figura 27.1 África meridional: sítios da Idade do Ferro Antiga e sítios conexos
mencionados no texto ......................................................................................751
Figura 27.2 África meridional: sítios. ..................................................................................753
Figura 27.3 Cerâmica de Mabveni e de Dambwa ............................................................... 758
Figura 27.4 Cerâmica da Idade do Ferro Antiga proveniente de Twickenham Road
e de Kalundu .................................................................................................... 758
Figura 28.1 Madagáscar: lugares citados no texto ...............................................................775
Figura 28.2 Madagáscar: sítios importantes ........................................................................ 777
Figura 28.3 Aldeia de Andavadoaka no sudoeste ................................................................ 780
Figura 28.4 Cemitério de Ambohimalaza (Imerina) ...........................................................780
Figura 28.5 Porta antiga de Miandrivahiny Ambohimanga, Imerina .................................784
Figura 28.6 Canoa de pesca vezo de tipo indonésio, com balancim ....................................788
Figura 28.7 Fole de forja com duplo pistão do tipo encontrado na Indonésia .................... 788
Figura 28.8 Cemitério de Marovoay, perto de Morondava. ...............................................791
Figura 28.9 Estátua de Antsary: arte antanosy das proximidades de Fort -Dauphin ...........791
Figura 28.10 Cerâmica chinesa de Vohemar ....................................................................... 795
XX
África antiga
Figura 28.11 Caldeirão de pedra, civilização de Vohemar ................................................... 795
Figura 28.12 Arrozais em terraços nas proximidades de Ambositra, semelhantes aos
de Luzón, nas Filipinas .................................................................................. 799
Figura 28.13 Exercício de geomancia: extremo sul.............................................................. 799
Figura 28.14 Túmulo antalaotse em Antsoheribory ............................................................ 801
Figura 28.15 Cerâmicas de Kingany e de Rasoky (século XV). Anzóis de Takaly
(século XII) ....................................................................................................801
XXI
Prefácio
PREFÁCIO
por M. Amadou - Mahtar M’Bow,
Diretor Geral da UNESCO (1974-1987)
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie esconderam do
mundo a real história da África. As sociedades africanas passavam por socie-
dades que não podiam ter história. Apesar de importantes trabalhos efetuados
desde as primeiras décadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius,
Maurice Delafosse e Arturo Labriola, um grande número de especialistas o
africanos, ligados a certos postulados, sustentavam que essas sociedades não
podiam ser objeto de um estudo científico, notadamente por falta de fontes e
documentos escritos.
Se a Ilíada e a Odisseia podiam ser devidamente consideradas como fontes
essenciais da história da Grécia antiga, em contrapartida, negava-se todo valor
à tradição oral africana, essa memória dos povos que fornece, em suas vidas, a
trama de tantos acontecimentos marcantes. Ao escrever a história de grande
parte da África, recorria-se somente a fontes externas à África, oferecendo
uma visão não do que poderia ser o percurso dos povos africanos, mas daquilo
que se pensava que ele deveria ser. Tomando frequentemente a Idade Média
europeia como ponto de referência, os modos de produção, as relações sociais
tanto quanto as instituições políticas não eram percebidos senão em referência
ao passado da Europa.
Com efeito, havia uma recusa a considerar o povo africano como o criador
de culturas originais que floresceram e se perpetuaram, através dos séculos, por
XXII
África antiga
vias que lhes são próprias e que o historiador só pode apreender renunciando a
certos preconceitos e renovando seu método.
Da mesma forma, o continente africano quase nunca era considerado como
uma entidade histórica. Em contrário, enfatizava-se tudo o que pudesse refor-
çar a ideia de uma cisão que teria existido, desde sempre, entre uma África
branca” e uma “África negra que se ignoravam reciprocamente. Apresentava-se
frequentemente o Saara como um espaço impenetrável que tornaria impossíveis
misturas entre etnias e povos, bem como trocas de bens, crenças, hábitos e ideias
entre as sociedades constituídas de um lado e de outro do deserto. Traçavam-se
fronteiras intransponíveis entre as civilizações do antigo Egito e da Núbia e
aquelas dos povos subsaarianos.
Certamente, a história da África norte-saariana esteve antes ligada àquela da
bacia mediterrânea, muito mais que a história da África subsaariana mas, nos
dias atuais, é amplamente reconhecido que as civilizações do continente africano,
pela sua variedade linguística e cultural, formam em graus variados as vertentes
históricas de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laços seculares.
Um outro fenômeno que grandes danos causou ao estudo objetivo do passado
africano foi o aparecimento, com o tráfico negreiro e a colonização, de estereótipos
raciais criadores de desprezo e incompreensão, tão profundamente consolidados
que corromperam inclusive os próprios conceitos da historiografia. Desde que
foram empregadas as noções de brancos e negros”, para nomear genericamente
os colonizadores, considerados superiores, e os colonizados, os africanos foram
levados a lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado
pela pigmentação de sua pele, transformado em uma mercadoria entre outras,
e destinado ao trabalho forçado, o africano veio a simbolizar, na consciência de
seus dominadores, uma essência racial imaginária e ilusoriamente inferior: a de
negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos africanos
no espírito de muitos, rebaixando-a a uma etno-história, em cuja apreciação das
realidades históricas e culturais não podia ser senão falseada.
A situação evoluiu muito desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em
particular, desde que os países da África, tendo alcançado sua independência,
começaram a participar ativamente da vida da comunidade internacional e dos
intercâmbios a ela inerentes. Historiadores, em número crescente, têm se esfor-
çado em abordar o estudo da África com mais rigor, objetividade e abertura de
espírito, empregando obviamente com as devidas precauções fontes africanas
originais. No exercício de seu direito à iniciativa histórica, os próprios africanos
sentiram profundamente a necessidade de restabelecer, em bases sólidas, a his-
toricidade de suas sociedades.
XXIII
Prefácio
É nesse contexto que emerge a importância da História Geral da África, em
oito volumes, cuja publicação a Unesco começou.
Os especialistas de numerosos países que se empenharam nessa obra, pre-
ocuparam-se, primeiramente, em estabelecer-lhe os fundamentos teóricos e
metodológicos. Eles tiveram o cuidado em questionar as simplificações abusivas
criadas por uma concepção linear e limitativa da história universal, bem como
em restabelecer a verdade dos fatos sempre que necessário e possível. Eles esfor-
çaram-se para extrair os dados históricos que permitissem melhor acompanhar
a evolução dos diferentes povos africanos em sua especificidade sociocultural.
Nessa tarefa imensa, complexa e árdua em vista da diversidade de fontes e
da dispersão dos documentos, a UNESCO procedeu por etapas. A primeira
fase (1965-1969) consistiu em trabalhos de documentação e de planificação da
obra. Atividades operacionais foram conduzidas in loco, através de pesquisas de
campo: campanhas de coleta da tradição oral, criação de centros regionais de
documentação para a tradição oral, coleta de manuscritos inéditos em árabe e
ajami (línguas africanas escritas em caracteres árabes), compilação de inventários
de arquivos e preparação de um Guia das fontes da história da África, publicado
posteriormente, em nove volumes, a partir dos arquivos e bibliotecas dos países
da Europa. Por outro lado, foram organizados encontros, entre especialistas
africanos e de outros continentes, durante os quais se discutiu questões meto-
dológicas e traçou-se as grandes linhas do projeto, após atencioso exame das
fontes disponíveis.
Uma segunda etapa (1969 a 1971) foi consagrada ao detalhamento e à articu-
lação do conjunto da obra. Durante esse período, realizaram-se reuniões interna-
cionais de especialistas em Paris (1969) e Addis-Abeba (1970), com o propósito
de examinar e detalhar os problemas relativos à redação e à publicação da obra:
apresentação em oito volumes, edição principal em inglês, francês e árabe, assim
como traduções para línguas africanas, tais como o kiswahili, o hawsa, o peul, o
yoruba ou o lingala. Igualmente estão previstas traduções para o alemão, russo,
português, espanhol e chinês
1
, além de edições resumidas, destinadas a um
público mais amplo, tanto africano quanto internacional.
1 O volume I foi publicado em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano, kiswahi-
li, peul e português; o volume II, em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano,
kiswahili, peul e português; o volume III, em inglês, árabe, espanhol e francês; o volume IV, em inglês,
árabe, chinês, espanhol, francês e português; o volume V, em inglês e árabe; o volume VI, em inglês,
árabe e francês; o volume VII, em inglês, árabe, chinês, espanhol, francês e português; o VIII, em inglês
e francês.
XXIV
África antiga
A terceira e última fase constituiu-se na redação e na publicação do trabalho.
Ela começou pela nomeação de um Comitê Científico Internacional de trinta e
nove membros, composto por africanos e não africanos, na respectiva proporção
de dois terços e um terço, a quem incumbiu-se a responsabilidade intelectual
pela obra.
Interdisciplinar, o método seguido caracterizou-se tanto pela pluralidade
de abordagens teóricas quanto de fontes. Dentre essas últimas, é preciso citar
primeiramente a arqueologia, detentora de grande parte das chaves da história
das culturas e das civilizações africanas. Graças a ela, admite-se, nos dias atuais,
reconhecer que a África foi, com toda probabilidade, o berço da humanidade,
palco de uma das primeiras revoluções tecnológicas da história, ocorrida no
período Neolítico. A arqueologia igualmente mostrou que, na África, especifi-
camente no Egito, desenvolveu-se uma das antigas civilizações mais brilhantes
do mundo. Outra fonte digna de nota é a tradição oral que, até recentemente
desconhecida, aparece hoje como uma preciosa fonte para a reconstituição da
história da África, permitindo seguir o percurso de seus diferentes povos no
tempo e no espaço, compreender, a partir de seu interior, a visão africana do
mundo, e apreender os traços originais dos valores que fundam as culturas e as
instituições do continente.
Saber-se-á reconhecer o mérito do Comitê Científico Internacional encarre-
gado dessa História geral da África, de seu relator, bem como de seus coordena-
dores e autores dos diferentes volumes e capítulos, por terem lançado uma luz
original sobre o passado da África, abraçado em sua totalidade, evitando todo
dogmatismo no estudo de questões essenciais, tais como: o tráfico negreiro, essa
sangria sem fim”, responsável por umas das deportações mais cruéis da história
dos povos e que despojou o continente de uma parte de suas forças vivas, no
momento em que esse último desempenhava um papel determinante no pro-
gresso econômico e comercial da Europa; a colonização, com todas suas conse-
quências nos âmbitos demográfico, econômico, psicológico e cultural; as relações
entre a África ao sul do Saara e o mundo árabe; o processo de descolonização e
de construção nacional, mobilizador da razão e da paixão de pessoas ainda vivas
e muitas vezes em plena atividade. Todas essas questões foram abordadas com
grande preocupação quanto à honestidade e ao rigor científico, o que constitui
um mérito não desprezível da presente obra. Ao fazer o balanço de nossos
conhecimentos sobre a África, propondo diversas perspectivas sobre as culturas
africanas e oferecendo uma nova leitura da história, a História geral da África
tem a indiscutível vantagem de destacar tanto as luzes quanto as sombras, sem
dissimular as divergências de opinião entre os estudiosos.
XXV
Prefácio
Ao demonstrar a insuficiência dos enfoques metodológicos amiúde utiliza-
dos na pesquisa sobre a África, essa nova publicação convida à renovação e ao
aprofundamento de uma dupla problemática, da historiografia e da identidade
cultural, unidas por laços de reciprocidade. Ela inaugura a via, como todo tra-
balho histórico de valor, para múltiplas novas pesquisas.
É assim que, em estreita colaboração com a UNESCO, o Comitê Científico
Internacional decidiu empreender estudos complementares com o intuito de
aprofundar algumas questões que permitirão uma visão mais clara sobre certos
aspectos do passado da África. Esses trabalhos, publicados na coleção UNESCO
História geral da África: estudos e documentos, virão a constituir, de modo útil,
um suplemento à presente obra
2
. Igualmente, tal esforço desdobrar-se-á na
elaboração de publicações versando sobre a história nacional ou sub-regional.
Essa História geral da África coloca simultaneamente em foco a unidade his-
tórica da África e suas relações com os outros continentes, especialmente com as
Américas e o Caribe. Por muito tempo, as expressões da criatividade dos afro-
descendentes nas Américas haviam sido isoladas por certos historiadores em um
agregado heteróclito de africanismos; essa visão, obviamente, não corresponde
àquela dos autores da presente obra. Aqui, a resistência dos escravos deportados
para a América, o fato tocante ao marronage [fuga ou clandestinidade] político
e cultural, a participação constante e massiva dos afrodescendentes nas lutas da
primeira independência americana, bem como nos movimentos nacionais de
libertação, esses fatos são justamente apreciados pelo que eles realmente foram:
vigorosas afirmações de identidade que contribuíram para forjar o conceito
universal de humanidade. É hoje evidente que a herança africana marcou, em
maior ou menor grau, segundo as regiões, as maneiras de sentir, pensar, sonhar
e agir de certas nações do hemisfério ocidental. Do sul dos Estados Unidos ao
norte do Brasil, passando pelo Caribe e pela costa do Pacífico, as contribuições
culturais herdadas da África são visíveis por toda parte; em certos casos, inclu-
sive, elas constituem os fundamentos essenciais da identidade cultural de alguns
dos elementos mais importantes da população.
2 Doze números dessa série foram publicados; eles tratam respectivamente sobre: n. 1 − O povoamento
do Egito antigo e a decodicação da escrita meroítica; n. 2 − O tráco negreiro do século XV ao século
XIX; n. 3 – Relações históricas através do Oceano Índico; n. 4 – A historiograa da África Meridional;
n. 5 A descolonização da África: África Meridional e Chifre da África [Nordeste da África]; n. 6
Etnonímias e toponímias; n. 7 – As relações históricas e socioculturais entre a África e o mundo árabe; n.
8 A metodologia da história da África contemporânea; n. 9 – O processo de educação e a historiograa
na África; n. 10 – A África e a Segunda Guerra Mundial; n. 11 – Líbia Antiqua; n. 12 O papel dos
movimentos estudantis africanos na evolução política e social da África de 1900 a 1975.
XXVI
África antiga
Igualmente, essa obra faz aparecerem nitidamente as relações da África com
o sul da Ásia através do Oceano Índico, além de evidenciar as contribuições
africanas junto a outras civilizações em seu jogo de trocas mútuas.
Estou convencido de que os esforços dos povos da África para conquistar
ou reforçar sua independência, assegurar seu desenvolvimento e consolidar suas
especificidades culturais devem enraizar-se em uma consciência histórica reno-
vada, intensamente vivida e assumida de geração em geração.
Minha formação pessoal, a experiência adquirida como professor e, desde
os primórdios da independência, como presidente da primeira comissão criada
com vistas à reforma dos programas de ensino de história e de geografia de
certos países da África Ocidental e Central, ensinaram-me o quanto era neces-
sário, para a educação da juventude e para a informação do público, uma obra
de história elaborada por pesquisadores que conhecessem desde o seu interior
os problemas e as esperanças da África, pensadores capazes de considerar o
continente em sua totalidade.
Por todas essas razões, a UNESCO zelará para que essa História Geral da
África seja amplamente difundida, em numerosos idiomas, e constitua base
da elaboração de livros infantis, manuais escolares e emissões televisivas ou
radiofônicas. Dessa forma, jovens, escolares, estudantes e adultos, da África
e de outras partes, poderão ter uma melhor visão do passado do continente
africano e dos fatores que o explicam, além de lhes oferecer uma compreensão
mais precisa acerca de seu patrimônio cultural e de sua contribuição ao pro-
gresso geral da humanidade. Essa obra deverá então contribuir para favorecer
a cooperação internacional e reforçar a solidariedade entre os povos em suas
aspirações por justiça, progresso e paz. Pelo menos, esse é o voto que manifesto
muito sinceramente.
Resta-me ainda expressar minha profunda gratidão aos membros do Comitê
Científico Internacional, ao redator, aos coordenadores dos diferentes volu-
mes, aos autores e a todos aqueles que colaboraram para a realização desta
prodigiosa empreitada. O trabalho por eles efetuado e a contribuição por eles
trazida mostram, com clareza, o quanto homens vindos de diversos horizontes,
conquanto animados por uma mesma vontade e igual entusiasmo a serviço da
verdade de todos os homens, podem fazer, no quadro internacional oferecido
pela UNESCO, para lograr êxito em um projeto de tamanho valor científico
e cultural. Meu reconhecimento igualmente estende-se às organizações e aos
governos que, graças a suas generosas doações, permitiram à UNESCO publi-
car essa obra em diferentes línguas e assegurar-lhe a difusão universal que ela
merece, em prol da comunidade internacional em sua totalidade.
APRESENTAÇÃO DO PROJETO
pelo Professor Bethwell Allan Ogot
Presidente do Comitê Cientíco Internacional
para a redação de uma História Geral da África
A Conferência Geral da UNESCO, em sua décima sexta sessão, solicitou
ao Diretor -geral que empreendesse a redação de uma História Geral da África.
Esse considerável trabalho foi confiado a um Comitê Científico Internacional
criado pelo Conselho Executivo em 1970.
Segundo os termos dos estatutos adotados pelo Conselho Executivo da
UNESCO, em 1971, esse Comitê compõe -se de trinta e nove membros res-
ponsáveis (dentre os quais dois terços africanos e um terço de não africanos),
nomeados pelo Diretor -geral da UNESCO por um período correspondente à
duração do mandato do Comitê.
A primeira tarefa do Comitê consistiu em definir as principais características
da obra. Ele definiu -as em sua primeira sessão, nos seguintes termos:
• Em que pese visar a maior qualidade científica possível, a História Geral
da África não busca a exaustão e se pretende uma obra de síntese que
evitará o dogmatismo. Sob muitos aspectos, ela constitui uma exposição
dos problemas indicadores do atual estágio dos conhecimentos e das
grandes correntes de pensamento e pesquisa, não hesitando em assinalar,
em tais circunstâncias, as divergências de opinião. Ela assim preparará o
caminho para posteriores publicações.
• A África é aqui considerada como um todo. O objetivo é mostrar as
relações históricas entre as diferentes partes do continente, muito amiúde
XXVIII
África antiga
subdividido, nas obras publicadas até o momento. Os laços históricos
da África com os outros continentes recebem a atenção merecida e são
analisados sob o ângulo dos intercâmbios mútuos e das influências mul-
tilaterais, de forma a fazer ressurgir, oportunamente, a contribuição da
África para o desenvolvimento da humanidade.
A História Geral da África consiste, antes de tudo, em uma história das ideias
e das civilizações, das sociedades e das instituições. Ela fundamenta -se sobre
uma grande diversidade de fontes, aqui compreendidas a tradição oral e a
expressão artística.
• A História Geral da África é aqui essencialmente examinada de seu inte-
rior. Obra erudita, ela também é, em larga medida, o fiel reflexo da
maneira através da qual os autores africanos veem sua própria civilização.
Embora elaborada em âmbito internacional e recorrendo a todos os
dados científicos atuais, a História será igualmente um elemento capital
para o reconhecimento do patrimônio cultural africano, evidenciando os
fatores que contribuem para a unidade do continente. Essa vontade de
examinar os fatos de seu interior constitui o ineditismo da obra e poderá,
além de suas qualidades científicas, conferir -lhe um grande valor de
atualidade. Ao evidenciar a verdadeira face da África, a História poderia,
em uma época dominada por rivalidades econômicas e técnicas, propor
uma concepção particular dos valores humanos.
O Comitê decidiu apresentar a obra, dedicada ao estudo de mais de 3 milhões
de anos de história da África, em oito volumes, cada qual compreendendo
aproximadamente oitocentas páginas de texto com ilustrações (fotos, mapas e
desenhos tracejados).
Para cada volume designou -se um coordenador principal, assistido, quando
necessário, por um ou dois codiretores assistentes.
Os coordenadores dos volumes são escolhidos, tanto entre os membros do
Comitê quanto fora dele, em meio a especialistas externos ao organismo, todos
eleitos por esse último, pela maioria de dois terços. Eles se encarregam da ela-
boração dos volumes, em conformidade com as decisões e segundo os planos
decididos pelo Comitê. São eles os responsáveis, no plano científico, perante
o Comitê ou, entre duas sessões do Comitê, perante o Conselho Executivo,
pelo conteúdo dos volumes, pela redação final dos textos ou ilustrações e, de
uma maneira geral, por todos os aspectos científicos e técnicos da História. É
o Conselho Executivo quem aprova, em última instância, o original definitivo.
Uma vez considerado pronto para a edição, o texto é remetido ao Diretor -Geral
XXIX
Apresentação do Projeto
da UNESCO. A responsabilidade pela obra cabe, dessa forma, ao Comitê ou,
entre duas sessões do Comitê, ao Conselho Executivo.
Cada volume compreende por volta de 30 capítulos. Cada qual redigido por
um autor principal, assistido por um ou dois colaboradores, caso necessário.
Os autores são escolhidos pelo Comitê em função de seu curriculum vitae.
A preferência é concedida aos autores africanos, sob reserva de sua adequação
aos títulos requeridos. Além disso, o Comitê zela, tanto quanto possível, para
que todas as regiões da África, bem como outras regiões que tenham mantido
relações históricas ou culturais com o continente, estejam de forma equitativa
representadas no quadro dos autores.
Após aprovação pelo coordenador do volume, os textos dos diferentes capí-
tulos são enviados a todos os membros do Comitê para submissão à sua crítica.
Ademais e finalmente, o texto do coordenador do volume é submetido ao
exame de um comitê de leitura, designado no seio do Comitê Científico Inter-
nacional, em função de suas competências; cabe a esse comirealizar uma
profunda análise tanto do conteúdo quanto da forma dos capítulos.
Ao Conselho Executivo cabe aprovar, em última instância, os originais.
Tal procedimento, aparentemente longo e complexo, revelou -se necessário,
pois permite assegurar o máximo de rigor científico à História Geral da África.
Com efeito, houve ocasiões nas quais o Conselho Executivo rejeitou origi-
nais, solicitou reestruturações importantes ou, inclusive, confiou a redação de
um capítulo a um novo autor. Eventualmente, especialistas de uma questão ou
período específico da história foram consultados para a finalização definitiva
de um volume.
Primeiramente, uma edição principal da obra em inglês, francês e árabe será
publicada, posteriormente haverá uma edição em forma de brochura, nesses
mesmos idiomas.
Uma versão resumida em inglês e francês servirá como base para a tradução
em línguas africanas. O Comi Científico Internacional determinou quais
os idiomas africanos para os quais serão realizadas as primeiras traduções: o
kiswahili e o haussa.
Tanto quanto possível, pretende -se igualmente assegurar a publicação da
História Geral da África em vários idiomas de grande difusão internacional
(dentre outros: alemão, chinês, italiano, japonês, português, russo, etc.).
Trata -se, portanto, como se pode constatar, de uma empreitada gigantesca
que constitui um ingente desafio para os historiadores da África e para a comu-
nidade científica em geral, bem como para a UNESCO que lhe oferece sua
chancela. Com efeito, pode -se facilmente imaginar a complexidade de uma
XXX
África antiga
tarefa tal qual a redação de uma história da África, que cobre no espaço todo
um continente e, no tempo, os quatro últimos milhões de anos, respeitando,
todavia, as mais elevadas normas científicas e convocando, como é necessário,
estudiosos pertencentes a todo um leque de países, culturas, ideologias e tra-
dições históricas. Trata -se de um empreendimento continental, internacional e
interdisciplinar, de grande envergadura.
Em conclusão, obrigo -me a sublinhar a importância dessa obra para a África
e para todo o mundo. No momento em que os povos da África lutam para se
unir e para, em conjunto, melhor forjar seus respectivos destinos, um conhe-
cimento adequado sobre o passado da África, uma tomada de consciência no
tocante aos elos que unem os Africanos entre si e a África aos demais continen-
tes, tudo isso deveria facilitar, em grande medida, a compreensão mútua entre
os povos da Terra e, além disso, propiciar sobretudo o conhecimento de um
patrimônio cultural cuja riqueza consiste em um bem de toda a Humanidade.
Bethwell Allan Ogot
Em 8 de agosto de 1979
Presidente do Comitê Científico Internacional
para a redação de uma História Geral da África
XXXI
Introdução Geral
O presente volume da História Geral da África refere-se ao longo período que
se estende do final do Neolítico – isto é, em torno do VIII milênio antes da Era
Cristã até o início do século VII da Era Cristã.
Esse período da história africana, o qual abrange cerca de 9 mil anos, foi
abordado, depois de alguma hesitação, considerando-se quatro zonas geográficas
principais:
• o corredor do Nilo, Egito e Núbia (capítulos 1 a 12);
• a zona montanhosa da Etiópia (capítulos 13 a 16);
• a parte da África comumente denominada Magreb e seu interior saariano
(capítulos 17 a 20);
• o restante da África, inclusive as ilhas africanas do oceano Índico
(capítulos 21 a 29).
Essa divisão é determinada pela compartimentação que atualmente caracteriza
a pesquisa em história da África. Poderia parecer mais lógico organizar o volume
de acordo com as principais zonas ecológicas do continente, oferecendo cada
uma delas condições de vida semelhantes a todos os agrupamentos humanos que
as habitam, sem que haja barreiras naturais a impedir o intercâmbio (cultural ou
de outro tipo) no interior de uma mesma região.
Nesse caso, obteríamos um quadro inteiramente diferente: partindo do norte
e seguindo em direção ao sul, teríamos aquilo que, desde o século VIII da Era
INTRODUÇÃO GERAL
G. Mokhtar
colaboração de J.
Vercoutter
XXXII
África antiga
Cristã, é denominado ilha do Magreb de geologia, clima e ecologia geral
predominantemente mediterrânicos e a larga faixa subtropical do Saara com
seu acidente tectônico, o vale do Nilo. Em seguida, teríamos a zona das grandes
bacias fluviais subtropicais e equatoriais, com sua costa atlântica. Depois, a leste
viriam as terras altas da Etiópia e o Chifre da África, voltado para a Arábia e
o oceano Índico. Finalmente, viria a região dos Grandes Lagos equatoriais,
ligando as bacias do Nilo, Níger e Congo à África meridional e seus anexos:
Madagáscar e outras ilhas oceânicas próximas à África.
Infelizmente, a adoção dessa divisão – mais lógica do que aquela que tivemos
que utilizar é inviável. O pesquisador que deseja estudar a história da África
na Antiguidade é, de fato, consideravelmente tolhido pelo peso do passado. A
compartimentação que a ele se impõe – e que se reflete no plano aqui adotado –
deriva, em grande parte, da colonização dos séculos XIX e XX: o historiador, fosse
ele um colono interessado no país em que vivia ou um colonizado refletindo sobre
o passado de seu povo, encontrava-se, a contragosto, confinado a limites territoriais
arbitrariamente fixados. Para ele era difícil, se não impossível, estudar as relações
com países vizinhos, embora, do ponto de vista histórico, esses países e o país que
o interessava diretamente quase sempre formassem um todo. Esse considerável
peso do passado não desapareceu completamente; em parte, por inércia quando
se cai numa rotina, tende-se a permanecer nela, ainda que a contragosto –, mas
também pelo fato de os arquivos de história da África, constituídos por relatórios
de escavações ou textos e iconografia, estarem, para algumas regiões, reunidos,
classificados e publicados segundo uma ordem arbitrária que não se aplica à
situação atual da África, mas que é muito difícil de se questionar.
Este volume da História Geral da África, talvez mais ainda do que o volume
anterior, teve que se apoiar em suposições. O período que ele abrange é obscuro,
devido à escassez de fontes, em geral, e de fontes precisamente datadas, em
particular. Isso se aplica tanto às desequilibradas coleções de fontes arqueológicas
quanto às fontes escritas e figuradas, exceto no que diz respeito a algumas regiões
relativamente privilegiadas, como o vale do Nilo e o Magreb. É essa falta de
bases documentais sólidas que torna necessário o recurso a suposições, uma vez
que fatos seguramente estabelecidos constituem exceções.
Um outro ponto deve ser enfatizado: as fontes arqueológicas de que o
historiador dispõe são bastante inadequadas. As escavações não se distribuem
de maneira uniforme por todo o continente. Em outras partes não há a mesma
densidade de escavações que encontramos principalmente ao longo da costa,
no interior da franja setentrional e, sobretudo, no vale do Nilo, na região que se
estende do mar até a Segunda Catarata.
XXXIII
Introdução Geral
Infelizmente, essa falta de documentos arqueológicos não pode ser suprida
pela narrativa de viajantes estrangeiros contemporâneos dos eventos ou fatos que
compõem este livro. A natureza hostil e a extensão do continente desencorajaram,
na Antiguidade, como depois, a penetração de forasteiros. Notaremos que as
viagens de circunavegação contribuíram muito para elucidar a história da África.
Pelo que se sabe até agora, a África é o único continente em relação ao qual isso
ocorreu (cf. capítulos 18 e 22).
As considerações acima explicam por que a história da África, de -7000 a
+700, ainda consiste amplamente em suposições. No entanto, essas suposições
nunca são infundadas; baseiam-se em informações reais, ainda que raras e
insuficientes. A tarefa daqueles que contribuíram para este trabalho foi coletar,
examinar e avaliar essas fontes. Sendo especialistas nas regiões cuja história
por mais fragmentária que seja eles investigam, apresentam aqui a síntese
daquilo que pode ser legitimamente deduzido, a partir dos documentos de que
dispõem. As suposições que apresentam, embora sujeitas a reexame quando se
puder contar com novas fontes, certamente proporcionarão estímulo e indicarão
linhas de pesquisa para os futuros historiadores.
Entre as zonas nebulosas que ainda escondem de nós a evolução histórica da
África, talvez uma das mais densas seja a que envolve os primeiros habitantes
do continente. Mesmo hoje em dia pouco se sabe a respeito desses habitantes.
As várias teses apresentadas que frequentemente se apóiam em um número
insuficiente de observações cientificamente válidas são de difícil comprovação,
numa época em que a antropologia física está em processo de rápida mudança.
O próprio monogenismo (cf. capítulo 1), por exemplo, ainda é apenas uma
hipótese de trabalho. Além disso, o enorme lapso de tempo transcorrido entre o
aparecimento de seres pré ou proto-humanos, descobertos no vale do Omo e em
Olduvai (cf. volume 1), e de seres de tipo humano bem definido, notadamente
na África meridional, deve, infelizmente, levar-nos a considerar a ideia de
continuidade ininterrupta e evolução in situ como simples ponto de vista, pelo
menos até que se obtenham provas ou se descubram elos intermediários desse
processo.
Reveste-se de grande importância a estimativa da densidade populacional
da África durante o período crucial que vai de -8000 a -5000, por ser este o
período de surgimento das culturas que mais tarde se diferenciariam. Uma alta
densidade populacional pode estimular o desenvolvimento da escrita, ao passo
que uma baixa densidade pode torná-lo inútil. A originalidade do antigo Egito
em relação ao resto da África no mesmo período talvez resida principalmente
no fato de que a alta densidade populacional observada na Antiguidade ao
XXXIV
África antiga
longo das margens do Nilo, entre a Primeira Catarata e a porção meridional do
Delta, tenha, pouco a pouco, tornado necessário o uso da escrita para coordenar
o sistema de irrigação, fundamental para a sobrevivência dos povos fixados.
Em contrapartida, o uso da escrita não foi essencial ao sul da catarata de Assuã,
região de baixa densidade populacional ocupada por pequenos grupos somáticos
que se mantinham independentes uns dos outros. Como se vê, é lamentável
que a densidade populacional durante esse período permaneça no âmbito das
suposições.
Finalmente, a ecologia, que sofreu consideráveis alterações tanto no espaço
como no tempo, desempenhou um papel muito importante. A última fase úmida
do Neolítico terminou por volta de -2400, durante o período histórico, quando
os faraós da V dinastia reinavam no Egito. As condições climáticas e, portanto,
as condições agrícolas – existentes na aurora das primeiras grandes civilizações
da África não eram as mesmas que iriam prevalecer mais tarde, e isso deve
ser levado em conta quando se estudam as relações dessas civilizações com
os povos vizinhos. O meio ambiente de -7000 a -2400 - um período de 4600
anos, que representa mais da metade do período estudado neste volume era
muito diferente daquele da segunda metade do III milênio. Este último parece
ter sido muito semelhante ao meio ambiente atual, e marcou profundamente as
sociedades humanas que nele se desenvolveram. A vida em comunidade não é –
e não pode ser – a mesma nas grandes zonas desérticas subtropicais do norte e
do sul e na floresta equatorial, nas cadeias de montanhas e nas bacias fluviais, nos
pântanos e nos grandes lagos. A influência dessas grandes zonas ecológicas foi
fundamental para o estabelecimento das rotas que permitiram o deslocamento
de um domínio a outro: do Magreb, da montanhosa Etiópia ou do vale do Nilo
para as bacias centrais dos rios Congo, Níger e Senegal, por exemplo; ou, ainda,
da costa atlântica para o mar Vermelho e o oceano Índico. No entanto, tais
rotas são ainda muito pouco conhecidas. Supõe-se que elas tenham existido;
isto é, sua existência é muito mais “presumida do que efetivamente conhecida.
Um estudo arqueológico sistemático a esse respeito nos ensinaria muito sobre a
história da África. Na verdade, poderemos empreender um estudo frutífero
das migrações entre -8000 e -2500 que se seguiram às grandes mudanças
climáticas e alteraram profundamente a distribuição dos agrupamentos humanos
na África quando essas rotas forem descobertas e exploradas a fundo.
Até o momento, dispomos de pouquíssimos pontos de referência para
determinadas rotas. É até possível que haja algumas totalmente desconhecidas
para nós. Um estudo das fotografias de satélites provavelmente traria novos
esclarecimentos sobre os principais eixos antigos de comunicação transafricana,
XXXV
Introdução Geral
bem como sobre as rotas secundárias, não menos importantes. No entanto, ainda
não se empreendeu nenhum estudo sistemático dessas fotografias. Um tal estudo
nos possibilitaria orientar e facilitar a verificação arqueológica em campo, o que
seria essencial, entre outras coisas, para a avaliação das influências recíprocas
entre as principais áreas culturais da Antiguidade. Talvez seja este o domínio
para o qual mais poderão contribuir as pesquisas, no futuro.
Como se vê, os capítulos do volume II da História Geral da África constituem
pontos de partida para pesquisas futuras mais do que relatos de fatos bem
estabelecidos. Estes são, infelizmente, bastante raros, exceto para algumas regiões
muito pequenas se comparadas à imensa extensão do continente africano.
O vale do Nilo, do Bahr el-Ghazal, ao sul, até o Mediterrâneo, ao norte, ocupa
um lugar muito especial na história da África antiga, devido a vários fatores:
primeiro, à sua posição geográfica; depois, à natureza particular de sua ecologia
em relação ao resto do continente; finalmente, e acima de tudo, à abundância –
relativa, mas sem paralelo na África – de fontes originais precisamente datadas,
que nos permitem acompanhar sua história desde o fim do Neolítico por volta
de -3000 – até o século VII da Era Cristã.
Egito: posição geográca
Em grande parte paralelo às costas do mar Vermelho e do oceano Índico, aos
quais tem acesso através de depressões perpendiculares ao curso do rio, o vale do
Nilo, ao sul do 8.° paralelo norte até o Mediterrâneo, abre-se amplamente também
para oeste, graças aos vales que começam nas regiões do Chade, Tibesti e Ennedi
e terminam no próprio Nilo. Finalmente, a larga extensão do Delta, os oásis da
Líbia e o istmo de Suez dão-lhe amplo acesso ao Mediterrâneo. Dessa maneira,
aberto para leste e oeste, para o sul e o norte, o corredor do Nilo é uma zona de
contatos privilegiados não apenas entre as regiões africanas que o margeiam, mas
também com os centros mais distantes das civilizações antigas da península Ará-
bica, do oceano Índico e do mundo mediterrâneo, tanto oriental como ocidental.
Entretanto a importância dessa posição geográfica variou ao longo do tempo.
Na África, o final do Neolítico caracterizou-se por uma fase úmida, que no
hemisfério norte durou até -2300, aproximadamente. Durante esse período,
que se estendeu do VII ao III milênio antes da Era Cristã, as regiões a leste e a
oeste do Nilo desfrutaram de condições climáticas favoráveis à fixação humana.
Consequentemente, os contatos e relações entre o leste e o oeste do continente
foram tão importantes quanto os estabelecidos entre o norte e o sul.
XXXVI
África antiga
Por outro lado, a partir de -2400, o ressecamento da parte da África
compreendida entre os paralelos 13 e 15, ao norte, fez com que o vale do Nilo
se tornasse a principal rota de comunicão entre a costa mediterrânea do
continente e o que hoje se designa como África ao sul do Saara. Era através do
vale do Nilo que matérias-primas, objetos manufaturados e, sem dúvida, ideias
transitavam do norte para o sul e vice-versa,
É evidente que, devido às variações climáticas, a posição geográfica do médio
vale do Nilo, como a do Egito, não teve, no período entre -7000 e -2400, a
mesma importância, ou, mais exatamente, o mesmo impacto que veio a ter
depois dessa época. Durante esse tempo, os grupos humanos e as culturas
puderam deslocar-se livremente, pelo hemisfério norte, entre o leste e o oeste,
assim como entre o norte e o sul. Esse foi o período primordial da formação e da
individualização das culturas africanas. Foi também o período em que as relações
entre leste e oeste, entre o vale do Nilo e o Oriente Médio, de um lado, e entre a
África ocidental e a oriental, de outro, foram mais fáceis. De -2400 até o século
VII da Era Cristã, entretanto, o vale do Nilo tornou-se a rota privilegiada entre
o norte e o sul do continente. Foi através desse vale que se realizaram os vários
tipos de intercâmbio entre a África negra e o Mediterrâneo.
Fontes para a história do vale do Nilo na Antiguidade
A importância e a situação privilegiada do vale do Nilo devem-se à posição
que ocupa na porção nordeste do continente. O vale teria permanecido apenas
um tema intelectualmente estimulante, servindo, no ximo, como uma
introdução à pesquisa histórica, se não fosse também a região mais rica da África
em fontes históricas antigas. Essas fontes nos permitem controlar e avaliar o
papel dos fatores geográficos na história da África como um todo, a partir de
-5000. Permitem-nos também alcançar um conhecimento acurado dos eventos
históricos do Egito propriamente dito, bem como, mais especialmente, fazer
uma ideia precisa da cultura material, intelectual e religiosa do baixo e médio
vale do Nilo, até os pântanos do Bahr el-Ghazal.
As fontes de que dispomos são de natureza arqueológica – portanto, mudas,
pelo menos aparentemente e literária. As primeiras, especialmente para os
períodos mais antigos, foram exploradas e organizadas recentemente. Até
o momento, elas não apenas são incompletas e irregulares como também têm
sido pouco ou mal utilizadas. As fontes literárias, por outro lado, têm uma longa
tradição.
XXXVII
Introdução Geral
Na verdade, muito antes de Champollion, o misterioso Egito despertava
curiosidade. No período arcaico, no século VI antes da Era Cristã, os sucessores
dos pré-helenos haviam chamado a atenção para a diferença entre os seus
costumes e crenças e os do vale do Nilo. Graças a Heródoto, essas observações
chegaram até nós. Com o objetivo de compreender melhor seus novos súditos,
os reis ptolomaicos, surpreendidos pela originalidade da civilização egípcia,
patrocinaram a compilação de uma história do Egito faraônico, no século III
antes da Era Cristã, abordando aspectos políticos, religiosos e sociais. Mâneton,
egípcio de nascimento, foi encarregado de escrever essa história geral do Egito.
Tinha acesso aos arquivos antigos e sabia lê-los. Se seu trabalho tivesse chegado
  O Nilo, fotografado por um satélite Landsat em órbita a 920 km da Terra (do artigo de Farouk
El-Baz, “Le Courrier de l’Unesco”, jul. 1977, foto Nasa, EUA). O conjunto de sessenta fotograas do Egito
tiradas pelo satélite mostra nitidamente (em alto contraste) a estreita faixa fértil constituída pelo vale do Nilo,
bem como o triângulo do Delta e o oásis do Fayum. O deserto ocupa dois terços da imagem, a oeste do Nilo.
Na parte inferior, podem-se distinguir leiras de dunas desenhando curvas paralelas.
XXXVIII
África antiga
até nós na íntegra, teria evitado muitas incertezas. Infelizmente desapareceu
quando a biblioteca de Alexandria foi queimada. Os excertos preservados em
várias compilações, frequentemente reunidos para fins apologéticos, fornecem-
nos, não obstante, um sólido esquema da história egípcia. Na verdade, as 31
dinastias manetonianas” continuam sendo, ahoje, a base da cronologia relativa
do Egito.
O fechamento dos últimos templos egípcios sob Justiniano I, no século VI da
Era Cristã, levou ao abandono das formas faraônicas de escrita hieroglíficas,
hieráticas ou demóticas. Apenas a linguagem falada sobreviveu, no copta; as
fontes escritas caíram gradualmente em desuso. Foi em 1822, quando Jean-
François Champollion (1790-1832) decifrou a escrita hieroglífica, que se pôde
novamente ter acesso aos documentos antigos, escritos pelos próprios egípcios.
Essas fontes literárias egípcias antigas devem ser utilizadas com reservas,
pois têm uma natureza particular. Frequentemente foram elaboradas com um
propósito específico: enumerar as realizações de um faraó, para mostrar que ele
cumprira plenamente sua missão terrestre de manter a ordem universal desejada
pelos deuses (Maât) e de resistir às forças do caos que cada vez mais ameaçavam
essa ordem. Podiam também ter o propósito de garantir eterna devoção e
lembrança aos faraós que fizeram por merecer a gratidão das gerações seguintes.
Nessas duas categorias de documentos enquadram-se, respectivamente, os longos
textos e as imagens históricas que adornam certas partes dos templos egípcios,
e as veneráveis listas de ancestrais, como aquelas entalhadas nos templos em
Carnac, durante a XVIII dinastia, e em Abidos, durante a XIX.
Para compilar listas reais como as mencionadas acima, os escribas dispunham
de documentos redigidos por sacerdotes ou por funcionários reais, o que sugere a
existência de arquivos oficiais bem organizados. Infelizmente, apenas dois desses
documentos chegaram até nós, e, ainda assim, incompletos. São eles a Pedra de
Palermo e o Papiro real de Turim.
A Pedra de Palermo (assim chamada porque o maior fragmento do texto é
conservado no museu dessa cidade da Sicília) é uma placa de diorito gravada
nas duas faces, com os nomes de todos os faraós que reinaram no Egito desde
o começo da V dinastia, por volta de -2450. A partir da III dinastia, a Pedra
de Palermo arrola não os nomes dos soberanos na ordem de sucessão, mas
também os principais eventos de cada reinado ano a ano; tais listas constituem
verdadeiros anais. É lamentável que esse documento incompavel esteja
quebrado, tendo chegado incompleto até nós.
O Papiro de Turim, preservado no museu dessa cidade, não é menos
importante, embora consista apenas em uma lista de governantes, com seus
XXXIX
Introdução Geral
protocolos completos e o número de anos, meses e dias de seus reinados, em
ordem cronológica. Fornece uma lista completa de todos os faraós, desde os
primeiros tempos até aproximadamente -1200. Embora tenha sido descoberto
intacto no século XIX, este documento foi manuseado com tanto descuido por
ocasião do transporte que se despedaçou, tendo sido necessário anos de trabalho
para a sua restauração. Mesmo assim, existem ainda hoje muitas lacunas. Uma
das peculiaridades do Papiro de Turim é o fato de agrupar os faraós em séries.
No final de cada série, o escriba acrescentou o número total de anos de reinado
dos faraós de cada grupo. Temos aqui, sem dúvida, a fonte das dinastias de
Mâneton.
Cronologia egípcia
A Pedra de Palermo, o Papiro de Turim e as listas reais dos monumentos
tornam-se ainda mais importantes para a história do Egito se levarmos em
conta que os egípcios não adotavam eras contíguas ou cíclicas, como as de
nossos sistemas antes ou depois de Cristo, da Hégira ou das Olimpíadas.
Seu cômputo baseia-se na pessoa do próprio faraó; cada data é estabelecida
tendo como referência o faraó que reinava no tempo em que o documento
foi redigido. Por exemplo, uma estela poderá trazer a data: Ano do faraó N,
segundo mês de Akhet (estação), oitavo dia”, mas a contagem começa novamente
a partir de 1 quando o governante seguinte sobe ao trono. Esse costume explica
a importância de se conhecerem os nomes de todos os faraós que reinaram, e a
duração de cada reinado, para estabelecer a cronologia. O Papiro de Turim e a
Pedra de Palermo nos teriam fornecido essas informações essenciais se tivessem
permanecido intactos. Infelizmente isso não aconteceu, e os outros documentos
que preenchem as lacunas dessas duas fontes principais ainda não são suficientes
para que tenhamos uma lista completa e exata dos faraós do Egito. Não a
ordem de sucessão continua controversa para alguns períodos em que o Papiro de
Turim e a Pedra de Palermo não fornecem referências, como a própria duração
exata do reinado de alguns soberanos ainda é desconhecida. Na melhor das
hipóteses, temos apenas a mais antiga data conhecida de um determinado faraó,
mas seu reinado pode ter durado até muito depois da construção do monumento
que traz essa data.
Mesmo com essas lacunas, a soma de todas as datas fornecidas pelas fontes
de que dispomos perfaz um total de mais de 4 mil anos. Essa é a cronologia
longa, aceita pelos primeiros egiptólogos a 1900. Percebeu-se, então, que
XL
África antiga
uma tal extensão de tempo era inadequada: estudos de textos e monumentos
mostraram que em certos períodos rios faraós reinaram ao mesmo tempo
(havendo, portanto, dinastias paralelas) e como por vezes ocorria, um faraó podia
tomar um de seus filhos como corregente. Dado que cada governante datava
seus monumentos tendo como referência seu próprio reinado, havia algumas
superposições; somando-se os reinados das dinastias paralelas e aqueles dos
corregentes aos reinados dos soberanos oficiais, chegava-se, necessariamente, a
um número total muito superior ao real.
Provavelmente teria sido impossível resolver esse problema se uma
peculiaridade do antigo calendário faraônico não nos tivesse fornecido uma
referência cronogica segura, por estar esse calendário relacionado a um
fenômeno astronômico permanente, cujo cálculo era fácil estabelecer. Referimo-
nos ao aparecimento da estrela Sótis a nossa Sirius – coordenado com o nascer
do Sol, na latitude de Heliópolis-Mênfis. É a isto que se chama “nascer helíaco
de Sótis”, fenômeno que foi observado e anotado na Antiguidade pelos egípcios.
Essas observações forneceram as datas sotíacas”, nas quais se baseia atualmente
a cronologia egípcia.
No princípio, os egípcios, como a maioria dos povos da Antiguidade, parecem
ter utilizado o calendário lunar, principalmente para estabelecer as datas das
festas religiosas. Mas, ao lado desse calendário astronômico, usavam um outro.
Sendo os egípcios um povo camponês, seu dia-a-dia era fortemente marcado
pelo ritmo da vida agrícola: semeadura, maturação, colheita, preparação de novas
sementes. Ora, no Egito, o ritmo agrícola do vale é condicionado pelo Nilo, e
suas mudanças é que fixam as datas das várias operações. Assim, não nada
de surpreendente no fato de que, paralelamente ao calendário religioso lunar, os
antigos habitantes do vale utilizassem também um calendário natural baseado
na repetição periódica do evento mais importante para a sua subsistência: as
cheias do Nilo.
Nesse calendário, a primeira estação do ano, Akhet em egípcio, marcava o
começo da enchente. As águas do rio subiam pouco a pouco e cobriam a terra
ressecada pelo verão tórrido. Os campos permaneciam encharcados durante
quatro meses aproximadamente. Na estação seguinte, a terra, que pouco a pouco
emergia da inundação, ficava pronta para a semeadura. Era a estação Peret
literalmente, “sair –, termo que, sem vida, faz alusão à terra que “sai da
água e, ao mesmo tempo, à saída”, ao despontar da vegetação. Terminada a
semeadura, o camponês aguardava a germinação e a maturação dos grãos. Na
terceira e última estação, os egípcios colhiam e estocavam a colheita. Depois
XLI
Introdução Geral
 A Pedra de Palermo. (Fonte: A. H. Gardiner, e Egypt of the Pharaohs”, Oxford University
Press, 1961.)
XLII
África antiga
 O Papiro de Turim. (Fonte: A. H. Gardiner, “e Royal Canon of Turin”, Oxford, 1954. Foto
Grith Institute, Ashmolean Museum, Oxford.)
disso, tinham apenas que esperar a nova enchente e preparar os campos para a
sua chegada. Essa era a estação Shemu.
É possível e mesmo muito provável que, por longos anos, os egípcios
tenham-se contentado com esse calendário. O ano, então, começava quando as
águas subiam. A estação Akhet, assim iniciada, durava até a retração das águas,
que marcava o início da estação Peret. Esta, por sua vez, terminava quando os
grãos amadurecidos estavam prontos para a colheita, marcando o começo da
estação Shemu, que terminava somente com o início da nova cheia. Era pouco
significativo para o camponês que uma estação fosse mais longa do que a outra;
o que importava era a organização do trabalho, que variava de acordo com as
três estações.
Em que momento e por que razões os egípcios passaram a ligar a enchente
do Nilo ao aparecimento simultâneo do Sol e da estrela Sótis no horizonte? Isso
certamente será difícil de determinar. Não há dúvida de que o estabelecimento
dessa relação foi resultado de observações repetidas e, ao mesmo tempo, de
profundas crenças religiosas. A estrela Sótis (Sirius, em egípcio Sepedet, “a
XLIII
Introdução Geral
Pontuda”) veio, mais tarde, a ser identificada com Ísis, a cujas lágrimas se
atribuíam as enchentes do Nilo. Talvez tenhamos aqui o reflexo de uma crença
religiosa muito antiga, associando o aparecimento da estrela divinizada com a
subida das águas. Quaisquer que sejam as razões, ao vincular o começo da cheia,
e, consequentemente, o primeiro dia do novo ano, a um fenômeno astronômico,
os egípcios forneceram-nos os meios para estabelecer pontos de referência
concretos para a sua longa história.
Na latitude de Mênfis, o suave início da enchente ocorria em meados de
julho. Poucos anos de observação parecem ter sido suficientes para mostrar aos
egípcios que o início da enchente tinha uma recorrência média de 365 dias. A
partir daí, eles dividiram seu ano de três estações empíricas em um ano de doze
meses de trinta dias cada um. Atribuíram, assim, quatro meses para cada estação.
Acrescentando cinco dias suplementares (em egípcio, os cinco heryu renepet, os
cinco a mais acrescentados ao ano), que os gregos chamavam de epagômenos,
os escribas obtiveram um ano de 365 dias, que era, de longe, o mais adequado
de todos os adotados na Antiguidade.
No entanto, não era perfeito. De fato, a Terra completa a sua translação em
torno do Sol não em 365 dias, mas em 365 dias e um quarto. A cada quatro
anos, o ano oficial egípcio se atrasava um dia em relação ao ano astronômico,
e somente a cada 1460 anos o período sotíaco os três fenômenos (nascer do
Sol, nascer de Sótis e início da cheia) ocorriam simultaneamente no primeiro
dia do ano oficial.
Essa defasagem gradual entre os dois anos teve duas consequências
importantes: primeiro, permitiu que os modernos astrônomos determinassem
quando os egípcios adotaram o seu calendário, tendo essa data que coincidir,
necessariamente, com o icio de um período sotíaco. A coincidência dos
fenômenos início da enchente e nascer helíaco de Sótis ocorreu três vezes
nos cinco milênios anteriores à Era Cristã em -1325/-1322, em -2785/-2782 e
em -4245/-4242. Por muito tempo, acreditou-se que os egípcios tinham adotado
seu calendário entre -4245 e -4242. Atualmente, admite-se que isso só ocorreu
no início do período sotíaco seguinte, isto é, entre -2785 e -2782.
A segunda consequência da adoção, pelos egípcios, do calendário solar fixo foi
um distanciamento gradual entre as estações naturais, determinadas pelo próprio
ritmo do Nilo, e as estações oficiais, adotadas pelo governo, que se baseavam em
um ano de 365 dias. Essa defasagem de um dia a cada quatro anos no início,
quase imperceptível aumentava pouco a pouco para uma semana, um mês, dois
meses, até que o Shemu do calendário oficial caísse no meio da estação natural
Peret. Um tal descompasso não poderia deixar de chamar a atenção dos escribas
XLIV
África antiga
egípcios: textos que apontam oficialmente a diferença entre o verdadeiro
nascer helíaco de Sótis e o começo do ano oficial. Essas observações permitem-
nos estabelecer com uma aproximação de quatro anos as seguintes datas:
• o reinado de Sesóstris III deve incluir os anos -1882/-1879;
• o ano de Amenófis I cai entre os anos -1550 e -1547;
• o reinado de Tutmés III inclui os anos -1474/-1471.
Combinando essas datas com as datas relativas fornecidas pelas fontes de que
dispomos – o Papiro de Turim, a Pedra de Palermo e os monumentos datados.
das várias épocas –, pudemos estabelecer uma cronologia básica, a mais exata
de todas as do Oriente antigo. Ela estabelece o início da história do Egito em
-3000. As grandes divisões de Mâneton podem ser datadas como segue:
• III à VI dinastia (Antigo Império): aproximadamente -2750/-2200;
• VII à X dinastia (Primeiro Período Intermediário): -2200/-2150;
• XI à XII dinastia (Médio Império): -2150/-1780;
• XIII à XVII dinastia (Segundo Período Intermediário): -1780/-1580;
• XVIII à XX dinastia (Novo Império): -1580/-1080;
• XXI à XXIII dinastia (Terceiro Período Intermediário): -1080/-730;
• XIV à XXX dinastia (Baixa Época): -730/-330.
A conquista de Alexandre da Macedônia, em -332, marca o final da história
do Egito faraônico e o início do período helenístico (cf. capítulo 6).
O meio ambiente nilótico
Talvez seja interessante citar aqui uma frase escrita por Heródoto (II, 35)
no final de sua descrição do Egito:Não o clima do Egito é peculiar a esse
país, e o comportamento do Nilo diferente daquele de outros rios em qualquer
outro lugar, mas também os próprios egípcios em seus usos e costumes parecem
ter invertido as práticas comuns da humanidade” (a partir da tradução de A.
de Sélincourt). Ao escrever essa frase, Heródoto naturalmente se referia apenas
aos países que margeiam o Mediterrâneo. No entanto é verdade que, de todos
os países da África, o Egito é o que possui o meio ambiente mais característico,
devido ao regime do Nilo. Sem o rio, o Egito não existiria. Isso foi dito e redito
mil vezes desde Heródoto: trata-se de uma verdade básica.
De fato, as condições rigorosas que o rio impunha às sociedades humanas que
viviam às suas margens, e que a ele deviam sua subsistência, foram reconhecidas
XLV
Introdução Geral
pouco a pouco. Tornaram-se inelutáveis apenas quando a civilização egípcia
tinha mais de 700 anos. Os grupos humanos que constituíram essa civilização
tiveram tempo, portanto, para se acostumar gradualmente às exigências impostas
pela ecologia do Nilo.
A partir do final do Neolítico, entre -3300 e -2400 aproximadamente,
o nordeste da África, incluindo o Saara, desfrutou de um sistema climático
relativamente úmido. Nesse período, o Egito não dependia exclusivamente
do Nilo para sobreviver. A estepe ainda se estendia a leste e a oeste do vale,
abrigando caça abundante e favorecendo uma criação de gado considerável. A
agricultura era, então, apenas um dos componentes da vida cotidiana, competindo
em importância com a criação de gado e mesmo com a caça, conforme se atesta
pela Pedra de Palermo. Esta nos leva a inferir que o cálculo dos impostos devidos
à autoridade central pelos notáveis do regime baseava-se não no rendimento das
terras que possuíam, mas no número de cabeças de gado a cargo de seus pastores.
A cada dois anos, fazia-se um censo dessa riqueza básica. As cenas que decoram
as mastabas do Antigo Império, do final da IV até a VI dinastia (-2500 a -2200),
mostram claramente que a criação de gado ocupava um lugar essencial na vida
dos egípcios daquele tempo.
Assim, podemos supor que a busca do controle do rio pelo homem a realização
fundamental da civilização egípcia, pois que possibilitou seu florescimento foi
provavelmente estimulada, no princípio, não pelo desejo de fazer melhor uso das
cheias para a agricultura, mas, especialmente, pela necessidade de evitar os danos
provocados pelas inundações. Muitas vezes se esquece de que o transbordamento
do Nilo não é apenas benéfico; pode acarretar calamidades. Foi sem dúvida em
função dessa ameaça que os habitantes do vale aprenderam a construir diques
e barragens para proteger suas povoações, e a cavar canais para drenar seus
campos. Dessa maneira, foram lentamente adquirindo uma experiência que
passou a ser vital, na medida em que o clima da África, entre os paralelos 13 e
15, ao norte, acabou por tornar-se tão seco quanto é hoje, transformando em
deserto absoluto as vizinhanças do vale do Nilo, tanto no Egito como na Núbia.
A partir de então, toda a vida do vale passou a ser estritamente condicionada
pelas cheias do rio.
Pelo emprego das técnicas de construção de diques e escavação de canais,
aperfeiçoadas ao longo dos séculos, os egípcios pouco a pouco desenvolveram
o sistema de irrigão por bacias (hods), garantindo, assim, o apenas sua
sobrevivência em um clima cada vez mais desértico, mas ainda a possibilidade
de expansão (cf. capítulos 4 e 8). O princípio desse sistema era simples, mas sua
operação era complexa e exigia sincronização. Utilizava duas elevações naturais
XLVI
África antiga
formadas pelo Nilo ao longo de suas margens, no decorrer de milhares de cheias,
ano após ano. Essas defesas naturais, gradualmente reforçadas pelos habitantes
das margens para se defender das cheias repentinas, eram suplementadas por
aterros de retenção, verdadeiras barragens artificiais que, sem dúvida, tiveram
origem naquelas construídas pelos antigos habitantes para proteger suas moradias
quando as águas do rio subiam.
Ao mesmo tempo, foram construídos diques paralelos ao Nilo, que acabaram
por dividir o Egito em uma série de bacias (daí o nome do sistema). O solo
dessas bacias era nivelado, de maneira que, quando o rio subisse, a bacia ficasse
inteiramente submersa. Canais de drenagem eram abertos nos aterros paralelos
ao rio para permitir que as bacias se enchessem. Depois de permanecer por
algum tempo, para impregnar os campos, a água era devolvida ao rio. Além
disso, um sistema de canais utilizando o declive natural do vale levava água da
montante para as áreas mais baixas localizadas na jusante do rio, de maneira a
irrigar terras que mesmo uma enchente muito grande não alcançaria.
Esse sistema, que os egípcios gradualmente aprenderam por experiência
própria, apresentava as vantagens de assegurar uma distribuição equitativa de
água e matéria orgânica por toda a terra cultivável, irrigar aquelas partes do
vale que, de outra maneira, teriam permanecido estéreis e, finalmente, e acima
de tudo, controlar o Nilo e suas enchentes. O preenchimento das bacias e o
desvio da água de montante para jusante através de canais, tinham por efeito
moderar a correnteza do rio, evitando as consequências desastrosas de uma
repentina liberação de milhões de metros cúbicos de água, que destruíam tudo
à sua passagem. A diminuição da correnteza, por sua vez, facilitava a deposição
do limo, do qual a água se encontrava carregada.
Não é exagero dizer que esse sistema único de irrigação estava na própria raiz
do desenvolvimento da civilização egípcia. Ele explica como a engenhosidade
humana conseguiu progressivamente superar grandes dificuldades e modificar
a ecologia natural do vale.
A nova ecologia, resultante da intervenção humana, envolvia um trabalho
considerável. Depois de cada enchente, era necessário reparar os aterros, reforçar
os diques e limpar os canais. Era uma tarefa coletiva contínua que, de início,
provavelmente se realizava ao nível de cada povoação. No período histórico,
esse trabalho era administrado e supervisionado pelo governo central. Se este
último deixasse de garantir, no devido tempo, a manutenção de todo o sistema, a
enchente seguinte poderia destruí-lo, e o vale retomaria ao seu estado original. No
Egito, a ordem política condicionou amplamente a ordem natural. Para assegurar
a subsistência de todos não era suficiente que o sistema de bacias funcionasse
XLVII
Introdução Geral
  Cheias sazonais do Nilo. (Fonte: Jacques Besançon, “L’Homme et le Nil”, Paris, Gallimard, NRF, p.79.)
XLVIII
África antiga
regularmente. Uma das características das cheias do Nilo é o fato de que seu
volume varia enormemente de um ano para o outro. As cheias podem ser fortes
demais, destruindo tudo à sua passagem, ou fracas demais, impossibilitando uma
irrigação satisfatória. Por exemplo, no período compreendido entre 1871 e 1900,
apenas a metade das enchentes ocorridas teria sido suficiente para suprir as
necessidades do Egito.
A experiência logo ensinou os egípcios a desconfiar da inconstância do rio.
Para compensar a escassez periódica, era necessário estocar cereais para alimentar
a população e mais importante ainda com vistas ao futuro garantir quantidade
suficiente de sementes para a semeadura seguinte, quaisquer que fossem as
circunstâncias. Esses estoques de reserva eram fornecidos pelo governo central,
graças ao duplo celeiro real, que estocava cereais em armazéns distribuídos por
todo o país. Limitando o consumo em períodos de abundância e estocando o
máximo possível para se precaver contra cheias insuficientes ou excessivas, o
governo central passou a controlar, por assim dizer, a ordem natural e veio a
desempenhar um papel muito importante.
Mudando profundamente as condições impostas pela natureza, o homem
desempenhou um papel essencial na emergência e expansão da civilização no
vale do Nilo. O Egito não é apenas uma dádiva do Nilo: é, acima de tudo, uma
criação do homem. Daí a importância dos problemas antropológicos do vale.
A ocupação do vale do Nilo
no Paleolítico, o homem ocupava, se não o vale propriamente dito, pelo
menos sua vizinhança imediata e em especial os terraços que o dominavam. A
alternância de períodos úmidos e secos durante o Paleolítico e o Neolítico (cf.
volume I) alterava inevitavelmente a densidade populacional, que ora aumentava,
ora diminuía. Mas o fato é que, por mais que recuemos no tempo, o Homo sapiens
sempre habitou o Egito.
A que raça ele pertencia? Poucos problemas antropológicos levantaram
discussões tão apaixonadas. No entanto esse problema não é novo. Em 1874 se
discutia se os antigos egípcios eram “brancos” ou negros”. Um século depois, um
simpósio promovido pela Unesco no Cairo mostrou que a discussão não estava
encerrada, e era provável que não se esgotasse tão cedo. Não é fácil encontrar
uma definição de “negro”, do ponto de vista físico, que seja aceitável para todos.
Recentemente, um antropólogo levantou dúvidas sobre a possibilidade de se
encontrarem meios efetivos para determinar a raça a que um esqueleto pertence
XLIX
Introdução Geral
pelo menos no que se refere a restos humanos muito antigos, como os do
Paleolítico. Os critérios tradicionais adotados pelos antropólogos físicos índice
facial, comprimento dos membros, etc. atualmente não são aceitos por todos,
e, como os antigos, voltamos a definir “negro pelo tipo de cabelo e cor da pele
medida cientificamente, é verdade, pela proporção de melanina. Contudo, o
valor desses índices é posto em dúvida por alguns. Nesse ritmo, depois de haver
perdido, ao longo dos anos, a própria noção de raça vermelha”, corremos sérios
riscos de sermos obrigados a abandonar a noção de raça branca e raça negra”.
De qualquer modo, é muito duvidoso que os habitantes que introduziram a
civilizão no vale do Nilo tenham pertencido a uma raça única e pura. A
própria história do povoamento do vale refuta essa possibilidade.
O homem não penetrou repentinamente em um vale vazio ou habitado
unicamente por animais selvagens. Estabeleceu-se na região gradualmente,
ao longo de milhares de anos, à medida que a própria densidade dos grupos
humanos ou as variações climáticas obrigaram-no a buscar novos recursos
ou maior segurança. Devido à sua posição, no ângulo nordeste do continente
africano, era inevitável que o vale do Nilo como um todo e o Egito, em particular,
se tornassem o ponto de chegada das correntes migratórias oriundas não somente
da África, mas também do Oriente Médio, e mesmo da Europa. Portanto, não
é de surpreender que os antropólogos acreditem ter podido identificar, entre os
muitos esqueletos nilóticos antigos, representantes das raças de Cro-Magnon,
armenoides, negroides, leucodérmicos, etc., embora esses termos devam ser
aceitos com reservas. Se algum dia existiu uma raça egípcia e esta é uma
questão aberta –, ela foi o resultado de miscigenações, cujos elementos básicos
variaram no tempo e no espaço. Isso poderia ser verificado, se fosse possível obter
um número suficiente de restos humanos para cada um dos períodos históricos
e para as diferentes regiões do vale o que está longe de ser o caso.
No entanto, um fato é inegável: a presença persistente, no Egito e na Núbia,
de um determinado tipo físico que não se poderia definir como raça, uma vez
que, conforme seja encontrado no Alto Egito ou no Baixo Egito, apresenta
características ligeiramente diferentes. De cor mais escura no sul que no norte,
esse tipo é, de maneira geral, mais escuro que no resto da bacia mediterrânea,
incluindo o norte da África. O cabelo é preto e encaracolado; a face, arredondada
e imberbe, era, no Antigo Império, ornada às vezes por um bigode. Em geral
bastante esguio, é o tipo humano que conhecemos através dos afrescos, baixos-
relevos e estátuas dos faraós; o nos devemos esquecer de que se tratava
efetivamente de retratos, tal como exigiam as crenças funerárias dos egípcios,
que era o próprio indivíduo, e não uma noção abstrata, quem sobrevivia à morte.
L
África antiga
Seria fácil, naturalmente, – selecionando determinados retratos e não
levando em conta a totalidade daqueles que chegaram até nós atribuir o tipo
egípcio a uma raça particular; igualmente fácil seria, no entanto, escolher outros
exemplos que negassem essas conclusões. De fato, qualquer pessoa pode ver que
os indivíduos representados pela arte egípcia são os mais variados possíveis, com
seus perfis retos, perfis prognatas, algumas vezes com as maçãs do rosto salientes,
como no caso de Sesóstris III, lábios carnudos, frequentemente encurvados; por
vezes com nariz levemente adunco (Hemeomu, Pépi I, Gamal Abdel Nasser),
mais frequentemente com um nariz grande e reto como o de Quéfren e, no sul,
particularmente, com nariz chato e lábios mais grossos” (Jean Yoyotte).
Essa variedade mostra que, no vale do Nilo, estamos lidando com um tipo
humano, e não com uma raça; um tipo que se constituiu gradualmente, tanto
pelos hábitos e condições de vida peculiares ao vale, como pela miscigenação
da qual é produto. Um exemplo notável disso é a estátua do Cheik-el-Beled,
um retrato vivo do prefeito da aldeia de Sacará na época em que a estátua, com
mais de 4 mil anos, foi descoberta. É mais do que provável que a estirpe africana,
negra ou clara, tenha predominado no antigo Egito; não se pode, contudo, ir
mais além no atual estágio dos nossos conhecimentos.
Escrita e meio ambiente
O Egito foi o primeiro país da África a fazer uso da escrita, a julgar pelo
emprego, no sistema hieroglífico, de pictogramas representando objetos que
estavam fora de uso havia muito tempo no início da época histórica. É possível
situar essa invenção no período amratiense, também chamado Nagada I (cf.
volume I), isto é, em torno de -4000, de acordo com as datas sugeridas pelo
carbono 14. Assim, é um dos mais antigos sistemas de escrita de que se tem
conhecimento. Desenvolveu-se muito rapidamente, pois aparece constituído
na paleta de Narmer, o primeiro monumento hisrico egípcio, que pode
ser datado de -3000. Além disso, a fauna e a flora utilizadas nos signos são
essencialmente africanas.
A escrita egípcia é fundamentalmente pictográfica, como muitas escritas
antigas, mas, enquanto na China e na Mesopotâmia, por exemplo, os sinais
pictográficos originais evoluíram rapidamente para formas abstratas, o Egito
permaneceu fiel ao seu sistema até o final de sua história.
Todos os objetos ou seres vivos que pudessem ser desenhados eram usados
como sinais ou caracteres na escrita egípcia: para escrever a palavra “arpão ou
LI
Introdução Geral
peixe bastava ao escriba desenhar um arpão ou um peixe. São os chamados
signos-palavra, porque um único signo é suficiente para escrever a palavra
inteira. Este princípio permaneceu em uso durante toda a civilização faraônica,
o que possibilitou que os escribas criassem tantos signos-palavra quantos
fossem necessários para denotar seres ou objetos desconhecidos no tempo
em que o sistema de escrita foi criado; assim, por exemplo, cavalo” e “carro”.
No sistema puramente pictográfico, ações também podem ser representadas
através de desenhos. Para escrever os verbos correr ou nadar”, o escriba deveria
simplesmente desenhar um indivíduo correndo ou nadando.
No entanto, apesar de toda a sua engenhosidade, o sistema pictográfico não
se prestava à representação de termos abstratos, como amar”, lembrar ou
“tornar-se”. Para superar essa dificuldade, os egípcios teriam que ultrapassar o
estádio da pura pictografia. Eles o fizeram empregando dois outros princípios: a
homofonia e a ideografia. Foi o uso simultâneo desses três princípios – pictografia
pura, homofonia e ideografia que tornou tão difícil, na atualidade, a decifração
dos hieróglifos. Na escrita egípcia, alguns signos são lidos foneticamente, outros
não: servem apenas para precisar o som ou o significado da palavra.
O princípio da homofonia é simples: por exemplo, na linguagem falada a
palavra “tabuleiro de xadrez” era pronunciada men. Graças a esse princípio, o
signo pictográfico representando um tabuleiro de xadrez poderia ser utilizado,
conforme se desejasse, tanto para significar o próprio objeto como para escrever
foneticamente todos os homófonos”, isto é, todas as palavras cuja pronúncia
fosse men, entre elas o termo abstrato ser estável”. Da mesma forma, o signo
de “enxada era pronunciado mer, podendo, portanto, ser utilizado para escrever
o verbo amar”, cuja pronúncia era mer. Nesses casos, os signos-palavra originais
tornaram-se signos fonéticos. Como o número de homófonos simples, palavra por
palavra do tipo men, “tabuleiro de xadrez”, e men, “ser estável”, ou mer, enxada”,
e mer, amar –, é relativamente pequeno, a inovação teria oferecido vantagens
bastante limitadas se os escribas não tivessem estendido seu emprego à formação
de palavras complexas. Por exemplo, para escrever o verbo abstrato “estabelecer”,
que era pronunciado semen e não possuía homófonos simples, empregavam
dois signos-palavra com valor fonético: um pedaço de tecido dobrado, que se
pronunciava (e), e men, “tabuleiro de xadrez”. Colocados lado a lado, esses dois
signos eram lidos foneticamente s(e) + men = semen e a combinação significava
estabelecer”, “fundar”. Tendo chegado a esse estágio, o escriba egípcio tinha
à sua disposição um instrumento capaz de expressar foneticamente, através
de imagens, qualquer palavra da língua, por mais complexa que fosse. Bastava
decompor a palavra em tantos sons quantos se pudesse transcrever por meio de
LII
África antiga
F A Paleta em xisto de
Narmer, I dinastia, face anterior
e posterior. É dos mais antigos
testemunhos da escrita egípcia. O
protocolo do rei, simbolizado pelo
peixe ncr e o cinzel mr, ocupa o
rengulo entre as duas cabeças
de tor. Os outros pequenos
hieróglifos inscritos embaixo da
cabeça das diferentes personagens
indicam-lhes o nome ou o título; o
chefe capturado talvez se chamasse
Washi (wr = aro; s = charco),
O grupo no alto, à direita, deve
explicar, provavelmente, a figura
central; nessa época, bastante
remota, o essencial de frases
inteiras, ao que parece, podia ser
exprimido por meio de simples
grupos de símbolos cujos elementos
sugerissem palavras distintas. A
este, por hipótese, pode-se dar a
seguinte interpretação: o Deus-
Falcão Hórus (ou seja, o rei) fez
prisioneiros os habitantes da região
do papiro (Tz - mhw, o Delta).
(Fonte: J. Pirenne, “Histoire de la
Civilisation de l’Egypte Ancienne”,
Baconnière, Neuchâtel, Suíça, 1961,
v. I, gs. 6 e 7, pp. 28-9. Foto H.
Brugsch, Museu do Cairo.)
LIII
Introdução Geral
um signo-palavra que tivesse aproximadamente a mesma pronúncia. A escrita
hieroglífica já tinha alcançado esse estágio no período tinita, em tomo de -3000,
o que pressupõe um período bastante longo de desenvolvimento anterior.
No entanto, o sistema assim completado tinha falhas. Utilizava necessariamente
um grande número de signos conhecemos mais de quatrocentos signos comuns
que podiam deixar o leitor confuso quanto à maneira de lê-los. Tomemos o
exemplo simples do desenho de um barco. Como deveria ser lido (bote, barco,
navio, embarcação, etc.)? Além disso, era impossível, à primeira vista, saber se
um determinado signo estava sendo empregado como signo-palavra, designando
o objeto representado, ou como signo fonético.
A segunda dificuldade foi facilmente superada: os escribas adotaram o hábito
de acrescentar uma linha vertical depois do signo-palavra que designasse o
próprio objeto. Quanto à primeira, foi resolvida pelo estabelecimento gradual
de um complexo sistema de complementos fonéticos (como é chamado pelos
egiptólogos). Consiste em 24 signos-palavra, cada um deles com apenas uma
consoante. Os escribas, pouco a pouco, passaram a utilizá-los para indicar a
leitura fonética dos signos. Vejamos um exemplo: o signo que representa um
pão sobre uma esteira tem a pronúncia hetep. Com o tempo, tornou-se habitual
colocar dois outros signos imediatamente após o signo-palavra empregado
foneticamente: pão”, pronunciado t, e assento”, pronunciado p. Esses dois
signos indicavam imediatamente ao leitor a pronúncia hetep.
É evidente que esses 24 signos simples desempenham, de fato, o papel das
nossas letras, e que temos aqui o embrião da invenção do alfabeto, que esses
signos expressam todas as consoantes da língua egípcia, e que os egípcios, como
os árabes ou os hebreus, não escreviam as vogais. Não havia, portanto, nenhuma
palavra na língua que não pudesse ser escrita simplesmente por meio de signos.
No entanto os egípcios nunca deram o passo final nessa direção e, longe de
empregar apenas os signos simples, quase alfabéticos, complicaram ainda
mais seu sistema de escrita pelo menos aparentemente acrescentando aos
signos utilizados foneticamente, e a seus complementos fonéticos, novos signos
puramente ideográficos. Esses signos eram colocados no final das palavras e
tornavam possível classificá-las, à primeira vista, em uma determinada categoria.
Os verbos que designavam uma ão física, como “atingir e “matar, eram
seguidos por um signo que representava um braço humano empunhando arma.
Os que designavam um conceito abstrato, como pensar” e amar”, eram seguidos
de um signo representando um rolo de papiro. Também os substantivos se
faziam acompanhar por ideogramas: a palavra bacia”, por exemplo, seria seguida
pelo ideograma água”, três linhas horizontais onduladas; os nomes de países
LIV
África antiga
estrangeiros seriam seguidos pelo signo “montanha” em contraposão ao
Egito, que é plano e assim por diante.
Se os epcios nunca utilizaram uma forma simplificada de escrita
possuímos apenas um texto em escrita alfabética, que é muito tardio e pode
ter sido influenciado pelas escritas alfabéticas utilizadas nos países vizinhos –,
esse conservadorismo pode, sem vida, ser explicado pela importância que
atribuíam à imagem e, portanto, ao signo como imagem. A imagem possuía
um poder gico latente. Ainda por volta de -1700, os escribas por vezes
mutilavam os signos que representavam seres perigosos (pelo menos a seus
olhos): as serpentes tinham o rabo cortado; certos pássaros apareciam sem os
pés. O poder mágico do signo estendia-se por todo o mundo; esse poder era
tão grande que quando se desejava fazer mal a alguém, o nome da pessoa era
cuidadosamente rasurado ou apagado, onde quer que estivesse escrito. O nome
era, de fato, parte do indivíduo e, em certo sentido, a própria pessoa: destruir o
nome era destruir a pessoa.
Com esse intrincado sistema de signos-palavra, signos fonéticos plurissilábicos,
complementos fonéticos e determinativos ideográficos uma confusão de signos,
alguns devendo ser pronunciados, outros não a escrita hieroglífica é, de fato,
complexa, mas também muito evocativa. Os determinativos recortam bem as
palavras, a ordem rígida dos termos da oração verbo, sujeito, objeto facilita
a interpretação, e as dificuldades que o tradutor moderno enfrenta advêm do
fato de que por vezes ele desconhece o significado de muitas palavras. Mesmo
assim, gras aos determinativos, podemos saber em que categoria devem
ser classificadas. Tem-se sugerido frequentemente que a escrita hieroglífica
foi trazida para o vale por invasores do Oriente, ou tomada de empréstimo à
Mesopotâmia pelos egípcios. O mínimo que se pode dizer é que não nenhum
vestígio material desse empréstimo na escrita do Egito faraônico, tal como é
encontrada no despontar da História, em torno de -3000. Pelo contrário, é
possível acompanhar, passo a passo, a sua lenta formação: da pura pictografia para
os fonogramas complexos, destes para os complementos fonéticos e, finalmente,
para os determinativos. Alguns signos empregados foneticamente representam
objetos que não eram usados quando os primeiros textos apareceram, o que
prova que a escrita se constituiu na era pré-histórica, quando esses objetos ainda
eram de uso corrente. Finalmente, talvez o mais importante seja o fato de que
os antigos signos hieroglíficos foram todos tomados da fauna e da flora do Nilo,
provando, assim, que a escrita é de origem puramente africana. Se admitirmos
que houve influência externa no advento da escrita egípcia, tal influência pode
ter sido, no máximo, da ideia de escrever, o que é pouco provável se levarmos
LV
Introdução Geral
em conta que a escrita tomou forma muito cedo no Egito, no IV milênio antes
da Era Cristã.
Uma das forças a presidir a inveão e o desenvolvimento da escrita
hieroglífica no vale do Nilo foi, sem dúvida, a necessidade que tinham seus
habitantes de agir em conjunto e de maneira coordenada no combate aos
flagelos que periodicamente os ameaçavam dentre outros, as enchentes do
Nilo. Se uma família, um grupo de famílias ou mesmo uma pequena aldeia era
impotente para erigir uma proteção eficaz contra a subida inesperada das águas,
o mesmo o se podia dizer de grandes grupos humanos agindo em conjunto.
A própria configuração do Egito favorece a criação desses grupos. O vale não
tem largura regular em toda a sua extensão. Limita-se, por vezes, ao curso do
rio, alargando-se, depois, para formar pequenas bacias, às vezes de considerável
extensão. Cada uma dessas bacias naturais constitui uma unidade geográfica,
com um potencial agrícola definido. Ao que parece, tenderam rapidamente
a se transformar em pequenas unidades políticas, sob a autoridade do maior
agrupamento da área, cuja deidade tutelar passava a ser a de toda a comunidade.
Essa foi, provavelmente, a origem dos nomos, que emergem, constituídos, no
despontar do período histórico.
Existe, evidentemente, um contraste geográfico muito grande entre o Alto
Egito, o Said, segmentado em uma sucessão de bacias naturais bem definidas,
e o Baixo Egito, o Delta, onde, dividindo-se em vários braços, o próprio Nilo
corta o solo em unidades de caráter inteiramente diferente; menos distintas do
que as do Said.
Deve-se relembrar aqui de que os termos tradicionais Alto e “Baixo Egito são
falaciosos, quando empregados para o período de formação do Estado faraônico.
No atual estágio dos nossos conhecimentos sobre as culturas pré-dinásticas, o
que chamamos Alto Egito não abrangia o sul da região de el-Kab, e terminava
ao norte, nas vizinhanças do Faium. Seu centro político situava-se em Naqada,
na bacia de Tebas, mas desceria, em direção ao norte, para a região de Abidos,
uma outra bacia natural que iria desempenhar um papel importante na história
do Egito. O Baixo Egito, por sua vez, começava no Faium, mas terminava, ao
norte, na ponta do Delta. Embora tenhamos muito poucas informações sobre
sua extensão em era tão longínqua, parece certo que o Baixo Egito não atingia
o mar. Seu centro estava localizado na região de Cairo-Heliópolis.
Neste berço” do Egito faraônico, as bacias do sul constituíam uma força
pelo menos equivalente das bacias do norte; essa força era mais bem estruturada
graças à individualidade das bacias que a compunham. Assim, compreende-se
facilmente por que a Confederação das províncias do sul acabou impondo uma
LVI
África antiga
unidade cultural ao vale, subjugando a Confederação das províncias do norte,
cuja originalidade era menos acentuada.
As pequenas unidades políticas do sul, que correspondiam às áreas das bacias
que ocupavam, dispunham de mão de obra suficiente para executar o trabalho
coletivo indispensável à sobrevivência da província: reforço das margens do
rio, que pouco a pouco se transformaram em verdadeiros aterros (veja acima);
depois, construção de diques para proteger as povoações. Para ser eficaz, esse
trabalho exigia organização. A necessidade de organização, por sua vez, deve ter
facilitado, se o a invenção, pelo menos o rápido desenvolvimento da escrita:
era preciso transmitir ordens a um grande número de homens, espalhados por
grandes distâncias, para que se cumprisse uma tarefa a ser obrigatoriamente
realizada, num espaço de tempo limitado: após a colheita e antes da nova subida
das águas. Distribuição de trabalho, estabelecimento de prioridades, suprimentos
de ferramentas (mesmo as mais rudimentares), supervisão local dos trabalhos,
tudo isso demandava uma administração, por mais simples que fosse. Essa
administração poderia ser eficaz se fosse capaz de prever, planejar e dirigir
as várias etapas das operações a partir de um centro, por vezes inevitavelmente
distante do local onde o trabalho seria executado. É difícil imaginar que tudo
isso pudesse ser levado a cabo sem o instrumento incomparável da escrita para
o registro dos dados essenciais número de homens, rações, altura do aterro a ser
construído e, acima de tudo, para a rápida transmissão das ordens aos vários
pontos do território.
A unificação política do Egito por Menés, em torno de -3000, fortaleceu
ainda mais o desenvolvimento da administração e, consequentemente, da escrita.
De fato, ao chefe cabia, a partir de então, cuidar da organização dos trabalhos
de interesse coletivo não apenas dentro de uma área limitada, mas em todo o
país. Ora, uma das características desse país é a sua grande extensão, o que faz
com que a capital, de onde emanam as ordens, esteja sempre muito distante
de uma grande parte do território. Além disso, em razão da inconstância das
cheias (ver figura), uma das responsabilidades do governo central era a de estocar
o máximo possível de alimentos nas épocas de abundância para amenizar a
escassez, que sempre poderia surgir de forma inesperada. Consequentemente,
era necessário que a liderança – no caso, o faraó – soubesse com exatidão quais
os recursos em disponibilidade no país, para poder, em caso de necessidade,
racioná-los ou distribuí-los às regiões mais seriamente afetadas pela fome. Tal
é a base da organização econômica do antigo Egito e, de fato, de sua própria
existência. Esse controle requer um complexo sistema de contabilidade, com
entradas e saídas tanto de bens como de pessoas, o que explica o papel essencial
LVII
Introdução Geral
desempenhado pelo escriba na civilização do antigo Egito. O escriba é, assim, o
verdadeiro elemento-chave do sistema faraônico. A partir da III dinastia – em
torno de -2800 –, os funcionários de estado mais graduados se fazem retratar
com o estojo de escrita sobre o ombro, e os princípios do Antigo Império serão
representados pelos escultores como escribas sentados (cf. fig. 5, Introdução).
Numa narrativa famosa, o próprio rei toma da pena, por assim dizer, para anotar
o que o profeta está prestes a lhe revelar. O poder mágico, sempre associado à
escrita, acentua a importância do escriba na sociedade. Saber o nome das coisas
era ter poder sobre elas. Não exagero em se dizer que a civilização egípcia
apoiava-se no escriba e que foi a escrita que possibilitou o seu desenvolvimento.
O contraste entre o Egito e o vale núbio do Nilo permite-nos compreender
melhor o papel da escrita e as razões de sua exisncia na emergência e
desenvolvimento da civilização egípcia. Ao sul da Primeira Catarata, encontramos
uma civilização com a mesma composição daquela do Alto Egito. No entanto
a Núbia sempre foi refratária ao uso da escrita, embora não pudesse ignorá-lo,
uma vez que mantinha contatos constantes com o vale egípcio. A razão dessa
resistência parece residir na diferença entre os modos de vida dos dois países.
De um lado, temos uma população densa, que a necessidade de irrigação e
controle do rio de que dependia sua própria existência uniu estreitamente
em uma sociedade hierarquizada, na qual cada indivíduo desempenhava um
papel específico no desenvolvimento do país. De outro lado, na Núbia, temos
uma populão que, na aurora da História, possa uma cultura material
equivalente, se não superior, à do Alto Egito, mas estava dividida em grupos
menores e bastante isolados. Esses grupos eram mais independentes e tinham
maior mobilidade, pois a criação de gado exigia deslocamentos frequentes e
desempenhava um papel econômico pelo menos tão importante quanto o da
agricultura, muito limitada uma vez que na Núbia o vale era mais estreito do
que no Egito. Os povos núbios não sentiram a necessidade de escrita. Iriam
permanecer sempre no domínio da tradição oral, utilizando a escrita muito
raramente ao que parece, apenas para fins, religiosos, ou quando estiveram
submetidos a um governo central de tipo monárquico (cf. capítulos 10 e 11).
A diferença de comportamento entre duas populações de composição étnica
similar esclarece, de forma significativa, um fato aparentemente anormal: uma
delas adotou e talvez tenha mesmo inventado um sistema de escrita, enquanto
a outra, que tinha conhecimento dessa escrita, a desdenhou. O modo de vida
imposto ao grupo que habitava o baixo vale pela necessidade de controle do Nilo
iria favorecer a emergência e o desenvolvimento da escrita. Esta, por sua vez, fez
desse grupo uma das primeiras grandes civilizações do mundo.
LVIII
África antiga
 Estátua do escriba sentado, Knubaf. (Fonte: W. S. Smith, e History of Egyptian Sculpture and
Painting in the Old Kingdom”, 1.
a
ed., 1946, pr. 19a. Foto Museum of Fine Arts, Boston.)
LIX
Introdução Geral
O Egito africano, receptáculo de inuências
Por volta de -3700, pode-se notar uma unificação da cultura material dos dois
centros de civilização do vale do Nilo; mais precisamente, o centro meridional,
embora mantendo suas características distintivas, adota parcialmente a cultura
do centro setentrional. Essa penetração da civilização do norte em direção ao sul
é frequentemente associada, por um lado, à invenção da escrita e, por outro, ao
aparecimento, no Egito, de povos invasores mais avançados do que os habitantes
autóctones.
Com relação à escrita, vimos anteriormente que uma origem puramente
nilótica, portanto, africana, não não deve ser descartada como, provavelmente,
reflete a realidade. Além disso, uma invasão de elementos civilizadores externos,
principalmente mesopotâmicos, apóia-se em evidências muito tênues. Entretanto,
a originalidade e a antiguidade da civilização egípcia não devem encobrir o fato
de ter sido ela igualmente o receptáculo de múltiplas influências. Sua posição
geográfica, aliás, a predispunha a isso.
O clima relativamente úmido no final do Neolítico e durante todo o período
pré-dinástico, que assistiu à formação da civilização no Egito, tornou o deserto
árabe, entre o mar Vermelho e o vale do Nilo, permeável, por assim dizer. Foi por
esse caminho, sem dúvida, que as influências mesopotâmicas cuja importância,
aliás, talvez tenha sido superestimada penetraram no Egito. Em contraposição,
por falta de investigação suficiente, pouco sabemos sobre os contatos do Egito
com as culturas do Saara oriental no final do Neolítico. Certos símbolos
inscritos nas paletas protodinásticas, no entanto, permitem-nos supor que havia
características comuns entre as populações do deserto líbio e as do vale do Nilo.
Em direção ao norte, é provável que em épocas remotas as ligações entre
o Egito e o corredor sírio-palestino por intermédio do istmo de Suez não
fossem tão estreitas quanto viriam a se tornar após o estabelecimento do Antigo
Império; no entanto também podem-se apontar vestígios muito antigos de
contatos com a Palestina, e é possível que o mito de Osíris tenha surgido das
relações entre o centro de civilização do Delta e a costa madeirífera do Líbano
relações que datariam, portanto, de tempos extremamente antigos.
À primeira vista, os vínculos com o sul parecem muito mais nítidos, mas é
difícil avaliar sua importância. A partir do século IV antes da Era Cristã, os povos
ao sul da Primeira Catarata (cf. capítulo 10) estão em estreito contato com o baixo
vale do Nilo. Nos períodos pré e protodinástico intenso intercâmbio entre
os dois grupos populacionais: encontram-se as mesmas técnicas de cerâmica e
argila esmaltada (faiança egípcia), os mesmos ornatos, armas similares, a mesma
LX
África antiga
crença na vida após a morte e ritos funerários afins. Durante esses contatos, os
egípcios devem ter mantido relações diretas ou através de intermediários
com os povos mais distantes da África, como se pode deduzir a partir ao número
de objetos de marfim e ébano que foram recolhidos nos túmulos egípcios mais
antigos. Mesmo admitindo que a fronteira ecológica do ébano situava-se mais
ao norte do que atualmente, ainda assim era muito distante da Baixa Núbia; esse
fato nos fornece um precioso indício de contatos entre a África ao sul do Saara
e o Egito. Além do marfim e do ébano, o incenso, que aparece muito cedo, e a
obsidiana, ambos produtos estranhos ao vale do Nilo, podem ter sido importados
pelos egípcios. Através desse comércio, técnicas e ideias devem ter circulado com
facilidade de uma área para outra, dado que, como vimos, os egípcios tinham
um considerável substrato africano.
Assim, para onde quer que nos voltemos, para oeste ou leste, norte ou sul,
vemos que o Egito recebeu influências externas. No entanto essas influências
nunca afetaram profundamente a originalidade da civilização que foi aos poucos
tomando forma às margens do Nilo, antes de influenciar, por seu turno, as
regiões vizinhas.
Pontos obscuros em nossos conhecimentos
Para podermos avaliar a importância das influências externas no início da
civilização do vale do Nilo, seria necessário um bom conhecimento da arqueologia
de todo o país em tempos antigos.
Um conhecimento bastante abrangente faz-se, de fato, indispensável para
uma comparação frutífera entre o material arqueológico coletado no Egito e o
fornecido pelas culturas vizinhas, visando distinguir importações e imitações,
únicas provas tangíveis de contatos em larga escala.
Mas se a arqueologia do IV milênio antes da Era Cristã, tanto no Alto Egito
como na Baixa Núbia (entre a Primeira e a Segunda Catarata), é razoavelmente
conhecida, o mesmo não se pode dizer em relação às outras partes do vale do
Nilo. O Delta, em particular, é praticamente desconhecido no que se refere
aos períodos pré-dinástico e protodinástico, com exceção de algumas poucas
localidades de sua faixa desértica. Todas as referências a possíveis influências
provenientes da Ásia durante esses períodos através do istmo de Suez ou da
costa mediterrânica pertencem, pois, ao domínio das suposições.
Encontramos as mesmas dificuldades no caso do alto vale do Nilo, entre a
Segunda e a Sexta Catarata. Nossa ignorância a respeito da arqueologia primitiva
LXI
Introdução Geral
dessa vasta região é ainda mais lamentável se levarmos em conta a possibilidade
de contatos e comércio entre a parte egípcia do vale e a África do sul do Saara.
Essa falta de conhecimento impede-nos de comparar as realizações da civilização
faraônica nascente àquelas das culturas não apenas do vale superior, mas também
das regiões situadas a leste, oeste e sul do Nilo. Recentes descobertas entre a
Quinta e a Sexta Catarata sugerem a existência, se não de contatos diretos, pelo
menos de uma desconcertante semelhança de formas e decorações tanto do
mobiliário funerário como do mobiliário comum do Alto Egito pré-dinástico e
do Sudão ao sul do paralelo 17.
À deficiência do nosso conhecimento no espaço, por assim dizer, somam-se
as falhas do nosso conhecimento no tempo. A civilização faraônica propriamente
dita iria durar mais de 3 mil anos; não sabemos, ou sabemos muito pouco, sobre
o que aconteceu no Egito durante aproximadamente um terço desse enorme
período de tempo. A história dos faraós divide-se em períodos fortes e períodos
fracos (cf. capítulo 2). Para os períodos de acentuada centralização do poder real,
possuímos muitos documentos e monumentos que nos permitem reconstituir
com precisão os eventos importantes. São esses os períodos conhecidos como
Antigo Império (-2700 a -2200), dio Império (-2000 a -1800) e Novo
Império (-1600 a -1100). Para os períodos em que o poder central era fraco, por
outro lado, as fontes de conhecimento se reduzem, e mesmo desaparecem, de
maneira que a história faraônica apresenta lacunas, que os egiptólogos chamam
de períodos intermediários. Existem três desses períodos: o primeiro se estende
de -2200 a -2000, o segundo de -1800 a -1600, e o terceiro de -1100 a
-750. Se somarmos a esses períodos o início da monarquia faraônica, de -3000
a -2700, cujo conhecimento é ainda muito insuficiente, veremos que mais de
dez séculos da história egípcia permanecem, se não totalmente desconhecidos,
pelo menos bastante obscuros.
Conclusões
Apesar dessas lacunas em nosso conhecimento, a civilização faraônica ocupa
um lugar primordial na história da África antiga. Através de seus monumentos,
de seus textos e do interesse que, no passado, despertou nos viajantes, fornece-
nos um grande volume de informações sobre a maneira de pensar, de sentir e de
viver dos africanos em períodos que não poderíamos conhecer por outros meios.
Esse lugar, embora primordial, é sem dúvida insignificante se comparado ao
papel que o conhecimento do antigo Egito e da Núbia poderia desempenhar na
LXII
África antiga
história do continente. Quando a arqueologia dos países que margeiam o vale do
Nilo for mais explorada e, portanto, mais conhecida, o Egito e o Sudão nilótico
proporcionarão ao historiador e ao arqueólogo meios de comparação e datação
indispensáveis à ressurreição do passado, assim como ao estudo das correntes
de influência que, de sul a norte e de leste a oeste, constituem a própria trama
da história da África.
C A P Í T U L O 1
1
Origem dos antigos egípcios
A aceitação geral da hipótese da origem monogenética e africana da huma-
nidade suscitada pelos trabalhos do professor Leakey tomou possível colocar
em termos totalmente novos a questão do povoamento do Egito, e mesmo do
mundo. Há mais de 150 mil anos, a única parte do mundo em que viviam seres
morfologicamente iguais aos homens de hoje era a região dos Grandes Lagos,
nas nascentes do Nilo. Essa noção – e outras que não nos cabe recapitular aqui
constitui a essência do último relatório apresentado pelo dr. Leakey no VII
Congresso Pan -Africano de Pré -História, em Adis Abeba, em 1971
1
. Isso quer
dizer que toda a raça humana teve sua origem, exatamente como supunham os
antigos, aos pés das montanhas da Lua. Contra todas as expectativas e a despeito
das hipóteses recentes, foi desse lugar que o homem partiu para povoar o resto
do mundo. Disso resultam dois fatos de capital importância: (a) necessaria-
mente, os primeiros homens eram etnicamente homogêneos e negroides. A lei
de Gloger, que parece ser aplicável também aos seres humanos, estabelece que os
animais de sangue quente, desenvolvendo -se em clima quente e úmido, secretam
um pigmento negro (melanina)
2
. Portanto, se a humanidade teve origem nos
trópicos, em tomo da latitude dos Grandes Lagos, ela certamente apresentava,
1 PROCEEDINGS OF THE SEVENTH PAN AFRICAN CONGRESS OF PRE HISTORY
AND QUATERNARY STUDIES, Dec. 1971.
2 MONTAGU, M. F. A. 1960, p. 390.
Origem dos antigos egípcios
Cheikh Anta Diop
2
África Antiga
no início, pigmentação escura, e foi pela diferenciação em outros climas que
a matriz original se dividiu, mais tarde, em diferentes raças; (b) havia apenas
duas rotas através das quais esses primeiros homens poderiam se deslocar, indo
povoar os outros continentes: o Saara e o vale do Nilo. E esta última região que
será discutida aqui.
A partir do Paleolítico Superior até a época dinástica, toda a bacia do rio foi
progressivamente ocupada por esses povos negroides.
Evidências da antropologia física sobre
a raça dos antigos egípcios
Poder -se -ia pensar que, trabalhando com evidências fisiológicas, as desco-
bertas dos antropólogos poderiam dissipar todas as dúvidas por fornecerem ver-
dades confiáveis e definitivas. Isso não é, de maneira nenhuma, o que acontece:
a natureza arbitrária dos critérios utilizados para mencionarmos apenas um
aspecto –, ao mesmo tempo que afasta qualquer possibilidade de uma conclusão
ser aceita sem reservas, introduz tanta discussão supérflua entre os cientistas que
às vezes nos perguntamos se a solução do problema não teria estado muito mais
próxima se não tivéssemos o azar de abordá -lo sob esse ângulo.
No entanto, embora as conclusões desses estudos antropológicos se detenham
um pouco aquém da realidade, elas são unânimes em mencionar a existência de
uma raça negra desde as mais distantes épocas da Pré -História até o período
dinástico. Não é possível, no presente capítulo, citar todas essas conclusões. Elas
estão sumarizadas no Capítulo X de Histoire et Protohistoire dEgipte (Institut
d’Ethnologie, Paris, 1949), do dr. Emile Massoulard. Citaremos apenas alguns
itens:
“Miss Fawcett acredita que os crânios de Negadah compõem uma coleção com
homogeneidade suficiente para fundamentar a hipótese da existência de uma raça
de Negadah. Quanto à altura total do crânio, à altura auricular, do comprimento e
largura da face, ao comprimento do nariz, ao índice cefálico e ao índice facial, essa
raça parece aproximar -se da raça negra; quanto à largura do nariz, à altura da órbita,
ao comprimento do palato e ao índice nasal, ela parece mais próxima dos povos
germânicos; assim, os negadenses pré -dinásticos provavelmente se asse melhavam,
quanto a algumas de suas características, aos negros e, quanto a outras, às raças
brancas” (pp. 402 -3).
3
Origem dos antigos egípcios
É importante observar que os índices nasais dos etíopes e dos dravidianos os
aproximariam dos povos germânicos, embora ambos pertençam a raças negras.
Essas medidas que deixariam abertas alternativas possíveis entre os dois
extremos, representados pelas raças negra e germânica – dão uma ideia da elas-
ticidade dos critérios empregados. Eis um exemplo:
Tentando determinar com maior precisão a importância do elemento negroide nas
séries de crânios de El-Amra, Abidos e Hou, Thomson e Randall MacIver dividiram-
-nos em três grupos: 1. crânios negroides (aqueles com índice facial abaixo de 54
e índice nasal acima de 50, isto é, face curta e larga e nariz largo); 2. crânios não-
-negroides (índice facial acima de 54 e índice nasal abaixo de 50, face comprida e
estreita e nariz estreito); 3. crânios intermediários (podem ser atribuídos a indivíduos
dos dois primeiros grupos, com base no índice facial ou nas evidências referentes ao
índice nasal, e ainda a indivíduos marginais a ambos os grupos). A proporção de
negroides no início do período pré -dinástico parece ter sido de 24% de homens e 19%
de mulheres, e, no final desse mesmo período, de 25% de homens e 28% de mulheres.
Kieth contestou o valor dos critérios utilizados por Thomson e Randall MacIver
para distinguir os crânios negroides dos não -negroides. Sua opinião é de que, se os
mesmos critérios fossem aplicados para estudar qualquer série de crânios ingleses
contemporâneos, a amostra conteria aproximadamente 30% de tipos negroides” (pp.
420 -1).
Pode -se afirmar também o reverso da proposição de Kieth, isto é, que, se
o critério fosse aplicado aos 140 milhões de negros que hoje vivem na África
negra, no mínimo 100 milhões deles apareceriam “branqueados”.
Deve -se enfatizar também que a distinção entre negroides”, “não -negroides”
e intermediários” não é clara: não -negroide” não significa de raça branca, e
“intermediário”, muito menos.
“Falkenburger retomou o estudo antropológico da população egípcia num trabalho
recente, no qual analisa 1787 crânios masculinos do período que se estende desde o
P-Dinástico Antigo até nossos dias. Ele distingue quatro grupos principais (p. 421).
A classificação dos crânios pré -dinásticos nesses quatro grupos dá, para o
total do período pré -dinástico, os seguintes resultados: “36% de negroides, 33%
de mediterrânicos, 11 % de cro -magnoides e 20% de indivíduos que não se
enquadram em nenhum desses grupos, mas se aproximam dos cro -magnoides
ou dos negroides”.
4
África Antiga
A proporção de negroides é definitivamente mais alta do que a sugerida
por Thomson e Randall MacIver, a qual, no entanto, Kieth considera muito
elevada.
“Os números de Falkenburger refletem a realidade? Não é nossa tarefa decidir. Se
estiverem corretos, a população pré -dinástica, longe de representar uma raça pura,
como disse Elliot -Smith, compreendia pelo menos três elementos raciais distintos:
mais de um terço de negroides, um terço de mediterrânicos, um décimo de cro-
-magnoides e um quinto de indivíduos mestiços em vários graus” (p. 422).
O fundamental em todas essas conclusões é que, a despeito das discrepân-
cias que apresentam, o seu grau de convergência prova que a base da população
egípcia no período pré -dinástico era negra. Assim, todas elas são incompatí-
veis com a teoria de que o elemento negro se infiltrou no Egito em período
tardio. Pelo contrio, os fatos provam que o elemento negro era preponde-
rante do princípio ao fim da história egípcia, particularmente se observarmos,
uma vez mais, que mediterrânico” não é sinônimo de “branco”; estaria mais
próximo da raça morena ou mediternica” de Elliot -Smith. Elliot -Smith
classifica esses protoegípcios como um ramo do que ele chama raça morena,
que corresponde à ‘raça mediterrânica ou euro -africana’ de Sergi (p. 418). O
termo “moreno” neste contexto refere -se à cor da pele e é simplesmente um
eufemismo de negro
3
.
Assim, fica evidente que toda a população egípcia era negra, com exceção de
uma infiltração de nômades brancos no período protodinástico.
O estudo de Petrie sobre a raça egípcia revela um elemento classificatório
possível muito fecundo, que não deixará de surpreender o leitor.
“Petrie (...) publicou um estudo sobre as raças do Egito nos períodos pré -dinástico
e proto -dinástico, trabalhando apenas com representações. Além da raça esteatopí-
gica, distinguiu seis diferentes tipos: um tipo aquilino, representante de uma raça
líbia de pele branca; um tipo com barba trançada’, pertencente a uma raça invasora,
vinda provavelmente das costas do mar Vermelho; um tipo ‘com nariz pontudo’,
proveniente, sem dúvida, do deserto arábico; um tipo ‘com nariz reto’, do Médio
Egito; um tipo ‘com barba protuberante’, do Baixo Egito; e um tipo ‘com nariz fino’,
do Alto Egito. Segundo as representações, teriam assim existido sete tipos raciais
diferentes no Egito durante os períodos que estamos considerando. Nas páginas
3 Pelo método descrito, pode -se avançar o estudo da pigmentação dessa raça. De fato, ELLIOT -SMITH
muitas vezes encontrou fragmentos de pele nos corpos datando de épocas em que os métodos de
mumicação que causavam a deterioração da pele ainda não estavam em uso.
5
Origem dos antigos egípcios
seguintes, veremos que o estudo dos esqueletos parece conferir pouca validade a
essas conclusões” (p. 391).
Esse modo de classificação dá uma ideia da natureza arbitrária dos critérios
utilizados para definir as raças egípcias. Seja como for, é evidente que a antro-
pologia está longe de ter estabelecido a existência de uma raça egípcia branca e,
pelo contrário, tenderia a sugerir o oposto.
Nos manuais de maior divulgação, entretanto, a questão é suprimida: na
maioria dos casos, afirma -se simples e claramente que os egípcios eram brancos,
e o leigo fica com a impressão de que uma afirmação desse tipo deve necessaria-
mente ter como base uma sólida pesquisa anterior. Mas, conforme se mostrou
neste capítulo, essa pesquisa não existe. E, assim, gerações após gerações foram
enganadas. Muitas autoridades no assunto contornam a dificuldade falando em
brancos de pele vermelha e brancos de pele negra, sem que por isso se abale o
seu senso de lógica.
“Os gregos chamam a África de Líbia, um nome equivocado ab initio, pois a África
contém muitos outros povos além dos assim chamados líbios, que estão entre os
brancos da periferia setentrional ou mediterrânica e, portanto, muito afastados dos
brancos de pele morena (ou vermelha) – os egípcios.”
4
Num livro didático destinado ao curso colegial, encontramos a seguinte
frase: “Um negro se distingue menos pela cor da pele (pois existem brancos
de pele negra) do que por suas feições: lábios grossos, nariz chato ...”
5
. Ape-
nas com tais distorções das definições básicas é que se pôde branquear a ra
egípcia.
É importante ter em mente os exageros dos teóricos da antropossociologia
do século passado e do começo deste século, que, em suas microanálises fisio-
nômicas, descobriram estratificações raciais até mesmo na Europa, e particu-
larmente na França, onde, na verdade, havia um único povo, hoje praticamente
homogêneo
6
. Atualmente, os ocidentais que valorizam sua coesão nacional evi-
4 PEDRALS, D. P. de 1950, p. 6.
5 GEOGRAPHIE. Classe de 5.
a
. 1950.
6 Em seu Lutte des races (1883), L. GUMPLOVICZ arma que as diferentes classes que formam um
povo sempre representam diferentes raças, das quais uma estabeleceu sua dominação sobre as outras
através da conquista. G. de LAPOUGE, em um artigo publicado em 1897, postula nada menos do que
doze “leis fundamentais da antropossociologia”, das quais podemos citar algumas que são típicas: a “lei
da distribuição da riqueza postula que, em países de população mista alpino -europeia, a riqueza cresce
em proporção inversa ao índice cefálico; a “lei dos índices urbanos”, destacada por AMMON e ligada à
pesquisa que realizou entre os prisioneiros de Badener, arma que a frequência de dolicocefalia entre os
habitantes das cidades é maior do que entre os habitantes da zona rural adjacente; a lei da estraticação
6
África Antiga
tam zelosamente examinar suas próprias sociedades sob a luz de hipóteses tão
divisionistas, mas continuam, irrefletidamente, a aplicar os velhos métodos às
sociedades não -europeias.
As representações humanas do período proto ‑histórico:
seu valor antropológico
O estudo das representações humanas realizado por Flinders Petrie, num
outro plano, demonstra que o tipo étnico era negro: de acordo com Petrie, esses
povos eram os Anu, cujo nome, que conhecemos desde a época proto -histórica,
era sempre “escrito” com três pilares, nas poucas inscrições subsistentes do final
do IV milênio antes da Era Cristã. Os nativos do país são sempre represen-
tados com inconfundíveis emblemas de chefia, que não encontramos entre as
raras representações das outras raças, cujos elementos aparecem todos como
estrangeiros servis, que chegaram ao vale por infiltração (cf. Tera Neter
7
e o rei
Escorpião, que Petrie reúne em um mesmo grupo: “O rei Escorpião pertencia
à raça anu,citada; além disso, adorava Min e Seti”)
8
.
Como veremos adiante, Min, assim como os principais deuses do Egito, era
chamado, na própria tradição egípcia,o Grande Negro”.
Depois de fazer um apanhado dos vários tipos humanos estrangeiros que
disputaram o vale com os negros nativos, Petrie descreve estes últimos, os Anu,
nos seguintes termos:
Além desses tipos, característicos do norte e do leste, existe a raça autóctone dos
Anu, ou Annu (escrito com três pilares), povo que constituiu parte dos habitantes da
época histórica. O assunto se complica e margem a dúvidas se incluirmos todos
os nomes escritos com um único pilar; mas, considerando apenas a palavra Annu,
escrita com três pilares, descobrimos que esse povo ocupava o sul do Egito e a Núbia;
o nome também é utilizado no Sinai e na Líbia. Quanto aos habitantes meridionais
foi formulada nos seguintes termos:em cada localidade, o índice cefálico é tanto menor, e a proporção
de dolicocefalia tanto maior, quanto mais alta é a classe social”. Em seu Séléctions Sociales, o mesmo
escritor não hesita em armar que a classe dominante no período feudal pertence quase exclusivamente à
variedade Homo europaeus, de maneira que não é por mero acaso que os pobres ocupam as baixas posições
na escala social, mas por sua inferioridade congênita”.
Vemos, portanto, que o racismo alemão não inventou nada de novo quando Alfred Rosenberg armou
que a Revolução Francesa deve ser considerada como uma revolta dos braquicéfalos de matriz racial
alpina contra os dolicocéfalos de raça nórdica.” CUVILLIER, A. p. 155.
7 PETRIE, W. M. F. 1939, Fig. 1.
8 Id., ibid., p. 69.
7
Origem dos antigos egípcios
F . Representação proto -histórica de Tera -Neter, um nobre
negro da raça dos Anu, primeiros habitantes do Egito. (Fonte: C. A. Diop.
Antériorité des Civilisations Nègres: Mythe ou Realité Historique?”. Paris,
Présence Africaine, 1967. pr. XIV.)
F. Estatuetas pré -dinásticas. (Fonte: C. A. Diop. 1967. pr. LVI (4).)
8
África Antiga
do Egito, temos o documento essencial: um retrato do chefe Tera Neter, rudemente
modelado em relevo em faiança verde vitrificada, encontrado no mais antigo templo
de Abidos. O endereço precede o nome, nesse primitivo cartão de visita: ‘Palácio dos
Anu na cidade de Hemen, Tera Neter’. Hemen era o nome do deus de Tuphium.
Erment, do lado oposto, era o palácio dos Anu do Sul, Annu Menti. A próxima
localidade ao sul é Aunti (Gefeleyn) e, depois, Aunyt -Seni (Esna)”
9
.
Amélineau arrola, em ordem geográfica, as cidades fortificadas construídas
ao longo do vale do Nilo pelos negros anu.
= Ant (Esna)
ou = An = “On do Sul (hoje Hermonthis)
= Denderah, tradicionalmente, a cidade natal de Ísis
= Uma cidade também chamada “On”, no nomo de Tínis
ou = A cidade chamada On do Norte, a lebre Heliópolis
O ancestral comum dos Anu estabelecidos ao longo do Nilo era Ani ou An,
nome determinado pela palavra
(khet), o qual, desde as primeiras versões do
Livro dos Mortos, é atribuído ao deus Osíris.
A esposa de
, o deus Ani, é a deusa Anet ,que é também sua
irmã, da mesma forma que Ísis é irmã de Osíris.
A identidade do deus An com Osíris foi demonstrada por Pleyte
10
; devemos
lembrar que Osíris é também cognominado o Anu: “Osíris Ani”. O deus Anu é
representado ora pelo símbolo
, ora pelo símbolo . As tribos Anuak, que hoje
habitam o Nilo superior, teriam alguma relação com os antigos Anu? Pesquisas
futuras trarão resposta a esta questão.
Petrie acredita ser possível distinguir entre o povo pré -dinástico, represen-
tado por Tera Neter e pelo rei Escorpião (que, já nessa época, é um faraó, como
mostram os enfeites em sua cabeça) e um povo dinástico, que adorava o falcão e
que provavelmente é representado pelos faraós Narmer
11
, Khasekhem, Sanekhei
e Zoser
12
. Observando -se os rostos reproduzidos na ilustração, percebe -se facil-
9 Id., ibid., p. 68.
10 AMÉLINEAU, E., 1908, p. 174.
11 Fig. 19.
12 Fig. 20.
9
Origem dos antigos egípcios
mente que não existem diferenças étnicas entre os dois grupos e que ambos
pertencem à raça negra.
O mural da tumba SD 63 (Sequence Date 63) de Hieracômpolis mostra os
negros nativos subjugando os invasores estrangeiros, se aceitarmos a interpre-
tação de Petrie: Abaixo, temos a embarcação negra em Hieracômpolis, perten-
cente aos homens negros, que aparecem subjugando os homens vermelhos”
13
.
O cabo de faca de Djebel el -Arak também mostra cenas de batalhas similares:
“Há também combates em que homens negros dominam homens vermelhos”
14
.
Entretanto, o valor arqueológico desse objeto, que não foi encontrado in situ,
mas em poder de um mercador, é menor do que o dos itens anteriores.
O que expusemos acima mostra que as representações dos homens do perí-
odo proto -histórico, e mesmo do período dinástico, são absolutamente incom-
patíveis com a ideia de raça egípcia difundida entre os antropólogos ocidentais.
Onde quer que o tipo racial autóctone esteja representado com alguma clareza,
ele é nitidamente negroide. Em parte alguma elementos indo-europeus ou semi-
tas são representados como homens livres, nem mesmo como cidadãos comuns
a serviço de um chefe local. Eles aparecem invariavelmente como estrangeiros
submetidos. As raras representações encontradas trazem sempre marcas inequí-
vocas de cativeiro: mãos atadas atrás das costas ou amar radas sobre os ombros
15
.
Uma estatueta protodinástica representa um prisioneiro indo -europeu com uma
longa trança, de joelhos e as mãos atadas ao corpo. As características do próprio
objeto mostram que ele devia ser o de um móvel e representava uma raça con-
quistada
16
. A representação é, com frequência, deliberadamente grotesca, como
ocorre com outras figuras protodinásticas, mostrando indivíduos com o cabelo
trançado à maneira que Petrie denomina rabo de porco (pigtail). Na tumba do
rei Ka (I dinastia), em Abidos, Petrie encontrou uma plaqueta representando um
indo -europeu cativo, acorrentado, com as mãos atrás das costas. Elliot -Smith
acha que o indivíduo representado é um semita
17
.
A época dinástica forneceu também os documentos reproduzidos nas figuras
4 e 5 das páginas 49 e 50, que mostram prisioneiros indo -europeus e semitas.
Em contraposição, as feições tipicamente negroides dos faraós Narmer, I dinas-
13 PETRIE, W. M. F. 1939, p. 67.
14 Fig. 3.
15 Fig. 4.
16 Fig. 18.
17 Fig. 6. Não ignoro que “indo -europeu” geralmente designa uma língua, não uma raça, mas prero esse
termo a “ariano”, nos contextos em que não suscitar confusões.
10
África Antiga
tia, fundador da linhagem faraônica, Zoser, III dinastia, em cuja época todos os
elementos tecnológicos da civilização egípcia eram evidentes, Quéops, o cons-
trutor da Grande Pirâmide, um tipo característico da região da atual República
de Camarões
18
, Mentuhotep, fundador da XI dinastia, negro retinto
19
, Sesóstris
I, a rainha Amósis Nefertári, e Amenófis I mostram que todas as classes da
sociedade egípcia pertencem à mesma raça negra.
As figuras de 11 a 15 foram incluídas deliberadamente para contrastar tipos
semitas e indo -europeus com as fisionomias bastante diferentes dos faraós
negros e para mostrar claramente que não traço de nenhum dos dois pri-
meiros tipos na linhagem dos faraós, se excluirmos as dinastias estrangeiras
(líbias e ptolomaicas).
É comum contraporem -se as negras da tumba de Horemheb ao tipo egípcio
também representado. Na verdade, essa contraposição é falsa: é social e não
étnica; há tanta diferença entre uma aristocrata senegalesa de Dacar e as cam-
ponesas da África antiga, de mãos calejadas e pés angulosos, quanto entre estas
últimas e uma senhora egípcia das cidades da Antiguidade.
Existem duas variantes da raça negra:
y os negros de cabelos lisos, representados na Ásia pelos dravidianos e, na
África, pelos núbios e os tubbou ou Tedda, todos com pele negro -azeviche;
y os negros de cabelo crespo das regiões equatoriais.
Os dois tipos entraram na composição da população egípcia.
Teste de dosagem de melanina
Na prática, é possível determinar diretamente a cor da pele, e, portanto, a
filiação étnica dos antigos egípcios, através de análises microscópicas de labo-
ratório; duvido que a perspicácia dos pesquisadores que se dedicaram à questão
tenha ignorado essa possibilidade.
A melanina, substância química responsável pela pigmentação da pele, é,
geralmente, insolúvel e preserva -se por milhões de anos na pele dos animais
sseis
20
. Portanto razões de sobra para que seja facilmente encontrada na
pele das múmias egípcias, apesar da lenda persistente segundo a qual a pele
18 Fig. 7.
19 Fig. 8.
20 NlCOLAUS, R. A. p. 11.
11
Origem dos antigos egípcios
das mias, tingida pelo material de embalsamamento, já não é suscevel
de qualquer análise
21
. Embora a melanina se localize principalmente na pele,
os melacitos que penetraram a derme no vel da epiderme, mesmo onde
esta última tenha sido praticamente destruída pelos materiais de embalsama-
mento, indicam um nível de melanina inexistente nas ras de pele branca.
As amostras que eu mesmo analisei foram colhidas no laboratório de antro-
pologia física no Museu do Homem, em Paris, das múmias provenientes
das escavões de Marietta, no Egito
22
. O mesmo método é perfeitamente
utilizável para as múmias reais de Tutmés III, Séti I e Ramsés II, do Museu
do Cairo, que eso em excelente estado de conservação. dois anos tenho
pedido em o ao curador do Museu do Cairo amostras similares para
análise. Não seriam necesrios mais do que alguns mimetros quadrados de
pele para compor um espécime, com preparações de poucos µm de espessura
e clareadas com benzoato de etila. Elas podem ser estudadas à luz natural
ou sob luz ultravioleta, que torna os grãos de melanina fluorescentes. De
qualquer forma, queremos simplesmente afirmar que a avaliação do nível
de melanina atras de exames de microspio é um método de laboratório
que nos permite classificar os antigos epcios inquestionavelmente entre as
raças negras.
Medidas osteológicas
Dentre os critérios aceitos pela antropologia física para a classificão das
raças, o das medidas osteológicas (osteometria) talvez seja o menos engana-
dor (por oposão à craniometria) para distinguir um homem branco de um
negro. Também segundo esse critério, os egípcios pertencem às raças negras.
Tal estudo foi realizado pelo eminente bio alemão Lepsius, no final do
século XIX, e suas conclusões continuam válidas: os progressos metodológi-
cos subsequentes, no campo da antropologia física, não invalidaram em nada
aquilo que se conhece como “cânone de Lepsius”, que estabelece, em números
redondos, as proporções corporais do egípcio ideal, de braços curtos e tipo
físico negroide ou negrito
23
.
21 PETTIGREW, T. J. 1834, pp. 70 -1.
22 DIOP, C. A. 1977.
23 FONTANE, M. E. pp. 44 -5 (ver reprodução: T).
12
África Antiga
Grupos sanguíneos
É importante notar que, mesmo hoje, os egípcios, particularmente no Alto
Egito, pertencem ao mesmo Grupo B que as populações da África ocidental,
no litoral atlântico, e não ao Grupo A
2
, característico da raça branca antes de
qualquer miscigenação
24
. Seria interessante estudar a extensão da distribuição
do Grupo A
2
nas múmias egípcias, o que, aliás, é possível realizar mediante
as técnicas atuais.
A raça egípcia segundo os autores clássicos
da Antiguidade
Para os escritores gregos e latinos contemporâneos dos antigos egípcios, a
classificação sica desses últimos não colocava problemas: os egípcios eram
negros, de lábios grossos, cabelo crespo e pernas finas; será difícil ignorar ou
subestimar a concordância entre os testemunhos apresentados pelos autores com
referência a um fato físico tão evidente quanto a raça de um povo. Alguns dos
testemunhos que se seguem são contundentes.
(a) Heródoto,o pai da História”, -480 (?) a -425.
Com relação à origem dos Kolchu
25
, ele escreve:
“É, de fato, evidente que os colquídios são de raça egípcia ( ... ) muitos egípcios me
disseram que, em sua opinião, os colquídios eram descendentes dos soldados de
Sesóstris. Eu mesmo refleti muito a partir de dois indicadores: em primeiro lugar,
eles têm pele negra e cabelo crespo (na verdade, isso nada prova, porque outros povos
também os têm) e, em segundo lugar e este é um indicador mais consistente
os egípcios e os etíopes foram os únicos povos, de toda a humanidade, a praticar
a circuncisão desde tempos imemoriais. Os próprios fenícios e sírios da Palestina
reconhecem que aprenderam essa prática com os egípcios, enquanto os sírios do
24 MONTAGU, M. F. A. p. 337.
25 No século V antes da Era Cristã, quando Heródoto visitou o Egito, um povo de pele negra, os Kolchus,
ainda vivia na Cólquida, no litoral armênio do mar Negro, a leste do antigo porto de Trebizonda, cercado
por nações de pele branca.
Os estudiosos da Antiguidade caram intrigados quanto à origem deste povo, e Heródoto, em Euterpe,
o segundo livro de sua história do Egito, tenta provar que os Kolchu eram egípcios; daí a argumentação
citada. Heródoto, baseado nas estelas comemorativas erigidas por Sesóstris em países conquistados,
arma que esse monarca alcançara a Trácia e a Cítia, onde, ao que parece, as estelas ainda subsistiam no
tempo de Heródoto. (Livro II, 103.)
13
Origem dos antigos egípcios
rio Termodon e da região de Pathenios e seus vizinhos, os macrons, dizem tê-la
aprendido, recentemente, com os colquídios. Essas são as únicas raças que praticam
a circuncisão, e deve-se observar que a praticam da mesma maneira que os egípcios.
Quanto aos próprios egípcios e aos etíopes, eu não poderia afirmar quem ensinou a
quem essa prática, pois ela é, evidentemente, muito antiga entre eles. Quanto ao fato
de o costume ter sido aprendido através dos egípcios, uma outra prova significativa
para mim é o fato de que todos os fenícios que comerciam com a Grécia param de
tratar suas partes pudendas conforme a maneira egípcia e não submetem seus filhos
à circuncisão”
26
.
Heródoto retorna várias vezes ao caráter negroide dos egípcios, e a cada vez
o utiliza como dado de observação para discutir teses mais ou menos complexas.
Assim, para provar que o oráculo grego de Dodona, no Épiro, era de origem
egípcia, um de seus argumentos é o seguinte: “e, quando eles acrescentam que
a pomba era negra, dão a entender que a mulher era egípcia”
27
. As pombas em
questão na verdade, eram duas, de acordo com o texto simbolizam duas
mulheres egípcias, que se dizia terem sido trazidas de Tebas, no Egito, para
fundar oráculos respectivamente na Grécia (Dodona) e na Líbia (oásis de Júpi-
ter Amon). Heródoto não partilha da opinião de Anaxágoras segundo o qual
as enchentes do Nilo seriam causadas pelo degelo nas montanhas da Etiópia
28
.
Apoiava -se no fato de que na Etiópia não chove nem neva, “e o calor torna
os homens negros”
29
.
(b) Aristóteles, -384 a -322, cientista, filósofo e tutor de Alexandre, o Grande.
Num de seus trabalhos menores, Aristóteles tenta, com surpreendente inge-
nuidade, estabelecer uma correlação entre a natureza física e a natureza moral
dos seres vivos, e nos fornece evidências sobre a raça egípcio -etíope que confir-
mam o testemunho de Heródoto. Segundo Aristóteles,
Aqueles que o muito negros são covardes, como, por exemplo, os egípcios e os
etíopes. Mas os excessivamente brancos também são covardes, como podemos ver
pelo exemplo das mulheres; a coloração da coragem está entre o negro e o branco
30
.
26 HERÓDOTO. Livro II, 104. As mulheres egípcias submetiam-se também à excisão do clitóris, como
ocorre entre muitos povos da África negra. Cf. ESTRABÃO. Geograa. Livro XVII, cap. 1.
27 HERÓDOTO. Livro II, 57.
28 SÊNECA. Questões Naturais. Livro IV, 17.
29 HERÓDOTO. Livro II, 22.
30 ARISTÓTELES. Fisionomia, 6.
14
África Antiga
F . Cabo da faca de Dje
bel
el -Arak, Pré -Di
nástico Tardio. (Foto
Giraudon, Musée du Louvre.)
F . Cativos semitas do
tempo dos faraós. Rocha do Sinai.
(Fonte: C. A. Diop. 1967. pr.
LIX.)
15
Origem dos antigos egípcios
 . Cativos indo -europeus. (Fonte: C. A.
Diop. 1967. pr. LVIII (b).)
F . Cativo indo -europeu. (Fonte: C. A.
Diop. 1967. pr. LVIII (a).)
16
África Antiga
(c) Luciano, escritor grego, +125 (?) a +190.
O testemunho de Luciano é tão explícito quanto os de Heródoto e Aris-
tóteles. Ele apresenta dois gregos, Licino e Timolaus, que iniciam um diálogo:
Licino [descrevendo um jovem egípcio]:Este rapaz não é simplesmente preto; ele
tem lábios grossos e pernas muito finas (...) seu cabelo trançado atrás mostra que
não é um homem livre.
Timolaus: Mas no Egito esse é um sinal das pessoas muito bem -nascidas, Licino.
Todas as crianças nascidas livres trançam o cabelo até atingirem a idade adulta. Esse
é um costume exatamente oposto ao dos nossos ancestrais, que achavam conveniente,
para os velhos, prender o cabelo com um broche de ouro, para mantê -lo em ordem
31
.
(d) Apolodoro, século I antes da Era Cristã, filósofo grego.
“Egito conquistou o país dos homens de pés negros e chamou -o Egito, a
partir de seu próprio nome.”
32
(e) Ésquilo, -525(?) a -456, poeta trágico e criador da tragédia grega.
Em As Suplicantes, Dânaos, fugindo com suas filhas, as Danaides, e perse-
guido por seu irmão, Egito, e os filhos deste, os Egitíados, que querem desposar
suas primas à força, sobe em uma colina, olha para o mar e descreve nos seguin-
tes termos os Egitíados que remavam ao longe: Posso ver a tripulação, com seus
membros negros e suas túnicas brancas”
33
.
Uma descrão similar do tipo egípcio aparece novamente poucas linhas
abaixo, no verso 745.
(f) Aquiles Tácio de Alexandria.
Compara os guardadores de gado do Delta aos etíopes e explica que são
escuros, como mestiços.
(g) Estrabão, -58 a aproximadamente +25.
Estrabão visitou o Egito e quase todos os países do Império Romano. Con-
corda com a teoria de que os egípcios e os Kolchu são da mesma raça, mas sus-
tenta que as migrações para a Etiópia e Cólquida vieram apenas do Egito. “Os
egípcios estabeleceram -se na Etiópia e na Cólquida
34
. Não há qualquer dúvida
sobre a concepção de Estrabão a respeito da raça egípcia, pois ele procura, em
outra parte, explicar por que os egípcios são mais escuros do que os hindus,
31 LUCIANO. Navegações, parágrafos 2 -3.
32 APOLODORO. Livro II,A família de Ínacos”, parágrafos 3 e 4.
33 ÉSQUILO. As Suplicantes. versos 719 -720. Ver também verso 745.
34 ESTRABÃO. Geograa. Livro I, cap. 3, parágrafo 10.
17
Origem dos antigos egípcios
circunstância que permitiria a refutação, se necessário, de qualquer tentativa de
confundir “a raça hindu e a raça egípcia”.
(h) Diodoro da Sicília, aproximadamente -63 a +14, historiador grego e
contemporâneo de César Augusto.
Segundo Diodoro, provavelmente foi a Etiópia que colonizou o Egito (no
sentido ateniense do termo, significando que, devido à superpopulação, parte do
povo emigrou para o novo território).
Os etíopes dizem que os egípcios são uma de suas colônias
35
, que foi levada para o Egito
por Osíris. Eles afirmam que, no começo do mundo, o Egito era apenas um mar,
mas que o Nilo, transportando em suas enchentes grandes quantidades de limo da
Etiópia, terminou por colmatá -lo e tornou -o parte do continente (...). Acrescentam
que os egípcios receberam deles como de seus autores e ancestrais a maior parte de
suas leis”
36
.
(i) Diógenes Laércio.
Sobre Zenão, fundador da escola estoica (-333 a -261), Diógenes escreveu o
seguinte: “Zenão, filho de Mnaseas ou Demeas, era natural do Cício, em Chipre,
uma cidade grega que havia recebido alguns colonos fenícios”. Em seu Vidas,
Timóteo de Atenas descreve Zenão como tendo o pescoço torcido. Apolônio
de Tiro diz que ele era frágil, muito alto e negro, daí o fato, citado por Crisipo
no Primeiro Livro de seus Provérbios. de algumas pessoas o chamarem broto
de videira egípcio
37
.
(j) Amiano Marcelino, aproximadamente +330 a +400, historiador latino e
amigo do imperador Juliano.
Com ele, atingimos o ocaso do Império Romano e o fim da Antiguidade
clássica. Quase nove séculos se passaram entre o nascimento de Ésquilo e Heró-
doto e a morte de Amiano Marcelino, nove séculos durante os quais os egípcios,
em meio a um mar de raças brancas, se miscigenaram constantemente. Pode-
-se dizer sem exagero que, no Egito, uma casa em cada dez incluía um escravo
branco, asiático ou indo -europeu
38
.
35 Grifo meu.
36 DIODORO. História Universal. Livro III. A antiguidade da civilização etíope é atestada pelo mais antigo
e respeitado escritor grego, Homero, tanto na Ilíada como na Odisseia:
“Hoje, Júpiter, seguido por todos os deuses, recebe os sacrifícios dos etíopes” (Ilíada. I, 422).
“Ontem, Júpiter transportou -se para a beira do oceano, para visitar a santa Etiópia.” (Ilíada. I, 423).
37 DIÓGENES LAÉRCIO. Livro VII, I.
38 Os notáveis do Egito gostavam de ter uma escrava síria ou cretense em seus haréns.
18
África Antiga
É notável que, apesar de sua intensidade, a miscigenação não tenha alterado
significativamente as constantes raciais. De fato, Amiano Marcelino escreve:
“... a maior parte dos homens do Egito são morenos ou negros, com uma
aparência descarnada”
39
. Ele tamm confirma o depoimento citado sobre
os Kolchu: Além destas terras esa tria dos Camarita
40
, e o Fásis, com
sua correnteza veloz, banha o país dos Kolchu, uma antiga raça de origem
egípcia”
41
.
Esta rápida revisão dos testemunhos apresentados pelos antigos escritores
greco -latinos sobre a raça egípcia mostra que o grau de concordância entre eles
é impressionante, constituindo um fato objetivo difícil de subestimar ou ocultar.
A moderna egiptologia oscila constantemente entre esses dois pólos.
Foge à regra o testemunho de um cientista honesto, Volney, que viajou pelo
Egito entre 1783 e 1785 isto é, em pleno período da escravidão negra e
fez as seguintes observações sobre os coptas (representantes da verdadeira raça
egípcia, aquela que produziu os faraós).
Todos eles têm faces balofas, olhos inchados e lábios grossos, em uma palavra,
rostos realmente mulatos. Fiquei tentado a atribuir essas características ao clima,
até que, visitando a Esfinge e olhando para ela, percebi a pista para a solução do
enigma. Completando essa cabeça, cujos traços são todos caracteristicamente negros,
lembrei -me da conhecida passagem de Heródoto: ‘De minha parte, considero os
Kolchu uma colônia do Egito porque, como os egípcios, eles têm a pele negra e
o cabelo crespo’. Em outras palavras, os antigos egípcios eram verdadeiramente
negros, da mesma matriz racial que os povos autóctones da África; a partir desse
dado, pode -se explicar como a raça egípcia, depois de alguns séculos de miscigenação
com sangue romano e grego, perdeu a coloração original completamente negra, mas
reteve a marca de sua configuração. É mesmo possível aplicar essa observação de
maneira ampla, e afirmar, em princípio, que a fisionomia é uma espécie de docu-
mento, utilizável em muitos casos para discutir ou elucidar os indícios da história
sobre a origem dos povos...”
Depois de ilustrar esta proposição com o caso dos normandos, que, nove-
centos anos depois da conquista da Normandia, ainda se assemelham aos dina-
marqueses, Volney acrescenta:
39 AMIANO MARCELINO. Livro
XXII,
parágrafo
16 (23).
40 Bandos de piratas que usavam pequenas embarcações denominadas
Camare.
41 AMIANO MARCELINO. Livro
XXIII,
parágrafo
8 (24).
19
Origem dos antigos egípcios
 . Quéops, faraó da IV dinastia, construtor da Grande Pirâmide. (Fonte: C. 1967. pr. XVIII.)
20
África Antiga
F . Faraó Mentuhotep I. (Fonte: C. A. Diop. 1967. pr. XXII.)
21
Origem dos antigos egípcios
“Mas, voltando ao Egito, sua contribuição para a história fornece muitos temas
para a reflexão filosófica. Que temas importantes para meditação: a atual barbárie
e ignorância dos coptas, considerados como tendo nascido do gênio dos egípcios e
dos gregos; o fato de esta raça de negros, que hoje são escravos e objeto de nosso
menosprezo, ser a mesma a quem devemos nossa arte, nossas ciências e mesmo o
uso da palavra escrita; e, finalmente, o fato de, entre os povos que pretendem ser
os maiores amigos da liberdade e da humanidade, ter -se sancionado a escravidão
mais bárbara e questionado se os negros teriam cérebros da mesma qualidade que
os cérebros dos brancos!”
42
A esse depoimento de Volney, Champollion -Figeac, irmão de Champollion,
o Jovem, iria responder nos seguintes termos: “Os dois traços físicos apresen-
tados pele negra e cabelo crespo não são suficientes para rotular uma raça
como negra, e a conclusão de Volney quanto à origem negra da antiga população
do Egito é nitidamente forçada e inadmissível”
43
.
Ser preto da cabeça aos pés e ter cabelo crespo não é suficiente para fazer de
um homem um negro! Isso nos mostra o tipo de argumentação capciosa a que a
egiptologia tem recorrido desde seu nascimento como ciência. Alguns estudiosos
sustentam que Volney estava tentando desviar a discussão para um plano filosó-
fico. Mas basta reler Volney: ele simplesmente faz inferências a partir de fatos
materiais brutos que se impõem como provas aos seus olhos e à sua consciência.
Os egípcios vistos por si mesmos
Não é perda de tempo conhecer o ponto de vista dos principais envolvidos.
Como os antigos egípcios viam a si mesmos? Em que categoria étnica se coloca-
vam? Como denominavam a si mesmos? A língua e a literatura que os egípcios
da época faraônica nos deixaram fornecem respostas explícitas a essas questões,
que os acadêmicos insistem em subestimar, distorcer e “interpretar”.
Os egípcios tinham apenas um termo para designar a si mesmos:
=
kmt ,= os negros” (literalmente)
44
. Esse é o termo mais forte existente na língua
faraônica para indicar a cor preta; assim, é escrito com um hieróglifo represen-
tando um pedaço de madeira com a ponta carbonizada, e não com escamas de
42 VOLNEY, M. C. F. Voyages en Syrie et en Egypte. Paris, 1787. v. I, pp. 74 -7.
43 CHAMPOLLlON -FIGEAC, J. J. 1839, pp. 26 -7.
44 Essa importante descoberta foi realizada, do lado africano, por Sossou Nsougan, que deveria compilar
esta parte do capítulo. Para o sentido da palavra, ver Wörterbuch der Aegyptischen Sprache, Berlim, 1971.
v. 5, pp. 122, 127.
22
África Antiga
crocodilo
45
. Essa palavra é a origem etimológica da conhecida raiz kamit, que
proliferou na moderna literatura antropológica. Dela deriva, provavelmente, a
raiz bíblica kam. Portanto foi necessário distorcer os fatos para fazer com que
essa raiz atualmente signifique branco” em egiptologia, enquanto, na língua-
-mãe faraônica de que nasceu, significava “preto -carvão”.
Na língua egípcia, o coletivo se forma a partir de um adjetivo ou de um
substantivo, colocado no feminino singular. Assim, kmt, do adjetivo
=
km = preto, significa rigorosamente “negros”, ou, pelo menos,homens pretos”.
O termo é um coletivo que descrevia, portanto, o conjunto do povo do Egito
faraônico como um povo negro.
Em outras palavras, no plano puramente gramatical, quando, na língua fara-
ônica, se deseja indicar negros”, não se pode usar nenhuma outra palavra senão
a que os egípcios usavam para designar a si mesmos. Além disso, a língua nos
oferece um outro termo,
= kmtjw = os negros, os homens pretos
(literalmente) = os egípcios, opondo -se a “estrangeiros”, que vem da mesma
raiz, km, e que os egípcios também utilizavam para descrever a si mesmos como
um povo distinto de todos os povos estrangeiros
46
. Esses são os únicos adjetivos de
nacionalidade usados pelos egípcios para designarem a si mesmos, e ambos
significam negro ou “preto” na língua faraônica. Os acadêmicos raramente
os mencionam ou, quando o fazem, traduzem -nos por eufemismos, tais como
os egípcios”, nada dizendo sobre seu sentido etimológico
47
. Eles preferem a
expressão
= Rmt kmt = os homens do país dos homens negros ou
os homens do país negro.
Em egípcio, as palavras são normalmente seguidas de um determinante, indi-
cando seu sentido exato; para essa expressão particular, os egiptólogos sugerem
que
= km = preto e que a cor qualifica o determinante que o segue e que
significa país”. Assim, eles alegam que a tradução deveria ser a terra negra”,
a partir da cor do limo ou “o país negro”, e não “o país dos homens negros”,
como tenderíamos a interpretar hoje em dia, tendo em mente a África branca
e a África negra. Talvez estejam certos; mas, se aplicarmos essa regra rigorosa-
mente a
= kmit, seremos obrigados a admitir que aqui o adjetivo preto
qualifica o determinante, que significa todo o povo do Egito, representado pelos
dois símbolos de ‘homem é mulher’ e os três traços embaixo, designando plural”.
Assim, se é possível levantar alguma dúvida sobre a expressão
= kme, não é
45 Wörterbuch ... , p. 122.
46 Ibid., p. 128.
47
FAULKNER,
R. O. 1962,
p.
286.
23
Origem dos antigos egípcios
 . Ramsés II e um Batutsi moderno. (Fonte: C. A. Diop. 1967. pr. XXXV.)
F . A Esnge, tal como foi encontrada pela primeira missão cientíca francesa no século XIX.
Presume -se que esse perl, tipicamente negroide, represente o faraó Khafre ou Quéfren (cerca de -2600, IV
dinastia), construtor da segunda pirâmide de Gisé. O perl não é nem helênico nem semita: é bantu. (Fonte:
C. A. Diop. 1967. pr. XIX.)
24
África Antiga
F ., ., . . Quatro tipos
indo -europeus (Zeus, Ptolomeu, Serápis, Traja -
no). Compare com os grupos egípcios II e III. É
possível fazer -se confusão? (Fonte: C. A. Diop.
1967. pr. LVII.)
F . Dois semitas. O tipo semita, assim
como o indo -europeu, inexiste na classe dominante
egípcia; ambos entravam no Egito apenas como
prisioneiros de guerra.
25
Origem dos antigos egípcios
possível fazê -lo no caso dos dois adjetivos de nacionalidade kmt e kmtjw,
a menos que se estejam escolhendo os argumentos sem nenhum critério.
É interessante notar que os antigos egípcios nunca tiveram a ideia de aplicar
esses qualificativos aos núbios e a outras populações da África, para distingui -las
deles mesmos, da mesma forma que um romano, no apogeu do Império, não
usaria um adjetivo de “cor para se distinguir dos germânicos da outra margem
do Danúbio, que eram da mesma matriz étnica mas se encontravam ainda num
estádio de desenvolvimento pré -histórico.
Nos dois casos, ambos os lados pertenciam ao mesmo universo, em termos de
antropologia física; portanto os termos usados para distingui -los relacionavam-
-se ao grau de Civilização ou tinham sentido moral. Para o romano civilizado,
os germânicos, da mesma matriz étnica, eram bárbaros. Os egípcios usavam
a expressão
= nahas para designar os núbios; e nahas
48
, em egípcio, é o
nome de um povo, sem conotação de cor. Trata -se de um equívoco deliberado
traduzi -lo como “negro”, como aparece em quase todas as publicações atuais.
Os epítetos divinos
Finalmente, preto ou negro é o epíteto divino invariavelmente utilizado para
designar os principais deuses benfeitores do Egito, enquanto os espíritos malé-
volos são qualificados como desrêt = vermelho. Sabemos que, entre os africanos,
esse termo se aplica às nações brancas; é quase certo que isso seja verdade tam-
bém para o Egito mas, neste capítulo, quero ater -me ao plano dos fatos menos
sujeitos a controvérsias.
Os deuses recebiam os seguintes epítetos:
= kmwr = o “Grande Negro para Osíris
49
;
= km = negro + o nome do deus
50
;
= kmt = negro + o nome da deusa
51
.
48 Wörterbuch ,
p.
128.
49 Ibid., p. 124.
50 Ibid.,
p.
125.
51 Ibid.,
p.
123.
26
África Antiga
O qualificativo km (negro), , é aplicado a Hátor, Ápis, Min, Tot, etc.
setkmt = a mulher negra = Ísis
52
. Por outro lado, seth, o deserto
estéril, é qualificado pelo termo dest = vermelho
53
. Os animais selvagens,
que Hórus combateu para criar a civilização, são qualificados como desrêt =
vermelhos, especialmente o hipopótamo
54
. Analogamente, os seres malévolos
expulsos por Tot são des =
= desrtjw = os vermelhos. Esse termo é o
inverso gramatical de Kmtjw, e sua constrão segue a mesma regra que a da
formação de nisbés.
Testemunho da Bíblia
A Bíblia nos diz: “... os filhos de Cam [foram] Cush, e Mizraim (isto é,
Egito), e Fut, e Canaã. E os filhos de Cush, Saba, e Hevila, e Sabata, e Regna,
e Sabataca”
55
.
De maneira geral, toda a tradição semítica (judaica e árabe) classifica o antigo
Egito entre os países dos negros.
A importância desses depoimentos não pode ser ignorada, porque os judeus
eram povos que viviam lado a lado com os antigos egípcios e, algumas vezes, em
simbiose com estes, e nada tinham a ganhar apresentando uma falsa imagem
étnica dos mesmos. Da mesma forma, neste caso não se sustenta a noção de
uma interpretação errônea dos fatos
56
.
Dados culturais
Dentre os inúmeros traços culturais idênticos documentados no Egito e
na África negra dos nossos dias, vamos referir -nos apenas à circuncisão e ao
totemismo.
Segundo o excerto de Heródoto citado anteriormente, a circuncisão é de
origem africana. A arqueologia confirmou a opinião do Pai da História: Elliot-
-Smith pôde comprovar, a partir do exame de múmias bem conservadas, que a
52 Note -se que set
=
kem
=
esposa negra em walaf. Wörterbuch ... , p. 492.
53 Wörterbuch ... ,
p.
493.
54 Desrêt
=
sangue, em egípcio; deret
=
sangue, em walaf. Ibid., p. 494.
55 Gênesis, 10: 6 -7.
56
DIOP,
C. A., 1955, pp. 33 et seqs.
27
Origem dos antigos egípcios
circuncisão era praticada, entre os egípcios, em tempos que remontam à era
proto -histórica
57
, isto é, a antes de - 4000.
O totemismo egípcio manteve sua vitalidade até o período romano
58
, e Plu-
tarco também o menciona. As pesquisas de Amélineau
59
, Loret, Moret e Adol-
phe Reinach demonstraram claramente a existência de um sistema totêmico no
Egito, refutando os defensores da tese da zoolatria.
“Se reduzirmos a noção de totem à de um fetiche, geralmente animal, representando
uma espécie com a qual a tribo acredita ter laços especiais, renovados periodicamente,
e que é carregado para a batalha como um estandarte; se aceitarmos essa definição de
totem, mínima mas adequada, pode -se dizer que não outro país onde o totemismo
tenha tido um reinado mais brilhante do que no Egito, e nenhum outro lugar onde
ele possa ser mais bem estudado
60
.
Anidade linguística
O walaf
61
, língua senegalesa falada no extremo oeste da África, na costa
atlântica, é, talvez, tão próximo do egípcio antigo quanto o copta. Recentemente
foi feito um estudo exaustivo sobre essa questão
62
. Neste capítulo, apresentamos
apenas o suficiente para mostrar que o parentesco entre as línguas do antigo
Egito e as da África não é uma suposição, mas um fato demonstrável e impos-
sível de ser ignorado pelos círculos acadêmicos.
Como veremos, o parentesco é de natureza genealógica.
57
MASSOULARD,
E. 1949, p. 386.
58
JUVENAL.
Sátiras, XV, v. 1 -14.
59
AMÉLINEAU,
E. Op.
cit.
60
REINACH, A.
1913,
p.
17.
61 Grafa -se, frequentemente, wolof.
62
DIOP,
C. A. 1977
(a).
28
África Antiga
F . Estrangeiro. (Fonte: C.
A. Diop. 1967. pr. LVIII (1).)
F .
Fechadura de porta,
de Hieracâmpolis. I dinastia egípcia.
(Fonte: University Museum, Phila-
delphia.)
F. Prisioneiro líbio. (Fonte:
C. A. Diop, 1967. pr. LVI (2).)
29
Origem dos antigos egípcios
F . Um faraó da I dinastia egípcia. Segundo J. Pirenne,
tratar -se -ia de Narmer, o primeiro farda História. (Fonte: C. A.
Diop. 1967. pr. XVI.)
F .  direita) Zoser, típico negro, faraó da III dinastia,
inaugurou a grande era da arquitetura em pedra revestida: a pirâmide
em degraus e o complexo funerário em Sacará. Em seu reinado,
todas as características tecnológícas da civilização egípcia já estavam
desenvolvidas. (Fonte: C. A. Diop. 1967. pr. XVII.)
30
África Antiga
Verbos
Egípcio
= kef = agar-
rar, pegar, despojar
(de alguma coisa)
63
Copta
(dialeto saídico)
keh = domesticar
64
Walaf
kef = apa-
nhar uma presa
63 LAMBERT, R. 1925, p. 129.
64 MALLON, A. pp. 207-34.
65 BUCK, A. de. 1952.
66 Id.
67 MALLON, A. pp. 207-34.
PRESENTE
kef i
kef ek
kef et
kef ef
kef es
kef n
kef ton
kef sen
65
PASSADO
kef ni
kef (o) nek
kef (o) net
kef (o) nef
kef (o) nes
kef (o) nen
kef (o) n ten
kef (o) n sen
66
PRESENTE
keh
kef ek
kef ere
kef ef
kef es
kef en
kef etetû
kef ey
PASSADO
kef nei
kef nek
kef nere
kef nef
kef nes
kef nen
kef netsten
kef ney
67
PRESENTE
kef na
kef nga
kef na
kef ef
}
na
kef es
kef nanu
kef ngen
kef nanu
PASSADO
kef (on) na
kef (on) nga
kef (on) na
kef (on) ef
}
na
kef (on) es
kef (on) nanu
kef (on) ngen
kef (on) naňu
Egípcio
= feh = partir
Walaf
feh = partir precipitadamente
Temos as seguintes correspondências entre as formas verbais, com identidade
ou semelhança de significados: todas as formas verbais egípcias, com exceção de
duas, também são encontradas no walaf.
EGÍPCIO
{
feh-ef
feh-es
{
feh-n-ef
feh-n-es
WALAF
{
feh-ef
feh-es
{
feh-ôn-ef
feh-ôn-es
31
Origem dos antigos egípcios
68 Por extensão, = amar intensamente (de onde, o verbo mar-maral), tal como a fêmea que lambe o lhote
que ela acabou de parir. Esse sentido não se opõe à ideia de um homem levando a mão à boca, que pode
ser evocada pelo determinativo.
feh -w
{
feh-w-ef
feh-w-es
{
feh-w-n-ef
feh-w-n-es
{
feh-in-ef
feh-in-es
EGÍPCIO
{
feh -t-ef
feh-t-es
{
feh-tyfy
feh-tysy
{
feh-tw-ef
feh-tw-es
feh-kw(i)
{
feh-n-tw-ef
feh-n-tw-es
{
feh-y-ef
feh-y-es
EGÍPCIO
= mer = amar
{
mer-ef
mer-es
{
mer-n-ef
mer-n-es
mer-w
{
mer-w-ef
mer-w-es
{
mer-w-n-f
mer-w-n-es
{
mer-in-ef
mer-in-es
{
mer-t-ef
mer-t-es
{
mer-tw-ef
mer-tw-es
feh -w
{
feh-w-ef
feh-w-es
{
feh-w-ôn-ef
feh-w-ôn-es
{
feh-il-ef
feh-il-es
WALAF
{
feh -t-ef
feh-t-es
{
feh-ati-fy
feh-at-ef
feh-at-es
{
mar-tw-ef
mar-tw-es
fahi-kw
{
feh-an-tw-ef
feh-an-tw-es
{
feh-y-ef
feh-y-es
WALAF
mar = lamber
68
{
mar-ef
mar-es
{
mar-ôn-ef
mar-ôn-es
mar-w
{
mar-w-ef
mar-w-es
{
mar-w-ôn-ef
mar-w-ôn-es
{
mar-il-ef
mar-il-es
{
mar-t-ef
mar-t-es
{
mar-tw-ef
mar-tw-es
32
África Antiga
{
mer-tyfy
mer-t-tysy
mer-kwi
{
mer-y-ef
mer-y-es
{
mer-n-tw-ef
mer-n-tw-es
{
mar-at-ef
mar-at-es
{
mar-aty-sy
mar-aty-sy
mari-kw
{
mar-y-ef
mar-y-es
{
mar-an-tw-ef
mar-an-tw-es
{
mar-tw-ôn-ef
mar-tw-ôn-es
Demonstrativos egípcios e walaf
Entre os demonstrativos egípcios e walaf existem as seguintes correspondências
fonéticas:
EGÍPCIO WALAF
= pw ep w
(ipw) bw p b
w w
= pwy p b
-
(ipw) bwy w w
y y
= pn
{
bané p b
-
(ipn) n n
balé p b
-
n l
69
= pf bafe p b
(ipf) f f
= pf3 bafa p b
-
f f
3 a
= pfy p b
-
(ipfy) bafy f f
y y
= p3 p b
3 â
= iptw batw p b
t t
w w
69 Veja, em seguida, a explicação desta importante lei.
33
Origem dos antigos egípcios
= iptn
{
batné
{
p b
{
t t
Batalé n n
n l
= iptf batafé p b
-
t t
f f
Essas correspondências fonéticas não podem ser atribdas a afinidades
elementares ou a leis gerais do espírito humano, visto tratar-se de correspondências
regulares, em pontos relevantes, que se estendem por todo o sistema: os
demonstrativos, nas duas línguas, e as formas verbais. Foi através da aplicação
de leis como essas que se tornou possível demonstrar a existência da família
linguística indo-europeia.
A comparação poderia ir ainda mais longe, mostrando que a maioria dos
fonemas se manm inalterados nas duas nguas. As poucas mudanças de
grande interesse são as seguintes:
(a) A correspondência n (E)
l (W)
EGÍPCIO WALAF
n l
= nad = perguntar lad = perguntar
= nah = proteger lah = proteger
= ben ben = jorrar bel bel = jorrar
= teni = envelhecer talé = importante
= tefnwt = a deusa nascida
{
tefnit = “cuspir” um ser humano
da saliva de Ra teit = saliva
tei = aquele que cospe
= nebt = trança
{
let = trança
nab = traar o cabelo temporariamente
(b) A correspondência h (E)
g (W)
EGÍPCIO WALAF
h g
= hen = falo gen = falo
= hwn = adolescente gwné
}
= adolescente
goné
= hor = Hórus gor = vir (varão?)
= hor gwn = o jovem Hórus gor gwné = homem jovem (m.ǎ.m)
34
África Antiga
Ainda é cedo para se falar com precisão sobre os acompanhamentos vocáli-
cos dos fonemas egípcios. Abre -se, porém, um caminho para a redescoberta do
vocalismo do antigo Egito a partir de estudos comparativos com outras línguas
da África.
Conclusão
A estrutura da realeza africana, em que o rei é morto, real ou simbolica-
mente, depois de um reinado de duração variável em torno de oito anos –,
lembra a cerimônia de regeneração do faraó, através da festa de Sed. Os ritos
de circuncisão mencionados, o totemismo, as cosmogonias, a arquitetura, os
instrumentos musicais, etc. também são reminiscências do Egito na cultura
da África Negra
70
. A Antiguidade egípcia é, para a cultura africana, o que é a
Antiguidade greco -romana para a cultura ocidental. A constituição de um corpus
de ciências humanas africanas deve ter isso como base.
Compreende -se como é difícil escrever um capítulo como este numa obra
deste gênero, na qual o eufemismo e a transigência, via de regra, prevalecem.
Por isso, na tentativa de evitar o sacrifício da verdade científica, insistimos na
realização de três sessões preliminares à preparação deste volume, o que foi
aceito na sessão plenária realizada em 1971
71
. As primeiras duas sessões leva-
ram à realização do simpósio do Cairo, de 28 de janeiro a 3 de fevereiro de
1974
72
. Gostaria de mencionar algumas passagens do relatório desse simpósio.
O professor Vercoutter, que fora encarregado pela Unesco de escrever o relatório
preliminar, reconheceu, depois de uma discussão exaustiva, que a ideia conven-
cional de que a população egípcia se dividia equitativamente em brancos, negros
e mestiços não podia ser mantida:
“O professor Vercoutter concordou que não se deve tentar estimar por-
centagens; elas nada significariam na medida em que não se dispõe de dados
estatísticos confiáveis para calculá -las”.
Sobre a cultura egípcia consta no relatório:
“O professor Vercoutter observou que, de seu ponto de vista, o Egito era
africano quanto à escrita, à cultura e à maneira de pensar”.
70 Ver DIOP, C. A. 1967.
71 Ver Unesco. Relatório Final da Primeira Sessão Plenária do Comitê Cientíco Internacional para a redação
de uma História Geral da África. 30 mar./8 abr. 1974.
72 Simpósio sobre “O povoamento do Antigo Egito e a decifração da escrita meroítica”. Cf. Unesco. Studies
and Documents, I, 1978.
35
Origem dos antigos egípcios
O professor Leclant, por sua vez, “reconheceu o mesmo caráter africano no
temperamento e maneira de pensar egípcios”.
Quanto à linguística, afirma -se no relatório que “este item, ao contrário dos
outros discutidos anteriormente, revelou um alto grau de concordância entre
os participantes. O relatório elaborado pelo professor Diop e o relatório do
professor Obenga foram considerados muito construtivos”.
Da mesma maneira, o simpósio rejeitou a ideia de que o egípcio faraônico
era uma língua semítica.
Abordando questões mais amplas, o professor Sauneron chamou a atenção para o
interesse do método sugerido pelo professor Obenga, seguindo o professor Diop. O
egípcio manteve -se como uma língua estável por um período de, pelo menos, 4500
anos. O Egito situa -se no ponto de convergências externas, e seria de se esperar,
portanto, que se fizessem empréstimos de outras línguas; mas as raízes semíticas se
reduzem a algumas centenas, para um total de muitos milhares de palavras. A língua
egípcia não pode ser isolada de seu contexto africano, e sua origem não pode ser
totalmente explicada a partir das línguas semíticas. Portanto é natural que se espere
encontrar na África línguas aparentadas ao egípcio”.
A relação genética – isto é, não acidental – entre o egípcio e as línguas afri-
canas foi reconhecida:
“O professor Sauneron observou que o método utilizado era muito interessante, uma
vez que a similaridade entre os sufixos dos pronomes da terceira pessoa do singular
no egípcio antigo e na língua walaf não poderia ser mera casualidade; ele espera que
se tente no egípcio antigo e na língua walaf reconstituir uma língua paleoafricana,
tomando como ponto de partida as línguas atuais”.
Na conclusão geral do relatório, afirmava -se:
A despeito das especificações constantes do texto preparatório distribuído pela
Unesco, nem todos os participantes prepararam comunicações comparáveis às dos
professores Cheikh Anta Diop e Obenga, meticulosamente elaboradas. Consequen-
temente, houve uma considerável falta de equilíbrio nas discussões”.
Assim, escreveu -se no Cairo uma nova página da historiografia africana. O
simpósio recomendou que se fizessem novos estudos sobre o conceito de raça.
Tais estudos têm sido realizados desde então, mas não trouxeram nada de novo
à discussão histórica. Dizem -nos que a biologia molecular e a genética reco-
nhecem apenas a existência de populações, e que o conceito de raça já não tem
qualquer significado. No entanto, sempre que aparece alguma questão sobre a
36
África Antiga
transmissão de doenças hereditárias, o conceito de raça, no sentido mais clássico
do termo, reaparece, pois a genética nos ensina que a anemia fauciforme ocorre
apenas entre os negros”. A verdade é que todos estes antropólogos” esquema-
tizaram em suas mentes as conclusões derivadas do triunfo da teoria monoge-
nética da humanidade, sem ousar dizê -lo explicitamente, pois, se a humanidade
teve origem na África, foi necessariamente negroide antes de se tornar branca
através de mutações e adaptações, no final da última glaciação na Europa, no
Paleolítico Superior. E agora compreen de -se muito melhor por que os negroi-
des grimaldianos ocuparam a Europa 10 mil anos antes do aparecimento do
Homem de Cro -Magnon, protótipo da raça branca (por volta de -20000).
O ponto de vista ideológico também é evidente em estudos aparentemente
objetivos. Na história e nas relações sociais, o fenótipo isto é, o indivíduo ou
o povo tais como são percebidos é o fator dominante, em oposição ao genó-
tipo. A genética atual nos autoriza a imaginar um Zulu com o “mesmo” genó-
tipo de Vorster. Isso significa que a história que testemunhamos colocará esses
dois fenótipos isto é, os dois indivíduos no mesmo nível em todas as suas
atividades nacionais e sociais? Certamente não a oposição continuará sendo
étnica, e não social. Este estudo torna necessário que se reescreva a história da
humanidade a partir de um ponto de vista mais científico, levando em conta o
componente negro -africano, que foi, por longo tempo, preponderante. Assim,
é, doravante, possível constituir um corpus de ciências humanas negro -africanas
apoiado em bases históricas sólidas, e não suspenso no ar. Finalmente, se é fato
que só a verdade é revolucionária, deve -se acrescentar que só um rapprochement
realizado com base na verdade será duradouro. Não se contribui para a causa do
progresso humano lançando um véu sobre os fatos.
A redescoberta do verdadeiro passado dos povos africanos não deverá ser
um fator de divisão, mas contribuir para uni -los, todos e cada um, estreitando
seus laços de norte a sul do continente, permitindo -lhes realizar, juntos, uma
nova missão histórica para o bem da humanidade, e isto em consonância com
os ideais da Unesco
73
.
73 Nota do coordenador: As opiniões expressas pelo Professor Cheikh Anta Diop neste capítulo são as
mesmas que ele apresentou e desenvolveu no simpósio da Unesco sobre “O povoamento do antigo
Egito”, realizado no Cairo, em 1974. Um sumário dos resul tados desse simpósio se encontra no nal
do capítulo. Os argumentos apresentados neste capítulo não foram aceitos por todos os especialistas
interessados no problema (Cf. Introdução, acima). Gamal Mokhtar
C A P Í T U L O 2
37
O Egito faraônico
O fim da era glacial na Europa provocou importantes modificações climáticas
nas terras situadas ao sul do Mediterrâneo. A diminuição do volume de chuvas
levou as populações nômades da África saariana a imigrarem para o vale do
Nilo à procura de suprimento permanente de água. Portanto é provável que
o primeiro povoamento efetivo do vale do Nilo tenha ocorrido no início do
Neolítico (por volta de -7000). Nessa época, os egípcios adotaram um modo
de vida pastoril e agrícola. Enquanto aperfeiçoavam seus instrumentos e armas
de pedra, inventaram ou acolheram a cerâmica, que viria a ser para nós
de grande utilidade na reconstituição de um quadro completo das diferentes
culturas egípcias durante o período neolítico
1
.
Pouco antes do período histórico, os egípcios aprenderam a utilizar os
metais
2
, ingressando assim no chamado período calcolítico (ou cuprolítico).
O metal aos poucos substituiu o sílex. O ouro e o cobre fizeram também sua
primeira aparição, embora o bronze não tenha sido empregado até o Médio
Império e, aparentemente, o uso do ferro não se tenha generalizado até o último
período da história faraônica.
1 Ver KI -ZERBO, J., coord. História Geral da África. o Paulo, Unescotica, 1982. v. I, Cap. 28,
Pré -história do vale do Nilo”.
2 Id., ibid., Cap. 28, “Descoberta e difusão dos metais e desenvolvimento dos sistemas sociais até o
século V antes da Era Cristã”.
O Egito faraônico
A. Abu Bakr
38
África Antiga
P-História
O Egito, situado na extremidade nordeste da África, é um país pequeno
se comparado ao imenso continente de que faz parte. Contudo, se originou
uma das mais importantes civilizações do mundo. A própria natureza dividiu o
país em duas partes diferenciadas: as estreitas faixas de terra fértil situadas ao
longo do Nilo, de Assuã até a região do atual Cairo, denominadas Alto Egito,
e o extenso triângulo formado no curso de milênios pelos depósitos de limo
do rio, que corre para o norte em direção ao Mediterrâneo, região denominada
Baixo Egito ou Delta.
O estabelecimento das primeiras populações não se deu sem dificuldade, e
deve ter havido uma disputa acirrada entre os diferentes grupos humanos pela
posse das terras situadas ao longo do Nilo e na região relativamente reduzida do
Delta. Somente os mais fortes e capazes teriam sobrevivido. Esses povos vindos
do leste, do oeste e do sul pertenciam, sem dúvida, a diversos grupos somáticos.
Não surpreende que de início os diferentes obstáculos naturais, acrescidos à
diversidade das origens, tenham isolado os grupos que se fixaram nos vários
territórios ao longo do vale. Pode -se atribuir a esses grupos a origem dos nomos,
que constituíram a base da estrutura política do Egito no período histórico.
No entanto, o Nilo proporcionava um meio de comunicação natural entre as
diferentes localidades situadas em suas margens, facilitando o desenvolvimento
da unidade linguística e cultural, que acabou por obscurecer as características
particulares de cada grupo.
A grande realização do período pré -histórico foi o controle da terra (ver
Introdução). Instalados inicialmente em afloramentos rochosos acima das
planícies de aluvião ou em áreas mais elevadas na orla do deserto, os primeiros
egípcios conseguiram clarear o terreno à sua volta tornando -o próprio ao cultivo,
drenar os pântanos e construir diques para servir de anteparo às enchentes.
Pouco a pouco, descobriram as vantagens da utilização dos canais de irrigação.
Tal empreendimento requeria um trabalho organizado em larga escala, o que
levou ao desenvolvimento de uma estrutura política local em cada província.
É possível que alguns fragmentos de textos da literatura primitiva
3
tenham
conservado a memória do desenvolvimento da unidade política no Egito. Parece
que em época remota os nomos do Delta estiveram organizados em coligações:
os nomos do oeste eram tradicionalmente ligados pelo culto ao deus Hórus,
3 Sobre os Textos das Pirâmides, ver a tradução inglesa de FAULKNER, R. O. 1969.
39
O Egito faraônico
ao passo que os do leste tinham por protetor comum o deus Andjty, senhor de
Djedu, que posteriormente foi absorvido por Osíris. Sugeriu -se que os nomos
do oeste teriam conquistado os do leste e formado um reino unido no Egito
setentrional. Desse modo, o culto de Hórus como deus supremo prevaleceu em
todo o Delta, propagando -se gradualmente até o Alto Egito e destronando Set,
o principal deus de uma coalizão de povos daquela região
4
.
O período Arcaico (-3200 a -2900)
O primeiro evento historicamente importante de que se tem notícia é a
união dos dois reinos pré -históricos, ou melhor, a sujeição do Baixo Egito pelo
soberano do Alto Egito, denominado Menés pela tradição (embora as fontes
arqueológicas o chamem Narmer). Foi ele o fundador da primeira das trinta
dinastias ou famílias governantes, em que o historiador egípcio Mâneton (-280)
dividiu a longa linhagem de soberanos até a época de Alexandre, o Grande. A
família de Menés residia em Tínis, no Alto Egito, o principal centro da província
que incluía a cidade sagrada de Abidos. Foi perto de Abidos, onde se situa o
santuário do deus Osíris, que Petrie exumou os imensos túmulos dos reis das
duas primeiras dinastias. Com certeza foi o reino meridional que impôs seu
domínio a todo país, tendo Narmer, logo após sua primeira vitória, instalado a
capital em Mênfis, próximo à fronteira entre as duas regiões
5
.
Os reis das duas primeiras dinastias do período arcaico (ver Capítulo 1) o
pouco conhecidos, e dificilmente se poderão obter maiores informações sobre os
acontecimentos de seus respectivos reinados. Todavia, não resta dúvida de que
esse período foi marcado por árduo esforço de consolidação. A cultura do final
do período pré -dinástico prevaleceu durante os trezentos anos posteriores à I
dinastia, mas com a consumação da unidade política, durante a III e IV dinastia,
o novo Estado adquire estabilidade o bastante. Isso se sob a forma de um novo
dogma, segundo o qual o rei egípcio era considerado sobre -humano, verdadeiro
deus a reinar sobre os homens. O dogma da divindade do faraó
6
, difícil de definir,
teria sido elaborado durante as primeiras dinastias com o objetivo de consolidar
um poder único sobre os dois territórios. Poder -se -ia dizer que a partir da III
dinastia o chefe do Estado não era um egípcio do norte ou do sul, mas um deus.
4 A referência básica para esta teoria, atualmente objeto de controvérsia, é SETHE, K. 1930.
5 Ver HAYES, W. C. 1965; CÉNIVAL, J. L. de. 1973.
6 Sobre o conceito da divindade do faraó, consultar POSENER, G. 1960.
40
África Antiga
 . O Nilo, da Terceira Catarata até o Mediterrâneo.
41
O Egito faraônico
 . Cronologia da história egípcia (todas as datas são anteriores à Era Cristã)
42
África Antiga
Segundo a teoria da realeza, o faraó encarnava o Estado e era responsável
por todas as atividades do país (ver Capítulo 3). Am disso, era o sumo
sacerdote de todos os deuses, servindo -os diariamente em cada um dos templos.
Obviamente, na prática, era -lhe impossível corresponder a tudo o que dele
se esperava. Necessitava de representantes para executar suas tarefas divinas:
ministros, funcionários nas províncias, generais no exército e sacerdotes nos
templos. Embora seu poder fosse teoricamente absoluto, ele não podia, de fato,
exer-lo livremente. Era ele a personificação de crenças e práticas muito antigas
que se desenvolveram progressivamente com o passar dos anos. Na realidade,
a vida dos reis era tão codificada que estes não podiam passear ou banhar -se
sem submeter -se ao cerimonial estabelecido para cada um desses atos, regulado
por ritos e obrigações. No entanto, sob suas coroas ricamente ornamentadas, os
faraós possuíam, é claro, uma dimensão humana: eram sensíveis ao amor e ao
ódio, à ambição e à desconfiança, à cólera e ao desejo. Durante toda a história
do antigo Egito, a arte e a literatura representaram o faraó segundo um ideal
estereotipado, sendo, contudo, notável que se tenha chegado a conhecer os reis
individualmente, como seres dotados de personalidade própria.
É sabido que as nões antigas tinham grande interesse pelas crenças
egípcias, e que os indivíduos que perdiam a fé nas crenças de seus antepassados
costumavam procurar os “sábios” do Egito. Uma certa veneração pela sabedoria
egípcia subsistiu até o desaparecimento das religiões politeístas. A exemplo de
outros povos contemporâneos, os egípcios do Neolítico acreditavam que seus
deuses se encontravam na natureza e que a Terra e o céu estavam povoados
de espíritos. Acreditavam que esses espíritos fixavam sua morada terrestre nos
animais, nas plantas ou em qualquer objeto notável por seu tamanho ou forma.
Com o passar do tempo, porém, deixaram de consi derar os animais ou os objetos
como deuses e gradualmente passaram a acreditar que se tratava da manifestação
visível ou da morada de uma força divina abstrata. O animal ou objeto escolhido
como a manifestação visível de um deus tanto podia ser um animal útil e amigo,
como a vaca, o carneiro, o cachorro ou o gato, quanto um animal selvagem e
temível, como o hipopótamo, o crocodilo ou a cobra. Em cada um desses casos,
os egípcios rendiam homenagem e ofereciam sacrifícios a um único espécime na
Terra. Adoravam a vaca, porém a abatiam para se abastecer de carne. Também
adoravam o crocodilo, mas o matavam para se defender.
Trata -se de deuses locais; cada um era deus supremo em seu próprio domínio
e senhor incontestável do território, com uma exceção: o deus local de uma
cidade em que o chefe de um grupo chegasse ao poder tinha precedência sobre
os demais. Se o chefe ascendesse ao trono e lograsse estabelecer ou consolidar
43
O Egito faraônico
a unificação dos reinos do sul e do norte, o deus local seria promovido a deus
oficial de todo o país.
Além disso, os primeiros egípcios viam foas divinas no Sol, na Lua,
nas estrelas, no céu e nas cheias do Nilo. Deviam temer suas manifestações
visíveis e impressionar -se com a influência que exerciam, pois os adoravam e
os consideravam deuses poderosos:ou Rê, o Sol, Nut, o céu, Nun, o oceano,
Shu, o ar, Geb, a Terra, e Hapi, a cheia
7
.
Essas divindades eram representadas sob forma humana ou animal, e seu culto
não se limitava a uma localidade específica. As deusas também desempenhavam
papel decisivo na religião, sendo objeto de grande veneração. Contudo seu número
provavelmente o excedia a doze, embora algumas, como Hátor, Ísis, Neith e
Bastet, não deixassem de ser importantes em todo o país. Via de regra, Hátor
era associada a Hórus, e Ísis, a Osíris; Neith era a deusa protetora da capital pré-
-histórica do Delta, e Bastet (a deusa -gata) alcançou grande popularidade após
a a II dinastia, no décimo oitavo nomo do Baixo Egito.
Em nenhuma outra nação antiga ou moderna, a ideia de uma vida após a
morte desempenhou papel tão importante e influenciou tanto a vida dos crentes
como no antigo Egito
8
. A crença no além foi sem dúvida favorecida e influenciada
pelas condições geográficas do Egito, onde a aridez do solo e o clima quente
asseguravam uma notável conservação dos corpos após a morte, o que deve ter
estimulado fortemente a convicção de que a vida continuava no além -túmulo.
No decorrer da história, os egípcios vieram a acreditar que seus corpos
encerravam diferentes elementos imortais. Um deles era o Ba, representado por
um pássaro com cabeça de homem, traços idênticos aos do defunto e braços
humanos. O Ba adquiria vida com a morte do indivíduo; as preces recitadas
pelo sacerdote que presidia as cerimônias fúnebres, juntamente com o alimento
oferecido, ajudavam a assegurar a transformação do morto em Ba ou alma. O
segundo elemento, conhecido como Ka, era um espírito protetor que adquiria
vida com o nascimento de uma pessoa. Quando o deus Khnum, o deus -carneiro
de Assuã, moldou os seres humanos a partir do limo, criou dois modelos para
cada indivíduo, um para seu corpo e outro para seu Ka. O Ka era a imagem exata
do homem e permanecia com ele por toda a vida, mas passava para o além antes
dele. Era para servir ao Ka que os egípcios proviam fartamente seus túmulos do
que chamamos mobiliário funerário um sortimento completo de tudo o que o
proprietário possuía em sua morada terrena. Embora o Ka permanecesse a maior
7 Pode -se encontrar um relato sistemático e detalhado das crenças egípcias em KEES, H. 1941.
8 O trabalho básico sobre as crenças funerárias dos egípcios é o de KEES, H. 1926; 2. ed., 1956.
44
África Antiga
 . Tesouro de Tutancâmon. Anúbis na entrada do tesouro. (Fonte: e Connoisseur et M. Joseph.
“Life and Death of a Pharaoh: Tutankhamun”. Foto Grith Institute, Ashmolean Museum, Oxford.)
45
O Egito faraônico
parte do tempo dentro do túmulo, segundo se acreditava, podia também deixá-
-lo. Desse modo, a necrópole era a morada dos Kas assim como a cidade era o
lugar dos vivos. O terceiro elemento importante era o Ib, o coração, considerado
o centro das emoções e a consciência do indivíduo. Era o guia das ações durante
sua vida terrena. O quarto elemento era o Akh, que os egípcios acreditavam ser
um poder divino ou sobrenatural, adquirido apenas após a morte. As estrelas
que brilhavam no céu eram os Akhs dos mortos. Finalmente, havia o corpo
propriamente dito, o Khat ou invólucro externo, que perecia mas podia ser
embalsamado a fim de conservar -se adequadamente para compartilhar com o
Ka e o Ba a vida eterna do além -túmulo.
Além das ideias sobre a vida futura no túmulo e na necrópole, os egípcios
desenvolveram pouco a pouco outras concepções relativas à eternidade e ao
destino reservado ao Ba. Duas dessas teorias, a solar e a osiriana, difundiram -se
amplamente. A princípio acreditava -se que o farmorto, sendo de essência
divina, residia com os deuses; era identificado tanto com o deus -Sol (Hórus ou
Rá) quanto com Osíris. Com o passar do tempo, essa concepção foi adotada
pelos nobres influentes (durante o Médio Império) e mais tarde por todos os
egípcios, independentemente do nível social.
Tudo isso transparece nos textos mortuários, cujas versões mais antigas
preservadas são os chamados Textos das Pirâmides”, escritos em hieróglifos
nas paredes das câmaras funerárias da pirâmide do rei Unas, o último faraó da
V dinastia, e na pirâmide de um da VI dinastia. Com a apropriação dos Textos
das Pirâmides” pelos chefes locais e régulos do Primeiro Período Intermediário,
e posteriormente pelos nobres do Médio Império, grande parte das fórmulas
mágicas e dos rituais foi eliminada, modificada ou recomposta de modo a
adaptar -se às pessoas comuns. Esses textos, geralmente conhecidos como Textos
dos Sarcófagos”
9
, em sua maioria eram inscritos em escrita hieroglífica cursiva
nas superfícies internas dos caixões retangulares típicos do Médio Império, os
títulos com tinta vermelha e o resto do texto com tinta preta. No Novo Império,
a maior parte das fórmulas dos “Textos dos Sarcófagos”, assim como inúmeras
estrofes novas, eram escritas em rolos de papiro e colocadas junto aos corpos
mumificados. Os textos, com cerca de duzentas estrofes, são denominados O Livro
dos Mortos
10
. Mas esse tulo é acerto ponto enganoso: na verdade, nunca
9 Com relação aos Textos dos Sarcófagos”, a edição básica do texto isolado é de BUCK, A. de. 1935 -61.
Pode -se encontrar uma tradução inglesa dos textos em FAULKNER, R. O. 1974, 1978.
10 Tradução francesa em BARGUET, P. Paris, 1967. Por sua vez, o Oriental Institute of Chicago publicou
em tradução inglesa comentada, um “Livro dos Mortos” completo. Ver ALLEN, T. G. 1960.
46
África Antiga
existiu um livro desse gênero; a escolha das estrofes escritas em cada papiro
variava segundo o tamanho do rolo, a preferência do adquirente e a opinião do
sacerdote -escriba que as transcrevia. Um “Livro dos Mortos” médio continha
entre quarenta e cinquenta estrofes. Além desse livro, os sacerdotes do Novo
Império compuseram e popularizaram vários outros “livros” funerários, escritos
em papiro ou inscritos nas paredes dos túmulos, entre os quais se incluíam o
que se conhece como o “Livro do Que Está no Inferno (Imj -Dwat) e o “Livro
das Grandes Portas”, guia mágico que descreve a viagem do Sol pelas regiões
subterrâneas durante as doze horas da noite.
O Antigo Império
11
(-2900 a -2280)
III Dinastia
se observou que os reis das duas primeiras dinastias (período arcaico)
parecem ter -se preocupado principalmente com as conquistas e sua consolidação.
A nosso ver, porém, o novo dogma da realeza divina começou de fato com a
II dinastia, e então o Egito se tornou uma nação unificada. A dinastia foi
fundada pelo rei Zoser, que, a julgar pelas evidências, era um soberano vigoroso
e capaz. Entretanto sua fama foi consideravelmente obscurecida pela de seu
célebre súdito Imhotep (I -em -htp), arquiteto, médico, sacerdote, mágico, escritor
e autor de provérbios. Vinte e três séculos após sua morte, tornou -se ele o deus
da medicina, em quem os gregos (que o chamavam de Imuthes) reconheciam
Asclépio. Sua realização mais notável como arquiteto foi a pirâmide de degraus”
e o vasto complexo funerário construído para seu faraó em Saqqara, numa área de
15 ha, na forma de um retân gulo de 544 m por 277 m. A construção compreendia
um muro circular, semelhante a uma fortaleza, e Imhotep introduziu notável
inovação substituindo a pedra pelo tijolo.
Os outros reis da III dinastia são figuras tão obscuras quanto os das duas
primeiras, embora a imensa pirâmide em degraus inacabada do rei Sekhemkhet
(provavelmente filho e sucessor de Zoser em Saqqara) e a enorme escavação
de um túmulo não concluído em Zawijet -el -Aryan, no deserto ao sul de Gisé,
sejam indicações suficientes de que o complexo piramidal de Zoser não foi o
único. O rei Huny, último da III dinastia, é o predecessor imediato de Snefru,
11 Em inglês, ver SMITH, W. S. 3. ed. Cambridge, 1971; em francês, VANDIER, J. “L’Ancien Empire” e
“La Fin de l’Ancien Empire et la Première Période Intermédiaire”. In: DRIOTON, E. & VANDIER,
J. pp. 205 -38, 239 -49.
47
O Egito faraônico
o fundador da IV dinastia. Foi ele quem edificou uma pirâmide em Meidum,
cerca de 70 km ao sul do Cairo. Esse monumento, originalmente construído
em degraus, sofreu várias ampliações e transformações antes de se tornar uma
verdadeira pirâmide (talvez por obra de Snefru).
IV Dinastia
A IV dinastia, um dos pontos altos da história egípcia, começa com o longo e
ativo reinado de Snefru, cujos anais, em parte preservados na Pedra de Palermo
12
,
relatam as campanhas militares vitoriosas contra os núbios do sul e as tribos
líbias do oeste, a manutenção do comércio (principalmente o de madeira) com
a costa síria e os grandes empreendimentos de construção executados durante
vários anos, incluindo a edificação de templos, fortalezas e palácios em todo o
Egito. Snefru reinou 24 anos; provavelmente pertencia a um dos ramos menores
da família real. Para legitimar sua posição, casou -se com Hetep -Heres
13
, a filha
mais velha de Huny, infundindo sangue real à nova dinastia. Mandou construir
duas pirâmides em Dachur, uma de tipo romboide (ao sul), e outra de forma
verdadeiramente piramidal (ao norte) e de dimensão próxima à da grande
pirâmide de Khufu em Gisé.
Os sucessores de Snefru, Khufu (Quéops), Khafre (Quéfren) e Mankaure
(Miquerinos) são conhecidos principalmente pelas três pirâmides que erigiram
no alto do promontório de Gisé, 10 km a sudoeste do atual Cairo. A pirâmide
de Khufu apresenta uma particularidade: é a maior construção de uma única
peça já erigida pelo homem
14
e, devido à perfeição do trabalho, à precisão
do projeto e à beleza das proporções, continua a ser considerada a primeira
das Sete Maravilhas do mundo. As pirâmides do filho e do neto de Khufu,
conquanto menores, apresentam semelhanças na construção e na disposição de
suas estruturas secundárias.
Houve muitas interrupções na sucessão real da IV dinastia, devido às lutas de
sucessão entre os filhos das várias esposas de Khufu. Seu filho Dedefre governou
12 Ver Introdução.
13 O túmulo da rainha Hetep -Heres foi descoberto em Gisé e revelou um mobiliário de excelente qualidade,
testemunho da habilidade dos artesãos egípcios durante o Antigo Império. Ver REISNER, G. A. 1955.
14 Sabe -se que a pirâmide propriamente dita, símbolo solar que contém ou cobre a cripta funerária onde
repousa a múmia real, é apenas um elemento do complexo que constitui a sepultura real completa. Esta
última inclui, além da pirâmide, um templo baixo, na planície, em geral chamado o Templo do Vale”, e
uma aleia aberta ou caminho, que se estende do templo à parte alta do complexo, no planalto desértico,
onde se situam a pirâmide propriamente dita e o templo funerário erigido na face oriental. Todo o recinto
é cercado por uma parede. Ver EDWARDS, I. E. S. 1970.
48
África Antiga
o Egito durante oito anos, antes de Khafre; outro se apoderou do trono durante
um curto período no final do reinado de Khafre. É provável que um terceiro
filho tenha sucedido ao último rei efetivo da dinastia, Shepseskaf.
V Dinastia
A origem dessa dinastia está ligada à crescente influência do clero de
Heliópolis. Uma lenda do Papiro Westcar
15
relata que os três primeiros reis
da V dinastia descendiam do deus e de uma mulher chamada Radjedet,
esposa de um sacerdote de Heliópolis. Os três irmãos eram Userkaf, Sahure e
Neferirkare. Sahure ficou conhecido principalmente pelos magníficos baixos-
-relevos que decoravam seu templo funerário em Abusir, ao norte de Saqqara. É
fato bem conhecido que, apesar de as pirâmides reais da V dinastia serem muito
menores do que os grandiosos túmulos da IV dinastia e sem embargo de uma
construção inferior, os templos funerários vizinhos das pirâmides eram obras
elaboradas, abundantemente decoradas com baixos -relevos pintados, alguns
deles de caráter semi -histórico. A maior parte dos reis dessa dinastia mandou
construir nas proximidades das pirâmides grandes templos dedicados ao deus-
-Sol, todos dominados por um gigantesco obelisco solar.
Além da construção e dotação de muitos templos, relacionados na Pedra de
Palermo, os faraós da V dinastia concentravam suas atividades na defesa das
fronteiras do Egito e na expansão das relações comerciais com os países vizinhos.
Expedições punitivas contra os líbios do deserto ocidental, os beduínos do Sinai
e as populações semitas do sul da Palestina foram registradas nas paredes de
seus templos funerários. Embarcações de grande envergadura visitaram a costa
da Palestina durante os reinados de Sahure e Isési. Os navios egípcios atingiram
também as praias de Punt, na costa somali, à procura de produtos de grande
valor, como mirra, ébano e animais. O comércio do cedro com a Síria continuou
a prosperar. No antigo porto costeiro de Biblos, no sopé das encostas arborizadas
do Líbano, aumentava o número de frotas egípcias encarregadas do comércio da
madeira para construção. Sabe -se que as relações comerciais com Biblos existiam
desde as primeiras dinastias (ver Capítulo 8). Um templo egípcio foi erigido
nesse local durante a IV dinastia, e descobriram -se objetos com os nomes de
vários faraós do Antigo Império na cidade e nos arredores do velho porto.
15 Texto redigido durante o Médio Império: ver LEFEBVRE, G. 1949, p. 79. O relato do Papiro de Westcar
é ctício. Os primeiros reis da V dinastia descendiam dos reis da IV dinastia. Ver BORCHARDT, L.
1938. pp. 209 -15. No entanto parece fora de dúvida que o clero de Heliópolis desempenhou um papel
importante na época da transição da IV para a V dinastia.
49
O Egito faraônico
 . Quéfren. (Fonte: J. Pirenne. 1961. v. I, p. 116, g. 33.)
VI Dinastia
o existem provas de que a transição da V para a VI dinastia foi
acompanhada de agitões poticas. Com o longo e dimico reinado de
Pépi I (o terceiro rei), a dinastia revelou toda a sua força. Pela primeira vez um
rei egípcio abandonava as táticas militares puramente defensivas para penetrar
com o grosso de seu exército no coração do país inimigo. Com o avanço do
50
África Antiga
grande exército comandado por Uni, o general egípcio, os inimigos recuaram
para suas terras nativas até o monte Carmelo, ao norte, e durante a última de
cinco campanhas sofreram emboscadas de tropas terrestres desembarcadas de
navios egípcios na extremidade norte da costa palestina.
A julgar por algumas indicações, é possível que Pépi I tenha nomeado seu
filho Merenrê co rregente, pois ao que parece teria reinado sozinho durante
cinco anos, aproximadamente. Nessa época, porém, ele procurou expandir e
consolidar o poder egípcio na Núbia, e pouco antes de sua morte apareceu
pessoalmente na Primeira Catarata para receber a homenagem dos chefes das
províncias núbias.
Com a morte de seu irmão Merenrê, Pépi II, que contava seis anos, subiu ao
trono e governou o país durante 94 anos, morrendo no ano de seu centésimo
aniversário, após um dos mais longos reinados da história. Durante a minoridade
do rei, a administração do país ficou nas mãos de sua mãe e de seu irmão.
O segundo ano do reinado de Pépi II foi marcado pelo retorno de Herkhuf,
monarca de Elefantina, que viajara pela Núbia até a província de Yam; este
trouxe consigo um rico carregamento de tesouros e um dançarino pigmeu como
presente para o rei. Com grande entusiasmo, o rei de oito anos enviou uma
carta de agradecimento a Herkhuf, solicitando -lhe tomasse todas as precauções
possíveis para que o pigmeu chegasse a Mênfis em bom estado
16
.
O longo reinado de Pépi II terminou em meio à desorganização política
cuja origem remonta ao início da VI dinastia, época em que o poder crescente
dos monarcas do Alto Egito lhes permitiu construir seus túmulos na própria
província, e não ao lado da pirâmide do rei, na necrópole. A descentralização
progrediu rapidamente. À medida que o rei perdia o controle das províncias, a
autoridade se concentrava mais e mais nas mãos dos poderosos governadores
provinciais. A ausência de monumentos posteriores às construções de Pépi II
é um sinal evidente do empobrecimento da casa real. Como a desintegração
evoluía rapidamente, o empobrecimento atingiu todas as classes sociais. Não
se sabe ao certo se as forças desintegradoras eram demasiado intensas para
que um faraó pudesse combatê -las ou se o reinado muito longo de Pépi II, que
mal soube defender o país, precipitou o colapso. O fato é que o Antigo Império
chegou ao fim quase imediatamente após sua morte, iniciando -se o período de
anarquia denominado Primeiro Período Intermediário.
16 Herkhuf, o monarca, fez gravar o texto da epístola real nas paredes de seu túmulo em Assuã. A tradução
do texto é de BREASTED, J. H. (1906. pp. 159 -61). O aspecto antropológico do problema do “anão
dançarino do deus” foi estudado por W. R. DAWSON (1938. pp. 185 -9).
51
O Egito faraônico
O Primeiro Período Intermediário
Com a morte de Pépi II, o Egito se desintegrou numa explosão de tumulto
feudal. Iniciou -se um período de anarquia, caos social e guerra civil. Em todo
o vale do Nilo, os chefes locais defrontavam -se em meio a tal confusão que
Mâneton observou, em sua História do Egito, que a VII dinastia teve setenta reis
que governaram por setenta dias. Tratava -se provavelmente do estabelecimento
de um regime de exceção em Mênfis, que substituía temporariamente a realeza
desaparecida com o colapso da VI dinastia
17
.
Pouco se sabe sobre a VIII dinastia, e embora se tenha registro dos nomes
dos reis, a ordem cronológica de seus reinados é controversa. Contudo, surgiu
pouco depois uma nova casa real em Heracleópolis (no Médio Egito) e houve
esforços no sentido de dar continuidade à cultura menfita. Sem dúvida os reis
da IX e da X dinastia controlaram o Delta, que havia sido presa dos nômades
saqueadores do deserto. O Alto Egito, no entanto, dividiu -se em suas antigas
unidades, cada um dos nomos sob o controle de um regente local. A história
posterior do Egito assinala -se pelo crescimento do poder tebano, que, durante
a XI dinastia, acabou por controlar o Alto Egito, e, pouco depois, todo o país.
O sábio Ipu -Ur foi quem melhor descreveu a situação do Egito após a queda
do Antigo Império, que fora o instigador das mais importantes realizações
materiais e intelectuais do país e permitira a manifestação das mais elevadas
capacidades individuais. Seus escritos, que parecem remontar ao Primeiro
Período Intermediário
18
, foram preservados num papiro do Novo Império que
hoje se encontra no Museu de Leida. A passagem citada a seguir mostra a
revolução social ocorrida na primeira parte do Primeiro Período Intermediário
e a ausência de qualquer tipo de autoridade centralizada:
Tudo é ruína. Um homem golpeia seu irmão, [o filho] de sua mãe; a peste se espalha
por todo o país. O sangue corre em toda parte . Alguns homens sem fé nem lei não
hesitam em pilhar as terras reais. Uma tribo estrangeira invadiu o Egito. Em toda
parte os nômades do deserto tornaram -se egípcios, Elefantina e Tínis [dominam]
o Alto Egito sem pagar os impostos, devido à guerra civil [ ... ]. O saqueador está
em todos os lugares [ ... ]. Portais, colunas e paredes são consumidos pelo fogo. Os
17 O Primeiro Período Intermediário (abreviado PPI) ainda apresenta muitos problemas. Os relatos gerais
podem ser encontrados em SPIEGEL, J. 1950, e em STOCK, H. 1949. Excelentes resumos podem
ainda ser encontrados em DRIOTON, E. & VANDIER, J. 1962. pp. 235 -7, 643 -5.
18 A data do texto é controversa. Supõe -se que pertença ao Segundo Período Intermediário (cf. VAN
SETERS, J. 1964. pp. 13 -23). Contudo, esta nova data não teve aceitação.
52
África Antiga
homens não navegam mais para o norte em direção a [Biblos]. Que faremos com o
cedro? falta de ouro. Em toda parte o trigo desapareceu [ ... ]. As leis da corte
de justiça são desprezadas [ ... ]. Aquele que nunca possuiu bens é agora homem
próspero. Os pobres do país tornaram -se ricos, e aquele que possuía bens tornou -se
o que nada tem ...”.
19
Mas da desordem nasceram certos valores positivos: uma ênfase nova e
encoraja dora no individualismo, por exemplo, na igualdade social e na dignidade
do homem comum. Desse modo, em meio ao caos, os egípcios desenvolveram
um conjunto de valores morais que exaltavam o indivíduo. Tudo isso aparece
claramente no famoso papiro conhecido pelo nome de Protestos do Camponês
Eloquente
20
, da X dinastia. Trata -se da história de um pobre camponês que,
despojado de seus bens por um rico proprietário de terras, reivindica seus direitos:
“Não despojes de seu bem um pobre homem, um fraco, como tu sabes. O que ele
possui é o [próprio ar que respira] um homem sofredor, e aquele que o rouba corta-
-lhe a respiração. Tu foste designado para presidir audiências, para decidir entre dois
homens e punir o bandido [mas], observa, é o defensor do ladrão que tu gostarias de
ser. Confiou -se em ti, embora te tenhas tornado um transgressor. Tu foste designado
para ser a barragem do sofredor, protegendo -o para que ele o se afogasse [mas],
observa, tu és o lago que o engoliu”.
21
Os egípcios sem vida consideravam a democracia como a igualdade de
todos os homens perante os deuses por um lado, e perante os governantes
por outro. No entanto a mudança mais surpreendente se fez sentir no que
se conhece como a “democratizão da religião funerária”. Durante o Antigo
Império, somente as pessoas pertencentes à realeza ou distinguidas pelo
faraó estavam seguras de reunir -se aos deuses após a morte. Mas com o
enfraquecimento da autoridade real, os poderosos deste mundo apropriaram-
-se dos textos funerários reais e os inscreveram em seus próprios esquifes.
Os cidadãos comuns enriquecidos passaram a ser enterrados com cerimônias
apropriadas e estelas comemorativas. Dessa forma, as barreiras entre as classes
sociais desapareciam com a morte, tendo isso ocorrido, na verdade, graças ao
deus Oris.
19 Conforme GARDINER, A. H. 1909.
20 Pode -se encontrar uma tradução francesa do texto em LEFEBVRE, G. 1949. pp. 47 -69. Existe uma
tradução inglesa recente; cf. SIMPSON, W. K. 1972. pp. 31 -49.
21 De acordo com WILSON, J. A. In: PRITCHARD, J. B. 1969. p. 409.
53
O Egito faraônico
Osíris era um dos deuses do Delta, conhecido desde os primeiros tempos,
e seu culto logo se espalhou por todo o país. Seu sucesso se deveu menos à
importância política alcançada por seus adoradores do que ao caráter funerário
de seus atributos. Desde a XI dinastia seu culto estava solidamente instituído
em Abidos, a grande cidade que, durante toda a história egípcia, permaneceu
o centro do culto aos reis mortos. O fato de os sacerdotes de Abidos não
nutrirem ambições políticas poupou a Osíris o destino de outros deuses, cujos
cultos sobreviviam apenas durante o período em que os reis entronizados os
prestigiavam. Durante o último período da história egípcia, o culto de Osíris
e de Ísis conheceu sua maior difusão, estendendo -se às ilhas gregas, a Roma
e até mesmo às florestas da Alemanha
22
. No próprio Egito, não havia templo
consagrado a qualquer divindade que não reservasse um altar para o culto do
grande Deus dos Mortos e que não realizasse cerimônias, nos dias de festa, para
celebrar sua ressurreição.
O Médio Império (-2060 a -1785)
23
Embora os egípcios tivessem noção dos valores democráticos, terminaram
por perdê - los de vista. Estes pareciam ficar nítidos em tempos de crise, mas se
eclipsaram rapidamente com o retorno da prosperidade e da disciplina durante
o Médio Império, o segundo grande período de desenvolvimento nacional. O
Egito unificava -se uma vez mais pela força das armas. Tebas, até então um
nomo desconhecido e sem importância, pôs fim à supremacia de Heracleópolis,
reivindicando a soberania sobre o Estado egípcio; ao vencer a guerra, reunificou
os dois países sob sua autoridade única.
O rei Mentuhotep II distingue -se como a principal personagem da XI
dinastia. Sua obra mais importante foi a reorganização administrativa do país.
Toda resistência à casa real foi reprimida, embora de tempos em tempos devam
ter ocorrido alguns levantes de pouca importância. De todo modo, o clima
político do Médio Império contrastava com o dos primeiros tempos, na medida
em que não mais prevalecia à segurança pacífica do Antigo Império. Mentuhotep
II, que teve um longo reinado, construiu o templo funerário de Deir el -Bahari,
22 O relato mais completo que possuímos da lenda de Osíris é o coletado e publicado por Plutarco em seu
De Iside et Osiride. Em inglês, ver GRIFFITH, J. G. 1970, e em francês HANI, J. 1976.
23 Ver DRIOTON, E. & VANDIER, J. 1962. pp. 239 -81, Capo 7; HAYES, W. C. 1971; WINLOCK, H.
E. 1947.
54
África Antiga
o monumento mais importante do período tebano. Seu arquiteto criou uma
forma de construção nova e funcional. Tratava -se de um edifício com terraços
guarnecidos por colunas e coberto por uma pirâmide construída ao centro de
uma sala hipostila, situada no nível superior
24
.
Após o governo de Mentuhotep II, a família entrou em declínio. Durante
o reinado do último soberano da XI dinastia, um certo Amenemés, que entre
outros títulos ostentava o de vizir do rei, foi provavelmente o fundador da XII
dinastia, ou seja, o rei Amenemés, primeiro de uma sucessão de poderosos
soberanos.
Amenemés I adotou três medidas importantes, todas elas rigorosamente
respeitadas por seus sucessores. Fundou a nova capital, Ithet -Tawi (“Senhora das
Duas Terras”), próximo ao sul de Mênfis, de onde poderia controlar melhor o
Baixo Egito; instaurou o costume segundo o qual o faraó coloca o filho a seu lado
no trono, como co rregente, sem dúvida expediente considerado oportuno após
uma conspiração palaciana que o colocou em sério perigo de vida à qual ele alude
amargamente nos conselhos que deixou como orientação a seu filho Sesóstris I
25
;
e, finalmente, planejou a sujeição da bia e criou um posto comercial mais ao sul,
empreendimento inédito até então. Foi ele, talvez, o fundador do posto comercial
fortificado de Kerma (perto da Terceira Catarata), que parece ter -se tornado um
centro de influência egípcia a partir do reinado de Sesóstris I.
Sesóstris I seguiu os passos do pai e, graças à sua energia, capacidade e visão,
pôde implementar os planos para o enriquecimento e a expansão do Egito. Uma
série de expedições, conduzidas pelo próprio rei ou por seus oficiais competentes,
reforçou o controle egípcio da Baixa Núbia. Foi nessa época que se construiu
a fortaleza de Buhen
26
, a jusante da Segunda Catarata. As atividades do rei a
oeste limitaram -se, ao que parece, a expedições punitivas contra os líbios temehu
e tehenu e à manutenção das comunicações com os oásis. Sua política para com
países do nordeste limitava -se à defesa de suas fronteiras e à continuidade das
relações comerciais com os países do Oriente Próximo.
Os dois reis seguintes, Amenemés II e Sesóstris II, parecem o ter -se
interessado pela consolidação e expansão das conquistas egípcias
27
. Contudo
24 NAVILLE, E. 1907 -13.
25 Sobre a ascensão dessa dinastia, consultar POSENER, G. 1956.
26 Ver os relatos das escavações e trabalhos recentes em Buhen, consecutivos à campanha lançada pela
Unesco para salvar os monumentos da Núbia. Ver CAMINOS, R. A. 1975, e SMITH, H. S. 1976.
27 Convém notar que a fortaleza de Mirgissa, ao sul da Segunda Catarata, a maior das forticações na
região do Batn -el -Haggar núbio, foi construída por Sesóstris II (ver VERCOUTTER, J. 1964. pp. 20 -2)
e que, portanto, a Núbia ainda estava sob controle egípcio durante seu reinado.
55
O Egito faraônico
Sesóstris III é lembrado pela reconquista e sujeição da Baixa Núbia, por ele
reduzida à condição de província egípcia. O longo e próspero reinado de seu
sucessor, Amenemés III, distinguiu -se por ambicioso programa de irrigação, que
teve por consequência uma grande expansão agrícola e econômica no Faium,
oásis à margem de um grande lago alimentado por um canal procedente do Nilo.
Esse canal passava por estreita abertura nas colinas do deserto que beiravam o
vale a aproximadamente 80 quilômetros ao sul do Cairo. Graças a uma barragem,
controlou -se o escoamento da água lançada no lago quando o Nilo subia, e a
abertura de canais de irrigação, aliada à construção de diques, permitiu uma
recuperação maciça das terras.
Com Amenemés IV o poder da família real, segundo todas as evidências,
começou a declinar. Seu reinado breve e opaco, seguido pelo reinado ainda mais
transitório da rainha Sobekneferu, assinala o fim da dinastia.
O Segundo Período Intermediário
28
Os nomes de alguns faraós da XIII dinastia refletem a existência de uma
grande população asiática no Baixo Egito. Sem dúvida esse elemento aumentou
com a imigração de numerosos grupos provenientes das terras a nordeste do Egito,
forçados a se deslocar para o sul devido aos amplos movimentos demográficos no
Oriente Pximo. Os egípcios chamavam os chefes dessas tribos de Hka -Hasut,
ou seja, “Governantes de Países Estrangeiros”, de onde derivou o termo “hicsos”,
criado por Mâneton e hoje aplicado ao povo como um todo.
Foi por volta de -1729 que os hicsos passaram a representar um sério
risco para a autoridade da XIII dinastia. Em tomo de -1700, porém, eles
apareciam como um povo de guerreiros bem organizados e bem equipados, tendo
conquistado a parte oriental do Delta, incluindo a cidade de Hat -Uaret varis),
cujas fortificações eles refizeram, e onde fixaram sua capital. De modo geral,
admite -se que a dominação dos hicsos no Egito não adveio de uma repentina
invasão do país pelos exércitos de uma única nação asiática. Como vimos, foi o
resultado de uma infiltração, ocorrida durante os últimos anos da XIII dinastia,
de grupos pertencentes a vários povos do Oriente Próximo, principalmente
semitas. Com efeito, a maioria de seus reis tinham nomes semitas, tais como
Anat -Hr, Semken, Amu ou Jakub -Hr.
28 O conjunto deste período muito obscuro da história egípcia foi objeto de uma publicação. BECKERATH,
J. von. 1965.
56
África Antiga
Não há dúvida de que a ocupação dos hicsos teve profunda repercussão no
desenvolvimento egípcio
29
. Eles introduziram o cavalo, o carro e a armadura. Os
egípcios, que até então nunca haviam tido a necessidade de tais equipamentos,
acabaram por utilizá -los com êxito contra os próprios hicsos, expulsando -os
do país. Era a primeira vez que os egípcios se encontravam sob dominação
estrangeira. A humilhão abalou o antigo sentimento de supremacia e de
segurança que lhes eram inspirados pela proteção dos deuses. Iniciou -se uma
guerra de libertão, conduzida pelos governantes do nomo de Tebas. Os
poucos documentos que restaram dessa época dizem respeito sobretudo à
guerra empreendida pelos reis do final da XVII dinastia contra os opressores
asticos, as quase 150 anos de ocupão. Asis finalmente conseguiu
expulsar os invasores do Delta. Tomou -lhes a capital, Avaris, e perseguiu -os
até a Palestina, onde sitiou a fortaleza de Sharuen. Prosseguindo em direção
ao norte, invadiu o território de Zahi, na costa fenícia. O poderio hicso era
enfim destruído.
O Novo Império (-1580 a -1085)
XVIII Dinastia
30
O rei Amósis I, aclamado pela posteridade como pai do Novo Império e
fundador da XVIII dinastia, foi, segundo todas as evidências, um homem de
energia e capacidade excepcionais. Amenófis I (ou Amenhotep I), seu filho,
mostrou -se um sucessor à altura do pai, cuja política interna e externa prosseguiu
com vigor. Embora provavelmente estivesse mais preocupado com a organização
do reino do que com as conquistas, consolidou e estendeu os domínios do Egito
na Núbia até a Terceira Catarata. Durante os nove anos de seu reinado não
ocorreram agitações na Síria nem na Palestina.
Amenófis I parece ter merecido sua reputação de grandeza, que chegou
ao apogeu quando ele e sua mãe, Ahmés -Nefertári, tornaram -se divindades
tutelares da necrópole tebana
31
. Foi sucedido por Tutmés I e Tutmés II, e depois
pela rainha Hatshepsut, que se casou sucessivamente com seus dois meio -irmãos,
29 Sobre os hicsos e as várias questões em torno da ocupação do Egito por esse povo e suas consequências,
ver SETERS, J. Van 1966.
30 Ver DRIOTON, E. & VANDIER, J. 1962. pp. 335 -42 Cap. 9, pp. 390 -414 Cap. 10; JAMES, T. G. H.
1973; HAYES, W. C. 1973.
31 CERNY, J. 1927. pp, 159 -203.
57
O Egito faraônico
Tutmés II e Tutmés III. Todavia, no quinto ano de seu reinado, Hatshepsut
alcançara poder suficiente para declarar -se soberana suprema do país. A fim de
legitimar suas pretensões
32
, declarou publicamente ser filha do deus nacional
Âmon -Rá, que se apresentara à sua mãe como Tutmés I. As duas décadas do
pacífico reinado de Hatshepsut foram prósperas para o Egito. A rainha dedicou-
-se principalmente aos negócios internos e à edificação de grandes obras. As
realizações de que mais se orgulhava foram a expedição a Punt e a construção
de dois grandes obeliscos no templo de Carnac. Ambos destinavam -se a celebrar
a devoção a seu “pai Âmon -Rá.
Finalmente, após a morte de Hatshepsut, Tuts III assumiu o poder. Na
força de seus trinta anos ele nos relata que, durante a juventude, participou
como sacerdote de uma cerimônia em Carnac, onde seu pai era oficiante;
durante a cerimônia, foi distinguido pela estátua de Âmon, que através de
um oráculo o escolheu para rei. Seu primeiro ato como soberano foi destruir
as estátuas de Hatshepsut e apagar -lhe o nome e a imagem onde quer
que aparecessem. Acalmada sua sede de vingança, organizou rapidamente
um ercito e marchou contra uma coalizão das cidades -Estado da rego
palestino -sírio -líbia, que haviam reunido suas forças na cidade de Megido e se
preparavam para sublevar -se contra a dominação egípcia. Tuts surpreendeu
os inimigos e foou -os a refugiarem -se no interior dos muros da cidade.
Com a rendição de Megido, toda a região até o bano meridional caiu sob
o controle egípcio. Tutmés III empreendeu ao todo dezessete campanhas no
estrangeiro, e durante muitos anos os exércitos egípcios impuseram respeito na
ria e no norte da Mesopotâmia. O Egito tornara -se uma potência mundial, e
as fronteiras do império se estendiam por vastas áreas. O reinado que nos legou
os registros mais completos foi o de Tutmés III, gras aos anais gravados
nas paredes do templo de Carnac. Outros pormenores foram registrados por
seus generais. Esses eventos transformaram -se em contos populares, como o
de Joppa, que, surpreendido pelo general Djehuty, escondeu seus homens em
sacos e introduziu -os clandestinamente na cidade sitiada – história que lembra
muito a de Ali -Babá e os quarenta ladrões.
Tutmés III foi sucedido por dois faraós capazes e ergicos, Amefis
II e Tutmés IV, este último intimamente ligado ao reino de Mitani por ter
desposado a filha da casa real. É essa princesa, com o nome egípcio de Mut-
32 Muito se tem escrito sobre o problema de Hatshepsut e a perseguição da rainha por Tutmés III,
Pode -se encontrar uma boa exposição do problema e das soluções propostas em DRIOTON, E. &
VANDIER, J. 1962. pp. 381 -3.
58
África Antiga
-em -Wa, que figura nos monumentos como a esposa principal do faraó e mãe
de Amenófis III.
Quando Amenófis III sucedeu a seu pai, provavelmente estava casado
com a rainha Teye, sua esposa principal. A ascensão do jovem rei ao trono
ocorreu numa época em que, gras às notáveis realizações internas e
externas de aproximadamente dois culos, o país se encontrava no auge do
poder político, gozando de grande prosperidade econômica e desenvolvimento
cultural. Além disso, o mundo passava por um período de paz, e o faraó e seu
povo podiam desfrutar os rios prazeres e luxos que a vida lhes oferecia. Ao
que parece, Amenófis III estava pouco interessado em manter seu poder no
exterior, embora se esforçasse por conservar os Estados vassalos setentrionais
e seus aliados atras de generosas doações em ouro núbio. Pelo fim de
seu reinado, como evidenciam as cartas de Tell el -Amarna
33
, a ausência de
demonstrões militares encorajou os homens de iniciativa a conspirarem
para reaver sua independência e a se revoltarem contra a autoridade egípcia.
No entanto, parece que Amenófis III não deu muita imporncia ao fato. Foi
como construtor e patrono das artes que mereceu o nome de Amenófis, o
Magnífico”. A ele devemos não o templo de Lúxor, considerado a mais
bela de todas as constrões do Novo Império, mas também muitas outras
realizações arquitetônicas em Carnac e em todo o Egito, bem como no exterior
(Soleb, na Núbia, etc.).
Embora o culto de Áton tenha -se iniciado no reinado de Amenófis III, seu
desenvolvimento teve pouca influência, ao que parece, na adoração de outros
deuses até um período avançado do governo desse faraó; possivelmente, a
partir do trigésimo ano de reinado é que seu filho Amenófis IV (posteriormente
conhecido como Aquenáton) tornou -se co rregente. Fisicamente fraco, com um
corpo frágil e delicado, o novo rei não possuía nem as qualidades de soldado
nem as de estadista. Preocupou -se sobretudo com as questões intelectuais e
espirituais, ou, mais precisamente, com sua própria mente e espírito. Muito
orgulhoso de seu título – “O que vive a verdade” procurou uma aproximação
cada vez maior e mais harmoniosa com a natureza e, na religião, uma relação
mais direta e racional com sua divindade
34
.
33 Trezentas e setenta e sete placas cuneiformes encontradas nas ruínas dos Arquivos Públicos da capital,
consistindo principalmente na correspondência de Amenós III e Aquenáton com os reis de Hatti,
Arzawa, Mitani, Assíria, Babilônia, Chipre e os governantes das cidades da Palestina e da Síria. Sobre
estes textos, ver ALBRIGHT, W. F. 1973.
34 Recentemente Amenós IV (Aquenáton) e sua época foram objeto de numerosas publicações, incluindo
ALDRED, C. 1968.
59
O Egito faraônico
 . Rainha Hatshepsut sentada. (Fonte: C. Aldred. “New Kingdom Art of Ancient Egypt”. g. 21.
Foto e Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.)
60
África Antiga
Amenófis IV, jovem e fanático, foi o responsável por uma mudança
política radical. O alvo de seus ataques foi principalmente o clero de Âmon.
É provável que suas razões fossem tanto políticas como religiosas, que em
Tebas os grandes sacerdotes do deus nacional Âmon -Rá haviam adquirido
tanta riqueza e poder que constituíam uma amea direta ao trono. No início
de seu reinado, Amenófis IV ainda vivia em Tebas, onde construiu um grande
templo dedicado a Áton, a leste do templo de Âmon em Carnac. Depois,
obviamente amargurado pelas reações que suas reformas suscitavam em Tebas,
decidiu abandonar a cidade, fundando nova residência em Tell el -Amarna, no
Médio Egito. No sexto ano de reinado, ele e sua família, juntamente com um
grande séquito de funcionários, sacerdotes, soldados e artesãos, mudaram -se
para a nova resincia, que chamou de Aquetáton (Akhet -Aton), (“Horizonte
de Áton”), onde morou até sua morte, quatorze anos mais tarde. Mudou seu
nome para Aquenáton (Akh -en -Aton) ou “O que es a serviço de Áton”, e
concedeu à rainha o nome real de Nefer -Neferu ton, que significa A beleza
das belezas é Áton”.
Além de proclamar Áton o único deus verdadeiro, Aquenáton injuriou as
divindades mais antigas. Ordenou que o nome de Âmon, em particular, fosse
suprimido de todas as inscrições, até mesmo dos nomes próprios, como o de
seu pai. Além disso, decretou a dissolução do clero e a dispersão dos bens dos
templos. Foi com essa medida que Aquenáton provocou a mais violenta oposição,
pois os templos eram sustentados por subvenções concedidas pelo governo em
troca de bênçãos solenes aos empreendimentos estatais.
Enquanto os tumultos se alastravam à sua volta, Aquenáton vivia na capital
adorando seu deus único. Era a veneração do poder criador do Sol sob o nome
de Áton. O culto, que dispensava totalmente as imagens do deus, era praticado
ao ar livre, no pátio do templo, consistindo principalmente em depositar flores
e frutas no altar. A religião de Áton era bem mais simples que a tradicional,
visto apoiar -se na verdade e na liberdade individual. Também cultivava o amor
à natureza, uma vez que os poderes criadores de vida do Sol se expressavam
universalmente em todas as coisas vivas. O hino composto pelo rei
35
exprime,
antes de tudo, uma alegria de viver espontânea e o amor a todas as coisas criadas,
nas quais o espírito de Áton se encarnava.
Aquenáton, como esteta que era, desaprovava as formas estilizadas da arte
do retrato tradicional e insistia na adoção de um naturalismo livre, em que o
35 Tradução de
J.
A. WILSON. In: PRITCHARD,
J.
B. pp.
369 -71.
61
O Egito faraônico
artista procurasse representar o espaço e o tempo imediatamente perceptíveis,
e não fixados na eternidade. Por isso permitiu que ele e sua família fossem
representados em atitudes informais: comendo, brincando com as criaas
ou abraçando -as. Não procurou esconder sua vida privada do conhecimento
blico; assim agindo, escandalizou seus contemporâneos, para quem essa
informalidade depreciava sua condição de rei -deus.
 . Aquenáton diante do Sol. (Foto fornecida pelo Dr. G Mokhtar)
62
África Antiga
A revolução de Áton não sobreviveu à morte de Aquenáton. Seu co rregente e
sucessor, Semenkha(Semenekh -Ka -Re), tratou imediatamente de reconciliar-
-se com o clero de Âmon. Estabeleceu -se um compromisso pelo qual Âmon seria
novamente reconhecido. Semenkharê reinou apenas três anos e foi sucedido por
Tutancáton (Tut -Ankh -Aton), que mudou seu nome para Tutancâmon (Tut-
-Ankh -Amon)
36
. Sabemos que este jovem faraó morreu com a idade aproximada
de dezoito anos e que reinou pelo menos nove; devia contar, portanto, oito anos
quando subiu ao trono. A origem desses dois reis é controversa; contudo, ambos
basearam suas pretensões ao trono no fato de terem desposado as filhas de
Aquenáton. Durante o reinado de Tutancâmon, e mesmo após sua morte, não
foi unânime o repúdio a Áton, que, apesar da restauração de Âmon, guardava seu
lugar entre os deuses. Tal situação perdurou durante o curto reinado do rei Ay,
que sucedeu a Tutancâmon. Foi com Horemheb que teve início a perseguição
obstinada de Áton, como ocorrera anteriormente com Âmon.
XIX Dinastia
37
Horemheb pertencia a uma linhagem de nobres provinciais oriundos de
uma pequena cidade do Médio Egito. Sua longa carreira como comandante
do exército egípcio e administrador permitiu -lhe avaliar a corrupção política,
que crescia perigosamente desde o início do reinado de Aquenáton. Assim que
ascendeu ao trono, iniciou uma ampla rie de reformas que beneficiaram o
país. Promulgou também um decreto para ativar a arrecadação dos impostos
nacionais e acabar com a corrupção dos funcionários civis e militares.
Horemheb demonstrou acentuada predileção por um oficial do Exército
chamado Pa -Ramsés, a quem nomeou vizir, escolhendo -o como seu sucessor
ao trono. No entanto, Pa -Ramsés estava velho e reinou dois anos, sendo
substituído por seu filho e co rregente Séti I, o primeiro de uma linhagem de
guerreiros que concentraram todos os esforços no restabelecimento do prestígio
do Egito no exterior. Logo que subiu ao trono, Séti I teve de fazer frente à
perigosa coalizão de cidades -Estado sírias, encorajada e até mesmo mantida
pelos hititas. Conseguiu desbaratar a coalizão, devolvendo ao Egito o controle
sobre a Palestina. Após repelir um ataque líbio, Séti I penetrou novamente na
36 A descoberta sensacional, em 1926, do túmulo praticamente inviolado do jovem far suscitou
numerosos artigos, incluindo particularmente CARTER, H. & MACE, A. C. 1963; DESROCHES-
-NOBLECOURT, C. 1963.
37 Ver DRIOTON, E. & VANDIER, J. 1962. pp. 349 -56, Cap. 9, pp. 418 -22, Cap. 10; FAULKNER, R.
O. 1975.
63
O Egito faraônico
Síria setentrional, onde pela primeira vez as tropas egípcias entraram em conflito
aberto com os hititas. Conseguiu subjugar Kadesh, mas, embora obrigados a se
retirar temporiamente, os hititas mantiveram sua influência na Síria setentrional.
A guerra prosseguiu com seu sucessor, Ramsés II.
Durante o reinado de Ramsés II, a residência real e o centro administrativo
foram transferidos para Pi -Ramsés, cidade situada na parte nordeste do Delta,
onde se estabeleceu uma base militar adequada às manobras de grandes corpos
de infantaria e carros de guerra. No quinto ano de seu reinado, Ramsés II parte
à frente de quatro exércitos contra uma poderosa coalizão de povos asiáticos
reunidos pelo rei hitita Mutawallis, dando continuidade às tentativas de seu
pai de recuperar as possessões egípcias na Síria setentrional. Na célebre batalha
ocorrida perto de Kadesh, à margem do rio Oronte, a vanguarda das forças de
Ramsés cai numa armadilha inimiga e um de seus exércitos é derrotado pelos
carros hititas; o próprio rei é obrigado a combater, mas consegue reagrupar
suas forças e transformar o que poderia ter sido uma derrota numa vitória um
pouco duvidosa. Representações e relatos minuciosos dessa batalha, assim como
de algumas campanhas mais gloriosas na Palestina e na Síria, ocorridas antes
e depois desse conflito, foram gravados nas paredes dos templos de Ramsés II,
esculpidos na rocha em Abu Simbel e em el -Derr, na Baixa Núbia, em seus
templos de Abidos e Carnac, no pilar que ele anexou ao templo de Lúxor e
também em seu templo funerário, o Ramesseu.
As hostilidades entre os dois países prosseguiram por vários anos. Na
verdade, depois do vigésimo primeiro ano de seu reinado é que Ramsés II
concluiu a paz, assinando um famoso tratado com o rei hitita Hattusilis. A
partir daí as duas potências mantiveram relações cordiais, e Ramsés desposa
a filha mais velha de Hattusilis, numa cerimônia anunciada em todos os
lugares como símbolo de “paz e fraternidade”. Em consequência desse
acordo, a influência egípcia estendeu -se ao longo da costa até Ras Shamra
(Ugarit), cidade da Síria setentrional. Embora os hititas ainda conservassem
seu poder no interior, perdiam inflncia no Vale do Orontes. Com a morte
de Hattusilis, um novo perigo surgiu: a migração dos Povos do Mar
38
. Essa
migrão em massa propagou -se dos Balcãs e da região do mar Negro para
todo o mundo mediterrânico oriental e não tardou a submergir totalmente
o reino hitita. O idoso Ramsés, que governou 67 anos as a assinatura do
tratado, o deu a devida ateão aos sinais inquietantes vindos do exterior,
38 Sobre os Povos do Mar, ver a ousada teoria de A. MIBBI.
64
África Antiga
 . Tesouro de Tutancâmon. Interior da antecâmara, lado oeste. O leito de Hátor.
 . Howard Carter, o arqueólogo que descobriu o mulo de Tutancâmon, precisou abrir um
sarcófago de pedra e três ataúdes embutidos um no outro antes de atingir o último, que continha a múmia. A
máscara funerária em ouro maciço colocada sobre seu rosto é uma das peças mais espetaculares da exposição
Tesouros de Tutancâmon. (Foto Harry Burton, col. e Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.)
65
O Egito faraônico
e seu vigoroso sucessor Merneptah deparou -se com uma situão crítica
quando subiu ao trono.
Um grande contingente dos belicosos Povos do Mar havia penetrado na
região costeira a oeste do Delta e, aliando -se aos líbios, ameaçavam o Egito.
Merneptah enfrentou -os numa grande batalha, no quinto ano de seu reinado,
infligindo -lhes esmagadora derrota. Nas estelas de Merneptah registraram -se
suas atividades militares na região sírio -palestina e enumeram -se as cidades e
Estados conquistados, incluindo Canaã, Ascalon, Gezer, Yenoan e Israel – este
último mencionado pela primeira vez nos documentos egípcios.
A XX Dinastia
39
Após a morte de Merneptah, travou -se uma luta dinástica e o trono foi
ocupado sucessivamente por cinco soberanos, cuja ordem de sucessão e grau de
parentesco ainda não foram estabelecidos com precisão.
A ordem foi restaurada por Sethnakht, primeiro rei da XX dinastia, que
ocupou o trono durante três anos. Sucedeu -lhe seu filho Ramsés III, que, num
reinado de 31 anos, se empenhou no sentido de reviver as glórias do Novo
Império. No quinto e no décimo primeiro anos de seu reinado, infligiu uma
derrota decisiva às hordas invasoras da Líbia ocidental e, durante o oitavo
ano, repeliu uma invasão sistemática, por mar e terra, dos Povos do Mar. É
significativo que essas três guerras fossem defensivas e ocorressem, à parte
uma operação terrestre contra os Povos do Mar, nas fronteiras ou mesmo no
interior do Egito. Uma única derrota teria significado o fim da história do
Egito como não, pois essas invasões não objetivavam apenas o saque ou
a dominação política, mas a ocupação do rico Delta e do vale do Nilo por
nações inteiras de povos ávidos de terras, compreendendo os combatentes, suas
famílias, rebanhos e bens.
Ramsés III foi mais feliz na defesa contra os invasores estrangeiros do que
na solução dos problemas internos que afligiam o país. O Egito estava arruinado
pela desorganização da força de trabalho, pelos motins dos trabalhadores do
governo, pelo aumento inflacionário dos preços do trigo e pela desvalorização do
bronze e do cobre. A decadência aumentou nos reinados seguintes, de Ramsés
IV a Ramsés XI. A frágil autoridade do casal real tornou -se ainda mais precária
devido ao poder crescente dos sacerdotes de Âmon, que finalmente elegeram
para o trono um sumossacerdote, Herihor. Iniciava -se uma nova dinastia.
39 Ver DRIOTON, E. & VANDIER, J. 1962, pp. 356 -66, Cap. 9, pp. 432 -9, Cap. 10.
66
África Antiga
Período de declínio
40
Da XXI à XXIV Dinastia
Durante a XXI dinastia, o poder foi dividido, em comum acordo, entre os
príncipes de Tânis, no Delta
41
, e a dinastia de Herihor, em Tebas. Com a morte
deste último, Smendes, que governava o Delta, ao que parece, passou a controlar
todo o país. Esse período viu surgir um novo poder, o de uma família de origem
líbia vinda do Fayum. Originariamente, teriam sido soldados mercenários que se
fixaram na região quando o Egito se retirou
42
. Todavia um dos membros dessa
família, Sheshonq, apossou -se do trono egípcio e fundou uma dinastia que durou
aproximadamente duzentos anos.
No final da XXII dinastia, o Egito encontrava -se irremediavelmente dividido
em pequenos Estados rivais e ameaçado ao mesmo tempo pela Assíria e pelo
poderoso Sudão independente. No entanto, um homem chamado Pedibast fundou
uma dinastia rival. Mâneton chamou a XXIII dinastia de tanita, muito embora os
reis continuassem a usar os nomes dos faraós da XXII dinastia: Sheshonq, Osorkon
e Takelot. Durante essas duas dinastias, o Egito manteve relações pacíficas com
Salomão, em Jerusalém, que chegou a se casar com uma princesa egípcia. Contudo,
no quinto ano de reinado do sucessor de Salomão, Sheshonq atacou a Palestina.
Embora o Egito não procurasse conservar a Palestina, esta recuperou parte de sua
antiga influência, beneficiando -se de um comércio exterior bastante desenvolvido.
A XXIV dinastia teve apenas um rei, Bakenrenef, que os gregos chamavam de
cchoris, filho de Tefnakhte. Provavelmente foi Tefnakhte que assinou, com Hosea
da Samaria, um tratado contra os assírios. Bócchoris procurou apoiar o rei de Israel
contra o soberano assírio Saro II, mas seu ercito foi derrotado em Rafia em
-720. Seu reinado chegou ao fim quando o rei sudas Shabaka invadiu o Egito.
A XXV dinastia ou dinastia sudanesa
43
Por volta de -720 o Egito foi alvo de outra invasão, desta vez, porém, vinda
do sul. Piankhy (Peye), sudanês que governou o Sudão entre a Primeira e a
40 Ver KITCHEN, K. A. 1973. A genealogia e a cronologia desse período confuso são estudadas por
BIERBRIER, M. 1975
41 Ver YOYOTTE, J. 1961. pp. 122 -51.
42 Ver HOLSCHER, W. 1955.
43 Ver também Cap. 11. Uma visão de conjunto pode ser encontrada em H. von ZEISSL. Para maiores
detalhes sobre esse período, ver Cap. 10 deste volume.
67
O Egito faraônico
Sexta Catarata, baseado numa capital situada na Quarta Catarata, considerou-
-se suficientemente poderoso para desafiar o trono dos fars. Um certo
Tefnakhte de Ss, tendo conseguido unificar o Delta, ocupou nfis e sitiou
Heracleópolis. Ao saber que o governante de Hermópolis (no Médio Egito)
unira -se a Tefnakhte, enviou um ercito ao Egito. Era, sem vida, um
soberano valente. Sua atitude cavalheiresca na batalha, o digno tratamento
dispensado às princesas prisioneiras, seu amor pelos cavalos, o cumprimento
escrupuloso do ritual religioso e sua recusa em negociar com príncipes vencidos
(que, segundo o cerimonial, eram impuros por não serem circuncidados e por
comerem peixe) são reveladores de seu caráter. Essa dinastia durou sessenta
anos, a o momento em que os assírios, ao cabo de inúmeras campanhas,
conseguiram vencê -la.
O reino saíta
44
O Egito foi libertado da dominão assíria por um egípcio de nome
Psamético. Em -658, auxiliado por Giges, da Lídia, e pelos mercenários gregos,
este conseguiu destruir todos os vestígios da suserania assíria, iniciando uma
nova dinastia, a XXVI. Os reis dessa dinastia esforçaram -se corajosamente para
restabelecer a posição do Egito, promovendo a expansão comercial do país. O
Alto Egito tornou -se uma rica região agrícola, onde se cultivavam os produtos
vendidos ao Baixo Egito.
O período persa
45
No reinado de Psamético III, o Egito teve de submeter -se aos persas
chefiados por Cambises. Essa ocupação praticamente pôs fim à história do país
como potência independente. Os reis da XXVII dinastia eram persas. A XXVIII
dinastia era de origem local e ficou conhecida como a dinastia de Amirteu, que
articulou uma revolta durante o tumultuado reinado de Dario II. Graças às
alianças com Atenas e Esparta, os reis da XXIX e da XXX dinastia conseguiram
manter por aproximadamente sessenta anos a independência assim conquistada.
A segunda dominação persa no Egito iniciou -se sob Artaxerxes III, em -341,
terminando em -332, quando Alexandre, o Grande, invadiu o Egito após ter
derrotado a Pérsia na batalha de Isso.
44 Ver DRIOTON, E. & VANDIER, J. 1962. pp. 574 -600, Cap. 13. Sobre a intervenção saíta na Núbia, de
grande importância para a história da África, ver SAUNERON, S. & YOYOTTE, J. 1952. pp. 157 -207.
45 A obra básica sobre esse período continua sendo a de POSENER, G. 1936.
C A P Í T U L O 3
69
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
Economia e Sociedade
Campos e pântanos
A constituição do Estado faraônico por volta do ano -3000 e o período
obscuro que se seguiu com certeza corresponderam a um grande desenvolvimento
econômico, evidenciado em alguns aspectos pelas sepulturas reais e privadas da
época tinita: as construções tornaram -se mais amplas e os vários objetos de arte
sugerem o aumento do luxo e o refinamento da técnica dos artesãos. Não
meios de saber se a necessidade de coordenar a irrigação foi a principal causa
da formação de um Estado unificado ou se a unificação do país sob os reis
tinitas, aliada ao desenvolvimento da escrita, possibilitou organizar as economias
regionais, com a racionalização dos trabalhos de infra estrutura e a distribuição
sistemática dos recursos alimentares. O fato é que até o século XIX da Era Cristã
a prosperidade e a vitalidade do Egito estiveram ligadas à cultura de cereais
(trigo, cevada). Um sistema de bacias de inundação, que controlava e distribuía as
águas das enchentes e depositava o limo no interior de diques de terra, perdurou
até o recente triunfo da irrigação permanente: sua existência é comprovada desde
o Médio Império, podendo -se supor que seja ainda mais antigo
1
.
1 Os textos relativos às técnicas de irrigação são muito raros. A mais antiga refencia segura à irrigão por
bacias (hod) encontra -se nos textos dos sarcófagos do Médio Império: BUCK, A. de. 1935 -61. p. 138, b -c.
O Egito faraônico:
sociedade, economia e cultura
J. Yoyotte
70
África Antiga
Evidentemente, esse sistema permitia uma colheita por ano; por outro
lado, a curta duração do ciclo agrícola liberava grande quantidade de mão de
obra para os vultosos trabalhos exigidos pelas construções religiosas e reais. Os
antigos também praticavam a irrigação permanente, obtendo água de canais ou
bacias escavadas até o lençol subterrâneo. Mas, durante longo tempo, as pernas e
os ombros humanos carregados de jugos foram as únicas “máquinas” conhecidas
para puxar água, sendo a irrigação por meio de valas utilizada somente para
os vegetais, árvores frutíferas e vinhas (contudo, é possível que a invenção do
shaduf durante o Novo Império tenha possibilitado duas colheitas
de cereais por
ano em alguns lugares)
2
. Por não armazenar água, os egípcios ainda não eram
capazes de atenuar as consequências de enchentes anormalmente baixas, que
ocasionavam a infertilidade em várias bacias, e de enchentes excessivamente
altas, que devastavam as terras e as habitações. O desenvolvimento dos silos e
do transporte fluvial, porém, permitiu -lhes assegurar o abastecimento alimentar
de uma província para outra ou de um ano para outro. Os rendimentos médios
eram bons: os excedentes alimentavam o grande mero de funcionários
governamentais e os trabalhadores de bricas de dio porte (estaleiros e
arsenais, fiações ligadas a certos templos, etc.). As autoridades dos templos e
os altos funcionários exerciam poderes de patronato através do controle dos
recursos alimentares, que variavam conforme o período.
O pão e a cerveja, feitos de cereais, constituíam a base da dieta, mas
a alimentação dos antigos egípcios era surpreendentemente variada. É
impressionante a variedade de tipos de bolos e pães relacionados nos textos.
Como ocorre atualmente, as hortas produziam vagens, grão -de -bico e outras
leguminosas, cebola, alho -porró, alface e pepino. Nos pomares cultivavam -se
tâmaras, figos, nozes de sicômoro e uvas. Também se produzia uma grande
variedade de vinhos, com uma viticultura engenhosa, praticada principalmente
em diversos pontos do Delta e nos oásis. A criação de abelhas fornecia o mel.
O óleo era extraído do sésamo e do nabk; a oliveira, introduzida durante o Novo
Império, continuou rara, não sendo seu cultivo muito bem sucedido.
O Egito faraônico não transformou todo o vale em terras agrícolas: além
dos recursos que extraía dos campos e hortas, explorou também os grandes
pântanos e lagos das bordas setentrionais do Delta, as praias do lago Méride,
bem como as depressões à beira do deserto e os meandros do Nilo. Esses pehu
abrigavam muitas e variadas aves selvagens, que eram caçadas ou capturadas
2 Ver a interpretação engenhosa que HELCK, W. e OTTO, E. (1973) propuseram para os dados do
“Papiro Wilbur”.
71
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
 . Empilhamento do feno. (Fonte: J. Pirenne. 1961. v. J, g. 79 (embaixo), Mastaba de Ptah-
-Sekhem -Ankh. Museum of Fine Arts, Boston, n. 6483.)
F . Colheita. (Fonte: J. Pirenne. 1961. V. I, g. 79 (no alto), p. 256. Mastaba de Akhet -hetep, Musée
du Louvre, n. 6889.)
72
África Antiga
com arapucas. O Nilo oferecia grande variedade de peixes, pescados com rede
de arrastão, nassa para enguias, linha ou cesto; apesar da proibição de seu
consumo em certas províncias ou em determinadas categorias sociais, tinham
um lugar definido na dieta popular, que também era suplementada pela coleta
de rizomas de ciperácea comestível, polpa de papiro e, a partir do período persa,
pelas sementes do loto índico. Finalmente, os n tanos serviam de pastagem
para bovinos.
Embora o clima, muito úmido, não fosse particularmente favorável à criação
de gado e, em consequência, os rebanhos exauridos tivessem que ser supridos
regularmente pela Núbia e pela Ásia, essa atividade tinha uma importância
considerável na vida do país e nas concepções religiosas. As mesas dos deuses
e dos noveis deviam ser bem guarnecidas de carne bovina. O corte da
carcaça era uma arte refinada, e em geral as gorduras animais eram utilizadas
na fabricação de unguentos perfumados. Sabe -se que os egípcios do Antigo
Império tentaram criar várias espécies, como órix, antílope, gazela, etc., e até
grous e hienas, mas tal prática foi abandonada por consumir excessiva mão de
obra, com resultados desapontadores. Mais tarde, os ruminantes do deserto
passam a ser, nos provérbios e nos rituais mágicos, o símbolo de criaturas
indomáveis
3
. Por outro lado, os egípcios conseguiram ótimos resultados na
criação de aves domésticas, principalmente o ganso do Nilo. As cabras, tão
prejudiciais às escassas árvores do vale, e os carneiros criados nas terras incultas e
nas bordas do deserto, juntamente com os porcos (apesar de algumas proibições),
ocuparam um espaço considerável na dieta popular. Em plena época histórica,
observa -se uma transformação no tipo de rebanho ovino: por volta de -2000, o
antigo carneiro de chifres horizontais torcidos, que era a encarnação de Khnum,
Bés, Hershef e outros deuses antigos, foi sendo, gradualmente substituído pelo
carneiro de chifres curvos, dedicado ao deus Âmon. Sua origem, africana ou
asiática, é controversa. Os egípcios obtiveram êxito especial na domesticação de
duas espécies africanas, intimamente associadas, em nossas representações, ao
passado faraônico: o asno, utilizado desde o período arcaico, não como animal
de montaria, mas de carga (paradoxalmente dedicado a Set, deus do mal), e
o gato doméstico, que aparece a partir do fim do Antigo Império e início
do Médio Império (e que era cultuado como uma forma moderada das deusas
ameaçadoras).
3 “Papiro Zanzing”, 3, 8 -9; CAMINOS, R. A. 1954. P. 382. Sobre a signicação religiosa do órix, ver
DERCHAIN, P. J. 1962.
73
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
 . Caça ao hipopótamo.
F . Pesca com rede. (Fonte: J. Pirenne. 1961. v. I, p. 201, g. 66. Mastaba de Akhet -hetep. Musée
du Louvre. Fotos Archives Photographiques, Paris.)
74
África Antiga
Mineração e indústria
A nobreza e a guarda praticavam a caça à lebre e aos animais de grande
porte no deserto, como esporte e meio de variar a alimentação cotidiana, mas
é provável que essa atividade não tivesse grande relevância econômica. A real
importância do deserto residia na variedade de recursos minerais que oferecia:
as tinturas verdes e negras do deserto arábico, utilizadas para tratar e embelezar
os olhos desde a Pré -História; pedras sólidas e de bela aparência usadas pelos
construtores e escultores (calcário fino de Toura, arenito de Silsileh, granito
de Assuã, alabastro de Hatnub, quartzito de Djebel el -Ahmar e grauvaca de
Hammamat)
4
; e pedras semipreciosas, como a turquesa do Sinai ou as cornalinas
e ametistas da Núbia. A vitrificação (esteatita vitrificada e “faiança egípcia com
núcleo de quartzo) desenvolveu -se muito cedo, estimulando a manufatura de
objetos com a aparência da turquesa ou lazurita. O Egito do Novo Império
aperfeiçoou as técnicas de fabricação de vidro graças aos contatos com a Ásia,
adquirindo um domínio acurado do processo.
Uma das riquezas que o país extraía das vastas cercanias áridas era o ouro,
proveniente do deserto arábico e da bia. Símbolo da imortalidade perfeita, esse
metal ainda não desempenhava o papel econômico fundamental que iria adquirir
em civilizações mais recentes, mas era considerado um símbolo de riqueza e bem
mais valorizado do que a prata, embora esta última, metal importado, sempre
fosse mais rara e, no Antigo Império, mais preciosa do que o ouro. As numerosas
jazidas de cobre existentes nos desertos eram de teor muito baixo (exceto no Sinai)
e o Egito logo se tornou dependente do cobre asiático. E preciso observar que as
inovações técnicas da metalurgia do Egito faraônico sempre estiveram aquém das
que se verificaram no Oriente Pximo. A Idade do Bronze e posteriormente a
Idade do Ferro foram tardias no Egito. O metal era relativamente raro e precioso;
a madeira e o sílex substituíram -no com sucesso nos implementos agrícolas, e a
pedra dura nos instrumentos para esculpir; os utensílios e armas de metal eram
conservados e distribuídos pelos serviços públicos
5
.
Embora o antigo Egito tivesse que importar metais e madeira de seus
vizinhos asiáticos, sua capacidade industrial era insuperável em dois setores.
4 A grauvaca (incorretamente chamada de xisto em muitos trabalhos) é uma ‘’rocha quartzosa, de granulação
na, compacta, dura e cristalina, muito parecida com a ardósia, apresentando, em geral, várias tonalidades
de cinza’’: LUCAS, A. 1962. PP. 419 -20.
5 Sob a XIII dinastia, as pontas de echa e os dardos de pedra eram calcados nos modelos de metal, mas
sua produção obedecia a técnicas tradicionais arcaicas, como revelam as armas encontradas na fortaleza
de Mirgissa: VILA, A. pp. 171 -99.
75
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
Os faraós exportavam têxteis (o linho egípcio da época era de uma qualidade
inigualável) e papel. O papiro, usado para diversos fins – na confecção de velas,
cordas, vestuário, calçados –, possibilitou principalmente a fabricação de um
suporte muito flexível para a escrita. Esse material era a fonte de poder do
escriba e foi muito solicitado no exterior com a expansão da escrita alfabética
nas adjacências do Mediterrâneo oriental. O cultivo intensivo do papiro
provavelmente contribuiu para o desaparecimento dos pântanos, refúgios dos
pássaros, crocodilos e hipopótamos, que, na opinião dos próprios antigos, davam
brilho à paisagem egípcia.
O desenvolvimento dos transportes foi um fator determinante no progresso
do regime faraônico. Raramente utilizados, os bovinos eram atrelados ao arado
ou ao trenó funerário; o asno, mais resistente e menos exigente, era o animal
de carga ideal nos campos e nas trilhas do deserto (sabemos que o cavalo,
introduzido durante o segundo milênio, continuou a ser um luxo reservado
aos guerreiros, e que o rico potencial econômico da roda, cujo princípio
era conhecido desde o Antigo Império
6
, não foi explorado). O asno, com um
rendimento reconhecidamente menor embora fosse conhecida a técnica de
utilizá -lo em tropas precedeu e muitas vezes substituiu o camelo, adotado lenta
e gradualmente nos campos a partir da época persa. Para o transporte de carga
a longa distância, o Egito utilizava o rio e seus canais: as embarca ções grandes
e pequenas eram rápidas e seguras. As qualidades precoces da náutica egípcia
possibilitaram tanto a centralização econômica quanto as prodigiosas realizações
arquitetônicas (pirâmides, templos gigantescos, colossos, obeliscos). Além disso,
mesmo em tempos muito antigos, barcos à vela percorriam o mar Vermelho e
o Mediterrâneo (não nada que prove a teoria de que os fenícios ensinaram
os egípcios a navegar). Para deslocar os pesados blocos de pedra necessários
principalmente às construções sagradas, a engenharia faraônica inventou
métodos engenhosos, mas de uma simplicidade surpreendente, utilizando, por
exemplo, as propriedades derrapantes do limo molhado para deslocar simples
trenós (sem rodas nem rolamentos), aproveitando a enchente do Nilo para
lançar as barcaças carregadas de enormes blocos ou utilizando esteiras de junco
como âncora flutuante
7
. É através da reconstituição de tais procedimentos – em
que um homem moderno nunca pensaria, confundido que está por tecnologias
6 Uma escada de assalto montada sobre rodas acha -se representada numa sepultura da VI dinastia:
SMITH, W. S. 1949. p. 212, g. 85.
7 GOYON, G. 1970. pp. 11 -41.
76
África Antiga
sofisticadas e outras ideias de eficiência que a pesquisa está desvendando os
mistérios da ciência faraônica
8
.
A maior parte dos processos agrícolas e industriais foi inventada por volta
do III milênio; ao que parece, os egípcios eram lentos e tímidos – e até mesmo
preconceituosos –, quando se tratava de adotar inovações técnicas provenientes
do exterior. No estágio atual dos estudos e da documentação, parece que as
notáveis realizações dos primeiros tempos forneceram soluções para os problemas
mais vitais dos habitantes do vale e levaram ao estabelecimento de um sistema
social e político eficaz, o despotismo faraônico”. As falhas desse sistema eram
minimizadas por uma representação religiosa tão coerente que ainda sobreviveu,
nos templos, vários séculos, após ter a conquista estrangeira demonstrado a
incapacidade de a tradição e sua correspondente prática social atenderem ao
desafio de forças novas.
O sistema econômico e social
É preferível evitar termos abstratos na descrição dos métodos de produção
faraônicos, que o nosso conhecimento a respeito é bastante vago devido à
insuficiência de fontes
9
.
Os documentos disponíveis permitem distinguir alguns dados gerais. O
comércio exterior, a exploração de minas e de pedreiras eram atividades estatais.
A maior parte das transações comerciais conhecidas pelos textos envolve
pequenas quantidades de mercadorias e é constituída por contratos privados
entre particulares; a interveão de intermediários profissionais em geral
agentes comerciais do rei ou de um templo é rara. Não há razão para se
acreditar na existência de uma burguesia” de empreendedores e comerciantes
privados, e embora a expressão “socialismo de Estado”, por vezes utilizada,
seja ambígua e anacrônica, tudo indica que, de modo geral, a produção e a
distribuição estavam nas mãos do Estado.
De fato, uma investigação do material disponível a impressão de que
tudo dependia do rei. É verdade que em princípio todos os poderes de decisão
e todos os recursos materiais pertenciam a ele. O rei tinha o dever religioso de
assegurar a ordem cósmica, a segurança do Egito e a felicidade de seu povo neste
mundo e no mundo pós -morte, não apenas exercendo sua autoridade como rei,
mas mantendo o culto aos deuses, o que o levava a partilhar seus privilégios
8 Mais recentemente, CHEVRIER, H. 1964. pp. 11 -17; 1970. pp. 15 -39; 1971. pp. 67 -111.
9 Notas críticas e bibliograa em JANSSEN, J. J. 1975. pp. 127 -85.
77
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
econômicos com os templos. Por outro lado, tanto para celebrar o culto nos
templos quanto para administrar os negócios da nação, o faraó, teoricamente
o único sacerdote, guerreiro, juiz e produtor, delegava seu poder a toda uma
hierarquia de indivíduos; um meio de pagar esses funcionários era ceder -lhes
terras, cujas rendas passavam a lhes pertencer. Na verdade, em todos os períodos
o monopólio real dos meios de produção era mais teórico do que prático.
Com certeza, as expedições para Punt, Biblos, Núbia e para o deserto à
procura de mercadorias exóticas e pedras eram, em geral, enviadas pelo rei
e conduzidas por funciorios governamentais. A constrão dos templos
também era função do governo. Na época imperial, o reino de Kush, anexado,
e os protetorados palestino e sírio, por exemplo, eram explorados diretamente
pela coroa. o aproveitamento da terra egípcia não dependia exclusivamente
do faraó. Ao lado dos domínios reais havia as terras dos deuses; estes possuíam
campos, rebanhos, oficinas, etc. (no apogeu do culto a Âmon, o próprio deus
podia possuir minas), dispondo de uma hierarquia burocrática própria. O fato de
que os deuses por vezes ficassem isentos, por privilégio real, de certos impostos
e taxas significa, em última instância, que os templos eram os proprietários” de
suas terras, do pessoal empregado e dos instrumentos de produção. Além disso,
ao menos a partir da XVIII dinastia, os guerreiros recebiam o direito hereditário à
posse da terra. Os altos funcionários beneficiavam -se de dotações fundiárias que
eles mesmos dirigiam. As cenas da vida doméstica esculpidas nas mastabas do
Antigo Império mostram que esses funcionários tinham seus próprios rebanhos
e artesãos, bem como uma pequena frota de barcos. Não sabemos como se
constituíam as fortunas privadas e transmissíveis, mas é patente que tenham
existido e que, além dos cargos oficiais cuja transmissão aos descendentes
não dependia exclusivamente de seu detentor –, havia os bens domésticos”,
que podiam ser legados livremente. Contudo, praticamente em todas as épocas,
o direito à posse da terra se aplicava a áreas limitadas e esparsas, de modo
que as grandes fortunas não tomaram a forma temida pelas autoridades
de latifúndios. Sabe -se que existiram pequenas propriedades, principalmente
durante o Novo Império, período em que o termo “campos de homens pobres”
de fato designava as terras de pequenos agricultores independentes, bem
diferenciados dos arrendatários que trabalhavam os campos do rei ou dos deuses.
Em número relativamente pequeno, os estrangeiros deportados para o Egito ao
tempo das grandes conquistas eram trabalhadores especializados (viticultores
palestinos, tropeiros líbios) ou colonos militares. De modo geral, os escravos
adquiridos por particulares eram apenas serviçais domésticos e, embora haja
provas de sua existência, acredita -se que a mão de obra escrava (por vezes penal)
78
África Antiga
forneceu uma força de trabalho apenas limitada para a agricultura (ainda que,
posteriormente, associação dos “respondentes” mágicos colocados à disposição
dos defuntos a um grupo de escravos comprados
10
fizesse crer que o escravismo
tornou possível, sob os Raméssidas, a realizão dos principais trabalhos de
irrigação e beneficiamento das terras). Verdade é que a massa da população
trabalhadora parece ter -se ligado de fato à terra, que poderia abandonar em
caso de impossibilidade de pagamento dos impostos.
Podemos supor que nas aldeias predominava uma economia doméstica e que
a parte principal do trabalho no campo era feita pelos homens. Nas cidades-
-mercado, nos domínios reais e templos, a especialização profissional era bem
desenvolvida. As corporações às vezes bastante hierarquizadas de padeiros,
ceramistas, arranjadores de flores, fundidores, escultores, desenhistas, ferreiros,
aguadeiros, guardas de todos os tipos, guardadores de cães, pastores de ovelhas,
de cabras e de gansos, etc. trabalhavam para o rei ou para os templos, e o ofício
se transmitia de pai para filho. Sabemos com certa segurança como vivia a
comunidade de trabalhadores que, instalados num povoado vizinho ao Vale
dos Reis (atual sítio de Deir el -Medina), escavavam e deco ravam os túmulos
dos faraós e das rainhas. Os artistas e escavadores eram funcionários públicos
dirigidos por um escriba real e dois chefes de equipe nomeados pelo soberano
11
.
Eram pagos regularmente com cereais, algumas vezes coletados diretamente das
rendas de um templo, e rações de peixe, verduras, legumes ou outros alimentos.
Trocavam pequenos serviços e bens entre si e administravam sua própria justiça
(exceto quando consultavam o veredicto oracular de um deus local). Seu status
era suficientemente elevado e sua posição moral sólida o bastante para que a
comunidade pudesse recorrer à greve se houvesse atraso na distribuição de suas
rações.
Os serviços administrativos
A organização e a distribuição da produção, o controle da ordem pública e a
supervisão de toda e qualquer atividade eram responsabilidade de funcionários
públicos sob a autoridade do pncipe o faraó ou, em períodos de cisma,
os chefes locais ou dos templos. Esses funcionários eram recrutados entre
os escribas, que o conhecimento da escrita era a chave de toda erudição
e permitia o acesso às cnicas superiores (os interessados compraziam -se
10 CERNY, J. 1942. pp. 105 -33.
11 Apud VALBELLE, D. 1974.
79
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
em demonstrar esse conhecimento nas suas Sátiras das Profissões e ensaios
epistolares), constituindo, assim, uma fonte usurpada de poder e de bem -estar.
Esses escribas, depositários da cultura religiosa e leiga, dominavam todas as
atividades profissionais (no Novo Império os altos oficiais do exército eram
escribas). Podiam ser engenheiros, agrônomos, contadores ou ritualistas;
muitos acumulavam vários cargos. Educados com bastante rigor, professavam
um código moral geralmente elevado, carregado de intenções benevolentes,
um certo desprezo pela plebe e respeito pela ordem social, considerada como
a expreso perfeita da harmonia do universo. Mesmo que evitassem as
prevaricações, conforme os princípios que regiam seus serviços, desfrutavam
de gratificações proporcionais à sua posição na hierarquia (era ampla a variação
dessas remunerações, pelo menos na XII dinastia)
12
: doações de terras, salários
em mantimentos, benefícios sacerdotais deduzidos dos rendimentos regulares
dos templos e das oferendas reais, donativos honoríficos ou presentes funerários
recebidos diretamente do soberano. Os mais graduados viviam em grande estilo
neste mundo e no outro, e sua riqueza, sem falar de sua influência, dava -lhes
poderes de patronagem.
As listas de títulos e as genealogias mostram claramente que não havia
uma casta de escribas distinta da casta dos guerreiros ou dos sacerdotes. A
classe dirigente era única e se confundia com os quadros administrativos. Em
geral, todo bom estudante podia ocupar um cargo e ascender na carreira se sua
competência e dedicação o distinguissem perante o rei, teoricamente o único
árbitro em matéria de promoção social. Contudo era normal transmitir -se aos
filhos pelo menos parte das funções, e não devemos dar muito crédito a uma
retórica que se apressa em representar todo funcionário como alguém que o rei
tirou do nada. Conhecemos as dinastias dos altos funcionários e, na Tebas do
I milênio, observamos que várias famílias partilhavam os postos e as funções
sacerdotais da “Casa de Âmon numa época, deve -se dizer, em que o direito de
hereditariedade assumia uma importância considerável.
A história faraônica parece ter -se desenrolado ao ritmo da luta entre o alto
funcionalismo, que tendia a se constituir num poder hereditário e autônomo,
e a monarquia, apegada ao direito de controlar as nomeações. Desse modo, o
Antigo Império desapareceu quando, nas províncias do sul, fortaleceram as
dinastias dos grandes chefes” ou prefeitos hereditários. No Segundo Período
Intermediário, as altas funções tornam -se propriedade pessoal suscetível de ser
12 Para um texto característico, ver GOYON, G. 1957.
80
África Antiga
 . Abastecimento dos celeiros (desenho). (Fonte: A. Ba dawy. A History of Egyptian Architecture”.
Los Angeles, 1966. p. 36, g. 17.)
F . Prestação de contas. (Fonte: J. Pirenne. 1961. p. 297, g. 94 (no alto). Mastaba de Mererouka,
Sacará. Foto Fondation Egyptologique Rei ne Elisabeth, n. 283.)
81
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
comprada e vendida. O Novo Império chega ao fim quando o pontificado tebano
e o comando militar do sul reunidos tornam -se o apanágio de uma dinastia de
sumos sacerdotes de Âmon; no período líbio repetir -se -á, no Delta, o processo
de desmembramento vivido pelo Alto Egito durante o Primeiro Período
Intermediário. As implicações econômicas e as causas e consequências dessas
mudanças não podem ser identificadas com segurança, mas pode -se dizer que, em
cada período de enfraquecimento do poder central e de fragmentação territorial
do sistema administrativo, as lutas internas perturbavam a paz nos campos, e
a influência externa e a segurança das fronteiras ficavam comprometidas. As
construções religiosas tornavam -se mais raras e modestas, e a qualidade dos
trabalhos artísticos declinava.
A organização política
O ideal confesso da sociedade egípcia, portanto, era uma monarquia forte,
considerada como o único meio de dar ao país o impulso necessário ao seu
bem -estar. O soberano era a personificação do servo público: o termo “faraó”
vem da expressão per -ao, que designava no Antigo Império a “Grande Casa do
príncipe, incluindo sua residência e seus ministérios, e que no Novo Império
passou a designar a pessoa do rei. Este possuía uma natureza diferente do resto
da humanidade: as lendas sobre sua predestinação, os quatro nomes canônicos e
os epítetos que acrescentava a seu nome, o protocolo que o cercava, as cerimônias
que acompanhavam suas aparões e decisões, a multiplicão infinita de suas
imagens, cartuchos e tulos nos edifícios sagrados, suas celebrões jubilares,
o estilo de sua sepultura (pimides menfitas, tumbas talhadas tebanas) – tudo
isso acentuava a diferença. Uma das demonstrações mais evidentes do desgaste
perdico da autoridade faraônica e de certas pressões sociais é a adão, por
parte de um número cada vez maior de indivíduos, de estilos de tumbas
13
,
temas iconográficos e textos funerários antes reservados apenas ao rei. Além
disso, embora a monogamia pareça ter predominado entre os mortais, em geral
o rei -deus desposava várias mulheres, por vezes sua irmã ou mesmo suas filhas.
A sucessão real cerca -se de algum mistério. Com certeza, era costume que o
filho sucedesse ao pai no trono, conforme o modelo mítico de Osíris e Hórus,
13 O fenômeno de diferenciação do tratamento póstumo dos reis e, posteriormente, de usurpação progressiva
dos privilégios funerários do soberano pelos indivíduos comuns ocorre com frequência. O primeiro ciclo
começou durante o Antigo Império e foi acelerado pelo enfraquecimento do poder real durante o
Primeiro Período Intermediário; todavia, não se pode mais sustentar que naquela época tenha havido
uma democratização repentina dos privilégios funerários.
82
África Antiga
o protótipo do filho que sepulta o pai e vinga sua morte. Algumas vezes,
como na XII dinastia, o princípio da hereditariedade tem como consequência
a coroão prematura do sucessor. Mas não se deve pensar que o direito de
realeza fundamentava -se apenas na transmiso hereditária masculina por
primogenitura. Os poucos soberanos que nos falam de seus antepassados
enfatizam que foram escolhidos livremente pelos pais como lugar -tenentes e
seus herdeiros prováveis (Séti I, Ramsés II, Ramsés III, Ramsés IV). Contudo,
as palavras das fórmulas pelas quais se reafirmava alegitimidade do rei são
idênticas, quer em se tratando do filho mais velho do predecessor, quer de um
adventício. Cada soberano herdava a “realeza de Rá, a fuão de Shu, o trono
de Geb”, sendo assim o sucessor direto dos deuses que criaram e ordenaram
o mundo; cada um era “escolhido pelo deus de sua cidade de origem. O rei,
predestinado a sua posão, era gerado pelas próprias obras do deus -Sol (mito
figurativo da teogamia)
14
, e, no Novo Império, a designação ou reconhecimento
do novo rei pelo oráculo de Âmon era a garantia da legitimidade do novo
monarca. Desse modo, um “direito divino” direto superava a legitimidade
dinástica. Na realidade, cada reinado era um reinício. Era o ritual que fazia e
mantinha o soberano, e cada vez que ele agia como sacerdote ou legislador, as
mesmas purificões, as mesmas funções e os mesmos ornamentos renovavam
sua “aparição como rei”. Comparado a um deus, algumas vezes adorado
durante sua existência como um verdadeiro deus Amenófis III ou Ramsés II,
por exemplo, através de seus prodigiosos colossos –, o faraó assumia um papel
sobrenatural sem, contudo, pretender seriamente a posse de dons sobrenaturais;
pelo contrário, era acima de tudo o homem exemplar, que dependia dos deuses
e que devia servi -los
15
.
Quatro mulheres tornaram -se faraós: curiosamente, as duas primeiras (Nitócris
e Sebeknefru) assinalam o fim de uma dinastia, e as outras duas (Hatshepsut e
Tauosré) passaram à posteridade como usurpadoras. Eram pródigas as honras
demonstradas à mãe, esposas e filhas do rei. Algumas princesas do Médio
Império e principalmente, em tempos posteriores, Teye, primeira esposa de
Amenófis III, e Nefertári, primeira esposa de Ramsés II, receberam honras
excepcionais. Ahhotep, durante o governo de Amásis e Ahmés -Nefertári, durante
o governo de Amenófis I, parecem ter exercido uma influência determinante em
questões políticas ou religiosas. A atribuição da função ritual de “divina esposa
de Âmon a princesas ou rainhas mostra o papel indispensável da feminidade
14 BRUNNER, H. 1964.
15 POSENER, G. 1960.
83
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
e da mulher no culto do deus cósmico. Contudo não existe prova positiva de
um regime matriarcal no conceito egípcio de realeza
16
e, em particular, não está
absolutamente demonstrada a teoria de que na época amósida o direito dinástico
era normalmente transmitido através da mulher.
Um estudo das listas de títulos dos funcionários superiores e inferiores
e dos poucos textos legislativos e administrativos que chegaram até nós
uma não razoavelmente precisa da organização governamental: governo
dos nomos, hierarquia do clero e distribuição das obrigações religiosas dos
sacerdotes, administração real ou sacerdotal das terras aráveis, dos rebanhos, das
minas, dos silos, dos tesouros, do transporte fluvial, da justiça, etc. Organogramas
engenhosos, se não rigorosos que evidentemente variavam de acordo com
o período comprovam a existência de práticas sofisticadas de gerência e
de técnicas de secretariado e contabilidade bastante avaadas (cabeçalhos,
classificação, tabelas com estorno, etc.). Esse trabalho de escrituração era, não
obstante, eficaz. Provavelmente o poder do Egito no exterior dependia mais de
sua organização avançada do que de sua agressividade, e os monumentos, que
resistiram ao tempo, seguramente devem sua existência à perícia dos escribas
na manipulação em grande escala do trabalho humano e dos materiais pesados.
No ápice do sistema situava -se o tjaty ou “vizir”, para usar uma designão
tradicional da egiptologia. Esse primeiro -ministro, responsável pela ordem
pública, era comparado ao deus Tot, “coração e ngua do Sol Rá”; era, antes
de tudo, a suprema autoridade legal na Terra, depois do faraó e do ministro da
justiça. Alguns vizires que serviram durante rios reinados consecutivos devem
ter dominado a vida política do país. Contudo o tjaty (ou os dois tjaty durante
o Novo Império) não era o único conselheiro do rei, nem necessariamente
o principal. Muitos dignitários vangloriavam -se de terem sido consultados
por seus soberanos a portas fechadas ou de terem sido escolhidos para
missões especiais. Na época imperial, o governador da Núbia, um “filho real
honorário, quase soberano em seu próprio território, obedecia diretamente
ao faraó. Em realidade, o poder político dos ministros ao que parece não se
refletia exatamente na hierarquia administrativa. Algumas personalidades,
como o escriba de recrutamentos Amenófis, filho depu, um arquiteto que
paulatinamente foi levado ao vel dos deuses por sua sabedoria, ou Khamois, o
sumo sacerdote de Ptah e um dos numerosos filhos de Ramsés II
17
, com certeza
foram tão influentes quanto os vizires de seu tempo. O despotismo radical
16 Dados úteis em GROSS -MERTZ, B. 1952.
17 Sobre essa personagem, ver a tese recente de GOMAA, F. 1973.
84
África Antiga
da monarquia faraônica entregava à Resincia a resolução dos principais
conflitos políticos. A proscrição da meria de diversos altos funcionários
não apenas Senmut e outros íntimos de Hatshepsut, mas também servidores
de soberanos menos contestados (dois príncipes reais e Usersatet, vice -rei da
Núbia durante o governo de Amenófis II) – é o testemunho mudo das crises
governamentais.
A organização militar
O rei era responsável pela segurança do país. Em tese, todo o mérito pelas
vitórias e conquistas era seu. Ramsés II muito explorou em palavras e imagens,
a título de propaganda, o fato de ter permanecido sozinho com sua guarda em
Kadesh, reafirmando a primazia do rei, único salvador por graça divina, sobre
um exército que, na realidade, era responsável pela fundação de sua dinastia. E
claro que, desde os tempos das pirâmides, o país dispunha de um alto comando
especializado, a um tempo militar e naval, que dirigia forças acostumadas
a fazer manobras e desfilar em alas disciplinadas. Contudo, no III milênio
os povos dos países vizinhos não representavam grande ameaça. As razias
haviam facilmente dizimado a população da Núbia, em benefício do Egito; as
campanhas triunfais, em função das quais se recrutava em massa a população
rural, eram suficientes para intimidar e espoliar as populações sedentárias dos
confins da Líbia e da Ásia; por sua vez, os caçadores do deserto” controlavam
os movimentos dos beduínos famintos.
Sabe -se que os militares menfitas participaram em atividades de interesse
econômico e nos grandes trabalhos de construção. As “equipes de jovens
recrutas de elite”, que compunham a guarda real, inspecionavam o transporte
de pedras destinadas às pirâmides, bem como algumas expedições importantes
para as minas do Sinai ou para as pedreiras orientais. Um corpo paramilitar
especializado, os sementi
18
, investigava e explorava as minas de ouro da Núbia
e do deserto, enquanto que os “intérpretes” viajavam para muito longe a fim de
negociar ou se apoderar de produtos asiáticos ou africanos. Com o Primeiro
Período Intermediário, a divisão do reino em principados rivais modificou
a organização militar: ao séquito pessoal do príncipe e aos contingentes dos
nomos uniram -se as tropas de choque auxiliares recrutadas entre os núbios ou os
Amu asiáticos. Dois aspectos, manifestados no III milênio, serão característica
constante dos exércitos faraônicos: a participação dos militares nos principais
18 Sobre o grupo pouco conhecido de garimpeiros, ver YOYOTTE, J. 1975. pp. 44 -55.
85
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
 . Tributo de prisioneiros líbios do Antigo Império.
F . Séti I matando um chefe líbio.
86
África Antiga
empreendimentos econômicos ou de construção como supervisores ou mão
de obra – e a utilização de tropas violentas recrutadas no exterior. Embora com
fortes tendências militares devidas ao senso de ordem e gosto pelo prestígio, os
egípcios não possuíam temperamento guerreiro.
Durante o Novo Império, época de importantes conflitos internacionais,
houve, naturalmente, uma expansão inédita do exército profissional. Dividia -se
ele em duas armas de serviço, carros de batalha e infantaria, subdivididas em
grandes corpos comandados por uma hierarquia complexa e servidas por uma
grande burocracia. Essa ampla estrutura resistiu aos impérios e aos principados
da Ásia e parece ter resolvido com sucesso a crise gerada pela heresia atonista.
Os soldados recebiam pequenas doações de terra; sob os Raméssidas, numerosos
cativos – núbios, sírios, líbios, Povos piratas do Mar – incorporados ao exército
gozavam, também, de tais concessões. Apesar de sua aculturação relativamente
rápida, os líbios (contingente talvez reforçado pelos invasores da mesma origem)
constituíram -se numa força autônoma e acabaram por fazer de seu chefe um
faraó. Contudo esse Egito de guerreiros líbios meshwesh o conseguiu adaptar-
-se às novas técnicas militares, enquanto a Assíria se organizava numa formidável
máquina de combate. No novo choque de impérios, os reis saítas, ao invés de
mobilizar esses guerreiros apoiaram -se em novos colonos militares recrutados
entre jônios, carianos, fenícios e judeus. E nas guerras finais contra o Império
Persa, os últimos faraós nativos, como seus adversários, contrataram mercenários
gregos recrutados por aventureiros cosmopolitas, O colapso do aparato defensivo
da nação, que não conseguiu dissipar nem o antigo mito do faraó como único
vencedor, nem a nostalgia das conquistas passadas (epopeia de Sesóstris) nem
tampouco as recordações lisonjeiras das guerras civis (ciclo de Petubástis), foi
o ponto fraco de um Egito que renascia e cuja economia e cultura ainda se
mantinham.
Concepções Religiosas e Morais
Os mitos
Com certeza uma das maiores realizações da civilização faraônica, e talvez
uma de suas fraquezas, foi a imagem esplêndida que fez do mundo e das forças
que o regem, uma imagem coerente que se manifesta nos mitos, nos rituais, na
arte, na língua e em suas obras de conhecimento. Um aspecto dessa mentalidade
deve ser lembrado para explicar por que a exposição sucinta e incompleta
da mitologia faraônica feita a seguir não fornecerá nem uma hierarquia ou
87
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
genealogia clara do panteão, nem uma cosmogonia e cosmografia sistemáticas.
Para entender as forças da natureza e os fenômenos naturais, a mitologia aceita
todas as imagens e lendas legadas pela tradição. Podem -se ter várias divindades
“únicas”: o céu é um teto líquido, o ventre de uma vaca, o corpo de uma mulher,
uma porca, etc. Assim, havia várias concepções da origem do universo, que se
combinavam de diversas maneiras nas grandes sínteses elaboradas localmente
no decorrer dos séculos, cada uma das quais podendo ser restabelecida em toda
a sua pureza pela realização de um determinado ato ritual, a que conferia uma
dimensão cósmica. Os traços principais eram comuns a todos os sistemas. O
mundo atual é organizado e mantido pelo Sol, depois que a deusa (Methyer,
Neith) que nadava no Nun, as águas primevas – ou ainda um grupo de deuses
mais primitivos (o Ogdoad ou os “deuses mortos” em Edfu e Isna), ou ainda a
primeira terra seca (Ptah -Tenen) –, preparou a manifestação desse demiurgo,
que existia como potencialidade “inerte no seio do caos. Este desencadeou o
processo gerador com a ajuda de Sua Mão, a primeira deusa, e se reproduziu
em pares sucessivos: Shu (o ar) e Tefnut (a força do fogo), ambos seres leoninos,
Geb (a terra) e Nut (o céu; assim, pouco a pouco, todos os membros das enéades
as várias, manifestações do divino dele procederam. A estrutura atual do
cosmos, determinada pelo demiurgo, foi estabelecida e completada por sua
palavra divina, que deu forma aos sons. Foi assim, por exemplo, que o homem
(rome) originou -se de suas lágrimas (rame), assim como os peixes (remu).
O poder da divindade solar, uma radiação vital que também pode ser
destrutiva, é o “Olho de Rá”, entidade feminina que ocasionalmente se confunde
com a deusa através da qual se gerou o mundo animal quando o deus se dividiu
em dois. Esta, simultaneamente esposa e filha, manifesta -se nos penteados e
nas coroas reais sob o aspecto de uma naja, de um leão, de uma tocha ou do
incenso consumido pelo fogo. A gênese, que apenas expulsou as primeiras trevas,
repete -se praticamente todo dia ao nascer do sol. Cada dia, como no início, o
criador deve enfrentar as forças hostis: o dragão Apópis, que ameaça secar o rio
celeste ou bloquear o Sol com seu olhar maligno
19
; a misteriosa tartaruga e os
“inimigos” inomináveis que se enfurecem no oriente. Antes de cada aparição
matinal, o Sol deve também se lavar nos reservatórios das margens do mundo e
se purificar da noite e da morte. O astro envelhece no curso de sua viagem diária
e se regenera misteriosamente durante a noite, enquanto atravessa outro mundo
por outro rio. No Novo Império, composições fantásticas, como o Livro de Am
19 Recentemente esse tema mitológico foi evidenciado por BORGHOUTS, J. F. 1973. pp. 114 -50.
88
África Antiga
Duat ou o Livro dos Pórticos, simbolizam as fases desse rejuvenescimento físico
da “carne” de Rá, descrevendo as praias frequentadas por divindades auxiliares,
formas e forças enigmáticas, bem -aventurados e malditos.
Nosso mundo é muito precário. Durante a noite a Lua, um segundo Olho
divino, substitui o outro, mas não pára de definhar, atacada pela faca de um deus
terrível, Tot ou Khons, que mais tarde se procurou identificar com o próprio Sol
20
ou com Set, um porco, um órix... Várias outras lendas contam que o Olho Direito,
a deusa incandescente, voa para longe do Sol e deve ser trazida de volta. Uma
delas liga explicitamente essa fuga a uma tentativa de destruir a humanidade,
que conspirava contra o envelhecido. A revolta nasce entre os homens, e
estes acabam por perder sua igualdade original
21
. Periodicamente também, a ira
do Olho de Rá desperta, a poderosa Sekhmet aflige os homens com doenças, e
a cheia do Nilo faz -se baixa, aumentando as “calamidades do ano”.
perdoou aos homens sua revolta e deu -lhes a magia como meio de
assegurarem a sobrevivência, mas se distanciou deles. Uma dinastia divina passou
a governar este mundo. Nesses tempos, Set matou Osíris, que, ressuscitado pelos
cuidados de Ísis e Anúbis, o embalsamador, tornou -se o modelo de todos os
reis mortos e, por extensão, de todo defunto. Ele é também a imagem do Sol
que morre toda tarde, e a linfa que flui de seu corpo é a água que nasce a cada
ano (uma imagem, dentre muitas, das cheias do Nilo). Seker -Osíris é também
a semente que se enterra e que germina. Banido dos túmulos e dos santuários
de Osíris, Set foi durante muito tempo adorado como um deus vitalidade
brutal, entidade turbulenta, auxiliar de contra Apópis, a desordem necessária
à ordem
22
. Foi apenas por volta do século VIII antes da Era Cristã que um novo
fervor expulsou Osíris e Ísis do culto funerário, no qual seu mito formava a base
da ideia de uma vida pós -morte, rebaixando Set ao nível de Apópis e tratando -o
como a personificação do mal e como patrono dos invasores.
Harmonia pressupõe unidade, e esta, sempre precária, exige a reunificação.
Set, rival de Hórus, filho de Osíris, é a sua contrapartida indispensável. Segundo
a tradição original, cada rei agrega em sua própria pessoa a reconciliação de
Hórus e Set, assim como devem reunir -se as duas planícies do norte e do sul, ou
ainda a terra negra do vale e a terra vermelha do deserto. O mito segundo o qual
o Olho de Hórus fora dilacerado por Set e tratado por Tot se tornaria o objeto
20 Seleção de textos in SAUNERON, S. & YOYOTTE, J. 1952. Sobre o aspecto arcaico dos deuses lunares,
POSENER, G. 1960.
21 BUCK, A. de. 1935 -61. pp. 462 -4.
22 VELDE, H. TE. 1967.
89
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
de várias glosas rituais que assimilam à recuperação do Olho curado (oudjat)
toda oferenda, todo acréscimo de grãos nutritivos e a própria Lua, símbolo de
tudo que deve estar completo para assegurar a fertilidade e a plenitude.
À ordem divina corresponde não apenas a estrutura e os ritmos do mundo
físico, mas uma ordem moral Maât –, a norma da verdade e da justiça que se
afirma quando Rá triunfa sobre seu inimigo e que, para a felicidade do gênero
humano, deve prevalecer no funcionamento das instituições e no comportamento
individual. “Rá vive por Maât”. Tot, o deus dos sábios, contador de Rá, juiz dos
deuses, é “feliz por Maât
23
.
Os deuses
Todas as doutrinas e imagens que acabamos de mencionar eram aceitas em
todos os templos. Os hinos que louvam os atributos cósmicos e a maravilhosa
providência do deus criador retomam os mesmos temas, quer se trate de uma
deusa primordial como Neith, de um deus -terra como Ptah, ou mesmo de
Âmon -Rá, Khnum -Rá, Sebek -Rá. Os grandes mitos o Olho de Rá, o Olho
de Hórus, a paixão de Osíris – bem como as práticas rituais básicas são comuns
a todos os centros populacionais; contudo são deuses diferentes cada qual
com seu próprio nome, imagem tradicional, manifestações animais e deuses
associados os “senhores” das várias cidades: Khnum em Elefantina, Isna e
outras partes; Min em Coptos e Akhmin; Mont em Hermonthis; Âmon em
Tebas; Sebek em Sumenu, no Faium e outros lugares; Ptah -Seker em Mênfis;
Ra -Harakhte -Atum em Heliópolis; Neith em Saís; Bastet em Bubástis; Uadjit
em Buto; Nekhbet em el -Kab, etc., havendo ainda numerosos deuses locais
chamados pelo nome de Hórus, assim como inúmeras deusas as temíveis
Sekhmet ou as amáveis Hátor. Teriam anteriormente existido, espalhadas pelo
país, figuras associadas a mitos mais ou menos esquecidos? É possível; em
todo caso, a presença de diferentes religiões locais em épocas pré -históricas
poderia explicar muito do politeísmo que prolifera numa religião cuja unidade
é manifesta. Parece que esta tendia, através da identificação de certos, deuses
a outros, a reduzir essa pluralidade a poucos tipos: uma divindade suprema,
geralmente um deus solar e muitas vezes explicitamente identificado a
(Âmon -Rá, Mont -Rá; Haroeris -Rá, etc.); uma deusa -consorte, que é o Olho
23 Os textos associam as desordens naturais às perturbações na ordem política e social. Contudo, Maât é
um conceito moral e judiciário e, a despeito da teoria bastante difundida, não é evidente que inclua a
ordem física do mundo.
90
África Antiga
F . Vindima e espre-
medura. (Fonte: N. de G. Davies.
e Tomb of Rekh -mi -re at e-
bes”, 1943. v. II, pr. XLV. Foto:
e Metropolitan Museum of Art,
Nova Iorque.)
91
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
de (Mut = Bastet = Sekhmet = Hátor, etc.); o deus -filho guerreiro, como
Hórus -Anhur; um deus morto, como Osíris (Seker, Seph, etc.). Os teólogos do
Novo Império representavam cada cidade “inicial” como um ponto de parada
do demiurgo no curso de sua gênese itinerante e consideravam os três principais
deuses do Estado Âmon, do ar, Rá, do Sol, e Ptah, do mundo dos mortos três
manifestações cosmográficas e políticas de ‘uma mesma e única divindade.
O labirinto de problemas teóricos apresentados por um panteão multiforme
deu origem a muitas especulações teológicas e mesmo filosóficas: Ptah concebia
em “seu coração, que é Hórus”, e criava por “sua língua, que é Tot”; Sia, o
conhecimento e Hu, a ordem”, principais atributos do Sol; as quatro Almas,
que são Rá (fogo), Shu (ar), Geb (terra) e Osíris (água); o incognoscível e
infinito Deus, que é o céu, a Terra, o Nun, e tudo o que se encontra entre eles”,
etc. Entre os letrados, pelo menos a partir do Novo Império, predominava um
sentimento de unidade divina aliado a uma fé que venerava assim como tantas
outras abordagens do inefável os mitos, os nomes e os ídolos de todos os
deuses do país. A conduta do famoso Akhenaton, que pretendeu reconhecer o
disco visível do Sol como único deus verdadeiro, ainda permanece na principal
corrente do pensamento egípcio, mas era herética na medida em que subvertia
uma tradição que, permitindo o mistério, aceitava e reconciliava todas as formas
de piedade e de pensamento.
O templo
Cada deus criou sua cidade; zela não por seu domínio mas também por
todo o Egito. O rei ocupava -se simultaneamente de todos os deuses. Herdeiro
do Sol e sucessor de Hórus, era incumbido de manter a ordem criada pela
providência divina, devendo, para tanto, sustentar os seres divinos – ameaçados,
eles próprios, por um possível retorno ao caos –, desviar a ira da deusa, valer -se
da perpétua colaboração com o divino para garantir o ciclo anual, a subida das
águas do Nilo, o crescimento normal da vegetação, o aumento do rebanho, o
malogro das rebeliões, a segurança das fronteiras, a felicidade e o governo de
Maât entre seus súditos. Para conseguir tudo isso, a ciência sagrada empregava a
magia da palavra e do gesto, da escrita, das imagens e das formas arquitetônicas;
enfim, todos os processos também usados para assegurar a vida pós -morte.
Nas cerimônias conduzidas pelos sacerdotes iniciados os atos rituais eram
acompanhados de fórmulas verbais que reforçavam seu poder de coação através
de palavras mágicas evocativas de precedentes míticos. A representação desses
ritos e a escrita desses textos nas paredes dos templos perpetuavam sua ação. Do
92
África Antiga
mesmo modo, as numerosas estátuas do rei e as imagens das pessoas comuns nos
recintos sagrados permitiam -lhes servir eternamente ao deus, habitar com ele e
receber uma força vital adicional. O arquiteto fez do templo um modelo reduzido
do universo, dando -lhe, desse modo, perpetuidade: o pilar é a montanha do Sol
nascente, o santuário escuro é o lugar onde o Sol se põe, as colunas representam
o pântano original de onde emergiu a criação, e a base de seus muros é o solo do
Egito. Com seus jardins e áreas de serviço, o templo é isolado das impurezas que
poderiam poluir o divino por um alto muro de tijolos; os sacerdotes oficiantes
e as pessoas privilegiadas admitidas no têmeno são obrigados a submeter -se
às purificações rituais e a observar as proibições alimentares, de vestuário e
de atividade sexual. Para mostrar que o culto é efetivamente celebrado pelo
faraó, as cenas gravadas nas paredes representam -no oficiando os vários ritos
e apresentando, em longas procissões, os nomos do Egito, as fases das cheias
e as divindades menores que presidem às diferentes atividades econômicas.
Durante o dia, o ídolo ou seja, a forma pela qual se entra em contato com o
deus é purificado, incensado, vestido, alimentado e longamente invocado em
hinos que exortam o deus a despertar, reafirmam seu poder divino e solicitam
sua ação benevolente. Nas grandes festividades o deus sai em procissão para se
realimentar de energia divina em contato com os raios solares, visitar os túmulos
dos reis mortos e dos deuses obsoletos, e restabelecer os eventos míticos através
dos quais o mundo se formou
24
.
Acima de tudo. O templo é um lugar de trabalho onde o rei, auxiliado pelos
sacerdotes iniciados, pratica uma alta magia de Estado para assegurar a boa
marcha dos acontecimentos (fundamentalmente para assegurar a alimentação
de seu povo). Por mais distantes que fossem, os deuses, motores do mundo,
eram sentidos como seres pessoais, próximos de cada mortal. No Novo Império,
o povo rezava para eles diante dos portões laterais dos templos, nas capelas da
aldeia ou nas ruínas de monumentos antigos, onde se pode sentir sua presença (a
Grande Esfinge de Gizé, principalmente, era considerada como um ídolo tanto
do Sol como de Hurun, o deus curandeiro tomado de empréstimo aos cananeus).
Os hinos estão gravados em pequenas estelas, testemunhando a dos mortais
no deus de suas cidades; imploram -se também as graças do grande Âmon juiz
imparcial, que atende aquele que o chama, que ouve suas súplicas” para a saúde
ou para os negócios. Em toda a história do antigo Egito, os nomes próprios
24 Nosso conhecimento do simbolismo dos templos e de sua decoração, bem como dos rituais, tem por base
os grandes monumentos construídos e decorados nas épocas grega e romana (Edfu, Ombo, Denderah,
Filas, etc.). Para informações gerais, ver SAUNERON, S. & STIERLIN, H. 1975.
93
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
mostram -nos que todas as camadas da população reivindicavam a proteção
direta das grandes divindades. Além disso, apesar de sua forte especificidade e
de um clero que guardava ciosamente os segredos que regiam a vida da nação, a
religião egípcia mostrou -se especialmente acolhedora. No Novo Império, anexou
as divindades sírio -palestinas, fez de Bés, gênio protetor das mulheres e dos
bebês, um habitante do Sudão oriental, aceitou e egipcianizou Dedun, senhor da
Núbia, reconheceu Âmon no deus -carneiro dos núbios e implantou solidamente
o culto do deus tebano em Kush; posteriormente, identificou seus deuses com o
panteão grego e, nas zonas rurais, conquistou a dos colonos gregos na época
ptolomaica.
Todavia, a identificação da terra egípcia com o mundo organizado é indicador,
em particular, da visão que tinham os súditos do faraó do mundo exterior.
Os povos africanos e semitas e as cidades e monarquias estrangeiras eram
comparados às forças do caos, sempre prontas a subverter a criação (a escrita
hieroglífica caracteriza todo país estrangeiro como um deserto montanhoso!).
Em ambos os lados das portas dos templos existem placas opostas mostrando,
ao sul, o rei vencendo os núbios e, ao norte, o rei subjugando os asiáticos
25
.
Essas imagens nas entradas do microcosmo aniquilam através do poder da
mágica os rebeldes” que ameaçam a ordem; no Novo Império, as extensas séries
de representações esculpidas nas paredes externas, mostrando as campanhas
vitoriosas e os saques levados ao deus, apenas ilustram com particularidades
históricas a cooperação constante entre o soberano e a divindade na manutenção
do equilíbrio do universo. Uma manifestação interessante dessa mentalidade
que até certo ponto qualificava o “chauvinismo” do dogma – é o fato de os ritos
mágicos dirigidos contra os príncipes e os povos da Ásia, da Núbia e da Líbia
visarem antes livrá -los de intenções hostis que destr-los.
A ética
O rei existe para manter a harmonia perfeita da criação. Nesse sentido, a
época ideal foi “o tempo de Rá”; os sacerdotes do Período Final chegaram a
imaginar uma idade de ouro perdida, em que as serpentes não mordiam, os
espinhos não picavam, os muros não desmoronavam e Maât reinava sobre a
Terra
26
. O sistema perfeito não é uma utopia que se procura alcaar com
a invenção de novas regras ele existiu no princípio e torna -se novamente
25 DESROCHES -NOBLECOURT, C. & KUENTZ, C. 1968. pp. 49 -57 e notas 178 -9 (pp. 167 -8).
26 OTTO, E. 1969. pp. 93 -108.
94
África Antiga
real a partir do momento em que a pessoa se conforma a Maât. Isso significa
que a moral professada nos Ensinamentos redigidos pelos altos funcionários de
Mênfis (Djedefhor, Ptahhotep) e por vários escribas de períodos posteriores
(Ani, Amenemope), bem como as instruções para os sacerdotes gravadas nos
templos de épocas mais recuadas são fundamentalmente conformistas, e que
o ensino era bem pouco propício ao florescimento da originalidade. Os textos
em que se descrevem descobertas pessoais são raros em comparação com as
autobiografias convencionais e as fórmulas padronizadas. É, portanto, notável
que muitos escultores tenham conseguido imprimir uma marca pessoal em seus
trabalhos, embora aceitando sem objeção os cânones tradicionais.
A ética corrente colocava no mesmo plano as virtudes propriamente ditas
e as qualidades intelectuais, a retidão e o decoro, a impureza física e a baixeza
de cater. Baseada numa psicologia sem ilusões, exaltava a submiso aos
superiores e a benevolência com os inferiores. Admitia -se que o sucesso mundano
é consequência natural da virtude, e, embora se desenvolvesse muito cedo a
ideia da retribuição póstuma das ações de uma pessoa, os expedientes mágicos
ofereciam fórmulas funerárias a fim de evitar que o julgamento divino criasse
obstáculos a isso. Dava -se muita atenção ao ensino do bom comportamento:
não falar muito, ter gestos comedidos e reações moderadas, ideal que a estatuária
egípcia expressa com perfeição. Todo excesso é prejudicial: aquele que se deixa
levar pela emoção perturba os outros e provoca sua própria perdição. Contudo
alguns sábios introduzem em suas reflexões uma forte religiosidade pessoal
e expressam uma aspirão à superioridade individual: um coração honesto
é prefevel à submissão formal aos rituais. É em Deus que se encontra o
“caminho da vida”. Não se deve subestimar a dívida da sabedoria blica à
cultura egípcia. A preocupação pelo próximo é grande, mesmo se relacionada
com maior frequência a necessidades sociais do que à compreensão caridosa.
Os reis e os escribas deixaram boas lições de ética social: concentrar esforços
para atender aos interesses do rei e de seu povo, não para beneficiar o forte em
detrimento do fraco, não para se deixar corromper, não para trapacear no peso
e na medida. O Egito também desenvolveu o conceito de dignidade humana:
não usar a violência contra os homens [ ... ] eles nasceram dos olhos de Rá,
são seus descendentes”; em uma das célebres narrativas do papiro Westcar, um
mágico se recusa a executar uma experiência perigosa num prisioneiro, pois é
proibido agir assim com o rebanho de Deus”.
O quadro que a ideologia oficial traçava da ordem ideal correspondia, sob todos
os pontos de vista, ao que o país apresentava quando, com a reunificação das Duas
Terras, uma monarquia sólida e uma administração conscienciosa asseguravam
95
O Egito faraônico: sociedade, economia e cultura
a prosperidade e a paz geral. Com o Primeiro Período Intermediário, as guerras
civis, as infiltrações dos bárbaros e a alteração brusca da situação despertaram
a ansiedade. “Mudanças estão em curso; as coisas não são mais como no ano
passado.” Era necessário encontrar palavras novas”, dizia o escritor Khakhêperre-
-sonb (chamado Ankhu) em seus Discursos, para apreender o inusitado dos
acontecimentos. Desse modo, surgiu uma literatura pessimista, da qual se
originam principalmente a Profecia de Neferti, que evoca a crise que pôs fim à XI
dinastia, e as Admoestações do mestre do coro Ipu -Ur às vésperas da época dos
hicsos
27
. O Neferti e posteriormente o Oráculo do Oleiro, bem como os diversos
contos relativos à expulsão dos Impuros estigmatizam a subversão de Maât com
o único intuito de fazer sobressair a vitória final do rei -salvador e da ordem. Já o
Diálogo do Homem Desesperado com Sua Alma e em dúvida a utilidade dos ritos
funerários, e os Cantos do Harpista são um convite ao carpe diem. Temas hedonistas
insinuam -se, por vezes, em composições convencionais. Se a literatura profana
tivesse sido melhor preservada, revelaria um universo mental mais diversificado
do que o mostrado pelas inscrições rupestres reais e sacerdotais. Certos contos,
as canções de amor, os detalhes cômicos que animam as cenas da vida doméstica
nas capelas funerárias, e os alegres esboços desenhados em óstracos revelam, por
trás do conformismo faraônico, um povo fundamentalmente feliz, habilidoso,
bem -humorado e amigável, como hoje em dia.
O direito
Como vimos, a religião e a ética dão ênfase à manutenção de uma disciplina
rigorosa, que beneficia toda a comunidade dos súditos, e à ação exclusiva da
pessoa real na administrão e nos ritos. A própria arte prefere o geral ao
particular, o exemplo típico à espontaneidade individual. É, portanto, notável
constatar que o direito faraônico permaneceu firmemente individualista. No
tocante às decisões reais e aos procedimentos e penalidades legais, tudo indica
que homens e mulheres de todas as classes eram considerados iguais perante
a lei. A família restringia -se ao pai, à mãe e a seus filhos jovens; as mulheres
desfrutavam dos mesmos direitos em matéria de propriedade e de assistência
jurídica. No conjunto, a responsabilidade era estritamente pessoal. A família
no sentido amplo não tinha consistência legal, e a posição de um homem o
se definia em função de sua linhagem. No domínio da lei, o Egito faraônico
27 Cf. SETERS, J. Van. 1964. pp. 13 -23.
96
África Antiga
diferencia -se claramente da África tradicional e curiosamente antecipa as
sociedades modernas da Europa.
Crenças e práticas funerárias
O mesmo individualismo reinava nas crenças e nas práticas relativas à vida
pós -morte. Cada um, de acordo com seus recursos, preparava sua outra vida, a
de seu cônjuge e de seus filhos em caso de morte prematura. O filho deveria
participar dos ritos funerários de seu pai e, se necessário, assegurar seu enterro.
O ser humano (ou divino) reúne, além do corpo mortal, vários componentes
o Ka, o Ba e outras entidades menos conhecidas, cuja natureza ainda é difícil
definir e cujas interrelações são obscuras. As práticas funerárias destinavam-
-se a garantir a sobrevivência dessas “almas”; no entanto, uma característica
bem conhecida da religião egípcia é o fato de ter ligado essa sobrevivência
à preservação do próprio corpo pela mumificação, e de ter assegurado, com
arranjos elaborados, uma vida além -túmulo pelo menos tão intensa e feliz quanto
a terrena. Um túmulo é composto de uma superestrutura aberta para os parentes
vivos e de uma cripta onde repousa o defunto, acompanhado de objetos mágicos
ou domésticos. As pessoas abastadas pagavam regularmente, sob contrato, um
estipêndio a sacerdotes profissionais que, de pai para filho, se encarregavam
de levar as oferendas de alimentos. E, como última precaução, empregava -se
o poder compulsório da fala e da escrita e a magia das imagens esculpidas e
pintadas. Na capela mastaba ou hipogeu eternizam -se os eficazes rituais do
enterro e da oferenda; outras cenas reconstituem o trabalho e os prazeres de um
mundo ideal; estátuas e estatuetas multiplicam os corpos substitutos. Nas tábuas
do caixão, nas pedras da cripta, no “Livro dos Mortos” confiado à múmia, estão
copiadas as fórmulas recitadas no momento do enterro e as palavras mágicas que
possibilitam ao morto desfrutar de todas suas faculdades, escapar dos perigos
do Outro Mundo e cumprir seu destino divino. Como na teologia, a crença
egípcia relativa à vida pós -morte justapôs várias concepções: sobrevivência como
companheiro do Sol, residência no túmulo com despertar diário ao nascer do
Sol, manifestação do Ba ao ar livre e usufruto dos objetos familiares, vida num
elísio maravilhoso ao lado de Osíris. Qualquer que fosse o caso, aquele que
tivesse um belo enterro mudaria de status: seria igual aos deuses, a Osíris e a
todos os reis, cada um deles um Osíris.
C A P Í T U L O 4
97
Relações do Egito com o resto da África
Admite -se atualmente que a arqueologia não revelou indícios decisivos de
contatos entre o Egito e a África ao sul de Méroe. Isso, naturalmente, não
impedia a presença de teorias baseadas em hipóteses. No entanto, estas deverão
ser consideradas como tais até que as evidências arqueológicas venham conferir-
-lhes peso necessário.
poucos anos divulgou -se a descoberta de objetos egípcios em regiões
longínquas no interior do continente. Uma estatueta de Osíris, datada do século
VII antes da Era Cristã, foi encontrada no Zaire, às margens do rio Lualaba,
próximo da confluência do Kalunegongo; ao sul do Zambeze, descobriu -se uma
estátua gravada com o cartucho de Tutmés III (-1490 a -1468). No entanto,
um estudo das circunstâncias em que esses objetos foram descobertos não nos
permite concluir, no momento, serem eles testemunhos de relações entre o Egito
e as regiões acima mencionadas, nos séculos VII ou V antes da Era Cristã
1
.
Valendo -se de indícios pouco convincentes, A. Arkell concluiu pela presença
de contatos entre o Egito bizantino e Gana atual.
Entretanto, isso não significa que se deva inferir, com base num raciocínio
a silentio, que na Antiguidade o houve vínculos de nenhuma espécie entre o
Egito e o resto do continente africano. Como nesse campo as informações são
escassas e as conclusões fundamentam -se, por vezes, em indícios insuficientes,
1 Ver LECLANT, J. 1956a. pp. 31 -2.
Relações do Egito com
o resto da África
Abd El Hamid Zayed colaboração de J. Devisse
98
África Antiga
deve -se proceder com um rigor científico maior do que o habitual, aceitando
apenas os fatos cientificamente estabelecidos.
Por exemplo, alguns podem considerar confirmada a influência, em deter -
minados aspectos, da civilização egípcia em outras civilizações africanas. Porém,
ainda que viesse a ser comprovada, essa influência não constituiria uma prova de
contatos antigos. Eva L. R. Meyerowitz admite como prova da influência egípcia
o fato de os Akan terem adotado o abutre como símbolo da autocriação
2
. Destaca
também a semelhança entre o deus Ptah e Odomankoma, deus akan, ambos
bissexuais, que, após criarem a si mesmos, criaram o mundo com suas próprias
os. Embora esta seja uma associação interessante
3
, o é indício concludente
da existência de contatos entre o Egito antigo, de um lado, e o Akan antigo ou a
região do golfo de Benin, de outro. Do mesmo modo, por muito tempo atribuiu-
-se uma provável origem egípcia ao culto da serpente, estudado em todas as
civilizações africanas por vários especialistas notáveis. Tal hipótese, porém, não
leva em conta o fato de as culturas antigas observarem seu meio ambiente com
muita atenção, sendo perfeitamente capazes de criar seus cultos a partir da própria
observação. Existem ainda outras interpretões. J. Leclant
4
, por exemplo, refere-
-se à hipótese algumas vezes sugerida de que o culto da serpente teria chegado a
Méroe, e talvez a outras partes da África, vindo da Índia. Esses poucos exemplos
bastam para ilustrar a importância de se adotar uma abordagem cautelosa.
Antes de enfocar os vestígios quer sejam seguros, hipotéticos ou improváveis
– das relações do Egito com o restante do continente na Antiguidade, devemos
observar que, seja qual for a tese finalmente adotada com respeito ao povoamento
antigo do Egito
5
, parece haver uma considerável discrepância cronológica e
tecnológica entre este último e as civilizações periféricas
6
. Embora do ponto
de vista tecnológico fizesse parte da África, a cultura egípcia desligou -se do
seu meio meridional e ocidental. Evidentemente o Egito passou a desconfiar
ainda mais dos seus vizinhos do norte quando estes se tornaram uma ameaça.
O Egito faraônico sentia -se culturalmente defasado em relação a seus vizinhos.
E não dúvidas de que os ultrapassou, embora as causas desse avanço sejam
2 MEYEROWITZ, E. L. -R. p. 31.
3 Observe -se que o problema da autocriação não se limita a Ptah (um semideus, mas patrono de todos os
artesãos), estendendo -se também a Rá e outras deidades. Ao que parece, existiu no Egito um mito geral
subjacente, entre vários grupos locais e, talvez, em diferentes períodos.
4 Ver LECLANT, J. 1956b. Cap. 10.
5 Ver Cap. 1 e a súmula do Simpósio do Cairo.
6 H. J. HUGOT (1976. p. 76) assinala que quando o Egito foi unicado, por volta de - 3200, o Neolítico
saariano atingia seu ponto culminante, rejeitando categoricamente a hipótese ocasionalmente formulada
de que o homem neolítico egípcio seria de origem saariana (p. 73).
99
Relações do Egito com o resto da África
de difícil compreensão. A partir daí, ainda que permanecesse a solidariedade
étnica, profundas diferenças quanto ao modo de vida acabaram por distanciar os
egípcios dos povos vizinhos. É de fundamental importância perceber as razões
desse processo sobretudo se se admite uma identidade étnica entre os egípcios
e seus vizinhos do sul – uma vez que esclareceriam em que medida a escrita foi
adotada como instrumento de coesão social e cultural no vale do Nilo. Esse é
o problema que a pesquisa deveria focalizar. A adoção e a utilização da escrita
seriam fatos ligados a fenômenos biológicos e naturais, um acidente essencial
relacionado ao espírito do povo, ou simplesmente o produto necessário de uma
cultura num determinado estágio de integração política e social?
O Simsio do Cairo (1974) enfatizou a estabilidade étnica e cultural do Egito
durante os 3 mil anos de governo faraônico. O baixo vale do Nilo foi como uma
esponja que, por mais de trinta séculos, absorveu as infiltrações ou imigrações
oriundas de rias periferias, exceto nas épocas em que se intensificava a preso
de povos estrangeiros. A oeste, e também ao sul, povos que mantinham entre si
diferentes graus de parentesco eram confinados em seu habitat pelas fortificações
das fronteiras egípcias, ou então considerados úteis ao vale enquanto fornecedores
de alimentos ou homens para a sua defesa. A não ser por esse sentimento de
particularidade egípcia, que se desenvolveu gradualmente e era talvez característico
apenas das classes altas da sociedade, torna -se difícil saber como os egípcios se
comportavam em relação aos seus vizinhos mais próximos. Considerava -se que
estes assim como todos os outros povos com os quais os egípcios mantinham
contato – tinham a obrigação natural de contribuir com homens e riquezas para
a civilização faraônica. Desde o início, o tributo constituía um dos símbolos de
submissão dos povos vizinhos do Egito, e o o -pagamento implicava o envio
de expedições punitivas. No entanto, a atitude dos vizinhos nem sempre era de
resignação e passividade. O Egito nem sempre estava em condições de ditar -lhes
ordens; suas relões com a África variaram com os séculos.
Os vizinhos do ocidente: Saarianos e Líbios
7
Admite -se, de modo geral, que durante o período pré -dinástico decresceram
os frequentes intercâmbios humanos com o Saara. Pouco se sabe a respeito
7 Quero registrar aqui meus agradecimentos ao professor T. GOSTYNSKY, autor de uma monograa
sobre a Líbia antiga, que ele gentilmente enviou à Unesco a m de facilitar a elaboração deste capítulo.
Utilizei -a em diversas ocasiões.
100
África Antiga
 . O Chifre da África e as regiões vizinhas na Antiguidade.
101
Relações do Egito com o resto da África
desses intercâmbios, chegando -se por vezes a argumentar que não existiram
8
. É
certo que durante o período dinástico o Egito exerceu influência sobre o Saara,
embora também pouco se saiba sobre isso
9
.
Para os egípcios do peodo distico, de fato – segundo as pesquisas mais
recentes –, os saarianos eram principalmente os líbios, que paulatinamente
se concentraram no norte de um dos desertos mais vastos e inóspitos do
mundo. Era outra a situão no Neolítico, quando a rápida expansão do
desertointensificada durante o período dinásticoforçou os líbios, pastores
e cadores, a recuarem para a periferia do seu habitat anterior, quando não
os levou a bater, famintos, à porta do paraíso nilótico, cujo acesso lhes era
proibido. Sua pressão continuou a se exercer ininterruptamente, mas poucas
vezes com êxito, exceto, talvez, na parte ocidental do Delta, onde a população
saariana é, sem dúvida, antiga e homogênea. Nos grandes sis cercados por
desertos – Kharga, Dakhla, Farafra e Siwa –, a aristocracia egípcia dedicava -se
à caça, assumindo uma obrigação que originalmente cabia ao rei. Combater
e aniquilar os habitantes do deserto (mesmo a inofensiva lebre) significava
ajudar a manter a ordem cósmica, pois o deserto pertencia a Seth e ao caos
primordial, que ameaçava constantemente voltar à Terra e destruir a ordem
(Maât), desejada pelos deuses e pela qual o far era responsável. Assim, a
caça não era simplesmente um agradável passatempo das classes privilegiadas.
Tinha um significado religioso profundo.
Quando se caminhava para o sul, com destino ao Chade, ou para o norte,
rumo ao Fezzan e ao Níger, era preciso atravessar aqueles oásis. Contudo, não
dispomos hoje de nenhuma prova de que tais rotas tivessem sido regularmente
utilizadas durante o período dinástico.
Seria certamente importante realizar pesquisas sobre essas rotas, mais do
que pelo próprio interesse que lhes é inerente. A arqueologia e a toponímia
poderiam vir a descobrir se os egípcios utilizaram ou não as principais rotas
africanas para o Tibesti, Darfur, Bahr el -Ghazal e Chade, ou para o Fezzan
e Ghudamis.
8 Em várias passagens do Relatório Final do Simpósio do Cairo (1974). Uma das pesquisas atuais mais
promissoras baseia -se em gravação em pedras e em pinturas “do Atlântico ao mar Vermelho”. Embora
referindo -se particularmente à Pré -história, o estudo contém grande quantidade de dados precisos.
9 HUGOT, H. -J. 1976. p. 73. Note -se, porém, a advertência (p. 82) contra conclusões apressadas de
estudiosos que, por exemplo, querem reconhecer em determinados temas das pinturas rupestres do Saara
(carneiros com discos solares, feiticeiros com máscaras zoomórcas, etc.) vestígios de inuência da XVIII
dinastia. Ele observa: “É precipitar -se e descuidar facilmente da maneira de administrar a prova cientíca
necessária à validação de uma hipótese”.
102
África Antiga
De qualquer maneira, pelo menos a partir da XIX dinastia, os líbios passaram
a constituir uma reserva de mão de obra e de soldados para o Egito. Os cativos
líbios, identificáveis pela pluma que usavam sobre a cabeça, tinham boa reputação
como soldados, principalmente como aurigas. Frequentemente marcados a
ferro, não eram utilizados nas grandes operações coletivas nem no trabalho
doméstico
10
. Eram arregimentados pelo exército, onde sua proporção aumentava
com o passar dos séculos e onde encontravam outros imigrantes, os núbios.
Como criadores de gado, forneciam animais para o consumo dos egípcios
11
;
esses animais eram recolhidos sob a forma de tributo, ou tomados durante as
razias. Os líbios desempenhavam, assim, um papel econômico comparável ao
dos núbios.
Naturalmente, a historiografia epcia julgava severamente as invaes
líbias, quando ocorriam
12
. Nos séculos XIII e XII antes da Era Cristã, assim
como durante o Antigo Império, os líbios, levados pela necessidade, tentaram
penetrar no Egito. Séti I e Ramsés II erigiram uma rede de fortificações contra
os invasores e aprisionaram os mais ousados. Após duas tentativas frustradas de
retomar à parte ocidental do Delta, de onde tinham sido afugentados, os líbios
obtiveram de Ramsés III, no século XII antes da Era Cristã, permissão para
se fixar naquela região. Em troca, passaram a ter maior participação na defesa
militar do Egito. No século X, e por quase dois séculos os líbios governaram o
Egito sob a XXII e a XXIII dinastias. Essa nova situação provocou fortes reações
no Alto Egito, onde se fizeram tentativas de destituir os governantes líbios com
o apoio do reino de Napata. A rivalidade entre guerreiros e políticos negros e
brancos deu início a uma situação que se prolongaria por muito tempo na vida
do Egito. A réplica imediata dos núbios foi estabelecer uma dinastia etíope
criada por Peye (Piankhy).
Ao se considerarem as relações entre o Egito e outras nações, sejam elas
africanas ou não, é preciso não esquecer o papel, ainda quase desconhecido,
desempenhado pelo Delta. As prospecções arqueológicas nessa região do Egito,
ainda insuficientes, não nos permitem ir além de algumas suposições.
10 Snefru orgulhava -se de ter capturado 11 mil líbios e 13100 cabeças de gado.
11 As inscrições mencionam importações de várias dezenas de bovinos, ovinos, caprinos e jumentos.
12 De -3000 a -1800 os egípcios conseguiram, segundo seus cronistas, conter as invasões líbias. Todas as
expedições mencionadas durante esse longo período vão do Egito para a Líbia. O próprio fato de terem
ocorrido revela a presença de problemas nas relações entre Egito e Líbia. De -1800 a -1300 as fontes
nada dizem a esse respeito.
103
Relações do Egito com o resto da África
 . Pelicanos domesticados. (Fonte: J. Pirenne. 1961. v. I, p. 188, g. 61 (no alto). Baixo -relevo no
Museu de Berlim.)
F . Operações navais. (Fonte: J. Pirenne. 1961. v. I, p. 220 -1, g. 74 -5. Mastaba de Akhet -hetep,
Musée du Louvre. Foto Archives Photographiques, Paris.)
104
África Antiga
Durante o período dinástico, o Delta foi palco de frequentes migrações
por vezes maciças de povos vizinhos do oeste, do norte e do nordeste
13
. Em
maior ou menor grau, isso sempre afetou a vida do Egito. Basta recordarmos as
relações do Egito com Biblos (vital para o fornecimento de madeira), o episódio
dos hicsos, o êxodo dos hebreus, os ataques dos líbios e dos povos do mar, para
compreendermos que o Delta sempre foi uma área de conflito nos tempos do
Egito faraônico. Particularmente ao procurar desenvolver um comércio exterior
complementar com a África, a Ásia e o Mediterrâneo, o Egito viu -se obrigado
a exercer um rígido controle sobre a costa do Delta. Desde o início do período
faraônico, o compromisso da política comercial e militar egípcia com o norte
e o nordeste opunha -se, acerto ponto, ao desejo de fazer contatos com o
continente africano e de penetrar no seu interior. É preciso ter em mente essa
contradição fundamental sempre que se for lidar com a história egípcia. O Egito,
país mediterrânico e marítimo, tinha de controlar um espaço útil aberto para
o Mediterrâneo e para o norte do mar Vermelho. Varadouros bem construídos
entre este e o Nilo, ao norte da Primeira Catarata, bastavam para garantir a
conexão indispensável entre as bacias econômicas ocidental e oriental. Como
povo africano, porém, os egípcios provavelmente se viram tentados a penetrar
profundamente o interior ao longo do Nilo, ao menos até a Quarta Catarata.
Teriam enfrentado, então, dificuldades como as que são discutidas em outros
capítulos deste livro. Também devem ter sido atraídos pelo Chade, atravessando
os vales antigos que conduzem à margem esquerda do Nilo, e pela Etiópia, rica
em marfim. O maior obstáculo encontrado ao sul talvez tenham sido as extensas
regiões pantanosas, que os egípcios devem ter tido dificuldades em alcançar ou
atravessar, e que durante toda a Antiguidade protegeram o segredo dos vales
extremos do alto Nilo. Embora tenhamos hoje condições de acompanhar com
certa facilidade a história das relações do Egito com o norte e dos varadouros
entre o mar Vermelho e o Nilo, lamentavelmente nos faltam dados arqueológicos
sobre as relações que os egípcios mantinham, por terra, com o sul distante.
Portanto, no momento temos que recorrer a hipóteses mais ou menos
prováveis baseadas em textos, na linguística, na etnologia ou, simplesmente,
13 Como enfatizado no Simpósio do Cairo, a história antiga do Delta ainda está para ser descoberta. De
fato, a porção do Egito setentrional cuja pré e proto -história são conhecidas não vai muito além do
Cairo atual. No Antigo Império não se dispunha de maiores informações. A faixa litorânea deve ter
permanecido por longo tempo como uma extensa área fora da esfera egípcia. No IV milênio, de fato,
formado o Estado egípcio, o Baixo Egito expandiu -se de Heliópolis até o Faium, e o Alto Egito, do
sul do Faium até El -Kab. Assim, o Delta esteve menos envolvido, e o Alto Egito, considerado “mais
africano”, deteve -se com o surgimento do arenito – corretamente qualicado como núbio –, que marcou
o ingresso num outro mundo, tanto étnico como político, o de Ta -Séti, a Terra do Arco.
105
Relações do Egito com o resto da África
no senso comum. Mas por muito tempo os próprios egiptólogos consideraram
a história do Egito mediterrânica e branca; assim, torna -se necessária, agora,
uma mudança das técnicas e dos materiais de pesquisa e principalmente da
mentalidade dos pesquisadores para que se possa restituir a terra dos faraós
ao seu contexto africano.
Os vizinhos do sul: os egípcios, as bacias do
alto Nilo e suas relações com a África
As mais recentes escavações arqueológicas, cujas descobertas muitas vezes
ainda permanecem inéditas, revelaram semelhanças entre a região de Cartum
e o baixo vale do Nilo no período neotico, semelhaas essas difíceis de
explicar.
Com o Antigo Império, porém, essa aparente similaridade deixou de existir.
na I dinastia, fortificões protegiam o sul do Egito contra os vizinhos
meridionais. Cada vez mais, no decorrer de toda a sua longa história, diferenças
políticas e culturais e interesses conflitantes separaram os territórios ao norte da
Primeira Catarata daqueles que se situavam ao sul da Quarta Catarata. Apesar
disso, as complexas e variadas relações entre os egípcios e os povos do sul, a quem
chamavam de nehesi, nunca foram inteiramente rompidas.
De qualquer maneira, a Baixa Núbia interessava aos egípcios pelo ouro que
produzia, e as regiões nilóticas localizadas mais ao sul, pelas rotas que conduziam
ao interior africano através do Nilo Branco, dos vales saarianos ou do Darfur.
O acesso ao sul foi uma preocupação constante por toda a história do Egito,
o que provavelmente também explica a importância atribuída ao controle dos
oásis ocidentais, outra rota de acesso paralela ao Nilo.
Desde o início do Antigo Império, o Sudão, assim como a Líbia, representou
para os egípcios uma fonte de mão de obra
14
, de animais e de minerais
15
. Os
núbios, famosos pelos seus arqueiros, ocupavam uma posição de destaque no
exército egípcio. Empregados igualmente como trabalhadores agrícolas (no Faium
do Médio Império, por exemplo, as aldeias dos colonos núbios eram chamadas
de aldeias dos núbios”), eram rapidamente assimilados pela vida socio cultural
14 O faraó Snefru declarou ter trazido consigo 7 mil homens do sul, de uma terra chamada Ta -Séti (Seti:
tipo arcaico de arco. GARDINER, A. H. 1950. p. 512. Ta -Séti: terra dos homens que carregam o arco
Séti.) É interessante notar que todas as tribos sudanesas da bacia do Congo carregam o mesmo arco.
15 A partir de - 2500, fornalhas destinadas a fundir o cobre local foram instaladas pelos egípcios em Buhen,
ao sul do Uadi Halfa.
106
África Antiga
egípcia. Ao final da I dinastia, é bem possível que tenham ocorrido na Núbia
mudanças que perturbaram suas relações com o Egito. A lenta emergência do
Grupo C, que parece só se ter constituído plenamente na V dinastia, deixa uma
lacuna de cinco séculos no nosso conhecimento sobre essas relações.
O final da V dinastia marca o início das relações do Egito com o Sudão.
Nesse mesmo período, criou -se um novo cargo político e econômico conhecido
como governador do sul”. O detentor era responsável pela defesa da entrada
meridional do Egito, pela organizão dos intermbios comerciais e pelo
favorecimento da circulação das expedições mercantis. Esse cargo requeria certas
qualificações, tais como o conhecimento do comércio e das línguas faladas pelos
habitantes da região. Uni, um governador do sul na VI dinastia, tinha sob seu
comando recrutas vindos de diferentes partes da Núbia: nehesi (núbios) de Irtet,
Madja, Yam, Wawat e Kau.
No final do Antigo Império as relações comerciais entre o Egito e o Sudão
interromperam -se. O príncipe de Edfu, entretanto, relata na parede de seu
túmulo em Mealla que tinham sido enviados cereais a Wawat com o propósito
de evitar a fome. Fato que vem provar a continuidade das relações entre o Egito
e a Núbia naquela época. Além disso, os soldados núbios desempenharam um
importante papel nas batalhas do Médio Egito durante o Primeiro Período
Intermediário. Miniaturas em madeira pintada representando um grupo de
vigorosos arqueiros núbios mostram a importância que os egípcios atribuíam
ao soldado sudanês.
Nessa época, porém, o desenvolvimento do Grupo C na Baixa Núbia talvez
tenha sido responsável, ao lado dos conflitos ocorridos durante o Primeiro
Período Intermediário, pelo declínio das relações entre egípcios e sudaneses.
Pouco se sabe, no momento, sobre os povos do Grupo C. Durante muito
tempo pensou -se que se haviam infiltrado lentamente no vale do Nilo;
atualmente, porém, são considerados simples. sucessores dos povos do Grupo
A. Seja qual for a razão, o fato é que as relações entre esses povos e os egípcios
sempre foram difíceis. Diversas peças de cerâmica, descobertas perto de Djebel
Kekan, junto de Khor Baraka em Agordat (Eritreia), hoje no museu de Cartum,
assemelham -se a cemicas do Grupo C encontradas na Baixa bia. Isso
nos leva a perguntar se os povos desse grupo não teriam sido forçados, por
alguma razão (seca, presença de forças egípcias na Núbia), a abandonar a Baixa
Núbia, provavelmente durante a XII dinastia. Esses povos teriam então deixado
suas habitações no vale do Uadi el -Alaki, rumando para as montanhas do mar
Vermelho, onde vivem hoje as tribos Beja. Da mesma maneira, alguns povos de
língua núbia vivem hoje nos montes Nuba, no sul do Kordofan. Pode -se admitir,
107
Relações do Egito com o resto da África
então, que o Sudão tenha testemunhado uma migração do Grupo C, partindo
do norte em direção ao sul e oeste.
O Império de Kerma, no sul, menos diretamente afetado pela invasão
egípcia, sofreu influência do Egito no plano cultural desde -2000, mas conservou
identidade própria até o seu término, por volta de -1580. Os egípcios acabariam
por dar a essa cultura, conhecida desde -2000, o nome de Kush; termo que
empregavam para caracterizar o reinado que se estabeleceu ao sul da Segunda
Catarata após -1700.
No início do Médio Império, os reis do Egito, ameaçados pelos beduínos
asiáticos, ao que tudo indica, pediram ajuda aos habitantes do Sudão.
Mentuhotep III, fundador da XI dinastia, talvez fosse negro, fato que poderia
explicar o reatar de relações entre Egito e Sudão, interrompidas durante o
Primeiro Período Intermediário. É bem provável que alguns egípcios tenham
chegado ao interior do Sudão. Pelas estelas
16
encontradas em Buhen, sabemos
que várias famílias viveram por longo tempo na bia durante o Médio Império;
tinham nomes egípcios e cultuavam os deuses locais
17
. Os reis desse período
construíram catorze fortificações na bia a fim de proteger as fronteiras e as
expedições comerciais.
Quando os hicsos tomaram as regiões setentrional e central do Egito, Kush
reforçou sua independência e seu poder. O reino de Kush constituía um perigo
em potencial para os faraós. Um texto egípcio recentemente descoberto revela
que durante a batalha contra os hicsos, Kamósis, o último faraó da XVII dinastia,
foi informado da captura de um mensageiro enviado pelo rei dos hicsos para
propor ao soberano de Kush que se aliasse a ele contra os egípcios. Com a XVIII
dinastia, a pressão contra o Sudão uma vez mais se fortaleceu, e as relações
ampliaram -se numa escala sem precedentes
18
. Simultaneamente, tomou impulso
a egipcianização das regiões entre a Segunda e a Quarta Catarata. No reino
de Tutmósis III modificou -se a forma dos sepulcros da região. Em lugar de
túmulos, construíram -se sepulcros com formas egípcias, e, em vez de sepulcros
de pedra, construíram -se pequenas pirâmides semelhantes às encontradas em
16 VERCOUTTER, J. 1957. pp. 61 -9. A datão adotada por J. VERCOUTTER neste artigo foi
recentemente colocada em discussão: para J. VERCOUTTER, as estelas pertencem antes ao Segundo
Período Intermediário e são praticamente contemporâneas dos hicsos.
17 POSENER, G. 1958. p. 65: “Esse reino [Kush] foi colonizado pelo Estado faraônico. Durante muitos
séculos esteve sob o domínio da civilização egípcia, de seus hábitos, linguagens, crenças e instituições.
Toda a história da Núbia carrega a marca dos seus vizinhos do norte”.
18 Trata -se do período em que, por razões ainda hoje não esclarecidas, a iconograa egípcia mostra uma
grande alteração na maneira de representar os negros africanos. Muitas hipóteses foram levantadas,
inclusive a de que os contatos com o restante do continente se expandiram naquela época.
108
África Antiga
Deir el -Medina. Daí a semelhança das cidades de Buhen e de Aniba com as
cidades do Egito. Do mesmo modo, localizaram -se ushabtis e escaravelhos nos
sepulcros do Sudão. Os desenhos e os nomes dos túmulos dos príncipes foram
gravados em estilo tipicamente egípcio. O sepulcro de Heka -Nefer
19
, príncipe de
Aniba no reinado de Tutancâmon, lembra os túmulos de pedra egípcios. Simpson
chegou a supor que sobre esse sepulcro tivesse sido erguida uma pirâmide no
estilo daquelas de Deir el -Medina. O túmulo de Dhuty -Hetep, príncipe de
Debeira no reinado da rainha Hatshepsut, assemelha -se aos de Tebas.
A bia e o Egito a então nunca estiveram tão próximos. Em -1400
foi construído o templo de Soleb. O papel militar, e por vezes administrativo,
exercido pelos sudaneses tornou -se mais importante do que nunca, culminando
com a ascensão da dinastia etíope. Mas, embora egipcianizados, os habitantes
dos altos vales não se tornaram egípcios: uma cultura distinta continuava a se
expressar, se bem que em moldes egípcios, mesmo na época da XXX dinastia.
Esta dinastia restabeleceu para o Egito uma dimensão africana que está
registrada em duas passagens da Bíblia: quando Deus protege os hebreus contra
o ataque dos assírios, ao incutir no rei, durante um sonho, o temor de que viesse
a ser atacado por Tir -Hakah
20
, rei da Etiópia, e quando o rei dos hebreus,
Ezequias, propõe uma aliança entre o faraó e o seu povo
21
.
São esses os últimos grandes momentos de unidade.
A conquista de Tebas pelos assírios coincidiu com a ascensão do Império
Meroíta no sul. A defesa dessa região contra os ataques do norte tomou -se
indispensável, visto que os exércitos egípcios, a partir dessa época, passaram
a incorporar enormes contingentes de mercenários hebreus, fenícios e gregos.
Por falta de investigações suficientes, pouco se sabe sobre as relações, por certo
difíceis, entre o Novo Império nilótico e o Egito.
Punt
A exemplo do que ocorre com outros problemas da história africana, gastou-
-se muita tinta, nem sempre de boa qualidade, com o propósito de se localizar
o legendário reino de Punt, com que os egípcios mantiveram relações pelo
19 SIMPSON, W. K. 1963.
20 2 Reis, 19:9, e Isaías, 37:9.
21 REICHHOLD, W. O autor oferece uma tradução interessante de uma passagem do capítulo 17 do
Livro de Isaías, a do envio de um mensageiro ao faraó negro: “Vai, mensageiro veloz, até o povo alto e
bronzeado, ao povo sempre temido, à nação poderosa e conquistadora cuja terra os rios dividem”.
109
Relações do Egito com o resto da África
 . Tributo núbio de Rekhmira.
110
África Antiga
menos durante o Novo Império, e que aparece nas imagens de Deir el -Bahari.
Foram feitas tentativas para localizar essa nação no Marrocos, na Mauritânia,
no Zambeze e em outras regiões
22
. Hoje existe quase um consenso quanto à
localização de Punt no Chifre da África, embora ainda persistam muitas dúvidas
com relação a seus limites precisos
23
. uma teoria instigante segundo a qual
Punt se localizaria na parte da costa da África que se estende do rio Poitialeh, ao
norte da Somália, até o cabo Guardafui. Trata -se de uma região montanhosa com
plantações dispostas em terraços que lembram aqueles representados em Deir
el -Bahari e onde as árvores crescem em abundância, incluindo -se o bálsamo, de
que se extrai o incenso.
Os navios da rainha Hatshepsut teriam atracado numa enseada da região
hoje conhecida como Goluin, de onde o antigo rio Elephas corria em direção
ao oceano. Essa localização e a referência aos navios da rainha Hatshepsut que
rumavam para Punt sugerem que os egípcios utilizavam uma rota marítima para
chegar à terra estrangeira. Recentemente R. Herzog tentou mostrar que isso não
correspondia aos fatos e que as relações egípcias com Punt se davam por terra.
Essa teoria provocou fortes reações em contrário
24
.
Uma pesquisa recente
25
levou à descoberta, na costa do mar Vermelho ao
norte de Quseir, na desembocadura do Uadi Gasus de vestígios de ligações
egípcias com Punt. O pesquisador assim transcreveu uma das inscrições: “Rei do
Alto e do Baixo Egito, Kheperkare
26
, amado do deus Khenty -Khety, filho de Rá,
Sesóstris, amado de Hátor, senhora de Pwenet [Punt]”. Outra inscrição contém
a seguinte passagem: “(...) a Mina de Punt, para alcançá -la em paz e retomar
em paz”. Essas inscrições, respaldadas por outras, confirmam que as expedições
a Punt se faziam por mar. Lamentavelmente, devido ao local em que foram
encontradas, não oferecem indicações referentes à posição geográfica de Punt.
Assim, ao que parece, já se chegou virtualmente a um acordo quanto ao fato
de os navios egípcios irem a Punt em busca do valioso incenso e de diversos
22 R. HERZOG (1968. pp. 42 -5) apresenta uma lista completa das teorias sobre o assunto.
23 Id., ibid.
24 Ver, por exemplo, KITCHEN, K. A. 1971. No entanto, descobertas arqueológicas recentes em países
localizados entre Punt e o Egitoo podem justicar a rejeição, sem um estudo aprofundado, da hipótese
de R. HERZOG.
25 SAYYD, Abd el -Halim. (Mana’im). 1976.
26 A inscrição refere -se a Sesóstris I (cerca de - 1970 a - 1930), e textos egípcios mencionam expedições a
Punt bem anteriores a essa data, durante o Antigo Império.
111
Relações do Egito com o resto da África
outros produtos antes fornecidos pela Arábia do Sul. Houve até mesmo uma
tentativa de reconstituição da rota percorrida por esses navios
27
.
Há quem afirme que vários faraós tentaram alcançar regiões mais distantes.
Uma expedão a Punt no reinado de Ramsés III é descrita no papiro de
Harris: A frota ( ...) cruzou o mar Muqad”. Os navios alcançaram o sul do
cabo Guardafui, chegando talvez até o cabo Hafun no oceano Índico. Mas essa
rota era bastante perigosa devido às tempestades que se abatiam sobre a área.
Talvez possamos concluir que o cabo Guardafui era, ao sul, o ponto extremo
alcançado pelos navios que se dirigiam a Punt, e que os limites meridionais de
Punt ficavam próximos do cabo Guardafui. Quanto aos limites setentrionais,
pode -se dizer que se foram modificando com o correr dos séculos.
Segundo P. Montet, o problema pode ser considerado sob um outro ângulo.
Escreve ele
28
: “(...) o país de Punt situava -se certamente na África segundo
uma estela do período saíta, o regime do Nilo era afetado quando chovia nas
montanhas de Punt mas se estendia até a Ásia, conforme a expressão geográfica
Punt da Ásia, da qual o único exemplo (ainda inédito) foi encontrado em Soleb.
A luz dessas indicações, temos condições de identificar nas duas praias da terra
do deus as margens do estreito de Bab el -Mandeb. Mais uma prova é o fato de a
árvore da qual se extrai o incenso crescer tanto na Arábia Felix como na África”
29
.
Podemos distinguir etapas sucessivas nas relações entre Egito e Punt.
A primeira antecedeu o reinado da rainha Hatshepsut. Naquela época, os
egípcios possuíam muito poucas informações sobre Punt. Obtinham incenso
através de intermediários, que multiplicavam as lendas sobre esse país distante
com a intenção de aumentar o preço do produto. Os poucos egípcios que, ao
que se sabe, concluíram a viagem a Punt eram homens arrojados. Um habitante
de Assuã, no Antigo Império, diz: “Parti onze vezes em expedição com meu
senhor, mais os príncipes e tesoureiros do deus Khui e do deus Téti, em direção
a Kush, a Biblos e a Punt
30
.
A segunda etapa começou com a rainha Hatshepsut. Uma frota de cinco
navios, segundo o artista que ornamentou o templo de Deir el -Bahari, foi enviada
com ordens para trazer árvores que produziam incenso. Perehu e sua esposa
27 Pesquisa realizada por K. A. KITCHEN, 1971.
28 MONTET, P. 1970. p. 132.
29 K. A. KITCHEN (1971. p. 185) observa que a teoria é inaceitável, pela simples presença da girafa
entre os animais característicos de Punt.
30 BREASTED, J. H. 1906. I, § 361.
112
África Antiga
que era disforme
31
–, a filha e um grupo de nativos são representados recebendo
a expedição e trocando cumprimentos, presentes e produtos sabidamente
provenientes de Punt. Três grandes árvores foram plantadas no jardim do deus
Ámon e atingiram uma altura tal que o gado podia passar por debaixo delas.
32
Sob as árvores aparecem, amontoados, outros presentes, tais como marfim, cascos
de tartaruga, gado com chifres longos e curtos,mirras com as raízes envoltas na
terra de que foram arrancadas (como faz hoje um bom jardineiro), incenso seco,
ébano, peles de pantera, babuínos, chimpanzés, galgos, uma girafa, etc.”.
Numa câmara do mesmo templo uma representação do nascimento divino
de Hatshepsut, em que sua mãe, Amósis, é despertada pelo aroma do incenso
originário da terra de Punt. Nesse caso, a associação do nome de Punt com
a origem divina da rainha é um indício da amizade que a rainha do Egito
mantinha com Punt, cujos habitantes adoravam Âmon.
As pinturas que retratam essa expedição fornecem -nos informações sobre a
vida na terra de Punt, seus habitantes, suas plantas e seus animais, suas cabanas
de forma cônica constrdas sobre estacas, em meio a palmeiras, ébanos e
mirras.
A julgar pelas pinturas de Punt encontradas nos templos, nada de novo
para ser registrado após o reinado da rainha Hatshepsut. Os textos mencionam
a chegada dos habitantes de Punt ao Egito. A partir de então, Punt aparece
nas listas de povos vencidos, o que, em vista da grande distância que separa
os dois países, parece bastante improvável. Exigia -se que os chefes de Punt
levassem presentes ao faraó. Este encarregava um dos seus subordinados de
receber os chefes e os presentes. Há alguns indícios de comércio, nos portos do
mar Vermelho, entre habitantes de Punt e egípcios, assim como de transporte
de mercadorias de Punt, por via terrestre, entre o mar Vermelho e o Nilo (tumba
de Âmon -Mósis em Tebas e tumba n.º 143).
Pouco antes do final do reinado de Ramsés IV, cessaram as relações com
Punt. Mas a lembrança desse país ficou gravada na memória dos egípcios.
31 Principalmente por sua esteatopigia.
32 D. M. M. DIXON (1969. p. 55) é da opinião de que o êxito da plantação da mirra que a expedição de
Hatshepsut trouxe para o seu templo foi apenas temporário. Apesar do êxito parcial e temporário, as
experiências de transplantação foram um fracasso. As razões exatas desse fracasso serão esclarecidas
quando se estabelecer a identidade botânica da(s) árvore(s) que produz(em) o incenso – o que não poderá
ser feito com base nas representações egípcias convencionais. Enquanto isso, tem -se sugerido que, devido
a interesses comerciais próprios, os puntitas teriam frustrado deliberadamente a experiência egípcia”. Se
o êxito tivesse sido de curta duração, os reis que sucederam Hatshepsut não teriam prosseguido com a
importação das árvores, como zeram, por exemplo, Amenós II (tumba n.° 143, em Tebas), ou Ramsés
II e Ramsés III, que ordenaram sua importação.
113
Relações do Egito com o resto da África
Talvez devêssemos incluir entre os testemunhos dessas relações antigas o fato
de um “encosto para cabeça receber, em somali moderno, o nome de barchi ou
barki, semelhante à designação que recebia em egípcio antigo. Além do mais,
os somalis denominam o ano -novo “Festa do faraó”.
O restante da África
Os esforços de um povo ou de seus líderes para estabelecer relações com
outras nações têm origem numa diversidade de fatores que, em última instância,
podem geralmente ser reduzidos a termos simples. As necessidades constituem
um poderoso estímulo à exploração e à procura de relações estáveis. O Egito
precisava dos produtos africanos, como marfim, incenso, ébano e, de modo
mais geral, madeira. Quanto à última, uma fonte alternativa era, evidentemente,
o Oriente Próximo. Todavia, a utilizão da madeira originária do interior
da África pode ser comprovada através de um exame da totalidade dos
testemunhos egípcios.
As relações do Egito com o restante da África o vistas frequentemente como
um fluxo unilateral, como uma difusão da cultura egípcia para o exterior. Tal óptica
ignora o fato de o Egito ter dependido materialmente da venda de determinados
produtos africanos. Consequentemente, as influências devem ter sido recíprocas.
Nesse campo tudo ainda está por fazer, e a investigação é trabalhosa. A ecologia
sofreu transformações entre os tempos remotos do Império e o aparecimento dos
gregos no Egito. A reconstituição da antiga rede de intercâmbio de mercadorias a
partir de textos e representações – que fornecem, no máximo, indícios indiretos
exige extensa e minuciosa pesquisa fundamentada na arqueologia e na linguística.
O que ciências como a arqueologia nos têm ensinado nos últimos anos sobre
o antigo comércio da obsidiana mineral muito apreciado nos tempos pré-
-históricos – deve nos incitar à paciência e à cautela, mas também infundir -nos
a esperança de chegar a resultados ainda insuspeitados.
Uma expedição marítima pelas costas da África ao tempo do farNecau
II (-610 a -595) atraiu a atenção de pesquisadores, mas nem todos concordam
quanto à exatidão histórica dos fatos registrados, um século mais tarde, por
Heródoto.
A Líbia é circundada pelo mar, exceto na região fronteiriça com a Ásia;
quem por primeiro comprovou esse fato, ao que sabemos, foi Necau, rei do
Egito. Após concluir a abertura do canal que liga o Nilo ao golfo Arábico, Necau
enviou navios tripulados por fenícios, incumbindo -os de, na viagem de volta,
114
África Antiga
 . Habitações do reino de Punt.
F . Tributo de Punt.
115
Relações do Egito com o resto da África
contornarem as Colunas de Hércules até atingir o mar, ao norte, e daí rumarem
para o Egito. Assim, os fenícios partiram do mar Vermelho e navegaram pelo
mar Austral. Sempre que chegava o outono, em qualquer parte da Líbia que
estivessem, desembarcavam e semeavam a terra, e ali aguardavam a safra; em
seguida, realizada a colheita, partiam. Assim, passados dois anos, ao terceiro
contornaram as Colunas de Hércules e voltaram para o Egito. Lá, relataram que
durante a viagem viram o sol à sua direita (há quem acredite nisso, mas não eu).
Foi assim que se obteve a primeira informação sobre a Líbia”
33
.
No texto, Líbia significa, naturalmente, todo o continente africano, e as Colunas
de Hércules são o estreito de Gibraltar. Os fenícios partiram do seu próprio
país, recentemente conquistado por Necau II. Assim, o problema continua sem
solução. J. Yoyotte
34
acredita na autenticidade do relato e dos fatos que descreve.
Há poucos anos criou -se na França uma associação – a Associação Punt –, com
o objetivo de realizar novamente a viagem pela África tal como foi descrita
por Heródoto, usando para isso um navio especialmente construído segundo as
técnicas egípcias antigas. Mas não faltam os céticos, para os quais as passagens
de Heródoto não se referem à circunavegação do continente, ou que contestam
a própria autenticidade de toda a questão. Como no caso do périplo de Hanão, a
batalha entre os pesquisadores do assunto parece estar longe de terminar.
Necau II, bastante recente na linhagem dos faraós, empreendeu várias outras
obras. A ele atribui -se o primeiro grande trabalho de construção de um canal,
cujo traçado ainda é objeto de dúvida entre os historiadores. Esse canal talvez
ligasse o Mediterrâneo ao mar Vermelho; o mais provável, porém, é que unisse o
Nilo ao mar Vermelho que, de fato, esteve aberto à navegação por vários séculos
e que, na área islâmica, foi da maior importância para as relações entre o Egito
e a Arábia.
Deveríamos também atribuir à curiosidade e ao gosto pelo exótico a expedição
de Harkhuf, a mando de Pépi II, a qual suscitou conclusões contraditórias e
inaceitáveis? Como veremos mais adiante
35
, Harkhuf levou para Pépi II um
anão dançarino originário da terra de Yam. Alguns chegaram a concluir, com
base na hipótese insustentável de que o anão era um pigmeu
36
, que este exemplo
único prova a existência de relações entre o Egito, o Alto Nilo e o Chade. É bem
33 HERÓDOTO. IV, 42.
34 YOYOTTE, J. 1958. p. 370.
35 Ver capítulos 8, 9, 10 e 11.
36 P. MONTET (1970. p. 129) faz uma observação mais cautelosa sobre o assunto: Antes de Harkhuf, um
viajante de nome Bawerded trouxe consigo um anão dançarino, nativo da terra de Punt”.
116
África Antiga
verdade que a expedição de Harkhuf pertence ao domínio da história, ao passo
que muitas outras se revestem de um caráter lendário ou fictício
37
. Contudo,
pouco se sabe sobre o antigo habitat dos pigmeus, sendo, portanto, arriscado
afirmar que eram encontrados em grande número nas regiões superiores das
bacias do Nilo
38
. Além disso, não há provas de que o tal anão fosse um pigmeu,
e até o momento não se sabe com certeza onde se situava a terra de Yam
39
.
Como se vê, os indícios de contatos relacionados à curiosidade científica
ou ao gosto pelo exótico são incertos e inconsistentes. A observação bastante
comum de que a fauna africana está presente na iconografia egípcia não constitui
de modo algum, no estádio atual dos nossos conhecimentos, prova decisiva da
existência de relações entre o Egito e o interior da África. O babuíno, animal
sagrado de Tot, e as peles de pantera, que faziam parte dos paramentos sacerdotais
no ritual do culto de Osíris oficiado por Hórus, e também das vestes dos faraós,
podem ter sido provenientes de países fronteiriços ou mesmo de trocas eventuais
entre mercadores. Uma avaliação segura da extensão do conhecimento que os
egípcios tinham da África será possível após intensa pesquisa no sentido de
investigar a cronologia e o significado qualitativo e quantitativo das diversas
referências a animais encontradas em textos e imagens egípcios.
Quer as relações com a África tenham sido estabelecidas por necessidade,
quer por curiosidade, os indícios coletados são por demais inconsistentes e sua
interpretação é muito difícil e controversa para que possamos, nesse momento,
chegar a qualquer conclusão. Existem, entretanto, vários caminhos abertos para
uma investigação frutífera.
O leitor não deve,portanto, ficar com a impressão de que o que segue é aceito
sem restrições ou está provado, embora seja perfeitamente justificável registrar
algumas hipóteses e enfatizar a conveniência de se realizarem mais pesquisas.
É lícito que se pergunte e até hoje quase ninguém o fez se os egípcios
tinham condições de utilizar o estanho nigeriano. Nos tempos antigos, havia dois
pólos conhecidos de produção de estanho: a Cornualha e as Índias Orientais.
Seria absurdo supor que Nok teve origem nas antigas minas de estanho em
Bauchi, com um mercado no vale do Nilo?
40
Por ora, trata -se meramente de
37 GIRGÜS, M. 1963.
38 Sobre as variações quanto à localização dos pigmeus, ver PRÉAUX, C. 1957. pp. 284 -312.
39 R. HERZOG (1968) é da opinião de que Harkhuf alcançou os pântanos de Swadi ou as colinas do
Darfur. T. SAVE -SODERBERGH (1953. p. 177) situa a terra de Yam ao sul da Segunda Catarata e
acredita que “os oásis da Líbia ao sul do Nilo teriam servido como pontos de muda para expedições que
se dirigiam ao sul e que prenunciam as futuras caravanas do Darfur.
40 Para uma crítica a esta suposição, ver o artigo de SCHAEFFER, em FEA. Na sua opinião, o estanho
utilizado pelos egípcios teria vindo da África.
117
Relações do Egito com o resto da África
uma hipótese acadêmica, mas que merece ser investigada: se os resultados fossem
positivos, elucidariam muitos aspectos das relações entre o Egito antigo e a
África mais ao sul, atualmente tão difíceis de compreender. Para tanto, seria
fundamental um exame minucioso, em todos os níveis e com a ajuda de todas as
disciplinas, de quaisquer vestígios remanescentes nas regiões de passagem, como
Darfur e Bahr el -Ghazal, Nesse campo, como em tantos outros, quase tudo está
por fazer. Através de pesquisas extensas e minuciosas, os etnólogos poderiam
acrescentar novos dados a essa difícil questão.
Muito se tem perguntado se o encosto para cabeça com base de coluna inventado
pelos egípcios não se teria difundido, juntamente com sua civilização, por outras
regiões da África
41
. Mais uma vez, é preciso ter cautela e evitar a tentação do
difusionismo. Seria esse encosto assim como outros exclusivamente africanos
originário do Egito? Não estariam presentes em outras culturas distantes da
África? Não seriam eles de natureza funcional, podendo, por conseguinte, terem
sido inventados em diferentes lugares, distantes uns dos outros?
Em outro campo, seria possível concluir como fazem alguns pesquisadores
talvez um pouco precipitados que toda e qualquer forma de realeza sagrada
na África é de origem egípcia, resultado de um relacionamento físico e histórico
entre o Egito antigo e seus criadores africanos?
42
Não seria plausível pensar em
desenvolvimentos espontâneos mais ou menos distantes no tempo?
Quais teriam sido as rotas percorridas pelo culto ao carneiro, animal sagrado
de Âmon adorado em Kush, no Saara, entre os Ioruba e os Fon? Por enquanto,
devemos nos limitar a registrar todas essas semelhanças e presenças, evitando as
conclusões apressadas
43
.
Em diversos campos, é possível apontar semelhanças entre as técnicas, práticas
e crenças do Egito antigo e as da África, de origem mais ou menos recente. Um
dos exemplos mais atraentes é, à primeira vista, o do duplo da pessoa física
(chamado de Ka no antigo Egito), a quem os egípcios atribam grande imporncia,
assim como o fazem hoje várias sociedades da África. As formas des -vida desses
duplos entre os Bantu, os Ule ou os Akan, por exemplo, tentam -nos a assoc -las
com as concepções egípcias da época dos faraós
44
.
41 Uma observação sobre os encostos para cabeça com base de coluna dos antigos egípcios e sobre as
anidades etnográcas reveladas pelo seu uso, feita por E. T. HAMY no livro de G. PARRINDER,
p. 61, -nos um bom exemplo de um encosto de cabeça africano, em exposição no Museu Britânico.
Um outro foi descoberto no Fezzan: DANIELS, C. M. 1968b.
42 Ver HUNTINGFORD, G. W. B. In: OLIVER, R. & MATHEW, G. pp. 88 -9, e DAVIDSON, B. 1962. p. 44.
43 WAINWRIGHT, G. A. 1951.
44 S. SAUNERON (Paris, 1959. p. 113) chama a atenção para a vantagem dessa associação, mas recomenda
cautela.
118
África Antiga
muito tempo tem -se observado que os Dogon enterram sua cerâmica para
magia e não são, de maneira nenhuma, os únicos a fazê -lo. Esse costume foi
comparado ao dos egípcios, que colocavam em gamelas fragmentos de cerâmica
inscritos com os nomes dos inimigos, enterrando -as em locais específicos.
Também se chegou a comparar os ritos de inumação egípcios com os que eram
oficiados por ocasião dos funerais dos reis de Gana no século XI antes da Era
Cristã, conforme a descrição de al -Bakri.
Seria interminável a lista de práticas semelhantes acumuladas durante
décadas por estudos de caráter mais ou menos científico. A linguística, por si só,
oferece um vasto campo de pesquisa, em que as probabilidades, até o momento,
superam as certezas.
Tudo isso nos leva a concluir que a civilização egípcia provavelmente exerceu
influência embora não se saiba ainda em que medida sobre as civilizações
africanas mais recentes. Ao se procurar abordar essas últimas, seria prudente
considerar também a influência em sentido contrário, isto é, até que ponto o
Egito foi influenciado por elas. Uma influência que se prolongou por mais de
5 mil anos não constitui prova de contatos sincrônicos, do mesmo modo que
vestígios de contatos não constituem prova de sua continuidade. Trata -se de
uma investigação fascinante que está apenas começando.
Em termos gerais, os laços entre o Egito e o continente africano nos tempos
faraônicos é um dos temas mais importantes a desafiar os historgrafos
africanos de hoje. Coloca em questão grande número de postulados científicos
ou filosóficos como, por exemplo, a aceitação ou rejeição da hipótese de que os
mais antigos povos do Egito eram negros, sem exceção, e a aceitação ou rejeição
da teoria do difusionismo. Questiona também a metodologia ou a pesquisa, por
exemplo, referente à circulação das invenções, do cobre e do ferro, dos tecidos
aos suportes para a escrita. Levanta dúvidas quanto à possibilidade, até agora
tranquilamente aceita, de um pesquisador isolado ser bem -sucedido num campo
tão vasto sem a ajuda de disciplinas correlatas.
Sob qualquer ponto de vista, este problema constitui um teste para a
consciência científica, a precio e a imparcialidade dos africanos que se
empenharem em esclarecê -lo, com a ajuda, agora mais lúcida do que no passado,
de pesquisadores estrangeiros.
C A P Í T U L O 5
119
O legado do Egito faraônico
As valiosas contribuições que o Egito faraônico legou à humanidade podem
ser verificadas em diversos campos, como a história, a economia, a ciência, a arte
e a filosofia. muito tempo, especialistas nessas áreas e em várias outras
reconheceram a importância desse legado, embora frequentemente seja impossí-
vel determinar de que modo foi transmitido às culturas vizinhas ou posteriores.
De fato, essa herança ou pelo menos os seus testemunhos, tão importan-
tes para a história da humanidade transmitiu -se, em grande parte, através da
Antiguidade clássica (grega e, depois, romana) antes de chegar aos árabes. Ora,
os pré -helenos e os gregos entraram em contato com o Egito por volta de
-1600, estabelecendo laços estreitos com esse país somente a partir do século
VII antes da Era Cristã, com a dispersão de aventureiros, de viajantes e, mais
tarde, de colonos gregos pela bacia do Mediterrâneo, particularmente no Egito.
Simultaneamente, no II e no I milênio antes da Era Cristã, os gregos e seus
predecessores tiveram contato com as civilizações da Ásia Menor e, através delas,
com o mundo mesopotâmico antigo do qual eram um prolongamento. Assim,
muitas vezes é difícil precisar em que meio cultural – asiático ou egípcio, ambos
estreitamente ligados surgiu esta ou aquela invenção ou técnica.
Além disso, a dificuldade em estabelecer a cronologia de períodos remotos
da Antiguidade faz com que qualquer atribuição de paternidade” seja aleatória.
As datações pelo carbono 14 são demasiado vagas para que se possa determinar,
O legado do Egito faraônico
Rashid El -Nadoury colaboração de J. Vercoutter
120
África Antiga
com uma aproximação de um ou dois séculos, num meio em que o conhecimento
sempre se transmitiu rapidamente, se a origem de uma invenção é asiática ou
africana. Finalmente, não se pode descartar as possíveis convergências. Para citar-
mos apenas um exemplo: há boas razões para se acreditar (cf. Introdução) que a
escrita foi descoberta quase ao mesmo tempo no Egito e na Mesopotâmia, sem
que tenha havido, necessariamente, influência de uma civilização sobre a outra.
Por tudo isso, a herança que o Egito legou às civilizações posteriores, em
particular às antigas civilizações da África, não deve ser subestimada.
Contribuições do Egito P-Histórico
Um dos mais antigos e notáveis avanços da civilizão egípcia verificou-
-se no campo da economia. Ao final do Neotico, em torno de -5000, os
antigos egípcios transformaram gradualmente o vale do Nilo (cf. Capítulo 1),
permitindo que seus habitantes passassem de uma economia de coleta a uma
economia de produção de alimentos; essa importante etapa do desenvolvimento
do vale trouxe grandes consequências materiais e morais. O desenvolvimento
da agricultura possibilitou aos antigos egípcios adotarem uma forma de vida
aldeã, estável e integrada, o que, por sua vez, afetou seu desenvolvimento social
e moral, não apenas no período pré -histórico, mas também durante o período
dinástico.
Não é certo que a Ásia tenha desempenhado um papel predominante e único
na revolução neolítica, como se pensava anteriormente (cf. História Geral da
África. Ática/Unesco, v. 1, Cap. 27). Seja como for, um dos primeiros resultados
dessa “revolução” no vale do Nilo foi o fato de os antigos egípcios passarem a
considerar as forças naturais que os cercavam. Tais forças em especial o Sol
e o rio eram deificadas e simbolizadas sob muitas formas, principalmente de
animais e de aves familiares. O desenvolvimento da agricultura teve também por
consequência o estabelecimento do princípio da cooperação dentro da comu-
nidade, sem a qual a produção agrícola teria permanecido bastante limitada.
Decorre daí um outro desenvolvimento fundamental: a introdução de um novo
sistema social no interior da comunidade, ou seja, a especialização do trabalho.
Trabalhadores especializados surgem na agricultura, na irrigação, nas indústrias
agrícolas, na cerâmica e em diversas outras atividades afins. Um grande número
de vestígios arqueológicos atesta a longa tradição desses ofícios.
A civilização faraônica distinguiu -se pela continuidade do seu desenvolvi-
mento. Toda aquisição é transmitida e aperfeiçoada do começo ao fim da
121
O legado do Egito faraônico
história do antigo Egito. Assim, as técnicas do Neolítico foram enriquecidas no
período pré -dinástico (-3500 a -3000), mantendo -se ainda em pleno período
histórico. E o que testemunha, por si só, a arte de trabalhar a pedra.
Já por volta de -3500, os egípcios, herdeiros do Neotico do vale,
utilizaram -se dos depósitos de lex ali localizados, em especial os de Tebas,
para esculpir instrumentos de qualidade incomparável, dos quais a faca de
Djebel el -Arak (cf. Capítulo 1) é um exemplo entre centenas de outros. Pro-
duzidas por preso, as ondulões finas e regulares da pedra dão à faca uma
supercie levemente ondulada e perfeitamente polida, inimitável. A produção
de tais armas exigia uma notável habilidade manual. Essa arte manteve -se
viva no Egito: uma cena pintada num mulo de Beni -Hassan mostra arte-
os dodio Imrio (cerca de -1900) esculpindo esse mesmo tipo de faca
com lâmina encurvada.
A mesma perícia está presente na confecção de vasos de pedra. Também
nesse caso a técnica do Neolítico passou ao período pré -dinástico e depois ao
Antigo Império, perdurando até o final da história do antigo Egito. O escultor
egípcio utilizava todas as variedades de pedra, inclusive as mais duras, esculpindo
em basalto, brecha, diorito, granito e pórfiro, com a mesma facilidade com que
trabalhava com pedras mais moles, como alabastros -calcários, xistos, serpentinas
e esteatitas.
As técnicas de talhar a pedra foram transmitidas posteriormente ao mundo
mediterrânico. Tudo leva a crer que as técnicas de confecção dos vasos de pedra
cretenses tenham sido aprendidas se não no próprio Egito, pelo menos num meio
inteiramente impregnado da cultura egípcia, como o corredor sírio -palestino.
Até mesmo as formas dos vasos esculpidos no minoico antigo denunciam sua
origem egípcia.
A habilidade dos canteiros que trabalhavam com pedra dura transmitiu -se
aos escultores, o que se pode constatar pelas grandes esculturas egípcias nesse
material: do Quéfren do Museu do Cairo, em diorito, aos grandes sarcófagos
dos touros de Ápis, em basalto negro. A técnica passou, então, para os escultores
do período ptolomaico e posteriormente encontrou expressão na estatuária do
Império Romano.
As mudanças ocorridas no período neolítico refletiram -se particularmente
no desenvolvimento da planificação urbana no Egito. Um notável exemplo
disso encontra -se numa das mais antigas aldeias do vale do Nilo, Merinde Beni
Salame, na margem ocidental do Delta.
Ao lado da antiquíssima crença egípcia na vida depois da morte e na imor-
talidade, temos aqui uma combinação de importantes progressos culturais e
122
África Antiga
 . Fabricação de tijolos. (Fonte: N. de G. Davies. 1943. pr. LIX. Foto e Metropolitan Museum
of Art, Nova Iorque.)
123
O legado do Egito faraônico
sociais que podem ser acompanhados ao longo do Neolítico e do Calcolítico,
do P-Dinástico ao Protodinástico, e que levaram ao estabelecimento e desen-
volvimento da tradição do Egito faraônico.
Período histórico
Na civilização egípcia faraônica do período histórico, podem -se distinguir
duas correntes principais, sendo a primeira constituída pelo legado material do
Neolítico e do P-Dinástico, e a segunda, também oriunda do passado remoto,
pelo legado cultural, mais abstrato. Ambas se interrelacionam, constituindo o
fenômeno cultural egípcio. O legado material compreende o artesanato e as
ciências (geometria, astronomia, química), a matemática aplicada, a medicina, a
cirurgia e as produções artísticas; o cultural abrange a religião, a literatura e as
teorias filosóficas.
O artesanato
A contribuição do antigo Egito à produção artesanal aparece nos trabalhos
em pedra, como já vimos, mas também no artesanato em metal, madeira, vidro,
marfim, osso e muitos outros materiais. Os egípcios exploraram diversos recursos
naturais do país, e aos poucos foram aprimorando as técnicas necessárias à pro-
dução de instrumentos de pedra e de cobre, como machados, cinzeis, marretas
e enxós, habilmente projetados para serem usados na construção e na indústria,
com a finalidade de abrir orifícios ou fixar blocos. Também faziam arcos, flechas,
adagas, escudos e clavas de arremesso.
Durante muito tempo, e mesmo no período histórico, os instrumentos e
as armas herdados do Neolítico continuaram a ser feitos de pedra. As falésias
calcárias que margeiam o Nilo são ricas em sílex de grandes dimensões e de
excelente qualidade, que os egípcios ainda utilizaram por muito tempo depois da
descoberta do cobre e do bronze. Além disso, os rituais religiosos muitas vezes
exigiam o uso de instrumentos líticos, fato que contribuiu amplamente para a
perpetuação das técnicas de talhar a pedra, em especial o sílex.
Até o final do período faraônico, o ferro foi pouco usado na confecção de
vasos; as técnicas de metalurgia, no Egito, limitaram -se ao uso do ouro, da prata,
do cobre e de ligas de cobre, como o bronze e o latão. Vestígios de mineração e
processamento do cobre foram descobertos no Sinai, na Núbia e em Buhen, onde
os faraós do Antigo Império dispunham de forjas para a fusão desse metal.
124
África Antiga
No Sinai e na Núbia, os egípcios trabalhavam em colaboração com as popu-
lações locais; consequentemente, as técnicas empregadas no processamento do
metal passaram com facilidade de uma cultura para outra. Talvez por essa época
a escrita faraônica por intermédio da escrita proto sinaíta, que influenciou –,
tenha desempenhado um papel importante na invenção do alfabeto, ao mesmo
tempo que a metalurgia do cobre se difundia, primeiro pela bacia do Nilo e
depois para outras áreas.
Já nos primórdios do período dinástico (cerca de -3000), os egípcios conhe-
ciam e empregavam na fabricação de seus utensílios de cobre todas as técnicas
básicas da metalurgia, como a forjadura, a martelagem, a moldagem, a estampa-
gem, a soldagem e a rebitagem, técnicas estas que eles dominaram rapidamente.
Além dos utensílios, foram encontradas grandes estátuas egípcias de cobre,
datadas de -2300. Textos mais antigos, datados de -2900, assinalam a existên-
cia de estátuas do mesmo tipo, e cenas de mastabas de um período ainda mais
remoto mostram as oficinas onde o ouro e o electro, liga de ouro e prata, são
transformados em joias. Embora a metalurgia do ouro e do cobre não tenha
surgido no Egito, não há dúvida de que este contribuiu significativamente para
o seu aperfeiçoamento e expansão.
Como sublinhamos no início deste capítulo, muitas vezes é difícil precisar
se determinada técnica teve origem numa cultura asiática ou africana. Gra-
ças, porém, às representações encontradas em sepulcros, o Egito nos forneceu
inúmeras informações sobre as técnicas utilizadas pelos artesãos. Nas oficinas
representadas em pinturas ou em baixos -relevos nas paredes dos túmulos, pode-
mos ver, por exemplo, carpinteiros e marceneiros trabalhando na confecção de
móveis, armas e barcos. Tanto os instrumentos que empregavam – alicates mar-
telos, serras, brocas, enxós, cinzeis e marretas – quanto o modo de utilizá -las são
representados fielmente e com inúmeros detalhes. Assim, sabemos que a serra
egípcia era uma “serra de puxar”, e não “de empurrar”, como a serra moderna.
Para os estudiosos da história das técnicas e das vias pelas quais elas chegaram
até nós, trata -se de uma verdadeira mina de informações, que ainda não foi
inteiramente explorada.
Além dessas representações, os antigos egípcios deixaram em suas sepulturas
miniaturas de oficinas com artesãos ocupados na fabricação de vários objetos.
Essas miniaturas são de valor inestimável para o historiador na interpretação das
técnicas e do modo pelo qual se desenvolveram. Ademais, a enorme quantidade
de objetos artesanais encontrados, feitos a mão ou com o auxílio de ferramen-
tas, atesta a diversidade de indústrias existentes no antigo Egito. A ourivesaria,
por exemplo, utilizava materiais preciosos e semipreciosos, como ouro, prata,
125
O legado do Egito faraônico
 . Fabricação de vasos de metal. (Fonte: N. de G. Davies. 1943. e Metropolitan Museum of
Art, Egypt Expedition. Nova Iorque. v. XI, pr. LIII. Foto e Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.)
126
África Antiga
feldspato, lápis -lazúli, turquesa, ametista e cornalina, produzindo com notável
precisão coroas, colares e demais adornos.
A cultura precoce do linho fez com que muito cedo os egípcios adquirissem
grande habilidade na fiação manual e na tecelagem. Esta última era conhecida
desde o início do Neolítico (cerca de -5000), e seu surgimento coincidiu com
a emergência da civilização no vale do Nilo. As mulheres teciam o linho com
grande perícia, com frequência operando dois fusos simultaneamente. Uma
característica da fiação egípcia era a produção de fios longos, segundo uma téc-
nica em que o fuso era colocado a grande distância da fibra crua. Para aumentar
ainda mais essa distância, as mulheres encarapitavam -se em bancos altos. Seus
teares de início horizontais e, a partir do Médio Império, verticais permi-
tiam a fabricação de tecidos longos, empregados na confecção de roupas de uso
diário, bastante amplas, e de bandagens e mortalhas utilizadas nos rituais de
embalsamamento.
Para os faraós os tecidos constituíam um produto de troca particularmente
apreciado no exterior. O mais fino, o bisso, era tecido nos templos e gozava de
fama especial. Os Ptolomeus supervisionavam as oficinas de tecelagem e con-
trolavam a qualidade da manufatura, e sua administração central, sem dúvida
seguindo o costume dos primeiros faraós, organizava as vendas ao estrangeiro;
estas trouxeram ao rei grandes lucros devido à qualidade superior dos produtos
dos tecelões egípcios. Temos aqui um exemplo de uma das maneiras pelas quais
se transmitiu o legado egípcio.
As indústrias da madeira, do couro e do metal aperfeiçoaram -se e os seus
produtos conservaram -se em boas condições até nossos dias.
Outros objetos fabricados pelos artesãos egípcios incluíam vasos de prata,
ataúdes de madeira, pentes e cabos de marfim decorados. Os antigos egípcios
tinham um talento especial para tecer junco selvagem, confeccionando estei-
ras, e a fibra da palmeira possibilitou a produção de redes e cordas resistentes.
A manufatura da cerâmica teve início na Pré -História, com formas bastante
rudimentares, evoluindo em seguida para uma cemica mais fina, vermelha e
de bordas negras, mais tarde polida e gravada. Os recipientes eram utilizados
para armazenar diversos materiais, mas alguns tinham finalidade puramente
decorativa. A crença em determinados valores e, em particular, na vida eterna,
por exigir a manufatura de uma grande quantidade de objetos – quase sempre
decorados para os mortos, levou a uma grande produção, de alto grau de
perfeição.
Deve -se ao Egito, se não a invenção, pelo menos a difusão das técnicas de
fabricação do vidro a toda a civilização mundial. Embora seja verdade que a
127
O legado do Egito faraônico
Mesopotâmia e as civilizações do Indo desde muito cedo conheciam a técnica
da esmaltagem, base da fabricação do vidro, não há indícios de que tenham sido
os responsáveis pela sua difusão. Pode -se, no máximo, supor que aqui também
houve convergência e que a fabricação do vidro foi descoberta independente-
mente na Ásia e no vale do Nilo.
O certo é que em pouco tempo os egípcios demonstraram grande habilidade
na arte da vidraria. indícios da existência de contas de vidro no período
pré -dinástico (cerca de -3500), embora não seja certo que tenham sido delibe-
radamente fabricadas pelos artesãos. O vidro como tal tornou -se conhecido na
V dinastia (cerca de -2500) e começou a se difundir durante o Novo Império
(cerca de -1600). Nessa época, não era utilizado apenas na confecção de contas,
mas também na fabricação de vasos de uma grande variedade de formas, desde
o elegante cálice com até os vasos em forma de peixe. Em geral eram policro-
mos, e sempre opacos. O vidro transparente apareceu no reinado de Tutancâmon
(cerca de -1300). A partir de -700 aproximadamente, os vasos egípcios de vidro
conhecidos como “alabastro difundiram -se por toda a região do Mediterrâneo.
Os fenícios os copiaram, e sua manufatura transformou -se em indústria.
Na Baixa Época signos hieroglíficos moldados em vidro colorido eram
incrustados em madeira ou pedra para formar inscrições. As técnicas dos vidrei-
ros faraônicos transmitiram -se aos artesãos do período helenístico, que inven-
taram o vidro “de sopro”. Alexandria tornou -se, então, o principal centro de
manufatura de objetos de vidro, exportando -os para regiões distantes, como a
China. Aureliano impôs uma taxa aos produtos de vidro egípcios importados
por Roma. Mais tarde, o Império Meroíta passou a importar objetos de vidro
do Egito, adotando as técnicas de fabricação desse material e difundindo -as
para o alto vale do Nilo.
Uma das indústrias mais importantes do antigo Egito foi a do papiro, de
invenção autóctone. Nenhuma outra planta teve, no Egito, papel tão significa-
tivo. As fibras do papiro eram usadas na fabricação ou calafetagem de embar-
cações e na confecção de pavios de candeeiros a óleo, esteiras, cestos, cordas e
cabos. Os cabos que serviram para amarrar a ponte flutuante que Xerxes tentou
fazer atravessar o Helesponto foram fabricados no Egito, com fibras de papiro.
Reunidos em feixes, os talos do papiro funcionavam como pilares na arquitetura
primitiva, antes que os arquitetos clássicos os tomassem como modelo para suas
colunas simples ou fasciculadas, com capiteis em forma de flores abertas ou
fechadas. O papiro era utilizado principalmente na fabricação do papiro”, de
onde vem a palavra “papel”, sem dúvida um cognato do paperaâ, termo egípcio
128
África Antiga
 . Fabricação da cerveja. Antigo Império. (Foto
Otonoz.)
F . Modelo de uma ocina de tecelagem. XII
dinastia, c. - 2000. (Fonte: W. Wolf. 1955. pr. 45. Foto e
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.)
129
O legado do Egito faraônico
 . Marceneiros trabalhando. (Fonte: N. de G. Davies. 1943. pr. LV. e Metropolitan Museum
of Art, Nova Iorque.)
130
África Antiga
que significa Aquele da Grande Residência (Palácio Real), e que chegou até
nós através da Antiguidade clássica.
O papiro era produzido dispondo -se transversalmente camadas sucessivas
de finas tiras extraídas dos talos da planta, as quais, após pressão e secagem,
formavam uma grande folha.
Vinte folhas de papiro, unidas enquanto ainda úmidas, formavam um rolo
de 3 a 6 m de comprimento. Vários rolos podiam ser unidos de modo a formar
uma unidade de 30 ou 40 m de comprimento; tais rolos constituíam os “livros”
egípcios. Eram segurados com a mão esquerda e desenrolados à medida que se
fazia a leitura. O herdeiro direto desse rolo é o “volume” da Antiguidade clássica.
De todos os materiais empregados como suporte para a escrita na Antigui-
dade, o papiro certamente foi o mais prático, por ser flexível e leve. A fragilidade,
porém, era o seu único inconveniente. Resistia por pouco tempo à umidade e
queimava facilmente. Calculou -se que para se manter em dia o inventário de um
pequeno templo egípcio eram necessários 10 m de papiro por mês. Durante a
dinastia ptolomaica, os notários de província usavam de seis a treze rolos, ou 25
a 57 m por dia. Todas as grandes propriedades, palácios reais e templos manti-
nham registros, inventários e bibliotecas, o que indica a existência de centenas
de quilômetros de papiro, embora tenham sido descobertas algumas centenas
de metros.
Utilizado no Egito desde a I dinastia (cerca de -3000) até o fim do período
faraônico, o papiro foi, mais tarde, adotado pelos gregos, romanos, captas, bizan-
tinos, arameus e árabes. Grande parte da literatura grega e latina nos chegou
em papiros. Os rolos desse material constituíam um dos principais produtos
de exportação do Egito. O papiro foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores
legados do Egito faraônico à civilização.
Todas essas indústrias demandavam técnica e habilidade, levando à criação
de uma classe de artesãos e ao aprimoramento das técnicas. Museus e coleções
particulares do mundo inteiro abrigam centenas e amesmo milhares de exem-
plares arqueológicos dos diversos produtos do antigo Egito.
A tradição e a perícia na construção em pedra não foram uma contribuição
técnica menor dos egípcios ao mundo. Não era nada fácil transformar os imensos
blocos brutos de granito, calcário, basalto e diorito em blocos bem talhados e
polidos, destinados a diferentes projetos arquitetônicos.
Além disso, a busca de pedras para a construção dos monumentos, assim
como a prospecção de minérios metálicos e a procura de fibras, de pedras semi-
preciosas e de pigmentos coloridos, contribuiu para a difusão das técnicas egíp-
cias na África e na Ásia.
131
O legado do Egito faraônico
Os egípcios não hesitavam em procurar pedras em pleno deserto, por vezes
a uma centena de quilômetros do Nilo. A pedreira de onde se extraiu o diorito
para a famosa estátua de Quéfren, atualmente no Museu do Cairo, localiza -se
no deserto da Núbia, a cerca de 65 km a noroeste de Abu Simbel. A exploração
das pedreiras remonta ao início da história do Egito (cerca de -2800).
As técnicas egípcias de extração variavam segundo a natureza da pedra.
Em se tratando do calcário, abriam -se galerias nas largas camadas das falésias
do Eoceno que margeiam o Nilo. Assim foram extraídos enormes blocos de
pedra de excelente qualidade usados na construção das Grandes Pirâmides, as
quais foram depois revestidas com blocos de granito. Os depósitos de arenito
na região de el -Kab, no Alto Egito e na Núbia, eram explorados a céu aberto.
Para as pedras duras, os trabalhadores primeiro talhavam um sulco em torno do
bloco a ser extraído e depois, em vários pontos ao longo do sulco, praticavam
profundos talhos no interior dos quais inseriam cunhas de madeira. Estas eram,
então, molhadas, e a dilatação da madeira era suficiente para fender o bloco ao
longo dos sulcos. Essa técnica ainda hoje é empregada nas pedreiras de granito.
Seria uma herança do Egito?
As únicas ferramentas utilizadas pelos egípcios no trabalho das pedreiras
eram a marreta de madeira e o cinzel de cobre para pedras moles, como o
calcário e o arenito, e o picão, o cinzel e o martelo de pedra dura para rochas
metamórficas, como o granito, o gnaisse, o diorito e o basalto. Se a pedreira
ficasse longe do Nilo, organizavam -se expedições das quais chegavam a parti-
cipar até 14 mil homens, entre oficiais e soldados, cavouqueiros e carregadores,
escribas e médicos. Essas expedições eram equipadas para permanecer longos
períodos fora do Egito e devem ter contribuído para a difusão da civilização
egípcia, especialmente na África.
A habilidade adquirida na extração de pedras no início do período dinástico
levou os egípcios, à época do Antigo Império (cerca de -2400), a escavar suas
sepulturas diretamente na rocha. Muito antes dessa data, de -3000 a -2400, a
construção de sepulturas, projetadas como habitações para os mortos, os havia
levado a construir imponentes superestruturas que, com o passar do tempo,
vieram a constituir as pirâmides em degraus e, posteriormente, as pirâmides
propriamente ditas.
A perícia dos egípcios no trabalho da madeira manifesta -se brilhantemente
na construção naval. As necessidades da vida diária no vale do Nilo, onde o rio
era a única via de comunicação acessível, fizeram dos egípcios excelentes navega-
dores desde os tempos mais remotos. Os barcos ocupavam, desde a pré -história,
uma posição de destaque entre seus primeiros trabalhos artísticos. Visto acre-
132
África Antiga
 . Colunas protodóricas
de Deir el -Bahari. (Fonte: J.
Pirenne. v. II, p. 156 -7,g. 36. Foto
J. Capart.)
F . As pirâmides de
Snefru, no Dachur. (Fonte: J.
Pirenne. 1961. v. I, p. 100, g. 25.)
133
O legado do Egito faraônico
ditarem em uma vida pós -morte calcada na vida terrena, não é de surpreender
o fato de colocarem miniaturas de barcos nos túmulos ou representarem nas
paredes cenas de navegação e de construção de barcos. Chegavam mesmo a
enterrar embarcações verdadeiras perto dos túmulos, para que os mortos pudes-
sem utilizá -las. Isso aconteceu em Heluan, num túmulo subterrâneo das duas
primeiras dinastias, e no Dachur, nas proximidades da pirâmide de Sesóstris
III. O ano de 1952 foi marcado por uma descoberta extraordinária: duas gran-
des covas abertas na rocha e cobertas por lajes de calcário foram descobertas
ao longo do flanco meridional da Grande Pirâmide. No interior das mesmas
encontravam -se – parcialmente desmontados, mas completos, com seus remos,
cabinas e lemes os barcos utilizados por Quéops. Um deles foi removido e
restaurado, o outro ainda espera ser retirado do seu “túmulo”.
O barco de Quéops, hoje abrigado num museu especial, foi reconstruído.
Quando descoberto, consistia em 1224 peças de madeira que tinham sido par-
cialmente desmontadas e amontoadas em treze pilhas sucessivas no interior
da cova. O barco mede 43,4 m de comprimento por 5,9 m de largura e tem
capacidade para cerca de 40 t. As pranchas laterais têm uma espessura de 13 a
14 cm. É difícil calcular com precisão o seu calado, mas com certeza era bas-
tante reduzido em relação ao tamanho do navio. Embora com uma estrutura
elementar de vigas, o barco de Quéops não possui quilha; tem o fundo plano e
é estreito. O mais notável é o fato de ter sido construído sem pregos: as peças
de madeira se mantêm unidas apenas pelo emprego de encaixes do tipo macho e
fêmea. Seus elementos constitutivos – pranchas, vigas e traves transversais – são
unidos entre si por meio de cordas, fato que facilitou a reconstituição. O navio
possui uma cabina central grande e espaçosa e, na proa, um abrigo coberto. Não
tem mastro, sendo impulsionado a remo ou rebocado, embora no Egito a vela
fosse usada muito antes do reinado de Quéops. Esse método de construção,
em que as peças são unidas por meio de amarras, tornou possível a realização de
expedições militares anfíbias longe do Egito, no mar Vermelho e no rio Eufrates.
De fato, o exército egípcio levava consigo, desmontadas, as embarcações de que
poderia vir a necessitar.
Pela proporção entre a largura e o comprimento dos barcos, bem como
por seu baixo calado, pode -se observar que foram projetados para a navegação
fluvial. O objetivo principal era obter uma capacidade máxima, evitando, ao
mesmo tempo, os encalhes. Entretanto, já na V dinastia, e provavelmente antes,
os egípcios sabiam como adaptar seus navios à navegação marítima. Os barcos
de Sahure mostram que, para uso no mar, a altura da proa e da popa eram
consideravelmente reduzidas. No caso do barco de Quéops, elevavam -se muito
134
África Antiga
 . Carnac: câmara do
barco de Âmon.
F . Gi: câmara do
barco de Quéops.
135
O legado do Egito faraônico
acima da linha da água, o que dificultava a manobra da embarcação nas ondas do
Mediterrâneo ou do mar Vermelho. Além disso, os engenheiros navais egípcios
emprestaram grande solidez à estrutura do barco como um todo equipando -o
com um cabo de torção que passava por sobre a ponte e prendia firmemente a
popa à proa. Esse cabo também funcionava como quilha, assegurando a solidez
de toda a estrutura e reduzindo o risco de se partir ao meio.
A introdução dessas modificações permitiu às embarcações egípcias afrontar
as expedições marítimas mais longínquas empreendidas pelos faraós, seja no
Mediterrâneo, em direção à Palestina, Síria, Chipre e Creta, seja no mar Ver-
melho, em direção ao distante país de Punt. Não razão para acreditar que
nesse mister os egípcios tenham sido influenciados pelos fenícios. Ao contrário,
é bem possível – embora não se possa provar, dado o atual estágio dos conheci-
mentos – que os egípcios tenham sido os pioneiros no uso de velas nas viagens
marítimas (as vergas e as velas egípcias eram ajustáveis, permitindo velocidades
variadas), e que tenham inventado o leme: a partir do Antigo Império, os gran-
des remos direcionais situados na popa são providos de barras verticais, que os
transformam, de fato, em lemes.
Contribuições Cientícas
O Egito faraônico nos deixou valiosa herança nos campos da física, química,
zoologia, geologia, medicina, farmacologia, geometria e matemática aplicada.
De fato, legou à humanidade uma grande reserva de experiências em cada um
desses domínios, alguns dos quais foram combinados de modo a possibilitar a
realização de objetivos específicos.
A mumicação
Um dos melhores exemplos da engenhosidade dos antigos egípcios é a
mumificação, que ilustra o conhecimento profundo que tinham de inúmeras
ciências, como a física, a química, a medicina e a cirurgia. Esse conhecimento era
resultado do acúmulo de uma longa experiência. Por exemplo, à descoberta das
propriedades químicas do natrão encontrado em certas regiões do Egito, em
particular no Uadi el -Natrum seguiu -se a utilização das mesmas no cumpri-
mento prático das exigências da crença na vida além -túmulo. Preservar o corpo
humano era uma forma de dar realidade à crença. Análises recentes revelaram
que o natrão se compõe de uma mistura de carbonato de sódio, bicarbonato de
136
África Antiga
 . Ramsés II (técnica dos uidos). (Foto Comissariat à l’Energie Atomique.)
137
O legado do Egito faraônico
sódio, sal e sulfato de sódio. Os antigos egípcios conheciam, portanto, as funções
químicas dessas substâncias. No processo de mumificação, o corpo era embe-
bido em natrão durante setenta dias. O cérebro era extraído pelas narinas, e os
intestinos removidos através de uma incisão num dos lados do corpo. Operações
desse tipo exigiam um acurado conhecimento de anatomia, que é ilustrado pelo
bom estado de conservação das múmias.
A Cirurgia
Foram sem dúvida os conhecimentos adquiridos com a prática da mumifica-
ção que permitiram aos egípcios o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas desde
os primeiros tempos de sua história. A cirurgia egípcia é, com efeito, bastante
conhecida graças ao Papiro Smith, cópia de um original escrito durante o Antigo
Império, entre -2600 e -2400, um verdadeiro tratado sobre cirurgia dos ossos
e patologia externa. Quarenta e oito casos são examinados sistematicamente.
Em cada um deles, o autor do tratado começa o estudo com um título geral:
“Instruções acerca de [tal e tal caso]”. Segue -se então uma descrição clínica:
“Se observares [tais sintomas]”. As descrições são invariavelmente precisas e
incisivas, seguidas de um diagnóstico: “Em relação a isso, dirás: um caso de [tal
e tal lesão]”, e, dependendo do caso,um caso que poderei tratar” ou “um caso
que não tem remédio”. Se o cirurgião pode tratar o paciente, o tratamento a
ser administrado é então explicado em detalhes; por exemplo: no primeiro dia,
deves usar um pedaço de carne como bandagem; depois, deves colocar duas tiras
de tecido de modo a juntar os lábios da ferida ...”.
Ainda hoje são aplicados rios tratamentos indicados no Papiro Smith.
Os cirurgiões egípcios sabiam suturar ferimentos e curar fraturas empregando
talas de madeira ou de cartonagem. Algumas vezes, o cirurgião simplesmente
recomendava que se permitisse à natureza seguir o seu próprio curso. Em dois
exemplos, o Papiro Smith instrui o paciente a manter sua dieta normal.
Dos casos estudados pelo Papiro Smith, a maioria se refere a lacerações
superficiais do crânio ou da face. também casos de lesão dos ossos ou das
juntas, como contusões das vértebras cervicais ou espinhais, luxações, perfura-
ções do crânio ou do esterno, e diversas fraturas que afetam o nariz, o maxilar,
a clavícula, o úmero, as costelas, o crânio e as vértebras. Exames nas múmias
revelaram vestígios de cirurgia, como é o caso do maxilar (datado do Antigo
Império) em que foram praticados dois orifícios para drenar um abscesso, ou do
crânio fraturado por golpe de machado ou espada e recomposto com sucesso.
Existem também indícios de tratamentos dentários, como obturações feitas com
138
África Antiga
um cimento mineral;uma múmia que apresenta uma espécie de ponte feita
de ouro ligando dois dentes pouco firmes.
Por sua abordagem metódica, o Papiro Smith serve como testemunho da
habilidade dos cirurgiões do antigo Egito, habilidade que, supõe -se, foi trans-
mitida pouco a pouco à Africa, à Asia e à Antiguidade clássica pelos médicos
que acompanhavam as expedições egípcias aos países estrangeiros. Além disso,
sabe -se que soberanos estrangeiros, como o príncipe asiático de Baktan, Báctria,
ou o próprio Cambises, mandavam chamar médicos egípcios, e que Hipócrates
“tinha acesso à biblioteca do templo de Imhotep em Mênfis”. Posteriormente,
outros médicos gregos seguiram -lhe o exemplo.
A Medicina
Pode -se considerar o conhecimento da medicina como uma das mais
importantes contribuições científicas do antigo Egito à história da humani-
dade. Documentos mostram detalhadamente os títulos dos médicos egípcios
e seus diferentes campos de especialização. De fato, as civilizações do antigo
Oriente Próximo e o mundo clássico reconheceram a habilidade e a reputação
dos antigos egípcios no campo da medicina e da farmacologia. Imhotep, o vizir,
arquiteto e médico do rei Zoser, da III dinastia, é uma das mais significativas
personalidades da história da medicina. Sua fama manteve -se durante toda a
história do antigo Egito, chegando até a época grega. Divinizado pelos egíp-
cios com o nome de Imouthes, foi assimilado pelos gregos a Asclépio, o deus
da medicina. Com efeito, a influência egípcia sobre o mundo grego, tanto na
medicina como na farmacologia, é facilmente reconhecível nos remédios e nas
prescrições. Alguns instrumentos médicos utilizados em operações cirúrgicas
foram descobertos em escavações.
Os testemunhos escritos referentes à medicina egípcia antiga são consti-
tuídos por documentos como o Papiro Ebers, o Papiro de Berlim, o Papiro
Cirúrgico Edwin Smith, e muitos outros, que ilustram as técnicas de operação
e descrevem, detalhadamente os métodos de cura prescritos. Esses textos são
cópias de originais que remontam ao Antigo Império (cerca de -2500).
Ao contrário do Papiro Cirúrgico Edwin Smith, altamente científico, os
textos puramente médicos baseavam -se na magia. Os egípcios consideravam
a doença como obra dos deuses ou dos espíritos malévolos, o que justifica o
recurso à magia. Isso tamm explica por que alguns dos remédios relacio-
nados no Papiro Ebers, por exemplo, mais parecem feitiço do que prescrão
dica.
139
O legado do Egito faraônico
Apesar desse aspecto, comum também a outras civilizações antigas, a medicina
egípcia não deve ser desconsiderada enquanto ciência, pois contém o embrião
de uma abordagem metódica, particularmente quanto à observação de sintomas;
não dúvida de que esse método passou à posteridade por sua importância.
O médico egípcio examinava o paciente e determinava os sintomas do mal.
Em seguida, fazia o diagnóstico e prescrevia o tratamento. Todos os textos que
chegaram até nós apresentam essa sequência, de onde se pode concluir que se
tratava de um procedimento -padrão. Para os casos duvidosos, fazia -se o exame
em duas etapas, com alguns dias de intervalo. Entre as doenças identificadas e
adequadamente descritas e tratadas pelos médicos egípcios, incluem -se distúr-
bios gástricos, dilatação estomacal, cânceres cutâneos, coriza, laringite, angina
do peito, diabetes, constipação, hemorroidas, bronquite, retenção e incontinência
da urina, esquistossomose, oftalmias, etc.
Os médicos egípcios tratavam seus pacientes com supositórios, unguentos,
xaropes, poções, unções, massagens, enemas, purgantes, cataplasmas e até mesmo
inalações, cujo uso ensinaram aos gregos. Sua farmacopeia abrangia grande
variedade de ervas medicinais, cujos nomes, lamentavelmente, são intraduzíveis.
As técnicas medicinais e os medicamentos egípcios gozavam de grande prestígio
na Antiguidade, conforme nos revela Heródoto. Os nomes de aproximadamente
uma centena de médicos egípcios chegaram até nós através dos papiros. Dentre
eles oculistas e dentistas, dos quais Hesy -Rê, que viveu por volta de -2600,
na IV dinastia, pode ser considerado um dos mais antigos. Entre os especialistas
também veterinários. Para a execução de seu trabalho, os médicos dispunham
de uma grande variedade de instrumentos.
A matemática (aritmética, álgebra e geometria)
Um dos importantes domínios da ciência a que os antigos egípcios se dedi-
caram foi a matemática. As medições acuradas dos seus enormes monumentos
arquitetônicos e escultóricos constituem uma excelente prova de sua preocupa-
ção com a precisão. Jamais teriam conseguido alcançar tal grau de perfeição sem
um mínimo de aptidão matemática.
Do Médio Império (-2000 a -1750) chegaram -nos dois importantes papi-
ros matemáticos: o de Moscou e o Rhind. O método egípcio de numeração,
baseado no sistema decimal, consistia em repetir os símbolos dos meros
(unidades, dezenas, centenas, milhares) tantas vezes quanto fosse necessário
para obter o mero desejado. Não existia o zero. É interessante notar que os
símbolos egípcios para as frações 1/2, 1/3, 1/4, e assim por diante, originaram-
140
África Antiga
-se no mito de Hórus e de Set, em que um dos olhos de falcão de Hórus foi
arrancado e cortado em pedos por Set. Esses pedaços é que simbolizam
certas frações.
Na matemática egípcia podem -se distinguir três partes: a aritmética, a álge-
bra e a geometria.
A organização administrativa egípcia requeria conhecimentos de aritmé tica.
A eficiência da administração altamente centralizada dependia do conhecimento
exato daquilo que ocorria. em cada província, em todas as esferas de ativi-
dade. Não é de surpreender, portanto, que os escribas dedicassem uma enorme
quantidade de tempo a manter registros referentes às áreas de terras cultivadas,
quantidade de produtos disponíveis e sua distribuição, quantidade e qualificação
do pessoal e assim por diante.
O método de cálculo dos egípcios era simples. Reduziam todas as opera-
ções a séries de multiplicões e divisões por dois (duplicão), processo lento
que requer pouca memorizão e dispensa as tábuas de multiplicação. Nas
divisões, quando o dividendo o era divisível pelo divisor, o escriba introdu-
zia as frações, mas o sistema utilizava apenas frações cujo numerador fosse o
número 1. As operações com frações também eram realizadas por duplicão
sistemática. Os textos contêm numerosos exemplos de partilhas proporcionais
obtidas dessa maneira, sendo que ao final dos lculos o escriba acrescentava
a fórmula “é exatamente isso”, que equivale ao nosso c. q. d. (como queremos
demonstrar).
Todos os problemas colocados e resolvidos pelos tratados egípcios sobre
aritmética apresentam um traço comum: são problemas materiais semelhan-
tes aos que o escriba, isolado em algum posto lonnquo, teria de resolver
no dia -a -dia, como, por exemplo, a partilha de sete pães entre dez homens,
proporcionalmente ao seu grau hierárquico, ou o cálculo do número de tijolos
necessários à construção de um plano inclinado. Tratava -se, pois, basicamente
de um sistema emrico, com poucas características de natureza abstrata. É
difícil saber que elementos de um sistema como esse ter -se -iam transmitido
a culturas vizinhas.
Talvez não se possa falar propriamente de uma álgebra egípcia; sobre esse
aspecto, os especialistas em história da ciência sustentam diferentes pontos
de vista. Certos problemas descritos no Papiro de Rhind o formulados da
seguinte maneira: “Uma quantidade (ahâ, em egípcio) a que se soma (ou se
subtrai) tal ou tal porção (n) resulta na quantidade (N). Qual é essa quanti-
dade?” Algebricamente, trata -se da expressão
x ± x = N
n
, fato que levou alguns
141
O legado do Egito faraônico
historiadores da ciência a concluir que os egípcios utilizavam lculos algé-
bricos. Entretanto, as soluções propostas a esse tipo de problema pelo escriba
do Papiro Rhind são sempre alcançadas pela aritmética simples, e o único
exemplo em que provavelmente se aplicou a álgebra refere -se a um problema
de divisão que implica na exisncia de uma equação de segundo grau. O
escriba resolveu esse problema como um algebrista moderno o faria, mas em
vez de tomar como base do cálculo um símbolo abstrato, como x, tomou o
número1. A questão da existência ou não da álgebra egípcia depende, por-
tanto, da aceitação ou rejeão da possibilidade de operar algebricamente sem
utilizar símbolos abstratos.
Os historiadores gregos Heródoto e Estrabão concordam em que a geo-
metria foi inventada pelos egípcios. A necessidade de calcular uma supercie
de terra retirada ou acrescentada a cada ano pelas enchentes do Nilo apa-
rentemente os levou a essa descoberta. Com efeito, tal como a matetica,
a geometria epcia era emrica. Os tratados antigos visavam, antes de mais
nada, fornecer ao escriba uma fórmula que o habilitasse a calcular rapida-
mente a área de um campo, o volume de grãos de um silo ou o número de
tijolos necessários à constrão de um edifício. O escriba nunca aplicava um
raciocínio abstrato para resolver determinado problema, fornecendo apenas
meios pticos de chegar à solução, ou seja, meros concretos. Entretanto
os egípcios conheciam com perfeão o todo de calcular a área de um
triângulo ou de um rculo, o volume de um cilindro, de uma pirâmide ou de
uma pirâmide truncada e, provavelmente, de um hemisfério. Seu maior feito
foi o cálculo da superfície do círculo. Procediam pela redão do dmetro
em 1/9 e elevavam o resultado ao quadrado, o que equivalia a atribuir o valor
de 3,1605 a π, muito mais exato que o valor 3 dado a π por outros povos da
Antiguidade.
O conhecimento da geometria encontrou considevel aplicão ptica
na agrimensura, que desempenhava um papel significativo no Egito. Muitos
o os túmulos decorados com representações que mostram agrimensores
aplicados em conferir se os marcos dos campos não se deslocaram, medindo
com uma corda de nós, precursora da cadeia de agrimensura, a supercie do
campo cultivado. A corda de agrimensor, ou nouh, é mencionada nos textos
mais antigos (cerca de -2800). O governo central dispunha de um escritório
de cadastro cujos registros foram saqueados durante a revolução menfita
(cerca de -2150), tendo sido reorganizados durante o Médio Imrio (cerca
de -1990).
142
África Antiga
A Astronomia
A documentação que possuímos sobre a astronomia egípcia não se compara
ao material disponível sobre matemática (Papiros Rhind e de Moscou), ou
sobre cirurgia e medicina (Papiros Edwin Smith e Ebers). Contudo, razões
para crermos que tenham existido tratados sobre astronomia. Embora o Papiro
Carlsberg 9, que descreve o método para a determinação das fases da Lua, tenha
sido escrito, indubitavelmente, durante a época romana, ele deriva de fontes
mais antigas e não recebeu nenhuma influência helenística. Pode -se dizer o
mesmo quanto ao Papiro Carlsberg 1. Infelizmente, essas fontes mais antigas
não sobreviveram até nossos dias, e a contribuição egípcia no domínio da astro-
nomia deve ser inferida de aplicações práticas feitas com base em observações.
Tal contribuição, porém, está longe de ser insignificante.
Como vimos (cf. Introdução), o ano civil egípcio dividia -se em três estações
de quatro meses, cada qual com trinta dias; a esses 360 dias, eram acrescentados
outros cinco ao final de cada ano. O ano civil de 365 dias, o mais exato conhecido
na Antiguidade, está na origem do nosso ano civil, visto ter servido de base para
a reforma juliana (- 47) e para a reforma gregoriana, de 1582. Ao lado desse
calendário civil, os egípcios também utilizavam um calendário religioso, lunar,
estando aptos a prever com razoável precisão as fases da Lua.
Desde a expedição de Napoleão ao Egito, os europeus se surpreendem com
a exatidão do alinhamento das construções erguidas à época dos faraós, em
particular das pirâmides, cujas quatro faces voltam -se para os quatro pontos
cardeais. As Grandes Pirâmides apresentam um desvio de menos de 1
º
em
relação ao norte verdadeiro. Tal precisão poderia ter sido alcançada através da
observação astronômica: direção da estrela polar na época, culminação de uma
estrela fixa, bissetriz do ângulo formado pela direção de uma estrela a interva-
los de doze horas, bissetriz do ângulo do nascer e do ocaso de uma estrela fixa
ou afastamento máximo de uma estrela fixa (que para a Ursa Maior deve ter
sido de 7, segundo Z. Zorba). Em todos esses casos, o cálculo do alinhamento
requer uma observação astronômica precisa. Os egípcios estavam perfeitamente
capacitados a realizar esse tipo de observação, já que dispunham de uma equipe
de astrônomos que trabalhavam sob a autoridade do vizir encarregados de
observar o céu à noite para anotar o nascer das estrelas, particularmente de Sirius
(Sótis), e, sobretudo, para determinar o transcurso das horas da noite. Estas, para
os egípcios, variavam conforme as estações: a noite, que devia comportar doze
horas, começava sempre com o ocaso e terminava com a aurora. Segundo as
tabelas que chegaram até nós, cada hora da noite era marcada, mês após mês, de
143
O legado do Egito faraônico
dez em dez dias, pelo nascer de uma constelação ou de uma estrela de primeira
grandeza. As tabelas distinguiam 36 dessas constelações ou estrelas que consti-
tuíam decans, cada um dos quais inaugurava um decêndio (período de dez dias).
Esse sistema remonta, pelo menos, à III dinastia (cerca de -2600). Os
sacerdotes -astrônomos possuíam, além das tabelas, instrumentos simples de
observação: uma mira e um esquadro ao qual se amarrava um fio de prumo, que
requeriam uma equipe de dois observadores. Apesar da natureza rudimentar
dessa técnica, as observações eram precisas, como se comprova pela exatidão da
orientação das pirâmides. Em certos túmulos, há pinturas representando o céu.
As estrelas aparecem sob a forma de imagens, o que possibilita a identificação
de algumas das constelações reconhecidas pelos egípcios. A Ursa Maior é deno-
minada “Perna de Boi”; as estrelas ao redor de Arcturo são representadas por um
crocodilo e um hipopótamo acoplados; Cisne é representada por um homem
com os braços estendidos; Órion, por uma pessoa correndo com a cabeça voltada
para trás; Cassiopeia, por uma figura de braços estendidos; e Dragão, Plêiade,
Escorpião e Áries, por outras figuras.
Para determinar as horas do dia, que também variavam conforme as estações,
os egípcios utilizavam um gnomon, isto é, uma simples vara plantada vertical-
mente numa prancha graduada, munida de um fio de prumo. O instrumento
servia para a medição do tempo gasto na irrigação dos campos, uma vez que a
água tinha de ser distribuída imparcialmente. Assim como o gnomon, os egíp-
cios tinham relógios de água colocados no interior dos templos. Esses relógios
foram tomados de empréstimo e aperfeiçoados pelos gregos: são as clepsidras
da Antiguidade. Eram feitos no Egito em -1580.
A Arquitetura
Os antigos egípcios aplicaram seus conhecimentos de matemática à extra-
ção, transporte e assentamento dos enormes blocos de pedra utilizados em seus
projetos arquitetônicos. Tinham uma longa tradição no uso de tijolos e de vários
tipos de pedra, tradição que remonta aos tempos primitivos. Começaram a usar
o pesado granito no início do III milênio antes da Era Cristã, aplicando -o nos
pisos de alguns túmulos da I dinastia em Abidos. Durante a II dinastia, empre-
garam o calcário na construção das paredes dos sepulcros.
Uma nova fase iniciou -se na III dinastia. Trata -se de um avanço de funda-
mental importância na história da arquitetura egípcia: a construção da pirâmide
em degraus de Saqqara – a primeira edificação egípcia inteiramente em pedra–,
que faz parte do imenso complexo funerário do rei Zoser.
144
África Antiga
O arquiteto Imhotep, provavelmente vizir do rei Zoser (cerca de -2580), foi
o construtor do conjunto que inclui a pirâmide em degraus, onde, pela primeira
vez, empregou a pedra talhada. Os blocos eram pequenos e pareciam uma imi-
tação, em calcário, do tijolo cru, antes usado na arquitetura funerária. As colunas
incrustadas e as traves de sustentação do teto eram, igualmente, cópias em pedra
dos feixes de plantas e das vigas utilizadas na construção primitiva. Tudo indica,
pois, que a arquitetura egípcia estava entre as primeiras a fazer uso da pedra
talhada em fiadas regulares .
O Egito desenvolveu uma grande variedade de formas arquitetônicas, das
quais a pirâmide, sem dúvida, é a mais característica. As primeiras pirâmides
eram em degraus e somente a partir da IV dinastia (cerca de -2300) foram
tomando a forma triangular. Desse período em diante, os arquitetos abando-
naram o uso das pedras pequenas da III dinastia, em favor dos enormes blocos
de calcário e de granito.
Até a conquista romana, a arquitetura civil continuou a empregar o tijolo cru,
mesmo nas construções de palácios reais. Os edifícios anexos do Ramesseu, em
Tebas, e as grandes fortificações núbias nos dão uma boa ideia da versatilidade
desse material. Podia ser usado com muito requinte, como se pode observar no
palácio de Amenófis IV, em Tell el -Amarna, cujos pavimentos e tetos foram
decorados com pinturas.
Outra contribuição no campo da arquitetura é a criação da coluna, que, a
princípio, era embutida na parede e mais tarde tornou -se isolada.
O meio ambiente influenciou fortemente o desenvolvimento da arquitetura
no antigo Egito. A ideia da coluna, por exemplo, foi inspirada na observação de
plantas silvestres, como o junco e o papiro. Os capiteis das colunas eram talhados
na forma da flor do lótus, do papiro e de outras plantas, o que constitui uma
outra inovação arquitetônica. As colunas caneladas e os capiteis em forma de
lótus, de papiro, e de palma foram adotados pela arquitetura de outras culturas.
É provável que os antigos egípcios tenham inventado a abóbada durante a II
dinastia (cerca de -2900). No início, as abóbadas eram construídas com tijolos,
que por volta da VI dinastia foram substituídos pela pedra.
A Grande Pirâmide de Gisé é uma das sete maravilhas do mundo antigo.
Uma construção de proporções tão magníficas é prova da habilidade arqui-
tetônica e administrativa dos antigos egípcios. A construção dos corredores
ascendentes que conduzem à câmara de granito do rei e a existência de duas
aberturas ou respiradouros (nos lados norte e sul da câmara real) que se esten-
dem para o exterior de modo a assegurar a ventilação são dois bons exemplos
de sua engenhosidade.
145
O legado do Egito faraônico
 . . Vista parcial de
Mirgissa, fortaleza militar construída
aproximadamente 4 mil anos. (Fotos R.
Keating.)
146
África Antiga
 . Colunas fasciculadas do templo de Sacará. (Fonte: J. Pirenne. 1961. v. I, p. 64, g. 17.)
147
O legado do Egito faraônico
As propoões, medidas e orientação exatas das câmaras e dos corredo-
res das pirâmides, sem falar no talhe e na erão dos gigantescos obeliscos
de pedra maciça, indicam uma grande habilidade cnica, de rzes muito
antigas.
Para o transporte e o assentamento dos blocos de pedra, os egípcios utili-
zavam alavancas, rolos e travessas de madeira. Seus empreendimentos arqui-
tetônicos, apesar das dimensões gigantescas, empregavam apenas a força de
braços humanos, sem o uso de quaisquer meios mecânicos além do princípio
da alavanca em suas diversas formas.
O conhecimento técnico adquirido pelos egípcios na construção e na irri-
gação advindo da escavação de canais e da construção de diques e barragens
manifestou -se ainda em outros campos relacionados à arquitetura.
Por volta de -2550, tinham perícia suficiente para construir uma barragem
de pedra talhada num uadi próximo ao Cairo. Pouco tempo depois, seus enge-
nheiros abriam canais navegáveis nas rochas da Primeira Catarata, em Assuã.
Pelo que tudo indica, por volta de -1740 conseguiram erigir uma barragem
no próprio Nilo, em Semneh, na Núbia, para facilitar a navegação em direção
ao sul. E, finalmente, durante o mesmo período, constrram, paralelamente
à Segunda Catarata, uma rampa sobre a qual faziam deslizar as embarca-
ções com o auxílio do limo fluido do Nilo. A rampa, predecessora do diolkos
do istmo de Corinto, tinha uma exteno de rios quilômetros e evitava
que as corredeiras da Segunda Catarata viessem a constituir um obstáculo à
navegação.
A paisagística e o urbanismo são outros aspectos da arquitetura egípcia.
Os egípcios apreciavam os jardins. Mesmo os pobres procuravam plantar
uma ou duas árvores no estreito tio de suas casas. Quanto aos ricos, seus
jardins rivalizavam em tamanho e exuberância com as próprias resincias.
Durante a III dinastia (cerca de -2800), era comum um alto oficial possuir
um jardim com mais de 1 ha sempre com uma piscina, traço distintivo dos
jardins epcios. O jardim era organizado em torno de uma ou mais piscinas.
Elas serviam como viveiros de peixes, reservariosde água e como fonte de
ar fresco para a casa, que se situava nas proximidades. Muitas vezes o dono
da casa mandava construir um gracioso pavilo de madeira junto da piscina,
onde pudesse respirar o ar fresco da noite e receber amigos para um drinque
refrescante.
Ocasionalmente, essas piscinas artificiais eram bastante grandes. O lago
do palácio de Snefru tinha dimensões suficientes para que seu dono pudesse
navegar em companhia de jovens remadoras levemente vestidas; Amenófis III
148
África Antiga
 . . Mirgissa: Rampa
para barcos. (Fotos Missão Arqueológica
Francesa para o Sudão.)
149
O legado do Egito faraônico
 . Um jardim egípcio.
(Fonte: DAVIES, N. de G. 1943. e
Metropolitan Museum of Art, Egypt
Expedition. Nova Iorque. v. XI, pr. CX.
Foto e Metropolitan Museum of Art,
Nova Iorque.)
F. Urbanismo: planta da
cidade de Illahun (Kahun), segundo
Petrie, mostrando a aglomeração
dos bairros pobres. (No semicírculo,
túmulo de Maket, XIX -XX dinastias.)
(Fonte: BREASTED, J. H. “Histoire de
l’Egypte”. v. I, p. 87. Repr. in J. Pirenne.
v. II, p. 74. Ed. de la Baconnre,
Neuchâtel.)
150
África Antiga
dispunha de uma imensa piscina em seu palácio tebano. Esse gosto egípcio por
jardins -parque transmitiu -se posteriormente aos romanos.
Ao que parece, o urbanismo não é invenção do gênio grego. em -1895,
no reinado de Sesóstris II, a cidade de Kahun foi construída no interior de um
amuralhado retangular. Dispunha de edifícios administrativos e residenciais.
As casas destinadas aos trabalhadores, das quais aproximadamente 250 foram
reveladas pelas escavações, eram construídas em blocos ao longo de ruas de 4
m de largura, que corriam em direção a uma artéria central de 8 m de largura.
Cada casa ocupava uma área de terreno de 100 a 125 m
2
e continha uma
dúzia de aposentos em um só nível. Em outra parte da cidade, localizavam -se
as casas dos dirigentes casas que chegavam a ter até setenta aposentos, ou
habitações mais modestas, que, no entanto, eram consideravelmente maiores
do que as dos trabalhadores. Também eram construídas ao longo de avenidas
retas, paralelas aos muros da cidade. No centro dessas avenidas corria uma
valeta de escoamento.
As grandes fortalezas da Núbia seguiram esse mesmo modelo de construção.
O mesmo planejamento urbano foi adotado no Novo Império, notadamente em
Tell el -Amarna, onde as ruas se cruzavam em ângulos retos, embora a própria
cidade não apresentasse o mesmo rigor geométrico de Kahun.
Por certo seria arriscado sugerir que todas as cidades egípcias tinham uma
disposição semelhante à de Kahun ou Tell el -Amarna, que foram construí-
das ao mesmo tempo e sob as ordens de um único soberano. Cidades que se
desenvolveram aos poucos deviam ter um aspecto menos regular. Mas o fato
é que os planos geométricos da cidade e a padronização das moradias revelam
as tendências do planejamento urbano egípcio. E cabe aqui uma pergunta: não
seriam os egípcios os precursores do urbanismo helênico?
Se, por um lado, é incontestável a importância da contribuição egípcia no
domínio da arquitetura, torna -se difícil, por outro lado, avaliar a influência de
um tal legado no plano mundial. Arquitetos de diferentes culturas utilizaram e
ainda hoje utilizam colunatas, pirâmides e obeliscos que, inegavelmente, são
de origem egípcia. Mas não terá havido, além disso, uma influência mais remota
que chegou até nós por intermédio dos gregos? É difícil não reconhecer nas
colunas fasciculadas de Saqqara e nas colunas protodóricas de Beni -Hassan os
ancestrais remotos das colunas da Grécia e, mais tarde, da arte clássica romana.
Um fato, ao menos, parece confirmado: as tradições arquitetônicas dos faraós
penetraram na África através de Méroe e, depois de Napata, que transmitiram
formas – pirâmides e pilonos entre outras – e técnicas – construção com pedras
talhadas pequenas e bem modeladas.
151
O legado do Egito faraônico
 . Mirgissa. (Foto Missão Arqueológica Francesa para o Sudão.)
F . Mirgissa. (Foto R. Keating.)
152
África Antiga
Contribuição Cultural
Esse aspecto abstrato do legado egípcio faraônico abrange as contribuições
nos domínios da escrita, da literatura, da arte e da religião.
A Literatura
Os egípcios desenvolveram um sistema de escrita hieroglífica em que mui-
tos dos símbolos derivaram do seu meio ambiente africano. Pode -se afirmar,
portanto, que o se trata de um empréstimo, mas de uma criação original (cf.
Introdução).
Os egípcios expressavam -se inicialmente por meio de ideogramas. Estes
logo se formalizaram em símbolos representativos de elementos fonéticos que,
posteriormente abreviados, poderiam ser considerados uma etapa na criação da
escrita alfabética.
Os contatos culturais com a escrita semítica ocorridos no Sinai onde se
desenvolveram sistemas de escrita característicos que tomaram de empréstimo
formas aparentadas aos hieróglifos devem ter contribuído para a invenção
de um verdadeiro alfabeto. Este foi tomado de empréstimo pelos gregos, e sua
influência estendeu -se à Europa. Os antigos egípcios inventaram igualmente os
instrumentos de escrita (a que já nos referimos no item que trata das atividades
artesanais). A descoberta do papiro, transmitido à Antiguidade clássica, certa-
mente contribuiu – graças à leveza e flexibilidade desse material, e às dimensões
quase ilimitadas que podiam ter os rolos” de papiro – para a difusão de ideias e
conhecimentos. A extensa literatura da época faraônica cobre todos os aspectos
da vida dos egípcios, desde as teorias religiosas até os textos literários, como
narrativas, peças de teatro, poesia, diálogos e crítica. Essa literatura pode ser
considerada um dos legados culturais mais importantes do antigo Egito, ainda
que seja impossível determinar que aspectos foram absorvidos pelas culturas
africanas vizinhas. Um etnólogo moderno identificou entre os nilotas da provín-
cia de Equatoria (República do Sudão) uma lenda de origem egípcia, encontrada
num texto de Heródoto.
Alguns dos exemplos mais impressionantes da literatura egípcia estão entre
os escritos do Primeiro Período Intermediário e do início do Médio Império. O
eminente egiptólogo James Henry Breasted considerou essa literatura um sinal
precoce de maturidade intelectual e social. Descreveu esse período, em que o
homem podia dialogar com sua própria alma sobre temas metafísicos, como a
aurora da consciência. Um exemplo da literatura da época é o papiro Protestos
153
O legado do Egito faraônico
. Mirgissa, Muralha
externa.
F . Mirgissa. Muralha seten-
trional. (Fotos Missão Arqueológica
Francesa para o Sudão.)
154
África Antiga
do ‘Camponês Eloquente, que exprime o descontentamento com a comunidade e
com a situação do país. Essa obra pode ser considerada um dos primeiros passos
em direção à revolução social e à democracia.
Bom exemplo dos sentimentos expressos na literatura egípcia é o texto ins-
crito em quatro urnas funerárias de madeira encontradas em el -Bersheh, no
Médio Egito: “Criei os quatro ventos para que todos os homens respirassem...
Provoquei a inundação para que o pobre se beneficiasse tanto quanto o rico...
Criei cada homem igual ao seu próximo ...”.
Pode -se admitir, finalmente, que determinados elementos da literatura egíp-
cia tenham sobrevivido até nossos dias graças às maravilhosas narrativas da
literatura árabe. Esta, com efeito, parece ter suas fontes na tradição oral egípcia.
Assim, foi possível estabelecer um paralelo entre a história de Ali Babá e os
Quarenta Ladrões”, das Mil e Uma Noites, e um conto faraônico, A Captura de
Joppe”, assim como entre “Simbad, o Marujo” e “O Náufrago”, conto faraônico
do Médio Império.
A Arte
No campo das artes plásticas, diversos meios de expressão foram utilizados:
escultura, pintura, relevo, arquitetura. Os antigos egípcios aliavam às suas ati-
vidades terrenas a esperança de uma vida após a morte; assim, a arte epcia é
particularmente expressiva por representar crenças profundamente arraigadas.
Ao cessarem todos os sinais de vida, o ser humano ainda subsiste integral-
mente: para um egípcio a morte é aparente. No entanto, a sobrevivência
da pessoa depende da preservação do corpo -suporte, seja através da mumi-
ficão, seja, à falta desta, através de uma imagem. As estátuas e estatuetas,
os baixos -relevos e as pinturas nos túmulos o recursos para a perpetuação
da vida do indiduo no além. Por esse motivo, os detalhes do corpo humano
são representados com precisão. Para intensificar a vivacidade da expressão, os
olhos das estátuas eram incrustados, e a mesmo as sobrancelhas eram mol-
dadas em cobre ou prata. Os globos oculares eram feitos de quartzo branco,
e as pupilas, de resina. Produziam -se, por vezes, estátuas de ouro ou de cobre
martelado sobre um suporte de madeira, trabalho que requeria extrema habili-
dade e experncia na modelagem do metal. Tal habilidade pode ser observada
em numerosas estátuas datadas do período histórico provenientes de diversos
sítios arqueológicos.
No domínio das artes menores, os egípcios produziram uma enorme quanti-
dade de amuletos, escaravelhos e sinetes, assim como objetos ornamentais e joias
155
O legado do Egito faraônico
 . Mirgissa. Casa particular. (Foto Missão Arqueológica Francesa para o Sudão.)
F . Modelo de uma casa do Médio Império. (Foto fornecida pelo dr. G. Mokhtar.)
156
África Antiga
que, a despeito das pequenas dimensões, são de grande beleza. o dúvida
de que esses pequenos objetos eram os mais difundidos e apreciados na África,
no Oriente Próximo e mesmo na Europa, sendo, muitas vezes, indicadores de
laços que, no passado, ligaram o Egito a outras nações.
A produção artística do antigo Egito não tinha, em seu conjunto, uma função
essencialmente estética, mas era, sobretudo, expressão da crença egípcia de que
a vida terrena se repetiria no além.
A religião
Pode -se considerar a religião como uma das contribuições filosóficas do
Egito. Os antigos egípcios desenvolveram inúmeras teorias sobre a criação da
vida, o papel das forças naturais e a reação da comunidade humana frente a elas,
assim como sobre o mundo dos deuses e sua influência no pensamento humano,
os aspectos divinos da realeza, o papel dos sacerdotes no interior da comunidade
e a crença na eternidade e na vida além -túmulo.
Essa profunda experiência do pensamento abstrato influenciou a comu-
nidade egípcia de tal modo que terminou por produzir um efeito duradouro
sobre o mundo exterior. Para o historiador, é particularmente visível a influ-
ência religiosa egípcia sobre certos aspectos da religião greco -romana, como se
pode constatar pela popularidade da deusa Ísis e do seu culto na Antiguidade
clássica.
Transmissão do legado faraônico. Papel do corredor
Sírio -Palestino
A Fenícia desempenhou um papel especialmente importante na transmissão
do legado faraônico ao resto do mundo.
A influência do Egito sobre a Fenícia pode ser atribuída aos contatos eco-
nômicos e culturais entre as duas regiões. Essa relação tornou -se visível quando
o comércio e a exploração começaram a se expandir, durante as épocas pré-
-dinástica e protodinástica, com o objetivo de satisfazer as amplas necessidades
do período. A própria invenção da escrita como meio essencial de comunicação
foi, em parte, consequência de fatores econômicos e religiosos. Isso significa que
os contatos com a Fenícia eram indispensáveis para a importação de matérias-
-primas vitais, como a madeira, por exemplo, necessária para a construção de
templos e monumentos religiosos.
157
O legado do Egito faraônico
 . A deusa Hátor.
Os comerciantes egípcios estabeleceram um santuário em Biblos, cidade
com que mantinham estreitos contatos comerciais. A cultura e as ideias egíp-
cias difundiram -se por toda a bacia do Mediterrâneo por interdio dos
fenícios.
A influência da cultura egípcia sobre a sabedoria bíblica, entre outras, é
notável (cf. Catulo 3). As relações comerciais e culturais com o Levante
estabeleceram -se ao longo do II e do I milênio antes da Era Cristã, período
que compreende o Médio e o Novo Império, bem como as últimas dinastias.
Os contatos desenvolveram -se naturalmente, acompanhando a expansão polí-
tica e militar egípcia; traços da arte egípcia aparecem em vários sítios sírios e
palestinos, tais como Ras Shamra, Qatna e Megido, como se pode observar nas
158
África Antiga
estátuas, esfinges e padrões decorativos. A troca de presentes colaborou para a
expansão das relações culturais e comerciais.
É importante assinalar que a influência arstica egípcia se faz sentir na
arte síria, como resultado direto dos contatos entre o Egito e o Levante. Em
Mitani, no nordeste da Síria, também se podem observar elementos artísticos
egípcios, como a deusa egípcia Hátor, representada em pinturas murais. Tudo
leva a crer que a influência artística egípcia se difundiu da Síria para as comu-
nidades vizinhas. Esse fato é ilustrado pelo uso de cabos e apliques de marfim,
assim como pela presença de motivos egípcios na ornamentação de vasilhas de
bronze, e, principalmente, pelas tentativas de imitação da indumentária egípcia,
dos escaravelhos alados e das esfinges com cabeça de falcão.
A influência artística egípcia, observada nas artes fenícia e síria, combina -se
com motivos artísticos locais e outros elementos estrangeiros, tanto na escultura
em ronde -bosse como no baixo -relevo. Esse fenômeno pode ser constatado não
apenas na Síria, mas também nos objetos fenícios encontrados em Chipre e na
Grécia, uma vez que os fenícios desempenharam um importante papel cultural
e comercial no mundo mediterrânico e levaram certos elementos da cultura
egípcia a outras regiões.
Vestígios da escrita hieroglífica egípcia foram encontrados nos textos semíti-
cos do Levante, como podemos observar pela comparação entre alguns hierógli-
fos egípcios típicos, os símbolos proto -sinaítas e o alfabeto fenício. Os elementos
proto-sinaítas receberam influência dos ideogramas hieroglíficos egípcios e os
simplificaram de modo a deixá -los próximos dos símbolos alfabéticos. A escrita
proto -sinaíta poderia ser vista como um passo em direção ao alfabeto fenício e,
portanto, ao alfabeto europeu.
Esse vasto legado faraônico, disseminado pelas civilizões antigas do
Oriente Próximo, foi por sua vez transmitido à Europa moderna por intermé-
dio do mundo clássico.
Os contatos econômicos e políticos entre o Egito e o mundo mediterrânico
oriental, no período histórico, resultaram na disseminação de objetos da civi-
lização faraônica por regiões como a Anatólia e o mundo egeu pré -helênico.
Uma taça gravada com o nome do templo solar de Userkaf, primeiro faraó da V
dinastia, foi encontrada na ilha de Cítera, enquanto fragmentos de uma cadeira
de braços folheada a ouro exibindo os títulos de Sahure foram encontrados em
Dorak, na Anatólia.
Ao lado das relações entre o Egito faraônico e o mundo mediterrânico, é
importante sublinhar a presença de laços culturais a unir o Egito ao interior
africano. Tais vínculos existiram tanto na pré -história mais longínqua quanto
159
O legado do Egito faraônico
na época histórica. A civilização egípcia impregnou as culturas africanas vizi-
nhas. Estudos comparativos comprovaram a existência de elementos culturais
comuns à África negra e ao Egito, como, por exemplo, a relação entre a realeza
e as forças naturais. Isso fica claro a partir dos achados arqueológicos no antigo
território do país de Kush: pirâmides reais foram construídas em el -Kurru, Nuri,
Djebel Barkal e Méroe, testemunhando a magnitude da influência egípcia sobre
a África.
Lamentavelmente, o nosso desconhecimento da língua dos meroítas, assim
como da extensão do seu Império, impede -nos de avaliar o impacto que a civi-
lização egípcia deve ter exercido sobre o conjunto das culturas da África antiga
a leste, a oeste e ao sul do império meroíta.
C A P Í T U L O 6
161
O Egito na época helenística
O Império de Alexandre, o Grande, à época de sua morte, compreendia a
Macedônia, uma grande parte da Ásia Menor, a costa oriental do Mediterrâneo,
o Egito e estendia -se para leste, na Ásia, até o Pendjab. Após sua morte, em
-323, as três dinastias fundadas por três de seus generais estavam bem fortale-
cidas para poder dirigir o Império: os antigônidas, na Macedônia, os selêucidas,
no antigo Império Persa, na Ásia, e os Ptolomeus, no Egito.
Os Ptolomeus reinaram no Egito durante três séculos, abrindo um período
bastante distinto dos anteriores na história desse país, pelo menos no que diz
respeito aos aspectos externos de sua vida e de sua geografia política. O Egito
cairia em seguida sob a dominação romana
1
.
Um novo tipo de Estado no Egito
Sob o reinado de mais de uma dúzia de soberanos lágidas, o Egito foi,
de início, fortemente marcado pela chancela dos governantes estrangeiros e
1 Esses limites são convencionais. Ver: TARN, W. 1930. p. 1 et seqs. M. BIEBER. (p. 1 et seqs.) dá como
limite -330 a -300 e menciona outros autores, como DROYSEN (de -280 até a época de Augusto) e
R. LAGUEUR, para o qual o período se inicia em -400.
O Egito na época helenística
H. Riad colaboração de J. Devisse
162
África Antiga
pelas necessidades da nova política, seguindo -se uma lenta assimilação, como
de outras vezes, dos novos senhores
2
do Delta
3
.
A defesa avançada da capital Alexandria –, situada, pela primeira vez na
história do Egito, no litoral (provavelmente a partir da época de Ptolomeu II),
necessitava agora do controle militar e naval do Mediterrâneo oriental. O duplo
perigo dos ataques dos rivais sírios e núbios compeliu os lágidas a adotar uma
política militar demasiado dispendiosa. Em primeiro lugar, tinham que distri-
buir terras aos mercenários, bem como arcar com pesadas despesas em numerá-
rio; em segundo, viam -se obrigados a procurar em regiões distantes do Egito as
bases materiais para uma força militar satisfatória. Visando garantir um estoque
de madeira para a construção de embarcações, restringiram -se os trabalhos de
construção no Egito, desenvolveram -se as plantações reais no vale do Nilo e
importaram -se madeiras do Egeu e das ilhas, bem como alcatrão, pez e ferro,
indispensáveis na construção naval
4
. Criava -se, assim, o que se caracterizaria
como traço permanente da vida econômica egípcia por mais de mil anos. O
aspecto mais espetacular desse desenvolvimento marítimo reside no estabeleci-
mento de bases para a caça do elefante ao longo da costa africana até a Somá-
lia
5
, e na construção, extremamente custosa, de navios para o transporte desses
animais. Os elefantes eram utilizados nos combates com os rivais selêucidas,
que, por sua vez, costumavam trazê -los da Ásia
6
. Assim, fazia -se necessário
também buscar na Índia cornacas (domadores) que adestrassem os elefantes
capturados. Desses esforços, o único traço remanescente manifesta -se nas suas
consequências de caráter cultural: a descoberta do mecanismo das monções por
Hipalo, no reinado de Ptolomeu III, abreviou a viagem às Índias e tornou -a
menos perigosa e custosa. Cresceram, naturalmente, as relações comerciais com
a Ásia
7
. Os Ptolomeus não pouparam esforços para a melhoria das relações
2 Isso é particularmente verdadeiro na época do fundador da linhagem, Ptolomeu Sóter I (-367 a -283),
de seu lho Ptolomeu II Filadelfo (-285 a -246) e de Ptolomeu III Evergeta (-246 a -221), que foram
os mais notáveis guerreiros – e talvez governantes – de toda a linhagem.
3 C. PRÉAUX (1950. p. III) faz justiça ao chamar a atenção para a importância inaudita do Delta nas
relações exteriores do Egito.
4 C. PRÉAUX (1939) sublinha a importância da empresa: em -306, Ptolomeu I dispunha de duzentos
navios, enquanto Ptolomeu Filadelfo espalhou mais de quatrocentos por todo o Império.
5 LECLANT, J. 1976b. v. I, p. 230. Ptolomeu Filadelfo mandou abrir portos em Arsínoe, Myos Hormos
e Berenice. Empreendeu também a demarcação de estradas entre o Nilo e o mar Vermelho (PRÉAUX,
C. 1930).
6 PRÉAUX, C. 1939.
7 “Ptolomeu Filadelfo procurou desviar da rota das caravanas árabes as mercadorias que, através dela,
vinham da Etiópia, da própria Arábia e, por intermédio dos árabes, da Índia. É novamente Alexandria
a beneciária dessa política.” Citado por A. Bernand, pp. 258 -9.
163
O Egito na época helenística
entre o mar Vermelho e o Delta. O canal que Dario I mandara abrir no braço
oriental do Nilo até os lagos Amargos foi aprofundado no reinado de Ptolomeu
Filadelfo, facilitando a navegação de embarcações de grande porte. Sob esse
mesmo rei foi construída uma estrada ligando Coptos, em Tebaida, a Berenice,
no mar Vermelho.
A política externa envolveu os lágidas em pesadas despesas, que precisavam
ser compensadas por meio de taxas que beneficiassem os cofres reais. O con-
trole rigoroso da economia e a supervisão das exportações, algumas das quais
desenvolvidas sistematicamente sob monopólio real, ofereceram solução parcial
ao problema. O trigo era estocado nos imensos celeiros de Alexandria. O rei
dispunha, assim, de um produto que podia ser exportado para o norte em troca
de matérias -primas estratégicas; dispunha igualmente dos meios para recom-
pensar a numerosa população de Alexandria, através da distribuição periódica
desse cereal, em particular nas épocas de escassez. O aumento da produção de
artigos de exportação deu origem a uma política sistemática de cultivo de terras
virgens a expensas do tesouro real. O poder, porém, permaneceu indiferente ao
destino dos lavradores egípcios. Pelo menos no início, não mais atuou como
coordenador da produção, tal como os faraós haviam feito, mas simplesmente
como predador dos produtos de que o tesouro necessitava
8
.
Outro recurso para fazer frente às enormes despesas com armamentos e
importações consistiu na exportação de produtos africanos para o Mediterrâneo:
marfim, ouro, plumas e ovos de avestruz eram comprados no sul do Egito e no
Chifre da África e revendidos no Mediterrâneo. Outras mercadorias madei-
ras raras, corantes, sedas e pedras preciosas provinham do oceano Índico e
eram reexportadas (em alguns casos, após serem trabalhadas pelos alexandrinos)
para a Grécia, colônias gregas, Itália e todo o Mediterrâneo oriental até o mar
Negro. Mais uma vez, como se poderá constatar, essa atividade comercial teria
consideráveis repercussões culturais.
É provável que os lágidas tenham vendido escravos, embora esse comércio
fosse, por certo, mais modesto que o de Cartago durante o mesmo período
9
.
Procurou -se, igualmente, reduzir as despesas advindas da compra de artigos
especialmente destinados à populosa colônia grega que vivia no Egito. Desse
modo, com a intenção de satisfazer os gostos e os hábitos dos gregos, os lágidas
tentaram a toda força introduzir novas culturas, como, por exemplo, a do bál-
samo, mas os camponeses egípcios mostraram -se refratários a essas novidades.
8 Naturalmente, o papiro estava entre esses produtos.
9 LECLANT. J. 1976b. p. 230.
164
África Antiga
Uma orientação como essa poderia frutificar às custas de um estado de
constante prontidão militar e de permanente controle sobre o Mediterrâneo
oriental, o mar Vermelho e o oceano Índico. Os lágidas nunca estiveram em
condições de conservar com firmeza todas as cartas nas mãos: a partir do quarto
soberano da linhagem, o controle lhes foi escapando pouco a pouco, e o Egito
retomou lentamente sua economia tradicional.
Não obstante, os lágidas deram um vigoroso impulso à economia egípcia
embora talvez demasiado artificial, que o Estado e a classe dominante grega
foram seus principais beneficiados.
A indústria de transformação desenvolveu -se particularmente bem nas regi-
ões do Delta e de Alexandria. Dedicaram -se esforços especiais à obtenção da lã
e à introdução dos carneiros árabe e milésio. As fiações aprenderam a trabalhar
a nova matéria -prima em conjunto com o linho, produzindo -se então catorze
diferentes variedades de tecido. Alexandria detinha o monopólio da manufatura
do papiro, uma planta peculiar ao Egito, que crescia nos pântanos do Delta,
não distantes da capital. A arte da vidraria, conhecida ao tempo dos faraós,
alcançou um alto grau de refinamento; novos métodos foram aperfeiçoados no
reinado dos Ptolomeus. Durante séculos, Alexandria foi conhecida como centro
de fabricação de produtos de vidro. Seus artesãos eram também donos de notável
habilidade no trabalho de metais como o ouro, a prata e o bronze, e seus vasos
marchetados eram muito apreciados.
Alexandria não exportava as mercadorias que produzia (tecido, papiro,
vidro, joias, etc.), como também reexportava as que lhe chegavam da Arábia, da
África oriental e da Índia.
Parte do preço pago pelo desenvolvimento dessa espécie de produção indus-
trial no Delta foi, sem dúvida, o crescimento da escravidão
10
.
A resolução de todos esses problemas exigia uma forte moeda corrente
11
. Para
a ampliação do comércio com o restante do mundo helenístico, era necessário
que a moeda se ligasse aos padrões monetários daquele mundo, os quais eram
estranhos ao Egito. Instaurou -se então um novo sistema financeiro. Os bancos
exerciam então importante papel na vida econômica do Egito. Um banco cen-
tral estatal foi estabelecido em Alexandria, com filiais nas capitais dos nomos e
subfiliais nas aldeias mais importantes. Os bancos reais efetuavam toda sorte de
10 PRÉAUX, C. 1939.
11 Durante o reinado dos lágidas, intensica -se a procura do ouro nos vales dos auentes do Nilo, em
direção à Etiópia, Estrabão descreveu as condições de extração como estarrecedoras. A quantidade de
ouro produzida era insuciente para vencer a demanda, e seu preço subia constantemente. Id.
165
O Egito na época helenística
transação bancária. Existiam também bancos privados, de papel secundário na
vida econômica do país. A operação dos monopólios reais e a pesada adminis-
tração fiscal eram dispendiosas e impunham à população um pesado ônus
12
. Esta
economia tão bem estruturada não trouxe benefícios financeiros de nenhuma
espécie aos próprios egípcios.
No domínio da agricultura eram constantes os conflitos entre a população
nativa e os estrangeiros. Alguns desses conflitos terminavam com os campo-
neses procurando a proteção divina nos templos ou fugindo para longe de suas
habitações.
Os lágidas eram considerados os reis mais ricos de sua época. Suas riquezas
certamente eram partilhadas por um grande número de gregos pertencentes à
classe dominante, que viviam em meio ao conforto. Se lhes aprazia, os lágidas e
os gregos de Alexandria podiam, por exemplo, obter facilmente uma variedade
de flores e de frutos, mesmo quando fora da capital
13
.
Ptolomeu Filadelfo foi o primeiro a constatar que esse sistema poderia vir
a se constituir num fardo insuportável para os egípcios. Alimentava o desejo
de tornar -se um verdadeiro soberano egípcio e herdeiro dos faraós sabemos,
por exemplo, que ele chegou a visitar os trabalhos de exploração das terras do
Fayum, uma tendência que se acentuou entre os seus sucessores após terem
fracassado no exterior.
Os lágidas, no entanto, jamais lograram eliminar a desigualdade básica da
sociedade que governavam.
Do ponto de vista social, político e econômico, os estrangeiros viviam uma
situação bastante diferente daquela da população nativa, gozando de grandes
vantagens. Os altos funcionários do palácio e os membros do governo eram
estrangeiros, assim como os oficiais do exército e os soldados. Na área da agri-
cultura, os estrangeiros contavam com maiores chances que os egípcios de se
tornarem proprietários rurais. Na indústria, eram os empregadores, não os
empregados. A quase totalidade dos bancos reais e privados era dirigida por eles.
Em suma, os estrangeiros eram ricos, e os nativos, pobres. Quando um egípcio
queria fazer um empréstimo em dinheiro ou em gênero (trigo), tinha de fazê-
-lo, em geral, junto a um estrangeiro; quando desejava arrendar um pedaço de
terra, recorria, frequentemente, a um proprietário estrangeiro, e assim por diante.
Desse modo, os nativos foram -se convertendo em dóceis instrumentos nas
12 Como quase sempre acontecia, o peso da scalização era maior quando os sucessos iniciais se seguiam
de reveses. Id.
13 Sobre o conjunto da economia lágida, ver publicação de E. WILL (p. 133 et seq.).
166
África Antiga
mãos dos estrangeiros. Além do trabalho habitual, os egípcios nativos viam -se
compelidos a cumprir inúmeras obrigações. Eram requisitados para o trabalho
nos canais e diques e, de tempos em tempos, nas minas e nas pedreiras. Por
favores especiais, os estrangeiros provavelmente estavam isentos desse trabalho
compulsório, e certas classes dentre eles gozavam de privilégios nas taxações
de impostos. Não se deve exagerar, porém, o quadro dessa situação. Alguns
autóctones, como Mâneton, por exemplo, enriquecendo -se e colaborando com
os gregos, logravam alcançar um lugar entre as classes dominantes.
A arqueologia por vezes oferece dados relacionados a essa sociedade que
desafiam a interpretão: E. Bernand publicou um epitáfio dedicado a um
escravo negro, escrito por um poeta local de cultura grega
14
.
Uma das consequências menos previsíveis da chegada ao Egito de um grande
número de gregos consistiu na propagação de certos cultos egípcios por todo o
mundo grego.
De início, os gregos recém -chegados tinham seus próprios deuses e suas
próprias crenças religiosas, bastante distintos dos cultos egípcios. No entanto
surge rapidamente a tendência a associar certos deuses gregos a divinda-
des egípcias, criando -se, assim, uma nova tríade, formada por Sepis como
Deus -Pai, Ísis como Deusa -Mãe e Harpócrates como Deus -Filho. Para os
egípcios, Serápis é o antigo deus Osir -Hapi, ou Osírapis (de onde derivou
o nome Serápis). Para os gregos, Serápis, representado por um velho barbudo,
assemelha -se a Zeus. Cada uma das comunidades venera -o à sua maneira. Ísis,
deusa puramente egípcia, é doravante representada vestindo uma túnica grega
com o característico nó sobre o peito. Harpócrates é Hórus, filho de Ísis, repre-
sentado por um menino com o dedo na boca.
O ponto central dessa nova religião é o Serapeu, erguido a oeste de Alexandria.
Dispomos de pouca informação sobre as características desse templo, mas sabe-
mos, por descrições de historiadores romanos, que se situava numa alta plataforma,
a que se tinha acesso por uma escada de cem degraus. no século III antes da
era cristã, o culto de Serápis estendia -se rapidamente pelas ilhas do mar Egeu.
No século I, Serápis e Ísis são invocados por toda parte como salvadores. Seus
cultos propagam -se a regiões longínquas: o de Ísis chega a Uruk, na Babilônia,
o de Serápis, à Índia. De todas as divindades do mundo helenístico, Ísis, a de
Nomes Inumeráveis, é provavelmente a maior. O hino a Ísis, descoberto em Zos,
diz o seguinte: “Sou aquela a quem as mulheres chamam deusa. Ordenei que
14 BERNAND, E. pp. 143 -7.
167
O Egito na época helenística
as mulheres fossem amadas pelos homens, reuni marido e mulher e inventei o
casamento. Ordenei que as mulheres gerassem filhos, e que os filhos amassem
seus pais”
15
. Com o triunfo do cristianismo, apenas Ísis sobrevive; suas estátuas
servem como imagens da Madona.
15 TARN, W. 1930. p. 324.
 . Relevo representando a deusa Ísis com o lho Harpócrates em segundo plano.
168
África Antiga
Ao sublinhar o papel do negro africano na propagação do culto de Ísis
16
, Jean
Leclant observa que a cabeça esculpida de um sacerdote de Ísis descoberta em
Atenas e datada do século I é provavelmente a de um mestiço
17
.
Uma capital célebre no litoral “ao lado do Egito
Durante o reinado dos Ptolomeus foi fundada Alexandria, cidade tão prós-
pera que se converteu não apenas na capital do Egito mas também na mais
importante cidade do mundo helenístico. Convém ressaltar que o Egito, derro-
tado militarmente e incorporado politicamente ao Império Macedônico, exerceu
um fascínio singular sobre Alexandre, que queria fixar um dos seus projetos
urbanos mais célebres e onde, muito provavelmente, pensou estabelecer a capital
do Império. Além disso, tinha -se a cultura egípcia em tão alta consideração que
os sábios do Império logo passaram a viver em Alexandria. Enquanto se manteve
o reinado dos Ptolomeus, Alexandria foi considerada como a capital intelectual
do mundo mediterrânico. Falava -se dessa cidade como se não se situasse no
Egito, mas próximo ao Egito (Alexandria ad Aegyptum). Estrabão definiu -a da
seguinte maneira:
A principal vantagem da cidade está no fato de ser o único lugar em todo o Egito
igualmente bem situado para o comércio marítimo, em virtude da excelência dos
seus portos, e para o comércio interno, pois o rio facilita o transporte de todas as
mercadorias e reúne -as nesse lugar que se transformou no maior mercado do mundo
habitado
18
.
Nessas poucas linhas, porém, Estrabão excede nos elogios ao local descrito e
fica bem longe de pintar um quadro completo de Alexandria.
A construção da cidade e dos seus portos exigiu, de fato, uma grande quan-
tidade de mão de obra durante um período bastante longo
19
.
O local da nova cidade havia sido escolhido por Alexandre, o Grande,
quando este se deslocava de Mênfis para o oásis de Amon (Siwa) para consul-
tar o célebre oráculo no templo de Zeus -Âmon em -331. Maravilhou -se com
a excelente posição da faixa de terra situada entre o Mediterrâneo, ao norte, e
16 LECLANT, J. 1976b. p. 282; ver também SNOWDEN Jr., F. M. 1976. pp. 112 -6.
17 LECLANT, J. 1976b. nota 80.
18 Citado por E. BERNAND, p. 92.
19 Para citarmos apenas um exemplo, enormes cisternas conservavam água fresca para os habitantes. No
início do século XIX, trezentas delas ainda podiam ser vistas. Id., p. 42.
169
O Egito na época helenística
o lago Mareótis, ao sul, distante dos pântanos do Delta e, no entanto, próxima
do braço canópico do Nilo. O local encontrava -se ocupado por uma pequena
aldeia chamada Rakoti, bem protegida das vagas e das tempestades pela ilha
de Faros. Os planos da futura cidade que imortalizaria o nome de Alexandre
foram traçados pelo arquiteto Dinócrates, e imediatamente postos em execução.
À época da morte de Alexandre, a obra não tinha avançado muito e, ao que tudo
indica, não foi terminada até o reinado de Ptolomeu II (-285 a -246).
Tencionando ligar a ilha de Faros à terra firme, o arquiteto projetara um
imenso quebra -mar denominado Heptastádion (porque possuía sete estádios
ou, aproximadamente, 1200 m de comprimento); essa construção es hoje
desaparecida sob os depósitos aluviais que se acumularam de ambos os lados.
A construção do Heptastádion resultou na formação de dois portos: o do
leste, o “Portus Magnus”, era maior e mais importante que o do oeste, denomi-
nado Portus Eunostos”, ou o porto do retorno seguro. Um terceiro porto sobre
o lago Mareótis destinava -se ao comércio interno.
O planejamento da cidade seguiu o modelo das cidades gregas mais moder-
nas da época. Sua principal característica era o predomínio de linhas retas. As
ruas, em sua maioria, eram retilíneas e cruzavam -se em ângulos retos.
Com Ptolomeu I Sóter, Mênfis ainda detinha o principal papel político, mas,
após o corpo de Alexandre, segundo se diz, ter sido transportado para a nova
capital
20
, Ptolomeu II instalou a sede do poder da dinastia lágida em caráter
permanente.
A cidade dividia -se em distritos. Filo de Alexandria (-30 a +45) diz terem
existido cinco distritos, designados pelas cinco primeiras letras do alfabeto grego.
Infelizmente pouco sabemos a respeito deles. O bairro real ocupava quase um
terço da cidade, limitando -se com o porto ocidental. Tratava -se da parte mais
atraente da cidade, com palácios reais rodeados por jardins, onde se encontravam
fontes magníficas e jaulas com animais trazidos de todas as regiões conhecidas
do mundo. O distrito abrigava ainda o famoso Museu, a Biblioteca e o cemitério
real.
Os habitantes da cidade viviam em comunidades. A parte oriental era habi-
tada por gregos e estrangeiros, o distrito do Delta próximo ao bairro real, pelos
judeus, e a parte ocidental, pelos egípcios nativos, no distrito de Rakoti. A tota-
lidade da população era tida como instável, embora os diversos grupos étnicos
e sociais diferissem acentuadamente uns dos outros.
20 Id. p. 299: o túmulo, se existiu, nunca foi encontrado.
170
África Antiga
 . Cabeça de Alexandre, o Grande.
171
O Egito na época helenística
O espectro social da cidade abria -se em amplo leque. No topo, estavam o rei e
sua corte, os altos funcionários e o exército. Seguiam -se os eruditos, os cientistas
e homens de letras, os negociantes ricos, os pequenos comerciantes, os artesãos,
os estivadores, os marinheiros e os escravos. Os egípcios nativos, porém, forma-
vam o corpo principal da população de Alexandria, abrangendo os camponeses,
os artesãos, os pequenos comerciantes, os pastores, os marinheiros, etc.
Falavam -se várias línguas nas ruas da cidade. O grego, em seus vários diale-
tos, era naturalmente a mais difundida; o egípcio era a língua falada nos bairros
dos nativos, enquanto no bairro judeu predominavam o aramaico e o hebraico;
ouviam -se igualmente outras línguas semíticas.
Alexandria tornara -se particularmente célebre por certos monumentos, cuja
localização é difícil de determinar nos dias de hoje. Algumas das partes mais
importantes da cidade helenística acham -se atualmente abaixo do nível do mar,
e o restante, soterrado sob a cidade moderna. Portanto, quando falamos nos
monumentos da cidade antiga, é com base em descrições fornecidas por autores
da Antiguidade, assim como nas descobertas dos arqueólogos.
Na parte sudeste da ilha de Faros, à entrada do porto do leste, erguia -se
o célebre Farol (Pharos), considerado uma das sete maravilhas do mundo. Os
faróis da Antiguidade dele herdaram o nome e a forma básica. No século XIV,
o Farol de Alexandria foi inteiramente destruído, de modo que o que sabemos
a respeito de sua forma e de sua disposição fundamenta -se em algumas poucas
referências clássicas e descrições de historiadores árabes
21
.
As moedas antigas e as representações em mosaico dão -nos uma ideia de
sua forma. Foi concebido pelo arquiteto Sóstrato de Cnido, por volta de -280,
no reinado de Ptolomeu Filadelfo. Media cerca de 135 m de altura, tendo sido
construído principalmente com pedras calcárias. Os frisos e os ornamentos eram
em mármore ou bronze.
O Farol funcionou até a época da conquista árabe em +642. Este ano marca
o início de uma série de catástrofes, que se sucederam até o século XIV. Em
+1480, o sultão mameluco Kait Bey aproveitou as pedras retiradas das ruínas do
Farol para a construção de um forte que fazia parte da defesa litorânea contra
21 Em +1166 Abu -l -Hajjy Yussuf Ibn Muhammad al -Balawi al -Andalusi visitou Alexandria como turista.
Ele nos deixou uma descrição precisa das dimensões do farol. A seção de base era um quadrado com
8,35 m de lado; o primeiro estágio elevava -se a 56,73 m; o segundo, que tinha uma seção octogonal,
erguia -se sobre o primeiro a 27,45 m, enquanto o terceiro era um cilindro com 7,32 m de altura (ver
BERNAND, E. 1966. p. 106); As medidas fornecidas por esse autor árabe não coincidem com as que
são tradicionalmente atribuídas ao Farol de Alexandria.
172
África Antiga
os turcos, os quais, na época, ameaçavam o Egito. O forte ainda existe e traz o
nome do sultão.
A palavra árabe al -manarah designa tanto farol” quanto minarete”. O Farol
de Alexandria foi por diversas vezes considerado o protótipo dos minaretes
das mesquitas; embora se trate de um fato não estabelecido com absoluta cer-
teza, existem semelhanças curiosas entre as proporções do Farol e as de certos
minaretes.
O Museu, com sua imensa biblioteca, foi sem dúvida a mais importante
realização dos lágidas em Alexandria. Sua construção teve início por decisão de
Ptolomeu I Sóter, a conselho de um refugiado ateniense, Demétrio de Falero.
A palavra museu deriva de musas, entidades cuja adoração simbolizava o espírito
científico. Estrabão descreveu os edifícios do seguinte modo:
“Os palácios reais também compreendem o Museu, que abrange um passeio, uma
êxedra e um vasto salão, no qual os filólogos se reúnem para as refeições. Existem
também recursos gerais para a manutenção do colégio; o responsável pela direção do
Museu é um sacerdote nomeado pelos reis, ou, em nossos dias, por César
22
.
Assim, os cientistas e os homens de letras viviam naquela instituição, que
lhes fornecia moradia e alimentação e lhes dava condições de se dedicarem
integralmente às pesquisas e aos estudos, dispensando -os de qualquer tarefa de
natureza material. A organização assemelhava -se à das universidades modernas,
com a diferença de que os residentes não eram solicitados para ministrar aulas
23
.
No século II da Era Cristã ainda havia quem ambicionasse o título de resi-
dente do Museu de Alexandria.
Demétrio de Falero aconselhara Ptolomeu Sóter a criar uma biblioteca que
abrigasse toda a cultura contemporânea, através da aquisição e cópia sistemática
de manuscritos. Em pouco tempo, coletaram -se mais de 200 mil volumes. A
administração desse repositório cultural estava confiada a ilustres especialistas
do mundo grego contemporâneo
24
.
Uma outra biblioteca, de menor importância, situada no Serapeu, abrigou
45 mil volumes.
22 Estrabão. Londres, 1917. pp. 17 -8.
23 Como nossas universidades, o Museu por vezes recebia críticas. Um alexandrino queixava -se de que “no
populoso Egito, os escribas, grandes amantes dos engrimanços, engordam e se entregam a inndáveis
querelas dentro do viveiro das Musas”. Apud BERNAND, E. 1966.
24 Um deles, Calímaco de Cirene (-310 a -240), organizou um catálogo em 120 volumes de tudo o que a
Biblioteca continha.
173
O Egito na época helenística
 . O Farol de Alexandria.
174
África Antiga
Em nenhuma outra parte do mundo helenístico veio a existir uma instituição
da estatura do Museu de Alexandria. A única biblioteca capaz de concorrer com
a de Alexandria situava -se em Pérgamo. É, em grande medida, graças à Biblio-
teca de Alexandria que hoje conhecemos as tragédias de Ésquilo, as comédias
de Aristófanes, as odes de Píndaro, Baquílides e as histórias de Heródoto e de
Tucídides.
Recursos culturais dessa natureza não podiam deixar de atrair os sábios do
mundo grego. Com efeito, muitos deles foram a Alexandria e fizeram no Museu
algumas das mais importantes descobertas da Antiguidade.
Certos poetas atuaram tanto como secretários quanto como cortesãos. Calí-
maco compôs ali, entre tantas obras, sua célebre elegia Os Cabelos de Berenice.
Berenice, esposa de Ptolomeu III Evergeta, prometeu dar aos deuses um anel
dos seus cabelos se seu marido voltasse são e salvo da guerra na Síria. Quando
ele retomou, a rainha cumpriu a promessa. No dia seguinte, a mecha real desa-
pareceu do templo. Na época, Cônon, o astrônomo, havia descoberto uma nova
constelação, a que chamou Cabeleira de Berenice, criando a lenda de que os
próprios deuses haviam retirado a mecha do templo para colocá -la no céu. A
constelação ainda hoje tem esse nome. Calímaco exaltou o tributo cortês do
astrônomo numa elegia que conhecemos apenas na tradução latina de Catulo
(cerca de -84 a -54).
Os geógrafos, cosmógrafos e astrônomos desempenharam um importante
papel no desenvolvimento científico de Alexandria. Como veremos, porém,
algumas de suas descobertas devem -se essencialmente ao Egito e não apenas à
Biblioteca de Alexandria.
Eratóstenes, o pai da geografia científica, nasceu em Cirene, por volta de
-285. Em torno de -245, Ptolomeu ofereceu -lhe um posto de bibliotecário, que
veio a ocupar até sua morte. Seu mais notável empreendimento consistiu na
tentativa de medição da circunferência da Terra, fundamentando seus cálculos
na relação entre a sombra projetada no solstício do verão no relógio de sol de
Alexandria e a ausência de sombra em Siena (Assuã). Concluiu que a circunfe-
rência da Terra era de 252 mil estádios (isto é, 46695 km), que ultrapassa em um
sétimo a circunferência real da Terra (40008 km). Eratóstenes também chegou
a catalogar 675 estrelas.
O geógrafo Estrabão (cerca de -63 a +24), a quem se deve a mais antiga
descrão sistemática da geografia do Egito, nasceu na Capadócia, passou a
maior parte de sua vida em Roma e na Ásia Menor e finalmente se fixou em
Alexandria. Embora tenha pertencido ao período romano, o essencial de sua
175
O Egito na época helenística
obra foi helênico. Seu tratado de geografia compreende dezessete volumes,
sendo os quase dois terços do último volume dedicados à descrição do Egito.
A geografia e a astronomia pressupõem um conhecimento avaado da
matemática. Entre os homens eminentes do Museu encontrava -se o célebre
matemático Euclides (-300 a -275), o primeiro a receber a direção do depar-
tamento de matemática e autor de importante obra sobre astronomia (os
Femenos) e do lebre tratado sobre geometria (os Elementos), que perma-
neceu como a obra básica no assunto e foi traduzida para o latim e o árabe.
Arquimedes de Siracusa (-287 a -212), um dos grandes matemáticos da escola
de Euclides, descobriu a relação entre o dmetro e a circunferência, a teoria
da espiral e a lei da gravidade. Sua contribuição mais importante à matemática
e à mecânica, porém, foi a invenção que ficou conhecida como o “parafuso de
Arquimedes”, um dispositivo que ainda hoje é utilizado no Egito para elevar
a água.
Apolônio de Perga, o grande geômetra, deixou Palmira por volta de -240
para ir trabalhar na escola de matemática de Alexandria, devendo sua fama
ao notável tratado que elaborou sobre as seções cônicas. Foi o fundador da
trigonometria.
A princípio demasiado dependente dos discípulos de Eudóxio e de Pitágoras,
a partir do século III a escola de matemática de Alexandria adquire caracterís-
ticas próprias, tornando -se o principal foco da matemática grega.
Teofrasto, que viveu na época de Ptolomeu I, é considerado o fundador da
botânica científica em virtude de sua obra sobre a história e a fisiologia das
plantas.
O historiador Diodoro da Sicília visitou o Egito em -59. O primeiro volume
da sua obra Biblioteca Histórica, escrita em língua grega, é dedicado ao estudo
dos mitos, dos reis e dos costumes do Egito. Segundo Diodoro, a primeira
aparição do homem na face da Terra deu -se no Egito. Nas suas palavras (I, 10):
“No começo do mundo, o homem surgiu pela primeira vez no Egito, devido ao
clima favorável do país e à natureza do Nilo”.
Os médicos também trabalharam no Museu e na Biblioteca. A liberdade
intelectual ali reinante permitiu -lhes fazer progressos no estudo da anatomia
com a dissecção de cadáveres.
Herófilo da Ásia Menor, que chegou ao Egito na primeira metade do século
III antes da Era Cristã, foi o primeiro a descobrir a relação entre os batimentos
do coração e o pulso e a distinguir entre artérias e veias. Atualmente ainda são
usados alguns dos nomes dados por ele a partes do corpo, como, por exemplo,
duodeno e torcular de Herófilo.
176
África Antiga
Erasístrato, outro eminente cirurgião também nascido na Ásia Menor, apro-
fundou os conhecimentos da anatomia do coração durante sua permanência em
Alexandria.
A celebridade da escola de medicina também sobreviveria por longo tempo.
Um verso necrológico preservado em Milão diz a respeito do médico a quem é
dedicado:Teve como pátria o todo sublime Egito”
25
.
Com o passar do tempo, a presença do elemento egípcio nativo foi cada vez
mais se fazendo sentir. Mâneton, egípcio originário de Samanud, no Delta, foi
um dos mais célebres sacerdotes -sábios do início do século III antes da Era
Cristã. Sua obra principal Aegyptiaca, seria nossa melhor fonte de informação
sobre a história do Egito antigo se tivesse chegado até nós na íntegra. Os frag-
mentos remanescentes mostram listas de nomes de reis agrupados em dinastias
e mencionam a duração do reinado de cada soberano, método adotado pelos
historiadores modernos.
No entanto, o Museu e sua Biblioteca conheceram um fim deplorável.
Acredita -se que a primeira catástrofe tenha ocorrido durante a campanha ale-
xandrina de Júlio César, quando este incendiou os navios atracados no porto
para impedir que caíssem nas mãos dos inimigos. De tão violentas, as chamas
alcançaram os depósitos de livros, embora para alguns autores o fogo não tenha
atingido a Biblioteca propriamente dita, destruindo tão -somente as lojas dos
livreiros.
Após a conquista romana do Egito, o declínio e a ruína parecem ter sido
progressivos. O Museu e a Biblioteca sofriam os problemas da época. Muitos dos
estudiosos abandonaram o país, e os livros foram levados a Roma. Em +270, o
imperador Aureliano destruiu a maior parte de Bruchion, distrito de Alexandria
em que se situavam os famosos edifícios. A propagação e o triunfo do cristia-
nismo deram -lhes o golpe fatal. Não razões para crermos que ainda existissem
após o século V. É, portanto, destituída de fundamento a acusação de incêndio da
Biblioteca dirigida a Amr Ibn al’ -As pelo historiador sírio cristão Abu al -Faraj
ibu al -Ibri (conhecido na Europa como Berbebraeus) no século XIII.
A inuência egípcia na cultura helenística
Como vimos, os Ptolomeus empenharam -se no desenvolvimento das rela-
ções entre o Egito e o oceano Índico. No que diz respeito à exploração da
25 BERNAND, A. 1966. p. 263.
177
O Egito na época helenística
terra, ainda se discute vivamente se mantinham uma política sistemática para o
reconhecimento do curso do Nilo a fim de utilizá -lo, no extremo sul, como via
de penetração e de relações comerciais. Em todo caso, é certa a existência de
explorações ao sul do Egito: Temóstenes, navarco de Filadélfia, visitou a Núbia;
Aristo reconheceu as costas da Arábia; Sátiro percorreu a costa da África até o
sul do cabo Guardafui. Os registros dessas explorações constituem a matéria-
-prima de obras de eruditos, como Agatarquida
26
.
Estes exploradores, ademais, seguiam as pegadas de ilustres predecessores.
Em cerca de -500, Hecateu de Mileto, o primeiro geógrafo grego a visitar o
Egito, escreveu a primeira descrição sistemática do mundo. Lamentavelmente,
restaram apenas fragmentos de seu tratado geográfico. No Egito, realizou via-
gens por Tebas, e é bem provável que tivesse incluído uma descrição detalhada
do país em seu trabalho. Hecateu considerava a Terra um disco plano cujo centro
era ocupado pela Grécia. Dividia o mundo em dois continentes: Europa e Ásia,
esta constituída pelo Egito e por toda a África do Norte, conhecida àquela época
pelo nome de Líbia. Imaginava que o Nilo se ligasse ao sul com o rio Oceano,
que circundava o mundo inteiro. Heródoto de Alicarnasso visitou o Egito por
volta de -450, descendo pelo sul até Elefantina, que descreveu como a fronteira
entre o Egito e a Etiópia. Heródoto consagrou ao Egito o segundo dos nove
livros de sua História. Foi o primeiro geógrafo a mencionar Méroe pelo nome,
tendo realmente encontrado meroítas em Assuã.
Também para Heródoto a Terra era plana, mas, ao contrário de Hecateu,
ele não acreditava que tivesse forma circular, nem que fosse circundada pelo
rio Oceano. Dividia o mundo em três continentes: Europa, Ásia e Líbia (isto é,
África), afirmando ser este último rodeado pelo mar por todos os lados, exceto
no ponto em que se unia à Ásia.
Tempos mais tarde, em -59, Diodoro visitou o Egito e descreveu o curso do
Nilo no primeiro volume de sua obra. Segundo ele, o Nilo nascia na Etiópia e
banhava uma grande quantidade de ilhas, inclusive a conhecida como Méroe.
Diodoro dedicou todo o terceiro volume à Etiópia, isto é, à região que atual-
mente tem o nome de Sudão. Estrabão também se referiu à região de Méroe
como se se tratasse de uma ilha, fornecendo ainda inúmeros detalhes a respeito
de seus habitantes.
26 Ver PRÉAUX, C. 1939. p. 356. Naquela época, as descrições dos povos visitados con centravam -se na
observação dos costumes, e os nomes utilizados para descrevê -los reetiam seus hábitos alimentares;
essas características passaram mais tarde para os textos latinos antigos e medievais e, até certo ponto,
para as fontes árabes.
178
África Antiga
Embora os gregos em geral considerassem uma proeza visitar a Primeira
Catarata e aventurar -se um pouco mais ao sul (proeza que comemoravam gra-
vando seus nomes nos monumentos egípcios
27
), os estudiosos mostraram grande
interesse pelo vale do Nilo ao sul de Assuã (então conhecida como Siena). A
época de Ptolomeu Filadelfo se conhecia a latitude exata de Méroe
28
. Era-
tóstenes, que, como vimos, trabalhou em Siena, calculou a distância de Méroe
até o Equador. Descreveu também, com profusão de detalhes, as condições de
navegação apresentadas pelo Nilo, e, pelo menos indiretamente, conheceu o Nilo
Azul e o Atbara. Suas descobertas, assim como as de vários outros exploradores,
apareceram em obras posteriores: primeiramente nos trabalhos de Estrabão;
em seguida nos de Plínio, grande apreciador de detalhes pitorescos relaciona-
dos ao interior da África e ao vale do Nilo, e, finalmente, nas obras do grande
cosgrafo Ptolomeu, que depois veio a sistematizar os dados da heraa
helenístico -egípcia. Esses autores, por sua vez, transmitiram tais informações, às
vezes recheadas com detalhes ou observações parcial ou inteiramente lendários,
às culturas bizantina, ocidental e muçulmana. O conjunto de conhecimentos
essenciais sobre o vale médio do Nilo ficaria, pois, fixado durante muito tempo
à época dos Ptolomeus. Foi dito que o vale médio era o pólo de atração dos
astrônomos e etnógrafos” e que as expedições militares faziam -se acompanhar
regularmente por missões científicas
29
.
Ainda mais surpreendente foi a lenta absorção do meio grego pelos egíp-
cios. Ao que parece, os egípcios resistiram à pressão cultural. Sustentaram uma
atitude de independência com relação aos lágidas, ao contrário dos gregos, cuja
adulação ao soberano era evidente
30
. A língua grega, entretanto, gozava àquela
época de prestígio internacional e oferecia maior facilidade à escrita que o egíp-
cio. Oficialmente, todos falavam ou escreviam grego. Os arqueólogos consta-
taram, porém, que papiros escritos tanto em demótico quanto em grego são
descobertos em número praticamente idêntico
31
. O direito grego manifestou -se
lentamente nos instrumentos legais egípcios, enquanto o calendário egípcio
foi gradualmente prevalecendo sobre o grego. Por outro lado, através da língua
27 PRÉAUX, C. 1957. p. 310 et seqs.
28 Id.
29 Id.
30 PRÉAUX, C. 1939.
31 A grande diferença entre eles está no número de trabalhos que lhes são consagrados: os papiros gregos
são objeto de numerosos estudos, o que não acontece com os demó ticos. Entretanto, estes últimos podem
constituir uma fonte abundante de informações sobre a administração dos templos e sobre a vida das
famílias egípcias.
179
O Egito na época helenística
 . O mundo segundo Heródoto e Hecateu.
180
África Antiga
grega toda uma herança egípcia se colocou à disposição do mundo, o que nunca
ocorreria sem o novo meio linguístico que lhe serviu de veículo.
A arte é provavelmente o domínio em que a impregnação egípcia e mesmo
negro -africana da cultura helestica foi mais surpreendente e espetacular.
Amantes do teatro como tinham sido em Atenas, os gregos erigiram no Egito
monumentos que refletiam seus gostos. Entretanto, o contato com os templos
egípcios deu -lhes o senso do colossal. A mesma tendência se faz sentir na área
da escultura, como prova a descoberta de uma cabeça de Serápis com 51 cm, e
o grande número de estátuas colossais constantes do acervo do museu greco-
-romano de Alexandria.
Evidentemente, a princípio as técnicas e os gostos artísticos dos elementos
da comunidade grega no Egito assemelhavam -se aos de outras comunidades
gregas pertencentes ao vasto Império. Parece claro também que os produtos
dos ateliês de Alexandria fossem em certa medida semelhantes aos da Grécia
e mostrassem influência de modas alheias à África. São inúmeros os exemplos
dessa arte importada presentes no Museu de Alexandria. Entre os mais notáveis
está a cabeça de Alexandre, pertencente à tradição da escola de Lisipo. Mas
em Alexandria também havia lugar para a inovação, sendo a mais importante
a técnica descrita pelos arqueólogos com o termo italiano sfumato uma fusão
entre luz e sombra nos contornos suaves dos traços do rosto, sem muita atenção
para a representação do cabelo ou das faces. Estes, em geral, eram moldados em
estuque, material que se presta às suaves modelagens preferidas pelos artistas
alexandrinos. Depois de acrescentadas, essas partes eram, em geral, coloridas. Os
escultores e os pintores inspiraram -se nos modelos egípcios em todos os níveis,
como demonstram as representações dos deuses. Ísis usa uma túnica bem ajus-
tada, com o característico entre os seios; traz na cabeça uma coroa egípcia,
mas o modelado do corpo é tipicamente grego. Entre as deusas gregas, Afrodite
é a favorita. Quase sempre as estatuetas a representam nua em diferentes atitu-
des: emergindo do mar, trançando o cabelo, erguendo o e curvando -se para
desenlaçar a sandália ou procurando, com ambas as mãos, manter o manto em
torno da parte inferior do corpo.
Entre os heróis gregos, Hércules é frequentemente representado. Taças e can-
deeiros encontrados em Alexandria são decorados com cenas de seus trabalhos:
em luta com o leão, com o touro e com as amazonas.
No Egito faraônico, o rio era representado como um homem gordo que trazia
nos mamilos o lótus ou o papiro, plantas que crescem no vale do Nilo. Os gregos
representavam -no como um homem forte e barbudo, sentado ou deitado junto
de um hipopótamo, de um crocodilo e de uma esfinge, símbolos do Egito. As
181
O Egito na época helenística
representações de personalidades reais seguiam o mesmo modelo. A pintura, que
durante os séculos IV e III continuou fiel aos padrões gregos, começou no século
II a incluir cenas de estilo egípcio ao lado das de estilo grego, como mostram,
por exemplo, as representações de um dos túmulos de Anfushi, em Alexandria.
A principal câmara mortuária é decorada desde a entrada com uma mistura de
estilos egípcio e grego, tanto na arquitetura como na pintura.
A representação imprecisa das palmeiras numa pintura de um outro túmulo
de Anfushi é típica do século I. A decoração do segundo túmulo de Anfushi
contém muito mais elementos egípcios, com novas cenas nesse estilo.
Os mosaicos apareceram primeiro a leste do Mediterneo e, possivel-
mente, em Alexandria. Diversos pavimentos em mosaico com motivos pictóri-
cos foram descobertos em Alexandria e nos seus arredores. O mais importante
deles traz o nome de Sophilos e representa, no interior do retângulo central, a
cabeça de uma mulher com um mastro e uma lais de verga; a caba é coroada
com uma coifa em forma de proa de navio. Segundo se crê, trata -se da per-
sonificão da cidade de Alexandria. Em torno do retângulo central uma
série de pomposas bordas decorativas. Esse mosaico foi descoberto a leste do
Delta, datado do culo II.
Não resta dúvida de que o aspecto mais surpreendente da prodão hele-
nística do Egito, pela variedade de suas invenções e gostos, reside na profusão
de estatuetas humosticas, grotescas
32
ou realistas que retratam cenas da vida
cotidiana e representam egípcios e negros africanos. As diminutas estatuetas
em bronze, mármore, terracota ou estuque destinavam -se às pessoas comuns,
mas a existência de peças mais valiosas atesta a grande popularidade desses
temas.
Bés, o mais egípcio dos deuses adotados pelos gregos, é representado com
traços grotescos, recebendo, mais tarde, uma esposa igualmente cômica, Besa ou
Beset. A atração dos gregos do Egito por tudo o que não fosse grego levou -os a
encomendar objetos de uso cotidiano, artigos de luxo ou enfeites representando
negros. O realismo dessas representações atinge, por vezes, alta qualidade artís-
tica, mas amiúde demonstra mais a capacidade de observação do escultor que
propriamente seu gosto. Em alguns casos o assunto é uma cena de rua, como a
estatueta de um jovem negro dormindo ao lado de sua ânfora. Os negros apa-
recem retratados em todos os tipos de objetos de uso diário, como, por exemplo,
nos jarros de água. A maneira como eram representados demonstra ausência
32 BADAWY, A. 1965. pp. 189 -98.
182
África Antiga
 . Ulisses fugindo de
Polifemo, escondido sob o ventre
de um carneiro.
F . Pintura do túmulo
de Anfushi, Alexandria.
183
O Egito na época helenística
absoluta de medo ou de exotismo malsão. Comumente apareciam ao lado de
elefantes, ou eram mostrados em luta com crocodilos; a introdução de anões,
por sua vez, constitui um eco abafado dos temas literários antigos relacionados
aos pigmeus. Lutadores, dançarinas, mágicos, oradores e músicos negros teste-
munham não a fixação de cenas da vida real pelos escultores, mas também
o gosto do público por essas representações. Algumas cabeças e retratos de
negros, de grande beleza, provam que personalidades de alta posição na escala
social provenientes da África negra viveram na Alexandria ptolomaica ou por ela
passaram
33
. O interesse dos lágidas pelo grande oásis pré -saariano, via de acesso
ao mundo africano negro, talvez pudesse explicar, em parte, a atenção que os
alexandrinos dedicaram aos negros.
Por intermédio da arte helenística do Egito, a figura do negro penetrou mais
do que nunca no mundo mediterrânico.
O Egito na época helenística: relações com a Líbia
Através da Cirenaica (a parte oriental da Líbia), certos aspectos da civiliza-
ção helenística passaram do Egito à África do Norte
34
. o era a primeira vez
que a civilização grega aparecia na Cirenaica: sabemos que os gregos saídos da
ilha dórica de Thera emigraram para aquela região, onde fundaram Cirene, sua
primeira colônia, em -631. A esta seguiram -se outras quatro: o porto de Cirene
(mais tarde Apolônia), Tauchira, Barca (atualmente Al -Marj) e Euhespérides.
Essas colônias, em especial Cirene, eram produtos da civilização grega, sofrendo,
por conseguinte, as transformações políticas que normalmente ocorriam em
qualquer cidade grega. Com a fundação de Cirene, inaugurou -se a dinastia
Batíada, cujo término se deveu a lutas internas por volta de -440. Seguiu -se o
conflito tradicional entre a aristocracia e a democracia, que converteu Cirene
numa terra de desordens e disputas.
Por essa época, a totalidade do mundo antigo estava à beira de uma convulsão
com a chegada de Alexandre, o Grande. Este invade o Egito no outono de -332
e ruma para oeste até Paretônio (atualmente Mersa -Matruh), a caminho do oásis
de Siwa, onde iria consultar o oráculo de Zeus -Âmon. Cirene e provavelmente
também as demais cidades (na verdade compreendendo mal as intenções de
33 Sobre esse assunto, ver SNOWDEN Jr., F. M. 1976. pp. 187 -212.
34 No que respeita à Líbia, o autor deste capítulo recebeu a colaboração do Dr. Mus tapha Kamel Abdel
Alim.
184
África Antiga
 . Fragmento de um balsamário em bronze.
F . Cabeça grotesca.
F . Estatueta (fragmento): “acendedor de
candeeiro” negro, caminhando, vestindo uma túnica
e carregando uma pequena escada no braço esquerdo
(faltam o braço direito e os pés).
185
O Egito na época helenística
Alexandre, e querendo evitar que invadisse a Cirenaica) tentaram salvaguardar
sua independência mandando embaixadores para encontrá -lo em Paretônio e
declarar -lhe fidelidade. Entretanto não puderam preservar indefinidamente sua
independência: em -332, após a morte de Alexandre, Ptolomeu, ainda sátrapa
do Egito, aproveitou -se das lutas intestinas em Cirene e anexou a Cirenaica,
iniciando, assim, o período helenístico naquele país. Com exceção de um breve
período de independência (cerca de -258 a -246), a dominação da Cirenaica
pelos Ptolomeus manteve -se de -322 até -96, quando Ptolomeu Ápio (filho de
Ptolomeu VII Evergeta II), governador da Cirenaica, entregou -a aos romanos,
e essa região, juntamente com Creta, converteu -se em província romana.
No início da época helenística, a Cirenaica era um país constitdo de
pequenas aldeias, com poucas cidades. No reinado dos Ptolomeus, as cidades
receberam novas denominações, algumas das quais eram nomes dinásticos dos
Ptolomeus. Cirene continuou com o mesmo nome, mas Tauchira foi rebatizada
como Arsínoe (atualmente Tokra), e o porto de Barca tornou -se Ptolemaida
(atualmente Tolmeta), transformando -se no centro oficial da cidade. Euhespé-
rides deu origem a uma nova cidade, batizada com o nome de Berenice (atual-
mente Bengasi), em homenagem à princesa cirenense, esposa de Ptolomeu III.
O porto de Cirene foi elevado à categoria de cidade com o nome de Apolônia
(atualmente Susa).
A Cirenaica era povoada por uma mistura de raças. Nas cidades, além dos
gregos (que ou eram cidadãos plenos ou desfrutavam de alguns direitos limita-
dos), havia uma população não -grega, composta principalmente de judeus e de
muitos outros estrangeiros. A população rural (georgoi) era constituída por líbios
nativos e soldados mercenários estabelecidos como clerucos.
Os georgoi cultivavam as terras aráveis da Cirenaica, que compreendiam as
terras reais (basilikê), as terras da cidade (politikê) e as terras deixadas aos
líbios nativos. Tal estrutura social resultou num confronto entre os líbios autóc-
tones e os colonos gregos.
Durante o período helenístico, a Cirenaica foi um país de grande impor-
tância econômica, sendo considerada um dos celeiros do mundo antigo. Cirene
teria enviado um presente de 800 mil medimnos de trigo às cidades gregas por
ocasião da fome que assolou a Grécia entre -330 e -326. Muito se falou sobre
sua lã, um monopólio dos reis batíadas que provavelmente persistiu nas mãos
dos Ptolomeus.
A doação do trigo não é a única prova das estreitas relações entre os gre-
gos da Cirenaica e os da Grécia metropolitana. É do conhecimento geral que
Cirene contribuiu amplamente para a vida intelectual dos gregos, em particular
186
África Antiga
no século IV, através de seus renomados filósofos e matemáticos. Graças aos
estreitos contatos intelectuais que mantinha com Atenas, Cirene possibilitou o
florescimento da filosofia e de numerosos ramos do conhecimento no planalto
da Cirenaica. Ali se desenvolveu a escola filosófica conhecida como Cirenaica,
uma escola socrática menor, fundada por Aristipo (cerca de -400 a -365), neto
de Aristipo, o amigo e companheiro de Sócrates. A atividade e a fertilidade
intelectuais se manifestavam ainda à época helenística. Basta citar os nomes
de Calímaco (-305 a -240) e de Eratóstenes (-275 a -194), que, entre outros,
trocaram Cirene por Alexandria para enriquecer as atividades desta última nos
domínios das ciências e da literatura. Na Academia, no Museu e na Biblioteca,
contribuíram para a inteligência criativa de Alexandria e permitiram à cidade
converter -se no principal pólo de atração intelectual da época helenística. A
presença de intelectuais de Cirene se fez sentir mesmo em Atenas: nessa cidade,
Carnéades, o Cireneu (-305 a -240), um dos principais filósofos da escola cética,
fundou a Nova Academia. Em Cirene, assim como em outras cidades gregas,
o sistema grego de educação foi conservado. Um grande número de inscrições
faz referência ao ginásio e ao efebeion.
Muitas estátuas de filósofos, de poetas e das nove musas foram encontradas
em Cirene. A descoberta de um busto de Demóstenes (ainda que se trate de uma
cópia romana) é de grande interesse, pois mostra o alto apreço que a população
grega de Cirene manifestava por um orador de tamanha importância.
Alguns bons exemplos da escultura alexandrina foram encontrados entre
as numerosas estátuas de mármore de Cirene. Os poucos retratos originais da
época helenística mostram uma estreita afinidade com a chamada arte helenís-
tica de Alexandria. Não surpreende o fato de que as técnicas usadas em Ale-
xandria tenham sido, até certo ponto, copiadas pelos artistas de Cirene. Outra
semelhança entre a escultura grega da Cirenaica e a de Alexandria pode ser
observada nos bustos cireneus. A comparação entre bustos mortuários cireneus e
retratos de múmias egípcias revela uma grande semelhança entre eles. Ainda que
as peças em questão sejam da época romana, sua origem ptolomaica é inegável.
De Cirene vieram a cerâmica helenística pintada e as estatuetas em terracota.
As estatuetas eram produzidas por artistas locais, que, tendo começado pela
reprodução e imitação das terracotas gregas, desenvolveram aos poucos um estilo
próprio. O estudo dessas peças é importante na medida em que refletem a vida
cotidiana dos habitantes da Cirenaica, particularmente os das cidades.
Na esfera da religião, observa -se a transmissão do culto dinástico dos Pto-
lomeus à Cirenaica, fato que é atestado pelas numerosas inscrições dedicadas
aos reis e rainhas dessa dinastia. As cidades da Cirenaica adotam igualmente o
187
O Egito na época helenística
culto de Serápis, e templos consagrados a Ísis e Osíris são fundados em Cirene
e Ptolemaida.
Da Cirenaica, é provável que o culto greco -egípcio tenha passado à Tripolitâ-
nia, que nunca foi governada pelos Ptolomeus à época pré -romana. O santuário
de Serápis e de Ísis foi descoberto em Leptis Magna, e é interessante observar
que em Sabrata o culto de Ísis era acompanhado de mistérios isíacos. Os cultos
de Ísis e de Serápis devem ter -se propagado por distantes regiões do oeste, à
medida que o culto de Ísis se generalizava e o de Serápis dava ao mundo antigo
a renovada esperança de uma vida melhor.
Muito do que se disse sobre a Cirenaica helenística refere -se apenas aos gre-
gos, dada a dificuldade em se descobrir dados relativos aos líbios autóctones e em
saber até que ponto receberam influências da civilização helenística. Sabemos
que os líbios nativos, escorraçados das terras costeiras férteis e detidos no inte-
rior, não viam com bons olhos a presença dos gregos. Entretanto, a civilização
helenística deveu muito a essa região da África do Norte, a qual lhe permitiu se
desenvolver e florescer durante três séculos.
A grande prosperidade de Méroe, particularmente durante os reinados de
Ergamenes e de seus sucessores, deriva essencialmente das relações amigáveis
com o Egito. Descobriram -se até agora poucos vestígios da influência helenís-
tica nos templos e nas pirâmides de Méroe
35
. O templo construído por Erga-
menes em Dakka, na Baixa Núbia, é de concepção puramente egípcia. Quando
Ergamenes morreu, sua múmia foi encerrada no interior de uma pirâmide pró-
xima de Méroe, decorada com cenas extraídas do Livro dos Mortos. Azekranon
(Ezekher -Âmon), seu sucessor, mandou construir um templo em estilo egípcio
nas proximidades de Debôd, não longe de Filas.
A vida do povo de roe era muito semelhante à dos egípcios. Nossos
conhecimentos sobre a vida e a sociedade daquela época baseiam -se unicamente
no estudo de achados arqueológicos, já que a escrita meroíta ainda não foi deci-
frada
36
e não dispomos de uma fonte de informações sobre a vida cotidiana tão
rica quanto as pinturas tumulares do antigo Egito.
Como no Egito, o rei era considerado divino. As rainhas desempenhavam
papel importante na vida do país e, por vezes, governavam. Os sacerdotes exer-
ciam considerável influência, e os templos contavam ricas propriedades. Grande
parte das concepções religiosas oficiais dos meroítas inspirara -se na religião
egípcia; contudo, eles tinham também seus próprios deuses.
35 Ver HINTZ, F. & U. 1967. pp. 23 -8.
36 Ver cap. 10.
188
África Antiga
 . Cleópatra VII.
189
O Egito na época helenística
Os costumes funerários meroítas revelam uma mistura de tradições locais e
egípcias. Pelo mobiliário encontrado, sabemos que as camas eram de estilo anga-
reeb, semelhantes às do antigo Egito (atualmente ainda em uso no vale do Nilo).
A principal atividade da maior parte da populão meroíta consistia na
agricultura. Para a irrigação de suas terras, utilizavam -se do shadouf e do sakkieh,
dois dispositivos ainda hoje usados no Egito e no Sudão para transportar água
das terras baixas para as terras altas.
Nos dois países foram encontrados instrumentos e armas semelhantes, como
enxós, lâminas de enxada, machados e cinzeis, e muitos outros artigos menores,
como pinças. Todos esses instrumentos são feitos de bronze. Descobriram -se,
porém, em Méroe, instrumentos grandes, de ferro; a presença de grandes montes
de escórias de ferro próximos da cidade indicam que a produção e o uso desse
metal eram comuns. O minério era fundido em fornos simples a carvão vegetal,
combustível proveniente da madeira das acácias que cresciam ao longo do Nilo.
Objetos encontrados no Egito e no Sudão apresentam semelhanças entre si;
alguns deles, no entanto como apoios para cabeça e instrumentos musicais –,
têm uma flagrante configuração egípcia, sendo provavelmente de origem meroíta.
C A P Í T U L O 7
191
O Egito sob dominação romana
Roma: da aliança à dominação do Egito
O Egito passou do domínio dos Ptolomeus para o de Roma de maneira
quase imperceptível. Durante muito tempo as relões entre Alexandria e
Roma foram marcadas por uma cordialidade que remonta à época de Ptolomeu
Filadelfo, o primeiro da dinastia a assinar um tratado de amizade e a enviar uma
embaixada a Roma (-273). Meio século depois, Ptolomeu Filopator reiteraria
essa cordialidade para com Roma durante a guerra com Aníbal (-218 a -201);
em retribuição, Roma poria a salvo a independência do Egito quando da
invasão de Antíoco III em -168. No entanto, ao assumir esse comportamento,
a República colocava -se em condições e adotava o hábito de controlar os
assuntos egípcios, fato que se tornou flagrante nos últimos anos do reinado
dos Ptolomeus. As intrigas de Cleópatra VII com os generais romanos (-51 a
-30) provavelmente tinham o propósito de conseguir que estes esposassem os
interesses do seu reino, mas o apoio incondicional a Marco Antônio -la perder
definitivamente o trono quando este foi derrotado por Otávio em -31.
A atitude do novo soberano para com o Egito mostrou claramente a
importância que Roma atribuía à nova província do seu Império. Estacionaram
ali três legiões, com aproximadamente 15 mil homens. A elas estava confiada
a tarefa de restabelecer o controle sobre o país, avassalado desde o reinado dos
O Egito sob dominação romana
S. Donadoni
192
África Antiga
últimos Ptolomeus por uma anarquia que provocara a destruição de Tebas em
-88. O primeiro prefeito romano, Cornélio Galo, conduziu as tropas para o
Alto Egito, fazendo -as ultrapassar a Primeira Catarata. Petrônio, que o sucedeu,
reconquistou a província de Dodecaschene, na Baixa Núbia assim chamada
por medir 12 schenes (cerca de 120 km) – de Siena (Assuã) até Hierasykaminos
(Muharraqa). A província havia sido território dos Ptolomeus, mas desde muito
os soberanos de Méroe (atualmente no Sudão) a tinham anexado ao seu reino. A
excessiva confiança que o prefeito Galo, amigo íntimo do imperador, depositava
no sucesso de seus próprios empreendimentos veio a custar -lhe a vida, fato que
demonstra a especial importância então atribuída por Otávio, cognominado
Augusto, à sua conquista. O imperador reservou ciosamente a província do Egito
à sua administração direta, negando ao Senado qualquer espécie de atribuição
sobre ela. Mais tarde, chegou mesmo a proibir expressamente os senadores de
colocarem os pés na região, lei que seria aplicada com rigor. Assim, o imperador
romano sucedeu os Ptolomeus no Egito e tratou de assumir sua função dentro
da estrutura do país. Tomou a si a responsabilidade dos cultos religiosos, e não
tardou para que ficasse conhecido como construtor de numerosos templos,
dentre os quais os mais bem conservados encontram -se na Núbia, em Debôd,
Talmis, Dendur e Pselkis. Assumiu igualmente a responsabilidade do bem -estar
comum, utilizando o Exército não apenas para a manutenção da ordem pública,
mas também para a restauração do sistema de canais, bastante danificado durante
o conturbado período dos últimos Ptolomeus. O emprego de tropas do Exército
nesse tipo de trabalho viria a se tornar corrente nos reinados de Nero (54 – 68),
Trajano (98 117) e Probo (276 – 282).
A administração romana
O imperador romano copiou dos Ptolomeus o modelo de administração
do Egito, concebido como uma espécie de vasta propriedade privada em que
a receita era globalmente administrada pela coroa. Em pouco tempo essa
exploração converteu -se no ponto de partida de toda a política preconizada por
Augusto para o Egito, tendo persistido apesar de seu sucessor censurar o prefeito
pela excessiva taxação lembrando -lhe que a ovelha devia ser tosquiada, mas
não esfolada.
A autoridade exercida diretamente pelo imperador manifestava -se no fato
de ele nomear pessoalmente o prefeito o mais alto cargo do país que era
sempre um cavaleiro (e não um senador), e os demais funcionários que agiam
193
O Egito sob dominação romana
em seu nome (os procuratores)
1
. Um pequeno detalhe administrativo ilustra a
condição especial do Egito: tratava -se do único país, em todo o Império, onde os
anos eram contados pelo reinado do imperador, e não pelos nomes dos cônsules
em exercício. Perpetuava -se assim a antiga prática dos Ptolomeus e dos faraós,
que envolvia o chefe de Estado romano numa aura de realeza desconhecida em
qualquer outra parte dentro da organização do Império.
Essa exploração imperial, porém, comportava um fator não existente ao
tempo dos Ptolomeus: enquanto sob estes os produtos do campo e da indústria
egípcios tinham enriquecido uma dinastia cujos interesses não iam além das
fronteiras do país, os imperadores viam o Egito como o celeiro do trigo que
costumavam distribuir aos plebeus de Roma a fim de obter -lhes a complacência.
A função de “celeiro do Império” tirou do Egito o fruto do seu solo sem trazer
a contrapartida substancial de um comércio regular. A mudança da condição
de Estado independente para a de província causou em verdade outras e mais
importantes diferenças estruturais. Podemos descrevê -las em pormenores
graças à abundante informação acerca de vários aspectos da vida cotidiana
no Egito contida nos preciosos papiros, documentos tipicamente egípcios.
São documentos públicos e privados que, conservados durante milênios. pelo
solo seco do Egito, chegaram às mãos dos estudiosos; estes um século e
meio dedicam -se a estudá -los do ponto de vista filológico e histórico. Nosso
conhecimento fundamenta -se, portanto, em textos originais, que iluminam as
narrações dos historiadores com uma precisão de dados raramente alcançada em
outros domínios do mundo antigo.
A unidade geográfica do governo era o nomo (atualmente conhecido como
mudiria), que se subdividia em duas toparquias, cada uma contendo certo número
de aldeias (kome). Os nomos do Alto Egito compunham uma unidade superior,
a Tebaida, semelhante ao Heptanomis (os sete nomos do Médio Egito) e aos
nomos do Delta. O nomo era governado por um estratego (antigo título militar
ptolomaico), que tinha a seu lado, como técnico administrativo, um escriba
real (título também ptolomaico). Funcionários subalternos administravam as
unidades menores, também obedecendo a tradições mais antigas.
Nova, porém, era a administrão central, cujo núcleo estabelecera-
-se em Alexandria, a antiga cidade real, que funcionava agora como capital
em substituição a Mênfis. Esse estado -maior da administração compunha-
-se apenas de cidadãos romanos nomeados diretamente pelo imperador. Em
1 Ou “representantes”: pro = em lugar de; curare = encarregar -se de.
194
África Antiga
F . Cabeça de tetrarca. (Fonte: Grimm et Johannes. Kunst der Ptolemäer und Römerzeit im
Ägypt”. 1975. pr. 59. Foto Museu do Cairo.)
195
O Egito sob dominação romana
primeiro lugar vinha o prefeito, chefe de todos os departamentos, inclusive
das finanças, do ercito e da justa. Seu poder era limitado apenas pela
possibilidade de se apelar contra suas decisões ao próprio imperador. Para o
cumprimento de seus deveres, o prefeito dispunha de um conselho, também
constituído por cavaleiros romanos. O juridicus, o dikaiodotes e o archidikastes
assistiam -no na administração da justiça; o procurator usiacus
2
, na administração
financeira dos recursos pessoais do imperador; e um cavaleiro encarregava-
-se dos templos. Os grupos de nomos estavam também sob a autoridade de
três epistrategoi, cavaleiros da categoria do procurador. Segundo a tradição
da organização romana, a pessoa encarregada do comando militar devia
ser igualmente responvel pela administrão, em geral, e pela justiça, em
particular. Essa ideia afetou profundamente o antigo mecanismo judicial, que,
sob a lei egípcia, reconhecia autoridade aos juízes locais nos casos em que
os documentos estivessem na língua do país e, nos demais casos, aos juízes
gregos. O prefeito passara a ser o único juiz; podia, evidentemente, delegar
seu poder a outros, em especial aos estrategos, permanecendo, no entanto, o
único responsável. Todo ano fazia uma viagem pelo país para resolver os casos
mais complexos (era o chamado conventus, que teve lugar em Pelúsio, perto de
Alexandria, em Mênfis e em Arsínoe, no Faium). Aplicava o direito romano
aos cidadãos romanos e, aos outros, o direito dos estrangeiros, o qual acatava
os usos e costumes do país, embora com algumas restrições.
Esses exemplos bastam para mostrar como a presea romana era capaz
de transformar a estrutura do Egito ptolomaico. Mas havia outros fatores,
desde o início da época de Augusto, com um potencial de transformão
ainda maior. A administração ptolomaica caracterizava -se pela centralizão
e compunha -se principalmente de funciorios pagos, cuja remunerão
consistia no direito sobre propriedades agrícolas de dimensões proporcionais
à importância de suas funções. O Ercito, ademais, era uma organizão
herediria que comportava o benefício, igualmente hereditário, de cultivar
propriedades cujas dimensões eram fixadas segundo determinados critérios (se
o funcionário era grego ou egípcio, se possuía um cavalo para sustentar ou não,
e assim por diante). À época ptolomaica, o sistema sofria de um desgaste
inevivel e, sob os romanos, transformou -se completamente. O funcionário
remunerado foi substituído pelo magistrado honorário. Ao mesmo tempo,
institram -se colégios formados por pessoas que desempenhavam as mesmas
2 De ousia, propriedade.
196
África Antiga
funções com responsabilidade coletiva. Ao lado do strategos encontravam -se
os archontes (comandantes); ao lado do komogrammateus, escriba da aldeia, os
presbyteroi (anciãos).
Embora o Estado não mais se encarregasse da administração nem a custeasse,
as pequenas e médias propriedades privadas ampliavam -se com a distribuição
de terras até então reais e usufrutuárias (os kleroi indenizavam os empregados
públicos). Surgiu assim uma classe de proprietários, dentre os quais se elegiam os
magistrados não -remunerados; estes exerciam suas funções como um dever, um
munus, tendo sido previamente recompensados com direitos de propriedade. A
essa classe de proprietários e de administradores potenciais, o Império confiava a
defesa de seus interesses, escolhendo como favorito um grupo social e opondo -o
aos demais.
Durante o reinado dos primeiros Ptolomeus, os gregos ocupavam de facto
uma posição privilegiada, posição que sofreu considerável declínio após a batalha
de Rafia (-217), quando as tropas do Egito foram vencidas, e sobretudo durante
os dias conturbados dos últimos reis da dinastia.
Diante da necessidade de opor um grupo a outro, os ocupantes romanos
retomaram o velho costume e devolveram aos gregos sua posição privilegiada,
dessa vez não apenas de fato, mas também de direito. Os egípcios pagavam
uma taxa de capitação (a laographia, à qual o homem estava sujeito pelo simples
fato de existir), de que os gregos estavam isentos. Os habitantes das capitais
dos nomos, as metrópoles, pagavam menos que os aldeões; os camponeses não
podiam abandonar as terras que cultivavam, as idia. Assim, o importante era
pertencer a uma família de educação grega, estado que uma pessoa só estava em
condições de reivindicar caso pudesse provar com documentos que seus avós
paterno e materno haviam frequentado o gymnasion, a escola grega. À época dos
Ptolomeus, o gymnasion era uma instituição livre; sob os romanos, no entanto,
ficou restrito aos metropolitanos e seu controle passou às mãos do Estado.
se podia considerar graduado no gimnasion (apo tou gymnasiou) aquele que
se submetesse a um exame dos títulos genealógicos (epikrisis). Caso pudesse
comprovar sua pretensão, era considerado burgs urbano helenizante, em
oposição aos habitantes do campo, em sua maior parte camponeses e egípcios.
Os direitos dos egípcios enquanto tais desapareceram nesse novo contexto social,
que acima de tudo objetivava organizar uma sólida classe média interessada no
futuro do Império.
Cabe mencionar aqui o status particular das cidades aunomas (poleis)
no reinado dos Ptolomeus, tais como Ptolemaida, no Alto Egito, e a antiga
197
O Egito sob dominação romana
e gloriosa Náucratis
3
, no Delta. A terceira polis, Alexandria, ainda era o maior
porto do Mediterrâneo, rivalizando com Roma em importância e população.
No entanto, perdeu seu Senado e se converteu na base da unidade naval
conhecida como frota Augusta Alexandrina, enquanto a dois passos dali, em
Nicópolis, acampava o Exército romano. Os alexandrinos, célebres por sua
mordacidade e por seu vigor de espírito, nunca mantiveram boas relações com
seus novos senhores, e não perdiam a oportunidade de lhes demonstrar isso.
O Egito sob a dominação romana
Por muito tempo essas bases da dominação romana permaneceram intactas.
A vida provincial desenvolvia -se numa pax romana paga pelos impostos sobre o
trigo (annona), cuja taxação era fonte de constantes rebeliões e protestos. Tibério
(14 37), sucessor de Augusto, pôde reduzir a duas as legiões estacionadas no
Egito. Foi sob seu sucessor que irromperam pela primeira vez conflitos entre os
gregos de Alexandria e os numerosos judeus que viviam na cidade. Surgia assim
uma rivalidade onde se alternavam lutas sangrentas e queixas oficiais levadas ao
imperador em Roma. Uma literatura de caráter edificante conhecida como Atos
dos Mártires de Alexandria narra em tons apologéticos os julgamentos dos judeus.
Roma procurou impor soluções de equilíbrio, que, no entanto, não contentaram
nenhuma das partes, cada qual se sentindo prejudicada.
As relações entre o governo e os judeus do Egito agravaram -se durante a
revolta na Judeia. Vespasiano (69 79), que se tornara imperador na Síria e
fora aclamado em Alexandria, convocou as legiões de Nicópolis para o cerco de
Jerusalém. Após a destruição desta cidade no reinado de Trajano (98 – 117), os
judeus do Egito rebelaram -se e sitiaram Alexandria, num acontecimento que,
durante longo tempo, foi lembrado como a “Guerra dos Judeus”. Derrotados
os rebeldes pelo general Márcio Turbo, a colônia, judaica de Alexandria deixou
de existir.
À exceção, porém, desses eventos particulares, todo o primeiro século do
Império e os primeiros anos do século seguinte constituíram um período de
relativa calma e prosperidade. O imperador Nero (54 – 68) enviou exploradores
ao reino de Méroe, com o qual mantinha relações comerciais pacíficas; Vespasiano
tornou -se popular em Alexandria, onde se lhe atribuíram poderes miraculosos;
Trajano (98 117) reduziu as legiões estacionadas no Egito a apenas uma, o
3 Colônia grega que remonta ao período saíta.
198
África Antiga
que indica uma situação de calma. Este último imperador ainda mandou abrir
um canal ligando o Nilo ao mar Vermelho com o propósito de desenvolver o
comércio com o Oriente e competir com as rotas das caravanas, que levavam à
Síria por territórios fora do controle romano. Todas essas medidas beneficiaram
Alexandria, ainda o principal porto do Mediterrâneo. É importante observar,
ainda, que Trajano enviou o trigo de que o Egito necessitava quando a fome
assolou esse país, invertendo a norma que obrigava o Egito a pagar o annona
a Roma.
O sucessor de Trajano, Adriano (117 138), demonstrou interesse ainda
maior pelo Egito, e em 130 e 131 realizou uma longa viagem pelo país em
companhia da esposa. A ele o Egito deve a reparação das destruições perpetradas
em Alexandria durante a Guerra dos Judeus e a fundação, no Médio Egito,
da cidade de Antinópolis, em homenagem ao seu favorito Antínoo, que ali
voluntariamente se afogara para salvar seu senhor – diz -se – de alguma obscura
ameaça anunciada pelo oráculo. O jovem mártir foi deificado e identificado a
Osíris, conforme a tradição egípcia da apoteose por afogamento. Existiram,
porém, razões de ordem prática para a fundação da cidade: Antinópolis ganhou
o status de polis, ou cidade livre, tornando -se um centro filo -romano no interior
do Egito e ponto de partida de uma rota de caravanas ligando o mar Vermelho
ao vale do Nilo.
A situação econômica dos camponeses e dos pequenos proprietários,
minuciosamente documentada nos papiros, mostra, no entanto, que a
discriminação em favor da classe média – norma da política romana – acabaria
por gerar maus frutos. Os humildes empobreceram, e a inquietação começou a se
manifestar. Um dos primeiros sintomas foi o assassínio do prefeito de Alexandria
no reinado do sucessor de Adriano, Antonino Pio (138 161), que precisou
ir até o Egito para restabelecer a ordem. Seu filho, Marco Aurélio, filósofo e
filantropo (161 180), enfrentou uma situação ainda mais crítica quando os
boukoloi, criadores de gado do Delta, organizaram -se numa violenta insurreição
liderada pelo sacerdote egípcio Isidoro. Os rebeldes estavam unidos por um
entusiasmo místico devido, como pretendem alguns, à prática do canibalismo
ritual; não obstante, lutaram com heroísmo pelo direito a uma vida menos
misevel e pelo reconhecimento racial. Os alexandrinos, que desfrutavam
de privilégios que os egípcios não tinham, colocaram -se ao lado de Roma. A
rebelião não pôde ser debelada pelas guarnições locais. Foi preciso que o general
Ávido Cássio trouxesse suas legiões da Síria; ainda assim, logrou bater os
criadores de gado após atirá -los uns contra os outros. O mesmo Ávido Cássio,
em 175, ao se espalhar o boato de que o imperador estava morto, proclamou -se
199
O Egito sob dominação romana
 . Cabeça de Vespasiano. (Fonte: Grimm et Johannes. Op. cit. 1975. pr. 36. Foto Museu do Cairo.)
200
África Antiga
imperador com o apoio de suas tropas em Alexandria. A intentona – a primeira
desse gênero na história do Egito – terminou sem grandes danos, uma vez que
Marco Aurélio perdoou o imprudente general.
A tensão entre Roma e Egito não cessou de aumentar apesar das reformas
de Sétimo Severo (193 211). Este restituiu a Alexandria o Senado (boule)
que, símbolo de autonomia, fora dissolvido por Augusto. Quando Caracala
(211 217), seu sucessor, visitou Alexandria, ficou tão irritado com as zombarias
dos cidadãos que imediatamente ordenou um massacre geral dos jovens após
reuni -los sob o pretexto de incorporá -los ao Exército. Consumada a chacina, as
tropas deixaram os quartéis de Nicópolis e estacionaram na cidade para forçá -la
à submissão.
Esses episódios sangrentos em parte diminuíram a importância do gesto
mais célebre do imperador: a outorga da Constituição Antoniniana em 212.
Esse documento capital estendia o direito de cidadania a todos os habitantes
do Império, abolindo as barreiras que separam os provincianos dos cidadãos
romanos. Até aquele momento, com exceção dos funcionários vindos de fora,
era raro que cidadãos romanos se fixassem no Egito. A maior parte deles era
composta de egípcios, que, após servirem no Exército romano por 20 ou 25 anos,
recebiam a cidadania no momento da dispensa e voltavam para sua cidade natal
como figuras de destaque dentro do pequeno grupo de metropolitanos.
A Constituição extinguiu, em princípio, essa duplicidade de status dos
habitantes do Império. O direito de Roma passou a ser o direito comum, e a
estrutura geral da sociedade sofreu uma completa transformação. No entanto,
se algum país sentiu menos que os outros essa revolução social, foi o Egito.
Um artigo da Constituição excluía da cidadania os dediticii, aqueles que se
haviam rendido após uma derrota militar, categoria em que ficavam incluídos
os egípcios. Mais uma vez os imperadores beneficiavam a classe média urbana
helenizada em detrimento do campesinato autóctone. Um outro decreto de
Caracala interditou aos egípcíos a entrada em Alexandria, exceto para a entrega
do combustível destinado às termas e do gado para abate. Isentava, porém,
aqueles que desejassem e que tivessem condições para isso viver na cidade
visando adquirir uma formação que os assimilasse aos gregos. Nada poderia
mostrar com tanta clareza o caráter econômico da discriminação.
Juntamente com a Constituição, o sistema administrativo como um todo
sofreu transformações. No momento em que Alexandria recobrava o Senado,
uma reforma geral alterou o status das cidades. As metrópoles transformaram -se
em cidades (poleis) e assumiram diretamente a administração de suas províncias.
as cargos públicos passaram a ser confiados a membros do Senado (boule)
201
O Egito sob dominação romana
Escavações polonesas em Kôm el -Dikka,
Alexandria
F . Termas romanas e hipocausto.
F . O corredor que circunda o teatro
romano.
202
África Antiga
agora presentes em todas as cidades – e não às pessoas ricas e capazes” (euporoi
kai epitedeioi), que o epistratego escolhia ao acaso. Entretanto, cada senador
devia prestar serviço por um determinado período na administração e custeá-
-la em parte. Alguns papiros registram relatos completos de reuniões dos altos
colégios em que os prytanes (senadores) decidiam quem deveria ocupar os cargos
públicos. Alguns candidatos qualificados procuravam evitá -los. Com efeito, essas
honras começaram a se tornar insustentáveis numa economia tão fortemente
atingida pela revolta dos criadores de gado e pela consequente ruína do sistema,
que, assim, perdeu grande parte de seu antigo esplendor.
O Egito não era mais o celeiro do Império. Desse papel se incumbiu a África
(o atual Magreb) já a partir do final do século II; isso só poderia significar que o
Egito se havia exaurido. Iniciou -se um movimento que aos poucos foi tomando
vulto e se tornou perigoso: a fuga (anachoresis) dos agricultores do campo para
o deserto, por não terem mais condições de pagar os impostos exigidos pelo
Estado.
Em meados do século III irrompeu uma série de acontecimentos altamente
draticos. Um prefeito do Egito, Marco Júlio Emiliano, proclamou -se
imperador em 262 e após reinar uns poucos meses foi violentamente derrotado
por Galiano; pela mesma época, povos estrangeiros atravessaram as fronteiras,
fizeram incursões pelo país e chegaram a ocupar o território durante algum
tempo. Não foi por acaso que no reinado de Cláudio II (268 – 270) um egípcio
de nome Thimagenes pediu o auxílio dos palmirenses. Estes viviam numa rica
aldeia caravaneira e, embora independentes, eram aliados do Império. Sua
rainha, Zenóbia, sem romper abertamente relações com Roma, enviou um
exército de 70 mil homens, que exigiu das legiões romanas grandes esforços:
tomando o povo o partido dos invasores, as vitórias dos romanos tornavam -se
inócuas. Mesmo após Aureliano ter conseguido dominar a situação e rechaçado
os palmirenses, algumas facções anti -romanas da população, sob a liderança de
um certo Firmo, aliaram -se aos invasores que ainda permaneciam no Egito.
Ligaram -se também a um povo de quem se começava a falar com temor, os
Blêmios, que eram nômades que ocupavam a Baixa Núbia e amiúde apareciam
no Alto Egito – vindos do deserto, que controlavam –, semeando o terror entre
as populações agrícolas.
O general Probo (276 – 282), que sucedeu a Aureliano após ter comandado
suas tropas, conseguiu dominar os palmirenses, os Blêmios e seus aliados da
guerrilha egípcia. Não poupou esforços para melhorar a situação do país, que
se encaminhava para a ruína, desinteressado de uma vida social centrada na
administração tradicional. A acolhida dispensada até mesmo aos Blêmios, que
203
O Egito sob dominação romana
agiam como saqueadores nômades, mostrou claramente que a comunidade
precisava ser fortalecida a partir do interior, insuflando nas populações uma
nova confiança. Esse, sem dúvida, foi o objetivo de Probo quando, após derrotar
os bárbaros e proclamar -se imperador, empregou seu exército na construção de
canais, visando introduzir melhorias na agricultura.
A crise do Egito apenas refletia, num contexto bem -definido, a crise mais
ampla do próprio Império. Diocleciano (284 305) foi quem ousou enfrentar
esse problema, remodelando todo o sistema do Estado (por ser vasto, esse assunto
só será tratado aqui no que respeita ao Egito). O novo imperador compreendeu
claramente a situação e decidiu abandonar a Núbia, aberta às invasões dos
Blêmios, entregando -a aos Nobatas, povo africano aparentado aos Blêmios – na
condição de que assumissem a proteção da fronteira meridional do Império. Para
essa tarefa recebiam somas que seus régulos (reguli, basiliskoi) se compraziam
em chamar de tributo.
O Egito ficava, então, dividido em três províncias, cada qual compreendendo
uma epistrategia. As duas províncias setentrionais, o Delta e o Heptanomis (os
sete nomos), passaram a chamar -se Aegyptus Jovia e Aegyptus Herculia, ambas
sob o governo de um funcionário civil (praeses) sem autoridade sobre as forças
armadas. A província meridional, Tebaida, mais exposta a invasões, submetia -se
a um dux, com autoridade tanto civil quanto militar. O Egito perdeu o caráter
de província isolada e passou a cunhar a mesma moeda do restante do Império.
Sua administração viu surgir, assim como nas demais províncias, a figura nova do
curator civitatis, oficial de tributação da cidade que se encarregava das questões
fiscais. Ao mesmo tempo, passou a vigorar um novo sistema de impostos, que,
em termos gerais, fixava taxas para um período de quinze anos (indictiones). Isso
representava certa melhoria frente ao caos da tributação arbitrária e imprevisível;
no entanto, implicaria uma mudança significativa caso houvesse equilíbrio
entre a tributação e todo o sistema de produção de riquezas. A comunidade
tendia, insensivelmente a princípio e cada vez mais manifestamente depois, a
se imobilizar em categorias fixas, das quais o contribuinte procurava escapar
quando as taxações se tornavam demasiado pesadas. Por conseguinte, o Estado
teve de reforçar a imobilidade: a ninguém era permitido abandonar sua função.
Os camponeses deviam continuar camponeses e permanecer na mesma terra,
convertendo -se em servos da gleba, mas tamm os honestiores (cidadãos
respeitáveis) ficaram atados aos deveres de contribuintes e administradores.
Logo o anachoresis se transformou numa necessidade em todos os níveis da
escala social. Apenas as pessoas com autoridade política bem definida podiam
fazer valer seus direitos. Naturalmente, os menos afortunados tendiam a se
204
África Antiga
 . Estatueta de um gladiador negro
em pé, vestindo uma túnica, couraça e elmo,
armado de escudo e adaga. (Fonte: E. Breccia.
Terracota II. 1934. Foto Museu Greco -Romano
de Alexandria, Inv. 23241.)
F . Estatueta de um soldado negro em
pé, empunhando um machado duplo. (Fonte: E.
Breccia. 1934. Foto Museu Greco -Romano de
Alexandria, Inv. 23099.)
F . Ladrilho de cerâmica: negro
ajoelhado, soprando um instrumento musical.
(Foto Allard Pierson Museum, Amsterdam, Inv.
1991.)
205
O Egito sob dominação romana
agrupar em torno desses potentados, acreditando na sua proteção contra o fisco
e confiando -lhes a disponibilidade de suas propriedades. O governo utilizava-
-se de todos os meios legais para combater essa tendência à formação de uma
sociedade dominada e organizada por grandes proprietários de terras; a lei
era, contudo, impotente, uma vez que não considerava as causas subjacentes
ao processo que procurava deter. Quando os grandes proprietários rurais se
viram no direito de coletar, eles mesmos, os impostos que deviam ao Estado
(autopragia), o sistema de propriedade sofreu uma completa transformão.
A pequena propriedade, sustentáculo da classe dia no início do Império,
desaparecia sob a propriedade – e a autoridade – baronial, que dividiu as antigas
unidades administrativas municipais em outras unidades econômicas.
O impacto do cristianismo sobre a sociedade egípcia
Todo esse processo evidentemente se desenvolveu durante longo tempo e
paralelamente a outro: a aparição do cristianismo no Egito. A partir de uma
perspectiva histórica bastante abrangente, poder -se -ia considerar esse fenômeno
como um dos momentos de intercâmbio entre o Egito e o restante do mundo
antigo no âmbito da religião. São bem conhecidas a difusão e a importância dos
cultos do vale do Nilo no Império Romano. Ísis e Osíris (Serápis) são venerados
em toda parte e despertam em povos de diferentes regiões as mesmas esperanças
místicas de salvação, as mesmas experiências de ardente.
Esses cultos, cuja influência sobre a conscncia e os sentimentos das
massas dificilmente pôde ser controlada pelas autoridades políticas, viam -se
frequentemente ameaçados. Embora tivesse erguido templos no Egito, Augusto
não escondia sua descrença nos deuses do país. Estes haviam ajudado seu inimigo
Antônio, cujas relações com Cleópatra, segundo certos rumores, chegavam a
ameaçar a posição imperial de Roma. A derrota de Antônio em Actium também
representou, oficialmente, uma derrota dos deuses egípcios. Calígula teve
outra atitude para com as divindades estrangeiras; Tito (79 – 81) consagrou um
touro a Ápis, e seu sucessor, Domiciano (81 96), foi um ardoroso adepto dos
deuses do Egito, a quem se sentia ligado por uma gratidão supersticiosa desde
que, em situação de perigo, se salvara disfarçando -se em sacerdote de Ísis. A
partir de então a paixão de Osíris, o luto de Ísis e a ressurreição de seu esposo
transformaram -se em esperança para os sofredores, que neles reconheciam
uma profunda harmonia com a natureza humana, ao lado de qualidades que a
transcendiam.
206
África Antiga
Desse modo, a experiência religiosa do Egito deve ter colaborado para a
propagação de uma outra religião de salvação como se pode considerar, sob
alguns aspectos, o cristianismo –, principalmente por se tratar de um país em que
as preocupações com a vida. além -túmulo sempre foram um fator preponderante
na especulação religiosa. Além do mais, durante alguns séculos existiu no Egito
uma colônia judaica, cuja presença, à época de Ptolomeu Filadelfo, fora
motivo para a tradução grega do texto da Bíblia, conhecida como “Septuaginta”.
Portanto, é provável que, desde muito cedo e em diferentes comunidades; fossem
conhecidos no Egito os fundamentos bíblicos do cristianismo, o que a princípio
deve ter facilitado a difusão da nova religião.
Em verdade pouco se conhece do assunto. Importa assinalar que a difusão
do cristianismo assemelha -se à de outras experiências religiosas, como as dos
gnósticos ou dos maniqueus, cujos textos originais o Egito conservou em papiros
ou pergaminhos exumados de seu solo. Tudo isso indica uma crise no mundo
pagão, cuja religião tradicional não mais satisfazia as necessidades espirituais dos
povos da época. No Egito, o ensinamento religioso exigia que a linguagem do
país fosse adotada como língua ritual. O cristianismo, assim como o gnosticismo
e o maniqueísmo, adotou o copta na forma de um ou outro dos seus diversos
dialetos provinciais ou regionais. Esse fato significa não apenas que os sacerdotes
falavam às classes mais humildes da população, àquelas que não tinham acesso à
cultura grega das classes dominantes, como também que, no domínio da religião,
dava -se prioridade à cultura nacional e à população nativa, que praticamente
não gozava dos benefícios da Constituição Antoniniana e estava impedida de
participar dos novos quadros de cidadãos do Império. Enquanto do ponto de
vista oficial o egípcio nativo era um dediticius que não merecia ser assimilado,
a palavra “heleno” tornou -se, para os cristãos, sinônimo de “pagão”, adquirindo,
assim, uma conotação pejorativa.
O número e a importância dos cristãos manifestam -se, por um paradoxo
estranho mas não incomum, nas constantes perseguições movidas contra
eles pelo imperador A de Décio (249 251) deixou no Egito uma série de
documentos peculiares: trata -se dos certificados conferidos aos que, em presença
das autoridades, faziam um sacrifício pagão, queimando alguns grãos de incenso
como saudação ao imperador. Os que se recusavam a fazê -lo eram considerados
cristãos e punidos como súditos desleais. Mas a perseguição que eclipsou todas
as demais na memória popular e inaugurou a era copta (“era dos mártires”) foi a
que Diocleciano (303) desencadeou com toda a energia e rigor de que era capaz.
Foi a prova final, a que patenteou a inutilidade de fazer frente a um movimento
que se consolidara. Alguns anos mais tarde, Constantino reconheceu em
207
O Egito sob dominação romana
Milão (313) o direito de professar a cristã, dando início à longa tarefa de
adaptar a sociedade cristã às necessidades do Império. A partir desse momento,
a história do cristianismo no Egito fica estreitamente vinculada às relações entre
Alexandria e Constantinopla, a nova capital do Império.
O papel particular do Egito no interior do Império cristão
A partir do momento em que o Império, sob Teodósio, torna -se oficialmente
criso, a história do Egito fica diretamente ligada à atitude oficial dos
imperadores, que, de Constantinopla, mais e mais reivindicam o direito de
definir o dogma a ser ensinado e aceito em todo o Império. O desejo de unidade
jurídica fez -se logo acompanhar de uma insistência quanto à uniformidade da
religião, conhecida como ortodoxia.
Enquanto religião, o cristianismo caracterizava -se por certo número de artigos
de fé; desde os primeiros séculos de sua existência, as diferentes concepções e
interpretações desses artigos suscitaram divergências entre os adeptos.
Enquanto a Igreja não esteve em condições de sair à luz do dia, as querelas entre
os fiéis não tiveram significado político. Tão logo, porém, a comunidade Cristã
se tornou representativa das massas do Império, suas disputas transformaram -se
em assunto de Estado. O próprio Constantino teve de intervir várias vezes para
eliminar as dissensões que começavam a envenenar as relações entre grupos de
cristãos e que, sob o disfarce da teologia, não raro ameaçavam a ordem pública.
Para o espírito prático e autoritário de Constantino, a discussão religiosa
a heresia devia desaparecer para dar lugar a uma conceão ordenada e
definitivamente reconhecida do que era verdadeiro e, portanto, legítimo. Os
sucessores seguiram -lhe o exemplo; tal atitude originou constantes tensões entre
o palácio de Constantinopla e o bispado de Alexandria, cada qual chamando a
si a responsabilidade pela manutenção da verdadeira fé, ou ortodoxia.
Essas contendas religiosas opunham amiúde as tradições locais
profundamente arraigadas, conservadas e veneradas às decisões abstratas e
remotas das autoridades. Tanto em Alexandria como em Antioquia, o prestígio
das sedes episcopais mais antigas da cristandade firmou -se pelas qualidades
pessoais de alguns dos prelados que as ocupavam. Mais importante talvez seja
o fato de as duas capitais intelectuais do mundo greco -romano imprimirem
às disputas religiosas ali desenvolvidas uma feição difícil de conciliar com as
concepções imperiais e mesmo, por vezes, com as concepções do bispo de
Roma.
208
África Antiga
Em Alexandria o cristianismo assumiu, desde muito cedo e por um processo
normal de desenvolvimento, um caráter acentuadamente diferente do cristianismo
do resto do país. A cultura grega, de que a cidade estava impregnada, manifestava-
-se até mesmo na maneira com que a nova religião foi recebida. A mudança
para o cristianismo tomou a forma o de um ato revolucionário, mas de uma
tentativa de justificar determinados conceitos novos e integrá -los no amplo
quadro da filosofia e da filologia da Antiguidade. Os alexandrinos estavam diante
do modelo concebido, mesmo, pelo judeu Filo (século I da Era Cristã) que
procurou dar às Escrituras um sentido grego e universal. Organizou -se, então,
um Didaskaleion, cujo fundador parece ter sido um homem chamado Panteno,
estoico convertido, e, portanto, versado em filosofia grega. A perseguição de
Sétimo Severo fechou a escola por algum tempo; esta, no entanto, retomou suas
atividades sob a direção de personalidades como Clemente de Alexandria (cerca
de 145 – 210), homem de prodigiosa erudição, e seu discípulo Orígenes (185 –
252), com quem a especulação filosófica e o interesse filológico atingiram o ápice.
Orígenes procurou reconciliar o cristianismo com o ensinamento do fundador
do neoplatonismo, Amônio Sacas. Essas figuras eminentes empenharam -se em
enxertar o cristianismo, ainda em formação, na tradição clássica, tornando -o
apto a receber a herança de uma civilização da Grécia e de Roma que em
princípio parecia incompatível com a doutrina cristã. Essa foi a mais importante
contribuição do Egito ao cristianismo nascente. Tal atitude, porém, não atraiu,
ao que parece, a população não -grega do país, cuja experiência religiosa era de
caráter mais instintivo. Quanto ao bispo de Alexandria, encontrava -se numa
situação bastante peculiar em relação aos padres (presbyteroi), uma vez que estes
formavam, como a princípio era comum na Igreja, um colégio poderoso. Para
manter sua autoridade, portanto, via -se obrigado a confiar nos bispos provinciais
(os chorepiskopoi, ou bispos da chora, isto é, do Egito à exceção de Alexandria),
cuja consagração dependia dele.
Esse conflito de interesses e posições gerava rias disputas. A primeira
delas surgiu quando o bispo Melécio de Licópolis (Assiut) apoiou os defensores
do rigorismo, que recusavam admitir no seio da Igreja aqueles que se tinham
omitido durante as perseguições.
Uma outra disputa, que acarretou consequências mais sérias, resultou das
diferenças de concepção entre clérigos e entre escolas filosóficas quanto à dupla
natureza, humana e divina, de Cristo. Teria ele duas naturezas indissociáveis
sendo apenas uma divina e a outra, humana, simples aparência ou duas
naturezas distintas? O sacerdote Ário, da Síria, optou pela segunda solução ao
problema, suscitando uma réplica oficial da Igreja que acabou por condená -lo.
209
O Egito sob dominação romana
O mais ardente defensor da ortodoxia foi Santo Atanásio (293 – 373), patriarca
de Alexandria, que em meio a essa tempestade triunfou perante os próprios
imperadores que apoiavam o arianismo, sendo reconhecido como paladino da
Igreja tanto pelos gregos como pelos romanos. Meio século depois, outro patriarca
de Alexandria, Cirilo (412 444), opôs -se às doutrinas de Nestório, patriarca
de Constantinopla, e soube fazer frente ao próprio imperador, Teodósio II. Por
essa época, Cirilo corrigiu as afirmações anteriores dos teólogos, sublinhando
que em Cristo havia uma só pessoa e duas naturezas. Após sua morte, o monge
Eutíquio, apoiado pelo sucessor de Cirilo, Dióscoro, foi além ao sustentar que
em Cristo havia apenas uma natureza. O Concílio de Calcedônia condenou
essa doutrina em 451. Posteriormente os alexandrinos, orgulhosos da sabedoria
e da santidade de seus patriarcas, adotaram -na como verdade absoluta. Essa
tendência filosófico -teológica seria conhecida mais tarde como monofisismo.
As decisões do Concílio de Calcedônia (451), que resolveu definitivamente
a questão ao declarar obrigatória a crença na união íntima de duas naturezas
em Cristo, deflagraram em Alexandria uma crise que durou até a conquista
muçulmana. Após o Conlio, Alexandria passou a ter dois patriarcas: um
melquita (do árabe malik, que significa rei), nomeado por Constantinopla e
subordinado ao rei, que exercia os poderes administrativo, judiciário e policial,
e um monofisita, que se opunha ao anterior e era, aos olhos dos egípcios, o
defensor da única verdade teológica aceitável – a unidade da natureza de Cristo.
O poder do patriarca melquita, estribado na legitimidade e na força imperiais,
chocava -se com o do patriarca monofisita, que tinha como apoio um sentimento
nacional cada vez mais antibizantino.
As rixas encarniçadas e por vezes sangrentas entre os fiéis tiveram como cenário
principal a cidade de Alexandria. Ecos dos eventos quase sempre escandalosos
ocorridos naquela cidade alcançaram as províncias; contudo, o cristianismo do
vale do Nilo soube demonstrar sua veia prática, oposta ao especulacionismo
dos alexandrinos, numa experiência que se revelaria fundamental para o
desenvolvimento da Igreja. Considerando a vida mundana como fonte e ocasião
do pecado, os cristãos do Egito cultivavam de modo sistemático o hábito de
isolar -se do mundo, formando comunidades religiosas que talvez encontrassem
precedentes no Egito pagão e entre os judeus do país (tais como os therapeutes,
cujas práticas virtuosas foram descritas por Filo), mas que agora passavam a ser
os pilares da nova religião. Podem -se distinguir diferentes fases na história desse
movimento conhecido como monasticismo. Seu primeiro representante ilustre
foi Paulo de Tebas (234 347), um eremita que, com seu discípulo Antônio
(251 356), organizou um grupo de anacoretas. O último, mas não menos
210
África Antiga
importante, foi Pacômio (276 349), que, com agudo senso prático, imaginou
grupos a dividirem tarefas e responsabilidades, sujeitos a um código de disciplina
comum e vivendo numa comunidade altamente desenvolvida (koinobia). Chega-
-se, assim, a Schenoute de Atripe (348 466), que no Convento Branco (Deir
el -Abiad) submetia homens e mulheres a uma rigorosa disciplina, aperfeiçoando
no Egito o sistema posteriormente desenvolvido na Europa medieval.
Evidentemente a rejeição da vida mundana e a organização de grandes
comunidades não eram simples atos de fé. Tratava -se, antes de mais nada,
da transferência para o domínio da religião de fatores que, como tivemos
oportunidade de ver, encontravam -se presentes no Egito bizantino. O termo
anachoresis tem significado tanto religioso quanto fiscal (anachoretes designa
tanto o eremita quanto aquele que foge para evitar os impostos que não tem mais
condições de pagar); o entusiasmo com que as pessoas se retiravam para viver
nos desertos denuncia as adversidades da vida cotidiana. Ademais, os numerosos
documentos relativos à vida dos monastérios mostram -nos que se tratava de
grandes organizações proprietárias de terras, animais, oficinas, lojas e instalações
agrícolas. Um convento podia ser rico e ativo, e seus monges pessoalmente
pobres, dedicados à vida contemplativa; tal solução, como se percebe facilmente,
assemelha -se àquela que levou ao desaparecimento das pequenas propriedades
em favor dos latifúndios. Os monges encontravam nos conventos a satisfação
não somente de suas aspirações religiosas, mas também de um desejo profundo,
peculiar àquela época: a fuga às dificuldades da vida e a proteção contra uma
autoridade discricionária. Esse fato pode explicar a ocorrência de uma população
monástica numerosa, que chegava a alcançar as dezenas de milhares, conforme
documentos da época. A utilização dos monastérios como refúgio contra o
Estado, ou ao menos como um atenuante da incapacidade deste em cumprir as
responsabilidades para com as populações, levou as autoridades eclesiásticas a
ocuparem cada vez mais o lugar das autoridades civis. Nessas circunstâncias, os
imperadores tinham boas razões para tentar impedir que os administradores se
tornassem monges.
Não é difícil compreender que essa sociedade estava menos interessada que
no passado em adotar a tradição do helenismo, tanto em sua forma clássica
quanto modificado pelas inovações que surgiram em Constantinopla. As
tradições figurativas do período romano evoluíram localmente para a chamada
– de maneira bastante vaga – arte copta. A literatura nacional, que então tratava
apenas de temas religiosos, exprimia -se na língua do país, e a rica proliferação
de textos sacros testemunha o desenvolvimento de uma tradição a que os
historiadores do passado talvez não tenham feito plena justiça.
211
O Egito sob dominação romana
 . Pintura de Baouit. (Fonte: K. Wessel. “Koptische Kunst”. Recklinghausen. 1963. g. 100. Foto
Museu do Cairo.)
F . Mosteiro de Mari -Mina.
212
África Antiga
No entanto, o espírito de resistência alexandrino, essencialmente teológico,
terminou por identificar -se, no culo VI, com o dos anacoretas. Constantinopla
exercia uma pressão cada vez mais forte para impor as doutrinas do Concílio de
Calcedônia, assim como diversas outras surgidas mais tarde em Constantinopla, a
um Egito relutante em acei -las. As circunstâncias combinavam -se para aumentar o
descrédito, no Egito, da Igreja oficial, rica e autoriria, responsável pela manutenção
da ordem, e para conferir popularidade aos monofisitas perseguidos, que no culo V
receberam forte apoio doutrinário da Síria e que acolheriam outros perseguidos rios
no culo seguinte. Um sentimento geral de lassidão dominava os epcios em todas
as classes sociais. A certeza de que a posição epcia era correta e justa foi reforçada
pela multiplicação de textos apócrifos relativos a episódios da vida de Cristo no Egito.
Os bizantinos tornaram -se estrangeiros indesejáveis, representantes de uma política
de ocupação intolerável.
Os papiros guardam informões bastante precisas sobre o estado de esrito
da populão nas diversas camadas da sociedade. O medo, a privação e o cansaço
faziam -se presentes em toda parte. Não admira que o ps, empobrecido por uma
administrão rapace e inepta, dividido internamente por conflitos e separado de
Constantinopla por uma desconfiaa mútua, tenha perdido seu poderio ecomico.
Em poucos anos, duas derrotas militares puseram às claras a fragilidade da
dominação bizantina.
O rei sassânida Cósroes pretendia enfraquecer Bizâncio. Os sassânidas
dominavam o sul da Arábia e dificultavam o comércio bizantino com o mar Vermelho.
Pressionavam em três dirões: rumo à Anatólia e Bincio, a Alepo e Antioquia, e
a Acaba e Egito, chegando ao Delta do Nilo em 615. A ocupão persa foi marcada
pela insurreão dos judeus, finalmente libertados da longa opressão romana, e pela
reaparão da Igreja monofisita, que durante alguns anos permaneceu a única Igreja
oficial.
A reconquista do Egito por Heclio, em 629, deu aos bizantinos apenas uma
breve trégua, uma vez que estes se viam obrigados a exercer estreita vigilância sobre
uma colônia que agora parecia ingovernável. O terror dominou o ano de 632, quando
Bizâncio, por intermédio do patriarca melquita, decidiu impor uma nova ortodoxia,
que o era nem a do Concílio de Calcenia, nem a de Roma nem tampouco a dos
monofisitas. A partir de 639, o ps passa a sofrer a amea dos muçulmanos, e em
642, os egípcios se rendem aos novos conquistadores, que prometem estabelecer uma
economia e condições sociais mais justas. A conquista árabe veio assinalar o início de
uma nova era na hisria do Egito.
C A P Í T U L O 8
213
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
Um breve exame do mapa físico da África basta para mostrar a importância
da Núbia como elo entre a África central – a dos Grandes Lagos e da bacia do
Congo e o mundo mediterrânico. O vale do Nilo, que em sua maior parte
corre paralelo ao mar Vermelho, em direção ao “corredor” núbio, entre o Saara,
a oeste, e o deserto arábico ou núbio, a leste, permitiu um contato direto entre
as antigas civilizações do Mediterrâneo e as da África negra. Assim, não deve
causar espanto a descoberta de uma admirável cabeça de bronze de Augusto em
Méroe, a menos de 200 km de Cartum.
Embora o Nilo constitua um meio seguro de atravessar essas regiões
desérticas, a viagem não é tão fácil como poderia parecer à primeira vista. De
Assuã até as proximidades de Omdurman, as cataratas dificultam a navegação
na direção norte -sul, chegando a interrompê -la em alguns trechos. Além disso,
as duas enormes curvas do rio aumentam muito o trajeto, constituindo -se,
em certos pontos, num sério obsculo à navegão; entre Abu Hamad e
Uadi el -Milk, por exemplo, o Nilo toma a direção sudoeste, ao invés de fluir
para o norte. Assim, na maior parte do ano, o tráfego rio acima depara -se
com o escolho dos ventos e das correntezas, embora a viagem rio abaixo seja,
naturalmente, muito mais fácil. Mais ao sul, enfim, os extensos ntanos de
el -Sudd, embora não sejam intransitáveis, também não facilitam as trocas
culturais ou econômicas.
A importância da Núbia: um elo entre a
África central e o Mediterrâneo
Shehata Adam colaboração de J. Vercoutter
214
África Antiga
F . O
vale do Nilo e o
Corredor bio.
(Mapa fornecido
por J. Vercoutter.)
215
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
Apesar de tudo, a Núbia continua a ser, na África, uma zona de contatos
privilegiada, não só entre norte e sul como também entre leste e oeste. Na parte
meridional da Núbia, o Nilo Azul, o Atbara e seus tributários, as planícies de
piemonte da Etiópia e a depressão perpendicular à costa do mar Vermelho
proporcionam fácil acesso às terras altas da Etiópia, ao mar Vermelho e ao
oceano Índico. A oeste, os uadis el -Milk e Howar, atualmente secos,o juntar-
-se ao Nilo entre a Terceira e a Quarta Catarata, oferecendo à Núbia, juntamente
com as planícies de Kordofan e do Darfur, uma rota de fácil acesso para a
depressão do Chade e dali para o vale do Níger e a África ocidental. Como se vê,
a Núbia constitui uma verdadeira encruzilhada de caminhos africanos, um ponto
de encontro das civilizações do leste e do oeste, do norte e do sul da África, sem
esquecer as do Oriente Próximo, da Ásia distante e da Europa mediterrânica.
Nos últimos anos, tem -se observado a tendência a empregar o termo “Núbia
para designar apenas a região setentrional do país, situada entre a Primeira e a
Segunda Catarata. A campanha da Unesco para a Salvaguarda dos Monumentos
da Núbia reforçou, se não criou, essa tendência. Na verdade a Núbia não termina
no temível Batn -el -Haggar, árido e pedregoso, mas estende -se bem mais ao
sul. em 1820, Costaz, em sua Descrição do Egito, definiu -a como “a região
do vale do Nilo entre a Primeira Catarata e o reino de Sennar”, cuja capital se
encontra a mais de 280 km ao sul de Cartum. Mesmo esse ponto de vista, porém,
conquanto mais generoso, subestima a verdadeira extensão da Núbia.
Historicamente, segundo testemunham os mais antigos textos egípcios,
viajantes vindos do norte penetraram na Núbia um pouco ao sul de el -Kab.
Durante muito tempo, a província egípcia situada entre Tebas e Ass foi
denominada Terra do Arco”, Ta -Seti em egípcio antigo. Ora, os documentos
hieroglíficos tradicionalmente designam com esse termo o que chamamos de
Núbia. Na aurora da História, a Grande Núbia começava, portanto, nas regiões
arenosas do vale do Nilo, onde os arenitos núbios” substituem as formações
calcárias do norte. Em suas origens, a Núbia incla a Primeira Catarata.
Seu limite ao sul é mais difícil de determinar, mas as pesquisas arqueológicas
mostram que, a partir do IV milênio antes da Era Cristã, culturas idênticas
ou aparentadas entre si distribuíam -se por toda a região, desde os confins das
montanhas etíopes, ao sul, até a parte egípcia do Nilo, ao norte. Assim, para dar
maior precisão à frase de Costaz, poderíamos definir a Núbia histórica como
a parte da bacia do Nilo que se estende da fronteira oeste -noroeste da atual
Etiópia até o Egito, incluindo o próprio vale do Nilo, partes do Nilo Branco e
do Nilo Azul e todos os seus tributários situados ao norte do 12
º
paralelo, tais
como o Atbara, o Rahad e o Dinder (ver mapas).
216
África Antiga
 . A Núbia antiga (segundo K. Michalowski. 1967b. p. 29).
217
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
 . A Alta Núbia sudanesa (segundo F. e U. Hintze. 1967. p. 26).
218
África Antiga
É importante precisar os limites geográficos da Núbia, de forma a podermos
reexaminar o que se conhece desse país e compreender melhor o seu papel
histórico de vínculo entre a África central e o mundo mediterrânico. Há, contudo,
uma enorme disparidade nos nossos conhecimentos acerca das diferentes regiões
da Núbia. Graças às investigações arqueológicas efetuadas antes da construção
ou elevação das barragens de Assuã, dispomos de informações arqueológicas
muito mais completas sobre a Baixa Núbia isto é, a região entre Assuã e
Batn -el -Haggar (Segunda Catarata) do que sobre qualquer outra parte do
vale do Nilo. Note -se, porém, que nenhuma escavação foi realizada antes da
construção da primeira barragem em Assuã, em 1896: todos os vestígios antigos
situados nas proximidades do rio e nos limites do primeiro reservatório foram
destrdos antes que se pudesse ter uma ideia de seu mero, natureza ou
importância. Somente em 1902, quando a barragem foi ampliada pela primeira
vez, é que se retomaram sistematicamente as prospecções arqueológicas. Desde
então, tal prática tornou -se comum antes de cada nova elevação. Após a última,
ocorrida entre 1928 e 1938, escreveram -se mais de cinquenta volumes, vários
deles in-fólio, sobre os monumentos e a arqueologia da Núbia “egípcia”. Antes
do término da nova barragem de Shelal, Sadd -al -Ali, efetuou -se uma série de
novas investigações até Batn -el -Haggar. Somente agora começam a aparecer os
relatórios completos desse último empreendimento.
Pode -se, pois, dizer que a história e a arqueologia da Baixa bia são
razoavelmente bem conhecidas. Só depois de publicados todos os estudos
históricos, arqueológicos e antropológicos atualmente em curso é que poderemos
apreciar em seu justo valor o papel outrora desempenhado por essa parte da Núbia
como elo entre o norte e o sul do continente Áfricano. a Núbia ao sul de Batn-
-el -Haggar encontra -se em situação bem diferente e muito menos satisfatória. À
exceção de algumas regiões muito pequenas, grande parte do país é ainda terra
incognita do ponto de vista arqueológico e, portanto, histórico. É verdade que os
importantes sítios “faraônicos” entre a Segunda e a Quarta Catarata já foram ou
estão em vias de ser escavados. O mesmo se pode dizer de um certo número de
sítios mais especificamente sudaneses”, tais como (do sul para o norte) Djebel
Moya, alguns povoados neolíticos em Cartum ou nas suas proximidades, Naga,
Mussawarat es -Sufra, Uadi ben Naga, roe, Ghazali, Napata, Dongola e
Kerma; nenhum desses sítios, contudo, foi totalmente explorado, e alguns dos
principais, como Kerma e Méroe – centros políticos de importância vital para o
estudo da influência núbia na África –, mal foram tocados.
Independente das escavões arqueogicas, antigos textos faraônicos,
assim como gregos e latinos, oferecem algumas informações sobre a história
219
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
e a civilização da Núbia antiga e nos permitem ter uma ideia de seu papel
na evolução da África. No entanto, essas fontes não podem suprir a falta de
informações arqueológicas e literárias referentes à maior parte da Núbia, quer
se trate dos grandes vales – o próprio vale do Nilo, ao sul da Segunda Catarata,
o do Nilo Azul, do Nilo Branco e do Atbara –, quer das regiões mais remotas,
como Darfur e Kordofan, quer ainda das rotas orientais em direção ao mar
Vermelho e à Etiópia.
Por sua situação geográfica, a Núbia deveria ser a região da África mais pródiga
em informações bem datadas sobre os vínculos históricos entre a África central e
a do norte, assim como entre o leste e o oeste do continente. Mas a insuficiência
de fontes – salvo para o norte do país – não nos permite formar senão uma ideia
superficial acerca da natureza, importância e duração desses vínculos.
Um fato que impressionou a todos os observadores do mundo mediterrânico
antigo merece especial atenção: a Núbia era, e é, uma terra povoada por negros.
Os egípcios sempre retrataram os habitantes da Núbia com uma pele muito mais
escura do que a sua. Os gregos, e posteriormente os romanos, chamavam -nos,
de “etíopes”, isto é, os que possuem a pele queimada”, enquanto os primeiros
viajantes árabes se referiam à Núbia como Bilad -al -Suden, o “país dos negros”.
Nos textos medievais, o título Prefeito dos Núbios” escreve -se Praefectus
Negritorum e os núbios são chamados nigritas. Finalmente, nas pinturas murais
de Faras, a pele escura dos núbios distingue -se da pele clara das personagens
celestes – o Cristo, a Virgem Maria e os santos.
Todavia, não é nossa intenção entrar, ainda que pudéssemos, no debate
puramente antropológico acerca da origem negra ou camítica” dos núbios.
As representações egípcias anteriores a -1580 fazem uma clara distinção entre
o tipo físico dos Nehesyu da Baixa Núbia, que diferem dos egípcios só pela cor
da pele, e o dos cuxitas” que nessa época aparecem no vale do Nilo, seja como
invasores, seja – mais provavelmente porque os egípcios e os núbios nehesyu
entraram em contato com eles nas regiões situadas mais ao sul. Esses novos
cuxitas” não apenas tinham a pele muito escura como possuíam muitos dos
traços faciais ainda hoje observados na população da África central e ocidental;
eram muito diferentes tanto dos núbios antigos como dos modernos.
Africanos na língua e na civilização, os habitantes da Núbia estavam bem
localizados para servir de elo entre as culturas que os cercavam e com quem
eram estreitamente aparentados. Como a longa história da Núbia – de -7000 a
+700 aproximadamente é narrada por miúdo nos capítulos seguintes (9 -12),
faremos apenas um breve relato de alguns dos aspectos que elucidam as relações
do país com as civilizações vizinhas.
220
África Antiga
. Monumentos
núbios de Filas em reconstrução
na ilha vizinha de Agilkia.
F . O templo de Ísis
em reconstrução em Agilkia. À
esquerda, colunata do “Mammisi”,
ou Casa do Nascimento”, onde
nasceu Hórus, o deus -Sol. (Foto
Unesco, A. H. Vorontzo. )
221
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
A partir de -7000 e sobretudo durante os períodos úmidos do fim do
Neolítico, a Núbia parece ter sido palco de uma cultura material comum, a
todo o seu território, desde os limites das montanhas etíopes até a região de
el -Kab e, ainda mais ao norte, até o Médio Egito. Apenas por volta de -3000
é que se pode perceber uma clara diferença entre a civilização do baixo vale do
Nilo, egípcio, e o alto vale, núbio. Até essa época, práticas funerárias, cerâmica,
instrumentos de pedra e posteriormente de metal, muito semelhantes, se não
idênticos, são encontrados desde Cartum, no sul, até Matuar, perto de Assiut, no
norte. Tais objetos testemunham um forte parentesco entre as várias regiões no
tocante tanto à organização social, crenças religiosas e rituais funerários, quanto
ao modo de vida, em que a caça, a pesca e a criação animal estavam associadas
a uma forma de agricultura ainda rudimentar.
A escrita surge no Egito por volta de -3200, enquanto a Núbia ao sul da
Primeira Catarata continua ligada aos seus próprios sistemas sociais e à sua
cultura oral. Em tomo de -2800 o uso da escrita se havia generalizado no Egito,
provavelmente em consequência da necessidade de uma organização política
altamente centralizada, contribuindo para o desenvolvimento da irrigação e,
portanto, de uma agricultura comunitária, que viria substituir a caça, a pesca e
a criação de gado. Isso tornaria mais e mais acentuadas as diferenças entre as
civilizações da Grande Núbia e do Egito.
No sul, as populações negras da Núbia, com sua cultura oral, caracterizavam-
-se por uma organização social e política fragmentada em pequenas unidades
que não sentiam necessidade de adotar a escrita, cuja existência, contudo, não
deviam ignorar, pois ainda mantinham contatos, não raro violentos, com o
mundo faraônico. Impelido pelas exigências da irrigação, o Egito, por sua vez,
desenvolveu gradualmente um tipo de organização morquica altamente
centralizada, visto que uma autoridade central forte era o único meio de compelir
a população, quando necessário, a executar os serviços coletivos indispensáveis
para tornar cultivável todo o baixo vale do Nilo: construção e manutenção de
diques paralelos ao rio, nivelamento das bacias”, abertura de canais e construção
de barragens que permitissem distribuir da melhor maneira possível a água das
cheias, sempre variáveis (ver acima). Era natural, portanto, que duas sociedades
tão distintas nascessem e coexistissem no vale do Nilo: uma, na Núbia, pastoral e
talvez ainda seminômade, embora o destituída de habilidades agrícolas, e outra
essencialmente agrícola, voltada para o cultivo intensivo da terra e politicamente
centralizada. Essas duas civilizações “especializadas”, semelhantes e autônomas
até cerca de -3000, vieram, com o tempo, a se complementar economicamente,
o que facilitou os intercâmbios mútuos.
222
África Antiga
Infelizmente, é muito difícil detectar, em seus pormenores, os vínculos
que se estabeleceram entre as duas sociedades. A partir do final do III
milênio, o conhecimento dessas relações fundamenta -se exclusivamente
em fontes egípcias. As fontes literárias oferecem uma visão mutilada da
realidade, tendendo a mencionar apenas as expedições militares; por sua
vez, as evidências arqueológicas exceto para a Baixa bia são bastante
incompletas, limitando -se a artefatos núbios encontrados no Egito ou, no
melhor dos casos, a objetos egípcios descobertos em sítios núbios entre Assuã
e a Segunda Catarata.
Tal como se apresentam, essas informações sugerem a existência de laços
estreitos entre o alto e o baixo vale do Nilo. Sua origem cultural comum, que
não deve ser negligenciada, favoreceu os intercâmbios. Utensílios de cerâmica
egípcios protodinásticos e tinitas são encontrados em áreas tão meridionais
quanto a Catarata de Dal, e mesmo além. Tais descobertas testemunham a
troca de artigos manufaturados entre o norte e o sul: aos objetos egípcios
encontrados na Núbia vasos, pérolas, amuletos correspondem o ébano, o
marfim, o incenso e talvez a obsidiana do sul, abundantes na mobília funerária
egípcia desse período. Esse comércio deve ter contribuído para a difusão de
ideias e técnicas de uma região para outra, mas nossos conhecimentos são ainda
por demais fragmentários para podermos avaliar a importância ou mesmo a
direção de tais influências. Por exemplo, a técnica da esmaltagem, tal como era
aplicada a contas e amuletos, originou -se no norte ou no sul? Ela aparece quase
ao mesmo tempo em ambas as sociedades. O mesmo ocorre com a cerâmica
vermelha de borda preta, tão característica da arte do oleiro em todo o mundo
nilótico antigo. Ela parece surgir no alto vale do Nilo, entre a Quarta e a Sexta
Catarata, antes de ser atestada no baixo vale, no Egito. Mas, ainda aqui, a datação
é pouco precisa para se arriscar qualquer afirmação categórica.
Por outro lado, a cerâmica obtida de uma argila fóssil amarelada, conhecida
pelos especialistas como cerâmica qena”, é indiscutivelmente egípcia, tanto pela
matéria -prima utilizada como pela técnica de manufatura. Essa cerâmica foi
importada em larga escala, pelo menos na Baixa Núbia, do fim do IV até o início
do III milênio antes da Era Cristã. Sua presença, muito frequente nos sítios
núbios ao sul da Primeira Catarata, testemunha a existência de um comércio
ativo entre a região tebana e a Baixa Núbia. A argila qena era utilizada na
fabricação de grandes vasos, capazes de guardar líquidos ou sólidos; infelizmente
não sabemos o que continham – óleos, gorduras, queijos? São, porém, um claro
indício das frequentes trocas entre o Egito e o Corredor Núbio, cuja importância
histórica é sem dúvida maior que a das incursões ocasionais que, desde cerca de
223
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
-3000, os faraós costumavam empreender na região situada entre a Primeira e
a Segunda Catarata, o Ta -Seti a Terra do Arco.
No entanto essas incursões, das quais referências nos primeiros textos
egípcios (ver Capítulo 9), são a primeira indicação do duplo aspecto – militar e
econômico dos contatos entre o norte e o sul ao longo do vale do Nilo. Apesar
de sua ambiguidade, esses contatos revelam a importância do Corredor Núbio
como elo entre a África e o Mediterrâneo.
Por volta de -3200, durante a I dinastia, os egípcios conheciam o país o
suficiente para aventurar -se a enviar um corpo de tropas até o início da Segunda
Catarata. Podemos supor as razões de uma tal expedição. Primeiramente, a
necessidade de encontrar matérias -primas que estivessem faltando ou escasseando
no Egito, especialmente a madeira. A floresta -galeria que nos primeiros tempos
provavelmente recobria as margens do rio iria desaparecer pouco a pouco, à
medida que o baixo Nilo ia sendo dominado e o sistema de irrigação, com suas
redes de “bacias”, se ampliava.
Uma segunda razão importante para a intervenção do exército egípcio na
Núbia seria o desejo de manter livre a passagem para o sul: incenso, goma,
marfim, ébano e panteras não provinham da região entre a Primeira e a Segunda
Catarata, mas de uma zona muito mais ao sul. Nessa época, contudo, a Baixa
Núbia era densamente povoada, como se pode ver pelo número e tamanho dos
cemitérios do Grupo A (ver Capítulo 9).
Essa população não provinha do norte, como até pouco se acreditava,
mas descendia dos grupos neolíticos que se haviam instalado no vale entre a
Primeira e a Terceira Catarata. No entanto, a julgar pelos objetos domésticos
recolhidos por arqueólogos em ambas as áreas, seria aparentada também às
populações que ocuparam a parte alta do vale, entre a Quarta e a Sexta Catarata.
Alguns desses povos ainda eram caçadores e pescadores, mas os que habitavam
as proximidades do rio estavam ligados sobretudo à agricultura, enquanto os
habitantes da savana, que se estendia de ambos os lados do Nilo, levavam uma
vida essencialmente pastoril ou mesmo seminômade. O clima ainda era o da
fase úmida do final do Neolítico africano, de modo que o Corredor Núbio não
se restringia ao estreito vale do rio, mas provavelmente se alargava por uma
extensão considerável em ambas as margens. Assim, seus habitantes poderiam,
se quisessem, interceptar as caravanas egípcias que rumavam para o sul por via
terrestre ou ao longo do rio.
Seja como for, o interesse dos egípcios pela Baixa Núbia é evidenciado pelos
vários termos étnicos ou topônimos referentes a essa região preservados na
maior parte dos antigos textos faraônicos. No entanto, estes abrangem apenas
224
África Antiga
cerca de 325 km do vale, entre Elefantina, ao norte, e os primeiros rápidos da
Segunda Catarata, ao sul, em Buhen (atualmente tais sítios estão submersos
pelas águas da represa de Assuã), que os egípcios certamente atingiram durante
o reinado do rei Djer da I dinastia, se não mesmo na época do rei Escorpião, ao
final do período pré -dinástico.
Por volta de -2700, as informações sobre os contatos norte -sul, obtidas a partir
de escavações nos sítios do Grupo A, interrompem -se bruscamente, pelo menos
na Baixa Núbia. Encontram -se apenas uns poucos túmulos e estabelecimentos.
É como se os habitantes tivessem repentinamente abandonado sua terra.
Esse desaparecimento de uma população outrora densa, entre a Primeira e a
Segunda Catarata, ainda não foi totalmente explicado. Seria uma decorrência
da superexploração do país pelos faraós ou da retirada voluntária dos núbios
quer em direção à savana, de ambos os lados do vale, quer mais para o sul?
É muito difícil responder a essas questões, uma vez que a região ao sul da
Segunda Catarata, assim como as vias de acesso a leste e a oeste do Nilo estão
praticamente inexploradas do ponto de vista arqueológico.
Assim, para o conhecimento desse período, que se estende de -2700 a
-2200 aproximadamente, temos de confiar nas pouquíssimas alusões contidas
nas fontes literárias egípcias. Estas relatam campanhas militares na região de
Ta -Seti, na Núbia, o que pode explicar o abandono do país por seus habitantes.
Assim, sabemos que durante o governo de Snefru (cerca de -2680), as forças
do faraó capturaram 11 mil prisioneiros e 200 mil cabeças de gado, números
que confirmam tanto a densidade da população no fim do período do Grupo A,
antes do abandono do país, como a importância da criação de animais em sua
sociedade, comparada algumas vezes ao atual cattle -complex do nordeste africano.
Uma tal quantidade de gado pode ser explicada se admitirmos que esses
povos exploravam não só grande parte da estepe ou savana, que naquela época
se estendia ao longo das margens do rio, como também o próprio vale do Nilo.
Um importante achado arqueológico de 1961 -1962 ajudou a elucidar um
pouco mais os fundamentos históricos do Corredor Núbio durante esse período
obscuro. Com efeito, descobriu -se em Buhen, uma aldeia do Antigo Império
egípcio que empregava selos faraônicos datados do fim da IV dinastia, mas
sobretudo da V. A aldeia estava ligada a um conjunto de fornos destinados à
fundição do cobre.
Por um lado, essa descoberta revela que os egípcios não dependiam apenas
do cobre asiático particularmente do Sinai e que se haviam dedicado
à exploração de metais na Núbia africana. Por outro lado, e principalmente,
indica que os egípcios foram capazes (ou se viram na obrigação) de introduzir
225
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
técnicas de fundição no alto vale do Nilo. O achado de Buhen prova que o
cobre africano era produzido nessa época. Todavia, para se produzir cobre, é
necessário descobrir e escavar o veio, construir fornos especiais e alimentá -los
com um combustível apropriado, confeccionar cadinhos, fundir o metal é refiná-
-lo, ao menos parcialmente, antes de transformá -lo em lingotes. Dificilmente
os núbios poderiam ter presenciado todo esse processo mesmo que dele não
participassem ativamente sem adquirir ao menos um conhecimento rudimentar
da metalurgia. Essa inicião precoce, ocorrida na metade do III minio
antes da Era Cristã, é provavelmente a melhor explicação para a habilidade
que demonstraram cerca de quinhentos anos depois (por volta de -2000) na
produção de objetos de cobre e na metalurgia do ouro.
Pouco antes de -2200 esse período obscuro chega ao fim, e mais uma vez
nos deparamos com fontes arqueológicas e literárias. Os documentos egípcios
da VI dinastia, a última do Antigo Império, incluem vários relatos de expedições
à Alta Núbia (ver Capítulo 9). No início da dinastia, tais expedições tinham
um caráter nitidamente comercial e pacífico: os egípcios procuravam obter na
Núbia as pedras raras necessárias às construções reais, ou simplesmente madeira.
Empregavam uma técnica que seria reutilizada mais tarde, ou seja, a procura
simultânea de bens raros ou de grande porte e de madeira. A madeira obtida no
alto vale era usada na construção de barcos, que posteriormente transportariam
objetos pesados de volta ao Egito; lá, a frota seria desmontada, e a madeira,
reutilizada para outros fins. Essa atividade também favoreceu a circulação de
ideias e técnicas em ambos os lados do vale. O panteão egípcio chegou a adquirir
uma nova divindade africana, Dedun, provedora de incenso. Para facilitar as
comunicações com o sul, os egípcios abriram canais navegáveis nos rápidos da
Primeira Catarata, em Assuã. Essa política, iniciada no III milênio antes da Era
Cristã, teve prosseguimento com os faraós do Médio Império e, posteriormente,
com os do Novo Império. Além das rotas ao longo do rio, as expedições egípcias
utilizaram as vias terrestres. Por essa época, as rotas certamente não eram
desérticas, uma vez que mal terminara a fase úmida neolítica; os caminhos
do sul deviam ser, se não arborizados, pelo menos pródigos em nascentes e
olhos -d’água, que normalmente eram empregados animais de carga que
necessitam de um suprimento regular de água, como os asnos. Era por um
desses itinerários, a chamada rota do oásis, que os asnos transportavam para o
Egito incenso, ébano, óleos, peles de leopardo, marfim, etc. Descobertas recentes
parecem indicar que ao menos um desses caminhos partia do oásis de Dakhla
e que o oásis de Kharga ainda era um lago. Infelizmente, os textos egípcios não
nos dizem o que os egípcios davam em troca das mercadorias, nem informam
226
África Antiga
onde, exatamente, obtinham seus suprimentos, o que é ainda mais lamentável.
Esses textos mencionam diversos nomes de países africanos, mas os especialistas
ainda não estão de acordo quanto à sua localização. Ainda aqui muita coisa
poderia ser revelada pela exploração arqueológica sistemática não apenas do
vale núbio do Nilo ao sul da Segunda Catarata, mas também o que é talvez
mais importante – das rotas terrestres em direção ao oeste do vale que ligam a
cadeia dos oásis líbios” com Selima e com os vales ou depressões que conduzem
a Ennedi, Tibesti, Kordofan, Darfur e ao lago Chade.
Quer seguissem pelo vale, quer por via terrestre, parece muito provável que
desde esses tempos remotos os egípcios estavam em contato com a África
ao sul do Saara e que o Corredor Núbio desempenhava um papel importante
nesses contatos. Sob Pépi II, por volta de -2200, uma expedição egípcia trouxe
do extremo sul um anão para a dança sagrada” (ver Capítulo 9). A palavra
usada para descrever essa personagem é deneg, ao passo que o termo usual para
anão nos textos hieroglíficos é nemu. Podemos, pois, indagar e provavelmente
a resposta seria positiva se deneg não se refere, de fato, a um pigmeu. Neste
caso e a tradução deneg = pigmeu é amplamente aceita hoje em dia , os
egípcios do Antigo Império devem ter mantido contato direto ou indireto com
essa raça proveniente da floresta equatorial. Mesmo que o habitat dos pigmeus
se estendesse muito mais ao norte do que hoje em dia o que é possível e até
mesmo provável, devido à diferença de clima durante o III milênio –, essa área
ainda estaria muito ao sul da Núbia. Podemos, portanto, concluir que os egípcios
do Antigo Império mantinham contatos com a África central e que a Núbia e
seus habitantes tiveram um papel importante no estabelecimento dessas relações.
Em todo caso, os contatos entre o Egito e a África central devem remontar
a muito tempo, visto que a palavra deneg aparece nos Textos das Pirâmides. Não
consenso quanto à data em que esses textos foram escritos, mas mesmo se
aceitarmos a estimativa mais conservadora, eles não poderiam ser posteriores à
V dinastia; é bem possível que sejam muito mais antigos.
Desse modo, na VI dinastia, o mais tardar, os egípcios sabiam da existência
dos pigmeus, o que é confirmado por um texto da época no qual se relata que
um deneg tinha chegado ao Egito nos tempos do faraó Isesi, o penúltimo
rei da V dinastia. O pigmeu fora encontrado na terra de Punt; isto sugere que
sua pátria devia ficar bem ao sul da Núbia, uma vez que Punt provavelmente
se situava na costa da Eritreia ou da Somália. Também aqui o “anão dançarino
parece ter sido entregue aos egípcios por terceiros. Nos dois casos, a provável
presença dos pigmeus no Egito implica a existência de contatos entre o baixo
vale do Nilo e a África subequatorial.
227
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
Ao final da VI dinastia, no reinado de Pépi II, as pacíficas relações entre
o Egito e a Núbia, baseadas no interesse mútuo e na necessidade dos faraós
de terem livre acesso às riquezas de reges distantes da África, parecem
deteriorar -se. Os textos do final do reinado de Pépi II aludem a conflitos entre
as expedições egípcias e os habitantes do Corredor Núbio. Assim, por exemplo,
um egípcio que comandava uma expedição foi morto durante uma viagem para
o sul, e seu filho teve de preparar um ataque para resgatar o corpo e levá -lo de
volta ao Egito para o ritual funerário.
É difícil não relacionar essa tensão com as mudanças climáticas ocorridas
por volta de -2400, que certamente ocasionaram deslocamentos populacionais.
Até -2400, toda a área entre 15° e 30° N era mais úmida do que atualmente
e, por isso, habitável. Mesmo não sendo densamente povoada devido à sua
extensão, a região deve ter comportado um grande número de habitantes. No
entanto, o progressivo dessecamento do clima forçou esses povos a procurarem
refúgio em regiões menos inóspitas: o sul e, naturalmente, o vale do Nilo. A
iconografia egípcia parece ter perpetuado a memória dessas migrações. É por
volta de -2350, na época da V dinastia, que o tema dos pastores esqueléticos
aparece pela primeira vez nas cenas da vida cotidiana que decoram as mastabas.
É, sem dúvida, tentadora para dizer o mínimo a associação dessas figuras
esfaimadas a pastores nômades ou seminômades, fugidos do deserto que se
alastrava para encontrar alimento e trabalho no Egito.
Assim, parece itil procurar, como se tem feito a aqui, uma origem
remota para os chamados povos do Grupo C (ver Capítulo 9), que aparecem
por volta de -2300 no Corredor Núbio. Na verdade, esses povos viviam nas
imediações do vale e somente foram levados a se fixar ali devido à mudança nas
condições climáticas. Todavia, esse movimento convergente a partir do deserto
em formação rumo às margens do Nilo deve ter provocado conflitos entre os
que viviam naquela área e os recém -chegados; os textos do final da VI dinastia
seriam um reflexo desse antagonismo.
Seja como for, os povos recém -chegados eram descendentes diretos do
Grupo A, como mostram as fontes arqueológicas. Tendo conservado a tradição
de intercâmbio com o baixo vale do Nilo, iriam posteriormente servir de
intermediários entre a África e as civilizações egípcia e mediterrânica.
A partir de -2300, tanto quanto a arqueologia nos permite entrever, a
população do Corredor Núbio dividiu -se em numerosas “famílias”. Embora
estreitamente aparentadas, cada uma delas tinha sua própria cultura material
cerâmica, instrumentos, armas e ferramentas e seus próprios ritos funerários
– tipo e arranjo do túmulo, distribuição do mobiliário dentro e fora do sepulcro,
228
África Antiga
etc. Contudo, as semelhanças eram muito maiores que as diferenças: a grande
importância da criação de gado, o uso generalizado da cerâmica vermelha de
borda preta, as sepulturas do tipo tumulus, etc.
De -2200 a -1580, os povos do Grupo C que viviam entre Assuã e Batn-
-el -Haggar (ver mapa) permaneceram em estreito contato com o Egito, seja
porque este país administrava diretamente a região (cerca de -2000 a -1700),
seja porque muitos egípcios fixaram residência no país (cerca de -1650 a cerca de
-1580), provavelmente a serviço do novo reino de Kush (ver abaixo e Capítulo
9). Continuando, no entanto, a manter contato com sua pátria, Tebas, ajudaram
a difundir as ideias e técnicas egípcias.
Mais ao sul, a partir de Batn -el -Haggar, situa -se o reino de Kerma, que
recebeu o nome de seu mais importante centro até agora conhecido (ver Capítulo
9). Sua civilização difere daquela do Grupo C apenas em detalhes, e os achados
arquelógicos nos poucos sítios escavados revelam ligações não somente com o
Egito, mas também, a partir de -1600, com os hicsos asiáticos, com quem talvez
estivessem em contato direto.
É fácil fixar o limite sententrional da área administrada pelos “Kerma”: é
o Batn -el -Haggar. não é o caso da fronteira meridional. Achados recentes
(1973) de cerâmica kerma, entre o Nilo Branco e o Nilo Azul, ao sul de Cartum,
parecem sugerir que o reino de Kerma, ainda que não abrangesse a atual Gezira,
chegou a influenciá -la, colocando -se, pois, em estreito contato com o mundo
nilótico do el -Sudd (ver mapa).
É particularmente lamentável que não possamos saber ao certo quais os
limites do reino de Kerma em direção à África equatorial, que esse reino,
provavelmente o primeiro império” africano conhecido na história, exerceu
profunda influência sobre os países do sul, ao longo do Alto Nilo e na África
central, bem como a leste e a oeste, dado o alto grau de civilização a que chegou.
Na hipótese de ter abrangido a área entre a Terceira Catarata e o Nilo Branco, o
reino de Kerma teria controlado não apenas a grande artéria norte -sul formada
pelo vale do Nilo, mas também as rotas leste -oeste, da África atlântica ao mar
Vermelho e ao oceano Índico. Sua localização favorecia, desde logo, a transmissão
de técnicas e ideias provenientes do Egito ou da civilização hicsa às culturas
Áfricanas dessas regiões, com as quais mantinha contato.
Não se trata de discutir, aqui, a questão da origem egípcia ou núbia das
grandes construções que ainda dominam o sítio de Kerma (ver Capítulo 9).
Embora os tijolos tenham sido fabricados segundo a cnica faraônica, as
construções diferem bastante das do baixo vale à mesma época. Na falta de
maiores informações, é preferível considerá -las como trabalho “cuxita que sofreu
229
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
influência egípcia. Kerma parece ter sido o mais importante centro urbano do
reino de Kush cujo nome aparece em textos faraônicos a partir de -2000.
Cabe salientar que esse reino pode ter exercido profunda influência sobre
as culturas vizinhas através de suas cnicas, especialmente no domínio da
metalurgia, e que sua força política, testemunhada pelas grandes dimensões
da capital, teria projetado sua influência por uma ampla área. Infelizmente, a
pouca ou nenhuma exploração arqueológica dos arredores do reino não nos
condições de ir além da especulação no que diz respeito ao papel do reino de
Kerma na difusão de ideias, técnicas ou línguas.
Destacamos acima um fato que parece confirmado: o poder material de
Kush. Comprovam -no as precauções tomadas contra o reino pelos faraós da XII
dinastia, de Sesóstris I a Amenemés III. A ameaça potencial de “Kerma para
o Egito é muito bem ilustrada pela cadeia de fortificações que, de Semneh até
Debeira, ao norte (ver mapa), protegem a fronteira meridional do Egito contra
os exércitos cuxitas. As fortificações, em número de onze, com muralhas de 6 m
a 8 m de espessura e 10 m a 12 m de altura, baluartes arredondados e acessos ao
rio bem protegidos, não apenas defendiam o Nilo como serviam de base militar
para campanhas no deserto ou no sul. Tais expedições, muito comuns durante
os reinados dos seis primeiros faraós da dinastia, atestam a irredutível energia
das populações kerma, elas próprias, talvez, pressionadas por grupos étnicos
provenientes do sul distante. Uma das consequências trágicas da construção da
nova barragem de Assuã foi o inevitável desaparecimento dessas obras -primas
da arte da fortificação.
Os melhoramentos introduzidos pelos egípcios na rota norte -sul de -2000
a -1780 provam conclusivamente que o Corredor Núbio continuava a ser a
principal artéria entre a África, o baixo vale do Nilo e o mundo mediterrânico:
limpeza dos canais navegáveis da Primeira Catarata, construção de um diolkos
caminho para arrastar barcos por terra paralelo aos rápidos intransponíveis
da Segunda Catarata e de uma barragem em Semneh para facilitar a navegação
das correntezas menores de Batn -el -Haggar. Tais iniciativas demonstram que
os faraós da XII dinastia estavam empenhados em melhorar ao máximo as vias
de acesso ao sul.
Ao fixar a fronteira egípcia em Semneh, Sesóstris III reforça as defesas
militares contra um eventual e poderoso agressor meridional; contudo, conforme
relata um texto famoso, o mesmo faraó entendia que as fortificações não deviam
impedir o tráfico comercial, que beneficiava tanto os egípcios como os núbios.
Pouco se conhece acerca do agitado peodo que se estende de -1780 a
-1580, chamado pelos egiptólogos de Segundo Período Intermediário, mas tudo
230
África Antiga
indica ter sido a idade de ouro do reino de Kush. Sua capital, Kerma, parece ter
aproveitado o enfraquecimento da realeza egípcia para intensificar o comércio
entre o baixo e o alto vale do Nilo, com que muito lucrava.
Não se deve subestimar a importância desse comércio. Inúmeras marcas de
terra sigilar, usadas para selar correspondência e diversas mercadorias procedentes
do norte foram encontradas em Kerma e nas fortalezas egípcias, que, ao contrário
do que se acreditava, o foram abandonadas durante o Segundo Peodo
Intermediário, ou o foram tardiamente e por pouco tempo. Enquanto no
Médio Império as tropas eram substituídas a intervalos regulares, no Segundo
Período Intermedrio as guarnições que ocupavam as fortalezas fixaram
residência permanente na Núbia; os soldados levavam consigo suas famílias e lá
eram sepultados. É até provável que tenham, aos poucos, reconhecido a suserania
do rei de Kush. De origem egípcia, devem ter contribuído para difundir sua
cultura por toda a sociedade da qual eram membros.
O contato entre o reino africano de Kush e o Egito parece ter sido
particularmente estreito durante a dominação dos hicsos (-1650 a -1580). Ao
longo de todo o Corredor Núbio encontraram -se escaravelhos e selos ostentando
os nomes dos reis asiáticos que então governavam o Egito. tantos objetos
desse tipo na própria Kerma que se chegou a pensar que os hicsos, após
conquistarem o Alto Egito, tivessem submetido também a Núbia. Sabe -se hoje
que tal não ocorreu; contudo, os africanos do médio Nilo tinham vínculos tão
íntimos com os asiáticos do Delta que, quando os faraós tebanos da XVII
dinastia se envolveram na reconquista do Médio e do Baixo Egito, o rei dos
hicsos ofereceu auxílio aos aliados africanos e propôs empreenderem juntos uma
ação militar contra o inimigo comum, o faraó do Egito (ver Capítulo 9).
Seja como for, as relações entre o Alto Egito tebano e os cuxitas de Kerma
foram a um tempo hostis e complementares. De -1650 a -1580, os tebanos a
serviço do rei de Kush levaram sua habilidade técnica à Média Núbia. A presença
de numerosos egípcios nas fortalezas da Baixa Núbia assegurava a Kush o contato
com os soberanos hicsos do norte. Além disso, os últimos faraós da XVII dinastia
empregaram mercenários medja tanto nas lutas internas de unificação do Alto
Egito como na guerra contra os invasores hicsos. Esses soldados africanos do
deserto núbio eram da mesma raça e de cultura praticamente idêntica à dos
Nehesyu, povo sedentário estabelecido às margens do rio.
Desse modo, o Segundo Período Intermediário foi marcado pela presença
de núbios no Egito e de egípcios na Núbia, o que certamente favoreceu as
trocas comerciais e culturais. O Corredor Núbio tornou -se um cadinho onde,
aos poucos, elementos africanos e mediterrânicos se misturaram, produzindo
231
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
uma cultura mista. Contudo, esses contatos muito íntimos tiveram dramáticas
repercussões no desenvolvimento do primeiro reino de Kush em Kerma.
Os faraós da XVIII dinastia, os Tutmósis, herdeiros e descendentes dos que
haviam reunificado o Egito e expulsado os invasores hicsos, perceberam o perigo
que representava para o país a presença de um reino africano unido ao sul de
suas fronteiras: pouco faltou para que uma aliança hicsos -cuxitas aniquilasse as
ambições tebanas. Além disso, a ameaça asiática ainda se fazia presente, mesmo
após a retirada dos hicsos para a Palestina. Para se proteger, o Egito empreendeu
uma política de intervenção sistemática no Oriente Próximo.
Os recursos do Egito em mão de obra e matérias -primas eram inferiores ao
potencial da Ásia Menor, como a história subsequente iria demonstrar. Os faraós
tebanos sabiam que a África ao sul de Semneh era rica em matérias -primas e
mão de obra, e não descansariam enquanto não obtivessem o completo controle
do Corredor Núbio, único meio de atingir aquela parte da África cujos recursos
faziam -se tão necessários à sua política asiática.
Costuma -se afirmar que os exércitos egípcios não encontraram grandes
dificuldades em submeter o Corredor Núbio, o que não é verdade. Foram
necessárias sucessivas campanhas sob cada um dos faraós do Novo Império, de
Amósis a Seti I e Ramsés II, para que a tarefa se completasse.
A resistência bia parece ter assumido duas formas: revoltas contra a
dominação egípcia no país e um êxodo mais ou menos generalizado para o
sul. O país despovoou -se gradualmente, como se pode observar pelo número
decrescente dos túmulos encontrados tanto na Alta como na Baixa Núbia. Isso
obrigou os faraós a avançarem cada vez mais em direção ao sul, a fim de obter
na África os suprimentos vitais para sua política de hegemonia no Oriente
Próximo.
No reinado de Tutmósis I, toda a região situada entre a Segunda e a Quarta
Catarata foi conquistada. Os egípcios detinham o controle direto dos caminhos
que levavam a Darfur, Kordofan e Chade, quer a partir de Sai, através de Selima e
do Uadi Howar, quer a partir da atual Debba, através do Uadi el -Milk. Poderiam
doravante avançar em direção à África dos Grandes Lagos, seja seguindo o Nilo
a partir de Abu Hamad em cuja área foram encontradas inscrições rupestres
com os cartuchos de Tutmósis I e Tutmósis III –, seja atalhando pelo deserto de
Bayuda, a partir de Korti, até reingressar no curso principal do Nilo, pelos uadis
Muqaddam e Abu Dom, na altura da Quinta Catarata. Além de ser muito mais
curta, essa rota evitava as dificuldades da viagem rio acima, na direção sudoeste-
-nordeste, entre Korti e Abu Hamad, assim como a travessia dos rápidos da
Quarta e da Sexta Catarata.
232
África Antiga
Teriam os fars do Novo Imrio tirado proveito dessas excepcionais
oportunidades de penetrar no coração da África? Nada nos autoriza a afirmá-
-lo. Ainda uma vez, observa -se a ausência de um levantamento arqueológico
completo dessas rotas os uadis ocidentais (Howar e el -Milk), o trecho do Nilo
entre a Quarta e a Quinta Catarata e o Bayuda. Todavia, a partir do reinado de
Tutmósis IV (cerca de -1450), uma mudança surpreendente na representação
dos negros em túmulos e nos monumentos sugere a utilização dessas rotas pelas
expedições egípcias ou pelos intermediários a seu serviço.
As figuras negras representadas nos túmulos e monumentos farnicos
apresentam tipos físicos inteiramente novos, ora semelhantes aos dos nilotas
atuais Shilluk e Dinka (mulo de Sebekhotep), ora semelhantes aos dos
habitantes do Kordofan e dos montes Nuba do atual Sudão.
Os poucos estudos antropológicos completos sobre os povos que habitaram o
vale do Nilo entre a Segunda e a Quarta Catarata apesar da ocupação faraônica,
não oferecem nenhuma evidência das importantes mudanças étnicas ocorridas
na Núbia dessa época. Mostram, ao contrário, uma notável continuidade no tipo
físico dos habitantes da região. Pode -se, pois, admitir até prova em contrário
que os negros representados na iconografia do Novo Império entraram em
contato com os egípcios em seu próprio país. Daí concluirmos pela presença
de contatos diretos, ainda que limitados a breves expedições militares, entre
egípcios e negros no interior da África, entre -1450 e -1200.
Este breve levantamento mostra que o papel especial por vezes involuntário
da Núbia como intermediária, resultante de sua posição geográfica entre a
África central e o Mediterrâneo, firmou -se por volta de -1800. Revela também
os tros constantes a imporncia, para o Egito, do acesso aos recursos
africanos e o interesse da Núbia pelas culturas do norte que determinaram
um intercâmbio contínuo, que se manteve, com intensidade variada, durante
todos os períodos posteriores, de -1200 a +700.
Para muitas civilizações africanas o reino de Napata (-800 a -300) e o
império de Méroe (-300 a +300), as civilizações de Ballana e Qustul (Grupo X,
-300 a +600) e os reinos cristãos após +600 – a Núbia foi o elo essencial entre a
África central e as civilizações mediterrâneas. Os persas, os gregos, os romanos,
os cristãos e os muçulmanos, tal como os hicsos, que os precederam, descobriram
na Núbia o mundo da África negra. Diferentes culturas se encontraram e se
mesclaram nessas encruzilhadas, exatamente como ocorrera de -7000 a -1200,
quando aos poucos ganhou corpo uma civilizão cujos aspectos núbios
fundamentais se impregnaram de uma inegável influência egípcia.
233
A importância da Núbia: um elo entre a África central e o Mediterrâneo
Por toda a Núbia, artefatos, técnicas e ideias circularam do norte para o sul e,
sem dúvida, do sul para o norte. Infelizmente nunca é demais repetir enquanto
a arqueologia da África ao sul de 20
o
N não for mais intensamente explorada, o
quadro que acabamos de traçar não passará de um esboço incompleto, mesmo
falacioso, pois o papel atribuído ao norte, em relação ao sul, fica sem dúvida
exagerado simplesmente pela falta de conhecimentos a respeito deste último.
E as frequentes teorias referentes à difusão de línguas e culturas de lado a
lado do vale do Nilo, assim como entre o norte e o sul não ultrapassarão o
plano meramente especulativo enquanto não tivermos um conhecimento mais
detalhado das culturas negras” presentes, de -7000 a +700, nos Sudds nilóticos,
no Kordofan, no Darfur, no Chade, nos limites ocidentais da Etiópia e, ainda,
na área situada entre o Nilo e o mar Vermelho.
C A P Í T U L O 9
235
A Núbia antes de Napata
O período do Grupo A
Pelo fim do IV milênio antes da Era Cristã floresceu na Núbia uma notável
cultura, conhecida pelos arqueólogos como cultura do Grupo A
1
. Os instrumentos
de cobre (os mais antigos utensílios de metal até hoje descobertos no Sudão)
e a cerâmica de origem egípcia exumados de túmulos do Grupo A indicam
que o desenvolvimento dessa cultura foi contemporâneo da I dinastia no Egito
(-3100). Ela é identificada por uma simples letra, a exemplo do que ocorre com
outras culturas núbias, porque não conheceu a escrita, não existem referências a
ela por parte de nenhum povo que possuísse escrita e não se pode associá -la a
qualquer lugar preciso de descoberta nem a nenhum centro importante. Tratou-
-se, porém, de um período de prosperidade, caracterizado por um aumento
considerável da população.
Até agora, os vestígios arqueológicos característicos do Grupo A foram
descobertos na Núbia, entre a Primeira Catarata, ao norte, e Batn -el -Haggar
(“O Ventre de Pedras”), ao sul. No entanto, encontraram -se também cerâmicas
parecidas com as do Grupo A na superfície de vários sítios mais ao sul, no Sudão
1 REISNER, G. A. von. 1910 -27.
A Núbia antes de Napata
(3100 a 750 antes da Era Cristã)
Nagm -El -Din Mohamed Sherif
236
África Antiga
setentrional. Uma sepultura junto à ponte de Omdurman
2
forneceu um pote
idêntico a outro encontrado em Faras, numa sepultura do Grupo A
3
.
Sob o aspecto étnico, o Grupo A era fisicamente muito semelhante aos
egípcios pré -dinásticos
4
. Era um povo seminômade, provavelmente de pastores de
ovelhas, cabras e alguns bovinos. Vivia geralmente em pequenos acampamentos,
deslocando -se sempre que a pastagem se exauria.
O Grupo A pertence à cultura calcolítica. Isso significa que era
essencialmente neolítico, mas fazia um uso limitado de instrumentos de
cobre, todos importados do Egito. Uma caractestica importante da cultura
do Grupo A é a cerâmica encontrada nas sepulturas das tribos a ele associadas.
Podem -se distinguir vários tipos, mas “o tro constante da cerâmica do
Grupo A é o artesanato engenhoso e a decoração e o desenho artísticos, que
colocam essa arte cerâmica bem acima da praticada pela maior parte das
culturas contemporâneas
5
. Típica da cultura do Grupo A é uma cerâmica bela
e delicada, com o interior preto polido e o exterior com decorações pintadas
de vermelho, imitando um cesto de vime. Ao lado desse tipo de cerâmica,
encontram -se também grandes jarros em forma de bulbos com uma base
pontuda
6
, potes com aas de bordas onduladas e jarros cônicos de louça
rosa -escuro de origem egípcia
7
.
Quanto aos costumes funerários dos povos do Grupo A, conhecemos dois
tipos de sepultura. O primeiro era uma simples cova oval de aproximadamente
0,80 m de profundidade, e o segundo, uma cova oval de 1,30 m de profundidade,
com uma câmara mais profunda num dos lados. O corpo, envolvido numa
mortalha de couro, era colocado em posão fletida sobre o lado direito,
normalmente com a caba voltada para oeste. Além da cerâmica, os artigos
depositados na sepultura incluíam paletas de pedra em forma de placas ovais
ou romboides, leques de penas de avestruz, s de alabastro, machados e
furadeiras de cobre, bumerangues de madeira, braceletes de osso, imagens
femininas de argila e contas de colar de concha, cornalina e esteatita esmaltada
de azul.
2 ARKELL, A. J. 1949. pp. 99, 106 e pr. 91 -100.
3 GRIFFITH, F. L. 1921 -8. pp. 1 -13.
4 EMERY, W. B. 1965. p. 124.
5 SCHÖNBÄCK, B. 1965. p. 43.
6 EMERY, W. B. 1965. p. 125.
7 EMERY, W. B. 1965. p. 125.
237
A Núbia antes de Napata
 . A Núbia e o Egito. (Mapa fornecido pelo autor.)
238
África Antiga
O m do Grupo A
Ao Grupo A, que provavelmente sobreviveu na bia até o final da II
dinastia do Egito (-2780), seguiu -se um período de pobreza e acentuado declínio
cultural. Esse período estendeu -se do início da III (-2780) até a VI dinastia
egípcia (-2258); em outras palavras, foi contemporâneo do período conhecido
no Egito como Antigo Império
8
. Os primeiros arqueólogos que trabalharam na
Núbia denominaram a cultura dessa época de Grupo B. Segundo eles, a Baixa
Núbia, durante o Antigo Império egípcio, era habitada por um povo nativo
distinto do Grupo A, que o precedera
9
. Embora alguns especialistas
10
ainda
considerem válida essa hipótese
11
, outros a rejeitaram
12
. Hoje, a existência do
Grupo B é, de modo geral, considerada duvidosa
13
.
A persistência das características do Grupo A nas sepulturas atribuídas
à cultura do Grupo B levam a crer que se tratava apenas de sepulturas do
povo empobrecido do Grupo A, quando do declínio de sua cultura. As novas
características atribuídas ao Grupo B, que em alguns aspectos o diferenciam de
seu predecessor, seriam consequência do declínio geral e da natureza. A causa
desse declínio pode ser encontrada nas repetidas investidas do Egito contra a
Núbia, desde sua unificação e transformação num Estado forte e centralizado,
governado por um único soberano.
O Egito na Núbia
Desde os primeiros tempos, os antigos egípcios eram fascinados pela
Núbia, devido a suas riquezas em ouro, incenso, marfim, ébano, óleos, pedras
semipreciosas e outras mercadorias de luxo. Por isso eles sempre procuraram
obter o controle do comércio e dos recursos econômicos desse país
14
. Vemos
assim que a história da Núbia é quase insepavel da do Egito. Uma placa
de ébano da época de Hor -Aha, primeiro rei da I dinastia epcia, parece
celebrar uma vitória sobre a Núbia
15
, mas ainda não se conhece a natureza
8 EMERY, W. B. 1965. pp. 124, 127.
9 REISNER, G. A. von. 1910 -27. pp. 313 -48.
10 EMERY, W. B. 1965. pp. 127 -9.
11 TRIGGER, B. G. 1966. p. 78.
12 SMITH, H. S. 1966. p. 118.
13 HINTZE, F. 1968.
14 TRIGGER, B. G. 1965. p. 79.
15 PETRIE, W. M. F. 1901. p. 20 e pr. 1 e 2.
239
A Núbia antes de Napata
. Tipos de
sepulturas do Grupo A
(segundo W. B. Emery, 1965).
F . Inscrição do
rei Djer em Djebel Sheikh
Suliman.
F . Tipos de cerâmica
do Grupo A.
240
África Antiga
exata de suas atividades contra os bios. Poderia tratar -se apenas de uma
ão militar destinada a proteger sua fronteira sul, na altura da Primeira
Catarata
16
. Os objetos egípcios descobertos em Faras
17
, nas sepulturas do
Grupo A pertencentes aos reinos de Djer e Uadji (terceiro e quarto soberanos
da I dinastia), também indicam um contato entre os dois países já naqueles
tempos remotos.
Entretanto, o mais antigo testemunho de verdadeira conquista egípcia na
Núbia é um documento de extrema importância, atualmente exposto no Jardim
das Antiguidades do Museu Nacional do Sudão, em Cartum. Trata -se de uma
cena gravada em placa de arenito, que se encontrava originariamente no cume de
um pequeno outeiro conhecido como Djebel Sheikh Suliman, cerca de 11 km ao
sul da cidade de Uadi Halfa, na margem esquerda do Nilo
18
. Essa placa remonta
ao reinado de Djer, o terceiro da I dinastia, como foi dito acima. A cena registra
uma batalha no Nilo, travada pelo rei Djer contra os núbios.
À direita da cena vê -se um barco no estilo da I dinastia, com popa vertical e
proa alta. Vários cadáveres flutuam sob o barco e uma figura (talvez um capitão
núbio) aparece suspensa da proa. À esquerda da embarcão distinguem -se
dois desenhos semelhantes a rodas; trata -se de hieróglifos que significam uma
aldeia com uma encruzilhada, indicando uma cidade. À esquerda dos signos
da cidade observa -se o signo ondulado da água (provavelmente denotando
que o campo de batalha foi a região da catarata). Em seguida, -se a figura
de um homem com os braços amarrados às costas e segurando um arco (Zeti,
em egípcio), personificão de Ta -Zeti, a Terra do Arco, ou seja, a bia.
Atrás da figura lê -se o nome do rei Djer, sobre o que parece ser a fachada de
um palácio
19
.
Outro registro de hostilidades egípcias contra a Núbia é o fragmento de
uma pedra gravada proveniente de Hieracômpolis (El -Komb -el -Ahmar, na
margem esquerda do Nilo, ao norte de Edfu), que mostra o rei Khasekhem,
da II dinastia, ajoelhado sobre um prisioneiro que representa a Núbia. Mas
a verdadeira conquista da bia parece ter ocorrido no reinado de Snefru,
fundador da IV dinastia. A Pedra de Palermo
20
narra que o rei Snefru destruiu
16 VE -SÖDERBERGH, T. 1941.
17 GRIFFITH, F. L. 1921 -8. pp. 1-18
18 ARKELL, A. J. 1950. pp. 27 -30.
19 SHERIF, N. M. 1971. pp. 17 -18.
20 BREASTED, J. H. 1906. v. 1, p. 146.
241
A Núbia antes de Napata
Ta -Nehasyu, a Terra dos Núbios”
21
, e capturou 7 mil prisioneiros e 200 mil
bovinos e ovinos.
Após as operões militares de Khasekhem e Snefru, os bios devem
ter aceitado a supremacia do Egito, pois parece certo que os egípcios não
encontraram nenhuma dificuldade para explorar os vastos recursos minerais
da Núbia. Dos depósitos de diorito a oeste de Toshka extraíam -se as pedras
para as estátuas reais. Expedições sucessivas gravaram nas rochas as inscrições
de Quéops, construtor da grande pirâmide de Gizé, de Dedefre e de Sahure,
da V dinastia (-2563 a -2423). Para explorar efetivamente os recursos minerais
da terra conquistada, os egípcios colonizaram a Núbia. Recentes descobertas
arqueológicas em Buhen, logo abaixo da Segunda Catarata, revelaram a
existência de uma colônia exclusivamente egípcia no local durante a IV e a V
dinastias. Uma das indústrias dessa colônia era o trabalho do cobre, como se
deduz dos fornos e vestígios de minério de cobre aí encontrados e que indicam
a existência de jazidas de cobre na região. Os nomes de vários reis da IV e da V
dinastia foram descobertos em papiros e lacres de jarro
22
.
Além disso, é provel que os egípcios tenham estendido sua autoridade à
região ao sul da Segunda Catarata, pelo menos a Dakka, cerca de 133 km
ao sul de Buhen. Uma inscrição do Antigo Império, descoberta pelo autor
em Dakka, mostra que os egípcios procuravam minerais naquela parte da
bia
23
.
Duas inscrições descobertas na Primeira Catarata, citando o rei Merenrê,
24
podem indicar que durante a VI dinastia (-2434 a -2242) a fronteira sul do Egito
ficava em Assuã. Contudo, parece que naquela época, os egípcios exerciam
certa influência política sobre as tribos núbias, pois os registros indicam que o
rei Merenrê se dirigiu à região da Primeira Catarata para receber a homenagem
dos chefes de Medja, Irtet e Wawat, provavelmente regiões tribais ao sul da
Primeira Catarata.
Seja como for, a paz reinou na bia durante a VI dinastia. Os epcios
reconheceram as enormes potencialidades comerciais daquela terra e
sua importância para a prosperidade econômica de seu próprio ps. O
comércio era bem organizado e dirigido pelos hábeis nomarcas de Assuã,
cuja importância aumentou enormemente, por sua situação como centro
21 GARDINER, A. H. 1961.
22 EMERY, W. B. 1963. pp, 116 -20.
23 HINTZE, F. 1965. p. 14.
24 BREASTED, J. H. 1906. v. 1, pp. 317 -18.
242
África Antiga
comercial entre o norte e o sul e por ser um posto de controle de fronteira.
As crônicas desses reis, inscritas em seus túmulos na margem esquerda do
Nilo, em Ass, fornecem aos pesquisadores informões muito interessantes
sobre as condições de vida na bia durante aquela época. Segundo essas
crônicas, parece que foi dividida em diversas reges governadas por soberanos
independentes.
A mais reveladora dessas inscrições refere -se à vida de Herkhuf, o famoso
condutor de caravanas que serviu nos reinados de Merenrê e Pépi II. Foi ele
quem conduziu quatro mises à terra de Yam, rego aindao identificada,
mas que certamente se situava depois da Segunda Catarata, em direção ao
sul. Três dessas expedições
25
foram realizadas durante o reinado de Meren
e a quarta sob o de Pépi II. Na primeira viagem, Herkhuf e seu pai estavam
encarregados de encontrar um caminho para Yam, missão que lhes exigiu
sete meses. A segunda que Herkhuf fez sozinho, durou oito meses. Desta
vez ele tomou o caminho de Elefantina (a estrada do deserto que começa na
margem oeste, em Ass) e voltou através de Irtet, Mekher e Tereres. Aqui
Herkhuf deixa claro que as terras de Irtet e Setu estavam sob a jurisdição de
um único soberano. Durante sua terceira viagem, na qual percorreu a “rota
dos sis”, ele soube que o chefe de Yam havia ido à Líbia para conquis-
-la. Seguindo -o até aquele país, conseguiu apazig -lo. Voltou dessa viagem
“com trezentos burros carregados de incenso, ébano, óleo, peles de leopardo,
presas de elefante, troncos de árvore e vários outros objetos de grande beleza”.
Quando passou pelo norte, atras dos territórios de Irtet, Setu e Wawat,
eno reunidos sob o comando de um único chefe, Herkhuf foi acompanhado
por uma escolta militar de Yam. Na quarta e última expedão, trouxe da terra
de Yam um anão dançarino para o jovem rei Pépi II, que ficou encantado
com o presente.
No entanto, pelo túmulo de Pepinakht, outro nomarca de Elefantina, que
ocupou o cargo durante o reinado de Pépi II, sabe -se que, a despeito das boas
relações entre os egípcios e os núbios (que certamente eram lucrativas para
ambos), durante a VI dinastia a paz esteve muitas vezes seriamente ameaçada na
Núbia. Ao que parece, havia períodos de agitação em que o Egito era obrigado
a recorrer às armas. Em certa ocasião, Pepinakht foi enviado para “fazer em
pedaços Wawat e Irtet”. Sua missão foi coroada de êxito, pois ele matou grande
número de núbios e ainda fez prisioneiros. Numa segunda expedição ao sul, com
25 BREASTED, J. H. 1906. v. 1, pp. 333 -5.
243
A Núbia antes de Napata
o objetivo de pacificar esses países”, ele conseguiu trazer dois chefes núbios
para a corte egípcia.
O período do Grupo C
No final do Antigo Império egípcio
26
, ou durante o período que os egiptólogos
chamam de Primeiro Período Intermediário (-2240 a -2150)
27
, apareceu na Baixa
Núbia uma nova cultura independente (com objetos característicos e tradições
funerárias distintas), conhecida pelos arqueólogos como Grupo C. Como o seu
precedente, o Grupo A, esta cultura era também calcolítica e sobreviveu nessa
parte do vale do Nilo até a época em que a Núbia se egipcianizou por completo,
no século XVI antes da Era Cristã. O limite norte da cultura do Grupo C
situava -se na aldeia de Kubanieh Norte, no Egito
28
, mas a fronteira sul ainda
não foi demarcada com precisão, embora se tenham encontrado vestígios dessa
cultura até Akasha, no limite meridional da região da Segunda Catarata. Desse
modo, é provável que a fronteira sul do Grupo C se localizasse em algum ponto
da região de Batn -el -Haggar.
Ainda não se sabe ao certo qual a origem da cultura do Grupo C ou do
grupo étnico ao qual pertencia. Face à ausência de indícios mais precisos, os
arqueólogos foram levados a formular várias hipóteses
29
. Uma delas sugere que
essa cultura poderia ser uma continuão de sua predecessora, o Grupo A,
pois as duas eram aparentadas
30
. Outra afirma que a cultura do Grupo C se
desenvolveu a partir de influências introduzidas na Núbia com a chegada de um
novo povo. Os defensores dessa teoria divergem quanto à origem desses povos e
à direção da qual vieram. Os vários argumentos baseiam -se em dados culturais
e anatômicos. Alguns afirmam que os novos povos penetraram na Baixa Núbia
pelo deserto oriental ou pela região do rio Atbara
31
. Outros acreditam que eles
vieram do oeste, mais precisamente, da Líbia
32
. Uma teoria recente rejeita a
hipótese da migração e considera a cultura do Grupo C como produto de uma
26 TRIGGER, B. G. 1965. p. 87.
27 ARKELL, A. J. 1961. p. 46.
28 JUNKER, H. 1919 -22. p. 35.
29 BIETAK, M. 1961 -5. pp. 1 -82.
30 REISNER, G. A. von. 1910 -27. p. 333.
31 FIRTH, C. M. 1910 -27. pp. 11 -12.
32 EMERY, W. B. & KIRWAN, L. P. 1935. p. 4.
244
África Antiga
 . Sepulturas típicas do Grupo C (segundo Steindor).
 . Tipos de cerâmica do Grupo C.
245
A Núbia antes de Napata
evolução cultural. De qualquer forma, ainda muito para conhecer no que
diz respeito à arqueologia das áreas em questão; enquanto não se realizar uma
pesquisa científica extensiva no local, todas essas teorias não passarão de meras
hipóteses.
O povo do Grupo C era essencialmente pastoril e vivia em pequenos
acampamentos ou, por vezes, em povoados. As casas descobertas na região de
Uadi Halfa eram de dois tipos: num, os cômodos eram circulares, com paredes
construídas de pedras rebocadas com barro; o outro tinha paredes quadradas,
construídas com tijolo de barro
33
. Suas características básicas podem ser inferidas
do grande número de pinturas rupestres representando gado e da importância
que ele tinha nos ritos funerários.
As mais antigas sepulturas da cultura do Grupo C caracterizam -se por
pequenas superestruturas de pedra sobre covas circulares ou ovais. O corpo,
semifletido, repousava sobre o lado direito, com a cabeça voltada para leste e
geralmente apoiada num travesseiro de palha. Não raro o corpo era envolvido
numa mortalha de couro. A esse tipo de sepultura seguiu -se um outro, de amplas
superestruturas de pedra sobre covas retangulares, quase sempre com cantos
arredondados e às vezes reforçadas com placas de pedra. Ao Grupo C pertence
também um terceiro tipo, de data posterior. Nele encontramos capelas de tijolos
frequentemente apoiadas a norte e a leste das superestruturas de pedra. Em
geral, as sepulturas orientavam -se do norte para o sul. Animais eram enterrados
nos túmulos e por vezes crânios de bois ou de cabras, pintados com motivos em
vermelho e preto, eram colocados em toda a volta das superestruturas. Os objetos
funerários compreendiam diferentes tipos de cerâmica, braceletes de pedra, osso
e marfim, brincos de concha, contas de osso e faiança, sandálias de couro, discos
de madrepérola para braceletes e escaravelhos egípcios. Nas sepulturas do Grupo
C encontram -se às vezes espelhos de bronze e armas (punhais, espadas curtas
e machados de combate)
34
.
A despeito do crescente contato com o Egito, a cultura do Grupo C continuou
a desenvolver -se de maneira independente, sem adotar nem a tecnologia, nem
a escrita, nem as crenças religiosas egípcias. Uma das características mais
importantes dessa cultura é a cerâmica, feita à mão e normalmente na forma de
vasos. Não raro esses vasos se apresentam decorados com motivos geométricos
por impreso ou incisão, frequentemente preenchidos com um pigmento
33 VE -SÖDERBERGH, T. 1965. p. 48.
34 VE -SÖDERBERGH, T. 1965. pp. 49 -50.
246
África Antiga
branco. Uma das ferramentas de pedra típicas do Grupo C é o machado polido
de pedra -verde (nefrita).
O Médio Império
Os soberanos do Médio Império egípcio, tendo posto fim aos distúrbios
internos do país e unificando -o sob seu controle, voltaram sua atenção para
a terra ao sul do Egito, a Núbia. Essa empresa começou sob o reinado da XI
dinastia tebana. Num fragmento proveniente do templo de Gebelein, no Alto
Egito, Mentuhotep II é representado atacando seus inimigos, entre eles os
núbios. Uma inscrição em rocha de Mentuhotep III, perto da Primeira Catarata,
menciona uma expedição “com navios para Wawat”, o trecho do Nilo entre
Shellal e Uadi Halfa. Contudo algumas referências mostram que os egípcios
da XI dinastia ocuparam a Núbia até Uadi Halfa, ao sul. Há, por exemplo,
numerosos grafitos em duas colinas a oeste e ao norte da aldeia de Abdel
Gadir, situada na margem oeste do Nilo, logo abaixo da Segunda Catarata, que
mencionam Antef, Mentuhotep e Sebekhotep (nomes comuns na XI dinastia)
e descrevem as atividades de exploração de pedreiras, de caça e de trabalho de
escribas
35
. No entanto, fosse qual fosse a situação da Núbia durante a XI dinastia,
foi na XII dinastia (-1991 a -1786) que se deu a ocupação efetiva até Semneh,
onde se estabeleceu solidamente a fronteira meridional do reino. Nesse local
foi erigida a famosa estela de Sesóstris III, o quinto rei da dinastia, para marcar
claramente um limite de fronteira. A estela proibia a todo núbio a passagem
rio abaixo, por terra ou por barco e também a qualquer de seus rebanhos, com
exceção dos núbios que viessem comerciar em Iken ou em função de todo bom
negócio que com eles se pudesse realizar
36
. Sabe -se hoje que Iken é a fortaleza
de Mirgissa, cerca de 40 km ao norte de Semneh
37
.
Inúmeros documentos indicam que a ocupação permanente dessa parte da
Núbia foi iniciada por Amenemés I, fundador da XII dinastia. Acredita -se
que sua origem seja parcialmente núbia, o que se pode deduzir de um papiro,
atualmente no Museu de Leningrado, cujo único objetivo era legitimar sua
subida ao trono do Egito. Segundo o documento o rei Snefru, da IV dinastia,
convocou um sacerdote para entretê -lo. Interrogado sobre o futuro, o sacerdote
35 ARKELL, A. J. 1961. pp. 56 e 58 -59.
36 GARDINER, A. H. 1961. p. 135.
37 VERCOUTTER, J. 1964. p. 62.
247
A Núbia antes de Napata
Figura 9.7 A Núbia, 1580 antes da Era Cristã. (Mapa fornecido pelo autor.)
248
África Antiga
vaticinou ao rei uma época de sofrimentos e miséria para o Egito, que terminaria
com a chegada de um rei de nome Ameny, originário do sul, filho de uma
mulher de Ta -Zeti [Núbia]”. Ameny é abreviação de Amenemés
38
.
Uma inscrição rupestre encontrada perto de Korosko, na Baixa Núbia, datada
do 29
o
ano do reinado de Amenemés afirma que suas tropas atingiram Korosko
a fim de destruir Wawat”. Nas instruções que deixou a seu filho, Amenemés
declara: Apoderei -me do povo de Wawat e capturei o povo de Medja
39
. Outras
inscrições do mesmo rei, a oeste de Abu Simbel, revelam atividades de exploração
de pedreiras na Baixa Núbia durante a última parte de seu reinado.
A ocupação da Núbia, iniciada por Amenes I, foi completada por seu filho e
sucessor Sesóstris I
40
. Numa grande pedra gravada erigida no 18
o
ano do reinado
de Sesóstris I, em Buhen, por um oficial de nome Mentuhotep o deus tebano da
guerra, Montu, é representado presenteando o rei com uma fileira de prisioneiros
de guerra amarrados, provenientes de dez localidades núbias. Sob a cabeça e os
ombros de cada prisioneiro, numa moldura oval, esinscrito o nome da localidade
cujo povo ele representa. Entre as terras conquistadas referidas nessa estela de
arenito, figuram Kush, Sha’at e Shemyk. Sha’at é a atual ilha de Sai
41
, a cerca
de 190 km ao sul de Buhen; Shemyk, de acordo com uma inscrição descoberta,
corresponde à região da catarata de Dal, a 40 km a jusante da ilha de Sai.
Kush, nome que os egípcios logo adotaram para designar um extenso
território do sul, era originariamente um território núbio restrito, cuja primeira
referência data do Médio Império
42
. De acordo com a estela de Buhen, que
enumera, assim como outros documentos do mesmo período
43
, os nomes de
lugares na ordem de localização do norte para o sul, Kush se situaria não apenas
ao norte de Sha’at, mas também ao norte de Shemyk. Sabe -se hoje que Shemyk
é a ilha de Dal ou a região da catarata de Dal, ao norte da ilha de Sai, o que nos
permite, com toda segurança, situar Kush ao norte de Dal e ao sul da Segunda
Catarata ou Semneh
44
.
Uma segunda indicação da vitória de Sesóstris I sobre a Núbia, que assegurou
aos faraós da XII dinastia o pleno controle da região ao norte de Semneh, provém
38 GARDINER, A. H. 1961. p. 126.
39 BREASTED, J. H. 1906. v. 1, p. 483.
40 ARKELL, A. J. 1961. pp. 59 -60.
41 VERCOUTTER, J. 1958. pp. 147 -8.
42 POSENER, G. 1958. p. 47.
43 POSENER, G. 1958. p. 60.
44 POSENER, G. 1958. p. 50.
249
A Núbia antes de Napata
 . As forticações ocidentais de uma fortaleza do Médio Império em Buhen. (Fonte: Ministério
da Informação e da Cultura, República Dem. do Sudão.)
da inscrição encontrada no túmulo de Ameny, nomarca de Beni -Hassan, no
Egito. Por ela ficamos sabendo que Ameny, navegando para o sul em companhia
do próprio rei,foi além de Kush e chegou ao fim da Terra’’
45
.
As razões que levaram os epcios a ocupar parte da Núbia foram ao
mesmo tempo econômicas e defensivas. As razões econômicas eram, por um
45 GARDINER, A. H. 1961. p. 134.
250
África Antiga
lado, o desejo de garantir as importações dos produtos do sul, como penas
de avestruz, peles de leopardo, marfim e ébano, e por outro a exploração das
riquezas minerais da Núbia
46
. Além disso, a segurança do reino exigia a defesa
de sua fronteira meridional contra os núbios e os povos do deserto, a leste. Sua
estratégia consistia em manter uma região -tampão entre a fronteira real do
Egito, na região da Primeira Catarata, e a área situada ao sul de Semneh (que
constituía verdadeira ameaça para os egípcios), a fim de controlar o tráfico ao
longo do Nilo e prevenir as ameaças que lhes pudessem vir de Kush.
A natureza defensiva da ocupação egípcia na Núbia durante o Médio Império
é claramente atestada pelo número e pela solidez das fortalezas que os reis da XII
dinastia tiveram de construir no território ocupado. Um papiro do fim do Médio
Império, descoberto num túmulo perto do Ramesseu, em Lúxor
47
, menciona
dezessete fortes núbios entre Semneh, ao sul, e Shellal, ao norte. Esses fortes
se dividem em dois grupos: os que se localizam ao norte da Segunda Catarata,
destinados a manter um rigoroso controle sobre a população nativa
48
, isto é, o
povo do Grupo C, e os que foram construídos sobre elevações situadas entre
a Segunda Catarata e Semneh, com a função de proteger as embarcações em
dificuldade nos bancos de areia e defender a fronteira
49
. Os próprios nomes
desses fortes tornam claro que foram construídos para defesa: “Repelir as Tribos”,
“Reprimir ...” , “Controlar os Desertos”, “Repelir os Inu e “Repelir os Mazaiu”
50
.
A solidez de tais fortalezas e os esforços desenvolvidos para torná -las
inexpugnáveis podem ser ilustrados pelo forte de Buhen, um dos mais bem
conservados na Núbia até ser inundado pelas águas da nova barragem de Assuã.
Essa formidável fortaleza do Médio Império compunha -se de uma complexa
série de fortificações dentro de fortificações constrdas segundo um plano
retangular de 172 m por 160 m
51
. O sistema de defesa compreendia um muro
de tijolos, de 4,80 m de espessura e pelo menos 10 m de altura, com torres
em intervalos regulares. Na base do muro principal havia uma plataforma
pavimentada de tijolos, protegida por uma rie de baluartes redondos com
duas filas de seteiras. Todo o forte era cercado por um fosso seco, escavado na
rocha, com uma profundidade de 6,50 m. O fosso tinha 8,40 m de largura e
46 TRIGGER, B. G. 1965. p. 94.
47 EMERY, W. B. 1965. p. 143.
48 GARDINER, A. H. 1961. p. 135.
49 ARKELL, A. J. 1961. p. 61.
50 GARDINER, A. H. 1961. p. 135.
51 EMERY, W. B. 1960. pp. 7 -8.
251
A Núbia antes de Napata
. . . Cerâmica de Kerma. (Fonte: Ministério da Informação e da Cultura, Rep. Dem.
do Sudão.)
252
África Antiga
a escarpa exterior era sustentada por obras de alvenaria. Havia duas portas no
lado leste, de frente para o Nilo, e uma terceira, solidamente fortificada, no lado
oeste, de frente para o deserto.
Após a queda do Médio Império e a invasão dos hicsos (tribos asiáticas),
os egípcios perderam o controle sobre a Núbia. Os fortes foram saqueados e
queimados pelos nativos, que parecem ter -se aproveitado do colapso do governo
central do Egito para recuperar sua independência.
Kerma (-1730 a -1580)
Como foi dito, a fronteira sul do Médio Império egípcio foi inquestionavelmente
fixada em Semneh por Sesóstris III. Mas as importantes escavações efetuadas
pelo arqueólogo americano G. A. von Reisner entre 1913 e 1916, em Kerma,
pouco acima da Terceira Catarata e a 240 km ao sul de Semneh, em linha reta,
revelaram uma cultura, conhecida como cultura de Kerma, que tem sido objeto
de interpretações divergentes por parte de especialistas.
O antigo tio de Kerma compreende dois notáveis edifícios, localmente
conhecidos como Dufufa do Oeste e Dufufa do Leste. O primeiro é uma massa
compacta de tijolos crus e o segundo uma capela funerária, também de tijolos
de barro, cercada por um amplo cemitério. As duas construções são típicas do
Médio Império. No Dufufa do Oeste, Reisner encontrou fragmentos de vasos
de alabastro com os cartuchos de Pépi I e Pépi II, da VI dinastia, juntamente
com os de Amenemés I e Sesóstris I. Perto do Dufufa do Leste descobriu-
-se uma pedra gravada onde se narra que Antef, o único companheiro do rei,
fora enviado para reparar uma constrão em Inebu. A expressão usada era
Amenemhet maa Kheru, que significa “os muros de Amenemés, o Justificado”.
Num túmulo perto dessa capela funerária encontraram -se a parte inferior de
uma estátua de Hepzefia (príncipe de Assiut, no Egito, onde se encontra sua
sepultura), uma estátua de sua mulher Sennuwy e fragmentos de outras estátuas
de altos funcionários e reis egípcios. À luz dessas descobertas, Reisner concluiu
52
que: a) os muros situados abaixo do Dufufa do Oeste pertencem a um posto
comercial do Antigo Império; b) no Médio Império, o Dufufa do Oeste era
a fortaleza situada mais ao sul da cadeia de fortes construídos pelos egípcios
entre Assuã e Kerma para salvaguardar seus interesses na Núbia; c) Kerma era
o quartel -general dos governadores gerais egípcios, o primeiro dos quais teria
52 REISNER. G. A. von. 1923 -a.
253
A Núbia antes de Napata
 . . Cemica
de Kerma. (Fonte: Ministério da
Informação e da Cultura, Rep.
Dem. do Suo.)
254
África Antiga
sido Hapidjefa; d) os governadores gerais egípcios eram enterrados à maneira
egípcia no cemitério localizado perto do Dufufa do Leste; e) quando os hicsos
invadiram o Egito, o posto avançado de Kerma foi destruído pelos núbios.
O primeiro a questionar a interpretação de Reisner para os materiais
arqueogicos descobertos em Kerma foi Junker
53
. O Dufufa do Oeste era
muito pequeno para ser um forte e ao mesmo tempo estava perigosamente
isolado, visto situar -se a 400 km de distância do forte egípcio mais próximo,
em Semneh. Além disso, as matérias -primas como grafite, óxido de cobre,
hematita, mica, resina, cristal de rocha, cornalina, casca de ovo de avestruz
descobertas nas várias dependências indicam que o Dufufa do Oeste era antes
um posto comercial fortificado que um centro administrativo.
Quanto ao cemitério, a opinião de Reisner segundo a qual ela seria a
necrópole dos governadores egípcios assentava exclusivamente na descoberta
das estátuas de Hapidjefa e de sua esposa num dos grandes túmulos. O tipo
de sepultura nesses túmulos de Kerma era inteiramente núbio. A mumificação
não era praticada e a pessoa morta era enterrada num leito, com suas esposas,
filhos e criados, todos numa mesma sepultura. Sabendo -se que esses túmulos
não são egípcios nem por sua construção nem por seu modo de sepultura e
que os egípcios receavam ser enterrados fora de seu país, pois poderiam ser
privados dos ritos funerários, é difícil acreditar que uma pessoa da posição
social e política de Hapidjefa tivesse sido enterrada numa terra estranha,
segundo um rito completamente diverso das crenças religiosas egípcias.
Ademais, muitos dos objetos descobertos nos túmulos atribuídos a Hapidjefa
datam incontestavelmente do Segundo Período Intermediário ou período dos
hicsos
54
. Com base nesses dados, Säve -Söderbergh e Arkell
55
concluíram que as
estátuas encontradas nesse túmulo foram trocadas pelos comerciantes egípcios
por mercadorias núbias provenientes dos príncipes locais de Kerma, durante o
Segundo Período Intermediário.
Desse modo a teoria de Reisner referente ao Dufufa do Oeste e ao cemitério
em torno do Dufufa do Leste foi rejeitada em seus pontos fundamentais. A
maioria dos especialistas sustentou que o Dufufa do Oeste era apenas um
posto comercial egípcio, enquanto o cemitério se destinava ao sepultamento
dos príncipes nativos.
53 JUNKER, H. 1921.
54 VE -SÖDERBERGH, T. 1941.
55 ARKELL, A. J. 1961. p. 71.
255
A Núbia antes de Napata
 . Kerma: o Dufufa do Leste,
com uma sepultura no primeiro plano.
(Fonte: Ministério da Informação e da
Cultura, Rep. Dem. do Sudão.)
F .
Sepultura de Kerma.
256
África Antiga
Reexaminando as diferentes teorias aventadas para explicar a questão de
Kerma, Hintze observa que elas “encerram contradições internas que fazem
duvidar de sua precisão”
56
. Em primeiro lugar, nota que os argumentos
apresentados por Junker contra a interpretação de Reisner são igualmente
válidos para refutar a hipótese do próprio Junker, segundo a qual o Dufufa do
Oeste era um posto comercial fortificado. Hintze também considera improvável
a existência, nesse período, de um posto comercial fortificado egípcio nessa parte
da Núbia, principalmente se considerarmos que, como sustentam alguns dos
adversários de Reisner
57
, Kerma constituía a base política de Kush, tradicional
inimigo do Egito durante o Médio Império. E, como todas as teorias por ele
examinadas concordam em que o cemitério é núbio e que o Dufufa do Oeste é
uma capela funerária a ele ligada, Hintze sublinha a improbabilidade de o faraó
enviar um funcionário egípcio ao “odioso Kush a fim de reparar uma capela
ligada a um cemitério núbio. Finalmente, Hintze enfatiza que, como já mostrara
derbergh, o cemitério pertence ao Segundo Período Intermediário, sendo
assim posterior ao Dufufa do Oeste. Por essa razão, os supostos governadores
do Dufufa do Oeste, no Médio Império, não poderiam ser enterrados ali.
Todas estas considerações levaram Hintze a abandonar definitivamente
a “concepção de um posto comercial egípcio” em Kerma. Para ele, Kerma é
simplesmente o centro de uma cultura núbia nativa e a sede de uma dinastia
local”. O Dufufa do Oeste era a residência do soberano nativo de Kush e foi
destruído pelas tropas egípcias no início do Novo Império.
Trata -se de uma teoria simples, aparentemente mais próxima da verdade,
sobretudo se levarmos em conta as provas fornecidas pelo cemitério. A data
dos objetos encontrados nas sepulturas, o estilo de sua construção e os ritos
funerários mostram claramente que elas não se destinavam aos governadores
gerais egípcios do Médio Império. Mas ainda são necessárias evidências mais
substanciais para concluir que o Dufufa do Oeste era mesmo a residência do
soberano nativo de Kush. A existência em Kerma de um posto comercial egípcio
comum durante o Médio Império não pode ser excluída tão facilmente como
pretendia Hintze. Por enquanto, o sítio pesquisado por Reisner é o único
explorado na região de Dongola, e ainda assim não foi totalmente escavado.
A região de Dongola é rica em sítios da época de Kerma, e enquanto não se
realizarem pesquisas arqueológicas sistemáticas muita coisa referente à cultura
de Kerma continuará desconhecida.
56 HINTZE, F. 1964.
57 ARKELL, A. J. 1961. p. 72.
257
A Núbia antes de Napata
O reino de Kush
Como o nome geográfico Kush está ligado a Kerma
58
, e considerando -se que
túmulos de Kerma serviam claramente de sepultura aos poderosos soberanos
nativos que mantinham relações comerciais e diplomáticas com os reis hicsos
no Egito, parece mais provável que Kerma fosse a capital do reino de Kush, que
floresceu durante a época conhecida na história egípcia como Segundo Período
Intermediário (-1730 a -1580). A existência desse reino, cujo soberano era
chamado “príncipe de Kush”, é atestada por inúmeros documentos. A primeira
estela de Kamés
59
, o último rei da XVII dinastia egípcia e provavelmente o
primeiro a levantar a bandeira da luta organizada contra os hicsos, descreve a
situação política no vale do Nilo naquela época. A estela indica a existência de
um reino independente em Kush, com sua fronteira norte fixada em Elefantina,
de um Estado egípcio no Alto Egito, situado entre Elefantina, ao sul, e Cusae,
ao norte, e finalmente do reino dos hicsos no Baixo Egito. Outra estela
60
nos
informa que Kamés interceptou, na rota dos oásis, uma mensagem enviada por
Apophis, o rei dos hicsos, ao soberano de Kush, pedindo -lhe ajuda contra o
rei egípcio. Além disso, duas estelas descobertas em Buhen revelam que dois
funcionários, chamados Sepedher
61
e Ka
62
, estavam a serviço do soberano de
Kush. O reino de Kush, que abrangia toda a Núbia ao sul de Elefantina após a
queda do Médio Império no Egito (em seguida à invasão dos hicsos), chegou
ao fim quando Tutmósis I conquistou a Núbia para além da Quarta Catarata.
A cultura de Kerma
Os sítios típicos da cultura de Kerma descobertos na Núbia, ao norte, vão
apenas até Mirgissa
63
. Isso indica que a Segunda Catarata constituía a fronteira
entre a cultura de Kerma e a cultura do Grupo C. Os elementos característicos
da cultura de Kerma eram uma louça torneada fina e muito polida, vermelha,
com a parte superior preta, feita numa roda de oleiro; vasos em forma de animal
decorados com desenhos de animais; punhais especiais de cobre; artigos de
madeira decorados com motivos incrustados em marfim, figuras de mica; e ainda
58 POSENER, G. 1958. p. 39; ARKELL, A. J. 1961. p. 72.
59 HABACHI, L. 1955. p. 195.
60 VE -SÖDERBERGH, T. 1956. pp. 54 -61.
61 Philadelphia, 10984.
62 Khartoum, N.
o
18.
63 VERCOUTTER, J. 1964. p. 59.
258
África Antiga
. . Cerâmica de Kerma. (Fonte: Ministério da Informação e da Cultura, Rep. Dem. do
Sudão.)
259
A Núbia antes de Napata
ornamentos costurados sobre gorros de couro. Embora boa parte dos objetos
descobertos em Kerma manifestem claramente uma tradição cultural nativa,
não se pode ignorar a influência das técnicas egípcias de artesanato e desenho
64
.
Admite -se que grande parte desses objetos foi efetivamente manufaturada pelos
artesãos egípcios
65
, mas também se poderia dizer que eles foram produzidos
por artesãos nativos, que haviam adquirido as técnicas egípcias para satisfazer
o gosto local.
No domínio religioso, os rituais funerários são o traço característico da
cultura de Kerma. Uma sepultura de Kerma caracteriza -se por um túmulo
de barro em forma de cúpula, contornado por um rculo de pedras pretas
entremeadas de seixos brancos. Um dos grandes túmulos do cemitério de
Kerma (K III) compreendia paredes de tijolo formando um círculo de 90 m
de diâmetro
66
. Duas paredes paralelas que atravessavam o meio do túmulo de
leste para oeste formavam um corredor central que o dividia em duas partes.
Muitas outras paredes paralelas estendiam -se em ângulo reto desde os dois
lados desse corredor até a circunferência do círculo, para o norte e para o sul.
No meio da parede sul do corredor abria -se uma entrada para um vestíbulo que
levava à câmara principal da sepultura, em direção ao lado leste. Em Kerma,
a personagem principal enterrada era colocada num leito, deitada sobre o lado
direito. Nesse leito colocavam -se um travesseiro de madeira, um leque de penas
de avestruz e um par de sandálias. A seu lado e ao redor das paredes da câmara
depositava -se um grande número de vasos de cerâmica. O mais surpreendente
costume funerário de Kerma era o dos sacrifícios humanos. O dono do túmulo
era acompanhado por duzentas a trezentas pessoas, a maioria composta de
mulheres e crianças, que eram enterradas vivas no corredor central.
Novo império (-1580 a -1050)
Quando os egípcios readquiriram o controle de seu país após libertá -lo do
domínio dos hicsos, recomeçaram a concentrar sua atenção na fronteira sul, o
que resultou na mais completa conquista da Núbia empreendida pelo Egito
desde o início de sua história antiga.
64 TRIGGER, B. G. 1965. p. 103.
65 ARKELL, A. J. 1961. p. 74.
66 REISNER, G. A. 1923 -a. p. 135.
260
África Antiga
 . Ornamentos pessoais.
F . Cerâmica de Kerma. (Fonte: Ministério da Informação e da Cultura, Rep. Dem. do Sudão.)
261
A Núbia antes de Napata
A primeira estela do rei Kas, referida, explica como seus domínios se situavam
entre um reino no Baixo Egito e outro em Kush. A mesma estela declara que os
corteos estavam satisfeitos com a situação na fronteira meridional do Egito, uma
vez que Elefantina estava firmemente controlada. Mas uma passagem da segunda
estela
67
mostra que Kas moveu uma guerra contra os bios antes de atacar os
hicsos. A crer na afirmão dos cortesãos (segundo a qual a fronteira de Elefantina era
bem guardada e segura), é provel que Kas tenha realizado apenas uma expedição
punitiva contra os bios, o que explicaria a exisncia dos nomes reais de Kas
perto de Toshka, na Baixa Núbia.
A verdadeira ocupação da Núbia foi completada por Amósis, sucessor de Kas
e fundador da XVIII dinastia epcia. Nossa principal fonte de informações sobre
suas atividades militares na Núbia, bem como sobre as de seus sucessores imediatos,
é a autobiografia do almirante Ahmose, simples comandante de navio nascido
em Ebana, inscrita sobre as paredes de seu mulo em el -Kab, no Egito. Por ela
ficamos sabendo que “Sua Majestade dirigiu -se a Khent Hennefer (localidadeo-
-identificada na Núbia) para arrasar os núbios, após ter aniquilado os asticos”.
Amósis pôde reconstruir e ampliar a fortaleza de Buhen e ali erigir um templo. Pôde
inclusive avançar até a ilha de Sai, 190 km a montante de Buhen, pois ali se encontrou
uma estátua sua e inscrições contendo seu nome e o de sua esposa
68
.
Entretanto coube a Tutsis I (-1530 a -1520) completar a conquista do Sudão
setentrional, determinando assim o fim da indepenncia do reino de Kush. Ao
chegar a Tumbus, no extremo sul da Terceira Catarata, Tutsis I gravou aí sua
grande inscrição. Em seguida prosseguiu a marcha para o sul, ocupando efetivamente
toda a exteno do rio entre Kerma e Kurgus, 80 km ao sul de Abu Hamad, onde
deixou uma inscrição e provavelmente tenha construído um forte
69
. Desse modo a
Núbia foi totalmente conquistada pelo Egito, tendo início uma nova e brilhante era
de sua hisria, cujas marcas permaneceram em sua vida cultural durante os períodos
posteriores.
A Núbia sob a XVIII dinastia
Sabemos, por uma inscrição rupestre entre Assuã e Filas, datada do primeiro
ano do governo de Tutmósis II
70
, que houve uma revolta na Núbia após a
67 VE -SÖDERBERGH, T. 1956. p. 57.
68 VERCOUTTER, J. 1956; id. 1958.
69 ARKELL, A. J. 1961. p. 84.
70 BREASTED, J. H. 1906. v. 1, pp. 119 -22.
262
África Antiga
 . A Núbia durante o Novo Império
263
A Núbia antes de Napata
morte de Tutmósis I. De acordo com essa inscrição, um mensageiro deu a Sua
Majestade a notícia de que Kush começara a se rebelar e de que o chefe de Kush
e outros príncipes estabelecidos mais ao norte conspiravam juntos. A mesma
inscrição nos informa do envio de uma expedição e da derrota dos rebeldes.
Após essa expedição punitiva, a paz foi restaurada e firmemente estabelecida
na Núbia durante muitos anos.
A paz prevaleceu durante todo o reinado da rainha Hatshepsut, que sucedeu
a Tutsis II. O monumento mais importante dessa época na bia é o
magnífico templo que ela fez construir em Buhen, dentro dos muros da cidadela
do Médio Império
71
. Dedicado a Hórus, o deus com cabeça de falcão, “Senhor
de Buhen”, esse templo reveste -se de grande interesse histórico e artístico. Nele
se encontram relevos do mais fino estilo e do mais belo lavor, característicos da
XVIII dinastia, e as cores nas paredes ainda estão bem preservadas. Mais tarde o
templo foi usurpado por Tutmósis III, que desvirtuou o plano original e apagou
sistemática e implacavelmente os cartuchos e os retratos da rainha Hatshepsut.
O templo foi construído com arenito bio e compreende duas partes
principais: um átrio e um edifício retangular com uma fileira de colunas nos
lados norte, sul e leste. A rainha Hatshepsut construiu também um templo
dedicado à deusa Hátor, em Faras, na margem oeste do Nilo, exatamente na
atual fronteira política entre o Egito e o Sudão
72
.
Os anais de Tutmósis III inscritos nas paredes do grande templo de Âmon,
em Carnac, mostram o pagamento dos tributos de Wawat, durante oito anos, e
dos de Kush, durante cinco anos. Isso indica claramente que o tributo da Núbia
afluía regularmente para os cofres do rei
73
, autorizando -nos a afirmar que a
paz continuou a reinar sob o governo de Tutmósis III. No segundo ano de seu
reinado, Tutmósis III reconstruiu em pedra o templo de tijolos de barro erigido
por Sesóstris III a oeste de Semneh, que se achava em ruínas, e dedicou -o
ao deus núbio Dedwen, a Khnum e ao deificado Sesóstris III. Esse é um dos
mais bem conservados templos independentes do período pré -ptolomaico em
todo o vale do Nilo. As paredes estão cobertas com cenas em relevo, inscrições
hieroglíficas e pinturas. Os textos e as cenas são incontestavelmente obras de
artesãos de primeira classe
74
. Tutmósis III construiu também pequenos templos
nos fortes de Semneh Leste, Uronarti, Faras e talvez no da ilha de Sai.
71 MACIVER, D. R. & WOOLLEY, C. L. 1911.
72 GRIFFITH, F. L. 1921 -8. p. 83.
73 ARKELL, A. J. 1961. p. 88.
74 CAMINOS, R. A. 1964 -a. p. 85.
264
África Antiga
Tutmósis III foi sucedido por Amefis II, em cujo reinado a bia
permaneceu em paz. Amenófis II concluiu o templo de Amada (importante
cidade da Baixa Núbia), iniciado por seu pai Tutmósis III. Uma estela datada
do terceiro ano de seu reinado e construída nesse templo registra seu retorno
vitorioso de uma campanha na Ásia, com os corpos de sete príncipes que ele
matara com sua própria clava”. Amenófis fez pendurar seis desses príncipes
diante das muralhas de sua capital, em Tebas. A estela nos diz que o sétimo
príncipe foi enviado de navio à Núbia e pendurado na muralha de Napata,
para que o poder vitorioso de Sua Majestade seja visto por toda a eternidade”
75
.
Do reinado de Tutmósis IV, que sucedeu a Amenófis II, temos um registro, na
ilha de Konosso, perto de Filas, de uma bem sucedida expedição para debelar uma
revolta na Núbia. Esse registro data do oitavo ano de governo de Tutmósis IV.
Tutmósis IV foi sucedido por seu filho Amenófis III, que empreendeu uma
campanha contra a Núbia até Karei, no quinto ano de seu reinado. Em Soleb,
na margem esquerda do Nilo, 220 km ao sul de Uadi Halfa, ele erigiu o
templo mais grandioso de toda a bia, dedicado à sua própria imagem
viva. Amenófis III construiu também um templo para sua rainha, Teye, em
Sedinga, 21 km ao norte de Soleb, na mesma margem do Nilo.
A sublevação política no Egito, causada pela revolução religiosa de
Amenófis IV (-1370 a -1352) não perturbou a paz na Núbia, e as atividades
de constrão continuaram como antes. Em Sesebi, ao sul de Soleb, diante
de Delgo, Amenófis IV, antes de mudar seu nome para Aquenáton, construiu
um grupo de três templos sobre um alicerce comum
76
. Os templos ficavam
no interior de uma cidadezinha murada, onde havia um pequeno santuário
dedicado a Áton, o novo deus. Parece que ele fundou também a cidade de
Gemáton, situada em Kawa, diante da atual Dongola. Também em Kawa foi
construído um pequeno templo, por seu sucessor Tutanmon
77
. Em Faras,
Huy, vice -rei da Núbia sob o governo de Tutancâmon, erigiu um templo e uma
colônia murada
78
.
O fim da XVIII dinastia, embora caracterizado por problemas no Egito,
parece não ter afetado a paz e a estabilidade na Núbia. De modo geral, a Núbia
se desenvolveu pacificamente durante toda essa dinastia.
75 GARDINER, A. H. 1961. p. 200.
76 FAIRMAN, H. W. 1938. pp. 151 -6.
77 MACADAM. M. F. L. 1949. p. 12.
78 GRIFFITH. F. L. 1921 -8. p. 83.
265
A Núbia antes de Napata
 . O templo de Amenós III em Soleb. (Fonte: Ministério da Informação e da Cultura, Rep.
Dem. do Sudão.)
A Núbia sob a XIX dinastia
A partir da época de Aquenáton, a posição do Egito foi se enfraquecendo
interna e externamente. Aqueton era um sonhador, e seu movimento religioso
trouxe muitos danos ao Imrio. Am disso, os faraós que o sucederam eram fracos,
completamente incapazes de encontrar solões para os problemas da época. O país
inteiro encontrava -se em estado de agitão. Havia rao para temer uma guerra
civil aberta, pois o país se via ameaçado por uma anarquia geral. Nesse momento
ctico, o Egito teve a sorte de encontrar um libertador na pessoa de um general
chamado Horemheb, líder capaz e experiente. Durante o reinado de Tutanmon,
Horemheb percorreu a Núbia na qualidade de chefe do exército, para verificar a
266
África Antiga
lealdade da administração as a restauração do antigo regime
79
. Posteriormente,
quando usurpou o trono do Egito, fez uma segunda aparição na Núbia. Segundo as
inscrões nas paredes de seu templo comemorativo cravado na rocha em Silsileh, no
Alto Egito, essa viagem foi uma expedição militar. No entanto parece antes ter -se
tratado de uma simples visita do usurpador para assegurar sua posição numa região
de importância vital para ele no Egito. Em todo caso, Horemheb garantiu a lealdade
da administrão epcia da Núbia, como mostra o fato de Paser, vice -rei da Núbia
no reinado anterior, ter continuado a ocupar o posto sob seu governo.
Ramsés I (-1320 a -1318), que sucedeu a Horemheb, foi o verdadeiro fundador
da XIX dinastia. No segundo ano de seu reinado ele erigiu uma estela no templo de
Hatshepsut, em Buhen, na qual nos conta que ampliou o número dos sacerdotes e
escravos do templo e que lhe acrescentou novas construções.
Após a morte de Ramsés I, seu filho Seti I (-1318 a -1298) ascendeu ao trono.
Ele explorou as minas de ouro da Núbia para aumentar seu tesouro de modo a poder
executar seus imensos projetos de construção. Para aumentar a prodão das minas de
ouro de Uadi el -Alaki, cavou um po na estrada que vai de Kuban, na Baixa Núbia,
para o sudeste, mas não encontrou água e por isso o conseguiu alcançar seu objetivo.
Na Alta Núbia, Seti I construiu uma cidade em Amara Oeste, a cerca de 180 km
ao sul de Uadi Halfa. É provel que tenha sido ele também o construtor do grande
templo de Âmon em Djebel Barkal (o dw -w3b dos antigos egípcios: a montanha
sagrada), perto de Kareima.o raras as evincias de atividades militares na Núbia
durante o reinado de Seti I. Parece que nunca houve necessidade de expedões
militares importantes, o que o exclui pequenas mises punitivas enviadas à Núbia
por uma ou outra rao.
Seti foi sucedido por seu filho Ramsés II (-1298 a -1232). Dispomos de numerosas
representações de atividades militares na Núbia durante o longo reinado desse faraó.
Porém, como elas não fornecem datas nem nomes de lugares,o consideradas sem
valor histórico
80
. De um modo geral, a paz parece ter prevalecido na Núbia durante
o tempo de Rams II, como se pode ver pelas intensas atividades de construção
empreendidas por ele em toda a rego.
No terceiro ano de seu reinado, encontramos Ramsés II emnfis consultando
seus altos funcionários sobre a possibilidade de abrir o país de Alaki para desenvolver
as minas de ouro que seu pai infrutiferamente tentara explorar. O vice -rei de Kush,
que estava presente, explicou -lhe as dificuldades e relatou as s tentativas de seu pai
no sentido de fornecer água à rota. Contudo, o rei ordenou nova tentativa, esta bem-
79 ARKELL. A. J. 1961. p. 94.
80 EMERY. W. B. 1965. p. 193.
267
A Núbia antes de Napata
-sucedida: encontrou -se água apenas doze vados abaixo da profundidade atingida
por seu pai, Seti I. Em Kuban, onde a estrada que leva às minas de Uadi el -Alaki
deixa o vale do Nilo, ergueu -se uma estela comemorativa desse sucesso.
Como foi dito, Ramsés II iniciou intensas atividades de construção na bia.
Edificou templos em Beit -el -Wali, Gerf Ussein, Uadi es -Sebua, el -Derr, Abu Simbel
e Akasha, na Baixa Núbia, bem como em Amara e Barkal, na Alta Núbia.
Em Amara, as escavações realizadas até agora
81
mostraram que a cidade foi
fundada por Seti I, embora o templo tenha sido obra de Ramsés II. Essa cidade foi
habitada sem interrupção durante a XIX e a XX dinastia e acredita -se que tenha sido
a residência do vice -rei de Kush
82
.
O templo de Abu Simbel, talhado num promontório de arenito na margem
esquerda do Nilo, é uma das maiores estruturas escavadas na rocha em todo o
mundo e constitui sem vida uma peça arquitenica única
83
. A localizão desse
grande templo talvez se deva ao fato de o lugar ser considerado sagrado bem antes
de sua construção. O templo era consagrado a Rê -Harakti, o deus do sol nascente,
representado como um homem com cabeça de falo segurando o disco solar.
Na fachada encontram -se quatro estuas colossais de personagens sentadas,
também moldadas na rocha. Essas estuas, duas em cada lado da entrada, representam
Ramsés II usando a dupla coroa do Egito. A entrada abre -se diretamente para
a grande sala, onde se avistam duas filas de quatro pilares de base quadrada. Na
frente dos pilares encontram -se gigantescas estátuas do rei, em , sempre com a
coroa dupla. Nas paredes da grande sala, de 9 m de altura, existem cenas e inscrões
relativas às cerinias religiosas e às atividades militares do faraó contra os hititas
na ria e os núbios no sul. Nas paredes norte e oeste da mesma sala localizam -se
as portas que conduzem a vários depósitos, cujas paredes são totalmente cobertas de
baixos -relevos religiosos. Saindo da grande sala pela porta central da parede oeste,
entra -se numa pequena sala, cujo teto se apóia em quatro pilares quadrados; tamm
aqui as paredes se apresentam cobertas de baixos -relevos de natureza religiosa. Entre
essa sala e o santuário existe outro aposento, com três portas na parede oeste; as duas
portas laterais dão acesso a peças menores, sem inscrições nas paredes, enquanto a
porta do meio conduz ao santo dos santos, onde Rams II está representado em
seu trono, ao lado dos três deuses mais poderosos do Egito – Âmon -Rá, de Tebas,
Rê -Harakti, de Helpolis, a Cidade do Sol, e Ptah, de Mênfis, a antiga capital.
81 FAIRMAN, H. W. 1938; id. 1939. pp. 139 -44; id. 1948. pp. 1 -11.
82 ARKELL. A. J. 1961. p. 94.
83 EMERY, W. B. 1965. p. 194.
268
África Antiga
A administrão da Núbia
A dirão da quina administrativa egípcia na Núbia, durante o peodo do
Novo Império, estava a cargo do vice -rei da Núbia. Desde o começo, esse funcionário
ostentava otulo de governador dos pses do sul, juntamente com o defilho do
rei”. O primeiro tulo era o que realmente correspondia à sua função. No tempo
de Tutmósis IV, o vice -rei da bia tinha o mesmo nome que o príncipe herdeiro,
Amenófis. Para distinguir um do outro, o vice -rei da Núbia era chamado de filho do
rei de Kush. Posteriormente, esse tulo foi dado a todos os vice -reis que sucederam
a Amefis; o título o indica necessariamente que os vice -reis da bia procediam
de família real, mas pode ser uma indicação da importância do cargo e da grande
autoridade de que gozava o vice -rei. Esses altos funcionários eram escolhidos
entre homens de confiança, inteiramente devotados ao faraó, perante o qual eram
diretamente responveis. Tratava -se de administradores capazes.
A Núbia estava dividida em dois vastos territórios: as terras entre Nekhen (no
Alto Egito) e a Segunda Catarata, conhecidas como Wawat, e toda a área ao sul,
entre a Segunda e a Quarta Catarata, chamada Kush. O vice -rei dirigia um grande
número de departamentos administrativos claramente imitados dos seus conneres
no Egito. Assessoravam -no funcionários encarregados dos diversos departamentos
administrativos necessários para o governo da Núbia. As cidades núbias estavam
submetidas a governadores responsáveis junto ao vice -rei. Um comandante dos
arqueiros de Kush e dois delegados, um para Wawat e o outro para Kush, compunham
o estado -maior do governante bio. Ele tinha sob ordens as forças policiais destinadas
a garantir a seguraa interna e tamm as guarnões das cidades e um pequeno
exército para proteger expedições enviadas às minas de ouro. Uma responsabilidade
importante do vice -rei da Núbia era a entrega pontual do seu tributo, pessoalmente,
ao vizir de Tebas
84
. Além disso, ele era ainda o chefe religioso do ps.
Os chefes tribais nativos também participavam da administrão da Núbia. A
potica egípcia da época era assegurar a lealdade dos príncipes locais
85
, o que se
obtinha permitindo que mantivessem a soberania em seus distritos.
Egipcianização da Núbia
Nos estágios iniciais, a ocupação egípcia da Núbia, durante o Novo Império,
encontrou resisncia. Mas os núbios logo se acomodaram, sob a nova administração
epcia, a um desenvolvimento pafico inédito em seu país. vimos que os reis
84 ARKELL, A. J. 1961. p. 98.
85 TRIGGER, B. G. 1965. p. 107.
269
A Núbia antes de Napata
da XVIII e da XIX dinastia construíram templos em toda a Núbia. Em seguida,
desenvolveram -se em torno desses templos cidades importantes como centros
religiosos, comerciais e administrativos. Toda a Núbia foi reorganizada segundo
padrões puramente egípcios e montou -se um sistema administrativo totalmente
epcio, que requeria a presença de ummero considerável de escribas, sacerdotes,
soldados e arteos. Tal processo acabou resultando na completa egipcianização do
ps. Os nativos adotaram a religo egípcia e passaram a adorar divindades epcias.
Os velhos costumes funerios foram substituídos por rituais egípcios. O corpo não
era mais deitado de lado, em posão semifletida; em vez disso, passou a ser estendido
de costas ou colocado num caixão de madeira. As sepulturas desse período são de
três tipos
86
: uma cova retangular simples, um po cavado na rocha com uma mara
funerária subternea na extremidade e uma cova retangular com um nicho lateral
cavado num dos lados mais longos. Os objetos funerios depositados nesses mulos
são artefatos egípcios típicos da época. Ascnicas aplicadas pelos egípcios nas artes
e na arquitetura tamm foram adotadas pelosbios.
O processo de egipcianização, que na verdade havia começado na Núbia durante
o Segundo Período Intermediário, foi eno acelerado, atingindo o clímax. Entre
os principais fatores que contribuíram para promover rapidamente a assimilação
cultural do modo de vida egípcio, pode -se citar a política adotada pela administração
faraônica na bia durante o Novo Império. Como se mencionou, a política
oficial era a de assegurar a lealdade e o apoio dos chefes nativos. Seus filhos eram
educados na corte real do Egito, ondeescutavam a fala dos epcios do quito do
rei, o que os fazia esquecer sua própria língua
87
. Desse modo eles eram fortemente
egipcianizados e isto naturalmente ajudou a garantir a lealdade dos pncipes núbios
para com o Egito e a cultura egípcia. Quando um chefe se convertia a uma religião
estrangeira e aceitava em sua vida cotidiana as regras de outra cultura, era natural
que seus ditos lhe imitassem o exemplo. A egipcianização atingiu inicialmente as
classes superiores, o que abriu caminho para apida difuo desse processo entre a
população local da Núbia.
Um dos príncipes locais que adotaram o modo de vida de um egípcio da classe
superior foi Djehuty -Hotep, príncipe de Serra (o antigo Teh -Khet), ao norte de
Uadi Halfa. Ele viveu durante o reinado da rainha Hatshepsut e herdou o principado
de seu pai, sendo depois sucedido por seu iro Amenemés. Por uma estatueta
pertencente a Amenes (hoje no Museu Nacional do Sudão), sabemos que ele
trabalhou como escriba na cidade de Buhen, antes de se tornar príncipe de “Teh-
86 EMERY, W. B. 1965. p. 178.
87 VE -SÖDERBERGH, T. 1941. p. 185.
270
África Antiga
 . . Tipos de sepulturas do Novo Império (segundo W. B. Emery, 1965).
271
A Núbia antes de Napata
-Khet”. Isso mostra que durante o Novo Império a classe nativa educada participava
da administração da Núbia juntamente com os egípcios.
O mulo de Djehuty -Hotep foi descoberto a 1,5 km a leste do Nilo, próximo
à aldeia de Debeira, cerca de 20 km ao norte da cidade de Uadi Halfa
88
. Talhado
numa pequena colina de arenito ele foi concebido e decorado em estilo inteiramente
epcio. Suas cenas descrevem o pncipe Djehuty -Hotep inspecionando o trabalho
em sua fazenda, recebendo a homenagem dos servos à maneira egípcia, caçando
com arco e flecha num carro puxado por cavalos e divertindo -se num banquete com
seus convidados. Seria quase impossível distingui -lo de um nobre egípcio do Novo
Império se ele o tivesse inscrito seu nome em núbio e em egípcio. As inscrões
hieroglíficas nos umbrais da porta de entrada do mulo mencionam Anúbis, o deus
com cabeça deo da necrópole,rus e provavelmente a deusa tor, Senhora de
Faras, outrora Ibshek
89
.
A Economia da Núbia
A imporncia ecomica da Núbia durante o Novo Imrio pode ser deduzida
principalmente das listas de tributo fixadas nos muros dos templos e tamm da
representação pictórica de produtos bios nos mulos de funciorios egípcios
responsáveis pela entrega desses produtos ao faraó. Nessa época, os egípcios
intensificaram a minerão na Núbia, de uma forma que ultrapassou qualquer limite
anterior, a fim de obter cornalina, hematita, feldspato verde, turquesa, malaquita,
granito e ametista. Mas o principal produto da Núbia era o ouro. Durante o reinado
de Tutsis III, o tributo anual de Wawat atingia sozinho 550 libras
90
. O ouro da
Núbia vinha das minas da região situada em torno de Uadi el -Alaki e Uadi Gabgaba,
no deserto oriental, e também das minas espalhadas ao longo do vale do Nilo até
Abu Hamad ao sul
91
.
O Egito importava da Núbia também ébano, marfim, incenso, óleos, gado,
leopardos, ovos e plumas de avestruz, peles de pantera, girafas e enxota -moscas de
rabo de girafa, galgos, babuínos e cereais. Pelo fim da XVIII dinastia, podem -se
observar produtos manufaturados nas representões das mercadorias que a Núbia
enviava ao Egito como tributo. No mulo de Huy, vice -rei da bia durante o
88 THABIT, H. T. 1957. pp. 81 -6.
89 VE -SÖDERBERGH, T. 1960. p. 30.
90 HINTZE, F. 1968. p. 17 .
91 VERCOUTTER, J. 1959. p. 128.
272
África Antiga
reinado de Tutancâmon, verifica -se que o tributo do sul incluía escudos, tamboretes,
camas e poltronas
92
.
Por sua riqueza e também pela importância de suas tropas, no fim do Novo
Império a Núbia passou a desempenhar um papel significativo nas questões de
política interna do próprio Egito. Desordem, fraqueza, corrupção e lutas pelo
poder caracterizaram essa época no Egito. As facções em luta, percebendo a
importância da Núbia para seus empreendimentos, esforçavam -se por obter o
apoio da sua administração. O próprio rei Ramsés -Siptah, da XIX dinastia, foi
à Núbia no primeiro ano de seu reinado, a fim de nomear Seti como vice -rei
93
, e
seu delegado levou presentes e recompensas para os funcionários mais graduados
da Núbia. Merneptah -Siptah, o último rei da XIX dinastia, foi mesmo obrigado
a enviar um de seus funcionários para receber o tributo da Núbia
94
,embora o
envio desse tributo figurasse entre os deveres do vice -rei quando o faraó exercia
o controle efetivo sobre a totalidade de seu império.
Durante a XX dinastia, a situação do Egito se deteriorou consideravelmente.
Na época de Ramsés III (-1198 a -1166) houve uma conspiração do harém para
depor o soberano. Entre os conspiradores, estava a irdo comandante dos
arqueiros na Núbia, que entrou em contato com seu irmão para que ele ajudasse
na execução do complô. Mas é evidente que o vice -rei da Núbia permaneceu
leal ao faraó. Sob Ramsés XI, o último rei da XX dinastia, irrompeu uma revolta
na região de Assiut. Com a ajuda de Pa -nehesi, vice -rei de Kush, o rei e suas
tropas conseguiram dominar a rebelião e restaurar a ordem no Alto Egito. Após
o levante, um certo Herihor tornou -se sumo sacerdote de Âmon em Tebas.
Parece que ele foi elevado a essa dignidade por Pa -nehesi e seus soldados núbios,
supondo -se ser ele um de seus seguidores. No 19
o
ano do governo de Ramsés
XI, após a morte de Pa -nehesi, Herihor foi nomeado vice -rei da Núbia e vizir
de Tebas. Desse modo passou a ser o senhor efetivo do Alto Egito e da Núbia.
Após a morte de Ramsés XI, Herihor tornou -se rei (-1085), e com ele teve
início uma nova linhagem de soberanos egípcios. Daí por diante o caos reinou
no Egito, iniciando -se na Núbia uma fase crítica, que perdurou até o século VIII
antes da Era Cristã, quando Kush emergiu inesperadamente como potência de
primeira grandeza.
92 DAVIES, N. de G. & GARDINER, A. H. 1926. p. 22.
93 BREASTED, J. H. 1906. v. 3.
94 MACIVER, D. R. & WOOLLEY, C. L. 1911. p. 26, pr. 12.
C A P Í T U L O 1 0
273
O Império de Kush: Napata e Méroe
Embora atualmente a região esteja muito isolada pelos desertos e pelos
difíceis obstáculos da Segunda, Terceira e Quarta Cataratas do Nilo, Dongola e
as bacias vizinhas do Médio Nilo foram outrora o centro de formações políticas
ricas e poderosas. Na primeira metade do II milênio, a chamada cultura de
Kerma correspondia ao rico e próspero reino de Kush, mencionado nos textos
egípcios. As prospecções arqueológicas bastante irregulares dessa região ainda
hoje pouco conhecida tornam muito difícil elaborar o seu quadro histórico
após a fase brilhante, mas relativamente curta, de domínio egípcio durante o
Novo Império (-1580 a -1085); por quase três séculos parece ter -se rompido
o vínculo entre a África e o mundo mediterrânico e um silêncio quase total
envolve a Núbia. Contudo, há um despertar a partir do final do século IX antes
da Era Cristã; a escavação empreendida por G. A. von Reisner na necrópole de
el -Kurru
1
, perto de Napata, a jusante da Quarta Catarata, revelou os túmulos
de uma série de príncipes: de início apenas montes de terra e depois estruturas
de alvenaria do tipo mastaba.
1 DUNHAM, D. & BATES, O. 1950 -7.
O Império de Kush: Napata e Méroe
J. Leclant
274
África Antiga
A dominação sudanesa no Egito:
a XXV dinastia ou dinastia etíope
São os reis ancestrais da linhagem que efetivou a união do Egito e do
Sudão, conhecida na história como XXV dinastia do Egito ou dinastia etíope
2
.
A semelhança de certos nomes e o papel desempenhado pelo deus Âmon e seu
clero fizeram com que por muito tempo se acreditasse que a dinastia descendia
de refugiados egípcios originários da região tebana. Posteriormente, algumas
pontas de flecha do tipo saariano levaram a crer numa origem líbia. Na realidade,
trata -se de uma dinastia nativa, constituída talvez pelos sucessores dos antigos
soberanos de Kerma.
Desconhece -se quem foram seus primeiros reis. Sabe -se que, a Alara, sucedeu
Kashta, nome que parece derivar de “Kush”; seus cartuchos, de estilo egípcio,
figuram numa estela descoberta em Elefantina. Naquela época (cerca de -750),
os núbios ocupavam, pelo menos parcialmente, o Alto Egito.
A estela de Peye (Piankhy)
Com o monarca seguinte, o ilustre Piankhy, cujo nome terá doravante a
grafia “Peye”
3
, entramos no curso principal “da história: uma das inscrições que
ele mandou gravar em Napata e que, descoberta na metade do século passado,
encontra -se hoje preservada no Museu do Cairo a Estela da Vitória
4
é um
dos textos mais longos e detalhados do antigo Egito. Nas suas duas faces e nos
lados encontram -se 159 linhas de hieróglifos descrevendo as deliberações do rei
em seu palácio e as etapas de sua campanha contra os príncipes líbios, senhores
do Médio Egito e do Delta. Nesse relato sucedem -se episódios piedosos e
discursos: Peye sabe ser complacente; grande amante de cavalos, encoleriza -se
em Hermópolis por encontrar os animais mortos nos estábulos, mas perdoa.
Por outro lado, recusa -se a ir ao encontro dos “impuros”, os dinastas do Delta,
que comiam peixe. E repentinamente, em meio a demonstrações de alegria, tem
lugar uma retirada para o sul, de volta ao Sudão. Ao mesmo tempo, em Tebas,
2 LECLANT, J. 1965 -b. pp. 354 -9.
3 O nome antigamente lido Piankhy inclui, na escrita hieroglíca, o sinal da “cruz alada”, que se lia ankh, à
maneira egípcia. Mas este signo parece ter sido considerado pelos meroítas apenas como um ideograma,
que designa “vida”, correspondendo ao signicado da raiz meroíta p (e) y (e), de onde a leitura “Peye”,
geralmente adotada hoje em dia. Cf. HEYLER, A. & LECLANT, J. 1966. p. 552; PRIESE, K. H. 1968.
pp. 165 -91; VITTMANN, G. 1974. pp. 12 -16.
4 BREASTED, J. H. 1906; PRIESE, K. H. 1970. pp. 16 -32; LECLANT, J. 1974. pp. 122 -3.
275
O Império de Kush: Napata e Méroe
a filha do próprio Kashta, Amenirdis, a anciã, é investida Divina Adoradora de
Âmon
5
.
Outra grande estela de Peye
6
, descoberta em 1920, define o caráter federativo
do Império Cuxita, ao mesmo tempo que afirma a supremacia do deus Âmon:
Âmon de Napata fez -me soberano de todo o povo; aquele ao qual eu digo, ‘tu és
rei’, será rei; aquele ao qual eu digo, ‘tu não serás rei’, não será rei. Âmon de Tebas
fez -me soberano do Egito; aquele ao qual eu digo, veste -te como rei’, vestir -se
como rei; aquele ao qual eu digo, ‘tu não te vestirás como rei’,o se vestirá como rei
... os deuses fazem um rei, o povo faz um rei, mas foi Âmon quem me fez”.
O rei Shabaka
Shabaka, irmão de Peye, que subiu ao trono por volta de -713, submeteu
ao Império de Kush
7
todo o vale do Nilo até o Delta. Teria mandado queimar
Bocchoris, dinasta de Sais, por ter -lhe resistido; os compiladores das listas de
reis do Egito consideram -no o fundador da XXV dinastia. A política global do
Oriente Próximo arrastou os cuxitas em direção à Ásia, onde a pressão assíria
começava a se fazer sentir; os apelos dos príncipes e cidades da Síria -Palestina,
em particular de Jerusalém
8
, tornavam -se insistentes. A princípio, contudo,
Shabaka parece ter mantido boas relações com a Assíria. No Sudão e no Egito,
ele deu início a uma política de construção de monumentos expandida por seus
sucessores, os dois filhos de Peye primeiro Shabataka (-700 a -690) e depois
o glorioso Taharqa (-690 a -664)
9
.
O rei Taharqa: a luta contra os assírios
O nome de Taharqa é encontrado em numerosos monumentos em todo o
vale. Ele construiu santuários ao da montanha sagrada de Djebel Barkal,
uma espécie de mesa de arenito que domina a grande bacia fértil de Napata.
Seu nome é lido igualmente em muitos outros locais da Núbia, como Kawa,
5 LECLANT, J. 1973 -b.
6 Museu de Cartum, n. 1851: REISNER, G. A. 1931. pp. 89 -100 e il. V.
7 Os egípcios e os núbios deram a essa organização política o nome de “Kush”, tradicionalmente usado
para a região do Médio Nilo desde o Médio Império. Como o nome é encontrado na Bíblia, os autores
de língua inglesa usam o adjetivo cuxita”, enquanto na tradição historiográca francesa a dinastia
correspondente – a XXV do Egito – é chamada de dinastia “etíope” (cf. nota 2). Evitaremos aqui qualquer
referência a este último termo, a m de afastar todo risco de confusão com a Etiópia atual.
8 ZEISSL, H. von. 1944. pp. 21 -6.
9 LECLANT, J. 1965 -b. índice, p. 407.
276
África Antiga
por exemplo. Na região tebana ele erigiu colunatas nos quatro pontos cardeais
do templo de Carnac e construiu grande número de pequenas capelas, onde
se associavam os cultos de Âmon e de Osíris. evidências de sua presença
também em nfis e no Delta. Abandonando a tradicional necrópole de
el -Kurru, Taharqa construiu em Nuri o que parece ser um cenotáfio comparável
ao Osireion de Abidos
10
; em Sedinga descobriu -se um túmulo inscrito com
alguns de seus títulos e distinções
11
. Várias estátuas de excepcional qualidade,
em granito esplendidamente esculpido e reaado por ornamentos de ouro,
representam o monarca a caminhar em passos firmes, revelando -nos seus traços:
a face é pesada; o nariz carnudo dilata -se sobre a boca larga, de lábios grossos; o
queixo curto e forte sublinha o extraordinário vigor do rosto. Muitos textos, em
particular várias das grandes estelas descobertas por Griffith em Kawa, dão -nos
uma ideia mais precisa de sua política: construções religiosas, ricas oferendas
em baixelas, objetos de culto, materiais preciosos e doações de pessoal. O sexto
ano do reinado foi particularmente celebrado: uma grande cheia do Nilo fez
aumentar a prosperidade do reino
12
; relatando a vinda da rainha -mãe, Abale
13
,
o rei discorre sobre a situação do país na época.
Taharqa aceitou o desafio de guerra contra os assírios, e seu nome aparece
muitas vezes na Bíblia
14
em passagens nas quais é evidente o terror causado
pelos guerreiros negros do reino de Kush. Assaradão (-681 a -669) fracassou na
tentativa de invadir o Egito, e foi seu sucessor Assurbanipal quem, à frente de
um exército extremamente poderoso, ocupou e saqueou Tebas em -663.
O rei Tanutamon: o m da dominação sudanesa no Egito
Nessa época, Taharqa já tinha sido sucedido no trono por seu sobrinho
Tanutamon, filho de Shabataka. A chamada Estela do Sonho mostra
sucessivamente o aparecimento de duas serpentes uma clara alusão ao duplo
uraeus dos soberanos etíopes –, a coroação de Tanutamon em Napata, sua marcha
10 DUNHAM, D. & BATES, O. 1955. v. 11, pp. 6 -16.
11 Túmulo WT 1, Sedinga: GIORGINI, M. S. 1965. pp. 116 -23.
12 Causada por uma chuva muito forte, esta “enchente que arrastou o rebanho” inundou todo o país; mas a
vontade providencial de Âmon evitou que a cheia fosse acompanhada de outras catástrofes, destruindo
roedores e serpentes, não permitindo as devastações de gafanhotos e impedindo que os ventos do sul
soprassem com fúria.
13 MACADAM, M. F. L. 1949. Inscr. IV. pp. 18 -21.
14 Livro dos Reis, 19:9; Isaías, 37:9.
277
O Império de Kush: Napata e Méroe
para o norte, a tomada de Mênfis, trabalhos de construção em Napata, uma
campanha no Delta com a submissão dos príncipes locais. Na realidade, com a
derrota infligida pelos assírios, os cuxitas retiraram -se para o sul, chegando ao
fim sua dinastia no Egito. Daí em diante, o país voltou -se para o Mediterrâneo,
sendo sua unificação obra de um dinasta do Delta, o saíta Psamético I, que o
libertou dos assírios. No nono ano de reinado (-654), esse monarca conseguiu
que sua filha Nitocris fosse escolhida Divina Adoradora em Tebas
15
.
Uma monarquia dupla
É importante fazer uma análise mais detida desse peodo de cinquenta
anos durante o qual o Egito e o Sudão unidos formaram uma grande potência
africana. O reino cuxita aparece como uma monarquia dupla, cujo símbolo é
o duplo uraeus, as duas serpentes que se erguem sobre a fronte do faraó e o
protegem. Em seu comportamento geral, suas roupas e atitudes, os soberanos
da XXV dinastia copiam os faraós do Egito que os precederam e de quem
afirmam ser sucessores, se não descendentes. O estilo de seus monumentos é
tipicamente faraônico. As inscrições são egípcias, relembrando a mais clássica
tradição, mas os caracteres físicos assemelham -se mais aos dos pastores camitas,
sem dúvida com traços negroides: osso da face marcado, queixo forte, lábios
grossos. Eles também usam ornamentos característicos do Sudão, como um
tipo de gorro justo que se amolda firmemente ao pescoço, com uma parte lateral
protegendo as têmporas, e seguro por uma faixa grossa, que é amarrada com
as pontas caindo por trás dos ombros. Os brincos e os berloques de colares são
enfeitados com cabeças de carneiro, o animal sagrado de Âmon. Na realidade,
Âmon é o grande deus da dinastia, adorado em quatro santuários principais
Napata, Torá (provavelmente Sanam), Kawa e Pnubs (Tabo, na ilha de Argo).
Para o serviço de cada um desses santuários eram consagradas princesas, como
musicistas de Âmon.
Na parte sudanesa de seu império, os séquitos dos cuxitas frequentemente
incluíam suas mães, esposas, irs e primas, o que não ocorria no Egito
propriamente dito, embora os faraós cuxitas fossem assistidos em Tebas pelas
Divinas Adoradoras princesas consagradas à virgindade, que tinham o deus
Âmon como único esposo. Com privilégios quase reais, as Amenirdis e as
Shepenoupets constituíram uma espécie de dinastia paralela, com sucessão
15 CAMINOS, R. A. 1964 -b. pp. 71 -101.
278
África Antiga
de tia para sobrinha; mas não eram epônimas e não tinham funções ligadas
às enchentes do Nilo. Apesar de dirigirem uma importante instituição, seu
poder era limitado pela presença, na própria Tebas, de um prefeito da cidade,
representante do faraó.
A XXV dinastia foi gloriosa, e os autores cssicos desenvolveram toda
uma tradição a seu respeito. De fato, a arte da época mostra um grande vigor.
Assumindo a melhor tradição do passado, os cuxitas deram -lhe um novo poder
e uma força notável.
Napata, a primeira capital do Império Cuxita
A história dos cuxitas após a sua retirada do Egito sob o ataque assírio é bem
mais difícil de determinar; mesmo a cronologia é extremamente vaga. Durante
um milênio, um Estado sobreviveu, tomando -se cada vez mais africano: o reino
de Kush, nome de sua própria escolha, proveniente da antiga designação nativa
do território. Na visão da egiptologia tradicional, esse foi um longo período
de decadência, durante o qual as influências faraônicas progressivamente se
deterioraram. Na realidade, trata -se de uma cultura africana que ora se firma em
sua especificidade ora procura alinhar -se à civilização egípcia ela mesma, aliás,
africana. De tempos em tempos, chegam ecos do Mediterrâneo, particularmente
após a fundação de Alexandria.
De início, a capital se manteve em Napata, ao da montanha sagrada de
Djebel Barkal. Mais tarde, provavelmente no século VI antes da Era Cristã, foi
transferida para Méroe, bem mais ao sul. Não se tem muita certeza acerca da
extensão do reino cuxita, e até agora as diferenças entre suas várias regiões ainda
estão mal explicadas.
No extremo norte, a Baixa Núbia, uma espécie de terra de ninguém,
permaneceu em litígio entre os meroítas e os senhores do Egito: saítas, persas,
ptolomeus e posteriormente romanos. Zona de silêncio após o fim do Novo
Império egípcio (por volta de -1085), esta região pouco favorecida, mergulhada
na solidão dos desertos do trópico, parece ter permanecido pouco povoada até
o início da Era Cristã. Seu renascimento provavelmente se deveu à introdução
da saqia (roda -d’água) (cf. Capítulo 11).
O centro do Império, a Núbia propriamente dita, estendendo -se ao longo
do Nilo (bacias de Napata, Dongola e Kerma), sempre foi, ao que parece, muito
diferente da região das estepes da “ilha de Méroe”. Na direção leste, em Butana,
há numerosos sítios ainda não explorados, o mesmo ocorrendo com as rotas de
279
O Império de Kush: Napata e Méroe
caravana e o litoral do mar Vermelho. As prospecções arqueológicas não estão
desenvolvidas o suficiente para que se possam indicar os limites meridionais
de Kush, nas savanas e nas terras fertilíssimas da Gezira; admite -se, contudo,
que o reino incluía o Sudão central e se estendia pelo menos até Sennar, no
Nilo Azul, e Kosti, no Nilo Branco; também devem ser levados em conta os
objetos desenterrados em Djebel Moya. Na direção oeste, sua influência deve
ter alcançado pelo menos o Kordofan; grandes expectativas em relação às
explorações efetuadas na vasta faixa das savanas nilo -chadianas.
Em Napata, os túmulos do cemitério de Nuri
16
estão entre os elementos
essenciais para determinar a história, ainda muito pouco conhecida, dos reis da
dinastia napatense. Os primeiros soberanos eram ainda muito egipcianizados.
16 DUNHAM, D. & BATES, O. 1950 -7.
 . Saqia. (Fonte:Archaeology”, 3 (17), Aut. 1977.)
280
África Antiga
Como no caso dos reis da XXV dinastia, seus cemitérios o dominados pelas
pirâmides de estilo egípcio, cuja forma lembra mais a dos altos dignitários do
fim do Novo Império do que a das pirâmides reais da IV dinastia; a decoração
de suas câmaras funerárias e de seus macos sarcófagos de granito segue
pormenorizadamente o estilo egípcio: as inscrições religiosas, numa tradição que
remonta aos Textos das Pirâmides, cobrem as laterais, e os objetos funerários que
escaparam à pilhagem – jarras de libação, ushabtis e estatuetas – são exatamente
iguais aos do Egito.
Dos dois primeiros reis sabe -se pouco mais do que os nomes: Atlanarsa (-653
a -643), filho de Taharqa, e seu filho, Senkamanisken (-643 a -623), de cujas
estátuas foram encontrados fragmentos de grande beleza em Djebel Barkal.
sobre os dois filhos e sucessores de Senkamanisken primeiro Anlamani (-623 a
-593), e depois Aspelta (-593 a -568) temos mais informações. Em Kawa, uma
estela de Anlamani
17
descreve a viagem do rei pelas províncias, cujos templos ele
aprovisiona; uma campanha contra um povo que pode ser os Blêmios (Bedjas); a
vinda da rainha -mãe, Nasalsa, e a consagração das irmãs do rei como tocadoras
de sistro perante o deus Âmon em cada um de seus quatro grandes santuários.
Aspelta (-593 a -568), iro e sucessor do rei, deixou duas grandes
inscrições, descobertas anos atrás. O Texto da Entronizão ou Coroão
data do primeiro ano de seu reinado
18
e mostra o exército reunido perto de
Djebel Barkal; os chefes decidem consultar Âmon de Napata, que designa
Aspelta, cuja descendência pelas “Irs Reais” é particularmente ilustre; ele
toma as insígnias reais, agradece e invoca o deus; recebido com júbilo pelo
Exército, faz doações aos templos. Tais são as bases militares e religiosas da
monarquia cuxita. A Estela do Apanágio das Princesas, do terceiro ano do
reinado, conservada no museu do Louvre, descreve a investidura de uma
princesa como sacerdotisa. Um outro texto descoberto por G. A. von Reisner
em Djebel Barkal narra a fundação, pelo soberano, de uma capela mortuária
em honra de Khaliut, filho de Peye, bem depois de sua morte. Por outro lado,
é duvidosa a atribuição a Aspelta da Estela da Excomunhão, pois os nomes
do rei se acham desfigurados. O texto, bastante obscuro, descreve como os
membros de uma família que havia planejado um assassínio foram excluídos
do templo de Âmon de Napata; o deus os condena a ser queimados e o rei
alerta os sacerdotes contra outros crimes desse tipo.
17 MACADAM, M. F. L. 1949. pp. 44 -50, il. 15 -16
18 HOFMANN, I. 1971 -a.
281
O Império de Kush: Napata e Méroe
 . Estátua do rei Aspelta,
em granito negro da Etiópia.
F . Detalhe (busto). (Fotos
Museum of Fine Arts, Boston. )
282
África Antiga
A expedição de Psamético II e a queda de Napata
Aspelta foi contemponeo de Psamético II. Trata -se de um dos raros
sincronismos realmente confirmados, quase o único, em mil anos de história.
Em 591, no segundo ano do reinado de Aspelta, Kush foi invadido por uma
expedição egípcia reforçada por mercenários gregos e carianos, sob o comando
de dois generais, Amasis e Potasimto
19
, e Napata foi tomada.
Transferência da capital para Méroe
Os cuxitas procuraram então manter a maior disncia posvel de seus
poderosos vizinhos do norte; é certamente a essa invasão egípcia, cuja importância
foi durante muito tempo subestimada, que se deve atribuir a transferência da
capital de Napata para Méroe, bem mais ao sul, não muito distante da Sexta
Catarata. Aspelta foi de fato o primeiro soberano comprovado de Méroe. Mas
sem dúvida Napata manteve -se como capital religiosa do reino: até o fim do
século IV antes da Era Cristã os monarcas continuaram a ser enterrados na
necrópole de Nuri.
Em -525 configurou -se a ameaça persa, e conhecemos a resposta do rei
núbio aos embaixadores de Cambises
20
(Heródoto, III, 21): quando os persas
retesarem, tão facilmente como eu, arcos tão grandes quanto este, que marchem
então com forças superiores contra os etíopes”. Cambises não levou em conta
o conselho; seu exército foi incapaz de realizar a travessia do Batn -el -Haggar
e teve de se retirar, com graves perdas. Apesar de tudo, os persas consideravam
os habitantes de Kush como seus súditos. No pedestal da magnífica estátua
de Dario descoberta em Susa, decorado com os povos do império, foi -lhes
reservado um escudo
21
. Pode -se supor que uma estreita faixa do território núbio
tenha permanecido sob seu controle e que houvesse contingentes cuxitas nos
exércitos de Dario e Xerxes. também referências a presentes em ouro, ébano,
presas de elefante e mesmo crianças antigos tributos outrora coletados pelo
Egito – que teriam sido enviados a Persépolis e Susa.
A transferência da capital poderia ser explicada tamm por motivos
climáticos e econômicos. As estepes ofereciam a Méroe uma extensão muito
19 SAUNERON, S. & YOYOTTE, J. 1952. pp. 57 -207. Uma versão desse texto foi publicada por BAKRY,
H. S. K. p. 225 et seq., il. 56 -9.
20 HERÓDOTO. Livro III, 21.
21 PERROT, J. et al, 1972. pp. 235 -66.
283
O Império de Kush: Napata e Méroe
maior que as bacias em torno de Napata, confinadas pelos desertos. Além da
criação de animais desenvolveu -se a agricultura, pois essa área de chuvas de
verão era muito propícia ao cultivo; enormes bacias de irrigação (hafirs) foram
cavadas nas adjacências dos principais sítios. O comércio deve ter sido ativo:
Méroe constituía um entreposto ideal para as rotas de caravanas entre o mar
Vermelho, o Alto Nilo e o Chade. Acima de tudo, a abundância relativa de
árvores e de arbustos fornecia o combustível necessário ao processamento do
ferro, cujo minério é encontrado no arenito núbio. O acúmulo de escória indica
a amplitude das atividades de metalurgia; na opinião de autores mais recentes,
porém, é exagerado considerar Méroe como a Birmingham da África
22
.
As sepulturas reais são praticamente as únicas fontes de que os historiadores
dispõem para pesquisar longos séculos que permanecem obscuros. O escavador
desses túmulos, G. A. von Reisner, comparou a lista dos nomes reais confirmados
com as pirâmides descobertas. Trata -se, porém, de um trabalho aleatório, que
passou por muitas revisões e pode ainda ser objeto de modificações. O último
soberano enterrado em Nuri foi Nastasen, pouco antes de -300. A partir daí,
reis e príncipes passaram a ser sepultados nos cemitérios de Méroe. Contudo,
vários reis voltaram a Djebel Barkal, o que levou alguns historiadores a acreditar
na provável existência, no norte da Núbia, de duas dinastias paralelas às de
Méroe, uma imediatamente posterior a Nastasen e outra no século I antes da
Era Cristã
23
.
Só uns poucos textos de grande extensão trazem algum esclarecimento,
embora de forma fragmentária. A língua egípcia altera -se; é sob os símbolos
hieroglíficos que podem adquirir aspectos um tanto fantásticos que se devem
buscar, talvez de modo mais acurado, notações do estado contemporâneo da
língua na realidade demótica e também reflexos do meroíta, a língua dos
cuxitas.
Temos várias inscrições de Amannateieriko (pouco antes de -400). A melhor
delas descreve a eleição do rei, um “vigoroso homem de 41 anos”, expedições
militares, festividades religiosas, uma retirada militar à luz de archotes, a visita
da rainha -mãe, o trabalho de restauração em edifícios e doações aos santuários.
Em seguida vem Harsiotef, cuja célebre inscrição é dedicada a cerimônias
e campanhas contra um grande número de inimigos. O mesmo se com a
estela de Nastasen, removida por Lepsius para Berlim, que pode eventualmente
22 Ver as referências bibliográcas a seguir, em particular: TRIGGER, B. G. 1969. pp. 23 -50, e AMBORN,
H. 1970. pp. 74 -95.
23 Para a cronologia meroíta, ver referências bibliográcas a seguir.
284
África Antiga
fornecer um sincronismo, se uma das inscrições for de fato o nome de Khababash,
efêmero régulo do Egito (segunda metade do século IV antes da Era Cristã).
Numa de suas campanhas, Nastasen capturou 202120 cabas de gado e
505200 animais de pequeno porte. Seria interessante poder identificar todos
os povos mencionados nas inscrições; os despojos são muitas vezes enormes e,
evidentemente, certos grupos étnicos devem ser pesquisados na savana nilo-
-chadiana. A gravação da estela é de alta qualidade e testemunha a permanência
ou a volta de uma influência egípcia direta.
Ergamenes, o leleno
A historiografia grega, no relato sobre “Ergamenes”, confirma o renascimento
que parece ter marcado as décadas seguintes. Após descrever a posição todo-
-poderosa dos sacerdotes cuxitas, que podiam até mesmo obrigar o rei a cometer
suicídio se ele deixasse de contentar o povo, Diodoro da Silia
24
conta como um
soberano impregnado da cultura grega, Ergamenes, ousou resistir, condenando à
morte diversos sacerdotes. Contudo persistem as vidas quanto à identidade de
Ergamenes. Qual dos três soberanos meroítas é ele: Arkakamani, Arnekhamani ou
Arqamani? Arnekhamani foi o rei que construiu o Templo do Leão em Mussawarat
es -Sufra
25
, no qual se podem ler hinos compostos em bom epcio ptolomaico e
onde devem ter trabalhado artistas e escribas egípcios. No entanto, trata -se de relevos
em estilo totalmente meroíta: os penteados, adornos e insígnias reais têm inspiração
local e os rostos não correspondem aos cânones epcios. Ao lado das divindades
faraônicas cultuam -se deuses puramente mertas Apedemak, o deus -leão
26
, e
Sbomeker. Certamente as relões com o Egito não foram rompidas, uma vez
que existem santrios de devão comum em Filas e em Dakka, na Baixabia.
Contudo as revoltas no sul do Egito ptolomaico, no final do culo III antes da Era
Cristã, podem ter sido apoiadas pelos régulos bios: Ptolomeu V teve de fazer
campanha no país e Ptolomeu VI fundou conias na Triacontaschona
27
.
24 DIODORO DA SICÍLIA. III, 6. Não há corroboração para a armação de que os sacerdotes realmente
pudessem induzir o rei à morte.
25 HINTZE, F. 1976.
26 ZABKAR, L. V. 1975.
27 Os gregos davam o nome de Dodecaschenes à área ao sul de Filas, com cerca de “12 schenes” de
comprimento, isto é, por volta de 120 km. Um ponto discutido é se os aproximadamente 320 km da
Triacontaschenes’’ também seriam contados a partir de Filas ou, ao contrário, do extremo sul da área
previamente denida.
285
O Império de Kush: Napata e Méroe
A língua e a escrita meroítas
Com a rainha Shanakdakhete (por volta de -170 a -160) parece ter ascendido
ao poder um matriarcado
28
tipicamente local. É numa edificação em honra de seu
nome, em Naga, que se encontram inscrições gravadas em hieróglifos meroítas.
Tais inscrições contam -se entre as mais antigas de que se tem conhecimento.
Esses hieróglifos foram tomados de empréstimo ao egípcio, mas diferem dele
em vários aspectos. São escritos e lidos em sentido contrário ao dos textos
egípcios, o que pode atestar um desejo deliberado de diferenciação. A esses
hieróglifos corresponde uma escrita cursiva frequentemente abreviada; os signos
parecem derivar em parte da escrita demótica usada no Egito, naquele período,
para os documentos administrativos e privados. De qualquer forma, a língua
meroíta, cuja natureza ainda é desconhecida, bem como seu sistema gráfico,
é completamente diferente do egípcio. Os 23 signos usados representam as
consoantes, algumas vogais e as silábicas; grupos de dois pontos geralmente
separam uma palavra da outra. Em 1909, o especialista inglês F. L. Griffith
achou a chave da transliteração. Desde então, os textos têm sido classificados
em diferentes tipos, colocando -se em paralelo expressões comparáveis,
principalmente as extraídas dos textos funerários. Após uma invocação a Ísis
e Osíris, vêm os nomes do falecido, de sua mãe (geralmente no alto da lista)
e de seu pai, de alguns parentes consanguíneos ou por afinidade, todos com
muitos títulos e altas distinções, e os nomes de lugares e divindades. Mas é
difícil ir além. O estudo do uso do artigo, principalmente, possibilitou a divisão
dos textos em unidades conhecidas como versos, de uma extensão conveniente
para a análise. Os verbos também foram pesquisados, tendo -se descoberto um
sistema de afixos. Mais recentemente, as técnicas de computação permitiram o
registro sistemático de textos transliterados, junto com os elementos de análise
correspondentes
29
. Por enquanto, contudo, a tradução propriamente dita de cerca
de oitocentos textos recuperados permanece, em seu conjunto, irrealizável.
Os primeiros textos longos em língua meroíta aparecem em duas estelas do
rei Taniydamani, datadas aproximadamente do final do século II antes da Era
Cristã. O grau de incerteza da cronologia meroíta agrava -se particularmente
no que se refere a esse período, a ponto de como vimos certos especialistas
28 Cf. HAYCOCK, B. G. 1954. pp. 461 -80; KATZNELSON, I. S. 1966. pp. 35 -40 [em russo]; MACADAM,
M. F. L. 1966. pp. 46 -7; DESANGES, J. 1968. pp. 89 -104; id. jul. 1971, pp. 2 -5.
29 O Groupe d’Études Méroitiques de Paris deu início a um registro baseado em computador dos textos
meroítas agrupados no Répertoire d’Epigraphe Méroitique. Ver as referências bibliográcas seguintes, em
particular os artigos publicados em Cartum, 1974, pp. 17 -40.
286
África Antiga
terem acreditado na existência de um Estado independente em Napata, o que
parece bem pouco provável.
Duas rainhas tiveram então um papel preponderante: Amanirenas e
Amanishaketo. Seus maridos permanecem esquecidos, e não se sabe sequer o
nome do de Amanishaketo. O trono também foi ocupado durante alguns anos
por um príncipe que se tornou rei, Akinidad, filho da rainha Amanirenas e do
rei Teriteqas. Seria importante conhecer a ordem de sucessão das duas rainhas,
ambas “Candace” transcrição do título meroíta Kdke, de acordo com a tradição
dos autores clássicos
30
.
Roma e roe
Amanirenas ou Amanishaketo manteve contato com Augusto num episódio
famoso uma das raras ocasiões em que Méroe aparece no cenário da história
universal. Depois do saque de Assuã pelos meroítas (quando provavelmente foi
roubada a estátua de Augusto, cuja cabeça foi descoberta enterrada sob a soleira
da porta de um dos palácios de Méroe), o prefeito do Egito romano, Petrônio,
preparou uma expedição punitiva e tomou Napata em -23.
Em Primis (Oasr Ibrim), os romanos instalaram uma guarnição permanente,
que resistiu aos ataques dos meroítas
31
. Em -21 ou -20, negociou- se um tratado
de paz em Samos, onde na época residia Augusto. A guarnição romana parece
ter sido retirada; deixou -se de cobrar tributo aos meroítas e fixou -se em
Hierasykaminos (Muharraqa) a fronteira entre os impérios Romano e Meroíta.
Talvez nunca se saiba se foi Amanirenas ou Amanishaketo a “Candace” de um
olho e “de aparência viril” que, de acordo com Estrabão, Plínio e Díon Cássio,
conduziu as negociações com os invasores romanos.
O Império Meroíta em seu apogeu
O período próximo ao início da Era Cristã é um dos pontos culminantes da
civilização meroíta, como atestam várias construções. Os nomes de Akinidad
e da rainha Amanishaketo estão inscritos no Templo T, em Kawa. Atribui -se
à soberana um palácio descoberto nos últimos anos em Uadi ben Naga, perto
do Nilo
32
.
30 Ver nota 28.
31 DESANGES, J. 1949. pp. 139 -47, e PLUMLEY, J. M. 1971. pp. 7 -24, I mapa, II il.
32 VERCOUTTER, J. 1962. pp. 263 -99.
287
O Império de Kush: Napata e Méroe
 . A rainha Amanishaketo: relevo da pirâmide Beg N6 de Méroe.
288
África Antiga
Sua bela sepultura ainda pode ser vista no Cemitério Norte de Méroe
33
. A
pirâmide, precedida a leste pela capela e pelo pilono tradicionais, é uma das mais
imponentes da velha cidade. Em 1834, foram entregues ao aventureiro italiano
Ferlini as luxuosas joias que constituem hoje em dia a glória dos museus de
Munique e de Berlim. Ornamentos semelhantes enfeitam os relevos, em que rainhas
e príncipes exibem um luxo exagerado, que o deixa de lembrar o de Palmira,
uma outra civilização de ricos mercadores nas fronteiras do mundo helenizado. Ao
luxo acrescenta -se um toque de violência, com cenas cruéis de prisioneiros sendo
estraçalhados pelos leões, transpassados por lanças ou devorados pelas aves de rapina.
Natakamani, genro e sucessor de Amanishaketo, e sua esposa, a rainha
Amanitere (-12 a +12) também foram grandes construtores: seus nomes são
sem dúvida os que mais vezes ocorrem nos monumentos cuxitas. Por todas as
principais cidades do império, esses monumentos testemunham o poder de uma
dinastia em seu apogeu. Ao norte, em Amara, ao sul da Segunda Catarata, os
soberanos construíram um templo cujos relevos são trabalho egípcio, à exceção
do detalhe do penteado real meroíta, uma touca justa circundada por uma
fita pendendo atrás. Durante muito tempo, atribuiu -se a Natakamani os dois
colossos da ilha de Argos, pouco acima da Terceira Catarata
34
.
O casal real também empreendeu a restauração de Napata, devastada pela
expedição de Petrônio, e em particular do templo de Âmon. Em Méroe, os nomes
de Natakamani e de sua esposa aparecem no grande templo de Âmon, juntamente
com o do príncipe Arikankharor. Em Uadi ben Naga, o Templo Sul é obra dos
dois soberanos. Eles dedicaram particular atenção a Naga, o grande centro das
estepes, ao sul de Méroe: o acesso frontal ao templo de Âmon foi transformado em
pilono, e sua decoração associa influências egípcias e traços inteiramente meroítas.
A construção mais famosa, contudo, é o Templo do Leão de Naga, cujos relevos
estão entre os exemplos mais representativos da arte meroíta. As pirâmides do rei,
da rainha e dos príncipes foram identificadas em roe.
Os dois soberanos gostavam de ser retratados com um dos príncipes reais
Arikankharor, Arikakhatani ou Sherakarer –, variando de acordo com o
monumento; talvez os príncipes fossem vice -reis das províncias em cujos templos
principais eram retratados. Sherakarer parece ter sucedido a seus pais, pouco após
o início da Era Cristã; um relevo rupestre em Djebel Qeili, no sul de Butana,
33 DUNHAM, D. & BATES, O. 1950 -7. IV, pp. 106 -11.
34 S. WENIG sugere que eles seriam atualmente identicados como os deuses Arensnuphis e Sebiumeker:
1967, pp. 143 -4.
289
O Império de Kush: Napata e Méroe
mostra -o triunfante sobre numerosos inimigos, sob a proteção de uma divindade
solar.
Méroe e os países vizinhos
Nos anos seguintes ocorre o famoso episódio, registrado nos Atos dos Apóstolos
(8, 27 -39): na estrada de Jerusalém a Gaza, o diácono Felipe converte um
etíope, um eunuco, alto funcionário de Candace, rainha da Etiópia, encarregado
de todo o seu tesouro ...”
35
. Esse testemunho, quaisquer que sejam seu valor e
sua importância, mostra que Méroe era bem conhecido.
Durante muito tempo, os pesquisadores tentaram encontrar as ligações de
Méroe com o mundo exterior por um caminho completamente diferente: uma
representação de Apedemak, o deus -Leão, mostra -o com uma tripla cara de leão
e quatro braços
36
. Essa figura evoca a Índia, assim como os relevos em Naga,
que mostram uma flor de lótus, de onde emerge uma serpente; seu pescoço
torna -se a parte superior de um corpo humano, com a cabeça de Apedemak
encimada por uma tríplice coroa. Nas ruínas de Mussawarat es -Sufra existem
numerosas representações de elefantes; uma das mais curiosas é aquela em que
o animal serve para rematar um largo muro. As pesquisas mais recentes tendem
a abandonar a hipótese hindu e a considerar fatos estritamente locais, bem mais
interessantes, do reino de Kush
37
.
Esse país distante continuava a intrigar os romanos. Por volta de +60, Nero
enviou dois centuriões ao Nilo; na volta, eles declararam que a terra era pobre
demais para ser digna de conquista
38
. uma inscrição em latim gravada num
dos muros de Mussawarat, e moedas romanas, embora em número irrisório,
chegaram a alguns pontos da Núbia e do Sudão: uma moeda de Cláudio foi
encontrada em Méroe, uma de Nero em Karanog, uma de Diocleciano no
distante Kordofan (El -Obeid) e uma outra da metade do século IV da Era
Cristã em Sennar. Esses modestos vestígios têm lugar ao lado das descobertas
35 Na tradução francesa da Bíblia conhecida como Bíblia de Jerusalém”, as notas explicam que a área
referida situa -se acima da Primeira Catarata: Núbia ou Sudão Egípcio isto é, o reino de Kush, que
denimos anteriormente, na nota 7.
36 Ver nota 26.
37 Ver as referências bibliográcas a seguir. Sobre possíveis ligações com a Índia, cf. ARKELL, A. J. 1951;
HOFMANN, I. 1975.
38 Para fontes documentais sobre a expedição de Nero, ver HINTZE, F. 1959 -a.
290
África Antiga
das termas de Méroe, dos bronzes de centenas de túmulos ou do magnífico lote
de artigos de vidro recentemente descoberto em Sedinga
39
.
As relações mais constantes mantidas por Méroe foram com o templo de
Ísis em Filas: regularmente enviavam -se embaixadas com ricos presentes ao
santuário da deusa, onde estão conservados numerosos grafitos em demótico, em
grego e em meroíta. Tais registros possibilitam estabelecer o único sincronismo
de um dos últimos reinos meroítas, o de Teqorideamani (+246 a +266), que
enviou embaixadores a Filas em +253. Sabe -se muito pouco acerca dos últimos
séculos de Méroe. O componente nativo toma -se cada vez mais importante na
cultura. Provavelmente não era fácil manter o controle das rotas de caravanas
entre o vale do Nilo, o mar Vermelho e a savana nilo -chadiana, base econômica
do império. As pirâmides reais tomaram -se progressivamente menores e mais
pobres, e a raridade dos objetos egípcios ou mediterrânicos indica um corte nas
influências externas causa ou consequência da decadência do reino.
Declínio e queda de Méroe
Os meroítas, que até então tinham rechaçado os ataques das tribos nômades,
tornaram -se uma presa tentadora para seus vizinhos os axumitas ao sul, os
nômades blêmios a leste e os Nubas a oeste. É quase certo que a este último
grupo mencionado pela primeira vez por Eratóstenes em -200 se deva à
queda do Império Meroíta, da qual temos apenas um testemunho indireto.
Por volta de +330, o reino de Axum, que se desenvolvera nos elevados
planaltos da Etiópia atual, chegara rapidamente ao ápice de seu poder; Ezana
40
,
o primeiro monarca a adotar o cristianismo, atingiu a confluência do Atbara
e se vangloriou de ter preparado uma expedição “contra os Nubas” que rendeu
muitas presas de guerra. De tudo isso pode -se concluir que o reino meroíta
havia ruído na época da campanha de Ezana. Desde então cessaram as inscrições
em meroíta, que provavelmente cedera lugar à língua ancestral do atual núbio.
Mesmo a cemica, embora tenha permanecido fiel à sua tradão milenar,
adquiriu novas características.
Alguns especialistas levantaram a hipótese de que a falia real cuxita
tenha fugido para o oeste, estabelecendo -se no Darfur, onde haveria traços
39 Cf. ORIENTALIA, 1971, 40 : 252 -5, il. XLIII -XLVII; LECLANT, J. 1973 -a. pp. 52 -68. 16 gs.;
LECLANT, J. ln: MICHALOWSKI, K., ed. 1975. pp. 85 -7. 19 gs .
40 KIRWAN, L. P. 1960. pp. 163 -73; HOFMANN, I. 1971 -b. pp. 342 -52.
291
O Império de Kush: Napata e Méroe
F . Artigo de vidro azul
pintado, de Sedinga. (Foto Museu de
Cartum.)
F . Coroa de Ballana.
(Fonte: W. B. Emery. ‘The Royal
Tombs of Ballana and Qustul”. Cairo,
1938. Foto Museu do Cairo.)
292
África Antiga
de sobrevincia de tradições meroítas
41
. Em todo caso, as explorões
nessas regiões e no sul do Sudão deverão permitir uma compreensão maior
de como as influências egípcias foram transmitidas para o interior da África
por intermédio de Méroe. Seguramente, a glória de Kush se reflete em certas
lendas da África central e ocidental. Entre os Sao, preserva -se a memória de
conhecimentos introduzidos por homens vindos do leste. Os conhecimentos
técnicos propagaram -se. Alguns povos, por exemplo, fundiam o bronze pelo
método da cire perdue, como no reino cuxita. Mas sobretudo e essa é uma
contribuição fundamental – parece ter sido graças a Méroe que a exploração do
ferro se difundiu no continente africano
42
.
Qualquer que seja a importância dessa penetração de influências meroítas
no restante da África, o papel de Kush não pode ser subestimado: durante mil
anos, primeiro em Napata e depois em Méroe, floresceu uma civilização muito
original que, sob a aparência razoavelmente constante de um estilo egípcio,
permaneceu profundamente africana.
A Núbia após a queda de Méroe: “Grupo X
Pode -se deduzir que os Nubas, provenientes do oeste ou do sudoeste, foram
os portadores da língua núbia, cujos ramos são ainda línguas vivas, tanto em
certas regiões montanhosas do Darfur como em diversas áreas da Alta e da
Baixa Núbia.
Como vimos, certos grupos nubas tinham -se instalado na parte sul do reino
meroíta. Em termos arqueológicos, são identifiveis pela cerâmica de tipo
bem africano. Suas sepulturas são tumuli, alguns dos quais foram escavados em
Tanqasi
43
, perto de Djebel Barkal e em Ushara; outros ainda estão por explorar,
principalmente ao longo da margem oeste do Nilo. Ao que parece, foi por volta
de +570 que o bispo monofisita Longino converteu estes Nubas ao cristianismo.
No norte, os remanescentes do reino meroíta parecem ter conhecido um
destino até certo ponto diferente. Com base na pesquisa de G. A. von Reisner,
em 1907, passou -se a designar a fase cultural posterior à queda de Méroe por
uma letra o Grupo X –, o que é uma franca confissão de ignorância. Essa
41 Em particular,
A.
J.
ARKELL
(1961. pp. 174 et seq.) apresentou essa hipótese, com base na existência
de ruínas e traços onomásticos. Contudo não parece ter ido além do campo da pura hipótese.
42 Ver nota 22, e as referências bibliográcas a seguir.
43 SHINNIE, P. L. 1954 -b; KIRWAN, L. P. 1957. pp. 37 -41.
293
O Império de Kush: Napata e Méroe
 . Sítios meroítas.
294
África Antiga
cultura estendeu -se por toda a Baixa Núbia, até Sai e Kawa no sul, em direção
à Terceira Catarata; nessa área, ela se desenvolveu durante o período que vai da
primeira metade do século IV até meados do VI, ou seja, até a introdução do
cristianismo e o rápido florescimento dos reinos cristãos da Núbia.
O luxo bárbaro dos régulos do Grupo X revelou -se no período de 1931 -3, quando
os arqulogos ingleses Emery e Kirwan escavaram em Ballana e Qustul
44
, a poucos
quilômetros ao sul de Abu Simbel, enormes túmulos, que J. L. Burckhardt,
pesquisador pioneiro e infatigável da Núbia, havia descoberto no início do
século anterior. Rodeado por suas esposas, servos e cavalos ricamente enfeitados,
o defunto repousa sobre uma liteira, como nos velhos tempos de Kerma. Seus
diademas pesados e braceletes de prata enfeitados com pedras coloridas lembram
em riqueza o Egito ou Méroe, como a cabeça de carneiro de Âmon sustentando
uma enorme coroa atef ou as franjas de uraei ou ainda o busto de Ísis. As
influências alexandrinas são muito evidentes nos tesouros de prataria que cobrem
o assoalho: entre os jarros, xícaras e pátenas, uma placa mostrando Hermes
sentado sobre um globo, com um grifo ao lado; também grandes lâmpadas
de bronze e uma arca de madeira incrustada com almofadas em marfim gravado.
Mas a cerâmica é ainda do tipo meroíta tradicional, persistindo assim, através
dos milênios, as qualidades de uma técnica genuinamente núbia.
Nobatas ou Blêmios
Quais foram as populações do Grupo X: Nobatas ou Blêmios? Os Blêmios
45
eram nômades belicosos, geralmente identificados com as tribos bedja do deserto
oriental. Quanto aos Nobadas ou Nobatas, após muitas controvérsias, foram
reconhecidos como Nubas; o autor inclina -se a considerá -los os senhores de
Ballana e de Qustul. Para nós, em todo caso, Blêmios e Nobatas são apenas
nomes, parecendo -nos preferível usar a expressão “Grupo X” ou cultura ballana”.
Antigos testemunhos literários e documentos epigráficos permitem
estabelecer as principais linhas históricas. O historiador Procópio afirma que,
no final do século III, quando o imperador romano Diocleciano fez retroceder
a fronteira até a Primeira Catarata, levou os Nobatas a deixarem a região dos
oásis e a se instalarem no Nilo, contando com sua ajuda para colocar o Egito
ao abrigo das incursões dos Blêmios. Na realidade, sob Teodósio, por volta de
44 Ver referência bibliográca a seguir, e especialmente EMERY, W. B. & KIRWAN, L. P. 1938.
45 CASTIGLIONE, L. 1970. pp. 90 -103.
295
O Império de Kush: Napata e Méroe
+450, Filas foi atacada pelos Blêmios e pelos Nobatas, que foram rechaçados
pelas forças comandadas por Máximo e em seguida pelo prefeito Floro.
Com o advento do cristianismo, esses povos foram autorizados a manter
suas visitas ao santuário de Ísis em Filas e, por ocasião de certas festividades
importantes, tinham licença para tomar emprestada a estátua da deusa. Qasr
Ibrim pode ter sido um dos pontos de parada dessa peregrinação, visto que
se encontrou o que parece ter sido uma estatueta de Ísis em louça pintada. O
templo de Filas foi fechado somente sob Justiniano, entre +535 e +537, quando
seu general Narses expulsa os últimos sacerdotes.
Na mesma época teve início a evangelização da Núbia. A acreditar em João
de Éfeso, os ortodoxos melquitas, enviados do imperador, foram afastados pelo
missionário monofisita Juliano, apoiado pela imperatriz Teodora. Em +543,
ele conseguiu converter o rei dos Nobatas. Numa inscrição em grego bárbaro,
infelizmente sem data, do templo de Kalabsha, o rei nobata Silko vangloria -se
de, graças à ajuda de Deus, ter conquistado os Blêmios, que então desapareceram
da História.
C A P Í T U L O 1 1
297
A civilização de Napata e Méroe
Organização Política
O caráter da realeza
A característica mais notável do poder político na Núbia e no Sudão central,
desde o século VIII antes da Era Cristã até o século IV da Era Cristã parece
ter sido a sua extraordinária estabilidade e continuidade. Ao contrário de vários
reinos antigos, o país escapou das convulsões que acompanham as mudanças
dinásticas violentas. Pode -se dizer que, essencialmente, a mesma linhagem real
governou sem interrupção, seguindo as mesmas tradições.
Até época recente, a teoria mais divulgada era a de que a dinastia de Napata
era de origem estrangeira, líbia
1
ou egípcia, neste último caso oriunda dos sumos
sacerdotes de Tebas
2
. Mas os argumentos em que tais teorias se baseiam são
fracos, e a maior parte dos especialistas modernos tende a considerar que a
dinastia é autóctone
3
. Além das características físicas registradas nas estátuas
1 REISNER, G. A. von. 1918 -9. pp. 41 -4; id. 1923 -b. pp. 61 -4; e vários outros textos de sua autoria; cf.
também GRIFFITH, F. L. 1917. p. 27.
2 MASPERO, G. 1895. p. 169; MEYER, E. 1931. p. 52; CURTO, S. 1965.
3 Um relato da controvérsia é dado por DIXON, D. M. M. 1964. pp. 121 -32
A civilização de Napata e Méroe
A. M. Ali Hakem colaboração de I. Hrbek e J. Vercoutter
298
África Antiga
dos reis
4
, vários outros traços o sistema de eleição, o papel das rainhas -mães,
os costumes funerários e outras indicações sugerem claramente a existência de
uma cultura e de uma origem indígenas, livres de influências externas.
A análise de muitas dessas características permite chegar a conclusões válidas
sobre o caráter e a natureza da estrutura política e social do Império de Kush.
Um dos aspectos peculiares do sistema político meroíta era a escolha do
soberano por eleição. Autores clássicos desde Heródoto (século V antes da Era
Cristã) até Diodoro da Sicília (século I antes da Era Cristã), em seus relatos sobre
os “etíopes”, como eram geralmente denominados naquela época os habitantes
do Império de Kush, mostram -se surpresos com essa prática, tão diferente da
adotada em outros reinos da Antiguidade. Eles se referem especialmente à
escolha oracular do novo rei; Diodoro afirma que:
“Os sacerdotes selecionam previamente os melhores dentre os candidatos e, dos que
são convocados, o povo elege rei aquele que o deus escolhe enquanto é transportado
em procissão... A partir daquele momento, ele é tratado e reverenciado como um
deus, uma vez que o reino lhe foi confiado pela vontade divina”
5
.
Nessa passagem, Diodoro limita -se a descrever com certeza baseando -se
em fontes orais – a cerimônia convencional de instauração de um novo reinado,
que incorporava símbolos religiosos. Contudo, tanto ele quanto seus informantes
desconheciam os mecanismos da escolha propriamente dita.
Felizmente, é possível reconstituir os procedimentos da sucessão com base
nas inscrições de Napata, que narram minuciosamente as cerinias de escolha
e coroação. As mais antigas referem -se ao rei Peye (Piankhy) (-751 a -716) e as
mais recentes a Nastasen (-335 a -310). É posvel que haja inscrições sobre a
coroação posteriores a essas datas, mas nesse caso a escrita e a língua utilizadaso
meroítas, ainda indecifradas e, portanto, sem utilidade para s. Desse modo, as
inscrões de Napata sobre a coroação o a melhor fonte para a compreeno das
instituições poticas, em particular das características da realeza e outras instituições
a ela relacionadas. Embora escritos no estilo dos hieróglifos egípcios da época,
tais documentos diferem grandemente das inscrições similares comuns no Novo
Império; seo, pois, considerados como um produto de sua própria cultura
6
.
4 Cf. LECLANT, J. 1976 -b.
5 DIODORO DA SICÍLIA. III, 5; DESANGES, J. 1968. p. 90.
6 Sobre a Estela da Conquista de Peye e a Estela do Sonho de Tanwetamane, ver BREASTED, J. H.
1906. pp. 406 -73. A Estela de Taharqa, as estelas do Rei Anlarnani e a Grande Inscrição do Rei
Amannateieriko foram traduzidas por MACADAM, M. F. L. 1949. v. 1, pp. 4 -80. Sobre a Estela da
Eleição de Aspelta, a Estela da Dedicação da Rainha Madiqen, a Estela da Excomunhão do Rei Aspelta,
os Anais de Harsiotef e os Anais do Rei Nastasen, ver BUDGE, E. A. T. WALLIS. 1912.
299
A civilização de Napata e Méroe
Dentre essas inscrições, as três mais recentes de Amannateieriko (-431
a -405), Harsiotef (-404 a -369) e Nastasen (-335 a -310) mostram que os
reis procuravam cumprir com rigor as práticas tradicionais e explicitar a sua
fidelidade às tradições e costumes dos ancestrais. Ao mesmo tempo, fornecem
mais detalhes que as inscrições anteriores, embora a linguagem empregada seja
de difícil compreensão. É possível observar uma grande homogeneidade no
conteúdo e, por vezes, até mesmo na fraseologia. É assim que, nos três casos, se
descreve o rei, antes de sua nomeação, vivendo entre os outros “Irmãos Reais”
em Méroe. Primeiro, é nomeado rei em Méroe; em seguida, viaja até Napata,
ao norte, onde se realizam as cerimônias. De fato, Amannateieriko afirma
categoricamente que foi eleito rei pelos chefes de seus exércitos aos 41 anos e
que empreendera uma campanha militar antes de poder dirigir -se a Napata para
a coroação. Chegando a essa cidade, apresentou -se ao palácio real, onde recebeu
a coroa de Ta -Séti como confirmação adicional de sua ascensão ao trono. Em
seguida, entrou no templo para a realização da cerimônia em que solicitou ao
deus (dirigindo -se à sua estátua ou ao santuário) que lhe concedesse a realeza,
a que o deus acedeu, como simples formalidade.
As inscrições mais antigas comprovam que a sucessão ao trono era decidida
antes que o rei ingressasse no templo. A sucessão de Taharqa (-689 a -664),
por exemplo, foi decidida por Shebitku (-701 a -689), que residia em Mênfis,
no Egito. Escolhido entre seus Irmãos Reais” para ocupar o trono, Taharqa
empreendeu uma viagem para o norte, passando certamente por Napata, e
prestou homenagens em Gemáton (Kawa) antes de chegar a Tebas
7
.
O relato das cerimônias, de acordo com a estela do rei Tanwetamani (-664
a -653), revela que este residia fora de Napata, talvez entre seus Irmãos Reais”,
com sua mãe Qalhata. Proclamado rei, dirigiu -se para o norte, em procissão,
passando por Napata, Elefantina e Carnac. Assim, é provável que o lugar de onde
partiu a procissão ficasse ao sul de Napata, ou seja, Méroe. Consequentemente,
a sucessão foi decidida fora de Napata, conforme o costume. Anlamani (-623 a
-593) descreve em termos semelhantes os episódios das festas de coroação em
Gemáton (onde foi descoberta a estela) e acrescenta ter trazido sua mãe para
assistir às cerimônias, como fizera Taharqa antes dele
8
.
Em sua famosa estela, Aspelta (-593 a -568) mais detalhes sobre a
cerimônia de coroação. Ele confirma que sucedeu a seu irmão Anlamani e que foi
escolhido entre seus Irmãos Reais” por um grupo de 24 altos funcionários civis
7 MACADAM, M. F. L. 1949. v. 1.
8 MACADAM, M. F. L. 1949. p. 46.
300
África Antiga
e chefes militares. Para justificar suas pretensões ao trono, Aspelta invoca não
a vontade do deus Âmon -Rá como também a sua própria origem (afirmando,
assim, o direito hereditário de sucessão através da linhagem feminina). Portanto,
é evidente que, apesar das longas ações de graças ao deus Âmon -Rá, o papel do
clero era limitado. Aspelta também dá detalhes mais precisos sobre sua entrada
no templo, onde encontra os cetros e as coroas de seus predecessores e recebe a
coroa de seu irmão Anlamani. O relato é semelhante aos de Amannateieriko e
Nastasen, mencionados acima.
Algumas conclusões importantes podem ser extraídas dessas inscrições. Uma
delas é que a viagem para o norte, durante a qual vários templos eram visitados,
era parte importante da cerimônia de coroação. Outra é que o templo de Âmon
em Napata tinha um papel especial na cerimônia e que sua importância era
incontestável. Tais conclusões têm uma relação direta com a teoria de G. A. von
Reisner, relativa à existência de dois reinos de Napata independentes, retomada
recentemente por Hintze
9
.
A teoria proposta por G. A. von Reisner pretendia explicar a distribuição das
sepulturas reais. Ele partia do postulado de que a localização dessas sepulturas
estava diretamente ligada à capital: o rei devia ser enterrado num lugar próximo
à residência real. Assim, o cemitério real de el -Kurru, o mais antigo, e o
cemitério de Nuri, que o sucedeu, foram utilizados pelos reis até a época de
Nastasen, quando a capital era Napata. Após o reinado de Nastasen, a capital
foi transferida para Méroe (por volta de -300), e os cemitérios de Begrawiya
sul e norte tomaram -se cemitérios reais. Em Djebel Barkal (Napata) existem
dois grupos de pirâmides; considerações arqueológicas e arquitetônicas levaram
Reisner a sugerir que o primeiro grupo é imediatamente posterior a Nastasen e
que o segundo data do século I antes da Era Cristã, tendo sido destruído quando
os romanos invadiram Napata, em -23 ou logo depois.
Cada grupo era ligado a um ramo da família real que governava em Napata,
independentemente da família reinante principal instalada em Méroe
10
.
Contudo, a maior parte dos especialistas abandonou a hipótese da divisão do
reino
11
; um estudo detalhado dos procedimentos de sucessão e das cerimônias
de coroão mostra que a hitese de Reisner é insustentável. De fato, é
inconcebível que um soberano fosse proclamado rei em sua capital e em seguida
tivesse que se dirigir à capital de um reino independente para ser coroado,
9 HINTZE. F. 1971 -b.
10 REISNER, G. A. von. 1923 -b. pp. 34 -77.
11 WENIG, S. 1967. pp. 9 -27.
301
A civilização de Napata e Méroe
. Carneiro de
granito em Naga. (Fonte: W. S.
Shinnie. “Meroe, a Civilization of
the Sudan”. 1967. (Foto Oriental
Institute, Univ. of Chicago.)
F . Pirâmide do rei
Natakamani em Méroe, com
rnas de capela e pilono em
primeiro plano. (Fonte: W. S.
Shinnie. 1967. Foto Oriental
Institute, Univ. of Chicago.)
302
África Antiga
particularmente quando esta é a sede de um país insignificante, como sugere a
hipótese de Reisner. Por outro lado, não há nenhuma prova de que a cerimônia
foi abandonada, uma vez que autores gregos confirmam a sua existência durante
os séculos III e II antes da Era Cristã como indicou Bíon
12
, e durante o século
I antes da Era cristã, conforme o relato de Diodoro da Sicília. Contudo, pode-
-se afirmar com segurança que Napata desempenhou um papel importante no
reino meroíta: os reis empreendiam uma viagem até esta cidade para receber
as insígnias de soberano, de acordo com uma tradição estabelecida, e por vezes
eram enterrados.
Uma análise de todos os textos relevantes mostra que o cargo de rei era
hereditário por linhagem real, ao contrário do sistema faraônico ou de qualquer
outro sistema oriental antigo, em que normalmente o filho sucedia ao pai. Em
Napata e Méroe o rei era escolhido entre seus “Iros Reais”, e a iniciativa de
escolha do novo soberano partia dos chefes militares, dos altos funcionários
e/ou dos chefes de clã. Todo pretendente impopular entre esses grupos ou de
capacidade duvidosa poderia perfeitamente ser excluído. A confirmação oracular
era simplesmente a ratificação formal de uma escolha prévia e tinha mais um
caráter simbólico, destinado a persuadir o público de que o próprio deus tinha
elegido o novo soberano. Além disso, pode -se afirmar com segurança que em
teoria a coroa devia passar para os irmãos do rei antes de ser entregue à geração
seguinte: dentre 27 reis que governaram antes de Nastasen, quatorze eram
irmãos dos reis precedentes. Naturalmente, havia exceções: um rei podia usurpar
o trono; em tais casos, no entanto, ele procurava justificar e legalizar seu ato.
também alguns sinais de que o direito ao trono poderia depender mais das
pretensões fundadas na descendência materna que na paterna. Muitas, inscrições
testemunham o papel da rainha -mãe na escolha de um novo rei, e algumas
características desse costume são semelhantes às observadas em reinos e chefias
de várias partes da África
13
.
Todas as cerimônias de coroação indicam o caráter sagrado de que se revestia
a realeza em Napata e Méroe: o rei era considerado filho adotivo de diversas
divindades. Não se sabe até que ponto ele mesmo se considerava uma divindade
ou sua encarnação; seja como for, eram os deuses que o guiavam que o
haviam escolhido por intermédio dos preceitos do direito consuetudinário.
12 BÍON é autor de vários tratados sobre geograa e história natural, dos quais são conhecidos poucos
fragmentos através de diferentes autores da Antiguidade. PLÍNIO, o Antigo, menciona particularmente
em sua História Natural, livro VI, uma lista de cidades ao longo do Nilo elaborada por Bíon.
13 Por exemplo, em Kaa, Ankola, entre os Shilluk, em Monomotapa e outros lugares.
303
A civilização de Napata e Méroe
Observa -se nessa prática um conceito bastante elaborado o rei, designado
por vontade divina, dispensa julgamento e justiça conforme a vontade do deus
(ou deuses) que constitui a essência de todas as realezas absolutas, antigas
e modernas. Embora em teoria seu poder fosse absoluto e indivisível, o rei
tinha que governar rigorosamente de acordo com o direito Consuetudinário;
além disso, tinha sua ação limitada por inúmeros tabus. Estrabão e Diodoro da
Sicília citam casos em que os sacerdotes, alegando terem recebido instruções
divinas, ordenavam ao rei que cometesse suicídio
14
. Afirmam que tal costume
persistiu até a época de Ergamenes (cerca de -250 a -215), que, tendo recebido
uma educação grega que o havia libertado das superstições, mandou executar
os principais sacerdotes para puni -los por sua arrogância; após esse episódio, o
costume de suicídio real foi abolido
15
.
Os soberanos de Napata e Méroe usavam nas inscrições os títulos faraônicos
tradicionais, e no enunciado de seus títulos não se encontra a palavra meroíta
correspondente a rei”. Esse título, Kwr (-se qere, qer ou queren), aparece apenas
no relato de Psamético II sobre a conquista de Kush, quando menciona o rei
Aspelta
16
. Embora esse título fosse possivelmente a forma habitual de se dirigir.
aos soberanos cuxitas, não se permitiu a sua inscrição nos monumentos de Kush.
A candace: o papel da rainha -mãe
Não está claro qual o papel exato das mulheres de sangue real nos períodos
anteriores, mas muitas indicações de que ocupavam posições proeminentes
e cargos importantes no reino. Quando o Egito se encontrava sob a dominação
cuxita, a função de grande sacerdotisa (Dewat Neter) do deus Âmon em Tebas
era exercida pela filha do rei, o que lhe conferia grande influência econômica e
política. Mesmo após a extinção do cargo, em consequência da perda do Egito,
as mulheres da família real continuaram a ocupar altas posições e a exercer um
poder considerável sobre o clero do templo de Âmon em Napata e em outros
lugares.
O importante papel da rainha -mãe nas cerimônias de eleição e coroação de
seu filho é mencionado por Taharqa e Anlamani, de modo a não deixar dúvidas
14 ESTRABÃO. XVII, 2, 3; DIODORO DA SICÍLIA. III, 6.
15 DIODORO, loc. cit., assinala que o sacrifício ritual dos reis sob a ordem dos sacerdotes ou notáveis são
frequentes na África. Cf. FROBENIUS, L. 1931.
16 S. SAUNERON e J. YOYOTTE (1952, pp. 157 -207) reconheceram pela primeira vez kwr como o
título meroíta para rei”. A palavra moderna Alur ker, a qualidade de chefe”, provavelmente se relaciona
etimologicamente com a palavra meroíta. Cf. HAYCOCK, B. G. 1954. p. 471, n. 34.
304
África Antiga
acerca de sua influência decisiva e de seu status específico. Muito importante
também era a sua participação em um complicado sistema de adoção, pelo
qual a rainha -mãe, designada pelo título Senhora de Kush, adotava a esposa do
filho. Assim, Nasalsa adotou Madiqen, esposa de Anlamani, que logo morreu;
este foi sucedido pelo irmão Aspelta, cuja esposa Hennutskhabit foi adotada
por Nasalsa e Madiqen. Na estela de Nastasen (-335 a -310) a cena superior
mostra sua mãe, Pelekha, e a esposa Sakhakh, ambas empunhando um sistro, que
parece ter sido o símbolo do cargo que ocupavam. A inscrição de Anlamani diz
que esse rei consagrou quatro de suas irmãs aos quatro templos de Amon, para
desempenharem a função de tocadoras de sistro e rezarem por ele.
A iconografia confirma o elevado status das rainhas -mães. Nas cenas religiosas
representadas nas paredes dos templos elas ocupam posições proeminentes,
subordinadas apenas ao próprio rei, enquanto nas cenas que ornam as capelas das
pirâmides a rainha aparece, por trás do rei falecido, como a principal portadora
de oferendas.
Posteriormente, as rainhas – mães ou esposas passaram a assumir o poder
político e proclamaram -se soberanas, chegando a adotar o título real de “Filho
de Rá, Senhor das Duas Terras” (sa Ra, neb Tawy) ou “Filho de Rá e Rei (sa Ra,
nswbit)
17
, Muitas delas tornaram -se famosas, e no período greco -romano Méroe
era conhecida por ter sido governada por uma linhagem de Candaces, Kandake,
ou rainhas -mães reinantes. Esse título deriva da palavra meroíta Ktke ou Kdke
18
e significa rainha -mãe. O outro título, qere (“chefe”), não foi utilizado até o
surgimento da escrita meroíta. Na realidade, conhecemos apenas quatro rainhas
que o utilizaram: Amanirenas, Amanishaketo, Nawidemak e Maleqereabar,
todas, por definição, candaces
19
. É interessante notar que as sepulturas reais
de Nuri, de Taharqa (cerca de -664) a Nastasen (cerca de -310) não fornecem
nenhum indício do sepultamento de uma rainha como monarca reinante; a
conclusão a se extrair é que durante o período não houve rainha governante.
A rainha mais antiga de que se tem provas é Shanakdakhete, do início
do século II antes da Era Cristã, a quem foi concedida uma sepultura real
em Begrawiya norte. É mais provável que, de início, o título e o cargo não
significassem mais que rainha -mãe. Nesse caso, sua função era educar as crianças
reais, conforme se depreende da estela de Taharqa; este menciona ter ficado
com sua mãe, a rainha Abar, até a idade de 21 anos, vivendo com seus irmãos
17 HINTZE, F. 1959 -a. pp. 36 -9.
18 O n é frequentemente suprimido nos nomes próprios meroítas. Cf. GRIFFITH, F. L. 1911 -2. p. 55.
19 MACADAM, M. F. L. 1966.
305
A civilização de Napata e Méroe
reais “esses jovens de essência divina – entre os quais era escolhido o herdeiro
do trono. A rainha -mãe dispunha, assim, de grande poder e influência, como
testemunha o papel especial que desempenhava na cerimônia de coroação e na
adoção da nora. A certa altura as rainhas devem ter superado em importância
seus filhos ou maridos, e, num momento oportuno, assumido a totalidade
do poder. A partir de Shanakdakhete, o governo é exercido por uma série de
rainhas, mas, sob Amanirenas, no século I antes da Era Cristã, indícios de
modificações. Trata -se da estreita associação da primeira esposa do rei com
seu filho primogênito (?), observável em vários monumentos importantes. Isto
sugere um certo grau de co rregência,que a esposa que sobrevivesse ao marido
frequentemente se tomava a candace governante. Contudo, esse sistema não
durou mais que três gerações e parece ter chegado ao fim após Natakamani,
Amanitere e Sherakarer, na primeira metade do século I da Era Cristã. Tudo
isso indica a evolução interna de uma instituição local que não era cópia de
uma prática estrangeira, como a dos ptolomeus no Egito, de que Cleópatra é
um exemplo. Na verdade, podemos observar que essas instituições, no decorrer
dos séculos, se revestiram de uma complexidade crescente.
O sistema de realeza que se desenvolveu em Kush tinha algumas vantagens
em relação ao sistema rígido de sucessão direta, pois eliminava o perigo de um
sucessor indesejável, quer se tratasse de um rei na minoridade, quer de uma
personalidade impopular. A incorporação de novos membros à família real era
assegurada pelo sistema de adoção, enquanto os vários contrapesos e controles a
ele inerentes, bem como a proeminência da rainha -mãe e a importância atribuída
à legitimidade da descendência, garantiam a sua continuidade no poder. Esses
fatores podem ter contribuído para a continuidade e a estabilidade de que se
beneficiaram Napata e Méroe durante tantos séculos.
Administração central e provincial
O nosso conhecimento da estrutura administrativa central e provincial
ainda é incompleto e fragmentário, dada a ausência de documentos de natureza
biográfica relativos a pessoas privadas. Esses documentos poderiam fornecer
informações acerca de títulos e cargos, sua significação e funções respectivas.
No centro da administração estava o rei, autocrata absoluto de quem
emanavam as leis e que não delegava seu poder a outrem nem o dividia. De
fato, não havia um único administrador que concentrasse poderes em suas
mãos, como o fazia, por exemplo, um sumo sacerdote (para os templos) ou
um vizir. A residência real constituía o centro do sistema administrativo e,
306
África Antiga
segundo pesquisas recentes
20
, Méroe parece ser a única cidade que se pode
considerar como sede principal da realeza e centro da administração. Peye não
fornece informações precisas quanto à localização de sua residência, embora
seja evidente que Mênfis foi a capital de seus sucessores imediatos da XXV
dinastia do Egito. Taharqa indica claramente que vivia entre seus Irmãos
Reais”, com sua mãe; de acordo com outras inscrições, pode -se ter certeza de
que esses Irmãos Reais” residiam em Méroe. A esse respeito, é notável que
seja apenas em Méroe, e particularmente no cemitério de Begrawiya oeste, que
se encontrem sepulturas de crianças (entre as quais recém -nascidos) contendo
objetos funerários que indicam terem elas vivido na corte real. uma clara
ausência de sepulturas similares nos cemitérios reais de el -Kurru e Nuri, do
que se pode concluir que a família real estava fixada em Méroe, provavelmente
residência permanente do rei.
A administração central era dirigida por um certo número de altos funcionários,
cujos títulos egípcios estão preservados em duas estelas de Aspelta. Entre esses
títulos encontramos sem levar em conta os comandantes militares chefes
de tesouro, guardiães dos selos, chefes de arquivo, chefes de celeiro, o escriba-
mor de Kush e outros escribas
21
. É difícil afirmar se os títulos correspondiam
às funções reais de seus titulares, ou apenas refletiam os modelos egípcios. De
qualquer maneira, tais funcionários desempenhavam um papel importante na
eleição do novo rei, assim como na administração do reino. Talvez a decifração
da escrita meroíta venha esclarecer essa importante questão.
Nessas inscrições, os chefes militares aparecem várias vezes em situações
críticas. Eles eram incumbidos de proclamar a sucessão do novo rei e de efetuar
as cerimônias tradicionais de coroação; podem ter desempenhado um papel
significativo na escolha do sucessor. Muito provavelmente, a maioria dos chefes
militares pertencia à família real – talvez fossem príncipes de elevada posição
22
.
Segundo o costume, o rei não deveria ir à batalha, mas permanecer em seu
palácio, sendo o comando da guerra atribuído a um de seus generais; tal ocorreu
na campanha de Peye no Egito, na guerra de Amannateieriko contra os Reherehas
em Butana e na campanha de Nastasen. Contudo, não sabemos o que aconteceu
aos generais; mesmo após uma campanha bem -sucedida eram relegados a um
segundo plano e o rei colhia todas as honras da vitória.
20 ALI HAKEM, A. M. 1972 -a, p. 30 et seq.
21 STEINDORFF, G. von. 1903. v. 3; SCHÄFER, H. 1905 -8. pp. 86, 103 -4.
22 BUDGE, E. A. T. WALLIS. 1912. p. 105. et seq.
307
A civilização de Napata e Méroe
 . Placa de arenito representando o
príncipe Arikankharor massacrando seus inimi-
gos (possivelmente do século II da Era Cristã).
(Fonte: W. S. Shinnie. 1967. pr. 33. Foto Worces-
ter Art Museum, Mass.)
F . Rei Arnekhamani (templo dos
leões em Mussawarat es -Sufra). (Fonte: F. & U.
Hintze.Alte Kulturen im Sudan”. 1966. pr. 91.)
308
África Antiga
No tocante à administrão das proncias menciona -se a existência de
palácios reais em rias localidades, sendo que cada palácio constituía uma
pequena unidade administrativa, dirigida, talvez, por um chanceler que
administrava as contas e as compras da residência
23
.
Contudo, para o período mais recente a partir do fim do século I antes da Era
Cristã – dispõe -se de um número suficiente de documentos de administradores
provinciais para se reconstituir pelo menos um esboço da província setentrional
do reino. Esta parece ter -se desenvolvido muito rapidamente em resposta às
condições de instabilidade resultantes da conquista do Egito pelos romanos
e de sua fracassada tentativa de avançar para a Núbia, mais ao sul. Criou -se
uma administração especial para a Baixa Núbia visando enfrentar a situação na
fronteira; na sua direção estava o Paqar (pqr), uma das principais personagens da
corte, que talvez fosse o príncipe herdeiro, que o título foi usado pela primeira
vez por Akinidad, filho de Teritiqas e Amanirenas, adversários dos romanos na
Núbia. Arikankharor, Arikakhatani e Sherakarer (os reis das pinturas rupestres
do Djebel Qeili)
24
e os três filhos de Natakamani e Amanitere (-12 a +12)
também usaram o mesmo título. Seus nomes, acompanhados da palavra pqr,
foram encontrados nas inscrições de Napata, Méroe e Naga
25
; contudo, nenhum
estava associado à Baixa bia, e o termo parece ter sido uma designação
genérica para os príncipes, e não um título específico para o vice -rei do norte.
Todavia, o título Paqar é muitas vezes mencionado juntamente com outros
títulos menos importantes, como taraheb e anhararab da pequena cidade de
Taketer, ou harapen, chefe da região de Faras
26
, donde se deduz que o seu
detentor era o chefe provincial da Baixa Núbia meroíta. Sob a autoridade do
Paqar, o principal funcionário encarregado da administração era o peshte
27
, título
registrado pela primeira vez no século I antes da Era Cristã e que parece tornar-
-se mais importante durante o século III da Era Cristã.
A área sob a jurisdição do peshte era Akin, isto é, toda a Núbia meroíta
até Napata, ao sul. Não se sabe ao certo como se atingia a posição de peshte
por hereditariedade, decreto real ou nomeação pelo Paqar. Contudo, o grande
número de portadores desse título indica que ocupavam suas funções por um
23 MACADAM, M. F. L. 1949. v. 1, p. 58.
24 HINTZE, F. 1959 -a. pp. 189 -92.
25 ARKELL, A. J. 1961. p. 163.
26 GRIFFITH, F. L. 1911 -2. p. 62.
27 GRIFFITH, F. L. 1911 -2. p. 120 e Índice. Corresponde ao egípcio p. s. nsw, psente; MACADAM,
M. F. L. 1950. pp. 45 -6.
309
A civilização de Napata e Méroe
período de tempo muito curto. Ao título de peshte estavam associados outros,
por vezes designativos de elevadas posições na hierarquia religiosa, não só local
como também de Napata ou de Méroe. Dois outros importantes dependentes
do peshte eram o pelmés -at (general da água) e o pelmés -adab (general da terra),
os quais, ao que parece, ocupavam -se da supervisão dos escassos porém vitais
sistemas de comunicações da Núbia, por terra e por água, procurando assegurar
o fluxo de comércio com o Egito, controlar as fronteiras e deter os perigosos
movimentos dos nômades a leste e a oeste do Nilo. Esses funcionários eram
auxiliados por escribas, sacerdotes e administradores locais. Não sabemos se
existiu em outras províncias um sistema semelhante de administração provincial.
Pode -se afirmar, porém, que as condições específicas de vida e povoamento no
Butana exigiam um tipo de administração diferente do utilizado na Baixa Núbia
ao longo do vale do Nilo. Infelizmente, não possuímos outros documentos além
dos imponentes templos, os quais, além de desempenhar suas funções religiosas,
devem ter constituído uma base sólida para unidades administrativas.
Em seu apogeu, o reino meroíta era tão vasto e os meios de comunicação
provavelmente tão pobres, que uma descentralização do poder em favor dos
governadores provinciais deve ter sido indispensável ao bom funcionamento da
administração. Os chefes de vários grupos étnicos instalados nas fronteiras do
reino mantinham relações muito menos estreitas com o governo central. Em
períodos mais recentes, o Estado abrangia vários principados; Plínio escreve que
na “ilha de Méroe” reinaram 45 reis etíopes
28
(sem considerar as candaces), e
outros autores clássicos falam dos tyrannoi, vassalos dos reis meroítas
29
.
Ao sul de roe estavam instalados os Simbriti, refugiados de origem
supostamente egípcia governados por uma rainha colocada sob a soberania
meroíta, ao passo que na margem esquerda do Nilo (no Kordofan) viviam
numerosos grupos de Nubai chefiados por diferentes principículos que se
mantinham independentes de Méroe
30
. Situação semelhante parece ter existido
no deserto oriental, habitado por vários grupos nômades diferentes dos meroítas
quanto à língua e à cultura.
Como indicam numerosas inscrições, os reis meroítas frequentemente
empreendiam expedições militares contra esses grupos étnicos independentes
ou semi -independentes, seja para subjugá -los, como represália às incursões, seja
visando a obtenção de butim (gado e escravos). Os povos mais citados eram os
28 PLÍNIO. 186.
29 Cf.ON eCOLAS DE DAMASCO. In: MULLER, C., ed. v. 3, p. 463; v.4, p. 351;NECA. VI, 8, 3.
30 ESTRABÃO. XVII, 1, 2, citando ERATÓSTENES.
310
África Antiga
Reheres e os Majai, que provavelmente viviam entre o Nilo e o mar Vermelho e
podem ter sido os ancestrais dos Beja.
Esses diferentes indícios mostram que Kush não era um Estado centralizado
e que, durante o período mais recente, compreendia diversos principados, os
quais se colocavam sob a dependência dos reis meroítas
31
.
Vida Econômica e Social
Ecologia
O reino de Kush contava com uma ampla e variada base de atividades
econômicas, correspondente à diversidade geográfica de seu território. Este
se estendia da Baixa Núbia ao sul de Sennar e à região de Djebel Moya na
planície meridional de Gezira; compreendia também extensas áreas entre o
vale do Nilo e o mar Vermelho. Amplas regiões a oeste do Nilo de extensão
ainda desconhecida estavam provavelmente sob influência meroíta. Esse vasto
território varia de zonas áridas até regiões que recebem quantidades consideráveis
de chuvas no verão. Na Núbia, a atividade econômica baseava -se na agricultura
característica do vale do Nilo, onde o rio é a única fonte de água. A terra arável,
que em certas regiões está ausente ou se reduz a uma faixa estreita, estende -se em
amplas bacias em alguns locais da Alta Núbia. O cultivo ribeirinho prolonga -se
ao sul, ao longo das margens do Nilo e seus tributários. A situação geográfica da
Baixa Núbia influenciou diretamente a vida política e socio econômica; trabalhos
arqueológicos recentes revelaram que no passado os níveis do Nilo eram baixos e,
dado que a Núbia se situava fora da zona de chuva, suas condições ecológicas não
eram adequadas ao desenvolvimento de uma agricultura que pudesse sustentar
uma população considerável. a hipótese de que, durante o período inicial
de Napata, a Baixa Núbia esteve totalmente despovoada por muito tempo; foi
apenas a partir do século III ou II antes da Era Cristã que a região se repovoou,
graças à introdução da saqia
32
.
Na Alta Núbia, as planícies de inundação tais como as bacias de Kerma,
Letti e Nuri, cultiváveis graças às enchentes do Nilo ou, na ausência destas, ao
uso de dispositivos de elevação de água permitiram o desenvolvimento de
grandes centros urbanos de considerável importância histórica, como em Barkal,
31 Mesmo no período de Napata, o Império Cuxita tinha um caráter federativo. Cf. Cap. 10.
32 TRIGGER, B. 1965. p. 123.
311
A civilização de Napata e Méroe
Kawa, Tabo, Soleb, Amara, etc. Nessa área, a economia agrária desempenhou
um papel mais importante; as plantações de tâmaras e videiras, sobretudo, são
mencionadas com frequência nas inscrições de Taharqa, Harsiotef e Nastasen.
Contudo, a partir da metade do século V antes da Era Cristã, a região passou
por vários períodos de seca e de extensão da zona desértica, ligados às mudanças
ecológicas que reduziram a área das pastagens do interior. Tais condições podem
ter induzido os nômades do deserto oriental a se dirigirem para o vale do Nilo,
onde entraram em conflito com a população local. Talvez tenha sido essa a
razão das guerras que se estenderam até o norte de Méroe durante o reino de
Amannateieriko (-431 a -404) e dos reis subsequentes. Esses acontecimentos
fizeram com que a Alta Núbia perdesse muito de sua importância durante os
últimos séculos da monarquia meroíta.
A partir da confluência do Atbara com o Nilo, que se estende para o sul,
esse último deixa de ser a única rota a atravessar o deserto. Cada um dos
afluentes do Nilo (o Atbara, o Nilo, o Nilo Branco, o Dinder, o Rahad, etc.)
torna -se igualmente importante e oferece as mesmas possibilidades agrícolas
e econômicas, o que torna possível a extensão da área de cultivo. Além disso,
a região situada entre os afluentes recebe uma quantidade apreciável de chuva
durante o verão, que a torna propícia à atividade agropastoril. De fato, o Butana
(isto é, a ilha de Méroe, situada entre o Atbara, o Nilo e o Nilo Branco) era o
coração do reino meroíta, e o pastoreio nômade ou seminômade constituía a
principal atividade econômica da região.
Agricultura e criação de animais
Na época da ascensão do reino de Napata, a criação de animais possuía
uma tradição milenar e, juntamente com a agricultura, representava a principal
fonte de subsistência da população. Além do gado de chifres longos e curtos, a
população criava carneiros, cabras e, em menor escala, cavalos
33
e burros, utilizados
como animais de carga. Os camelos foram introduzidos relativamente mais
tarde, ao final do século I antes da Era Cristã
34
.
A criação de gado desempenhava um papel tão importante na vida econômica
do país que a mudança da residência de Napata para Méroe poderia ser explicada
pela necessidade de esta ficar próximo da principal área de pastagem, que a
33 Existe um cemitério de cavalos em el -Kurru; DUNHAM, D. & BATES, O. 1950 -7. pp. 110 -7.
34 Uma gura de camelo em bronze foi descoberta no mulo do rei Arikankharer (–25 a 15). Cf.
DUNHAM, D. & BATES, O. 1950 -7. Gravura XLIL.
312
África Antiga
zona de chuvas começa ao sul da nova capital. Uma outra razão para a mudança
pode ter sido a erosão gradual do solo do norte do país em ambas as margens
do Nilo, causada pelo pastoreio intensivo. Seja como for, a transferência do
centro administrativo no século IV aparentemente deu um novo impulso ao
desenvolvimento da criação de gado. Depois de algum tempo, o fenômeno de
erosão se repetiu o gado destruiu além do pasto, os arbustos e as árvores
iniciando -se outro ciclo de dessecamento. No século I da Era Cristã as terras
de pastagem ao sul de Méroe não podiam sustentar a antiga população de
pastores que, muito densa, foi forçada a mudar -se para o oeste ou para o sul.
A longo prazo, essa evolução foi provavelmente uma das principais razões da
decadência e, posteriormente, da queda do Império Meroíta.
A primazia da criação de gado no Império de Kush é atestada por numerosos
indícios: a iconografia, os ritos funerários, as metáforas (compara -se um exército
sem chefe a um rebanho sem pastor)
35
, etc.
As oferendas aos templos consistiam principalmente em animais domésticos,
e ao que parece, a riqueza dos reis, da aristocracia e dos sacerdotes do templo era
avaliada em gado. Os relatos de autores clássicos (Estrabão, Plínio e Diodoro da
Sicília) não deixam dúvidas acerca do caráter pastoril da sociedade meroíta, que
se assemelha em muitos aspectos às sociedades pastoris africanas posteriores.
Durante toda a história de Napata e Méroe, o desenvolvimento da agricultura
no norte foi influenciado tanto pelo clima quanto pela escassez de terra fértil no
estreito vale do Nilo. A falta de terra foi uma das razões por que os habitantes –
ao contrário de seus vizinhos do norte, os egípcios não sentiram necessidade
de criar um sistema de irrigação, com todas as consequências sociais e políticas
que esse empreendimento pode acarretar. Isso não significa que a irrigação fosse
desconhecida nessa parte da Núbia: descobriram -se vestígios de antigas obras
de irrigação no planalto de Kerma, datando do século XV antes da Era Cristã.
O principal dispositivo de irrigação utilizado na época era o shaduf, substituído
posteriormente pela saqia. Essa última, denominada Kole
36
em núbio, apareceu
na Baixa Núbia somente na época meroíta, sendo difícil determinar uma data
mais precisa. Os sítios de Dakka e Gammai, do século III antes da Era Cristã,
parecem ser os mais antigos a conter vestígios da saqia
37
. A introdução deste
dispositivo mecânico de irrigação teve uma influência decisiva na agricultura,
35 MACADAM, M. F. L. 1949. v. 1, inscr. IX.
36 Muitos topônimos entre Shellal e es -Sebua são derivados desta palavra: Koledul, Koleyseg, Arisman-
-Kole, Sulwi -Kole, etc. Cf. MONNERET DE VILLARD, U. 1941. p. 46 et seq.
37 BATES, O. & DUNHAM, D. 1927. p. 105; HERZOG, R. 1957. p. 136.
313
A civilização de Napata e Méroe
especialmente em Dongola,que permite elevar a água (através de uma roda)
de 3 m a 8 m com muito menos esforço e em menos tempo do que o shaduf;
este último necessita de trabalho humano, enquanto a saqia é acionada pelo
búfalo ou outros animais.
Mesmo as regiões meridionais do país, pelo menos no final do século VI
antes da Era Cristã, eram predominantemente pastoris, a julgar por um relato
de Heródoto, que descreve a ilha de Méroe como sendo habitada na maior parte
por criadores de gado, com uma agricultura insuficientemente desenvolvida
38
.
A arqueologia parece confirmar essa opinião, uma vez que no nível B de Djebel
Moya – que data do período de Napata e de uma época posterior (século VI a
V antes da Era Cristã) – não se encontrou nenhum traço de atividade agrícola
39
.
Com a mudança gradual do centro do império para o sul e o aumento da área
de terra irrigada a situação se modificou. No auge do reino meroíta, a ilha de
Méroe” foi cultivada de maneira intensiva, e a rede de canais e hafirs (bacias de
irrigação) testemunha o fato. Um dos emblemas dos reis e sacerdotes meroítas
da época era um cetro em forma de arado (ou de enxada), semelhante ao que
era amplamente utilizado no Egito.
Os principais cereais cultivados eram a cevada, o trigo e, sobretudo, o sorgo
ou durra, de origem local; plantava -se também a lentilha (Lens esculenta), o
pepino, o melão e a abóbora.
Entre as culturas técnicas, a do algodão colocava -se em primeiro plano.
Embora desconhecido no antigo Egito, muitas indicações de que o seu
cultivo no vale do Nilo teve início durante o Império de Kush, pouco antes da
Era Cristã. São escassas as informações a respeito de épocas mais antigas, mas
por volta do século IV antes da Era Cristã o cultivo do algodão e a técnica de sua
fiação e tecelagem atingiram em Méroe um nível muito elevado, chegando -se
a afirmar que a exportação de têxteis foi uma das fontes de riqueza do reino
40
.
O rei axumita Ezana vangloria -se, em suas inscrições, de ter destruído extensas
plantações de algodão em Méroe
41
.
Nossas fontes nada dizem acerca do regime fundiário e de exploração da
terra; contudo podemos supor a existência de uma comunidade aldeã tradicional,
uma vez que esse tipo de organização perdurou até o século XIX. O rei era
considerado o único proprietário da terra, característica comum a muitas
38 HERÓDOTO. III, 22 -3.
39 ADDISON, F. S. A. 1949. p. 104.
40 CROWFOOT, J. W. 1911. p. 37, Memórias, n. 19
41 LITTMANN, E. 1950. p. 116.
314
África Antiga
sociedades antigas – que deu origem a várias formas de posse da terra; assim, é
absolutamente impossível extrair qualquer conclusão sobre as relações efetivas
no domínio da produção.
Um ramo importante da agricultura era o cultivo de frutas e uvas; muitos
pomares e vinhedos pertenciam aos templos, sendo cultivados por escravos.
De maneira geral, os mesmos ramos da agricultura encontrados no antigo
Egito faziam -se presentes nos peodos de Napata e Méroe, apresentando,
entretanto, rendimentos diferentes. A criação de animais era mais importante
que a agricultura, e o cultivo de hortas e pomares, menos desenvolvido. No
entanto, o algodão começou a ser cultivado na região muito mais cedo que no
Egito. Até onde se sabe, os produtos agrícolas não eram exportados, pois mal
atendiam ao consumo local.
Recursos minerais
Durante a Antiguidade, o Império de Kush foi considerado uma das regiões
mais ricas do mundo conhecido. Essa fama se devia mais à riqueza mineral das
terras fronteiras situadas a leste do Nilo que à do interior do próprio reino.
Kush foi uma das grandes áreas produtoras de ouro do mundo antigo. O
metal era extraído entre o Nilo e o mar Vermelho, sobretudo na região ao norte
do 18º paralelo, onde se encontraram numerosos traços de antigas minerações.
A produção do ouro deve ter constituído uma ocupação importante no Império
Meroíta e, ao que parece, os templos possuíam grandes quantidades desse
metal. Taharqa dotou um de seus numerosos templos com 110 kg de ouro em
nove anos
42
. Recentes escavações realizadas em Méroe e Mussawarat es -Sufra
revelaram templos com muros e estátuas folheados a ouro. Além de constituir
uma das principais fontes de riqueza e de grandeza do reino, a exportação do
ouro exerceu grande influência sobre as relações com o Egito e Roma. Calcula-
-se que, durante a Antiguidade, Kush produziu cerca de 1.600.000 kg de ouro
puro
43
, que provavelmente pertenciam aos povos nômades, como testemunham
vários relatos; num deles, o rei Nastasen exige aproximadamente 300 kg de ouro
das várias tribos que venceu nas proximidades de Méroe
44
.
Embora numerosos objetos de prata e bronze tenham sido encontrados nas
sepulturas, e as oferendas aos templos frequentemente contivessem artefatos de
42 VERCOUTTER, J. 1959. p. 137.
43 QUIRING, H. 1946. p. 56.
44 SCHÄFER, H. 1901. pp. 20 -1.
315
A civilização de Napata e Méroe
 . Recipientes de bronze originários de Méroe. (Fonte: W. S. Shinnie. 1967. pr. 64 -8. Fotos a, c,
d: Shinnie, Professor of Archaeology, Cartum; b: British Museum; e: Ashmolean Museum. Oxford.)
a
c
d e
b
316
África Antiga
prata, por vezes de alta qualidade artística, parece que nem a prata nem o cobre
foram produzidos localmente, sendo provavelmente importados.
Por outro lado, o deserto oriental era rico em pedras preciosas e semi preciosas,
tais como a ametista, o rubi, o jacinto, a crisólita, o berilo e outras. Mesmo que
as minas não fossem totalmente controladas por Méroe, todos os seus produtos
passavam pelos canais comerciais meroítas, aumentando, assim, a fama desse
reino como um dos países mais ricos do mundo antigo.
O trabalho do ferro
Os grandes montes de escória encontrados perto da antiga cidade de Méroe
e em outras regiões do Butana foram causa de numerosas especulações sobre a
importância do ferro na civilização meroíta. Afirmou -se que o conhecimento
de sua fusão e de seu manuseio em vários lugares da África subsaariana proveio
de Méroe. em 1911, A. H. Sayce declarou que Méroe foi possivelmente a
“Birmingham da antiga África”
45
; essa opinião, corrente até pouco tempo
entre os especialistas, tornou -se uma teoria aceita na maioria dos trabalhos sobre
a história africana ou sudanesa
46
.
Nos últimos anos, esse ponto de vista foi contestado por alguns especialistas,
que levantaram sérias objeções a seu respeito
47
. Esses autores mostraram que
é extremamente reduzido o número de objetos de ferro encontrados nas
sepulturas. Wainwright havia notado que a presença do ferro limitava -se a
alguns traços por volta de -400 e que de modo algum esse metal é frequente
até a queda do reino meroíta (cerca de +320). Por sua vez, Tylecote afirmou
categoricamente que vestígios de fusão de ferro antes de -200, enquanto
Amborn, numa análise minuciosa de todos os objetos metálicos encontrados
na necrópole, demonstrou a preponderância dos utensílios de bronze sobre os
de ferro, mesmo no período posterior. Ele concluiu ser mais provável que esses
utensílios tenham sido produzidos com ferro importado, talvez trabalhado na
Núbia por ferreiros locais, cuja existência, contudo, é conhecida a partir da
cultura do Grupo X pós -meroíta. De qualquer maneira, não se pode deduzir, a
partir da presença de objetos de ferro trabalhado, que existisse uma verdadeira
metalurgia do ferro.
45 SAYCE, A. H. 1911. p. 55.
46 WAINWRIGHT, G. A. 1945. pp. 5 -36; ARKELL, A. J., em muitos dos seus escritos; id. 1966. p. 451
et seq.; SHINNIE, P. L. 1967. p. 160 et seq.; KATZNELSON, I. S. 1966. p. 289 et seq. e outros.
47 Cf. TRIGGER, B. G. 1969. pp. 23 -50; TYLECOTE, R. F. 1970. pp. 67 -72; AMBORN, H. 1970. pp.
71 -95.
317
A civilização de Napata e Méroe
Amborn é da opinião de que os montes de escória encontrados em Méroe
são vestígios de outras indústrias. Se correspondessem, de fato, ao refugo da
fundição do ferro, a área à sua volta deveria abrigar grande número de fornos;
ora, até hoje não se encontrou sequer traços de um forno de fundição
48
.
A controvérsia está longe de ser resolvida, e mais pesquisas arqueológicas
se fazem necessárias para que se chegue a uma prova categórica da presença
da metalurgia do ferro em Méroe. A escassez de objetos de ferro nos sítios
funerários não sugere uma produção em larga escala, fato que invalida a teoria
que pretende fazer de Méroe a “Birmingham da África”. Por outro lado, isso não
significa que a fundição desse metal fosse totalmente desconhecida na região
nem que não fosse praticada em regiões vizinhas na África. O problema do ferro
em Méroe é um dos mais importantes da história africana e merece ser estudado
em profundidade, utilizando -se todas as técnicas modernas à disposição dos
arqueólogos e historiadores. Só após esse estudo é que poderemos avaliar o papel
de Méroe na Idade do Ferro africana.
Cidades, artesanato e comércio
O vale do Nilo, regulado pela infavel inundação anual, favoreceu o
desenvolvimento de povoações permanentes e o consequente crescimento de
cidades, o que, por sua vez, encorajou o desenvolvimento do artesanato. Quando
esses centros urbanos se situavam em pontos estratégicos, tornavam -se passagens
para o comércio com o interior e com outras comunidades mercantis. Muitos
desses estabelecimentos urbanos também desempenharam o papel de centros
administrativos e religiosos
49
.
É possível considerar o desenvolvimento urbano na Baixa Núbia como o
resultado de uma evolução política e do crescente interesse dos meroítas por suas
fronteiras com o Egito, ao norte. Os exércitos meroítas foram enviados por diversas
vezes à Baixa Núbia e, finalmente, os soldados se fixaram nessa região, criando
uma economia auto -suficiente. Eles se beneficiaram das relações comerciais com
o Egito e, em consequência, multiplicaram -se na Baixa Núbia grandes cidades e
comunidades locais prósperas situadas em posições estratégicas, tais como Qasr
Ibrim ou Djebel Adda. A vida política e religiosa concentrava -se em torno de
48 H. AMBORN (1970. pp. 83 -7 e 92); P. L. SHINNIE e F. Y. KENSE acabaram de lançar uma
comunicação feita na ird International Meroitic Conference em Toronto, 1977, onde contestam a
armação de AMBORN: na verdade, foram descobertos em Méroe (Begrawiya) fornos de fundição de
ferro, durante escavações recentes.
49 ALI HAKEM, A. M. 1972 -b. pp. 639 -46.
318
África Antiga
um magnata local ou de uma família com posto hereditário administrativo ou
militar. Essa aristocracia vivia em castelos, como o de Karanog, ou em palácios,
como o “Palácio do Governador em Mussawarat es -Sufra.
Baseando -se em Bíon e Juba, Plínio nos transmitiu os nomes de muitas
cidades meroítas situadas em ambas as margens do Nilo, entre a Primeira
Catarata e a cidade de Méroe
50
.
O monumento meroíta mais setentrional é a capela de Arqamani, em Dakka
(antiga Pselkis), mas a verdadeira cidade fronteiriça parece ter -se localizado ao
sul de Uadi es -Sebua, onde se encontraram vestígios de um grande povoado com
um cemitério. Outros habitats urbanos importantes nessa região foram Karanog,
perto da moderna cidade de Aniba, e, localizado à sua frente, o grande forte de
Qasr Ibrim; a maioria dos edifícios remanescentes é, no entanto, pós -meroíta.
A cidade de Faras (Pakhoras) foi o principal centro administrativo da
província de Akin, que correspondia à Baixa Núbia. Foram exumados alguns
edifícios oficiais, entre eles o chamado Palácio do Oeste”, do século I da Era
Cristã, construído com tijolos crus, e uma fortificação situada na margem do rio.
Ao sul de Faras, são raras as povoações meroítas. A região é inóspita e o
vale muito estreito para satisfazer as necessidades de uma grande população. É
somente na vizinhança de Dongola que vamos encontrar maiores extensões de
terra e indícios mais numerosos de ocupação antiga. Defronte à moderna cidade
de Dongola situa -se Kawa, onde uma grande cidade com vários templos atesta
uma longa história. Nesse local, as escavações revelaram numerosos monumentos
e inscrições meroítas importantes.
A montante de Kawa não se encontra nenhum sítio de importância antes de
Napata, cujo papel nas cerimônias reais e costumes religiosos foi salientado nas
páginas precedentes. A importância desse núcleo urbano deve -se também à sua
localização na extremidade setentrional de uma rota de caravanas que margeava
três cataratas de difícil navegação. Todas as mercadorias provenientes das regiões
meridionais e centrais do reino, bem como do interior da África tinham que
passar por Napata. Embora o sítio da cidade de Napata continue parcialmente
inexplorado, os cemitérios reais de el -Kurru, Nuri e Djebel Barkal e os templos
de Djebel Barkal e de Sanam foram objeto de investigações completas, o que
permite avaliar a importância de Napata como sede da realeza e centro religioso
durante o período mais antigo da história de Kush. Até a época de Nastasen, os
cemitérios em torno de Napata eram utilizados para as sepulturas reais; mesmo
50 HIST. BAT. VI, 178, 179.
319
A civilização de Napata e Méroe
após esse período, alguns reis que normalmente seriam enterrados em Méroe
preferiam ter sepultura em Djebel Barkal.
O segundo centro urbano mais importante do vale do Nilo situa -se em
Dangeil (8 km ao norte de Berber), onde foram descobertos vestígios de
edifícios e de muros de tijolos. O próprio sítio parece encontrar -se sobre uma
rota importante que ligava Méroe ao norte.
Na ilha de Méroe, que corresponde aproximadamente à planície atual do
Butana, situada entre o Atbara e o Nilo Azul, foram encontrados muitos traços
de povoamento meroíta
51
.
Embora a cidade de Méroe seja mencionada pela primeira vez no último
quartel do século V antes da Era Cristã (inscrição de Amannateieriko no templo
de Kawa) , com o nome de B.rw.t, os estratos inferiores do sítio indicam a
presença, no século VIII, de uma grande povoação no local. Heródoto (II,
29) descreve -a como uma “grande cidade”. As escavações confirmaram que esse
núcleo urbano ocupava uma grande área, com uma parte central cercada por
subúrbios e, talvez, por um muro. Além de ser, por muitos séculos, a capital e
a residência real, Méroe atuou como um dos principais centros econômicos e
comerciais do país, situando -se na encruzilhada das rotas de caravana e servindo
igualmente de porto fluvial. A maior parte da área compreendida pela cidade,
composta de vários montículos recobertos por fragmentos de tijolo vermelho,
ainda está à espera dos arqueólogos
52
. Mas a porção a agora explorada é
suficiente para mostrar que Méroe, no seu apogeu, foi uma cidade de enormes
proporções, dotada de todos os atributos que se ligam à vida urbana. Como tal,
deve ser incluída entre os monumentos mais importantes do início da civilização
no continente africano. Os principais elementos descobertos nas partes em que
se realizaram escavações são a cidade real com seus palácios, as termas reais e
outros edifícios, além do templo de Âmon. Nas vizinhanças foram encontrados
os templos de Ísis, dos Leões e do Sol, assim como muitas pirâmides e cemitérios
que não eram destinados aos reis.
Nas proximidades de Méroe encontra -se o sítio de Uadi ben Naga, que abriga
ruínas de pelo menos dois templos; escavações recentes revelaram um grande
edifício talvez um palácio e uma construção em forma de colmeia, que
pode ter sido um enorme silo. Tais descobertas, assim como o grande número
51 ALI HAKEM, A. M. 1972 -b.
52 Cabe mencionar aqui as escavações (1972 -5) realizadas pelas Universidades de Calgary e Cartum,
durante as quais numerosos templos foram descobertos.
320
África Antiga
de montículos espalhados pelas imediações do sítio, indicam a importância da
cidade, residência das candaces e porto do Nilo
53
.
Alguns outros sítios de importância merecem ser mencionados. Basa, situado
em Uadi Hawad, possui um templo e um enorme hafir rodeado por estátuas de
leões em pedra. No entanto, o traço mais interessante desse sítio é que a cidade
não se desenvolveu de maneira anárquica, mas foi estritamente planejada de
acordo com as variações do terreno, na época recoberto por árvores e arbustos
54
.
De excepcional importância, sob vários pontos de vista, é Mussawarat es -Sufra,
que fica um pouco distante do Nilo, no Uadi el -Banat. Sua principal característica
é o conjunto denominado a Grande Cerca, que consiste em numerosos edifícios
e muros a rodear um templo construído no século I antes da Era Cristã ou pouco
antes. O número de representações de elefantes nos muros sugere que esse animal
desempenhava um papel de importância. O sítio abriga ainda alguns templos,
sendo o mais importante o Templo dos Leões, dedicado ao deus Apedemak.
Escavações recentes efetuadas por F. Hintze
55
elucidaram diversos aspectos da
história, da arte e da religião meroítas, mas muitas características desse povo
ainda são desconhecidas.
Independentemente de suas funções administrativas e religiosas, as cidades
meroítas também foram importantes centros de artesanato e comércio. Não
, a o momento, nenhum estudo dedicado a esse aspecto da hisria
econômica merta, mas os incios existentes mostram que os produtos
artesanais eram de alto nível técnico e artístico. A construção e decoração dos
numerosos monumentos (palácios, templos, pirâmides, etc.) tornava necessária a
especialização em diferentes ofícios. Embora no período inicial seja indiscutível
a influência egípcia, a partir do século III antes da Era Cristã vários elementos
autóctones indicam que os artesãos e artistas meroítas se libertavam dos modelos
estrangeiros, criando uma tradição artística independente e muito original.
A cerâmica está entre os produtos mais conhecidos da civilização meroíta,
devendo sua fama à alta qualidade de sua textura e decoração. No tocante à arte
cerâmica, duas tradições distintas: a cerâmica feita a mão (por mulheres),
que mostra uma notável continuidade de forma e estilo e reflete uma tradição
africana profundamente arraigada
56
, e a cerâmica feita no torno (por homens),
53 Cf. VERCOUTTER, J. 1962.
54 CROWFOOT, J. W. 1911. pp. 11 -20.
55 Cf. HINTZE, F. 1962; id. 1971 -a.
56 P. L. SHINNIE (1967. p. 116) salienta que essa cerâmica ainda é produzida segundo o mesmo estilo,
não somente no Sudão mas em outras partes da África.
321
A civilização de Napata e Méroe
 . Várias peças de cerâmica meroíta. a e b: Vasos decorados com guras caricaturais. c: Vaso
pintado mostrando um leão devorando um homem. d: Vaso pintado com cabeças do deus -leão Apedemak.
e: Vaso de louça vermelha decorado com uma faixa de sapos sentados dois a dois e separados por plantas.
(Fonte: W. S. Shinnie. 1967. pr. 44 -8. Fotos Ashmolean Museum. Oxford.)
a
c
d e
b
322
África Antiga
mais variada e suscetível às mudanças estilísticas. Essas diferenças permitem
concluir que desde os primeiros tempos a cerâmica torneada desenvolveu -se
como um ramo distinto do artesanato cuja produção, destinada ao comércio,
ficava sujeita às variações da moda e à demanda das classes médias e superiores
da sociedade meroíta, enquanto o povo continuava a usar a cerâmica tradicional,
feita em casa pelas mulheres.
Outro ramo do artesanato que atingiu um alto grau de desenvolvimento
foi a joalheria. Foi sobretudo nos túmulos reais que se descobriram joias em
quantidades consideráveis. Como ocorre com os outros artefatos, a joalheria
dos primeiros tempos seguia rigorosamente os padrões egípcios e somente mais
tarde encontraram -se joias caracteristicamente meroítas quanto ao estilo e à
ornamentação. Esses objetos – placas, colares, braceletes, brincos e anéis – eram
feitos principalmente em ouro, prata e pedras semipreciosas. O desenho das joias
apresenta considerável variedade: alguns são de inspiração egípcia, mas outros
pertencem claramente à tradição de artesãos e artistas meroítas. A escultura em
marfim ligava -se à joalheria; dadas a abundância e a acessibilidade desse material
em Méroe,o é de surpreender que os escultores desenvolvessem suas próprias
técnicas e tradições, com motivos extraídos principalmente do mundo animal
(girafas, rinocerontes e avestruzes).
Os marceneiros fabricavam vários tipos de móveis, especialmente camas,
mas também porta -joias, cofres e até mesmo instrumentos musicais; os tecelões
produziam tecidos de algodão e de linho, e os curtidores tratavam peles e couros.
Vestígios do trabalho desses artesãos foram descobertos em várias sepulturas
reais e não -reais.
Todas essas indicões revelam a presea de uma classe relativamente
numerosa de artesãos em Méroe, à qual também pertenciam os artistas, arquitetos
e escultores. Até agora não se sabe como os ofícios eram organizados, pois seus
nomes, que figuram em inscrições meroítas, continuam indecifrados. É provável
que existissem oficinas destinadas aos serviços do templo, como no Egito
57
, e
talvez da corte real.
O Império de Kush constituiu um entreposto ideal para as rotas de caravanas
entre o mar Vermelho, o Alto Nilo e a savana nilo -chadiana. Assim, não é de
admirar que o comércio exterior tivesse um papel importante tanto na economia
quanto na política meroíta. Os indícios das relações comerciais com o Egito
são em número suficiente para que se possa determinar sua magnitude, suas
57 Essas ocinas foram encontradas no templo T em Kawa, datando do século VII ou VI antes da Era
Cristã. Cf. MACADAM, M. F. L. 1949. v. 1, pp. 211 -32.
323
A civilização de Napata e Méroe
 . Joias de ouro da rainha Amanishaketo (-41 a -12). (Fonte: F. & U. Hintze. 1966. pr. 132. Foto
Staattiche Museum, Berlim.)
324
África Antiga
mercadorias e rotas. em relação ao comércio com outras partes da África,
pode -se apenas levantar hipóteses; muitas questões ainda estão sem resposta.
Desde os tempos antigos, os principais produtos de exportação da Núbia eram
o ouro, o incenso, o marfim, o ébano, os óleos, as pedras semipreciosas, as penas
de avestruz e as peles de leopardo. Embora algumas dessas mercadorias tivessem
por origem o território meroíta, outras provinham com certeza de países situados
mais ao sul.
O comércio exterior dirigia -se principalmente para o Egito e o mundo
mediterrânico – mais tarde, talvez, para a Arábia do Sul. A rota comercial mais
importante passava ao longo do Nilo, embora em algumas partes atravessasse a
savana (entre Méroe e Napata, e entre Napata e a Baixa Núbia, por exemplo).
A ilha de Méroe” deve ter sido cruzada por inúmeras rotas de caravanas; era
também o ponto de partida para as caravanas que se dirigiam à região do mar
Vermelho, da Etiópia do norte, do Kordofan e do Darfur. O controle dessa
extensa rede de rotas era uma preocupação constante dos reis meroítas, pois
os povos nômades atacavam frequentemente as caravanas. Como medida de
segurança, os soberanos construíram fortalezas em pontos estratégicos da estepe
de Bajuda entre Méroe e Napata, por exemplo – e mandaram abrir poços ao
longo das rotas comerciais.
Os poucos indícios de que dispomos não nos permitem acompanhar todas
as etapas do desenvolvimento do comércio exterior de Méroe durante o curso
da sua hisria. Pode -se apenas supor que esse comércio tenha atingido o
ápice no começo do período helenístico, com o aumento da demanda de
mercadorias exóticas originárias da África por parte da dinastia ptolomaica.
Posteriormente, a rota principal foi transferida do eixo do Nilo para o mar
Vermelho (início do século I antes da Era Cristã). Isso reduziu o volume de
mercadorias diretamente exportadas de Méroe, já que várias delas podiam
ser obtidas na Etiópia do norte onde, naquele momento, comava a surgir
Axum. Os últimos séculos do reino meroíta coincidiram com a crise do
Império Romano, que levou inicialmente a um acentuado decnio e depois
à interrupção quase total das relações comerciais entre roe e Egito. Várias
cidades da Baixa bia, dependentes desse comércio, arruinaram -se. Além
disso, nem Roma nem roe foram capazes, na época, de defender as rotas
comerciais contra as invasões dos nômades blêmios e nobatas.
58
58 Para uma análise das causas do declínio, ver KATZNELSON, I. S. 1966. p. 249 et seq.
325
A civilização de Napata e Méroe
Estrutura social
Dada a ausência de qualquer informação direta, é quase impossível apresentar
um quadro coerente da estrutura social em Méroe. Até o momento sabemos
apenas da existência de uma classe superior ou dirigente (composta pelo rei e
sua família), de uma corte e de uma aristocracia provincial que preenchia várias
funções administrativas e militares, e de um clero muito influente. No extremo
oposto da escala social, as fontes de que dispomos mencionam frequentemente
a presença de escravos recrutados entre prisioneiros de guerra. A partir de
testemunhos indiretos pode -se supor que além dos agricultores e criadores de
gado, os quais devem ter formado a maior parte da população meroíta, existia
uma classe média de artesãos, negociantes, pequenos funcionários e criados,
mas não se sabe absolutamente nada acerca da sua posição social. Até que se
disponha de informações mais precisas, seria prematura qualquer tentativa de
caracterizar as relações sociais e de produção.
Documentos epigráficos e outros dão a entender que as atividades militares
desempenharam um papel não -negligenciável no reino, mas é difícil dizer como
os exércitos eram recrutados e organizados. Parece que, independentemente
de uma guarda real permanente, todos os habitantes do sexo masculino eram
mobilizados em caso de necessidade. Relatos do período romano indicam que o
exército dividia -se em infantaria e cavalaria, mas que os soldados meroítas não
eram muito disciplinados em comparação com as legiões romanas. Travavam -se
guerras contra os grupos nômades que habitavam o deserto oriental, os quais,
nunca inteiramente subjugados, aguardavam o momento oportuno para invadir
as terras cultivadas. Ao mesmo tempo, moveram -se várias guerras de agressão
visando aumentar o território e apoderar -se do butim (gado e escravos), que
deve ter constituído uma importante fonte de riqueza para as classes dirigentes
e para o clero. Um grande número de prisioneiros de guerra e por vezes até
os territórios recém -ocupados – era doado regularmente aos templos pelos reis.
O contingente de escravos deve ter sido proporcionalmente muito elevado; no
período romano, exportou -se grande número de escravos negros para o Egito
e para os países do Mediterrâneo. A mão de obra escrava era empregada na
construção de pirâmides, templos, palácios e outras edificações monumentais,
bem como no cultivo dos pomares e jardins dos templos; talvez fosse utilizada
também na escavação e reparo de canais de irrigação e bacias (hafirs). A escravidão
desenvolveu -se em Méroe como em outros reinos orientais, porém de maneira
mais lenta, e nunca chegou a constituir a base principal da produção, uma vez
que esse tipo de trabalho tinha uma esfera de aplicação comparativamente mais
326
África Antiga
limitada. Nas inscrições menciona -se sempre um número maior de mulheres que
de homens, o que indica ter sido a escravidão doméstica a forma prevalecente.
Religião
Aspectos gerais
Os povos meroítas tomaram do Egito a maior parte de suas ideias religiosas
oficiais. A maioria dos deuses cultuados nos templos de Méroe correspondia às
divindades egípcias; os primeiros reis consideravam Âmon como o deus mais
importante, de quem recebiam seus direitos ao trono. Os sacerdotes dos templos
de Âmon exerceram uma inflncia considerável, pelo menos a a época
do rei Ergamenes, que, ao que parece, destitui -os de seus poderes absolutos.
No entanto, mesmo mais tarde, os reis demonstraram pelo menos em suas
inscrições veneração por Âmon e seus sacerdotes, os quais eram favorecidos
de várias maneiras por dádivas de ouro, escravos, gado e terras.
Ao lado de divindades faraônicas Ísis, rus, Tot, Arensnuphis, Satis,
etc. com seus símbolos originais, eram cultuados deuses puramente meroítas,
como o deus -leão Apedemak ou o deus Sebiumeker (Sbomeker). O culto
desses deuses se tornou oficial no século III antes da Era Cristã; parece que
anteriormente eram deuses locais das regiões meridionais do império, e que
adquiriram proeminência quando a influência egípcia começou a enfraquecer
e foi substituída pelos traços culturais mais autenticamente meroítas. Deve -se
lembrar que é também por volta dessa época que a escrita e a língua meroítas
foram introduzidas nas inscrições.
Apedemak, deus guerreiro, era uma divindade de grande importância para
os meroítas. Ele é representado com uma cabeça de leão, animal que, ao que se
sabe, desempenhava um certo papel nas cerimônias do templo, especialmente
em Mussawarat es -Sufra
59
. Nessa mesma localidade encontramos outro deus
meroíta desconhecido dos egípcios, Sebiumeker, que talvez fosse a principal
divindade local, que era tido como criador. Algumas deusas também estão
representadas em Naga, mas seus nomes e posões no panteão merta
continuam desconhecidos.
A presença de dois grupos de divindades, um de origem egípcia e o outro de
origem local, reflete -se também na arquitetura dos templos.
59 ZABKAR, L. V. 1975.
327
A civilização de Napata e Méroe
Os templos de Âmon
O simbolismo religioso exerceu considerável influência na arquitetura dos
templos do antigo Egito. O culto era expresso em ritos elaborados e complexos
e cada parte do templo tinha um papel específico no desenvolvimento do
ritual. Essas várias partes (salas, pátios, câmaras, capelas, etc.) eram dispostas
axialmente, formando um longo corredor de procissão. Templos desse tipo foram
edificados na região de Dongola por Peye, Taharqa e seus sucessores; o mais
importante deles, dedicado a Âmon -Râ em Napata, foi construído em Djebel
Barkal. Todavia, nas primeiras inscrições de coroação não consta que Méroe
tenha um templo dedicado a Âmon.
Por volta do fim do século I antes da Era Cristã, contudo, a cidade de Méroe
foi honrada com a construção de um desses templos, à frente do qual foi colocada
uma longa inscrição em meroíta. Os primeiros nomes a ele associados são os
do rei Amannikhabale (-65 a -41) e da rainha Amanishaketo (-41 a -12). Esse
templo se tornou talvez o mais importante dentre os consagrados a Âmon-Rá
na última metade da história do reino. Deve -se notar que a partir dessa época
templos similares porém de dimensões menores foram construídos em Méroe,
Mussawarat es -Sufra, Naga e Uadi ben Naga. O templo de Âmon em Méroe
desempenhou um papel semelhante ao de Napata, em Djebel Barkal; deve
ter -se tornado um perigoso rival para este último, chegando a superá -lo em
importância. Mesmo durante o período anterior à constrão do templo de
Âmon em roe, Napata não detinha o monopólio como centro religioso:
existiam outros templos que dominavam a vida religiosa em todo o Butana e
estendiam sua influência para o norte. Trata -se dos templos dos leões, para os
quais devemos agora nos voltar.
Os templos dos Leões
O nome templo dos leões” deve -se a uma preponderância marcante de
figuras de leão, esculpidas em ronde -bosse, guardando o acesso e a entrada dos
templos ou ocupando posição de destaque nos baixos -relevos. A figura do leão
representa o importante deus meroíta Apedemak; isso não significa, contudo, que
todos os templos dos leões fossem dedicados unicamente a Apedemak. Embora
a existência desses templos tenha sido constatada por diversos especialistas
60
, eles
60 GARSTANG, J. et al. 1911. p. 57; MACADAM, M. F. L. 1949. v. 1. p. 114; HINTZE, F. 1962; id.
1971 -a.
328
África Antiga
receberam diferentes denominações quando descritos isoladamente
61
: templo
de Ápis, templo de Ísis, templo do Sol, templo principal de Augusto (Câmara
de afrescos), etc. O uso de tais termos levou, em alguns casos, a conclusões
equivocadas e enganosas
62
. O emprego da expressão “templo dos leões” eliminaria
novos mal -entendidos, sendo a figura do leão seu traço mais característico. As
estátuas de leão estão inteiramente ausentes dos templos de Âmon (Barkal,
Kawa, Méroe, Naga) a que se associam as estátuas de carneiro –, embora o
deus -leão Apedemak fosse provavelmente uma das divindades ali cultuadas e
sua imagem apareça entre as representações de outros deuses. Do mesmo modo,
as divindades com cabeça de carneiro, Âmon -Rá e Khnum, aparecem muito
frequentemente nos baixos -relevos dos templos dos leões, embora não haja um
único exemplo de estátua de carneiro associada a qualquer um dos templos dos
leões.
Distribuição e tipos de templos dos leões
Além dos 32 templos dos leões registrados, existem quatorze tios em
que a sua presença é quase certa. Se acrescentamos a ocorrência nos textos
meroítas de títulos religiosos associados a templos situados em localidades
como Nalete, Tiyi, etc., eles devem ter sido realmente muito numerosos; ao que
parece, distribuíam -se por toda a área de Méroe. A partir de um estudo dessa
distribuição, configuram -se dois fatos. O primeiro é que em quatro sítios foram
descobertos vários templos: Naga (oito templos), Mussawarates -Sufra (seis),
Méroe (seis) e Djebel Barkal (três).
A presença de vários templos numa mesma localidade indica a importância
religiosa do sítio. Os mais elaborados e talvez os principais do reino são os de
Mussawarat es -Sufra e o templo do Sol em Méroe (M 250). No entanto, Naga
tem mais templos do que qualquer outro sítio, e Barkal fornece os mais antigos
exemplares datáveis: B 900, que foi construído por Peye (-750 a -716) e possuía
originariamente duas câmaras, depois transformadas num templo com pilono
e câmara única; e B 70, iniciado por Atlanarsa (-653 a -643) e terminado por
Senkamaniskem (-643 a -623).
61 PORTER, B. & MOSS, R. 1951. p. 264 et seq.
62 O nome Templo do Sol”, por exemplo, criado por SAYCE com base em uma indicação de Heródoto
a propósito da presença de uma “Mesa do Sol”, levou alguns especialistas a sugerirem a existência de
um culto especial do Sol em Méroe. Termos como “Templo de Ísis” e “Templo de Ápis” podem levar a
conclusões igualmente equivocadas.
329
A civilização de Napata e Méroe
 . O deus Apedemak
conduzindo outros deuses meroítas.
(Fonte: F. Hintze. “Die Inschriften
des Löwentempels von Mussawarat
es -Sufra, Abhandlungen der
Deutschen Akademie der
Wissenschaften zu Berlin”. Kl. für
Spr., Lit. und Ku. Jahrgang 1962, n
1, Berlin, 1962, pr. II.)
F . O deus meroíta
Sebiumeker (templo dos leões em
Mussawarat es -Sufra). (Fonte: F. &
U. Hintze. 1966. 101.)
330
África Antiga
O segundo fato é que os dois tipos de templo concentram -se em diferentes
regiões. É possível argumentar que, de maneira geral, os templos de Âmon se
situavam na região de Napata, enquanto os templos dos leões se encontravam
na ilha de roe, onde os primeiros foram construídos apenas a partir do
século I da Era Cristã.
Os templos dos leões podem ser divididos em dois tipos básicos: o primeiro
é de câmara dupla (os exemplares mais antigos foram construídos com tijolo
cru, sem pilono); o segundo tem uma única câmara, e a maioria – à exceção dos
primeiros exemplares – é dotada de pilono.
O aparecimento do segundo tipo de templo dos leões poderia ser explicado
por duas fontes locais. Por um lado, parece evidente que se desenvolveu a partir
do primeiro modelo, a julgar pelo fato de que o B 900 foi reconstruído conforme
a planta do segundo tipo. Por outro lado, existem em Barkal
63
e em Kerma
64
várias construções pequenas, de câmara única, de que pode ter -se derivado. Os
exemplares mais antigos de tais construções talvez se encontrem sob Méroe M
250, sendo possivelmente anteriores a -500
65
.
A arquitetura do templo dos leões pode igualmente ter sofrido a influência
do Egito, onde capelas foram construídas, em diferentes épocas, no interior de
outros templos ou à beira do deserto. Essas capelas eram o lugar de descanso
para o barco ou para a estátua do deus durante as várias procissões. A maior parte
das construções é elaborada e possui várias câmaras
66
, e embora a XXV dinastia
em Tebas tenha construído ou ampliado várias capelas pequenas em Carnac e
outros lugares
67
, estas normalmente não se assemelham aos templos dos leões.
Portanto, uma origem autóctone parece mais provável. Bastante simples, esse
tipo de monumento era apropriado para áreas como Butana, onde a falta de
mão de obra e materiais impedia construções elaboradas como a dos templos de
Âmon, pelo menos no período mais antigo. Talvez o seu despojamento reflita
um tipo simples de culto, como seria de se esperar entre comunidades nômades
do Butana e outras regiões.
Embora a existência dos dois tipos de templo sugira, à primeira vista, a
presença de duas religiões diferentes em Méroe, uma reconsideração cuidadosa
indica que de fato havia apenas uma. Isso porque a coexistência de duas religiões
63 REISNER, G. A. von. 1918. p. 224.
64 REISNER, G. A. von. 1923 -a. p. 423.
65 HINTZE, F. & U. 1970.
66 BADAWY, A. 1968. p. 282.
67 LECLANT, J. 1965 -b. p. 18.
331
A civilização de Napata e Méroe
pressupõe quer um grau considerável de tolerância, fato bastante improvável
à época, quer um conflito feroz e guerras religiosas contínuas, a que as fontes
disponíveis o fazem qualquer referência. Pelo contrário, o panteão cultuado nos
templos de Âmon também parece ter sido o mesmo dos templos dos leões, com
a exceção de que a certos deuses era dada maior proeminência em um templo
do que em outro. Esse panteão era, aliás, constituído por uma mistura de deuses
egípcios como Ámon -Rá ou a tríade de Osíris e deuses locais como Apedemak,
Mandulis, Sebiumeker
68
. As arquiteturas diversas indicam diferenças antes nos
rituais que na religião. Assim, os rituais ligados às cerimônias de coroação
exigiam templos como o de Âmon para a realização das festas e procissões. Tal
prática religiosa tornou possível incorporar sem conflito vários deuses e crenças
locais, concorrendo assim, durante um período bastante longo, para a coesão de
um reino constituído de elementos muito diversificados.
68 LECLANT, J. 1970 -b. pp. 141 -53.
C A P Í T U L O 1 2
333
A cristianização da Núbia
Dois fatores explicam, basicamente, tanto a estrutura social quanto a história
da Núbia no período cristão: de um lado, a decadência do reino de roe, que
ocupara o território do culo III antes da Era Cris até o culo III da Era Cristã;
de outro, a romanização e posterior cristianização do Egito, seu vizinho do norte.
À queda do reino de Méroe seguiu -se uma longa série de lutas, culminando
com a expulsão dos Blêmios (Bega ou Buga) para o deserto oriental, e o controle
do vale do Nilo pelos Nobatas. Formou -se, assim, ao norte, o Estado nobata,
entre a Primeira Catarata e o Dal (região que fica entre a Segunda e a Terceira
Catarata).
Dispomos hoje de muitas informações sobre este período da história núbia
graças às escavações realizadas por missões internacionais, como parte de uma
campanha para preservação dos monumentos da Núbia.
Em Faras, a missão polonesa obteve provas de que a antiga Pakhoras era a
capital dos Nobatas, no período final de seu reino. se encontrava o palácio
real, mais tarde transformado na primeira catedral
1
.
Pelos vestígios encontrados, percebe -se a profunda diferença que havia entre
os padrões de vida na sociedade dessa época. As massas eram relativamente
pobres. Devido à extrema simplicidade dos seus “cemitérios”, o arqueólogo
1 MICHALOWSKI, K. 1967 -b. pp. 49 -52.
A cristianização da Núbia
K. Michalowski
334
África Antiga
americano G. A. von Reisner
2
, ao descobrir essa civilizão, designou -a
meramente por “cultura do Grupo X”, à falta de uma definição histórica mais
precisa. Contrastando com o baixo nível de vida do povo, as classes governantes,
os príncipes, a corte, cultivavam as tradições de arte e cultura dos meroítas.
Como resíduos representativos dessa fina camada superior da sociedade, temos
o mencionado palácio real em Faras e a luxuosa mobília funerária dos famosos
túmulos de Ballana, descobertos em 1935 por W. B. Emery
3
.
recentemente se esclareceu a interdependência das culturas de Ballana e
do Grupo X
4
. Até pouco tempo atrás, havia ainda controvérsia entre os peritos.
Alguns consideravam o Grupo X um enigma
5
na história da Núbia, atribuindo
aos Blêmios
6
os túmulos de Ballana e à cultura meroíta
7
tardia os outros objetos
do mesmo período. Havia também quem chamasse civilização de Ballana”
8
a
todo o período.
Foi durante as escavações polonesas em Faras que se descobriu, sob o palácio
real, uma igreja cris de tijolos crus, construída provavelmente antes do culo V.
É verdade que essa datação remota foi recentemente contestada
9
, mas o fato é
que havia túmulos cristãos
10
entre as sepulturas do Grupo X e que lâmpadas
a óleo cristãs, bem como cerâmica decorada com grafitos em forma de cruz,
foram encontradas em camadas do Grupo X na ilha de Meinarti
11
. Isso prova
que a fé cristã alcançara os Nabatas, ganhando adeptos entre os pobres, muito
antes que a imperatriz Teodora de Bizâncio enviasse a missão chefiada pelo
padre Juliano para cristianizar oficialmente a Núbia. Outra prova da penetração
precoce da fé cristã entre os núbios são os mosteiros e eremitérios existentes na
região desde o fim do século V
12
. Podemos, pois, afirmar tranquilamente que a
religião cristã se infiltrara aos poucos na Núbia bem antes da sua conversão
oficial – que ocorreu, segundo João de Éfeso
13
, em 543.
2 REISNER, G. A. von. 1910 -27. p. 345.
3 EMERY, W. B. & KIRWAN, L. P. 1938.
4 MICHALOWSKI, K. 1967 -a. pp. 194 -211.
5 KIRWAN, L. P. 1963. pp. 55 -78.
6 EMERY, W. B. 1965. pp. 57 -90.
7 GRIFFITH, F. L. 1926. p. 21 et seq.
8 TRIGGER, B. G. 1965. p. 127.
9 GROSSMAN, P. 1971. pp. 330 -50.
10 VE -SÖDERBERGH, T. 1963. p. 67.
11 ADAMS, W. Y. 1965 -a. p. 155; 1965 -b. p. 172.
12 JAKOBIELSKI, S. 1972. p. 21.
13 KIRWAN, L. P. 1939. pp. 49 -51.
335
A cristianização da Núbia
 . O Nilo da Primeira à Sexta Catarata. (Mapa fornecido pelo autor.)
336
África Antiga
Muitos fatores contribuíram para essa cristianização precoce do reino nobata.
Não apenas o Império Romano, ainda hostil ao cristianismo no século III, mas
também o próprio Império Cristão dos séculos IV, V e VI perseguiam todos
quantos desobedecessem às injunções oficiais em assunto de religião. Por isso,
talvez, muitos egípcios ou mesmo núbios fugissem do Egito, trazendo sua fé aos
Nobatas do sul de Assuã. Caravanas de mercadores, atravessando Assuã rumo ao
sul, também traziam, além do comércio, suas crenças religiosas. Não foi menos
importante o papel da diplomacia: nos séculos V e VI, Bizâncio ansiava por
uma aliança com Axum contra a ameaça persa no mar Vermelho; em 524, um
tratado formal permitia que Blêmios e Nobatas participassem de uma expedição
projetada ao Iêmen. Durante tantos contatos e transações, os padres certamente
não ficavam inativos.
Na verdade, quando a imperatriz Teodora enviou à Núbia o padre Juliano, em
543, apenas os reis do país foram batizados segundo o ritual monofisita. A maior
parte do povo há muito que se deixara seduzir pela nova fé, sob a influência do
Egito cristão. No século VI existia às margens do Nilo, num bairro afastado,
uma igreja para atender à comunidade cristã dos humildes. Para os soberanos
nobatas, a conversão ao cristianismo foi um importante ato político: nessa época
eles não tinham uma ideologia religiosa bem definida que lhes garantisse a
submissão do povo e, por outro lado, o cristianismo vinha abrir -lhes as portas
do Egito, onde os bispos residiam desde o século IV, na ilha de Filas
14
. Através
do Egito, os núbios teriam acesso ao Mediterrâneo e ao centro da civilização
da época Bizâncio.
O reino da Nobadia (Nuba, em árabe) estendia -se desde Filas até a
Segunda Catarata e tinha por capital Faras. No século VI, outro reino núbio se
desenvolveu até o sítio da antiga Méroe, sendo mais tarde chamado de Makuria
(Muqurra, em árabe). Sua capital era a Antiga Dongola (Dungula, em árabe).
Ao contrário da Núbia setentrional, que adotara a doutrina monofisita, Makuria
foi convertida à ortodoxia melquita em 567 -70
15
, pela missão que lhe enviara o
imperador Justino II.
Depois de 1964, quatro igrejas e o palácio real cristão desse reino foram
identificados nas escavações polonesas
16
. Um dos edifícios data do fim do século
14 MONNERET DE VILLARD, U. 1938; MUNIER, H. 1943. p. 8 et seq.
15 MONNERET DE VILLARD, U. 1938. p. 64; KIRWAN, L. P. 1966. p. 127.
16 MICHALOWSKI, K. 1966. pp. 189 -299; id. 1969. pp. 30 -3; JAKOBIELSKI, S. & OSTRASZ.
A. 1967; JAKOBIELSKI, S. & KRZYZANIAK, L. 1967; MICHALOWSKI, K. 1969. pp. 163 -6;
JAKOBIELSKI, S. 1970. p. 167 et seq., pp. 70 -5; MARTENS, M. 1973. pp. 263 -71; JAKOBIELSKI,
S. 1975 -b. pp. 349 -60.
337
A cristianização da Núbia
 . Arcadas da fachada
leste da igreja de Qasr Ibrim.
(Foto fornecida pelo dr. Gamal
Mokhtar.)
F . Catedral de
Faras. (Foto Museu Nacional de
Varsóvia.)
338
África Antiga
VII ou princípio do VIII; por baixo dele, encontraram -se os restos de uma igreja
ainda mais antiga, de tijolos crus. Não era a catedral, mas contava cinco naves
e dezesseis colunas de sustentação, com 5,2 m de altura. A magnitude desses
vestígios leva a crer na veracidade histórica das entusiásticas descrições feitas por
um viajante árabe no século XI: Dongola era certamente uma capital importante,
ao menos por seus monumentos.
Finalmente, entre 660 e 700, também os Makuritas adotaram a doutrina
monofisita, fato que não deixou de ter importantes consequências.
Ao sul, na região da Sexta Catarata, formou -se o terceiro Estado cristão da
Núbia: Alodia (Alwa, em árabe), cuja capital, Soba, não ficava muito longe da
atual Cartum.
Por volta de 580, com o apoio dos Nobatas, chegava a Alodia uma missão
bizantina, mas seu chefe, o bispo Longino, verificou que o país estava em
parte convertido pelos axumitas. Temos, portanto, ao fim do século VI, uma
Núbia já cristã, composta de três reinos: Nobadia, ao norte; Makuria, no centro,
e Alodia, ao sul. As relações entre os três ainda não estão bem definidas, pelo
menos durante o início de sua existência autônoma
17
.
Ainda pouco tempo, a história da Núbia cristã era estudada como parte da
egiptologia ou da história antiga e paleocristã, ligando -se mais especialmente à
história do Egito copta. Tudo quanto se sabia sobre a Núbia cristã estava contido
no trabalho fundamental de Ugo Monneret de Villard
18
. Em quatro volumes
sobre a Núbia medieval
19
, esse autor publicou um material ilustrativo bastante rico
para a época e ainda hoje muito valioso para a pesquisa de numerosos detalhes.
Embora escrevesse sobre descobertas arqueológicas, perscrutou também textos
de autores árabes, dos quais muitos constituem a única fonte de informação,
até agora, sobre fatos importantes da história da Núbia e sobre a cronologia
de seus reis. Entre os manuscritos mais notáveis estão os de Al -Yaqubi (874),
Al -Mas’udi (956), Ibn Hawqal (c. 960), Selim al -Aswani (c. 970), Abu Salih
(c. 1200), al -Makin (1272), Ibn Khaldun (1342 -1406) e principalmente
Maqrizi (1364 -1442)
20
.
Desde a pesquisa de Monneret de Villard, vêm -se acumulando os achados
arqueológicos, principalmente a partir da “campanha da Núbia” (1960 -65),
17 ADAMS, W. Y. 1965. p. 170.
18 MONNERET DE VILLARD, U. 1938.
19 MONNERET DE VILLARD, U. 1935 -57.
20 Uma lista dos mais importantes textos árabes e cristãos sobre a história da Núbia cristã foi levantada por
VANTINI, G.
339
A cristianização da Núbia
organizada pela Unesco com o objetivo de explorar os terrenos que seriam
inundados pelas águas do Nilo retidas na barragem de Sadd -al -Ali. Em alguns
lugares da Núbia setentrional a subida das águas foi tão lenta que permitiu o
prosseguimento das escavações até 1971; em Qasr Ibrim, região não inundada,
a pesquisa continua até hoje.
Os resultados das últimas investigações, muitos de valor excepcional, puse ram
novamente em foco os problemas da Núbia cristã. Publicaram -se os primeiros
relatórios sobre os resultados das pesquisas: no Kush (Núbia sudanesa) e nos
Anais do Serviço de Antiguidades do Egito (Núbia egípcia). Alguns relatórios
forneceram matéria para séries de publicações independentes
21
. Novos trabalhos
de síntese surgiram, e os grupos de estudo deslocaram -se para regiões ao sul da
área ameaçada pelas águas.
Uma nova abordagem do problema do cristianismo na Núbia deve -se a W.
Y. Adams (especialmente quanto à classificação de cerâmica)
22
, B. Trigger
23
, L.
P. Kirwan
24
, P. L. Shinnie
25
, J. M. Plumley
26
, K. Michalowski
27
, S. Jakobielski
28
e
W. H. C. Frend
29
. Merecem particular atenção as informações detalhadas que J.
Leclant
30
publica anualmente em Orientalia sobre as mais recentes descobertas
na Núbia.
Em 1969, realizou -se na Villa Hugel, em Essen, o primeiro simpósio sobre
a Núbia cristã. Reuniram -se muitos dados em parte hipotéticos –, que foram
depois publicados em separata sob a orientação de E. Dinkler
31
. Em 1972, tinha
lugar em Varsóvia o segundo simpósio, cujos resultados foram editados em 1975
32
.
Embora a Núbia o pertencesse, como o Egito, ao Império Bizantino, havia
entre ambos um laço específico, criado pelas mises dos padres Juliano e Longino. A
21 VE -SÖDERBERGH, T. 1970; ALMAGRO, M. 1963 -5; MICHALOWSKI, K. 1965 -c.
22 ADAMS, W. Y. 1961. pp. 7 -43; id. 1962 -a. pp. 62 -75; id. 1962 -b. pp. 245 -88; ADAMS, W. Y. &
NORDSTRÖM, H. A. 1963. pp. 1 -10; ADAMS, W. Y. 1964 -a. pp. 227 -47; id. 1965 -a. pp. 148-
-76; id. 1965 -b. pp. 87 -139; id. 1966 -a. pp, 13 -30; id. 1968. pp. 194 -215; id. 1967. pp. 11 -19; VE-
-SÖDERBERGH, T. 1970. pp. 224, 225, 227, 232, 235; id. 1972. pp. 11 -17.
23 TRIGGER, B. G. 1965. pp. 347 -87.
24 KIRWAN, L. P. 1966. pp. 121 -8.
25 SHINNIE, P. L. 1965. pp. 263 -73; id. 1971 -a. pp. 42 -50.
26 PLUMLEY, J. M. 1970. pp. 129 -34; id. 1971. pp. 8 -24.
27 MICHALOWSKI, K. 1965 -a. pp. 9 -25; id. 1967 -b. pp. 194 -211; id. 1966 -b.
28 JAKOBIELSKI, S. 1972.
29 FREND, W. H. C. 1968. p. 319; id. 1972 -a. pp. 224 -9; id. 1972 -b. pp. 297 -308.
30 LECLANT, J. 1954.
31 MICHALOWSKI, K. 1975.
32 MICHALOWSKI, K. 1975.
340
África Antiga
organização do governo bio era calcada diretamente sobre a burocracia bizantina,
conforme revela a própria nomenclatura. É certo que, ao invadirem o Egito em
616, os persas detiveram -se na fronteira da bia mas existem evincias de que
o reino bio do norte foi invadido por destacamentos sassânidas acampados ao
sul da Primeira Catarata. De qualquer modo, a ocupação de sroes II pôs fim
às comunicações diretas entre a Núbia e o Egito, que nessa época era criso,
interrompendo os contatos entre o clero núbio e o patriarcado de Alexandria,
oficialmente responsável pela Igreja da bia. Em 641 o Egito caía sob o poder dos
árabes e, durante culos, a bia cristã permaneceu isolada da cultura mediterrânica.
A princípio, os árabes não deram grande importância à conquista da Núbia,
limitando -se a incursões armadas nas terras do norte. Uma vez submetido o
Egito, assinaram com a Núbia um tratado (baqt) que obrigava os núbios a um
tributo anual de escravos e mercadorias em troca de uma quantidade razoável
de roupas e alimentos que os árabes se comprometiam a fornecer -lhes. Durante
os sete séculos de independência da Núbia cristã, o tratado foi respeitado, em
princípio, por ambas as partes. Alguns choques ocasionais, como o ocorrido
logo após a assinatura do baqt, em 651 -2, quando o emir Abdallah ibn Abi Zar
penetrou até Dongola, não impediram que se mantivesse entre a Núbia e o Egito
muçulmano um comércio constante
33
.
Foi sem dúvida por causa das primeiras escaramuças entre núbios e árabes do
Egito que dois reinos núbios, o do norte e o do centro, se uniram num Estado.
Baseando -se em fontes árabes, mais antigas, Maqrizi afirma que, em meados do
século VII, o mesmo rei, Qalidurut
34
, governava a Núbia setentrional e central,
até os limites de Alodia. as fontes cristãs parecem provar que a união da Núbia
foi obra do rei Merkurios, que subiu ao trono em 697 e fez de Dongola a capital
do reino unido. A este rei se atribui a introdução do monofisismo em Makuria.
A questão do monofisismo na Núbia ainda não está bem clara, especialmente
no que concerne às relações do reino com a Igreja ortodoxa melquita. É possível
que o rito melquita persistisse, de certa forma, no interior do reino. Sabe -se,
efetivamente, que ainda no século XIV a província de Maris, ou seja, o antigo
reino da Núbia setentrional, pertencia à diocese de um bispo melquita que, como
metropolita residente em Tafa, controlava a Núbia toda. Por outro lado, a não
ser durante o século VIII, Alexandria teve sempre dois patriarcas: um monofisita
e outro melquita
35
.
33 ADAMS, W. Y. 1965 -c. p. 173.
34 MICHALOWSKI, K. 1967 -b.
35 MONNERET DE VILLARD, U. 1938. pp. 81, 158 -9; SHINNIE; P. L. 1954 -a. p. 5.
341
A cristianização da Núbia
A união dos dois reinos núbios resultou em grande progresso político e
econômico. A Merkurios sucedeu o “grande rei Kyriakos, a quem estavam
subordinados trinta governadores. Como os faraós do Egito, também os reis
da Núbia eram altos sacerdotes. Além de poder intervir em matéria de religião,
desempenhavam certas funções religiosas – com a condição de não manchar as
mãos com sangue humano
36
.
Ao saber que um governador omíada aprisionara o patriarca de Alexandria,
o rei Kyriakos usou desse pretexto para atacar o Egito e penetrar até al -Fustat
37
.
Libertado o patriarca, retornaram os núbios a seu país. Isso demonstra que a
Núbia não se limitava estritamente à defesa, mas tomava também a ofensiva
contra o Egito muçulmano.
Descobriram -se recentemente em Qasr Ibrim alguns papiros importantes
para o esclarecimento das relações entre o Egito e a Núbia durante esse período.
Trata -se de uma correspondência entre o rei da Núbia e o governador do Egito:
do texto mais longo, datado de 758, consta um protesto escrito em árabe por
Musa K’ah Ibn Uyayna contra os núbios que desrespeitavam o baqt
38
.
As expedições militares não são, porém, as únicas evidências de que o Estado
núbio florescia no início do século VIII. testemunhos arqueológicos do
extraordinário desenvolvimento da arte, da cultura, da arquitetura monumental
núbia a esse tempo. Em 707, o bispo Paulos reconstruiu a catedral de Faras,
decorando -a com esplêndidos murais
39
. Durante o mesmo período, importantes
edifícios religiosos foram construídos na antiga Dongola
40
, e outras igrejas foram
cobertas de magníficas pinturas, como em Abdallah Nirqui
41
e es -Sebua
42
. A
partir dessa época a pintura mural aparece em todos os locais de cerimônia.
Quanto ao cristianismo entre as classes humildes, tanto as escavações recentes
como as que foram realizadas em sítios conhecidos há algum tempo revelam até
que ponto ele estava difundido nas aldeias,no século VIII
43
.
36 MONNERET DE VILLARD, U. 1938. p. 99.
37 MONNERET DE VILLARD, U. 1938. p. 98.
38 PLUMLEY, J. P. & ADAMS, W. Y. 1974. pp. 237 -8; MOORSEL, P. Van, JACQUET, J. & SCHNEI-
DER, H. 1975.
39 MICHALOWSKI, K. 1964. pp. 79 -94; LECLANT, J. & LEROY, J. 1968. pp. 361 -2; HINTZE, F.
& U. 1968. pp. 31 -3, gs. 140 -7; WEITZMANN, K. 1970. pp. 325 -46; GOLGOWSKI, T. 1968. pp.
293 -312; MARTENS, M. 1972. pp. 207 -50; id. 1973; MICHALOWSKI, K. 1974.
40 Ver nota 16 acima.
41 KLASENS, A. 1964. pp. 147 -56; MOORSEL, P. Van. 1967. pp. 388 -92; id. 1966. pp. 297 -316; id. Actas
del VIII Congreso Internacional de Arqueologia Cristiana. Barcelona, 1972. pp. 349 -95; id. 1970. pp. 103 -10.
42 DAUMAS, F. Cairo, 1967. p. 40 et seq.; id. 1965. pp. 41 -50
43 VERCOUTTER, J. 1970. pp. 155 -60.
342
África Antiga
Foi provavelmente em fins do século VIII e princípios do IX que o rei
Yoannes anexou ao reino unido da Núbia a província meridional de Alodia
44
.
O período cristão, na Núbia, foi marcado por grande progresso econômico.
Só na região setentrional, a população chegou a cerca de 50 mil pessoas
45
. Com
a saqia (roda d’água), introduzida no período ptolomaico e romano, era possível
o aproveitamento das terras entre as enchentes do Nilo, muito abundantes
nessa época
46
: cultivava -se o trigo, a aveia, o sorgo, a vinha. Nas plantações de
tamareiras, as fartas colheitas contribuíam para elevar o nível de vida. Aumentara
o comércio com as nações vizinhas, estendendo -se mesmo aos países mais
distantes. Makuria vendia marfim para Bizâncio, cobre e ouro para a Etiópia.
Caravanas de mercadores, em camelos ou em barcos a remo, penetravam até o
coração da África, onde ficam hoje a Nigéria e Gana.
Os trajes preferidos pela população mais abastada eram os bizantinos. As
mulheres usavam longas túnicas, geralmente enfeitadas com bordados coloridos
47
.
O sistema de governo, como dissemos, seguia o modelo bizantino. O governador
civil da proncia era o eparca; o mbolo de sua autoridade, uma coroa com chifres,
que ele usava sobre um elmo ornado com um crescente
48
. Vestia geralmente uma
nica larga, presa por uma faixa. Os bispos usavam, sobre trajes litúrgicos ricos e
elaborados, uma estola com franjas enfeitadas com pequenos sinos.
Muitos autores antigos referem -se à fama dos núbios como arqueiros. Além
do arco, manejavam também o dardo e a espada.
As residências particulares eram de tijolo cru; tinham diversos compartimentos,
com tetos abobadados ou telhados planos de madeira, palha e argila. Na época de
maior prosperidade do reino, as paredes eram mais maciças e caiadas. Edifícios
de mais de um andar destinavam -se, talvez, à defesa. Em alguns bairros, havia
água encanada. Nas ilhas da Segunda Catarata, encontraram -se restos de paredes
de pedra bruta. No norte da Núbia, as aldeias eram cercadas de muralhas para
proteção contra invasões árabes. Às vezes, os habitantes construíam armazéns
comunitários para o caso de se verem sitiados. Junto ao centro da aldeia, erguia-
-se a igreja.
Nos edifícios sacros, empregavam -se geralmente tijolos crus. As raras exceções
conhecidas são as catedrais de Qasr Ibrim, Faras e Dongola, com paredes de
44 MONNERET DE VILLARD, U. 1938. p. 102; MICHALOWSKI, K. 1965 -a. p. 17.
45 TRIGGER, B. G. 1965. p. 168.
46 TRIGGER, B. G. 1965. p. 166.
47 HOFMANN, I. 1967. pp. 522 -92.
48 MICHALOWSKI, K. 1974. pp. 44.5.
343
A cristianização da Núbia
 . Planta geral do sítio no interior das muralhas. No meio: o Grande Kom; no alto, à esquerda:
vestígios da Grande Igreja; embaixo, à direita: a Igreja da Porta do Rio.
F . Edifícios cristãos descobertos pela expedição polonesa (1961 -1964).
4.a. Igreja de tijolo; 4.b. a catedral; 4.c. túmulos de bispos dos séculos VIII e IX; 4.d. pilar sustentando a cruz;
4.e. túmulos de bispos do século X; 4.f. capelas comemorativas de Yoannes; 4.g. túmulos de Yoannes; 4.h.
corredor norte; 4.i., 4.j. antigo mosteiro e palácio; 4.k. mosteiro norte; 4.l. igreja do mosteiro; 4.m. casas; 4.n.
residência do bispo (provavelmente um mosteiro); 4.o. edifício não identicado; 4.p. igreja sobre a encosta
sul de Kom; 4.q. túmulo do bispo Petros.
344
África Antiga
pedra ou de tijolo cozido. O estilo predominante era o basilical, mas encontram-
-se, por vezes, igrejas cruciformes ou de plano central. Quanto à decoração no
primeiro período, isto é, até o fim do século VII, não há outras fontes além das
grandes catedrais mencionadas.
A não ser em caso de reaproveitamento de edifícios pagãos, como em Faras,
por exemplo, a decoração era de arenito e repetia as volutas tradicionais, motivos
helenísticos que a arte meroíta copiara do oriente romano. São dignos de nota
os capitéis admiravelmente esculpidos com volutas e ornatos de folhagem. É
muito provável que se usassem, como imagens rituais, ícones esculpidos ou
pintados sobre madeira.
Nos monumentos mais antigos da arte cristã, na Núbia, notam -se fortes
influências do Egito copta
49
, especialmente quanto aos motivos, como por exemplo
no friso de pombas ou águias, que faz lembrar as imagens dessas aves nas estelas
coptas
50
.
A partir do século VIII, a técnica usada na pintura decorativa das igrejas
núbias é a do fresco -secco. Foi possível reconstituir certa evolução geral do estilo na
pintura núbia
51
, depois que se descobriram, em Faras, de 1961 a 1964, 120 murais
perfeitamente conservados. Neles apareciam os bispos cujos nomes e tempo
de episcopado constavam da Lista dos Bispos. As deduções com base nesses
documentos foram confirmadas por fragmentos de murais de outras igrejas bias.
Era Faras, incontestavelmente, o centro arstico pelo menos da bia
setentrional, nessa época
52
. O estilo das pinturas encontradas mais ao norte,
em Abdallah Nirqi
53
e em Tamit
54
ou ao sul, em Sonqi Tino
55
, é positivamente
provinciano em comparação com as obras -primas de Faras.
Do começo do século VIII até meados do IX, os pintores núbios preferiram
os tons violeta em suas composições. Havia, então, uma forte influência da arte
copta, cujas tradições remontavam ao estilo expressivo dos retratos do Faium.
49 DU BOURGUET, P. 1964 -b. p. 221 et seq.; WESSEL, K. 19.64. p. 223 et seq.; id. 1963; DU
BOURGUET, P. 1964 -a. pp. 25 -48.
50 PLUMLEY, J. M. 1970. pp. 132 -3, gs. 109 -19; JANSMA, N. & GROOTH, M. de. 1971. pp. 2 -9;
TÖRÖK, L. 1971.
51 MICHALOWSKI, K. 1964. pp. 79 -94; ver também nota 39 acima.
52 MICHALOWSKI, K. 1966.
53 KLASENS, A. 1967. p. 85 et seq.; CASTIGLIONE, L. 1967. pp. 14 -19; MOORSEL, P. Van. 1966. pp.
297 -316; id. 1967. pp. 388 -92; id. 1970. pp. 103 -10; id. Actas del VIII Congreso Internacional de Arqueología
Cristiana. Barcelona, 1972. pp. 349 -95; MOORSEL, P. Van, JACQUET, J. & SCHNEIDER, H. 1975.
54 Missão Arqueológica da Universidade de Roma no Egito. Roma, 1967.
55 DONADONI, S. & VANTINI, G. 1967. pp. 247 -73; DONADONI, S. & CURTO, S. 1965. p. 123 et
seq.; DONADONI, S. 1970. pp. 209 -18.
345
A cristianização da Núbia
 . Cabeça de Santa Ana: mural da nave norte da catedral de Faras (século VIII). (Foto Unesco.)
F . Faras: verga de porta decorada do início da Era Cristã (segunda metade do século VI ou início
do século VII). (Foto Museu Nacional de Varsóvia.)
346
África Antiga
Entre as obras mais representativas dessa fase, podemos situar a cabeça de Santa
Ana de Faras (hoje no museu de Varsóvia)
56
. Entretanto, mesmo nessa obra,
pode -se observar certa relação com a arte e os temas bizantinos
57
.
Depois, esse estilo evoluiu, e até meados do século X predomina a tonalidade
branca, talvez refletindo o influxo da pintura sírio -palestina, onde é característica
a representação de pregas duplas no vestuário e de outros traços iconográficos
58
.
A fonte dessa evolução estaria talvez em Jerusalém, nesse tempo um local de
peregrinação para todos os povos cristãos do Oriente.
Sabe -se que laços muito estreitos ligavam, na época, o reino monofisita da
Núbia e a seita monofisita dos jacobitas de Antioquia. Tanto o diácono João
59
como Abu Salih
60
relatam que, durante o reinado de Kyriakos, o chefe da Igreja
núbia era o patriarca monofisita (jacobita) de Alexandria. É também por esse
tempo que aparece pela primeira vez na pintura núbia uma forte tendência
realista, cujo melhor exemplo é o retrato do bispo Kyrios, de Faras (hoje no
Museu de Cartum)
61
.
Durante as escavações, encontrou -se grande quantidade de objetos, entre os
quais predominava, naturalmente, a cerâmica. Sobre eles, W. Y. Adams realizou
estudos sistemáticos
62
, conseguindo identificar vestígios de um interessante
desenvolvimento técnico, estilístico e socio econômico.
Após os progressos alcançados na época do Grupo X, a cerâmica modelada
perdeu em criatividade, como se observa pela escassez de formas novas e de
padrões decorativos no início do período cristão. Também a cerâmica torneada
sofreu uma evolução: se, por um lado, a produção de vasos para armazenamento
e consumo de vinhos parece diminuir com a interrupção do comércio com o
Mediterrâneo, por outro lado verifica -se um certo refinamento, aparecendo os
primeiros vasos com suporte para facilidade de manipulação.
56 MICHALOWSKI, K. 1965 -b. p. 188, il. 11, 2; id. 1967. p. 109, il. 27, 32; ZAWADZKI, T. 1967. p. 289;
MICHALOWSKI, K. 1970. g. 16; MARTENS, M. 1972. p. 216, g. 5.
57 MICHALOWSKI, K. 1967 -b. p. 74; JAKOBIELSKI, S. 1972. pp. 67 -9; MARTENS, M. 1972. pp. 234 -49.
58 WEITZMANN, K. 1970. p. 337.
59 PATROLOGIA ORIENTALIS. pp. 140 -3.
60 EVETTS, B. T. A. & BUTLER, A. J. 1895; MONNERET DE VILLARD, U. 1938. pp. 135 -6;
GRIFFITH, F. L. 1925. p. 265.
61 MICHALOWSKI, K. 1966 -b. p. 14, il. VI, 2; id. 1967 -b. p. 117, il. 37; JAKOBIELSKI, S. 1966. pp.
159 -60, g. 2 (lista); MICHALOWSKI, K. 1970. il. 9; MARTENS, M. 1972. pp. 240 -1, 248 et seq.;
JAKOBIELSKI, S. 1972. pp. 86 -8, g. 13.
62 Mais recentemente, ADAMS, W. Y. 1970. pp. 111 -23.
347
A cristianização da Núbia
 . Fragmento de um friso decorativo em arenito do abside da catedral de Faras (primeira metade
do século VII). (Foto Museu Nacional de Varsóvia.)
F . Faras: Capitel de arenito (primeira metade do século VII). (Foto Museu Nacional de Varsóvia.)
348
África Antiga
 . Janela em terracota da Igreja das
Colunas de Granito na Velha Dongola, Sudão (m
do século VII). (Foto Museu Nacional da Varsóvia.)
F . Cemica da Núbia cris. (Foto
fornecida pelo dr. Gamal Mokhtar.)
349
A cristianização da Núbia
Mesmo antes de 750, grande parte da cerâmica usada no sul era proveniente de
Assuã; esse fornecimento não foi interrompido mesmo quando os muçulmanos
ocuparam o Egito.
Em suma: até o século IX, a bia gozou de um período inicial de
prosperidade, sem ser muito perturbada pela vizinhança dos muçulmanos, em
geral pacíficos. Não é fácil discernir uma unidade cultural entre as primeiras
comunidades cristãs da Núbia. Em Faras, aristocratas e oficiais administrativos
falavam grego, como também os dignitários da Igreja. O clero compreendia
inclusive o copta, que talvez fosse a língua de muitos refugiados. Quanto ao
dialeto núbio, embora largamente empregado pela população, não chegou até
nós em forma escrita. Os registros que temos são de data bem mais recente,
provavelmente não anterior a meados do século IX.
Estava ainda por vir, ao redor do ano de 800, o período áureo da Núbia cristã.
C A P Í T U L O 1 3
351
A cultura pré -axumita
Quase nada se sabe acerca dos primeiros habitantes da Etiópia setentrional.
Ao que parece, até emergirem da Pré -História, por volta do século V antes da
Era Cristã, sua densidade demográfica não era muito elevada. A julgar pelas
raras informações de que dispomos, sua evolão o deve ter sido muito
diferente da dos outros grupos humanos dessa região oriental que, por seu
aspecto cartográfico, foi cognominada “o Chifre da África”.
Os poucos utensílios de pedra que restam dos dez últimos milênios antes
da Era Cristã assemelham -se às indústrias da Idade da Pedra Tardia da África
meridional.
Pelas pinturas rupestres encontradas desde o norte da Eritreia até a terra
de Harrar, pode -se deduzir que a região era habitada por povos pastores, que
reproduziam nos rochedos as figuras de seus animais: um gado sem corcova, de
chifres longos, parecido com o que se criava, a esse tempo, no Saara e na bacia
do Nilo. Conclui -se que eram muito antigas as relações entre esses povos e o
mundo egípcio.
Também no campo linguístico deve -se considerar a importância do elemento
cuxita como um fato local que começa a manifestar -se em outras áreas.
Algumas descobertas recentes em Gobedra, perto de Axum (Phillipson, 1977),
revelam que no III ou IV milênio se usava a cerâmica e se cultivava o sorgo.
Isso quer dizer que, paralelamente às atividades pastoris, existia nessa época uma
A cultura pré -axumita
H. De Contenson
352
África Antiga
agricultura especificamente etíope; essas novas técnicas já denunciam um tipo de
vida mais sedentário, mais propício ao desenvolvimento de uma civilização.
Muito pouco nos dizem os autores antigos gregos e latinos sobre os séculos
que precederam a construção da cidade de Axum e a fundação de sua primeira
dinastia real. Podemos, no entanto, situar esses fatos no século II da Era Cristã,
segundo o testemunho do geógrafo Cláudio Ptolomeu
1
, confirmado cerca de
um século depois pelo Periplus Maris Erithraei (Périplo do Mar da Eritreia)
2
e,
recentemente, pelas descobertas arqueológicas
3
.
O que sabemos pelos antigos é que Ptolomeu Filadelfo fundou em meados
do século III antes da Era Cristã o porto de Adulis, e que este foi ampliado por
seu sucessor, Ptolomeu III Evergeta, sendo considerado por Plínio, por volta de
+75, um dos mais importantes portos de escala do mar Vermelho (maximum hic
emporium Troglodytarum, etiam Aethiopum). E também Plínio que nos fala das
numerosas tribos dos Asachae, que viviam da caça ao elefante nas montanhas
situadas a cinco dias do mar (inter montes autem et Nilum Simbarri sunt, Palugges,
in ipsis veri montibus asachae multis nationibus; abesse a mari dicuntur diem V
itinere: vivunt elephantorum venatu)
4
. Entretanto, a associação que se propôs
entre o termo étnico asachae e o nome de Axum não passa de uma hipótese.
Outras fontes escritas da mesma época, e particularmente os textos sul-
-arábicos até hoje conhecidos, não parecem conter a menor alusão ao que se
passava então na margem africana do mar Vermelho.
Excetuando -se as lendas, que não constituem matéria deste capítulo, a única
fonte de informação de que dispomos são as descobertas arqueológicas feitas
a partir do início do século XX. Através dos achados foi possível reconstituir
a época pré -axumita, que, segundo F. Anfray, pode ser subdividida em dois
períodos: o período sul -arábico e o período intermediário
5
.
O período sul -arábico
E um período de forte influência sul -arábica sobre a Etiópia do norte”, a
qual se manifesta sobretudo na semelhança entre as inscrições e os monumentos
1 PTOLOMEU, Cláudio. 1932; CONTENSON, H. de. 1960. pp. 77, 79, g. 2.
2 CONTENSON, H. de. 1960. pp. 75 -80; PIRENNE, J. 1961. pp. 441, 459.
3 CONTENSON, H. de. 1960. pp. 80 -95.
4 PLÍNIO. 1938 -62; CONTENSON, H. de. 1960. pp. 77, 78, g. 1.
5 ANFRAY, F. 1967. pp. 48 -50; id. 1968. pp. 353 -6.
353
A cultura pré -axumita
 . A Etiópia no período sul -arábico. Os pontos representam os sítios arqueológicos, sendo os
mais importantes grafados com maiúscula. Os círculos indicam as cidades atuais. (Mapa fornecido pelo autor.)
354
África Antiga
descobertos na Eritreia e no Tigre e os da Arábia do Sul à época da hegemonia
do reino de Sabá. Os exemplares sul -arábicos estão datados dos séculos V e
IV antes da Era Cristã cronologia adotada pelos especialistas com base nos
estudos paleográficos e estilísticos de J. Pirenne
6
. É de consenso geral que as
mesmas datas podem ser atribuídas aos achados da Etiópia. Entretanto, não se
pode afastar definitivamente a hipótese de C. Conti -Rossini, que admite uma
defasagem entre as duas margens do mar Vermelho
7
. Segundo F. Anfray,
razões para crer que no futuro a cronologia deva ser reduzida, talvez avançando-
-se as datas do período sul -arábico”.
O único monumento arquitetônico conservado desse, período é o templo de
Yeha, mais tarde transformado em igreja cristã. Edificado com grandes blocos
meticulosamente ajustados com entalhações e bossagens, consiste em uma cela
retangular de cerca de 18,60 m por 15 m, apoiada numa base piramidal de oito
degraus. Como observou J. Pirenne, as fachadas desse templo, conservadas até a
altura de 9 m, receberam o mesmo tratamento dado a edifícios encontrados em
Marib, capital do reino de Sabá, cujo templo também se erguia sobre degraus.
Entretanto, o plano de Yeha não corresponde ao de nenhum dos santuários
sul -arábicos conhecidos
8
. Ao mesmo período parecem pertencer as ruínas de
outro edifício de Yeha, que vão agora surgindo com as escavações em Grat -Beal-
-Guebri
9
: são pilares megalíticos retangulares erguidos sobre um terraço elevado.
Pilares semelhantes foram encontrados também em dois outros sítios: Haúlti e
Kaskasé. No alto da colina de Haúlti, ao sul de Axum, dispõem -se em aparente
desordem; talvez nem estejam na posição original
10
. Em Kaskasé, na estrada que
vai de Yeha a Adulis, encontram -se seis pilares, cujo alinhamento se desconhece,
pois que o sítio ainda não foi explorado
11
. De qualquer maneira, lembram as
séries de gigantescos pilares megalíticos quadrangulares dos santuários de Marib
(Awwam, Bar’an) e de Timna (templo de Ashtar).
É ainda para Marib que apontam outros elementos esculpidos descobertos
em Yeha, como as placas denticuladas e caneladas, e o friso com figuras de
cabritos -monteses, também encontrados na região de Melazo, em Haúlti e Enda
6 PIRENNE, J. 1955; id. 1956.
7 CONTI -ROSSINI, C. 1928. pp. 110 -1.
8 KRENCKER, D. 1913. pp. 79·84, g. 164 -76; PIRENNE, J. 1965. pp. 1044 -8.
9 KRENCKER, D. 1913. pp. 87 -9, g. 195 -9; ANFRAY, F. 1963. pp. 45 -64; id. 1972 -a. pp. 57 -64;
FATTOVICH, R. 1972. pp. 65 -86.
10 CONTENSON, H. de. 1963 -b. pp. 41 -86; PIRENNE, J. 1970 -a. pp. 121 -2.
11 KRENCKER, D. 1913. pp. 143 -4, g. 298 -301.
355
A cultura pré -axumita
Cerqos. Este setor de Melazo, cerca de 10 km ao sul de Axum, revelou -se um
rico centro de esculturas do período sul -arábico. Além das estelas de Haúlti e
das placas já mencionadas, que podem ter servido de revestimento para paredes,
descobriram -se ainda várias obras reutilizadas em posteriores reformas; as mais
notáveis são o naos e as estátuas encontradas em Haúlti.
O monumento a que J. Pirenne propôs chamar naos, denominação mais
apropriada que trono”, anteriormente sugerida, foi esculpido em um único
bloco do fino calcário local e mede cerca de 140 cm de altura. Quatro pés em
forma de patas de touro, duas voltadas para diante e duas para trás, sustentam
uma base decorada com duas barras, sobre a qual repousa um nicho coberto
de ornamentos (exceto na parte posterior, inteiramente lisa). Sobre o nicho
um dossel em forma de arco rebaixado, com 67 cm de largura e 57 cm
de profundidade. Em toda a borda, da espessura de 7 cm, vêem -se cabritos-
-monteses deitados, em duas filas que convergem para uma árvore estilizada, no
ponto mais alto do naos. Também as bordas laterais são decoradas com figuras
de cabritos -monteses voltadas para o centro do nicho, em métopes superpostas
de 13 cm de largura. Na face externa, uma mesma cena é representada em baixo-
-relevo na decoração de ambos os lados: duas figuras em atitude de marcha.
Um homem alto e barbado, carregando uma espécie de ventarola, é precedido
por uma pequena figura segurando um bastão. O nariz de ambos, ligeiramente
aquilino,-lhes aparência semítica; os cabelos são representados por pequenas
pastilhas. A personagem menor veste uma túnica lisa, que se alarga na altura dos
tornozelos, e traz uma capa sobre os ombros; sobre sua cabeça, do lado direito
do naos, um nome próprio masculino em escrita sabeana: RFS (Rafash). A
personagem maior usa uma espécie de calção bufante, com um pano solto atrás
e preso à cintura por uma faixa que parece amarrada nas costas, deixando uma
parte pendente. O manto que traz sobre os ombros tem duas pontas amarradas
num grande achatado sobre o peito. No baixo -relevo do lado esquerdo, ele
segura com ambas as mãos o objeto descrito como uma espécie de ventarola;
no da direita, porém, a mesma personagem ostenta um bracelete quádruplo no
pulso esquerdo, e a mão direita empunha, além da ventarola, uma espécie de
clava. Essas pequenas diferenças não chegam a sugerir que a cena não seja a
mesma nos baixos -relevos de ambos os lados do naos. Mais adiante trataremos
da sua interpretação.
No mesmo sítio, em Haúlti, descobriram -se várias estátuas de um mesmo
tipo, das quais apenas uma está relativamente completa. Esta foi encontrada aos
pedaços, misturados com fragmentos do naos. Mede 82 cm de altura e é feita de
fino calcário branco com veios lilás, pedra originária do lugar. Representa uma
356
África Antiga
 . O “trono” ou “naos” de Haúlti:
1.a. lado esquerdo; 1.b. frente; 1.c. lado direito.
(Fotos: Instituto Etíope de Arqueologia.)
357
A cultura pré -axumita
mulher sentada, com as mãos pousadas sobre os joelhos, inteiramente vestida
com uma túnica longa de estreitas pregas verticais representadas por estrias que
acompanham as linhas do corpo. O decote, ligeiramente chanfrado na frente,
e a faixa lisa e estreita que termina a barra da saia são debruados por um galão.
Por cima da túnica traz um colar feito de três grossos cordões anelados, que
sustenta, na frente, um peitoral em forma de escudo e, atrás, entre as omoplatas,
um contrapeso em forma de trapézio com seis hastes verticais. Nos pulsos, tem
braceletes tóricos quádruplos. As mãos estão estendidas sobre os joelhos e os pés
descalços repousam sobre um pequeno suporte retangular. A cabeça, também
nua, foi encontrada intacta, com exceção do nariz e da orelha direita. Os cabelos
são representados por fileiras de pequenas pastilhas, e os olhos acentuados por
uma linha em relevo. O queixo é redondo e as faces cheias desenham covinhas
junto à boca, dando -lhe o aspecto de um bico e uma expressão sorridente,
talvez involuntária. Percebe -se que essa estátua se destinava a ser encaixada num
assento, pois a parte posterior das pernas é achatada e tem no meio uma cavilha
vertical, bastante danificada
12
.
Além dos fragmentos de pelo menos duas esculturas semelhantes, encontrou-
-se também uma estátua sem cabeça, que diferia daquela descrita anteriormente
por ser de execução mais grosseira e ter como ornamento apenas o colar de três
voltas. Está sentada num tamborete decorado com uma barra.
A atitude das estátuas de Haúlti lembra a de uma estatueta descoberta por
acaso, entre outras antiguidades, em Addi Galamo, sítio antigamente conhecido
como Azbi Dera ou Hawila -Asseraw, na encosta ocidental do planalto do Tigre
13
.
A estatueta mede 40 cm de altura aproximadamente e é bem mais rústica. As mãos
descansam sobre os joelhos mas seguram duas taças cilíndricas, provavelmente
receptáculos de oferendas. O cabelo também é representado por pastilhas, e as
ranhuras guardam ainda os vestígios de um colar com contrapeso e de braceletes,
talvez de metal precioso. A túnica termina em franja e não é pregueada, mas
enfeitada com rosetas provavelmente incrustadas –, que talvez representem
bordados. O assento é um simples tamborete decorado com uma barra.
Em Matara, importante sítio nas vizinhanças de Kaskasé, numa camada
pré -axumita da colina B, a equipe de F. Anfray desenterrou um fragmento de
cabeça parecido com as de Haúlti, apenas mais rudimentar e em alto -relevo
14
.
12 CONTENSON, H. de. 1962. pp. 68 -83; PIRENNE, J. 1967. pp. 125 -33.
13 SHIFERACU, A. 1955. pp. 13 -5; CAQUOT, A. & DREWES, A. 1. 1955. pp. 18 -26, pr. V -VIII;
DORESSE, 1. 1957. pp. 64 -5.
14 ANFRAY, F. & ANNEQUIN, G. 1965. pp. 60 -1.
358
África Antiga
 . Estátua de Haúlti. 2.a. lado esquerdo; 2.b.
busto.
F . Altar de incenso em Addi Galamo. (Fotos:
Instituto Etíope de Arqueologia.)
359
A cultura pré -axumita
O Museu Nacional de Roma abriga em seu acervo (MNR 12113) uma
estatueta em calcário amarelado que apresenta muitos aspectos em comum com
as de Haúlti: a cabeça e os braços quebraram -se, mas pela parte conservada,
que mede 23,7 cm de altura, -se que é uma mulher sentada, com um longo
vestido de pregas e um colar de duas voltas de onde pendem vários berloques
esféricos e um peitoral com o respectivo contrapeso. Na parte inferior, em forma
de pedestal, está inscrito um nome sul -arábico, Kanan, cuja grafia, segundo J.
Pirenne, data do fim do século IV antes da Era Cristã
15
. Admite -se que essa
estatueta um tanto rústica provenha da Arábia do Sul; entretanto, desde que
não se conhece com precisão a sua origem, não é impossível que tenha sido
produzida na Etiópia durante o período sul -arábico.
Na verdade, o material encontrado até agora na Arábia do Sul revela
semelhanças de ordem geral a posição sentada, por exemplo: as chamadas
“imagens de ancestrais”, algumas femininas; representações de mulheres sentadas,
nos baixos -relevos funerários de Marib, Haz ou do Museu de Aden; e a estátua
de “Lady Bar’at em Timna, em que J. Pirenne vê a grande deusa sul -arábica
16
.
Já nos séculos IX e VIII antes da Era Cristã, era muito comum no domínio
sírio -hitita (Tell Halaf, Zindjirli, Marash, Neirab) a figura da deusa ou mulher
sentada, muitas vezes com uma taça nas mãos. Percebe -se, realmente, um certo
parentesco entre as estátuas etíopes e as da Ásia Menor do fim do século VII e
início do VI antes da Era Cristã (brânquides, efígies funerárias de Mileto), que
representavam personagens corpulentas, sentadas com as mãos sobre os joelhos,
usando trajes longos. Na mesma época e na mesma região, vamos encontrar
rostos cheios, de olhos saltados, bocas em arco de círculo com os cantos voltados
para cima, uma fisionomia muito semelhante à da estátua de Haúlti. Os mesmos
traços aparecem também numa deusa frígia de Boghaz Keuy, conforme observou
H. Seyrig, e numa cabeça de Mileto, assim como em outras esculturas jônicas.
Essa expressão vai transformar -se em verdadeiro sorriso nas obras da Ática,
durante a primeira metade do século VI antes da Era Cristã
17
. Aliás, várias
afinidades da arte sul -arábica com a arte grega orientalizante do século VI, ou
com os estilos dela derivados, do século V, foram apontados por J. Pirenne.
A mesma figuração estilizada dos cabelos, lembrando as estátuas de Haúlti,
pode ser observada numa cabeça da Acrópole, numa cabeça greco -persa de
Amrit e ainda na Apadana de Persépolis, em que representa tanto os cabelos
15 JAMME, A. 1956. p. 67; CONTENSON, H. de. 1962. pp. 74 -5, g. 9; PIRENNE, J. 1965. pp. 1046 -7.
16 CONTENSON, H. de. 1962. p. 76; PIRENNE,· J. 1967. p. 131.
17 CONTENSON, H. de. 1962. p. 77.
360
África Antiga
encarapinhados dos cuxitas negroides como as mechas cuidadosamente
onduladas do oficial meda que os comanda
18
. É difícil, portanto, saber se os
cabelos pastilhados o uma estilização de cabelos encaracolados ou a reprodução
fiel dos cabelos crespos – uma diferença que bem poderia levar a conclusões de
ordem étnica.
Se, por um lado, as estuas sentadas encontram correspondentes tanto no
helenismo orientalizante como na parte semita do Oriente Próximo, por outro
lado nota -se a influência egípcia, e mais particularmente meroíta, nos colares
com contrapeso, inspirados na mankhit, e também nas roupas pregueadas.
Estas, conforme observa J. Pirenne, lembram as túnicas das rainhas de Méroe
e a corpulência que estas herdaram de Ati de Punt, contemporânea de
Hatshepsut
19
.
Tais aproximações evidenciam a diversidade de influências refletidas nas
mulheres sentadas” do Tigre, mas não nos esclarecem quanto ao que elas
representam. Também não é muito elucidativa a inscrição no pedestal de
Addi Galamo, que parece fazer parte da estatueta: segundo A. J. Drewes, esse
texto poderia significar para que ele conceda um filho a YMNT”; segundo
G. Ryckmans, àquele que socorre Yamanat. Walidum”; segundo J. Pirenne, à
proteção [divindade protetora] do Iêmen. Walidum”. Restam dúvidas, ainda,
sobre se as mulheres representam rainhas ou altas personagens ou se, como
quer J. Pirenne, são imagens da grande deusa. Apesar da dificuldade levantada
pela presença simultânea de várias efígies mais ou menos idênticas, é preciso
lembrar, em favor desta última interpretação de J. Pirenne, que os pedaços da
estátua completa e os do naos estavam misturados, por ocasião das escavações, e
que as proporções de ambos correspondiam, o que nos levou a crer que os dois
monumentos deviam completar -se.
Inclinando -nos, pois, a rejeitar a hipótese de um trono vazio, do tipo
encontrado na Fenícia, em Adulis ou em Tacazzé, e a seguir nossa primeira
impressão, vendo no naos, como J. Pirenne, a “reprodução em pedra de um
naos processional” em que repousasse uma imagem de culto. Afora uns poucos
fragmentos encontrados em Haúlti, que poderiam provir de um monumento
semelhante, esse naos é único no gênero. Embora nada de alogo tenha
aparecido na Arábia do Sul o que se poderia atribuir meramente ao estado
atual das pesquisas arqueológicas no Iêmen –, alguns elementos idênticos aos
do naos são observáveis em achados arqueológicos provenientes dessa região.
18 CONTENSON, H. de. 1962. p. 82.
19 CONTENSON, H. de. 1962. p. 78; PIRENNE, J. 1967. p. 132.
361
A cultura pré -axumita
Os mesmos cascos de touro voltados para a frente e para trás podem ser
vistos numa mobília de pedra identificada por G. van Beek e numa estatueta
de Marib, em mármore
20
. Os cabritos -monteses de chifres recurvados aparecem
frequentemente na região de Sa(Marib, Haz), sempre deitados e muitas
vezes em métopes superpostas e ainda na borda de uma estela chata, como a
que se descobriu recentemente em Matara
21
. Num altar de Marib, reaparecem
os cabritos associados a uma árvore estilizada, talvez comendo seus frutos. O
significado religioso desses animais, associados ou não a uma árvore da vida”,
parece não deixar margem a dúvidas. Grohmann praticamente demonstrou
que o cabrito -montês simbolizava o deus lunar Almaqah, ao qual se consagrava
também o touro
22
.
Quanto aos baixos -relevos laterais do naos, embora estejam mais próximos
da técnica persa aquemênida do que das obras sul -arábicas até agora conhecidas,
aparentemente posteriores, existem paralelos entre as figuras neles representadas
e a ronde -bosse em bronze de Marib: cabelos, olhos, orelhas, tanga, sandálias
23
.
Não diferença no tratamento dos olhos, da boca, dos cabelos em relação à
estatueta de Haúlti. O nariz, que está faltando na estatueta, acentua, no naos,
os traços semíticos da personagem maior, tipo ainda bastante comum no Tigre.
Essa figura é muito semelhante à do rei de Punt, encontrada em Deir el -Bahari:
a atitude decidida, o cabelo curto, a barba em ponta, o nariz aquilino, o cinto
atado atrás, o calção com uma aba pendente
24
.
A interpretação da cena representada nesses baixos -relevos ainda é objeto de
discuses. Desde a primeira publicação, levantaram -se duas hipóteses. Uma,
mais realista, associa a imagem maior a um servo que carrega um abanador ou
um estandarte e mais uma clava ou um mata -moscas na mão direita; a figura
que o precede seria uma criança, cujo sexo estaria determinado pela inscrição
do nome masculino RFS. A segunda hipótese, mais conforme às convenções
antigas, vê na personagem maior uma divindade ou um ser humano poderoso
protegendo um ser inferior
25
. Adepto desse último ponto de vista, A. Jamme
atribuiu o nome RFS à personagem maior, considerando -a uma divindade
portadora de um abanador e uma clava, a resguardar uma mulher grávida
20 CONTENSON, H. de. 1962. p. 79.
21 CONTENSON, H. de. 1962. p. 80; ANFRAY, F. 1965. p. 59, pr. LXIII, 2.
22 GROHMANN, A. 1914 -b. pp. 40, 56 -67.
23 ALBRIGHT, F. P. 1958.
24 CONTENSON, H. de. 1962. pp. 82 -3.
25 CONTENSON, H. de. 1962. p. 73.
362
África Antiga
que no caso não seria outra senão a “mulher sentada” supostamente associada
ao trono”
26
. Por sua vez, J. Pirenne conclui tratar -se de uma personagem
importante, “talvez mesmo um mukarrib ou chefe”, chamada RFS, apresentando
à deusa (cuja estua estaria colocada sobre o naos) as insígnias do poder: o
abanador ou guarda -sol e a clava. Precedendo -a, viria uma mulher corpulenta,
talvez sua própria esposa (figura menor), oferecendo o bastão
27
. Ainda que
essa explicão possa parecer, atualmente, a mais plausível, é difícil admitir
que o nome RFS, dada a posão em que foi inscrito, se aplique à personagem
maior. Por outro lado, restaria explicar qual a associação entre a deusa -mãe e
os símbolos do deus lunar masculino.
Entre as esculturas do período sul -arábico contam -se também as esfinges,
embora estas até hoje só tenham sido encontradas na Eritreia, com exceção
apenas de um pequeno fragmento, achado em Melazo
28
. A mais conservada
provém de Addi Gramaten, no nordeste de Kaskasé: tem cabelos trançados,
como algumas cabeças de terracota de um período posterior, em Axum, e como
ainda hoje usam as mulheres do Tigre. Ostenta também um colar triplo
29
,
detalhe observado em outras duas esfinges, com cara trabalhada a martelo, que
se projetam em relevo de uma placa de pedra encontrada em Matara
30
. Ainda
em Dibdib, ao sul de Matara, encontrou -se outra esfinge, bastante mutilada
31
. J.
Pirenne observa que estes leões de cabeça humana nada têm em comum com os
grifos e as esfinges aladas de tradição fenícia, produzidos na Arábia do Sul num
período posterior
32
. Sua origem encontra -se, talvez, nos protótipos egípcios ou
meroítas, conforme se sugeriu a respeito de uma cabeça sul -arábica de cabelos
trançados e colar
33
.
Uma categoria de objetos esculpidos em pedra muito bem representada
na Etiópia do norte é a dos altares de incenso. A maioria deles é de um tipo
bem conhecido na Arábia do Sul: forma cúbica com decoração arquitetônica,
geralmente sobre uma base piramidal. Destes, o mais belo exemplo é o de Addi
Galamo segundo J. Pirenne, superior a todos os descobertos na Arábia do
26 JAMME, A. 1963. pp. 324-7. Não se sabe ao certo em que o autor se baseia para armar que a mulher
do lado direito está grávida, mas não a do esquerdo, já que as duas guras são exatamente idênticas.
27 PIRENNE, J. 1967. p. 132.
28 LECLANT, J. 1959 -b. p. 51, pr. XLII, a.
29 DAVICO, A. pp. 1 -6.
30 ANFRAY, F. 1965. p. 59, pr. LXIII, 4.
31 CONTI -ROSSINI, C. 1928. p. 225, pr. XLIII, n. 128 -9; FRANCHINI, V. pp. 5 -16, g. 7 -8, II-I.
32 PIRENNE, J. 1965. pp. 1046 -7.
33 GROHMANN, A. 1927. g. 55.
363
A cultura pré -axumita
Sul. Achou -se uma série desses altares em Gobochela, Melazo, vários em Yeha,
alguns fragmentos em Matara, e outros em locais não identificados
34
. De todos
eles, porém, apenas dois, apesar de seus caracteres frustos, podem ser atribuídos
ao período sul -arábico: um, o primeiro da Etiópia explicitamente designado
como altar para queima de perfumes, mqtr, foi exumado em Matara
35
, e o outro
não muito distante dali, numa localidade chamada Zala Kesedmai. Este último
distingue -se pelos baixos -relevos que ornamentam suas quatro faces: numa,
-se o símbolo divino do disco e do crescente; na face oposta, uma “árvore da
vida estilizada, que de certo modo lembra a de Haúlti; para ela estão voltados
os cabritos -monteses esculpidos nas outras duas faces
36
.
Um grupo de quatro altares descobertos em Gobochela representa uma
variante até então desconhecida: o altar de incenso de forma cilíndrica sobre
um pedestal troncônico
37
. Sua decoração resume -se a um friso de triângulos e
ao símbolo divino sul -arábico: o crescente encimado pelo disco.
Como na Arábia do Sul, junto a essas piras encontraram -se altares de libação,
reconhecidos pelas canaletas por onde se escoava o líquido das oferendas. Em
Yeha encontraram -se várias plataformas, análogas às de Hurreigha ou da região
de Marib, cujo canal de escoamento reproduz a forma de um bucrânio. Numa
delas, reproduzia -se certamente a cabeça de um animal, que não de ser
identificado devido ao desgaste da pedra
38
. Outras ostentam belas inscrições
em relevo e são ornamentadas com frisos de barras, como os queimadores de
incenso
39
. O nome que recebem localmente essas plataformas mtryn, termo
não confirmado pelos achados da Arábia do Sul foi tirado das inscrições
existentes nos próprios objetos: no primeiro aqui citado, em um exemplar do
segundo grupo e em um altar inédito, também para libações, descoberto em
Matara. Deste mesmo sítio provêm espessas mesas de oferendas, análogas à de
Yeha
40
. Já o altar de Addi Gramaten aproxima -se muito mais do tipo elaborado,
34 Addi Galamo: CAQUOT, A. & DREWES, A. J. 1955. pp. 26 -32, pr. IX -XI; Gobochela: LECLANT, J.
1959 -b. pp. 47 -53; DREWES, A. J. 1959. pp. 90 -7, pr. XXX, XXXI, XXXIV, XXXVIII; PIRENNE, J.
1970. p. 119, pr. XXIV, b; Yeha: DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970. pp. 58 -9, pr. XVI; id. 1970.
p. 62, pr. XIX; Matara: ANFRAY, F. & ANNEQUIN, G. 1965. pp. 59, 75, 89 -91, pr. LXIII, 3, LXXI;
Sítios não -identicados: SCHNEIDER, R. 1961. p. 64, pr. XXXVIII, b.
35 DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1967. pp. 89 -91, pr. XLIII, 1 -2.
36 ANFRAY, F. & ANNEQUIN, G. 1965. p. 76, pr. LXXIV.
37 LECLANT, J. 1959 -b. pp. 48 -9; DREWES, A. J. 1959. pp. 88, 89, 91, 94, pr. XXXV -XXXVII.
38 DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970. pp. 59 -60, pr. XVI, b -e.
39 DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970. pp. 60 -2, pr. XVIII, a -b.
40 ANFRAY, F. & ANNEQUIN, G. 1965. pp. 59, 75, 90, pr. LXXII, 1 -3.
364
África Antiga
com frisos de barras em degraus
41
. O de Fikya, perto de Kaskasé, em formato
de bacia e ornado com esfinges e leões, lembra mais o estilo meroíta, na opinião
de J. Pirenne
42
.
Além de esculturas, tudo o que se descobriu em termos de vestígios materiais,
durante as escavações, foi uma cerâmica ainda pouco conhecida. Algumas jarras
grandes, com asas e estrias roliças horizontais, bem como vasos em forma de
tulipa, encontrados em Yeha e Matara, foram atribuídos a este período por F.
Anfray, que relacionou esse material ao coletado em Es Soba, poucos quilômetros
ao norte de Aden, que dataria do século VI antes da Era Cristã
43
.
Os documentos epigráficos que a paleografia permite situar no período mais
antigo são todos em caracteres sul -arábicos. A. J. Drewes, porém, divide -os em
dois grupos: ao primeiro pertencem as inscrições de monumentos, em autêntica
língua sabeana com algumas particularidades locais; ao segundo, as inscrições
rupestres, numa grafia que imita a do primeiro grupo mas transcreve uma língua
semítica provavelmente apenas aparentada ao sabeano
44
. Pelo que se deduz das
pesquisas até hoje realizadas, a extensão geográfica desse segundo grupo devia
limitar -se ao distrito de Acchele Guzai, na parte norte do planalto da Eritreia.
As inscrições rupestres dessa região, em que predominam os nomes próprios de
aspecto sul -arábico, trouxeram sobretudo informações de ordem onomástica,
enquanto as dos monumentos do primeiro grupo contribuíram mais para dar
uma ideia das crenças e da estrutura social da época.
Além de termos designativos de objetos de culto, como incensórios ou
mesas de oferendas, esses textos citam um certo número de divindades que
vão constituir um panteão mais ou menos idêntico ao do reino de Sabá. A
lista mais completa que se conhece aparece num bloco reutilizado na igreja
de Enda Cerqos, em Melazo: “... Astar e Awbas e Almaqah e Dat -Himyan e
Dat -Ba’dan...
45
.
O nome Astar aparece em duas outras inscrições: uma de Yeha e outra de
origem desconhecida
46
. É simplesmente a forma etiópica de Athtar, deus estelar
também associado a Almaqah em três textos votivos, um em Yeha e dois em
41 DAVICO, A. 1946. pp. 1 -3.
42 DREWES, A. J. 1956. pp. 179 -82, pr. I; ANFRAY, F. 1965. pp. 6 -7, pr. 111.
43 ANFRAY, F. 1966. pp. 1 -74; id. 1970. p. 58.
44 DREWES, A. J. 1962.
45 DREWES, A. J. 1959. p. 99; SCHNEIDER, R. 1961. pp. 61 -2.
46 SCHNEIDER, R. 1961. p. 64 -5 (JE 671, graa B1 -B2); DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970.
pp. 60 -1.
365
A cultura pré -axumita
Matara
47
. Ainda em Matara, existe um altar dedicado a ShRQN, epíteto do
mesmo deus, identificado ao planeta Vênus
48
.
O segundo nome, Awbas, é o de uma divindade lunar conhecida através de
duas inscrições, em toda a Etiópia, uma na esfinge e outra no altar de Dibdib
49
.
Almaqah (ou Ilumquh, segundo A. Jamme), porém, é o deus lunar que parece
ter sido o mais venerado, tanto em Sabá como na Etiópia. Além de seu nome
constar das inscrições de Matara, Yeha e Enda Cerqos, mencionadas, só
a ele são dedicados todos os textos de Gobochela, Melazo, o altar de Addi
Galamo e um altar de libações em Yeha
50
. Foram -lhe consagrados também os
grandes santuários de Awwam e Bar’an, em Marib, e provavelmente o templo
de Yeha. Finalmente, são símbolos de Almaqah os cabritos de Matara, Yeha e
Haúlti, os cascos de touro esculpidos no naos de Haúlti e o touro de alabastro
de Gobochela
51
.
As duas deusas Dat -Himyan e Dat -Ba’dan representam o culto solar;
correspondem, respectivamente, ao “sol de veo” e ao “sol de inverno”. A
primeira é mencionada também no altar de libações de Addi Gramaten, em
Yeha e em Fikya; a segunda, em inscrições fragmentárias de Matara e Abba
Pantalewon, perto de Axum
52
.
Outras divindades citadas nos altares de libações de Yeha parecem
desempenhar papel secundário. NRW, outro deus estelar correspondente ao sul-
-arábico Nawraw, é mencionado duas vezes, numa delas juntamente com Astar
53
.
No mesmo altar, aparece a inscrição YF’M que, segundo Littman, seria o nome
de outro deus. Outro altar é dedicado a SDQN e NSBTHW
54
. Finalmente, A.
Jamme considera também um nome de divindade a palavra inscrita no naos de
Haúlti: RFS.
Uma religião assim tão elaborada faz pensar num povo de organização social
bastante complexa.
De maneira geral, os textos das dedicatórias não fornecem mais do que a
filiação dos personagens; os de Gobochela, contudo, revelam que a população se
47 DREWES, A. J. 1959. pp. 89 -91; DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970. pp. 58 -9.
48 DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1967. pp. 89 -90.
49 CONTI -ROSSINI, C. 1928. p. 225, pr. XLIII, n. 128 -9; FRANCHINI, V. 1954. pp. 5 -16, g. 7 -8,
11 -14; DREWES, A. J. 1954. pp. 185 -6.
50 DREWES, A. J. 1959. pp. 89 -94, 97 -9; DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970. pp. 61 -2.
51 HAILEMARIAN, G. 1955. p. 50, pr. XV; LECLANT, J. 1959 -b. p. 51, pr. LI.
52 SCHNEIDER, R. 1965 -a. p. 90.
53 DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970. pp. 61, 62.
54 DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970. pp. 59 -60.
366
África Antiga
organizava em clãs. Quatro deles e mais um texto de Yeha mencionam “LHY,
do cde GRB, da família [ou filho de] YQDM’L FQMM, de Marib”. Em
algumas dedicatórias, o nome dessa personagem aparece junto com o de seu
irmão SBHHMW; na de Yeha, ele consagra a Astar e Almaqah os seus bens
terrenos e o seu filho Hyrmh
55
. GRB designa, com certeza, um grupo étnico
assim como, muito provavelmente, YQDM’L e FQMM. As expressões de
Marib” e de Hadaqan”, em dois textos de Matara
56
, parecem referir -se mais a
um topônimo do que a uma tribo; poderiam indicar localidades fundadas no
norte da Etiópia por colonos sul -árabes, mas, segundo L. Ricci, essas expressões
significariam antes que tais grupos eram originários da própria Arábia
57
.
Por outras inscrições, especialmente as do altar de Addi Galamo e de um
bloco encontrado em Enda Cerqos, Melazo
58
, sabe -se alguma coisa sobre a
organização política da Etiópia do Norte durante o período sul -arábico. Devia
tratar -se de uma monarquia hereditária, pois que dois dinastas, RBH e seu filho
LMN, usam o mesmo título: rei SR’N da tribo de YG’D, mukarrib de D’iamat
e de Sabá”. O primeiro, RBH, citado no altar de Addi Galamo, acrescenta ao
seu nome: “descendente da tribo W’RN de Raydan”. O segundo, mencionado
também no altar de origem desconhecida consagrado a Astar, pode ser o mesmo
LMN mencionado em dois textos de Matara. Trate -se do filho de SR’N ou
de um homônimo, num dos dois textos esse nome aparece juntamente com o
de um mukarrib sabeano, Sumu’alay
59
. A referência explícita à tribo Waren de
Raydan demonstra a importância, para esses reis, da descendência sul -árabe. O
título de mukarrib de D’iamat e de Sabá pode explicar -se de diversos modos: a
primeira hipótese é que essas regiões pertencessem à Arábia do Sul e que os seus
príncipes exercessem seu domínio também sobre o norte da Etiópia; a segunda
é que fossem distritos africanos aos quais os colonos sul -árabes tivessem dado
os nomes de suas províncias natais; a terceira é que esses nomes tivessem uma
significação política e não territorial. A primeira dessas hipóteses é altamente
improvável; seria preciso pensar, como A. J. Drewes, que os dinastas exerciam
o poder de mukarrib de Sabá sobre seus súditos sul -árabes ou de extração sul-
-arábica. Os títulos de “rei SR’N, da tribo de YG’D” poderiam ser interpretados
55 DREWES, A. J. 1959, pp. 89, 91, 97 -9; DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970. pp. 58 -9.
56 SCHNEIDER, R. 1965 -a. pp. 89 -91.
57 RICCI, L. 1961. p. 133; DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970. p. 59.
58 CAQUOT, A. & DREWES, A. J. 1955. pp. 26 -33; SCHNEIDER, R. 1965 -b, pp. 221 -2.
59 SCHNEIDER, R. 1961. pp. 64 -5; SCHNEIDER, R. 1965 -a. p. 90; DREWES, A. J. & SCHNEIDER,
R. 1967. pp. 89 -91.
367
A cultura pré -axumita
como “rei dos Tsar’ane, da tribo dos Ig’azyan”, indicando que eles governavam
também a parte autóctone da população, e que provinham da tribo local de
YG’D (ou IGZ), em que A. J. Drewes os ancestrais dos Gueze.
Três inscrições fragmentárias, a de Abba Pantalewon, a do altar de Addi
Galamo e a do panteão de Enda Cerqos, aludem a um acontecimento histórico
que parece ter ocorrido durante o reinado de RBH: a tomada e o saque de
D’iamat, sua parte oriental e sua parte ocidental, seus vermelhos e negros”.
Infelizmente, é duvidosa ainda a identificação dessa região e de seus agressores.
Em suma, os testemunhos da arquitetura, das obras de arte, da epigrafia, bem
como os dados fornecidos pelos textos sobre as crenças religiosas e a organização
social na Etiópia do Norte indicam uma forte influência sul -arábica nessa região
durante os séculos V e IV antes da Era Cristã. Conforme observa F. Anfray, essa
cultura predominantemente semítica emergiu após vários séculos de penetração
silenciosa, sem dúvida em consequência de pressões demográficas e políticas que
ainda ignoramos: o pequenos grupos de imigrantes que carregam consigo a
cultura sul -arábica
60
. O mesmo pesquisador sugere que devem ter sido esses
colonos os primeiros a introduzir técnicas agrícolas, especialmente o uso do
arado, e a construir as primeiras aldeias em pedra na Etiópia.
Os trabalhos de L. Ricci e A. J. Drewes dão a impressão de que em alguns
centros predominou o elemento sul -arábico, desenvolvendo um embrião de
vida urbana ao redor de um santuário: foi o caso de Yeha, da região de Melazo,
e talvez de Addi Galamo e de Matara. A base da cultura local, com certas
influências nilóticas, acha -se melhor representada na região da Eritreia, pelos
sítios de Acchele Guzai, Addi Gramaten e Dibdib.
Em toda a parte setentrional do planalto etiópico, porém, chegou a verificar-
-se uma unidade cultural de indiscutível coerência interna. Esse fato coincide,
certamente, com a subida ao poder de um grupo que se manteve como classe
dominante, mas é provel que nunca venhamos a saber se esse grupo era
constituído por descendentes de colonos sul -árabes ou se por autóctones que
assimilaram a cultura sul -arábica, superior à sua, como se esta fosse a sua cultura
original. C. Conti -Rossini insistiu particularmente sobre a predominância dos
aspectos sul -arábicos nessa primeira civilização etiópica. Reagindo contra essa
tendência, J. Pirenne e F. Anfray valorizaram as características originais da cultura
etíope, síntese de influências diversas, que, se chega a inspirar -se em formas
sul -arábicas, mostra -se superior aos próprios modelos. A expressão “período
60 ANFRAY, F. 1967. pp. 49 -50; id. 1968. pp. 353, 356.
368
África Antiga
etíope -sabeano definiria melhor o caráter específico dessa cultura. Entretanto,
como reconhece F. Anfray, a aparente superioridade das produções africanas pode
ser apenas uma impressão causada pela descontinuidade de que até hoje sofrem
as pesquisas arqueológicas no Iêmen. Novas descobertas, tanto na Etiópia e na
margem oriental do mar Vermelho como no antigo reino de Méroe, sem dúvida
permitirão, um dia, conhecer melhor os processos de aculturação que devem
ter -se desenrolado na segunda metade do último milênio antes da Era Cristã.
O certo é que a Etiópia era então um ponto de cruzamento de correntes
comerciais e influências culturais.
O período intermediário
Assim foi chamado o segundo período pré -axumita, cujos vestígios
arqueológicos evidenciam uma cultura local com assimilação de influências
estrangeiras.
Percebe -se ainda, sem dúvida, elementos sul -arábicos, mas não se trata mais
de um influxo direto e, sim, de uma evolução interna a partir de contribuições
anteriores, conforme observa F. Anfray. Inscrições em grafia muito mais
rudimentar revelam que a língua cada vez mais se afasta do dialeto sul -arábico
primitivo
61
. não menção aos mukarribs, mas um texto encontrado em
Kaskasé faz referência a um rei de nome sul -arábico: Waren Hayanat (W’RN
HYNT), descendente de Salamat
62
. Vê -se que existia ainda nesse tempo o c
de GRB, de que se encontraram, em Gobochela (Melazo), testemunhos da
fase sul -arábica: não mais referências à sua ligação com Marib, mas um
membro desse clã oferece a Almaqah um altar de incenso do tipo cúbico com
base piramidal
63
. Dedicada ao mesmo deus, encontrou -se uma rude estatueta
de touro, em xisto
64
. Entre os achados de Addi Gramaten, havia inscrições
acrescentadas num período posterior: no altar, uma segunda dedicatória, a
Dat -Himyan; na esfinge, um nome: Wahab -Wadd. A documentação epigráfica
é completada por inscrições em sul -arábico cursivo, como as de Der’a e de Zeban
61 RICCI, L. 1959. pp. 55 -95; id. 1960. pp. 77 -119; DREWES, A. J. 1962, passim.
62 DAE. pp. 62 -3.
63 LECLANT, J. 1959 -b. p. 47; DREWES, A. J. 1959. p. 92, pr. XXXII -XXXIII.
64 DREWES, A. J. 1959. pp. 95 -7, pr. XXXIX -XL.
369
A cultura pré -axumita
 . A Etiópia no período pré -axumita intermediário. Os pontos representam os sítios arqueológicos,
sendo os mais importantes grafados com maiúscula. Os círculos indicam as cidades atuais. (Mapa fornecido
pelo autor.)
370
África Antiga
Mororo, e pela laje inscrita de Tsehuf Emni, onde a língua não é sul -arábica
nem etiópica
65
.
Em matéria de arquitetura, pouco se encontrou am das constrões
religiosas da região de Melazo. Uma delas, onde J. Leclant encontrou todos os
objetos de Gobochela, tanto os originais como os reutilizados, é uma construção
retangular orientada no sentido leste -oeste. Consiste num tio fechado de
18,10 m por 7,30 m, no interior do qual uma esplanada leva a uma cela de 8,90
m por 6,75 m; esta se abre por uma porta no centro da face ocidental, sendo
a face oriental ocupada por um banco sobre o qual se encontravam os objetos
consagrados
66
.
A estátua e o naos de Haúlti achavam -se num corredor entre dois prédios
muito danificados, orientados de leste para oeste
67
. nessa direção é possível
conhecer ao certo suas dimensões: 11 m para o edifício norte e 10,5 m para
o edifício sul. Cada um deles tem, na face oriental, uma pequena escada,
provavelmente situada no centro da construção, o que nos daria a dimensão
norte -sul: 13 m para o edifício norte e 11 m para o edifício sul. Cada escada
dava acesso a um terraço, sendo difícil saber se este era coberto ou não. À volta
toda do terraço corria um banco estreito,interrompido junto à escada, sobre
o qual estavam colocados ex -votos em cerâmica e metal. A maioria dos objetos
votivos em terra cota eram figuras de animais geralmente estilizados, mas às
vezes bastante naturais: bovídeos, alguns com cangas em miniatura; animais de
carga com seus fardos, quadrúpedes estranhos, com a língua pendente, javalis,
leopardos, galinhas -dangola. Acharam -se também bandejas para abluções,
modelos de casas, algumas mulheres sentadas e, junto às escadas, esfinges de
terracota
68
.
Além de serem todas orientadas segundo os pontos cardeais, as construções
desse período têm outro aspecto em comum:não são feitas de calcário, mas de
granito azul ou xisto local. Esta será, mais tarde, uma característica da arquitetura
axumita, mas está presente nas construções da Eritreia, no período 2 de
Matara, e nas ruínas ainda virgens de Fikya, que parecem pertencer igualmente
à fase intermediária
69
.
65 CONTI -ROSSINI, C. 1947. p. 12, pr. 11 -111; DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1970. pp. 66 -7.
66 LECLANT, J. 1959 -b. pp. 44, 45, pr. XXIII -XXVI.
67 CONTENSON, H. de. 1963 -b. pp. 41 -2, pr. XXVI -XXIX.
68 CONTENSON, H. de. 1963 -b. pp. 43 -4, pr. XXXV -XL.
69 ANFRAY, F. 1965. pp. 6 -7, pr. III, pp. 59, 61, 72, 74.
371
A cultura pré -axumita
Típica desse período é ainda a acumulão de objetos em depósitos
subterrâneos, seja nos túmulos em forma de poço de Yeha e Matara, seja nas
fossas de Sabea e Haúlti
70
. Deve -se notar que, de três fossas esvaziadas em Sabea,
cujo nome parece evocar a Arábia do Sul, duas parecem ter a mesma forma que
os túmulos em poço construídos na mesma época, a julgar pela descrição de J.
Leclant.
Nesses depósitos, bem como na colina de Haúlti, ao redor dos santuários,
encontraram -se objetos de metal em grande quantidade, especialmente
importantes por sugerirem um considerável desenvolvimento da metalurgia
local a partir do século III antes da Era Cristã.
Foi provavelmente durante essa fase que se iniciou a fabricão dos
instrumentos de ferro: am de rios fragmentos de objetos desse metal
colocados em redor dos templos de Haúlti, encontraram -se anéis, tesouras,
espadas e punhais em Yeha, e uma espada e anéis em Matara.
Muito mais abundantes, porém, são os objetos de bronze, talvez por esse
metal resistir melhor à corrosão. Em Sabea, descobriu -se certa quantidade de
grossos anéis abertos, de secção retangular; um objeto do mesmo tipo jazia sobre
o banco de um santuário de Haúlti. Talvez servissem de braceletes ou ornato
para os tornozelos, à moda meroíta, mas não é impossível que fossem utilizados
também como moedas
71
. os anéis encontrados em Yeha e Matara eram mais
leves: poderiam servir como pulseiras ou brincos.
Em matéria de instrumentos, havia vários com gume largo, que talvez fossem
utilizados para trabalhar a madeira: machados (Haúlti e Yeha), enxós curvos com
encaixe (Yeha e Sabea); a estes se podem acrescentar os instrumentos de Mai
Mafalu, na Eritreia
72
. Em Yeha, acharam -se ainda buris retos, bem como buris
curvos, cujo modo de utilização o ficou bem esclarecido. Em Yeha, Haúlti e
Gobochela, surgiram foices rebitadas, que sugerem trabalhos agrícolas. No que
diz respeito a armas, encontraram -se: em Haúlti, uma acha ou alabarda em
forma de crescente, e dois punhais rebitados; em Matara, duas facas – uma com
rebites e outra com punho e botão em forma de crescente.
Os túmulos de Yeha continham também panelas, pratos de balança e uma
sineta; no cume da colina de Haúlti recolheram -se pedaços de recipientes. Em
70 Yeha: ANFRAY, F. 1963. pp. 171 -92, pr. CXIV -CLVI; Matara: ANFRAY, F. 1967. pp. 33 -42, pr. IX -XVII,
XXX -XXXIV, XLII; CONTENSON, H. de. 1969. pp. 162 -3; Sabea: LECLANT, J. & MIQUEL, A. 1959.
pp. 109 -14, pr. LI -LXIII; Haúlti: CONTENSON, H. de. 1963 -b. pp. 48 -51, pr. XLIX -LX.
71 TUFNELL, O. 1959. pp. 37 -54.
72 CONTI -ROSSINI, C. 1928.
372
África Antiga
Haúlti, Yeha e Matara, acharam -se agulhas e alfinetes; em Sabea, Haúlti e Yeha,
pequenas contas de bronze.
Uma última categoria de objetos de bronze reflete a tradição sul -arábica:
pequenas placas perfuradas, a que se chama de “marcas de identidade”
73
. Essas
placas, segundo A. J. Drewes e R. Schneider, são de dois tipos. O primeiro
consiste em objetos pequenos e finos, de forma geométrica, dotados de um
anel de preensão e desenhos simétricos, onde às vezes é possível reconhecer
monogramas ou letras isoladas. A esta série pertencem os achados em Sabea e
Haúlti, e a maior parte dos de Yeha. O segundo tipo corresponde a uma série
de objetos encontrados apenas em Yeha: maiores e mais espessos, seu formato
representa um animal estilizado (touro, cabrito -montês, leão, pássaro). Trazem
nomes próprios escritos em sul -arábico cursivo, que parecem revelar também
uma língua intermediária entre o sabeano e o gueze. Desses nomes, o que se
pode ler com mais clareza é W’RN HYWT – justamente o do rei mencionado
em Kaskasé interessante observar que figurações análogas aparecem tanto em
inscrições rupestres como em cacos de cerâmica desenterrados em Haúlti – não
gravados, mas em relevo). Excetuando -se alguns objetos de bronze da Arábia do
Sul, até hoje não se encontrou nada semelhante a essas placas, fora da Etiópia.
Esses objetos revelam uma técnica tão avançada que parece cabível aceitar a
sugestão de F. Anfray, atribuindo aos artífices etíopes do período intermediário
outros objetos de bronze, como um par de cascos de touro em miniatura,
encontrado perto dos santuários de Haúlti, ou a vigorosa figura de touro de
Mahabere Dyogwe
74
, que seria ainda um testemunho do culto a Almaqah. Disso
conclui Anfray, muito judiciosamente, que não devem ser anteriores à época
axumita as representações de gado com corcova encontradas, por exemplo, em
Matara, Zeban Kutur ou Addi Galamo, sendo que neste último sítio elas seriam
contemporâneas dos altares trípodes de alabastro e do cetro de bronze de Gadar.
O ouro era empregado em joias, como os anéis encontrados em Yeha, e os
brincos, anéis, contas e fios enrolados de Haúlti. Mas em todos os sítios do
período, acharam -se também inúmeros fragmentos de colares coloridos feitos
de massa de vidro (frita), ou mesmo de pedra, como os descobertos em Sabea
e Matara.
Ainda em pedra, podemos citar os pequenos incensórios de arenito, de forma
retangular ou discoide, de Yeha, Matara e Haúlti: um sinete de Sabea, um vaso
de alabastro e um anel entalhado, de serpentina, achado em Yeha.
73 DREWES, A. J. & SCHNEIDER, R. 1967. pp. 92 -6, pr. XLIV.
74 CONTENSON, H. de. 1961. pp. 21 -2, pr. XXII; ANFRAY, F. 1967. pp. 44 -6.
373
A cultura pré -axumita
. Touro em bronze,
Mahabere Dyogwe.
F . .  . Marcas
de identidade em bronze de Yeha, em
forma de pássaro, de leão e de ca brito
montês. (Fotos: Instituto Etíope de
Arqueologia. )
374
África Antiga
O desito de Haúlti continha, finalmente, dois amuletos de faiança,
representando um Ptah -patec e uma cabeça de Hátor; nas camadas inferiores
achou -se um amuleto de cornalina representando um Harpócrates.
Entre os achados de Addi Galamo, havia quatro vasilhas de bronze, entre as
quais uma tigela decorativa, finamente gravada com desenhos de rãs e flores de
lótus. Havia também um fragmento de vaso, tendo uma fila de gado trabalhada
em relevo. O maior interesse desses objetos reside na sua origem meroíta o que
vem confirmar as relações existentes entre a Etiópia antiga e o vale do Nilo
75
.
Manifesta -se ainda a influência meroíta em algumas cerâmicas características
do período intermediário
76
. Nunca mais, depois disso, se revelou na Etiópia tanta
variedade e elegância de formas. Usava -se argila, tanto preta como vermelha, do
tipo micáceo; as superfícies eram geralmente vidradas. Os desenhos geométricos,
quase sempre incisos, aparecem às vezes pintados, em branco e vermelho;
casos, também, em que os ornamentos incisos são preenchidos com uma pasta,
em geral branca, mas ocasionalmente vermelha ou azul. Ao material retirado
das fossas acrescentam -se a farta documentação, em grande parte inédita, obtida
no alto da colina de Haúlti, nas camadas mais profundas de Yeha e Matara e,
provavelmente, a cerâmica mais antiga de Adulis.
Se, por um lado, os ex -votos de Haúlti sugerem que a base da economia era
essencialmente agrícola e pastoril, por outro lado os progressos na metalurgia do
ouro, do ferro e do bronze, a fabricação em série de objetos de pedra ou de massa
de vidro, a refinada arte da cerâmica atestam o desenvolvimento do artesanato
especializado. Ao que tudo indica, um processo de urbanização estava em curso
em alguns centros fundados no período sul -arábico, como Melazo, Matara e
Yeha, ou mais recentes, como Adulis. Embora se conserve ainda a lembrança
das tradições sul -arábicas, um novo impulso parece vir do reino de Méroe, que
teve um papel primordial na difusão das técnicas metalúrgicas na África.
É bem possível que, com o declínio de Méroe e o enfraquecimento dos reinos
da Arábia do Sul, os etíopes passassem a controlar todo o comércio de ouro,
incenso, marfim e produtos trazidos do oceano Índico, condição sem dúvida
favorável à criação do reino axumita, no século II da Era Cristã.
75 CONTENSON, H. de. 1963. p. 48, pr. XLIX, b, c; KIRWAN, L. P. 1960. p. 172; LECLANT, J. 1961.
p. 392; LECLANT, J. 1962. pp. 295 -8, pr. IX -X.
76 PARIBENI, R. 1908. pp. 446 -51; LECLANT, J. & MIQUEL, A. 1959. pp. 109 -14, pr. LI-LXIII;
CONTENSON, H. de. 1963. pp. 44, 49 -50, pr. XLI, LIII, b, LX; ANFRAY, F. 1963, pp. 190 -1, pr.
CXXVIII -CXLV; ANFRAY, F. 1968. pp. 13 -15, pr. XLVII -L, g. 1, 2, II; ANFRAY, F. 1967. p. 42, pr.
XXX -XXXIX, XLII.
C A P Í T U L O 1 4
375
A civilização de Axum do século I ao século VII
Segundo as fontes pririas, a história do reino de Axum alongou -se por
aproximadamente um milênio, a partir do século I da Era Cristã. Nela se
registram alguns acontecimentos de relevo, como as três intervenções armadas
na Arábia do Sul no decorrer dos séculos III, IV e VI, uma expedição a Méroe
no século IV e, na primeira metade deste último, a introdão do cristianismo.
Vinte reis, conhecidos em sua maioria apenas pelas moedas que emitiram,
sucederam -se no trono de Axum. Os mais famosos foram Ezana e Caleb. A
tradição conservou os nomes de outros monarcas, mas nesse caso, infelizmente,
não dispomos de base segura. O rei mais antigo de que se tem registro é
Zoscales, mencionado num texto grego do fim do século I, porém ainda não
sabemos com segurança se seu nome corresponde ao de Za -Hekale, citado nas
listas tradicionais de reis.
Nosso conhecimento da civilização axumita deriva de fontes várias, entre as
quais se incluem passagens de autores antigos, desde Plínio, que menciona Adulis,
até os cronistas árabes, como Ibn Hischa, Ibn Hischam e Ibn Hawkal. No geral,
porém, esses fragmentos são um tanto vagos, e o essencial da documentação é
fornecido pela epigrafia local e pelo material arqueológico que se foi reunindo
com o passar dos anos. As inscrões, pouco numerosas, começaram a ser
coletadas no século XIX. Os textos de Ezana, gravados em pedra, figuram entre
os mais importantes. A descoberta de outras inscrições de Ezana, de Caleb e de
A civilização de Axum do
século I ao século VII
F. Anfray
376
África Antiga
um de seus filhos (Wazeba), em grego, geês e pseudo -sabeano, proporcionou
múltiplas informações, a que se juntaram os testemunhos recolhidos nos últimos
vinte anos, representados sobretudo pelas inscrições rupestres e pelos textos em
placas de xisto encontrados na Eritreia. Tais inscrições remontam ao século II
da Era Cristã; são os escritos mais antigos do período axumita.
A observação arqueológica e o produto das escavações constituem sem dúvida
a principal fonte documentária a respeito da civilização axumita. A partir do
século XIX, viajantes começam a registrar a existência de sítios, monumentos
e inscrições. Publicaram -se inúmeros estudos, alguns do maior interesse
como, por exemplo, a obra fartamente documentada da missão alemã para
Axum (1906). Criado em 1952, o Instituto Etíope de Arqueologia deu início
a trabalhos sistemáticos. Diversos sítios foram objeto de pesquisas exaustivas,
caso de Axum, Melazo, Haúlti, Yeha e Matara. Ao mesmo tempo, o mapa de
povoamentos antigos cresceu consideravelmente. Sabe -se hoje da existência de
aproximadamente quarenta sítios importantes, número que por certo crescerá
com a realização de novas prospecções. Estas, no entanto, são ainda insuficientes,
donde a precariedade do nosso atual conhecimento. A datação da maioria dos
vestígios descobertos não é precisa, sendo as inscrições praticamente as únicas
evidências que nos permitem esboçar um quadro cronológico, mesmo assim nem
sempre definitivo. Os dados disponíveis não são suficientes sequer para se traçar
as linhas mais gerais da civilização axumita.
A área de Axum
Segundo as indicações arqueológicas, o reino axumita ocupava uma superfície
retangular de aproximadamente 300 km de comprimento e 160 km de largura,
entre 13° e 17° de latitude norte e 30° e 40° de longitude leste, estendendo -se da
região ao norte de Keren até Alaki, ao sul, e de Adulis, na costa, às cercanias de
Taqqase, a oeste. Situado a uns 30 km de Axum, Addi -Dahno é praticamente
o último sítio conhecido desse local.
Período proto -axumita
O nome de Axum surge pela primeira vez no guia naval e comercial Periplus
Maris Erythraei (Périplo do Mar da Eritreia), compilado no final do século I por um
negociante egípcio. Ptolomeu, o Ggrafo, no século II, também alude ao território.
377
A civilização de Axum do século I ao século VII
O Periplus fornece informações sobre Adulis, hoje coberta de areia, situada
a cerca de 50 km ao sul de Massaua. Descreve -a como “uma grande aldeia a
três dias de viagem de Koloé, cidade do interior e principal mercado de marfim.
Desse lugar à cidade do povo chamado axumita são mais cinco dias de viagem.
Para lá é levado todo o marfim da terra situada além do Nilo, através da região
denominada Cyenum, e dpara Adulis”. Era essa aldeia, portanto, a via de
escoamento de mercadorias para Axum, notadamente do marfim. O mesmo
texto informa que ali também se vendiam chifres de rinocerontes, carapaças
de tartaruga e obsidiana, artigos que figuram entre as exportações assinaladas
por Plínio, antes do autor do Periplus, a propósito do comércio de Adulis.
Por conseguinte, a referência ao nome de Adulis é anterior à referência ao de
Axum. Segundo Plínio, Adulis localiza -se na terra dos trogloditas: “Maximum
hic emporium Troglodytarum, etiam Aethiopum ...”. Desde o século I, portanto,
romanos e gregos sabiam da existência dos axumitas e de suas “cidades” na
hinterlândia de Adulis.
Poucas são as informações fornecidas pela arqueologia acerca da cultura
material dos primeiros séculos do período. Algumas inscrições dos séculos II
e III constituem praticamente os únicos testemunhos datáveis, apresentando,
apesar de pouco numerosas e lacônicas, algumas notáveis particularidades. Nelas
estão registradas as primeiras formas do alfabeto etíope, cujo uso se mantém
ainda hoje. Essas inscrições não são certamente as mais antigas dentre as
encontradas na região axumita, pois que muitas outras, de tipo sul -arábico,
remontam à segunda metade do último milênio antes da Era Cristã. A escrita
sul -arábica serviu de modelo à etíope. No século II da Era Cristã, a grafia etíope
passou por notável evolução, separando -se da sul -arábica.
Além da escrita, tem -se como certa a existência de outros vestígios dos
primeiros culos, como ruínas de edifícios, restos de cemica e de outros
objetos, mas o atual estágio das pesquisas ainda o permite identificá -los.
Vários monumentos do século III ou do início do IV, como as estelas de Matara
e de Anza, mostram que a civilização axumita não rompeu inteiramente com a
cultura do período pré -axumita. Neles se pode observar, gravado ou em relevo,
o símbolo lunar de um disco sobre um crescente, semelhante ao encontrado nos
incensórios do século V antes da Era Cristã, que figura também nas moedas.
Uma escrita parecida com a sul -arábica ainda pode ser vista nas grandes pedras
de Ezana e Caleb. Observam -se, entretanto, importantes transformações: a
religião se alterou, como mostram as inscrições; não se invocam os antigos
deuses e, à exceção do símbolo lunar, todos os demais emblemas são abandonados
– bode, leão, esfinge, etc. Foi por essa época que principiou uma nova forma de
378
África Antiga
 . Fotograa aérea de Axum. (Foto Instituto Etíope de Arqueologia.)
civilização, muito diferente da anterior, conhecida como pré -axumita. O mesmo
fenômeno ocorre no tocante a outros aspectos da vida cultural, como se pode
verificar nos sítios escavados.
Sítios axumitas
Assentados nas duas extremidades da rota antiga, segundo o Periplus, os sítios
de Adulis e Axum são os mais importantes e tamm os únicos cujo nome original,
379
A civilização de Axum do século I ao século VII
confirmado nos textos e inscrições, se conservou nas respectivas localidades até
nossos dias. Adulis é um sítio deserto, mas os habitantes das aldeias vizinhas
ainda chamam Azuli às suas ruínas. Todos os outros sítios antigos, ou pelo menos
a maioria deles, são designados por nomes que decerto não correspondem aos
da antiguidade axumita. Concentram -se principalmente na região oriental, de
Aratou, ao norte, a Nazret, ao sul, e incluem Tokonda, Matara, Etch -Mare e
Kohaito – provavelmente Koloé (ver mapa no Capítulo 16).
Axum
A cidade de Axum e o reino do mesmo nome gozavam de sólida reputação
no século III da Era Cristã, a crer num texto da época atribuído a Mani, que
descreve o reino como o “terceiro no mundo”. Na própria cidade, com efeito,
grandes monumentos e numerosos testemunhos materiais preservam a memória
de um período histórico de grande importância. Diversos elementos nos fazem
entrever um passado glorioso: estelas gigantescas dentre elas, o mais alto
monólito entalhado –, uma enorme mesa de pedra, bases de trono maciças,
fragmentos de colunas, sepulturas reais, vestígios de construções aparentemente
imensas debaixo de uma basílica do século XVIII e, enfim, as lendas e tradições.
No princípio deste século, uma missão alemã fez um levantamento gráfico
e fotográfico de todos os monumentos visíveis, descobrindo, na zona oriental
da cidade, as ruínas de três conjuntos arquitetônicos, identificados com muita
propriedade como vestígios de palácios. Trabalhos arqueológicos subsequentes,
em especial os do Instituto de Arqueologia, trouxeram à luz novos monumentos
e reuniram vasta documentação referente à antiga cidade real.
Dos três edifícios conhecidos, segundo a tradição, como Enda -Simon, Enda-
-Michael e Taakha Maryam, apenas os alicerces subsistiram, e hoje podem ser
vistos nos desenhos e fotos da missão alemã. O maior desses palácios ou castelos,
Enda -Simon, media 35 m
2
; Enda -Michael tinha 27 m
2
, e Taakha Maryam, 24
m
2
. Pátios e construções anexas circundavam os castelos, formando conjuntos
retangulares que chegavam a medir em Taaka Maryam, por exemplo, 120 m de
comprimento por 85 m de largura, aproximadamente.
Sob a igreja de Maryam -Tsion encontram -se as ruínas de outro edifício
imponente. Abaixo do nível do terraço, a leste da construção, ainda se conservam
os vestígios do alicerce, com 30 m de largura e 42 m da extremidade ao centro.
Na parte ocidental da cidade, uma missão do Instituto Etíope de Arqueologia
descobriu e estudou, de 1966 a 1968, os restos de outro conjunto arquitetônico.
As ruínas, localizadas em Dongour, ao norte da estrada de Gondar, pertencem
a outro castelo, construído por volta do século VII.
380
África Antiga
No terreno em declive havia um outeiro arredondado, com a parte superior
plana. Conta uma tradição local que esse amontoado de terra e pedras recobria
o túmulo da rainha de Sabá. Os vestígios a descoberto do castelo ocupam uma
área de cerca de 3000 m
2
; os muros formam um quadrilátero irregular, com um
dos lados medindo 57 m de comprimento e o outro, meio metro a menos. No
centro das ruínas, os muros ainda têm 5 m de altura.
Quatro grupos irregulares de edifícios, compreendendo ao todo cerca de
quarenta aposentos, dispõem -se na forma de um quadrado ao redor do corpo
principal do castelo. Construído sobre uma base em degraus, com 1,80 m de altura,
este pavilhão central consta de sete salas, às quais três escadas externas dão acesso.
Três pátios separam o pavilo de suas dependências, e os muros externos incluem
partes salientes e reentrantes, alternadamente. Pilares maciços de alvenaria, aos
grupos de dois ou quatro, enterrados sob vários modos do edicio principal e das
habitações secundárias, serviam de base a pilares de pedra ou, mais provavelmente,
a vigas de madeira, que sustentavam estruturas superiores. Nos vestíbulos do
pavilhão central, amplas bases de pedra cobertas por pavimento geométrico
exerciam a mesma função. Certas características na disposição das partes nordeste
e sudoeste do sítio sugerem que nesses pontos as escadas conduziam a um andar
superior, onde ficava a principal área de habitação.
Descobriram -se três fornos de tijolo cozido na parte oeste do sítio enquanto
ao sul, numa sala das construções contíguas, uma estrutura de tijolos chamuscados
parece ter funcionado como dispositivo de aquecimento.
O sítio de Dongour constitui o mais belo exemplo conhecido da arquitetura
axumita. Em vista de sua situação periférica e de suas dimensões relativamente
modestas, Dongour não parece ter servido de residência real. O mais provável
é que fosse habitada por algum cidadão importante.
Outro edifício notável erguia -se numa colina a nordeste de Axum. A tradição
atribui essa construção a Caleb e seu filho Guebre Meskel. Duas espécies de
capelas foram erigidas sobre criptas compostas de várias abóbadas e cobertas
por lajes de pedra. Há cinco abóbadas na cripta de Guebre Meskel, ao sul,
e três na de Caleb, ao norte. A parte superior da construção é relativamente
recente e apresenta sinais de frequentes alterações. motivos para crer que
as criptas são mais antigas e que as abóbadas foram reutilizadas em meados do
século VII ou VIII. Na escada do túmulo de Caleb, grandes blocos poligonais
de pedra evocam certos monumentos da Síria do norte, dos séculos II e III. O
monumento era rodeado por vasta necrópole, e recentemente se descobriram
nos arredores vários túmulos em forma de poço. Mais distantes, a leste, existem
ainda outras sepulturas.
381
A civilização de Axum do século I ao século VII
Em Bazen, a leste da cidade, túmulos tipo forno estão escavados na rocha,
no flanco das colinas. Alguns deles dispõem de um poço e abóbadas no fundo,
em ambos os lados. Um túmulo ltiplo com escada de dezessete degraus,
também escavada na rocha, encontra -se no mesmo setor, ocupado por uma
estela, que antigamente o estaria isolada, porquanto um viajante ings,
no começo do século XIX, afirma ter visto nesse local catorze “obeliscos
derruídos.
A antiga cidade ocupava o espaço entre as estelas gigantes e o monumento
de Dongour, área em que se acham enterradas suas ruínas. O afloramento de
paredes aqui e ali evidencia a existência de construções axumitas, e, tão logo se
torne possível dar início a escavações arqueológicas nos lugares tradicionalmente
denominados Addi -Kiltè e Tchaanadoug, um longo período do passado de
Axum deverá se revelar.
Adulis
São raros os vestígios de superfície nesse tio, localizado a uns 4 km
em direção ao interior. As pedras, a areia e a vegetação recobrem uma vasta
extensão de ruínas, que ocupam um retângulo de aproximadamente 500 m de
comprimento por 400 m de largura, conforme se deduz dos elementos visíveis.
Em alguns lugares, montículos de entulho assinalam os trabalhos executados
por várias expedições arqueológicas. Ao norte, o solo apresenta -se recoberto por
fragmentos de pilares e grande profusão de cacos de cerâmica. Em 1868, uma
força expedicionária inglesa desembarcou nas proximidades e exumou alguns
vestígios de construções. Dos trabalhos realizados pouco restou, a não ser os
muros descobertos pela missão de Paribeni, em 1906, e os vestígios encontrados
pela missão do Instituto Etíope de Arqueologia, em 1961 -2.
No início de 1906, o sueco Sundstm descobriu uma edificação de grandes
propoões no setor norte. Pouco depois, Paribeni escavou duas ruínas menores,
a leste e a oeste. Todas as ruínas consistem em alicerces em degraus e redentes
de estruturas retangulares, circundados por construções contíguas. Sundström
denominou palácio” ao monumento que descobriu, formado por um vasto
conjunto de 38 m de comprimento e 22 m de largura, abrangendo uma área
mais extensa que a do castelo de Axum, Enda -Simon, cujo pavilhão central
media 35 m de comprimento. Sobre o embasamento, quatro fileiras de pilares
dividem a construção em seis partes, três no sentido do comprimento e três no
da largura. Trata -se de uma planta de basílica, a sugerir, não um palácio, mas um
santuário criso.
382
África Antiga
O embasamento descoberto por Paribeni a oeste desse monumento ostenta
as mesmas características arquitetônicas, medindo aproximadamente 18,50 m
de comprimento. A parte superior era coberta por um pavimento, guardando
vestígios dos pilares de uma nave. Na extremidade oriental, uma abside
semicircular entre duas salas mostra que as ruínas pertenciam a uma basílica.
O nível inferior do edifício fazia parte de uma construção mais antiga, que o
arqueólogo italiano chamou de Altar do Sol”. À luz de outras constatações,
podemos hoje considerá -la como restos de um edifício, provavelmente religioso,
pertencente a uma época anterior à da basílica sobre ele construída.
A leste do monumento descoberto por Sundström, Paribeni encontrou a base
de outra igreja, de 25 m de comprimento, com traços de uma abside semicircular.
O edifício apresentava duas particularidades notáveis: a presença de uma pia
batismal no aposento situado ao sul da abside e, no centro, os vestígios de oito
pilares dispostos em forma octogonal. Desse modo combinavam -se no mesmo
edifício os planos retangular e quadrado.
Matara
No planalto da Eritreia, a 135 km ao sul de Asmara, nos arredores de Senafe,
encontra -se um dos sítios arqueológicos mais antigos da Etiópia – Matara. Suas
camadas mais profundas pertencem a uma importante construção do período
sul -arábico.
De 1959 a 1970 o Instituto de Arqueologia efetuou escavações sistemáticas
nesse sítio, mas muito trabalho ainda está por ser feito. Os níveis pré -axumitas
foram apenas sondados, principalmente devido à exisncia de numerosas
estruturas arquitetônicas na parte superior. O nível axumita foi escavado
aproximadamente até a metade, revelando quatro grandes vilas, três igrejas
cristãs e um quarteirão de habitações comuns com cerca de trinta casas. As
quatro vilas estão construídas segundo o tipo então habitual: uma residência
principal, edificada sobre uma base em degraus e circundada por dependências
externas. Como algures, as pilastras de alvenaria enterradas sob os aposentos do
edifício principal serviam de base para as vigas que sustentavam os vestíbulos.
As escadarias das entradas principais deviam ser protegidas por alpendres; nos
cantos das escadas existem cavidades que poderiam ter servido para sustentar
os pilares de madeira dos alpendres.
As casas comuns compreendem dois ou três aposentos, com paredes de 70 cm
de largura, em dia. Vestígios de lareiras, fornos de barro e numerosos recipientes
permitiram localizar os solos de habitação.
383
A civilização de Axum do século I ao século VII
Um outro tipo de casa, de tamanho intermediário em relação às vilas e às
moradias comuns, apresenta certos traços do edifício central das vilas: desenho
semelhante e escadas externas. É de supor que essa tipologia arquitetônica reflita
uma hierarquia social.
Ao sul e a leste da cidade, os edifícios religiosos, em seu aspecto exterior, mal
se distinguem das demais estruturas: compõem -se de um edifício central cercado
por pátios e dependências e têm idêntico modo de edificação. Um dos edifícios
é uma espécie de capela funerária parecida com o túmulo de Caleb, em Axum,
conquanto de proporções menores. Essa capela, com 15 m de comprimento e
10 m de largura, está construída sobre uma cripta a que se tem acesso por uma
escada de catorze degraus.
A leste, outra igreja – a terceira, de baixo para cima, de uma superposição de
ruínas de quatro edificações tinha uma nave central separada das naves laterais
por duas fileiras de quatro pilares, cujas bases ainda subsistem. No eixo da nave,
orientada na mesma direção em todos os edifícios desse tipo, uma abside ocupa
o espaço entre duas salas. Os muros externos do monumento medem 22,40 m
de comprimento e 13,50 m de largura. Num cômodo situado a leste da igreja,
atrás da abside, descobriu -se uma pia batismal onde a água era lançada por uma
série de ânforas embutidas umas nas outras, de modo a formar um canal, que se
estendia até o muro exterior.
Havia uma outra igreja, relativamente pequena, na colina de Goual -Saim,
ao sul do sítio de Matara. A maior parte de suas paredes foi destruída, mal se
lhes podendo distinguir o desenho. Contudo, ainda subsistem vestígios de um
pavimento de xisto e de bases de pilares.
Kohaito
Situado ao norte de Matara, a uma altitude de 2600 m, o sítio de Kohaito
apresenta rnas de grande interesse arquitetônico. Cerca de dez montes,
disseminados por uma extensa área, conservam os vestígios de importantes
constrões do final do peodo axumita e, ao que tudo indica, de ruínas
mais antigas. Ainda hoje os arqueólogos deparam com inúmeros pilares ao
longo dessas colinas, os quais, segundo se supõe, pertenceriam em sua maioria
a igrejas de proporções semelhantes às de Matara. Os muros encontrados
nesses outeiros apresentam traços das obras de alvenaria axumita e obedecem
ao mesmo padrão retangular observado nos demais sítios desse período. Sete
desses conjuntos arquitetônicos são facilmente distinguíveis; além dos edifícios
em ruínas, descobriu -se a noroeste uma barragem de pedras, construída com
384
África Antiga
 . Leoa esculpida na parte lateral de uma rocha, período axumita.
F . Matara: alicerce de um edifício axumita. (Fotos Instituto Etíope de Arqueologia.)
385
A civilização de Axum do século I ao século VII
blocos ajustados com perfeição em fileiras regulares, destinada a represar a água
proveniente da região sudeste de uma bacia natural denominada bacia de Safra”.
A barragem atinge 67 m de comprimento e uma altura de aproximadamente
3 m em sua parte central, onde dois conjuntos de pedras salientes formam
degraus que ligam o alto da barragem ao nível da água.
A leste, um túmulo em forma de poço escavado na rocha contém duas câmaras
ou criptas funerárias. Um de seus lados é decorado por uma cruz esculpida de
tipo axumita. Num desfiladeiro próximo ao sítio uma rocha pintada e gravada
com figuras representando bois, camelos e outros animais.
Cidades e mercados
As grandes povoações, incluindo as localidades mencionadas e outras mais,
formavam comunidades densas e compactas, cujas habitações se agrupavam
estreitamente ao redor de grandes edifícios com variadas funções. As escavações
realizadas em Axum, Adulis e Matara mostraram que essas localidades
constituíam verdadeiros centros urbanos. No quarteirão popular de Matara
existe uma pequena rua sinuosa. Semelhantes indícios sugerem a existência de
uma população relativamente numerosa, cujas atividades não se limitavam à
agricultura. A presença de moedas ajuda -nos a compreender o desenvolvimento
da economia, a exemplo dos diversos tipos de objetos descobertos, como
vidros e ânforas mediterrâneas. Por sua vez, as obras de arte (uma lâmpada de
bronze, vários artefatos de couro) indicam um certo luxo.
É necessário ressaltar que a maioria das construções visíveis ou reveladas
pelas escavações pertence ao período axumita mais recente. Entretanto, existem
vestígios mais antigos, embora nem sempre datados com precisão, sobre os quais
se erigiram as edificações do último período, o que indica certas semelhanças
entre as duas épocas. Como ficou dito atrás, o autor do Periplus, no século I,
descreve Kolcomo uma “cidade do interior” e principal mercado de marfim”, e
designa Adulis como um centro comercial que obtém marfim da “cidade do povo
chamado axumita”, onde teve início a coleta da mercadoria. Há, portanto, razões
para identificar Adulis como outra cidade comercial, o mesmo sucedendo com
os demais centros urbanos (Aratou, Tokonda, Etch -Maré, Degoum, Haghero-
-Deragoueh, Henzat, etc.). Não se sabe ao certo se o comércio era praticado
dentro dessas cidades. O mais provável é que ele se efetuasse na periferia, pois as
cidades antigas não eram cercadas de muralhas. No entanto, ainda não dispomos
de evidência para resolver esta questão.
386
África Antiga
A arquitetura axumita características gerais
As principais características da arquitetura axumita são o emprego da pedra,
a planta quadrada ou retangular, a alternância sistemática de partes salientes
ou recuadas, os alicerces em degraus que sustentam grandes edificões e
uma alvenaria que se serve apenas da argila como argamassa. Junte -se a isso
uma característica surpreendente: os traços arquitetônicos se reproduzem
praticamente em todos os lugares. se observou que as mesmas fórmulas se
aplicam a todos os principais edifícios, religiosos ou não. As construções são
edificadas sobre as mesmas bases em degraus, e o acesso se por escadas
monumentais, geralmente de sete degraus. Todos os edifícios são circundados
por dependências, que deles se separam por pequenos pátios.
Pode -se afirmar com segurança que os castelos e vilas incluíam pelo menos
um pavimento acima do rés do chão, o qual, por sua altura, bem poderia chamar-
-se primeiro andar. Dada a exiguidade das dependências do primeiro andar,
obstrdo por pilares e vigas, é provável que a parte habitada da casa ficasse
num andar superior. Uma questão que se apresenta é a de saber se os grandes
castelos de Axum tinham vários pavimentos. No começo do século, o arquiteto
da missão ale tentou, num esboço, reconstituir o monumento de Enda-
-Michael. O desenho mostra torres de quatro andares nos ângulos do pavilhão
central. Como quase nada subsistiu do edifício (hoje mais arruinado do que
em 1906), não é fácil concluir da plausibilidade dessa tentativa. Mas, a julgar
pelas obras de alvenaria mostradas em fotografias e desenhos e exemplificadas
em outras construções muros pouco espessos, feitos de pedras ligadas por
simples argamassa de argila e, portanto, de frágil contextura , é de duvidar
que Enda -Michael ou os demais castelos tivessem mais de dois andares. Pode
ser que alguns castelos mais sólidos contassem com três pavimentos, o que é
bastante improvável; supor mais de três seria um despropósito. No culo VI,
Cosmas Indicopleustes, em sua Topografia Cristã, afirma ter visto na Etiópia
(posto não especifique Axum, é provável que tenha estado lá) uma “residência
real com quatro torres”. Demasiado sucinta, a observação não alude à posão
das torres, mas assinala a presença de construções elevadas, e isto é o que
importa.
Os axumitas incluíam a madeira entre os materiais de construção,
empregando -a nas molduras das portas e janelas e em certos pontos das paredes,
especialmente nos cantos das salas, onde se introduziam vigas de madeira na
alvenaria para reforçá -la. As traves que sustentavam os assoalhos dos aposentos
387
A civilização de Axum do século I ao século VII
superiores ou os tetos, provavelmente planos, eram igualmente de madeira. As
estelas esculpidas que mostram as extremidades das vigas dão uma imagem fiel
dos métodos de construção da época.
Outro costume consistia em executar as bases das grandes construções com a
maior solidez possível, o que se conseguia colocando -se grandes blocos de pedra
talhada nos cantos ou em longas fileiras no topo. Muitos desses blocos ainda
podem ser vistos nas edificações do período axumita mais recente, sendo que
alguns deles foram utilizados em construções anteriores. É fora de dúvida que
os construtores do primeiro período axumita, particularmente nos séculos III e
IV, nutriam especial predileção pelos grandes blocos de pedra. Isso é ilustrado
de maneira notável pelas estelas e pela gigantesca laje colocada à sua frente.
Monumentos monolíticos
As estelas de Axum são dos mais variados tipos. Muitas delas não passam de
grandes pedras desbastadas, como as de Goudit, no setor sul do sítio de Dongour.
Espalhadas pelo campo, o deixam dúvida quanto à função que exerciam
na Antiguidade, qual seja a de marcar o local das sepulturas. Outras estelas
apresentam as faces lisas e o topo em forma de arco, atingindo por vezes 20 m de
altura. Podem ser encontradas em vários lugares, embora sejam mais frequentes
nas proximidades do grupo das estelas gigantes. Estas últimas, em número de
sete, sobressaem por ostentar entalhes decorativos. Delas, apenas uma permanece
de pé – as demais jazem pelo chão, quebradas. A sétima foi levada para Roma e,
em 1937, erigida perto do teatro de Caracala, onde se encontra até hoje.
Os entalhes imitam construções de vários andares. A mais alta das estelas,
com 33 m, representa nove andares superpostos em uma de suas faces. Portas,
janelas, pontas de vigas foram esculpidos com perfeição na pedra dura. O
significado dessa arquitetura imaginária é totalmente desconhecido. Não há,
por assim dizer, termo de comparação entre essa obra e aquelas encontradas
em outras partes. Uma das estelas apresenta lanças esculpidas no frontão; outra,
que não pertence à categoria das estelas arquiteturais, ostenta uma espécie
de escudo mas será mesmo um escudo? sob o que parece ser um teto de
inclinação dupla. As cavidades ou antes pregos de metal serviam para a fixação
de emblemas, hoje desaparecidos. Por isso não sabemos o que eram ou mesmo se
foram acrescentados posteriormente. O mais provável é que esses monumentos
constituíam cipos funerários, mas não podemos afirmar se eram dedicados a
alguma divindade ou se celebravam a existência de algum vulto importante. O
388
África Antiga
simbolismo da decoração nos coloca diante de um quadro de total incerteza. As
diferentes dimensões das estelas correspondem provavelmente a uma hierarquia
de status social.
A incerteza também prevalece com relação ao significado da enorme laje de
pedra defronte das grandes estelas, colocada, ao menos originariamente, sobre
grossos pilares. Suas dimensões (comprimento: cerca de 17 m; largura: 6,50 m;
espessura: 1,30 m), desafiam a imaginação do observador que porventura tente
calcular a soma de energia necessária ao deslocamento da laje por uma distância
que se avalia em centenas de metros. Não sabemos de onde se extraíam esses
blocos. Existe uma antiga oficina de talhar perto de uma alta colina a oeste
de Axum, onde começou a ser desbastado um grande bloco de cerca de 27 m
de comprimento. Mas não se pode afiançar que a enorme laje ou as estelas
esculpidas vieram desse lugar, situado a uns 2 km do sítio em questão. Mesmo
sem levar em conta o problema do transporte, o simples fato de se terem erigido
as pedras sugere a existência de uma poderosa organização coletiva.
Em Matara e Anza, no planalto ocidental, existem duas estelas com o topo
em forma de arco e medindo aproximadamente 5 m de altura. Elas apresentam
duas particularidades: um crescente, símbolo da religião sul -arábica, e uma
inscrição em geês. Tais inscrições têm um significado comemorativo, o que já é
certo pelo menos com relação à estela de Matara. Fatores paleográficos indicam
que elas pertencem ao século III ou ao princípio do IV. A execução desses
monólitos é a mesma das estelas lisas de Axum.
Ainda em Axum, nota -se a presença de monólitos de outro tipo, dispersos
por vários lugares. Trata -se de grandes plataformas de pedra, doze das quais
se acham enfileiradas na área ocupada pelas estelas gigantes, perto da basílica
de Maryam -Tsion. Eram provavelmente bases de tronos. Algumas têm mais
de 2,50 m de comprimento e uma espessura média de 40 a 50 cm. A parte
central da superfície superior forma uma saliência notada de cavidades, onde se
encaixariam os pés de um assento. Uma dessas bases encontrava -se outrora no
sítio de Matara. Até o presente, foram registrados 27 monólitos.
Esses tronos, de grande importância na cultura axumita, são mencionados
em duas inscrições de Ezana. No século VI, Cosmas aludiu à existência de um
trono perto de uma estela em Adulis. “O trono tem uma base quadrada”. “É feito
de excelente mármore branco e inteiramente... talhado num único bloco de
pedra”. Tanto o trono como a estela apresentavam -se “cobertos com caracteres
gregos”. A inscrição do trono foi executada por ordem de um soberano axumita
que governou por volta do século III Não se conhece ao certo o significado
389
A civilização de Axum do século I ao século VII
desses monumentos. Seriam tronos comemorativos de vitórias? Púlpitos votivos?
Símbolos do poder real? São tão enigmáticos quanto as grandes estelas.
O grupo encontrado perto de Maryam -Tsion esdisposto de tal forma
que todos os tronos ficam de frente para o leste, na mesma direção que as faces
entalhadas das estelas. Se for esse o arranjo original, é de supor que estivessem
voltados para um templo que na época, provavelmente, se situava no sítio da
atual igreja, onde existem muitas ruínas.
As próprias inscrições estão gravadas na pedra dura, um tipo de granito. Um
dos textos de Ezana, em três escritas diferentes etíope, sul -arábica e grega –,
está gravado nos dois lados de uma pedra de mais de 2 m.
Essa predilão pelos monumentos de vastas propoões parece ter
prevalecido também no caso das estátuas. No início do século, descobriu -se
em Axum uma pedra lisa, com pegadas de 92 cm. Essa pedra fora utilizada
como suporte de uma estátua, provavelmente de metal. As inscrições de Ezana
informam que ele erigiu estátuas em honra da divindade, e num dos textos
se o seguinte: “Em sinal de reconhecimento Àquele que nos criou, Ares, o
invicto, erigimos estátuas à Sua glória, uma de ouro, outra de prata e três de
bronze”. Ainda não se conseguiu recuperar nenhuma estátua axumita, mas as
investigações arqueológicas estão longe de ter -se encerrado. Descobriram -se
poucas representações de animais, em pedra ou em metal. Cosmas afirma ter
visto quatro estátuas de bronze representando unicórnios (rinocerontes, sem
dúvida) “no palácio real”.
A cerâmica
Os sítios axumitas oferecem grande quantidade de vasos em terracota, uns
quebrados, outros intactos. Trata -se, em essência, de uma cerâmica utilitária, em
terracota vermelha e preta, com largo predomínio da primeira. Em inúmeros
potes, o acabamento da face exterior é feito em cores opacas. Muitos são polidos
com pedra, enquanto outros apresentam -se revestidos de vermelho. Não há
evidências a indicar o uso do torno.
Os vasos têm diversos tamanhos, variando de minúsculos copos a vasilhas de
80 cm de altura. Os jarros, vasos, cântaros, gamelas, bacias e taças nem sempre se
apresentam decorados. Quando isso acontece, a decoração consiste geralmente
em desenhos geométricos gravados, pintados, modelados ou estampados. Em
sua maioria, os padrões são simples: grinaldas, ziguezagues, círculos agrupados,
xadrez, espirais, barras, etc. Raramente aparecem temas naturalistas: espigas
390
África Antiga
 . Base de um trono.
F . Matara: inscrição do século II da Era Cristã. (Fotos Instituto Etíope de Arqueologia.)
391
A civilização de Axum do século I ao século VII
de milho, pássaros e serpentes modelados. Certas decorações têm significado
simbólico óbvio, como os braços moldados nas bordas dos vasos. A cruz cristã
aparece repetidas vezes nas bordas, nos lados ou no fundo dos vasos.
Há diferença entre as cerâmicas procedentes do leste e do oeste do planalto.
Na região de Axum, observa -se um tipo de vaso com incisões lineares nos lados,
modalidade muito rara no planalto oriental. É de Matara uma vasilha com
saliência e nervuras sob a borda, tipo de cerâmica ausente na região de Axum;
aqui, porém, existe um jarro com gargalo em forma de cabeça humana de que
até agora não se encontrou paralelo.
Os trabalhos em curso permitem classificar os grupos de cerâmica em séries
cronológicas. Contudo, ainda é necessário aguardar o desenrolar das escavações
para se poder chegar a datações um pouco mais precisas.
Na camada axumita de todos os tios descobriu -se também cerâmica
importada, principalmente jarros com asas e lados com nervuras. Essas ânforas,
muito numerosas em Adulis, são de origem mediterrânica. Não raro eram usadas
como urnas funerárias para bebês, como se verificou em Adulis, Matara e Axum.
Não se encontrou nenhum traço dessas ânforas nos níveis pré -axumitas. Na
camada axumita, descobriram -se também vários fragmentos de frascos, garrafas
e copos de vidro, assim como vasos azuis vitrificados do fim do período axumita,
a maioria deles importada do oceano Índico (geralmente são desenterrados em
fragmentos). Pequenos copos com aspecto de terra sigillata eram provavelmente
importados do Egito.
A abundância de cerâmica nos sítios faz supor um grande consumo de
madeira. A paisagem devia ser muito mais arborizada, portanto, na Antiguidade
do que hoje em dia.
Alguns objetos especiais
As pesquisas arqueológicas trouxeram à luz vários objetos: selos moldados em
pedra ou em terracota, gravados com motivos geométricos ou perfis de animais;
pequenas ferramentas feitas de metais diversos; dados de terracota; fragmentos
de lâminas; estatuetas de animais; estatuetas femininas semelhantes às figuras
da fertilidade da Pré -História, etc.
Dentre os objetos, menção especial deve ser feita a uma lâmpada de bronze
e a um tesouro descoberto durante as escavações de Matara. A primeira consiste
num vaso oval que repousa sobre um suporte imitando uma colunata de palmeiras
estilizadas. Na parte de cima do vaso, o motivo em ronde -bosse representa um
392
África Antiga
cachorro com coleira na caça a um bode. No dorso está modelado um bucrânio
em gracioso relevo. A lâmpada fica a 41 cm de altura, tendo o vaso 31 cm de
comprimento. A julgar por seu simbolismo provavelmente um ritual de caça,
hipótese reforçada pela presença do bucrânio –, a lâmpada deve ser originária
da Arábia do Sul, onde se descobriram objetos análogos.
O tesouro foi encontrado no interior de um vaso de bronze de 18 cm e
consiste em duas cruzes, três correntes, um broche, sessenta e oito pingentes,
sessenta e quatro contas de colar, catorze moedas de imperadores romanos dos
séculos II e III (principalmente dos Antoninos) e duas placas decorativas. Todos
os artefatos são de ouro e apresentam notável estado de conservação. Segundo
o lugar onde foram encontrados, esses objetos devem ter sido agrupados em
meados do século VII (as moedas, no caso, não constituem critério de datação,
porquanto, à exceção de uma única, todas possuem argolas, a indicar seu emprego
como joias).
Os níveis axumitas revelam por vezes inscrições sul -arábicas e fragmentos de
incensórios do século V antes da Era Cristã. As pedras, geralmente quebradas,
foram reutilizadas por construtores axumitas. Observam -se ainda objetos
importados do Egito e da Núbia ou, como em Haúlti, estatuetas em terracota
que, segundo Henri de Contenson, o explorador do sítio, parecem guardar
uma relação com as encontradas na Índia nos períodos Mathura e Gupta”.
Contenson informa, ainda, que “os dois primeiros séculos da Era Cristã foram
exatamente o período de apogeu dos contatos comerciais entre a Índia e o
Mediterrâneo, por via do mar Vermelho”.
A Numismática
As moedas axumitas revestem especial importância. Com efeito, somente
graças a elas é que ficamos conhecendo os nomes dos dezoito reis de Axum.
Descobriram -se milhares de moedas, sobretudo nos campos arados ao redor
de Axum, em especial durante a estação chuvosa, quando a água revolve o solo.
A maioria é de bronze, com tamanho variável entre 8 e 22 mm. Em geral as
moedas trazem o busto dos reis, com ou sem coroa. Apenas um está representado
num trono, de perfil. Seus símbolos são variados: os dos primeiros reis (Endybis,
Aphilas, Ousanas I, Wazeba, Ezana) ostentam o disco e o crescente. Após a
conversão de Ezana ao cristianismo, todas as moedas retratam a cruz no centro
de uma das faces ou entre as letras da legenda inscrita à sua volta. Em alguns
casos o busto do rei é enquadrado por duas espigas de milho curvadas, noutros
393
A civilização de Axum do século I ao século VII
 . Gargalo de jarro.
 . Incensório de estilo alexandrino.
. Presa de elefante. (Fotos Instituto Etíope
de Arqueologia.)
394
África Antiga
por uma espiga reta no centro, como sucede nas moedas de Aphilas e Ezana.
As espigas de milho são talvez emblemas de algum poder ligado à fertilidade
da terra.
As legendas estão inscritas em grego ou etíope, nunca em sul -arábico. O
grego aparece nas moedas mais antigas, e somente a partir de Wazeba é que
se começa a empregar o etíope. As palavras da legenda variam: “Pela graça de
Deus”, “Saúde e felicidade para o povo”, “Paz para o povo”, Ele triunfará através
de Cristo”, etc. E, naturalmente, o nome do rei se faz acompanhar do respectivo
título: “Rei dos axumitas” ou “Rei de Axum”.
Como as moedas não apresentam datas, formularam -se várias hipóteses
objetivando classificá -las. O tipo mais antigo provavelmente do reinado
de Endybis não remonta além do século III, ao passo que o mais recente,
ostentando o nome de Hataza, data do século VIII.
A escrita e a língua dos axumitas
O mais antigo alfabeto usado na Etiópia, desde o século V antes da Era
Cristã, pertence ao tipo sul -arábico. A língua por ele transcrita assemelha -se
aos dialetos semitas da Arábia meridional.
A escrita axumita difere da sul -arábica, não obstante derivar dela.
Os primeiros testemunhos da escrita etíope propriamente dita datam do
século II da Era Cristã e apresentam uma forma consonântica. Os caracteres
conservam ainda um aspecto sul -arábico, mas evoluem progressivamente para
formas particulares. Variável a princípio, a direção da grafia acabou se fixando,
indo da esquerda para a direita. As primeiras inscrições estão gravadas em placas
de xisto; são pouco numerosas e encerram poucas palavras. A mais antiga foi
descoberta em Matara, na Eritreia. Uma inscrição gravada em objeto de metal,
datada do século III, menciona o rei Gadara, e pela primeira vez o nome de
Axum aparece num texto etíope. Outras inscrições estão gravadas em pedra. As
grandes inscrições do rei Ezana são do século IV, e com elas surge o silabismo,
que logo se tornará regra na escrita etíope. Os signos vocálicos integram -se no
sistema consonântico, indicando os diversos timbres da língua falada.
Essa língua revelada pelas inscrições é conhecida como geês, pertencendo ao
grupo meridional da família semita. É a língua dos axumitas.
Durante o período axumita, utilizavam -se as escritas sul -arábica e grega,
conquanto de forma limitada. A escrita sul -arábica ainda pode ser encontrada
395
A civilização de Axum do século I ao século VII
no século VI, nas inscrições de Caleb e de um de seus filhos, Wazeba. Por volta
do século V, a bíblia foi traduzida para o geês.
O progresso da civilização axumita
Cinco séculos antes da Era Cristã, uma forma particular de civilizão,
marcada por influências sul -arábicas, estabeleceu -se no planalto etíope do norte.
Essencialmente agrícola, teve sua época de prosperidade nos séculos V e IV
antes da Era Cristã e entrou em declínio no decorrer dos séculos seguintes,
pelo menos a julgar pela atual indigência de documentação arqueológica. Mas a
cultura não desapareceu, e algumas de suas características foram preservadas na
civilização axumita. Certos traços da língua e da escrita, um emblema religioso,
o nome de uma divindade (Astar aparece ainda numa inscrição de Ezana), as
tradições arquitetônicas e agrícolas (provavelmente, entre outras, o uso do arado)
mostram que nos primeiros séculos da Era Cristã uma antiga herança ainda
permanecia. Igualmente digno de nota é que a maior parte dos estabelecimentos
axumitas, sobretudo no planalto oriental, ocupa os mesmos sítios do período
pré -axumita, o que indica uma espécie de continuidade.
Os testemunhos arqueogicos dos primeiros séculos da Era Cris, no
entanto, revelam muitos aspectos novos. Embora a escrita usada derive da sul-
-arábica, a grafia das inscrições denota uma mudança importante. A religião
também se modifica. À exceção de Astar, os nomes das antigas divindades
desapareceram e foram substituídos, nos textos de Ezana, pelos da tríade
Mahrem, Beher e Meder. A arquitetura, posto continue a caracterizar -se pelo
emprego de pedra e madeira e pela base em degraus dos edifícios, apresenta
vários traços novos. A cerâmica é muito diferente em sua manufatura, forma
e decoração. Em todos os sítios encontram -se também cerâmicas importadas
e vidros. É nesse período que o nome de Axum aparece pela primeira vez na
História, e não deixa de ser significativo o fato de não ter o sítio, aparentemente,
nenhum passado apreciável antes do século I.
Fatores econômicos
Durante o período axumita, como nos séculos anteriores, a agricultura e
a criação de animais constituíram a base da vida econômica. Entretanto, o
desenvolvimento axumita assumiu um aspecto característico, provavelmente
em decorrência de dois fatores.
396
África Antiga
Todas as fontes antigas indicam que, no decorrer dos dois primeiros séculos,
o tráfico marítimo no mar Vermelho se intensificou, o que se pode atribuir à
expansão romana nessa região, favorecida pelo progresso da navegação. É sabido
que os métodos de navegação se aperfeiçoaram a partir do início do século I. O
piloto Hipalo demonstrou que os marinheiros poderiam tirar partido da correta
utilização dos ventos, e isso sem dúvida deu novo impulso ao tráfego marítimo.
Estrabão assinala que “todos os anos, no tempo de Augusto, cento e vinte navios
partiam de Myos Hormos”.
Multiplicavam -se as relações comerciais, as embarcações traziam mercadorias
e possibilitavam o comércio com a Índia e o mundo mediterrânico. Adulis era
o ponto de encontro para o tráfico marítimo, assim como e este é o segundo
fator – para o comércio terrestre. No interior, avultava o comércio de um valioso
artigo, o marfim. Aliás, Plínio e o autor do Periplus põem esse produto tão
indispensável ao luxo romano em primeiro lugar na lista de exportações de
Adulis. Axum era o grande centro coletor de marfim, procedente de rias
regiões. Já na época dos Ptolomeus, o elefante da Etiópia era muito valorizado,
sendo utilizado pelos exércitos como um tipo de carro de assalto. Mais tarde
passou a ser caçado por suas presas. Quando os autores da Antiguidade falam
de Adulis, de Axum ou da Etiópia (África oriental), nunca deixam de salientar
o elefante e seu marfim. Mencionam também outras mercadorias, como peles de
hipopótamo, chifres de rinoceronte, carapaças de tartaruga, escravos e temperos;
o elefante, porém, é objeto de especial interesse. De acordo com o Periplus, os
elefantes viviam no interior, a exemplo dos rinocerontes, mas por vezes eram
caçados na própria costa, perto de Adulis”. No reinado de Justiniano, Nonnosus
visitou Axum e no caminho avistou uma manada de 5 mil elefantes. Cosmas
observa que uma grande quantidade de elefantes com longas presas; da
Etiópia as presas são expedidas por barcos para a Índia, a Pérsia, a terra dos
Himiaritas e a România” (Topografia Cristã, XI, 33). Em 1962, a missão do
Instituto Etíope de Arqueologia descobriu uma presa de elefante nas ruínas
axumitas de Adulis, e em 1967 os fragmentos de uma estatueta de elefante em
terracota nos muros do castelo de Dongour.
As raízes africanas
A civilização de Axum desenvolveu -se no decorrer dos primeiros séculos
da Era Cristã, mas suas raízes fincam -se na Pré -História. Seus prenúncios
podem ser observados nos cinco séculos que precedem o início da Era Cristã. A
397
A civilização de Axum do século I ao século VII
arqueologia vem tentando definir -lhe os traços característicos, mas por enquanto
apenas uns poucos aspectos foram investigados, e a catalogação dos dados
relativos à Antiguidade está por demais incompleta. A tarefa principal consiste
em determinar o que procede das influências externas e o que é realmente
ingena. Como outras civilizões, a axumita é produto de um processo
evolutivo secundado pelas condições geográficas e pelas circunstâncias históricas.
A contribuição indígena é de grande relevo, visto não haver dúvida de que a
civilização axumita é, antes de tudo, produto de um povo cuja identidade étnica
se vem manifestando progressivamente a partir do estudo de suas inscrições,
linguagem e tradições. Aos poucos a pesquisa arqueológica vai descobrindo a
singularidade das conquistas materiais de Axum. Ainda muito a ser feito, e
os trabalhos vindouros deverão concentrar -se na interpretação dos testemunhos
escavados, mas já sabemos que foi a raiz africana que deu à civilização de Axum
sua fisionomia particular.
C A P Í T U L O 1 5
399
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
As fontes históricas dos séculos II e III registram a pida ascensão de
uma nova potência africana: Axum. A primeira referência aos axumitas como
povos etíopes, datada da metade do século II aproximadamente, é de Cláudio
Ptolomeu, que, embora ignorasse a existência de Axum, conhecera as cidades de
Méroe e Adulis. Uma outra fonte é a obra Aethiopica de Heliodoro, autor greco-
-fenício do século III, que relata a chegada de embaixadores axumitas a Méroe,
os quais se apresentam ao rei não como súditos e tributários, mas como amigos
e aliados, detalhe que nos permite entrever a situação no nordeste da África
àquela época. O Periplus Maris Erythraei (Périplo do Mar da Eritreia), onde se
encontram dados sobre diferentes períodos entre pouco antes de 105 da Era
Cristã até o século III, refere a metrópole dos assim chamados axumitas” como
uma cidade pouco conhecida, e a fundação do reino de Zoscales (sem dúvida,
Za -Hecale, da lista de reis axumitas) como muito recente. O reino de Zoscales
estendia -se por toda a costa eritreana do mar Vermelho, enquanto o deserto
beja ficava sob o domínio de Méroe. Esse equilíbrio entre as duas potências – a
antiga metrópole dos meroítas e a nova metrópole dos axumitas é evocado pela
obra de Heliodoro. O Periplus não faz referência à expansão axumita em direção
à Arábia do Sul. As primeiras fontes a mencioná -la são as inscrições sabeanas
do fim do século II e início do século III, onde se relata que os abissínios”
ou axumitas se acham em guerra com o Iêmen, ocupando uma parte do seu
Axum do século I ao século IV:
economia, sistema político e cultura
Y. M. Kobishanov
400
África Antiga
território. Ao que parece, entre 183 e 213, o rei axumita Gadara e seu filho foram
os soberanos mais poderosos da Arábia meridional e os verdadeiros líderes da
coalizão anti -sabeana. No fim do século III e início do século IV, Azbah, rei de
Axum, também combateu na Arábia do Sul
1
. Os reis axumitas, mesmo depois
da unificação do país pelos himiaritas, ainda se reivindicavam soberanos desses
povos, como se pode observar por seus títulos.
Duas inscrições gregas feitas pelos reis de Axum, cujos nomes e período
de reinado ignoramos, também relatam as guerras na Arábia meridional; a
mais longa dessas inscrições foi copiada na metade do século VI por Cosmas
Indicopleustes. Seu autor conquistou as regiões costeiras do Iêmen “até o país
dos sabeus” e vastos territórios na África, das fronteiras do Egito” à terra do
incenso, na Somália
2
.
Por volta de 270, a fama do novo Estado já chegara à Pérsia. O Kephalaia do
profeta Mani (216 -76) descreve Axum como um dos quatro maiores impérios
do mundo.
De quais recursos e de que tipo de organização dispunha Axum para obter
tais sucessos?
Ocupações
A grande maioria dos axumitas dedicava -se à agricultura e à criação de
animais, levando uma vida praticamente intica à dos atuais camponeses
do Tigre. Nas encostas montanhosas construíam terraços para a agricultura,
que eram irrigados pela água canalizada das torrentes. Nos contrafortes das
montanhas e nas planícies, faziam cisternas e barragens para armazenar a água
da chuva, cavando canais de irrigação. As inscrições indicam que cultivavam
o trigo
3
e outros cereais; conheciam também a viticultura e utilizavam arados
puxados por bois. Possuíam numeroso rebanho de bois, carneiros e cabras,
além de asnos e mulas. Como os meroítas, aprenderam a caçar e a domesticar
1 As principais inscrições encontram -se no Corpus Inscriptionum Semiticarum ab Academiae Inscriptionum...
Pars quarta. 1889 -1929; JAMME, A. 1962; RYCKMANS, G. 1955; id. 1956. Para algumas observações
sobre as inscrições ver RYCKMANS, G. 1964. Para um relato dos eventos ver também WISSMANN,
H. von. 1964. Para a cronologia ver LOUNDINE, A. G. & RYCKMANS, G. 1964.
2 WINSTEDT, E. O. 1909. pp. 74 -7.
3 DEUTSCHE AKSUM EXPEDITION, n. 4 :21; DAE, n. 6: 10; DAE, n. 7: 12; LITTMANN, E.
1910 -5; DREWES, A. J. 1962. p. 30 et seq.
401
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
elefantes, que eram reservados ao uso exclusivo da corte real
4
. De acordo com
as inscrições, os axumitas alimentavam -se de bolos de trigo, cerveja, vinho,
hidromel, mel, carne, manteiga e óleo vegetal
5
.
Os ofícios e ocupações dos ferreiros e outros artesãos metalúrgicos, dos
oleiros, pedreiros, canteiros e escultores, entre outros, revelam um nível muito
alto de destreza e senso artístico. A inovação técnica mais importante foi a
utilização de instrumentos de ferro, cuja expansão, então bem maior que no
I milênio antes da Era Cristã, iria inevitavelmente influir no desenvolvimento
da agricultura, do comércio e da arte militar. Outra inovação foi o uso, em
alvenaria, de uma argamassa que facilitava a cimentação e que iria permitir o
desenvolvimento de um tipo de construção à base de pedra e madeira.
Estrutura política
Axum parece ter sido, inicialmente, um principado que com o tempo veio
a tornar -se a primeira província de um reino “feudal”. A seus governantes a
história impôs várias tarefas, das quais a mais urgente era afirmar sua hegemonia
sobre os Estados segmentários da Etiópia setentrional, e uni -los em um
reino. O sucesso dependia do poder do soberano de Axum e da sobrepujança
de sua força em relação à dos demais príncipes da antiga Etiópia. Por vezes um
monarca, ao ascender ao trono, via -se obrigado a inaugurar seu reinado com
uma campanha militar por todo o país para obter dos principados ao menos
uma submissão formal. Ezana, por exemplo, logo no início de seu reinado teve
de empreender tal campanha embora, antes dele, outro monarca axumita cujo
nome não chegou até nós, mas que nos deixou o Monumentum Adulitanum, a
tivesse realizado
6
.
A fundação do reino serviu de base para a edificação de um império. Do fim
do século II ao início do século IV, Axum tomou parte nas lutas diplomáticas
e militares que opunham os Estados da Arábia meridional. Os axumitas
submeteram as regiões situadas entre o planalto do Tigre e o vale do Nilo. No
século IV, conquistaram o reino de Méroe, então em decadência.
Desse modo foi se construindo um império, que abarcava as ricas terras
cultivadas do norte da Etiópia, o Sudão e a Arábia meridional, incluindo todos
4 DINDORFF, L. A. 1831. pp. 457 -8; WINSTEDT, E. O. 1909. p. 324.
5 DAE, n. 4 :13 -21; DAE, n. 6 :7 -11; DAE, n. 7 :9 -13; DREWES, A. J. 1962. p. 73.
6 WINSTEDT, E. O. 1909. pp. 72 -7; DAE, n. 8; DAE, n. 9.
402
África Antiga
 . Mapa da expansão axumita.
403
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
os povos que ocupavam as regiões situadas ao sul dos limites do Império Romano
entre o Saara, a oeste, e o deserto de Rub al -Khali, no centro da Arábia, a leste.
O Estado se dividia entre Axum propriamente dito e seus “reinos vassalos”,
cujos monarcas estavam sujeitos ao “rei dos reis” de Axum, a quem pagavam
tributo. Os gregos designavam o potentado de Axum por basileus (somente
Atanásio, o Grande, e Philostorgius o chamavam tirano): os reis vassalos eram
conhecidos como arcontes, tiranos ou etnarcas. Os autores sírios, como João de
Bíeso, Simeão de Beth -Arsam e o autor do Livro dos Himiaritas, chamavam rei
(mlk’) ao rei dos reis” de Axum, mas também aos reis de Himiar e de Alwa, seus
súditos. No entanto, é preciso considerar que o termo axumita empregado para
todos eles era negus. Só em determinados casos, quando se escrevia para leitores
estrangeiros, é que se empregavam as variações terminológicas
7
. Cada povo”,
reino, principado, cidade, tribo tinha seu próprio negus
8
. Existem referências a
negus no exército axumita (nägäsra särawit) (DAE, n. 9: 13). Além do comando
dos exércitos em tempo de guerra esses negus dirigiam os empreendimentos de
construção
9
. Entre os negus, as inscrições citam reis de quatro tribos de Bega
(Beja), cada qual governando sobre aproximadamente 1100 súditos (DAE, n. 4:
19 -20; DAE, n. 6: 7 -17; DAE, n. 7: 6 -18), e o senhor do principado de Agabo,
cujo número de súditos mal ultrapassava a faixa dos 200 a 275 homens adultos,
ou um total de 1000 a 1500 pessoas. Os reinos vassalos situavam -se no planalto
do Tigre e na região da baía de Zula (Agabo, Metin, Agame, etc.), adiante do
rio Taqqase (Walqa’it, Samen, Agaw), nas regiões áridas em torno das terras
altas etíopes (Agwezat) e na península arábica. Após a vitória de Ezana, esses
reinos se estenderam até a Alta Núbia, entre a Quarta Catarata e Sennar. Alguns
reis feudatários, corno os da Arábia meridional e da Alta Núbia, por exemplo,
possuíam seus próprios vassalos senhores hereditários de status inferior. Criou-
-se, assim, urna hierarquia de poder, do rei dos reis de Axum aos chefes das
distintas comunidades.
7 Por exemplo, no texto grego das inscrições bilíngues de EZANA (DAE, n. 4, 6, 7), o monarca de Axum
recebe o título de “rei dos reis”, bem como de “rei dos axumitas” e outros mais, enquanto os monarcas
beja são chamados de “pequenos reis”. No texto pseudo -sabeano, os termos usados para referência ao rei
de Axum são de origem sabeana – mlk, mlk, mlkn enquanto para os monarcas beja é empregado um
termo etíope nägäst. Na inscrição grega que registra sua campanha na Núbia, Ezana autodenomina-
-se rei simplesmente, e não rei dos reis, talvez por razões ligadas à política exterior (CAQUOT, A. &
NAUTIN, P. 1970. p. 270 -1). Mas o próprio título denota uma posição muito alta conferida igualmente
a imperadores romano -bizantinos: DAE, n. 9, 13 – nägästat Sarawit.
8 DAE, n. 8: 7 -12, 27, 29; DAE, n. 9: 9 -12; DAE, n. 11: 36; DREWES, A. J. 1962. p. 30 et seq., 65 -7;
SCHNEIDER, R. 1974. p. 771, 775.
9 DREWES, A. J. 1962. p. 65; VASILYEV, A. A., ed. 1907. p. 63 -4.
404
África Antiga
Havia duas formas de coletar o tributo: ou os monarcas vassalos (como
Abraha, rei de Himiar) enviavam um tributo anual a Axum, ou o rei de Axum,
acompanhado de numeroso quito, percorria seus domínios, recolhendo o
tributo e víveres para sua comitiva. Os reis vassalos faziam o mesmo. Por fim,
adotou -se um meio -termo entre as duas formas de coleta: os vassalos passaram
a levar seu tributo a locais determinados do percurso real.
As fontes não trazem informações sobre o sistema administrativo de Axum,
aparentemente muito pouco desenvolvido. Os parentes próximos do rei tinham
papel importante na direção dos negócios públicos, o que nos permite entender
que, numa carta, o imperador romano Constantino II tivesse se dirigido não
apenas a Ezana, mas também a Saizana, seu irmão
10
. As expedições militares
comumente eram conduzidas pelo rei, seu irmão
11
ou outros parentes
12
. Os
exércitos menores eram comandados pelos reis de exército”, sendo compostos
por guerreiros das comunidades ou tribos; a expressão “meu povo pronunciada
por um rei de Axum é sinônimo de “meus exércitos”
13
.
Os monarcas axumitas pacificaram as tribos guerreiras estabelecidas nas
fronteiras do Estado: os abissínios, na Arábia do Sul
14
; quatro tribos beja na
região de Matlia ou no país de Byrn (possivelmente na província de Begemdir)
(DAE, n. 4, 6, 7). Além disso, é evidente que o rei dos reis dispunha de uma
comitiva armada: sua corte, em tempos de paz, e seus guardas, em tempo de
guerra (como na Etiópia do século XIV). Aparentemente, os funcionários da
corte desempenhavam funções de agentes do governo, como, por exemplo, de
encarregado de missões. Os sírios helenizados Edésio e Frumêncio, escravos do
rei, foram promovidos, um a escanção e o outro a secretário e tesoureiro do rei
de Axum
15
.
O que se sabe sobre a história do reino de Axum é muito pouco para que
se possa reconstituir o desenvolvimento de seu sistema político. Contudo,
parece provel que no apogeu da monarquia axumita sua estrutura tenha
se modificado por urna espécie de processo de centralização. No culo IV,
a ocupação de Ezana consistia basicamente em subjugar ou aprisionar os
10 MIGNE, J. P. 1884. p. 635.
11 DAE, n. 4 :9; DAE, n. 6 :3; DAE, n. 7 :5.
12 PROCÓPIO. ed. 1876. p. 275.
13 DAE, n. 9: 12 -34; DAE, n. 10: 9 -10, 23; DAE, n. 11: 18, 30 -5, 37 -8; CAQUOT, A. 1965. pp. 223 -5;
SCHNEIDER, R. 1974. pp. 771, 774, 778, 781, 783 -4, 785; DAE, n. 4; DAE, n. 6; DAE, n. 7.
14 PROCÓPIO. ed. 1876. p. 274; MOBERG, A. 1924. p. CV; Martyrium sancti Arethae et sociorum in
civitate Negran. Acta Sanctorum. Bruxelas, oct. 1861. t. X, p. 7; RYCKMANS, G. 1953.
15 MOMMSEN, T. 1908. pp. 972 -3.
405
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
vassalos rebeldes, soberanos hereditários dos diferentes principados de Axum.
Por volta doculo VI, no entanto, encontramos um rei de Axum que passara
a nomear os reis da Abia do Sul: Ma’dikarib e Sumayia Aswa para Himiar,
Ibn Harith (filho de S. Areta) para Nagran. Instalando tropas nos reinos de
seus vassalos, o rei dos reis assegurava a submissão direta de seus comandantes
militares a Axum.
O sistema jurídico em vigor no reino pode ser estudado nos primeiros
registros jurídicos de Axum, que são as quatro leis da Safra (Drewes, 1973).
Comércio e política comercial
A posição do reino de Axum no mundo comercial da época era a de uma
potência mercantil de primeiro plano, o que se evidencia pela cunhagem de
moeda ppria em ouro, prata ou cobre. Axum foi o primeiro Estado da
África tropical a cunhar moeda, que naquele tempo não existia em nenhum
dos pses vassalos, nem mesmo em Himiar ou Alwa. A cunhagem, em
particular da moeda de ouro, constituía uma medida não apenas econômica
mas também política; através dela o Estado de Axum proclamava ao mundo
sua independência e prosperidade, o nome de seus monarcas e as divisas do
reino. O primeiro rei axumita a colocar em circulação sua própria moeda foi
Endybis, na segunda metade do século III. O sistema monetário de Axum
era comparável ao de Bizâncio; no peso, no modelo e na forma, as moedas
axumitas apresentavam as mesmas características de suas contemporâneas
bizantinas.
Embora predominasse a produção doméstica natural, existia uma certa relação
entre a capacidade produtiva de Axum e sua importância comercial. Tratava-
-se mais de uma relação indireta, dependente como se verá mais adiante
da superestrutura política. Pode -se ter uma ideia dos itens exportados pela
Etiópia axumita, tendo -se por base os relatos dos autores latinos e bizantinos.
Pnio refere os navios que deixavam os portos eopes do Mar Vermelho
carregados de obsidiana, mármore, chifres de rinoceronte, couro de hipopótamo,
macacos (sphingia), levando também escravos. O Periplus enumera os produtos
exportados por Adulis, destacando a tartaruga, a obsidiana, o marfim e chifres
de rinoceronte. Nonnusius faz alusão ao ouro em como um dos produtos
de exportação da Etiópia axumita. Cosmas Indicopleustes fala de perfumes,
ouro, marfim e animais vivos exportados pela Etiópia. Relata que os axumitas
adquiriam esmeraldas dos Blêmios do deserto da Núbia e enviavam -nas à Índia
406
África Antiga
setentrional, para serem vendidas. Afirma ainda ter comprado uma presa de
hipopótamo na Etiópia
16
.
À exceção do ouro e das esmeraldas, os artigos relacionados podiam ser
obtidos através da caça (incluindo a caça por armadilha) ou da coleta. Não são
mencionados produtos agrícolas e laticínios nem artigos produzidos por artesãos.
Se esses produtos eram exportados, devem ter sido em quantidades muito pequenas
e nos limites do Império Romano -Bizantino. Embora a informação mais antiga
sobre a exportação do famoso trigo da Etiópia date do século X, não se pode de
todo negar que a essa época ele fosse comercializado com os países vizinhos.
Por sua vez, a julgar pelos relatos do Periplus, Adulis importava certos neros
alimentícios, como vinho e óleo de oliva em pequenas quantidades da Laodiceia
(Síria) e da Itália; os portos do Chifre da África recebiam do Egito cereais,
vinho e suco de uvas frescas de Dióspolis e, da Índia, trigo, arroz, cana -de -açúcar,
óleo de sésamo e milhete (Eleusine). Ao que parece, alguns desses produtos, em
particular a cana -de -açúcar, eram embarcados também para Adulis
17
.
Naquela época, não se exportava gado para países relativamente distantes.
Cosmas Indicopleustes informa que os axumitas abasteciam com bois, sal e ferro
o comércio com Sassu, onde se encontravam campos auríferos (com certeza, no
sudoeste da Etiópia). No entanto, Cosmas deve ter -se inspirado numa lenda
muito conhecida quando relata a troca de carne por pepitas de ouro
18
. Existem
referências isoladas à descoberta de vestígios da metalurgia axumita na Arábia,
entre os quais, uma lâmpada de alabastro
19
, moedas e uma lança saariana citada
pelo poeta árabe pré -islâmico Labid, nos seus mu’allaqa
20
.
Sobre as importões axumitas de artigos fabricados por artesãos estrangeiros
sabe -se um pouco mais. O Periplus, referindo -se aos donios do rei Zoscales, diz:
“Para esses locais são trazidos himation de tecido grosseiro, não -pisoado, fabricados
no Egito para os bárbaros, imitações de abolla tingidas em diversas cores, lention
tosado nos dois lados, numerosos artigos de vidro transparente, vasos de murrhine
[moldados com uma pasta vitrificada] feitos em Dióspolis, além de latão [ ... ]
folhas de cobre mole, [ ... ] ferro [ ... ]. Para cá trouxeram, entre outras coisas,
machadinhas, machados, facas, tigelas de cobre, redondas e grandes; alguns denários
16 COSMAS. Periplus Maris Erythraei. 3 -6; WINSTEDT, E. O. 1909. pp. 69, 320, 322, 324, 325;
DINDORFF, L. A. 1870. p. 474.
17 COSMAS. Periplus ... 6, 7, 17.
18 WINSTEDT, E. O. 1909. pp. 71 -2.
19 GROHMANN, A. 1915. pp. 410 -22.
20 LABID IBN RABI’AH. 1891 -2. p. 74.
407
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
 . Moeda de ouro do rei Endybis
(século III da Era Cristã).
F . Moeda de ouro do reino
de Ousanas. (Fotos Instituto Etíope de
Arqueologia.)
408
África Antiga
para os estrangeiros residentes aqui; pequena quantidade de vinho e óleo de oliva da
Laodicéia e da Itália. Para o rei, trazem vasos de ouro e de prata feitos à moda local.
Os artigos de vestuário que vêm do exterior – abolla e kanakes [albornozes] – são de
pouco valor. Do interior de Ariaca [Índia central], vêm o ferro, o aço e tecidos de
algodão indianos (particularmente os tipos mais largos e mais grosseiros conhecidos
como molokhina e sygmatoghena); cintos, mantos, algumas peças de vestuário de
molokhinese sindoni e material colorido com uma espécie de verniz”.
É possível que essa lista omita certos artigos importados pela Etiópia axumita.
Por exemplo, o Periplus observa que eram desembarcados nos portos do Chifre
da África pequena quantidade de estanho”, alguns artigos de vidro, túnicas,
diversos himation de ao gosto bárbaro”, mantas de de Arsínoe e produtos
egípcios. Objetos de vidro e ferro produzidos em Muza (al -Muha), na Arábia
do Sul
21
, eram levados para Azania.
Com o tempo, alterou -se o curso geral das importações. O embargo decretado
pelos imperadores romanos sobre as exportações de metais preciosos, ferro e
produtos alimentícios “para os omeritas [himiaritas] e axumitas”
22
por volta do
final do século V e início do VI deve ter modificado consideravelmente a lista das
exportações romano -bizantinas para Adulis, embora sob o reinado de Justiniano
a aliança entre Bizâncio e Axum tenha permitido um certo relaxamento dessa
medida. Mesmo assim, os axumitas tinham que buscar obter em outras fontes
as mercadorias impedidas de transpor as fronteiras do império.
De modo geral, os dados arqueológicos confirmam e completam as
informações do Periplus. As escavações efetuadas em Axum, Adulis e Matara
nos estratos datados do período em questão e as descobertas feitas em Hawila-
-Asseraw (no distrito de Asbi -Dera) e Debre -Damo revelaram numerosos
objetos de origem não -etíope, alguns dos quais teriam chegado ao país através
de intercâmbio comercial, a maior parte proveniente do Império Romano-
-Bizantino, especialmente do Egito. Incluíam ânforas, que pelas evidências
serviam como recipientes para vinho ou óleo; fragmentos de objetos de vidro,
enfeites de ouro e colares de moedas de prata romanas (Matara), uma linda
gema (Adulis), lâmpadas de bronze, e uma balança e pesos de bronze (Adulis
e Axum)
23
.
21 COSMAS, Periplus ... 6, 7, 17.
22 CODEX THEODOSIANUS. XII, 2, 12.
23 ANFRAY, F. 1972 -b. p. 752; ANFRAY, F. & ANNEQUIN, G. 1965. p. 68; CONTENSON, H. de.
1963 -c. p. 12, pr. XX.
409
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
Também foram encontrados objetos originários da Índia: um selo (Adulis)
24
,
estatuetas de terracota (Axum)
25
, 104 moedas de ouro datadas da dinastia
kuchana, anteriores ao ano 200 (Debre -Damo)
26
. São da Arábia pré -islâmica
as moedas de prata e bronze encontradas acidentalmente na Eritreia e durante as
escavações em Axum
27
, bem como a lâmpada de bronze de Matara
28
. Numerosas
são as amostras do artesanato meroíta: fragmentos de vasos de cerâmica (várias
localidades); estatuetas -amuletos de faiaa, de tor e Ptah (Axum), de
cornalina, de Hórus (Matara)
29
, estelas esculpidas representando Hórus sobre
crocodilos (vistas em Axum e descritas por James Bruce, no século XVIII
30
) e
tigelas de bronze (Hawila -Asseraw)
31
. Alguns desses objetos podem ter chegado
à Etiópia através do comércio com o Sudão, mas provavelmente a maioria deles
provém de espólios de guerra ou tributo. É possível que os axumitas importassem
da região de Méroe boa parte dos artigos de algodão e ferro de que necessitavam.
De outros países da África vinham o ouro (originário de Sassu e talvez do país
de Bega), o incenso e condimentos (Somália setentrional).
A unificação de parte considerável do nordeste da África pelos axumitas
enriqueceu rapidamente a sua aristocracia, na qual os mercadores romanos,
árabes e hindus iriam encontrar a clientela para seus produtos de luxo, de todos,
os mais lucrativos.
Algumas das mercadorias inventariadas no Periplus de Pseudo -Arriano eram
reservadas, como observa o autor, ao uso exclusivo do rei de Axum. No início do
século III, os comerciantes estrangeiros, ao que parece, eram obrigados a enviar
oferendas proporcionais à sua riqueza ao rei de Axum e ao governador de Adulis;
enquanto viveu Pseudo -Arriano, esses presentes não passavam de vasos de ouro
e de prata sem grande valor”, e de “grosseiras imitações” de abbola e kaunakes. É
interessante notar que, por volta do ano 524, o patriarca de Alexandria enviou de
presente ao rei de Axum um vaso de prata
32
. O aumento da riqueza e a difusão
dos hábitos de luxo na corte real de Axum (de acordo com as inscrições deixadas
24 PARIBENI, R. 1908. g. 49.
25 CONTENSON, H. de. 1963 -c. pp, 45 -6, pr. XLVII -XLVIII a.c.
26 MORDINI, A. 1960.
27 GAUDIO, A. 1953. pp. 4 -5; CONTENSON, H. de. 1963 -c. p. 8, pr. XIV; id. p. 12, pr. XIV.
28 ANFRAY, F. 1967. p. 46 et seq.
29 CONTENSON, H. de. 1963 -c. p. 43; LECLANT, J. 1965 -c. pp. 86 -7, pr. LXVII, 1.
30 WALLE, B. van de. 1953. pp. 238 -47.
31 DORESSE, J. 1960. pp. 229 -48; CAQUOT, A. & LECLANT, J. 1956. pp. 226 -34; CAQUOT, A. &
DREWES, A. J. 1955. pp. 17 -41.
32 Martyruim sancti Arethae... 1861. p. 743.
410
África Antiga
por Cosmas, João Malalas e Nonnusius) levam a crer que os presentes passaram
a ser mais valiosos e de melhor qualidade. É possível que nessa época tenha se
estabelecido um sistema de taxas de importação.
Os ganhos obtidos com a criação do poderoso reino de Axum enriqueceram
o apenas a aristocracia mas também o grupo étnico -social privilegiado
composto pelos cidadãos axumitas da capital. Grande parte das importações
enumeradas no Periplus destinava -se a amplas camadas da populão.
Braceletes de cobre importado trabalhados pelos artesãos do lugar, laas
de ferro importado e outros objetos de metal de uso local, bem como roupas
de tecidos estrangeiros, vinham alimentar os mercados locais, tornando -se,
assim, acessíveis tanto à população urbana quanto à rural. Os estrangeiros
comerciantes ou outros grupos estabelecidos em Adulis, em Axum e em
diferentes cidades etíopes acabavam importando grandes quantidades de
mercadorias. É entre esses grupos que o vinho e o óleo de oliva vão encontrar
pida saída. Os objetos descobertos durante as escavações, como a balança
e os pesos, o selo e as moedas romanas e kuchanas, são obviamente vestígios
deixados pelos comerciantes romano -bizantinos e hindus que viveram em
Adulis e Axum. O Periplus afirma claramente que os denários eram levados a
Adulis por estrangeiros que viviam, isto é, por pessoas que não eram súditos
africanos nem romanos. Como se sabe, o fluxo da moeda romana para a
Arábia meridional, Índia, Ceilão e outros países orientais atingia proporções
catastróficas. Os estrangeiros que introduziam esses denários talvez fossem
comerciantes da Índia, do Ceilão e da Arábia. Entre os que comerciavam
com o reino axumita, a tradição árabe menciona os Banu -Kuraish de Meca;
Cosmas Indicopleustes fala dos habitantes da ilha de Socotra, e Pseudo-
-Calístenes menciona os hindus. A imporncia relativa das cidades e países
de além -mar para o comércio etíope no início do século VI pode ser ilustrada
pelo número de navios que entraram no porto etíope de Gabaza no verão de
525, cuja lista se encontra no Marrio de Santa Areta
33
. Essa lista foi analisada
em detalhe por N. V. Pigulevskaya
34
: nove navios são descritos como hindus –
termo que admite diferentes interpretações; sete embarcações eram da ilha de
Farasan al -Kabir, habitada pelos farasianos, uma tribo crissul -arábica que
desempenhou importante papel no comércio do mar Vermelho; quinze navios
chegaram de Elat, na Palestina, principal porto da região sírio -palestina; vinte
e duas embarcações vieram de portos egípcios – vinte de Clysme e apenas duas
33 Martyrium sancti Arethae... 1861. p. 747.
34 PIGULEVSKAYA, N. V. 1951. pp. 30 -1.
411
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
de Berenice; outras sete vieram da ilha de Iotaba (Thiran). Todos os cidadãos
romanos que comprovadamente viajaram a Adulis ou Axum nasceram no
Egito ou na Síria.
Os principais fornecedores dos negociantes estrangeiros eram os monarcas
axumitas e os vassalos que governavam os vários domínios do reino de Axum,
particularmente Adulis e a Arábia do Sul. Somente eles dispunham de
estoques suficientes de mercadorias para exportação. A essa época é possível
que houvesse monolios comerciais no reino de Axum, na vizinha Arábia
meridional e também em Bincio. É muito provável que a caça do elefante
e a venda do marfim e do ouro tenham sido em grande parte monopólio do
soberano. Apenas o rei e os arcontes de Axum tinham meios para comprar
produtos estrangeiros.
Os soberanos possuíam imensos rebanhos. Nas inscrições de Ezana faz-
-se menção aos espólios obtidos em duas campanhas axumitas, no Afan e
na Núbia, que no total renderam cerca de 32500 cabas de gado e mais de
51 mil carneiros, sem contar as centenas de animais de carga. As inscrições
o especificam se o espólio pertencia a todo o exército ou se correspondia
apenas à parte do rei, o que parece mais provável. Nas inscrições relativas
à pacificação de quatro tribos beja, Ezana declara ter -lhes doado 25 mil
cabeças de gado
35
, cifra que nos permite avaliar a dimensão dos rebanhos
pertencentes ao rei. É interessante observar que todas as cifras registradas
nas inscrões eso escritas primeiramente em palavras, depois emmeros
exatamente como nos tempos atuais. Possivelmente durante o período
axumita criou -se o cargo de “administrador dos rebanhos (sahafeham), que
permaneceu a o culo XIV como título honorífico para os governadores
de determinadas províncias.
Em Axum, como em outros reinos africanos da Antiguidade, os rebanhos
constituíam uma riqueza extremamente difícil de comercializar. Era impossível
exportá -los sistematicamente por mar, embora os axumitas conseguissem
transportar certos animais isoladamente, inclusive alguns elefantes do exército de
Abraha. É claro que o gado podia ser conduzido ao interior do continente para
ser vendido Cosmas Indicopleustes menciona que as caravanas dos axumitas
levavam gado a Sassu –, mas inevitavelmente uma proporção considerável dos
animais devia servir para alimentar a própria caravana.
35 DAE, n. 10: 17 -22; DAE, n. 11: 43 -4; DAE, n. 4: 13 -5; DAE, n. 6: 7 -8; DAE, n. 7: 9 -10.
412
África Antiga
Um tipo de mercadoria cuja demanda, ao longo de séculos, jamais se retraiu
foram os escravos. Os prisioneiros de guerra, mencionados nas inscrições
de Ezana e nas fontes relativas às guerras entre axumitas e himiaritas, eram
particularmente procurados pelos mercadores de escravos estrangeiros.
O ouro e a prata obtidos dos espólios de guerra ou do tributo pago pela
Núbia, Beja, Agaw, Himiar e outros países eram trazidos de Sassu por caravanas
e convertidos em moeda para pagamento das mercadorias estrangeiras destinadas
ao rei e aos nobres.
Embora o volume da produção industrial de Axum não fosse significativo
para manter um mercado, a abundância de produtos agrícolas e animais permitia
aos axumitas carregar navios mercantes e caravanas. Assim, além de prover o
mercado interno atendendo às suas necessidades alimentares e de outros bens
de consumo, os axumitas podiam ainda comerciar com outros países.
Pode -se ter uma vaga ideia da organização desse comércio a partir do relato
de Cosmas Indicopleustes sobre o aprovisionamento de Axum com o ouro
proveniente dos numerosos campos auríferos de Sassu. “De ano em ano (ou
a cada dois anos?), o rei de Axum envia, sob a responsabilidade do arconte de
Agaw, pessoas encarregadas de trazer ouro. Muitos as acompanham pelo mesmo
motivo, de modo que, no total, podem ser mais de quinhentas.” Mais adiante,
Cosmas sublinha que todos os membros da caravana andavam armados e que
faziam o possível para chegar a seu destino antes das grandes chuvas. Indica
também o período exato em que as chuvas deviam ser esperadas. O ouro era
transportado de Sassu na forma de pepitas do tamanho de um grão de tremoço,
conhecidas como tankharas
36
.
Ao que parece, os agentes do rei constituíam o núcleo das caravanas e se
faziam acompanhar por outras pessoas, que podiam ser agentes dos nobres e
ricos axumitas, mas não estrangeiros. Na época, os monarcas etíopes não eram
indiferentes aos seus interesses comerciais. No Periplus o rei Zoscales é tido
como “avaro e mercenário”. O comércio era considerado como um negócio de
Estado, e parece que o arconte de Agaw assumia sua inteira responsabilidade,
incumbindo -se de equipar e despachar para Sassu as caravanas axumitas. A
inscrição de Ezana relativa à campanha do Afan, onde são descritas a derrota
de quatro tribos do Afan e a prisão de seu chefe, registra o destino que tiveram
os agressores das caravanas axumitas; de fato, as tribos do Afan massacraram os
membros de uma caravana comercial de Axum
37
.
36 WINSTEDT, E. O. 1909. pp. 70 -1.
37 DAE, n. 10.
413
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
A hegemonia política de Axum sobre as rotas do corcio mundial
demonstrou ser tão lucrativa quanto a participação mesma do reino no comércio.
Tendo subjugado a Alta Núbia, a Arábia meridional, a região do lago Tana
e as tribos dos desertos que circundam a Etiópia, o rei de Axum assumiu o
controle das rotas que ligavam o Egito e a Síria aos países do oceano Índico
e também às regiões interioranas do nordeste da África. O estreito de Bab
el -Mandeb, que como os de Malaca e Gibraltar, constituía uma das três principais
rotas marítimas do mundo antigo, também ficou sob o controle axumita. Na
Antiguidade, era por Bab el -Mandeb que se fazia o importante tráfico marítimo
do mar Vermelho ao golfo Pérsico, à Índia, ao Ceilão, ao estreito de Malaca e
aos países do sudoeste e do leste da Ásia. Do golfo de Aden, uma outra rota
ramificava -se ao longo da costa da Somália até a África oriental (a Azania de
Cláudio Ptolomeu e Pseudo -Arriano). Essa rota foi explorada e utilizada pelos
marinheiros da Arábia meridional e, no decorrer dos primeiros séculos da Era
Cristã, pelos marinheiros da Índia e do Império Romano.
À época que examinamos, florescia o comércio no mar Vermelho não
obstante fossem comuns as histórias de pirataria, empresa a que se dedicavam
as tribos africanas e árabes das costas meridionais do mar Vermelho e do golfo
de Aden. Os autores romanos significativamente atribuíam os ataques de piratas
nessa região a mudanças na atitude política de Axum e de outros Estados do
mar Vermelho em relação aos romanos
38
.
Os comerciantes romanos tinham interesse vital em garantir a segurança
ao longo das rotas comerciais situadas na área de inflncia de Axum, e,
consequentemente, em sua política de unificação. Por isso apoiaram a aliança
do Império Romano -Bizantino com o reino de Axum. Mas não seria correto
representar os reis axumitas como simples promotores da política romano-
-bizantina, compreendidos seus aspectos religiosos e comerciais. Sua política
mantinha -se independente e só correspondia à política bizantina quando
coincidiam os interesses, principalmente os interesses econômicos, das duas
potências. No século VI, por exemplo, apesar das frequentes viagens que faziam
à Índia, os bizantinos consideravam as relações comerciais dos etíopes com esse
país mais estáveis que as suas
39
.
Sendo o comércio axumita com Sassu um segredo zelosamente ocultado
dos bizantinos, Cosmas Indicopleustes poderia saber da existência daquele
país através de relatos orais dos etíopes. Parece bastante evidente que, do
38 COSMAS. Periplus... 4; MOMMSEN, T. 1908. p. 972.
39 PROCÓPIO. ed. 1876. pp. 275 -7.
414
África Antiga
início do século V ao início do VI, os diáconos etíopes (axumitas) eram os
responsáveis pela colônia mercantil etíope instalada na Líbia
40
e em Nagran
41
.
Quando Moisés, bispo de Adulis, embarcou para a Índia
42
no início do século
V, provavelmente fora visitar seus fiéis, que, na época, tinham criado colônias
de comércio nos portos da Índia e do Ceilão. As viagens comerciais efetuadas
ao Ceilão e à Índia meridional e setentrional pelos cidadãos de Adulis em
particular e pelos etíopes em geral o relatadas por Pseudo -Calístenes e
Cosmas Indicopleustes
43
. O crescimento da cidade de Adulis e o fortalecimento
de sua posão no comércio mundial refletem o poder e a expansão do reino
axumita. Na opinião de Pnio (c. 60) e de Cláudio Ptolomeu (c. 150)
44
, Adulis
era simplesmente um dos pequenos mercados da África; Pseudo -Arriano
considerava -a uma aldeia.
No século IV e início do V, os portos de Adulis e do Chifre da África
raramente atraíam a atenção dos geógrafos romanos. No decorrer do século V,
contudo, Adulis tornou -se a cidade portuária mais importante entre Clysme e
os portos da Índia, e os nomes de outros portos africanos desapareceram das
fontes escritas
45
.
O fato de Adulis ter alcançado na época um nível de prosperidade jamais
conhecido devia -se não à sua resistência bem -sucedida a qualquer tipo de
competição, mas unicamente à proteção ativa do Estado protofeudal de Axum.
Desse modo, pode -se entender que no Périplo do Mar da Eritreia Adulis seja
referida como “mercado oficialmente estabelecido”.
Cultura
Podemos perceber claramente o reflexo do desenvolvimento do império
protofeudal na ideologia e na cultura axumitas tomando o período que vai do
século II ao IV. As breves inscrições consagradas aos deuses vão se transformando
aos poucos em relatos detalhados das vitórias alcançadas pelo “rei dos reis”.
Desses, são exemplos particularmente interessantes as inscrições de Ezana, em
40 CAQUOT, A. & LECLANT, J. 1959. p. 174.
41 MOBERG, A. 1924. p. 14, b; IRFANN, S. 1971. p. 64.
42 PRIAULX, B. 1863.
43 PRIAULX, B. 1863; WINSTEDT, E. O. 1909. p. 324.
44 PLÍNIO. ed. 1838 -62. VI, 172; PTOLOMEU, Cláudio. IV, 7, 10.
45 PRIAULX, B. 1863. p. 277; DESANGÉS, J. 1967. pp. 141 -58.
415
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
etíope e em grego. Numa delas, em que Ezana relata em detalhe sua campanha
na Núbia, atinge -se o ápice do estilo epigráfico
46
. O texto revela eloquência e
sentimentos religiosos autênticos e liberdade no uso de conceitos complexos. As
ideias básicas subjacentes são a glorificação de um monarca poderoso, invencível,
cuja ira seria loucura provocar, e a exaltação do deus, cuja proteção especial e
permanente o monarca desfruta. Evocam -se argumentos bastante pertinentes
para justificar as campanhas axumitas na Núbia e outras represálias. O rei Ezana
é representado como sendo de uma honestidade e de uma magnanimidade
irrepreensíveis. Essa inscrição pode ser justificadamente considerada como uma
obra literária, apresentando semelhanças com a poesia popular e a literatura
etíopes de época mais recente.
Evolução análoga tiveram os motes na cunhagem axumita. As moedas, do
século III até a metade do IV, ostentam o epíteto étnico particular de cada
monarca, formado pela palavra be’esi (“homem”) e um etnônimo correspondente
ao nome de um dos “exércitos” axumitas. De alguma forma, esse sobrenome se
associava à estrutura tribal e militar do Estado axumita e provavelmente tinha
origem na democracia militar da Etiópia antiga. A moeda corrente na época de
Ezana e de seus sucessores trazia o mote grego “Que o país esteja satisfeito!”.
É evidente que esse artifício demagógico reflete uma doutrina oficial, cujos
primeiros indícios se podem discernir nas inscrições de Ezana
47
. Sem dúvida, o
rei desejava fazer -se popular ante a nação, propósito que condizia com a natureza
de um poder que se ia transformando em monarquia. Mais tarde, as versões
grega e etíope desse mote foram substituídas por fórmulas cristãs piedosas.
A evolução das legendas nas moedas e das inscrições reais de Axum permitem
discernir duas tendências opostas na ideologia da administração axumita: a
ideia monárquica ligada à unidade cristã e a noção demagógica originária das
tradições locais.
Com a ideia de império, o colossal introduz -se na arquitetura e nas artes
figurativas. o exemplos: as gigantescas estelas monoticas de 33,5 m de
altura, erigidas sobre plataforma de 114 m de comprimento; a laje monolítica
de basalto medindo 17,3 m X 6,7 m X 1,12 m; as imensas estátuas de metal (a
base de apenas uma delas se preservou, mas as inscrições nos dão as dimensões
das outras); os enormes palácios dos reis de Axum, Enda -Michael e Enda-
-Simon; e, particularmente, o conjunto de edifícios reais, o Taakha Maryam,
cobrindo uma área de 120 m por 80 m não nada comparável na África
46 DAE, n. 11.
47 DAE, n. 7: 24; DAE, n. 11: 48.
416
África Antiga
 . Inscrição grega de Ezana (século IV). (Foto Instituto Etíope de Arqueologia.)
417
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
tropical. A obsessão pelo gigantesco refletia os gostos da monarquia axumita,
cujo prosito ideológico se concretizava nos monumentos destinados a
inspirar admiração e temor pela grandeza e força do potentado ao qual eles
eram dedicados. Paralelamente ao gosto pelo gigantesco, a arquitetura mostra
uma tendência cada vez mais acentuada para a arte decorativa. A combinação
de pedra e madeira na constrão, com o emprego alternado de blocos de
pedra mais e menos trabalhados em um ou outro ponto do edifício e vigas de
madeira, bem como a cimentação com cascalho e material aglutinante, não
contribuiu para simplificar o trabalho dos construtores como também permitiu
a obtenção de efeitos altamente decorativos. A riqueza plástica natural e o
surpreendente arranjo das variadas texturas resultantes da combinação de pedras
brutas e trabalhadas nas superfícies murais com as pesadas vigas de madeira
terminando nas chamadas cabas de macaco”, m seu efeito decorativo
realçado na alternância de saliências e reentrâncias, nos átrios rebaixados, com
pesadas portas de madeira, terminando em escadas, e nas calhas ornamentadas
com gárgulas em forma de cabeça de leão. Passou -se a dar maior atenção aos
interiores. A tendência inegável para um estilo de construção mais decorativo
vinha responder às exigências crescentes de luxo e conforto da classe dirigente
axumita, enriquecida com a formação do império. A arquitetura e a escultura
etíopes desse período foram de uma originalidade notável, o que não exclui a
assimilação das diferentes influências culturais advindas do Império Romano,
da Arábia meridional, da Índia e de Méroe. Particularmente importante foi a
influência síria, que teve início com a expansão do cristianismo.
Cosmas Indicopleustes menciona o palácio de quatro torres dos reis
axumitas
48
. De acordo com a reconstituição feita pelo dr. Krencker, tratava -se
de um castelo que a disposição dos edifícios vizinhos palácios, templos e outros
santuários – tornava a parte mais inacessível da cidade. A julgar pelos resultados
das escavações de H. de Contenson, o local ainda era fortificado na Era Cristã
49
.
O paganismo dos axumitas lembrava muito a religião da antiga Arábia do
Sul. Era um politeísmo complexo, com características dos cultos relacionados
à agricultura e à criação de animais. As divindades adoradas eram Astar, a
encarnação do planeta Vênus, e Beher e Meder, divindades que simbolizavam
a terra. A popularidade de que gozou o culto de Astar no período pré -axumita
permaneceu no Axum pagão
50
, sendo encontrados vestígios desse culto em
48 WINSTEDT, E. O. 1909. p. 72.
49 KRENCKER, D. M. 1913. p. 107 et seq., 113 et seq.; CONTENSON, H. de. 1963 -c. p. 9, pr. IX.
50 DAE, n. 6: 20; DAE, n. 7: 21; DAE, n. 10: 25; DAE, n. 27: 1; DREWES, A. J. 1962. p. 26 -7, pr. VI, XXI.
418
África Antiga
períodos ainda posteriores. Beher e Meder, constituindo uma divindade,
vinham logo depois de Astar nas inscrições
51
. O termo etíope cristão Egzi’abher
(“Deus” ou, literalmente, “o deus Beher”, ou deus da terra”) é um vestígio desse
culto
52
.
A divindade lunar Hawbas era adorada na Arábia do Sul e na Etiópia pré-
-axumita, e Conti -Rossini quis demonstrar que o deus Gad, cuja adorão
foi combatida pelos santos medievais, era esse mesmo deus lunar
53
. O autor
relacionou esse culto da lua ao caráter sagrado do antílope taurino na moderna
Eritreia. Um estudo das crenças tribais desse país no século XX mostrou que
os cultos da Antiguidade sobreviveram no norte da Etiópia e que a lua ainda é
adorada como uma divindade
54
. É possível que os axumitas associassem os traços
da divindade lunar à imagem do deus Mahrem.
Os mbolos do sol e da lua o encontrados nas estelas de Axum, de
Matara e de Anza, bem como nas moedas dos reis axumitas da época pré -cristã.
Provavelmente se referem a Mahrem, divindade dinástica e tribal dos axumitas.
Na inscrão bilíngue de Ezana, ao Mahrem do texto eope
55
corresponde
o nome grego Ares
56
. Todas as inscrições gregas pagãs dos reis de Axum
57
, à
exceção das inscrições dos simbriti, nas quais não figura o nome de deus, utilizam
o nome Ares. Como se sabe, o Ares ateniense era adorado como deus da guerra.
Portanto, o mesmo devia acontecer com seu correspondente, Mahrem. Nas
inscrições axumitas, Ares -Mahrem, na qualidade de deus da guerra, é referido
como invencível”, “imbatível por seus inimigos”, aquele que garante a vitória
58
.
Na qualidade de ancestral étnico, Ares é denominado “deus dos axumitas”
59
nas
inscrições de Abba Pantalewon. Enquanto divindade dinástica, Mahrem -Ares
era chamado pelos reis “o maior dos deuses”, ancestral dos reis
60
. A qualidade
51 DAE, n. 6: 21; DAE, n. 7: 21; DAE, n. 10: 25 -6
52 VYCICHL, W. 1957. pp. 249, 250.
53 CONTI -ROSSINI, C. 1947. p. 53.
54 LITTMAN, E. 1910 -5. p. 65 (n. 50), 69 (n. 52).
55 DAE, n. 6: 2, 18, 26; DAE, n. 7: 3, 19, 21, 25.
56 DAE, n. 4: 6, 29.
57 DAE, n. 2: 8; Monumentum Adulitanum; WINSTEDT, E. O. 1909. p. 77; SAYCE, A. H. 1909. pp.
189, 190.
58 DAE, n. 2: 8; DAE, n. 4: 6, 29; DAE, n. 6: 2 -3; DAE, n. 7: 3 -4; DAE, n. 8: 4 -5; DAE, n. 9: 4; DAE, n. 10:
5 -6.
59 DAE, n. 2: 8.
60 WINSTEDT, E. O. 1909. p. 77; DAE, n. 10: 5, 29 -30; DAE, n. 8: 4; DAE, n. 9: 3 -4; DAE, n. 6: 2; DAE,
n. 7: 3.
419
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
primeira de Mahrem era a de deus progenitor e protetor dos axumitas; um
segundo atributo seria o de invencível deus da guerra; em seguida ele apareceria
como antepassado e pai do rei; enfim, teria sido considerado como o rei dos
deuses. Era a ele que os reis de Axum consagravam seus tronos vitoriosos tanto
na própria Axum como nas regiões que conquistavam.
Evidentemente, Mahrem, deus da guerra e da monarquia, reinava
soberanamente sobre as divindades astrais e terrestres da mesma forma que um
monarca consagrado dominava um povo. Ao mesmo tempo, a guerra, personificada
por Mahrem, prevalecia sobre o trabalho pacífico, sendo considerada como um
dever mais honroso e mais sagrado que o trabalho dos camponeses, embora este
fosse santificado pelos preceitos dos antepassados. Distinguiam -se claramente
na religião de Axum os primeiros traços característicos da ideologia de classe
de uma sociedade feudal em processo de formação.
Nos sacrifícios que os axumitas ofereciam a seus deuses, os animais domésticos
eram as oferendas mais constantes. Uma das incrições de Ezana
61
registra ter-
-se oferecido uma dúzia de bois a Mahrem em um único ritual de consagração.
Segundo as pesquisas de A. J. Drewes
62
sobre a inscrição da Safra, imolavam -se
habitualmente vacas e ovelhas estéreis, tipo de sacrifício ainda comum entre
certas populações etíopes. A inscrição, observa A. J. Drewes, contém termos
espeficos empregados durante o ritual, que era celebrado por um padre
imolador. Encontram -se, em outras inscrições, referências ao abate de animais
para serem queimados em oferenda a Astar. De acordo com o antigo costume
semita, na entrega de certas oferendas eram exigidas, pelo rito, vestimentas
imaculadamente brancas. na época pré -axumita, o animal vivo levado em
sacrifício passa a ser substituído por sua imagem consagrada. Reproduções, em
bronze e em pedra, de touros, carneiros e outros animais de sacrifício, muitas
com inscrições, conservam -se até hoje.
O culto dos ancestrais, especialmente dos reis mortos, ocupava um lugar
importante na religião axumita. Mandava o costume que se lhes dedicassem
estelas: welt, palavra derivada da raiz h -w -l, significa “ficar em volta ou
adorar”, tradição comparável ao culto islâmico diante da Caaba. As vítimas dos
sacrifícios eram levadas aos altares e ao pedestal das estelas, esculpido em forma
de altar, e o sangue escorria para cavidades talhadas em forma de bacias. As
sepulturas dos reis axumitas eram consideradas como os lugares santos da cidade.
Os vasos e outros objetos descobertos em locais fúnebres indicam a crença numa
61 DAE, n. 10: 29 -30.
62 DREWES, A. J. 1962. pp. 50 -4.
420
África Antiga
vida além -túmulo. Referências indiretas a essa questão sugerem a existência de
um culto dos “senhores das montanhas”, que lembra cultos análogos da Arábia.
Embora as informações disponíveis sejam ainda extremamente fragmentárias,
pode -se considerar a religião axumita como relativamente desenvolvida,
apresentando um ritual complexo e implicando o sacerdócio profissional.
No início do período axumita, penetravam na Etiópia ideias religiosas tanto
de países vizinhos como de países afastados. No Monumentum Adulitanum
menciona -se Posêidon, deus dos mares, que, parece claro, era adorado pelos
habitantes de Adulis e da costa meridional do mar Vermelho
63
. Os santuários
de Almaqah, deus nacional” dos sabeus, adorado pelo rei Gadara, de Axum
64
,
foram situados em Melazo e, a depender de comprovação, em Hawila -Asseraw.
A estela recém -descoberta em Axum com o símbolo egípcio da vida (ankh)
65
e os objetos pertencentes ao culto de Hátor, Ptah e rus, bem como os
escaravelhos sugerem que os adeptos da religião egípcio -meroíta residiram, em
algum período, em Axum, Adulis e Matara. As estatuetas de Buda encontradas
em Axum
66
provavelmente foram trazidas por comerciantes budistas originários
da Índia. Dos numerosos grupos da Arábia do Sul que professavam a religião
judaica, alguns devem ter vindo se instalar na Etiópia antes do século VI, quando
o cristianismo se tornou predominante (ver capítulos 14 e 16).
Como resultado da influência exercida pelo cristianismo e por outras religiões
monoteístas, a Etiópia e a Arábia adquiriram uma visão monoteísta peculiar,
atestada pelas inscrições em geês – como, por exemplo, as de Ezana relativas à
campanha da Núbia (DAE, n. 11), ou a de Abreha Täklä Aksum (personagem
que não se deve confundir com o rei Abreha) em Uadi Menih
67
– e pelas últimas
inscrições sabeanas da Arábia meridional.
Não existem contradições fundamentais entre essa forma de monoteísmo e
o cristianismo; Ezana, na inscrição acima mencionada, Wazeba, numa inscrição
recentemente descoberta, e Abreha, rei de Himiar, em suas inscrições, usam
os termos e os conceitos de um monoteísmo indefinido” para propagar o
cristianismo.
Sujeita a influências culturais estrangeiras, a subcultura da monarquia axumita
apresentava um caráter não apenas nacional mas também internacional. O grego
63 WINSTEDT, E. O. 1909. p. 77.
64 JAMME, A. 1957. p. 79.
65 ANFRAY, F. 1972 -b. p. 71.
66 CONTENSON, H. de. 1963 -b. pp. 45, 46, pr. XLVII -XLVIII, a, c.
67 LITTMAN, E. 1954. pp. 120, 121.
421
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
era utilizado juntamente com o geês como língua nacional e internacional.
Aparentemente, reis como Za -Hekale e Ezana sabiam o grego (de acordo com
o Periplus, o “rei Zoscales” sabia ler e escrever em grego, e o conselheiro de
Ezana, Frumêncio, que viria a ser o primeiro bispo de Axum, era de origem
greco -fenícia). As moedas cunhadas pela maioria dos reis axumitas dos séculos
III e IV continham legendas gregas, e se conhecem seis inscrições em grego
feitas por monarcas de Axum.
Não razão para se pensar que o sabeano tenha sido uma das nguas
oficiais do início do reino axumita. Um dos três textos pseudotrilíngues de
Ezana (na realidade, bilíngues, geês -grego) está escrito em himiarita recente e
possui algumas peculiaridades exageradas da ortografia sabeano -himiarita. A
mesma escrita é usada em três outras inscrições reais axumitas, de Ezana, Kaleb
e Wazeba
68
. Somando -se ainda uma inscrição de Tsehuf Emni (Eritreia)
69
, são
cinco os textos “pseudo -himiaritas” provenientes da Etiópia. Sua língua é o geês
com raras palavras em sabeano.
o se sabe muito bem por que os reis axumitas utilizavam igualmente textos
pseudo -himiaritas” e textos escritos em etíope clássico nas suas inscrições de
caráter estritamente oficial. Em todo caso, trata -se de um fato representativo
da influência sul -arábica.
É possível que o emprego da escrita himiarita bem como do etíope vocalizado
e a introdução de algarismos sejam inovações do reinado de Ezana e que essas
inovações estejam inter -relacionadas.
Os prinpios básicos da escrita etíope vocalizada não m equivancia
no mundo camito -semítico, mas são típicos dos alfabetos hindus. No século
XIX, B. Johns, R. Lepsius e E. Glaser mostraram as relações entre o alfabeto
etíope e o da Índia. Em 1915, A. Grohmann apontou as principais semelhanças
entre a concepção do alfabeto etíope vocalizado e a do alfabeto do Brahmi ou
Karoshti, ressaltando certos detalhes comuns, como os signos usados para u e e
breve
70
. A hipótese da influência hindu sobre os reformadores do antigo alfabeto
consonântico etíope parece, portanto, bastante provável. Já a influência da Grécia
na criação do alfabeto etíope não foi provada, embora seja certa a origem grega
do sistema numérico e dos principais algarismos etíopes, tal como apareceram,
pela primeira vez, nas inscrições de Ezana.
68 DAE, n. 8 : 18 -19; SCHNEIDER, R. 1974. pp. 767 -70.
69 CONTI -ROSSINI, C. 1903.
70 GROHMANN, A. 1915. pp. 57 -87.
422
África Antiga
 . Inscrição em caracteres pseudo -sabeanos de Wa’Zaba (século VI). (Foto Instituto Etíope de
Arqueologia.)
423
Axum do século I ao século IV: economia, sistema político e cultura
Na verdade, o alfabeto etíope vocalizado reproduz o rigorosamente o
sistema fonológico do geês que só se pode pensar num etíope como seu criador.
Acrescido de alguns signos, esse alfabeto tem sido usado na Etiópia até hoje e é
considerado, de modo geral, como uma grande conquista da civilização axumita.
Já no seu início, a escrita etíope vocalizada começa a exercer influência sobre
as escritas da Transcaucásia. D. A. Olderogge sugere que Mesrop Mashtotz
utilizou a escrita etíope vocalizada ao inventar o alfabeto armênio. É possível
que a escrita etíope tenha sido introduzida na Armênia pouco tempo antes (no
fim do século V) pelo bispo sírio Daniel
71
.
É por intermédio da Síria setentrional que, nessa época, se estabelecem
relações culturais entre Axum e Armênia. Temos algumas evidências da presença
de sírios em Axum e da influência síria na arquitetura axumita
72
(notadamente
na grande estela monolítica de Axum, cuja forma evoca as construções de
vários andares), que guarda também uma certa semelhança com a arquitetura
sul -arábica e hindu da época. Bastante razoável é a hipótese do predomínio
da influência meroíta no decorrer dos séculos II e III. Todos os objetos de
artesanato meroíta encontrados na Etiópia pertencem a esse período. Um bastão
de bronze com a inscrição de Gadara, um rei de Axum, lembra os cetros dos
reis meroítas
73
. Os elefantes mesmo podem ter sido introduzidos no ritual real
axumita sob a influência tanto da Índia como de Méroe.
O reino axumita foi mais do que uma grande potência comercial nas rotas
que uniam o mundo romano à Índia e a Arábia ao nordeste da África; foi
também um importante centro de difusão cultural, exercendo sua influência ao
longo dessas rotas e tendo, ao mesmo tempo, numerosos traços de sua cultura
determinados pela influência de muitos países de antiga civilização do nordeste
da África e do sul da Arábia, sob seu domínio.
71 OLDEROGGE, D. A. 1972. pp. 195 -203.
72 ANFRAY, F. 1974. pp. 761 -5.
73 CAQUOT, A. & DREWES, A. J. 1955; DORESSE, J. 1960.
C A P Í T U L O 1 6
425
Axum cristão
Até o século XVIII, a religião ocupou lugar de relevo em todas as sociedades
humanas. O monoteísmo foi geralmente precedido pelo politeísmo, e os atuais
centros cristãos foram outrora berços do paganismo. Nenhuma nação adotou o
cristianismo sem antes passar por um período de paganismo.
A Etiópia não constitui exceção a essa regra. Por conseguinte, não teve o
privilégio de entrar no mundo monoteísta sem primeiro praticar as mais diversas
formas de culto. Num país como esse, onde a dominação estrangeira nunca se fez
presente por muito tempo, nada mais natural que a coexistência de numerosos
cultos e sua transmissão de pai para filho.
Entre os antigos habitantes da Etiópia, os grupos cuxitas (Beja e Aguew)
não assimilaram a cultura semita da classe governante, entregando -se à adoração
de diversos objetos da natureza: árvores gigantescas, rios, lagos, montanhas
elevadas, animais. Acreditavam que esses objetos abrigavam espíritos bons ou
maus, aos quais se devia consagrar oferendas e sacrifícios anuais ou sazonais.
As tribos de origem semita que não herdaram o culto cuxita, assim como
os cuxitas semitizados, donos de uma cultura razoavelmente desenvolvida
em relação à dos grupos anteriores, veneravam a natureza em suas formas
celestiais e terrestres (o Sol, a Lua e as estrelas, os campos e a terra), sob os
nomes da tríade Mahrem, Beher e Meder, rivais dos deuses estrangeiros ou
seminacionais da Arábia do Sul ou da Asria -Babilônia, como Almaqah,
Axum cristão
Tekle Tsadik Mekouria
426
África Antiga
Awbas, Astar. Estes, por seu turno, foram assimilados aos deuses gregos Zeus,
Ares e Posêidon
1
.
Essa assimilação algo arbitrária era incentivada por viajantes influentes,
que faziam a propaganda de seus próprios deuses, e admitida por alguns reis
axumitas de cultura grega, mas isso não abalou a importância de Mahrem,
considerado como deus nacional. Conforme a língua materna de cada um, o
Mahrem dos axumitas tanto podia ser chamado Zeus por um grego como Âmon
por um núbio de cultura egípcia. Em sua entrada triunfal no Egito, em -332,
Alexandre, o Grande, que se dizia filho de Zeus, foi recebido pelos sacerdotes
como filho de Âmon.
Os antigos textos etíopes, redigidos com base na tradição oral, e as investigões
levadas a cabo a partir da época do rei Amde Tsion (+1313 a +1342), afirmam a
existência de um culto da serpente arwe paralelamente à prática da lei de Moisés
2
.
A serpente era considerada um dragão divino ou o primeiro rei Arwe -Negus, pai
da rainha de Sabá, coisa que nenhum leitor moderno levaria a sério.
Essa crença popular pertence decerto à história lendária da Etiópia antiga,
anterior ao início de Sua história autêntica. Como ali, a história antiga de
todas as nações é invariavelmente precedida de uma história lendária. A loba
amamentando os dois primeiros reis de Roma é apenas um dentre muitos
exemplos. Quase sempre as verdades históricas e os milagres encontram -se tão
inextricavelmente entrelaçados que não se pode distingui -los.
Entre os semitas vindos da Arábia do Sul, ancestrais dos Tigre e dos Amara,
que viviam no altiplano, a presença de vários cultos de inspiração sul -arábica,
citados confusamente pelos viajantes, é confirmada por documentos epigráficos
e numismáticos.
Após os trabalhos de Bruce, Salt, A. Dillmann e outros, a obra monumental
da missão alemã de 1906 (impressa em 1913) e as sucessivas descobertas dos
arqueólogos do Instituto Etíope de Arqueologia, fundado em Adis Abeba em
1952, lançaram as bases do conhecimento aprofundado dos cultos axumitas da
época pré -cristã. O templo de Yeha (que ainda se acha de pé), estelas dispersas,
sítios de castelos e objetos votivos atestam a prática desses cultos na corte de
Axum antes de sua conversão ao cristianismo.
1 LITTMANN, E., KRENCKER, D. & LUPKE, T. von. 1913. pp. 4 -35; CONTI -ROSSINI, C. 1928.
pp. 141 -4; DROUIN, E. A. 1882. LONGPÉRIER, A. de. 1856 -74. p. 28
2 Coleção do Degiazmetch Haylon, Tarike Neguest, guardada em Paris. n. 143, pp. 23 -35; TAMRAT, T.
1972. pp. 21 -30.
427
Axum cristão
No entanto, ainda falta esclarecer se esse tipo de culto relativamente
desenvolvido é de domínio exclusivamente real e aristocrático ou também popular.
Sobre a existência do judaísmo na Etiópia, inúmeros fatores testemunham a
presença de um grupo que professava a religião hebraica; a história dos reis,
Tarike Neguest, menciona -o brevemente. Esse grupo teria inclusive governado
durante algum tempo.
Mesmo deixando de lado a narrativa do Kbre Neguest (Glória dos Reis),
considerado pelos clérigos etíopes como um livro basilar de história e literatura,
e no qual todos os reis de Axum são erroneamente ligados a Salomão e Moisés,
certas tradições, transmitidas através dos séculos, aludem à presença de fiéis da
religião judaica. Os indícios são a circuncisão e a excisão infantil, além do relativo
respeito pelo sabá. Os cantos sagrados e as danças litúrgicas acompanhadas de
tambores, sistros e palmas evocam a dança dos judeus e do rei Davi diante da
arca da aliança.
Mas, com a introdução do cristianismo, precedida ou seguida de uma
transferência de poder para outros grupos (sabeus, habesan, etc.), os judeus, como
em todos os lugares, foram vítimas de preconceitos e violências e por isso se
entrincheiraram em regiões de difícil acesso. O massacre dos cristãos de Najran,
no século VI, na Arábia do Sul, e a sublevação dos Falacha no século X parecem
relacionados com os maus -tratos infligidos aos judeus que habitavam o Império
de Axum, predominantemente cristão, ou com as reações suscitadas por sua
hegemonia econômica e política na Arábia.
A introdução do cristianismo em Axum
A religião fundada por Cristo na Palestina e propagada por seus adeptos
em todos os impérios do Ocidente e do Oriente vai encontrar a corte de Axum
entregue a um culto politeísta, seguido pelos cuxitas, e a uma religião sul -arábica,
praticada pelos semitas e cuxitas semitizados.
Segundo os textos apócrifos dos Atos dos Apóstolos, redigidos por um certo
Abdias, parte da população acredita equivocadamente que o Mateus foi
o primeiro a levar o cristianismo à Etiópia. Essa tese não é confirmada por
nenhum documento fidedigno.
A história dos reis, Tarike Neguest, atribui ao famoso Frumêncio o privilégio
de ter introduzido o cristianismo no país. Frumêncio viria a ser chamado
Iluminador (“Kessate Brhan”) ou “Abba Selama”, que significa “Pai da Paz”. A
chegada de Frumêncio à Etiópia, sua partida para Alexandria e seu retorno a
428
África Antiga
Axum o descritos pormenorizadamente por Eusébio e Rufino. A obra deste
último, que trata especialmente da introdução do cristianismo na Etiópia, foi
posteriormente traduzida em geês e amárico.
Segundo Rufino, um certo Merópio de Tiro desejava ir às Índias (a exemplo
do filósofo Metrodoro) com dois jovens parentes, Fruncio e Esio. Na
volta, ao aproximar -se de um porto (no mar Vermelho?), seu barco foi atacado
pela populão. Mepio morreu e os dois jovens iros foram conduzidos
até o rei de Axum. O mais jovem, Edésio, tornou -se escanção, enquanto
Frumêncio, graças à sua cultura grega, fez -se tesoureiro, conselheiro do rei
e tutor de seus filhos. Considerando -se a data de chegada dos dois jovens,
é de crer que esse rei tenha sido Elle Ameda, pai de Ezana. Após a morte
de Elle Ameda, sua esposa tomou -se regente e pediu aos dois jovens para
permanecerem com ela a fim de administrar o ps a que seu filho estivesse
em idade de reinar.
E assim Frumêncio pôde educar o jovem príncipe no amor à nova religião.
Tendo preparado o terreno ao cultivo do cristianismo, Frumêncio retirou -se
com seu irmão Edésio, que retornou a Tiro para assistir seus parentes idosos.
Frumêncio dirigiu -se a Alexandria, onde visitou o patriarca Atanásio e lhe
participou a boa acolhida dispensada ao cristianismo pela família real de Axum,
instando -lhe para enviar um bispo àquele país. O patriarca não queria enviar
alguém que desconhecesse a língua e os costumes do lugar, e assim consagrou
Frumêncio bispo de Axum. De volta à Etiópia, coube a Frumêncio a honra de
batizar o rei e toda a família real
3
.
Foi, portanto, a partir dessa data que o cristianismo se propagou em Axum.
O primeiro rei cristão, educado e depois batizado pelo bispo Frumêncio, parece
ter sido Ezana, filho de Elle Ameda. Tudo indica que o exemplo do rei e da
família real foi amplamente seguido. Todavia, é lícito perguntar como um
simples secretário e tesoureiro do rei, e depois assistente da rainha -mãe (Sofia?),
poderia ensinar a nova religião cristã que não era a da corte, ou seja, do Estado
às crianças reais, em detrimento do invencível Mahrem, o maior dos deuses,
ancestral do rei. Pode ser que Frumêncio se tivesse mostrado hábil secretário
e administrador de talento e que, como afirma Rufino, tenha influenciado
indiretamente em favor da religião cristã os jovens príncipes confiados à sua
tutela. Mas essa influência não bastaria para pôr fim a uma religião solidamente
estabelecida e substituí -la sem provocar tumultos.
3 COSMAS INDICOPLEUSTES. pp. 77 -8; BUDGE, E. A. W. 1966, pp. 142 -50; CONTI -ROSSINI,
C. 1928. pp. 145 -60.
429
Axum cristão
Sem negar o mérito de Frumêncio, parece -nos mais correto atribuir a mudança
de religião a outro fator. Graças aos documentos epigráficos e numismáticos,
assim como às narrativas de viajantes, sabe -se que a corte de Axum mantinha
relações amigáveis com Constantinopla. As trocas comerciais e culturais entre os
dois países eram consideráveis; a presença de etíopes em Constantinopla durante
o reinado de Constantino é mencionada no livro Vita Constantini, de Eusébio;
o emprego da escrita e da língua gregas na corte de Axum também não deixa
de ser significativo: o rei Zoscales, do século I da Era Cristã, falava e escrevia o
grego, a exemplo do próprio Ezana, o que mostra a preponderância da cultura
grega no reino axumita
4
.
O imperador de Constantinopla, Constantino, o Grande, que venceu
Maxêncio em 312 e presidiu o Concílio de Niceia em 325, era contemporâneo
de Elle Ameda e de Ezana. O esplendor de sua corte e sua inclinação pelo
cristianismo, relatados e engrandecidos por outros viajantes além de Frumêncio,
e não citados nos anais, devem ter exercido grande influência na corte de Axum
e no próprio Frumêncio greco -fenício de nascimento, criado nessa cultura e
religião –, que, finalmente, encontrou o rei e sua família dispostos a acolher a
nova fé, difundida na corte de Constantinopla.
Provavelmente, não foi sem dificuldade que a corte axumita deu esse passo.
A partida de Frumêncio para Alexandria e seu regresso a Axum como bispo
parecem ter ocorrido num clima de dúvida e apreensão, de que o prelado não
deixou de tirar proveito.
Seja como for, traído por seu próprio filho, Mahrem descrito como
“invencível para os inimigos” foi vencido por Cristo. O triunfo do signo da
cruz sobre o crescente é atestado pelas inscrições,pelas moedas.
A mudança de uma religião para outra nunca é fácil, particularmente para
os reis axumitas, que amavam seu deus como ao próprio pai. A honra de um rei
estava sempre ligada a seu deus, e os interesses da corte e dos chefes religiosos
geralmente se identificavam. Quando um rei como Ezana qualificava seu deus de
“invencível”, estava na verdade pensando em si mesmo. Mediante esse atributo,
buscava ele sua própria invencibilidade.
Podemos, por conseguinte, imaginar as dificuldades que Ezana teve de
enfrentar, a exemplo de seu contemporâneo Constantino, o Grande. Pois, na
verdade, o imperador de Constantinopla, embora presidisse concílios cristãos e
arbitrasse disputas religiosas dos patriarcas, veio a ser batizado em seu leito
4 SCHOFF, W. H., trad. 1912. pp. 60 -7.
430
África Antiga
de morte, porquanto temia ser traído pelos adeptos dos antigos cultos de Zeus
e de Ares
5
.
Do mesmo modo, como observaram Guidi e Conti -Rossini, o rei Ezana e
sua família, por temor ou amor -próprio, não abandonaram repentinamente o
culto de seu antigo deus em favor da religião cristã. A famosa inscrição registrada
pela expedição alemã em Axum (DAE, n. 2) que se inicia com as palavras “Com
a ajuda do Senhor do céu e da terra ...”, considerada por todos os etíopes como
o primeiro testemunho de Ezana sobre sua conversão ao cristianismo, mostra
explicitamente seu desejo de assimilar a nova religião à velha crença nos deuses
Beher e Meder, evitando mencionar o nome de Cristo, sua unidade com Deus
e a trindade que ele forma com o Pai e o Espírito Santo
6
. A expressão “Senhor
do céu e da terraIgzia Semay Wem –, pronunciada pela primeira vez no século
IV pelo primeiro rei cristão, continuou a ser usada até hoje.
Nem as obras estrangeiras nem os escritos locais publicados fornecem uma
indicação precisa quanto à data de introdução do cristianismo em Axum. Tanto
a história dos reis, Tarike Neguest, como o Guedel Tekle Haymanot afirmam que
os irmãos Frumêncio e Edésio chegaram em 257 da Era Cristã, ao passo que o
regresso do primeiro a Axum como bispo se teria dado em 315
7
. Outras fontes
dão as datas de 333, 343, 350, etc. Todas essas datas afiguram -se arbitrárias.
Algumas obras estrangeiras assinalam que o rei Elle Ameda, pai de Ezana,
morreu por volta de 320 -25. Fixando -se a maioridade em quinze anos e levando-
-se em conta a partida e o regresso de Frumêncio, o batismo do rei Ezana teria
ocorrido entre 350 e 360
8
.
Na falta de documentos autênticos, os autores contemporâneos limitam-
-se, por prudência, a afirmar que a introdução do cristianismo na Etiópia se
deu no século IV. De fato, uma inscrição em caracteres gregos, descoberta em
Filas, menciona a visita feita em 360 por um vice -rei axumita um cristão de
nome Abratoeis ao imperador romano, que o recebeu com todas as honras
devidas à sua posição
9
. Trata -se por certo de Constantino II (341 a 368), filho
de Constantino, o Grande. Conquanto cristão, adotara ele a doutrina de Ário,
que negava a unidade e a consubstancialidade das três pessoas da Santíssima
Trindade, e por consequência a igualdade perfeita de Jesus Cristo com o Pai. O
5 EUSÉBIO DE PANFÍLIA. 1675. pp. 65, 366 -8, 418 -22.
6 CERULLI, E. 1956. pp. 16 -21.
7 BUDGE, E. A. W. 1928. pp. 147 -50; GUIDI, I. 1896. pp. 427 -30; id. 1906. v. II.
8 CONTI -ROSSINI, C. 1928. pp. 148 -9.
9 CONGRESSO INTERNAZIONALE DI STUDI ETIOPICI. Accademia dei Lincei, 1974. v. I, p. 174.
431
Axum cristão
Concílio de Niceia, reunido em 325 e presidido pelo próprio pai de Constantino
II, havia condenado essa doutrina.
O implacável adversário de Ário era justamente Atanásio, que consagrara
Frumêncio bispo de Axum. Em seguida o próprio patriarca foi demitido de suas
funções, por ordem do imperador semi -apóstata, que nomeou em seu lugar um
certo Jorge, bastante favorável ao arianismo.
A notícia do regresso de Frumêncio a Axum não deve ter agradado ao
imperador de Constantinopla, que o novo bispo era adepto fervoroso do
patriarca Atanásio. O imperador não demorou a enviar uma carta ao rei Ezana
e a seu irmão Saizana, tratando -os generosamente de honoveis irmãos”.
Pedia -lhes amigavelmente para reenviar Frumêncio ao novo patriarca Jorge,
em Alexandria, a fim de que este e seus colegas examinassem o seu caso, uma
vez que estavam investidos do poder de decidir se Frumêncio era ou não digno
de dirigir o episcopado de Axum.
Infelizmente não possuímos o documento que poderia revelar qual foi a reação
dos dois irmãos ao receber a carta. Embora o interesse nacional os impelisse
a manter relações amigáveis com o poderoso imperador de Constantinopla,
os dois irmãos não parecem ter concordado com o pedido. As fontes locais
são unânimes em afirmar que Frumêncio prosseguiu pacificamente sua obra
episcopal até o fim de sua vida. O Synaxarium (espécie de biografia dos santos),
que relata seu apostolado, termina assim:
“[...] Ele [Frumêncio] chegou ao país de Ag’Azi [Etiópia] durante o reinado de
Abraha e Atsbaha [Ezana e seu irmão Atsbaha] e pregou a paz de Nosso Senhor
Jesus Cristo em todo o país. E por essa razão que ele é chamado Abba Selama [Pai
da Paz]. Depois de haver conduzido o povo da Etiópia à [cristã], ele morreu na
paz de Deus [...]”
10
.
A expansão do cristianismo
A introdução e a propagação do cristianismo pelo bispo Frumêncio, secundado
pelos dois reis -irmãos (Abraha -Atsbaha), são amplamente reconhecidas. Todas
as fontes locais corroboram isso. Curioso que nos numerosos textos relativos
a essa época, redigidos antes do fim do século XIX, não se encontra o nome
de Ezana, que parece ter sido o nome pagão do rei. Do mesmo modo, ao que
10 MEKOURIA, T. T. 1966-7. v. II, pp. 203 -17.
432
África Antiga
sabemos, nenhuma inscrição epigráfica e numismática faz alusão a Abraha, que
se supõe ser seu nome de batismo. Em consequência, temos nomes diferentes
para designar o mesmo homem que, por sorte ou azar, foi, como Constantino,
o Grande, meio pagão e meio cristão durante o seu reinado. Os textos quase
sempre apresentam flagrante contradição. Os nomes de vários reis gravados
claramente nas estelas e nas moedas axumitas não figuram nas listas compiladas
pelos autores do país. Um homem que era pagão para uns autores, para outro
era crente segundo a lei de Moisés.
Posto alguns considerem Abraha como o nome de batismo de Ezana, a famosa
inscrição em geês vocalizado, com o registro de 2 no DAE e considerada
por todos os especialistas etíopes como a epígrafe do tempo de sua conversão
ao cristianismo, cita apenas o nome Ezana. Nesse caso, Abraha não pode ter
sido seu nome de batismo. Evidentemente, não sabemos qual era o sistema
onomástico em vigor no reino de Axum no século IV. Tampouco sabemos se
os reis axumitas tinham também um nome próprio na infância, além do nome
de batismo e de outro, real, como acontecia com os imperadores das dinastias
amara de origem dita salomônica (séculos XIII e XX).
A influência dos dois irmãos, especialmente a de Abraha, foi imensa no
país. A ele se deve a construção da cidade de Axum e de sua primeira catedral.
Inúmeras igrejas e conventos gabam -se de ter sido fundados por ele, sem esquecer
a importante participação de seu irmão Atsbaha e do bispo Frumêncio nessa
obra, assim como de outros religiosos, não mencionados nas fontes.
O reino criso de Axum parece ter sido governado por uma sorte de
triunvirato do tipo teocrático, ABRAHA -ATSBAHA -SELAMA, sendo
Selama o nome atribuído pelos religiosos a Frumêncio.
A primeira ação de propaganda em favor da nova religião deve ter recebido
boa acolhida junto a uma parte da população, ligada à corte por laços étnicos e
culturais. Trata -se dos sabeus, dos habesan e dos himiaritas de origem semítica,
ancestrais dos Tigre e dos Amara, que aceitaram de bom grado a religião de
seus senhores.
Após a introdução do cristianismo, à medida que se iam multiplicando as
adesões à nova fé, amiudaram -se as viagens de religiosos aos lugares santos.
Em carta expedida de Jerusalém em 386, uma certa Paola escrevia à sua amiga
Marcella, que vivia em Roma: “Que dizer dos armênios [...] dos povos hindu
e etíope, que acodem a este lugar [ Jerusalém], onde mostram virtude exemplar
433
Axum cristão
 . O bispo Frumêncio, o rei Abraha (Ezana) e seu irmão Atsbaha, igreja de Abraba we Atsbaha
(século XVII).
434
África Antiga
[...]”. São Jerônimo, doutor da Igreja latina, também alude à contínua chegada
de etíopes aos lugares santos
11
.
Mas a expansão do cristianismo no reino de Axum durante os séculos V
e VI foi obra de religiosos que todos os textos tradicionais qualificam como
TSADKAN ( Justos) ou TESSEATOU KIDOUSSAN (Nove Santos). Sua
chegada ao reino de Axum, porém, está associada às disputas teológicas que por
essa época eclodiam nas grandes cidades do Império Bizantino.
Nascida num pequeno povoado da Palestina, a cristã, que se apresentava
como a religião dos pobres e perseguidos, tornou -se a religião dos Estados
a partir do momento em que Constantino promulgou em Milão, em 313, o
édito a favor do cristianismo. Apoiadas pelos imperadores cristãos, as igrejas
se organizaram. Os papas e os patriarcas partilharam entre si as regiões do
império cristão do Oriente e do Ocidente. A época das perseguições e da caça
às bruxas, sob o reinado de Diocleciano, estava encerrada para sempre. A paz
reinava em Roma, Alexandria, Damasco, Antioquia e em todos os lugares onde
a perseguição se mostrara mais violenta
12
.
Os patriarcas e os doutores da Igreja levavam uma vida relativamente
agradável, passando a maior parte do tempo a ler os livros sagrados e a examinar
certas passagens capazes de esclarecer a natureza do fundador da religião cristã.
As leituras e meditações inspiravam interpretações susceveis de semear a
divisão entre os cristãos. Desse modo, a religião fundamentada no amor, na
paz e na fraternidade veio a transformar -se em terreno de luta, a ponto de os
sucessores dos apóstolos e dos mártires brigarem entre si de tempos em tempos.
A reflexão aprofundada sobre a natureza de Cristo (Deus -Homem) e a
Sanssima Trindade converteu -se numa fonte de discórdia, como veremos adiante.
Após a condenação de Ário, em 325, foi a vez do patriarca de Constantinopla,
Nestório, suscitar uma grande polêmica, ao professar publicamente a humanidade
de Cristo, em oposição à doutrina, estabelecida em Niceia, que sustentava a
natureza divina de Cristo
13
. Segundo ele, as duas naturezas de Cristo (humana
e divina) eram perfeitamente distintas e separadas. A Virgem Maria era a mãe
de Cristo apenas enquanto homem, e não enquanto Deus; por isso não deveria
ser chamada “Theotokos”, ou Mãe de Deus, senão apenas “Christotokos”, Mãe
de Cristo.
11 CERULLI, E. 1943. pp. 1 -2.
12 Não se esqueça que os séculos V, VI e VII foram marcados por controvérsias teológicas extremamente
violentas, acompanhadas de novas perseguições de grupos minoritários anteriormente condenados.
13 Este é necessariamente um resumo bastante condensado da história da Igreja durante aquele período.
435
Axum cristão
A essa proposição opuseram -se energicamente o patriarca de Alexandria,
Cirilo, e o papa Celestino, de Roma. Em Éfeso (431), Nestório foi julgado
herético e condenado à prisão.
Seu sucessor, Flaviano, patriarca de Constantinopla, sem negar que Cristo
fosse o verdadeiro Deus, propôs uma nova ideia sobre as duas naturezas de
Cristo (humana e divina). Segundo ele, cada uma das duas naturezas de Cristo
era perfeita e distinta, conquanto unidas na pessoa de Cristo. Dióscoro, patriarca
de Alexandria, opôs -se imediatamente a semelhante proposição. Cristo, dizia
ele, possui uma natureza única, ao mesmo tempo humana e divina: trata -se
do monofisismo, cujo principal representante foi o sábio Eutíquio. A cerrada
discussão degenerou em tumulto durante o concílio reunido em Éfeso no ano
de 442. Do violento debate que então se travou saíram vitoriosos Dióscoro e
Eutíquio. O perdedor veio a falecer em consequência das bastonadas de seus
adversários, e Dióscoro regressou triunfante a Alexandria.
Mas essa vitória de Pirro dos adeptos do monofisismo não duraria muito.
Morto seu aliado imperial, Teodósio II, o general Marcião tomou o poder, e a
candente questão da natureza de Cristo foi novamente levantada. Um concílio
composto de 636 prelados e doutores da Igreja reuniu -se em Calcedônia em
451, sob a presidência do imperador Marcião. Tão confusa se tornou a discussão,
que era impossível discernir vencedor ou vencido. A questão teve de ser levada
ao papa de Roma, considerado o chefe supremo de todas as igrejas. O papa
Leão, o Grande, declarou -se numa carta favorável à doutrina das duas naturezas
distintas de Cristo. Desse modo Dióscoros foi condenado pelo concílio. Seus
adversários, escorados no testemunho do chefe supremo da Igreja universal e
apoiados pelo imperador Marcião, chegaram a tratá -lo rudemente para vingar os
maus -tratos infligidos ao patriarca Flaviano. Em seguida, Dióscoros foi banido
para uma ilha da Galácia.
Como se sabe, desde a época de Frumêncio o reino de Axum estava sob
a jurisdição do patriarcado de Alexandria, donde procediam os bispos e a lei
canônica. Por conseguinte, os reis e bispos de Axum eram naturalmente partidários
do monofisismo, que na Etiópia viria a receber o nome de TEWAHDO. A
notícia dos maus -tratos infligidos a seus patriarcas despertou um grande ódio
contra os partidários da doutrina das duas naturezas de Cristo. A vida dos
monofisitas tomou -se insuportável em todo o Império de Constantinopla,
porquanto os vencedores de Calcedônia não cessavam de dirigir -lhes ameaças
e injúrias. Para escapar a essa existência intolerável, os monofisitas viram -se
compelidos a fugir para o Egito e a Arábia. Foi por essa época que os famosos
436
África Antiga
Nove Santos chegaram ao reino de Axum, onde procuraram refúgio junto aos
adeptos da mesma doutrina.
A história dos reis, Tarike Neguest, faz breve alusão à chegada dos Nove Santos:
“Sal’adoba deu à luz All’Ameda, e durante o seu reinado chegaram de Roma
[Constantinopla] os Nove Santos. Eles consolidaram [Asteratou] a religião e as
leis monásticas”
14
. De acordo com algumas fontes locais, All’ Ameda reinou entre
460 e 470, e, segundo outras, entre 487 e 497. Pode -se, pois, situar entre essas datas
a chegada dos santos. Alguns autores acreditam que sua vinda se deu no século VI
(na época de Caleb e de Guebre Meskel), o que parece menos provável.
A chegada e o apostolado de alguns desses santos Aregawi, Penteleon,
Guerima e Aftse foram posteriormente descritos por religiosos em
biografias pormenorizadas. Infelizmente esses textos contêm tantos milagres e
manifestações de austeridade e penitência que o leitor moderno fica um pouco
cético quanto à sua verossimilhança.
Os santos levaram seu apostolado a vários lugares: Abba Aregawi subiu
até Debre -Damo, onde o culto da Píton parecia fundamente arraigado entre a
população nativa. Abba Guerima estabeleceu -se em Mettera (Madera), perto de
Senafe, e Abba Aftse em Yeha, onde ainda se pode ver o antigo templo dedicado
ao deus Almaqah (século V). Penteleon e Likanos permaneceram na cidade
de Axum, enquanto Alef e Tsihma se dirigiram a Bhzan e Tseden Tsedeniya;
Ym’ata e Gouba fixaram -s na região de Guerealta.
Nos lugares onde eles viveram ainda se podem contemplar os conventos e
igrejas que lhes foram consagrados. Alguns se encontram talhados em rochas
gigantescas, acessíveis por corda. No convento de Abba Ymata, também
construído sobre um rochedo, em Goh (Guerealta), existe uma pintura circular
representando os Nove Santos.
O cristianismo, introduzido por Frumêncio no século IV, foi consolidado por
esses santos, obviamente com o apoio dos sucessores do rei Ezana, como Caleb
e Guebre Meskel, cristãos fervorosos. Em seu ensinamento do Evangelho, os
Nove Santos defenderam a doutrina monofisita, por cuja causa tantos cristãos
foram maltratados e exilados.
No entanto, a difusão do cristianismo não se deveu apenas a esses nove
religiosos vindos do Império Bizantino. Guiados por bispos, como o famoso
Abba Metta’e, centenas de religiosos nativos e estrangeiros certamente ajudaram
a propagar a cristã, muito embora não lhes coubesse o privilégio, como aos
14 EMIN BEY. Manuscrito guardado na Bibliothèque Nationale, Paris.
437
Axum cristão
 . Debre -Damo visto a
distância.
F . O acesso ao convento
em Debre -Damo.
438
África Antiga
Nove Santos, de terem seus nomes mencionados nos anais
15
. Partindo das
regiões setentrionais, o cristianismo foi implantado em outras províncias, como
Begemdir, Gogiam, Choa, entre os Beja e os Amara. A religião beneficiou -se do
fiel apoio dos reis, rainhas, príncipes, governadores e dignitários da Igreja, que
mandavam construir conventos e igrejas nos lugares onde outrora floresceram
os cultos tradicionais.
Os templos dos deuses da época pré -axumita ou axumita pré -cristã eram
quase sempre construídos em lugares elevados, junto a grandes árvores e
regatos. Debre -Damo, Abba Penteleon, Abba Mettae de Chimzana e Yeha são
testemunhos desse fato. Após a conversão dos reis axumitas, todos esses templos
foram transformados em igrejas.
Resta saber em que língua esses religiosos, vindos de todos os cantos do
Império Bizantino, ensinavam o Evangelho. As pessoas das classes superiores,
ligadas à corte, eram mais ou menos poliglotas e falavam o grego, o sírio ou o
árabe; nesse caso não parece ter havido nenhum problema linguístico. Mas os
religiosos estrangeiros eram obrigados a estudar a língua do país para se fazer
entender pelo povo em geral. Pode ser que entre os peregrinos que iam aos
lugares santos, como Jerusalém, Constantinopla e Alexandria, alguns falassem
o grego ou o sírio, podendo assim servir de intérpretes para o povo ou então
ensiná -lo diretamente.
Isso explicaria o fato de encontrarmos em diversos textos religiosos etíopes
nomes de estilo grego e palavras sírias, como: Arami (Aramene), Arb, Haymanot,
Halti, Mehayn, Melak, Melekot, etc. (pagão, sexta -feira, fé, pecado, crente, anjo,
divindade).
O reino de Axum e a Arábia meridional
muito se sabe que os povos de origem semita, atravessando o mar
Vermelho, instalaram -se na Etpia setentrional. provavelmente à procura
de terras mais férteis e mais ricas do que as de seu país desértico. Os recém-
-chegados possuíam civilização superior à dos povos indígenas (em sua maioria
Beja, Aguew, etc., de origem cuxita) e acabaram por assumir o poder, fundando
as cidades de Yeha, Matara, Axum, etc.
Outros grupos da mesma origem (sabeus, himiaritas) permaneceram em sua
terra natal, enquanto os que atravessaram o mar Vermelho se tornaram cada
15 GUIDI, J. 1896. pp. 19 -30.
439
Axum cristão
vez mais poderosos, a ponto de o governo central de Axum ser considerado por
alguns como o terceiro poder no mundo. Os castelos reais, os templos, os discos
e crescentes, símbolos dos deuses Mahrem e Almaqah, atestam a identidade dos
dois povos que viviam em ambas as margens do mar Vermelho
16
.
Esse parentesco étnico e cultural explica, em larga medida, a conquista da
Arábia meridional pelos axumitas, que a consideravam seu lugar de origem, e por
que, em seus títulos formais, o rei Ezana dava grande ênfase ao título de rei de
Axum, de Himiar, de Sabá [...]”, distinguindo -se dos que se autodenominavam
“Kasu, Siyamo e Beja ... “, vindos das regiões ocidentais ou simplesmente nativos
dos territórios cuxitas.
Até princípios do século IV o povo semita que habitava as duas margens do
mar Vermelho praticava as mesmas religiões tradicionais, isto é, o culto da lua,
que tinha por símbolo o crescente, até hoje venerado pelos Estados muçulmanos.
O profeta Maomé provavelmente não obrigou os convertidos a abandonarem
esse símbolo, enquanto os bispos de Axum pressionaram os reis cristãos no
sentido de substituí -lo pelo símbolo da cruz.
Conito entre cristãos e judeus na Arábia do sul
Outros grupos que professavam a religião hebraica viveram nessa região
da Arábia do sul durante muito tempo, talvez desde a destruição de Jerusalém
por Nabucodonosor, em -587, e sua ocupação pelos lágidas. Mas seu número
aumentou sobretudo após a terceira destruição de Jerusalém, pelo imperador
Tito, no ano 70 da Era Cristã. Perseguidos pelos romanos, os judeus foram
acolhidos por seus compatriotas estabelecidos na Arábia do sul.
Além disso, muitos monofisitas abandonaram o Império Bizantino e buscaram
refúgio na Arábia após os concílios de Niceia e principalmente de Calcedônia,
quando os arianos foram condenados e perseguidos. Nesse país, com a ajuda dos
reis e dos cristãos de Axum, eles fundaram uma poderosa comunidade. Sob o
reinado de Justino I (518 -27), numerosos sírios monofisitas expulsos por ordem
do imperador dirigiram -se a Hira (al -Nadjaf, no atual Iraque) e dali atingiram
a Arábia do sul, instalando -se em Najran
17
.
Nessas duas comunidades de judeus e cristãos incla -se todo o grupo
árabe iemenitas, catabânicos, hadramáuticos, etc. –, que conservara o culto
tradicional da lua e se mostrava naturalmente atraído pelo florescente recinto
16 CONTI -ROSSINI, C. 1928. cap. 4.
17 BUDGE, E. A. W. 1928 -b. I, pp. 261 -9.
440
África Antiga
 . Pintura da igreja de Goh: os Apóstolos (século XV).
da Caaba. Maomé, fundador do islamismo e destruidor de ídolos, ainda não
havia nascido. Os três credos eram obrigados a viver lado a lado. Graças,
porém, à inestimável ajuda dos axumitas, os cristãos, além de ver aumentado
seu número, puderam desenvolver e organizar sua comunidade. Muitas igrejas
foram construídas. Najran e Zafar (Tafar) converteram -se em grandes centros
culturais cristãos
18
e em importantes postos de comércio
19
.
18 BUDGE, E. A. W. 1928 -a. pp. 743 -7.
19 Sobre esse ponto, ver o importante estudo feito por N. PIGULEVSKAYA, 1969, que foi traduzido do
russo.
441
Axum cristão
Por sua vez, os judeus, com o talento que manifestavam em todos os domínios,
formaram tamm uma comunidade em Sabá e em Himiar e procuraram
controlar o comércio. Acendeu -se assim uma acentuada rivalidade entre cristãos
e judeus. Os primeiros consideravam os judeus como deicidas condenados às
chamas do inferno; os segundos insultavam os cristãos, chamando -os de Goyim,
gentios e pagãos adoradores do homem.
Os sucessos obtidos pelos cristãos, aliados de Axum e de Bizâncio, e os
maus -tratos infligidos aos praticantes da religião judaica desenvolveram violenta
capacidade de réplica nas comunidades judaicas da Arábia do sul. Os árabes que
se conservavam fiéis aos cultos tradicionais viram -se também ameaçados pelo
monopólio das relações comerciais pelos cristianizados
20
, acabaram se colocando
ao lado dos judeus. Ademais, o proselitismo dos cristãos pode ter servido para
aproximar as duas religiões, ameaçadas pelo imperialismo cultural e religioso
do cristianismo.
Massacre dos cristãos de Najran pelos judeus
Ao tempo em que Justino I reinava em Bizâncio, Caleb era imperador de
Axum. Foi nessa época que os judeus, ajudados pelos himiaritas, massacraram
os cristãos de Zafar e Najran. O fato é narrado principalmente pelos autores
religiosos da época, Procópio e Sérgio
21
. Nesses textos, o rei, denominado Caleb
no original geês, recebe o nome grego de Hellesthaios. Às vezes o nome muda
para Elle Atsbaha, talvez uma forma arabizada da mesma palavra. Encontra -se
também a variante Hellesbaios. Analogamente, o rei judeu de Himiar, conhecido
como Zurah ou Masruc, recebeu o nome judeu de Yussuf quando assumiu o
poder, sendo chamado pelos autores árabes de Dhu -Nuwas ou ainda Dunaas,
Dimnos, Dimion ou Damianos
22
. No texto etíope que narra a história do
massacre de Najran ele recebe o nome de FINHAS. Para não confundir o leitor,
neste capítulo chamaremos Caleb ao rei de Axum, e Dhu -Nuwas ao rei judeu.
Sérgio que afirma ter obtido suas informões junto a testemunhas
oculares – dá ao evento a seguinte versão, traduzida para o italiano por Conti-
-Rossini em sua Storia di Ethiopia. O rei dos himiaritas, Dhu -Nuwas ou
Masruc, apoiado pelos judeus e pelos pagãos, começou a perseguir os cristãos.
O bispo Thomas foi então à Abissínia em busca de socorro e o obteve. Os
20 PIGULEYSKAYA, N. 1969. p. 211 et seq.
21 N. PIGULEYSKAYA, baseia -se em outras fontes.
22 CONTI -ROSSINI, C. 1928. pp. 171 -3.
442
África Antiga
abissínios, guiados por um certo Haywana, atravessaram o mar Vermelho e
prepararam -se para atacar Dhu -Nuwas. Este, incapaz de enfrentar semelhante
força, assinou um tratado de paz com o chefe abissínio Haywana, o qual, após
deixar no local parte de seu exército, regressou a seu país. Como a maior parte
das tropas havia partido, Dhu -Nuwas massacrou traiçoeiramente os cristãos
de Zafar e incendiou todas as igrejas, juntamente com os trezentos cristãos
ali deixados como guarnição.
Mas o massacre mais terrível descrito pelos autores da época ocorreu em 523
em Najran, o mais desenvolvido dos centros cristãos. Entre os mártires estava
um nobre venerado, o velho Harite (Aretas), que o texto geês chama de Hiruth
23
.
A expedição marítima do rei Caleb
Caleb (Elle Atsbaha), filho de Tazena, foi o mais famoso imperador de sua
época, podendo -se mesmo compará -lo a Ezana. Uma das razões de seu renome
foi a expedição marítima que relataremos a seguir.
Após o massacre de 523, um nobre chamado Umayyah conseguiu voltar a
Axum, onde narrou ao rei Caleb e ao bispo o que acontecera aos cristãos. Outros
cristãos fugiram para Constantinopla e ali deram conta do que se passara ao
imperador Justino, que, por intermédio do patriarca Timóteo, de Alexandria,
enviou uma carta a Caleb instando -lhe a vingar o derramamento de sangue
dos cristãos.
Não é difícil imaginar o efeito que a notícia do massacre provocou nos
dois imperadores. Mas o país de Sabá e Himiar, como se sabe, era mais ligado,
étnica e culturalmente, ao Império de Axum do que ao de Bizâncio. Portanto,
o rei Caleb tratou de reunir o quanto antes um exército capaz de assegurar -lhe
a vitória. Estima -se que ele obteve do imperador Justino
24
120 mil homens e
sessenta navios de guerra
25
. Entretanto, outros autores afirmam que ele partiu
com seus próprios navios, que se achavam ancorados em Adulis, e que seu
exército não ultrapassava 30 mil soldados
26
.
As fontes tradicionais contam que o rei, concluídos os preparativos mili tares,
recolheu -se ao convento de Abba Penteleon – um dos Nove Santos, então ainda
vivo – a fim de pedir a bênção, para si próprio e pelo sucesso da batalha que logo
23 CONTI -ROSSINI, C. 1928. p. 172.
24 Esses números são corretamente considerados imprecisos por PIGULEYSKAYA, N. 1969. p. 243.
25 Outras avaliões referentes à origem desta frotao encontradas em PIGULEVSKAYA, N. 1969. p. 243.
26 CAQUOT, A. 1965. pp. 223 -5.
443
Axum cristão
se travaria. O velho monge prometeu -lhe a vitória, e o rei dirigiu -se às praias
de Gabaza, não longe de Adulis, onde se executavam intensos preparativos
militares.
Pelo fim do mês de maio (525), Caleb embarcou. Seus navios velejaram
para a Arábia do sul, onde os aguardava o rei himiarita. Mas, quando o rei e
seu exército se abeiravam do porto inimigo, encontraram -no bloqueado por
correntes e guardado por soldados prontos a defendê -lo.
Sem esperar pelo fim da batalha, o rei Caleb procurou outro local, mais
propício ao desembarque de suas tropas. Por acaso, um dos parentes de Dhu-
-Nuwas, que havia sido capturado durante a batalha, informou -o da existência
desse local. E assim o rei, acompanhado por uns vinte barcos, conseguiu
desembarcar, o que lhe permitiu afugentar o restante dos soldados do rei de
Himiar. Enquanto a maior parte do contingente prosseguia a luta, Dhu -Nuwas
caiu prisioneiro de Caleb, juntamente com sete companheiros. Caleb, ansioso
por vingar o massacre dos cristãos, não hesitou em matá -lo imediatamente.
Terminada a batalha, as tropas cristãs invadiram primeiro a cidade de Tafar
(Zafar) e depois Najran. Os soldados cristãos devastaram o país e massacraram
os inimigos de sua religião. Em meio à carnificina, os cristãos que não sabiam
falar a língua dos soldados desenhavam na mão o sinal da cruz, para mostrar
que também eram cristãos e que suas vidas deviam ser poupadas
27
.
Em Najran, Caleb assistiu a uma cerimônia em memória dos crisos
martirizados no massacre, e antes de regressar a Axum mandou construir em
Marib um monumento comemorativo de sua vitória
28
. Nessa cidade fez também
construir um monumento para que seu nome fosse sempre lembrado pelas
gerações futuras
29
.
Ao retornar a Axum, o rei deixou em Zafar um certo Summyapha Awsa,
sob as ordens de Abreha, o mais renomado general cristão na corte de Axum e
na Arábia do sul.
Um contingente de 10 mil homens foi deixado como guarnição. Após a
vitoriosa campanha, Caleb recebeu acolhida triunfal em Axum, como se pode
imaginar. No entanto, em vez de saborear os frutos da vitória, esse rei religioso e
guerreiro retirou -se para o convento de Abba Penteleon a fim de levar uma vida
monástica, jurando nunca mais deixá -la. Enviou sua coroa a Jerusalém, pedindo
27 IRFANN, S. 1971. pp. 242 -76.
28 CONTI -ROSSINI, C. 1928. pp. 167 -201.
29 BUDGE, E. A. W. 1966. pp. 261 -4.
444
África Antiga
ao bispo Yohannes para dependu -la diante da porta do Santo Sepulcro,
conforme o voto que fizera antes da campanha.
As fontes antigas, umas de origem grega e outras árabes, e uma terceira
compilação, redigida no local a partir do século XVI, apresentam contradições
em relação ao que ocorreu durante essa expedição militar, assim como no tocante
aos nomes dos que participaram dessa vingativa empresa marítima. Ademais,
conquanto certos textos afirmem ter havido apenas uma expedição, outros dizem
que Caleb regressou à Arábia, tendo obtido sua vitória final depois de uma
segunda expedição. Mas isso não tem muita importância para os leitores atuais.
Não deixa de ser admirável a decisão do rei de abdicar depois de semelhante
vitória, a serem exatos os fatos relatados nos textos tradicionais. Todavia, um
outro texto afirma que Caleb permaneceu no poder até 542. É bem possível,
caso a guerra contra Dhu -Nuwas tenha ocorrido na Arábia em 525, que ele
tenha reinado por mais dezessete anos as sua volta a Axum, salvo erro
cronológico
30
.
Literatura
Axum possuía diversos alfabetos, usados pelos homens de letras e pela
administração da corte. Algumas das estelas axumitas tinham inscrições apenas
em sabeano ou em geês, outras em grego, mas raramente nessas três línguas ao
mesmo tempo. O sabeano constituía o alfabeto das tribos sabeanas, supostas
ancestrais dos axumitas, descritas no texto tradicional como Neguede Yoktan
(tribo de Yoktan)
31
, da qual descendem os atuais Amara, Tigre, Gurague, Argoba
e Harari (Aderes).
A exemplo do inglês em nossos dias, o grego era a língua mais difundida
naquela época. Foi introduzido em Axum em consequência das relações culturais,
econômicas e políticas do reino com o Império Bizantino, principalmente
durante o governo dos reis que parecem ter tido nomes gregos: Zoscales,
Aphilas, Andibis, Sombrotus, etc. Finalmente, foi o geês, a princípio sem signos
vocálicos e posteriormente vocalizado, que se tornou, a, partir dos séculos VI e
VII, a língua nacional oficial dos axumitas, a língua dos Agaizyan outro nome
adotado pelos nativos e que significa libertadores
32
.
30 MEKOURIA, T. T. 1966 -b. pp. 2 -7; CONTI -ROSSINI, C. 1928. pp. 108 -9.
31 CERULLI, E. 1956. pp. 18 -21.
32 BUDGE, E. A. W. 1966. pp. 136 -7; CONTI -ROSSINI, C. 1928. Monete Aksumita Tabola LX.
445
Axum cristão
Em geral, a língua fornece úteis indicadores ao investigador, mas por si não
permite a identificação do grupo étnico. Com efeito, um nativo tanto poderia
ser de origem semita, de nacionalidade axumita e cultura grega, como de origem
beja ou blêmia, de nascimento ou nacionalidade núbia e de cultura egípcia.
Assim, embora falando ou escrevendo o geês, não era necessariamente axumita.
Após a conquista árabe do Oriente Médio e da África do norte, no século VII,
o grego e o sabeano foram substituídos pelo geês, que passou a ser utilizado em
todos os círculos – civil, militar e religioso. A influência do grego só se manteve
graças à tradução da Bíblia para o geês, assim como de algumas obras dos Padres
da Igreja, como Cirilo de Alexandria e São João Crisóstomo. Como ocorre
amiúde, os tradutores, não encontrando a palavra exata em geês, empregavam
por vezes palavras gregas. Foi assim que se desenvolveu a forma grega até hoje
usada na Etiópia.
Dada a total ausência de pergaminhos manuscritos anteriores ao século
XIII, a literatura axumita autêntica até aqui conhecida limita -se às inscrições
epigráficas e numismáticas. Por vezes certas epígrafes, parcialmente apagadas ou
mal gravadas; não fornecem sequer o sentido literário que porventura permitiria
a reconstituição contínua de uma literatura autêntica.
A primeira inscrição a assinalar o início da literatura axumita da época cristã
é a que o DAE registrou sob o 2, na qual o rei Ezana, recém -convertido ao
cristianismo, narra sua vitória sobre o povo de Noba (os núbios), que lhe ousara
contestar o poder além do rio Taqqase e a matança de seus emissários. O senso
moral desse imperador pode ser entrevisto quando ele acusao povo de Noba de
haver maltratado e oprimido o povo de Mengourto, de Hasa, de Baria, os povos
de cor negra e vermelha (SEB’A TSELIME, SEB’A QUE’YH), de haver violado
por duas vezes o juramento feito ...”. Isso se deve talvez à sua nova religião.
No entanto, Ezana se vangloria de ter matado 602 homens, 415 mulheres e
várias crianças, graças ao poder de seu novo Deus que ele denomina “senhor
do céu e da terra, que foi o vencedor” –, sem ter cometido nenhuma injustiça.
Com isso ele parece querer dizer que o traiçoeiro povo de Noba merecera a
punição, por haver provocado a guerra
33
.
A influência do cristianismo assinala -se também nas numerosas moedas
mandadas cunhar pelo rei de Axum, nas quais o símbolo criso da cruz
substitui o crescente, símbolo da antiga religião. Alguns reis axumitas, desejando
publicidade ou a simpatia de seu povo, gravavam em suas moedas as mais
33 CERULLI, E. 1956. pp. 222 -3.
446
África Antiga
inusitadas legendas. Assim, a moeda do rei Wazed ou Wazeba (filho do rei
Caleb, século VI) tinha sua efígie de um lado, e, do outro, a inscrição: “Que o
povo seja feliz”. As moedas mais significativas são as do rei Lyouel, que, de
um lado, m sua caba coroada (com uma pequena cruz à direita da coroa)
e, do outro, uma cruz, a indicar que ele era um cristão fervoroso. Outra moeda
do mesmo rei apresenta a inscrão Cristo está conosco”
34
, em geês, sem signo
vocálico. É essa a primeira vez em que se menciona o nome de Cristo.
O Velho Testamento foi gradualmente traduzido do grego para o geês no
decorrer dos séculos V e VI. A Bíblia difundiu -se por toda a Etiópia, e seu
ensinamento assumiu importância vital na corte e nos círculos eclesiásticos. Aos
poucos ela se tornou a única base da ciência e da filosofia, sem, contudo, ofuscar
algumas obras dos Padres da Igreja.
Após o Concílio de Calcedônia, reunido em 451, os Nove Santos e seus
discípulos chegaram à Etiópia e consolidaram a influência monofisita entre os
membros do clero etíope. É por isso que a Igreja etíope evitava sistematicamente
todas as outras obras, fosse qual fosse o seu valor, provenientes do Ocidente. A
propósito, vale lembrar o acordo entre Amr Ibn al’ -As, companheiro do profeta
Maomé, e os patriarcas Benjamim e Chenouda no cerco de Heliópolis, em 640,
por ocasião da conquista do Egito. O ódio contra o patriarca Mukaukis e os
que professavam a doutrina das duas naturezas de Cristo levou os monofisitas
egípcios a tomarem o partido dos muçulmanos.
Como ficou dito, a Bíblia passou a ser a base de todo o conhecimento. Após
a consolidação do cristianismo, até o início do século XX, o erudito etíope digno
desse nome devia ser não um bom conhecedor da ciência ou da filosofia greco-
-romana, mas da Bíblia e das obras dos patriarcas Cirilo, São João Crisóstomo
e de outros fundadores da Igreja, podendo comentá -las em diferentes versões;
devia, além disso, saber interpretar adequadamente os mistérios da encarnação
de Cristo e da Santíssima Trindade de Deus.
Durante a dinastia amara, que se supõe descendente de Salomão e legí tima
herdeira dos reis de Axum, os soberanos mais venerados foram Davi e seu filho
Salomão. Em seguida vêm Alexandre, o Grande, Constantino, o Grande, e
Teodósio II, os dois últimos em virtude do apoio que deram ao cristianismo.
Nada se sabia a respeito de Carlos Magno, Carlos Martel ou Carlos, o Gordo.
As personagens bíblicas mais celebradas pelos religiosos eram Josué, Sansão e
Gedeão. O Cântico dos Cânticos, os Provérbios, o Livro da Sabedoria de Salomão,
34 COULBEAUX, J. B. 1929. pp. 59 -60; MEKOURIA, T. T. 1967.
447
Axum cristão
o Livro do Filho de Siraque, etc. eram considerados obras de verdadeira filosofia,
superiores aos escritos de Platão e Aristóteles. Virgílio, Sêneca, Cícero e os
sábios medievais do Ocidente eram totalmente desconhecidos.
A sociedade cris da Etpia admira Davi mais que a qualquer outra
personagem blica, considerando -o antepassado de Maria e da chamada
dinastia salomônica. Os etíopes religiosos veneram os Salmos e acreditam que
ler o salmo do dia todas as manhãs os protegerá de todo mal. A leitura constante
dos salmos lhes asseguraria, como acreditava Davi, a aliança exclusiva com
Deus Todo -Poderoso. O Livro dos Salmos, recitado nas mais diversas ocasiões,
desempenha um papel preeminente na sociedade cristã etíope. Assim, durante
os funerais, por exemplo, os Debterotches ou chantres dividem entre si os salmos
e os recitam ao lado do ataúde, enquanto outros padres se concentram na leitura
do Quenzete, o livro funerário, muito parecido com o antigo Livro dos Mortos
egípcio.
Enquanto alguns religiosos recorrem aos salmos para as preces, outros o
utilizam para propósitos mágico -religiosos. O sábio sabe de cor os salmos que
convêm a cada circunstância, tanto para ser feliz como para evitar o infortúnio,
para desviar uma praga ameaçadora ou para ser protegido de um tiro. Geralmente,
ele cita os salmos 6, 7, 10, 57, etc.
Para ilustrar o importante papel dos salmos, citaremos apenas dois exemplos.
Um camponês que perdeu sua vaca, sua ovelha ou seu jumento, não conseguindo
encontrá -los, recitará ou fará recitar por ele os salmos 1 -16, 18 e 10 -12.
Em 1927, a chegada do primeiro avião em Adis Abeba foi considerada um
grande evento. No dia seguinte, foi organizada uma cerimônia na presença da
imperatriz Zauditu e do ras Tafari (o futuro Hailé Selassié). Todos os sacerdotes
e chantres, em suas roupas de cerimônia, estavam . Interrogado sobre o
que deveria ser cantado em semelhante ocasião, um chefe religioso sugeriu
imediatamente os seguintes versos: Tu abres os céus como uma cortina […]
faze das nuvens tua carruagem […] e passeias nas asas do vento […] também
inclinaste os céus e desceste […] tu cavalgas […] e voas, voas nas asas do vento
[…] e fazes da escuridão teu lugar secreto (salmos 104 e 18).
Entre a herança que a Etiópia recebeu do Axum cristão encontram -se os
cantos litúrgicos agrupados num trabalho conhecido como Degoua. O autor, de
acordo com as fontes locais do século XIV, era um nativo de Axum chamado
Yared, contemporâneo do rei Guebre Meskel e de Abba Aregawi, um dos Nove
Santos.
Lendo -se esse livro de cantos religiosos em todos os seus detalhes, perce -
be -se que os textos são tirados da Bíblia, das obras dos primeiros patriarcas, dos
448
África Antiga
teólogos renomados (séculos III a VIII) e dos livros apócrifos. Organizados de
forma poética e concisa, formam uma grande coleção, dividida em vários livros,
capítulos e versos. Todos os versos são separados (a primeira linha geralmente
é escrita em vermelho), e um verso para cada festa anual e mensal. Todos
são escritos em louvor dos anjos, santos, mártires, da Virgem Maria e de Deus,
e usados para as cerimônias religiosas da manhã e da noite. O canto litúrgico é
dividido em quatro seções, com cadências que simbolizam as quatro bestas em
torno do trono de Deus (Apocalipse 4:6), de modo que o mesmo texto destinado
a uma determinada festa pode ser cantado e dançado de muitas maneiras
diferentes. Tentaremos dar uma ideia dessas quatro seções:
1. Kum -Zema: é o canto básico, em sua forma mais simples.
2. Zemane -oscilante: é o canto mais longo, e nele os chantres manipulam suas
longas batutas com a mão direita; eles as agitam e balançam e corpo em
todas as direções, conforme o ritmo do canto;
3. Meregde -salto (alto e baixo): este canto é um pouco mais acelerado que os
dois primeiros. Aqui, o religioso -chantre segura a batuta na mão esquerda,
que às vezes lhe serve de apoio, e na mão direita um sistro de ferro, prata
ou ouro segundo sua posição hierárquica. Movimenta -o para cima e para
baixo. Dois jovens sentados tocam tambores para fazer o acompanhamento,
procurando seguir o ritmo regular do canto. Se alguém toca uma nota errada
é imediatamente substituído.
4. Tsfat (palmas): é o canto mais rápido e pode continuar durante algum
tempo para o acompanhamento dos sistros. No final, o Tsfat é seguido
de um Werebe; espécie de modulação variada e graciosa, cantada por um
único cantor, talentoso e dotado de uma voz agradável; os outros escutam
atenta mente, antes de cantar em coro e em uníssono com ele, passando
gradualmente do moderato (Lezebe) ao allegro (Dimkete), e do presto ao
prestissimo (Tchebtchedo). Nesse momento os dois jovens se levantam,
passando o cordão de seus tambores em volta do pescoço e batendo forte
para infundir vivacidade e alegria a esse canto sagrado.
Os chantres – as cabeças cobertas com togas de musselina e trajando roupas
de festas seguram as batutas no ombro esquerdo e o sistro na mão direita,
e começam a cantar e a dançar num ritmo acelerado. Essa é a passagem mais
movimentada do canto. O chantre principal executa movimentos espetaculares
e de vez em quando, de seus lugares na congregação, as mulheres emitem gritos
de alegria, “ILILILI”.
449
Axum cristão
 . Igreja de Abba Aregawi em
Debre -Damo.
F . Chantres inclinando -se
religiosamente.
450
África Antiga
Tudo se passa no interior da igreja ou fora dela, durante as festas religiosas
ou para celebrar a tradicional exposição do famoso Tabot, ou tábua sagrada,
que, a exemplo da arca da aliança de Moisés, representa o santo a quem a igreja
é dedicada. A cerimônia é realizada na presença do imperador, do bispo e das
autoridades civis, militares e eclesiásticas.
Quando o chefe da igreja, de acordo com o grande mestre de cerimônia que
é ao mesmo tempo o chefe eclesiástico, LIKE KAHNAT –, percebe que o povo
presente está satisfeito, faz sinal para que o canto se interrompa. Nesse momento,
um grande silêncio substitui o tumulto religioso. Então o bispo se levanta e
sua bênção final. A volta do Tabot para seu lugar é saudada pelos mesmos cantos
e “ILILTA”, como quando foi trazido, e todos se ajoelham.
A literatura bíblica e os cantos litúrgicos têm uma longa história tradicional,
composta de fatos e lendas, de que não ousamos dar mais do que um resumo.
Fazem parte da herança generosamente legada pelo Axum cristão aos etíopes
através dos séculos.
C A P Í T U L O 1 7
451
Os protoberberes
Antes da chegada dos fenícios às costas da África, no início do I milênio antes da
Era Cristã, as componentes étnicas das populões líbias já se encontravam quase
fixadas, o devendo variar sensivelmente durante toda a Antiguidade: do ponto de
vista quantitativo, é inverosmil que os acréscimos demográficos fenício e romano
tenham sido significativos. A participão fecia na demografia da África Menor
o pode ser avaliada com precio. Todavia, é provel que Cartago o tivesse
recorrido com tanta frequência aos exércitos mercenários nos campos de batalha se
os cartagineses de origem fenícia fossem numerosos. A contribuição demográfica
romana é de apreciação igualmente difícil. O mero de italianos instalados na
África à época de Augusto em que a colonização foi mais intensa – foi estimado
em 15 mil
1
; acrescente -se a essa cifra alguns milhares de italianos que se fixaram na
África por iniciativa própria. Em nossa opino, o mero total de colonos romanos
instalados na rego à época de Augusto ultrapassa de pouco os 20 mil. A África
romana não foi, em nenhuma hipótese, uma colônia de povoamento. Quanto aos
acréscimos ndalo e bizantino, foram provavelmente ainda mais modestos.
Treze milênios antes da Era Cris
2
, pelo menos, constata -se a presença
de uma civilização denominada muito impropriamente Ibero -Maurusiense (a
1 ROMANELLI, P. 1959, p. 207.
2 CAMPS, G. 1974 -b, pp. 262 -8.
Os protoberberes
J. Desanges
452
África Antiga
navegação pelo estreito de Gibraltar chegou a ser praticada 9 mil anos mais
tarde). Seus portadores, a raça de Mechta -el -Arbi, são de grande estatura (1,72 m
em média), dolicocéfalos, com testa baixa e membros longos; seria a primeira raça
a representar o Homo sapiens no Magreb
3
. Praticavam com frequência a evulsão
dos incisivos. Reconheceu -se em alguns sítios – notadamente no de Columnata
(Argélia ocidental)
4
– uma evolução para a meso -braquicefalia, bem como sinais
de gracilização, por volta de 6000 antes da Era Cristã. O fim da civilização ibero-
-maurusiense propriamente dita ocorre no final do IX milênio, de maneira mais
ou menos incisiva segundo a região. Suplantado na Cirenaica pelo Capsiense,
o Ibero -Maurusiense extingue -se de maneira vaga diante das culturas locais da
Argélia e do Marrocos. Está ausente das costas norte -orientais da Tunísia assim
como das pequenas ilhas do litoral
5
, e é fracamente representado na região de
Tânger. É pouco provável que tenha chegado às Canárias, ao contrário do que
em geral se acredita: embora os Guanchos se assemelhassem fisicamente aos
homens de Mechta -el -Arbi, suas indústrias e seus costumes não lembram em
nada a cultura destes últimos. Essa civilização não pode ter vindo da Europa,
que é anterior aos inícios da navegação nos estreitos de Gibraltar e da Sicília.
Somos tentados a crer numa origem oriental; talvez provenha, mais precisamente,
do norte do Sudão nilótico, como sugere J. Tixier. Sob a pressão das vagas
migratórias posteriores, os ibero -maurusienses provavelmente se refugiaram nas
montanhas, podendo -se supor que tenham constituído uma das componentes
antropológicas do povoamento dos djebel (cordilheiras).
Por volta de 7000 antes da Era Cristã
6
aparecem homens de estatura bastante
alta, de raça mediternica mas o isentos de caracteres negroides
7
. o os chamados
capsienses, denominação derivada do sítio epônimo de Capsa (Gafsa). Embora sua
área de ocupação não esteja exatamente definida, sabe -se que viviam em territórios
do interior, e que não atingiram, ao que parece, a extremidade ocidental da África do
Norte nem o Saara meridional. Estabeleciam -se no topo de colinas ou em vertentes
próximas a fontes de água ou, mais raramente, espalhavam -se por planícies lacustres
ou pantanosas; alimentavam -se principalmente de caracóis. Trata -se igualmente de
uma civilização vinda do leste, que só pode ter -se propagado através da navegação
3 Cf. BALOUT, L. 1955, pp. 375 -7; cf. também CAMPS, G. 1974 -d, pp. 81 -6.
4 CHAMLA, M. C. 1970, pp. 113 -4.
5 BALOUT, L. 1967, p. 23.
6 CAMPS, G. 1974 -d, op. cit., p. 265.
7 Note -se as reservas de CAMPS, G. 1974 -d, op. cit., p. 159.
453
Os protoberberes
se termo deve ser fixado em torno de -4500. Embora os crânios capsienses sejam
inticos aos de várias populações atuais, acredita -se que os verdadeiros protoberberes
tenham surgido no decorrer do Neolítico, uma vez que os costumes funerios
capsienses não parecem ter sobrevivido no mundo bico -berbere
8
. Deve -se, contudo,
notar que a utilização e a decoração dos ovos de avestruz, características do Capsian
way of lije, na enérgica expressão de Camps -Fabrer
9
, mantiveram -se durante o
Neolítico a a época histórica entre as populações líbias. É o caso dos Garamantes,
que, segundo Luciano (Dips. 2 e 6), utilizavam esses ovos para fins diversos, fato
confirmado pelas escavações de Bu Njem, na Tripolitânia interior
10
. As populões
neolíticas da África Menor podem sem dúvida ser consideradas primas dos
capsienses. De qualquer modo, o povoamento histórico do Magreb resultou com
certeza da fuo dos três elementos acima descritos – ibero -maurusiense, capsiense
e neolítico em propoões ainda desconhecidas.
O Neolítico inicia -se, por conveão, com o aparecimento da cerâmica.
Datações recentes por radiocarbono indicam que o emprego da cemica
difundiu -se a partir do Saara central e oriental. Nessa área, o Neolítico mais
antigo é o de tradição sudanesa. Os inícios da produção cerâmica podem ser
fixados no VIII milênio, do Ennedi ao Hoggar
11
, sendo seus artesãos povos
negros ou negroides aparentados aos sudaneses do Early Khartoum. O boi
foi domesticado provavelmente em torno de -4000, o mais tardar, mas não é
impossível que o tenha sido anteriormente no Acacus
12
. O Neolítico de tradição
capsiense é um pouco mais tardio: tem início no Saara por volta de -5350
(Fort Flatters)
13
, e pouco depois no vale do Saura, vindo a se afirmar na parte
setentrional da área capsiense somente por volta de -4500. Na região situada
entre essas duas correntes que afetam o “Magreb das terras altas e o Saara
setentrional”, o Neolítico manifesta -se muito mais tardiamente. Uma influência
europeia é admissível a partir do VI milênio da Era Cristã, no contexto
de uma terceira civilização neolítica evidenciada nas costas do Marrocos e da
Orania, embora se hesite em situar as origens da navegação do estreito de
8 BALOUT, L. 1955, op. cit., pp. 435 -7.
9 CAMPS -FABRER, H. 1966, p. 7.
10 Cf. REBUFFAT, R. IV, 1969 -70, p, 12.
11 Cf. HUGOT, H. J. 1963, p. 134, p. 138 e nota 3, p. 185. Sobre as datações recentes pelo carbono 14, cf.
CAMPS, G. 1974 -b, op. cit., p. 269.
12 RESCH, W. 1967, p. 52; cf. também BECK, P. & HUARD, P. 1969, p. 193; MORI, F. 1964, pp, 233 -41;
MAITRE, J. P. 1971, pp. 57 -8.
13 CAMPS, G., DELIBRIAS, G. & TOMMERET, J. 1968, p. 23.
454
África Antiga
Gibraltar em época tão recuada (L. Balout
14
concordaria em situar esse fato no
IV milênio da Era Cristã).
O período úmido do Neolítico termina por volta de meados do III milênio,
conforme atesta a datação do guano de Taessa, no Atakora (Hoggar)
15
. Os
trabalhos de Arkell sobre a fauna e a flora fósseis dos sítios mesolíticos e neolíticos
da região de Cartum confirmam, de certa forma, esses dados para o alto vale do
Nilo. A partir dessa época a África do Norte, separada quase que totalmente
do resto do continente por um deserto, só dispunha de comunicação fácil com
a África subsaariana através do estreito corredor tripolitano. No entanto, essa
severa ruptura da antiga unidade africana foi compensada por novas relações
inauguradas precisamente a esta época nas duas asas do Magreb com o sul da
península Ibérica, bem como com a Sicília, a Sardenha, Malta e o sul da Itália
16
.
Os fragmentos de cemica pintada encontrados em Gar Cahal, na região de
Ceuta, assemelham -se, a partir do III milênio da Era Cristã, à cerâmica calcolítica
de Los Hillares; pode -se, pois, supor a presença de contatos por via marítima
17
remontando talvez ao IV minio. A partir de -2000, a Espanha importa marfim e
ovos de avestruz, ao passo que vasos campaniformes de origem ibérica aparecem nas
regiões de Ceuta e Tetn. Em torno de -1500, constata -se a presença de pontas
de flecha de cobre ou bronze no oeste da África Menor, sem dúvida introduzidas
pelos caçadores da pensula Ibérica; ao que parece, tais objetos não se difundiram
para além da rego de Argel. A metalurgia do bronze desenvolveu -se pouco na
África do Norte, devido à carência de estanho na região. Na outra extremidade da
África Menor, na área entre Korba e Bizerta, a presença de fragmentos de obsidiana
proveniente das ilhas Liparis e trabalhada na Sicília e em Pantelaria atesta os comos
da navegação no estreito da Silia. G. Camps
18
assinalou os numerosos empréstimos
que a África Menor passou a fazer a partir de eno de seus vizinhos europeus: os
chamados haouanet, túmulos retangulares com corredor curto e o igualmente
retangular cavados nas falésias, existiam na Sicília desde -1300; os dolmens da
Arlia e da Tunísia o de um tipo tamm encontrado na Sardenha e na Itália; a
cerâmica de Castellucio decorada com motivos geométricos em marrom ou preto
sobre fundo mais claro –, comum na Silia por volta de -1500, anuncia a cerâmica
14 BALOUT, L. 1967, op. cit., p. 28; CAMPS, G. 1974 -b, p. 272.
15 PONS, A. & QUEZEL, P. 1957, pp. 34 -5; DELIBRIAS, G., HUGOT, H. J. & QUEZEL, P. 1957, pp.
267 -70.
16 CAMPS, G. 1960 -a, pp. 31 -55; 1961.
17 SOUVILLE, G. 1958 -9, pp. 315 -44.
18 CAMPS, G. 1974 -d, op. cit., p. 206.
455
Os protoberberes
 . Crânio de Columnata. No alto: cranium norma lateralis; embaixo: calva norma lateralis dextra.
(Fonte: L. Balout. Les hommes préhistoriques du Maghreb e du Saara. 1955. pr. VI, p. 79. Fotos de M. Bovis,
Museu do Bardo, Argel, coleção Cadenat.)
456
África Antiga
cabila, etc. Influências de regiões mais distantes Chipre ou Ásia Menor passaram
a transitar por Malta, Pantelaria e pela Sicília a partir do momento em que os
navegadores egeus, depois fenícios, aportaram nessas ilhas. Assim, esse território da
África do Norte inseriu -se como uma grande península no complexo mediterrânico
muito antes da fundação de Cartago, recebendo, no entanto, influências de outras
civilizações através do corredor da Tripolitânia. É o caso dos monumentos funerários
com nicho e capela nos quais talvez se praticasse o ritual da incubão –, frequentes
nas encostas meridionais do Atlas durante a Antiguidade remota; o mulo de Tin
Hinan é uma variante desse tipo de monumento
19
.
É necessário salientar a grande originalidade da África Menor nas costas
do continente africano: resulta a um tempo do dessecamento do Saara e
do surgimento da navegão. No entanto, essa rego não perdeu de todo
o contato com a África profunda”. Embora o clima da África do Norte
durante a Antiguidade fosse análogo ao atual, as elevações da orla do deserto
permaneceram por muito tempo mais úmidas e arborizadas
20
, com um lençol
freático menos profundo permitindo um aprovisionamento de água mais fácil
e, portanto, a utilização do cavalo para as viagens através do Saara. No Fezzan,
notadamente, subsistiram durante longo tempo afloramentos lacustres do lençol
freático; Plínio, o Velho (H.N. XXXI, 22), menciona o lago salgado Apuscidamo
(= apud Cidamum) e al -Bakri (Description de l’Afrique Septentrionale, trad. de
Slane, p. 116) refere -se à presença de pântanos entre Nefzaoua e Gadames. A
presença de homens de pele escura que os gregos chamarão “etíopes”, isto é,
“faces queimadas” na maior parte dos oásis do Saara, no Fezzan e ao longo
da vertente saariana do Atlas durante a Antiguidade, em contato com o mundo
líbico -berbere, pode ser considerada como uma lembraa viva da unidade
africana original
21
. Levavam uma existência pacífica consagrada não só à coleta
e à caça, mas também à agricultura, fundada em métodos de irrigação muito
antigos
22
.
19 CAMPS, G. 1974 -d, op. cit., pp. 207 e 568; 1965, pp. 65 -83.
20 BUTZER, K. W. 1961, p. 48, crê numa ligeira melhora climática no I milênio da Era Cristã; opinião
contrária à de QUEZEL, P. & MARTINEZ, C. 1958; p. 224, que estimam que a aridicação foi
constante a partir de -2700.
21 Sobre os etíopes da África do Norte, cf. GSELL, S. 1913 -28, I, pp. 293 -304. Sobre o conceito de etíope”
(o termo já aparece nas tábulas de Pilos sob a forma ai -ti -jo -qo), cf. SNOWDEN, F. M. 1970, pp. 1 -7
e 15 -6, bem como as observações de DESANGES, J. 1970, pp. 88 -9.
22 Sobre a irrigação e o cultivo nos oásis do sul da Tunísia, cuja população era em parte “etíope”, cf. PLÍNIO,
o Velho H.N. XVIII, 188; e BAKRI, p. 116. Sobre a importância dos canais subterrâneos (foggaras) dos
Garamantes, população mista, cf. DANIELS, C. 1970, p. 17. Há reservas, contudo, da parte de LHOTE, H.
1967, pp. 67 -78, que acredita que a coleta foi, durante muito tempo, a principal fonte de recursos desses “etíopes”.
457
Os protoberberes
. Homem de Champlain: crânio ibero -maurusiense. À direita, norma lateralis sinistra; à esquerda,
norma facialis. (Fonte: L. Balout. Les hommes préhistoriques du Maghreb e du Saara. 1955, pr. VIII, p. 90. Fotos
de M. Bovis, Museu do Bardo, Argel.)
F . Crânio de homem capsiense. A direita, norma lateralis sinistra; à esquerda, norma facialis. (Fonte:
L. Balout. 1955, pr. X, p. 110. Fotos de Delorme, Museu do Bardo, Argel.)
458
África Antiga
Seria um erro, certamente, imaginar um Saara completamente dominado
pelos etíopes durante o Neolítico e à época proto -histórica, mesmo tendo -se
o cuidado de restituir à palavra etíope” o sentido geral de homem de cor,
sem, contudo, traduzi -la pornegro”. Em publicação recente, M. C. Chamla
23
acredita ter estabelecido que apenas a quarta parte dos esqueletos desse período
poderiam ser de negros, ao passo que mais de 40% não apresentam nenhum
traço negroide; no entanto, os restos do esqueleto de uma criança descobertos
no depósito de um abrigo sob rocha de Acacus
24
e datado de 3446 ±180
pertencem a um negroide. Despojos de negros o são raros nas necrópoles
púnicas; havia auxiliares negros no exército de Cartago
25
que certamente não
eram nilotas. Segundo Diodoro
26
, no final do século IV antes da Era Cristã
um tenente de Agátocles (Tunísia do norte) submeteu uma populão cuja
pele era semelhante à dos eopes. Durante toda a época clássica, numerosos
são os testemunhos a atestar a presença de “etíopes” nos confins meridionais
da África Menor. São mencionados igualmente povos de ras intermediárias
melano -getulos ou leuco -etíopes notadamente na obra de Ptolomeu
(Geografia, IV, 6, 5)
27
.
Os próprios Garamantes eram por vezes considerados “ligeiramente pretos”
ou mesmo negros. São ligeiramente pretos” em Ptolomeu I, 9, 7
28
, e mais
parecidos com etíopes” em Ptolomeu I, 8, 5
29
. Um escravo garamante é descrito
como tendo um corpo cor de breu” (Anthologia Latina, A. Riese)
30
. Uma
pesquisa antropológica realizada nas necrópoles desse povo veio confirmar seu
caráter racial compósito
31
; a afirmação de que os esqueletos negroides eram
de escravos revela preconceito e precipitação, sendo arbitrário considerar que,
num total de quatro, apenas dois grupos de esqueletos (os de indivíduos de raça
branca) representam os Garamantes da Antiguidade.
Essas populações de cor não parecem ter nenhum parentesco com a maior
parte dos atuais habitantes das margens do Senegal e do Níger. Trata -se de um
23 CHAMLA, M. C. 1968.
24 SATIN. F. 1964. p. 8.
25 Por ocasião da campanha da Sicília, em -480 (FRONTINO. ed. 1888, I, pp. 11. 18).
26 DIODORO. XX, 57 -5.
27 PTOLOMEU. ed. 1901, pp. 743 -5.
28 PTOLOMEU. ed. 1901, p. 25.
29 PTOLOMEU. ed. 1901, p. 21.
30 RIESE, A. 1894. pp. 155 -6.
31 SERGI, S. 1951.
459
Os protoberberes
grupo étnico original hoje recoberto, em grande parte, pelo elevado número
de africanos ocidentais trazidos pelo tráfico medieval de escravos. S. Gsell
32
,
seguindo Collignon, descreve o “etíope da Antiguidade baseando -se na
descendência que teriam deixado nos oásis do sul da Tunísia da seguinte
maneira:
“Estatura acima da média, crânio longo e estreito com o topo projetado para trás,
testa oblíqua, arcadas superciliares salientes, pômulos pronunciados a partir dos quais
a face se alonga em triângulo, nariz profundamente reentrante, curto e arrebitado,
mas não chato; boca grande com lábios grossos, queixo fugidio; ombros largos e
quadrados, tórax em tronco de cone invertido, bastante estreito sob a bacia. A pele
é muito escura, de cor castanho -avermelhada; e os olhos, negros; os cabelos, poucos
crespos, têm a cor do azeviche”.
Trata -se, como se vê, de um tipo bastante próximo de certos nilotas; no
entanto, as características sicas desses pastores de bovídeos, ancestrais dos
etíopes do Saara, estão longe de ser uniformes. Alguns dentre eles, segundo H.
Lhote e G. Camps
33
, lembram os Peul atuais; outros se assemelham aos Tubu.
H. von Fleischhacher
34
crê na presença de khoisanidas no interior deste grupo,
bem como de descendentes de um Homo sapiens indiferenciado (nem negro nem
branco) vindo da Ásia.
Líbico -berberes (mouros e númidas no litoral; getulos nos planaltos), saarianos
brancos ou mestiços da orla do deserto (farúsios, nigritas ou garamantes, “etíopes”
espalhados por toda a região entre o Sous e o Djerid), tais são os povos da África
Menor à época das primeiras navegações fenícias e durante toda a Antiguidade.
Os protoberberes em suas relações com os egípcios e os
Povos do Mar
No curso do II milênio, as fontes da história da bia inscrições e
representações são essencialmente egípcias e dizem respeito às populações
líbias em contato com o Egito
35
, as quais, antes da unificação do vale do Nilo,
povoavam a parte noroeste do Delta.
32 GSELL, S. 1913 -28, v. I, p. 294.
33 LHOTE, H. 1967, p. 81; CAMPS, G. 1970, pp. 39 -41.
34 FLEISCHHACHER, H. von, 1969, pp. 12 -53.
35 Cf. GADALLAH, F. F. 1971, pp. 43 -75.
460
África Antiga
Na época pré -dinástica, por volta de meados do IV milênio, os relevos
esculpidos no cabo de marfim da faca de Djebel -el -Arak já representariam,
talvez, líbios de longos cabelos tendo por única vestimenta um cinto a sustentar
o estojo fálico. Essa interpretão foi, contudo, contestada, se podendo
estar certo da identidade dos bios quando aparece a primeira denominação
egípcia desse povo, Tehenu. Segundo W. Hölscher
36
, esse nome aparece sobre
um fragmento de paleta de xisto pertencente ao rei Escorpião, depois em
um cilindro de marfim de Hieracômpolis, da época de Narmer (início do III
milênio), representando o butim e os prisioneiros do faraó. Mas as informações
mais valiosas sobre o aspecto físico e as vestimentas dos Tehenu nos foram
legadas por um baixo -relevo do templo mortuário de Sahrue (V dinastia, circa
-2500).
São homens de grande estatura, perfil agudo e lábios grossos, com barbas
cerradas e um penteado característico espessa madeixa sobre a nuca, mechas
laterais prolongando -se até os ombros, pequeno topete erguido sobre a testa.
Seu vestuário compreendia, além do cinto e do estojo fálico já mencionados,
largas faixas que passavam por sobre os ombros e se cruzavam no peito, bem
como colares ornados com pingentes. Durante o III milênio esse povo habitava
o deserto da Líbia e seus oásis.
Sob a VI dinastia, em torno de 2300 antes da Era Cristã, faz -se menção
aos Temehu; não se trata de uma ramificação dos Tehenu, como imaginava
O. Bates
37
, mas de um novo grupo étnico, de pele mais clara e olhos azuis,
com um percentual de loiros não negligenciável
38
. Vestidos de mantos de
couro, têm frequentemente um ombro nu. De acordo com o relato da terceira
viagem de Herkhuf, habitavam, ao que parece, um território vizinho à Baixa
Núbia, que devia abranger o Grande Oásis (Kharga)
39
. Sugeriu -se identificá-
-los com a população do Grupo C instalada na Núbia sob o Médio Império e
início do Novo Império
40
, hipótese reforçada pela semelhança entre a cerâmica
desse grupo e a cerâmica encontrada em Uadi Howar, 400 km a sudoeste da
Terceira Catarata
41
.
36 HÖLSCHER, W. 1955, p. 12.
37 BATES, O. 1914, p. 46.
38 MOLLER, G. 1924, p. 38; HÖLSCHER, W. op. cit., p. 24.
39 BATES, O. op. cit., pp. 49 -51.
40 BATES, O. op. cit., p. 249, nota 3 e p. 251; para o vocabulário, cf. VYCICHL, W. 1961, pp. 289 -90.
41 HÖLSCHER, W. op. cit., pp. 54 -7; ARKELL, A. J. ed. 1961, pp. 49 -50; reservas de TRIGGER, B. G.
1965, pp. 88 -90.
461
Os protoberberes
Os Temehu eram, ao que parece, muito belicosos; os faraós do Médio Império
foram por diversas vezes obrigados a combatê -los. Sob o Novo Império são
frequentemente representados, distinguindo -se pela trança pendente diante da
orelha e recurvada sobre os ombros; muitas vezes trazem plumas nos cabelos e
ostentam tatuagens. Têm como armas o arco e a flecha e, por vezes, a espada e o
bumerangue. Heródoto assinala todas essas características ao descrever os líbios
das Sirtes; é possível, pois, admitir que os Temehu tenham sido os ancestrais dos
líbios que os gregos conheceram na Cirenaica. o se pode, contudo, aceitar a
audaciosa hipótese de G. Möller
42
, que os identifica aos Adirmáquidas, vizinhos
imediatos do Egito segundo Heródoto (IV, 168), ainda que estes últimos tenham
ocasionalmente ocupado os oásis meridionais, e que Sílio Itálico (Punica IX,
223 -225) os descreva como povos ribeirinhos do Nilo semelhantes aos núbios.
Segundo o mesmo autor (Punica III, 268 –269), o corpo dos Adirmáquidas
seria enegrecido pelo sol como o dos núbios, indicação que os aproximaria dos
Adirmáquidas da Baixa Núbia, vizinhos dos Temehu, mas que não se aplicaria
a estes últimos, de pele clara. Levantou -se a hipótese de que teriam estado em
Kawa
43
.
As empresas dos Temehu tornaram -se mais perigosas durante a XIX dinastia.
Em -1317 foram rechaçados por Séti I, após o que Ramsés II organizou uma linha
de defesa ao longo do litoral mediterrânico até el -Alamein, tendo incorporado
contingentes líbios ao exército egípcio
44
. O primeiro documento a mencionar os
Libu é a estela de el -Alamein, em que é narrada a ocupação da região por Ramsés II.
O termo Libia, derivado de libu, foi usado pelos gregos inicialmente para designar
a área de movimentação desse povo, aplicando -se em seguida, paulatinamente,
a toda África. Em -1227, no reinado de Memeptah, são mencionados os
Mashwesh (ou Meshwesh), vizinhos ocidentais dos Libu
45
. Os Libu, com os
Mashwesh, parecem fazer parte do grupo mais geral dos Temehu
46
; entretanto, as
42 MÖLLER, G. op. cit., p. 48; refutação lológica de HOLSCHER, W. op. cit., p. 50.
43 Cf. MACADAM, M. F. L. 1949, vol. 1, p. 100.
44 BRINTON, J. Y., 1942, vol. 35, pp. 78 -81, 163 -5 e pr. XX, g. 4; ROWE, A. 1948, pp. 6 e 7, g. 4; sobre
as seis novas estelas representando cenas da vitória de Ramsés II sobre os líbios descobertas em Zawyet
e Rackam por Labib Habachi, cf. LECLANT, J. 1954, p. 75 e pr. XVIII.
45 WAINWRIGHT, G. A. 1962, pp. 89 -99. Quanto aos nomes dos chefes libu e mashwesh, cf. YOYOTTE,
J. 1958, p. 23. Este autor considera os Libu mais próximos do Delta. CHAMOUX, F. 1953, p. 55, os situa,
ao contrário, a oeste dos Mashwesh, erroneamente em nossa opinião. A Líbia, stricto sensu, permanece a
região vizinha de Mareótis, cf. PTOLOMEU, ed. 1901, op. cit., pp. 696 -8; os Libu devem, pois, ter -se
estabelecido nas proximidades do Egito. Sobre o destino posterior dessas populações, cf. YOYOTTE,
J. 1961, pp. 122 -51.
46 HÖLSCHER, W. 1955, op. cit., pp. 47 -8.
462
África Antiga
representações figuradas mostram que os Mashwesh usavam o estojo fálico (sem
dúvida por serem circuncidados) e os Libu, a tanga. Após terem ocupado os oásis
de Baharieh e Farafra, as tribos coligadas foram vencidas pelos egípcios a noroeste
de Mênfis. Uma inscrição do templo de Carnac assinala a presença de diversos
povos do norte nas costas líbias: Akaiwesh, Toursha, Shardanes e Shakalesh.
Pertenciam ao grupo dos Povos do Mar, que então devastavam a Palestina. Sua
aparição no oeste do Egito é inesperada; por vezes se supôs que a inscrição de
Carnac confundia as duas campanhas, quase contemporâneas, empreendidas a
leste e a oeste do Delta
47
, ou que esses contingentes nórdicos o passavam de
mercenários que haviam desertado do exército egípcio.
As duas guerras egípcio -líbicas mais conhecidas datam do reino de Ramsés
III, em -1194 e -1188. São narradas pelo grande Papiro Harris e pelas inscrições
e baixos -relevos do templo funerário de Ramsés III em Medinat -Habou. Os
Libu e posteriormente os Mashwesh tentaram, em vão, romper a resistência
egípcia no Nilo, sendo sucessivamente vencidos. Inúmeros prisioneiros viram-
-se incorporados ao exército do faraó, e suas qualidades: militares foram tão
apreciadas que ao fim do Novo Império os oficiais líbios tinham adquirido uma
influência preponderante. Entre os líbios combatidos por Ramsés III estão os
Esbet e os Beken; sentimo -nos tentados a aproximar essas etnias dos Asbitas
(ou Asbistas) e dos Bakales (Barceus) mencionados por Heródoto (IV, 170, 171),
mas a leitura Esbet é discutível
48
, o que torna a aproximação bastante frágil. Por
outro lado, é pouco racional a identificação dos Mashwesh com os Maxues de
Heródoto (IV, 191), sedentários estabelecidos na Tunísia
49
.
As vitórias de Ramsés II tiveram, entre outras, uma consequência importante:
permitiram -lhe controlar os oásis ocidentais onde se difundiu o culto de Âmon de
Tebas. Esse culto implantou -se particularmente no oásis de Siwa, conquistando
depois a Tripolitânia
50
através das rotas da sede e indo influenciar, à época
púnica, o culto do deus Baal -Hamon
51
, seu quase homônimo.
47 CHAMOUX, F. op. cit., p. 52.
48 GAUTHIER, H. 1927, vol. 1, pp. 104 e 217; LECLANT, J. 1950 -b, p. 338; HÖLSCHER, W. 1955,
op. cit., p. 65, nota 2. Essa leitura lembra os Isebeten dos contos tuaregues, cf. VYCICHL, W. 1956, pp.
211 -20.
49 Ver as reservas justicadas de GSELL, S. 1913 -28, I, p. 354; idem, 1915, pp. 133. -4.
50 LECLANT, J. 1950 -b, pp. 193 -233; REBUFFAT, R. 1970, pp. 1 -20; sobre o culto de Âmon nos arredores
das Sirtes, cf. GSELL, S. op. cit., vol. IV, p. 286.
51 LEGLAY, M. 1966, pp. 428 -431, não acredita que o Âmon de Siwa tenha servido de intermediário
entre o Âmon de Tebas e Baal -Hamon; segundo esse autor, os líbico -berberes da África Menor teriam
recebido inuências egípcias numa época anterior à fundação do santuário de Siwa. O culto do Baal-
-Hamon cartaginês ter -se -ia, assim, superposto ao culto local do carneiro já assimilado ao Âmon egípcio.
463
Os protoberberes
Tais são os primeiros testemunhos a nos informar sobre os líbios na
extremidade oriental de sua área de implantação. Convém notar que um contato
entre os Povos do Mar e os líbios é mencionado uma vez sob o reinado de
Memeptah, em -1227, por uma inscrição de Carnac, que pode, aliás, resultar
de um amálgama de várias campanhas
52
. Mas, admitindo -se a presença de
destacamentos de Povos do Mar entre os líbios, uma questão se coloca: teriam
sido esses povos os responsáveis pela transmissão do uso de carros aos líbios
(inicialmente nas proximidades do Egito, depois em todo o Saara)?
Essa tese é sustentada por excelentes estudiosos do Saara
53
; no entanto,
poucas são as semelhanças entre as representações de carros do Egeu e as
do Saara, como muito bem demonstraram G. Charles -Picard
54
, arqueólogo
da Antiguidade clássica, e J. Spruytte
55
, especialista em cavalos. Os carros do
Saara são vistos da perspectiva do cavaleiro e não de perfil. A plataforma não é
sobrelevada, assentando -se sobre o centro do eixo a uma boa distância das rodas,
o que limita a capacidade de carga a praticamente um ocupante; este tem entre
as mãos uma espécie de martelo, e não uma arma. Os cavalos, barbos as mais
das vezes, atrelados por jugos aplicados à nuca, e não à cernelha, são certamente
representados em extensão (“galope voador”), mas seus jarretes e joelhos não são
figurados. Aliás, o “galope voador” dos documentos do Egeu não diz respeito à
atitude dos cavalos atrelados. Os carros saarianos revestem -se, assim, de grande
originalidade; trata -se de veículos “esportivos” bastante frágeis.
Assim, seria talvez conveniente dissociar os carros saarianos dos carros
de guerra utilizados, na Antiguidade, pelos adversários de Rams III e
posteriormente pelos Garamantes (carros puxados por quatro cavalos), Asbitas,
Zoécios, líbios vizinhos de Cartago a serviço de Agátocles, Farúsios e Nigritas.
A tese de W. Hölscher
56
, segundo a qual os líbios teriam emprestado o uso do
52 Fenômeno semelhante ocorre com as representações de dinet -Habou, onde estão misturados os
assaltos dos líbios (-1194 e -1188) e a invasão dos Povos do Mar (-1191). Cf. DRIOTON, E. &
VANDIER, J. 1962, pp. 434 -436.
53 PERRET, R. 1936, pp. 50 -1.
54 CHARLES -PICARD, G. 1958 -a, p. 46. Note -se, contudo, que embora as observações desse autor sobre
a originalidade da iconograa do carro no Saara sejam inteiramente judiciosas, a tese de sua autoria,
segundo a qual essa iconograa teria sofrido a inuência da arte imperial romana, é inaceitável, como
salientaram CAMPS, G. 1960 -b, p. 21, nota 46, e LHOTE, H. 1953, pp. 225 -38. Os líbios utilizaram
carros de Sirtes ao sul do Marrocos desde a época de Ramsés III até o período registrado por
DIODORO, XX, 38, 2 e ESTRABÃO, XVII, 3, 7, que dependem de fontes anteriores ao Império
Romano, cf. BATES, O. 1914, op. cit., p. 149.
55 SPRUYTTE, J. 1968, p. 32 -42.
56 LSCHER, W. 1955. op. cit., p. 40; CAMPS, G. 1961, p, 406, nota 3. Sob Ramsés III, é impossível
distinguir a representação de um carro líbio da de um carro egípcio, cf. MÜLLER, W. M. 1910, p. 121.
464
África Antiga
carro dos egípcios – que o vinham utilizando desde a invasão dos hicsos, isto é,
quatro ou cinco séculos é mais verossímil que a hipótese de uma transmissão
pelos Povos do Mar. A origem dos carros saarianos permanece desconhecida;
inteiramente em madeira e de concepção bastante simples, poderiam ter sido
produzidos segundo técnicas originais
57
. De resto, o cavalo barbo (mongol), de
pequena estatura, linha entre a testa e o focinho convexa, dorso proeminente,
espinha dorsal com cinco vértebras lombares e garupa em declive não poderia
provir do cavalo árabe -oriental, de perfil retilíneo, utilizado tanto pelos hicsos
quanto pelos egeus
58
. Talvez tenha -se difundido a partir da África oriental e do
Sudão
59
. É de se notar a presença de representações do cavalo árabe -asiático
nos rupestres saarianos e nas figurações da época romana no interior do limes,
muito embora sejam elas bastante raras
60
. Todavia, mesmo admitindo -se que não
se trata, nos casos acima, de imagens estilizadas alheias às realidades africanas,
permanece verdadeiro o fato de o cavalo barbo ter sido a espécie dominante na
África Menor até a chegada dos árabes.
Embora se possa admitir que o uso da espada longa foi transmitido pelos
Povos do Mar, parece que essa arma não gozou de grande difusão
61
. Como se vê,
a influência dos Povos do Mar sobre a civilização líbia não foi, ao que parece, tão
importante quanto proclamam muitos eruditos. A influência egípcia, por outro
lado – favorecida por afinidades étnicas no Delta da época pré -histórica –, não
deve ser negligenciada, mesmo se sua difusão é ainda mal conhecida.
A vida dos berberes antes da fundação de Cartago
Não foram os fecios os responveis pela transmissão da agricultura
aos líbico -berberes, como muito, acertadamente salientaram H. Basset
62
e G.
Camps
63
: estes a praticavam desde o fim do Neolítico. A hipótese de que os
57 SPRUYTTE, J. 1967, pp. 279 -81. No entanto HUARD, P. & LECLANT, J. 1972, pp. 74 -5, supõem
que os carros dos equidianos do Saara nasceram da imitação dos carros egípcios, mas teriam -se tornado
rapidamente veículos de esporte e prestígio, segundo um processo ainda desconhecido.
58 SPRUYTTE, J. 1968, op. cit., pp. 32 -3. As acertadas observações do autor conduzem, no entanto, a
uma hipótese pouco verossímil: o cavalo barbo teria provindo da Espanha ou até mesmo do sudoeste da
França, em épocas remotas, através do estreito de Gibraltar.
59 BECK, P. & HUARD, P. 1969, p. 225.
60 ESPÉRANDIEU, G. 1957, p. 15.
61 CAMPS, G. 1960 -b, op. cit., p. 112 e notas 371 -3.
62 BASSET, H. 1921, p. 340 et seq.
63 CAMPS, G. 1960 -b, op. cit., p. 69 et seq.
465
Os protoberberes
cananeus teriam introduzido a agricultura na África Menor parece bastante
arrojada. Gravuras e pinturas da Idade dos Metais representam, de maneira mais
ou menos esquemática, arados em La Cheffia (leste de Constantina) e no alto
Atlas
64
; a oeste de Tebessa, na região do Douar Tazbent, vestígios de uma
instalação hidráulica primitiva hoje um simples quadriculado muito anterior
à época dos reinos indígenas. Os utilizadores dessas instalações dispunham de
um instrumental ainda parcialmente lítico.
Antes da introdução na África Menor do arado fenício com relha de ferro
triangular, os berberes se utilizavam de um tipo de arado de invenção autóctone,
menos eficaz, que consistia em uma simples lâmina arrastada sobre o solo
65
.
Esse instrumento deve ter posto termo ao uso exclusivo da enxada, dado que
os Guanchos, utilizadores desta última, o conheceram o arado. Parece que de
início os agricultores bios puxavam eles mesmos o arado por meio de cordas
passadas em torno dos ombros; no entanto, muito conheciam a atrelagem de
bois, representada tanto nos afrescos egípcios como nas gravuras do alto Atlas.
Em contrapartida, não parecem ter empregado dispositivos mecânicos para a
debulha
66
, contentando -se em fazer com que o gado graúdo pisoteasse os campos.
Os botânicos demonstraram que o trigo durázio (proveniente, talvez, da
Abissínia) e a cevada
67
existiam na África do Norte muito antes da chegada
dos fenícios; é o caso, igualmente, da fava e do grão -de -bico
68
, ainda que este
último tenha seu nome berbere ikiker derivado do latim cicer.
No campo da arboricultura observa -se, ao contrário, uma influência fenício-
-púnica decisiva. Os berberes possivelmente sabiam enxertar o oleastro muito
antes que os cartagineses difundissem a cultura da oliveira; por outro lado, não
indícios de que a vinha presente desde o início do Quaternário na região
de Argel – tenha sido cultivada antes da chegada dos fenícios. Os berberes pré-
-saarianos como os Nasamones mencionados por Heródoto (IV, 172, 182) e
os etíopes” exploravam a tamareira, menos frequente nos limites da África
Menor do que atualmente. Mas era o figo a fruta berbere por excelência
69
, ainda
que Catão, o Antigo, tenha exibido um figo fresco em Roma para simbolizar a
destruição de Cartago.
64 BOBO, J. & MOREL, J. 1955, pp. 163 -81; MALHOMME, J. 1953, pp. 373 -85.
65 CAMPS, G. 1960 -b, pp. 82 -3, com uma bibliograa na p. 82, nota 287.
66 Sobre o plostellum poenicum, originário da palestina e da Fenícia, cf. KOLENDO, J. 1970, pp. 15 -6.
67 ERROUX, J. 1957, pp. 239 -53.
68 CAMPS, G. 1960 -b, op. cit., p. 80.
69 CAMPS, G. 1960 -b, op. cit., p. 90.
466
África Antiga
A arqueologia dos monumentos funerários confirma a presença, na
Antiguidade remota, de grandes grupos de sedenrios que praticavam a
agricultura na África Menor. A datação dos monumentos proto -históricos é
particularmente difícil nessa região, pelo fato de a cerâmica berbere ser muito
conservadora; seja como for, considerar -se como representativo da “vida pré-
-cartaginesa dos berberes o material recolhido nas necrópoles do período pré-
-romano remoto, isentas de influências cartaginesas, à falta de evidências que
possam ser datadas com relativa precisão.
Essa mobília funerária testemunha a grande Antiguidade da “civilização
rural berbere”, como salientou G. Camps
70
. Segundo o estudioso, um mapa da
distribuição das necrópoles proto -históricas portadoras de cerâmica uma ideia
bastante clara da área de extensão da agricultura. É, notável que os tumuli do sul
da África Menor assim como das porções do Saara entre Zahrez e Hodna,
ou ainda do Marrocos oriental, entre Muluya e a fronteira da Argélia não
forneçam cerâmica. Pelo estudo das formas da cerâmica, G. Camps pôde chegar
a algumas conclusões quanto ao modo de vida dos líbico -berberes da época.
A tipologia está bastante próxima da que caracteriza a cerâmica atual: tigelas,
bacias e cálices para líquidos e sopas, pratos mais ou menos fundos, travessas
semelhantes às usadas atualmente para o cozimento do pão não -fermentado,
biscoitos ou panquecas; uma espécie de compoteira com pé também é atestada,
da Proto -História à época atual. A presença de perfurações prova que, desde a
Antiguidade remota, os berberes penduravam seus utensílios nas paredes. Em
contrapartida, os vasos de filtrar em cerâmica não encontraram correspondentes
modernos; G. Camps imagina que talvez servissem para a filtragem do mel ou
para a decocção de tisanas.
A arqueologia indicou, ainda, que os nômades dos tios meridionais se
enfeitavam, mais do que os sedentários, com braceletes, pingentes de metal ou de
contas de cornalina, e carregavam armas ornamentais. Restos de tecido atestam
o uso de faixas de cores alternadas. As vestimentas de couro são representadas
com frequência nas pinturas rupestres do Saara, confirmando as informações
de Heródoto (IV, 189). Gravuras rupestres próximas a Sigus indicam o uso do
burnu, o que pode vir a explicar as lendas sobre homens acéfalos ou com a cabeça
embutida no peito; os Blêmios do deserto arábico também o vestiam.
Númidas e mouros tinham como armas azagaias de ferro longas e estreitas
e facas de caçador; os sedentários, por outro lado, raramente eram enterrados
70 CAMPS, G. 1960 -b, op. cit., pp. 96 -7, 101 -4 e 107 -11.
467
Os protoberberes
com suas armas, ao contrário das populações mais meridionais. As populações
etíopes” ou mistas (Nigritas e Farúsios principalmente) armavam -se de arco e
flecha, conforme relata Estrabão (XVII, 3, 7). Plínio, o Velho (H.N. VI, 194),
menciona uma população do deserto “acima de Sirtes Maior, os Longompori,
termo transcrito do grego que significa “portadores de azagaias”.
A principal riqueza dos nômades era a criação de ovinos, caprinos e bovinos.
Uma cena de ordenha está gravada em Djorf Torba, a oeste de Colomb Bechar
71
,
numa região hoje totalmente deserta. Segundo Aelianus (NA. VII, 10, 1), os cães
desempenhavam, entre esses nômades, o papel de escravos, que a escravidão
humana não era conhecida; a mesma observação é feita para os trogloditas
do mar Vermelho e para os etíopes dos pântanos do Nilo. Outros etíopes, ao
contrário, faziam de um cão o seu rei, ainda segundo Aelianus (NA. VII, 40; a
fonte parece ser Aristocreonte). A caça era, naturalmente, uma atividade bastante
praticada; Ptolomeu menciona a presença de caçadores Oreipaei – vizinhos dos
etíopes Nibgenitas que erravam pelo sul de Djerid
72
no sul da Tunísia, nos
confins da Etiópia.
A organização social dos líbico -berberes em épocas anteriores aos testemunhos
das fontes clássicas é pouco conhecida, pelo menos não se levando em conta as
reconstituições recorrentes a partir de testemunhos posteriores. As imponentes
proporções dos aterros do Rharb, no Marrocos, ou do mausoléu do Medracen, na
região de Constantina, são indícios da constituição de monarquias, tanto a leste
quando a oeste do Magreb independente de Cartago, a partir do século IV. Nada
mais se pode afirmar sobre o assunto; o brilhante quadro da organização social
dos líbios elaborado por S. Gsell apóia -se, em geral, em documentos romanos
da época imperial (até mesmo no testemunho do poeta Coripo, contemporâneo
de Justiniano).
As ideias religiosas dos líbico -berberes
É bastante difícil apreender as ideias religiosas dos bico -berberes em
épocas anteriores ao impacto fenício -púnico e, mais tarde, romano. De fato, a
arqueologia proto -histórica não nos permite ir além da reconstituição de rituais,
sendo essa possibilidade limitada, no que concerne à África Menor, ao domínio
71 CAMPS, G. 1960 -b, op. cit., p. 115 e g. 13, p. 116
72 DESANGES, J. 1962, pp, 89 -90, 129, 228 -9. Os oreipaei/eropaei são talvez os ancestrais dos rebâya, de
pele escura.
468
África Antiga
 . Leões de Kbor Roumia. (Fonte: M. Christoe. Le tombeau de la chrétienne. 1951. g. 102, p. 124.)
funerário
73
. Assim, é preciso mais uma vez recorrer ao testemunho dos autores
clássicos e perscrutar as inscrições do período romano, sem saber se os usos ali
atestados remontam à época remota que é objeto deste capítulo. A fortiori, é
sempre arriscado projetar no passado as sobrevivências pré -islâmicas que se crê
reconhecer nas sociedades berberes das épocas medieval e moderna.
O sentimento do sagrado entre os líbios parece ter -se cristalizado em torno dos
mais variados objetos. As forças sobrenaturais eram frequentemente relacionadas
ao topos, donde a presença de numerosos gênios fluviais ou montanheses nas
inscrições de época romana
74
. Essas forças podiam igualmente residir em objetos
bastante comuns: pedras redondas (seixos de granito, por exemplo) ou pontudas,
73 CAMPS, G. 1961, op. cit., p. 461.
74 Cf. LEGLAY, M. 1966, op. cit., p. 420 e nota 7, p. 421 e nota 1; VYCICHL, W. 1972, pp. 623 -4.
469
Os protoberberes
simbolizando o rosto ou o falo do homem, eram objeto de culto
75
; Pomponius
Mela (Chor. I, 39) e Plínio (H.N. II, 115) falam de uma rocha da Cirenaica
que, tocada, podia desencadear o vento sul. As águas doces, principalmente as
fontes e os poços, eram também cultuadas; no século IV da Era Cristã, Sto.
Agostinho relata que no dia de São João, os Númidas banhavam -se ritualmente
no mar. A dendrolatria era por vezes praticada: um concílio africano, no século
IV, requeria aos imperadores a destruição da idolatria “até mesmo nos bosques
e nas árvores”. Banhos de mar durante o solstício de verão e o culto às árvores
são manifestações de uma exaltação da fecundidade que se exprime de maneira
mais direta entre os Dapsolibues, segundo Nicolas de Damasco, contemporâneo
de Augusto (C. Müller, Fragmenta Hist. Graec. III, p. 462, frag. 135): logo após
o ocaso das Plêiades, na calada da noite, as mulheres se retiravam e apagavam as
luzes; os homens iam ao seu encontro e cada um possuía aquela a quem o acaso o
unisse. Acreditamos que esses Dapsolibues” eram na realidade os Dapsilolibues,
ou líbios opulentos”, o que torna compreensível o apego desse povo aos rituais
de fecundidade, como a “noite do erro”.
Os animais que simbolizam de maneira mais evidente a força fecundante – o
touro, o leão e o carneiro – foram reverenciados pelos líbios. Coripo (Iohannidos
IV, 666 -673) relata que os Laguantan (ou Lewâta) das Sirtes soltavam um
touro que representava o deus Gurzil, filho de Âmon no encalço de seus
inimigos. O túmulo real de Kbor Roumia, perto de Cherchel, assim como o
mausoléu principesco de Dougga, é decorado com imagens de leões. Mas foi
o carneiro o animal mais cultuado
76
(provavelmente em toda a África antes do
dessecamento do Saara). Segundo Atanásio (Contra Gentes, 24), esse animal
era tido pelos líbios como uma divindade, recebendo o nome de Âmon. É
preciso também mencionar o culto ao peixe, próprio da área da atual Tunísia,
que explica em parte a abundância das representações desse animal nos mosaicos
tunisianos. mbolo fálico, o peixe eliminava o mau -olhado. Em Susa, um
mosaico representa um falo pisciforme ejaculando entre dois órgãos sexuais
femininos. Ao peixe correspondia a concha, símbolo do sexo feminino; bastante
difundida na África Menor, servia de amuleto aos vivos e reconfortava os mortos
no túmulo.
75 GOBERT, E. 1948, pp. 24 -110; VYCICHL, W. 1972, op. cit., p. 679.
76 CHARLES -PICARD, G. 1958 -a, op. cit., p. 11; LEGLAY, M. op. cit., pp. 11 e 421 -3; GERMAIN,
G. pp. 93 -124; VYCICHL, W. op. cit., pp. 695 -7.
470
África Antiga
Outras partes do corpo humano foram consideradas como receptáculo de
forças sobrenaturais, em especial o cabelo. G. Charles -Picard
77
sublinhou o fato
de os líbios usarem frequentemente uma trança única formando uma cimeira,
dos afrescos egípcios ao Hermes líbio das termas dos Antoninos, passando
pelos macae de Heródoto (IV, 175). De acordo com Estrabão (XVII, 3, 7),
os maurusienses evitavam aproximar -se demais uns dos outros durante suas
caminhadas, a fim de manter os cabelos em ordem. Mais do que vaidade, trata -se
provavelmente da crença religiosa de uma ameaça à vitalidade. É sem dúvida por
esse motivo que entre as mulheres adirmáquidas a captura de piolhos fazia -se
acompanhar de um ritual de vingança (Heródoto, IV, 168).
No além -túmulo o homem era rodeado de cuidados. É o domínio do espaço
religioso melhor iluminado pela arqueologia; a tese monumental de G. Camps
78
nos permite percorrê -la brevemente.
O corpo era geralmente enterrado em posição lateral fletida ou contraída, e
os ossos, frequentemente descarnados; mais frequente ainda era o revestimento
da carne e dos ossos com ocre vermelho que, segundo a crença, revivificava o
cadáver. Alimentos colocados no túmulo continuavam a alimentar o defunto,
e sua vida no além era protegida por amuletos. Recebia inúmeras oferendas de
animais, como a de um cavalo, e por vezes um homicídio ritual era perpetrado
a fim de que o morto pudesse continuar contando com um fiel servidor. Depois
de mortos, os membros de sua família eram enterrados no mesmo túmulo, assim
como, frequentemente, sua esposa principalmente na Orania e no Marrocos
–, fato que prova ter sido a monogamia ou a poligamia seletiva bastante
difundida.
Ofereciam -se sacrifícios aos mortos diante de seus túmulos ou em recintos
especiais orientados para leste, direção do sol nascente. A potência vital do
defunto era por vezes simbolizada pela ereção de menires ou de estelas -menir.
Heródoto (IV, 172) narra que os nasamones consultavam os ancestrais sobre o
futuro indo dormir sobre seus túmulos; G. Camps acredita que esse ritual de
incubação é a razão de ser das bazinas e dos tumuli com plataforma. No entanto,
a arquitetura que parece melhor se adequar a esse costume é a dos monumentos
com capela e câmara existentes no Saara. É provável que esse ritual fosse muito
frequente entre os saarianos, dado que, segundo Heródoto (IV, 184), o fato de
os atlantes não terem visões durante o sono provocava o espanto desses povos.
77 CHARLES -PICARD, G. 1958 -a, op. cit., p. 14.
78 CAMPS, G. 1961. op. cit., pp. 461 -566. podemos esboçar aqui um resumo bastante sucinto desse
levantamento dos dados arqueológicos.
471
Os protoberberes
 . Estela líbia de Abizar (sudeste de Tigzirt): representação em baixo -relevo de um cavaleiro
armado. Tem na mão esquerda um escudo circular e três lanças; o braço direito está estendido e a mão,
elevada à altura da testa, segura um objeto redondo, não identicado, entre o polegar e o indicador; sua barba,
triangular e pontuda, lhe desce até o peito. Sobre a garupa do cavalo, uma personagem de pequena estatura
tem a mão esquerda em contato com o guerreiro; na direita empunha uma arma. O cavalo tem um amuleto
possivelmente um falo em torno do pescoço; à sua frente estão dois animais, um quadrúpede e uma ave
(talvez um cão e uma avestruz).
472
África Antiga
Heródoto (IV, 172) assinala também que quando os nasamones prestavam
algum juramento, colocavam a o sobre o túmulo daquele que consideravam
o melhor e o mais justo; talvez essa prática represente a origem de um culto aos
mortos. A arqueologia proto -histórica mostra que em torno de certos túmulos
constituíram -se cemitérios inteiros. Os defuntos particularmente estimados
podiam, ao que parece, arrebanhar multidões funerárias (e também, sem dúvida,
multidões de vivos). G. Camps
79
se interroga, com razão, sobre a possibilidade
de o culto aos mortos ter levado à constituição ou remodelagem dos grupos de
populações atestados às épocas púnica e romana; um culto ao soberano defunto
surgiria logo após a fundação de um reino.
Os líbios não parecem ter concebido grandes figuras divinas, mais ou menos
humanizadas. Só dirigiam sacrifícios ao Sol e à Lua, conforme relata Heródoto
(IV, 188); no entanto, os habitantes da região de Djerid ofereciam sacrifícios
a Atenas, Tritão e Posseidon, ao passo que os atarantes (IV, 184), vizinhos
ocidentais dos garamantes, amaldiçoavam o Sol. Segundo Cícero (Rep. VI, 4),
Massinissa rendia graças ao Sol e às demais divindades do céu. Em diversas
cidades da África romana Mactar, Althiburos, Thugga, Sufetula o Sol
permanece deificado; é possível que em alguns lugares tenha havido influência
púnica
80
.
Excetuando -se os dois astros, a epigrafia e as fontes literárias nos revelam
um sem -número de divindades, frequentemente mencionadas por uma vez,
ou invocadas sob forma coletiva, como é o caso dos dii mauri
81
. É bem verdade
que um relevo descoberto nas proximidades de Beja parece figurar uma espécie
de panteão com sete divindades, mas nesse caso foi sem dúvida um politeísmo
organizado sob a influência púnica que levou os líbios a personificar as forças
divinas. Livres de influências, os bios sempre estiveram mais próximos do
sagrado que dos deuses
82
.
79 CAMPS, G. 1961, op. cit., p. 564.
80 CHARLES -PICARD, G. 1957, pp. 33 -9.
81 CAMPS, G. 1954, pp. 233 -60.
82 Sobre a hipótese da existência de um deus principal entre os líbico -berberes, cf. LEGLAY, M. op. cit., pp.
425 -31. Após ter excluído Iolaos, Baliddir e Iusb, Leglay exprime a opinião de que Âmon de Tebas estaria
em vias de se impor à África saariana e à África Menor quando os fenícios chegaram ao continente.
Teoria sem dúvida interessante, mas que não nos parece inteiramente demonstrada.
C A P Í T U L O 1 8
473
O período cartaginês
A entrada do Magreb na história escrita começa com o desembarque em suas
costas de marinheiros e colonos vindos da Fenícia. É difícil reconstruir a história
desse período, pois quase todas as informões nos vêm de gregos e romanos, povos
que tiveram como seus piores inimigos os fenícios do oeste, particularmente aqueles
que estavam sob o comando de Cartago. Isso explica por que é tão negativa a
imagem que as fontes nos fornecem. Nada sobreviveu da literatura cartaginesa
1
. E,
embora nas duas últimas décadas tenham ocorrido alguns progressos, a contribuição
da arqueologia também é limitada, pois na maior parte dos casos as colônias fenícias
eso encobertas pelas cidades romanas, muito mais imponentes. Existe um grande
número de inscrições em várias versões da ngua fenícia, mas são quase todas
inscrões votivas ou epitáfios de sepulcros, que oferecem pouca informação.
Do mesmo modo, permanece até certo ponto obscuro o desenvolvimento das
culturas líbias autóctones, antes do século III antes da Era Cristã
2
. O Neolítico
1 “Os autores gregos e latinos concentraram sua atenção principalmente nas guerras, primeiramente entre
Cartago e Siracusa e posteriormente entre Cartago e Roma. Nesse caso, os relatos são abrangentes,
detalhados e escritos logo após os eventos. Quanto ao restante da história cartaginesa, as informações são
esporádicas. As observações de Aristóteles sobre a constituição púnica, o relato de Políbio sobre a revolta
dos mercenários, a versão grega da inscrição de Hanão e a lista dos domínios cartagineses na África na
metade do século IV, dada por Pseudo -Silas, são exemplos extraídos de uma documentação esparsa e
desorganizada, cheia de lacunas e frequentemente difícil de compilar”. MOSCATI, S. 1968. p. 113.
2 Neste capítulo, salvo indicação contrária, as datas referem -se a períodos anteriores à Era Cristã.
O período cartaginês
B. H. Warmington
474
África Antiga
de tradição capsiense prolongou -se no Magreb até o I milênio antes da Era
Cristã e poucos vestígios podem ser atribuídos a uma Idade do Bronze distinta.
Portanto, o quadro arqueológico do I milênio caracteriza -se por uma evolução
lenta e contínua, mas com influências fenícias cada vez mais fortes por volta
do século IV. O fenômeno específico dos túmulos fechados por grandes lajes
dispostas na superfície do solo parece não ter relação com as culturas megalíticas
bem mais antigas da Europa do norte, e é provável que esses túmulos sejam
da Era Cristã. Os monumentos mais notáveis, como os túmulos de Mzora e
de Medracen, provavelmente estão ligados ao crescimento de unidades tribais
maiores, nos séculos IV ou III antes da Era Cristã. Por todo o Magreb observa-
-se uma uniformidade característica.
Autores gregos e romanos citam, nomeando -as, um grande mero de
tribos diferentes; para o período em questão, porém, geralmente dividem os
habitantes o -fenícios do Magreb em três grupos principais. A oeste, entre
o Atntico e o Mulucca (Muluya), viviam os mouros, de onde prom o
nome Mauritânia (antiga Maurousia) dado a esse território; posteriormente,
tal denominação passou a abranger regiões situadas bem mais a leste,
além do Chelif. Entre o território mauritano e o limite ocidental da parte
continental do território dos cartagineses (ver mais adiante), estendia -se o
país dos Númidas ou Numídia. Embora os gregos e romanos tenham derivado
incorretamente o nome Númidas de uma palavra grega que significa
pastorear, considerando -o como uma evocão da vida nômade desse povo,
parece que não diferença fundamental entre os habitantes dessas duas
regiões; em ambas predominava uma cultura pastoril seminômade, embora já
existissem áreas de vida sedentária e de agricultura regular, que continuaram
a se desenvolver. Além do mais, havia um contato bastante estreito entre a
Mauritânia e o sul da Espanha, onde existiam culturas semelhantes. O terceiro
grupo era o dos Getulos, nome dado aos verdadeiros nômades dos limites
setentrionais do Saara. Em todo este capítulo serão empregados os nomes
clássicos desses grupos e das diversas tribos autônomas.
As primeiras povoações fenícias
Segundo a tradição antiga, Tiro foi o ponto de partida das expedições dos
fenícios para o Oeste, responsáveis pela fundação de numerosas povoações. A
blia, entre outras fontes, confirma a primazia de Tiro sobre as demais cidades da
Fenícia no período posterior à destruição das civilizações da Idade do Bronze no
475
O período cartaginês
Oriente Pximo, no século XIII antes da Era Cristã. Por volta de -1000, Tiro e
outras cidades (Sídon e Biblos, por exemplo) eram os centros mercantis mais ativos
no Egeu oriental e no Oriente Próximo, pouco prejudicados pelo crescimento
do Império Assírio. O que atraiu os negociantes fenícios para o Mediterrâneo
ocidental foi a procura de metais; particularmente ouro, prata, cobre e estanho. Essa
busca acabou por conduzi -los à Espanha, que continuou sendo uma das principais
fontes de produção de prata no mundo mediterrânico, mesmo na época romana.
O historiador Diodoro da Sicília (século I antes da Era Cristã) provavelmente nos
fornece uma análise correta da situação geral da época, quando diz que:
“Os nativos [isto é, os habitantes da Espanha] ignoravam o uso da prata, até que os
fenícios em suas viagens comerciais a adquirissem em troca de pequenas quantidades
de mercadorias. Eles fizeram fortuna com o transporte desse metal para a Grécia, a
Ásia e outras regiões. Com tal comércio, que durou muito tempo, seu poder também
aumentou, e eles puderam fundar numerosas colônias na Sicília, nas ilhas vizinhas,
na África, na Sardenha e mesmo na Espanha”.
Segundo a tradição, a mais antiga colônia fenícia no Ocidente se localizava
onde atualmente se situa Cádiz, cujo nome provém do fenício Gadir, que significa
“forte”, o que leva a crer que sua origem tenha sido um entreposto comercial.
A longa rota marítima que conduzia aos novos mercados da Espanha
necessitava de proteção, principalmente em virtude das condições de navegação
na Antiguidade, quando a prática geral era navegar pela costa e ancorar ou
arrastar o navio para a praia à noite. Os fenícios utilizavam duas rotas; uma
passava pelo norte, ao longo das costas meridionais da Silia, da Sardenha e
das ilhas Baleares; a do sul margeava a costa da África do Norte. Supõe -se que
os fenícios dispunham de um ancoradouro a cada 50 km aproximadamente,
ao longo desta última rota. No entanto, a transformação dos pontos de escala
em colônias permanentes dependia de rios fatores: os sítios clássicos eram
ilhas próximas da costa ou promontórios acessíveis dos dois lados. A utilização
das escalas o apresentava maiores dificuldades para os fenícios, pois as
populações do Magreb, e de resto as de quase todo o Mediterrâneo ocidental,
tinham um nível de desenvolvimento cultural, político e militar inferior ao seu.
Além disso, fatores estratégicos gerais levaram ao desenvolvimento de alguns
tios em oposição a outros. É significativo que três dos mais importantes
Cartago e Útica (Utique) na África do Norte e Mócia (Mozia) na Sicília
ocupem uma posição estratégica nos estreitos que conduzem do Mediterrâneo
oriental ao Mediterrâneo ocidental, e que controlem tanto as rotas marítimas
do sul como as do norte.
476
África Antiga
Fundação de Cartago
O nome Cartago equivale ao nome fenício Kart Hadasht, que significa cidade
nova. Isso pode fazer supor que o lugar se destinasse, desde o início, a ser a principal
conia dos fecios no Ocidente; mas sabemos muito pouco sobre a arqueologia do
período inicial da cidade para que possamos estar seguros dessa afirmação. A data
tradicional da fundação é -814, bem depois de diz (-1110) e Útica (-1101). Estas
duas últimas datas parecem lendárias. Quanto à data de fundação de Cartago, os
primeiros dados arqueológicos incontestáveis o da metade do século VIII antes
da Era Cris. Ou seja, existe um descompasso de duas gerações com relação à data
tradicional. o se pode extrair nenhum documento histórico lido das diversas
lendas que os autores gregos e romanos nos transmitiram sobre a fundação da
cidade. Descobriram -se incios mais ou menos da mesma data em Útica e foram
efetuadas datações do século VI ou VII antes da Era Cristã em Leptis Magna
(Lebda), Hadrumeto (Susa), Tipasa, Siga (Rachgoun), Lixos (no Oued Loukkos)
e Mogador, a colônia fecia mais distante que se conhece. Vestígios datados da
mesma época foram descobertos em cia, na Sicília; em Nora (Nuri), Sulcis
e Tharros (Torre de San Giovanni), na Sardenha; e em Cádiz e Almunecar, na
Espanha. A coerência geral dos indícios arqueológicos mostra que, embora possa
ter havido expedições isoladas anteriores, não existiu nenhuma conia permanente
na costa do Magreb antes de -800. Deve -se enfatizar que, ao contrio das colônias
que os gregos fundaram na Sicília, na Itália e em outras regiões nos séculos VIII
e VII antes da Era Cris, todas as colônias fenícias, incluindo a própria Cartago,
continuaram a ser pequenos centros que, durante gerões, talvez não chegassem
a ter mais que algumas centenas de colonos.
No culo VI antes da Era Cristã, Cartago tornou -se autônoma e passou a
exercer supremacia sobre as outras povoações fenícias do Ocidente, assumindo
a liderança de um império na África do Norte, cuja criação teria profundas
repercussões na história de todos os povos do Mediterrâneo ocidental. Tal
evolução foi favorecida principalmente pelo enfraquecimento do poder de Tiro
e da Fenícia a metrópole que caíram sob o jugo do Império Babilônico. No
entanto, a pressão crescente exercida pelas colônias gregas da Sicília parece ter
sido um fator ainda mais determinante. As mais importantes dessas colônias,
como Siracusa, haviam tido um desenvolvimento demográfico e econômico muito
rápido. Basicamente, elas tinham sido fundadas para absorver o excedente de
população da Grécia continental. Ao que parece, no culo VII antes da Era Cristã,
o houve nenhum grande conflito entre fenícios e gregos e foram encontrados
vestígios de importações gregas em numerosas colônias fenícias do Magreb. Em
477
O período cartaginês
-580, porém, os habitantes da cidade de Selinus (Selinunte) e outras populões
gregas da Sicília tentaram expulsar os fenícios estabelecidos em Mócia e Palermo.
Cartago parece ter dirigido as operações defensivas contra essa agressão, que, se
vitoriosa, teria permitido aos gregos ameaçarem as cidades fenícias da Sardenha
e lhes teria aberto a rota do comércio para a Espanha, fechada até essa época. O
êxito obtido consolidou as colônias fenícias da Sardenha. Nesse mesmo século,
Cartago firmou uma aliança com as cidades etruscas da costa oeste da Itália Por
volta de -535, uma vitória comum impediu os gregos de se fixarem na Córsega.
O último triunfo a marcar esse período ocorreu na própria África. Um espartano
chamado Dorieus tentou fundar uma feitoria na embocadura do rio Kinyps (Oued
Oukirri) na Líbia; Cartago considerou o empreendimento uma intrusão e, com a
ajuda dos líbios, conseguiu expulsar os gregos ao final de três anos.
A supremacia exercida sobre os fenícios do Ocidente envolvia encargos que
parecem ter sido muito pesados em relação aos efetivos de que dispunha Cartago:
até o século VI, como as cidades gregas, Cartago devia contar com seus próprios
cidadãos. Na metade do século, sob o governo de Magon, fundador de uma
poderosa família da cidade, inaugurou -se uma nova política, que consistia em
recrutar tropas de mercenários em larga escala. Tal prática continuou em vigor
durante o restante da história cartaginesa. Os líbios, particularmente eficazes como
infantaria ligeira, constituíam a maior parte dos efetivos estrangeiros. Tais efetivos
aumentavam à medida que Cartago estendia suas possessões pelo interior e
instaurava o recrutamento obrigatório (ver adiante). Inicialmente mercenárias e
depois aliadas em virtude de tratados, também as cavalarias númida e mauritana
(originárias do norte da Argélia e do Marrocos atuais) forneceram importantes
contingentes aos grandes exércitos cartagineses. Em diferentes épocas, serviram
em Cartago mercenários vindos da Espanha, da Gália, da Itália e finalmente
da Grécia. Essa política se revelou mais eficaz do que geralmente se pensa e é
improvável que Cartago pudesse sustentar as longas guerras de sua história se
tivesse contado apenas com os limitados efetivos de sua própria população.
A geração posterior à vitória contra Dorieus assistiu a profundas mudanças
nas cidades gregas da Sicília, que reagiram vigorosamente contra Cartago. Gelão,
rei de Gela e de Siracusa a partir de -405 empreendeu uma guerra para
vingar Dorieus e planejou uma campanha para conquistar a área de colonização
fenícia em torno do golfo de Gabes. Como resultado, Cartago procurou aliados
na Sicília, entre os que se opunham a Gelão, e em -480 desembarcou um grande
exército mercenário na ilha, talvez aproveitando -se do fato de que no mesmo
ano ocorria a invasão da Grécia pelos persas. Avalia -se em duzentos navios a
frota de Cartago na época, o que a colocava em igualdade de condições com
478
África Antiga
Siracusa e quase no mesmo nível da frota grega. Contudo, essa intervenção
terminou em desastre completo, com a destruição do exército e da esquadra na
grande batalha de Hímera. Gelão não pôde ou não soube tirar proveito dessa
vitória e contentou -se com uma modesta indenização de guerra.
A expansão na África do norte
A essa derrota sucederam -se setenta anos de paz, durante os quais Cartago
evitou entrar em conflito com os gregos, conseguindo, no entanto, manter seu
monopólio comercial. Um fato ainda mais importante foi a preocupação de
Cartago em ampliar seus territórios em solo africano. Tal política foi adotada
quando os cartagineses se viram cada vez mais isolados pelas vitórias dos gregos
no Mediterrâneo, primeiramente durante as guerras médicas contra os persas,
em que os fenícios sofreram grandes perdas, e depois contra os etruscos na
Itália. É possível que os cartagineses tenham procurado reduzir suas trocas
comerciais com o mundo grego: o conteúdo das sepulturas do século V parece
pobre e austero, com pouco material importado. Contudo, isso não implica que
a comunidade como um todo estivesse mais empobrecida do que antes, uma vez
que o conteúdo das sepulturas não constitui, por si , um índice absoluto do
grau de riqueza ou pobreza. A nova política territorial está associada à dinastia
magônida, dirigida nessa época por Hanão, filho de Amílcar, que havia sido
derrotado em Hímera. Sobre ele, o historiador grego Díon Crisóstomo diria
mais tarde que “transformou os cartagineses de tírios em africanos”.
Embora não se tenha certeza da superfície dos territórios conquistados no
século V e do número de colônias que atingiram a dimensão de cidades, ainda
que modestas, as novas possessões estavam próximas do limite máximo que
Cartago chegou a controlar . É preciso assinalar a grande importância que teve
a conquista da península do cabo Bon e de um vasto território situado ao sul da
cidade, estendendo -se ao menos até Dougga e englobando algumas das terras
mais férteis da Tunísia. E nessa área que a colonização romana atingiu, tempos
depois, uma densidade particularmente significativa. Essas terras forneciam o
essencial do abastecimento de Cartago e permitiram que a população da cidade
aumentasse de modo considerável. Mais tarde, muitos cartagineses possuíram
domínios no cabo Bon. As terras do cabo Bon eram consideradas públicas e
provavelmente seus habitantes estavam reduzidos a, uma condição de servidão.
Nas outras regiões conquistadas, as populações deviam pagar tributo e fornecer
tropas.
479
O período cartaginês
Daí em diante, ao número de estabelecimentos costeiros fenícios vieram
somar -se as próprias colônias de Cartago, cujos nomes, em sua maioria, não
chegaram até nós. Como as colônias originais, eram localidades pequenas, com
algumas centenas de habitantes, em que as populações locais das regiões vizinhas
vinham vender seus produtos, como indica o nome que lhes deram os gregos:
emporia (mercados).
A fronteira entre o Império Cartaginês e as colônias gregas da Cirenaica
situava -se no golfo de Sidra, mas eram poucas as colônias na costa da Líbia. A
mais importante situava -se em Leptis, onde provavelmente se estabeleceu uma
colônia permanente quando o ataque de Dorieus à região vizinha mostrou o
risco de invasão grega. Em Sabrata, a presença cartaginesa remontava ao início
do século IV. Leptis tomou -se o centro administrativo das diversas colônias do
golfo de Gabes e sabe -se que esta cidade prosperou ao final do período cartaginês.
Aí, a cultura fenícia continuou a ser dominante por mais de um século sob
ocupação romana. A origem da prosperidade de Leptis é geralmente atribuída
ao comércio transaariano, pois a área estava situada no fim do itinerário mais
curto que, por Cidamus (Gadames), conduzia ao Níger. No entanto, ignoramos
a natureza desse comércio, ainda que haja menção a pedras semipreciosas. Na
época romana, a região devia sua riqueza agrícola aos colonos cartagineses. No
golfo de Gabes existiam outros sítios: Zouchis, que se tomou célebre por seu
peixe salgado e sua tintura púrpura; Gigthis (Bou Ghirarah ) e Tácape (Gabes).
Mais ao norte, citamos Thaenae (ou Tina), situada no ponto em que a fronteira
sul do território de Cartago atingia o mar. Segundo a tradição, Leptis Minor e
Hadrumeto foram fundadas pela Fenícia, não por Cartago, e a última tomou -se
a maior cidade da costa leste da Tunísia. A partir de Neápolis (Nabeul) uma rota
que atravessava a base do cabo Bon levava a Cartago.
A oeste de Cartago estendia -se Útica, que perdia em importância para
a metrópole. Como Cartago, era um porto, embora atualmente esteja situada
a 10 km da costa. Durante algum tempo, Útica manteve uma independência
ao menos nominal em relação a Cartago. Além desse porto, ao estreito de
Gibraltar, a costa oferecia um certo número de ancoradouros, mas poucos
atingiram um desenvolvimento comparável às escalas da costa tunisiana.
Com certeza isso se deveu principalmente ao fato de apresentarem maior
dificuldade de acesso ao interior. Os tios conhecidos ou proveis incluem
Hippo Acra (Bizerta), Hippo Regius (Bona), Rusicade (Skikda), Tipasa e
Icósio (Arlia). Na época romana, diversas localidades costeiras (am de
Rusicade) guardaram o prefixo fenício rus, que significa “cabo”: Rusucurru
(Dellys) e Rusguniae (Natifou), por exemplo. Tingis (Tânger) é mencionada
480
África Antiga
no século V, mas supõe -se que já era conhecida dos fenícios desde as primeiras
ligações regulares destes com Cádiz.
O Império de Cartago
Cartago foi criticada por seus inimigos pelo duro tratamento e pela exploração
a que submeteu seus súditos, que com certeza estavam divididos em diferentes
categorias. Sem dúvida, os mais privilegiados foram os velhos estabelecimentos
fenícios e as colônias fundadas pela própria Cartago, cujos habitantes eram
chamados pelos gregos de líbio -fenícios, isto é, fenícios da África. Ao que tudo
indica, tais colônias possuíam funcionários locais e instituições semelhantes
às da própria Cartago (ver adiante); sabemos que esse foi o caso de Gades
(Cádiz), Tharros e dos fenícios de Malta. Essas cidades estavam submetidas
ao pagamento de taxas sobre as importações e exportações e às vezes deviam
fornecer contingentes militares. Também é provável que tenham contribuído
para equipar a frota cartaginesa. Após -348, parece que foram proibidas de
comerciar com outras cidades além de Cartago. A posição dos súditos de
Cartago na Sicília era influenciada pela proximidade das cidades gregas; eles
tinham direito a instituições autônomas e cunhavam moeda desde o século V,
num período em que a própria Cartago ainda não as emitia. Não há indícios de
que seu direito de comércio tenha sofrido restrição; como ocorreu mais tarde,
quando a Sicília caiu sob domínio romano, eles pagavam um tributo equivalente
a 10% sobre os lucros.
Os líbios do interior eram tratados com mais dureza, ainda que aparentemente
fossem autorizados a conservar sua organização tribal. Parece que os funcionários
de Cartago supervisionavam diretamente a coleta do tributo e o alistamento de
soldados. A taxa normal do tributo correspondia provavelmente a um quarto
das colheitas, sendo que, num período crítico de lutas contra Roma (Primeira
Guerra Púnica), o imposto exigido atingiu 50%. De acordo com o historiador
grego Políbio (século II), numerosos líbios tomaram parte na sangrenta revolta
de mercenários que se seguiu à derrota de Cartago, para se vingarem dessa e de
outras cobranças,os cartagineses estimavam e honravam não os governadores
que tratavam seus administrados com moderação e humanidade, mas os que
lhes extorquiam o máximo de recursos e que os tratavam com mais crueldade”.
Essa crítica deve ter fundamento, pois ocorreram várias revoltas líbias, além da
mencionada. Ao que parece, os cartagineses não conseguiram adotar políticas
capazes de levar as populações conquistadas a aceitarem sua sorte.
481
O período cartaginês
O comércio cartaginês e a exploração marítima
A África Ocidental
Para os gregos e romanos, Cartago era mais dependente do comércio do
que qualquer outra cidade, e a ideia que eles faziam do cartaginês típico era
a de um negociante. Além disso, Cartago era tida na época como a cidade
mais rica do mundo mediterrânico. Contudo, é preciso dizer que essas trocas
comerciais e essa suposta riqueza deixaram muito poucos vesgios para o
arqueólogo muito menos, por exemplo, do que importantes cidades gregas
e etruscas da mesma época. Sem dúvida, uma das principais razões disso é que
a parte mais significativa do comércio de Cartago consistia em produtos que
não deixavam vestígio, especialmente os metais em estado bruto, que eram o
objetivo maior já dos primeiros navegadores fenícios. É preciso acrescentar os
têxteis, o tráfico de escravos e, à medida que as terras férteis eram cultivadas,
os produtos agrícolas. Os lucros do comércio com as tribos atrasadas, que
forneciam ouro, prata, estanho e provavelmente ferro (sabe -se que Cartago
fabricava suas próprias armas) em troca de artigos manufaturados sem valor, são
evidenciados pelos grandes exércitos mercenários que a cidade podia recrutar
nos séculos IV e III e pela cunhagem de moedas de ouro, que foi bem mais
intensa que em outras cidades igualmente desenvolvidas. O Estado dirigia
ativamente os grandes empreendimentos comerciais, como atestam diversas
fontes, em particular as que se referem à África ocidental. Segundo Heródoto
(século V), o rei epcio Necau (c. -610 a -594) enviou uma expedição de
marinheiros fenícios para navegar pelo mar Vermelho e daí contornar a África.
A viagem teria durado dois anos, com duas paradas para semear e colher uma
safra de trigo. Heródoto acreditava que a viagem havia sido coroada de êxito,
o que não é impossível, mas na época não houve nenhuma repercussão. Se
tal périplo realmente se realizou, as dimensões do continente então revelado
devem ter afastado qualquer ideia de uma rota que se estendesse do mar
Vermelho ao Mediterneo. Ainda segundo Heródoto, os cartagineses que
acreditavam na possibilidade de circunavegar a África deviam estar a par do
empreendimento, bem como de uma outra tentativa que remonta ao início do
século V. Um príncipe persa conseguiu um navio no Egito com a condão de
tentar a circunavegação no sentido oposto. O navio teria seguido ao longo das
costas marroquinas bem além do cabo Spartel, mas teve de retornar. Heródoto
também fornece um relato do comércio cartagis nas costas marroquinas.
Num escrito que data aproximadamente de -430, ele diz:
482
África Antiga
“Os cartagineses também nos falam de uma região da África e de seus habitantes,
além do estreito de Gibraltar. Assim que eles chegam a este país, descarregam suas
mercadorias e as colocam na praia; depois retornam a seus navios e enviam um sinal
de fumaça. Quando os nativos vêem a fumaça, descem até a praia, depositam ali uma
certa quantidade de ouro para ser trocado pelas mercadorias e depois se retiram. Os
cartagineses desembarcam novamente e examinam o ouro que foi deixado. Se julgam
que seu valor corresponde ao dos produtos ofertados, eles o recolhem e seguem
viagem; se não, voltam aos navios e esperam até que os nativos tenham levado ouro
suficiente para satisfazê -los. Nenhuma das partes engana a outra: os cartagineses
nunca tocam o ouro até que seu valor corresponda ao que trouxeram para vender, e
os nativos não tocam as mercadorias até que o ouro tenha sido levado”.
Esta é a descrição mais antiga que temos do método clássico do “comércio
mudo”. Esse comércio do ouro é normalmente associado a um texto grego
muito controvertido, considerado como tradução do relato de uma viagem ao
longo da costa marroquina feita por um certo Hanão, identificado como o chefe
da família dos magônidas, em meados do século V, e também como estadista
responsável pela expansão cartaginesa no continente africano. As dificuldades de
interpretação desse texto impedem que seja analisado pormenorizadamente. De
maneira geral, pode -se dizer que a divulgação de um documento que revela tantos
fatos é pouco plausível, pelo que se sabe da política comercial praticada pelos
cartagineses, que impediam qualquer concorrente em suas zonas de atividade.
Além disso, o documento não menciona nem mesmo o objetivo da viagem. A
parte mais precisa trata da implantação de feitorias na costa marroquina. Sabe-
-se que essas colônias existiram; Lixos, na embocadura do Oued Loukkos, era
com certeza uma delas. Hanão não a menciona, e a história ulterior das tribos
da região (ver mais adiante) demonstra a influência cultural de Cartago. A
feitoria mais meridional constante do documento chama -se Cerna, geralmente
associada à ilha Hern, na embocadura do Rio de Oro. Esse nome é citado em
outra fonte geográfica grega conhecida como Pseudo -Silas, de cerca de -338.
Em Cerna, os fenícios [isto é, os cartagineses] ancoram seus gauloi (assim
se chamavam seus navios mercantes) e armam suas tendas na ilha. Após ter
descarregado suas mercadorias, eles as transportam em pequenas canoas para
o continente; vivem os etíopes [isto é, os negros] com os quais negociam. Os
fenícios trocam suas mercadorias por peles de veado, de leão e de leopardo, couros
e presas de elefantes [...] os fenícios trazem perfume, pedras egípcias [cerâmica?],
louças e ânforas atenienses.
483
O período cartaginês
Também aqui o ouro não é mencionado; Cerna aparece mais como um
ancoradouro do que como uma colônia. A lista das mercadorias trazidas de
Cartago parece correta, mas tem -se contestado a aquisição de peles de animais
selvagens, pois era possível obtê -las bem mais perto de Cartago. O relato de
Hanão termina com uma narrativa de duas viagens feitas bem ao sul de Cerna,
com descrições pitorescas de populações ferozes, de “tambores na noite” e de rios
de fogo”, provavelmente com a intenção de assustar qualquer eventual concorrente.
O limite sul dessas viagens foi fixado no monte Camarões, o que parece
exagerado. Os indícios arqueológicos que testemunham as expedições
cartaginesas não vão além de Essauíra (Mogador), mas se referem a viagens
ocasionais restritas ao século VI e não podem ser identificados com qualquer
um dos lugares mencionados no relatório em questão.
Se o objetivo era o ouro, é estranho que toda lembrança desse comércio
haja desaparecido com a queda de Cartago, ainda que certas colônias na costa
marroquina tenham sobrevivido. O historiador grego Políbio navegou ao sul
de Cerna depois de -146, mas não descobriu nada de interessante. No século
I da Era Cristã, o escritor romano Plínio refere -se nestes termos ao relato de
Hanão: Muitos gregos e romanos, com base nesse documento, evocam muitas
terras fabulosas e relatam a fundação de muitas cidades, das quais não subsiste
na realidade nenhuma lembrança ou vestígio”. Fato singular, Mogador seria
visitada mais tarde por marinheiros vindos da Mauritânia (ver adiante), Estado
vassalo de Roma, mas parece que seu objetivo era mais a pesca do que o ouro.
O Atlântico
O mundo antigo conhecia o relato de outra expedição dirigida por Himílcon,
contemporâneo de Hanão, mas as referências que possuímos são fragmentárias.
Essa expedição explorou a costa atlântica da Espanha e da França e certamente
atingiu a Bretanha. Provavelmente seu objetivo era ampliar o controle sobre o
comércio do estanho extraído em várias regiões próximas ao litoral atlântico.
Diversos escritores da Antiguidade se interessaram pelo comércio de estanho,
com certeza porque eram muito poucas as informações que os cartagineses
deixavam circular a esse respeito. Na verdade, o período cartaginês constituiu a
última fase do comércio de estanho ao longo dessa costa; tal comércio remontaria
à P-História, sendo a região sudoeste da Inglaterra uma das principais fontes de
produção. Contudo, não provas de que os fenícios tenham algum dia atingido
a Inglaterra; nenhum objeto fenício foi jamais descoberto nessa região (nem na
Bretanha, aliás). Se eles adquiriam estanho da Inglaterra, era provavelmente por
484
África Antiga
intermédio de tribos da Bretanha. É possível que a maior parte da produção
inglesa de estanho fosse transportada através da Gália até o vale do Ródano e o
Mediterrâneo, e que os cartagineses adquirissem esse metal principalmente no
norte da Espanha. Seja como for, o mineral mais valioso explorado na Espanha
era a prata; sabemos que no século III a produção atingiu níveis consideráveis
e que sem dúvida ultrapassou em muito a de estanho. A partir do século V,
Cádiz rapidamente ganhou importância e foi a única possessão cartaginesa no
Ocidente, à exceção de Ibiza, a emitir sua própria moeda. Segundo o geógrafo
grego Estrabão, seus construtores de navios superavam todos os outros na
fabricação de embarcações tanto para o Mediterrâneo quanto para o Atlântico.
O comércio mediterrânico
Como vimos, Cartago possuía o monopólio do comércio em seu império,
afundando toda embarcação intrusa ou concluindo tratados comerciais com os
possíveis concorrentes, como as cidades etruscas e Roma. Em princípio, nenhum
estrangeiro estava autorizado a comerciar a oeste de Cartago; isso significava
que as mercadorias levadas a essa cidade por navios estrangeiros deveriam sofrer
transbordo para navios cartagineses, para então serem reexportadas. Foi assim
que os produtos da Etrúria, Campânia, do Egito e de diversas cidades gregas
atingiram um grande número de colônias da África do Norte. Os produtos
manufaturados de Cartago são diceis de identificar do ponto de vista
arqueológico, pois não têm qualquer originalidade ou valor. Talvez isso tenha
sido economicamente vantajoso no século IV, principalmente após as profundas
alterações econômicas e políticas desencadeadas no Mediterrâneo ocidental
pelas conquistas de Alexandre, o Grande. De fato, a partir daí abriram -se grandes
mercados, de tipo mais cosmopolita, para os artigos baratos, mercados que os
cartagineses estavam bem preparados para explorar. Foi somente no século IV
que Cartago começou a cunhar suas próprias moedas, à medida que aumentava
o seu comércio com países mais desenvolvidos e que a evolução da situação
econômica também obrigava a pagar os mercenários em dinheiro.
O comércio saariano
A questão dos contatos dos cartagineses com os povos saarianos e outras
populões que viviam mais ao sul ainda o foi elucidada. Se tais comunicões
existiram, devem ter ocorrido a partir de Leptis Magna e Sabrata, uma vez que nessa
rego o muito poucos os obstáculos naturais. A preocupação dos cartagineses
em manter os gregos longe dessa área foi mencionada como prova de que eles
485
O período cartaginês
praticavam um comércio muito importante com o interior, pois as terras agcolas
propícias à colonização são raras. No século V, Heródoto citava dois grupos tribais,
os Garamantes e os Nasamones, que viviam nas regiões interioranas ao sul do golfo
da Sirte; ele também afirmava que eram necesrios trinta dias para ir da costa até
o território da primeira tribo, provavelmente a população de Garama (Germa).
Foi por intermédio dos Garamantes que, séculos mais tarde, os romanos
obtiveram maiores informações sobre o interior da África. Segundo uma narrativa
mais recente, um cartaginês chamado Magon atravessou três vezes o deserto.
Infelizmente,o restou nenhum vestígio arqueológico desse comércio – se é que
existiu e os autores mencionam apenas um artigo de comércio do deserto: o
carbúnculo. Talvez se praticasse o tráfico de escravos – diz -se que os Garamantes
perseguiam os etíopes (isto é, os povos negros), em carros puxados por quatro
cavalos. É possível também que houvesse comércio de marfim e peles, embora
esses artigos fossem facilmente encontrados no Magreb. Sabe -se menos ainda
sobre o transporte do ouro proveniente do Sudão, mas não se pode descartar a
existência dessa atividade. As investigações arqueológicas recentes indicam que
em Germa o crescimento demográfico ocorreu a partir do século V ou IV e que,
nosculos seguintes, se desenvolveu uma considerável população de agricultores
sedentários, provavelmente devido às influências culturais que se exerceram a
partir dos estabelecimentos cartagineses do litoral. Após a destruição de Cartago,
os romanos penetraram em Germa e em Gadames e ocasionalmente bem mais
ao sul; alguns vestígios arqueológicos testemunham a existência de modestas
importações do Mediterrâneo para o interior. A ausência de camelos na África do
Norte nessa época explica a dificuldade e a irregularidade das viagens transaarianas.
Mesmo que as condições naturais do Saara na Antiguidade fossem menos
precárias que hoje em dia, a falta de animais de carga dificultaria enormemente
qualquer comércio de larga escala. Portanto, a integração das regiões saarianas
e transaarianas num conjunto cultural mais amplo deve ser datada do início do
período árabe.
A cidade de Cartago
Embora Cartago tivesse a reputação de possuir uma fabulosa riqueza, o
encontramos nenhum traço arqueológico dela, mesmo levando em conta a destruição
total da cidade pelos romanos. Isso o significa que o houvesse ali construções
importantes, como são encontradas em cidades semelhantes da época. Cartago
possuía um sofisticado porto artificial duplo: o porto externo destinava -se ao uso de
486
África Antiga
navios mercantes desconhece -se sua capacidade e o porto interno tinha cais e
abrigos para 220 navios de guerra; foi erigida uma torre de controle suficientemente
alta para permitir a observação do mar por cima dos edifícios da cidade.
As muralhas da cidade, de dimensões excepcionais, resistiram a todos os
ataques até o assalto final dos romanos. A extensão total (incluindo a parte que
se estendia ao longo do mar) era de 40 km aproximadamente. Na parte principal
que defendia o istmo de Cartago, com extensão de 4 km, os muros atingiam 12 m
de altura e 9 m de espessura. Uma fortaleza interna de mais de 3 km de perímetro
circundava a colina conhecida como Birsa, que sem dúvida constituía a parte
mais antiga da cidade. Entre o porto e a colina de Birsa havia uma praça pública
equivalente a uma ágora grega. Mas Cartago nunca teve o aspecto planificado ou
monumental que veio a caracterizar as cidades gregas. Parece ter -se desenvolvido
sem planejamento, com ruas estreitas e sinuosas; sabe -se de edifícios que teriam
até seis andares, como na própria Tiro e em Mócia na Sicília.
Quanto aos templos, embora se diga que foram numerosos, é pouco provável
que tenham tido grandes dimensões antes do último período da história de
Cartago, quando a influência cultural grega se fez sentir. De fato, a maior parte
dos indícios mostra que os cartagineses eram essencialmente conservadores em
assuntos religiosos e que durante muito tempo permaneceram fiéis ao conceito
de simples recintos, desprovidos de monumentos imponentes.
No apogeu de Cartago, a população pode ser apenas estimada; o número
de 700 mil habitantes fornecido por Estrabão é uma concentração impossível,
mas pode -se referir à população da cidade e de toda a região do cabo Bon. O
número, mais razoável, de 400 mil pessoas, incluindo os escravos, poria Cartago
no mesmo nível que a Atenas do século V.
As instituições políticas de Cartago
O único aspecto de Cartago admirado pelos gregos e romanos foi seu regime
político, que parecia garantir a estabilidade tão apreciada na Antiguidade. Os
detalhes do sistema ainda são pouco conhecidos e não se pode ter certeza de
que os fatos tenham sido interpretados corretamente. É provável, contudo, que
em suas grandes linhas funcionasse da seguinte maneira: a realeza hereditária
prevaleceu nas cidades fenícias até a época helenística; de acordo com todas
as fontes de que dispomos, ela também existiu em Cartago. Assim, Amílcar,
derrotado em Hímera, e Hanão, o promotor da expansão de Cartago na África,
são designados pelo título de rei. É provável que, ao empregarem o termo “rei”,
os autores clássicos estivessem pensando tanto nos poderes sagrados e judiciários
487
O período cartaginês
dos titulares, quanto em seus poderes políticos e militares. O cargo era, em
princípio, eletivo e não hereditário, mas várias gerações da família magônida
ocuparam tal posição.
Durante os séculos VI e V, os reis parecem ter sido, quando era preciso,
também chefes militares da nação. No decorrer do século V teve início um
processo que enfraqueceu o poder dos reis. Essa mudança talvez esteja associada à
influência crescente dos sufetes, o único termo político cartaginês que os autores
romanos nos transmitiram. Essa palavra alia as noções de juiz e governador e,
dado que no século III dois (ou talvez mais) sufetes eram eleitos anualmente, é
fácil compará -los aos cônsules romanos. O termo sufete continuou a ser usado
na África do Norte, em regiões colonizadas por Cartago, durante mais de um
século após a conquista romana, para designar o principal magistrado de uma
cidade.
O processo de enfraquecimento do poder dos reis assemelhou -se ao que se
verificou nas cidades gregas e em Roma. Paralelamente a esse declínio, aumentava
o poderio e a riqueza da aristocracia. Além de exercer o direito exclusivo de fazer
parte de um conselho de estado, como o senado romano, a aristocracia fundou
uma corte de cem membros, aparentemente com a função específica de controlar
todos os órgãos do governo. Embora os cidadãos participassem de uma certa
maneira da eleição dos reis, dos sufetes e de outros dirigentes, não dúvida
que a política cartaginesa sempre foi dominada pelos ricos. Aristóteles julgava
nefasto o papel desempenhado pela riqueza em Cartago.
O nascimento e a fortuna eram critérios determinantes nas eleições; todos
os assuntos eram decididos pelos reis ou sufetes de acordo com o conselho, e
somente em caso de desacordo as assembleias de cidadãos eram consultadas. No
século IV ou III, o comando das forças armadas era totalmente independente
dos outros cargos; os generais eram nomeados apenas de acordo com as
necessidades para campanhas específicas, pois o Estado o mantinha um
exército regular que exigisse um chefe permanente. Várias famílias ou dinastias
os magônidas no início da História e posteriormente os bárcidas (ver mais
adiante) desenvolveram uma tradição militar. É interessante notar que Cartago
nunca sofreu um golpe de estado por parte de um general ambicioso, como era
comum nas cidades gregas, principalmente na Sicília. É muito provável que os
órgãos de supervisão e controle fossem eficazes. O fato de, a partir do início do
século V, os cidadãos cartagineses terem sido dispensados do serviço militar
exceto em raras ocasiões possivelmente os impediu de tomar consciência de
sua própria força. Na Grécia e em Roma, tal consciência teve importante papel
na formação do espírito democrático.
488
África Antiga
A religião dos cartagineses
Embora as instituições poticas de Cartago recebessem elogios, a vida
religiosa foi severamente criticada pelos autores clássicos, principalmente em
virtude da persistência de sacrifícios humanos. Mencionava -se tamm a
intensidade das crenças religiosas.
Como é natural, os cultos praticados em Cartago apresentam semelhanças
com as tradições da Fenícia, das quais se originaram. A suprema divindade
masculina do mundo fenício era conhecida na África sob a denominação de
Baal -Hamon; ao que parece, o epíteto Hamon significava ardente” e evocava
seu aspecto solar. Na época romana, essa divindade era identificada com Saturno.
No século V, Baal foi sobrepujado, pelo menos no culto popular, por uma deusa
chamada Tanit. O nome parece ser de origem líbia, e o desenvolvimento de seu
culto está associado à aquisição de territórios na África, pois a divindade possuía
aspectos nitidamente ligados à fertilidade, lembrando muito as deusas gregas
Hera e Deméter. Representações grosseiras de uma figura feminina com braços
erguidos aparecem em centenas de estelas em Cartago e em outros lugares. Essas
duas divindades ofuscaram todas as demais, mas conhecemos também Astarte,
Eshmoun (identificado com Esculápio, deus da medicina) e Melqart, protetor
particular de Tiro, a cidade -mãe.
A instituição de sacrifícios humanos é comprovada arqueologicamente
pelas descobertas feitas não apenas em Cartago e Hadrumeto, mas também
em Cirta que se situa no território bio, onde a influência da cultura
cartaginesa foi muito marcante e em diversas colônias situadas fora da
África. A descoberta, nos recintos sagrados, de urnas com ossadas calcinadas
de crianças, que frequentemente eram enterradas aos pés das estelas, levam a
supor que se tratava de sacrifícios geralmente oferecidos a Baal -Hamon, mas
com frequência também a Tanit. De acordo com as fontes de que dispomos
(que possuem aspectos duvidosos), as vítimas eram sempre do sexo masculino;
os sacrifícios realizavam -se a cada ano e atingiam obrigatoriamente as famílias
influentes. Tal prática caiu em desuso, mas um incidente em -310 mostra que
ela podia renascer em momentos de crise, quando a cólera divina era atribuída à
negligência desse rito. Não há dúvida de que o fervor religioso dos cartagineses
repousava na necessidade de apaziguar o humor caprichoso dos deuses. A maior
parte dos nomes cartagineses possuía uma etimologia sagrada, sem dúvida com
a mesma intenção. Amílcar, por exemplo, significa “protegido de Melqart e
Aníbal, protegido de Baal”. Além dos sacrifícios humanos, havia um ritual
complexo envolvendo a oferenda de outras vítimas, que era cumprido por um
489
O período cartaginês
corpo de sacerdotes nomeados a título permanente e por outros oficiantes que
não pertenciam a uma casta especial. Apesar de seus contatos com o Egito, os
cartagineses parecem ter dado pouca importância à ideia da vida após a morte,
o que os aproxima dos primeiros hebreus. A inumação era regra geral e os
objetos funerários eram modestos; vários túmulos continham pequenas máscaras
grotescas em terracota, que, imagina -se, deviam conjurar as influências maléficas.
Mesmo mais tarde, os cartagineses foram muito menos influenciados
pela civilização grega do que os etruscos e os romanos, embora não fossem
totalmente fechados a essa cultura. O culto de Deter e Perséfone foi
oficialmente instalado em Cartago, mas os cultos tradicionais nunca chegaram
a ser totalmente helenizados. Quanto ao panorama artístico, pode -se afirmar que
as artes menores revelam poucas influências externas, mas os poucos vestígios do
século II indicam que nessa época as influências da arquitetura do mundo grego
fizeram -se sentir não apenas na região de Cartago (Dar Essafi no cabo Bon),
mas também em território líbio (Dougga). O fenício era empregado como língua
literária, mas nenhum de seus traços sobreviveu. Sabemos da existência de um
tratado sobre agricultura escrito por um certo Magon e que foi traduzido para
o latim; é claro que Magon utilizou os livros gregos sobre o assunto. Também
sabemos de alguns cartagineses adeptos da filosofia grega.
Os conitos com os gregos da Sicília
O período de expansão na África e de paz geral que se havia iniciado com o
desastre de Hímera chegou ao fim em -410. Os Estados gregos da Sicília estavam
empenhados na áspera luta entre Atenas e Esparta pela supremacia na Grécia.
Embora uma expedição ateniense mandada para a Sicília terminasse em desastre
total, as consequências acabaram por envolver Cartago. A cidade de Segesta,
comunidade nativa da Sicília mas aliada de Cartago, que tinha sido em parte
responsável pela chegada dos atenienses à ilha e que nessa época foi vítima de um
forte ataque punitivo feito pela cidade grega de Selinunte, pediu auxílio a Cartago.
O apelo foi atendido, provavelmente porque a derrota de Segesta asseguraria o
domínio grego, que reduziria as colônias fenícias a um mero ponto de apoio no
oeste da ilha. Além disso, o chefe cartaginês Aníbal fez dessa expedição uma
guerra de vingança pela derrota em Hímera, onde perecera seu avô.
Em -409, um exército cartaginês formado por cerca de 50 mil mercenários
sitiou Selinunte, tomando -a de assalto no nono dia. Pouco tempo depois,
Hímera também foi conquistada e totalmente destruída; todos os habitantes
490
África Antiga
que não conseguiram fugir foram massacrados. Em seguida, Aníbal retornou
a Cartago e desfez o exército, o que indica que os cartagineses não tinham por
objetivo estender seu território. É evidente, porém, que a partir dessa data as
colônias fenícias da Sicília, como ocorria com os demais territórios ocupados,
se tornaram de fato uma província cartaginesa. Contudo, em -406, Cartago foi
tentada, pela primeira e única vez em sua história, a conquistar toda a ilha em
resposta aos ataques feitos por alguns siracusanos a seu território. Um exército
ainda mais poderoso foi enviado, e Acragas (Agrigento), a segunda cidade grega
mais importante da Sicília, foi dominada, naquele ano, o mesmo acontecendo
com Gela, em -405.
Mas Aníbal não estava em condições de coroar suas vitórias com a tomada
da própria Siracusa. Ao que parece, uma epidemia destruiu metade do exército
cartagis, e o novo tirano de Siracusa apressou -se em firmar a paz para
consolidar sua própria posição. Os termos do tratado confirmavam a dominação
cartaginesa sobre o oeste da Sicília, incluindo diversas comunidades sicilianas
nativas e os sobreviventes de Selinunte, Acragas e Hímera. Com isso, Cartago
passou a dominar um território maior do que o anterior, e também a receber
maiores tributos. Além disso, a cidade rompeu o isolamento em que tinha vivido
durante a maior parte do século V. A partir dessa data, as importações e de
maneira geral o comércio com o mundo grego foram retomados, apesar dos
frequentes períodos de guerra. O fato é que não havia união entre os gregos,
divididos que estavam em numerosas cidades ciosas de sua independência.
Embora tenham sido feitas várias tentativas de coalizão na Sicília para expulsar
os cartagineses da ilha, essas iniciativas nunca tiveram sucesso, pois tratava -se
apenas de manobras oportunistas ditadas por interesses particulares de certos
Estados ou de seus dirigentes. Tal foi o caso de Dionísio de Siracusa, que em
três ocasiões de -398 a -392, de -383 a -375 e em -368 tentou expulsar
os cartagineses. Cada uma foi marcada por um revés: em -398, por exemplo, a
cidade fenícia de Mócia foi tomada e destruída, mas no ano seguinte Siracusa
foi ameaçada e novamente salva por uma epidemia.
Na maior parte do tempo os cartagineses conseguiram manter o rio Halycus
(Platani) como fronteira oriental de seu território. As tropas de mercenários,
embora heterogêneas e recrutadas às pressas, eram em geral suficientes para fazer
frente aos hoplitas gregos. Além disso, sua frota era normalmente superior à dos
inimigos. Fato ainda mais significativo, Cartago nunca mais poderia ser isolada
do mundo grego. Havia gregos residindo em Cartago e sua intervenção chegou
a ser solicitada pelos próprios políticos gregos. Desse modo, a cidade não tardou
a ser reconhecida como parte do mundo helênico.
491
O período cartaginês
Durante a década de -350, Cartago estava prestes a dominar toda a Sicília
por meios pacíficos, pois as dissensões políticas internas enfraqueciam ainda
mais as cidades gregas. A posição grega foi salva pela expedição de um
idealista, Timoleonte de Corinto. Na batalha do rio Crimisos (-341), um corpo
de elite composto de 3 mil cidadãos cartagineses foi destruído. Essa é tida como
a maior derrota sofrida por Cartago e mostra até que ponto a cidade contava
com os mercenários.
A própria África estava naturalmente imune à destruição, embora tenha
havido uma revolta em -361/7, que, diz -se, foi facilmente reprimida. Nos anos
-340, um certo Hanão tentou um golpe de estado apelando à população escrava
e às tribos africanas e mouras, mas ao que tudo indica essa tentativa não chegou
a ameaçar seriamente a estabilidade de Cartago. Muito mais grave foi a situação
enfrentada de -310 a -307, época em que Cartago estava engajada numa nova
guerra contra Siracusa, então dirigida por Agátocles. A cidade estava sitiada
pelos cartagineses e os gregos fizeram uma tentativa desesperada para reverter a
situação: enganando a frota de Cartago, Agátocles desembarcou 14 mil homens
no cabo Bon, queimou os seus navios e marchou para Cartago. À exceção da
cidade propriamente dita, não havia nenhuma praça forte ou guarnição de defesa
e, durante três anos, os gregos causaram estragos consideráveis no território
cartaginês, antes de serem forçados a deixar a África.
A primeira guerra contra Roma
No entanto, esses conflitos foram pequenos, se comparados às profundas
transformações que abalaram o Oriente na época em que Alexandre, o Grande,
fundou um império que se estendia até a Índia. Mas Cartago não tardou a se
envolver numa luta de importância histórica e mundial ao menos tão importante
quanto elas: as guerras contra Roma.
Desde -508, quando Roma era apenas uma das numerosas comunidades de
tamanho médio existentes na Itália, existia um tratado entre as duas cidades.
Em -348, foi assinado um novo acordo que regulamentava o comércio entre
as duas potências. Embora Roma se tivesse tornado bem mais poderosa, o
tratado favorecia claramente Cartago, simplesmente porque o comércio de
Roma era insignificante. Nas décadas seguintes, Roma teve uma asceno
fulminante, até se tornar a potência dominante em toda a Itália. Os interesses
próprios às duas potências aproximaram -se ainda em -293, quando o velho
inimigo de Cartago, Agátocles, conduziu uma campanha no sul da Itália.
492
África Antiga
Alguns anos mais tarde, Pirro, rei do Epiro, foi chamado à Itália para tentar
libertar da dominão romana as cidades gregas do sul da península, lideradas
por Taranto. Embora tivesse fracassado, Pirro foi convidado pelos gregos da
Sicília para ser seu protetor contra Cartago. Na tentativa de impedir essa
aliança, Cartago enviou uma enorme frota a Roma para encorajar os romanos
a continuarem a luta contra Pirro. Embora os cartagineses tenham sido bem
sucedidos, Pirro desembarcou na Sicília e obteve algumas vitórias, porém não
decisivas, antes de retomar à Grécia em -276. Até essa data, portanto, não
houve nenhum conflito importante entre Cartago e Roma. Contudo, uma
década depois, uma guerra entre elas traria a ambas as maiores perdas de que
se tinha notícia até então.
Embora esse conflito tivesse tido profundas consequências geopolíticas, é
quase certo que a sua causa foi relativamente insignificante e que nenhum dos
lados tinha objetivos precisos. Em -264 Roma aceitou a submissão de Messana,
que anteriormente tinha sido aliada de Cartago contra Siracusa. Os políticos
romanos na época estavam bastante seguros: ao que parece, eles acreditavam que
Cartago nao reagina e que as cidades gregas da Sicília seriam uma presa fácil.
Alguns também estimulavam, os temores dos romanos de que os cartagineses,
caso defendessem Messana, poderiam dominar a Ilia, região na qual, na
realidade, nunca estiveram interessados.
Cartago decidiu resistir à intervenção romana, pois isso significaria uma
mudança completa no equilíbrio de forças existente na Sicília durante um
século e meio e, sem dúvida, também porque a política romana lhes parecia
perigosamente ousada. A guerra que se seguiu (Primeira Guerra Púnica) durou
até -242 e causou enormes perdas a ambas as partes.
Contrariamente às expectativas, a frota cartaginesa não se revelou superior,
ainda que os romanas viessem a ter uma frota de igual porte em 261. As
vitórias navais dos romanos incluem Milas em -260, em que Cartago perdeu 10
mil remadores, e o cabo Ecnomo em -256. Em -255, porém, uma frota romana
naufragou durante uma tempestade ao largo do cabo Camarina, com 25 mil
soldados e 70 mil remadores. Posteriormente ocorreram outras derrotas em
ambos os lados e durante alguns anos a exaustão dos contendores fez diminuir
bastante as operações. Outro paradoxo marcou essa guerra: as legiões romanas,
que já constituíam a melhor infantaria conhecida, não conseguiram expulsar os
cartagineses da Sicília. Em -256 os romanos tentaram a tática de Agátocles e
desembarcaram um exército na África. Os cartagineses foram derrotados em
Adys (ou Oudna) e, para assegurar uma base de onde atacariam Cartago, as
legiões apoderaram -se de Túnis.
493
O período cartaginês
Contudo, Roma não conseguiu tirar proveito das revoltas que eclodiram entre
os Númidas, súditos de Cartago. Em -255 os cartagineses contrataram os serviços
de um experiente mercenário grego, o general Xantipo, que destruiu o exército
romano. A guerra terminou em -242, quando a frota de Cartago foi derrotada ao
largo das ilhas Aegates (Egadi). Esse revés interrompeu as comunicações entre
Cartago e a Sicília, e a paz foi assinada por exaustão. Cartago teve de renunciar
à Sicília e concordar com uma substancial indenização de guerra.
Aníbal e a segunda guerra com Roma
Em razão das dificuldades econômicas causadas pela guerra, Cartago precisou
adiar o pagamento dos mercenários, metade dos quais era de origem líbia. Eclodiu
então uma revolta na África, caracterizada por ferozes atrocidades cometidas por
ambos os lados. A sublevação envolveu cerca de 20 mil mercenários, liderados
principalmente por um líbio chamado Mathon, um de seus chefes mais capazes.
Os rebeldes controlaram Útica, Hippo Acra e Túnis, chegando a ameaçar a
própria Cartago. Estavam muito bem organizados, a ponto de cunhar suas
próprias moedas, as quais traziam a inscrição Libyon (“dos líbios”, em grego). A
intensidade da luta, que terminou em -237, confirmou a crueldade com que os
cartagineses tratavam os líbios.
Na mesma época, quando Cartago estava sem condições de se defender, os
romanos apoderaram -se da Sardenha, sem encontrar resistência. A indignação
diante dessa atitude sem dúvida sufocou qualquer oposição aos projetos de
Amílcar Barca, general que se havia distinguido na Sicília: colocar toda a Espanha
sob domínio direto de Cartago, que aentão controlava apenas as cidades
costeiras. Seu objetivo era duplo: explorar diretamente as minas espanholas,
compensando assim a perda dos lucros da Sicília, e organizar na Espanha um
exército que poderia enfrentar os romanos. Em menos de vinte anos, Amílcar
e seu genro Asdrúbal obtiveram o controle de mais da metade da península
Ibérica e criaram um exército de cerca de 50 mil homens. Em -221 Asdrúbal
foi substituído no comando do novo Império da Espanha pelo filho de Amílcar,
Aníbal. poucos indícios que confirmem a tese sustentada posteriormente
pelos romanos de que todo o empreendimento teria sido um projeto pessoal
dos bárcidas (como era chamada essa família) para se vingar de Roma, e de que
eles teriam agido sem o aval do governo de Cartago.
Em -220, preocupados com a recuperação cartaginesa, os romanos realizaram
manobras para impedir que Cartago estendesse ou consolidasse seu poder na
494
África Antiga
Espanha. Aníbal e seu governo desprezaram as ameaças e julgaram que, tendo
em vista as políticas aventureiras seguidas por Roma em -264 e -237, a guerra era
inevitável. Em -218 Aníbal cruzou o Ebro, dirigiu -se para os Alpes e desceu até
a Itália. Tal estratégia baseava -se na ideia de que Roma só poderia ser derrotada
em seu próprio solo e de que era necessário levar a guerra para a Itália a fim de
evitar uma invasão da África pelos romanos, uma vez que agora eles controlavam
o mar. Essa guerra (a Segunda Guerra Púnica) durou até -202, novamente com
enormes perdas no campo romano. Graças a seu gênio militar, Aníbal consolidou
a coesão de uma imponente força de combate, composta principalmente de
espanhóis, mas também de contingentes gauleses e africanos. Os cartagineses
conseguiram grandes vitórias no lago Trasimen (–217) e em Canas (-216), a
maior derrota que Roma sofrera até então. Contudo, Aníbal não podia destruir a
determinação do senado e do povo romano, nem a solidez da aliança das cidades
italianas que, no conjunto, permaneceram fiéis a Roma, apesar da devastação de
que foram vítimas durante anos. Tais cidades forneceram aos exércitos romanos
reservas de efetivos aparentemente inesgotáveis, que Aníbal jamais pôde igualar.
Enquanto na Itália Fábio ximo aplicava uma política defensiva,
impedindo que Aníbal exercesse novamente seu gênio numa batalha, a Espanha
era conquistada pelo jovem general romano Cipião, o Africano, em -206. Em
seguida, Roma preparou -se para atacar a África.
Os romanos foram ajudados nesse projeto pela situação que reinava na
Numídia. As tribos nativas estavam impregnadas da cultura cartaginesa há
muitos séculos. As maiores unidades políticas haviam -se desenvolvido com o
tempo, e as repetidas campanhas desses povos nas guerras de Cartago tinham
aumentado sua força e favorecido tal desenvolvimento. Sífax, chefe da maior
tribo númida, a dos Massesilos, cujo território se estendia de Ampsaga (Uadi
el -Kebir) a leste até Mulucca (Muluya) no oeste, afastou -se de Cartago em -213,
mas aliou -se novamente a ela em -208, quando se casou com a filha de um chefe
cartaginês. Em compensação, Gaia, chefe dos Massilos, comprimido entre os
Massesilos e o território cartaginês, ficou fiel a Cartago durante o período da
deserção de Sífax e seu filho Massinissa prestou excelente serviço na Espanha.
Com a vitória de Roma, Massinissa decidiu aliar -se ao partido aparentemente
mais forte e fez a paz com Cipião. Ao retornar à África, não pôde assumir a
chefia de sua tribo, mas organizou um exército privado e, após dois anos de
aventuras épicas, estava pronto para combater ao lado de Cipião quando ele
desembarcou. Massinissa desempenhou um papel importante nas primeiras
vitórias dos romanos em -203, antes que Aníbal fosse finalmente chamado de
volta da Itália. A última batalha ocorreu em Zama (Sab Biar) em – 202, quando
495
O período cartaginês
Aníbal foi vencido. Massinissa, que nesse meio tempo havia expulsado Sífax de
seu território, forneceu aos romanos um corpo de cavalaria de 4 mil homens, que
contribuiu de maneira decisiva para a vitória de Cipião. Nos termos do tratado de
paz, Cartago teve de se desfazer de sua frota; seu território na África ficou desde
então limitado a uma linha que ia aproximadamente de Thabraca (Tabarca)
a Thaenae. Além disso, teve de restituir a Massinissa todos os territórios que
anteriormente pertenciam a seus ancestrais, origem de numerosas disputas.
Finalmente, os cartagineses ficaram proibidos de fazer a guerra fora da África,
e mesmo em seu próprio solo sem a autorização de Roma.
Massinissa e o reino da Numídia
Cartago sobreviveu ainda durante meio século, mas esse período da história
do Magreb caracterizou -se essencialmente por um rápido desenvolvimento
econômico e social da maior parte das tribos da costa do Mediterrâneo. Existe
um paradoxo histórico, uma vez que essa evolução, que teve por consequência
uma expansão sem precedente da cultura cartaginesa, deveu -se principalmente
ao pior inimigo de Cartago, Massinissa. Personagem lendário de um vigor
físico prodigioso e muito rico em talentos naturais, havia sido educado em
Cartago e sem dúvida calculou corretamente o uso que podia fazer da civilização
cartaginesa em seu próprio território. Sua personalidade era tão forte que após
-206, em vez de ser considerado como um simples desertor pelos romanos,
conseguiu estabelecer estreitos vínculos de amizade com vários dos políticos
mais influentes de Roma. Como recompensa pelo papel que desempenhou em
Zama, recebeu a parte oriental a mais fértil do reino de Sífax e passou a
governar, a partir de Cirta (Constantina), um território que se estendia do oeste
dessa cidade até a nova fronteira de Cartago. A região menos desenvolvida,
localizada entre o reino de Massinissa e o Muluya, foi deixada aos filhos de Sífax.
Segundo vários escritores da Antiguidade, foi graças a Massinissa que a
produção agrícola se desenvolveu substancialmente na Numídia. Estrabão afirma
ter sido ele o responsável pela transformação dos nômades em agricultores.
Como toda generalização, esta é exagerada. Mas é certo que, embora a criação
de gado ainda fosse a atividade dominante, a quantidade disponível de cereais
aumentou de forma sensível, deixando um excedente para exportação. Esses
progressos foram de grande importância para o desenvolvimento ainda maior
que a região alcançaria posteriormente sob o domínio de Roma. O comércio dos
outros produtos continuava limitado e as únicas moedas cunhadas eram peças
496
África Antiga
de bronze e de cobre. Cirta parece ter -se tomado uma verdadeira cidade, ainda
que pareça exagerado atribuir -lhe 200 mil habitantes sob o reinado do filho de
Massinissa, como se fez. Sua arqueologia é mal conhecida, mas o aspecto da
cidade deve ter sido quase inteiramente cartaginês. Encontraram -se ali estelas
púnicas em número bem maior do que em qualquer outro sítio africano, exceto
a própria Cartago. É fora de dúvida que a língua cartaginesa passou a ser cada
vez mais utilizada na Numídia e na Mauritânia.
A destruição de Cartago
Nessa época, todo aliado de Roma era de fato um vassalo, cuja primeira
obrigão era obedecer à vontade dos romanos e evitar toda ão que lhes
pudesse provocar suspeitas, com ou sem razão. A visão política de Massinissa é
demonstrada pela maneira como percebia tal situação. Durante cinquenta anos,
ele exerceu pressão crescente sobre as possessões cartaginesas e provavelmente
esperava que no final a própria Cartago caísse em suas mãos, com a aprovação
de Roma. No início, os romanos não tinham interesse em enfraquecer ainda mais
Cartago, também sua vassala, e até -170 as conquistas territoriais do rei númida
foram pequenas. A partir de -167, contudo, Roma empreendeu uma política
cada vez mais agressiva, não apenas na África mas também em outros lugares.
Os romanos favoreciam Massinissa, que os levava a desconfiar de Cartago e que,
além disso, jamais deixava de lhes fornecer os homens e as provisões solicitadas.
Graças a essa política, Massinissa incorporou a seu reino os emporia situados
no golfo de Gabes e uma boa parte do vale do Bágrada (Mejerda). Gradualmente,
os senadores romanos acabaram por considerar, como Catão, o Ancião, que
Cartago deveria ser destruída. Na verdade, embora Cartago demonstrasse
uma notável recuperação após a Segunda Guerra Púnica, qualquer temor de
vê-la amear Roma novamente era irracional. Propôs -se aos cartagineses
abandonar sua cidade, retirando -se para o interior, ou enfrentar a guerra e suas
consequências. Como eles preferissem a última alternativa, um exército romano
desembarcou na África em -149. Apesar da esmagadora superioridade dos
adversários, Cartago resistiu até -146. Alguns líbios ainda continuaram a apoiá-
-la, e o próprio Massinissa ressentiu -se da ação romana, que o privou de sua mais
cara esperança; contudo, teve de aquiescer. A maior parte das cidades fenícias
e cartaginesas mais antigas, como Útica, Hadrumeto, Tapso, etc., aderiu aos
romanos, escapando assim de uma destruição inevitável. A própria Cartago foi
arrasada e seu sítio declarado maldito, numa cerimônia solene que simbolizava
497
O período cartaginês
o temor e o ódio que Roma havia acumulado durante um século em face do
poder que mais bravamente resistiu à sua dominação no mundo mediterrânico.
Os Estados sucessores de Cartago
Numídia
Entretanto, foi necessário esperar mais de um século até que Roma suplantasse
realmente Cartago enquanto potência política e cultural dominante no Magreb.
Por diversas razões (ver Capítulo 20), os romanos apropriaram -se apenas de
uma pequena parte do nordeste da Tunísia, após a destruição de Cartago, e
mesmo assim não se ocuparam mais desse território. No restante da África do
Norte, Roma reconheceu uma série de reinos vassalos, que de maneira geral
conservaram sua própria autonomia. A influência cultural de Cartago persistiu
e a mesmo aumentou nesses reinos, em virtude da prosperidade de que
continuaram a gozar as antigas colônias costeiras e também como consequência
da chegada de numerosos refugiados durante os últimos anos da guerra entre
Cartago e Roma. A língua fenícia, em sua forma mais recente, conhecida como
neopúnica, propagou -se como, jamais ocorrera antes. Conta -se mesmo que os
romanos enviaram aos reis númidas os livros recuperados quando as bibliotecas
de Cartago foram destruídas. É provável que alguns desses livros, como o tratado
de agricultura de Magon, tivessem valor prático.
Nenhum dos reis posteriores foi tão poderoso como Massinissa, mas quase
não dúvida de que, no essencial, prosseguiu o desenvolvimento dos reinos
da Numídia e da Mauritânia. Deve -se ressaltar que, de uma certa forma, os
nomes desses dois reinos permaneceram como simples expressões geográficas,
pois muitas tribos que habitavam a região conservaram durante longo tempo
sua identidade própria sob a dominação romana, e mesmo depois, continuando
precária a unidade política.
Tal situação foi agravada pela poligamia que as famílias reais praticavam
(diz -se que Massinissa deixou dez filhos) e posteriormente pela interferência
de Roma. Massinissa morreu na Numídia em -148 com a idade aproximada
de 90 anos e foi sucedido por Micipsa (-148 a -118). Durante este reinado,
o comércio da Numídia com Roma e a Itália tornou -se mais ativo, havendo
notícias de grande número de negociantes italianos em Cirta. Após a morte de
Micipsa, o reino foi governado conjuntamente por dois de seus irmãos e por
Jugurta, neto de Massinissa, que era protegido pelo político romano Cipião
Emiliano, tal como seu avô havia sido apoiado por Cipião, o Africano. Jugurta
498
África Antiga
era um homem de grande vigor e pensava em firmar -se como único soberano.
De início, os romanos tentaram dividir oficialmente o território, mas quando
Jugurta tomou Cirta de um de seus rivais e matou todos os residentes italianos,
Roma declarou -lhe guerra. Jugurta organizou uma vigorosa resistência infligindo
humilhações militares a Roma, até ser traído por Bocchus, rei da Mauritânia.
Nessa oportunidade, Roma colocou no trono um outro membro da dinastia
de Massinissa, Gauda. Este foi sucedido por seu filho Hiempsal, que, após ser
exilado durante pouco tempo por um rival (entre -88 e -83), reinou até -60.
Hiempsal foi o autor de um livro sobre a África, escrito em língua púnica, e
provavelmente continuou a obra civilizadora de sua dinastia.
Em seus últimos anos como Estado independente, a Nudia envolveu -se
nas guerras civis que destruíram a república romana. O filho de Hiempsal,
Juba (-60 a -46), que na juventude fora publicamente insultado por Júlio
sar, uniu -se à causa de Pompeia em -49, prestando -lhe grandes serviços na
África; diz -se mesmo que, se os pompeanos vencessem, ele seria o responvel
pela província romana da África. Juba suicidou -se as a viria desar em
Tapso, e desde essa época Roma passou a administrar diretamente a Numídia.
Mauritânia
Admite -se geralmente que o reino da Mauritânia se desenvolveu mais
lentamente que a Numídia; mas é possível que essa opinião seja decorrência de
falta de informações. É certo que o maco montanhoso do Atlas continuou o
fechado à inflncia fecia como mais tarde à cultura romana, mas a vida sedentária
expandiu -se um pouco nas áreas férteis, como o vale do Muluya e a região ao longo
da costa atlântica. Foi nas zonas montanhosas que diversas tribos conservaram sua
identidade própria durante a dominação romana, e mesmo depois.
O nome dos mouros é citado desde a expedição da Sicília em -406, na
revolta de Hanão depois de -350 e na invasão romana da África em -256. Um
rei mouro auxiliou Massinissa numa época crítica de sua vida, mas as tropas
mouras tamm combateram sob as ordens de Aníbal, em Zama. Mais tarde,
Bocchus I, após ter ajudado Jugurta a lutar contra Roma, traiu o rei númida,
recebendo em recompensa um território muito vasto, situado a leste do Muluya.
Ao que parece, na gerão seguinte a região foi dividida. Bocchus I governava
os territórios do leste e, associado ao aventureiro italiano P. Sittius, combateu
contra Juba, a favor de César. Este tinha também o apoio de Bogud II, que
reinava a oeste do Muluya. Ambos os monarcas foram recompensados por
César e, nessa ocasião, Bocchus ampliou suas possessões à custa da Nudia.
499
O período cartaginês
Alguns anos depois Bogud II apoiou Marco Antônio contra Otávio na guerra
civil romana e foi expulso de seu território por Bocchus II, que apoiava Otávio.
Bocchus morreu em -33 e Bogud foi ferido em -31, ficando toda a Mauritânia
sem soberano. Contudo, o imperador Augusto decidiu que não havia chegado
o momento de Roma governar diretamente o país, acreditando talvez que as
tribos montanhesas criassem sérias dificuldades militares. Em -25, ele colocou
no trono Juba, filho do último rei da Numídia, que vivia na Itália desde a
idade de 4 anos, e para quem havia sido reconstituído temporariamente o
reino da Numídia, de -30 a -25. Juba governou durante mais de quarenta
anos como leal “cliente” de Roma e em certa medida realizou na Mauritânia
o que Massinissa havia feito na Numídia. Tratava -se de um homem com
interesses fundamentalmente paficos; fortemente impregnado da cultura
helênica, escreveu numerosos livros (atualmente desaparecidos) em grego.
Sua capital, Iol, rebatizada Cesareia (Cherchell), e provavelmente sua segunda
capital, Volubilis, tornaram -se durante seu reinado verdadeiras cidades. Depois
dele reinou seu filho Ptolomeu a+40, data em que o imperador Gaio, que
o havia chamado a Roma, mandou executá -lo, por um motivo que nos é
desconhecido. Essa medida, que prenunciava a transformão da Maurinia
em província romana, desencadeou uma revolta que durou vários anos. Em +44
a Mauritânia foi dividida em duas províncias e daí em diante todo o Magreb
foi colocado sob a dominão direta de Roma.
A herança fenícia no Magreb
De maneira geral, o período de independência dos reinos da Numídia e da
Mauritânia caracterizou -se pela elaboração e consolidação de uma cultura de
origem líbia e fenícia, em que o segundo elemento desempenhou um papel
preponderante, embora representasse, como é natural, apenas uma minoria da
população. Os progressos da agricultura na Numídia, assinalados anteriormente,
produziram -se em regiões relativamente distantes, onde as condições geográficas
eram favoráveis. À exceção de Cirta e mais tarde de Iol -Cesareia, o crescimento
das cidades continuou sendo pequeno, mas em certas regiões foi suficiente para
lançar as bases da considerável urbanização ocorrida na época romana. O vigor
dessa cultura mista é ilustrada pelo fato de as inscrições do século II da Era
Cristã ainda serem redigidas em neopúnico. Além disso, no mesmo período, o
termo sufete era, pelo que sabemos, usado em pelo menos trinta cidades, tão
distantes uma da outra como Volubilis, no oeste marroquino, e Leptis Magna, na
500
África Antiga
Líbia. A sobrevivência da religião fenício -líbia sob a dominação romana também
é um fato de múltiplas significações. A existência de uma unidade cultural
superficial no Magreb da época é confirmada pela misteriosa escrita líbia. Essa
escrita parece ter -se desenvolvido durante o século II antes da Era Cristã (ela
é encontrada em duas inscrições em Dougga); foi depois empregada em estelas
no tempo dos romanos (provavelmente imitando o costume púnico), das quais
se encontram várias no Marrocos, na fronteira entre a Argélia e a Tunísia e
na Líbia. Após a conquista romana, o líbio e o neopúnico foram substituídos,
enquanto línguas escritas, pelo latim; no fim do período romano continuou
comum uma forma oral do púnico, mas é impossível determinar em que medida
e onde continuou a se falar o líbio. A semelhança observada entre a escrita líbia
e o alfabeto tuaregue dos tempos modernos continua inexplicada.
No plano da história geral, a fundação de colônias fenícias no Magreb constitui
o único exemplo de extensão, no Mediterrâneo ocidental, das culturas mais antigas
originárias do Oriente Próximo e Médio, às quais sobreviveria Cartago. Esse
fenômeno, juntamente com a expansão grega para o Ocidente, associa -se ao
movimento mais geral que levou todo o oeste do Mediterrâneo e de certa forma
também o noroeste da Europa, até então habitado por diferentes povos tribais,
para a esfera de influência das civilizações do mar Egeu e do Oriente. Quanto
à história da África propriamente dita, o período fenício marca a entrada do
Magreb na história geral do mundo mediterrânico e o estreitamento de seus laços
com a costa norte e leste. Os fatores geográficos, que, pelo menos até os tempos
modernos, associavam o Magreb ao mundo mediterrânico, foram reforçados.
Devido à escassez de fontes históricas disponíveis, será preciso esperar novas
descobertas arqueológicas para conhecer de modo mais preciso a evolução da
cultura bia auctone e a maneira como reagiu à penetração da civilização fenícia
3
.
3
3 Nota do Comitê Cientíco Internacional:
Na próxima edição, pretende -se fazer um relato mais preciso do legado e do papel da Líbia durante
o período abordado neste volume. Está previsto um simpósio que tratará da contribuição da Líbia na
Antiguidade clássica, com referência especial ao papel da Cirenaica durante o período helenístico, da
Líbia no período fenício e da civilização dos Garamantes.
C A P Í T U L O 1 9
501
O período romano e pós -romano na África do Norte
Após a destruão de Cartago em -146 e a redão de seu território à
condição de província romana, o destino da África do Norte ficou nas mãos
de Roma e dos reinos locais. Seria útil dedicar um capítulo especial ao estudo
desses Estados autóctones desde o advento dos reinos númidas até o final do
reinado do último soberano da Mauritânia em +40. A partir dessa data, toda a
África do Norte se tornou romana, permanecendo assim até a invasão vândala.
Contudo, nem a ocupão do ps e, principalmente, nem o que na
linguagem do colonialismo é chamado eufemisticamente de “pacificação foram
conseguidos com facilidade. O avanço romano em direção ao sul e ao oeste,
a partir do antigo território de Cartago e do antigo reino de Juba I, sofreu
uma resistência obstinada. Infelizmente, possmos apenas os registros dos
episódios mais importantes da luta. Após o estabelecimento e a consolidação
da dominão romana, a unidade ecomica e cultural que Roma havia
laboriosamente construído na África do Norte acabou sendo minada por uma
resistência constante, que assumiu aspectos não militares mas tamm
políticos, étnicos, sociais e religiosos. Tudo que sabemos sobre tal resistência
e tais revoltas é relatado pelas fontes literárias ou epigráficas segundo o ponto
de vista romano, sendo as dificuldades da análise histórica agravadas ainda por
certas abordagens adotadas pela historiografia moderna: no início do culo,
principalmente, e até um período muito recente, os historiadores não puderam
O período romano e pós -romano
na África do Norte
PARTE I
O período romano
A. Mahjoubi
502
África Antiga
ou não quiseram desembaraçar -se de concepções influenciadas em maior ou
menor grau pela ideologia colonial dominante
1
.
O caráter específico das guerras africanas configura -se principalmente na
fase da conquista: uma longa série de triunfos celebrados pelos generais romanos
contra os mouros, Musulâmios, Getulos e Garamantes no último quartel do
século I antes da Era Cristã mostra bem que as populações indígenas nunca
foram totalmente subjugadas apesar das vitórias romanas
2
.
A mais conhecida dessas guerras é a do númida Tacfarinas, que se prolongou
durante oito anos, sob o reinado de Tibério, e se estendeu a todas as fronteiras
meridionais da África do Norte, desde a Tripolitânia a a Mauritânia.
Frequentemente essa guerra é apresentada pelos historiadores modernos como
uma luta entre a civilização e o mundo bárbaro, uma tentativa da população
indígena nômade e serninômade de impedir o avanço romano e o processo de
sedentarização, rejeitando desse modo os benefícios de uma forma superior de
civilização e de uma ordem social melhor
3
. No entanto, as reivindicações que
Tácito atribuiu a Tacfarinas dão uma ideia mais clara das causas profundas da
resistência dos habitantes indígenas. O chefe númida recorreu às armas para
forçar o imperador todo -poderoso, a reconhecer o direito de seu povo à terra, pois
a conquista romana fora imediatamente seguida do confisco de todas as terras
férteis. Os campos dos Númidas sedentários tinham sido devastados; as áreas
tradicionalmente percorridas pelos nômades eram constantemente reduzidas
e limitadas; os veteranos e outros colonos romanos e italianos instalavam-
-se por toda parte, a comar pelas regiões mais ricas do país; companhias
coletoras de impostos e membros da aristocracia romana, senadores e cavaleiros,
apropriavam -se de vastos domínios. Enquanto seu país era assim explorado,
todos os autóctones nômades e todos os habitantes sedentários que não viviam
nas raras cidades poupadas pelas guerras sucessivas e pelas expropriações foram
reduzidos a uma condição miserável ou expulsos para as estepes e para o deserto.
Portanto, sua única esperança era a resistência armada, e seu principal objetivo,
a recuperação das terras.
As operações militares continuaram durante os dois primeiros séculos da
Era Cristã. As investidas dos romanos para o sudoeste, respondia o alvoroço
das tribos, que se reuniam e se dispersavam, do vale do Muluya a Djebel Amur
e Uarsenis. Estabelecendo -se facilmente nas faixas costeiras e a nordeste, os
1 Sobre isso, ver a introdução ao trabalho de M. BÉNABOU, 1976, principalmente pp. 9 -15.
2 ROMANELLI, P. 1959. p. 175 et seq.
3 ROMANELLI, P. 1959. p. 227 et seq.
503
O período romano e pós -romano na África do Norte
 . As províncias romanas da África do Norte no nal do século II da Era Cristã (segundo A. Mahjoubi, 1977).
504
África Antiga
romanos avançaram por etapas na parte meridional da moderna Tunísia, bem
como nos Altos Planaltos e no Atlas saariano. Sob os imperadores Júlio -Cláudios,
a fronteira do território conquistado estendeu -se de Cirta no oeste até Tácape
no sul, incluindo Ammaedara, que era o quartel -general da III Legião Augusta,
Thelepte e Capsa. Sob os Flávios, a legião estabeleceu -se em Theveste e a
fronteira prolongou -se até Sitifis; a região dos Nemencha foi anexada durante
o governo de Trajano, e em +100 fundou -se a colônia de Timgad. Em 128,
finalmente, a legião estabeleceu uma guarnição permanente em Lambèse e
foram abertas numerosas estradas nos montes Aures, defendidas contra as tribos
por um acampamento militar situado em Gemellae. Entre as províncias romanas
e as regiões desérticas localizadas ao sul, para onde foram confinadas as tribos,
criou -se uma zona fronteiriça o limes progressivamente deslocada para o
sudoeste e que era formada por uma rede de 50 a 100 km de largura constituída
de trincheiras e rotas defendidas por uma cadeia de postos militares e pequenos
fortes. As pesquisas arqueológicas aéreas feitas por J. Baradez revelaram, entre
outras coisas, pedaços de um fossatum circundado por uma pequena encosta ou
muro e protegido, a intervalos irregulares, por torres quadradas ou retangulares.
A fim de controlar os movimentos das tribos nômades e impedir que pilhassem
as áreas agrícolas e as caravanas que se dirigiam para o norte, em direção às
cidades comerciais dos golfos de Gabes e Sidra, os severos tinham estabelecido,
no final do século II, uma série de fortins na frente do limes propriamente dito,
como Dimmidi (Messad), Cidamus (Gadames) e Golas (Bu Njem). Dessa
maneira, ficaram eficazmente protegidos durante os dois primeiros séculos da
Era Cristã os limites meridionais das províncias africanas.
Contudo, Roma não tinha poderes para eliminar radicalmente a resistência
dos berberes e nunca conseguiu manter sob controle permanente os nômades do
sul e do oeste. Apesar dos esforços de Trajano e Adriano e da firme orientação
política seguida por Sétimo Severo nas fronteiras da Tripolitânia, a crise do século
III interrompeu muito cedo esse empreendimento. O deserto, a mobilidade que
os camelos conferiam aos nômades, a facilidade das comunicações de oeste a
leste ao longo da cadeia do Atlas saariano asseguravam aos irredutíveis berberes
grande margem de manobra. A propósito, as tribos que afinal conseguiram
triunfar sobre a dominação de Roma obtiveram sua reserva de combatentes na
Mauritânia Tingitana e, mais tarde, nas vastas extensões desérticas do interior da
Tripolitânia. Até o primeiro quartel do século III, o centro e o sul do país eram
defendidos dos atacantes locais pela III Legião Augusta, cujo efetivo teórico de
5 mil a 6 mil homens era reforçado, quando necessário, por grande quantidade
de auxiliares. Calcula -se que o número máximo de soldados tenha atingido cerca
505
O período romano e pós -romano na África do Norte
 . Timgad (antiga
amugadi, Argélia): Avenida e
Arco de Trajano.
F . Mactar (antiga
Mactaris, Tunísia): Arco de
Trajano, entrada do fórum.
506
África Antiga
de 25 mil a 30 mil no século II; de qualquer modo, não se trata de um número
elevado, embora devam ser considerados os veteranos ainda mobilizáveis para
o serviço militar que se instalavam nas terras cultiváveis ao longo do limes.
Em caso de necessidade, transferiam -se tropas das legiões instaladas em outras
províncias do Império, principalmente na Espanha, para defender a Mauritânia
Tingitana. Para a manutenção da lei e da ordem, o procônsul da África podia
recorrer ainda à XIII coorte urbana estacionada em Cartago, bem como a
um pequeno corpo de cavalaria. A repressão à pirataria e o patrulhamento
das costas eram confiados à frota de Alexandria. De início, a composição da
legião africana era muito variada, mas posteriormente quase todos os recrutas
provinham da população local. Contudo, havia alguns corpos orientais – a cohors
Chalcidenorum, os arqueiros palmirenses compostos de sírios acostumados às
guerras do deserto.
A organização administrativa e os problemas militares
No dia 13 de janeiro de -27, Otávio, que três dias mais tarde recebeu o título
de Augusto, dividiu com o Senado a administração das províncias do Império,
de acordo com o princípio clássico. A África, conquistada muito tempo,
pacificada e ligada à classe senatorial por múltiplas tradições, tanto econômicas
quanto políticas, ficou entre as províncias que seriam administradas pelo Senado.
Sua fronteira ocidental passava por Ampsaga Cuicul Zarai –Hodna, e no
sudeste seu território incluía uma planície costeira na Tripolitânia, prolongando-
-se até os altares dos Filenos, que marcavam a fronteira com a Cirenaica. Essa
provincia Africa, que também foi designada pelo epíteto Proconsularis, agrupava
as duas províncias que Roma tinha sucessivamente estabelecido na África do
Norte: a que correspondia ao território púnico conquistado em -146, conhecida
como Africa Vetus, e a que César havia criado após sua campanha africana contra
os pompeanos e seu aliado, o rei Juba I da Numídia, chamada de Africa Nova.
Somavam -se a esses territórios as quatro colônias de Cirta, que César havia
cedido ao aventureiro italiano P. Sittius.
Como na República, durante o período imperial o Senado romano continuou
a nomear um governador para a África. Tratava -se de um funcionário de
posição muito elevada, pois era escolhido entre os dois mais antigos ex -cônsules
presentes em Roma no momento do sorteio das províncias; ele usava, portanto,
o título de procônsul e, a menos que houvesse uma prorrogação excepcional,
ocupava sua Junção em Cartago apenas por um ano. Além de suas prerrogativas
507
O período romano e pós -romano na África do Norte
judiciárias, que faziam do procônsul o juiz supremo da província, tanto nas
ações criminais quanto nas de natureza civil, ele era investido de poderes
administrativos e financeiros: supervisionava a administração e as autoridades
municipais, em princípio autônomas, e comunicava -lhes as leis e os regulamentos
imperiais; dirigia a execução dos principais trabalhos públicos e sancionava as
despesas; exercia o controle supremo sobre o departamento responsável pelo
abastecimento de Roma com trigo africano e sobre o sistema fiscal, cujos lucros
eram destinados ao aerarium Saturni, o tesouro do Senado. Era assessorado
por dois legados propretores, um residente na própria Cartago e outro em
Hipona, e por um questor, responsável pela administração financeira. Além
disso, como já foi mencionado, dispunha de um pequeno contingente de tropas,
de aproximadamente 1600 homens, para manter a lei e a ordem.
O imperador podia intervir nos negócios da província senatorial, diretamente
ou, como geralmente ocorria, pela presença de um procurador equestre,
funcionário imperial encarregado da gestão dos vastos domínios imperiais e da
coleta de determinados impostos indiretos, como a vicesima hereditatium, que
alimentava o tesouro militar controlado pelo imperador. O procurador também
tinha poder judiciário, limitado em princípio ao julgamento de litígios fiscais.
A partir de 135, ele passou a ser assessorado por um procurator Patrimonii para
a administração dos domínios e por um procurator IIII Publicorum Africae para
a administração das rendas fiscais. Esses funcionários da administração imperial
frequentemente entravam em conflito com o procônsul, embora não haja provas
de que tivessem instruções para fiscalizá -lo.
No entanto, ao contrário do que ocorria na maior parte das províncias
senatoriais, a África Proconsular não podia ficar desguarnecida de tropas.
Embora a área situada a nordeste, que correspondia à antiga proncia da
Africa Vetus, não apresentasse problemas, o mesmo não ocorria nas regiões
meridionais, onde as autoridades romanas precisavam de uma guarnição militar
para assegurar a defesa e estender gradualmente a zona pacificada”. Essas
tropas, constituídas principalmente pela III Legião Augusta, eram comandadas
por um legado imperial subordinado ao procônsul e que, portanto, conservava
os poderes militares dos governadores republicanos responveis perante o
Senado. Contudo, tal situação não podia durar indefinidamente sem suscitar a
desconfiança do imperador. E isso não tardou a acontecer. Calígula, no âmbito
de uma política geral que visava limitar os poderes dos governadores e diminuir
a autoridade e a autonomia do Senado, efetuou uma importante mudança de
ordem político -militar na organização da África Proconsular: o comando militar
foi separado do governo civil, o que levou à criação – se não de jure, pelo menos
508
África Antiga
de facto do território militar da Numídia, sob a autoridade do legado que
comandava a III Legião Augusta. Desde +39, o status do oficial encarregado desse
comando especial deve ter sido intermediário entre o dos legados governadores
de províncias e o dos que representavam os generais das legiões
4
.
No entanto, a situação não estava muito definida e inevitavelmente suscitou
conflitos de competência e autoridade entre o procônsul e o legado da legião.
Sétimo Severo acabou por regularizá -la, elevando o território militar à dignidade
de província: a província da Numídia, provavelmente criada entre +198 e +199
5
.
Ela era administrada pelo legado da legião, também chamado praeses, que era
nomeado e transferido diretamente pelo imperador. Sua fronteira ocidental
seguia a margem esquerda do Ampsaga (Uadi el -Kebir), passava a oeste de
Cuicul e Zarai, cortava a planície do Hodna e descia para o sul na direção de
Laghouat. A fronteira oriental ia do noroeste de Hipona ao oeste de Calama,
seguia a margem direita do Oued Cherf, passava a oeste de Magifa e avançava
através da margem noroeste do chott el -Djerid.
Entre o Ampsaga e o Atlântico estendia -se o reino da Mauritânia, que o
rei Bocchus, o Jovem, havia legado, desde -33, ao Império Romano
6
. Otávio, o
futuro Augusto, aceitou a doação e aproveitou para instalar no país onze colônias
de veteranos; em -25, porém, entregou o reino a Juba II, que foi sucedido por
seu filho Ptolomeu em +23. É provável que Otávio prudentemente – pensasse
que a ocupação romana era prematura e que se tornava necessário preparar o
caminho através da intervenção de chefes locais. Em +40, julgando que havia
chegado o momento para a administração direta, Calígula mandou assassinar
Ptolomeu
7
. Finalmente, no final de +42, Cláudio decidiu organizar as duas
províncias da Mauritânia: Cesariana a leste e Tingitana a oeste, separadas pelo
Mulucca (Muluya). Como a Numídia, as duas províncias mauritanas ficaram sob
a autoridade direta do imperador e eram governadas por simples procuradores
equestres, um residindo em Iol -Cesareia e o outro provavelmente em Volubilis,
onde comandavam as tropas auxiliares e exerciam poderes civis e militares.
Até o reinado de Diocleciano não houve mudanças importantes na organização
militar e administrativa das províncias africanas. Embora sofresse menos do que
outras províncias, a África não podia escapar das repercussões da crise geral
4 BÉNABOU, M. 1972. pp. 61 -75.
5 PFLAUM, H. G. 1957. pp. 61 -75.
6 ROMANELLI, P. 1959. p. 156 et seq.
7 CARCOPINO, J. 1958, p. 191 et seq.; id. 1948. pp. 288 -301; ROSTOVTZEV, M. I. 1957. p. 321 et
seq.; KOTULA, T. 1964. pp. 76 -92.
509
O período romano e pós -romano na África do Norte
que afetava o mundo romano e que se revestia de múltiplos aspectos político,
econômico, religioso e moral. A crise era uma ameaça potencial no fim do
período Antonino e a situação não apresentou melhoras com as transformações
da época dos Severos. De 238 em diante as condições se deterioraram até
irromper uma crise de violência alarmante no final do século III. Na África
do Norte, o declínio do poder romano se anunciava nos ataques das tribos
mouras, retomados com renovado vigor entre 253 e 262, e novamente sob o
reinado de Diocleciano
8
. Gradualmente, a autoridade imperial foi minada pelo
crescente desequilíbrio entre as classes sociais e pelas pressões da prolongada
crise financeira e econômica em províncias até então prósperas. No caso da
província proconsular e da Numídia, os efeitos dramáticos e sub -reptícios da
crise se fizeram sentir durante o século II e o primeiro quartel do século III.
Devem -se acrescentar a esse quadro as conseqncias das usurpações e da
anarquia militar. Desse modo, o poder de Roma desagregou -se em numerosos
reinados sucessivos ou concomitantes.
Contudo, o Império reagiu contra a crise, a tempo de se salvar. No reinado
de Galiano, uma ão multiforme, progressiva e empírica, englobou todos
os domínios, transformou o exército e o comando, reformou o governo e a
administração das províncias e se estendeu à política social, à religião e à mística
imperial. Essa foi a primeira etapa de uma obra de restauração que se desenvolveu
com Aureliano e Probo e acabou por sistematizar -se nas profundas reformas de
Diocleciano. Finalmente, as inovações de Constantino, que criaram um mundo
novo, de alguma forma constituíram uma síntese coerente dos sucessos e das
falhas dessas reformas, assim como das tendências religiosas da época.
A separação dos poderes civis e militares foi um dos traços dominantes da
administração provincial no Baixo Império e realizou -se progressivamente entre
o reinado de Galiano e o de Constantino, que lhe deu sua forma definitiva e
sistemática.
A remodelação do sistema militar na África do Norte tornou -se necessária
quando a lego africana, a III Augusta
9
, foi dissolvida sob Gordiano III.
Finalmente, o comando foi confiado ao conde da África, cuja autoridade se
estendia às tropas de todas as províncias africanas. O exército do século IV era
muito diferente do que existia no Alto Império; os ataques das tribos mouras
forçaram a organização de um exército móvel, uma força de ataque sempre pronta
8 Ver, por último, BÉNABOU, M. 1976. p. 218 et seq. e p. 234 et seq.
9 BÉNABOU, M. 1976. p. 207 et seq., e, para a reconstituição da legião sob o reino de Valeriano, p. 214
et seq.
510
África Antiga
a intervir rapidamente nas zonas de insegurança. Tal exército era composto de
unidades de infantaria legionária e de destacamentos de cavalaria recrutados
principalmente entre os camponeses romanizados que viviam na vizinhança
dos campos. Contudo, o serviço militar tornou -se gradualmente uma obrigação
hereditária e fiscal, o que inevitavelmente prejudicava o valor dos contingentes.
Além desse exército móvel, considerado tropa de elite, havia os limitanei,
soldados -camponeses aos quais eram distribuídos os lotes de terra situados no
limes. Eles eram dispensados do pagamento de impostos, mas em contrapartida
deviam proteger a fronteira e repelir todas as incursões das tribos. Como os
do oriente, os limitanei da Mauritânia Tingitana organizavam -se em unidades
tradicionais alas, coortes –, mas todos os das outras províncias africanas se
dividiam por setores geográficos, cada um colocado sob as ordens de um Praepositus
limitis. Diversos documentos arqueológicos, encontrados principalmente no
setor oriental do limes, mostram que os camponeses -limitanei agrupavam -se
em torno de fazendas fortificadas e viviam da terra, tendo frequentemente
introduzido a irrigação por canais. Contribuíram assim para o desenvolvimento
de colônias agrícolas e para o povoamento das regiões limítrofes do Saara e
transformaram o limes mais numa área característica de contatos comerciais e
culturais do que numa linha de separação entre as províncias romanas e a parte
independente do país, que continuava berbere. Isso explica por que a civilização
romano -africana e o cristianismo puderam atingir regiões fora do alcance da
administração direta de Roma. Deve -se acrescentar que o governo romano
sempre manteve relações com os chefes tribais, que em troca de subsídios e
da concessão de uma investidura imperial reconhecendo seus poderes locais
muitas vezes concordavam em fornecer contingentes destinados à guarda do
limes.
Paralelamente às reformas militares, modificou -se radicalmente a organização
territorial das proncias. Contudo, sabe -se agora que a reorganização foi
gradual, realizando -se de acordo com as necessidades e condões de cada
província. A fim de reforçar a autoridade imperial e ao mesmo tempo diminuir
a do procônsul, cujo poder em geral fazia o jogo dos usurpadores, e ainda
para aumentar os recursos fiscais destinados a enfrentar as ameaças exteriores,
a África proconsular foi dividida em três províncias autônomas: ao norte, a
Zeugitana, ou província Ptoconsular propriamente dita, que se estendia ao
sul até uma linha que ligava Ammaedara a Pupput, perto de Hammamat; a
oeste, englobava Calama, Thubursian Numidarum e Theveste. No entanto, o
procônsul de Cartago ainda era um funcionário importante. Era um clarissimus,
que, após sua saída do cargo, geralmente chegava ao ápice da hierarquia consular
511
O período romano e pós -romano na África do Norte
 . As províncias romanas da África do Norte no nal do século IV da Era Cristã ( A. Mahjoubi, 1977).
512
África Antiga
e se colocava entre os illustres; não raro, esses procônsules do século IV tinham
origem africana. Eram sempre assessorados por dois legados, frequentemente
unidos por laços familiares e que residiam um em Cartago e o outro em Hipona.
O procônsul mantinha suas prerrogativas judiciais e administrativas, mas a
supervisão dos negócios municipais era exercida de forma cada vez mais tirânica
e o trabalho de administração tendia a complicar -se devido à proliferação de
departamentos e funcionários responsáveis perante o procônsul e seu legado.
Destacada da Proconsular, a proncia Bysacena estendia -se da linha
Ammaedara -Pupput aa entrada de Tácape. A oeste, incluía as regiões de
Mactar, Sufetula, Thelepte e Capsa. Contudo, no sul, os postos de guarda do
limes não ficavam sob a autoridade do governador da província de Bysacena,
que, como a província Proconsular, era desprovida de tropas; portanto, os postos
situados perto do chott el -Djerid estavam sob a responsabilidade da Numídia
e os de sudoeste sob a autoridade da Tripolitânia. O governador de Bizâncio,
que residia em Hadrumeto, era no início de nível equestre e usava o título de
praeses, mas possivelmente no reinado de Constantino, e com certeza depois de
340, ascendeu ao status consular.
No sudeste, a nova província da Tripolitânia incluía duas zonas diferentes:
uma faixa costeira de Tácape até os altares dos Filenos, que dependia do procônsul
e, muito provavelmente, da legação de Cartago; e no interior, a região do limes
da Tripolitânia, que até o século III estava sob a autoridade do comandante da
III Legião Augusta, governador da província da Numídia. Essa região incluía a
planície de Jeffara, Matmata e chegava até o extremo norte do chott el -Djerid.
Contrariamente ao que se acreditava, as pesquisas recentes mostraram que,
embora os romanos tivessem desocupado certas posições avançadas como a de
Golas (Bu Njem), mantiveram suas posições ao sul da costa durante o século IV
e o início do século V
10
. Essa é a razão pela qual os governadores da Tripolitânia
puderam desempenhar um importante papel militar em diversas ocasiões: até
324 -6, eles possuíam o título de praeses, com os respectivos poderes militares,
e residiam em Leptis Magna. Em seguida, o comando das tropas estacionadas
no limes foi atribuído ao conde da África, que, no entanto, não chegou a mantê-
-lo ininterruptamente: um pouco antes de 360 e em 365, o comando do limes
tripolitanus foi tirado provisoriamente do Comes Airicae e confiado ao praeses da
Tripolitânia, possivelmente devido às agitações da tribo dos Asturianos.
10 O abandono do interior da Tripolitânia, armado por C. COURTOIS (1955. pp. 70 -9), é desmentido
pela arqueologia. Ver VITA, A. di. 1964. pp. 65 -98; CLEMENTE, G. 1968. pp. 318 -42.
513
O período romano e pós -romano na África do Norte
A província da Numídia possuía uma pequena abertura para o mar, entre
os montes de Edough a leste e a embocadura do Ampsaga a oeste; para o sul,
contudo, seu território se alargava a partir da extremidade oriental do chott
el -Hodna até a entrada de Theveste. Inicialmente, a província estava dividida
em duas zonas: uma compreendia a pacífica rego das cidades da antiga
confederação que tinha como capital Cirta; a outra, a região montanhosa e
agitada do sul, tendo como centro principal Lambèse. Reunificada em 314,
continuou, porém, a ser dirigida por um governador de nível equestre, que
acumulava os poderes civis e militares com o título de praeses, até 316. Nesse ano,
o governo civil foi confiado a senadores que usavam o novo título de consularis
provinciae, posteriormente promovidos ao nível de clarissimi; a grande maioria
deles pertencia à aristocracia romana, que estava ligada a essa rica província
por interesses fundiários. Cirta tornou -se a única capital e tomou o nome de
Constantina, em honra do imperador.
O problema da reorganização administrativa das províncias da Mauritânia,
no culo IV, é dominado por uma queso primordial: teria Diocleciano,
como em geral se acredita, desocupado a Tingitana e toda a parte ocidental da
Cesariana um pouco antes de sua ascensão? Pesquisas recentes permitem dúvidar
seriamente do abandono da região situada a oeste da Mauritânia Cesariana
11
.
Por outro lado, admite -se que em 285 Diocleciano evacuou todos os territórios
ao sul do Oued Loukkos, na Mauritânia Tingitana; Roma teria continuado a
manter apenas relações marítimas com as cidades costeiras, o que explicaria que
centros como Sala pudessem permanecer, sob Constantino, na órbita romana
12
.
Além disso, Diocleciano separou a parte oriental da Mauritânia Cesariana
para criar uma nova província, a Mauritânia Sitifiana, com capital em Sitifis,
atualmente Sétif. Finalmente, a Mauritânia Tingitana foi administrativamente
separada do resto da África e anexada à diocese constituída pelas províncias da
Espanha.
Para assegurar a ligação entre o governo central e as províncias, que haviam
se tornado menores e mais numerosas, Diocleciano aumentou o número de
altos funcionários que exerciam as funções – anteriormente extraordinárias, mas
agora permanentes de vice -prefeitos pretorianos; em princípio, esses vicarii
eram equites perfectissimi, mas ascendiam ao nível de clarissimi quando deviam
controlar governadores de classe senatorial. Cada vicarius era encarregado de
uma diocese específica, composta de um certo número de províncias. A diocese
11 Ver SALAMA, P. 1954 -a. pp. 224 -9; id. 1954 -b. pp. 1292 -311.
12 BOUBBE, J. 1959 -60. pp. 141 -5; JODIN, A. 1966.
514
África Antiga
da África englobava as províncias da África do Norte, à exceção da Mauritânia
Tingitana; os governadores dessas províncias estavam colocados sob a autoridade
do vicarius, que residia em Cartago e dependia do prefeito pretoriano da Itália-
-África -Iíria; excetuava -se o procônsul da África, que respondia diretamente
ao imperador.
A colonização e a organização municipal
Como a civilização grega, a civilizão romana era um fenômeno
essencialmente urbano. Portanto, o grau de romanizão de uma proncia
era determinado pela concentração de cidades
13
. Nas províncias africanas, e
particularmente na África Proconsular, a vida urbana era muito desenvolvida;
foram registradas ao menos quinhentas cidades no conjunto da África do Norte,
duzentas das quais apenas na província Proconsular
14
; mas não se enfatizou
o suficiente que tal civilização urbana foi herdada em grande parte da época
púnico -númida
15
.
No período republicano ainda não existia nenhuma cidade de direito
romano; havia apenas sete cidades de origem fenícia, que desfrutavam um grau
de autonomia dependente das vicissitudes políticas: tratava -se das cidades que
haviam se aliado a Roma durante a última Guerra Púnica. Suas instituições
tradicionais eram formalmente reconhecidas e elas estavam isentas do pagamento
do imposto fundiário, o stipendium. Contudo, a autoridade romana tolerou, mas
sem nenhuma garantia jurídica, as instituições das outras cidades africanas, que
continuaram a ser administradas à moda fenícia e a ser dirigidas por sufetes e
conselhos de notáveis, embora pagando o stipendium
16
.
A primeira tentativa oficial de colonização foi feita por C. Graco, por meio
da lex rubria, em 123 antes da Era Cristã; 6 mil colonos, romanos e latinos,
deviam receber grandes lotes de terra, na base de 200 jugera per capita, isto é, 50
ha. Isso implica a existência de uma vasta extensão disponível, pois a essas áreas
13 Sobre o papel e a evolução histórica das estruturas urbanas, ver CLAVEL, M. & VÊQUE, P. 1971.
pp. 7 -94. Como escreveu COURTOIS, tudo se passa “como se o único critério para a participação válida
na civilização fosse a proporção em que a vida cotidiana reete mais ou menos elmente a vida cotidiana
de Roma”. COURTOIS, C. 1955. p. 111.
14 CHARLES -PICARD, G. 1959. p. 45 et seq.
15 Ver, por exemplo, no artigo de G. CAMPS (1960 -b. pp. 52 -4) a lista de cidades anteriores à Segunda
Guerra Púnica, e a das cidades do reino númida entre a Fossa Regia e a Mulucha (ibid. pp. 275 -7).
16 CHARLES.PICARD, G. 1959. p. 22 et seq.
515
O período romano e pós -romano na África do Norte
deve -se acrescentar ainda a terra comum. Em consequência, acredita -se que os
loteamentos estendiam -se para o sul do Mejerda, até a Fossa Regia, fronteira
da primeira província romana da África. Portanto, os colonos não podem ter
vivido apenas em Cartago; de qualquer modo, eles devem posteriormente ter -se
espalhado por numerosas cidades pequenas. Sem dúvida, era necessário também
expropriar e transferir para outros lugares os proprietários anteriores. É bem
conhecido o destino dessa primeira tentativa romana de colonização na África:
ela malogrou por razões de ordem política, devido ao ódio dos aristocratas
romanos por C. Graco reformador e chefe do partido popular –, e também
por motivos econômicos, pois os colonos eram pessoas humildes e sem recursos
e raramente de origem camponesa. Desse modo, o projeto de colonização serviu,
em última instância, apenas como pretexto para destruir o partido popular e
permitir que os poderosos, senadores e cavaleiros, assegurassem vastos domínios
nos territórios africanos conquistados pela República.
Após a guerra de Jugurta em -103, Mário cedeu a seus veteranos e aos
membros da tribo dos Getulos lotes de terras provavelmente situadas ao longo
da Fossa Regia, entre Acholla e Thaenae, e com certeza a oeste, no vale médio
do Mejerda; como indica a epigrafia, seriam essas as terras a que se referem a
inscrição de Thuburnica, que designa Mário como o conditor dessa colônia, e os
nomes de Mariana e Marianum dados posteriormente à colônia de Uchi -Maius
e ao município de Thibar. Ao que parece, ainda em -103, o pai de Júlio César
fez instalar colonos nas ilhas Kerbena. No entanto, o processo de colonização só
se iniciou realmente com a criação da Colônia Júlia Cartago, por Otávio ou pelo
triunvirato em -42, ou mais provavelmente em -44, de acordo com a opinião
geralmente aceita. Portanto, o primeiro século de ocupação romana foi para a
África um período de retrocesso, caracterizado principalmente pela exploração
ostensiva da terra fértil. O progresso lento da colonização devia -se à ganância
dos homens de negócios, cavaleiros principalmente, e senadores que dirigiam
seus empreendimentos através de intermediários, quando não podiam obter
missões políticas que os levassem à África
17
.
Ao retomar os planos de seu pai adotivo, Júlio sar, Otávio Augusto
inaugurou uma nova época na história da África, dando início a uma nova
orientação política e a um vasto programa administrativo, militar e religioso.
De acordo com a lista fornecida por Plínio, cujas fontes ainda suscitam muitas
17 Sobre a colonização da província da África na era republicana, ver GSELL, S. 1913 -28; ROMANELLI,
P. 1959. pp. 43 -71.
516
África Antiga
controvérsias
18
, em pouco tempo havia seis colônias romanas, quinze oppida
civium romanorum, um oppidum latinum, um oppidum immune e trinta oppida
libera. Um texto epigráfico de Dougga
19
confirma, ao menos parcialmente,
a teoria do alemão Kornemann
20
: o início da colonização e da organização
municipal deu -se em -29, quando um novo afluxo de colonos para Cartago deu
à Colônia Júlia seus contornos definitivos, ou mesmo antes, quando os cidadãos
romanos que, depois de chegarem com grupos de imigrantes de dimensões
variadas, se fixaram na vizinhança das cidades peregrinas agrupando -se em
pagi e adquirindo domínios rurais acabaram por anexar o território (pertica)
da colônia de Cartago. Augusto fundou ainda pelo menos treze colônias na
Mauritânia, entre os anos -33 e -25.
Os imperadores que sucederam Augusto deram prosseguimento a sua
política. Assim, durante o governo de Marco Aurélio havia mais de 35 colônias
distribuídas pelas províncias africanas. Os imigrantes eram geralmente veteranos
que tinham servido nas legiões dissolvidas devido à reorganização do exército;
havia também italianos desapropriados ou arruinados pela crise da agricultura na
península, mas não chegaram a constituir um número suficiente para transformar
as províncias africanas em áreas de recolonização. As considerações defensivas
e econômicas, por sua vez, pesaram muito no projeto racional de implantação
dessas colônias.
O reconhecimento de fato de uma ampla autonomia dos autóctones na
administração municipal, considerando suas características linguísticas, étnicas e
religiosas, não era absolutamente incompatível com uma política de assimilação
futura, uma vez que as vantagens e os benefícios econômicos e poticos
desfrutados pelos cidadãos romanos nunca deixou de atrair as classes superiores
da sociedade africana. Ao lado das colônias de imigrantes, desenvolveu -se um
número crescente de colônias honorárias, que anteriormente eram comunidades
indígenas cuja romanização constante foi oficialmente reconhecida pelos
benefícios da lei romana.
A questão do estatuto municipal coloca problemas complexos, dos quais
podemos apresentar apenas um breve resumo
21
. Primeiramente, havia as cidades
18 Além disso, é difícil interpretar as informações fornecidas por PLÍNIO, o Velho (V, 22 -30), sobre o
status dessas cidades. O problema é revisto por BRUNT, P. A. 1971. pp. 581 -3
19 POINSSOT, C. 1962. pp. 55 -76.
20 KORNEMANN, E. 1901.
21 O problema da política municipal de Roma na África é o tema de dois estudos recentes que atualizam
estudos anteriores sobre a questão: TEUTSCH, L. 1962; GASCOU, J. 1972.
517
O período romano e pós -romano na África do Norte
peregrinas, muito numerosas, cujos habitantes não eram cidadãos romanos. A
maioria delas estava sujeita ao stipendium, mas algumas desfrutavam da libertas,
o que significa que sua autonomia era legalmente reconhecida, enquanto outras
chegavam a ser immunes, ou seja, isentas do stipendium, o imposto arrecadado
pelos conquistadores. Em segundo lugar, havia as cidades latinas: elas haviam
recebido por uma concessão geral ou porque tinham sido povoadas por colonos
latinos – seja o jus latii majoris, que estendia a cidadania tanto aos magistrados
municipais como aos membros da assembleia de decures, seja o jus latii
minoris, que restringia a cidadania a indivíduos que ocupavam um cargo civil
ou um honor; contudo, os outros habitantes tinham direitos civis quase idênticos
aos dos cidadãos romanos. Em terceiro lugar, nas coloniae juris Romani, cujo
estatuto foi definido por uma lei póstuma de César, todos os habitantes eram
cidadãos romanos, com exceção, é claro, dos escravos, dos incolae (estrangeiros
residentes) e dos adtributi, isto é, das populações auctones dos setores
ligados administrativamente a essas colônias. Estes últimos, que pertenciam
às comunidades camponesas à custa das quais as colônias de imigrantes se
formaram e se desenvolveram, viam a cidade muito mais como um centro de
repressão do que de romanização.
Além disso, havia os vici e pagi, que geralmente faziam parte da pertica de
uma cidade: nos grandes domínios imperiais, os agricultores raramente tinham
algum contato com a cidade, e a administração ficava nas mãos dos procuradores
imperiais. Finalmente, no sul das províncias africanas e principalmente nas
províncias da Mauritânia, as regiões desprovidas de vilas e sujeitas ao sistema
tribal eram supervisionadas por pequenos destacamentos militares comandados
pelos praefecti.
Contudo, várias questões referentes às instituições municipais permanecem
obscuras. Quanto à definição do municipium juris Romani, por exemplo,
acreditou -se durante muito tempo, com o aval da autoridade de Mommsen,
que as comunidades de cidadãos romanas eram chamadas de municipia ou
coloniae, e que a diferença entre elas principalmente de ordem hierárquica e
residia na honra outorgada pelo título de colônia. Praticamente, não se revelou
nenhuma diferença entre os dois tipos de comunidade, o que seria explicado
pela uniformização crescente dos estatutos coletivos. De acordo com uma teoria
proposta por C. Saumagne, que, no entanto, está longe de ser unanimemente
aceita, há razões para crer que os municipia juris Romani existiram na Itália;
daí se concluiria que todos os municipia provinciais eram do grupo juris Latini e
que não haveria na África outras comunidades do grupo juris Romani, além das
colônias e das oppida civium romanorum. Essa análise apresentaria a vantagem
518
África Antiga
de esclarecer o problema do processo de naturalização nas províncias; assim, o
jus Latii, que conferia a cidadania romana aos ricos, teria constituído uma etapa
indispensável para a integração de todas as comunidades
22
.
Levando em consideração essas nuaas, constata -se que as cidades
africanas tendiam a se aproximar cada vez mais dos municipia italianos; por
toda parte havia uma assembleia popular, um senado, magistrados nomeados
por um ano e sujeitos a um colegiado, duoviri, quattuorviri, aediles, quaestores.
Contudo, observou -se a longevidade excepcional do populus na África, embora a
assembleia popular tivesse caído em desuso em outras localidades. Os cidadãos
que compunham o populus agrupavam -se em corpos intermediários chamados
curiae, que são consideradas por alguns como sobrevivência de uma antiga
instituição cartaginesa. Desse modo, as curiae africanas teriam apenas o nome
em comum com as das outras partes do Império. Entretanto, o poder efetivo
não ficava nas mãos do populus, mas nas do senado municipal, composto de
aproximadamente cem membros, que formavam o ordo decurionum, uma ordem
senatorial em nível local. Esses decuriões eram escolhidos entre os antigos
magistrados com idade acima de 25 anos e também, ocasionalmente, entre os
cidadãos ricos. Eles controlavam as finanças da cidade, tomavam decisões sobre
as novas despesas, administravam a propriedade municipal. Eram organizados
numa hierarquia baseada em seu nível social. No topo estavam os membros
honorários, aos quais era confiada a defesa dos interesses da cidade; geralmente
eram homens nascidos no país que a ascensão social havia integrado por adlectio
às ordens superiores do Império; no caso mais favorável, um cavaleiro ou um
senador fazia carreira em Roma, em círculos próximos ao imperador, e desse
modo encontrava -se em condições de representar diante dele os interesses de
sua cidade reivindicando a melhoria de seu estatuto legal ou a redução de
impostos, ou mesmo intercedendo a favor da carreira de um jovem cidadão.
Em seguida, por ordem de precedência, vinham os antigos duumviri, os antigos
aediles, os antigos quaestores, e por fim os simples decuriões, que ainda não
tinham alcançado um alto posto. Todos deviam ter uma fortuna superior a uma
espécie de censo, que era modesto nas pequenas cidades, muito numerosas,
mas extremamente elevado nas grandes cidades, principalmente em Cartago,
onde se igualava ao censo equestre. Isso significa que apenas os homens ricos
podiam desempenhar algum papel na cidade onde os magistrados presidiam a
assembleia do povo e o senado, despachavam as questões rotineiras, mantinham
22 SAUMAGNE, C. 1965. Sua tese é refutada por J. DESANGES (1972. pp. 253 -73).
519
O período romano e pós -romano na África do Norte
relações com as autoridades provinciais e exerciam o poder judiciário limitado
a pequenos delitos e a litígios de pouca importância.
O exercício dos cargos públicos supunha a posse de amplos recursos e tempo
disponível: os magistrados não recebiam salário e, ao assumir o posto, deviam
pagar ao tesouro municipal uma soma variável segundo o nível do cargo e o
tamanho da cidade; além disso, era costume manifestar generosidade de diversos
modos, oferecendo banquetes, organizando jogos, financiando a construção de
monumentos. Portanto, a maioria dos edifícios públicos (termas, mercados,
fontes, templos, teatros) das cidades africanas devia sua existência a um
verdadeiro espírito de competição entre os notáveis. O cargo civil mais alto na
cidade era o dos duoviri quinquennales, eleitos a cada cinco anos e encarregados
do recenseamento, o que significava que eles deviam determinar o número total
de habitantes e de cidadãos, avaliar as fortunas e determinar ao mesmo tempo o
lugar dos indivíduos na hierarquia social e a repartição do imposto.
Essa carga fiscal iria tornar -se cada vez mais determinante e ocasionar a
intervenção do poder central nos assuntos municipais. A partir do século II,
as finanças das cidades, às vezes em dificuldade, foram pouco a pouco sendo
controladas por curatores civitatis, a fim de remediar uma situação que se tornara
difícil devido ao esbanjamento e a despesas de prestígio. Esse foi o primeiro sinal
de uma tendência para a centralização e a imposição de um sistema burocrático
de controle estatal, que se reforçou com a crise do século III e se estabeleceu
firmemente no século IV, sucedendo o liberalismo e a autonomia municipal.
A vida econômica
A população
Não possuímos nenhuma estimativa razoavelmente precisa da população
no período romano. Havia certamente os recenseamentos necessários à
caracterização da situação fiscal, mas não chegaram até nós. Portanto, nesse
domínio ficamos em geral reduzidos a hipóteses pouco satisfatórias: cálculo do
povoamento pela aplicação de um coeficiente de densidade média e, sobretudo,
emprego do argumento topográfico, obtido de diversas maneiras, para avaliar,
principalmente, a cifra da população urbana. C. Courtois, por exemplo, toma
como ponto de partida as listas episcopais e, após discutir a questão, chega à cifra
de quinhentas cidades africanas; depois de longas considerações para a adoção
de uma cifra de densidade e área média, ele se atém a um número médio de 5 mil
520
África Antiga
 . O aqueduto de
Chercell (Argélia).
F . Sabrata (Líbia):
Frons scaenae do teatro romano.
(Fotos Salama.)
521
O período romano e pós -romano na África do Norte
habitantes por cidade, o que corresponde a 2.500.000 habitantes urbanos num
total de 4 milhões de habitantes do conjunto das províncias africanas durante o
Alto Império, e 3 milhões apenas durante o Baixo Império. Essas últimas cifras
fundamentam -se nas estimativas de J. Beloch, que calculou o total da população
do Império Romano baseando -se em recenseamentos efetuados na Itália por
Augusto. Mas C. Courtois considerou que a densidade de dezesseis habitantes
por quilômetro quadrado, tida como provável pelo especialista alemão, era muito
elevada para a África do Norte, que tinha, na metade do século XIX, apenas cerca
de 8 milhões de habitantes. Assim sendo, ele reduziu essa taxa a onze habitantes
por quilômetro quadrado, embora reconhecendo que as cidades tinham 250
habitantes por hectare, como as cidades francesas dos séculos XVIII e XIX
23
.
G. Charles -Picard fez várias objeções às cifras de C. Courtois, chegando a duas
conclusões: a densidade da população africana em certas regiões atingia mais de
cem habitantes por quilômetro quadrado e, apesar do número considerável de
cidades, a maioria dos habitantes desse território essencialmente agrícola vivia
em pequenas cidades mercantis e em grandes villae dispersas nos campos. Desse
modo, a África Proconsular teria um total de 3.500.000 habitantes; adicionando-
-se a população da Numídia e das províncias mauritanas, o resultado seria um
total de 6.500.000 habitantes entre a metade do século II e o primeiro terço do
século III, época da grande prosperidade africana
24
.
Em anos mais recentes, A. Lézine apresentou, a propósito da população
urbana, um ponto de vista oposto ao de G. Charles -Picard: afirmando, como este
último, que as condições de vida e de povoamento do Sahel tunisiano durante
a Idade Média eram muito parecidas com as existentes em tempos antigos, ele
tentou calcular a magnitude da população de Sousse por volta do fim do século
X e da população de Cartago entre 150 e 238. Finalmente, chegou ao número
de 1.300.000 habitantes urbanos. Se aceitarmos essa conclusão e mantivermos
a cifra proposta por C. Courtois para a população total, o número de habitantes
rurais parecerá mais razoável
25
. Contudo, as pesquisas recentes sugerem uma nova
abordagem para esses problemas demográficos; em vez de considerar apenas os
dados fornecidos pelo antigo census, a densidade da população, os números
relativos de domus e insulae e o número dos beneficiários das distribuições de
cereais, agora também levamos em conta o número de túmulos por geração e as
23 COURTOIS, C. 1955. p. 104 et seq.
24 CHARLES -PICARD, G. 1959. p. 45 et seq.
25 LÉZINE, A. 1960. pp. 69 -82.
522
África Antiga
summae honorariae pagas pelos magistrados que acabavam de ingressar no cargo,
cuja taxa variava segundo o nível e o tamanho da cidade
26
.
Agricultura
É conhecida a preponderância da agricultura na economia antiga; na África,
durante o período romano, a terra era a principal fonte e a mais valorizada
de riqueza e prestígio social. Também é comum dizer que a África era o
celeiro de Roma. Algumas vezes tal expressão foi usada para insinuar a existência
em outras épocas de uma proverbial abundância, em contraste com a pobreza
atual, e daí extrair um veredicto apressado sobre a decadência da população”,
desconsiderando totalmente os problemas complexos que criaram as condições
de subdesenvolvimento. Neste caso, somos forçados a repetir uma verdade que
não escapou aos historiadores: a África era o celeiro de Roma porque, vencida,
era obrigada a fornecer ao vencedor o seu trigo, a título de tributo. Durante o
governo de Augusto, por exemplo, 200 mil romanos recebiam gratuitamente uma
ração de 44 litros de trigo por mês, totalizando cerca de 1 milhão de alqueires.
De qualquer modo, a teoria de uma prosperidade extraordinária da África no
período romano e de um rendimento excepcional em trigo foi demolida pelo
geógrafo J. Despois
27
.
Inicialmente, a conquista romana desencadeou uma regressão na agricultura
e na economia africana, como um todo, levando à devastação e ao abandono da
arboricultura da Chora cartaginesa, pois nessa época a Itália dominava o mercado
de vinho e azeite, e estava atenta para evitar a concorrência nesses lucrativos
ramos da agricultura. Só a produção de trigo se manteve, ampliando -se a partir
do reinado de Augusto por uma razão política que prevaleceu até o fim da
dominação romana: a necessidade de assegurar o abastecimento da plebe romana.
Após a extensão da conquista romana para oeste e para o sul e a efetivação da
política de confinamento das tribos, associada a uma ativa política de valorização
das terras, principalmente pelo desenvolvimento de grandes projetos hidráulicos,
as cifras da produção de cereais aumentaram consideravelmente. durante o
reinado de Nero, sabemos que a África era responsável pelo abastecimento de
26 Ver em particular a crítica aos métodos de avaliação demográca de R. P. DUNCAN -JONES (s. d. p. 85
et seq.). Em função de uma inscrição em Siagu, que menciona uma herança a ser distribuída aos cidadãos
dessa cidade, o autor conclui que o número de cidadãos era de 4 mil, embora o do conjunto da população
urbana casse entre 14 mil e 17 mil. Sobre o tratamento dos problemas demográcos, ver BÉNABOU,
M. 1976. p. 385 et seq.
27 DESPOIS, J. [s. d.] p. 187 et seq.
523
O período romano e pós -romano na África do Norte
víveres da capital do Império por oito meses do ano: desse modo, calculou -se
a participação africana em 18 milhões de alqueires, ou seja, 1.260.000 quintais.
Tendo em vista que tal cifra representava o montante da annona isto é, a
produção anual dos domínios imperiais, que Nero aumentou substancialmente,
confiscando as grandes propriedades fundiárias dos senadores romanos
acrescida da arrecadação em espécie cobrada sobre as outras terras, G. Charles-
-Picard considerou que a annona cobria um pouco mais de um sétimo do
produto médio da cultura africana de cereais. Portanto, atingia o total de 126
milhões de alqueires, ou 9 milhões de quintais. Assim, o trigo que ficava na
África, sem considerar as sementes, não era suficiente para o consumo local:
“Uma boa parte dos camponeses era obrigada a viver de milhete ou cevada, e a
falta de chuvas necessariamente trazia a fome”
28
. Durante o período da grande
prosperidade da África, de meados do século II até 238, a situação melhorou
devido principalmente ao cultivo das terras virgens da Numídia e das províncias
mauritanas. Mas a África tinha de cumprir as novas exigências fiscais, como
ocorreu quando a annona militar foi convertida, sob o governo de Sétimo Severo,
num imposto pecuniário regular. No entanto, a partir do século II, investimentos
consideráveis em monumentos públicos constituem um sinal de prosperidade
da classe dominante e, principalmente, da classe média das cidades. Isso porque
nessa época o governo imperial deixou que se desenvolvesse mais livremente a
iniciativa econômica das províncias, embora a Itália estivesse passando por uma
crise que vinha desde o reinado dos imperadores Cláudios e ainda não havia
sido resolvida.
No entanto, o cultivo de oliveiras e vinhas foi encorajado, de início,
como uma forma de utilizar as subsiciva ou terras impróprias para a cultura
de cereais. A rentabilidade do comércio de vinho e azeite, porém, levou a uma
mudaa de rumo, o que explica a excepcional extensão dessas culturas, em
particular dos olivais, que apresentaram ótimo desenvolvimento mesmo nas
regiões estépicas.
Domínios e paisagens rurais estão representados em mosaicos feitos entre o
fim do século I e a metade do século IV. A vila do proprietário rural geralmente
ergue -se no meio de um vasto pomar ou parque, às vezes cercada de construções
utilitárias, onde os escravos trabalham ativamente. Às vezes as cenas reproduzem
figurativamente a propriedade, mas em geral ela é simbolizada por atividades
picas ou por um cenário que sugere a paisagem regional: colinas, cenas
28 CHARLES -PICARD, G. 1959. p. 91.
524
África Antiga
ilustrando o trabalho de arar, a semeadura, a colheita, a debulha, a vindima e
ainda rebanhos de ovelhas, aves domésticas, enxames de abelhas, etc.
Desde o início da ocupação, a característica da colonizão romana foi
uma divisão agrária quadricular a centuriação: o solo africano foi dividido
em quadrados de 710 m de lado, por meio a uma rede de linhas retas que se
cruzavam em ângulos de 90 graus
29
. Transformadas em propriedade do povo
romano (ager publicus populi romani) por direito de conquista, as terras foram
classificadas em várias categorias, segundo leis complexas de propriedade que
eram constantemente modificadas. À exceção da Mauritânia, onde o direito de
passagem permanecia irrestrito, a propriedade tribal foi constantemente limitada
em favor da ampliação crescente das terras de colonizão. Durante o Alto
Império, empreendeu -se uma vasta e ininterrupta operação de confinamento das
tribos. Tal operação acentuou -se no período dos Severos, com o avanço do limes
na Tripolitânia, na Numídia e na Mauritânia, avanço esse que foi acompanhado
por um processo violento de expropriação e pela expulsão das tribos para o
deserto. No entanto, os proprietários indígenas que habitavam as cidades e que
não foram expropriados em favor dos colonos romanos ou latinos, de maneira
geral conservaram suas terras, com a condição de pagarem o stipendium, de que
pouquíssimas cidades peregrinas estavam isentas. Outra categoria fundiária era
constituída pelas terras distribuídas aos cidadãos romanos veteranos, pequenos
colonos romanos ou italianos que se instalaram nas colônias, os oppida civium
romanorum, os pagi. Com o tempo, porém, em virtude da evolução do estatuto
municipal no sentido de uma integração das comunidades autóctones, acabaram
por se uniformizar o estatuto das terras das cidades indígenas e o das propriedades
das cidades romanas. Finalmente, uma última categoria incluía os imensos
domínios que os membros da aristocracia romana haviam conseguido adquirir,
principalmente no final da República e nos períodos em que a África oferecia
um vasto campo de oportunidades para investimentos fundiários. No século I da
Era Cristã, por exemplo, seis senadores romanos possuíam a metade do solo das
províncias africanas; mas Nero mandou executá -los e incorporou seus fundi ao
patrimonium imperial. Todavia, durante o Baixo Império, a aristocracia romana
possuía ainda um bom número de grandes domínios privados, principalmente na
Numídia. De maneira geral, a grande propriedade tendia a absorver a pequena,
sobretudo durante o Baixo Império.
29 Ver CHEVALLIER, R. & CAILLEMER, A. 1957. pp. 275 -86.
525
O período romano e pós -romano na África do Norte
Sabemos do estatuto e da organização dos grandes domínios imperiais graças
a quatro inscrições importantes e a algumas outras indicações fornecidas pela
rica epigrafia africana
30
. Elas nos legaram textos de primeira ordem, como o da
Lex Manciana e da Lex Hadriana, que não são leis, no sentido do direito público
romano, mas regulamentos de exploração. Para muitos autores eles se aplicavam
ao conjunto do ager publicus em todo o Império, segundo J. Carcopino, e
apenas na África, segundo M. Rostovtzeff. Outros acreditam que se tratava de
regulamentos específicos para a região dos saltus imperiais do vale médio do
Mejerda, embora essa interpretação seja contestada por descobertas mais recentes.
De qualquer maneira, só são bem conhecidas as modalidades de exploração dos
domínios imperiais. Eles eram arrendados a empreiteiros chamados conductores,
que empregavam villici para dirigi -los. O villicus explorava diretamente uma
parte do domínio; provavelmente utilizava escravos e trabalhadores agrícolas,
bem como os serviços compulsórios, as corveias devidas pelos colonos. Esses
coloni eram agricultores livres a quem os conductores sublocavam a maior parte
do domínio. O objetivo principal da Lex Manciana e da Lex Hadriana era
determinar os direitos e deveres dos conductores e de seus chefes de exploração
(villici), de um lado, e dos colonos (coloni), de outro. O princípio era o seguinte:
mediante a remessa de um terço de sua colheita e a prestação de um número
determinado de dias de corveia na terra controlada diretamente pelo villicus,
os colonos teriam sobre suas respectivas parcelas um direito de uso que poderia
ser transmitido por herança e mesmo vendido, com a condição de que o novo
detentor não interrompesse o cultivo durante dois anos consecutivos.
Uma administração imperial hierarquizada supervisionava a explorão
dos domínios: no vel mais elevado estava o procurator do departamento
patrimonial, um membro graduado da ordem equestre, que residia em Roma
com seus funcionários. Estava a seu cargo preparar os regulamentos gerais
e as circulares de implementação. Em cada província residia um procurador,
também eques de alta posição, encarregado de supervisionar os procuradores dos
distritos (tractus), que agrupavam um certo número de domínios (saltus); no nível
inferior, os procuradores dos domínios eram em geral simples libertos. As tarefas
desses procuradores de saltus consistiam em fazer contrato com os conductores,
assegurar a execução dos regulamentos, arbitrar em disputas entre conductores
e coloni e auxiliar os primeiros na coleta de rendas. Observamos na inscrição
de Souk el Khemis, que data do reinado de Cômodo, que os conductores e os
30 Existe uma ampla bibliograa disponível sobre esta questão. Ver CHARLES -PICARD, G. 1959. p. 61
et seq. e nota 31, pp. 371 -2.
526
África Antiga
procuradores encarregados de supervisionar sua gestão mancomunavam -se para
privar os colonos dos direitos garantidos pelos regulamentos e para aumentar
arbitrariamente suas obrigações. Na realidade, os conductores eram poderosos
capitalistas, a cuja influência não estavam imunes os procuradores. Muitos
escritores acreditam, como A. Piganiel, que a condição dos colonos descrita na
inscrição de Souk el Khemis já prenunciava a dos colonos do Império Bizantino.
A partir do século IV, o termo coloni passou a designar todos os camponeses que
cultivavam os domínios imperiais ou privados em todo o Império. Em princípio,
eles eram homens livres, mas sua liberdade foi cada vez mais sendo restringida
pelas leis que os proibiam de deixar a terra que cultivavam. Sendo responsável
pelos impostos que os colonos deviam pagar sobre sua produção, o proprietário
poderia quitar sua dívida se o cultivo não fosse interrompido: isso o levava a fixar
o camponês à terra, de modo que a condição jurídica deste tendia a se aproximar
da escravidão. No Ocidente medieval essa tendência resultou na servidão, na qual
se confundiam descendentes de colonos e descendentes de escravos rurais.
A evolução da agricultura africana durante o Baixa Império continua a suscitar
controvérsias: de maneira geral, os historiadores modernos impressionaram -se
com a quantidade de propriedades isentas de arrecadações, e, portanto, incultas.
A partir desse dado, inferiram que se verificou uma extensão muito rápida das
terras não -cultivadas. Recentemente, C. Lepelley demonstrou que o problema
é mais complexo e que a situação não era tão alarmante como se pensava, pelo
menos na África Proconsular e na província Bysacena. Não se pode dizer que
houve um êxodo rural maciço ou uma decadência agrícola catastrófica. Até a
invasão dos vândalos, a África continuou a ser a fonte de abastecimento de Roma,
que, após a fundação de Constantinopla, foi privada da cota de trigo egípcio.
Além disso, a prosperidade da Ifriqiya nos séculos VIII, IX e X, confirmada
pelas fontes árabes, não pode ser explicada se aceitarmos a tese de que são
perceptíveis os sintomas típicos de uma recessão
31
. No entanto, verificavam -se
de fato períodos de carestia, devidos sobretudo a causas naturais, e é preciso
dizer que, exceto na Numídia, que continuou ligada à cultura de cereais, esses
produtos parecem ter perdido importância econômica em favor das oliveiras.
A indústria e o comércio
De modo geral, a epigrafia e os monumentos figurados da África fornecem
muito menos indicações sobre a vida dos artesãos e operários do que os das
31 LEPELLEY, C. 1967. pp. 135 -44.
527
O período romano e pós -romano na África do Norte
outras proncias ocidentais. Todavia, embora a metalurgia pareça menos
difundida nas proncias africanas, é preciso desconfiar das generalizações.
Poder -se -ia observar, por exemplo, que o material epigráfico raras vezes se
refere aos que trabalhavam nas construções e aos arquitetos, embora suas obras
estejam presentes em numerosos sítios arqueológicos da África. De qualquer
modo, a estagnação tecnológica do período romano não permitia que a indústria
antiga se desenvolvesse consideravelmente. Nessas circunstâncias, as principais
atividades manufatureiras relacionavam -se com o processamento dos produtos
agrícolas, destacando -se particularmente a fabricação de azeite de oliva. As
ruínas de prensas de azeitonas, encontradas em grande profusão na área que
se estende de Sufetula a Thelepte e Tebessa, testemunham a importância do
azeite na economia antiga: ele era não apenas o principal alimento gorduroso,
mas também o único combustível para iluminação e um produto essencial de
toalete
32
.
A indústria de cerâmica, em maior ou menor grau associada à de azeite,
supria a demanda de mpadas e recipientes, além de produzir utenlios
domésticos. Na época púnica, a indústria local concentrou -se na produção
de artigos de uso diário; em sua maioria, os artigos finos de cerâmica eram
importados inicialmente da Grécia e da Etrúria e posteriormente da Itália
meridional. Com a conquista romana, a África tornou -se mais dependente dos
centros de produção estrangeiros: a Campânia foi substituída pela Toscana e
depois pelas oficinas gaulesas, que exportavam suas mercadorias principalmente
para a Mauritânia. Contudo, no início do século II da Era Cristã, começou a se
desenvolver na província Proconsular uma nova indústria de cerâmica, associada
a uma recuperação econômica geral.
Os trabalhos de J. P. Morel, que denunciou as imitações africanas da cerâmica
de verniz negro de Campânia
33
, e de P. A. Février e J. W. Salomonson sobre a
terra sigillata, juntamente com as últimas escavações feitas pelos pesquisadores
do Instituto Arqueogico de Túnis, mostraram que as oficinas africanas
aumentaram continuamente em número e importância
34
. Além dos artigos
comuns, elas produziam a fina cerâmica laranja -avermelhada e posteriormente
laranja -clara, que se tornou popular em todos os países do Mediterrâneo
ocidental. Desde a primeira metade do século III, decoravam -se belas ânforas
cilíndricas e vasos bicônicos com ornamentação aplicada na forma de figuras
32 Ver CAMPS -FABRER, H. 1953.
33 MOREL, J. P. 1968; id. 1962 -5.
34 Ver, por exemplo, MAHJOUBI, A., ENNABLI, A. & SALOMONSON, J. W. 1970.
528
África Antiga
em relevo inspiradas principalmente pelos jogos do anfiteatro; fabricavam -se
também lâmpadas de alta qualidade e estatuetas, que eram colocadas nos túmulos
ou nas capelas domésticas. No século IV difundiu -se outro tipo de cerâmica que
os especialistas chamam de sigilata clara D. As importações estrangeiras, nesse
setor econômico primordial que era a cerâmica, logo desapareceram, mesmo nas
províncias da Mauritânia. As vendas dos produtos manufaturados e extrativos
africanos (azeite, cerâmica, tecido tingido de púrpura, artigos de vidro e de
madeira, mármore da Numídia) – aos quais seguramente devem -se acrescentar
o trigo, os escravos e os animais selvagens destinados aos jogos do anfiteatro
deviam exceder muito os produtos importados, que provavelmente consistiam
de objetos manufaturados, sobretudo de metal.
Desse modo, a África conseguiu liberar -se de sua dependência econômica,
e o comércio exterior recuperou, de certo modo, a importância que teve na
época púnica. O equipamento portuário desenvolveu -se em função dos recursos
exportáveis do interior e do processamento dos cereais e do azeite a serem
embarcados para a Itália; as relações comerciais eram feitas principalmente com
Ostia, o porto que era a saída de Roma para o mar; no sítio de Ostia foram
encontrados, entre os scholae (escritórios) das corporações de navegação, pelo
menos nove construções que pertenciam às corporações africanas da Mauritânia
Cesariana, de Musluvium, Hippo Diarrhytus, Cartago, Curubis, Missus,
Gummi, Sullectum e Sabrata. Esses domini navium ou navicularii, agrupados em
corporações, tinham a responsabilidade coletiva de transportar as mercadorias
para a Ilia
35
. Desde o reinado de Cudio, tais corporações gozavam de
privilégios especiais, e se organizaram, até a época de Sétimo Severo, de acordo
com o princípio da livre associação. Contudo, logo o Estado passou a exercer
controle nesse campo, como em outros setores da economia, principalmente
porque o abastecimento de Roma era uma questão muito importante para ser
entregue apenas à iniciativa particular. Os navicularii foram então considerados
prestadores de um serviço público. No entanto, o comércio com a Itália continuou
a ser feito pelos africanos. O comércio com o Oriente, próspero no período
cartaginês, estava nas mãos dos negociantes orientais durante o Império; no
século IV, eles ainda vinham traficar nos portos africanos. Embora se ignore a
natureza exata dos produtos desembarcados por esses comerciantes, conhecidos
como sírios”, não é difícil imaginar a diversidade e a abundância de produtos
africanos que levavam ao retornar a seus portos de origem, a julgar pelo grande
35 CALZA, G. 1916. p. 178 et seq.
529
O período romano e pós -romano na África do Norte
 . Mosaico de Susa: Virgílio escrevendo a “Eneida”. (Foto Museu do Bardo, Túnis.)
número de moedas de ouro com a efígie dos imperadores orientais descobertas
nas escavações, e que eles deviam deixar na África para equilibrar suas contas.
Finalmente, deve -se considerar o comércio transaariano, que será tratado à parte,
no contexto das relações entre as províncias africanas e os povos do Saara.
Os textos antigos e os achados arquelógicos e epigráficos contêm muitas
informações acerca do comércio interno da África. Com base nessas fontes,
sabemos que as nundinae, espécie de feiras, funcionavam, nos centros rurais
em diferentes dias da semana, como os atuais souks. Nas aldeias, edificavam-
-se os macella (mercados), com um pátio cercado de pórticos, nos quais se
530
África Antiga
abriam as barracas dos vários negociantes. Foram escavados vários desses sítios,
principalmente em Leptis, onde as barracas do tipo quiosque eram equipadas
com estalões para medidas de extensão e capacidade, inspecionados pelos aediles
municipais. Outros negócios e transações eram realizados no forum ou nas lojas
e nos mercados cobertos das cidades (ocupados por banqueiros e cambistas,
taberneiros, vendedores de tecidos, etc.). As estradas, que originalmente se
destinavam às necessidades da conquista e da colonizão, não tardaram a
favorecer o comércio, pois, é claro, facilitavam o transporte de mercadorias.
Durante o reinado de Augusto e de seus sucessores, duas rotas de interesse
estratégico ligavam Cartago ao sudoeste, pelo vale de Miliana, e ao sudeste pelo
litoral. O terceiro lado do triângulo era constituído pela estrada estratégica de
Ammaedara -Tácape, que foi a primeira rota atestada por marcos miliários. Na
época dos Flávios e dos primeiros Antoninos, o sistema de estradas teve uma
grande expansão, caracterizada principalmente pela construção da via Cartago-
-Theveste; em torno dos antigos centros militares de Theveste e Lambèse, uma
rede de estradas circundava as montanhas Aures e Nemencha e prolongava-
-se para o norte em direção a Hippo Regius. Daí em diante, construiu -se um
número cada vez maior de estradas na África Proconsular e na Mauritânia,
onde o setor fortificado de Rapidum foi ligado a Gemellae e Lambèse, por um
lado, e às cidades costeiras de Cesareia e Saldae, por outro. Contudo, após 235,
a manutenção e o reparo da obsoleta rede de estradas criou vários problemas
36
.
Realizaram -se muitas pesquisas sobre as diversas questões técnicas relativas
às estradas romanas – traçado, estrutura, pontes e viadutos, construções auxiliares
para uso dos viajantes. Esses estudos deixaram bem claro que os romanos estavam
muito conscientes da importância estratégica e colonizadora das estradas, de seu
papel administrativo ilustrado pelos postos de revezamento do serviço de correio
do cursus publicus, e também de seu papel econômico; a propósito, tem -se dado
atenção especial, por exemplo, à rota do comércio de marfim entre Simitthu e
Thabraca, e foi realizado um estudo dos sítios dos horrea e das mansiones (celeiros
e armazéns) dispostos nas encruzilhadas e em vários pontos das estradas para
armazenamento dos cereais e do óleo entregues aos coletores de impostos.
As relações entre as províncias africanas e os povos do Saara
Sabe -se muito tempo que os romanos possuíam três grandes fortalezas
saarianas nos confins do deserto, ao sul da Tripolitânia: as de Bu Njem, Gheria-
36 SALAMA, P. 1951.
531
O período romano e pós -romano na África do Norte
-el -Gherbia e Gadames, cujo nome antigo era Cidamus. Durante muitos anos
foram consideradas apenas como postos avançados do limes; mais recentemente,
porém, observou -se que tais fortalezas situavam -se na fronteira do deserto e de
uma zona controlada pelos romanos, habitada por camponeses sedentários que
residiam em fazendas fortificadas e cultivavam principalmente a oliveira nas
bacias dos uedes. Nessa região desenvolveu -se um tipo original de civilização,
caracterizada por fortes tradições locais, em que são visíveis as influências púnicas.
Contudo, as tradições indígenas e a marca púnica ilustradas principalmente
pelas numerosas inscrições em alfabetos locais e pela sobrevivência da língua
púnica até as vésperas da invasão árabe adaptaram -se ao novo modo de vida
introduzido pelos romanos. As fortalezas controlavam as principais rotas que
ligavam a costa ao Fezzan, o território dos Garamantes. Desde 19 antes da Era
Cristã, Cornélio Balbo havia atacado os Garamantes e submetido, segundo
Plínio, várias de suas cidades e fortalezas, incluindo Garama e Cidamus. Mais
tarde, talvez sob o reinado de Domiciano, uma expedição dirigida por Júlio
Materno partiu de Leptis Magna e atingiu Garama; acompanhada pelo rei dos
Garamantes e seu exército, a expedição posteriormente chegou até o país dos
etíopes e à região de Agisymba, onde, segundo se disse, foram vistos rinocerontes.
Isso mostra que os romanos estavam interessados no Fezzan, na medida em
que essa base permanente de caravanas lhes permitia chegar à beira da África
transaariana. Mostra ainda por que as crises e as reconciliações, registradas por
textos lacônicos, fizeram do reino dos Garamantes uma fonte de preocupação
constante para os romanos. Acrescentando -se às indicações fragmentárias dos
textos as prospecções e pesquisas arqueológicas dos últimos anos, foi possível
precisar pouco a pouco o conhecimento dos itinerios das caravanas que
levavam aos limites da África negra e ter uma ideia mais clara do progresso feito
pelos romanos nessa direção. Tais fontes forneceram inúmeros detalhes sobre os
aspectos militar, civil e comercial da vida nessa zona limítrofe, particularmente
em Bu Njem
37
. Em primeiro lugar, os países transaarianos forneciam ouro:
desde os tempos púnicos até a época árabe -muçulmana, várias rotas de ouro
ligavam os depósitos da Guiné às praias do Mediterrâneo, mas de certa forma
cada uma delas deixou um traço característico na história da África do Norte.
O comércio de caravanas também trazia escravos negros, plumas de avestruz,
animais selvagens, esmeraldas e carbúnculos do Saara. Em troca, as províncias
37 Ver, em particular, nos COMPTES RENDUS DE L’ACADEMIE DES INSCRIPTIONS para 1969,
1972, 1975, as comunicações de R. REBUFFAT a respeito das escavações de Bu Njem (Goleas).
532
África Antiga
romanas forneciam vinhos, objetos em metal, cerâmica, têxteis e objetos de
vidro, como mostraram principalmente as pesquisas das necrópoles do Fezzan.
O uso cada vez mais generalizado do dromedário, a partir dos séculos II e III,
nos confins saarianos onde passavam as rotas do sul e do leste, provavelmente fez
reviver o nomadismo, facilitando os deslocamentos, a criação de gado nômade e
a pilhagem das caravanas e dos centros sedentários influenciados em maior ou
menor grau pela civilização romana. É provável que, no início, a mesma tribo
se dividisse em grupos sedentários, estabelecidos ao longo das rotas regulares
e no limes, e em nômades condutores de camelos, ao sul; posteriormente, em
meados do século IV, o governo imperial tornou -se cada vez menos capaz de
policiar o deserto e, embora não houvesse uma política deliberada de retirada,
as pequenas colônias na margem do deserto, que haviam se desenvolvido no
século III, puderam apenas sobreviver, correndo sério risco de extinção por volta
do século V. Portanto, não foram o surgimento repentino e a difusão maciça do
dromedário no século III que permitiram aos nômades, como sempre pensou
E. F. Gautier, ameaçar a segurança das fronteiras meridionais. E mais provável
que a introdução desses animais tenha sido gradual. Inicialmente, a tendência
cada vez maior de utilizá -los como meio de transporte serviu aos propósitos da
política romana, que tinha sabido adaptar -se às condições do meio ambiente
para criar verdadeiros centros de penetração; em última instância, porém, teve
o efeito oposto de permitir que as tribos nômades adquirissem a mobilidade
necessária para renovar os ataques às regiões de onde haviam sido expulsas
38
.
Pode -se perguntar também se a inteligente política saariana dos imperadores
severos não pode ser explicada pelo fato de o fundador da dinastia ser originário
de Leptis Magna, o que lhe teria permitido dispor de informações de primeira
mão sobre as condições, os recursos e os itinerários do interior árido.
A ascensão dos romano -berberes e os problemas da
sociedade africana
Sob o reinado de Augusto e de seus sucessores, a população das províncias
africanas era composta de três grupos distintos, tanto pelas leis que os regiam,
quanto pela língua e pelos costumes: romanos ou italianos imigrantes,
cartagineses e sobretudo líbios sedentários que haviam incorporado às suas
38 DEMOUGEOT, E. 1960. pp. 209 -47.
533
O período romano e pós -romano na África do Norte
tradições as instituições e os costumes púnicos, e os líbios nômades que estavam
rigorosamente confinados a certas áreas ou totalmente banidos das regiões de
terras férteis que haviam sido obrigados a abandonar.
Diz -se frequentemente, e com justiça, que as províncias africanas não eram
consideradas áreas de recolonização: no reinado de Adriano, deixaram de ser
fundadas colônias de veteranos na África Proconsular, e as da Numídia, a partir
dessa data, foram estabelecidas para os soldados recrutados nas cidades africanas.
Como vimos anteriormente, a situação desses soldados não cessou de evoluir para
uma total romanização: a integração dos cidadãos autóctones, principalmente
dos mais ricos que procuravam escapar de uma condição socioeconômica e
jurídica inferior –, foi efetivada com a promulgação da constitutio Antonina,
em 212, que concedia a cidadania romana a todos os habitantes livres do
Império que ainda não a tinham adquirido, à exceção dos dediticii. Seguindo
o exemplo dos antoninos, Sétimo Severo promovera um grande número de
comunidades a municipium ou mesmo colonia; os não -cidadãos tornaram -se
minoria, de modo que a existência de situações juridicamente inferiores ficou
cada vez mais injustificável, considerando -se as exigências de simplificação dos
sistemas administrativo e fiscal e as tendências a favor do universalismo político,
legal, ético e religioso. Contudo, todos os que não vivessem num centro de tipo
municipal, grande ou pequeno, em especial os membros das tribos confinadas
em regiões estépicas ou montanhosas, deviam ser classificados entre os dediticii,
cujas instituições e autonomia não tinham sido reconhecidas, nem mesmo
implicitamente, no momento da capitulação. Tais populações, portanto, ficaram
marginalizadas da romanidade.
Assim, as distinções étnicas tendiam a desaparecer somente nas grandes
cidades, que, no entanto, eram muito numerosas, principalmente na África
Proconsular. Todavia, foram substituídas pelas distinções sociais. As duas ordens
sociais superiores, a senatorial e a equestre, tinham um status definido pelo
censo e evidenciado por insígnias e títulos. Embora a classificação com base na
propriedade fosse necessária, não era suficiente, pois o princípio de hereditariedade
era aplicado: a não ser que o imperador conferisse o grau de senador ou
cavaleiro como favor especial, o título era adquirido unicamente por direito
hereditário. Apesar disso, o estudo das carreiras individuais, possibilitado pelos
textos e sobretudo pela epigrafia, mostra a rápida renovação dessa aristocracia.
As famílias da velha nobilitas romana, que levavam uma vida principesca e pouco
a pouco se arruinavam, foram cada vez mais dando lugar a novos membros
de início originários das províncias ocidentais do Império e posteriormente
greco -orientais. O primeiro senador de origem africana veio de Cirta e viveu
534
África Antiga
no tempo de Vespasiano. Um século mais tarde, por volta de 170, os senadores
africanos perfaziam uma centena, constituindo o segundo maior grupo, depois
dos de origem italiana. Do mesmo modo, enquanto o primeiro cavaleiro africano
conhecido, originário de Musti, recebeu o anel de ouro de Tibério, na época
de Adriano havia milhares de cavaleiros na África Proconsular e na Numídia.
Durante o Alto Império a grande maioria de funcionários era recrutada da
ordem equestre seminobre para desempenhar uma dupla função, que aos poucos
se dividiu em dois ramos: um ligado a assuntos civis e o outro a questões
militares. Desde o século III, tornou -se difícil distinguir esse segundo ramo de
uma carreira exclusivamente militar. Observa -se, portanto, que a ascensão dos
romano -berberes foi uma das principais características do período Antonino-
-Severo, no qual os africanos desempenharam um papel importante em Roma
e no Império.
A principal força social que durante o Alto Império, no interesse dos
próprios imperadores, permitiu a renovação das ordens aristocráticas e garantiu
principalmente à ordem equestre a manutenção de um alto nível de competência
profissional e de qualidades pessoais necessários ao desempenho de sua dupla
função foi, incontestavelmente, a classe média urbana, que poderia ser chamada
de burguesia municipal. Os indivíduos dessa classe de decuriões eram assimilados
pela aristocracia imperial, de onde os imperadores recrutavam os funcionários
para ocupar os postos importantes. Um dos fatores determinantes nessas
nomeações era o espírito de solidariedade que unia em Roma os originários da
mesma província: assim se explica a predominância dos espanhóis no início do
século II seguida pela dos africanos, que foram substituídos pelos sírios e depois
pelos Panônios.
Como em geral se afirma, a classe média dos decuriões constituía na África a
base de sustentação das comunidades romanizadas. Durante o Alto Império essa
classe estava ligada principalmente a uma estrutura fundiária: o decurião vivia na
cidade com as rendas de sua propriedade, mas não era latifundiário nem camponês,
e mesmo que possuísse vínculos com sua terra, preferia um estilo burguês de
vida. Ele podia ser muito rico: para adquirir um nome na cidade e obter a
gratidão de seus concidadãos, devia ser pródigo em donativos, distribuídos tanto
por vaidade como por generosidade. Organizava jogos municipais, doava víveres
e dinheiro aos pobres ou construía e mantinha edifícios públicos. É por isso que
mesmo as cidades mais modestas manifestavam um pendor desmesurado pelos
monumentos arquitetônicos, em completa desproporção com seu tamanho e
importância. Todas deviam ter seu fórum, com estátuas erguidas sobre pedestais,
sua cúria, sua basílica judiciária, suas termas, suas bibliotecas e ainda magníficas
535
O período romano e pós -romano na África do Norte
 . Djemila (antiga Cuicul, Argélia): centro da cidade.
F . Lebda (antiga Leptis Magna, Líbia): trabalhos em curso no anteatro romano
536
África Antiga
e custosas edificações para os jogos municipais, bem como grande número de
templos em honra aos deuses oficiais ou tradicionais. Embora apresentasse certas
vantagens, como a protão jurídica fornecida pelas instituições municipais
e um nível mais alto de vida, a proliferão de cidades grandes e pequenas
repousava inevitavelmente, como a riqueza das elites urbanas, sobre a exploração
dos camponeses.
Apesar de ter sido questionada a teoria sobre o declínio das cidades no
século IV, que a epigrafia demonstrou a existência de atividade construtora
relativamente intensa, e que a arqueologia revelou, mesmo durante o século
III, habitações suntuosamente decoradas, havia grandes diferenças na situação
social das populações urbanas durante o Alto e o Baixo Império. A agricultura
permanecia a principal fonte de renda das elites citadinas. Mas o lugar dos
decuriões, representantes da classe média que até então governavam coletivamente
as cidades, foi tomado por uma oligarquia de grandes proprietários de terras, os
primates ou principales municipais, enriquecidos graças à exportação dos cereais
e do azeite de seus domínios, o que permitiu sua integração à nobreza imperial.
Esses notáveis, apoiados pelo governo imperial, ascenderam às mais altas posições
no governo municipal e provincial; eles restauraram os monumentos destruídos
no século III, ou que ameaçavam ruir por velhice e embelezaram suas cidades,
abrindo caminho, através dessa atividade litúrgica, para sua ascensão política.
Os imperadores adaptaram sua política urbana a essas transformações sociais; o
essencial era encorajar o desenvolvimento das cidades, pois elas constituíam não
apenas uma das bases principais do sistema fiscal do Império, mas, sobretudo,
uma sólida proteção contra o perigo “bárbaro”.
O conjunto dos curiales, termo que durante o Baixo Império designava o ordo
decurionum, empobreceu cada vez mais, pois teve de suportar, coletivamente,
impostos cada vez mais elevados. Obrigados a assegurar os numera municipais
(abastecimento, serviços públicos, despesas necesrias à manutenção dos
edifícios e cultos, etc.), os curiales tornaram -se de fato os coletores locais dos
impostos devidos pela cidade, e suas propriedades eram tidas como garantia
das obrigações fiscais coletivas. Os mais ricos procuraram passar para o nível
de primates, refugiando -se desse modo nas ordens privilegiadas, a nobreza
senatorial ou equestre. Outros fugiam dos encargos municipais ingressando no
exército ou nas militiae administrativas, ou ainda infiltrando -se nas fileiras do
clero. O governo imperial teve de recorrer a medidas draconianas para combater
a deserção das curiae, que causava prejuízos à vida municipal, isto é, aos próprios
fundamentos da ordem romana. Os curiales também foram obrigados a impor o
ingresso em seu corpo a todos que possuíssem fortuna adequada, praticamente
537
O período romano e pós -romano na África do Norte
todos os possessores, que constituíam uma verdadeira classe hereditária, cujo
declínio progressivo se refletia no da romanidade. Portanto, atribuindo privilégios
a um pequeno grupo de principales, que, além disso, acabaram por deixar as
cidades, o Império aniquilou a massa dos curiales, o que exacerbou ainda mais a
crise social e agravou suas repercussões no desenvolvimento das próprias cidades.
Embora na época do principado os citadinos enriquecidos atras do
comércio pudessem ascender às magistraturas tornando -se membros do ordo
decurionum, e os homens das profissões liberais, médicos ou arquitetos, fossem
muito considerados, isso não mais ocorreu durante o Baixo Império. Abaixo
dos curiales, todas as categorias da população urbana foram reduzidas ao nível
da plebe. As profissões indispensáveis, como as ligadas à alimentação e ao
transporte, tornaram -se hereditárias e delas não se podia mais escapar através
dos canais legais.
No campo, ainda era raro no século IV que os grandes proprietários africanos
se isolassem totalmente em seus domínios; como vimos, eles continuavam a ter
algum interesse pelo embelezamento das cidades e pela vida municipal. Mas
no fim do século apareceram os primeiros sinais de uma tendência progressiva
para uma agricultura de tipo senhorial; o dominus, cada vez mais independente
em suas terras, apropriou -se paulatinamente das prerrogativas de um Estado
enfraquecido, organizando a polícia de seu domínio e até mesmo exercendo o
poder de baixa justiça em seus limites. Com a introdução do sistema fiscal da
jugatio capitatio, era de interesse do tesouro imperial e dos grandes proprietários
rurais que não houvesse mudanças numa dada propriedade, nos elementos
humanos e fundiários que caracterizavam a exploração. Portanto, os senhores
leigos e eclesiásticos, com a ajuda da administração imperial, puderam impedir
os coloni de tentar aproveitar melhor seus lotes e conseguiram prendê -los à terra.
Quanto aos pequenos e médios proprietários que habitavam as cidades, vimos
que eles procuravam escapar de sua condição de curiales; sua escolha reduzia -se
ao retorno à plebe urbana ou à aceitação de uma espécie de relação feudal com
o grande domínio vizinho. Em realidade, longo tempo se manifestava uma
tendência geral para a concentração das terras nas mãos de alguns proprietários;
Cipriano havia registrado, na metade do século III, que os ricos adquirem
um domínio após outro, expulsando seus vizinhos pobres, e é interminável a
extensão desordenada de suas terras”
39
.
39 Sobre essas questões sociais, ver GAGÉ, J. 1964.
538
África Antiga
Não espaço neste breve resumo para discutir o movimento dos donatistas,
que sempre foram objeto de controvérsia entre os estudiosos. Lembremos apenas
que existem registros desses bandos rebeldes na Numídia, no século IV, e que esse
movimento se desenvolveu nas áreas rurais, embora violentamente anticatólico,
apresentava um caráter social evidente.
A vida religiosa e o advento do cristianismo
A dominação romana não chegou a impedir os autóctones de manifestarem
uma devoção fiel a suas divindades tradicionais. Comumente, nos humildes
santuários rurais os velhos cultos berberes dos gênios conservaram suas
formas ancestrais. Em alguns casos, porém, foram absorvidos pelos cultos das
divindades greco -romanas: por exemplo, os cultos dos gênios da fecundação
ou da cura eram às vezes mascarados pelos de Netuno, Esculápio ou Serápis.
Nas regiões que pertenceram aos reinos midas, onde a influência nica
tinha sido profunda e durável, chegou -se a esboçar um verdadeiro panteão de
deuses nativos. Mas a maioria da população das províncias africanas praticava
os cultos de Saturno
40
e dos equivalentes greco -romanos dos velhos deuses de
Cartago. A religião desse Saturno africano era simplesmente uma continuação
da de Baal -Hamon, do mesmo modo que Juno -Caelestis, a principal divindade
da Cartago romana, era apenas Tanit, a grande deusa da Cartago púnica. O
culto das divindades agrárias – as Cereres – também foi introduzido nos tempos
númida -púnicos. Naturalmente, a romanização transformou até certo ponto a
religião africana: a língua púnica desapareceu dos ex -votos, os símbolos abstratos
gravados nas estelas frequentemente foram substituídos por figuras de deuses
em geral derivadas da arte greco -romana, a influência da arquitetura romana se
estendeu às construções religiosas. Mas o sentido profundo da religião africana
conservou viva a sua especificidade, que se manifestava principalmente no ritual,
nas representações figuradas das estelas e até mesmo no texto das dedicações
latinas, que mantinham com notável constância a lembraa das fórmulas
tradicionais.
Quanto aos cultos oficiais do Império, não tardaram a ser reverenciados nas
cidades. A fidelidade a Roma devia exprimir -se principalmente pela observância
das práticas religiosas, que faziam parte integrante da civilização romana. Os
membros do ordo decurionum que atingiam o apogeu de sua carreira municipal
40 LEGLAY, M. 1966; id. 1967.
539
O período romano e pós -romano na África do Norte
 . Mosaico de Chebba: Triunfo de Netuno. (Foto Museu do Bardo. Túnis.)
540
África Antiga
desejavam ser investidos da dignidade de flâmines perpétuos, sacerdotes que
desfrutavam o privilégio de oferecer ao casal imperial deificado as preces e os
votos dos habitantes da cidade. Além disso, a assembleia provincial, composta
de deputados de todas as assembleias municipais, reunia -se anualmente em
Cartago para escolher o flâmine provincial o grande sacerdote cuja função era
celebrar o culto oficial em nome de toda a província. Finalmente, em cada
cidade, o culto da tríade capitolina, Júpiter, Juno e Minerva, o de Marte, pai e
protetor do povo romano, e os de Vênus, Ceres, Apolo, Mercúrio, Hércules e
Baco constituíam também outras formas oficiais da religião do Império e da vida
espiritual greco -romana. Por toda parte, templos e estátuas, altares e sacrifícios
celebravam essas divindades e muitas outras ainda, como a Paz, a Concórdia, a
Fortuna, o gênio do Império, o gênio do Senado romano, etc.
As divindades das regiões orientais do Império, prontamente aceitas em
Roma, também foram reverenciadas na África. Funcionários, soldados e
comerciantes difundiram o culto de Ísis, Mitra ou Cibele, identificadas algumas
vezes com as divindades locais como, por exemplo, Ísis a Deméter ou Cibele
a Caelestis. Desse modo, a grande corrente mística que invadia todo o mundo
romano atingiu a África, embora as religiões orientais de busca da salvação não
atraíssem tanto as elites africanas como o thiasus do culto de Baco ou de Deméter.
Do mesmo modo, as doutrinas espiritualistas, especialmente o neoplatonismo,
propagaram -se em alguns círculos e chegaram a conciliar -se com as tradições
púnicas: as estelas de Chorfa, por exemplo, ilustram as tendências influenciadas
pelo neoplatonismo. Alguns autores chegam a acreditar que a ideia expressa por
esses monumentos, ou seja, de que uma divindade suprema que age sobre o
mundo terrestre através de hipóstases, provavelmente preparou o caminho para
o monoteísmo cristão.
Isso explicaria por que o cristianismo se desenvolveu mais cedo na África do
que em outras províncias ocidentais do Império? É claro que as estreitas relações
com Roma favoreceram a rapidez com que a nova religião foi introduzida no
continente. O mesmo se pode dizer, provavelmente, da existência de pequenas
comunidades judaicas nos portos, principalmente em Cartago. Contudo, é
notável que desde o início o latim fosse reconhecido como língua do cristianismo
africano, enquanto a Igreja romana ainda utilizava o grego. De acordo com
Tertuliano, que viveu no final do século II e início do III, naquela época havia
na África um número muito grande de cristãos, em todas as classes e profissões.
Por volta de 220, foi possível reunir em Cartago um sínodo de 71 bispos;
outro, realizado em cerca de 240, reuniu noventa bispos. Isso mostra que as
pequenas comunidades cristãs estavam espalhadas por muitas cidades africanas,
541
O período romano e pós -romano na África do Norte
constituindo o que o Império com certeza considerava um grave perigo. De fato,
por se recusarem a aceitar a ideologia imperial e principalmente por se negarem
a participar do culto ao imperador, os cristãos se colocavam decididamente na
oposição. Apesar de seu liberalismo e da tolerância habitual pelos novos cultos,
Roma tinha de manifestar sua intransigência com uma seita que objetivava
criar, fora do âmbito do regime, agrupamentos cada vez mais numerosos que
cultivavam um ideal diferente. Portanto, abateu -se sobre os cristãos a repressão
mais rigorosa: em 180, doze cristãos da cidade de Scilli foram decapitados
por ordem do procônsul, e o ano de 203 foi marcado pelo martírio das santas
Perpétua e Felicidade e de seus companheiros, que foram atirados aos animais na
arena do anfiteatro de Cartago. Mas as medidas repressivas, de resto esporádicas,
não conseguiram sufocar o zelo e o fervor dos fiéis, muitos dos quais procuravam
ardentemente o martírio.
Não é possível, no âmbito deste breve relato, fazer o histórico do cristianismo
africano, que se propagou sobretudo durante o período que vai da paz da Igreja
no século IV até o estabelecimento dos árabes na África do Norte. Dever -se -ia
dedicar um estudo especial a essa complexa questão, que envolve principalmente
a pesquisa do cisma donatista e, é claro, da literatura cristã desde Tertuliano até
Santo Agostinho, de quem a personalidade e a obra constituíram o derradeiro
clarão da romanidade africana. Ele soube recolher e transmitir ao Ocidente
a herança da cultura latina, e legou à cristandade de todos os tempos a sua
doutrina, de uma riqueza raramente igualada.
A cultura africana
Após ter sido negligenciada durante longo tempo pelos historiadores de
Roma, as artes provinciais e as culturas periféricas” estão atualmente no centro
das preocupações. Isso se deve a uma compreensão mais clara dos limites da
romanização e das diferentes formas que ela assumiu em seus contatos com
as sociedades indígenas. Além disso, é preciso considerar que a arte de uma
determinada província não pode ser dissociada de sua vida econômica, social e
religiosa. A propósito, para estudar e apreciar a arte desenvolvida nas províncias
africanas durante a dominão romana, tornou -se necesrio considerar o
persistente substrato líbio -púnico que continuou a existir e a evoluir durante
séculos.
o é o caso de tratar aqui dos problemas complexos abordados principalmente
pelos arqueólogos; basta fazer uma referência à obra La Civilisation de l’Afrique
542
África Antiga
Romaine, de G. Charles -Picard, que tem um capítulo importante sobre a literatura
e a arte africanas; devemos nos contentar em fazer apenas algumas observações. De
início, é necessário indicar que os primeiros elementos dessa cultura africana não
se devem unicamente como em geral se pretendeu aos fenícios e cartagineses.
Quando os navegadores orientais começaram a frequentar as costas da África,
no início do I milênio antes da Era Cristã, aportaram num território no qual,
antes deles, graças à abertura para as ilhas mediterrânicas, haviam penetrado
diferentes técnicas, como a que deu origem à cerâmica pintada, conhecida como
Kabyle ou berbere. A existência, nessa época, de populações sedentárias prontas
a aceitar os elementos de uma civilização urbana é agora demonstrada pelos
dolmens argelino -tunisianos, pelos haounets do norte da Tunísia e pelos objetos
encontrados nos monumentos funerários escavados no noroeste de Marrocos
41
.
Mais tarde – no período anterior e principalmente na fase posterior à destruição
de Cartago a população nativa adotou e adaptou a cultura fenícia e púnica,
mesclada com elementos egípcios e orientais, impregnados, depois do século IV
antes da Era Cristã, de influências helenísticas. Finalmente, as contribuições ítalo-
-romanas mais importantes e impostas de maneira mais direta inevitavelmente
geraram combinações híbridas, frequentemente difíceis de definir. Contudo, é
costume distinguir duas culturas na África: uma oficial, de caráter romano, e
outra popular, indígena e provincial. Mas existem, é claro, monumentos em que
as duas correntes se encontram, se misturam e se confundem.
As obras arquitetônicas africanas reproduziam em geral tipos de monumentos
públicos que predominavam em todo o mundo romano, e, portanto, inspiravam-
-se numa técnica e num ideal essencialmente romanos. Do mesmo modo, as
esculturas decorativas e as grandes estátuas dos deuses, dos imperadores e dos
personagens importantes diferenciavam -se muito pouco de suas congêneres da
Itália ou de outras províncias. Contudo, as obras arquitetônicas ou de escultura
ligadas às tradições religiosas ou funerias da população bem como certas
técnicas especiais de construção ou decoração traziam a marca das características
locais. Isso é evidente nos templos em honra a divindades que mantiveram sua
individualidade nativa apesar da aparente identificação com os deuses romanos;
em certas sepulturas monumentais; numa técnica especial de construção de
paredes conhecida como opus africum; na arquitetura doméstica e, por último,
em estelas votivas ainda impregnadas das influências pré -rornanas. No período
41 Os trabalhos recentes modicaram completamente as concepções tradicionais. Ver,por exemplo, CAMPS,
G. 1960 -b; id. 1961; GOBERT, E. G. 1948. pp. 1 -44; TIXERONT, J.1960. pp. 1 -50; FÉVRIER, P. A.
1967. pp. 107 -23.
543
O período romano e pós -romano na África do Norte
 . Trípoli (antiga Oea, Líbia): Arco do Triunfo de Marco Aurélio. Detalhe.
dos severos, as esculturas de Leptis Magna e outras cidades da Tripolitânia e
da África Proconsular foram muito influenciadas por uma poderosa corrente
artística, vinda do Oriente asiático e prontamente assimilada, pois correspondia
a tendências antigas, mas ainda vigorosas, da arte africana.
Os inumeráveis mosaicos descobertos desde o icio do século também
apresentam tendências e características locais. Nesse caso, novamente, podemos
apenas remeter aos periódicos especializados e à obra citada de G. Charles-
544
África Antiga
-Picard, que assim concluiu o capítulo sobre o barroco africano”: “Portanto,
a África deu a Roma muito mais do que recebeu e mostrou -se capaz de fazer
frutificar suas influências com um espírito que não é nem o da Grécia nem o
do levante helenizado”
42
42 CHARLES -PICARD, G. 1959, p. 353.
C A P Í T U L O 1 9
547
O período romano e pós -romano na África do Norte
Quando terminou a dominação romana na África do Norte, que durou em
algumas regiões quatro ou cinco séculos, a situação interna apresentava um
quadro complexo. Revoltas regionais, conflitos religiosos, descontentamentos
sociais criaram um clima deteriorado, mas a solidez da experiência administrativa
e o presgio da cultura latina legaram a esta civilizão importada muitas
possibilidades de sobrevivência.
Divididas em zonas dominadas ou independentes, segundo as vicissitudes das
conquistas estrangeiras ou das resistências locais, a África do Norte pós -romana
e pré -islâmica viveu então um dos períodos mais originais de sua história
1
.
As regiões sob ocupação estrangeira
Durante um período de aproximadamente ts séculos, duas invasões
estrangeiras alternadas assumiram a tutela de Roma, sem jamais poder
reconstituir integralmente suas fronteiras.
1 Nosso título “De Roma ao Islã” é tomado de um estudo, de caráter principalmente bibliográco, de C.
COURTOIS, na Revue Africaine, 1942, pp. 24 -55.
PARTE II
De Roma ao Islã
P. Salama
548
África Antiga
O Episódio Vândalo
Nada era mais inesperado na África do Norte do que estes conquistadores
de origem germânica. Nenhuma dominação se adaptou menos às realidades do
território. Distanciando -se dos outros povos germânicos que, como eles, haviam
emigrado em massa para a Europa ocidental em +406, os vândalos inicialmente
se instalaram no sul da península Ibérica, que, ao que parece, conservou seu nome
(Vandalusia = Andalusia). Chamados ou não a intervir nas disputas internas
do poder romano na África do Norte, eles cruzaram o estreito de Gibraltar,
com uma força de 80 mil homens, sob o comando de seu rei Genserico (ou
Geiserich) no ano de +429. O avanço foi fulminante. Em +430, sitiavam a
cidade de Hipona e, em +435, viram reconhecida por parte dos romanos a posse
de Constantina. Três anos mais tarde apoderaram -se de Cartago e, após uma
breve retirada em +442, iniciaram, a partir de +455, três operações de grande
envergadura: a anexação definitiva de toda a zona oriental da África romana,
a conquista da maior parte das principais ilhas no Mediterrâneo ocidental
Baleares, Sardenha e Sicília – e uma audaciosa expedição para saquear a própria
Roma. O Império oriental, esperando desalojar os invasores, sofreu um desastre
naval em +468 e, a partir dessa data, admitiu o fato consumado: um tratado de
+474 consagrou definitivamente as boas relações entre Bizâncio e os vândalos,
que representavam uma grande potência marítima no Mediterrâneo ocidental.
Foi benéfico o século de ocupação germânica de uma parte da África do
Norte? Ao ler as fontes literárias da época, francamente hostis aos usurpadores,
ficamos horrorizados com sua brutalidade. Mas a crítica moderna conseguiu
desvincular o tema de seu contexto passional. O termo vandalismo”, sinônimo de
espírito de destruição, foi forjado apenas no final do século XVIII, e atualmente,
graças a numerosos documentos arqueológicos, parece claro que, em sua
administração do território, os vândalos erraram muito mais por omissão do
que por intenção.
Estamos nos aproximando de uma ideia cada vez mais clara da estrutura legal
do Estado vândalo: realeza originária de uma aristocracia militar, detentoras
ambas dos grandes domínios blicos e privados da antiga África romana;
manutenção da administração romana, regional e local, incluindo até mesmo a
utilização, em benefício do novo culto real, das antigas assembleias provinciais
de tradição imperial. Portanto, Cartago tornou -se a rica metrópole do novo
Estado. Esse mesmo interesse pelo tradicionalismo latino afetou ainda a
estrutura agrária, sendo engenhosamente preservadas as antigas leis romanas
que regiam a organizão camponesa, principalmente a Lex Manciana. O
549
O período romano e pós -romano na África do Norte
fenômeno do êxodo urbano para as áreas rurais, iniciado em toda parte durante
o Baixo Império, intensificou -se, trazendo consigo a decadência e a diminuição
da área de diversas cidades. Outras, ao contrário, como Ammaedara, Theveste
ou Hipona, prosseguiram suas obras monumentais. Parece mesmo que durante
esse período e a manutenção da economia monetária o comprova nem a
agricultura nem o comércio sofreram qualquer declínio evidente. Tudo indica
que as relações externas foram prósperas, e o conjunto das possessões vândalas
pôde ser qualificado de império do trigo”. São testemunho da riqueza das
classes dominantes as finas joias de estilo germânico, por vezes encontradas em
Hipona, Cartago, Thuburbo Maios e Mactar.
O balanço político e religioso mostra -se mais negativo. Nas partes sul e
oeste de seu domínio norte -africano, os ndalos sofreram tantos ataques
dos mouros”, denominação geral dos rebeldes norte -africanos, que é quase
impossível fixar uma fronteira estável na zona sob seu controle. Tais limites eram
certamente flutuantes, e é provável que jamais tenham ultrapassado, a oeste, a
região de Djemila (Cuicul).
No campo religioso, o clima de crise foi permanente. Os vândalos eram
cristãos, mas professavam o arianismo, heresia intolerável para o clero católico
tradicional. Seguiu -se uma repressão quase sistemática do clero por um poder
central pouco inclinado a tolerar resistências dogmáticas. O furor anticatólico
atingiu seu clímax após um pseudoconcílio reunido em Cartago no ano de +484.
Desse modo, a situação de crise moral e social levou a um processo de
derrocada, acelerado na realidade pelos abusos ou pela incompetência dos
sucessores de Genserico. Em +530, a usurpação de Gelimero, destronando o rei
Hilderico, aliado do imperador do oriente Justiniano, incentivou a conquista
bizantina
2
.
2 Os textos literários antigos a respeito do período vândalo na África do Norte devem -se principalmente a
três autores comprometidos”, de manifesta hostilidade: o bispo católico VICTOR DE VITA (Histoire de
la Persécution dans les Provinces Africaines), FULGÊNCIO DE RUSPE (Opera) e o historiador bizantino
PROCÓPIO (A Guerra dos Vândalos). Últimas edições: FRAIPONT, J., trad. 1968; VEH, O., ed. 1971.
O estudo moderno básico é o de C. COURTOIS (1955), uma obra importante, corrigida e suplementada
em certos pontos por várias contribuições arqueológicas. A questão como um todo é retomada por H. J.
DIESNER (1965. pp. 957 -992; 1966). O problema fundiário foi ilustrado pela descoberta de atos jurídicos
escritos em placas de madeira ou fragmentos de cerâmica: COURTOIS, C., LESCHI, L., MINICONI,
J., FERRAT, C. & SAUMAGNE, C. 1952; FÉVRIER, P. A. & BONNAL, J. 1966 -7. pp. 239 -59.
Sobre a expansão territorial do reino vândalo para o sul e oeste da Numídia: FÉVRIER, P. A. 1962 -7;
id. 1965. pp. 88 -91; DIESNER, H. J. 1969. pp. 481 -90.
Sobre as instituições: CHASTAGNOL, A. 1967. pp. 130 -4; CHASTAGNOL, A. & DUVAL, 1974.
pp. 87 -118. Sobre o estado do reino e o declínio urbano em particular: MAURIN, L. 1968. pp. 225 -54.
Para a questão religiosa: COURTOIS, C. 1954; LEPELLEY, C. 1968. pp. 189 -204; vários trabalhos
de DIESNER citados na bibliograa analítica de DESANGES, J. & LANCEL, S. 1970. pp. 486 -7;
MAIER, J. -L. 1973.
550
África Antiga
O Episódio Bizantino
Considerando -se sucessora legítima do Império Romano, a corte de
Constantinopla resolveu expulsar dos territórios usurpados os novos Estados
germânicos do Ocidente. E foi na África do Norte que tal iniciativa se mostrou
menos ineficaz.
No ano de +533, seguindo a ordem de Justiniano, um corpo de expedicionários
comandado por Belisário destruiu, em três meses, o poder dos vândalos,
fazendo desaparecer esse povo da História. A primeira medida bizantina, um
célebre édito do ano +534 reorganizando as estruturas administrativas do país,
estabeleceu o padrão a ser seguido: uma política ao mesmo tempo militar e
jurídica, inspirada muito fielmente na dos romanos. Foi um erro imaginar que
após mais de cem anos de negligência as massas rurais voltariam a aceitar a
rigidez do conservadorismo administrativo; e, de fato, o que o século e meio
de ocupação bizantina produziu na África do Norte foram algumas realizações
inegáveis no campo da construção, obtidas num clima de insegurança crônica.
A própria reconquista do país foi difícil e, em certa medida, o processo parecia
uma antecipação das intervenções árabes do século VII e francesa do século XIX;
uma vez excluído o ilusório poder vândalo, comparável à futura administração
turca, o conquistador esbarrou com a resistência dos chefes indígenas e teve
de triunfar lentamente, pela força ou pela astúcia. De +534 a +539, o patrício
Salomão, general talentoso mas violento, foi detido pelos montanheses de Iavdas,
nos Aures, e depois morto pelos nômades de Coutzina e Antalas nas estepes
tunísio -tripolitanas. Seu sucessor, João Troglita, adotando uma atitude mais
flexível com os príncipes berberes, dividiu -os pela intriga ou desembaraçou -se
deles através de assassínio, mas a pacificação que obteve foi ilusória (+544 -8).
Desse modo, a agitação persistiu até o fim do século VII. Basta observar um
mapa das fortificações bizantinas na África do Norte para compreender que
a estratégia de fortalezas”, barrando as rotas de invasão, ocupando todas as
encruzilhadas e defendendo o território até sua parte central, evidenciava um
perpétuo estado de alerta, pois o inimigo surgia de todos os lados. Portanto, o
antigo espírito ofensivo foi substituído por uma tática defensiva, sinônimo de
inquietude.
No final do século VI e no início do século VII, os imperadores Maurício
Tibério e depois Heráclio tentaram em o diminuir as frentes de batalha,
restringindo a ocupação do território. Para oeste, a expansão bizantina nunca foi
capaz de estender -se além da região de Sétif. Apenas algumas cidades costeiras
mais afastadas receberam guarnições; mas, bloqueadas de perto pelos mouros”,
551
O período romano e pós -romano na África do Norte
também elas prefiguraram uma situação militar famosa, a dos presidios espanhóis
do século XVI.
Nesse contexto, a autoridade bizantina teve o grande mérito de se exercer nos
domínios administrativo e econômico. As antigas cidades romanas continuaram
a declinar e a se despovoar, ao abrigo das poderosas fortalezas que lhes serviam
de proteção, como em Tebessa, Haidra ou Timgad. As antigas províncias, às
vezes restauradas artificialmente, receberam governadores, submetidos a um
prefeito do pretório instalado em Cartago, embora o poder militar não estivesse
associado ao cargo. No final do século VI, um chefe supremo, o exarca ou patrício,
concentrou em suas mãos praticamente todos os poderes.
A política interna, produto dos métodos romanos, tendeu naturalmente a
recuperar os antigos rendimentos fiscais. Assim, foi restabelecida a annona,
imposto anual pagável em trigo. Uma vez confiscados os domínios reais dos
vândalos, as propriedades foram devolvidas a seus antigos donos, averiguados,
quando necessário, até a terceira geração. Pode -se imaginar o número de disputas
legais e materiais que essa operação criou. Em todos os domínios, a taxação era
sentida como um peso esmagador. A vida econômica, no entanto, conheceu
uma relativa prosperidade. A manutenção da economia monetária em todas as
transações e a entrega do comércio exterior a agentes oficiais deram a Cartago
e à região do interior sob sua influência uma reputação de grande riqueza no
mundo mediterrânico, ainda mais que as duas margens do estreito da Sicília
estavam sob influência bizantina. Pode -se duvidar que as massas rurais norte-
-africanas tenham extraído algum benefício de tal situação.
No plano religioso, os novos senhores restabeleceram o culto tradicional,
isto é, o catolicismo ortodoxo, e proibiram o arianismo. Uma reaparição do
donatismo, que se havia manifestado anteriormente na África romana, foi
duramente reprimida; considerou -se tal heresia, aliás corretamente, como um
fenômeno de contestação social. Bizâncio chegou a se dar ao luxo de uma crise
dogmática, a do monotelismo, uma discussão fútil sobre as naturezas divina e
humana de Cristo; às vésperas da conquista muçulmana, o clero da África do
Norte dividiu -se em torno dessa questão.
Daí em diante, os numerosos casos de insubmissão administrativa ou militar,
o excesso de poder, a corrupção nos altos cargos em face do constante perigo
berbere anunciavam a chegada, mais ou menos longínqua mas inevitável, da
queda final. Foram precisos cerca de cinquenta anos, de +647 a +698, para que
um novo e inesperado visitante, o conquistador árabe, acabasse para sempre com
o domínio bizantino.
552
África Antiga
553
O período romano e pós -romano na África do Norte
1 Lebda = antiga Leptis Magna
2 Trípoli = Oea
3 Sabratha = Sabrata
4 Bou Garara = Gigthis
5 Gabes = Tácape
6 Bordj Junca =
Macomades Minores
7 Ras Kaboudia =
Justinianópolis
8 Ras Salakta = Sullectum
9 Ras Dimass = Thapsus
10 Lemma = Leptiminus
11 Sousse = Hadrumetum
Justiniana
12 Hergla = Horrea Caelia
13 Henchir Fratis =
Aphrodisium
14 Ain Tébornok = Tubernuc
15 Cartago = Carthago
Justiniana
16 Beja = Vaga
17 Hamman Darradji
= Bulia Regia
18 Bordj Hellal
19 Ain Tpunga = Tignica
20 Henchir Dermoulia
= Coreva
21 Henchir Tembra
= Thaborra
22 Téboursouk =
Thubursicu Bure
23 Dougga = Thugga
24 Ain Hedja = Agbia
25 El Krib = Mustis
26 Kern el Kebch = Aunobari
27 Henchir Douamis
= Uchi Maius
28 Sidi Bellagui
29 El Kef = Sicca Veneria
30 Henchir Djezza = Aubuzza
31 Ebba = Obba
32 Lorbeus = Laribus
33 Sidi Amara
34 Ksar Lemsa = Limisa
35 Henchir Sguidam
36 El Kessra = Chusira
37 Djelloula
38 Henchir = Ogab
39 Sbiba = Sufes
40 Haidra = Ammaedara
41 Gastel
42 Tebessa = Theveste
43 Henchir Bou Driès
44 Sbeitla = Sufetula
45 Fériana = Thelepte
46 Gafsa = Capsa
47 Negrine = Ad Maiores
48 Bades = Badias
49 Thouda = Thabudeos
50 Biskra Vescera
51 Tolga
52 Tobna = Thubunae
53 Ksar Bellezma
54 Ain Zana = Diana
Veteranorum
55 Ain el Ksar
56 Lambèse = Lambaese
57 Tïmgad = Thamugadi
58 Henchir Guesses
59 Baghaï = Bagai
60 Khenchela = Mascula
61 Henchir Oum Kif = Cedias
62 Ksar el Kelb = Vegesela?
63 Henchir Cheragreg
64 Taoura = Thagora
65 Mdaourouch = Madauros
66 Tifech = Tipasa
67 Khamissa = Thubursicu
Numidarum
68 Guelma = Calama
69 Announa = Thibilis
70 Ksar Adjeledj
71 Ksar Sbahi = Gadiaufala
72 Ain el Bordj = Tigisis
73 Djebel Ferroukh
74 Constantina = Constantina
75 Fedj Sila = Sila
76 Mila = Milev
77 Sétif = Sitifis
78 Zraia = Zarai
79 Kherbet Zembia = Cellas
80 Ain Toumella = Thamallula
81 Oued Ksob
82 Béchilga = Zabi Justiniana
Principais construções militares e fortalezas do território bizantino
554
África Antiga
Am dos ensinamentos hisricos que esse período nos proporciona,
preservaram -se esplêndidos vestígios arqueológicos. A edificão de grandes
fortalezas, a construção ou decorão de igrejas, algumas vezes em estilo
suntuoso, como em Sabrata ou Kelibia, mostram um espírito notável de
perseverança e
3
.
As regiões independentes
Levando em conta que a África romana do Baixo Império passara por
numerosas transformações políticas e sociais, podemos compreender aque
ponto a chegada dos vândalos serviu como um canal liberador para essas antigas
tendências. A eterna África recuperou seus direitos, e a presença estrangeira,
próxima ou distante, foi considerada apenas como um fardo. Portanto, seria
ilusório diferenciar, no plano psicológico, as regiões governadas por príncipes
berberes e nominalmente ligadas à soberania vândala ou bizantina, das regiões
completamente independentes. As primeiras, situadas na periferia das zonas sob
ocupação estrangeira, eram a tal ponto descentralizadas que constantemente
entravam em conflito com o poder central. Os governantes bizantinos conferiam
uma investidura oficial a Iavdas, nos Aures, a Guenfan, Antalas e Coutzina, nas
altas estepes tunisianas, e a Carcazan, na Tripolitânia. Todos esses vassalos”
3 A literatura antiga a respeito da África bizantina é representada essencialmente pelo historiador grego
PROCÓPIO, verdadeiro “correspondente de guerra” da reconquista: A Guerra dos Vândalos (ver nota
2 acima) e Os Edifícios (DEWING, B. H., ed. London, Loeb, 1954); e pelo poeta latino CORIPO,
que narrou a epopeia militar de João TROGLITA contra os mouros: a Iohannis (PARTSCH, Leipzig,
Teubner, 1879; DIGGLE -GOODYEAR, ed. Cambridge Univ. Press, 1970). O trabalho ctico
fundamental sobre o período ainda é o de C. DIEHL (1896. pp. 533 -709). Desde então multiplicaram-
-se as descobertas arqueológicas e as publicações sobre assuntos especícos. Citamos apenas os mais
recentes.
Sobre história propriamente dita: BELKHODJA, K. 1970. pp. 55 -65. Sobre os limites geográcos da
ocupação: DESANGES, J. 1963. pp. 41 -69.
As forticações estão sendo estudadas pormenorizadamente: GOODCHILD, R. G. 1966. pp. 225 -50;
JONES, A. H. M. 1968. pp. 289 -97; LANCEL, S. & POUTHIER, L. 1957. pp. 247 -53; LASSUS, J.
1956. pp. 232 -9; ROMANELLI, P. 1970. pp. 398 -407; LASSUS, J. 1975. pp. 463 -74.
Sobre questões religiosas: CHAMPETIER, P. 1951. pp. 103 -20; BERTHIER, A. 1968. pp. 283 -92; e
mais particularmente DUVAL, Y. & FÉVRIER, P. -A. 1969. pp. 257 -320.
A arquitetura religiosa, os mosaicos e a epigraa durante o mesmo período são tratados fundamentalmente,
no que se refere a Haidra e Sbeitla, por DUVAL, N. 1971; cf. DUVAL, N. & BARATTE, F. 1973; id.
1974, que remetem à bibliograa completa; cf. CINTAS, P. & DUVAL, N. 1958. pp. 155 -265; FENDRI,
M. 1961; DUVAL, N. 1974. pp. 157 -73; ANGELIS D’OSSAT, G. de. & FARIOLI, R. 1975. pp. 29 -56.
Os tesouros monetários e o numerário bizantino emitido pela casa da moeda de Cartago foram
catalogados por C. MORRISSON (1970). Recentemente descobriu -se um tesouro de moedas de ouro
em escavações feitas em Rougga, perto de El Djem na Tunísia, certamente enterrado na época da
primeira incursão árabe no país, em 647: GUÉRY, R. 1972. pp. 318 -9.
555
O período romano e pós -romano na África do Norte
 . Timgad (Argélia): Fortaleza
bizantina, século VI:
. Muralha sul, alojamentos e capela dos
ociais.
. Muralha norte, piscina, alojamentos e capela
dos ociais. (Fotos P. Salama.)
556
África Antiga
administravam livremente os territórios a eles concedidos; o problema de uma
eventual devolução não se colocava.
Quanto às zonas livres de toda interferência externa, algumas situadas bem
longe das fortalezas vândalas ou bizantinas, nas antigas Mauritânia Cesariana
e Mauritânia Tingitana, desde o ano +429 desfrutavam de uma independência
absoluta e seus governantes não intervinham nos assuntos vizinhos a não ser
para obter alguma vantagem pessoal.
Reencontramos aqui um dado essencial da história do Magreb nos tempos
clássicos: a tendência à divisão e às rivalidades territoriais no momento em que
desaparecia uma força centralizadora. Nesse caso, a divisão política obedecia aos
imperativos geográficos.
Infelizmente, conhecemos muito pouco sobre a estrutura da África do Norte
independente no período pós -romano. Grandes confederações socio políticas
constitram alguns reinos, que nos o revelados apenas por raras alusões literárias
ou pelo acaso dos achados arqueológicos. No início do culo VI, na rego de
Altaya e Tlemcen, havia, por exemplo, o reino de Masuna, rei dos mouros e
dos romanos”; um pouco mais tarde, nos Aures, sabemos do reino de um certo
Masties, dux durante sessenta e sete anos, imperator durante quarenta anos”,
que nunca renegou sua nem diante dos romanos nem diante dos mouros”.
Vartaia, outro chefe local, rendia -lhe homenagem e provavelmente reinava na
zona de Hodna. Com certeza, a cidade de Tiaret, antiga cidadela do limes romano,
admiravelmente situada na junção dos mundos nômade e sedentário, também
foi, desde o século V, a capital de uma dinastia cujo poder é simbolizado ainda
por mulos majestosos, os Djedars de Frenda. Talvez deva constar desta relação
também o poderoso Garmul, rei da Maurinia, que destruiu um exército bizantino
em 571. Finalmente, durante os séculos VI e VII, existia na longínqua Tingitana,
ao norte do atual Marrocos, um principado indígena cuja vitalidade é atestada
pelas inscrições de Volubilis e do mausoléu de Souk -el -Gour.
Na maioria dos casos, a organização socio política revela uma estrutura que
não é rudimentar nem anárquica. Instituições originais conjugavam as tradições
berberes e o modelo administrativo romano. Mouros” e romanos” estavam
associados, fórmula que certamente implicava uma colaboração entre elementos
camponeses, o -romanizados, e citadinos, provenientes de muitos culos
de influência latina. Portanto, não se contestava uma herança administrativa
e cultural de origem estrangeira, que eventualmente constituía motivo de
orgulho. O mapa histórico que traçamos dessas regiões mostra a sobrevivência
de pequenos centros urbanos, como Tiaret, Altaya, Tlemcen e Volubilis, ainda
cristianizados, onde o uso do latim persistiu até o século VII.
557
O período romano e pós -romano na África do Norte
 . . Haidra (Tunísia): Fortaleza bizantina, século VI. Detalhe e vista geral. (Fotos P.
Salama.)
558
África Antiga
Mas não devemos nos iludir com tais sobrevivências. O futuro não pertenceria
à ligão nostálgica de reis de importância menor a um presgio extinto,
mas à força irresistível de independência e ruptura que inspirava as massas
rurais. A área como um todo estava irrevogavelmente envolvida no processo
de desromanização e mesmo de descristianização que iria assumir diferentes
formas e durar mais ou menos tempo, de acordo com o lugar. A manifestação
mais imediata e elementar desse fenômeno foi o ataque geral dos montanheses
e nômades aos símbolos tradicionais de riqueza, isto é, cidades e domínios.
Sabemos que Djemila, Timgad, Thelepte e muitas outras cidades famosas
foram devastadas antes da chegada dos exércitos bizantinos. A verificação de
fontes arqueológicas e literárias e, principalmente, a descoberta de numerosos
tesouros monetários permitiram -nos entrever, entre outros conflitos, uma rebelião
geral que ocorreu nos últimos anos do século V. Ao mesmo tempo, a intervenção
das principais tribos nômades no sul da Tunísia e na Tripolitânia, como a dos
Levathe ou Louata, mostra o papel considerável do camelo na economia geral e
nas táticas de guerra dos séculos V e VI. Para vencer esses nômades em campo
aberto, o exército bizantino teve de enfrentar uma tríplice fila concêntrica de
animais amarrados um ao outro, uma verdadeira fortaleza viva a ser derrubada
a golpes de espada. Ainda se tratava, nesse caso, de operações hostis contra os
estrangeiros, vândalos ou bizantinos. Mas as próprias regiões independentes
viviam tumultos comparáveis, guerras inter -regionais ou razias locais.
Por trás desses eventos que insuflaram durante muito tempo a violência,
até que se atingisse finalmente um ponto de equilíbrio podemos entrever
um cenário econômico e social caracterizado pela tendência à pauperização
progressiva das massas populares. Para o ano de +484, por exemplo, possuímos
uma estatística do número de bispados da Mauritânia Cesariana, em que ainda
se encontram os nomes da maioria das cidades da África romana cssica.
Mesmo supondo que muitas dessas cidades estivessem reduzidas à condição
de aldeias, o fato é que existiam. As construções de igrejas, em geral ornadas
com finos mosaicos como em El -Asnam, testemunham uma atividade criadora
necessariamente financiada por fontes restantes de riqueza. Sem dúvida ainda se
colhiam os frutos do impulso que se verificara no período anterior. No entanto,
a arqueologia não revela praticamente nada comparável nos séculos VI e VII.
O abandono das cidades persistiu, consolidando -se ao mesmo tempo a nova
sociedade, de tipo essencialmente rural, que se tornaria predominante durante
a Alta Idade Média.
Que vestígios monumentais nos legou esse último período? As zonas próximas
do litoral mauritano, onde se abrigavam os bizantinos, abriram -se facilmente a
559
O período romano e pós -romano na África do Norte
 . Sbeitla (Tunísia):
Prensa de azeite instalada numa
antiga rua da cidade romana (sécu-
los VI a VII).
F . Djedar de Ter-
naten, perto de Frenda (Argélia):
Câmara funerária, século VI. (Fotos
P. Salama.)
560
África Antiga
influências. Encontraram -se, por exemplo, candelabros de fino bronze, do século
VI, nas ruínas de Mouzaiaville, ao sul de Tipasa. O próprio sítio de Ténès tornou-
-se famoso pela descoberta de um dos mais notáveis tesouros de ourivesaria do
mundo antigo, contendo principalmente as insígnias dos dignitários imperiais.
Ainda é um mistério sua existência nesse lugar remoto. O autor acredita que
todas essas joias foram roubadas ou que talvez se relacionem ao saque de Roma,
perpetrado, de acordo com os textos, em +455 pelas tropas vândalas auxiliadas
por contingentes mouros.
Porém, à medida que nos afastamos das áreas costeiras e das zonas sob
ocupação estrangeira, a atividade construtora cessa no final do século V. Contudo,
existem duas exceções importantes à regra, representadas pelos famosos túmulos
de tipo colossal nos quais a arte de construir, e de bem construir, recuperou suas
antigas tradições sem sofrer necessariamente qualquer influência estrangeira. No
Marrocos, o mausoléu de Souk -el -Gour, que pode ser datado do século VII, e na
Argélia, os Djedars de Frenda, dispostos cronologicamente do século V ao VII
(?), testemunham um vigor arquitetônico inexplicável se o contexto local fosse de
total penúria. Não é muito surpreendente que os primeiros reinos muçulmanos
do Magreb central e ocidental, o de Rustêmida de Tiaret, e depois os idrísidas
de Walili (Volubilis), se tivessem fixado exatamente nesses lugares.
Assim se encerrou nessas regiões o período antigo, episódio híbrido em que
a ação das transformações políticas e sociais apagou pouco a pouco a influência
latina, revelando o inextinguível espírito de independência e a imensa firmeza
de objetivos que é a marca imutável da história da África do Norte
4
.
4 Nas fontes literárias antigas existem apenas referências esporádicas à situação das regiões independentes:
alusões em PROCÓPIO e CORIPO, por exemplo, quando a intervenção política dos vândalos e dos
bizantinos envolve os mouros. O Iohannis, por exemplo, contém centenas de detalhes sobre a sociologia
dos povos indígenas. Mas nossa documentação principal provém das descobertas arqueológicas.
uma análise eminentemente intuitiva do problema feita por COURTOIS, C. 1955. pp. 325 -52. Vários
escritores comentaram a inscrição em honra de MASTIES, encontrada em 1941 em Arris no Aures; cf.
nalmente CARCOPINO, J. 1956. pp. 339 -48, contestando as conclusões de COURTOIS. Os roumis
de Volubilis foram estudados por CARCOPINO, J. 1948. pp. 288 -301. Para as provas epigrácas mais
recentes, MARCILLET -JAUBERT, J. 1968.
Sobre a grande rebelião do m do século V, SALAMA, P. 1959. pp. 238 -9.
A situação econômica e monetária das regiões independentes é descrita por TURCAN, R. 1961. pp.
201 -57; J. HEURGON (1958) faz um estudo notável das joias e propõe a teoria de que pertenciam a
uma poderosa família estabelecida em Ténès. Mas a natureza eclética da coleção parece estar mais de
acordo com a psicologia de um ladrão. Quanto à continuidade da atividade construtora após 429, ver,
por exemplo, FÉVRIER, P. -A. 1965.
Os grandes túmulos dinásticos pós -romanos foram tema de um estudo analítico recente: CAMPS, G.
1974 -a. pp. 191 -208, e mais especicamente KADRA, F. 1978.
Quanto à sobrevivência durante uma grande parte da Idade Média muçulmana – mais particularmente
em Tlemcen, Bejaia, Kairwan e Trípoli de comunidades cristãs que em geral continuaram a falar o
latim: COURTOIS, C. 1945. pp. 97 -122 e 193 -266; MAHJOUBI, A. 1966. pp. 85 -104.
C A P Í T U L O 2 0
561
O Saara durante a Antiguidade clássica
A noção tradicional de Antiguidade clássica pode parecer, a priori,
incompatível com o estudo dos problemas saarianos, que possuem uma
classificação muito específica. Para citar apenas um exemplo: a Antiguidade
clássica, que na arqueologia mediterrânica cobre um período de aproximadamente
mil anos (do século V antes da Era Cristã ao século V da Era Cristã), abrangeria,
na Proto -História do Saara, o fim da época “equidiana e parte da época líbico-
-berbere”, as quais, aliás, não são rigorosamente datáveis; fica, pois, excluída
qualquer possibilidade de se estabelecer uma cronologia absoluta.
Todavia, durante esse mesmo milênio, o universo saariano foi palco de eventos
muito importantes, em grande parte ligados à história do mundo greco -romano.
Desse modo, não hesitamos em usar os critérios cronológicos clássicos, válidos
para todo o mundo conhecido da época.
Como se coloca para o historiador a questão do Saara na Antiguidade?
Primeiramente, devem -se examinar as fontes textuais greco -latinas: embora
a informação coletada nem sempre seja confiável, podendo induzir a erro, em
princípio é útil. Num segundo momento, a intervenção de métodos científicos
modernos deve corrigir pouco a pouco os primeiros dados e esclarecer o conjunto
do problema. Depois disso, o Saara antigo não será mais julgado apenas a partir
de uma visão exterior, mas revelará sua própria personalidade.
O Saara durante a
Antiguidade clássica
P. Salama
562
África Antiga
As fontes textuais da antiguidade e suas interpretações
extremas
Conhecemos os métodos analíticos dos geógrafos e historiadores antigos.
Sem poder visitar as regiões inacessíveis, recolhiam informações de segunda mão,
permeadas de erros e fabulações. Terra incognita, o grande deserto nem chegou a
receber nome. Só após a chegada dos árabes é que o termo Saara foi aplicado a
essa vasta região que parecia uma enorme bacia. Os gregos, e posteriormente os
romanos, falavam apenas de uma “Líbia Interior”, expressão geográfica bastante
vaga que servia para designar as terras além dos territórios norte -africanos, ou
“Etiópia Interior”, zona ainda mais meridional, que derivava seu nome da pele
escura de seus habitantes. As descrições dessas regiões que, por seu próprio
mistério, assustavam os contemporâneos, estão cheias de detalhes fabulosos em
que homens e animais frequentemente tomam o aspecto de monstros burlescos
ou terrificantes.
Contudo, se os autores sérios nem sempre puderam evitar as lendas,
registraram informações valiosas; com o tempo, pode -se perceber uma melhora
na qualidade de seus trabalhos à medida que o progresso da colonização greco-
-romana na África propiciava um maior conhecimento das realidades locais.
Desde a metade do século V antes da Era Cristã, Heródoto obtinha no Egito
informações de primeira ordem sobre a existência e os costumes das populações
saarianas que habitavam os limites meridionais da Tripolitânia e da Cirenaica.
Em seus escritos, encontramos os Garamantes perseguindo os Trogloditas
em carros puxados por quatro cavalos (IV, 183) e os Nasamones (IV, 172 -5)
abrindo caminho para além dos desertos de areia e descobrindo, num país de
homens com pele escura, um grande rio repleto de crocodilos semelhante ao
Nilo
1
. Ficamos cientes ainda da extraordinária façanha dos marinheiros fenícios
que lograram circunavegar todo o continente africano, de leste a oeste, sob o
patrocínio do far, por volta de -600 (IV, 43), e do insucesso dos persas na
mesma tentativa (porém em sentido inverso), após se aventurarem no Atlântico
(IV, 43). Finalmente, podemos ver os cartagineses trocando suas mercadorias
por ouro em nas costas da África ocidental (IV, 196).
É aqui que intervém em nossas fontes um documento lebre, datado
provavelmente da primeira metade do século IV antes da Era Cristã, o Periplus de
1 Sobre essa expedição cf. R. LONIS, conrmando a hipótese de S. GSELL acerca das rotas nasamones
em direção ao vale do Saura.
563
O Saara durante a Antiguidade clássica
Hanão, que narra a viagem de um cartaginês incumbido de explorar e colonizar
essa mesma costa (Geographici Graeci Minores, I). Essa breve narrativa, embora
cheia de paisagens pitorescas, homens selvagens, crocodilos e hipopótamos,
fornece dois importantes referenciais: a ilha de Cerna conhecida por outra
fonte como um entreposto de marfim e peles de animais selvagens (Périplo
de Silas, século IV antes da Era Cristã, parágrafo 112) e um grande vulcão,
denominado “Carro dos Deuses”, última etapa da viagem de Hanão ao longo da
costa africana. A existência desses dois lugares foi confirmada, no século II antes
da Era Cristã, pela viagem do historiador grego Políbio, embora sua narrativa
seja conhecida apenas indiretamente, através de um outro texto (Plínio, o Velho.
História Natural, V, 9 -10).
Essas são nossas principais fontes de informação anteriores à colonização
romana na África. Paradoxalmente, é a fonte mais antiga a que menos se presta
à crítica. A documentação de Heródoto é sólida e geralmente moderada exceto
no caso da circunavegação da África, empreendimento de veracidade duvidosa
e escapa às interpretações extremas
2
. O Periplus de Hanão, ao contrário, pródigo
em detalhes topográficos, deu margem a comentários eufóricos; os historiadores
tradicionais não hesitam em atribuir aos cartagineses o conhecimento de toda a
costa da África ocidental até Camarões
3
.
A presença dos romanos alterou essa situação. Solidamente instalados na
África mediterrânica e no Egito, os conquistadores não tardaram em tomar
contato com as regiões limítrofes, fato que envolveu sem nenhum espírito
de colonizão campanhas militares de intimidão ou reconhecimentos
comerciais e até mesmo científicos.
Um texto muito valioso de Plínio, o Velho (História Natural, V, 5), relata uma
invasão em -19 conduzida pelo procônsul da África, Cornélio Balbo, contra o
reino rebelde dos Garamantes do Fezzan. Embora alguns topônimos constantes
da relação das vitórias romanas sejam perfeitamente identificáveis, como Rhapsa
(Gafsa), Cidamus (Gadames) ou Garama (Germa), muitos outros são ambíguos
e lembram os nomes das modernas localidades saarianas; isso foi considerado
prova suficiente de que os romanos atingiram o Níger
4
.
Ainda mais eloquentes são as narrativas que, na literatura do período latino,
deixam entrever importantes incursões romanas no interior do continente
africano. O escritor Marino de Tiro (fim do século I da Era Cristã) e seu
2 LECLANT, J. 1950 -b. pp. 193 -253; CARPENTER, R. 1965. pp. 231 -42.
3 GSELL, S. 1918. pp. 272 -519; CARCOPINO, J. 1948. pp. 73 -163; DESCHAMPS, H. 1970. pp. 203 -10.
4 LHOTE, H. 1954. pp. 41 -83; id. 1958.
564
África Antiga
565
O Saara durante a Antiguidade clássica
1 Resseremt, perto de Akjujit, Mauritânia: 2
denários
AR República Romana (Mauny. 1956-a. p. 255).
1A Tamkartkart, Mauritânia: denário romano, século II da Era Cristã (Notes Africaines, n. 115. 1967. p. 101).
1B Akjujit, Mauritânia: fíbula romana de bronze (Antiquités Africaines, 1970. pp. 51-4).
2 Essauíra-Mogador, Marrocos: material púnico e romano, século VII antes da Era Cristã ao século V da Era Cristã (Jodin. 1966).
2A Cabo Rhir, Marrocos: cerâmica púnica, século III antes da Era Cristã (Rebuffat. Antiquités Africaines. 1974. pp. 39-40).
3 Safi, Marrocos: tesouro monetário romano, século IV (PSAM. 1934. p. 127). Djorf el Youdi (15 km ao sul de Safi): pé de estátua púnica (Antiquités
Africaines. 1974. pp. 38-9).
4 Azemur, Marrocos: cerâmica púnica; moedas romanas, século II da Era Cristã (Mauny. 1956-a. p. 250; Antiquités Africaines. 1974. p. 35). El-Jadida
(Mazagan) (15km ao sul de Azemur) e Meharza (30km ao sul de Azemur): moedas romanas, séculos I e II da Era Cristã (Antiquités Africaines.
1974. p. 36).
5 Casablanca, Roches Noires: tesouro de denários AR República Romana proveniente de uma galera naufragada (Mauny. 1956-a. p. 250). Fedala,
Sidi Slimane des Zaers, Bouznika, Skhirat, Dchira, Temara, Dar el Soltane (todos a 80 km da costa leste de Casablanca): cerâmica romana; moedas
romanas e bizantinas
(
Antiquités Africaines. 1974. pp. 29-32).
6 Oued Itel, Argélia: cerâmica romana em túmulos indígenas (CRAI. 1896.
p,
10).
7 Ghourd el Oucif: tesouro de denários AR República Romana, século II da Era Cristã (Mauny. 1956-a. p. 252).
8 Hassi el Hadjar, Argélia: cerâmica e moedas romanas (inédito, Favergeat).
9 Fort Miribel, Argélia: fragmento de lâmpada com bico alongado (bizantina?) (inédito, H.-J. Hugot).
10 El Menzeha, Argélia: sino de bronze; cerâmica romana (J. P. Morel. Bull. Soc. Préhist. Française. 1946. p. 228).
11 Erg el Ouar, perto de Temassinine (antigo Fort Flatters), Argélia: Rosácea de bronze romana (inédito, Spruytte).
12 Issaouane Tifernine, perto de Tabelbalet, Argélia: dois braceletes de bronze (inédito, J. Spruytte).
13 Ilezi (antigo Fort Polignac), Argélia: moedas romanas (Lhote. Bull. Liaison Saharienne. Abr. 1953. p. 57).
14 Abalessa, Argélia: conjunto de monumentos de Tin Hinan: joias e objetos romanos, séculos III e IV
(Camps,
1965).
15 Timmissao, Argélia: moedas romanas
(Mauny,
1956. p. 252).
16 Chaaba-Arkouya, Djanet, Argélia: cerâmica romana e bracelete de bronze em túmulos (Lhote. Libyca A. 1971. p. 187).
17 Dider e Tadrart, Tassili n’Ajjer, Argélia: moedas romanas, século IV (Mauny. 1956. p. 251); cerâmica romana (inédito, J. Spruytte).
18 Tin Alkoum, Argélia: cerâmica e vidro romanos em túmulos, século IV da Era Cristã (Leschi. 1945).
19 Ghat, Líbia: cerâmica e
vidro romanos em túmulos, século IV (Caputo
&
Sergi Pace. 1951).
20 Grupo garamante: Djerma, Zinchera, Tin Abunda, Taghit, El Charaïg, El Abiod, Líbia: cerâmica púnica tardia; cerâmica e vidro romanos, séculos
I a V da Era Cristã (M. Reygasse, H. Lhote: 1955; G. Camps. 1956; M. Gast. 1972).
21 Materes, Líbia: sítio romanizado, século II da Era Cristã (Rebuffat. 1972. pp. 322-6).
22 Sinaouen, Líbia: fíbula de la Tène II (Camps. Libyca A. 1963. pp. 169-74); sítio romanizado, século II da Era Cristã (Rebuffat.1972).
23 Oued Neina, Líbia: sítio romanizado (Brogan.
Libya Antiqua.
1965. pp. 57-64).
24 Ouaddan,
Líbia:
sítio romanizado (Rebuffat. 1970).
25 Tagrift, Líbia: sítio romanizado (Rebuffat. 1970).
26 Siwa, Oásis de Âmon, Egito: sítio helenizado, posteriormente romanizado.
27 Ouadi Rayan, Egito: sítio romanizado (Caton Thompson. 1929-30).
28 Dakhla-Mehatta-kharga, Egito, Oásis Magna dos Antigos: sítios helenizados, posteriormente romanizados.
29 Abu Ballas, Egito: cerâmica romana tardia (Mitwally. Amer. Journal of Arch. 1952. pp. 114-26).
≠30 Kordofan, Sudão: sítio romanizado (Arkell, 1951. p. 353).
31 El Obeid, Sudão: moedas romanas (Mauny. 1956-a.
p.
254).
566
África Antiga
comentador, o célebre geógrafo Cláudio Ptolomeu, cuja documentação relativa
à África remonta aos anos +110 a +120, relatam que o governador Sétimo Flaco,
Tendo realizado campanha a partir da Líbia, percorreu o trajeto entre o país dos
Garamantes e o dos etíopes em três meses de viagem rumo ao sul; que Júlio Materno,
por sua vez, vindo de Leptis Magna e viajando a partir de Garama em companhia
do rei dos Garamantes, que marchava contra os etíopes, atingiu Agisymba, uma terra
etíope onde abundavam os rinocerontes, após quatro meses de viagem ininterrupta
em direção ao sul” (Ptolomeu. Geografia, I, 8, 4).
Esse relato adquire importância ainda maior pelo fato de Ptolomeu ter
fundamentado seus conhecimentos geográficos sobre o continente africano,
aparentemente vastos, num sistema matemático em que longitudes e latitudes
vêm autenticar os lugares mencionados. A grande quantidade de nomes de
montanhas, rios, tribos e cidades algumas centenas que ilustram seu mapa do
interior da África, ao lado de certas semelhanças fonéticas, levou a se acreditar,
mais uma vez, ser esse documento a prova de que os romanos conheciam
perfeitamente as regiões tropicais da África, principalmente o Níger e o Chade
5
.
Hoje em dia não mais se sustenta essa visão por demais liberal e exagerada.
Os métodos modernos de análise obrigam -nos a repensar a história do Saara.
A abordagem cientíca atual
A nova crítica textual
Os historiadores modernos perceberam claramente que estavam em causa
três obras principais: o Periplus de Hanão, o episódio de Cornélio Balbo e a
Geografia de Ptolomeu.
Durante muitos anos, a veracidade do Periplus foi alvo de críticas contundentes.
De início, constatou -se que os navios antigos que se arriscavam além do cabo
Juby, expostos, na viagem de retorno, à pressão dos fortes ventos alísios, jamais
poderiam retornar à sua base
6
. Tal fato limitou, portanto, o percurso geográfico
da viagem de Hanão à costa atlântica do Marrocos, onde trabalhos arqueológicos
recentes associaram a antiga ilha de Cerna à ilha de Essauíra -Mogador
7
.
Ademais, um todo sutil de comparações filológicas tende a mostrar que
5 BERTHELOT, A. 1931.
6 MAUNY, R. 1954. pp. 503 -8; tese retomada nas Mémoires IFAN (1961, pp. 95 -101).
7 JODIN, A. 1966.
567
O Saara durante a Antiguidade clássica
a narrativa do Periplus é simplesmente um plágio inábil de uma passagem de
Heródoto, portanto, uma falsificação integral
8
.
Segunda vítima: o texto de Pnio que relata o raid de Cornélio Balbo.
A alise dos manuscritos possibilita refutar sistematicamente qualquer
identificação toponímica com as regiões do Saara central e meridional. Portanto,
a vitória romana atingiu apenas o sul do Magreb e do Fezzan
9
. Além disso, um
procônsul, cuja função durava apenas um ano, dificilmente teria ido mais longe.
Finalmente, a Geografia de Ptolomeu, obra de peso, mostra -se particularmente
limitada em relação às fronteiras territoriais. Suas longitudes e latitudes, calculadas
de acordo com os critérios da Antiguidade, bem como as montanhas, rios,
cidades e tribos mencionadas remetem -nos aos confins meridionais do Magreb,
sendo o Níger, por exemplo, apenas um curso de água do sul da Argélia. Assim,
o Fezzan seria a região mais meridional conhecida pelos romanos; o problema
de Agisymba, nas fronteiras das terrae incognitae, continua em suspenso
10
.
Os resultados dessas experncias modernas de crítica textual são muito
interessantes, mas se interrompem, na cronologia geral, no início do século II
da Era Cristã. Nenhuma obra geográfica posterior a essa data chegou até nós.
Atualmente existem indícios arqueológicos de que nos séculos III e IV objetos
de origem romana atingiram regiões bem mais longínquas no interior do deserto.
Os conhecimentos geográficos da Antiguidade devem ter -se aperfeiçoado, e
podemos estar certos de que a documentação romana não ignorava mais, à essa
época, a existência de zonas úmidas para além do grande deserto.
Livre, assim, de condicionamentos textuais por vezes incômodos, o Saara da
Antiguidade pode agora exprimir -se por si próprio.
Quais foram seus quadros ecogico, antropogico e sociogico? Que
vestígios arqueológicos nos revelou?
O problema ecológico
A nível paleoclimático, sabe -se que o Saara atingiu, na época considerada, a
fase final de seu dessecamento
11
. É preciso, contudo, nuançar essa situação: ilhas
de resistência, principalmente as regiões montanhosas e os grandes vales, ainda
8 GERMAIN, G. 1957. pp. 207 -48. A autenticidade da obra é sustentada ainda por G. CHARLES-
-PICARD (1968. pp. 27 -31).
9 DESANGES, J. 1957. pp. 5 -43.
10 MAUNY, R. 1947. pp. 241 -93, com um excelente mapa; DESANGES, J. 1962.
11 DUBIEF, J. 1963; FURON, R. 1972.
568
África Antiga
conservavam umidade suficiente para permitir uma vida bem mais intensa do
que em nossos dias. O Hoggar, o Fezzan, o Tibesti e o Saara setentrional também
ofereciam boas condições de habitação, o que pode explicar a sobrevivência de
uma fauna selvagem, extinta atualmente: crocodilos nos uedes e gueltas (fontes
permanentes) e felinos nas zonas montanhosas; é duvidoso, contudo, que os
grandes hervoros, como o elefante ou o rinoceronte, pudessem ter vivido
aquém do Tibesti ou mesmo da região de Kuar, isto é, a margem setentrional
das grandes savanas tropicais do Chade, onde, naturalmente, eram numerosos
12
.
Os animais domésticos à exceção do camelo, de que falaremos mais adiante
sobreviviam com os homens nas zonas -refúgio de habitação; é o caso de certas
raças de bovinos, de caprinos e ovinos. É curioso constatar que o burro, animal
usado em todos os serviços nos oásis saarianos, praticamente não ocupa lugar
nas representações rupestres.
O problema antropológico
Por falta de critérios científicos, a literatura da Antiguidade quase sempre
qualificava de “etíopes o conjunto dos povos do interior da África. Não se
pode responsabilizar os escritores antigos por isso: nem sempre os próprios
antropólogos e historiadores modernos analisaram devidamente o problema
(os critérios de negritude eram mal definidos)
13
; durante muito tempo supôs -se
que a presença de uma população branca no Saara não passava de fenômeno
recente, uma conquista regular, resultado da expulsão dos berberes das estepes
magrebianas pelos romanos
14
.
Nesse domínio a situação também está se esclarecendo, graças aos trabalhos
recentes realizados no Fezzan e na Argélia saariana. Atualmente se considera
que durante o período proto -histórico do qual a Antiguidade foi o estágio final
o Saara central e meridional era povoado predominantemente por: elementos
brancos altos, de aspecto mediterrânico […] de grande volume craniano […]
rosto mais ou menos longo e estreito […] membros delgados”, características
morfológicas idênticas às dos Tuaregues modernos. Supõe -se hoje em dia que
a origem desse tipo sico deva ser procurada antes na direção nordeste do
12 MAUNY, R. 1956 -b. pp. 246 -79; cf. pp. 124 -45.
13 Geralmente se traduz o grego aethiops por “homem de rosto bronzeado”; a questão foi abertamente
discutida no simpósio A África Negra e o Mundo Mediterrânico na Antiguidade”, realizado em Dacar,
de 19 a 24 de janeiro de 1976; contudo as posições dos participantes não se alteraram substancialmente.
14 GSELL, S. 1926. pp. 149 -66; uma análise erudita de toda a literatura e iconograa da Antiguidade por
SNOWDEN, F. M. 1970. 364 pp.; cf. DESANGES, 1. 1970. pp. 87 -95; CRACCO -RUGGINI, L.
1974. pp. 141 -93.
569
O Saara durante a Antiguidade clássica
continente africano
15
que no Magreb. Quanto aos modernos Haratin dos oásis
saarianos, seriam antes de tudo apesar de alguma mestiçagem os descendentes
locais dos “etíopes” sedentários de Heródoto, que eram escravizados pelos ricos
Garamantes
16
. Poderemos saber mais sobre o assunto quando a técnica de estudo
dos grupos sanguíneos puder fornecer conclusões definitivas
17
. Mas é provável
que o Saara meridional, qualquer que fosse a magnitude de sua população,
abrigasse apenas elementos negros originários das savanas tropicais.
A civilização
Na ausência de uma cronologia absolutamente confiável, parece difícil avaliar
a priori o progresso da civilizão saariana na Antiguidade, principalmente
porque não se sabe ao certo se as diferentes zonas deste vasto território se
desevolveram uniformemente. A situação cultural do Saara no final do período
Neolítico
18
constitui um bom ponto de partida para o estudo dessa questão; a
partir daí, pode -se seguir a linha de evolução em vários campos.
A língua e a escrita
Indiscutivelmente, é durante a Antiguidade que pela primeira vez encontramos
evidência de um importante evento na história da civilização saariana: a presença
de uma língua. Ela ainda é falada em nossos dias, profundamente modificada
em relação às suas origens longínquas. A língua -mãe, pluridialetal, e que, por
conveniência, é denominada berbere, pertence ao tronco comum camito -semita,
do qual se destacou muito tempo. Sua forma antiga, líbia”, é atestada por
inscrições encontradas em todos os territórios da África mediterrânica e nas
ilhas Canárias
19
. Não dúvida de que a introdução dessa língua no Saara
ocorreu no norte ou nordeste com a imigração das populações brancas. Não
seria possível datar o evento, mas a escrita saariana denominada tifinagh –,
15 PACE, C. & S. 1951. pp. 443 -504; ZOHRER, L. G. 1952 -3. pp. 3 -133; BRIGGS, L. C. 1957. pp. 195 -9;
CHAMLA, M. C. 1968. pp. 181 -201, com uma análise do esqueleto da “Rainha Tin Hinan”, p. 114;
DESANGES, J. 1975; id. 1976; id. 1977. Ver a utilização da literatura árabe medieval para interpretar
as origens tuaregue in HAMA, B. 1967.
16 CAMPS, G. 1969 -a. pp. 11 -17.
17 CABANNES, R. 1964.
18 A situação foi bem denida por G. CAMPS (1974 -d. pp. 221 -61, 320 -41, 345 -7).
19 GALAND, L. 1969. pp. 171 -3 bibliografia geral; crônicas anuais do mesmo autor: 1965 -70;
APPLEGATE, J. R. 1970. pp. 586 -661; BYNON, J. 1970. pp. 64 -77; CHAKER, S. 1973; GALAND,
L. 1974. pp. 131 -53; CAMPS, G. 1975.
570
África Antiga
derivada do alfabeto líbio do Magreb, é um fenômeno bastante recente. Ao que
parece, não existem provas da existência da escrita líbia anteriores ao século III
ou II antes da Era Cristã nos territórios setentrionais; admite -se que os berberes
chegaram a escrever sua língua sob a influência cartaginesa. A própria palavra
Tifinagh” Tifinarna transliteração francesa baseia -se na raiz FNR, que,
em todas as línguas semitas, designa o povo fenício.
No Saara, a escrita tifinagh distanciou -se gradualmente de sua forma
ancestral bia, da qual o “tifinagh antigo” ainda se encontra razoavelmente
próximo. Assim, é preciso ter um cuidado especial na datação das representações
rupestres denominadas líbico -berberes” acompanhadas de caracteres escritos;
podem -se cometer erros muito graves. Além disso, a língua e o alfabeto berberes
também podem ter sido utilizados pelas populações negras.
A organização socio política
Os condicionamentos climáticos certamente restringiram o modo de
vida da maior parte das populações saarianas ao nomadismo, com centros
de sedentarizão, como ocorreu com os primeiros conquistadores árabes.
A organização tribal, inerente a seu estágio de evolução, constituía a regra
política básica
20
, mas ocasionava incessantes guerras, relatadas com precisão por
Heródoto e ptolomeu.
Contudo, possuímos dados mais precisos para duas regiões: o Hoggar e o
Fezzan.
No Hoggar, na segunda metade do século IV da Era Cristã, a pirâmide
sociopolítica tinha em seu topo uma mulher. A descoberta do túmulo dessa
soberana, intacto, em Abalessa, evocou imediatamente a associão com a
lenda local de uma rainha, Tin Hinan, vinda do Tafilet marroquino em tempos
remotos, que foi a ancestral do povo tuaregue. Tin Hinan será, pois, seu nome
para a eternidade
21
. No mundo berbere houve numerosos exemplos de atribuição
do poder supremo a uma mulher santificada; seja como for, a sociedade tuaregue
denota uma atitude liberal em relação às mulheres. A mobília funerária dessa
princesasete braceletes de ouro, oito de prata e muitas outras joias pode ser
datada de maneira aproximada através da impressão de uma moeda romana do
imperador Constantino, que remonta aos anos +313 a +324. A cama de madeira
20 CAPOT -REY, R. 1953. pp. 204 -367.
21 REYGASSE, M. 1950. pp. 88 -108; LHOTE, H. 1955; CAMPS, G. 1965. pp. 65 -83; 1974 -c; GAST,
M. 1972. pp. 395 -400.
571
O Saara durante a Antiguidade clássica
em que repousava o corpo foi submetida ao teste de radiocarbono, revelando
a data de +470 (±130). Como veremos, não se pode explicar a riqueza dessa
dignitária apenas por sua situação privilegiada tanto na hierarquia social como
no comércio transaariano.
O vale estreito e fértil situado entre os ergs Ubari e Murzuq abrigava uma
série de oásis de El Abiod a Tin Abunda. Garama, atualmente Germa, era a
cidade principal. A partir de sua guarida, os Garamantes não tardaram a exercer
supremacia sobre todo o Fezzan (antiga Phazania) e a arrecadar tributos de
numerosas tribos nômades e sedentárias dos arredores. Essa grande entidade
regional, o reino dos Garamantes” da literatura greco -latina, aparece como o
único Estado organizado do interior da África ao sul das possessões cartaginesas
(posteriormente romanas). O prestígio e a riqueza dessa civilização, confirmados
pela arqueologia, conferiram -lhe grande renome em nossos dias; fala -se da
civilização garamante” nos mais diversos domínios. Tratava -se, provavelmente,
de uma organização hierárquica de tribos que, segundo os critérios socio políticos
berberes, culminava na autoridade de um agueklid supremo. Os Garamantes,
mencionados por Heródoto desde o século V antes da Era Cristã, opuseram -se
ao avanço romano nos limites meridionais do Magreb. Derrotados por Cornélio
Balbo em -19 e depois, definitivamente, pelo legado Valério Festo em +69,
vieram a se tornar, ao que parece, um tipo de Estado -cliente do Império. As
pesquisas arqueológicas efetuadas em Garama e arredores revelaram quase dez
séculos de uma civilização em parte fundada nas relações exteriores desde a
última época púnica (século II antes da Era Cristã) até a chegada dos árabes
(século VII da Era Cristã)
22
.
É portanto, incontestável que durante a Antiguidade, no Hoggar e no Fezzan,
bem como em todo o Saara setentrional, no Tassili n’Ajjer durante seu último
período, e talvez mesmo no Adrar des Iforas, o poder político supremo estivesse
nas mãos de uma aristocracia de raça branca (ou ligeiramente mestiçada) armada
de lanças, punhais e espadas, vestida com trajes guerreiros, montada em carros
de parada, caçando e guerreando, em detrimento de grupos negros ou negroides
mantidos em estado de sujeição. Na falta de documentos, é impossível dizer se
um fenômeno idêntico se processava no Saara limítrofe das savanas gero-
-chadianas; de qualquer modo, é pouco provável que a influência branca tenha
atingido essas regiões.
22 PACE. C. & S. 1951;
AYOUB.
S. 1962; id. 1967 -a: id. 1967 -b. pp. 213 -9: DANIELS. C.
M.
1968 -b.
pp. 113 -94; FLEISCHHACKER, H. von. 1969. pp. 12 -53; DANIELS, C.
M.
1972 -3. pp. 35 -40.
572
África Antiga
. Esqueleto da
“rainha Tin Hinan”.
F . Bracelete de ouro
da “rainha Tin Hinan”. (Fotos
P. Salama, Museu do Bardo,
Tunísia.)
573
O Saara durante a Antiguidade clássica
Quanto à religião, não dúvida de que todo o Saara central e meridional
continuou animista. os povos do Saara setentrional, em contato direto com
o mundo mediterrânico, teriam se convertido ao cristianismo no final da
Antiguidade. Um autor clássico afirma categoricamente que os Garamantes
e os Makuritas foram evangelizados no fim do século VI
23
, fato ainda não
confirmado pela arqueologia.
A arte saariana na Antiguidade
Os mais belos monumentos de Germa, em grande parte funerários, carecem,
até certo ponto, de originalidade, denotando forte influência romana. A
personalidade saariana pode ser melhor apreciada em outras áreas.
Vários monumentos funerários conhecidos como “pré -islâmicos datam
da Era Cristã. No grande edifício de Abalessa, preservado no Hoggar, um
deambulatório de arquitetura caracteristicamente africana a rodear o túmulo
de Tin Hinan
24
. Em Tin Alkoum, na extremidade sudeste do Tassili n’Ajjer,
uma série de túmulos circulares de manufatura saariana tradicional podem ser
datados através de um mobiliário funerário romano do século IV, particularidade
presente também na necrópole vizinha de Ghat
25
.
Embora não possam ser datados com precisão, os monumentos funerários
ou de culto, em pedra insossa encontrados no Tassili e no Hoggar – pavimentos
lajeados, recintos circulares, bazinas, buracos de fechaduras” – escalonam -se no
tempo até o momento em que o Islã os substituiu por túmulos planos e simples
estelas. As origens estilísticas dos mais originais, os de Fadroun, devem ser
procuradas no Fezzan e na área ao longo das fronteiras do Egito.
Na necpole de Djorf Torba, perto de Béchar (Saara do noroeste)
infelizmente devastada pelos turistas podiam -se encontrar no interior dos
edifícios curiosos ex -votos figurativos, lajes planas, gravadas ou pintadas,
algumas com inscrições líbias, desenhos de cavalos ou figuras humanas, de
estilo semelhante ao da Antiguidade Tardia do Magreb, ainda desprovidos de
elementos islâmicos.
É mais difícil datar os grandes círculos de monólitos eretos (cromlechs)
encontrados no Hoggar (talvez fossem muçulmanos) e, principalmente, os
de Gona Orka e Enneri -Mokto, a oeste do Tibesti. A meu ver, é inútil procurar
23 DESANGES, J. 1962. pp. 96 e 257.
24 CAMPS, G. 1961; id. 1965, passim.
25 LESCHI, L. 1945. pp. 183 -6; PACE, C. & S. 1951. pp. 120 -440.
574
África Antiga
influências estrangeiras; uma vez que a construção de menires, funerários ou de
culto, é comum a todas as civilizações arcaicas. Nesse aspecto, não nada no
Saara que se iguale ao sítio de Tondidarou, perto de Niafunké, 150 km a sudeste
de Tombuctu
26
.
Mas a arte saariana mais importante deve ser procurada sobretudo nas
figurações rupestres. De acordo com a classificação tradicional dos especialistas
em pré -história, a Antiguidade corresponde ao penúltimo estágio da arte rupestre,
o líbico -berbere, período que se segue à era “equidiana” e precede o “árabe-
-berbere”
27
. Embora essa sequência esteja correta, faltam -lhe bases cronológicas,
e a datação do período líbico -berbere entre -200 e +700 ainda é precária. A
presea de caracteres tifinagh antigos talvez seja o critério menos incerto,
embora esse tipo de escrita tenha sido utilizado até a época muçulmana. Dado
que o cavalo e o veículo com rodas ainda coexistiam, é muito difícil diferenciá-
-los cronologicamente. Os carros de guerra a pleno galope representados no
Fezzan e no Tassili enquadram -se numa tradição egipcianizante que remontaria
ao século XIV antes da Era Cristã, ou numa tradição greco -cirenaica assimilada
inicialmente por volta do século VI? Desenhos de camelos aparecem em quase
todas as regiões saarianas, mas é igualmente difícil avaliar -lhes a idade. É
provável que apenas alguns deles se adaptem ao nosso quadro histórico de
referência. As representações bico -berberes resíduo das admiráveis obras
neolíticas, de que assimilaram as tradições provam o vigor da arte figurativa
do Saara no momento em que ela estava se extinguindo nos territórios do norte.
Vida econômica, comunicações internas e relações exteriores
Desde tempos imemoriais a vida econômica do Saara esteve ligada ao
problema das comunicações. Assim, no que diz respeito à Antiguidade clássica,
o enriquecimento de certas regiões como o Fezzan está relacionado à sua esfera
de influência, o que pressupõe a existência de um tráfico de certa importância.
Como sabemos que o comércio interno era limitado, devemos procurar a causa
da prosperidade dessas áreas nas suas relações com o mundo exterior.
26 SAVARY, J. P. 1966. Quase nada se tem escrito sobre as estelas guradas de Djorf Torba; REYGASSE,
M. 1950. p. 104 e 107 -8; informações complementares gentilmente fornecidas por L. BALOUT. Sobre
os megálitos erigidos no Tibesti: HUARD, P. & MASSIP, J. M. 1967. pp. 1 -27; sobre Tondidarou:
MAUNY, R. 1970. pp. 133 -7.
27 Classicação geralmente adotada (BREUIL, GRAZIOSI, HUARD, LHOTE, etc.); cf. MAUNY, R.
1954. Contra: MAÎTRE, J. P. 1976. pp. 759 -83.
575
O Saara durante a Antiguidade clássica
 . O túmulo da “rainha Tin Hinan em Abalessa:
. Entrada principal;
. Lajes usadas para cobrir o fosso. (Fotos P. Salama.)
576
África Antiga
Essa nova situação divergia radicalmente daquela que caracterizava o Saara
úmido das épocas pré -históricas.
Mas como estudar o problema em seu conjunto? Para avaliar o papel
econômico de um território e sua influência, possuímos um critério bastante
seguro: basta examinar o material arqueológico exumado nas regiões limítrofes.
Assim, moedas romanas em quantidades consideveis foram descobertas
na Escandinávia e na Europa norte -oriental ou seja, por toda a periferia
setentrional do mundo clássico e, ainda mais longe, nas margens do Indo e
do Vietnã, o que atesta a vasta área abrangida pelo comércio exterior de Roma.
Mas o que se pode aprender com a região com que estamos lidando? Na medida
em que nos afastamos da África do Norte propriamente dita, a quantidade de
material arqueológico romano diminui até desaparecer totalmente no Saara
meridional. Até agora, nenhum vestígio dessa natureza foi encontrado nas
savanas nígero -chadianas
28
, o que sugere uma virtual ausência de contatos entre
os mundos romano e negro -africano durante a Antiguidade clássica.
Um tal ponto de vista certamente não é inflexível: a pesquisa arqueológica
futura poderá fornecer novas informações; no entanto, a incerteza estará sempre
presente.
Os autores da Antiguidade fazem escassas referências a prodões
saarianas, e a arqueologia confirma esse vazio. Alguns textos gregos ou latinos
mencionam os carnculos e as calcedônias, pedras preciosas provenientes
dos territórios dos Garamantes, dos Trogloditas ou dos Nasamones, situados
ao sul da Líbia atual. E possível que aí se encontrassem também amazonitas,
de que se descobriu um depósito em Egusi Zumma no maciço de Dohone, a
nordeste do Tibesti
29
.
A captura de animais selvagens foi, em minha opinião, a principal fonte de
renda do território. E claro que àquela época a África do Norte ainda abrigava
muitos leões e tigres, antílopes e avestruzes; no entanto, a demanda de Roma
era tal que a caça teve de se estender para o interior da África. Dispõe -se de
estatísticas significativas sobre a questão: na inauguração do anfiteatro flaviano
em Roma no final do século I foram combatidos 9 mil animais; o imperador
Trajano, no ano de seu triunfo (106), expôs 11 mil. A maior parte desses animais
era “libycae” ou africanae”, isto é, exportada da África do Norte
30
. Nesse inventário,
28 LEBEUF, J. -P. 1970, com um importante comentário cientíco e bibliográco. Certas regiões da África
tropical possuíam muito tempo sua própria cultura (civilização de Nok na Nigéria setentrional):
MAUNY, R. 1970. pp. 131 -3; KI -ZERBO, J. 1972. pp. 89 -90.
29 MONOD, T. 1948. pp. 151 -4; id. 1974. pp. 51 -66. Pedras idênticas existiam também no vale do Nilo.
30 JENNISON, G. 1937; AYMARD, J. 1951; TOYNBEE, J. M. C. 1973.
577
O Saara durante a Antiguidade clássica
elefantes e rinocerontes vinham das zonas saarianas mais meridionais ou mesmo
do Chade e do Bahr el -Ghazal
31
. O marfim devia ter alguma importância no
comércio transaariano, visto que o elefante desapareceu quase totalmente da
África do Norte desde o século II da Era Cristã. Não se deve esquecer, contudo,
que a Núbia também forneceu a Roma um contingente de animais selvagens.
É pouco provável que tenha existido um tráfico de escravos negros com a
Europa; o mundo romano ocidental não os procurava.
Com frequência se enfatizou que os comboios de ouro em originários
do Mali e do golfo da Guiné abasteciam o mercado europeu, prefigurando a
situação comercial da Idade Média
32
. Tal opinião é apenas hipotética: possuímos
os inventários de todas as regiões produtoras de ouro às épocas romana e
bizantina, e a África nunca foi citada. No entanto, pode -se perfeitamente supor
a existência de um tráfico aurífero mais ou menos secreto entre o Senegal e o sul
do Marrocos, região produtora de ouro bastante isolada das fronteiras romanas,
uma vez que os árabes estabeleceram um contato extremamente rápido com esse
mercado a partir de 734.
Essas poucas relações comerciais, ainda mal conhecidas, questionam a
utilização das rotas saarianas. Aqui, novamente, é necessário agir com prudência.
Os únicos elementos de que dispomos para uma tentativa de reconstituição
dessa rede de caminhos são certos locais onde desembocam vias naturais (como
Gadames ou a Phazania), a dispersão territorial dos objetos romanos no Saara
e, finalmente, a comparação com as rotas de caravanas anteriores ou posteriores
ao período considerado. Apenas as duas últimas questões apresentam alguma
dificuldade.
É claro que a descoberta de um objeto romano isolado, principalmente uma
moeda, é, em si, pouco convincente; as populações saarianas setentrionais ainda
usavam moedas romanas no século XIX
33
. Mas no momento em que os pontos
de descoberta desses mesmos objetos se ordenam no espaço e indicam, com
boa probabilidade, uma rota de caravana conhecida através de outras fontes – a
cerâmica encontrada nos túmulos, por exemplo –, é válido considerá -los. A área
31 MAUNY, R. 1956 -b. Em Leptis Magna, capital portuária da Tripolitânia, o totem da cidade era de fato
um elefante: MAUNY, R. 1940. pp. 67 -86. DESANGES, J. 1964. pp. 713 -15: moedas do imperador
Domiciano, contemporâneas do anteatro aviano e representando rinocerontes bicornes africanos.
Sugeriu -se que a palavra Agisymba pode estar relacionada a Azbin, denominação local do maciço do
Air, mas não é certo que à época os rinocerontes ainda podiam sobreviver nessa parte do Saara. Além
disso, é possível que os nomes Agisymba e Azbin possam ter correspondentes fonéticos espalhados por
uma grande área geográca.
32 CARCONNO J. 1948.
33 MAUNY, R. 1956 -a. pp. 249 -61.
578
África Antiga
de dispersão dessas provas mostra que a civilização garamante, dependente das
relações com Roma, estendeu sua influência a centenas de quilômetros. Convém
salientar que tal influência era inteiramente garamante e não romana, embora
constituísse um foco secundário de dispersão de objetos romanos. É aqui que
a personalidade saariana antiga se afirma com maior veemência: as populações
locais mantinham relações bastante estreitas, qualquer que tenha sido a causa
inicial de sua aproximação muito provavelmente, a busca de mercadorias
destinadas ao comércio com Roma: Nesse contexto, a mobília funerária de Tin
Hinan é sintomática: pode ser vista como um conjunto de objetos exóticos
colecionados por um chefe local, que, com certeza, cobrava uma taxa dos povos
que atravessavam seu território. Os Tuaregues de épocas posteriores adotaram
o mesmo costume.
Ao que parece, as rotas saarianas de longo curso orientavam -se principalmente
na direção norte e nordeste. Desse modo, os Garamantes e seus satélites teriam
drenado o comércio para a zona do Fezzan. A partir daí, itinerários bem atestados
conduziam aos grandes portos sírticos (Sabrata, Oea e Leptis Magna), cidades
muito ricas a partir da época púnica. De Garama também se podia chegar ao
vale do Nilo por uma rota setentrional que atravessava os oásis de Zuila, Zela,
Aujila e Siwa conhecidos pelos autores antigos –, ou então por um trajeto
mais meridional, onde Kifra desempenhava o papel de encruzilhada
34
. Nessas
regiões orientais do Saara deparamo -nos inevitavelmente com o velho problema
das comunicações neolíticas e proto -históricas, em que o Tibesti constituía um
ponto de parada regular
35
. Mas parece que as relações com o Egito helenístico,
depois romano, declinaram e que o comércio se deslocou cada vez mais para a
costa mediterrânica
36
.
É também no Saara oriental, provavelmente, que devemos procurar o
caminho da introdução do ferro no mundo negro, que este fenômeno não
ocorreu de maneira autônoma. O problema da passagem da Idade da Pedra para
a Idade dos Metais nas regiões saarianas e nigerianas transição que certamente
ocorreu no período considerado é de enorme importância. Também nesse
caso não há uniformidade geográfica. Numa mesma região – a Mauritânia, por
exemplo constata -se a existência simultânea de implementos de pedra e metal
durante os últimos séculos que precedem a Era Cristã: em Zemeilet Barka,
Hassi Bernous e Uadi Zegag foram encontrados utensílios líticos, (datação de
34 LECLANT, J. 1950 -b; LAW, R. C. 1967. pp. 181 -200; REBUFFAT, R. 1970. pp. 1 -20.
35 BECK, P. & HUARD, P. 1969. GOSTYNSKI, T. 1975. pp. 473 -588.
36 UNESCO. 1963 -7; CAMPS, G. 1978.
579
O Saara durante a Antiguidade clássica
 . Tipos “garamantes” num mosaico romano de Zliten, Tripolitânia. Em geral se interpreta esta
cena – em que prisioneiros são lançados às feras – como um epílogo do esmagamento dos Garamantes pelos
romanos em +69. (Foto P. Salama, Museu de Trípoli.)
580
África Antiga
artigos acessórios com carbono 14) enquanto na área de Akjujit indícios da
metalurgia do cobre
37
. Nesse último sítio é possível que tenha havido influência
da indústria do Sous (sul marroquino), que lhe era, talvez, anterior; contudo,
não se deve recusar a hipótese da emergência puramente local da metalurgia,
pelo menos do ouro e do cobre.
A questão da indústria do ferro, que exige o uso de temperaturas mais
elevadas e de técnicas mais complexas, apresenta -se sob um aspecto diferente.
É preciso lembrar que a metalurgia do ferro levou rios séculos para se
difundir do Cáucaso até a Europa ocidental. O problema de sua aparição no
mundo negro é, pois, bastante controvertido: alguns acreditam tratar -se de uma
inveão auctone; outros, de uma intervenção estrangeira. Os defensores
da segunda teoria acham -se ainda divididos: alguns supõem uma influência
mediterrânica, através do Saara central; outros remetem a origem dessa técnica
ao país de Kush, apontando como via de difusão a rota natural que liga o ger
ao vale do Nilo através do Kordofan e do Darfur. Seja como for, datações
obtidas por carbono 14 indicam que a metalurgia do ferro existia na área do
Chade e na Nigéria setentrional nos séculos II e I antes da Era Cristã. Não
se pode rejeitar a priori a hipótese de um desenvolvimento local da metalurgia
do ferro; se tal não ocorreu, contudo, foi provavelmente a civilização meroíta a
responsável pela transmissão dessa técnica
38
, o que exclui uma difusão através
das rotas saarianas centrais.
Uma revolução do camelo?
O estudo dos meios de transporte também pode ajudar -nos a localizar melhor
as rotas saarianas e atestar certas hipóteses. Sabemos que o grande deserto foi
conquistado pelo cavalo, antes do camelo. Aqui, como em outros lugares, o período
equidiano’’ manifesta -se inicialmente pelo uso de carros. Não sabemos quando
desapareceram, mas de acordo com Hedoto, os Garamantes ainda os utilizavam;
a arqueologia confirma esse testemunho. No Saara, as representações de carros –
bastante diversificadas – são muito frequentes. Inventários metódicos permitiram
propor a reconstituição cartográfica das rotas transaarianas seguidas por esses
37 LAMBERT, N. 1970. pp. 43 -62; CAMPS, G. 1974 -d. pp. 322 -3 e 343.
38 Avaliação geral com bibliograa em MAUNY, R. 1970. pp. 66 -76; cf. LECLANT, J. 1956 -b. pp. 83 -91;
DAVIDSON, B. 1959. pp. 62 -7; HUARD, P. 1966. pp. 377 -404; CORNEVIN, R. 1967. pp. 453 -4.
581
O Saara durante a Antiguidade clássica
 . . A avaliação da idade das
pinturas rupestres baseia -se em critérios de estilo e de
pátina. Para os períodos tardios, contudo, a datação é
difícil. Esses dois exemplos, provenientes da região
de Sefar (Tassili nAjjer), parecem pertencer ao
período líbico -berbere”. Na realidade, as inscrições
em “tinar antigo” mostram os nomes islâmicos de
Hakim e Maomé. (Fotos M. Gast.)
582
África Antiga
veículos
39
. Sem exagerar a importância desses indícios, devemos reconhecer que, à
exceção do itinerário ocidental, paralelo ao litoral atlântico, que não desempenha
um papel ativo em nossas fontes clássicas, vários itinerários antigos, confirmados
por textos ou material arqueológico, coincidem com essas famosas rotas proto-
-hisricas. Deve -se acrescentar que qualquer trajeto saariano utilizado por cavalos,
atrelados ou não, requeria ou um sistema de bebedouros que os Garamantes
haviam desenvolvido – ou o transporte de um grande suprimento de provisões.
Quanto ao camelo trata -se mais exatamente do dromedário, originário do
Oriente Próximo –, aparece mais tarde na África saariana. Esse evento foi
discutido ad infinitum
40
. Em realidade, a introdução desse animal no próprio
continente africano só ocorreu num período posterior. O camelo o é encontrado
no Egito até os períodos persa e helenístico (culos V e IV antes da Era Cris),
sendo hipótese aceitável que sua difusão no Saara tenha ocorrido a partir do baixo
vale do Nilo. O fato é, ao que parece, de dicil datação; dispomos, para tanto, de
desenhos rupestres bico -berberes saarianos, de pouca utilidade para uma cronologia
rigorosa, e de um grande mero de inscrições e esculturas da África do Norte
romana, todas aparentemente posteriores ao século II da Era Cristã. Por outro lado,
um monumento gfico de Ostia (porto de Roma) que data dos últimos trinta anos
do século I da Era Cristã associa o elefante e o camelo aos espetáculos de arena. Em
-46 César capturou 22 camelos do rei númida Juba I, cujos domínios estendiam -se
até as fronteiras saarianas. Talvez ainda fossem animais raros. Mas se os camelos
importados por Roma 150 anos depois eram realmente africanos, deviam, eno,
existir em mero considerável no Saara (onde eram procurados para os jogos), visto
ainda não serem muito comuns no terririo do Magreb.
Vale a pena lembrar a presença simlica de camelos nas famosas moedas romanas
ditas spintrianas provavelmente cunhadas para o uso das cortesãs, que os antigos
acreditavam que esses ruminantes possam instintos lúbricos excepcionais!
39 Bibliograa geral em MAUNY, R. 1970. pp. 61 -5; LHOTE, H. 1970. pp. 83 -5. Esses esboços não
são sucientemente claros e detalhados ou mesmo homogêneos – para que se possa tirar conclusões
seguras. Só é explícito o estilo garamante dos carros puxados por cavalos, encontrados apenas no Fezzan
e no Tassili n’Ajjer. Além do mais, parece tratar -se unicamente de veículos de parada, feitos de madeira
e couro; de acordo com a reconstituição de SPRUYTTE, não pesavam mais de 30 kg, sendo, portanto,
impróprios para o transporte de mercadorias (CAMPS, G. 1974 -d. pp. 260 -1; SPRUYTTE, J. 1977).
Não estou convencido de que o estilo desses carros garamantes se deva à inuência dos invasores
cretenses que se perderam no deserto líbio por volta do m do II milênio antes da Era Cristã. As próprias
rotas são problemáticas: provavelmente eram simples orientações de itinerários; alguns escritores, que
absolutamente não aceitam as teorias extravagantes segundo as quais os romanos eram capazes de atingir
o Níger em seus carros (LHOTE, H. 1970), chegam a questionar sua existência: CORNEVIN, R. 1967.
p. 453, segundo P. HUARD; CAMPS, G. 1974 -d. pp. 346 -7.
40 COURTOIS, C. 1955. pp. 98 -101; SCHAUENBURG, K. 1955 -6. pp. 59 -94; DEMOUGEOT, E.
1960. pp. 209 -47; LHOTE, H. 1967, pp. 57 -89; KOLENOO, K. 1970 -a. pp. 287 -98.
583
O Saara durante a Antiguidade clássica
Tendo a concordar com os historiadores que atribuem grande importância à
difusão do uso de camelos no Saara. O animal, com patas flexíveis adaptáveis a
todos os terrenos, de uma frugalidade surpreendente graças ao líquido metabólico
secretado por seu organismo, foi providencial para os nômades, numa época em
que o processo de dessecamento do clima tornava inconveniente o uso do cavalo.
O emprego do camelo representava uma mobilidade maior para os indivíduos e
para os grupos, vantagem muito tempo reconhecida na Arábia. Acredita -se,
inclusive, que uma transformação do método de arreamento, alterando a posição
da sela, permitiu adestrar os meharis, camelos de corrida e combate
41
.
Durante muitos séculos, a difusão desses animais foi lenta, pom sistemática, a
julgar pelo grande número de representações rupestres camelinas” infelizmente
mal datadas presentes em todas as regiões do grande deserto, de técnica
evidentemente muito posterior às belas representações “equidianas”. Embora
nenhum texto clássico mencione o fato, os Garamantes e seus vassalos sem
dúvida terminaram por adotar a utilização do camelo. A regularidade das relações
comerciais desse povo com as zonas mais distantes foi provavelmente resultado
desse uso. Talvez não seja um mero acaso o fato de todo o material romano
encontrado na região de Ghat e Abalessa pertencer ao século IV: nessa época, a
Tripolinia setentrional tamm abrigava um grande rebanho de camelos, do qual
as autoridades romanas normalmente podiam requisitar mil animais a expensas da
cidade de Leptis. O fornecimento de camelos também refor çou consideravelmente
o potencial ofensivo dos nômades nos territórios romanos.
A “política saariana” de Roma
Devido à falta de documentos, não sabemos se a Cartago púnica se
alarmava com a presea de poderosas tribos em suas fronteiras meridionais.
As escavações em Garama provam pelo menos que durante os culos II e I
antes da Era Crisos portos da costa sírtica, então pertencentes ao reino da
Numídia, mantinham relações comerciais com o Fezzan, de que em grande
parte dependia sua riqueza.
A história romana é mais conhecida. Em suas linhas principais, a política
latina pode ser resumida do seguinte modo: a ocupação das terras agrícolas do
Magreb necessitava de uma cobertura estratégica meridional. Nessas regiões os
nômades saarianos eram um obstáculo. Suas migrações sazonais no interior do
território colonizado, inevitáveis porque essenciais à sua sobrevivência, tinham
41 MONOD, T. 1967.
584
África Antiga
um lado útil, na medida em que tornavam acessíveis aos colonos os produtos
da estepe e do deserto; contudo, havia sempre o risco de conflito com as tribos
sedentárias. Mesmo os longínquos Garamantes pareciam perigosos, uma vez que
poderiam, a qualquer momento, reforçar o potencial agressivo dos nômades. O
poderio desses povos constituía, por si só, um desafio.
Durante quatro séculos e principalmente no último período a história
romana vem pontilhada de passagens em que os saarianos dos limites meridionais
da Tripolitânia e da Cirenaica, nômades condutores de camelos, como os
Asturianos, os Marmáridas e sobretudo os Mázaces, chegam a inquietar a costa
líbia e os oásis egípcios
42
. Pode -se, assim, julgar sua mobilidade e raio de ão.
Para evitar esse duplo perigo, o primeiro passo da estratégia romana foi
interromper as comunicações dos nômades com suas retaguardas, destruindo
rapidamente os Estados saarianos mais fortes. Os Nasamones e os Garamantes
foram completamente submetidos desde o início do Alto Império. Daí em diante o
fundamental era proteger o território colonizado através da organização cuidadosa
de uma poderosa rede de fortalezas, rampas e linhas de comunicação (séculos II e
III), implantadas geograficamente em função das vantagens do terreno. Isso explica
a configuração irregular do limes romano, que protegia, com um surpreendente
virtuosismo estratégico, todas as províncias da África mediternica
43
. Desse modo,
o controle do nomadismo saariano setentrional parecia estar assegurado.
No entanto, a pacificação foi apenas temporária. A partir do século IV,
intensifica -se o assédio dos nômades cameleiros às fronteiras, enfraquecendo,
dia após dia, a resistência das guarnições do limes.
Sabemos o que ocorreu depois. No processo de evicção de Roma, devido a
múltiplas causas, a “questão saariana” influiu de algum modo.
Ainda que sejam incompletos, nossos conhecimentos sobre o Saara da
Antiguidade continuam positivos; vários pontos são inquestionáveis. O
dessecamento do clima não “matou” o deserto: a atividade humana se manteve.
As línguas e a escrita se consolidaram. Com a difusão do camelo, diminuíram
os problemas de transporte e comunicação. A região participou à sua maneira
na história dos grandes Estados mediterrânicos, assim como, talvez, a África
tropical. Foi sem dúvida nesse contexto evolutivo que o renascimento medieval
encontrou suas raízes.
42 Literatura e epigraa reunidas por: DESANGES, J. 1962; CRACCO -RUGGINI, L. 1974.
43 Sobre a questão dos contatos romano -saarianos em função do limes: para a Mauritânia, ver SALAMA,
P. 1953. pp. 231 -51; id. 1955. pp. 329 -67; id. 1976, pp. 579 -95; para a Numídia: BARADES, J. 1949;
para a Tripolitânia: VITA, A. di. 1964. pp. 65 -98; REBUFFAT, R. 1972. pp. 319 -39.
C A P Í T U L O 2 1
585
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
Uma das principais conclusões a que conduziram as recentes pesquisas
arqueológicas realizadas na África subsaariana é a de que povos em diferentes
estágios de desenvolvimento tecnogico, vivendo em diversas partes da
África, foram contemporâneos entre si. A Idade da Pedra não teve ali um fim
uniforme, as técnicas agrícolas foram adotadas em momentos diversos e muitas
das comunidades de que tratam os próximos capítulos ainda viviam da caça
e da coleta em fins do I minio da Era Cristã, utilizando uma tecnologia
característica da Idade da Pedra. Contudo, nenhuma sociedade se manteve
estática, e, na maioria dos casos, estabeleceram -se contatos culturais muito
intensos, apesar das distâncias por vezes consideráveis. Paradoxalmente, esses
contatos ocorreram com maior intensidade através da barreira supostamente
impenetrável do Saara, desempenhando um papel unificador na história da
África. É impossível atribuir uma data precisa para o término do período
estudado, por se tratar de uma área para a qual não dispomos de uma cronologia
acurada. Em geral as datas conhecidas, relativamente seguras, são fornecidas
pelo carbono 14, mas a margem de erro para o período em questão pode atingir
vários séculos. Ao invés de procurar estabelecer uma data fixa para o fim do
período, os capítulos sobre a África subsaariana tratam essencialmente do que
em geral se denomina Neolítico’” e o início da Idade do Ferro. O período assim
definido termina por volta do ano -1000 na maior parte das regiões. No passado,
Introdução ao m da P-História na
África subsaariana
M. Posnansky
586
África Antiga
o termo “Neolítico aplicado à África subsaariana foi utilizado de maneira vaga
para designar um certo tipo de economia agrícola e/ou para distinguir conjuntos
de instrumentos que incluem utensílios cortantes em pedra polida ou lascada,
cerâmica e, frequentemente, mós ou moletas.
As primeiras comunidades de agricultores o se caracterizavam
necessariamente pela utilização de um mesmo conjunto de utensílios. Pesquisas
recentes efetuadas em várias partes da África demonstraram a grande resistência ao
tempo dos utensílios em sílex talhado; tais instrumentos surgiram primeiramente
entre os caçadores -coletores de diversas regiões da África há mais de 7 mil ou 8
mil anos e peças análogas provavelmente ainda eram utilizadas em certas partes
da bacia do Zaire (Ueliam) menos de mil anos. Parece que os caçadores-
-coletores, que viviam em contato com os seus vizinhos agricultores, também
utilizaram a cerâmica bem antes de se dedicarem, por sua vez, à agricultura.
As mós encontradas pela primeira vez nos sítios do final da Idade da Pedra,
em diversas regiões da África, indicam o uso mais intensivo dos vegetais. Por
início da Idade do Ferro entende -se o período durante o qual se utilizou de
maneira ininterrupta uma tecnologia baseada no ferro, em oposição ao emprego
ocasional de instrumentos do ferro. De maneira geral, o início da Idade do Ferro
na África subsaariana caracterizou -se pela emergência de pequenos povoados,
relativamente dispersos, e não pelo desenvolvimento de Estados, que surgiriam
apenas no final desse período
1
.
Infelizmente, sabemos muito pouco sobre o tipo físico dos habitantes da
África subsaariana. É certo que desde o X milênio antes da Era Cristã existiam
na África ocidental povos que apresentavam alguns traços físicos semelhantes
aos dos atuais habitantes dessa área (Iwo -Eleru na Nigéria); são os chamados
protonegros”
2
. Vestígios de esqueletos de negros também foram registrados
tanto no Saara como nos confins do Sahel e atribuídos a períodos tão remotos
como o V milênio antes da Era Cristã
3
. Na África meridional, os antepassados
dos atuais caçadores -coletores Khoisan e dos pastores -criadores da Namíbia e
do Botsuana (San e Khoi -khoi) eram maiores em estatura que seus descendentes
e certamente ocupavam regiões tão setentrionais quanto a Zâmbia; é possível
mesmo que tenham vivido nas margens do rio Semliki, no leste do Zaire.
Evidências para esse fato são fornecidas pelos sítios de Gwisho, na Zâmbia,
onde o conjunto de utensílios e o regime alimentar que se pôde inferir indicam
1 POSNANSKY, M. 1972 -b. pp. 577 -9.
2 BROTHWELL, E. W. & SHAW, T. 1971. pp. 221 -7.
3 CHAMLA, M. -C. 1968.
587
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
 . Hipóteses da origem dos Bantu e do início da metalurgia do ferro. (Mapa fornecido pelo autor.)
claramente que os povos em questão eram antepassados dos San, embora a
estatura média desse grupo de 4 mil anos fosse mais elevada do que a dos San
atuais que vivem nas cercanias ocidentais do Botsuana
4
. As escavações efetuadas
principalmente no Rift Valley (Quênia) forneceram vestígios de esqueletos do VI
4 GABEL, C. 1965.
588
África Antiga
milênio antes da Era Cristã. Na interpretação de Leakey (1936) estes estão mais
próximos de alguns dos tipos físicos da zona etíope do que das atuais populações
de língua bantu ou nilótica. No entanto, esses estudos foram realizados quase
meio século e uma nova avaliação já deveria ter sido empreendida. Os trabalhos
de biogenética de Singer e Weiner
5
indicaram que os San e os negros estão mais
próximos entre si do que em relação a qualquer outro grupo exterior, o que
talvez indique serem eles os descendentes diretos dos habitantes originais da
África na Idade da Pedra. Também ficou evidente a homogeneidade biológica de
todas as populações africanas desde a África ocidental até a África meridional.
Hiernaux
6
, em profunda e exaustiva análise dos dados genéticos existentes,
obtidos principalmente graças à expansão das pesquisas médicas na África,
enfatizou a natureza heterogênea da maior parte das populações africanas, o que
atesta a grande amplitude e duração dos contatos físicos e culturais ocorridos
na área subsaariana. Somente as regiões remotas, como o habitat florestal dos
Pigmeus no Zaire ou o território dos San no Calaari, abrigavam populações de
um tipo sensivelmente diferente; as razões dessas particularidades devem ser
buscadas no seu isolamento genético. Em regiões como os confins do Sahel,
os limites do nordeste da África e Madagáscar observam -se cruzamentos entre
populações negras e etnias que se desenvolveram independentemente dos
povos do sul, como os malaio -polinésios, no caso de Madagáscar, e os povos
aparentados aos da periferia do Mediterrâneo ou do sudoeste da Ásia, instalados
no nordeste da África e no Saara.
A contribuição da linguística
Para se entender o início da Idade do Ferro na África subsaariana é essencial
o conhecimento da sua formação linguística. A maioria dos arqueólogos teve
que recorrer à linguística para poder interpretar seus próprios dados. Duas
séries de eventos interessam -nos particularmente no período que estudamos.
Primeiramente, ‘a fragmentação da família das línguas congo -kordofanianas,
para usar a terminologia de Greenberg
7
; e, em segundo lugar, a dispersão das
etnias de língua bantu, que constituem atualmente mais de 90% da população
ao sul de uma linha que vai da baía de Biafra à costa da África oriental na altura
5 SINGER, R. & WEINER, J. S. 1963. pp. 168 -76
6 HIERNAUX, J. 1968 -a.
7 Cf. KI -ZERBO, J., coord. História Geral da África. São Paulo, Unesco/Ática, 1982. v. I, Cap. 12.
589
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
de Malindi. Sabemos muito pouco acerca da primeira série de eventos. Tudo
o que se pode dizer é que as línguas kordofanianas o antigas, relativamente
numerosas, com frequência faladas por grupos de efetivo reduzido ou mesmo
insignificante, sendo que cada grupo possui sua ppria língua, diferente
da dos vizinhos. Todas são faladas na moderna província do Kordofan, na
República do Sudão, concentrando -se principalmente em torno dos montes
Nuba. As línguas kordofanianas divergiram grandemente das línguas nígero-
-congolesas, ficando isoladas dos grupos linguísticos circunvizinhos. o
possuímos nenhuma indicão útil sobre o momento em que ocorreu a cisão
entre as línguas kordofanianas e os dialetos gero -congoleses da família
protocongo -kordofaniana; supõe -se apenas que seja anterior ao X ou VIII
milênio antes da Era Cristã.
A fragmentação das línguas gero -congolesas pode estar relacionada à
expansão gradual dos povos que o lento dessecamento do Saara expulsou para
o sul do Sahel. Painter
8
situou essa fragmentação entre -6000 e -3000, mas as
opiniões divergem. Armstrong
9
sugeriu que as línguas da Nigéria meridional já
estariam formadas há 10 mil anos, o que implicaria uma migração para o sul em
data bem mais remota. Esses dois pontos de vista estariam corretos se alguns
grupos de língua nígero -congolesa tivessem se separado do tronco principal e
posteriormente se isolado na floresta. Eles poderiam corresponder, no plano
linguístico, aos habitantes protonegros do Iwo -Eleru. Outras populações de
língua nígero -congolesa teriam abandonado o Sahel posteriormente, após terem
adotado um modo de vida agrícola. Contudo, essa interpretação apresenta um
problema: ao que parece, os primeiros produtores de víveres do Saara foram
pastores e não agricultores. A sugestão de Sutton, no Capítulo 23
10
, permitiria
contornar essa dificuldade, uma vez que existem provas de que os pastores
do Sahel possuíam ares e outros objetos associados às culturas aquáticas.
Contudo, a divergência lingstica no interior da família gero -congolesa
parece estar relacionada ao isolamento geográfico de diferentes grupos que
viviam principalmente da agricultura; esse isolamento teria ocorrido numa época
suficientemente remota para que cada componente da família nígero -congolesa
pudesse ter adquirido uma grande especificidade linguística.
8 PAINTER, C. 1966. pp. 58 -66.
9 ARMSTRONG, R. G. 1964.
10 Cf. também SUITON, J. E. G. 1974. pp. 527 -46. Sutton crê na possibilidade de um modo de vida
aquático ter -se generalizado numa época de condições higrométricas e hidrográcas ótimas, modo de
vida de que teriam sido os agentes os povos nilo -saarianos primitivos.
590
África Antiga
Ao abordarmos as línguas bantu, deparamos com uma situação diferente. As
línguas bantu faladas na África oriental, meridional e central mais de 2 mil
apresentam certos elementos de vocabulário e um quadro estrutural comuns,
sendo, portanto, aparentadas. Tais semelhanças foram identificadas em 1862 por
Bleek, que as designou genericamente bantu (o termo bantu, cujo singular é
muntu, significa homem”, pessoa”). em 1889 Meinhof havia reconhecido
que as línguas bantu eram aparentadas às da África ocidental, conhecidas na
época como línguas sudanesas ocidentais. As diferenças entre as várias línguas
bantu nunca chegam a ser tão grandes como as que existem entre as diversas
línguas africanas ocidentais; a maior parte das estimativas situa tais variações
aproximadamente 2 mil ou 3 mil anos. Contudo, existem várias teorias
linguísticas sobre a separação das línguas bantu das outras línguas africanas
ocidentais e em geral duas delas são mais aceitas. Joseph Greenberg
11
abordou
o problema sob um ângulo macroscópico, estudando o conjunto das línguas
africanas a partir de dados gramaticais e lexicais tirados de aproximadamente
oitocentas línguas. Em cada uma delas, distinguiu uma média de duzentos
morfemas ou núcleos, que considerou como elementos básicos do vocabulário,
a saber, as palavras que uma mãe ensina a seu filho: os primeiros numerais, as
partes do corpo, as funções fisiológicas (como dormir, comer, urinar, etc.) e os
componentes básicos do universo físico que cerca a criança (como a terra, a água
e o fogo). A partir desses núcleos ele descobriu que as línguas bantu estão mais
próximas das outras línguas africanas ocidentais do que, por exemplo, o inglês
do protogermânico. Ele calculou que 42 % do vocabulário das línguas bantu é
encontrado nas línguas africanas ocidentais mais próximas, em contraste com
apenas 34% dos vocábulos ingleses presentes no protogermânico parentesco
que os linguistas sempre consideraram estreito. Concluiu então que “o bantu
nem mesmo constitui uma subfamília genética única [...] mas pertence a uma
das subfamílias [...] Benue -Cross ou semibantu”
12
. Desse modo, pôde situar
com segurança a área de origem do bantu na região fronteiriça entre a Nigéria
e Camarões.
O professor Guthrie
13
falecido, trabalhou a nível microlinguístico, tendo -se
dedicado durante anos aos estudos comparativos do bantu, analisando cerca de
350 línguas e dialetos. Ele isolou os radicais de palavras cognatas que tinham
o mesmo significado em, pelo menos, três línguas distintas. A partir das 2400
11 GREENBERG, J. H. 1963; id. 1972. pp. 189 -216.
12 GREENBERG, J. H. 1963. p. 7.
13 GUTHRIE, M. 1967 -71. pp. 20 -49.
591
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
séries de radicais assim identificados, constatou que 23% eram “gerais”, isto
é, caracterizavam -se por uma grande difusão em toda a área bantu, enquanto
61% eram “específicas” de uma área mais restrita. Com base nas séries gerais,
ele estabeleceu um índice do bantu comum”, que indicava a percentagem das
palavras “gerais” presentes em qualquer língua bantu. As isoglossas (ou linhas que
unem os pontos correspondentes às percentagens idênticas ao bantu comum)
assim obtidas delimitavam uma zona nuclear onde a taxa de presença era
superior a 50% situada nas terras ervosas do sul da floresta do Zaire, região
banhada pelos rios Zambeze e Zaire. Foi nessa área nuclear que Guthrie supôs
ter -se desenvolvido o protobantu, que a partir daí se expandiu ou se fragmentou.
Ele também presumiu a existência de dois dialetos protobantu, o bantu oriental e
o bantu ocidental, com um vocabulário contendo mais de 60% de seus cognatos
específicos. Recorrendo a determinados vocábulos, procurou descobrir qual o
meio ambiente em que o protobantu era falado; constatou, então, que as palavras
que significam “pescar com linha”, canoa”, remo e “forjar” eram todas muito
comuns e que o termo correspondente a “floresta em protobantu referia -se mais
a “bosque” que a “floresta densa”.
Assim, concluiu que os povos protobantu teriam conhecido a metalurgia
do ferro antes de se dispersarem, vivendo ao sul da floresta propriamente dita
e utilizando com frequência as vias fluviais. Segundo o esquema de Guthrie, as
línguas bantu do noroeste (área original para Greenberg) não ultrapassavam 11%
- 18% em seu índice do bantu comum; seriam, pois, descendentes longínquas do
protobantu e não antecessoras das línguas bantu. Contudo, ele admite que, num
passado mais remoto, uma população pré -bantu vivia na área do Chari -Chade.
Oliver
14
representou em diagrama a teoria de Guthrie e supôs a existência de
um pequeno grupo pré -bantu que utilizava barcos, que teria se deslocado através
da floresta para as terras ervosas do sul. Ali o grupo teria se multiplicado e
eventualmente se dispersado em todas as direções.
Existe, assim, um consenso quanto à origem das línguas bantu na África
ocidental, mas não quanto ao centro de dispersão imediato. Ehret
15
e outros
linguistas são favoráveis às teses de Greenberg, em seu conjunto, considerando que,
por razões especificamente linguísticas, a zona de maior diversidade linguística
(neste caso, a área situada a noroeste da região bantu principal) deveria ser a de
povoação mais antiga. Ehret sugeriu também que as porcentagens dos radicais de
Guthrie fossem reavaliadas, na medida em que algumas delas deveriam ser mais
14 OLIVER, R. 1966. pp. 361 -76.
15 EHRET, C. 1972. pp. 1 -12.
592
África Antiga
significativas que outras na determinação da área originária do bantu. Apoiando-
-se parcialmente no vocabulário de base atribuído aos primeiros falantes do
bantu, Ehret acredita que os Bantu primitivos teriam vivido na floresta antes de
-1000, dedicando -se à agricultura e à pesca. Dalby
16
, que diverge grandemente
de Greenberg quanto a certos detalhes, desenvolveu a teoria de um Cinturão
de Fragmentação (Fragmentation Belt) na África ocidental, na região onde se
encontram os Bantus. Fora dessa faixa verificar -se -ia uma certa uniformidade,
a contrastar com uma grande diversidade no interior. Tal fato seria indício de
migrações que levaram à dispersão dos falantes do nígero -congolês e do bantu.
Os autores que se dispuseram a propor uma cronologia situaram a expansão
bantu entre 2 mil a 3 mil anos atrás, aceitando o fato de que à época essa etnia
conhecia o uso do ferro. Todos concordam que a expansão foi rápida, se não
mesmo explosiva.
O papel da agricultura
Antes de discutir a importância do ferro no processo de dispersão dos povos,
deve -se levar em conta um outro elemento, a agricultura. O assunto será tratado
detalhadamente, em bases regionais, em capítulos posteriores; aqui serão
discutidos alguns traços gerais. Num capítulo introdutório como este, vale
mais proceder a generalizações; para maiores detalhes, o leitor deve recorrer às
conclusões do simpósio de 1972 sobre o início da agricultura na África
17
.
A agricultura implica um certo controle de suprimento de víveres e um modo
de vida relativamente sedentário em contraste com os deslocamentos constantes
dos cadores -coletores. Isso favorece o aumento do efetivo dos grupos e o
desenvolvimento de estruturas sociais e depois políticas mais complexas.
A agricultura principalmente a cultura praticada em terras preparadas e a
horticultura implica igualmente uma população mais densa e um aumento
na cifra total de população. Para a identificação das sociedades agrícolas, os
arqueólogos recorrem a provas diretas e indiretas. As provas diretas podem
ser as sementes ou os grãos, encontrados em estado carbonizado nos terrenos
escavados, ou provir da aplicação de técnicas avançadas de pesquisa arqueológica,
tais como a análise de flutuação, a palinologia, que permite identificar os polens
fossilizados de plantas cultivadas, e a identificação das impressões dos grãos
16 DALBY, D. 1970. pp. 147 -71.
17 HARLAN, J. R. et al. 1976.
593
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
na cerâmica. Entre as provas indiretas ou circunstanciais pode ser citada a
descoberta de instrumentos destinados ao cultivo, à colheita e à preparação de
alimentos vegetais. Infelizmente as condições climáticas em quase toda a África
subsaariana não favorecem a descoberta de grande parte das provas diretas.
Normalmente, as matérias orgânicas abandonadas se decompõem num intervalo
de poucos dias. Os solos da maioria dos sítios tropicais contêm elementos
aeróbios que impedem a conservação dos polens. Os sítios onde se encontram
polens, como os pântanos e lagos de altitude elevada, estão muito distantes das
terras cultiváveis para atestar a existência da agricultura no passado
18
. Além
disso, muitos dos alimentos vegetais consumidos na África como bananas,
inhames e outros tubérculos não produzem polem.
Um outro problema é que vários utensílios e instrumentos agrícolas são de uso
incerto. Uma faca para descascar alimentos pode servir a outros propósitos; as mós
podem ser utilizadas para pulverizar o ocre das pinturas ou para socar e triturar os
alimentos não -cultivados, e geralmente o encontradas em muitos jazigos do fim
da Idade da Pedra. Muitos vegetais são cultivados com o auxílio de um baso, que
serve para revolver a terra sem danificar as raízes. O alimento propriamente dito,
preparado a partir dessas plantas, é em geral socado em almofarizes de madeira,
que duram muito pouco tempo e têm reduzidas chances de sobrevivência nos
solos das áreas em que são utilizados. Desse modo, os arqueólogos são obrigados
a buscar um apoio maior em provas circunstanciais para inferir a existência
da agricultura: a presença de grandes povoações, de habitações aparentemente
duráveis, a utilização da cerâmica ou o uso regular de cemitérios. Como ficará
evidente no Capítulo 26, os caçadores -coletores da África viviam por vezes em
grandes comunidades e frequentemente usavam a cerâmica; quando a pesca e
outras atividades especializadas de caça ou de coleta de alimentos eram bem-
-sucedidas, construíam habitações relativamente permanentes, como as do Cartum
antigo ou de Ishango, que remontam ao fim da Idade da Pedra. Assim, pode -se
constatar que, lamentavelmente, os elementos dispoveis para desvendar a história
das origens da agricultura na África subsaariana são relativamente escassos e as
conclues, apenas conjeturais. Mas, com o tempo, e graças ao emprego de técnicas
mais avançadas de reconstituição e à intensificação dos estudos de botânica e de
18 Contudo, há ocasiões em que os estudos palinológicos fornecem informações valiosas. É o caso do caroço
coletado na baía de Pilkinton (lago Vitória), que indicou uma mudança na vegetação entre 2 mil e 3
mil anos atrás, quando as espécies silvestres foram substituídas por ervas; tal fato sugere uma derrubada
extensiva posterior à chegada de populações agrícolas (KENDALL, R. L. & LIVINGSTONE, D. A.
1972. p. 380).
594
África Antiga
palinologia sobre a filiação genética e a distribuição das plantas cultivadas na
África, será possível obter informações mais substanciais.
Até o final dos anos 1950, era muito comum supor que o surgimento da
agricultura na maior parte da África subsaariana foi um evento tardio, em
realidade contemporâneo da introdução da tecnologia do ferro em quase todo
o continente, à exceção de algumas regiões da África ocidental. Essa inovação
proveniente do sudoeste da Ásia teria se generalizado, atingindo o vale do Nilo
e finalmente o restante da África. Contudo, recentes descobertas no Saara e em
outros lugares indicam que a história não é tão linear. As prirneiras colocações
contrárias ao ponto de vista tradicional sobre as origens da agricultura africana
foram as de Murdock
19
: esse autor afirmou que a área de origem de grande parte
da agricultura africana situava -se na região da África ocidental que corresponde
à bacia superior do Níger e do Senegal no Futa Djalon. Embora no momento a
hipótese de Murdock não possa ser corroborada minuciosamente, fica evidente
que os inhames, uma certa variedade de arroz (Oryza glaberrima), o sorgo,
o dendezeiro e outros gêneros menos importantes são originários da África
ocidental.
Contudo, a principal questão é saber se o consumo desses vegetais na África
ocidental indica o desenvolvimento precoce de uma agricultura independente
da praticada fora da África. Alguns arqueólogos
20
defendem convictamente a
existência de uma cultura de vegetais centrada no cultivo de inhames, mas
fortes razões para se refutar as provas até agora apresentadas
21
. É evidente que
aldeias como Amekni existiam no Saara desde o VI milênio antes da Era Cristã,
que as comunidades neolíticas da floresta utilizavam o den, a ervilha -de -vaca
e outros víveres locais desse tipo, e que o sorgo e certas variedades de pennisetum
(milhete), em estado selvagem, são muito difundidos nesse extenso cinturão de
zonas de vegetação da savana e do Sahel que se estende do Atlântico à Etiópia.
Também é patente que a Etiópia possuía vários gêneros de primeira necessidade,
como o tef e outros cereais, assim como a bananeira selvagem não -frutífera (Musa
ensete), e que a agricultura se desenvolveu numa época muito remota pelo menos
desde o III milênio antes da Era Cristã. Embora existam razões para se pensar que
a agricultura era conhecida no Sudão desde o IV milênio, a evidência direta mais
antiga remonta ao II milênio em sítios como Tichitt na Mauritânia e Kintampo
19 MURDOCK, G. P. 1959.
20 DAVIES, O. 1962. pp. 291 -302.
21 POSNANSKY, M. 1969. pp. 101 -7.
595
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
no norte de Gana
22
. A julgar pelo testemunho da arte rupestre
23
o pastoreio pode
ter suas origens no VI milênio; encontraram -se vestígios de gado em váriostios
sahelianos, com certeza pertencentes ao início do IV milênio.
Embora as origens, a época e o modo de desenvolvimento da agricultura
africana sejam relativamente controversos, em geral se admite que, à exceção
de certas comunidades rigorosamente localizadas no Rift Valley do Quênia,
que teriam cultivado o milhete, o início da agricultura, pelo menos na maioria
das regiões da África onde se fala o bantu, é contemporâneo do surgimento da
metalurgia do ferro. Geralmente também se acredita que vários dos primeiros
neros alimentícios sicos na África bantu, como a banana frufera, a
colocasia (inhame), a eleusine cultivada e o sorgo, foram introduzidos, em
última insncia, através da África ocidental, ou ainda, no caso da banana,
indiretamente, pela Ásia do sudeste. O gado mais antigo é cronologicamente
anterior à Idade do Ferro, estando presente na África oriental desde o início
do I milênio antes da Era Cris; segundo a demonstração de Parkington
no Capítulo 26, parece que o carneiro já tinha se propagado para o sul, a
o Cabo (África do Sul), por volta do início do I milênio da Era Cristã. É
possível que a difusão do pastoreio esteja relacionada à dispersão das culturas
aqticas descritas por Sutton no Catulo 23; cabe lembrar também que
Ehret
24
fornece provas convincentes das interações sociais através das quais se
processou a influência das nguas do Sudão central sobre as línguas bantu. Ele
descreveu, por exemplo, como as palavras para “vaca” e os termos relacionados
às atividades de ordenha foram emprestados pelos Bantu de seus vizinhos do
Sudão central, ao mesmo tempo que provavelmente imitavam seus todos
de criação e ordenha. Com base nas difereas linguísticas entre os falantes
do suposto proto -sudanês central, Ehret
25
infere que os criadores de gado
precederam os agricultores. Além disso, o autor considera que essas interações
podem ter ocorrido pela primeira vez por volta da metade do I milênio antes
da Era Cristã. Ele sugere ainda
26
que a área em torno do lago Tanganica foi
estratégica para a dispersão posterior do grupo oriental dos Protobantu, na
medida em que se trata de uma região apropriada para a cultura do sorgo e
22 MUNSON, P. J. & FLIGHT, G. In: HARLAN, J. R. 1976.
23 MORI, F. 1972.
24 EHRET, C. 1967. pp. 1 -17; id. 1973. pp. 1 -71.
25 EHRET, C. 1973. p. 19.
26 EHRET, C. 1972. p. 14.
596
África Antiga
da eleusine, bem como para a crião de gado. Ehret
27
também indica que as
palavras protobantu para “enxada” e “sorgo” são derivadas das línguas do Sudão
central, o que nos leva a considerar uma dupla eventualidade: a interação social
entre os povos nilo -saarianos e os ancestrais dos Bantu, e a difusão, para o
sul, da agricultura caracterizada pelo uso da enxada e da cultura do sorgo,
esta última ocorrendo principalmente na direção dos territórios ocupados
pelos Bantu. Embora possa ter havido uma certa expansão demográfica, como
resultado desse desenvolvimento, em torno do I milênio antes da Era Cristã, as
descobertas dos arqueólogos, descritas nos capítulos posteriores, mostram bem
que a expansão principal dos povos agricultores foi um fenômeno do I milênio
da Era Cristã na maior parte da África bantu.
O Ferro
Uma questão importante em qualquer discussão sobre a expansão inicial dos
povos agrícolas na África austral é a da origem da difusão da metalurgia do ferro.
Quando se trata de limpar um terreno de moitas e arbustos ou de desbastar a
orla de florestas e bosques, a ferramenta de corte é o instrumento mais cômodo.
O homem da Idade da Pedra não possuía tais utensílios e, embora o machado de
pedra afiado e polido das indústrias “neolíticas” pudesse ser usado para derrubar
árvores ou, mais provavelmente, para trabalhar a madeira, não se tratava de uma
ferramenta versátil como, por exemplo, o atual alfanje de ferro ou panga. Na
África subsaariana não houve Idade do Bronze. O uso do cobre foi atestado pela
primeira vez na Mauritânia; parece estar ligado à exploração de uma pequena
jazida do metal em torno de Akjujit por magrebianos ou por povos em contato
com as populações da Idade do Bronze da África do noroeste. O trabalho do
cobre data de um período entre os séculos IX e V antes da Era Cristã
28
e,
portanto, precede de muito pouco os primeiros vestígios da metalurgia do ferro
atestados na África ocidental em Taruga, no planalto de Jos (Nigéria) –, que
remontam aos culos V ou IV antes da Era Cristã.
Configurou -se uma especulação considerável (e neste caso é preciso insistir
no caráter conjetural dos argumentos evocados, que não existem, por assim
dizer, dados indiscutíveis sobre os fornos e foles antigos) em torno da questão
das origens da metalurgia do ferro na África. Diversas escolas de pensamento
27 EHRET, C. 1973. p. 5
28 LAMBERT, N. 1970.
597
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
propõem esquemas, todos aceitáveis, mas até agora nenhuma pôde provar que
está correta. A mais antiga delas afirmava que a metalurgia do ferro teria se
difundido a partir do vale do Nilo, particularmente de roe, que Sayce
29
batizou de “Birmingham da África”. Mais recentemente, Trigger
30
indicou que
os objetos de ferro são relativamente raros na Núbia até -400 e que, mesmo
depois, só peças pequenas, como enfeites leves, caracterizam o período meroíta.
Tylecote
31
afirmou categoricamente não haver o menor traço de fundição de
ferro em Méroe até 200 antes da Era Cristã. Embora ocasionalmente tenham -se
encontrado objetos de ferro no Egito em jazigos mais antigos, possivelmente
obtidos pelo comércio ou produzidos a partir do ferro meteórico, esses não
tinham nenhuma importância até o século VII antes da Era Cristã
32
. Os objetos
de ferro meteórico eram obtidos pelos mesmos métodos em geral utilizados para
o trabalho da pedra
33
. Contudo, não existem provas irrefutáveis de uma difusão
da metalurgia do ferro a partir do vale do Nilo para o oeste ou para o sul.
Datando do século V, esse metal é encontrado na Etiópia em vários centros
axumitas, como Yeha, originário, provavelmente, da Abia do sul fato
confirmado pela ornamentação dos ferros de marcar o gado –, poderia também
provir de um dos portos do mar Vermelho da época ptolomaica, como Adulis,
com os quais esses centros mantinham contato. Com base num forno encontrado
em Méroe, Williams
34
lançou a hipótese de que o forno típico consistiria em
uma cuba bastante estreita, onde circulava o ar emitido pelos foles. Ele deduziu
que a distribuição atualmente ampla desses fornos revela a importância do vale
do Nilo como foco de dispersão inicial. Por outro lado, encontram -se nas terras
altas do Borku -Ennedi -Tibesti, no Saara, gravuras e pinturas de guerreiros
armados de escudos e lanças, que foram chamadas “líbico -berberes”, enquanto
outras seguramente apresentam afinidades com os estilos do vale do Nilo
35
.
No entanto, são muito poucas as pinturas desse tipo cuja datação seja segura,
e, quando é possível datá -las, parecem posteriores aos materiais metalúrgicos
mais antigos da Nigéria.
29 SAYCE, E. A. 1912. pp. 53 -65.
30 TRIGGER, B. G. 1969. pp. 23 -50.
31 TYLECOTE, R. F. 1970. pp. 67 -72.
32 Um ponto de vista diametralmente oposto pode ser encontrado em DIOP, C. A. 1973. pp. 532 -47.
33 FORBES, R. J. 1950; id. 1954. pp. 572 -99.
34 WILLIAMS, D. 1969. pp. 62 -80.
35 HUARD, P. 1966. pp. 377 -404.
598
África Antiga
A descoberta de sítios que atestam a presença antiga da metalurgia do ferro
na Nigéria concentrou a atenção dos especialistas na possibilidade de uma
origem norte -africana. Os fenícios difundiram a tecnologia do ferro desde o
Levante até partes da costa da África do Norte no início do I milênio antes
da Era Cristã. A distribuição geográfica de pinturas e gravuras em que estão
representados carros com rodas puxados por cavalos da costa da Tripolitânia
até o Médio Nilo, passando pelo Tassili e o Hoggar, e das costas do Marrocos
até a Mauritânia é a indicação de que com certeza existiram contatos entre a
África do Norte e o Saara, por volta da metade do I milênio antes da Era Cristã.
Os carros e os cavalos são, indiscutivelmente, inovações exteriores ao Saara;
Lhote
36
chegou a sugerir que a postura dos cavalos a pleno galope evocava a área
do Egeu. Connah
37
deduziu que o ferro teria vindo do norte, na medida em que
sua metalurgia é tardia por volta de +500 em Daima nos arredores do lago
Chade, situado precisamente no corredor por onde chegariam as influências do
vale do Nilo. Em caso contrário, dever -se -iam encontrar os vestígios que atestam
a presença desse metal na região do Chade numa data anterior à do planalto de
Jos. Outras datas relativamente antigas estão associadas à metalurgia do ferro em
Gana, Hani (130 ±80), e no Senegal. Naturalmente, pode -se também admitir
que a metalurgia do ferro tenha vindo da África do Norte via Mauritânia na
esteira dos trabalhadores do cobre, espalhando -se em seguida pelo cinturão
sudanês em direção ao oeste e ao sul (embora nesse caso as datas dos sítios
do Senegal e da Mauritânia devessem ser anteriores às dos sítios da Nigéria).
Pode -se supor igualmente que a metalurgia do ferro tenha chegado à África
tropical por uma multiplicidade de caminhos: um a partir do Magreb rumo à
Mauritânia, outro através do Saara rumo à Nigéria, um terceiro através do mar
Vermelho em direção à Etiópia, e outros, ainda, através da costa leste a partir da
área do mar Vermelho, da Índia ou Ásia sudeste rumo à África oriental.
Recentemente sugeriu -se que a metalurgia do ferro pode ter -se originado
na própria África. C. A. Diop
38
é um adepto convicto dessa tese, retomada pelo
dr. Wai Andah no Capítulo 24 do presente volume. O argumento principal
em favor de um desenvolvimento auctone é o fato de os arqueólogos terem
recorrido durante muito tempo, em suas prospecções pela África, ao modelo
mediterrânico de metalurgia do ferro, desconsiderando a possibilidade de esta
apresentar feições inteiramente diferentes no continente africano. A fundão
36 LHOTE, H. 1953. pp. 1138 -228.
37 CONNAH, G. 1969 -a. pp. 30 -62.
38 DIOP, C. A. 1968. pp. 10 -38.
599
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
 . Jazidas de cobre e rotas de caravana através do Saara (segundo M. Posnansky, 1971).
600
África Antiga
do ferro requer temperaturas elevadas até 1150
º
C para transformar o minério
em lingote, temperatura superior ao ponto de fusão do cobre (1100° C) – além
de certos conhecimentos de química, que o ferro é obtido adicionando-
-se carbono e oxigênio ao minério durante o processo de fusão. Aqueles que
argumentam a favor de uma origem única da metalurgia do ferro afirmam
que tais conhecimentos especializados foram adquiridos por experimentação,
a partir da prática da metalurgia do cobre e do cozimento da cerâmica em
fornos. Sustentam, ainda, que a cronologia vem corroborar essa hipótese, na
medida em que as provas da existência da metalurgia do ferro são abundantes
na Anatólia desde o início do II milênio antes da Era Cristã, ao passo que
continuam raras fora da Ásia ocidental até a passagem do I milênio antes da
Era Cristã. Os defensores de uma origem africana argumentam, por sua vez,
que o conhecimento da fundição do ferro pode ter decorrido da experiência
com o cozimento de cerâmica em covas e que os minérios dos lateritos africanos
são de tratamento mais simples que os minérios de rocha dura do Oriente
Médio. Sugeriu -se ainda que, dado que vários sítios da África ocidental onde,
em épocas remotas, se trabalhava o ferro como os da cultura de Nok ou
os situados no Alto Volta fornecem igualmente utensílios de pedra, deve-
-se considerar a possibilidade de a metalurgia do ferro ter sido praticada em
contextos do final da Idade da Pedra.
Os fornos, aparentemente recentes, que estão sendo estudados pelo
arqueólogo no Congo lamentavelmente não acrescentam nada de novo ao
assunto, e é provável que jamais forneçam vestígios do primeiro período de sua
utilizão. Contudo, descobertos e datados, poderiam eventualmente indicar
a rota do ferro entre o Shaba e o mar e algumas datas desse desenvolvimento
tardio.
Infelizmente não é possível provar de maneira cabal a validade de qualquer
uma das teorias relativas às origens da metalurgia do ferro. Nenhum dos sítios
onde se encontraram fornos de fundição antigos informações suficientes
sobre a natureza destes e menos ainda sobre os tipos de foles empregados.
Pouquíssimos sítios com fornos foram escavados e é evidente que o quadro
de nossos conhecimentos continuaaproximativo até que a pesquisa tenha
progredido e que se descubram outros tios dessa natureza. Vastas regiões
continuam inexploradas e, na medida em que os locais onde se fundia o ferro
frequentemente estão muito distantes dos sítios habitados, só são detectados
por um feliz acaso. O advento do magnetômetro de prótons para prospecções
pode acelerar o ritmo das descobertas; contudo, uma das características dos
fornos do início da Idade do Ferro é que dificilmente eles são reconstituíveis.
601
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
No conjunto, o número de tios conhecidos no início da Idade do Ferro é
ainda muito pequeno para se poder estabelecer, com alguma certeza, a época
em que a metalurgia foi introduzida nas diversas regiões da África tropical.
No início dos anos 1960, por exemplo, pensava -se que a exploração do ferro
havia começado na África oriental, por volta de +1000; atualmente, sabe -se
que tal datão precisa ser recuada em pelo menos 750 anos. Tem -se em
Gana um exemplo semelhante: antes da descoberta do forno de Hani, do
século II da Era Cristã, geralmente era citada a data aproximada de +900. No
entanto, é posvel tirar certas conclusões. Primeiramente, são muito poucas
as provas de contatos diretos entre o vale do Nilo e a África ocidental; assim,
a tese segundo a qual Méroe teria sido um centro de dispersão é de todas a
mais fgil. Em segundo lugar, o se dispõe de nenhum dado seguro que
justifique a prática do cozimento da cerâmica em forno ou fossa antes do
início da Era Cristã na África ocidental, e os dados etnográficos evocados em
apoio de um desenvolvimento endógeno da metalurgia do ferro no continente
nem sempre foram apresentados de maneira sistemática, referindo -se apenas,
na melhor das hipóteses, a situações do II minio da Era Cristã, o que nos
condena a agir com precaução quando se trata de determinar as origens dessa
técnica. As escassas provas de que dispomos atestam que os sítios conhecidos
na África ocidental são mais antigos que os da África oriental ou central,
o que ainda viria confirmar a hipótese de que as cnicas da metalurgia do
ferro difundiram -se para o sul e para o leste a partir da África ocidental. A
metalurgia do ferro generalizou -se com notável rapidez, como testemunham
as datas mais antigas em que é comprovada na África do Sul
39
em torno do
ano 400 da Era Cristã –, posteriores de apenas alguns séculos à maior parte
das datas da África ocidental.
A rápida difusão da metalurgia do ferro, que alguns qualificariam de
explosiva, condiz bastante com o que nos ensina a lingstica. Os dados
arqueológicos provenientes da África oriental e central não contradizem esta
abordagem: a cemica do início da Idade do Ferro encontrada na África
tropical apresenta semelhanças de forma e decoração que só se explicam
admitindo -se uma origem comum para os diferentes artigos
40
. As semelhanças
iniciais adicionaram -se as marcas de fortes particularismos regionais, tendência
identificável particularmente na Zâmbia
41
, onde talvez se tenha realizado um
39 MASON, R. J. 1974. p. 211 -6.
40 SOPER, R. C. 1971 (para a África oriental); HUFFMAN, T. N. 1970 (para a África austral).
41 PHILLIPSON, D. W. 1968 -a.
602
África Antiga
estudo mais aprofundado da cerâmica da Idade do Ferro do que em outras
partes da África tropical. Partindo de dados linguísticos, Ehret
42
concluiu ter
havido uma dispersão de “comunidades independentes mas em condições de
se influenciarem mutuamente”, coexistindo com os caçadores -coletores não-
-assimilados. Essa hipótese é compatível com o que dizem os arqueólogos.
A medida que as comunidades bantu se adaptavam a seus meios ambientes
específicos, deixaram de ter relões tão frequentes com os grupos mais
longínquos, e as suas respectivas línguas e culturas começaram a divergir.
Trocas entre diferentes regiões do continente
É conveniente também insistir sobre um outro aspecto da história da África
tropical durante esse período: a influência durável e crescente que a África do
Norte exerceu sobre o cinturão sudanês. Em realidade, influência talvez seja um
termo enganoso, pois as mercadorias e ideias circulavam em ambas as direções.
Como se afirmou nos capítulos precedentes, o Saara não foi obstáculo nem
espaço morto, mas uma região com uma história particular, rica, de que ainda
é preciso desembaraçar os fios. Sua população era pouco densa, nômade e com
certeza consistia principalmente em pastores que se deslocavam entre o deserto e
as terras altas, como o Hoggar, o Tassili e o Tibesti, dirigindo -se para o norte ou
para o sul do cinturão saheliano de acordo com as exigências da estação. É muito
difícil dar uma ideia quantitativa dos contatos que efetivamente ocorreram, ou
descrever sua amplitude e efeitos, ainda que as pesquisas arqueológicas realizadas
nos últimos anos na zona do Sudão indiquem claramente a realidade de tais
contatos, tanto indiretos os ligados ao nomadismo – como diretos – os nascidos
das trocas comerciais e da exploração dos minerais
43
. As informações de que
dispomos provêm de textos da Antiguidade, de pinturas e gravuras rupestres do
Saara e de indícios arqueológicos. Algumas das provas já foram mencionadas no
volume I e em capítulos anteriores deste volume; no entanto, faz -se necessária
uma recapitulação.
Antes de nos referirmos aos textos antigos que evidenciam contatos através
do Saara, é necessário recordar os dois contatos marítimos que teriam se
estabelecido entre o Mediterrâneo e a África ocidental. O primeiro foi a viagem
de circunavegação que marinheiros fenícios teriam efetuado a serviço do faraó
42 EHRET, C. 1973. p. 24.
43 Certamente não se deve exagerar a importância dos escassos resultados obtidos.
603
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
Necau. O registro dessa viagem de aproximadamente três anos, examinado no
capítulo IV, nos vem de Heródoto. Este não muito crédito à narrativa dos
marinheiros, que diziam ter navegado com o sol à sua direita; no entanto, esta
é atualmente uma das razões para que a história seja aceita como verídica. Os
raros detalhes contidos nas fontes escritas tornam toda verificação impossível. É
significativo que o geógrafo Estrao e outros autores antigos tenham -se recusado
a levar em conta esse relato. Ao que parece, a viagem realmente ocorreu, mas não
se sabe ao certo se foi um périplo em torno da África. Mauny (1960)
44
achou
muito improvável que as lentas embarcações a remo de que dispunha o Egito
pudessem resistir às correntes do Cabo ou das costas ocidentais da África. Nesse
local, também teriam enfrentado grandes dificuldades para obter água ou alimento
suficiente, por se tratar de um litoral praticamente desértico; seriam necessários
meses eo semanas – de navegação para se atingir a sua parte setentrional.o
faltam detalhes secundários para invalidar a realidade desse périplo.
A segunda viagem é atribuída ao cartaginês Hanão. O relato contido no
Periplus é muito exagerado
45
e cheio de fantasia; suas precisões topográficas são
ambíguas e frequentemente contraditórias. Contudo, vários autores aceitaram a
veracidade da história, sugerindo que a descrição de uma montanha flamejante
se refere ou ao monte Camarões em erupção ou a queimadas na Serra Leoa.
A menção de homens peludos chamados “gorilas” no Periplus foi tomada ao
da letra como a primeira descrição do gorila
46
. Por outro lado, as pesquisas
que Germain (1957) consagrou ao contexto e aos detalhes textuais do Periplus
nos levaram a rejeitar a autenticidade desse documento e a considerá -lo, no
essencial, uma falsificação que data do fim da Antiguidade. Mas Ferguson
47
,
que não ignorava as objeções de Germain e que conhecia a geografia da África
ocidental, considera que a viagem ocorreu e que o estuário do Gabão foi o
ponto mais distante dessa navegação. Mauny (1960) indicou que as mesmas
44 Num simpósio realizado em Dacar em janeiro de 1976 (“A África Negra e o Mundo Mediterrânico
na Antiguidade”), Raoul LONIS apresentou um importante trabalho nesse campo sobre as condições
de navegação da costa atlântica da África na Antiguidade: o problema do “retorno”. Com base em
grande quantidade de provas escritas ou iconográcas, Lonis procurou demonstrar que a tese de R.
MAUNY foi provavelmente formulada de maneira muito categórica e que os navios da Antiguidade
eram perfeitamente capazes, do ponto de vista técnico, de fazer a viagem do sul para o norte ao longo
das costas africanas.
45 Por exemplo, diz -se que sua esquadra contava sessenta navios e 30 mil pessoas entre passageiros e tripulação.
46 V. REYNOLDS argumenta que os escritores clássicos conheciam os babuínos e que as criaturas em
questão eram símios com que não estavam familiarizados; segundo esse autor, é bem possível que os
gorilas, tão altos quanto o homem (o que não se pode dizer dos chimpanzés), podem ter habitado, no
passado, regiões tão ocidentais quanto a Serra Leoa.
47 FERGUSON, J. 1969. pp. 1 -25.
604
África Antiga
evidências circunstanciais evocadas contra o périplo da época de Necau também
são perfeitamente válidas para a viagem de Hanão. De qualquer modo, se as duas
viagens realmente ocorreram, com certeza não causaram nenhum impacto na
África ocidental. As escavações não revelaram objetos cartagineses, fenícios ou
egípcios, de origem e data seguras e de autenticidade comprovada em nenhum
lugar ao longo da costa ocidental da África.
É certo que os cartagineses obtiveram ouro na costa atlântica do Marrocos,
segundo o relato de Heródoto do “comércio mudo”, mas é duvidoso que os
marinheiros da Antiguidade tivessem ido além da embocadura do rio Senegal,
que Warmington
48
sugeriu ser o “Bambotum referido por Políbio, escritor grego
do fim do século II, que estava a serviço dos romanos. Essa atribuição também
poderia, por sua vez, ser discutida. Em geral, os documentos da época dizem
que os cartagineses tinham na mais alta conta o segredo comercial; assim, é
provável que, se tivessem êxito em viagens de exploração ou de comércio, não
se vangloriariam a fim de evitar benefícios para seus concorrentes. Nada prova
que, por via terrestre, eles tenham -se aventurado mais ao sul do que os romanos,
cujos contatos ativos parecem, à exceção das expedições de Sétimo Flaco e de
Júlio Materno, no ano 70 da Era Cristã, não ter ultrapassado o Hoggar. Nos
textos clássicos encontram -se referências aos deslocamentos dos Garamantes,
embora nada indique que tenham afetado a área ao sul do Fezzan.
A arte rupestre e o produto das escavações arqueológicas são as fontes de
uma documentação bem mais rica sobre as trocas da época pré -islâmica. A
arte rupestre indica a presença de vias de comunicação com o cinturão sudanês
desde -500. A lenda dos Nasamones”, que se encontra em Heródoto, talvez seja
a referência literária de uma viagem verídica por uma região que parece ser o
Níger. De interesse particular nesse relato é a menção de uma cidade negra”, que
Ferguson
49
acredita situar -se na região de Tombuctu. Os desenhos representam
frequentemente coches ou carros, por vezes precedidos por uma parelha de
cavalos ou bois
50
. Lhote (1953) observou que esses carros estão ausentes no Air e
no Tibesti, exceto nas proximidades do Fezzan. As figuras de bois encontram -se,
na maior parte, no itinerário ocidental. É preferível, contudo, não tirar muitas
conclusões dessas representações. Segundo Daniels
51
elas indicam antes “o uso
amplamente difundido de um veículo de tipo banal que a presença de qualquer
48 WARMINGTON, B. H. 1969. p. 79.
49 FERGUSON, J. 1969, p. 10.
50 MUNSON, P. 1. 1969. pp. 62 -3.
51 DANIELS, C. M. 1970. p. 13.
605
Introdução ao m da Pré -História na África subsaariana
sistema complexo de vias através do Saara”. Quando a datação é possível o
que ocorre no caso dos povoados neolíticos
52
da fase final –, observa -se que
essas figuras remontam ao período de -1100 a -400. A arte rupestre força -nos a
admitir que as vias saarianas devem ter sido praticáveis para cavalos, bois e, quase
certamente, para jumentos. Na rota oriental, as representações concentram -se
principalmente no Tassili; Lhote indicou a existência de possíveis terminais na
costa da Tripo litânia em centros como Leptis, Oea e Sabrata. Bovill
53
argumenta
que essas três cidades de origem cartaginesa estavam mais próximas umas
das outras do que seria de se esperar considerando -se os recursos naturais
da costa ou do interior próximo e sugere serem elas o ponto de partida do
itinerário dos Garamantes rumo ao Fezzan. Considera -se que a obtenção de
carbúnculos (talvez uma variedade de calcedônia de que se faziam pérolas) bem
como de esmeraldas e outras pedras semipreciosas
54
era um dos objetivos dessas
expedições. Os escravos, embora não muito importantes nesse período, podem
ter sido outro elemento de intercâmbio, pois foram encontrados esqueletos de
africanos nas necrópoles púnicas; os exércitos de Cartago seguramente incluíam
soldados africanos. Entre as demais mercadorias que participavam desse tráfico
também se encontravam produtos tropicais, como almíscar, ovos e plumas de
avestruz.
Foram examinados em páginas anteriores os dados relativos ao trabalho
do cobre na Mauritânia; as evidências arqueológicas levariam a conceder uma
importância direta maior ao itinerário ocidental do que ao oriental, que atravessa
o Tassili. A exploração do cobre pôde estimular, na mesma época, o trabalho
do ouro mais ao sul. O estudo dos megálitos da Senegâmbia, mencionado no
Capítulo 24, mostrou que o ouro e o ferro eram bem conhecidos antes do
surgimento do antigo reino de Gana e que podem ter constituído um importante
fator do desenvolvimento desse país. Mauny
55
observou que os termos que
designam ouro (urus) em wolof, em serere e em diula, no Sudão ocidental, estão
próximos do púnico haras: é possível que prospectores encorajados pelo comércio
do ouro na costa atlântica do Marrocos tenham -se aprofundado para o sul
visando explorar as jazidas conhecidas na Mauritânia, propagando, desse modo,
sua própria terminologia. As descobertas feitas no tumuli do Senegal provam
fartamente a existência de uma influência magrebiana, podendo -se deduzir que
52 MUNSON, P. J. 1969. p. 62.
53 BOVILL, E. W. 1968. p. 21.
54 WARMINGTON, B. H. 1969. p. 66.
55 MAUNY, R. 1952. pp. 545 -95.
606
África Antiga
os intercâmbios comerciais conheceram um desenvolvimento crescente após sua
instituição inicial no I ou II milênio antes da Era Cristã. É possível mesmo que
os camelos tenham servido como animais de carga na rota ocidental desse tráfico
antes da chegada dos árabes, no fim do século VIII, pois eram conhecidos
na África do Norte desde o século I antes da Era Cristã pelo menos (César
menciona a captura desses animais em -46; eram muito comuns por volta do
século IV). A riqueza exibida pelos construtores de túmulos e megálitos das
áreas da Senegâmbia e do Alto Níger
56
por volta do ano +1000 talvez seja um
dos melhores indicadores da existência e da amplitude do comércio pré-
-islâmico. Até que se empreendam mais pesquisas arqueológicas é difícil saber
com precisão a antiguidade desse tráfico ou a importância real dos contatos
exteriores.
Em resumo: particularmente no domínio dos contatos entre regiões, o
essencial da informação de que dispomos ainda não permite ultrapassar o estágio
das hipóteses prudentes. A presença de megálitos antigos na região de Buar
(República Centro -Africana) e de outras pedras eretas em rias regiões da
África necessita, por exemplo, de uma paciente pesquisa sobre o megalitismo.
56 POSNANSKY, M. 1973 -a.
C A P Í T U L O 2 2
607
A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo
Uma das características notáveis da costa oriental da África ao longo da
história é a relativa facilidade de acesso a essa área, tanto através do interior
como do mar. A acessibilidade pelo interior foi um fator vital das migrações
em direção à franja costeira e ajuda a elucidar a complexidade étnica e cultural
dessa região. Por outro lado, o mar foi uma via de contatos e de interação
com o mundo exterior. Portanto, num dos aspectos principais da história da
costa oriental da África durante os últimos 2000 anos não foi o isolamento,
mas a interpenetração de duas correntes culturais que constituíram um novo
amálgama, a civilização costeira swahili. O veículo deste processo foi o comércio,
que facilitou a integrão da costa africana oriental no sistema econômico
internacional, com as consequências decorrentes.
Contudo, a escassez de fontes dificulta a reconstituição da história da costa
africana oriental antes do século VII da Era Cristã. Todas as fontes disponíveis,
documentais e numisticas, são o produto do corcio internacional, e
possuímos pouco material sobre a história da costa antes do estabelecimento dos
contatos internacionais. As antigas fontes documentais greco -romanas contêm
apenas referências indiretas (embora sempre valiosas) a essa área. Estrabão (-29
a+9), que assistiu ao período de expansão romana sob Augusto, não nos
oferece um testemunho contemporâneo e às vezes ocular sobre o corcio da região
do mar Vermelho e do oceano Índico, como tamm incorpora fragmentos de
A costa da África oriental e
seu papel no comércio marítimo
Abdul M. H. Sheri
608
África Antiga
obras geográficas anteriores, atualmente perdidas
1
. Plínio (+23 a +79) descreve
o Império Romano em seu apogeu e é extremamente valioso por suas descrições
do comércio e da navegação no oceano Índico e do estilo luxuoso e decadente
da Roma imperial
2
.
A fonte mais importante sobre o oceano Índico durante esse período e o
primeiro relato direto, embora sumário, acerca da costa africana oriental é o
Periplus Maris Erythraei Périplo do Mar da Eritreia
3
. Aparentemente escrito
por um agente comercial grego desconhecido, estabelecido no Egito, o Périplo
é basicamente um testemunho ocular. Durante longo tempo sua datação foi
controversa; muitos estudiosos, incluindo Schoff e Miller, afirmaram que o
Périplo parece ser a descrição de um período ainda próspero do comércio romano
no oceano Índico, durante o apogeu do Império Romano, isto é, relativamente
contemporâneo da descrição de Plínio na segunda metade do século I da Era
Cristã
4
. Por outro lado, J. Pirenne é o único a sugerir a data do início do século III
5
.
Mathew, que apresenta um ponto de vista intermediário, propõe uma data do
início do século II da Era Cristã e afirma que, embora o Périplo seja anterior à
Geografia de Ptolomeu, as passagens deste último livro relativas à África oriental
não foram escritas na metade do século II da Era Cristã, como o resto da obra,
mas acrescentadas posteriormente
6
. Como se verá adiante, não razão para
aceitar a afirmação de Mathew, e, portanto, somos obrigados a concluir que o
Péripio não pode ser posterior ao fim do século I da Era Cristã.
A Geografia de Ptolomeu, escrita por volta de +156, denota um aumento
considerável do conhecimento do oceano Índico em geral, e da África oriental
em particular. Mathew sugeriu que a Geografia foi reformulada posteriormente
e que parece mais seguro tratar a parte relativa à África oriental como sendo
a soma dos conhecimentos adquiridos no mundo mediterrâneo por volta do
1 ESTRABÃO. v. II, pp. 209 -13.
2 PLÍNIO. v. II, pp. 371 -2.
3 Traduções inglesas de VINCENT, W.; MCCRINDLE, J. W. 1879; SCHOFF, W. H. 1912, que tem sido
mais utilizada; MILLER, J. I. 1969; mais recentemente, PIRENNE, J. 1970 -b; e também o Capítulo
16 deste volume. Mar da Eritreia era o termo empregado pelos geógrafos greco -romanos para designar
o oceano Índico, pelo menos desde a época de Heródoto no século V antes da Era Cristã. Ver também
PIRENNE, J. 1970.
4 W. H. SCHOFF (1912. pp. 8 -15) sugeriu c. +60, mas depois propôs +70 a +89. Para a data do Périplo,
ver SCHOFF, W. H. 1917. pp. 827 -30; WARMINGTON, E. H. 1928. p. 52 (+60); WHEELER, R. E.
M. 1954. p. 127 (terceiro quartel do século I da Era Cristã); CHARLESWORTH, M. P. 1966. p. 148
(+50 a +65); MILLER, J. I. pp. 16 -18 (+79 a +84).
5 Apud MATHEW, G., ROTBERG, R. I. & CHITTICK, N.; cf. também PIRENNE, J. 1970.
6 MATHEW, G. In OLIVER, R., & MATHEW, G. 1963. pp. 94 -6; MATHEW, G. 1974, passim. Contra
essa opinião, PIRENNE, J. 1970.
609
A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo
fim do século IV da Era Cristã
7
. Contudo, Ptolomeu reconhece explicitamente
que deve suas informações sobre a África oriental a Marinus de Tiro, que
indiscutivelmente foi seu contemporâneo
8
.
A última fonte documental para o período é a Topografia cristã de Cosmas
Indicopleustes, escrita durante a primeira metade do século VI da Era Cristã.
Ao que tudo indica, essa obra pertence a uma época em que o império e o
comércio romano no oceano Índico haviam entrado em rápido declínio. Trata-
-se de um trabalho particularmente útil por suas informações sobre a Etiópia e
a supremacia dos persas no oceano Índico, apesar da ignorância que demonstra
acerca da região localizada ao sul do cabo Guardafui
9
.
Infelizmente, ainda o possuímos testemunhos arqueogicos seguros
referentes a esse período, para confirmar e completar as fontes documentais de
que dispomos. Temos algumas coleções de moedas descobertas na costa durante
os últimos setenta e cinco anos. Contudo, convém enfatizar que nenhuma destas
coleções foi encontrada nos sítios arqueológicos conhecidos ou escavados, e as
circunstâncias de sua descoberta, lamentavelmente, foram mal registradas. O
melhor que podemos dizer é que o testemunho numismático não contradiz as
fontes documentais disponíveis e é valioso como índice do ritmo de comércio
internacional ao longo da costa da África oriental.
O achado mais antigo consiste em seis moedas encontradas em Kimoni, ao
norte de Tanga, “num montículo sob as árvores, de aproximadamente 200 anos”,
e que aparentemente foram enterradas muito tempo. A descoberta cobre
um longo período entre o século III e o século XII da Era Cristã. Portanto,
este tesouro não pode ter sido escondido antes desta última data, mas não
temos certeza de que as moedas mais antigas tenham sido trazidas para a África
oriental durante os tempos pré -islâmicos
10
. A segunda descoberta, uma única
moeda de ouro de Ptolomeu Sóter (-116 a -108), foi oferecida em 1901 a um
comerciante alemão por um vendedor ambulante africano em Dar -es -Salam, e
pode ser proveniente de um ponto qualquer da costa
11
.
Diversas coleções de origem desconhecida foram descobertas em 1955 no
museu de Zanzibar. A primeira, colocada num envelope marcado Otesiphon
7 MATHEW, G. 1963. p. 96.
8 STEVENSON, E. L. ss. I. 9, I. 17. Passagens interessantes são reproduzidas em ALLEN, J. W. T. 1949.
pp. 53 -5. BUNBURY, E. H. 1959. pp. 519 -20, 537, 610 -11.
9 MCCRINDLE, J. W. 1879.
10 CHITTICK, N. 1966. pp. 156 -7. É possível mesmo que estas moedas tenham sido enterradas apenas
no século XVI.
11 FREEMAN -GRENVILLE, G. S. P. 1962 -a. p. 22.
610
África Antiga
(capital dos impérios parta e sassânida, nas proximidades de Bagdá) é composta
por cinco moedas persas cujas datas vão do século I ao III da Era Cristã.
Segundo Freeman -Grenville, o tipo especial de pó” típico de Zanzibar ainda
estava colado às moedas quando ele as examinou, dando -lhe a certeza de que
haviam sido descobertas em algum lugar de Zanzibar. Os dois outros grupos
de moedas também estavam cobertos do mesmo tipo de e provavelmente
foram descobertos em Zanzibar ou Pemba. Cobriam um período mais longo,
do século II antes da Era Cristã ao século XIV da Era Cristã, o que sugere que
não constituíam tesouros, mas coleções de achados feitos ao acaso
12
.
As duas descobertas restantes suscitam problemas semelhantes de
interpretação. Haywood afirmou ter encontrado em 1913 em Bur Gao (Port
Dunford) uma importante coleção de moedas e um recipiente em forma de
ânfora grega. O recipiente se quebrou numa tempestade e, infelizmente, ele
jogou fora os pedaços. Durante vinte anos, as moedas não foram dadas a
público e nem mesmo mencionadas no relatório de sua visita, publicado em
1927. A coleção parece dividir -se em duas partes distintas. A primeira, que
provavelmente constitui o núcleo, consiste em setenta e cinco peças do Egito
ptolomaico, da Roma imperial e de Bizâncio, cobrindo o período entre o século
III antes da Era Crise a primeira metade do século IV da Era Cristã. A
segunda parte compõe -se de treze moedas do Egito mameluco e otomano, do
século XIII e dos séculos seguintes. Quando o sítio foi rapidamente visitado
por Wheeler e Mathew, em 1955, e por Chittick em 1968, não se encontrou
nada na superfície a que pudesse ser atribuída uma data anterior ao século XV,
mas nenhuma escavação arqueológica se efetuou ainda. Chittick afirma que, se
tais moedas constituíam um tesouro, não podem ter sido depositadas antes do
século XVI. Por outro lado, Wheeler sugere que o significado da descoberta
não se anula necessariamente” pela adição das moedas egípcias posteriores
13
.
Essas moedas podem ter sido acrescentadas à coleção durante o longo tempo
que passou antes que chegassem às mãos do numismata. Desse modo, é possível
que o núcleo da coleção tenha sido depositado num certo momento posterior à
primeira metade do século IV.
Considera -se que a última coleção foi desenterrada em Dimbani, no sul
de Zanzibar, por um velho fazendeiro, Edi Usi, já falecido, e que as moedas
passaram para um colecionador amador. As peças foram identificadas
12 FREEMAN -GRENVILLE, G. S. P. 1962 -a. p. 23.
13 FREEMAN -GRENVILLE, G. S. P. 1962 -a. pp. 21 -2; CHITTICK, N. 1969. pp. 115 -30; WHEELER,
R. E. M. 1954. p. 114.
611
A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo
provisoriamente. O núcleo parece ser formado por 29 peças romanas e
uma pa parta pertencente ao período entre o século I e o século IV da
Era Cristã. A colão inclui ainda uma peça chinesa do fim do culo XII
e algumas pas islâmicas, europeias e mesmo da África colonial, mais
recentes e que vão até o fim do século XIX
14
. Como no caso da coleção
Haywood, é posvel sugerir que as moedas mais recentes tenham sido
acrescentadas posteriormente.
Portanto, o estas as escassas fontes de que dispomos para reconstruir
a hisria da costa da África oriental antes do século VII. A reconstrão
tentada a seguir não será excessivamente cautelosa, mas, em muitos aspectos,
poderá ser apenas conjectural, até que os trabalhos arqueológicos registrem
alguns progressos em relação a este período antigo.
O fator continental
A região costeira da África oriental constitui uma área geográfica bem
distinta, margeada a oeste por uma faixa de vegetão arbustiva relativamente
seca, chamada nyika, que se estende muito próxima da costa no Quênia e se
alonga para o interior na Tanzânia, onde é quebrada pelas bacias dos rios
Ruaha, Rufigi e Pangani e pela borda oriental das montanhas. Portanto, os
movimentos de população provavelmente seguiram corredores onde o meio
ambiente era mais favorável, em torno ou através da nyika, como ocorre ao
longo da Tana no Quênia, da Pangani e da cadeia de montanhas contígua a
nordeste da Tannia.
O testemunho mais antigo sobre a população da costa da África oriental
nos vem do Périplo, que descreve os habitantes da costa como uma população
de estatura muito alta”
15
. Oliver sugere que eles eram cuxitas, comparáveis
aos agricultores da Idade da Pedra Tardia, que habitavam as terras altas do
Quênia desde cerca do ano -1000 e que, segundo os testemunhos arqueológicos
disponíveis, eram homens de “elevada estatura”. A presença de objetos de ferro
entre as importações sugere que as populações costeiras ainda não conheciam
a metalurgia desse metal. Perto da costa e nos corredores anteriormente
mencionados existem vários bolsões de língua cuxita, como os povos sanye,
14 O atual proprierio da coleção deseja permanecer anônimo, mas sou -lhe grato por me ter permitido examinar
as moedas. Identicação conjetural pela Sra. S. Urwin, numa carta datada de 23 de agosto de 1972.
15 PÉRIPLO, 16.
612
África Antiga
perto de Tana, e os Mbugu, em Usambara, que podem ser remanescentes dessa
antiga população costeira
16
.
O testemunho da arqueologia indica uma infiltração rápida no interior da
região da costa de populações que utilizavam o ferro, provavelmente de língua
bantu, durante os primeiros séculos da Era Cristã. É bem possível que, vindos
do sul, tenham ocupado as regiões de South Pare e Kwale, através de Mombaça.
Em seguida, por volta da metade do primeiro milênio, é provável que tenham
seguido até Barawa e o corredor de Pangani até o North Pare e a região de
Kilimandjaro. Durante sua expansão, possivelmente assimilaram as populações
litorâneas que os haviam precedido
17
.
Das evidências de que dispomos, é difícil extrair um quadro satisfatório da
economia e da sociedade da costa oriental antes do estabelecimento das ligações
comerciais internacionais. É possível que se tratasse de populações agrícolas,
como eram talvez os cuxitas da Late Stone Age do interior. O Périplo indica
claramente que a pesca desempenhava um papel importante na economia e
uma descrição muito precisa dos cestos de vime utilizados para tal fim, e que
ainda são comuns na costa; a população parece ter sido essencialmente costeira.
Eles utilizavam canoas cavadas em troncos e pequenos barcos de madeira
costurada”, mas aparentemente não havia embarcações de alto -mar. Ainda no
século XII da Era Cristã, al -Idrisi indica que os Zanj não possuíam navios para
viajar, mas utilizavam os de Oman e de outros territórios”
18
.
Infelizmente, não dispomos de nenhuma prova sobre a organização
sociopolítica deste período, pois, embora o Périplo mencione a existência de
chefes em cada uma das cidades -mercado, o comércio internacional pode ter
sido um fator crucial para o surgimento dos chefes e também das cidades-
-mercado
19
. Ao que tudo indica, portanto, antes do estabelecimento dos laços
comerciais internacionais, a população da costa da África oriental apresentava
um nível muito baixo de desenvolvimento tecnológico e provavelmente também
socio político. Desse modo, quando se estabilizaram as relações do comércio
internacional, a iniciativa ficou com os marinheiros vindos das margens
setentrionais do oceano Índico, com todas as consequências daí decorrentes.
16 OLIVER. R. A. 1966. p. 368; SUTTON. J. E. G. 1966. p. 42. O Périplo não fornece nenhuma evidência
de imigrantes indonésios na costa, e o testemunho musicológico de Jones não foi totalmente aceito:
JONES, A. H. M. 1969. pp. 131 -90.
17 SOPER. R. C. 1967 -a. pp. 3, 16, 24, 33 -4; CHIITICK, N. 1969. p. 122; ODNER, K. 1971 -a. pp. 107;
id. 1971 -b. p. 145.
18 PÉRIPLO, 15, 16; HOURANI, G. F. 1963. pp. 91 -3; FREEMAN -GRENVILLE, G. S. P. 1962 -b. p. 19.
19 PÉRIPLO, 16.
613
A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo
O fator oceânico
Historicamente, o acesso por terra fez da costa oriental da África uma
parte integrante do continente africano e o acesso pelo mar transformou -a no
centro de uma longa história de contatos comerciais, de influências cuturais e
de movimentos de populações originárias das costas do oceano Índico. Para
estudar essa história é necessário examinar as potencialidades e oportunidades
de comunicação inter -regional. Kirk definiu, em termos muito gerais, três
ambientes geográficos em torno do oceano Índico: a “floresta de sudoeste que
cobre as costas do Quênia, da Tanzânia, de Moçambique e de Madagáscar; a
região intermediária desértica que se estende do Chifre somali até a bacia do
Indo; e a “floresta de sudeste que vai da Índia à Indonésia
20
. O potencial de trocas
entre as duas regiões de “floresta é muito pequeno, embora possa aumentar se
considerarmos as mercadorias de luxo ou os produtos manufaturados cuja origem
é mais localizada, devido a circunstâncias naturais ou históricas. O potencial de
trocas entre o deserto” e as duas “florestas” é muito mais importante, pois, além
das trocas de mercadorias de luxo e de produtos manufaturados, o “deserto” em
geral se caracterizava por uma escassez alarmante de produtos alimentares e de
madeira, que podiam ser obtidos na região da “floresta”. Além disso, a região
do “deserto ocupa uma posição intermediária entre as regiões de “floresta e
entre estas e o mundo mediterrâneo. Portanto, a história do oceano Índico
ocidental até o século VII é, em grande medida, a da interação, ao longo de
duas linhas diferentes, entre a África oriental e o Oriente Médio e entre este e
a Índia, bem como a história do papel desempenhado pelo Oriente Médio como
intermediário entre o oceano Índico e o Mediterrâneo.
Tal interação se tornou possível graças ao desenvolvimento de uma tecnologia
marítima apropriada e ao domínio dos ventos e das correntes do oceano Índico.
A característica geográfica mais importante deste oceano é a inversão sazonal
dos ventos de monção. Durante o inverno boreal, a monção do nordeste sopra de
maneira contínua e chega a atingir Zanzibar, mas sua intensidade decresce para
o sul e raramente é regular além do cabo Delgado. Tal sistema de circulação é
reforçado pela corrente equatorial que, após atingir a costa da Somália, dirige -se
para o sul, facilitando a viagem das embarcações a partir da costa da Arábia. Os
barcos árabes podiam deixar seus portos de origem no fim de novembro, mas
a maioria partia no começo de janeiro, quando a monção estava plenamente
20 KIRK, W. 1962. pp. 265 -6.
614
África Antiga
configurada. A viagem demorava de vinte a vinte e cinco dias. Em março, a
monção de nordeste começa a declinar e, como a África oriental se encontra
nas bordas do sistema de monções, o declínio ocorre mais cedo no sul. Em abril,
o vento reverte, transformando -se na monção de sudoeste. Agora, a corrente
equatorial atinge a costa próxima do cabo Delgado e se divide numa forte
corrente que se dirige para o norte, facilitando a viagem nessa direção, e uma que
flui para o sul, dificultando a saída do canal de Moçambique. Era essa a estação
de partida das embarcações da África oriental. Havia porém, uma interrupção
de meados de maio a meados de agosto, período em que o tempo é muito
tempestuoso para a navegação no oceano Índico. Desse modo, os barcos partiam
quando se formava a monção, em abril – se as transações comerciais pudessem
ser concluídas em tempo útil ou com o final da monção em agosto, o que se
tornava cada vez mais necessário em virtude do prolongamento da viagem para
o sul de Zanzibar. É claro que no início da Era Cristã os marinheiros do oceano
Índico já estavam familiarizados com a utilização desses ventos
21
. Eles também
haviam superado o problema técnico da construção de navios de grande porte
numa região que não possui ferro, recorrendo à “costura de pranchas com fibras
vegetais
22
.
Portanto, a extensão espacial do sistema regular de monções e o nível de
organização do comércio na África oriental ajudam a definir a zona normal
de atividade das embarcações que utilizavam as monções. Com uma estrutura
comercial relativamente simples, que comportava trocas diretas entre as
embarcações estrangeiras e as cidades -mercado como parece ter ocorrido
antes do século VII –,os barcos vindos do norte provavelmente não desciam
muito além de Zanzibar, ao sul.no período medieval se estabeleceu em Kilwa
um entreposto organizado com vistas a uma exploração mais efetiva das costas
meridionais.
Desenvolvimento do comércio no Oceano Índico
Ocidental
Os testemunhos hisricos mais antigos sobre o oceano Índico ocidental
sugerem que, ao contrário do que habitualmente indicam os manuais, o
21 KIRK, W. pp. 263 -5; DATOO, B. A. 1970 -a. pp. 1 -10; McMASTER, D. N. pp. 13 -24; DATOO, B. &
SHERIFF, A. M. H. 1971. p. 102.
22 HOURANI, G. F. 1963. pp. 4 -6.
615
A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo
existia nenhuma relão comercial, direta ou o, entre a África oriental e a
Índia antes do século VII da Era Cristã. Mesmo o comércio entre a Índia e o
Oriente Médio na época do riplo parece ter -se limitado a alguns produtos
de luxo
23
. Tem -se a impressão de que, com excão do ouro e de algumas
outras mercadorias preciosas, a Índia era em grande parte auto ssuficiente,
particularmente em matérias -primas da “floresta”, que a África oriental
poderia ter fornecido. Ao contrário, nessa época a Índia parece ter sido um
ativo exportador de marfim, o que provavelmente retardou a exploração desse
produto na África.
Tal exploração foi estimulada possivelmente pela intensa rivalidade entre
os Estados gregos sucessores de Alexandre. O controle rigoroso exercido pelos
selêucidas sobre as rotas terrestres para a Índia levou os ptolomeus do Egito
a procurarem marfim proveniente de outros lugares. Sua necessidade imediata
era obter elefantes de guerra, mas os ptolomeus também desejavam quebrar
o monopólio dos selêucidas sobre o fornecimento do marfim indiano para o
Mediterrâneo. Desse modo, eles se voltaram para a exploração da costa africana
do mar Vermelho, estabelecendo uma série de postos de caça ao elefante até a
entrada desse mar. Em consequência, a política dos ptolomeus resultou numa
enorme expansão do comércio de marfim
24
.
A perda da Síria durante o governo de Ptolomeu V (-204 a -181) e o
crescimento da demanda de produtos árabes e indianos na Itália, numa época
em que aparentemente não havia marfim nas cercanias do mar Vermelho,
forçaram o Egito a se voltar para a rota marítima do sul, a fim de manter um
certo contato comercial com a Índia. Por volta do fim do século II antes da Era
Cristã, Socotra era habitada por comerciantes estrangeiros, incluindo cretenses,
e Eudóxio utilizou os serviços de um piloto indiano que havia naufragado para
efetuar a primeira viagem direta à Índia. O comércio indiano continuou a se
desenvolver o suficiente para que fossem nomeados funcionários “responsáveis
pelos mares Vermelho e Índico” entre -110 e -51
25
. Contudo, a iniciativa de
Eudóxio parece não se ter repetido regularmente. Estrabão a entender que
23 WHEELER, R. E. M. 1966. p. 67; HOURANI, G. F. 1963. pp. 8 -9; BASHAM, A. L. 1959. p. 230;
PÉRIPLO, 49, 56, 62.
24 TOZER, H. F. 1964. pp. 146 -7; ESTRABÃO. v. VII, pp. 319, 331; PLÍNIO. v. II, pp. 465 -569;
HOURANI, G. F. 1963. pp. 19 -20; TARN, W. & GRIFFITH, G. T. 1966. pp. 245 -6; RAWLINSON,
H. G. 1916. pp. 90 -2.
25 ESTRABÃO. v. I, pp. 377 -9; DIODORO DA SICÍLIA. pp. 213 -15; RIPLO, 30; TARN, W. &
GRIFFITH, G. T. 1966. pp. 247 -8; RAWLINSON, H. G. 1916. pp. 94, 96; BUNBURY, E. H. 1959. v. I,
p. 649; id., ibid. v. 11, pp. 74 -8; WARMINGTON, E. H. 1963. pp. 61 -2; HOURANI, G. F. 1963. p. 94.
616
África Antiga
isso ocorreu devido à fraqueza e à anarquia imperantes no governo dos últimos
ptolomeus, quando menos de vinte navios ousaram atravessar o golfo arábico
[mar Vermelho] atingindo uma distância suficiente para espreitar para fora dos
estreitos”
26
.
Naquela época, o comércio egípcio com a Índia era em grande parte indireto,
passando pelos entrepostos do sudoeste da Arábia. O Périplo assim se refere a
Aden: “Nos primeiros tempos da cidade, quando ainda não se fazia a viagem da
Índia ao Egito, e quando não ousavam viajar do Egito para os portos do outro
lado do oceano e vinham todos se reunir neste lugar, ela recebia as mercadorias
dos dois territórios”
27
. Portanto, a Arábia do sudoeste ocupava uma posição-
-chave de intermediária e se apropriava de uma parte do lucro do comércio,
que se tornou proverbial
28
. Por volta de -115, os sabeus foram substituídos pelos
himiaritas, que foram progressivamente centralizando o comércio de entreposto
no porto de Musa, governado pelo Estado vassalo de Maafir
29
.
Os habitantes da Arábia do sudoeste devem ter controlado também o outro
ramo do comércio, que se estendia em direção à costa da África oriental. se
sugeriu que uma das causas da expansão comercial ptolomaica ao longo do mar
Vermelho foi o crescimento da demanda de mercadorias de luxo provenientes
do Oriente, como o marfim. Portanto, é possível que nesta época os árabes
tenham estendido suas atividades comerciais para a costa da África oriental para
responder a tal demanda. É significativo que Eudóxio por volta do fim do
século II antes da Era Cristã, quando aparentemente foi jogado pela monção de
nordeste na costa africana, em alguma parte ao sul do cabo Guardafui tenha
conseguido um piloto, provavelmente um árabe, que o levou ao mar Vermelho
30
.
Sem dúvida esses vínculos comerciais precederam o estabelecimento de qualquer
suserania* formal dos árabes sobre a costa da África oriental, que o Périplo, na
segunda metade do século I antes da Era Cristã, descreveu como “antiga”
31
. Na
26 ESTRABÃO. v. VIII, p. 53.
27 PÉRIPLO, 26.
28 ESTRABÃO. v. VII, p. 349; id. v. I, pp. 143 -5. Ver também DIODORO DA SICÍLIA. v. II, p. 231;
PLÍNIO. v. II, p. 459. A riqueza dos árabes do sul não provinha inteiramente do comércio, pois eles
também haviam desenvolvido um sosticado sistema de irrigação: BEEK, G. W. van. 1969. p. 43.
29 PÉRIPLO, 21 -6; SCHOFF, W. H. 1912. pp. 30 -2, 106 -9; ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. ed.
1911. v. II, p. 264, v. III, pp. 955 -7; WARMINGTON, E. H. 1928. p. 11.
30 ESTRABÃO. v. I, p. 377 -9.
31 PÉRIPLO, p. 16; B. A. DATOO (1970 -b. p. 73) adota uma data mais recente baseada numa cronologia
posterior ao Périplo; G. MATHEW (1963. p. 98) sugere o século III antes da Era Cristã, mas fundamenta-
-se na coleção Haywood, cuja signicação histórica é duvidosa. Ver p. 610, neste.
* Sugeriu -se que “vassalo” seja substituído por “dependente” e “suserania por “dominação”.
617
A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo
ausência de testemunho arqueológico, é difícil determinar exatamente a data
de fixação desses vínculos comerciais e de sua extensão para o sul. Até agora,
foi encontrada uma única moeda de ouro dos ptolomeus do fim do século II
antes da Era Cristã, supostamente descoberta na vizinhança de Dar -es -Salam;
as vinte e duas moedas ptolomaicas da coleção Haywood não podem ter sido
depositadas antes do século IV da Era Cristã
32
.
No estado atual de nossos conhecimentos, talvez possamos fazer remontar ao
século II antes da Era Cristã a expansão comercial árabe para a África oriental.
No entanto, Miller argumenta que a África oriental constituia uma ligação vital
do comércio de canela entre a Ásia oriental, habitat natural da canela, e a costa
setentrional da Somália, onde os greco -romanos e também os egípcios obtinham
tal especiaria desde o segundo milênio antes da Era Cristã. Baseando -se na
referência de Plínio ao transporte de canela em vastos mares através de bolsas”,
Miller admite a possibilidade de viagens transoceânicas feitas por indonésios
para Madagáscar e a costa da África oriental, seguidas por transportes costeiros
ou terrestres até os portos somalis
33
. É possível que a migração de indonésios
para Madagáscar tenha ocorrido dessa forma, mas atualmente se aceita que se
trata de um acontecimento do primeiro milênio da Era Cristã. Além disso, não
nada que indique uma relação entre essa migração e a rota comercial descrita
por Plínio, que parece seguir claramente a costa setentrional do oceano Índico e
terminar no porto de Ocilia, no sul da Arábia
34
. Em consequência, não há base
de apoio para o complicado circuito da canela proposto por Miller, nem para
a existência, em tempos tão remotos, de vínculos comerciais da África oriental
com as terras além do oceano Índico.
A expansão do comércio durante o período romano
O estabelecimento do Império Romano, com Augusto, teve por consequência
um enorme aumento da demanda de mercadorias orientais no mundo mediterrâneo.
Várias economias autônomas, tanto no interior como fora do império, integraram-
-se gradualmente num vasto sistema de comércio internacional, no qual os
produtores de matérias -primas e mercadorias de luxo estavam envolvidos. Tal
32 Ver pp. 610-611.
33 MILLER, J. I. pp. 42 -3, 53 -7, 153 -72. O professor N. CHITTICK, consultado pelo Comitê, demonstrou
reservas sobre a existência deste comércio de canela.
34 DATOO, B. A. 1970 -b. p. 71; PLÍNIO. v. XII, pp. 87 -8.
618
África Antiga
sistema alargou o mercado e permitiu a transferência de riquezas para o centro
do Império
35
. A concentração de riqueza nas mãos da classe guerreira dominante,
que havia deixado o comércio e a indústria para as populações submetidas, teve
como consequência uma intensa competição de extravagâncias. Plínio lamenta:
A estimativa mais modesta indica que a Índia, a China e a península da Arábia
tiram de nosso Império 100 milhões de sestércios por ano – o que nos custam
nosso luxo e nossas mulheres”
36
.
A expansão do mercado durante o reinado de Augusto levou a uma política
mais agressiva no mar Vermelho, destinada a quebrar o monopólio árabe
sobre o comércio oriental. Com uma expedição dirigida por Galo em -24,
os romanos procuraram estabelecer uma rota marítima direta para a Índia e
controlar a extremidade sul da rota do incenso. Embora a expedição tenha sido
um fracasso, o comércio romano pôde desenvolver -se rapidamente, em parte
talvez porque a rota marítima direta podia competir bastante bem com a rota
árabe. Estrabão, por volta de -26 a -24, informava que pelo menos cento e vinte
navios partiam de Myos Hormos para a Índia, enquanto no período precedente,
sob os ptolomeus, eram muito raros os que ousavam empreender a viagem para
comerciar as mercadorias indianas”
37
. É razoável supor que um tráfico anual tão
intenso implicava a utilização regular da monção para realizar uma viagem mais
direta da entrada do mar Vermelho para o norte da Índia. Durante os setenta e
cinco anos que se seguiram, o conhecimento mais apurado do traçado da costa
ocidental da Índia permitiu que os navegadores romanos cruzassem o mar da
Arábia em direção à costa de Malabar, centro abastecedor de pimenta, principal
riqueza da Índia
38
.
Apesar da entrada dos romanos no comércio do oceano Índico, o próprio
Périplo traça o quadro de um tráfico muito intenso que ainda se encontrava
nas mãos de hindus e árabes. Os hindus realizavam um comércio ativo no
golfo Pérsico e no mar Vermelho, mas aparentemente não iam ao sul do cabo
Guardafui. Exportavam pimenta das costas de Malabar, marfim do noroeste,
do sul e do leste da Índia e grandes quantidades de tecidos de algodão para
o mercado romano além de ferro, aço, roupas e alimentos para os portos do
norte da Somália e da Etiópia. Em troca, recebiam diversos metais, tecidos “de
35 ORTEIL, F. 1952. pp. 382 -91.
36 PLÍNIO. v. IV, p. 63.
37 ESTRABÃO. v. I, pp. 453 -5; id. v. VII, pp. 353 -63.
38 PLÍNIO. v. II, pp. 415 -9.
619
A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo
qualidade inferior’’, vinho e “uma grande quantidade de moedas”
39
. Os árabes,
por outro lado, além da exportação de incenso e de mirra, eram os intermediários
mais importantes no comércio entre o oceano Índico e o Mediterrâneo. Embora
dividissem o comércio da Índia com os hindus e cada vez mais com os romanos,
eles provavelmente se beneficiaram de um virtual monopólio do comércio com
a costa oriental da África, fato corroborado pela ignorância dos romanos sobre a
costa africana ao sul do cabo Guardafui antes do Périplo. Além disso, embora este
último documento indiscutivelmente represente um testemunho ocular sobre a
costa africana oriental, o fato de apenas quatro parágrafos serem consagrados a
essa região parece indicar que ainda se encontrava fora dos limites das atividades
normais dos greco -romanos
40
.
A integração da costa da África Oriental no sistema
econômico romano
Qualquer que tenha sido o nível das atividades comerciais árabes ao longo
da costa da África oriental durante o período pré -romano, é quase certo que
a unificação econômica e a opulência do Império Romano lhes deram novo
impulso. A demanda de marfim aumentou enormemente, não apenas para a
fabricação de estátuas e pentes, mas também para mesas, cadeiras, gaiolas de
passarinho, carros e até mesmo um estábulo de marfim para o cavalo imperial
41
.
No primeiro século da Era Cristã, se obtinha o marfim em áreas muito
distantes, no interior da região do alto Nilo, de onde era levado a Adulis. Em
consequência, a importação de marfim da costa oriental da África ganhou maior
importância, embora ele fosse considerado de qualidade inferior ao de Adulis
42
.
Desse modo, a região ficou ainda mais integrada no sistema de corcio
internacional centrado no Mediterrâneo, através do Estado de Himiar, no
sudoeste da Arábia. O Périplo indica que cada uma das cidades -mercado da costa
da África oriental possuía seu próprio chefe, mas que Himiar exercia a suserania
por intermédio do chefe subordinado de Maafir, que, por sua vez, também a
arrendava ao povo de Muza. Este último envia para grandes embarcações
e utiliza capitães e agentes árabes, que estão familiarizados com os indígenas
39 PÉRIPLO, 6, 14, 36, 49, 56, 62; MILLER, J. I. 1969. pp. 136 -7.
40 ESTRABÃO. v. VII, p. 333; PÉRIPLO, 15 -18.
41 WARMINGTON, E. H. 1928. p. 163.
42 PÉRIPLO, 4, 1 -7.
620
África Antiga
e se casam entre eles, conhecem toda a costa e compreendem a sua língua”
43
.
Portanto, a assimilação da costa oriental da África no sistema internacional não
se dava apenas no nível do comércio, mas implicava uma dominação política e
uma penetração social que pode ter estimulado o processo de criação de um tipo
de população costeira mestiça, voltada para a navegação e o comércio, servindo
de agente local do sistema de comércio internacional.
A Azania
44
, nome dado pelos romanos à costa oriental da África ao sul de
Ras Hafun, provavelmente não era unificada no plano econômico, consistindo,
em realidade, numa série de cidades -mercado, cada uma com seu próprio chefe;
todas dependiam de sua exígua região interior para obter as mercadorias que
exportavam; e eram visitadas diretamente pelas embarcações que navegavam com
a monção. O Périplo menciona alguns lugares como Sarapion, provavelmente
algumas milhas ao norte de Merca, Nikon, possivelmente Bur Gao (Port Dunford)
e as ilhas Pylaream, identificadas com o arquipélago Lamu. Os navios podiam
ficar ancorados nesses lugares, mas não existe nenhuma menção a atividades
comerciais. Ao sul do arquipélago de Lamu realmente ocorrem modificações
nas características da linha costeira, como descreve de maneira muito precisa
o Périplo. A dois dias de viagem por mar encontrava -se a ilha de Menuthias “a
cerca de 300 stadia do continente (aproximadamente 55 quilômetros), baixa e
arborizada
45
. Pemba é a primeira ilha importante que os navegadores vindos
do norte encontrariam e provavelmente a única que podia ser atingida em dois
dias de viagem a partir de Lamu. Além disso, Pemba encontra -se de fato a 50
quilômetros do continente, em contraste com os 36 quilômetros no caso de
Zanzibar. Contudo, Menuthias não era um porto comercialmente importante;
fornecia cascos de tartaruga, os mais procurados depois dos indianos, mas a
única atividade econômica importante da ilha descrita no Périplo é a pesca
46
.
43 PÉRIPLO, 16.
44 O termo apareceu pela primeira vez em PLÍNIO, v. VI, p. 172, onde parece referir -se vagamente ao mar
que se localiza no exterior do mar Vermelho. No Périplo, 15, 16 e 18, e em PTOLOMEU, v. I, pp. 17, 121,
o termo refere -se especicamente à costa oriental da África. Sugeriu -se que se trata de uma deturpação de
Zanj, que mais tarde foi utilizada pelos geógrafos árabes e que aparece em PTOLOMEU e COSMAS
sob a forma Zingisa e Zingion, respectivamente; FREEMAN -GRENVILLE, G. S. P. 1968. Ver também
SCHOFF, W. H. 1912. p. 92. Não levei em consideração os portos do golfo de Aden que constituíam
uma região econômica separada, cujas principais atividades incluíam a exportação de incenso e mirra e
a reexportação da canela do sudeste asiático, o que não constitui uma característica do comércio costeiro
ao sul de Ras Hafun: ver DATOO, B. A. 1970. pp. 71 -2.
45 PÉRIPLO, 15; DATOO, B. A. 1970 -b. p. 68; MATHEW, G. 1963. p. 95.
46 PÉRIPLO, 15.
621
A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo
A única cidade -mercado costeira ao sul de Ras Hafun mencionada no
Périplo é Rhapta. Segundo o documento, esse empório encontrava -se a dois
dias de viagem marítima de Menuthias, e Ptolomeu indica que se localizava
às margens de um rio do mesmo nome,não muito distante do mar”
47
. Baxter
e Allen argumentam que se a viagem de dois dias começava na extremidade
norte de Pemba e terminava num rio um pouco distante do mar, a localização
mais provável de Rhapta deveria ser algum ponto nas margens do rio Pangani,
que antigamente possuía uma embocadura ao norte. Datoo afirma que em
razão das condições de navegação, Rhapta provavelmente encontrava -se entre
Pangani e Dar -es -Salam
48
. Aparentemente, Rhapta era a governada por um
chefe local submetido à suserania geral do Estado do sudoeste da Arábia. No
entanto, o Périplo a impressão de que esta suserania consistia apenas num
monopólio comercial externo exercido por capitães árabes e agentes de Muza.
A fuão econômica mais importante do porto era a exportão de uma
grande quantidade de marfim”, presas de rinoceronte, cascos de tartaruga de
alta qualidade e um pouco de óleo de coco. Estas mercadorias eram trocadas
por artigos de ferro, em particular lanças fabricadas em Muza especialmente
para esse comércio”, machadinhas, punhais e furadores, diversos artigos de vidro
e um pouco de vinho e trigo, não para comércio, mas para conseguir as boas
graças dos selvagens
49
. O rápido crescimento desse comércio nos primeiros
séculos da Era Cristã é indicado por Ptolomeu na primeira metade do século II.
Ao longo da costa da Somália estabeleceu -se um novo empório chamado
Es Sina; Sarapion e Nikon (Tonik) são descritos respectivamente como um
porto e um empório. Mas o desenvolvimento mais espetacular ocorreu em
Rhapta, descrita como uma metrópole”, o que, segundo o costume ptolomaico,
designa a capital de um Estado; não mais nenhuma referência à suserania
árabe. Ainda que se trate de uma prova negativa, é muito provável que o
crescimento do comércio tenha permitido a Rhapta adquirir riqueza e poder
suficientes para abolir a suserania árabe e estabelecer um Estado politicamente
independente. Provavelmente, o crescimento do comércio se tornou possível
devido à expansão do interior de Rhapta na época de Ptolomeu. Ele localizava
a oeste de Rhapta não apenas as famosas montanhas da Lua, cobertas de neve,
mas também o monte Maste, situado próximo às fontes do rio em cujas margens
47 PÉRIPLO, 16; PTOLOMEU. v. I, p.17, apud ALLEN, J. W. T. 1949. p. 55.
48 BAXTER, H. C. 1944. p. 17; ALLEN, J. W. T. 1949. pp. 55 -9; DATOO, B. A. 1970 -b. pp. 68 -9.
49 PÉRIPLO, 16, 17.
622
África Antiga
se encontrava Rhapta, e os montes Pylae, em algum lugar a noroeste
50
. As
informações a respeito dessas montanhas devem ter chegado aos navegadores
greco -romanos por intermédio dos africanos ou árabes locais e parecem indicar
certas formas de contato comercial com o interior a partir de Rhapta. O corredor
mais evidente através das extensões selvagens da nyika a partir da metade norte
da costa da Tanzânia e o interior mais propício para qualquer porto importante
nesta região correspondem ao vale do Pangani e à cadeia de montanhas que se
estende de Usambara e Upare aos cumes gelados de Kilimandjaro, onde de fato
começa o Pangani. As escavações recentes nas Pare Hills revelaram conchas
marinhas em Gonja e contas de concha que sugerem laços comerciais com a
costa, embora os testemunhos de que dispomos atualmente não possam ser
datados antes de +500
51
. Todas essas considerações favoreceriam a hipótese da
localização de Rhapta no Pangani
52
. É possível que o comércio também se tenha
estendido ao longo da costa em direção ao sul, até o cabo Delgado. Embora para
o autor do Périplo Rhapta ficasse nos limites do mundo conhecido, Ptolomeu
cita um navegador grego a propósito da área que se estende até o cabo Prason
ao sul, na extremidade de uma vasta baía pouco profunda, provavelmente a costa
côncava da Tanzânia meridional, em volta da qual viviam selvagens comedores
de homens”
53
.
Desse modo, em meados do século II, grande parte da costa da África oriental
e pelo menos uma porção do corredor do Pangani tinham sido incorporadas
ao sistema do comércio internacional. O impulso que expandiu as fronteiras
comerciais até as águas da África oriental começou a enfraquecer com o início
de um longo período de declínio do Império Romano no século III. A riqueza
da classe dominante foi dissipada pela descentralização econômica do Império
e pelos confiscos dos imperadores; os consumidores urbanos arruinaram-
-se e a classe média burguesa empobreceu, o que levou a uma considerável
retração do mercado, principalmente do de artigos de luxo, e ao retorno a uma
economia rural de subsistência. O eixo do comércio internacional deslocou -se
das especiarias, das pedras preciosas e do marfim, para o algodão e os produtos
industriais. É possível que o comércio direto tenha cessado inteiramente, como
50 PTOLOMEU. v. I, pp. 17, 121; id. V. IV, pp. 7, 31; WARMINGTON, E. H. 1963. pp. 66 -8.
51 SOPER, R. C. 1967 -b. pp. 24, 21; comunicação pessoal datada de 13 de outubro de 1972.
52 Mas de modo algum todos os autores concordam com esta localização. Até hoje, não se encontrou
nenhuma ruína antiga perto de Pangani. Houve tentativas ocasionais de identicação de Rhapta num
sítio desaparecido do estuário do rio Ruji.
53 PÉRIPLO, 16, 18; PTOLOMEU. v. I, pp. 9; 1 -3; id. v. II, pp. 17, 121.
623
A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo
sugere a visível lacuna do testemunho numismático. Contudo, houve um breve
renascimento no final do século III e início do IV, com a reconsolidação política
do Império. Embora não seja satisfatório, o testemunho numismático de que
dispomos para a África oriental sugere uma flutuação semelhante. A coleção
Haywood, mencionada, incluía seis moedas da Roma imperial datadas até a
metade do século II da Era Cristã. Depois de uma lacuna que se estende até o
final do século III, a coleção volta a cobrir o período que vai até o século IV, com
setenta e nove moedas. A coleção de Dimbani parece ter apenas uma moeda do
século I, sendo que o restante das peças romanas identificadas provavelmente
pertence aos séculos III e IV da Era Cristã
54
.
Quais foram as consequências do envolvimento da África oriental neste
sistema comercial? Em seu apogeu, tal corcio pode ter estimulado o
crescimento econômico através do fornecimento de objetos de ferro (embora,
ao que tudo indica, a maior parte tenha consistido em armas de guerra), e,
talvez, do conhecimento da metalurgia, que teria uma importância fundamental
para a história da África oriental
55
. Além disso, a demanda de marfim, chifres
de rinoceronte e cascos de tartaruga valorizou tais recursos, que provavelmente
tinham pouco valor local, aumentando assim as fontes de riqueza dessa parte
do continente. A referência à exportação de óleo de coco, por sua vez, sugere
a introdução dessa valiosa planta proveniente do leste e a implantação de uma
certa atividade industrial para extração do óleo. O comércio internacional pode
ter provocado ainda a urbanização incipiente das cidades -mercado, que recebiam
a visita dos comerciantes estrangeiros mas eram habitadas principalmente pelos
africanos e pela emergente classe dos mestiços da costa, cada vez mais voltados
para o exterior e dependentes do comércio externo, de que constituíam o vínculo
local. A riqueza resultante do comércio beneficiou essa classe e pode ter levado
a uma concentração de fortunas e de poder suficientes para permitir que Rhapta
proclamasse sua autonomia. Mas esta cidade não procurava de modo nenhum
desligar -se do comércio internacional, de que dependia sua prosperidade. Na
medida em que se havia tornado dependente dessa atividade, sua economia
pode ter -se destorcido e desequilibrado, devido à enorme importância dada
à exportação de alguns produtos de luxo para o opulento Império Romano,
tornando -a portanto vulnerável às flutuações comerciais. Quando os godos
começaram a cercar Roma (que foi derrotada em +410), aniquilaram também o
54 ORTEIL, F. 1956. pp. 250, 266 -7, 273 -5, 279; CHARLESWORTH, M. P. 1926. pp. 61, 71. Para os
testemunhos numismáticos na África oriental ver pp. 610-11.
55 POSNANSKY, M. 1966 -a. pp. 87,. 90.
624
África Antiga
sistema econômico centralizado nesta cidade, com amplas consequências para
todas as regiões dele dependentes. Desse modo, a distante Rhapta pode ter -se
arruinado. Até agora não se descobriu nenhum traço dessa metrópole” na costa
da África oriental.
O Reajustamento das relações exteriores da África
Oriental
A desintegração do sistema de comércio internacional provavelmente teve
um efeito catastrófico semelhante em outro estado: o Himiar, no sudoeste da
Arábia. O declínio da demanda romana do incenso produzido e de outros
produtos de luxo para os quais servia de intermediário sem dúvida afetou seu
equilíbrio, deixando -o à mercê das invasões etíopes e, posteriormente, persas.
No mar, esse estado deve ter perdido muito de sua posição de intermediário,
em parte para os etíopes cujo porto de Adulis surgia agora como centro de
exportação de marfim do alto Nilo para o Mediterrâneo e também para o leste,
em direção à Pérsia e amesmo à Índia (até então auto -suficiente), o que marca
um importante deslocamento das correntes do comércio do marfim
56
.
Contudo, não é provável que os etíopes tenham sido capazes de suplantar
inteiramente os árabes como agentes de comércio no oeste do oceano Índico.
Mais a leste, a Pérsia surgia como uma importante potência matima. Os
sassânidas começaram a encorajar a navegação persa no século III da Era Cristã,
a monopolizar o comércio com a Índia no século VI e a estendê -lo até a China,
o mais tardar por volta do século VII. Expandiram -se também para oeste, a
fim de obter o controle sobre a outra rota de comércio para o mar Vermelho,
conquistando no início do século VII o sudoeste da Arábia e do Egito. Embora
o Império Persa tenha sucumbido sob o ataque muçulmano em cerca de +635,
existem muitas provas de que seus navegadores continuaram a dominar durante
muito tempo o comércio do Índico, legando ao conjunto do mundo costeiro
desse oceano um importante vocabulário náutico e comercial
57
.
O domínio persa sobre o oeste do oceano Índico nos séculos VI e VII,
particularmente tendo em vista o declínio dos árabes e a incapacidade dos
56 BEEK. G. W. van. 1969. p. 46; PANKHURST. R. K. P. 1961. no. 26 -7; COSMAS. p. 372; HOURANI,
G. F. 1969. pp. 42 -4.
57 HASAN, H. 1928; HOURANI, G. F., 1969. pp. 38 -41, 44 -65; PROCÓPIO DE CESAREIA. V. I, pp.
193 -5; RICKS, .T. M. 1970. pp. 342 -3. Uma fonte chinesa do século IX menciona atividades comerciais
persas na costa da Somália: DUYVENDAK, J. L. 1949. p. 13.
625
A costa da África oriental e seu papel no comércio marítimo
etíopes para substituí -los, sugere que os persas tinham uma influência comercial
dominante na costa da África oriental. Embora a costa possa não ter ficado
sob sua hegemonia política, como se acreditava, não é impossível que a forte
tradição da imigração shirazi (persa) para a costa da África oriental se tenha
originado nesse período. Infelizmente, um hiato nas fontes documentais
entre os autores greco -romanos e os escritores árabes do século IX, e não se
descobriu nenhum testemunho arqueológico sobre o período pré -islâmico na
costa, à exceção de cinco moedas partas e sassânidas dos três primeiros séculos da
Era Cristã, que podem ter sido desenterradas em alguma parte de Zanzibar. No
entanto, provas de contatos comerciais entre a África oriental e o golfo Pérsico
pelo menos desde o século VII, que pertencem ao período islâmico, embora
possam se estender também ao período pré -islâmico. Já existem referências
a importações de escravos da África oriental (Zanj) e de outros lugares, para
servirem de soldados, domésticos e trabalhadores agrícolas nas terras pantanosas
do sul do Iraque. Aparentemente, no fim do século, eles eram suficientemente
numerosos para se revoltarem pela primeira vez, embora o mais espetacular
desses levantes tenha ocorrido cerca de dois séculos mais tarde. Também
indicações de que escravos zanj teriam chegado à China desde o século VII
58
.
Os persas e o golfo Pérsico também podem ter começado a desempenhar um
papel importante como intermediários entre a África oriental e a Índia. A queda
do Império Romano tinha privado a África oriental de seu principal mercado
de marfim, num momento em que a Índia era ainda muito auto -suficiente. Mas
no início do século VI a demanda indiana de marfim para a fabricação de
enfeites nupciais parece ter excedido as disponibilidades locais. Essa demanda
era garantida pela destruição ritual regular desses ornamentos após a dissolução
do casamento hindu pela morte de um dos cônjuges. No século X, a Índia e a
China eram os mercados mais importantes de marfim da África oriental
59
.
Por volta do fim do século VII, portanto, tinham se restabelecido sólidos
laços comerciais entre a costa da África oriental e as margens setentrionais do
oceano Índico. A crescente demanda de marfim na Índia permitiu ao menos
a criação de laços comerciais entre as duas regiões de “floresta”, e o mercado
indiano serviu a África oriental até o culo XIX. Em troca, os africanos
orientais provavelmente recebiam uma variedade de artigos manufaturados,
58 RICKS, T. M. 1970. pp. 339, 343; RIAVI, S. A. 1967. pp. 200 -1; MATHEW, G. 1963. pp. 101, 107 -8.
Para os trabalhos numismáticos ver pp. 610-11.
59 COSMAS. p. 372; FREEMAN -GRENVILLE, G. S. P. 1962 -a. p. 25; AL -MAS’UDI. in FREEMAN-
-GRENVILLE, G. S. P. 1962 -b. pp. 15 -16.
626
África Antiga
incluindo tecidos e pérolas. Tais trocas sustentavam as cidades -estado fundadas
ao longo da costa. Durante esta segunda fase de sua história, porém, o comércio
da costa da África oriental passou por apenas uma reorientação, sem que se
alterassem seus aspectos fundamentais: diversificou -se o mercado do marfim,
mas a economia não se libertou da dependência da troca de algumas matérias-
-primas por produtos manufaturados de luxo. Embora a exportação de escravos
não constituísse um fluxo excessivamente violento e ininterrupto, reduzia os
recursos humanos, e pode ter sido um fator básico em certos lugares e épocas na
história da África oriental, antes mesmo do século XIX. Contudo, o comércio era
controlado por uma população costeira, produto do comércio internacional e que
dependia de sua continuidade para prosperar. Dificilmente se poderia esperar
dela alguma iniciativa no sentido de se desligar das relações de dependência e
de subdesenvolvimento.
C A P Í T U L O 2 3
627
A África oriental antes do século VII
É mais fácil conhecer a situação dos povos e das sociedades da África oriental
depois do ano 100 da Era Cristã do que durante os períodos mais antigos. Estão
em andamento várias pesquisas sobre esses tempos mais remotos e os resultados
levam a uma revisão constante, parcial ou total, das conclusões anteriores.
O estudo dos dois milênios que vão de -1000 a +1000 é difícil, pois exige
todos mais refinados e uma grande quantidade de informões que a
arqueologia ainda não pôde fornecer em sua totalidade. Portanto, a pesquisa
que se segue é, em vários aspectos, conjetural, hipotética e mesmo provocadora
e tem por objetivo estimular a reflexão e a pesquisa.
O método utilizado para a abordagem da história antiga da África oriental é
essencialmente cultural; trata -se de uma tentativa de reconstruir o modo ou os
modos de vida, nos limites dados pelo conjunto dos testemunhos arqueológicos,
antropológicos e linguísticos. Faremos referências frequentes aos grupos lingsticos,
que, enquanto tais, podem ser menos importantes do que as considerações culturais
e ecomicas mais abrangentes. Entretanto, a linguagem é um elemento da cultura
e da história, algo transmitido (apesar de contínuas modificações) de geração para
gerão numa comunidade; é um meio graças ao qual as populões se identificam
claramente enquanto grupos e se distinguem umas das outras. (De um certo modo,
os outros podem ser considerados aparentados, se as línguas forem parcialmente
inteligíveis ou apresentarem traços comuns. Inversamente, seo houver nenhuma
A África oriental antes do século VII
J. E. G. Sutton
628
África Antiga
afinidade evidente, podem ser considerados totalmente estrangeiros). Por essas razões
é que, em geral, as definões linguísticas e as classificões dos povos oferecem um
ximo de clareza e utilidade para os antropólogos e historiadores. As nguas
tratadas neste catulo são especificadas no gráfico e no mapa seguintes e em geral
seguem o esquema reproduzido em Zamani (editado por Ogot e Keiran, 1968), que
se baseia na classificação das línguas africanas de Greenberg.
A tradição da caça na savana meridional
Durante vários milênios antes da Idade do Ferro, em toda a região de savanas
e florestas abertas que recobrem a maior parte da África a leste e ao sul do
grande cinturão florestal equatorial, a população era constituída essencialmente
de caçadores -coletores que utilizavam o arco, a flecha e as técnicas avançadas
do trabalho da pedra (principalmente as da grande cultura de Wilton dos
arqueólogos – ver Volume I). Em geral, essas populações pertenciam a um tipo
físico cujos descendentes são, hoje em dia, os chamados San e Khoi -Khoi, que
habitam o Calaari e seus arredores. É provável que sua língua se classifique
entre as da família khoisan, que se distingue por seus “cliques”. Atualmente
essas línguas se limitam aos Khoi e aos San da África do sul e do sudoeste, bem
como a dois pequenos grupos independentes da África oriental, os Sandawe e
os Hadza, que vivem no norte da Tanzânia central
1
.
Os Hadza permanecem caçadores e coletores. Pouco numerosos, dotados
de uma razoável mobilidade, são ágeis na procura e no aproveitamento dos
recursos alimentares silvestres existentes em seu território
2
. Os Sandawe, por sua
vez, foram durante algum tempo agricultores e criadores de cabras e gado; mas
conservam uma forte ligação cultural com a selva e um conhecimento instintivo
de seu potencial. Em seu tipo físico geral, essas duas tribos são negroides;
contudo, alguns observadores perceberam traços de uma outra ascendência entre
os Sandawe e, possivelmente, também entre os Hadza. A mestiçagem com as
populações negroides vizinhas explicaria essa tendência.
É interessante notar ainda que, contrariamente ao resto da África oriental, o
terririo dos Hadza e dos Sandawe e a área que os separa oferecem numerosos
1 Em geral, os Hadza são designados pelo nome menos preciso de Tindiga”. A classicação de sua língua
como khoisan foi contestada, mas provavelmente está correta. Não existem grandes dúvidas acerca da
classicação dos Sandawe na família khoisan.
2 Atualmente, o governo tanzaniano procura xar os Hadza nas aldeias, fornecendo -lhes instruções agrícolas.
629
A África oriental antes do século VII
 . África oriental: mapa político e mapa indicativo da distribuição de línguas e povos. (Mapa fornecido pelo autor.)
630
África Antiga
exemplos de pinturas rupestres, encontradas nas paredes internas dos abrigos
naturais que esporadicamente serviam de acampamento e de bases familiares
durante a Idade da Pedra Recente. Essas pinturas
3
têm um significado social e
frequentemente religioso ainda mal compreendido; também dão indicações
valiosas sobre os métodos de caça, a alimentação e a vida cotidiana. Em várias
partes da África do Sul encontraram -se manifestações artísticas dessa mesma
época, também pintadas nas paredes dos abrigos sob rocha; e embora existam
algumas diferenças nitidamente regionais, podem -se estabelecer diversos paralelos
entre os estilos, temas e técnicas utilizados na África do Sul e na Tanzânia. Os
paralelos artísticos são complementados pelo parentesco geral existente entre as
técnicas wiltonienses de talhar a pedra empregadas pelos ocupantes dos abrigos
sob rochas nas duas regiões. Apesar de hoje em dia nem os Hadza nem os
Sandawe praticarem seriamente a pintura – do mesmo modo que abandonaram
a fabricação de utensílios de pedra –, parece que num dado momento da Idade
da Pedra Recente esta região partilhou uma mesma tradição étnica e cultural
com as áreas meridionais.
Esse modo de vida amplamente difundido dos caçadores -coletores da savana
tinha possibilidades econômicas e desenvolvimento cultural próprios. Embora
viesse da coleta a parte principal dos alimentos consumidos (como indicam os
estudos recentes sobre os San e outros grupos), a busca da carne, que constituía
a tarefa mais difícil e respeitada, era essencial para o estabelecimento de uma
dieta equilibrada e a satisfação do apetite. Tudo isso dependia de um certo
grau de mobilidade, com acampamentos sazonais mas não estabelecimentos
permanentes, com homens seguindo os deslocamentos da caça e explorando os
recursos vegetais do território. Tais práticas teriam restringido o crescimento
da população e, talvez, inibido mudanças. Isso ajuda a explicar por que, durante
os minios recentes, essa antiga populão da savana foi assimilada pelas
comunidades de pescadores, pastores e agricultores que, empregando métodos
mais intensivos e produtivos para a obtenção de alimentos, puderam manter
bases mais estáveis, crescer em número e ampliar seu território.
Portanto, a maior parte da vasta região outrora ocupada pelos caçadores -coletores
tornou -se posteriormente domínio dos agricultores bantu. Em algumas dessas regiões
bantu, a tradição oral menciona encontros casuais com estranhos homens pequenos
que antigamente teriam vivido e caçado na selva e na floresta. Tais relatos o são
historicamente precisos, mas é bem provável que reflitam vagas lembranças
3 Ver Volume I, Capítulo 26.
631
A África oriental antes do século VII
transmitidas há um milênio ou mais, desde quando os Bantu colonizaram
este setor do sul da África central, confinando e assimilando gradualmente as
populações san, mais esparsas e cujo modo de vida era muito diferente do seu.
Em contraste, essa antiga tradição de caça se reflete no período agrícola mais
recente na importância dada às façanhas e habilidades da caça nas lendas bantu.
O fundador de uma linhagem real é frequentemente um arqueiro errante ou o
chefe de um grupo. Isso parece derivar de uma antiga ideologia que exaltava a
força e a coragem, o bom senso e a perseverança do caçador vitorioso, capaz de
levar para casa a carne tão apreciada.
Contudo, nem toda a África oriental se tornou parte integrante do mundo
bantu. Como se verá mais adiante, Uganda do norte, grande parte do Quênia
e setores do norte da Tanzânia central foram durante muito tempo ocupados
por populações distintas, que falavam línguas cuxitas, nilóticas, etc. Algumas
dessas populações se estabeleceram durante a Idade do Ferro e outras ainda
mais cedo. Nesses lugares e mais ao sul traços etnográficos e arqueológicos
indiscutíveis da existência em épocas recentes e lonnquas de numerosas
comunidades de cadores -coletores. Em sua maioria, elas provavelmente
não eram representativas da tradição das savanas meridionais. Embora seja
difícil definir o limite setentrional dessa tradição, não existe um bom motivo
para situá -lo além do lago Vitória e do Equador. A documentação sugere às
vezes que as populações do tipo san antigamente se estendiam até o Chifre da
África e o Médio Nilo; mas essa tese baseia -se em provas e argumentos muito
precários – alguns fragmentos de esqueletos pouco convincentes ou originários
de épocas muito anteriores à diferenciação completa dos tipos físicos africanos
mais recentes; conjuntos de utensílios da Idade da Pedra Recente de Uganda
setentrional, do Quênia, da Etiópia e da Somália, que apresentam algumas
semelhanças vagas ou gerais com as indústrias wiltonienses das regiões do sul;
enfim, a existência, em vários lugares, dessas pequenas comunidades de caçadores
recentes e de habitantes, das regiões de matas. A característica desses diferentes
grupos é que alguns deles são social ou economicamente independentes.
Geralmente vivem nos limites ou então no interior do território dos agricultores
e pastores cuxitas e nilóticos; falam sua língua e lhes fornecem os produtos da
savana e da floresta mel, peles, carne, etc. Alguns desses grupos certos bandos
dorobo nas terras altas do Quênia, por exemplo não são necessariamente
nativos caçadores -coletores, mas o resultado de oportunidades mais recentes
de especialização ou de retorno à floresta de indivíduos que não se adaptaram
à vida em sociedade. Em certas regiões de língua ou de forte influência cuxita,
no Quênia e na Etiópia, tais grupos tendem mais a constituir castas distintas
632
África Antiga
do grupo principal do que populações de marcada identidade. De modo geral,
dedicam -se a atividades impuras”, principalmente as de oleiro e ferreiro, em
benefício da comunidade como um todo. É claro que tais ocupões eram
totalmente estranhas à velha tradição da caça e da coleta nas savanas.
Contudo, é muito provável que essas regiões setentrionais da África oriental
tenham constituído, durante uma grande parte da Idade da Pedra Recente uma
zona fronteiriça instável determinada em parte pelas mudanças climáticas
entre as culturas das populações de tipo san das savanas meridionais e outras
estabelecidas na África do nordeste ou central. Ainda muito que aprender
sobre essas regiões. É possível, no entanto, identificar no interior ou nos limites
da África oriental pelo menos duas outras grandes tradições culturais e entidades
étnicas que também ignoravam a agricultura e a criação de animais durante os
milênios recentes e que serão o tema dos dois capítulos seguintes.
A tradição da coleta e da caça com armadilha na oresta
equatorial
Na floresta pluvial da bacia do Congo e principalmente nas suas margens
orientais que se prolongam até Ruanda e o sudoeste de Uganda, vivem os
Pigmeus. Sua importância e seu número diminuíram com o correr do tempo,
devido à expansão gradual dos agricultores sedentários, principalmente bantu,
que desbastaram uma boa parte da floresta e reduziram os recursos alimentares
naturais de que os Pigmeus extraíam sua subsistência. Muitos deles foram
assimilados, mas outros sobrevivem em grupos independentes, embora mantendo
relações com seus vizinhos bantu e falando a língua destes.
Embora fosse, como a dos San, baseada na caça de animais selvagens e
na coleta de vegetais, a economia dos Pigmeus que viviam na floresta exigia
um ajustamento ecológico e uma especialização tecnológica muito específicos.
Classificar os Pigmeus e os San na mesma categoria de “caçadores -coletores”
seria ignorar a diferença entre seus modos de vida e de pensar, tão diversos um do
outro como o são do dos agricultores bantu. O modo de vida dos Pigmeus, como
o dos San, deve representar uma antiga tradição cultural e econômica ligada a
um certo meio, neste caso à floresta densa, cuja natureza permite explicar as
particularidades físicas e a pequena estatura desses povos.
Todavia, existem pouquíssimos dados históricos sobre os Pigmeus e sua
distribuição geográfica anterior, ainda que se tenha tentado, na bacia do Congo,
estabelecer uma correlação entre certos vestígios da Idade Média e Recente
633
A África oriental antes do século VII
da Pedra (complexo lupembo -tshitoliense). A distribuição e a datação desse
complexo indicam ao menos uma importante tradão florestal de origem
antiga e que sobreviveu até uma época recente. A leste de Ruanda encontram-
-se poucos traços de suas últimas fases; ainda que se tratasse de trabalhos dos
Pigmeus, seria difícil sustentar a tese de sua expansão na África oriental durante
a Idade da Pedra Recente, mesmo nas épocas em que as precipitações eram mais
abundantes e a floresta mais extensa.
Realmente encontram -se alues, em obras históricas e antropológicas,
à presença anterior de Pigmeus disseminados em diversas regiões da África
equatorial. Algumas delas parecem se basear em concepções etnográficas errôneas,
outras em dados folclóricos ou vagas tradições orais que mencionam populações
pouco numerosas vivendo da caça e da coleta em tempos antigos. Tanto quanto
estes relatos se refiram a populações precisas e a períodos determinados,
provavelmente se relacionam, na maior parte dos casos, aos caçadores de tipo
san, ligados à tradição da savana ou, na região setentrional da África do leste, a
grupos distintos, os Dorobo e outros povos silvestres já mencionados.
Entre esses povos lendários da floresta, merecem menção especial os Gumba,
de que falam os Kikuyu do Alto Quênia oriental. É grande a confusão sobre os
Gumba e seu modo de vida. Tal se deve, em primeiro lugar, à falta de precisão
dos testemunhos e à tendência dos informantes de racionalizar suas lendas;
em segundo lugar, deve -se aos erros de registro e análise dos historiadores.
Contudo, no território kikuyu existem vestígios arqueogicos indiscutíveis de
populações que, durante os últimos dois milênios, viveram numa determinada
época na floresta densa, onde constrram e, aparentemente, habitaram grupos
de curiosas cavidades circulares nos cumes das montanhas. Embora talhassem
a pedra, provavelmente não era um vestígio local e isolado da Idade da Pedra
Recente. Sua cerâmica e a possível utilização do ferro sugerem que mantinham
algumas relações culturais com os antigos Bantu das terras altas, para quem
provavelmente desempenhavam funções econômicas especiais.
Trata -se realmente dos Gumba das lendas? A questão continua em aberto. É
certo, porém, que, quando essas populações forem mais bem estudadas, oferecerão
o exemplo de uma etnia localizada que produziu uma cultura florestal específica,
ainda que em época muito recente, numa relativa simbiose com as culturas das
populações agrícolas vizinhas. Nesse nível bastante geral de adaptação ao meio
ambiente, é possível fazer uma comparação com os Pigmeus da bacia do Congo;
no entanto, a despeito das especulações de certos autores, nada permite supor
que estes primeiros habitantes das florestas das terras kikuyu, Gumba ou não,
tenham realmente pertencido à etnia dos Pigmeus.
634
África Antiga
A tradição aquática da África Central
Essa queso, tanto tempo negligenciada, foi examinada no volume
precedente desta História
4
. Portanto, é suficiente estudar aqui a evolução final
desse modo de vida peculiar.
Por volta de -5000, o clima se tornou sensivelmente mais seco. Alimentadas
por rios menos numerosos e de menor volume, as águas dos lagos desceram
muito abaixo dos níveis máximos anteriores. Assim, a continuidade geográfica
e, em alguns lugares, os fundamentos econômicos do modo de vida aquático
estavam ameaçados, e encerrados os dias de sua hegemonia cultural. No entanto,
aproximadamente em -3000, o clima voltou a ser úmido durante um certo tempo
e, em consequência, a água dos lagos recomeçou a subir (sem atingir, contudo,
os veis do timo milênio). No Quênia, no Rift Valley oriental ocorreu nesta
época a ressurreição de uma cultura aquática, modificada sem dúvida em razão
de novas migrações e de novos contatos com o Médio e o Alto Nilo. Às margens
dos lagos Rodolfo e Nakuru, descobriram -se vestígios desta fase aquática recente,
que incluem cerâmicas de estilo original e vasos de pedra pouco profundos que,
em geral, parecem datar de -3000. Apesar da ausência aparente de arpões nos
sítios desse período, parece certo que as populações se dedicavam à pesca. Mas é
muito provável que a dieta não fosse predominantemente constituída de produtos
aquáticos, como na fase principal, três a cinco mil anos antes. Por volta de -2000,
paralelamente ao retorno da tendência à aridez, as possibilidades de uma cultura
aquática foram definitivamente destruídas na maior parte do Rift Valley oriental.
Ao que tudo indica, a população desta última fase aquática também era
fundamentalmente negra. Apesar de não dispormos de dados indiscutíveis
sobre sua língua, é razoável supor que pertenciam a algum dos ramos da família
Chari -Nilo (ramo oriental do nilo -saariano).
Sue -se que a grande civilização aqtica, tanto a fase principal (entre -8000
e -5000) quanto seu ressurgimento posterior (por volta de -3000), se localizava
ao longo dos rios e ntanos da bacia do Alto Nilo, principalmente às margens
do maior lago da África oriental, o Vitória. Curiosamente, parecem o existir
vesgios dos milênios em questão. No entanto, durante o primeiro milênio antes
da Era Cristã, havia populações que acampavam nas ilhas e em abrigos sob rochas
ou em campo aberto à beira do lago e dos rios da rego. Alimentavam -se de peixes
e moluscos, mas também de ca e talvez de bovinos e carneiros. Não se sabe se
4 Ver Volume I, Capítulo 20.
635
A África oriental antes do século VII
algumas delas cultivavam a terra; mas há traços interessantes de cortes efetuados
nessa época na floresta em torno do lago Vitória, o que indica ao menos uma forma
nova e relativamente intensiva de utilização das terras. Conhecida pelo nome de
kansyore, a cemica dessas populações apresenta algumas afinidades marcantes com
as cerâmicas de linha sinuosa pontilhada”, bem mais antigas, da primeira civilização
aqtica. Até onde se sabe, muito tempo estas cerâmicas foram substituídas
no vale do Nilo e, portanto, é pouco provável que os tipos kansyore tenham sido
introduzidos na região do lago Vitória apenas no primeiro ou segundo milênio antes
da Era Cristã. Aqui, como em outros lugares, a tradição aquática remonta a vários
milênios, mas é mais provável que tudo que lhe é atribuído pertença apenas à sua
fase mais recente, que se encerrou exatamente antes do início da Idade do Ferro.
Neste caso, pode -se perguntar se ainda o eso por descobrir os vesgios do antigo
modo de vida aquático, nas margens dos lagos mais meridionais da África oriental
– principalmente em toda a extensão do lago Tanganica.
Nenhum índice preciso permite determinar o grupo linguístico a que
pertenciam essas populações do lago Vitória no primeiro milênio antes da Era
Cristã, mas é possível que se trate do grupo sudanês central (ramo do Chari-
-Nilo). Essa região e a que se situa mais ao sul foram povoadas por Bantu
desde o início da Idade do Ferro. Segundo certos linguistas, esses Bantu teriam
assimilado, em seu processo de fixação, uma população mais antiga e menor, que
falava uma língua do grupo sudanês central e que lhes teria ensinado as técnicas
de criação de ovinos e bovinos. Na falta de palavras próprias para designar tais
novidades”, os Bantu tomaram -nas de empréstimo aos habitantes anteriores
dessas regiões, cuja língua se extinguiu. Ainda não se descobriu nada, ao sul do
lago Vitória, que possa levar a uma confirmação arqueológica desta hipótese.
Em torno do lago, porém, podem -se relacionar os sítios que contêm cerâmica
kansyore ao grupo linguístico sudanês central, principalmente se estiver correta
a associação, verificada em certos locais, com vestígios de carneiros e de gado de
grande porte remontando ao primeiro milênio antes da Era Cristã. É possível
que, nessa época, uma civilização aquática isolada e em franco declínio se tenha
revigorado em função de contatos estabelecidos a leste com uma nova civilização
pastoril, que se teria implantado nas terras altas do Quênia.
A tradição pastoril dos cuxitas
De fato, à medida que se estabeleceu um regime climático mais seco, por
volta do segundo milênio antes da Era Cristã, as águas dos lagos começaram a
636
África Antiga
baixar, até atingir aproximadamente seu nível atual; em certos casos os peixes
desapareceram. As florestas também cederam terreno, dando lugar, sobretudo no
Rift Valley oriental e nos planaltos vizinhos, a excelentes pastagens de montanha.
Embora sempre se pudesse pescar nas margens do lago Vitória e de vários outros
lagos e rios, e assim preservar certos elementos do antigo modo de vida aquático,
essa tradição já havia perdido sua grande continuidade geográfica e a segurança
cultural que a isso estava ligada nos tempos anteriores. Na maior parte da África
central e particularmente em sua extremidade oriental, o pretígio passou a se
vincular à criação de gado; continuar a viver próximo das águas e graças a elas
era considerado retrógrado e um sinal de estagnação intelectual. Não se tratava
apenas de um modo de vida arcaico: aos olhos dos agrupamentos pastoris mais
favorecidos era algo bárbaro e impuro. Os primeiros pastores da África oriental
reconheciam -se não apenas por sua língua cuxita e pela importância que davam
à circuncisão, mas também devido ao tabu em relação ao peixe.
longo tempo, nesta zona da África do leste em que o pasto é de boa
qualidade e cresce em quantidade suficiente, e que, além disso, está livre da
mosca tsé -tsé e das doenças endêmicas, o rebanho é objeto de prestígio e sinal
de riqueza. Mas é importante entender que esta ideologia do rebanho está
fundada numa rigorosa percepção das realidades econômicas. O gado fornece
a carne e, principalmente, o leite. Mesmo entre as populações que extraem dos
campos a maior parte do alimento, o gado é uma importante fonte de proteínas
e uma segurança contra as fomes periodicamente causadas por secas ou outros
flagelos. Além disso, não se deve subestimar o importante papel das cabras e dos
carneiros, que geralmente são os principais fornecedores de carne das populações
que vivem da agricultura e da criação de gado.
Os primeiros bovinos africanos orientais foram introduzidos nas terras altas e
na região do Rift Valley do Quênia aproximadamente três mil anos; pertenciam
provavelmente a uma espécie de chifres longos e sem corcova. Em diversos sítios
arqueológicos anteriores à Idade do Ferro foram encontrados esqueletos de vacas
e de cabras (ou de ovelhas) datados do primeiro milênio. Embora alguns desses
sítios fossem habitados, trata -se mais frequentemente de sepulturas, descobertas
em grutas ou, mais comumente, sob cairns (montículos de pedras). É evidente
que um estudo mais completo da economia dessas populações do primeiro
milênio tem necessariamente de aguardar a descoberta e o exame meticuloso
de um número maior de sítios ocupados pelo homem; no entanto, os objetos
depositados nos túmulos, ainda que evidentemente tenham sido especialmente
escolhidos e se ligassem a um significado religioso, frequentemente estão mais
bem conservados e devem, de uma forma ou de outra, refletir o modo de vida
637
A África oriental antes do século VII
da população ou sua atitude diante da vida. Entre as descobertas feitas até agora,
figuram rebolos e pilões, tigelas e potes fundos de pedra; cabaças e recipientes
de madeira que provavelmente deviam conter leite; cestas, cordas, machados de
pedra polida, e peças de marfim talhado; colares de contas de diferentes pedras,
de ossos, de conchas e de matérias vegetais. Enquanto complexo cultural, trata-
-se, aproximadamente, do equivalente ao que anteriormente era descrito como
stone bowl culture (cultura das tigelas de pedra) em sua principal e última fase;
mas provavelmente se descobrirá que este complexo engloba, em realidade, uma
série de comunidades e de variantes culturais.
A economia não era exclusivamente pastoril. Costumavam -se car
antílopes e outras espécies, e é posvel que isso ocorresse principalmente
entre as comunidades mais pobres. Ainda não se sabe ao certo se esses povos
cultivavam certas variedades de sorgo ou milhete ou ainda outras plantas, mas
é muito provável. Primeiramente, a quantidade das cemicas descobertas
em alguns desses sítios sugere que pelo menos uma parte da populão era
mais sedentária do que seria de esperar de uma comunidade exclusivamente
pastoril; e as mós também supõem o cultivo, a preparação e o consumo de
cereais. Contudo, essas grandes mós planas e os pilões que as acompanham
podem ter servido para moer vegetais selvagens ou mesmo produtos o
alimentícios. Algumas das que foram achadas nos túmulos, por exemplo,
estão tingidas do ocre vermelho utilizado para enfeitar os corpos. Mas isso
o elimina necessariamente a possibilidade de seu emprego utilitário na
vida cotidiana. Existe outro argumento mais persuasivo em prol da existência
de algum tipo de agricultura: se essas populações não tivessem recorrido a
outras fontes de alimentação, é pouco provável que pudessem sobreviver longo
tempo em caso de uma crise grave consecutiva a longos peodos de seca ou a
epidemias do gado. Isso porque só para grupos muito pequenos e disseminados
é que a caça e a coleta serviriam de substitutos temporios do pastoreio
e de principal recurso alimentar
5
. Contudo, a predominância da criação de
5 É verdade que em séculos recentes algumas sociedades pastoris conseguiram abandonar completamente a
agricultura (e mesmo menosprezar a caça). Mas isto só foi possível graças a um sistema de troca com os
vizinhos agricultores, que lhes forneciam os cereais e outros vegetais necessários à sobrevivência durante
a estação da seca, ou às incursões em territórios de outros povos de economia mista agropastoril. Esta
última prática era essencial para as tribos centrais dos Massai, que, apesar do controle que exerciam
sobre as grandes extensões de ricas pastagens montanhesas, sempre conside ravam insucientes seus
recursos em carne, e que mais importante se viam na obrigação de, após as perdas de gado ou os
maus anos, adquirir novos touros reprodutores e reconstituir sem demora seus rebanhos de vacas leiteiras,
para assegurar a sobrevivência de seu modo de vida e de sua comunidade. Nenhuma dessas soluções era
acessível aos criadores de gado da África oriental do primeiro milênio antes da Era Cristã.
638
África Antiga
animais e de uma economia fundada no gado é ilustrada pela distribuição
geográfica dessas populações, virtualmente confinadas nas reges ricas em
pastagens extensivas. No norte da Tanzânia as terras altas, onde se encontra a
bacia verdejante da cratera de Ngorongoro com seus cemitérios dessa época,
formavam o limite meridional dessa vasta zona pastoril. Uma população mais
habituada a combinar as atividades de criação com a agricultura poderia ter -se
estendido mais além, pelas áreas rteis que margeavam essas terras a leste e
a oeste, e sem dúvida teria seguido mais para o sul.
Os diferentes estilos de cerâmica e outras características da cultura material
desses primeiros pastores das terras altas e do Rift Valley do Quênia e da Tanzânia
setentrional parecem revelar influências da região do Médio Nilo. No entanto,
trata -se provavelmente de influências indiretas, que dão apenas um pálido reflexo
do modelo original. Tais influências não significam necessariamente que o gado
e seus pastores fossem originários daquela região; é mais provável que sejam
o resultado de uma assimilação devida aos contatos com a antiga população
aquática e com as populações nilóticas; estes dois últimos grupos relacionavam-
-se muito tempo através dos lagos do Rift Valley. Pode -se encontrar um
exemplo disso na persistência das estranhas tigelas de pedra nesta região durante
aproximadamente dois mil anos, do fim do período aquático até o início do
período pastoril.
Os contrastes regionais também são significativos. De fato, a partir do
segundo milênio antes da Era Cristã estabeleceu -se uma linha divisória cultural
na direção norte -sul, tendo a leste as terras altas da Etiópia e do Quênia (com
suas planícies áridas), onde se entrincheirava a tradição pastoril, e a oeste a bacia
do Alto Nilo, com o lago Vitória, onde uma economia aquática permanecia
praticável por populações pouco numerosas. Em nenhum momento essa linha
divisória constituiu uma barreira intransponível entre os povos e as ideias que,
na realidade, continuaram a circular em ambas as direções, antes e durante a
Idade do Ferro. Todavia, ela representa o encontro de duas tradições culturais
importantes e em geral distintas. Isso se reflete nas comparações e análises
linguísticas e, com menos precisão, nas observações da antropologia física.
Embora seja difícil generalizar a partir de tipos físicos, tem -se a clara impressão
de que as populações situadas a oeste dessa linha são tipicamente negras, o
que parece ocorrer bem menos com os habitantes das terras altas e planícies
orientais. Os estudos linguísticos ressaltam as influências vindas da Etiópia
para as terras altas da África oriental, mantendo -se constantemente um pouco
a leste da linha de separação cultural. A Etiópia é o antigo centro de origem da
família das línguas cuxitas, e a maior parte das línguas bantu e nilótica atuais, no
639
A África oriental antes do século VII
Quênia e no nordeste centro -norte da Tanzânia, revelam traços dos empréstimos
tomados às línguas cuxitas. Em alguns lugares, principalmente na extremidade
meridional dessa região, as línguas cuxitas persistem até hoje, embora estejam
consideravelmente distantes das formas cuxitas primitivas. Entre as importantes
informações histórico -culturais obtidas através da análise dos empréstimos de
palavras de uma língua para outra encontra -se a contribuição dada à criação de
animais pelas populações cuxitas primitivas da África oriental.
O elemento cultural cuxita na história da África oriental também se
manifesta sob outras formas e reflete -se até certo ponto em instituições que
não são fundamentalmente sociais e políticas e se baseiam numa organização por
grupos etários, dos povos das planícies e das terras altas do Quênia e de partes da
Tanzânia setentrional. Contudo, essa observação é muito geral, sendo que nem
todos os aspectos desses sistemas remontam necessariamente ao povoamento
cuxita original
6
. O que parece ser de origem mais especificamente cuxita é o
costume da circuncisão no momento da iniciação. A distribuição desse costume
coincide bastante com a de numerosos empréstimos lexicais do cuxita, ocorrendo
o mesmo com a aversão ao peixe, registrada também nessa área. Seu significado
na experiência histórica da África oriental foi discutido anteriormente.
Assim formamos a imagem de uma população pastoril de língua cuxita,
de estatura elevada e de cor relativamente clara, que se expandiu para o sul,
assenhoreando -se de ricos prados, placies e principalmente planaltos do
Quênia e da Tanzânia setentrional aproximadamente três mil anos. Todas
estas considerões podem soar como uma reafirmação do mito camita”,
atualmente rejeitado. De fato, embora os aspectos mais ilógicos e românticos
das hipóteses camitas, diversas e vagas, sejam fruto de preconceitos universitários
europeus e de ideias grotescas sobre a África e as populações negras, os fatos em
que se baseiam não são inteiramente fictícios. Certas observações são perspicazes
e determinadas interpretações históricas muito sensatas. O erro da escola camita
encontra -se em seus pressupostos e na obsessão pelas origens dos povos e das
ideias. Dada a incompreensão das condições locais, ela enfatizou um conjunto
particular de influências externas, como o elemento cuxita e o prestígio pastoril,
em vez de considerá -lo um dos muitos componentes da experiência histórica e
cultural da África oriental experiência para a qual contribuíram sucessivamente
6 Alguns desses aspectos podem resultar de contatos posteriores com as populações cuxitas orientais da
Etiópia meridional e da fronteira do Quênia, principalmente na região do lago Rodolfo. Durante o
presente milênio algumas populações cuxitas orien tais, principalmente grupos de Gala e Somali, se
expandiram numa longa extensão no norte e no leste do Quênia. Devem -se distinguir essas migrações
da expansão cuxita meridional, muito mais antiga, aqui discutida.
640
África Antiga
com complementos de igual importância a antiga civilização de caça da savana,
a civilização aquática dos milênios úmidos e, mais recentemente, os Bantu com
o domínio do ferro e da agricultura.
A tradição bantu: a agricultura e a utilização do ferro
Ao passo que, durante o primeiro milênio antes da Era Cristã, a atividade
pastoril e o tabu do peixe que a acompanhava caracterizavam cultural e etnicamente
os cuxitas numa das áreas da África oriental, o trabalho e a utilização do ferro
distinguiam os primeiros Bantu durante o milênio seguinte. Ainda o se sabe
muito bem como ou de onde foi obtido tal conhecimento; o problema é examinado
no Capítulo 21. Muito mais importante do que a questão da origem é o fato
evidente de que os primeiros Bantu dependiam do ferro e eram considerados como
o povo que detinha o segredo de sua metalurgia. Provavelmente as populações
mais antigas da África oriental não o conheciam e fabricavam seus utensílios e
armas com o auxílio de pedras apropriadas, que trabalhavam segundo técnicas
antigas. No Rift Valley oriental, por exemplo, na zona cuxita, o abundantes os
depósitos de uma pedra excepcional, a obsidiana (rocha vulcânica opaca), da qual
se podiam facilmente tirar excelentes lâminas de diferentes tamanhos para todos
os tipos de uso, incluindo pontas de lança e provavelmente facas de circuncisão.
No que diz respeito a pedras utilizáveis, as comunidades contemporâneas, mas
distintas, que viviam nas imediões do lago Vitória, entre as quais em parte se
conservou a tradição aqtica, eram menos favorecidas do que as do Rift Valley. No
entanto, tiveram êxito na fabricação de utensílios complexos a partir do quartzo,
do sílex córneo e de outras pedras fáceis de talhar; o mesmo ocorria nas regiões
mais ao sul, entre os caçadores da savana. Para todas essas populações, o primeiro
contato com os estrangeiros que praticavam a tecnologia do ferro deve ter sido
uma experiência cultural perturbadora.
A expansão principal dos Bantu foi ampla e pida, não tendo ocorrido
através de fases progressivas, como afirmaram alguns autores. Mas também não
se tratou de uma perambulação de nômades errantes nem de uma conquista
militar organizada. Foi um processo notável de colonizão no verdadeiro
sentido da palavra – a exploração de terras totalmente desocupadas. A expansão
bantu não abarcou a totalidade da área aqui considerada. Cerca de um terço
da África oriental permaneceu não bantu devido à resistência e adaptabilidade
de algumas das populações primitivas, principalmente na extensa zona do Rift
oriental com seus antigos povos cuxitas, acrescidos durante a Idade do Ferro
641
A África oriental antes do século VII
pela chegada de contingentes nilóticos (ver o mapa linguístico e os capítulos
precedentes e seguintes).
Isto não significa que durante esses dois mil anos não tenha existido nenhuma
interação entre os Bantu e vários cuxitas ou nilóticos na África oriental. De
tempos em tempos devem ter ocorrido miscigenação e assimilação, em ambos
os lados, bem como empréstimos culturais e diversos tipos de enriquecimento
econômico. Desde cedo, nestas regiões ricas de bons pastos e livres de moscas
tsé -tsé, os Bantu começaram a completar sua dieta agrícola com o leite e a carne
de vaca. Durante muito tempo o gado foi particularmente importante entre os
Bantu que viviam em torno do lago Vitória e nas ricas pastagens montanhosas
do oeste. Inversamente, o papel do cultivo de cereais entre as populações
cuxitas e nilóticas das terras altas do Quênia e da Tanzânia setentrional cresceu
consideravelmente com o tempo, em razão da necessidade urgente de alimentar
uma população mais numerosa e ainda pela influência ou pelo exemplo dos
Bantu vizinhos e de suas técnicas. Linguisticamente, alguns setores das terras
altas tornaram -se bantu, embora refletindo em vários aspectos culturais e sociais
a assimilação de um importante substrato cuxita. O fato é mais surpreendente
entre os Kikuyu, cuja população é muito numerosa e densa. Eles falam uma
língua bantu e praticam em suas colinas e clareiras férteis uma agricultura
intensiva que pode ser considerada uma adaptação local dos modos de vida
bantu tradicionais. Mas o sistema político kikuyu, baseado em grupos etários e
na circuncisão, sem esquecer a aversão ao peixe, tem vínculos maiores com os
antigos costumes cuxitas das terras altas.
Portanto, a zona cuxita das terras altas e do Rift Valley, apesar de ter
conservado sua configuração básica (tornando -se, durante a Idade do Ferro,
mais nilótica do que cuxita em termos da distribuição linguística atual), sofreu
algumas usurpações por parte dos Bantu, sobretudo nas áreas da floresta úmida,
dotadas de um potencial agrícola excepcionalmente rico (o que eventualmente
explicaria a maior densidade de população nesta região). Por outro lado, existem
lugares em que, no segundo milênio antes da Era Cristã, o alcance da fala bantu
sofreu um recuo, principalmente em certos pontos da costa e do interior da
Somália meridional e do nordeste do Quênia; o mesmo ocorreu nas regiões
atingidas pela expansão luo no centro e no leste de Uganda e, no Quênia, nas
margens do lago Vitória. Os movimentos e processos de assimilação têm grande
importância para a história posterior dessas regiões e serão discutidos com
maior profundidade nos volumes seguintes. Contudo, trata -se de considerações
relativamente secundárias. É mais importante observar que os elementos
principais do mapa linguístico e das tradições étnicas e culturais da África
642
África Antiga
 . Agrupamentos de línguas africanas ocidentais e suas relações de parentesco. (Documento fornecido pelo autor.)
643
A África oriental antes do século VII
oriental estavam fixados. A expansão bantu estava praticamente concluída
e seu limite setentrional na África do leste se estabilizou aproximadamente
1500 anos. Nessa linha irregular e flexível, a colonização bantu foi contida por
culturas e economias vigorosas e suficientemente adaptáveis, que se haviam
fixado anteriormente. Contudo, a situação era diferente em torno do lago Vitória
e em toda a região que se estende ao sul.
Como vimos, antes da expansão bantu, as populações instaladas nas margens
do lago Vitória e dos rios vizinhos eram descendentes da antiga população de
tradição aquática. Embora continuassem a se distinguir dos pastores cuxitas das
terras altas a leste, possuíam alguma prática de caça, talvez de criação de gado
e até mesmo de agricultura. Contudo, por mais adaptáveis que possam ter sido
essas populações, parece que foram rapidamente absorvidas pelas sociedades dos
colonos bantu. No entanto, é provável que seu legado tenha sido substancial;
em particular, é bem possível que vários aspectos das técnicas de pesca e das
crenças dos Bantu fixados nas margens e nas ilhas do lago Vitória tenham por
origem esses habitantes que os precederam. O culto de Mugase, deus do lago
e senhor das tempestades, cuja benevolência assegura pescas miraculosas e cuja
ira provoca desgraças, indiscutivelmente remonta à Antiguidade.
Também são interessantes os testemunhos fornecidos pelas descobertas
arqueológicas e pelas datações cada vez mais numerosas, que indicam ter sido
em torno do lago Vitória e nas terras altas acima do Rift Valley ocidental que os
Bantu orientais se consolidaram e desenvolveram seu modo de vida na savana.
Foi provavelmente nesse local, numa zona de precipitações favoráveis nas bordas
da floresta, que se fizeram as experiências pioneiras com o cultivo do sorgo e do
milhete (próprios para a expansão em larga escala na savana); que se adquiriram
as primeiras noções de criação; que a cerâmica característica dos Bantu chegou
a seus traços e a sua decoração particulares (bases onduladas, etc.) e que se
descobriu ou aperfeiçoou a metalurgia. É significativo que os leves fornos de
tijolos, sinais de uma indústria de ferro altamente evoluída e produtiva, tenham
sido descobertos no noroeste da Tanzânia, de Ruanda e da província kivu do
Zaire, compreendendo as regiões férteis situadas ao longo do limite oriental da
grande floresta pluvial. Se fosse possível distinguir duas fases na expansão dos
Bantu além de sua floresta de origem, esta seria a primeira, a fase de formação,
que remonta a cerca de dois mil anos – talvez um pouco mais
7
.
7
Para saber se se trata de um fenômeno característico apenas do setor oriental da oresta, ou se
também se aplica ao seu prolongamento meridional, entre o lago Tanganica e a embocadura do
Congo, convém aguardar investigações mais completas sobre a região (ver Capítulo 25).
644
África Antiga
Durante a primeira metade do primeiro milênio da Era Cristã, mais ao sul,
na Tanzânia e em regiões mais distintas, a expansão bantu deparou -se com um
território ainda em estado selvagem, mas talvez com uma configuração mais
simples. Irradiando -se a partir de uma região muito populosa na parte ocidental
da África oriental, equipados de utensílios, técnicas e sementes indispensáveis, os
Bantu penetraram nas florestas abertas e savanas relativamente pouco povoadas e
exploradas pelos caçadores -coletores. Embora não sem consequências, a influência
desses caçadores sobre os Bantu parece ter sido menor do que a das populações
que se encontravam em Uganda e no Quênia. Contudo, eram necessárias
flexibilidade e adaptação em cada um dos novos setores colonizados, conforme
a altitude e os solos, as chuvas e sua distribuição anual
8
. Por mais distantes
que fossem as terras atingidas, conservava -se o sentimento de bantuidade”:
ser bantu significava emigrar sempre, levando consigo um saco de sementes e
algumas ferramentas para preparar o terreno e cultivar; fixar -se temporariamente
em vez de se estabelecer definitivamente em povoados estáveis. Tal processo não
se interrompeu quando os Bantu atingiram as margens opostas do subcontinente
e as bordas do deserto de Calaari; nas regiões percorridas continuavam a existir
numerosas terras virgens, de tal modo que durante algum tempo ainda era
possível enfrentar o crescimento da população sem ter de recorrer a métodos
mais intensivos de cultura. Frequentemente, o eixo da história bantu local é o
clã mais antigo, cujo fundador teria descoberto e derrubado uma certa parte da
floresta.
Daí não se conclui que os caçadores tenham sido expulsos pela força ou
perseguidos; é mais provável que fossem respeitados por seu conhecimento da
terra e pela habilidade em manejar o arco. No entanto, à medida que o povoamento
ficava mais denso, tornava -se mais difícil manter uma vida comunitária fundada
na caça e na coleta. Mais cedo ou mais tarde uma grande parte dos caçadores
foi absorvida pela sociedade bantu – mas enquanto indivíduos, pelo mecanismo
do casamento ou talvez da clientela: não era possível para um grupo caçador ou
uma tribo transpor a barreira cultural e “bantuizar -se”.
Com a nova tecnologia o controle mágico do solo que começava a
produzir cereais
9
, a cerâmica que permitia cozinhá -los de maneira saborosa,
os instrumentos de ferro e as pontas de flecha que eventualmente podiam ser
vendidas aos caçadores ficaram assegurados o êxito e a superioridade dos
8
Nas regiões setentrionais e costeiras da África oriental, o plantio poderia em geral ser efetuado duas
vezes por ano. Mas o clima dominante mais ao sul permitia apenas uma colheita.
9 O papel do fazedor de chuvas era essencial em toda parte.
645
A África oriental antes do século VII
Bantu. Eles podiam permitir -se assimilar os caçadores sem medo de perder
sua identidade ou diluir sua cultura. Não parece ter havido necessidade de
conservar traços distintivos e artificiais ou interdões: aparentemente não
existem mutilações corporais ou tabus comuns aos Bantu. Sua nova língua, que
codificava seu modo de vida, era o suficiente. A economia, até onde se pode
julgar, era flexível; dependendo das condições locais, podia incluir a caça, a pesca
ou a criação de bovinos. Quando não se dispunha de nenhum desses recursos ou
eles não eram suficientes para assegurar as necessidades de proteínas, é provável
que a criação de cabras ou a cultura de certas leguminosas as suprisse. E possível
que o elemento básico normal fosse o sorgo: esta hipótese funda -se no fato
observado de que a cultura deste cereal e de suas numerosas variedades adaptadas
aos diferentes terrenos é tradicional na África oriental e no território bantu;
na Zâmbia, foram identificadas sementes de sorgo calcinadas em escavações
arqueológicas de povoamentos da Idade do Ferro Antiga
10
.
Esta interpretação da expansão e do estabelecimento dos Bantu na África
oriental (e nos territórios situados ao sul e a oeste), no início da Idade do Ferro,
baseia -se num conjunto de dados linguísticos e arqueológicos e em considerações
etnográficas gerais. A característica mais evidente das numerosas línguas bantu,
particularmente das que são faladas fora dos limites da floresta do Congo, é
seu parentesco próximo, que indica uma separação e uma diferenciação muito
recentes, remontando a aproximadamente mil ou dois mil anos. Outro fator que
emerge do estudo comparativo das línguas bantu é uma relação com o ferro e
suas técnicas, desde a Antiguidade. Esta é uma das razões que permitem associar,
em numerosos setores da África oriental e do sul da África central, os sítios
arqueológicos da Idade do Ferro Antiga datados da primeira metade do primeiro
milênio da Era Cristã, com a colonização bantu. Mas existe uma razão mais
forte para identificar com segurança estes sítios como os dos primeiros Bantu:
sua distribuição coincide perfeitamente com a das populações bantu atuais.
Nenhum argumento importante permite supor que uma população totalmente
10 Certos autores debateram muito o papel das bananas na expansão bantu. Esta cultura, originária do
sudeste da Ásia não parece ter sido introduzida na costa oriental da África antes do primeiro milênio
da Era Cristã. Portanto, os Bantu a teriam conhecido após o término da grande expansão. Trata -se,
é claro, de uma cultura praticada mais por populações sedentárias do que por colonizadores. Durante
a história bantu mais recente, os bananais permanentes adquiriram uma importância cada vez maior
nas regiões úmidas com populações sedentárias densas, principalmente nas margens setentrionais e
ocidentais do lago Vitória e em vários maciços das terras altas. De fato, durante os últimos mil anos, a
cultura da banana teve um desenvolvimento mais acentuado na África oriental do que no resto do mundo.
Até uma época muito recente, os alimentos americanos à base de amido principalmente o milho e a
mandioca – eram desconhecidos na África oriental.
646
África Antiga
diferente teria vivido nesta mesma vasta região, desaparecendo por completo
aproximadamente mil anos.
Os objetos característicos encontrados com mais frequência nestes primeiros
sítios bantu não foram instrumentos nem armas de ferro (pois em geral eram muito
preciosos para serem descartados e, mesmo nesse caso, provavelmente teriam
sido completamente corroídos), mas fragmentos de cerâmica, anteriormente
referidos. Desde os primórdios, tal cerâmica não era absolutamente idêntica
nas várias regiões do imenso território habitado pelos Bantu, e os arqueólogos
estão sempre identificando novos tipos. Talvez as mais conhecidas sejam as
de base ondulada (ou Urewé) encontradas ao redor e a oeste do lago Vitória
e ainda até a extremidade do lago Tanganica e as savanas arborizadas situadas
no Zaire, ao sul da floresta. Além das ondulações, alguns destes vasos possuem
bordas de contornos elaborados e uma notável decoração de arabescos e outros
desenhos. A sul e a leste da zona caracterizada pelos vasos de base ondulada, a
cerâmica da Idade do Ferro Antiga classifica -se em dois grupos principais. No
nordeste da Tanzânia e no sudeste do Quênia, isto é, além do grande bolsão
cuxita, encontra -se a cerâmica chamada kwale, desde as vertentes das terras
altas até a planície costeira. Na extremidade meridional do lago Tanganica
e nos países situados mais ao sul, identificou -se uma enorme quantidade de
cerâmicas regionais (incluindo a que anteriormente era conhecida na Zâmbia
como cerâmica canelada).
É indiscutível que todas essas cerâmicas possuem um parentesco geral, mas
o significado desse fato em função das linhas de expansão bantu foi motivo de
numerosos debates. Provavelmente, não são os potes pertencentes à dia”,
nem os mais “típicos”, os que podem oferecer mais revelações, e sim os de
características diferenciadas e singulares. Ao observar superficialmente uma
coleção de cerâmicas da Idade do Ferro Antiga proveniente de sítios espalhados
entre o Equador e as fronteiras da África do Sul, tem -se imediatamente a
impressão de que as cerâmicas do norte, particularmente as de base ondulada
originárias das cercanias e do oeste do lago Vitória, têm um estilo original,
que tende a desaparecer à medida que se avança para o sul. É como se os
oleiros do norte tivessem assinado conscientemente suas cerâmicas Bantu”,
enquanto os do sul, separados da grande corrente da tradição, se considerassem
tão senhores dessa técnica que deram origem a uma simplificação progressiva
das formas, das bordas e dos motivos decorativos. E era muito natural: em toda
parte, da Tanzânia central até o sul, onde a cerâmica era encarada como uma
arte nova introduzida pelos primeiros colonos bantu, qualquer cerâmica era
automaticamente considerada bantu; no entanto, nas terras altas do Quênia e
647
A África oriental antes do século VII
em torno do lago Vitória, outras populações fabricavam longo tempo sua
própria cerâmica. Portanto, a cerâmica kwale do leste, embora menos original do
que o tipo de base ondulada, precisava manter e fazer sobressair determinadas
características bantu. De fato, a nordeste da Tanzânia, onde as colinas arborizadas
se unem às planícies, encontra -se tanto a cerâmica kwale como um outro tipo da
mesma época. Trata -se do ponto de encontro dos Bantu e dos cuxitas?
É impossível estabelecer um mapa detalhado da expansão bantu a partir
destes vestígios de cerâmica, particularmente porque faltam dados arqueológicos
em certas regiões, incluindo a Tanzânia meridional e Moçambique. No entanto,
um mapa desse tipo indicaria uma irradiação pelas savanas a partir de um núcleo
comum, situado em algum local a oeste do lago Vitória, próximo à orla da
floresta. Os estudos mais recentes sobre as relações linguísticas dos Bantu atuais
que não habitam as florestas revelam um esquema absolutamente idêntico da
evolução histórica dos Bantu e de sua dispersão ao sair da floresta. Em todos os
lugares onde o abandono da floresta foi bem -sucedido, a sul ou a leste, verifica -se
claramente que o primeiro movimento se fez ao longo de suas bordas, em uma
ou ambas as direções, até as regiões também úmidas em torno do lago Vitória. A
expansão mais audaciosa nas direções sul e sudeste, até as savanas praticamente
ilimitadas, é posterior.
A região que circunda a extremidade sul do lago Tanganica, ou o “corredor”
que o separa do lago Niassa podem ter sido um segundo centro de dispersão,
comum aos Bantu do sul e do nordeste, isto é, aos povos da cerâmica kwale. Mas
para reconstituir com segurança a história desta região é preciso esperar a coleta
de informações mais precisas sobre o que se passou na Tanzânia meridional no
primeiro milênio da Era Cristã. Há uma teoria segundo a qual povos de língua
cuxita se teriam estendido das terras altas do norte às do sul, passando pela
Tanzânia central.
Entre os Bantu atuais da África oriental, a cerâmica é geralmente uma
ocupão feminina. Segundo indicações etnográficas obtidas nos países
situados a oeste e ao sul, porém, a tradição original da cerâmica bantu teria
se difundido por intermédio dos artesãos masculinos que acompanhavam
os grupos colonizadores. Essa tese é puramente conjetural, mas pode ser
deduzida de testemunhos arqueológicos recolhidos por D. W. Phillipson na
Zâmbia
11
. Nesse caso, é bem provável que a cerâmica estivesse associada às
outras importantes atividades bantu a metalurgia do ferro e a forjadura de
11 Ver o Journal of African History, XV (1974), pp. 1 -25, esp. 11 -12.
648
África Antiga
instrumentos. Nenhuma colônia nova podia ser bem -sucedida sem especialistas
detentores dos segredos da cerâmica e da forjadura. Todavia, parece que, por
mais limitadas que tenham sido, havia trocas comerciais desde esse estágio
inicial. Ainda que não fosse raro, o minério de ferro não era universalmente
disponível e as jazidas verdadeiramente ricas eram pouco numerosas. Pode ser
que sua distribuição tenha influenciado o padrão inicial da colonização bantu.
A exploração muito antiga de minerais ricos e os elaborados fornos de fundição
de Ruanda e da parte vizinha da Tanzânia já foram mencionados. No nordeste
da Tanzânia, os sítios antigos dos montes Pare e seus arredores talvez reflitam
o interesse manifestado pelos ricos minerais deste setor. Não muito longe, nos
contrafortes do Kilimandjaro, onde é desconhecido o minério de ferro, os sítios
desse período são mais numerosos. O tipo de comércio característico de uma
época recente, que consistia em transportar barras de ferro fundido (e cerâmica)
da região dos Pare até o Kilimandjaro, para trocá -las por produtos alimentares e
gado, pode remontar a 1500 anos. De qualquer modo, não se pode imaginar as
primeiras sociedades de colonos bantu dedicando -se, num vasto território, a um
comércio de grande envergadura. Para eles, o principal era fixar -se e subsistir. Tal
comércio só se desenvolveu verdadeiramente a partir do período intermediário
da história dos Bantu, há cerca de 1000 anos atrás. Quanto ao período anterior,
os sítios onde foram descobertas as cerâmicas kwale, alguns muito próximos do
oceano Índico,o revelaram nenhum objeto de origem costeira ou estrangeira.
Estas sociedades agrícolas também tinham necessidade de sal. Em tempos
mais recentes foram utilizados diferentes meios para obter esse produto
indispensável em numerosas regiões da África oriental. Um deles consiste em
queimar certos tipos de caniço e ervas que absorvem o sal contido no solo. As
cinzas são dissolvidas na água e a salmoura resultante é filtrada e evaporada.
Processos semelhantes de extração são utilizados em diversos lugares, em solos
salgados. Pode -se obter soda para o cozimento de legumes duros recorrendo-
-se a técnicas análogas. A produtividade é em geral fraca e a qualidade do sal
frequentemente deixa a desejar. Além disso, em certas áreas tais operações nem
mesmo eram possíveis, sendo preciso recorrer ao comércio. É nesse caso que
as fontes mais ricas de sal, existentes em alguns lugares no interior da África
oriental na forma de solos salinos concentrados, fontes salgadas e lagos de
água mineral do Rift Valley, assumem toda sua importância. Dentre essas, até
agora, parece que apenas as fontes salgadas de Uvinza, na Tanzânia ocidental,
foram exploradas durante a Idade do Ferro Antiga. As pesquisas efetuadas
em outras salinas Kibiro, perto do lago Alberto, em Uganda, e Ivuno, no
sudoeste da Tanzânia não revelaram nenhum traço de atividade anterior ao
649
A África oriental antes do século VII
presente milênio. Mas é possível que trabalhos futuros nestes mesmos sítios,
principalmente nas margens dos lagos salgados de Kasenyi e Katwe, no sudoeste
de Uganda, forneçam informações mais amplas sobre o período antigo. Além
disso, os Bantu situados mais a leste podiam sem vida abastecer -se nos
pequenos cursos de água costeiros.
Os nilotas: adaptação e mudança
Além dos Bantu, um outro grupo linguístico ou, mais exatamente, várias séries
de grupos linguísticos com parentesco distante ocuparam uma grande parte da
África oriental durante a Idade do Ferro: os nilotas. Embora suas características
físicas diferissem em muitos aspectos das apresentadas pelos Bantu, os nilotas
são acentuadamente negros. Contudo, é certo que as populações de língua
nilótica, que entraram mais profundamente a leste e ao sul na antiga zona cuxita
do Quênia e da Tanzânia setentrional, assimilaram uma parte da população
“etiopoide anterior o que ajuda a explicar os traços originais negros dos
atuais agrupamentos itunga, massai, kalenjin e tatoga, populações classificadas
no passado como nilo -camitas”. A ascendência parcialmente cuxita também
se manifesta em sua herança cultural – mas diferentemente, segundo os grupos
e envolve numerosos empréstimos tomados às línguas cuxitas. Basicamente,
contudo, suas línguas continuam a ser nilóticas
12
.
Não se sabe nada de concreto sobre a Proto -História dos nilotas. No entanto,
a repartição e as relações internas de seus três ramos atuais indicam que sua
pátria de origem se localizaria nas baixas pradarias da bacia do Alto Nilo e nas
margens de seus lagos e cursos de água. Pode -se imaginar que sua aparição
enquanto grupo dominante no ramo sudanês oriental da família linguística
Chari -Nilo e suas expansões periódicas, rápidas e talvez explosivas, em diversas
direções, sejam o resultado da adoção de práticas de criação de gado nesta parte
da antiga zona aquática, três mil anos. É provável que o gado proviesse dos
cuxitas das terras altas etíopes do leste, ou mais provavelmente das populações
estabelecidas mais ao sul, no Nilo. Aqui, na bacia do Nilo Branco, a pesca era
praticada paralelamente à criação de gado e à cultura de cereais. Essa tríplice
12 É claro que em sua origem a palavra nilótico” tinha uma acepção geográca “do rio Nilo”. Neste
trabalho, porém, como nas obras históricas contemporâneas, o termo nilótico” designa um grupo de
línguas denido exclusivamente através de critérios linguísticos, não considerando a localização. Ver o
mapa correspondente.
650
África Antiga
exploração econômica do meio ambiente continua a ser praticada pelas atuais
populações ribeirinhas do Nilo Branco e de seus afluentes.
As divisões entre as línguas nilóticas entre os nilotas das terras altas, dos lagos
e rios e das planícies
13
são antigas e profundas (muito mais, por exemplo, do que
as que separam as línguas bantu). E, embora seja difícil propor uma data precisa
para a cisão da ngua nilótica mãe, ela o poderia ser inferior a dois mil anos.
É provável que tal cisão tenha ocorrido em algum ponto no Sudão meridional,
possivelmente próximo à fronteira etíope. Dessa rego, representantes de cada
uma das três divisões emigraram para os setores setentrionais ou mesmo centrais
da África do leste, durante os dois últimos milênios. No entanto, os ramos oriundos
dos nilotas das planícies (principalmente o grupo itunga em Uganda oriental e no
nordeste do Quênia e os Massai do Quênia e da Tanzânia setentrional) e daqueles
dos rios e lagos (os Luo de Uganda e das margens lacustres do Quênia) pertencem
ao milênio atual e, portanto, o tratados em volumes posteriores dessa História.
No presente volume, nosso tema se limita aos nilotas das terras altas, representados
em nossos dias pelos Kalenjin das montanhas ocidentais do Quênia e os Tatoga
disseminados nas pradarias da Tanzânia setentrional.
Os primeiros nilotas das terras altas ainda não são conhecidos no plano
arqueogico; contudo, sua repartição atual e as comparões linguísticas
internas mostram que devem ter se instalado no Quênia alguns milhares
de anos. É possível que sua aparição enquanto grupo com identidade, cultura e
língua próprias tenha coincidido com a chegada do ferro à bacia do Alto Nilo
e aos limites da Etiópia. Nessas regiões e na zona cuxita, o conhecimento do
ferro e as técnicas de trabalhá -lo são provavelmente provenientes do norte
14
.
Este processo teria sido independente da adoção do ferro pelos antigos Bantu,
a quem possivelmente se deve, como vimos, a difusão do trabalho com esse
material no sul e no oeste da África oriental.
Quaisquer que tenham sido as razões do sucesso dos nilotas das terras
altas durante o primeiro milênio da Era Cris, eles chegaram a controlar
progressivamente uma grande parte, mas não a totalidade, do Rift Valley, das
regiões montanhosas vizinhas e das planícies que anteriormente haviam sido
13 Esses são os termos utilizados em OGOT, B. A & KEIRAN, J. A. e correspondem à nomenclatura de
Greenberg: nilótico “meridional”, “ocidental” e “oriental”, respectivamente. Ver bibliograa.
14 O ferro começou a ser conhecido na Etiópia setentrional e no Médio Nilo em meados do primeiro
milênio antes da Era Cristã, Os registros indicam que, na costa da África oriental, os artigos de ferro eram
importados, nos primeiros séculos da Era Cristã (ver Capítulo 22). Mas não existe nenhuma indicação
de que o conhecimento da metalurgia do ferro seja originário de fontes exteriores ou que tenha sido
levado para o interior.
651
A África oriental antes do século VII
cuxitas. A assimilação desempenhou um papel tão importante quanto a invasão
e a expulsão e deve ter prosseguido durante boa parte do segundo milênio. Estes
nilotas conheciam a criação do gado de grande porte e a cultura dos cereais;
no entanto, com certeza tinham muito a aprender dos cuxitas no que se refere
à adaptação destas formas de atividade a seu novo meio ambiente montanhoso.
Além disso, sua organização social e seus grupos etários sucessivos parecem ser
um amálgama de elementos nilóticos e cuxitas, embora o costume da circuncisão,
que marca a entrada do iniciado num dado grupo etário, seja especificamente
cuxita. O mesmo ocorre com a interdição do peixe. Aquele que transpunha as
escarpas com seus rebanhos abandonava deliberadamente os lagos, os pântanos
e os rios do oeste.
A maioria dos nilotas permaneceu na bacia do Nilo, principalmente no
Sudão meridional. Eles não sofreram diretamente a influência dos modos de
vida cuxita e combinaram adequadamente a criação de gado, a cultura de cereais
e a pesca. No entanto, os nilotas das planícies acabaram por se dividir em três
ramos principais, e é interessante observar como sua cultura se modificou do
noroeste para o sudeste e de que modo se adaptaram ao meio ambiente. O
grupo bari -lotuko, no Sudão meridional e nas fronteiras de Uganda setentrional,
manteve um modo de vida tipicamente nilótico. Nas colinas e planícies mais
secas, que se estendem do norte de Uganda ao Quênia, dominadas pelo grupo
itunga (Karamojong, Turkana, Teso, etc.), a pesca é pouco praticada – mas isso
pode -se dever mais aos condicionamentos naturais do que a uma interdição
cultural. Os Massai, terceiro ramo dos nilotas das planícies, estabeleceram -se
para além dos Itunga, numa vasta área das regiões montanhosas e dos planaltos
cobertos de erva do Quênia e da Tanzânia setentrional. Durante os últimos
séculos, eles assimilaram os nilotas que os haviam precedido e dos quais sofreram
forte influência. Foram influenciados também, direta ou indiretamente, pelos
cuxitas do sul, tendo adotado não o tabu do peixe mas também o costume
da circuncisão. Nessas ricas pastagens, são de fato os Massai do centro que
recentemente conseguiram levar a ética pastoril a seu mais alto nível.
A assimilação de outros ramos e subdivies de povos nilóticos ou não -nilóticos
e o processo de expansão exigindo frequentemente uma adaptação ecológica e
cultural o apenas alguns dos numerosos exemplos de expansão e assimilação
dos nilotas, frequentemente casuais. No Sudão meridional e no norte e leste de
Uganda, as interações que se produziram durante o atual minio (e provavelmente
também o precedente) entre certos ramos dos nilotas das planícies e dos grupos
dos rios e lagos foram tão complexas quanto as que se deram entre os nilotas e
os cuxitas e entre os nilotas antigos e recentes, tanto no Quênia quanto nas terras
652
África Antiga
altas da Tanzânia setentrional. Os historiadores deram maior importância às
pressões exercidas pelos Luo, ramo dos nilotas do grupo dos rios e lagos, sobre
os Bantu de Uganda e das margens lacustres do Quênia, durante os seis ou
sete últimosculos. De menos interesse para os historiadores são dois outros
grupos não -nilóticos, estabelecidos um no nordeste de Uganda e o outro no
noroeste desse ps e nos países vizinhos. Tais grupos ocupam atualmente um
terririo limitado, mas mil anos atrás estendiam -se por uma área muito
mais ampla e possuíam uma importância bem maior.
O primeiro come -se de grupos étnicos dengua nyangiya, que incluem
os Tepeth, os Teuso e os Ik atuais. Alguns deles praticam a caça e outros
uma cultura intensiva nas zonas montanhosas isoladas, próximas da fronteira
nordeste de Uganda. Essa região certamente apresentava uma grande diversidade
cultural, e acredita -se que algumas das cnicas de fabricação de utensílios da
Idade da Pedra Recente sobreviveram entre as comunidades montanhosas
até o atual milênio. As terras vizinhas, em sua maior parte muito secas, são
ocupadas pelos Itunga, população nilótica das planícies que, juntamente talvez
com outros grupos nilóticos anteriores, foi responsável pelo confinamento e
pela assimilação dos Nyangiya. Pode ser que a ngua destes últimos possua
um parentesco distante com o nilótico (no ramo sudanês oriental da falia
Chari -Nilo)
15
. É possível que antes dos movimentos niticos, os Nyangiya
constituíssem uma importante populão agropastoril que ocupava uma
parte do terririo incluído entre a zona cuxita oriental e a dos últimos povos
aquáticos do Alto Nilo.
Estes últimos representantes da antiga tradição aquática, em franca
decadência, podem ter pertencido, como se sugeriu anteriormente, ao grupo
linguístico sudanês central (que constitui um ramo distinto da família Chari-
-Nilo ). Trata -se, atualmente, de uma subfamília fragmentada, que consiste em
grupos separados, disseminados em torno da orla nordeste da floresta equatorial.
Um desses grupos (os Moru -Madi) estabeleceu -se nos dois lados da fronteira, a
noroeste de Uganda. Antes da expansão dos Bantu na região central de Uganda,
aproximadamente há dois mil anos, e dos movimentos dos nilotas provenientes
do norte e do nordeste, é provável que o uso das línguas do grupo sudanês central
estivesse muito difundido na bacia do Alto Nilo e do lago Vitória. Algumas das
bases culturais desta populosa área da África oriental são mais antigas que as
línguas bantu e luo, que são atualmente faladas.
15 Esta classicação foi contestada; segundo certos autores, o nyangiya estaria mais próximo da grande
família afro -asiática (à qual pertence, principalmente, o cuxita).
653
A África oriental antes do século VII
O problema do “Megalítico” da África Oriental
As obras mais antigas sobre a África oriental e sua hisria davam muita
ateão às civilizações que se teriam desenvolvido na Antiguidade. Tais
civilizações eram localizadas na região interlacustre, principalmente nas
terras altas do Quênia e da Tanzânia setentrional (a antiga zona cuxita, é
interessante notar). Essas concepções hisricas baseavam -se numa mistura
de aspectos etnogficos, em tradições orais coletadas sem nenhum método
cienfico e em observações arqueogicas, que consistiam nos vestígios de
supostos trabalhos de “engenharia” e nas ruínas de constrões e terros de
pedra seca (o megalítico”). Infelizmente, os dados foram em grande parte
registrados de forma imprecisa ou, mesmo quando corretos, interpretados de
maneira igica ou relacionados a fatos irrelevantes, para que se adequassem
a teses históricas fantasiosas então em moda, como a famosa tese camita”.
Essa tendência foi facilmente adotada pelos autores de obras de segunda
o que aceitaram sem discernimento os dados apresentados como originais
e, em certos casos, exageraram sua importância. Igualmente ilógica era a
hitese frequentemente levantada de que os diversos tipos de características
arqueológicas, autênticas ou falsas; acompanhadas ou não de artefatos,
espalhadas por uma vasta rego, poderiam ser atribdas a um povo ou a
uma cultura única num dado período do passado. Tal hipótese sustenta a
teoria de Huntingford sobre a “civilização azaniana” do Qnia e da Tanzânia
setentrional, que ele atribuía aos “camitas, e também a tese de Murdock
sobre os “cuxitas megalíticos que antigamente teriam habitado essa mesma
rego. (A prosito, Murdock era expressamente contrio aos preconceitos
camitas dos autores que o haviam precedido).
Portanto, a palavra “megalítico é enganosa, sem significado cultural nem
científico na África oriental. Contudo, é interessante mencionar e comentar
brevemente os dados que eram utilizados como prova da existência de culturas
megaticas antigas. Na realidade, nem sempre se trata de construções de
pedra. mencionamos neste capítulo os cairns (ou montículos de pedras) que
representam sepulturas, frequentemente encontrados nos pastos do Quênia e
do norte da Tanzânia. Muitos deles, se não a maioria, datam do fim da Idade
da Pedra Recente (dois ou três mil anos atrás) e provavelmente são obras de
populações de língua cuxita; algumas delas podem ser mais recentes. É possível,
mas não certo, que alguns dos poços cavados nas rochas dos prados áridos do
sul de Masailand, na Tanzânia, e do leste e norte do Quênia remontem ao
mesmo período, à época da introdução do gado. Talvez se possa dizer o mesmo
654
África Antiga
de algumas das chamadas rotas antigas das terras altas, que na realidade são
trilhas de gado acidentalmente desgastadas pela passagem contínua, durante
certos períodos, dos rebanhos que cruzavam os cumes e desciam as escarpas das
montanhas em busca de água. Muitas dessas rotas ainda estão sendo ampliadas,
ao passo que outras se iniciam. De um período provavelmente mais recente,
são os traços da prática de agricultura irrigada em rias escarpas do Rift e
nos maciços montanhosos da Tanzânia setentrional e do Quênia. Mas pode -se
demonstrar que, em certos lugares, tais vestígios datam pelo menos de alguns
séculos. Apesar de tudo que se escreveu sobre a questão, os terraços de agricultura
nas encostas são muito mais raros e historicamente menos importantes; eram
constrdos apenas em situações muito particulares ou secundárias. Alguns
relatos chegam a mencionar monólitos e pedras fálicas no interior da África
oriental, mas sua presença nesta região é extremamente duvidosa.
Contudo, o problema do megalítico da África oriental não se limita apenas
a essas considerações; inclui também a questão das casas de pedra, cercas e
habitações escavadas no solo. Neste caso, embora nos defrontemos novamente com
descrições inexatas e interpretações errôneas, existem alguns fatos arqueológicos
a considerar. Tais vesgios são constituídos por muros e revestimentos de
pedras insossas encontrados em duas áreas distintas. Culturalmente, esses dois
conjuntos também eram totalmente diferentes, embora, grosso modo, fossem
contemporâneos, remontando basicamente a meados do presente milênio (diga-
-se a um período bem distante do estudado neste volume).
O primeiro desses complexos inclui os chamados Sirikwa Holes, muito
numerosos em toda a extensão das terras altas ocidentais do Quênia, e que
representam as ruínas dos kraals (currais) fortificados das populações kalenjin
primitivas. Não se trata de habitações escavadas no solo, como se acreditava; as
casas, ligadas aos currais, eram construídas de madeira e palha, e não de pedra. Em
realidade, mesmo os currais eram em geral construídos sem a utilização de pedras
e rodeados de aterros e paliçadas. Somente em lugares pedregosos se empregavam
lajes e blocos como revestimentos dos aterros e dos sistemas de acesso. Esta
observação mostra bem como a presença ou a ausência de construções de pedra
deve ser explicada mais em função do ambiente do que de considerações culturais.
O segundo complexo também se situa no lado ocidental do grande Rift
Valley, mas um pouco mais ao sul, além da fronteira da Tanzânia. Compreende
vários tios dos quais o maior e o mais famoso é Engaruka
16
situados
16 Para uma reavaliação de Engaruka e dos sítios relacionados, ver os artigos de CHITTICK, N. & SUT-
TON, J. E. G. 1976.
655
A África oriental antes do século VII
próximos aos rios utilizáveis para irrigação no sopé das escarpas das Crater
Highlands. Nessa região as construções de pedra foram utilizadas para diferentes
fins, incluindo vários tipos de obras defensivas, principalmente cercados para
gado e muros de aldeias. No interior dessas aldeias compactas, construídas nas
encostas, cada casa era edificada sobre um recinto em plataforma, sustentado
por um magnífico revestimento de pedras. O acesso era dado por um caminho
em terraços revestido do mesmo modo. Contudo, também neste caso as casas
não eram construídas de pedra, mas sim de madeira e palha. O que há de mais
notável em Engaruka é a utilização da pedra para alinhar e revestir as laterais
de centenas de canais de irrigação e para dividir e nivelar os milhares de campos
que se estendem por mais de 20 km
2
.
Até agora, a identidade e o parentesco linguístico dos habitantes de En garuka
não foram definitivamente estabelecidos, pois trata -se de um grupo que foi
desmembrado e paulatinamente assimilado aproximadamente duzentos anos.
Apesar da notável qualidade e da extensão das construções de pedra insossa,
parece que a população de agricultores desta região se estagnou, num isolamento
relativo, forçada a superexplorar os recursos do solo e suas reservas de água em
áreas muito restritas. Seu modo de vida, excessivamente especializado, impedia
a adaptação.
Esta é a resposta aos historiadores com tenncias românticas, que
procurariam em Engaruka mais dados do que poderiam revelar. Ela não pode
ser usada em apoio às teorias sobre as grandes civilizações megalíticas; também
não era uma cidade de 30 mil habitantes ou mais, como se pensou e se
repetiu em vários livros. Tratava -se de uma comunidade camponesa concentrada,
que dependia de um sistema agrícola excepcionalmente intensivo para a sua
subsistência. Engaruka é novel, mas em seu contexto local e como um
exemplo de desenvolvimento e ruína de uma cultura rural numa situação muito
específica. Além disso, após as investigações recentes e os testes de radiocarbono,
a datação principal, que a faz remontar ao segundo milênio da Era Cristã, parece
suficientemente precisa. Considera -se um erro, pelo menos levando em conta
o conjunto do sítio, datar alguns desses vestígios do primeiro milênio, como
se sugeriu na década de 1960, com base em alguns resultados inesperados do
emprego do radiocarbono.
C A P Í T U L O 2 4
657
A África ocidental antes do século VII
O exame crítico dos dados arqueológicos (e outros) de que dispomos não
corrobora a ideia bastante difundida de que as origens, o desenvolvimento e o
caráter geral das sociedades neolíticas e da Idade do Ferro da África ocidental
decorrem sobretudo de fatores culturais externos. Em especial, é um erro
afirmar que na maior parte dos casos as ideias e populações vindas do exterior
– geralmente do norte, através do Saara – estimularam ou provocaram todos os
grandes eventos dos primeiros tempos da produção alimentar ou do trabalho
do ferro e do cobre. Os dados sugerem, antes, que fatores complexos de ordem
regional, sub -regional ou local desempenharam um papel de importância variável;
que os sítios do Neolítico e da Idade do Ferro na África ocidental podem ser
compreendidos, em diferentes escalas, como partes constituintes de sistemas
de sítios integrados, tanto quanto possível, com as principais condicionantes
ecológicas em jogo.
Origens da agricultura e da criação de animais
Para se ter uma ideia exata da história e da evolução da aclimatação das
plantas e da domesticação dos animais nos trópicos, nunca é demais insistir
na necessidade de uma revisão drástica e, em certos casos, de abandonar
completamente os conceitos e os contextos de referência tradicionais, isto é,
A África ocidental antes do século VII
B. Wai -Andah
658
África Antiga
europeus. Cumpre realizar experiências que nos levem a descobrir quanto tempo
foi necessário à obtenção dos cultígenos africanos atuais a partir de seus diversos
ancestrais selvagens e nos diferentes nichos ecológicos. Além disso, é preciso
ampliar o alcance dos trabalhos arqueológicos. Os estudos sobre a sucessão das
plantas e sobre os solos dos sítios pré -históricos (até agora muito negligenciados)
são essenciais para se compreender como e quando ocorreu a substituição da
caça e da coleta por outras atividades na África ocidental, principalmente devido
à falta de indicações “diretas”.
No presente contexto, entende -se por domesticação a técnica que consiste
em afastar os animais dos processos de seleção natural, dirigir sua reprodução
e colocá -las a serviço do homem (por meio de seus trabalhos ou produtos),
fazendo com que adquiram, mediante criação seletiva, novas caractesticas,
em detrimento de outras, que possuíam anteriormente. Por cultura de plantas
entende -se aqui a plantação de tubérculos ou sementes, a proteção de árvores
frutíferas, plantas trepadeiras, etc., a fim de se obter, para o uso do homem, uma
quantidade apreciável desses tubérculos, sementes e frutos.
Evitar -se -ão neste estudo termos como vegecultura e arboricultura, de uso
corrente nos textos especializados, mas que implicam a ideia de uma evolução
gradual de realizões culturais. De igual modo, não se leva em conta a
definição da agricultura (por exemplo, Spencer, 1968)
1
no sentido tecnológico do
termo: sistemas de produção alimentar que envolvem a utilização de utensílios
aperfeiçoados, de animais de tração ou de meios mecânicos, de métodos agrícolas
evoluídos e de técnicas de produção plenamente desenvolvidas”. As palavras
grifadas visam enfatizar o caráter subjetivo da definição.
Estudos ecológicos indicam que a domesticação de animais pode ser realizada
nas zonas tropical e subtropical semi -áridas da savana (Bonsma, 1970)
2
, uma
vez que o pH dos solos é bastante elevado (±7,0). Em consequência, os
macroelementos (nitrogênio e fósforo) são assimilados com razoável facilidade
e as pastagens oferecem uma quantidade relativamente grande de proteínas.
Por outro lado, os mesmos estudos mostram que os animais domésticos não
constituem um elemento importante na produção alimentar das regiões tropicais
úmidas, em parte porque o pH dos solos dessas regiões e, portanto, a capacidade
de assimilação do nitrogênio, do fósforo e do cálcio são geralmente baixos.
Assim, as pastagens contêm excesso de fibras de celulose indigestas e apresentam
elevado poder calorífico; a produção e a perda de calor pelos animais suscitam
1 SPENCER, J. E. 1968, pp. 501 -2.
2 BONSMA, J. C. 1970, pp. 169 -72.
659
A África ocidental antes do século VII
sérios problemas para a criação de gado nas regiões tropicais úmidas. Para manter
um certo equilíbrio térmico, o gado dessas regiões é geralmente de pequeno
porte, daí decorrendo a vantagem de uma extensa superfície por peso unitário a
facilitar a perda de calor. Nos lugares onde efetivamente houve criação de gado,
o problema das temperaturas elevadas parece ter sido resolvido pela seleção de
animais de pequeno porte capazes de adaptar -se às condições tropicais.
Os estudos ecogicos revelam ainda que, ao contrio das culturas do
Oriente Médio, as espécies anuais cultivadas na maior parte da África ocidental
eram e ainda são adaptadas ao crescimento na estação de temperaturas
elevadas e forte umidade. A falta de resistência dos cereais do Oriente Médio
aos micróbios patogênicos que se desenvolvem em temperaturas elevadas faz
com que sua cultura redunde em completo fracasso (salvo nas terras altas, de
clima fresco e relativamente seco). As pesquisas botânicas (Portères, 1950, 1951,
1962; Dogget, 1965; Havinden, 1970)
3
indicam que certas plantas como
o painço (Pennisetum typhoideum), o fônio (Digitaria exilisy), o arroz (Oryza
glaberrima), leguminosas como a ervilha -de -vaca (Vigna sinensis) e a ervilha -da-
-terra (Voandzeia subterranea), tubérculos como o inhame -da -Guiné (Dioscorea
cayenensis e D. rotundata), o dendezeiro (Elaeis guineensis) e o amendoim
(Kerstingiella geocarpa) são nativas e têm provavelmente uma longa história
de cultivo em várias partes da África ocidental
4
.
O conjunto dos dados paleontológicos, botânicos, ecológicos, etnográficos
e arqueogicos indicam que, no plano geral, os primeiros complexos de
produção alimentar adotados foram a exploração do solo (plantio), o pastoreio
e a exploração mista (isto é, a combinação do cultivo e das atividades pastoris).
A um nível específico, tais complexos diferiam segundo as espécies de plantas
cultivadas, as raças de animais criadas, a maneira como se praticava a cultura e
a criação, assim como os tipos de povoamento e os sistemas sociais adotados.
Os dados arqueológicos e etnográficos sugerem a presença dos seguintes
elementos na África ocidental: 1) uma criação de gado muito antiga no Saara
setentrional e oriental; 2) complexos pririos de culturas de gramíneas,
talvez permanentes, nas encostas e escarpas das terras altas do Saara central; 3)
complexos de culturas de gramíneas em certas regiões do Sahel e das savanas
setentrionais, sujeitas a influências provenientes do norte e do sul. A propósito,
parece que o delta interior do Níger, a orla do maciço de Futa Djalon nas bacias
3 PORTÈRES, A., 1950, pp. 489 -507; 1951 -a, pp. 16 -21; 1951 -b, pp. 38 -42; 1962, pp. 195 -210;
DOGGET, H. 1965, pp. 50 -69; HAVINDEN, M. A. 1970, pp. 532 -55.
4 Ver Volume I, Capítulo 25.
660
África Antiga
superiores do Senegal, do Níger e do Gâmbia, e ainda os arredores sudaneses
em geral teriam sido o núcleo a partir do qual se difundiram as culturas do arroz
(Oryza glaberrima), do milhete (Digitaria), do sorgo e do painço -de -cana; 4) a
exploração mista e a criação de gado nas regiões central e oriental do Sahel e
em certas partes setentrionais da savana, onde o dessecamento do Saara teria
desempenhado papel de relevo; 5) complexos de culturas de raízes e de árvores
na orla das florestas do extremo sul (Alexander e Coursey, 1969)
5
.
Esses complexos “neolíticos primitivos caracterizavam -se pela grande
variedade de categorias de artefatos, assim como pela diversidade de tipos de
povoamento, de sistemas sociais (em grande parte inferidos) e de métodos
de utilização do solo. Em certas áreas, contudo (por exemplo, Tiemassas, no
Senegal, e Paratoumbia, na Mauritânia), observa -se o encontro e o cruzamento
de duas ou mais tradições.
Via de regra, os complexos de caça e pastoreio do norte dispõem de indústrias
líticas à base de lâminas, caracterizando -se por micrólitos geométricos, pontas
projéteis, um número reduzido ou a ausência de utensílios pesados, gravuras em
pedra ou casca de ovo de avestruz e um grupo limitado de cerâmicas bastante
rudimentares. Por outro lado, os complexos de cultura de gramíneas do Saara
central e das pradarias setentrionais abundam em instrumentos de pedra lascada
e polida; apresentam uma grande variedade de utensílios talhados, uma extensa
gama de cerâmicas morfologicamente diversificadas, mas poucos ou nenhum
micrólito ou ponta projétil. Os complexos de cultivo de vegetais (raízes) do
sul também ostentam utensílios polidos e amolados, porém se distinguem
sobretudo por indústrias baseadas no talhe de pedras, cujos produtos consistem
principalmente em pesados bifaces e choppers. Essa originalidade do equipamento
técnico ainda hoje se manifesta no uso da enxada ou do bastão de cavar e na
maneira de lavrar a terra (sulcos profundos ou rasos) e prepa-la, levando
rigorosamente em conta o tipo de plantas cultivadas, a natureza do solo e a
disponibilidade de água.
Primeiros complexos de criação de gado no norte durante o Neolítico
Em Uan Muhuggiag (sudoeste da Líbia) e em Adrar Bous (Air)
6
, encontraram-
-se vestígios de animais domésticos de chifres curtos, cuja domesticação, a julgar
pelas datas obtidas, ter -se -ia iniciado a partir de -5590 200) no primeiro
5 ALEXANDER, J. & COURSEY, D. G. 1969, pp. 123 -9.
6
MORI,
F. 1965;
CLARK,
J. D. 1972.
661
A África ocidental antes do século VII
sítio e entre -830 e -3790 no segundo. Descobriram -se igualmente despojos de
ovelhas em Uan Muhuggiag. No entanto, parece que o gado de chifres curtos
esteve ausente do vale do Nilo até a XI dinastia (-2600), embora haja indícios
da presença de gado de chifres longos em Kom Ombo, no Egito, durante o
Pleistoceno.
O fato de o gado de chifres curtos ter existido no Saara central pelo menos
1200 anos antes de seu aparecimento no vale do Nilo exclui a possibilidade de
situar sua origem no Egito ou no Oriente Próximo. Não se sabe, ao momento,
se o primeiro gado saariano de chifres curtos proveio do Saara, do Magreb ou
de ambos os lugares. No entanto a mensuração dos metápodes dos animais
dessas regiões
7
indica uma redução de tamanho com o passar do tempo, tendo
os animais do Pleistoceno apresentado metápodes maiores.
Todavia, as evidências culturais sugerem que na Líbia pode ter ocorrido
um primeiro exemplo de transição da caça e da coleta para o pastoreio a se
estender para sudeste até Adrar Bous (Tenere, -4000 a -2500), e para sudoeste
até Tichitt (fase Khimiya, posterior a -1500). Nessas zonas, os pastores parecem
descender diretamente dos primeiros habitantes, e é provável que esse novo
modo de vida (principalmente em Tichitt) tenha vindo em substituição ou
se amalgamado – ao do Neolítico, que praticava a plantação de gramíneas. Isso
significaria que o conceito de domesticação de gado foi transferido para essas
áreas ou que elas se encontravam nos limites de uma extensa zona que constituía
o núcleo de tal atividade. As datações por radiocarbono de sítios que apresentam
o bos domesticado indicam que a criação de gado poderia ter -se expandido do
centro do Saara para sua parte meridional e para as zonas do Sahel, na África
ocidental, expansão essa que de certa forma estaria ligada ao dessecamento da
região desértica.
Primeiros complexos da cultura de gramíneas no Neolítico
As terras altas do Saara central
As evincias de que dispomos sugerem que a cultura de gramíneas
excluindo -se todas as outras formas de cultivo ocorreu provavelmente muito
mais cedo nas terras altas do Saara central do que em qualquer outro lugar
ao sul. Os primeiros sinais dessas manifestações primitivas do Neotico
provêm sobretudo dos abrigos sob rocha de Amekni e Meniet, no Hoggar.
7 SMITH, A. B. 1973.
662
África Antiga
Em Amekni, Camps
8
encontrou dois grãos de pólen que por seu tamanho
e forma poderiam pertencer a uma variedade doméstica de Pennisetum, cuja
datão remonta a -6100 e -4850. Também foram identificados em Meniet,
por Pons e Quézel
9
, dois grãos de pólen pertencentes a um vel datado de
-3600 aproximadamente e que podem provir de um cereal cultivado; Hugot
10
acredita que sejam de trigo.
Outros indícios menos conclusivos ligados ao cultivo de gramíneas nessa
região provêm dos abrigos sob rocha de Sefar (Tassili); o radiocarbono os
situa por volta de -3100. Nesse abrigo, as pinturas rupestres
11
têm por tema,
ao que parece, o trabalho da terra, embora os testemunhos linguísticos sugiram
que o cultivo do sorgo no Saara central seja muito antigo
12
. Independente
da utilização de abrigos sob rocha, as populações pré -históricas dessa região
habitavam povoados relativamente extensos e permanentes, ou colônias situadas
nas encostas ou nas bordas de escarpas que dominavam lagos ou uedes
13
. Sua
indústria era particularmente rica em machados polidos e lascados, trituradores
e mós, seixos com cavidades, raspadores, cerâmicas e toda sorte de utensílios
de lascas.
Sugeriu -se frequentemente, com pouca ou nenhuma base
14
, que esse complexo
de culturas representa uma difusão -estímulo proveniente do Oriente Próximo,
via Egito. Antes de tudo, o complexo cultural, associado às sementes encontradas
nos sítios do Saara central provavelmente advindas de uma colheita , é
muito diferente daqueles do Egito e do Oriente Próximo. Em segundo lugar,
as datações das colheitas arqueologicamente mais antigas encontradas no Egito
parecem ser posteriores às de Amekni. Finalmente, as semelhanças culturais
(por exemplo, o grande número de mós) entre o complexo do Saara central e o
complexo pré -cerâmico descoberto por Hobler e Hester
15
nas vizinhanças dos
oásis de Dungal e Dineigi, no sudoeste da Líbia, são insuficientes para se supor
qualquer parentesco próximo. Ao contrário do complexo do Hoggar, o da Líbia
é uma indústria de lâminas, e não de lascas, compreendendo uma variedade
8 CAMPS, G. 1969 -a, pp. 186 -8.
9 PONS, A. & QUÉZEL, P. 1957, pp. 27 -35.
10 HUGOT, H. I. 1968, p. 485.
11 LHOTE, H. 1959, p. 118.
12 CAMPS, G. 1960 -b, p. 79.
13 MAITRE, I. P. 1966, pp. 95 -104.
14 MUNSON, P. I. 1972.
15 HOBLER, P. M. & HESTER, J. J. 1969, pp. 120 -30.
663
A África ocidental antes do século VII
 . África ocidental: sítios pré -históricos importantes. (Mapa fornecido pelo autor.)
664
África Antiga
 . Saara: mapa do relevo. (Mapa fornecido pelo autor.)
665
A África ocidental antes do século VII
de lâminas arqueadas, projéteis, utensílios perfuradores em forma de broca e
facas bifaces. Esse complexo, que remonta pelo menos a -6000 e talvez a -8300,
apresenta mais semelhanças com as indústrias mesolíticas do nordeste da África
e da região núbia do Nilo.
Assim, embora o complexo líbio se situe na extremidade nordeste do vasto
planalto semicircular que se estende pelo Saara central, não é possível considerá-
-lo como precursor direto do “neolítico do Hoggar, que ocorre na extremidade
sudoeste do mesmo planalto. É provável que os arqueólogos que trabalham na
região tivessem mais êxito se procurassem esse precursor primeiramente na área
do Hoggar.
O Saara meridional, o Sahel e partes das regiões de savana da África
Ocidental
O período neolítico nas diversas partes da África ocidental costuma ser
considerado, não sem razão, como o resultado de influências setentrionais, uma
vez que nessa região certas indústrias da Idade da Pedra Recente apresentam
afinidades com os complexos pós -paleolíticos do Hoggar ou do Saara oriental
e do Magreb. No entanto, as principais tradições arqueológicas características
do início do Neolítico (Idade da Pedra Recente) nessa área apresentam traços
que as tornam bem distintas, principalmente no que diz respeito à cerâmica,
ao instrumental e às dimensões e organização dos habitats. Nessa época, os
povoados se localizavam, em sua maior parte, nas escarpas ou nas planícies
próximas de antigos lagos ou uedes. Distinguem -se três tradições principais, que
provavelmente refletem diferenças nos quadros econômico e social:
• Nos limites setentrionais dessa região encontram -se indústrias, como as de
Tenere e Bel -air (Senegal), baseadas em lâminas e incluindo uma variedade
de micrólitos geométricos e/ou projéteis, com poucos ou nenhum elemento
de pedra polida ou amolada; as instalações são agrupadas e relativamente
pequenas.
• Nas áreas centrais, como as de Borku, Ennedi, Tilemsi, Ntereso e Daima,
encontram -se indústrias que não possuem micrólitos geométricos, mas
que oferecem uma variedade de projéteis, anzóis e arpões, assim como
alguns elementos de pedra polida e amolada, ocupando áreas relativamente
extensas.
• O terceiro grupo de indústrias, ao sul, representado sobretudo pelos
complexos de Nok e Kintampo, embora praticamente desprovido de
666
África Antiga
lâminas, micrólitos geométricos e projéteis, é rico em utensílios de pedra
polida e amolada. Esse grupo se caracteriza pelas instalações relativamente
mais amplas e, ao que parece, permanentes.
Os complexos do Vale de Tilemsi
As provas recolhidas nos sítios de Karkarichinkat
16
mostram que pelo menos
durante os últimos tempos da fase úmida mais recente do Saara (-2000 a -1300)
essa zona foi habitada por pastores cujo modo de vida pouco diferia do dos
pastores seminômades atuais, como os Nuer do Sudão
17
e os Fulani da África
ocidental
18
. Os sítios da porção meridional de Karkarichinkat assemelham -se
aos campos de pescadores e pastores, como o testemunha a grande abundância
de conchas bivalves, espinhas de peixes e restos de bos; no entanto, à exceção
dos anzóis, existem poucos ou nenhum objeto de pedra falhada. na parte
norte de Karkarichinkat, a presença de grande número de objetos de cerâmica,
de estatuetas de animais em argila, de objetos de pedra (em especial uma
grande variedade de projéteis) sugere um abandono da passividade e um maior
envolvimento com a criação, a caça e, talvez, em certa medida, a agricultura.
Os grupos culturais que viviam no norte do Tilemsi, nos arredores de Asselar,
possuíam uma indústria semelhante à de Tenere, na região saariana (Tixier,
1962), datada pelo menos da mesma época (os restos de esqueletos remontam a
-4440). Os dois grupos têm mós, machados polidos e raspadeiras; os micrólitos
geométricos são mais raros no Baixo Tilemsi; elementos como pontas projéteis
e cerâmica parecem apresentar diferenças. Além de dedicar -se à criação de
gado, as populações de Asselar e Karkarichinkat ao que parece também caçavam
animais selvagens (gazelas, javalis, girafas, etc.) e praticavam a pesca e a coleta
de moluscos e plantas (Grewia sp., Celtis integrifolia, Vitex sp. e Acacia nilotica).
A ecologia atual dessas plantas sugere precipitações de aproximadamente 200
mm, o que representa o dobro daquelas observadas atualmente no vale do Baixo
Tilemsi. Os estudos de Camps
19
no erg de Admer, ao sul do Tassili n’Ajjer, fazem
supor que pastores com indústrias semelhantes às de Tenere viviam nos limites
setentrionais, ocupando igualmente o Tassili n’Ajjer e as planícies vizinhas pelo
menos desde o quarto milênio antes da Era Cristã.
16 SMITH, A. B. 1974, pp. 33 -35.
17 EVANS -PRITCHARD, E. E. 1940.
18 DUPIRE, M. 1962.
19 CAMPS, G. 1969 -a.
667
A África ocidental antes do século VII
 . Complexo do vale de Tilemsi (segundo A. B. Smith, 1974).
668
África Antiga
A região do Dhar Tichitt
As pesquisas realizadas nessa parte da Mauritânia meridional revelaram uma
sequência de oito fases bem datadas da Idade da Pedra Recente
20
, contendo
dados de subsisncia que esclarecem um pouco o problema das primeiras
produções alimentares nessa região em particular e na zona dos cursos superiores
do Senegal e do Níger em geral.
Uma explicação plausível para a tendência ao desenvolvimento de uma
agricultura em Tichitt, na medida em que corresponde melhor aos dados
arqueológicos, seria a de que uma cultura e uma propagação especiais de Cenchrus
biflorus teria ocorrido na fase Khimiya (-1500), sendo que posteriormente,
durante a fase seca de Naghez (-1100), a intensificação e a expansão dessa prática
incipiente de produção e propagação de plantas incluíram várias outras espécies.
Munson e vários outros arqueólogos parecem se esquecer que a forma cultivada
de uma planta representa o fim, eo o início do processo de melhoria. O tempo
requerido pelo processo de seleção das variedades cultivadas difere de acordo
com a planta e os fatores culturais e ecológicos próprios da região. O fato de
o Pennisetum e o Brachiaria deflexa representarem os últimos testemunhos dos
esforços de aclimatação desenvolvidos pelo homem indica simplesmente que foi
com essas plantas que se obtiveram os melhores resultados, e não que elas foram
as únicas plantas cultivadas. Assim se explica facilmente a acentuada expano
do Pennisetum e a presença contínua do Brachiaria deflexa nas fases subsequentes.
A região ao sul do Lago Chade
Essa região, geralmente conhecida como Firki, compreende as planícies de
argila negra que se estendem a partir das margens meridionais do lago Chade;
sua formação poderia dever -se ao acúmulo de sedimentos lacustres nas beiras de
um antigo lago de maiores dimensões
21
. É nessa área que Portères imagina que o
Sorghum arundinaceum e o Pennisetum (painço juncáceo ou granulado) se tenha
aclimatado pela primeira vez. A região é relativamente fértil e bem -irrigada.
Embora a média das precipitações anuais seja baixa (655 mm em Maiduguri)
e a estação seca suficientemente longa e quente (a43°C) para provocar o
dessecamento da maioria dos rios, a região permanece inundada e intransitável
durante o período das chuvas, principalmente devido à impermeabilidade
das planícies, perfeitamente horizontais. Por outro lado, o solo retém bem
20 MUNSON, P. J. 1967, p. 91; 1968, pp. 6 -13; 1970, pp. 47 -8; 1972; MAUNY, R. 1950, pp. 35 -43.
21 PULLAN, R. A. 1965.
669
A África ocidental antes do século VII
a umidade, depois de absor-la; atualmente, essa retenção é artificialmente
ampliada pela construção de aterros baixos ao redor dos campos. As inundações
sazonais fizeram dessa área um habitat favorável tanto para agricultores como
para pastores, mas os rigores sazonais reduziram consideravelmente o número
de sítios habitáveis, e a utilização constante dessas zonas no passado ocasionou
o acúmulo de resíduos na forma de montículos ou tells.
As escavões de alguns desses montículos na Nigéria setentrional, em
Camarões e no Chade revelaram até agora vestígios de ocupações sucessivas
em lapsos de tempo que em certos casos se aproximam e até mesmo ultrapassam
2 mil anos. Lebeuf
22
, que trabalhou principalmente no Chade, está convencido
de que esses montículos estão ligados aos Sao das tradições orais. Embora este
termo se revista de grande valor cultural ou étnico, o autor do presente estudo
compartilha da relutância de Connah
23
em usar a tradição oral para identificar
povos que, em alguns casos, viveram 2500 anos.
Connah
24
empreendeu um estudo sistemático de um dos mais notáveis desses
montículos, o de Daima (14°30’L e 12°12,5’N). Os vestígios de Daima sugerem
que no início do século VI antes da Era Cristã essa região era habitada por
pastores da Idade da Pedra Recente que criavam gado cornígero, ovelhas e cabras,
utilizavam machados de pedra polida cujo material devia ser transportado
por longas disncias a essa região, completamente desprovida de pedras
e fabricavam utensílios e armas de osso polido. Entre as descobertas mais
surpreendentes feitas neste nível figuram grandes quantidades de esqueletos de
animais, que testemunham a importância do elemento pastoril, e numerosas
estatuetas de argila, que aparentemente representam animais domésticos. Os
primeiros habitantes desse sítio provavelmente utilizavam apenas madeira e
vegetais nas suas construções e não conheciam os metais.
As descobertas feitas em sítios como Rop
25
e Dutsen Kongba
26
levam a
crer que uma fase neolítica perfeitamente familiarizada com o uso da pedra
precedeu imediatamente a famosa civilização de Nok, da Idade do Ferro (isto é,
antes de –2500), no mosaico de savanas do planalto de Jos. Neste caso, o nível
correspondente incluía provavelmente produtos de uma indústria microlítica,
além de utensílios de pedra talhada e polida, também encontrados nos níveis da
22 LEBEUF, J. -P. 1962.
23 CONNAH, G. 1969 -b, p. 55.
24 CONNAH, G. 1967 -a, pp. 146 -7.
25 EYO, E., 1964 -5, pp. 5 -13; 1972, pp. 13 -16.
26 YORK. R. et al. 1974.
670
África Antiga
 . Região de Tichitt. (Mapa fornecido pelo autor.)
Idade do Ferro Recente. É bem possível que o povo de Nok tenha comercializado
esses utensílios com as populações que ocupavam as regiões carentes de pedras,
ao norte, o mesmo ocorrendo talvez com a cerâmica, que, em Daima, é melhor
representada por finos utensílios de superfícies vermelhas polidas, frequentem
ente decoradas com pente fino ou roleta.
Os complexos Kintampo -Ntereso na região central de Gana
Vestígios arqueológicos que indicam a presença de um grupo de negros
produtor de gêneros alimentícios pelo menos desde -1400 a -1300 (talvez antes)
671
A África ocidental antes do século VII
foram descobertos em quatro regiões principais de Gana: no leste dos montes
Banda, nas terras altas ao redor de Kintampo, nos sítios fluviais espalhados pelas
vastas matas da bacia interior do Volta e nas planícies de Acra, no extremo sul.
Atualmente, esses grupos de sítios podem ser diferenciados antes pelo meio
ambiente que pelas evidências de cultura material. O barro cozido é bastante
comum no sítio de Kintampo e indica a presença de moradias mais ou menos
fixas. Os machados polidos e os raladores (também denominados “charutos de
terracota”), bastante difundidos nas áreas em que não existem pedras próprias
para talhar, revelam a prática de um comércio inter -regional. Em três desses
sítios, os vestígios mostram também que o complexo de Kintampo foi precedido
por um outro, com uma tradição cerâmica muito diferente e um conjunto de
utensílios de pedra e de origem animal que refletem a prática intensiva da caça,
da coleta e/ou de uma cultura alimentar incipiente.
Na região de Kintampo, Ntereso representa um sítio muito particular, cujo
valor é difícil de determinar. Localiza -se numa pequena elevação de terreno
que domina um sítio fluvial onde os recursos aquáticos (por exemplo, conchas e
peixes) tinham grande importância. Assim é provável que a presença de arpões e
anzóis nessa indústria indique uma adaptação especial a uma situação ribeirinha.
Há também uma grande variedade de pontas de flecha muito bem trabalhadas,
únicas na área, a testemunhar afinidades saarianas. As datações por radiocarbono
(em média -1300) situam este tio aproximadamente na mesma época de
Kintampo (isto é, após -1450). Os esqueletos de animais descobertos pertencem,
em sua maioria, a espécies selvagens, especialmente antílopes; contudo, também
foram identificadas cabras anãs
27
. Segundo Davies
28
, as espigas de Pennisetum
eram usadas como roletas para decorar certas peças de cerâmica; no entanto, esta
observação ainda não é conclusiva, pois, como se salientou
29
, pequenas oscilações
rápidas de um pente com dentes finos podem produzir os mesmos efeitos.
As orlas da oresta
Um complexo industrial nitidamente local, cujo caráter difere daquele
apresentado pelas indústrias anteriores da Idade da Pedra Recente, sucedeu
diretamente a estas últimas nas zonas limítrofes da floresta na África ocidental,
bem como nas grandes pradarias do norte do Alto Volta central. Essa indústria
27 CARTER, P. L. & FLIGHT, C. 1972, pp. 277 -82.
28 DAVIES, O. 1964.
29 FLIGHT, C. 1972.
672
África Antiga
se sobrepõe a um complexo neolítico mais setentrional em certas partes do
Senegal, do Mali e da Mauritânia (o Paratoumbiense de Vaufrey).
Os primeiros produtores de alimentos da região da floresta (denominados
neolíticos da Guiné) habitavam abrigos sob rocha e cavernas, assim como
instalações ao ar livre. Exemplos de abrigos são Yengema
30
, Kamabai e Yagala,
todos em Serra Leoa
31
; Kakimbon, Blande e as Monkey Caves, na Guiné;
Bosumpra, em Gana; e Iwo Eleru e Ukpa, na Nigéria. Indícios provenientes
de Iwo Eleru sugerem que os predecessores dessas populações, como os povos
nilóticos, eram negros. Os sítios de habitação ao ar livre mais conhecidos incluem
os do vale e os dos contrafortes do Rim, ao norte do Alto Volta central, e os sítios
de Rarenno, de Tiemassas e do cabo Manuel, no litoral senegalês.
Em várias dessas zonas, os “neolíticos da Guiné ocupavam ou exploravam
solos rochosos contendo afloramentos de quartzo, dolerito e sílex metavulcânicos.
Por outro lado, parece que em sítios como os do Rim as vertentes das colinas
eram utilizadas para culturas em terraços. As características mais comuns
desse complexo são os pesados bifaces talhados em forma de picão, os bifaces
semicirculares (as enxadas de Davies) e outros igualmente primitivos, e um
grande número e variedade de machados polidos, mós, alguns pilões e pequenos
fragmentos de quartzo principalmente outils esquilles e cerâmica decorada
a roleta. Os bifaces semicirculares e em forma de picão parecem derivar dos
bifaces e picões nucleiformes sangoenses; sugeriu -se
32
que provavelmente eram
utilizados para a plantação e colheita de tubérculos, assim como para escavar
armadilhas destinadas à caça. Os pilões e almofarizes (que sem dúvida tinham
sua réplica em madeira) deviam ser utilizados para triturar os tubérculos tropicais
fibrosos, como se faz atualmente
33
.
Nos lugares onde este complexo depara com uma tradição mais setentrional,
como no Paratoumbiense do Mali e da Maurinia e no Senegal (entre
Pointe -Sarenne e Tiemassas), encontram -se geralmente os tipos de objetos
mencionados acima associados a pontas foliáceas, lâminas entalhadas e lâminas
com bordas retocadas. Em Tiemassas, o complexo local (Neolítico meridional),
situado pela estratigrafia natural entre -6 000 e -2 000
34
, é nitidamente anterior
30 COON, C. S. 1968.
31 ATHERTON, J. H. 1972, pp. 39 -74.
32 DAVIES, O. 1968, pp. 479 -82.
33 SHAW, T. 1972.
34 DESCHAMPS, C., DEMOULIN, D. & ABDALLAH, A. 1967, pp. 130 -2.
673
A África ocidental antes do século VII
ao Neolítico setentrional (Belairiense) e segue diretamente as tradições locais
da Idade da Pedra Recente.
De modo significativo, os índices arqueológicos da junção Mali -Mauritânia-
-Senegal parecem confirmar a tese de Portères segundo a qual o arroz africano
de casca vermelha (Oryza glaberrima e Oryza stapfili) podetia ter -se aclimatado
inicialmente graças a um método indígena de cultivo em terrenos alagados,
empregado pelo menos 3500 anos nas vastas planícies inundadas do Alto
Níger, entre Segu e Tombuctu, região do Mali onde o Níger se ramifica em
numerosos cursos de água e lagos (delta interior do Níger). Dali a cultura
pode ter -se propagado ao longo dos rios mbia e Casamance até a região
das populações costeiras da Senegâmbia. Vale notar, ainda, que a hipótese de
a cultura do arroz ter sido consequência da importação dos conhecimentos do
cultivo de cereais não resiste ao exame dos índices botânicos. Portères
35
observou
que, embora a forma ancestral do trigo (emmer) produzisse grãos comestíveis que
podiam ser colhidos quando maduros (o que permitia cultivá -los em seguida), o
mesmo não ocorria com o arroz africano, cujas formas ancestrais não produziam
grãos suscetíveis de ser colhidos.
Mais a leste particularmente nos sítios de Serra Leoa, Iwo Eleru e
Bosumpra –, as datações e a natureza das estratificações arqueológicas nas zonas
limítrofes da floresta levam a crer que mudanças importantes na tecnologia
(cerâmica, utensílios de pedra polida, etc.) provavelmente estavam associadas
aos primórdios da cultura indígena de plantas locais, como o inhame, inhame
de coco e o dendezeiro. Tais mudanças podem ter -se propagado dessa área para
o norte.
Desse modo, o conjunto das informações tende a mostrar que o Saara central
e as terras altas vizinhas do Sahel formaram o núcleo das primeiras culturas
espontâneas de determinadas gramíneas, em particular do Pennisetum e do sorgo,
enquanto nas áreas nigerianas da orla florestal surgiram as primeiras culturas
autóctones de raízes (inhames, inhames de coco) e árvores (dendezeiro). Por
outro lado, os confins da floresta no extremo oeste constituíram o ponto de
partida da cultura do arroz. Portères
36
observou que, das três regiões dotadas
de reservas substanciais de sorgo não -cultivado (África ocidental, Etiópia e
África oriental), a África ocidental apresenta um interesse especial porque,
diferentemente da África oriental (e da Ásia), seus espécimes atuais são únicos,
ao invés de resultarem de cruzamentos entre as três formas primitivas. Mais
35 PORTÈRES, A., 1962, pp. 195 -210.
36 PORTÈRES, A., 1962.
674
África Antiga
recentemente, porém, Stemler e seus colaboradores
37
propuseram considerar
o Candatum como uma variedade relativamente nova de sorgo, obtida pela
primeira vez por populações da atual República do Sudão (que falam uma língua
da família Chari -Nilo) pouco depois de 350 da Era Cristã.
As datões por radiocarbono indicam que o homem do Neotico do
Saara central (cerca de -7000) é o primeiro de todos os agricultores primitivos,
mas revelam igualmente que nas áreas limítrofes da floresta a transição para a
produção alimentar ocorreu muito mais cedo do que nas áreas do Sudão e do
Sahel, ao norte. Em Iwo Eleru, tal transição prolongou -se por um período que
vai de pouco depois de -4000 (-3620) até -1500. No abrigo sob rocha de Ukpa,
perto de Afikpo (5°54’N; 7°56’L)
38
, a datação da camada que contém cerâmica
e machados neolíticos indica um período situado entre -2935 (±140) e -95.
É um pouco mais tarde que o Neolítico da Guiné ocorre em Serra Leoa,
a leste, e no Alto Volta, ao norte. Na gruta de Yengema, uma datação por
termoluminescência da cerâmica que representa “o começo e o fim aproximados
do NeoIítico da cerâmica indica uma época que se estende de -2500 a -1500.
Em Kamabai, os níveis neolíticos tamm cobrem um peodo que vai de
-2500 a +340 (±100). No centro -norte do Alto Volta (Rim), esse mesmo tipo
de indústria se situa entre -1650 e +1000.
O caráter específico do Neolítico guineense da orla florestal e sua datação em
relação aos primeiros complexos culturais de produção alimentar na savana e no
Sahel sugerem o apenas que a transição para a produção alimentar sobreveio
mais cedo nas áreas florestais, mas também que foi independente das influências
setentrionais. Essas provas confirmam, pois, a tese de que as culturas indígenas
da região florestal – como o arroz (a oeste), os inhames e o dendezeiro (a leste) –
resultaram de iniciativas antigas, tomadas independentemente pelas populações
locais. A propósito, convém assinalar que o desgaste dos dentes do esqueleto de
Iwo Eleru
39
pode ser explicado pela mastigação de tubérculos cobertos de areia,
como os inhames. Também é significativo que os sítios neolíticos guineenses
predominem claramente na orla da floresta, nas florestas -galerias ao longo dos
cursos de água ou nas clareiras, lugares que constituem o habitat natural do inhame.
O fato de os neolíticos da Guiné terem avançado para o norte até o Alto
Volta e de serem encontrados em épocas posteriores (embora misturados a
elementos do norte em certas partes do Mali, da Mauritânia e do Senegal) é
37 STEMLER, A. B. L., HARLAN, J. R. & DEWET, J. M. 1975, pp. 161 -83.
38 SHAW, T. 1969 -b.
39 SHAW, T. 1971.
675
A África ocidental antes do século VII
indício de uma penetração de influências meridionais ao norte. A exemplo de
numerosos agricultores atuais da floresta tropical, é possível que os neolíticos
que cultivavam árvores e tubérculos tenham praticado, ao menos de início, a
agricultura seminômade e, por consequência, vivido em grupos relativamente
pequenos.
Assim, afirmar que os complexos dos primeiros neoticos do oeste
africano apresentavam características locais bem determinadas muitas delas
testemunhando um esforço de adaptação econômica e social, desenvolvido de
forma independente em resposta a condições ecológicas particulares não
significa que cada um desses complexos constituísse um enclave isolado. Os
vestígios de esqueletos descobertos levam a crer que as populações da maior
parte dessas áreas eram negras.
No Saara, o homem neolítico aparece como uma mistura de mediterrânicos
e negros; é ele que povoa o Tassili neolítico. Deslocando -se para o sul,
provavelmente deu origem aos vários grupos de pele escura que habitam a
atual savana.
O fato de as primeiras populações neolíticas negras da África ocidental
não terem vivido em enclaves culturais isolados é igualmente ilustrado pelas
semelhanças na tipologia da cerâmica (por exemplo, a técnica “oscilante e
a decoração por impressões de pente). A ser exata a datação, é provável que
essas particularidades se tenham propagado a partir do Saara central (onde
era conhecida a cultura de gramíneas) até as regiões do Sahel e da savana. Por
outro lado, a roleta era mais especificamente um objeto do sul, enquanto as
linhas onduladas pontilhadas ou contínuas –, típicas das regiões nilóticas,
estão totalmente ausentes no sul e aparecem em alguns complexos do Saara
oriental e central (Hoggar, Bornu -Chade e Sul -Ennedi).
É igualmente importante insistir no fato de que as mudanças sobrevindas na
produção alimentar não envolveram obrigatoriamente a utilização de utensílios
visivelmente novos. Exemplos etnográficos levam o autor do presente estudo
a pensar que essa transição estaria associada sobretudo a modificações nos
métodos de trabalho e de utilização dos solos (sem implicar, necessariamente,
uma mudança de utensílios): construção de terraços, métodos de sulcagem mais
aperfeiçoados, utilização do estrume, duplo amanho da terra e capina, transplante,
policultura, utilização racional dos recursos de água, conservação dos solos, etc. É
possível que tais modificações tenham despontado em diversos lugares e épocas,
quando, por alguma razão, as terras cultivadas se tornavam verdadeiramente
raras. A evolução dos métodos agrícolas não deixou de influenciar a organização
social e as características do povoamento; não se pode, contudo, generalizar,
676
África Antiga
uma vez que este fator agiu associado a outros, que por certo variavam em tipo
e caráter de uma região para outra.
Segundo os dados de que se dispõe atualmente, existiram pelo menos quatro
zonas principais de desenvolvimento no Neolítico, duas das quais se situavam
no extremo norte da África ocidental. É sobretudo nas vastas planícies da região
setentrional que bem cedo se estabeleceu a forma pastoril da transumância. Nas
regiões lacustres, nos vales e nas encostas das colinas vizinhas predominavam a
cultura de gramíneas e, em certos casos, a criação associada ao cultivo. Ao sul,
por outro lado, as terras baixas e as orlas das florestas foram os principais centros
de cultura de raízes e árvores.
Duas áreas nucleares principais foram identificadas na África ocidental: uma
ao norte, na zona intermediária Sahel -Sudão, outra ao sul, na orla da região
florestal. Os dois núcleos localizavam -se, pois, em regiões de estações opostas,
uma das quais desfavorável ao crescimento vegetal (calor, aridez, frio). Num
quadro ecológico desse tipo, as plantas acumulam reservas que lhes permitem
resistir e retomar com vigor seu desenvolvimento quando volta a estação
“favorável”. Essas reservas tomavam a forma de raízes e tubérculos ao sul e de
sementes ao norte da zona sudanesa.
Na floresta e na savana, com pouca ou nenhuma variação climática sazonal,
as plantas cresciam num ritmo lento e regular; não precisavam lutar para
sobreviver nem acumular reservas o que provavelmente encorajou os ensaios
de aclimatação nas duas áreas nucleares. Encerrada entre essas duas áreas, a
zona de savana central parece ter sido o ponto de encontro das influências do
norte e do sul.
Um fator importante é constitdo pelo fato de que a estação de
desenvolvimento das plantas era mais longa na região das terras baixas de
floresta, enquanto os solos das zonas lacustres e fluviais do norte eram mais
férteis e também mais fáceis de trabalhar. Por estas razões, o modo de vida do
homem nessas regiões diferia em alguns aspectos, o mesmo ocorrendo com o
produto de suas atividades. Se, nas regiões do norte, bastava limpar pequenas
áreas para em seguida trabalhar o solo com a enxada, a atividade agrícola em
expansão nas zonas de floresta implicava quase sempre um desflorestamento
mais intenso (ou mais extenso), que nem sempre era acompanhado do aumento
das dimensões e do tempo de permanência das instalações. No primeiro sistema,
uma superfície limitada de terreno podia ser explorada de forma contínua;
no segundo, fazia -se necessário adotar, muitas vezes, uma agricultura de tipo
seminômade. Essas diferenças gerais de modo de exploração tiveram, durante
os períodos pré -histórico e histórico, repercussões importantes nas dimensões
677
A África ocidental antes do século VII
e no caráter dos grupos sociais da África ocidental, bem como na natureza de
suas instalações. Mas o desenvolvimento das primeiras produções alimentares
e suas consequências variavam, até certo ponto, segundo o quadro ecológico.
A transição da coleta (de alimentos) para a cultura alimentar nas três principais
regiões culturais modificou de diversas maneiras a atitude do homem em relação
ao seu meio ambiente natural e ao seu grupo. De coletor ele passou a produtor e
armazenador”, vindo, depois, a trocar (graças ao comércio de longa distância) os
produtos que faltavam a seus vizinhos por mercadorias de que seu próprio grupo
necessitava. Ademais, a evolução econômica incentivou o desenvolvimento de
atividades artesanais e de novas tecnologias (cerâmica, metalurgia, etc.), assim
como de redes comerciais ativas e complexas, além de ocasionar profundas
transformações sociais. Mas essas mudanças sociais variavam, por sua natureza
e amplitude, de acordo com o tipo de base agrícola estabelecido.
A Idade do Ferro Antiga
As etapas do desenvolvimento da Idade do Ferro não parecem diferir muito das
do Neolítico, salvo pelo fato de os primeiros exemplos de transição para a Idade
dos Metais e do Ferro na África ocidental terem ocorrido nas duas extremidades
da zona Sahel/savana, e não nas regiões florestais do sul. A propósito, os indícios
culturais e cronológicos nos autorizam a pensar que o processo que conduziu ao
trabalho dos metais assim como as origens da produção alimentar contou
com uma participação indígena considerável. Como foi exposto anteriormente
40
,
os traços da Idade do Ferro Antiga na África ocidental podem ser divididos, no
plano tipológico e, em certa medida, cronológico e estratigráfico, em conjuntos
caracterizados pela presença de: 1. cerâmica e utensílios de ferro e de pedra
polida; 2. cerâmica, ferro e/ou outros metais, por vezes relacionados a práticas
funerárias especiais (jarros); 3. cerâmica unicamente.
Os sítios nos quais os traços da metalurgia do ferro se misturam aos de uma
indústria lítica razoavelmente desenvolvida constituem, em geral, os conjuntos
mais antigos da Idade do Ferro, refletindo provavelmente a passagem da Idade
da Pedra para a Idade do Ferro. Os sítios caracterizados por essas indústrias de
transição foram identificados em várias partes da África ocidental e também em
outros lugares (por exemplo, na região dos Grandes Lagos, na África oriental).
Via de regra, essas indústrias continham escórias de ferro, lâminas de faca,
fragmentos de flechas e de pontas de lança, anzóis e braceletes, pedras -martelo,
40 ANDAH, B. W. (WAI -OGOSU, B.). 1973.
678
África Antiga
uma variedade de utensílios em forma de machado ou de enxó, discos ou anéis
de pedra, mós e pedras de polir. Observam -se também diferentes tendências
regionais. Por exemplo, as estatuetas de terracota parecem ser características da
Nigéria setentrional, mas ocorrem igualmente em alguns sítios de Gana. Tubos
de forja e fragmentos de uma suposta parede de forno foram descobertos na
Nigéria setentrional. Por outro lado, os bifaces grosseiramente talhados são mais
característicos dos sítios de Kamabai e Yagala, em Serra Leoa. No Rim (Alto
Volta) pesados bifaces, juntamente com machados e enxós, ocorrem as sociados
a jarros funerários e indicam um parentesco com o Neolítico guineense, de
épocas anteriores.
A variação regional também é evidente na cemica da Idade do Ferro
Antiga. Por exemplo, a sequência de Bailloud
41
relativa ao Ennedi incluindo
dois estilos aparentados, Telimorou e Chigeou, que se estendem pelo período
de transição entre o Neolítico recente e a Idade do Ferro Antiga liga -se
aparentemente à céramique cannelée de Coppens
42
, proveniente do Chade, e ao
estilo Taimanga de Courtin
43
, procedente de Borku. Telimorou está associado
aos mais antigos sítios de aldeias ao ar livre, e supõe -se que sua datação remonte
ao primeiro milênio antes da Era Cristã. Tanto Bailloud como Courtin destacam
as semelhanças entre esses estilos de cerâmica e as do Grupo C da Núbia,
embora estas últimas pareçam ter uma datação bem anterior (começando por
volta de -2000). A maior parte das características da decoração desses estilos
faixas de impressões oblíquas estampadas a pente, gravações entrecruzadas e
entrelaçadas, triângulos hachurados gravados, falsos relevos, ranhuras paralelas,
etc. – também são típicas dos complexos da Idade do Ferro Antiga descobertos
em Taruga, nos sítios reconhecidos por Lebeuf no lago Chade, em Sindou e nos
níveis 2 e 3 de Ntereso, assim como nas grutas de Serra Leoa. Alguns traços do
estilo Taruga primitivo parecem prenunciar o “complexo de Ife” no tocante às
tradições tanto de cerâmica como de estatuetas.
Contrastando com o que precede, os estilos das cerâmicas mais recentes de
Taruga guardam maior semelhança com os dos níveis do Neolítico e da Idade
do Ferro no Rim. Em ambos predomina uma grande variedade de decorações,
obtidas por meio de roletes gravados e em espiral, e existem exemplos isolados
do uso do rolete de espiga de milho. Até agora, a mais conhecida das sociedades
da Idade do Ferro Antiga é talvez a de Nok, que parece ter sido uma das mais
41 BAILLOUD, G. 1969, pp. 31 -45.
42 COPPENS, Y. S. 1969, pp. 129 -46.
43 COURTIN, J. 1966, pp. 147 -59; 1969.
679
A África ocidental antes do século VII
antigas e influentes. Tudo indica que as populações de Nok trabalhavam o ferro
desde -500 e provavelmente até mesmo um pouco antes. O que mais se conhece
dessa cultura é sua notável tradição artística, com destaque para as estatuetas
de terracota. Apesar de conhecerem a metalurgia do ferro, as populações de
Nok ainda continuavam a usar utensílios de pedra nas atividades em que os
consideravam mais eficientes. Entre esses artefatos incluem -se s, seixos
trabalhados e machados talhados ou polidos. Mesmo quando coexistiam na
mesma época e no quadro da mesma tradição artística, alguns sítios de Nok
apresentavam características originais, que sugerem variações regionais. Assim,
por exemplo, os machados polidos estão totalmente ausentes em Taruga, e
existem diferenças na cerâmica doméstica de Samun Dukiya, Taruga e Katsina
Ala
44
.
o a cultura Nok estava firmemente estabelecida bem mais de 2500
anos como sua influência parece ter sido profunda. Assim é que se encontram
alguns dos traços estilísticos da cultura Nok em estatuetas de argila de Daima,
onde a metalurgia do ferro teve início em torno do século V ou VI da Era Cristã.
Connah acredita que por volta do século VIII os primeiros habitantes de
Daima foram substituídos por outros povos que utilizavam amplamente o ferro,
cultivavam sobretudo os cereais e mantinham com seus vizinhos contatos mais
estreitos do que seus predecessores; permaneceu, no entanto, o hábito de sepultar
os mortos em posição fletida, a exemplo da fabricação de estatuetas de argila.
Em nenhum momento essas populações enterraram seus mortos nos enormes
jarros geralmente denominados vasos sao”, conquanto esse tipo de cerâmica
esteja presente na parte superior dos montículos funerários.
Num raio de 100 km ao redor de Fort Lamy, na República do Chade,
numerosos e importantes montículos vestígios de antigos povoados, alguns
atingindo até 500 m de comprimento – foram descobertos nas colinas naturais
ou artificiais às margens dos rios do vale do Baixo Chari; continham quase
os mesmos objetos de Nok e Daima. Entre esses objetos encontravam -se
belas estatuetas em terracota representando personagens humanas ou animais,
ornamentos de pedra, armas de cobre e bronze e milhares de cacos de cerâmica.
Nesses povoados utilizavam -se também enormes vasos funerários, que eram
cercados por muros defensivos.
Para esses sítios sao, Lebeuf (1969) obteve datações de radiocarbono que
variam entre -425 e +1700, o que parece cobrir todo o período de Sao I, II e III.
44 FAGG, A. 1972, pp. 75 -9.
680
África Antiga
No entanto, Shaw
45
acredita que essas delimitações não estão satisfatoriamente
definidas em termos de estratigrafia e de cultura material. Se a datação -425
correspondesse a um nível portador de ferro, sua importância seria óbvia.
Nigéria meridional
Para a Nigéria meridional, Willett
46
observa que:
“Encontram -se tantos traços da cultura Nok, principalmente de sua arte, nas culturas
posteriores de outros lugares da África ocidental que é difícil deixar de acreditar que,
tal como a conhecemos, essa cultura representa o tronco ancestral do qual deriva o
essencial das tradições esculturais dessa parte da África”.
Quer esta observação seja verdadeira ou não, é certo que as numerosas
semelhanças observadas nas artes de Nok e de Ife não se devem ao acaso
47
.
Como em Nok, encontram -se em Ife, em Benin e, num grau menor, em outras
antigas cidades do país Iorubá, uma tradição escultural naturalista que remonta
pelo menos a +960 (±130), assim como pingentes e colares elaborados.
A cerâmica doméstica encontrada em Ife representa um progresso em relação
aos espécimes de Nok, sobretudo na decoração mais variada, incluindo a gravura
(linhas retas, ziguezagues, pontilhismo, motivos curvilíneos), o polimento, a pintura,
a impressão com roletes de madeira entalhada ou cordão trançado e a aplicação
de faixas de argila. Fragmentos de cerâmica pavimentavam o solo das habitações.
As escavões de Igbo Ukwu
48
mostraram claramente que o ferro era
trabalhado na Nigéria do sudeste desde o século IX da Era Cristã, mas nada
sugere que não possa ser anterior. Como a arte do ferreiro era uma ocupação
altamente especializada, sua prática permaneceu como apanágio de certas
comunidades e linhagens. Os mais renomados ferreiros Igbo são os de Awka
(a leste de Onitsha); ao que tudo indica, obtinham inicialmente o ferro (ou o
minério) dos fundidores Igbo de Udi, a leste de Awka, e muito mais tarde
passaram a receber suprimentos da Europa. Outros centros de metalurgia
entre os Igbo eram as aldeias dos Abiriba fundidores Igbo do Cross River
(a leste) –, dos forjadores de ferro e bronze estabelecidos próximos das colinas
Okigwe -Arochuku e dos forjadores Nkwerre, da parte meridional dessa região.
45 SHAW, T. 1969 -a, pp. 226 -9.
46 WILLETT, F. 1967, p. 117.
47 Ibid., p. 120.
48
SHAW,
T. 1970 -a.
681
A África ocidental antes do século VII
Em razão do número por demais restrito de trabalhos arqueogicos
empreendidos nessa área, é difícil comentar em detalhe as modalidades da
evolução do trabalho do ferro. A proximidade dos sítios de Awka e de Igbo
Ukwu e, de um modo geral, a semelhança de muitos espécimes sugerem a
possibilidade de contatos, mas os dois complexos estão cronologicamente muito
distanciados, e os forjadores de Awka não demonstraram, pelo menos em épocas
mais recentes, certas características artísticas e técnicas incluindo a fundição
do bronze – típicas do trabalho de Igbo Ukwu.
Uma escavação na área de Awka
49
trouxe à luz quinze gongos de ferro, uma
espada de ferro semelhante às fabricadas ainda hoje pelos ferreiros de Awka, um
grande número de sinos de bronze fundido e outros objetos, datados de até +1495
(±95) e que não podem ser tão facilmente atribuídos aos ferreiros de Awka.
Também não está esclarecida a época em que se teriam estabelecido relações
culturais entre Ife e Igbo Ukwu, embora Willett acredite que Ife talvez remonte
a uma época mais recuada do que se imagina hoje e que possa inclusive estar
muito mais próxima do Nok do que sugerem as informações de que dispomos
atualmente (por volta do culo XIII ou XIV da Era Cris). Se os colares de Ife o
realmente os mesmos que os akori da costa da Guiné – como sugerem os indícios
etnográficos descobertos na Nigéria meridional, e como pensa Frobenius –, é
concebível que os colares de vidrilhos de Igbo Ukwu tenham sido confeccionados
em Ife. Nesse caso, a cultura de Ife remontaria pelo menos à mesma época que as
descobertas de Igbo Ukwu (século IX da Era Cristã). A propósito, não é menos
significativo que a descontinuidade da tradição na escultura em pedra, na indústria
de vidro e nas estatuetas de barro observada em Ife seja em grande parte paralela
à de Daima
50
, e que a descontinuidade cultural verificada em Daima se situe entre
os séculos VI e IX da Era Cristã. E, na medida em que certos objetos funerários
descobertos em Daima tendem a indicar a presença de relações comerciais entre
Ife e Daima, é bem possível que haja paralelo cultural e coincidência cronológica.
Portanto, existe uma real possibilidade de que Ife remonte pelo menos ao século
VI da Era Cristã.
A Idade do Ferro no extremo ocidente
A Idade do Ferro no extremo ocidente africano é ainda menos conhecida que
a de Nok e das áreas vizinhas. Assim, as poucas informações de que dispomos
49
HARTLE,
D., 1966,
p.
26; idem, 1968,
p.
73.
50 CONNAH, G., 1967 -a, pp. 146 -7.
682
África Antiga
sobre a Mauritânia não se referem a uma Idade do Ferro, mas a uma “Idade do
Cobre”. Para a região do Médio Níger, e particularmente para a Senegâmbia,
dispomos apenas de uma sequência cronológica parcial
51
.
As escavações efetuadas por N. Lambert em Akjujit (Mauritânia)
52
indicam
que a fundição do cobre no Saara ocidental data pelo menos de -570 a -400. Esse
período também pode ter sido o do comércio transaariano do cobre. Estima -se
em 40 toneladas a quantidade de cobre extraída de um dos sítios, e é possível
que uma parte dessa produção fosse exportada do Saara ocidental para o Sudão.
Embora a importância de Akjujit tenha declinado no início dos tempos históricos,
talvez devido ao esgotamento do estoque de madeira utilizável para a fundição
(como ocorreu em Méroe) , o comércio transaariano aparentemente continuou a
assegurar o fornecimento de cobre e de objetos de cobre através do Sudão central.
Os inumeráveis objetos de cobre que provêm dos sítios arqueológicos ou
integram coleções de museus, além daqueles mencionados nas fontes escritas,
sugerem que a utilizão desse metal, por mais raro que fosse, desfrutou,
durante muito tempo, de razoável difusão na África ocidental embora não
fosse esse material tão importante quanto a madeira, o ferro e a argila. As
importações do cobre e de suas ligas se davam sob várias formas, que pouco
se alteraram no decorrer dos séculos: lingotes, manilhas, anéis, fios, sinos e
recipientes, provavelmente utilizados, sem alterações, seja como matéria -prima
para a indústria local, seja para a fundição mediante o processo da cera perdida
e para martelagem, trefilação, torção, etc.
As populações africanas faziam distinção entre o cobre vermelho isto é, o
cobre em sua forma pura –, o bronze e o cobre amarelo ou latão. Infelizmente,
essa precisão não aparece na maioria dos escritos. É necessário proceder à
análise espectrográfica para determinar o teor real do metal de um objeto e as
preferências dos primeiros utilizadores do cobre e sua liga (bronze).
A região do Médio Níger
Encontraram -se montículos de terra artificiais sítios de povoamentos ou
sepulturas (tumuli) nas três áreas principais dessa região:
• na confluência Níger -Bani no vale de Bani;
• no norte e no nordeste de Macina e de Segu;
• no extremo leste da curva do Níger, no Alto Volta.
51 LINARES DE SAPIR, O. 1971, pp. 23 -54.
52 HERBERT, E. W., 1973 pp. 170 -94.
683
A África ocidental antes do século VII
Nestas três áreas foram descobertas cerâmicas volumosas e espessas, decoradas
principalmente com roletes de corda trançada, e frequentemente usadas como
jarros funerários. Em alguns lugares, esses jarros se encontram em conjuntos
de dois e três, com os respectivos apetrechos domésticos. No Alto Volta (Rim),
os principais utensílios descobertos eram de ferro e pedra polida, misturados a
cerâmica doméstica. Objetos de bronze e de cobre também estavam presentes
na zona da curva do Níger. Em Macina e na região de Segu (mas não em
Bani ou no Rim, no extremo leste, no Alto Volta) descobriu -se uma cerâmica
moldada característica, polimorfa, belos pratos e tigelas de fina espessura
alguns com nervuras, suportes ou com base chata –, copos com pés, cântaros e
jarros troncônicos
53
.
Em Segu e Tombuctu, algumas dessas populões da Idade do Ferro
compunham -se principalmente de agricultores que cultivavam o milhete e o
arroz; outras se dedicavam sobretudo à pesca, utilizando redes com pesos de
terracota ao invés de arpões de osso. Nessa região existiam notáveis monumentos
pré -islâmicos, de pedras artisticamente trabalhadas a martelo, e algumas das
descobertas se estendem por dezenas de hectares, testemunhando importantes
concentrações de população. Mas pouquíssimos sítios foram inventariados, ou
o foram apenas superficialmente; no entanto, muitos deles sofreram grandes
saques dos franceses
54
.
Somente escavações extensas permitirão determinar as dimensões exatas e
a natureza dessas instalações, bem como o tipo de economia das populações
que viveram na região. A sequência cronológica desses tios ainda não foi
estabelecida. Monod acredita que essas culturas de jarros funerários faziam parte
de um “complexo lehim mais amplo, concentrado na costa mediterrânea e que
confinava com a região da curva do Níger, o que implica serem essas culturas
da Idade do Ferro oeste -africana posteriores ao advento do mundo árabe (isto
é, +1000 e +1400). Contudo, os resultados de pesquisas recentes não confirmam
essa opinião.
Em Kouga, por exemplo, as escavações realizadas num túmulo permitiram
atribuir uma datação de +950 (±120) a um nível relativamente recente, contendo
cerâmica pintada em branco sobre fundo vermelho. Cacos de cerâmica
encontrados na superfície traziam impressões de painço, trigo e talvez de milho.
As indicações coletadas nesse e em outros sítios desta parte da África ocidental
evocam um vel mais antigo da Idade do Ferro, caracterizado principalmente
53 SZUMOWSKI, G. 1957, pp. 225 -57.
54 DAVIES,O. 1967 -a, p. 260.
684
África Antiga
por cacos de cerâmica com impressões ou desprovidos de qualquer decoração,
assim como por utensílios de osso e pedra e braceletes. No Alto Volta, uma
tradição cultural aparentada remonta a um período ainda mais antigo: séculos V
e VI da Era Cristã
55
.
A região da Senegâmbia
Tumuli funerários foram descobertos igualmente em certos setores dessa
região, particularmente em Rao, situado na embocadura do rio Senegal
56
, e no
norte do Senegal, ao longo do rio. Ainda aqui, a maior parte dos sítios não foi
inventariada em detalhe; todavia um estudo superficial indicou que os defuntos
eram sepultados em habitáculos de madeira recobertos por montículos de pelo
menos 4 m de altura, contendo utensílios de ferro, braceletes de cobre, colares,
joias de ouro e vários tipos de cerâmica de formas simples: potes, tigelas, copos
e jarros,o pintados mas abundantemente decorados com motivos elaborados,
executados principalmente por entalhe e punção, sem utilização de pente.
Segundo escavações recentes, esses megálitos datariam de +750
57
, isto é, de
um período posterior ao que nos interessa, sobretudo neste capítulo.
Os principais sítios do litoral dessa região referem -se mais diretamente
ao nosso período e incluem notadamente grandes quantidades de moluscos.
Perto de Saint -Louis e em Casamance, enormes baobás cresciam, por vezes,
sobre esses montes de conchas. Os concheiros de Saint -Louis estudados por
Joire
58
revelaram, a exemplo de vários outros, uma indústria da qual subsistem
ocasionais fragmentos de cerâmica impressos a pente, um anel trançado de
cobre e ferro, um machado de osso e alguns outros artefatos do mesmo material.
Entre outras coisas, as populações que nos legaram esses concheiros pescavam
ostras e as comerciavam com as populações do interior. Entre Saint -Louis e
Joal, o litoral de dunas e rochas, considerado impróprio para a ostreicultura
59
,
foi habitado por densa população desde o Neolítico até a Idade do Ferro. Em
Dacar (em Bel -Air, por exemplo) encontram -se vestígios da Idade do Ferro
nitidamente estratificados acima do Neolítico. As formas e a ornamentação das
55 ANDAH, B. W. 1973.
56 JOIRE, J. 1955, pp. 249 -333.
57 DESCHAMPS, C. & THILMANS, G.
58 JORGE, J. 1947, pp. 170 -340.
59 DAVIES, O. 1967 -a; 1967 -b, pp. 115 -18.
685
A África ocidental antes do século VII
 . Montículos de detritos do Firki (segundo G. Connah. 1969 -b).
686
África Antiga
cerâmicas parecem ter variado pouco no curso dos séculos, de modo que os sítios
não -estratificados não podem ser classificados de maneira satisfatória.
Um estudo de vários concheiros do Baixo Casamance, efetuado numa área
de 22 km por 6 km, revelou uma sequência cultural que se estende de 200
a +1600, imbricada com elementos do icio da cultura material moderna
diula. Sapir acredita que a fase mais antiga conhecida até agora (período de
–1200 a +200), descoberta nos sítios de Loudia e de Quolof, pertence antes
ao Neolítico recente que a uma fase mais antiga. Os contatos e as influências
culturais são indicados pela cerâmica dessa época, que partilha cnicas
decorativas, como a gravura em linhas onduladas, com a cerâmica neotica
amplamente difundida do cabo Verde
60
até a Argélia meridional
61
e mesmo
até a África central. Não se descobriram utensílios de pedra nesses sítios, mas
encontram -se frequentemente nódulos de ferro dos ntanos, o que leva a
supor a utilizão do ferro. No entanto observa -se nas cercanias de Bignona
a presença de machados de pedra pré -hisricos, supostamente encontrados
nos concheiros.
Os dados arqueológicos desse período evocam instalações esparsas,
constituídas por pequenos acampamentos situados em orlas arenosas pouco
elevadas, provavelmente recobertas por ervas e arbustos e cercadas por florestas.
o se praticava a pesca de crustáceos, e é difícil imaginar como essas populações
asseguravam a sua subsistência. As raras ossadas de animais descobertas
pertencem a alguns mamíferos não -identificáveis.
A total ausência de vestígios de moluscos e espinhas de peixe (nos quatro
sítios que representam cerca de 400 anos de ocupação de terreno) e a presença
de fragmentos de cerâmica, cujo material não inclui conchas moídas, foram
consideradas pelos primeiros pesquisadores como reveladoras da inadaptão
dos “primeiros habitantes da costa à vida em meio litorâneo. Segundo
Aubreville
62
, densas florestas recobriam toda a região em torno do planalto
de Cussouye, antes que fossem destruídas pelo fogo e a área convertida num
arrozal. Se essa opinião for correta, é possível que os habitantes do Período I
já praticassem a agricultura, cultivando talvez o arroz de sequeiro (em terrenos
secos).
Durante as ocupações que se seguiram (Períodos II a IV, ou seja, posteriores
a +300), a fauna abundante dos mangues e marigots foi explorada, e é possível
60 MAUNY, R. 1951, pp. 165 -80.
61 HUGOT, H.-J. , 1963.
62 AUBREVILLE, A. 1948, p. 131.
687
A África ocidental antes do século VII
que também se haja praticado a agricultura, embora não se tenha realizado uma
pesquisa sistetica de vestígios de arroz ou outras plantas. Nesses níveis, os
arqueólogos consideram que suas descobertas “correspondem bem às práticas
diula antigas e modernas”, embora a sequência dos tipos de cerâmica relacione
os antigos acúmulos de detritos alimentares aos acúmulos modernos vizinhos.
Atualmente se percebe que esta sequência parece demasiado recente para
esclarecer as origens da cultura do arroz irrigado nessa região. Contudo, é
útil observar que Portères
63
considera a Senegâmbia um centro secundário de
propagação do Oryza glaberrima, situando -se o centro principal numa área
vizinha ao Médio Níger.
Os sítios do Baixo Casamance representam, ao que parece, uma etapa
avançada da cultura do arroz irrigado. Nessa época, a utilização de instrumentos
de ferro permitiu explorar os mangues e sulcar os terrenos argilosos de aluvião
para preparar campos de arroz. Na realidade, seria conveniente procurar os
primeiros centros da cultura do Oryza glaberrima nos solos movediços dos
vales interiores ressecados, onde teria sido possível cultivar o arroz de sequeiro,
semeado à mão ou plantado em pequenas covas, após a limpeza do terreno com
instrumentos de pedra.
A atividade agrícola da região poderá ser conhecida com maior precisão
após o empreendimento de pesquisas arqueogicas nas áreas -chave. De
qualquer modo, sabe -se atualmente que aspectos identificáveis da cultura diula
estavam presentes desde o Período II. Como ocorre ainda hoje, grupos humanos
viviam nas orlas arenosas dos vales de aluvião ou não muito distante delas,
depositando seus dejetos em lugares determinados.se formavam volumosos
amontoados de resíduos contendo fragmentos de cerâmica e outros detritos que
lembram a cultura material diula. Durante todo o período, a cerâmica tradicional
do Baixo Casamance deu maior ênfase às decorações gravadas, pontilhadas e
impressas do que às pintadas, bem como às formas utilitárias – em detrimento
das ornamentais ou próprias para as cerimônias. Ainda não se sabe se essas
populações do Casamance enterravam a cerâmica com os mortos, uma vez que
não se encontrou nenhuma sepultura nos sítios em questão ou em suas cercanias.
Arkell, entre outros, sugeriu que as tradições do trabalho do ferro, descritas
acima, foram introduzidas na África ocidental a partir da esfera egípcio -núbia,
enquanto outros, como Mauny, as fazem derivar de Cartago. No entanto, os autores
que sustentam essas teses o o o justo valor, entre outras coisas, às diferenças
63 PORTÈRES, A., 1950.
688
África Antiga
fundamentais que aparecem na forma como a metalurgia do ferro se desenvolveu
nas duas regiões. Na esfera egípcio -núbia, a transição para a Idade do Ferro se deu
através das etapas do trabalho do cobre, do ouro e da prata, do ferro meteórico (no
período distico) e, em seguida, do ferro terrestre. Por outro lado, os centros do
trabalho primitivo do ferro na África subsaariana passaram diretamente da pedra ao
ferro, sem (ou quase) o intermediário do cobre ou do bronze, à exceção, talvez, da
Maurinia. De fato, o cobre e o bronze receberam, posteriormente, um tratamento
muito semelhante ao do ferro, ao passo que na esfera egípcio -núbia o cobre e, mais
tarde, o ferro foram trabalhados segundo métodos bastante diferentes. As datações
que puderam ser efetuadas o fornecem maiores confirmações às duas variantes
da teoria da difuo do que os índices culturais recolhidos diretamente. Assim, os
Garamantes da bia e as populões meroítas começaram, ao que parece, a se servir
de carros e provavelmente de artefatos de ferro por volta de -500, época que marca
o icio da metalurgia do ferro na rego de Nok, no norte da Nigéria. De resto, a
datão de algunstios sugere que o trabalho do ferro pode mesmo ter ocorrido na
região de Nok desde -1000.
Na verdade, a tese segundo a qual a metalurgia do ferro se teria propagado
do exterior para a África ocidental não dá a devida importância aos numerosos
problemas ligados ao processo maneira, época e lugares (não houve
necessariamente um único lugar) onde se deram os primeiros passos da transição
do material rochoso ou da terra para os metais, que, resistentes e duráveis, se
mostravam mais eficazes que a pedra como armas e se prestavam a inúmeros
outros usos. A este respeito, Diop
64
e Trigger
65
observaram com razão que
as primeiras datações relativas aos sítios da Idade do Ferro na África ocidental
e meridional deveriam lembrar -nos que não se trata de rejeitar a possibilidade
de o trabalho do ferro ter -se desenvolvido independentemente em uma ou várias
localidades ao sul do Saara”.
Com demasiada frequência se tem confundido a questão do início com
a do grau de refinamento das técnicas. E, o que é pior, os defensores da tese
segundo a qual o trabalho do ferro se teria propagado do Oriente Próximo
para a África quase sempre supuseram (erroneamente, ao que parece) que as
etapas da metalurgia reveladas no Oriente Próximo e na Europa deviam estar
obrigatoriamente presentes em toda a África.
64 DIOP, C. A. 1968, pp. 10 -38
65 TRIGGER, B. G. 1969, p. 50.
689
A África ocidental antes do século VII
O comércio pré -histórico e os primeiros Estados da
África ocidental
Os objetos descobertos em túmulos do Fezzan indicam que, entre os séculos
I e IV da Era Cristã, mercadorias romanas eram importadas para a região.
Após tomarem o lugar dos cartagineses na costa tripolitana durante a segunda
metade do século II antes da Era Cristã, os romanos ao que parece passaram a
importar, por sua vez, marfim e escravos do Sudão, tendo os Garamantes como
intermediários. As fontes literárias também se referem a expedições de caça e a
invasões no sul, e descobriram -se objetos de origem romana ao longo da “rota
dos carros” no sudoeste do Fezzan. Após o declínio de Roma, o comércio decaiu,
mas posteriormente se reativou com a reconquista bizantina, após +533 e antes
da invasão do Fezzan pelos árabes
66
. Pesquisas arqueológicas recentes mostram
claramente a importância, nos tempos pré -históricos, das relações comerciais de
longa distância com as populações do Saara e da África setentrional. O que de
modo algum justifica afirmações como a de Posnansky
67
, segundo a qual,para
descobrir as origens do comércio de longa distância na África ocidental, nossas
pesquisas devem começar nas areias do Saara”. Por mais bem intencionada que
fosse tal asserção, a ênfase está errada e pode ter consequências nefastas. Ela
tende a ignorar o fato de que um sistema interno de comércio de longa distância
existiu na África ocidental muito tempo antes do comércio transaariano e
favoreceu o desenvolvimento deste último.
Segundo o autor, as provas recolhidas testemunham a existência, a partir do
início da Idade do Ferro, de uma complexa e ampla rede de comércio de longa
distância, alimentada pelos produtos de indústrias locais (principalmente peixe
e sal), entre as populações do litoral e os agricultores do interior de um lado e
entre essas populações meridionais e as sociedades do norte, mais voltadas para
a criação, do outro. Esse comércio assentava em importantes produtos locais,
como o ferro e a pedra (para utensílios e armas), couro, sal, cereais, peixe seco,
tecidos, cerâmica, madeira trabalhada, nozes de kola e ornamentos pessoais de
pedra e de ferro.
Como o próprio Posnansky admite, em numerosas comunidades agrícolas da
África ocidental os machados de pedra polida (conhecidos em Gana sob o nome
de nyame akume) e as cerâmicas eram transportados por distâncias de centenas
66 Nota do editor do Volume: um ponto de vista oposto é apresentado nos Capítulos 17, 18 e 20 do presente
volume.
67 POSNANSKY, M. 1971, p. 111.
690
África Antiga
de quilômetros desde o Neolítico e a Idade do Ferro. Os raladores de pedra da
cultura de Kintampo, datados em torno de -1500, eram feitos de uma marga
dolomítica manifestamente transportada por grandes distâncias, uma vez que foi
encontrada tanto na planície de Acra como no norte de Gana. No Rim, perto de
Ouahigouya, os níveis da Idade do Ferro/Neolítíco são associados à existência de
manufaturas de machados, e o sítio parece ter sido um centro importante para
o fornecimento de machados a áreas desprovidas da matéria -prima necessária.
Outra prova de um comércio local de matérias -primas datando da Idade
do Ferro é fornecida pela presença de argilas estranhas à região onde foram
encontradas no material utilizado para a fabricação de vasos. E, sem dúvida,
esse comércio local revela certos aspectos do mecanismo dos principais fatos
econômicos, sociais e políticos inerentes à fundação do antigo Império de Gana.
É certo que sua importância não se limita a indicar contatos culturais em escala
regional e a demonstrar que pouquíssimas sociedades agrícolas foram totalmente
independentes.
As modalidades de desenvolvimento do comércio e do artesanato (indústrias)
na África ocidental determinaram e mantiveram rotas comerciais entre essa parte
da África e o Saara. Esse comércio interior favoreceu igualmente a formação de
povoados e cidades de maiores dimensões durante o Neolítico Recente e a Idade
do Ferro. Informações arqueológicas cada vez mais numerosas, inclusive para as
regiões florestais da África ocidental, continuam a indicar que o aparecimento
posterior dos reinos Ashanti, Iorubá e do Benin, assim como a cultura de Igbo
Ukwu, dependeram essencialmente de uma exploração muito bem -sucedida
do meio ambiente por povos primitivos que conheciam ou, em certos casos,
ignoravam o uso do ferro.
C A P Í T U L O 2 5
691
A África central
Dois problemas fundamentais se colocam para a história da África: a difusão
da metalurgia e a prodigiosa expansão das línguas bantu.
muito tempo vem se observando uma clara tendência a relacionar as duas
questões explicando -as uma pela outra. A difusão da metalurgia é vista como
consequência da expansão dos povos de língua bantu, a qual, por sua vez, teria
sido facilitada pela posse de instrumentos de ferro, que tornou possível afrontar
a floresta equatorial.
Os linguistas foram os primeiros a formular a teoria segundo a qual as
línguas bantu ter -se -iam originado nos planaltos da Nigéria e da República dos
Camarões. A partir daí, arqueólogos, historiadores e antropólogos procuraram
adequar suas descobertas a essa hipótese; no entanto, as áreas cobertas por essas
ciências não coincidem exatamente, e é pena que a palavra “bantu”, um termo
linguístico, viesse a ser usada para o conceito etnológico dos povos bantu e suas
sociedades e, daí em diante, para o conceito arqueológico da Idade do Ferro
bantu
1
.
1
Neste capítulo o termo “bantu” será usado apenas no sentido linguístico.
A África central
F. Van Noten
colaboração de D. Cohen e P. de Maret
692
África Antiga
O meio geográco
A região de que trata este capítulo é a África central, ou seja, a República
do Zaire e alguns países vizinhos: Gabão, Congo, República Centro -Africana,
Ruanda, Burundi e o norte da Zâmbia. Constitui ela uma enorme bacia com
altitude média de 500 m. Em torno dessa vasta planície interior, o solo se alteia
em patamares sucessivos para formar montanhas e elevados planaltos.
As regiões próximas ao Equador contam com abundante precipitação o ano
todo. Tanto ao norte como ao sul existem zonas com duas estações chuvosas,
que se fundem em uma mais ou menos a partir dos ou de latitude. As
temperaturas dias anuais são bastante elevadas e as variações máximas
aumentam à medida que nos distanciamos do Equador.
A bacia central é coberta por densa floresta equatorial margeada por zonas
de savana. Nas áreas com estação seca definida predomina a relva, mas ao longo
dos rios são frequentes as matas -galeria.
 . Mapa da África central com a indicação dos lugares mencionados no texto. ( Mapa fornecido
pelo autor.)
693
A África central
Idade da Pedra Recente
Na Idade da Pedra Recente, as sociedades de caçadores -coletores passam a
usar instrumentos cada vez mais especializados. Costuma -se distinguir entre
duas tradições distintas: a do complexo industrial tshitoliense e a do complexo
de indústrias microlíticas, das quais o Nachikufuense e o Wiltoniense são os
exemplos mais conhecidos.
A Idade da Pedra Recente é frequentemente colocada em oposição ao
Neolítico, quer em termos tecnológicos (instrumentos polidos, associados ou não
a cerâmica), quer em termos socio econômicos (criação de animais e agricultura,
fixação dos povos nômades e possível crescimento de cidades). Atualmente, dada
a escassez de dados socio econômicos, somos obrigados a inferir essa distinção
com base apenas em fatores tecnológicos, os quais têm -se revelado inconclusivos.
Machados polidos e cerâmica se encontram nos contextos arqueológicos da
Idade da Pedra Recente.
O Tshitoliense distingue -se claramente dos outros complexos industriais da
Idade da Pedra Recente da África central.
Quanto à sua localização geográfica, é encontrado no sul e, acima de tudo,
nas áreas a sudeste da bacia do Zaire.
O Tshitoliense parece continuar a tradição do complexo lupembiense, do qual
se diferencia sobretudo por uma tendência a reduzir o tamanho dos instrumentos
e pelo aparecimento de novas formas: pontas de flecha foliáceas e pedunculadas
retocadas por pressão, micrólitos geométricos (segmentos, trapézios). No final do
Tshitoliense também são encontrados alguns instrumentos polidos.
Quanto à sua cronologia, o Tshitoliense parece ter -se estendido
aproximadamente de -12000 a -4000, talvez até -2000 ou mesmo, localmente,
até o início da Era Cristã.
O Nachikufuense é essencialmente microlítico, tendo -se estabelecido no
norte da Zâmbia, ao que tudo indica,mais de 16 mil anos. Teve três estágios
sucessivos. O mais antigo produziu instrumentos microlíticos em combinação
com um grande número de pedras perfuradas e instrumentos de moagem. O
segundo estágio, cujo início se situa em torno de -8000, caracteriza -se pela
presença de utensílios polidos. O último estágio dessa indústria, iniciado em
torno de -2000, é caracterizado pela grande abundância de pequenos segmentos,
cerâmica e alguns objetos de ferro estes últimos sem dúvida provenientes de
trocas comerciais. A tradição nachikufuense parece ter durado até o século XIX.
evidências do Wiltoniense na Zâmbia meridional e numa grande
extensão da África do Sul. Trata -se de uma indústria puramente microlítica.
694
África Antiga
No estágio final de seu desenvolvimento, também aparecem utensílios polidos.
Essa indústria em geral é atribuída aos grupos proto san. Em Gwisho, na Zâmbia
central, as condões excepcionalmente favoveis à conservação de restos
fósseis tornaram possível reconstruir o modo de vida dessa população durante
o II milênio antes da Era Cristã.
A indústria, extremamente abundante e completa, incluía utensílios de pedra,
madeira e osso. O instrumental microlítico destinava -se principalmente aos
trabalhos em madeira e à confeão de pontas de flecha, ares e facas. O
instrumental macrolítico inclui, entre outros, machados polidos, trituradores
e s fixas. Dentre os utensílios de madeira, observam -se bastões de cavar
e pontas de flecha semelhantes às atualmente encontradas entre os San. O
instrumental ósseo inclui agulhas, furadores e pontas de flecha.
Ao que parece, as casas consistiam em choças de ramagens e gramíneas
semelhantes às dos San do deserto do Calaari. Os mortos eram enterrados in loco,
sem nenhum objeto em seus túmulos. Os corpos jaziam em várias posições. Não
se praticava nem a agricultura nem a criação de animais. Escavações revelaram
que a alimentação era comparável à dos povos atuais, consistindo basicamente
numa grande variedade de produtos vegetais colhidos de plantas selvagens,
sendo suplementada pela caça e pela pesca.
Os habitantes de Gwisho exploravam uma grande área e caçavam tanto as
espécies animais da planície como as da floresta.
Existe na África central um grande número de indústrias microlíticas
inadequadamente descritas, que por isso não podem ser classificadas na mesma
categoria das acima relacionadas. Algumas delas provavelmente não passam de
variantes locais, adaptadas a materiais ou atividades específicas.
Como já observamos, poucas evidências justificam a distinção entre a Idade
da Pedra Recente e o Neolítico. No entanto, as características tecnológicas
tradicionalmente atribuídas ao Neolítico predominam em certas regiões, como,
por exemplo, no Uele, no Ubangui e, em menor proporção, no Baixo Zaire.
Isso levou os primeiros arqueólogos da África central a distinguirem um
Neolítico Uelense, um Ubanguiense e outro Leopoldiense. Mas essas indústrias
assim chamadas são praticamente desconhecidas, salvo por seus utensílios
polidos coletados à superfície da terra ou adquiridos por compra. A cada vez
que se ampliava a extensão das pesquisas, as ideias anteriores modificavam
-se sensivelmente. Desse modo, o Uelense, conhecido por seus requintados
machados de hematita polida (fig. 25.3), pertenceria pelo menos parcialmente
à Idade do Ferro. Uma oficina de lascamento foi descoberta recentemente em
Buru (Uele). Duas datações por radiocarbono calibradas indicam que essa
695
A África central
 . Mapa da África Central com a indicação das regiões de ocupação “neolítica e da Idade do
Ferro Antiga”. (Mapa fornecido pelo autor.)
696
África Antiga
oficina – onde foram encontrados esboços de machados ao lado de fragmentos
de tubos de forja (para tiragem de ar quente), escória de ferro fundido e cerâmica
pertence à primeira metade do século XVII.
Em relação ao Ubanguiense, existe hoje um sítio escavado em Batalimo, ao
sul de Bangui, República Centro -Africana. Esse sítio produziu machadinhas
ou enxós lascadas, um machado de gume cortante parcialmente polido,
abundante indústria não -microlítica e uma cerâmica ricamente decorada: jarros
altos, de boca larga e potes e tigelas de fundo chato (fig. 25.4). Datações por
termoluminescência situam as cerâmicas em tomo de +380 ±220. Essa data
pode afigurar -se demasiado recente para alguns, mas, à falta de outros dados,
não deve ser rejeitada.
No Baixo Zaire, de Matadi a Kinshasa, encontraram -se machados de gume
mais ou menos polido, por vezes em associação com cerâmica de fundo chato.
Durante recente sondagem efetuada numa caverna dessa região, encontrou-
-se um machado polido juntamente com essa cerâmica e carvão vegetal. Uma
amostra desse material, datada por radiocarbono, deu uma idade calibrada de
-390 a -160. Sondagem feita em outra caverna, a cerca de 10 km da primeira,
também revelou um machado polido em associação com essa mesma cerâmica.
No Gabão, a estratigrafia de vários sítios, como o de Ndjole, cerca de 200 km
a leste de Libreville, revelou um nível neolítico contendo machados de gume
polido, cerâmica e lascas de quartzo.
Idade do Ferro Antiga
A existência de contatos entre os povos da Idade da Pedra, que ia chegando ao
fim, e os primeiros artesãos de peças em metal é um fato, de modo geral, assente.
Contudo não sabemos se essa mudança tecnológica acarretou transformações
profundas nas sociedades em questão.
Não dispomos, para a África central, nem de fontes históricas (como
o Périplo do Mar da Eritreia) nem de fontes antropológicas para elucidar o
período correspondente à Idade do Ferro Antiga. Nossas únicas evidências são
de natureza arqueológica.
A Idade do Ferro Antiga frequentemente é associada à cerâmica com
concavidade na base (dimple -based pottery). Essa cerâmica (fig. 25.4a), descrita
pela primeira vez em 1948, é hoje conhecida como Urewé. É encontrada em parte
do Quênia, em Uganda e na região dos lagos. Alguns exemplares descobertos
no Kasai parecem também pertencer a essa vasta área de distribuição. A maioria
697
A África central
das datas para esses tipos de cerâmica se situa entre 250 e 400. Entretanto,
pelo menos um tio, Katuruka, em Buhaya, na Tanzânia, foram obtidas
datações consideravelmente mais antigas. Infelizmente, ainda é difícil avaliar as
implicações dessa descoberta.
A cerâmica de Urewé parece bastante homogênea e por diversas vezes se
avançou a ideia de uma origem comum para as diferentes fácies reconhecidas,
diferença que se atribuiria antes a variantes locais que a estágios cronológicos
distintos. Com efeito, essas fácies nunca foram encontradas estratigraficamente
superpostas.
Desde o início, a metalurgia do ferro parece ter -se associado a determinados
traços culturais, como a manufatura de cerâmica e a constituição de aldeias com
construções revestidas de barro amassado e palha. Além disso, é de consenso
geral que já se praticavam a agricultura e a criação de animais.
A presença da cerâmica Urewé é comprovada na zona interlacustre (Quênia,
Uganda, Ruanda, Burundi, Tanzânia) e também no Zaire, na região do Kivu. Por
muito tempo, a cerâmica zambiana da Idade do Ferro Antiga (channel decorated
ware) esteve associada à cerâmica com concavidade na base. Na verdade, porém,
parece que se podem distinguir diversos tipos regionais.
J. Hiernaux e E. Maquet foram praticamente os únicos a estudar a Idade do
Ferro Antiga nessas regiões. Inicialmente publicaram (1957) uma descrição de
dois sítios no Kivu. Em Tshamfu, uma cerâmica Urewé típica vinha associada a
restos de ferro fundido e a tijolos feitos a mão. Em Bishanga, foi escavado um
forno destinado à fundição do ferro. Era construído com tijolos feitos a mão
que apresentavam com frequência um lado ligeiramente côncavo e decorado
com impressões digitais. A cerâmica de Bishanga é também do tipo Urewé.
Posteriormente (1960), esses autores descreveram vários sítios da Idade do Ferro
Antiga, descobertos em Ruanda e Burundi. A cerâmica foi classificada em três
grupos: A, B e C. Só o primeiro grupo, A, idêntico à cerâmica Urewé, parece
pertencer à Idade do Ferro Antiga. Os demais seriam mais recentes.
A cerâmica do tipo A está associada a escórias de ferro fundido, tubos de forja
e tijolos feitos a mão, às vezes decorados, como os de Kivu. Pelo menos em dois
sítios esses tijolos parecem ter pertencido a um forno destinado à fundição de
ferro. Publicaram -se duas datações: a do sítio de Ndora, +250 ±100, e a do sítio
de Cyamakusa, localidade da comuna de Ndora, prefeitura de Butare, +380 ±80.
Em Mukinanira, a cerâmica do tipo A encontrava -se logo acima e parcialmente
misturada a uma indústria lítica da Idade da Pedra Recente. Em Masangano, os
dois grupos de vestígios também se apresentavam misturados. Pode -se deduzir
daí que os fabricantes da cerâmica do tipo A trouxeram a metalurgia para essa
698
África Antiga
 . Machado polido uelense (hematita).
699
A África central
parte da África numa época em que a região ainda era habitada por caçadores-
-coletores da Idade da Pedra Recente. A coexistência de grupos de povos tão
diferentes do ponto de vista tecnológico é amplamente atestada. Atualmente, os
Twa ainda levam uma vida de caçadores na floresta equatorial dessa região.
Escavações recentes realizadas em locais que a tradição oral refere como
sítios dos túmulos reais tutsi revelaram ocasionalmente estruturas da Idade
do Ferro Antiga. Por exemplo, em Rurembo, um buraco cavado em laterita
continha carvão vegetal datado de -230 ±50. Acima do buraco havia um vaso
do tipo A. Um buraco similar em Rambura proporcionou escórias de ferro
fundido, fragmentos de tubos de forja e cacos de cerâmica semelhante à Urewé,
algumas pedras lascadas da Idade da Pedra Recente e carvão vegetal datado de
+295 ±60. Esse último resultado corresponde exatamente aos anteriormente
obtidos por J. Hiernaux.
Os artesãos dessa indústria teriam chegado ao vale do Kalambo por volta
de +300 e aí permanecido durante seiscentos ou mesmo mil anos. A população,
aparentemente muito densa, levava uma vida pacífica, em aldeias destituídas de
paliçadas ou trincheiras. A área de ocupação, cujo plano não se conhece, cobria
cerca de 4 a 17 ha.
Alguns vestígios de estruturas de habitão ou armazenagem foram
preservados. Uma série de oito fossas de paredes retas e paralelas, com cerca de
1 m de diâmetro e 2 m de profundidade, continha potes e cacos de cerâmica e
fragmentos de moldes, objetos de ferro e escórias de ferro fundido. Quatro dessas
fossas apresentavam -se rodeadas por uma trincheira circular, possivelmente
restos de uma superestrutura.
As evidências de atividades agrícolas são apenas indiretas e não há vestígios
seguros da criação de animais.
Inúmeras peças de escórias de ferro, especialmente um grande bloco de restos
de ferro fundido na base de um forno, e diversos fragmentos de tubos de forja,
mostram que a fundição do ferro era praticada, se não nos sítios de habitação,
pelo menos em seus arredores.
Entre os objetos de ferro encontrados nas fossas, podem -se mencionar
diversas pontas de lança e de flecha, pontas de faca, braceletes, adornos de
tornozelo, anéis para os dedos das mãos ou dos pés. Também havia braceletes,
adornos de tornozelo e outros adereços feitos de cobre.
O uso da pedra continuou, como evidenciam numerosas s e maletas,
pilões, martelos (inclusive um martelo de ferreiro), uma bigorna e diversos
artefatos rudimentares empregados para raspar, cortar ou polir.
O barro branco e o ocre vermelho eram usados como pigmentos.
700
África Antiga
Os lábios da cerâmica, na maioria dos casos, são arredondados e abertos,
mais espessos na extremidade. Todas as bases são arredondadas, exceto em
dois potes que têm uma concavidade feita por pressão dos dedos. A decoração,
aplicada antes do cozimento, é vista quase sempre no ombro ou acima dele. Os
motivos consistem em faixas de caneluras horizontais e paralelas interrompidas
por motivos em espinha de peixe e espirais. Uma rede de incisões oblíquas e
cruzadas, de faixas de impressões e de pontuações triangulares forma às vezes
um padrão de falso relevo, que recobre o pescoço e o ombro.
Exemplos de cerâmica semelhante à de Kalambo Falls foram encontrados
em onze sítios da província setentrional da Zâmbia, distribuídos por uma área
de aproximadamente 97000 km2.
Com exceção das necrópoles de Sanga e Katoto (cuja importância justifica
conside -las em separado, mais adiante), ainda não se descobriu nenhum
sítio da Idade do Ferro Antiga no Shaba. No entanto o conjunto dos vestígios
desenterrados nesses dois cemitérios parece o desenvolvido que seria de
admirar se não tivesse sido precedido por uma idade do ferro ainda mais antiga.
Além disso, na área cuprífera do nordeste da Zâmbia, ao longo da fronteira com
o Zaire, exploraram -se diversos sítios de habitação ao ar livre, alguns dos quais
parecem remontar ao século IV da Era Cristã.
Por falta de escavações extensas e de datações absolutas, os poucos dados de
que dispomos são em grande parte conjeturais. Quatro potes, dois deles com
concavidade na base, encontrados perto de Tshikapa, parecem pertencer ao tipo
Urewé; por outro lado, muitos vasos e fragmentos de cerâmica encontrados
numa caverna perto de Mbuji -Mayi lembram muito a cerâmica da indústria
de Kalambo Falls.
Além da Zâmbia e da região interlacustre, o Baixo Zaire é a única área onde
se descobriram vestígios que, ao que tudo indica, podem ser atribuídos à Idade
do Ferro Antiga. Com base nas evidências coletadas nas cavernas, foi possível
distinguir provisoriamente seis tipos de cerâmica e uns poucos objetos de ferro.
Um estudo posterior revelou a existência de vários grupos de cerâmica, alguns
dos quais amplamente difundidos, e nenhum aparentado com a cerâmica Urewé.
Como as escavações não foram extensas, é impossível tentar estabelecer uma
cronologia dessas cerâmicas ou dos objetos de metal.
Em Kinshasa, junto às nascentes do Funa, um carvão vegetal acompanhado
de um pequeno fragmento de cerâmica atípica foi datado de -270 ±90. Embora
essa data pertença inegavelmente à Idade do Ferro Antiga, convém considerá -la
com muita reserva, que a associação do carvão datado com o fragmento de
cerâmica não está mais assentada, do ponto de vista formal, do que a associação
701
A África central
de outra data relativa a Kinshasa a das ilhas Mimosas. Nessas ilhas fluviais,
amostras de carvão vegetal associado a cerâmica foram datadas de +410 ±100.
Infelizmente, os fragmentos assim datados nunca foram publicados.
Das ilhas Mimosas, no entanto, provém uma cerâmica idêntica à encontrada
nas camadas superiores da ponta de Gombe (antiga ponta de Kalina), o sítio
epônimo do Kaliniense, escavado por J. Colette em 1925 e 1927. Reescavado em
1973 e 1974, esse sítio revelou importante nível de ocupação da Idade do Ferro,
cujos vestígios foram encontrados em todo o promontório. No topo da maioria
dos cortes encontraram -se alinhamentos de carvão vegetal, cerâmica, pedras e
terra queimada, alguns fragmentos de escória de ferro fundido e pedaços de mós
num solo de habitação com várias estruturas arqueológicas, grandes fogueiras
e sobretudo fossas com profundidade de até 2 m. Nessas fossas, encontraram-
-se alguns potes mais ou menos inteiros; dois deles encerravam minúsculos
fragmentos de um objeto de ferro. É possível, portanto, tratar -se de um sítio
de habitação pertencente a um período antigo da Idade do Ferro. Em breve
teremos mais informações a respeito, graças às datações por radiocarbono que
hoje vêm se processando.
Na rego de Buar, na Reblica Centro -Africana, existem numerosos
túmulos de variado tamanho, encimados por pilhas de pedras de até 3 m de
altura. As séries de compartimentos subterrâneos podem estar a eles associadas.
Ao que parece, esses cairns eram monumentos próprios de locais de sepultamento.
Contudo, não se encontraram ossos
2
. Por outro lado, descobriu -se uma série de
objetos de ferro. Dispomos atualmente de seis datações por radiocarbono. Duas
delas remontam ao VI e ao V milênio antes da Era Cristã, enquanto as outras
quatro variam entre o século VII antes da Era Cristã e o século I depois da Era
Cristã. A primeira data parece corresponder à construção dos monumentos, e a
segunda, à sua reutilização na Idade do Ferro.
Os cemitérios de Sanga e Katoto estão localizados no alto vale do Zaire,
onde se acham os túmulos de Upemba, e são os sítios da Idade do Ferro Antiga
mais bem conhecidos em toda a República do Zaire.
Situado às margens do lago Kisale, perto de Kinkondja, o cemitério de Sanga,
descoberto muito tempo, foi escavado sistematicamente em 1957 e 1958.
Novas escavações foram empreendidas em 1974, e, embora se tenha exumado
um total de 175 túmulos, grande parte do cemitério ainda está por ser explorada.
2 Salvo em condições muito raras, a acidez do solo da África central destrói os ossos em sítios ao ar livre
com grande rapidez.
702
África Antiga
Com base nas escavações de 1958, puderam -se reconhecer três grupos de
cerâmica, entre os quais parecia possível estabelecer uma cronologia. O grupo
kisaliense (o mais abundante) afigurava -se como o mais antigo, seguido pelo
grupo Mulongo (nome de uma localidade a nordeste de Sanga) e finalmente
por uma cerâmica de engobe vermelho (red slip ware). As escavações de 1958
revelaram que esses três grupos foram contemporâneos, pelo menos em parte.
À falta de uma cronologia interna, duas datações por radiocarbono permitem-
-nos estimar a idade do cemitério: +710 ±120 e +880 ±200.
A data mais antiga foi obtida de um túmulo onde o corpo se achava em
posição bastante incomum e onde havia um pote atípico, embora kisaliense.
A outra data prom de um túmulo onde não se encontrou nenhum,
objeto característico de qualquer das três culturas
3
. Assim, não sabemos
exatamente o que está datado. Além disso, a imprecisão dessas datas prejudica
consideravelmente o seu valor. Tudo o que podemos afirmar com segurança, no
âmbito de aproximadamente duzentos anos, é que alguns dos túmulos de Sanga
remontam a um período situado entre os séculos VII e IX da Era Cristã.
As escavações dão -nos uma ideia do cemitério em si, por meio da qual
podemos vislumbrar o que seria a antiga sociedade de Sanga. Embora os três
grupos de cerâmica sejam contemporâneos, não pertenceram, ao que parece,
à mesma população. Os túmulos que encerram a cerâmica Mulongo ou a de
engobe vermelho são praticamente os únicos a apresentar pequenas cruzes de
cobre (espécie de moeda), as quais, quase se pode dizer, inexistem nas sepulturas
kisalienses. Por outro lado, todos os túmulos são igualmente ricos em objetos
de ferro e de cobre muito bem trabalhados. Pode -se supor que a minoria de
pessoas enterradas com cruzetas diferia do resto da população kisaliense, e era
responsável pelo provimento de cobre, cujos depósitos mais próximos se situam
a cerca de 300 km mais ao sul.
Os ritos fúnebres parecem ter sido bastante complexos. A maior parte dos
túmulos aponta para o norte ou nordeste caso dos Mulongo –, os red
slip apontam para o sul. O morto jazia geralmente em decúbito dorsal e era
acompanhado de objetos destinados, como se acreditava, a facilitar -lhe a vida no
outro mundo. A cerâmica não ostenta sinais de uso, e a forte semelhança entre
certos vasos num dado túmulo parece indicar que foram confeccionados com
finalidade exclusivamente funerária, e provavelmente deviam conter alimentos
e bebidas. O cadáver era adornado com joias de cobre, ferro e marfim. Ao que
3 Além disso, parece que no laboratório os ossos de um túmulo do grupo Mulongo foram reunidos à
amostra.
703
A África central
 . Objetos encontrados no sítio de Batalimo, no sul de Bangui (República Centro -Africana):
2.a. Pote do tipo Urewé (Fonte: M. D. Leakey, W. E. Owen, L. S. B. Leakey. 1948. pr. IV); 2.b. pote de
Kalambo; 2.c, 2.d. Fragmentos de cerâmica de Kangonga, sítio Chondwe (Fonte: D. W. Phillipson. 1968 -a.
g. 4); 2.e, 2.f. Fragmentos encontrados em Ka pwirimbwe; 2.g. Fragmentos de cerâmica de Kalundu (Fonte:
B. M. Fagan, 1967.g. 122); 2.h, 2.i. Fragmentos de cerâmica de Dambwa.
704
África Antiga
parece, crianças prematuras também eram enterradas. Observa -se uma clara
tendência a fazer corresponder o tamanho dos vasos à idade do morto. Em certos
casos, o morto trazia na mão um feixe de cruzetas.
A imagem que se tem de Sanga é a de uma civilizão que dava mais
importância à caça e à pesca do que à agricultura. Entretanto, encontraram -se
nos túmulos enxadas e mós fixas, bem como restos de cabras e aves.
Nenhum túmulo é particularmente rico de modo a indicar que tivesse
pertencido a um chefe importante, mas o grau de refinamento do mobiliário
funerário mostra a grande habilidade dos artesãos de Sanga, que trabalhavam o
osso, a pedra e a madeira, trefilavam o ferro e o cobre e praticavam a fundição
em molde aberto. Sua cerâmica afigura -se bastante original.
Como os ossos ainda não foram analisados, o único dado antropológico
disponível decorre de um estudo odontológico de uma parte dos restos humanos.
Tal estudo revela notadamente a grande frequência de dentes mutilados. Se
soubéssemos ao certo a extensão total do cemitério, poderíamos ter ideia do
tamanho da população.
A civilização de Sanga parece ter constituído um fenômeno admirável, porém
isolado, considerados os limites atuais de nossos conhecimentos. É provável que
a totalidade das descobertas abranja um período mais longo do que o sugerido
pelas duas datações por radiocarbono. Novas escavações foram empreendidas em
1974, tendo como principal objetivo saber o tempo de utilização do cemitério e
estabelecer sua cronologia interna, delimitar sua área e tentar encontrar o sítio de
habitação. Trinta novos túmulos foram explorados, sendo provavel que com eles
possamos completar a cronologia e ter uma ideia do tamanho do cemitério. Em
contrapartida, devido à expansão das aldeias modernas, não pôde ser encontrado
o sítio de habitação.
No entanto, em Katongo, a cerca de 10 krn de Sanga, as escavações parecem
indicar um nível de habitação no sopé de uma colina a menos de 1 km de um
cemitério; além disso, revelaram a existência de grupos de cerâmica reconhecidos
em Sanga.
Situado à margem direita do Lualaba, perto de Bukama, a cerca de 130 km a
montante do Sanga, o cemitério de Katoto foi parcialmente escavado em 1959,
ocasião em que se encontraram 47 novos túmulos.
Obtiveram -se três diferentes conjuntos arqueológicos. Primeiro os túmulos;
depois as fossas contendo material distinto do encontrado nos túmulos;
finalmente, numa camada superior, uma cerâmica distinta da dos túmulos e
fossas. Em relação ao cemitério de Sanga, o de Katoto distingue -se, antes de
mais nada, por apresentar túmulos para sepultamentos múltiplos até sete
705
A África central
 . Objetos encontrados em Sanga: 3.a. Vaso com decoração antropomórca (vista de cima e de
lado); 3.b. Bracelete de marm; 3.c. Colar de cobre; 3.d. Apito de ferro; 3.e. Abaco de terracota; 3.f. Pingente
de pedra; 3.g. Pingente de marm; 3.h. Fragmento de meio colar de marm; 3.i., 3.j., 3.k. Tipos de vasos.
(Fonte: J. Hiernaux, E. de Longrée e J. de Buyst. 1971. Museu de Ternuren.)
706
África Antiga
pessoas. Em alguns deles foram encontrados objetos tais como um martelo de
ferreiro, bigornas, amontoados de pontas de ferro e um machado de guerra.
Trata -se provavelmente de túmulos de personagens importantes, com certeza
de ferreiros, em cuja honra foram sacrificadas duas mulheres e quatro crianças,
num caso, e duas mulheres e uma criança, em outro.
O mobiliário funerário dos túmulos é tão rico quanto o de Sanga, sugerindo
uma sociedade próspera, com alto nível de desenvolvimento técnico. A presença
de numerosas enxadas e mós ressalta a importância da agricultura, embora a caça
e a pesca também devessem ser praticadas.
Em Katoto, estão completamente ausentes as cruzetas de cobre, a cerâmica
Mulongo e a de engobe vermelho. No entanto, encontraram -se três tigelas
kisalienses, único testemunho de algum contato entre Sanga e Katoto.
A presença de contas de vidro e ornamentos de conchas vindos tanto do
oceano Atlântico como do Índico revela a existência de relações comerciais em
distâncias bastante ampliadas.
A cerâmica de Katoto é tão original quanto a de Sanga e parece menos
estereotipada. Alguns motivos decorativos lembram a cerâmica Urewé. Mas,
como esta não foi encontrada na região do Shaba, não se pode afirmar que a
cerâmica de Katoto seja um desenvolvimento do tipo Urewé. Talvez se trate
de um simples caso de convergência. De fato, a maioria dos motivos comuns
a ambas, como a espiral, os ornamentos entrelaçados, as faixas em espinha de
peixe e os círculos concêntricos, faz parte do repertório mundial.
As fossas são mais recentes do que os túmulos e por vezes lhes causam abalos.
Uma delas foi datada por radiocarbono: +1190 ±60. Entre os raros fragmentos
de cerâmica encontrados nessas fossas, alguns apresentam uma pequena
concavidade na base, característica que também sugere a cerâmica Urewé.
O cemirio de Katoto completa o quadro que se delineia a partir das
escavações de Sanga. Não deixa, porém, de causar espanto o fato de dois grandes
aldeamentos tão próximos um do outro e aparentemente contemporâneos terem
mantido tão poucas relações entre si.
A despeito da abundância de objetos tumulares, não sabemos grande coisa
sobre o povo sepultado nessas necrópoles. Ignoramos quem era, de onde veio ou
como morreu e mal podemos imaginar como vivia. O tamanho dos cemitérios
sugere que, próximo ao fim do I milênio da Era Cristã, as margens do Alto
Lualaba foram palco de grandes concentrações humanas, que deram origem a
brilhantes civilizações. As escavações em andamento em diversos novos sítios
arqueológicos deverão proporcionar informações mais detalhadas sobre essas
civilizações.
707
A África central
Origem dos Bantu
Como dissemos, a palavra bantu” originalmente designava um grupo de
línguas. Aos poucos, porém, veio a adquirir uma conotação etnográfica e mesmo
antropológica. De fato, foi a classificação linguística que serviu de base para os
pesquisadores de outras disciplinas.
Não dispomos de testemunhos escritos, e a arqueologia, por si só, não nos
permite estabelecer correlações diretas entre os vestígios existentes da Idade do
Ferro e a noção linguística da palavra “bantu”.
As escavações revelam cerâmicas, objetos de ferro e cobre, restos de cozinha
e uns poucos esqueletos. Mas, assim como não podemos afirmar que um pote
é mais especificamente indo -europeu do que outro, é igualmente impossível
identificar um vaso como sendo “bantu”.
Até agora, coube à linguística fornecer a maior parte dos pormenores acerca
da origem e expansão dos “Bantu”. Segundo alguns linguistas dando sequência
principalmente aos trabalhos de Greenberg e de Guthrie –, as línguas bantu,
ora difundidas por quase metade da África, originaram -se na região do Médio
Benue, na fronteira entre a Nigéria e a República dos Camarões.
Várias vezes se tentou relacionar o sucesso dos grupos bantu” ao seu
conhecimento do trabalho do ferro. No entanto, comparando -se os termos
relativos a metalurgia nas línguas bantu, observa -se uma grande diferença no
vocabulário básico referente aos trabalhos de forja. Algumas reconstruções,
porém, sugerem o uso do ferro no estágio protobantu por exemplo, as expressões
denotativas de “forjar”,martelo” e “fole”. Existiriam elas na língua bantu antes
de sua divisão, ou teriam entrado de empréstimo em algum estágio desconhecido
do processo de ramificação? Não é impossível que tais palavras, tão amplamente
atestadas, resultem de uma mudança de sentido na passagem do protobantu
para as línguas atuais. Assim, a palavra designativa de “forjar” seria apenas uma
especialização a partir de malhar”. Finalmente, outros termos de metalurgia
parecem ter a mesma origem tanto nas línguas bantu como nas não -bantu,
indicando tratar -se, em ambos os casos, de termos tomados de empréstimo.
Quando se pensa quão importante era a habilidade de trabalhar os metais nas
sociedades tradicionais da África, torna -se difícil explicar por que se os “Bantu”
trabalharam o ferro antes de sua expansão, o encontramos nenhum vestígio
linguístico que evidencie isso.
O estudo de trabalhos de diferentes etnólogos demonstra que, embora se
possam distinguir algumas áreas culturais no mundo bantu”, não é possível
708
África Antiga
estabelecer um conjunto de características comuns aos “Bantu” que ao mesmo
tempo os diferenciem de outros povos africanos.
Enfim, poucas pesquisas foram realizadas em antropologia física referentes
aos “Bantu”. Um artigo de J. Hiernaux (1968) é o único a apresentar alguns
fatos. O autor destaca a proximidade biológica das populações de fala bantu,
mas suas conclusões são tiradas com base nas evidências dos povos atuais. Tão
ínfimo é o número de trabalhos realizados nessa área da paleontologia humana
que fica difícil distinguir um esqueleto bantu” atual, que esteja completo, de
um de outro grupo africano ou mesmo europeu. Que dizer então dos esqueletos
danificados ou fragmentários que, frequentemente, é tudo o que a arqueologia
coloca à nossa disposição!
Os únicos remanescentes de fósseis humanos devidamente estudados provêm
de Ishango, no Parque dos Virunga, no Zaire. Infelizmente, o se pôde determinar
com precisão a idade desses restos nem tampouco definir seu tipo físico.
Natureza das sociedades na Idade do Ferro Antiga
Pouco se sabe sobre o modo de vida das populações do início da Idade do
Ferro. Os indícios existentes variam segundo a extensão das pesquisas realizadas:
os sítios da Zâmbia e os cemitérios de Sanga e Katoto, no Shaba, forneceram
os dados mais concretos.
São raros os sítios de habitação na África central. Os únicos conhecidos são
os de Gombe, Kalambo Falls e, talvez, Katongo.
O único indício de atividade agrícola no início da Idade do Ferro são as
enxadas de ferro, praticamente idênticas às modernas. Os buracos cavados no
solo foram considerados como silos subterrâneos, e as pequenas construções de
barro amassado e palha, como celeiros. O fato de haver numerosos restos de mós
é menos convincente, visto que as sociedades que viviam da caça e da coleta de
alimentos também possuíam implementos de moagem.
Como no caso dos vegetais, os restos de animais domésticos da Idade do
Ferro Antiga são muito raros e difíceis de identificar. Não temos nenhuma
prova concreta para a África central, salvo os restos de ossos -canhão de cabras
em alguns túmulos de Sanga.
A presença da mosca tsé -tsé em certas regiões constitui sério obstáculo à
criação de animais. Considerando que as áreas infestadas pelo inseto devem ter
variado no decorrer do tempo, torna -se difícil delimitar, para épocas tão remotas,
as regiões onde a criação de animais era praticável.
709
A África central
A caça e a pesca ainda eram as principais fontes de alimento.
As escavações revelaram pontas de flecha e de lança e restos do que devem
ter sido cães de caça. Usavam -se também, provavelmente, armadilhas e redes.
A importância da pesca é atestada pelos anzóis encontrados nos túmulos
de Sanga e Katoto. Os braseiros trifólios de Sanga são muito semelhantes aos
usados pelos barqueiros da região equatorial do Zaire em suas canoas.
Um certo número de objetos encontrados durante as escavações denota a
existência de amplas redes de comércio na Idade do Ferro Antiga. O comércio
parece ter -se limitado sobretudo às áreas próximas aos grandes rios, ou seja, o
Zaire e o Zambeze. Os sítios localizados longe dos rios ou da região dos lagos
forneceram muito poucos objetos importados.
Cabe distinguir aqui dois tipos de circuitos comerciais: o comércio regional,
que lidava sobretudo com metais, cerâmicas, cestos, peixes secos e sal, e o corcio
a longa distância, que operava com conchas (cauri e conuses), contas de vidro e
metais como o cobre. No Zaire, em Sanga e em Katoto, todas as conchas e contas
procediam da costa leste, com exceção de um tipo de concha de Katoto vinda do
Atlântico, distante cerca de 1400 km em linha reta. Cruzetas de cobre, usadas como
espécie de moeda, foram encontradas em regiões bem afastadas das áreas cupríferas.
Apesar das lacunas em nossos conhecimentos, parece provável que a economia
dos povos da Idade do Ferro Antiga pouco se diferenciava da economia das
sociedades tradicionais de hoje. Baseava -se na agricultura e na crião de animais, mas
provavelmente ainda dependesse, em grande parte, da caça, da pesca e dos alimentos
silvestres. Do ponto de vista ecomico, eram sociedades quase auto -suficientes.
Mesmo os mais antigos restos de metalurgia descobertos em escavações
não diferem fundamentalmente dos das sociedades descritas pelos etnógrafos.
Mas existem, numa mesma região, variações contemporâneas nas técnicas
e no tipo de objetos produzidos. Portanto, as diferenças quanto aos objetos
metálicos e utensílios de forja não são necessariamente cronológicas, mas podem
perfeitamente ser culturais.
Fornos de tijolos para a fundição de ferro foram encontrados em associação
com a cerâmica com concavidade em Kivu, Ruanda, Burundi e Buhaya, no
nordeste da Tanzânia. Note -se que na única descrição da fundição do ferro em
Ruanda, feita por Bourgeois (1957), um círculo de tijolos cozidos é empregado
na construção de um forno muito semelhante aos restos encontrados por
Hiernaux e Maquet.
Até aqui o uso do cobre sempre apareceu em associação com o do ferro. O
cobre era extraído no Shaba, no norte da Zâmbia, e provavelmente no Baixo
Zaire. Como mostram os objetos encontrados em Sanga e Katoto, o trabalho
710
África Antiga
do cobre atingira um alto grau de requinte. Também o chumbo parece ter
sido usado nesse período. Os Kongo continuavam a dedicar -se à extração do
chumbo no começo deste século.
Os restos de cerâmica não constituem um fóssil -guia da Idade do Ferro
porque, como vimos, a cerâmica também é encontrada no contexto da Idade
da Pedra Recente e do Neolítico. De modo geral, é impossível distinguir a
cerâmica da Idade do Ferro da cerâmica dos períodos anteriores. Na região
interlacustre e na Zâmbia, porém, existem certos tipos de cerâmica típicos
da Idade do Ferro, como os de Urewé, Kalambo, Chondwe, Kapwirimbwe,
Kalundu e Dambwa.
Os vasos eram modelados amassando -se e estirando -se a argila em faixas
ou roletes frequentemente arranjados em espiral. Tão grande é a variedade de
formas e decorações, que aqui nos limitamos apenas às mais características.
Até onde a arqueologia nos permite julgar, as sociedades da Idade do Ferro
Antiga não eram essencialmente diferentes das de hoje, devendo inclusive
apresentar o mesmo tipo de diversidade.
As técnicas agrícolas então praticadas não favoreciam os grandes aldeamentos
e acarretavam certa mobilidade das populações.
Os cemitérios de Sanga e Katoto constituem exceção, pois devem ter
resultado ou de uma ocupão muito longa ou de uma grande concentrão
humana às margens do Lualaba. A riqueza do mobiliário funerário de algumas
sepulturas, especialmente em Katoto, pode ser indício de desigualdades sociais.
A abundância e o acabamento dos objetos de ferro, cobre, pedra, madeira,
osso e cerâmica refletem não apenas a habilidade dos artesãos, mas também,
provavelmente, certo grau de especialização.
Todos os túmulos descobertos evidenciam elaboradas práticas funerárias. Os
mortos usavam numerosos ornamentos corporais, como braceletes, anéis, colares,
brincos, adornos de contas e conchas. Os cauris, os conus e as contas de vidro
ou de pedra podem ter servido, entre outras coisas, como moeda, a exemplo das
cruzetas. Por fim, a mais antiga escultura em madeira da África central vem de
Angola e foi datada de +750.
Conclusão
Não poucas vezes sublinhei o perigo de se utilizar descobertas provisórias
de uma ciência para apoiar as conclusões de outra. Correlações precipitadas
não raro acabam resultando em teorias gerais difíceis de sustentar na rigorosa
711
A África central
estrutura das respectivas disciplinas. o obstante, qualquer tentativa de
descrever a natureza das sociedades da Idade do Ferro Antiga ou de determinar
a origem dos povos de língua bantu envolve o cotejo de dados arqueológicos e
não -arqueológicos.
Algumas teorias, como a de Guthrie, apresentam uma interpretação geral
extremamente elaborada. A teoria histórica e geográfica formulada por Guthrie
influenciou claramente, talvez de modo consciente, inúmeros arqueólogos e
antropólogos.
A interpretão antropogico -arqueológico -lingstica, que associava
a ex pano das línguas bantu à difusão da metalurgia do ferro, condizia
perfeitamente com a ideia da evolução a partir do Crescente Fértil, negando à
África a possibilidade de invenções autônomas.
Os progressos científicos mais recentes permitem reconsiderar essas teorias.
Os linguistas questionam os métodos e os resultados da glotocronologia. Novas
datações trazem novos esclarecimentos sobre a origem da metalurgia na África
central. De fato, vestígios da metalurgia do ferro no sítio de Katuruka foram
datados de aproximadamente -500/-400
4
.
No grau de ignorância em que nos encontramos, levando em conta esses
novos dados, torna -se claro que os problemas relacionados com a difusão do
ferro e a origem das línguas bantu são mais complexos do que se pensava e não
podem ser reduzidos a um esquema simplista, cheio de contradições.
Por conseguinte, parece inútil continuar a construir novas hipóteses sobre as
migrações e sobre as origens da metalurgia sempre que uma escavação resulte em
novas datações. Podemos, no entanto, tentar relacionar alguns fatos relevantes.
No tocante à origem do trabalho do ferro, as novas datas propostas para
Katuruka parecem implicar uma conexão com as datas, quase contemporâneas,
estabelecidas para Méroe. É possível, pois, conceber uma expansão da metalurgia
em direção ao sul a partir de Méroe, mas nesse caso tal expansão teria ocorrido
com demasiada rapidez. No momento,o se pode, portanto, excluir a
possibilidade de uma outra origem, que poderia ser até mesmo local.
É difícil entender a persistência da ideia de uma ligação indissolúvel entre
a difusão da metalurgia e a expansão dos “Bantu”, embora ainda não esteja
provado que os dois fenômenos sejam totalmente independentes. Seria lícito
4 As datas aqui mencionadas foram calculadas em anos radiocarbono, o que não corresponde exatamente
aos anos do calendário. As datas anteriores à Era Cristã devem ser proporcionalmente aumentadas, o
que varia segundo o período considerado.
712
África Antiga
supor que os “Bantu ignoravam o uso do ferro no começo de suas peregrinações,
vindo a descobri -lo no curso de sua expansão?
Como o leitor terá notado, nossas informações sobre a Idade do Ferro Antiga
na África central revestem valor desigual e são por demais fragmentárias; as
primeiras pesquisas foram conduzidas no intuito de construir teorias, que
vergam agora sob o peso de novos dados. Um imenso trabalho mais extenso,
mais sistemático e mais bem coordenado – se faz necessário antes que possamos
chegar a uma explicação convincente sobre os eventos desse período crucial da
história da África central.
C A P Í T U L O 2 6
713
A África meridional: caçadores e coletores
De acordo com pesquisas recentemente realizadas, os povos que conheciam
o uso do ferro deslocaram -se para o sul do Limpopo o mais tardar no século
IV ou V da Era Cristã
1
. Embora não se tenham publicado ainda dados mais
detalhados, parece claro que na Idade do Ferro os habitantes do Transvaal e da
Suazilândia eram agricultores e pastores e fabricavam uma cerâmica semelhante
à do Zimbábue, Zâmbia e Malavi da mesma época aproximadamente
2
. Não se
sabe se a expansão aparentemente rápida dos povos da Idade do Ferro continuou
no mesmo ritmo em direção ao sul, porém as datas mais antigas referentes à
metalurgia em Natal são um tanto posteriores, girando em torno de -1050
3
.
Nota do Comitê Cientíco Internacional
O Comitê Científico Internacional teria preferido que este capítulo, a exemplo dos demais, fosse desen-
volvido segundo o critério cronológico estritamente fixado para o volume II. Por isso solicitou ao editor
do volume para esclarecer esse ponto ao autor. Este, porém, considerou impossível fazer qualquer alteração
radical em seu texto. Assim sendo, o Comitê o está publicando na forma definida após discussão com o autor.
Não obstante, mantém sérias reservas quanto ao método empregado, particularmente no primeiro parágrafo,
devido à confusão que dele resulta para o leitor, a quem são apresentadas a um tempo informações sobre
os períodos paleolítico e contemporâneo.
1 BEAUMONT, P. B. & VOGEL, J. C. 1972. pp. 66 -89; MASON, R. J. 1973. p. 324; KLAPWIJK, M.
1974. pp. 19 -23.
2 Ver capítulo 27 deste volume.
3 DAVIES, O. 1971. pp. 165 -78.
A África meridional:
caçadores e coletores
J. E. Parkington
714
África Antiga
Também não é possível afirmar ainda em que época os grupos conhecedores do
uso do ferro atingiram os limites mais meridionais de sua área de distribuição,
nas proximidades do rio Fish, no distrito oriental do Cabo. A despeito dessas
incertezas, que seguramente deverão ser objeto de novos estudos, sabe -se que as
populações da Idade do Ferro desbarataram e deslocaram grupos indígenas de
caçadores -coletores que praticamente ignoravam a metalurgia, a criação de gado
e a domesticação das plantas. Somente nas áreas inadequadas à cultura mista,
como as escarpas acidentadas da cadeia do Drakensberg, é que os caçadores
conseguiram sobreviver à expansão da Idade do Ferro Antiga. No entanto,
mesmo esses refúgios se revelarão ineficazes para defendê -los contra as privações
do seu dia -a -dia, na segunda metade do último milênio.
Uma segunda – e, sob muitos aspectos, mais devastadora expansão
populacional começou no Cabo em meados do século XVI. Os primeiros
contatos haviam sido feitos pelos viajantes portugueses no final do século XV e
se intensificaram com a decisão da Companhia Holandesa das Índias Orientais
de estabelecer um posto de reabastecimento em Table Bay em 1652. Decorridos
sessenta anos, a maioria dos habitantes do Cabo, num raio de 100 km desse
posto, havia abandonado seu modo de vida tradicional e emigrado, vagando
como servos pela próspera colônia, ou sucumbido às doenças introduzidas pelos
colonizadores
4
. Antes do final do século XVII, o posto de reabastecimento tornara-
-se uma colônia, e os colonizadores estiveram envolvidos em pelo menos duas
guerras prolongadas contra grupos indígenas por questões ligadas à propriedade
da terra. A princípio as populações autóctones eram designadas sob um único
termo, ottentoo, ou hotentotes”, mas gradualmente a distinção entre pastores
(hotentotes de muitos dos quais se conheciam os nomes das tribos) e caçadores
(bosquímanos, ou bushmen, do holandês bosjesman, também conhecidos como
hotentotes sônqua) passou a ser reconhecida e usada. Obviamente, esses grupos
guardavam estreitos laços de parentesco, porquanto falavam línguas semelhantes,
partilhavam grande parte da tecnologia de subsistência e da cultura material, e
pouco diferiam fisicamente uns dos outros. Como, nesses aspectos, se destacassem
claramente dos demais grupos da população indígena agricultores do norte
e do leste que conheciam o uso do ferro –, foram, de modo geral, identificados
como constituindo elementos étnicos distintos, a que hoje se chamaria Khoi-
-Khoi, no caso dos pastores, e San, em se tratando dos caçadores, nomes cuja
frequente justaposição deu origem ao termo Khoisan
5
.
4 ELPICK, R. H. 1972; MARKS, S. 1972. pp. 55 -80.
5 SCHAPERA, I. 1930.
715
A África meridional: caçadores e coletores
Parece impossível, no presente caso, permanecer dentro dos limites
cronológicos estabelecidos para este volume. O autor procurou descrever os
aspectos duradouros e relativamente estáveis de um determinado modo de vida,
deixando aos autores dos outros volumes referentes às mesmas regiões a tarefa
de descrever as mudanças ocorridas ao longo dos séculos na vida desses grupos
em decorrência do contato com o mundo exterior e ainda de chamar a atenção
para o papel desempenhado por esses grupos na história geral da África austral.
Desse modo os riscos de sobreposições serão minimizados.
Os Khoisan
Este capítulo fará uma exposição do que se conhece sobre o modo de vida
dos caçadores e pastores prensados entre os agricultores da Idade do Ferro e
os colonizadores europeus das regiões meridionais da África austral. Como os
colonizadores conheciam a escrita, e os agricultores da Idade do Ferro não, a
documentação sobre a vida dos San e dos Khoi -Khoi tradicionais e sobre as
relações dos Khoisan com outros grupos está muito mais voltada para as regiões
ocidentais do Cabo. Em certos aspectos esse viés é acentuado pela riqueza
arqueológica da zona montanhosa do Cabo em comparação com muitas outras
partes da África austral. Mas as descrições apresentadas, embora quase sempre
concernentes ao sul e ao oeste, poderiam trazer esclarecimentos sobre o modo
de vida dos Khoi -Khoi e dos San na região como um todo, ainda que ficassem
faltando muitas particularidades locais.
Por várias razões, são numerosos os testemunhos sobre o modo de vida dos
grupos khoisan. Pelo fato de terem sobrevivido até data bem recente, existem
inúmeras evidências arqueológicas sob a forma de restos de objetos e resíduos
de origem animal e vegetal; por terem estabelecido contato com sociedades que
conheciam a escrita, existe um conjunto de documentos históricos sobre seu
modo de vida; ademais, pelo menos alguns dos grupos indígenas deixaram seus
próprios documentos na forma de pinturas e gravuras rupestres, que constituem
valiosa fonte de informações sobre a sua sociedade, economia, tecnologia e
provavelmente religião. Outra fonte importante é o meio ambiente, que não
sofreu transformações radicais em muitas regiões da África austral desde o tempo
em que foi ocupado pela primeira vez pelos caçadores e coletores. Assim, depois
de 250 anos de atividade agrícola, ainda é possível documentar e interpretar os
fatores espaciais e sazonais que até certo ponto teriam determinado o caráter do
povoamento pré -histórico. A disponibilidade de recursos alimentares básicos, os
716
África Antiga
locais de afloramento de matéria -prima e as mudanças cíclicas na pastagem e no
abastecimento de água, tudo isso vem sugerir os tipos de povoamento a que os
caçadores e os pastores podem ter recorrido. Finalmente, embora não mais existam
caçadores ou pastores no Cabo, encontram -se grupos aparentados na Namíbia
e no Botsuana, o que permitiu aos antropólogos estudá -los sistematicamente.
Seus estudos relativos à tecnologia, à economia e à organização social fornecem
aos arqueólogos valiosos modelos gerais para a interpretação dos vestígios dos
povos extintos de outras regiões.
Como não usassem metais para fabricar seus instrumentos de cortar, raspar
ou lascar, os pastores khoi -khoi e os caçadores san se inserem no campo de
estudos da Idade da Pedra, tendo sido amplamente analisados em termos
do instrumental tico que produziram. Dessa forma, os historiadores ou
antropólogos que desejassem fazer uso dos registros arqueogicos tinham
que recorrer às listas de instrumentos e encaixar as indústrias wiltoniense e
smithfieldiense no quadro que esboçavam das condições de vida anteriores à
chegada dos europeus. Para os fins da discussão que se segue, as diferenças
secundárias entre conjuntos de objetos de um sítio para outro não serão realçadas
nem empregadas como critério para dividir os cadores e os pastores em
agrupamentos culturais. Pelo contrário, admitir -se -á que todos os ocupantes da
África austral na Idade da Pedra Recente fizeram uso de objetos microlíticos,
como raspadores, pontas de armas de arremesso, enxós e furadores. As variações
nas proporções desse instrumental de uma jazida para outra e o aparecimento
ocasional de outras formas de instrumentos serão interpretados como reflexo das
diferentes necessidades que tinham as populações de determinados utensílios na
medida em que suas tarefas diárias se diversificavam. Povos que ocupavam áreas
muito distantes umas das outras devem ter tido à sua disposição matérias -primas
diferentes, ou então devem ter se empenhado em atividades de subsistência
significativamente diversas e, portanto, ter produzido instrumentais líticos
distintos. No entanto, tratava -se de comunidades similares, ligadas por uma
tecnologia semelhante em seu aspecto mais geral e por um grande número de
características não -tecnológicas, como língua, tipo físico e economia.
Os caçadores -coletores san
Estudos etnográficos recentes sobre os caçadores -coletores demonstram
a im portância considerável, na dieta dos grupos pertencentes a essa categoria
717
A África meridional: caçadores e coletores
econômica, do componente colhido ou coletado
6
. Torna -se claro, pelos relatos
referentes aos Kung e aos G/wi do Calaari
7
, que os alimentos coletados pelas
mulheres constituíam a parte maior da dieta diária do grupo, embora os homens
e as crianças também se dedicassem à coleta desses veldkos. A característica mais
importante da coleta de alimentos os quais eram, não totalmente, mas na maior
parte, de origem vegetal – é que se sabia de antemão onde encontrá -los e se podia
contar com eles como base para a alimentação de todo dia. As carnes ricas em
proteínas, produto da caça de animais, eram também importantes, mas, sendo sua
obtenção imprevisível, não faziam parte integrante da alimentação diária. Isso o
significa que se deva considerar os caçadores como coletores, mas, antes, que é
preciso reconhecer o equilíbrio entre os recursos alimentares disponíveis para os
grupos de caça e de coleta. Tais grupos garantiam sua subsistência com a coleta
de alimentos e ocasionalmente se beneficiavam dos sucessos na caça.
Esse modo particular de alimentão difundia -se por toda a África
meridional, conforme pode ser atestado pelas descrições em primeira mão dos
viajantes europeus dos séculos XVII e XVIII, assim como pelos fragmentários
registros arqueológicos. O relato de Paterson de agosto de 1778, por exemplo,
em Namaqualândia, diz sobre certos hotentotes bosquímanos” que “não têm
nenhum gado [...] vivem de raízes e resinas; por vezes se regalam com um
antílope que caçam com flechas envenenadas”
8
; e Thompson, percorrendo o
distrito de Cradock, próximo ao curso superior do Orange, em junho de 1823,
visitou um “kraal de bosquímanos”, sobre cujos ocupantes escreveu:
“Essas pobres criaturas alimentam -se principalmente de certos bulbos selvagens que
crescem nas planícies, e também de gafanhotos, formigas brancas e outros insetos…
Isso é tudo com o que contam para a sua subsistência, salvo quando os homens
conseguem atingir alguma caça com suas flechas envenenadas”
9
.
Relatos semelhantes, abrangendo uma área geográfica que se estende da
Cidade do Cabo às fronteiras da antiga Conia do Cabo numa cronologia
que vai dos primeiros anos de 1650 a a década de 1820, são unânimes em
reconhecer esse padrão médio da dieta de subsistência dos San. Pouquíssimas
descrões deixam de acentuar que “a caça é ocasional e todas mencionam
raízes e bulbos como alimentos principais. De fato, os autores fazem referência
6 LEE, R. B. 1968.
7 LEE, R. B. 1972.
8 PATERSON, W. 1789.
9 THOMPSON, G. 1827.
718
África Antiga
a vários alimentos vegetais, notadamente ervas, bagas e resinas, mas o os
uyntjes literalmente, cebolas –, ou “raízes bulbosas”, que aparecem com
maior frequência nos registros históricos. Não se trata, a rigor, de cebolas, mas
de cormos, caules subterrâneos, de rias plantas da falia da íris, como a Iris
propriamente dita, o Gladiolus, a Ixia e a Moraea, todas citadas nominalmente.
Am dos alimentos vegetais, existem numerosas refencias ao alimento
coletado de origem animal, como lagartas, formigas, gafanhotos e tartarugas,
bem como o mel, nenhum deles desprezado na luta dria pela subsisncia.
Naturalmente, os registros arqueológicos estão voltados de preferência para
aqueles alimentos que, depois de consumidos, deixam resíduos duradouros.
É por essa razão que a arqueologia ressalta o papel da caça entre os San na
África austral. Mas onde as condições favoráveis à preservação possibilitaram a
descoberta e a análise de vestígios de materiais orgânicos, pôde -se reconhecer
a importância dos vegetais na alimentação. Abrigos sob rocha e cavernas na
Namíbia
10
, na região sudoeste do Cabo
11
, no Cabo oriental
12
, em Natal
13
e no
Lesoto
14
contêm inúmeros restos vegetais, dentre os quais se destacam caules,
tegumentos e bases de bulbos de um grande número de plantas iridáceas.
Naturalmente, os tipos de alimentos vegetais disponíveis variam de um sítio
para outro, em função da riqueza da paisagem vegetal de cada localidade, mas
um claro predomínio de raízes e rizomas, cormos, bulbos e tubérculos, seguidos
pelas sementes de espécies frutíferas
15
, no conjunto dos dados coletados.
A maioria dos relatos históricos referentes à parte animal da dieta pré -histórica
fala genericamente da “caça dando a impressão de que era ampla a variedade de
espécies caçadas. Isso é confirmado pelos inventários faunísticos levantados por
ocasião das grandes escavações, como as de Die Kelders
16
e Nelson Bay Cave
17
,
os quais incluem desde musaranhos até elefantes, e mesmo baleias. Contudo, os
vestígios da fauna desses sítios mostram a acentuada preponderância de animais
de pequeno porte, como tartarugas, coelhos (dassies), toupeiras -das -dunas e
pequenos herbívoros locais, como o steenbock, o grysbock e o duiker, variedades
10 WENDT, W. E. 1972. pp. 1 -45.
11 PARKINGTON, J. E. & POOGENPOEL, C. 1971.
12 DEACON, H. J. 1969. pp. 141 -69; DEACON, H. J. & J. 1963. pp. 96 -121.
13 DAVIES, O. Comunicação pessoal.
14 CARTER, P. L. Comunicação pessoal.
15 DEACON, H. J. 1969; PARKINGTON. J. E. 1972. pp. 223 -43.
16 SCHWEITZER, F. R. 1970. pp. 136 -8; SCHWEITZER, F. R. & SCOTT, K. 1973. p. 547.
17 KLEIN, R. G. 1972. pp. 177 -208.
719
A África meridional: caçadores e coletores
austrais de antílopes. As ossadas de carnívoros são raras, refletindo talvez caçadas
ocasionais visando unicamente a obtenção de peles. Os herbívoros de grande
porte, como o veado -do -cabo (hartebeest), o elã e o falo, acham -se muito
pouco representados em relação aos animais menores, e são raros os restos de
elefantes, hipopótamos e rinocerontes. Embora essas proporções reflitam em
parte uma tendência dos grupos pré -históricos no sentido de levar para seus
acampamentos os animais menores e desossar os maiores no local da caça, não
se pode contestar que a caça de pêlo e os herbívoros de pequeno porte eram os
principais alvos ou as vítimas mais frequentes dos caçadores.
Os recursos marinhos foram amplamente explorados pelos grupos san,
como atestam os inúmeros concheiros no litoral, tanto dentro como fora das
cavernas. As relações entre os “batedores de praia” strandlopers e os grupos san
e khoi -khoi serão discutidas mais adiante, mas evidências convincentes de
que muitas das cavernas costeiras e dos campos de concheiros a céu aberto
foram ocupados pelos grupos san. Embora os concheiros sejam a característica
mais notável desses sítios, a composição dos restos faunísticos evidencia o uso
de ampla variedade de animais marinhos como alimento, notadamente focas,
lagostas, peixes e pássaros. Os resíduos dos alimentos vegetais são raros nos
sítios costeiros. Mais para o interior, tanto na região oriental como na região
ocidental do Cabo, há evidências da coleta de moluscos de água doce
18
, tendo -se
reconhecido a presença de peixes de água doce no Cabo ocidental e no Lesoto
19
.
De fato, a pesca está retratada num grande número de pinturas rupestres no
Lesoto e no Griqualand East
20
.
Portanto a dieta alimentar dos grupos san acha -se bem documentada tanto
histórica como arqueologicamente, embora a distribuição das escavações seja
muito desigual e algumas áreas não tenham sido, por assim dizer, exploradas ou
não apresentem depósitos muito bem conservados. Em termos gerais, a base da
alimentação diária consistia em produtos coletáveis, incluindo rizomas e outros
alimentos vegetais, mel e insetos, como gafanhotos, cigarras, térmitas e lagartas.
Esses alimentos eram complementados com pequenos animais, como tartarugas,
coelhos e toupeiras -das -dunas, com hervoros de pequeno porte e, menos
frequentemente, com animais de maior porte. Os grupos que viviam ao longo
da costa apanhavam peixes, lagostas, focas e pássaros marinhos e coletavam
grandes quantidades de moluscos, principalmente lapas e mexilhões. Os recursos
18 DEACON, H. J. & J. 1972; RUDNER, J. 1968. pp. 441 -663.
19 PARKINGTON, J. E. & PÖGGENPOEL, C. 1971. p. 6; CARTER, P. L. 1969. pp. 1 -11.
20 SMITS, L. 1967. pp. 60 -7; VINNICOMBE, P. 1965. pp. 578 -81.
720
África Antiga
fluviais, incluindo moluscos de água, doce e peixes, também eram utilizados,
havendo uma referência histórica a peixes secos
21
. Thunberg no registro de suas
observações quando esteve no Cabo ocidental, na década de 1770, descreve uma
bebida preparada pelos caçadores ou pelos pastores, se não por ambos:
A palavra gli, na língua hotentote, designa uma planta umbelífera cuja raiz, depois
de seca e reduzida a pó, é misturada com água fria e mel num cocho; após fermentar
durante uma noite, proporciona uma espécie de hidromel, que os nativos bebem para
entrar no estado de embriaguez
22
.
A tecnologia usada para explorar esses recursos é ilustrada pelos conjuntos
de objetos de pedra, osso, madeira e fibra encontrados nas cavernas e abrigos
de toda a África austral, e também nas descrições dos primeiros viajantes que
percorreram a região. Os bulbos e os tubérculos eram arrancados com um bastão
de cavar, de madeira, aparado e queimado numa das extremidades de modo
a ter a forma de uma espátula, o qual tinha por lastro uma pedra perfurada,
ajustada a meia altura de seu eixo. Esses instrumentos foram descritos por
diversos viajantes
23
, e deles foram encontrados fragmentos em De Hangen
e Diepkloof, no Cabo ocidental
24
, e em Scotts Cave, no Cabo meridional
25
.
Existem numerosas pinturas rupestres retratando mulheres usando bastões
de cavar lastreados (ver fig. 26.1); frequentemente elas dão a impressão de
estar carregando bolsas de couro, provavelmente destinadas ao transporte dos
alimentos para o acampamento. Pedaços de couro trabalhado são comum ente
encontrados nas áreas secas dos abrigos sob rocha e cavernas do Cabo, mas
de modo geral é impossível determinar se se trata de fragmentos de bolsas ou
de armaduras de couro. Conhecem -se dois tipos de bolsas ou redes feitas de
barbante: o primeiro, encontrado em Melkhoutboom e em Windhoek Farm
Cave
26
, tem malhas pequenas (cada malha mede cerca de 10 mm) e parece ter
sido usado para transportar raízes e tubérculos; do segundo, em malha maior,
conhece -se apenas um fragmento encontrado na caverna de Diepkloof, no Cabo
21 THOM, H. B. 1952 -8.
22 THUNBERG, C. P. 1795. p. 31.
23 SPARRMAN, A. 1789. p. 219; THOMPSON, G. 1827. v. I, p. 57; cf. J. de GREVENBOEK, que dá o
comprimento de 3 pés, ou aproximadamente 1 m, in: SCHAPERA, I. 1933.
24 PARKINGTON, J. E. & PÖGGENPOEL, C. 1971; PARKINGTON, J. E. Tese de doutoramento não
publicada.
25 DEACON, H. J. & J. 1963.
26 DEACON, H. J. 1969; GROBBELAAR, C. S. & GOODWIN, A. J. H. 1952. pp. 95 -101.
721
A África meridional: caçadores e coletores
ocidental
27
, além de uma ilustração incorporada à Narrativa de Paterson
28
. A
julgar por essa excelente representação, este tipo de bolsa deve ter sido empregado
para transportar cascas de ovos de avestruz, que serviam como recipientes para
água. Todos os espécimes coletados pelos arqueólogos foram feitos com fios
torcidos, confeccionados com as fibras do caule do junco Cyperus textilis, assim
batizado por Thunberg no século XVIII em razão de seu uso. Pedras perfuradas
ou trespassadas estão entre os achados de superfície mais comuns em toda a
África austral.
Quase todos os narradores da caça entre os San referem -se ao arco e às
flechas envenenadas como a principal arma. Visitando algumas regiões do atual
Cabo oriental, em 1797, Barrow escreveu:
“O arco era uma peça rudimentar de madeira do guerrie bosch, aparentemente uma
espécie de Rhus [...]; a corda, de 3 pés de comprimento, era feita com as fibras dos
músculos dorsais do springbok, torcidas. O tronco do aloé fornecia a aljava. A flecha
consistia num caniço, no qual, numa das extremidades, se inseria uma lasca finamente
polida do osso duro da perna do avestruz, redonda e com cerca de 5 polegadas de
comprimento [...]. O comprimento total da flecha era de aproximadamente 2 pés
[...]. O veneno tirado de cabeças de cobras e misturado ao sumo de certas plantas
de raízes bulbosas era o principal elemento de que eles precisavam
29
.
Embora raramente se tenham escavado instrumentos inteiros, foram
encontrados exemplares de todas as suas partes componentes nas cavernas
do Cabo oriental e ocidental. Possíveis fragmentos de arco, hastes de flechas
em junco, pedaços de caniços chanfrados, pontas de osso polidas e hastes de
conexão, tendões em e fragmentos de aloés pintados constituem os restos
abandonados ou perdidos do equipamento de caça dos San. Pequenos objetos
de pedra em forma de lua crescente ou segmento de círculo parecem indicar um
segundo tipo de ponta de arma de arremesso, que fixada com mástique vegetal,
formava a aresta cortante das flechas, conforme demonstraram na Cidade do
Cabo os bosquímanos capturados na década de 1920
30
. Arcos, flexas e aljavas
são retratados com muita frequência nas pinturas parietais da África austral (ver
figura 26.2).
27 PARKINGTON, J. E. Tese de doutoramento não publicada.
28 PATERSON, W. 1789.
29 BARROW, J. 1801 -4.
30 GOODWIN, A. J. H. 1946. p. 195.
722
África Antiga
Contudo, muitos animais não eram caçados com arco e flecha, mas apanhados
em armadilhas feitas com cordões vegetais espalhadas pelo veld. Paterson viu
“várias armadilhas preparadas para a captura de animais selvagens”
31
quando
viajava pelas proximidades do rio Orange, em 1779, e é quase certo que muitos
dos fios torcidos dois a dois descobertos em sítios como os de De Hagen
32
, Scotts
Cave
33
e Melkhoutboom
34
sejam restos abandonados de antigas armadilhas
feitas com cordões vegetais. Essa técnica devia ser mais eficaz na captura dos
pequenos herbívoros que, como o steenbok, tendem a seguir sempre as mesmas
trilhas dentro dos limites de seu território, podendo ser facilmente conduzidos
às armadilhas por meio de sebes convenientemente orientadas. Dois curiosos
objetos de madeira em forma de forquilha encontrados em Windhoek Farm
Cave
35
e Scotts Cave
36
podem ter servido como disparadores dessas armadilhas.
Outras técnicas de caça, embora mencionadas em relatos históricos, ainda
não foram confirmadas por testemunhos arqueológicos. Muitos viajantes do
século XVIII, por exemplo, descreveram grandes fossas cavadas junto às margens
dos rios, em cujo interior havia estacas pontudas fincadas em posição vertical.
Segundo as interpretações mais correntes, deve tratar -se de armadilhas para a
caça de animais de grande porte, como o elefante, o rinoceronte, o hipopótamo
e o búfalo; sua distribuição geográfica era muito ampla, estendendo -se do rio
Orange para o sul, e para leste até o Gamtoos. Barrow, visitando as fronteiras
da colônia, nas proximidades de Graaff -Reinet, descreveu outra técnica de caça
utilizada pelos caçadores san que consistia em preparar áreas para a caça “com
pilhas de pedras colocadas a intervalos ou com alinharnentos de estacas em cujo
topo eram amarradas penas de avestruz”, para onde atraíam as espécies mais
gregárias do planalto interior
37
.
É fato que os caçadores -coletores empregavam grande número de técnicas
de pesca; a maioria delas está documentada por testemunhos arqueológicos. As
mais espetaculares talvez sejam as armadilhas feitas com cestos de junco trançado
em forma de funil, do Baixo Orange, descritas por Lichtenstein e também
31 PATERSON, W. 1789. p. 114.
32 PARKINGTON, J. E. & PÖGGENPOEL, C. 1971.
33 DEACON, H. J. & J. 1963.
34 DEACON, H. J. 1969.
35 GROBBELAAR, C. S. & GOODWIN, A. J. H. 1952.
36 DEACON, H. J. & J. 1963.
37 BARROW, J. 1801 -4. Vv I, p. 284.
723
A África meridional: caçadores e coletores
 . Pintura rupestre: mulheres com bastões de cavar lastreados por pedras perfuradas. Era tarefa
das mulheres colher raízes e bulbos, bem como outros alimentos conáveis, em suas excursões diárias ao veld”
(pinturas em vermelho esmaecido).
F . Grupo de homens com arcos, echas e aljavas. Cabia aos homens caçar e preparar armadilhas
para animais a m de complementar o aprovisionamento, em grande parte vegetal, obtido pelas mulheres.
F . Cena de pesca de Tsoelike, Lesoto. Os caçadores -coletores da África austral eram também
pescadores; apanhavam tanto espécies marinhas como uviais, usando cnicas variadas; a cnica aqui
representada parece envolver pequenos barcos ou jangadas.
724
África Antiga
por Barrow e atribuídas por ambos a bosjesmans, provavelmente os San
38
. Tais
armadilhas eram colocadas na corrente dos rios; conforme foram descritas, eram
feitas de vime, ramos de árvores e junco”, tinham a forma cônica, de funil, sem
dúvida semelhante à das ainda hoje usadas nos rios Kafue e Limpopo
39
. Embora
durante as escavações não se tenha encontrado nenhum vestígio delas, inúmeras
pinturas rupestres do Lesoto e do Griqualand East retratam, incontestavelmente,
conjuntos de nassas ligadas umas às outras por cercas de caniço ou madeira,
apanhando grandes quantidades de peixe de água doce, notadamente o barbo
40
.
Espinhas de peixe de água doce foram encontradas em sítios muito distantes
um do outro, como o Lesoto e o Cabo ocidental, mas os métodos empregados
para a pesca nem sempre são evidentes. Um certo número de ganchos de osso
em forma de V foram descritos por Carter como sendo presumivelmente
anzóis, mas ele admite a possibilidade de outras interpretações
41
. Nas cenas de
pescaria das pinturas rupestres de Tsoelike, no Lesoto, os pescadores parecem
estar de pé em embarcações e usando lanças compridas, possivelmente farpadas
(ver fig. 26.3). Talvez isso tenha levado Vinnicombe a considerar tais cenas como
sendo de época mais recente; a datação delas, contudo, ainda é um enigma. As
escavações jamais revelaram vestígios de qualquer tipo de embarcação, o que, de
todo modo, parece improvável que venha a acontecer.
Lichtenstein relata que no Baixo Orange, no mesmo local de onde provêm
as armadilhas de pesca em forma de nassa:
“Quando [os bosjesmans] esperam uma cheia do rio, enquanto a água ainda está baixa,
constroem uma espécie de grande cisterna na margem, cercando -a com uma parede
de pedras, que serve de reservatório; se a sorte é favorável, uma grande quantidade
de peixes fica retida quando a água reflui”
42
.
Esse tipo de armadilha de pedra para pesca baseada no aproveitamento das
cheias e vazantes do rio encontra paralelo nas armadilhas que utilizam o fluxo
e refluxo da maré, assinaladas na costa da África austral, desde a baía de Santa
Helena até a baía de Algoa
43
. Como diversos exemplares dessas últimas se acham
ainda em condições de funcionamento (alguns estando mesmo em uso), parece
38 LICHTENSTEIN, H. 1812. v. II, p. 44; BARROW, J. 1801 -4.
39 SMITS, L. 1967.
40 SMITS, L. 1967; VINNICOMBE, P. 1960. pp. 15 -9; id. 1965.
41 CARTER, P. L. 1969; CARTER, P. L. Comunicação pessoal.
42 LICHTENSTEIN, H. 1812.
43 GOODWIN, A. J. H. 1946.
725
A África meridional: caçadores e coletores
razoável supor que as populações litorâneas da Idade da Pedra usavam -nas até
época bem recente. O grande número de peixes pertencentes a espécies costeiras
encontrado em locais próximos das armadilhas sugere que elas eram altamente
eficazes quando a maré subia o bastante para submergir os diques.
Goodwin relatou a descoberta de uma pequena isca de osso para peixes,
atada a uma linha presa à parede de uma armadilha de pedra, o que sugere a
existência de outras técnicas de pesca no passado pré -histórico imediato. Com
efeito, pequenas lascas de osso de 2 cm a 6 cm de comprimento, afiadas em ponta
em ambas as extremidades, foram encontradas em grande número tanto em
Elands Bay Cave
44
como em Nelson Bay Cave
45
. Mas, nos dois casos, os artefatos
estavam localizados em camadas de 7 mil a 10 mil anos de idade, tornando -se
extremamente raros, embora não ausentes, nos estratos superiores. Talvez fossem
usados para enganchar iscas, mas vale a pena observar que, no século passado,
os Ona da Terra do Fogo faziam objetos semelhantes em madeira, para apanhar
cormorões, palmípedes muito comuns nos dois sítios acima referidos.
Nos tios costeiros da África austral não foram encontrados objetos que
se pudesse identificar sem sombra de dúvida como anzóis ou pontas de arpão,
embora Barrow tenha assinalado exemplares em madeira destas últimas no Baixo
Orange
46
. Diz ele textualmente: Encontramos vários arpões de madeira, alguns
deles com ponta de osso, e presos a cordas aparentemente feitas de algum tipo
de fibra vegetal”. Ao que parece, portanto, esses arpões seriam de madeira, com
ponta de osso mas não necessariamente farpada. Duas pontas de osso farpadas
foram encontradas nas dunas do cabo das Agulhas, mas os estudos sobre essa
área ainda não foram publicados. O que se sabe é que uma delas estava fincada
na vértebra lombar de um esqueleto de mulher adulta com caracteres “khoisan
47
.
Objetos perfurados, de cerâmica ou de pedra localizados em sítios ao longo da
costa sul do Cabo foram descritos como pesos de rede, o que, a ser exata essa
interpretação, viria documentar a prática da pesca com rede entre os San do
litoral. Em vista da abundância de fios de fibras e da existência incontestável de
redes em sítios do interior, isso talvez não devesse causar surpresa.
As técnicas praticadas para apanhar ou coletar outros recursos costeiros não
estão bem documentadas. Objetos espatulados de osso encontrados em algumas
localidades podem ter servido para desprender lapas de seus habitats rochosos,
44 PARKINGTON, J. E. Tese de doutoramento não publicada.
45 KLEIN, R. G. Não publicado.
46 BARROW, J. 1801 -4. p. 300.
47 PARKINGTON, J. E. Tese de doutoramento não publicada.
726
África Antiga
mas não existem provas irrefutáveis a respeito. Tampouco se pode demonstrar
como as lagostas, os pássaros marinhos ou as focas eram capturados, apesar de
existirem um registro histórico sobre a caça de focas com o arco
48
e uma pintura
mostrando os Khoi -Khoi golpeando focas com paus num promontório rochoso
isolado, perto de Saldanha Bay
49
. O estado de esfacelamento dos fragmentos
de crânio encontrados em Elands Bay Cave e em outros tios talvez seja
consequência dessa prática de golpeamento.
Embora os San não fossem dados à domesticação de animais e à agricultura,
parece haver evidências de que pelo menos no século XVII eles criavam cachorros,
aparentemente para a caça. Dapper, que nunca visitou o Cabo mas que fora
muito bem informado por aqueles que ali haviam estado, relatou, em 1668, que
os Sônqua “criam muitos cães de caça treinando -os para desentocar os coelhos
das rochas, o principal alimento”
50
desse povo. de fato grandes quantidades
de ossos de dassies ou coelhos das rochas nos abrigos sob rochas escavados no
Cabo ocidental, e indícios
51
da existência de ossos de cães domésticos nos
principais depósitos de ossadas animais.
Além dos alimentos caçados ativamente, parece haver pouca dúvida quanto
ao papel representado pela necrofagia na subsistência dos San. Em particular,
relatou -se que os peixes encontrados mortos ou as baleias encalhadas na
praia eram comidos pelos habitantes do litoral. Um outro aspecto, não menos
importante, da tecnologia san é a grande variedade de recipientes utilizados para
transportar água. Um exemplo são as cascas de ovos de avestruz, algumas com
incisões decorativas, que foram descritas em relatos históricos e encontradas em
numerosos sítios, embora quase sempre fragmentadas. Conhecem -se, é certo,
exemplares completos, e mesmo jogos de vários recipientes enterrados – parece
claro em pontos estratégicos mas que, via de regra, foram encontrados por
amadores, o que não lhes suficiente garantia científica. Bexigas de animais
também eram utilizadas para transportar água, enquanto os vasos de cerâmica,
ao contrio, nunca são descritos como tendo essa função. Falamos mais
pormenorizadamente da cerâmica na seção dedicada aos pastores khoi.
Em suma, a tecnologia san parece ter incluído ampla variedade de técnicas
de caça e coleta, com o emprego de instrumentos feitos com um único material,
como osso, pedra, madeira, fibras, junco, couro, conchas, marfim, tendões e
48 PATERSON, W. 1789.
49 THOM, H. B. 1952 -8.
50 Apud SCHAPERA, I. 1933.
51 SCOTT, K. Comunicação pessoal.
727
A África meridional: caçadores e coletores
folhas
52
, ou instrumentos compósitos, que combinavam matérias -primas diversas.
A pedra parece ter fornecido apenas a ponta ou o gume, para cortar ou raspar,
de utensílios mais elaborados; observou -se que os objetos de pedra foram os
mais frequentemente utilizados na combinação com cabos de osso ou madeira, a
que eram fixados com mástique
53
. Dava -se preferência a rochas homogêneas, de
grãos finos, como a calcedônia, a ágata, as crostas silicosas ou a argila endurecida;
mas também eram utilizados os tipos de quartzo mais quebradiços, cujos seixos
pequenos e grandes forneciam os elementos superior e inferior das mós para
triturar pigmentos ou alimentos. É interessante notar que poucos viajantes dos
séculos XVII e XVIII mencionam ou descrevem especificamente a manufatura
de objetos de pedra; isso talvez indique a substituição gradual, pelo menos em
parte, da pedra pelo osso, a madeira ou o metal. Esse quadro de uso de uma
grande variedade de matérias -primas tem implicações óbvias para aqueles que
se baseiam somente nas comparações de instrumentais líticos para classificar e
diferenciar grupos étnicos.
As pesquisas arqueológicas estão se voltando cada vez mais para os fatores
que condicionaram o estabelecimento dos grupos san. Em consequência, está
se tornando possível descrever os modos de exploração dos recursos ambientais
pelos caçadores -coletores em termos que, por sua orientação ecológica, teriam
passado despercebidos aos primeiros viajantes. As informações fornecidas pelos
registros históricos e pelas pinturas rupestres devem, sem dúvida, ser acrescidas
às evidências que vão emergindo das escavações em larga escala e das análises
pormenorizadas de vestígios animais e vegetais.
Por analogia com os cadores -coletores do Calaari e de reges ainda
mais distantes é provável que os San se distribuíssem em grupos pequenos
e de intensa mobilidade. Nessa perspectiva, não admira tenham as primeiras
expedições empreendidas por Van Riebeeck deparado com tantos abrigos contra
o vento desocupados, fenômeno registrado também por Paterson cem anos mais
tarde, perto da foz do rio Orange
54
. Essas “choças”, telas de mato destinadas a
proteger seus ocupantes contra as intempéries, eram logo abandonadas, talvez
passados poucos dias. Tampouco surpreende que, no conjunto, os grupos san
raramente contassem mais de vinte indivíduos, constituindo, na maioria dos
casos, pequenos grupos de trabalho de menos de dez homens ou mulheres, ou
acampamentos maiores, com pessoas de ambos os sexos, inclusive crianças. As
52 PARKINGTON, J. E. & PÖGGENPOEL, C. 1971.
53 DEACON, H. J. 1966. pp. 87 -90; DEACON, H. J. 1969.
54 THOM, H. B. 1952 -8; PATERSON, W. 1789. p. 117.
728
África Antiga
únicas exceções são, por exemplo, os grupos de 150 a 500 pessoas descritos por
Barrow e um acampamento de cinquenta cabanas referido por Thunberg, ambos
no fim do século XVIII, época em que os caçadores passaram a se reunir em
grupos anormalmente grandes para se defender das incursões dos comandos
europeus
55
. O tamanho dos grupos representados nas pinturas rupestres tende
a confirmar que a unidade social mais comum não ultrapassava vinte pessoas,
embora se encontrem agrupamentos maiores (ver fig. 26.4).
Muitos especialistas relataram que os bosquímanos ocupavam cavernas e
abrigos sob rochas onde quer que os encontrassem, e esses sítios têm lugar
proeminente na literatura arqueológica. No Great Elephant Shelter, nos montes
Erongo, na Namíbia, três ou talvez quatro abrigos contra o vento análogos
aos descritos pelos antigos viajantes do veld foram devidamente mapeados e
descritos
56
. Em diversas localidades do Cabo evidências de que os grupos
san introduziram o costume de usar feixes de mato como leito, os quais eram
colocados junto às paredes traseiras e laterais das cavernas, formando colchões
macios. Em pelo menos dois casos observou -se uma ligeira escavação na rocha
ou depósitos acumulados para receber o leito de mato
57
. Nos sítios costeiros, as
camas eram feitas com vegetais aquáticos, especialmente o Zostera, e evidenciou-
-se que os locais de dormir, cozinhar, fazer fogo e depositar lixo eram nitidamente
separados.
A regularidade da correlação entre mulheres e bastões de cavar e entre homens
e arcos na arte rupestre evidencia muito bem a existência de uma rigorosa divisão
de trabalho no interior dos grupos san. Isto é repetidamente confirmado na
literatura histórica Paterson, por exemplo, na década de 1820, “viu inúmeras
mulheres bosquímanas arrancando raízes nas planícies”, e Dapper descreveu
uma espécie de bulbo que “constitui sua provisão diária e que as mulheres vão
arrancar todos os dias do fundo dos rios”
58
. Sem dúvida os homens também
coletavam alimentos vegetais em suas expedições de caça, mas nunca é demais
sublinhar o papel primordial das mulheres no abastecimento alimentar diário.
boas razões para supor que o abastecimento da maior parte dos alimentos
coletados ou caçados pelos San, bem como a água, estariam sujeitos a flutuações
sazonais. Por exemplo, a precipitação de inverno no sudoeste do Cabo é um
fenômeno altamente sazonal, porquanto 70% a 80% das chuvas anuais caem
55 BARROW, J. 1801 -4. pp. 275, 307; THUNBERG, C. P. 1795. p. 174.
56 CLARCK, J. D. & WALTON, J. 1962. pp. 1 -16.
57 PARKINGTON, J. E. & PÖGGENPOEL, C. 1971.
58 THOMPSON, G. 1827. v. I, p. 58; Apud SCHAPERA, I. 1933. p. 55.
729
A África meridional: caçadores e coletores
 . Grupo de caçadores
em sua caverna, cercados por uma
rie de bastões de cavar, bolsas,
aljavas e arcos. As pedras perfuradas,
que servem como lastro aos bastões,
são perfeitamente visíveis.
F . Grande grupo de
guras, a maioria delas visivelmente
masculinas, provavelmente numa
cena de dança. Cenas que envolvem
um grande número de figuras,
possivelmente retratando atividades
não -econômicas, sugerem que
pequenos grupos se reuniam
ocasionalmente, sazonalmente talvez,
para promover a troca e participar de
outras atividades cerimoniais.
F . Os encontros
ocasionais de grupos são assinalados
muito mais pelo conito do que pela
cooperão. Cena de um confronto
entre dois grupos em equibrio de
foas. As guras são visivelmente
masculinas.
730
África Antiga
de maio a outubro, período que coincide com as temperaturas médias mensais
mais baixas e com geadas localizadas. As consequências dessa situação são
importantes; uma delas é o ciclo vegetativo rígido de crescimento no inverno,
floração na primavera, frutificação no verão e hibernação ou dormência dos
órgãos vegetais subterrâneos de retenção de substâncias nutritivas durante os
verões quentes e secos. Uma outra, talvez mais evidente, é a acentuada variação
na quantidade de água de superfície e na de pastagem entre o verão seco e o
inverno úmido. Além da flutuação sazonal dos recursos,o fato de nem todos
eles poderem ser encontrados em toda parte. Ainda tomando como exemplo o
Cabo ocidental, observa -se uma distribuição muito desigual das diversas plantas
e animais pelas microzonas geográficas, como a orla marítima, os promontórios
costeiros, a cadeia de montanhas, os vales ribeirinhos e a árida bacia interior. Os
San que ocuparam essa ou outras regiões da África austral devem ter adotado
estragias de povoamento que levavam em conta a abundância local ou
temporária de recursos, a fim de assegurar um abastecimento alimentar variado
e suficiente durante todo o ano. Algumas dessas estragias se evidenciam
nos relatos históricos, nos resultados das escavações e no conjunto de dados
fornecidos pela arte rupestre.
Dada a importância dos bulbos na dieta dos San, sua disponibilidade desigual
deve ter tido considevel influência no sentido de determinar modelos de
povoamento. A desigualdade, aludida em alguns relatos históricos, decorre
do ciclo vegetativo acima descrito. Como o bulbo constitui um depósito de
substâncias nutritivas acumuladas pelas plantas durante o verão de modo a
garantir o crescimento na nova estação e a floração no inverno e primavera
seguintes, suas dimensões, visibilidade e sabor variam no decorrer do ciclo. Mas
especificamente, quando a reserva nutritiva é utilizada para o crescimento das
partes verdes e das flores da planta, os bulbos murcham, tornando -se mais escassos
na dieta dos coletores. A escassez no aprovisionamento de bulbos é sugerida por
Lichtenstein, que, falando dos bosjesmans, relata em certa passagem: Ele viverá
meses a fio com uns poucos bulbos, encontrados em determinadas épocas do
ano nas terras baixas da região
59
. A propósito de um desses bulbos” ele precisa:
“Deve -se comê -la de preferência assim que a flor cair
60
. Essa interpretação é
confirmada pelo sistema único de contagem do tempo entre as populações do
Cabo (atribuído aos hotentotes, porém usado, ao que tudo indica, tanto pelos
Khoi -Khoi como pelos San) registrado por Sparrman, Barrow e Thunberg no
59 LICHTENSTEIN, H. 1812. p. 193.
60 LICHTENSTEIN, H. 1812. p. 45.
731
A África meridional: caçadores e coletores
fim do século XVIII
61
. Nas palavras de Barrow, a estação do ano é indicada
pelo número de luas decorridas antes ou após o uyntjes tyd (literalmente, tempo
das cebolas), ou pela época das raízes de Iris edulis, momento particularmente
importante para eles, que esse tipo de bulbo constituía parte considerável da
sua alimentação vegetal”. Lidos em conjunção com os resultados das modernas
observações sobre o crescimento e o desenvolvimento do bulbo, esses comentários
sugerem que pelo menos na cadeia montanhosa do Cabo o aprovisionamento
de gêneros alimentícios básicos sofria grandes flutuações.
Em outras regiões da África austral, onde as chuvas são menos intensas
e mais uniformemente distribuídas durante o ano, ou onde as precipitações
máximas coincidem com as altas temperaturas do verão, parece ter havido
diferentes, pom igualmente importantes variões no aprovisionamento
alimentar. O deslocamento de herbívoros gregários, como o elã, o veado -do-
-cabo e o springbok, entrando e saindo das regiões do Karroo ou entre uma e
outra pastagem em função das precipitações de inverno ou verão, certamente
influenciou a distribuição espacial das populações san. Existem evidências de
várias medidas tomadas pelos San para fazer frente a esses fatores de flutuação
no aprovisionamento alimentar, entre elas, a mobilidade sazonal, a restrição do
uso de certos alimentos a determinadas épocas, a alteração no tamanho das
unidades sociais, o armazenamento de gêneros alimentícios e o estabelecimento
de uma ampla rede de relações de parentesco como precaução contra um possível
malogro no abastecimento local.
A hipótese da ocupação sazonal dos sítios do Lesoto
62
e do sudoeste do
Cabo
63
apóia -se num estudo do potencial de recursos dos sítios para suprir
as necessidades alimentares básicas, e ainda na análise dos restos vegetais e
das ossadas animais. Parece provável que os grupos san do Cabo ocidental
recorriam a alimentos costeiros coletáveis, como os moluscos, nas épocas em que
a disponibilidade de cormos e frutas era mínima, ou seja, durante o inverno e no
início da primavera. Embora os testemunhos a esse respeito estejam longe de
ser completos, a análise das idades dos restos de focas e de dassies no momento
em que foram abatidos é sugestiva. Os estudos de Shackleton sobre as conchas
de Nelson Bay Cave, no extremo sul do Cabo
64
fornecem outras indicações
relativas a esse movimento sazonal. A medição da quantidade de isótopos de
61 SPARRMAN, A. 1789. p. 104; BARROW, A. 1801 -4. p. 159; THUNBERG, C. P. 1795. p. 197.
62 CARTER, P. L. 1970. pp. 55 -8.
63 PARKINGTON, J. E. 1972. pp. 223 -43.
64 SHACKLETON, N. J. 1973. pp. 133 -41.
732
África Antiga
oxigênio nos concheiros e a comparação com as atuais variações de temperatura
na superfície do oceano persuadiram o dr. Shackleton de que os concheiros
analisados se acumularam apenas durante o inverno. Muitas pesquisas ainda
deverão ser realizadas para documentar com maior precisão o comportamento
de ajustamento dos San na tentativa de assegurar um equilíbrio na obtenção de
recursos durante o ano todo, mas podemos nos valer, para ilustrar essa questão,
do comentário de Lichtenstein, que reconhece a importância do fator ecológico.
Segundo ele, mesmo as figuras mais esquálidas e miseráveis” podiam tornar -se
seres totalmente diferentes apenas “mudando de um local para outro
65
.
Tanto os Kung como os G/wi do Calaari restringiam o uso de certos recursos
às épocas do ano em que não podiam contar com alternativas regularmente
disponíveis. Como se pode concluir, o valor de um recurso está intimamente
ligado ao número de alternativas dispoveis e também a seu sabor, valor
nutritivo e facilidade de coleta. Parece provável que os San instalados mais
ao sul tenham utilizado seus recursos de maneira análoga, economizando os
alimentos coletados de modo a manter um abastecimento regular. Nessa área
os testemunhos documentados nos registros arqueológicos ainda são poucos,
mas um deles pode ser encontrado na diferença de frequência de ossadas de
caça de pequeno porte, como dassies e tartarugas, entre os sítios do litoral e do
interior, no Cabo ocidental. Enquanto nos sítios interioranos, como em De
Hangen, tartarugas e dassies são os animais mais comumente representados, em
Elands Bay Cave, na costa, ambos são comparativamente muito raros
66
. Em
parte, isso pode ser decorrência de uma variação sazonal na disponibilidade de
caça, especialmente no caso dos animais hibernantes, como a tartaruga, mas com
certeza resulta também da presença, na costa, de uma série de pequenos animais,
como peixes, lagostas, pássaros marinhos, representando uma fonte alternativa
de alimento. Ainda não foram detectados exemplos correspondentes entre os
alimentos vegetais, embora o mesmo raciocínio possa explicar as diferenças
na composição dos restos vegetais em sítios do interior, como De Hangen e
Diepkloof, no Cabo ocidental
67
.
se apontou repetidas vezes
68
a tendência dos caçadores -coletores a se
deslocarem em grupos de tamanho variável a fim de poder maximizar o
aproveitamento dos recursos: dividiam -se em pequenas unidades familiares
65 LICHTENSTEIN, H. 1812. p. 45.
66 PARKINGTON, J. E. 1972.
67 PARKINGTON; J. E. Tese de doutoramento não publicada.
68 LEE, R. B. & DE VORE, I. 1968.
733
A África meridional: caçadores e coletores
quando os recursos escasseavam, e fundiam -se em agrupamentos maiores quando
a forma de subsistência requeria o uso de mão de obra numerosa ou quando
os recursos estivessem tão concentrados que possibilitassem o sustento de uma
população mais densa. Essas táticas serviam, além do mais, para reforçar os laços
de parentesco entre grupos vizinhos, que tinham, nesses reencontros ocasionais,
a oportunidade de trocar gêneros alimentícios, inovações tecnológicas ou mesmo
mulheres, por meio das quais a teia de obrigações de parentesco se tecia. Em
épocas de catástrofes locais, essas obrigações constituíam o cordão umbilical que
permitia a um grupo sobreviver usando temporariamente os recursos de outro.
Ademais, o logo surgissem conflitos interpessoais, uma das partes envolvidas
podia abandonar o grupo e juntar -se provisória ou definitivamente a um outro
onde tivesse parentes. Embora o reconhecimento dessas características seja ainda
um objetivo das pesquisas arqueológicas, no momento as informações mais
explícitas sobre elas m dos relatos históricos ou, como querem alguns, da arte
rupestre.
Lichtenstein, provavelmente o mais perspicaz observador da organização
social san entre os primeiros viajantes, observou que:
Famílias isoladas formam associões fechadas em pequenas hordas [...] as
dificuldades encontradas para satisfazer até mesmo as necessidades mais elementares
da vida excluem a possibilidade de formar sociedades maiores; às vezes essas famílias
são obrigadas a se separar porque o mesmo local não comporta o sustento de todos”
69
.
Referindo -se ainda ao grupo caçador -coletor, diz ele:
“Normalmente uma horda é formada pelos diferentes membros de uma única família;
ninguém exerce qualquer poder sobre os demais ou deles se distingue [...] cada qual
deixa sua horda e se liga a outra a seu bel -prazer [...] existem poucas relações entre as
distintas hordas; raramente elas se unem, salvo para alguma empresa extraordinária,
para a qual se tornam necessárias as forças combinadas de um grande número de
indivíduos. Em sua maioria as hordas mantêm -se distantes umas das outras, pois
quanto menor seu número mais fácil é a provisão de alimentos”
70
.
Note -se que esses comentários sobre o tamanho, a composição, a divisão e
a fusão de grupos, bem como sobre os arranjos territoriais e o sistema social
igualitário são virtualmente idênticos aos que antropólogos profissionais fizeram
69 LICHTENSTEIN, H. 1812. p. 193
70 LICHTENSTEIN, H. 1812. pp. 48 -9.
734
África Antiga
duzentos anos mais tarde acerca de grupos manifestamente aparentados do
Calaari
71
.
Um estudo das dimensões de grupos representados nas pinturas rupestres
do Cabo ocidental revelou a média de aproximadamente catorze pessoas para
cada um, cifra muito semelhante à registrada nos diários dos comandos do
final do século XVIII
72
. Essa média provavelmente corresponde à da horda de
Lichtenstein, que teria variado entre dez e trinta pessoas, enquanto os números
mais baixos ocasionalmente encontrados seriam relativos ao que tudo indica, a
grupos de trabalho de homens ou mulheres ocupados em suas tarefas diárias. No
entanto, encontram -se às vezes pinturas rupestres que apresentam trinta e até
mesmo quarenta homens numa única cena, por certo retratando uma reunião de
cem ou mais pessoas (ver fig. 5), o que nos deixa tentados a interpretá -las como
traduzindo a fusão periódica de grupos acima referida. Seria particularmente
interessante poder verificar se os grandes grupos representados se ocupavam
preponderantemente com atividades não -ecomicas, como a dança, e se
estavam instalados em áreas tidas como de alto potencial de alimentação sazonal.
Infelizmente, como não dispomos ainda dessas informações, permanecemos
no terreno da pura hipótese. A cadeia de montanhas do Cabo ocidental é uma
dessas áreas cuja abundância de recursos coletáveis, como mel, lagartas, frutas,
bulbos e tartarugas, teria permitido aos grupos acamparem próximos uns dos
outros durante os meses de verão, e restabelecer, assim, antigos laços, bem como
trocar presentes. Um pequeno lote de conchas de mexilhão embrulhadas numa
folha encontrado na caverna de De Hangen parece ter sido um valioso artigo de
troca, a ser transportado para o interior
73
. Certamente o potencial de inverno da
bacia do Karroo e do strandveld (litoral) complementaria o potencial de verão da
cadeia montanhosa que os separa. O reconhecimento de tais sistemas dependerá
do resultado dos estudos sobre plantas e animais ora em andamento.
O armazenamento de gêneros alimentícios em épocas de abundância para
os períodos de escassez não é característica dos grupos mais recentes do Calaari,
que com efeito, parecem ter considerado o meio ambiente como uma despensa
natural, sempre capaz de proporcionar alguma combinação de alimentos que,
para ser complementada, não exige grandes esforços. Ao que parece, planejando
cuidadosamente a busca anual dos recursos disponíveis e guardando os alimentos
mais comuns para os tempos difíceis, a necessidade de estocar mantimentos ficava
71 THOMAS, E. M. 1959.
72 MAGGS, T. M. O’C. 1973. pp. 49 -53.
73 PARKINGTON, J. E. & PÖGGENPOEL, C. 1971.
735
A África meridional: caçadores e coletores
minimizada. De modo geral, o alimento era colhido e consumido no mesmo dia,
ou em poucos dias, em casos excepcionais, como, por exemplo, quando se caçava
um animal de grande porte. Mais para o sul, a situação parece ter sido similar,
porquanto o raras as evincias de fossas de estocagem nos registros arqueogicos
e, por seu turno, os primeiros viajantes o mencionam a armazenagem como um
aspecto importante da subsistência dos San. Kolb, que teve acesso às informações
de diversos observadores da vida dos Khoi -Khoi e dos San no final do século
XVII, ressaltou que:
“Embora os campos abundem em frutas e raízes muito saudáveis e nutritivas, que eles
poderiam armazenar em grande quantidade para a eventualidade de um dia chuvoso,
é costume das mulheres [...] apanhar apenas a quantidade [...] que satisfaça por um
dia as necessidades de sua família
74
.
Outros especialistas antigos mencionam a estocagem de gafanhotos secos,
raízes de cana moídas (espécie de Salsola) e damascos secos, itens provavelmente
o tão importantes, do ponto de vista econômico, quanto as raízes, os tubérculos
e os bulbos. No cabo meridional vestígios, ainda não publicados, de numerosas
fossas de estocagem associadas aos sítios das cavernas dos San
75
. Relatos ainda não
confirmados sugerem que as sementes encontradas nessas fossas seriam coletadas
mais por fornecer óleo do que para servir de alimento.
As evidências até agora apresentadas levam a crer que os San se constituíam
em pequenos grupos móveis altamente organizados, tendo um conhecimento
profundo dos recursos disponíveis e de sua variação no tempo e no espaço. A base
de subsistência, o conjunto das técnicas de caça, pesca e coleta e as estratégias
de povoamento m sendo crescentemente documentados com dados das mais
variadas fontes. Conforme ressaltou Lee, a impressão de que as condições de
subsistência dos caçadores -coletores beiravam o desastre revelou -se em geral
muito distante da verdade. Em 1798, no Bokkeveld, Barrow entrevistou uma
mulher já idosa (não se sabe se khoi -khoi ou san) e escreveu a respeito:
“Quando lhe perguntamos se sua memória a transportaria de volta ao tempo em que
chegaram os primeiros cristãos, ela assentiu com a cabeça e disse ter boas razões para
lembrar -se disso, pois antes de ter ouvido falar dos cristãos ela não conhecera a falta
de provisões, enquanto agora estava difícil obter o mais simples bocado
76
.
74 Apud SCHAPERA, I. 1933. p. 205.
75 DEACON, H. J. Comunicação pessoal.
76 BARROW, J. 1801 -4. pp. 398 -9.
736
África Antiga
Os pastores khoi -khoi
Nosso conhecimento sobre a caça e a coleta em contextos ambientais
definidos torna -se, semvida, particularmente incompleto quando nos
reportamos ao período imediatamente pré -colonial, que se inicia em cerca de
-2000. Em todos os sítios assinalados no mapa com exceção de Bonteberg e de
Gordons Bay (onde não foram ativamente procurados), encontraram -se restos
de animais domésticos num contexto da Idade da Pedra Recente. Como não
existem raças ovinas, caprinas ou bovinas de origem local e considerando que
a sua introdução é anterior ao contato com os pastores europeus ou negros, é
lícito admitir que os animais de pastoreio são oriundos de outra fonte. As mais
antigas datações por radiocarbono relativas aos animais domésticos e à cerâmica
de sítios localizados entre Angola e Cabo oriental estão relacionadas na tabela
a seguir, na qual se incluem também as informações, bastante esparsas, sobre
os mesmos itens relativos a áreas do interior e, para referência, as datas mais
antigas hoje disponíveis com respeito à penetração na África austral de grupos
de língua bantu que praticavam a agricultura mista e conheciam o uso do ferro.
Embora o quadro apresentado possa vir a mudar com novas pesquisas, parece
válido arriscar algumas interpretações quanto à origem e à língua dos pastores
khoi -khoi.
O que de início nos chama a atenção é que nas jazidas situadas entre Angola
e o Cabo meridional os fragmentos de cerâmica indicam ter ela surgido pela
primeira vez no período de -2000 a -1600. Essa datão deverá tornar -se
mais precisa em vista da descoberta de novos fragmentos, sendo possível que
a datação por radiocarbono venha indicar futuramente as mesmas datas para o
aparecimento de exemplares em toda a região. Apenas quatro datas anteriores
a -2000 foram assinaladas, havendo boas razões para se acreditar que seja este
um caso de contaminação
77
ou que se trata de proto -cerâmica
78
.
Uma segunda observação não menos importante é que, onde quer que
se tenha pesquisado especificamente vesgios de animais domésticos, os
registros arqueológicos mostram serem eles o antigos quanto a cerâmica.
Essa constatação pode o se aplicar a cada uma das jazidas considerada
isoladamente mas é verifivel quando se combinam as datas de sítios vizinhos
para se estabelecer sequências locais. É possível que uma tal abordagem pareça
77 SAMPSON, C. G. 1974.
78 SCHWEITZER, F. R. & SCOTT, K.1973; MAGGS, T. M. O’C. Comunicação pessoal; WADLEY.
Comunicação pessoal.
737
A África meridional: caçadores e coletores
 . Mapa da África meridional mostrando a distribuição de sítios da Idade da Pedra Recente. A
maioria deles proporcionou fragmentos de cerâmicas ou restos de animais domésticos datados dos primeiros
séculos da Era Cristã.
despropositada; na realidade, ela vem a ser uma forma de superar problemas
devidos simplesmente ao sistema de amostragem. Fica implícito, portanto,
que a cerâmica e os animais domésticos se teriam difundido rapidamente, ao
mesmo tempo e na mesma área. A palavradifundido” parece inevitável, pois,
se a cerâmica pode ter sido inventada in loco, obviamente o mesmo não é o
caso dos animais domésticos. Am disso, a cerâmica não apresenta sinais de
corresponder aos primeiros rudimentos, ou a simples tentativas incipientes de
uma inovão tecnológica.
Um ponto de considerável importância, embora ainda não esteja assentado,
é que as datas que ligam os primeiros animais domésticos à cerâmica se
relacionam com a planície costeira e as cadeias montanhosas adjacentes, ao
longo das costas dos oceanos Atlântico e Índico ocidental. Conquanto isso
possa ser uma decorrência da compreensível preocupação dos arqueólogos com
as sequências de depósitos das cavernas areníticas do Folded Belt do Cabo,
alguma razão para se supor que a ausência de datas mais antigas a leste do
738
África Antiga
 . As mais antigas datas conhecidas para o aparecimento da cerâmica e dos animais domésticos
nos contextos da Idade da Pedra Recente na África austral.
739
A África meridional: caçadores e coletores
rio Gamtoos e ao norte do Folded Belt é significativa
79
. De qualquer modo, a
associação coincide com a chegada, historicamente documentada, dos pastores
conhecidos genericamente como Khoi -Khoi
80
.
Embora as pesquisas sobre a difusão do ferro e dos animais domésticos na
África austral prossigam ao longo da rota oriental, as evidências atualmente
disponíveis sugerem os séculos IV ou V da Era Cris como época de sua
introdução ao sul do Limpopo
81
. Assim, a série de datas da Idade da Pedra Recente
em que a cerâmica e a domesticação de animais aparecem concomitantemente
antecede a Idade do Ferro ao norte e a leste em duzentos ou trezentos anos,
intervalo que seguramente não deve ser imputado à datação por radiocarbono.
Esse quadro baseado nos fatores contexto, distribuição e cronologia parece
implicar que os povos pastores que conheciam a cerâmica se expandiram
rapidamente no Cabo meridional seguindo a rota da costa ocidental por volta
de -2000. Certamente, grupos de caçadores integraram -se às sociedades pastoris,
e, ao que se imagina pois são poucas as informações documentadas –, com
grandes repercussões na demografia e na economia. Tudo leva a crer que esses
invasores seriam os pastores khoi -khoi.
Evidentemente, é de grande interesse especular sobre as origens, causas
e circunstâncias dessa invasão, mas, devido à escassez de dados, as hipóteses
deverão ter larga margem de imprecisão. As pesquisas realizadas na Zâmbia e
no Zimbábue tenderam a estabelecer uma distinção muito rígida entre a Idade
do Ferro e a Idade da Pedra, e, em consequência, as camadas superficiais das
cavernas, abrigos ou sítios a céu aberto que continham cerâmica foram o mais das
vezes descritas como da Idade da Pedra com contaminação da Idade do Ferro. O
fato é que nessas áreas pode ter havido populações pertencentes à Idade da Pedra
no que respeita ao seu caráter técnico, mas cuja economia incluísse o pastoreio de
animais domésticos e a manufatura de uma cerâmica reconhecidamente distinta
da produzida pelos agricultores locais que utilizavam o ferro. No Zimbábue,
a chamada cerâmica Bambata é geralmente considerada distinta da cerâmica
característica da Idade do Ferro, e muitas vezes foi encontrada ao lado de objetos
wiltonienses, ou seja, da Idade da Pedra Recente. Que isso reflita ou não uma
expansão de pastores num período anterior à Idade do Ferro é discutível, mas
79 SAMPSON, C. G. 1974; DERRICOURT, R. M. 1973 -a. pp. 280 -4; CARTER, P. L. 1969; CARTER,
P. L. & VOGEL, J. C. 1971.
80 MAINGARD, L. F. 1931. pp. 487 -504; ELPHICK, R. H. 1972.
81 KLAPWIJK, M. 1971 pp. 19 -23; MASON, R. J. 1973. p. 324; BEAUMONT, P. B. & VOGEL, J. C.
1971.
740
África Antiga
pode -se buscar a confirmação dessa ideia na distribuição de pinturas de carneiros
de cauda grossa originários do Zimbábue, que se acredita estarem associados
à Idade da Pedra. Eram esses carneiros que os pastores khoi -khoi do Cabo
criavam nos séculos XV, XVI e XVII da Era Cristã.
Se a expansão dos povos criadores de carneiros da Idade da Pedra atingiu o
Zimbábue e a Zâmbia, aumenta a possibilidade de serem esses povos originários
da África oriental, onde, segundo algumas hipóteses, se encontrariam seus
antecedentes culturais, linguísticos e mesmo biológicos. A existência de povos
pastores fabricantes de cerâmica com asas, a sobrevivência das línguas com
consoantes diques” entre os Hatsa e os Sandawe e as características pretensamente
“Camíticas” reivindicadas para as populações hotentotes”, tudo isso foi apontado,
em distintas ocasiões, como evidência de uma origem norte -oriental dos povos
pastores da África austral que desconheciam o uso do ferro. Conquanto essas
conexões sejam postas em vida ou mesmo, em alguns casos, rejeitadas, a
continuidade de traços como a cerâmica, a criação de ovelhas, os tipos de ovinos
e bovinos, uma tecnologia que desconhecia o uso do ferro, os objetos de pedra
e possivelmente a língua, se demonstrada, deporia fortemente a favor da tese
segundo a qual os pastores khoi -khoi são originários da África oriental. Isso, por
sua vez, sugeriria que as mesmas rupturas que determinaram os movimentos de
povos de língua bantu, numa vaga predominantemente oriental em direção ao
sul, poderiam também ter induzido um movimento para oeste, talvez um pouco
anterior ou simplesmente mais rápido, de povos pastores não -agricultores, em
direção ao Cabo. A ausência de cerâmica “hotentote ou “da costa do Cabo
no Transvaal, na Suazilândia, em Natal, no Estado Livre de Orange ou no
Transkei refletiria meramente o “fato de que a agricultura seria um objetivo
mais exequível nessas regiões melhor irrigadas por chuvas de verão, e também de
que povos pastores não -agricultores com acentuada característica de mobilidade
não encontravam tantos obstáculos em se embrenhar pelas terras áridas da
Namíbia e do Cabo setentrional e, daí, para as pastagens das regiões ocidentais
e meridionais do Cabo. É possível supor que o carneiro foi introduzido pela rota
ocidental; o gado bovino teria sido obtido pelos pastores khoi -khoi no leste
junto às populações de língua bantu então residentes na região do Transkei. Essa
hipótese pode ser corroborada pela abundância de pinturas do Cabo ocidental,
presumivelmente datadas da Idade da Pedra Recente, retratando carneiros de
cauda grossa e pela ausência de pinturas análogas representando bovinos, as
quais, no entanto, são encontradas nas áreas hoje habitadas por povos de língua
bantu. Além disso, ainda não está solidamente documentada a presença de ossos
741
A África meridional: caçadores e coletores
de bovinos tão antigos quanto as ossadas de carneiro nas escavações de sítios da
Idade da Pedra Recente realizadas no Cabo meridional.
Há, pois, razões para se supor que povos criadores de carneiros, aparentados
com caçadores que utilizavam a pedra e fisicamente distintos dos povos de língua
bantu, tendo obtido esses animais e a cerâmica dos vizinhos da África oriental,
migraram para oeste e depois para o sul em busca de pastagens, chegando
finalmente ao Cabo, pouco depois de -2000. É possível que tais populações
tenham se incorporado, lutado ou simplesmente aprendido a conviver com os
povos habitantes da região, e posteriormente tenham encontrado e se misturado
aos povos de língua bantu na região que corresponde hoje ao Transkei. A
pequena quantidade de cerâmica, de objetos de pedra e de ossadas animais ao
longo da rota acima descrita pode indicar tão somente o caráter acentuado de
mobilidade dessas populações, cujos vestígios estariam tão dispersos que seriam
praticamente invisíveis aos olhos do arqueólogo.
Infelizmente são ainda muito reduzidas as escavões de sítios que
indiscutivelmente foram habitat daqueles pastores, e, a menos que os concheiros
em terreno aberto, os objetos de pedra espalhados na superfície ou os vestígios
de ocupação de abrigos sob rochas venham a revelar -se como traços de sua
existência, a ecologia dos grupos khoi -khoi continua a ser assunto para futuras
investigações arqueológicas. Quanto às informações sobre sua dieta, tecnologia
e organizão, resta -nos confiar nos relatos dos primeiros colonizadores e
viajantes europeus. Um deles, Willem Ten Rhyne, botânico e médico a serviço
da Companhia Holandesa das Índias Orientais, por ocasião de uma breve visita
ao Cabo em 1673, escreveu o seguinte a respeito dos Khoi -Khoi que habitavam
a região:
“Sua dieta é vegetariana [...] dos brejos e taludes arrancam íris e espardanas; com as folhas
dessas plantas recobrem suas choupanas; os bulbos o usados como o [...]. A única
interruão nessa dieta ocorre ao ensejo de um casamento ou nascimento, quando matam
um boi ou no nimo um carneiro para dar uma festa aos amigos a menos que tenham
caçado algum animal selvagem [...]. Bebem o leite das vacas e das cabras”
82
.
outras referências semelhantes a sugerir que os Khoi -Khoi eram pouco
propensos a sacrificar seus animais, salvo em ocasiões específicas, o que é
ilustrado por sua dieta à base de leite e vegetais. Em grande parte essa dieta
era igual à dos San baseada na coleta de rizomas e bulbos, e complementada
ocasionalmente com carne de animal doméstico ou selvagem –, porém acrescida
82 Apud SCHAPERA, I. 1933. p. 129.
742
África Antiga
 . Rebanho de carneiros de cauda grossa. Essa raça de carneiros era criada pelos pastores khoi e
foi observada pelos primeiros colonizadores do Cabo.
F . Galeão pintado nas montanhas do Cabo ocidental, presumivelmente visto em Saldanha
Bay ou em Table Bay, onde esse tipo de embarcação era usado desde o início do século XVII da Era Cristã.
743
A África meridional: caçadores e coletores
do consumo regular de leite. Isso explicaria o fato de os caçadores sem acesso
ao leite, privados assim de suas propriedades nutritivas, serem frequentemente
descritos pelos antigos viajantes como menores do que os pastores
83
.
Uma vez que os Khoi -Khoi dependiam tanto dos alimentos coletados e do
seu complemento, a carne de caça, não surpreende encontrar -se entre eles uma
tecnologia muito semelhante à dos San, embora se possa suspeitar que a relativa
dependência de técnicas específicas tenha variado segundo as características
particulares de sua economia. Assim, a menção do arco e da flecha é mais
frequente nas descrições dos San, mas não resta dúvida que os Namáqua, no final
do século XVII, e os Gonáqua, no final do século XVIII, usavam arcos, flechas
envenenadas e aljavas
84
. Entretanto é significativo que, nos relatos referentes a
esses dois últimos povos, os assegays (lanças) sejam mencionados como revestindo
igual importância, ao passo que o mesmo não ocorre nos relatos sobre os San.
Le Vaillant conta que os Gonáqua usavam “armadilhas e laços”, que colocavam
em pontos convenientes para apanhar animais de grande porte
85
. Um outro tipo
de armadilha, as covas de grandes dimensões descobertas nas proximidades do
rio Brak, no Cabo Meridional e em outras partes, foi atribuído a “hotentotes”
provavelmente pastores khoi -khoi
86
. Mais ainda, alguns dos antigos viajantes
referem especificamente grupos de pastores que empregam a nassa para a pesca
no Orange, arrancam bulbos e tubérculos com bastões para escavar, usam bolsas
para transportar gêneros alimentícios e maças de madeira para matar focas, todo
um conjunto de práticas que não os distinguem dos caçadores -coletores san.
As três características talvez não compartilhadas com os caçadores são a
construção de choças mais sólidas, de caniços, a manufatura da cerâmica e o
conhecimento da metalurgia. Como mudassem de uma pastagem para outra
em grandes grupos, os Khoi -Khoi não se instalavam em cavernas, e parece que
construíam cabanas abobadadas com uma estrutura de balizas, sobre a qual
colocavam esteiras de caniços ou mesmo peles. Essas cabanas dispunham -se
geralmente num plano circular, e repetidas referências à prática de, à noite,
trancar -se o gado no curral (kraal) formado por essa aldeia em círculo. Chegada
a época de mudar, as balizas e as esteiras eram simplesmente colocadas nas
costas dos bois e transportadas para o novo habitat
87
. No que respeita à cerâmica
83 THOM, H. B. 1952. 8 v. I, p. 305.
84 THOM, H. B. 1952. 8. v. III, pp. 350 -3; LE VAILLANT, F. 1790. pp. 306 -9.
85 LE VAILLANT, F. 1790. p. 306.
86 THUNBERG, C. P. 1795. p. 177.
87 SPARRMAN, A. 1789. pp. 138 -9.
744
África Antiga
e à metalurgia, a situação não se apresenta de modo tão evidente. Vários dos
primeiros escritores mencionam a manufatura de “vasos de barro extremamente
frágeis e [...] quase todos modelados da mesma forma”
88
, mas nenhum relato
os atribui especificamente aos San. Ten Rhyne, é fato, escreveu que somente
os mais ricos dentre eles fazem vasos de cerâmica”, mas o significado dessa
observação é obscuro
89
. Os Namáqua do final do século XVI e os Gonáqua
do final do século XVIII fabricavam cerâmica, e é provável que as observações
de Kolb, Grevenbroek e Ten Rhyne se refiram aos Khoi -Khoi do Cabo no
final do século XVII
90
. Sentimo -nos tentados a admitir que o aparecimento da
cerâmica nos abrigos sob rochas e nas cavernas do Cabo nos primeiros séculos
da Era Cristã assinala a chegada dos pastores fabricantes de cerâmica àquela
região. Talvez os potes de gargalo cônico, com as características asas reforçadas
internamente, sejam o tipo -padrão referido por Le Vaillant. É essa uma das
formas mais recorrentes nos sítios do litoral do Cabo e arredores
91
; seu formato
e as asas podem ser decorrência da necessidade de recipientes para carregar
leite. Outros usos, incluindo o derretimento de gorduras, são mencionados na
literatura antiga
92
.
Não evidências de que a metalurgia fosse uma atividade comum entre
os Khoi -Khoi do Cabo antes da chegada dos colonizadores europeus, mas é
certo que os Namáqua no século XVII eram hábeis no trabalho do cobre,
confeccionando contas e discos com esse metal. Em seu primeiro contato com
os Namáqua da Colônia do Cabo, em 1661, Van Meerhoff mencionou discos de
cobre... correntes de cobre e contas de ferro
93
, mas não fez nenhum comentário
sobre onde ou como se faziam essas peças. Em seu estudo sobre os Khoi-
-Khoi do Cabo, Elphick argumentou de maneira persuasiva que os Namáqua
provavelmente sabiam trabalhar o cobre e exploravam ativamente os minérios
da Namaqualândia
94
. Acrescenta ele que “o mesmo se pode dizer, com um grau
de certeza apenas ligeiramente menor, dos Khoi do Cabo
95
.
88 LE VAILLANT, F. 1790. p. 311.
89 SCHAPERA, I. 1933.
90 KOLB, P. 1719. p. 251.
91 RUDNER, J. 1968.
92 LE VAILLANT, F. 1790. p. 311.
93 Apud THOM, H. B. 1952 -8. p. 353.
94 ELPHICK, R. H. 1972.
95 ELPHICK, R. H. 1972. p. 115.
745
A África meridional: caçadores e coletores
Os efetivos dos grupos de pastores khoi -khoi podem ter variado sazonalmente,
mas não dúvida de que eram mais numerosos do que os dos cadores-
-coletores san. Paterson deparou com aldeias de dezenove, dezoito, onze e seis
choupanas entre os Namáqua
96
, enquanto Le Vaillant descreveu uma horda
gonáqua, perto do rio Great Fish, onde viviam cerca de quatrocentos indivíduos
em quarenta choupanas construídas num local de aproximadamente 600 pés
quadrados”, as quais “formavam vários crescentes e se comunicavam umas com
as outras através de pequenos recintos a elas anexos”
97
. Os Cochóqua, comentou
Dapper:
“Residem sobretudo nos vales de Saldanha Bay ou em suas proximidades [...] estão
instalados em 15 ou 16 aldeias, cerca de um quarto de hora distantes umas das outras,
e ao todo habitam 400 ou 450 choupanas [...] cada aldeia consiste mais ou menos em
30, 36, 40 ou 50 choupanas, dispostas em círculo a pouca distância umas das outras”
98
.
Dapper estimou o rebanho em cerca de 100 mil bovinos e 200 mil ovinos. Vivendo
em grandes comunidades, os Khoi -Khoi obviamente precisavam deslocar -se com
freqncia para garantir sua dieta vegetal e a pastagem para os animais. Quarenta
mulheres khoi -khoi haviam de exaurir uma localidade muito mais depressa do que
cinco mulheres san. Le Vaillant registrou essas migrações indispensáveis a que eles
[os Khoi -Khoi] se vêem forçados em decorncia da mudaa das estações”
99
; com
relação aos Namáqua, o governador Van der Stel anotou que, conforme a estão
do ano, eleso para as montanhas, retornando depois aos vales e à praia, à procura
de melhores pastagens
100
. Fica evidente que nos primeiros tempos de sua fixação
em Table Bay, os poderosos “homens de Saldanha ocupavam as pastagens da baía
durante os verões secos, mas deslocavam -se para o norte, na dirão de Saldanha
Bay, em outras épocas do ano. Em suma, os Khoi -Khoi erravam continuamente
por montes e vales e tinham à sua disposão grandes extensões de savanas ervosas,
especialmente a planície costeira e os vales do cintuo montanhoso. Sparrman
menciona movimentos para as pastagens do Karroo, certamente após as chuvas de
inverno, e observa que a experiência constante e inequívoca dos colonos coincide
nesse ponto com a ptica dos Hotentotes
101
.
96 PATERSON, W. 1789. pp. 57, 104, 122, 125.
97 LE VAILLANT, F. 1790. p. 289.
98 Apud SCHAPERA, I. 1933. p. 23.
99 LE VAILLANT, F. 1790. p. 328.
100 Apud WATERHOUSE, G. 1932. p. 162.
101 SPARRMAN, A. 1789. p. 178.
746
África Antiga
No Longkloof, adiante de Swellendam, em 1775, Sparrman fez observações
minuciosas, as quais sugerem que os pastores khoi -khoi queimavam o veld
com regularidade a fim de estimular o crescimento de forragem e de plantas
geófitas. Essa forma de explorar a savana tinha o efeito de manter a vegetação
num estado de pré -clímax, favorecendo a predominância das plantas úteis. Seu
comentário faz menção ao:
“Fogo, do qual se utilizam colonos e hotentotes para limpar os campos de ervas
daninhas. Desse modo, o terreno é [...] praticamente desnudado, mas só para que em
seguida possa ostentar uma roupagem muito mais bonita, adornada por vários tipos
de gramíneas e ervas anuais, lírios majestosos, antes sufocados por arbustos e plantas
perenes [...] formando assim, com suas jovens vergônteas e folhas, uma pastagem
encantadora e verdejante para uso dos animais de caça e do gado”
102
.
Essa prática parece ter precedido o povoamento colonial, porquanto os primeiros
visitantes do Cabo notaram a frequente ocorrência de grandes inndios de matas,
tendo o comandante Van Riebeeck aprendido a relacionar os incêndios nas montanhas
distantes com a iminente chegada dos grupos khoi -khoi.
As relações entre os San e os Khoi -Khoi caracterizavam -se tanto pelo conflito
como pela cooperação. Nos primeiros anos as a fundação do povoamento de Table
Bay, Van Riebeeck ouviu frequentemente falar de “um certo povo de pequeníssima
estatura que subsistia parcamente, de modo muito selvagem, sem choupanas, gado
ou qualquer outra coisa no mundo
103
. Esse povo, eno conhecido como nqua
ou Soáqua, em parte vivia do roubo do gado dos pastores. Um grupo instalado no
rio Berg era conhecido como Obíqua, que significa “homens ladrões”. No entanto,
à medida que os colonizadores o penetrando o interior e conhecendo melhor as
relações entre os grupos, surgem referências ocasionais a uma forma de clientelismo
pela qual os caçadores san acabavam por subordinar -se a grupos khoi -khoi mais
numerosos. Van der Stel escreveu:
“Esses nqua representam o mesmo papel dos pobres da Europa: cada tribo de hotentotes
contrata alguns deles para trazer notícias da aproximação de alguma tribo estranha. Nada
roubam dos kraals de seus patrões, mas sim, e regularmente, de outros kraals”
104
.
Kolb, escrevendo cerca de vinte anos depois, confirmou que os Sônqua [...]
adotam como meio de vida, na maioria dos casos, a profiso militar, e por isso fazem-
102 SPARRMAN, A. 1789. p. 264.
103 Apud THOM, H. B. 1952 -8. p. 305.
104 Apud WATERHOUSE, G. 1932. p. 122.
747
A África meridional: caçadores e coletores
 . Carroças, cavalos
e trekkers (migrantes) observados
quando se dirigiam para as
pastagens entre montanhas do
Cabo ocidental no princípio do
século XVIII da Era Cristã.
F . Grupo de
pequenos ladrões de gado armados
com arcos e echas, defendendo
sua presa contra guras maiores
munidas de escudos e lanças. A
distião reete possivelmente a
diferea entre os cadores san
e os proprietários negros de gado
nos distritos centrais e orientais da
África austral.
748
África Antiga
-se mercerios das outras nões hotentotes em tempos de guerra, servindo -os em
troca de uma ração dria
105
. Esses nqua eram elementos dos San que se haviam
integrado nas sociedades khoi -khoi. Elphick argumenta, de forma convincente, que
a expansão dos grupos khoi -khoi para os territórios antes pertencentes aos San teria
envolvido um ciclo de integração que passaria pela guerra, pelo clientelismo, pelo
casamento e pela assimilação
106
. Afigura -se provável que a introdução do pastoreio
na África meridional teria implicado tanto os movimentos de populões como
a assimilão de caçadores -coletores indígenas, conforme sugere Elphick, mas a
de monstração desse duplo processo será uma tarefa delicada para os arqueólogos.
As relações entre os San, os Khoi -Khoi e outros grupos, como os colonizadores
imigrantes ou os agricultores que conheciam o uso do ferro, eram com certeza
tão variadas como as que se estabeleceram entre os San e os Khoi -Khoi. No leste,
tanto os San como os Khoi -Khoi foram expulsos de suas terras e exterminados
ou assimilados pela sociedade colonial. Grande número de pinturas rupestres do
Cabo ocidental retrata carroças cobertas com lona, cavaleiros montados e armas
dos agricultores em seus trek (carroças) de pioneiros (ver fig. 26.11). No oeste,
o conflito entre os agricultores da Idade do Ferro e os caçadores não está bem
documentado, mas ainda aqui as pinturas rupestres retratam roubos de gado
nos quais homens pequeninos, armados de arco, roubam pessoas representadas
em tamanho maior, armadas de lanças e escudos (ver fig. 26.12). Os últimos
estágios dessa interação acham -se registrados nas obras de colonos letrados que
se mudaram para Natal e nas encostas dos montes Drakensberg. Os pastores
khoi -khoi quem sabe tendo mais afinidades com as populações de língua
bantu, que praticavam uma agricultura mista, do que com os San parecem
ter estabelecido relações mais harmoniosas, por exemplo, com os grupos Xhosa
e Tswana. A descrão dos Gonáqua por Le Vaillant sugere uma tradição
de relões estreitas entre eles e os vizinhos xhosa, incluindo um número
considerável de casamentos entre membros dos dois grupos
107
. Portanto, seria
errôneo imaginar distinções econômicas, linguísticas, físicas ou culturais nítidas
entre os vários povos pré -históricos da África austral. Ainda mais improvável,
talvez, é a possibilidade de que tais distinções tenham coincidido exatamente
108
.
105 KOLB, P. 1719. p. 76.
106 ELPHICK, R. H. 1972.
107 LE VAILLANT, F. 1790. p. 264.
108 DERRICOURT, R. M. 1973b. pp. 449 -55.
C A P Í T U L O 2 7
749
Início da Idade do Ferro na África meridional
Introdução
Na África meridional
1
, o episódio cultural conhecido pelos historiadores
como Idade do Ferro Antiga assistiu à introdução de um gênero de vida que
contrastava vivamente com os anteriores e que marcou a história ulterior de
toda a região. Em princípios do primeiro milênio da Era Cristã, um movimento
considerável de populações trouxe à África meridional um povo agricultor
negroide cuja economia, modalidade de povoamento e talvez mesmo aparência
física e língua diferiam grandemente das dos antigos habitantes. Foi esse povo
que introduziu na área o conhecimento da metalurgia e da cerâmica. Este
capítulo tratará da natureza, da origem e do desenvolvimento dessas sociedades
da Idade do Ferro Antiga.
Os arqueólogos reconhecem hoje um amplo parentesco cultural entre as
comunidades que introduziram a cultura material da Idade do Ferro na África
meridional. Os vestígios deixados por essas sociedades são atribuídos a um
complexo industrial comum à Idade do Ferro Antiga na África meridional
2
, que
1 A área geográca abrangida por este capítulo (ver mapa) compreende Angola, a metade sul da Zâmbia,
Malavi, Moçambique, Botsuana, Zimbábue, Suazilândia e partes da Namíbia e da África do Sul. O leitor
notará também que as datações por radiocarbono não estão corrigidas.
2 SOPER, R. C. 1971, pp. 5 -37.
Início da Idade do Ferro
na África meridional
D. W. Phillipson
750
África Antiga
se distingue das indústrias posteriores tanto por sua coerência cronológica como
pela manifesta associação de sua cerâmica a uma tradição comum. A distribuição
desse complexo industrial da Idade do Ferro Antiga se estende muito além da
região da África meridional aqui considerada
3
. Numerosas subdivisões regionais
podem ser reconhecidas no interior desse complexo, com base, principalmente,
na variação estilística das cerâmicas; em muitas áreas, essas subdivisões são
confirmadas por traços culturais independentes. A tradição cerâmica da Idade
do Ferro Antiga parece ter sido introduzida nessa área nos primeiros séculos da
Era Cristã, tendo sobrevivido na maioria das regiões até a sua substituição por
tradições distintas e mais heterogêneas, que datam de um período posterior da
Idade do Ferro geralmente por volta do princípio do presente milênio. Essa
data terminal é variável: em certas regiões, a Idade do Ferro Antiga desaparece
no século VIII, enquanto em outras pode -se observar um considerável grau de
continuidade tipológica entre a Idade do Ferro Antiga e a cerâmica moderna
4
.
Por conveniência, no contexto da presente obra, elaborada em vários volumes,
assumi a tarefa de discutir as culturas da Idade do Ferro Antiga até a época em
que foram substituídas por outras culturas, sem, contudo, passar do século XI
da Era Cristã. Não abordarei, pois, os remanescentes mais tardios das culturas
da Idade do Ferro Antiga, que serão discutidos em outra parte, no contexto da
Idade do Ferro Recente.
É no quadro do complexo industrial da Idade do Ferro Antiga que um grande
número de traços culturais de primordial importância faz sua primeira aparição
na África meridional
5
. São eles, essencialmente, a agricultura, a metalurgia, a
cerâmica e as aldeias semipermanentes constituídas por casas feitas de barro
(daga) aplicado a arcabouços de varas ou estacas (pau a pique). Essas quatro
características condicionadas pela adequação do terreno e pela distribuição das
jazidas de minérios estão presentes em todos os sítios da região pertencentes ao
início da Idade do Ferro. A cultura material das sociedades dessa época assinala
uma ruptura repentina com a dos seus predecessores ou contemporâneos
da Late Stone Age. Tanto pela diversidade de seus componentes como pelo
fato de constituir uma entidade viável, pode -se demonstrar que essa cultura foi
introduzida na África meridional numa forma já totalmente concluída. É, pois,
evidente que seus antecedentes devem ser buscados, não no interior dessa região,
mas muito mais ao norte. Assim, nenhum sítio da África meridional forneceu
3 A abordagem mais recente é a de SOPER, R. C., op. cit.
4 PHILLIPSON, D. W. 1974, pp. 1 -25; 1975, pp. 321 -42.
5 Alguns desses traços difundiram -se rapidamente para além da área aqui considerada.
751
Início da Idade do Ferro na África meridional
 . África meridional: sítios da Idade do Ferro Antiga e sítios conexos mencionados no texto.
cerâmica que de alguma forma possa ser considerada ancestral da cerâmica da
Idade do Ferro Antiga. A metalurgia parece ter sido introduzida como uma
técnica acabada e eficaz numa área onde não indícios de um conhecimento
anterior dos rudimentos dessa tecnologia. Os animais domésticos e as plantas
cultivadas na Idade do Ferro Antiga eram espécies anteriormente desconhecidas
na parte sul do continente. Nestas condições e dado o seu aparecimento mais
ou menos simultâneo ao longo de uma região imensa, é difícil fugir à conclusão
de que a Idade do Ferro Antiga foi introduzida na África meridional por
um movimento de população rápido e substancial, portador de uma cultura
plenamente acabada cujo processo formativo ocorreu alhures.
Torna -se, portanto, claro que a Idade do Ferro Antiga representa apenas um
dos setores da atividade humana na África meridional no decorrer do primeiro
milênio da Era Cristã. Em muitas regiões as populações neolíticas conservaram
752
África Antiga
seu modo de vida tradicional, durante esse período, enquanto alguns de seus
homólogos fixados mais ao sul, para além dos limites meridionais da expansão
da Idade do Ferro Antiga, parecem ter adotado novos traços culturais que devem
ser vistos sobretudo como decorrentes do contato, direto ou indireto, com os
novos povoadores. Essas populações neolíticas e os grupos a elas relacionados
são estudados por J. E. Parkington, no Capítulo 26 do presente volume.
A reconstituição da Idade do Ferro Antiga na África meridional deve basear-
-se, antes de tudo, nos testemunhos arqueológicos. Ao contrário dos eventos
dos períodos posteriores da Idade do Ferro, os dessa época que corresponde
aproximadamente ao primeiro milênio da Era Cristã escapam ao alcance da
tradição oral. Como exposto em capítulo anterior, houve tentativas no sentido
de basear a reconstituição histórica das sociedades sem escrita da Idade do Ferro
Antiga dessa região em dados puramente linguísticos. No atual estágio dos
nossos conhecimentos, contudo, afigura -se preferível considerar as conclusões
da linguística histórica como um dado secundário em relação às sequências
inicialmente estabelecidas pela arqueologia.
Levantamento regional dos testemunhos aqueológicos
Zâmbia meridional, Angola e Malavi
O autor do presente capítulo empreendeu recentemente um estudo regional
sobre a Idade do Ferro Antiga na Zâmbia; um grande mero de grupos
distintos foi reconhecido, com base principalmente na tipologia da cerâmica a
eles associada
6
. Preocupam -nos aqui tão somente as peças provenientes da parte
sul do país. Podem distinguir -se dois grupos intimamente relacionados na região
do Copperbelt e no planalto de Lusaka. O grupo Chondwe, do Copperbelt,
caracteriza -se pelos vasos de cerâmica de bordas espessadas ou indiferenciadas,
cujos motivos decorativos mais frequentes são constituídos por fileiras de
impressões triangulares alternadas, formando um desenho em ziguezague em
falso relevo, por zonas cordiformes estampadas a pente delimitadas por largos
sulcos. Os sítios de aldeia que até agora forneceram cerâmicas desse tipo – cerca
de 20 estão distribuídos ao longo de rios e cursos de água, geralmente próximos
da linha das árvores dos dambos que orlam o curso superior dos tributários do
alto Kafue. As datações por radio -carbono dos sítios do grupo Chondwe em
6 PHILLIPSON, D. W. 1968 -a, pp. 191 -211.
753
Início da Idade do Ferro na África meridional
 . África meridional: sítios.
Kangonga e em Chondwe situam -nos entre os séculos VI e X da Era Cristã, mas
o estudo da tipologia das cerâmicas sugerem que alguns outros sítios poderiam
ser anteriores. O trabalho do ferro e do cobre é evidente em todo o período
correspondente aos sítios em questão. No entanto, parece que a exploração das
jazidas de cobre da região foi feita em pequena escala na Idade do Ferro Antiga,
embora se constituísse em foco de atração para amplos contatos comerciais
7
.
Ao sul, concentrados no planalto de Lusaka, ficam os sítios da Idade do
Ferro Antiga atribuídos ao grupo Kapwirimbwe, cuja cerâmica se distingue da
do grupo Chondwe pelo espessamento maior e mais frequente dos bordos e
pela extrema raridade das decorações estampadas a pente, substituídas por uma
7 MILLS, E. A. C. & FILMER, N. T. 1972, pp. 129 -45; PHILLIPSON, D. W. 1972 -a, pp. 93 -128.
754
África Antiga
variedade de desenhos entalhados. Na aldeia de Kapwirimbwe, 13 km a leste
de Lusaka, o período de ocupação, aparentemente breve, data do século V da
Era Cristã aproximadamente. Havia extensos remanescentes de estruturas em
daga desabadas, muitas das quais parecem ter sido fornos para a fusão de ferro.
Enormes quantidades de escórias e lingotes de ferro vieram confirmar a prática
da metalurgia do ferro extensiva nas vizinhanças imediatas. Os utensílios de
ferro ocorrem com uma frequência inabitual nos sítios da Idade do Ferro na
Zâmbia, mas parece que o cobre era desconhecido. Fragmentos de ossos indicam
a presença de gado
8
. O desenvolvimento ulterior do grupo Kapwirimbwe está
melhor ilustrado no sítio de Twickenham Road, num subúrbio a leste de Lusaka.
Nesse local criavam -se cabras domésticas e caçavam -se animais selvagens. Tal
como em Kapwirimbwe, a metalurgia do ferro era bastante desenvolvida, mas
é somente na fase final da Idade do Ferro Antiga que o cobre faz sua aparição
em Twickenham Road
9
.
O grupo de Kapwirimbwe estende -se para sudoeste até o vale do Zambeze,
perto de Chirundu, e, mais adiante, até o planalto de Mashonaland, em torno
de Urungwe, onde é mais bem conhecido um sítio adjacente à caverna Sinoia,
datada da segunda metade do primeiro milênio da Era Cristã
10
.
Até o momento, poucos sítios da Idade do Ferro Antiga foram descobertos
na Zâmbia ocidental. Na Missão de Sioma, no alto Zambeze, um povoamento
es datado dos culos intermediários do primeiro milênio
11
; outro, perto
do rio Lubusi, a oeste de Kamoa, pertence ao último quartel desse mesmo
minio. Esses sítios forneceram uma cerâmica que, embora pertencendo
incontestavelmente à Idade do Ferro Antiga, é acentuadamente distinta daquela
dos grupos reconhecidos mais a leste. evidências do trabalho do ferro em
ambos os sítios
12
. Fisicamente, a região do alto Zambeze é considerada uma
extensão da zona arenosa do Calaari angolano. Não existe ali praticamente
nenhum conjunto arqueológico de cerâmica datado que possa servir de termo
de comparação, mas a pequena coleção proveniente do aeroporto de Dundo,
datada dos séculos VII a IX e, portanto, virtualmente contemporânea de Lubusi,
exibe muitas características em comum com os materiais encontrados naquele
8 PHILLIPSON, D. W. 1968 -b, pp. 87 -105.
9 PHILLIPSON, D. W. 1970 -a, pp. 77 -118.
10 ROBINSON, K. R. 1966 -a, pp. 131 -55; GARLAKE, P. S. 1970 -a, p. 25 -44.
11 VOGEL, J. O. 1973.
12 PHILLIPSON, D. W. 1971, pp. 51 -7.
755
Início da Idade do Ferro na África meridional
sítio
13
. Na área de Dundo, a produção de cerâmica parece remontar aos primeiros
séculos da Era Cristã, se pudermos confiar no testemunho de uma datação
por radiocarbono de cascalhos fluviais da mina de Furi
14
. Pode -se afirmar com
razoável segurança que as comunidades da Idade do Ferro estavam presentes em
vastas áreas de Angola durante o primeiro milênio da nossa Era Cristã, embora
não se disponha de dados precisos.
Neste ponto é conveniente notar que alguns sítios da Idade do Ferro
datados do primeiro milênio da Era Cristã são hoje conhecidos nas áreas mais
meridionais de Angola; é o caso de Feti la Choya, onde a primeira ocupação
da Idade do Ferro data do século VII ou VIII
15
. A relação desse sítio com o
complexo industrial da Idade do Ferro Antiga não pode ser determinada, uma
vez que nada se publicou acerca dos artefatos que lhe são associados, salvo o
fato de o ferro e a cerâmica estarem presentes
16
. No extremo norte da Namíbia,
o sítio de Kapako forneceu uma cerâmica descrita num primeiro e provisório
relato como afim à de Kapwirimbwe e remontando, segundo as datações por
radiocarbono, ao fim do primeiro milênio da Era Cristã
17
.
Ao sul do rio Kafue, nos férteis planaltos da província meridional da Zâmbia,
foram descobertas grandes aldeias da Idade do Ferro Antiga. Alguns desses
sítios, considerados individualmente, parecem ter sido povoados por muito
mais tempo do que é habitual em outros locais. As mais antigas ocupações
tiveram lugar, ao que tudo indica, por volta do século IV. Esse povoamento
da Idade do Ferro Antiga parece ter sido mais denso do que a maioria dos
outros casos, em que as populações sobreviveram por muito tempo à chegada
da agricultura e da metalurgia
18
. A cultura material do grupo Kalundu, da Idade
do Ferro Antiga do planalto de Batoka, tem muitos pontos em comum com a
do grupo Kapwirimbwe, mas sua cerâmica distingue -se facilmente sobretudo
pela raridade dos motivos em ziguezague impressos em falso relevo e das tigelas
com pronunciado espessamento interno da borda. A presença de conchas de
cauri indicam contatos com o comércio costeiro, mas as contas de vidro estão
ausentes. Os níveis inferiores do sítio de Kalundu, perto de Kalomo, forneceram
13 CLARK, J. D. 1968 -b, pp. 189 -205.
14 FERGUSON, C. J. & LIBBY, W. F. 1963, p. 17
15 FAGAN, B. M. 1965, pp. 107 -16.
16 VANSINA, J. 1966.
17 SUTTON, J. E. G. 1972, pp. 1 -24.
18 Diferentes pontos de vista sobre a questão da interação entre as populações da Idade do Ferro Antiga e
da Idade da Pedra Recente podem ser encontrados in PHILLIPSON, D. W. 1968 -a, pp. 191 -211; 1969,
pp. 24 -49; MILLER, S. F. 1969, pp. 81 -90.
756
África Antiga
um grande sortimento de ossadas de animais, dos quais menos de dois quintos
provém de animais domésticos e de gado miúdo; a caça continuava visivelmente
a representar importante papel na economia. O ferro era usado para a manufatura
de objetos como barbeadores, pontas de flecha e provavelmente teclas de sanza
19
.
Fragmentos de cobre também foram encontrados
20
. No planalto, a ocupação pelo
grupo Kalundu durou até o século IX
21
; no vale do Kafue, em torno de Namwala,
as ocupações da Idade do Ferro Antiga em Basanga e Mwanamaimpa foram
situadas pela datação entre os séculos V a IX
22
.
A porção do vale do Zambeze situada nas cercanias da cidade de Livingstone
é provavelmente a região mais bem explorada da África meridional no que
se refere à arqueologia da Idade do Ferro. O grupo Dambwa, dessa área,
compartilha características tanto com o grupo Kalundu quanto com o sítio
de Gokomere no Zimbábue
23
. Sugeriu -se que, após uma fase inicial pouco
conhecida ilustrada pelo pequeno conjunto de fragmentos de cerâmica do
sítio de Situmpa, perto de Machili –, o ramo principal do grupo Dambwa teria
derivado de um centro secundário de difusão da cultura da Idade do Ferro
situado ao sul do Zambeze
24
. Em Kamudzulo foram encontrados vestígios de
casas de pau a pique semiretangulares datados dos séculos V a VIII.
Um pequeno pedaço de vidro importado, descoberto no interior de uma
dessas casas, indica o estabelecimento de contatos com o comércio costeiro por
volta do século VII. Os costumes funerários desse período são melhor ilustrados
em Chundu, onde os cadáveres eram sepultados individualmente em covas; eram
enterrados em posição fletida, os joelhos elevados à altura do queixo. Os objetos
funerários parecem ter sido depositados em covas separadas; estas geralmente
continham pares de vasos de cerâmica utilizados como recipientes para depósitos
funerários, que nessa localidade incluíam invariavelmente uma enxada de ferro
quase sempre acompanhada de outros objetos, como braceletes de ferro ou de
cobre, cauris ou contas de concha em forma de disco. Um desses depósitos
continha também duas sementes, provisoriamente identificadas como um grão
19 Sanza instrumento musical constituído por linguetas de ferro dispostas sobre um suporte de madeira;
estas são dedilhadas com os polegares.
20 FAGAN, B. M. 1967.
21 Como, por exemplo, em Gundu: FAGAN, B. M. 1969 -b, pp. 149 -69.
22 Basanga e Mwanamaimpa foram escavados pelo Dr. B. M. FAGAN. Para a datação por radiocarbono,
ver PHILLIPSON, D. W. 1970 -b, pp. 1 -15.
23 DANIELS, S. G. H. & PHILLIPSON, D. W. 1969, vol. 11.
24 O que foi exposto sobre a Idade do Ferro Antiga em Victoria Falls está amplamente baseado na pesquisa de
J. O. VOGEL, cujos relatórios publicados incluem Lusaka, 1971, e em outros autores citados mais adiante.
757
Início da Idade do Ferro na África meridional
de feijão e uma semente de abóbora
25
. Os povoamentos dos grupos Dambwa,
como os do grupo Kalundu ao norte, proporcionaram vestígios osteológicos
da criação de animais domésticos bem como de carneiros e/ou cabras, mas a
preponderância de ossos de espécies selvagens corrobora a importância da caça.
Os objetos de ferro confeccionados localmente incluíam estiletes, facas, enxadas,
machados, braceletes, pontas de flecha e lanças. O cobre não ocorre na região;
deve ter sido trazido por meio do comércio que as duas jazidas conhecidas
mais próximas situam -se na região de Kafue Hook, na Zâmbia, e nos arredores
de Wankie, no Zimbábue. Os artefatos de cobre encontrados nos sítios Dambwa
incluem braceletes e lingotes destinados ao comércio.
Durante o século VIII, uma crescente mudança tipológica nas cerâmicas
levou ao surgimento da tradição cerâmica de Kalomo, considerada hoje como
uma variante local da região de Victoria Falls desenvolvida a partir da cerâmica
do grupo Dambwa da Idade do Ferro Antiga. Por volta da metade do século
IX, os ceramistas Kalomo introduziram seus produtos no planalto de Batoka,
e parecem ter desalojado rapidamente a população do grupo Kalundu, que ali
vivia
26
.
Na província oriental da Zâmbia, a população da Idade do Ferro Antiga
parece ter -se estabelecido por volta do século III da Era Cris, porém de
forma esparsa. A maioria dos habitantes dessa área provavelmente conservou
seu gênero de vida neolítico até o milênio atual, muito tempo após o início da
Idade do Ferro Recente
27
. A cerâmica dos sítios do grupo Kamnama da Zâmbia
oriental evidencia íntimo parentesco com a dos povoamentos contemporâneos
nas reges adjacentes do Malavi para o qual dispomos de uma seqncia
arqueológica da Idade do Ferro na maior parte do país situada a oeste do lago.
No Malavi setentrional, um sítio ribeirinho no curso meridional do Rukuru,
próximo ao norte Phopo, proporcionou evidências de uma ocupação prolongada
na Idade do Ferro Antiga, situada entre os séculos II e V da Era Cristã.
foram descobertos cacos de cerâmica, ossos de animais selvagens e vestígios da
fundição do ferro, juntamente com contas de concha em forma de disco. Não
se encontraram contas de vidro. A cerâmica é claramente aparentada com a de
Kamnama, e igualmente óbvias são as afinidades gerais desse material com as
cerâmicas da Idade do Ferro Antiga da África oriental, especialmente a da ilha
25 VOGEL, J. O. 1969, p. 524; 1972, pp. 583 -6.
26 VOGEL, J. O. 1970, pp. 77 -88.
27 PHILLIPSON, D. W. 1973, pp. 3 -24.
758
África Antiga
 . Cerâmica de Mabveni (n
os
1 e 2, segundo K. R. Robinson, 1961) e de Dambwa (n
os
3 e 4,
segundo S. G. H. Daniels e D. W. Phillipson, 1969).
F . Cerâmica da Idade do Ferro Antiga proveniente de Twickenham Road (n
os
1 e 2, segundo D.
W. Phillipson, 1970) e de Kalundu (n
os
3 e 5, segundo B. M. Fagan, 1967).
759
Início da Idade do Ferro na África meridional
de Kwale, em Mombaça
28
. A datação de um material semelhante proveniente do
monte Lumbule, perto de Livingstone, indica a metade do primeiro milênio da
Era Cristã, aproximadamente. No Malavi setentrional, o sítio de Mwavarambo
parece representar a forma local da Idade do Ferro Antiga, mostrando afinidades
com o grupo Kalambo da Zâmbia setentrional
29
. Mwavarambo data dos séculos
XI a XIII
30
. No Malavi setentrional, os achados provenientes de numerosos
sítios atribuídos ao grupo Nkope
31
indicam povoamentos similares num período
que se estende do século IV ao XI.
As cerâmicas da Idade do Ferro Antiga do Malavi e das regiões adjacentes da
Zâmbia formam uma clara ligação tipológica entre as cerâmicas contemporâneas
da África oriental e as do Zimbue, mas são marcadamente distintas das
dos grupos Chondwe, Kapwirimbwe e Kalundu, nas regiões situadas além de
Luangwan, a oeste. Infelizmente não dispomos de dados sobre os sítios da Idade
do Ferro Antiga na região situada a leste do lago Malavi.
A África ao sul do Zambeze
No Zimbábue vamos encontrar o mesmo quadro geral de indústrias da
Idade do Ferro Antiga regionalmente diferenciadas, mas pertencentes a um
complexo industrial comum. Já nos referimos às indústrias das duas regiões
setentrionais do país, claramente aparentadas às dos grupos zambianos. Na
maior parte do território restante as culturas da Idade do Ferro Antiga ostentam
uma similaridade fundamental. Costuma -se admitir uma divisão tripartite da
cerâmica a elas associada. A cerâmica de Ziwa concentra -se, ao que parece, nos
planaltos orientais, em torno de Inyanga, estendendo -se para oeste, na direção
de Salisbury, e para o sul, ao longo da fronteira com Moçambique, na direção
de Lowveld. A cerâmica Zhiso (outrora conhecida como Leopards Kopje)
32
é encontrada a sudoeste, em torno de Bulawayo. A cerâmica Gokomere está
amplamente distribuída na região centro -sul do país. A tipologia indica que os
três grupos estão intimamente relacionados. De fato, trabalhos recentes mostram
que em várias regiões existe considerável imbricação entre os grupos e sugerem
28 SOPER, R. C. 1967 -a, pp. 1 -17.
29 PHILLIPSON, D. W. 1968 -a, pp. 191 -211.
30 Esta sumária exposão sobre a Idade do Ferro Antiga no Malavi baseia -se na pesquisa de K. R.
ROBINSON, que a descreveu nas seguintes publicações: 1966, pp. 169 -88; com SANDELOWSKI, B.
1968, pp. 107 -46.
31 ROBINSON, K. R. 1973.
32 Sobre a cultura de Leopard’s Kopje, ver ROBINSON, K. R. 1966 -b, pp. 5 -51
760
África Antiga
que nem sempre se pode defini -los tão nitidamente como ocorre com alguns
dos grupos zambianos da Idade do Ferro Antiga
33
.
Um quadro bastante claro do povoamento da Idade do Ferro Antiga no Zimbue
foi obtido em Mabveni, no distrito de Chibi, onde se investigaram remanescentes
de três estruturas de pau a pique. Uma delas seria a de um celeiro, originalmente
erguido sobre pedras. Traços de uma parede em pedra insossa não poderiam ser
relacionados inequivocamente com o povoamento da Idade do Ferro Antiga, mas o
arquitetonicamente distintos das estruturas mais recentes. A cerâmica se caracteriza
por vasos com gargalo cuja borda espessada é decorada com impressões a pente
em diagonal, bem como por uma variedade de tigelas. Encontraram -se também
estatuetas de argila representando carneiros únicos animais domésticos figurados
e seres humanos, ao lado de contas de ferro, cobre e conchas. A presença de conchas
marinhas e contas de vidro é incio de contatos com o corcio costeiro
34
. O
tio data dos primeiros dois teos do primeiro milênio. Grande parte dos objetos
acima mencionados também foram registrados em um abrigo sob rocha da Miso
de Gokomere, ao norte de Fort Victoria, onde os restos de animais incluíam um
chifre de cabra dostica. O povoamento da Idade do Ferro Antiga em Gokomere
situa -se entre os culos V e VII
35
. A mais antiga ocupação da Idade do Ferro, na
Acrópole” do Grande Zimbábue, constitui outro exemplo da indústria da Idade do
Ferro Antiga, cujo fim se situa entre os séculos III e V
36
.
A cerâmica dita de Ziwa, do nordeste do Zimbábue, foi reconhecida
inicialmente na região de Inyanga
37
; a cerâmica de Ziwa mais antiga apresenta
inúmeros pontos em comum com as de Gokomere, mas sua decoração tende a
ser mais elaborada. No momento, é o chamado “Local de Oferendas”, sítio ainda
o datado localizado no monte Ziwa, perto de Inyanga, que melhor nos informa
sobre essa cerâmica. Os achados a ela associados incluem utensílios de ferro,
objetos de cobre, contas de concha e um fragmento de cauri importado. Grãos de
painço e sementes de abóbora estão visivelmente associadas à ocupação humana
da Idade do Ferro Antiga.
As versões posteriores da tradição cerâmica de Ziwa mostram uma moderação
geral das características mais ostensivas, com a introdução de acabamentos em
33 HUFFMAN, T. N. 1971 -a, pp. 20 -44.
34 ROBINSON, K. R. 1961 -b, pp. 75 -102.
35 GARDNER, T., WELLS, L. H. & SCHOFIELD, J. F. 1940, pp. 219 -53; ROBINSON, K. R. 1963, pp.
155 -71.
36 SUMMERS, R., ROBINSON, K. R. & WHITTY, A. 1961.
37 SUMMERS, R. 1958. Sobre o “Local de Oferendas”, ver também MACIVER, D. R. 1906.
761
Início da Idade do Ferro na África meridional
hematita e grafita. As datações por radiocarbono indicam que a cerâmica de
Ziwa abrange a maior parte do primeiro milênio. Os níveis mais baixos da
construção de pedra encontrada em Nyahokwe, próximo ao monte Ziwa – que
a datação situa nos séculos X ou XI são atribuídos à fase final da tradição
de Ziwa. Nessa área descobriram -se diversos esqueletos humanos em sítios de
Ziwa pertencentes à Idade do Ferro Antiga, todos eles de características físicas
aparentemente negroides
38
.
Uma cerâmica aparentemente relacionada às fases finais da tradição de Ziwa
apresenta distribuição muito mais extensa do que sua equivalente mais antiga,
tendo sido encontrada numa ampla área do nordeste do Zimbábue, até o distrito
de Salisbury, a oeste. A cerâmica descoberta na mina de ouro de Golden Shower,
em Arcturus, pode ser atribuída a uma manifestação tardia da tradição de Ziwa,
datada possivelmente do último quartel do primeiro milênio; essa atribuição e
datação devem ser tidas como provisórias até que venham a ser confirmadas
por investigações futuras
39
. A associação desse tipo de cerâmica com as minas
pré -históricas será discutida com maiores detalhes mais abaixo.
A fase final da Idade do Ferro Antiga na Mashonaland setentrional está
melhor representada pelos sítios de Chitope, situados cerca de 100 km ao norte e
a nordeste de Salisbury, e de Maxton Farm, perto do monte Shamva
40
. Ambos os
sítios são atribuídos a meados do século XI e considerados ligeiramente anteriores
à introdução, nessa área, da cerâmica Musengezi da Idade do Ferro recente.
O sítio de Maxton Farm situa -se num Kopje (colina) cujo pico está rodeado
por um muro baixo,construido com grandes blocos de diorito grosseiramente
empilhados, não desbastados, não selecionados e sem qualquer tipo de vedação
ou preenchimento”
41
. A construção é rodeada por monólitos erigidos a espaços
regulares. Não motivo para duvidar da associação do muro com a ocupação
do povoamento por ele cercado.
Um significativo desenvolvimento econômico manifesta -se, assim, nessa
área, durante as últimas centúrias da Idade do Ferro Antiga. Observa -se que
somente em suas últimas formas está a cerâmica Ziwa associada às contas de
vidro importadas. Uma cerâmica similar é encontrada em sítios com terraços
simples e muros de pedra, bem como em minas de ouro e cobre, indicando que
seus artesãos estavam mais ativamente envolvidos na exploração dos recursos
38 BERNHARD, F. O. 1961; pp. 84 -92; 1964; VILLIERS, H. de. 1970, pp. 17 -28.
39 SCHOFIELD, J. F. 1948; HUFFMAN, T. N. 1974, pp. 238 -42.
40 GARLAKE, P. S. 1967, 1969.
41 GARLAKE, P. S. 1967, p. 3; 1969.
762
África Antiga
naturais do território do que aqueles que os precederam, e que mantinham
contato com a rede de comércio do oceano Índico.
É também a essa época que pertencem os primeiros animais domésticos
registrados pelas pesquisas arqueológicas no Zimbábue. Restos desses animais
estão notoriamente ausentes de sítios da fase mais antiga da Idade do Ferro
nos povoamentos ao sul do Zambeze, onde as únicas escies domésticas
representadas são os ovinos e os caprinos. A presença de gado foi inicialmente
registrada nos sítios datados do século VIII; no entanto, os animais domésticos
se tornam frequentes depois do começo da Idade do Ferro Recente
42
.
Centralizados em Bulawayo, os sítios onde se encontrou cerâmica do tipo
Zhiso têm muitos pontos em comum com as indústrias da Idade do Ferro Antiga
localizadas mais a leste. Acredita -se hoje que essa cerâmica não representa a
ocupação inicial da Idade do Ferro Antiga nessa área; isso é observado em
sítios como Mandau e Madiliyangwa, nos montes Matopo, onde os fragmentos
de cerâmica apresentam estreitos vínculos tipológicos tanto com as primeiras
cerâmicas de Gokomere quanto com a cerâmica mais antiga da Idade do Ferro
do grupo Dambwa, da região de Victoria Falls
43
. Parece provável que, numa
grande parte da região sudoeste do Zimbábue, a população da Idade do Ferro
Antiga tenha permanecido esparsa até o desenvolvimento da indústria de
Zhiso no final do primeiro milênio. Os estudos da arte rupestre indicam uma
considerável sobrevivência de povos do neolítico por essa época, especialmente
nos montes Matopo
44
.
Escavações no monte Zhiso, na cadeia de Matopo, revelaram fragmentos de
estruturas de pau a pique e conjuntos de pedras interpretados como suportes de
celeiros associados a uma cerâmica decorada sobretudo com motivos estampados
a pente; esse material data dos séculos IX a XI da Era Cristã
45
.
Em outros sítios notadamente Pumbaje e Ngwapani paredes de pedra
formando terraços podem ser contemporâneas da cerâmica de Zhiso, mas a
associação é incerta
46
. Um horizonte de Zhiso do século VIII ou IX representa
a mais antiga ocupação da Idade do Ferro no sítio de Leopard’s Kopje, 24 km a
oeste de Bulawayo. Numerosos vestígios foram encontrados no local: contas de
vidro e de concha, escórias de ferro, braceletes de cobre, dentes de carneiro ou
42 HUFFMAN, T. N. 1973.
43 JONES, N. 1933, pp. 1 -44.
44 Ver Capítulo 26.
45 ROBINSON, K. R. 1966 -b, pp. 5 -51.
46 ROBINSON, K. R. op. cit. 1966.
763
Início da Idade do Ferro na África meridional
de cabra e, com associação mais incerta, restos de grão -de -bico. Ossos de gado
graúdo, comuns nas camadas superiores dos depósitos da indústria de Leopards
Kopje (fase Mambo), não estavam representados na fauna relativamente pequena
do horizonte inferior de Zhiso
47
.
No extremo sudeste do Zimbábue, uma aldeia da Idade do Ferro Antiga
em Malapati, junto ao rio Nuanetsi, foi datada do último quartel do primeiro
milênio
48
. Este sítio forneceu ossos de gado e uma cerâmica que mostra afinidades
com a de Gokomere e Zhiso e, através da última, com o material coletado na
Botsuana oriental (no monte Maokagani, por exemplo)
49
.
A difusão do complexo industrial da Idade do Ferro Antiga ao sul do
Limpopo durante o primeiro milênio já é conhecida, mas os testemunhos são
esparsos e incompletos. Uma cerâmica semelhante à de Malapati foi descoberta
em Matakoma, no Soutpansberg do Transvaal setentrional; não dispomos
de datações absolutas para esse tio, mas a semelhança com o conjunto de
Malapati, datado, torna possível sit -la, com alguma probabilidade, na
segunda metade do primeiro milênio
50
. Perto de Tzaneen, no nordeste do
Transvaal, uma cerâmica da Idade do Ferro Antiga foi datada do século III
ou IV, indicando que a difusão desse complexo ao sul do Limpopo não é
muito posterior à sua introdução no Zimbábue
51
. As evidências provenientes
do sítio de Broederstroom, a oeste de Pretória, são mais abrangentes: R. J.
Mason descobriu nesse local restos de treze choupanas desabadas, bem como
indícios de trabalho do ferro. A cemica da Idade do Ferro Antiga desse sítio,
datada de meados do século V, está associada com os ossos de gado graúdo,
ovinos e caprinos
52
.
Mais para o sul, diversos artefatos da Idade do Ferro foram datados do
primeiro milênio, mas permanece incerta sua atribuição ao complexo industrial
da Idade do Ferro Antiga
53
. Em Castle Peak, Ngwenta (Suazilândia ocidental),
os vesgios da Idade do Ferro datam seguramente do culo IV ou V. O
47 HUFFMAN, T. N. 1971 -b, pp. 85 -9.
48 ROBINSON, K. R. 1963, pp. 155 -71; 1961 -a.
49 SCHOFIELD, J. F. 1948.
50 VAAL, J. B. de. 1943, pp. 303 -18.
51 KLAPWIJK, M. 1973, p. 324.
52 MASON, R. J. 1973, pp. 324 -5; 1974, pp. 211 -16.
53 Excluo aqui do complexo industrial da Idade do Ferro Antiga achados como os de Uitkomst e
Phalaborwa, cujas anidades tipológicas parecem ligar -se a um material mais recente. Da mesma forma,
não há evidências das associações culturais do forno para fundição de ferro do século VII descoberto no
norte de Natal e descrito por DUTTON, T. P.1970, pp. 37 -40.
764
África Antiga
relatório preliminar dos arqueólogos
54
indica que a cerâmica, encontrada em
associão com instrumentos ticos de minerão, esporádicos objetos de
ferro e artefatos de tipo neolítico, pode ser atribuída à Idade do Ferro Antiga.
Num sítio aparentemente contemporâneo, em Lydenburg, descobriu -se uma
notável representação em terracota de uma cabeça humana em tamanho natural,
associada a uma cerâmica do tipo que J. F. Schofield denominou NC
3
, cuja
relação com o complexo industrial da Idade do Ferro Antiga ainda está por ser
elucidada. A distribuição da cerâmica NC
3
estende -se para o sul até Natal, onde,
em Muden, é encontrada num sítio no qual também se descobriram ossos de
gado graúdo e miúdo
55
.
Síntese arqueológica
Embora a distribuição e a qualidade das pesquisas arqueológicas nos sítios
da Idade do Ferro Antiga, sejam desiguais, conforme constatado no resumo
acima, podem -se discernir várias tendências gerais. Na área investigada, o
estudo da tipologia da cerâmica permite reconhecer duas divisões principais no
contexto da Idade do Ferro Antiga. Uma, mais conhecida na Zâmbia central
e meridional, onde é representada pelos grupos de Chondwe, Kapwirimbwe e
Kalundu, estende -se por uma distância considerável – porém desconhecida na
direção oeste. A outra ocupa o Malavi, a Zâmbia oriental e a área de povoamento
da Idade do Ferro Antiga ao sul do Zambeze
56
. O grupo de Dambwa, da região
de Victoria Falls (vale do Zambeze), tem características em comum com ambas
as divisões. Essa classificação é confirmada a certo ponto pelo estudo de
determinados aspectos econômicos da Idade do Ferro antiga, o que tentaremos
fazer a seguir.
Economia de produção de alimento
raramente se descobriram provas arqueológicas de uma economia de
produção de alimentos das sociedades da Idade do Ferro Antiga. A existência de
grandes aldeias de caráter semipermanente sugere, sem dúvida, uma economia
baseada em grande parte na produção de alimentos, ao passo que a descoberta
54 Citado in FAGAN, B. M. 1967, pp. 513 -27.
55 SCHOFIELD, J. F. 1948; INSKEEP, R. R. & BEZING, K. L. von. 1966, p. 102; INSKEEP, R. R. 1971,
p. 326; MAGGS, T. M. O’C. 1971.
56 PHILLIPSON, D. W. 1975, pp. 321 -42.
765
Início da Idade do Ferro na África meridional
de enxadas de ferro de numerosas mós indica a presença da agricultura. No
entanto, testemunhos específicos para a identificação das plantas cultivadas e
dos animais domesticados só foram obtidos em uns poucos sítios.
Na área e na época que são objeto deste capítulo os únicos sítios da Idade do
Ferro Antiga a proporcionar vestígios físicos identificáveis de plantas cultivadas
são os de Thundu (onde os achados foram provisoriamente identificados como
abóbora e feijão), o “Local de Oferendas” em Inyanga (que forneceu grãos de
painço e sementes de abóbora) e o de Leopards Kopje (onde se encontraram
grãos -de -bico). Grãos de sorgo foram encontrados nos níveis pertencentes à
tradição Kalomo em Kalundu e Isamu Pati
57
. O sítio de Ingombe Ilede, perto
de Kariba (não atribuído, culturalmente, à Idade do Ferro Antiga), também
forneceu vestígios de sorgo, os quais foram diretamente referidos ao século VII
ou VIII
58
. As magras evidências acima indicam algumas das culturas praticadas
pelos agricultores da Idade do Ferro Antiga na África meridional, mas não
motivo para se acreditar que a lista seja abrangente.
os vestígios físicos de animais domésticos são um pouco mais substanciais.
Despojos de carneiros e/ou cabras são registrados em Twickenham Road, Kalundu,
Kumadzulo, Mabveni, Gokomere, Leopards Kopje, Makuru e Broederstroom.
Esses sítios, bastante esparsos, cobrem todo o período da Idade do Ferro Antiga
na África meridional. No entanto, as ossadas de animais domésticos procedem
de contextos antigos nos sítios ao sul da Zâmbia Kapwirimbwe, Kalundu e
Kumadzulo. Ao sul do Zambeze o gado não ocorre, ao que parece, antes do
século VIII, como se pode observar nos sítios de Coronation Park, Makuru
e Malapati
59
. A partir do estudo das pinturas rupestres dessa região, pode -se
inferir que os carneiros foram introduzidos no Zimbábue antes do gado graúdo:
os carneiros de cauda grossa são amiúde representados, o que nunca ocorre com
o gado de grande porte
60
. Testemunhos recentes de Broederstroom, entretanto,
sugerem que o gado graúdo teria ocorrido antes no Transvaal, proveniente,
talvez, do oeste
61
.
57 FAGAN, B. M. 1967.
58 FAGAN, B. M., PHILLIPSON, D. W. & DANIELS, S. G. H. 1969.
59 HUFFMAN, T. N. 1973.
60 COOKE, C. K. 1971, pp. 7 -10.
61 WELBOURNE, R. G. 1973, p. 325. A presença de gado graúdo na África do Sul durante a Idade da
Pedra Recente data talvez do primeiro milênio da Era Cristã, possivelmente antecedendo sua chegada
ao Zimbábue. A introdução do gado na África do Sul por uma rota ocidental parece, assim, provável.
Esta tese é sustentada por evidências linguísticas citadas por EHRET, C. 1967, pp. 1 -17; EHRET, C.
et. al. 1972, pp. 9 -27.
766
África Antiga
Mesmo na região ao sul do Zambeze, o gado de grande porte parece ter
sido relativamente incomum durante a Idade do Ferro Antiga, em contraste
com a importância que viria a assumir na economia dos períodos posteriores.
Durante a segunda metade do primeiro milênio, pode -se discernir uma mudança
gradual na economia da Idade do Ferro local. Em Kalundu, o estudo do período
em questão revela um aumento constante na proporção de ossos de animais
domésticos em relação aos de espécies selvagens em camadas sucessivas, o que
indica uma mudança gradual da caça para a criação de animais
62
. Pela mesma
época, na região de Victoria Falls, as enxadas de ferro vão -se tornando cada vez
menos frequentes; parece razoável admitir uma evolução paralela da agricultura
para a criação
63
.
Mineração e metalurgia
Somente três metais foram trabalhados numa escala considerável durante
a Idade do Ferro na África meridional. São eles, em ordem decrescente de
importância, o ferro, o cobre e o ouro
64
.
O minério de ferro, sob esta ou aquela forma, era extremamente difundido
por toda a região. Nos lugares carentes desse minério costumava -se, ao que
parece, fundir a limonita, a despeito de seu parco rendimento. Ao que tudo
indica, a introdução da metalurgia do ferro é contemporânea da emergência
de outros traços que caracterizam a cultura da Idade do Ferro conforme a
definimos aqui. As evidências indicam que os métodos para a extrão do
ferro limitavam -se à escavação de poços rasos; quase sempre o minério era
simplesmente coletado na superfície. Não se conhecem detalhes dos fornos da
Idade do Ferro Antiga na África meridional
65
, mas é interessante notar que
a fundão parece ter sido frequentemente realizada no interior das aldeias,
como se ainda o existissem os tabus que em períodos posteriores iriam
determinar fossem as operações de fundão executadas longe de qualquer
contato com mulheres. Parece que o processo de fundição envolvia o uso
de condutos para o ar, mas isso não prova o emprego de foles, visto que tais
condutos são tamm empregados em fornos de tiragem natural
66
. Os objetos
62 FAGAN, B. M. 1967.
63 Trata -se provavelmente de um processo gradual que se estendeu por vários séculos.
64 Também o estanho era trabalhado em pequena escala, pelo menos no século XIX, no sul da Zâmbia.
65 Ainda não se sabe se o forno de Inyanga descoberto por F. O. BERNHARD deve ser atribuído à Idade
do Ferro Antiga.
66 Ver, p. ex., PHILLIPSON, D. W. 1968 -c. pp. 102 -13.
767
Início da Idade do Ferro na África meridional
de ferro tinham em geral finalidades utilitárias e domésticas: facas, pontas de
flechas, ferros de laas, etc. É provel que o comércio desse metal a longa
distância tenha sido pouco significativo.
A distribuão dos desitos de cobre era muito mais restrita do que
a das jazidas de ferro. As principais áreas de ocorrência desses depósitos na
África meridional localizam -se na linha divisória das bacias dos rios Congo
e Zambeze, estendendo -se desde o atual Copperbelt até Solwezi, a oeste, na
curva do Kafue; em Sinoia e Wankie, no Zimbábue; na Botsuana oriental,
junto à fronteira do Zimbábue; no vale do Limpopo, em torno de Messina; e
na região de Phalaborwa, rio Transvaal oriental. As jazidas localizadas mais a
oeste, em Angola e na Namíbia, não serão consideradas devido à virtual ausência
de pesquisas arqueológicas nessas áreas. É provável que os depósitos de cobre
nas regiões acima mencionadas fossem explorados durante a Idade do Ferro;
no entanto, não é fácil a distinção entre as atividades mais antigas e as mais
recentes. Muitos sítios pré -históricos foram destruídos ou substancialmente
modificados pelas minerações recentes. Todavia, os artefatos de cobre estão
largamente distribuídos nos sítios da Idade do Ferro Antiga, embora não sejam
tão comuns como nos sítios de períodos posteriores. Não é possível demonstrar
que a metalurgia do cobre foi praticada em toda a área considerada em época
tão recuada como a da Idade do Ferro Antiga, ao contrário do que ocorre com
a tecnologia do ferro. Na região de Lusaka, por exemplo, o uso do cobre parece
ter permanecido incógnito até uma fase tardia da Idade do Ferro Antiga. O
conhecimento do cobre em áreas mais próximas das jazidas é, ao que parece,
consideravelmente mais antigo, como nos sítios do grupo Chondwe e na maior
parte do Zimbábue. O cobre era claramente considerado como um material de
relativo luxo, restringindo -se seu uso, em geral, à manufatura de pequenos artigos
de adorno pessoal, como contas e braceletes feitos de finas tiras entrecruzadas. O
metal era comercializado em barras; melhor exemplo, no contexto da Idade do
Ferro Antiga, é o de Kumadzulo. Ainda não se estudou nenhum forno dessa época
destinado à fundição do cobre. Fragmentos de cerâmica proveniente de regiões
muito afastadas foram encontrados nos sítios adjacentes às minas zambianas do
Copperbelt, notadamente em Roan Antelope, donde se pode inferir que o cobre
desses sítios era procurado por habitantes de territórios longínquos; essa prática
prosseguiu nos períodos posteriores da Idade do Ferro
67
. Conclui -se assim que
em grande parte da África meridional o cobre foi trabalhado em pequena escala
67 PHILLIPSON, D. W. 1972 -b, pp. 93 -128.
768
África Antiga
na Idade do Ferro Antiga, constituindo a exploração em larga escala desse metal
um fenômeno posterior
68
.
Durante a Idade do Ferro, a mineração do ouro na África meridional parece
ter -se restringido em grande parte ao Zimbue e às regiões adjacentes
69
.
Incios de uma extração em pequena escala remontando à Pré -História
foram assinalados na mbia, na África do Sul e em outros lugares, mas
não se conduziu nenhuma investigação mais minuciosa. Em contrapartida,
registraram -se mais de mil minas de ouro pré -históricas no Zimbábue e nas
regiões fronteiriças da Botsuana e do Transvaal
70
. A maior parte das minas
antigas foram destruídas pela mineração desenvolvida nos últimos oitenta anos;
nuns poucos casos se dispõe de descrições mais detalhadas. A datação da
exploração pré -histórica dos depósitos auríferos do Zimbábue é igualmente
difícil. As datações mais antigas por radiocarbono para as minas da região são
as de Aboyne e Geelong, ambas remontando a meados do século XII. Existem
quatro referências à cerâmica da Idade do Ferro Antiga encontrada no interior
de antigas minas ou nas regiões imediatamente adjacentes; em todos os casos,
parece tratar -se de uma manifestação tardia da tradição de Ziwa. A ocorrência
dessa cerâmica na mina de Golden Shower, perto de Arcturus, já foi registrada;
materiais similares provêm de Three Skids. Ambos os sítios localizam -se na
região do vale do Mazoe. Mais para o sul, próximo de Umkondo, no vale do
Sabi, encontrou -se uma cerâmica análoga em Hot Springs. Finalmente, uma
cerâmica de Ziwa posterior procede de um sítio de processamento de minérios
em que se encontraram cavidades para a lavagem e trituração do minério
em Three Mile Water, perto de Que Que. É o sítio que mais se assemelha às
antigas minas de Gaika, Globe e Phoenix, todas elas operadas, em épocas pré-
-históricas, em degraus e a céu aberto; é este, de fato, o tipo de exploração mais
comum no Zimbábue. As minas de Golden Shower e Hot Springs têm cada
qual apenas um desses degraus; já as de que eram muito mais extensas. A mina
de Gaika apresenta mais de 160 degraus, enquanto a de Phoenix atingiu uma
profundidade de quase 40 m; é evidente que esses dois sítios foram operados
durante muitos séculos, mas não provas de que tenham sido intensamente
explorados durante a Idade do Ferro Antiga.
68 Uma pesquisa sobre o trabalho do cobre em épocas pré -históricas na África meridional e central, com
particular referência à Zâmbia, está sendo realizada por M. S. BISSON.
69 A passagem a seguir está amplamente baseada em R. SUMMERS.
70 O número real de minas deve corresponder a várias vezes essa cifra.
769
Início da Idade do Ferro na África meridional
Embora se tenham encontrado quantidades substanciais de objetos de ouro
em sítios da Idade do Ferro no Zimbábue, a grande maioria deles foi removida
por cadores de tesouros durante os primeiros anos da ocupação europeia;
em alguns casos, porém, dispomos de dados referentes à provenncia e às
associações arqueológicas de tais objetos. As raras amostras de ouro encontradas
em escavões arqueogicas cientificamente controladas provêm todas de
contextos posteriores da Idade do Ferro
71
.
As escassas precisões cronológicas advindas da datação das antigas minas de
ouro não nos permitem ir além das hipóteses no estudo dos dados fornecidos
pelos quatro tios onde foram encontrados artefatos de ouro pertencentes
à Idade do Ferro Antiga. Nenhum desses sítios está datado, mas a cerâmica
indicaria uma data não anterior ao século IX e provavelmente não posterior ao
século XI
72
. Não provas convincentes de uma exploração dos depósitos de
ouro do Zimbábue e antes dessa época. Essa conclusão está de acordo com os
testemunhos dos textos árabes, nos quais a primeira menção ao ouro proveniente
dessa região – comprado na costa oriental da África – ocorre num contexto do
século X
73
.
Os quatro tios de minerão de ouro que forneceram cerâmica da Idade
do Ferro Antiga localizam -se nos vales do Mazoe e do Sabi, no leste do
Zimbábue. Estes dois rios permitem uma comunicão relativamente fácil
entre o interior e a costa. Os escritos dos geógrafos árabes não deixam dúvida
quanto à exportação do metal nesse peodo inicial de mineração do ouro, mas
ainda não se sabe ao certo se era tamm usado localmente. Neste contexto,
é significativo que o início da mineração do ouro e a importação das contas
de vidro tenham sido mais ou menos contemponeos. Caso os dois eventos
estejam realmente inter -relacionados, o estímulo para o desenvolvimento da
minerão do ouro pode muito bem ter vindo do exterior. A afirmão de
Summer
74
, segundo a qual as cnicas de mineração e, por dedução, um certo
número de mineradores seriam de origem indiana, não é muito convincente
no atual estágio dos nossos conhecimentos. Conquanto se possa atribuir o
início da exploração do ouro do Zimbábue a uma fase tardia da Idade do
71 Sabe -se hoje que os sepulcros de Ingombe Ilede, cuja mobília funerária incluía objetos de ouro,o devem
ser associados à ocupação do nal do primeiro milênio desse sítio; PHILLIPSON, D. W. & FAGAN,
B. M. 1969, pp. 199 -204.
72 R. SUMMERS e T. N. HUFFMAN sugerem a possibilidade de uma data um pouco anterior.
73 AL -MAS’UDI, in FREEMAN -GRENVILLE, G. S. P. 1962 -b, p. 15.
74 SUMMERS, R. 1969.
770
África Antiga
Ferro Antiga, não foi senão em épocas ainda mais recentes que a mineração
foi empreendida numa escala considevel.
Arquitetura
Somente uns poucos sítios proporcionaram informações que permitissem
reconstituir os planos arquitetônicos e os pormenores estruturais das construções
da Idade do Ferro Antiga nessa região; ainda assim, é difícil saber até que ponto
são eles representativos da arquitetura na África meridional como um todo
durante o período em questão. Kumadzulo forneceu o plano de onze casas de
pau a pique semi retangulares sustentadas por grossos esteios colocados nos
cantos; a extensão máxima das paredes era de apenas 2 -3 m. Não se encontraram
testemunhos comparáveis em outros sítios da Idade do Ferro Antiga, na África
meridional; no entanto, vestígios fragmentários provenientes de sítios, como
Dambwa e Chitope sugerem que o método geral de construção ilustrado em
Kumadzulo era frequentemente empregado, embora a forma semi retangular e
suas casas não encontre equivalentes em outros locais.
Na Idade do Ferro as construções em pedra achavam -se difundidas nas
regiões ao sul do Zambeze, mas tal prática não parece ter alcançado a Zâmbia,
exceto, numa escala muito pequena, durante os últimos séculos da Idade do
Ferro Recente
75
.
Contudo, como ficou dito acima, provas de que a construção em pedra
era comumente praticada no Zimbábue durante a Idade do Ferro Antiga
conquanto numa escala mais reduzida e com um grau de elaboração menor do
que em épocas posteriores podendo ser associada aos sítios de Gokomere,
Ziwa e Zhiso. Nessa época, a pedra bruta era empregada sobretudo na edificação
de muros em terraços ou de simples cercados. A forma arquitetônica mais
elaborada encontra -se provavelmente no tipo de edificação descrita no sítio de
Maxton Farm. Os períodos posteriores trouxeram um aperfeiçoamento e uma
difusão muito maiores das construções em pedra, cuja tradição, no entanto,
se estabelecera muito antes do fim do primeiro milênio. A própria sequência de
edificações em pedra do Grande Zimbábue é atribuída exclusivamente à Idade
do Ferro Recente
76
75 Na Zâmbia, muros em terraço foram descobertos nas proximidades de Mazabuka, no planalto da província
meridional; estas construções, assim como as muralhas de pedra encontradas em sítios defensivos na
região de Lusaka e na parte sul da província oriental, datam possivelmente do século XVIII ou XIX.
76 SUMMERS, R., ROBINSON, K, R., WHITTY, A. 1961; GARLAKE, P. S. 1973.
771
Início da Idade do Ferro na África meridional
O resumo acima pôde cobrir apenas alguns aspectos da economia e da
tecnologia da Idade do Ferro Antiga. Serviu ele, contudo, para ilustrar em que
medida a Idade do Ferro Antiga constitui a base do subsequente desenvolvimento
cultural da Idade do Ferro na região da África meridional.
Conclusão
Tais são, em linhas gerais, os nossos conhecimentos acerca da Idade do Ferro
Antiga na África meridional. A elucidação dos eventos desse episódio cultural
é vista aqui sobretudo como atribuição da arqueologia. A linguística histórica
pode igualmente trazer uma contribuição importante ao estudo desse período,
tal como foi discutido em um capítulo anterior.
Nos limites da região da África meridional aqui abordada, duas divisões
principais da Idade do Ferro Antiga podem ser reconhecidas a partir do estudo
dos dados arqueológicos. Elas podem ser consideradas como divisões primárias
do complexo industrial comum à Idade do Ferro Antiga, distinguindo -se uma
da outra pela tipologia das respectivas cerâmicas. A primeira divisão se estende
para o sul, entre o vale do Luangwa e o lago Malavi, até o Zimbábue e o norte
do Transvaal. Essa região era povoada por pastores de ovelhas e cabras, e de
início parece ter carecido de gado bovino. A segunda divisão é melhor conhecida
na Zâmbia central e setentrional, mas há indicações de que ela se estendeu
também por uma enorme área a oeste. Nessa região, o gado de grande porte era
conhecido desde os primeiros tempos da Idade do Ferro; foram provavelmente
seus habitantes que transmitiram a criação do gado aos antigos pastores khoisan
das regiões situadas ao sul do continente, onde o próprio complexo industrial
da Idade do Ferro Antiga não logrou penetrar.
A desigual distribuição das pesquisas arqueológicas não permite uma visão
mais minuciosa das grandes subdivisões da Idade do Ferro Antiga. A região
de Moçambique, em particular, constitui uma grande lacuna nos mapas de
distribuição, permanecendo, assim, inteiramente desconhecidos os eventos da
área situada entre o oceano Índico e o lago Malavi. A maior parte de Angola
e da África do Sul ainda não foi adequadamente investigada. Quando essas
deficiências tiverem sido sanadas, é provável que a síntese aqui proposta venha
a sofrer importantes revisões.
Ficou demonstrado que a cultura introduzida na África meridional pelos
povos da Idade do Ferro Antiga foi responsável pelo estabelecimento de muitas
das principais tendências históricas e culturais de épocas mais recentes. Para o
772
África Antiga
historiador, é particularmente interessante saber, nesse contexto, até que ponto é
possível fazer remontar à Idade do Ferro Antiga as características, diferenciadas
por região, de períodos mais recentes. A tradição da construção em pedra no
Zimbábue e no Transvaal, a extração do ouro no Zimbábue e o trabalho do
cobre do Copperbelt, parecem ter surgido, em suas respectivas regiões, no curso
da Idade do Ferro Antiga, ainda que mais tarde tenham adquirido plena
expansão. Portanto, é provável que em numerosos setores a continuidade entre a
Idade do Ferro Antiga e Recente tenha sido por vezes mais pronunciada do que
se supôs. Mas é só após a realização de pesquisas mais aprofundadas, sobretudo
nas regiões ainda não exploradas pelos arqueólogos, que se poderá avaliar toda
a contribuição da Idade do Ferro Antiga para a história da África meridional.
C A P Í T U L O 2 8
773
Madagáscar
Investigações culturais
A população de Madagáscar tem sido objeto de numerosos estudos; a despeito
das hipóteses frequentes e perfeitamente válidas sobre suas origens, estas ainda
permanecem obscuras. Se por um lado o continente africano, vizinho, trouxe
contribuições étnicas a Madagáscar, por outro, é digna de nota a participação
do elemento malaio -polinésio, igualmente manifesta sobretudo nas terras altas
do centro do país; tal é a opinião da maior parte dos estudiosos. A dupla origem
étnica dos malgaxes explicaria as diferenças físicas entre os habitantes da ilha;
estes falam uma língua indonésia que, embora subdividida em três dialetos, é
de uma unidade intrínseca inquestionável.
Antes de 1962, ano que marca o icio de uma série de descobertas
arqueológicas de importância histórica,se tinham obtido notáveis resultados
nos campos da lingstica, etnologia, musicologia e antropologia física
comparadas. Assim sendo, faz -se necessário traçar um breve resumo da pesquisa
acerca da história cultural malgaxe empreendida por essas ciências auxiliares,
antes de examinarmos os dados relativos aos primeiros povoamentos.
Madagáscar
P. Vérin
774
África Antiga
Linguística
O holandês De Houtman foi o primeiro estudioso a sugerir a inclusão do
malgaxe no grupo linguístico malaio -polinésio. Em 1603 publicou ele alguns
diálogos e um dicionário malaio -malgaxe
1
. Sua teoria foi corroborada pelo
português Luís Mariano, que anos depois reconheceu a existência da língua cafre”
(o swahili), falada na costa noroeste. Essa língua diferia do buque” (malgaxe),
falado “no interior da ilha e no restante da costa... muito semelhante ao malaio”.
Mais tarde Van der Tuuk
2
estabeleceu cientificamente a relão entre o
malgaxe e as línguas indonésias. Sua investigação foi seguida pelos trabalhos de
Favre, Brandstetter, Marre, Richardson e, em especial, Dempwolf.
A reconstituição do proto indonésio por Dempwolf demonstrou que o merina
por ele denominado “hova” não difere significativamente de outras línguas
da família indonésia. Tempos depois Dahl ressaltou a influência do bantu sobre
o malgaxe, não somente no plano lexical como também no fonológico. Este
fato é de suma importância para a discussão das interações africano -indonésias,
as quais serão evocadas mais adiante. Hébert demonstrou em vários de seus
trabalhos que não raro se observa uma bipartição entre os termos indonésios
da ngua malgaxe, o que demonstra a heterogeneidade das suas origens no
Sudeste Asiático. Por sua vez, Dez levou a cabo uma análise do vocabulário de
origem indonésia, graças à qual podemos inferir o tipo de civilização trazido a
Madagáscar pelos imigrantes
3
. Finalmente, a glotocronologia confirmou que o
vocabulário básico é predominantemente indonésio (94%) e permitiu entrever
o espaço de tempo que separa o malgaxe da protolíngua
4
. Contudo, embora
os elementos principais do corpus linguístico básico do malgaxe pertençam ao
subgrupo indonésio, não se deve esquecer que outros elementos indianos,
árabes e africanos foram incorporados à língua. Os contatos que a presença
desses elementos pressupõe ajudam -nos a compreender as interações e misturas
ocorridas por ocasião da diáspora indonésia para o oeste.
Antropologia física
As pesquisas realizadas nesse donio confirmaram que os malgaxes
apresentam ao mesmo tempo características mongoloides e negroides. Rakoto-
1 DRURY, R. 1931, pp. 323 -92.
2 TUUK, Van der.
3 DEZ, J. 1965, pp. 197 -214.
4 VÉRIN, P., KOTTAK, C. & GORLIN, P. 1970.
775
Madagáscar
 . Madagáscar: lugares citados no texto. (Mapa fornecido pelo autor.)
776
África Antiga
-Ratsimamanga chegou a importantes conclusões quanto à distribuição e à
natureza da pigmentação, mais acentuada entre os habitantes dos planaltos
centrais. Distingue ele quatro tipos morfológicos, entre os quais a população se
encontra dividida nas seguintes proporções
5
:
tipo indonésio-mongol 37%
tipo negro-oceânico 52%
tipo negro-africano 2%
tipo europeu 9%
Coloca -se aqui a seguinte questão: uma proporção tão elevada de elementos
negroides seria realmente de origem oceânica? Mais recentemente, Chamla
propôs, com base na mensuração de crânios preservados no Museu do Homem,
a diferenciação de três tipos morfológicos:
• tipo moreno -claro, asiático, semelhante aos indonésios;
• tipo escuro, mais africano do que melanésio;
• tipo misto, que parece ser o mais frequente.
Pesquisas hematológicas realizadas por Pigache
6
mostraram claramente que
os negroides malgaxes são de origem africana, e não melanésia.
O tipo físico indonésio predomina entre os indivíduos descendentes das
antigas castas livres de Imerina; os descendentes dos antigos cativos procedentes
das regiões costeiras ou da África evidenciam um tipo francamente negroide.
Os indonésios parecem também haver contribuído na elaboração biológica dos
Sihanaka, dos Bezanozano, de alguns Betsimisaraka e dos Betsileo do norte.
A sua participação no processo de formação do substrato biológico de outros
grupos costeiros, onde o tipo negroide é muito difundido ou predominante,
ainda é objeto de discussão.
O estudo dos restos de esqueletos encontrados em Madagáscar poderia nos
ajudar a compreender o processo de miscigenação e, em especial, indicar se
a fusão entre os elementos africano e indonésio ocorreu na ilha ou fora dela.
Todavia, a quase total ausência de esqueletos obtidos em contextos arqueológicos
tem impedido a coleta dos dados necessários
7
.
5 Rakoto -Ratsimamanga foi inuenciado, na denição de suas categorias, pelas teorias “sul -asiáticas” de
Grandidier. Ele não indica claramente os parâmetros usados para denir esses tipos.
6 PIGACHE, J. P. 1970, pp. 175 -7.
7 Afora o estudo dos restos de esqueletos encontrados em Vohemar e nos sítios do noroeste, que datam
de um período árabe posterior ao primeiro povoamento.
777
Madagáscar
 . Madagáscar: sítios importantes. (Mapa fornecido pelo autor.)
778
África Antiga
Etnologia e musicologia
H. Deschamps
8
foi quem primeiro se preocupou em distinguir, no interior da
civilização malgaxe, as contribuições culturais indonésias das africanas. Traços
culturais africanos são encontrados no complexo da criação de gado, no culto
à serpente em honra dos reis mortos (praticado no oeste e em Betsileo) e em
algumas formas de organização socio política da região costeira. No entanto, a
organização social de Imerina é inteiramente indonésia em seu caráter.
A civilização malgaxe deve ao leste a maior parte de seus tipos de moradia, a
cultura do arroz em terraços irrigados, alguns aspectos do culto aos ancestrais e
todo um complexo tecnológico que inclui o fole com duplo pistão, a piroga com
balancim, o forno subterrâneo guarnecido de rochas vulcânicas porosas e objetos
menos conhecidos, como o furador rotativo com arco e o ralador de coco com
suporte. Esses dois últimos objetos, estudados na costa oeste de Madagáscar,
foram encontrados em pontos o longínquos como o leste da Polinésia, onde
apresentavam forma idêntica e eram conhecidos sob os nomes de hu e ana (em
dialeto taitiano).
Hornell e os Culwick estudaram as ressonâncias culturais indonésias na costa
oriental africana. Mais recentemente, G. P. Murdock referiu -se a um “complexo
botânico malaio onde se incluem as plantas introduzidas em épocas remotas,
vindas do Sudeste Asiático. Entre elas o autor menciona o arroz (Oryza sativa),
a araruta polinésia (Tacca pinnatifida), o taro (Colocasia antiquorum), o inhame
(Discorea alata, D. bulbiiera e D. esculenta), a banana (Musa paradisiaca e M.
sapientium), a fruta -pão (Artocarpus incisa), o coqueiro (Coco nufera), a cana-
-de -açúcar (Saccharum officinarum), etc. Acredita Murdock que as migrações
indonésias responsáveis pela introdução desse complexo botânico em Madagáscar
ocorreram no primeiro milênio antes da Era Cristã, tendo percorrido as costas
meridionais da Ásia antes de chegarem à África oriental.
Murdock exclui, certamente com razão, a hipótese de uma migração sem
escalas através do oceano Índico; a data por ele atribuída a essas migrações é
bastante razoável. Mas, no que se refere às provas etnobotânicas, Deschamps
e, mais recentemente, Hébert demonstraram que algumas plantas muito
importadas para Madagáscar têm ora nomes indonésios, ora nomes africanos, ora
ambos. Hébert, contudo, sublinha que “nomenclaturas idênticas em diferentes
países não constituem prova de importação botânica”. Para exemplificar, o fato
de a banana ser conhecida por um nome indonésio (fontsy) na costa ocidental
8 DESCHAMPS, H. 1960.
779
Madagáscar
de Madagáscar não prova de forma conclusiva que a planta foi trazida por
imigrantes indonésios, pois nas terras altas do centro a banana tem um nome
bantu (akondro); por conseguinte, pode -se fundamentar validamente qualquer
teoria a respeito da origem dessa planta. Hébert cita Haudricourt, cujo ponto de
vista é ainda mais explícito. Em seu estudo sobre a origem das plantas cultivadas
em Madagáscar, Haudricourt escreve:
A existência de um nome de origem indonésia não significa que ela [a planta]
tenha provindo da Indonésia. Com efeito, os imigrantes reconheceram na flora
local plantas semelhantes às de sua terra de origem e por isso lhes deram os mesmos
nomes”.
É lícito acrescentar que as plantas novas e desconhecidas bem poderiam
ter seus nomes inspirados na semelhança com as espécies encontradas na terra
nativa dos imigrantes.
Os argumentos acima mostram como é delicada a manipulação das evidências
de natureza etnobotânica. O mesmo se pode dizer quanto à musicologia. C. Sachs
demonstrou que influências diversas se acham combinadas em Madagáscar: a
indonésia, a africana e a árabe. No entanto, Jones vai mais longe. Segundo esse
autor, a influência indonésia atingiu não só Madagáscar como toda a África. A
meu ver, embora não se possa rejeitar certas teorias de Jones, a possibilidade de
descobertas similares terem ocorrido independentemente em ambos os lados do
oceano Índico não deve ser excluída.
Do acima exposto pode -se concluir que os ancestrais dos malgaxes m
origem tanto africana como indonésia, e que a natureza predominantemente
indonésia da língua não permite minimizar o papel desempenhado pela África
no povoamento de Madagáscar. O grande continente vizinho faz -se presente
por uma contribuição étnico -majoritária e por inúmeros traços de sua cultura
e de sua organização socio política. Essa situação híbrida não é encontrada nem
nas ilhas Comores nem na costa da África, onde os influxos indonésios também
teriam ocorrido.
As diferentes teorias sobre as origens dos malgaxes hesitam, de fato, entre dois
pólos, África e Indonésia; isso não exclui, é verdade, pontos de vista extremamente
distorcidos como o de Razafintsalama (que sustentou, fundamentado em
milhares de derivações etimológicas suspeitas, a teoria segundo a qual a ilha
teria sido colonizada por monges budistas). A. Grandidier atribui à Ásia uma
importância exagerada, afirmando que todos os ancestrais dos malgaxes – afora
os Makua, de imigração recente vieram do Sudeste Asiático, incluindo os
780
África Antiga
 . Aldeia de Andavadoaka no sudoeste. As casas, de matéria vegetal, são idênticas às primeiras
construções ali erigidas.
F . Cemitério de Ambohimalaza (Imerina). As “casas frias” sobre os túmulos imitam o estilo das
habitações tradicionais. (Fotos fornecidas pelo autor.)
781
Madagáscar
negroides, a quem ele chama melanésios. G. Ferrand
9
aceita essa opinião, não
corroborada pelas evidências geográficas; é, porém, mais razoável, ressaltando
os aspectos africanos da origem dos malgaxes. Distingue ele as seguintes fases
históricas:
• um possível período pré -bantu;
• um período bantu, anterior à Era Cristã;
• um período indosio pré -merina, do século II ao IV, durante o qual
imigrantes provenientes de Sumatra estabelecem sua supremacia sobre os
Bantu;
• chegada dos árabes, do século VII até o século XI;
• chegada de novas levas de imigrantes sumatrenses (século X), entre os
quais se encontram os Ramini, ancestrais dos Zafindramia, e os Rakuba,
antepassados dos Hova;
• finalmente, chegada dos persas e, por volta de 1500, dos Zafikasinambo.
Julien
10
também atribui à África um papel capital, enquanto Malzac
11
é de
parecer que os Hova teriam ensinado sua língua a todos os Bantu de Madagáscar.
Os primeiros povoamento de Madagáscar
Antes de examinar mais a fundo as origens indosias e africanas do
povo malgaxe, convém avaliar as teorias que tentaram creditar a Madagáscar
imigrações antiquíssimas, provenientes da região mediterrânea.
Fenícios, hebreus ou povos do Périplo?
Ao se escrever sobre a história dos pses situados além dos limites do
mundo conhecido na Antiguidade, é comum atribuir a povos como os fenícios,
egípcios, sabeus, gregos e hebreus um papel muito mais importante do que
aquele que tiveram na realidade. Bent (1893), por exemplo, imputou a fundação
do Zimbábue aos fenícios, enquanto C. Poirier identificou a região de Sofala
com os países de Punt e Ofir.
Alguns autores acreditam que na Antiguidade remota Madascar foi
visitada por viajantes. F. de Mahy julga ter encontrado remanescentes fenícios em
9 FERRAND, G. 1908, pp. 353 -500.
10 JULIEN, G. 1908-9, pp. 375, 644.
11 MALZAC, V. 1912.
782
África Antiga
Majunga, mas Ferrand e eu próprio não conseguimos confirmar suas hipóteses.
A. Grandidier
12
, por sua vez, afirma que os gregos e, naturalmente, os árabes
desembarcaram em Madagáscar. Segundo ele:
“Desde os tempos antigos essa ilha era conhecida pelos gregos e árabes pelos nomes
de Menuthias, Djafuna e Chezbezat; a descrição acurada, porém breve, que eles nos
legaram não recebeu a devida atenção dos geógrafos europeus, que viriam a ter
notícia da existência de Madagáscar através dos portugueses, em 1500”.
Na verdade, o único nome grego, Menuthias, citado em Ptolomeu
13
e no
Périplo, designa provavelmente a ilha de Pemba, ou talvez Zanzibar ou Mafia.
Um certo F. Du Mesgnil
14
julgou de bom alvitre escrever uma obra cujo título
Madagáscar, Homero e a Civilização Micênica por si uma ideia do que
nela há de especulativo.
Mais obstinadas são as lendas sobre os migrantes judeus. O padre Joseph
Briant
15
, em seu opúsculo Os Hebreus em Madagáscar, está convencido de que
houve, não uma, mas duas migrações judaicas para Madagáscar. Sustenta seus
argumentos com centenas de comparações de palavras hebraicas e malgaxes.
Teorias simplistas e distorcidas como essa, baseadas em comparações linguísticas
entre palavras aparentemente semelhantes, são comuns em Madagáscar; J. Auber
desenvolveu -a em trabalhos bios que, não obstante, foram editados pela
imprensa oficial malgaxe.
As primeiras pesquisas sobre as origens judaicas de alguns malgaxes se devem
a Flacourt; esse autor acreditava que os primeiros estrangeiros a desembarcar na
costa oriental de Madagáscar foram os “Zaffe -Hibrahim, ou seja, os da linhagem
de Abraão, habitantes da ilha de Santa Maria e regiões vizinhas”. No prefácio
da História da Grande Ilha de Madagáscar, Flacourt
16
justifica suas hipóteses pela
presença de nomes bíblicos entre os malgaxes, pela prática da circuncisão e pela
proibição do trabalho no sábado.
G. Ferrand, por sua vez, descarta formalmente a possibilidade dessas
migrações judaicas terem ocorrido. Segundo ele, os poucos nomes semitas
usados em Madagáscar podem ser atribuídos aos malgaxes que se converteram
12 GRANDIDIER, A. 1885, p. 11.
13 PTOLEMACUS CLAUDIUS.
14 MESGNIL, F. du. [s.d.].
15 BRIANT, J. 1945.
16 FLACOURT, E. 1661.
783
Madagáscar
ao islamismo
17
, ao passo que a proibição do trabalho no sábado se deveria ao fato
de ser ele um dia fady (proibido), crença muito comum entre os habitantes da
ilha: na costa oriental, podem ser fady as terças, quintas ou sábados, de acordo
com a região. Ademais, parece que no século XVII a prática da circuncisão entre
vários povos exóticos fez com que os autores cristãos franceses lhes atribuíssem
uma origem judia. Um outro exemplo desse gênero de pesquisa, em outra região,
é o dicionário francês -caraíba compilado pelo padre Raymond Breton (séc.
XVII).
A teoria a respeito das origens pré -islâmicas dos malgaxes foi retomada
pouco por Poirier, que uma dualidade nas contribuições muçulmanas a
Madagáscar. Enquanto seus predecessores sustentavam que os remanescentes
atenuados do Islã em Madagáscar sugerem uma origem judaica, Poirier os
considera uma forma primitiva de religião procedente da Arábia. No entanto, os
documentos arqueológicos obtidos na África e em Madagáscar o m em apoio
dessa teoria. As maciças infiltrações árabes que fertilizaram a cultura Swahili
intervêm no século VIII, e ainda que houvesse tráfico na costa oriental da
África no século II da Era Cristã, era Rapta, situada depois de Menuthias (que
não pode ter sido Madagáscar) o porto terminal. Segundo o autor do Périplo, o
último mercado digno desse nome no país de Azania era chamado Rapta em
virtude de seus barcos “costurados” (rapton ploiarion); encontravam -se grandes
quantidades de marfim e cascos de tartaruga.
A cidade de Rapta ainda o foi localizada, mas acredita -se que ela se
situe entre Pangani e o delta do rio Rufiji. É provável que Madagáscar não se
interessasse por esse comércio costeiro, não apenas por ele chegar até Rapta
mas por ser a ilha ainda desabitada.
Com base em testemunhos históricos e arqueológicos confiáveis, é razoável
supor que indonésios e africanos chegaram a Madagáscar entre os séculos V e
VIII ou, de qualquer modo, não depois do século IX. Por esta razão, convém
examinar mais de perto as vicissitudes daquilo que se conhece acerca dos
primeiros povoamentos afro -asiáticos.
Os primeiros imigrantes indonésios
Ainda que seja arriscado tentar estabelecer uma data definitiva para a
imigração dos primeiros indonésios, é lícito conjeturar, por razões que exporemos
mais adiante, que seu início teve lugar no século V da Era Cristã, podendo
17 FERRAND, G. 1891 -1902.
784
África Antiga
 . Porta antiga de Miandrivahiny Ambohimanga, Imerina. (Foto fornecida pelo autor).
785
Madagáscar
ter prosseguido até o século XII, segundo Deschamps. -se o nome de
paleoindonésios aos primeiros migrantes a entrar em contato e provavelmente
se amalgamar com os africanos. Os últimos a chegar, conhecidos como
neoindonésios, foram os ancestrais dos Merina; foi a leva que melhor preservou
sua identidade biológica original, possivelmente pela circunstância de ter seguido
um itinerário mais direto, mas é provável que devido ao seu pequeno número
tenha adotado a língua dos paleoindonésios chegados a Madagáscar em épocas
anteriores.
A dicotomia paleo/neo indonésios não é apenas cronológica e biológica, mas
se reflete também na organização social. Ottino demonstrou que as sociedades
dos planaltos centrais organizaram -se inicialmente de modo muito semelhante
às da Indonésia. O foko, unidade social de Imerina denominada deme por
Bloch –, é encontrado numa forma análoga em Timor, sob o nome de funkun.
As sociedades malgaxes do litoral, por sua vez, têm muitos pontos em comum
com as da África bantu.
Hébert observou uma bipartição leste -oeste em certo número de termos
malgaxes de origem indonésia e tece considerações muito interessantes acerca
dos calendários (1960). Os calendários sakalava contêm poucas palavras em
sânscrito, que são muito mais frequentes nos calendários dos descendentes dos
neo indonésios
18
.
Os neo indonésios parecem possuir tradões, embora bastante vagas,
referentes às suas origens indonésias. Os Tantaran’ny Andriana, crônicas da
história merina coletadas pelo padre Callet, aludem a um desembarque na costa
oriental, em algum lugar entre Maroantsetra e Mangoro. Ramilson, em sua
História dos Zafimamy, retoma essa tradição de desembarque, que situa em
Maroantsetra.
O lugar de origem dos indonésios que emigraram para o oeste através do
oceano Índico, tanto nos primeiros tempos como posteriormente, é ainda
um mistério. A meu ver, uma comparação glotocronológica do malgaxe (ou
melhor, de seus vários dialetos) com um grande número de línguas indonésias
da Indochina insular e continental poderia revelar -se frutífera. A língua que
possuísse o maior número de termos em comum com o malgaxe conduziria ao
tronco comum sudeste -asiático a partir do qual as várias línguas divergiram.
O. Dahl mostrou o estreito parentesco entre o malgaxe e a língua manjaam de
18 Este argumento parecerá questionável para aqueles que armam que a difusão dos calendários não
depende exclusivamente de migrações. Além disso, é possível que a modicação do calendário dos
Sakalava se deva à inuência de povos islamizados.
786
África Antiga
Bornéu; Dyen confirmou o fato com cálculos glotocronológicos, sublinhando
que o grau de retenção comum ao par malgaxe -manjaam é maior do que o
do par malgaxe -malaio, Isto não significa necessariamente que o malgaxe se
originou em Bornéu, porquanto pode estar mais próximo de outras línguas.
Ferrand, em suas Notas sobre a Fonética Malgaxe, observa haver forte parentesco
entre o malgaxe e o batak e estabelece comparações com o kawl e o javanês.
Os protomalgaxes do Sudeste Asiático, que criaram no oceano Índico um
equivalente da epopeia polinésia, teriam tido, segundo Solheim
19
, um modo de
vida muito semelhante à dos Iban de Bornéu, cujo ano se divide em um período
sedentário, voltado a uma agricultura de desmatamentos e queimadas, e um
período de navegação – às vezes de pirataria. Hébert
20
levanta a hipótese de que
esses intrépidos navegadores teriam sido os Bugi, cujo nome, deformado, seria
usado para designar Madagáscar nos textos árabes até a presente data (Bunki
ou Bukini em swahili).
Impressionou -me a similaridade entre as aldeias fortificadas neo indonésias,
cercadas por um fosso (A. Mille contou 16 mil tios em Imerina), e as
encontradas na Indochina e na Tailândia. Esses sítios fortificados surgem na
Indonésia no princípio do Neolítico, mas alguns datam de meados do primeiro
milênio da Era Cristã. Em todo caso, é razoável buscar as origens dos indonésios
de Madagáscar no norte do Sudeste Asiático, uma vez que há quinze séculos as
civilizações indonésias se estendiam até a península da Indochina. As gerações
posteriores dessa protocultura hipotética bem podem ter chegado às ilhas
Bornéu e Madagáscar.
A impossibilidade de atribuir a este ou àquele país (ou países) da Indonésia
a origem da protocultura malgaxe não significa que estejamos limitados à mera
especulação. A partir do século V e sem dúvida mais tarde empreenderam
os indonésios inúmeras viagens marítimas, em particular para a Índia; entre os
séculos VII e XII, grandes potências marítimas se desenvolveram na Indonésia,
notadamente os impérios hinduizados de Crivijaya (séculos VII a XIII) em
Sumatra, Cailendra (século VIII), Mataran (séculos IX a XI) e Mojapahit
(século XIII) em Java, e Jambi (século XII) na Malásia.
No atual estágio de nossos conhecimentos, é tão difícil atribuir uma data
precisa às migrações indonésias quanto fixar sua origem geográfica. Ferrand
e, posteriormente, Dahl observaram que apesar do grande número de palavras
sânscritas encontradas no malgaxe,o elas muito raras nas línguas com as quais
19 SOLHEIM, W. 1965, pp. 33 -42.
20 HÉBERT, J. C. 1971, pp. 583 -613.
787
Madagáscar
esse idioma está intimamente relacionado (malaio, ou melhor, maajam). Disso
se pode deduzir que as migrações para Madagáscar são posteriores ao início do
processo de hinduização
21
. Tal processo, bastante evidente a partir do século IV
da Era Cristã, deve ter começado muito cedo, porém sua influência se mostrou
bastante desigual no interior da Indonésia e do Sudeste Asiático.
As comparações glotocronológicas entre o malaio e o malgaxe, bem como
entre os rios dialetos derivados do protomalgaxe, nos fornecem uma série
de possibilidades cronológicas que giram em torno do primeiro milênio da
nossa era
22
. O aspecto mais proveitoso do estudo das divergências vocabulares
reside numa possível classificação dos diferentes dialetos e no que dele se pode
inferir a respeito das migrações no interior de Madagáscar. Deschamps assinalou
que as rotas marítimas a leste da Índia foram estabelecidas muito tempo,
enquanto as do oeste vieram a ser conhecidas nos primeiros séculos da Era
Cristã. No meu entender, esse fato tem muito mais peso do que as incertezas
da glotocronologia.
A descoberta de artefatos de pedra poderia levar -nos a conhecer melhor a
fase primitiva da história malgaxe, mas até o momento nada foi encontrado. A
meu ver, os primeiros malgaxes a habitar a ilha estavam familiarizados com
o uso dos metais. Sabemos que na costa africana a Idade do Ferro sucedeu à
Idade da Pedra entre os séculos I e IV da Era Cristã. Na Indonésia, a Idade
do Bronze ocorreu muito antes
23
, e o que é mais importante várias e
diferentes civilizações ali coexistiram; houve mesmo alguns grupos que, isolados,
continuaram a usar instrumentos de pedra até o século X.
A existência ou o de objetos de pedra em Madagáscar é assunto controverso.
Dois artefatos semelhantes a enxós foram encontrados, um por Bloch, na região
de Ambatomanoina
24
, outro por Marimari Kellum -Ottino, em Tambazo, a leste
de Malaimbandy. Até o momento não é possível uma conclusão definitiva acerca
desses dois artefatos, provenientes de locais onde possivelmente se talhavam
pederneiras de fuzil; caso isso venha a ser confirmado, a chegada dos primeiros
indonésios ficaria situada em meados do primeiro milênio da Era Cristã. A
este respeito, é de grande interesse a comunicação de Grandidier
25
acerca da
descoberta de pedras talhadas semelhantes a pederneiras na jazida de subfósseis
21 DAHL, O. C. 1951, p. 367.
22 RIN, P., KOTTAK, C. & GORLIN, P. 1970, pp. 26 -83.
23 HEEKEREN, H. R. van.
24 BLOCH, M. & VÉRIN, P. 1966, pp. 240 -l.
25 DYEN & GRANDIDIER, A.
788
África Antiga
 . Canoa de pesca vezo de tipo indonésio, com balancim.
F . Fole de forja com duplo pistão do tipo encontrado na
Indonésia. (Ilustrações fornecidas pelo autor.)
789
Madagáscar
de Laboara; visto ser a introdução das armas de fogo em Madagáscar posterior
à extinção dos subfósseis, podemos estar em presença de uma indústria lítica.
A cerâmica malgaxe do centro e do leste assemelha -se em muitos aspectos
aos objetos encontrados no complexo de Bau -Kalanay; todavia, a cerâmica desse
período arcaico encontrada na África ainda não é conhecida o suficiente para se
poder distinguir com precisão os traços africanos dos indonésios.
Os monumentos de pedra malgaxes erigidos para o culto dos ancestrais
constituem forte reminiscência da Indonésia. Ferrand (1905) serve -se de
sólidas técnicas etimológicas para aproximar a palavra denotativa da divindade
(Zanahary) de suas homólogas no malaio e no chan.
Com referência aos meios de transporte, é frequente perguntar como podiam
os indonésios do primeiro milênio da Era Cristã dispor de barcos capazes de
cobrir tão longas distâncias. Sabemos que naquele período os barcos “costurados”
– os mtepe – foram usados no oeste do oceano Índico. Esses mtepe figuram entre
os prováveis ancestrais do dhow, porém seu casco é fixado por ligaduras, enquanto
o do dhow apresenta uma estrutura cavilhada. As velas dos dois barcos também
diferem entre si. No leste do oceano Índico, como demonstrou Deschamps,
havia embarcações capazes de navegar em alto -mar. A mais antiga referência a
essas embarcações aparece numa escultura do templo de Borubudur (Java, século
VIII), representando um barco com balancim, dois mastros e vela.
Admitida a contribuição indonésia para a colonização de Madagáscar, resta
descobrir as rotas pelas quais ela se efetivou. Muitos autores sublinharam a
existência de uma grande rota sul -equatorial que, teoricamente, poderia ter
ligado Java a Madagáscar; a corrente Sul -Equatorial é muito forte entre a costa
meridional de Java e a região vizinha do cabo Amber no período de agosto a
setembro. Sibrée assinalou que as pedras -pomes provenientes da explosão do
Cracatoa foram levadas por essa corrente até as costas de Madagáscar.
Sem ser absolutamente inutilizável, uma rota a unir a Insulíndia a Madagáscar
é difícil de conceber por razões que foram claramente explanadas por Donque:
um itinerio direto Java -Madagáscaro encontra, a priori, obstáculos
intransponíveis durante o inverno austral, quando os ciclones tropicais estão
ausentes dessa região, mas existem fatores capazes de invalidar tal hipótese – a
rota direta representa uma distância de cerca de 6000 km num deserto marinho
sem escalas. Assim, é preferível admitir um itinerário a passar pelo sul da Índia
e pelo Ceilão. Deschamps alude a incursões piratas nessas regiões na primeira
metade do primeiro milênio da Era Cristã.
O trajeto Índia meridional Madagáscar não coloca maiores problemas.
A rota ao longo da costa sul da Ásia ocidental é conhecida desde a época do
790
África Antiga
Périplo, e o grande número de moedas chinesas encontrado mais tarde em Siraf
testemunha a importância do comércio entre o Extremo Oriente e o Oriente
Médio por via marítima. Do Oriente Médio, os viajantes se dirigiam à costa
da África tal como na época da prosperidade de Rapta ; o acesso às ilhas
Comores teria constituído um intermediário para a descoberta de Madagáscar.
Do Cabo Delgado pode -se ver, em dias claros, a silhueta de Kartala, na Grande
Comore; dessa ilha, pode -se divisar os contornos de Moheli até Mayote. É
fácil imaginar que uma embarcação com destino a uma das ilhas Comores se
tenha desgarrado e chegado a Nosy -Be ou ao cabo São Sebastião, como sucedia
amiúde com os barcos de Zanzibar no século XIX, desviados de sua rota pelo
mau tempo.
Assim, é possível que o povoamento das ilhas Comores seja antigo. As crônicas
dos escritores locais, como Said Ali, mencionam a presença de populações pagãs
durante o período Beja, anterior à chegada dos muçulmanos; infelizmente o
sabemos se tais populações eram africanas ou indonésias. Segundo alguns autores,
como Repiquet e Robineau
26
, a população dos Altos de Anjuan, os Wamatsa,
contam uma certa proporção de descendentes dos primeiros habitantes pré-
-islâmicos. Essa hipótese ainda não foi devidamente examinada. Pode -se admitir
uma origem indonésia para os imigrantes protomalgaxes com base em dados
toponímicos (por exemplo, Antsahe pode ser aproximado do malgaxe Antsaha)
ou nos testemunhos da tecnologia tradicional. Em Uani sobrevive um tipo
de cerâmica tradicional que denota acentuada semelhança, quanto à forma e
à decoração dos potes, com os utensílios correspondentes malgaxes
27
. Hébert
indicou a presença, em Anjuan, de tabus referentes às enguias dos lagos de
montanha, muito semelhantes aos observados entre os malgaxes com relação
à mesma enguia, cujo nome, tanto em Madagáscar como em Anjuan, é de
derivação indonésia. Barraux
28
cita uma tradão, de origem possivelmente
malaio -polinésia, encontrada em Vueni. Naturalmente, a cultura das ilhas
Comores possui, como a da costa oriental africana, objetos vindos do Sudeste
Asiático, tais como a piroga com balancim e o ralador de coco.
Talvez um dia o substrato indonésio de Anjuan venha a ser revelado pelas
escavações em andamento no Velho Sima. Esse sítio, onde subsiste uma mesquita
do século XV, foi outrora atravessado por uma estrada em cujo leito se descobriu
um estrato arqueológico contendo cacos de cemica ocreada vermelha e
26 ROBINEAU, C. 1966, pp. 17 -34.
27 RIN, P. 1968, pp. 111 -18.
28 BARRAUX, M. 1959, pp. 93 -9.
791
Madagáscar
 . Cemitério de Marovoay, perto de
Morondava.
F . Estátua de Antsary: arte antanosy das
proximidades de Fort -Dauphin. (Fotos fornecidas
pelo autor.)
792
África Antiga
abundantes conchas marinhas provenientes de restos de cozinha. Uma datação
por carbono 14 feita num tridacnis dos estratos mais profundos indica a idade
de 1550 anos ±70 para o sítio (Laboratório Gakushuin). Esse sítio, de difícil
acesso, deve ainda ser escavado; é provável que o seu estrato pré -islâmico encerre
elementos que permitam solucionar o enigma dos protomalgaxes.
Segundo Deschamps e, posteriormente, Kent (este de forma diferente, porém
igualmente hipotética), os indonésios instalados na costa africana teriam formado
o núcleo do povoamento de Madagáscar. As influências dos indonésios no litoral
africano têm sido superestimadas, porquanto o “complexo malaio” das plantas
importadas do Sudeste Asiático para a África não está necessariamente ligado
aos indonésios; de acordo com o Périplo, a cana -de -açúcar e provavelmente o
coqueiro ali chegaram sem a intervenção destes últimos.
A área de difusão da piroga com balancim no oceano Índico é por certo um
índice da extensão da influência indonésia, como observou Hornell; Deschamps
é de parecer que ela indica a rota seguida pelos migrantes em sua viagem para
Madagáscar. Ideia plausível, mas sujeita a discussões,que os fortes laços entre
as culturas Swahili e Malgaxe podem ter favorecido os empréstimos.
Quando se avalia a exteno da influência indonésia na costa oriental da África,
verifica -se ser ela relativamente fraca. Uma colonização indonésia na costa oriental
teria deixado vestígios; ora, até o momento nada se descobriu. Isso nos leva a
acreditar que o impacto asiático na costa – se é que ele existiu – foi relativamente
localizado e nunca chegou a constituir uma colônia de grande extensão. Neste
contexto, poderíamos discutir as informões fornecidas pelos primeiros geógrafos
árabes. O documento mais antigo e também mais estimulante sobre o assunto
é sem dúvida o texto em que se narram as incursões do povo de Waqwaq nas
costas africanas durante a segunda metade do século X. J. e M. Faublée
29
e R.
Mauny
30
consideram esse texto, com justiça, como de extrema importância, mas
o interpretam de modo diferente. O texto provém do Livro das Maravilhas da
Índia, da autoria de Bozorg ibn Chamriyar, um persa de Ramhormoz
31
. Eis a
referência em questão:
“Contou -me Ibn Lakis que o povo de Waqwaq foi visto a realizar espantosas façanhas.
Assim é que em 334 [945 -946] eles ali abicaram em um milhar de embarcações e
os combateram com extremo vigor, sem no entanto conquistá -los, pois Oambaloh
29 FAUBLÉE, J. & M. 1964.
30 MAUNY, R. 1965.
31 DEVIC, L. M. 1878; VAN DER LITH. 1883 -6, citado por FERRAND, G. 1913 -1914, pp. 586 -7.
793
Madagáscar
é cercado por forte muralha, à volta da qual se estende o estuário cheio de água do
mar, de modo que Oambaloh surge no meio desse estuário como poderosa cidadela.
Quando os últimos povos de Waqwaq lá se estabeleceram, foi -lhes perguntado por
que tinham vindo exatamente para aquele lugar e não para outro. Responderam que
ali poderiam encontrar os produtos de que necessitavam o seu país e a China, tais
como marfim, cascos de tartaruga, peles de leopardo e âmbar; ademais, andavam
à procura dos Zeng, por sua força física e facilidade em suportar a escravidão.
Afirmaram ter viajado durante um ano, tendo pilhado, antes de ali aportar, as ilhas
situadas a seis dias de viagem de Oambaloh. Tomaram -se senhores de numerosas
cidades e aldeias zeng em Sofala, além de outras cidades para eles desconhecidas. Se
esses povos falavam a verdade e se pudermos confiar em seu relato, ou seja, se eles de
fato chegaram depois de um ano de viagem, isso confirmaria o que Ibn Lakis dizia
das ilhas de Waqwaq: que elas estavam situadas diante da China
32
.
Oambaloh é provavelmente a ilha de Pemba, e da narrativa dessas incursões
podemos inferir a chegada de piratas procedentes do Sudeste Asiático, talvez via
Madagáscar, a seis dias de viagem”. Verdade é que durante a primeira metade
do século X os indonésios se encontram nessa área do oceano Índico. No
momento, porém, não temos meios de confirmar se essas chegadas tiveram lugar
antes do início do século X.
Se examinarmos outros textos árabes encontrados e traduzidos por Ferrand,
toma -se óbvio que a população de Waqwaq era negroide; não obstante, talvez
incluísse indonésios, constituindo o amálgama biológico e linguístico do
complexo protomalgaxe. Seja como for, as viagens dos indonésios para a costa
africana parecem ter continuado durante o século X, como bem o atesta uma
passagem de Idrisi:
“Os Zendj não dispõem de navios com os quais possam empreender viagens, mas
chegam a seu país embarcações vindas de Omã, assim como outras, destinadas às
ilhas Zabadj [Zabedj, isto é, Sumatra], que pertencem às Índias. Esses estrangeiros
vendem suas mercadorias e compram produtos da terra. Os habitantes das ilhas
Zabadj chegam à terra dos Zendj em embarcões grandes e pequenas e por
intermédio destes comerciam sua mercadoria, visto que entendem as línguas uns
dos outros”
33
.
32 SAUVAGET, J., citado em FAUBLÉE, J. & M. 1964.
33 Idrisi, manuscrito 2222 da Bibliothèque Nationale, fol. 16, vol. L, 9 -12; e também FERRAND, G.
1913 -14, p. 552.
794
África Antiga
Em outra passagem do mesmo manuscrito
34
Idrisi afirma: “O povo de Komr
e os mercadores de Maharadja [Djaviga] chegam ali [em Zendj], recebem as
boas -vindas e comerciam com sua gente”.
Nas narrativas árabes, Waqwaq e Komr parecem às vezes se confundir, mas
as cartas náuticas de Ibn Majid e Suleyman el Mahri, datadas do século XV,
mostram de forma inequívoca que o termo Komr designa Madagáscar e por
vezes o conjunto das ilhas Comoro e Madagáscar. A confusão é interessante
porque foram provavelmente os Waqwaq que povoaram o território de Komr.
O m da migração indonésia para o oeste
É possível que o crescimento da influência islâmica no início do segundo
milênio tenha tido por consequência a cessação das viagens dos indonésios. Uma
passagem de Ibn el Mudjawir (século XIII) refere uma tradição árabe de grande
interesse para a compreensão do assunto. O trecho em questão foi traduzido por
Ferrand
35
, e Deschamps o considera, com razão, fundamental:
“O sítio de Aden foi habitado por pescadores após a queda do Império dos Faraós
[provavelmente o Império Romano, cujo centro oriental ficava em Alexandria].
Os povos de Al Komr invadiram Áden, tomaram posse da cidade, expulsaram os
pescadores e construíram edifícios de pedra nas montanhas. Chegaram todos durante
uma única monção. Agora esses povos morreram e suas migrações terminaram. De
Áden a Mogadíscio há uma monção, de Mogadíscio a Quíloa uma segunda monção
e de Qloa a Al Komr uma terceira. O povo de Al Komr serviu -se dessas três
monções como se fossem uma , e uma embarcação de Al Komr chegou por esse
caminho a Áden no ano 626 da Hégira [+1228]; dirigia -se a Qloa e chegou a Áden
por engano. Suas embarcações têm balancins porque os mares são rasos e perigosos.
Mas os Barabar os expulsaram de Áden. Atualmente, o quem conheça as
viagens marítimas desses povos; ninguém sabe dizer como viviam ou o que fizeram”.
As viagens dos indonésios pelas costas da África cessaram muito cedo, mas
isso não significa a interrupção das relações entre o extremo oriente e o oeste do
oceano Índico. Pelo contrário, indícios da expansão do comércio no oceano
Índico, mas foram sem dúvida os muçulmanos, que se familiarizavam cada vez
mais com as rotas de comércio, os responsáveis por esse crescimento. As cartas
náuticas de Ibn Majid dão as latitudes precisas das cidades da costa da África
34 Idem, fol. 21, vol. L, 1 -12.
35 FERRAND, G. 1913 -14.
795
Madagáscar
 . Cerâmica chinesa de Vohemar.
F . Caldeirão de pedra, civilização
de Vohemar. (Fotos da col. do Museu de Arte e
Arqueologia de Madagáscar.)
796
África Antiga
e dos territórios e entrepostos indonésios do outro lado do Índico. A travessia
desse oceano podia, na época, ser feita em trinta ou quarenta dias.
Não é inconcebível que, embora afastados da costa da África, os indonésios
continuassem a navegar em linha reta para Madagáscar, talvez a partir das
reges meridionais da Índia. Os neo -indonésios tamm teriam seguido
essa rota, que se mostrou praticável: em 1930, alguns pescadores das ilhas
Laquedivas chegaram sãos e salvos ao Cabo ocidental, vindos diretamente do
seu arquipélago de origem. Os neo indonésios aprenderam o dialeto malgaxe dos
habitantes do leste e entraram em contato com os muçulmanos, que por essa
época possuíam entrepostos na costa oriental.
Os pioneiros neo indonésios parecem ter estabelecido colônias na costa leste,
mas ainda se discute a região onde se fixaram. Dahl descobriu que os nomes
dos pontos cardeais em malgaxe e nas línguas indonésias estão fortemente
relacionados, mas coincidem se a rosa -dos -ventos malgaxe for deslocada
de 90°. Assim, se em maanjan barat significa oeste e timor leste, as palavras
malgaxes correspondentes, avaratra e atsimo, significam respectivamente norte
e sul. Essas diferenças se explicam se considerarmos que para os povos marinhos
os pontos cardeais são definidos em função dos ventos: o vento do norte que traz
tempestades para a costa noroeste de Madagáscar corresponde ao vento úmido
do oeste da Indonésia, enquanto o vento seco do sul tem sido identificado com
os alísios do leste da Indonésia. A explicação de Dahl é válida para a costa
noroeste de Madagáscar, onde, segundo ele, os imigrantes se estabeleceram
inicialmente. Mas, de acordo com Hébert, essa hipótese tentadora não resiste a
um exame crítico. Se atentarmos mais para as características gerais dos ventos
(de estação chuvosa ou seca, etc.) do que para a sua direção, entenderemos por
que os protomalgaxes, que na Indonésia denominavam barat laut o vento oeste
carregado de chuva, designaram o norte de onde procedem as chuvas por
avaratra em Madagáscar, adotando uma medida comum entre leste e oeste. De
fato, as chuvas e tempestades da estação quente vêm da direção nordeste na
costa oriental e da direção noroeste na costa ocidental; assim, nada nos autoriza
a afirmar que os malgaxes se tenham estabelecido a princípio na costa noroeste
36
.
As imigrações africanas e swahili
A discussão das várias hipóteses a respeito das origens indonésias dos
malgaxes não nos permitem esquecer que uma contribuição importante ou
36 HÉBERT, J. C. 1968 -a, pp. 809 -20; 1968 -b, pp. 159 -205; 1971, pp. 583 -613.
797
Madagáscar
mesmo majoritária – para o povoamento de Madagáscar proveio do continente
africano. Deschamps lançou duas hipóteses para explicar essa simbiose afro-
-asiática: a de uma miscigenação étnica e cultural na própria costa oriental da
África e a de possíveis razias indonésias, a partir de Madagáscar, no litoral do
continente. Kent vê, ainda, um momento de forte influência indonésia na África
e a subsequente colonização de Madagáscar. Entretanto, dado que não dispomos,
até o presente, de informações arqueológicas sobre os sítios da costa meridional
da África (Tanzânia e Moçambique) anteriores ao século VIII, recuso -me a ver
nessas teorias mais do que simples hipóteses. É bem possível que a simbiose
afro -indonésia se tenha iniciado nas ilhas Comores ou no norte de Madagáscar.
A ideia de que Madagáscar foi inicialmente povoada por pigmeus desafia
todos os dados da geologia (a Grande Ilha encontra -se isolada desde o Terciário)
e da navegação (os pigmeus não eram marinheiros nem participaram da eclosão
da civilização marítima dos swahili). Ademais, os membros de tribos como a
dos Mikea, que se acreditava fossem os últimos remanescentes dos pigmeus, não
têm uma estatura particularmente pequena.
Em minha opinião, os malgaxes de origem africana eram povos bantu. Sua
migração para a ilha iniciou -se provavelmente no culo IX, como ocorreu com os
indonésios, mas o parece ter -se prolongado até os tempos hisricos mais recentes
(século XVI). Podemos supor que muitos dos africanos chegaram ao mesmo
tempo e da mesma maneira que os muçulmanos ou os swahili não -islamizados.
Embora o vocabulário malgaxe apresente predominância indonésia, não
se pode esquecer a contribuição das línguas bantu; fenômeno análogo ocorre
com o crioulo falado nas Antilhas, em que o léxico majoritariamente francês
(95%) tem alguns elementos africanos. A contribuição bantu para o malgaxe
se situa em dois níveis: primeiro, o do vocabulário, depois, o da estrutura das
palavras. A presença de palavras bantu em todos os dialetos de Madagáscar
mostra que a contribuição africana para o povoamento do território não foi
tardia, mas que, ao contrário, deve -se confundir com as origens da civilização
malgaxe, cuja língua contém traços bastante pronunciados da influência bantu.
Tão grande e de tal caráter é essa influência, que se torna impossível explicá-
-la a menos que se admita a presença de um substrato bantu. E mais: O. Dahl
demonstrou claramente que a alteração dos finais consonantais (indonésios)
para finais vocálicos deve -se ao substrato bantu. Se tal é o caso, essa mudança
deve ter ocorrido logo após a instalação dos indonésios entre os Bantu, durante
o período em que estes se estavam adaptando à nova língua
37
.
37 DAHL, O. C. 1951, pp. 113 -14.
798
África Antiga
Há, por conseguinte, razões de sobra para se buscar na própria Madagáscar
e não na Indonésia a causa da transformação do malgaxe numa língua
com finais vocálicos. Se a língua falada em Madagáscar antes da chegada dos
indonésios era o bantu, torna -se fácil compreender essa transformação. Entre as
línguas bantu, as que comportam consoantes finais não passam de umas poucas
exceções; pessoalmente, não conheço nenhuma na África oriental. Os indivíduos
que falam línguas sem consoantes finais sempre encontram dificuldades para
pronunciar as consoantes finais de outra língua, sobretudo quanto não uma
vogal de apoio. Aqueles que ensinaram francês em Madagáscar descobriram isso
por experiência própria!
Assim, suponho que a alteração de finais consonantais para finais vocálicos
foi motivada pelo substrato bantu. Neste caso, tal mudança deve ter ocorrido
logo depois que os indonésios se estabeleceram entre os Bantu, durante o
período em que estes se estavam adaptando à nova língua. Foi esta, portanto,
uma das primeiras mudanças fonéticas ocorridas após a chegada dos imigrantes
a Madagáscar. Pouco se sabe sobre o lugar ocupado pela ilha no quadro geral
da expansão bantu. Dentre esses povos, muitos foram navegadores os Bajun
da Somália, estudados por Grottanelli, os Mvit do Quênia e os antigos Makua
de Moçambique, por exemplo mas é difícil estabelecer uma ligação entre
eles e Madagáscar, devido à falta de testemunhos arqueológicos. Descobriu -se
recentemente que os fundamentos da língua falada na ilha de Anjuan poderiam
estar relacionados ao Pokomo da costa do Quênia (na região da foz do rio Tana).
Essa ilha comoriana teria sido um ponto de parada, a exemplo da ilha de Juan
de Nova, hoje frequentada por caçadores de tartaruga e por embarcações do
tipo dhow
38
. Os Bantu devem ter passado pelas ilhas Comores para chegar a
Madagáscar; é, pois, natural pensar que as línguas bantu inicialmente faladas em
Madagáscar estivessem estreitamente relacionadas com as das ilhas Comores.
As palavras antigas bantu e malgaxes vêm em apoio dessa hipótese.
Sabemos por Ibn Battuta que no princípio do século IV a civilização swahili,
sem ser totalmente muçulmana, estava em pleno desenvolvimento. A nosso ver, os
marinheiros da primitiva civilização swahili, islamizada ou não, desempenharam
papel fundamental nas migrações africanas para Madagáscar.
No momento o nos é possível desenredar as sucessivas contribuões
culturais, porém muitos autores têm sustentado a heterogeneidade do
povoamento do norte e do oeste de Madagáscar. Mellis, em seu livro sobre o
38 GROTTANELLI. Instruções Náuticas. 1969, p. 159.
799
Madagáscar
 . Arrozais em
terraços nas proximidades de
Ambositra, semelhantes aos
de Luzón, nas Filipinas.
F . Exercício de
geomancia: extremo sul. (Fotos
fornecidas pelo autor.)
800
África Antiga
noroeste, sublinha o contraste entre os povos da costa marítima (antandrano) e
os do interior (olo boka antety), contraste que se reflete em certos ritos funerários.
Alguns malgaxes de sico predominantemente africano reconhecem sua
origem ultramarina, deduzindo -a de seus próprios costumes; é o caso dos
Vezo -Antavelo, presentes em todo o litoral oeste e noroeste. Os Kajemby
ainda têm seus cemitérios nas dunas das praias e se reconhecem aparentados
com os Sandangoatsy. Estes últimos vivem hoje no interior, perto do lago
Kinkony, mas nem sempre foi assim: as cartas e narrativas portuguesas do século
XVII fazem menção ao nome de Sarangaço ou Sangaço (uma corruptela de
Sandangoatsy) nas margens da baía de Marambitsy. Nos últimos três séculos e
meio, os Sandangoatsy voltaram as costas às suas origens marinhas, assim como,
provavelmente, os Vazimba do centro -oeste e dos planaltos.
Os movimentos dos Bantu da costa durante o século IX informam -nos sobre
a contribuição africana para o povoamento de Madagáscar, mas ainda resta
explicar por que a língua indonésia se tornou língua franca. Alguns Bantu devem
ter entrado em contato com os indonésios, e é possível que entre os africanos que
falavam diferentes línguas e dialetos o indonésio se tenha tornado uma língua de
conveniência; no entanto, Madagáscar deve ter permanecido por um bom tempo
um verdadeiro tabuleiro de xadrês linguístico e étnico, pelo menos no caso da
costa próxima de Baly e Maintirano (Bambala de Mariano), de Tsiribihina
(segundo Drury) e de certas tribos Vazimba do interior (segundo Ribkeli e
Hébert). Os Vazimba levavam uma vida bastante primitiva no plano econômico:
os que habitavam a costa eram pescadores, mas os do interior dependiam em
grande parte da exploração bruta dos recursos do meio natural. A caça e a coleta
de bagas e de mel bastavam às suas necessidades. Segundo Drury, os Vazimba
de Tsiribihina eram pescadores de rio; encontraram -se nas escavações grandes
quantidades de conchas consumidas por essas populações, que se dedicavam à
coleta em Ankazoabo e em Ankatso.
A simbiose entre os indonésios e os africanos se processou desde o início
do povoamento de Madascar. Alguns Bantu marinheiros devem ter sido
islamizados antes do século X. Causa -me especial impressão o fato de os
malgaxes mulmanos e todas as populações das costas oeste e nordeste
compartilharem o mesmo mito sobre sua origem, ou seja, o mito de Mojomby,
ou da “ilha desaparecida”; recontei esse mito sob forma literária
39
tal qual me
foi apresentado pelos Antalaotse da baía de Boina. Segundo meus informantes,
39 RIN, P. 1970 -a, pp. 256 -8.
801
Madagáscar
. Túmulo
antalaotse em Antsoheribory.
F . Cemicas de
Kingany e de Rasoky (culo
XV). Anzóis de Takaly (século
XII). (Ilustrações fomecidas pelo
autor.)
802
África Antiga
Selimany Sebany e Tonga, ancestrais dos Kajemby e dos Antalaotse, habitavam
outrora uma ilha situada entre a costa da África e as ilhas Comores. Viviam
do comércio e professavam a religião muçulmana. Quando a impiedade e a
discórdia se instalaram na ilha, Alá resolveu puni -los: a ilha foi submersa por
um mar furioso; só uns poucos homens justos escaparam ao castigo. Dizem uns
que eles foram milagrosamente poupados, outros pretendem que Deus enviou
uma baleia para transpor-los. Kajemby e Antalaotse são os descendentes desse
contingente de homens justos. É de crer, portanto, que os muçulmanos não
sobrepuseram sua cultura à de Madagáscar; desempenharam, isto sim, um papel
catalisador nas migrações africanas para a ilha.
C A P Í T U L O 2 9
803
As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro Antiga
Nos capítulos precedentes examinamos a arqueologia das diferentes regiões
da África subsaariana no decorrer do último milênio antes da Era Cristã e do
primeiro milênio da Era Cristã. Neste capítulo tentaremos pôr em relevo algumas
das grandes tendências da história da África durante esse período. Caracteriza-
-se ele por mudanças fundamentais em todos os domínios. A economia passa
do estágio de parasitismo para o de controle dos meios de produção alimentar
vegetal e animal. Da mesma forma, a tecnologia rudimentar, fundada em grande
medida na utilização da pedra e da madeira, cede lugar a uma forma muito mais
complexa, com base no emprego de diversos metais, paralelamente ao da pedra.
É durante esse período que se lançaram os alicerces das sociedades africanas
que hoje conhecemos. As fronteiras entre os diferentes grupos linguísticos
serão depois ligeiramente modificadas, enquanto a população conhecerá um
crescimento considerável e os agrupamentos sociais e políticos se tornarão mais
complexos, com o surgimento dos Estados. De modo geral, porém, a demografia
e a economia da África subsaariana se encontram fixadas, em suas grandes
linhas, desde o último quartel do primeiro milênio da Era Cristã.
Uma das dificuldades com as quais se defronta qualquer tentativa de
reconstituir essa história em seus grandes traços é a desigual densidade das
pesquisas arqueológicas. Vastas regiões permanecem arqueologicamente
inexploradas, particularmente em alguns dos países mais extensos, como Angola,
As sociedades da África subsaariana na
Idade do Ferro Antiga
M. Posnansky
804
África Antiga
Moçambique, Zaire, República Centro -Africana, Camarões, Benin, Costa do
Marfim, Mali, Alto Volta, Níger, Serra Leoa e Madagáscar. Mesmo onde se
puderam empreender pesquisas mais sérias, elas permanecem extremamente
localizadas, como no Senegal e no Chade. Convém notar que, se em certas áreas
da África do Norte existem serviços relacionados a antiguidades desde o século
XIX (no Egito, desde 1858), em numerosos países da região subsaariana as
investigações começaram com a Independência e a criação de universidades e
museus nacionais. Como quer que seja, o estabelecimento de uma cronologia por
radiocarbono modificou radicalmente nosso conhecimento da Idade do Ferro
Antiga no curso dos últimos dez anos, permitindo algumas grandes generalizações
sobre a dimensão temporal das diversas transformações econômicas.
A exploração dos minerais
Quatro minerais de importância não apenas local eram explorados durante
o período que nos interessa. o eles, por ordem de explorão, o cobre, o
sal, o ferro e o ouro. A utilização da pedra prosseguiu naturalmente, mesmo
após o emprego dos metais para a fabricação dos utensílios e das armas mais
importantes.
O cobre
A extração do cobre teve início na Mauritânia, provavelmente durante o
primeiro quartel do último milênio antes da Era Cristã. Pela forma dos objetos
de cobre descobertos nessa região, parece que tal extração foi estimulada por
contatos com o Marrocos. O aspecto dessas primeiras minas é muito mal
conhecido, mas é lícito pensar que eram relativamente pouco profundas
1
. As
minas da Mauritânia são as únicas que sabemos com certeza encontrarem -se
em atividade antes do ano 1000 da Era Cristã. Existem outras jazidas de cobre
no Mali e no Níger, nas regiões de Nioro e Takkeda, e com toda certeza eram
exploradas no começo do segundo milênio; mas ignoramos desde quando e não
sabemos a época em que foram descobertas.
Segundo o testemunho de autores árabes e de textos cssicos
2
, o cobre
parece ter sido um elemento do comércio transaariano desde o primeiro milênio.
1 LAMBERT, N. 1971, pp. 9 -21.
2 POSNANSKY, M. 1971, pp. 110 -25.
805
As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro Antiga
Encaminhado para o sul, talvez fosse trocado pelo ouro transportado para o
norte. Os lingotes descobertos em Macden Ijafen atestam a importância desse
comércio numa época ligeiramente posterior (século XI ou XII). Os objetos
encontrados em Igbo Ukwu, no leste da Nigéria, são importantíssimos para a
avaliação da escala dessas trocas. Se eles realmente datam do século IX, como
afirmam o responsável pelas escavações, Thurstan Shaw
3
, e Wai -Andah, no
Capítulo 24, o grande número de objetos descobertos e o número ainda maior
dos que deveriam existir em sítios análogos demonstram que esse comércio era
muito desenvolvido desde o século VIII ou IX. Vários especialistas
4
, entretanto,
não aceitam uma data tão antiga e atribuem tais objetos a uma época avançada
do segundo milênio. Como a distribuição dos minerais de cobre na África, por
razões geológicas, é extremamente localizada, a abundância dos achados de
Igbo só se pode explicar por trocas comerciais. Acredita Shaw que a técnica da
fundição por cera perdida veio do norte, sendo provavelmente de origem árabe.
Com a possível exceção de Igbo Ukwu, os objetos de cobre são de uma raridade
surpreendente na África ocidental antes do ano +1000, salvo no Senegal e na
Mauritânia, que se encontram na proximidade tanto das minas de Akjoujit
quanto da rota comercial do Saara ocidental. O vale do Níger a montante de
Segu, onde existem tumuli monumentais como os de El Uladji e Killi, é uma
região com objetos de cobre do fim do primeiro milênio. O metal empregado
na sua fabricação teria provindo de jazidas situadas no Sahel (Mali ou Níger)
ou sido obtido mediante trocas comerciais. Em sua maior parte, infelizmente,
esses objetos foram descobertos no começo do século e no momento estão
perdidos. Restam -nos apenas as ilustrações dos relatórios de pesquisas, que
fazem excitar a nossa curiosidade. A análise espectrográfica deveria ajudar a
determinar a proveniência desse metal, mas a dificuldade em relação aos objetos
de cobre reside no fato de eles serem quase sempre constituídos de uma mistura
de metal virgem e de metal reaproveitado. A detecção de certos oligoelementos
poderia, contudo, permitir determinar se os minerais de Nioro e Takkeda eram
explorados na época da edificação dos tumuli.
Outras jazidas eram exploradas nessa época na região de Shaba, no Zaire,
onde as escavões de Sanga e Katoto proporcionaram objetos de cobre
em grande abunncia. No entanto, convém notar que, segundo a divio
tripartite sugerida por Nenquin, que escavou vários sítios
5
, a fase mais
3 SHAW, T. 1970, pp. 503 -17.
4 LAWAL, B. 1973, pp. 1 -8; POSNANSKY, M. 1973 -b, pp. 309 -11.
5 NENQUIN, J. 1957; 1963, p. 277.
806
África Antiga
antiga, ou kisaliense, é representada por 27 túmulos dos quais apenas dois
continham lingotes de cobre. Isso parece indicar que durante o Kisaliense, que
se estende do século VII ao IX, o cobre, embora empregado para a fabricação
de ornamentos, não era abundante. A zona cuprífera do norte de Zâmbia era
ligeiramente explorada por essa época. A datação da exploração mineira de
Kansanshi
6
indica o período de 400 a cerca de 90 da Era Cristã. No entanto,
os objetos de cobre eram então mais numerosos no sul do que no norte de
Zâmbia. Os primeiros objetos de cobre encontrados no sul do país, ainda pouco
numerosos, provinham provavelmente da região de Sinoia, no Zimbábue, e
das jazidas situadas na Zâmbia oriental. Ignoramos ainda tudo o que se refere
aos todos de exploração utilizados nessas duas regiões. Em outras áreas
africanas o cobre era muito raro e só iria aparecer nos sítios da África oriental
numa época bem posterior.
O sal
O sal era um mineral bastante procurado, sobretudo no início da agricultura.
Entre os cadores e coletores, as necessidades de sal eram provavelmente
supridas em sua maior parte pela carne de caça e pelos vegetais frescos. Esse
mineral se tornaria complemento indispensável nas regiões demasiado
secas, onde é impossível encontrar alimentos frescos e onde a transpirão
é geralmente excessiva. Nas sociedades de agricultores de regime alimentar
limitado porém, uma provisão de sal torna -se extremamente desejável. Não
temos a menor ideia quanto à data em que se exploraram pela primeira vez as
jazidas de sal saariano de Taghaza d’Awlil. Todavia, os textos árabes do último
quartel do primeiro milênio da Era Cristã atestam a existência de um comércio
saariano de sal no primeiro milênio. É provável que a extração do sal seja, em
parte, tão antiga quanto a do cobre e o desenvolvimento das ocupações de
Tichitt, na Mauritânia região onde um modo de vida sedentário próprio a
essas duas áreas pode ter imposto a necessidade de um abastecimento de sal. As
atividades mineiras do período medieval, que será tratada nos próximos volumes,
é muito bem documentada. São precárias; contudo, as informações relativas à
época de que falamos agora. Sem dúvida as operações de extração eram então
muito simples. O sal devia apresentar -se em depósitos superficiais em diversas
regiões do Saara, após o processo de estiagem ocorrido depois de -2500. Talvez
o homem tenha observado os lagos, os pântanos e os poços secos que atraíam
6 BISSON, M. S. 1975, pp. 276 -92.
807
As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro Antiga
os animais selvagens. Os depósitos superficiais de sal, por outro lado, têm por
vezes uma cor bastante característica.
Vários sítios primitivos de exploração de sal foram demarcados na África:
em Uvinza
7
, a leste de Kogoma, na Tanzânia; em Kibiro
8
, às margens do lago
Mobutu Sese Seko, em Uganda; em Basanga, em Zâmbia
9
, e talvez em Sanga
10
,
no Zaire, e no vale de Gwembe, em Zâmbia. Em Uvinza, a extração do sal
era provavelmente rudimentar, que as descobertas relativas aos séculos V
e VI, feitas nas fontes salgadas, não estavam associadas aos reservatórios de
salmoura reforçados por pedras que caracterizam a ocupação do segundo
milênio. O sal provinha igualmente de fontes salgadas em Kibiro, onde um
sistema aperfeiçoado de ebulição e filtragem dataria do primeiro milênio, pois a
ocupação do sítio dificilmente se poderia explicar de outra forma. Em Basanga,
os baixios salgados foram ocupados a partir do século V, e, conquanto o fato
ainda não esteja definitivamente estabelecido, é possível que o sal tenha sido
explorado muito cedo, talvez por evaporação. Parece que em outros lugares o
sal era obtido pelos diversos processos que se conservaram até o século XIX e
que consistiam em calcinar ou ferver ervas ou mesmo excrementos de cabra,
recolhidos em regiões conhecidas pela salinidade de seus solos, depois em fazer
evaporar a salmoura assim obtida e eliminar por filtração as impurezas mais
grossas.
Os coadores empregados nessas operações são muito comuns na Idade do
Ferro, mas esses vasos podiam também servir para outras preparações alimentícias.
Por vezes torna -se difícil relacioná -los com segurança à fabricação do sal.
O ferro
O minério de ferro foi utilizado na Suazilândia
11
como pigmento a partir
do Mesolítico. Ao que tudo indica, os pigmentos corporais, e depois os ocres
e os óxidos de ferro destinados à decoração de superfícies rochosas, foram
ativamente procurados desde o Paleolítico. Um pedaço de matéria corante
composta de hematita foi mesmo levada para a bacia de Olduvai por homens
que empregavam utensílios do Paleolítico Inferior. No Neolítico, minas de
7 SUTTON, J. E. G. & ROBERTS, A. D. 1968, pp. 45 -86.
8 HIERNAUX, J. & MAQUET, E., 1968, p. 49.
9 ROBERTS, A. D. 1974, p. 720.
10 FAGAN, B. M. 1969 -a, p. 7.
11 DART, R. A. & BEAUMONT, P. B. 1969 -a, pp. 127 -8.
808
África Antiga
manganês
12
, de especularita
13
e de hematita eram regularmente exploradas em
Zâmbia, na Suazilândia e no norte da região do Cabo
14
. Escavações efetuadas
em alguns sítios de Doornfontein evidenciaram uma exploração mineira
sistemática, com galerias e salas subterrâneas, a qual teria permitido a extração
de cerca de 45 mil toneladas de especularita a partir do século IX, provavelmente
por populações de língua Khoisan. É de crer que a existência de minas desse
gênero e o conhecimento, que elas fazem supor, dos minerais metálicos e suas
propriedades contribuíram para o rápido desenvolvimento de uma tecnologia
do ferro durante a primeira metade do primeiro milênio da Era Cristã.
As minas de ferro o se apresentam tão claramente documentadas nas demais
regiões da África subsaariana, onde a crosta laterítica das regiões tropicais parece
ter sido a mais provável fonte de minério de ferro. O ferro dos pauis, era utilizado
no vale inferior do Casamance, no Senegal
15
, e em Machili, em Zâmbia
16
. O
ferro assim obtido era triturado em minúsculos fragmentos, posteriormente
triados a mão para serem fundidos. Ao norte da Gâmbia, na região dos megálitos
da Senegâmbia (que não passam de blocos de laterita) é possível que tenha
ocorrido verdadeira mineração e não mera coleta de laterita em superfície. A
utilizão desses megálitos como estruturas rituais e o desenvolvimento de
uma tecnologia do ferro na região durante o primeiro milênio indicaria que
um passo resta a ser dado para se passar a uma mineração sistemática da
laterita para fins metalúrgicos. É possível que o desenvolvimento da fundição da
laterita tenha propiciado a ideia de extraí -la para emprego na construção. Um
processo análogo teria ocorrido na República Centro -Africana, onde também se
verifica a existência de megálitos. Segundo Wai -Andah (Capítulo 24), o fato de
a exploração da laterita ser mais fácil do que a extração da hematita pode abonar
a teoria, até agora não confirmada, de uma origem indígena da tecnologia do
ferro na África. A laterita, quando úmida e recoberta por uma camada de solo,
é relativamente friável e muito mais fácil de escavar do que uma rocha normal.
Infelizmente, à exceção das minas da África austral, nenhuma zona a evidenciar
indícios indiscutíveis de mineração do ferro foi ainda descoberta ou datada de
maneira precisa. É possível que os machados de hematita uelienses do nordeste
12 DART, R. A. & BEAUMONT, P. 1969 -b, pp. 91 -6.
13 BOSHIER, A. & BEAUMONT, P. 1972, pp. 2 -12.
14 BEAUMONT, P. B. & BOSHIER, A. K. 1974, pp. 41 -59.
15 LINARES DE SAPIR, O. 1971, p. 43.
16 CLARK, J. D. & FAGAN, B. 1965, pp. 354 -71.
809
As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro Antiga
do Zaire e de Uganda datem da Idade do Ferro e constituam imitações de
machados de ferro forjado.
O ouro
Durante a época aqui considerada, é quase certo ter sido o ouro extraído
do solo ou recolhido por garimpagem na África ocidental. As fontes árabes
nos autorizam a acreditar na existência de minas de ouro, mas nenhuma delas
foi localizada, escavada ou datada; tampouco dispomos de testemunhos acerca
dos processos de refinação empregados. Estes, porém, deviam assemelhar -se
aos empregados em períodos posteriores, bem documentados
17
. As principais
regiões para as quais existem testemunhos em parte não -contemporâneos
de uma exploração do ouro situavam -se junto às nascentes do Níger e do
Senegal (Guiné e Mali atuais) e são conhecidas sob o nome de Bambuk e
Bure. A extração do ouro no nordeste do Zimbábue, em minas a céu aberto, em
galerias pouco profundas ou em degraus (o assunto é abordado por Phillipson
no Capítulo 27) é relativamente mais bem documentada, mas não há nenhuma
prova indiscutível que permita afirmar seja essa exploração anterior ao século
VIII ou IX. Ao que parece, os minérios extraídos eram triturados por meio de
pilões de pedra.
É possível que a experncia advinda do uso de diferentes mirios no
decorrer da Idade da Pedra tenha servido de base para a extração posterior,
numa escala mais ampla, do cobre e do ouro. Os numerosos objetos de cobre
descobertos nos sítios escavados nos permitem determinar a época a partir da
qual o cobre foi utilizado para a fabricação de utensílios e ornamentos. O ouro,
por sua vez, é raro nos sítios do primeiro milênio: à época, o metal era por demais
precioso para ser pura e simplesmente perdido. Os únicos objetos de ouro de
épocas remotas são os dos tumuli do Senegal e datam do fim do período que
nos interessa.
A pedra
Ao que tudo indica, a pedra era extraída para variados fins, o mais importante
dos quais era a fabricação de utensílios de pedra polida e mós. Inúmeras sociedades
se serviam de mós fixas: levavam seus grãos a um afloramento rochoso, onde
podiam a um tempo fazer secar suas provisões e moer grãos ou triturar alimentos
17 LEVTSION, N. 1973, p. 283.
810
África Antiga
vegetais. Esses afloramentos, contudo, não se encontram em toda parte, e é
evidente que as rochas utilizadas na confecção de mós fixas ou móveis deviam
ser procuradas e por vezes conduzidas por longas distâncias. Infelizmente, esse
aspecto da arqueologia foi, a agora, pouco estudado na África. Nos anos
vindouros, quando os arqulogos e os glogos forem mais numerosos e
quando a geologia do continente tiver sido convenientemente mapeada, a análise
petrográfica de todos os tipos de rochas estranhas e a investigação de sua região
geológica de origem hão de ser feitas de maneira corrente. Diversas oficinas de
fabricação de machados foram descobertas como a de Buroburo
18
(Gana)
assim como uma oficina de fabricação de mós do século I antes da Era Cristã,
em Kintampo
19
(Gana). Neste último sítio, um grande número de utensílios
de moagem, parcialmente concluídos, foram descobertos ao lado de mós num
abrigo sob rocha criado em grande parte pelo homem (mediante o expediente
de desalojar as rochas pela utilização do fogo). Os curiosos raladores de seção
oval (também denominados charutos”), tão característicos da arqueologia de
Gana, parecem, em parte, ter sido modelados num único tipo de rocha, que era
objeto de trocas comerciais em um vasto território
20
. No conjunto da África
subsaariana, ranhuras com 10 a 12 cm de largura e comprimento de a50 cm
assinalam os locais onde pedras desbastadas e adequadamente talhadas eram
polidas e transformadas em machados, enxós e buris. É provável que o processo
de extrão mesmo em pequena escala –, amoladura, polimento e troca
dos esboços ou produtos acabados tenha prosseguido no decurso do período
em questão, decrescendo à medida que o ferro ia substituindo a pedra. Em
certas regiões, porém, os utensílios de pedra polida ainda estavam em uso no
segundo milênio. Surpreendentemente, poucos utensílios de pedra polida foram
descobertos na África oriental e austral, enquanto na África ocidental eles são
bastante comuns.
A lava vacuolar cinza, que, como a laterita, é mais fácil de moldar em sua
primeira exposão ao ar, era extraída no Quênia e talvez na Tanzânia, no
primeiro milênio da nossa era, servindo para fabricar tigelas de pedra. O uso
destas é desconhecido; frequentemente estão associadas a sepulturas. O material
de que são feitas é demasiado tenro para permitir triturar outra coisa além de
alimentos vegetais. Tigelas similares foram descobertas na Namíbia, sendo raras
em outros lugares.
18 NUNOO, R. 1969, pp. 321 -33.
19 RAHTZ, P. A. & FLIGHT, C. 1974, pp. 1 -31.
20 POSNANSKY, M. 1969 -70, p. 20.
811
As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro Antiga
ainda outra atividade, relativamente pouco estudada, sobre cuja existência
não paira a menor dúvida: a busca de pedras semipreciosas para a confecção de
contas. As pedras mais comumente utilizadas eram as cornalinas e diversos tipos
de calcedônia, como a ágata e o jaspe, assim como os quartzos cristalinos (ou
cristais de rocha). Essas contas são encontradas em toda a África subsaariana,
não raro em túmulos, como os das grutas do rio Njoro, no Quênia, que datam
do século X antes da nossa era, e em sítios de habitão. Em Lantana, no
Níger
21
, uma mina de onde se extrai o jaspe vermelho, ainda hoje exportado
para a Nigéria como matéria -prima para a fabricação de contas, é considerada
muito antiga; no entanto, é impossível determinar sua idade. As contas de
pedra raramente são abundantes, mas testemunham uma procura sistemática
de certos tipos de rochas bem conhecidos. Sua produção teve início na Idade da
Pedra e prosseguiu durante a Idade do Ferro, para depois ser progressivamente
substituída pela fabricação de contas de vidro, menos custosas, mais fáceis de
confeccionar e eventualmente mais acessíveis.
O comércio
22
Algumas formas de troca entre grupos humanos existiam provavelmente
desde épocas relativamente remotas da Idade da Pedra. A troca de pedras
brilhantes ou úteis e de mel por carne e às vezes mesmo por mulheres marcava
provavelmente os encontros entre os povos coletores, a julgar pelo estudo dos
caçadores e coletores modernos. Tais trocas, de importância a um tempo ritual
e econômica, se teriam tornado regulares com o desenvolvimento de um
modo de vida agrícola, mas é provável que na Idade da Pedra Recente os
indivíduos especializados na pesca, na coleta dos produtos marinhos ou na caça
levassem uma existência relativamente sedentária, tendo, portanto, necessidade
de pedras e outros materiais não encontrados localmente. E possível que certos
utensílios de osso, como os arpões cuja fabricação requeria uma habilidade
superior à média –, tenham sido objeto de comércio. Todavia, é razoável concluir
que o aparecimento de uma agricultura, que implicava uma vida sedentária
ou deslocamentos sazonais ou periódicos, propiciou o desenvolvimento do
comércio. Esse comércio, de caráter relativamente restrito e local, abrangeria
artigos como o sal, certos tipos de pedra e, mais tarde, utensílios de ferro, contas,
conchas, talvez plantas de uso medicinal ou ritual, carne para as comunidades
21 BEAUCHÊNE, G. de. 1970, p. 63.
22 Ver Capítulo 21 e POSNANSKY, M. 1971.
812
África Antiga
agrícolas, grãos e tubérculos para os grupos pastoris, utensílios especializados
ou substâncias como venenos para a caça e a pesca, peixes secos e toda sorte
de objetos que encerrassem valor de raridade grãos pouco comuns, garras
e dentes de animais, pedras curiosas, ossos, etc. , os quais deviam ter um
significado mágico e ainda hoje são vistos em certas bancas dos mercados da
África ocidental. Com exceção dos utensílios de pedra polida, das mós e do sal
mencionados acima, nada sabemos acerca desse comércio.
O comércio assumiu novo caráter com o surgimento dos metais. O
cobre e o ouro, mais localizados do que as pedras, foram procurados tanto
por comunidades do norte do Saara como por grupos instalados a leste, ao
longo da costa índica. Os cauris e outras conchas do oceano Índico cuja
presença é atestada, do século IV ao século VI, em tios como Kalundu e
Gundu (Zâmbia), em Gokomere (Zimbábue) e em Sanga, no coração do
continente – testemunham um comércio que ultrapassava o âmbito local. Esses
objetos, descobertos isoladamente, talvez não passassem de meras curiosidades
transmitidas de grupo a grupo, da costa para o interior; contudo, é significativo
que eles tenham sido observados em regiões cujos recursos revestiam algum
interesse para o mundo exterior. A presença de lingotes de cobre nos sítios
da África central e meridional indica uma crescente complexidade nas trocas
comerciais, e a abundância de objetos descobertos nos tumuli do Senegal e em
Sanga realça a prosperidade desse comércio, assim como o desenvolvimento
de estruturas sociais e políticas que tiravam partido da riqueza assim criada.
Nada nos autoriza a supor que esse comércio tenha atingido um volume muito
grande à época considerada, mesmo através do Saara; contudo, sabemos que as
redes de intercâmbio estavam doravante estabelecidas. Dispomos igualmente
de parcas indicações sobre a presença de mercados ou centros de distribuão
na África subsaariana, embora referências árabes à antiga capital de Gana
sugiram terem eles existido provavelmente antes da intensificação do comércio
provocada pela conquista da África setentrional pelos árabes. As cortes dos
chefes desempenhavam certamente o papel de centros de redistribuão, como
parecem indicar os variados objetos descobertos em tumuli do Mali e do
Senegal. Infelizmente, devemos limitar -nos, para esse período, a conjeturas
fundadas em informações bastante fragmentárias. Contas de vidro, datadas
da última metade do primeiro milênio e provavelmente importadas, foram
descobertas em diferentes sítios de Zâmbia, no Shaba (Zaire) e no Zimbábue.
Uma recente tentativa
23
no sentido de determinar tanto a data como a origem
23 DAVIDSON, C. C. & CLARK, J. D. 1974, pp. 75 -86.
813
As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro Antiga
dessas contas da “rota dos alísios” do oceano Índico revelou -se decepcionante.
Essas contas, encontradas por toda a volta do oceano Índico – das Filipinas à
costa da África oriental –, poderiam proceder, conforme se sugeriu, tanto do
Levante (Hebron constituía um centro antigo de fabricação de contas) quanto
de Alexandria ou das Índias. Habitualmente pequenas, tubulares e recozidas,
essas contas apresentam uma variedade de cores simples.
Sabe -se que algumas manufaturas das Índias exportaram tais contas a partir
do século IX, mas é difícil associá -las a centros de produção determinados
sem uma análise mais profunda. Mais de 150 mil contas semelhantes foram
encontradas em Igbo Ukwu; atribuindo -se a esse sítio uma data antiga, pode -se
admitir a existência de um importante comércio transaariano de contas por volta
do fim do primeiro milênio da Era Cristã.
A teoria de Summers
24
, segundo a qual o corcio do oceano Índico
teria levado a indústria do ouro do Zimbábue a adotar os métodos indianos
de prospecção e de extração, não tem encontrado ressonância. O ouro era
provavelmente explorado quando o comércio da costa oriental da África atingiu
a região do Zimbábue. Os métodos primitivos de extração do ouro e o comércio
desse metal durante o primeiro milênio são muito pouco conhecidos para que
se possa ligá -los a uma influência externa. O comércio da costa da África
oriental, estudado no Capítulo 22, mostra a extensão dos contatos da África
com as regiões litorâneas do oceano Índico. Esse extenso comércio, contudo,
não era intensivo, e pouco afetou o interior do continente antes do ano 1000 –
excetuando -se os vales dos rios Mazoe e Ravi (Moçambique), que dão acesso
ao Zimbábue.
Os grandes temas da História da África Subsaariana
Neste ponto, convém examinar se é possível chegar a conclusões sobre
o estado da sociedade africana ao fim da Idade do Ferro Antiga com base
na massa de informações descritivas apresentadas ao longo dos últimos oito
capítulos. No curso desse período, as sociedades da África subsaariana passaram
do estágio da caça e da coleta para uma economia estribada principalmente na
agricultura. É certo que a população aumentava: disso resultou uma vida mais
estável, aldeias e unidades sociais de maiores proporções. É difícil definir as
estruturas sociais que se esboçam; no entanto, em quase toda a África trata-
24 SUMMERS, R. 1958, pp. 256 -7.
814
África Antiga
-se, ao que parece, de aldeias relativamente modestas, compreendendo uma
ou várias linhagens, cada qual com ramificações mais extensas, fundadas em
relações entre clãs. Na maioria dos setores, a densidade da população é fraca:
não passa de uns poucos habitantes por quilômetro quadrado. Sucedendo aos
rápidos movimentos iniciais consequentes ao advento do ferro e empreendendo
o desmatamento das regiões africanas mais arborizadas, novas comunidades se
estabeleceram. O isolamento dessas populações fica evidenciado pela divergência
observada entre membros de uma mesma família linguística e pela crescente
diversificação da forma e decoração das cerâmicas que se manifesta na maior
parte das regiões desde meados do ano 600 até o ano 1000 da Era Cristã.
Estimativas demográficas, baseadas tanto nas evidências históricas fornecidas
pela África setentrional como numa extrapolação a partir de dados etnográficos
e estatísticos de recenseamentos coloniais indicam que antes do ano 1000 a
população da África subsaariana era sensivelmente inferior a 10 milhões de
habitantes. A nos fiarmos nas indicações orais relativas à passagem – sobretudo
na África oriental de sociedades matrilineares para sociedades patrilineares,
no curso dos últimos cinco séculos, encontramo -nos com certeza diante de
sociedades matrilineares na maior parte da África tropical.
De acordo com a distribuição dos vestígios arqueológicos, a floresta ocidental
africana parece ter sido ocupada apenas de maneira esparsa, ainda que certas
partes da Nigéria meridional se afigurem uma exceção. Regiões que, como o
planalto de Jos, são hoje menos procuradas em consequência do desbastamento
do seu solo e da pouca abundância das precipitações, parecem, nessa época, ter
oferecido maiores atrativos a populações que dispunham de uma tecnologia
pouco sofisticada. O povoamento de maior densidade localizava -se na savana
arborizada e nas chamadas zonas de floresta seca. O grande mero de sítios
descobertos nos meandros do delta do Níger, no Mali, entre Segu e Tombuctu
onde mais de 10.000.000 km
2
são inundados anualmente, inundações essas
que proporcionam água (e uma maior fertilidade) a um meio de outra forma
marginal –, indica que esse território era igualmente propício aos agricultores e
aos pastores de outrora. É uma região onde a pesca não cessou de ser frutuosa
e onde o comércio se desenvolveu com grande rapidez. Esta última atividade
foi facilitada pelas comodidades oferecidas pelo movimento do rio e pela
necessidade de transportar artigos como lenha, madeira para construção ou
capim para regiões que dispunham de poucos recursos vegetais. Parece pouco
provável que as “matas” mais secas da Tanzânia central, do norte de Uganda
ou do Qnia tenham sido ocupadas por agricultores; por certo o mesmo se
pode dizer em relação aos setores mais áridos e aos setores de maior altitude
815
As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro Antiga
(como o Lesoto) da África meridional. Vales fluviais como os do Zambeze,
do Kafue e do Alto Nilo, assim como alguns pontos do litoral dos lagos
Niassa, Vitória, Kivu e mesmo de outros menores parecem ter atraído o
estabelecimento de colonos. Todavia, as situações de transição, apresentando
a possibilidade de explorar os recursos alimentares de dois ou mais setores
ecológicos (florestas e savana, placie e piemonte), foram particularmente
favorecidas. É inegável a presença de tais vantagens no limite meridional da
savana do oeste africano ou nos confins da floresta do Zaire; a partir dessas
zonas, era mais fácil penetrar nas orlas da floresta, onde se encontravam terras
cultiváveis de cujos recursos naturais se podia tirar partido: caça, riqueza vegetal
sob todas as formas, incluindo cascas de árvores (destinadas ao vestuário) e
frutos silvestres. A floresta representava uma verdadeira fronteira móvel, e
os novos grupos penetraram lentamente, primeiro para a ca e a coleta,
depois para se estabelecerem. De modo geral, trata -se de estabelecimentos
agrícolas, sobretudo nas zonas em que as precipitações oscilam entre 600
e 1400 mm por ano. As atividades pastoris e as culturas sazonais de curta
duração eram naturalmente possíveis numa região como o Sahel, onde a média
pluviométrica não ultrapassa os 150 mm. Embora desde o início do milênio
se encontrem carneiros no sul, em reges tão longínquas quanto o Cabo, e a
despeito da presença de pastores tanto no Cabo como em alguns setores do
Sahel e do Sudão, as sociedades exclusivamente pastoris não predominaram
no decorrer dessa época. Quando ocorrem, os Kraals são de pequeno porte.
Os agricultores do norte estavam, ao que parece, mais aptos a se acomodar
aos regimes de baixa pluviometria que os agricultores do mundo bantu, talvez
em decorncia de sua ascendência neolítica e das primeiras culturas que
praticaram, como a dos milhetes e a do sorgo. Parece que em nenhuma parte
contavam as costas muitos estabelecimentos, e o se encontram tradições
de pesca ligadas à utilizão de barcos. Depósitos de conchas, espinhas de
peixe e, em certas localidades, ossos de animais são encontrados ao longo do
Casamance e em outros estuários ou enseadas das reges senegambianas, ao
longo das lagunas marinhas da costa da Guiné a a Costa do Marfim, nos
arredores do Cabo e na margem oriental do lago Vitória (o antigo Wilton C.
de L. S. B. Leakey). Todavia, esses habitantes do litoral marinho nunca foram
muito numerosos e pouca influência exerceram sobre as populações do interior.
Segundo a documentão referida no Capítulo 22, é verossímil a presença de
alguns estabelecimentos disseminados pela costa da África oriental, mas não
existe virtualmente nenhum vestígio arqueológico de povoamentos antes do
816
África Antiga
século VIII da Era Cristã, época provável da chegada dos colonos mais estáveis
provenientes do golfo Pérsico e/ou da costa Benadir da Somália.
Curiosamente, é mais difícil obter dados precisos sobre as crenças religiosas
dos povos dessa época do que sobre as dos caçadores -coletores do fim da Idade
da Pedra; a arte rupestre destes últimos permite numerosas associações
25
. É
possível que os primeiros agricultores tenham pintado as rochas e que sejam os
autores dos rupestres esquemáticos presentes em boa parte da África oriental
e central, em particular nas regiões vizinhas ao lago Viria
26
e na mbia
27
.
Conquanto se tenha uma ideia da época em que essa tradão artística foi
abandonada, não se sabe quando apareceu. Com frequência o sepultamento
dos mortos é, por si só, incio de crenças religiosas; em muitos casos os
objetos colocados no mulo manifestam a ideia da necessidade que deles
poderia vir a ter o defunto em sua vida no além. Não é esta, evidentemente,
a única explicão possível. As dimenes da sepultura, o esplendor dos
objetos encontrados, a magnificência da cerimônia, tudo isso pode indicar,
igualmente, o estatuto quer político, quer ritual, econômico ou social da
família do defunto. A escala das atividades funerárias pode também ajudar a
estabelecer a genealogia dos principais enlutados. Convém lembrar, no entanto
– e o século XX fornece excelentes pontos de comparação – que as sociedades
agnósticas também costumam erigir mausoléus suntuosos. A existência
de impressionantes outeiros de inumão ou de admiráveis monumentos
funerários o implica necessariamente a crença num deus ou num grupo de
deuses; em contrapartida, indica indiscutivelmente uma confiaa de certa
formasocial no futuro, e representa uma manifestação política de um grupo
predominante ou de uma elite. Todavia, os cemitérios próximos do lago Kisale,
na região de Shaba (Zaire), os enormes tumuli ao longo do dio Níger, os
melitos e os outeiros funerários da Senembia atestam a exisncia de
populações que não se contentam apenas em ocupar os lugares, mas aceitam
consagrar parte de suas riquezas e do seu trabalho a monumentos e/ou
objetos e víveres funerários. Antes de dar uma interpretão mais completa a
essas manifestações, convém aguardar os resultados de novas escavações e a
publicação dos respectivos relatórios. As regras observadas nos funerais, no que
respeita à orientação dos corpos ou ao alinhamento das sepulturas, indicam um
elenco de creas dogticas. A imponência dos tumuli do Mali testemunha,
25 POSNANSKY, M. 1972 -a, pp. 29 -44.
26 CHAPLIN, J. H. 1974, pp. 1 -50.
27 PHILLIPSON, D. W. 1972 -a.
817
As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro Antiga
provavelmente, a instituição de uma realeza que, sem ser necessariamente
divina, era por certo dotada de muitos dos atributos inerentes ao soberano
supremo. Numa zona de população reduzida, deviam esses monarcas estar em
condições de obter de bom grado ou pela força (não temos meios de sabê-
-lo) os laboriosos esforços de grandes massas de trabalhadores para erigir
seus tumuli de 12 m de altura por 65 m de diâmetro, como o de el -Ouladzi
28
.
Alguns Estados teriam surgido, sob uma ou outra forma, no curso do período
aqui considerado. As duas principais regiões em que isso teria ocorrido são o
Sudão e a África central, em torno das cabeceiras do Lualaba. Na região do
Sudão existiriam três “núcleos”: os arredores de Gana, a Mauritânia meridional
e o Senegal; o delta interior do Níger, a montante de Segu; os arredores do lago
Chade. Nessas três zonas, o comércio com regiões distantes começava a ganhar
impulso, e a agricultura conhecia um desenvolvimento mais acentuado do que em
áreas mais meridionais. Várias hipóteses foram formuladas acerca da emergência
de Estados. Uma ideia bem aceita, inicialmente baseada em sugestões feitas por
Frazer
29
,mais de oitenta anos, em seu Golden Bough, tende a atribuir a realeza
de direito divino considerada por muitos como uma das características das
sociedades africanas centralizadas – ao antigo Egito, de onde se teria difundido
por intermédio do ofício de “Fazedor de Chuvas”. Os primeiros chefes eram,
assim, guias espirituais carismáticos, que obtinham inspiração nas sociedades
vizinhas, onde operavam sistemas análogos e, em última análise, em uma fonte
comum: o Egito. Essa teoria foi posteriormente aperfeiçoada por Baumann
30
,
que descreveu as características do Estado sudanês, e, mais recentemente, por
Oliver
31
. O conceito do Estado sudanês assim elaborado é confirmado por
descrições árabes medievais de Gana e de outros Estados da África ocidental,
assim como por narrativas portuguesas do século XVI relativas aos Estados
da África central. Todos esses relatos o unânimes em realçar o mistério
que rodeava a pessoa do rei, a extrema deferência de seus súditos e a prática
do regicídio em caso de enfraquecimento ou perda da saúde. Para Oliver, a
utilização cada vez mais difundida de guerreiros a cavalo com armas de ferro
é um fator capital na difusão da ideia de Estado, na criação da elite governante,
no controle e na expansão das fronteiras. Há, entretanto, outras concepções;
a maioria dos estudiosos africanos nas ideias difusionistas” uma tentativa
28 MAUNY, R. 1961.
29 FRAZER, J. G. 1941.
30 BAUMANN, H. & WESTERMANN, D. 1962.
31 OLIVER, R. & FAGAN, B. M. 1975.
818
África Antiga
de atribuir ao estrangeiro os elementos culturais mais avançados, sem fazer o
inventário das possibilidades de um desenvolvimento autônomo da autoridade
estatal. Os críticos do ponto de vista difusionista, entre os quais se encontra o
autor
32
, ponderam que, embora existam semelhanças entre o cerimonial e o ritual
de numerosos Estados africanos, diferenças substanciais também não deixam
de ser observadas.
Muitas dessas semelhanças podem ser devidas a acréscimos tardios, ocorridos
principalmente quando da expansão do comércio que se seguiu à islamização
da África. Outras razões formuladas para a formação do Estado referem -se
aos efeitos do comércio de longa distância e à escassa exploração mineral
que foram, com toda probabilidade, fatores do crescimento de Gana –, assim
como aos resultados da competição em torno dos magros recursos das áreas de
fertilidade incerta. Esse ponto de vista foi sustentado por Carneiro
33
a respeito
da expansão do antigo Egito, mas pode aplicar -se igualmente a um contexto
saheliano. Segundo essa teoria, um grupo poderia desenvolver -se quase sempre
graças a uma tecnologia militar superior às expensas de vizinhos mais fracos,
que se tomariam, então, dependentes do grupo conquistador. Com o tempo,
outras regiões poderiam ser absorvidas, e o grupo conquistador acabaria por se
encontrar à testa de uma vasta região, na qual ele era anteriormente minoritário.
Caber -lhe -ia então reforçar a sua autoridade, não apenas ao preço de proezas
militares, senão também pela criação de uma estrutura social encabeçada pela
elite militar. As tradições orais e os rituais do grupo que detém o poder dariam
origem à religião do Estado, concorrendo, assim, para assegurar e racionalizar
a mística de sua autoridade. O chefe da elite tornar -se -ia, se não o fosse de
fato, o descendente único ou a reencarnação do conquistador original, com a
assimilação de características divinas. Num modelo desse gênero a divindade
do monarca não é original, mas adquirida, por vezes de maneira gradual, quase
sempre deliberadamente, mas por vezes, também, acidentalmente, como um
mecanismo de defesa, destinado a preservar a integridade inerente ao chefe.
A ideia segundo a qual o desenvolvimento do comércio teria conduzido
à formação de Estados foi amplamente discutida. Em essência, essa teoria
afirma que a atividade comercial dá origem a um crescimento da riqueza, e
esse crescimento se manifesta eventualmente por uma estratificação social. A
riqueza permite patrocinar outras atividades, como a exploração de minérios,
a manufatura de bens de consumo e a produção alimentar, e faculta controlá-
32 POSNANSKY, M. 1966 -b, pp. 1 -12.
33 CARNEIRO, R. L. 1970, pp. 733 -8.
819
As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro Antiga
-las. Todas essas atividades geram uma riqueza maior e levam à crescente
centralizão do poder. É certo que a arqueologia está à altura de detectar
muitos desses elementos, como a aquisição da riqueza e a estratificação social,
presentes na região de Sanga, em Shaba. Todavia, Bisson
34
observou que os
vestígios dos séculos VIII e IX da Era Cristã descobertos em Sanga antecedem
o estabelecimento, na região, de um comércio de longa distância. Embora a
prosperidade pareça reinar, carência de exportações. Bisson acredita que os
lingotes de cobre em forma de cruz serviam geralmente de moeda, realçando
assim o prestígio e o estatuto do grupo dominante. Nesse caso, a ascenção
do grupo poderia decorrer de seus conhecimentos em metalurgia ou de sua
autoridade sobre os artesãos indispensáveis ou, simplesmente, da necessidade
sentida pela comunidade de ser governada, em função do crescimento da
população num meio particularmente favorável.
Passando da hipótese à certeza, o único setor ao qual se pode associar com
segurança a existência de um reino no decorrer do período aqui considerado é o
limite ocidental do Sudão, local onde a presença do reino de Gana é incontestável
por volta de +700. É possível que esse reino tenha estado em devir durante
cerca de um milênio. As razões de seu crescimento, vamos encontrá -las na posse
de preciosas riquezas minerais cobre, ferro e ouro (para respeitar a provável
ordem de explorão) , no controle do comércio do sal e, provavelmente,
em sua localizão numa área onde antes se desenvolvia um modo de vida
agrícola, como evidenciado no contexto de Tichitt. Um estudo aprofundado
desse Estado será apresentado no próximo volume; é provável, no entanto, que
a contemporaneidade do florescimento da Gana antiga, da ereção dos megálitos
da Senegâmbia e da edificação dos suntuosos outeiros funerários do Senegal não
se possa explicar por uma simples coincidência – sem dúvida tais manifestações
fazem parte de um mesmo contexto de expansão econômica.
Como vimos em capítulos precedentes, o período aqui estudado não teve
um fim uniforme na África subsaariana, ao contrário do que ocorreu na África
setentrional; contudo, a conquista desta última pelos árabes não deixará de
ter importantes consequências, diretas ou indiretas, tanto na África ocidental
quanto na África oriental. Vimos que por volta de +800 a maior parte da
África se achava firmemente instalada na Idade do Ferro. As orlas da floresta
densa eram pouco a pouco degradadas pelo avanço da agricultura, na África
ocidental como no sul da África central. A população aumentava. A primeira
34 BISSON, M. S. 1975, pp. 288 -9.
820
África Antiga
fase da revolução agrícola contribuiu largamente para a rápida expansão de
pequenos grupos de agricultores -lavradores, que provavelmente obtinham parte
das proteínas de que necessitavam utilizando os métodos antigos e mais do
que comprovados de seus ancestrais da Idade da Pedra, adeptos da caça e
da coleta. Quase todo o seu equipamento de caça era o mesmo dos ancestrais:
redes, anzóis de osso e de chifre, lanças e flechas de madeira. Essas flechas
podem mesmo ter sido munidas de farpas, fornecidas por micrólitos, pelas
pontas aguçadas de chifres de antílope ou qualquer outro material similar. Aqui
e ali o equipamento de pesca era complementado por pontas de flecha de ferro,
mais custosas porém mais eficazes, e por anzóis modelados de maneira mais
rápida. O essencial da mitologia e da religião desses grupos devia igualmente
provir dos ancestrais; no entanto, como a vida tendia à se estabilizar, eles se
voltaram para novas crenças, baseadas nos mistérios da agricultura e do trabalho
dos metais. É provável que algumas dessas crenças lhes tenham sido legadas
por aqueles que os iniciaram nos novos mistérios. Os agricultores da Idade do
Ferro tornam -se mais empreendedores: modelam cerâmicas, talham tambores,
tecem panos, fundem o ferro, forjam utensílios. Sua religião tende a centrar -se
em divindades criadoras, e seus sistemas de crenças visam assegurar a libertação
daquelas vicissitudes da natureza às quais os agricultores são mais vulneráveis.
Seus ritos e sua música tornam -se provavelmente mais complexos; sua cultura
material, mais diversificada; seu senso da tradição e da perenidade social, mais
firmemente estabelecido. Produzem -se na sociedade mudanças fundamentais,
cuja influência se fará sentir em todos os períodos ulteriores da história africana.
821
Anexo
Relatório sumário
1
do simpósio realizado no Cairo de 28 de janeiro a 3 de
fevereiro de 1974.
O simpósio desenvolveu-se em duas etapas: a primeira, de 28 a 31 de janeiro
de 1974, foi consagrada ao “Povoamento do Antigo Egito”; a segunda tratou da
“Decifração da Escrita Meroíta” e estendeu-se de 1
o
a 3 de fevereiro de 1974.
Os participantes foram os seguintes:
Professor Abdelgadir M. Abdalla (Sudão)
Professor Abu Bakr (República Árabe do Egito)
Sra. N. Blanc (França)
Professor F. Debono (Malta)
Professor J. Devisse (França)
Professor Cheikh Anta Diop (Senegal)
Professor Ghallab (República Árabe do Egito)
Professor L. Habachi (República Árabe do Egito)
Professor R. Holthoer (Finlândia)
Sra. J. Gordon-Jaquet (Estados Unidos da América)
1 O presente relatório é uma versão resumida do Relatório Final do Simsio. Foi preparado pelo relator do
Comi Cientíco Internacional a pedido do Comi, para inserção neste volume. Os Procedimentos do
Simsio foram publicados na série Hisria Geral da África Estudos e Documentos, n. 1, Paris, Unesco, 1978.
Síntese do colóquio
“O povoamento do antigo Egito e a
decifração da escrita meroíta
Anexo
822
África Antiga
Professor S. Husein (República Árabe do Egito)
Professor Kaiser (República Federal Alemã)
Professor J. Leclant (França)
Professor G. Mokhtar (República Árabe do Egito)
Professor R. El-Nadury (República Árabe do Egito)
Professor T. Obenga (República Popular do Congo)
Professor S. Sauneron (França)
Professor T. Säve-Söderbergh (Suécia)
Professor P. L. Shinnie (Canadá)
Professor J. Vercoutter (França)
Convidados para o simpósio, os professores Hintze (República Democrática
Alemã), Knorossov, Piotrovski (URSS) e Ki-Zerbo (Alto Volta) não puderam
comparecer e enviaram suas desculpas.
De acordo com as decisões do Comitê Científico Internacional, o professor
J. Devisse, relator do Comitê, esteve presente e elaborou o relatório final do
simpósio.
Pela Unesco estiveram presentes o Sr. Maurice Glé, especialista do
programa, da Divisão de Estudos Culturais, representando o Diretor-Geral, e a
Sra. Monique Melcer, da Divisão de Estudos Culturais.
I O povoamento do antigo Egito
Dois textos, previamente solicitados pela Unesco ao professor J. Vercoutter
e à Sra. N. Blanc
2
, serviram de base para a discussão.
Podem -se distinguir três etapas importantes no debate:
A Resumo dos textos introdutórios;
B Declarações preliminares da maior parte dos participantes;
C Discussão geral.
A Resumo dos textos introdutórios
1. O professor Vercoutter desenvolveu várias questões, tratadas com mais
detalhe em seu relatório escrito, e fez diversas observações adicionais.
2 Esses documentos estão anexados ao Relatório Final, 1974.
823
Anexo
a) A antropologia física, apesar dos recentes progressos, tem fornecido,
à exceção da Núbia, relativamente poucos dados confiáveis. As informações
disponíveis são insuficientes para que se tirem quaisquer conclusões acerca do
povoamento do antigo Egito e as fases sucessivas por que teria passado. Além
disso, tais informações não são homogêneas, temporal como espacialmente, e os
historiadores frequentemente discordam quanto à sua interpretação.
Os próprios métodos são questionados. Atualmente, porém, admite -se que
a craniometria não atende às necessidades desse tipo de pesquisa.
Várias regiões ainda não foram estudadas em profundidade. É o caso, por
exemplo, de todo o Delta durante os períodos pré -dinástico e protodinástico e
do Alto Egito antes do Neolítico. Pouco se sabe sobre a região entre a Segunda
e a Sexta Catarata durante o Neolítico e o período protodinástico. Do mesmo
modo, ainda estão mal estudados os antigos vínculos entre o Saara, o Darfur e
o Nilo.
Desse ponto de vista, as pesquisas em andamento apresentam -se defasadas
em relação às empreendidas na África do Norte e na região sírio -palestina.
Os dados disponíveis no momentoo permitem afirmar fossem as
populações do Egito setentrional diferentes das do sul. Provavelmente a lacuna
entre Paleolítico e Neolítico também se deve à atual insuficiência de pesquisas
nesse campo.
b) A iconografia foi utilizada de maneira insuficiente e insatisfatória; os
estudos realizados basearam -se principalmente em critérios culturais. Contudo,
o material iconográfico dispovel apresenta características extremamente
significativas a partir da XVIII dinastia.
c) Esboço das duas teorias opostas na sua formulação mais extrema:
i) Desde o período pré -dinástico, o antigo Egito foi povoado por brancos”,
embora de pigmentação escura ou mesmo negra. Os negros só apareceram
a partir da XVIII dinastia.
Segundo alguns autores, a partir do período protodinástico a população
teria permanecido a mesma; outros acreditam que a penetração estrangeira
na África alterou profundamente as condições de vida cultural.
ii) O antigo Egito foi povoado por negros africanos desde o início do
Neolítico até o final das dinastias nativas”.
2. A Sra. Blanc expôs os resultados de suas pesquisas.
a) Ciente de que, por razões especificamente históricas, a historiografia do
vale do Nilo assentou na suposta existência de um vale egípcio civilizado rico
em testemunhos históricos e de um vale mais ao sul, negro e primitivo, que
824
África Antiga
interessava aos antropólogos, a Sra. Blanc manifestou o desejo de ver equilibrada,
no futuro, a pesquisa histórica no conjunto do vale. Isso significaria abandonar
os métodos históricos tradicionais e ampliar o campo de investigação, adotando
uma nova metodologia. A Sra. Blanc considera o trabalho realizado na Núbia
durante os últimos vinte anos como o primeiro passo para o reexame da questão
colocada neste simpósio.
b) No intuito de fugir à visão tradicional do vale do Nilo, segundo a qual o
desenvolvimento histórico da região se teria dado no sentido norte -sul, do mais
civilizado para o menos civilizado”, a Sra. Blanc chamou a atenção para as
regiões do Nilo situadas entre o 23
o
paralelo e as cabeceiras do rio, em Uganda.
Sua análise leva em conta a linha divisória ao longo do 10
o
paralelo, que ela
considera fundamental em termos ecológicos, e onde se interrompeu o avanço
do Islã.
Navegável entre o 23
o
e o 10
o
paralelo, o Nilo aparentemente poderia ter
desempenhado um papel comparável ao que exerceu mais ao norte, no Egito.
Isso não ocorreu, sem dúvida, devido às condições ecológicas existentes nesse
braço do rio.
Essa constatação levou a Sra. Blanc a um reexame global das respectivas
contribuões das populões mades sedentárias e da área em questão.
Mas, após reconstituir a história das transformações demográficas ocorridas
com a chegada dos árabes muçulmanos, dedicou especial atenção ao exame
das hipóteses relativas ao povoamento da mesma área antes dessas migrações.
A autora assinalou que o vale do Nilo facilitou a comunicação com a África
ocidental e a África subsaariana, sendo possível formular -se a hipótese de que as
civilizações que emergiram seriam autenticamente africanas, e não civilizações
intermediárias entre o mundo mediterrânico e a África negra.
O Darfur, a oeste não obstante a precariedade dos conhecimentos sobre sua
organização social e política antes do século XVII -, desempenhou importante
papel como centro regional de desenvolvimento econômico.
A leste, a região de Sennar, habitada pelos Funj, foi o centro de um sultanato
negro cuja origem não era nem árabe nem muçulmana.
A região ocupada pelos Beja entre o Nilo e o mar Vermelho era pouco
favorável à sedentarização, em função de suas inóspitas condições ecológicas.
Ao sul do 10
o
paralelo, as condições ecológicas eram totalmente distintas.
Essa área era habitada por populações isoladas sobre as quais pouco se sabe, seja
com relação às pesquisas arqueológicas, no que se refere a informações oriundas
da tradição oral. Atualmente, as hipóteses sobre o povoamento e a história
dessa área carecem de bases seguras, e é somente nas regiões mais meridionais,
825
Anexo
na zona interlacustre da África oriental, que estudos históricos mais completos
têm sido empreendidos.
B Declarações preliminares dos participantes
1. O professor Säve -Söderberg forneceu informações acerca das escavações
escandinavas efetuadas no Sudão entre 1960 e 1964. Tais escavações
demonstraram a existência de contatos entre o vale do Nilo, a África setentrional
e o Saara. Os temas tratados pelas publicações
3
incluem 7 mil desenhos rupestres
e a análise dos vestígios de 1546 indivíduos humanos. Van Nielson (vol. 9)
definiu as relações entre o Grupo A, o Grupo C, o Grupo Novo Império, etc.
Os estudos comparativos levaram a diferentes resultados, segundo a utilização
exclusiva da craniometria ou do conjunto de fatores antropológicos e tecnológicos.
Os estudos iconográficos e de antropologia física permitem supor que houve
migração de povos saarianos e de grupos vindos do sul, e que tais populações
mantiveram contatos consideráveis com os antigos egípcios. No que diz respeito
ao Mesolítico, os estudos comparativos têm por base menos de cem esqueletos,
o que, no caso da bia, compromete a validade das conclusões. para o
Neolítico, é possível obter dados mais precisos.
De qualquer modo, o professor Säve -Söderbergh julga impossível assentar
em distinções raciais o estudo do povoamento do antigo Egito ou estudos
similares. No futuro, deveriam adotar -se outras linhas de investigação. Culturas
diferentes, contemporâneas mas isoladas, podem pertencer ao mesmo complexo
tecnológico. Esse novo método confirma as origens africanas do Egito. Mas
tal descoberta não elimina outros problemas. Nagada I e II não pertenciam
ao mesmo complexo tecnológico que a Núbia ou o Sudão contemporâneo. No
Sudão, à região que se estende de Kassala ao Chade e de Uadi Halfa a Cartum
corresponde um único e amplo complexo tecnológico. O Grupo A constitui
outro complexo tecnológico, mais recente, encontrado da Primeira à Terceira
Catarata, e talvez ainda mais adiante.
2. O professor Cheikh Anta Diop fez uma extensa exposição de suas ideias,
que sintetizou em texto escrito selecionando os pontos principais.
a) Do ponto de vista antropológico, as pesquisas efetuadas após as descobertas
do professor Leakey levaram à conclusão de que a raça humana se teria
3 Ver SCANDINAVIAN Joint Expedition to Sudanese Nubia, publicações (em particular, v. I, Rock
Pictures; v. 2, Pre -Ceramic Sites; v. 3, Neolithic and A -Group Sites; e v. 9, Human Remains).
826
África Antiga
originado na África, junto às nascentes do Nilo. Segundo a lei de Gloger, que
provavelmente se aplica tanto à espécie humana quanto a outras espécies, os
animais de sangue quente, que se desenvolvem sob climas quentes e úmidos,
apresentam pigmentação escura (melanina). Portanto, a primeira população
humana da Terra seria etnicamente homogênea e negroide. Tal população se
teria propagado a partir dessa área de origem, atingindo outras regiões da Terra
através de duas únicas rotas: o vale do Nilo e o Saara.
No vale do Nilo, essa expansão ocorreu do sul para o norte, num movimento
progressivo, entre o Paleolítico Superior e o período Proto -Histórico.
O professor Massoulard chegou também à conclusão de que a população
do antigo Egito incluía pelo menos três elementos raciais diferentes: negroides
(mais de um terço do total),mediterrâneos” e cro -magnoides. Desses dados, o
professor Diop inferiu que a população do Egito era basicamente negra durante
o peodo pré -dinástico, conclusão que contradiz a teoria segundo a qual o
elemento negro teria chegado ao Egito mais tardiamente.
Elliot -Smith descobriu esqueletos com fragmentos de pele que remontam
a épocas muito antigas, anteriores à introdução da prática da mumificão.
Tais fragmentos, afirmou o professor Diop, contêm melanina em quantidade
suficiente para caracterizá -los como pele negra.
Buscando provas positivas, o professor Diop estudou diversas preparações
submetidas a exame de laboratório em Dacar, constituídas por amostras de pele
extraídas de múmias provenientes das escavações de Mariette. Todas revelaram
e o professor Diop convidou os especialistas presentes a examiná -las a presença
de considerável teor de melanina entre a epiderme e a derme. A melanina,
ausente na pele branca, conserva -se durante milhões de anos (ao contrário do
que frequentemente se afirma), como se pode observar pelo exame das peles
de animais fósseis. O professor Diop manifestou o desejo de realizar pesquisas
semelhantes com as peles dos faraós cujas múmias encontram -se no Museu do
Cairo.
Prosseguindo, afirmou que uma investigação antropológica conclusiva deveria
incluir ainda a osteometria e o estudo dos grupos sanguíneos. É digno de nota,
por exemplo, o fato de os atuais egípcios, principalmente os do Alto Egito,
pertencerem ao mesmo grupo sanguíneo B das populações da África ocidental,
e não ao grupo A2, característico da raça branca.
b) Iconografia: Com base em volumoso dossiê iconográfico e nas definições
contidas nesse trabalho, o professor Diop afirmou ser desnecessário insistir nos
pormenores que, por exemplo, diferenciam os negros de outros personagens
aristocráticos representados num mesmo mulo: essa diferença tem origens sociais.
827
Anexo
Iconograficamente, o povo e a classe dominante eram representados de maneira
distinta.
c) Em seguida, abordando os testemunhos fornecidos pelas fontes escritas
antigas, o professor Diop assinalou que os autores gregos e latinos descreveram
os egípcios como negros. Referiu -se ao testemunho de Heródoto, Aristóteles,
Luciano, Apolodoro, Ésquilo, Aquiles Tácio, Estrabão, Diodoro da Sicília,
Diógenes Laércio e Amiano Marcelino. Os estudiosos modernos, asseverou
ele, recusam -se a considerar esses textos. Entretanto, um autor do século XVIII,
Volney, atribui aos habitantes do antigo Egito a cor negra. Além disso, a tradição
bíblica também considera os egípcios como descendentes de Cam. O professor
Diop colocou em questão a egiptologia, ciência que, produto do imperialismo,
sempre procurou negar os fatos por ele referidos.
d) Em seguida, o professor Diop abordou a questão de como os próprios
egípcios se descreviam. Para isso eles se serviam de uma única palavra: kmt
4
,
o termo mais forte existente na língua faraônica para indicar a cor preta e
que o professor Diop traduz por “negros”. Por esse motivo, a palavra kmt era
representada, na escrita hieroglífica, por um pedaço de carvão vegetal, e não por
escamas de crocodilo.
3. O professor Debono reexaminou por miúdo as informações constantes
do volume 1.
4. O professor Leclant salientou, inicialmente, o caráter africano da civilização
egípcia. Ressaltou, porém, a necessidade de distinguir claramente, a exemplo do
professor Vercoutter,raça e “cultura”.
A antropologia física do Egito está em seus primórdios. No entanto,
não há por que confiar nos estudos, totalmente ultrapassados, de Chantre,
Elliot -Smith, Sergi ou Derri. Ademais, já existem importantes trabalhos de
reavaliação, como o de Wierczinski
5
. Os grupos que trabalham na bia
também demonstram acentuado interesse pela antropologia física. Nesse
aspecto, a Núbia, considerada pobre em termos de vestígios arqueológicos,
paradoxalmente parece mais bem conhecida do que o Egito
6
. Atualmente as
4 Esta palavra deu origem ao termo “camita”, que passou a ser usado correntemente. É também encontrado
na Bíblia sob a forma “Cam”.
5 BULLETIN OF THE EGYPTIAN GEOGRAPHICAL SOCIETY, 31, 1958, 73 -83.
6 O professor LECLANT refere -se aos trabalhos de NIELSEN, STROUHAL, ARMELAGOS,
ROGALSKY, PROMINSKA, CHEMLA e BILLY.
828
África Antiga
expedições arqueológicas dão grande importância aos estudos osteológicos, o
que constitui uma auspiciosa inovação
7
.
No plano cultural, as gravuras rupestres, que revelam alto grau de uniformidade
desde o mar Vermelho até o Atlântico, vêm sendo alvo de cuidadosos estudos.
Trata -se de indícios deixados por sucessivos grupos culturais, caçadores, pastores
e outros.
O povoamento do antigo Egito constitui um problema considerável, e seria
muito prematuro, neste estágio, adotar uma abordagem sintética para resolvê-
-lo. O problema deveria ser tratado mediante estudos fracionados, precisos.
Para tanto, seria indispensável o concurso de especialistas em disciplinas não
representadas neste simpósio. Encontram -se presentes apenas estudiosos da
“história geral”, qualificados para reunir e sintetizar as informações fornecidas
por especialistas; e essas informações, no momento,o por demais insuficientes.
De todo modo, não é o caso de se recorrer a especialistas hoje totalmente
ultrapassados, como Lepsius ou Petrie. Embora não se lhes possa negar uma
importânciahistórica”, a egiptologia conheceu posteriormente grandes
progressos.
Quanto às evidências iconogficas, o único problema é saber como os
egípcios se viam em relação a outros homens. Eles se auto denominavam rmt
(Rame), “os homens”; consideravam os outros povos como uma massa amorfa
que se estendia em todas as direções, designadas pelos pontos cardeais. Por
exemplo, as estátuas de prisioneiros em Sacará (VI dinastia, 2300 anos antes da
Era Cristã) representam tanto povos do norte (asiáticos, líbios) quanto do sul
(núbios, negros). Os estereótipos de homens do norte (brancos) e do sul (negros)
sob as sandálias do faraó confirmam essa representação.
5. O professor Ghallab discorreu sobre os sucessivos elementos que se
poderiam identificar no povoamento da África entre o Paleolítico e o III milênio
antes da Era Cristã.
No nordeste da África, uma grande quantidade de objetos de pedra datados do
segundo período pluvial foi encontrada no vale do Nilo e nos oásis. O professor
Ghallab distinguiu pelo menos seis grupos étnicos na população egípcia durante
o período mesolítico, ligados, todavia, por uma cultura homogênea. Segundo ele,
a raça humana era razoavelmente homogênea e “caucasiana” durante o período
paleolítico. Os primeiros tipos negros da África foram o homem de Asselar e
7 Cf. o importante e recente artigo de GERVEN, P. van, CARLSON, D. S. & ARMELAGOS, G. J. “Racial
history and biocultural adaptation of Nubian archaeological populations”. JAH, XIV, 1973, 4: 555 -64.
829
Anexo
o de Ondurman. No final do Paleolítico surgiu a raça negra, do Atlântico ao
mar Vermelho. Contudo, entre os primeiros egípcios encontraram -se traços de
bushmen (bosquímanos) com algumas características modificadas em função
de sua aclimatação às condições ecológicas mediterrânicas. Ainda hoje existem
vestígios desse tipo racial na população egípcia. Na realidade, nenhuma cultura
negra apareceu antes do período neolítico.
6. O professor Abdelgadir M. Abdalla não considera relevante saber se os
antigos egípcios eram negros ou negroides: o importante é o grau de civilização
que atingiram.
Os testemunhos iconográficos evidenciam que os criadores da cultura de
Napata nada tinham em comum com os egípcios: suas características anatômicas
eram completamente diferentes. Se os egípcios eram negros, qual a cor dos
homens da cultura de Napata?
Retomando a questão de linguística, o professor Abdalla afirmou que km
(Kem) o significa negro” e que seus derivados não se referem à cor dos
indivíduos. Efetuou, por sua vez, uma demonstrão linguística para ilustrar
sua teoria, que difere da enunciada pelo professor Diop, e concluiu que a
língua egípcia não era puramente africana pertenceria ao grupo proto semítico,
em apoio do que poder -se -iam citar numerosos exemplos. Para o professor
Abdalla, os exemplos linguísticos mencionados pelo professor Diop não são
convincentes nem conclusivos, sendo arriscado estabelecer uma relação rigorosa
entre uma ngua e uma estrutura étnica ou um indivíduo. É um equívoco
comparar uma ngua morta com línguas vivas; as semelhanças apontadas o
acidentais, e no momento não se conhece a evolução das línguas africanas
antigas. Na verdade, as evidências de parentesco apresentadas são muito mais
consistentes com a teoria da difusão do egípcio antigo na África do que com
a de seu parentesco com as línguas africanas atuais. Se o egípcio antigo e o
wolof são aparentados, por que não o seriam o epcio antigo e o meroíta,
por exemplo? Ora, a língua de Napata e o epcio antigo são completamente
diferentes. O professor Abdalla expressou o desejo de que a investigação
prosseguisse com rigor.
a) A seu ver, é impossível estabelecer uma correlação automática entre um
grupo étnico, um sistema socio econômico e uma língua.
b) Não é possível chegar a conclusões cientificamente válidas trabalhando
em larga escala”. A história praticamente o oferece exemplos puros de grandes
migrações que não se acompanhem de grandes transformações culturais.
830
África Antiga
c) Atualmente, do ponto de vista da antropologia física, o conceito de negro
não está claramente definido. O esqueleto não permite estabelecer a cor da pele.
Somente o tecido e a própria pele são importantes.
d) É preciso iniciar com urgência o estudo da paleopatologia e das práticas
funerárias.
7. O professor Sauneron interveio durante uma instigante controvérsia sobre
questões linguísticas entre os professores Abdalla e Diop, afirmando que, em
egípcio, km (feminino, kmt) significa “negro”; o masculino plural é kmu (Kemu),
e o feminino plural, kmnt.
A forma kmtyw pode significar apenas duas coisas: “os de Kmt e “os
habitantes de Kmt(“o país negro”). Trata -se de um adjetivo derivado (nisba),
formado a partir de um termo geográfico que se tornou nome próprio e cujo
sentido original não é necessariamente “percebido” (cf. franco, França, francês).
Para designar povo negro”, os egípcios diriam kmt ou kmu, e não kmtyw.
Como quer que seja, eles nunca utilizavam esse adjetivo para designar os negros
do interior da África, a quem conheciam desde o Novo Império. Via de regra
não usavam nomes de cores para diferenciar os povos.
8. Por sua vez, o professor Obenga retomou a demonstrão linguística
iniciada pelo professor Diop
8
.
a) Após criticar o método do professor Greenberg, com base no recente
trabalho do professor Istvan Fodor
9
, e observar que desde a obra de Ferdinand
de Saussure o testemunho linguístico é aceito como o meio mais seguro para
determinar se dois ou mais povos são culturalmente aparentados, o professor
Obenga procurou provar que existe um parentesco linguístico genético entre o
egípcio (antigo egípcio e copta) e as línguas negro -africanas modernas.
Antes de arriscar qualquer comparação, deve -se tomar cuidado para não
confundir parentesco linguístico tipológico, que não permite reconhecer o
ancestral pré -dialetal comum às línguas comparadas, e parentesco genético. Por
exemplo, o inglês moderno, considerado do ponto de vista tipológico, apresenta
afinidades com o chinês; na perspectiva genética, as duas línguas pertencem
a diferentes famílias linguísticas. Do mesmo modo, o professor Obenga rejeitou
a noção de língua mista com um contra -senso linguístico.
8 O texto integral, tal como foi transmitido ao relator pelo professor Obenga, está no Anexo II do Relatório
Final do Simpósio.
9 FODOR, I. e Problems in the Classication of the African Languages, Centre for Afro -Asian Research
of the Hungarian Academy of Sciences, Budapest, 1966. p. 158.
831
Anexo
O parentesco genético depende da formulação de leis fonéticas através da
comparação de morfemas e fonemas de línguas próximas. Com base nessas
correspondências morfológicas, lexicais e fonéticas, poder -se -ia chegar às
primeiras formas comuns. Tal procedimento permitiu reconstituir abstratamente
uma língua indo -europeia teórica, que serviu de modelo operacional e revelou
uma macroestrutura cultural comum partilhada pelas línguas que em seguida
se desenvolveram separadamente.
b) O professor Obenga chamou a atenção para importantes semelhanças
tipológicas de natureza gramatical: o gênero feminino formado pelo uso do
sufixo -t, o plural de substantivos formado pelo sufixo -w (ou -u). Em seguida,
analisou formas completas, observando semelhaas entre o egípcio antigo
e um número considerável de línguas africanas; entre o egípcio e o wolof, a
correspondência é total. Essa série de demonstrações levou o professor Obenga
a concluir que as semelhanças morfológicas, lexicais e sintáticas constituem uma
prova convincente do estreito parentesco entre o egípcio antigo e as nguas
negro -africanas atuais. Tal paralelismo não ocorre entre o semita, o berbere
e o egípcio. A seguir, comparou os modos de expressar “ser” em combinações
verbo -nominais: a forma arcaica comum na língua bantu é análoga à forma mais
arcaica do egípcio antigo. A análise dos morfemas negativos, do futuro enfático e
das partículas de ligação levou às mesmas conclusões dos exemplos precedentes.
Por tudo isso, o professor Obenga acredita na possibilidade de se descobrir uma
estrutura genética comum.
c) Finalmente, o professor Obenga abordou o que considera o aspecto mais
interessante da comparação.
Estabeleceu paralelos entre palavras de diferentes línguas palmeira, espírito,
árvore, lugar e entre pequenos fonemas: por exemplo, km (Kem), “negro” em
egípcio antigo, torna -se kame, kemi, kem em copta; ikama em bantu (com o
sentido de carbonizado em consequência de exposição a calor excessivo), kame
em azer (cinzas); Romé, homem em egípcio antigo, torna -se lomi em bantu. Os
mesmos fonemas exercem as mesmas funções nas diferentes línguas comparadas.
Dessas comparações o professor Obenga deduziu a possibilidade de identificar,
no futuro, uma língua negro -egípcia”, análoga ao “indo -europeu”. Nesse contexto,
e considerando o inegável fundo cultural comum a todas as línguas comparadas,
dispõe -se de uma base sólida para o desenvolvimento de estudos futuros.
9. O professor Gordon -Jaquet assinalou a possibilidade de se evocar o estudo
da toponímia egípcia em apoio da afirmação de que no Egito não se produziu
nenhuma imigração ou invasão maciça de populações estrangeiras, pelo menos
832
África Antiga
desde o Neolítico. Sabe -se que os nomes topográficos têm vida extremamente
longa. Os sucessivos grupos linguísticos que habitam uma mesma área deixam
sua marca na forma de topônimos, mais ou menos numerosos, dependendo
do tamanho da população e da duração de seu predomínio na área. Qualquer
acréscimo importante à população egípcia vindo do exterior teria sem dúvida
deixado sua marca na toponímia do país, o que não ocorreu. A toponímia do
Egito é muito homogênea e se compõe de nomes cuja etimologia se explicaria,
praticamente sem exceções, pela própria ngua egípcia. Foi no período
ptolomaico e, mais tarde, após a conquista árabe que os nomes de origem grega
e árabe foram acrescidos ao fundo básico de nomes egípcios. Somente nas
regiões periféricas a Núbia, os oásis ocidentais e o Delta oriental, regiões em
estreito contato com os povos vizinhos que falavam outras línguas é que vamos
encontrar nomes cuja etimologia pode derivar -se dessas línguas estrangeiras.
10. O professor Devisse abandonou por um instante sua função de relator para
informar o simpósio dos surpreendentes resultados de um estudo iconográfico
10
.
Três manuscritos
11
incluem representações de egípcios negros e merecem
especial consideração. Eliminando o que se poderia atribuir à tradição bíblica (a
descendência de Cam) e as representações alegóricas propositalmente arcaicas
(Hades, a Noite), resta ainda uma proporção variável de egípcios representados
com traços e cor negros. Como se sabe, trata -se de escravos, mas e neste ponto
as cenas selecionadas são extremamente interessantes também de egípcios livres.
Alguns deles cerca de um terço dos participantes estão sentados em torno da
mesa de José, que oferece um banquete aos seus irmãos israelitas, sentados em
outra mesa; outros participam da venda de José a Putifar, representado como
branco. Provavelmente o aspecto mais notável dessas representações, sempre
realistas nos pormenores, consiste no traje característico dos egípcios negros
(em particular no octateuto do século XI). Os negros, muito diferentes dos
egípcios, que usavam barbas e turbantes, frequentemente portavam lanças e
vestiam uma pele de pantera que lhes deixava o ombro direito nu. O professor
Devisse considera importantíssimas tais observações em razão dos consideráveis
contatos entre Bizâncio e o Egito durante o período fatímida e pelo fato de as
10 Essa ampla pesquisa, de âmbito internacional, vem sendo objeto de uma publicação em três volumes,
dois dos quais publicados. O estudo foi realizado pela Menil Foundation (Houston, EUA), da qual
uma unidade em Paris coordenou a coleta de uma grande quantidade de material iconográco.
11 Paris, Bibliothèque Nationale, Novas Aquisições: latin 2334 (VI -VII
e
?), Vatican grec 747 (XI
e
) , Vatican
grec 746 (XII
e
).
833
Anexo
representações datadas desse período serem muito mais realistas do que nos
manuscritos mais antigos.
É difícil interpretar esses documentos: referem -se tanto a um fundo cultural
bizantino quanto à tradição bíblica. Refletem, porém, uma visão “setentrional”
do egípcio não conforme com a teoria do padrão “leucoderma”.
C Discussão Geral
O debate geral deixou claro que, em variados graus, diversos participantes
consideram desejável, no estágio atual dos conhecimentos, o empreendimento de
macroanálises a abranger a história antiga do Egito como um todo ou mesmo,
em alguns casos, do conjunto do continente africano; por outro lado, outros
participantes dão preferência às microanálises geográficas com base disciplinar
ou interdisciplinar.
1. Análise cronológica dos resultados
O debate da questão foi iniciado pelo professor Cheikh Anta Diop. A partir
do Paleolítico Superior a homogeneidade inicial da humanidade passa por um
processo de declínio progressivo; a população do Egito era tão uniforme quanto
a das outras partes do mundo. Em geral acredita -se que o aparecimento da raça
humana ocorreu na África 5.300.000 anos B.P.
O Homo sapiens surgiu por volta de -150.000 e disseminou -se progressivamente
por todas as áreas habitáveis da bacia do Nilo. Os homens que viviam no Egito
nessa época eram negros.
Rejeitando a teoria oposta, apresentada pelo professor Vercoutter em
seu relatório sobre o povoamento do Egito durante o período pré -dinástico,
o professor Diop afirmou que, na realidade, 33% dos egípcios brancos” de
pigmentação razoavelmente escura, ou mesmo negra, eram negros, o mesmo
ocorrendo com 33% dos mestiços; acrescentando os últimos 33% da população
mencionados pelo dr. Massoulard (aceitos como negros), o professor Diop
expressou a opinião de que no período protodinástico a população egípcia, em
seu conjunto, era negra.
Prosseguindo, reafirmou ele a teoria geral, esboçada anteriormente, sobre a
população negra do Egito e sua mestiçagem gradual.
Em outro ponto da discussão, o professor Diop afirmou explicitamente que
a população negra do Alto Egito só começou a diminuir na época da ocupação
persa.
834
África Antiga
Finalizando, fez duas observações gerais: uma sobre o uso da palavra negroide,
termo que considera inútil e pejorativo, e outra sobre os argumentos evocados
para contestar suas ideias, que lhe parecem negativos, desprovidos de rigor
crítico e de base fatual.
A teoria do professor Diop foi rejeitada globalmente por um dos participantes.
Nenhum dos presentes declarou expressamente apoiar a antiga teoria de uma
população de “brancos” com pigmentação escura ou mesmo negra. O consenso
sobre o abandono dessa tese foi apenas tácito.
Levantaram -se numerosas objeções às ideias propostas pelo professor Diop,
revelando a amplitude de um desacordo que permaneceu profundo, embora não
explícito. Em algumas sequências, as críticas surgiram a partir da argumentação
proposta.
Em relão a épocas muito antigas anteriores ao que a terminologia
francesa ainda chama de período neolítico –, os participantes concordaram
ser extremamente difícil encontrar respostas satisfatórias.
O professor Debono observou uma semelhança importante entre as culturas
de seixos lascados nas diferentes regiões onde foram descobertas (Quênia,
Etiópia, Uganda, Egito). O mesmo vale para o período acheulense, que apresenta
instrumentos bifaciais semelhantes em várias regiões da África.
Por outro lado, a homogeneidade da indústria sangoense, descoberta na
África oriental, diminui progressivamente em direção ao norte. Em Khor Abu
Anga (ilha de Sai, no Sudão), existe uma série de utensílios razoavelmente
completa. De Uadi Halfa em diante, perde, ao que parece, vários elementos.
No Egito, apenas uma das características tipológicas se manteve, entre Tebas e
Dachur, perto do Cairo.
Durante o período paleolítico médio, a debitagem Levallois com variantes
musterienses diferia muito no Egito e nas áreas situadas mais ao sul ou a oeste.
No tocante à indústria lítica durante o Paleolítico, por razões ainda obscuras,
mas provavelmente ligadas a mudanças nas condições climáticas e ecológicas,
o Egito isolou -se do resto da África, criando indústrias originais (Sebiliense,
Epilevalloisiense ou Hawariense, Khargniense).
Além disso, houve no mesmo período uma tentativa de penetração por parte
dos aterienses do nordeste da África, cujos traços foram encontrados até no Saara
meridional. Tendo chegado ao oásis de Siwa e também, em grande número, ao
oásis de Kharga, eles se espalharam pelo vale do Nilo, e seus vestígios foram
encontrados em Tebas. Vestígios do mesmo período foram descobertos em Uadi
Hammamat (deserto oriental), em Esna (misturados a vestígios kargnienses),
em Dara, em Djebel el -Ahmar, perto do Cairo, e em Uadi Tumilat, no Delta
835
Anexo
oriental (alternados com remanescentes epilevalloisienses). É provável que na
mesma época tenha ocorrido uma mestiçagem de outras raças em pequena
escala, rapidamente absorvida pela população nativa.
Uma penetração igualmente importante de povos estrangeiros no Egito
foi a dos natufienses da Palestina, cuja presença em Heluan, perto do Cairo, é
conhecida há muito tempo. Escavações recentes demonstraram que estes povos
habitavam uma área maior. Vestígios líticos atribuíveis aos natufienses foram
encontrados no Faium e no deserto oriental, ao longo de um cinturão que se
estende na direção leste -oeste através do vale do Nilo.
Segundo o professor Sauneron, é possível deduzir, pela presença de seixos
lascados nos estratos do Pleistoceno Antigo das montanhas tebanas, que a
presença humana no vale do Nilo é muito antiga.
O professor Ghallab sustentou que os habitantes do Egito no Paleolítico
eram caucasoides. Afirmou ainda que escavações recentes forneceram provas
da existência de homens do tipo “san na população do período pré -dinástico.
O professor Shinnie, que concordou com a tese relativa ao estabelecimento
do Homo sapiens (sem, contudo, mencionar -lhe a cor da pele), data a primeira
população sedentária do vale do Nilo de aproximadamente 20 mil anos. Em
seguida teriam chegado vários grupos humanos, procedentes de diferentes
regiões, aumentando a população e alterando -lhe a composição.
A discussão sobre o Neolítico e o Pré -Dinástico foi também intensa.
O professor Abu Bakr sublinhou que os egípcios nunca se isolaram de outros
povos nem constituíram uma raça pura, sendo impossível aceitar a ideia de uma
população neolítica inteiramente negra no Egito. A população do Egito no
Neolítico era uma mistura de homens vindos do oeste e do leste, incorretamente
chamados de camitas.
A mesma teoria é perfilhada pelo professor El -Nadury. Durante o Neolítico,
migrantes de todas as partes do Saara incorporaram -se gradualmente à
população sedentária fixada a noroeste do Delta, daí resultando uma mistura
de vários grupos étnicos. A partir desse período não mais descontinuidade
no povoamento até a época dinástica. O sítio de Merinde mostra, graças a um
farto material arqueológico claramente estratificado, que o povoamento dessa
área seguiu um processo gradual.
O professor Vercoutter expressou sua convicção acerca do povoamento do
antigo Egito: para ele, o povo que ocupou o vale do Nilo sempre foi mestiço,
em particular na época pré -dinástica, quando chegaram numerosos elementos
estrangeiros procedentes do oeste e do leste.
836
África Antiga
Durante o período pré -dinástico e o início do dinástico, chegou ao Egito
um novo elemento, vindo do nordeste e descrito como semita pelo professor
El -Nadury. Como o professor Abu Bakr, o professor El -Nadury considera
um fato notável a construção de fortificações em Abidos, durante a I dinastia,
provavelmente com o objetivo de impedir a migração do sul para o norte.
O professor Abu Bakr referiu -se ao caso da esposa de Quéops, loira de olhos
azuis, como um exemplo da existência de não -negros” no Egito. O professor
Diop considera esse exemplo isolado uma exceção que confirma a regra.
No decorrer da discussão, o professor Obenga acrescentou alguns pontos
importantes e salientou o interesse dos escritos antigos legados pela população
do Egito. Heródoto, numa passagem sobre os Colcos não contestada pelos
especialistas modernos nem invalidada pelo estudo comparativo dos manuscritos,
procurou mostrar, por meio de uma série de argumentos críticos, que eles eram
assemelhados aos egípcios: Falam do mesmo modo e são, com os egípcios,
os únicos povos que praticam a circuncisão, além de tecerem o linho como
os egípcios”. A essas semelhanças acrescentam -se duas outras características
comuns: a pigmentação negra e os cabelos crespos.
O professor Leclant asseverou que os escritores antigos utilizavam -se da
expressão “face queimada (etíopes) para se referir aos núbios e negros, mas não
aos egípcios. O professor Obenga replicou que os gregos empregavam a palavra
negro” (melas) para designar os egípcios. O professor Vercoutter perguntou
em que contexto precisamente Heródoto definiu os egípcios como negros. O
professor Diop respondeu que Heródoto lhes faz referência em três ocasiões:
ao discutir a origem dos Colcos, a origem das enchentes do Nilo e o oráculo
de Zeus -Âmon.
Na opinião do professor Leclant, a unidade do povo egípcio não era racial,
mas cultural. A civilização egípcia permaneceu estável durante três milênios; os
egípcios se descreviam como remet (Rome em copta) e, principalmente em suas
representações iconográficas, estabeleciam uma distinção entre eles e os povos
do norte e do sul. O professor Obenga negou que os egípcios utilizassem a
palavra remet para se distinguir de seus vizinhos no plano racial; para ele essa
distinção é, sim, semelhante à que levou os gregos a se diferenciarem de outros
povos, a quem chamavam bárbaros.
O professor Leclant observou que merecem ser estudadas as importantes
características paleoafricanas da vida cultural egípcia. Como exemplo mencionou
o babuíno, um atributo do deus Tot, e o frequente aparecimento na iconografia de
peles de pantera como vestimenta ritual no culto de Hórus a Osíris. Contudo,
837
Anexo
em sua opinião, os egípcios, cuja civilização foi culturalmente estável durante
três milênios, não eram brancos nem negros.
Em seguida, o professor Sauneron questionou a ideia de uma população
homogênea, principalmente se atribuirmos essa homogeneidade ao peodo
entre o aparecimento do homem no Egito e a época pré -dinástica. No seu
entender, nenhuma das provas disponíveis permite duvidar do caráter mestiço
da população egípcia.
A conclusão dos especialistas que não aceitam a teoria enunciada pelos
professores Cheikh Anta Diop e Obenga, segundo a qual a população do vale
do Nilo seria homogênea desde os primeiros tempos até a invasão persa, é que a
população básica do Egito se fixou na região durante o Neolítico. Grande parte
dessa população era proveniente do Saara, incluindo povos do norte e do sul
da região, diferenciados pela cor. A essa teoria os professores Diop e Obenga
opuseram a sua, que enfatiza a uniformidade do povoamento do vale pelos
negros e sua progressão no sentido sul -norte.
2 Existência ou não -existência de migrações
importantes em direção ao vale do Nilo
Com relação a esse ponto, os trabalhos do simpósio desenvolveram -se de
maneira confusa, e alguns debates não chegaram ao fim.
Em termos gerais, os participantes consideraram que a teoria das migrações
em larga escala não é aceitável como explicação do povoamento do vale
do Nilo, ao menos até o período dos hicsos, quando tiveram início as trocas
linguísticas com o Oriente Próximo (Holthoer).
Por outro lado, vários especialistas acreditam que os deslocamentos
populacionais ocorreram nas regiões imediatamente vizinhas do vale, embora
muitos discordem quanto ao papel desempenhado pelos fatores geográficos
ou ecológicos como obstáculos, naturais ou artificiais, a esses movimentos de
população.
De todo modo, acredita -se que o Egito absorveu migrantes de várias origens
étnicas. Os participantes do simpósio reconheceram implicitamente que, de
maneira geral, o substrato da população do vale do Nilo continuou estável
durante três milênios, sendo muito pouco afetado pelas migrações.
Todavia, quando se examinam os períodos posteriores, torna -se impossível
chegar a tão amplo consenso teórico.
Em relação ao período Paleolítico, o professor Cheikh Anta Diop enunciou
a hipótese segundo a qual o Homo sapiens se teria instalado progressivamente
838
África Antiga
no vale do Nilo até a latitude de Mênfis. O professor Abu Bakr afirmou serem
muito escassas as informações disponíveis sobre esse período, ressaltando a
possibilidade de a parte setentrional do vale do Nilo não ter sido habitada.
Por outro lado, o professor Obenga admite que entre o Paleolítico Superior
e o Neolítico houve um povoamento contínuo, efetuado por uma população
uniforme; em suas tradições orais, os próprios egípcios deram atenção especial a
esse fato mencionando os Grandes Lagos como sua terra natal e a Núbia como
um país idêntico ao seu.
Na época em que o Mesolítico se fundiu com o Neolítico (professor
Vercoutter), ou durante o período Neolítico (professores Habachi e Ghallab),
afigura -se provável a ocorrência de grandes movimentos populacionais a partir
do Saara, em direção ao vale do Nilo. O professor Vercoutter expressou o desejo
de que esses movimentos, até agora pouco conhecidos, sejam datados com
precisão, sugerindo que se proceda à coleta e ao estudo do material arqueológico
a eles concernentes.
Em resposta, o professor Cheikh Anta Diop apresentou alguns dados mais
pormenorizados: a datação por radiocarbono para o Saara ocidental indica
um período de clima úmido entre 30.000 B.P. e 8000 B.P. aproximadamente,
com alguns intervalos de seca; do mesmo modo, a datação do período de seca
posterior vem sendo feita com mais precisão. Datações semelhantes deveriam
ser obtidas para o Saara oriental; combinando -se esses resultados com uma
pesquisa paleoclimática e o estudo de túmulos e gravuras, seria possível obter
as informações desejadas pelo professor Vercoutter.
O professor Habachi apoiou irrestritamente a teoria a respeito das migrações
originárias do Saara, fundada nos estudos ora conhecidos. O professor Säve-
-Söderbergh admite que a maioria das culturas neolíticas do vale do Nilo
pertencia ao complexo tecnológico das culturas saariana e sudanesa; contudo, é
provável que os movimentos migratórios tenham sido mais intensos antes e no
final do período neolítico subpluvial.
Como alternativa à hipótese que postula uma migração oriunda do Saara,
principalmente durante o Neolítico, o professor Diop sugeriu a possibilidade
de o povoamento ter -se expandido do sul para o norte, reafirmando a tese,
várias vezes referida durante o debate, segundo a qual no Capsiense essa cultura
abrangia uma vasta área entre o Quênia e a Palestina.
Com relação aos períodos protodinástico e pré -dinástico, os professores Diop
e Vercoutter concordaram quanto à homogeneidade da população dos limites
egípcios do vale do Nilo à extremidade meridional do Delta. Já quanto à hipótese
da migração do norte para o sul, os dois especialistas chegaram a um acordo
839
Anexo
apenas parcial; enquanto o professor Vercoutter acha -a de difícil aceitação, o
professor Diop rejeita -a totalmente. O desacordo surgiu no momento de definir
com mais precisão a natureza desses povos. O professor Diop admitiu tratar -se
dos Anu e os identificou na gravura assinalada por Petrie no templo de Abidos.
Durante o período dinástico, a estabilidade da população dos limites egípcios
do vale do Nilo se confirma pela estabilidade de sua cultura; o professor Diop
demonstrou o emprego do calendário egípcio a partir de -4236; esse calendário
apresentava desde o início um padrão cíclico de 1461 anos. Segundo ele, até a
invasão persa, essa estabilidade foi ameaçada pelo violento terremoto ocorrido
por volta de -1450, responsável por uma rie de migrões que afetou o
equilíbrio de todos os países localizados na orla da bacia mediterrânica oriental.
Sobreveio depois o ataque dos Povos do Mar, que assolaram o Delta egípcio
numa época contemporânea ao desaparecimento dos hititas e ao surgimento
dos protoberberes na África setentrional. Além dessa grande comoção, o único
episódio importante na vida do povo egípcio, embora não relacionado com as
migrações, foi a conquista do país pelo faraó unificador Narmer, que avançou
na direção sul -norte, por volta de -3300.
Essa análise não foi debatida, mas expuseram -se outras teorias. O professor
Säve -Söderbergh procurou determinar, com base nas escavações núbias, em que
períodos e condições o Egito dos faraós se separou do sul. Na Núbia, a cultura
mais antiga desapareceu gradualmente ao final da I dinastia ou talvez no início
da II. O Grupo C, que lhe sucedeu, não surgiu antes da VI dinastia, o que
nos deixa uma lacuna cronológica de cerca de quinhentos anos, entre -2800
e -2300, sobre os quais não temos nenhuma informação até o momento. Em
vista de uma tal situação, parece evidente que os contatos ativos entre o Egito
faraônico e o sul foram destruídos ou interrompidos.
O mesmo acontece entre -1000 e o início da Era Cristã: não foi encontrado na
Baixa Núbia nenhum vestígio arqueológico. Os vestígios meroítas mais antigos
ali descobertos datam do século I da Era Cristã; portanto os intercâmbios entre
o Egito e o sul variaram consideravelmente entre -2800 e o período meroíta.
Os professores Vercoutter e Leclant chamaram a atenção para o aparecimento,
desde a XVIII dinastia, de um modelo de representação do negro totalmente
distinto do que existia antes (no túmulo de Houy ou no túmulo de Rekhmira,
por exemplo). Como essas novas populações vieram a aparecer na iconografia
egípcia? Seriam o resultado dos contatos dos egípcios com o sul ou de migrações
de populações meridionais para o norte, em direção à bia? O professor
Shinnie contestou que essa informação permita inferir uma migração do sul
para o norte que teria afetado a população do Egito.
840
África Antiga
Para o professor Leclant, à exceção do exemplo citado da XVIII dinastia,
nenhuma mudança importante ocorreu antes da XXV dinastia, quando os cuchitas
procedentes de Dongola surgiram no Egito. Assim sendo, ele tende a admitir
que o fenômeno se deveu mais a um aumento transitório de uma determinada
influência na vida da população egípcia do que a eventuais migrações.
Duas constatações sobretudo se impuseram com tal evidência no decorrer
dos debates que não chegaram a ser seriamente contestadas:
a) Existe um duplo problema com relação ao Delta do Nilo
12
nos tempos
pré -históricos.
Primeiro, como salientou o professor Debono, essa região, ao contrário
do Alto Egito, é muito pouco conhecida, pois ainda não se completaram as
escavações em Merinde, El -Omari e Meadi -Heliópolis.
Os vestígios humanos descobertos até agora pertencentes aos tempos pré-
-históricos e ao período arcaico diferem dos encontrados no Alto Egito.
Em segundo lugar, os fatores humanos que afetaram as condições de vida no
Baixo Egito ou no Delta, até onde podemos caracterizá -los antes do período
dinástico, parecem diferir daqueles observados no vale, ao sul dessa região.
b) Na Núbia setentrional, o estudo do substrato mais antigo da população
tornou -se possível graças às pesquisas arqueológicas organizadas sob os auspícios
da Unesco. Por uma série de razões, isso não ocorreu no restante da parte egípcia
do vale do Nilo, onde as investigações referentes aos tempos pré -dinásticos e às
antigas culturas materiais produziram resultados bem mais precários. As reservas
e hesitações manifestadas por alguns cientistas quanto à possibilidade de se
extraírem conclusões finais talvez se devam, em parte, a esse fato.
É inegável que pelo menos um outro fator contribuiu para a complexidade
de uma discussão que de maneira geral se desenrolou sob a forma de monólogos
sucessivos e antagônicos. Esse fator apareceu claramente numa frase enunciada
pelo professor Obenga, embora não tenha sido comentado. Na opinião do
professor Obenga, um substrato cultural homogêneo implica necessariamente
um substrato étnico homogêneo.
Independente da consideração simultânea ou o dessas duas ideias, parece que
elas não foram suficientemente dissociadas durante o debate; daí as conclusões
obtidas não terem sido o precisas quanto seria de esperar. A possibilidade de
encontrar pontos de acordo talvez tenha sido afetada por esse fato.
12 O professor HOLTHOER chamou a atenção para o trabalho de D. G. RÉDER, e Economic
Development of Lower Egypt (Delta) during lhe Archaic Period (V -IV [cenluries] BC), coleta de artigos
publicados no Journal of Ancient Egypt, 1960 (tradução do título russo).
841
Anexo
No entanto, considerados sem uma referência de ordem racial, os dois
importantes temas obtiveram acordo quase unânime, ao menos como hipóteses
de trabalho.
O Neolítico foi provavelmente o período em que a população do vale egípcio
do Nilo mais se viu afetada por migrações em larga escala. Duas teorias foram
formuladas para explicar esse fenômeno: uma delas admite que os migrantes
vieram principalmente da região oriental do Saara, expandindo -se no sentido
norte -sul; a outra afirma que esses movimentos de população procederam
do sul através do Nilo; a partir do período protodinástico, o povoamento do
Egito tornou -se bastante estável. O caráter desse povoamento não se alterou
radicalmente com os rios movimentos populacionais que afetaram a vida
política e a situação militar do Egito, nem com os efeitos das relações comerciais
do país, nem com os esforços internos de colonizão agrícola ou com as
infiltrações a partir das regiões vizinhas. A estabilidade étnica acompanhou -se
de um alto grau de estabilidade cultural.
Contudo, durante a discussão da hipótese da homogeneidade da população,
sustentada pelo professor Diop, e da hipótese de uma população mista, perfilhada
por vários outros especialistas, evidenciou -se um desacordo total.
3. Resultados da investigação da antropologia física
Em vários pontos da discussão, evidenciou -se a necessidade de se definirem
com maior rigor os termos até aqui utilizados com vistas a uma descrição racial.
O Sr. G, representante do Diretor -Geral da Unesco, interveio em
favor dos especialistas que propõem a exclusão dos termos “negro”, preto”
e “negroide, porque o conceito de raça estaria ultrapassado e porque seria
necesrio estabelecer uma aproximação entre os homens, repudiando -se
qualquer referência a raça. O Sr. Glélé lembrou aos participantes que a Unesco
empenha -se em promover um entendimento internacional e a cooperação na
esfera cultural, não sendo intenção da Organização, quando decidiu presidir o
Simpósio, suscitar tensões entre povos ou raças, mas sim até onde é possível
no atual estágio dos conhecimentos elucidar e esclarecer um dos vários temas
que despertam dúvidas, isto e, a questão do povoamento do antigo Egito da
perspectiva de sua origem étnica e de suas relações antropológicas. Portanto,
trata -se de comparar as teorias alternativas, avaliar os argumentos científicos
em que se baseiam e fazer o balanço da situação, ressaltando as lacunas quando
necessário. De qualquer modo, salientou ele, os termos negro”, negroide e
preto” sempre foram utilizados e mencionados em todos os estudos científicos,
842
África Antiga
como a palavra hamita” ou “camita”, embora no atual simpósio se tenham
levantado dúvidas quanto à sua validade. Lembrou ainda que os autores da
História Geral da África fizeram amplo uso dessas palavras, às quais os leitores
estavam acostumados.
Independente do que se possa pensar, o fato é que esses termos, tal como
vêm utilizados nas obras especializadas e de vulgarização, guardam ressonância
razoavelmente significativa e são inseparáveis de julgamentos de valor, implícitos
ou não. O Sr. Glélé corroborou a afirmação de um especialista com referência
às publicações da Unesco sobre os problemas raciais. A Unesco não repudia a
ideia de raça; a Organização consagrou um programa especial ao estudo das
relações raciais e não mede esforços para combater a discriminação. Publicaram-
-se várias obras sobre esse importante problema. Por conseguinte, é impossível
examinar as questões relativas ao povoamento do antigo Egito rejeitando de
antemão, sem propor nenhum sistema novo, a classificação geralmente aceita
dos povos como brancos, amarelos e pretos tipologia tradicionalmente utilizada
pelos egiptólogos para classificar o povo do Egito. Além disso, se o vocabulário
tradicional habitualmente empregado pelos historiadores precisa ser revisto, não
se deveria reavaliá -lo apenas para a história da África, mas para a do mundo
inteiro. Se o simpósio considera o assunto importante, poderia submetê -lo à
apreciação a nível internacional, da associação dos historiadores. Na dependência
da introdução de novos termos, as palavras preto”, negro”, negroide” e hamita”,
de uso geral, deveriam ser definidas com maior rigor.
O debate sobre esse tema foi iniciado pelo professor Vercoutter. Lembrou ele
que o problema foi suscitado pelo trabalho de Junker, que utilizou a palavra negro
para denotar o tipo de representações surgidas durante a XVIII dinastia, depois
caricaturadas pelos egípcios. Junker usa a palavra negro” fundamentalmente
com referência à África ocidental, ressaltando tanto a pigmentação quanto certas
características faciais.
O professor Vercoutter tende a achar que, em vez de se adotar esse ponto
de vista antigo, seria essencial buscar critérios mais específicos no que respeita
a uma definição científica da raça negra; mencionou, em particular, o critério
sanguíneo e a questão do significado preciso do grau de pigmentação da pele, e
perguntou se os núbios, por exemplo, deveriam ser considerados negros.
Essas questões suscitaram diferentes posicionamentos. Era desejo de muitos
dos participantes que a palavra raça”, que em diversas ocasiões, recentemente;
despertara fortes reações, fosse utilizada com prudência. O professor Obenga
respondeu que a pesquisa científica reconhece a validade da noção de raça e que
no estudo das raças o racismo não está necessariamente implícito.
843
Anexo
O debate revelou a dificuldade de conferir conteúdo científico aos termos
examinados. E mais: deixou claro que um número razoável de especialistas
reluta, por motivos bastante respeitáveis, em utilizar -se desses termos, os quais
poderiam ser considerados, com toda razão, como revestindo implicões
perigosas ou pejorativas. Alguns, ainda, são de parecer que não se pode esperar
que as respostas básicas para essa questão venham de historiadores e arqueólogos,
pois só a antropologia física poderia fornecê -las.
O professor Säve -Söderbergh foi apoiado por um número considerável de
participantes quando manifestou sua esperança de que a terminologia racial
venha a ser estudada por especialistas da moderna antropologia física. Uma
definição científica rigorosa seria útil não apenas para a África mas também,
e talvez ainda mais, para a Ásia; do mesmo modo, os conceitos de população
mestiça, população composta e grupos populacionais requerem uma definição
mais precisa. A Unesco havia sido consultada nesse sentido, a propósito das
pesquisas efetuadas na Núbia.
O Sr. Glélé afirmou que, sendo os critérios para classificar uma pessoa como
negra, branca ou amarela tão discutíveis e os conceitos em questão tão mal
definidos e talvez excessivamente subjetivos ou inseparáveis dos pades habituais
de pensamento, seria conveniente admitir esse fato e passar a reexaminar, com
base em critérios científicos novos, toda a terminologia da história mundial, a fim
de se proceder à uniformização do vocabulário e atribuir às palavras as mesmas
conotações. Isso evitaria os mal -entendidos e favoreceria a compreeno e o acordo.
Todavia, os professores Diop e Obenga foram imprudentes ao se referirem à
série de critérios estabelecidos pelos antropólogos para caracterizar o negro: pele
negra, prognatismo facial, cabelo crespo, nariz chato (os índices facial e nasal são
escolhidos de maneira muito arbitrária por diferentes antropólogos), estrutura
óssea negrítica (proporção entre os membros superiores e inferiores). De acordo
com Montei, o negro possui um rosto chato e “horizontal”. O professor Abu
Bakr observou que, a serem válidas essas afirmações, os egípcios não poderiam
ser considerados negros.
Prosseguindo, o professor Diop especificou que as mensurações cranianas
nunca permitiram determinar a existência de volumes encefálicos característicos
de uma ou outra raça.
Para o professor Diop, existem duas raças negras, uma com cabelo liso e outra
com cabelo crespo; se a cor da pele é negra, parece improvável que as outras
características básicas, anteriormente mencionadas, não sejam encontradas.
Finalmente, se o grupo sanguíneo A2 é característico dos brancos, os negros
tendem a pertencer ao Grupo B ou, num grau menor, ao Grupo C.
844
África Antiga
O professor Shinnie replicou que os especialistas americanos por ele
consultados durante a preparação deste colóquio lhe afirmaram ser o estudo do
esqueleto um elemento importante, mas não suficiente, para a determinação da
raça; além disso, os critérios considerados adequados pelo professor Diop, não
são encarados da mesma forma pelos especialistas americanos, independente de
ser esta uma postura correta.
O professor Obenga considerou a existência de dois grupos pertencentes
a uma única raça negra um com cabelo liso e outro com cabelo crespo –, e
retomou a questão geral colocada para este simpósio: admitindo -se como válida
a noção de raça e não tendo sido rejeitada a noção de raça negra, que dizer da
relação entre essa raça e os egípcios antigos?’
O professor Diop acredita que os resultados até o momento obtidos pela
investigação antropológica o suficientes para se extrair uma série de conclusões.
O negroide grimaldi apareceu por volta de -32.000, o homem de Cro -Magnon,
protipo da raça humana, aproximadamente em -20.000, e o homem de
Chancelade, protótipo da raça amarela, no período magdaleniense, em cerca
de -15.000. As raças semitas constituem um fenômeno social característico do
meio urbano e são o resultado de uma mestiçagem entre negros e brancos. Por
isso ele está plenamente convicto de que os primeiros habitantes do vale do
Nilo pertenciam à raça negra, tal como a definem os resultados das pesquisas
geralmente aceitos pelos especialistas em antropologia e pré -história. Segundo
o professor Diop, fatores de natureza psicológica e educacional impedem o
reconhecimento dessa evidência.
Na medida em que o pressuposto da pesquisa efetuada na Núbia favorece
uma concepção universalista, os resultados da investigação têm pouca utilidade
neste debate. O professor Diop não é favorável à criação de comissões para
verificar fatos evidentes, que hoje requerem tão -somente um reconhecimento
formal: a seu ver, todas as informações disponíveis, mesmo aquelas contidas
nos estudos superficiais feitos no século XIX, corroboram a teoria de que,
nos tempos mais antigos, os egípcios tinham a pele negra, característica que
perdurou até o Egito perder definitivamente sua independência. Em resposta
às várias questões que lhe foram formuladas, o professor Diop declarou que as
amostras fornecidas pela arqueologia são suficientes para confirmar sua tese.
No seu entender, é possível aceitar a proposição do professor Vercoutter, segundo
a qual a documentação antropológica anterior a 1939, aproximadamente, deveria
ser considerada duvidosa por carecer de rigor científico.
A tese do professor Diop, embora convincente, foi criticada por vários
participantes.
845
Anexo
A principal objeção foi a do professor Sauneron, para quem o número total
de pessoas que ocuparam o vale do Nilo entre o início dos tempos históricos e
os tempos modernos poderia ser razoavelmente avaliado em várias centenas de
milhões de indivíduos. Escavaram -se algumas centenas de sítios e estudaram -se
cerca de 2 mil corpos; os dados obtidos são tão raros que se torna totalmente
irrealista querer a todo custo inferir deles conclusões gerais tão ambiciosas. Como
as amostras disponíveis não são de todo representativas, é aconselhável esperar
até que uma investigação rigorosa e suficientemente abrangente a respeito dos
aspectos gerais forneça evidências de aceitação universal.
4. A validade da investigação iconográca
Também neste campo duas teorias se defrontaram. O professor Diop
acredita que, como os egípcios eram negros, sua iconografia pintada que ele
incidentalmente não citou na sustentação de seu argumento não poderia
representar senão o povo negro. O professor Vercoutter, apoiado pelos professores
Ghallab e Leclant, admitiu que a iconografia egípcia, desde a XVIII dinastia,
tem representações características de povos negros que até então não tinham sido
retratadas; isso significa que a partir da referida dinastia, pelo menos, os egípcios
estiveram em contato com povos considerados etnicamente diferentes deles.
O professor Diop comentou que durante sua exposição introdutória, mostrara
uma série de representações do domínio exclusivo da escultura. Para ele, todas
retratam negros ou apresentam traços característicos das sociedades negras.
Solicitou que esses documentos fossem criticados e convidou os participantes a
apresentarem representações comparáveis de brancos em postura de dignidade
ou de comando, dos prirdios da época farnica. Vários participantes
responderam que jamais se pensou em descobrir no Egito representações
comparáveis às da estatuária grega, por exemplo. O professor Vercoutter disse
ser possível apresentar numerosas representações em que os seres humanos estão
pintados de vermelho, e não de preto, mas que o professor Diop se recusaria a
reconhecê -las como não -negras. O professor El -Nadury não nega a existência
de elementos negros na população egípcia durante o Antigo Império, mas
parece -lhe difícil admitir que toda a população fosse negra.
O professor Vercoutter afirmou que a reprodão fotográfica do faraó
Narmer está bastante ampliada, com os traços provavelmente distorcidos, e que
considerar a pessoa representada como negra envolve uma asserção subjetiva.
Essa também foi a opinião do professor Säve -Söderbergh, para quem a fotografia
poderia ainda ser interpretada como o retrato de um lapão.
846
África Antiga
O professor Vercoutter não contesta a posvel existência de elementos
negros em todo o decorrer da história egípcia, e ele próprio apresentou vários
outros exemplos de representações de negros. No entanto, em dois pontos ele
discordava dos fatos apresentados: foram selecionados indiscriminadamente,
com base em todo o período faraônico, sem referências precisas, e selecionados
para comprovar uma teoria. O professor Diop respondeu que procurou mostrar
apenas objetos ou cenas esculpidas, a fim de evitar eventuais discussões sobre o
significado das cores, mas que foi obrigado a utilizar o material disponível em
Dacar. A lista era abrangente, estendendo -se desde o Antigo Império até o fim
do período faraônico. Na verdade as evidências comprovavam a tese, e qualquer
teoria contrária devia ser necessariamente confirmada por representações
iconográficas de egípcios “não -negros”.
Durante a prolongada discussão sobre as cores, os professores Vercoutter,
Sauneron e Säve -Söderbergh, por um lado, e o professor Diop, por outro, voltaram
a discordar, e nenhum dos lados fez qualquer concessão. Aparentemente, o único
ponto de acordo foi o fato de o tema justificar outros estudos, em particular com
a ajuda de laboratórios especializados.
O professor Vercoutter admite a exisncia de representações de negros
na escultura egípcia do Antigo Império, tendo citado exemplos. Mas não
acredita serem elas representativas da população egípcia como um todo, pois
esta se encontra igualmente representada em esculturas contemporâneas com
características totalmente diversas.
O professor Vercoutter perguntou -se por que os egípcios, caso se
considerassem negros, raramente ou mesmo nunca utilizaram o carvão para
se representar, preferindo a cor vermelha. No entender do professor Diop, essa
cor seria indicativa da raça negra egípcia, e a coloração amarela das mulheres
ilustraria o fato, salientado pelos antropólogos americanos, de as mulheres de
vários grupos raciais estudados serem sempre mais claras do que os homens.
5. Análises linguísticas
Este item, ao contrário dos debatidos anteriormente, revelou amplo consenso
entre os participantes. O resumo do professor Diop e o relatório do professor
Obenga foram considerados bastante construtivos.
O debate ocorreu em dois níveis.
Em resposta à afirmação do professor Diop de que o egípcio não era uma
língua semítica, o professor Abdalla observou que opinião oposta tem sido
expressa com frequência.
847
Anexo
Uma discussão gramatical e semântica confrontou o professor Diop e o
professor Abdalla a propósito da raiz, que o primeiro interpreta como kmt,
que viria de km (“preto”) e seria um nome coletivo que significaria “pretos, isto
é, negros”. O professor Abdelgadir M. Abdalla perfilha a interpretação aceita
como kmtyw e traduzida por egípcios”, plural de kmty, “egípcio”, forma nisba
derivada de kmt (“país negro, isto é, Egito”). O professor Sauneron corroborou
a interpretação e a tradução do professor Abdalla.
Abordando questões mais amplas, o professor Sauneron sublinhou o interesse
do método sugerido pelo professor Obenga, seguindo o professor Diop. A língua
egípcia permaneceu estável durante um período de pelo menos 4500 anos.
O Egito situava -se no ponto de convergência de influências exteriores, sendo
lícito supor que tenham ocorrido empréstimos de línguas estrangeiras; mas as
raízes semitas limitam -se a umas poucas centenas, em contraste com um total
de vários milhares de palavras. A língua egípcia não poderia ser isolada de seu
contexto africano, e sua origem não seria totalmente explicada com base no
semita; por conseguinte, é perfeitamente normal a expectativa de encontrar
línguas aparentadas na África.
Entretanto, uma abordagem metódica rigorosa se defronta com o difícil
problema da lacuna cronológica de 5 mil anos, período que separa o egípcio
antigo das línguas africanas atuais.
O professor Obenga chamou a atenção para o fato de que uma língua que
não se fixou por meio da forma escrita e se desenvolveu normalmente poderia
reter certas formas antigas; exemplos ilustrativos desse problema foram por ele
citados na comunicação apresentada no primeiro dia do simpósio.
O professor Sauneron observou que o todo utilizado se reveste de
grande interesse, pois não poderia ser meramente casual a semelhança entre
pronomes sufixados na terceira pessoa do singular em egípcio antigo e em
wolof; sua expectativa é que se faça um esforço de reconstituição de uma língua
paleoafricana, utilizando -se as nguas atuais como ponto de partida. Isso
facilitaria a comparação com o egípcio antigo. Segundo o professor Obenga,
trata -se de um método aceitável. O professor Diop julga essencial estabelecer
um método de pesquisa assentado em comparões linguísticas, e deu um
exemplo específico do que pretende. Ele considera os grupos dinka, nuer, shilluk
e suas respectivas línguas, por um lado, e o wolof, por outro, étnica e, em menor
grau, linguisticamente aparentados. Os nomes próprios senegaleses ocorrem nos
referidos grupos no nível de clã. Mais especificamente, o professor Diop acredita
ter encontrado entre os Kaw -Kaw, nas montanhas núbias, o vínculo mais claro
entre o egípcio antigo e o wolof.
O professor Vercoutter declarou que considera significativa a existência, no
túmulo de Sebekhotep, de representações de três nilotas que sem dúvida eram
ancestrais dos Dinka ou dos Nuer.
6. Desenvolvimento de uma metodologia interdisciplinar e
pluridisciplinar
Neste ponto todos concordaram ser necessário estudar da forma mais
detalhada possível todas as áreas periféricas do vale do Nilo que possam fornecer
novas informações sobre a questão examinada no simpósio.
O professor Vercoutter julga necessário dar o devido peso à paleoecologia do
Delta e da vasta região que o professor Balout chamou de Crescente Fértil africano.
O professor Cheikh Anta Diop acha conveniente seguir as rotas dos povos
que migraram do Darfur para oeste, atingindo a costa atlântica por trajetos
distintos: para o sul, ao longo do vale do Zaire, e para o norte, em direção ao
Senegal, cercando pelos dois lados os Iorubá. Salientou a importância de se
estudarem mais pormenorizadamente as relações do Egito com o restante da
África e mencionou a descoberta; na província de Shaba, de uma estatueta de
Osíris datada do século VII antes da Era Cristã.
Dever -se -ia empreender também um estudo geral da hipótese de trabalho
segundo a qual os principais acontecimentos que afetaram o vale do Nilo, como
o saque de Tebas pelos sírios ou a invasão persa de -525, tiveram profundas
repercussões no continente africano como um todo.
D Conclusão Geral
Os resultados gerais deste Simpósio certamente serão avaliados de forma
muito diferente pelos vários participantes.
Embora o texto preparatório enviado pela Unesco especificasse o que se
esperava do Simpósio, nem todos os participantes prepararam comunicações
comparáveis às contribuições, minuciosamente pesquisadas, dos professores
Cheikh Anta Diop e Obenga. Em consequência, houve um verdadeiro
desequilíbrio nas discussões.
No entanto, por uma série de razões, as discussões foram muito construtivas.
1. Em vários casos, demonstrou -se claramente a importância da troca de
novas informações científicas.
2. Quase todos os participantes se convenceram das deficiências dos critérios
metodológicos até agora utilizados na pesquisa.
849
Anexo
3. Chamou -se a atenção para exemplos de novas abordagens metodológicas,
mediante as quais seria possível estudar de maneira mais científica a questão
proposta para o simpósio.
4. De qualquer modo, este primeiro encontro deve ser considerado como
ponto de partida para outros debates internacionais e interdisciplinares e para
outras pesquisas que se mostraram claramente necessárias. O grande número de
recomendações reflete o desejo manifestado no simpósio de sugerir um futuro
programa de pesquisa.
5. Finalmente, o simpósio proporcionou aos especialistas que nunca tiveram
a oportunidade de comparar e contrastar seus pontos de vista, a oportunidade
de descobrir outras abordagens para os problemas tratados, outras fontes
de informações e outras linhas de pesquisa, diferentes daquelas a que estão
habituados. É inegável que deste ponto de vista o simpósio também se mostrou
construtivo.
E Recomendações
O simpósio chamou a atenção da Unesco e outras organizações competentes
para as seguintes recomendações:
1. Antropologia física
É desejável:
I. que a Unesco organize uma investigação internacional, quer através de
consultas universitárias num número razoável de países, quer junto a
especialistas individuais de reputação internacional, ou ainda através
de um simpósio que estabela normas bastante precisas com base
nos princípios científicos o mais rigorosos possível para definir raças e
identificar o tipo racial dos esqueletos exumados.
II. que se solicite a colaboração dos serviços médicos de vários Estados-
-membros da Unesco para que durante as autópsias se façam observações
estatísticas sobre as características osteológicas dos esqueletos.
III. que se reexaminem os vesgios humanos que já se encontram nos
museus de todo o mundo e que se faça um rápido estudo dos vestígios
descobertos durante escavações recentes no Egito, em particular no
Delta, para se ampliarem as informações disponíveis.
IV. que as autoridades egípcias façam o possível no sentido de facilitar o
estudo necessário dos vestígios de pele examináveis e que concordem
com a criação de um departamento especializado em antropologia física.
850
África Antiga
2. Estudo de migrações
É desejável que se empreendam os seguintes trabalhos:
I. estudo arqueológico sistemático sobre os períodos mais antigos da ocupação
humana do Delta. Essa operação poderia ser precedida pela análise de uma
amostra sica extrda do solo do Delta. O estudo e a datão dessa amostra
geológica básica poderiam realizar -se simultaneamente no Cairo e em Dacar.
II. investigação compavel nas reges do Saara fronteiras ao Egito e aos oásis.
Essa pesquisa deveria incluir o estudo simulneo de desenhos e pinturas
rupestres e do conjunto do material arqueogico dispovel. Ainda aqui,
as amostras geogicas poderiam ser analisadas e datadas ao mesmo tempo.
III. investigação no próprio vale, comparável à realizada na Núbia setentrional,
que se concentraria nas sepulturas o -faraônicas, no estudo das antigas
culturas materiais e, em geral, na Pré -História do vale como um todo;
IV. pesquisa sobre os vestígios paleoafricanos na iconografia egípcia e seu
significado hisrico: os exemplos do babuíno e da pele de leopardo (“pantera”)
já foram citados pelo simsio. Com certeza seria possível descobrir outros.
3. Linguística
O simpósio recomenda que se faça sem demora um estudo linguístico sobre
as línguas africanas prestes a desaparecer: sugeriu -se o kaw -kaw como exemplo
característico.
Ao mesmo tempo, a cooperação de especialistas em linguística comparada
deveria realizar -se a nível internacional, a fim de se estabelecerem todas as
correlações possíveis entre as línguas africanas e o egípcio antigo.
4. Metodologia interdisciplinar e pluridisciplinar
O simpósio espera sinceramente que:
I. os estudos interdisciplinares regionais sejam empreendidos em várias
regiões, com as seguintes prioridades:
• Darfur;
• a região entre o Nilo e o mar Vermelho;
• a margem oriental do Saara;
• a região do Nilo ao sul do 10
o
paralelo;
• o vale do Nilo entre a Segunda e a Sexta Catarata.
II. seja efetuada com urgência uma pesquisa interdisciplinar sobre os Kaw-
-Kaw, ameaçados de rápida extinção.
851
Anexo
II Decifração da escrita meroíta
Relatório preliminar
1. A pedido da Unesco, o professor J. Leclant preparou um relario
preliminar
13
.
a) A língua meroíta, utilizada pelas culturas de Napata e de Méroe, ainda não
foi compreendida, embora se lhe tenha decifrado a escrita.
Como demonstram os relatos históricos dos estudos sobre o meroíta, as
inscrições coletadas ao acaso no decorrer das escavações foram objeto de
pesquisas sistemáticas nos últimos anos. É provável que, no futuro, as pesquisas
arqueológicas venham a revelar novas inscrições; até agora nada se descobriu na
região entre a Segunda e a Quarta Catarata; o mesmo sucede com as rotas de
passagem em direção ao mar Vermelho, aos grandes vales do oeste, ao Kordofan
e ao Darfur.
É particularmente importante insistir no trabalho arqueológico, na medida
em que é razoável esperar que algum dia se descubra uma inscrição bilíngue.
b) Os resultados foram publicados integralmente nas Meroitic Newsletters
(13
a
edição), o que permitiu a rápida difusão de descobertas por vezes ainda
provisórias. As reuniões regulares de especialistas ocorreram em Cartum em
dezembro de 1970, em Berlim Oriental em setembro de 1971 e em Paris em
junho de 1972 e julho de 1973; os resultados desse último encontro foram
publicados na Nota de Informação n
o
34 do Comitê Científico Internacional
para a Redação de uma História Geral da África, Unesco.
muitos anos começou também o trabalho de análise da língua meroíta por
via da informática, o que permitiu um considerável e rápido progresso naquele
domínio. A compilação de listas de stichs tornou possível dar início à análise da
estrutura da língua. Atualmente, o índice de palavras registradas contêm 13.405
unidades. Além disso, descobriu -se uma linguagem para formular questões à
máquina.
Como ponto de partida, procurou -se usar palavras cujo significado era
conhecido ou poderia ser inferido para tentar a comparação com o egípcio ou
o núbio.
c) O professor Leclant terminou sua exposão resumindo as linhas de
pesquisa atualmente em curso:
13 Ver esse relatório preliminar no Anexo IV do Relatório Final do Simpósio (1974).
852
África Antiga
• o professor Hintze trabalha com as estruturas;
• o professor Schaenkel aperfeiçoa os dados a serem registrados pelo
computador;
• o professor Abdelgadir M. Abdalla desenvolve uma pesquisa sobre
a qual falou brevemente e cujos resultados corroboram os da equipe
internacional.
No futuro, procurar -se comparar o meroíta com outras línguas africanas
e descobrir o lugar que ocupa no conjunto dessas línguas, principalmente em
relação ao núbio; também se tentará compará -lo com as línguas faladas nas áreas
fronteiriças da região etíope; finalmente, seria desejável proceder à comparação
com o conjunto das línguas africanas.
Debate
1. O professor Abdalla confirmou que endossa o sistema adotado para
transcrever o meroíta e o método criado para registrar os textos. Chamou a
ateão para as lacunas de nosso conhecimento: ignorância quase total do
sistema dos pronomes, do uso dos pronomes demonstrativos, da natureza dos
prefixos e sufixos. Lembrou que é essencial conhecer o parentesco linguístico
do meroíta.
2. O professor Abdalla mostrou -se favorável a um trabalho de dissecação
da língua, de forma a estudar seus componentes. Sublinhou a mobilidade dos
elementos formativos dos nomes de pessoas, que envolvem um aspecto social: os
mesmos elementos móveis ocorrem nos nomes de vários membros de uma dada
família; os nomes de certas crianças encerram elementos tirados dos nomes de
sua mãe e de seu pai; certos nomes constituem os títulos, outros contêm nomes
de lugares.
3. Para o professor Shinnie, três métodos de abordagem possíveis: a
descoberta de um texto bilíngue, a análise interna da estrutura da língua e a
comparação com outras línguas africanas.
A comparação direta entre as duas principais línguas não -árabes do Sudão
setentrional e a do Grupo M foi infrutífera; talvez o meroíta pudesse ajudar
nessa tarefa.
4. O professor Kakosy, presente como observador, enfatizou a necessidade
do estudo de fontes documentais. Informou sobre a presença em Budapeste
de fragmentos de mesas de oferenda provenientes de um sítio próximo a Abu
Simbel e propôs incluí -los imediatamente no Repertório de Epigrafia Meroíta.
853
Anexo
5. O professor Cheikh Anta Diop manifestou sua satisfão com os
progressos realizados. Dependendo de possível descoberta de um texto bilíngue,
sugeriu o emprego de métodos baseados no computador, os quais possibilitaram
a decifração parcial dos hieróglifos maia pela equipe de Leningrado chefiada
pelo professor Knorossov. A maior parte dos escritos foi decifrada com a ajuda
de textos bilíngues ou multilíngues. No caso do meroíta, o procedimento correto
seria combinar o multilinguismo e as potencialidades do computador da seguinte
maneira:
a) postular, por meio de um procedimento puramente metodológico, um
parentesco entre o meroíta e as línguas negro -africanas, o que é uma maneira
de reencontrar o multilinguismo;
b) Uma vez que dispomos atualmente, em cartões perfurados, de 22 mil
palavras meroítas de leitura razoavelmente segura, estabelecer um vocabulário
básico de quinhentas palavras por língua para cem línguas africanas rigorosamente
escolhidas por uma equipe de linguistas devidamente credenciada. As palavras
selecionadas poderiam ser as que indicam, por exemplo, as partes do corpo, as
relações de parentesco, o vocabulário religioso, os termos relativos à cultura
material, etc.;
c) o computador deveria ser programado para reconhecer, por exemplo, três
consoantes idênticas, duas consoantes idênticas, etc.;
d) com base nos resultados obtidos, seria necessário comparar as estruturas
das línguas justapostas.
Esse método é mais racional que a comparão casual de estruturas
linguísticas, pois ainda se sabe muito pouco sobre a gratica meroíta. A
utilização desse método é mais eficiente do que esperar o resultado de um
estudo não -comparativo da estrutura interna do meroíta.
O professor Leclant apoiou esse modelo de procedimento operacional e de
investigação, por ser passível de fornecer informações valiosas. Considerou útil
fazer as concordâncias não apenas das características realmente presentes como
também das não -presentes (ausência de certas estruturas ou sequências).
O Sr. Glélé perguntou em que medida os métodos utilizados para decifrar
outras línguas também poderiam servir para esclarecer o mistério que envolve
a língua meroíta. Declarou que os professores Knorossov, Pietrowski, Holthoer
e Hintze haviam sido convidados à reunião esperando -se que fornecessem as
informações necessárias.
O professor Leclant declarou que se fez um amplo estudo sobre aquela
questão nos encontros de Paris e Londres, no verão de 1973. Tanto o trabalho
854
África Antiga
sobre a escrita mohenjo-daro quanto o trabalho sobre a escrita maia ainda se
encontram no estágio de hipóteses.
O professor Diop, porém, espera que não se abandone a ideia de utilizar
métodos comparativos paralelamente ao estudo de estruturas. Sua proposta foi
aprovada pelo professor Sauneron, que aproveitou a oportunidade para assinalar
a importância do trabalho realizado pelo Grupo de Estudos Meroítas.
Em seguida, a discussão se concentrou mais especificamente nas línguas
sudanesas; o professor Säve -Söderbergh salientou que sempre é importante
estudá -las, pois, am da comparação com o merta, seu conhecimento
permitiria o avanço da linguística africana. O professor Säve -Söderbergh
submeteu à apreciação dos presentes os elementos de uma recomendação nesse
sentido. Enfatizou também que mesmo com somas pequenas é possível instalar
um secretariado eficiente e acelerar a coleta de material, seu processamento pelo
computador e a redistribuição da informação.
Finalmente, discutiu -se o conteúdo da recomendação. O professor Diop
disse esperar que o excelente trabalho realizado pelo Grupo de Estudos Meroítas
tenha continuidade e conte com a plena cooperação internacional, que se faça
uma compilação sistemática do vocabulário do Sudão e que se realize uma
compilação idêntica em outras regiões da África, com a colaboração do professor
Obenga. O professor Sauneron aceitou sem restrições todas essas propostas.
Como, em última instância, é incerta a relação desse trabalho com a decifração
do meroíta, ele afirmou esperar que o estudo das línguas africanas, em seu próprio
benefício, venha a desenvolver -se de maneira autônoma, mesmo se parcialmente
incorporado no projeto global. Isso poderá demorar muito, e é essencial, após
uma rigorosa avaliação crítica, que se determine desde o início uma metodologia
bastante segura. O professor Obenga apoiou a ideia e sugeriu que se faça um
inventário das características gramaticais do meroíta correntemente conhecidas.
O professor Leclant admitiu que tal proposta poderia efetivar -se de imediato.
O professor Habachi manifestou a esperança de que não se relegue a segundo
plano a necessidade de uma investigação arqueológica.
Respondendo à proposta metodológica do professor Obenga, o Sr. Glé
afirmou que a questão dos métodos a adotar seria decidida quando se completasse
a composição da equipe internacional responsável. Explicou que a Unesco está
dando apoio aos estudos efetuados em Cartum sobre as línguas sudanesas e que
se dispõe a conceder subvenções de acordo com seus procedimentos normais.
A Unesco está financiando e dirigindo um programa sobre linguística africana
e acabou de aprovar um plano de dez anos com esse objetivo.
855
Anexo
Recomendações
1. a) O colóquio se declara satisfeito com os trabalhos realizados pelo Grupo
de Estudos Meroítas de Paris, em colaboração com especialistas de vários outros
países, e expressou a opinião de que os trabalhos repousam em bases sólidas e
prometem bons resultados.
b) Por unanimidade, o colóquio decidiu sugerir as seguintes medidas para
dar prosseguimento ao projeto:
I. acelerar os trabalhos de informática mediante obteão de créditos
adicionais e fazer circular as informações, numa forma revisada e
elaborada, para os principais centros de estudos meroítas;
II. elaborar listas de nomes de pessoas e, sempre que possível, de nomes
de lugares e de títulos; classificar as estruturas linguísticas e procurar a
colaboração dos especialistas em linguística africana;
III. elaborar e publicar um corpus completo de todos os textos meroítas,
com bibliografia, fotografias, fac -símiles e transcrões baseadas na
documentação existente (Repertório de Epigrafia Meroíta);
IV. elaborar um vocabulário meroíta completo.
c) Uma vez que os resultados do projeto até agora obtidos são cientificamente
sólidos e prometem um desenvolvimento feliz, considerando que as despesas
maiores já foram cobertas por fundos provenientes de fontes diversas, este
colóquio considera imperativo assegurar a sua continuidade e conclusão,
fornecendo fundos para os seguintes propósitos:
I. custos de secretariado e pessoal para publicação do material documental
e científico;
II. custos de pesquisas em coleções e museus;
III. despesas de viagem dos especialistas;
IV. custos de perfuração de cartões e de tempo do computador.
2. O próximo passo da pesquisa consistiria em estudos comparativos
estruturais e lexicográficos das nguas africanas. Em primeiro lugar, seriam
estudadas as línguas do Sudão e das regiões fronteiriças da Etiópia, algumas
delas em via de desaparecimento. Nesse caso, a melhor solução seria oferecer um
treinamento linguístico aos estudantes sudaneses da Universidade de Cartum,
de preferência aos que as têm como língua -mãe.
Este treinamento seria igualmente valioso para a consecução de vários outros
objetivos. Tal projeto, que complementaria o proveitoso trabalho já em curso no
856
África Antiga
Sudão, precisaria ser negociado com a Universidade de Cartum, solicitando -se
os financiamentos para as bolsas necessárias.
3. Além disso, seria conveniente realizar um estudo linguístico mais amplo
de todas as línguas africanas, com o objetivo de coletar as palavras -chave. Essa
pesquisa seria feita em colaboração com o Grupo de Estudos Meroítas e dirigida
por especialistas selecionados pela Unesco, em cooperão com o Comitê
Científico Internacional para a História Geral da África. A escolha deveria
limitar -se a aproximadamente quinhentas palavras de categorias escolhidas de
uma centena de línguas.
Essa coleção, depois de computada, seria um instrumento valioso não para
a decifração da língua meroíta como também para a solução de vários outros
problemas linguísticos da África moderna.
857
Conclusão
Neste volume procuramos mostrar as principais características do início
da história da África: grandes transformações, contatos fundamentais entre as
diversas regiões, estado das sociedades e coletividades africanas no âmbito do
período considerado.
Encontram -se assim definidos um quadro geral e as principais linhas de
orientação das pesquisas e dos estudos. No entanto, parece desde possível tirar
certas conclusões, formular algumas hipóteses, muito embora – nunca é demais
sublinhá -lo um trabalho considerável ainda esteja por ser feito.
Os catulos consagrados ao antigo Egito demonstram que antes do
terceiro milênio da Era Crisjá se havia atingido ali um vel intelectual,
social e material mais elevado do que na maioria das outras regiões do mundo.
Remontando à noite dos tempos, original e rica de iniciativas, a civilização do
antigo Egito que nasceu da conjunção de um meio favorável e de um povo
decidido a dominá -lo com real conhecimento durou quase três milênios. O
papel dos elementos naturais no desenvolvimento dessa civilização é sem dúvida
importante e notável, mas apenas na medida em que os egípcios lutaram para
dominar seu meio ambiente, superar as dificuldades e os problemas por ele
colocados e -la a serviço de sua prosperidade.
Com a invenção da escrita, no curso do período pré -dinástico, o Egito antigo
deu um grande passo no sentido da civilização. A escrita ampliou o campo
Conclusão
G. Mokhtar
858
África Antiga
da comunicão humana, abriu as mentes, estendeu os conhecimentos. Sua
invenção foi mais importante do que qualquer êxito, militar ou de outra ordem,
dos egípcios. Os primeiros caracteres remontam aproximadamente ao ano 3200
antes da Era Cristã; ainda hoje a língua copta é utilizada nas igrejas coptas do
país. Pode dizer -se que essa língua, que atravessou cinquenta séculos, é o mais
antigo idioma do mundo. A invenção da escrita foi a principal etapa que os
egípcios passaram na longa trajetória que conduz à civilização e à prosperidade.
Nosso conhecimento sobre o antigo Egito deve -se principalmente à
descoberta da escrita e ao estabelecimento de uma cronologia.não utilizamos
hoje o mesmo sistema, porquanto os antigos egípcios datavam os acontecimentos
cuja lembrança desejavam conservar em função do rei que governava na época.
Mas, com a ajuda desse sistema, o historiador Manêton de Sebenny tos pôde
classificar os soberanos do Egito em trinta dinastias, de Menés a Alexandre,
o Grande. Os eruditos modernos reagruparam várias dinastias sob o nome de
Impérios: há, assim, o Antigo Império, o Médio Império e o Novo Império.
Embora o Egito estivesse aberto às correntes culturais vindas sobretudo do
Oriente, este volume mostra que, em grande medida, a civilização repousa em
bases africanas; mostra igualmente que o Egito, que é uma parte da África,
foi outrora o principal centro da civilização universal, de onde se irradiaram a
ciência, a arte e a literatura, influenciando principalmente a Grécia. Nos domínios
da matemática (geometria, aritmética, etc.), da astronomia e da medição do
tempo (calendários, etc.), da medicina, da arquitetura, da música e da literatura
(narrativa, lírica, dramática, etc.), a Grécia recebeu, desenvolveu e transmitiu
ao Ocidente boa parte da herança egípcia do Egito faraônico e ptolomaico.
Por intermédio da Grécia, a civilização do antigo Egito entrou em contato não
apenas com a Europa, mas também com a África do Norte e mesmo com o
subcontinente indiano.
As opiniões se dividem quanto ao problema do povoamento do Egito, objeto
de estudos sérios e aprofundados. Espera -se que os grandes progressos realizados
na metodologia da ciência antropológica permitam estabelecer, num futuro
próximo, conclusões definitivas sobre o assunto.
Segundo as fontes mencionadas neste volume, a Núbia esteve, desde os
primeiros tempos, estreitamente ligada ao Egito por uma série de semelhanças:
semelhança física, em primeiro lugar, principalmente entre a Núbia e o extremo
sul do Alto Egito; semelhança histórica e política, cuja importância intrínseca
foi consideravelmente reforçada pelo aspecto físico; semelhança social, cultural
e religiosa. Assim, do começo da primeira dinastia até o fim do Antigo Império,
os egípcios se mostraram muito interessados pelo norte da bia, por eles
859
Conclusão
considerado como elemento complementar de seu próprio país. Organizaram
trocas comerciais com os núbios, exploraram os recursos naturais do território e
responderam a toda resistência núbia com o envio de missões militares. Algumas
expedições do Antigo Império, dirigidas por grandes pioneiros da viagem e da
exploração, como Ony, Mékhu, Sabni e Khuefeher (Herkhuf), penetraram no
Saara e talvez na África central.
O interesse do Egito pela Núbia traduziu -se particularmente na construção
de numerosos templos, que se destinavam, a par de sua fuão religiosa, a
ilustrar a civilização e a força do Egito, o poder e a santidade de seu soberano.
Tal interesse explica -se sobretudo pelo fato de a Núbia ter constituído, desde
tempos muito antigos, o lugar de passagem das mercadorias comerciadas entre
o Mediterrâneo e o coração da África. Aliás, podem -se ver as rnas de
fortalezas dos períodos faraônicos, destinadas a proteger os comerciantes e a
manter a paz nessas regiões.
Contudo, desde os tempos pré -históricos a Núbia constituía uma unidade
geográfica e social, sempre habitada por povos cuja cultura se assemelhava à
do alto vale do Nilo. Mas a partir de 3200 antes da Era Cristã os egípcios
começaram a ultrapassar seus vizinhos do sul no domínio cultural e a progredir a
passos de gigante no sentido da civilização; muito tarde iria a Núbia segui -los.
A civilização de Kerma, rica e próspera, floresceu na Núbia na primeira metade
do segundo milênio antes da Era Cristã. Embora fortemente influenciada pela
cultura egípcia, tinha ela suas próprias características locais. Após o início do
primeiro milênio antes da Era Cristã, no momento do declínio do poderio
egípcio, instalou -se uma monarquia autóctone (com a capital em Napata), que
posteriormente viria a reinar no Egito. A dominação núbia no Egito, que durou
cinquenta anos no decorrer do sétimo período (primeira parte da XXV dinastia),
realizou a união entre os dois países. A fama dessa grande potência africana era
excepcional, como testemunham os autores clássicos.
Após a transferência da capital para Méroe, a Núbia conheceu, até quase
o culo IX, um período de progresso e prosperidade e restabeleceu alguns
contatos com seus vizinhos. A expansão da monarquia meroítica a oeste e ao sul,
seu papel na difusão das ideias e das técnicas e na transmissão das influências
orientais e ocidentais ainda estão em fase de estudo. Por outro lado, mesmo após
a publicação deste volume, seria conveniente reanimar os esforços empreendidos
para decifrar a escrita meroítica. Ter -se -ia assim acesso a informações diversas
contidas em cerca de 900 documentos, e disporíamos, ao lado da língua faraônica,
de uma nova língua clássica de caráter estritamente africano.
860
África Antiga
A partir do século IV da Era Cristã, o cristianismo começou a estender-
-se pela Núbia, onde os templos foram transformados em igrejas. A Núbia
cristã desempenhou um papel histórico ativo, obteve numerosos êxitos e exerceu
notável influência sobre seus vizinhos. A Núbia cristã conheceu a idade do ouro
no século VIII, com seu primeiro período de desenvolvimento e prosperidade.
A Núbia permaneceu como monarquia cristã até a chegada do islamismo.
Foi então invadida pela cultura islâmica árabe e perdeu muito do seu caráter
tradicional.
Em vista de sua situação geográfica, a Núbia desempenhou um papel especial
por vezes involuntariamente como intermediária entre a África central e o
Mediterrâneo. O reino de Napata, o império de Méroe e o reino cristão fizeram
da Núbia o ponto de ligação entre o norte e o sul. Graças a ela, a cultura, as
técnicas e os instrumentos se expandiram até as regiões vizinhas. Prosseguindo
incansavelmente nossas pesquisas, talvez possamos descobrir que a civilização
egípcio -núbia desempenhou na África um papel análogo ao da civilização greco-
-romana na Europa.
A história da Núbia antiga ressurgiu recentemente, quando da elaboração
do projeto da barragem de Assuã. Logo se tornou óbvio que tal barragem
implicaria a submersão de dezesseis templos e de todos os túmulos, capelas,
igrejas, inscrições na rocha e demais sítios históricos da Núbia, que o tempo até
então deixara quase intactos. A pedido do Egito e do Sudão, a Unesco lançou em
1959 um apelo a todas as nações, a todas as organizações e a todos os homens
de boa vontade, pedindo -lhes ajuda técnica, científica e financeira para salvar
os monumentos da Núbia. O sucesso da campanha internacional que se seguiu
salvou a maior parte desses monumentos, que representam séculos de história
e encerram a chave das primeiras civilizações.
A realização de novas escavações arqueológicas nos arredores do sítio de
Kerma, onde os ritos funerários eram idênticos, em particular, aos de Gana, da
região de Dongola e dos oásis do sudoeste, poderia dar -nos uma ideia melhor
sobre algumas afinidades culturais arcaicas e, talvez revelar -nos outros elos da
corrente cultural entre o vale do Nilo e o interior da África. De qualquer modo,
poderia fornecer -nos maiores esclarecimentos acerca do itinerário seguido por
exploradores do Antigo Império, como Herkhuf.
A princípio sob influência da Arábia do Sul, a Etiópia forjou uma cultura cuja
força unitária é pouco conhecida. Fontes materiais que remontam ao segundo
período pré -axumita provam a existência de uma cultura local que assimilara
influências estrangeiras.
861
Conclusão
O reino de Axum, que durou aproximadamente mil anos a partir do primeiro
século da Era Cristã, assumiu uma forma toda particular, diversa da do período
pré -axumita. Como a do Egito antigo, a civilização de Axum era fruto de um
desenvolvimento cultural cujas raízes mergulhavam na pré -história. Era uma
civilização africana, produzida por um povo da África. No entanto, podem -se
encontrar na cerâmica do segundo período pré -axumita traços de influência
meroítica.
Nos séculos II e III, a influência meroítica foi predominante na Etiópia. A
estela de Axum, pouco descoberta, com o símbolo egípcio da vida (Ankh)
e objetos ligados a Hátor, Ptah e Hórus, ao lado de escaravelhos, mostra a
influência da religião egípcia de Méroe sobre as crenças axumitas.
O reino de Axum era uma grande potência comercial nas rotas que ligavam
o mundo romano à Índia e a Arábia à África setentrional; era também um
grande centro de informação cultural. Até o presente, estudaram -se somente
alguns aspectos da cultura axumita e de suas raízes africanas. Muita coisa ainda
deve ser feita.
A chegada do cristianismo provocou, como no Egito e em Méroe, grandes
mudanças na cultura e na vida dos etíopes. O papel do cristianismo e sua
persistência na Etiópia, sua influência no interior e no exterior desse território,
são assuntos interessantes que merecem estudo mais aprofundado.
Considerando os limites de nossas fontes históricas, devemos esperar, para
melhor conhecer a evolução da cultura líbia e o modo como reagiu
à
introdução
da civilização fenícia, que os arqueólogos e os historiadores tenham progredido
em seus trabalhos.
Em consequência, julgamos que a entrada do Magreb na história documentada
ocorre com a chegada dos fenícios à costa da África do Norte, ainda que os
contatos dos cartagineses com os povos do Saara e mesmo com aqueles que
habitavam mais ao sul permaneçam mal conhecidos. Note -se, aliás, que a cultura
da África do Norte não é devedora apenas dos fenícios: sua inspiração original
é essencialmente africana.
Foi durante o período fenício que o Magreb entrou na história geral do
mundo mediterrâneo; a civilizão fenícia comportava elementos egípcios e
orientais e era tributária de suas relações comerciais com os outros países do
mediterrâneo. No último período dos reinos da Numídia e da Mauritânia,
observa -se uma evolução no sentido de uma civilização em que as influências
líbias e fenícias se mesclam.
Embora pouco se saiba sobre o Saara e seus aspectos culturais na Antiguidade,
dispomos de algumas certezas: a aridez do clima o privou o deserto de toda
862
África Antiga
vida nem de toda atividade humana; as línguas e a escrita se consolidaram e,
graças aos camelos, cuja utilização cada vez mais se disseminou, havia meios de
transporte que permitiam ao Saara desempenhar importante papel nas trocas
culturais entre o Magreb e a África tropical.
Podemos, pois, concluir que o Saara, longe de ser uma barreira ou uma zona
morta, tinha sua cultura e sua história, que ainda devem ser estudadas caso
se pretenda descobrir a influência permanente do Magreb sobre o cinturão
sudanês. Com efeito, sempre houve entre os países situados ao norte do Saara e
a África subsaariana contatos culturais ativos que influenciaram profundamente
a história do continente africano
1
.
Até aqui, costumava -se situar o início da história da África subsaariana
no século
XV
da Era Cristã
2
,
e isso por duas razões principais: a penúria de
documentos escritos e a clivagem dogmática que os historiadores costumam
estabelecer mentalmente entre essa região do continente, de um lado, e o Egito
antigo e a África do Norte, de outro.
A despeito das lacunas e insuficiências das pesquisas efetuadas, este volume
contribui para mostrar a possibilidade da existência de uma unidade cultural do
conjunto do continente nos mais variados domínios.
Formulou -se a teoria de um liame genético entre o egípcio antigo e as línguas
africanas. Se as pesquisas o confirmarem, ter -se a prova de uma profunda
unidade linguística do continente. A semelhança das estruturas reais, as relações
entre os ritos e as cosmogonias (circuncisão, totemismo, vitalismo, metempsicose,
etc.), a afinidade das culturas materiais, os instrumentos de cultura, são exemplos
de questões que estão a merecer estudos mais aprofundados.
Além do mais, satisfeita a terceira condição para a redação dos volumes
I e II, a saber, a reconstituição da rede de rotas africanas desde os tempos
proto -históricos, bem como a determinação da extensão das áreas cultivadas no
decorrer do mesmo período a partir da análise de fotografias tiradas por satélite,
teremos ampliado e aprofundado nosso conhecimento sobre o grau de ocupação
do solo e sobre as relações culturais e comerciais que se estabeleceram no interior
do continente naquela época.
1 Ver Capítulo 29,As sociedades da África subsaariana na Idade do Ferro Antiga”, do professor Merrick
Posnansky, que trata dos resultados obtidos nos dez últimos capítulos deste volume, no que se refere à
África subsaariana.
2 Alguns autores da África de fala francesa e inglesa deram muita atenção à África subsaariana antes do
século XV.
863
Conclusão
Um trabalho mais extenso sobre etnônimos e topônimos deverá possibilitar
a determinação de correntes migratórias e de relações étnicas insuspeitadas de
uma a outra extremidade do continente.
Espero que este volume desperte nos países africanos maior interesse pela
arqueologia da África antiga, incentivando -os a uma contribuição mais efetiva
nessa área.
865
Conclusão
Membros do Comitê Cientíco
Internacional para a Redação de
uma História Geral da África
Prof. J. F. A. Ajayi
(Nigéria) –
1971 Coordenador do volume VI
Prof. F. A. Albuquerque Mourão (Brasil)
1975
Prof. A. A. Boahen (Gana)
1971 Coordenador do volume VII
S. Exa. Sr. Boubou Hama (Níger)
1971-1978
(Demitido em 1978; falecido em 1982)
S. Exa. Sra. Mutumba M. Bull, Ph. D. (Zâmbia)
1971
Prof. D. Chanaiwa (Zimbábue)
1975
Prof. P. D. Curtin (EUA)
1975
Prof.
J.
Devisse (França)
1971
Prof. M. Difuila (Angola)
1978
Prof. Cheikh Anta Diop (Senegal)
1971 Prof. H. Djait (Tunísia)
1975
Prof.
J.
D. Fage (Reino Unido)
1971-1981
(Demitido)
S. Exa. Sr. M. El Fasi (Marrocos)
1971 Coordenador do volume III
Prof. J. L. Franco (Cuba)
1971
Sr. Musa H. I. Galaal (Somália)
1971-1981
(
F
alecido)
Prof. Dr. V. L. Grottanelli (Itália)
1971
Prof. E. Haberland (República Federal da Alemanha)
1971
Dr. Aklilu Habte (Etiópia)
1971
S. Exa. Sr. A. Hampaté Ba (Mali)
1971-1978
(Demitido)
866
África Antiga
Dr. I. S. El-Hareir (Líbia)
1978
Dr. I. Hrbek (Tchecoslováquia)
1971 Codiretor do volume III
Dra. A. Jones (Libéria)
1971
Pe. Alexis Kagame (Ruanda)
1971-1981 (Falecido)
Prof. I. M. Kimambo (Tanzânia)
1971
Prof.
J.
Ki-Zerbo (Alto Volta)
1971
Coordenador do volume I
Sr. D. Laya (Níger)
1979
Dr. A. Letnev (URSS)
1971
Dr. G. Mokhtar (Egito)
1971
Coordenador do volume
II
Prof. P. Mutibwa (Uganda)
1975
Prof. D. T. Niane (Senegal)
1971
Coordenador do volume
IV
Prof. L. D. Ngcongco (Botsuana)
1971
Prof. T. Obenga (República Popular do Congo)
1975
Prof. B. A. Ogot (Quênia)
1971
Coordenador do volume V
Prof. C. Ravoajanahary (Madagáscar)
1971
Sr. W. Rodney (Guiana)
1979-1980 (Falecido)
Prof. M. Shibeika (Sudão)
1971-1980 (Falecido)
Prof. Y. A. Talib (Cingapura)
1975
Prof. A. Teixeira da Mota (Portugal)
1978-1982 (Falecido).
Mons. T. Tshibangu (Zaire)
1971
Prof.
J.
Vansina (Bélgica)
1971
Rt. Hon. Dr. E. Williams (Trinidad e Tobago)
1976-1978 (Demitido em 1978; fale-
cido em 1980)
Prof. A. Mazrui
(Quênia)
Coordenador do volume
VIII
(não
é
membro do Comitê)
Prof. C. Wondji (Costa do Marfim)
Codiretor do volume
VIII
(não é membro do
Comitê)
Secretaria do Comitê Científico Internacional para a Redação de Uma Hisria Geral da África
Sr. Maurice
Glelé,
Divisão de Estudos e Difusão de Culturas, Unesco, 1, rue Miollis,
75015 Paris
867
Dados biográcos dos autores do volume II
Introdução G. Mokhtar (Egito). Arqueólogo; autor de diversas publicações sobre
a história do antigo Egito; ex -diretor do Serviço de Antiguidades.
Capítulo 1 Cheikh Anta Diop (Senegal). Especialista em ciências humanas; autor
de várias obras e artigos sobre a África e a origem da humanidade;
diretor do laboratório de radiocarbono da Universidade de Dacar.
Capítulo 2 A. Abu Bakr (Egito). Especialista em história antiga do Egito e da
Núbia; autor de várias publicações sobre o antigo Egito; professor na
Universidade do Cairo; falecido.
Capítulo 3 J. Yoyotte (França). Egiptólogo, autor de diversas obras sobre egiptologia;
coordenador de estudos na École Pratique des Hautes Études.
Capítulo 4 A. H. Zayed (Egito). Especialista em egiptologia e história antiga;
autor de vários livros e artigos sobre o antigo Egito.
Capítulo 5 R. El Nadury (Egito). Especialista em história antiga; autor de várias
obras e artigos sobre a história do Magreb e do Egito; professor de
história antiga e vice -presidente da Faculdade de Artes da Universi-
dade de Alexandria.
Capítulo 6 H. Riad (Egito). Historiador e arqueólogo; autor de inúmeras obras
sobre as épocas faraônica e greco -romana; conservador -chefe do museu
do Cairo.
Capítulo 7 S. Donadoni (Itália). Especialista em história do antigo Egito; autor
de várias obras sobre a história da cultura; professor na Universidade
de Roma.
Dados biográcos dos autores
do volume II
868
África Antiga
Capítulo 8 S. Adam (Egito). Especialista em hisria e arqueologia epcias; autor de
várias publicações sobre o antigo Egito; diretor do Centro de Documentação
e de Estudos sobre a Civilização do antigo Egito no Cairo.
Capítulo 9 N. M. Sherif (Sudão). Arqueólogo; autor de várias obras sobre a
arqueologia do Sudão; diretor do Museu Nacional de Cartum.
Capítulo 10 J. Leclant (França). Egiptólogo; autor de várias obras sobre o antigo
Egito; professor na Sorbonne; membro da Académie des Inscriptions et
Belles Lettres.
Capítulo 11 A. A. Hakem (Sudão). Especialista em história antiga; autor de várias
obras sobre o Sudão antigo; diretor do Departamento de História da
Universidade de Cartum.
Capítulo 12 K. Michalowski (Polônia). Especialista em arqueologia mediterrânica;
autor de numerosas publicações sobre a arte do antigo Egito; professor
de arqueologia; vice -diretor do Museu Nacional de Varsóvia.
Capítulo 13 H. De Contenson (França). Especialista em história da África; autor de
obras sobre a arqueologia da Etiópia e sobre a Núbia cristã; pesquisador
do Centre National de Recherche Scientifique.
Capítulo 14 F. Anfray (França). Arqueólogo; autor de vários artigos sobre as pesqui-
sas arqueológicas na Etiópia; chefe da Missão Arqueológica Francesa
na Etiópia.
Capítulo 15 Y. M. Kobishanov (URSS). Historiador; autor de vários artigos sobre
antropologia da África; membro da Academia de Ciências da URSS.
Capítulo 16 Tekle Tsadik Mekouria (Etiópia). Historiador; escritor; especialista em
história política, econômica e social da Etiópia das origens ao século
XX; aposentado.
Capítulo 17 J. Desanges (França). Especialista em história antiga da África; autor
de várias obras e artigos sobre a África antiga; conferencista na
Universidade de Nantes.
Capítulo 18 H. Warmington (Reino Unido). Especialista em história da antiguidade
romana; autor de várias obras sobre a África do Norte, conferencista
em história antiga.
Capítulo 19 A. Majhoubi (Tusia). Especialista em hisria antiga da África
do Norte; obras e artigos sobre a arqueologia da Tunísia; professor-
-assistente na Universidade de Túnis.
P. Salama (Argélia). Arqueólogo; especialista na história das instituições
antigas do Magreb; professor na Universidade de Argel.
Capítulo 20 P. Salama (Argélia).
869
Dados biográcos dos autores do volume II
Capítulo 21 M. Posnansky (Reino Unido). Historiador e arqueólogo; autor de
importantes obras sobre a história arqueológica da África oriental.
Capítulo 22 A. Sheriff (Tanzânia). Especialista na história do tráfico de escravos
na costa oriental da África; conferencista na Universidade de
Dar -es - Salaam.
Capítulo 23 J. E. G. Sutton (Reino Unido). Especialista em Pré -História; autor
de várias obras e artigos sobre a história da África; ex -presidente do
departamento de arqueologia da Universidade de Oxford.
Capítulo 24 B. Wai -Andah (Nigéria). Arqueólogo; autor de obras sobre a arqueologia
da África ocidental; conferencista na Universidade de Ibadã.
Capítulo 25 F. Van Noten (Bélgica). Especialista em pré -história e arqueologia;
autor de várias obras e publicações sobre a pré -história da África cen-
tral; Conservador do Real Museu de Pré -história e Arqueologia.
Capítulo 26 J. E. Parkington (Reino Unido). Arqueólogo; autor de trabalhos sobre
a pré -história da África meridional; professor de arqueologia.
Capítulo 27 D. W. Phillipson (Reino Unido). Arqueólogo; autor de obras sobre a
arqueologia da África oriental e meridional.
Capítulo 28 P. Vérin (Fraa). Historiador e arqulogo; autor de inúmeras
publicões sobre Madagáscar e as civilizões do oceano Índico;
pesquisador em Madagáscar.
Capítulo 29 M. Posnansky (Reino Unido).
Conclusão G. Mokhtar (Egito).
871
Abreviações e listas de periódicos
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AA — American Anthropologist. Washington DC.
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de Arqueologia Christiana. Barcelona, 1972.
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la Fondation SCOA pour la Recherche Scientifique en Afrique Noire (Projet Boucle
du Niger). Bamako, 27 jan. -1
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Coll. Intern. Archéol. Afr. Actes du 1
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Actes VIII
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Coll. Intern. Hist. Marit. Actes du VIII
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d’Histoire Maritime. Beyrouth, 1966, publ. em 1970, Paris, SEVPEN.
Abreviações e
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872
África Antiga
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Africanistes de l’Ouest. Dakar, 1945.
Actes II
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Conf. Intern. Afr. Ouest. Actes de la II
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Conférence Internationale des
Africanistes de l’Ouest. Bissau, 1947.
Actes XIV
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Congr. Intern. Ét. Byz. — Actes du XIV
e
Congrès International d’Études
Byzantines. Bucarest, 1971.
Actes II
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Quaternary Study. Lusaka, 1955.
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Congr. PPEQ Actes du IV
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Congrès Panafricain de Prehistoire et de
l’Étude du Quaternaire. Léopoldville, 1959, AMRAC, n. 40.
Actes VI
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Congr. PPEQ Actes du VI
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Congrès Panafricain de Préhistoire et de
l’Étude du Quaternaire. Dakar, 1967, Chambéry, Impr. Réunies.
Actes VII
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Congr. PPEQ Actes du VII
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l’Étude du Quaternaire. Addis -Abeba, 1971.
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d’Archéologie.
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BO Bibliotheca Orientalis. Leiden, Nederlands Instituut voor Het -Nabije Oosten
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África Antiga
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BS Bulletin Scientifique. Minisre de la France dOutre -Mer, Direction de
l’Agriculture.
BSAC Bulletin de la Société d’Archéologie Classique.
BSA Copte Bulletin de la Société d’Archéologie Copte. Le Caire.
BSFE — Bulletin de la Société Française d’Egyptologie. Paris.
BSHNAN — Bulletin de la Société d’Histoire Naturelle de l’Afrique du Nord.
BSNAF — Bulletin de la Société Nationale des Antiquaires de France. Paris.
BSNG — Bulletin de la Société Neuchâteloise de Géographie. Neuchâtel.
BSPF Bulletin de la Société Préhistorique Française, Études et travaux. Paris.
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BSRAA — Bulletin de la Société Royale d’Archéologie d’Alexandrie.
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Byzantinoslavica Byzantinoslavica. Prague.
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CAMP Études et travaux du Centre d’Archéologie Méditerranéenne de l’Académie
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CSA — Cahiers d’Études Africaines. Paris.
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Cimbebasia — Cimbebasia State Museum, Windhoek.
CHE Cahiers d’Histoire Egyptienne. Le Caire.
CM — Civilisation Malgache. Antanana/Paris.
CQ — Classical Quarterly. London.
CRAI Compte -Rendu des Séances de l’Académie des Inscriptions et Belles Lettres,
Paris.
CRGLCS Compte -Rendu des Séances du Groupe Linguistique d’Études Cha mito-
-Sémitiques. École Pratique des Hautes Études, Paris.
CRSB Compte -Rendu Sommaire des Séances de la Société de Biogéographie. Paris.
CSA — Cahiers de la Société Asiatique, Paris.
CSSH Comparative Studies in Society and History. Oxford, Cambridge Univ. Press.
CTL Current Trends in Linguistics. The Hague.
DAE Deutsche Aksum Expedition, Berlin.
EAGR East African Geographical Review. Kampala.
EEFEM — Egypt Exploration Fund Excavation Memoirs. London.
EHR The Economic History Review. Welwyn Garden City, Broadwater Press,
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875
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FHP Fort Hare Papers.
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GJ — The Geographical Journal. London.
GNQ — Ghana Notes and Queries. Legon.
HAS — Harvard African Studies. Cambridge, Mass., Harvard Univ. Press.
HBZAK Hamburger Beitrager zur Africa -Kunde. Deutsches Institut r Africa
Forschung, Hamburg.
Hesperis Hesperis. Institut des Hautes Études Marocaines, Rabat.
Homo — Homo. Université de Toulouse.
HZ — Historische Zeitschrift. Munich.
IJAHS The International Journal of African Historical Studies. New York (antigo
AHS).
JA — Journal Asiatique. Paris.
JAH — Journal of African History. Cambridge/London.
JAOS Journal of the American Oriental Society. New Haven.
JARCE Journal of the American Research Center in Egypt. Boston, mais tarde
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JASA — Journal of African Science Association. Paris.
JCH — Journal of Classical History. London.
JEA — The Journal of Egyptian Archaeology. London.
JGS — Journal of Glass Studies. Corning, NY.
JHSN — Journal of the Historical Society of Nigeria. Ibadan.
JRAI Journal of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland.
London.
JRAS — Journal of the Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland. London.
JRS — Journal of Roman Studies. London.
JS — Le Journal des Savants. Paris.
JSA — Journal de la Societé des Africanistes. Paris.
JSAIMM Journal of the South African Institute of Mining and Metallurgy.
Johannesburg.
JTG Journal of Tropical Geography. Singapore.
Kartbago Khartago. Revue d Archéologie Africaine, Tunis.
Kush — Kush. Journal of the Sudan Antiquities Services, Khartoum.
LAAA — Liverpool Annals of Archaeology and Anthropology. Liverpool.
Lammergeyer — Lammergeyer. Journal of the National Parks Game and Fish Preser-
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Latomus — Latomus. Bruxelas.
Libyca — Libyca. Bulletin du Service des Antiquités d Algérie, Direction de l’Intérieur
et des Beaux -Arts. Alger.
876
África Antiga
MADP — Malawi Antiquities Department Publications. Zomba.
MAGW Mitteilungen der Anthropologischen Gesellschaft in Wien.
MAI Mitteilungen des Deutschen Archäologischen Instituts. Wiesbaden,
Harvasowitz.
Man — Man. New York.
MCRAPE Mémoires du Centre de Recherches Anthropologiques, Préhistoriques
et Ethnographiques. Alger.
MEJ — Middle East Journal. Washington, D.C.
MIOD Mitteilungen des Instituts für Orientforschung Deutsche Akademie der
Wissenschaften zu Berlin.
MN — Meroitic Newsletter.
Le Muséon Le Muséon. Revue d’Études Orientales. Louvain.
NA — Notes Africaines. Bulletin d’informations de l’IFAN, Dakar.
NADA Native Affairs Department Annual (Rhodesia). Salisbury, Government
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NAS — Nigerian Archaeology Seminar. Ju\. 3 -5, 1974. Nature - Nature. London.
NKJ Nederlands Kunsthistorisch Jaarboek. Bussum, Van Dishoek.
Numismatic Chronicle Numismatic Chronicle. Numismatic Society, London.
OA Opuscula Atheniensia. Lund.
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RE — Revue d’Egyptologie. Paris, Klincksieck.
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REL — Revue des Études Latines. Paris.
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Abreviações e listas de periódicos
RESEE Revue des Études du Sud -Est Européen. Académie de la République Popu-
laire Roumaine, Institut d’Études du Sud -Est Européen, Bucarest.
RFHOM — Revue Française d’Histoire d’Outre -Mer. Paris.
RH — Revue Historique. Paris.
Rhodesiana — Rhodesiana. Publication of the Rhodesiana Society, Salisbury.
RHR — Revue de l’Histoire des Religions. Annales du Musée Guimet, Paris, Leroux.
ROMM — Revue de l’Occident Musulman et de la Méditerranée. Aix -en -Provence.
RRAL — Rendiconti della Reale Accademia dei Lincei. Roma.
RSE — Rassegna di Studi Etiopici. Roma, Istituto per l’Oriente.
RSO Rivista degli Studi Orientali publicata a cura dei professiori della Scuola
Orientale della Università di Roma, Roma.
RUB — Revue de l’Université de Bruxelles.
SA — Scientific American. New York.
SAAAS — South African Association for the Advancement of Science. Johannes burg.
SAAB — South African Archaeological Bulletin. Cape Town.
Le Saharien Le Saharien. Revue d’action touristique, culturelle, économique et
sportive, Paris, Association de la Rabla et des Amis du Sahara.
SAAJ — South African Archaeological Journal.
SAJS — South African Journal of Science, Johannesburg.
SAK — Studien zur Altãgyptischen Kultur. Hamburg, H. Buske Verlag.
SAs — Société Asiatique. Paris.
SASAE — Supplément aux Annales du Service des Antiquités d’Egypte. Le Caire.
Sc. South Africa Science South Africa.
SJA — Southwestern Journal of Anthropology. Albuquerque, New Mexico.
SLS — Society for Libyan Studies.
SM — Studi Magrebini. Napoli, Istituto Universario Orientale.
SNR — Sudan Notes and Records. Khartoum.
Syria Syria. Revue d’Art Oriental et d’Archéologie, Paris.
TJH Transafrican Journal of History.
TNR Tanganyika (Tanzania) Notes and Records. Dar -es -Salaam.
TRSSA — Transactions of the Royal Society of South Africa.
Trav. IRS Travaux de l’Institut de Recherches Sahariennes. Alger, Université d’Alger.
Trav. RCP — Travaux de la Recherche Coordonée sur Programme. Paris, CNRS.
Ufahamu — Ufahamu. Journal of the African Activist Association, Los Angeles.
UJ — Uganda Journal. Kampala.
WA World Archaeology. London.
WAAN West African Archaeological Newsletter. Ibadan.
WAJA West African Journal of Archaeology. Ibadan.
WZKM — Wiener Zeitschrift für die Kunde des Morgenlandes. Viena.
ZAS Zeitschrift für Agyptische Sprache und Altertumskunde. Osnabrück, Zeller.
ZDMG — Zeitschrift der Deutschen Morgenländischen Gesellschaft. Leipzig
878
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Zephyrus Zephyrus. Crónica dei Seminario de Arqueología. Salamanca.
ZK Zeitschrift für Kirchengeschichte, Gotha.
ZMJ — Zambia Museum Journal. Lusuka.
ZMP — Zambia Museum Papers, Lusuka.
ZZSK — Zbornik Zastite Spomenika Kulture.
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chameau”. BSNG, n. 51: 3 -133 (20).
África austral (África me-
ridional, África do sul)
- 596, 661, 715-6, 718,
720-1, 723-5, 730-1,
736, 738-9, 740, 747-8,
808.
África central - 213, 218,
219, 226, 228, 232,
292, 631, 634, 636,
645, 686, 691-4, 696,
708, 710-2, 812, 817,
819, 859-60.
África do norte (África
setentrional) - 177,
183, 187, 445, 452,
454, 456, 465, 475-6,
478, 484-5, 487, 497,
501-2, 506, 509, 514,
521, 541, 547-8, 550-1,
556, 560, 576-7, 582,
598, 602, 606, 804,
823, 858, 861-2.
África equatorial - 228, 633.
África ocidental - 12, 215,
481, 562-3, 586, 588,
590-2, 594-6, 600-4,
657-9, 661, 665-6, 671,
673, 675-7, 680, 682-3,
687-90, 805, 809-10,
812, 817, 819, 824,
826, 842.
África oriental - 164, 396,
413, 464, 588, 590,
595, 598, 601, 608-9,
611-7, 619, 621-6,
627-8, 632-41, 643-5,
647-50, 652-4, 673,
677, 740-1, 757, 759,
778, 798, 806, 810,
813-6, 819, 825, 834.
África subsaariana - 316,
454, 585-8, 593-4, 596,
688, 803, 805, 808,
810-4, 819, 824, 862.
África do Sul - 595, 601,
628, 630, 646, 693,
749, 765, 768, 771.
África tropical - 405, 576,
584, 598, 601-2, 814,
862.
Agricultura - 78, 120, 165,
189, 203, 221, 213,
283, 310-4, 352, 385,
395, 400-1, 417, 456,
464-6, 474, 489, 497,
499, 516, 522, 526,
536-7, 549, 589, 592-6,
632, 636-8, 640-1, 654,
657-8, 666-8, 675-6,
686-7, 693-4, 697, 704,
706, 709, 726, 736,
740, 748, 750, 755,
765, 786, 806, 811,
813, 817, 819-20.
Antigo Império (Egito) -
46, 48, 50-3, 72, 74-5,
Índice remissivo
940
África Antiga
77, 79, 81, 102, 105-6,
110-1, 121, 123, 131,
135, 137-8, 161, 224,
238, 241, 252, 845-6,
858-60.
Antiguidade - 10, 12, 17,
34,97-8, 104, 119, 130,
138-8, 141, 152, 156,
171, 174, 208, 240,
302, 314, 339, 379,
387, 391, 411, 418,
451, 456, 463, 475,
483, 495, 561, 567-8,
602, 643, 653, 781,
861.
Antropologia - 2, 5, 11,
638, 708, 773-4, 823,
825, 827, 830, 841,
843-4, 849.
Arábia - 111, 115, 162,
164, 177, 212, 324,
354359-60, 362-3,
366, 371-2, 374-5, 392,
394, 399, 400-1, 403-6,
408-11, 413, 417-8,
420, 423, 425-7, 435,
438-9, 441, 443-4, 583,
597, 613, 616-9, 621,
624, 783, 860-1.
Arianismo - 209, 431, 549,
551.
Arqueologia - 26, 97, 101,
103, 166, 218, 227,
233, 245, 313, 376-7,
379, 384, 396-7, 426,
466, 470-3, 476, 496,
536, 558, 561, 571,
576, 580, , 612, 627,
707-8, 710, 718, 742,
756, 771, 803, 810,
819, 844, 863.
Arquitetura - 29, 34, 127,
143-4, 147, 150, 154,
181, 269, 326-7, 331,
341, 367, 370, 380,
386, 395, 415-7, 423,
470, 489, 538, 542,
554, 573, 770, 858.
Arte - 21, 42, 58, 60, 69,
72, 86, 95, 119, 121,
127, 152, 154, 157,-8,
164, 180, 186, 210,
229, 236, 278, 288,
320, 334, 341, 344,
346, 359, 367, 374,
401, 415, 417, 489,
538, 541-2, 560, 573-4,
595, 604-5, 646, 680,
728, 730, 762, 858.
Artesanato - 123, 236,
259, 317, 320-2, 374,
409, 423, 690.
Ásia - 10, 72, 74, 84, 86,
93, 104, 111, 113, 120,
127, 130, 138, 161-2,
177, 215, 264, 275,
413, 459, 475, 588,
594-5, 598, 600, 617,
645, 673, 778-9, 789,
843.
Ásia Menor - 119, 174-6,
231, 359, 456.
Atos dos Apóstolos - 289,
427.
Bíblia - 26, 108, 206, 276,
395, 445-7, 474.
Biblioteca de Alexandria
- 174.
Caça - 74, 101, 221, 392,
406, 411, 444, 456,
467, 576, 593, 628-43,
652, 666, 671, 697,
706-9, 716-22, 726,
736, 756, 769, 806,
811-5, 820.
Calcolítico - 37, 123.
Calendário - 142, 178,
711, 785, 839, 858.
Camelo - 75, 311, 342,
385, 485, 504, 532,
558, 568, 574, 580,
582-4, 606.
Candaces - 304, 309, 320.
Canto - 95, 427, 447-50.
Caravanas - 198, 223, 242,
279, 283, 290, 318-9,
322, 324, 336, 342,
411-2, 504, 531-2, 577.
Cartas de Tell el -Amarna
- 58.
Cerâmica - 37, 106, 118,
120, 126, 186, 221-2,
227-8, 235-6, 245, 259,
290, 320-2, 334, 339,
346, 349, 351, 364,
370, 374, 377, 381,
389-91, 395, 409, 453-
4, 460-6, 482, 527-8,
549, 586, 593, 600-1,
633-8, 660-2, 665-6,
670-5, 677-87, 693,
696-7, 699, 700-10,
725-6, 736,44, 749, 64,
768071, 789-90, 814,
820, 861.
Circunavegação - 115,
481, 563, 602.
Circuncisão - 12-3, 26-7,
34, 427, 636, 639-41,
651, 782-3, 836, 862.
Clima - 2, 18, 43, 53, 72,
172, 223, 226-7, 312,
429, 456-7, 584, 634-
941
Índice remissivo
5, 644, 659, 826, 838,
861.
Coleta - 72, 120, 456, 593,
630-3, 637, 644, 658,
661, 666, 671, 677,
708, 717, 719, 726,
732, 736, 741, 800,
813, 820.
Colonização - 451, 477-8,
485, 514-6, 524, 562-3,
640-5, 648, 789, 792,
797, 841.
Comércio - 47-8, 66, 76,
104, 112-3, 156, 163-4,
168-9, 193, 198, 212,
230, 238, 241, 283,309,
317, 320-2, 324, 336,
340-2, 346, 374, 377,
385, 396, 401, 405,
409-14, 441, 475-91,
495-7, 523, 526-3,
549-51, 571-8, 597,
607, 604-26, 648, 671,
682, 689-90, 709, 755-
7, 767, 783, 790, 802-
6, 811-9.
Concílio de Calcedônia
- 209, 212, 446.
Conquistas - 46, 54, 56,
77, 84, 86, 397, 484,
496, 547.
Constituição Antoniniana
- 200, 206.
Constrão naval - 131, 162.
Cosmogonia - 34, 87, 862.
Cristianismo - 167, 176,
205-9, 290, 292, 294-5,
336, 339-41, 375, 392,
420, 425-41, 445-6, 510,
538-41, 573, 860-1.
Cro -magnoides - 41, 753.
Cronologia egípcia - 18,
22, 779.
Culto de Âmon - 88,93,
103, 278, 280, 281,
299, 321, 322, 438.
Culto de Âton - 91, 93, 270.
Culto de Hórus - 39, 836.
Culto de Ísis - 168, 187,
540.
Culto de Osíris - 53, 116.
Culto de Serápis - 166,
187.
Datações - 119, 391, 453,
476, 580, 643, 661-2,
671-4, 679, 688, 694-7,
700-4, 711, 736, 752,
755, 761-3, 768, 838.
Despotismo faraônico - 76.
Divindades faraônicas -
284, 326.
Dominação romana - 161,
191, 197, 492, 497-8,
500-1, 522, 538, 541,
547.
Ecologia - 113, 310, 660,
741, 848.
Economia - 69, 78, 86,
119-20, 163-5, 202,
212, 271, 311, 317,
322, 374, 385, 399,
522, 527, 551, 558,
586, 612, 617, 622-3,
626, 632, 636-8, 643,
683, 709, 715-6, 739,
749, 756, 764, 766,
771, 803, 813.
Escravismo - 78.
Escravos - 17, 21, 77-8,
163, 166, 171, 266,
309, 314, 325=6, 340,
396, 404-5, 412, 458-9,
467, 481, 485-6, 517,
523-6, 577, 605, 625-6,
689, 823.
Escribas - 46, 75, 78-9, 83,
94, 131, 140-1, 172,
193, 196, 246, 269,
284, 306, 309.
Escrita - 6, 21, 34, 46, 69,
75, 78, 91, 96, 99, 118,
120, 124, 130, 152,
156, 158, 175, 178,
209, 221, 235, 245,
285, 298, 306, 326,
349, 352, 355, 377,
389, 394-5, 411, 414,
421-3, 429, 448, 473,
500, 526, 569-70, 574,
584, 603, 608-9, 682,
715, 821, 851-8.
Escrita hieroglíca - 45,
93, 152, 158, 274, 827.
Escrita meroíta - 187, 285,
304, 306, 821, 851.
Estado - 39, 42, 53, 58,
65-6, 69, 76, 91-2, 161,
193, 196, 202-3, 205,
207, 210, 257, 278,
286, 309-10, 333, 338,
400-1, 403-5, 413-5,
428, 487, 489-90, 498,
528, 548, 584, 616,
621, 689, 817-9.
Estado faraônico - 69,
107.
Etnologia - 104, 773, 778.
Europa -5, 36-7, 96, 152,
156, 158, 176-7, 210,
215, 452, 474, 500,
942
África Antiga
548, 576-7, 580, 680,
688, 746, 858, 860.
Faraó - 8-10, 14, 18, 34, 39,
42-6, 48, 52-8, 62, 66,
75-8, 81-3, 86, 92-3,
101, 105, 107, 112-3,
115-7, 123, 126, 142,
150, 158, 164, 193, 223-
7, 229-32, 256, 266-72,
277-8, 460-2, 602, 794,
826-8, 839, 845.
Farol de Alexandria -
171-2.
Geograa - 161, 174-5,
566-7, 603, 608.
Greve - 78.
Grupo A - 106, 223-4,
227, 235-40, 243, 697,
825.
Grupo B - 238, 843.
Grupo C - 106-7, 227-8,
243-6, 250, 257, 460,
678, 825, 839, 843.
Grupo X - 232, 292-4,
316, 334, 346.
Grupos etários - 639, 641,
651.
Guerra púnica, primeira
480, 492.
Guerra púnica, segunda
- 494, 496, 514.
Habitat (sítio de habita-
ção) - 99, 101, 116,
226, 318, 588, 617,
665, 669, 674, 725,
741, 743.
Hereditariedade - 79, 82,
308, 533.
Homo sapiens - 452, 459,
833, 835, 877.
Idade do Bronze - 74, 474,
596, 787.
Idade do Ferro - 74, 317,
585-6, 588, 595, 600-2,
628, 631, 635-6, 638-
41, 645-9, 657, 669-70,
677-8, 681-4, 688-91,
694-9, 700-1, 707-15,
739, 748, 749-72, 787,
803-20.
Idade da Pedra - 351, 578,
585-8, 593, 596, 600,
611, 630-3, 652-3, 665,
668-9, 671-3, 677,
693-4, 696-7, 699, 710,
716, 725, 736, 739-41,
787, 809, 811, 816,
820.
Índia -98, 116, 162, 164,
166, 289, 392, 396,
405-6, 408-10, 413-4,
417, 420-2, 423, 428,
491, 598, 613, 615-6,
618-9, 624-5, 714, 741,
786-7, 789, 792-3, 796,
813, 858, 861.
Individualismo - 52, 96.
Irrigação - 38, 55, 69, 70,
78, 120, 143, 147, 189,
221, 223, 283, 312,
313, 325, 400, 456,
510, 655.
Islamismo - 440, 783, 860.
Línguas - 27, 33-5, 106,
171, 229, 233, 292,
421, 444, 500, 570,
584, 588-91, 595-6,
602, 627-8, 631, 638-9,
645, 649-52, 691, 707,
711, 714, 740, 774,
785-6, 793, 796-8, 800,
829-32, 847, 850-6,
862.
Linguística - 27, 33, 35,
38, 104, 113, 118, 516,
588-91, 595, 601, 628,
638, 641, 647,649-50,
707, 711, 748, 752,
771, -4, 782, 814, 829-
30, 837, 846-7, 850-55,
862.
Listas de títulos - 79, 83.
Literatura - 21-2, 38, 42,
95, 123, 130, 152, 145,
186, 197, 210, 415,
427, 444-5, 450, 473,
541-2, 563, 568, 571,
728, 744, 858.
“Livro das Grandes Por-
tas” - 46.
“Livro do Que Está no
Inferno” - 46.
“Livro dos Mortos” - 8,
45, 46, 96,187, 447.
Livro dos Salmos - 447.
Maât - 89, 91, 93-5, 101.
Magia - 88, 91-2, 96, 118,
138.
Matemática - 123, 135,
139-43, 175, 858.
Matriarcado - 285.
Medicina - 46, 123, 135,
138-9, 142, 176, 488,
811, 858.
Médio Império (Egito)
- 37, 45, 48, 53, 69, 72,
82, 105, 107, 121, 126,
139, 141, 152, 154,
225, 230, 246-52, 256-
7, 263, 460-1, 858.
943
Índice remissivo
Metalurgia, difusão da -
635, 653.
Metalurgia do cobre - 124,
580, 600, 767.
Metalurgia do ferro -
316-7, 580, 591, 593,
596-8, 600-1, 647, 677,
679, 688, 697, 711,
754, 766.
Metalurgia do ouro - 124,
225, 374.
Migrações - 16, 104, 227,
583, 592, 607, 634,
711, 745, 778, 782,
786, 787, 794, 796,
798, 802, 824, 829,
837-41, 850.
Mitos - 86, 89, 91, 175.
Mito de Hórus - 140.
Mitologia faraônica - 86.
Mobiliário funerário - 43,
573, 704, 706, 710.
Moeda - 164, 171,
203, 289, 371, 375,
377,385, 392, 394,
405-12, 415, 418, 421,
429, 432, 445-6, 480-
1, 484, 493-5, 529,
565, 570, 576-7, 582,
609-11, 617, 619, 623,
625, 702, 709-10, 790,
819.
Monosismo - 209, 340,
435.
Mulheres - 3, 13, 81-2, 93,
95, 126, 166-7, 210,
259, 303, 320, 322,
326, 342, 359-60, 362,
370, 445, 448, 469-70,
570, 618, 706, 717,
720, 727-8, 733-5, 745,
766, 811, 864.
Mumicação - 96, 135-7,
154, 254, 826.
Museu de Alexandria -
172, 174, 180.
Naos - 355, 360-1, 365,
370.
Navegação uvial - 133.
Navegação marítima
- 133.
Negroide - 1-4, 9, 11, 13,
36, 277, 360, 452-3,
458, 471, 628, 749,
761, 774, 776, 781,
793, 826, 829, 834,
841-2, 844.
Neolítico - 37, 42, 98, 101,
105, 120-1, 123, 126,
218, 221, 223, 236,
453-4, 458, 464, 473,
569, 585-6, 605, 657,
660, 661, 665, 672-8,
684, 686, 690, 693-6,
710, 757, 762, 764,
786, 807, 823, 825,
829, 832, 834-5, 837-8,
841.
Neolítico da Guiné - 674.
Nomadismo - 532, 570,
584, 602.
Nomos - 38-9, 51, 83-4,
92, 164, 193, 195-6,
203.
Novo Império (Egito) -
45-6, 51, 56, 58, 65, 70,
74, 77, 79, 81-3, 86-7,
91-3, 108, 110, 127,
150, 157, 225, 231-2,
256, 259, 268-73, 280,
298, 460-3,825, 830,
858.
Organização militar - 84,
508.
Organização política - 81,
221, 297, 366.
Oriente Médio - 445, 600,
613, 615, 659, 790.
Oriente Próximo - 54-5,
74, 113, 138, 156, 158,
215, 231, 275, 360,
475, 500, 582, 661-2,
688, 837.
Paleolítico - 2, 36, 665,
713, 807, 823, 826,
828-9, 833-5, 837-8.
Papiro - 45-6, 48, 51-2,
70, 72, 75, 94, 111, 127,
130, 137-44, 152, 164,
178, 180, 193, 198,
202, 206, 212, 241,
246, 250, 341, 462.
Papiro de Berlim - 138.
Papiro Carlsberg - 142.
Papiro Ebers - 138.
Papiro Edwin Smith -
138, 142.
Papiro de Moscou -
139,142.
Papiro Rhind - 141.
Papiro Smith - 137-8.
Papiro de Westcar - 48, 94.
Pedra de Palermo - 47-8,
240.
Peixe, tabu do - 636, 640,
651, 790.
Período Intermediário,
Primeiro (Egito) - 45,
50, 51, 81, 84, 95, 106-
7, 152, 243.
944
África Antiga
Período Intermediário,
Segundo (Egito) - 55,
79, 229-30, 254, 256-7,
269.
Período Intermediário,
Terceiro (Egito).
Périplo de Hanão - 115,
563, 566.
Périplo do Mar da Eritreia
- 352, 376, 399, 414,
608-22, 696.
Pirâmides - 45, 47-8, 75,
81, 84, 107, 131, 142-
4, 147, 150, 159, 187,
226, 280, 283, 288,
290, 300, 304, 319-20,
325.
Pirâmide de Gisé - 144.
Pirâmide de Khufu
(Quéops) - 47.
Pirâmide em degraus - 29,
46, 143-4.
Povoamento - 37, 98,
309, 319, 376, 451-3,
510, 519, 521, 639,
644-5, 659-60, 675,
682, 715-6, 730,735,
746, 749, 754, 755,
757, 759-62, 764, 773,
779, 781, 783, 790,
792, 797-8, 800, 814,
821-48.
Povoamento do Egito,
origens do - 1, 833,
841, 858
Povos do Mar - 63, 65,
104, 459, 462-4, 839.
Pré -Dinástico - 3, 4, 8, 39,
99, 121, 123, 127, 224,
236, 823, 826, 833,
835-6, 838, 840, 857.
“Protestos do Camponês
Eloquente” - 52.
Protodinástico - 4, 123,
222, 823, 833, 838, 841.
Raça, noção de - 1-13, 16-
8, 21, 35-6, 452, 458,
571, 825-9, 833, 835,
841-4, 849.
Religião - 43, 52, 58, 60,
89, 93, 95-6, 123, 152,
156, 166, 186-7, 205-
10, 269, 320, 326, 331,
334, 336, 341, 365,
377, 388, 395, 417,
419, 420, 425-45, 488,
500, 509, 538, 540,
573, 715,783, 802, 818,
820, 861.
Rota dos oásis - 242, 257.
Rotas africanas - 101, 862.
Rotas saarianas - 577-8,
580.
Sacrifícios humanos - 259,
488.
Saqia - 278, 310, 312-3,
342.
Sementi - 84.
Sepulturas - 69, 124, 131,
228, 236, 238-40, 245,
256, 269, 283, 292,
300, 304, 306, 314,
316, 318, 322, 334,
379, 380, 387, 419,
478, 542, 636, 653,
682, 702,710, 810, 816,
850.
Sete maravilhas do mundo
- 47, 144, 171.
Shaduf (Shadouf) - 70,
312-3.
Simpósio do Cairo - 34,
99.
Templo de Âmon - 60,
263, 266, 280, 288,
300, 303, 313, 327.
Templo de Lúxor - 58, 63.
Templo dos Leões - 307,
320, 327-30.
Textos das Pirâmides - 38,
45, 226, 280.
Totemismo - 26, 27, 34,
862.
Tradição oral - 154, 426,
630, 669, 699, 752,
824.
Utensílios (instrumentos)
- 74, 124, 222, 235,
316, 351, 466, 527,
578, 586, 593, 596,
600, 630-1, 640, 644,
652, 658, 660, 662,
665-6, 669-73, 675,
677-9, 683-4, 686, 689,
693-4, 709, 716, 727,
754, 760, 790, 804,
807, 809-12, 820, 834.
Vizir - 54, 62, 83, 138,
142, 144, 268, 272, 305.
Wiltoniense - 630-1, 693,
716, 739.
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda
espécie ocultaram ao mundo a verdadeira história da
África. As sociedades africanas eram vistas como
sociedades que não podiam ter história. Apesar dos
importantes trabalhos realizados desde as primeiras
décadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius,
Maurice Delafosse e Arturo Labriola, um grande
número de estudiosos não africanos, presos a certos
postulados, afirmava que essas sociedades não podiam
ser objeto de um estudo científico, devido, sobretudo,
à ausência de fontes e de documentos escritos.
De fato, havia uma recusa a considerar o povo africano
como criador de culturas originais que floresceram e se
perpetuaram ao longo dos séculos por caminhos
próprios, as quais os historiadores, a menos que
abandonem certos preconceitos e renovem seus
métodos de abordagem, não podem apreender.
A situação evoluiu muito a partir do fim da Segunda
Guerra Mundial e, em particular, desde que os países
africanos, tendo conquistado sua independência,
começaram a participar ativamente da vida da
comunidade internacional e dos intercâmbios que ela
implica. Um número crescente de historiadores tem se
empenhado em abordar o estudo da África com maior
rigor, objetividade e imparcialidade, utilizando com
as devidas precauções fontes africanas originais.
No exercício de seu direito à iniciativa histórica,
os próprios africanos sentiram profundamente a
necessidade de restabelecer em bases sólidas a
historicidade de suas sociedades.
Os especialistas de vários países que trabalharam nesta
obra tiveram o cuidado de questionar as simplificações
excessivas provenientes de uma concepção linear e
restritiva da história universal e de restabelecer a
verdade dos fatos sempre que necessário e possível.
Esforçaram-se por resgatar os dados históricos que
melhor permitissem acompanhar a evolução dos
diferentes povos africanos em seus contextos
socioculturais específicos.
Esta Coleção traz à luz tanto a unidade histórica da
África quanto suas relações com os outros continentes,
sobretudo as Américas e o Caribe. Durante muito
tempo, as manifestações de criatividade dos descendentes
de africanos nas Américas foram isoladas por certos
historiadores num agregado heteróclito de africanismos.
Desnecessário dizer que tal não é a atitude dos autores
desta obra. Aqui, a resistência dos escravos deportados
para as Américas, a “clandestinidade” política e cultural,
a participação constante e maciça dos descendentes de
africanos nas primeiras lutas pela independência, assim
como nos movimentos de libertação nacional, são
entendidas em sua real significação: foram vigorosas
afirmações de identidade que contribuíram para forjar o
conceito universal de Humanidade.
Outro aspecto ressaltado nesta obra são as relações da
África com o sul da Ásia através do oceano Índico,
assim como as contribuições africanas a outras
civilizações por um processo de trocas mútuas.
Avaliando o atual estágio de nossos conhecimentos sobre
a África, propondo diferentes pontos de vista sobre as
culturas africanas e oferecendo uma nova leitura da história,
a História Geral da África tem a indiscutível vantagem
de mostrar tanto a luz quanto a sombra, sem dissimular as
divergências de opinião que existem entre os estudiosos.
Nesse contexto, é de suma importância a publicação
dos oito volumes da História Geral da África que ora se
apresenta em sua atual versão em português como fruto
da parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil,
a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade do Ministério da Educação do Brasil (Secad/
MEC) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
UNESCO HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA VOLUMES I-VIII
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