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a caução aceita permite aos contratantes do direito germânico agir um sobre o
outro, pois um possui algo do outro, e este, tendo sido proprietário da coisa,
pode tê-la encantado, e visto que, amiúde, o penhor cortado em dois era
guardado em metade por cada um dos dois contratantes. Mas a esta
explicação é possível superpor outra mais próxima. A sansão mágica pode
intervir, ela não é o único vínculo. A própria coisa, dada e empenhada no
penhor, é por sua virtude própria, um vínculo. Em primeiro lugar o penhor é
obrigatório. Em direito germânico, todo contrato, toda venda ou compra,
empréstimo ou depósito, compreende uma constituição de penhor; dá-se ao
outro contratante um objeto, em geral de pequeno preço; uma luva, uma
moeda (Treugeld), uma faca – entre nós, ainda alfinetes – que será devolvida
quando do pagamento da coisa entregue (...) a coisa assim transmitida está,
com efeito, inteiramente carregada de individualidade do doador. O fato de
ela estar nas mãos do donatário impele o contratante a executar o contrato, a
readquirir-se readquirindo a coisa. Assim, o nexum está nesta coisa, e não
tampouco apenas nas formas solenes do contrato, nas palavras, juramentos e
ritos trocados, mãos cerradas; (...) a caução não somente obriga e vincula,
mas também compromete a honra, a autoridade, o mana daquele que a
fornece. Este permanece numa posição inferior enquanto não tiver se
libertado de seu compromisso-aposta. (...) É o prêmio de um concurso e a
sansão de um desafio, ainda mais imediatamente que um meio de obrigar o
devedor. Enquanto o contrato não estiver terminado, ele é como o perdedor
da aposta, o segundo na corrida, e assim perde mais que participa, mais do
que aquilo que terá de pagar; sem contar que se expõe a perder o que recebeu
e que o proprietário reivindicará enquanto caução não tiver sido retirada. – O
outro aspecto demonstra o perigo que há em receber a caução . Pois não é
somente quem dá que se compromete, quem recebe também se obriga. Do
mesmo modo que os donatários das Ilhas Trobriand, ele desconfia da coisa
dada. (...) Todo ritual tem a forma do desafio e da desconfiança, exprimindo
um e outra (...) E eis aqui o terceiro fato. O perigo da coisa dada ou
transmitida recebida não se percebe em parte alguma melhor, certamente, do
que no antiquíssimo direito e nas antiquíssimas línguas germânicas. Isso
explica o sentido duplo da palavra gift no conjunto dessas línguas – dádiva,
de um lado, e veneno, do outro (MAUSS, 2003, p.290-291).
De acordo com este entendimento, a festa dos bois de Fonte Boa teria como
fundamento a idéia maussiana de “contrato de penhor”, onde o presente, no caso, o boi
enquanto objeto móvel do penhor, era colocado para brincar pelo seu dono nas ruas e terreiros
na época nas festas juninas em homenagem aos santos católicos, geralmente para pagamento
de alguma promessa. Sérgio Ivan Gil Braga (2002, p. 401) reconheceu nos bumbás da
Amazônia, incluíndo o bumba-meu-boi do Maranhão e outros bois juninos, a característica de
boi de promessa que dançaria nos dias correspondentes aos aniversários de São João, Santo
Antonio e São Marçal, sempre no final do mês de junho. Recorrendo à história dos bois
fonteboenses, viu-se que eles sempre se apresentaram no período junino, seu Dalmácio, seu
Dandã, seu Tinho e a família Oliveira “colocavam” os bois de terreiro como uma forma de
“obrigação” talvez como pagamento de promessa (pelo menos o primeiro foi por ocasião de
uma promessa, em relação aos demais não ficou claro na etnografia), mas em todo caso fica
configurada a “caução” ou “penhor” proposto por Mauss que mais tarde, com o boi de arena,
vai ganhar um novo significado.