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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
RENATA DE OLIVEIRA LARA
A AMIZADE NA ÉTICA A NICÔMACO
FORTALEZA-CEARÁ
2009
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RENATA DE OLIVEIRA LARA
A AMIZADE NA ÉTICA A NICÔMACO
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em
Filosofia da Universidade Estadual do Ceará para conclusão do
curso e obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Área de
concentração: Ética e Filosofia Social e Política. Orientador:
Profº. Dr. Jan Gerard Joseph Ter Reegen.
FORTALEZA-CEARÁ
2009
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L318a Lara, Renata de Oliveira
A amizade na Ética a Nicômaco/Renata de Oliveira Lara. –
Fortaleza, 2009.
90p.
Orientador: Profº. Dr. Jan Gerard Joseph Ter Reegen
Dissertação (Mestrado Acadêmico em Filosofia) - Universidade
Estadual do Ceará, Centro de Humanidades
1.Ética 2. Aristóteles 3. Amizade.
I. Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades.
CDD: 185
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RENATA DE OLIVEIRA LARA
A AMIZADE NA ÉTICA A NICÔMACO
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em
Filosofia da Universidade Estadual do Ceará para conclusão do
curso e obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Área de
concentração: Ética e Filosofia Social e Política. Orientador: Dr.
Jan Gerard Joseph Ter Reegen.
CONCEITO OBTIDO:_________
_________________, Fortaleza, 23 de Dezembro de 2009.
BANCA EXAMINADORA
Orientador: Profº. Dr. Jan Gerard Joseph Ter Reegen
Universidade Estadual do Ceará
__________________________________
1º leitor: Profº. Dr. Expedito Passos
Universidade Estadual do Ceará
_________________________________
2º leitor: Profº. Dr. Francisco Evaristo Marcos
Faculdade Católica de Fortaleza
__________________________________
5
Aos amigos, em especial ao meu filho Cainã.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço, sobretudo, a Deus pela vida na qual foi possível esta realização.
Agradeço a família pela dedicação e incentivo a todos meus objetivos: especialmente meus
pais, minha irmã e meu filho.
Agradeço ao meu marido e amigo pelo longo tempo de convivência fazendo parte desta
experiência.
Agradeço ao meu orientador Drº. Jan Gerard Ter Reegen e demais professores do CMAF
pela aprendizagem, e a FUNCAP que subsidiou esta pesquisa.
Agradeço aos perseverantes companheiros de mestrado e todos que colaboraram de algum
modo para realizar esta dissertação.
7
Submetendo nossas conclusões à prova dos fatos da vida; se elas se
harmonizarem com os fatos devemos aceitá-las, mas se colidirem
com eles devemos imaginar que elas são meras teorias (EN, IX, 8,
1179a 27-29).
8
RESUMO
A presente dissertação tem como propósito a interpretação do conceito de amizade (philia)
desenvolvida por Aristóteles nos Livros VIII e IX da Ética a Nicômaco. O intuito na EN é
refletir sobre a finalidade da ciência ética e política que é a felicidade (eudaimonia), ou bem
supremo, identificada com a prática das virtudes. Segundo Aristóteles, na vida ninguém pode
ser feliz sem amizade. Sob o horizonte da relação ética, política e metafísica definimos o
homem no conceito aristotélico, destacando a concepção da alma (psyché). Realizamos
considerações sobre a teoria do ethos e o conceito de felicidade e virtude (areté). A
investigação procede tecendo a relação entre a amizade e as virtudes, as diferentes espécies
de amizade, em diversas fases da vida, com ênfase sobre as virtudes de justiça (dikaiosíne) e
prudência (phrônesis). Para concluir, explicitamos a concepção de amizade política que
Aristóteles expõe, abordando, em especial, o Livro IX da EN, constatando, por meio da
experiência cotidiana que desde a antiguidade a “arte de conviver” é uma inquietação
constante.
Palavras-chave: amizade; felicidade; virtude; ética; política.
9
ABSTRACT
This work aims to interpret the concept of friendship (philia) developed by Aristotle in the
Books VIII and IX of the Nicomachea Ethics. The intention of NE is to reflect on the purpose
of political and ethical science that is happiness (eudaimonia), or highest good, identified
through the virtues’ experience. According to Aristotle, in life, no one can be happy without
friendship. Considering the ethical, political and metaphysical relation we define man in the
aristotelic concept, highlighting the conception of the soul (psyche). Considerations were
made on the ethos theory and the concept of happiness and virtue (arete). The research
develops and builds the relation between the friendships and virtues, the different kinds of
friendship, in different stages of life, emphasizing the virtues of justice (dikaiosyne) and
prudence (phronesis). In conclusion, we clarify the conception of political friendship that
Aristotle states, approaching, specially, NE’s Book IX, verifying through daily experience that
since the antiquity the “art of living” is a constant unease.
Keywords: friendship; happiness; virtue; ethics; politics.
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO....................................................................................................................12
2. OS CAMINHOS QUE NOS CONDUZEM À FELICIDADE.............................................15
2.1 - A Ética a Nicômaco: Objeto e método.............................................................................15
2.2 - O homem no conceito de Aristóteles................................................................................21
2.3 - A alma humana.................................................................................................................23
2.4 - As virtudes nos conduzem à felicidade............................................................................28
3. A AMIZADE NA ÉTICA A NICÔMACO............................................................................39
3.1 - O contexto de origem da amizade como tema filosófico.................................................39
3. 2 - A amizade como virtude..................................................................................................41
3. 3 - A distinção entre amor, amizade e benevolência.............................................................45
3. 4 - Sobre as diferentes espécies de amizade.........................................................................46
3. 5 - A amizade e as virtudes de justiça e prudência...............................................................52
3. 5. 1 - A justiça.......................................................................................................................52
3. 5. 2 - Prudência.....................................................................................................................56
4. AMIZADE POLÍTICA: CONDIÇÃO SOCIAL DA PÓLIS................................................69
4. 1 - O caráter comunitário do bem.........................................................................................69
4. 2 - A relação entre amizade, justiça e felicidade...................................................................70
4. 3 - Convivência e concórdia..................................................................................................76
4. 4 - A formação do caráter por meio do hábito......................................................................77
5. CONCLUSÃO......................................................................................................................80
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................86
11
TÁBUA DE ABREVIAÇÕES
Lista das obras citadas de Aristóteles:
Cat. Categoria
DA De Anima
EE Ética a Eudêmo
EN Ética a Nicômaco
Fís. Física
MM Magna Moralia
Met. Metafísica
Pol. Política
Ret. Retórica
Top. Tópicos
Os algarismos romanos indicam o Livro, os arábicos os Capítulos e, como de praxe, a
combinação alfa-numérica de página, coluna, linha da edição Bekker.
12
1. INTRODUÇÃO
É notório que vivemos uma crise contemporânea das relações afetivas, sobretudo as de
caráter comunitário. Refletir sobre as relações sociais implica pensar e repensar as relações
éticas e políticas atualmente e no decorrer do processo histórico desde a antiguidade.
Verificamos no século XXI o legado de pensadores clássicos da antiga Grécia, como
Aristóteles que se empenhou com ampla atuação em diversas ramificações do conhecimento
humano, com rigor em sua metodologia, sendo por isso considerado o primeiro pesquisador
científico no sentido atual do termo.
Realizando essa incursão vemos que a cultura ocidental desde a sua origem é uma cultura
da razão (logos). Desde a antiga Grécia a ciência busca a racionalidade, tendo a razão como
paradigma dessa cultura logocêntrica que passou por uma revolução científica, fragmentando
o conhecimento, tomando a forma da ciência moderna, até atingir a forma da razão tecno-
científica atual. O homem submeteu a natureza a uma ordem e coerência do logos dando
origem a primeira ciência da natureza (phýsis) e logo após submeteu a transcreveu também o
ethos humano às exigências do logos, originando a ciência do ethos, que denominamos Ética,
reconhecendo-a como legitimadora da sociedade.
O ethos é inseparavelmente social e individual, pois é uma realidade sócio-histórica e
existe concretamente na práxis dos indivíduos, como conjunto de costumes de uma sociedade
com suas instituições e tradições que a caracterizam. Aristóteles, como criador da Ética como
ciência, reconhece a Ética como ciência do ethos. Compreendia na sua filosofia prática que
Ética e Política se articulam e ambas são relativas a tudo que concerne ao homem. Isso
implica que o homem realizar-se-ia como ser ético na pólis com seus costumes e tradições.
O indivíduo somente realizava a sua liberdade enquanto integrante dessa determinada
comunidade social, a pólis, pois só os cidadãos eram livres e não o homem enquanto tal.
O espírito da pólis pode ser compreendido como costumes próprios de uma determinada
comunidade, costumes que traduzimos como expressão de sentimento comunitário. Posto que
os costumes são sentimentos, há uma intensa relação com a sensibilidade implicando a
relação com o prazer. Sensibilidade estimulada por meio das sensações despertadas no
comportamento cotidiano mediante a educação em ações aprazíveis e que visam o bem.
13
Segundo Aristóteles, o ethos como temperamento resultante da natureza e da educação, é o
caráter moral e, de responsabilidade, por meio da repetição de bons atos, adquirindo-os a
princípio como hábitos.
A crise contemporânea que descrevemos nos instiga a refletir, pois quando nos
debruçamos sobre as relações sociais nos defrontamos com conflitos afetivos que antecedem
e permeiam as relações éticas e políticas. Seguindo essa inquietação abordamos o tema da
amizade como expressão dessa problemática. Ao lançarmos um olhar crítico ao conceito de
amizade como problema filosófico, observamos que houve uma exploração expressiva deste
tema na antiguidade com repercussão significativa entre os comentadores aristotélicos, mas
no decorrer do tempo declinou na pesquisa filosófica como conceito de destaque. A virtude,
a justiça e a prudência foram conceitos que obtiveram maior respaldo em produções
acadêmicas, considerando a ênfase destes conceitos na EN, assim como em todo o
pensamento de Aristóteles.
A pretensão investigativa é destacar a soberania da amizade neste tratado em relação às
outras virtudes, sobretudo da justiça e da prudência, como lei interior que constitui os laços
éticos e políticos. O propósito desta dissertação é expor a reflexão sobre a amizade (φιλία)
realizada por Aristóteles na Ética a Nicômaco, com base nos Livros VIII e IX. A EN pois o
conceito de amizade apresentado pelo estagirita, tem caráter peculiarmente humano,
seguindo a inquietação que deu sentido à Ética, questionando como convém viver, ou ainda,
como conviver em busca da harmonia em sociedade.
Com a intenção de compreender as relações em que se insere a amizade como problema
no contexto da pólis grega, estruturou-se a exposição do tema sob a orientação do método
discursivo argumentativo, assim como Aristóteles, conceituando a amizade como virtude e
condição da relação entre ética e política. A questão pressupõe a seguinte indagação: por que
a amizade é uma virtude necessária para todas as outras e condição da relação entre ética e
política? Para responder esta indagação é preciso compreender a relevância da amizade na
EM. Com tal pergunta ética sobre a finalidade humana, defrontando-nos com o conceito do
homem em Aristóteles. Para compreendermos o homem na concepção aristotélica é preciso
saber sobre a alma, conduzindo-nos, a saber, ao que é a felicidade. Para tanto, temos de
compreender também o conceito aristotélico de virtude. Este é o percurso de exploração
desta dissertação. Quanto ao método, assim como Aristóteles propôs à filosofia, a base desta
14
pesquisa é a experiência e a própria realidade. Posto isto, é relevante destacarmos que a tese
apresentada integra o sistema metafísico, mas tem a consolidação do tema no aspecto ético e
político.
Para uma reflexão sobre o tema dispomos os argumentos com base na seguinte estrutura:
o capítulo inicial “Os caminhos que nos conduzem à felicidade” realiza uma breve
apresentação da EN, destacando o caráter sistemático e científico da ética desenvolvido por
Aristóteles, e investigando o objeto e método da EN. Tem como finalidade pensar a relação
ética, metafísica e a teoria do ethos, em especial a relação homem, corpo e alma em conexão
com os conceitos de felicidade e virtude, que orientam esta exposição, pois possibilitam a
desenvolvermos caminhos que constituam liames como tema da amizade. A intenção
principal é destacar o princípio da ação humana, isto é, o princípio complexo no qual o
intelecto se une ao desejo no momento da decisão, produzindo o instante do ato virtuoso na
filosofia prática de Aristóteles.
O capítulo seguinte “A amizade na Ética a Nicômaco” trata propriamente dito do
conceito de amizade na EN. Inicia com uma exposição sucinta do contexto da amizade como
tema filosófico, situando a soberania deste conceito nesse tratado ético. Apresenta também o
princípio interpretativo desta dissertação que pensa o conceito de amizade como virtude e
condição da relação entre ética e política. Sob a orientação deste princípio, nos debruçamos
sobre o pensar aristotélico e descrevemos a distinção entre amor, amizade e benevolência, e
discorremos, em seguida, sobre as diferentes espécies de amizade. Para compreendermos
como Aristóteles dimensionou amplamente a concepção de amizade, o itinerário da pesquisa
segue demonstrando a relação da amizade com as virtudes de justiça e prudência: como se
encontram no momento de decisão do homem.
No capítulo final “Amizade política: condição social da pólis” explicitamos o conceito de
amizade política como condição social da pólis e os aspectos pertinentes ao tema: o caráter
comunitário do bem, a relação entre amizade, justiça e felicidade e a articulando ainda com
as categorias de convivência e concórdia. Valendo-se do conceito aristotélico de amizade e
da definição de amizade política, realizamos uma reflexão sobre a amizade e o ethos no
século XXI e como estes conceitos antigos são enriquecedores para o conhecimento da
sociedade contemporânea.
15
2. OS CAMINHOS QUE NOS CONDUZEM À FELICIDADE
“A Amizade na Ética a Nicômacoé impulsionada por uma inquietação Ética e Política
atual: quais os vínculos que relacionam os homens entre si e na comunidade? Situada na
filosofia primordial, encontramos a Amizade que, entre os gregos antigos, tem destaque como
elo social. Consideramos a relação com o outro
1
como categoria fundante da Ética, uma vez
que entre as relações fundamentais do ser humano é a relação com o outro a que mais
interessa à política e a ética, e podemos dizer que a amizade se encontra em sua raiz, com
base no conceito clássico de Amizade desenvolvido por Aristóteles.
Delimitamos a orientação investigativa situando a relevância fundamental da amizade na
EN. Este primeiro capítulo apresenta brevemente a EN, ressaltando a sistematização da Ética,
destacando o caráter científico desenvolvido por Aristóteles, e seguindo a investigação sobre
o objeto e método da EN. Este capítulo trata a relação entre ética, metafísica e a teoria do
ethos, e tem como base a relação entre a alma, virtude e felicidade
2
. Isto com a finalidade de
esclarecer a relação homem, corpo e alma em articulação aos conceitos de felicidade e
virtude, que norteiam esta exposição, para desenvolver caminhos que nos conduzam, como
pressupostos, ao tema central da amizade. A amizade é tecida por duas orientações: o logos e
a natureza (phýsis). O logos que se manifesta no ideal do bem e da virtude como fim da
1
SOARES, Marly Carvalho. Ética e Metafísica. A relação da intersubjetividade como categoria fundante.
Coleção Argentum Nostrum. Fortaleza: Ed.UECE, 2007, p.141-174. Segundo a autora a intersubjetividade
encerra todo ato e toda perfeição da vida social, pois se sobrepõe à relação de objetividade (relação com o
universo) e abre-se consciente ou inconsciente ao Outro absoluto (relação de transcendência). Ao longo da
história das idéias políticas todos os filósofos tentaram constituir e justificar a intersubjetividade como categoria
fundante para a vida social e política. A relação com o outro é um problema filosófico, como estrutura
constitutiva do homem e como estrutura básica da sociedade, sendo a relação com o outro a mediação entre o ser
humano e a sociedade. O termo intersubjetividade não era utilizado pelos antigos, mas reconhecemos a relação
com o outro, presente como problema já naquele contexto e, sobretudo, a conotação dedicada por Aristóteles em
atenção especial a esta relação da amizade com a alteridade, a relevância no partilhar com o amigo como
abertura ao outro em reconhecimento próprio e mútuo, isto é, de indivíduo para indivíduo e entre indivíduo-
sociedade. Daí reconhecermos que as pretensas teorias revolucionárias que se propõem aos problemas da
intersubjetividade, encontram no conceito de amizade aristotélico o aspecto ético e político próprio às relações
intersubjetivas.
2
Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. br. Mário Gama Kury, 3.ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2001, p.12-13. É importante considerarmos a questão das dificuldades de tradução da Ética a
Nicômaco, para encontrar equivalentes satisfatórios aos termos originais. Os termos em grego anima, areté e
eudaimonia são traduzidos como alma, virtude e felicidade, por falta de equivalentes melhores. É também
relevante que em alguns casos, ocorre um desgaste da palavra usada tradicionalmente no português e com o
decorrer do tempo o seu significado foi distorcido, tornou-se ambíguo, e seu uso poderia conduzir a uma leitura
equivocada. Como exemplo, temos a virtude, tratada pelo termo excelência na tradução utilizada nesta pesquisa
como fonte bibliográfica.
16
amizade e a natureza que se manifesta na disposição natural, na afetividade. O intento,
portanto, até então, não é pensar, em especial, a doutrina aristotélica complexa da decisão, na
qual ocupa espaço central a phronêsis (sabedoria prática), mas o princípio da ação humana,
isto é, exatamente aquele princípio complexo no qual o intelecto se une ao desejo no
momento da decisão, produzindo o que é o ato virtuoso, demonstrando a maneira como
Aristóteles compreende esses aspectos na racionalidade prática.
A hipótese apresentada neste capítulo, além de comprovar a adequação entre a concepção
da racionalidade prática e as linhas mais importantes da concepção aristotélica do homem, é
conforme a visão de que a filosofia das coisas humanas se compõe de maneira coerente com a
filosofia das coisas divinas para formar o sistema de Aristóteles
3
. A convicção segundo a qual
o conceito do homem em Aristóteles, deve ser buscado exteriormente, nos conduz da ética e
da política à metafísica. Essa pretensão pode ser traduzida com palavras de Aristóteles: “seria
absurdo pensar que a ciência política ou a sabedoria prática é a ciência suprema, posto que o
homem não é o que há de melhor no universo”(EN, VI, 7, 1141 a 22).
2.1 - A ÉTICA A NICÔMACO: OBJETO E MÉTODO
Na Ética a Nicômaco, Aristóteles, sob o método discursivo de argumentação lógica e
dedutiva, o silogismo prático, descreve um elenco de virtudes (ou excelência moral) e vícios
(ou deficiência moral), com o propósito de refletir sobre a finalidade da ciência ética e
política. Segundo Aristóteles, o objetivo da Ética é determinar o bem supremo para o homem
que é a felicidade, a qual é a finalidade da vida humana, e como vivenciar esta felicidade de
3
Cf. PERINE, Marcelo. Quatro Lições sobre a ética de Aristóteles. Ato a Potência. Implicações éticas de uma
doutrina metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2006, pp.66- 82. Cf. AUBENQUE, Pièrre. A Prudência em
Aristóteles. Trad.br. de Marisa Lopes, 2.ed. São Paulo: Discurso Editorial, Paulus, 2008, p.107. Vemos
especialmente no Cap.II em Cosmologia da prudência. Não é preciso para o nosso tema a densa discussão sobre
a compatibilidade dos dois esquemas aristotélicos de compreensão da ão humana, a saber, o esquema que
opera com a relação fim-meio, calcado na matriz da causalidade eficiente, e o esquema que opera com a relação
universal-particular, cuja matriz é a causalidade formal, de onde procede a doutrina do silogismo prático. São
orientações filosóficas inglesa e francesa respectivamente influenciadas por D.J.Allan (1952), e R. A. Gauthier e
J.Y.Jolif (1970). Gauthier-Jolif tem base na hipótese de W.Jaeger sobre a evolução do pensamento de
Aristóteles, e Aubenque confronta-se com o pensamento de Jaeger debruçando-se sobre essa discussão: algo que
situa a perspectiva que adotamos nesta abordagem, valendo-se do pressuposto, de que Aristóteles, na realidade,
compreende a ação humana pelo recurso aos dois esquemas, assim como interpretou Aubenque na conhecida
tese de monografia “A prudência em Aristóteles” publicada posteriormente.
17
maneira mais elevada (a contemplação). Determinados estes princípios, convém, a seguir
investigar como proporcionar ao homem este bem supremo e assegurar-lhe a contemplação,
função que compete à Política. Aristóteles distingue a Ética da Política, centrando a primeira
na ação voluntária e moral do indivíduo, e a Política centrada nos vínculos e relações do
indivíduo com a comunidade. Na Ética e na Política uma é condição para a outra e as duas
ciências têm como finalidade a felicidade. Daí serem políticas todas as relações humanas,
igualmente, a amizade, pois relaciona os indivíduos entre si e na comunidade.
A amizade pressupõe as demais virtudes e exerce caráter fundamental na EN. Conforme
Aristóteles, a ética ou moral trata do estudo da ação (πραξις) humana, como livre e pessoal,
com a finalidade de desenvolver e traçar normas para a conduta do homem na sua inclinação
ao bem. A Ética, como ciência, trata do uso que o homem deve fazer de sua liberdade para
atingir seu fim último, enfim, conhecer ou descrever os costumes visando dirigi-los e orientá-
los de acordo com os princípios éticos
4
.
A orientação gica da articulação entre conceitos filosóficos e desdobramentos em
categorias caracteriza a originalidade do pensamento ético aristotélico em relação à ética
platônica, pois é a definição do objeto e, conseqüentemente, o método
5
que convém seguir na
investigação desse objeto específico. O objeto da EN corresponde ao objeto da ciência ética e
política, determinado como o bem do homem.
4
Sobre a relevância de Aristóteles nas concepções éticas ocidentais, ver ABBAGNANO, Nicola. História da
Filosofia I. Edição, Lisboa: Editorial Presença, 1985, p.09; Idem. História da Filosofia III. Edição,
Editorial Presença, 1984, p.242, 243. A obra de Aristóteles foi submetida a um tortuoso percurso lingüístico e
cultural do qual foi objeto até atingir a Europa Cristã. Por intermédio dos árabes, a obra de Aristóteles foi
redescoberta pela filosofia ocidental. Já na primeira metade do século XII iniciaram-se as traduções latinas. A
ética aristotélica tornou-se uma das bases fundamentais do pensamento da civilização ocidental, e exerce
influência desde a Antiguidade, passando pela Idade Medieval, alcançando a atualidade. “Na metade do século
XII, Hermann o alemão, bispo de Astorga, traduziu o comentário médio de Averróis à Ética a Nicômaco e
depois à Retórica e a Poética.” (p.242) Durante o século XIII, a escolástica revelou um interesse profundo pela
doutrina de Aristóteles, acabando por descobrir a expressão mais perfeita da razão humana e logo, o melhor
caminho para alcançar a verdade revelada. Justamente pelo fato da obra de Aristóteles ser a expressão mais
perfeita da razão com plena autonomia e independência de qualquer pressuposto da fé; suscitou oposições e
desconfiança, e a primeira vista, pareceu inconciliável com o dogma católico. “O século XIII apresenta as
primeiras tentativas de aproximação do aristotelismo bem como reações contrárias virão mais tarde o equilíbrio
conseguido com a síntese tomista”. Como nenhum outro filósofo antes, Aristóteles compreendeu a necessidade
de integrar o pensamento filosófico anterior à sua pesquisa. Visa restabelecer a unidade do homem consigo e
com o mundo, assim como Platão que se baseia numa visão do cosmos, mas permitindo que a natureza esteja ao
alcance da ciência.
5
ROWE, Cristopher. O estilo da Aristóteles na Ética Nicomachea. Revista Analytica, volume 8, número 2,
2004, p. 3-29. Comenta o objeto e método de Aristóteles na EN.
18
Uma vez que a ciência política usa as ciências restantes e, mais ainda, legisla sobre
o que devemos fazer e sobre aquilo de que devemos abster-nos, a finalidade desta
ciência inclui necessariamente a finalidade das outras, e então esta finalidade deve
ser o bem do homem. Ainda que a finalidade seja a mesma para um homem
isoladamente e para uma cidade, a finalidade da cidade parece de qualquer modo
algo maior e mais completo, seja para atingirmos, seja para a perseguirmos; embora
seja desejável atingir a finalidade apenas para um único homem, é mais nobilitante
e mais divino atingi-la para uma nação ou para as cidades. Sendo este o objetivo de
nossa investigação, tal investigação é de certo modo o estudo da ciência política
6
.
Sob uma visão realista, com base nos fatos da vida, a ciência política investiga o bem
identificado com a felicidade. Todo saber científico difere de acordo com as diferenças de
objetos e, portanto, implica diferença do método para sua investigação
7
. O caráter científico
está na verificação das teorias nas ações práticas que devem seguir as leis estabelecidas pela
pólis. Aristóteles compreende que nas ciências práticas não tem lugar a demonstração
dedutiva ou por meio do silogismo científico, procedendo da causa ao efeito, ou do universal
ao particular. Nem mesmo a demonstração dialética apodítica pelo uso do princípio de não
6
EN, I, 2, 1094b 16-27
.
7
Aristóteles transpõe assim para o horizonte da phýsis o telos ou fim do ser e do agir do homem, que Platão
situara no horizonte do mundo ideal. A ascensão ao conhecimento (a contemplação) ocorre no mundo concreto
da pólis (mundo sensível) como vivência da felicidade, ao passo que na compreensão de Platão atingia-se a
contemplação no mundo inteligível. Aristóteles é tão metafísico quanto Platão, porém a sua metafísica não tem
pretensão de ter o monopólio da interpretação da realidade. Ver VAZ, Henrique C. Lima. Escritos de Filosofia
II, Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1988, p.97. Sobre a divisão dos saberes na Primeira academia e no
jovem Aristóteles, Lima Vaz indica BERTI, Enrico. As Razões de Aristóteles.[1989] Trad.br. Dion Davi
Macedo, o Paulo: Loyola, 1998. (Título original: Le Ragioni di Aristotele, Roma-Bari, Laterza)
Reconhecemos presente esse aspecto na conhecida divisão dos saberes que Aristóteles explica no capítulo
primeiro do livro VI (epsilon) da “Metafísica”. (VI, 1, 1025b, 1-1026a 33), entre os saberes teorético, prático e
poiético. Aristóteles adota uma concepção analógica do objeto da epistheme, ou da ciência, com a conseqüente
divisão das ciências e a determinação do método próprio de cada uma, como uma constelação de termos
analógicos, que constitui a estrutura fundamental da linguagem da ciência. Procedendo como próprio do saber
científico, aplicando ao inteligível no sensível, objeto próprio de nossa inteligência. A razão aristotélica não é,
por conseguinte, uma razão unívoca, mas uma razão pluridiferenciada, de modo a se poder falar das “razões” de
Aristóteles. A análise de Aristóteles sobre a linguagem mostra a polissemia de termos fundamentais como “ser”,
o “uno”, “verdadeiro”, “bom”, enfim termos que admitem sentidos variáveis e apresenta uma classificação das
ciências que podemos representar como um feixe cujos ramos estão vinculados sob analogia. Distingui-se as
ciências teoréticas, cuja finalidade é o próprio conhecimento; as ciências poiéticas, que ordenam o conhecimento
para a produção de um objeto qualquer, útil, tecnicamente elaborado; e as ciências práticas, que visam o agir
humano, este agir, cujo termo é o próprio agir ou “aperfeiçoamento do agente”. É neste terceiro tipo que se
encaixam a Ética e a Política no pensamento de Aristóteles. A ética tem em vista o agir individual, a política tem
em vista a pólis, a vida social, se complementando.
19
contradição no argumento de retorsão
8
. Posto que o objeto das ciências práticas está sujeito a
mudanças e variações pela intervenção da liberdade e, por outros inserido no horizonte da
experiência, a forma de demonstração ou de racionalidade que ao objeto convém, procede
pelo confronto das opiniões geralmente aceitas sobre tal objeto, tendo este objeto a opinião
que apresente maiores títulos de razoabilidade ou racionalidade. Aristóteles escreve:
As ações boas e justas que a ciência política investiga parecem muito variadas e
vagas, a ponto de poder considerar a sua existência apenas convencional e não
natural. [...] Os homens instruídos se caracterizam por buscar a precisão em cada
classe de coisas somente até onde a natureza do assunto permite, da mesma forma
que é insensato aceitar raciocínios apenas prováveis de um matemático e exigir de
um orador demonstrações rigorosas
9
.
A distinção entre práxis e poiesis é explicada por Aristóteles nos dois primeiros capítulos
do Livro I da EN. Após destacar a estrutura teleológica de toda técnica e de toda investigação
metódica, assim como de toda ação e de todo ato de escolha, estabelecendo a necessidade de
uma arquitetura dos saberes práticos que converge para a política, tanto no aspecto amplo,
como igualmente a Ética e Política propriamente dita, no sentido estrito, regidas pela pólis. De
maneira geral, o termo (ἐθος)
10
se identifica com realidade da convivência humana, marcada
pelos valores e costumes. Segundo Aristóteles, o ethos significa, porém, o temperamento
resultante da natureza e da educação, mas também o caráter moral e responsabilidade por
meio da repetição de bons atos, adquirindo-os a princípio como hábitos. Compreendendo a
8
Cf. VAZ. Henrique. C. Lima. Escritos de Filosofia IV, Introdução à Ética Filosófica I. São Paulo: Loyola,
1999, p.115. Segundo Lima Vaz, a Ética e Política visam “objetos que sofrem variação em seu apresentar-se à
experiência”.
9
EN, I, 3, 1095a 3-17.
10
VERGNIÈRES, Solange. Ética e Política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. Trad. br. Constança
Marcondes sar. Edição, São Paulo, Ed.Paulus, 2003, p.5e 6. Solange Vergniéres relata que o termo ethos
não foi inventado por Aristóteles, este ao contrário, o recolhe a partir de uma longa tradição e lhe oferece ainda,
em numerosos textos, os diversos sentidos desta tradição, a saber, as três grandes heranças: a aristocrática, a
prática da democracia ateniense é constituída pelos ensinamentos de Sócrates e de Platão que, vivendo em
contexto de crise, buscam um princípio universal que palie as insuficiências do costume e dos consensos
temporários.
20
Ética como ciência, o objeto de reflexão não visa diretamente o ethos, mas o processo de
conhecimento do ethos, isto é, a Ética, ciência do ethos
11
.
Destacamos alguns pontos fundamentais para compreendermos a posição de Aristóteles
sobre a Ciência ou Filosofia do ethos que como vimos, se constitui em nova forma de
conhecimento, diante aos saberes populares religiosos arcaicos. É de extrema importância à
afirmação categórica de que nesses temas não se podem realizar conclusões com clareza e
precisão iguais às de conclusões matemáticas, e da filosofia primeira ou metafísica. Os
primeiros obedecem à necessidade do inteligível e são objeto de uma ciência rigorosa, quer
seja de caráter dedutivo quer seja de caráter dialético, quando aplica apoditicamente o
argumento da retorsão pelo uso do princípio de não-contradição na refutação das opiniões
contrárias. No Livro I da EN, como vimos Aristóteles considera como objeto da
investigação o agir humano com vistas ao bem. Esse bem, pelo menos em parte, deve
depender do homem e de sua ação e, portanto, deve ser adequado à atividade própria dos seres
humanos, sempre um horizonte para virtude humana. Esse horizonte é constituído pelo
domínio do contingente, ou seja, pelo domínio do que pode ser diferente do que é
12
.
11
Cf. Vaz. H.C.L Escritos de Filosofia II, Ética e Cultura, Fenomenologia do ethos, São Paulo: Loyola, 1988,
p.11-35. Segundo Lima Vaz, a ética em Platão se estrutura como saber do ethos, fundado sobre o saber
metafísico. São muitas as nuanças de significado desse vocábulo. Distinguirmos ethos com a inicial êta e
significa morada do animal e, posteriormente, do homem, de ethos, com a inicial épsilon. O abrigo natural não é
mais só o abrigo animal, não éa morada animal, mas a morada do homem, uma morada simbólica, que são os
costumes. O ethos, com épsilon, atenta para a dimensão mais subjetiva da questão ética. Sua forma acabada é
designada pelo termo grego exis, que significa hábito, como possessão estável. São dois vocábulos gregos, muito
semelhantes em grafia e pronúncia e sentidos diversos, mas que passaram a relacionar-se intimamente: seja o
ethos em sentido de abrigo; ou o ethos no sentido de hábito e, até, caráter. Segundo Lima Vaz, a produção dos
costumes e dos hábitos ou caracteres, tendo em vista a convivência saudável, traz as marcas da racionalidade e
da liberdade humana. Há uma relação entre os costumes ou normas ou valores, realidade objetiva dinâmica ética,
e os hábitos ou caracteres, realidade subjetiva. O processo genético do hábito ou da disposição habitual para agir
de uma certa maneira. Sua forma acabada é designada pelo termo grego exis, que significa hábito, como
possessão estável. O ethos é hábito, disposição permanente para agir, de acordo com uma ordenação interior, que
permita a posse de si mesmo. Portanto, concomitantemente ao processo de produção do ethos, o processo de
produção do conhecimento ético. Não podemos pensar sobre o ethos, sem supor a inteligência das funções do
conviver e das possibilidades de decidir por caminhos de vida diferenciados. Inteligência e decisões finitas, que
têm, portanto, sua história, suas ambigüidades, suas graduações ou níveis de consciência de liberdade. O saber
ético é co-extensivo à vivência ética, que por sua vez é co-extensiva a existência humana. A Ética não é um
saber que nasce no seio das vivências éticas concretas, que são anteriores a teoria, dá-se no seio do saber ético.
Cf. Ibidem. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1999, p.46. É preciso,
no entanto, ter presente o fato histórico indiscutível de que a Ética nasce no seio do saber ético. A tarefa que se
propõem os fundadores da Ética e, de modo exemplar, Aristóteles, é a de encontrar uma nova forma lógica, uma
nova estrutura gnosiológica e novos fundamentos racionais para o saber ético, já codificado no ethos da tradição.
12
EN, I, 5, 1140b27; 1141a3
.
Ver AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles, pp.107; 127; 156. No Cap. II
sobre o acaso, contingência, e o tempo oportuno, segundo Aubenque, Aristóteles diz que a virtude não se define
somente por uma disposição subjetiva, mas também por referência a uma circunstância. De fato, a ação
produtiva não tira as coisas do nada, mas da matéria indeterminada, e a ação imanente introduz certa
artificialidade na natureza ao aperfeiçoar aquilo que nela está inacabado. O mundo sublunar é dominado por uma
21
Visto que a Ética é uma ciência do agir, cobra-se do governante que se propõe a elaborar
um saber ético válido, a experiência ética. Experiência de uma vida, vivida racionalmente,
uma vez que se propõe refletir sobre as razões do viver ético. Daí a ressalva de Aristóteles, em
relação aos jovens como inexperientes, que, no fundo, acaba relativizada, pois afirma não se
tratar de tempo em dispêndio cronológico, mas de tempo em engajamento ético, possível a
muitos jovens. Aristóteles não renuncia, contudo, a uma elaboração racional do saber dessa
experiência, ainda que não peça, para essa elaboração, certezas inconcussas. E, por isso
mesmo, dada essa impossibilidade de certezas absolutas, o compromisso com a reflexão
contínua, e o contínuo refazer-se desse conhecimento aparece com evidência.
Cada homem julga corretamente os assuntos que conhece, e é um bom juiz de tais
assuntos. Assim, o homem instruído a respeito de um assunto é um bom juiz em
relação ao mesmo, e o homem que recebeu uma instrução global é um bom juiz em
geral. Conseqüentemente, um homem ainda jovem não é a pessoa própria para
ouvir aulas de ciência política, pois ele é inexperiente quanto aos fatos da vida e as
discussões referentes à ciência política partem destes fatos e giram em torno deles;
além disto, como os jovens tendem a deixar-se levar por suas paixões, seus estudos
serão vãos e sem proveito, já que o fim almejado não é o conhecimento, mas ação.
Não fará qualquer diferença o fato de a pessoa ser jovem na idade ou no caráter; a
deficiência não é uma questão de tempo, mas depende da vida que a pessoa leva, e
da circunstância de ela deixar-se levar pelas paixões, perseguindo cada objetivo que
se lhe apresenta. Para tais pessoas o conhecimento não é proveitoso tal como
acontece com as pessoas incontinentes; mas para quem deseja e age segundo a
razão o conhecimento de tais assuntos é altamente útil
13
.
2.2 - O HOMEM NO CONCEITO DE ARISTÓTELES
Pensar a estrutura ética de Aristóteles é tratar sobre a teoria do ethos e sobre o homem
que, nos remete ao estudo da alma: fundamento e essência do homem. Refletindo podemos
dizer que em traços gerais, Aristóteles caminhou em sua concepção do homem, de um
contingência residual que “não é a ausência de lei, mas a distância -ínfima se quiser, mas impossível de suprimir
inteiramente- que separa a lei, que é geral, de sua realização no particular”(Cf. Ibidem, 2008, p.140).
13
EN, I, 3, 1095 a 1-16.
22
platonismo da ψυχή, a um monismo hilemórfico (alma como forma do corpo) que conferimos
em De Anima. O centro da concepção aristotélica do homem é a physis, mas animada pelo
dinamismo teleológico da forma que lhes é imanente e, como forma é seu núcleo inteligível.
O ponto central que pretendemos destacar na concepção de Aristóteles é a sua definição do
homem pela complexidade do princípio da decisão racional, uma fusão de intelecto desejante
e desejo refletido. Toda decisão racional impõe necessariamente uma passagem de potência
ao ato. É nesse ponto que metafísica e ética, entrelaçadas, nessa intersecção decisiva,
possibilitam a compreensão do homem no conceito de Aristóteles
14
.
14
VAZ, Henrique. C. Lima. Antropologia Filosófica I. 6ª Edição, São Paulo: Edições Loyola, 2001,pp.39-43.
Lima Vaz sob a orientação da dimensão “antropológica” no pensamento Aristóteles indica Weil, Eric. L’
anthropologie d’Aristote, in Essais et Confèrences I, Paris, Plon, 1970, 9-43; descreve as características do
homem na concepção aristotélica, fundamental para a compreensão do homem clássico, que descrevemos em
linhas gerais:
1) A estrutura biopsíquica, do homem ou teoria da psyché, isto é, a alma como princípio vital imanente do ser
vivo;
2) o homem como zôon logikón: Destaca a distinção do homem dos demais seres da natureza, com o predicado
peculiar da racionalidade, logo dotado de fala e discurso. Sob este aspecto Lima Vaz analisa as seguintes
perspectivas:
a) o ponto de vista da psyché no homem, sua estrutura e funções; Aristóteles estuda a atividade racional que,
no homem, eleva-se sobre a atividade própria ao intelecto;
b) o ponto de vista do finalismo da razão; Sob este ponto de vista, Aristóteles distingue três grupos de
ciências: a contemplação (theoría), buscando em razão de si mesma e tendo como fim o conhecimento da
verdade das coisas; de acordo com a natureza do objeto contemplado procedem dessa atividade as três ciências
teóricas , a física, a matemática e a Filosofia primeira ou Teologia. A ação (práxis) buscada em razão do bem
(agathón) ou da excelência (areté) do indivíduo e da comunidade e que é objeto das ciências práticas, a Ética e a
Política. A fabricação (poiesis) da qual resultam objetos artificiais e cuja finalidade é a utilidade ou o prazer;
c) o ponto de vista dos processos formais do conhecimento; ao codificar a forma do pensamento (teórico e
prático), Aristóteles assegura ao predicado da racionalidade, próprio do homem, os instrumentos poderosos e
decisivos pra que ele possa plasmar seu mundo segundo as exigências da razão, ou seja, para que possa fazer da
ciência o centro de seu universo, iniciativa que terá as mais profundas conseqüências eem todo o
desenvolvimento da civilização ocidental;
3) O homem como ser ético-político: Aristóteles pode ser considerado o sistematizador da Ética e da Política
como dimensões fundamentais do saber do homem sobre si mesmo. O homem helênico é essencialmente
destinado á vida em comum na lis e somente se realiza como ser racional. Ele é um zôon politikón por ser
exatamente um on logikón, sendo a vida ética e a vida política artes de viver segundo a razão (katà tòn lògon
zen);
4) O homem como ser de paixão e desejo; esse aspecto costuma ser menos explorado, mas é essencial para que
se tenha uma visão integral da concepção do homem em Aristóteles. Ele está presente tanto na estrutura da alma,
sede das paixões e do desejo, como na especificação de sua atividade, pois a vertente “irracional” da alma
intervém decisivamente tanto na práxis ética e política como na poiesis. A discussão em torno da significação e
23
Os conceitos de ato e potência regem tanto a metafísica como a ética, porque a felicidade
humana consiste em uma atividade, que é a atualização de uma potência. Na concepção de
Aristóteles o princípio de ser homem é a racionalidade. O homem é pensamento, pensar, é a
diferença que ele possui, pois a função define o ente. Como Aristóteles tem uma visão
monista hilemórfica, ou seja, a alma é a forma do corpo, logo matéria e forma são
indissociáveis. Sob uma compreensão materialista, racional de experimentação, o que
caracteriza um ser é o conceito de alma, a alma como princípio primeiro de seu movimento. O
homem é uma simbiose de planta, animal e razão. A essência do homem é alma, e o corpo é
constitutivo do homem, portanto, pensar sobre o homem é pensar em corpo e alma.
Então, se a função do homem é uma atividade da alma por via da razão e conforme
a ela, e se dizemos que uma pessoa’ e ‘uma pessoa boa’ m uma função do
mesmo gênero [...] se este é o caso e afirmamos que a função própria do homem é
um certo modo de vida, e este é o constituído de uma atividade ou de ações da alma
que pressupõe o uso da razão, e a função própria de um homem bom é o bom e
nobilitante exercício desta atividade ou a prática destas ações, se qualquer ação é
bem executada de acordo com a forma de excelência, e se mais de uma
excelência, de conformidade com a melhor e mais completa entre elas. Mas
devemos acrescentar que tal exercício ativo deve estender-se por toda a vida, pois
uma andorinha não faz verão (nem o faz um dia quente); da mesma forma um dia
só, ou um curto lapso de tempo, não faz um homem bem- aventurado e feliz
15
.
2.3 - A ALMA HUMANA
Na Ética a Nicômaco Aristóteles esclarece a sensível relação entre a ação humana e a
alma humana por meio da sistematização da ética. Com base nesse aspecto desenvolvemos
elucidações importantes em caráter complementar a EN sobre a alma, considerando o De
da função do prazer na vida humana torna-se um pico fundamental da ética aristotélica estudados nos livros
VII (caps.12-15)e X(caps.1-5) da EN.
15
EN, I, 7, 1098a 22-40.
24
Anima
16
. Este tratado tem como base estrutural a “A alma como substância no sentido de
forma” (DA, II, 412a1)
17
. Conforme Aristóteles, a substância
(ουσία)
não é matéria, mas a
forma (
ειδος
): aquilo por meio do que o sujeito é o que é, pois o que permanece constante por
trás das mudanças, o que se preserva é a forma.
A matéria, por sua vez, é potência, ao passo que a forma é atualidade [...] É
necessário, então, que a alma seja substância como forma do corpo natural que em
potência tem vida. E a substância é atualidade. Portanto, é de um corpo e tal tipo
que a alma é atualidade [...] E por isso a alma seria que a primeira atualidade de um
corpo natural que tem em potência vida
18
.
Na medida em que a forma subordina-se a um fim (telos), Aristóteles designa a alma por
atualidade primeira de um corpo natural orgânico. Assim a alma como forma é a causa ativa
que mantém a unidade ordenada do composto face ao poder destrutivo do devir
19
. A alma é
determinação tal que tenha em si mesmo um princípio de movimento e repouso. “Assim como
a pupila e a visão constituem o olho, também neste caso, o corpo e a alma constituem o
animal” (DA, II, 1, 412b29-30)
20
. No Livro III, do DA, é enfatizada a questão pensar e
16
ARISTÓTELES. De Anima (Peri Psykhês). Trad.br. Maria Cecília Gomes dos Reis, Edição, São Paulo:
Editora 34, 2006. Em linhas gerais, De Anima, de extrema relevância para a ética, apresenta parâmetros da
complexa relação entre a razão e a vontade na conduta, onde Aristóteles levanta o problema da escolha
intertemporal; elaborando com amplo estudo das capacidades naturais, a doutrina da virtude como hexis, ou
disposição adquirida, abordada especificamente na Ética a Nicômaco. De Anima, Peri Psykês, ou Sobre a alma é
um tratado de Aristóteles, composto pelos livros I, II, III, sendo dedicada maior atenção ao segundo e terceiro
livros, em que é realizado um exame detalhado de cada uma das cinco potências da alma: nutritiva, perceptiva,
desiderativa, locomotiva e raciocinativa. A filosofia moderna principalmente no século XVII separou o estudo da
vida do estudo da alma, mas podemos identificar que o tratado de Aristóteles está na origem da psicologia como
disciplina teórica e tem laços ancestrais com a Biologia. De Anima pode ser considerado um dos textos
fundadores da antropologia ocidental, no qual encontramos a criação de uma “antropologia” no sentido estrito (o
termo não é aristotélico e só aparece na idade moderna), ou seja, de uma “filosofia das coisas humanas
”.
17
Em DA, Aristóteles compreende que a substância (primeira) nunca é predicado, mas sempre sujeito (Cat,
1b11-3); (Met, 1029a8-9), porque, permanecendo a mesma, sofre mudanças e admite o vir a ser (Cat, 4a10-b19),
a forma no sentido de substância, dando uma certa forma no sentido das partes materiais e manter-se imune à
destruição. É importante observarmos que a passagem da atualidade à atividade, isto é, passar da capacidade à
atuação, nem bem é mudar nem bem é mover; se usamos o termo mudança ou alteração é por imprecisão da
linguagem. Trata-se apenas da manifestação do que já existe.
18
DA, II, 1, 412a10-11; 412a 21-23; 28-29.
19
Uma vez que movimento também é destruição, crescimento também é deslocar-se.
20
O conhecer é algo da alma bem como o perceber, o opinar e ainda o ter apetite, o deliberar e os desejos em
geral, já que da alma advém o crescimento, a maturidade, e o decaimento. “E a alma é isto por meio e que
primordialmente vivemos, percebemos e raciocinamos. Por conseguinte, a alma será uma certa determinação e
forma e não matéria ou substrato”(DA, II, 2, 414a4 13-14).
25
perceber e a relação desejo, intelecto e raciocínio prático
21
. A parte perceptiva e a cognitiva da
alma são em potência estes objetos: uma o cognoscível e outra o perceptível
22
. Da alma é
como a mão; pois a mão é instrumento de instrumentos, e o intelecto é forma das formas, bem
como a percepção sensível é forma dos perceptíveis. Como sustenta Aristóteles, as imagens
subsistem na alma e são como que sensações percebidas. Embora desprovidas de matéria não
são imagens, embora também não existam sem imagens.
Segundo Aristóteles, a alma dos animais é definida de acordo com duas potências, a de
poder discernir - o que é função do raciocínio e da percepção sensível - e a de poder se mover
de acordo com um movimento local. Valendo-se desta consideração distinguimos as partes da
alma: não somente aquelas que alguns dizem se distinguir em calculativa, emotiva, apetitiva,
mas em racional e irracional
23
. “Pois é na parte calculativa que nasce a vontade, mas o apetite
e o ânimo, na parte irracional; e caso a alma seja tripartite, em cada parte haverá desejo” (DA,
III, 9, 432a 39-40)
24
. O que faz mover localmente o animal é o movimento que concerne ao
crescimento e ao decaimento, subsistindo em todos seres vivos, sem exceção, há de ser
21
Considerando que o tato não é uma única sensação, mas diversas, então é preciso também que os objetos
perceptíveis pelo toque sejam diversos, pois todas as afecções do tangível, como tangível nos são perceptíveis
pelo tato. (DA, II, 1, 422b10-11, 424b4-5). Nem mesmo o pensar poderia existir sem o corpo. Parece que todas
as afecções da alma ocorrem com um corpo. É evidente que as afecções são determinações na matéria. Por isso é
a quem estuda a natureza que cabe enfim o inquirir a respeito da alma. Parece mais que a alma mantém junto o
corpo, pois quando ela o abandona, ele se dissipa e se corrompe.
22
Cf. DA, III, 8, 431b 27-33 , 432a 5-9. Pressupondo que são indicadas como potências: a nutritiva, a perceptiva,
a desiderativa, a locomotiva, e a raciocinativa, temos que “se subsiste a perceptiva, também subsiste a
desiderativa, pois desejo é apetite, impulso e aspiração...o apetite, pois este é o desejo do prazeroso”(DA, II, 3,
414a 31-40). Segundo Aristóteles, “entre os seres vivos que possuem tato também subsiste desejo...”(DA, II, 3,
414b 10-11). É preciso assim que seja investigado, de acordo com cada caso, o que é a alma de cada um. O
entender de Aristóteles: “Pois entre os seres perecíveis, naqueles e que subsiste cálculo também subsistem todas
as demais capacidades”. Ibidem. II, 3, 414b 40-41.
23
Ocorre conseqüentemente que o elemento irracional parece dúplice. O elemento vegetativo, todavia, não
participa de forma alguma da razão, mas o elemento apetitivo e, em geral, o elemento concupiscente participam
da mesma em certo sentido, até que ponto em que ouvem e lhe obedecem, “é neste sentido que falamos na
‘racionalidade’ de um pai ou de um amigo, em contraste com a ‘racionalidade’ matemática. O fato de
advertirmos alguém, e de reprovarmos e exortarmos de um modo geral, indica que a razão pode, de certo modo,
persuadir o elemento irracional”(EN, I, 13, 1103a 5-8).
24
Em DA, outra observação relevante é a de que conforme Aristóteles, talvez não seja apropriado falar em partes
da alma, mas prefere antes falar em potências. Os atributos da alma são capacidades e de diversas modalidades.
Esse legado sobre o status da potencialidade vem de filósofos anteriores. Para Aristóteles, a alma tem tríplice
função, com três partes; a vegetativa, a sensitiva, e outra racional. “A alma é causa e princípio do corpo que
vive... causa conforme três dos modos definidos... sendo ainda causa como substância dos corpos animados”
(DA, II, 415b 1-5). O crescimento vem da sensibilidade, mas a razão não. A função da alma está na parte
respectiva ao racional. A razão é uma extensão do logos universal, é o divino no homem, é a relação do homem
com Deus, o homem pode pensar a Deus. A razão chega a sua plenitude ao pensar Deus, assim a realização
maior da alma é atingir a finalidade, alcançar a felicidade, quando a razão pensa Deus.
26
produzido por aquilo que subsiste em todos: a alma reprodutiva, e aquela nutritiva. Sobre as
partes da alma Aristóteles sustenta também na EN:
Que a alma é constituída de uma parte irracional e de outra dotada de razão. Se esta
duas partes são realmente distintas, à maneira das partes do corpo ou de qualquer
outro todo divisível, ou se, embora distintas por definição, elas na realidade são
inseparáveis, como os lados côncavo e convexo da periferia de um círculo, não faz
diferença nenhuma no caso presente. Uma das subdivisões da parte irracional da
alma parece comum a todos os seres vivos e é de natureza vegetativa, refiro-me à
parte responsável pela nutrição e pelo crescimento
25
.
O desejo, porém, que se encontra na parte apetitiva, age de acordo, mas não move, não é
responsável pelo movimento, pois, segundo Aristóteles, os que são continentes, mesmo
desejando e tendo apetite, não fazem essas coisas pelas quais têm desejo, mas seguem o
intelecto
26
. Os desejos são contrários uns aos outros, quando o argumento e os apetites forem
contrários, e isso ocorre porque o intelecto, de um lado, ordena, resistir, por outro, ordena,
resistir por causa do imediato, pois o imediatamente agradável mostra-se simplesmente bom
“o que faz mover sendo movida é a capacidade desejar” (DA, III, 433b 17-18). Aristóteles
expõe que decidir por fazer isto ou aquilo, de fato, é uma função do cálculo, por isso o
desejo não tem capacidade deliberativa e algumas vezes vence e demove a vontade
27
.
E todo desejo, por sua vez, é em vista de algo; pois aquilo de que desejo é o
princípio do intelecto prático, ao passo que o último item pensado é o princípio da
ação [...] algo único, de fato, que faz mover o desejável [...] (pois a vontade é
desejo e quando se é movido de acordo com o raciocínio, também se é movido de
acordo com a vontade), mas o desejo move deixando de lado o raciocínio, pois o
25
EN, I, 13, 1102 b 3-10.
26
Cf. DA, III, 9, 433a 6-9.
27
Ibidem, III, 11, 434a 4-5; 10-11. O termo vontade tem aqui a conotação de querer. O caráter peculiar do
percurso lingüístico conturbado dos textos de Aristóteles e a ambigüidade dos termos gregos permitem a
tradutores, comentadores e intérpretes a adaptação deste e outros termos que julgam apropriados de acordo com
determinadas leituras, de modo que justificamos aqui o termo adotado sob influência do aparato crítico utilizado.
27
apetite é um tipo de desejo. Intelecto, então, é sempre correto; ao passo que o
desejo e a imaginação, ora corretos, ora não corretos
28
.
Aristóteles, considerando a alma como princípio vital do corpo, determina que a
potencialidade da razão não está nem na parte vegetativa, nem na parte sensitiva, mas sim na
parte racional. Uma vez que, os predicados da alma são: razão, emoção, imaginação,
liberdade, desejo e julgamento, atingir a finalidade da alma é chegar ao pleno
desenvolvimento da razão, ou seja, ao desenvolver de toda a potencialidade a capacidade ao
máximo possível, a atualização de maneira completa, no que de melhor. E a razão se
desenvolve por meio das virtudes. As virtudes desenvolvem e aperfeiçoam a razão, no aspecto
intelectual e a razão chega a sua plenitude ao contemplar (βλεπω)
29
. Logo a alma nasce com
potência, que pode se desenvolver e se capacitar em potencialidade. As potências são
desenvolvidas pela educação dos hábitos. Educamos as pessoas, primeiro pelo hábito, depois
pela razão, uma vez que tendo bons hábitos podemos tornar-nos bons
30
.
Sendo a virtude uma espécie de equilíbrio, ou moderação, a prática das virtudes é a prática
de bons atos, que fazem os homens melhores e mais felizes. “O bem para o homem vem a ser
o exercício ativo das faculdades da alma de conformidade com excelência, de conformidade
com a melhor e mais completa entre elas” (EN, I, 7, 1098 a, 34-36). A felicidade como tal não
pode ser algo exterior a nós, mas como uma atividade da alma conforme a virtude, mas que
também requer coisas exteriores. A função do estadista é criar condições para o homem ser
28
Ibidem, III, 10, 433a 16-17; 433a 21,25-29
. Ver PERINE, Marcelo. Quatro Lições sobre a ética de Aristóteles. São
Paulo: Edições Loyola, 2006,
p.103.
Reportamos-nos ao comentário de Marcelo Perine esclarecendo que a tradução
de Gama Cury lhe parece ocultar a distinção entre razão (logos) e inteligência ou intelecto (nous) e não deixa
suficientemente claro que estamos diante de uma definição do ser humano Eis que é complementar a disposição
do seguinte trecho da Ética a Nicômacos a seguir: “A escolha, portanto, é razão desiderativa (orektikos nous) ou
desejo raciocinativo (orexis dianoetike), e o homem é uma origem da ação desse tipo”(EN, VI, 2, 1139b8-9).
Segundo Marcelo Perine, o texto grego permite a seguinte tradução: “a decisão é intelecto desejante ou desejo
raciocinante, e este princípio complexo é o homem”. Ver sobre este tema em DA, III, 10, 433a9-17.
29
Aristóteles compreende que quanto mais destituído de praticidade, maior o nível do conhecimento. A
contemplação é a ascensão ao nível de conhecimento máximo, portanto associa o conhecimento ao prazer e não
à utilidade.
30
ZINGANO, Marco. Aristóteles: tratado da virtude moral; Ethica a Nicomachea I 13-III 8, São Paulo:
Editora Odysseus, 2008. Marco Zingano explora a relação entre alma e virtude conforme Aristóteles: Em De
Anima, I, 5, 411b5-6, sobre a divisão da alma em três partes (racional, impulsiva e apetitiva) ao lado da divisão
em duas, racional e não-racional.
28
feliz realizando-se em sociedade, pois o governante deve ser conhecedor do íntimo humano,
isto é, da alma humana.
Uma vez conceituado por Aristóteles o homem como ser essencialmente racional e
político, no qual a razão se encontra na alma humana, a felicidade envolve o homem no seu
total de ser e conseqüentemente nas relações sociais. Daí Aristóteles escrever:
Devemos conduzir nossa investigação sobre a felicidade levando em conta as
conclusões a que chegamos partindo de nossas premissas, mas devemos
igualmente considerar o que se diz em geral sobre ela; com uma visão realista,
todos os dados se concatenam, mas com uma visão falsa os fatos colidem
31
.
2.4 - AS VIRTUDES NOS CONDUZEM À FELICIDADE
Este ponto da investigação visa à exposição do conceito de felicidade, a definição de
virtude (αρετή) e seu fundamento na EN, demonstrando a ética como ciência do agir humano.
Se a felicidade é o ato da alma segundo a virtude, com base no princípio da virtude humana,
que é uma virtude da alma, há uma correspondência estrutural entre as atividades da alma que
são essencialmente distintas e as virtudes em cujo exercício se fazem presentes essas
atividades. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, realiza uma reflexão, que será expressamente
formulada no final do estudo, da felicidade, a saber, sobre o bem supremo. Esse bem, que
Aristóteles denomina contentamento (εύδαιµονία)
32
, designa algo que buscamos por ele
mesmo e cuja realização não ultrapasse as nossas forças. Se esse bem deve ser realizado por
nós, ele será caracterizado pela atividade que é tipicamente nossa. Assim, o bem humano
deverá ser uma atividade real não só possível, na qual o homem faça bem o que faz. Portanto,
o bem ao qual nada se possa acrescentar, mas porque inclui em si todos os bens, a começar
pelo prazer
33
.
31
EN, I, 8, 1098b1-5.
32
O termo é bastante abrangente, mas nas diversas interpretações sobre a concepção de eudaimonia na EN, todas
admitem a tradução como felicidade, que para Aristóteles é a posse do bem objetivamente melhor para o agente,
capaz de proporcionar-lhe o viver bem (eu zen) e o agir bem (eu prattein).
33
EN, I, 9, 1099 a 13-30.
29
A cidade grega, como expressão realizada de uma racionalidade política, oferecia o
horizonte concreto no interior do qual estavam estabelecidos os princípios para a ação de todo
agente que, não sendo um animal ou um deus, pretendia ser racional. Quem educa, em última
análise, é a cidade, na medida em que, pelas leis belas-e-boas, ela cria o lugar a meio caminho
entre os animais e os deuses. Por fim, educar o cidadão é habituá-lo ao exercício da virtude e
prudência, que consiste no hábito de decidir, nas circunstâncias concretas, com base em
modelos do bom e do melhor que estão acima de sua individualidade. Na reflexão de
Aristóteles é justamente a comunidade desses sentimentos que produz a família e a cidade
34
.
Portanto, a família, em primeiro lugar na ordem natural, constitui o lugar da ão
propriamente humana, visto que a cidade é verdadeiramente natural ao homem, por ser o
horizonte no interior do qual ele busca, encontra e realiza os bens que lhe são próprios.
Aristóteles defende na sua Ética, que “toda arte e toda indagação, assim como toda ação e
todo propósito, visam a algum bem; por isto foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que
todas coisas visam”(EN, I, 1, 1094 a). Disso resulta a indagação sobre o que é o bem, e de que
ciências ou atividades é objeto. Posto que o bem é o objeto da ciência política e a felicidade
constitui o fim de todo homem, Aristóteles busca uma definição da felicidade. Ele considera a
possibilidade de ser improdutiva a investigação sobre a felicidade com base nas considerações
mais razoáveis e evidentes. Estas, porém, são prerrogativas em duas compreensões: as
relativas a nós mesmos e as que são em absoluto. Daí Aristóteles escrever:
Diante do fato de todo conhecimento e todo propósito visarem algum bem , falemos
daquilo que consideramos a finalidade da ciência política, e do mais alto de todos
os bens a que pode levar a ação, [...] este bem supremo é a felicidade, e consideram
que viver bem e ir bem equivale a ser feliz; quanto ao que é realmente a felicidade
divergências, e a maioria das pessoas não sustenta opinião idêntica à dos sábios
35
.
34
ARISTÓTELES. Política. Trad.br. de Mário Gama Kury, 3.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1997; I, 1253 a 1-30. Ver sobre o tema, PERINE, M. Quatro Lições sobre a ética de Aristóteles. Phronesis:
um conceito inoportuno? p.48; Ato a Potência. Implicações éticas de uma doutrina metafísica, pp.84, 85.
35
EN, I, 4, 1095 a 21-27.
30
Entre as divergências termina por encontrar duas respostas distintas: aquilo que cada um
considera individualmente e o que é igual para todos os seres humanos. Aristóteles (assim
como Platão) inclina-se por esta segunda opção. Segundo Aristóteles, a felicidade é viver em
virtuosidade, é a realização, no sentido de meta final de qualquer ente, quando este atualizou a
totalidade das suas disposições, plenificando assim a natureza própria. Conceitua a felicidade
como a realização das atividades que são próprias ou específicas a cada ser de acordo com sua
natureza. A felicidade humana consistiria em uma certa maneira de viver, em tornar ato o que
é potencialidade e atualização desta, é desenvolver todo o conjunto de aptidões num processo
de humanização, definindo-a como própria da natureza de cada um, naquilo que se distingue
dos demais. A atividade específica do ser humano é o pensamento, a plenitude e a felicidade
serão quando a atividade humana é direcionada à atividade contemplativa. Se todos os
homens têm a mesma natureza, conclui-se que a felicidade é a mesma para todos.
Aristóteles sabe, no entanto, que o homem não é só razão, portanto a felicidade humana é
limitada. Isto quer dizer que precisa cumprir determinadas necessidades: tanto com respeito
aos bens corporais, como aos bens externos, o dinheiro (por exemplo) ou e principalmente as
virtudes morais. Em maioria identificamos o bem, que é a felicidade com o prazer, com o que
nos parece agradável à vida. Aristóteles considera que são “três tipos principais de vida: o que
acabamos de mencionar, o tipo de vida política e o terceiro é a vida contemplativa” (EN, I, 5,
1096a 6-7).
Lembrando que nem uma vida virtuosa pode livrar o homem nenhum de
infortúnios. No que concerne ao bem, trata dos seguintes pressupostos: dos que são bons em
si mesmos e outros em função destes. Separando então as coisas boas em si das coisas úteis, e
verificando se as primeiras são chamadas boas com referências a uma única forma, indagando
que espécie de bens chamaríamos bons em si. A investigação de Aristóteles sobre a felicidade
tem como base os fatos em sentido de realização social, objetiva em comunidade.
Certamente, da mesma forma que a visão é boa no corpo a razão é boa na alma, e
identicamente em outros casos [...] Acontece o mesmo em relação à forma do bem;
ainda que haja um bem único que seja um predicado universal dos bens, ou capaz
de existir separada ou independentemente, tal bem não poderia obviamente ou ser
atingido pelo homem, e agora estamos procurando algo atingível
36
.
36
Ibidem, I, 6, 1097a 5-12.
31
Conforme Aristóteles, a felicidade de cada criatura humana pressupõe a felicidade de sua
família, de seus concidadãos, e a maneira de assegurar a felicidade é proporcionar um bom
governo à sua cidade; que determinar, então, qual a melhor forma de governo, tema que a
Política descreve. “Vemos que toda a cidade é uma espécie de comunidade se forma com
vista a algum bem, pois todas ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes
parece um bem; [...] ela se chama cidade e é a comunidade política” (Pol. I,1252a 1-7 ). O
homem, dotado de extraordinária capacidade de comunicação, vive em diversos círculos de
convivência, como a pólis, sendo esta última a sociedade perfeita, a causa final da associação
humana. Não pode desenvolver as virtudes nem a felicidade se não for em sociedade por duas
razões: sem a sociedade não sobreviveria, uma vez que em princípio precisaria dos bens
fundamentais, e sem as leis sociais nunca alcançaria as virtudes.
Uma conclusão idêntica parece resultar da noção de que a felicidade é auto-
suficiente. Quando falamos em auto-suficiente não queremos apenas aludir aquilo
que é suficiente apenas, para um homem isolado, para alguém que leva uma vida
solitária, mas também para seus pais, filhos, esposa e, em geral, para seus amigos e
concidadãos, pois o homem é por natureza um animal social
37
.
Compreendemos a felicidade praticamente como uma forma de viver, de conduzir-se bem
na vida diante das adversidades especialmente. A vida de atividade virtuosa é agradável em si,
pois o prazer é uma disposição da alma e a cada pessoa é aquilo que costumamos dizer que
amamos. Conforme Aristóteles, o estadista têm em si a justiça, pois as leis são intrínsecas ao
ser nobilitante, que busca o bem como finalidade para si e para a comunidade. Daí escrever:
Chamamos geralmente os bens pertinentes à alma de bens no verdadeiro sentido da
palavra e no mais alto grau, e atribuímos à própria alma as ações e atividades
psíquicas. [...] Outra noção que se harmoniza com nossa opinião é a de que o
homem feliz vive bem e se conduz bem, pois praticamente definimos a felicidade
como uma forma de viver bem e conduzir-se bem. [...] Ninguém qualificará de
justo um homem que não sinta prazer em agir justamente, nem de liberal um
homem que não sinta prazer em ações liberais, e similarmente no caso de todas as
37
Ibidem, I, 7, 1097 b 33-38.
32
formas de excelência. Sendo assim, as ações conforme à excelência devem ser
necessariamente agradáveis
38
.
Quanto às divergências expostas por Aristóteles sobre a felicidade são importantes as
seguintes considerações: em muitas ações usamos amigos e riquezas e poder político como
instrumentos [...] algumas pessoas identificam a felicidade com a boa sorte, embora outras a
identifiquem com a excelência
39
. Como exposto, Aristóteles identifica a felicidade com a
última consideração que é a prática das virtudes.
Ver-se-á que esta conclusão é condizente com o que falamos de início, pois
afirmamos que a finalidade da ciência política é a finalidade suprema, e o principal
empenho desta ciência é infundir um certo caráter nos cidadãos - por exemplo,
torná-los bons e capazes de praticar boas ações
40
.
Segundo Aristóteles, a felicidade é uma atividade da alma conforme a excelência, pois
entre as funções do homem “nenhuma é dotada de tanta permanência quanto às atividades
conforme à excelência; estas parecem ser até mais duradouras que nosso conhecimento das
ciências” (EN, I, 10, 1100 b 8-13). No discurso de Aristóteles, o homem feliz estará sempre,
ou pelo menos freqüentemente, engajado na prática ou na contemplação do que é conforme à
excelência, não obstante, mesmo na adversidade e freqüentes infortúnios resplandece com
resignação, não por insensibilidade, mas por nobreza e grandeza de alma
41
. Constatamos
então que o bem e a felicidade são elementos metafísicos como norteadores da ética. “Parece
que é assim porque ela é o primeiro princípio, pois todas as outras coisas que fazemos são
feitas por causa dela, e sustentamos que o primeiro princípio e causa dos bens é algo louvável
e divino” (EN, I, 12, 1102 a 10-13).
Determinados estes princípios e a relação afim da felicidade com a virtude, é pertinente
estudarmos a natureza da virtude. A finalidade do homem como ser político é a comunidade,
que é a convivência em harmonia, é a felicidade. A felicidade se divide em duas partes: a
realização suprema (contemplação) e o aperfeiçoamento das virtudes do caráter (do controle
38
Ibidem, I, 8, 1098b 33-41; 1099 a 26-30.
39
Ibidem, I, 8, 1099 b 11-12.
40
Ibidem, I, 9, 1099 b 37-41.
41
Ibidem, I, 10, 1100 b 27-30.
33
dos impulsos, dos instintos). A natureza humana atinge seu fim último por meio da
racionalidade. Mas o pensamento é contemplativo, por isso precisamos da prudência que é a
sabedoria prática adquirida com a experiência. O sábio em Aristóteles tem de ter saber
teórico, mas o que vale mesmo é a prudência (discernimento) do que é bom para si
(governantes) e para os outros (governados). A prudência em geral é conseqüência da
experiência, sendo a prudência a virtude suprema do político, visto que este deve ser
conhecedor da intimidade humana, portanto da alma.
Sendo a felicidade, então uma certa atividade conforme à excelência perfeita, é
necessário examinar a natureza da excelência. Isto provavelmente nos ajudará em
nossa investigação a respeito da felicidade. Também parece que o verdadeiro
estadista é aquele que estudou especialmente a excelência, a [...] A excelência
humana significa, dizemos nós, a excelência não do corpo, mas da alma, e também
dizemos que a felicidade é uma atividade da alma. Se for assim obviamente o
estadista deve ter algum conhecimento das funções da alma, da mesma forma que
quem estudar e curar os olhos deve conhecer também o corpo todo
42
.
Aristóteles conceitua a virtude como termo médio entre dois vícios
(χαχία)
, um por
excesso e o outro por falta, são hábitos, não como condicionamento e automatismo, mas como
disposições duradouras que nos permitem agir na vida escolhendo o termo médio em relação
42
Ibidem, I, 13, 1102 a 15-30. Sobre a virtude ver ZINGANO. Aristóteles: tratado da virtude moral; Ethica
a Nicomachea I 13-III 8, 2008, p.77. Comenta Marco Zingano, que mantém a tradução por perfeito, sem por
isso tomar posição neste debate, mas porque compreende como perfeito, que Aristóteles considera não uma
virtude em detrimento das outras (no caso, a contemplativa), mas um modo especial de operar as virtudes. Na
EM, no Livro VI, Aristóteles distingue entre as virtudes em seu modo natural - aquele segundo o agente faz o
que deve ser feito, e a virtude acompanhada da prudência, aquela segundo a qual o agente faz o que deve fazer
segundo as boas razões. A virtude perfeita seria a indicada no segundo modo “o sentido de τέλειος parece ser o
de tornado perfeito pela presença da razão no interior da virtude moral. A felicidade seria constituída não por
uma única virtude, mas pelas virtudes morais acompanhadas da virtude intelectual, que é a prudência.” O sentido
de virtude completa é menos propício, “pois é antes completa porque é perfeita do que perfeita porque completa”
(Zingano, 2008, p.77).
Em relação ao termo adotado para o sentido de τέλειος, é reconhecido pelo próprio
Aristóteles em Met. 16, como ambíguo, podendo ter o sentido de “completo”, o que possui todas as suas partes,
ou de “perfeito”, e a discussão de qual sentido está ligado à virtude foi grande entre comentadores antigos e
renasceu com bastante impulso nas últimas décadas, sobretudo em ngua inglesa. De maneira geral podemos
resumir o problema em duas vertentes. Tomando o sentido de completo, então aderimos a orientação
inclusivista: a virtude completa é a que possui todas as suas partes: justiça, coragem, temperança e assim por
diante, esta tese defende que a melhor atividade τελεία, é a contemplação. Se tomarmos o significado de perfeito,
e se por isso se compreender uma entre as virtudes (a melhor e mais forte), então já teríamos a formulação da
tese dominante no livro I, que tende em maior parte por uma visão inclusivista da felicidade.
42
EN, I, 13, 1102 b.
34
a s mesmos, por meio de atividades que disponham o caráter ao bem. Aristóteles destaca
essa característica particular das virtudes ao mencionar “quanto a nós mesmos”. Distingue
dois tipos de virtudes: as virtudes morais (ou éticas); e as virtudes intelectuais (ou
dianoéticas). Para encontrar o termo médio entre os dois extremos, o homem precisa utilizar a
prudência (discernimento ou saber prático).
O autor considera a prudência junto com a justiça, como as virtudes mais importantes. A
virtude ética é mediana entre dois vícios (um por falta e o outro por excesso)
43
. As virtudes
requerem experiência que implica tempo. Experiência e tempo são cruciais especialmente
para a prudência, a virtude intelectual da parte prática presente no Livro VI. No entanto, as
virtudes morais talvez não tivessem a mesma exigência, quando parece ser o contrário visto
surgirem do hábito, mas o hábito certamente requer tempo e experiência. Aristóteles
demonstra que o caráter resulta do hábito, isto é, acentua-se o processo pelo qual o
adquirimos.
Como vimos, há duas espécies de excelência: a intelectual deve tanto o seu
nascimento quanto o seu crescimento à instrução (por isto ela requer experiência e
tempo); quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito, razão pela qual seu
nome é derivado, com uma ligeira variação, da palavra “hábito”
44
.
O agente é assim levado à perfeição prática das virtudes. Mais adiante, irá mostrar que o
pleno desenvolvimento da virtude moral implica uma virtude intelectual operando em seu
43
ZINGANO. Aristóteles: tratado da virtude moral; Ethica a Nicomachea I 13-III 8, 2008, p.129. A
definição geral na concepção de Marco Zingano sobre a virtude moral na EN, termina por concluir do seguinte
modo: foi mostrado que a virtude moral é uma escolha deliberada ou não ocorre sem escolha deliberada (EN, 4,
1106a3-4), que o gênero da virtude moral é a disposição (EN, 4, 1106a11-12) e que agir virtuosamente equivale
a descobrir um meio termo entre dois extremos, o excesso e a falta (EN, 5 1106b14-18). Segue o padrão sobre a
virtude moral, que assim como a ciência é uma disposição demonstrativa (EN, VI 3 1139b31-1), a arte é uma
disposição produtiva (EN, VI 4 1140a4), a prudência é uma disposição de agir (EN, VI, 5 1140b5). Zingano
traduz disposição de escolher por deliberação na falta de uma opção melhor. Quanto a idéia geral Marco Zingano
é bastante claro: trata-se de uma disposição que provém de atos de certo tipo- os que envolvem escolha
deliberada – e que torna o sujeito ainda mais apto a praticar atos de tal tipo. Entendida deste modo, a disposição
consiste em um meio termo relativo a nós, isto é, a escolha que ocorre em seu interior é a preferência dada, com
base em razões, a um item que figura como meio termo entre dois extremos o excesso e a falta. O padrão desta
escolha é aquele feito pelo prudente, que pesa razões rivais e, vendo a verdade nas circunstâncias em que se
produz a ação. Decide-se por isto de preferência àquilo.
44
EN, II, 1, 1103 b 1-5.
35
interior, a saber, a prudência
45
. A sabedoria
(Σοφια)
e a prudência (discernimento) são
exemplos de excelência intelectual, a liberalidade e a moderação são exemplos de excelência
moral. “a excelência moral é engendrada em nós, mas a natureza nos a capacidade de
recebê-la, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito”(EN, II, 1, 1103b 15-16). Isso implica
que as nossas disposições morais complementam as atividades da mesma. Daí afirmar que o
mesmo acontece diante dos desejos e da ira, isto é, algumas pessoas se tornam moderadas e
amáveis enquanto outras se tornam concupiscentes e irascíveis em razão de comportamentos
diferentes.
É importante reforçarmos que a investigação presente, assim como pretendia Aristóteles,
visa não somente o conhecimento teórico, ou seja, não buscamos apenas conhecer o que é
moral, mas sim nos tornarmos bons. Assim convém examinarmos a natureza das ações, ou
seja, como devemos praticá-las; com efeito, as ações determinam igualmente a natureza das
disposições morais, o que vem a ser a razão, e como ela se relaciona com as outras formas de
excelência.
Consideremos primeiro, então, que a excelência moral é constituída por natureza,
de modo a ser destruída pela deficiência e pelo excesso, tal como vemos acontecer
com o vigor e a saúde (temos de explicar o invisível recorrendo à evidência do
visível); [...] são destruídas pela deficiência e pelo excesso, e preservadas pelo meio
termo
46
.
Toda disposição de alma naturalmente tende a ser influenciada pelo prazer e o
sofrimento, isto é, tanto a excelência moral como a deficiência moral se relacionam com as
mesmas coisas. Aristóteles admite que três objetos de escolha e três de repulsa: o
nobilitante, o vantajoso e o agradável, e seus contrários: o ignóbil, o nocivo e o penoso. As
pessoas boas tendem a acertar, e as más tendem a errar, especialmente quanto ao prazer, pois
45
Observamos que a principal dificuldade desta leitura está na compreensão de não atribuirmos ao homem
prudente o papel de dar definição da virtude, o que é contudo uma tarefa do filósofo, pois ao prudente cabe dizer
quais atos são virtuosos e não a definição da virtude moral. É preferível, portanto, voltar à leitura tradicional e
ligar à disposição de escolher por deliberação, que é limitada pela razão, a saber, tal como o prudente a
delimitaria.
46
EN, II, 2, 1104 b 2- 15. “Daí a importância, assinalada por Platão, de termos sido habituados adequadamente,
desde a infância, a gostar e desgostar das coisas certas; esta é a verdadeira educação” (EN, II, 3, 1104 b 37-39).
36
esta é a tendência geral dos animais. Ela também acompanha todos os nossos atos praticados
mediante escolha, que mesmo o que é nobilitante nos parece agradável
47
.
Aristóteles
reconhece assim como Heráclito que é mais difícil lutar contra o prazer do que contra a
própria cólera, “mas tanto a arte quanto a excelência moral estão permanentemente
preocupadas com o que é difícil, pois até as coisas boas são melhores quando difíceis” (EN, II,
3, 1105 a 33-35).
Esclarecendo a intenção de Heráclito com esta frase, e que Aristóteles buscou reforçar,
que se é difícil combater o impulso, é mais difícil ainda combater o prazer, tendo aqui o
sentido mais amplo de desejo
48
. Considerando que mediante a prática de atos justos, o homem
se torna justo, e mediante a prática de atos moderados que o homem se torna moderado.
Vejamos agora o que é excelência moral. que as manifestações da alma são de
três espécies emoções, faculdades e disposições [...] por disposições quero
significar os estados da alma em virtude dos quais estamos bem ou mal em relação
as emoções-...
49
47
Ibidem, II, 3, 1105 a 22-23. Marco Zingano comenta acerca da virtude moral aristotélica e define o termo
mediedade µεσότης como a quididade da virtude moral. Segundo Aspásio, que infere em sentido explicativo,
considera que as virtudes o destruídas, pelo excesso e pela falta não no sentido de, constituídas, serem
destruídas, mas no sentido de terem sua constituição obstada pelos extremos; a razão seria que, uma vez
constituídas às disposições, ela não estariam abertas aos contrários, agindo antes assim do que não assim.
Porém, nada exclui o primeiro sentido, haja vista as teses de precedência e prevalência das ações sobre asa
disposições (Zingano, 2008, p.107). O comentador enfatiza a tese nuclear da ética aristotélica, “segundo a qual a
virtude moral, embora não seja definida pelo prazer ‛ηδονή ou dor λύπη, está direta e umbilicalmente vinculada
a ambos, não sendo possível assim, pensar a virtude como a supressão de prazer ou dor, mas como a busca de
sua justa medida. Os termos traduzidos como prazer e dor são considerados de modo geral sob aspectos
psicológicos e não físicos, isto é, embora primariamente psicológicos, prazer e dor têm uma contraparte física.
São agregados oito argumentos que favorecem a tese que a virtude moral está ineliminavelmente ligada a
prazeres e dores. Aristóteles pretende simplesmente arrolar razões para mostrara que prazer (dor) está ligado à
virtude (vício), sem, contudo, adotar uma linguagem fundacionalista (o prazer não é a razão ou fundamento por
que uma ação é boa).(2008,p108). Zingano, realiza uma observação sobre a expressão objetos de busca (EN, I, 5,
1097a30-34; VII 10 1151b1), que pela tradução de Kury tende a ser traduzido por objeto de escolha.Esta lista
dos objetos de busca aparece em Top.I 13 105a28 e III 3 118b28; e nos livros sobre a amizade Aristóteles falará
de três objetos de amizade, o bem, o agradável e o útil”(Zingano, 2008, p.110).
48
“Muitos homens não os praticam, mas se refugiam em teorias e pensam que estão sendo filósofos” (EN, II, 4,
1105 b 23-24).
49
EN, II, 5, 1105 b 1-10.
37
Conclui que se as várias espécies de excelência moral não são as emoções nem faculdades
lhes resta serem disposições
50
. Terminando por defini-la quanto ao seu gênero. Não é
suficiente então definir a excelência moral como uma disposição, mas é pertinente também
dizer que espécie de disposição ela é. Aristóteles sustenta que não é por natureza que somos
bons ou maus,
Ora: nem a excelência moral nem a deficiência moral são emoções, pois não somos
chamados bons ou maus com fundamento em nossas emoções, mas somos
chamados bons ou maus com fundamento em nossa excelência ou deficiência moral
51
.
Sobre a natureza das virtudes Aristóteles faz a observação, de que nem toda ação ou
emoção admite meio termo, pois algumas delas têm nomes nos quais está implícita a
maldade, por exemplo, o despeito, a imprudência, a inveja em certas emoções e ações “com
efeito, a maldade não está no excesso ou na falta; ela está implícita em seus próprios nomes”.
Relata então exemplos destes extremos e um célebre verso de autor desconhecido: “Bravos,
pois, de um só modo, mas maus de muitos modos”
52
.
Uma vez que, a prudência pressupõe as demais virtudes como meio para atingir o meio
temo entre os extremos dos vícios, o conceito de virtude requer a prudência estreitando os
laços entre essas virtudes. Conforme Aristóteles, isso implica investigarmos a natureza da
escolha deliberada e sua realização pelo prudente. A definição de felicidade retomava a idéia
de certa atividade da alma, mas supunha uma investigação anterior do que pode ser a virtude
moral (perfeita) que, por sua vez, leva-nos à investigação sobre a escolha deliberada e seu
papel no interior da virtude moral, mediante a introdução prospectiva de termos que ainda
serão melhor elucidados (assim como o homem prudente)
53
. A questão depende do que se
compreende por logos. Pode ser compreendido por faculdade que opera decisões ou como ato
50
Ibidem, II, 5, 1106 a 30-31.
51
Ibidem, II, 5, 1106 a 14-17.
52
Ibidem, II, 6, 1106b35.
53
Por ora é importante que se compreenda que “a escolher por deliberação é vista como que guiada pelo
prudente que é posto assim em realce ante a razão que segue, pois não teríamos outro acesso que não seja o ato
de ele próprio personificar tal razão. Esta última leitura parece-me a melhor; a ética aristotélica enfatiza
justamente o papel do prudente como nosso único critério para saber o que deve ser feito” (ZINGANO, 2008,
p.130).
38
ou resultado da faculdade, então deve-se ligar o ato à determinação de cada mediedade pela
reta razão. Essa orientação indica que, portanto, não seriam regras, mas antes decisões, a
saber, a faculdade prática encarnada pelo prudente
54
.
O Livro VI, em que Aristóteles examina a virtude intelectual no mundo prático, isto é, a
prudência completa a investigação sobre a natureza da virtude moral ao discorrer sobre a
virtude intelectual que torna a virtude moral uma virtude perfeita. A seguinte passagem
explicita a conclusão sucinta do conceito de virtude definido por Aristóteles:
Por ‘meio termo’ quero significar eqüidistante em relação a cada um dos extremos,
e que é único e o mesmo e relação a todos os homens; por ‘meio termo em relação a
nós’ quero significar aquilo que não é demais nem muito pouco, e isto não é único
nem o mesmo para todos [...] A excelência moral, então, é uma disposição da alma
relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num
meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças à
qual um homem dotado de discernimento o determinaria). Trata-se de um estado
intermediário, porque nas várias formas de deficiência moral há falta ou excesso do
que é conveniente tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto a excelência
moral encontra e prefere o meio termo. Logo, a respeito do que ela é, ou seja, a
definição que expressa a sua essência, a excelência moral é um meio termo, ma
com referência ao que é melhor e conforme ao bem ela é um extremo
55
.
No pensamento de Aristóteles, ética e política são articuladas no sentido do homem
aprender a ser feliz procurando concretizar na vida em sociedade o bem supremo, modelando
o caráter dos cidadãos, com a prática repetida de ações honradas, em virtuosidade. A virtude
deve tornar-se um hábito de todos que compartilham uma determinada comunidade. Para
Aristóteles é indubitável que o amigo verdadeiro é um bem grandíssimo para os homens, e o
identifica com o homem virtuoso. A condição para conquistar amigos bons é a de nos
tornarmos bons nós mesmos, pois de fato a amizade se entre homens reciprocamente bons
54
Observamos que a principal dificuldade desta leitura está na compreensão de não atribuirmos ao homem
prudente o papel de dar definição da virtude, o que é contudo, uma tarefa do filósofo, pois ao prudente cabe
dizer quais atos são virtuosos e não a definição da virtude moral. É preferível, portanto, voltar à leitura
tradicional e ligar à disposição de escolher por deliberação, que é limitada pela razão, a saber, tal como o
prudente a delimitaria.
55
EN, II, 6, 1106 b 5, 1107a 1.
39
e virtuosos. O tema da amizade nos remete, com efeito, ao conceito do homem que nos
conduz à dimensão da alma humana fundamentada sobre a virtude como conceitos articulados
e desdobramentos em categoria.
40
3. A AMIZADE NA ÉTICA A NICÔMACO
O capítulo anterior “Os caminhos que nos conduzem à felicidade” constitui a base de
inserção do problema refletindo sobre conceitos em conexão ao sistema aristotélico, a luz
tanto do estatuto humano da amizade quanto sobre as relações entre ética e metafísica
56
.
Abordamos como pressupostos o homem no conceito aristotélico e conseqüentemente o
conceito de felicidade e a fundamentação da amizade no conceito de virtude. O presente
capítulo trata do problema central: amizade e suas delimitações, destacando o fundamento da
amizade na EN, seguindo uma inquietação ética na qual identificamos a amizade como elo
de sociabilidade, que motiva a questão: por que a amizade é uma virtude necessária para
todas as outras e condição da relação entre ética e política? Daí a sucinta exposição do
contexto da amizade como tema filosófico, destacando a importância deste conceito na EN.
Propomos o princípio interpretativo com base no conceito de Aristóteles sobre a amizade
como virtude e condição da relação entre ética e política. Ao pensar o problema da amizade
nos reportamos à descrição realizada por Aristóteles quanto à distinção entre amor, amizade
e benevolência, e relatamos as diferentes espécies de amizade. A dimensão abrangente da
concepção de amizade no pensamento do Estagirita requer uma exposição sobre a relação da
amizade e as virtudes de justiça e prudência, e como se articulam na decisão do político e na
amizade política.
3. 1 - O CONTEXTO DE ORIGEM DA AMIZADE COMO TEMA FILOSÓFICO
A amizade surgiu como problema desde a Antiguidade, no momento em que o cerne da
discussão filosófica deixa de ser o cosmos e passa a ser o homem, num ambiente cultural e
político que envolve sérias questões morais na filosofia antiga. Neste contexto de discussão
das relações humanas em sociedade, faz-se necessária a discussão sobre a amizade, porque é
uma das relações que envolvem o homem em comunidade e proporciona o diálogo como
possibilidade para atingir a moderação das atitudes entre os homens. Sob este cenário da
56
Os termos ética e metafísica freqüentemente são associados em analogia por comentadores à antropologia e
teologia. Ver AUBENQUE, P. A Prudência. Sobre a amizade, 2008, p. 291e 292. “Que os homens possam
imitar, mesmo que ao preço de um subterfúgio, a unidade subsistente e originária e Deus, manifesta tanto a
potência dos homens quanto a grandeza, em suma, impotente de Deus. Em Aristóteles, o exemplo da amizade
mostra como uma teologia da transcendência se degrada,mas também se completa,em uma antropologia da
mediação”.
41
Grécia antiga, em que a ética e a moral se confundem, a amizade constitui laços sociais, pois
está intrínseca a todas as outras relações em sociedade. Sócrates deu início às discussões sobre
a justiça, a virtude e o amor entre os sofistas e Platão
57
, e também com Sócrates teve início a
reflexão filosófica sobre a amizade. Dessa problemática da amizade florescerá posteriormente
toda uma literatura, presente no Lisis e no Banquete platônicos, e terá maior significado nos
livros VIII e IX da Éthikon Nikomacheion [ou Ética a Nicômaco], e também bastante
representatividade na era helenística
58
.
3.2 - A AMIZADE COMO VIRTUDE
Consideramos que a amizade é uma relação bastante controversa, decorrente assim da
dificuldade em definirmos tal conceito, problema que os gregos enfrentaram na antiguidade. É
comum conflitarmos a natureza das amizades que temos em nossas vidas, mas, segundo
Aristóteles, sobre a amizade a certeza que é comum a todos como opinião geral é como a
presença dos amigos parece desejável em todas as circunstâncias
59
.
57
A leitura dos Diálogos de Platão: Mênon, Banquete e Fedro são relevantes para compreendermos o contexto
histórico em que se insere o problema e a relação entre a filosofia de Platão e Aristóteles, pois tratam de pontos
essenciais da filosofia deste pensador e cruzam-se problemas fundamentais da existência humana. Em Fedro e
Banquete Platão estuda nos dois diálogos a noção do amor, onde se origina, qual seu verdadeiro objeto, como se
situa e qual a função. Em Mênon, notamos a formação embrionária do sistema platônico. Trata-se de saber se a
virtude pode ou não ser ensinada, se existe ou não “ciência” da virtude, ou é um dom da natureza. Identificamos
a influência sofista bem viva neste diálogo. Os sofistas antigos ensinaram que as idéias são para os homens e não
os homens para as idéias. Isso ocasionou uma grande crise na filosofia antiga envolvendo sérias questões morais
e éticas que se confundem na filosofia grega.
58
Cf. REALE, G. História da Filosofia Antiga I. Trad.br. Marcelo Perine, Volume I, Loyola, São Paulo: 1993,
p. 284. Não é possível estabelecer qual foi o pensamento socrático da questão, pois há dificuldades para
discernimos o que diz Xenofonte e o que Platão diz de Sócrates, mas é possível extrair-se que Sócrates
contribuiu extremamente para depurar o conceito de amizade, ligando-o ao valor moral (Xenofonte, Memoráveis,
II, cap4-10) apud. ABBAGNANO, N. História da Filosofia I. Lisboa: 4ªEdição, Editorial Presença, 1985.
“Revela a solidariedade fundamental dos esforços que procuram tornar clara, tanto quanto é possível, a condição
e o destino do homem; solidariedade que se exprimi na afinidade das doutrinas, tanto como na sua oposição, na
sua concordância, tanto como na sua polêmica.” (Ibidem. p.09); ver ABBAGNANO, N. História da Filosofia
III. Lisboa: 3ªEdição, Editorial Presença, 1984, p. 243. Os epicuristas depois de Aristóteles exaltaram a amizade
como um dos fundamentos de sua ética e conduta prática, assumindo um caráter aristocrático; não considerando
como Aristóteles, vinculada às relações humanas como tais. A amizade decai como fenômeno humano primário
na literatura filosófica, e com o predominar do cristianismo o conceito mais importante passa a ser o do amor,
especificamente o amor ao próximo, mas que carece dos caracteres seletivos e específicos que Aristóteles
reconhecera na amizade. Neste caso o “próximo” é aquele com que nos deparamos mesmo por acaso,
eventualmente ou que está comumente em relação conosco, podendo ser amigo ou inimigo.
59
EN, IX, 11, 171b37.
42
De maneira geral, a amizade
(
φιλία
)
60
é a comunidade de duas ou mais pessoas ligadas
por afeto e atitudes concordantes voltadas para o bem. Aristóteles tem, entretanto, uma visão
mais ampla e extensa, e define a amizade como virtude e hábito, não como condicionamento,
mas como disposição de caráter, disposição ativa de empenho da pessoa ao bem. Uma vez
que, a ética visa à ação com moderação, predispondo o caráter a excelência moral, a apreciar
o que é certo evitando os erros “pois afirmamos que a finalidade suprema, e o principal
empenho desta ciência é infundir um certo caráter nos cidadãos - por exemplo, torná-los
bons e capazes de praticar boas ações”
61
. Posto que a política implica em toda relação entre
os homens, a amizade firma um nculo social, como virtude política, lembrando que o
homem não pode desenvolver as virtudes nem a felicidade sem a sociedade, por duas razões:
sem a sociedade não sobreviveria uma vez que em princípio precisaria dos bens
fundamentais, e sem as leis sociais nunca alcançaria as virtudes.
No Livro VIII, Aristóteles conceitua a amizade como virtude identificando-a com as
virtudes de maneira geral. Apresenta a amizade como uma relação fundamentada no bem, na
solidariedade, em sentimento recíproco e o homem como um ser social por natureza: temos
assim a justiça, a felicidade e a amizade como alicerces da sociedade.
Demonstra ainda as diferentes espécies de amizade e como se desenvolvem nas diversas
fases da vida do homem, inserindo a relação com o amor. Aristóteles, no Livro IX, descreve a
amizade política e o aspecto comunitário do bem na relação entre amizade, justiça e
felicidade, enfatizando os desdobramentos destes conceitos fundamentais em categorias como
a convivência e a concórdia ressaltando nessas relações a prudência e a justiça, em especial,
60
O contexto de fertilidade das discussões filosóficas sobre a virtude, a justiça e a felicidade entre os sofistas e
Platão, preparou o solo em que se situa a EN, realizando belíssima análise prática de como se manifesta a
amizade nas relações humanas. A pretensão desta exposição é enfatizar no tratado da EN a soberania da amizade
em relação às outras virtudes, igualmente sobre a justiça e a prudência, mesmo estas sendo destacadas por
Aristóteles como as virtudes mais importantes e por este motivo também estes conceitos obtiveram maior
repercussão entre os comentadores de Aristóteles no meio acadêmico e debates éticos e filosóficos em geral.
Porém analisando cuidadosamente a obra percebemos as sutilezas sobre a amizade que transcende enquanto lei
interior e anterior aos laços éticos e políticos. (Cf. AUBENQUE, P. A Prudência em Aristóteles Sobre a
amizade em Aristóteles, 2008, p.285. op. cit “Os bens da relação” do livro de Martha C. Nussbaum sobre The
fragility of Goodness, Cambidge, University Press) 1986. Sobre a amizade a comentadora e tradutora Marisa
Lopes indica outras orientações: ver BERTI, Enrico. II concetto di amicizia in Aristotele in II concetto di
amicizia nella storia della cultura europea, Atti del XXII, Congresso internazionale di studi ítalo-tedeschi,
Merano Academia di Studi Ítalo Tedeschi 1995, p. 102-122; e VOELKE, A.J. Les rapports avec autrui dans la
philosophie grecque d’Aristote à Panétius, Paris: 1961, p.37-63, 180-1.
61
EN, I, 9, 1099b 26-29.
43
na função do político. A função do estadista é criar as condições para o homem ser feliz em
sociedade.
Para Aristóteles, a finalidade do homem como ser político é a comunidade, é a
convivência em harmonia. A razão está no homem e provém do homem, porém o pensamento
é contemplativo e, não prático, pois não está a serviço. Por isso devemos ter discernimento
(prudência), sendo esta a virtude suprema do político. A felicidade é uma atividade da alma
conforme a virtude. A alma, que se divide em racional e irracional, tem na parte racional as
causas primeiras, os primeiros princípios, os fundamentos e a prudência (discernimento), que
é responsável pelo intelecto e pode ser aperfeiçoado pela razão e pela experiência.
Desenvolve-se e atualiza-se por meio do conhecimento. Na parte irracional encontra-se o
instintivo que pode ser aperfeiçoado pelas virtudes do caráter, pelo bito. Educamos as
pessoas, primeiro pelo hábito, depois pela razão, pois é praticando bons atos que nos
tornamos bom.
Posto que a felicidade se divide em duas partes: a realização suprema da contemplação e o
aperfeiçoamento das virtudes do caráter (buscando o eqüilíbrio das paixões). A natureza
humana atinge seu fim último por meio da racionalidade. A felicidade como tal tem de ter
prazer sem esforço algum. A felicidade, porém, também requer coisas exteriores. Na
contemplação, na vivência da felicidade com a prática das virtudes, aperfeiçoamos a razão, o
intelectual. A amizade, como prática virtuosa, traz em si, a noção do bem, do prazer e da
utilidade assim como o conhecimento. Aristóteles compreende quanto mais destituído de
praticidade, maior o nível do conhecimento, associando-o ao prazer e não à utilidade. Na
experiência da amizade, em relação com o outro seja por meio do bem, do prazer ou da
utilidade, envolve anteriormente o conceito de interesse, mesmo que seja o interesse pelo
prazer da agradável companhia do outro. Nesse sentido, a amizade é conhecer e podemos
compreender que a amizade tem como fundamento o conhecimento.
O interesse está inserido na origem de toda relação, sobretudo da amizade, pois o homem
como ser social naturalmente associa-se em comunidade, e se relaciona com o outro por
necessidade de ação política e realização em sociedade. Conforme Aristóteles, a natureza
apresenta-se como modelo normativo para a sociedade, e assim, com base no princípio de
desigualdade entre os homens, as relações diferem no objeto de interesse destas. Tendo em
vista que todas as relações como ações visam ao bem, e que “o bem para o homem vem a ser
44
o exercício ativo das faculdades da alma de conformidade com a excelência, e se mais de
uma excelência, de conformidade com a melhor e mais completa entre elas” (EN, I, 7, 1098a
34-36), que é a felicidade identificada com as virtudes.
No Livro VIII, ao tratar sobre a amizade, Aristóteles afirma “a natureza da amizade, pois
ela é uma forma de excelência moral além de ser extremamente necessária na vida” (EN,
1,1155a 2-3). A reflexão de Aristóteles desenvolve a definição da amizade como virtude e
condição necessária da relação ética e política. A indagação central apresentada é por que
Aristóteles conceitua a amizade como virtude e condição da relação entre ética e política?
Aristóteles considera que os amigos são a medida de nossos atos, pois no amigo devemos ser
um outro eu. Sendo a ética agir com moderação, então o diálogo é uma forma de se buscar
essa justa medida. Na amizade política é essencial o diálogo entre os cidadãos. “Além disso os
amigos estimulam as pessoas na plenitude de suas forças à prática de ações nobilitantes-
‘quando dois vão juntos...’- pois com amigos as pessoas são mais capazes de pensar e de
agir”(EN, VIII,1, 1155a 14-17). Nesse sentido a amizade é um convite a humanizar-se,
mediante a comunicação, o diálogo.
Aristóteles considera a amizade como virtude soberana em relação às demais, pois é a
única que não solicita a justiça, pois a amizade em si é justa, daí descrever a amizade política,
que é a amizade civil. Portanto, o bem comum em sociedade e a concórdia são fundamentos
para a amizade e para haver amizade tem de haver convívio. Cabe salientarmos que a
concórdia aludida neste estudo, não está na identidade de opiniões, e sim no comum acordo de
respeito às individualidades e convivência em harmonia com as diferenças. A participação
entre amigos proporciona ensinamentos e aprendizados e conseqüentemente o
desenvolvimento e evolução de todas as potencialidades humanas. A amizade é necessária
para que o homem se realize como indivíduo e em sociedade, sem amizade não se é feliz, nem
se tem justiça. É nessa tríade (amizade -justiça - felicidade) que identificamos o aspecto
comunitário do bem e a amizade como condição da relação entre ética e política na concepção
de Aristóteles.
Há tantas espécies de amizade quanto são as comunidades, ou seja, as partes da sociedade
civil (ex: soldados, navegantes...). Compartilhar interesses como trabalho, esporte, atividades
artísticas, também é compartilhar amizade na participação diária. A amizade é tanto mais
forte quanto mais comum entre iguais. Os gregos antigos admitiam à amizade uma conotação
45
que não distinguia o amor e a amizade. Aristóteles busca uma distinção entre o amor e a
amizade, busca uma definição de amizade tendo como princípio um ponto comum,
designando-a como uma convivência boa e agradável. Podemos dizer que Aristóteles teve de
Platão a lição de reciprocidade, que implica igualdade e não exclui a diferença, o outro não é
um outrem, mas enriquece a relação com sua diferença
62
.
Segundo Aristóteles, ninguém
vive sozinho, pois o homem é um animal político por natureza, destinado a conviver com os
outros em comunidade. Então, não podemos viver sem amigos, precisamos para partilhar as
alegrias e para refúgio em momentos de sofrimento. Aristóteles neste ponto sintoniza com a
tradição helênica: “É um prazer poder partilhar a felicidade com amigos, mas que Deus não o
permita! - se uma desgraça sobrevier, é doce mergulhar o olhar nos olhos de um amigo”
(Eurípides, Íon, 730-732).
A virtude da amizade, porém, não é apenas uma virtude individual, mas também uma
virtude política com um papel fundamental na pólis. “Ao passo que a função do amigo, sendo
um outro ‘eu’, é proporcionar as coisas que a pessoa própria não pode obter” (EN, IX, 9,
1169b 4-6). Aristóteles reconhece o outro como mediador, como abertura para a alteridade.
Conhecer a si mesmo no reconhecimento do outro. No exercício da amizade está fazendo o
seu modo de ser. Ver o amigo como mediação, outro si mesmo, diverso de si, sendo esse
outro o amigo. A amizade é convivência em busca do bem, do aperfeiçoamento mútuo que
jamais termina de ser realizado, pois é movimento, é atualização constante. Enfim, Aristóteles
conceitua a amizade como virtude, nobilitante e, sobretudo necessária, pois com os amigos
compartilhamos as conquistas, os fracassos, as dificuldades e também a prosperidade. Se não
temos amigos de nada valem os bens, as riquezas, e até mesmo o poder, pois não podem ser
conservados nem usados sem os amigos.
62
ROCHA, Zeferino. O amigo, um outro si mesmo: a philia na metafísica de Platão e na ética de
Aristóteles, Psiché, jan-jun, ano/volume X, 017, Universidade de São Marcos, São Paulo, 2006, p.70(65-86).
Zeferino Rocha reconhece em Aristóteles a dialética do si que se afirma pela mediação do diverso do si.
Platão apela para a noção de intermediário: o objeto da amizade participa tanto da semelhança quanto da
dessemelhança, tornam-se proporcionalmente semelhantes sem deixar de ser diferentes. Descobrimos já na
metafísica aristotélica, a mediação do outro como elemento indispensável para a constituição da subjetividade,
que a Filosofia, as ciências contemporâneas do homem e particularmente a psicanálise exaltam.
46
3. 3 - AMOR, AMIZADE E BENEVOLÊNCIA: A PROPÓSITO DA DISTINÇÃO
ARISTOTÉLICA
Aristóteles faz a importante distinção entre o amor (ερως)
63
, a amizade e a benevolência
(ευνοια)
64
, com os quais a amizade parece mais estritamente afim. O amor assemelha-se à
amizade, mas diferenças. Diferença qualitativa e não quantitativa. Muitos julgam o amor
como sentimento maior, mas Aristóteles considera a amizade mais forte e completa do que o
amor. O amor é sensibilidade, é emoção, mas nem tudo que nos parece bom, que se revela aos
nossos sentidos é bom para nossa natureza. Segundo Aristóteles, podemos amar até mesmo
objetos, seres inanimados, apesar de nesse caso não ser recíproco. Podemos amar sem ser
amado, podemos amar as pessoas falsas, enquanto somos enganados. A amizade reside no
bem, por isso amizade verdadeira pode haver entre pessoas boas. Sabemos que a
experiência moral está em amar mais que ser amado, mas, segundo Aristóteles, a relação de
amizade naturalmente, além de uma relação de sentimentos positivos recíprocos é um traço de
caráter. Portanto, a amizade se revela de fato, por meio do diálogo na convivência. A
verdadeira amizade permanece enquanto há bondade, desejo do bem recíproco.
O amor, porém, pode acabar mesmo existindo o bem, por exemplo, quando em situações
de separação conjugal, a amizade prevalece por causa dos filhos mesmo quando o
relacionamento amoroso terminado, uma vez que Aristóteles compreendia as relações com
base nos interesses comuns sociais, por isso a amizade começa geralmente na utilidade, como
interesse, e pode passar a ser por prazer e pelo bem. É em vista do bem querido que se
distinguem os três modos de amizade: conforme a utilidade, o prazer e o próprio bem. As três
formas nos reportam à beneficiência, como a relação social onde os problemas da
reciprocidade e da igualdade se resolvem da melhor maneira. E por essa via chega-se à
magnitude, à grandeza da alma, quando o impulso pela amizade se apresenta na forma mais
pura e incondicionada
65
. O amor é semelhante a uma afeição e a amizade é um bito, a
amizade é assim mais extensa do que o amor, que o gozo da beleza limita e condiciona
66
.
63
Ver MARCONDES, Danilo. Amor e amizade/Eros e Philia. XX Fórum Nacional Brasil, “Um novo mundo
nos trópicos”, PUC-RIO, Maio 2008, p.02-09.
64
GIANNOTTI, José Arthur. A. O amigo e o benfeitor. Reflexões sobre a φιλία ponto de vista de
Aristóteles. Revista Analytica, volume 1, número 3, 1996, p.165-177. Comenta o tema.
65
Ibidem, p.168.
66
MARCONDES. Amor e amizade/Eros e Philia, XX Fórum Nacional Brasil, “Um novo mundo nos trópicos”,
p.02-09.
47
Parece que o amor é uma emoção e a amizade é ume disposição de caráter; de fato,
pode-se sentir amor também por coisas inanimadas, mas o amor recíproco
pressupõe escolha e a escolha tem origem numa disposição do caráter; além disto,
desejamos bem às pessoas que amamos pelo que elas são, e não em decorrência de
um sentimento, mas de uma disposição do caráter. Gostando de um amigo as
pessoas gostam do que é bom para si mesmas, pois a pessoa boa tornando-se
amiga, torna-se um bem para o amigo
67
.
A benevolência é o querer bem ao outro, e o amor distingui-se desta, pois a boa vontade
pode haver até por uma pessoa que nunca vimos. Está presente em pessoas boas ou prestativas
e às vezes pode ser retribuído este sentimento, mas nem sempre, podendo permanecer oculta,
o que não ocorre na amizade. Na dimensão ética de Aristóteles, o amor de si mesmo é
correlativo do amor que se tem pelo amigo. O viver bem implica viver bem com o outro, isto
é, implica reciprocidade, que é a essência da amizade. Conforme Aristóteles, a amizade é
construída na troca, no intercâmbio, numa doação recíproca, numa relação de convivência
entre amigos, constituída por meio da intimidade e do respeito mútuo.
3. 4 - AS DIFERENTES ESPÉCIES DE AMIZADE
No pensamento aristotélico, apresentado na EN, há três espécies (ou formas) de amizade
68
em número igual às qualidades que merecem ser amadas. Isto implica que para entendermos
67
EN, VIII, 5, 1157b 5-16.
68
BERTI, Enrico. A relação e as formas de amizade segundo Aristóteles. Trad.br. Marisa Lopes. Revista
Analytica, volume 6, mero 1, 2001-2002, p.23-44. Enrico Berti como célebre comentador da Filosofia Antiga
discute o tema em Aristóteles. É notória a extensão ocupada pela virtude da amizade na EN Aristóteles define a
(φιλία) como todas as formas de atração que um ser humano experimente em relação ao outro ser da mesma
espécie. Aspásio, o comentador mais antigo da EN que em muito influenciou a apropriação moderna do
aristotelismo, no segundo séc. de nossa era realizou a reconciliação entre as três Éticas acerca das diferentes
formas de amizade. Porém Berti conclui de não estar convencido de nenhuma das interpretações atribuídas e
continua inquieto em busca de outras compreensões. Indica a semelhança tanto do aspecto da identidade como
da diferença. Mostrou-se até então o aspecto da identidade entre as formas, ou seja, que a amizade fundada na
virtude também é útil e agradável. As amizades por utilidade e por prazer são por o acidente (em virtude de outra
coisa indiretamente). Os amigos segundo a forma perfeita de amizade são semelhantes em relação ao
comportamento do outro. Reafirma a relação de semelhança entre homens virtuosos. divergências de
interpretações, mas ambas as versões estão presentes nos manuscritos do comentário de Aspásio quanto nos
manuscritos da tradução medieval de Groteste. A primeira interpretação identifica a semelhança entre amigos
virtuosos, adotada por Susemihl, Burnet, Apelt, Rackam, Tricot e Gauthier-Jolyf, e a segunda a semelhança
48
as espécies de amizade devemos antes conhecer os objetos do amor. As razões dos objetos do
amor diferem especificamente entre si, e conseqüentemente as formas correspondentes de
amor e amizade também diferem:
Parece que nem todas as coisas são amadas, mas somente aquelas que merecem ser
amadas, e estas são o que é bom, ou agradável ou útil, parece que o útil é aquilo que
resulta algum bem ou prazer, de tal forma que somente o bom e o agradável
merecem ser amados como fins
69
.
Existe uma relação de analogia entre as formas de amizade, uma vez que as três formas
de amizade não são iguais nem inteiramente desiguais. Há entre elas uma semelhança na
dessemelhança, e uma dessemelhança na semelhança
70
. Segundo Aristóteles, são três as
formas: amizade por utilidade ou interesse, a amizade por prazer ou pelo agradável, e a
amizade pelo bem. Daí sustentar:
que uma afeição recíproca em ambas as partes, pode basear-se em cada uma das
três qualidades, e quando duas pessoas se amam elas desejam bem uma à outra se
referindo à qualidade que fundamenta a sua amizade
71
.
Quanto às diferentes espécies de amizade nas diversas fases da vida, é comum
encontrarmos a amizade por interesse ou utilidade, na adolescência e na velhice. A amizade
por prazer, por ser agradável é freqüente na adolescência e juventude, podendo haver na
entre as diferentes formas de amizade por Bywater, e Dirlmeier. Apresenta a concepção da relação de amizade
como semelhança na EN: a) como indicando uma semelhança entre objetos passíveis de amizade; b) entre as
formas de amizades mais que entre amigos. A distinção entre os objetos da amizade, ou seja, os diferentes
sentidos do termo “bom”, formula a distinção entre as formas de amizade, sob a forma precisa de homonímia
relativa.
69
EN, VIII, 2, 1155b 3-6.
70
ZINGANO, Marco
.
Amizade em Aristóteles: Unidade Focal e Semelhança, Revista Analytica, Volume 6,
número 1, 2002, p.19-22. Zingano valendo-se da unidade focal presente na EE e MM, na platonização em
Aristóteles introduzindo uma relação da semelhança onde antes vigorava a unidade focal (os ingleses
chamavam de Focal mearning). São diversas compreensões e na EN, conciliando as duas questões, a noção de
semelhança não é platônica, mas muito mais unidade focal. A homonímia relativa é o consilio, como tratado
por Aspásio.
71
EN, VIII, 3, 1156a 4. Esclarece a identificação das diferentes espécies de amizade, demonstrando a correlação
do objeto do amor, respectivamente determinando a razão que diferencia as espécies de amizade entre si.
49
velhice. Algumas amizades, que visam o interesse, são por conveniências, e são firmadas
numa “cordialidade”, às vezes um tanto “hipócrita”, pois sem afeto. Como por exemplo:
parentes da família pouco íntimos e distantes que por vezes hospedamos em nossa casa. Na
juventude, como vimos, é freqüente a amizade por prazer; entre os velhos é freqüente a
espécie de amizade por utilidade, pois, na medida em que envelhecemos, também mudam as
espécies de amizade. Para a amizade verdadeira é preciso, porém, à convivência, gastar tempo
com o amigo, isto é, a participação em presença na vida do amigo fundamenta a igualdade e
semelhança como essência da amizade. De fato não podemos viver a amizade verdadeira com
muitas pessoas, pois não há como se fazer presente na vida de todos os amigos e como afirma
Aristóteles “é difícil que uma pessoa possa participar intimamente das alegrias e tristezas de
muitas outras, pois provavelmente acontecerá que alguém tenha ao mesmo tempo de alegrar-
se com um amigo e chorar com outro” (EN, IX, 10, 1171a 15).
A amizade virtuosa é a mais duradoura, pois a virtude é uma modalidade excelente de ser
e de agir. Aristóteles conclui que a amizade perfeita ocorre entre os homens que são bons
reciprocamente
72
, que se amam pelo bem próprio em virtude, as pessoas boas têm em si a
amizade perfeita, pois apenas as virtuosas são amigas no sentido absoluto, no querer o bem do
outro. Conforme Aristóteles:
A amizade perfeita é existente entre as pessoas boas e semelhantes em termos de
excelência moral; neste caso, cada uma das pessoas quer bem à outra de maneira
idêntica, porque a outra pessoa é boa, e elas são boas em si mesmas. Então as
pessoas que querem bem aos seus amigos por causa deles são amigas no sentido
mais amplo, pois querem bem por causa da própria natureza dos amigos, e não por
acidente logo, sua amizade durará enquanto estas pessoas forem boas, e ser bom é
uma coisa duradoura
73
.
Querer o bem do próximo (o amigo) constitui o elemento fundamental da amizade
perfeita. As espécies anteriores fazem parte da realidade humana, ainda que não tenham a
mesma definição da amizade perfeita, são também chamadas de amizade, mas não o que
encontramos na amizade verdadeira e perfeita pelo bem. O bem exerce caráter comunitário na
72
BERTI, E. A relação e as formas de amizade segundo Aristóteles, p.23-44.
73
EN, VIII, 3, 1156b 12-19.
50
sociedade por meio da amizade. Sendo a comunidade, a comunhão do bem, requer elementos
como o amor, a amizade e intimidade, que segundo Aristóteles, a experiência da convivência
irá concretizar:
O amor e a amizade, portanto, ocorrem principalmente e em sua melhor forma entre
tais pessoas. Mas é natural que estas amizades sejam raras, pois as pessoas deste
tipo são poucas. Ademais, amizades desta espécie pressupõem tempo e intimidade;
como diz a sabedoria popular, não podemos conhecer as pessoas enquanto elas não
tiverem ‘consumido juntas o sal proverbial’
74
.
A amizade por prazer termina quando termina o prazer. A amizade por utilidade termina,
quando termina a utilidade. Uma vez que, na amizade perfeita os verdadeiros amigos são
unidos no que de essencial, são semelhantes em virtudes, desejam igualmente o bem
mútuo, e enquanto há bondade, há amizade, e se já não há virtude na amizade e nem bondade,
não haverá a perfeita e verdadeira amizade
75
. Se observarmos, veremos que na amizade
perfeita, sem nem mesmo esperar encontra-se a bondade própria e específica dessa espécie de
amizade, encontrando tudo o que nas outras e muito mais. Na convivência encontra-se o
agradável prazer e a utilidade da participação de bondade recíproca. Sob esse aspecto, o útil, o
prazeroso e o bem são a mesma coisa. “Esta espécie de amizade, então, é perfeita
relativamente à duração e a todos os outros aspectos, e nela cada parte recebe da outra em
todos os sentidos o mesmo que lhe dá, ou algo muito parecido; e é isto que deve ocorrer entre
amigos” (EN, VIII, 4, 1156b 10-13).
Aristóteles discorre sobre as amizades que envolvem uma desigualdade entre as partes,
em geral a amizade entre quem manda e quem obedece
76
. Diferem entre si, são relações
74
Ibidem, 1156b 35-40 e Cf: EE, 1238a 2: “por isto a pitada de sal se tornou provérbio”.
75
Sobre os limites da amizade, Cf. AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles. Sobre a amizade em
Aristóteles, 2008, p.285. “É o destino trágico da amizade, querer bem para o amigo um bem tão maior quanto
mais pura for a amizade e, no entanto, ela apenas pode subsistir se o amigo permanecer tal como é”: nem Deus,
nem mesmo sábio, mas simplesmente homem. A amizade tende a se desviar na própria transcendência que ela
deseja. No limite, a amizade perfeita destrói a si mesma. A amizade encerra, pois, em sua definição uma
imperfeição que se poderia dizer de essência.”. Ibidem, p.287.
76
Ibidem, pp. 287, 288. Como exemplo a impossibilidade de amizade entre o senhor e o escravo, que são iguais
enquanto animais, mas não enquanto homens. Segundo comentário de Aubenque sobre a amizade, diz que a
amizade é humana em sua origem e por isso humana em seu objeto, logo, não pode se dirigir a Deus, tampouco a
objetos inanimados, animais ou escravos.
51
como, por exemplo, entre pais e filhos, entre pessoas velhas e jovens, entre marido e mulher.
A virtude e a função de cada uma dessas pessoas é diferente, e diferem igualmente quanto ao
amor e as razões pelas quais se envolvem as pessoas amigas. Cada parte, portanto, não recebe
a mesma coisa e nem deveria pretender isso. Por exemplo, a relação entre pai e filho é num
sentido monárquico
77
. Entre homem e mulher parece ser uma relação aristocrática, ou seja, os
homens exercem poder nos assuntos fundamentais ao seu mérito
78
. Podemos fundamentar a
amizade entre o homem e a mulher no âmbito da moral. A primeira aproximação, a amizade
inicial, surge, porém, como necessidade natural, assim como acontece com os animais que se
aproximam pela reprodução. A amizade entre o casal surge como necessidade natural, por
começar sendo por utilidade, mas poderá tornar-se perfeita
79
.
Aristóteles descreve as três qualificações da amizade também quanto à igualdade entre
amigos
80
. No caso de amizades entre desiguais, como por exemplo, a amizade por interesse,
em que exista uma superioridade de bens materiais, de um em relação ao outro, se dissolverá
facilmente, a não ser que seja recompensado com reconhecimento e gratidão proporcionais.
Na amizade por interesse (sejam úteis ou agradáveis), é comum haver reclamações ocasionais
da parte de um ou de outro; geralmente ocorre insatisfação de uma das partes. Nas amizades
verdadeiras entre iguais, a relação se sustenta na excelência, no amor mútuo que visa mais o
bem do outro, do que receber objeto e reconhecimento. Enfim, deve haver uma
proporcionalidade nas amizades desiguais.
77
Aristóteles faz uma comparação das formas de manifestações de amizade, com as três formas de governo e
respectivas distorções, que conferimos também na Política. Este ponto especificamente trata da relação entre
pais e filhos.
78
Não apenas por autoridade, pois às vezes as mulheres podem exercer autoridade, mas apenas quando são
herdeiras. Nesse contexto, o homem é mais perfeito. O dono (a) do patrimônio, se ela é quem recebe a herança, a
mulher tem autoridade não por seu exemplo de virtuosidade, mas sim por dominância dos bens. Em Aristóteles o
gênero feminino é imperfeito, a mulher nasce menos desenvolvida em relação ao homem. Para realizar a
natureza feminina falta atualizar as suas potências, mas tem possibilidade de se desenvolver e ser completa.
79
Sendo assim, a amizade entre marido e mulher existe por natureza, logo eram antes homem e mulher, depois
da união, serão denominados marido e mulher. Daí existir uma relação funcional, por necessidade de
convivência, de complemento, de cumplicidade. A amizade verdadeira e perfeita surge, nesse momento, no
crescimento moral de ambos, do casal. Quando a decisão de estarem juntos é por serem bons e virtuosos
reciprocamente, a relação será acrescida da amizade. A mulher como instância de perfeição moral da vida do
homem.
80
ZINGANO, M. Amizade em Aristóteles: Unidade Focal e Semelhança. 2002, p.19-22. Na EN as duas
formas de semelhança, a existente entre os amigos e a existente entre as formas de amizade, não se excluem,
mas coexistem, ( EN, VIII, 6, 1157b 1-5). Apresenta alguma precisão estabelecendo uma espécie de hierarquia
entre as duas últimas formas, segundo seus graus de semelhança com a primeira. (Ibidem,1158a 18-21).
52
As pessoas, porém, que permutam não o prazer mas interesses e sua amizade são
menos amigas de verdade e menos constantes. As que o amigas por interesse
separam-se quando o proveito está acabando, pois elas não eram amigas uma da
outra, e sim do proveito [...] Com efeito, as pessoas chamam de amizade até as
relações cujo motivo é o interesse (nesta acepção pode-se dizer que as cidades m
relações amistosas, pois as alianças parecem visar as vantagens) e aquelas em que
as pessoas se amam por prazer
81
.
Outro ponto relevante é que a disposição para a amizade é distinta da atividade da
amizade e do afeto, isto é, uma vez que a amizade perfeita como virtude pode ser considerada
um estado, uma disposição, com a distância não atividade da amizade, pois não mais a
atividade de convívio, mas para tornar-se perfeita e virtuosa houve o convívio e o conhecer o
amigo em determinado tempo que possibilitou o embasamento da relação: Neste caso,
portanto a distância não implica necessariamente o fim da amizade. Aristóteles escreve:
Acontece no caso da amizade o mesmo que ocorre a respeito da excelência moral:
algumas pessoas são chamadas boas em relação a uma disposição de caráter e outras
em relação a uma atividade [...] A distância não desfaz absolutamente a amizade, mas
somente a atividade
82
.
Assim encerramos as formulações de maior relevância quanto aos caracteres das espécies
de amizade, dando continuidade aos critérios inerentes à relação amizade, justiça, prudência e
política.
81
EN ,VIII, 4, 1157a 17-21; 35-38.
82
Ibidem, VIII, 5, 1157b 1-7.
53
3. 5 - A AMIZADE E AS VIRTUDES DE JUSTIÇA E PRUDÊNCIA
3.5.1 - A JUSTIÇA
No Livro V, Aristóteles discorre sobre a justiça (διχαιοσύνη) realizando as relações e
considerações necessárias com a injustiça e indica a necessidade de indagarmos sobre as
espécies de ações com as quais elas se relacionam que espécie de meio termo é a justiça, e
entre que extremos o ato justo é o meio termo, posto que, “não é suficiente desejar deixar de
ser injusto para tornar-se justo”
83
. Aristóteles diz que geralmente todas as pessoas
compreendem a justiça como uma disposição da alma à qual se deve a disposição a fazer o
que é justo, a agir justamente e desejar o que é justo. Do mesmo jeito acontece em relação à
injustiça que é então a disposição da alma a qual se deve o agir injustamente e o desejar o que
é injusto
84
.
Os atos justos tendem a produzir e preservar a felicidade e elementos que
compõem a comunidade política.
Segundo Aristóteles, em relação à disposição da alma, não acontece o mesmo com as
ciências e com as aptidões, pois uma única aptidão ou ciência trata de coisas contrárias, mas
uma disposição da alma que leva a um certo resultado não pode levar também ao resultado
contrário. Portanto, reconhecemos muitas vezes uma disposição da alma graças à outra
contrária, e muitas vezes as disposições são identificadas por via das pessoas nas quais elas se
manifestam.
Disto decorre que, na maioria dos casos, se um dos contrários é ambíguo o outro
será também ambíguo-por exemplo, se ‘justo’ é ambíguo, ‘injusto’ e ‘injustiça’
também serão [...] Determinemos então em quantos sentidos se diz que uma pessoa
é injusta. O termo “injusto” se aplica tanto às pessoas que infringem a lei e as
pessoas corretas serão justas. O justo, então, é aquilo que é conforme à lei e correto,
e o injusto é o ilegal o iníquo
85
.
83
EN, III, 1114a 13-14.
84
“Segundo dizem todas as pessoas, a justiça é a disposição da alma graças à qual elas se dispõem a fazer o que
é justo, agir justamente e a desejar o que é justo; de maneira idêntica,diz-se que a injustiça é disposição da alma
graças à qual elas agem injustamente e desejam o que é injusto. Adotemos também esta definição em
princípio”(.EN, V,1, 1129a 5-9).
85
Ibidem, V, 1,1129a 26-28; 36-43.
54
Aristóteles menciona as palavras de Bias, segundo o qual “o exercício do poder revela o
homem”, pois, “os governantes exercem necessariamente o seu poder em relação aos outros
homens e ao mesmo tempo são membros da comunidade”
86
. Observando-se que a dificuldade
maior não é praticar a excelência moral em relação a si, mas, sobretudo, em relação ao outro
que não seja amigo A propósito do sutil limiar entre a excelência moral e a justiça, Aristóteles
considera:
Com efeito, a justiça a forma perfeita de excelência moral perfeita. Ela é perfeita
porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não
somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo [...] A
diferença entre a excelência moral e a justiça nesse sentido é óbvia diante do que
dissemos: elas são a mesma coisa, mas sua essência não é a mesma; a disposição da
alma que é a justiça praticada especificamente em relação ao próximo, quando é um
certo tipo de disposição da alma que é a justiça praticada especificamente em
relação ao próximo, quando é um certo tipo de disposição irrestrita, é a excelência
moral
87
.
Conforme Aristóteles, a justiça é uma parte da excelência moral, que distingue dois tipos
de justiça: a distributiva e a corretiva. A justiça distributiva é manifesta na distribuição das
funções elevadas de governo, e todas as outras coisas que devem ser divididas entre os
cidadãos que compartilham dos benefícios outorgados pela constituição da cidade. No que
concerne ao princípio da justiça distributiva podemos afirmar que, portanto, é a conjunção do
primeiro termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o justo nesta
acepção é o meio termo entre dois extremos desproporcionais, sendo o proporcional um meio
termo, e o justo é o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade
88
. No que
concerne à justiça corretiva, esta se manifesta tanto nas relações voluntárias quanto
involuntárias e desempenha uma função corretiva nas relações entre as pessoas. Aristóteles
descreve:
86
EN, 1, 1130a, 12-14. Ver VERGNIÈRES, S. Ética e Política em Aristóteles: physis, ethos, nomos, p.160.
87
EN, V, 1,1130a.6-11; 25-29
88
Ibidem, 3, 1131b 20-24.
55
A justiça, corretiva, portanto, será o meio termo entre perda e ganho. É por isto que,
quando ocorrem disputas, as pessoas recorrem a um juiz, e ir a um juiz é ir à
justiça, porque se quer que o juiz seja como se fosse a justiça viva; e elas procuram
o juiz no pressuposto de que, se ele é uma pessoa ‘eqüidistante’, e em algumas
cidades os juízes são chamados de ‘mediadores’, no pressuposto de que, se as
pessoas obtêm o meio termo, elas obtêm o que é justo. O justo, portanto, é em certo
sentido um meio termo entre o ganho e a perda nas ações que não se incluem entre
as voluntárias, e consiste em ter um quinhão igual antes e depois da ação
89
.
No pensamento de Aristóteles é a reciprocidade proporcional que mantém a cidade unida,
pois esta garante a associação entre as partes, mensurados por meio de um padrão que na
verdade é a demanda, que mantém a união entre a comunidade. Este padrão tornou-se por
convenção uma espécie de representante da demanda, existente não por natureza, mas pela lei,
estando em nosso poder mudá-lo e torná-lo inútil. Destacamos que a investigação em proposta
está voltada ao justo no sentido irrestrito e o justo em sentido político. Observando que é a
competência no aspecto político mais relevante para a abordagem desta pesquisa, por isso
aprofundamos o estudo neste ponto.
Todas as formas de associação são como se fossem partes da comunidade política;
efetivamente, os homens empreendem uma viagem juntos com o intuito de obter
alguma vantagem e de obter alguma coisa de que necessitam para viver; e é com
vistas a vantagens para seus membros que a comunidade política parece ter-se
organizado originariamente e ter-se perpetuado, pois o objetivo dos legisladores é o
bem da comunidade, e eles qualificam de justo aquilo que é reciprocamente
vantajoso
90
.
A justiça política tem como objetivo assegurar a auto-suficiência do grupo, em que são
consideradas pessoas livres e proporcionalmente iguais. O justo político existe entre
pessoas nas quais as relações mútuas são regidas pela lei, pois a justiça no sentido legal,
segundo Aristóteles, é a discriminação entre o que é justo e injusto. Aristóteles considera que
a justiça do senhor para com o escravo, a do pai para com o filho, apesar de assemelharem-se
89
Ibidem, V, 4, 1132b 4-10.
90
Ibidem, VIII, 9, 1160a, 28-35.
56
à justiça política não são iguais a esta, pois não justiça ou injustiça nestas relações no
sentido político. Daí a formulação seguinte:
É por isto que não permitimos que um homem governe, e sim a lei, porque um
homem pode governar em seu próprio interesse e tornar-se um tirano. Mas a função
do governante é ser o guardião da justiça e, se ele é guardião da justiça, também é
guardião da igualdade [...] Com efeito, a justiça e injustiça, como já vimos, estão
consubstanciadas na lei, e existem entre pessoas que alternadamente participam do
governo e são governadas
91
.
Na reflexão aristotélica existe uma justiça natural e uma justiça que não é natural, e a
justiça que não é natural é a justiça legal e por convenções, embora tanto a justiça natural
como a legal sejam mutáveis. As coisas que são justas por convenção e conveniência o
como se fossem instrumentos para medição, e como são decisões humanas não são as mesmas
em todos os lugares, já que as constituições também não são as mesmas em todos os lugares
.
Cada uma das regras de justiça das legais se relaciona com as ações da mesma
forma que o universal se relaciona com seus casos particulares, pois as ações
praticadas são muitas, enquanto cada regra ou lei é uma, já que é universal
92
.
Segundo Aristóteles, podemos praticar atos premeditados, e outros sem premeditação
considerando que os atos praticados premeditadamente são os atos realizados após
deliberação, e não premeditados aqueles realizadas sem deliberação. Sendo assim, quando o
dano ocorre de modo contrário à expectativa razoável, trata-se de um infortúnio, não
necessariamente pressupõe deficiência moral, mas trata-se de um erro
93
. Portanto, se considera
91
Ibidem, V, 6, 1134b 25-29;37-39.
92
Ibidem, V, 7, 1135a 31-34. VERGNIÈRES, S. Ética e Política em Aristóteles: physis, ethos, nomos,, p.160.
Na terceira parte, no Capítulo 2: O justo e a lei.
93
Esclarecendo: “Quando a pessoa age conscientemente, mas não deliberadamente, trata-se de uma injustiça -
por exemplo, os atos devidos à cólera ou a outras emoções incontroláveis ou naturais na criatura humana;
realmente, quando as pessoas praticam tais atos lesivos e errados elas agem injustamente, e seus atos são atos de
injustiça, mas isto não significa necessariamente que os agentes são injustos ou maus, pois a ofensa não é devida
à deficiência moral. Quando, porém, uma pessoa age deliberadamente, ela é injusta e moralmente deficiente”
(Ibidem, V, 8, 1135b 54-61).
57
com razão que os atos em razão da cólera não são premeditados com intenção criminosa, pois
quem inicia a ação não é a pessoa que age sob o efeito da cólera, e sim aquela que encoleriza
o agente. “Além disto, não se discute se o fato aconteceu ou não, e sim a sua justificação, pois
a ocorrência do ato não é discutida” (EN, V, 8, 1136a 1-5) é fato
94
. Quanto à relação entre
amizade e justiça Aristóteles estreita os laços destes conceitos que descrevemos do seguinte
modo:
Como dissemos no início, a amizade e a justiça parecem relacionar-se com os
mesmos objetos e manifestar-se entre as mesmas pessoas. Realmente, parece que
em todas as formas de associação encontramos alguma forma peculiar de justiça
também de amizade; nota-se pelo menos que as pessoas se dirigem como amigas
aos seus companheiros de viagem e aos seus camaradas de serviço militar, tanto
quanto aos seus parceiros em qualquer outra espécie de associação. Mas a extensão
de sua amizade é limitada ao âmbito de sua associação, da mesma forma que a
extensão da existência da justiça entre tais pessoas. O provérbioos bens dos
amigos são comuns” é a expressão da verdade, pois a amizade depende da
participação
95
.
3.5.2 PRUDÊNCIA
No Livro VI, Aristóteles retoma algumas afirmações expostas anteriormente sobre a
relação da escolha com o meio termo que por sua vez é conforme a reta razão e esta busca ao
meio termo se estende a todos os propósitos que assumem o caráter de ciência. O ponto
central do Livro VI, que trata sobre a prudência
96
(ψρόνησις)
97
, visa completar o estudo da
94
Ibidem, V, 8, 1136a 1-5. Essa exposição de pensamento suscita sérios questionamentos e argumentos,
sobretudo no âmbito de jurisprudência em crimes passionais, ainda atualmente.
95
EN, VIII, 9, 1160a 1-11.
96
PERINE, Marcelo. Quatro Lições sobre a ética de Aristóteles, Phrônesis: um conceito inoportuno? São
Paulo: Edições Loyola, 2006, p.17.
97
AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles. Compreende-se a phrônesis, traduzida prudência como saber
prático ou discernimento na tradução que abordamos da EN. A estrutura de texto desenvolvida por Aubenque
segue em três capítulos, respectivamente intitulados: O homem de prudência, Cosmologia da prudência e a
Antropologia da prudência. Nesta pesquisa tratamos especificamente alguns tópicos como base de
fundamentação para concatenarmos a concepção de prudência aristotélica sob a dimensão de Aubenque. No
capítulo I, no qual enfatizamos definição e existência; no capítulo II sobretudo as considerações referentes a
contingência e o Tempo oportuno (καιρός); e no capítulo III sobre a Antropologia da prudência, concentrando-se
58
virtude moral, assim como a presente investigação sobre a prudência visa compor o
“mosaico” das virtudes nesta pesquisa, demonstrando a relação entre o amigo e o homem
prudente com ênfase na figura do político governante da cidade, pois a prudência é a virtude
mais importante ao político. Mediante tais afirmações é relevante que se determine o que é a
reta razão e o que a determina.
Aristóteles divide as formas de excelência da alma, remetendo-se à forma de virtude do
caráter e não do intelecto. Na exposição que realizamos sobre a alma, na concepção de
Aristóteles, dissemos que a alma se compõe de duas partes, uma dotada de logos e outra não
dotada de logos, partindo do pressuposto de que há duas faculdades racionais, sendo uma que
contempla as coisas, cujos princípios são invariáveis, e a outra que contempla as coisas
passíveis de variação. Destas duas faculdades racionais uma pode ser chamada de científica e
a outra de calculativa, pois “a excelência de uma faculdade se relaciona com sua função
específica, e são três os elementos da alma que governam a ação refletida e a percepção da
verdade: a sensação, o pensamento e o desejo”
98
.
Segundo Aristóteles, a virtude moral está relacionada com a escolha, que é o desejo
deliberado. Para que a escolha seja boa, tanto a razão deve ser verdadeira quanto o desejo
deve ser correto, e este deve buscar exatamente o que a razão determina. Este tipo de
pensamento de percepção da verdade é de natureza prática; quanto ao pensamento
contemplativo, que não é nem prático nem produtivo, o bom e o mau funcionamento o
respectivamente a percepção da verdade e a impressão da falsidade; com efeito, esta é função
de toda a parte intelectual do homem, enquanto o bom funcionamento da inteligência prática é
a percepção da verdade conforme ao desejo correto.
A origem da ação (causa eficiente, e não final) é a escolha, e a origem da escolha
está no desejo e no raciocínio dirigido a algum fim. É por isto que a escolha não
pode existir sem a razão e o pensamento ou sem uma disposição moral, pois as boas
e as más ações não podem existir sem uma combinação de pensamento e caráter
quanto a deliberação, a escolha e a prudência e o juízo. Remetendo-se a comentadores inseridos no debate
Aubenque realiza um diálogo com o pensamento de Aristóteles. Após analisarmos a exposição de Aubenque
tecemos algumas elucidações pertinentes ao problema em questão.
98
EN, 2, 1139b 1-3.
59
[...] A escolha, portanto, e razão desiderativa ou desejo raciocinativo, e o homem é
uma origem da ação deste tipo
99
.
Tomando como base que são cinco as disposições da alma em virtude das quais esta
atinge a verdade por meio de afirmação ou negação, a saber, a arte, a ciência, a prudência (o
discernimento), a sabedoria filosófica e a inteligência. Quanto à prudência, em sentido geral a
pessoa capaz de deliberar é dotada de prudência, como podemos conferir no pensamento
aristotélico, que a finalidade da ação está na própria ação, pois agir é uma finalidade em si. A
prudência é uma forma de virtude, não uma arte. Quanto aos primeiros princípios, estes são
aprendidos pela inteligência, e a sabedoria é considerada a mais perfeita das formas do
conhecimento. Logo, a sabedoria deve ser uma combinação da inteligência com o
conhecimento - um conhecimento consumado das coisas mais sublimes”
100
. Aristóteles
esclarece que nem a ciência política, nem a prudência são o melhor conhecimento, tendo em
vista “a evidência de que a sabedoria filosófica é uma combinação do conhecimento científico
com a inteligência, que permite perceber o que de mais sublime na natureza” (EN, VI, 7,
1141a 13-15).
Sobre a prudência, Aristóteles afirma que esta se relaciona tanto com os universais como
com os particulares, uma vez que está relacionada à ação. Para Aristóteles, a ciência política e
a prudência correspondem à mesma qualidade da alma; sua essência, porém não é mesma:
No caso da sabedoria relacionada com os assuntos da cidade, a forma de
discernimento que desempenha o papel dominante é a ciência legislativa, enquanto
a que se relaciona com os casos particulares é conhecida pela denominação
genérica de ciência política; esta é pertinente à ação e à deliberação, pois um
decreto é algo a ser cumprido sob a forma de um ato individual
101
.
A razão disto é que este tipo de sabedoria não se relaciona apenas com os
universais, mas também com os fatos particulares; estes se tornam mais conhecidos
99
EN, VI, 2,1139b 19-23; 31-33.
PERINE. Quatro Lições sobre a ética de Aristóteles, pp.102-103.
AUBENQUE.
A Prudência em Aristóteles. 2008, pp. 230-231.
100
EN, VI, 7, 1141a.
101
Ibidem, 8, 1141b 2-7.
60
graças à experiência, e os jovens não são experientes, pois é o decurso do tempo
que dá experiência
102
.
Aristóteles evidencia que a prudência, não é conhecimento científico, e difere da
inteligência, e ainda que o entendimento atue em relação aos mesmos objetos da prudência, o
entendimento e a prudência não são a mesma coisa. Essas disposições mencionadas são
atribuídas às mesmas pessoas, a faculdade de julgar e dizemos que estas chegaram à idade da
razão e têm prudência e entendimento, pois se relacionam tanto com o fundamental como o
particular
.
que os fatos fundamentais e variáveis são os pontos iniciais a partir dos quais
inferimos as finalidades, porquanto chegamos aos universais a partir dos
particulares; devemos, todavia, ter a percepção destes, e esta percepção é a
inteligência. Por isto a inteligência é ao mesmo princípio e fim, já que as
demonstrações se fazem a partir destes e acerca destes [...] É por isto que se pensa
que estas disposições são dotes naturais, e que uma pessoa é um juiz compreensivo,
ou tem bom entendimento, ou é inteligente por natureza, ao passo que ninguém é
filósofo por natureza
103
.
É relevante a inferência que Aristóteles realiza sobre as opiniões de pessoas experientes e
idosas, ou de pessoas dotadas de prudência, ao dizer que a experiência é como se lhes ter dado
como que um outro olho elas vêem corretamente (EN, VI, 11, 1143b 45-49). Aludimos à
relação entre o tempo e a experiência de vida das pessoas idosas de modo que associamos a
maturidade às pessoas experientes. Daí dizermos que o homem experiente, maduro, é
prudente e o julgar bom conselheiro. Se o homem prudente é bom conselheiro, então podemos
concluir que é amigo. Para tanto, afirmamos que a relação entre a amizade e a prudência se
encontra na decisão do político, constatando que ambos os conceitos relacionados ao tempo e
experiência requerem a convivência. Lembrando que a prudência é imprescindível ao político,
assim como a justiça e que este deve ser conhecedor da alma humana, logo da intimidade
humana: característica própria do governante na amizade política nas decisões competentes
quanto à pólis.
102
Ibidem, 8, 1142a 3-7.
103
Ibidem, VI, 1,1143b 20-28.
61
O discernimento é a disposição da alma relacionada com o que é justo, nobilitante e
bom para as pessoas, mas estas são coisas que o homem bom faz naturalmente, e
não seremos mais capazes de agir bem somente por conhecê-las, que as várias
formas de excelência moral são disposições do caráter
104
.
Segundo Aristóteles, a prudência prescinde de uma faculdade que denomina talento, que
é a capacidade de praticarmos as ações que conduzem ao objetivo visado e atingido, isto é, a
função de uma pessoa se realiza somente de acordo com a prudência e com a virtude moral,
porquanto a virtude nos faz perseguir o objetivo certo e a prudência nos leva a recorrer aos
meios certos
105
. É evidente então que não é possível ser dotado de prudência sem ser bom,
nem ter a virtude moral. O autor escreve:
Pois juntamente com uma qualidade-o discernimento - a pessoa terá todas as
formas de excelência moral. É óbvio que, ainda que o discernimento não tivesse
qualquer valor prático, teríamos necessidade dele porque ele é a forma de
excelência moral da parte de nosso intelecto à qual ele convém; é óbvio também
que a escolha não será acertada sem o discernimento, da mesma forma que não será
sem a excelência moral, pois não faz praticar as ações que levam ao objetivo
determinado
106
.
Não obstante, o que foi exposto acerca da prudência, é relevante observar que esta não
tem primado em relação à sabedoria filosófica, a qual Aristóteles considera a parte mais
elevada de nosso intelecto. A prudência (o discernimento) é como reitora das demais virtudes
determinando a missão de cada virtude particular. Aristóteles nomeia esse horizonte com uma
insistência que os seus intérpretes não parecem ter levado muito em conta: a prudência se
move no domínio do contingente, ou seja, no domínio daquilo que pode ser diferente do que
é
107
. É exatamente por isso que a prudência se distingue o mais claramente da sabedoria, a
qual, por ser ciências, remete às realidades, as mais imutáveis, ignorando o mundo do devir
108
.
104
Ibidem, VI, 12, 1143b 5-9.
105
Ibidem, VI, 12, 1144a 37-40.
106
Ibidem, VI, 13, 1145a 11-19.
107
Ibidem, VI, 5, 1140b 27; 6, 1141a 1; 8, 1141b 9-11
108
Ibidem, VI, 13, 1143b 20
.
Piérre Aubenque indica na EN a teoria da prudência, como solidária de uma
cosmologia e, mais profundamente, de uma ontologia da contingência, aparentemente estranhas à Ética. À
contingência sucede que o fato de existirem no mundo acontecimentos casuais inexplicáveis e imprevisíveis
constitui um convite sempre renovado à iniciativa do homem. Mas para compreendermos esse caminho de
62
No pensamento de Aristóteles o acaso assimilado ao contingente parece, por sua própria
indeterminação, solicitar a iniciativa produtora dos homens e autorizar a eficácia de suas
deliberações.
A) ACASO E CONTINGENTE
Complementaremos as considerações quanto às virtudes de justiça e prudência com a
breve exposição sobre o acaso (τύχη) contingente, liberdade e tempo oportuno, e o que
podemos denominar de aspecto antropológico da prudência: deliberação, escolha e juízo,
visando refletir sobre o justo político e prudente no instante das decisões uma vez que, como
foi exposto, a prudência é a virtude mais importante para o político. Aristóteles no Livro VI
da EN apresenta a virtude como condição necessária, embora não suficiente, à felicidade. É
preciso incluir na concepção de felicidade os bens exteriores e os bens do corpo. Essa
realização está inserida em um horizonte do acaso e do contingente. Visto que, a virtude
necessita de uma matéria para ser exercida e, como vimos, de um ‘mundo’, ou seja, necessita
de condições que não dependem somente de nós, como amigos, dinheiro, um certo poder
político e também de ocasiões as quais não se oferecem a todos (EN, I, 8, 1099b 1-5).
Não é possível ser corajoso na paz, justo na solidão, e liberal na pobreza. A virtude
depende do mundo não contemplativo - condenados à heteronímia, à dependência em relação
ao “acaso”, por mais que Aristóteles quisesse evitar. Aristóteles manifesta a dupla face da
virtude, que não se define somente por certo tipo de disposição subjetiva, mas também por
referência a um certo tipo de situação. A virtude não é uma característica dos deuses, mas
semelhante á perfeição própria dos deuses, enquanto no horizonte humano a virtude não é,
mas se realiza, pois é efetivada no mundo da relação das necessidades, pois a virtude faz parte
das coisas dignas de louvor, não dos bens transcendentes. Segundo Aristóteles, o homem
pensamento é preciso nos libertar da mentalidade moderna, que tende a ver na técnica uma aplicação da ciência.
“Mas para um grego, a ciência é uma explicação total e pode se desenvolver suprimindo a contingência. O
excesso de ciência mata a arte e, inversamente, esta tem lugar e sentido na medida em que a ciência não
explica, e não pode explicar, todas as coisas. Assim, a arte não progride no mesmo sentido que a explicação
científica: antes ele desapareceria à medida que a outra progredisse. Nenhuma ciência dispensa o homem da arte
de compreender, por uma intuição amadurecida pela ciência, mas cada vez única, o terreno ou a ocasião
favoráveis.
63
imita a Deus sem poder atingi-lo. Sendo assim o sábio é de todos os homens o que mais se
assemelha a Deus. O sábio é autárquico, mas esta autarquia não dispensa os amigos, tal como
ocorre no caso de Deus, pois se Deus é para si mesmo o próprio bem, “para nós implica o
bem, implica relação com o outro” (EN, X, 9, 1179b)
109
.
Se a felicidade realiza-se no horizonte do acaso e do contingente, então a amizade e a
prudência relacionam-se no mesmo horizonte. A felicidade basta a si mesma, mas para atingir
a felicidade que basta a si mesma, é preciso passar por mediações que não dependem de nós,
de modo que, qualquer que seja o mérito, podemos não atingir a felicidade a que temos direito
e que, com efeito, dependeria de nós se a tivéssemos
110
. A verdadeira felicidade não está
acima da condição humana e mesmo que o homem possa ultrapassar a si próprio, ele não o
pode senão “na medida em que lhe é possível”
111
. Os obstáculos à sabedoria não estão nas
circunstâncias, mas nas paixões, as quais nos fazem depender das circunstâncias e
esquecermos que elas dependem de nós. A sabedoria exige, pois, um domínio prévio das
circunstâncias. Se a contingência (συντοχία) é a fonte do mal, ela torna possíveis as iniciativas
humanas em vista do bem; a indeterminação, signo da impotência da razão universal é, ao
mesmo tempo, abertura à ação racional do homem, tomando o lugar de uma providência
falível.
O prudente de Aristóteles está mais para artista que antes tem de fazer para viver
num mundo onde pode ser verdadeiramente homem. A moral de Aristóteles, se não
é por vocação, é ao menos por condição, uma moral, de fazer, antes de ser e para
ser uma moral do ser
112
.
109
AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles, p.133. Capítulo II, Cosmologia da prudência, Prudência e
contingência.
110
algo de trágico na vida moral, decorrente da união entre felicidade e a virtude que não é por assim dizer,
analítica como acreditavam os socráticos, mas sempre sintética porque depende, numa proporção irredutível, do
acaso. O trágico tem em Aristóteles, um aspecto residual, de modo que se de ver nele a sobrevivência de uma
prudência popular. Em Aristóteles o trágico é, pois residual, porém em sentido ontológico que os homens
possam ser felizes, mas “como os homens podem sê-lo” (EN, I, 11, 1101a 20).
111
A contingência aristotélica o é fundamental, constitutiva, como o será a contingência do mundo para os
cristãos. A contingência é residual. Essa distância que faz do particular um limite inacessível às determinações
da lei, resulta da matéria, a qual, sendo potência indeterminada de contrários, é sempre potência de ser diferente
do que é.
112
AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles, p. 149.
64
B) LIBERDADE E TEMPO OPORTUNO (
χαιρός)
A “liberdade” (αυτεξούσία) do homem não está ligada à contingência, mas ao contrário,
se opõe a ela. Assim a liberdade do homem grego e sua perfeição se medem pela maior ou
menor determinação de suas ações. A prudência é o substituto propriamente humano de uma
providência falível, pois busca penetrar um porvir obscuro, porque ambíguo. Enquanto
preservando o indivíduo, seria somente habilidade, mas é virtude, pois na medida em que
realiza no mundo sublunar um pouco do Bem. A sabedoria diz respeito ao eterno, a prudência
diz respeito aos seres submetidos à mudança
113
. A virtude moral
114
conceituada como justo
meio entre excessos e falta, tem por matéria as afecções (πάθη) e ações (πράξεις).
Os gregos têm um nome para designar essa coincidência da ação humana e do tempo, o
que faz que o tempo seja propício e a ação boa: é (χαιρός) a ocasião favorável, o tempo
oportuno “pois as próprias pessoas engajadas na ação devem considerar em cada caso o que é
adequado à ocasião” (EN, II, 2, 1104b 19-20)
115
.
Finalmente, as situações éticas sempre são singulares, incomparáveis, mais do que aos
discursos gerais, será preciso se dirigir, pois, a outra faculdade diferente da inteligência
dianoética para determinar, a cada vez, não somente a ação conveniente, mas também o tempo
oportuno. Parece que o Kairós teve, de início, uma significação religiosa, remetendo às
iniciativas arbitrárias de um Deus que “joga” com o tempo. Paulatinamente, no entanto, ao
mesmo tempo em que a noção de kairós, não mais empregada em relação a Deus, mas sempre
traduzindo o caráter causal de nossa experiência do tempo, se laiciza e humaniza: o kairós não
é tempo da ação divina decisiva, mas o da ação humana possível, que se insere na trama
113
Piérre Aubenque indica sobre o tema GOLDSCHMIDT, v. Le système stoïcien et L’idée devtemps, em
especial, op.cit. 205-210. O eterno é objeto de demonstração, como as figuras geométricas, as quais são
invariavelmente o que são. Mas as coisas úteis, objeto próprio da prudência, não são tais que nunca mudem: “o
que é útil hoje, não o será amanhã; útil para um, não pra outro; útil em certas circunstâncias, mas não em outras”.
Não se percebeu suficientemente que essas notações introduzem na economia da moral aristotélica a dimensão
da temporalidade. Procurar na retidão do instante virtuoso o equivalente da eternidade.
114
Aristóteles finge ignorar o ensinamento socrático enfatizando, que não há uma virtude, mas virtudes “é
enganar-se dizer que em termos gerais a virtude consiste na boa disposição da alma ou retidão da conduta ou em
qualquer outra coisa semelhante; muito melhor seria enumerar s virtudes como Górgias, do que darmos tais
definições” (Pol, I 13,1206a, 15-18).
115
AUBENQUE, P. A Prudência em Aristóteles, p.156.
65
frouxa de uma Providência razoável, porém distante. Mas o mundo onde tudo “pode ser ou
não ser”, o instante da perdição pode ser também o da salvação. Porque é “extático”
116
.
C) A DELIBERAÇÃO, A ESCOLHA E JUÍZO
Aristóteles se antecipa a crítica que assimilaria sua teoria do justo meio a um
“oportunismo” demasiado fácil, ou a uma casuística excessivamente sensível aos atenuantes
das “circunstâncias”. No Livro III, ao estudar os requisitos á ação virtuosa, o início da própria
ação, começa por nos dar uma teoria da deliberação (
βούλευσις)
. Vimos também que o
prudente é o homem capaz de deliberar e de bem deliberar. Aristóteles não descreve os
estados de alma do homem que delibera, mas se preocupa com o objeto de deliberação.
Afirma que não se delibera sobre todas as coisas, mas somente sobre aquelas que dependem
de nós, o que exclui os seres imutáveis e eternos (as verdades matemáticas, os corpos
celestes).
Esta análise nos remete mais uma vez à doutrina da contingência, o que nos faz perceber
a constante relação entre homem e mundo, é como se a deliberação sobre a contingência não
fosse senão a margem que nos separa do conhecimento necessário. Veremos a proposta de
Aristóteles numa elucidação quase matemática da deliberação, aliás, o que mais foi
preservado pela tradição. A deliberação é uma espécie de pesquisa
117
que diz respeito às
coisas humanas. Consiste em procurar os meios para realizar um fim previamente posto, uma
vez que, nunca se delibera sobre o fim
118
. Invocando a prática homérica, Aristóteles pretendia
simplesmente lembrar que não decisão sem prévia deliberação. Que a deliberação consigo
mesma é apenas a forma interiorizada da deliberação em comum (interiorização que começa
com Homero, em Odisséia, XX, v 5-30, a descrição desta “deliberação consigo mesmo”)
116
AUBENQUE, 1962, p. 433 Ibidem, op.cit; Le problème de l’être chez Aristote. Essai sur la problématique
aristotélicienne. Paris, PUF, 1962, p.170. No discurso de Aubenque o tempo de Aristóteles é objeto de uma
reabilitação antropológica, pois, em virtude de sua própria estrutura contingente, é “um bom inventor e
colaborador em tal tarefa ”(EN, I, 7, 1098b 5-7).
117
EN, III, 5, 1112b 22-25; cf: VI 10, 1142a 31.
118
Ibidem, III, 5,1112b 14.Cf. Retórica, I, 6, 1362a 18. Apud. AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles, p.
176.
66
daqui percebemos a ambivalência da experiência aristotélica do tempo. Se deliberarmos sobre
o futuro porque é oculto, e o fato de precisar deliberar é, em sentido absoluto, uma
imperfeição. A deliberação consiste em dominar meios eficazes em vista de fins realizáveis. É
assim, pois, que o futuro se abre para nós, se o homem pode ter uma atitude não somente
teórica, mas decisória a respeito do futuro. Aristóteles manifesta o nculo profundo entre
uma filosofia da contingência e o praticado sistema democrático, ou seja, deliberativo
119
. O
mundo de Aristóteles é ambíguo, como a sociedade onde ele vive: nem tudo é possível,
porém, nem tudo é impossível; o mundo não é inteiramente racional, nem inteiramente
irracional. A deliberação traduz essa ambigüidade: a meio caminho da ciência e da
adivinhação incerta
120
.
Aristóteles percebe que a deliberação, cujo conceito é emprestado da prática política, não
basta para constituir a virtude, pois a deliberação não diz respeito ao fim, mas aos meios, não
diz respeito ao bem, mas ao útil, a deliberação enquanto tal pode ser posta a serviço do mal.
Razão pela qual Aristóteles introduz no cortejo das virtudes intelectuais que acompanham a
prudência a noção que implica certa retidão do entendimento. “retidão relativa ao útil, dizendo
respeito simultaneamente ai fim atingir, à maneira e ao tempo”
121
.
Convém agora, porém, prosseguir a análise da ação por meio do que Aristóteles considera
como seu segundo momento: a escolha (προαίρεσις). A noção de escolha está inserida em
dois níveis: primeiro, quando aparece na definição de virtude moral no Livro II da EN.
119
Muitas vezes a palavra é apenas o biombo para a incompetência ou, no máximo, o substituto abusivo da
competência (PLATÃO, Górgias, 456a-c, 458e-459c).
120
EN, VI, 9, 1142a 34; 1142b 6. Pol. IV, 2, 1289b 4. A democracia é, por certo, um regime medíocre, o pior dos
bons governos e o melhor dos piores, já dizia Platão, mas esta mediocridade, que afasta dos grandes desígnios
como das grandes aberrações, é o reflexo do mundo em que vivemos.(Aristóteles cita Platão e corrige: nem
mesmo se pode falar do “melhor” dos maus governos, mas somente do “menos mal”.
121
EN, VI, 10, 1142 26-27. A deliberação representa a via humana, ou seja, mediana, aquela de um homem que
não é completamente sábio, nem inteiramente ignorante, num mundo que não é nem absolutamente racional,
nem absolutamente absurdo (AUBENQUE, 2008, p. 188), é, portanto, a condição sem a qual a ação humana não
pode ser boa ação, ou seja, virtuosa.
É verdade que ambigüidade é imputável à língua grega: já enfatizamos a dupla conotação, utilitária e moral, de
expressões. Aristóteles assinala, aqui, a equivocidade da palavra όρθότης,a qual pode designar tanto retidão do
fim quanto a perspicácia moralmente neutra do julgamento. É certo, como testemunha es plenamente
consciente da equivocidade das palavras e da necessidade de superá-la. É preciso distinguir, diz Aristóteles, a
virtude natural e a virtude moral. Aristóteles não se liberta das implicações éticas do termo areté e, por isso, se
esforça por distinguir as qualidades intelectuais moralmente neutras, que não são virtudes, e estas mesmas
qualidades enquanto ordenadas ás realização do bem, que somente são virtudes dianoéticas porque estão
associadas de algum modo, à virtude moral, declara expressamente que não phronêsis sem virtude moral, VI,
13, 1144a 36.
67
Aparece também no Livro III da mesma Ética, na análise da estrutura da ação. Quando
Aristóteles define a virtude moral como έξις προαιρετική, ele pretende dizer que a virtude é
uma disposição que exprime uma decisão da qual somos princípio, que engaja nossa
liberdade, nossa responsabilidade, nosso mérito. É atestado por numerosas passagens de
Aristóteles o sentido do termo προαίρεσις que exprime a intenção, ou melhor, nossa
disposição interior, o engajamento íntimo de nosso ser, da qual depende de nosso valor ou
nosso demérito.
Aristóteles esclarece que é segundo a intenção que julgamos a qualidade moral de
alguém, ou seja, que julgamos não o que ele faz, mas o fim em vista do qual ele faz. Um
pouco à frente, Aristóteles precisa a significação dessa regra introduzindo a distinção, que se
tornará clássica com o estoicismo, entre a intenção e o ato. É surpreendente que a escolha dos
meios seja mais reveladora da qualidade do fim do que propriamente a mira deste fim “os atos
virtuosos concernem aos meios”
122
; então a virtude é voluntária ou, como diz Aristóteles,
depende de nós. A virtude se manifesta na escolha dos meios e não na qualidade do fim.
O homem virtuoso é aquele que encontra seu prazer nos atos virtuosos a conseqüência é
que a educação moral deve ser inicialmente uma educação da afetividade
123
. Desse ponto de
vista, a escolha se opõe à vontade
124
, no sentido de querermos o bem, mas escolhermos o
melhor, ou seja, não absolutamente bom. O querer pode transpor o objeto às coisas que se
sabe serem impossíveis, ao passo que a escolha guiada pela intenção do melhor, não pode ser
voltada para o impossível
125
. Aristóteles exprime claramente o princípio da distinção entre o
querer e escolha ao dizer que a primeira concerne, sobretudo ao fim (τέλος), e, a segunda aos
meios (τά προς το τέλος)
126
. Preocupa-se sobretudo em seus tratados éticos, com um problema
que Platão talvez negligenciara: o da adaptação dos meios aos fins, adaptação que não é
imediatamente dada, mas se impõem ao homem como uma tarefa difícil. O fim nada é senão
se realizar pelos meios apropriados. O acaso pode ser corrigido pela arte e pela prudência, que
122
EN, III, 7, 1113b 5.
123
Ibidem, II, 2, 1104b 13; X, 1, 1172a 19-26; 10, 1179b 24-26. Cf. PLATÃO, Leis, II, 653ac, apud. .
AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles, p.210. “E, mais do que de natureza, a virtude é, para Aristóteles,
questão de hábito (EN, II, 1) não somos o que escolhemos se de uma vez por todas, mas o que escolhemos fazer
a cada instante”.
124
Lembrando que nesta abordagem o termo vontade tem o sentido de querer.
125
Ibidem, III, 4, 1111b 20.
126
Ibidem, III, 4, 1111b 26-27.
68
se exercem no mesmo domínio do acaso
127
. Um mundo que nunca acolhe inteiramente a
ordem, nós conhecemos o seu nome; contingência
128
. Nesse debate incerto entre a forma e
a matéria, entre a determinação e o infinito, entre Deus e o mundo, ou, como diz Aristóteles,
entre o “melhor” e o “necessário”
129
.
E “a prudência é uma virtude e não uma ciência, mas é outro gênero de conhecimento”
130
. Apresenta a prudência como virtude, não da alma racional, mas de uma das partes, que
diferentemente da parte científica, diz respeito ao contingente
131
. Poder-se-ia dizer que a
filosofia se adquire e que é, por isso, meritória, enquanto a prudência e os predicados que
127
Sobre a dificuldade da execução, ver também EN, II, 9,1109a 24. A ética de Aristóteles seja a única ética
grega para qual não havia homens bons e maus, nem bons nem maus absolutamente, mas somente homens a
caminho do bem-proficientes ou a caminho do mal. O mal não está no fim, que é universalmente bom, mas na
impotência dos meios que os condena á multiplicidade e torna possível sua desordem. A última palavra dessa
filosofia do mal, que ao mesmo tempo em que restaura o trágico das coisas também absolve os homens, será dita
por Plotino: não é embora queiram o bem, mas porque o querem, os homens fazem o mal e, antes, fazem mal uns
aos outros (Enéadas, III, 2, 4,1. 20-23 Bréhier).
128
Em outros textos Aristóteles analisa a ação humana segundo outro esquema: o da relação entre universal e
particular. São extremos comentados desde a Idade Média, que apresentam o processo da ação sob a forma de
silogismo “prático”. Mas também se observam as diferenças entre as duas doutrinas. A causalidade formal se
conhece, enquanto a causalidade eficiente se exerce. O problema, então, é saber qual das duas doutrinas é a mais
aristotélica. Allan privilegia o vocabulário do universal e do particular. Ora, reconhecer a universalidade da lei
na particularidade das ações singulares, seria a tarefa de toda moral .(GAUTHIER-JOLIF in Eth. Nic, I, op.cit.
210; GAUTHIER, La morale d’Aristote, op.cit.36.) Allan, D.J. The philosophy of Aristotle, p177. Nota que a
idéia de uma aplicação do universal ao particular, que caracteriza a passagem da ciência à arte, se encontra em
Platão (Fedro, 268a-271d, citado por Allan in autour d’Aristote, p. 331). É preciso observar que as duas
fórmulas se encontram no livro VI, onde a phronêsis é descrita tanto como capacidade de escolha judiciosa dos
meios (sobre o esquema universal-particular (cf. VI, 8,114b 15; 9, 1142a 14 e todo o cap. 9). Para o esquema
fim-meios (cf. VI, 12, 1143a 33; 13). Acreditamos, no entanto, que a originalidade de Aristóteles se situa antes
na intuição, tão estranha a Platão, de uma dissonância possível entre o fim e os meios e na existência correlata de
uma deliberação seguida de escolha.
129
Segundo a observação de Aubenque, freqüentemente é comum vermos na doutrina aristotélica da prudência
uma relação de oposição entre a sabedoria e a prudência e enquanto uma “reina” outra “governa”. A prudência
governa imediatamente a ação humana, seria então um tipo sabedoria prática oposta à sabedoria teórica. Porém,
não podemos qualificá-la como disposição prática, pois então se distinguiria mal da virtude ética, mas Aristóteles
sempre insistiu sobre o estatuto de virtude dianoética. O caráter intelectual destacado por Aristóteles pela
importância que foi atribuída à prudência no momento da deliberação na preparação da escolha, a qual aparece
com exato inverso da inspiração arbitrária. Dizer que a proairesis é um desejo deliberado, é o mesmo que dizer
que ela é um desejo intelectual, ou ainda um intelecto desejante. E se, no livro VI da EN Aristóteles insiste que
não há escolha sem disposição moral, também acrescenta que não há escolha sem intelecto e sem pensamento
129
.
Logo, para Aristóteles, não é entre a dianoia e o nous, entre a discussão e a intuição, que passa a cisão essencial,
mas entre o pensamento do necessário e o pensamento do contingente. “Ora, está claro que a virtude, no sentido
coerente do termo (isto é, a virtude moral), nem pode contar com os caprichos da natureza, nem mesmo esperar
numerosos anos” (AUBENQUE, 2008, p. 239).
130
EE, 1246b 35-36.
131
Mas Aristóteles ao contrário do pensar de Platão é a cisão do próprio mundo real que determina uma cisão
paralela no interior da razão, e não somente no interior da alma cognitiva. Entre essas duas partes da alma
racional não mais hierarquia, tal como estabelecia Platão, mas para Aristóteles, o que uma ganha em exatidão
seu objeto perde em proximidade e em familiaridade (EN, VI, 7, 1141b 4).
69
evoca parecem ser dons da natureza
132
de uma natureza que não pode ser precipitada
preciso ser experiente para ser prudente), nem mesmo corrigida.
Dentre as “virtudes intelectuais menores”, destacadas no estudo sobre prudência,
Aristóteles examina um certo número de qualidades. Encontramos numa delas, a boa
deliberação, que Aristóteles a um só tempo aproxima e distingue de duas qualidades vizinhas,
a precisão do golpe de vista e a vivacidade de espírito, as quais diferem da primeira na medida
que elas operam imediatamente e sem cálculo prévio
133
. O homem de bom julgamento não se
confunde com o homem de ciência, é justamente o reconhecimento dos limites da ciência que
faz seu valor propriamente moral. O julgamento é a determinação correta do que é equânime,
ora, vimos acima
134
que a eqüidade era o substituto humano de uma justiça rígida demais “A
indulgência, conclui Aristóteles, é o julgamento que decide o que equânime, quando este
julgamento é reto, e é reto quando concerne ao verdadeiro”
135
.
Ter julgamento não é subsumir o particular ao universal, o sensível ao inteligível; é
penetrar sensível e singular em si mesma, com uma razão mais “razoável” do eu
“racional”; é, vivendo num mundo impreciso, não lhe buscar impor a justiça
excessivamente radical dos números; mortal, não julgar as coisas mortais com os
olhos do imortal; homem ter pensamentos de homem
136
.
Inserimos esta breve exposição sobre o acaso e contingente, liberdade e tempo
oportuno,
137
deliberação, escolha e juízo (γνώµη), atrelados aos conceitos de justiça e
prudência visando esclarecer as confluências na amizade política na definição de Aristóteles.
132
EN, VI, 12, 1143b 6.
133
Ibidem, 10, 1142b 2-6.
134
Ibidem, VI, 11, 1143a 20.
135
Ibidem, VI, 1143a 23-24.
136
AUBENQUE. A Prudência em Aristóteles, p. 243. A este “saber” humano, humano por seus limites, mais
humano ainda por sua atenção ao homem, o pensamento grego tradicional lhe tinha reconhecido um valor moral,
que Aristóteles faz reviver, talvez involuntariamente, o antigo fundo de sabedoria gnômica e trágica que a habita;
na prudência continua ressoando o apelo a um “pensamento humano”, no qual se resumia a velha sabedoria
grega dos limites. (AUBENQUE, 2008, p. 244).
137
O que denominamos conforme Aubenque, como o aspecto antropológico da prudência.
70
4. AMIZADE POLÍTICA: CONDIÇÃO SOCIAL DA PÓLIS
No capítulo anterior “A amizade na Ética a Nicômacorefletimos sobre a amizade como
problema filosófico em questão. O presente capítulo finaliza a dissertação com a pretensão de
explicitar a amizade política como condição social da pólis. Para tanto, recorremos ao aspecto
comunitário do bem e à relação entre os conceitos de prazer (ηδονή), educação (παιδεία),
amizade, justiça, felicidade e como se relacionam as categorias da convivência e concórdia.
4. 1 - O CARÁTER COMUNITÁRIO DO BEM
Vimos que, segundo Aristóteles, a amizade predispõe o caráter a excelência moral e como
é fundamentada no bem, na solidariedade e no afeto. Conferimos na Ética a Nicômaco, no
Livro I, e também a Política no Livro I, que toda ação e todo propósito visam a algum bem e
que o homem é um animal político por natureza. Aristóteles afirma que a finalidade do
homem como ser político é a comunidade, que é a convivência em harmonia identificada com
a felicidade. A felicidade de cada criatura humana pressupõe a felicidade de sua família, de
seus amigos e de seus concidadãos. A maneira de assegurar a felicidade é proporcionar um
bom governo à sua cidade; que determinar, então, qual a melhor forma de governo, tema
que a Política aborda. Assim Aristóteles descreve:
Vemos que toda a cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se
forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são
praticadas com vistas ao que lhe parece um bem; [...] ela se chama cidade e é a
comunidade política [...] Estas considerações deixam claro que a cidade é uma
criação natural e que o homem é por natureza um animal social, [...] e é a
comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade
138
.
Sob o princípio de que a natureza é o fundamento de tudo, igualmente da racionalidade
humana, logo o político deve ser ético, que o princípio de alteridade da ética diz que a
138
Pol. I, 1252 a; 1253 a.
71
finalidade de tudo, da natureza humana, de todas as ações humanas, é o bem. Nesse sentido
o conjunto é mais importante do que as partes, porque o objetivo do homem é maior em
proporção, daí a afirmação de que a cidade é a forma mais elevada de comunidade. Visto
que, todas as relações entre os homens são políticas, a ética é a busca da justa medida
nessas relações, e a amizade proporciona o diálogo em busca desta justa medida.
Aristóteles destaca a amizade como elemento fundamental para obter-se o bem de forma
comunitária. O caráter comunitário do bem
139
faz que a justiça, a felicidade e a amizade
sejam alicerces da sociedade, tornando a amizade uma condição da relação entre ética e
política.
4.2 - A RELAÇÃO ENTRE AMIZADE, JUSTIÇA E FELICIDADE
Visto que a prática das virtudes nos conduz à felicidade e que não felicidade sem
justiça, se não justiça não a amizade, pois as pessoas amigas são boas e justas. A
amizade é nobilitante e necessária para que o homem se realize como indivíduo e em
sociedade. Revela-se numa relação de reciprocidade, pois sem amizade não temos justiça,
nem felicidade. Todavia “Quando as pessoas são amigas não tem necessidade de justiça,
enquanto mesmo quando são justas elas necessitam da amizade, considera-se que a mais
autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa”
140
. A justiça é elemento
fundamental para a sociedade, é a virtude entre ganho e perda. O justo no sentido político
se apresenta entre as pessoas que vivem juntas com objetivo de assegurar a auto-
suficiência do grupo e, conforme Aristóteles, somente existe entre aqueles cujas relações
mútuas são regidas pela lei
141
. As coisas que são justas apenas por convenção e
conveniência são como se fossem instrumentos para medição, uma vez que as
constituições não são as mesmas em todos os lugares, embora haja uma apenas que em
todos os lugares é a melhor por natureza.
Aristóteles não afirma a existência de uma única constituição conforme à natureza
e que seria a politia aristocrática, mas de uma única constituição naturalmente
139
Nota de aula ministrada pelo Profº. Ms. Carlos Dália no Curso de Filosofia na Universidade estadual do
Ceará, em História da Filosofia I, com aparato de textos próprios.
140
EN, VIII, 1, 1155 a, p.154.
141
Ibidem, V, 6, 1134a 30-31.
72
justa para cada povo, num momento dado de sua história. O justo natural político
se revela, pois, plural [...] pois um justo natural que constitui para cada cidade
a norma de sua excelência
142
.
É na relação dessa tríade: amizade, justiça e felicidade
143
que encontramos o aspecto
comunitário do bem e a amizade como condição da relação entre ética e política, na EN.
Logo, para que o bem comum seja em sociedade, faz-se necessária à concórdia,
compartilharmos experiências e conhecimento. A comunhão dos espíritos pode vir a
aperfeiçoar a amizade política, ou seja, a concórdia entre os cidadãos e lhes permite a
cooperação. Assim, Aristóteles descreve:
A amizade parece também manter as cidades unidas, e parece que os legisladores
se preocupavam mais com ela do que com a justiça; efetivamente, a concórdia
parece assemelhar-se à amizade, e eles procuram assegurá-la mais que tudo, ao
mesmo tempo em que repelem tanto quanto possível o facciosismo, que é a
inimizade nas cidades
144
.
A análise de Aristóteles parte do homem não como indivíduo isolado, mas já relacionado
com os outros, como membro da comunidade, pois a cidade não realiza somente a
sociabilidade humana, mas também o desejo de conhecer. A sociabilidade difere do
gregarismo porque é a participação numa obra comum, é a verdadeira comunidade. Somente a
espécie humana é capaz de aceder à forma mais perfeita e mais elevada vida social, à vida
política. Conferindo que, a sociabilidade humana não ocorre somente para a satisfação das
necessidades, que, com efeito, o ser humano liga-se a seus semelhantes não somente pelo
interesse, mas também por prazer
145
.
142
VERGNIÈRES. Ética e Política em Aristóteles: physis, ethos, nomos, p.161.
143
LOPES, Marisa. Ação ética e virtude cívica em Aristóteles. Tese de Doutorado apresentada ao
Departamento de filosofia da faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Novembro, 2004.
144
EN, VIII, 1, 1155 a.
145
VERGNIÈRES, S. Ética e Política em Aristóteles: physis, ethos, nomos, p.161.
73
a existência da pessoa boa é desejável porque ela percebe sua própria bondade, e
esta percepção é agradável em si mesma. Ela necessita, portanto de ter consciência
igualmente da existência de seu amigo, e isto se concretizará em sua convivência e
em sua comunhão em palavras e no pensamento
146
.
Podemos afirmar que a cidade é “por natureza” não porque nasceria espontaneamente
como um ser natural, mas porque é a atualização, pelo próprio homem, da sua “natureza”
política, a realização de sua essência, no sentido de que ela permite ao homem realizar sua
natureza. Esclarecendo que a natureza pode ser comparada ao modelo do vivo sem ser,
contudo, definida como a de um ser vivo, isto é, sob analogia que não é identidade. O
indivíduo vivo é um composto cujas partes permanecem em potência, uma comunidade é
pluralidade cujas partes ou elementos estão em ato. A cidade como comunidade é
pluralidade de partes diferenciadas e organizadas segundo certa ordem e hierarquia. Como
afirma Aristóteles na Política: “A submissão alternada à autoridade entre pessoas iguais
imitará a sua desigualdade original”
147
.
Na cidade a autoridade não está fundada na
natureza, mas na constituição. Assim, a cidadania é fato instituído e não natural.
Aristóteles considera que a constituição pode tornar legítima a soberania do demos e não o
inverso, onde os cidadãos iguais são alternativamente governantes e governados.
Se a cidade não está fundada na natureza por que Aristóteles reconhece a cidade como
comunidade natural formada em vista do bem viver? Porque os cidadãos devem agir não
para subsistir, mas para serem felizes, e segundo Aristóteles, tendem naturalmente à
sociabilidade. A comunidade só se torna verdadeiramente política quando se torna uma
comunidade ética. Conforme Aristóteles, é por meio da educação que a cidade se torna
comum e una. Devemos constatar que a amizade que reina no seio da comunidade despótica
natural é mais um análogo da amizade do que a verdadeira amizade. Assim como o bem
particular que deve ser realizado em determinada circunstância, está de muitas maneiras
146
EN, Livro IX, 9, 1170 b. Ver Solange Vergnières em Ética e Política em Aristóteles: physis, ethos, nomos, “o
homem, diz Aristóteles, é o que há de mais agradável ao homem (...) pode-se dizer que, desde a origem, os seres
humanos experimentam as vantagens materiais e afetivas que a companhia dos outros traz” (apud, 2003, p.151),
“o homem pode provar aí, além do prazer da ação, a felicidade da contemplação” (apud, 2003, p.191).
147
EN, II, 1, 1261 b. Solange Vergnières em Ética e Política em Aristóteles comenta: Essa comunidade (que só
pode ter verdadeiramente lugar numa politia), escapa do modelo orgânico ou artesanal. Ela se distingue,
também, do esquema associativo utilizado pelos sofistas. Sua alçada principal é a amizade política ou
concórdia (homonoia); ou seja, a capacidade de deliberar e agir em comum, p.161.
74
nos bens objetivamente reconhecidos na cidade. Basta ter sido educado segundo os costumes
e as leis belas-e-boas da cidade
148
. A ação virtuosa do cidadão depende em grande parte da
avaliação correta das circunstâncias, e isso não é obra de uma ciência, mas de um saber
prático que julga com base na experiência, visto que esses homens podem se formados
por homens que já têm essa experiência. Esse problema tem solução à medida que a virtude
encontrar uma forma de existência que supere a existência individual e que seja a expressão
do justo meio realizado. Essa forma de existência é a lei, na qual se deposita a experiência
dos homens virtuosos e na qual a cidade expressa o modelo de comportamento adequado, ao
que se considera ser a melhor forma de vida humana.
Após recordarmos brevemente a natureza da cidade aristotélica, podemos inquirir o
modo pelo qual a pólis marca o ethos individual e coletivo dos adultos. Segundo Aristóteles,
quem governa a cidade é a lei. A lei parece veículo privilegiado desta “politização” do ethos.
Porém, como os habitantes da cidade não têm todos a mesma dignidade política, se organizam
de maneira diversificada as relações entre o nomos e o ethos
149
. Mas é justamente nas brechas
que separam a lei geral da sua realização no particular que a ação humana pode alcançar a sua
perfeição, pois, como afirma Aristóteles, o mundo sublunar não é domínio do caos, mas da
ordem, não pelo domínio do estático, mas do movimento ou da passagem da potência ao ato,
não é o domínio do informe, mas da matéria sempre informada. A ação moral é a realização
de uma perfeição, portanto, uma passagem da potência ao ato.
Na ação propriamente humana, isto é, na práxis, existe uma passagem da potência ao ato,
pois as potências racionais, como princípios de mudança que dependem da alma racional, são
potências adquiridas pelo hábito, pelo ensinamento e com o raciocínio. Ora, o próprio do
homem não é produzir, mas agir, ou seja, ser o princípio das ações cujo fim não está fora da
148
Cf. VERGNIÈRES. Ética e Política em Aristóteles: physis, ethos, nomos, p.212. Essas leis, em primeiro
lugar, as leis escritas, sem as quais não cidade; elas, instaurando o reino do direito (no sentido estrito).
Aristóteles afirma sobre a constituição “estabeleça leis não escritas”(EN,VI, 5, 1319b 40-1320a1) e
acrescenta:”as leis conforme aos costumes têm mais autoridade e concernem a coisas de mais peso que as leis
conformes as regras escritas”Ibid; III, 16, 1287b -6, (apud,p.212); A autoridade dos costumes (ethe)não é senão a
que o hábito (ethos) confere. Este se opõe tanto ao temor quanto à razão, posto que permite, pela força mesma da
repetição, observar a regra coletiva como se fosse lei natural. Assim, o hábito constitui o meio essencial de forjar
esse cimento ético da cidade que preserva a armadura constitucional.
.
149
Cf. Ibidem; Terceira parte, Cap.1: A função da lei. p.162. Os escravos e as mulheres, não vivem no sentido
estrito sob a autoridade da lei da cidade. Existem substitutivos pelos quais se socializa seu ethos. Para os
cidadãos “sérios” (spoudaioi), a lei, interiorizada sob a forma de bons costume,pode cumprir sua função ética.
Aristóteles descobre o tecido complexo entre ética e política; ver A função coercitiva da lei, p.176.
75
ação, mas é imanente à própria ação. Para tanto, basta que o animal de cidade seja educado
para o exercício habitual de sua racionalidade segundo os modelos do bem e do belo
formulados nas leis que dão existência e estabilidade à cidade
150
.
Decidir racionalmente e agir de maneira virtuosa, para o homem é um bem, pois é o que
lhe permite viver bem entre os homens. Porém, o que verdadeiramente tem valor para o
homem é a decisão racional, que o define como homem: justamente pela parte melhor de si
mesmo- o intelecto- o homem sabe que a felicidade consiste em participar de sua presença
eterna. Exercer e cultivar o intelecto pela contemplação é o verdadeiro e supremo bem para o
homem
151
. O intelecto é divino! Com ele e por ele a humanidade se situa entre os animais e os
deuses. A atividade virtuosa que realiza a definição do homem, ou a ação que é
verdadeiramente humana, por ser a ação da parte mais nobre do ser humano, e a
contemplação, na qual o homem vive pela parte divina do seu ser
152
. A mais elevada ação do
homem é o ato intelectual da contemplação, como realização do princípio divino do homem.
No final do Livro VI da EN, Aristóteles conclui que é impossível ter sabedoria prática
sem ser bom
153
, “tampouco e possível ter sabedoria prática sem virtude moral”
154
. Por sua
condição de seres humanos, que, pela condição de seres racionais, não podem ser
compreendidos fora de seu contexto social, dado que a cidade é o lugar próprio do exercício
da racionalidade. Uma vez que a cidade é compreendida por Aristóteles como uma ordenação
objetiva que possibilita, por sua forma de vida concreta e por suas leis, a realização da melhor
forma de vida para os seres humanos. O que permite ao agente racional responder às
perguntas sobre o princípio e o fim de suas ações particulares é o ato de participar de uma
150
A decisão racional é o ponto de junção entre a faculdade do discernimento, que inclui a imaginação, a
sensação e o intelecto, e a faculdade apetitiva, que inclui o querer, a paixão e o desejo. É o problema das relações
da parte pensante do homem com o apetite. A decisão racional estabelece o equilíbrio ou a justa medida entre as
partes da alma. O intelecto aqui é, pois, o intelecto prático, isto é, o intelecto penetrado pelo desejo (DA, III, 432
b29-433 a6; 433 a13-21).
151
Trata-se do bem supremo que Aristóteles denomina contentamento (eudaimonia) ou felicicade. Assim, o
bem humano deverá ser uma atividade real não possível, na qual o homem faça bem o que faz. Portanto, o
bem ao qual nada se possa acrescentar, mas porque ela inclui em si todos os bens, a começar pelo prazer (EN, I,
9, 1099 a7-21).impregna a totalidade da realidade e como pólo objetivo da ação, que se estabelece o campo da
racionalidade prática dentro da qual o bem pode ser definido de muitas maneiras, valendo-se da “tendência de
cada ser a realizar se um próprio bem ou perfeição segundo o dinamismo imanente de sua natureza” (Lima Vaz,
1988).
152
EN, X, 7, 1177 a12-17; b26.
153
Ibidem, 1144 a31-36.
154
Ibidem, 1144 b30-32.
76
comunidade na qual um bem humano supremo, com seus bens secundários, está
suficientemente objetivado como princípio e como fim da vida humana.
O fim da ação exigida pela premissa maior do silogismo prático, evidência que é sinal da
racionalidade prática, ser garantida por um duplo horizonte do bem. Em primeiro lugar, o
horizonte que é desenhado pela aspiração natural á eudaimonia, palavra que designa o bem
que buscamos por ele mesmo e cuja realização não supera nossas forças. Em segundo lugar, o
horizonte que é circunscrito pela instituição natural da pólis, na qual o indivíduo, “por efeito
das leis e das instituições políticas, é levado a sair de seu egoísmo e a viver segundo o que é
subjetivamente bom, assim como segundo o que é verdadeiramente objetivamente bom”
155
.
O homem realiza sua perfeição por ser princípio de suas ações. Essa definição se completa
com a outra, que compreende o homem como um ser vivo, político por natureza, diferente de
qualquer outro animal gregário justamente pelo fato de possuir logos
156
. Do cruzamento
dessas duas definições podemos inferir que o próprio do homem não é a produção (poiesis),
mas ão (práxis), porque a ação não encontra sua perfeição no produto, mas nela mesma.
Mas a ação é especificamente humana porque o agente é “animal da cidade”, diferente de
todos os outros animais gregários pelo fato de discernir por meio do discurso, o que é útil e o
que é prejudicial, o que é justo e o que é injusto
157
.
É coerente destacar aqui uma observação à concepção da educação para esta questão em
Aristóteles. O problema da ação virtuosa se resume na relação correta entre as duas partes da
alma. É o problema do hábito de evitar o mais e o menos e de encontrar o justo meio naquela
parte da alma na qual o excesso e a falta são possíveis
158
. Isso acontece, uma vez que, a
virtude se encontra no bito. O hábito é exatamente o que se adquire pelo treinamento ou, o
que é o mesmo, pela educação. Logo, o problema da virtude pode ser solucionado pela
educação: o homem tem de aprender a ser o princípio de suas ações, a decidir de maneira
razoável, ou seja, tem de aprender a encontrar o justo meio e, sobretudo, tem de aprender a ser
justo, porque a justiça é o fundamento da cidade.
155
REALE, Giovanni. História da Fillosofia antiga I. Platão e Aristóteles. Trad. br. de H.C. de Lima Vaz e
Marcelo Perine, São Paulo: Edições Loyola, 1994, 432.
156
Pol. 1253 a2.
157
EN, V, 1,1129a 26-28; 36-43.
158
EN, 1106 b16.
77
4.3 - CONVIVÊNCIA E CONCÓRDIA
A relação dos conceitos de amizade, justiça e felicidade por meio do caráter comunitário
do bem se articulam junto às categorias de convivência (δµιλία) e concórdia (δµόνοια)
consideradas fundamentais para a amizade política. Discorrendo sobre o tema Aristóteles
afirma que a cidade é uma pluralidade, e a unificação só deve ser a certo ponto, não
excessivamente. Descreve diferentes formas de governos para povos diferentes, mas com
respeito às individualidades. Aliás, esse é um ponto fundamental na amizade. A convivência
entre duas pessoas não elimina a individualidade. “A concórdia também parece um
sentimento amistoso; ela não é, entretanto, identidade de opinião, pois isto poderia ocorrer
sobre todos e quaisquer assuntos”
159
. Cada um é único e na soma com outro fica ainda melhor
porque evolui se aprimora e experimenta a arte da convivência, isto que, a presença alicerça
esse relacionamento, é preciso que os amigos gastem tempo um com o outro, portanto, a
convivência e a concórdia são fundamentais para a amizade política.
No discurso de Aristóteles somente a convivência proporcionará a experiência de
reciprocidade em presença. Assim podemos compreender que a presença e o gastar tempo
implicam em diálogo. Aristóteles não desenvolve aqui o conceito de diálogo, nem mesmo
explicita que por meio do diálogo concretizamos a relação de reciprocidade, mas
compreendemos que está implícito, visto que ao convivermos com o amigo nos tornamos
íntimos por meio de todas as formas de expressão que trocam experiências assim como o
diálogo por meio da fala. Se o intercâmbio de experiências podem nos conduzir a uma relação
consensual com o amigo em concórdia, então assim consideramos à comunidade.
Ademais, é na concórdia que se encontra a base do caráter comunitário do bem e da
amizade como relação política. A amizade política é uma espécie de concórdia, mas uma
concórdia que não repousa na identidade de opiniões e sim no comum acordo de respeito às
individualidades e convivência em harmonia com as diferenças. Como acontece na concórdia
das cidades, na harmonia das atitudes práticas, de sorte que a justo título chama-se “amizade
civil” a concórdia política. A amizade política é concórdia ao conviver em harmonia na
sociedade com as diferenças e individualidades de cada um, uma vez que, ética visa o bem da
159
EN, IX, 6, 1167a1-5.
78
comunidade e de cada indivíduo, pois não é possível uma comunidade feliz, sem indivíduos
que vivam bem, consigo e com o próximo. “Parece então que a concórdia é a amizade
política, como efetivamente se diz que ela é, pois ela se relaciona com assuntos de nosso
interesse e influentes em nossas vidas”
160
. Verificamos assim que a amizade se insere nas
diversas relações entre os indivíduos da pólis e atua na formação do caráter dos cidadãos
concretizando a amizade política, a seguir investigamos como a amizade se desenvolve na
teoria do ethos.
4.4 - A FORMAÇÃO DO CARÁTER POR MEIO DO HÁBITO
A teoria do ethos implica o estudo específico (pragmateia) da virtude ética, isto é, da
virtude do caráter. O caráter designa uma disposição adquirida, pelo hábito, da parte desejante
da alma, intermediária entre a parte vegetativa e a parte racional. Como sabemos, o ethos se
identifica com hexis, isto é, como disposição em hábito e difere da potência natural, pois é
capacidade adquirida por meio da educação. Vimos que as virtudes são hábitos e dividem-se
em virtudes intelectuais e virtudes morais. Constatamos que, segundo Aristóteles, as virtudes
intelectuais se situam na parte da alma dotada de logos e pode ser educada, pelo ensinamento
e exercício. As virtudes morais se situam na parte da alma não dotada de logos: a parte
vegetativa não educável e a desejante, porém ainda assim é capaz de seguir o logos por pouco
que receba a educação apropriada. O hábito é exatamente o que se adquire pelo treinamento
ou, o que é o mesmo, pela educação, o ethos ou caráter é fruto dos hábitos adquiridos em
matéria de prazer ou de pena, segundo as qualidades do homem se tornam virtudes ou vícios.
Assim a formação do caráter repousa essencialmente na imitação. Imitar é atitude
especificamente humana: ‘Imitar é natural aos homens, desde sua infância [...] assim como o
regozijar-se com as imitações’
161
. É esta a propensão inata da criança que o educador deve
explorar, utilizando o prazer com leme
162
. O jogo e a música mostrarão aqui toda sua eficácia.
A cultura moral se faz por mimetismo, do exterior ao interior: a criança deve aprender a fazer
160
Ibidem, IX, 6, 1167a 23-25. VERGNIÈRES. Ética e Política em Aristóteles: physis, ethos, nomos, p.161;
LOPES. Ação ética e virtude cívica em Aristóteles. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de
filosofia da faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Novembro, 2004, Cap.III, A amizade
entre cidadãos, p.66.
161
Poética, 4, 1448b 5-9.
162
EN, X, 1, 1172a 21.
79
gestos da virtude, o jovem deve agir como homem virtuoso, o adulto, enfim, agir
virtuosamente. Este mimetismo lúdico é, pois, assimilação progressiva, interiorização lenta
das condutas dignas de cidadão e de homem. Contudo, a imitação não basta: a formação do
caráter (a paideia) como concebia Platão, deve visar mais precisamente ao sentimento de
prazer e de pena. É para esta formação que a música serve; e Aristóteles consagra uma parte
importante do Livro VIII da Política. Descreve sua função do seguinte modo: “A música
ao caráter certa qualidade, habituando a criança a poder se regozijar corretamente”
163
O valor educativo da música assim é justificado: a música é primeiro um “prazer natural”
164
que cada um pode conhecer, não é satisfação de necessidade indispensável, mas que
contribui para a “alegria de viver”
165
. A música por meio dos ritmos e das harmonias é a
única arte capaz de imitar diretamente paixões como a cólera e a calma, qualidades éticas
como a coragem e a temperança;
166
. Faz nossa alma entrar em “simpatia”
167
com o que ela
escuta, enternecendo a alma cria uma disposição calma e temperada. O hábito de escutar uma
melodia ou um ritmo temperado acostuma a criança a experimentar afecções calmas como
àquelas que o homem virtuoso experimenta. A música constitui, pois, uma cultura, do
sentimento de prazer e de pena, que tem imensa vantagem de tornar a virtude amável
168
.
Quando Aristóteles considera que o hábito é o meio de formar precocemente o caráter;
evoca um acostumar-se doce e progressivo, e não uma repetição mecânica e forçada: também
se freqüentemente é necessário endireitar, corrigir, punir, esse meio é um mal menor, que
traz um mau presságio sobre o futuro comportamento da criança. O mesmo prevalece sobre o
aspecto de imposição, quanto à educação física. O uso da ginástica deve permanecer
moderado. O acostumar-se se distingue dos esforços repetidos, dos exercícios indispensáveis
nos estudos intelectuais e na aprendizagem de habilidades técnicas. Segundo Aristóteles:
“Não é brincando que se aprende; a dor acompanha o estudo (mathesis)”
169
. Se a educação
moral busca tornar o desejo conforme o logos, não alcança graças a repetição incansável de
opiniões retas, como queria Platão, mas graças à modelagem mimética do desejo. O desejo
163
Pol. VIII, 5, 1339a 24-25.
164
Ibidem, 5, 1340a.
165
Ibidem, 5, 1339b 4-5.
166
Pol. 5, 1340a 18-22.
167
Pol. 5, 1340a13.
168
Cf. VERGNIÈRES. Ética e Política em Aristóteles: physis, ethos, nomos, p.82-88.
169
Pol. VIII, 4, 1339a 28-29.
80
educado é desejo capaz de escutar, em vez de se deixar levar pelo que vê; mas deixa-se mais
facilmente aprisionar pela beleza dos ritmos do que pelo enunciado da injunção, pela forma
musical do logos do que por seu conteúdo significativo [...] é por isso que a pedagogia moral
de Aristóteles parece, no fundo, tão pouco moralizadora. A pedagogia é arte da política, o
caráter educado é resultado conjugado da natureza e da paideia.: vícios e virtudes podem
efetivamente aparecer como defeitos e perfeições adquiridas muito cedo nos definindo de uma
vez por todas
170
.
Apenas palavras o são capazes de tornar uma pessoa boa. Podem encaminhar uma
pessoa a agir bem, a praticar as virtudes, mas para muitos soam vazias, sem resultados.
Algumas pessoas agem com os princípios éticos mais por medo de punições, por transgredir
regras, do que por amor ao bem e por conhecimento dele. Outras vivem os desejos
momentâneos, seguindo pelos impulsos de suas emoções e instintos, estes tendem a não
desenvolver o auto-conhecimento, que conduz a uma vida mais livre, mais feliz e mais
completa. “Saber o que é a excelência moral e a intelectual não é o bastante; devemos
esforçar-nos por possuirmos e praticá-las, ou experimentar qualquer outro meio existente
para nos tornarmos bons”
171
. “Pois afirmamos que a finalidade suprema, e o principal
empenho desta ciência é infundir um certo caráter nos cidadãos - por exemplo torná-los bons
e capazes de praticar boas ações”
172
. A amizade predispõe o caráter ao bem por meio de bons
hábitos na relação com o outro, uma vez que implica reconhecimento da reciprocidade, na
medida em que o amigo é um outro eu, e elemento essencial para o próprio auto-
conhecimento
173
. Como os homens não são intrinsecamente iguais, a igualação por meio da
amizade termina por revelar a excelência dos melhores.
170
Ibidem; p.82-88.
171
E N, X, 8, 1179 a.
172
Ibidem, I, 9, 1099.
173
Cf. GIANNOTTI, José Arthur. O amigo e o benfeitor. Reflexões sobre a φιλία ponto de vista de
Aristóteles. Revista Analytica, volume 1, número 3, 1996, p.168. Tem como base a reflexão sobre o tema por
COOPER, John M. Aristotle em Friendships, em: Rorty, Amelie O. (ed) Essays on Aristotle’s ethics, n º 5,
Califórnia, 1984. Sublinha um texto da MM, correspondente à EN, IX, 9, em que esse papel revelador não traz
apenas auto-consciência, mas sobretudo auto-conhecimento.
81
5. CONCLUSÃO
Visando o caráter científico desta dissertação apresentamos a conclusão sustentando a
hipótese ou princípio interpretativo em propósito: conceituar a amizade como uma virtude e
condição da relação entre ética e política na Ética a Nicômaco. Conferimos na EN no Livro
VIII Aristóteles conceituar a amizade como virtude e os argumentos que suportam o eixo de
interpretação desta leitura, que são encadeados consecutivamente, a saber: o homem no
conceito de Aristóteles, a alma humana, a felicidade e as virtudes de justiça e a prudência.
Valendo-se do pensamento aristotélico consideramos que todas as relações em comunidade
são políticas, o que situa a amizade na mesma condição da justiça como elemento
fundamental em comunidade. Nesse sentido a amizade é soberana as demais virtudes porque
as pressupõe, ou seja, o homem amigo é justo e prudente, pois na amizade encontramos o
caráter virtuoso almejado por todo cidadão.
Finalizamos a argumentação com a definição da amizade política como condição social da
pólis destacando os caracteres mais significativos, as categorias fundamentais e o aspecto
educativo do ethos na formação do cidadão virtuoso. Sobre essa condição da amizade na pólis
discorremos a seguir de forma sucinta:
Os que compõem a cidade, por mais diferentes que sejam por sua origem, sua classe,
sua função, aparecem de uma certa maneira “semelhantes” uns aos outros. Esta
semelhança cria a unidade da pólis, porque, para os gregos, os semelhantes podem
encontrar-se mutuamente unidos pela Philia, associados numa mesma comunidade. O
vínculo do homem com o homem vai tomar assim, no esquema da cidade, a forma de
uma relação recíproca, reversível, substituindo as relações hierárquicas de submissão e
de domínio. Todos os que participam do Estado vão definir-se Hómoioi, semelhantes,
depois, de maneira mais abstrata, como os Isoi, iguais. Apesar de tudo o que os opõe
no concreto da vida social, os cidadãos se concebem, no plano político, como
unidades permutáveis no interior de um sistema cuja a lei é o equilíbrio cuja norma é a
igualdade. Essa imagem do mundo humano encontrará no século VI sua expressão
rigorosa num conceito, o de isonomia: igual participação de todos os cidadãos no
exercício do poder [...] Vários testemunhos mostram que os termos isonomia, isocratia
serviram, em círculos aristocráticos, para definir, por oposição ao poder absoluto de
um (a monarchia ou a tirania), um regime oligárquico em que arché é reservada a
82
um pequeno número, excetuando-se a massa, mas é partilhada de maneira igual entre
todos os membros dessa elite. Se exigência de isonomia pôde justificar a reivindicação
popular de um livre acesso do demos a todas as magistraturas, foi sem dúvida porque
se enraizava numa tradição igualitária muito antiga, foi porque correspondia mesmo a
certas atitudes psicológicas da aristocracia dos hippeis. É, com efeito, essa nobreza
militar que estabelece pela primeira vez, entre a qualificação guerreira e o direito de
participar nos negócios públicos, uma equivalência que não será mais discutida
174
.
Na pólis, o estado de soldado coincide com o de cidadão: quem tem seu lugar na
formação militar da cidade igualmente o tem na sua organização política. Até na guerra, a
Eris, o desejo de triunfar do adversário, de afirmar sua superioridade sobre outrem, deve
submeter-se a Philia, ao espírito de comunidade, o poder dos indivíduos deve inclinar-se
diante da lei do grupo. O espírito igualitário de uma reforma que suprime a oposição antiga do
Laos e do demos para constituir um corpo de soldados-cidadãos, definidos como hómoioi.
Nesse aspecto comunitário de uma vida social que impõe a todos um mesmo regime de
austeridade a ordem é primeira em relação ao poder. A arché pertence na realidade
exclusivamente à lei. É na prática de combates que nas controvérsias da ágora que os hómoioi
se exercitam. A cidade implica, ao lado dos cidadãos e em contraste com eles, todos aqueles
que em graus diversos, são privados dos valores ligados à plena cidadania. A igualdade se
esboça num fundo de desigualdade
175
.
Que tornou possível essa concentração e mobilização do poder? O mais importante agente
na efetivação da mudança de uma descentralizada economia de aldeia para uma economia
urbana altamente organizada foi o rei, ou melhor, a instituição da Realeza -que fundava
cidades- é, a função especial e, sem dúvida, universal dos reis. Na implosão urbana, o rei se
coloca no centro: é ele o imã polarizador que atrai para o coração da cidade e coloca sob
controle do palácio e do templo todas as novas forças de civilização
176
.
Após a conclusão sobre o tema realizamos algumas considerações abrangentes.
Dialogando com o pensamento de Aristóteles ousamos realizar uma breve reflexão sobre as
174
VERNANT, Jean Pièrre. As origens do pensamento grego. Trad. br. Isis B.da Fonseca, 4ª Edição, São Paulo
e Rio de Janeiro: DIFEL, 1998,Cap. IV, p.49.
175
Ibidem, p.51- 53.
176
Ibidem, Cap.II, p. 44.
83
relações de amizade e o ethos no século XXI
177
. O cenário social revela uma crise das
relações afetivas contemporâneas tanto no aspecto individual como coletivo. Com o processo
de desgaste da tradição e o rompimento da modernidade com a metafísica, termos como a
virtude, a prudência assim como o ethos foram secularizados perdendo o significado de
sentimento concreto da pólis. O ethos verdadeiro deixou de ser a expressão da opinião de
muitos e passou a ser o que está de acordo com a razão. O problema que se situa é da crítica
fundada na opinião e a justificação dele segundo a razão. Mas o que acontece quando o ethos
tradicional se desintegra? É possível uma reconstituição do ethos? Essa problemática nos
impele a questionamentos concernentes ao tema desde os primórdios da filosofia social e
política até a atualidade em projeção ao futuro, isto é, dos costumes ao consumo. Como
sabemos, o ethos abrange os costumes e hábitos e o ideal de universalidade, para determinar o
que justo e o que é injusto. Vemos que o ethos atual está longe do ponto de vista de uma
sociedade justa, visto que, redistribuir os bens sociais é uma obrigação de uma sociedade
justa. O ethos tem um caráter de obrigação que costuma assumir um aspecto desagradável no
mundo individualista. É comum a pergunta: por que tenho que lidar sempre com obrigações?
Mas devemos lembrar que o termo obrigação vem do latim ob-ligatio. Significa que as
pessoas estão necessariamente ligadas, seja à realidade, seja a outras pessoas, à comunidade
na qual vivem, enfim, à humanidade, da qual fazem parte. A obrigação é, portanto, uma forma
incontestável de ser pessoa. Ser livre não é destruir os laços, as relações, que nos unem uns
aos outros, mas discernir entre os que escravizam e os que humanizam. Os que humanizam
têm um valor em si mesmo, e o que é valioso em si mesmo nos liga, nos obriga e não pode ser
submetido ao cálculo de utilidade.
O individualismo é priorizado em detrimento do coletivo público favorecendo o privado
em um tempo em que predomina um espírito ausente de altruísmo. É relevante observar que o
conceito de interesse e utilidade dos antigos difere da atualidade
178
. As relações entre os
antigos de fato se dão por interesse, mas visando em maior instância o bem, sobretudo do
coletivo. A atualidade tem presente no interesse um sentimento individualista que não é
pertinente ao contexto antigo. As amizades se confundem, com as “boas relações influentes”
que comumente ouvimos falar. Atualmente, de uma forma generalizada as pessoas se amam
não pelo que são, mas pelo que podem proporcionar, amando o interesse e não a pessoa em si,
177
HERRERO, Xavier. O “ethos” atual e a Ética. Revisa de Filosofia Síntese, Volume 31, nº 100, Belo
Horizonte, 2004, p.149-161.
178
VIANO, Cristiano. Amizade e emoções de rivalidade em Aristóteles: uma origem comum, Journal of
Ancient Philosophy, Volume II, Issue I, 2008, p.1-15.
84
problemas quanto ao “ter” e o “ser” são próprios do espírito ao nosso tempo, e para, além
disto, a questão da imagem: em “aparecer” para “ser”. O que ocorre é que na sociedade atual,
as relações de amizade, assim como todas as outras foram também influenciadas pela forma
social. Na cena atual da história, inversamente a relações políticas da antiguidade, o Estado
para manter-se no poder, aliou-se e se submete ao sistema econômico vigente, o capitalismo.
O produto do trabalho humano tornou-se mercadoria, assumindo um valor abstrato e as
relações entre os homens tornaram-se relações entre mercadorias. Assim como o indivíduo
vende a sua força de trabalho, vende também as influências decorrentes de uma “boa
amizade”, é o que conhecemos como “tráfico de influências”. As relações de amizade na
atualidade nos remetem ao interesse quanto ao valor do que possuímos e não do que somos, o
quanto valemos nesta sociedade de consumo. Tudo é mera mercadoria: cargos, votos depende
de quanto em está em questão.
O capitalismo exalta uma sociedade de consumo e alienada num ambiente de coisificação
ou reificação do indivíduo, em que as relações não acontecem entre os homens enquanto o
que são, mas sim enquanto as coisas que possuem. Uma vez que, as relações de mercado se
estendem a forma das relações sociais, os princípios éticos e de cidadania têm sido
massacrados, as pessoas são meios e não finalidade, pois elementos fundamentais como a
solidariedade, a bondade foram abandonados pela humanidade abdicando da condição
humana do bem pelo bem.
Em nome do desenvolvimento, do “progresso”, a fragmentação das ciências fragmenta
também o homem (ser interdisciplinar que é) e dificulta seu reconhecimento integral nesta
sociedade. Cada ciência especializando-se muitas vezes em detrimento de outras, da própria
sociedade e do meio ambiente. Essa especificidade excessiva provoca e reflete um
isolamento, que se estende às relações sociais. Temos meios de comunicação, sobretudo os
virtuais avançadíssimos, mas temos extremas dificuldades nas relações afetivas
interpessoais
179
. Preparamo-nos não como cidadãos, mas para vendermos a nossa
profissionalização de acordo com a demanda do mercado de trabalho, não somos formados
para estabelecermos relações como seres humanos, para convivermos, mas para vendermos
nosso trabalho como mercadoria na prateleira da sociedade.
179
NASCIMENTO, Joelson Santos. Relacionamento virtual: uma reflexão a partir da teoria aristotélica da
amizade, in Prometeus: Filosofia em revista, Ano 1, 2 julho-dezembro, 2008, p.26-33.
85
Se as relações de amizade envolvem interesses e nosso valor é quanto temos em
dinheiro, o que possuímos, enfim o que podemos proporcionar de proveitoso ao outro, então
as amizades verdadeiras são raramente encontradas e é complicado distinguir as diferentes
espécies de amizade. Essa exposição nos confronta com o desafio de outra questão que se
insere neste contexto e que se apresenta como inquietação que é o problema do tempo. Para
haver convivência humana e amizade é preciso gastar tempo com o outro, mas não é qualquer
tipo de dispêndio cronológico, mas tempo disponível ao outro, uma vez que A vida
contemplativa supõe a possibilidade do ócio.” (Pol. VII, 15, 1334a, 20-21, 1134a 11-b 5).
Porém na sociedade de costumes do consumo o tempo ócio é tão raro quanto às amizades
verdadeiras. Trabalhamos o tempo todo para usufruirmos consumindo. Até o tempo de lazer é
preenchido com uma série de distrações que divertem, mas entorpecem a reflexão ativa, isto é,
dificultam o pensar contemplativo e o compartilhar em diálogo, e, sobretudo, consumindo! O
diálogo quando existe é leviano, sem efeito construtivo, pois limitado às discussões
consumistas. A ociosidade transformou-se em ansiedade e resultou em distúrbios
comportamentais psicológicos e físicos, da depressão à obesidade mórbida. Convivemos em
compartimentos e departamentos confinados nos relacionando virtualmente. Em milésimos de
segundos nos deparamos com o outro extremo do mundo, mas não alcançamos o outro
indivíduo ao lado. O comodismo preparou o campo para o sedentarismo.
O negócio deu tão certo que virou reality show. E então ao fim do dia percebemos que não
tempo para nada. O que com o nosso tempo? Numa sociedade que enfatiza o amor
como sentimento maior e, no entanto apresenta atitudes perversas e mesmo bárbaras, temos de
estar atentos ao entorpecimento de nossos sentidos pela indústria cultural que massifica, sob
atitudes ideológicas “espetaculares”, que pregam o amor, mas nos conduzem à violência, à
barbárie. Nesse sentido, lembramos Aristóteles, segundo o Estagirita a amizade prevalece,
pois o amor pode acabar, mesmo havendo bondade, porém a amizade dura enquanto houver
bondade. O amor nem sempre é recíproco, mas a amizade verdadeira é reciprocidade de
sentimento
180
.
180
ROCHA, Zeferino. O amigo, um outro si mesmo: a philia na metafísica de Platão e na ética de
Aristóteles, Psiché, jan-jun, ano/volume X, nº 017, Universidade de São Marcos, São Paulo, 2006, p.65-86.
86
Não pretendemos nos deter em justificativas deterministas à história da humanidade. Se
na história humana todas as relações políticas, como relações de interesses, são relações de
poder, em que o mais forte predomina sobre o mais fraco, usando de violência, das leis,
sobrepondo as vontades particulares sobre os desfavorecidos, e se isto vem se repetindo, isso
não quer dizer que seja justa e a melhor experiência possível. Podemos dizer que o homem é
uma possibilidade, que contém a semente da razão, mas que no decorrer da história tem se
utilizado de maneira egoísta, particular, sem consideração ao outro e a coletividade, de
maneira desprovida de responsabilidade e mesmo de racionalidade. É necessário que se
forme um caráter ético, como referencial, mas hoje existem vários grupos, nações, povos,
que tentam impor e convencer uns aos outros a sua própria verdade. As dimensões sociais e
econômicas destas culturas diversas são inseridas em desigualdades paradoxais.
Diante do contexto crítico de conscientização como se posiciona a Ética? Como pensar o
futuro? Que futuro esperamos? Uma possibilidade para amenizar este conflito são os valores
éticos que devem ser cultivados (solidariedade, justiça, amizade, responsabilidade e respeito
ao próximo...) para que o ser humano possa utilizar essa razão de maneira racional de fato. O
discurso ético filosófico não é a teoria, não é excludente da ação política, mas é também
ação prática imediata. A teoria e a ação política são complementares mutuamente. Então
formulando um outro questionamento, como se posiciona a Ética ante à Política? De maneira
geral, as sociedades em consenso acreditam na formação dos valores éticos por meio da
educação, da arte, do esporte onde serão gerados esses valores éticos e daí surgiria uma
esperança em processo de transformação, uma humanização da humanidade. Do contrário
estamos renunciando ao bem como algo próprio do humano destruindo a humanidade, como
já percebemos nas catástrofes ambientais que estamos presenciando.
O homem descobriu que consegue manipular a natureza de acordo com os interesses
capitalistas é preciso descobrir como favorecer também as relações interpessoais e com a
própria natureza. Enquanto predominar esse espírito de competição, individualista,
egocêntrico, narcisista não perspectiva melhor. O desafio que se apresenta ao pensar ético
e político tende a criarmos um caminho possível de reconciliação da ciência com a tradição
filosófica metafísica, superar a dicotomia entre o homem e o cosmos, em esforços para uma
relação de parceria entre o homem e a natureza. Causando menos danos ao ser humano e ao
meio ambiente, com maior equilíbrio nas relações entre homem, natureza e ciência.
87
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