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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
Priscila Cristina da Silva
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ARARAQUARA
-
SÃO
PAULO
2008
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PRISCILA
CRISTINA
DA
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Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Faculdade de Ciências e Letras Unesp/Campus
de Araraquara, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Sociologia.
[Linha de pesquisa Gênero, Identidades e
Etnia]
[Orientadora: Profa. Dra. Elda Rizzo de
Oliveira]
[Bolsa Capes]
ARARAQUARA
SÃO PAULO
2008
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Silva, Priscila Cristina da
Wilhelm Reich: uma leitura hermenêutica do corpo como cogito
/ Priscila Cristina da Silva – 2008
179 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Estadual
Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara
Orientador: Elda Rizzo de Oliveira
l. Reich, Wilhelm, 1897-1957. 2. Homem. 3. Imaginário.
4. Natureza. 5. Cultura. I. Título.
PRISCILA
CRISTINA
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Dissertação de Mestrado, apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Faculdade de Ciências e Letras Unesp/Campus
de Araraquara, como requisito parcial para
obtenção do título Mestre em Sociologia.
[Linha de pesquisa Gênero, Identidades e
Etnia]
[Bolsa Capes]
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EMBROS COMPONENTES DA
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ANCA
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XAMINADORA
:
Presidente e Orientador: Profa. Dra. Elda Rizzo de Oliveira
Departamento de Antropologia, Política e Filosofia/
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/ Unesp
Membro Titular: Profa. Dra. Sara Quenzer Matthiesen
Departamento de Educação Física/
Instituto de Biociências de Rio Claro/ Unesp
Membro Titular: Prof. Dr. Augusto Caccia Bava Junior
Departamento de Sociologia/
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara/ Unesp
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
A todos aqueles que desejam um mundo onde todos os homens
possam viver plena e autenticamente.
6
Agradecimentos
A Wilhelm Reich pela esperança e integridade com que construiu um pensamento
pujante, autêntico e numinoso, que restitui o homem a si mesmo, ao outro na alteridade e ao
pertencimento ao cosmo. Assim, ele lançou inúmeras sementes que fecundaram ações e
idéias pelo mundo todo, além de ressoar nas inquietações que impulsionaram este trabalho.
Uma gratidão a ele também por nos revelar os meios pelos quais podemos compreender que
o sofrimento humano não é natural e que não podemos solucioná-lo sozinho, longe das
relações sociais.
À CAPES pelo financiamento desta pesquisa, sem o qual seu desenvolvimento teria
sido muito mais difícil.
À Faculdade de Ciências e Letras e seu corpo de funcionários que foram responsáveis
pelas condições de realização institucional deste trabalho.
Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e à linha de pesquisa Gênero,
Identidades e Etnia” pela possibilidade de desenvolver neste campo tão apaixonante das
Ciências Sociais uma pesquisa sobre um pensador como foi Wilhelm Reich.
Agradeço aos professores que fizeram parte da minha formação e me iniciaram nesse
universo fascinante das Ciências Sociais.
À Profa. Dra. Sara Quenzer Matthiesen e ao Prof. Dr. Jo dos Reis Santos Filho
pelas contribuições oferecidas durante meu Exame de Qualificação, marcado por respeito e
pela partilha simples e sincera de conhecimentos.
À Profa. Dra. Sara Quenzer Matthiesen e ao Prof. Dr. Augusto Caccia Bava Junior
por dividirem comigo suas apreciações na banca de defesa deste trabalho, aguçando ainda
mais os interesses cognitivos que me foram suscitados por esta pesquisa.
7
À Profa. Dra. Elda Rizzo de Oliveira, que orientou este trabalho passo-a-passo com
zelo, sabedoria, carinho e amizade, partilhando comigo muito mais do que conhecimentos,
partilhando Vida.
Aos companheiros do Grupo de Estudos “Imaginário e Organização dos Sistemas
Simbólicos: doença, ratio hermetica e processos iniciáticos” e do Grupo Temático
“Memória e Identidade: imaginário e organização dos sistemas simbólicos”, especialmente
ao Maurício Ricci, pelas experiências e pelos saberes compartilhados com amizade e desejo
de amadurecimento mútuo.
Às minhas queridas amigas: Ana, Bety, Elaine, Eliane, Lucilene e Naiara, as
chamadas gatas extraordinárias, com as quais vivi anos incríveis de companheirismo
edificado em profundos afetos e banquetes espirituais continuamente atualizados, que
nutrem as nossas almas e as mantêm unidas.
À Tereza e ao Marco, à Cris e ao Otávio, amigos cuja afável companhia torna mais
alegres as noites de sábado e as tardes de domingo.
Aos pais do Lucas, Moacir e Stela, e à sua irmã Luciara, por me acolherem com
carinho e respeito em sua família.
Ao Liter, meu irmão, cuja chegada, aos meus cinco anos, me forneceu as primeiras
experiências marcantes de coexistência com o que eu viria mais tarde descobrir como
alteridade.
Aos meus queridos pais, Zelda e Toninho, meus amores indizíveis, pela dedicação e
amor ilimitados.
Ao Lucas, pela cumplicidade amorosa que vivemos, através da qual fecundamos a
cada dia essa nossa tarefa ontológica de “fazer alma”.
8
O outro salva-nos da nossa própria clausura ao tirar-nos de
nós mesmos.
Andrés Ortiz-Osés
9
SILVA, P. C. WILHELM REICH: UMA LEITURA HERMENÊUTICA DO CORPO
COMO COGITO. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Programa de Pós-Graduação
em Sociologia. Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Araraquara, 2008, 179f.
RESUMO
Este trabalho apresenta a leitura hermenêutica do corpo realizada por Wilhelm Reich, a
qual é indissociável de sua concepção sobre o homem e a sociedade. No decorrer de sua
obra, Reich vai construindo um conhecimento cada vez mais unitivo, trabalhando
conjuntamente natureza e cultura, corpo e alma, subjetivo e objetivo. Sua noção de
homem integra as dimensões sociocultural, psicológica, biológica e cósmica, chegando,
assim, à conclusão de que uma co-implicação dinâmica entre homem e cosmos, ou
seja, o homem é um microcosmo do macrocosmo. Sem moralismos e com espírito de
emancipação, ele construiu com nova qualidade cognitiva essa unidade simbólica. E
mais, seu pensamento abarcou ainda novas formas de interpretar esse mundo de Hades
onde estamos todos imersos, uns mais e outros menos. Mesmo construindo um
pensamento tão fecundo, Reich passou por diversas situações de exclusão e seu
pensamento foi por muito tempo marginalizado pela ciência dominante.
PALAVRAS-CHAVE
Pensamento reichiano - Corpo - Homem - Sociedade - Imaginário- Natureza - Cultura
10
SILVA, P. C. WILHELM REICH: A HERMENEUTICS READING OF THE BODY
AS COGITO. Master Thesis. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Faculdade de
Ciências e Letras, UNESP, Araraquara, 2008, 179f.
ABSTRACT
This research introduces the body’s hermeneutics reading realized by Wilhelm Reich,
which is inseparable from his conception on human and society. In the course of his
work, Reich produced a knowledge increasingly integrator, working together nature and
culture, body and soul, subjective and objective. His notion about the human joins the
dimensions social, cultural, psychological, biological and cosmic, coming thus to the
conclusion that there is a dynamic co-involvement between human and cosmos, in other
words, the human is a microcosm of the macrocosm. Without moralism and with spirit
of emancipation, he elaborated with new cognitive quality this symbolic unit. And
more, his thinking also comprised new ways of interpreting the world of Hades where
we are all immersed, some more and others less. Even building such a fertile thought,
Reich suffered through several situations of exclusion and his thought was for a long
time marginalized by the dominant science.
KEYWORDS
Reichian Thought - Body - Human - Society - Imaginary - Nature - Culture
11
Sumário
Introdução .....................................................................................................................14
O objeto de estudo: o corpo no pensamento de Wilhelm Reich ...............................14
A escolha do objeto de estudos ................................................................................... 18
Os objetivos e as justificativas .................................................................................... 21
Pressupostos teóricos ....................................................................................................24
Técnicas de pesquisa .....................................................................................................27
Metodologia da pesquisa ..............................................................................................28
Dualismo cartesiano e modelo biomédico ..............................................................28
Historicismo e hermenêuticas redutoras ...............................................................31
Simbolismo e hermenêuticas instauradoras ..........................................................35
Pensamento analógico e imaginário .......................................................................38
A Dissertação .................................................................................................................40
Capítulo 1
Wilhelm Reich e o contexto histórico-cultural de sua época.......................................42
Wilhelm Reich, uma introdução biográfica................................................................43
Wilhelm Reich e o contexto alemão da passagem do século XIX ao século XX .....47
O horizonte intelectual da época..................................................................... 47
Os aspectos políticos da Alemanha na passagem
do século XIX ao XX ........................................................................................52
Norbert Elias, o habitus do duelo do código de honra alemão ......................55
O Nazismo, este interlocutor histórico ............................................................57
Wilhelm Reich: uma voz dissonante ...........................................................................61
Wilhelm Reich e a luta científica .................................................................................67
12
Capítulo 2
Wilhelm Reich: influências teóricas.............................................................................70
Wilhelm Reich e a Psicanálise .....................................................................................71
Material analítico e interpretação ...............................................................................75
O referencial marxista ..................................................................................................82
A influência do pensamento antropológico.................................................................85
As Ciências Naturais e o impulso vital ........................................................................89
Wilhelm Reich e o campo da Educação ......................................................................94
O sujeito moderno: natureza e cultura .......................................................................97
Difamações e exclusões ...............................................................................................100
Capítulo 3
O corpo no pensamento reichiano .............................................................................103
Wilhelm Reich e o registro das continuidades ........................................................104
A formação de uma couraça .....................................................................................105
Psicopatologia e Sociologia da vida sexual (1927):
o fundamento corporal das neuroses ........................................................................108
Instinto de destruição, um dado irreversível? ................................................111
Análise do caráter (1933): o corpo como memória ...................................................114
A tipologia caracteriológica ..............................................................................117
Histórias de vida e formação do caráter ..........................................................119
Do caráter ao corpo (pensar por analogia) .....................................................121
O éter, Deus e o diabo (1949):
a natureza presentificada na cultura e no cosmos ...................................................123
O homem, microcosmo do macrocosmo: expansão e contração ...................125
O homem, conteúdo e continente do oceano cósmico de orgone ...................129
O assassinato de Cristo (1953):
uma abordagem da condição humana ......................................................................130
A relação mãe-filho como alteridade.............................................................135
13
Capítulo 4
Um olhar antropológico sobre o pensamento de Wilhelm Reich............................138
A experiência sensível do mundo como relação cognitiva ....................................139
O debate antropológico sobre a etiologia das doenças ..........................................141
Medical Antropology ou Antropologia Médica ............................................142
Antropologia da Saúde ....................................................................................143
Antropologia da Doença: illness, disease e sickness,
a tríade etiológica das doenças ........................................................................144
A interpretação da causalidade e dos “usos sociais da doença” ..................145
Das razões ao sentido do adoecimento ...........................................................147
A leitura hermenêutica do corpo .............................................................................149
Corpo e emoção, uma unidade indivisível ..............................................................151
Wilhelm Reich e o paradigma indiciário ................................................................152
Wilhelm Reich, entre o sensível e o inteligível .......................................................154
O corpo como dimensão holonômica ......................................................................158
O “organismo encouraçado” de Reich e a hermenêutica
do imaginário antropológico ....................................................................................159
Considerações Finais ................................................................................................164
Referências .................................................................................................................172
14
Introdução
Para a maior parte das pessoas, constitui um enigma o
fato de que eu possa trabalhar simultaneamente em
disciplinas tão diferentes como a psicologia profunda,
sociologia, fisiologia, e agora também biologia. Alguns
psicanalistas desejam que eu volte à psicanálise; os
políticos empurram-me para a ciência natural e os
biólogos para a psicologia.
1
Wilhelm Reich
O objeto de estudo: o corpo no pensamento de Wilhelm Reich
O objeto desta Dissertação consiste numa discussão sobre o corpo humano
pensado, primeiramente, a partir da hermenêutica desenvolvida por um cientista muito
combatido por grande parte da ala psicanalítica e da esquerda comunista de sua época,
denominado Wilhelm Reich. Num segundo momento, este estudo realiza uma
confluência do seu pensamento com o pensamento antropológico, particularmente, com
o paradigma da Antropologia do Imaginário.
A Modernidade nos coloca a necessidade de pensar problemas não usuais dentro
das Ciências Sociais e um pensador como Wilhelm Reich abre um amplo campo de
cognição que poucos conhecem. Como o campo das Ciências Sociais foi um dos
campos de reflexão de Reich, quero saber como ele responde uma questão que está na
origem destas ciências, desde Durkheim (1979): De onde vêm as forças que atuam na
1
REICH, W. A Função do Orgasmo. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 13.
15
consciência dos homens, tornando-as mais do que manifestações de sua individualidade,
um meio para pensarmos a sociedade em que vivemos?
Ao colocar-se a tarefa de construir a natureza simbólica de seu objeto, a
Antropologia defronta-se uma vez mais com as questões que envolvem as relações
existentes entre natureza e cultura, biológico e simbólico, a fim de alcançar o sentido
instaurado da ordem simbólica, ou numa concepção ainda mais radical, desentranhar
esse sentido através de uma hermenêutica antropológica do imaginário
2
.
No campo das Ciências Sociais, antes de ganhar a atenção da indagação sociológica
marcada nos estudos de nero e feministas, é no pensamento antropológico que o
corpo recebe as primeiras análises enquanto objeto de reflexão. A busca por
compreender a cultura de uma dada sociedade segundo os seus simbolismos passa a
exigir do pesquisador o empenho de trazer à discussão a questão da alteridade, isto é, do
reconhecimento da diferença que entre o eu e o outro, é por causa desse
reconhecimento, mediado não pela intolerância, mas pelo respeito, que a presença de
um não se torna ameaçadora para o outro. O universo simbólico que orienta a
compreensão dessa diferença exige a tarefa de construí-la teoricamente, em graus cada
vez mais profundos - conforme a ela se tornando mais obscura. Exige, portanto,
como veremos adiante, um deslocamento do eu etnocêntrico como medida de todas as
coisas para a captura da experiência íntima do outro. É nesta relação que vai se
constituindo também a medida de humanidade, como nos lembrava Lévi-Strauss
(1976).
2
Danielle Perin Rocha Pitta faz uma síntese das várias idéias implicadas na noção de imaginário
desenvolvida por Gilbert Durand no decorrer da apresentação que ele faz de sua teoria antropológica, de
modo que o imaginário pode ser considerado como essência do espírito, à medida que o ato de criação
(tanto artístico, como o de tornar algo significativo), é o impulso oriundo do ser (individual ou coletivo)
completo (corpo, alma, sentimentos, sensibilidade, emoções...), é a raiz de tudo que, para o homem,
existe” (PITTA, 2005, p. 15). Em As estruturas antropológicas do imaginário, Gilbert Durand define
esse conceito como o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do
homo sapiens - aparece-nos como o grande denominador fundamental onde se vêm encontrar toadas as
criações do pensamento humano” (DURAND, 2002, p. 18, grifos do autor).
16
É com este precioso ensinamento que a Antropologia me proporcionou que realizo
nesta Dissertação de Mestrado um estudo sobre o corpo e o pensamento analógico sobre
ele no paradigma reichiano. Contudo, não é possível dissociar as reflexões de Wilhelm
Reich, que é um profundo humanista contemporâneo, de sua tempestuosa vida social.
Médico, analista e militante político, questionador de teorias congeladas, morto em
1957, absolutamente injustiçado pelo pensamento médico, psicanalítico, partidário,
social e jurídico. Mesmo entre os sociólogos que leram as reflexões de Wilhelm Reich -
este pensador que traz contribuições para a mudança social, problemática na qual as
reflexões sociológicas se inserem - desconheço algum estudo sobre ele neste campo do
conhecimento por onde ele mesmo transitou (as Ciências Sociais), que foi objeto da sua
reflexão através de temas como: mudanças sociais, casamento, ideologia, dominação,
repressão sexual, educação, sociedade, corpo como meio de transcender as histórias
individuais e coletivas na busca de transformação social.
Deste modo, considero Wilheilm Reich como mais um dentre os vários e
importantes cientistas que foram excluídos durante a formação do modelo de
pensamento ocidental. Quando Gilbert Durand formula o conceito de anti-história da
anti-filosofia
3
um dos conceitos fundantes de sua obra, ela mesma, uma crítica à
ciência cartesiana, à história como ponto de chegada e à filosofia como meio lacunar de
reflexão - ele alude a um grande número de pensadores (Giordano Bruno, Avicena, os
hermetistas medievais, entre outros).
A concepção de Reich acerca do corpo como meio para efetuar a mudança social é
construída no complexo duelo que travou nessa relação social entre o eu e o outro,
diferença jamais reconhecida como alteridade. Através da restituição do próprio corpo
3
A idéia presente no conceito de anti-história da anti-filosofia é a de integrar na teoria antropológica do
imaginário a hermenêutica de inúmeros pensadores “marginalizados, ‘ocultados’ na história oficial do
pensamento ocidental, sob a denominação pejorativa de ‘filosofia oculta’ ou ‘ocultismo’” (BADIA, 1999,
p. 19).
17
ao homem moderno, com os seus sentimentos, desejos e direções de desenvolvimento,
enfim, um corpo vivo, esse autor, no meu entender equaciona de modo singular a
relação entre o eu e o outro, e resolve também o grande dilema da Antropologia: o
etnocentrismo, o domínio de uma cultura sobre a outra. Além disso, ele formula uma
concepção muito singular das relações sujeito-objeto ao construir, através de uma leitura
hermenêutica do corpo, a natureza de uma realidade que requereu um conhecimento de
novo tipo para apreendê-lo e libertá-lo. Assim, ele realiza um trajeto que parte da crítica
à razão materialista em si mesma, egocêntrica, finita, à construção de uma razão outra,
simbólica e holonômica
4
, sua confluência com a hermenêutica da Antropologia do
Imaginário.
Neste estudo sobre as concepções que Wilhelm Reich constrói sobre o homem e o
corpo, quero responder às seguintes questões:
1. Que condições histórico-culturais produziram um pensador como foi Wilhelm
Reich?
2. Como se relaciona sua biografia pessoal à sua biografia intelectual e militante?
Como se colocou para ele a relação entre sujeito do conhecimento e objeto
cognoscível?
3. De onde vêm as forças que modelam a consciência quando ele propõe um
modelo para se pensar o corpo que o torna singular, dentre os médicos, os
psiquiatras e os psicanalistas?
4. De que modo uma sociedade autoritária e excludente produz efeitos e
impedimentos nos corpos?
5. Como é que ele propunha os termos da mudança social através da possibilidade
de restituição dos corpos aos sujeitos, e destes ao seu universo sociocultural, no
4
Uma abordagem holonômica considera a totalidade implicada na ordem dos fenômenos estudados, ou
seja, observa as leis do todo, presentes, por exemplo, na co-implicação dinâmica e vibracional entre
homem e cosmos (GROF, 1987).
18
sentido de empreender uma luta contra os males da civilização ocidental, dentre
eles, o dos regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo?
6. Como esse autor formula sua ontologia para pensar os corpos e a sexualidade,
no que toca aos problemas sociológicos da (des)igualdade e da liberdade? O que
significava reinstaurar a função simbólica do corpo para edificar essa ontologia
que foi incialmente pensada num contexto que construiu um elevado patamar de
esclarecimento filosófico e desenvolvimento espiritual, como o do pensamento
alemão?
A escolha do objeto de estudos
Sempre creditamos à nossa livre consciência a capacidade de escolha de uma
temática de pesquisa. Ao contrário, nesta pesquisa chego mesmo a pensar que fui
escolhida por esse objeto de estudos, por meio de aproximações, de intuições, e assim,
de uma maneira mais indireta do que direta.
Diversas influências me conduziram ao labirinto humano para entender o corpo, e
restaurar através dele a função simbólica na relação com o outro, a alteridade. Venho de
uma família da classe trabalhadora e de uma geração que, embora menos do que as
anteriores, deparou-se também com a problemática da sexualidade e da repressão
sexual. Em Lévi-Strauss, e depois em outros autores, vi que corpo e simbolismo são
partes integrantes da mesma discussão natureza-cultura, sensível-inteligível. Na grande
paixão por esse autor, percebi que era possível pensar que os movimentos espontâneos,
tais como ocorrem numa dança - meu primeiro interesse de estudos -, embalados
ritmicamente operavam fina sintonia entre corpo e mente.
19
Lévi-Strauss (1991), fazendo uma comparação entre a narrativa do mito e a
execução de uma partitura musical, assinalava as estruturas sob as quais elas poderiam
ser construídas analogamente, aproximava as duas em sua potencialidade de acionar no
homem uma transcendência entre o sensível e o inteligível, quando o tempo suprimir-
se-ía em metáfora transcendental, pois as linguagens de cada uma, embora diferentes,
poderiam ser compreendidas articuladamente (LÉVI-STRAUSS, 1991, p.24).
Outro texto que utilizava o paradigma estruturalista para compreender a eficácia
simbólica de cura entre benzedeiras já chamava a atenção ao tempo como não sendo
fixo, de modo que seria possível pensá-lo enquanto metáfora, daí a expressão da autora
de metáfora da abertura do tempo, o fato de que tempos plurais ocorrendo dentro do
tempo euclidiano, inclusive a dimensão mítica da existência, o tempo que poderia nos
conduzir a um movimento de reconexão do homem consigo mesmo, ao mundo que o
circunda e ao cosmos, que se encontra dentro de cada um de nós. (OLIVEIRA, 2001).
pude compreender que isso estava perto da expressão que o homem é poeira de
estrelas, ou ainda, um microcosmo do macrocosmo (DURAND, 2002; GROF, 1987;
LEÓN, 2001; OLIVEIRA, 2001). Diversos autores contemporâneos diziam que
somos feitos da mesma matéria que formou o universo (BOFF, 1997), que mais do que
expressão poética, a física contemporânea explica como sendo a nossa origem.
Nesse momento, em 2004, comecei a cursar, com a professora Elda, a Antropologia
do Imaginário, e o novo olhar proposto para a formulação entre o eu e o outro, na
verdade, o eu co-implicado no outro, neste paradigma radical da disciplina fortemente
ressoava em mim. A perspectiva de reencantamento do mundo, de busca do sentido
profundo das relações entre homens, seres e coisas, se constituía como uma alternativa
para pensar o desencantamento do mundo aludido por Max Weber quando reconhecia a
desmagificação do mundo instituída pelo método científico: o sentido do mundo a um
20
mundo desencantado, no qual as coisas apenas são’ e ‘acontecem’ mas o
‘significam’ mais nada”
5
.
Do interesse em pesquisar a dança, me aproximei de outra temática que me
inquietava, a loucura. Neste período pratiquei biodança por alguns meses e iniciei
sessões de terapia reichiana, sem, no entanto, conhecer a epistemologia de seu trabalho.
O que me surpreendeu, contudo, foi a referência etnocêntrica que ouvi de um professor
que mencionou Willhelm Reich como um louco. Seria possível que meus caminhos
estivessem se abrindo nesta direção da loucura?
Minha orientadora que havia lido muito sobre esse autor e nutria paixão e
profundo respeito pelo vigor de suas análises, me mostrou a dimensão holonômica do
pensamento de Wilhelm Reich que confluía com a dimensão holonômica da
Antropologia do Imaginário. Ela me indicara a leitura de O Éter, Deus e o Diabo, recém
lançado no Brasil em 2003. Voltei para casa com seu livro emprestado. As reflexões
sobre o sofrimento humano, os sofrimentos sociais que engendravam um organismo
encouraçado e como seria possível desencouraçá-lo, abrindo-lhe um livre fluxo
energético, uma livre forma de expressão da perdida espontaneidade da criança, foram
me conquistando. Não de forma tranqüila, passei a ver partes de mim mesma, meus
modos de ser e estar, na discussão do encouraçamento apresentado pelo autor. Mas o
autor colocava também questões fundamentais para a Antropologia: a liberdade, a
igualdade, a decifração de significados culturais, a alteridade. Como posso reconhecer o
direito à diferença se estou aprisionada em mim mesma? Como é possível pensar em
termos amplos se estou confinada em estruturas comprimidas? Depois, com a leitura de
5
Nas palavras de Weber, textualmente, essa idéia é expressa na passagem: “quanto mais o intelectualismo
repele a crença na magia, e com isso os processos do mundo ficam ‘desencantados’, perdem seu sentido
mágico e doravante apenas ‘são e ‘acontecem’ mas não ‘significam mais nada, tanto mais urgente
resulta a exigência, em relação ao mundo e à ‘conduta de vida’ como um todo, de que sejam postos em
uma ordem significativa e ‘plena de sentido’” (WEBER, 1994, p. 344).
21
outros textos de Reich, fui conhecendo um pensador cada vez mais instigante por sua
abordagem complexa, um humanista que transitava entre diversas áreas do
conhecimento (Biologia, Medicina, Física, Sociologia, História, Psicologia, Filosofia,
Política), um cientista que não fôra estudado pelas Ciências Sociais.
Da Psicanálise freudiana, conhecia vários conceitos (como libido, inconsciente,
recalque) e Wilhelm Reich foi um bom interlocutor deste paradigma. Sem moralismos e
com espírito de emancipação, ele construiu com nova qualidade cognitiva, a
sexualidade e o corpo entendidos como unidade psico-física e sociocultural, o que em
termos antropológicos reconheci também que pode ser expresso enquanto unidade
simbólica. E mais, seu pensamento abarcava ainda novas formas de interpretar esse
mundo de Hades
6
onde estamos todos imersos, uns mais e outros menos. Que as marcas
da dominação simbólica se revelam desde a mais tenra infância, é forte demais para
descartar um pensador sob o estereótipo do louco. Com mais força, a alteridade se
recolocava para mim, exigindo seu cotejamento, seu deciframento.
Os objetivos e as justificativas
Dos 58 trabalhos acadêmicos existentes entre Dissertações de Mestrado e Teses de
Doutorado (41 Dissertações e 17 Teses) que versam sobre Wilhelm Reich entre 1979 e
setembro de 2005, não há nenhum no campo da Sociologia, um dos campos de profunda
reflexão desenvolvidos pelo autor (MATTHIESEN, 2007). Muitos dos trabalhos
acadêmicos existentes sobre ele destacam sua relação com a Psicanálise. Em que
medida as aproximações e distanciamentos do pensamento reichiano em relação ao
6
Na mitologia grega, Hades é o mundo dos mortos ou mundo das sombras, caracterizado por profundos
sofrimentos e dilacerações.
22
modelo psicanalítico clássico e ao marxismo tornam sua contribuição fecunda para esta
proposta hermenêutica da Antropologia?
A posição crítica de Reich diante da sociedade capitalista também me tocou
sensivelmente. Militante e intelectual influenciado pelo pensamento marxista, Reich
relacionou a estrutura corporal dos trabalhadores à estrutura social de uma sociedade
autoritária organizada segundo a lógica da exploração do trabalho de uma imensa
maioria por uma restrita minoria dominante. Reich conseguiu ler nas expressões
corporais dos trabalhadores desfavorecidos que tratou, no interior desse sistema, a rígida
estrutura de exploração que marcava sua pertença à determinada classe social e suas
estruturas de caráter
7
. Para ele, o corpo está além do biológico, ele é também simbólico.
Acentuo aqui uma característica brutal do capitalismo, a de ser ele um sistema de
“moinhos de gastar gente”, para referenciar a sagaz frase de Darcy Ribeiro em O Povo
Brasileiro (RIBEIRO, 1995, p. 106), à qual acrescentaria, a propósito de Reich, de
“gastar” e “encouraçar” gente.
7
O emprego do termo caráter nos trabalhos psicanalíticos tem origem nos estudos de Freud, no texto
Caráter e Erotismo Anal de 1908. Mas uma teoria coerente do caráter, segundo Raknes (1998), teria
encontrado em Reich seu primeiro formulador. Para Reich (2004a) o caráter “consiste numa mudança
crônica do ego que se poderia descrever como um enrijecimento. Esse enrijecimento é a base real para
que o modo de reação característico se torne crônico; sua finalidade é proteger o ego dos perigos internos
e externos. Como uma formação protetora que se tornou crônica, merece a designação de
enouraçamento...” (REICH, 2004a, p. 151, grifo do autor). Esse sistema rígido de defesa forma um
bloqueio simultaneamente psíquico e somático, pois que esses substratos partilham de identidade
funcional, impedindo o livre fluxo energético no organismo bem como a manifestação de atitudes livres e
espontâneas pelo indivíduo encouraçado. Para uma compreensão detalhada sobre o desenvolvimento da
noção de caráter na obra de Wilhelm Reich, consultar o trabalho de João Rodrigo de Oliveira e Silva, para
quem nos textos da década de 1920, Reich comenta o “modo de manifestação [do caráter], discute clínica
e metapsicologicamente os processos que o formam, e indica sua relação com a neurose e a técnica
terapêutica. Caráter, então, seria a dimensão total das atitudes e ações individuais em relação ao mundo”
(SILVA, 2001, p. 133, colchetes meus). as contribuições reichianas à noção de caráter presentes na
edição de 1948 do livro Análise do caráter, de acordo com Silva, “derivam principalmente do
conhecimento e da pesquisa psicanalítica, em seguida, porém, passam a incorporar elementos exteriores
ao campo da psicanálise, deixando essa referência eclipsada pelas outras. (...) O caráter prossegue, a partir
daí, como a dimensão total das atitudes individuais em relação ao mundo, as quais identificam o
indivíduo e o singularizam. Seria formado pelos mesmos processos descritos antes, mais a transformação
de sintomas neuróticos infantis, trazendo em si, na sua forma, a história de sua constituição. (...) Amplia-
se a noção de caráter, passa-se a considerá-lo uma unidade biopsíquica composta não apenas por
dimensões psíquicas, comportamentais e sociopoliticas, mas também por uma dimensão neurovegetativa
na forma de uma couraça muscular do caráter” (SILVA, 2001, p. 134-135).
23
O objetivo central desta Dissertação que versa sobre a concepção de Wilhelm
Reich sobre o corpo é ponderar a contribuição deste autor para uma leitura
antropológica da corporeidade. Isso significa que busco reconstruir o modelo teórico
desenvolvido sobre o corpo por este pensador, o que implica pensar a vida em sociedade
e a condição humana, indo além da sua crítica à psicanálise, além do seu enveredamento
pelo funcionalismo malinowskiano e pelo marxismo, quando ele propunha uma solução
para a liberdade no interior de uma discussão sobre a desigualdade social, tendo como
meio o corpo para a desconstrução do encouraçamento que aprisiona os homens. Neste
sentido, o tema da liberdade é fecundo a uma leitura das Ciências Sociais, que, sob
vários aspectos, confluem com a ótica singular desse autor, em objetos que constituem
compreender o homem e o humano nas suas relações sociais. Este autor traz uma
formulação de mudança social que está vinculada a uma concepção de corpo a ser
construído e transformado no interior desse projeto de mudança que busca restituir o
homem como sujeito do mundo. Isso significa penetrar em zonas de indiscernibilidade
para várias teorias, a fim de construir um conhecimento sobre o humano com novas
categorias de entendimento.
Na linha de pesquisa a qual me vinculo, “Gênero, Identidades e Etnia”, as
contribuições de Wilhelm Reich em muito ajudarão a compreender os modelos
tradicionais de relações existentes em nossa sociedade (o modelo familiar, por
exemplo), e os impedimentos colocados para as relações sociais igualitárias. Assim,
friso a importância deste projeto ser desenvolvido no interior das pesquisas acerca do
imaginário antropológico, desenvolvidas e orientadas pela Profa. Dra. Elda Rizzo de
Oliveira, minha orientadora, as quais estão construindo uma memória nesta
universidade, como sementes para fecundar outros campos de pesquisa.
24
Busco reconstruir as idéias do autor que podem oferecer uma sustentação para
uma leitura da corporeidade que se funde numa hermenêutica antropológica do corpo
entendido também enquanto cogito.
Veremos que as pesquisas empreendidas por Wilhelm Reich realizam uma espécie
de fusão entre a lógica neoplatônica e a lógica aristotélica. Isto se dá pelo fato de suas
formulações conterem uma conexão explicativa que tangencia tanto a ordem natural
empírica como poderemos observar em suas proposições biofisiológicas –, como a
ordem contextual e hermenêutica da inserção do homem no universo natural e
sociocultural que o evidenciadas nas interpretações sobre o corpo enquanto
dimensão onde natureza e cultura se encontram e se compõem mutuamente.
Este autor realizou um vigoroso debate pelos diversos campos do saber, com
achados sempre polêmicos pelo fato de Reich colocar em cheque princípios dos
conhecimentos constituídos nesses campos em sua época. Além disso, pesquisar este
autor significa trazê-lo de novo para o centro de um debate importante, e discuti-lo num
campo que não tem como tradição estudá-lo, apesar de Reich também fazer parte dele.
E trazê-lo com os olhos de quem as injúrias que seu pensamento e ele próprio
sofreram.
Pressupostos teóricos
No esteio das indagações de Durkheim acerca de onde se originariam as forças
que eclodem na mente e criam disjunções mentais
8
, respondo a essa questão através da
8
A vida representativa não é inerente à natureza intrínseca da matéria nervosa, pois subsiste em parte por
suas próprias forças e tem maneiras de ser que lhe são peculiares. Existe uma exterioridade dos fatos
psíquicos em relação às células cerebrais e a vida representativa só pode funcionar no todo formado por
sua reunião. Trata-se de uma autonomia relativa da mente. Da mesma maneira, a consciência coletiva não
pode ser encontrada na natureza intrínseca das consciências individuais. Ela ultrapassa as consciências
25
problemática reichiana para quem essas forças se originam da própria sociedade e são
dinamizadas por processos socioculturais (elas estão presentes na ideologia, na
repressão, no autoritarismo, nas desigualdades sociais, etc.). Isso se torna mais visível
no contexto da Modernidade alavancada pelo individualismo e pelo racionalismo que,
juntos, promovem uma visão de que todo o sofrimento humano deva ser resolvido
individualmente, legando ao indivíduo a competência e a responsabilidade por sua
realização neste mundo. Sem dúvida, tal posição oculta os processos de desigualdade e
dominação implicados nas contradições sociais, que eclodem nos corpos. A
Modernidade lançou o indivíduo num verdadeiro inferno de Hades com as rupturas que
criou nos originais vínculos comunitários de relacionamento (LE BRETON, 1995),
deixando-o refém de seu próprio destino neste universo efêmero do mundo moderno,
onde as mais sólidas construções se desmancham no ar (BERMAN, 1986).
uma estranha convergência entre a forma como Wilhelm Reich foi perseguido
e aviltado pelos vários segmentos sociais dos quais participou e a forma como o mundo
ocidental vê as minorias, sejam elas índios, judeus, negros.
Embora de origem judaica, mais do que indentificado com ela, estaria ele
identificado com a educação alemã, no sentido de ter incorporado seus valores, como o
cultivo do espírito, por meio de uma educação erudita oferecida pelos pais como um
caminho de ascensão social.
Ele trazia em si mesmo o germe da própria contradição humana: ao mesmo tempo
em que seus achados atraíam pessoas, um outro movimento também acontecia, ele
criava temor, criava constrangimentos com suas posições claras e abertas sobre a
sexualidade, e sobre todos os impedimentos à sua realização. Os tormentos dos seres
humanos, sem exceção, estão submersos nesse mundo de Hades, que ele definiu tão
individuais, é um produto de sua síntese criativa, trata-se de uma hiperespiritualidade parcialmente
independente dos indivíduos que a encarnam (DURKHEIM, 1979).
26
bem. Com sua militância e clareza expositiva, ele dotava de consciência social pessoas e
grupos que tentavam decifrá-lo, sob as mais distorcidas lentes, com os símbolos da
cultura doente. Não construíram-no como diferente, mas como perversamente
diferente, para subjugá-lo, reduzindo sua condição de humanidade e os símbolos que lhe
davam sustentação ontológica e ôntica. Que ser humano agüentaria viver décadas sob
pressão?
No entanto, ele alimentou o imaginário e o repertório de uma determinada época e,
assim, o seu inconsciente coletivo
9
. As questões germinadas por ele, nutridas por um
contexto histórico convergente, reapareceram sob formas inesperadas: os movimentos
libertários das décadas de 1960 e 1970, os movimentos de contracultura, grupos
feministas, movimentos de luta trabalhista, como aludem Boadella (1985) e Wagner
(1996). Ele causou estranheza com sua pesquisa holonômica sobre o câncer, contudo,
foram retomados os pressupostos de seu conhecimento sobre essa problemática
(BOADELLA, 1985, p. 191-193; DADOUN, 1991). Reich (2004b) assinala o
estranhamento com que suas pesquisas são recebidas pela maior parte das pessoas, em
virtude dele construir um modelo de pensamento que trabalhe simultaneamente
diferentes campos do conhecimento como Psicologia, Fisiologia, Sociologia e Biologia.
Reich viveu no interior de uma formação do imaginário que traduziu
simbolicamente, em cada sociedade onde habitou e desenvolveu suas pesquisas, as
dinâmicas culturais que engendravam vida, mas também destruição. Ele denunciou que
as sociedades totalitárias não constroem os homens livres, isto é, retiram-lhes a
espontaneidade e o prazer de viver autêntica e plenamente a vida. Tendo essa
9
O conceito de inconsciente coletivo, de acordo com Carl-Gustav Jung, diz respeito a um substrato
psíquico supra-pessoal comum a todos os homens. Para este autor, sob o inconsciente pessoal ou
biográfico investigado pela Psicanálise freudiana, há uma camada mais profunda, o inconsciente coletivo,
cujos conteúdos e modos de expressão, de natureza intrinsecamente universal, transcendem as
experiências individuais (JUNG, 2000, p. 15).
27
preocupação como pano de fundo, ele procurou devolver o ser humano a si mesmo:
estudou o homem co-implicado na natureza e na cultura, a natureza do homem e a
natureza da cultura estavam em causa.
Técnicas de pesquisa
Selecionei algumas obras de Wilhelm Reich para serem cotejadas a partir de
leituras, fichamentos e análises de texto à luz da problemática levantada acima em torno
do objeto desta pesquisa e da bibliografia referente a ele. Essas obras, acompanhadas da
data de sua primeira publicação são: Psicopatologia e Sociologia da vida sexual (1927),
Análise do caráter (1933), O éter, Deus e o diabo (1949) e O assassinato de Cristo
(1953)
10
. Pelo fato de cada uma delas ter sido publicada pela primeira vez em décadas
diferentes, a escolha foi orientada pela constatação de aspectos que evidenciam a
continuidade do seu pensamento e a unidade da obra desse autor. Assim, os antigos
problemas (como a relação indivíduo sociedade, a etiologia das neuroses, a economia
sexual) são retomados e ampliados segundo novos horizontes cognitivos, os quais são
fundamentados sobre as novas descobertas do autor (como por exemplo, a couraça
muscular atuando no bloqueio das correntes vegetativas e a energia orgone
11
).
10
Estes textos selecionados foram trabalhados de forma mais focada, outros foram apenas trazidos para a
discussão no sentido de ampliá-la.
11
Como veremos ao longo do texto, a energia orgone é entendida por Wilhelm Reich como uma energia
vital primordial presente em todo universo.
28
Metodologia da pesquisa
No esteio da Antropologia do Imaginário de Gilbert Durand, quero discutir os
fundamentos do paradigma reichiano, contribuir para a ampliação de uma antropologia
da corporeidade e compreender os sentidos profundos que se inscrevem no corpo. Para
isso, o trajeto que percorro busca integrar e transcender os princípios explicativos das
teorias reducionistas.
Elegi para essa análise quatro pares de operadores cognitivos, entendidos enquanto
chaves para abrir a imaginação antropológica: 1. Dualismo cartesiano e modelo
biomédico; 2. Historicismo e hermenêuticas redutoras; 3. Simbolismo e hermenêuticas
instauradoras; 4. Pensamento analógico e imaginário.
Dualismo cartesiano e modelo biomédico
O modelo ocidental do pensamento imprime à construção do real o princípio
motor de sua própria operacionalização: o dualismo e o mecanicismo cartesianos. Os
conhecimentos construídos a partir de uma metodologia dualista e mecanicista
submetem os fenômenos pesquisados a uma causalidade determinista, construindo
afirmações de autonomia do intelecto em detrimento da tradição clássica, que reunificou
o homem ao cosmos a fim de expandir ao máximo a liberdade humana em relação à
natureza (TARNAS, 2003, p. 313-314).
A este respeito é ilustrativo observar com Morin (1997) que: a. a nossa educação
nos ensinou a separar e isolar as coisas quando da construção de um saber sobre elas; b.
as informações que recebemos são veiculadas separadas de seu contexto em quase sua
29
totalidade; c. uma cisão entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, e mais,
uma cisão no próprio sujeito que é dividido entre razão e sensibilidade. Segundo o
autor, “a história do mundo e do pensamento ocidentais foi comandada por um
paradigma de disjunção, de separação” (MORIN, 1997, p. 21), onde o sujeito do
conhecimento tem na razão a faculdade privilegiada de construção do conhecimento,
notadamente, o científico.
Em meados do século XX, a ciência moderna se consolidou como um processo de
conhecimento que resultou em três alijamentos do conhecimento: a) o alijamento
cosmológico, separando a dimensão sagrada do mundo do fazer científico; b) o
alijamento ontológico, separando sujeito e objeto do conhecimento e c) a radicalização
epistemológica, pela qual cada ciência enfatiza suas bases epistemológicas explicativas
disciplinares. A conseqüência mais visível dessa forma de se fazer ciência é a
fragmentação dos saberes e do próprio homem, e, não é demais acentuar que foi a
medicina a ciência que levou ao extremo esta radicalização (TARNAS, 2003;
OLIVEIRA, 1998 e 2001; LÉON, 2001).
É esta a lógica que opera no interior do modelo biomédico, que sob a influência da
revolução cartesiana, sofreu uma mudança substancial na história da medicina ocidental.
O paradigma biomédico desenvolveu de forma radical a concepção cartesiana dos
organismos vivos na esteira da biologia mecanicista, da qual deriva o entendimento dos
mesmos organismos como máquinas compostas por partes separadas - fundamento com
o qual ainda sustenta sua estrutura conceitual dominante.
Antes de Descartes, a maioria dos terapeutas atentava para a
interação de corpo e alma, e tratava seus pacientes no contexto de seu
meio ambiente social e espiritual. Assim como sua visão de mundo
mudou com o correr do tempo, o mesmo aconteceu com suas
concepções de doença e seus métodos de tratamento, mas eles
costumavam considerar o paciente como um todo. A filosofia de
30
Descartes alterou profundamente essa situação. Sua rigorosa divisão
entre corpo e mente levou os médicos a se concentrarem na máquina
corporal e negligenciarem os aspectos psicológicos, sociais e
ambientais da doença (CAPRA, 1982, p. 119).
A medicina seguiu a partir do século XVII o rastro dos avanços em biologia,
focalizando seus estudos primeiro nos órgãos corporais e suas funções, depois nas
células e, por fim, nas estruturas moleculares, distanciando-se da compreensão plena do
fenômeno da cura e seus aspectos multidimensionais - organismo vivo, psiquismo,
ambiente natural e sócio-cultural, o que favoreceu a especialização médica em tratar o
corpo subdividindo-o em partes e apartando-o da mente, que é reservada ao cuidado dos
psiquiatras e psicólogos.
Capra (1982) chama a atenção para o fato de que muito embora a biologia
mecanicista de Descartes por ser muito simples não tenha ido muito longe, sofrendo
transformações encadeadas em êxitos e fracassos inegligenciáveis nos últimos trezentos
anos (a compreensão progressivamente detalhada de partes cada vez menores do
organismo e, ao mesmo tempo, a perda da totalidade do mesmo enquanto um todo
integrado ao ambiente natural e sociocultural do qual participa), o que restou foi o
tratamento dos organismos vivos como sistemas mecânicos, e assim, uma concepção
mecanicista da vida.
As funções de um organismo vivo que não se prestam a uma
descrição reducionista - aquelas que representam as atividades
integrativas do organismo e suas interações com o meio ambiente -
são precisamente as funções fundamentais para a saúde do
organismo. Como a medicina ocidental adotou a abordagem
reducionista da biologia, aderindo à divisão cartesiana e
negligenciando o tratamento do paciente como uma pessoa total, os
médicos acham-se hoje incapazes de entender, ou de curar, muitas
das mais importantes doenças atuais (CAPRA, 1982, p. 98).
31
Penso que significaria um grande avanço se a prática e a teoria médica
transcendessem o modelo cartesiano dual e mecânico e reincorporassem a noção de cura
para ampliar sua concepção de saúde e de doença através das complexas interações
“entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais da condição humana”
(CAPRA, 1982, p. 117).
Wilhelm Reich que, por ser psiquiatra, teve sua formação no interior do modelo
biomédico, expressa as marcas explícitas desse pensamento em inúmeras abordagens.
No entanto, na contramão desta tendência, ele elaborou uma abordagem hermenêutica
integradora na relação entre corpo e condição de existência de seus pacientes, e assim, a
meu ver, propõe uma interpretação da corporeidade de seus pacientes, ou seja, uma
leitura do corpo transpassado por uma totalidade simbólica em que convergem
organismo, psiquismo, sociedade e cultura.
Historicismo e hermenêuticas redutoras
Gilbert Durand, um radical antropólogo contemporâneo que estruturou o
paradigma do imaginário antropológico para a Escola de Grenoble (França)
12
, iniciou
sua reflexão com a crítica ao Positivismo, à Igreja e ao Historicismo. Desse modo, esse
autor traz elementos que nos ajudam pensar Wilhelm Reich e o corpo no interior do seu
projeto de mudança social.
No que tange ao Positivismo, Durand (1995) afirma que ele se prende
demasiadamente à superfície dos fenômenos, e, portanto, não alcança seus conteúdos
profundos. O Positivismo pode até desconfiar que as realidades ocultem determinadas
12
Badia (1999) realizou um estudo aprofundado sobre a constituição da Escola de Grenoble que tem em
Gilbert Durand seu principal expoente, bem como sobre as influências teóricas que embasaram a
elaboração da Antropologia do Imaginário.
32
simbologias (como é o caso da Psicanálise freudiana), mas suas conclusões não
escapam ao seu estreito campo cognitivo através do qual elabora um pensamento muito
colado à realidade objetiva.
No que toca ao pensamento eclesial, Gilbert Durand critica o encapsulamento
dogmático com que ele afirma sua visão de mundo e seu discurso punitivo para com os
que dela discordam (DURAND, 1995, p. 30). Além disso, essa visão opera a separação
entre o que seria o mundo do sagrado e o mundo do profano. A implicação desta
concepção para o homem é a cisão entre seu corpo (ligado ao pecado e ao mundo
profano) e sua alma (relacionada ao divino e ao sagrado). Reich (1999) também critica
essa visão punitiva da Igreja que separa a alma do corpo e o relaciona ao pecado.
No que toca ao Historicismo, que toma a história como ponto de chegada, ou seja,
como realidade última capaz de explicar os fenômenos, as indagações de Durand nos
fornecem elementos para analisar o caminho teórico - e num certo sentido -
metodológico percorrido por Wilhelm Reich, orientado pelo materialismo histórico
dialético, sobretudo, na década de 1920 e primeira metade da década seguinte.
A importância das imagens simbólicas para a compreensão da vida mental
observada por Gilbert Durand, originou-se de sua relação na formação da patologia
psicológica, mas também através da Etnologia. Enquanto hermenêuticas redutoras, tanto
a Psicologia quanto a Etnologia, não aprofundaram os níveis de sentido expressos pelo
seu objeto cognitivo, limitando-se a trabalhá-los superficialmente:
“se a psicanálise, como a antropologia social, redescobre a
importância das imagens e rompe revolucionariamente com oito
séculos de recalcamento e de coerção do imaginário, estas doutrinas
descobrem a imaginação simbólica para tentar integrá-la na
sistemática intelectualista em vigor, para tentar reduzir a
simbolização a um simbolizado sem mistérios” (DURAND, 1995, p.
37).
33
T
anto para a Psicanálise quanto para a Etnologia, o simbolizado é reduzido em sua
potencialidade e, assim, uma identificação errônea entre símbolo
13
e signo
14
. Como
por exemplo, o autor assinala que do princípio de causalidade especificamente
psíquica para explicar a etiologia das neuroses, derivam outros três princípios
axiomáticos: a. o inconsciente psíquicobiográfico; b. a censuraou interdito social
e, c. a tendência sexual ou pulsão libidinal (DURAND, 1995, p.38-39). Controlada
pelo indivíduo social, a libido se transveste em imagens saturadas dos recalques
produzidos na infância - tais imagens se constituem enquanto portadores simbólicos dos
conflitos psíquicos que se originam a partir desses recalques.
Nesta causalidade radicalizadora, o efeito psíquico é reduzido “à causa suprema
do psiquismo, isto é a libido, o símbolo reconduzirá sempre, em última instância, a uma
sexualidade imatura, dado que insatisfeita” (DURAND, 1995, p. 40). Acompanha essa
problemática as metáforas, sobretudo dos órgãos sexuais como fantasmas ou imagens
simbólicas. Neste método de associação de imagens, Gilbert Durand nos mostra que a
liberdade associativa não encontra espaço, já que ela é determinada pela procura de uma
causalidade específica: a insatisfação sexual. Veremos no Capítulo 3 que, com outras
questões de suporte, Wilhelm Reich também radicaliza a procura da causalidade
específica para o aprisionamento no inferno de Hades vivido pelo indivíduo
encouraçado.
13
O símbolo pode ser definido pela sua autonomia em relação às conexões de sentido a que faz
referência, é polissêmico. É “recondução do sensível, do figurado ao significado, mas é também, pela
própria natureza do significado inacessível, epifania, isto é, aparição através do e no significado, do
indizível” (DURAND, 1995, p. 11). É uma fonte de idéias que conduz a sensibilidade e, como numa
dança, abre-a para o mundo dos sentidos e das interpretações: “o símbolo é, pois, uma representação que
faz aparecer um sentido secreto, é a epifania de um mistério” (DURAND, 1995, p. 12).
14
O signo remete a uma significação que pode ser verificada. Ele sintetiza quantidades plurais de
conexões empíricas em unidades lingüísticas simples, possui, portanto, uma forma lógica de operação que
é redutiva, pois restringe a sensibilidade, fechando-a, tornando-a estreita, na medida em que remete a uma
dada realidade significada. (DURAND, 1995, p. 08-10).
34
Yves Durand, um psicólogo que trabalha com o imaginário antropológico, ao
pensar em formulações teóricas que inovam o campo de conhecimento ao qual se
dirigem, como a psicanálise freudiana, por exemplo, pondera que o processo de
criação, pouco ou muito, está enraizado sobre uma reorganização de materiais
existentes. Quando fala em imaginário sintomatológico, por exemplo, esse autor parte
da crítica ao pensamento psicanalítico clássico, o qual constituiria uma teoria do
imaginário: “na medida em que, inicialmente para Freud, o inconsciente encerrava
conteúdos ‘recalcados’, definidos enquanto representantes das ‘pulsões’ e ordenados em
fantasmas e argumentos imaginários” (DURAND, 2003, p. 171). Na crítica que faz à
Psicanálise, Yves Durand reconhece que o sonho pode ser compreendido como uma
encenação encoberta do desejo, uma “via real” de condução ao conhecimento do
inconsciente de modo a articular o conflito entre um substrato biológico (pulsional) e
uma instância proibidora (censura cultural) (DURAND, 2003).
Esta acepção do imaginário é entendida por Yves Durand como sintomatológica
porque trabalha a atividade da imaginação apenas no nível da produção de imagens
sintomáticas de conflitos psíquicos - embora haja outros níveis de produção de imagens
dissociadas de uma causalidade sintomatológica. Assim, para ele, no psiquismo normal
existe uma função imaginária construtiva e poética que não pode ser apreciada pela
abordagem freudiana em decorrência do estreitamento causal deste método. Nessa linha
de pensamento, Yves não se distancia, mas corrobora a perspectiva de Gilbert Durand.
Gilbert Durand (1995) afirma que a redução sociológica fundada no estruturalismo
operando de modo inverso à redução psicanalítica também dificulta a compreensão da
potencialidade da imagem como fonte de cognição. Enquanto que para a abordagem
psicanalítica o inconsciente está sempre pleno do “potencial energético da libido”
(DURAND, 1995, p. 51) a ser modelado e metamorfoseado pelo ambiente social de
35
diversas maneiras, para o pensamento levistraussiano, a imagem veicula a noção de um
inconsciente vazio regido por leis estruturais, portanto, estranho à natureza das imagens.
Em ambos os casos, a “transcendência do simbolizado é sempre negada a favor de uma
redução ao simbolizante explicitado” (DURAND, 1995, p. 52).
A crítica de Gilbert Durand (1995; 2001) de modo geral ao Historicismo, afirma
que essas teorias reduzem os fenômenos pesquisados à sua participação numa realidade
secular (leis históricas, leis sociais). O Historicismo não transcende a realidade histórica
do dado. Há, assim, uma negligência de outros níveis de sentido profundo dos quais o
inconsciente participa, enquanto realidade simbólica e imaginal
15
, para além das
implicações positivista e materialista.
Simbolismo e hermenêuticas instauradoras
Ao simbolismo e às hermenêuticas instauradoras estão relacionadas construções
teóricas a posteriori dos níveis simbólicos profundos co-implicados nas causas e efeitos
dos sofrimentos da alma humana. Entre elas podem ser citadas a doutrina do
sobreconsciente simbólico de Carl-Gustav Jung, a fenomenologia da linguagem poética
de Gaston Bachelard, a antropologia arquetipológica de Gilbert Durand e o humanismo
de Maurice Merleau-Ponty (DURAND, 1995). Enquanto os dois primeiros estão na
base do pensamento da Antropologia do Imaginário (junto com Henri Corbin que fala
sobre realidade imaginal), os outros dois auxiliam-nos na compreensão da obra de Reich
de outro modo.
15
Imaginal ou mundus imaginalis é “a visão situada ‘entre’ o mundo não conhecível das essências e o
mundo da percepção”, o entre dois, o mundo da imaginação criadora (PITTA, 2005, p. 73).
36
Na abordagem junguiana do simbolismo, o símbolo é investido de um significado,
entretanto, não é reduzido unicamente a ele, pois pode revelar significados outros
dependendo do contexto no qual o símbolo está inserido - não é como na Psicanálise,
por exemplo, onde o conteúdo simbólico é relacionado unilateralmente ao seu
significado sexual. Em psicologia analítica junguiana, uma serpente pode não conter
necessariamente um significado fálico, mas pode simbolizar transformação na medida
em que a serpente é um ser rastejante que se comunica entre o mundo de luzes e de
trevas, como podemos observar no imaginário ocidental cristão - é ela também que têm
livre trânsito entre os prados e as colinas, comunica-se tanto com o alto como com o
baixo. Neste sentido, ela pode simbolizar a união dos contrários. O símbolo se assenta
sobre uma “infra-estrutura ambígua da própria ambigüidade simbólica” (DURAND,
1995, p. 56), a que Jung denomina arquétipo.
O arquétipo per se, em si, é um “sistema de virtualidades”, um
“centro de força invisível”, um “núcleo dinâmico” ou ainda “os
elementos de estrutura numinosa
16
da psique”. É o inconsciente que
fornece a “forma arquetípica”, “vazia” em si mesmo, que para se
tornar sensível à consciência “é preenchida de imediato pelo
consciente com a ajuda de elementos de representação, conexos ou
análogos”. O arquétipo é, pois, uma forma dinâmica, uma estrutura
organizadora das imagens, mas que transvaza sempre as concreções
individuais, biográficas, regionais e sociais, da formação das imagens
(DURAND, 1995, p. 56).
17
Embora Freud coloque uma indagação acerca da possibilidade dos sonhos
conterem uma possível origem arcaica (os sonhos seriam uma elaboração imaginária do
16
Em Jung, numinosidade diz respeito a encanto ou encantamento, isto é, ao caráter emocional do
símbolo ou imagem simbólica (termos equivalentes). Posto que nos afeta, a imagem simbólica tem a
propriedade de desencadear experiências emocionais, constituindo um conceito ligado à experiência e ao
desenvolvimento emocionais (MIGLIORINI, 2005).
17
Arquétipo pode ser definido também como uma “imagem primeira de caráter coletivo e inato; é o
estado preliminar zona onde nasce a idéia (Jung). Ele constitui o ponto de junção entre o imaginário e os
processos racionais” (PITTA, 2005, p. 18).
37
sonhador ou testemunho de heranças arcaicas inatas?), é Jung quem responde por meio
do conceito de arquétipos do inconsciente coletivo que os sonhos contêm um modo de
expressão simbólico e arcaico (DURAND, 2003). Ao contestar o dogma da teoria
sexual freudiana, Jung definiu a libido como uma energia psíquica mais ampla do que
apenas a energia sexual. E entendeu a imagem como uma testemunha da tendência
autoconstrutiva da psique arquetípica, na qual os arquétipos - segundo ele, uma
tendência instintiva, apesar de não ter explorado esta hipótese - embora possam ser
revestidos de diferentes símbolos enquanto representações, eles mesmos não perdem
seu tema fundamental. Foi um sonho (o sonho da casa, onde as diferentes partes da casa
fomentaram em Jung a representação de uma espécie de imagem da psique), que o
levou a desconfiar pela primeira vez da precedência de conteúdos coletivos na psique
pessoal.
Jung confere à função simbólica humana o atributo de unir os contrários, a função
transcendente. Ela seria como um lugar de passagem em que os opostos se unificam. E a
consciência o faz por meio do arquétipo-símbolo, trabalhado por Jung de maneira
profunda. Isto significa dizer que “o homem não pertence ao mundo superficial da
linearidade dos signos, ao mundo da causalidade física, mas também ao mundo da
irrupção simbólica, da criação, simbólica contínua, através da incessante
‘metamorfose’” (DURAND, 1995, p. 57). Reich não trabalha com a investigação de um
nível de realidade arquetipal. Neste sentido, estas discussões acerca da corporeidade
transcendem seu paradigma na medida em que penetram numa dimensão simbólica
profunda que dinamiza as expressões humanas no mundo.
38
Pensamento analógico e imaginário
O pensamento analógico é um pensamento que busca uma compreensão dos
fenômenos orientada pelos princípios da similitude, oposição e contigüidade, como nos
mostra a Antropologia Clássica. Contudo, autores contemporâneos compreendem o
pensamento analógico como rede de conexões construída a posteriori e a analogia como
uma polissemia, isto é, um saber construído fora da conexão causal que pauta o
dualismo cartesiano (MAFFESOLI, 1993; LÉON, 2001). Em sua definição de analogia,
Michel Maffesoli nos diz: “[A analogia] aglutina e une entre si situações aparentemente
desconexas” (MAFFESOLI, 1993, p. 110, colchetes meus). Trata-se, portanto, de um
conhecimento que se constitui na contramão do positivismo, pois busca compreender os
elementos heterogêneos co-implicados na vida social pelo estabelecimento das
“correspondências” entre eles.
O pensamento analógico é muito caro para a compreensão da hermenêutica de
Reich quando este constrói sua noção de couraça, por exemplo, lançando mão de um
procedimento “por correspondência”, por analogia, não apenas porque busca inspiração
no mundo natural investigado em suas pesquisas
18
, nem porque ele remeta a
constituição da couraça aos processos coletivos da vida social que se cruzam na
dimensão individual, mas porque opera o pensamento de modo não disjuntivo. O
pensamento analógico supera a disjunção entre Natureza e Cultura e as cisões
executadas pela análise positivista (que é disjuntiva). O pensamento analógico é
operativo, isto é, procede por integração, ou seja, reconhece que existe uma espécie de:
18
É interessante notar que Wilhelm Reich formulou sua definição conceitual de couraça a partir da
observação do comportamento das amebas, de modo que não é fortuito em seus textos o uso de vocábulos
próprios à biologia. Isso se deve ao fato dele realizar pesquisas laboratoriais que penetram o campo das
ciências naturais.
39
viscosidade própria da “cola do mundo” (...) Esta relação outra com o
ambiente [relação analógica] nos força a não mais proceder por
discriminação, mas sim por integração (...) [Ela] permite ao homem
social, ao microcosmo, situar-se num macrocosmo mais ou menos
acolhedor do qual deseja ser parte integrante (MAFFESOLI, 1993, p.
116, colchetes meus).
É quando o universal e o particular se harmonizam. Delineio como o objeto desta
pesquisa a leitura que Wilhelm Reich constrói acerca do corpo e a entendo como uma
hermenêutica de sentido, pois aprofunda a compreensão do objeto potencializando os
sentidos nele imbuídos.
Ao falar em hermenêutica, tenho como referência o fato de ser ela uma “filosofia
interpretativa”. Segundo Andrés Ortiz-Osés (2003), uma escola do pensamento
contemporâneo que se dirige à “compreensão do sentido da realidade, texto ou contexto
em questão com vistas à superação do sentido literal pelo sentido pleno” (ORTIZ-
OSÉS, 2003, p. 93).
A hermenêutica de sentido emprega um modo interpretativo do Ser que é
existencial e dialógico; trata-se de uma busca pelo sentido relacional, intersubjetivo. No
entanto, a idéia precípua que esta filosofia nos oferece para a presente questão de
pesquisa é seu entendimento acerca da linguagem, vista como o ponto de encontro
entre mundo e homem, realidade e idealidade, objetividade e subjetividade”, no sentido
extenso em que expressa algo dado ou objetivado subjetivamente” (ORTIZ-OSÉS,
2003, p. 94), que no caso da leitura hermenêutica do corpo por Wilhelm Reich trata-se,
sobretudo, da linguagem corporal. Assim, a razão hermenêutica, razão interpretativa, se
configura como uma “razão encarnada” ou um “Logos humanado” - uma Razão-sentido
à qual estão agregados a afetividade, as emoções e os sentimentos, e, que abarca,
exatamente por esta característica, “a experiência humana do/no mundo” (ORTIZ-
OSÉS, 2003, p. 94).
40
A propriedade da explicação acerca do sentido é trazer à baila o real vivido co-
implicado, ou seja, revelar o implícito ou o latente implicado nas explicações, dar nome
àquilo que não tem. Para além disso, é uma compreensão simbólica e, portanto, é “a
compreensão das coisas por parte da alma humana”, por parte da nossa razão afetiva
(ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 101). Essa idéia articuladora, no entanto, adquire sentido pleno
quando implicada no imaginário.
A teoria de Wilhelm Reich, mais precisamente seus desdobramentos em
orgonomia e bioenergética, instaura uma relação metonímica-metafórica entre homem e
cosmos. O homem, medida de todas as coisas na ciência antropocêntrica fundada na
tradição renascentista, passa a ser mediador, segundo Ortiz-Osés, testemunho da
interconexidade existente entre o mundo físico e natural e o mundo sociocultural,
quando é instaurado um princípio analógico e criada uma ciência em bases
cosmocêntricas. Sendo assim, homem e cosmos compartilham de uma mesma energia
primordial, a energia orgone cósmica, o que retomarei mais adiante.
A Dissertação
Esta pesquisa que discute o corpo em Wilhelm Reich e mostra sua confluência
com a Antropologia do Imaginário é composta por quatro capítulos.
No primeiro capítulo, apresento uma introdução à biografia de Wilhelm Reich,
aspectos de sua obra e o contexto histórico e cultural alemão da passagem do século
XIX para o século XX, destacando o horizonte intelectual da época e os aspectos
históricos, políticos e sociais da Alemanha - esse contexto histórico-cultural que nutriu
41
o pensamento do autor, o qual se modelou no interior dessa Modernidade, que carrega o
individualismo como postulado.
No segundo capítulo, são abordadas algumas referências teóricas que
influenciaram o desenvolvimento do pensamento de Reich, como a Psicanálise, o
Marxismo, a Antropologia, as Ciências Naturais e a Educação.
O terceiro capítulo versa sobre a leitura reichiana do corpo de acordo com as
distintas nuanças que orientam seu pensamento nas diferentes fases de sua produção
científica. Uma análise interna do pensamento de Reich é realizada a partir de quatro
obras: Psicopatologia e Sociologia da vida sexual (1927), Análise do caráter (1933), O
éter, Deus e o diabo (1949) e O assassinato de Cristo (1953). Neste capítulo é abordado
como Reich pensa o corpo em cada uma delas, o que mantém relação intrínseca com a
forma como ele entende o homem e a sociedade na qual ele vive. Em todas essas obras
podemos ver que o autor busca construir uma concepção sobre o que é o homem e a
condição humana.
No quarto capítulo, é trabalhada a leitura do corpo formulada por Reich enquanto
uma leitura hermenêutica, cujo registro epistemológico interpreta o corpo como cogito,
ou seja, enquanto produtor de conhecimento, instaurando uma unidade entre o sensível
e o inteligível - este princípio de unidade se estende também à sua compreensão sobre a
etiologia das doenças. Aqui, são assinaladas as confluências e as diferenças que
permitem aproximar Reich do imaginário antropológico no que respeita à construção de
uma compreensão do corpo enquanto corporeidade.
42
Capítulo 1
Wilhelm Reich e o contexto histórico-cultural de sua época
Neste capítulo serão traçadas as linhas mestras que permitem construir uma visão
geral do contexto histórico-cultural que nutriu o pensamento de Wilhelm Reich. Inicio
uma reflexão, que se desdobra ainda no capítulo seguinte, acerca da Modernidade – que
carrega o individualismo como postulado, engendrando, assim, uma condição de
unilateralidade do ser humano, como conseqüência do seu desenraizamento, como
discutem vários autores contemporâneos.
Uma discussão da passagem do século XIX ao XX será realizada para
compreendermos a construção dessa identidade intelectual e militante que foi Reich, e
os termos da sua assimilação à cultura alemã. Três grandes correntes filosóficas
orientam os pensadores deste período: Hegel, Kant e Marx.
Deste modo, coloco em foco a peculiaridade alemã e as diretrizes do horizonte
intelectual da época, com vistas à compreensão dos condicionantes histórico-culturais
que estão na base do pensamento de Wilhelm Reich, contemplando, assim, aspectos
biográficos, axiomas filosóficos e o contexto no qual é gestada a produção teórica tão
singular desse conhecimento.
43
Wilhelm Reich, uma introdução biográfica
19
Wilhelm, filho mais velho de pequenos proprietários rurais judeus de língua
alemã, o casal Leon Reich e Cäcilie Roninger, nasceu em 24 de março de 1897, em
Dobrzynica na Galitzia, região pertencente ao Império Austro-Húngaro. Em pouco
tempo a família passou a habitar uma ampla propriedade rural que adquiriu em Jujintz
localizada na parte germano-ucraniana da Áustria, na província de Bukovina. Viveu a
infância com o irmão mais novo, Robert, nesta fazenda, situada numa região povoada
por muitas outras famílias judias, que no final do século XIX, ao assimilarem-se à
cultura alemã da época, distanciaram-se de suas tradições religiosas (CONGER, 1993;
ALBERTINI, 1994; MATTHIESEN, 2005). Na educação dos filhos, a família de Reich
cultivava e transmitia a cultura alemã, sendo que eles tinham professores particulares e
eram isolados do convívio com outros camponeses e judeus que desfrutavam de posição
desfavorecida na estrutura social e que, portanto, eram pouco integrados à cultura e à
sociedade alemãs dessa época. Assim aconteceu, porque as aspirações do seu pai era
galgar uma posição social mais elevada para os seus dois filhos
20
.
No começo da adolescência um fato marcara fortemente a vida de Reich. O
menino descobrira o envolvimento amoroso da sua mãe com um professor contratado
para ministrar aulas particulares a ele e ao irmão. Atormentado pelo segredo e acuado
pelo pai acerca da fidelidade da mãe, o revelara
21
. Sua mãe não suportou por muito
19
A biografia do autor não será trabalhada de forma contínua, assim, no decorrer dos itens, ela será
retomada diversas vezes mesclada aos demais elementos estudados.
20
No interior da sua família era proibida qualquer comunicação em Iídiche, língua que mistura o alto-
alemão do século XIV com elementos hebraicos e eslavos, falada entre os judeus e que sinalizava a forte
presença de suas tradições religiosas.
21
A este respeito, em Paixão de Juventude (1996), Wilhelm Reich salienta um sentimento de vingança
motivador da revelação feita ao pai: ele teria sido motivado pelo que, então, considerava uma traição de
sua mãe para com ele próprio. Reich roubou de seu pai uma porção de fumo e entregou-a a um carroceiro
em troca de um suporte de madeira para sua coleção de borboletas, e Cäcilie, sua mãe, teria apresentado a
Leon, pai de Reich, a prova da culpabilidade do filho nesse ato.
44
tempo as violências físicas e verbais que o marido passou a dirigir-lhe, suicidando-se,
após outras tentativas, no final de 1910, quando Reich tinha 13 anos. Após essa tragédia
ocorrida em sua família com essa perda afetiva, somada às grandes perdas financeiras
seguidas do agravamento de problemas pulmonares, poucos anos depois, em 1914,
morre o pai de Reich.
A idéia de “ter matado” a mãe se transformou numa imagem fantasmagórica de
destruição que o assombrou ao longo de muitas décadas. Este mesmo mote contínuo
atuante em sua vida pode ser lido pelo registro de uma insistência com que ocorreu o
tema da sexualidade em sua produção teórica. Essa redundância aperfeiçoante
22
funcionava como uma repetição constante desse padrão em sua vida, isto é, a cada novo
alcance teórico esta idéia retornaria como que percorrendo um caminho segundo um
movimento em espiral: velhas inquietações são retomadas sob novos tons, novas
perspectivas, como se sua produção incorresse num fluxo espiralado.
Wilhelm Reich dirigiu a fazenda da família após a morte do pai até o início da
Primeira Guerra Mundial, todavia com a derrota da Áustria, as terras foram perdidas. De
1916 até o final da guerra em 1918, ele serviu o exército austríaco como subtenente,
tendo sido enviado três vezes ao front italiano. Ao retornar da guerra, ingressou na
Faculdade de Medicina da Universidade de Viena no período de 1918 a 1922, criando
em 1919, um Seminário de Sexologia, pois este era um tema ausente no currículo do
curso.
Reich enfrentava grande dificuldade financeira, por vezes não possuía recursos
para sua manutenção elementar. Em 1920, ingressara na Sociedade Psicanalítica de
22
Gilbert Durand, em A Imaginação Simbólica, trabalha situações de repetição como esta sob o conceito
de redundância aperfeiçoante: “É através do poder de repetição que o símbolo preenche indefinidamente
a sua inadequação fundamental [inadequação entre significante e significado]. Mas esta repetição não é
tautológica: é aperfeiçoante através da acumulação de aproximações. É comparável nisso a uma espiral,
ou melhor, a um solenóide, que em cada volta define cada vez mais o seu objetivo, o seu centro”
(DURAND, 1993, p. 13, colchetes meus).
45
Viena, dirigida então pelo professor Sigmund Freud, do qual Reich tornou-se assistente
clínico de 1922 a 1928. Aos 23 anos, Reich teve a oportunidade de discutir temas
emergentes lado a lado com intelectuais duas décadas mais velhos do que ele. No início
da década de 1920, sua experiência como terapeuta na Clínica Psicanalítica de Viena
destinada à pacientes sem recursos para pagar um tratamento particular e da qual seria
eleito diretor forneceu-lhe material empírico para perceber e demonstrar o caráter
social e de massa das patologias emocionais, o que requeria um tratamento que pudesse
ser aplicado também em massa, idéia que abandonou nos anos 1940 dado a sua
inviabilidade prática.
Wilhelm Reich iniciou suas pesquisas sobre a etiologia social das neuroses em
1924, ano em que organizou centros e clínicas de saúde, segundo ele, destinadas à
higiene mental e à orientação sexual. Compreendendo que na origem social das doenças
psíquicas encontravam-se as condições repressivas da sociedade alemã, ele concebeu de
forma conjunta os aspectos individual e social, público e privado, realizando
simultaneamente uma ampliação da base gnosiológica de conhecimento - conhecimento
este que era voltado à atuação política.
Foi nos anos de 1940 que Wilhelm Reich chegou à Orgonomia, essa ciência que
estuda a energia orgone cósmica (die Kosmiche Orgonenergie) ou orgone (des Orgons)
e que se propõe a realizar conexões a partir da expressão do funcionamento mais amplo
da vida não apenas nas bases materiais do biologismo. Dessa forma, ele também
realizava uma articulação entre o plano biológico e o plano simbólico da existência.
Interessante a convergência entre Wilhelm Reich e Lévi-Strauss, quando este propõe
uma integração entre natureza e cultura nas Estruturas Elementares do Parentesco,
escrito em 1947 e publicado em 1949 (LÉVI-STRAUSS, 1982).
46
Buscando compreender o que move a vida, de que substância ela é formada -
indagação que vem desde os filósofos pré-socráticos -, Reich entendia que a energia
orgone cósmica corresponderia à energia vital primordial, que permeia e impulsiona
tudo o que tem vida. Ele afirmava que a noção dessa energia primordial estava
presente nas antigas filosofias asiáticas sob o conceito de éter: uma força física
intensamente atuante em tudo o que existe (REICH, 2003), força também aludida
veementemente por Giordano Bruno (REICH, 1999).
Reich dedicou-se ao estudo de como a energia orgone atuava nos animais, nos
seres humanos e no universo, mensurando-a em seu laboratório, orientado pelo
empirismo das ciências naturais. Ele desenvolveu uma máquina cuja função seria
armazenar esta energia cósmica sob forma concentrada para ser utilizada no tratamento
de doenças. Essa foi a razão pela qual a Food and Drog Administration (FDA), órgão
responsável pelo controle de medicamentos dos Estados Unidos da América, moveu
uma ação judicial contra ele, o que resultou em sua condenação a dois anos de prisão.
Mas antes mesmo de ser julgado e mantido em prisão, naquele país, a publicação de
suas obras foram proibidas e cópias de seus livros e revistas publicados foram
incineradas. Como se o fogo pudesse apagar uma memória que se manteve atuante e
produzindo frutos até hoje.
Vítima de ataque cardíaco, Reich veio a falecer numa prisão americana em 03 de
novembro de 1957 e foi sepultado em sua propriedade rural, que era também seu local
de trabalho e moradia, situada no Maine, à qual nomeara Orgonon (BOADELLA, 1985;
MATTHIESEN, 2005; KIGNEL, 2005).
Os trabalhos de Reich conservam uma atualidade que merece ser explorada e
conhecida. A disseminação de seus pressupostos fecundou inúmeras abordagens
terapêuticas, educacionais (BOADELLA, 1985; BOADELLA, 1992; ALBERTINI,
47
1994; MATTHIESEN, 2005), permitindo-nos compreendê-lo como um humanista, pois
reparadigmatizou o conhecimento nesse campo do saber. Ele criou oposições e adesões,
mobilizou um campo de discursos e práticas sociais, daí sua importância histórica e
intelectual.
Wilhelm Reich e o contexto alemão da passagem do século XIX ao século XX
O horizonte intelectual da época
Numa Europa marcada por uma postura e um ideal etnocêntricos perante o resto
do mundo
23
, a Alemanha vive a exigência de unidade sobretudo no campo da cultura, ou
seja, na filosofia, na ciência, na arte e na poesia, diferentemente da França, onde
preponderou o sentido político na realização dessa exigência de unidade (BORNHEIM,
1978). A busca por uma concepção da realidade que seja una a partir da fusão de todos
os aspectos da cultura em uma unidade superior.
Para entender Reich e sua assimilação à cultura alemã é necessário que
compreendamos a Alemanha na passagem do século XIX-XX em alguns de seus
aspectos históricos, culturais, políticos e sociais, porque um autor é indissociável do seu
solo histórico. Em linhas gerais duas correntes filosóficas, o Iluminismo e o
Romantismo, nutriram o pensamento intelectual europeu, e a Alemanha absorveu essa
23
Esse tipo de postura e de ideal etnocêntricos europeus é conhecido como eurocentrismo, pois seus
valores e visões de mundo eram construídos em torno do seu próprio eixo. A Europa entendia-se como
centro do mundo. Esse aspecto está presente no pensamento de um intelectual como Hegel, por exemplo.
Para os europeus, que por tudo isso se julgavam na condição de sociedades superiores, os povos não-
europeus não passavam de organizações sociais situadas num estágio inferior do desenvolvimento da
história da humanidade. Tais idéias foram postas em cheque pelas reflexões antropológicas, que
introduzem a relativização das noções etnocêntricas no confronto das mesmas com a alteridade, sobretudo
em meados do século XX.
48
reflexão de um modo muito peculiar, pois ela possuía um legado histórico-intelectual
da Reforma Protestante e da Contra-Reforma.
Primeiramente, observemos algumas questões importantes para melhor
compreender Wilhelm Reich.
A filosofia da ilustração, uma corrente no interior do Iluminismo, influenciada
pelo modelo da física newtoniana, tem como marca fundamental a análise da mente
cognoscente, ou seja, a mente capaz de produzir conhecimento, localizando a base do
conhecimento humano no encontro da mente com o mundo físico (TARNAS, 2003, p.
358-377).
Pelo lado da corrente empirista, Richard Tarnas (2003), epistemólogo norte-
americano, destaca John Locke, para o qual, em contraposição às idéias inatas propostas
por René Descartes, a mente não possui idéias inatas, mas sim poderes inatos. São esses
chamados poderes que elaboram a representação dos dados sensoriais empíricos. A
necessidade da experiência torna-se um imperativo característico do Iluminismo, e
também do Positivismo, que se transformou em cientificismo.
De outra maneira, o bispo George Berkeley, aproximando-se do idealismo,
entende que qualquer experiência humana realiza-se fenomenicamente e, portanto,
limita-se às aparências constituídas na mente. Para ele, toda experiência de percepção da
natureza, por exemplo, consiste numa experiência mental do homem, de modo que
todos os dados dos sentidos devem ser apreciados, em última instância, como objetos
para o espírito, uma vez que o ser das coisas, sua essência, se traduz naquilo que é
percebido pela mente e não nas representações de substâncias materiais (TARNAS,
2003).
David Hume, por sua vez, introduz uma nova problemática relacionada
diretamente à produção científica moderna, a de que a natureza da realidade não é
49
refletida pela inteligibilidade do mundo, pois esta última não expressa senão hábitos da
mente (TARNAS, 2003). Neste registro, a regularidade percebida em eventos, padrões
culturais para a Antropologia, é tomada como aparência de regularidade subjetivamente
induzida. Assim, a ciência possível que se realiza segundo as aparências registradas na
mente é uma ciência fenomênica, que depende de cada observador em particular, e cuja
certeza é, assim, subjetiva.
Quanto à forma de construção sobre a natureza da realidade e a natureza do
conhecimento, esse impasse recebe de Immanuel Kant
24
uma solução que sustenta a
correspondência entre mente e mundo na ciência natural: a explicação do mundo pela
ciência era precedida pela ordenação desse mesmo mundo pelo aparato cognitivo da
mente. Para Kant, é o mundo exterior que fornece o dado empírico que constituio
conteúdo da experiência, embora a forma de apreensão desta seja regida pela mente
(TARNAS, 2003). Em outras palavras, as estruturas humanas axiomáticas atuariam
como um filtro canalizador de toda a experiência sensorial. Contudo, Tarnas nos chama
à atenção para o fato de que:
(...) os sucessores de Kant na Alemanha seguiam seu pensamento
numa direção inesperadamente idealista. Na atmosfera romântica da
cultura européia do final do século XVIII e começo do XIX, Fichte,
Schelling e Hegel diziam que as categorias cognitivas da mente
humana eram em certo sentido as categorias ontológicas do Universo
ou seja, que o conhecimento humano não apontava para uma
realidade divina, mas era a própria realidade – e sobre esta base
construíram um sistema metafísico dotado de uma Mente universal
que se revela através do Homem. Para esses idealistas, o ‘ego
24
A maior reviravolta filosófica do idealismo kantiano coloca-se sob o fato de que o próprio mundo
pode ser apreendido como mundo ordenado cognitivamente pelas categorias do entendimento do sujeito
transcendental. A conseqüência desse pressuposto é a de que haverá sempre um hiato fundamental, uma
brecha profunda e intransponível, entre o mundo em si mesmo e o mundo para si ordenado pelo sujeito.
Esta distinção entre ser em si e ser para si coloca-se como a primeira flecha no calcanhar da Filosofia que
então confiava na capacidade da razão humana de atingir a essência das coisas, na capacidade do
pensamento penetrar o mundo. As flechas subseqüentes, fora do idealismo, foram lançadas por Nietzsche
e Freud, num eclipse da razão.
50
transcendental’ (a noção kantiana do eu humano que impunha
categorias e princípios heurísticos unificadores à experiência para
proporcionar o conhecimento) poderia ser estendido de modo
extremo e identificado como determinado aspecto de um Espírito
absoluto que constituía toda a realidade (TARNAS, 2003, p. 377).
Na concepção desses três idealistas citados (Fichte, Schelling e Hegel), uma vez
que a mente humana era capaz de tudo abranger, conteúdo e forma do conhecimento
eram determinados por ela. Eles distinguiam-se, por isso, de Kant (TARNAS, 2003, p.
377-378).
Para o historicismo
25
, que consiste numa das manifestações características do
movimento romântico
26
, o fluxo histórico move todos os fenômenos, que são
compreendidos como estando situados em instantes históricos. Segundo Guinsburg, no
romantismo a expressão da interioridade dos sujeitos se sobrepõe à exterioridade dos
objetos enquanto representações (GUINSBURG, 1978).
antes de Freud, no Romantismo, ocorre uma exaltação dos estados profundos
do eu
27
na sondagem dos românticos acerca do homem. Eles reconheciam a
consciência humana sob a metáfora de uma camada externa ao redor da interioridade
inconsciente e desconhecida, onde habitaria, afetivamente, nosso ser mais profundo
(GUINSBURG, 1978). O mito, elemento fundamental na visão romântica, é visto pelos
românticos como chave de acesso a um reino que foge às fissuras de uma civilização
25
Todavia, ao historicizar, por exemplo, os saberes, inserindo-os classificados numa ordem
essencialmente temporal, as Ciências Humanas, herdeiras desse Romantismo, banem para outro domínio
epistemológico os saberes populares, místicos e analógicos das Ciências Ocultas, os mesmos saberes que
alimentaram sua edificação, bem como a de toda a Ciência Moderna (LEÓN, 2001).
26
Segundo GUINSBURG (1978, p. 282), o principal grupo de intelectuais alemães, surgido no 1800, é
composto por citadinos, muitos deles metropolitanos, cuja existência, distante da natureza, estava
recoberta por aspectos neuróticos. Por conseguinte, para este autor, o romantismo seria um produto
oriundo da vida e da cultura urbana européia impactada pela revolução burguesa.
27
A figura do homem-joguete, refém da força misteriosa (o inconsciente) pulsante em seu íntimo, que,
espectral, se projetara para fora assombrando-o, emerge no Romantismo, conforme ressalta Jacó
Guinsburg, enunciando “um dos temas cruciais do mundo moderno, o da alienação (GUINSBURG,
1978, p.289).
51
que tudo fragmenta, dissocia e racionaliza, porque ele se edifica simples e uno. Para
entender essa visão é importante reter sua categoria básica fundamental: a unidade. O
Romantismo se desdobra consoante à exigência de unidade, característica peculiar dessa
época (BORNHEIM, 1978). A busca de unidade foi uma peculiaridade que influenciou
visivelmente as pesquisas de Wilhelm Reich, o que se mostra no trato das estreitas
vinculações entre o corpo e as dimensões simbólicas.
Na Revolução Francesa, por exemplo, a busca pela unidade é visível nas
aspirações de construção de um Estado racional e uno, ao fulgor das bandeiras de
igualdade e liberdade sob a égide da Razão. Este ideal político de unidade estendeu-se
com o sonho imperial napoleônico. A Alemanha, influenciada pela França, também
ansiava por unidade. A simpatia de pensadores como Goethe
28
, Hegel e inúmeros
românticos por Napoleão assinala essa influência.
Guillermo Raúl Ruben nos mostra no que tange à consolidação do Estado nacional
alemão, que eram ausentes na Alemanha do começo do Século XIX, os nculos
solidários suficientes para levar à sua unificação. Essa carência de unidade entre os
povos germânicos é trabalhada por Hegel, que sistematizou teoricamente a noção de
identidade social pela primeira vez. Ao evocar esse aspecto da dimensão identitária
ausente, o que foi o mote para a formulação da sua teoria da identidade, Hegel, de
acordo com Ruben (1988), apontou como necessária uma nova relação de identidade
que pudesse substituir a relação de identidade pensada em função da língua, da cultura e
da religião (RUBEN, 1988). Neste sentido, outro filósofo alemão, Habermas, segundo
Ruben, aponta o Estado como a forma moderna através da qual pode se realizar tal
28
Depois de Goethe, o Romantismo permaneceu vitorioso sobre as Luzes que irradiavam da França e
Inglaterra. As influências estrangeiras eram consideradas perigosas pelos alemães que, no movimento de
re-germanização, fugiram de tais influências, especialmente das francesas (Enciclopédia Delta Larousse,
p. 215-216).
52
relação (eu sociedade), assegurando identidade e agregação à sociedade moderna,
mesmo perante as diferenças e visíveis desigualdades de sua estrutura de classes.
Os aspectos políticos da Alemanha na passagem do século XIX ao XX
Visto da ótica da ciência política, a partir das formas de constituição dos Estados
nacionais, o Estado alemão é recorrentemente citado como uma formação nacional que
opera uma mudança a partir do alto para baixo, ou seja, a unificação das várias etnias
residentes na Alemanha num Estado único não ocorreu na esteira de um processo
revolucionário, tal como o francês (revolução burguesa), mas a partir de um rearranjo
institucional organizado pelas elites então estabelecidas no poder
29
.
Vejamos ainda em Loureiro (2005) nova constatação da forma de transição dessa
sociedade autoritária para a sociedade moderna: o acelerado desenvolvimento
econômico experimentado entre os anos de 1850 e 1870 pela Alemanha, Prússia e
pequenos principados livres - agregados logo depois ao Estado alemão - impulsionou a
unificação nacional da Alemanha. Essa unificação se processou por meio da diplomacia
e da guerra, a partir do alto, não se configurando, portanto, segundo um processo liberal
e democrático (LOUREIRO, 2005).
Deste modo, a singularidade do caso alemão está no fato de sua unificação e sua
modernização ocorrerem no âmago modernidade e à caminho do capitalismo,
tardiamente, em relação a outros países da Europa Ocidental, e segundo um processo de
29
O processo de unificação alemã, de acordo com Walquíria Leão Rêgo, consiste “num modo clássico de
transição autoritária para uma sociedade moderna [remetendo] necessariamente a arranjos políticos
realizados pelo alto, excluindo obrigatoriamente as principais bandeiras democráticas de que se fizeram
portadores os setores populares” (RÊGO, 1996, p. 104-05, colchetes meus). Esse processo é conhecido,
segundo a autora, como via prussiana de unificação.
53
via prussiana. Para Norbert Elias (1997), a unidade do Estado alemão fôra prejudicada
por uma fragilidade estrutural, o que levava seus vizinhos a tentarem invasões
constantes em seu território. Essa mesma fragilidade teria levado os alemães ao alto
respeito à conduta militar e às ações bélicas reativas, que não raro eram idealizadas.
De acordo com Elias, a formação do Estado alemão apresenta um maior número
de rupturas e descontinuidades quando seu desenvolvimento é comparado ao
desenvolvimento de outras sociedades européias, por exemplo, a França, a Holanda e a
Inglaterra
30
. Na Alemanha seguiu-se à unificação uma busca voraz por recuperar o
tempo perdido, e foi engendrado um processo acelerado de modernização, a fim de
ultrapassar as grandes potências européias estabelecidas. Tal condição impulsionou de
modo decisivo o setor produtivo grupos especializados da economia, classes médias
industriais e comerciais e a força de trabalho industrial. Nessas circunstâncias, o
sentimento alemão de fraqueza e vulnerabilidade, antigo e intenso, se converteria
num sentimento de força invulnerável talvez mais intenso (ELIAS, 1997).
Na Alemanha foram asseguradas largas bases para a militarização que encontrara
arrimo nos valores bélicos. Para a conservação da estratificação social e das condições
de servilismo e submissão a ela associadas tratava-se de uma sociedade de indivíduos
disciplinados para obedecer às ordens superiores, sem questioná-las. Assim, entre os
estudiosos da época havia unanimidade em caracterizar o alemão médio como servil e
submisso na relação com os de cima e agressivo ao se relacionar com os de baixo, o
que, posteriormente, modelaria essa dimensão da alma alemã na massa informe dos
pequenos nazistas (LOUREIRO, 2005).
30
No caso britânico, Londres permanecera a capital desde Guilherme, O Conquistador, onde se fixaram
todas as consecutivas dinastias. Para Elias, este é um indicador de um Estado britânico marcado pela
continuidade e pelo desenvolvimento estável da cultura e civilização a ele associado (ELIAS, 1997, p.
21).
54
A burocratização assumiu, na Alemanha, os traços da aliança estabelecida entre o
burguês e o aristocrata alemães. Essa burocratização não liquidou os elementos feudais
marcados pelo localismo, mas os integrou para a consolidação de instituições numa
esfera pública estatal regrada por métodos racionais em sua construção e gestão (RÊGO,
1996). Uma tal configuração peculiar à Alemanha moderna já era assinalada por Marx:
Onde a produção capitalista se implantou plenamente entre nós, por
exemplo, nas fábricas propriamente ditas, as condições são muito
piores do que na Inglaterra, pois falta o contrapeso das leis fabris. Em
todas as outras esferas tortura-nos assim como em todo o resto do
continente da Europa Ocidental não o desenvolvimento da
produção capitalista, mas também a carência do seu
desenvolvimento. Além das misérias modernas, oprime-nos toda uma
série de misérias herdadas, decorrentes do fato de continuarem
vegetando modos de produção arcaicos e ultrapassados, com o seu
séquito de relações sociais e políticas anacrônicas. Somos
atormentados não pelos vivos, mas também pelos mortos (MARX,
1985, p. 12).
O Estado alemão conservara uma estrutura social estratificada no seio da qual se
originou uma classe média instruída, cujo perfil é associado por Fritz Ringer (2000) ao
dos mandarins chineses. Ele se refere aos seus membros enquanto intelectuais
mandarins, para designá-los enquanto elite social e cultural, cujo status advém
sobretudo da formação educacional e não dos direitos hereditários de nobreza e da posse
de riquezas. Assim:
Quem quer que na Alemanha do século XVIII, quisesse ascender
socialmente e não fosse nobre começava por adquirir o máximo de
instrução com que pudesse arcar. Depois ingressava nas burocracias
do Estado, no clero, no professorado, ou nos setores da medicina ou
do direito, no começo sempre num nível subordinado. (...)
desenvolveu-se desse modo um tipo de classe média o-econômica,
centrada, de um lado, nas universidades e, de outro, no serviço
público (RINGER, 2000, p. 30).
55
O pai de Wilhelm Reich filiava-se a esta gica (a gica de obter status social
através da formação educacional), pois ao oferecer uma educação com professores
particulares aos filhos, mantendo-os afastados das crianças camponesas vizinhas e suas
influências, julgava proporcionar-lhes condições favoráveis à sua ascensão social.
Norbert Elias, o habitus do duelo do código de honra alemão
31
Norbert Elias (1997) também apresenta uma discussão que corrobora as
características da sociedade alemã que acabamos de apresentar, embora o faça por outra
31
No Prefácio à edição inglesa do livro Os alemães: a luta pelo poder e evolução do habitus nos séculos
XIX e XX, escrito por Norbert Elias, Eric Dunning e Stephen Mennell pontuam que “Por ‘habitus’ uma
palavra que usou muito antes de sua popularização por Pierre Bourdieu Elias significa basicamente
‘segunda natureza’ ou ‘saber social incorporado’” (ELIAS, 1997, p. 09). Porém, ao utilizar o conceito de
habitus no decorrer desta Dissertação, adoto a definição de Marcel Mauss (2003) e a complemento com a
perspectiva sócio-estrutural de Pierre Bourdieu (1983a, 1983b, 1987, 1996) acerca do mesmo conceito.
Mauss nos fornece elementos de como os distintos agrupamentos humanos desenvolvem hábitos e
manejos do corpo que lhes são próprios. Assim, práticas cotidianas como comer, andar, nadar e dormir
são executadas numa multiplicidade de formas segundo regras culturalmente demarcadas. Mauss observa
que, por muitos anos, teve “a noção da natureza social do ‘habitus’. Observem que digo em bom latim,
compreendido na França, ‘habitus’. A palavra exprime, infinitamente melhor que ‘hábito’, a ‘exis’
[hexis], o ‘adquiridoe a ‘faculdade’ de Aristóteles (que era um psicólogo). Ela não designa os hábitos
metafísicos (...). Esses ‘hábitos’ variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam
sobretudo com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios. É preciso ver
técnicas e a obra da razão prática coletiva e individual, onde geralmente se apenas alma e suas
faculdades de repetição” (MAUSS, 2003, p. 404). O habitus, segundo Pierre Bourdieu, consiste em
“sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas
estruturantes” (BOURDIEU, 1983a, p. 61), de modo a atuarem como um princípio gerador e estruturante
de práticas e representações, o qual retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição
em um estilo de vida unívoco, isto é, um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas”
(BOURDIEU, 1996, p. 22). Esse autor assinala que uma matriz de percepção, apreciação e ão se forma
a partir desse sistema de disposições duráveis e se efetiva em condições sociais determinadas, em outras
palavras, as condições sociais de produção do habitus são definidas pela estrutura objetiva (BOURDIEU,
1983a) marcada pelas distinções inscritas nas ordens sociais e de legitimidade que definem os grupos
sociais concretos (BOURDIEU, 1987). Assim, a atualização do habitus é realizada através de
determinados estilos de vida correspondentes às diferentes posições ocupadas pelos agentes no espaço
social: “O estilo de vida está vinculado ao habitus, pois o gosto, propensão e aptidão à apropriação
(material e/ou simbólica) de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e
classificadoras, é a fórmula generativa que está no princípio do estilo de vida. (...) Cada dimensão do
estilo de vida simboliza todas as outras; as oposições entre as classes se expressam tanto no uso da
fotografia ou na quantidade e qualidade das bebidas consumidas quanto nas preferências em matéria de
pintura ou de música” (BOURDIEU, 1983b, p. 82 e 83).
56
linha. Sua questão é enunciada no subtítulo do seu livro Os alemães: a luta pelo poder e
evolução do habitus [alemães] nos séculos XIX e XX. Segundo ele,
Quando se examina o modo como as próprias pessoas dessa
sociedade classificavam os diferentes estratos sociais, torna-se
evidente que os empresários e grupos afins, como grandes
comerciantes ou banqueiros, certamente não ocupavam as posições
mais elevadas. Os altos funcionários da administração civil e as altas
patentes militares tinham definitivamente um status superior ao dos
mais ricos comerciantes. E até um relativamente próspero diplomado
universitário, como um advogado ou um médico, ocupava um status
social mais elevado do que talvez um industrial ou comerciante muito
mais rico, sem curso superior. (...) No caso dos diplomados
universitários era mais provável que a ancestralidade ficasse em
segundo plano (...) (ELIAS, 1997, p. 53).
Do comportamento alemão, Elias destaca o habitus do duelo que, para ele,
dificilmente, teria desempenhado um papel tão central em qualquer outro país até 1918.
O duelo, instituição comum na Europa, é um componente da cultura internacional dos
nobres, e com a ascensão burguesa apresentou tendência decrescente, exceto na
Alemanha. Ali, os estratos superiores, as classes médias altas, a nobreza, todo o quadro
de oficiais do exército e confrarias burguesas compostas por estudantes e graduados
tinham no duelo a peça central do seu código de honra (ELIAS, 1997). Como afirma o
autor, uma estratégia típica das castas guerreiras era, assim, preservada. Vigor físico,
habilidade e agilidade pessoais para a luta encontravam-se nos mais altos degraus da
escala de valores cultivados, enquanto à argumentação e à persuasão características do
debate verbal era atribuído menor valor e mesmo desprezo.
O duelo se realizava por meio do direito de exigir e dar satisfação, o qual, no
entanto, não era estendido a toda a sociedade. Compreendia os círculos conhecidos
como boa sociedade, presente mesmo nas menores cidades alemãs. Esses círculos eram
57
compostos pela nobreza, oficiais (incluídos os da reserva), confrarias acadêmicas
(quando função e título ainda não legitimavam este direito ao intelectual). Salvo por
agregarem outras qualificações, tal direito não era dado aos comerciantes, ainda que
possuíssem riqueza significativa. Os grupos não habilitados a pedir satisfação por meio
do desafio ao duelo eram formados por trabalhadores, agricultores, artesãos, lojistas e
judeus (ELIAS, 1997).
Outro aspecto revelador da desigualdade presente na sociedade e na cultura
política alemãs do período em que Reich nela se inseriu, é a condição de subordinação
da mulher à ordem patriarcal. Embora as relações sociais entre um homem e uma
mulher da mesma classe social ou entre um homem e uma mulher de uma classe social
superior fossem reguladas por um código de elevação social das mulheres (como a
reverência e o beijo na mão), tal característica ligava-se, notadamente, como chama à
atenção Elias, à condição subordinada que as mulheres ocupavam em relação aos
homens.
Se perguntarmos como Hitler foi possível, não podemos deixar de
concluir que a propagação de modelos de violência socialmente
sancionados e da desigualdade social estão entre os requisitos
preliminares do seu advento (ELIAS, 1997, p. 30).
O Nazismo, este interlocutor histórico
O Nazi-Fascismo, objeto de formulações teóricas de inúmeros pensadores desde o
seu surgimento na Europa, em meados da primeira metade do século XX, até os dias
atuais, foi estudado também por Carl-Gustav Jung e Wilhelm Reich, que se
apresentavam como pensadores tão diferentes, contudo, partilhando de muita coisa em
58
comum
32
. Para este último, as características como timidez, apreensão, obediência e
medo da autoridade seriam conseqüências da supressão da sexualidade natural da
criança realizada por uma educação autoritária. Nesse sentido:
a combinação da estrutura sócio-econômica com a estrutura sexual
da sociedade e a reprodução estrutural da sociedade verificam-se
nos primeiros quatro ou cinco anos de vida, na família autoritária. A
Igreja só continua essa função mais tarde. É por isso que o Estado
autoritário tem o maior interesse na família autoritária; ela
transformou-se numa fábrica onde as estruturas e ideologias do
Estado estão moldadas. (...) A estrutura autoritária do homem é
basicamente produzida - é necessário ter isto presente - através da
fixação das inibições e dos medos sexuais na substância viva dos
impulsos sexuais (REICH, 2001, p. 28, grifos do autor).
Forças rebeldes e faculdades críticas seriam, com isto, cerceadas, forjando um
indivíduo ajustado e submisso à ordem autoritária, independentemente das condições de
miséria e degradação que possa enfrentar. Reich, a esse respeito, aponta um problema
sério na psicologia de massas:
A ativação da maioria passiva da população, que contribui sempre
para a vitória da reação política, e eliminação das inibições que
impedem o desenvolvimento do desejo de liberdade, proveniente da
situação econômica e social. A energia das massas que assistem,
entusiasmadas, a um jogo de futebol, ou a um musical barato, em
meio a gargalhadas, não poderia ser de novo reprimida se conseguisse
libertar-se das suas cadeias e seguir caminhos que conduzem aos
objetivos racionais do movimento pela liberdade (REICH, 2001, p.
30-31).
A publicação do trabalho Psicologia de Massas do Fascismo (REICH, 2001), que
aborda a vitória do nacional-socialismo em sua consolidação na Alemanha dos anos
32
John Conger (1993) traçou um paralelo entre Reich e Jung mostrando as similaridades do pensamento
dos dois, mais do que as diferenças.
59
1930, contribuiu para a ruptura entre a Associação Psicanalítica Internacional (IPA) e
Wilhelm Reich (WAGNER, 1996; KIGNEL, 2005).
Em artigo denominado Wilhelm Reich: a clínica do homem encouraçado”,
Rubens Kignel (2005), ao comentar o trabalho de REICH (2001), assinala a capacidade
de Hitler em lidar com a psicologia de massas e suas contradições de uma maneira
muito favorável a si mesmo. Nesse sentido, as propostas de Hitler produziriam
profundas ressonâncias no desejo e no medo dos seus adeptos, formatando, assim, a
mentalidade fascista, que é “a mentalidade do ‘Zé Ninguém’, que é subjugado, sedento
de autoridade e, ao mesmo tempo, revoltado” (REICH, 2001, p. XIX). A população
estava imbuída, num tempo, do desejo e do medo da liberdade, cada qual suscitado,
ora por uma vida mais instigante, ora pela lei e ordem, ambas pregadas pela propaganda
nazista. Assim, a propaganda fascista apelava:
com intenções claramente enganadoras, para o ardor revolucionário
do operariado industrial [e o grande problema consistia em] saber por
que motivo o operariado nacional-socialista o reparou que o
fascismo prometia tudo a todos (REICH, 2001, p. 64, colchetes
meus).
Segundo Reich, eram amplamente conhecidas as negociações de Hitler com os
industriais, que lhe forneciam dinheiro em troca da contenção de greves. A consciência
revolucionária do operariado teria sido ainda obstruída pela intensificação da adoção
dos hábitos da classe média em períodos de prosperidade.
Para Reich, um misto de emoções e desejos distorcidos alimentava a miséria
econômica motriz dos trabalhadores partidários do nazismo. O apoio à família
tradicional e o endosso às inúmeras demandas dos jovens contra os adultos, os instigava
a deixarem suas casas e inserirem-se nesse movimento coletivo. O encorajamento à
reprodução dentro ou fora do casamento para melhorar a raça ariana e a ênfase colocada
60
pelos nazistas na idéia da “Mãe Alemanha” e do “Pai Hitler” criavam para muitos
alemães a possibilidade de transferência dos seus sentimentos familiares à nação alemã.
Em Aspectos do Drama Contemporâneo, Carl-Gustav Jung faz uma leitura das
forças nazistas segundo uma perspectiva arquetípica do inconsciente coletivo. Para ele,
a investida nazista realizada por Hitler junto aos adeptos alemães contra os judeus
despertou no povo alemão uma força do inconsciente coletivo, a qual ele localiza no
arquétipo do Wotan, esse deus da tormenta e da embriaguez, inativo por muito tempo, à
semelhança de um vulcão extinto (JUNG, 1990). Desse modo, o paralelo entre Wotan
ressuscitado e a referida corrente social, engendrada por fortes contradições sociais,
colocou este deus germânico na condição de personificação de forças psíquicas
coletivas não redimidas, as quais, propriamente dizendo, nada têm a ver com a
consciência altamente construída pelos alemães desde o Romantismo.
Jung diagnostica, em termos patológicos, uma personalidade como a de Hitler
como um tipo de histeria caracterizada pela capacidade de acreditar nas próprias
mentiras, levando-o geralmente ao êxito de suas proposições geralmente perigosas à
sociedade. Para o autor, a adesão do povo alemão ao nazismo e a Hitler (um espantalho
psíquico, aos seus olhos), refletia a histeria coletiva generalizada dos alemães, quando
tomados pelo arquétipo do Wotan. O que se havia acabado de vivenciar na Alemanha
consistia numa “primeira manifestação de uma alienação mental generalizada, a
irrupção do inconsciente nos espaços de um mundo aparentemente bem ordenado”
(JUNG, 1990, p. 33), que teria alcançado também uma elevada posição intelectual no
cenário mundial.
Ainda que a Alemanha tivesse alcançado um elevado patamar de desenvolvimento
intelectual, como vimos ginas atrás, segundo Jung, há uma profunda força oriunda do
inconsciente coletivo operando como uma dimensão incontrolável da realidade: é a
61
psique coletiva inconsciente realizando a uma lei da energética psíquica, a
enantiodromia
33
. A tradição intelectual alemã, notadamente em sua produção filosófica
desde Kant, Hegel, Schelling, Fichte, Nietzsche, Marx, dentre outros, delineia seu alto
desenvolvimento cultural, o que é discrepante com o seu desenvolvimento material.
Segundo essa lei da energética psíquica, as forças desse crescimento intelectual para o
alto são acompanhadas de forças arquetípicas que se movem para a direção oposta,
como que escavando e adentrando a superfície na qual as primeiras (as forças do
crescimento intelectual) se fundamentam. Estas forças arquetípicas, de tempos em
tempos, manifestam-se de forma avassaladora na realidade. Esse argumento é válido, no
meu entendimento, tanto para compreender a subida de Hitler ao poder, quanto para
explicar a violenta reação do inconsciente coletivo sobre Wilhelm Reich, como veremos
no final do Capítulo 2.
Wilhelm Reich: uma voz dissonante
Na luta política da qual Wilhelm Reich participou e com a qual muito contribuiu
com sua visão clara dos efeitos das contradições sociais atuando sobre os corpos e
reprimindo a sexualidade dos trabalhadores - e, assim, produzindo neuroses - Reich
buscou também a tarefa ontológica de construir-se a si mesmo.
Construir-se significa encontrar-se, não apenas nos seus sentimentos e
interpretações, mas na humanidade que nos une a todos. Categoria propriamente
moderna e elemento central do projeto social de Modernidade, o indivíduo é uma das
formas pelas quais nos referimos ao homem desse tempo histórico. Disjunto dos laços
33
É uma lei psíquica que opera o princípio da inversão num determinado processo, caracterizando-o pelo
“ritmo de negativo e positivo, de perda e ganho, de escuro e claro” (JUNG, 2000, p. 47).
62
tradicionais que estruturavam a sociedade passada, o indivíduo, moderno por
excelência, tem à sua escolha um leque de possibilidades para se fazer e se refazer, para
desenvolver uma biografia que o conduza, a um tempo livre e cativo, ao
desenvolvimento dessa tarefa ontológica.
Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura,
poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das
coisas em redor - mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que
temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência
ambiental da modernidade (...) nos despeja a todos num turbilhão de
permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de
ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no
qual, como disse Marx, “tudo o que sólido se desmancha no ar”
(BERMAN, 1986, p. 15).
A sociedade européia de meados do século XIX, em crescente transformação, não
se compatibilizava com os moldes tradicionais de sua organização e estrutura social.
Nas culturas européias, a sociabilidade se tecia no seio da noção de progresso e da
racionalização alçados pelos avanços da ciência e da tecnologia. O processo de
modernização tornava cada vez mais evidente o crescimento dos grandes aglomerados
urbano-industriais e, conseqüentemente, de um fenômeno peculiar a ele, o advento das
massas. Segundo Fritz Ringer (2000), os acadêmicos alemães contemporâneos do
referido período diziam e escreviam que se levantava “o espectro de uma era moderna
sem ‘alma’” (RINGER, 2000, p. 20).
Como assinala Habermas (2001), o desenvolvimento demográfico, a
transformação estrutural do trabalho e os progressos científico-tecnológicos atravessam
o século em ritmos amplos. A figura social da massa, pela qual se torna perceptível a
explosão demográfica no início do século XX, tem representatividade nos próprios
indivíduos da classe trabalhadora atendidos por Reich nos hospitais psiquiátricos.
63
Indivíduos cujas posturas e expressões corporais revelavam-lhe corpos disciplinados,
nos quais, no decorrer do processo de socialização, a obediência se encarnou como uma
memória incrustada, tornando-os submissos à estrutura social autoritária reproduzida
pela família tradicional.
Ao estudar o americanismo e o fordismo, em meados dos anos 1930, Antonio
Gramsci (2001) nos apresenta elementos da vida cotidiana das classes trabalhadoras
modernas que podem ilustrar o processo de disciplinarização dos seus corpos, que foi,
sob outros termos, objeto do pensamento e das ações terapêuticas e políticas de
Wilhelm Reich. Embora o contexto da discussão gramsciana seja os Estados Unidos da
América, suas proposições são válidas para compreender o fenômeno em termos da
formação de um tipo humano adequado à produção industrial por meio da
disciplinarização dos seus corpos, numa sociedade em que a estrutura do trabalho
passara por mudanças substantivas em virtude dos avanços técnico-científicos.
A disciplina fordista evidencia uma lógica radicalmente racional e racionalizadora.
Modela posturas, corporalidades, comportamentos e esquemas de percepção do mundo,
compondo um ethos
34
peculiar ao contexto que o encerra. Pensando esse fenômeno no
tocante à mudança na percepção do mundo, podemos sinalizar o desenvolvimento de
um novo sensorium
35
, portador da sensibilidade característica do tempo histórico e da
formação social em constituição.
É interessante notar uma transformação irreversível nos referenciais e na
cosmologia de cada sociedade sob a influência da expansão produtiva do capitalismo. O
tempo que passa a regular a vida é o tempo da produção. A disciplina produtiva penetra
34
Ethos é uma palavra grega que significa ética ou hábito.
35
Conforme Simmel (1987), o termo sensorium refere-se ao modo de sentir e perceber o mundo, de nele
estar e estabelecer relações sensíveis e cognitivas no processo de apreensão e construção da realidade
(SIMMEL, 1987).
64
e orienta a conduta do trabalhador também na esfera de sua vida e disposições privadas.
Nesse sentido, o sistema fordista transcende a vida do trabalho estendendo-se ao
cotidiano da vida onde se junta, ressimbolizando a cultura local, ressignificando valores,
relações familiares, o sentido e a experimentação do lazer. Dito de outro modo, a
organização da produção e os valores que orientam a disciplina dirigida ao seu
funcionamento eficiente organizam também estilos de vida, como bem nos mostrou o
American Way of Life
36
.
O processo de disciplinarização e de organização racional da produção promove a
submissão e o controle sobre o trabalhador. Ligado ao processo de racionalização do
trabalho, o proibicionismo se constitui como uma importante característica do fordismo,
ao qual corresponde a criação de serviços de inspeção, a fim de obter controle sobre a
vida íntima dos trabalhadores, principalmente, o controle das práticas sexuais, do
consumo de álcool e das horas de sono.
A necessidade de uma inspeção que controle a moralidade dos trabalhadores
expressa um enorme esforço para forjar um homem trabalhador de um novo tipo, se
comparado a uma outra fase da produção capitalista. Tornou-se imperativo que esse
novo tipo de trabalhador desenvolvesse comportamentos automáticos e mecânicos, o
que o situava na condição de semelhante às máquinas uma vez que o alijava de suas
operações de inteligência, fantasia e criatividade ativas (GRAMSCI, 2001).
Com uma visão crítica acerca da sociedade capitalista e os sentidos atentos às
determinações sociais que atuam nas patologias emocionais, como, por exemplo, as
manifestações neuróticas, Wilhelm Reich também apreende não obstante, com um
foco que lhe é peculiar a rigidez e a opressão sociais denunciadas por meio do corpo e
36
O American Way of Life é o modo de vida norte-americano difundido pelos Estados Unidos da
América, a partir dos anos 1920, que positivava e propagava os valores da sociedade capitalista.
65
das estruturas corporais que aprisionam doenças e que comunicam os aspectos
autoritários nelas arraigados.
Nas salas médicas, antissépticas, da Clínica Psicanalítica de Viena recém-criada,
Wilhelm Reich atendia, no início da década de 1920, os membros de uma classe
trabalhadora empobrecida, o que lhe colocava desafios distintos daqueles enfrentados
pelos psicanalistas vienenses que atendiam pacientes oriundos das classes mais
favorecidas (KIGNEL, 2005). Seus pacientes colocavam-no diante dos problemas
sociais que realçavam a pobreza de Viena. As expressões corporais e os conteúdos
emocionais comunicados por esses pacientes faziam transparecer as condições sociais
de classe que viviam. Um autor como Conger (1993) destaca que a constatação da
pobreza desses trabalhadores teria notadamente despertado Reich, enquanto estudante
pobre, para questões sociais e para os estudos sociológicos.
Sua militância política, enquanto marxista e membro do Partido Comunista, o
colocou à frente do movimento SEXPOL (Associação para uma Política Sexual
Proletária), criado por ele mesmo, em Berlim no ano de 1931 (um ano após seu
estabelecimento naquela cidade), com o objetivo de orientar a vida das pessoas,
sobretudo de baixa renda, sexual e politicamente. As ramificações deste movimento
atingiram em passo acelerado outros centros industriais da Alemanha, como as cidades
de Leipzig, Dresden e Stettin (ALBERTINI, 1994).
Wilhelm Reich (2001) expôs a base psicológica do fascismo, o qual obtinha a
adesão tanto dos operários como das classes médias, em virtude da estrutura psíquica do
homem comum. As idéias promulgadas neste trabalho
colocaram seu autor na posição
de um homem perigoso, de um lado para os nazistas, de outro, para os comunistas - os
primeiros ao assumirem o poder tentaram prendê-lo, os segundos expulsaram-no do
partido também pelo fato de ele criticar a sua direção autoritária (RAKNES, 1988).
66
Devido à ascensão de Hitler, Wilhelm Reich refugiou-se em Copenhague, na
Dinamarca, em 1933. Nesse momento de sua vida, encontrava-se em forte tensão com a
Sociedade Psicanalítica de Viena, com os nazistas, com a liderança comunista alemã e a
escandinava (ALBERTINI, 1994; CONGER, 1993; RAKNES, 1988; REICH, 2003),
além de estar vivendo o drama da separação da sua primeira esposa, Annie Pink, e das
duas filhas, Eva e Lore. Nesse momento, ainda em Copenhague, dedicou-se a um
training psicanalítico e às aulas sobre seu método de análise do caráter. Para a análise
do caráter, que não está focada no aspecto moral, o corpo é considerado o locus
privilegiado onde os conflitos psíquicos do paciente ganham expressão através dos
movimentos da sua musculatura caracterizados, por exemplo, por rigidez, espasmos ou
contrações, e através de suas atitudes de caráter patológicas, funcionalmente idênticas
aos gestos (REICH, 2004a, 2004b, 2003).
Conforme posto em Notícia Bio-Bibliográfica anexa à edição portuguesa do livro
Psicopatologia e Sociologia da Vida Sexual, o Comitê do Partido Comunista acusou
Reich de agente provocador, indesejável também pelas forças direitistas que o
consideravam um revolucionário, sendo-lhe, por tais motivos, solicitado a abandonar a
Dinamarca. Transferiu-se para Malmö, na Suécia, de onde, aproximadamente seis meses
depois, também foi expulso. Instalou-se na Noruega e permaneceu de 1934 a 1939
(REICH, 1977a). Neste mesmo ano, Reich imigrou para os Estados Unidos da América:
“A América - pretensamente livre - ofereceu-lhe guarida” (MATTHIESEN, 2005, p.
159). Instalou-se em Nova York convidado pela New School for Social Research para
dar conferências sobre Psicologia Médica e Técnicas Psicoterapêuticas. Pouco tempo
depois, em 1942, adquiriu uma propriedade rural no Maine, a qual denominou
67
Orgonon
37
, para onde transferiu, gradualmente, todas as suas atividades de pesquisa
(MATTHIESEN, 2005, p. 159-160).
Wilhelm Reich e a luta científica
No cenário político da passagem do século XIX para o XX, temos os processos de
consolidação dos Estados-Nação, a busca destes por ampliar o seu poder e aumentar a
sua riqueza ante a delimitação de um território nacional e a constituição de mecanismos,
ora de pura dominação, ora de hegemonia. Foi nesse mote de rivalidades políticas que
desencadeou o “breve século XX” como um século marcado por guerras sem
precedentes.
Por outro lado, nessa passagem do século XIX para o XX, o horizonte científico
europeu radicalizou epistemologicamente o racionalismo, postulando a razão como
faculdade privilegiada na construção do conhecimento válido como verdade,
edificando-a sob sólidas bases:
Oferecendo uma nova possibilidade de certeza epistemológica e
consenso objetivo, novos poderes de previsão experimental, invenção
técnica e controle da Natureza, a Ciência apresentava-se como a
graça salvadora da cultura moderna. Enobrecia o espírito, mostrando-
lhe a capacidade de entender diretamente a ordem racional da
Natureza – de início afirmada pelos gregos –, mas a um nível que em
muito transcendia as realizações dos antigos e dos escolásticos
medievais. Nesse momento, nenhuma autoridade tradicional definia
dogmaticamente o panorama da cultura, nem tal autoridade era
37
Sara Matthiesen assinala que: “Desde o início, foram tantos os planos para esse empreendimento que
Reich vivia sonhando e passeando pela propriedade fincando estacas de madeira ao designar os lugares
onde seriam os edifícios que construiria, dentre os quais estariam laboratórios experimentais, hospitais de
investigação, centros de tratamento, uma biblioteca central, um centro para crianças, salas de estudo,
moradia para a família de médicos e pesquisadores e um observatório telescópico” (MATTHIESEN,
2005, p. 160-161).
68
necessária, pois todos possuíam os recursos para a obtenção do
conhecimento seguro: sua própria razão e a observação do mundo
empírico (TARNAS, 2003, p. 305-06).
À ciência que se pensava esclarecida na época são colocadas inúmeras
interrogações pela proposta da Psicanálise, de Sigmund Freud e seus seguidores. Uma
única noção, a de inconsciente, por exemplo, é capaz de colocar em xeque as certezas da
consciência esclarecida legada ao homem desse período, herdeiro direto do Iluminismo.
Wilhelm Reich, membro da Sociedade Psicanalítica de Viena, apresentou por
meio de sua teoria, inúmeras discordâncias à Psicanálise, cujo impacto e conseqüente
rejeição pelos que defendiam as posições reinantes neste campo do saber são
significativos, embora ambos pressupusessem que as explicações sobre os processos
psíquicos tenham origem numa causalidade sexual e cultural.
Tanto para Freud como para Reich, o eixo básico que geraria interpretações
diferentes é situado no principal conflito psíquico que se constitui a partir do
relacionamento entre a criança e os pais, sobretudo a mãe, o que numa metáfora sexual
geraria o complexo de Édipo: o incestuoso amor do menino pela mãe, ou da menina
pelo pai (complexo de Electra, conforme Carl-Gustav Jung). Contudo, as experiências
clínicas dos dois eram diferentes e a forma como acessar e dissipar esse conflito
primordial também. Para Reich, a palavra, recurso cognitivo por excelência do método
psicanalítico, não alcançava o cerne do conflito infantil refletido no adulto, pois este
conflito tinha uma estruturação corporal em couraças que necessitariam ser dissipadas
através de manipulações corporais.
Aos poucos, Reich desenvolveu sua teoria sexual acompanhada de métodos
terapêuticos corporais, o que privilegiava a dissipação do bloqueio somático, segundo
ele, condição de possibilidade para a dissipação do conflito psíquico. Corpo e alma
eram pensados conjuntamente.
69
sua descoberta mais polêmica, a energia orgone cósmica, e os padrões
vibracionais atuando na formação e no desenvolvimento de patologias inserem a
discussão reichiana num horizonte cognitivo que é holonômico, pois realiza uma
apreciação articulada da totalidade implicada nas conexões entre homem e cosmos.
Interessante coincidência intelectual que une Wilhelm Reich aos pesquisadores do
Círculo de Eranos
38
, muito embora, pelo que parece, eles nunca tenham se conhecido.
No próximo capítulo, veremos algumas influências teóricas que orientaram o
desenvolvimento do pensamento de Wilhem Reich.
38
Eranos é uma palavra grega que significa comida em comum ou banquete. Os encontros do Círculo de
Eranos encerram o sentido de verdadeiros banquetes de idéias que tiveram como primeiro objeto de
discussão as conexões entre o pensamento Ocidental e o pensamento Oridental. Esses encontros, de
regularidade anual, m como etapa principal as reuniões ocorridas nos anos de 1933 a 1988, em Ascona,
na Suíça, mas ainda acontecem seguindo um novo ciclo. Carl-Gustav Jung, Gilbert Durand, Mircea
Eliade, Henry Corbin, Joseph Campbell, Ilya Prigogine e James Hillmman são alguns dos pensadores
mais conhecidos ligados ao Círculo de Eranos.
70
Capítulo 2
Wilhelm Reich: influências teóricas
Uma maneira de apresentar o desenvolvimento do pensamento de Wilhelm Reich,
quando se amplia a partir das questões abandonadas pela Psicanálise e da crítica a ela,
questões que se consolidam no paradigma holonômico, especificamente na Orgonomia,
é lembrando que este pensamento é construído num campo de lutas científicas e
políticas. Científicas sobretudo em relação a Freud, e políticas, sobretudo em relação ao
movimento social da classe trabalhadora (como o operariado alemão) e ao movimento
comunista (BOADELLA, 1985; ALBERTINI; 1994; WAGNER, 1996). Esse campo de
lutas mobilizava e rebatia com suas questões, nas utopias de cada pensador da época.
As lutas sociais que ocorriam no cenário dos primeiros decênios do século
passado, sobre as quais Reich nunca deixou de se posicionar, trouxeram questões
teóricas importantes para ele perceber os efeitos das contradições sociais atuando sobre
os corpos e sobre a formação de doenças psíquicas e somáticas, produzindo, assim, uma
patologia social com expressões individuais, que poderiam ser lidas nas couraças
criadas como meio de sobreviver aos sofrimentos sociais e subjetivos.
Este capítulo tem como objetivo apresentar alguns diálogos internos e
cosmovisões que influenciaram a fundamentação teórica delineada por Reich,
assinalando sobretudo a singularidade do pensamento do personagem central desta
Dissertação. A inquietação de Reich para problemas de ordem social e política,
estabelecerá o sentido preciso do alargamento gnosiológico presente no
desenvolvimento de suas idéias, por causa de sua inserção teórica com o pensamento
marxista e antropológico e da ação social traduzida em sua militância política.
71
A reflexão no campo das ciências sociais, do qual nunca se apartou o autor, ganha
novos contornos quando incorporamos a discussão da subjetividade. E a ciência
também ganha novas dimensões na discussão reichiana acerca da Orgonomia, a última
etapa da sua pesquisa, apresentada neste trabalho em linhas muito gerais, quando ele
mostra o que sempre esteve presente e que os cientistas não enxergavam: o fenômeno
co-implicado.
É na discussão sobre a subjetividade que articula a natureza e a cultura no corpo e
na alma que o homem moderno revela a sua unilateralidade, o que veremos ao final
desta discussão. É no interior da formação dessa subjetividade que se estrutura nessa
sociedade repressora e excludente, que devemos compreender os ataques e a violência a
ele, como ele foi vilipendiado, difamado e aviltadas suas posições científicas e políticas,
por diversas razões no vasto campo de seus opositores, e em vários países
(BOADELLA, 1985, p. 277-323; KIGNEL, 2005, p 36-39; DADOUN, 1991, p. 142-
150).
Wilhelm Reich e a Psicanálise
A Psicanálise constituiu um importante referencial teórico na formação inicial de
Wilhelm Reich, e, portanto, o conjunto de seus axiomas orientaram-no em sua prática
terapêutica e produção teórica desde o início dos anos de 1920 à primeira metade dos
anos de 1930, enquanto um eixo de reflexão a partir do qual suas idéias foram ganhando
forças que lhe permitiram um vôo próprio.
Discutindo a clínica terapêutica de Wilhelm Reich embasada na teoria das pulsões
de Freud, Ricardo Amaral Rego (2003) se alinha com diversos outros autores que
72
buscam as origens psicanalíticas do pensamento de Reich
39
. Guiado pela pergunta
“como teria Reich formulado suas descobertas se ele não tivesse rompido com a
psicanálise?” (REGO, 2003, p. 36), este autor parte da explicação “dos elementos
próprios da abordagem reichiana a partir da idéia de uma dinâmica baseada no conflito
entre pulsão e defesa” (REGO, 2003, p. 35).
Ao sintetizar quatro inovações da teoria de Reich em relação às formulações
freudianas temos: a) os conteúdos da fala do paciente não ocupam a centralidade das
atenções na situação analítica, esta centralidade é voltada ao como ele diz estes mesmos
conteúdos; b) o método das associações livres é empregado somente após a eliminação
das resistências mais importantes à análise; c) o caráter é visto “como defensiva global e
articulada do ego”, donde provém o estudo das resistências caracteriológicas e d) é
instituída a intervenção direta sobre o corpo onde também se instalou o conflito da
relação entre pulsão e defesa; o conflito não é apenas psíquico - a unidade entre as
funções psíquica e somática é pensada enquanto uma identidade real (REGO, 2003, p.
37).
Clara Thompson (1969) assim escreve sobre a contribuição técnico-terapêutica da
análise do caráter de Wilhelm Reich:
As críticas a seu pensamento ulterior não devem, contudo, prejudicar
uma apreciação de suas primeiras contribuições, especialmente no
campo da análise do caráter. Ferenczi acentuara, anteriormente, que
as tensões e atitudes compostas dos pacientes eram manifestações de
resistência e que chamar a atenção deles para tais posturas resultava,
freqüentemente, obtenção de significativos progressos. Reich
debruçou-se muito mais exatamente sobre a questão. Observou que as
tensões corporais eram um modo muito freqüente de exprimir estados
emocionais, mas, além disso, descobriu que as pessoas tinham
processos característicos de reação que se manifestavam tanto
39
Entre estes pensadores mencionados por Ricardo Amaral Rego estão: Rego (1992), Albertini (1994),
Boadella (1997), Briganti (1987), Silva (2001), Wagner (1996, 2003).
73
psicologicamente como nas tensões somáticas (THOMPSON, 1969,
p. 172).
Conceitos psíquicos pelos quais Freud descrevia inúmeros elementos serão
retomados por Reich do ponto de vista somático. Entre estes termos estão: “fixação”
(ancorada, em Reich, “num padrão muscular crônico”), dispêndio de energia” (se, em
Freud, há um dispêndio contínuo de força para manter a repressão, em Reich, ocorre um
gasto real de energia destinada à manutenção do músculo contraído), “quota de afeto”
(para Freud, esta corresponde à energia pulsional vinculada à idéia; para Reich, situa-se
num campo de correlação entre afeto e musculatura) e “associação livre” (em Freud,
esta se através dos conteúdos da fala; o correspondente na visão somática de Reich
são as “associações livres dos movimentos” executados pelo paciente) (REGO, 2003,
p.39-43).
É evidente, para o interesse da Antropologia, que essa estruturação corporal
possa ser compreendida quando ela articula relações entre o eu e o outro, alimenta a
formação de cosmovisões, mobiliza e atualiza o universo simbólico no qual ela está
inserida. Em outros termos: a estruturação corporal é mediada por uma rede simbólica
que atua e move a subjetividade de cada um, na difícil fronteira existente entre conflito
e harmonia.
Diferentemente da Psicanálise clássica, em psicoterapia corporal é possível falar
num tipo de inconsciente que é neuromotor, isto é, um processo de comando
inconsciente da motricidade, que por diversos caminhos relaciona a natureza à cultura.
Neste sentido, Rego (2003) assinala que “a grande inovação reichiana é a idéia da
participação dos aparelhos locomotor e respiratório na dinâmica psíquica” (REGO,
2003, p. 55).
74
Na Análise do caráter, Reich (2004a) constrói uma reflexão voltada às resistências
criadas pelo paciente na situação de análise, debatendo e reformulando algumas
controvérsias que apareciam no trabalho terapêutico e colocavam questões à técnica.
Suas proposições técnico-terapêuticas, entretanto, desenvolveram-se conjuntamente
com as primeiras formulações da teoria do orgasmo, construção central de seu
pensamento (ALBERTINI, 1994, p. 33). Essas questões serão retomadas no próximo
capítulo.
Ao discutir a adequação de um método de análise à teoria das neuroses, Reich
chama a atenção para os conteúdos inconscientes (reprimidos na primeira infância) do
material apresentado pelo doente através das associações livres; para a relação de
transferência (expressa por manifestações de amor, ódio e angústia) e ainda mais, para a
resistência (elemento geralmente inconsciente) que o analisando desenvolve enquanto
tal, pois todos esses elementos evidenciavam a singularidade presente em cada caso.
Assim, ele não universaliza os sofrimentos presentes nas experiências particulares como
faz o modelo biomédico. Retomaremos essa questão no último capítulo desta
Dissertação:
[...] em cada caso individual, teríamos de esperar para ver se o
paciente revela este ou aquele tipo de resistência típica ou, talvez, não
mostra semelhança com outros casos. A transferência negativa latente
é apenas uma de tais resistências típicas. Por isso não devemos
procurar apenas esta resistência, utilizando imediatamente outro meio
de orientação [...]. Este meio deve ser obtido apenas a partir do
material individual do paciente. [...] devemos evitar interpretações
que envolvam sondagens mais profundas enquanto não aparecer e for
eliminada a primeira frente das resistências primordiais (REICH,
2004a, p. 40).
75
Material analítico e interpretação
A própria definição de material analítico, habitualmente entendida por
comunicações, associações, sonhos e lapsos do doente, é rediscutida por Reich, uma vez
que, embora considerado teoricamente importante, “o comportamento do paciente [...],
seu olhar, sua linguagem, sua expressão facial, seu vestuário, a maneira de apertar a
mão, etc., não são amplamente subestimados em termos de sua importância analítica,
como, em geral, completamente desprezados” (REICH, 2004a, p. 41). Tais elementos
simbólicos são pistas, indícios para a compreensão dos conflitos e dos sofrimentos e,
com o passar do tempo, foram se tornando para o autor, seus pontos de partida e de
apoio. Entender a importância desses símbolos significava para Reich transpor uma
compreensão restrita da superfície psíquica, pois que tanto o comportamento do
paciente e suas expressões corporais, quanto o conteúdo de sua fala estavam baseados
no inconsciente.
Reich concorda com Freud no fato de o analista ter que assumir em relação ao
paciente uma postura aberta às surpresas e apresentar-se com a habilidade de adotar
uma atitude não preconceituosa, e desse modo, construir o paciente enquanto uma
alteridade. Pela teoria do mecanismo inconsciente, pela contribuição histórica e pela
compreensão da dinâmica e economia dos processos psíquicos, todas elas oriundas do
saber psicanalítico, Reich desenvolveu sua teoria da solução caracteriológica do conflito
sexual infantil sob novos pontos de vista e fundando novas descobertas.
Reich considerava que os avanços teóricos abrem a possibilidade de tecer
explicações sobre a forma como as pessoas se sentem e sobre os caminhos pelos quais
os sintomas neuróticos são produzidos e a rota que seguem, ou seja, ele abre a
perspectiva de entender o sentido do adoecimento. Para além da estabelecida
76
compreensão e explicação do conteúdo das experiências, dos sintomas neuróticos e dos
traços de caráter, tal sentido do adoecimento se inscreve num determinado universo
simbólico-afetivo. Assim, ele passa a buscar o que denomina “característica
fundamental de uma personalidade” (REICH, 2004a, p. 151).
A orientação implícita dos trabalhos do autor era o desenvolvimento das idéias no
interior da estrutura do pensamento freudiano, todavia, seu embasamento somático o
diferenciava desta estrutura de pensamento. Freud se posicionou contrário às
ampliações e ressignificações em relação ao modelo psicanalítico clássico, apresentadas
por Reich em 1926 com a proposta da técnica de análise do caráter. O mestre acreditava
que a interpretação da resistência deveria correr na medida em que o material fosse
surgindo, e não de partida, como Reich defendia. O conflito se tornou mais
contundente com o interesse crescente que Reich vinha manifestando pela teoria
marxista e pela ação social (CONGER, 1993, p. 30-31; WAGNER, 1996).
O conceito de libido como energia presente nos trabalhos de Reich já se
encontrava na Psicanálise, entretanto, as raízes biológicas desses trabalhos fazia com
que Freud lhe chamasse à atenção quanto à possível transformação de seus estudos em
uma psicobiologia. Entretanto, a energia enquanto um fenômeno biológico e
quantitativo sempre despertou o interesse de Reich (REICH, 1977a; 1977b; 2004a,
2004b; CALEGARI, 2001; ALBERTINI, 1994), de modo concreto, a poder medi-la
com instrumentos próprios, o que marcava uma das suas diferenças em relação ao
paradigma psicanalítico que a referenciava cada vez mais abstratamente.
40
Reich entende a libido como uma energia concreta e represada pela couraça
muscular (REICH, 2004a, 2004b). Apenas o caráter saudável (genital) seria capaz de
descarregá-la adequadamente, uma idéia que se articula ao conceito de potência
40
Para um aprofundamento sobre Energética e epistemologia no nascimento da obra de Wilhelm Reich
ver Bedani (2007), em trabalho homônimo.
77
orgástica, ou seja, à capacidade de realização sexual plena
41
. De acordo com Clara
Thompson, “deve admitir-se que a potência orgástica é importante como prova evidente
de saúde mental, mas unicamente quando está integrada na personalidade total e
exprime plena relação emocional com a outra pessoa” (THOMPSON, 1969, p. 171).
Lembremos que aqui está implícita uma visão de relação sexual duradoura, outra
questão defendida por Reich.
42
A potência orgástica pode ser entendida como a
capacidade irrestrita para a entrega e o envolvimento plenos em qualquer que seja a
atividade realizada. Embora Reich tenha focado “especificamente o orgasmo sexual”
num primeiro momento, ao desenvolver sua teorização, ele “estabeleceu uma
aproximação entre o domínio tradicionalmente entendido como sexual e as demais
esferas da vida” (ALBERTINI, 2003, p. 74)
43
.
Se por um lado Reich sustenta que a sintomatologia das neuroses está ligada às
dificuldades do adulto em obter satisfação sexual nos moldes do caráter genital
(saudável), por outro, o estado considerado saudável e sua manutenção vincula-se, por
meio da potência orgástica, à descarga energética em quantidade suficiente para
eliminar a fonte de energia a ser canalizada para o sintoma (REICH, 1977a; 1977b;
ALBERTINI, 1994).
41
A importância do conceito de potência orgástica está para a teoria reichiana assim como o conceito de
complexo de Édipo está para a teoria psicanalítica de Freud (ALBERTINI, 1994, p. 35).
42
Em Casamento indissolúvel e as relações sexuais duradouras (REICH, 19--), o autor expressa sua
crítica à moral compulsiva que normatiza o casamento tradicional como via de acesso às relações sexuais.
Para ele, o casamento deveria consistir simplesmente numa relação sexual duradoura, independente das
leis civis ou religiosas, e sua duração deve ser determinada não por imposições prescritas por estas leis,
mas sim pelo envolvimento sentimental (terno) e pela satisfação sexual (equilibrada) dos cônjuges.
43
Wilhelm Reich em Psicopatologia e Sociologia da vida sexual atribui à potência orgástica, expressão
da satisfação sexual plena, a seguinte definição fenomenológica: “capacidade de concentração de toda a
personalidade na experiência genital” (REICH, 1977a, p. 54). No Assassinato de Cristo, a idéia que
traduz a realização plena está também relacionada à entrega, quando ele amplia consideravelmente a
primeira formulação: “O abraço natural pleno (relação sexual) assemelha-se a uma escalada; ele não se
distingue essencialmente de qualquer atividade vital, importante ou não. Viver na plenitude é se
abandonar ao que se faz. Pouco importa que se trabalhe, que se fale com amigos, que se eduque uma
criança, que se escute uma conversa, que se pinte um quadro, que se faça isso ou aquilo” (REICH, 1999,
p. 41, parêntesis meus).
78
Por meio de questões relacionadas à sexualidade do ponto de vista energético-
sexual, que levaram Reich a questões sociais e políticas evitadas pela psicanálise
freudiana, se instalavam os primeiros fatores de sua ruptura com Freud. E, além da
expressa recusa deste em conduzir um processo terapêutico com Reich, o conflito entre
a concepção de ambos acerca do instinto de morte foi um ponto decisivo da dissolução
desta relação. Soma-se a essa condição a temática do masoquismo, visto por Freud
como uma manifestação do instinto de morte e entendido por Reich como uma refração
dos instintos de prazer que, contidos pela repressão do mundo externo, transformam-se
em ódio destrutivo que se volta tanto para o indivíduo como para o ambiente
sociocultural (REICH, 1977a; 1977b; 2003; 2004a). No próximo capítulo essa
problemática será retomada.
Partindo-se da perspectiva reichiana, podemos compreender como a
racionalização do trabalho moderno advinda das etapas posteriores da industrialização,
particularmente, o taylorismo, conhecido também como gerência científica, torna-se
uma referência crucial para pensarmos esse conflito entre homem e meio externo
(sociocultural) na contemporaneidade. Na racionalização do trabalho moderno a idéia
de gerência científica é dupla, e ela almeja: a) obter o absoluto controle sobre o
trabalhador, enquanto este desempenha suas tarefas no interior das fábricas e escritórios,
por meio da “separação entre concepção/decisão”, reservadas aos gerentes, e
“execução”, esta desempenhada pelo trabalhador sem que lhe seja dado a conhecer o
sentido, as causas, os fins e os meios de seus afazeres; b) “obter absoluto rendimento do
trabalho”, por meio do controle total que a divisão de cada tarefa, nas menores partes
possíveis, propicia sobre o corpo do trabalhador (CHAUÍ, 1991, p. 153).
A contrapartida desse processo fôra colocada por Sigmund Freud em O mal-
estar na Civilização, quando o autor aponta que a civilização retira da sexualidade
79
grande quantidade da energia psíquica que utiliza, transferindo-a para trabalho. Trata-se
de uma relação de exploração que impede o pleno desenvolvimento sexual e sua fruição
espontânea e coloca a compulsão ao trabalho como um ideal. Esta proscrição da vida
sexual começa na infância, daí a fundamentação eficaz desse sistema de dominação
(FREUD, 1997, p. 59-60).
Para Freud, o homem civilizado tem uma vida sexual prejudicada que aparenta
acompanhar o mesmo processo de involução que parece ocorrer na função dos dentes e
cabelos (FREUD, 1997, p. 61). Segundo o autor, a desintegração, em conseqüência de
uma mútua hostilidade primária entre os homens, ameaça permanentemente a sociedade
civilizada. Assim, o autor aponta que a civilização se utiliza de esforços supremos
destinados a manter sob controle, por meio de “formações psíquicas reativas”, as
manifestações dos instintos humanos agressivos. Entrariam para a gama destes
mecanismos os métodos empregados para estimular nas pessoas “identificações e
relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade”, em virtude das restrições que
circundam a vida sexual. Ao “mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo”
ele diz que carrega em si uma contradição fundamental, que nada mais iria “tão
fortemente contra a natureza original do homem” (FREUD, 1997, p. 68-9).
Ainda de acordo com Freud (1997), o significado do desenvolvimento da
civilização deve representar a luta entre Eros e Thanatos, ou seja, o instinto de vida e o
instinto de destruição, que dividem entre si o domínio do mundo. O autor enuncia um
dilema crucial da espécie humana, cuja questão fatídica situa-se na relação de
dominação por parte de seu desenvolvimento cultural sobre os seus instintos de
agressão e autodestruição, ainda mais, tendo os homens adquirido um tamanho controle
sobre as forças da natureza que poderiam chegar ao extermínio mútuo. Para Freud, a
80
ampla medida da infelicidade, autoinquietação e ansiedade humanas decorrem desta
condição.
A luta entre Eros e Thanatos trabalhada por Sigmund Freud em O mal-estar na
civilização muda de perspectiva com as idéias reichianas, as quais assinalam a
possibilidade de harmonia na kultur, contrariando as conclusões do mestre
(ALBERTINI, 2003). No entanto, do ponto de vista de Reich, o problema da neurose
não é intrínseco ao homem ou à vida civilizada, diferentemente de como afirma Freud,
pois sua gênese está em condições sociais patogênicas (REICH, 2003, 2004a;
ALBERTINI, 1994, 2003):
os “impulsos destrutivos incontroláveis” aos quais se atribui a
responsabilidade pelo sofrimento do homem não são determinados
biologicamente, e, sim, sociologicamente; que a inibição da
sexualidade pela educação autoritária transforma a agressão numa
exigência incontrolável, isto é, que a energia sexual inibida se
converte em destrutividade. E os aspectos da nossa vida cultural que
parecem ser autodestrutivos não são manifestações de “pulsões de
auto-aniquilamento”; são manifestações de intenções destrutivas
muito verdadeiras de uma sociedade autoritária, interessada na
supressão da sexualidade (REICH, 2004a, p. 264).
Este pensador tentava integrar a dimensão psicológica à dimensão social, que sob
a modernidade são dissolvidas e dissociadas no ritmo desenfreado e incontrolável da
vida. Relacionando a instância subjetiva, que também é expressa através do corpo, ao
costume social extremamente repressivo, Reich percebe que as posturas e a expressão
corporal dos trabalhadores atendidos por ele nos hospitais psiquiátricos de massa,
revelavam a disciplinarização dos corpos e a obediência neles encarnada; esta última,
conseqüência de um processo de socialização que remete o indivíduo à submissão a
uma estrutura autoritária, da qual o primeiro agente é a família tradicional. Nesse
sentido, pontua Albertini que, para Reich, “o problema, não está no próprio homem ou
81
na relação dele com a civilização, mas vem de fora, a partir de determinadas condições
sociais patogênicas” (ALBERTINI, 1994, p. 42).
A crítica de Herbert Marcuse (1999) a Freud está em afinidade com a perspectiva
reichana
44
. Para ele, a desigualdade e a dominação características da sociedade de
classes seriam aspectos fundamentais para compreender a vitória do princípio de
realidade sobre o princípio do prazer aludida por Freud, pois se deu através da
reprodução social da desigualdade e da dominação por parte de determinados
indivíduos, classes ou grupos sociais sobre outros. A versão contemporânea do
princípio de realidade poderia ser expressa sob o princípio do rendimento voltado para o
consumo: “produzir para consumir, consumir para produzir; sentir-se culpado,
humilhado, diminuído quando não se produz o que e como a sociedade estipula, e
quando não se consome o quanto, o que e como a sociedade estipula” (CHAUÍ, 1991, p.
157). Assim, diante da crescente dependência da sociedade moderna industrial da
produção e consumo do supérfluo, Marcuse acentua:
Da necessidade histórica do princípio de desempenho e da sua
perpetuação, para além da necessidade histórica, não se segue que
seja impossível outra forma de civilização, sob outro princípio de
realidade. Na teoria de Freud, a liberdade contra a repressão é uma
questão do inconsciente, do passado sub-histórico e até sub-humano,
dos processos biológicos e mentais primordiais; por conseqüência, a
idéia de um princípio de realidade não-repressivo é uma questão de
retrocesso. Que tal princípio pudesse converter-se numa realidade
histórica, uma questão de desenvolvimento consciente, que as
imagens da fantasia pudessem referir-se a um futuro inconquistado da
humanidade, em vez do seu (pessimamente) conquistado passado
tudo isso, parece a Freud, na melhor das hipóteses, uma bela utopia
(MARCUSE, 1999, p. 137).
44
Foi com a influência de Marcuse e sua produção intelectual freudo-marxista sobre os movimentos de
extrema esquerda, em meados dos anos 1960, que “desencadeou uma forte onda de interesse em relação
ao ‘marxismo-freudiano’, especialmente na França e na Alemanha. Com sua revivificação, o nome de
Reich ficou novamente em evidência na Europa de forma inesperada” (BOADELLA, 1985, p. 94).
82
Tanto Reich como Marcuse nos oferecem interpretações em que o princípio de
realidade, que, segundo Freud, caracterizou o desenvolvimento da nossa civilização
ocidental, não conserva o determinismo trágico postulado por este autor, pois o instinto
de morte (Thanatos) não constitui um dado biológico. E, mesmo Freud, nas últimas
frases de O mal-estar na civilização, parece reanimar Eros com um sopro de vida
poeticamente mítico na luta contra Thanatos, ao dizer que: “Agora nos resta esperar
que o outro dos dois ‘Poderes Celeste’, o eterno Eros, desdobre suas forças para se
afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que
sucesso e com que resultado?” (FREUD, 1997, p. 112).
O referencial marxista
No final da década de 1920 e meados da década seguinte, Wilhelm Reich tem no
marxismo um importante referencial para formular sua crítica social orientada para um
projeto de sociedade. Para ele, a sociedade deve ser regida pela realização plena da vida
e, portanto, emancipada, tanto da moral sexual repressiva como das condições materiais
e espirituais de dominação e poder que levam à situação de extrema desigualdade social.
Como aponta Albertini, a crescente aproximação de Reich do marxismo, no final da
década de 1920, era acrescida de uma prática clínica que tinha como prioridade o
objetivo de profilaxia das neuroses, indispensável à constituição dessa nova sociedade
(ALBERTINI, 1994, p. 40).
Reich considerava o homem, além de objeto das suas próprias necessidades e da
organização social que regula a satisfação das mesmas, sujeito da sua história e do
processo social. Com base em Marx, ele entende que as condições econômicas e
83
culturais determinam o conteúdo da ão humana e os seus resultados. A sociedade de
classes, caracterizada pela apropriação dos meios de produção por uma classe, e pela
venda da força de trabalho por outra, instala uma ordem de desigualdade e dominação
que se reproduz nos homens uma vez que esta modela suas estruturas psíquicas:
E na medida em que [a desigualdade e a dominação modelam a
estrutura psíquica dos homens, se reproduzindo através deles] pela
utilização e transformação do aparelho pulsional, que é governado
pelas necessidades da libido, também se ancora afetivamente nele. O
primeiro e mais importante órgão de reprodução da ordem social,
desde os primórdios da propriedade privada dos meios de produção,
está na família patriarcal, que incute em seus filhos a base
caracteriológica necessária à ulterior influência da ordem autoritária
(REICH, 2004a, p. 05, colchetes meus, grifo do autor).
Reich (2004a) assinala que a formação do caráter está relacionada à situação
histórico-econômica da estrutura social. Com as transformações da estrutura social,
também se configuram alterações na estrutura caracteriológica. Operando o mesmo
registro, Reich ressalta que “as ideologias de uma sociedade podem se tornar uma força
material apenas com a condição de que mudem realmente as estruturas de caráter do
povo” (REICH, 2004a, p. 07). A ideologia correspondente à uma situação sociológica
que permanece fixada na estrutura mesma dos instintos, configurando modos de reação
automáticos, cronificados, para os quais a energia libidinal converge, emperrando a
adaptação rápida às revoluções econômicas.
O embrutecimento da sensibilidade humana e a incessante criação de novas
necessidades radicalizam a sobreposição do ter ao ser: “[...] todos os sentidos físicos e
intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos os sentidos, pelo sentido
do ter. O ser humano viu-se forçado a reduzir-se a essa total miséria a fim de produzir
toda a riqueza interior” (MARX, 2001, p. 142).
84
A teoria da alienação demonstrara a não-realização do homem ao desempenhar
seu trabalho, o fato de sua vida ter se tornado ela própria um instrumento de trabalho e
de os produtos correspondentes a este terem assumido forma e poder independentes do
trabalhador enquanto indivíduo (MARCUSE, 1978, p. 103). De acordo com Marx:
[A própria alienação] não se revela apenas no fato de que os meus
meios de vida pertencem a outro, de que os meus desejos são a posse
inatingível de outro, mas de que tudo é algo diferente de si mesmo,
de que a minha atividade é qualquer outra coisa e que, por fim e é
também o caso para o capitalista –, um poder inumano impera sobre
tudo (MARX, 2001, p. 157, colchetes meus, grifos do autor).
Com isto Reich enuncia a importância de se compreender o método de análise do
caráter dos seus pacientes, que as investigações conduzidas sobre essa problemática
podem desvendar elementos essenciais relacionados ao ritmo das mudanças que sofrem
as ideologias revolucionárias, o qual é mais lento do que o ritmo da base
socioeconômica. A formulação deste problema da duração do tempo respectivo a cada
ordem de mudanças parece muito próxima daquela colocada por Fernand Braudel
(1989), para quem as mudanças na esfera das mentalidades ocorrem num ritmo muito
mais lento do que as abruptas transformações fomentadas na esfera da base produtiva.
[...] quanto mais perto se encontra a possibilidade real de emancipar o
indivíduo das restrições outrora justificadas pela escassez e
imaturidade, tanto maior é a necessidade de manutenção e
dinamização dessas restrições, para que a ordem estabelecida de
dominação não se dissolva. A civilização tem de se defender de um
mundo que possa ser livre. Se a sociedade não pode usar a sua
crescente produtividade para reduzir a repressão (pois tal uso
subverteria a hierarquia do status quo), então a produtividade deve
ser voltada contra os indivíduos; torna-se um instrumento de controle
universal (MARCUSE, 1978, p. 94).
85
Na atualização que Mészáros realiza sobre o pensamento marxista, o escape deste
sistema a um grau significativo de controle humano está posto no fato de ser ele oriundo
de um processo histórico no qual se constitui como uma poderosa “estrutura
‘totalizadora’ de controle”, de longe a mais poderosa até o presente. Sob a sentença de
provar sua viabilidade produtiva ou perecer, na opinião do autor, os seres humanos são
levados a ajustar-se a ela (MÉSZÁROS, 2002, p. 96).
Com vistas à constituição de uma sociedade emancipada, orientada pelo princípio
do prazer, o qual configuraria uma situação de bem-estar na civilização (ALBERTINI,
2003), Reich observa a importância de “um conhecimento exato dos mecanismos que
fazem a ligação entre a situação econômica, a vida pulsional, a formação do caráter e a
ideologia” (REICH, 2004a, p. 08), pois tornaria possível o estabelecimento de medidas
práticas principalmente no campo da educação, mas também na maneira de influenciar
as massas.
Ao conceber uma articulação visceral entre a esfera privada e a esfera
pública, o projeto revolucionário reichiano em nenhum momento
perde de vista a luta pela transformação social (ALBERTINI, 1994,
p. 46).
Antes de chegarmos ao papel da educação na mudança social, vejamos o diálogo
de Reich com a Antropologia e com as Ciências Naturais.
A influência do pensamento antropológico
Uma discussão efervescente entre Psicanálise e Antropologia ocorreu justamente
em torno da validade do complexo de Édipo enquanto núcleo psico-afetivo universal da
humanidade (MICELA, 1984). A contestação da universalidade da estrutura edipiana
86
foi colocada, na década de 1920, pelo antropólogo Bronislaw Malinowski ao constatar
que a ordem sócio-familiar das sociedades nativas das ilhas Trobriand se organizava em
torno da matrilinaridade e, embora apresentasse interditos como o incesto, não submetia
seus membros às regras inibidoras típicas das sociedades patrilineares, estas
exemplificadas por Malinowski pelos países anglo-saxãos:
Se nestas (sociedades patrilineares) a criança é submetida ao direito
paterno inibidor dos impulsos naturais, na criança trobriandense
subsiste uma harmonia entre o seu desenvolvimento, suas inclinações
naturais e a organização social. O Édipo, na criança trobriandense,
nasceria muito mais tarde, no momento em que é submetida às
normas e às proibições internas à sua sociedade. (...) A não-
veracidade do postulado psicanalítico é demonstrada - afirma
Malinowski - pelo fato de que se verificam variações nas figuras
sociais do complexo, a depender dos contextos familiares: não mais a
mãe, e sim a irmã como objeto sexual; não mais o pai, mas o tio
materno como portator de imperativos sociais coercitivos (MICELA,
1984, p. 29-30, parêntesis meus).
Rosária Micela assinala que uma das respostas elaboradas pelos adeptos da
psicanálise como reação às conclusões de Malinowski vem de Ernest Jones, para quem
as sociedades matrilineares representam um estágio anterior da evolução histórica da
humanidade e, portanto, desconheceriam o papel paterno na formação do núcleo
familiar. Essas sociedades matrilineares se constituiriam em efetivos sistemas de defesa
contra o desenvolvimento das disposições edipianas que, no entanto, manteriam sua
estrutura e se deslocariam para os sujeitos então envolvidos nesse núcleo psico-afetivo,
como por exemplo, ao tio materno (MICELA, 1984, p. 30).
Wilhelm Reich (s/d) no texto A irrupção da moral sexual repressiva, publicado
em 1932, se baseia em Malinowski para desenvolver a idéia de que a estrutura psíquica
edipiana não é válida para todas as organizações sociais, pois elas podem variar de
87
acordo com os diferentes modos como as sociedades se organizam. Assim, ele destaca o
caráter histórico e particular de ambas (estrutura psíquica e organização social), em
contraposição às formulações que postulam o caráter das mesmas como a-histórico e
universal.
Com base no funcionalismo de Bronislaw Malinowski, que a sociedade como
uma totalidade integrada, Reich encontra uma corroboração para a sua crítica à
educação sexual repressiva transmitida por pais e educadores contemporâneos, seja no
interior da família ou de instituições, como a escola ou a Igreja, os quais pregam uma
atitude negativa diante das manifestações da vida sexual inibindo as condições
favoráveis para sua satisfação.
É importante sinalizar que este trabalho é elaborado no esteio da crítica social do
materialismo histórico dialético e, portanto, tem uma preocupação nuclear com a
instituição da moral sexual burguesa (repressiva) indissociada da instituição da
propriedade privada. Neste texto Reich dialoga também com o paradigma evolucionista,
de modo que teóricos como Lews Morgan e Friedrich Engels lhes fornecem elementos
teóricos norteadores da problemática sobre a origem da família nuclear burguesa, da
propriedade privada e da moral sexual repressiva.
Pautado pelos estudos de Malinowski, Reich conclui que através da instituição do
casamento e do dote (serviços e bens materiais concedidos pela família da noiva ao
marido), tal como ocorre na sociedade trobriandesa, se colocam as pré-condições para a
constituição de uma sociedade de classes fundada no poder de uma classe dirigente e na
propriedade privada: “o atributo dotal, tal como surge entre os trobriandeses, representa
a primeira relação de produção embrionária que conduz à formação de classes e à
criação de uma moral anti-sexual” (REICH, s/d, p. 101). Assim, o processo de
transformação do poder nessas sociedades funda na hierarquia de papéis (o poder é
88
transferido da mulher para o homem) e na instauração da recusa da sexualidade livre
através dos laços de casamento (este o momento em que se a integralização dos
direitos na vida social) (REICH, s/d, p. 54), uma notável contradição entre a vida adulta
e a vida infantil nestas sociedades.
Antes da vida adulta, a dinâmica da vida das crianças ou dos jovens (homens e
mulheres) trobriandeses é marcada pela integração entre as livres manifestações da vida
sexual e todos demais fenômenos da vida social, ambos inseridos numa totalidade na
qual Natureza e Cultura não se antagonizam, ou seja, a dimensão sexual da vida destas
crianças e destes jovens é fundida nos ritmos da vida em sua totalidade.
A infância da criança trobriandesa é caracterizada pela liberdade e independência
na experimentação de suas expressões sexuais por meio de jogos e divertimentos
sexuais, as quais são encaradas com naturalidade pelos adultos, além disso, a criança
aprende com a sexualidade tratada de maneira amorosa entre eles (REICH, s/d, p. 04-
12). As crianças e os jovens não são repreendidos, pois não existe uma moral que negue
ou reprima sua sexualidade (excetuando-se o pequeno círculo para o qual é instituída a
proibição do incesto, é o caso de primos cruzados designados ao casamento). De modo
geral, o comportamento dos pais em relação aos filhos não dispõe de “tonalidade
autoritária” (REICH, s/d, p. 09):
Na sociedade patriarcal (feudal e burguesa), a repressão autoritária da
criança serve à criação de uma estrutura adequada do ser submisso,
integrado, à organização da sociedade, que se reproduz sem cessar
nas próprias estruturas infantis. (...) E da mesma maneira que na
sociedade fundada sobre a economia privada a repressão sexual se
torna a base da inibição psíquica, na sociedade matriarcal comunista a
liberdade sexual torna-se o fundamento da liberdade de caráter, que
garante precisamente um laço social bem fundado, no plano libidinal,
entre os membros da sociedade (REICH, s/d, p. 11).
89
A coletividade social trobriandesa tem uma atitude positiva e de respeito à
sexualidade dos jovens ocupando-se inclusive de “preparar os lugares de encontro”
(REICH, s/d, p. 16), sendo que os casais de jovens relacionam-se mediante a paixão e o
desejo de permanecerem juntos e somente enquanto estes perdurarem.
Reich também assinala a contribuição de outras etnografias para pensar a
educação sexual de crianças, adolescentes e jovens (REICH, s/d, p. 28-29): em alguns
grupos africanos, homens e mulheres são iniciados na puberdade pela transmissão oral
de conhecimentos associados à sexualidade, estabelecendo uma relação autêntica de
partilha de saberes associados ao corpo (face-a-face, de geração para geração). Não
aqui, segundo ele, uma separação entre cultura e natureza, tal como ocorre nas formas
duais que operam a condição do homem no mundo moderno.
Esses conhecimentos oriundos do pensamento antropológico ressoam no projeto
político-social de Reich que, em última instância, visa à eliminação da contradição entre
a vida sexual e as demais dimensões da vida social. Portanto, ele pensa natureza e
cultura como dimensões integradas.
As Ciências Naturais e o impulso vital
Desde o início da formação acadêmica de Reich, as Ciências Naturais exercem
forte influência nos processos de seu pensamento. Mas o interesse por desvendar os
mistérios da natureza se colocava desde sua infância vivida no campo, “perto da
natureza” (REICH, 1996, p. 20). As idéias do filósofo Henri Bergson influenciaram
Reich na busca por entender esses mistérios. Estudadas com veemência por Reich
durante os anos de sua formação na Faculdade de Medicina de Viena, idéias como as de
90
um “impulso vital” que presumia uma força criadora que regia os processos da vida; de
liberdade, espontaneidade, movimento e autocriação constante; de percepção da
subjetividade através da compreensão hermenêutica dos movimentos do corpo,
retomaram sua força nas pesquisas que ele desenvolveu exaustivamente cerca de uma
década mais tarde em sobre a energia orgone (ALBERTINI, 1994; DADOUN, 1991).
Albertini aponta também outros pontos de confluência entre o pensamento de Reich e
Bergson, como por exemplo, “a utilização de um conceito de couraça com o mesmo
significado básico” e “o entendimento de que o profundo é simples e o complicado é
superficial” (ALBERTINI, 1994, p. 92).
Por energia orgone, Reich denomina a energia cósmica presente em todo o
universo. Esta energia, segundo ele, permearia tudo o que tem vida e atuaria no
equilíbrio de um organismo quando este não oferecesse bloqueios (encouraçamento) ao
seu livre curso. Nos anos em que desenvolve seus estudos orgonômicos, Reich entra
mais no campo da Biologia (e também da Física), com a finalidade de corroborar
empiricamente (através de experimentos laboratoriais), à maneira de um cientista
natural, suas idéias acerca da vida e sua característica pulsante (ser regida pelos
princípios de expansão e contração que, de modo análogo, atuariam nos ritmos do
universo), acerca da etiologia das doenças, de seu tratamento e de medidas profiláticas
(REICH, 1999; 2003; 2004b). No entanto, a hipótese de um princípio energético
existia no pensamento reichiano desde o início, quando o conceito freudiano de libido
lhe forneceu um ponto de partida substancial, como evidencia Ilse Ollendorff
(ALBERTINI, 1994, p. 38) - seu primeiro artigo científico “Os conceitos de pulsão e
libido, de Forel a Jung”
45
, escrito em 1919 e publicado em 1922, tem o conceito de
energia como objeto de estudo.
45
Este artigo foi apresentado por Reich ao Seminário de Sexologia, no verão de 1919. Suas interpretações
propiciaram grande satisfação aos membros do Seminário, chegando mesmo a ser eleito coordenador do
91
Todavia Wilhelm Reich (2004a) critica os desdobramentos que o conceito de
libido recebeu no interior do referencial teórico psicanalítico a partir dos anos 1920,
pois a libido teria passado de energia sexual a uma figura retórica, ou seja, a um
constructo teórico descolado do aporte orgânico do indivíduo e situado na figura de um
ego abstrato psicologicamente bem elaborado:
Focalizando a fase inicial de sua produção científica ligada ao
movimento psicanalítico, constata-se que Reich utiliza a concepção
freudiana de libido enfatizando prioritariamente dois aspectos: o seu
possível substrato orgânico e a possibilidade, dependente do
desenvolvimento científico, de estabelecer uma medida quantitativa
da mesma. Pode-se observar daí que tanto a preocupação quantitativa
quanto a busca da base orgânica da libido caminham juntas na
direção de uma concepção de energia sexual como algo real e não
apenas como um constructo teórico necessário para a elaboração de
uma teoria (ALBERTINI, 1994, p. 38).
A pesquisa desenvolvida por Reich no estudo dos chamados bions
46
em seu
laboratório, levou-o à observação de uma forma de energia presente tanto em formas
vivas como em não vivas, que não consistia em bioeletricidade nem em bioenergia,
grupo por um período. Neste ensaio, Reich distingue que, nos autores pré-freudianos, o conceito de libido
era identificado com o desejo sexual consciente, passando a ser entendido por Freud como a energia da
pulsão sexual. O autor ainda aplicou em sua exposição uma “analogia da energia elétrica como processo
objetivo fundamental responsável pelas experiências subjetivas de, por exemplo, luz e choque”
(BOADELLA, 1985, p. 16).
46
Estruturas menores que as células dos tecidos animais e vegetais, que em processo de putrefação “ainda
preservam a organização energética com os fenômenos de pulsação” (CALEGARI, 2001, p. 14). Seu
desenvolvimento é constante na natureza e representa as fases de transição entre substância não-viva e
substância viva pela desintegração de matéria orgânica e inorgânica”, um processo reproduzível
experimentalmente (REICH, 2001, p. XXXIII). Munido de um microscópio que permitia aumentos de até
5625 vezes, Reich percebeu que nas plantas - erva ou feno - deixadas por um longo tempo na água, as
células superficiais se inflavam e se desintegravam em vesículas que flutuavam livremente, rolando,
rodando, pulsando. A partir de um aumento desta imagem em 3000 vezes, Reich constatou que um ritmo
de expansão e contração caracterizava seus aspectos de motilidade e vivência, e batizou essas vesículas de
bions (DADOUN, 1991, p. 61). O surpreendente para ele foi que, mesmo num ambiente experimental
esterilizado a 1500 °C, os bions continuavam aparecendo, o que demonstra que eles provinham da
desintegração da própria matéria e não de uma contaminação exterior a ela. O bion seria então um
quantum de energia proveniente da matéria, uma transição do não vivo ao vivente, na qual ele constatou o
desenvolvimento de seres unicelulares (protozoários) a partir da desagregação vesicular da matéria. Em
1937, Reich descobriu corpúsculos 20 vezes menores que os bions, provenientes da desintegração
inerente à putrefação das proteínas, e os denominou bions PA, e denominou “bacilos T”, T de Tod
(morte), corpúsculos letais quando injetados em grandes doses em ratos. Reich associa esses últimos à
produção de células cancerosas (DADOUN, 1991, p. 60-71).
92
portanto, e cuja atuação seria capaz de produzir efeitos distintos nos diferentes
materiais. Assim, passou a entendê-la como uma energia cósmica que precedia a
matéria viva (CALEGARI, 2001; DADOUN, 1991).
Ao escrever Cancer Biopaty, com referência no trabalho desenvolvido com
pacientes, Reich lida com as ligações profundas entre a energia e a gênese da doença.
Tais ligações receberão uma compreensão mais complexa na medida em que ele toma
contato com o estado DOR da energia
47
e com os processos de organização e
desorganização da matéria. O conceito de energia orgone como uma energia cósmica
constituiu a base dos estudos posteriores de Reich, que passou a compreender o
funcionamento da atmosfera, dos desertos, das biopatias, da sociedade etc., centrado
nele:
A energia orgone, ou abreviadamente energia OR, é anterior à
formação da matéria, é sua criadora. Ela permeia tudo estabelecendo
relações específicas com as várias formas de matéria e com as demais
formas energéticas. Tem um funcionamento antientrópico, ou seja,
promove um fluxo energético do potencial mais baixo em direção ao
mais alto, acentuando assim as diferenças, criando desigualdades e
individualidades energéticas, seja na formação da matéria, de astros e
galáxias ou da própria vida. A energia orgone é criativa!
(CALEGARI, 2001, p. 16).
A pulsação em movimentos de contração e expansão é a característica básica da
energia orgone. Em relação aos conceitos trabalhados em Análise do caráter, Reich faz
algumas considerações dos progressos alcançados em suas pesquisas quando escreve o
“Prefácio à terceira edição”, em 1948. Apesar de a esta altura não desenvolver mais o
método de análise do caráter descrito neste livro, considera tal análise inteiramente
47
A energia DOR é uma forma de energia estagnada que se decompõe no organismo e em nossa
atmosfera. Trata-se da energia orgone mortal, à qual, na década de 1950, Reich se refere aludindo ao
conceito de instinto de morte ou Thanatos formulado por Freud, porém abordando-o fisicamente enquanto
uma energia mensurável, quantitativa (DADOUN, 1991, p. 173-176).
93
válida no domínio onde teve sua origem e ao qual ainda pertence, a psicologia das
profundidades. O “‘caráter’ tornou-se um conceito que significa conduta biofísica típica.
Cada vez mais as ‘emoções’ ganhavam o significado de manifestações de uma
bioenergia tangível, da energia orgone” (REICH, 2004a, p. 10, grifos do autor). A
prática terapêutica foi sendo orientada pela orgonoterapia médica, cujos procedimentos
eram realizados bioenergeticamente e não mais psicologicamente. No entanto, Reich
ainda colocava em uso o método analítico do caráter em determinadas situações,
quando, partindo das atitudes do caráter, buscava as dimensões mais recônditas da
experiência humana.
Para Reich (2003), a própria percepção constitui uma expressão da energia orgone,
pois o motor primário de todas as funções internas do ser vivo é, exatamente, a pulsação
energética. O movimento é uma espécie de segredo da vida, de modo que a matéria viva
percebe a si própria em seu movimento pulsante: a percepção dos movimentos internos
estão na base das emoções, dos sentimentos, das sensações e dos pensamentos (REICH,
2003). A vivência psíquica, nesta perspectiva, desenvolve-se a partir da função primária
da percepção, ao passo que a vivência corporal provém da pulsação plasmática. Reich
associa as emoções ao movimento plasmático (REICH, 2003, p. 93). Voltaremos a esta
questão no próximo capítulo.
Na concepção de Reich (2003), a sensação é uma função, exerce a função de uma
membrana que delimita o sistema vivo em relação ao oceano de orgone pelo qual está
circundado, separando-os. A comunicação entre o ser vivo e todos os outros sistemas
imbuídos de energia orgone realiza-se, assim, através desta membrana (REICH, 2003, p.
87).
Ola Raknes distingue, acerca da pulsação biológica, três “pré-requisitos para um
livre metabolismo energético” (RAKNES, 1988, p. 120):
94
1) a possibilidade de o organismo absorver livremente a energia da
qual precisa através da nutrição, da respiração e do fornecimento de
orgônio; 2) a possibilidade de a energia circular livremente pelo
corpo, de forma a estar sempre presente onde se necessita dela e 3) a
possibilidade de o organismo, a cada vez e através de movimentos
adequados, encontrar saída para a energia absorvida (RAKNES,
1988, p. 120).
O livre metabolismo energético é um pressuposto fundamental e um princípio de
saúde em orgonomia, pois ocorrem interferências na pulsação biológica natural quando
um movimento natural espontâneo é interrompido. Reich denomina biopatias as
doenças que, segundo ele, são provenientes dos distúrbios dessa função básica do
processo vital, a pulsação biológica. Arrolou, num primeiro momento as neuroses e as
psicoses, às quais agregou também outras doenças “como o ncer, distúrbios
cardiovasculares, epilepsia, esclerose múltipla, dança-de-São-Vito, anemia - pelo menos
algumas espécies de anemia -, alcoolismo crônico”, etc. (RAKNES, 1988, p. 123).
Na perspectiva reichiana, a solução desses problemas e os desafios da prevenção
das biopatias e das doenças nervosas cabem não apenas à medicina contemporânea, mas
estendem-se à educação das crianças, portanto, aos pais e educadores, e ainda à política
social.
Wilhelm Reich e o campo da Educação
Primeiramente, para compreender como Wilhelm Reich concebia a transformação
dos homens e do mundo, temos que considerar que em sua visão pensamento e ação
ocorriam juntos, não como dois campos de reflexão separados, como ocorre com o
pensamento disjuntivo, inclusive, o modelo biomédico. O campo da pesquisa e o campo
95
da prática terapêutica deveriam se articular na difícil tarefa pedagógica da
transformação social.
O conceito de projeto político, oriundo de Cornelius Castoriádis
(CASTORIADIS, 1986) pode nos ajudar a compreender a proposta social de Reich para
a sociedade:
(...)[o projeto político é ] o elemento da práxis (e de toda a atividade).
É uma práxis determinada, considerada em suas ligações com o real,
na definição concretizada de seus objetivos, na especificação de suas
mediações. É a intenção de uma transformação do real, guiada por
uma representação do sentido desta transformação, levando em
consideração as condições reais e animando a atividade
(CASTORIADIS, 1986, p. 97).
Tomando como ponto de partida que Reich já tinha realizado a crítica à sociedade
capitalista, a crítica ao comunismo e ao socialismo como projetos universalizantes que
não conseguiram resolver as contradições sociais, o projeto político proposto por ele
tinha como dimensão fundamental operar através das condições sociais geradoras de
uma ação pedagógica voltada à defesa do direito à sexualidade e à autonomia dos
sujeitos.
A concepção de sociedade que orientava sua pesquisa era pautada pelo
desenvolvimento de relações abertas, amorosas, onde o corpo seria construído
conjuntamente com a sexualidade, como sua profunda expressão do direito ao
reconhecimento da diferença, nessa alteridade em que sexo ocorreria com
responsabilidade, não apenas individual, mas social.
As preocupações de Wilhelm Reich no campo da educação delineariam um ponto
de convergência entre influências tipicamente freudianas, especialmente das duas
primeiras décadas do século XX e as influências do pensamento marxista, como
96
veremos abaixo reunidas sob a perspectiva de emancipação da moral sexual repressiva,
segundo um viés revolucionário.
No que tange ao primeiro conjunto de influências, Sara Quenzer Matthiesen
(2003; 2005) mostra como a utopia reichiana da possibilidade de profilaxia das neuroses
é alçada sobre reflexões freudianas dirigidas ao campo educacional, especialmente as
que tratam acerca da educação de educadores
48
:
e
stá evidente ao longo da obra reichiana, ora como uma possibilidade
de melhorar a realidade existente, buscando aquilo que Albertini
(1994) denominou como o “possível dentro do impossível”, ora como
uma possibilidade real de evitar - e não simplesmente minimizar - as
neuroses por meio de medidas preventivas, fazendo jus ao significado
dessa modalidade essencialmente médica (MATTHIESEN, 2003, p.
18).
A educação seria um campo privilegiado para desenvolver esse trabalho de
profilaxia, pois os elementos repressores poderiam ser afastados do desenvolvimento da
criança por meio de atitudes pedagógicas não tradicionais. Ou seja, observando e
respeitando seus interesses educacionais espontâneos, sua individualidade, suas
emoções (REICH, 1999; 2003; MATTHIESEN, 2005), relacionando-se com ela
enquanto alteridade e não enquanto um ser submetido a uma relação de dominação por
parte de um indivíduo que se pretende superior e mais forte (o adulto).
De acordo com Reich, para educar uma criança, basta saber ouvir a linguagem
expressiva da vida na espontaneidade de seus movimentos, de suas emoções, de seus
interesses e conduzi-la serena e autenticamente ao conhecimento de si mesma e do
mundo circundante (REICH, 1999; 2003). O educador seria o responsável pela
48
O tema da educação de educadores coloca a importância dos pais e educadores conhecerem suas
motivações e os seus conteúdos inconscientes que atuam no ato de educar (MATTHIESEN, 2003).
97
manutenção e potencialização dos elos de ligação entre o eu e o outro, a Natureza e a
Cultura, o mundo subjetivo e o mundo objetivo, o homem e o cosmos.
o segundo campo de influências, o marxismo, é expresso, dentre outras, na
perspectiva política de emancipação do aspecto social repressivo que atua no bloqueio
da libido e dos movimentos humanos espontâneos, e conseqüentemente, na formação da
couraça de caráter enquanto mecanismo de resistência a ele. A idéia de Reich é
proteger as crianças, sobretudo as recém-nascidas, dos processos que engendram o
encouraçamento que levam ao medo do amor e da vida, preservando nelas as suas
expressões naturais e espontâneas e a vivacidade de suas emoções (REICH, 1999; 2003;
MATTHIESEN, 2005).
O sujeito moderno: natureza e cultura
Vimos como fica muito difícil compreender um pensador como Wilhelm Reich
sem considerar que haja um diálogo ora mais ora menos explícito sobre o sujeito
moderno. Entre o individual e o social, opera uma ordem simbólica nas diferentes fases
que constituem essa Modernidade. A repressão que a sociedade exerce em nome de uma
moralidade rígida e autoritária atua sobre as necessidades e os desejos do indivíduo,
construindo mesmo uma subjetivação própria da modernidade que difere da
subjetivação de outros períodos históricos. Temos exemplos gritantes das desigualdades
sociais que Reich combatia: dúbia moral sexual, o sexo voltado exclusivamente à
procriação e apenas dentro do casamento para garantir, por um lado, a virgindade das
meninas e a prostituição por outro; o abuso sexual em situações desiguais (patrão -
empregada); a idéia de que o homem não pode chorar, nem demonstrar sentimentos
98
associados à feminilidade, ou pior, à fraqueza humana. O quadro social e cultural da
subjetividade moderna esbarra em dificuldades para superar a angústia e recuperar o
equilíbrio entre as forças internas e externas. O não acesso às informações, a tensão
entre homem e meio, indivíduo e sociedade, realidade subjetiva e realidade objetiva, se
complexificam quando observamos as inúmeras necessidades criadas e incutidas no
homem pela moderna sociedade capitalista através da produção e oferta de mercadorias
sedutoras, em substituição ou para disfarçar os seus desejos.
As necessidades naturais do homem e seus desejos instintuais são lidos como
simbolizações orientadas pela cultura à qual ele pertence. Tais necessidades formam
uma unidade bio-psico-social, o homem simboliza as influências do meio externo e as
incorpora, subjetivamente.
Na sociedade contemporânea, a mercadoria de consumo além de conter o duplo
caráter do trabalho assinalado por Marx (1985) - o trabalho humano concreto e o
trabalho abstrato realizado na sua produção - se manifesta como um “duplo” plenamente
constituído. Mas o que essa idéia expressa? O “duplo” é, por um lado, a mercadoria
representada em sua forma objetiva (física) e, por outro, sob a forma do “espírito”
humano nela investido, ou seja, os símbolos que orientam os valores socialmente
reconhecidos que, estão nela incorporados, dão vida espiritual à forma ordinária.
Não que esse duplo caráter enunciado aqui seja um aspecto novo, de modo algum.
Acontece que ele foi amplamente desenvolvido pela forma histórica capitalista ao longo
das suas reestruturações e transformações, sendo hoje manifesto de modo refinado,
senão plenamente acabado.
O mago contemporâneo do capitalismo é esse duplo caráter que, incorporado nas
mercadorias no processo de concepção, produção e mercantilização das mesmas por
meio de propagandas que as apresentam como se fossem imbuídas de vida e atributos
99
humanos, viaja mundo afora, por terra, água, ar e sistemas eletrônicos, enfeitiçando
almas humanas coisificadas. Apresentariam essas mercadorias também promessas
celestiais de salvação ao revelarem sua face divina ao homem encouraçado? Acredito
que esses símbolos tornam-se imperativos aos atributos humanos investidos nesse
universo inanimado das mercadorias (beleza, força, charme, inteligência, sensibilidade,
simpatia, jovialidade, sensualidade).
Mas o grande enlace dessas relações fantasmagóricas que se apresentam nas
mercadorias, que se fazem necessárias e acorrentam as pessoas, é que elas não se dão
num cosmos de forças transcendentais, distantes, inalcançáveis, mas se fixam
exatamente no chão sob o qual apoiamos nossos pés. Elas são essencialmente relações
humanas, sociais – relações entre classes sociais (MARX, 1985).
As mercadorias causam a impressão de terem sido geradas espontaneamente: quão
perfeitas se nos apresentam que nem parecem ter sido feitas por mãos humanas e
concebidas por mentes também humanas. Seus atributos parecem animá-las de uma
vitalidade mítica, que fazem delas a um tempo, portadoras privilegiadas do acesso à
satisfação e realização da vida humana e, conseqüentemente, porta-vozes das promessas
feitas, porém abortadas, pela moderna sociedade industrial. Como salienta Marx, “a
indústria ordinária, material [...] mostra-nos, sob a forma de objetos sensíveis,
alienados, úteis, sob a forma de alienação, as faculdades essenciais do homem
transformadas em objetos” (MARX, 2001, p. 145).
Com a fragmentação do mercado em produzir mercadorias destinadas a frações
diversas da população, considerando identidades, gostos e estilos de vida diferenciados,
é renovado o alcance e a capacidade de sedução das mercadorias. Chamamos de duplo
caráter da mercadoria essa dupla condição manifesta: a. no fato de ela ser coisa
transmutável em ser dotado de qualidades humanas, isto é, qualidades antropomórficas,
100
passível de assemelhar-se a um espelho da alma humana, como se ela mesma possuísse
as faculdades humanas essenciais; b. como se a mercadoria fosse capaz de engendrar
tais qualidades no homem reificado, cujas expressões, emoções e movimentos
espontâneos, autênticos e harmoniosos foram amordaçados pela couraça.
Sabemos todos que o processo de produção das mercadorias, largamente estudado
por Marx, se constitui por meio das relações sociais de produção. Gesta-se no processo
de coisificação dos homens e de humanização das mercadorias. Além de se apropriar da
força de trabalho, o capital se apropria também dos elementos constitutivos da
subjetividade humana para incorporá-los à mercadoria. Assim, o homem poderia
reconhecer-se duplamente nela enquanto homem e enquanto coisa.
Na medida em que a dinâmica de funcionamento da sociedade sob a égide do
capital humaniza o inanimado, ela coisifica os homens pelo embrutecimento de suas
potencialidades. Deste modo, estes últimos se reconhecem nas mercadorias, que
parecem ter sido feitas “à sua imagem e semelhança” (e, de fato o foram). Mas teriam
reparado que elas guardam um segredo mais fundamental a lhes revelar? Eles e suas
relações têm sido feitos, geração após geração, à imagem e semelhança do mundo
inanimado das mercadorias, que se tornou animado por possuir seus corpos e roubar
suas almas.
Difamações e exclusões
Nesta mesma forma de produção de subjetividade capitalista, vemos que os
homens não não são livres, como querem impedir que os outros o sejam. David
Boadella mostra como Reich foi um pensador injustiçado: a) por Freud, quanto à
101
divergência com este último sobre a profilaxia das neuroses e transformação social
(BOADELLA, 1985, p. 75-78; ALBERTINI, 1994; 2003; WAGNER, 1996; DADOUN,
1991); b) pelo pensamento alemão e pelo movimento psicanalítico mais amplo na
Alemanha, Suécia, Dinamarca, Noruega (BOADELLA, 1985, p. 85-89; 110-113;
WAGNER, 1996; DADOUN, 1991); c) pelas apropriações indevidas do seu
pensamento por Eric Fromm e Karen Horney (BOADELLA, 1985, p. 90-94); d) pelo
Partido Comunista que não reconheceu que na alteridade de Reich estava a força para a
mudança social e tentou enquadrá-lo com intolerância nos moldes de suas práticas
antagônicas à sua ideologia (ideologia comunista e atitudes anti-comunistas)
(BOADELLA, 1985, p. 89-90; ALBERTINI, 1994; WAGNER, 1996; DADOUN,
1991); e) pela imprensa jornalística norte-americana, como a conhecida difamação
engendrada por Mildred Edie Brady, pelas muitas investidas da Food Drogs
Administration que resultaram na coação a seus colaboradores, na queima de material
inédito de pesquisa acusando-o de charlatão perigoso, o que ressoou fortemente na
Europa (BOADELLA, 1985, p. 258-259).
Mesmo tendo desenvolvido importantes trabalhos na área de educação sexual
como uma ação pedagógica em seu sentido mais amplo, sempre através de um cunho
não moralista e não etnocêntrico; e, posteriormente, de ele ter estabelecido importantes
relações intelectuais e de amizade com A. S. Neill da Escola de SummerHill - cujo
trabalho educativo com crianças era guiado por uma abordagem não preconceituosa,
mas positiva em relação à vida e suas profundas expressões na criança - Reich foi
ridicularizado. Frases redundavam em todos os cantos sobre ele: “o rei do orgasmo”; “o
orgasmo como engodo para uma salvação unidimensional” (BOADELLA, 1985, p. 30);
difamações de que realizava pesquisas sobre pornografia ou fraudulenta sobre câncer
(BOADELLA, 1985, p. 263).
102
As experiências ORANUR
49
e a Clínica Meninger constituíram o foco das
acusações, distorções, que culminaram na sua prisão, na queima dos seus livros e,
finalmente, na sua morte (BOADELLA, 1985, p. 258-275). Penso que as dimensões que
assumiram esse escárnio contra ele, deveu-se ao fato de que ele não mobilizou apenas
forças divergentes, mas as forças do seu esquartejamento, oriundas mesmo do
inconsciente coletivo.
Depois de conduzir suas pesquisas levando adiante a lógica aristotélica
empiricista, naturalista e analítica, Reich parece ter feito um caminho de volta,
fundindo-o com a gica platônica e resgatando a idéia de que descobrir o kosmos no
mundo seria revelar o kosmos na própria alma” (TARNAS, 2003, p. 63). Assim, em
nome do racionalismo da Modernidade ele foi execrado como vários outros pensadores
que colocavam em causa o primado da lógica aristotélica sobre outras gicas de
conhecimento.
Como Hillmman (1992), penso que experiências que cravam feridas profundas,
abrem as portas para a atuação dos arquétipos e das incontroláveis forças oriundas do
inconsciente coletivo. Mas por outro lado, essas forças retornam e mobilizam com suas
imagens e ressonâncias o processo histórico de toda uma época, como os movimentos
libertários esquerdistas, feministas, dos anos 1960 e 1970 até hoje.
Veremos no próximo capítulo as estruturas corporais que se formam no homem
ocidental que vive numa modernidade de ritmo capitalista. A tipologia caracteriológica
registrada nos tipos de couraça que se desenvolvem no corpo humano como forma de
sobreviver aos ataques contra a integridade do corpo e da alma.
49
O projeto de radiação anti-nuclear orgônica, Oranur tinha o objetivo de saber se a energia orgone
poderia ser utilizada no tratamento de doenças provocadas por radiação. A experiência, feita em 1951,
que utilizou o elemento radiativo rádio fracassou, pois houve, apesar dos cuidados tomados,
contaminação dos pesquisadores envolvidos, que sofreram efeitos biológicos e psicológicos drásticos
(BOADELLA, 1985, p. 254-257).
103
Capítulo 3
O corpo no pensamento reichiano
Mas nas coletividades humanas de tipo tradicional, holista, reina
uma forma de identidade de substância entre o homem e o mundo,
uma convivência sem falhas em que os mesmos componentes
intervêm. O homem destas sociedades não é separado de seu corpo,
o mundo não é discernido do homem. É o individualismo e a cultura
erudita que introduzem a separaçã
o. (...)
Já no século XVI, nas
camadas eruditas da sociedade se inicia o corpo racional que
prefigura nas representações atuais, aquele que marca a fronteira de
um indivíduo ao centro, a clausura do sujeito. É um corpo polido,
moral, sem viscosidade (distante ao contato), limitado, reticente a
toda transformação eventual. Um corpo isolado, separado dos outros
em posição de exterioridade com o mundo, fechado sobre ele
mesmo.
50
Le Breton
Depois de ter realizado no primeiro capítulo desta Dissertação uma
contextualização histórico-cultural de Wilhelm Reich, lembrando como foi produzido
um pensador como ele; e no segundo, como ele foi desenvolvendo as primeiras
proposições psicanalíticas (das quais o pensamento dominante na psicanálise freudiana
foi se distanciando), influenciado pelo marxismo, pela Antropologia, pelas Ciências
Naturais e por uma perspectiva de ação pedagógica; veremos agora, neste capítulo,
50
LE BRETON, D. Antropologie du corps et modernité. Paris: Presses Universitaires de France, 1990, p.
29-32, parêntesis meus.
104
como Wilhelm Reich construiu sua concepção de corpo intrinsecamente relacionada à
sua compreensão da relação do homem com a natureza, com a sociedade e com o
cosmos.
A construção do corpo permeia as várias obras deste grande pensador, quando ele
vai realizando um trajeto intelectual que amplia e reparadigmatiza o conhecimento
sobre o homem, num grau crescente de complexidade, isto é, ele muda a compreensão
da natureza da realidade sobre o homem, oferecendo um conhecimento de outra
natureza para abarcá-lo.
Wilhelm Reich e o registro das continuidades
Nos escritos datados das décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950, fui orientada pelo
interesse cognitivo de não fixar-me unicamente na análise dos registros das rupturas que
diferenciariam uma fase de outra (a psicanalítica, a vegetoterapêutica, a orgonômica),
estudadas por outros autores (BOADELLA, 1992; CALEGARI, 2001; REGO, 2002;
ALBERTINI, 1994, 2002), mas, sim, pelos elementos de continuidade que iluminam a
compreensão da leitura hermenêutica que Wilhelm Reich faz do corpo, bem como a
noção do corpo e da alma estarem conectados ao cosmos.
Como um autor materialista, de um materialismo muito peculiar, um novo sentido
da abordagem de Reich sobre o corpo é pensá-lo como numa expansão horizontal, isto
é, o eu quebrando fronteiras na direção e na relação com o outro, com o social, o
político e depois, compreendendo-se parte do cosmos (NAVARRO, 1987a; 1987b).
Wilhelm Reich construiu um modelo de pensamento não linear: ele não constelava
seus símbolos nem para o alto, como faria um místico, nem para o baixo, como faria um
105
materialista (NAVARRO, 1987a; 1987b). Ele pensou o corpo como um fenômeno, a um
só tempo, contíguo e articuladamente, da natureza e da cultura, e apresentou uma
proposta de ação terapêutica sobre esse corpo, através de sua expansão. Para ele, o
corpo revela a condição de que somos microcosmo de macrocosmo, isto é, o corpo e
seus movimentos guardam analogia com os movimentos de contração e de expansão do
cosmos, com quem estamos em constante interação. Assim, no decorrer de toda sua
vida, a natureza da realidade e a natureza do conhecimento para abarcá-lo vão sendo
construídas através de planos de realidade mais sutis.
A formação de uma couraça
Wilhelm Reich define como função geral da formação do encouraçamento do
caráter e da musculatura, a busca do reequilíbrio do conflito entre o indivíduo e o
mundo sociocultural. As necessidades subjetivas do primeiro e as repressões que o
segundo exerce sobre elas, formam um processo patológico e estruturam corporalmente
defesas das angústias geradas a partir dessa tensão. Os problemas (distúrbios)
decorrentes desse processo manifestam-se nos mais variados âmbitos da vida: na
instauração de disritmias corporais; nas dificuldades enfrentadas na construção de
identidades nas relações entre o eu e o outro; no desempenho profissional insatisfatório;
no deslocamento do mundo e no vazio existencial perante ele. Em alguns indivíduos,
mesmo o intelecto pode assumir essa posição de guarda, na medida em que eles passam
a elaborar racionalizações de tal conflito, com notável astúcia, a fim de evitar que sejam
surpreendidos pelo ataque inesperado desses processos somato-simbólicos que os
adentram por inteiro.
106
O sujeito moderno produz histórias de vida pautadas pela racionalização, pela
demasiada preocupação com o trabalho, pela ausência de vínculos comunitários, pelas
marcas deixadas por uma educação autoritária que recebeu dos pais e outros
educadores, pela tensão de um mundo dinâmico que escapa ao seu controle e parece
deixá-lo à sombra de si mesmo.
As pessoas acabam sendo forçadas a viver uma vida dupla e fragmentada, mediada
menos pelas motivações mais profundas (essência para Reich), e mais por um tipo de
aparência segura face ao mundo. É a máscara. Aprendem desde cedo a mentir e a
dramatizar situações dissimuladas que tomam o lugar das verdadeiras emoções. Vivem
uma realidade contraditória, na qual perdem uma parte significativa da capacidade de
expressar suas emoções humanas (REICH, 1999, 2003, 2004a; BOADELLA, 1992).
Sob a couraça definham-se suas expressões vivas mais genuínas. Trata-se de um esforço
desenvolvido ao longo da vida para dominar com segurança emoções e sensações que
ameacem possuí-los ou desequilibrar o mundo que erigiram. Um esforço para não
enlouquecerem, para tornarem-se indivíduos aceitos e consoantes com seu meio. As
couraças servem para construírem-se no interior do modelo da pretensa normalidade
que encapsula as profundas forças vivas presentes, por exemplo, na alegria e no sorriso
espontâneo de uma criança.
Para além do modelo biomédico calcado numa visão materialista-naturalista do
homem, sobretudo por reduzi-lo a um corpo biológico ao qual se aplicariam
diagnósticos e medicamentos entendidos como universalmente válidos e apartá-lo, do
mesmo modo que aparta as doenças, dos contextos individuais e coletivos
(socioculturais) nos quais ocorrem os processos de adoecimento (OLIVEIRA, 1998;
2001), Wilhelm Reich constrói uma cosmovisão que o diferencia dos místicos, dos
próprios biomédicos e dos próprios psicanalistas. Ele propõe acessar a alma dos
107
pacientes através dos seus corpos, penetrando profundamente na estrutura muscular, e
depois neurovegetativa, desmontando-a e remontando-a, e com isso, refazendo a
história individual do homem na sua relação com o outro. Implícita nessa devolução do
homem a si mesmo, encontramos o outro que está presente nele. O corpo é também a
acolhida e a rejeição.
Através do trabalho corporal desenvolvido por Reich, a partir da segunda metade
da década de 1930, a vegetoterapia, desmonta-se uma construção muscular que impede
ou dificulta a relação do eu com o outro. Sob esta construção muscular o sistema
nervoso neuro-vegetativo se deformou e, assim, deformado, ele retroalimenta, como
num círculo vicioso, por analogia, o encolhimento do organismo como um todo. Tal
condição estreita as percepções sensoriais do indivíduo, que se torna cada vez mais
solitário, contudo, mais apto para realizar o pressuposto do sujeito produzido pela
Modernidade: competitivo, dissimulado, não cooperativo. Esse encolhimento do corpo
reflete-se também no estar apartado do universo circundante e redundará nas
elaborações intelectuais estreitas, favorecedoras do cartesianismo, esse modelo
disjuntivo. No caráter (como definimos anteriormente), temos uma co-ocorrência
entre a sociedade autoritária repressiva e a moral religiosa dominante, que produz
efeitos paralisadores sobre o corpo através do bloqueio do sistema nervoso e dos órgãos,
transformando o ser humano numa máquina: máquina de trabalhar, máquina que não
tem prazer, máquina que se fecha à alegria e ao sofrimento, enfim, um inumano, quando
não desumano. O sujeito moderno é também uma construção intelectual pautada num
modelo de pensamento excludente, como vimos na Introdução desta Dissertação. É
nessa busca pela decifração do outro que o autor desenvolveu suas pesquisas.
108
Psicopatologia e Sociologia da vida sexual (1927): o fundamento corporal das
neuroses
Embora este trabalho se baseie inteiramente na teoria sexual
de Freud e na sua teoria das neuroses, não posso, com certeza,
pretender que a concepção aqui exposta da dinâmica da terapia e
das suas tarefas tem lugar entre as concepções já admitidas pela
escola daquele psicanalista; esta concepção corresponde às minhas
próprias experiências clínicas. Contudo, a minha maneira de
entender o que significa a genitalidade e, em particular, o orgasmo
genital, para a teoria e a terapêutica das neuroses e dos caracteres
neuróticos é, creio eu, o prolongamento direto das teorias da
psicanálise e permite uma melhor aplicação da teoria das neuroses à
terapêutica.
51
Wilhelm Reich
Desde a década de 1920, Reich embasava-se numa noção de libido que confluía
com a noção de Freud, com a diferença de que esta noção encerrava para Reich não
apenas conteúdo sexual, mas também conteúdo energético (físico, quantitativo e
mensurável), cujos traços apresentavam-se bem delineados neste texto de 1927.
Lembremo-nos que é oriundo da própria influência psicanalítica sobre seu pensamento
o enfoque que conectava símbolo a energia (destruidora e transformadora), embora a
psicanálise freudiana tivesse se distanciando do mesmo.
Wilhelm Reich que entendia as atitudes mentais indissociáveis das manifestações
corporais, elaborava os problemas teóricos de Psicopatologia e Sociologia da vida
sexual (1977a, 1977b) a partir de questões terapêuticas e dados estatísticos que
emergiam do tratamento psicanalítico realizado com pacientes. Junto a estes, ele pôde
51
REICH, W. Psicopatologia e sociologia da vida sexual. Vol. 1. Porto: Escorpião, 1977a, p. 26.
109
relacionar causal e sistematicamente os processos de neurose aos problemas oriundos de
sua vida sexual conturbada, de modo que os movimentos de causa e efeito presentes
nesses processos se co-alimentavam. Apoiado em Freud, Reich afirma:
todo e qualquer sintoma neurótico e psicótico, por mais desprovido
de sentido que pareça, tem um conjunto significante que, por meio
dum conhecimento preciso do doente, pode ser completamente
integrado no conjunto de sua vida e, em segundo lugar, os sintomas
neuróticos provêm dum conflito entre as reivindicações instintuais
primitivas e as exigências morais que proíbem a satisfação (...)
aquilo que caracteriza a personalidade neurótica é o fato de o eu
moral não ter coragem para tolerar a satisfação dos instintos, não
sentindo também força para lhes proibir as reivindicações ou para
resolvê-los duma forma ou doutra; pois, para isso, haveria primeiro
que conhecer-lhe os impulsos e uma tal consciência ou se encontra
ausente ou incompleta (REICH, 1977a, p. 31-32, grifos meus).
Podemos supor que os sinais indiciários dessa problemática sexual decorrente
das repressões sociais e da conhecida divisão de papéis sexuais nas sociedades,
particularmente na Alemanha, como vimos, vai além daquilo que é reconhecido por
Freud como o recalcamento de uma pulsão sexual. Trata-se, na visão de Reich, não
apenas do recalcamento de uma pulsão sexual, mas da formação de mecanismos
corporais defensivos (estruturantes da couraça muscular) que bloqueiam o livre fluxo da
energia institual, que é a dimensão da natureza operando no ser humano amalgamada às
imposições da cultura (DURAND, 2002). No entanto, ainda que se busque conhecer
pela consciência as razões desse bloqueio (sentido latente do sintoma)
52
, ele poderá
ser eliminado quando a fonte de energia que o alimenta for suprimida. É no livro
52
Reich nos chama a atenção para distinguir três conjuntos de sinais significativos para construir a
hermenêutica das neuroses: a. o sentido psicológico (“as representações recalcadas, experiências, desejos,
satisfações, condutas de auto-punição, etc., que têm no sintoma uma expressão disfarçada”); b. o objetivo
(seus fins determinados estão sempre internamente relacionados às causas da neurose) e c. os seus
processos somáticos (REICH, 1977a, p. 97- 99).
110
Análise do Caráter que Reich vai desenvolver uma abordagem hermenêutica,
acompanhada de um trabalho técnico-terapêutico deste problema.
Em Psicopatologia e Sociologia da vida sexual (1977a, 1977b), sua compreensão
de libido é ao mesmo tempo a de uma energia psíquica e biológica, simultaneamente.
Desenvolvendo a idéia anteriormente expressa por Freud de que o problema das
neuroses atuais
53
encontraria uma solução via compreensão de sua forma orgânica, isto
é, como elas se instalavam no corpo, Reich considerou as questões sociais implicadas
nesse processo e chegou às seguintes concepções: a. o núcleo gerador da neurose é um
processo somático; b. a fonte de energia do sintoma desse pathos é aquilo que ele
chama de estase da libido, ou seja, um impedimento caracterizado por sua estagnação
em determinada área do corpo promove a perturbação da genitalidade; c. a cura só
poderá ocorrer quando este impedimento (estase libidinal) for modificado ou eliminado,
suprimindo-se pois o fundamento somático da doença, e a capacidade de unificar as
aspirações sexuais e culturais for alcançada. A construção do que seja uma neurose é
entendida como uma via de solução da energia sexual represada. Buscando
compreender mais fortemente a conexão existente entre corpo e psiquismo, ele afirma
que a libido acumulada no corpo (substrato somático) atua na formação da angústia e
dos sintomas neuróticos (seu correspondente psicológico e cultural), reforçando no
homem o instinto de destruição (com seus determinantes sociais).
Assim, Wilhelm Reich rompe, por um lado, com o dualismo cartesiano tão
presente no modelo biomédico de onde ele veio, e, por outro, com a fragmentação do
saber científico que lega o estudo de cada dimensão humana a um campo específico de
saberes epistemologicamente radicalizados. Ele o homem enquanto unidade, não
53
A neurose atual não é aquela que advém de conflitos infantis, mas dos conflitos atuais da incapacidade
para a realização do prazer sexual, sua etiologia não é psíquica e, sim, somática, pois seus sintomas
resultam da satisfação sexual inadequada ou ausente (estase libidinal) e o constituem expressões
simbólicas dos conflitos psíquicos.
111
como um agregado de compartimentos que se relacionam mecanicamente. Esta busca
por unidade, ele retém do Romantismo.
Parece que nesta concepção de homem, Reich antecipava uma concepção de
ciência que agora está sendo compreendida por vários pensadores: de que um efeito co-
alimenta uma causa e vice-versa, e que estará presente nos conceitos de recursividade
54
e de trajeto antropológico
55
desenvolvidos por Edgar Morin (2002) e Gilbert Durand
(2002), respectivamente. Pensar essa dupla relação como causa e efeito ao mesmo
tempo era inovador no contexto racionalista do início do século XX. Esse forte
pressuposto teórico que guiava suas pesquisas exige que Reich pense a função do
orgasmo como uma questão cada vez mais central à qual estão ligados problemas de
angústia, problemas sociais e conjugais.
Instinto de destruição, um dado irreversível?
Na esteira dessas idéias, Wilhelm Reich elabora a tese de que o instinto de
destruição/ódio tem origem social e, deste modo, ele contraria a tese de Freud, para
quem haveria um a priori biológico que, juntamente com o instinto de prazer/amor,
constituiria as duas forças ou tendências polares a reger o organismo e o psiquismo, de
54
De acordo com Edgar Morin, é o processo pelo qual aquilo que é produzido incide sobre seu produtor,
e tanto os produtos quanto os efeitos atuam como causas e efeitos: “os produtos e os efeitos gerados por
um processo recursivo são, ao mesmo tempo, co-causadores desse processo” (MORIN, 2002, p. 102).
Através do princípio de recursão os processos geradores e regeneradores são concebidos como círculos
produtivos ininterruptos, em que cada momento, componente ou instância do processo é simultaneamente
produto e produtor dos outros momentos. Isso quer dizer que uma civilização é vivente enquanto mantém
uma relação de feedback, em ida e volta, entre seus mitos fundadores e sua história, entre sua memória e
sua carne, sua respiração. Venha essa circulação a se interromper, e a estrutura se autonomiza, isto é,
corta-se desse círculo auto-regenerador e morre, privada das representações às quais se ligava” (PITTA,
2005, p.87).
55
Gilbert Durand define por trajeto antropológico “a incessante troca que existe no nível do imaginário
entre pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social”,
postulando, portanto, “que gênese recíproca que oscila do gesto pulsional ao meio material e social e
vice-versa” (DURAND, 2002, p. 41).
112
modo que, por ser natural, a atuação do instinto de morte ou destruição seria inevitável.
Reich, por sua vez, entende que essa atuação poderia ser amenizada ou neutralizada pela
satisfação sexual plena, pois seu desenvolvimento e intensidade estão associados à
possibilidade de construção de uma vida sexual satisfatória que faça frente à pressão
desempenhada pela energia represada no corpo. A função do orgasmo desempenharia,
de acordo com a hipótese defendida por Reich, o grande motor da problemática da
mudança individual e social. Para o autor, da satisfação sexual viria um equilíbrio
orgânico indispensável ao estado de saúde, à atenuação ou neutralização da
agressividade e da brutalidade na esfera da vida social. A outra face desta moeda é que a
brutalidade e a agressividade, fundamentalmente no que exprimem de crueldade e
sadismo, têm como gênese a repressão das pulsões genitais e são conseqüências da
impotência orgástica do homem civilizado. O autor aponta que:
segundo a hipótese de Freud, o instinto de morte ou, por outras
palavras, o instinto biológico de destruição se desenvolve no interior
do indivíduo. Com o esgotamento da fonte individual do Eros, isto é
do instinto de vida, instala-se o processo de involução que leva à
morte - e isto não pode ser obra do acaso (REICH, 1977b, p. 71,
grifos meus).
Note-se que uma busca de Wilhelm Reich por explicar esse não acaso, quando
identifica os homens aos animais não satisfeitos:
O instinto de destruição no homem distingue-se fundamentalmente
por um traço: os seus objetivos não o biologicamente necessários;
deste ponto de vista, identifica-se totalmente com a selvageria dos
animais quando estes não conseguem atingir a satisfação. Nesta
medida o instinto de destruição é a contrapartida (e conseqüência) da
civilização e da cultura humanas que, pelo seu lado, se fundam na
repressão e sublimação da sexualidade. O que acontecerá ao instinto
de destruição? O meio ambiente social e a faculdade de adaptação do
indivíduo é que decidirão: o instinto de destruição pode desenvolver-
113
se num carácter associal e cruel (o assassinato sádico) ou, no seu
oposto, numa hipermoralidade obsessiva, cuja intolerância e dureza
põem claramente a nu a sua origem (REICH, 1977b, p. 78, parêntesis
do autor).
A própria brutalidade da Guerra Mundial (a esta altura, a primeira), é entendida
por Reich (embasado em Freud) como uma libertação coletiva de recalcamentos,
sobretudo aqueles ligados às pulsões sexuais. Para ele, os propósitos dos dirigentes
(partidos políticos, Igreja, governo, escola) ecoam de algum modo na crueldade latente
dos indivíduos, que em virtude da “autorização para matar” advinda da figura idealizada
do pai na pessoa do dirigente, vêem-se livres do sentimento de culpabilidade
56
.
Reich critica a ciência que pretensamente estudava a sexualidade em sua época,
produzindo conhecimentos fortemente eivados por preceitos morais, o que comprometia
seus resultados objetivos. Transparece ainda sua crença numa ciência como instância
privilegiada de produção de conhecimentos legítimos, que a diferencie, por exemplo, da
literatura. O viés sistematicamente metódico e empiricista de seu trabalho se pauta pelo
modelo de investigação das ciências naturais e, embora, operacionalize procedimentos
metodológicos característicos ao modelo biomédico, transcende a dualidade do mesmo,
quando este separa corpo e alma, bem como sua abordagem meramente mecânica.
Embora as representações e os símbolos sejam evocados por Reich em
Psicopatologia e Sociologia da vida sexual, eles o são tão somente para compreender as
expressões da satisfação sexual literalmente represada. O que se sobrepõe em sua
análise é o aprofundamento da problemática da genitalidade, ou seja, a questão da
retenção da libido genital e seu bloqueio, ou do seu não desenvolvimento, ambos no
plano somático. Contudo, a leitura hermenêutica do corpo neste texto, ultrapassa o
entendimento do fundamento corporal dos transtornos psíquicos ao nível biológico-
56
Essa hipótese da crueldade latente dos indivíduos é problematizada por Wilhelm Reich no livro
Psicologia de Massas do Fascismo (2001).
114
sexual. Reich não se limita a explicar o biológico pelo biológico, o psicológico pelo
psicológico e, tampouco, o social pelo social. Ele esboça um equacionamento da relação
entre organismo, psiquismo, sociedade, política e cultura que ganhará contornos mais
bem definidos nas obras que escreve na década seguinte (1930). Ele assinala questões
sociológicas e psicológicas fundamentais, para compreender essa Modernidade que
produz o homem como estando alijado do seu corpo. O homem moderno, inserido numa
sociedade turbulenta, em constante transformação, muitas vezes deixado à sombra de si
mesmo, imerso na solidão do individualismo, obteria conquistas não estéreis que o
sustentem junto aos demais para construir uma vida coletiva?
Análise do Caráter
57
(1933): o corpo como memória
As explicações de Wilhelm Reich sobre a gênese dos processos que produzem o
adoecimento incorporam as influências oriundas do mundo externo e de sua formação
social pautada pela desigualdade de classes. Aqui, ele operacionaliza a categoria de
memórias corporais, embora não o faça diretamente. O papel das exigências e
repressões sociais na constituição da estrutura de caráter
58
do homem é destacado
57
O livro Análise do caráter, que tem como temas a técnica terapêutica, os tipos e a formação de
caráteres, cuja primeira edição data de 1933, reúne artigos produzidos nos primeiros anos da década de
1930 e outros quatro artigos publicados anteriormente [“Sobre a técnica de interpretação e de análise das
resistências” (1927), “Sobre a técnica de análise do caráter” (1928), “O caráter genital e o caráter
neurótico” (1929) e “As fobias infantis e a formação do caráter(1930)]. O desenvolvimento das idéias
de Wilhelm Reich acerca da técnica terapêutica e das estruturas de caráter foi sendo incorporado às
edições subseqüentes desse livro. A edição de 1945 passa a ser composta pelos trabalhos “Contato
psíquico e corrente vegetativa” e a de 1949 é ampliada com “A praga emocional”, “A linguagem
expressiva da vida” e “A cisão esquizofrênica” (ALBERTINI, 1994).
58
No Glossário do livro Psicologia de massas do Fascismo (2001), à página XXXV temos uma definição
de estrutura de caráter acrescida da implicação orgonômica sobre a noção de caráter: “Estrutura típica de
um indivíduo, sua maneira estereotipada de agir e reagir. O conceito orgonômico de caráter é funcional e
biológico, e não um conceito estático, psicológico ou moralista”.
115
por Reich quando ele articula esta estrutura ao processo sociológico congelado de uma
determinada época” (REICH, 2004a, p. 07, grifos do autor):
No escopo mais amplo da questão acerca da função sociológica da
formação do caráter, temos de atentar para um fato que, embora bem
conhecido, é mal compreendido em seus pormenores, a saber, o de
que certas estruturas humanas médias são inerentes a determinadas
organizações sociais, ou, em outras palavras, cada organização social
produz as estruturas de caráter de que necessita para existir (REICH,
2004a, p. 04).
Se o poder das organizações sociais tem a capacidade de se transformar em
estruturas psíquicas individuais e coletivas, está posto de modo mais claro a
determinação social das neuroses. Enquanto opera-se esse processo social, fortalece-se
uma ideologia que o oculta, afirma Reich (2004a).
Longe de adotar uma compreensão moralista sobre a condição humana, Reich
entende o caráter como uma espécie de formação protetora: um rígido sistema de
defesa, crônico e automatizado, não dirigido apenas ao mundo externo, mas ao mundo
interno também e é proveniente das experiências infantis e emoções subjetivas. Por isso
o autor chama de encouraçamento essa formação protetora, pois é caracterizada pelo
enrijecimento do organismo, notadamente dos tecidos musculares, cuja finalidade é
bloquear as dores e as angústias existenciais, movimento que bloqueia também a
capacidade para o prazer.
O que está subjacente à formação do caráter é como sobreviver face aos ataques à
integridade recebidos desde a infância e como superar o complexo edipiano, este
conceito que tem sofrido grandes divergências do pensamento antropológico
(DURAND, 1995). Neste sentido, a couraça para Reich aparece como um meio de
resolver o conflito original colocado por Freud, porém não enquanto um conflito
instalado apenas na alma, mas também instalado no corpo, podendo ser solucionado a
116
partir e através dele. Uma couraça efetiva impede a espontaneidade e cria uma mente
muito racional, no sentido unilateral do termo. A couraça, entendida por Reich como
algo flexível, se expande quando experimenta situações de prazer e se contrai na
experiência do desprazer. Esses dois movimentos que estão no cosmos - expansão e
contração - também operam no corpo de todo ser humano. Neste sentido, as situações de
prazer experienciadas pelo homem, levam-no a desencadear movimentos espontâneos
de expansão interativa com as influências do meio simbólico com o qual interage.
As imposições objetivas do meio sociocultural, como as de uma sociedade
moralmente rígida, autoritária e repressiva, produzem conflitos, angústias e pulsões
internas que se tensionam, gerando indivíduos encouraçados, cujos movimentos
espontâneos e autênticos dão lugar a movimentos enrijecidos e mecânicos,
comprometendo sua flexibilidade natural de expansão e contração. A força eficaz dessa
mesma sociedade que produz repressões e dilacerações, atua nos corpos e nos úteros das
mulheres, sendo que estes úteros tensos produzem crianças tensas, que se tornarão
adultos encouraçados, que esses efeitos vão sendo sentidos em cadeia, porque
interferem nos movimentos naturais e espontâneos da criança desde a gestação até a
fase adulta.
Assim, a noção de caráter encerra uma memória ancorada no corpo que vai sendo
atualizada cotidianamente como um habitus encarnado e que catalisa a subjetividade do
indivíduo (dimensão psicológica), mobiliza os valores sociais (dimensão sócio-cultural)
e a sua fisiologia (dimensão biológica). Interessante é a confluência de Reich com a
Antropologia desde Malinowski. Hoje podemos situar o esforço cognitivo do autor ao
tecer suas explicações desses fenômenos como portador de uma dinâmica co-
implicacionista. Isto significa, por parte dele, a percepção das coisas como estando
inter-conectadas, entrecruzadas no cerne existencial que compõe a experiência humana
117
do mundo e no mundo. A hermenêutica do autor não se enquadra meramente no estatuto
do sentido lógico ou funcional de seu paradigma, ela adentra o sentido ontológico e
existencial, colocando-nos a necessidade da busca por um sentido profundo. Pelo
pensamento analógico que ele desenvolveu, foi possível captar as mudanças e
transformações no caráter, quando os fenômenos vão sendo compreendidos encadeados
num mesmo nexo de compreensão causal.
A tipologia caracteriológica
Reich criou uma tipologia de formas definidas de caráter a partir de suas
experiências clínicas, as quais inseridas num contexto sociocultural específico, espacial
e temporalmente marcado, são inseparáveis do mesmo. Sua tipologia caracteriológica,
portanto, possui a mesma inserção contextual. O conceito de tipo ideal weberiano nos
fornece um modelo cognitivo adequado para entender essa tipologia. Se colocarmos
num espectro de formas quanto a como se apresentam essas modalidades de caráter,
numa extremidade do espectro temos o caráter genital, e noutra extremidade, o caráter
neurótico. Para ele, o caráter genital possui uma economia libidinal regulada, isto é,
marcada pela tensão acompanhada de sua resolução (satisfação sexual), o que ocorre
segundo uma alternância adequada. Trata-se de um caráter flexível, não constrangido, já
que as aspirações individuais e sociais se apresentam neste tipo em alto grau de
harmonia. o caráter neurótico, na outra extremidade, apresenta uma baixa realização
ontológica. Vive uma fonte de crescente insatisfação perante as coerções do mundo
externo, sobretudo no que tange à sexualidade reprimida. A absorção exagerada das
regras impostas pelo meio sociocultural se caracteriza fundamentalmente pela negação
118
da sua sexualidade. Entre uma extremidade e outra do espectro formas
intermediárias, que podem ser compreendidas, segundo o autor, baseado em sua
experiência clínica, por diversos tipos definidos conforme os traços caracteriológicos
predominantes em cada um deles (REICH, 2004a, p. 187-253):
a. caráter “aristocrático”: apresenta comportamentos típicos da nobreza e uma
tendência a tomar como fontes de prazer o fracasso e a humilhação de seus conhecidos.
b. caráter histérico: é nervoso, amedrontado, ágil e excêntrico. Caracteriza-se por
atitudes sexuais indiscretas, por agilidade física específica (como a prática disfarçada de
jogos de sedução nas mulheres; a delicadeza e cortesia excessivas nos homens,
expressos também em suas expressões faciais e corporais).
c. caráter compulsivo: recusa toda reação espontânea que possa orientar sua
conduta que é fixada num sentido superior (arrogante) de organização e de ordem
intocável. Depressivo, reservado e inibido, este caráter experimenta a espontaneidade
como algo extremamente desagradável.
d. caráter fálico-narcisista: é marcado pela autoconfiança, por vezes arrogante,
pelo comportamento flexível, enérgico e impressionante.
e. caráter masoquista: percebe como agraváveis e toma como fonte de prazer
coisas que são percebidas como desagradáveis pela pessoa comum (o sofrimento, por
exemplo).
A partir do esboço da tipologia caracteriológica apresentada pelo autor,
diferenciada por respostas psicológicas, corporais e sociais, se vistas sob a abordagem
da formação dos seus conteúdos e das suas fronteiras, podemos compreender o esforço
que cada tipo desenvolve para responder aos impactos contra a integridade. Em comum
todos os tipos que compõe esse espectro de formas diferentes de reações emocionais,
119
corporais e sociais, todas as couraças revelam sofrimentos daqueles que vivem histórias
que os conduziram ao Hades.
Histórias de vida e formação do caráter
Devem sempre existir relações definidas entre a
aparência externa do caráter, seu mecanismo interno e
a história específica de sua origem.
59
Wilhelm Reich
Torna-se importante compreender, portanto, as condições fundamentais que atuam
na formação do caráter e conduzem a uma diferenciação de tipos. Subserviência,
delicadeza, severidade, brandura e nobreza são alguns, entre tantos outros, traços de
personalidade, por detrás dos quais, segundo a etiologia psicanalítica, se revela
semelhantes quantidades de ansiedade. Eles configurariam diferentes formas de
encouraçamento que atuariam como defesas do eu para protegê-lo mediante os conflitos
com o mundo externo e com os desejos internos reprimidos (REICH, 2004a, p.151). Se
considerarmos os processos sociais implicados na formação das neuroses, como Reich
nos ensinou, observamos nas histórias de vida de seus pacientes recolhidas como
material empírico para seus estudos, como as experiências biográficas da infância
modelam, com seus conteúdos, suas formas e suas fronteiras, os diversos tipos de
caráter tais quais os apresentamos acima. Um caráter se forma para proteger o indivíduo
– a onde isso seja possível - das angústias vivenciadas em relações conflituosas,
59
REICH, W. Análise do caráter. São Paulo: Martins Fontes, 2004a, p. 197.
120
sobretudo com os pais ou educadores autoritários que cumprem a função desses. Para
Reich, a formação do caráter é um esforço agonizante do indivíduo para sobreviver
contra os ataques à sua integridade, e, assim, um desvio de uma direção mais
realizadora.
Pensado como um processo no interior deste mesmo modelo autoritário de
sociedade, o modelo de socialização realizado pela família complementa-se, muitas
vezes, com os traços de personalidade predominantes dos educadores, que dão o tom em
suas interações com os alunos. As brigas, a rigidez e o autoritarismo dos pais, as
ansiedades, as tensões e os temores vivenciados no ambiente familiar estão implicados
na formação do caráter da criança e nele se reproduz a forma como a sociedade como
um todo se encontra estruturada. Não é incomum na maioria das famílias os pais verem
suas crianças como adultos potenciais em miniatura, por não compreenderem que
mundos os separam com as diferenças que estão implicadas na vida de ambos. Assim, a
criança, esse outro que se coloca para os adultos como exigência de alteridade, que
como tal precisa ser reconhecida, é aviltada em suas demandas e potencialidades mais
criadoras.
Na base da formação de um caráter aristocrático, por exemplo, pode estar uma
reação às constantes brigas familiares (do pai com a mãe ou com os filhos) e à
brutalidade paterna, no sentido de resultar numa “identificação contrária com o pai”
(REICH, 2004a, p. 189). Desse modo, refugiando-se na polidez, no autocontrole das
emoções, na serenidade e num comportamento nobre, essa criança se torna um adulto
que age passivamente no mundo. Pode haver também imitações de modelos de outras
pessoas com as quais a criança ou o adolescente se identifique sobre como gostaria de
ser e agir (REICH, 2004a, p. 189-190). O fundamento de um caráter histérico, por
exemplo, pode remeter aos conflitos oriundos de afetos incestuosos (REICH, 2004a, p.
121
199); o de um caráter compulsivo, ao gido processo de aprendizagem das técnicas
corporais, como a forte exigência por parte dos pais de antecipar os processos de
evacuação, ou acentuar desmesudaramente para a idade da criança, a exigência com os
demais os hábitos de higiene (REICH, 2004a, p. 204). num caráter masoquista, por
exemplo, uma explicitação clara do permanente mecanismo de se queixar e de se
auto-depreciar, como uma forma de ser no mundo. Pais agressivos que espancam seus
filhos podem produzir esses mecanismos, de modo que na vida adulta eles se submetam
a qualquer preço a relações hostis para evitar a perda de algo (objeto de relacionamento,
de afeto).
A perspectiva historicista está presente na discussão de Wilhelm Reich sobre a
formação do caráter até aqui, uma vez que o caráter remete sempre a uma determinação
historicamente construída e vivenciada (REICH, 2004a, p. 197), isto é, que ocorre numa
relação espaço-tempo determinada.
Do caráter ao corpo (pensar por analogia)
Com base no trabalho corporal com seus pacientes, Reich dedica-se de 1926 a
1934 ao estudo do caráter e de técnicas terapêuticas adequadas a trabalhá-lo. A partir de
1935, com a descoberta do que ele denominou reflexo do orgasmo, que representaria as
correntes de energia vegetativa biológica disparadas na forma de ondas de prazer por
todo o corpo, levando à fruição de um estado de relaxamento, o autor reequacionou a
ênfase (psicológica) que dava ao caráter e passou a focar o corpo do paciente de
maneira mais sistemática. Isto o levou a aprofundar seu conhecimento acerca da história
narrada, incorporada, num silêncio holonômico, pela musculatura encouraçada dos
122
pacientes. Assim, passou a atuar de maneira conjunta nos campos psicológico e
fisiológico e, para agregar numa palavra o novo método de análise que lidaria ao
mesmo tempo com esses dois campos, chamou-o de vegetoterapia caracteroanalítica.
Reich conclui que a couraça muscular está disposta no corpo segundo sete padrões
segmentares (o ocular, o oral, o cervical, o toráxico, o diafragmático, o abdominal e o
pélvico), anelares, de modo que nosso organismo guardaria uma analogia (que remonta
ao passado da evolução das espécies) com os seres anelídeos. Para o autor, é como se
ele tivesse delineado no homem a mesma estrutura anelar do verme. No caráter
histérico, por exemplo, que em graus diferentes estaria presente, segundo o autor, na
maior parte das mulheres, pode haver a paralisação de um membro do corpo ou
alterações localizadas numa determinada região corporal, como o enrubescimento do
rosto, por exemplo. Essas situações observadas permitiram a Reich perceber que o
bloqueio fixado em determinado segmento da couraça estava relacionado a uma área
emocionalmente significativa e remontava à história do indivíduo em suas interações
com o meio sociocultural que foi corporalmente incorporada. De acordo com Reich:
uma experiência infantil pode ter um ‘efeito a partir do passado’ se estiver
ancorada numa couraça rígida que continua agindo no presente(REICH, 2004a, p.
354, grifos do autor).
A história do indivíduo está registrada no seu corpo. Para Reich, acessando o
corpo pela mobilização da couraça, torna-se possível desvelar e dissipar emoções e
afetos profundos que remetem a situações ligadas à constituição da mesma, donde
temos o social atuando sobre o corpo. As emoções e afetos, como angústia, dor, medo,
ódio ou desespero por trás de padrões crônicos de tensão muscular também estão
ligadas ao sofrimento contido na história familiar ou grupal do indivíduo. Segundo
David Boadella (1992), “podemos considerar as tensões do corpo como uma série de
123
contrações, criadas numa situação de emergência, cujo efeito é limitar o movimento, a
respiração e o sentimento, como a única alternativa disponível de ação” (BOADELLA,
1992, p. 17). O livre fluxo de sensações através do corpo e seus movimentos rítmicos
espontâneos, sobretudo a respiração, são bloqueados e alterados. A harmonia e o
contato direto entre o homem e o meio no qual está imerso também sofrem distorções e
alijamentos.
O éter, Deus e o diabo (1949): a natureza presentificada na cultura e no cosmos
Aquele que vê o infinito em todas as coisas, vê a Deus.
Aquele que olha para a razão só vê a si mesmo.
William Blake
Neste texto de 1949, Reich assinala que quanto mais saudável estiver o ser
humano, mais sensível ele será e mais facilmente experimentará suas sensações de
órgão que, segundo ele, precedem a formulação de qualquer conhecimento do mundo, já
que estas sensações revelam o “primeiro sentido de natureza estritamente fisiológica”
no ser humano (REICH, 2003, p. 69). Ele explica que o corpo produz sensações e os
limites da sensorialidade interferem, inclusive, no conhecimento da realidade. Assim, de
acordo com Reich, um organismo encouraçado seria incapaz de sentir, perceber e
compreender o movimento básico da matéria, da natureza, da função vital e do cosmo,
em suma, de perceber a sensação de órgão e através dela experimentar em seu próprio
corpo a função orgone da natureza (REICH, 2003, p. 57-68).
60
60
Ao realizar um apanhado do que considera os “erros” do pensamento humano ao longo dos tempos,
Reich faz uma crítica ao pensamento mecanicista e ao pensamento místico. De acordo com o autor, o
primeiro toma seus objetos cognitivos sob a metáfora da máquina (como no pensamento biomédico), o
alcançando com isto a organização funcional dos mesmos e as conexões nela implicadas. O segundo, o
124
Para o autor, os conhecidos conceitos de “Deus” e éter” teriam uma realidade
física subjacente entendida por ele como uma energia cósmica primordial, a mesma que
ele denominou energia orgone cósmica, não apreendida anteriormente pelo pensamento
que os forjara (pensamento místico e mecanicista, respectivamente). Reich afirma que:
Os mundos conceituais de “Deus” e “éter” apresentam tantas
similaridades que devem ter uma origem comum, independentemente
do fato de que Deus, enquanto qualidade estética, e o éter, enquanto
quantidade física, nunca tenham se encontrado até agora e não
pudessem se encontrar dentro do arcabouço do pensamento humano.
(REICH, 2003, p. 55).
Reich entende que “Deus é uma percepção metafísica da energia orgone e o
“éter”, uma percepção física desta mesma energia (REICH, 2003, p. 55). Esses dois
sistemas de pensamento com suas diferentes cosmologias se opõem, ainda que cada
qual produza a sua racionalidade. Conforme o autor, se para o pensamento místico o
mundo ganha sentido através da percepção subjetiva de realidades transcendentais
edificadas sob as sensações psíquicas internas, para os materialistas, as explicações
submetem os fenômenos físicos aos processos de pensamento mecanicista: “Deus
supostamente explica a existência emocional e espiritual do homem, enquanto o éter
explica sua existência física material” (REICH, 2003, p. 44). Por “diabo”, Reich
entende os transtornos gerados pelo encouraçamento e sua função destrutiva: o impulso
de amor retido pela couraça do corpo transformar-se-ia em crueldade e ódio destrutivo.
O “diabo” poderia ser lido também pela chave mítica da atuação sobre o homem
do deus Hades. Filho de Cronos e Réia, irmão de Zeus e Poseidon, este deus grego do
pensamento místico, transcende demais a realidade material de seus objetos e, por constelar-se de uma
maneira muito radical para o alto, torna-os duais e fragmentados. Na busca por situar-se no interior dessas
construções teóricas, o autor define o seu pensamento como funcionalista, porque acredita que a
metodologia científica que rege seu trabalho supera qualitativamente as carências apontadas nos dois
primeiros tipos de pensamento, através dos conceitos de função, integração e sistema, tais quais a
Antropologia Clássica os conhece.
125
mundo dos mortos, Hades, cujo nome significa O Invisível, é conhecido por mobilizar o
medo nas criaturas, ser cruel e impiedoso, daí seu caráter destrutivo, atuante na
produção de sentimentos como ódio e angústia.
O homem, microcosmo do macrocosmo: expansão e contração
A descoberta da energia orgone cósmica conduziu Reich à captação de uma
dimensão que, segundo ele, opera no mais irredutível do homem. Ele a chamou
“pulsação orgástica do plasma” que, por sua vez, está na base da peculiar compreensão
reichiana acerca: a. das biopatias (como câncer, diabetes, epilepsia); b. do éter (presente
no pensamento físico-filosófico desde a Antiguidade); c. da função vital e d. do anseio
cósmico do homem (REICH, 2003).
Nesse ponto da discussão é importante compreender mais profundamente a
condição do homem de ser microcosmo do macrocosmo. A pulsação, de acordo com
Reich, é o princípio básico da energia orgone cósmica e é constituída por essas duas
funções antitéticas: expansão e contração, que move todos os seres, homens e coisas:
“[é a] base de funcionamento comum de toda a natureza” (REICH, 2003, p. 108). Esta
idéia fica clara nas seguintes citações que na década de 1940 aludiam ao princípio da
interconectividade entre seres, homens e coisas:
uma harmonia regrada de funções naturais que permeia e governa
todos os seres (REICH, 2003, p. 89-90).
A MESMA ENERGIA QUE ORIENTA OS MOVIMENTOS DOS
ANIMAIS E O CRESCIMENTO DE TODA SUBSTÂNCIA VIVA
NA VERDADE TAMBÉM ORIENTA AS ESTRELAS (REICH,
2003, p. 102).
126
(...) o princípio de funcionamento do todo está contido até mesmo no
menor princípio de funcionamento específico (REICH, 2003, p. 105).
Cada homem é entendido como um sistema orgonótico próprio que está
interconectado a outros sistemas orgonóticos que se comunicam, todos eles inseridos
num sistema orgonótico
61
mais amplo: o universo. Reich nos propõe uma concepção
afirmativa da vida embasada na harmonia do homem consigo mesmo e com a natureza
circundante. Apresenta uma imagem hologramática da relação homem/cosmo, na qual
homem e cosmo não se diferenciam, pois operam o mesmo movimento básico da vida,
que para Reich é o movimento protoplasmático da expansão e contração. Por isso, sua
concepção do homem é a de um homem microcosmo do macrocosmo.
Nesta imagem viva do universo que flui, o autor expõe que o fluxo pulsante da
vida (animal, vegetal, humana) segue o mesmo princípio do movimento do universo em
fluxo. É um fazer científico que lida “com fenômenos de contato, com excitações de
campo de orgone” (REICH, 2003, p. 77), que constrói, portanto, uma dimensão
holonômica, vibracional, do objeto.
Reich propõe basicamente três camadas para pensar a experiência do mundo
configurada na interação homem/meio e apresentada no corpo humano segundo as
histórias individuais e coletivas que o conduzem ao Hades. No organismo vivo
encouraçado estas camadas correspondem à periferia, à couraça e ao cerne. o
organismo vivo desencouraçado não apresenta a camada intermediária (a couraça).
O encouraçamento é expresso pelo autor sob a metáfora de um muro rígido entre o
cerne biológico e a periferia (mundo em que vive e trabalha). Este muro bloqueia os
impulsos naturais do organismo que brotam do cerne. Não encontrando livre expressão,
61
Aquele que possui orgonicidade, isto é, que contém ou participa da condição de conter energia orgone.
127
tais impulsos convertem-se em destrutividade. A comunicação de um organismo
encouraçado com o mundo se realiza através de brechas ou buracos na couraça, que não
o impede de amar ou sentir medo. Contudo, o encouraçamento enrijece seus
movimentos e expressões espontâneas, cerceando, distorcendo e fragmentando os
impulsos naturais, as livres manifestações do corpo e as percepções. O organismo
encouraçado sente terror quando se depara com manifestações de mobilidade livre, foge
delas, repreende-as e impede-as, desenvolve por elas o sentimento de ódio
62
. Note-se na
pessoa encouraçada:
a caixa torácica tensa ou o sorriso rígido, semelhante a uma máscara
(...) Para ela, a caixa torácica rígida e o sorriso congelado se tornaram
uma segunda natureza. Não os percebe nem como um distúrbio, nem
como o esforço que realmente são. Sequer sabe que está
constantemente “montando guarda” com sua caixa torácica e que seu
sorriso crônico reprime lágrimas ou raiva (REICH, 2003, p. 66).
As percepções sensoriais do organismo desencouraçado são essencialmente
diversas das do organismo encouraçado: “uma vez que o plasma corporal é receptor e
transmissor de todas as impressões, um sistema plasmático que flui livremente deve
receber impressões que diferem de um sistema aprisionado e encouraçado” (REICH,
2003, p. 62-63). Ele percebe as correntes orgonóticas
63
em seu organismo e as
experiencia como prazer - o afrouxamento ou a dissolução da couraça são condições
indispensáveis para este tipo de percepção.
Segundo Reich, a autopercepção é para a ciência natural o mais profundo e difícil
problema, contudo sua compreensão torna-se mais acessível quando compreendida a
sensação. É esta última que propicia aos organismos vivos responderem (por meio de
62
Reich salienta que esta destrutividade característica da vida encouraçada é dirigida contra a vida
desencouraçada - o que pode ser exemplificado através das relações estabelecidas pela maioria dos
educadores com as crianças, especialmente, as recém-nascidas.
63
As correntes orgonóticas são correntes plasmáticas funcionalmente idênticas às sensações de órgão e “o
que chamamos subjetivamente de ‘sensações de órgão’ são movimentos objetivos do protoplasma”
(REICH, 2003, p. 121).
128
movimentos) aos estímulos que os afetam. Suas respostas sensíveis aos estímulos
(capacidade de sensação) são idênticas às emoções, que equivalem à tradução do
movimento protoplasmático
64
. O autor expõe os estímulos e as emoções simplificados
em duas classificações básicas, acrescentando o elemento inovador na compreensão dos
mesmos pela biofísica do orgone:
Exatamente como todos os estímulos que afetam um organismo
podem ser reduzidos a duas formas básicas - prazerosos e
desprazerosos - todas as emoções podem ser reduzidas basicamente a
duas emoções fundamentais, prazer e desprazer. Esse fato já era
conhecido da psicologia pré-freudiana; foi esclarecido por Freud com
sua teoria da libido. A realização da biofísica do orgone foi conseguir
igualar funcionalmente prazer e expansão biológica e desprazer (ou
angústia) e contração biológica (REICH, 2003, p. 93).
Embora as funções físicas de expansão e contração, de acordo com Reich, possam
ser encontradas na esfera inorgânica (no orgone atmosférico, por exemplo), as emoções
não são passíveis de ocorrer senão pelos movimentos protoplasmáticos de expansão e
de contração (REICH, 2003, p. 94).
Em síntese, é através da experiência do mundo (Weltanschauungen) que se
formatam as atitudes diante da vida e o conhecimento sobre a realidade. Para o autor, o
funcionamento do plasma corporal constitui uma instância profunda que atua na
determinação da atitude do homem em relação à vida e na formação de sua imagem de
mundo.
64
Reich assinala a identidade funcional entre soma e psique, emoção e excitação, sensação e estímulo
como um princípio de pesquisa do funcionalismo orgonômico, ressaltando o vínculo tanto da emoção
como da excitação (funcionalmente idênticas) à excitação orgono-física.
129
O homem, conteúdo e continente do oceano cósmico de orgone
Para Reich, a energia orgone cósmica penetra tudo (em várias medidas e
velocidades) e, portanto, está presente em tudo, não deixando espaços vazios. Segundo
o autor, “devemos entender o organismo vivo como uma parte organizada do oceano
cósmico de orgone” (REICH, 2003, p. 157), cujas qualidades vivas e funcionamento
bioenergético não podem ser entendidos a partir de um modelo mecânico de
pensamento, mas sim pelo funcionalismo orgonômico, que “representa o modo de
pensar do indivíduo desencouraçado e que, portanto, está em contato com a natureza
dentro e fora de si mesmo” (REICH, 2003, p. 12). O aspecto básico deste modo de
pensar é não tolerar
nenhuma condição estática. Para ele, todos os processos naturais
estão em movimento, mesmo no caso de estruturas enrijecidas e
formas imóveis. É precisamente essa mobilidade e incerteza em seu
pensar, esse fluxo constante, que coloca o observador em contato
com o processo da natureza. O termo “em fluxo” ou “fluente” é
válido, sem qualificações, para as percepções sensoriais do cientista
observando a natureza. O que está vivo não conhece condições
estáticas de qualquer ordem, a menos que esteja sujeito à
imobilização devido à couraça. A natureza também “flui” em cada
uma de suas diferentes funções, bem como na sua totalidade (REICH,
2003, p. 107).
Ao pensar o corpo enquanto organismo vivo (encouraçado ou desencouraçado),
Reich operacionaliza um modelo de ciência da natureza (os termos animal humano,
encouraçamento biológico, sensação de órgão, plasma corporal e energia orgone
cósmica são, entre outros, bastante esclarecedores desse registro), embora subjacente
esteja a idéia de seu desenvolvimento biossocial. É como cientista natural que ele
130
procede e se identifica nesse texto. Partindo de dois tipos (organismo vivo encouraçado
e organismo vivo desencouraçado), ele aborda o organismo sincronicamente, ou seja,
toma-o num momento específico de sua condição histórica e não detalha a causalidade
implicada no processo de encouraçamento que fôra amplamente discutida na Análise
do caráter.
O assassinato de Cristo (1953): uma abordagem da condição humana
Depois de ter realizado a crítica à sociedade autoritária e aos efeitos nocivos que a
orientação religiosa produz sobre os corpos e as relações sociais, produzindo ao mesmo
tempo doenças e doentes, o tipo ideal do homem desencouraçado no pensamento de
Willhelm Reich alimenta uma discussão sobre a problemática acerca da condição
humana, quando ele indaga com novas questões os antigos temas. Concordo com David
Boadella (1985) quando este considera O assassinato de Cristo uma obra de arte acerca
do tema da condição humana, uma indagação sempre atual para nossos cientistas
contemporâneos que buscam um entendimento profundo e co-implicado dos fenômenos
que Reich também pesquisou e que muito contribuiu para elucidá-los sem ter recebido o
devido reconhecimento.
A hipótese de Wilhelm Reich sobre o que é a condição humana é ousada,
inovadora, perspicaz e comprometida com um projeto libertário de sociedade. Para ele,
o assassinato de Cristo (ou assassinato da Vida viva e desencouraçada), juntamente,
com a função do orgasmo e da Vida, constituem questões categóricas da existência
humana cuja compreensão é imprescindível para que o homem se liberte da miséria
crônica que regula a dinâmica da vida encouraçada.
131
Numa linguagem simples, sensível, por vezes, simbólica, Wilhelm Reich realiza
uma interpretação peculiar desta grande tragédia, o assassinato de Cristo, segundo ele,
ainda incompreendida em seu mistério fundamental. Esse texto é, aliás, aglutinador das
várias idéias que viemos trabalhando na presente pesquisa, como a leitura hermenêutica
do corpo por Reich, que desvela as emoções e os conflitos comunicados através dos
modos de ser, estar, agir e reagir das pessoas; seu entendimento do homem enquanto
Ser Vivo inserido numa ordem cósmica co-implicada, configurando múltiplos sistemas
orgonóticos interconexos; sua compreensão funcional da Vida nos organismos
encouraçados e desencouraçados; sua crítica da opressão exercida por parte de uma
sociedade rígida e autoritária sobre seus membros. Por isso, abordarei algumas
elaborações que Reich nos apresenta naquele texto para concluir este capítulo.
Em O assassinato de Cristo, Reich remonta sua hipótese central de que o homem
vive preso numa armadilha, cuja manifestação mais particular sedimenta sua própria
estrutura de caráter, restringindo as expressões espontâneas das correntes da Vida em
seu Ser de maneira a cercear seus movimentos livres e autênticos. Presos neste espaço
estreito, eles constroem todas as suas experiências a partir dele e desenvolvem técnicas
por meio das quais habituam as gerações seguintes a viverem cativas, tal como eles
próprios. Escapa-lhes o sentido da plenitude da vida, uma vez que restringidos por todos
os lados, seus movimentos, pensamentos, ações e, até mesmo, seus órgãos vitais, são
atrofiados com o passar do tempo.
Wilhelm Reich assinala que essa constitui a condição elementar da existência
humana e, por viverem assim, os homens têm imensa dificuldade para encontrarem a
saída da armadilha e se libertarem. Na relação com o outro, os homens presos à rigidez
do habitus característico do encouraçamento desenvolvem ódios destrutivos e
contundentes contra toda forma de Vida que fuja à vida encouraçada, como que para
132
levar o outro consigo ao Hades, instaurando uma situação de intolerância para com a
alteridade. Vejamos a clareza com que nos apresenta esta idéia na seguinte metáfora:
“Se voviver durante muito tempo no fundo de uma cava escura, você detestará a luz
do sol. É mesmo possível que seus olhos acabem por perder a capacidade de tolerar a
luz. Eis por que acaba-se por odiar a luz do sol” (REICH, 1999, p. 07).
Conforme a leitura de Reich, Cristo consistiu exatamente na força irradiante da luz
do sol que se apresentou bela, espontânea e simples aos seus contemporâneos, o típico
caráter genital desencouraçado. A Vida desatada de grilhões que Cristo representava
despertou o ódio de seus assassinos. Para o autor, o assassinato de Cristo significa todas
as manifestações de ódio ao Vivo, ódio à Vida vivida em plenitude.
Para Reich, Cristo é Natureza. Natureza e Deus são duas formas de o pensamento
apreender uma só coisa, a Vida viva, pulsante, no sentido genuíno do termo. Esta
proposição é consoante ao seu entendimento da idéia de Deus, que vimos neste capítulo,
quando analisamos o texto O éter, Deus e o diabo. O autor caracteriza Cristo como
aquele que apresenta o princípio da Vida. Aquele que, por suas maneiras de ser e por
suas qualidades autênticas, mobilizou a ira dos homens de caráter encouraçado à sua
volta. Por isso, Reich entende que é no interior do próprio homem que se localiza o
reino de Deus, pois este já nasce com aquele. o demônio está representado nas forças
humanas que atuam para a manutenção da Vida presa, maltratada, anulada, frustrada,
endurecida, numa palavra, encouraçada. Essas forças constituem o motor propulsor da
destruição do elemento divino no homem: a Vida viva, nas palavras de Reich.
Cristo é entendido por Reich como Vida integral e humanada. Assim, o autor
supera a compreensão tradicional espiritualizada de Cristo, na qual o pensamento
humano separa corpo e espírito, associando o primeiro ao mundo da carne, de pecados e
tentações; o segundo, ao paraíso celeste transcendental. Ele nos propõe uma
133
interpretação de Cristo como alguém cujo espírito e corpo funcionam,
indissociavelmente, num mesmo organismo.
Wilhelm Reich faz uma leitura singular e profícua sobre a cura e a mobilização do
sistema vital de um ser pelo poder de Cristo. Segundo ele, Cristo irradia Vida, é um ser
transbordante de energia. Em virtude de ser um sistema orgonótico que funciona
livremente, sem couraças, Jesus é capaz de absorver infinitamente a energia vital do
universo, comunicá-la e doá-la a todos que partilharem de sua presença. Isto se daria da
seguinte forma:
Seus poderosos campos orgono-energéticos são capazes de estimular
os sistemas energéticos inertes e “mortos” dos miseráveis e dos
“infelizes”. Esse estímulo do sistema vital exaurido é sentido como
um relaxamento da tensão e da angústia, relaxamento esse devido à
dilatação do sistema nervoso, que se traduz por uma faísca de amor
verdadeiro num organismo cheio de ódio. A excitação da bioenergia
no ser fraco é capaz de dilatar seus vasos sangüíneos, de irrigar
melhor os tecidos, de acelerar a cura das chagas, de contrair os efeitos
paralisantes e degeneradores da energia vital (REICH, 1999, p. 26-
27).
O efeito do contato com Cristo seria semelhante ao que se passa à pedra de
Bolonha quando exposta ao sol: ela capta seus raios, ficando luminosa no escuro por
algum tempo (GOETHE, 2002, p. 255).
É importante atentar à visão típico-ideal que Reich tem de Cristo e ao que ele
traduz por assassinato, pois por meio destas formulações ele nos coloca mais uma vez
sua compreensão da Vida, suas definições acerca do Homem e da condição humana. Ele
nos apresenta o ideal de humanidade que deseja, defendendo apaixonadamente “o bem-
estar e a felicidade” do homem (REICH, 1999, p. 228), um projeto de sociedade
realizadora onde os homens sejam capazes de amar e se abandonarem à Vida em
plenitude.
134
Nesse sentido, as ações de Cristo não são programadas como num ser mecanizado
e enrijecido por sua estrutura de caráter. Suas atitudes são, ao contrário, espontâneas.
Ele não finge nem se esforça para não fingir, é autêntico, diz Reich, para quem Jesus
Cristo:
mantém perfeito contato com o que se passa à sua volta. Ele pode ver
o que eles [os seus assassinos e admiradores] não em porque está
aberto para ver. Ele contempla uma paisagem e se conta da
unidade que ali reina. Ele não vê, como eles, árvores isoladas,
montanhas isoladas, lagos isolados. Ele árvores, lagos e
montanhas como são na realidade: elementos integrados de um fluxo
total e unitário de ocorrências cósmicas. Ele vê, ouve e toca todas as
coisas com a totalidade de seu ser, nelas derramando suas energias
vitais, recebendo das árvores, flores e montanhas, cem vezes mais
dessa energia. (...) A Vida devolve em metabolismos transbordantes o
que recebe. Receber e dar nunca são atos de sentido único. É sempre
uma troca, um vai e vem (REICH, 1999, p. 31).
No plano social, o assassinato de Cristo ou, como Reich o entende
extensivamente, o assassinato do Vivo, corresponde ao conflito entre o princípio da
Vida e o que ele chama de peste emocional. Segundo Reich, guardadas as
particularidades históricas que envolvem tal conflito (no caso de Cristo, a cultura
judaica submetida ao domínio romano), o ódio e o assassinato do Vivo aconteceriam
antes de Cristo e continuariam sendo reatualizados até os tempos atuais toda vez que o
caráter encouraçado do homem se depara com manifestações sinceras, livres e
espontâneas da Vida desencouraçada.
A obra de Wilhelm Reich, na minha opinião, exprime maior fecundidade quando
observadas a continuidade e a abrangência do pensamento do autor no decorrer processo
cognoscente no qual ele estrutura seu pensamento - quando mesmos fenômenos
135
recebem um enfoque diferenciado conforme os distintos momentos da produção da sua
obra.
A relação mãe-filho como alteridade
Por ser tão difícil transformar a estrutura global encouraçada do indivíduo adulto,
Reich passou a investir cada vez mais suas esperanças subversivas nas crianças do
futuro, mantendo a perspectiva de profilaxia das neuroses, enunciada anteriormente.
Às crianças do futuro, às quais Reich dedica o livro O assassinato de Cristo, se
apresenta a tarefa perigosa de romper a prisão, sair da armadilha; desenvolver ao
máximo a alegria, a naturalidade, a generosidade, a amabilidade; irradiar Vida através
de atitudes, sentimentos e movimentos harmoniosos (REICH, 1999).
Reich identifica Cristo com as crianças recém-nascidas, segundo ele, o próprio
Cristo reconhecera as expressões naturais da Vida nas pequenas crianças. Nos recém-
nascidos, Reich deposita as esperanças de um futuro no qual o amor e a vida triunfem
sobre o ódio e a morte. Para tanto, o autor atribui aos educadores do futuro a
responsabilidade de educar essas crianças com autenticidade, respeitando a alteridade de
cada uma e potencializando o seu desenvolvimento pleno, especialmente, quando este
estiver em atrito com o meio social. O grande desafio implicado nessa tarefa é a
eliminação da contradição entre Natureza e Cultura, de modo que a vida social e a vida
bioenergética do homem possam se complementar.
A mãe exerce um papel essencial na formação integral da criança, um aprendizado
para ambos que transcende o nível biológico dessa ligação, mas se funda através dela
136
durante a gestação. Por um lado a relação mãe-filho se estabelece numa possibilidade de
construção de alteridade, separando-se do que é unívoco e se construindo como uma
relação inter-subjetiva inserida num universo afetivo e sociocultural - simbólico
(valores, regras sociais, juízos, ideologias) e material (condições materiais de existência
como as posições de classe social) - mobilizado durante a maternagem na mãe e no bebê
(MICELA, 1984, p. 132-134).
A interação dos dois imaginários mãe-filho - e, portanto, a produção
de alteridade entre os dois sujeitos - é um processo de produção de
relação social e um processo de criação de símbolos, de valor, de
linguagem, no terreno dos carecimentos recíprocos, que encontra sua
origem no processo geral da reprodução social (MICELA, 1984, p.
133).
Por outro lado, ao longo da gestação, o imaginário da mãe e o imaginário da
criança são constantemente mobilizados. O útero da mãe faz parte de todo um
imaginário que a criança participa. Veja-se, por exemplo, que na vida intra-uterina o
feto tem uma vida onírica ativa e sua consciência é similar à consciência do sonho
(BOADELLA, 1992, p. 40). Assim, não são apenas os sons, as tensões, as emoções e
os sentimentos da mãe que o bebê recebe desde a vida intra-uterina, mas todo um
imaginário é mobilizado no feto através do imaginário da mãe. O feto responde
inclusive aos estados oníricos da mãe e à sua imaginação simbólica, como suas fantasias
em torno de sua chegada. De modo que, os próprios períodos de atividade do feto
quase sempre estão sincronizados com o ciclo de sono da mãe, de acordo com a
pesquisa realizada por Sterman” (BOADELLA, 1992, p. 41).
Para Reich, em cada criança recém-nascida, em cada pequena parte da tessitura de
sua existência, Cristo renasce, ou seja, a Vida renasce no seu sentido verdadeiro
(REICH, 1999). Na minha interpretação, o renascimento da vida em cada criança nos
traz também o renascimento, a atualização e a renovação das forças míticas arquetipais
137
de Eros e Psique e de todo um imaginário antropológico que atuam na difícil tarefa
ontológica do homem no mundo: o fazer alma (HILLMAN, 1984). Ao narrar e
interpretar a tragédia do assassinato de Cristo, Wilhelm Reich parece traçar uma
composição mítica, sem, contudo, entendê-la nos termos da atuação do mito como uma
força arquetípica atuante nos homens.
Veremos no próximo capítulo as conexões existentes entre as formulações de
Reich e algumas formulações antropológicas, dentre elas, a Antropologia do Imaginário
para pensar o corpo como corporeidade.
138
Capítulo 4
Um olhar antropológico sobre o pensamento de Wilhelm Reich
Familiar, cotidiano, dele [o corpo] eu tenho uma consciência
mais imediata, mais aguda, mais difusa, mais confusa. Eu habito,
eu o vivo. Por ele eu sinto, eu sofro, eu gozo. Por ele eu
demonstro meu desejo e meu medo, minha tristeza, minhas
sensações, minhas emoções. “Nada do que sinto, do que vejo, do
que sou, do que penso, nenhum projeto, nenhum lamento,
nenhuma idéia, nenhuma palavra, nada existe para mim ou para
a reflexão de alguém sobre mim que não passe por esse lugar
geométrico, esse nó vital da minha existência” (Henry Ey) (...)
Vívido, meu corpo difrata em sensações, em consciência, em
fantasmas, em sonhos”.
65
Frederico Navarro
Wilhelm Reich faz uma leitura interpretativa acerca do corpo que evidencia a
realidade cognitiva da experiência sensível do mundo e constrói uma hermenêutica que
conflui com o paradigma da corporeidade discutida pela Antropologia do Imaginário.
Neste capítulo desenvolvo essa problemática que versa ainda sobre realidades plurais
que compõem a etiologia do processo do adoecer, discussão que se inicia na
Antropologia Médica norte-americana, passando pela Antropologia da Saúde e
Antropologia da Doença. Embora a gênese causal apresentada por essas teorias não seja
idêntica às formulações reichianas dirigidas à explicação dos fenômenos de doença e
cura, conceitos como os de disease, illness, sickness e sentido do adoecimento, como
veremos, nos permitem uma primeira aproximação com a leitura particular de Reich
65
NAVARRO, 1987b, p. 13-14.
139
acerca do organismo encouraçado. Num segundo momento, essa discussão pode
confluir para uma perspectiva antropológica do Imaginário, que localiza na
profundidade da angústia humana o afrontamento com a finitude humana, no qual é
desenvolvida a tensão existencial travada pelo confronto entre as forças ticas de Eros
e Thanatos (Vida e Morte).
A experiência sensível do mundo como relação cognitiva
Podemos observar nas formulações de Reich sobre o corpo uma hermenêutica que
nos permite sinalizar uma abertura cognitiva profícua ao trato do corpo como cogito, ou
melhor, à construção do cogito corporal. Elas alargam o horizonte de compreensão do
humano, transcendendo a estreiteza dual do modelo biomédico, a propósito do qual
Fritjof Capra (1982) atenta para a influência procedente do paradigma cartesiano. Para o
autor, este constitui o alicerce conceitual da moderna medicina científica, que pensa o
corpo humano segundo a metáfora da máquina, cuja análise se dá pelo manejo de peças
compreendidas isoladamente em seu funcionamento. A partir do entendimento da
doença como mau funcionamento dos mecanismos biológicos, a intervenção médica
visa consertar especificamente o mecanismo enguiçado localizando seu defeito.
Concentrando-se em partes cada vez menores, esta ciência perde de vista o ser humano
enquanto todo e reduzindo “a saúde a um funcionamento mecânico, não pode mais
ocupar-se com o fenômeno da cura” (CAPRA, 1982, p. 116).
Como vimos no capítulo anterior, Reich (2003) entende que os elementos do que
podemos chamar, segundo Merleau-Ponty (1999), de sensorialidade (sensações de
órgão, para Reich) constituem a condição e a fonte primeira de conhecimento. Neste
140
sentido, o corpo realiza primeiramente uma sensação corporal que será incrustada na
estrutura do indivíduo e dos grupos sociais. E só em segundo lugar, essa estrutura se
formará como negação deste corpo através do excessivo racionalismo e dos vários tipos
de encouraçamento.
Basicamente, a natureza dentro e fora de nós é acessível ao nosso
intelecto através das impressões de nossos sentidos. As impressões
dos sentidos são essencialmente sensações de órgão ou, em outras
palavras, procuramos às apalpadelas o mundo à nossa volta através
dos movimentos dos órgãos (= movimentos plasmáticos). Nossas
emoções são a resposta à impressão do mundo que nos cerca. Tanto
na percepção como na autopercepção, a impressão sensorial e a
emoção se fundem para formar uma unidade funcional (REICH,
2003, p. 66-67, grifos do autor).
Disso decorre que, para Reich, nossa atitude para com a vida e nossa imagem de
mundo dependem da dinâmica básica de nosso aparelho sensorial, ou seja, de como o
movimento protoplasmático de expansão e contração, aludido páginas atrás, se
organiza e opera funcionalmente. Este movimento pode ser caracterizado, em duas
palavras, pela plasticidade ou pela rigidez. A plasticidade ou flexibilidade se desdobram
em sintonia com o movimento espontâneo da vida (o movimento de expansão e
contração que pode ser sintetizado numa única palavra: PULSAÇÃO), o qual é livre e
criativo. A rigidez é expressa pelo encouraçamento que bloqueia a liberdade e a
espontaneidade, encapsulando a plasticidade natural do organismo e o fluxo da energia
orgone. Para Reich, “a essência da vida é funcionar, logo é antagônica à rigidez de
qualquer ordem” (REICH, 2003, p. 115, grifos do autor). Nossa abertura para o mundo
e nossa relação com o outro é moldada no interior dessa dinâmica entre rigidez e
plasticidade, pela qual o mundo objetivo e o mundo subjetivo, o sensível e o inteligível,
se fundem numa realidade simbólica construída através e a partir do corpo.
141
A essa sensorialidade, somatório das sensações de órgão ou percepções e
impressões dos sentidos, podemos chamar experiência sensível do mundo, ou seja,
sentida antes de ser racionalizada. Assim, a partir dela seria constituída o que, em
termos antropológicos, chamamos de experiência simbólica vivida. Em Reich, temos
essa relação mensurável com o conhecimento quando ele, como vimos, amplia a
cognição do modelo biomédico no qual se formou, e o faz, sobretudo, em obras como O
éter, Deus e o diabo e O assassinato de Cristo, nas quais desenvolve seu paradigma de
ciência orgonômica.
Com esse texto, Reich acrescenta um capítulo importante às investigações acerca
do conhecimento humano. Em suas proposições, o corpo emerge como instância ativa
na construção e na decifração do conhecimento sobre a realidade. Na conjectura
reichiana, o corpo é delineado por características que lhe imprimem função cognitiva,
trata-se de um corpo como cogito ou, melhor dizendo, um cogito corporal. Assim, esse
corpo é habitado por uma história particular que faz dele uma memória corporal. Corpo
que se constitui como um eixo em torno do qual o mundo é constantemente significado
e ressignificado através da pluralidade das experiências humanas cotidianas
(OLIVEIRA, 2001; 2006). No entanto, como escreve Reich em 1953: “O espírito e o
corpo, funcionando em um único e mesmo organismo, estão ainda dissociados no
pensamento humano” (REICH, 1999, p. 03).
O debate antropológico sobre a etiologia das doenças
Wilhelm Reich problematiza a causalidade das patologias emocionais de modo a
pensar a etiologia social e econômico-sexual atuantes em sua formação. Esse
142
empreendimento, no entanto, ocorreu sem que o autor perdesse de vista o doente e o
sentido do adoecimento como uma totalidade. Vejamos, ainda que rapidamente, três
correntes antropológicas (Antropologia Médica, Antropologia da Doença e
Antropologia da Saúde) que nos ajudam a perceber a confluência do pensamento de
Reich para as questões colocadas pela Antropologia
66
.
Medical Antropology ou Antropologia Médica
Na Antropologia a discussão dos sistemas explicativos sobre a etiologia das
doenças é um tema clássico (EVANS-PRITCHARD, 2005; MALINOWSKI, 1978).
Contudo, é com a Medical Antropology ou Antropologia Médica, corrente norte-
americana da discussão, que se iniciam as teorias que discutem a causalidade das
doenças com um arsenal conceitual, configurando uma disciplina específica desta área
de conhecimento.
Esta corrente se forma a partir dos estudos do antropólogo (médico de formação)
W.H.R. Rivers, que na década de 1920, pesquisou a medicina das sociedades não-
européias enquanto uma categoria na qual as relações entre saúde e cultura se
entrelaçam (LANGDON, 1995). A contribuição fundamental deste estudioso é, segundo
Langdon (1995), a concepção não fragmentada dos fenômenos entendidos como
fenômenos médicos, uma vez que estes são situados a partir de sua inserção cultural: a
própria medicina passa a ser entendia “como um sistema ligado à cultura” (LANGDON,
1995, p. 03). Porém o objeto dessa corrente, como acentua Zempléni (1994), é mais a
66
Chamo a atenção do leitor para textos importantes nessa discussão que trazem a questão da relação do
homem com o corpo: Duarte (1993) e Silveira (2000), os quais não serão trabalhados nesta pesquisa onde
construo as mediações desta relação por meio de outros autores.
143
doença do que o doente, em virtude da influência que o paradigma hopocrático exerce
sobre ela (ZEMPLÉNI, 1994, p. 137).
Antropologia da Saúde
A Antropologia da Saúde, essa corrente americana mais recente da disciplina,
compreende saúde e doença como processos configurados a partir da interação entre
elementos biológicos, psíquicos e socioculturais. Desta perspectiva, ela realiza uma
crítica ao modelo biomédico que, pautado na causalidade linear e na visão fragmentada
do pensamento cartesiano, concebe as patologias enquanto fenômenos biofisiológicos
inscritos em processos etiológicos universalmente válidos (LANGDON, 1995).
Para essa corrente, a doença não é um momento estanque, mas um processo no
qual se gesta uma experiência simbólica de organização do sofrimento vivido e
atribuição de sentido a ele. A própria experiência corporal é culturalmente orientada,
mas não se trata de uma cultura fixa, imutável, e sim, de uma cultura dinâmica e
ressiginificada pelos agentes que dela compartilham através de suas interações:
Cultura não é mais uma unidade estanque de valores, crenças,
normas, etc., mas uma expressão humana frente à realidade. É uma
construção simbólica do mundo sempre em transformação. É um
sistema simbólico fluido e aberto (LANGDON, 1995, p. 12).
A noção de doença como experiência proposta por esta corrente põe em evidência
o processo subjetivo no qual o corpo é situado em sua relação com o fazer cultural,
transcendendo a pretensa universalidade empírica dos sintomas físicos dispostos em
conjuntos no arcabouço do pensamento biomédico:
144
[o corpo]
serve para o ser humano como uma matriz simbólica que
organiza tanto sua experiência corporal como o mundo social, natural
e cosmológico. O que o corpo sente não é separado do significado da
sensação, isto é, a experiência corporal pode ser entendida como
uma realidade subjetiva onde o corpo, a percepção dele, e os
significados se unem numa experiência única que vai além dos
limites do corpo em si (LANGDON, 1995, p. 17).
Antropologia da Doença: illness, disease e sickness, a tríade etiológica das
doenças
Andras Zempléni (1994) elenca, no texto A “doença” e suas “causas”, realidades
a partir das quais se desdobram princípios de causalidade implicados no adoecimento,
os quais interagem através da relação homem meio cultura. Essas realidades são: a
“realidade ecológica”; a “realidade biofísica”; a “realidade psíquica de uma experiência
individual de transformação interna e voluntária”; a realidade intersubjetiva; a
realidade sociojurídica”; a “etiqueta sociopolítica reversível”; a “realidade cultural de
uma forma de conduta simbólica” e a “realidade histórica ontogênica” (ZEMPLÉNI,
1994, p. 137-138).
Ao superar as categorias operacionalizadas pela Antropologia Médica norte-
americana, mas incorporando algumas noções que ajudam a esclarecer aspectos de sua
discussão, Zempléni sintetiza esse leque de realidades colocando-as sob um
encadeamento causal expresso numa tríplice realidade que ultrapassa a compreensão de
que a doença deveria ser percebida enquanto estado (como faz o modelo biomédico que
universaliza seus pressupostos), e instaura a compreensão da mesma enquanto um
processo forjado no interior da experiência simbólica do mundo. Essa tríplice realidade
145
é estruturada: a) pela realidade subjetiva (illness), a experiência interior do doente
composta por seus sofrimentos, suas angústias e suas indisposições; b) pela realidade
biofísica (disease), a alteração orgânica comprovável empiricamente; e c) pela realidade
sócio-cultural (sickness), o processo de adoecimento que afeta o grupo social ao qual o
doente pertence e os meios culturais colocados à disposição do doente.
Ao articular os vários níveis atuantes na etiologia das doenças, tanto das
patologias mentais quanto das biopatias, a análise reichiana alcança o entrecruzamento
da interação eficaz e da complexidade constante da tríplice realidade assinalada por
Zempléni (1994), embora o realize sob um arranjo teórico distinto.
A interpretação da causalidade e dos “usos sociais da doença”
Apoio-me em Zempléni (1994) para desenvolver o problema da etiologia das
doenças, que recebe diferentes interpretações, variando como os “usos sociais da
doença”, isto é, de acordo com os sistemas medicinais adotados pelos diversos
agrupamentos sociais e suas respectivas culturas. Se tomarmos, como exemplo, a
interpretação causal da biomedicina clássica, conhecida como Medicina Ocidental ou
Cosmopolita, prevalecerá uma concepção interiorizante acerca da doença que destaca os
processos internos do indivíduo e despreza as interações deste com o seu meio
sociocultural, as quais podem também atuar na produção da doença. Contudo, para este
modelo, pouco é discutido que a própria medicina pode produzir doenças, como as
iatrogênicas.
Nas Medicinas Letradas do Velho Mundo, como o autor se refere ás medicinas
orientais, por exemplo, a ênfase colocada na origem da doença é referida ao
146
desequilíbrio instalado nas relações entre o homem e o meio ecológico ou cósmico.
Deste modo, suas explicações remetem à ordem exterior e impessoal ao doente que
pode ser restabelecida quando o indivíduo puder ser conduzido ao estado de equilíbrio.
Embora seja externa, essa ordem é a-social no horizonte cognitivo deste paradigma.
A Medicina Sem Escrita, isto é, praticada pelas sociedades marcadas pela
transmissão oral dos conhecimentos (como as sociedades tribais africanas), situa sua
etiologia das doenças na origem mais remota da sua fonte (que remonta ao por quê da
doença) e nos seus agentes (“força eficaz” atuante no adoecimento), ambos invisíveis.
Trata-se de uma concepção exteriorizante que confere um sentido social à doença,
assentado em “representações sócio-etiológicas” que, em sociedades que não
apresentam organização política centralizada, exercem “uma poderosa força de controle
social” (ZEMPLÉNI, 1994, p. 141). O diagnóstico tem o peso de um recurso jurídico,
como ele mesmo diz no sentido em que entende a doença como sanção às práticas
transgressoras aos interditos estabelecidos pela sociedade, na qual operam os
pressupostos tanto da doença quanto da cura. Por meio da doença é possível conduzir
uma espécie de normalização das relações e condutas sociais, fixando as proibições e as
regras de evitação que devem ser observadas para o indivíduo não adoecer.
O repertório de causalidade das doenças percorre, nessas sociedades, uma
“seqüência causal convergente”, ou seja, múltiplas causas convergem para a produção
do efeito-doença (ZEMPLÉNI, 1994, p. 157). Diferentemente deste modelo, a Medicina
Ocidental enfatiza as “relações causa-efeito biunívocas” (ZEMPLÉNI, 1994, p. 157),
segundo seu movimento de radicalização epistemológica - princípio partilhado também
pela Psicanálise freudiana, quando situa sua explicação dos conflitos patológicos no
recalcamento psíquico das pulsões sexuais.
147
O problema em torno da “causa”, do “agente”, e da “origem” da doença pode
sintetizado esquematicamente no quadro abaixo, extraído de Andras Zempléni:
Doença causa Agente origem
qual doença? como? Quem ou qual? por que?
sintomas
taxonomia
Meio
mecanismo
força eficaz acontecimentos
conjeturas
terminologias
correntes
Causa
instrumental
(imediata)
Causa eficiente causa última
ou final
Fonte: ZEMPLÉNI, 1994, p. 143.
Das razões ao sentido do adoecimento
Uma das idéias-chave para uma compreensão profunda dos processos de doença e
cura é assinalada por Oliveira (2001). Na esteira da crítica ao modelo biomédico e ao
pensamento cartesiano, a autora desloca a ênfase do que ela denomina razões do
adoecer para o sentido que o adoecimento encerra, enfatizando que nesse processo
formador da doença se expressa a relação entre o ser e o mundo. Assim, “se uma
consciência não puder se alargar para fora, numa ordem de comunicação com o mundo,
esta consciência tenderá a se alargar para dentro, num mundo que corta a comunicação
com os outros mundos, ou seja, na doença” (OLIVEIRA, 2001, p. 20).
As cisões, dualidades e contradições instauradas entre o homem e o mundo que ele
habita (mundo natural, sociocultural e cósmico), assim como a cisão entre seu corpo e
sua alma, são elementos operantes no adoecer segundo uma “lógica de conjunção
constante”, isto é, uma gica que rompe com a causalidade linear determinada
148
biologicamente e, por isso, é capaz de “reconhecer a presença de vários episódios
envolvidos na doença, interligados por meio de um mesmo encadeamento causal”
(OLIVEIRA, 2001, p. 04). Na visão da autora, o adoecer é um processo complexo e,
como ela destaca no texto, multifacetado, pluridimensional e, além disso, holonômico,
pois envolve campos, feixes e fluxos de energia (OLIVEIRA, 2001).
A autora chama a atenção para a idéia de que a cura pressupõe um
reequacionamento da relação do doente com o mundo, que possibilite sua comunicação
com o mesmo, e isso exige a transcendência das dualidades e a imersão na unicidade
que religa as polaridades corpo-mente, subjetividade-objetividade, sensível e inteligível.
No estudo de Oliveira (2001) que tomamos como referência, esse reequacionamento da
relação entre doente e mundo é abordado no contexto da benzedura e da eficácia
simbólica de cura mobilizada pela benzedeira
67
, que funde através de suas práticas
rituais “o objetivo ao subjetivo, o real ao simbólico, o mágico ao não-mágico, as
palavras aos atos e às coisas, o fantástico ao ilusório” (OLIVEIRA, 2001, p. 11).
Ocorrem nesse processo uma simbolização e uma organização da experiência humana
em direção à restituição do sentido da existência.
Uma perspectiva que atravessa o trabalho de Oliveira (2001) é a de
reencantamento do mundo, pois vivemos num mundo desencantado, frio, dicotômico. É
preciso redescobrir o sentido da existência e reencantar o mundo. Para isso, é necessário
acessar sua alma e o sentido da existência através da compreensão profunda do que é o
homem. Reencantar o mundo é desentranhar e fazer reviver os significados da vida
presentes nas dimensões mais recônditas da alma humana, conteúdo e continente da
67
A eficácia simbólica de cura nesse contexto pode ser pensada como um processo singular no qual, pela
invocação e mobilização da ordem sobrenatural “os caminhos são abertos para a atuação dos espíritos
protetores” (OLIVEIRA, 2001, p. 10) ou, em outros termos, para a potencialização da intenção e desejo
de cura, presente na ativação (vibracional) de um pensamento informado por essa intencionalidade - ela
mesma um princípio que opera uma razão analógica, ou seja, mobiliza tanto as intenções e desejos dentro
do homem como as que se situam fora dele, no universo. A prática por meio da qual a benzedeira
mobiliza esta realidade analógica, constrói níveis de significação e resgata “o cliente do plano fisiológico
para o simbólico e vice-versa” (OLIVEIRA, 2001, p. 10).
149
alma do mundo. No mundo reencantado, homem e cosmos são regidos por fluxos
uníssonos, tal como ocorre no modelo que Reich constrói de Cristo, trabalhado no
capítulo anterior.
A leitura hermenêutica do corpo
Com seu método inclusivo, absorvendo inúmeras contribuições oriundas de outros
campos do saber, além da Medicina e da Psicanálise (Física, Filosofia, Sociologia,
Antropologia, História, Política, Economia), Reich foi muito criticado por colocar em
causa a ciência cartesiana erudita. Ele desenvolveu meios não-verbais de trabalhar com
a psique, buscando superar a cisão corpo/mente (soma/psique). Ateve-se ao corpo e sua
bioenergética em seus ritmos e fluxos, cujas mensagens não escapavam à sua leitura
atenta, que pôde reconhecer nas agonias, nas grimas, no enrijecimento, nas posturas,
nas contrações e espasmos de dor ou alegria, uma memória inconsciente cravada no
corpo.
A teoria do orgasmo e os estudos que demonstraram o conteúdo social e
ideológico das patologias mentais foram contribuições de Reich que precederam a
elaboração do paradigma tipológico da análise do caráter que embasou a vegetoterapia.
Através de sua larga experiência clínica, Reich demonstrou que as patologias não se
curavam apenas pelo verbo, pela palavra - patamar de atuação da Psicanálise - porque
elas possuíam uma ancoragem somática. Essa ancoragem somática, como vimos, se
expressava na couraça muscular (correspondente corporal da couraça psíquica de
caráter) que também requeria intervenção terapêutica (REICH, 2004a).
150
Segundo Reich (2004a), a principal resistência terapêutica do paciente revela-se
não através do que era dito ou feito por este, mas através do modo como o paciente dizia
ou fazia. Aqui, sua teoria não era normativa no sentido de ter como modelo o que era
usual na cultura, mas sim o tom (o sentimento presente nas expressões corporais do
paciente). Desse modo, a relação entre terapeuta e paciente não é conduzida pela
influência do etnocentrismo que busca afirmar as regras e valores da cultura à qual eles
pertencem. O corpo como memória tem também a capacidade de gerar regras próprias
de procedimentos, novas formas de inserção no mundo.
A ênfase reichiana deslocava-se do que coisa para o como, pois a forma corporal
dessa expressão permitia conhecer pela tipologia reichiana, o caráter do paciente. Como
vimos, com base no estudo das mudanças nas posturas corporais que acompanhavam o
aflorar das emoções, Reich observou que havia uma couraça muscular correspondente à
couraça psíquica descoberta que enfrentou oposições em meados dos anos 1920 e
1930. Vemos aqui que ele compreendia simultaneamente natureza e cultura, biológico e
simbólico. Pode-se dizer que, para ele, que pensava simultaneamente natureza e cultura,
o corpo era o inconsciente visível, manifesto através das expressões corporais das
emoções e das idéias.
Estranha convergência com os autores da Antropologia do Imaginário
influenciados, no início dos anos 80, pela teoria russa da reflexologia, cujas pesquisas
datam dos primeiros decênios do culo XIX. Reich teria bebido na mesma fonte? A
Escola de Leningrado, representada por W. Betcherev e sua equipe, elaborou no século
XIX uma teoria da reflexologia, que postula que os chamados gestos ou reflexos
dominantes são matrizes originárias que fundamentam os grandes conjuntos simbólicos,
paulatinamente, edificados sobre elas (DURAND, 2001). O recém-nascido apresenta
dois desses tipos de reflexos, um caracterizado pela dominante postural, na formação do
151
qual atuam as variações de postura, como um choque, uma queda ou um empurrão; o
outro, pela variante digestiva, expressa nos movimentos de sucção labial e de
direcionamento da cabeça. O reflexo referente a terceira dominante, a copulativa, é
observada no indivíduo adulto, incidindo sobre a forma das manifestações da pulsão
sexual. Assim:
Estamos diante de três grandes séries de “gestos dominates”
(postural, digestivo e copulativo), nas quais a maioria dos
psicofisiológicos, partidários de uma origem central e exclusiva do
fenômeno da dominância ou de uma teoria periférica (onde o corpo
inteiro participa na construção do fenômeno), observam os processos
matriciais das grandes categorias das re-presentações (DURAND,
2001, p. 43-44).
Corpo e emoção, uma unidade indivisível
Para Wilhelm Reich, as emoções vêm acompanhadas de movimentos rítmicos do
organismo. O coração acelera quando sentimos raiva ou paixão, contraímos quando
sentimos medo, e, assim, também temos movimentos corporais determinados por
sentimentos. Para essa visão, é no interior do afrontamento e da delimitação entre o
somático e o psíquico que parece se moldar o nosso organismo. Vejamos numa escritora
reichiana que os sentimentos influenciam, modificam, facilitam ou impedem os próprios
movimentos de funcionalidade de cada órgão e vice-versa (ARAÚJO, 2004).
Como vimos, ao focar a atividade terapêutica na interpretação do como, Reich
arroga ao terapeuta a tarefa de interpretar sinais não-verbais, subjacentes à elaboração
psíquica comunicada pelo paciente. Assim, ele nos apresenta uma leitura hermenêutica
do corpo. Apesar de não focar sua interpretação nas associações verbais livres dos
pacientes, colocando em primeiro plano as expressões corporais dos mesmos, o trabalho
152
hermenêutico de Reich se realiza, seguindo tal como em Freud, um modelo semiológico
de percepção e interpretação dos sinais ou sistemas de sinais comunicados em seu
contexto - em Freud, através da fala; em Reich, através das expressões (modos e
posturas) do corpo, indícios de calor, esfriamento, formigamentos, tremores, apertos,
encolhimentos, etc.
O estudo do corpo do ponto de vista reichiano aponta-o como um locus
privilegiado de convergência entre três estratos importantes: o social, o psicológico e o
biológico. Marcado pela história individual e pela história social, no corpo “estão
inscritos os constrangimentos e as repressões, da mesma forma que também os
costumes, os usos, os rituais que me foram transmitidos, legados, impostos pela minha
família, minha cultura, meu meio ambiente” (NAVARRO, 1987b, p. 15).
Wilhelm Reich e o paradigma indiciário
Wilhelm Reich constrói um conhecimento cujas raízes provêm eminentemente de
um paradigma indiciário ou semiótico, isto é, apreendido pela experiência (nascido da
concretude da experiência) e pela conjeturalidade do conhecimento humano, como nos
permite pensar os estudos sobre conhecimento indiciário realizados por Carlo Ginzburg
(GINZBURG, 1989). Esse autor denomina esse conhecimento como “um saber de tipo
venatório” que se caracteriza pela “capacidade de, a partir de dados aparentemente
negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente”
(GINZBURG, 1989, p. 152). Mesmo considerando, no caso de Reich, que ele não abria
mão da experimentação, é possível situá-lo de modo análogo aos caçadores na busca por
reconstituir hermeneuticamente uma realidade oculta. Durante milênios o homem se
153
dedicou à caça e, com a prática desta atividade no decorrer do tempo, ele aprendeu a
reconhecer e interpretar “pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos
de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados” (GINZBURG, 1989, p. 151),
reconstruindo por meio destes sinais (ou indícios) as formas e os movimentos das presas
já invisíveis.
Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas
infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações
mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso
bosque ou de uma clareira cheia de ciladas (GINZBURG, 1989, p.
151).
No contexto do pensamento reichiano, o corpo é um território, um bosque ou uma
clareira, a ser decifrado, cujas pistas, expressas continuamente, o podem ser
negligenciadas. Reich trabalhava os corpos vivos, levando em conta a temperatura, a
estrutura e os sinais que eles comunicavam - em seu conjunto, estas variáveis lhe
revelavam conteúdos significativos do sofrimento do paciente. Um exemplo simples é a
presença do sinal ao qual ele relaciona o sentimento de angústia: ele é expresso por um
corpo encolhido. Reich dizia que a distância e a carência de contato se mostrariam num
corpo frio e enrijecido, no qual os fluxos energéticos não fluem livremente provocando
perturbações fisiológicas saturadas de conteúdo afetivo. Estranha confluência que
entre seu pensamento e o de Lévi-Strauss no trato do paralelismo psicofísico discutido
em A Eficácia Simbólica (1996), para quem “processos orgânicos, psiquismo
inconsciente” e “pensamento refletido” constituem “estruturas formalmente homólogas”
(LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 233).
Vários autores que dialogam com o modelo biomédico, quando este sobrepõe o
biológico ao cultural (CAPRA, 1982; ZEMPLÉNI, 1994; LANGDON, 1995;
OLIVEIRA, 1998; 2001; 2006), nos mostram que o corpo transcende sua condição
154
biológica: um corpo é, na verdade, uma construção; uma construção que jamais se
por encerrada. É o resultado dinâmico de infinitas sínteses entre o material e o social. O
corpo exclusivamente biológico, portanto, não passa de uma ficção” (MARINHO, 1998,
p. 47).
É sobre essa construção - material e simbólica - que se fará o trabalho analítico
corporal de Reich. Para ele, o corpo é formado por camadas, cada qual armazenando
conteúdos que precisam ser compreendidos e integrados: camadas sociais, culturais, e as
mais profundas são as camadas vegetativas. Quando reinstauradas todas elas realizarão
harmonicamente o movimento básico de pulsação (expansão e contração), reconectando
o homem ao mundo circundante enquanto microcosmo do macrocosmo.
Wilhelm Reich, entre o sensível e o inteligível
Separar artificialmente a dimensão sensível da dimensão inteligível é inadequado
para pensar antropologicamente o corpo. Como alude a fenomenologia de Merleau-
Ponty (1999), o corpo é mais do que um estrato biológico, ele é dotado de uma
intencionalidade e atua na significação do mundo, com o qual forma um sistema: o
corpo “está no mundo, assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo
visível continuamente em vida, anima-o, alimenta-o interiormente, forma com ele um
sistema” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 273). Nesse sentido, o autor diferencia seu
pensamento da tradição cartesiana que instala uma hierarquia entre corpo e espírito,
uma vez que esta entende o espírito como principal instância de construção da realidade
e do conhecimento.
155
A integração entre o sensível e o inteligível foi buscada por Claude Lévi-Strauss
na Antropologia e nucleia sua discussão estruturalista (LÉVI-STRAUSS, 1957; 1976;
1982; 1989; 1991; 1996). Um dos pontos nodais da obra de Lévi-Strauss é a crítica ao
paradigma cartesiano que embasa o modelo ocidental do pensamento. O método
cartesiano separa o sujeito racional do mundo objetivo e esta separação é colocada
como condição para se obter verdades efetivas, como se a razão pudesse conhecer a
realidade desse mundo objetivamente um mundo que ela constitui como estando fora
dela. Ora, essa abordagem extremamente objetivista promove no humano uma ruptura
entre o sensível e o inteligível, cuja unidade é recuperada por Reich em suas pesquisas e
em suas práticas terapêuticas.
Com base em Rousseau, que concebe o encontro com o outro como um processo
de identificação composto pela subjetividade e afetividade, Lévi-Strauss (1976)
questiona as separações operadas pelo pensamento cartesiano: “Descartes acredita
passar da interioridade de um homem à exterioridade do mundo, sem ver que entre esses
dois extremos se colocam sociedades, civilizações, isto é, mundos de homens” (LÉVI-
STRAUSS, 1976, p. 44), cujas realidades são inexplicáveis e inexploráveis daquele
modo.
Rousseau é visto por Lévi-Strauss (1976) como o fundador das ciências do
homem, especialmente da Etnologia, que incorporava reflexões que viriam
caracterizá-la. A percepção do “eu” a partir do encontro com o “outro” e do
conhecimento formulado acerca e a partir dele, bem como os métodos e programas da
Etnologia contemporânea, onde o próprio observador aparece como instrumento de
observação, podem ser localizados no pensamento rousseauniano. Para Rousseau, a
identificação com o outro, através do reconhecimento da humanidade e da vida presente
nele, precede a consciência das oposições (LÉVI-STRAUSS, 1976). Segundo Lévi-
156
Strauss, também podemos aprender com Rousseau que no encontro com o outro, nossa
subjetividade é ampliada e reelaborada pela identificação da diferença e pelo
reconhecimento da alteridade. A partir desse encontro, o homem pode sair do
etnocentrismo e reconhecer sua sociedade não como uma forma social privilegiada, mas
simplesmente uma entre outras formas sociais. Além disso, Rousseau atribuiu ao
homem uma faculdade essencial: a de ser capaz de expressar e reunir a um só tempo o
natural e o cultural, o afetivo e o racional, o animal e o humano (LÉVI-STRAUSS,
1976).
Para Lévi-Strauss (1976), Rousseau revolucionou a filosofia cartesiana, pois suas
concepções acerca da Lingüística, da Música e da Botânica unificaram o sensível e o
inteligível. De acordo com o autor, Rousseau entende que a linguagem propiciaria à
sociedade condições de se reproduzir, pois é no universo metafórico da língua que a
sociedade produz suas representações do mundo e as comunica. Lévi-Strauss continua
dizendo que, para Rousseau, a Música é, por excelência, a forma de expressão que
recusa a oposição entre o material e o espiritual, o corpo e a alma. Ela produz um apelo
aos nossos sentidos tocando nossos ritmos corporais e espirituais, unindo o sensível ao
inteligível. A Botânica também, ele diz, traz essa mesma aspiração de integração entre o
sensível e o inteligível, pois a estrutura da natureza ordenada, deste ponto de vista, pode
ser abstraída indutivamente a partir do sensível. Na relação com o reino da natureza o
ser humano é recolocado na sua condição de ser vivo, desmascarando a idéia de um
reino humano soberano, onde o homem, vestido pelo manto da cultura sob o qual sua
condição natural é ocultada, é apartado da natureza.
Desde o início, Reich negava-se a aplicar livremente as leis e noções mecanicistas
derivadas da física cartesiana aos organismos vivos. Ele atentava à interação entre as
dimensões social e psicológica por meio da relação estabelecida entre costume social e
157
consciência individual (ARAÚJO, 2004). O costume social, caracterizado por
repressividade e intolerância, impulsionava Reich ao combate dos velhos padrões
morais. Para ele, a mudança da estrutura social era requisito para a transformação da
estrutura bio-psíquica do indivíduo e vice-versa.
Ao alargar a compreensão acerca do homem, que a experiência humana possui
aspectos multidimensionais, a concepção sobre o homem de Ernest Cassirer (1982),
esse hermeneuta alemão tão presente na Antropologia do Imaginário, convergiu para a
nossa discussão:
além da linguagem intelectual temos a linguagem emotiva; além da
linguagem lógica ou científica, a linguagem da imaginação poética.
[...] A razão é um termo verdadeiramente inadequado para abranger
as formas da vida cultural humana em toda sua riqueza e diversidade,
mas todas essas formas são simbólicas. Portanto, em vez de definir o
homem como animal racional, defini-lo-emos como um animal
simbólico (CASSIRER, 1982, p. 358).
Assim, Reich pode nos ajudar a compreender como são produzidos ou são
impedidos os meios e as formas no que respeita à comunicação entre os diversos
mundos e ao sentimento de pertença a eles. Novamente retomo a autora sobre Eficácia
simbólica de cura e razão analógica, pois ela nos chama a atenção para que, na medida
em que somos capazes de transcender o dualismo cartesiano, “acessamos a condição de
que compartilhamos de uma natureza unitiva com a história do planeta, da espécie,
através de uma hu-ma-ni-da-de, aberta e ampla...” (OLIVEIRA, 2001, p. 20).
Acessamos, assim, a essência comum que une todas as coisas do universo, que em
Reich aparece como uma energia vital primordial, a energia orgone cósmica, e em
Durand (2002) como dimensão imaginal.
158
O corpo como dimensão holonômica
Stanislav Grof (1987), esse conceituado cientista tcheco contemporâneo que
apoiou muito do seu trabalho terapêutico na teoria reichiana e junguiana, salienta que:
Pelo seu modo de encarar a natureza, [Reich] aproximou-se da visão
de mundo [holonômica] sugerida pela física quântico-relativista,
enfatizando a unidade subjacente, focalizando o processo e
movimento em vez de substância e estrutura sólida e reconhecendo o
papel ativo do observador (GROF, 1987, p. 126, colchetes e grifos
meus).
Roger Garaudy (2002) nos oferece uma imagem holonômica do indivíduo, a qual
é pautada em referenciais da física quântica, na qual o indivíduo corresponde a um
microcosmo do macrocosmo, podendo ainda ser pensado não como “um átomo fechado
em si mesmo, mas um núcleo mais denso de uma energia da qual participa, onde se
enlaçam forças e fibras que o tornam solidário ao todo” (GARAUDY, 2002, p. 25). A
imagem bioenergética presente nas formulações de Reich encontra nesta expressão de
Garaudy similitudes. Elas nos ajudam a desentranhar dimensões que guardam profundos
significados da vida, ampliando horizontes cognitivos, capazes de abarcar várias
dimensões gnosiológicas do mundo e da existência, além da sua dimensão mítica.
Embora não trabalhe com a idéia de dimensão mítica da existência, Reich
experimentou-a intimamente ao mergulhar no Hades existencial. Ele fez dessa
experiência uma exegese corporal, na medida em que fala do corpo como algo
conectado ao cosmos e, como este, pulsa por meio de movimentos de expansão e
contração. Tal postura evidencia sem dúvida a interconectividade dos mundos psíquico,
social, animal, vegetal e mineral. Trata-se de uma visão do homem enquanto unidade
holonômica co-implicada numa totalidade maior: o cosmos.
159
O “organismo encouraçado” de Reich e a hermenêutica do imaginário
antropológico
Yves Durand (2003), em seu texto Imaginário e Psicologia, retoma da Escola de
Grenoble a noção de duplo enraizamento biológico e sociocultural do comportamento e
do imaginário. Esta idéia estruturante desse seu trabalho nos fornece uma fecunda chave
de leitura profícua à análise da gênese explicativa proposta por Wilhelm Reich aos
fenômenos que estudou. De acordo com Yves Durand (2003):
Imaginário e psicologia têm em comum o fato de se basearem
simultaneamente nestas duas grandes categorias antropológicas que
são o biológico e o cultural. Qualquer teoria do imaginário se
inscreve (mais ou menos explicitamente) entre o substrato biológico
(pulsional, reflexológico por exemplo) e um ambiente simbolizável
(sociocultural e igualmente natural) e nenhuma abordagem
psicológica de um comportamento poderá ocultar o seu duplo
enraizamento biológico e cultural (DURAND, 2003, p. 170-171).
Esse duplo enraizamento entre natureza e cultura também é articulado na
formulação do conceito de trajeto antropológico, desenvolvido por Gilbert Durand
(2002). Conforme a hermenêutica deste autor, as influências psicológicas, cósmicas e
sociais constituem o substrato da condição humana, fornecendo energia para a formação
corporal dos símbolos. Durand enfatiza que o trajeto antropológico é mobilizado por
meio da tensão existente entre as pulsões que vêm do corpo e as solicitações e
exigências do meio externo. O conceito de trajeto antropológico nos permite também
refletir sobre Reich e sua produção enquanto trajetividade, construção sempre contínua,
mediada pelo imaginário.
Embora a trajetividade represente uma tensão constante ao nível do imaginário,
esse campo formador da memória primordial da humanidade, que produz os sentidos
160
simbólicos da experiência humana do mundo no mundo, isto não significa que a
trajetividade opere uma cisão entre corpo e imaginário, pelo contrário, a experiência
corporal é mobilizadora das estruturas antropológicas do imaginário, contudo
diferentemente de Reich, através do inconsciente coletivo e não apenas do inconsciente
individual. De acordo com Durand (2001):
todo imaginário humano articula-se por meio de estruturas plurais e
irredutíveis, limitadas a três classes que gravitam ao redor dos
processos matriciais do “separar” (heróico), “incluir” (místico) e
“dramatizar” (disseminador), ou pela distribuição das imagens ao
longo do tempo (DURAND, 2001, p. 40).
Sob essas três citadas classes, temos também três tipos de estruturas
antropológicas do imaginário: a. a estrutura heróica (localizando o inimigo e
derrotando-o por meio de armas); b. a estrutura mística (dificultando a aproximação da
morte pela busca de harmonia) e c. a estrutura dramática (reciclando o tempo para
impedir a morte). Também elas podem ser compreendidas como um tipo ideal. Através
delas atuam os símbolos e os arquétipos do inconsciente coletivo (conceito tomado pela
Antropologia do Imaginário da psicologia junguiana), pelos quais acessamos esse
patrimônio primordial da humanidade.
Diversamente de Reich que constrói uma tipologia para abarcar a relação entre
natureza e cultura (conflito das necessidades internas do homem com as imposições do
meio externo), Durand elabora uma arquetipologia, onde os arquétipos na sua condição
de imagens primordiais são uma constante universal, cujo conteúdo simbólico é
instituído segundo a cultura na qual se insere.
No conjunto das exposições acerca do pensamento de Wilhelm Reich que viemos
trabalhando até aqui, podemos destacar que o esforço cognitivo do autor em tecer
explicações para os fenômenos que se propõe a estudar é imbuído por uma dinâmica
161
coimplicacionista. Isto significa, por parte dele, a percepção das coisas como realidades
interconectadas, entrecruzadas no cerne existencial que compõe a experiência humana
do mundo e no mundo, isto é, para além das couraças neurovegetativas. A hermenêutica
desenvolvida por Reich não se enquadra no estatuto do sentido lógico ou funcional de
uma doença, mesmo que possamos concebê-la como um pathos, ela adentra o sentido
ontológico ou existencial, colocando-nos a necessidade e a exigência da busca por um
sentido profundo para sua compreensão.
Veja-se, por exemplo, Reich abre o primeiro capítulo de O assassinato de Cristo
(1999) retomando Jean-Jacques Rousseau e indagando-se sobre como pode o homem
passar sua vida como escravo se ele nasce livre. Para o autor:
Deve haver, no interior da sociedade humana alguma coisa [bem
escondida] que atue impedindo que se coloque a questão correta de
maneira a se chegar à resposta correta. (...) O elemento escondido é a
PESTE EMOCIONAL DO HOMEM. (...) A humanidade imaginou
muitos sistemas de pensamento para enfrentar a Natureza. Mas a
natureza, funcional e não-mecânica, como ela de fato é, sempre
escapou por entre seus dedos. A humanidade sempre correu atrás de
uma ínfima parcela de esperança e conhecimento. Mas depois de três
milênios de pesquisas, de tormentos, de sofrimentos, de assassinatos
punindo heresias, e perseguições por faltas aparentes, ela não
conseguiu mais do que algum conforto para uma minoria, sob a
forma de automóveis, aviões, refrigeradores e aparelhos de rádio
(REICH, 1999, p. 01-03, colchetes meus).
Segundo Wilhelm Reich, o homem está preso numa armadilha, esse inferno de
Hades ao qual alude, e essa armadilha é a sua própria estrutura emocional, sua estrutura
de caráter. Para se libertar é preciso que conheça a armadilha e a si mesmo. As chaves
da saída para o espaço aberto (infinito) não se encontram fora desta armadilha, estão
contidas, cimentadas, na couraça de caráter e na rigidez mecânica de seu corpo e alma.
162
A couraça física e emocional faz do homem um ser imóvel e sua rigidez torna
árduo todo e qualquer movimento. E isso não é natural e não deve ser aceito como tal. O
imobilismo, segundo Reich (1999), é a característica fundamental dos seres humanos
que reproduzem como autômatos os mesmos movimentos mecânicos todos os dias e
durante anos, talvez décadas, fazem as mesmas coisas com regularidade. O problema
que aqui se coloca é o problema do conflito entre o movimento e as estruturas
congeladas”, sendo que para o autor, estas últimas são finitas e estreitas e o movimento,
somente ele, é infinito (REICH, 1999, p. 82, grifos do autor).
No interior de uma visão sobre o imaginário, uma possível chave de leitura para o
encouraçamento se apresenta através de um conceito oriundo da hermenêutica
psicanalítica e junguiana: a angústia da morte. O imaginário ou o imaginário
antropológico é criado em relação à condição da efemeridade da vida - a finitude
(ORTIZ-OSÉS, 2003; DURAND, 2002). Para Durand (2002), o fenômeno da morte e o
medo criado por cada um de nós podem ser pensados como uma situação mediadora
decisiva para refazer os elos existentes entre natureza e cultura e o afrontamento com o
fenômeno da morte se coloca como uma realidade inexorável:
É a objetividade que baliza e recorta mecanicamente os instantes
mediadores de nossa sede, é o tempo que distende a nossa saciedade
num laborioso desespero, mas é o espaço imaginário que, pelo
contrário, reconstitui livremente e imediatamente em cada instante o
horizonte e a esperança do Ser na sua perenidade (DURAND, 2002,
p. 433).
O encouraçamento encerra em si um movimento de tensão paralisante entre as
forças da vida e as forças da morte. Esta tensão se manifesta em angústias,
encolhimentos, contrações que negam as expressões livres, espontâneas e afirmativas da
vida. A imagem que Reich nos apresenta do organismo encouraçado parece reproduzir a
luta mítica entre as forças de Eros e Thanatos que, centrípeta e centrifugamente,
163
realizam a co-implicação das esferas atuantes no indivíduo (natural, biológica, psíquica,
sociocultural, histórica, cósmica), que o conduzem à sua intersecção com o todo, ou
seja, sua condição de microcosmo do macrocosmo. E é o corpo o locus privilegiado
desse amplo entrecruzamento, a corporeidade.
164
Considerações Finais
É preciso ser muito leve para levar sua vontade de conhecimento até
uma tal distância e como que para além de seu tempo, para se criar
olhos para a supervisão de milênios e ainda por cima céu puro
nesses olhos! É preciso ter-se desvencilhado de muito daquilo que,
precisamente a nós; Europeus de hoje, oprime, entrava, mantém
abaixados, torna pesados. O homem de um tal além, que quer
discernir as mais altas medidas de valor de seu tempo, precisa, para
isso, primeiramente “superar” em si mesmo esse tempo - é a prova
de sua força - e, conseqüentemente, não só seu tempo, mas também a
má vontade e contradição que ele próprio teve até agora contra esse
tempo, seu sofrimento com esse tempo...
68
Friedrich Nietzsche
A forte resistência, rejeição e incompreensão desenvolvidas por vários setores da
sociedade a um pensamento que se revelava cada vez mais unitivo em relação aos
dualismos presentes no fazer ciência de modo cartesiano do século XX, e, que
transpunha o terreno comum das visões acerca do plano manifesto da realidade, foi o
maior dilema que enfrentou Wilhelm Reich e o seu paradigma orgonômico.
A alteridade não pôde ser reconhecida. A pesquisa de Reich tocava o cerne mais
profundo do homem, não apenas a sexualidade reprimida, mas o impedimento ôntico de
plena realização das potencialidades humanas e sociais. A sociedade não estava
preparada para assimilar sua contribuição sem distorcê-la e difamá-la. Na época em que
produziu suas pesquisas, a ciência dominante ainda não se vira diante do desafio de
ampliar seu saber e abarcar outras propostas de conhecimento da realidade.
A Ciência Moderna, fundada sob uma epistemé que deita raízes em todo um
conjunto de conhecimentos tradicionais e ocultistas da Idade Média (LEÓN, 2001), para
68
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 222.
165
se construir enquanto tal rompeu com a epistemologia fundada nos procedimentos
analógicos que orientavam seus saberes e, cedendo lugar à análise, inaugurou o estatuto
de um conhecimento construído sob uma divisão das ciências que passaram a ser
orientadas pela lógica aristotélica de classificação e mensuração, ou seja, pautadas não
no processo de aproximação dos semelhantes (pensamento analógico), mas no seu
discernimento enquanto identidades insulares. O pensamento de Reich era analógico.
Ele trazia de volta o discurso da analogia, de aproximação dos semelhantes, seres,
homens e coisas, e o fez ao relacionar os movimentos internos do organismo com os
movimentos do cosmos (expansão e contração, isto é, pulsação), ou seja, o fez pela
captação visceral dos ritmos orgânicos da vida.
Os cientistas de sua época e ainda inúmeros cientistas de hoje excluem e
ilegitimam Wilhelm Reich, lançando seu pensamento que é integrador, unitivo, no
terreno da loucura ou do delirante e incompreensível, antes de buscar compreendê-lo em
seus próprios termos e cotejar suas concepções quanto ao modo como ele amplia a
epistemologia de outros paradigmas. Seria por que essa chamada loucura mobilizava a
suposta normalidade dos seus pares, os cientistas da sua época?
Entendo que as divergências teóricas que figuram no seio da comunidade
científica, acadêmica ou não, não se encerram nas contraposições pessoais de cada
pensador ou grupo. Assim, os critérios de legitimação dos conhecimentos produzidos
são socialmente construídos e aludem a uma certa direção que a ciência estaria tomando
no cenário mundial, de meados do século XX, quando a partir daí inicia-se uma nova
reparadigmatização do conhecimento, a qual Gilbert Durand alude como quinto
Humanismo.
Todavia, os ataques da comunidade científica aos seus hereges não são
incomuns na formação do modelo ocidental do pensamento e a ciência conheceu
166
diversas histórias de cientistas que foram alijados no decorrer desse processo. Com base
em tais idéias, nesta Dissertação podemos compreender Reich e sua compreensão da
vida e do homem nessa anti-história da anti-filosofia pelo conceito de trajeto
antropológico - esse conceito unificador da Antropologia do Imaginário, que nos revela
que é nessa tensão entre os pólos heróicos, místicos e dramáticos, como vimos no
capítulo 4, que o conhecimento sobre o mundo vai sendo construído.
O processo de legitimação do conhecimento feito pela comunidade científica
que coloca Reich no terreno da loucura e que acaba por excluí-lo e atacá-lo, acreditava-
se capaz de se apropriar com exclusividade da intrínseca verdade das coisas e,
imediatamente, excluir o que não pudesse abarcar em seu escopo, cujas limitações, hoje,
se tornaram cada vez mais declaradas (DURAND, 1995; CAPRA, 1982; OLIVEIRA,
1998, 2001). Embora esse ideal científico racionalista seja contestado por inúmeros
autores das diferentes ciências sociais, ele ainda o tom na ciência e na análise dos
processos sociais contemporâneos. Contudo, com Kuhn, ainda podemos compreender
que a ciência consiste numa construção social, coletiva e provisória, e as revoluções
científicas constituem “complementos desintegradores da tradição à qual a atividade da
ciência normal está ligada” (KUHN, 2001, p. 25). Desse modo, prossegue o autor que o
próprio mundo passa por mudanças quando ocorrem revoluções paradigmáticas no
pensamento científico. Assim, aos novos paradigmas estão relacionados novos
instrumentos de experimentação e também novos operadores cognitivos no plano
teórico-metodológico que redirecionam o olhar tanto para a apreciação de dimensões
antes não abarcadas, quanto para o cotejamento de velhas concepções segundo novos
pontos de vista: “após uma revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente”
(KUHN, 2001, p. 145-146).
167
Um novo paradigma pode transformar o mundo dos cientistas, provocando uma
mudança radical de percepção. No sentido das palavras de Thomas Kuhn, Reich pode
ser entendido como um pensador responsável por uma mudança paradigmática no
interior do pensamento psicanalítico, do qual participara durante os anos 1920 e início
dos anos 1930. As mudanças metodológicas sustentadas por sua nova teoria
testemunham como a natureza da realidade é, ontologicamente, indissociável da
natureza do conhecimento que a conceitua. E como nos ensina Lévi-Strauss, a atividade
intrínseca do pensamento é sua constância em ordenar e significar o mundo, e o
pensamento e a sensibilidade participam simultaneamente do processo de simbolização
da realidade (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 54), muito próximo do que Reich desenvolveu.
Segundo Grof, Phillipp Frank (matemático, físico e filósofo) foi quem derrubou,
na primeira metade do século XX, “o mito de que as teorias científicas são originadas
em fatos diretamente observáveis, e não são discrepantes da observação do mundo
fenomenal” (GROF, 1987, p. 09), ao colocar que a verdade dos axiomas decorreria
“muito mais das faculdades imaginativas da mente do que da lógica” (GROF, 1987, p.
09). Dessa forma, a verdade, além de ser relativa, seria formulada também por meio de
processos intuitivos. Sendo a ciência um empreendimento anárquico (GROF, 1987;
FEYERABEND, 1977), seus princípios estão longe de serem firmes, absolutos e
imutáveis. Em tal empreendimento, “a razão não pode ser universal e o irracional não
pode ser completamente excluído” (GROF, 1987, p. 11). O problema é como excluí-lo e
como incorporá-lo - o que resultará em criações de diferentes paradigmas.
Algumas estruturas ou idéias-chave em torno das quais Reich construiu suas
indagações e desenvolveu seu pensamento nos diferentes momentos de sua obra
evidenciam-na enquanto uma unidade. Podemos notar que numa de suas últimas obras,
O assassinato de Cristo, de 1953, sob um novo olhar estão desenvolvidas as suas
168
indagações acerca de temas como energia, corpo, etiologia das doenças, mudança
social, liberdade e realização plena da vida, incipientes em Psicopatologia e
Sociologia da vida sexual, de 1927. Por isso compreendo que o pensamento de Wilhelm
Reich seja aglutinador e coeso, pois os mesmos temas são retomados à luz das novas
descobertas que iluminam aspectos antes não observados, bem como dimensões
humanas mais profundas, além dele se compreender como parte da problemática que
investiga.
As formulações de Reich se desdobram a partir das primeiras formulações
presentes na teoria freudiana da sexualidade, marcadas por reconhecer o exercício de
um papel predominante da cultura sobre as causas de doenças nervosas como a neurose
(ALBERTINI, 1994; WAGNER, 1996; MATTHIESEN, 2005). Assim, como
enunciamos no capítulo 1, o pensamento de Reich opera uma espécie de redundância
aperfeiçoante (DURAND, 1995) ou de recursividade (MORIN, 2002), isto é, seu
pensamento ia sendo construído na redundância na medida em que retoma e investiga
antigas questões reordenando-as numa ordem qualitativamente nova, a qual vai se
tornando cada vez mais co-implicada.
Sobre o tema da liberdade, este vai ganhando, com o passar dos anos, cada vez
mais força no pensamento de Wilhelm Reich, até poder compreendê-lo como parte da
condição humana, quando ele vai desvelando as armadilhas que mantêm o homem preso
nele mesmo em virtude das imposições sociais autoritárias e repressivas. O autor
demonstra como o homem vive refém de uma cosmologia que separa natureza e cultura,
corpo e alma, razão e emoção. Acerca da etiologia das doenças, além de sua
contribuição holonômica (REICH, 1999; 2003), ele conserva ao longo do tempo uma
resposta ainda sociológica na medida em que a relaciona aos processos sociais.
169
É interessante como Reich amplia sua concepção sobre a realização plena da vida,
a plenitude, passando de um ideal por alcançar a satisfação sexual, sobretudo ligada à
genitalidade (REICH, 1927), para um ideal de plenitude que abarca o homem como um
todo no desempenhar das diversas atividades da sua vida, cotidianas e extracotidianas
(REICH, 1999). Em Reich, o homem é entendido como estando co-implicado numa
totalidade ampla, passando de um indivíduo encerrado num contexto da vida pulsional e
social a um sistema orgonótico co-implicado na imensidão do cosmos - esse homem que
é, assim, microcosmo do macrocosmo. Neste sentido, seus horizontes cognitivos são
alargados e ele parece antecipar as teorias da física contemporânea que se desenvolvem
no veio de um pensamento complexo, e que trouxeram valiosas contribuições para os
estudos de Edgar Morin, Gilbert Durand, Andrés Ortiz-Osés, dentre outros pensadores
das Ciências Humanas.
O corpo humano estudado enquanto inconsciente visível e concreto que ganhou
formas nas tipologias analisadas, passa a ser concebido como um campo holonômico,
ou seja, um sistema percorrido por fluxos energéticos conectados ao fluxo do universo,
que obedece aos mesmos mecanismos de expansão e de contração que operam no
cosmos. Nesse sentido, Reich transcendeu o historicismo psicanalítico e o positivismo
biomédico no qual se formou, embora tenha recebido significativa influência dos
mesmos.
Para Marcus Vinicius Câmara (2008), Reich muda sua visão de homem. Ele
desenvolve um pensamento apolíneo pautado na razão como guia até seus estudos em
vegetoterapia, passando a desenvolver uma reflexão mais dionisíaca a partir da
descoberta da energia orgone com a qual se iniciam seus trabalhos orgonômicos. Na
passagem da compreensão do homem como sendo orientado predominantemente pela
razão ao homem orientado pelas sensações, pelos sentimentos e pelos impulsos vitais
170
mais profundos que perseguem a entrega plena ao amor e à vida, vemos um pensamento
que vai se ampliando, se reconfigurando até mudar do homem antropocêntrico para o
homem cosmocêntrico (que se funde com o cosmos).
Mesmo quando pensou o projeto de mudança social na direção da emancipação
do homem e elegeu a ão pedagógica como um meio privilegiado de mudança, Reich
não trabalhou num nível de realidade dual e fragmentada, que a mudança social se
orientava por uma concepção acerca da condição humana que era integradora e que
propunha devolver o homem a si mesmo e ao todo ao qual está co-implicado, religando-
o a si mesmo, ao seu corpo, aos outros, ao ritmo orgânico da vida, ao universo natural e
simbólico.
Wilhelm Reich é um pensador que fez escola. Entre seus seguidores mais
conhecidos encontramos os americanos Stanley Keleman, Alexander Lowen, John
Pierrakos e David Boadella; os europeus Frederico Navarro, Eva Reich e Gerda
Boyesen; os brasileiros José Ângelo Gaiarsa e Dimas Callegari, entre outros.
Vimos que, partindo de uma interpretação hermenêutica do corpo e seus sinais,
Reich agregou em sua elaboração teórica referenciais biológicos, psicológicos e
socioculturais, colocando uma nova proposta ao campo emergente das psicoterapias.
Mas não só, pois ele se abriu à dimensão imaginal do real, como é conhecida pela
Antropologia do Imaginário. Essa dimensão é conhecida pela física quântica como
dimensão holonômica (vibracional). Antagonizou-se à formulação freudiana de “mal-
estar na culturacolocando a possibilidade do bem-estar na cultura”. O “bem-estar na
cultura”, para Reich, requeria uma concepção de homem livre, espontâneo,
desencouraçado e ativo, sexual e politicamente.
Foi essa atitude cognitiva inclusiva, que coloca e amplia sentidos, portanto uma
atitude hermenêutica, o aspecto norteador da nossa pesquisa, cujo objetivo específico
171
foi analisar como os conceitos reichianos carregam em seu bojo os liames de um
pensamento fecundo e unitivo, que em última análise restitui o elo perdido do homem
com a natureza, com a sociedade e com o cosmos. De toda obra desse autor sobre a qual
me debrucei, me fica um profundo sentimento de indignação sobre a forma como ele foi
exposto e execrado como um louco. Ele era um vigoroso dissidente, cuja luta deixou
marcas profundas no inconsciente coletivo de nossa época, que foi capaz de mobilizar
as imagens que regeram inúmeros movimentos libertários vividos no final da década de
1960, como o Maio de 68, e na década seguinte (BOADELLA, 1985, p. 93-95).
Nesta prece escrita por Reich, nos últimos anos de sua vida, temos o tom imaginal
e espiritual que então regeu seu pensamento:
OH, VIDA ETERNA...
COM A ESSÊNCIA DAS ESTRELAS -
RECUSAI VOSSA PIEDADE A VOSSOS ASSASSINOS...
ENVIAI VOSSO AMOR AOS RECÉM-NASCIDOS
DO HOMEM, DOS ANIMAIS E DAS PLANTAS...
LEVAI O HOMEM DE VOLTA A VOSSOS JARDINS TRANQÜILOS.
DEIXAI, VIDA, VOSSA GRAÇA MAIS UMA VEZ
CAIR SOBRE AS ALMAS ABANDONADAS...
ESTABELECEI VOSSO REINADO SUPREMO.
(REICH, 1999, p. 226).
172
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