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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO
VOZES DA ORTODOXIA
O Sínodo de Missouri e a Igreja Evangélica Luterana do Brasil: processos de formação e
relações nos contextos da I Guerra Mundial e do final do Regime Militar
Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Religião como
requisito parcial à obtenção do título de doutor
em Ciência da Religião por Arnaldo Érico Huff
Júnior.
Orientador: Prof. Dr. Zwinglio Mota Dias
Juiz de Fora
2006
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Livros Grátis
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Milhares de livros grátis para download.
Para meus pais, Pastor Arnaldo e Dona Lígia, pelo exemplo de
vida e de dedicação às pessoas e ao seguimento de Jesus,
bem como pelo amor que deles tenho recebido.
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Agradecimentos
São várias as pessoas às quais se deve agradecer ao final de um curso de doutorado.
Pessoas que tiveram importâncias diferentes. Umas um papel mais acadêmico, outras mais
afetivo. Ainda outras, ambos. Todas fundamentais.
Começo por agradecer à minha namorada, Deliane, pelo abrigo que me deu em seu
coração a cada momento, e também pelo apoio, compreensão, incentivo e paciência – quem já
escreveu um trabalho acadêmico sabe que essa é uma qualidade importante; bem como à sua
família pelas diversas acolhidas sempre carinhosas.
Também aos muitos amigos e colegas que tornaram minha estada em Juiz de Fora uma
aventura prazeirosa. De modo muito especial: aos amigos da universidade, Luis e Ana, Gigi,
Eduardo e Sônia, Zwinglio e Elisa, Quico, Paulo e Ana, Ênio, Ednilson, Paulo Webler,
Verônica, Leandro; aos amigos da música: Roger, Nanda, Rafa e Gustavo; bem como aos
amigos da Comunidade Evangélica Luterana Redentor, na pessoa do pastor Lademir.
Algumas pessoas de longe permaneceram também por perto. Valiosamente: Gugu,
Augusto, Volmir e Tita, Agenor, Fred Pieper, Luciano e Suzana, César, Xandy, Dani, Jerson.
Ao professor Zwinglio, orientador e amigo, devo uma deferência especial pela
sabedoria em me deixar livre estando ao mesmo tempo presente.
Aos demais professores do PPCIR, minha gratidão pela acolhida concomitantemente
profissional e amiga, especialmente a Luís Dreher, Francisco Pereira Neto, Marcelo Camurça
e Fátima Tavares. Também a Antônio Celestino, pela atenção na secretaria.
Menciono ainda os professores e amigos que me acolheram em Amsterdam, na Vrije
Universiteit, aos quais devo muito: André Droogers, Marjo de Theje e Tijo Salverda, de modo
especial.
Outras pessoas foram também generosas e contribuíram na elaboração deste trabalho.
Cito a Anneliese Dalmoro, bibliotecária do Seminário Concórdia, a Ana van Meegen, da
biblioteca da Faculdade de Ciências Sociais da Vrije Universiteit Amsterdam, ao prof. Carlos
Moris, do Instituto Histórico da IELB, e também aos amigos Roberto Radünz e Eliseu
Teichmann, que gentilmente me enviaram por e-mail seus trabalhos de doutorado e de
mestrado, respectivamente.
Professores que estiveram comigo em outras épocas tiveram também papel
fundamental em minha formação. Devo agradecer sincera e especialmente a Nelson Kirst, na
EST, a Dinarte Belato, na UNIJUÍ, e a Arnaldo Schüler (falecido em 1999), no Seminário
Concórdia.
Agradeço ainda aos funcionários, membros e amigos da Comunidade Evangélica
Luterana da Paz, do CENASA e do SEMEAR, por terem tantas vezes me abrigado
proporcionando infraestrutura e afeto, também desta vez durante as pesquisas para a tese em
Porto Alegre e São Leopoldo.
Menciono finalmente às agências de fomento FAPEMIG e CAPES, que tornaram este
doutorado possível em termos materiais, e ao povo brasileiro, que com seu trabalho mantém o
ensino público gratuito.
A todos um abraço sincero e minha gratidão,
Arnaldo Érico Huff Júnior,
Juiz de Fora, 31 e julho de 2006.
“O que é nascido da carne é carne; o que é nascido do Espírito
é espírito. Não te admires de eu te dizer: importa-vos nascer de
novo. O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes
de onde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido
do Espírito.”
Jesus
“O que torna o protestantismo protestante é o fato de ele poder
transcender o próprio caráter religioso e confessional e a
impossibilidade de se identificar completamente com qualquer
de suas formas históricas particulares ... O protestantismo tem
um princípio situado além de suas realizações.”
Paul Tillich
“Quem sabe se a terra segue o seu destino, bola de menino
para sempre azul... Quem sabe o homem mata o lobo homem e
olha o olhar do homem que é seu igual... Quem sabe a festa
chega à floresta e o homem aceita a mata e o animal... Quem
sabe a riqueza e toda beleza estará nas mesas da terra do sul...
Eu sou a atlântica dor plantada no lado sul...”
Milton Nascimento
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 1
1. A IELB e o problema da pesquisa ........................................................................................ 2
2. O que já se produziu e a abordagem desta pesquisa ........................................................... 11
3. Um modo de ver a história da IELB ................................................................................... 17
3.1. Mito e teologia na forma do discurso ............................................................................... 17
3.2. A prática discursiva religiosa entre estruturas e eventos ............................................
...... 21
3.3. Elaboração de memórias e produção de identidades na história ...................................... 29
4. Um modo de fazer a história da IELB ................................................................................ 39
4.1. As fontes e seu tratamento ............................................................................................... 39
4.2. Escrita e organização do texto .......................................................................................... 44
5. O locus político deste discurso ............................................................................................ 48
PARTE I: PROCESSOS FORMATIVOS DO LUTERANISMO DA LC-MS E DA IELB....52
CAPÍTULO 1: FORMAÇÕES DO LUTERANISMO NO CONTEXTO EUROPEU .......... 53
1. O processo de Confessionalização ...................................................................................... 53
2. Lutero e Melanchthon: justificação pela fé, confissões e nova duração ............................. 55
3. A doutrina dos dois reinos e o mundo social ...................................................................... 63
4. A Confessionalização territorial .......................................................................................... 68
5. A Era da Ortodoxia e a influência da filosofia .................................................................... 71
6. Ortodoxia e Pietismo ........................................................................................................... 76
7. O Racionalismo entre a Ortodoxia e o Pietismo ................................................................. 80
8. Algumas considerações ....................................................................................................... 84
CAPÍTULO 2: O SÉCULO XIX E A FORMAÇÃO DO SÍNODO DE MISSOURI E DA
IELB ........................................................................................................................................ 87
1. Transformações nos territórios alemães sob a Revolução Francesa ................................... 87
2. Restauração modernizante e repressão ................................................................................ 90
3. A União Prussiana ............................................................................................................... 93
4. Despertamento e Confessionalismo: uma outra reação ...................................................... 95
5. O Stephanismo .................................................................................................................. 101
6. Imigração e crise nos Estados Unidos ............................................................................... 107
7. C. F. W. Walther e a fundação do Sínodo de Missouri ..................................................... 113
8. A imigração alemã e os primórdios do Luteranismo no Brasil ......................................... 126
9. O início das atividades do Sínodo de Missouri no Brasil ................................................. 129
10. Algumas considerações ................................................................................................... 134
PARTE II: O SÍNODO DE MISSOURI E A IELB EM DUAS CONJUNTURAS NO
BRASIL ................................................................................................................................ 139
CAPÍTULO 3: O SÍNODO DE MISSOURI NO BRASIL DA PRIMEIRA GUERRA
MUNDIAL ............................................................................................................................ 140
1. Teuto-estadunidenses, teuto-brasileiros e a I Guerra ........................................................ 140
2. Proibição do idioma alemão, nacionalidade, confessionalidade ....................................... 145
3. Alemães, não, Luteranos! .................................................................................................. 151
4. Em português, inglês ou alemão, importava a pregação da Palavra ................................. 157
5. Os missourianos e os riograndenses .................................................................................. 161
6. Os missourianos e o poder público ................................................................................... 169
7. Uma investida extramuros: o início da missão em Lagoa Vermelha ................................ 174
8. Os missourianos e o Catolicismo ...................................................................................... 176
9. Roma, o Anticristo: Hasse e os contornos de um discurso fundamentalista ..................... 185
10. Algumas considerações ................................................................................................... 194
CAPÍTULO 4: A IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL AO FINAL DO
REGIME MILITAR .............................................................................................................. 197
1. O Brasil dos anos 80 ......................................................................................................... 197
2. A IELB no Brasil dos anos 80 .......................................................................................... 200
3. Ainda luteranos e confessionais ........................................................................................ 207
4. Um afã evangelístico ......................................................................................................... 212
5. Luteranos, sim, mas também cidadãos .............................................................................. 222
6. Uma aproximação do poder público ................................................................................. 233
7. IELB e IECLB em diálogo ................................................................................................ 241
8. Guerra e paz com o Catolicismo ....................................................................................... 247
9. Confissão, ciência e demais religiões ............................................................................... 254
10. Algumas considerações ................................................................................................... 260
CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 262
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 270
Resumo
A tese trata dos processos de formação da Igreja Luterana - Sínodo de Missouri e da
Igreja Evangélica Luterana do Brasil e de suas relações socioculturais nos contextos da I
Guerra Mundial e do final do Regime Militar. A questão central gravita em torno da
construção de discursos, memórias e identidades do Luteranismo confessional e ortodoxo
destes grupos na Alemanha e nos Estados Unidos e de sua posterior recriação no Brasil.
Abstract
The dissertation deals with the processes of formation of The Lutheran Church -
Missouri Synod and the Evangelical Lutheran Church of Brazil, focusing on its sociocultural
relations in the differing contexts of World War I and the final phase of the Military Regime.
The central question is how the construction of discourses, memories and identities of these
groups’ orthodox and confessional Lutheranism happened both in Germany and the United
States and how it was later recreated in Brazil.
SIGLAS
AC – Apologia da Confissão de Augsburgo
CA – Confissão de Augsburgo
IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
IELB – Igreja Evangélica Luterana do Brasil
LC-MS The Lutheran Church-Missouri Synod
MC – Mensageiro Christão
ML – Mensageiro Luterano
ULBRA – Universidade Luterana do Brasil
INTRODUÇÃO
De fato, luteranismo não tem nada que ver seja com política, ou ‘Kultur’, ou
zonas de interesse, ou qualquer outro assunto deste mundo (Johannes Kunstmann,
1918).
1
Enquanto vivem neste mundo, os cristãos não podem afastar-se do contexto sócio-
político em que Deus os colocou e têm a tarefa sagrada importante de atuarem
social e politicamente para melhorar o mundo em que vivemos. (Johannes Gedrat,
1984).
2
A despeito das diferenças, as frases acima têm algo em comum. Para além de seus
primeiros nomes, os respectivos autores compartilhavam alguns dados significativos, apesar
das notórias diferenças em termos de conteúdo, visão de mundo e momento histórico.
Primeiramente, a pertença institucional de ambos era a mesma: a Igreja Evangélica Luterana
do Brasil (IELB), na qual ocuparam posições de liderança, destacando-se o cargo de
presidente. Some-se a isso o fato de ambos possuírem ascendência alemã. E acresça-se a
filiação de ambos a um tipo de religião que chamaremos de Luteranismo Confessional
Ortodoxo, traço que conferiu à igreja a que pertencem posturas doutrinárias notadamente
uniformes ao longo de sua história. Sublinhe-se por fim que, por serem ambos pastores-
líderes, eram representantes do discurso oficial de sua igreja.
As diferenças nos pronunciamentos são, por outro lado, latentes. Kunstmann
afirmava que o Luteranismo não tinha nada que ver com as questões “deste mundo”. Gedrat,
ao contrário, assegurava que os cristãos tinham uma tarefa social e política sagrada. É como
se o primeiro apontasse somente para o céu e o segundo também para a terra. Eram modos
diferentes tanto de entender o lugar da religião na sociedade, quanto os seus próprios lugares
enquanto seres humanos. Note-se também que, apesar de ambos se pronunciarem desde um
mesmo lugar, isto é, o discurso oficial da IELB, ao passo que Kunstmann se referia apenas ao
universo do Luteranismo, Gedrat tinha como referência o universo do Cristianismo como um
todo. Eram, também nesse sentido, perspectivas notoriamente diferenciadas.
1
MC, 31/10/1918, suplemento para leitores em inglês: “In fact, Lutheranism has nothing to do whatsoever with
politics, or “Kultur”, or zones of interest, or any other affair of this world”. [Todas as traduções são do autor].
2
ML, 01-02/1984, p. 7-8.
2
Antes de continuarmos por perguntar o que mudou e o que não mudou relativamente
às concepções e práticas religiosas e políticas da IELB ao longo do século XX, convém que
esclareçamos algo sobre ela enquanto organização e que acerquemos, ainda que de modo
inicial, o que representa em termos religiosos e étnicos, para que então possamos delimitar o
problema mais precisamente, aclarar nossa abordagem teórico-metodológica, explicar o
tratamento das fontes, a forma deste escrito e apontar o locus desde o qual escrevemos.
1. A IELB e o problema da pesquisa
O Luteranismo veio ao Brasil com os imigrantes europeus, principalmente a partir
do século XIX, desde 1824. Atualmente, as organizações mais expressivas que representam o
Luteranismo no país são a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), que
conta com cerca de 800 mil membros, e a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), com
perto de 200 mil.
3
Além destas, a tradição luterana conta no país com a Associação de
Comunidades Luteranas Livres e com a Igreja Evangélica Congregacional do Brasil, também
existindo ainda algumas comunidades luteranas livres, no modelo das Freigemeinden. Todas
essas denominações têm, entretanto, sua origem em um mesmo povo imigrante e raízes
comuns no século XIX.
4
Dentre estas, além da IELB, também a IECLB, por sua importância
nos processos que analisaremos, receberá nossa atenção.
A IECLB é fruto direto da emigração dos territórios alemães para o Brasil, tendo
sido fundada, em 1949, pela união entre o Sínodo Riograndense (criado em 1886), o Sínodo
Evangélico-Luterano de Santa Catarina, Paraná e outros Estados da América do Sul (criado
em 1905), a Associação de Comunidades Evangélicas de Santa Catarina e Paraná (1911) e o
Sínodo Evangélico do Brasil Central (1912). O processo conferiu ao grupo um caráter deveras
plural, pelo fato de existirem entre eles tanto luteranos quanto calvinistas, entre outros, e
também de ter havido entre seus pastores tanto aqueles que obtiveram formação teológica em
universidades quanto os que a receberam em academias de missão.
5
A IELB, diferentemente, foi o resultado das atividades missionárias de um único
sínodo teuto-estadunidense, o Deutschen Evangelisch-Lutherischen Synode von Missouri,
Ohio und andern Staaten (Sínodo Evangélico Luterano Alemão de Missouri, Ohio e outros
3
René GERTZ, Os luteranos no Brasil, p. 10.
4
Martin DREHER, História do povo luterano, p. 49.
5
Ricardo RIETH, Dois modelos de igreja luterana: IECLB e IELB, p. 259-261; tb. Martin DREHER, História
do povo luterano, p. 52.
3
Estados), fundado em 1847, atualmente conhecido como The Lutheran Church - Missouri
Synod, LC-MS (A Igreja Luterana - Sínodo de Missouri).
Deu-se assim que, em 1900, sabendo da presença de alemães luteranos no sul do
Brasil, o Sínodo de Missouri passou a enviar missionários a fim de prestar atendimento
religioso aos imigrantes teutos no Rio Grande do Sul. Dessa atividade surgiu, em 1904, o 15
o
Distrito do Sínodo de Missouri, que se tornou, em 1920, ‘Sínodo Evangélico Luterano do
Brasil’ e, em 1954, ‘Igreja Evangélica Luterana do Brasil’.
6
Segundo dados oficiais da IELB, os membros a ela filiados estão divididos em mais
de 1.800 congregações e pontos missionários, atendidos por mais de 500 pastores. Também
afiliadas ao grupo estão centenas de escolas, o Seminário Concórdia, a Editora Concórdia, um
número pequeno mas crescente de instituições de serviço social e a Universidade Luterana do
Brasil (ULBRA) – em 2001, a quarta no conjunto das universidades do país em número de
alunos e a terceira entre as particulares.
7
Além disso, o grupo mantém uma programação
diária de mensagens pelas rádios do país, coordenada pela organização Cristo Para Todas as
Nações (CPTN).
8
Em termos de relações internacionais, a IELB participa do International Lutheran
Council (ILC) [Conselho Luterano Internacional], organização de igrejas luteranas
confessionais alternativa à Lutheran World Federation (LWF) [Federação Luterana Mundial],
de posturas teológicas mais diversificadas.
9
A célula básica da estrutura organizacional da IELB é a
congregação, comunidade
de luteranos formalmente constituída e reunida sob a responsabilidade de uma diretoria local e
de um ou mais pastores
. Duas ou mais congregações unidas formam uma paróquia.
Congregações e paróquias unidas formam um
distrito. Para a administração dessa agremiação
de congregações, há uma Diretoria Nacional, eleita para um mandato de 4 anos. Acima da
Diretoria Nacional, um Conselho Diretor, composto por representantes dos distritos. E ainda
acima do Conselho Diretor, a Convenção Nacional, composta por representantes das
congregações, a qual é responsável também pela eleição da Diretoria Nacional. Ao lado desta
estrutura, existem algumas agremiações em nível nacional internas ao grupo, chamadas de
organizações auxiliares, são elas: a Liga de Servas Luteranas do Brasil (LSLB), a Liga de
6
Mário L. REHFELDT, Um grão de mostarda, p. 110. Walter STEYER, Os imigrantes alemães no Rio Grande
do Sul e o luteranismo, p. 14. Quanto à datação da primeira mudança no nome do grupo, há discordância entre
autores: Rehfeldt situa-a em 1920, Steyer, em 1937.
7
As informações sobre a universidade foram extraídas da Folha de São Paulo por René GERTZ, Os luteranos no
Brasil, p. 10.
8
IELB - Igreja Evangélica Luterana do Brasil (Site oficial).
9
Idem.
4
Leigos Luteranos do Brasil (LLLB), a Juventude Evangélica Luterana do Brasil (JELB), a
Associação Nacional de Educação Luterana (ANEL) e a Associação de Entidades Sociais da
IELB (AESI).
10
Um dos traços que tem acompanhado a IELB é sua identidade étnica teuta. Assim,
por exemplo, ainda que a organização esteja presente atualmente em todos os estados da
Federação e no Distrito Federal (além de manter uma comunidade no Uruguai e de ter
empreendido missões na Argentina, Paraguai e Portugal, hoje igrejas independentes), há uma
maior concentração de congregações da IELB nos estados do Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, Paraná e Espírito Santo, não por coincidência, pontos de referência da imigração
alemã. De outra forma, dos 815 pastores arrolados pela IELB em seu site em 2005, somente
cerca de 10% têm sobrenomes reconhecidamente portugueses, como Machado, Oliveira,
Santos, Silva ou Souza, enquanto que os demais portam principalmente sobrenomes alemães,
como Hoffmann, Krüger, Lange, Muller, Schmidt, Schneider ou Sonntag. Traços étnicos
podem, portanto, ser percebidos sem esforço até os dias atuais.
11
A característica da instituição que mais nos interessa, porém, articula-se em termos
religioso-doutrinários. Conforme o Artigo 3
o
de seus Estatutos, o grupo define-se da seguinte
maneira:
“A IELB aceita todos os livros canônicos das Escrituras Sagradas, do Antigo e do
Novo Testamento, como palavra infalível, revelada por Deus. Como única exposição correta
da Escritura Sagrada, ela aceita os livros simbólicos da Igreja Evangélica Luterana, reunidos
no Livro de Concórdia do ano mil quinhentos e oitenta (1580), e não admitirá alteração
alguma desta norma.”
12
Ao subscrever, assim, completamente o Livro de Concórdia, o qual contém
confissões de fé e doutrina do Luteranismo, a IELB define-se oficialmente como uma igreja
luterana confessional. Para fins de tratamento teórico, opto por acrescentar o termo ortodoxo
à categoria anterior, a fim de diferenciar entre a confessionalidade da IELB e a de outros
grupos que também fazem uma opção confessional sem serem necessariamente ortodoxos,
como é o caso da IECLB, que já em seu nome se apresenta como Igreja Evangélica de
Confissão Luterana no Brasil. A IELB não é, portanto, a única igreja luterana a dizer-se
confessional. A IECLB também o é, porém com outra compreensão de confissão. A
10
IELB - Igreja Evangélica Luterana do Brasil (Site oficial).
11
A partir de dados extraídos de IELB - Igreja Evangélica Luterana do Brasil (Site oficial). Muitos destes 815
não estão envolvidos diretamente em atividades pastorais, o que explica a diferença entre os pastores arrolados e
os que são efetivamente contados entre os “mais de 500” mencionados anteriormente. Tb. Arnaldo E. HUFF
JÚNIOR, The orthodoxy must go on...: official discourses and political identities among confessional German
Lutherans in Brazil, p. 1.
12
IELB, Estatutos, regimento e código de ética pastoral, p. 15.
5
confessionalidade da IELB reveste-se, na verdade, de traços diferenciados, pelos quais torna-
se fator central a definir pertenças e práxis.
Pode-se entender, de modo ideal, que o Luteranismo Confessional Ortodoxo é um
tipo de Luteranismo que tem oficialmente como normas incondicionais de fé e prática: 1) a
Bíblia, considerada como a palavra de Deus inspirada e infalível e 2) as Confissões Luteranas
agrupadas no Livro de Concórdia de 1580, consideradas como a verdadeira exposição de tal
palavra de Deus. Os seguintes escritos compõem o Livro de Concórdia: os três Credos
Ecumênicos, a Confissão de Augsburgo (1530), a Apologia da Confissão de Augsburgo
(1530), os Artigos de Esmalcalde (1537), o Catecismo Menor (1529), o Catecismo Maior
(1529) e a Fórmula de Concórdia (1577).
13
São estes os Livros Simbólicos do Luteranismo. A
assunção de que a única interpretação correta da Bíblia, a infalível revelação de Deus, está
apresentada no Livro de Concórdia é o critério oficial para pertença individual e grupal às
instituições do Luteranismo de tipo ortodoxo-confessional, bem como um fator central na
busca pela manutenção da unidade de igrejas e organizações.
Na verdade, a identificação da “igreja-mãe” Sínodo de Missouri e da IELB com a
questão da inerrância verbal da Bíblia marcou profundamente suas construções identitárias
durante o século XX, refletindo a tensão da busca de reconciliar o Luteranismo Ortodoxo a
questões contemporâneas. Conforme Mary Todd, o Sínodo de Missouri redefiniu durante o
século XX sua identidade confessional a fim de assegurar a imutabilidade de suas crenças
diante das rápidas forças de mudança histórica que estiveram em movimento. A proibição do
ministério feminino no grupo, assentada sobre o argumento de uma fixa subordinação da
mulher em função da defesa de uma “ordem da criação”, é, segundo a autora, um exemplo de
tal reação, que considera relativamente recente.
14
O que aconteceu na IELB nesse período
deu-se de modo semelhante, a saber, um processo de articulação às transformações na
sociedade brasileira e mundial, por vezes na contramão das mesmas, a fim de garantir a
propagação de suas verdades religiosas e a perpetuação do grupo. São, portanto, identidades
construídas nos contatos e trocas sociais.
13
LIVRO DE CONCÓRDIA, passim.
14
Mary TODD, Authority vested: a story of identity and change in the Lutheran Church-Missouri Synod, p. 3-5.
A posição político-acadêmica da autora fica clara já na introdução do livro, sua tese de doutorado: “A narrative
of inconsistency records the struggle of this historically ethnic denomination to define itself over against the
rapid social changes of the twentieth century, changes that have threatened both its intent and its attempt to
remain in the world but not of the world” (p. 5) [Uma narrativa de inconsistência registra a luta desta
denominação historicamente étnica para definir-se diante das rápidas mudanças sociais do século vinte,
mudanças que têm ameaçado ambas, sua intencionalidade e sua busca por permanecer no mundo sem ser do
mundo].
6
Há, nesse contexto, como que um núcleo duro e aglutinador das crenças da IELB e
da LC-MS, o coração de seu sistema religioso oficial e herança forte da Reforma do século
dezesseis: a crença de que o ser humano é salvo somente pela fé por meio de Jesus, e não por
qualquer tipo de boas obras. A salvação eterna, nessa visão, é fruto exclusivo da graça e
compaixão de Deus, ao passo que as obras tornam-se uma conseqüência da vida cristã, não
uma necessidade para alcançar a Deus. De acordo com tal concepção, é Deus quem vem aos
homens, e não os homens que a ele chegam. A sustentação dessas crenças é garantida pelo
entendimento de que elas estão reveladas na Bíblia diretamente por Deus, em sua palavra
inspirada e infalível, a qual foi, por sua vez, exposta corretamente apenas nas Confissões
Luteranas de 1580. A verdadeira igreja de Cristo na terra é, por conseguinte, somente aquela
que assim se posicionar. Em tais crenças não são admitidas alterações de nenhum tipo e os
pastores devem atender ao chamado divino de atalaias e propagadores dessa verdade.
15
Ao
redor desse núcleo duro foram sendo derivadas e elaboradas doutrinas, discursos, memórias e
identidades que fundamentam ações e políticas individuais e grupais, e que ao mesmo tempo
constituem outros núcleos, relativos, por exemplo, às esferas da educação, da missão, da
diaconia, etc. O todo desse conjunto forma uma estrutura que fundamenta a IELB enquanto
instituição. Através de tal estrutura cultural e social as pessoas, então, elaboram sentidos nas
situações concretas da vida. Nesse processo, todavia, essa própria estrutura é colocada em
prática e re-vista, de modo que pode sofrer deslocamentos, rearranjos e mesmo
transformações mais ou menos substanciais, numa dinâmica não necessariamente linear ou
evolutiva. E começamos, assim, a delinear nosso problema.
Vejamos um exemplo. As concepções religiosas do núcleo duro do Luteranismo
Confessional não são novas e podiam já ser encontradas, ao menos em parte, em Lutero, no
século XVI. De fato, o modo como os luteranos constroem a memória de seu líder carismático
faz dele uma figura central na constituição de suas identidades grupais e individuais. Dizer-se
luterano, diferentemente de dizer-se católico, assembleiano, presbiteriano, umbandista ou
batista, constitui uma identidade que principia por atrelar-se ao próprio fundador do
movimento, figura central da reforma alemã: Martinho Lutero.
Um dos fatores de convergência dessas identidades é o brasão conhecido como ‘rosa
de Lutero’, criado e explicado pelo próprio reformador.
15
IELB – Igreja Evangélica Luterana do Brasil (site oficial).
7
(Disponível em: <www.ielb.org.br>. Acesso em: 15/08/2005)
Sobre a rosa, explicou Lutero:
Primeiro, deve haver uma cruz preta dentro de um coração – o qual retém a sua
cor natural – para que eu seja lembrado que a fé no Crucificado nos salva. Pois
quem crê de coração será justificado (Romanos 10.10). Embora seja uma cruz
preta, que mortifica e que também deve causar dor, ela deixa o coração em sua cor
natural. Ela não corrompe a natureza, isto é, ela não mata, mas mantém vivo. "O
justo viverá por fé" (Romanos 1.17), mas pela fé no Crucificado.
Tal coração deve estar no meio de uma rosa branca, para mostrar que a fé dá
alegria, conforto e paz. Em outras palavras, ela coloca o crente em uma rosa
branca, de alegria, pois esta fé não dá paz e alegria como o mundo dá (João
14.27). É por isso que a rosa deve ser branca, e não vermelha, pois o branco é a
cor dos espíritos e dos anjos (conforme Mateus 28.3; João 20.12).
Tal rosa deve estar numa área de azul celeste, simbolizando que tal alegria em
espírito e fé é o começo da futura alegria celestial, que já começa, mas é obtida
em esperança, pois ainda não é revelada.
Ao redor dessa área está um círculo dourado, simbolizando que tal bênção no céu
dura para sempre; é sem fim. Tal bênção vai além de toda a alegria e bens, assim
como o ouro é o melhor metal, o mais valioso e precioso.
Este é o meu compendium theologiae [o sumário da teologia]...
16
A imagem discursiva e iconográfica criada por Lutero, publicada na página oficial
da IELB na internet, é ainda hoje um lugar importante de convergência identitária entre
luteranos no mundo todo, dada sua capacidade de síntese das crenças grupais. Tais
identidades, todavia, não adquirem necessariamente um mesmo conteúdo ou uma mesma
forma, como vemos, por exemplo, no logotipo da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
16
IELB - Igreja Evangélica Luterana do Brasil (Site oficial).
8
(Disponível em: <www.ulbra.br>. Acesso em: 15/08/2005)
O logotipo é indicativo dos modos pelos quais uma ortodoxia religiosa pode ser
designed e redesigned, e de como antigos conteúdos em formas novas podem embasar
identidades grupais.
17
Trata-se de uma adequação de Lutero às necessidades de marketing do
mundo capitalista.
De fato, o Luteranismo da IELB não revela à análise histórica a unanimidade que
seu discurso oficial sustenta. Basta que vejamos as declarações citadas na epígrafe. Ao lado
de permanências seculares, manifestam-se, tanto sincrônica quanto diacronicamente, fissuras,
descontinuidades, possibilidades latentes ou reprimidas de transformação ou divergência. Se
existem, assim, na IELB, crenças, doutrinas, discursos e modos de agir que remontam à
Reforma e a Lutero ou às tradições do Cristianismo bíblico, estas estruturas estiveram e estão,
ao mesmo tempo, sujeitas a reformulações e interpretações locais conforme a realidade
histórica em que forem inseridas e vividas. Há como que uma via de mão dupla entre o que se
entende como herança e tradição e as dinâmicas da existência histórica. Assim, se por um
lado, as doutrinas e teologias são constantemente reforçadas no ritual e na educação, e
histórias heróicas dos momentos de origem das crenças são contadas e recontadas, em
processos que tendem a confirmar e garantir a permanência da confessionalidade ielbiana; por
outro lado, estas estruturas são constantemente desafiadas à atualização, negociadas e
disputadas internamente, no seio da própria igreja, e externamente, na fronteira com outros
grupos e estruturas. O que pode ou não ocasionar transformações de maior ou menor alcance.
Dito isso, as questões centrais que nos acompanharão nesse estudo são as seguintes:
Como se deu a formação desse Luteranismo Confessional Ortodoxo? Como pastores e líderes
da IELB construíram tal Luteranismo no Brasil? Que percepções acerca do lugar da igreja na
sociedade foram geradas nesse contexto? Para recortar a espessura destes processos,
tematizaremos a produção de discursos, identidades e memórias.
17
Jeremy STOLOW, Designing orthodoxy: paradoxes of authenticity and addressivity in a Jewish orthodox
press; tb. Arnaldo Érico HUFF JÚNIOR, Imagens de Lutero no luteranismo brasileiro: políticas e identidades na
Igreja Evangélica Luterana do Brasil entre a I Guerra Mundial e o Pós-Ditadura Militar.
9
Propomos, com essas questões, um olhar de problematização por sobre uma igreja
que tem sido considerada freqüentemente como um bloco monolítico e unânime. Queremos
observar num recorte de tempo longo o surgimento de seus discursos em dispersão,
descontinuidade e rarefação, como dizia Foucault.
18
Como veremos, uma ortodoxia, mesmo a
mais hermética, pode ser compreendida em termos de suas transformações e permanências
pelas relações historicamente datadas. A história que pretendemos contar não será vista,
portanto, como tendo um sentido, um alvo a perseguir como uma flecha disparada de um
ponto de vista supra-histórico; uma história que lança por sobre o passado um olhar de fim do
mundo, fora do tempo. Não queremos agregar à história da IELB um valor teleológico, mas
antes colocá-la no caleidoscópio para percebermos a miríade de fatos e acasos e disputas que
a atravessou.
19
Às questões que colocamos poderíamos, então, alinhar ainda uma outra série de
questões de acercamento mais específicas, como por exemplo: Como as crenças organizaram
os discursos e práticas políticas oficiais do grupo e como foram estas reconstruídas em
diferentes conjunturas? Como são negociadas as identidades políticas, étnicas e religiosas em
questão? Quais modos de ‘estar no mundo’ são gerados pelas identidades construídas a partir
dessas crenças e das interações sociais do grupo religioso? Que mudanças em termos de
cultura política podem ser identificadas? Quais relações de poder estão em movimento interna
e externamente? Quais são os discursos sobre o outro (e sobre o self) em termos de religião,
etnicidade, nacionalidade e política? Como esses discursos são transformados, reconstruídos,
reinterpretados? De que modo as mudanças políticas e econômicas brasileiras influenciaram e
causaram alterações nesses discursos? Como os pastores e líderes da IELB responderam a
essas mudanças? Enfim, como essa ortodoxia confessional tem sido praticada e recriada no
Brasil?
O primeiro entrave que nos deparamos na elaboração destas questões deu-se no
campo da percepção do tempo. Logo ficou claro que seria difícil uma compreensão adequada
do assunto “IELB” somente através de um recorte sincrônico. Era preciso uma percepção de
longa duração que abarcasse a formação das crenças e discursos que foram re-vividos no
Brasil. Por outro lado, um trabalho que abarcasse o todo do século XX, e que não pretendesse
18
Michel FOUCAULT, Arqueologia do saber, passim.
19
Paul VEYNE, Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história, p. 248, 264; Michel
FOUCAULT, Nietzsche, genealogia, história, p. 271: nessa perspectiva, “o sentido histórico escapará da
metafísica para se tornar o instrumento privilegiado da genealogia se ele não se apóia em nenhum absoluto. Ele
deve ser apenas essa acuidade de um olhar que distingue, reparte, dispersa, deixa agir as separações e as margens
– uma espécie de olhar que dissocia, capaz de se dissociar dele mesmo e apagar a unidade desse ser humano que,
supostamente, o conduz soberanamente na direção do seu passado”.
10
ser raso, não caberia no espaço e no tempo que uma tese de doutorado deve ter atualmente.
Optamos assim por uma estruturação do argumento em três recortes temporais divididos em
duas partes. A primeira, de longa duração, tratará dos processos formativos das
macroestruturas que perfazem o Sínodo de Missouri e a IELB e de como foram sendo gerados
discursos, identidades e memórias oficiais. A segunda parte corresponderá à análise da IELB
nos contextos brasileiros da I Guerra Mundial e do final do Regime Militar. Teremos, assim,
uma análise diacrônica e outra sincrônica, a partir das quais poderemos ter uma idéia da
formação de discursos e estruturas e de suas reconstruções brasileiras. Acreditamos, nesse
sentido, que uma tal perspectiva poderá nos proporcionar uma boa percepção das
movimentações que perfizeram a implantação desse tipo de religião no Brasil e dos processos
de recriação que envolveram os atores em questão nesses diferentes períodos.
Por que a escolha dos contextos da I Guerra e do final da Ditadura? Primeiramente
porque constituem momentos suficientemente diferentes, política e religiosamente, na história
do grupo e do Brasil, para possibilitar uma comparação, em função mesmo de sua distância
temporal. Segundo, por apresentarem dinâmicas suficientemente fortes em meio à sociedade
brasileira para demandar posicionamentos à IELB e a seus pastores e líderes. No contexto da I
Guerra, pela primeira vez o grupo foi alvo de transformações ocorridas na sociedade
brasileira. Da declaração de guerra por parte do Brasil à Alemanha, em 1917, resultaram a
proibição do uso do idioma alemão (que durou somente até o final do conflito), o fechamento
de escolas alemãs e um impedimento das atividades missourianas no país, porque totalmente
dependentes da língua e da cultura germânicas. O recurso utilizado foi, de um modo geral, o
de argumentar que a igreja nada tinha que ver com política, mas apenas com a pregação da
palavra. Ao final da ditadura, por sua vez, a língua oficial da IELB já não era mais o alemão,
mas o português, as atividades haviam se expandido para quase todas as regiões do país e
praticamente todo o clero era formado no Brasil. Em tal processo, na experiência das mazelas
que envolveram o país naquele período, os líderes da IELB passaram a manifestar-se também
sobre questões “desse mundo”, como política, corrupção, pobreza, etc. As diferenças entre os
discursos e identidades construídas, bem como as disputas relativas a estas, são claras. A
análise dos documentos ajudará, porém, a perceber que tais diferenças não se restringiram
somente às posições políticas, mas têm a ver com questões de percepção do próprio lugar da
igreja na sociedade, de sua responsabilidade e de suas relações com os demais grupos sociais;
questões, portanto, de fundo também teológico.
Todavia, por tratar-se de um estudo sobre discursos, memórias e identidades de
pastores e líderes, e portanto oficiais, que recorrem ao âmbito da teologia, escapa à
11
delimitação do objeto a esfera de ação do leigo comum, tão interessante e cara a boa parte das
abordagens empreendidas atualmente sob a inspiração dos estudos culturais, da história das
mentalidades ou da história cultural, e que buscam uma compreensão de totalidade.
20
De fato,
nossa análise, não é uma “história vista de baixo”, ainda que por vezes estaremos procurando
tal perspectiva. Uma história “desde baixo” precisa ainda ser escrita sobre a IELB. Todavia,
além de nossa preferência pessoal, há atualmente alguma relevância política no estudo de
ortodoxias e fundamentalismos em sua acepção oficial, tendo em vista os confrontos
existentes em nível mundial. Para acessar tais questões, faz-se necessária também uma
abordagem “vista de cima”. É hora de relativizar, e a história é uma boa companheira nesse
esforço. Por outro lado, estaremos contemplando sujeitos históricos que, ligados por laços
estruturais de solidariedade, em alguma medida representam a IELB como um todo, também
porque foram eleitos para isso por processos mais ou menos democráticos.
2. O que já se produziu e a abordagem desta pesquisa
Os estudos dedicados ao Protestantismo no Brasil não são poucos. O número,
contudo, diminui se procurarmos por pesquisas dedicadas ao Luteranismo. E rareiam ainda
mais se buscarmos pelos estudos históricos sobre a IELB ou que a incluam. Além das
dissertações inéditas de Paulo Buss (Relations between the Lutheran Church-Missouri Synod
and the Igreja Evangélica Luterana do Brasil), Agenor Berger (A postura da Igreja
Evangélica Luterana do Brasil frente ao regime militar [1964-1985]), Eliseu Teichmann
(Imigração e Igreja: as comunidades-livres no contexto da estruturação do luteranismo no
Rio Grande do Sul), Sérgio Marlow (Nacionalismo e Igreja: a Igreja Luterana – Sínodo de
Missouri nos porões do Estado Novo) e da tese de Roberto Radünz (A terra da liberdade, o
protestantismo luterano em Santa Cruz do Sul no século XIX), existem alguns poucos artigos,
como os de Ricardo Rieth (Igreja Evangélica Luterana do Brasil: uma abordagem histórica;
Dois modelos de igreja luterana: IECLB e IELB; Luteranismo rio-grandense no século 20: da
independência à institucionalização) e de Sérgio Marlow (Nacionalismo e Igreja: o Estado
Novo e a Igreja Luterana “Sínodo de Missouri”), e os textos publicados de Carlos Warth
(Crônicas da Igreja), Roberto Radünz (Do poder de Deus depende), Walter Steyer (Os
imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e o luteranismo) e Mário Rehfeldt (Um grão de
mostarda [originalmente, The first fifty years of the history of the Igreja Evangélica Luterana
20
Ver, p. ex. Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano; Carlo GINZBURG, O queijo e os vermes; Jacques
LE GOFF e Pierre NORA (Orgs.), História.
12
do Brasil: the Brazilian District of the Missouri Synod]). A editora da IELB lançou também,
recentemente, uma coletânea de biografias e documentos, organizada por Carlos Winterle e
Martinho Krebs (Histórias da história da Igreja Evangélica Luterana do Brasil), que parece
ser uma interessante fonte de pesquisa. Some-se a estes esforços ainda algumas pesquisas do
autor destas páginas (Espiritualidade, processos e práticas sociais, um estudo sobre
luteranismo confessional no Brasil; Imagens de Lutero no Luteranismo Brasileiro: políticas e
identidades na Igreja Evangélica Luterana do Brasil entre a I Guerra Mundial e o Pós-
Ditadura Militar; The orthodoxy must go on..., official discourses and political identities
among confessional German Lutherans in Brazil).
21
Os trabalhos podem ser ditos alguns mais “apologéticos”, outros menos. Alguns
mais “religiosos”, outros mais “científicos”. Tais diferenciações, porém, podem por vezes não
perceber os teores de “fé científica” recorrentes nas análises ditas puramente acadêmicas, e
que da mesma forma embaçam a visão do pesquisador.
Sem menosprezar qualquer crítica pertinente, nossa questão é, todavia, de outra
natureza. Pretendemos nos afastar daquela historiografia do Protestantismo que, por não ter
incorporado os avanços teóricos no campo da prática historiográfica ocorridos no último
século, permanece construindo uma narrativa acontecimental ou fatual, como apontaram já as
primeiras gerações da Escola dos Analles.
22
Evitaremos, portanto, uma compreensão da
história como uma série encadeada de acontecimentos grandiosos protagonizados por heróis
da fé, para privilegiar uma problematização não só destes ditos grandes acontecimentos, mas
também de outros não tão valorizados protagonizados por atores aparentemente não tão
importantes, inseridos em jogos de poder ao redor de discursos, memórias e identidades que
pertencem à esfera da religião. Por outro lado, tais discursos, memórias e identidades,
justamente por pertencerem ao âmbito religioso, além do olhar de uma história
problematizada, merecem também as possibilidades de interpretação que estudos de cunho
histórico-fenomenológico têm oportunizado ao pesquisador.
Este trabalho, assim, no contexto do que já se produziu, se pretende um estudo de
história sociocultural da religião acerca da IELB, com foco principal nos discursos, memórias
21
As referências completas encontram-se na Bibliografia, nos pontos 4 e 5.
22
O. DUMOULIN, Événementielle [acontecimental] (história), p. 315-316. Começam a aparecer algumas
análises críticas sobre as condições de produção do discurso histórico relativo ao Protestantismo brasileiro. O
que é, por certo, muito saudável. Ver, p. ex., Tiago Hideo Barbosa WATANABE, Caminhos e histórias: a
historiografia do protestantismo na Igreja Presbiteriana do Brasil. Para uma aproximação do Protestantismo
brasileiro pelo viés das “novas abordagens” ver, p. ex., Karina Kosicki BELLOTTI, Mídia, religião e história
cultural; tb. Lyndon de Araújo SANTOS, As outras faces do sagrado: protestantismo e cultura na primeira
república brasileira.
13
e identidades religiosas de pastores e líderes. Não se trata, portanto, de uma “História da
IELB” na acepção fatual-positivista do termo, mas da análise de séries de acontecimentos que
a envolveram. Todavia, ainda que por meios teóricos e metodológicos por vezes diversos dos
demais trabalhos e com objetivos diferentes, posiciono-me num esforço semelhante ao dos
demais autores, em busca de compreensão da IELB enquanto fenômeno religioso. Num
campo tão escorregadio quanto o das ciências humanas, a postura de generosidade é, penso,
imperativo fundamental.
Em meio aos estudos históricos da religião, podem ser separadas, histórica e
teoricamente, duas correntes principais. De um lado, temos a chamada história das religiões,
uma das muitas filhas da teologia e da filosofia, que, surgida no século XIX, caracteriza-se
por analisar as origens e os períodos mais antigos das religiões, principalmente a partir de um
método fenomenológico, muitas vezes comparativo e filológico, em busca de uma essência
comum às diversas religiões. Nessa corrente encontraremos nomes expressivos como os de
Max Müller, Mircea Eliade e G. Van Der Leeuw. Do outro lado, está aquela que tem sido
chamada de história religiosa, representada também por reconhecidos estudiosos como Marc
Bloch, Jacques Le Goff e Carlo Guinzburg. Essa história religiosa surge na confluência entre
a história literária das doutrinas, a história eclesiástica, a sociologia religiosa e os problemas
apresentados à história econômica e social pela estratificação sócio-profissional das
civilizações pré-industriais, que colaborou também para o surgimento, nos Annales, da
história das mentalidades, hoje reconfigurada em história cultural. Um traço distintivo da
história religiosa em relação à história das religiões é o estudo específico de uma só tradição
religiosa, afastando-se, portanto, do método comparativo. Outra característica é a de que os
estudiosos afiliados à história religiosa apresentam, por vezes, o interesse na religião como via
de compreensão de questões sociais que transcendem o universo propriamente religioso, em
direção à economia e à política, por exemplo; no que se diferem também dos historiadores das
religiões, em função do claro interesse destes pelo específico do fenômeno religioso.
23
Atualmente, entretanto, as fronteiras entre as duas correntes não estão delineadas de
modo tão claro como outrora – o que é, para mim, fato positivo. Um certo hibridismo teórico-
metodológico pode ser percebido em diversos esforços, como, por exemplo, no recente
nascimento da linha de pesquisa “história social e cultural da religião”, à qual nos
23
Eduardo Basto de ALBUQUERQUE, Distinções no campo de estudos da religião e da história, p. 57-67;
Dominique JULIA, A religião: história religiosa, p. 110-112; tb. Jaqueline HERMANN, História das religiões e
religiosidades, p. 339-340. Ronaldo VAINFAS, História das mentalidades e história cultural, p. 150-153; A.
ROUSSELLE, Religião, história das religiões, p. 667-672; C. LANGLOIS, Religião, história religiosa, p. 658-
667.
14
congregamos no PPCIR da UFJF, vinculada à área de concentração em ciências sociais da
religião. Ainda que de fato poucos avanços tenham acontecido no diálogo entre as duas
tradições, ao menos na nomenclatura a linha de pesquisa aponta para a relativização de tais
fronteiras. Assim também a Associação Brasileira de História das Religiões tem sido lugar de
encontro de pesquisadores interessados em ambas as formas dos estudos históricos acerca da
religião. O campo é complexo e merece, de fato, múltiplos e atentos olhares.
24
No tocante à (nova) história cultural, ou sociocultural como prefiro a exemplo de
Chartier
25
– porque enquanto preocupada com a cultura não descuida do social –,
característica marcante tem sido o diálogo intenso com as demais ciências humanas, como a
antropologia, a sociologia, a psicologia e a lingüística. Nessa troca, historiadores vêm
trazendo à tona uma série de temas e abordagens inspirados em processos interdisciplinares.
26
Em nosso trabalho construiremos, nessa vertente, um discurso que se movimenta no campo da
história em constante diálogo com a antropologia e a sociologia, mas também com a teologia,
uma vez que estaremos tratando de processos sociais e de construções simbólico-religiosas
mais ou menos sistematizadas no âmbito da teologia luterana.
Não é preciso que explicitemos a dependência da disciplina da história para com a
sociologia e a antropologia, entre outras, principalmente se considerados os desenvolvimentos
teóricos da história social e cultural ao longo do século XX.
27
A relação desta para com a
teologia, entretanto, merece maior atenção. De fato, diversas críticas têm sido apresentadas
aos cientistas sociais da religião a respeito de seus “interesses religiosos”, termo empregado
24
Vide, p. ex., Giovanni FILORAMO e Carlo PRANDI, As ciências das religiões, p. 14-15: “A primeira
contradição (...) está ligada à subjacente concepção de história. De um lado, há quem a entenda de um modo
restritivo, terminando por confundi-la com a filologia. Trata-se de uma interpretação redutiva, que corre o risco
de ignorar o grande desenvolvimento das ciências históricas no nosso século e, sobretudo, o imponente trabalho
de revisão historiográfica que algumas escolas, como a ‘Analles’, promoveram, estabelecendo relações de vital e
recíproca fecundação entre história e ciências humanas. Compreende-se, por isso, que, de outro lado, haja quem
– reinterpretando a história das religiões em função dessa concepção mais ampla, dinâmica, flexível e aberta de
história – a entendeu como uma disciplina de tipo essencialmente histórico, em cujo tronco se enxertariam
também as contribuições provenientes das diferentes ciências humanas. (...) [Todavia,] o aspecto distintivo de
uma história comparada das religiões sempre foi o fato de ter de levar em conta não só o momento diacrônico,
mas também o sincrônico, no estudo dos fenômenos religiosos. Junto com as questões relativas à gênese, ao
desenvolvimento e eventualmente ao fim de um fenômeno religioso, o historiador das religiões teve de aprender,
por uma série de demandas internas, ao seu próprio campo de estudos, a se envolver com questões relativas à
continuidade e à duração, aos modelos e estruturas”.
25
Roger CHARTIER, À beira da falésia, a história entre certezas e inquietudes, p. 21; tb. Peter BURKE,
História e teoria social, p. 170: “A difusão do termo composto ‘sociocultural’ sugere ainda um grau cada vez
maior de conscientização sobre a importância da ‘cultura’ e, inversamente, sobre a maleabilidade da
‘sociedade’”.
26
Temas como identidades, cultura popular, vida privada, performances, mitos, rituais, culturas híbridas,
fronteiras, narrativas, discursos, práticas, são já terminologias usuais que habitam o fazer cotidiano destes
“novos” historiadores.
27
Ver, p. ex., Peter BURKE, História e teoria social; tb. Id., A Escola dos Annales (1929-1989), a Revolução
Francesa da historiografia; tb. François DOSSE, História e ciências sociais.
15
agudamente por Antônio Pierucci.
28
Mais adiante nesta introdução tratarei de buscar um
acerto de contas com tais críticas, as quais podem ser preciosas. Por hora, contudo, detenho-
me em definir melhor nossa aproximação da teologia.
Há primeiramente uma diferença, ainda que tênue, entre o discurso religioso e o
teológico: o primeiro marcado pelo traço auto-implicativo e pela proximidade para com a
experiência vivida da religião; o segundo, regrado pelas exigências da razão e, portanto,
sistemático e metódico.
29
Se é que se pode considerar que estaremos aqui fazendo teologia, é
até este ponto que queremos ir: o da própria teologia, não o da religião. Teólogos, nesse
sentido, “são especialistas numa linguagem, são lingüistas que estudam o dialeto de uma
religião dada”, como disse Gross.
30
Portanto, mesmo sem pretender sustentar uma
aproximação totalmente neutra e objetiva, pontuo que não vislumbro aqui uma
instrumentalização propositiva do religioso, mas a utilização de uma teologia compreendida
enquanto discurso sistemático sobre mitos, ritos e símbolos de uma dada tradição (no caso, a
luterana), que pode colaborar na compreensão do fenômeno religioso.
31
Considerando que esta é uma tese de doutorado em ciência da religião (e não em
história de modo específico), acolho, assim, o desafio interdisciplinar que tem caracterizado a
área e me coloco como historiador da religião a fazer perguntas de ordem antropológica,
sociológica e teológica ao passado da IELB, e a tentar respondê-las em um mesmo processo
interdisciplinar.
A partir de uma tal perspectiva, estaria ao menos atenuada a problemática do
esquecimento da dimensão social da religião, que caracterizou boa parte da produção da
ciência da religião atrelada ao modelo histórico-fenomenológico da história das religiões. Por
outro lado, evitar-se-ia ao mesmo tempo a tão comum abordagem reducionista, seja social ou
cultural, que demonstra, entre outras coisas, pouco entender sobre religião.
32
Situamo-nos,
dessa forma, no encontro entre uma história das religiões, na linha de Eliade e Van Der
Leeuw, em função da preocupação com o específico da religião e seu significado, e uma
história religiosa, na linha de Le Goff e Guinzburg, dado o diálogo que empenharemos com as
teorias da história cultural, a sociologia e a antropologia, bem como pelo interesse em uma
28
Antônio Flávio PIERUCCI, Interesses religiosos dos sociólogos da religião; Id., Sociologia da Religião: área
impuramente acadêmica; ver tb. as críticas e proposições de Ciro Flamarion CARDOSO, Um historiador fala de
teoria e metodologia, especialmente o capítulo 10, onde trata sobre o tema “História das religiões”, p. 209-229.
29
Faustino TEIXEIRA, O lugar da teologia na(s) ciência(s) da religião, p. 300.
30
Eduardo GROSS, Considerações sobre a teologia entre os estudos da religião, p. 335.
31
Idem, p. 329.
32
Ver, p. ex., Frank USARSKI, Perfil paradigmático da ciência da religião na Alemanha, p. 80-82,
16
tradição religiosa apenas.
33
Assumimos, assim, a relação entre uma história social e cultural
da religião e aquela abordagem histórico-fenomenológica anelada por Luís Dreher para uma
ciência da religião compreendida como exercício hermenêutico humano em seu caráter
positivo. Nas palavras de Dreher:
A ciência da religião que eu gostaria de praticar é uma disciplina que busca
enfocar a especificidade da religião e dos fenômenos religiosos, sem cair em
redutivismos ou dogmatismos, mas sem, no final das contas, ceder também à
terceira tentação, tão própria da abordagem fenomenológica: a do descritivismo.
(...) o alvo da pesquisa científica da religião, criativa mas sempre
metodologicamente controlada, será evitar as camisas-de-força sem cair em
superficialidades e em hibridismos metodológicos mal fundamentados.
34
Se tomarmos, nesse esforço, a explicação da abordagem fenomenológica de Husserl
feita por Antônio Mendonça, perceberemos a aproximação para com a perspectiva
interdisciplinar que propomos. Conforme Mendonça, ao enfocar o fenômeno, Husserl
pretendia desvencilhar-se tanto do psicologismo quanto do empirismo, rumo a uma
combinação de dependência mútua de ambos: “a experiência (o fenômeno) reside na dialética
relacional entre os a priori das consciências e o vivido”.
35
Segundo Mendonça, uma
fenomenologia que transcenda o descritivismo e busque a ligação entre as manifestações
externas da religião, as teologias ou teodicéias e a experiência do sagrado, traz em si o
atrativo de captar a dinâmica das religiões: “as mudanças histórico-culturais e sociais
promovem ajustes nos conceitos de maneira a revelar novos perfis do sagrado universal”.
36
Nos pomos, assim, em busca de uma atitude hermenêutica diante do objeto da
religião vivida ou praticada. A atividade de tal atitude seria, conforme Pondé, a de partir de
uma fenomenologia empírica para buscar adentrar “a experiência existencial interna do
homem religioso, a fim de aí ver de que forma ele enfrenta vital e objetivamente, por meio da
cultura religiosa em questão, seu drama ontológico ou seu terror da contingência”. A
33
Eduardo Basto de ALBUQUERQUE, Distinções no campo de estudos da religião e da história, p. 57-67; tb.
Mircea ELIADE, Imagens e símbolos, ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso, p. 25: “(...) negligenciamos
um fato essencial: na expressão ‘história das religiões’, a ênfase deve ser dada à palavra religião, e não à história
– desde a história das técnicas até a história do desenvolvimento humano, só existe uma maneira de se abordar a
religião: atentar para os fatos religiosos. Antes de fazer a história de alguma coisa, é muito importante
compreender bem essa coisa, em si e por si mesma”.
34
Luís Henrique DREHER, Ciência(s) da religião: teoria e pós-graduação no Brasil, p. 176, 175-177.
35
Antonio Gouvêa MENDONÇA, Comentários sobre um texto prévio de Luís Dreher – UFJF, Ciência(s) da
religião: teoria e pós-graduação no Brasil, p. 191-192.
36
Idem, O presente status do estudo das religiões, campo religioso e fenomenologia, p. 173.
17
discussão epistemológica e metodológica se daria, destarte, ao redor das tentativas de melhor
acessar “o núcleo espiritual desse drama ontológico”.
37
Pode-se, todavia, questionar a existência da possibilidade de se acessar de fato tal
núcleo espiritual, a experiência do homem religioso, visto que se trata de algo que chega ao
pesquisador sempre mediado e atravessado por formas contingentes diversas de discurso e
linguagem – “a cultura religiosa em questão” –, além de sofrer as influências das estruturas
sociais e culturais, tanto por parte do sujeito da experiência, quanto por parte do
pesquisador.
38
Essa, porém, não é uma dificuldade apenas dos estudos de religião. A
linguagem é a mediação que atravessa, na verdade, o todo das ciências humanas. Qualquer
fato social ou cultural inacessível sem linguagem.
39
Na imbricação de tais fatores, sem menosprezar a validade de esforço algum de
compreensão, limitar-me-ei, aqui, aos efeitos ou sintomas da relação do homem com o
sagrado, assumindo com Filoramo e Prandi uma “autonomia relativa” da religião e me
aproximando, assim, de uma escola mais historicista: a forma como re-construção das
essências, as essências na forma. Ambas as abordagens são, contudo, válidas, necessárias e
complementares.
40
Dito isto, entre o “meio da cultura religiosa em questão” e o “homem religioso”,
tratemos de aclarar as questões teórico-metodológicas que nos acompanharão no trajeto deste
texto, ferramentas pelas quais pretendemos nos apropriar dessa totalidade complexa.
3. Um modo de ver a história da IELB
3.1. Mito e Teologia na forma do discurso
Nossa pesquisa, como já se pode aferir, versa sobre as construções de significação
religiosa do mundo em meio aos processos e relações sociais. Nessa direção, o campo da
análise histórica de discursos religiosos pode ser lugar fértil para a aproximação entre as
perspectivas histórico-fenomenológica e sociocultural. Explico: uma narrativa mítica pode ser
37
Luiz Felipe PONDÉ, Em busca de uma cultura epistemológica, p. 43.
38
Robert H. SHARF, Experience, p. 114.
39
Observação de Luís Dreher como membro da banca desta tese.
40
Giovanni FILORAMO e Carlo PRANDI, As ciências das religiões, p. 17-22; Mircea ELIADE, O sagrado e o
profano, p. 11: “Atualmente, os historiadores das religiões estão divididos entre duas orientações metodológicas
divergentes, mas complementares: uns concentram sua atenção principalmente nas estruturas específicas dos
fenômenos religiosos, enquanto outros interessam-se de preferência pelo contexto histórico desses fenômenos; os
primeiros esforçam-se por compreender a essência da religião, os outros trabalham por decifrar e apresentar sua
história” [grifos no original].
18
entendida como uma forma de discurso religioso: o mito na forma do discurso. Se
sistematizado, esse discurso mítico ganha forma de teologia, de logos. Nesses discursos
religiosos, por conseguinte, ao mesmo tempo em que são produzidas identidades e memórias,
são também com elas ou nelas negociados significados nas relações socioculturais.
Costuma-se associar, em fenomenologia da religião (e por vezes também nas ciências
sociais), as idéias de experiência religiosa, mito e rito, numa circularidade complementar e
continuada. A lógica é a seguinte: o ser humano tem uma experiência do sagrado e através da
narrativa de seus mitos cosmogônicos ou de outra natureza e de suas performances rituais
renova, na reatualização do evento hierofânico primordial, essa mesma experiência religiosa,
garantindo, assim, a continuidade daquilo que aconteceu in illo tempore, como dizia Eliade.
41
O mito, portanto, “conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento
primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio”.
42
Veja-se, então, que o mito, além
de pertencer à esfera do rito, pertence também à esfera do discurso, da língua, está ligado à
palavra falada. É pela fala que ele se faz conhecer. Trata-se de uma palavra com poder
decisivo em sua repetição, mas que, por isso, liga-se também às demais esferas da vida do
homem religioso. Da esfera do mito, pode-se ir, por isso, pelo discurso, também à vida
cotidiana, às práticas e ações sociais.
43
As já exploradas relações entre mito e rito são frutíferas também nesse sentido.
Enquanto o mito é um padrão de conceitualização, diz-se, o rito é um padrão de
comportamento. O mito é, assim, o complemento do rito: o primeiro uma palavra sagrada, o
segundo uma ação sagrada; o primeiro o fundamento da religiosidade, o segundo, sua
expressão. Por trás de um rito está, portanto, sempre uma crença profunda naquilo que é o seu
centro: o mito. O rito, dessa forma, nunca está “solto”, não existe sem uma base mítica que
lhe atribua sentido. Por isso, m
ito e rito são co-operantes, e a relação entre eles é estreita ao
ponto de quase se fundirem.
44
O mesmo vale, pode-se assim dizer, para as relações entre mito e discurso. Nas
diversas formas de fala e escrita, ou mesmo de arte se ampliarmos a noção de discurso, o
41
Mircea ELIADE, Tratado de história das religiões, p. 36, p. ex.
42
Idem, O sagrado e o profano, p. 80.
43
G. VAN DER LEEUW, Religion in essence and manifestation, v. II, p. 413; Mircea ELIADE, Tratado de
história das religiões, p. 338: “É preciso que nos habituemos a dissociar a noção de ‘mito’ das de ‘palavra’ e de
‘fábula’ (veja-se a acepção homérica de mythos: ‘palavra’, ‘discurso’), para a aproximarmos das noções de ‘ação
sagrada’, de ‘gesto significativo’, de ‘acontecimento primordial’. É mítico não só o que se conta de certos
acontecimentos que se desenrolam e de personagens que viveram in illo tempore, mas ainda tudo o que se acha
em relação direta ou indireta com tais acontecimentos e com personagens primordiais”. [grifos no original]
44
Geo WIDENGREN, Fenomenologia de la religión, p. 135, 189-190:; G. VAN DER LEEUW, Religion in
essence and manifestation, v. II. p. 413; Frank SENN, Christian worship and its cultural setting, p. 3.
19
homem religioso faz referência ao mito, ou a séries de mitos, que fundamentam os discursos a
ponto de se (con)fundirem, dada sua proximidade na esfera da linguagem. Há, nesse sentido,
também uma série de mitos que fundamentam os discursos do Luteranismo Confessional
Ortodoxo da IELB, articulados em sua produção teológica, forma de sistematizar o mito.
O mito, contudo, está ao mesmo tempo além da linguagem, uma vez que ao ser
narrado, ele é a ressurreição do que aconteceu in illo tempore, que retorna para fundamentar e
motivar a existência humana como um todo.
45
Na vida no mundo do sagrado, há, portanto,
uma dinâmica de constante retorno ao tempo mítico das origens. O ser humano religioso
possui a característica de repetir arquétipos, de querer retornar à hierofania primordial,
46
e
põe-se, então, em movimento a articulação de diferentes temporalidades pela memória. Um
ritual ou um discurso possui validade, nesse sentido, somente enquanto repetição arquetípica
do tempo mítico das origens. Nessa repetição, há uma manifestação do sagrado e é instaurado
o universo divino. O ser humano, então, é inserido em tempo e espaço sagrados e posto em
contato com o sagrado, com o numinoso. O tempo mítico que se encontra fora do tempo do
mundo empírico e profano, em um ‘outro’ tempo, ao ser reapresentado, re-cria e re-presenta
o acontecimento em si – não é, portanto, mera descrição deste.
47
Ao ser instaurada, então, a
hierofania primeira situa a pessoa no tempo e no espaço de uma maneira total, em sua relação
com os outros, com o mundo e com o sagrado.
48
Um mito, assim entendido, tem a ver com realidades vivas. As pessoas assumem um
comportamento mítico e, através deste, atestam sua realidade, não definida concretamente,
mas captada através do mito, no que se revela uma estrutura inacessível à compreensão
empírico-racionalista. Pela re-atualização do mito, as pessoas explicam o mundo e o
representam simbolicamente. “O mito é a afirmação, carregada de emoção, do lugar do
45
Bronislaw MALINOWSKI, O papel do mito na vida, p. 160: “(...) [o mito é] a ressurreição, pela narrativa, de
uma realidade primeva, contada para satisfazer profundas necessidades religiosas, anseios morais, submissões
sociais, afirmações e mesmo exigências práticas. Na cultura primitiva o mito preenche uma função: expressa,
valoriza e codifica a crença; salvaguarda e reforça a moralidade; garante a civilização humana; não é um contato
despretensioso, mas uma força ativa muito elaborada; não é uma explicação intelectual ou uma fantasia artística,
mas um esquema pragmático da sabedoria moral e da fé primitivas.”
46
Mircea ELIADE, El mito del eterno retorno, p. 18; Idem, Tratado de história das religiões, p. 338.
47
Idem, O sagrado e o profano, p. 59: “(...) o tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido
em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. (...) Por conseqüência, o tempo
sagrado é indefinidamente recuperável, indefinidamente repetível”; Idem, El mito del eterno retorno, p. 41;
Thomas O’DEA, Sociologia da religião, p. 63.
48
Mircea ELIADE, Tratado de história das religiões, p. 296. “De fato, a noção de espaço sagrado implica a idéia
da repetição da hierofania primordial que consagrou este espaço transfigurando-o, singularizando-o, em resumo,
isolando-o do espaço profano a sua volta”; tb. Thomas O’DEA, Sociologia da religião, p. 63: “Torna [o mito] o
passado e o futuro imediatamente presentes; exprime a solidariedade do homem com seu mundo, e reafirma essa
solidariedade diante da dúvida humana (...) Através dele os homens se ligam a seu ambiente, a seus ancestrais,
aos seus descendentes, ao além que é o fundamento de toda a existência, ao que é permanente, além de toda a
mudança”.
20
homem num mundo que tem sentido para ele, bem como de sua solidariedade com esse
mundo”,
49
e torna-se assim um precedente e um exemplo, tanto em relação às ações
‘sagradas’ ou ‘profanas’ do ser humano, quanto em relação à própria condição humana: torna-
se um “precedente exemplar para todas as ações e ‘situações’ que, depois, repetirão este
acontecimento”.
50
Sendo assim, o mito/teologia ritualizado ou em forma de discurso serve, também,
como veículo através do qual a realidade como um todo é transmitida à sociedade. Para que
determinada sociedade se mantenha coesa, ela necessita, por isso, estar em contato regular
com o mito, e na repetição ritualizada ou não do mito o mesmo é preservado e ensinado às
novas gerações.
51
Nestes processos, porém, pode acontecer o que Eliade chamava, talvez um pouco
exagerada ou romanticamente, de “degradação do mito”: “o mito pode degradar-se em lenda
épica, em balada ou em romance, ou então sobreviver em forma diminuída, nas superstições,
hábitos e nostalgias, etc., não perdendo, por isso, a sua estrutura nem o seu valor”. Os mitos
vão, assim, por sua reinterpretação, ganhando “novas colorações locais”, todavia, sem que os
modelos originais percam seu poder de reatualização.
52
Pode-se, então, seguir a orientação de
Mendonça: “o sentido desse mito hierofânico deve ser buscado, como de regra, nas condições
sócio-históricas dos seus sujeitos”, visto que ele “pode sofrer revisões constantes e originar
tanto mudanças como correntes divergentes e excludentes dentro de uma mesma grande
tradição”, como é o caso, por exemplo, de correntes como o Liberalismo teológico e o
Fundamentalismo no âmbito do Protestantismo.
53
É com essa esfera, a da re-presentação e da re-construção dos mitos e teologias na
forma de discursos, que estaremos lidando nestas páginas. Os mitos tornam-se, então, hieros
logoi, discursos sagrados.
54
Todavia, a pureza das origens que os mitos referem existe, nessa
perspectiva, somente na forma do discurso e da memória, ou seja, de modo ideal.
Discursos mítico-religiosos embasam, nessas dinâmicas, tanto ações e identidades,
quanto novos discursos, porque são formas de falar sobre o mundo e de compreendê-lo e
constituem modos de auto-representação e experiências de totalidade. São práticas sociais de
49
Thomas O’DEA, Sociologia da religião, p. 63.
50
Mircea ELIADE, Tratado de história das religiões, p. 334-335, 347-352; Maurice LEENHARDT, O Mito, p.
92.
51
Frank SENN, Christian worship and its cultural setting, p. 3.
52
Mircea ELIADE, Tratado de história das religiões, p. 352-353.
53
Antônio Gouvêa MENDONÇA, A persistência do método fenomenológico na sociologia da religião: uma
aproximação sob o prisma da essência e da forma, p. 84, 86.
54
Ricardo Artur FITZ, Brasil: os mitos fundadores da nacionalidade, p. 14.
21
elaboração de memórias e de produção de identidades, exercidas no contexto de estruturas
sobre e sob as quais agem os atores, em processos contínuos de construção e reconstrução.
São, por isso, portadores de rico capital simbólico.
55
É possível, pois, historicizá-los, num
esforço de superação das dicotomias entre o sincrônico e o diacrônico, pela análise das formas
pelas quais uma dimensão incide sobre a outra nas próprias práticas discursivas.
56
Como disse Ciro Flamarion Cardoso, “a atividade narrativa, neste sentido, é parte
inseparável do plano de ação, não é só algo incidental ou externo. A vida não somente se vive,
ela se relata, se conta o tempo todo: vivemos o relato, relatamos a vida. Com freqüência
mudamos o relato, ou seja, nossa visão acerca da vida, para levar em conta novos eventos
incidentes; mas também tentamos, na medida do possível, mudar os eventos para salvar o
relato, isto é, o plano, a versão, o futuro projetado”.
57
Nos discursos religiosos do Confessionalismo da IELB, também em seu fazer
teológico, estão em movimento de construção e reconstrução séries de mitos hierofânicos, ao
passo que diferentes temporalidades são articuladas para fundamentar as relações no presente.
3.2. A prática discursiva religiosa entre estruturas e eventos
Enquanto discurso religioso que põe em movimento séries de mitos, teologias,
memórias e identidades, o Luteranismo Confessional Ortodoxo da IELB pode ser pensado
como uma formação discursiva. Segundo Foucault; com quem estaremos dialogando para
55
F. YUS, Discourse and identity, p. 3728; Louise PHILLIPS e Marianne JORGENSEN, Discourse analysis, as
theory and method, p. 1 e 21; Katherine T. EWING, The illusion of wholeness: ‘culture’, ‘self’, and the
experience of inconsistency, p. 265; Hans SIEBERS et alii, Identity Formation, issues challenges and tools, p.
82; D. E. APTER, Political discourse, p. 11645.
56
Marshall SAHLINS, Ilhas de história, p. 188-189: “Já na natureza da ação simbólica, sincronia e diacronia
coexistem em uma síntese indissolúvel. A ação simlica é um composto duplo, constituído por um passado
inescapável e por um presente irredutível. Um passado inescapável porque os conceitos através dos quais a
experiência é organizada e comunicada procedem do esquema cultural preexistente. E um presente irredutível
por causa da singularidade do mundo em cada ação (...) As pessoas, enquanto responsáveis por suas próprias
ações, realmente se tornam autoras de seus próprios conceitos; isto é, tomam a responsabilidade pelo que sua
própria cultura possa ter feito com elas”.
57
Ciro Flamarion CARDOSO, Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 67-68. Ainda que antagonista
daqueles que considera adeptos do que chama de epistemologia pós-moderna (dentre os quais lista Deleuze,
Foucault e Derrida, como influídos por Nietzsche e Heidegger), Flamarion Cardoso, contudo, assume mesmo
assim a importância da dimensão narrativa da existência, sem referir-se, porém, à noção de discurso. Diz
Cardoso, p. 79: “Tal movimento [pós-moderno] desembocou, previsivelmente, num estado de coisas suspenso
entre o niilismo e o pansemiotismo, numa negação da explicação em favor da hermenêutica relativista”. A crítica
aguda e pertinente, anda que unilateral, tem versões mais favoráveis e compreensivas em outros também
eminentes historiadores como Roger CHARTIER, À beira da falésia (ver capítulos 5 e 8), Paul VEYNE, Como
se escreve a história e Foucault revoluciona a história (especialmente o ensaio final) e François DOSSE, A
história à prova do tempo, da história em migalhas ao resgate do sentido (capítulos 10 e 14). De minha parte,
acolho as advertências de Cardoso, sem porém, abdicar das possibilidades que o desconstrucionismo de uma
epistemologia pós-moderna possa trazer à crítica da religião ortodoxa.
22
pensar o discurso, abraçando, porém, principalmente sua metodologia, antes de sua filosofia
da história; uma formação discursiva existirá quando entre um certo número de enunciados se
puder descrever um “sistema de dispersão” e “entre os objetos, os tipos de enunciação, os
conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações,
posições e funcionamentos, transformações)”. Uma formação discursiva, nessa ótica, está
sujeita a regras próprias, ou seja, “condições a que estão submetidos os elementos (...)
condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de
desaparecimento)”.
58
Conforme o autor, uma formação discursiva, em sua positividade e
materialidade, constitui, nesse sentido, um a priori histórico, compreendido como um
“conjunto de regras que caracterizam uma prática discursiva em certo espaço e tempo”.
59
Tal
prática discursiva, empreendida por sujeitos condicionados histórica e discursivamente, é o
objeto da análise histórico-social do discurso que almejamos – aquilo que Foucault chamava
de arqueologia e genealogia: o estudo das condições de produção e das práticas das regras e
ordens do discurso.
60
Todo acontecimento discursivo, e por isso também o mítico-religioso, se dá, nessa
ótica, no ambiente ou, melhor dizendo, na dispersão de uma formação discursiva. Com o
discurso confessional luterano não é diferente. Formações discursivas pressupõem-se, assim,
não em continuidade bem arrumada, mas em sistemas de dispersão. A formação da ordem do
discurso acontece não mediante a ação de um sujeito consciente visando um fim. No que é
dito, apresentam-se “preconceitos, reticências, saliências e reentrâncias inesperadas de que os
locutores não estão nem um pouco conscientes”. Ou, em outro sentido, “há, sob o discurso
consciente, uma gramática determinada pelas práticas e gramáticas vizinhas, que a observação
atenta do discurso revela”.
61
Trata-se então de perceber a prática discursiva religiosa tanto em
suas determinações mítico-estruturais, quanto em suas relações sócio-históricas.
58
Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 40; tb. Eni Pulcinelli ORLANDI, Os falsos da forma, p. 17-
18: “A formação discursiva dispõe sobre o que o sujeito pode e deve dizer em uma situação dada numa
conjuntura dada, de tal forma que, remetendo seu discurso à ideologia, essa formação fará que suas palavras
tenham um sentido e não outros possíveis. É pela remissão à formação discursiva que se identifica uma fala”.
59
Maria do Rosário GREGOLIN, Foucault e Pêcheux na análise do discurso, diálogos e duelos, p. 91; Michel
FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 142-149. Perceba-se aí uma correlação possível, ainda que em esferas
diferenciadas, da concepção de Foucault com o a priori fenomenológico, independentemente de seu
distanciamento teórico e político da fenomenologia de seu contemporâneo Jean-Paul Sartre. Para uma
aproximação da idéia de sujeito livre em Sartre e o tema da religião ver Frederico Pieper PIRES, Liberdade e
religião no existencialismo de Jean-Paul Sartre.
60
Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, passim; Id. A ordem do discurso, passim; Id. Nietzsche,
Genealogia, História, passim.
61
Paul VEYNE, Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história, p. 252.
23
Tornam-se heuristicamente interessantes, aqui, as relações que se pode fazer entre
prática, acontecimento ou evento e formação discursiva religiosa, se pensarmos a última
como estrutura sociocultural que articula mitos, teologias, memórias e identidades.
Conforme Pierre Chaunu, numa perspectiva histórico-social, pode-se entender
estrutura como “tudo o que, numa sociedade, numa economia, é dotado de uma duração
suficiente para que seu movimento escape à observação comum”.
62
Sob um outro prisma,
antropológico, a poderíamos compreender, segundo Marshall Sahlins, como o conjunto das
“relações simbólicas de ordem cultural”.
63
Se unirmos as perspectivas, de modo a se
complementarem, entenderemos, então, que uma estrutura possui uma duração longa, ou seja,
uma existência na história, e que consiste em relações socioculturais.
Prática, por sua vez, segundo Sherry Ortner, pode ser considerada como qualquer
tipo de ação humana – portanto também o discurso – na qual se perceba a reverberação de
relações de assimetria, desigualdade e dominação, bem como de padrões de cooperação,
reciprocidade e solidariedade, em um contexto histórico e cultural específico. Assim
compreendido, “o estudo da prática é acima de tudo o estudo de todas as formas de ação
humana, mas de um ângulo – político – particular”, sempre em relação a uma estrutura social
e cultural.
64
Uma prática discursiva, nessa ótica, não se dá pela performance de atores livres,
conscientes e autônomos, mas condicionados por estruturas socioculturais. Conforme
Foucault a prática discursiva é o próprio “conjunto de regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da
função enunciativa”, ou seja, o que um sujeito histórico institucionalmente localizado pode
dizer sob contingências estruturais.
65
Poderíamos afirmar, assim, que a prática discursiva dá-
se em relação a regras estruturais do discurso.
Todavia, uma das críticas que se faz à análise do discurso foucaultiana é a da falta de
espaço em sua teoria para a mudança social, tanto pelo determinismo de seu “materialismo
62
Apud M. AYMARD, Estruturas, p. 309-310.
63
Marshall SAHLINS, Ilhas de história, p. 9.
64
Sherry ORTNER, High religion, p. 11 e 12: “So the study of practice is after all the study of all forms of
human action, but from a particular – political – angle”; p. 12: “Practice is action considered in relation to
structure (…) Human action considered apart from its structural contexts and its structural implications is not
‘practice’” [“Prática é ação considerada em relação à estrutura (…) A ação humana considerada separadamente
de seus contextos estruturais e de suas implicações estruturais não é ‘prática’”]; idem, Theory in anthropology
since the sixties, p. 149, 157.
65
Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 133; Maria do Rosário GREGOLIN, Foucault e Pêcheux na
análise do discurso, p. 89.
24
discursivo”, quanto pela “morte do homem” que sustenta.
66
. Faz-se necessário pontuar, então,
que a “ordem do discurso” condiciona, mas não de modo absoluto. Penso que um olhar
adequado deva deixar algum espaço para ação do sujeito entre as estruturas e os
acontecimentos ou eventos, como prefere Sahlins, de modo que se conceba que ao mesmo
tempo em que a história é ordenada culturalmente ou pela estrutura, também a cultura-
estrutura é ordenada historicamente. Nessa perspectiva, pode-se pensar as dinâmicas da
formação discursiva mítico-hierofânica sob a ótica do binômio história-cultura. A síntese
desse processo desdobrar-se-ia nas ações criativas dos sujeitos históricos, em práticas situadas
em eventos discursivo-religiosos.
67
Nessa concepção, um evento acontece simultaneamente em dois planos: “como ação
individual e como representação coletiva; ou melhor, como relação entre certas histórias de
vida e uma história acima e além dessas outras”,
68
como o mito. A ordem cultural, a estrutura
segundo Sahlins, existe somente in potentia, seu significado consiste nos usos, nas práticas
diríamos, de pessoas e comunidades. É, portanto, nas práticas, nos discursos, nos eventos, que
os significados culturais são realizados in presentia. “Um evento é de fato um acontecimento
de significância e, enquanto significância, é dependente na estrutura por sua existência e por
seu efeito. (...) Um evento não é somente um acontecimento no mundo; é a relação entre um
acontecimento e um dado sistema simbólico”
69
– e social, diríamos. Dessa forma, a prática
discursiva do Confessionalismo Ortodoxo da IELB se dá em eventos que adquirem
significação no contexto de suas narrativas mítico-hierofânicas. Nessa atualização dos mitos,
todavia, as estruturas são sujeitadas a transformações e re-significações locais.
Sahlins completa, então, sua teoria com o conceito de estrutura da conjuntura: “a
realização prática das categorias culturais em um contexto histórico específico, assim como se
expressa nas ações motivadas dos agentes históricos, o que inclui a microssociologia de sua
interação”,
70
ou, de outra forma, “um conjunto de relações históricas que, enquanto
reproduzem as categorias culturais, lhes dão novos valores retirados do contexto
pragmático”.
71
Nessa perspectiva, a prática é entendida como uma espécie de ‘sociologia
66
Ver, p. ex., Peter BURKE, História e teoria social, p. 210.
67
Marshall SAHLINS, Ilhas de história, p. 7; p. 19: “É necessário fazer o reconhecimento teórico, encontrar o
lugar conceitual do passado no presente, da superestrutura, na infraestrutura, do estático no dinâmico, da
mudança na estabilidade (…) O problema agora é de fazer explodir o conceito de história pela experiência
antropológica da cultura”.
68
Idem, p. 143-144.
69
Idem, p. 190-191.
70
Idem, p. 15.
71
Idem, p. 160; tb. cf. M. AYMARD, Estruturas, p. 310: “o par estrutura/conjuntura deve permitir apreender a
totalidade da diacronia e toda a espessura do real. A pesquisa se apropria, no nível de seu encaminhamento,
assim como da apresentação de seus resultados, de uma dupla hierarquização. Do instante (o fatual) à duração
25
situacional do significado’ e aplica-se à compreensão geral de mudança cultural e social. O
que acontece, segundo o autor, é que a estrutura tem uma diacronia interna, o que ocasiona
que “os conceitos básicos [sejam] conduzidos através de estágios sucessivos de combinação e
de recombinação, produzindo ao longo do caminho termos novos e sintéticos”.
72
A prática, assim, tanto emerge da estrutura, quanto a reproduz e transforma. A
estrutura, ao mesmo tempo em que tem um efeito poderoso e mesmo determinante sobre as
práticas, é por elas reproduzida e recriada. Podemos então perguntar: “Como a estrutura forma
a prática (discursiva)? Como a prática (discursiva) forma a estrutura?”, a fim de compreender
“a gênese, reprodução e mudança de forma e significado de um determinado todo
social/cultural” – o Luteranismo Confessional Ortodoxo –, levando em consideração suas
relações de poder e hegemonia.
73
Uma instituição como a IELB, nessa ótica, “é ao mesmo tempo um sistema de
relações sociais, arranjos econômicos, processos políticos, categorias culturais, normas,
valores, ideais, padrões emocionais, e assim por diante”,
74
que formam estruturas que influem
nas práticas individuais e grupais, e vice-versa. Tais estruturas, por outro lado, são elas
mesmas portadoras de contradições que colocam sempre novamente problemas aos atores
(discursos conflitivos e padrões de ação conflitivos) e são, ao mesmo tempo, organizadas em
esquemas culturais: as dinâmicas de uma “combinação de estruturas que se repetem através de
diversas estórias e rituais culturais e que descrevem atores respondendo a contradições de sua
cultura e lidando com elas de modos apropriados, ou até mesmo heróicos”,
75
como nas
narrativas mítico-hierofânicas.
Dá-se, assim, prossegue Sahlins, que as pessoas submetem as categorias culturais a
riscos empíricos em seus projetos práticos e seus arranjos sociais. O simbólico, o mítico
diríamos, é, assim, pragmático, e a estrutura é, no tempo, a síntese da reprodução e da
variação. Nas estruturas das conjunturas acontece, conseqüentemente, o que Sahlins chama de
reavaliação funcional de categorias: nomes antigos adquirem, no uso, novas conotações,
distantes dos sentidos originais. O sentido dos signos, assim, só alcança completude e
muito longa das estruturas, passando pela etapa intermediária da conjuntura: a do tempo. Do superficial às
profundezas: a do próprio real”.
72
Marshall SAHLINS, Ilhas de história, p. 16, 15.
73
Idem, p. 149: “What a practice theory seeks to explain, then, is the genesis, reproduction, and change of form
and meaning of a given social/cultural whole”.
74
Sherry ORTNER, Theory in anthropology since the sixties, p. 148: “An institution (...) is at once a system of
social relations, economic arrangements, political processes, cultural categories, norms, values, ideals, emotional
patterns, and so on and on”.
75
Idem, High religion..., p. 14: “(...) plot structures that recur throughout many cultural stories and rituals, that
depict actors responding to the contradictions of their culture and dealing with them in appropriate, even heroic,
ways”.
26
sistematização nos processos histórico-sociais e nas relações com outros signos. Por sua vez,
“os efeitos desses riscos podem ser inovações radicais”, uma vez que “o antigo sistema é
projetado adiante sob novas formas. Segue-se daí que ordens culturais diversas tenham modos
próprios de produção histórica”.
76
As narrativas do Confessionalismo Ortodoxo da IELB são,
assim, também colocadas em “risco” na prática discursiva. A compreensão de tal processo é
apresentada em duas proposições:
[1] A experiência social humana consiste da apropriação de objetos de percepção
por conceitos gerais: uma ordenação de homens e dos objetos de sua existência
que nunca será a única possível, mas que, nesse sentido, é arbitrária e histórica.
[2] (...) o uso de conceitos convencionais em contextos empíricos sujeita os
significados culturais a reavaliações práticas. As categorias tradicionais, quando
levadas a agir sobre um mundo com razões próprias, um mundo que é por si
mesmo potencialmente refratário são transformadas. (...) nada pode garantir que
sujeitos inteligentes e motivados, com interesses e biografias sociais diversas,
utilizarão as categorias existentes das maneiras prescritas. Chamo essa
contingência dupla de o risco das categorias na ação.
77
Há assim uma dinâmica entre estruturas, eventos e práticas discursivas: “de um lado,
é na movência, na provisoriedade, que os sujeitos e os sentidos se estabelecem, de outro, eles
se estabilizam, se cristalizam, permanecem”.
78
O discurso – mítico-religioso, nesse caso, do
Luteranismo Confessional Ortodoxo – atualiza, conforme Veyne, na relação com práticas e
discursos vizinhos, virtualidades prefiguradas em um molde e preenche o vazio deixado por
tais práticas vizinhas. Se, por conseguinte, as práticas vizinhas se transformam, o limite do
vazio se desloca, ocasionando também transformações no discurso.
79
Ao sabor da história,
assim, um grupo religioso pode deixar latentes partes de suas crenças até precisar delas, bem
como, ao longo do tempo, modificar crenças, rituais ou práticas de todos os tipos, em função
de experiências, reflexões, conflitos ou trocas simbólicas diversas com o universo vizinho.
80
76
Marshall SAHLINS, Ilhas de história, p. 9-10.
77
Idem, p. 181-182 [grifo meu].
78
Eni P. ORLANDI, Análise de discurso, princípios e procedimentos, p. 10.
79
Paul VEYNE, Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história, p. 259.
80
André DROOGERS, The power dimensions of the Christian community: an anthropological model, p. 267.
Droogers apresenta uma compreensão de estrutura como sendo organizada através de esquemas, modo caro à
antropologia conexionista ou cognitivista, que se assemelha à idéia de molde de Veyne ou de a priori de
Foucault. Esquemas seriam, assim, “scripts mínimos aceitos culturalmente (ou cenários, ou protótipos ou
modelos) de e para um certo pensamento, emoção ou ato”, organizados no interior do repertório cultural de
grupos e sociedades como “construtos mínimos que são maximizados, ajustados, emendados para encaixar-se à
situação concreta na qual são ativados” [“Schemas can be viewed as accepted minimal scripts (or scenarios or
prototypes or models) for and of a certain thought, emotion or act”; “Schemas are minimal constructs that are
maximized, adjusted and amended to fit the concrete situation in which they are activated”]; tb. Claudia
STRAUSS e Naomi QUINN, A cognitive/cultural anthropology, p. 285; Ver tb. Pierre SANCHIS, Para não dizer
que não falei de sincretismo; e Id., Inculturação? Da cultura à identidade, um itinerário político no campo
religioso: o caso dos agentes de pastoral negros.
27
Não é demais lembrar, contudo, a crítica apresentada por Ortner, quando observa
que a teoria de Sahlins faz a mudança parecer demasiadamente fácil. Segundo ela, atores
maduros não são tão flexíveis e a capacidade de abertura de uma estrutura – de uma formação
discursiva em nosso caso – é sempre uma variável. Grande parte da reprodução estrutural
acontece nas atividades rotinizadas e na intimidade da vida doméstica ou dos pequenos
grupos. Na medida em que essas atividades domésticas ou subgrupais, como no caso de uma
comunidade religiosa, permanecerem ilhadas do todo da esfera social, práticas importantes
permanecerão intocadas e as transformações de significados serão retardadas. Ao mesmo
tempo, sublinha Ortner, o que for transmitido será modificado conservativa e
significativamente. Nesse sentido, a fim de apreender o processo de mudanças culturais, a
autora propõe que um modelo adequado para interpretar a capacidade da prática para revisar a
estrutura deve abranger um período longo, que acompanhe as estruturas em questão no
desenvolvimento de duas ou três gerações.
81
Como lembra Burke, aparentes inovações podem
mascarar a persistência de uma tradição.
82
Nesse sentido, a história que almejamos é também
a “história das resistências à mudança”. Diante dela, é a perspectiva de tempo longo a mais
adequada.
83
Na contramão das dinâmicas que envolvem as práticas culturais e suas
possibilidades de transformação, as permanências discursivas são, então, atravessadas por
formas de interdição e controle dos discursos. Principalmente no caso de formações
discursivas como o Luteranismo ielbiano, sublinhe-se, por isso, na dispersão, também as
permanências e as regularidades – percebidas, por certo, em sua historicidade. Há uma
“ordem do discurso”, existem regras para a formação discursiva, ainda que dinamizadas
historicamente. E então voltamos a Foucault para apreciar a “microfísica” dos jogos de poder
envolvidos nos discursos – pensando porém, para evitarmos o risco de determinismo, em uma
regulação ou contingência fragilizada e aberta.
Há, segundo Foucault, uma série de procedimentos externos ao discurso que têm por
finalidade interditar a palavra, de modo que não sejam todos que a possam ocupar e que os
que o façam não a usem como queiram. Há, também, nessa dinâmica, a segregação no
81
Sherry ORTNER, Theory in anthropology…, p. 156-157: “An adequate model of the capacity of practice to
revise structure must thus in all probability encompass a long-term, two- or three-generation developmental
network”.
82
Peter BURKE, What is cultural history?, p. 26.
83
Michel VOVELLE, Ideologias e mentalidades, p, 262; p. 265: “é na muito longa duração plurissecular que
nos interessamos atualmente pela religião (...) são coisas que não podem ser percebidas senão focalizando
largamente, na perspectiva dos séculos”; tb. Alphonse DUPRONT, A religião: antropologia religiosa, p. 84, que
concorda com uma análise de tempo longo para o caso específico da religião
28
discurso daquilo que é falso pelo que é verdadeiro, ou do que é anormal pelo que é normal.
Tal sistema de interdição vem, por sua vez, ancorado em um suporte institucional.
84
Há, nesse
sentido, uma vontade de verdade
85
na ortodoxia da IELB que conduz a um sentimento de
unidade e uniformidade ancorado em uma pertença a uma linha de pureza doutrinária que
remonta à memória direta de Lutero, da Reforma e, ulteriormente, do próprio Deus.
Há também, de outra forma, uma série de procedimentos internos ao próprio
discurso. De um lado, estão aquelas narrativas maiores que são fundantes da própria formação
discursiva; de outro, as menores, cuja função é de constituírem comentários das primeiras. O
primeiro é o caso da Bíblia no Cristianismo, que contém a narrativa da teofania primordial:
Jesus Cristo. Também, no Luteranismo Confessional, as Confissões Luteranas, adquirem
estatuto de narrativa maior e agem como reatualizações da hierofania e do novo tempo
instaurado pela Reforma. As diversas falas e pronunciamentos dos pastores, por sua vez, em
sermões e textos escritos adquirem, conseqüentemente, a função de comentários, ao mesmo
tempo abrindo no acontecimento discursivo a possibilidade do novo e remetendo-a outra vez
às ordens do discurso confessional.
86
A própria teologia, enquanto disciplina, ou o “autor
autorizado”, exerce um mesmo papel de controle interno ao discurso confessional: “lhe fixa
os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das
regras”.
87
Também os rituais, as doutrinas, o sistema educacional (seminário e escolas) agem
na mesma direção, produzindo uma “rarefação dos sujeitos que falam”. Nesse contexto, diz
Foucault, “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se
não for, de início, qualificado para fazê-lo”.
88
84
Michel FOUCAULT, A ordem do discurso, p. 8-21; tb. Maria do Rosário GREGOLIN, Foucault e Pêcheux na
análise do discurso, p. 96-98.
85
Michel FOUCAULT, A ordem do discurso, p. 14.
86
Idem, p. 21-26, 24-25: “o desnível entre o texto primeiro e o texto segundo desempenha dois papéis que são
solidários. Por um lado permite construir (e indefinidamente) novos discursos: o fato de o texto primeiro pairar
acima, sua permanência, seu estatuto de discurso sempre reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto de que passa
por ser detentor, a reticência e a riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso funda uma possibilidade aberta
de falar. Mas por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão
o de dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. (...) O comentário conjura o acaso do
discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto
mesmo seja dito e de certo modo realizado. (...) O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua
volta”.
87
Idem, p. 36, 26-36; Maria do Rosário GREGOLIN, Foucault e Pêcheux na análise do discurso, p. 102:
“analisar a autoria na relação que o texto estabelece com o sujeito que o produziu significa conceber o sujeito da
escrita como uma construção do próprio discurso (...) inscrito na materialidade do texto. (...) A fundação de um
espaço textual, pela escrita, obriga o sujeito a ‘representar-se’ na relação com um corpo social e com uma
instituição de saber”.
88
Michel FOUCAULT, A ordem do discurso, p. 37.
29
Lembre-se, porém, que esse ator ou sujeito não é nem totalmente programado ou
manipulado pelas estruturas, nem totalmente livre e criativo, mas antes “fortemente coagido
por ambos, padrões culturais internalizados e limites externos materiais e sociais”.
89
Diferentes atores, por isso, desenvolvem práticas discursivas diversas em relações dialéticas
com as estruturas em que estão inseridos.
Feitas estas considerações na direção de uma análise dinâmica das práticas
discursivas na história, podemos novamente com Foucault definir o discurso como:
um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação
discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente
repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se
for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os
quais podemos definir um conjunto de condições de existência. O discurso, assim
entendido, não é uma forma ideal e intemporal que teria, além do mais, uma
história; o problema não consiste em saber como e por que ele pôde emergir e
tomar corpo num determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico –
fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o
problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos
modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em
meio às cumplicidades do tempo.
90
Os a priori, a essência ou a estrutura, são, portanto, sob esse prisma, percebidos de
modo historicizado e dinâmico.
91
“Movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares
provisórios de conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de
incerteza, de trajetos, de ancoragem e de vestígios: isto é discurso, isto é o ritual da palavra”,
como disse Eni Orlandi.
92
Nos discursos, assim compreendidos como prática e acontecimento
significativo, a curta duração ou o evento revela, então, a longa duração estrutural.
93
3.3. Elaboração de memórias e produção de identidades na história
Nessa produção dos discursos religiosos, pela atualização e re-visão de seus
fundamentos míticos nas práticas discursivas, estão também em movimento modos de
representação e compreensão individual e grupal. As pessoas se percebem nos discursos.
89
Sherry ORTNER, High religion…, p. 14: “the actor is recognized as being heavily constrained by both
internalized cultural parameters and external material and social limits”; tb. Idem, Theory in anthropology…, p.
153.
90
Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 132-133.
91
Cf. Vitória Peres de OLIVEIRA, A fenomenologia da religião: temas e questões sob debate, p. 55: “Ao reagir
à palavra essência, alguns críticos passam por alto o fato de que essência é também entendida como sentido e
estrutura”.
92
Eni P. ORLANDI, Análise de discurso, princípios e procedimentos, p. 10.
93
Pierre NORA apud Ciro Flamarion CARDOSO, Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 16.
30
Identidade, nesse sentido, é o “que o sujeito pretende ser, aos olhos dos outros e a seus
próprios olhos, eventualmente até o que ele se esforça para se persuadir que ele é”, disse
Sanchis.
94
Como os discursos, identidades não são entendimentos perenes e sem história, mas
têm também seus processos de produção, seus jogos de poder e suas contradições, que se
fazem e se refazem pelas histórias contadas e re-contadas e pelo que é enunciado nas
dispersões dos eventos discursivos. Nesse sentido, discurso, memória e identidade se
entrelaçam de modo complexo nas práticas históricas.
A memória é já em si “um elemento constituinte do sentimento de identidade”.
95
As
memórias de grupos e indivíduos são articuladas dinamicamente, nas condições do tempo
presente e em meio a interações sociais e históricas, pela construção e reconstrução de
lembranças, no que se dá suporte a identidades individuais e coletivas. Tudo isso atravessado
pela linguagem e pelo discurso. As pessoas contam e recontam histórias sobre acontecimentos
grupais, elaborando e re-elaborando mitos que, ao atuarem no caso da religião como meta-
narrativas hierofânicas, tornam possível sua sociabilidade e embasam uma história comum.
Nesse processo, os sujeitos religiosos lembrando o que querem, o que podem ou que lhes é
permitido, numa construção seletiva da memória, vão elaborando suas identidades sempre em
referência aos outros, a critérios de aceitabilidade e de credibilidade. Memórias e identidades
religiosas são, por isso, também disputadas em meio a conflitos sociais entre grupos políticos
diversos.
96
Como nos processos de controle da palavra, por isso, memórias e identidades
fazem parte dos jogos de poder. Os arquétipos religiosos dão, nesse contexto, a base para tais
negociações, elas mesmas, por vezes, vividas como experiências do sagrado. Perceberemos
isso, por exemplo, nas análises que conduziremos acerca das relações da IELB com os demais
grupos religiosos, bem como nas elaborações e disputas ao redor das memórias de Lutero.
A idéia de uma memória coletiva é, sob esse prisma, profícua à interpretação. Trata-
se, conforme Flamarion Cardoso, de
um conjunto de elementos estruturados que aparecem como recordações,
socialmente partilhadas, de que disponha uma comunidade sobre sua própria
trajetória no tempo, construídas de modo a incluir não só aspectos selecionados,
reinterpretados e até inventados dessa trajetória como, também, uma apreciação
moral ou juízo de valor sobre ela. Em ambos os níveis, tais ingredientes se
modificam no tempo segundo mudem as solicitações que, em diferentes situações
94
Pierre SANCHIS, Inculturação? Da cultura à identidade, um itinerário político no campo religioso: o caso dos
agentes de pastoral negros, p. 62.
95
Michael POLLAK, Memória e identidade social, p. 204.
96
Lucilia de Almeida NEVES, Memória, história e sujeito: substratos da identidade, p. 110-113; D. E. APTER,
Political discourse, p. 11645-11646; Michael POLLAK, Memória e identidade social, p. 201-206; Loiva Otero
FÉLIX, História e memória, a problemática da pesquisa, p. 35-45.
31
histórico-sociais, façam ao passado as instâncias organizadoras da consciência
social.
97
A concepção abre espaço para a compreensão da memória coletiva como estrutura,
criada e re-criada nas práticas discursivas em conjunturas dadas. A memória coletiva, assim
entendida, tem sua dinamicidade nas práticas, também nas discursivas, e nesse contexto
identidades sociais e também individuais são constituídas: “uma comunidade baseia sua
legitimidade e sua identidade na recordação histórica”. A memória, nesse caso, “se organiza
em torno de um acontecimento fundador, os fatos anteriores ou posteriores sendo assimilados
a este ou esquecidos; quando são memorizados, é por analogia, repetição e confirmação do
acontecimento fundador”.
98
No caso religioso, o processo remete novamente à esfera das
narrativas mítico-hierofânicas e portanto se movimenta em um tempo muito longo: a
contraparte de sua dinamicidade. Como disse Vovelle, “se passarmos do campo da história do
pensamento ou das culturas aos novos campos da história das mentalidades, que operam no
domínio das atitudes, dos comportamentos e do que alguns denominam ‘o inconsciente
coletivo’ (Ph. Ariès), sobressai ainda o fato de que o tempo longo se impõe sem contestação”.
Não se trata todavia de uma história imóvel, “mas de grandes fases da História, sucessão de
estruturas ou de modelos de comportamentos que, mais do que sucederem-se, na verdade se
superpõem e se imbricam como telhas”.
99
O outro lado desse processo mnemônico é o esquecimento, a léthe grega, o campo
da obscuridade, do silêncio. A alethéia, a verdade, é, assim, o oposto da lethe, ou seja, o que
não está mais na obscuridade, no silêncio, o que foi ativado pela memória. Aquilo que Jean-
Pierre Vernant disse sobre os gregos vale também aqui: “não há contradição entre o
verdadeiro e o falso, a verdade (alétheia) e o esquecimento (léthe) (...) mas entre esses dois
pólos se desenvolve uma zona intermediária, na qual alétheia se desloca progressivamente em
direção a léthe, e assim reciprocamente”.
100
O esquecimento, então, torna-se parte necessária
da memória.
97
Ciro Flamarion CARDOSO, Um historiador fala de teoria e metodologia, p. 17.
98
Ph. JOUTARD, Memória coletiva, p. 526-527. Sobre a diferença entre “formação” e “fundação”, vide
Marilena CHAUÍ, Brasil – mito fundador e sociedade autoritária, p. 9:formação é a história propriamente dita
(...) fundação se refere a um momento passado imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo e
presente no curso do tempo, isto é, a fundação visa a algo tido como perene (quase eterno) que traveja e sustenta
o curso temporal e lhe dá sentido”. No argumento de Chauí, o mito fundador da sociedade brasileira é
manipulado em favor da ideologia dominante.
99
Michel VOVELLE, Ideologias e mentalidades, p. 273. O texto de Vovelle tece comentários sobre a teoria
desenvolvida por Fernand BRAUDEL, A longa duração.
100
Apud Loiva Otero FÉLIX, História e memória, a problemática da pesquisa, p. 45; como disse TODOROV
apud François DOSSE, História e ciências sociais, p. 182: “É assim que a memória é inseparável do
32
Tais deslocamentos, por outro lado, acontecem no ambiente da própria ação dos
sujeitos históricos, mediados socioculturalmente. Como disse Yerushalmi, o que um povo ou
um grupo lembra é o que lhe foi transmitido por gerações anteriores e recebido como tendo
um sentido próprio. De outra forma, o que se esquece é o que a geração possuidora do
passado não transmitiu à seguinte, ou o que a geração contemporânea recusa e cessa de
transmitir.
101
Em termos de religião, o passado mítico das origens, o tempo hierofânico age como
modelar para as ações no presente pela memória. Assim, é no presente que se busca o sentido
do mito e da teologia. Como disse Dosse, “a tradição só vale como tradicionalidade na medida
em que afeta o presente”. A distância temporal, nesse sentido, torna-se uma vantagem para a
“apropriação das diversas estratificações de sentido de acontecimentos passados
transformados em acontecimentos supersignificativos. Essa retomada reflexiva do
acontecimento supersignificado está na base de uma construção das identidades
fundadoras”.
102
Sendo assim, quando práticas contemporâneas encontram eco significativo
nessa memória de um tempo primordial, estas passam também à sacralidade e podem mesmo,
conforme o grau de significação que se lhes imputa, ser incorporadas à memória e contadas
dali por diante como hierofania. Entram na ordem do discurso e se tornam teologia. O próprio
mito, portanto, atua como interdito das ações significativas.
Todavia, como tais dinâmicas acontecem “demandadas” por situações concretas no
presente, no contato com o outro, as condições históricas em que se vive podem exigir
adaptações ou criação de memórias novas, de novos significados, se estes não forem
encontrados no repertório mítico.
103
Considere-se, entretanto, que o tempo mítico das origens
apresenta normalmente uma plasticidade que facilita sua adequação a diferentes conjunturas e
não é de fácil esquecimento. Quando determinado conjunto de mitos é legado propositalmente
ao esquecimento, um outro corpo mítico é criado e passa a fundar as identidades. Foi o que
aconteceu, por exemplo, em situações revolucionárias em que houve rompimento com os
mitos cristãos: novos mitos foram criados pela instauração de uma nova duração. Mesmo
esquecimento. Os dois termos que formam um contraste são o apagamento (o esquecimento) e a conservação; a
memória é, sempre necessariamente, uma interação dos dois”; tb. Michael POLLAK, Memória, esquecimento,
silêncio, p. 3-15.
101
Apud Loiva Otero FÉLIX, História e memória, p. 49.
102
François DOSSE, História e ciências sociais, p. 179.
103
Idem, p. 183: “A memória é portanto, como a história, um modo de seleção no passado, uma construção
intelectual, e não um fluxo externo ao pensamento”; Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano, p. 162:
“sob sua forma prática, a memória não possui uma organização já pronta de antemão que ela apenas encaixaria
ali. Ela se mobiliza relativamente ao que acontece – uma surpresa. Que ela está habilitada a transformar em
ocasião. Ela só se instala num encontro fortuito, no outro”.
33
nessas situações, porém, os velhos mitos tendem a permanecer nos subterrâneos da
memória/esquecimento, como algo que pode a qualquer momento voltar novamente à tona se
acionado nas conjunturas.
Em meio a tais processos mnemônicos, e a despeito da busca de coerência e
completude nos discursos confessionais ortodoxos, identidades múltiplas são levadas à baila
pelos atores. Encontraremos, assim, diferentes vozes de um mesmo grupo-coral,
manifestações polifônicas, como as de Kunstmann e Gedrat, tanto sincrônica quanto
diacronicamente: vozes de uma ortodoxia. As vozes são, assim, produtos de contextos
complexos das associações e de experiências que as compõem,
104
atravessadas por memórias
e discursos que demonstram, como disse Dosse, que “o tempo psíquico funciona portanto
como um palimpsesto de temporalidades diversificadas”.
105
Creio que questões de identidade possam de fato saltar aos olhos do analista
interessado em cultura que se aproxime da IELB. Posicionar-se clara e coerentemente a
respeito de sua unidade doutrinária tem sido uma busca constante e o cartão de visitas regular
do grupo durante sua existência. Além disso, desde o começo de suas atividades a IELB tem
procurado transcender os limites da comunidade alemã, a fim de ir ao encontro daqueles que
chamavam no princípio de ‘nacionais’. Identidades religiosas e étnicas estiveram, por isso,
regularmente em questão nos discursos e memórias das pessoas afiliadas à IELB. Diante
disso, a prática da história genealógica que empreendemos teve como um de seus usos a
dissociação sistemática da identidade ielbiana: “o plural a habita, inumeráveis almas nela
disputam; sistemas se entrecruzam e dominam uns aos outros; (...) em cada uma dessas almas,
a história não descobrirá uma identidade esquecida sempre pronta a renascer, mas um sistema
complexo de elementos por sua vez múltiplos”.
106
Ao pensarmos as relações religião-discurso-memória-identidade, é preciso, nesse
contexto, que pontuemos que o discurso não esgota o real. Costuma-se falar entre os
antropólogos que há diferenças entre o que as pessoas dizem, o que pensam e o que fazem.
Assim, se por um lado identidades passam pela esfera do discurso, por outro, não dependem
somente dela, mas também de uma série de outras práticas internas e externas aos grupos e
externas aos próprios discursos. O discurso, ainda que seja central, não é o único “lugar de
memória”, para usarmos o conceito de Pierre Nora.
107
Mesmo que concentrados na esfera do
discurso, devemos, por isso, atentar para os modos pelos quais as regras de formação que
104
George MARCUS, After the critique of ethnography..., p. 48-49.
105
François DOSSE, História e ciências sociais, p. 184.
106
Michel FOUCAULT, Nietzsche, genealogia, história, p. 279.
107
Apud François DOSSE, História e ciências sociais, p. 173.
34
operam no discurso estão ligadas a sistemas não discursivos. Esse é, na verdade, um dos
objetivos que se propõe a empresa arqueológico-genealógica foucaultiana.
108
As esferas da
identidade e da memória podem, por exemplo, se articular no campo dos afetos e dos
sentimentos, num nível que poderíamos chamar de pré-discursivo – e que, por isso, não é de
fácil acesso ao pesquisador a menos que se concretize em práticas sociais. De outra forma,
também, um ator em determinada conjuntura pode ser levado a fazer coisas que no nível do
discurso não poderia sustentar, como no caso de um luterano ortodoxo que exercesse práticas
não permitidas ou heterodoxas. Há aí a diferença entre o dito e o não-dito. Daí que, por vezes,
pensar práticas sem discurso ou fora do discurso possa ser uma estratégia para evitar leituras
teleológicas ou a-históricas. Uma outra alternativa seria atentar para outros níveis de relações,
buscando perceber a ordenação de “fragmentos de realidade”.
109
O modelo proposto por Droogers para a análise das relações de poder das
comunidades cristãs torna-se, aqui, operacional. Conforme o autor, podem ser percebidas três
dimensões de relações de poder: as internas (entre líderes e especialistas religiosos e leigos
crentes), as externas (entre crentes em geral, com os poderes seculares, o estado ou com o
‘mundo pecaminoso’) e as com o sagrado, ou seja, no nível das crenças, dos mitos e teologias
(o modo como lidam com elas, como são por elas influenciados, como as transformam, como
elas justificam suas relações internas e externas). Além destes, ainda uma quarta dimensão
pode ser acrescida, a das relações com o pesquisador, das quais trataremos adiante. Segundo
Droogers, ao passo que a dimensão das crenças estaria mais para a cultura – a capacidade
humana de fazer-significando (meaning-making) –, as outras duas estariam mais para o
social.
110
Tal modelo de análise apresenta a vantagem de apontar para as similaridades entre
as três dimensões, que podem ser entendidas como uma constelação, e então os modos como
influenciam-se mutuamente colocados na agenda da pesquisa. Por vezes, porém, uma das três
dimensões pode ‘mover’ as demais, como seria o caso de uma igreja que estivesse tão
ocupada com suas crenças que estas trouxessem conseqüências determinantes para suas
relações internas e externas.
111
De fato um ideal de vida religiosa tem sempre uma inserção
social, seja essa participação mais ativa, seja ela mais passiva. Nisso vemos, na verdade, a
108
Roger CHARTIER, À beira da falésia, p. 132.
109
Idem, p. 134-135.
110
André DROOGERS, The power dimensions of the Christian community…, p. 265. Gilberto VELHO,
Indivíduo e religião na cultura brasileira, sistemas cognitivos e sistemas de crença, p. 51: Velho afirma preferir a
noção de sistemas de crenças, à de sistemas cognitivos, pela maior capacidade da primeira em “expressar a
indissolúvel vinculação entre conhecimento e emoção e/ou afetividade”.
111
André DROOGERS, The power dimensions of the Christian community…, p. 272, 266;
35
dimensão de sociabilidade instaurada no nível religioso. Como disse Van Der Leeuw: “Em
seu relacionamento com o Poder [o sagrado], a vida humana não é primeiramente a vida do
indivíduo, mas a da Comunidade (...)”.
112
O exemplo, creio, aplica-se bem ao caso da IELB.
Se pensarmos, então, o nível das crenças-mitos enquanto discurso religioso,
poderemos voltar a Foucault e afirmar há poder no próprio discurso, articulado no interior das
práticas discursivas e instituinte de noções acerca do binômio verdadeiro/falso. Perceber-se-á,
assim, as práticas discursivas no interior de práticas não discursivas, como, por exemplo, o
jogo de poderes institucionais. Discursos são criados e recriados em regimes históricos de
verdade e em sistemas de poder.
113
Droogers aponta, porém, para a questão de que a idéia de poder é evitada pelas
igrejas. Como o fundamento da construção simbólica das igrejas acontece ao redor da idéia de
amor, a noção de poder apresenta-se problemática ao universo eclesiástico. Todavia, sendo a
dimensão do ‘poder’ inerente às relações sociais, as maneiras como este é visto e a
consciência dessas relações é algo que merece atenção. A dimensão do poder está presente em
qualquer grupo religioso, tanto em formas políticas, quanto econômicas, bem como nos
contatos dos grupos com as sociedades que os cercam.
114
Construções identitárias, nesse sentido, estão também sujeitas a relações de poder.
Identidades estão sempre em-produção, não existem como entidades supramundanas: são
“processos dinâmicos e fluidos de construção e (trans)formação, nos quais intenção e
instrução, reflexividade e dominação, sentido e performance, individualidade e enraizamento
social convergem e colidem”.
115
Estão também em-relação, através de processos de afirmação
de um “eu” coletivo e de negação de um “outro” coletivo. Nesse sentido, os desenvolvimentos
dos grandes centros urbanos no mundo moderno, ao mesmo tempo em que tornam essas
112
G. VAN DER LEEUW, Religion in essence and manifestation, v. 1, p. 191: “In its relationship to Power,
then, human life is first of all not the life of the individual, but that of the Community (...)” [É nosso o grifo na
palavra ‘Poder’].
113
Cf. Vanice Maria Oliveira SARGENTINI, A descontinuidade da história: a emergência dos sujeitos no
arquivo, p. 88-89; tb. J. E. TOEWS, Linguistic turn and discourse analysis in history, p. 8918; tb. Pedro Luis
NAVARRO-BARBOSA, O acontecimento discursivo e a construção da identidade na história, p. 112, 108:
“Pois entender o discurso como acontecimento é aceitar que é ele que funda a interpretação, constrói uma
verdade, dá rosto às coisas. Por isso o discurso é objeto de disputa, em vista do poder que, por seu intermédio se
exerce”.
114
André DROOGERS, The power dimensions of the Christian community…, p. 265.
115
Hans SIEBERS et alii, Identity formation..., p. 75,e 78: “dynamic and fluid processes of construction and
(trans)formation, in which intention and instruction, reflexivity and domination, sense and performance,
individuality and social embeddedness converge and clash”; para a indissolubilidade entre práxis e pensamento
ver tb. Robert F. MURPHY, The dialetics of deeds and words, p. 58-59.
36
identidades mais salientes, apresentam também maiores possibilidades de contato entre os
diferentes grupos identitários.
116
Ademais, produções de identidades e reorganizações estruturais dadas nas
elaborações de memórias e práticas discursivas não dependem somente de atividades locais:
estão em-produção-relação em lugares diversos, por diferentes agentes e com propósitos
diferentes.
117
A IELB, por exemplo, apresenta-se brasileira em termos de nacionalidade,
alemã e estadunidense por sua origem, portuguesa pelo idioma, cristã-protestante em relação à
tradição religiosa e ainda faz parte de afiliações e articulações institucionais em nível global.
Ao mesmo tempo, ao reconstruir-se cultural e socialmente no contato, cordial ou não, com
diferentes situações e grupos e com novos conteúdos culturais trazidos pela modernidade
globalizada, pela urbanização, pela mídia massiva, a IELB deixa-se influenciar por sistemas
sociais e culturais construídos não somente ao seu redor, mas em outros tempos e espaços,
tanto sagrados quanto profanos, a partir de fluxos e contrafluxos sociais e culturais em
diversas instâncias.
118
É também nesse sentido que as formações discursivas precisam ser
pensadas não a partir de uma unidade originária, mas em sua dispersão, como uma população
de acontecimentos dispersos.
119
Nesses processos, as fronteiras que separam as diferentes culturas e identidades não
podem ser definidas sempre muito claramente. Ao mesmo tempo em que elas podem
constituir locais de conflito, podem também proporcionar situações de encontro e troca, dando
origem a processos de negociação de identidades e de significados com o universo do outro,
com as práticas vizinhas. Estes são, portanto, processos de hibridização pelos quais práticas
sociais cotidianas e estruturas que existiam separadamente combinam-se, gerando práticas e
116
Philippe POUTIGNAT e Jocelyne STREIFF-FENART, Teorias da etnicidade, p. 123-124; ver tb., p. ex., o
estudo de Sergio Odilon NADALIN e Alain BIDEAU, How German Lutherans became Brazilians: a
methodological essay, p. 65-85.
117
George MARCUS, After the critique of ethnography: faith, hope, and charity, but the greatest of these is
charity, p. 47.
118
Ulz HANNERZ, Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras chave da antropologia transnacional, p. 14: “(...)
ocorreu-me, à medida que examinava as variações na organização da cultura, que esse termo [fluxo] funcionava
bem como metáfora geradora, no sentido de suscitar desdobramentos. Não se trata apenas de que a idéia de fluxo
se opõe ao pensamento estático; ela insinua, além do mais, a possibilidade de pensar tanto em rios caudalosos
quanto em estreitos riachos, tanto em correntezas isoladas quanto em confluências (...) até mesmo vazamentos e
viscosidades no fluxo de significados”; tb. Nestor GARCÍA-CANCLINI, Hybridity, p. 7097-7098.
119
Michel FOUCAULT, A arqueologia do saber, p. 30-31; tb. Vanice Maria Oliveira SARGENTINI, A
descontinuidade da história: a emergência dos sujeitos no arquivo, p. 88-89: “Compreende-se, assim, o
enunciado numa relação horizontal em relação a outros enunciados no seio do intradiscurso e numa relação
vertical em relação a formulações que podem ser descobertas em outras seqüências discursivas, no intercurso de
uma formação discursiva”.
37
estruturas diferenciadas a partir da combinação dos elementos anteriores.
120
A idéia de
hibridização de fronteiras, nesse sentido, permite que percebamos os deslocamentos de
significados e de recriações da religião no contato de seus atores com outros grupos e
indivíduos em diferentes conjunturas e na produção e reprodução de seus discursos religiosos.
Assim por exemplo, a definição da identidade confessional da IELB, nas práticas
dos seus líderes, passou regularmente pela questão do que é verdadeiro ou falso, definido
mediante critérios internos ao discurso oficial. Nesse sentido, há uma alétheia a ser lembrada,
e uma léthe a não ser. São, assim, identidades em-tensão, construídas em relação a filtros
sociais que operam para selecionar ou reinterpretar o que vem de fora.
121
Os fundamentos
para tais negociações vêm interditados pelo discurso religioso. Nesse caso, o filtro principal
reside na dimensão das crenças a partir da idéia de verdade confessional, a qual estabelece as
fronteiras com o que é considerado falso doutrinariamente. Desde o princípio da ação do
sínodo no Brasil, a intenção de ser um ‘baluarte da verdade’ acompanha suas práticas e
discursos, em processos conflitivos, simultânea e alternadamente, com a Igreja Evangélica de
Confissão Luterana no Brasil e a Igreja Católica Apostólica Romana, bem como com outras
religiões como o Candomblé, a Umbanda, a maçonaria, o Espiritismo, ou com
atitudes/movimentos de fundo religioso como o Ateísmo, o Ecumenismo, a Nova Era, etc. A
história acontece permeada por processos de diferenciação por competição e, portanto, por
relações de poder.
122
Nesse contexto, concomitantemente, as verdades a priori do discurso
confessional foram, como veremos, colocadas em risco nas estruturas da conjuntura que os
líderes ielbianos vivenciaram.
Dessa forma, enquanto estruturas sociocultrais, os sistemas religiosos ortodoxos, como
o Luteranismo Confessional da IELB, se analisados em profundidade (sincronia) e em um
tempo longo (diacronia), revelarão que a dinamicidade de suas produções discursivas,
identitárias e estruturais, sublinhar-se-á na articulação de suas práticas. Falar de religião
significa, assim, falar também de sociedades, de culturas, de histórias, de processos
simbólicos, políticos, econômicos, etc. Mesmo os modelos de religião mais ortodoxos –
aqueles que em seus discursos e formas parecem absolutos, bem acabados, sem mácula,
originais e puros, e que buscam uma definição clara de suas fronteiras –, estes também estarão
120
Nestor GARCÍA-CANCLINI, Hybridity, p. 7095; Pierre SANCHIS, Para não dizer que não falei de
sincretismo, p. 7; Idem, Inculturação? Da cultura à identidade, um itinerário político no campo religioso, p. 65;
tb. Peter BURKE, What is cultural history?, p. 117-119.
121
Para a questão dos filtros sociais, ver Sherry ORTNER, Theory in anthropology since the sixties..., p. 158.
122
Marshall SAHLINS, Apologies to Thucydides, p. 8.
38
sujeitos às dinâmicas sociais e culturais.
123
Também por isso, uma possível estrutura do
Luteranismo Confessional Ortodoxo da IELB precisa ser pensada como conceito de nível
meta, como sugere H. Siebers de um modo geral sobre identidades e estruturas, a fim de que
se evite um tratamento estático e essencialista do fenômeno.
124
A história que escrevemos das práticas discursivas da IELB e de suas produções
identitárias e mnemônicas, na esteira das concepções apresentadas, tenta compreender,
portanto, primeiramente, numa relativa longue durrée, a genealogia, na Europa e nos Estados
Unidos, do discurso confessional, seu surgimento enquanto formação discursiva em meio ao
surgimento das estruturas sociais e culturais da LC-MS, para então proceder à analise de seu
re-emprego prático nas estruturas conjunturais brasileiras. A partir dos textos, compreendidos
como práticas discursivo-hierofânicas dos pastores e líderes, numa dialética entre tradição e
mudança, conflito e solidariedade, aventaremos quais dinâmicas se apresentam relativamente
às memórias e identidades, bem como aos próprios discursos em questão na I Guerra e no
final da Ditadura Militar. Ao selecionar e analisar os documentos com os quais estaremos
dialogando, os pensaremos como discursos desenvolvidos em relação a sistemas sociais e
culturais em sua historicidade. Buscaremos compreender e explicar práticas que, a partir da
estrutura simbólico-religiosa de sua comunidade de crença, os pastores e líderes da IELB
desenvolveram em diferentes contextos históricos e sociais. Estaremos, da mesma forma,
atentos às maneiras pelas quais tais contextos e práticas implicam em construções e
reconstruções das identidades e das crenças de tais pastores e líderes, acarretando também
mudanças mais ou menos intensas na própria estrutura ou formação mnemônico-discursiva.
Perguntaremos pelas concepções políticas, pelas visões de mundo, pelas estruturas que
sustentaram as práticas dos líderes da IELB e pelos modos como essas estruturas foram
reavaliadas e reconstruídas. Perguntaremos também pelas relações de dominação e de conflito
que impuseram negociações dessas concepções, pelos processos de troca simbólica, pelas
construções de identidades múltiplas e temporárias na contingência dos encontros com o
outro, pelas experiências permeadas da surpresa das situações cotidianas.
123
Ninian SMART, The formation rather than the origin of a tradition, p. 1.
124
Hans SIEBERS et alii, Identity formation.
39
4. Um modo de fazer a história da IELB
4.1. As fontes e seu tratamento
Nossa pesquisa de fontes deu-se principalmente pela análise de textos impressos. E
um texto é sempre portador de um discurso, que, por sua vez, não pode ser visto como algo
dado, transparente. A própria história é, nesse sentido, um texto-discurso (escrito,
iconográfico, gestual, etc.), e é através da decifração hermenêutica que o historiador realiza
seu trabalho. Deve, por isso, atentar para o fato de que o “conteúdo histórico que se pretende
resgatar depende muito da forma do texto: o vocabulário, os enunciados, os tempos verbais,
etc.”.
125
Que se tome, porém, o cuidado de não se aprisionar a história aos enunciados: o
discurso não esgota o real, como dissemos. É imperativo, por isso, que se relacione sempre
texto e contexto: “buscar os nexos entre as idéias contidas nos discursos, as formas pelas
quais elas se exprimem e o conjunto de determinações extratextuais que presidem a produção,
a circulação e o consumo dos discursos”.
126
Mesmo os próprios eventos, nesse sentido, na
relação estrutura/conjuntura, podem ser tidos como textos sociais, diante dos quais o
pesquisador buscará compreender as diferentes linguagens, palavras, sinais, símbolos e
retóricas
127
- no que ampliamos tanto nossa concepção de arquivo, quanto nossa
responsabilidade hermenêutica.
Uma perspectiva interessante para a análise histórica dos discursos, e que se encaixa
bem com as teorias de Foucault, é a de pensar as práticas discursivas em três dimensões: o
intratexto, o intertexto e o contexto. Conforme Barros, “o ‘intratexto’ corresponde aos
aspectos internos do texto e implica exclusivamente na avaliação do texto como objeto de
significação; o ‘intertexto’ refere-se ao relacionamento de um texto com outros textos; e o
contexto corresponde à relação do texto com a realidade que o produziu e o envolve”.
128
Pode-se, assim, tendo em mente as teorias do discurso que apresentamos, pensar o lugar de
produção do texto e a quem este se destina, bem como seu conteúdo e o quanto este depende
de outros conteúdos, mas também os “entreditos, os interditos, os não-ditos, o vocabulário
revelador”.
129
125
Ciro Flamarion CARDOSO e Ronaldo VAINFAS, História e análise de textos, p. 377, 378.
126
Idem, p. 378.
127
D. E. APTER, Political discourse, p. 11645.
128
José D’Assunção BARROS, O campo da história, p. 137.
129
Idem, p. 140.
40
É preciso também que se historicize a própria fonte impressa em sua materialidade,
as condições técnicas de sua produção, suas funções sociais, as formas materiais que o
discurso adquire, os temas, a linguagem, o público a que se destina, o grupo responsável pela
publicação e edição, as ligações sociais e os jogos de poder em que estão inseridos. Tal
perspectiva em relação a um texto impresso implica “a análise circunstanciada do seu lugar de
inserção e delineia uma abordagem que faz dos impressos, a um só tempo, fonte e objeto de
pesquisa historiográfica”.
130
Além dos textos escritos, agregamos, porém, em nossa abordagem, também o estudo
de imagens, entendendo que estas suplementam e suportam as evidências dos textos escritos,
bem como oferecem acesso a aspectos do passado que outras fontes não oferecem: são
discursos iconográficos. Imagens “(...) são testemunhas de acordos sociais passados e
sobretudo de modos passados de ver e de pensar” que nos ajudam a ‘imaginar’ o que
aconteceu mais vividamente.
131
Lugares de memória, as imagens permitem também a
aproximação da estrutura da conjuntura. São paisagens às quais a memória se prende para
delas extrair sua força simbólica.
132
Os textos, por sua vez, nessa relação com as imagens, por
trazerem mensagens mais explícitas em meio a um mar de subjetividades, servem como
balizas.
133
De fato, falar em práticas religiosas é tratar de simbologia como forma de
comunicação em um modo bastante particular. A religião é a presença de uma ausência, disse
Rubem Alves.
134
A opção por fazer história a partir de imagens apresenta, todavia, uma dificuldade
adicional em relação à análise de textos escritos: a dos limites da linguagem oral ou escrita
diante da retórica visual. As palavras são muitas vezes ‘fracas’ para descrever o todo e a
intensidade da experiência visual. Acresça-se a isso, ainda, a dificuldade metodológica que
reside no tratamento dos significados envolvidos nas imagens, sempre sujeitos a diferentes
subjetividades e conjunturas nem sempre acessíveis ao historiador. As imagens, nesse sentido,
apresentam uma profunda capacidade de absorver idéias e noções sobre elas projetadas pelo
130
Tania Regina de LUCA, História dos, nos e por meio dos periódicos, p. 141, 132-141.
131
Peter BURKE, Eyewitnessing: the uses of images as historical evidence, p. 13, 184 e 185: "(...) images are
testimonies of past social arrangements and above all of past ways of seeing and thinking".
132
Ph. JOUTARD, Memória coletiva, p. 527.
133
Theodore RABB e Jonathan BROWN, The evidence of art: images and meanings in history, p. 1-2
134
Rubem ALVES, Da esperança, p. 14; tb. François DOSSE, História e ciências sociais, p. 184: “a memória
pode ser reconsiderada em uma perspectiva interpretativa aberta em direção ao futuro, fonte de reapropriação
coletiva e não simples museografia isolada do presente. Supondo a presença da ausência, ela permanece o ponto
de contato essencial entre passagem e presente, desse difícil diálogo entre o mundo dos mortos e o dos vivos.
(...) a história social da memória (...) Seu objeto é um ausente que age, um ato que só pode se confirmar se for
objeto da interrogação de seu outro”.
41
observador – ao que Jongh denomina de patience of the picture.
135
A situação da análise de
textos escritos, entretanto, não é diferente. Como se sabe, a relação sujeito-objeto não é
totalmente positiva e o trânsito de informações se dá nos dois sentidos e está sujeito a diversos
condicionamentos situacionais.
É valioso, por isso, aqui, o conselho de Luiz Pondé diante do que considera a
“impenetrabilidade do objeto” e o “drama epistemológico” que se apresenta na “miséria
cognitiva do ser humano” em busca da superação de seu próprio conhecimento. Para Pondé, a
atitude adequada nesse caso é a do cético: “deve haver um certo ceticismo ‘de fundo’, antes
de tudo de caráter propedêutico, em qualquer atitude epistemológica consistente”. Perceba-se
que a própria oferta empírica da história é, ela própria, muito maior do que o aparelho
cognitivo e noético do pesquisador.
136
É, assim, com tal ceticismo epistemológico que
queremos nos colocar diante tanto dos textos escritos e imagéticos, quanto de nossa própria
proposta teórico-metodológica, sem furtar-nos, todavia, da aventura hermenêutico-dialógica.
Entendemos que, tanto nas imagens quanto nos textos que aqui analisaremos, o
específico da religião, o sagrado (no caso, histórico), estará presente, ou re-presentado. Como
disse Freedberg, as imagens e textos são o locus do espírito, seu lugar comum.
137
Não está sob
nosso foco, nesse sentido, o debate teológico ou o debate acerca da verdade da religião, o que
deixamos ao labor teológico ou filosófico, questões de fundo que possuem lugar assegurado
em estudos de outra ordem. Na ótica que almejamos, vale a sentença de Pondé: “o foco não é
negar a crença (...) mas simplesmente evitar metodologicamente o confronto com o
platonismo que alimenta necessariamente toda a discussão (pseudopedagógica) religiosa/anti-
religiosa, e que, inviabiliza o conhecimento metodologicamente controlável”.
138
Se
retornarmos à discussão imagética, nosso objeto seria, assim, aquilo que Freedberg chama de
response: “os sintomas da relação entre imagem e observador”.
139
Sem nos considerarmos
135
E. de JONGH, Some notes on interpretation, p. 128, 3-4.
136
Luiz Felipe PONDÉ, Em busca de uma cultura epistemológica, p. 16, 38. A idéia é corroborada também por
Keith JENKINS, A história repensada, p. 91: “(...) um ceticismo positivo e reflexivo. É uma atitude que
considera o conhecimento uma coisa boa, e que não acha que ele se torna ruim quando o conhecimento cético,
que agora temos como uma cultura, nos mostra os limites do conhecimento com pretensões à certeza que outrora
julgamos possuir”.
137
David FREEDBERG, The power of images…, p. 28, 31 e 37; S. Brent PLATE, Aisthesis, perceiving between
the eye and the mind, p. 21: “Representation, as the term indicates, entails that an original 'presence' is in turn
're-presented' in another realm (...) [and] re-presentation always involves an alteration of the original”
[“Representação, como indica o termo, requer que uma ‘presença’ original seja por sua vez ‘re-presentada’ em
outro domínio (…) [e] re-presentação envolve sempre uma alteração do original”].
138
Luiz Felipe PONDÉ, Em busca de uma cultura epistemológica, p. 62-63.
139
David FREEDBERG, The power of images: studies in the history and theory of response, p. xxii: "When (...)
I use the term 'response' I refer - broadly - to the symptoms of the relationship between image and beholder (...) I
will consider the active, outwardly markable responses of beholders, as well as the beliefs (insofar as they are
capable of being recorded) that motivate them to specific actions and behaviour. But such a view of response is
42
empiricistas (crentes de que o passado possa ser re-criado objetivamente), é, entretanto, o
empírico, ou seja, o ator religioso individual e grupal em suas produções práticas na
confluência entre estruturas e eventos religiosos, o que nos interessa.
Nossa tese, como já referimos acima, está pensada em duas partes assim divididas: I)
a formação dos discursos e a organização institucional da LC-MS e da IELB – capítulos 1 e 2;
e II) a IELB na I Guerra e no final do Regime Militar – capítulos 3 e 4.
Para a primeira parte da tese, a parte da análise da formação de discursos e
memórias, nos valeremos principalmente do que muito já se escreveu sobre história da
teologia e do Protestantismo. Traremos, entretanto, também alguma análise de documentos
clássicos do Luteranismo, como os próprios escritos de Lutero e a Confissão de Augsburgo.
Apresentaremos, também, à medida que acharmos conveniente algumas análises do material
que foi produzido pelas próprias LC-MS e IELB a respeito de sua própria história. Tal
literatura será tratada também criticamente, como documento histórico. O material de fontes
desta primeira parte será organizado a fim de que tenhamos, ao fim do capítulo 2, tanto um
panorama das estruturas simbólico-religiosas da formação discursiva das igrejas em questão,
quanto informações suficientes acerca do surgimento de sua organização institucional. A idéia
é acercar algo do que se pode aprender a partir do que já foi escrito (e que é de conhecimento
deste autor) a respeito do que “aconteceu antes” da IELB nos períodos em que nos
debruçaremos. E isso mediante obras de história e literatura.
140
Michel De Certeau disse que
Foucault fazia uma espécie de história regressiva. Creio que o mesmo possa aplicar-se a este
trabalho.
141
Já a fonte principal da pesquisa da segunda parte da tese, relativa à análise específica
da inserção do Luteranismo Confessional Ortodoxo no Brasil, será o periódico Mensageiro
Luterano, órgão oficial de comunicação da IELB, que vem sendo publicado desde 1917 até os
dias atuais. A tal publicação consideraremos como uma espécie de ‘palco principal’ para as
falas dos atores em suas performances. Trata-se de um rico material a ser analisado,
principalmente por suas páginas terem sido freqüentadas praticamente por toda a
intelectualidade e liderança da IELB, desde que essa era ainda o 15
o
Distrito do Sínodo de
predicated on the efficacy and the effectiveness (imputed or otherwise) of images" [“Quando (…) utilizo o termo
‘resposta’ me refiro – geralmente – aos sintomas da relação entre imagem e observador (…) Considerarei as
respostas ativas, exteriormente perceptíveis, dos observadores, bem como as crenças (à medida em que estas
forem passíveis de serem registradas) que os motivam a ações e comportamentos específicos. Todavia, tal
compreensão de resposta é predicada à eficácia e efetividade (imputada ou não) das imagens”].
140
Ver, p. ex., Vavy Pacheco BORGES, Grandezas e misérias da biografia, p. 223.
141
Michel de CERTEAU, A invenção do cotidiano, p. 115. Certeau questiona, por outro lado, se o conjunto das
práticas que Foucault analisa têm realmente a coerência que ele explica, assumindo em princípio que não. Fica,
então, a orientação para atentarmos também para a diversidade interna às práticas.
43
Missouri. Além disso, a biblioteca do Seminário Concórdia de São Leopoldo dispõe em seu
acervo de todos os números editados do periódico desde que este veio a público.
Tais fontes ao mesmo tempo em que são instrumentos produtores de ordenamento,
de afirmação de distâncias, de divisões, de diferenciações, de estabelecimento de fronteiras,
142
são também espaços de construção, de negociação, de implementação de novas práticas,
discursos, identidades e memórias. Há nos textos, eles mesmos parte da cultura material da
IELB, práticas em diversas esferas. Neles, práticas são instauradas, rememoradas,
transparecidas, relatadas. Não são, porém, como vimos, processos de criação ex-nihilo, mas
articulados no contexto de estruturas sociais e culturais.
143
Portanto, para a análise dos
documentos, consideramos, conforme Vernant, que as “fronteiras do religioso tornam-se
imprecisas quando a ossatura intelectual de um sistema religioso é levada em conta como seu
contexto social”.
144
Vamos, por isso, em meio às trocas entre os atores sociais, buscando as
intenções, os sentimentos, as representações, os modos como os atores pensaram e
construíram a realidade social em que estiveram inseridos,
145
entendendo que o espírito
encontra-se no texto, enquanto obra humana, e para a análise histórica “não existe realidade
espiritual fora dos atos, das operações do homem sobre a natureza e sobre os outros
homens”.
146
Aos documentos e à literatura, apresentamos mediados pela teoria que expusemos,
as questões já colocadas acima, a saber: Como se deu a formação das estruturas desse
Luteranismo Confessional Ortodoxo? Como pastores e líderes da IELB construíram na prática
tal Luteranismo no Brasil? Quais percepções acerca do lugar da igreja na sociedade foram
geradas nesse contexto?
Com tais questões em mente, diante do abundante material histórico, buscamos
selecionar séries de textos e acontecimentos que nos serviram como fontes para refletir a
respeito de dinâmicas culturais e sociais em que estiveram envolvidas a LC-MS e a IELB.
Nesse sentido, a principal limitação no acesso às fontes que experimentamos foi
nossa própria falta de domínio do idioma alemão. Existem, por certo, em alemão, tanto
literatura científica quanto fontes históricas que muito nos valeriam. Mesmo se possuíssemos
tal habilidade, entretanto, não seríamos capazes de esgotar o assunto. Procuramos, então,
“sanar” tal deficiência de duas formas. Primeiramente, buscando a boa e vasta literatura
142
Roger CHARTIER, A história cultural, entre práticas e representações, p. 27-28.
143
Peter BURKE, What is cultural history?, p. 98.
144
Jean-Pierre VERNANT, Entre mito e política, p. 91.
145
Roger CHARTIER, A história cultural..., p. 16.
146
Jean-Pierre VERNANT, Entre mito e política, p. 141 e 148.
44
científica já produzida em português, inglês, francês e espanhol, bem como o acesso a alguns
documentos sobre a IELB já traduzidos ao português; e, então, também traçando um recorte
temporal e metodológico que tornasse possível a escrita da tese a partir da documentação
existente ao alcance de nossas habilidades.
Por fim, ainda que assumindo, a possibilidade do conhecimento histórico, não é
demais lembrar, todavia, que a argumentação que apresento é minha, uma das tantas
possíveis, e carregada das idiossincrasias de um observador nativo crítico de sua própria tribo.
Como disse, contudo, E. de Jongh, uma “intuição treinada” pode [tentar, eu diria] resolver os
problemas hermenêuticos; porém, tal premissa não deve substituir a convicção de que “em
matéria de interpretação o céu é o limite”.
147
4.2. Escrita e organização do texto
Para falarmos de escrita, pontue-se primeiramente que o passado, literalmente, não
tem voz ativa. História e passado são instâncias distintas, a primeira um discurso sobre a
segunda: o passado já passou e o que entendemos como história trata-se apenas de um
discurso sobre tal passado. É o historiador quem faz o transporte (do grego metaphora - eu
transporto), na forma de um discurso sistematizado, daqueles vestígios do passado para o
presente sob severas contingências epistemológicas, metodológicas e ideológicas.
148
Nesse sentido, do muito que já se escreveu sobre a produção do conhecimento
histórico, tem sido unânime ao que parece, nesse período que pode ser dito “pós-positivista”,
a consciência da participação ativa do historiador na construção do objeto histórico e na
147
E. de JONGH, Some notes on interpretation, p. 133: “I regard myself as one of those who feel that
hermeneutic problems, like problems of connoisseurship, must frequently be solved by what should probably be
called trained intuition. But this premise should not charter the belief that in matters of interpretation the sky is
the limit” [Me considero como um daqueles que sentem que problemas hermenêuticos, como problemas de
connoisseurship [especialidade, perícia], devem ser freqüentemente resolvidos pelo que poderia ser chamado de
intuição treinada. Mas essa premissa não deve licenciar a crença de que em termos de interpretação o céu é o
limite]. Sobre a produção do conhecimento histórico, nesse sentido, cf. Keith JENKINS, A história repensada, p.
78: “Assim, a questão não é ‘ver toda a história como a história da mentalidade das pessoas do passado’, mas
sim ‘ver toda a história como a história da mentalidade dos historiadores’”.
148
Keith JENKINS, A história repensada, p. 23-52, 91; é interessante a definição que o autor apresenta de
história, p. 52: “A história é um discurso cambiante e problemático, tendo como pretexto um aspecto do mundo,
o passado, que é produzido por um grupo de trabalhadores cuja cabeça está no presente (e que, em nossa cultura,
são na imensa maioria historiadores assalariados), que tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns para os
outros (maneiras que estão posicionadas em termos epistemológicos, metodológicos, ideológicos e práticos) e
cujos produtos, uma vez colocados em circulação, vêem-se sujeitos a uma série de usos e abusos que são
teoricamente infinitos, mas que na realidade correspondem a uma gama de bases de poder que existem naquele
determinado momento e que estruturam e distribuem ao longo de um espectro do tipo dominantes/marginais os
significados das histórias produzidas”.
45
ordenação de sua interpretação.
149
Uma narrativa histórica é, assim, sempre uma imputação de
sentido. É como se o historiador, tateando em meio à espessura do real, estivesse “arrumando”
os dados de modo seqüencial a fim de lhes agregar valor de sentido e significado. Estes são,
porém, conforme já atestou Certeau, ao mesmo tempo meandros e exigências da
linguagem.
150
Aqui, é claro, não será diferente.
Nos primeiros dois capítulos, tratamos, portanto, de reconstruir os processos
históricos de produção dos discursos, memórias e identidades do Luteranismo Confessional
Ortodoxo, as condições religiosas e socioculturais de seu surgimento. Buscamos, ao mesmo
tempo, mapear suas fronteiras e analisar sua lógica interna, sua estrutura mítico-hierofânica
articulada em práticas discursivas relativas a outras práticas. Trata-se, portanto, de uma re-
construção do sistema de crenças sob o qual se assentaram as práticas dos missourianos e
ielbianos no Brasil, concomitante à compreensão de sua organização institucional.
Compreendemos que nesse processo formativo surgiram discursos, crenças, identidades,
memórias, modos de organização grupal, hierarquias, etc., enfim, a estrutura que age como
poder organizador de discursos e ações dos líderes da IELB.
151
É, portanto, uma análise dos a
priori históricos que configuram como que um pré-panorama, um “pano de fundo”, das
práticas re-criativas e dos desenvolvimentos do grupo no século XX. Talvez fique aqui
também marcada alguma inspiração weberiana, no sentido da busca por uma “explicação
compreendente” (verstehende Erklärung), naquilo que Weber teve de historiador das
mentalidades e de antropólogo, além de sociólogo. Como disse: “Estamos mais interessados
(...) na influência daquelas sanções psicológicas que, originadas da crença religiosa e da
prática da vida religiosa, orientavam a conduta e a ela prendiam o indivíduo. Ora, estas
sanções eram, em larga medida, derivadas das peculiaridades das idéias religiosas”.
152
Cremos, assim, que a fim de bem compreender as práticas discursivas do Sínodo de
Missouri e da IELB é preciso que se conheça um pouco da história do próprio Luteranismo, as
doutrinas, o surgimento de sua teologia, os processos sociais e culturais na Europa e na
Alemanha, as políticas, os conflitos; não em busca de uma origem mais pura e incólume, mas
149
Dos vários esforços nesse sentido, poderia citar, entre certamente muitos outros: Michel de CERTEAU, A
escrita da história; Keith JENKINS, A história repensada; Adam SCHAFF, História e verdade; Paul VEYNE,
Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história; tb., em outra perspectiva, Ciro Flamarion
CARDOSO, Um historiador fala de teoria e metodologia; e a coletânea organizada por Ciro Flamarion
CARDOSO e Ronaldo VAINFAS, Domínios da história, ensaios de teoria e metodologia.
150
Michel de CERTEAU, A escrita da história, p. 51-52.
151
J. E. TOEWS, Linguistic turn and discourse analysis in history, p. 8918-8919; tb. Gilberto VELHO, Indivíduo
e religião na cultura brasileira, sistemas cognitivos e sistemas de crença, p. 50-53.
152
Max WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 67; ver tb. Danièle HERVIEU-LEGER e
Jean-Paul WILLAIME, Max Weber (1864-1920), Genèse religieuse de la modernité occidentale, rationalisation
et charisme, p. 67.
46
justamente, como sugere Foucault, procurando pela dispersão temporal de discursos e crenças
que têm sua existência no campo de uma memória, na materialidade de textos, na repetição,
na transformação, na reativação:
153
pensar uma articulação entre “a singularidade aleatória das
emergências” e “as regularidades que governam as séries temporais, discursivas ou não”.
Dessa maneira, evidencia-se de forma genealógica a historicidade da teologia confessional
luterana e a descontinuidade de sua produção ao longo do tempo: a análise não de uma origem
pura, mas de sua proveniência (a Herkunft nietzscheana).
154
E a história torna-se assim uma
espécie de contramemória, um movimento na contra-mão da história oficial te(le)ológica.
155
Argumentamos, conjuntamente com Ninian Smart, que a formação de uma tradição
é mais importante que a busca por suas origens. Conforme o autor, uma das maiores falácias
em história das religiões é identificar a essência de uma tradição religiosa com suas origens.
As tradições têm de se adaptar aos contextos histórico-sociais e nesse processo valores e
crenças são reafirmados. Assim, os processos formativos nos quais as tradições têm um papel
estruturador central são mais importantes que as origens. Nesse sentido, o Cristianismo
ocidental, ainda que seus textos sagrados dêem uma impressão diferente, teria uma primeira
formação por volta do século IV, na época de Constantino, e uma segunda formação no século
XVI, com a Reforma protestante. Processos semelhantes podem ser encontrados também nas
demais tradições religiosas. Assim, a despeito da tentação de descrições retrospectivas, é
importante que nos afastemos da idéia de que uma religião tem um começo, uma origem, em
um tempo determinado, visto que suas raízes diferem de suas formações contextuais.
156
Veja-
se, então, que o que propomos aqui se diferencia de uma busca por um Luteranismo mais puro
e verdadeiro que se encontraria originalmente no movimento reformatório. Diferencia-se na
medida em que, ao invés dessa busca pela pureza, o que faremos é analisar as condições
históricas da produção social das crenças e discursos missourianos, a “produção da
ortodoxia”, e isso a fim de auscultar nas páginas posteriores seu emprego no Brasil. A história
não pode sucumbir à “quimera das origens”, deve se manter atenta à relação entre a irrupção
do acontecimento em sua eventualidade singular e a necessidade de continuação.
157
Como
disse Foucault, explicando sua compreensão da atividade genealógica:
153
Michel FOUCALUT, A arqueologia do saber, p. 23-33.
154
Roger CHARTIER, À beira da falésia, p. 130, 187; Michel FOUCAULT, Nietzsche, genealogia, história, p.
265: “A proveniência também permite reencontrar, sob o aspecto de uma característica ou de um conceito, a
proliferação dos acontecimentos através dos quais (graças aos quais, contra os quais) eles se formaram”.
155
Michel FOUCAULT, Nietzsche, genealogia, história, p. 277.
156
Ninian SMART, The formation rather than the origin of a tradition, p. 1.
157
Roger CHARTIER, À beira da falésia, p. 127.
47
Procurar tal origem é tentar recolher o que era “antes”, o “aquilo mesmo” de uma
imagem exatamente adequada de si; é tomar como acidentais todas as peripécias
que puderam ocorrer, todas as artimanhas, todos os disfarces; é querer tirar todas
as máscaras para finalmente desvelar uma identidade primeira. Ora, se o
genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de crer na metafísica, o
que ele aprende? (...) A verdade e seu reino originário tiveram sua história na
história. (...) Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do
conhecimento, nunca será, portanto, partir em busca de sua origem,
negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história; será, ao
contrário, deter-se nas meticulosidades e nos acasos dos começos; (...) esperar
para vê-los surgir, máscaras finalmente retiradas, com o rosto do outro.
158
Na esteira dessa compreensão, o passo seguinte de nossa empresa genealógica foi o
de estudar como a estrutura confessional em termos de memórias, identidades e discursos
produzidos na Alemanha e nos EUA re-criou-se nos contextos brasileiros.
159
Tendo visto,
assim, o surgimento e a produção Luteranismo Confessional, partimos, então, para a análise
de sua emergência brasileira (a Entstehung de Nietzsche): o modo como as forças lutam
“umas contra as outras, ou o combate que travam diante de circunstâncias adversas, ou ainda
sua tentativa – dividindo-se contra si mesmas – de escapar à degenerescência e recobrar o
vigor a partir de seu próprio enfraquecimento”, como se deu, por exemplo, no caso da
Reforma protestante no seio do Cristianismo.
160
Assim, nos capítulos 3 e 4 analisamos
especialmente os períodos da I Guerra Mundial e do Regime Militar. Entendemos que as
conjunturas desses eventos apresentaram aos líderes da IELB novas questões, conflitos e
desafios, diante dos quais tiveram de se posicionar, de responder, de apresentar seu “vir a
ser”, implicando, conseqüentemente, em construções e re-construções em termos de
discursos, memórias e identidades. Estaremos discutindo, pode-se assim dizer, as construções
ao redor de uma teologia política da IELB: o entendimento de seus líderes a respeito da
missão da igreja no mundo e suas reformulações em diferentes contextos sociais e momentos
históricos, dando voz às vozes em questão.
No desenvolver do argumento destes capítulos, também alguns temas paralelos serão
levantados, à medida que forem úteis. Acompanharemos, assim, as figurações de Lutero,
imagens discursivas e pictóricas que estiveram em construção nos diferentes momentos
históricos, envolvendo o “enraizamento oficial” da IELB em sua busca por estabelecer a
conexão direta de suas práticas com as práticas do líder carismático do século XVI. Estaremos
também atentos aos modos pelos quais o grupo construiu sua própria memória histórica.
158
Michel FOUCAULT, Nietzsche, genealogia, história, p. 263-264.
159
Ver, p. ex., J. E. TOEWS, Linguistic turn and discourse analysis in history, p. 8919.
160
Michel FOUCAULT, Nietzsche, genealogia, história, p. 268.
48
Pontue-se, por fim, que as reflexões teóricas que apresentamos nesta introdução – os
conceitos de mito, teologia, discurso, prática, estrutura, evento, identidade e memória – não
estarão sendo mencionados ou contemplados diretamente no texto, como se fossem capítulos
ou sub-capítulos. Servirão, antes, como ferramentas que nos auxiliarão a recortar o fenômeno
em sua espessura e complexidade. Tais conceitos são, portanto, instrumentos de análise (um
modo de ver) que nos ajudarão sistematizar (um modo de fazer) a formação dos discursos e
crenças do Luteranismo Confessional, a estruturação da LC-MS e da IELB e a inserção
criativa destas no Brasil do século XX.
161
Temos, então, como que a análise da formação
histórica de uma estrutura e dois estudos de caso sobre sua aplicação. Como disse Eliade, “a
história das religiões é, em grande parte, a história das desvalorizações e das revalorizações
do processo de manifestação do sagrado”.
162
5. O locus político deste discurso
Espero que o locus teórico-metodológico desde o qual me posiciono tenha ficado
suficientemente claro ao leitor. É tempo, porém, agora de aclarar também nosso locus pessoal
(político, religioso, etc.), ainda que ambas as esferas, a teórica e a pessoal, necessariamente se
confundam nesse trajeto. Ao bom observador, um intelectual define-se a si mesmo em grande
medida por suas opções teóricas, que são também políticas. É bom que se faça, entretanto, ao
menos uma tentativa de reconhecimento das condições de produção de nosso próprio discurso
histórico também em nível pessoal.
163
Acredito que se, de alguma forma, é verdade que é preciso considerar as já
mencionadas críticas feitas por Pierucci ao que chama de sociologia ‘religiosa’ (e não da
religião), e dos riscos que esta apresenta a um esforço de objetividade científica,
164
é também
161
As expressões “modo de ver” e “modo de fazer” foram emprestadas de José D’Assunção BARROS, O campo
da história, especialidades e abordagens, p. 132.
162
Mircea ELIADE, Tratado de história das religiões, p. 30.
163
Sobre a necessidade de uma prática reflexiva, ver p. ex. George MARCUS, After the critique of
ethnography..., p. 45-46.
164
Antônio Flávio PIERUCCI, Interesses religiosos dos sociólogos da religião; Idem, Sociologia da Religião:
área impuramente acadêmica, p. 237: “(...) para grande parte dos cientistas sociais que estudam religião no Brasil
existe uma especial dificuldade de decidir até onde, em seu trabalho intelectual, vai a ciência e até onde vem a
religião (...) Dilemas que se exponenciam quando o autor se mete [!] a estudar sua própria religião. O que, aliás,
costuma acontecer. (É muita ilusio junto, diria Bourdieu.)”; ver tb. a resposta ao último texto escrita por Marcelo
Ayres CAMURÇA, Da boa e da má vontade para com a religião nos cientistas sociais da religião brasileiros, p.
82: “(...) a ‘sociologia da sociologia da religião brasileira dos últimos 25 anos operada por Pierucci, no meu
entender, resulta um tanto unilateral, pois centrando seu foco prioritariamente nos ditos ‘interesses religiosos’
dos sociólogos da religião, termina por desconsiderar outras facetas da mesma ordem, como, por exemplo, o
inverso disto: possíveis interesses concorrenciais dos sociólogos à esfera institucional religiosa, implicando em
uma análise desfavorável da religião sob a capa de um discurso científico e objetivo” [grifo no original]; para tal
49
verdade, por outro lado, que as abordagens feitas pelos ‘de dentro’ podem trazer a vantagem
de ser o resultado de um processo longo de maturação e também de apresentar informações
mais compreensivas e bem acuradas.
165
Que se mantenha, todavia, o alerta de Pierucci, a fim
de evitar substantividades quer religiosas, quer científicas. Sendo assim, mesmo sem
concordar com o pressuposto claro de objetividade científica que Pierucci parece sustentar,
assumo aqui, à procura primeiramente de honestidade intelectual, a sugestão que faz a partir
de Bourdieu: “assumir bem-analisadamente a própria pertença religiosa, caso haja. Objetivá-
la, torná-la objeto, submetê-la a um esforço de objetivação reflexiva sem complacência”
166
ainda que tal atitude em busca de uma “objetivação sem complacência” assuma nova e
necessariamente uma forma subjetiva.
Essa pesquisa tem, na verdade, muito de minha própria história de vida, talvez mais
que em outros casos. Sou um filho deste grupo que me proponho a estudar. Meu pai e minha
mãe dedicaram a maior parte de suas vidas a atividades na IELB, ele como pastor, ela como
psicóloga e diretora de um projeto social. Por parte dele, temos ascendência alemã (Huff), por
parte dela, nacional (Silva). Também minha primeira formação acadêmica foi o bacharelado
em teologia, pelo já mencionado Seminário Concórdia, e fui eu mesmo pastor dessa igreja por
cerca de seis anos, nas cidades de Candelária (como estagiário de teologia), Cachoeira do Sul
(como capelão e professor na ULBRA) e Porto Alegre (como capelão e educador no projeto
social SEMEAR), sempre no Rio Grande do Sul; desligando-me dessa atividade, por meio de
uma licença de estudos, justamente para escrever a tese que ora apresento.
Durante o período de formação em teologia e de atividades pastorais, estive
regularmente interessado nas relações entre igreja e sociedade. Foi assim que, no mestrado,
essa preocupação me levou a estudar os temas do culto e da liturgia, tendo apresentado ao
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação da Escola Superior de Teologia, vinculada esta à
IECLB, em 1996, uma dissertação que discutia as relações entre culto e vida/cultura, a partir
de um recorte feito através dos temas experiência religiosa e espiritualidade.
percepção desfavorável, ver tb. Antônio Flávio PIERUCCI, “Bye bye, Brasil” – o declínio das religiões
tradicionais no Censo 2000; e Antônio Flávio PIERUCCI e Reginaldo PRANDI, A realidade social das religiões
no Brasil, religião, sociedade e política.
165
Ver, p. ex., Antonio G. MENDONÇA, Comentários sobre um texto prévio de Luís Dreher – UFJF..., p. 190:
“Vem então a pergunta incomodativa: o de ‘fora’ ou o de ‘dentro’? Tenho observado que a maioria dos trabalhos
escritos (teses, livros, etc.) sobre religião no Brasil permanece em nível preponderantemente descritivo, não indo
às estruturas de pensamento que estão por trás do fenômeno. Acho, por exemplo, que não temos progredido
muito no estudo do pentecostalismo por essa razão. Falta a compreensão, o sentido e a descoberta da ‘essência’
que vem antes do fenômeno. Não estamos conseguindo sair do excesso de empirismo e, por isso, dando razão
aos desprezadores das ciências sociais que fazem questão de ‘desconhecer’ seus clássicos, principalmente
Weber” [!].
166
Antônio Flávio PIERUCCI, Sociologia da Religião: área impuramente acadêmica, p. 276-277.
50
A vontade de conhecer mais sobre a realidade brasileira levou-me, então, a buscar
uma outra formação em nível de graduação, dessa vez em história. Nesse período, na
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), dei os
primeiros passos na direção da construção desta pesquisa, preocupado na época em analisar as
relações entre a IELB e a sociedade gaúcha durante a I Guerra mundial. A abordagem da
história cultural representou, nesse contexto, uma possibilidade de combinar meus estudos de
teologia e de história, bem como as leituras de antropologia da religião (do ritual, mais
especificamente) que fizera no mestrado.
Depois disso, já no processo de pesquisa e escrita desta tese, experienciei também
outros momentos de maturação, como durante um período de estudos no Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e durante o
estágio de doutoramento no Departamento de Antropologia da Vrije Universiteit Amsterdam.
Penso, assim, que a tese que apresento ao Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora é, por um lado, o resultado de anos de
atividade religiosa entre luteranos descendentes de alemães e do que poderíamos chamar, com
uma pitada de humor, de ‘participação observante’, o que pode ser interessante
antropologicamente; mas é também, por outro lado, o resultado de uma formação acadêmica
diversificada que me levou a formular temas e abordagens determinados e a buscar uma
perspectiva interdisciplinar. Assim, em termos etnográficos, poderíamos dizer que o locus
desde o qual escrevo é o de um ‘nativo’ descrevendo sua própria ‘tribo’. Um nativo, porém,
que busca uma reflexão sistematizada e crítica a partir de algum treinamento em teologia,
história e ciências sociais.
De outra forma, as questões investigativas que me proponho – a saber, sobre a
formação dos discursos, memórias e identidades que fundamentam o Luteranismo da IELB e
as posturas políticas destes decorrentes nas conjunturas brasileiras –, bem como seu
tratamento, têm a ver, por um lado, com as experiências de conservantismo tanto religioso,
quanto político, que experimentei internamente à instituição, e, por outro, com a formação
acadêmica que venho procurando, a qual poderia ser dita “socioculturalista” e que me leva,
aqui, à “relativização” – ao colocar em relação – do Luteranismo Confessional Ortodoxo.
Acresça-se a isso a compreensão de que as respostas a que chegamos vêm também
possibilitadas por um (saudável) distanciamento em relação à própria IELB que o programa
de doutorado nos proporcionou na UFJF, tanto por tratar-se esta de uma instituição pública,
na qual o pesquisador pode estar de certa forma desobrigado das fidelidades político-
51
discursivas inerentes às confissões religiosas, como pelo simples fato de esta se encontrar
longe do Rio Grande do Sul.
Por sua vez, as limitações desta pesquisa em termos do que houver de ideológico em
nosso discurso historiográfico e que venha a embotar nossa visão, os tratamentos que
puderem ser considerados tendenciosos ou obliterantes, bem como aquilo que não venhamos a
“enxergar” neste horizonte, tudo isso deve ser colocado em relação ao exercício reflexivo que
aqui apresentamos. Mea culpa.
Se pensarmos, por fim, as categorias propostas por Droogers sobre as relações de
poder inerentes à pesquisa,
167
entendo o locus desde o qual escrevo (a quarta dimensão dessas
relações de poder) como sendo um resultado da própria confluência de jogos de poderes
internos, externos e no nível das crenças que envolvem a IELB: as vivências na igreja, os
estudos de teologia e história, o envolvimento político no projeto social, etc. Antes, portanto,
de buscar uma distinção clara entre ‘nós’ e ‘eles’, preciso atentar, como sugere Marcus, para
uma crítica bifocal constante entre observador e observado, bem como para um exercício
dialógico ao invés de exegético.
168
A tarefa é árdua, sei – e qual não seria diante de um objeto
tão fugidio? –, mas creio também ser possível a construção de algum conhecimento válido.
167
André DROOGERS, The power dimensions of the Christian community, p. 275.
168
George MARCUS, After the critique of ethnography…, p. 49-50.
PARTE I
PROCESSOS FORMATIVOS DO LUTERANISMO
DA LC-MS E DA IELB
CAPÍTULO 1: FORMAÇÕES DO LUTERANISMO NO CONTEXTO
EUROPEU
No final do ano de 1838, um grupo de cerca de 700 pessoas deixou a Saxônia, atual
Alemanha, em direção aos Estados Unidos. O principal motivo da emigração era o sonho de
uma nova vida de liberdade religiosa. Algum tempo depois, estas pessoas se uniriam a outros
imigrantes alemães luteranos e fundariam a Deutsche Evangelisch-Lutherische Synode von
Missouri, Ohio und andern Staaten,
1
o Sínodo de Missouri, primeiro responsável pelo
surgimento da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, a IELB.
Neste primeiro capítulo, trataremos de compreender os processos que precederam a
construção do Luteranismo Confessional do Sínodo de Missouri, transportado ao Brasil no
início do século XX. Acercaremos a formação das estruturas a partir das quais se ergueu o
Sínodo de Missouri: a produção de crenças, teologias, discursos, memórias e identidades em
meio às forças constitutivas do social. Para tanto, privilegiaremos os processos históricos que
envolveram o surgimento da confessionalização, da Ortodoxia Luterana, do Pietismo e do
Racionalismo.
1. O processo de confessionalização
Entre meados do século XVI e meados do século XVII, um processo de
confessionalização (Konfessionbildung, confessionalization) perpassou os ambientes
calvinistas, luteranos e também católicos.
Deu-se que no período medieval tardio, alguns centros urbanos na Itália, nos Países
Baixos, na Europa central, na Inglaterra, na França e na Espanha, foram palco de profundas
transformações em termos de teologia, piedade, espiritualidade e manifestações sociais da
religião. Mudanças ocorreram também na administração e na organização da Igreja, bem
como nos moldes das relações entre a Igreja e os governantes. O aumento da importância do
papel do leigo na Igreja, o surgimento de formas mais racionalizadas de culto, o
1
“Sínodo Evangélico-Alemão de Missouri, Ohio e Outros Estados”, atualmente The Lutheran Church –
Missouri Synod (LC-MS), “A Igreja Luterana – Sínodo de Missouri”.
54
fortalecimento de novos comportamentos religiosos, bem como a regionalização da Igreja nos
territórios sob o poder dos governantes, eram alguns indícios de tais transformações. Lutero,
Calvino e os demais reformadores conferiram a tais processos uma nova direção e um maior
dinamismo. Sua atuação e suas idéias movimentaram o clima religioso e intelectual da época
e abriram novas perspectivas para a sociedade como um todo. Com eles, um criticismo já
generalizado acerca da Igreja foi colocado sob novas bases.
2
Em função da centralidade da religião na vida da antiga Europa, a Reforma da Igreja
trouxe também inevitáveis reformas nos níveis da ordem política e social.
3
Heinz Schilling
aponta as seguintes dimensões de tais desenvolvimentos: o aumento de fundos e bens de
propriedade através da secularização; a extensão das atividades dos governantes sobre a res
mistae: educação, casamento e família, auxílio e bem estar social; o fortalecimento de
identidades religiosas e políticas entre a população; o aumento da legitimidade do príncipe
como supremo líder da Igreja (summus episcopus), numa extensão de seu poder religioso;
4
e a
suplementação de formas seculares de disciplina pelos instrumentos da Igreja estatal
(disciplina, visitação, sermão e catequese), com vistas a influenciar as formas de pensamento
e comportamento da população.
5
De tais constatações, Schilling contrapõe a tese weberiana de que o Capitalismo teria
sido favorecido principalmente pelo Protestantismo calvinista, contra-argumentando o
dinamismo de uma mudança maior provocada por um processo de confessionalização.
Conforme o argumento, a confessionalização foi a consolidação de organizações e
mentalidades acontecida a partir do momento em que diferentes confissões cristãs passaram a
acentuar também diferentes doutrinas e estilos de vida. O mais significativo exemplo de tais
transformações deu-se pelo surgimento do Luteranismo, do Calvinismo e do Catolicismo
Romano pós-tridentino, numa clara ruptura da unidade religiosa da Christianitas latina antes
vigente no período medieval.
6
O clímax dessa integração entre transformações políticas e religiosas aconteceu a
partir do momento em que tais grupos passaram a apresentar suas confissões de fé
2
Heinz SCHILLING, Reformation and Confessionalization, p. 12891-12892.
3
Ver, por exemplo, Bodo NISCHAN, Prince, people, and confession, the Second Reformation in Brandenburg,
p. 3.
4
Em termos materiais, os verdadeiros beneficiados com a Reforma foram de fato os príncipes alemães, os quais
tomaram posse tanto da chefia das novas igrejas, como da administração de suas propriedades. Muitos deles,
inclusive, se tornariam protestantes unicamente em razão de seus próprios interesses econômicos e políticos; cf.
Antonio RAMOS-OLIVEIRA, Historia social y politica de Alemania, p. 158.
5
Heinz SCHILLING, Reformation and Confessionalization, p. 12893; Ver tb. Max WEBER, A ética protestante
e o espírito do capitalismo; tb. idem, As seitas protestantes e o espírito do capitalismo.
6
Ernst W. ZEEDEN e Heinz SCHILLING apud Bodo NISCHAN, Prince, people, and confession…, p. 2.
55
explicitamente formuladas. A Confissão de Augsburgo (1530) e o Livro de Concórdia (1580)
no ambiente luterano, as Confissões Helvéticas (1536 e 1566) e outras confissões nacionais
no mundo calvinista, e o Livro de Oração Comum e os Trinta e Nove Artigos no
Anglicanismo, são exemplos disso e representaram e promoveram o comprometimento dos
indivíduos sob um novo conjunto de normas relativas a dogmas, crenças e comportamento.
Com as confissões, fronteiras claras entre as igrejas confessionais foram delimitadas e um alto
grau de integração e coesão interna foi buscado e promovido, o que conferiu ao mesmo tempo
legitimidade e dinamismo ao processo de transformação da sociedade.
7
É preciso, porém, que se tome algum cuidado a fim de não reificar categorias como
“Catolicismo pós-tridentino”, “Luteranismo”, “Calvinismo” ou mesmo “Confessionalização”.
Não estamos tratando de movimentos absolutamente coerentes internamente e menos ainda de
idéias cristalinamente puras e originais, mas, antes, de híbridos que se construíram em
fronteiras mútuas. Considere-se também que quando analisamos formações socioculturais
como estas, tratamos de grupos que se fizeram hegemônicos em meio a disputas teológicas
nas quais os perdedores tornar-se-iam os hereges. De fato, diversas doutrinas e identidades
cristãs estiveram em jogo no século que seguiu à Reforma.
8
Assim, em um arranjo político e
econômico diferente os grupos hegemônicos teriam sido outros.
Mesmo assim, o processo de confessionalização articulou-se em um esforço de
reunificação de uma sociedade milenar abalada religiosa e politicamente. Percebe-se no
embate a necessidade dos diferentes grupos de aclarar suas crenças, de identificar suas
doutrinas principais, de tornar pública sua confissão de fé.
9
Surgiram, assim, novas
conformações sociais, e com elas uma série de reelaborações nos níveis do discurso,
memórias e identidades. Para a Reforma Luterana e sua parte no processo de
confessionalização, dois personagens tornaram-se centrais por suas produções teológicas e
atividades políticas: Lutero e Melanchthon.
2. Lutero e Melanchthon: justificação pela fé, confissões e nova duração
De acordo com Pierre Chaunu, ainda que as inovações instauradas pela Reforma
tenham tido um caráter tradicional, elas foram mesmo assim renovadoras, inventivas e
instauraram uma nouvelle durée. O autor caracteriza a Reforma protestante a partir do
7
Heinz SCHILLING, Reformation and Confessionalization, p. 12893.
8
Cf. Susan R. BOETTCHER, Post-colonial Reformation? Hybridity in 16th-century Christianity, p. 444-445.
9
Martin DREHER, A igreja latino-americana no contexto mundial, p. 87-92.
56
entrecruzamento de três fatores. Primeiramente o encontro entre duas correntes autônomas: o
Humanismo e a Soteriologia Luterana. A primeira proporcionou a possibilidade de uma nova
abordagem dos referentes fundamentais da Escritura e, considerando-se o Sola Scriptura, a
submissão da Igreja à Bíblia. A segunda, a teologia da salvação luterana, construída sob a
idéia de Lutero de iustitia passiva, engendrou-se em uma reação às práticas de controle dos
meios de salvação pelos especialistas eclesiásticos. Tanto o Sola Scriptura, quanto a iustitia
passiva, fizeram parte, por conseguinte, de um mesmo esforço de retorno às fontes e de
simplificação de caminhos. O terceiro fator consistiu, entrementes, em um ponto de ruptura e
choque. Em determinado momento, a Reforma passou a ser vista como “um retorno à maneira
de ser antiga e mais fiel da Igreja, uma remodelagem, uma Reforma sobre a Palavra imutável
de Deus: ela marca, assim, uma mudança na percepção da duração”.
10
Lutero (1483-1546) e Melanchthon (1497-1560) são exemplos paradigmáticos da
articulação desses fatores e dessa “continuidade renovadora”. Em meio ao processo de
confessionalização, a constatação das diferenças entre suas teologias, uma mais
intelectualista, outra mais afetiva, será importante para que possamos entender alguns
desdobramentos posteriores na história da espiritualidade e da teologia luterana, bem como
acercar algumas formas dos discursos, memórias e identidades do confessionalismo.
O processo de confessionalização passou a acontecer mais consistentemente no meio
luterano ao redor da elaboração da Confissão de Augsburgo e de sua Apologia, ambas em
1530, as quais, na divisão das tarefas em um momento tenso do processo reformatório na
Alemanha, ficaram por conta do jovem colega de Lutero, Felipe Melanchthon. Menino
prodígio que aos 21 anos era já professor de grego na Universidade de Wittenberg,
Melanchthon fora educado nos moldes do Humanismo com sólida formação na filosofia de
Aristóteles, que dominara também a escolástica medieval.
11
Sob a influência de Melanchthon,
a teologia luterana assentar-se-ia sobre bases aristotélicas, optando em intensidade crescente
10
Pierre CHAUNU, Le temps des Reformes, p. 471-472: “(...) la Reforme est perçue comme un retour à une
manière d’être ancienne plus fidèle de l’Eglise, un remodelage, une Reformation sur la Parole immuable de
Dieu: elle marque donc un changement dans la perception de la durée”.
11
Cf. Nicola ABBAGNANO, Dicionário de filosofia, p. 493-494, as bases fundamentais do Humanismo,
enquanto movimento que teve sua origem na Itália renascentista do Quatorze, podem ser expostas da seguinte
forma: 1) uma concepção da totalidade do ser humano como dotado de corpo e alma e destinado a viver no
mundo e a dominá-lo; 2) o reconhecimento da historicidade do ser humano, os vínculos com seu passado, o que
implica em exigências filológicas relativas ao estudo de textos antigos; 3) a promoção do valor humano das
letras clássicas; 4) o reconhecimento da naturalidade do ser humano, para o qual o conhecimento natural é
elemento indispensável, ocasionando o florescimento do aristotelismo, da magia e das especulações
naturalísticas e, com eles, o prelúdio da ciência moderna.
57
por explicações claras em busca de certezas cristalinas.
12
Como dizia no prefácio de seus Loci
communes, de 1521:
A teologia não deve ocupar-se com questões metafísicas referentes à essência
divina ou às naturezas de Cristo mas com aquilo que trata da salvação da alma.
Apenas desta maneira podemos alcançar conhecimento verdadeiro de Cristo. Que
adianta se um doutor sabe tudo sobre a aparência das ervas mas nada sobre seus
poderes curativos? Ter conhecimento cristão significa saber o que a lei exige e
como a consciência contrita pode ser restaurada.
13
Melanchthon, como se vê, descrevia a fé, ponto cardinal para a teologia luterana que
nascia, em termos mentais ou intelectuais. Perceba-se nas afirmações acima a ênfase nas
questões do saber e do conhecimento com a finalidade prático-empírica de restaurar a
“consciência contrita”. Nessa visão, a fim de garantir certeza, o Espírito Santo atua através da
mente e do testemunho de outros e da natureza acerca da existência de Deus. Melanchthon
sustentava inclusive a possibilidade de se assegurar a existência de Deus sem o auxílio da
revelação. Precisava, contudo, para tanto, do apoio da filosofia aristotélica.
14
A teologia de
Melanchthon, a qual influenciaria diretamente o fazer teológico luterano nos tempos
vindouros, era, nesse sentido, uma teologia de fundo intelectualista.
Para Lutero, por sua vez, fé era fé vivencial em um Deus pessoal. Ele somente pôde
superar suas angústias quanto à salvação e o medo da morte e do inferno, pelas palavras de
Paulo aos Romanos: “a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito:
O justo viverá por fé” (Rm 1.17). A partir desse texto bíblico, Lutero concebeu a justiça
divina como algo passivo: Deus em sua misericórdia torna a pessoa humana justa.
15
Todo
aquele que sentisse sua miséria e proclamasse sua confiança em Deus, este o veria como justo
– ainda que injusto; ainda que justo e injusto, simul iustus et peccator. Como salientou
Febvre, porém, “fé para Lutero não é a crença; é o reconhecimento pelo pecador da justiça de
Deus”, o que contém também um elemento intelectualista.
16
Todavia, o estopim teológico do
movimento reformador de Lutero, a descoberta da justificação por graça e fé, foi
12
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, a study in the history of theology, p. 29-31.
13
Apud Bengt HÄGGLUND, História da teologia, p. 212.
14
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, a study in the history of theology, 27-28, 34-35.
15
Nestor BECK, Igreja, sociedade e educação, p. 16-17; tb. Lucien FEBVRE, Martín Lutero, p. 54, que
relativiza a centralidade atribuída a Staupitz no processo de libertação experimentado por Lutero, mesmo que o
próprio Reformador o tenha chamado de “pai” em 1545. Diz Febvre: “En realidad la frase misma de Staupitz de
que ‘el arrepentimiento empieza por el amor de la justicia y de Dios’ – frase pronunciada, muy probablemente,
sin intención teórica o sistemática – si en Lutero toma un sentido y un valor doctrinal, es porque despertó en el
todo un mundo de pensamientos que le eran familiares desde hacia tiempo y que Staupitz no sospechaba (... )
prestar a Lutero colaboradores en la obra larga, penosa y absolutamente personal de su ‘liberación’, es cometer
un error, un grabe error”.
16
Lucien FEBVRE, Martín Lutero, p. 60.
58
desencadeado, perceba-se, por uma experiência de libertação vivenciada por ele.
17
Em moldes
fenomenológicos, pode-se dizer que Lutero teve uma “experiência do sagrado”, experiência
vivencial com aquele que para ele representava a realidade última da existência e a força
motora da vida.
18
Anos depois, Lutero mesmo relatou a experiência:
Eu não amava o Deus justo, que pune os pecadores; ao contrário, eu o odiava.
Mesmo quando, como monge, eu vivia de forma irrepreensível, perante Deus eu
me sentia pecador, e minha consciência me torturava muito. Não ousava ter a
esperança de que pudesse conciliar a Deus através de minha satisfação. E mesmo
que não me indignasse, blasfemando em silêncio contra Deus, eu resmungava
violentamente contra ele: Como se não bastasse que os míseros pecadores,
perdidos para toda a eternidade por causa do pecado original, estivessem
oprimidos por toda a sorte de infelicidade através da lei do decálogo – deveria
Deus ainda amontoar aflição sobre aflição através do evangelho? Assim eu
andava furioso e de consciência confusa. Não obstante, teimava
impertinentemente em bater à porta desta passagem; desejava com ardor saber o
que Paulo queria. Aí Deus teve pena de mim. Dia e noite eu andava muito
meditativo, até que por fim observei a relação entre as palavras: “A justiça de
Deus é nele revelada, como está escrito: O justo vive por fé.” Aí passei a
compreender a justiça de Deus como sendo uma justiça pela qual o justo vive
através da dádiva de Deus, ou seja, da fé. Comecei a entender que o sentido é o
seguinte: Através do evangelho é revelada a justiça de Deus, isto é, a passiva,
através da qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: “O
justo vive por fé.” Então me senti como que renascido, e entrei pelos portões
abertos do paraíso.
19
Ainda que a narrativa realizada em 1545, quase trinta anos após o acontecimento
primeiro de 1518,
20
possa ter sido afetada pela seletividade da memória do próprio Lutero, é
possível aferir ao menos a força e a significação (ou re-significação) da descoberta de
consolo, através de uma fé experiencial-afetiva, por parte de uma consciência perturbada entre
o medieval e o moderno.
21
A experiência do sagrado, por sua vez, conduz à vida vivida. Tem
implicações culturais, sociais, comunitárias. O ser humano, ao relacionar-se com o sagrado,
17
Walter ALTMANN, Lutero e libertação: releitura de Lutero em perspectiva latino-americana, p. 80; tb.
Martin DREHER, Reforma luterana hoje, p. 114: “Esta experiência foi Reforma. Mas esta experiência foi uma
luta travada no convento, no quartinho de monge, no confessionário.”
18
Para lembrar Geo WIDENGREN, Fenomenologia de la Religión, p. 7; sobre a dimensão experiencial da
reforma de Lutero, ver tb. o nosso Arnaldo Érico HUFF JÚNIOR, Pela fé e pelo amor: a construção de uma
espiritualidade luterana original, passim.
19
Martinho LUTERO, Prefácio ao primeiro volume da edição completa dos escritos latinos [1545], p. 30.
20
Martin DREHER, História do povo luterano, p. 20-22: “(...) a descoberta da justiça de Deus deve ter
acontecido em 1518, quando da descoberta da teologia da cruz, exposta no Debate de Heidelberg”.
21
Aqui uma vez mais Lucien FEBVRE, Martín Lutero, p. 26, nos aguça o senso crítico perguntando se as
palavras do Lutero sexagenário de 1545 reproduzem com exatidão os momentos íntimos do jovem monge.
Mesmo que o reformador tenha, porém, ressignificado em uma idade madura a memória da experiência religiosa
de sua juventude, o registro material de tal ressignificação colabora para que o tema da justificação por graça e fé
permaneça no coração da teologia luterana.
59
participa de sua santidade, torna-se um sacer-dote – o que não elimina sua própria dimensão
humana, antes pelo contrário: quando falamos de fé, estamos ao mesmo tempo lidando com a
religião enquanto dado cultural e social.
22
As lutas pessoais de Lutero lhe apresentaram, assim, a principal questão a ser
elucidada: o ser humano não precisa e nem pode fazer nada para que Deus o receba – isso é
fruto da própria misericórdia divina. Sua problemática central girava, então, em torno dos
temas “boas obras” e “justiça de Deus”, que posteriormente desdobrar-se-iam nas doutrinas
acerca da “justificação” e da “santificação”. Em “Da Liberdade Cristã”, um pequeno escrito
de 1520 onde Lutero expôs a base de sua teologia acerca dessas questões e da vida cristã,
Lutero apresenta condensadamente sua doutrina: pela fé, “o cristão é senhor livre sobre todas
as coisas e não está sujeito a ninguém”, mas, pelo amor, “um cristão é um servo prestativo em
todas as coisas e está sujeito a todos”.
23
Assim, para Lutero, o cristão verdadeiro – que uma
vez justificado pela fé já teria o necessário em Cristo – deveria ter também o desejo de tornar-
se uma espécie de Cristo para seu semelhante, fazendo para ele o que fosse necessário, útil e
salutar. Afirmava o reformador: “Assim, fluem da fé o amor e o prazer diante de Deus, e do
amor uma vida livre, disposta e alegre em servir ao próximo de forma gratuita”.
24
Tais eram
os temas centrais da antropologia e da ética de Lutero.
A experiência e as doutrinas de Lutero foram incorporadas nos fundamentos míticos
do Luteranismo e fazem parte das narrativas hierofânicas sob as quais se assentam as
memórias e identidades luteranas, reforçadas pela imagem de um homem fiel e regenerado
pela mão de Deus. Um luterano, nessa ótica, deve ter certeza de sua salvação, que vem pela fé
por mérito de Cristo – e pelo exemplo de Lutero.
Em Melanchthon, por outro lado, o elemento primeiro da fé tornou-se o
assentimento. Como afirmava na Augustana: “a consciência não pode alcançar descanso e paz
mediante obras, porém somente pela fé, quando chega à segura conclusão pessoal de que por
amor de Cristo possui um Deus gracioso”.
25
Está aí o caráter intelectualista de uma fé
compreendida como uma “segura conclusão” do amor de Deus. A concepção de justificação
pela fé, ponto central de todo o movimento da Reforma, em Melanchthon configura-se como
o reconhecimento da validade das afirmações da Escritura a respeito da obra de Cristo. Nessa
perspectiva, uma vez reconhecida a validade das afirmações bíblicas, o intelecto passa a
informar a vontade humana de acordo com a vontade divina, reconhecida como natural e
22
Cf. G. VAN DER LEEUW, Religion in essence and manifestation, v. 1, p. 191.
23
Martim LUTERO, Da liberdade cristã, p. 7.
24
Idem, p. 42.
25
CA, XX-16, p. 37.
60
revelada.
26
Nas palavras de Melanchthon:Ensina-se, ademais que boas obras devem e têm de
ser feitas, não para que nelas se confie a fim de merecer graça, mas por amor de Deus e em
seu louvor. Sempre é a fé somente que apreende a graça e o perdão dos pecados. E visto que
pela fé é dado o Espírito Santo, o coração também se torna apto para praticar boas obras”.
27
As características intelectualistas impressas por Melanchthon na teologia da
Reforma Luterana se adequaram bem aos processos de confessionalização e foram, em meio
aos desenvolvimentos filosófico-teológicos de então, reforçadas nas controvérsias que
envolveram a Igreja Luterana no final do século XVI, tendo um papel central na definição das
direções a partir das quais se originaria a maior parte da teologia e da piedade luterana que
estava por vir, a saber, a direção do intelecto em busca de uma fé confessada. As
controvérsias, por exemplo, ao redor de Mathias Flacius (sobre se a natureza pecaminosa do
homem fazia parte de sua substantia ou era um accidens) e de Andreas Osiander (sobre a
justificação do pecador) tiveram como resultado ulterior a salvaguarda do aristotelismo
melanchthoniano.
28
Criou-se também, nesse contexto, o entendimento de que a principal tarefa do
ministro era a de prover as informações às quais a pessoa devia assentir. Um ministro que não
fosse, assim, bem instruído, que não pudesse guiar seu rebanho rumo a tal segurança
religioso-intelectual, constituía um grave perigo. Dessarte, os pastores treinados sob a mão de
Melanchthon tornaram-se uma elite bem educada e sua teologia um campo de competência
dialética mais que uma reflexão voltada à prática pastoral.
29
Independentemente dos desenvolvimentos posteriores, a produção teológica de
Melanchthon consistiu na sistematização das doutrinas que Lutero cunhara no contexto de sua
fé experiencial. A experiência tornou-se, assim, discurso teológico, para o qual as regras do
jogo iam se estabelecendo. Ao desempenhar tal tarefa, Melanchthon imprimiu em seus
escritos os traços do locus desde o qual se posicionava, a saber, o Humanismo e a filosofia de
Aristóteles, traços que tornar-se-iam fundantes da confessionalização luterana.
Ao final da Idade Média, Lutero e Melanchthon reinstauraram, na verdade, uma
antiga conversação (dialética, gr.) entre dois pontos conflitantes que remonta ao menos a
Platão e Aristóteles, passando pelo Escolasticismo. Na linha de Platão e Agostinho, Lutero
representa a assunção de planos religiosos mais místicos, ao passo que Melanchthon, alinhado
a Aristóteles e Tomás de Aquino, expressa uma linha de pensamento mais racional e
26
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p 38-43.
27
CA, XX-27 a 31, p. 38.
28
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 34-35.
29
Idem, p. 34-35.
61
empírico.
30
Tais diferenças não fazem, porém, de Melanchthon um racionalista frio e sem fé;
apenas significam que sua ênfase de bom humanista concentrava-se no intelecto – ademais, o
Humanismo era a opção acadêmica da época.
31
As diferenças não fazem, da mesma forma, de
Lutero um irracionalista. Na Dieta de Worms, por exemplo, ele deixou claro que não poderia
voltar atrás se não fosse refutado com base nas Escrituras e na razão. Tinha por certo também
uma paixão ardorosa pelas controvérsias. Rebelava-se, porém, com as tentativas dos filósofos
de transformação da substância da fé pelas categorias da razão. Esta não poderia salvar
ninguém, antes precisava ser salva.
32
Como atestam alguns ditos anotados por seus discípulos
em suas informais “Falas de mesa” (Tischreden):
Quando subo ao púlpito, vou com a intenção de pregar apenas para os empregados
e as criadas. Se fosse pelo Dr. Jonas, por Felipe ou por toda a universidade, eu
nem sequer apareceria, pois eles podem ler a mensagem muito bem nas Escrituras.
É que, quando se procura pregar aos ouvintes mais eruditos, fazendo jorrar altas
sabedorias, o pobre do povo fica lá parado como uma vaca.
Ah, não suporto gente que fala diversas línguas de cima do púlpito! Como
Zwínglio, que fala grego, hebraico e latim no púlpito de Marburgo (...) Se eu sei
grego e hebraico, poupo isso para quando nós eruditos, estamos juntos; aí, então,
complicamos as coisas de tal maneira que até Deus, nosso Senhor, fica admirado!
Eu gosto de fazer as coisas com simplicidade. Agora, se o negócio é disputar, que
venha aprender comigo quem quiser! Estou disposto a topar a parada, amargar-lhe
a vida, responder e complicar as coisas como ele quiser. Ainda tenho que escrever
um livro contra esses pregadores sabidos.
33
Em uma outra dimensão da confessionalização, porém, as estratégias de Lutero,
Zwinglio e Calvino convergiam. Tratava-se do recurso de evocar a memória do Cristianismo
antigo e de afirmar que os adeptos do movimento reformatório (da linha de quem estivesse se
manifestando, é claro), e não os discípulos do papado romano, eram a real continuação
daquela “verdadeira igreja”. Instauravam, assim, no dizer de Chaunu, uma “nova duração”
34
e
as temporalidades iam se diversificando.
A organização dos textos do Livro de Concórdia de 1580, por exemplo, iniciava com
os “Três Símbolos Católicos ou Ecumênicos”, a saber, os Credos Apostólico, Niceno e
30
Tal contraste voltaria a se manifestar ainda por diversas vezes em meio ao Luteranismo, como o foi, por
exemplo, no embate que abordaremos adiante entre a Ortodoxia e o Pietismo, que, ainda que de forma
embrionária, já estava presente à época da Reforma. Todavia, como observou o Prof. Luís Dreher, membro da
banca desta tese, tais contrastes só se tornariam realmente completos na modernidade.
31
Como bem observou o Prof. Ricardo Rieth, também membro da banca desta tese, pontuando ainda que a
abordagem de Jaroslav Pelikan em From Luther to Kierkegaard, no que tem de crítica a Melanchthon, como se
este houvesse desviado o luteranismo de seu rumo “verdadeiramente” luterano, torna-se, por isso mesmo,
artificial.
32
Sobre essas linhas de pensamento ver, p. ex., Paul TILLICH, História do pensamento cristão, p. 150-151, 274.
33
Martinho LUTERO apud Nelson KIRST, Lutero, pregação e pregadores, p. 80-81.
34
Pierre CHAUNU, Le temps des Reformes, p. 471-472.
62
Atanasiano, no que se apontava para a ligação direta da Reforma com as origens da Igreja.
35
O recurso ficava claro também quando Melanchthon definia, na “Apologia da Confissão”, a
igreja como sendo no sentido interno uma “sociedade de fé e do Espírito Santo nos corações”,
a qual possuía “notas externas” que a tornavam reconhecível: “a pura doutrina do evangelho e
a administração dos sacramentos de acordo com o evangelho de Cristo”; e para embasar seu
argumento evocava ao apóstolo Paulo e aos “Símbolos”.
36
Tal busca por pureza não deve, contudo, ser absolutizada. É válida, nesse sentido, a
crítica de Boettcher às teorias da confessionalização. Conforme a autora, a idéia de
confessionalização utilizada como ferramenta para compreender as diferenças das atividades
confessionais revela apenas um lado da história. Para ela, ao sublinhar a busca por pureza dos
discursos confessionais, a teoria da confessionalização não considera como fator do mesmo
processo algumas comunalidades culturais que levavam os teólogos e líderes a ressignificar
seus discursos em função de sua própria audiência. O exemplo que cita é o do vocabulário
comum às ars moriendi – gênero literário que desde o Quinze sugeria que uma morte dolorosa
ou sofrida significava a condenação do falecido – utilizado pelos herdeiros da Reforma para a
memória da morte de Lutero e a (re)criação de uma nova mentalidade concernente à morte,
adequada aos parâmetros teológicos luteranos. Assim, sem poder driblar o medo e a
preocupação com o momento de morte por parte das pessoas simples, os escritores luteranos
criaram um tipo próprio de ars moriendi, ocupada da morte de pessoas ilustres que haviam
morrido “na fé”, como o próprio Lutero e o príncipe João Frederico da Saxônia. Tratava-se,
assim, segundo Boettcher, de uma re-inscrição híbrida de velhos lugares culturais com novos
significados.
37
A crítica não invalida, porém, as perspectivas que apresentamos. A busca por um
discurso puro e coeso esteve de fato lá, permeando o processo de confessionalização e
sublinhando as singularidades de ser a Reforma a portadora da verdade bíblica – o que era
vivido como novidade. É, portanto, um fato histórico que merece consideração na elaboração
de nosso argumento. Nesse processo de confessionalização, entre Lutero e Melanchthon,
englobadas por certo formas de re-significação em processos híbridos, lançaram-se as bases
religiosas e doutrinárias que ecoariam séculos depois nos EUA e no Brasil.
35
Vide LIVRO DE CONCÓRDIA, p. 16-22.
36
AC, VII e VIII, p. 177-178: “Assim também define à igreja o artigo do Símbolo que ordena creiamos que é
uma santa igreja católica. Os ímpios, porém, não constituem santa igreja. E o que segue – a comunhão dos santos
– parece haver sido acrescentado a fim de expor o que significa igreja, congregação dos santos, que têm entre si
uma sociedade do mesmo evangelho ou doutrina e do mesmo Espírito Santo, que lhes renova, santifica e governa
os corações”.
37
Susan R. BOETTCHER, Post-colonial Reformation? Hybridity in 16th-century Christianity, p. 448-450.
63
A fim de avaliarmos o que tal processo de confessionalização luterana representou
em termos de atuação política, torna-se central, ainda, a menção ao surgimento da “doutrina
dos dois reinos”.
3. A doutrina dos dois reinos e o mundo social
O mundo da Idade Média tardia apresentava uma situação de crise em diversos
níveis. Enquanto a fome coletiva e a peste perfaziam a crise no campo, as cidades, em um
acelerado crescimento populacional estimulado pela economia e pelo dinheiro, se firmavam
como foco de mudança.
38
Agregue-se a isso a problemática da belicosidade na mineração e as
tensões sociais advindas da nova moral e das facções políticas surgidas com a economia
baseada no dinheiro e no lucro.
39
Também os valores e as certezas tradicionais estavam sob fogo cerrado. Em uma
situação de erosão do corpus Christianum, perdia espaço a idéia de uma sociedade entendida
como um corpo sagrado, da qual a principal força de coesão simbólica era a Igreja, e a Europa
vivia uma crise de seus símbolos de segurança, o principal destes, a religião. Esta, entretanto,
continuava no centro da vida social e constituía uma potencialidade tanto para a preservação
do passado, quanto para um rompimento em relação a este.
40
Em meio a essa tensão, Lutero e Melanchthon se manifestaram sob uma série de
questões de ordem sócio-político-econômica a partir do que ficou conhecido como a “doutrina
dos dois reinos”. Partindo da realidade vivida e com base na doutrina da justificação pela fé,
os reformadores desenvolveram uma tipologia da atuação de Deus no mundo a fim de orientar
a Igreja e os cristãos em sua responsabilidade pública, tendo em contraponto tanto a Igreja
Católica quanto a reforma radical. Uma sistematização dos “dois reinos” não foi, porém,
apresentada originalmente pelos reformadores. Essa foi uma realização posterior dos teólogos
luteranos.
41
A situação era tal que, de um lado, os portadores do poder religioso (Papa e bispos)
não discerniam, entre atribuições religiosas e seculares, terminando por governar pela força.
De outro, os representantes do poder secular (imperador, príncipes e conselhos municipais)
38
Da crise estrutural do período resultaria a economia moderna, cf. Hilário FRANCO JÚNIOR, A Idade Média,
p. 61.
39
Carter LINDBERG, As reformas na Europa, p. 39-57.
40
Idem, p. 39-57; Cf. Johan HUIZINGA, O declínio da Idade Média, p. 10: “Um som se erguia constantemente
acima dos ruídos da vida activa e elevava todas as coisas a uma esfera de ordem e serenidade: o ressoar dos
sinos. Eles eram para a vida quotidiana os bons espíritos (...)”.
41
John R. STUMME, Algumas teses sobre os Dois Reinos, p. 249.
64
recorriam à coerção impondo crenças e práticas religiosas. A própria realeza era na Idade
Média vista como uma manifestação do divino, em um mundo no qual as fronteiras entre as
esferas políticas e religiosas não se separavam.
42
Os poderes se misturavam nas mãos de
bispos e príncipes e conflitos com a autoridade religiosa acabavam se tornando também
problemas políticos. Diante disso, os reformadores viram a necessidade de distinguir e definir
os campos e os meios de ação dos dois poderes.
43
Os textos paradigmáticos onde se
encontram as idéias centrais de Lutero acerca dos Dois Reinos são “À nobreza cristã alemã,
acerca da melhoria do estamento cristão”, de 1520, e “Da autoridade secular: até onde se lhe
deve obediência”, de 1523. Ambos, portanto, escritos também no início do processo
reformatório. Também na Confissão de Augsburgo e na Apologia teremos algumas idéias
sistematizadas por Melanchthon.
A visão de Lutero a respeito do mundo e da Igreja, nesse contexto, não era uma
visão otimista. Ele não via solução ulterior para a humanidade nesta vida, senão somente
junto de Deus no reino eterno. A vida aqui era passageira e estava em situação limite.
Compreendia que viviam no tempo da graça, isto é, o período que se situa entre a primeira e a
segunda vinda de Cristo. O Dia do Senhor, assim, poderia irromper a qualquer hora, porque
Satanás estava à solta. A prática papal das indulgências era, ela mesma, a ação do anticristo na
Igreja, a qual para Lutero nunca estivera tão mal. Por outro lado, tendo em conta as
autoridades seculares, via que o mundo também nunca estivera tão mal e que Satanás não se
contentava em invadir apenas a Igreja. Nesse sentido, acreditava Lutero que somente o
evangelho teria poder para amenizar a situação a fim de curar o problema desde dentro e
preservar o mais possível, pela ação e pregação dos cristãos verdadeiros, o mundo como a boa
criação de Deus. Para Lutero, Reforma era, assim, ação de Deus, e sua ética política, uma
“ética de sobrevivência em tempos difíceis”.
44
Acreditava ele que, onde a doutrina cristã
arrancasse o poder das mãos do anticristo, aquele mundo em crise do final da Idade Média
poderia ser melhorado.
45
Lutero percebia, assim, um dualismo antitético: o poder de Deus e o poder do mal
numa luta sem tréguas na história. O poder do mal queria afastar as pessoas da fé. Deus, por
sua vez, lutava contra isso a fim de estabelecer seu Reino. Para tanto, ensinava Lutero, as duas
principais formas de ação de Deus se davam nos reinos espiritual e secular.
46
42
Nestor BECK, Igreja, sociedade e educação, p. 37-38; tb. Hilário FRANCO JÚNIOR, A Idade Média, p. 97.
43
Nestor BECK, Igreja, sociedade e educação, p. 37-38.
44
Martin DREHER, Luteranismo e participação política, p. 121-122.
45
Idem, Entre a idade média e a idade moderna, p. 39.
46
Ulrich DUCHROW, Os dois reinos, p. 9-11.
65
Aclarava o reformador que uns pertencem ao Reino de Deus ou de Cristo, outros, ao
reino do mundo. Os primeiros eram os verdadeiros crentes justificados e santificados por
Deus. Estes não careciam de nenhum poder que os obrigasse: porque faziam o bem
livremente, estavam acima das exigências legais.
47
Dizia em relação a estes: “(...) essas
pessoas não precisam de espada ou direito secular. E se todas as pessoas fossem cristãos
autênticos, isto é, verdadeiros crentes, não seriam necessários nem de proveito príncipe, rei ou
senhor, nem espada nem lei”.
48
O mundo, contudo, não era, para Lutero, composto somente de cristãos. Por isso
Deus lançava mão de um outro governo, o secular, para impedir a estes que fizessem o mal.
49
Quanto aos que pertenciam ao “reino do mundo”, avaliava: “os injustos em contraposição
nada fazem que seja justo; por isso necessitam da lei que os ensina, obriga e pressiona para
agirem bem”.
50
Tínhamos, assim, na cosmovisão do reformador, de um lado uma esfera na qual o
evangelho tornava os homens justos e Deus era salvador e atuava para libertar do pecado,
criar o novo e conduzir ao bem. De outro, uma esfera que exteriormente produzia a paz e
prevenia as más ações, na qual Deus dava aos seres humanos instrumentos e liberdades para
lidarem com as questões do convívio social de forma responsável. As duas esferas, ou reinos,
eram, por isso, complementares, não suficientes em si e Deus, sublinhe-se, era o senhor sobre
ambas.
51
Era certo para Lutero, entretanto, que o cristão, apesar de não o necessitar, submeter-
se-ia e colaboraria no reino secular voluntariamente.
52
Também porque, conforme ele, o
cristão é simultaneamente justo e pecador (simul iustus et peccator), ou seja, ao mesmo tempo
que é totalmente justificado pela fé em Cristo, e será recebido no mundo vindouro pela graça
de Deus, neste mundo continua pecador, imperfeito e lutando contra o “velho homem” que
47
Nestor BECK, Igreja, sociedade e educação, p. 40-41.
48
Martinho LUTERO, Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência, p. 85.
49
Nestor BECK, Igreja, sociedade e educação, p. 40-41.
50
Martinho LUTERO, Da autoridade secular..., p. 85.
51
Nestor BECK, Igreja, sociedade e educação, p. 40-41; Ulrich DUCHROW, Os dois reinos, p. 10; John R.
STUMME, Algumas teses..., p. 253-254.
52
Martinho LUTERO, Da autoridade secular..., p. 90: “(...) [É] teu dever servir à espada e promovê-la de todas
as formas, seja com a vida, bens, honra e alma. Pois trata-se de uma obra da qual não necessitas, mas que é
extremamente útil e necessária para todo o mundo e para teu próximo. Por isso, ao veres que há falta de carrasco,
agente policial, juiz, senhor ou príncipe e te julgares apto, deverias oferecer e candidatar-te, para que, de forma
alguma, a autoridade tão necessária seja desprezada, enfraquecida ou desapareça. (...) Assim as duas coisas
combinam maravilhosamente: satisfazes ao reino de Deus e ao reino do mundo, exteriormente e interiormente,
sofres mal e injustiça e castigas mal e injustiça ao mesmo tempo, simultaneamente não resistes ao mal e, não
obstante, lhe resistes. Pois com uma coisa visas a ti e o que é teu, com a outra, teu próximo e o que é seu. Onde
se trata de ti e do que é teu, aí agirás de acordo com o Evangelho e sofrerás, como bom cristão, injustiças no que
toca a tua pessoa; onde se trata do outro e do que é seu, aí agirás de acordo com o amor e não permitirás injustiça
para teu próximo (...)”.
66
coexiste dentro de si com o “novo homem”. Por isso, enquanto velha criatura, o cristão
precisaria também da espada do reino secular. Enquanto nova criatura, contudo, lhe cabia a
participação na sociedade, essa era sua vocação.
53
A Igreja, nesse contexto, era para Lutero um órgão tanto do reino espiritual, quanto
do secular. No espiritual deveria pregar o evangelho para a salvação, no secular, repartir o que
é seu com os necessitados.
54
Ficava claro, também, que o recorte feito para a vida social do cristão e da Igreja
acontecia desde a perspectiva da justificação pela fé, da qual derivavam sua vocação. A
participação no reino secular dava-se, portanto, pelo amor e pela fé.
Nestor Beck observa que a compreensão de Lutero delimitava os poderes de ambos
os reinos. As leis do regime secular deveriam atingir somente o corpo, os bens e o que há de
exterior. Não competia aos reis e príncipes legislar sobre as consciências, isso pertencia a
Deus pelo evangelho. Nenhuma autoridade teria o direito de constranger as pessoas a crer e
viver em desacordo com o evangelho. Ficava, por outro lado, também limitado o poder dos
bispos e do Papa, aos quais nada mais cabia além de conduzir a fé dos cristãos tão somente
pelo evangelho, e ainda com seu consentimento, sem, portanto, qualquer espécie de
dominação ou constrangimento.
55
Buscava aqui, o reformador, resolver o que percebia como
uma confusão de papéis entre as autoridades seculares e religiosas.
56
Queria colocar-se contra
o desvirtuamento da Igreja em poder temporal e político. Queria, também, uma dignificação
do ofício político e social: o qual derivava do sacerdócio universal das pessoas batizadas, isto
é, de todos os crentes. Conforme Lutero, portanto, a atividade secular e política era uma
53
CA XVI, p. 35; cf. Max WEBER, A ética protestante..., p. 52 e 155, era nova a “valorização do cumprimento
do dever dentro das profissões seculares, no mais alto grau permitido pela atividade moral do indivíduo”, o que
trouxe como conseqüência “a atribuição de um significado religioso ao trabalho secular cotidiano”.
54
Nestor BECK, Igreja, sociedade e educação, p. 64.
55
Idem, p. 41-42.
56
Martinho LUTERO, Da autoridade secular..., p. 98 e 99: “Ninguém pode ou deve dar ordens à alma, a não ser
que saiba mostrar-lhe o caminho do céu. Isso, porém, nenhum ser humano pode, mas somente Deus. Portanto,
nas questões que dizem respeito à bem-aventurança da alma, nada deve ser ensinado ou aceito a não ser a
palavra de Deus. (...) Crer ou não crer é assunto da consciência de cada um e isso não vem em prejuízo da
autoridade secular. Por isso ela também deve contentar-se e ocupar-se com seus negócios e deixar que cada um
creia isto ou aquilo, como puder e quiser, e não coagir a ninguém. Pois a fé é um ato livre, ao qual não se pode
forçar a ninguém. Sim, é inclusive, uma obra divina no Espírito. Não se pode nem pensar que alguma autoridade
externa possa impor ou criá-la”; p. 100: “Pois meus inclementes senhores, o papa e os bispos, deveriam ser
bispos e pregar a palavra de Deus. Nesse ponto, porém, são omissos e converteram-se em senhores seculares e
governam com leis que concernem somente ao corpo e aos bens. Inverteram as coisas maravilhosamente.
Deveriam governar interiormente as almas por meio da palavra divina. Mas governam exteriormente castelos,
cidades, países e pessoas, e torturam as almas com trucidações indizíveis. Da mesma maneira os senhores
seculares deveriam governar exteriormente o país e o povo. Isso, porém, não fazem. Nada mais sabem fazer do
que esfolar e raspar, cobrando imposto sobre imposto, taxa sobre taxa, soltando aqui um urso, ali um lobo. Além
disso, não conhecem nem fidelidade nem verdade, e portam-se de uma maneira que até ladrões e bandidos
considerariam excessiva. Seu regime secular é tão decadente como o dos tiranos eclesiásticos”.
67
prática de amor, a fé em ação. Nesse sentido, como disse Altmann, para Lutero, uma vez que
Deus é o Senhor sobre ambos os reinos, o ser humano é também de ambos a finalidade.
57
Conforme tal pressuposto, afirmava o reformador que o governante não deveria
pensar: “‘A terra e as pessoas são minhas; farei o que me agrada’, mas, sim: ‘Pertenço à terra
e às pessoas. Farei o que é bom e proveitoso para elas. Não procurarei fazer ostentação e ser
dominador, mas como proteger e defendê-las com boa paz’.”
58
Mesmo que para isso por
vezes se precisasse usar a espada e a força.
Assim também, veremos em Melanchthon idéias semelhantes e complementares
relativas ao mundo social. Conforme o Artigo XVI da Confissão, “Da ordem política e do
governo civil”:
Da ordem política e do governo civil se ensina que toda autoridade no mundo e
todos os governos e leis ordenados são ordenações boas, criadas e instituídas por
Deus, e que cristãos podem, sem pecado, ocupar o cargo de autoridade, de
príncipe e de juiz, proferir sentença e julgar segundo as leis imperiais e outras leis
em vigor, punir malfeitores com a espada, fazer guerras justas, combater,
comprar, vender, fazer juramentos requeridos, possuir propriedade, casar, etc. (...)
Pois o evangelho não ensina uma forma de vida e justiça exteriores, temporais,
senão uma interior e eterna vida e justiça do coração, e não abole o governo civil,
a ordem política e o casamento, querendo, ao contrário, que se guarde tudo isso
como genuína ordem divina e que cada qual, de acordo com sua vocação, mostre,
em tais ordenações, amor cristão e obras verdadeiramente boas. Por isso os
cristãos têm o dever de estar sujeitos à autoridade e de obedecer-lhe aos
mandamentos e leis em tudo o que não envolva pecado. Por que se não é possível
obedecer à ordem da autoridade sem pecar, mais importa obedecer a Deus do que
aos homens. Atos 5.
59
O cristão, portanto, conforme Melanchthon e os que subscreveram a Augustana,
estava livre e tinha mesmo o dever de submeter-se à autoridade e exercer sua vocação no
mundo, a fim de mantê-lo em ordem. Para isso, poder-se-ia inclusive usar a espada se fosse
necessário. A obediência maior, porém, era devida a Deus. Desta, todavia, decorria a
obediência às autoridades por Deus instituídas, desde que não proviessem ordenanças que
conduzissem ao pecado. Sendo assim, a “vingança pública, realizada por ofício do
magistrado, não é desaconselhada mas ordenada, e é obra de Deus, segundo Paulo. Rm 13”.
60
O texto de Romanos 13, tido sob essa perspectiva, tornar-se-ia, desde então, paradigmático
para o pensamento luterano acerca da obediência às autoridades: “Todo homem esteja sujeito
às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as
57
Walter ALTMANN, Lutero e libertação, p. 161.
58
Martinho LUTERO, Da autoridade secular, p. 107-108.
59
CA XVI-1-2-4-7, p. 35; tb. Max WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 152-156.
60
AC XVI- 7, p. 236-237.
68
autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à
autoridade resiste à ordenação de Deus” (Rm 13.1-2).
A tipologia da ação de Deus no mundo da doutrina dos dois reinos aponta também
para um tipo de ação do cristão luterano no mundo. Faz parte da estrutura de crenças forjadas
nas disputas que envolveram a Reforma e nela reside um conjunto de significados que foram
retomados pelos luteranos ao longo do tempo para interpretarem as situações sociais e
políticas em que viviam e nelas articularem suas próprias ações. Como acontece com todas as
sistematizações de crenças, assim, a doutrina dos dois reinos foi interpretada e reinterpretada,
ao longo da história do Luteranismo, de acordo com as especificidades dos atores e dos
contextos em que estes se inseriam. Escapam, por isso, as doutrinas, às intenções originais de
seus criadores. No caso dos processos que analisaremos, a dimensão da submissão às
autoridades como dever do verdadeiro cristão foi sublinhada por diversas vezes com maior
ênfase. Outra adaptação foi que em alguns casos equiparou-se, por um lado, reino secular e
governo civil e, por outro, reino espiritual e Igreja, como instâncias separadas e que nada
tinham a ver umas com as outras.
4. A Confessionalização territorial
Em função de uma série de circunstâncias o destino da Igreja Luterana esteve
colocado nas mãos de líderes políticos em seus respectivos territórios. Num certo sentido,
agiram de tal forma a fim de proteger dos ataques do Papa e do Imperador a nova organização
política, econômica e religiosa advinda com a Reforma. As conseqüências de tal articulação,
contudo, deixaram marcas na história da Igreja Luterana e da Alemanha. A aliança entre a
Igreja da Reforma e os príncipes ocasionou que os ensinamentos políticos dos professores e
escritores protestantes fossem conformados à situação política existente. Nesse sentido,
especialmente após os levantes camponeses dos anos 1520, os governantes e os líderes da
Igreja perceberam a necessidade de uma ética social que prevenisse distúrbios
revolucionários. A simpatia pela causa dos camponeses tornara-se, assim, impossível.
A tarefa de preparar uma tal ética social coube em larga medida novamente a
Melanchthon em seu aristotelismo, sob o arcabouço da idéia dos dois reinos. Como para
Lutero a ordenação da sociedade era função da razão humana, e para Melanchthon uma das
mais altas elaborações da razão humana era justamente a filosofia de Aristóteles, a filosofia
política luterana tomou também um contorno distintamente aristotélico. De fato, a moderação
que Aristóteles prescrevia para o governante em sua Política, bem como a maneira prudente
69
por ele sugerida para a prevenção de revoluções, eram bastante adequadas à estrutura política
da Saxônia e de outros principados luteranos.
61
A teologia tornou-se, assim, a teologia dos
príncipes territoriais, senhores oficiais da Igreja, summi episcopi, bispos supremos.
62
Ainda durante o século XVI, os dois reinos foram, então, com a concordância dos
luteranos, novamente imiscuídos na Paz de Augsburgo, firmada em 1555. No acordo, ainda
que se tenha deixado em aberto o cerne da questão religiosa e espaço para os conflitos
armados que aconteceriam nos anos posteriores, as partes se aproximaram ao redor da norma
cujus regio eius religio, segundo a qual os súditos deveriam adotar a religião de seu
governante – mais um fator de abalo da antiga unidade da Igreja e do Império. A partir de
então, os escritos confessionais passavam a ter um estatuto legal, tornavam-se documentos
políticos, jurídicos, constitucionais, cuja autoridade repousava sob um poder decretado pelo
homem.
63
O tipo de política eclesiástico-imperial que se implementou estabeleceu, assim, as
condições para o que se pode chamar de confessionalização territorial, na qual uma confissão
particular, no caso católica ou luterana, tornava-se a confissão jurídica do território,
aumentando enormemente o poder eclesiástico do príncipe. Na verdade, o territorialismo (não
a confessionalização territorial) já existia no império alemão desde 1356, quando se passou a
regular as eleições imperiais a partir de bases territoriais, conseqüência da confluência de
interesses entre o Papa e os príncipes germânicos. Já desde lá os príncipes eram os
governantes de suas próprias igrejas.
64
A confessionalização viria a potencializar religiosa e
politicamente tal situação.
Entre 1555 e 1648, as únicas religiões legitimadas pelo poder imperial foram a
Luterana e a Católica. Somente ao final da Guerra dos Trinta Anos, com a Paz de Westphalia
(1648), os Calvinistas (ou Reformados) passaram a ser também reconhecidos. Até então, o
termo “evangélico” era usado como sinônimo de “luterano”. Após essa data, porém, o termo
passaria a ser utilizado de modo amplo para referir a calvinistas, luteranos e mesmo à
chamada “ala esquerda” da Reforma. Entrementes, na falta de algo comparável ao
magisterium romano, luteranos e calvinistas privilegiaram seus escritos confessionais como
61
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 36-38: cf. Pelikan, o prestígio adquirido por Aristóteles
equacionou a conduta política do cristão à de qualquer pagão racional. As conseqüências éticas foram graves e
muito da indiferença ética do Luteranismo alemão em termos políticos deve-se talvez a isso, mais do que às
concepções políticas de Lutero.
62
Paul TILLICH, História do pensamento cristão, p. 273.
63
E. Clifford NELSON, The rise of world Lutheranism, p. 22; p. 23: a concentração de poderes episcopais por
parte dos príncipes com o advento da norma cujus regio traria um efeito nas relações entre Igreja e governantes
que perduraria na Alemanha até o final da I Guerra.
64
Idem, p. 21-22.
70
instrumentos de identificação de sua interpretação do evangelho, o que seria intensificado
com as polêmicas teológicas que surgiriam no século XVII. Uma vez que luteranos e
calvinistas consideravam a Bíblia verbalmente inspirada, os conflitos gerados aprofundariam
ainda mais suas diferenças em termos confessionais.
65
As disputas ao redor da alethéia iam,
assim, definindo discursos e identidades de fronteira. Uma vez que cada confissão tinha a
verdade, restava às demais o ensino do que era falso. Cunhava-se, para tanto, mais teologia e
mais filosofia numa intensa atividade intelectual.
O processo de confessionalização não foi, portanto, pacífico e unânime, mas
conflituoso e multifacetado. Diversas batalhas, tanto somente ideológicas, quanto também
armadas, foram travadas interna e externamente aos diferentes grupos. As guerras religiosas e
as diversas dietas, fórmulas, debates e acordos são exemplo disso. Nas décadas de 1540 e
1550, nesse sentido, o esforço de Joaquim II em promover um caminho intermediário entre
católicos e protestantes em Brandenburgo e na Saxônia, ainda que contando com o apoio de
Melanchthon e de outros líderes políticos e religiosos, encontrou severas restrições diante da
resistência de um clero luterano confessionalista e ortodoxo, rendendo a Melanchthon uma
queda considerável em seu prestígio.
66
Foi, porém, ao final do século XVI que a confessionalização territorial luterana
passou a delimitar-se mais clara e incisivamente. Quando, por exemplo, na Prússia, o sucessor
de Joaquim II em Brandenburgo, João Jorge, passou a aumentar o poder político da
aristocracia em troca de apoio para o pagamento de dívidas que herdara de seu antecessor,
passou também a permitir somente a proclamação da palavra de Deus conforme os escritos
proféticos e apostólicos e a Confissão de Augsburgo e sua Apologia, cercando-se, para tanto,
do apoio dos eminentes teólogos confessionais Johann Agricola e Andreas Musculus. Como
conseqüência disso, uma série de políticas de controle e disciplina eclesiástica foi
65
E. Clifford NELSON, The rise of world Lutheranism, p. 23-24; cf. o autor, a Bíblia, ocupando o lugar do
pontífice romano, passou a representar uma espécie de “papa de papel”; tb. Claude WELCH, Protestant thought
in the nineteenth century 1799-1870, p. 193: “The Peace of Westphalia (1648) had made the Confession the
basis of the legal existence of the Protestant churches. With the general coincidence of political and confessional
boundaries, this had been a relatively unproblematic arrangement.” [“A Paz de Westphalia (1648) tornou a
confissão a base da existência legal das igrejas protestantes. Com a coincidência geral entre fronteiras políticas e
confessionais, este foi um arranjo que aconteceu relativamente sem problemas”].
66
Bodo NISCHAN, Prince, people, and confession…, p. 25-29; p. 31-40: Posteriormente, durante a década de
1560, Joaquim se alinharia junto a luteranos ortodoxos que favoreceram um Luteranismo Confessional ardente e
rígido em Brandenburgo, sem resolver, porém, contradições políticas e religiosas geradas anteriormente pela
incompletude do processo reformatório que levou a cabo em seu território. A situação da busca de um caminho
intermediário seria vista novamente quase 300 anos depois na mesma região, desta feita entre luteranos e
calvinistas, por ocasião da União Prussiana, episódio ao qual retornaremos adiante e que esteve diretamente
conectado à história da formação do Sínodo de Missouri.
71
desenvolvida na Prússia em termos de liturgia e educação, demarcando suas fronteiras ao
redor dos ensinamentos de Lutero e das Confissões.
67
Outra expressão forte da guinada confessional desse período ficaria por conta da
Fórmula de Concórdia, de 1577. O documento resultou do esforço conjunto do Eleitor
Augusto da Saxônia e de João Jorge em Brandenburgo, através da realização de uma
conferência que visava alcançar uma solução consensual para problemas que dividiam os
luteranos: a justificação pela fé, a relação entre lei e evangelho e a Ceia do Senhor. Ainda que
diante de alguma resistência, a Fórmula, preparada por Martin Chemnitz, aluno de
Melanchthon, foi subscrita tanto pelos teólogos mais importantes, quanto pelo clero da região,
e representou tanto um afastamento dos ensinamentos do Melanchthon “pós-Lutero”, que
manifestava tendências sinergistas e unionistas, quanto de Zwinglio e Calvino, colocando a
teologia luterana na direção do que Nischan chama de Gnesio-Luteranismo, um Luteranismo
firme e oficialmente ancorado nas Confissões Luteranas e em constante delimitação de
fronteiras em relação ao que era considerado o “abominável erro calvinista”.
68
5. A Era da Ortodoxia e a influência da filosofia
Os acontecimentos que até agora analisamos colaboraram na preparação do contexto
para a manifestação alemã da Era da Ortodoxia ou do Ortodoxismo Escolástico, rosto sacro da
Era do Absolutismo, no século XVII, período da autoridade absoluta dos reis, em termos
políticos, da autoridade absoluta do Papa e da Igreja, em termos católicos, e da autoridade
absoluta da Bíblia, em termos protestantes. Nesse contexto, o mundo ocidental passaria a ser
mais rápida e facilmente diferenciado confessionalmente.
69
Em algumas histórias da teologia, costuma-se considerar a Fórmula de Concórdia
(1577) como uma vitória do Luteranismo sobre o Melanchthonismo. Tal vitória, contudo,
ainda que possa ser argumentada em termos teológicos, não o pode em termos filosóficos.
Porque filosoficamente o Melanchthonismo continuou no controle mesmo após a elaboração
da Fórmula de Concórdia. A terminologia aristotélica utilizada por Cheminitz havia sido por
ele aprendida nas aulas de Melanchthon e, portanto, o próprio repúdio às idéias de
67
Bodo NISCHAN, Prince, people, and confession…, p. 40-46; 47-49: É interessante notar também que as
imposições litúrgicas catolicizantes de Joaquim II permaneceram, ainda que um tanto adaptadas, no período de
João Jorge, criando uma orquestração pela qual a ortodoxia doutrinária e o tradicionalismo cerimonial formavam
dois lados de uma mesma moeda. Lembre-se o argumento pelo processo de hibridização apresentado acima a
partir de Susan R. BOETTCHER, Post-colonial Reformation? Hybridity in 16th-century Christianity.
68
Bodo NISCHAN, Prince, people, and confession…, p. 44-45; Jaroslav PELIKAN, From Luther to
Kierkegaard, p. 43-45.
69
E. Clifford NELSON, The rise of world Lutheranism, p. 25.
72
Melanchthon foi elaborado em termos melanchthonianos. As próprias Confissões Luteranas
mantiveram a estrutura do aristotelismo melanchthoniano quase intacta. Assim, ainda que nas
controvérsias que se geraram ao redor das idéias de Melanchthon tenha-se a impressão de
uma derrota da filosofia aristotélica por parte do Luteranismo, o que aconteceu de fato foi que
o aristotelismo garantiu seu lugar na educação e na teologia da Igreja Luterana. Por muitos
anos permaneceria a ênfase de Melanchthon na educação humanística e na competência
filosófica para o pastorado.
O Luteranismo, assim, após um século de controvérsias, estava
pronto para definir e refinar suas formulações teológicas, e para tal tarefa empregaria a
orientação filosófica legada por Melanchthon. O desenvolvimento de tal filosofia
desembocaria na base dos sistemas luteranos da Era da Ortodoxia, fundamento para o futuro
Luteranismo Confessional Ortodoxo da LC-MS e da IELB.
70
De outra forma, a aurora do século XVII marcou também a culminância da
Renascença na história cultural da Alemanha. Àquela época, as teorias educacionais
humanistas haviam tomado o comando também das escolas dos territórios controlados pela
Reforma. No começo do século XVII, cada estudante das universidades alemãs tinha a
oportunidade de relacionar a filosofia aristotélica ao campo de estudo que escolhera. Através
do aristotelismo a filosofia tornara-se o denominador comum entre teólogos, físicos, juristas e
governantes. As escolas foram supridas por Melanchthon e seus colegas humanistas com
textos de todas as áreas do conhecimento, incluindo a filosofia. O aristotelismo influenciou,
assim, em tal medida o ensino e a escrita dos territórios luteranos no século XVII que, sendo o
latim a língua predileta nos meios cultos humanistas, o próprio crescimento da literatura
nacional alemã foi atrasado. Considere-se, porém, que o sistema teológico-eclesiástico que se
gerou não teve suas origens somente no contexto cultural da época. Foi a estrutura eclesiástica
e teológica do Luteranismo a geradora dos pressupostos filosóficos das posições adotadas pela
maioria dos luteranos.
71
Em meio a tais acontecimentos, pode-se dizer que a Ortodoxia em sua forma clássica
principiou por volta do ano 1600, a partir do debate em torno da teologia dos reformadores e
da correta interpretação da Bíblia. Sob a mencionada inspiração aristotélica, o movimento
promoveu uma abrangente reformulação erudita da teologia, na intenção de exprimir
conceitos universais sobre o mundo e a realidade e de expressar seus dogmas como verdades
claras. Tanto a organização do Livro de Concórdia de 1580, como os Loci theologici de
70
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 46-48; Paul TILLICH, História do pensamento cristão, p.
274.
71
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 50-52 e 139.
73
Johann Gerhard (1582-1637), são exemplos paradigmáticos da continuação desse esforço de
sistematização intelectual de verdades de fé.
72
A tomada de um princípio escriturístico como fundamento da teologia, bem como a
aplicação de um método analítico, na busca pela apresentação sistemática da doutrina da
salvação e dos meios pelos quais esta pode ser alcançada, revelavam, nesse contexto, os
rumos dos ares acadêmicos escolásticos que respirava a teologia da época. As dogmáticas
ortodoxas luteranas, por exemplo, conforme a influência dos Loci de Melanchthon, seguiam a
ordem da chamada história da salvação (Heilsgeschichte), que pode ser colocada, de um modo
geral, na seguinte seqüência: criação, queda, redenção e escatologia. Tal ordenação lógica da
economia da salvação revelava, ela mesma, a intenção de conferir um tratamento intelectual
às questões teológicas. Há aí um telos. Deve-se dizer, porém, que a Ortodoxia Luterana
sustentava que todo argumento racional deveria humildemente ceder lugar ao testemunho da
Bíblia, autoridade máxima em termos de fé, subordinando-se ao testemunho da verdade
revelada – no que se diferenciava da Escolástica Medieval e da Ortodoxia Reformada. Os
ortodoxos luteranos em geral criam e ensinavam que o ponto de partida para a teologia era
dado pela revelação bíblica objetiva, e não pela fé como experiência subjetiva.
73
Ancorados no Humanismo e na herança luterana, teólogos ortodoxos desenvolveram
suas teologias na diferenciação entre dois princípios filosófico-teológicos, o formal e o
material. O princípio formal era a Bíblia; o material, a doutrina da justificação. Ainda que
para Lutero os dois estivessem interligados, a Ortodoxia considerou-os separadamente,
tornando-se com o tempo a Bíblia inspirada por Deus o verdadeiro princípio no tangente à
autoridade. Para os ortodoxos, as pessoas que escreveram os livros bíblicos eram as “mãos de
Cristo”, “notários do Espírito”, “penas” através das quais o Espírito escrevera a Bíblia. Até
mesmo os sinais do texto hebraico eram, para eles, inspirados. Tal autoridade mantinha-se
através de critérios externos (época, milagre, profecia, mártires, etc.), critérios internos (estilo,
idéias sublimes, santidade moral) e pelo próprio testemunho do Espírito Santo, que
comprovava a veracidade e inspiração das doutrinas da Escritura. Nessa perspectiva, segundo
Tillich, “em lugar da imediatez do Espírito nas relações entre Deus e seres humanos, o
72
Bengt HÄGGLUND, História da teologia, p. 259-262.
73
Idem, p. 259-262, 216; tb. Martin DREHER, A igreja latino-americana no contexto mundial, p. 90-92.
Desenvolvimentos mais recentes de disciplinas como a lingüística, a hermenêutica, ou a sociologia do
conhecimento, nos permitem saber que tal neutralidade objetiva não pode ser sustentada completamente sem
oposição. A própria ortodoxia mantivera elementos subjetivos da experiência dos reformadores. Paul TILLICH,
Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX, p. 44, alerta, porém, para o fato de que o movimento
discutiu com 15 séculos de pensamento cristão e representa um momento significativo na história da teologia
que não deveria ser menosprezado em sua importância.
74
Espírito dá testemunho da autenticidade da Bíblia enquanto documento do Espírito divino”.
74
Assim, ao mesmo tempo em que a dogmática baseava-se em um princípio escriturístico, a
interpretação da Bíblia era influenciada por uma perspectiva dogmático-filosófica e por
atitudes polemistas. As dimensões afetivas, por sua vez, sob a influência da Ortodoxia, iam
sendo suplantadas por relações objetivas e legalistas.
75
Um dos mais importantes pressupostos da Ortodoxia foi, nesse contexto, sua
definição de certeza e dos meios pelos quais se poderia obtê-la. Na linha de Melanchthon,
muitos teólogos da Era da Ortodoxia, ao passo que estavam propensos a entender a Fides
humana como fé e entendimento incertos e inconstantes, viam o conhecimento trabalhado
pelo Espírito Santo como aquele capaz de produzir certeza, convencendo a mente da acurácia,
confiabilidade e infalibilidade das Escrituras, e criando a segurança de que o que a Bíblia
dizia era a verdade. Assim, a partir da Bíblia poder-se-ia elaborar um sistema completo e
intelectualmente válido que satisfizesse a mente e proporcionasse a almejada certeza. Tal
certeza, contudo, precisava também da ajuda de categorias filosóficas para ser alcançada. Os
teólogos, então, passaram a se ocupar com temas como a existência de Deus, a confiabilidade
das narrativas bíblicas, a plausibilidade dos milagres e mesmo da tentativa de provar que a
encarnação não era algo que ia contra a razão, esposando, para tal, um método analítico
dedutivo.
76
Outro ponto importante para que entendamos a Ortodoxia e seu intelectualismo, e
que posteriormente colaboraria na formação do Racionalismo iluminista, é sua concepção do
universo em dois “andares”, sendo o andar de baixo a teologia natural e o de cima a teologia
revelada. No andar de baixo, o primeiro instrumento era a razão. Já em Melanchthon, como
mencionamos, estava presente a preocupação com a comprovação da existência de Deus sem
o auxílio das Escrituras, somente pelas vias da razão. No andar de cima, por sua vez, a
revelação era a própria voz de Deus na Bíblia. Acomodar as doutrinas em seus respectivos
“andares” não foi, desde o princípio, tarefa fácil para os teólogos ortodoxos e, com o tempo, o
andar de baixo de fato se levantaria contra o de cima.
77
Em meio a tais articulações, as controvérsias ocuparam também, como em
momentos anteriores, um lugar importante nos desenvolvimentos da teologia ortodoxa, sendo
a mais definitiva delas a polêmica anti-Romana, reação protestante à teologia produzida pelo
74
Paul TILLICH, História do pensamento cristão, p. 275-277; Idem, Perspectivas da teologia protestante nos
séculos XIX e XX, p.46-47.
75
Bengt HÄGGLUND, História da teologia, p. 261.
76
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 58-60.
77
Paul TILLICH, Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX, p. 47-48.
75
Concílio de Trento. E temos, então, mais um fator de aproximação com a filosofia e com
posturas intelectualistas. Como a teologia tridentina endossava a teologia escolástica da Idade
Média, o Luteranismo não pôde entrar na disputa sem referir-se também a problemas
filosóficos. Sendo assim, opostamente aos primeiros luteranos que criam que o
Escolasticismo medieval havia pervertido o Evangelho de Cristo, além de não ter feito justiça
à filosofia grega, autores como Johann Gerhard e Abraham Calov, ao se depararem com a
filosofia escolástica, perceberam que, ao menos em termos filosóficos, tinham algo a aprender
com os autores medievais. Nesse esforço, a crescente aplicação das formas aristotélicas
aumentava as semelhanças entre os métodos das teologias católica e luterana. Em tais
controvérsias, a exegese foi sendo deixada de lado em favor da filosofia e os dias de
preponderância da erudição bíblica se tornavam passado nos meios luteranos no século XVII.
O fato de que os mais eminentes teólogos do período tenham sido os dogmatas, e não os
exegetas, aponta justamente para o uso crescente da filosofia, empregada com vistas à
derrocada dos oponentes em meio a disputadas polêmicas.
78
Todavia, essa mesma reação ao Catolicismo tridentino revelou também, deve-se
dizer, esforços de tolerância e união entre luteranos e calvinistas, como no caso do Irenicum
de David Pareus, de Heidelberg, publicado em 1614. Pareus, visava fortalecer o
Protestantismo contra a ofensiva romana e atuou teológica e politicamente a fim de promover
o encontro entre teólogos protestantes com vistas a analisar e comparar suas confissões e, com
base na Escritura, determinar quais eram os artigos fundamentais da fé cristã.
79
Esforços como
este nos fazem relativizar em alguma medida uma pre-tensa compreensão do processo de
confessionalização e da ortodoxia como um composto de blocos monolíticos bem arrumados
entre si.
No outro lado, estavam, é claro, homens que, como o influente Matthias Höe,
Oberhofprediger (pregador-mor da corte) na Saxônia e conselheiro direto do Rei João Jorge
durante o primeiro quarto do século XVII, criam que os principais inimigos dos genuínos
luteranos eram não os católicos, mas os reformados. Mesmo assim, porém, com a convocação
da Convenção de Leipzig, em 1631, decidiu-se após dois meses, com o apoio de Höe e João
Jorge e a coligação de príncipes luteranos e calvinistas, pela associação entre os protestantes
alemães (a Leipzig Bund) e pela formação de um exército de 4 mil homens com fins
defensivos.
80
78
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 53-58.
79
P. ex., Bodo NISCHAN, Reformed Irenicism and the Leipzig Colloquy, p. 6-8.
80
Idem, p. 12-13, 17.
76
De uma forma geral, porém, a Ortodoxia foi o movimento teológico que se imprimiu
com solidez no pensamento da Igreja Luterana no século Dezessete, e os contornos por ela
adquiridos ocasionariam no século seguinte o surgimento de duas reações diferentes e
contrapartes: o Pietismo e o Racionalismo. Firmara-se com a ortodoxia um modo de fazer
teologia como discurso religioso que se sustentava pela afirmação de verdades reveladas de
fé. No Brasil, este viria a ser conhecido pela ação da LC-MS e da IELB.
6. Ortodoxia e Pietismo
A Ortodoxia Luterana, ao final do século XVII, tornara-se um sistema teológico e
filosófico digno de entrar para a história da teologia e da filosofia, o que realizara com a ajuda
de seu aristotelismo revisado. Com ela, o próprio ato de confessar a fé em moldes
intelectualizados tornara-se acontecimento hierofânico. Havia, por outro lado, perdido muito
do contato com a Igreja Luterana e tornara-se mais um campo de batalhas dialéticas que um
espaço de promoção de vivências religiosas. As tarefas mais simples da pregação e do
acompanhamento pastoral das necessidades do povo haviam sido abandonadas em função do
glamoroso campo de um debate teológico que, ancorado na razão, pretendia demonstrar a
plausibilidade da fé cristã. A dimensão mística e vivencial da religião, por outro lado, fora
relegada a um segundo plano. As pessoas simples estavam alheias às disputas em que seus
pastores e professores se engajavam. Seu papel no contexto da religião dogmática, fixa,
rígida, exata e intelectual dos teólogos da Ortodoxia tornara-se inteiramente passivo: ouvir e
aceitar os dogmas afirmados como verdades e participar dos sacramentos. Um dos únicos
abrigos para os próprios teólogos contra seu intelectualismo era a doutrina do testemunho
interno do Espírito Santo, com a qual, entretanto, ocupavam-se cada vez menos.
81
Também as atividades missionárias passaram a ser negligenciadas pelos ortodoxos,
alguns inclusive acreditando que a Grande Comissão (Mt 28.18-20) fora válida apenas para os
apóstolos. Concomitantemente, também a consciência ética entrava em declínio. O locus “De
charitate” desaparecera da teologia dogmática e a ética fora dela separada. Contentavam-se
cada vez mais os teólogos apenas com a articulação doutrinária e a defesa das posições
luteranas. O fato de que a terrível Guerra dos 30 Anos e suas conseqüências para a população
81
Williston WALKER, História da igreja cristã, p. 190-191; Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard,
p. 76-78.
77
praticamente não tenha sido relevante à teologia revelava a distância que o fazer teológico
tomara da vida da população.
82
De outra forma, o Absolutismo chegara a seu auge na França de Luís XVI (1643-
1715). O governo racional das cortes, funcionários públicos, exércitos permanentes,
dispensava conscientemente critérios ético-religiosos. Os expoentes da época eram homens
como Hobbes, Maquiavel e Richelieu, e conflitos religiosos, como a própria Guerra dos 30
Anos, devastavam a sociedade.
83
Decorrência disso, um espírito de reconstrução não tardou em surgir através do
movimento conhecido como Pietismo, que apontava para soluções através de uma vida
religiosa piedosa baseada na experiência pessoal do crente com Deus. Argumentavam os
pietistas que Lutero havia começado uma revolução na doutrina, mas que não havia
acontecido uma semelhante reforma na vida: a Reformation der Lehre requeria ainda uma
Reformation des Lebens. O Pietismo era, nesse sentido, um movimento por uma nova
reforma.
84
Figura principal no desenvolvimento inicial do Pietismo foi Phillip Jakob Spener
(1635-1705), em cuja formação podemos detectar duas vertentes. Tornara-se, por um lado,
desde seus estudos em Estrasburgo, homem versado em exegese bíblica e na teologia de
Lutero, tendo também conhecido, em Basiléia e Genebra, o pensamento reformado. Por outro
lado, tivera, nesse período formativo, também contato com a obra do místico alemão Johann
Arndt e com o Puritanismo inglês.
85
Estas vertentes, uma mais intelectual e outra mais
experiencial, articularam-se na obra Pia desideria (título latino para “Desejos piedosos ou
Sinceros desejos de uma reforma da verdadeira Igreja Evangélica”), de 1675, na qual Spener
descrevia quais eram a seu ver os males da época: a interferência do governo, o mau exemplo
dos clérigos, as controvérsias religiosas, as bebedices, as imoralidades e a ambição dos leigos;
e apontava como solução a formação de pequenos grupos de estudo nas congregações para
leitura da Bíblia e auxílio e vigilância mútuos (os collegia pietatis, ecclesiola in ecclesiae ou
conventículos, como são geralmente chamados), a partir do entendimento de que a vida era
82
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 78-79. O conflito religioso dizimou metade da Europa: de
uma população alemã estimada em dezoito milhões de pessoas, somente nove sobreviveram à Guerra dos 30
Anos.
83
Martin DREHER, A igreja latino-americana no contexto mundial, p. 120-121.
84
Mary FULBROOK, Piety and politics, religion and the rise of Absolutism in England, Württenberg and
Prussia, p. 23.
85
P. ex., Max WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 65-66, localiza o nascimento primevo
do Pietismo no Puritanismo inglês; p. 93: “do nosso ponto de vista especial, o pietismo significou apenas a
penetração da conduta metodicamente controlada e supervisionada – deste modo ascético – nas seitas não
calvinistas”.
78
onde se manifestava o verdadeiro Cristianismo. Além de Spener, foram também líderes
importantes, entre outros, August Hermann Francke (1663-1727), professor em Halle, e
Nicolau von Zinzendorf (1700-1760) líder do Pietismo de Herrnhut.
86
Opondo-se à negligência dos ortodoxos para com a dimensão pessoal da religião,
Spener e seus discípulos passaram a manifestar preocupação com o pecado e com a salvação
pessoal e a renunciar às coisas que consideravam mundanas. O tema da experiência pessoal
com Deus articulava-se, assim, às questões da conversão individual e da necessidade de uma
nova conduta do crente, desapegada do mundo material e condigna com a nova vida que
recebiam.
87
A comunidade reunida ao redor da Bíblia era outra característica do movimento.
Criava-se, na verdade, como entre os puritanos, um biblicismo em meios pietistas, o que
tornava a Bíblia a mais predominante fonte de autoridade e um guia para a conduta diária. No
que se aproximavam dos ortodoxos. Os pietistas, nesse espírito, produziram e distribuíram
edições vernáculas da Bíblia com introduções e comentários, e a leitura da Bíblia era o centro
dos encontros nos conventículos. Os cursos universitários por eles influenciados enfatizavam
os estudos bíblicos em detrimento dos dogmáticos, preferidos pelos ortodoxos escolásticos.
Também seus sermões não eram dogmáticos, mas bíblicos e voltados para a audiência, a fim
de levarem a mensagem de fé, regeneração e salvação revelada por Deus.
88
Nesse sentido, em função do contato direto do crente com a divindade, as
diferenciações entre clero e laicato foram amainadas, o que ocasionou também uma certa
indiferença em relação a questões de pertença formal a igrejas institucionais e diferenças
confessionais – o que posteriormente tornar-se-ia fator central para o desenvolvimento da
união admnistrativa e litúrgica de luteranos e reformados na Prússia e em outros territórios.
89
Em sua ênfase na dimensão experiencial e na prática de fé, os pietistas
desenvolveram também uma por vezes áspera moralidade ascética, especialmente no tangente
à alimentação, vestimenta e lazer. Criam que viver uma vida pia e ordeira voltada para a
família e para o próximo era a conseqüência imediata da regeneração. Simplicidade,
moderação e ordem deveriam ser observadas. Não se generalize ou absolutize, entretanto, a
busca por sobriedade entre os pietistas, e menos ainda se subscreva a visão estereotipada do
86
Williston WALKER, História da igreja cristã, p. 191-193; tb. Martin DREHER, A igreja latino-americana no
contexto mundial, p. 120-122.
87
Bengt HÄGGLUND, História da teologia, p. 281-289; Williston WALKER, História da igreja cristã, 190-
196.
88
Mary FULBROOK, Piety and politics…, p. 31-32.
89
Bengt HÄGGLUND, História da teologia, p. 281-289; Williston WALKER, História da igreja cristã, 190-
196.
79
movimento como uma reunião de fanáticos ascéticos, o que aconteceu somente em casos
extremos.
90
Os pietistas buscavam ainda, diante da absorção da Igreja pelos governantes e da
conseqüente importância das funções seculares do clero racionalista, transformar a Igreja a
partir não de um corpo burocrático de sacerdotes, mas desde dentro, através da vivência das
pessoas com Deus, enfatizando o tradicional conceito luterano do “sacerdócio universal de
todos os crentes”. Sublinhavam também um sentimento de responsabilidade para com o
mundo, o qual desdobrava-se em atividades de missão e caridade. Este engajamento “intra-
mundano”, como diria Weber, esperava, porém, uma transformação não pela revolução social
ou da Igreja, mas pelo viver exemplar das virtudes cristãs
91
– bem ao gosto de Lutero e de
Melanchthon, diríamos.
Os avanços missionários que o Pietismo imprimiu no Cristianismo são bem
reconhecidos, bem como suas atividades de caridade. Não menos importantes, porém, foram
suas contribuições para o inicio da literatura nacional alemã, antes abandonada, como já
mencionamos, pelo cultivo do latim como língua culta por parte dos ortodoxos. Assim
também sua significativa produção hinológica é digna de menção.
92
O Pietismo encontrou por toda a Alemanha eco em pessoas que já buscavam, em
meio a uma problemática situação social, conforto e conselho nos escritos dos puritanos
ingleses e de autores alemães ligados a correntes místicas ou devocionais. Tais pessoas
anelavam também por uma nova reforma.
93
Em termos teológicos, contudo, aos poucos foram surgindo diferenças entre pietistas
e ortodoxos. O novo movimento passou a receber severas críticas que denunciavam sua
“lassidão” em relação às doutrinas. Observe-se, porém, que, se entre os pietistas a experiência
ganhava maior centralidade que as doutrinas, isso não era algo intencional desde o princípio
do movimento. Os pais fundadores do Pietismo entendiam que estavam trabalhando
firmemente ancorados nas doutrinas luteranas.
94
Note-se ainda que as raízes de ambos matizes, a Ortodoxia e o Pietismo, podiam ser
encontradas no próprio Lutero, ao mesmo tempo teólogo e homem de fé moldado no catre dos
mosteiros agostinianos, o que facilitava a elaboração de memórias e identidades por ambos os
grupos ao redor do reformador. Não é demais lembrar que, como já mencionamos, ainda que
90
Mary FULBROOK, Piety and politics …, p. 34.
91
Robert M. BIGLER, The politics of German Protestantism, p. 11-13.
92
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 80-81.
93
Mary FULBROOK, Piety and politics …, p. 25, 27.
94
Idem, p. 30.
80
Lutero fosse um Professor e que boa parte dos escritos da Reforma, como por exemplo as 95
Teses, tivessem forma de debate, modelo que vigorava no meio universitário da época,
95
como disse Tillich, “o caráter explosivo de seu ensino que transformou a face da terra foi
produzido por sua experiência de Deus. Que experiência era essa? Não era a crítica do dogma
(...) Tratava-se da explosão de uma relação pessoal com Deus”.
96
Spener, porém, com sua
ênfase na ecclesiola in ecclesia e com sua escatologia otimista, afastava-se de suas heranças
luteranas. Diferentemente de Lutero e suas tendências pessimistas em relação à existência
terrena, os pietistas acreditavam na transformação deste mundo e no alcançar do Reino de
Deus ainda nesta terra.
97
De fato, com o Pietismo, novas estruturas e, portanto, novas
possibilidades interpretativas ganharam espaço e passaram a habitar, concomitantemente à
Ortodoxia e à confessionalização, o repertório à disposição das práticas e discursos luteranos.
7. O Racionalismo entre a Ortodoxia e o Pietismo
A Era da Razão, entre os séculos XVII e o XVIII, ganhou na Alemanha o nome de
Aufklärung, termo que em português conhecemos por Iluminismo ou Ilustração, em inglês,
por Enlightenment e, em francês, por Philosophie des Lumières. Em termos de história da
igreja e da religião, bem como de vida política e social, o Iluminismo representou uma ruptura
decisiva no surgimento da Europa moderna.
98
Característica comum aos pensadores e cientistas dessa vertente foi sua confiança
nos procedimentos da razão para o conhecimento do mundo e para a determinação de crenças.
É a esta atitude intelectual, de inspiração iluminista, a saber, a busca do conhecimento com
critérios de razoabilidade, que pretendemos referir com o termo “Racionalismo”, sem,
portanto, a intenção de abordar o debate filosófico entre as correntes racionalista e empirista.
99
O Racionalismo, nesse sentido, influenciou e matizou boa parte da teologia européia e
fortemente a teologia protestante alemã desde o Dezoito. Na verdade, o Iluminismo alemão
foi um Iluminismo piedoso. Na Alemanha, ao contrário da França, os racionalistas não
95
Carter LINDBERG, As reformas na Europa, p. 76 e 98.
96
Paul TILLICH, Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX, p. 48.
97
Mary FULBROOK, Piety and politics…, p. 25.
98
Lucian HÖLSCHER, Les changements religieux: étude d’histoire sociale et des mentalités (du XVIIIe siècle à
1945), p. 24-25: Hölscher sustenta que tal fato não foi suficientemente reconhecido pela historiografia
protestante dos séculos XIX e XX, a qual de um modo geral considera ainda a Reforma como a ruptura histórica
central. Conforme o autor, entretanto, se comparadas as estruturas sociais e mentais de católicos e protestantes
nos séculos XVI e XVII, as semelhanças serão maiores do que na comparação das estruturas de uma mesma
tradição nos séculos XVI/XVII e XIX/XX.
99
Nicola ABBAGNANO, Dicionário de filosofia, p. 509-511, 789-790; tb. STANFORD ENCYCLOPEDIA OF
PHILOSOPHY, Rationalism vs. Empiricism.
81
quiseram de um modo geral acabar com a Igreja, mas antes reformá-la.
100
Entre outros fatores,
tanto o Pietismo quanto a Ortodoxia prepararam espaço para a entrada do Racionalismo
iluminado nos meios teológicos e filosóficos. O que mais nos interessa, assim, é a formação
de um tipo de Racionalismo religioso que nasce sob a inspiração da Aufklärung.
101
De início, uma inclinação protestante para o Racionalismo já se manifestara em um
problema educacional no período da Reforma. Os reformadores ensinavam que a pessoa
deveria passar pela experiência da graça na fé, ou seja, confessar individualmente os seus
pecados, vivenciando o arrependimento, e estar então certa de sua salvação através da fé em
Cristo. O problema educacional que se apresentava era, então, o de como oportunizar a todas
essas pessoas o conhecimento básico acerca das doutrinas cristãs que necessitavam. As
doutrinas precisavam ser arrazoáveis e o ensino simples, a fim de ser compreendido pelas
pessoas. Uma tal simplificação leva conseqüentemente à racionalização.
102
É a Ortodoxia, contudo, que merece um crédito maior pelo desenvolvimento do
Racionalismo religioso no Dezoito. Deu-se que, paralelamente ao crescimento do Pietismo, a
Ortodoxia continuou tomando conta de diversas escolas teológicas, até que o Racionalismo se
fez suficientemente forte para assumir o controle. No princípio, inclusive, ambas as correntes
tentaram harmonizar-se. Ao passo que a Ortodoxia se fazia racionalista, ao afirmar haver mais
racionalidade na aceitação da confiabilidade do relato bíblico do que em sua rejeição, o
Racionalismo pretendia manter-se ortodoxo, preservando a autoridade da revelação bíblica
nos moldes da Ortodoxia. A situação, porém, não perduraria dessa forma por muito tempo.
Era uma tarefa árdua manter o Cristianismo ancorado em bases racionalistas. Além disso,
enquanto que na Alemanha se buscava tal harmonização, nas vizinhas França e Inglaterra já
se havia optado há tempos em favor de um rationalismus vulgaris, que rompia abertamente
com a revelação cristã. O Deísmo inglês de Herbert de Cherbury, bem como o movimento
enciclopédico de Rousseau e Voltaire na França, são exemplos disso. Ambas as influências
foram sentidas nos territórios alemães, mais ainda com a ascensão ao trono do “esclarecido”
Frederico, o Grande, em 1740. O prestígio e a filosofia do monarca deram, então, espaço para
que o Racionalismo assumisse o controle das classes educadas e de boa parte da Igreja alemã,
abrindo as portas para o pensamento de homens como Leibniz, Wolff, Lessing e Kant.
103
100
Kurt NOWAK, Les protestants: piétistes et libéraux, p. 102.
101
Walter FORSTER, Zion on the Mississippi, the settlement of the Saxon Lutherans in Missouri 1839-1841, p.
10.
102
Paul TILLICH, Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX, p. 50.
103
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 83, 88.
82
Considere-se, também, a já mencionada concepção dos dois andares elaborada pelos
ortodoxos. Em seu esforço por formular argumentos em favor da existência de Deus e outros
argumentos semelhantes, buscando elaborar um sistema que pudesse ser aceito
universalmente pela razão pura, os próprios ortodoxos proporcionaram as ferramentas
intelectuais que abalaram as relações entre o andar de baixo, a teologia natural, e o de cima, a
teologia revelada. A infraestrutura da Ortodoxia, o andar de baixo, era a razão, e a crítica à
teologia revelada viria, portanto, desde dentro da própria Ortodoxia. A razão rebelou-se contra
a revelação.
104
O Pietismo, por sua vez, trazia em si tendências que chegaram a seu pleno
desenvolvimento no Iluminismo, tanto secular quanto religioso. Mesmo que sem intenção, o
Pietismo também preparara o ambiente para a Aufklärung. Seu conceito subjetivo de
conhecimento; a ênfase na experiência religiosa pessoal que tornava irrelevantes as diferenças
dogmáticas; o contato direto com Deus que descentralizava o poder do sacerdote para o leigo;
o individualismo religioso que libertava o crente das amarras seculares e eclesiásticas; o
interesse pela moralidade e pelos fatos empíricos da religião; tais fatores formaram uma
estrutura para que se desenvolvesse o espírito do Iluminismo alemão. Pensadores como Kant
(1724-1804) e Schleiermacher (1768-1834), por exemplo, beberam inicialmente do manancial
pietista.
105
Como bem lembra Martin Dreher, Pietismo e Iluminismo são “as duas faces de
uma mesma moeda, cunhada para um novo período da história do Cristianismo no Ocidente
(...) que se convencionou chamar de Modernidade”.
106
Agregue-se a essas forças também a
Ortodoxia.
Deve-se pontuar, porém, que, dada a própria natureza de sua oposição à Ortodoxia, o
Pietismo não elaborou um sistema teológico e filosófico que suplantasse o anterior. Além
disso, diante da situação política e do perigo de serem identificados com os sectários, os
primeiros pietistas, como dissemos, afirmavam-se ainda leais às doutrinas do Luteranismo
Ortodoxo. O fazer teológico científico foi, nesse sentido, deixado para os teólogos da
Ortodoxia.
107
Assim sendo, mesmo que a tendência subjetivista do Pietismo possa ter guiado
104
Paul TILLICH, Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX, p. 51.
105
Robert M. BIGLER, The politics of German Protestantism, p. 13; tb. Bengt HÄGGLUND, História da
teologia, p. 285 e 282; tb. Williston WALKER, História da igreja cristã, p. 192.
106
Martin DREHER, A igreja latino-americana no contexto mundial, p. 120. Observe-se que nesse caso
podemos perceber a aplicação da teoria de Max Weber com respeito à racionalização das condutas no mundo
social da religião: p. ex., Max WEBER, Sociologia de la religión; tb. Id. A ética protestante e o espírito do
capitalismo.
107
Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 81-82.
83
ao princípio racionalista através da busca pela “luz interior”, o intelectualismo ortodoxo de
algum modo já antecipava algo da Era da Razão.
108
A ruptura em relação ao período pré-moderno que se instaurou na Europa sob a
égide do Iluminismo pôde ser sentida em várias dimensões. Em termos de percepção do
tempo e de horizontes históricos, por exemplo, a antiga proximidade do dia do Juízo e do fim
dos tempos, experimentada inclusive por homens como Lutero e Melanchthon, foi, com as
descobertas geológicas e as reflexões histórico-teológicas dos séculos XVII e XVIII,
suplantada por uma outra, secular e mais longa, que permitia um aperfeiçoamento
considerável das aptidões e qualidades humanas. A substituição da imagem de um Deus
poderoso, supraterrestre e transcendente, pela de um Deus misericordioso e amoroso; o
surgimento de um princípio de diferenciação entre uma religião exterior ou pública e uma
outra interior ou privada; o crescimento da liberdade de escolha religiosa e o relaxamento na
pertença religiosa institucional; a diminuição do número de membros praticantes das igrejas;
o incremento de políticas e idéias que conduziam a uma pluralização religiosa – estes e outros
foram fatores pelos quais o Iluminismo e o Racionalismo religioso se fizeram presentes na
sociedade alemã e européia do século XVIII.
109
Sob o Racionalismo religioso, ao passo que a teologia revelada foi abertamente
rejeitada e a Bíblia auscultada sob severo criticismo, o Cristianismo mesmo foi sendo
transformado em um sistema moral. Nesse contexto, os problemas da vida religiosa passaram
a ser negligenciados e os conteúdos dos sermões a serem devotados aos eventos correntes, aos
desenvolvimentos da ciência, ou a conselhos sobre assuntos domésticos que iam desde
hábitos alimentares até a lucratividade do cultivo da batata (!). Em seu Racionalismo, era
mesmo eventualmente possível que, por volta de 1800, um pastor afirmasse do púlpito: “Um
assunto que eu não possa compreender e descrever para mim não existe”.
110
O Protestantismo,
assim, também contraíra seus laços matrimoniais com o Iluminismo.
No século XIX, entretanto, uma outra corrente se levantaria desde dentro da religião
contra a aridez do Racionalismo iluminista ou contra a religião racional ou mística que nele se
gerara, numa busca de resgate de crenças e vivências tradicionais do Cristianismo. Trata-se da
108
E. BRUNNER apud Jaroslav PELIKAN, From Luther to Kierkegaard, p. 82; Claude WELCH, Protestant
thought in the nineteenth century, p. 23. A influência do Pietismo na reformulação do pensamento e da vida do
mundo protestante durante os séculos XVIII e XIX não deve, todavia, ser subestimada. Ainda que em termos
doutrinários tenha havido pouca alteração, em termos de práxis e de método teológico houve grandes mudanças
não restritas a um país ou a uma denominação.
109
Lucian HÖLSCHER, Les changements religieux: étude d’histoire sociale et des mentalités (du XVIIIe siècle
à 1945), p. 24-30.
110
Walter FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 10-13; p. 12: “A matter which I cannot conceive and picture
to myself does not exist for me”.
84
Erweckungsbewegung (movimento de Despertamento ou Reavivamento), que tomou ares
distintos tanto entre liberais quanto entre ortodoxos e pietistas: um revigoramento dos
discursos, memórias e identidades tradicionais do Cristianismo ante a ameaça iluminista.
Como o século XIX abrigou o nascimento do Sínodo de Missouri, a ele dedicaremos
maior detalhamento no capítulo seguinte, tratando miudamente, além da movimentação
religiosa, também das implicações políticas e econômicas que criaram as condições para a
emigração dos saxões em direção aos Estados Unidos da América.
Vale lembrar para concluir, nas palavras de Martin Dreher, a imbricação dos
fenômenos que até agora estivemos discutindo:
Não é assim que esses movimentos tenham se desenvolvido sem que um tivesse
relação com o outro. Ao contrário, tinham em comum o objetivo de superar o caos
criado com as muitas reformas religiosas. Alguns pensavam poder superar o caos,
promovendo determinado credo. Isso levou a ortodoxias. Outros acentuaram a
piedade como mais importante que o dogma; foram, por isso, designados de
pietistas. Outros, ainda, quiseram substituir a religião por uma doutrina razoável;
foram denominados de racionalistas. Finalmente, houve aqueles que julgaram ter
que libertar as consciências e o estado de toda a religião; foram designados de
iluministas. O interessante é que um movimento influenciou o outro, mesmo
havendo pesquisadores que afirmam que cada um tinha vida própria.
111
8. Algumas considerações
Entre o Dezesseis e o Dezessete, como vimos, um processo de confessionalização,
entremeado por disputas entre protestantes e católicos em busca de identidade, lançou bases
para o surgimento de uma ortodoxia intelectualista, de inspirações aristotélicas.
Intelectualismo ortodoxo esse que, ao mesmo tempo, teve como desdobramento a
conformação a finalidades político-territoriais das próprias confissões religiosas. Nascia,
nesse contexto, uma teologia luterana.
Todavia, ao dar um tratamento intelectual e filosófico pelas Confissões a doutrinas
surgidas na experiência religiosa, como a da justificação pela fé, por exemplo, a Ortodoxia
garantiu a supervivência de idéias religiosas em forma de dogma que constituíram um núcleo
duro de crenças do Luteranismo e que, como veremos, estiveram nas bases dos discursos e
representações do Sínodo de Missouri e da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Agregado ao
vigor experiencial da memória de Lutero, tal intelectualismo religioso teria no Sínodo de
Missouri um combativo bastião na defesa do que para eles seria o único Luteranismo
111
Martin DREHER, A igreja latino-americana..., p. 87.
85
possível e correto, o qual deveria levar a luz da Palavra de Deus ao mundo, também ao Brasil.
São os fundamentos de sua pureza.
Entre o Dezesseis e o Dezenove, portanto, formaram-se os a priori, os mitos,
teologias, as estruturas para futuros discursos, identidades e memórias do Luteranismo
Confessional. Os acontecimentos da Reforma e as doutrinas ortodoxas habitariam o
imaginário e a mentalidade dos líderes missourianos que viriam ao Brasil, conformando
arquétipos de imagens religiosas, modelos e padrões de pensamento e comportamento a serem
acionados em situações dadas e a informarem construções identitárias em momentos
históricos diversos.
Nesse sentido, especialmente as doutrinas acerca da Escritura, da justificação pela fé
somente e a idéia de submissão às autoridades, apenas sob a restrição de obedecer mais a
Deus que aos homens, serão importantes para a continuação de nossa análise. Também o
serão as diferenciações entre os reinos espiritual e secular, que, reinterpretadas, pautaram as
discussões missourianas e ielbianas ao redor do papel da Igreja na sociedade e de suas
relações com os governantes.
O modo como tais doutrinas e crenças foram formadas, por outro lado, no contexto
de polêmicas e controvérsias, demarcaram um “jeito” luterano de promover suas Confissões,
defendendo-as como o coração da fé e a possibilidade de sua própria existência enquanto
igreja; jeito revivido nas Américas a partir do século XIX pela ação dos missourianos. As
Confissões tornaram-se a verdade sistematizada, revelada na Bíblia pelo próprio Deus, a ser
proclamada contra toda falsa doutrina.
Além disso, o Pietismo deu ao Luteranismo, ao longo do século XVIII, espaço junto
ao povo, permitindo que deixasse as dogmáticas em direção à vida e adquirisse ímpetos
missionários e caritativos que também seriam sentidos nas ações dos missourianos no Brasil.
Ganhou, todavia, também, o Luteranismo com o Pietismo, contornos de moralidade e de
controle de comportamento – noções fortes do que eram atitudes adequadas a pessoas cristãs
tornadas novas criaturas pela justiça de Deus. Tais noções por vezes contrastariam com
moralidades e ethos formados no Brasil na confluência entre a latinidade e o Catolicismo.
Por fim, o Racionalismo religioso alemão, filho do Iluminismo moderno, constituiu-
se em novo inimigo, uma heterodoxia recém nascida a exigir de luteranos ortodoxos
confessionais posicionamentos doutrinários e ações reafirmativas, ao mesmo tempo
potencializando a polêmica e articulando a possibilidade primeva da organização do Sínodo
de Missouri e da IELB.
86
Como veremos adiante, a seriedade na doutrina; a centralidade em apontar o
caminho da salvação somente pela fé em Cristo, sem obras; a ênfase na certeza pessoal da
salvação; a restrição a bailes, jogos, etc.; a busca da prática missionária; a formação de
escolas paroquiais e serviços de caridade; todos estes constituiriam fatores a revelar o débito
múltiplo dos discursos, identidades e memórias religiosas missourianas e ielbianas a tais
correntes em questão na Europa no período que analisamos.
CAPÍTULO 2: O SÉCULO XIX E A FORMAÇÃO DO SÍNODO DE
MISSOURI E DA IELB
Durante o século XIX, uma série de outros fatores, além dos que estivemos
analisando, estiveram em questão e são também importantes para vislumbrarmos a formação
do Sínodo de Missouri e da IELB. O processo migratório que conduziu os fundadores do
Sínodo desde a Saxônia até os Estados Unidos, e posteriormente ao Brasil, aconteceu no
contexto dos desdobramentos da expansão da modernidade e do capitalismo para além da
Europa. Foi em meio a tais dinâmicas que aqueles europeus emigraram para o Novo Mundo e
posteriormente enviaram pastores para atender espiritualmente outros imigrantes alemães no
sul do Brasil. Articularam-se, todavia, a estas questões, outras de ordem religiosa e política –
estas, no caso do Sínodo de Missouri, mais definitivas.
Tratemos, então, de acompanhar alguns processos na Alemanha pós-napoleônica
que envolveram a empresa migratória dos fundadores do Sínodo de Missouri; também de
analisar a chegada dos missionários do Sínodo ao Brasil e as implicações de tais contextos e
acontecimentos para as construções socioculturais das identidades e discursos do grupo.
1. Transformações nos territórios alemães sob a Revolução Francesa
Os territórios alemães que estivemos tratando até agora (Brandenburgo, Prússia,
Saxônia, etc.) – os quais hoje fazem parte dos Estados da Alemanha, Polônia, República
Checa, Eslováquia e Áustria –, ainda que unidos por laços culturais, geográficos e político-
econômicos, formavam, ao menos até o século XVIII, uma zona de litígio dirigida há séculos
por elites monárquicas e feudais mais ou menos independentes, que usufruíam de
credibilidade e direitos religiosos.
1
Considerando as disputas entre as potências germânicas da época, o pêndulo do
poder oscilava entre os católicos da casa dos Habsburgos, na Áustria, que detinham a coroa do
Sacro Império Romano-Alemão, e os calvinistas da casa dos Hohenzollerns, na emergente
Prússia, cuja influência política (e bélica) se estendia sobre diversos principados e reinos
1
Antonio RAMOS-OLIVEIRA, Historia social y política de Alemania, p. 169-172.
88
menores. Até o final do século XVIII, contudo, a unidade política de tal território sob a égide
do Sacro Império fora, no máximo, uma aspiração dos Imperadores. Tratava-se, antes, de um
sistema social de moldes medievais e sujeito a poderes locais no velho estilo absolutista.
2
Quando, em 1792, Prússia e Áustria invadiram o território francês, temerosas de que
os ares revolucionários se espalhassem do lado germânico, foram derrotadas e receberam forte
reação no ano seguinte.
3
A subseqüente ocupação da Europa germânica pelas forças
francesas, bem como os conflitos inerentes à situação, estender-se-iam pelos vinte anos
seguintes, trazendo profundas conseqüências para o povo alemão em termos de política,
economia, religião, visão de mundo, etc.
O primeiro esforço de unificação do território germânico, por exemplo, surgiu nesse
contexto: a criação da Confederação do Reno pelas mãos de Napoleão, em 1806, que unia,
entre outros, os principados e reinos de Baviera, Württemberg, Baden, Hesse, Nassau, Berg e,
posteriormente, a Saxônia. Também uma série de profundas reformas governamentais foi
introduzida, com a intenção de transformar e, diríamos, “modernizar” a antiga forma de
poder.
4
Quando as forças napoleônicas foram derrotadas, em 1813, e os mandantes europeus
reuniram-se em 1814 e 1815 no Congresso de Viena, a Europa já não era mais a mesma. Nem
tampouco a Alemanha. Primeiramente, o Sacro Império Romano-Alemão, após quase mil
anos de história, sucumbira com a renúncia de Francisco II da Áustria diante de Napoleão, em
1806. De outra forma, os cerca de 300 territórios germânicos anteriormente existentes
estavam, ao final do Congresso de Viena, rearranjados em 39 estados soberanos associados na
Confederação Germânica, cuja Dieta Federal tinha sede em Frankfurt.
5
Além disso, as
instituições políticas e legais haviam sido – como à época da Reforma – transformadas, bem
como as relações entre Igreja, Estado e sociedade. Nesse âmbito, a transferência massiva das
propriedades da Igreja possibilitara o surgimento de novas estruturas econômicas e sociais e,
ao passo que um sentimento de pertença e identidade germânica apresentava seus novos
traços, tomava também lugar um novo vocabulário político.
6
Em termos religiosos, após 1803, com a secularização da Igreja Imperial sob
Napoleão, a Alemanha viu o fim do equilíbrio entre as confissões católica, luterana e
2
Robert-Hermann TENBROCK, Historia de Alemania, p. 143-150; Antonio RAMOS-OLIVEIRA, Historia
social y política de Alemania, p. 163-173.
3
Antonio RAMOS-OLIVEIRA, Historia social y política de Alemania, p. 177; se procurarmos, contudo, por
uma análise de tempo mais longo, veremos que os conflitos entre povos germânicos e franco-latinos pelo
domínio do espaço europeu podem ser remetidos ao menos ao final do período carolíngeo.
4
Robert-Hermann TENBROCK, Historia de Alemania, p. 166, 170-174.
5
Christopher CLARK, Germany 1815-1848: Restoration or pre-March?, p. 39, 41.
6
Joachim WHALEY, The German lands before 1815, p. 15.
89
reformada, estabelecido pela Paz de Westfalia em 1648, e uma conseqüente perda de espaço
do Catolicismo ante o processo de formação de uma nação de orientação política e cultural
prussiana e “pós-protestante”. A própria resistência a Napoleão e sua posterior derrocada
haviam, devido à ligação entre trono e altar, cujas posições eram estritamente anti-
revolucionárias, recebido, além de motivos patrióticos, também motivações religiosas e
confessionais. Tal reação, em seu elã nacionalista, comandada por dirigentes prussianos,
inaugurava sob novas bases uma fundamental nacionalização do Protestantismo alemão,
transformando o rosto da antiga territorialização medieval. Associadas ao novo patriotismo, as
imagens de Lutero e da libertação do jugo romano empreendida pela Reforma criavam as
condições para o surgimento de uma espécie de religião de substituição, sentida como alemã.
7
Já no tocante à educação, estiveram em jogo, no princípio do século XIX, duas
tendências no contexto alemão, uma de linha neo-humanista, liderada por Wilhelm von
Humboldt, outra mais prática e utilitarista, capitaneada pelos reformadores governamentais
Karl Freiherr von Stein e Carl August von Hardenberg (sob a inspiração do pedagogo suíço
Johann Pestalozzi). Os primeiros aspiravam por um sistema educacional que combinasse
ensino e pesquisa a fim de promover o progresso material e moral da humanidade. Os últimos
desejavam, através de escolas práticas e vocacionais, formar cidadãos úteis para o Estado. Em
1810, as duas tendências assumiram um compromisso relacionado à recém fundada
Universidade de Berlin, a saber, o de conjugar o ideal de ‘educação humana geral’ ao da
transformação dos estudantes em membros úteis à comunidade e súditos leais, e isso através
de uma contígua supervisão pedagógica.
8
Em 1812, por exemplo, aprovou-se na Prússia uma lei que colocava o diploma do
Gymnasium (o Abitur) – cujo currículo era definido pelos ministros de educação e cultura de
cada Estado e voltava-se à educação humana geral – como pré-requisito para o ingresso na
universidade. Nesse contexto, muitos estados remodelaram seus requerimentos para o Abitur
de acordo com o modelo prussiano. A partir de então, candidatos que passassem no exame
teriam completa liberdade de escolha do que estudar em qualquer universidade alemã. Como
conseqüência, entre 1819 e 1830, o número de matrículas nas universidades aumentou em
mais de 100%. Nesse mesmo período, também a obrigatoriedade da formação teológica para
os professores do ensino básico foi substituída pela escolha livre de disciplinas acadêmicas.
9
7
Rudolf LILL, La situation confessionnelle de l’Allemagne à l’époque napoléonienne, p. 14-15, 18.
8
Karin FRIEDRICH, Cultural and intellectual trends, p. 89-92.
9
Idem, p. 90-91.
90
Tais mudanças de caráter político e religioso não significavam, entretanto, que os
territórios germânicos haviam se tornado “revolucionários”. Ao contrário, formava-se nesse
contexto também um forte movimento restaurador.
2. Restauração modernizante e repressão
A Revolução Francesa foi, como se vê, um duro golpe contra o outrora vigoroso
sistema do antigo regime, e isso não somente na França, mas em toda a Europa, também nos
territórios alemães. A partir de então, novos ideais de liberdade conclamavam o nascimento
do que hoje chamamos de sujeito moderno e tornava-se ainda mais difícil a manutenção das
antigas relações de poder. Tal processo não teve, porém, um desenvolvimento linear e
emancipatório, mas representou antes uma situação controversa, violenta e, para ambas as
forças em questão, contumaz. Os poderes locais continuavam nas mãos de soberanos
individuais e as maiores e mais significativas forças políticas da Confederação eram ainda o
Império Austríaco, com seus 9,3 milhões de súditos, e o Reino da Prússia, com 8,1 milhões.
10
Assim, se por um lado os ares modernizantes advindos com a Revolução não haviam deixado
os estados alemães incólumes, por outro, as velhas estruturas de poder tentariam ainda
sobreviver e seria possível enxergar seus vultos até (pelo menos) meados do século XX.
O funcionamento da Confederação Germânica, nesse sentido, dependia claramente
de que houvesse acordo entre Prússia e Áustria, cujos governantes se uniram, ainda em 1815,
à Rússia, para formar a Santa Aliança, no claro propósito de salvaguardar a posição de poder
da monarquia e da nobreza frente ao processo modernizador. Necessitavam para tal da antiga
aliança entre trono e altar. Mesmo que unidos por um interesse comum, contudo, enquanto a
Prússia se tornava cada vez mais uma potência política e economicamente ocidental, a Áustria
crescia saindo da Alemanha, de onde pretendia continuar exercendo sua supremacia anterior,
abdicando, porém, do ônus de ter de proteger a encosta do Reno de outra possível invasão
francesa.
11
A criação, nesse contexto, de uma união aduaneira alemã em 1834, da qual a
Áustria esteve excluída, não foi motivada pelo desejo da Prússia de fundar um pequeno
Estado alemão, nem representou tampouco sua ascensão irreversível dentro do surgimento de
10
Christopher CLARK, Germany 1815-1848: Restoration or pre-March?, p. 39, 41.
11
Robert-Hermann TENBROCK, Historia de Alemania, p. 177; tb. Antonio RAMOS-OLIVEIRA, Historia
social y política de Alemania, p. 200-205.
91
um tal Estado, mas significou certamente, especialmente na perspectiva austríaca, que a
Prússia a partir de então podia exercer ainda maior influência sobre os estados menores.
12
Pontue-se também que as transformações ocorridas na Alemanha aconteceram em
situação histórica diferente daquelas ocorridas na França e na Inglaterra. As reformas políticas
levadas a cabo, por exemplo, tiveram nos territórios alemães em grande escala uma motivação
vinda de fora e de cima, a saber, Napoleão. Não houve, nesse sentido, uma “Revolução
Alemã”. Por outro lado, porém, o modo como os territórios alemães responderam aos desafios
revolucionários de 1789 conduziram a Alemanha rumo ao que é atualmente. Em termos
políticos, parece ter havido uma hibridização das velhas formas monárquicas nos moldes de
um Estado moderno e burocrático. O já mencionado Hardenberg, por exemplo, figura central
na reforma do Estado prussiano no período napoleônico, aclamava a propriedade dos
“princípios democráticos em um sistema monárquico”.
13
Assim, se já não era mais possível
uma restauração total do antigo regime após 1815, também é verdade que as velhas estruturas
não haviam sido totalmente abandonadas para abrir caminho ao que era novo. Destarte, tal
momento ficou marcado pela tensão entre modernidade e tradição.
14
Foi assim, então, que, após o período napoleônico e a exposição aos ventos
modernizantes advindos da França e da Inglaterra no princípio do século XIX, cujas
burguesias ascendiam rapidamente e cujo desenvolvimento econômico superava em muito o
dos alemães, uma onda de restauração abateu-se por sobre a Alemanha. Os objetivos daqueles
12
Christopher CLARK, Germany 1815-1848: Restoration or pre-March?, p. 41.
13
Joachim WHALEY, The German lands before 1815, p. 31 e 20; tb. p. 35-36: “More important than anything
else in 1815 was the fact that many of the new sovereign states were in one way ore another ‘reformed’. The
path from the Reich to the German Confederation was characterized by a complex adaptation to the challenges
posed by the French Revolution and the Napoleonic regime. Reformers reacted to what they perceived were the
limitations of the enlightened state by reforming its structure and by aiming to overcome the gulf between the
state and its subjects. Financial necessity drove a reform process which created the bureaucratic state. On the
other hand, ambivalence and noble opposition undermined first attempts to mobilize the population or to secure
their representation. The result in many German states was a dissonant mixture, a strong, ‘modernized’ state
grafted on to a traditional society”. [“Mais importante que qualquer coisa em 1815 foi o fato de que muitos dos
novos estados soberanos foram de uma ou de outra forma ‘reformados’. A rota desde o Reich até a Confederação
Alemã foi caracterizada por uma complexa adaptação aos desafios colocados pela Revolução Francesa e pelo
regime napoleônico. Os reformadores reagiram ao que entendiam como limitações do Estado iluminista
reformando sua estrutura e objetivando superar o abismo entre o Estado e seus súditos. A necessidade financeira
guiou um processo de reforma que criou o Estado burocrático. Por outro lado, ambivalência e oposição da
nobreza enfraqueceram as primeiras tentativas de mobilizar a população ou assegurar sua representação. O
resultado em muitos estados alemães foi uma mistura dissonante, um Estado forte, ‘modernizado’ enxertado em
uma sociedade tradicional”].
14
Christopher CLARK, Germany 1815-1848: Restoration or pre-March?, p. 38; Norbert ELIAS, Os alemães, p.
119-124, cf. o autor, comentando as diferenças nos contextos das produções históricas culturais e políticas: “Foi
sintomático do desenvolvimento alemão, da obstinada persistência de uma ordem social que, apesar da rápida e
febril industrialização, reteve de um ponto de vista político muitas características do Ancien Regime, o
intermitente prosseguimento na Alemanha, ao longo do século XIX, do duelo pela supermacia entre
historiadores culturais e historiadores políticos”, p. 124.
92
que ajudaram a libertar o território do jugo de Napoleão quedaram frustrados e foi instituído
um sistema de controle e perseguição a fim de sufocar as forças modernizantes.
15
Uma das formas que tomou tal força de restauração, especialmente após o
assassinato do jornalista Kotzebue, alinhado à monarquia, pelas mãos do estudante
nacionalista Karl Sand, em 1819, foram as investidas de vigilância e censura, especialmente
contra os meios universitários. Parte desse esforço, os “Decretos de Karlsbad”, de setembro
de 1819, conclamavam a uma supervisão minuciosa das universidades por toda a
Confederação. A parte “subversiva” da equipe de professores foi demitida e estabeleceu-se
uma comissão de imprensa destinada à censura, a “Comissão Central de Investigação de
Mainz”, para lidar com pessoas envolvidas em “agitação revolucionária”.
16
Além disso, o “Ato Final” de 1820, Artigo 26, permitia à Confederação Germânica
intervir em assuntos internos aos Estados a fim de restaurar a ordem, mesmo quando estes não
estivessem em condições de solicitar a intervenção federal. De fato, em julho de 1832, a Dieta
introduziu fortes formas de censura, proibindo assembléias públicas, festivais e a fundação de
clubes políticos. Foram promovidas novas formas de controle sobre os trabalhadores e sobre
os “indivíduos suspeitos” e desenvolvidos mecanismos de extradição de suspeitos políticos.
Em 1833, fundou-se inclusive um instituto de espionagem política, a “Autoridade de
Investigação de Frankfurt”. A Confederação, nesse sentido, funcionou em larga escala com
uma força anti-liberal e repressora.
17
São interessantes, também, nessa perspectiva, as releituras da imagem de Lutero
feitas nas comemorações entre 1817 e 1863, período que compreende o “antes” e o “depois”
da frustrada Revolução de março de 1848. Espelhando as mudanças políticas da Alemanha da
época e de acordo com os ideais dos movimentos liberais “pré-março”, Lutero era, nos
primeiros anos do século XIX, lembrado como um lutador em prol da liberdade religiosa e
política e da unidade nacional. Após 1848, entretanto, as comemorações passavam a celebrar
um Lutero mais burguês, em casa com a esposa e os filhos, como obediente membro da
sociedade burguesa ou como o doutor em um importante posto acadêmico. Nesse sentido, o
crescente consenso da Igreja Protestante Alemã contra a revolução política e social, levou a
15
Robert-Hermann TENBROCK, Historia de Alemania, p. 178.
16
Antonio RAMOS-OLIVEIRA, Historia social y política de Alemania, p. 207-209; Christopher CLARK,
Germany 1815-1848: Restoration or pre-March?, p. 41-44.
17
Christopher CLARK, Germany 1815-1848: Restoration or pre-March?, p. 41-44; p. 51: um exemplo de tal
“agitação”, foi o Hambacher Fest, encontro político da ala modernizante que no início dos anos 30 atraiu 20.000
pessoas.
93
uma aliança entre o governo da restauração e as lideranças luteranas ortodoxas em vários
estados após a Revolução de 1848, principalmente na Prússia.
18
Um pouco antes disso, entretanto, os territórios alemães conheceram, desde um
esforço advindo da Prússia, uma série de políticas que buscavam a união entre as vertentes
protestantes em questão.
3. A União Prussiana
Logo após o Congresso de Viena, na tentativa de fortalecer a união ao redor daquele
vislumbrado Nacionalismo monárquico ancorado em sentimentos religiosos, bem como de
conter o Racionalismo, o Rei Frederico Guilherme III da Prússia (1797-1840), em sua
investidura de summus episcopus, passou a promover a abolição das barreiras entre luteranos
e reformados (zwinglianos e calvinistas) e a unificação das duas vertentes protestantes sob o
Estado, processo que se tornou conhecido como União Prussiana, uma outra face, portanto,
das ações pró-restauração.
19
Nas palavras do monarca:
[Tentativas anteriores de governantes prussianos visando unir as igrejas
Reformada e Luterana falharam por causa] do desastroso espírito sectário da
época. Sob influência de melhor espírito, que coloca de lado o não-essencial e se
mantém firme aos fundamentos do cristianismo com os quais ambas as partes
concordam, eu desejo ver esta obra agradável a Deus realizada em meus
territórios e iniciada no próximo centenário da Reforma, para a honra de Deus e
para o bem-estar da igreja cristã. Tal união verdadeiramente religiosa de ambas
igrejas protestantes, que estão separadas apenas por diferenças externas, está de
acordo com os grandes propósitos do cristianismo; concorda com as primeiras
intenções dos reformadores; permanece no espírito do protestantismo; promove a
consciência eclesiástica; tem efeitos salutares na piedade familiar; será fonte de
muitas melhorias na igreja e na escola que até agora têm sido impedidas somente
por diferenças confessionais (Friederich Wilhelm III, Allerhöchste Königliche
Cabinets-Ordre die Vereinigung der luterischen und reformierten Kirche, vom
27sten September 1817).
20
18
Karin FRIEDRICH, Cultural and intellectual trends, p. 93.
19
P. ex., Claude WELCH, Protestant thought in the nineteenth century, p. 190; tb. Wilhelm WACHHOLZ,
“Atravessem e ajudem-nos”: a atuação da "Sociedade Evangélica de Barmen" e de seus obreiros e obreiras
enviados ao Rio Grande do Sul (1864-1899), p. 39.
20
Apud Robert C. SCHULTZ, The European background, p. 58. Tradução da tradução do texto alemão para o
inglês: “[Previous attempts by Prussian rulers to unite the Reformed and Lutheran churches failed because] of
the disastrous sectarian spirit of the times. Under the influence of a better spirit, which sets asides the
nonessential and holds fast to the fundamentals of Christianity on which both parts are agreed, I wish to see this
God-pleasing work accomplished in my territories and to have it initiated at the coming centennial of
Reformation, to the honor of God and to the welfare of the Christian church. Such a truly religious union of both
Protestant churches, which are separated only by external differences, is in accord with the great purposes of
Christianity; it agrees with the first intentions of the Reformers; it lies in the spirit of Protestantism; it furthers
the ecclesiastical consciousness; it has wholesome effects on familial piety; it will be the source of many
improvements in church and school which until now have been prevented only by confessional differences”.
94
A atitude de Frederico Guilherme III tinha já, como ele mesmo mencionava,
precedência em seus antecessores. Desde o século XVI, o Luteranismo se tornara a fé
predominante em Brandemburgo e no leste da Prússia, ao passo que uma parte considerável
da população do baixo Reno (Cleves) adotara o Calvinismo ou permanecera católica. À
medida que ia se expandindo o domínio prussiano – expansão esta que estava em curso desde
o século XV e se prolongaria até o XIX, promovendo a ascensão da Prússia ante a decadência
do Sacro Império Romano-Alemão dos Habsburgos –, mais luteranos, calvinistas e demais
protestantes, bem como católicos e judeus, eram submetidos ao domínio dos Hohenzollerns
de Brandemburgo. Quando, entretanto, em 1613, o Eleitor João Sigismundo converteu-se ao
Calvinismo, os Hohenzollerns deixaram de ter a mesma fé da maioria da população de seu
território. A alternativa escolhida pelo eleitor foi a de abdicar do direito que lhe garantia a
norma cujus regio, ejus religio, de impor sua fé sobre seus súditos, e anunciar que todos
poderiam desfrutar de liberdade religiosa em seu território. Tal política de tolerância dos
Hohenzollerns atraiu uma população que sofria com a perseguição religiosa em suas regiões,
aumentando o contingente populacional da Prússia e fortalecendo sua economia.
21
O interesse
em amainar as diferenças teológicas entre protestantes luteranos e reformados no Dezenove
não era portanto novidade entre os governantes calvinistas da Prússia, e menos ainda uma
matéria de ordem meramente religiosa.
Os meios pelos quais a União Prussiana deveria ser formalizada incluíam uma
celebração conjunta da eucaristia,
22
a ser realizada em Berlin por ocasião da comemoração do
aniversário da Reforma em 1817,
23
e a subseqüentemente introdução de uma nova Agenda
conjunta, uma liturgia comum. O principal argumento em favor da União era já usual aos
movimentos unionistas protestantes anteriores: o que luteranos e reformados tinham em
comum eram as coisas essenciais, as diferenças eram pontos de menor importância e
deveriam ser sacrificadas, ou ao menos toleradas como coexistentes, em prol da causa maior.
21
Robert M. BIGLER, The politics of German Protestantism, the rise of the protestant church elite in Prussia,
1815-1848, p. 4-7; tb. Antonio RAMOS-OLIVEIRA, Historia social y política de Alemania, p. 116-126.
22
Cf. Leif GRANE apud Wilhelm WACHHOLZ, “Atravessem e ajudem-nos”, p. 94, ao passo que Frederico
Guilherme III era de confissão reformada, sua esposa era de confissão luterana, o que os impedia de comungar a
Santa Ceia em conjunto, problema que seria também sanado com a implementação da União.
23
Mary TODD, Authority vested…, p. 21. Convencionou-se entre os luteranos a data em que Lutero tornou
públicas suas 95 Teses, dia 31 de outubro de 1517, como o dia para a comemoração do aniversário da Reforma.
Cf. Carter LINDBERG, As reformas na Europa, p. 95: “As Noventa e cinco teses eram uma proposta acadêmica
típica para um debate universitário. Foram escritas em latim, e a maior parte dos habitantes de Wittenberg não
sabia sequer ler alemão. Assim, a imagem popular de Lutero que o descreve como um jovem irado afixando
teses incendiárias na porta da igreja à base de pancadas tem bem mais de romântica do que de realidade. Na
verdade, tem havido intensas discussões históricas no tocante a se as teses foram afixadas ou expedidas, isto é,
pregadas ou enviadas pelo correio”.
95
Tal relaxamento das diferenças era, nesse caso, uma conseqüência das conquistas do
Racionalismo, mas tinha também, como vimos, antecedência na mentalidade pietista
24
e em
outros esforços irenistas.
Como no território alemão, desde a Reforma, a autoridade dos governantes era tanto
secular quanto religiosa, os clérigos atuavam como agentes do governo, o que terminou por
facilitar os desdobramentos da União Prussiana. Desde 1794, a lei canônica passara inclusive
a fazer parte do código legal prussiano e a Igreja, por conseguinte, tornara-se uma corporação
cujos direitos dependiam do Estado. Durante os reinados de Frederico Guilherme I (1743-
1740) e Frederico II (1740- 1786), por exemplo, o clero não fora mais que um grupo
estritamente submetido à regulação estatal em sua formação, nomeação, salário, função,
conduta, vestimenta e comportamento. Os professores de teologia, por sua vez, haviam sido
beneficiados pelos governantes somente em função da tradicional crença luterana de que o
inculcar nos leigos a obediência cristã às autoridades seculares era tarefa de grande
importância e utilidade.
25
Por outro lado, a posição de liderança da Prússia entre os estados do
norte significava também que estados menores tendiam a desenvolver ações semelhantes às
do Estado hegemônico, e de fato muitos assim o fizeram.
26
A União Prussiana foi, então,
sendo instaurada pela consolidação de algumas congregações luterano-reformadas, mas
também pela supressão de posições confessionais ou contrárias à União, pela suspensão e/ou
remoção do clero ortodoxo que se recusava em participar, pela nomeação de pessoas
favoráveis à União para os cargos religiosos estatais e por investidas de perseguição. Aqueles
que resistiam, haviam de lutar ou de emigrar, como de fato fizeram alguns na direção dos
Estados Unidos e da Austrália.
27
As tentativas de união do rei Frederico Guilherme III não seriam, entretanto,
efetuadas sem atrito. A resistência partiu principalmente de um movimento conhecido como
Confessionalismo, um dos rostos de um fenômeno maior, o Despertamento.
4. Despertamento e Confessionalismo: uma outra reação
Em termos religiosos, a Alemanha protestante, após o Congresso de Viena em 1815,
era um território pio, porém dividido. Poder-se-ia lá encontrar tendências variadas como os
24
Walter FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 16.
25
Robert M. BIGLER, The politics of German Protestantism, p. 6-8.
26
Mary TODD, Authority vested…, p. 21.
27
Walter FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 16-17.
96
racionalistas, os schleiermacherianos, os pietistas ou os ortodoxos, entre outros.
28
Em se
falando em secularização, nesse caso só se pode sustentar a teoria de uma “secularização
parcial”, acompanhada, portanto, de uma revitalização da religião.
29
Nesse contexto, a Erweckungsbewegung,
30
Movimento de Despertamento que já
havíamos antecipado no capítulo anterior, teve seu início no princípio do século XIX,
insurgindo-se principalmente em oposição à influência iluminista que adentrara o universo
religioso gerando uma espécie de piedade racionalista. Vinha reforçado também, o
Despertamento, pelo clima romântico que criava uma disposição favorável a idéias,
sentimentos e valores tradicionais da sociedade.
31
Mesmo Frederico Guilherme III, um
calvinista bastante religioso, via no Despertamento um movimento valoroso por sua ênfase na
piedade pessoal e sua contribuição para o desenvolvimento moral e nacional da Prússia.
32
O Despertamento não foi, porém, um fenômeno especificamente alemão. Mais ou
menos à mesma época, poderiam ser encontradas manifestações semelhantes na Inglaterra e
na América do Norte (Awakening), na França e também na Suíça, nos Países Baixos e na
Escandinávia. Houve mesmo alguma influência entre os movimentos. A exemplo do
Despertamento inglês, nesse sentido, os modelos de sociedades missionárias, sociedades
bíblicas e de evangelização através de folhetos recaíram por sobre o Despertamento alemão.
Tratava-se, na verdade, de um retorno da piedade do velho mundo, numa dinâmica assaz
plural.
33
Tratava-se também de uma reação ante fenômenos sociais como a ascensão da
burguesia industrial, o desenvolvimento científico, o surgimento dos Estados modernos e o
processo de descristianização instaurado pela modernidade. Diante de tais dinâmicas, o
Despertamento embandeirava interesses diversos, como o fim dos tempos e a vinda do Reino
de Deus, a graça e a redenção do homem pecador, ou a preservação de uma identidade
28
Kurt NOWAK, Les protestants: piétistes et libéraux, p. 101-102.
29
Wolfgang SHIEDER apud Kurt NOWAK, Les protestants: piétistes et libéraux, p. 102.
30
São também utilizados na literatura especializada os termos Erneuerungsbewegung (Movimento de
Renovação) e Neupietismus (Neopietismo). Cf. Wilhelm WACHHOLZ, “Atravessem e ajudem-nos”, p. 31, que
opta por traduzir o termo Erweckungsbewegung como Movimento de Reavivamento, ao invés Movimento de
Depertamento.
31
Rudolf LILL, La situation confessionnelle de l’Allemagne à l’èpoque napoléonienne, p. 20; tb. Cf. Wilhelm
WACHHOLZ, “Atravessem e ajudem-nos”, p. 32. O Romantismo, de um modo geral, embandeirou ideais
ligados à superioridade do espírito por sobre a matéria e à singularidade e liberdade de cada indivíduo em sua
busca pelo infinito. Havia também um esforço por conhecer o passado a fim de iluminar o futuro. Teve entre
seus expoentes nomes como F. Schlegel, L. Tieck e W. v. Humboldt. Cf. Robert-Hermann TENBROCK,
Historia de Alemania, p. 159-161.
32
E. Clifford NELSON, The rise of world Lutheranism, p. 30. Para um estudo sobre a transição da
espiritualidade pietista para a espiritualidade da Erweckung e seus ecos entre os imigrantes alemães no Brasil,
ver Ricardo RIETH, Espiritualidade teuto-brasileira e cotidiano: uma abordagem a partir do Livro de Orações de
J. F. Starck.
33
Kurt NOWAK, Les protestants: piétistes et libéraux, p. 103; Cf. Wilhelm WACHHOLZ, “Atravessem e
ajudem-nos”, p. 44-45.
97
doutrinária que remetia à Reforma. Assumia, assim, a coloração religiosa de cada região. Não
era, porém, um movimento irracionalista. Continuava de alguma forma sob a influência do
Iluminismo. A própria ênfase dada por alguns em uma religião da experiência ou em obras de
caridade revelava algum débito para com as “luzes”.
34
Deu-se assim que, ao passo que o Iluminismo dava sinais de ter atingido seus limites
de expansão no domínio religioso, havia ainda uma parte do clero e da burguesia que
permanecera fiel à igreja, mantendo distância da influência racionalista. Em meio a esses
grupos, mantivera-se aberta uma alternativa de comportamento religioso leal aos sinais
exteriores da comunidade e participante dos ritos religiosos eclesiásticos.
35
Neles, adeptos da
Ortodoxia e do Pietismo afastavam-se daqueles que embandeiravam o Racionalismo e seu
método histórico-crítico. As divergências entre Ortodoxia e Pietismo estavam já, na verdade,
em muito arrefecidas, afora o fato de ambas as correntes terem no Racionalismo um inimigo
comum. Além disso, havia também por parte do povo simples a demanda por uma renovação
da piedade, bem como por uma teologia e pastores “crentes”. A convergência de tais vontades
teve como resultado o surgimento de um novo carisma, o Despertamento.
36
Movimento multifacetário e mesmo ambíguo, o Despertamento na Alemanha
englobou três correntes teológicas: a biblicista, a emocional e a confessionalista. Os primeiros
queriam um cristianismo de base bíblica, desconsiderando a tradição dogmática e a crítica
histórica. Já a corrente emocional, em contraponto à aridez racionalista, caracterizava-se por
uma piedade fundamentada na experiência do reconhecimento do pecado e da graça. Os
confessionalistas, por sua vez, – manifestação que aqui mais nos interessa – caracterizavam-se
pelo retorno aos fundamentos confessionais em combate ao Iluminismo e às políticas da
União Prussiana e a divisão que esta instaurava no cenário religioso entre luteranos,
calvinistas e os que estavam a favor da fusão entre as duas correntes.
37
A crescente influência do Confessionalismo, em seu intenso retorno ao século XVI,
pôde ser bem sentida especialmente durante as supramencionadas comemorações dos 300
34
Claude WELCH, Protestant thought in the nineteenth century, p. 190-195; Kurt NOWAK, Les protestants:
piétistes et libéraux, p. 103; Bengt HÄGLUND, História da teologia, 315-316.
35
Lucian HÖLSCHER, Les changements religieux: étude d’histoire sociale et des mentalités (du XVIIIe siècle à
1945), p. 31.
36
Claude WELCH, Protestant thought in the nineteenth century, 191; Walter FORSTER, Zion on the
Mississippi…, p. 14-15; Wilhelm WACHHOLZ, “Atravessem e ajudem-nos”, p. 40-42, p. 40: o autor sublinha a
a existência de alguma originalidade no Pietismo: “O MR [Movimento de Reavivamento] veio, pois, ‘reavivar’ a
espiritualidade cristã que, em face do Iluminismo racionalista, se caracterizou como uma nova espiritualidade,
sui generis. Portanto, o termo ‘reavivamento’ não pode ser compreendido em relação à espiritualidade pietista,
mas como reavivamento da espiritualidade num sentido amplo”.
37
Wilhelm WACHHOLZ, “Atravessem e ajudem-nos”, p. 59-62; Roberto RADÜNZ, A terra da liberdade, o
protestantismo luterano em Santa Cruz do Sul no século XIX, p. 34-48.
98
anos da Reforma (1817) e também da Confissão de Augsburgo (1830). As 95 Teses do pastor
Claus Harms, de Kiel, publicadas no verão de 1817, nas quais atacava o Iluminismo e a União
Prussiana, são um bom exemplo disso. Apresentava-se, assim, uma dinâmica pela qual, por
um lado, o Confessionalismo recebia impulsos do Despertamento e, por outro, o
Despertamento era também influenciado pelo Confessionalismo.
38
O movimento confessionalista representou um vigoroso programa teológico de
restauração – ainda que do lado oposto à União Prussiana – a partir das obras e atividades de
teólogos como Julius Stahl (1802-1861), Wilhelm Löhe (1808-1872), August Vilmar (1800-
1868) e Ernst Hengstenberg (1802-1869). De um modo geral, os confessionalistas entendiam-
se como uma minoria consciente que buscava defender a igreja contra a dominação
racionalista, assegurando as objetividades da verdade cristã e retornando à doutrina e à ordem
da Igreja Luterana das origens (daí o rótulo Repristinationstheologie). Não era possível , para
eles, aceitar as políticas de Frederico Guilherme III e de sua União Prussiana. Construíram,
então, um programa teológico de resistência à modernização ou a qualquer mistura com
pontos de vista não-luteranos. As influências da Ortodoxia e do Pietismo podiam, nesse
sentido, ser sentidas claramente. Hengstenberg, por exemplo, apresentava seus argumentos
em favor da autoridade e da inerrância da Escritura e de uma recuperação da ortodoxia
eclesiástica, potencializados por uma intensa experiência de piedade com base em suas
leituras da Bíblia, de Lutero e de Melanchthon. A Erweckung foi, assim, em parte a
emergência de correntes pietistas remanescentes dos primeiros despertamentos, em parte os
ecos do intelectualismo ortodoxo do Dezessete.
39
A concepção de igreja representada pelo movimento confessionalista não foi, porém,
somente um retorno aos pais e símbolos luteranos. A idéia de “Igreja Confessional”
(Bekenntniskirche) tinha sementes de novidade que foram sublinhadas com forte fervor
evangélico, a saber: a demanda por uma teologia eclesiástica e a conseqüente condenação de
visões não-eclesiásticas. A igreja passava, nessa perspectiva, a ser percebida como
constituída estrita e essencialmente por sua confissão. Não poderia haver meio termo entre
fidelidade à confissão e abandono do Cristianismo. A confissão tornava-se o princípio
norteador de fé e vida e o centro para o qual convergia a comunhão dos cristãos reunidos na
igreja. Sem acordo ao redor da confissão, a comunhão resultava impossível. Vilmar, por
exemplo, sustentava mesmo que as Confissões Luteranas só poderiam ser eficazes em unir a
38
Kurt NOWAK, Les protestants: piétistes et libéraux, p. 104; Claude WELCH, Protestant thought in the
nineteenth century, 194.
39
Claude WELCH, Protestant thought in the nineteenth century, p. 194-196; Williston WALKER, História da
igreja cristã, p. 264-265.
99
comunidade se retidas em sua completude original, sem alteração ou exceção.
40
Nesse
sentido, diferentemente do Protestantismo da Reforma, que encontrava o fundamento de suas
confissões na Palavra e na fé, os confessionalistas do Dezenove incluíram como fundamento a
igreja confessional, instituição através da qual os dons da salvação eram outorgados às
pessoas.
41
Tais concepções, na verdade, fizeram parte de uma tendência mais ampla na direção
de formas objetivas da igreja, como o ofício pastoral, os sacramentos, o culto, a Bíblia e, é
claro, as próprias Confissões. Para homens como Vilmar e Löhe, o ofício pastoral passaria
inclusive a ser entendido como meio da graça,
42
a partir da compreensão de que a validade da
Palavra e dos Sacramentos dependia do estabelecimento apostólico de um ofício ministerial.
Stahl, por sua vez, argumentava que o sacerdócio universal de todos os crentes não era um
princípio constitucional, mas que significava apenas a igualdade na fé entre ministros e leigos
diante de Deus. Na vida eclesiástica, para ele, deveria haver uma super- e uma sub-ordinação,
relação na qual os ministros representavam o poder legítimo de liderança e eram os guardiões
da pureza da igreja reunida em comunhão ao redor de sua confissão. Aos leigos cabia apenas
a obediência consciente a tal liderança.
43
Mencione-se também que com Löhe e outros, além de tal ênfase na comunidade e
nos sacramentos, o Confessionalismo conheceu também ações concretas em favor de missões
externas e de obras de diaconia, bem ao modo pietista.
44
Os missionários enviados por
Wilhelm Löhe, por exemplo, como veremos adiante, tiveram uma participação decisiva na
formação do Sínodo de Missouri, além de uma participação indireta na constituição da
IECLB.
Na verdade, com o tempo, ocorreu no Despertamento o que se poderia chamar de
“eclesialização” e de “clericalização”. A idéia de viver uma ‘nova’ piedade deu origem a
tendências separatistas no interior do movimento, gerando um pendor para a fundação de
novas igrejas, paralelamente ao reforço da confessionalidade. Nesse processo, a fim de se
distinguir do Iluminismo, o Despertamento buscou doutrinas e confissões claras, reforçando,
40
Claude WELCH, Protestant thought in the nineteenth century, p. 196.
41
Bengt HÄGLUND, História da teologia, 315-316.
42
“Meios da graça”, jargão teológico, refere-se aos canais pelos quais a graça redentora de Deus chega aos seres
humanos trazendo salvação. Para igrejas como a LC-MS e a IELB, os meios da graça são a Palavra de Deus e os
Sacramentos do Batismo e da Santa Ceia.
43
Claude WELCH, Protestant thought in the nineteenth century, p. 197-198.
44
Kurt NOWAK, Les protestants: piétistes et libéraux, p. 104; Claude WELCH, Protestant thought in the
nineteenth century, 194; tb. Williston WALKER, História da igreja cristã, p. 264-265.
100
assim, pelo confessionalismo, também sua ortodoxia.
45
A fundação do Sínodo de Missouri foi
uma das conseqüências dessas dinâmicas.
Com o cultivo das diferenças confessionais, entretanto, ainda que grandes e eficazes
organizações religiosas tenham sido criadas, estas organizações foram se isolando
progressivamente da sociedade e gerando um certo afastamento do mundo. As igrejas
passavam a criar consciência de sua missão religiosa no mundo e as pessoas, sob influência
do espírito romântico, a manifestar um desejo de interioridade e de afetividade. As diversas
tradições – ortodoxos, confessionalistas ou unionistas, pietistas ou ultramontanos – davam
sinais de tais comportamentos. De fato, o que todas as formas de manifestação desse novo
espírito religioso tinham em comum era justamente sua rejeição ao moralismo da Aufklärung
religiosa, considerado como “superficial” e “temporal” por reduzir a religião a um conjunto
de regulamentos éticos. A igreja, na concepção dos despertos, tinha a ver não com
participação política ou ética, mas com a proclamação e a vivência da graça de Deus e da fé
legada pelo Cristo que morrera pelos pecados da humanidade.
46
Dessa forma, também a coincidência entre liberdades e deveres civis e religiosos não
estava mais naturalizada. Um cristão tinha o direito a resistir ante uma autoridade não-cristã:
“Importa mais obedecer a Deus do que aos homens.”
47
Também por isso não é possível
identificar conservantismo religioso e centros de poder governamentais. Freqüentemente
tendências conservantistas opunham-se às políticas estatais. Nem o Despertamento, nem o
Confessionalismo foram sempre e em todo lugar conservadores politicamente.
48
As
orientações religiosas de Frederico Guilherme III e sua União Prussiana não obtiveram, nesse
sentido, eco em todas as camadas da sociedade. Mesmo na Prússia havia forte manifestação
de “veteroluteranos” (Altlutheraner, os luteranos à moda antiga) que se colocavam contra a
União, especialmente na Silésia. Em 1840, havia reconhecidamente cerca de 10.000
separatistas luteranos na Prússia. Ulteriormente, cerca de 2.000 emigraram para a Austrália ou
para os Estados Unidos a fim de escaparem da perseguição que o Estado desenvolvia,
promovendo detenções e encarceramentos. O conflito dissipou-se somente após a morte de
Frederico Guilherme III, quando seu sucessor, Frederico Guilherme IV, ofereceu anistia geral,
45
Wilhelm WACHHOLZ, “Atravessem e ajudem-nos”, p. 92.
46
Lucian HÖLSCHER, Les changements religieux..., p. 31-32, 39.
47
Idem, p. 31-32, 39.
48
Christopher CLARK, Germany 1815-1848..., p. 52 e 56; Kurt NOWAK, Les protestants: piétistes et libéraux,
p. 103-104. Note-se o caso, conforme veremos adiante, da resistência dos imigrantes saxões que fundariam a
LC-MS às políticas reformadoras da burocracia estatal, os quais não eram os únicos a fazer oposição ao governo
por motivos religiosos. O assunto exige um olhar atento a tal complexidade.
101
garantindo também a liberdade de associações eclesiásticas autônomas na Prússia.
49
De fato, o
independentismo eclesiástico e a formação de comunidades ou igrejas livres que lutavam pela
separação entre Igreja e Estado foram manifestações significativas do Despertamento alemão,
no que se manifestava novamente o caráter exteriorizante de sua configuração e se antecipava
o traço congregacionalista que, como veremos, adquiriram a LC-MS e a IELB.
50
Em meio a esse jogo de forças entre conservação e modernização, Racionalismo e
Confessionalismo, vamos, enfim, encontrar os luteranos da Saxônia que emigraram para
Missouri e de lá enviaram missionários para atender a imigrantes alemães no Rio Grande do
Sul.
5. O Stephanismo
A história da formação do Sínodo de Missouri inicia-se na esteira de um movimento
capitaneado pelo pastor Martin Stephan, o Stephanismo, na Saxônia da primeira metade do
século XIX.
Stephan nasceu em Stramberg, Moravia, em 1777. Órfão desde cedo, aos 22 anos foi
como vendedor ambulante de tecidos para a cidade de Breslau, onde o acolheu um grupo de
luteranos pietistas e confessionalistas, os quais possibilitaram a continuação de seus estudos
no Elizabeth Gymnasium, onde aconteciam suas reuniões. Depois disso, após algum tempo de
formação teológica universitária em Halle
51
e Leipzig, para onde se dirigira sob a influência
do diretor do Gymnasium de Breslau, Stephan decidiu desistir dos estudos a fim de,
primeiramente, em 1809, assumir o pastorado em uma congregação na Bohemia, e então, no
ano seguinte, aceitar um chamado pastoral para a paróquia São João, em Dresden, epicentro
do movimento migratório que deu origem ao Sínodo de Missouri.
52
Em Dresden, tornaram-se características marcantes do pastorado de Stephan seu
carisma pessoal
53
e seu Pietismo ancorado nas Confissões Luteranas, bem ao modo
49
Christopher CLARK, Germany 1815-1848..., p. 58.
50
Eliseu TEICHMANN, Imigração e igreja: as comunidades-livres no contexto da estruturação do luteranismo
no Rio Grande do Sul, p. 17-21.
51
Robert M. BIGLER, The politics of German Protestantism, p. 14: A Universidade de Halle, que fora o centro
do Pietismo sob a liderança de August Hermann Francke durante o reinado de Frederico Guilerme I (1713-
1740), a partir do momento em que Frederico II, déspota esclarecido, tomara o poder em 1740, tornara-se
dominada pelo racionalismo teológico. Nela foi treinada a maior parte do clero prussiano até 1830.
52
Mary TODD, Authority vested, a story of identity and change in the Lutheran Church-Missouri Synod, p. 22-
23; Walter BAEPLER, A century of Grace, p.15.
53
Carl S. MUNDINGER, Government in the Missouri Synod, the genesis of decentralized government in the
Missouri Synod, p. 51-53, apresenta dados contrários a um certo censo comum que acredita ter sido a habilidade
de Stephan como pregador o ponto alto de seu sucesso em conseguir seguidores (ver p. ex. G. E. HAGEMAN,
Skeches of the history of the church, p. 228). Cf. a abordagem psicologicista de Mundiger, tal ponto forte teria
102
confessionalista. Na paróquia São João, devido a tais características, Stephan tornou-se uma
fonte de conforto e força para os muitos seguidores que o procuravam em tempos de árido
Racionalismo.
54
A paróquia fora originalmente formada em 1650, por refugiados boêmios da
Guerra dos Trinta Anos (1619-1648) e estava, por isso, fora da jurisdição do Estado, podendo
chamar seu próprio pastor, mesmo que esse não houvesse completado sua formação teológica,
como no caso de Stephan.
55
Tal caráter não-estatal permitia também que Stephan pregasse e
oficiasse liturgias e doutrinas luteranas ortodoxas, na contra-mão das tendências racionalistas
da Igreja Estatal de então.
56
Além de tais características ortodoxo-confessionalistas, Stephan, a exemplo de seus
predecessores na igreja de São João e contrariamente à legislação em vigor, realizava
encontros religiosos privados regulares, a fim de repassar com as pessoas o sermão do último
domingo, cantar e orar, conforme a antiga prática dos conventículos pietistas.
57
Assim, se por
um lado o pastor e sua comunidade cultivavam as doutrinas da Ortodoxia, por outro, um
fervor evangélico herdado do Pietismo animava sua religiosidade.
Havia, além disso, no trabalho pastoral de Stephan uma ênfase nas manifestações
exteriores da igreja, especialmente no campo do ofício pastoral, o que revelava seus laços
também com o espírito confessionalista da época.
Estava, assim, colocado o tríplice enraizamento sociocultural do Stephanismo: a
Ortodoxia, o Pietismo e o Confessionalismo, articulados em um esforço de resistência ao
Racionalismo religioso.
A figura de Stephan, nesse contexto, era forte e excêntrica o suficiente para agrupar
pessoas em dois tipos de reação: de um lado aquelas que se tornavam profundamente devotas
a ele; de outro, as que questionavam seriamente seu caráter. Assim, à medida que sua fama ia
crescendo e sua audiência aumentando com a participação inclusive de pessoas que vinham de
sido a sensibilidade de Stephan em detectar os medos e as esperanças das pessoas, talento que fazia dele um bom
conselheiro.
54
Marvin A. HUGGINS, Martin Stephan: first Lutheran bishop in America, p. 141.
55
Mary TODD, Authority vested…, p. 22-23.
56
Greg KOENIG e Robert J. KOENIG, The saxon immigration of 1839, p. 44. À época de Stephan já estavam
bem configuradas as vertentes teológicas liberais e conservadoras entre as tradições da Ortodoxia, do Pietismo e
da Aufklärung, postas em questão pelas mudanças instauradas desde o colapso do Estado prussiano, derrotado
em Jena por Napoleão em 1806; Cf. Robert BIGLER, The politics…, p. 16-18.
57
O Parágrafo 9 do Código Civil Prussiano impunha, por exemplo, o seguinte regulamento, apud Robert C.
SCHULTZ, The European background, p. 59: “Secret gatherings, which could endanger the order and security of
the state, shall not be tolerated even if they pretend to be divine services in the houses” [“Reuniões secretas, que
possam colocar em perigo a ordem e a segurança do Estado, não devem ser toleradas mesmo que pretendam ser
cultos nas casas”]; tb. cf. Mary FULBROOK, Piety and politics, p. 31, ainda que a prática dos encontros
religiosos privados não tenha sido tratada sempre de modo idêntico pelas autoridades, eram reais os riscos de que
os grupos se desenvolvessem em células separatistas ou organizações de oposição; tb. Walter BAEPLER, A
century of grace, p. 16.
103
outras localidades da redondeza, uma parte da opinião pública sublinhava cada vez mais
freqüentemente as suspeitas de que Stephan não estivesse cumprindo a lei.
58
A partir do início da década de 1830, o Stephanismo começou, então, a tornar-se
mais conhecido na Saxônia, o que se intensificou especialmente quando um grupo de
estudantes da Universidade de Leipzig caiu sob a influência de Stephan.
Em Leipzig, havia cerca de um século e meio (1689), o renomado pietista August
Hermann Francke, discípulo de Spener, iniciara um collegium philobiblicum, ao modo dos
conventículos. Apesar de proibidas tais práticas pietistas sob pena de detenção desde 1690,
elas podiam ser ainda lá encontradas mesmo em 1830. A estratégia utilizada para tal
continuidade era justamente a de evitar o uso do nome “conventículo”. Foi assim que, entre
1822 e 1833, primeiramente sob a liderança de um professor de nome Lindner, e
posteriormente de um estudante chamado Kühn, 14 dos 16 pastores que participariam da
emigração saxã de 1838 estiveram de algum modo envolvidos no collegium de Leipzig, entre
eles Carl Ferdinand Wilhelm Walther (1811-1887), que viria a ser o principal líder no
processo de formação do Sínodo de Missouri. O grupo se reunia com a finalidade de
edificação mútua através da leitura das Escrituras, oração e discussão de questões religiosas.
Eram pessoas sinceras a respeito de sua preocupação com a salvação eterna, porém confusas
quanto a seus posicionamentos doutrinários. Sua participação no collegium os levou a um
outro nível de comprometimento religioso. Lá se fizeram luteranos na leitura das Confissões.
Também lá, sob a mão severa de Kühn, conheceram as agruras do legalismo e do controle de
práticas pietistas excessivas. Walther, por exemplo, praticou tão severamente seus exercícios
espirituais a ponto de privar-se de alimentação e de recreação por considerar tais coisas
pecaminosas, o que logo lhe renderia problemas físicos e emocionais. Tão fraco esteve que
58
Walter O. FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 32. Como anunciava um jornal de Dresden em 1821: “a
heretical false prophet and fanatic, with dangerous teachings destructive to civil government, who was trying to
found a sect, calling themselves ‘Stephanier.’ This congregation … was a mob of very ignorant boneheads, crazy
fanatics, whose meetings led to lunacy and murder”. [“um herético falso profeta e fanático, com perigosos
ensinamentos destrutivos para o governo civil, que tentava fundar uma seita, chamando a si mesmos de
“Stephanitas”. Esta congregação... era uma turba de tolos ignorantes, loucos fanáticos, cujas reuniões conduziam
à demência e ao assassinato”]. Sobre tal crítica, Stephan responderia ao jornal: “I am neither the founder of a sect
nor the leader of a sect. I belong neither to an old or to a new sect. I hate all sectarianism and fanaticism … I am
an evangelical Lutheran minister … I have no peculiar religious opinions”. [Não sou o fundador de uma seita e
nem o líder de uma seita. Não pertenço nem a uma velha, nem a uma nova seita. Eu odeio todo sectarismo e
fanatismo ... Sou um ministro evangélico luterano ... Não tenho nenhum tipo de opiniões religiosas peculiares”].
As citações foram extraídas de William KOEPCHEN, Pastor Martin Stephan, por Mary TODD, Authority
vested…, p. 24-25.
104
precisou deixar a universidade por algum tempo. O medo da morte e os terrores de seu
imaginário sobre o inferno o oprimiam e abatiam.
59
Ouvindo, então, da fama de Stephan como pastor alinhado à velha Ortodoxia,
Walther solicitou seu conselho por carta. Algumas das narrativas da libertação alcançada pelo
jovem Walther através do conselho de Stephan feitas por historiadores do Sínodo de Missouri
guardam semelhanças claras com as da libertação de Lutero através do conselho de Staupitz.
60
Veja-se, por exemplo, o relato de Polack, feito em 1935:
Como Walther não podia ir visitar Stephan, pediu seu conselho por carta. Esperou
impacientemente pela resposta, e quando esta veio, teve medo de abrir a carta com
receio de que contivesse apenas falso conforto. Por isso, caiu primeiramente de
joelhos em oração e então abriu o selo. Ao ler a carta, foi, por assim dizer,
transportado desde as profundezas do inferno para o céu, tão doces e positivas
foram as palavras de consolo com as quais Martin Stephan lhe garantiu que
também os seus pecados estavam perdoados através do sangue redentor de Cristo.
Walther tinha agora encontrado verdadeiramente seu Salvador, e a paz de Deus
que excede todo entendimento encheu seu coração.
61
A partir de então, Stephan estendeu cada vez mais sua influência sobre Walther e os
jovens de seu grupo, todos com cerca de 20 anos. Tornou-se seu conselheiro em termos de
consciência e de assuntos relacionados à Igreja. Orientava-os também a respeito de suas
carreiras e sob sua influência receberiam, depois de graduados, seus postos na Igreja Estatal.
62
O Pietismo de Stephan, que reforçava sua defesa anti-Racionalista das velhas verdades
bíblicas, definitivamente cativara aqueles jovens estudantes de Leipzig.
Todavia, por volta da mesma época, ao passo que um crescente número de pessoas
procurava a Stephan como líder espiritual, também sua reputação de excentricidade ganhava
mais fortes contornos. Além de seu já conhecido hábito de realizar caminhadas noturnas,
Stephan começara também a convidar alguns de seus seguidores, homens e mulheres, para
reuniões em uma casa de retiros que podiam por vezes durar noites inteiras, o que reforçava a
59
David John ZERSEN, C.F.W. Walther and the heritage of pietist conventicles, p. 13-14; W. G. POLACK, The
story of C. F. W. Walther, p. 12.
60
Vide acima p. 57, nota 15.
61
W. G. POLACK, The story of C. F. W. Walther, p. 16-17: “As Walther could not go to visit Stephan, he asked
his advice by letter. He waited impatiently for the reply, and when it came, he was afraid to open the letter lest it
contain only false comfort. So he first knelt in prayer and then broke the seal. Upon reading the letter, he was
transported, as it were, out of the depths of hell into heaven, so sweet and positive were the words of solace with
which Martin Stephan assured him that also his sins were forgiven through the atoning blood of Christ. Walther
had now truly found his Savior, and the peace of God that passeth all understanding filled his heart.” De fato, a
memória de Walther feita internamente ao Sínodo guarda semelhanças com a do fundador do Luteranismo.
Walther, nessa perspectiva, como Lutero, reconduzira a igreja à verdade eterna: era o “American Luther”, cf. W.
M. DALMANN et alii (eds.), Walther and the church, p. 116.
62
Mary TODD, Authority vested…, p. 26-27.
105
suspeição geral de que mantinha a prática dos conventículos, além de instigar outras suspeitas
relacionadas à sua vida conjugal e sexual. Entretanto, era a rigidez da aderência do pastor às
Confissões que continuava sendo um dos principais focos de ataque dos críticos, e que
também, por outro lado, lhe garantia a admiração daqueles que o apoiavam. Para seus
discípulos, nada havia de errado com seu pastor, o campeão da Ortodoxia, o defensor da fé.
63
Também o contexto político saxão não era nada favorável ao movimento que se
formava. Na Saxônia, assim como nos Estados da Prússia, Mecklenburg, Hanover, no
Eleitorado de Hesse e na cidade livre de Lübeck, as antigas forças dominantes retiveram no
período pós-napoleônico todo ou quase todo o poder, opostamente, por exemplo, aos estados
de Nassau, Würtenberg, Bavária e Baden, onde constituições formais foram aprovadas e
convocadas assembléias representativas bicamerais. Nesse contexto, as sublevações populares
na Saxônia, em 1830, aqueceram a temperatura da Confederação Germânica, colaborando
para o desenvolvimento das políticas repressivas que passaram a ser desenvolvidas pela Dieta.
O soberano católico da Saxônia, por exemplo, recusou-se a permitir a celebração dos 300
anos da Confissão de Augsburgo, o que gerara as primeiras manifestações de protesto daquele
turbulento ano. À época da Erweckung, a Saxônia era também o Estado mais industrializado
da Confederação e um dos centros da atividade de democratas radicais. Os Lichtfreunde
(amigos da luz!), por exemplo, lá combinavam uma teologia racionalista a uma cultura
democrático-presbiterial, na qual a autoridade era devolvida às comunidades individuais e a
anciãos escolhidos.
64
Era pouco provável, como se pode imaginar, a aprovação de um
movimento como o Stephanismo.
A partir do início da década de 1830, passou então a acontecer uma alteração no
processo de desenvolvimento do grupo, mais no campo exterior que no nível das crenças: o
Stephanismo transformou-se de um “ponto de vista” em um “sistema místico-hierárquico”,
com um conceito próprio acerca das relações na comunidade cristã baseado na liderança
personalista de Stephan. “Sua mais importante e fundamental característica (...) era uma
imoderada veneração do ofício do ministério [pastoral] e da pessoa e das opiniões de
Stephan”.
65
A partir de então, ainda que parte do Despertamento, o Stephanismo revertia-se
em separatismo. A verdade estava com o pastor e qualquer discordância deveria ser corrigida
ou banida.
63
Walter O. FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 61; Mary TODD, Authority vested…, p. 27.
64
Christopher CLARK, Germany 1815-1848..., p. 47, 51, 58 e 59.
65
Walter O. FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 62: “Its most important and fundamental characteristic
(…) was an inordinate veneration of the office of the ministry and of Stephan’s person and views”.
106
Além de negarem as acusações que caiam cada vez mais pesadas sobre seu líder em
meio aos conflitos que se geravam, os stephanitas ainda mantinham na declaração de fé
(Glaubensbekentnisse) de sua comunidade o seguinte: “Nós somente temos a correta, pura
doutrina através de Stephan e somente constituímos uma apropriada, pura Igreja Luterana sob
Stephan”.
66
Declarações como essa pioravam ainda mais a situação da paróquia de S. João e
de seu líder. Conforme Mundiger, nessa posição, Stephan facilmente se tornava na estima das
pessoas o “irmão mais velho de Deus”. Quem resistisse ou renunciasse ao God’s elder
brother, renunciava ao próprio Deus.
67
Ao chamar atenção sobre si de tal maneira, Stephan foi colocado sob vigilância
policial, a pedido do Departamento de Supervisão Eclesiástica. Sem suspender suas
caminhadas e reuniões noturnas, foi preso pela primeira vez em fevereiro de 1836 e então
proibido de participar de qualquer evento noturno daquela natureza na cidade ou na região.
Poucas semanas depois, reuniu seus mais próximos seguidores para iniciar as tratativas acerca
da emigração. Seria ainda novamente preso e, no ano seguinte, suspenso do pastorado pelo
Ministério de Culto, sob acusação de promover reuniões em conventículos e de conduta
imoral, encontrando-se a partir de então em prisão domiciliar.
68
Apesar da oposição geral ao Stephanismo, a única pessoa que estava realmente com
problemas com a justiça era o próprio Stephan. Sua postura arrogante e desrespeitosa para
com a legislação local o tornara persona non grata na Saxônia. De fato, a emigração restava
uma de suas poucas escolhas, e isso se esta lhe fosse permitida. Mesmo assim, o clero
stephanita formado pelos ex-estudantes de Leipzig continuava, como antes, defendendo a
Stephan, seu perseguido líder, e a suas posturas ortodoxas. Nada fizeram aqueles pastores que
desafiasse seriamente a Igreja Estatal.
69
A despeito disso, a emigração consistiu em uma
realização conjunta de Stephan, de seu clero subalterno e de alguns líderes leigos, os quais
conduziram centenas de pessoas para a América do Norte.
66
Extraído de Ludwig FISHER, Das falsche Märtyrerthum (1839), apud Mary TODD, Authority vested…, p. 30:
“We alone have the correct, pure doctrine through Stephan and we alone constitute a proper, pure Lutheran
church under Stephan”.
67
Carl S. MUNDINGER, Government in the Missouri Synod…, p. 67-68: “In this state of affairs Stephan easily
became God’s elder brother in their estimation”; tb. Mary TODD, Authority vested…, p. 22-25.
68
Mary TODD, Authority vested…, p. 31-31.
69
Idem, p. 32.
107
6. Imigração e crise nos Estados Unidos
Se considerarmos os motivos gerais de ordem econômica da emigração alemã no
contexto da expansão capitalista, seu estopim foi principalmente a miséria material das classes
subalternas e a superpopulação. Houve no sudoeste alemão grande fome durante o inverno de
1816/1817. Tal situação se agravou ainda mais quando, entre 1816 e 1825, deu-se o maior
crescimento médio anual da população alemã no século XIX, 1,42%. Na falta de terra e de
alimento, numa região de ainda incipiente industrialização, a oportunidade de possuir um
território próprio tornava-se deveras atrativa. Cerca de 10 milhões de pessoas emigraram das
terras alemãs durante o século XIX. Da Europa como um todo, dirigiram-se para os Estados
Unidos cerca de 35 milhões de pessoas entre 1860 e 1930.
70
Como disse Martin Dreher, em
termos econômicos, a Europa do século XIX expulsou seus filhos e suas filhas.
71
Todavia, ainda que a formação do movimento migratório que deu origem ao Sínodo
de Missouri decorra de um processo para o qual concorreram múltiplas forças, foram os
fatores religiosos os que exerceram influência mais direta e definitiva. Houve, por certo,
motivações econômicas e políticas para a emigração. Ao que parece, todavia, o que de fato
aconteceu foi, por um lado, uma eminência da questão religiosa em meio a conflitos políticos
e, por outro, uma geralmente desfavorável situação econômica que não mais os prendia à
Mutterland.
72
Vale aqui uma nota historiográfica. Os estudos históricos sobre o Sínodo de
Missouri têm tradicionalmente identificado a emigração dos saxões a uma atitude de
resistência às políticas da União Prussiana. Penso, porém, que não há motivos óbvios para que
se naturalize essa perspectiva. A Saxônia era de fato um tradicional reduto liberal e
racionalista. Todavia, à época do Despertamento, estava já em curso um processo de
confessionalização luterana internamente à Igreja Territorial saxã, a qual se mantém
confessional até os dias atuais,
73
o que em princípio desautoriza o argumento que aponta a
resistência à União como o principal motivo emigratório. Ao que parece, motivos mais fortes
são relativos principalmente aos problemas em que Stephan se envolveu no espaço público e à
sua ascendência por sobre seus ouvintes e comunidade. O papel da União nesse domínio deve
70
Hans-Jürgen PRIEN, Formação da Igreja Evangélica no Brasil, p. 25; tb. Christopher CLARK, Germany
1815-1840..., p. 53-54; Roberto RADÜNZ, A terra da liberdade, o protestantismo luterano em Santa Cruz do
Sul no século XIX, p. 18-32.
71
Martin DREHER, História do povo luterano, p. 49.
72
Walter O. FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 9.
73
Wilhem WACHHOLZ, “Atravessem e ajudem-nos”, p. 68-69; tb. cf. as observações feitas pelo prof. Ricardo
Rieth, membro da banca desta tese.
108
ser entendido como algo que se deu de modo indireto, ligado mais aos ares confessionalistas e
despertamentistas que se respirava naquele momento e que favoreciam a resistência não só à
própria União, mas ao Racionalismo de um modo geral e a qualquer tendência que colocasse
em risco a antiga fé luterana. Voltemos à história.
A escolha do destino dos stephanitas nos EUA deu-se principalmente em função da
leitura de um escrito de Gottfried Duden, saxão que emigrara para Missouri em 1824, no qual
louvava a qualidade das terras missourianas. Os líderes organizaram uma Sociedade de
Emigração e elaboraram um Código Emigratório, além de um “Código para o fundo de
crédito da Sociedade Luterana Emigratória com o Pastor Stephan para os Estados Unidos da
América do Norte” e de regulamentos de viagem e de assentamento nos EUA.
74
Tinham
dinheiro suficiente, um líder, 700 pessoas e eram guiados por Deus rumo à Sião prometida,
como disse Forster. A emigração estava organizada.
Uma percepção, nas palavras de Stephan:
Antes de deixarmos a Alemanha e a Europa, desejamos transmitir saudações e
despedidas fraternais aos nossos amigos que estão ficando para trás. Depois de
muitos anos de difamação, estamos finalmente libertos das mãos de nossos
inimigos e viajando em paz para aquela parte do mundo onde aqueles que são
difamados têm o privilégio de defender-se publicamente. (...) Nossos corações
estão cheios de sincero agradecimento a todos que nos mostraram solicitude.
Pedimos a Deus que os compense ricamente por isso em suas horas de
necessidade. Com referência aos nossos muitos inimigos, queremos atender às
palavras de nosso Senhor Jesus Cristo: ‘Ame seus inimigos’, etc., Mt 5:44. Se
vocês, queridos amigos, quiserem viajar conosco em espírito para a América,
acharão uma congregação de luteranos à moda antiga, viajando em cinco navios
sob a proteção de Deus. Seis pastores com cerca de 700 almas, entre elas 10
candidatos ao pastorado e quatro professores, estão alegremente viajando para a
terra onde, não sendo perseguidos e de acordo com seu melhor conhecimento e
consciência, podem preservar a fé de seus pais, servir assim a Deus e nessa
seguir em paz neste tempo seu caminho rumo à eternidade.
75
O pronunciamento de Stephan denotava algo de sua percepção sobre a situação e
também em alguma medida o tipo de compreensão que imprimia por sobre seus seguidores.
74
Walter O. FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 9, 566-583.
75
Martin STEPHAN apud Walter BAEPLER, A century of grace, p. 27: “Before we leave Germany and Europe,
we desire to transmit friendly greetings and farewells to our friends who re remaining behind. After many years
of defamation we are at long last delivered from the hands of our enemies and are traveling in peace to that part
of the world where they who are slandered have the privilege if defending themselves publicly. (…) Our hearts
are filled with sincere thanks to all who showed solicitude for us. We ask God to compensate them richly for this
in their hour of need. With reference to our many enemies, we wish to heed the word of our Lord Jesus Christ:
‘Love your enemies’, etc., Matt. 5:44. If you, dear friends, desire to travel with us in spirit to America, you will
find an Old-Lutheran congregation, sailing on five ships under the protection of God. Six clergyman with about
700 souls, among them 10 candidates of theology and four schoolteachers, are joyfully traveling to a land where,
unpersecuted and according to their best knowledge and conscience, they can preserve the faith of their fathers,
serve God therein, and in this faith travel the way through time to eternity in peace”.
109
Partia rumo à “terra prometida”, uma comunidade sob a direção de seu pastor. Entendia sua
peregrinação como a única maneira de se manterem fiéis ao que guardavam como a
verdadeira fé. Entretanto, conforme Mary Todd, isso tudo era verdade provavelmente apenas
em suas mentes. Como já dissemos, à parte do líder, não havia complicações legais que
envolvessem os demais pastores e membros do grupo.
76
Stephan, por sua vez, já desde o
início da década de 1820 considerava o tema da emigração. O problema eminentemente
político-religioso era na verdade só dele. As demais pessoas, no que se pode aferir, apenas
tomavam como suas as complicações de seu pastor.
77
Ao longo das tratativas relacionadas à emigração, a situação foi sendo conduzida no
sentido de aumentar ainda mais os poderes de Stephan. Durante o ano de 1837, um grupo de
líderes escolhido pelo pastor planejou a organização eclesiástica que seria instaurada nos
EUA. Esta deveria ser liderada por um bispo, e este auxiliado por quatro diáconos. O
planejamento envolvia inclusive o tema das vestes episcopais.
78
A sagração de Stephan como
bispo dar-se-ia ainda antes que os imigrantes pisassem em solo missouriano.
À medida que iam se preparando, a situação do movimento piorava ante a opinião
pública. Por fim, mesmo a paróquia de São João apresentou queixa contra Stephan, alegando
modo de vida indecente e lascivo, negligência freqüente de tarefas pastorais e desvio de
verbas. Tais oposições não impediram, contudo, que o governo concedesse os passaportes
necessários, mesmo para Stephan, proibido que estava de falar publicamente e enclausurado
em sua prisão domiciliar. Após apelar pela misericórdia do Rei, lhe foi permitido deixar a
Alemanha sob pagamento de fiança, para o que contou com uma coleta feita entre os
membros que então já lhe esperavam no porto de partida para a América.
79
Era notável a composição social do grupo. Do total, 45% eram mulheres e a média
de idade ficava entre os 25 anos. Enquanto que apenas 14% poderiam ser ditos camponeses,
65% eram artesãos ou operários. Terminaram por embarcar, entre outros, 8 pastores, 11
candidatos ao ministério (candidates, já com a formação em teologia completa), 4
professores, 9 comerciantes, um advogado, um médico e o curador dos arquivos do Estado da
Saxônia. Tratava-se mormente, como se vê, não de um bando de camponeses pobres tentando
salvar suas vidas na emigração, mas de um grupo de origem urbana, de classe média, guiado
76
Mary TODD, Authority vested…, p. 32.
77
Walter O. FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 83-112.
78
Carl S. MUNDINGER, Government in the Missouri Synod…, p. 60-61; em sua abordagem, Mundinger vai ao
ponto de afirmar categórico, na p. 75: “Martin Stephan suffered from a feeling of inferiority. At times this
feeling reached the stage of persecutory delusions. He compensate for it by getting complete control over his
fellows” [“Martin Stephan sofria de um sentimento de inferioridade. Por vezes esse sentimento atingia o estágio
de ilusões persecutórias. Ele compensava a isso assumindo controle completo sobre seus companheiros”].
79
Mary TODD, Authority vested…, p. 37.
110
por uma liderança altamente educada e comprometida com princípios teológicos muito mais
rígidos e ortodoxos que os da Igreja Estatal da qual se desligava.
80
Em meados de novembro de 1838, cinco navios deixaram o porto de Bremen,
carregando quase 700 pessoas rumo ao porto de New Orleans. Os imigrantes saxões, além da
fidelidade a seu líder, levavam na bagagem uma porção redobrada de espírito confessional:
“Seu zelo fervoroso pelo todo da doutrina luterana tornava-se ainda mais intenso pelo ardor
de sua piedade”, como disse Abdel Wentz.
81
Na viagem, porém, um dos cinco navios, o
Amália, afundaria com seus 56 passageiros, tripulação e a maioria dos bens do grupo,
provavelmente sob pesada tempestade.
82
Pelas anotações de viagem do secretário de Stephan, Julius Brohm, feitas a bordo do
navio Olbers, podemos ter a idéia do tipo de relação que se criara entre o pastor e seu
rebanho. Após dias de fortes tempestades em alto mar, em meio aos medos e desejos de
sobrevivência de cada um, e tendo já ocorrido o falecimento de uma das crianças do grupo,
Brohm relata as reações de Stephan:
29 de Novembro: (...) O Pastor (Stephan) expressou amargas reclamações sobre a
condição espiritual da maioria dos passageiros. A fé cristã de uma pessoa é
reforçada ao ouvir, orar, cantar e ler. Entretanto, nestas áreas eles estão
espiritualmente mortos. Ele expressou medo receoso do futuro e desejou que esses
membros mortos possam novamente ser restaurados na fé. (...)
9 de Dezembro: (...) Um pequeno sermão do Pastor Stephan sobre a questão:
Como devemos nos preparar para o futuro que está diante de nós. [Uma
repreensão severa. Entre outras coisas, o Pastor Stephan disse, “Eu fui
amargamente desapontado por vocês”.] (...)
15 de Dezembro: (...) [Stephan] não podia ter a esperança de construir uma
congregação cristã com eles.
83
No jargão luterano, poder-se-ia dizer das atitudes de Stephan: “muita lei, pouco
evangelho”. Ainda durante a viagem, entre os dias 14 e 15 de janeiro, sem a presença de todos
os pastores e candidatos a bordo do mesmo navio, Stephan, em reforço à sua autoridade
80
Frederick C. LUEBKE, The immigrant condition as a factor contributing to the conservatism of the Lutheran
Church-Missouri Synod, p. 21.
81
Abdel Ross WENTZ, The Lutheran Church in American History, p. 134: “Their fiery zeal for the whole body
of Lutheran doctrine was made even more intense by the ardor of their piety”.
82
Cf. Walter BAEPLER, A century of grace, p. 28; Mary TODD, Authority vested…, p. 38, afirma, porém, que
eram ao todo 665 pessoas. Os números podem ainda variar cf. outros autores.
83
Theodor Julius BROHM, Theodor Julius Brohm’s journal during the Saxon Lutheran Emigration, November
18, 1838, to February 14, 1839, p. 105: “29 November: (…) Pastor (Stephan) voiced bitter complaints about the
spiritual condition of the majority or the passengers. One’s Christian faith is lodged steadfast in hearing, praying,
singing, and reading. However, in these areas they are spiritually dead. He expressed anxious fear for the future,
and he wished that these dead members might again be returned to faith”; 106: “9 December: (…) A short
sermon by Pastor Stephan on the question: How should we prepare ourselves for the future that stands before
us.[A sharp rebuke. Among other things, Pastor Stephan said, ‘I have been bitterly deceived by you.’]”; p. 107:
“15 December: (…) He could not grasp onto a hope to build a Christian congregation out of them”.
111
suprema, foi elevado à condição de bispo. Sua investidura foi assinada primeiramente pelos
pastores que estavam a bordo, e posteriormente por aqueles que os haviam precedido em New
Orleans e Saint Louis.
84
Também, no dia 16, ainda um outro documento foi subscrito, o Voto
de Sujeição a Stephan:
(...) temos completa e firme confiança na sabedoria, experiência, fidelidade e
bem-intencionado amor paternal de nosso Reverendíssimo Bispo, (...) Declaramos
que estamos determinados a nos ater de alma e coração, a permanecer o mais
fielmente e a viver, sofrer e morrer sob o método episcopal de governo
eclesiástico (...) [nos] submetemos com boa vontade e sinceridade cristãs aos
regulamentos, decretos e medidas de Sua Reverência a respeito de ambos,
assuntos eclesiásticos e comunitários.
85
Sob tal égide suprema da autoridade de Stephan, chegaram os imigrantes saxões ao
solo estadunidense. Conforme planejado, ficaram temporariamente em Saint Louis a fim de
que pudessem escolher e comprar a terra onde haveriam de se instalar. Durante esse período,
que durou cerca de dois meses, Stephan, contrariamente ao Código do Fundo de Crédito e a
despeito da perda do Amália, manteve sob suas mãos a administração dos fundos do grupo e
tratou de incrementar a posição episcopal à qual tinha sido elevado, adquirindo vestes
clericais e enviando inclusive observadores a um culto público católico para ver como as
coisas lá aconteciam. Após o término das negociações, partiram de navio para Perry County,
em 26 de abril: Stephan rumo a seu novo reino; seu súditos, rumo à Sião prometida. Parte do
grupo, porém, permanecia em Saint Louis, dentre eles Walther.
86
Àquela altura, os problemas relativos ao caráter de Stephan começaram a aparecer
aos olhos dos saxões. Aos poucos ia surgindo a consciência do esbanjamento do bispo, que,
além das vestes clericais, incluiu a compra de uma carruagem, de vinhos finos, o aluguel de
uma boa casa e a contratação em tempo integral de costureiras e de um alfaiate. Alguns dos
membros, durante o período da estada em Saint Louis, optaram inclusive por desligar-se da
Sociedade Emigratória, pedindo o retorno do dinheiro que haviam investido. Nenhum deles
84
Theodor Julius BROHM, Theodor Julius Brohm’s journal during the Saxon Lutheran Emigration, November
18, 1838, to February 14, 1839, p. 116; tb. Mary TODD, Authority vested…, p. 38-40.
85
Apud Walter O. FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 294: “(…) we have complete and firm confidence in
the wisdom, experience, faithfulness, and well-meaning fatherly love of our Very Reverend Bishop; (…) We
further declare that we are determined to hold fast with heart and soul, to keep most faithfully, and to live, suffer,
and die under the episcopal method of church polity. (…) submit with Christian willingness and sincerity to the
ordinances, decrees, and measures of His Reverence in respect to both ecclesiastical and community affairs”.
86
Mary TODD, Authority vested…, p. 44-45.
112
sabia, contudo, que os fundos do grupo já haviam se esgotado sob a administração do
“Reverendíssimo Bispo”.
87
Outro ponto nevrálgico do problema, calcanhar de Aquiles pelo qual Stephan foi
atingido, foi seu envolvimento com mulheres do grupo. Após um culto dominical no começo
de maio de 1839, duas delas procuraram um dos pastores, rev. Loeber, e confessaram ter tido
ligações sexuais com Stephan. Nos próximos dias ainda outras viriam. Loeber, por sua vez,
levou isso ao conhecimento de Walther, e juntos tornaram as informações conhecidas dos
demais pastores e líderes. Em pouco tempo, toda a comunidade tinha conhecimento do
assunto, exceto Stephan. As acusações eram do mesmo tipo das que Stephan recebera na
Saxônia. A situação, porém, havia então se alterado substancialmente. O sentimento entre os
imigrantes era de que as acusações eram verdadeiras e começava-se a culpar Stephan por
todas as mazelas do grupo.
88
Em meados de maio, Walther, aos 27 anos o mais jovem entre os pastores, foi
escolhido para se deslocar de Saint Louis, onde se encontrava, até Perry County e apresentar
aos imigrantes as acusações contra o bispo, que então se ocupava com os planos de
construção de seu palácio episcopal, o Stephansberg. Trabalho feito, Walther retornou a Saint
Louis e lá decidiram pela remoção de Stephan, sob a acusação de má administração dos bens
do grupo (!).
89
Com a chegada dos últimos emigrados saxões ao porto de Saint Louis, no final do
mês de maio, o grupo, conjuntamente com os que lá permaneciam, deslocou-se para Perry
County. Encontrando seu destino, os pastores Loeber e Keyl foram à residência de Stephan a
fim de contra ele ler as acusações e de comunicar-lhe a reunião de um Conselho que
aconteceria no dia seguinte. Stephan questionou, então, a autoridade de tal Conselho sobre o
bispo e apelou à comunidade como um todo. A despeito disso, o Conselho, após convidá-lo a
comparecer novamente sem sucesso, reuniu-se sem o bispo e sem a participação direta do
povo interessado e decidiu pela deposição de Stephan e sua excomunhão da comunidade. A
origem de tal Conselho era de fato dúbia e não existem informações a respeito de como
aconteceu sua constituição. A sentença foi lida diante das pessoas reunidas e de Stephan. Nela
afirmavam a culpa do bispo por pecados de fornicação, de malfeitoria e esbanjamento na
administração de bens alheios e de falso ensinamento. Na seqüência, uma vez que Stephan
recusava-se a deixar sua residência, foram-lhe apresentadas três opções: retornar à Alemanha,
87
Mary TODD, Authority vested…, p. 45-46.
88
Walter O. FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 391-398.
89
Mary TODD, Authority vested…, p. 47-48.
113
enfrentar julgamento nos EUA, ou ser transportado como exilado para a outra banda do rio
Illinois. Stephan preferiu o exílio.
90
A deposição de Stephan resolveu de fato poucos, se algum, dos problemas em que se
encontravam os saxões. Trouxe, por outro lado, à tona as tremendas dificuldades que os
esperavam, instalando uma profunda confusão entre os colonos. Iniciava-se ali um período de
turbulências que duraria cerca de dois anos, o qual pode ser equiparado em importância aos
desenvolvimentos anteriores do processo de migração, dado seu impacto sobre o grupo e
sobre os desenvolvimentos da instituição que haveriam de fundar.
91
Apesar de toda a circunstância que se gerara, a vida das pessoas tinha, contudo, de
continuar, ainda que não exatamente conforme haviam planejado. É o que nos faz crer o relato
do imigrante J. F. F. Winter:
Agora, do que você leu relativo ao todo de nossa situação em termos espirituais e
temporais, não deve tirar a conclusão de que eu me arrependa de ter emigrado da
Prússia. Não, isso é algo de que não me arrependo mesmo. Mas me arrependo, e
isso me dói muito extremamente, de que no momento da emigração com os
saxões eu não fui mais atento e cuidadoso e dei meu consentimento à eleição de
Stephan como bispo, embora estivesse intimamente contrário a isso. Que Deus,
pelo amor de Jesus Cristo, me perdoe desse pecado e não me leve a julgamento!
Ah, Deus seja louvado, o qual nessa escola beneficamente me purificou, me
resgatou de tanto erro e me considerou digno de seguir a Cristo no carregar da
cruz!
92
7. C. F. W. Walther e a fundação do Sínodo de Missouri
No período que sucedeu à deposição de Stephan, após alguns conflitos entre leigos e
pastores relativos à regulação dos poderes espiritual e secular, o clero assegurou em suas
mãos a liderança do grupo, tendo C. F. W. Walther à frente. Durante as controvérsias que se
estenderam ao longo do ano de 1839, o clero somente admitiu publicamente ter sido “usado
para os fins hierárquicos de Stephan” e “pelo bem da paz” renunciou ao sistema episcopal.
Assim, se por um lado os pastores não admitiram sua implicação direta na questão do
90
Walter O. FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 415-423.
91
Carl S. MUNDINGER, Government in the Missouri Synod…, p. 91; Walter O. FORSTER, Zion on the
Mississippi…, p. 428.
92
J. Frederick Ferdinand WINTER apud August R. SUELFLOW, The beginnings of “Missouri, Ohio and Other
States” in America, p. 141: “Now, from what you have read regarding our hole situation in temporal and in
spiritual respects you must not draw the conclusion that I regret having emigrated from Prussia. No, that is
something I do not yet regret. But I do regret, and it pains me very sorely, that at the time of the emigration with
the Saxons I was not more watchful and cautious and that I gave my consent to Stephan’s election as bishop
although I was inwardly averse to it. May God, for Jesus Christ’s sake, forgive me this sin and not enter into
judgment with me! Ah, God be praised, who in such a school has beneficially chastened me, rescued me from
many error, and counted me worthy to follow Christ in bearing the cross!”
114
Stephanismo, por outro, permaneceram guardadas as diferenças de posição entre laicato e
clero, com os últimos à frente, ao menos em termos eclesiásticos. As idéias paternalistas e
hierárquicas de Stephan haviam sido semeadas nas mentes daqueles jovens pastores no
período mais importante de sua formação. O problema da participação ativa do clero no
Stephanismo não seria nem posteriormente aclarado. Na verdade, nem pastores, nem leigos
sabiam com certeza onde haviam errado. Crise, confusão e desordem se abateram tanto por
sobre os colonos em geral, quanto entre os pastores. Walther, por exemplo, entrou em um
período de depressão no qual não pôde nem mesmo servir à sua comunidade. Em sua mente,
contudo, ia se gerando a futura forma de organização do Sínodo de Missouri.
93
Para um grupo outrora reunido ao redor de uma liderança personalista como a de
Stephan, uma crise de identidade ao perder sua “cabeça” não é algo com que o estudioso deva
se estranhar. Ao contrário dos demais segmentos de imigrantes europeus luteranos, que
vieram aos EUA mormente como imigrantes e à época já começavam um processo de
“americanização”, os saxões “haviam se organizado como uma igreja, viajado juntos como
uma igreja, se comprometido como congregados a seu pastor”. A questão, assim, que se lhes
impunha era: “Agora, sem o bispo, eram eles ainda uma igreja?”
94
No início de 1841 a controvérsia central adormecida veio à tona de modo claro. As
percepções nela embutidas eram, no extremo, duas: de um lado, a idéia de que tudo o que
havia sido feito estava certo e era justificável de um ponto de vista moral tanto para a vida
religiosa quanto secular das colônias, defendida por um grupo formado principalmente pelos
pastores; de outro, defendida mormente por leigos, a compreensão de que a emigração como
um todo havia sido um erro e que as colônias não eram uma igreja cristã, mas um bando
separatista dirigido por pastores impostores. Quem veio à frente por parte dos leigos foi o
diretor do projeto de emigração, o advogado Franz Adolph Marbach, sustentando que, uma
vez que haviam se separado da Igreja Alemã, eles não eram mais uma igreja, mas uma seita, e
que a única solução seria assumir seu pecado corporativo e retornar à Alemanha. Entre outras
coisas, entretanto, como haveriam eles de retornar, pastores e leigos, à Igreja Estatal da
Saxônia após se envolverem em tantas controvérsias em defesa de Stephan contra aquela
“Sodoma e Gomorra”? Na ausência de liderança, Walther respondeu por parte do clero.
Versado nas obras de Lutero e nas Confissões apresentou oito teses que sustentavam que a
Igreja era a totalidade dos crentes e que eles enquanto cristãos que aderiam à Palavra, aos
93
Carl S. MUNDINGER, Government in the Missouri Synod…, p. 95-102; Mary TODD, Authority vested…, p.
55-58.
94
Mary TODD, Authority vested…, p. 51: “They had organized themselves as a church, traveled together as a
church, pledged themselves as congregants to their pastor. Now, without the bishop, were they still a church?”
115
Sacramentos e a confissões comuns eram sim parte da verdadeira Igreja. As teses preparadas
por Walther para o debate público acontecido em Altenburg marcaram o epílogo do período
pós-Stephan na história da formação do Sínodo de Missouri. Marbach terminou por concordar
com Walther. O resultado foi o aumento da auto-estima do grupo, então convencido da
legitimidade de sua comunidade, aliviado e apto para prosseguir.
95
Definida uma doutrina a respeito do que vinha a ser a Igreja, C. F. W. Walther
aceitou o chamado da comunidade Trindade de Saint Louis para substituir a seu irmão, rev. O.
H. Walther, que falecera havia pouco. De Saint Louis, C. F. W. Walther pelo resto de sua vida
dirigiria, como pastor, escritor e professor, os rumos dos saxões, de seus descendentes e de
outros que a eles se agregariam. De lá, daria também as diretivas para o estabelecimento de
uma identidade corporativa para o Sínodo de Missouri.
96
Passo significativo nesse sentido foi dado em 1844, quando, com o apoio da
comunidade Trindade, Walther passou a publicar o periódico Der Lutheraner, com a
finalidade de ao mesmo tempo divulgar sua igreja e suas idéias e de convidar outros luteranos
que pensassem da mesma forma a juntarem forças. Nas palavras de Walther:
Nossos queridos irmãos na fé nessa parte de nossa nova pátria precisam, portanto,
ser encorajados a permanecerem fiéis à sua fé; precisam ser alertados contra os
perigos de apostasia que aqui ameaçam a tantos; necessitam armas para se
defender contra aqueles que desafiam a veracidade da fé que eles aprenderam
desde sua juventude no catecismo; necessitam do conforto de que a igreja a que
professam lealdade ainda não desapareceu e que eles, assim, não possuem
nenhuma razão para buscar refúgio em outra comunhão.
97
A partir da identificação de tal necessidade, o Der Lutheraner – ao qual se
assemelharia seu futuro correlato no Brasil, o Mensageiro Luterano – vinha a público,
conforme Walther, com a finalidade de “tornar os leitores familiarizados com as doutrinas, os
tesouros e a história da Igreja Luterana” e de “fornecer prova de que a Igreja Luterana é de
fato a verdadeira antiga Igreja de Cristo na terra, não meramente uma das seitas cristãs”.
Deveria também o periódico ensinar “como um verdadeiro luterano, ainda que pecador, pode
ser um crente firme, viver uma vida verdadeiramente cristã, carregar bravamente sua cruz e,
95
Walter O. FORSTER, Zion on the Mississippi…, p. 517-526; Mary TODD, Authority vested…, p. 59-60; Carl
S. MUNDINGER, Government in the Missouri Synod…, p. 96.
96
Mary TODD, Authority vested…, p. 65-96 passim.
97
Der Lutheraner 1 (Sept. 7, 1844) apud Mary TODD, Authority vested…, p. 69: “Our dear brethren in the faith
in this part of our new fatherland therefore need to be encouraged to remain loyal to their faith; they need to be
warned against the dangers of apostasy which here threaten so many; they need weapons to defend themselves
against those who challenge the truthfulness of the faith which they have learned from their youth in the
catechism; they need the comfort that the church to which they profess adherence has not yet disappeared, and
that they therefore have no reason at all to seek refuge in another communion”.
116
partindo dessa vida, entrar nas glórias do céu”. Vinha, além disso, com o objetivo de “expor
doutrinas falsas e práticas pecaminosas, dando atenção particular àqueles luteranos, assim
chamados erroneamente, que com aparência e traje de professor luterano pregam e
disseminam erro, descrença e sectarismo, para o prejuízo e vergonha do Luteranismo puro e
escriturístico”. Posteriormente, com a fundação do Sínodo, o Der Lutheraner tornar-se-ia seu
órgão oficial de comunicação.
98
Através do periódico, Walther, então, tendo como base principalmente os escritos de
Lutero, mas também as Confissões e autores da Ortodoxia, embandeirou nos Estados Unidos
o que entendia como o “Luteranismo puro e escriturístico”. Suas idéias, como resultado,
ecoaram nas mentes e corações de alguns. De especial importância, nesse sentido, foi o
contato com o Der Lutheraner de Friedrich Conrad Dietrich Wyneken, um pastor emigrado
da Alemanha que servia a algumas congregações em Indiana desde 1838. Por aquela época,
Wyneken havia apelado a luteranos alemães solicitando auxílio para amainar a “miséria
espiritual” em que se encontravam seus conterrâneos nos EUA. Em 1841, fora inclusive de
volta à Alemanha com o intuito de conseguir mais pastores interessados em atuar na
“América”, encontrando lá o já mencionado Wilhelm Löhe, eminente confessionalista e
pastor na pequena Neuendetelsau, Bavária. Löhe, por sua vez, tocado pelo argumento de
Wyneken, divulgara a situação por meio impresso e conseguira angariar fundos, passando a
enviar recursos humanos e financeiros para a seara estadunidense e fundando um seminário
teológico na cidade de Fort Wayne, em 1846.
99
Com o Der Lutheraner alcançando outros confessionalistas, um dos “homens de
Löhe”, aos quais Wyneken estava associado, entrou em contato por carta com Walther sobre a
possibilidade de formarem, eles e os saxões, um sínodo – uma assembléia de igrejas . Em sua
resposta, assentindo à união entre os grupos ortodoxos, Walther delineou o que pensava sobre
quais características deveria ter tal sínodo: consistiria em um corpo consultivo que,
conservando a autonomia das congregações individualmente, zelasse pela preservação e pelo
98
Citado em H. BIRKNER, Der Lutheraner from 1844 to 1847, apud Mary TODD, Authority vested…, p. 69:
“to make readers familiar with the doctrines, the treasures and the history of the Lutheran Church; furnish proof
that the Lutheran Church is indeed the ancient true Church of Christ on earth, not merely one of the Christian
sects; to be of service to its readers by teaching them how a true Lutheran, though a sinner, may be a firm
believer, live a truly Christian life, bravely bear up under the cross, and, departing this life, enter the glories of
heaven; to expose false doctrines and ungodly practices, paying particular attention to those Lutherans, wrongly
so called, who in the guise and garb of Lutheran teacher preach and disseminate error, unbelief, and
sectarianism, to the prejudice and shame of pure and Scriptural Lutheranism”; tb. apud August SUELFLOW,
The Missouri Synod Organized, p. 177-178.
99
James L. SCHAAF, Wilhelm Loehe and the Missouri Synod, p. 54-59; Walter BAEPLER, A century of grace,
p. 65-66; Mary TODD, Authority vested…, p. 65-72. O seminário de Fort Wayne converteu-se no atual
Concordia Theological Seminary, filiado à LC-MS.
117
fomento da unidade e da pureza das doutrinas da palavra de Deus e das Confissões Luteranas.
Prosseguindo com as negociações, realizaram, em 1846, um encontro em S. Louis, no qual foi
esboçado um Estatuto. O documento foi então publicado no Der Lutheraner, a fim de ser
discutido pelas comunidades antes da reunião marcada para o ano seguinte em Chicago.
100
Com algumas alterações que enfatizavam o caráter consultivo do sínodo, cujas deliberações
somente deveriam ser efetivadas depois de aceitas pelas congregações – no que ecoava ainda
o medo da dominação clerical sentido pelos saxões em decorrência de suas memórias do
episódio com Stephan –, o estatuto foi aprovado em Chicago em 26 de abril de 1847. Estava
fundado, assim, o Die Deutsche Evangelische Lutherische Synode von Missouri, Ohio, und
andern Staaten, com a participação dos Saxões e de representantes dos “homens de Löhe”
anteriormente afiliados aos Sínodos de Ohio e de Michigan. O primeiro presidente eleito: C.
F. W. Walther.
101
As razões apresentadas na convenção para a fundação do Sínodo foram as seguintes:
o exemplo da igreja apostólica; a continuação e conservação da verdadeira fé em um esforço
conjunto a fim de resistir a toda forma de divisão e sectarismo; a proteção de pastores e
comunidades em seus direitos e deveres; o zelo pela maior uniformidade possível de prática
eclesial, costumes e assuntos congregacionais; a vontade de Deus de que os dons particulares
fossem remetidos à edificação de todos; e o esforço unido para expandir o Reino de Deus e
promover os interesses especiais do Sínodo (seminário, agenda, hinários, Livro de Concórdia,
livros escolares, Bíblias, atividades missionárias, etc.).
102
O Capítulo II dos Estatutos, por sua
vez, estabelecia as “Condições sob as quais a união no Sínodo deve acontecer e a comunhão
nele continuar”:
1. Aceitação das Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos como a Palavra de
Deus escrita e a única regra e norma de fé e prática.
2. Aceitação de todos os livros simbólicos da Igreja Evangélica Luterana (a saber, os
três Símbolos Ecumênicos, a Confissão de Augsburgo inalterada, sua Apologia,
os Artigos de Esmalcalde, o Catecismo Maior e Menor de Lutero e a Fórmula de
Concórdia) como a pura, inalterada declaração e exposição da Palavra divina.
3. Renúncia a todo unionismo e sincretismo, a saber: servir a congregações mistas
(...), tomar parte em cultos ou ritos sacramentais de congregações heterodoxas ou
mistas, participar de qualquer tratado e esforços missionários heterodoxos, etc.
4. O uso exclusivo de livros escolares e eclesiásticos doutrinariamente puros
(agendas, hinários, catecismos, livros-texto, etc.) (...).
5. Chamado regular (não temporário) de pastores e eleições regulares de
representantes leigos pelas congregações, como também irrepreensibilidade de
vida de ambos, ministros e representantes.
100
August SUELFLOW, The Missouri Synod Organized, p. 142-148.
101
Mary TODD, Authority vested…p. 75-77; Walter BAEPLER, A century of grace, p. 85-99.
102
Walter BAEPLER, A century of grace, p. 94; August SUELFLOW, The Missouri Synod Organized, p. 149.
118
6. Provisão de uma educação cristã (Schulunterricht) para as crianças da
congregação.
7. Uso exclusivo da língua alemã nas convenções sinodais. Apenas convidados
devem falar em línguas diferentes do Sínodo se não puderem falar a língua alemã.
8. Desconhecidos (Unbekannte) não podem tornar-se membros do Sínodo sem que
possam se identificar propriamente a respeito de doutrina e vida.
103
As questões centrais para a pertença eram, portanto, relativas à aceitação da Bíblia e
das Confissões, à rejeição do unionismo e da heterodoxia, ao ofício pastoral, à educação e ao
cultivo da língua alemã. Como se pode perceber, as fronteiras confessionais estavam já bem
traçadas em relação àqueles que não aceitassem a “doutrina pura da Palavra de Deus
declarada nas Confissões Luteranas”, ou seja, os sectários ou heterodoxos, aos quais também
eram reservados os termos “sincretismo” e “unionismo”. Unidade e unanimidade ao redor da
doutrina pura tornavam-se, portanto, a tônica do discurso oficial do Sínodo de Missouri.
Desconhecidos deveriam, por isso, se fazer conhecidos em “doutrina e vida” – delineando-se
aqui também a influência de um controle de comportamentos impresso no Luteranismo pelo
Pietismo, além das claras preocupações doutrinárias ortodoxas. Não é difícil imaginar que tais
posturas tornar-se-iam pouco simpáticas aos olhos de observadores externos. Por sua vez, o
ofício pastoral, a educação e a manutenção da cultura alemã seriam instituições que se
destinariam, nesse contexto, à salvaguarda de tal verdade herdada por Lutero e a Igreja pura
de Cristo na terra.
Era, por outro lado, também indisfarçável uma dinâmica interna ao grupo articulada
a signos germânicos. A língua e os costumes, afinal, que davam unidade ao Sínodo eram
alemães, assim como sua religião também o era.
Ainda o traço democrático do Sínodo desde sua fundação é algo que vale observar.
O princípio organizacional acordado pela convenção ficou assim estabelecido: “Assuntos de
doutrina e de consciência devem ser decididos apenas pela Palavra de Deus; todas as outras
103
Apud August SUELFLOW, The Missouri Synod Organized, p. 149-150: “1. Acceptance of Holy Scripture of
the Old and the New Testaments as the written Word of God and the only rule and norm of faith and life. 2.
Acceptance of all symbolical books of the Lutheran Church (to wit: the three Ecumenical Symbols, the
Unaltered Augsburg Confession, its Apology, the Smalcald Articles, the Large and the Small Catechism of
Luther, and the Formula of Concord) as the pure, unadulterated statement and exposition of the divine Word. 3.
Renunciation of all unionism and syncretism, to wit: serving of mixed congregations (…), taking part in the
services and sacramental rites of heterodox or mixed congregations, participating in all heterodox tract and
missionary activities, etc. 4. The exclusive use of doctrinally pure church and school books (agendas,
hymnbooks, catechisms, textbooks, etc.) (…). 5. Regular (not temporary) call of pastors and regular elections of
lay delegates by the congregations, as also blamelessness of the life of both ministers and delegates. 6. Provision
of a Christian education (Schulunterricht) for the children of the congregation. 7. Exclusive use of the German
language in the synodical conventions. Only guests may speak in different languages to the Synod if they cannot
speak the German language. 8. Strangers (Unbekannte) cannot become members of Synod unless they can
properly identify themselves in respect to doctrine and life”. Ver tb. Walter BAEPLER, A century of grace, p.
99-100.
119
decisões devem ser pelo voto da maioria”.
104
Tais características não podem ser confundidas,
porém, com um espírito de democratização mais amplo característico dos EUA e de seu
Cristianismo. O grupo do qual estamos tratando constituía-se de pessoas recentemente
chegadas ao país e que estavam dispostas a preservar a cultura, a herança e a fé que haviam
aprendido na terra natal. Sua “americanização” seria posterior. Além disso, a forma de
governo eclesiástico do Sínodo, apesar do traço democrático, confirmava o clero em posição
de liderança. Da diretoria eleita, por exemplo, apenas o tesoureiro era um leigo, sendo que a
real autoridade era retida pelo presidente. As características democratizantes devem, por isso,
ser vistas como reação e resistência dos saxões às experiências que haviam tido com o
excesso de hierarquização clerical no período em que estiveram sob a mão de Stephan.
105
O
modelo de organização que se constitui nesse momento pode, assim, ser visto como um tipo
de democracia congregacional tutelada, a qual teria posteriormente também seus ecos no
Brasil.
Decorrência significativa da aprovação do Estatuto quando da fundação do Sínodo,
foi a controvérsia que se gerou justamente com seu patrono, Wilhelm Löhe. Como vimos
anteriormente, o confessionalista da Bavária tinha o ofício pastoral em alta consideração em
sua teologia. Não ficou, por isso, satisfeito com os rumos democratizantes que tomava, com a
aquiescência dos seus, o recém nascido Sínodo de Missouri. Assim, apesar das tentativas de
reaproximação efetuadas, inclusive com a ida de Walther e Wyneken ao encontro de Löhe em
Neuendetelsau, o rompimento terminou por acontecer. Löhe temia por uma falta de ordem dos
poderes eclesiais. E, ao passo que para ele, no contexto da Igreja Estatal Alemã, o ministério
era um elevado ofício instituído por Deus, o qual era seu único responsável; para Walther,
longe das estruturas burocráticas germânicas, havia de existir primeiramente a congregação, e
somente então o ministério pastoral. A comunidade era a dignatária do ofício de seu pastor.
104
Constitution of the German Evangelical Lutheran Synod of Missouri, Ohio, and other States [Estatuto do
Sínodo Evangélico Luterano Alemão de Missouri, Ohio e outros Estados], 1847, artigo III, Apud Mary TODD,
Authority vested…, p. 77: “Matters of doctrine and of conscience shall be decided only by the Word of God; all
other decisions shall be by majority vote”.
105
Mary TODD, Authority vested…, p. 77-78. Categórico a respeito do tipo de poder hierárquico que continuava
instalado no Sínodo desde as políticas desenvolvidas por Walther é Carl S. MUNDINGER, Government in the
Missouri Synod…,, p. 203: “True, their authority in constitutional matters was not so much the Word of God as it
was the word of Luther and the sixteenth- and seventeenth-century dogmaticians. The doctrine of the priesthood
of all believers came from the writings of Martin Luther. These writings, not the Bible, were the source from
which they took their polity” [“De fato, sua autoridade em matérias constitucionais era menos a Palavra de Deus
que a palavra de Lutero e dos dogmáticos dos séculos dezesseis e dezessete. A doutrina do sacerdócio de todos
os crentes veio dos escritos de Martinho Lutero. Esses escritos, não a Bíblia, eram a fonte da qual extraíam sua
forma de governo”]; tb. p. 209: “Any democratic political theories which the founders of the Missouri Synod
might have entertained, they did not get from America, but from the same source from which they derived their
theology and church polity, viz., from the writings of Martin Luther”; [“Quaisquer teorias políticas democráticas
que os fundadores do Sínodo de Missouri tenham nutrido, não foram tomadas da América, mas da mesma fonte
de onde extraíram sua teologia e forma de governo eclesiástica, a saber, dos escritos de Lutero”].
120
Walther construíra sua teologia do ministério a partir da reedificação de sua comunidade
migrante na crise em que se envolvera no momento pós-Stephan. Segundo sua perspectiva,
assim, a necessidade do ofício pastoral se dava em função de que nem todos em seu chamado
ao sacerdócio universal podiam exercer as funções públicas do ministério. Para isso, a
congregação transferia o ofício e a autoridade ao pastor através do chamado pastoral divino.
Nessa visão, um ministro só existia em uma respectiva congregação.
106
Em meio a esta e outras controvérsias, o Sínodo de Missouri foi, sob o comando de
Walther durante a segunda metade do século XIX, constituindo sua identidade como
organização. Considere-se, nesse sentido, que em termos religiosos o território estadunidense
da época era bastante dividido, e que os luteranos eram, naquele contexto, numericamente
menores que os metodistas, os batistas, os presbiterianos, os congregacionalistas e os
episcopais, ficando, portanto, somente um pouco à frente dos católicos.
107
A identidade oficial
do grupo foi, assim, sendo negociada no conflito do campo religioso, no sentido de
Bourdieu,
108
numa luta por auto-preservação e afirmação em uma sociedade que era da
mesma forma diversa e dividida política, geográfica, econômica e etnicamente. Além das
disputas identitárias internas, portanto, ainda diversas outras formas de identidade estavam em
negociação naquela recente nação.
109
No caso do Sínodo de Missouri, a tônica dada ao discurso oficial do grupo foi de que
as doutrinas já estavam estabelecidas biblicamente por Deus e que não havia espaço para
discordância ou questões abertas. Tais características foram sendo intensificadas quando
outros luteranos estadunidenses, como Samuel Schmucker, à guisa de união, passaram a
buscar pelos pontos essenciais das Confissões, propondo que se deixasse de lado aqueles que
não fossem tão importantes – como acontecera na União Prussiana. Também quando Walther,
sob acusação de Calvinismo em um debate sobre predestinação (envolvendo, portanto, o
assunto da justificação pela fé), reagiu, sempre em sua predileção pela forma intelectualista
das teses, aclarando qual era em sua visão a única posição possível de acordo o “puro e
escriturístico Luteranismo”. A rigidez de Walther ia, nesse andamento, afastando cada vez
106
James L. SCHAAF, Wilhelm Loehe and the Missouri Synod, p. 59-64; Mary TODD, Authority vested…, p.
79-86. Cf. Schaaf, p. 59 e 64, perceba-se que dentre os 41 pastores que fundaram o Sínodo em Chicago, 21
haviam sido enviados por Löhe aos EUA. No total, 84 (!) homens enviados por Löhe fizeram parte do ministério
ativo do Sínodo de Missouri. Tb. cf. Gerhard H. MUNDINGER, Wilhelm Löhe, p. 10, 14-15, a ruptura entre
Löhe e a LC-MS deu-se mais por uma distinção do que por uma diferença de opiniões; outras tantas razões
concorreram também para tal, inclusive o falecimento da esposa de Löhe e a visível auto-sustentabilidade do
sínodo estadunidense.
107
Jean-Pierre MARTIN, La religion aux Etats-Unis, p. 67-76.
108
Pierre BOURDIEU, Gênese e estrutura do campo religioso, p. 50.
109
Mary JUNQUEIRA, Estados Unidos: a consolidação da nação, p. 27-28.
121
mais o Sínodo dos demais grupos luteranos e protestantes estadunidenses. Unidade deveria
ser unidade em todos os pontos. Aos dissidentes e sectários, os que não tinham a doutrina
pura de Lutero, não se estenderia a destra da comunhão.
110
Como vemos, também, nas
palavras de Walther, de 1868, em documento aceito oficialmente pelo Sínodo, sob o tema “A
Igreja Evangélica Luterana, a verdadeira Igreja visível de Deus na terra”:
Tese I
A única santa Igreja Cristã na terra, ou a Igreja no sentido próprio da palavra, fora
da qual não há salvação, é, de acordo com a Palavra de Deus, a soma de todos que
crêem verdadeiramente em Cristo e são santificados através desta fé.
Tese II
Ainda que a única santa Igreja Cristã, enquanto templo espiritual, não possa ser
vista mas apenas crida, existem de fato marcas externas infalíveis através das
quais sua presença é conhecida, cujos sinais são a pregação pura da Palavra de
Deus e a administração inadulterada dos santos Sacramentos. (...)
Tese V
Comunhões que ainda mantenham essencialmente a Palavra de Deus mas que
falhem obstinadamente nos fundamentos;
NA MEDIDA EM QUE assim procedem, não
são, de acordo com a Palavra de Deus, igrejas, mas cismas ou seitas, ou seja,
comunhões heréticas. (...)
Tese X
A Igreja Evangélica Luterana é a soma de cada acordo confessional
irrestritamente baseado na pura Palavra de Deus, do ensinamento trazido
novamente à luz através da Reforma de Lutero e entregue sumariamente por
escrito ao Imperador e ao Império em Augsburgo em 1530 e repetido e expandido
nos demais assim chamados símbolos luteranos. (...)
Tese XIV
A Igreja Evangélica Luterana mantêm firmemente a clareza da Escritura. (Não
existem “pontos de vista” e “questões abertas”.) (...)
Tese XVI
A Igreja Evangélica Luterana aceita a Palavra de Deus como ela se interpreta a si
mesma. (...)
C
A Igreja Evangélica Luterana reconhece apenas o sentido literal como o
verdadeiro sentido. (...)
Tese XXIII
Verdadeiras igrejas luteranas são apenas aquelas em que o ensinamento da Igreja
Evangélica Luterana, como formulado em seus Símbolos, não for apenas
reconhecido oficialmente mas estiver também em voga na pregação pública (...).
Tese XXIV
A Igreja Evangélica Luterana mantêm comunhão em confissão e caridade com
todos que na fé estiverem de acordo com isso (...).
Tese XXV
A Igreja Evangélica Luterana possui assim todas as marcas essenciais da
verdadeira Igreja visível de Deus na terra, como não encontrados em nenhuma
outra comunhão conhecida, e portanto não necessita de reforma alguma na
doutrina.
111
110
Mary TODD, Authority vested…, p. 89-92.
111
Apud W. M. DALMANN et alii (eds.), Walther and the church, p. 117: “Thesis I: The one holy Christian
Church on earth, or the Church in the proper sense of the word, outside of which there is no salvation, is,
122
Definia-se, portanto, oficialmente, uma identidade ao redor da doutrina, como se
havia estabelecido também a forma de governo do Sínodo. A verdadeira igreja era a que
aceitasse o sentido literal da pura palavra inadulterada de Deus. Como tal Palavra era por
Deus inspirada, e interpretava-se a si mesma, não existiam questões abertas à discussão. Os
que assim não procedessem eram considerados sectários e com eles não se deveria ter
comunhão. A Igreja Luterana verdadeira, por sua vez, era, assim, a que tinha como nenhuma
outra as marcas essenciais da pureza do evangelho. Identidade e discurso teológico estavam,
assim, amarrados institucionalmente.
A teologia necessária para tais estruturações identitárias e organizacionais era
extraída por Walther da Bíblia, de Lutero, das Confissões e dos teólogos ortodoxos, com clara
predileção, entretanto, por Lutero. Dizia o líder missouriano sobre o reformador: “Estou
firmemente convencido de que Lutero era o anjo que tinha de voar por entre os céus da igreja
com o Evangelho eterno e de proclamar julgamento. Por esta razão, ele é o último arauto da
verdade integral para toda a cristandade antes do Dia Derradeiro”.
112
A teologia de Lutero,
como interpretada por Walther, ia, assim, se constituindo como norma e critério de doutrina,
fé e prática para a identidade missouriana em construção. Tal teologia era, entretanto,
identificada às Confissões, as quais, por sua vez, estabeleciam o que vinha a ser “a”
verdadeira igreja.
Quanto ao universo social não diretamente relacionado à religião e à igreja, ou seja,
o Estado, a política, a economia, o pensamento de Walther encontrava lugar na já referida
doutrina dos dois reinos. No ambiente de seu pensamento, uma congregação cristã, por
according to God’s Word, the total of all that truly believe in Christ and are sanctified through this faith”;
“Thesis II: Though the one holy Christian Church, as a spiritual temple, cannot be seen but only believed, yet
there are infallible outward marks by which its presence is known; which notes are the pure preaching of God’s
Word and the unadulterated administration of the holy Sacraments”; p. 119: “Thesis V: Communions still
holding God’s Word essentially but erring obstinately in fundamentals;
IN SO FAR as they do so, are, according to
God’s Word, not churches but schisms or sects, i.e., heretical communions”; p. 121: “Thesis X: The Ev.
Lutheran Church is the total of all unreservedly confessing agreement with the pure Word of God, of the
teaching brought again to light through Luther’s reformation and delivered summarily in writing to Kaiser and
Reich at Augsburg in 1530 and repeated and expanded in the so-called Lutheran symbols”; p. 123: “Thesis XIV:
The Ev. Lutheran Church holds fast to the clearness of Scripture. (There is no ‘views’ and ‘open questions.’)”; p.
124: “Thesis XVI: The Ev. Lutheran Church accepts God’s Word as it interprets itself. (…)”; p. 126: “C: The
Ev. Lutheran Church acknowledges only the literal sense as the true sense”; p. 127: “Thesis XXIII: True Ev.
Lutheran Churches are those only in which the teaching of the Ev. Lutheran Church, as laid down in its Symbols,
is not only acknowledged officially but is also in vogue in the public preaching (…)”; “Thesis XXIV: The Ev.
Lutheran Church holds fellowship in confession and charity with all at one with it in faith (…)”; p. 128: “Thesis
XXV: The Ev. Lutheran Church has thus all the essential marks of the true visible Church of God on earth as
they are found in no other known communion, and therefore it needs no reformation in doctrine”.
112
C. F. W. WALTHER, Walther to A. F. Hope: a letter, p. 83: “I am firmly convinced that Luther was the angel
who had to fly through the midst of the heavens of the church with the eternal Gospel and had to proclaim
judgment. Therefore, he is the last herald of the full truth for all Christendom before the Last Day”.
123
exemplo, em sua forma ideal, devia organizar-se separada e independentemente do Estado.
No parágrafo segundo de seu “A forma correta de uma Comunidade Evangélica Luterana
independente do Estado”, publicado em 1863, atestava: “Uma congregação é independente do
Estado quando o Estado permite a tal congregação governar a si mesma em todas as
coisas”.
113
Conforme Walther, a separação entre Igreja e Estado não era uma irregularidade,
mas a condição normal e adequada de uma legítima congregação cristã. O argumento
continuava pela citação da Augustana: “Pois a administração política trata de coisas diferentes
das do evangelho. (...) Não se devem confundir, por isso, o poder eclesiástico e o civil”.
114
Decorria também dessa concepção a idéia de Walther acerca da relação adequada
entre os pastores e a política. Para ele, a preocupação dos pastores deveria estar relacionada
não com este mundo, mas com o mundo vindouro.
É verdade, meus irmãos, que política não é da conta dos teólogos. Nem têm os
ministros do Evangelho nenhum assunto a tratar sobre questões econômicas, ainda
que estas possam afetar a sociedade humana. Não temos o menor desejo de lidar
com isso. (...) Elas [as questões políticas e econômicas] não pertencem à nossa
profissão e chamado. Entretanto, se aqueles que clamam ser escritores políticos
tagarelam sobre religião, seríamos covardes e traidores da verdade se não
abríssemos nossas bocas.
115
As instâncias estavam, para Walther, bem delimitas. O reino secular e o espiritual,
cada qual com seus trâmites. A participação política ficaria, em princípio, no campo da
liberdade individual de cada cristão. Na prática, porém, as posturas dos missourianos
tenderam de um modo geral ao conservantismo. Walther, por exemplo, era ligado à corrente
democrata e posicionava-se “pró-Sul” e contra o abolicionismo, ao qual considerava filho do
Racionalismo e do Ateísmo e irmão do Socialismo e do Comunismo. Argumentava que se a
escravidão estava tolerada na Bíblia, um cristão não podia considerá-la moralmente má. A
base do argumento, portanto, era não sua simpatia pela escravidão ou pelo Sul do país, mas
advinha de sua teologia. Argumentava, além disso, que se um cristão fosse convocado a pegar
em armas, mesmo que se tratasse de uma guerra injusta, era seu dever cristão obedecer ao
113
C. F. W. WALTHER, “Die rechte Gestalt einer vom Staate unabhaengigen Evangelisch-Luterischen
Ortsgemeinde” apud W. M. DALMANN et alii (eds.), Walther and the church, p. 89: “§ 2. A congregation is
independent of the State when the State leaves it to such congregation in all things to govern itself”.
114
CA, XXVIII-11-12, p. 88.
115
Apud Carl S. MUNDINGER, Government in the Missouri Synod…, p. 208-209: “It is true, my brethren, that
politics are of no concern to theologians. Nor have ministers of the Gospel any business to hold forth on
economic questions, even though they may affect human society. We haven’t the least desire to do so. (…) They
do not belong to our profession and calling. However, if those who claim to be political writers babble in
religion, we would be cowards and traitors of the truth if we did not open our minds”.
124
governo.
116
Tais concepções que levam a uma postura de submissão às autoridades por parte
do indivíduo e a uma visão do universo político como não pertencente ao campo de ação da
Igreja e dos pastores são em grande medida asseguradas até os dias atuais, tanto na LC-MS,
quanto na IELB.
A despeito disso, ao final do século XIX, o Sínodo crescera fenomenalmente,
possuía duas escolas de teologia, nas quais formava seus próprios pastores, produzia suas
próprias publicações e se estabelecera firmemente no cenário luterano e protestante
estadunidense. A mão forte de Walther, por cerca de 20 anos presidente do Sínodo e 37 anos
professor de teologia no Seminário Concórdia de Saint Louis, seria sentida ainda por muito
tempo (e de fato ainda o é), tanto no Sínodo de Missouri, quanto entre as missões
desenvolvidas pelo grupo no exterior, entre estas a missão brasileira. Como bem se atestou em
uma enciclopédia em meados do século XX: “A forte, bem organizada, doutrinariamente
segura Igreja Luterana-Sínodo de Missouri de nosso tempo registra-se como a imagem
refletida de Walther”,
117
o “American Luther”.
O caráter conservantista do Sínodo de Missouri pode, em parte, por outro lado, ser
explicado por sua condição imigrante e por seu isolacionismo. Ao chegar aos EUA, os
imigrantes tenderam a um esforço pela manutenção das coisas como elas eram na “terra mãe”.
Nisso, a única maneira de preservar a igreja imigrante era a transferência completa do sistema
religioso luterano “à moda antiga” para o novo mundo. A defesa agressiva desse padrão foi a
conseqüência decorrente em meio ao ambiente religioso que encontraram nos EUA, o qual
concluíam estar em degradação. Para a preservação de sua comunidade em tal ambiente,
construíram escolas, cultivaram o idioma alemão, fundaram uma editora, afastaram-se do
Estado e mergulharam na construção de sua identidade confessional, tendendo, pela auto-
diferenciação, ao isolamento. Para cada lado que olhavam, os líderes imigrantes viam
tormento e hostilidade, real ou imaginária, do que resultou uma forte e profunda auto-
consciência. O conservantismo era a forma para preservar sua identidade. Cada arma possível,
teológica, social ou cultural, deveria ser empenhada nessa luta por sobrevivência grupal em
um ambiente hostil.
118
Tais traços seriam arrefecidos, é verdade, nos processos que o grupo
experimentou durante o século XX. Permaneceriam, porém, como marcas, como arquétipos, a
delinear um ethos também transportado ao Brasil.
116
Frederick LUEBKE, Politics and Missouri Synod Lutherans: a historiographical review, p. 150-151; tb.
Altman K. SWIHART, Luther and the Lutheran church, p. 407.
117
Gerhard E. LENSKI, Walther, Carl Ferdinand Wilhelm, p. 2455: “The strong, well organized, doctrinally sure
LC-MS of our day stands on the record as the reflected image of Walther”.
118
Frederick C. LUEBKE, The immigrant condition as a factor contributing to the conservatism of the Lutheran
Church, p. 20-27.
125
Tal identidade em construção não foi, porém, compartilhada absolutamente por
todos e em todos os tempos, como atestam as próprias controvérsias externas e internas ao
Sínodo. É pouco provável, também, que mesmo os mais fiéis e ortodoxos confessionalistas da
LC-MS tenham concordado em todos os pontos sempre. Uma pluralidade de interpretações
deve ter sido experimentada especialmente em meio às comunidades em suas atividades
cotidianas. Conforme Luebke, por exemplo, a ênfase na dimensão confessional não deve ter
sido de grande significado ao imigrante saxão do século XIX. O importante seria para ele, isso
sim, o convívio comunitário, a língua alemã, a comunhão dos compatriotas e o aconchego dos
costumes que lhe eram familiares. O leigo mediano estava, nesse sentido, geralmente pronto
a reconhecer a liderança teológica de seu pastor, tanto em termos de dogma, quanto de
prática.
119
Olhando com cuidado, mesmo em Walther vamos encontrar o que alguns
antropólogos por vezes chamam de “paradoxos”. Em uma carta, por exemplo, a um ex-aluno,
na qual tratava do tema da usura, Walther, que pouco entendia de economia mas bastante de
teologia, repudiou tal prática capitalista, com base novamente em Lutero e nas Escrituras. O
interessante nos meandros do tema é que apesar de seu cunhado, Keyl, ter sustentado posição
diferente, Walther manteve comunhão com ele. Ainda que entendesse que a posição de Keyl
estava em desacordo com as Escrituras, Walther não via na controvérsia motivo de
separação.
120
Se levarmos, assim, em conta a supramencionada e, pelos missourianos, tão
alardeada idéia de que a doutrina estava por Deus revelada e não se poderia sustentar união
sem unidade, apreciaremos nesse caso um interessante quadro das múltiplas identidades
negociadas em questão, ainda que se tratasse de um adiáforo.
Tal constatação não deve obliterar, porém, a centralidade das configurações do
século XIX, entre a Alemanha e os EUA, para os desenvolvimentos da IELB: a identidade
confessional cunhada com mão de ferro por Walther e seus discípulos é ainda fundamental
para a compreensão da atividade missouriana no Brasil do século XX.
Antes de adentrarmos à análise do início das atividades missourianas no Brasil,
cabe, porém, traçarmos um quadro do contexto político-religioso que os pastores do Sínodo
encontraram entre os imigrantes teutos em terras brasileiras.
119
Frederick C. LUEBKE, The immigrant condition as a factor contributing to the conservatism of the Lutheran
Church, p. 23-24.
120
Robert KOLB, “No Christian would dare practice usury”, a Walther letter on charging interest, p. 128-131.
126
8. A imigração alemã e os primórdios do Luteranismo no Brasil
Cerca de 3,8 milhões de estrangeiros ingressaram no Brasil entre os anos de 1887 e
1930. Destes, 72% o fizeram entre 1887 e 1914, momento em que, em função da I Guerra,
houve uma redução do fluxo migratório.
121
Na soma total da imigração, contabilizando a
retomada do fluxo com o fim da guerra, os alemães, os quais iniciaram sua peregrinação ao
Brasil em 1824, foram o quarto grupo. Muito aquém, assim, dos italianos (1.513.151),
portugueses (1.462.117) e espanhóis (598.802), os alemães somaram cerca de 250 mil
indivíduos.
122
Destes, até 1939, por volta de 75.000 se dirigiram ao Rio Grande do Sul.
123
A
fé luterana veio ao Brasil na bagagem desses imigrantes.
124
Em se tratando das políticas alemãs, até 1820 a questão da emigração foi vista como
um assunto interno a cada Estado. A partir de 1840, entretanto, com o crescente nacionalismo,
passou-se a encarar a emigração como algo de importante significado para o conjunto da
nação alemã. A ida de alemães para o exterior deveria servir aos interesses do povo e do
Estado germânicos. A idéia era de que, por um lado, as pessoas emigradas deveriam constituir
um campo de ampliação do mercado e da economia alemãs e, por outro, de que através destas
ligações econômicas se fortalecessem as ligações culturais e a preservação da língua e da
cultura alemãs. O sul do Brasil e a bacia do Prata estiveram, assim, para a Alemanha, como os
Estados Unidos para a Inglaterra: eram uma Neudeutschland über See, uma nova Alemanha
no além-mar. Nesse esforço, especialmente a partir da última década do século XIX, os
alemães passaram a desenvolver políticas de emigração, ora bem, ora mal sucedidas, para a
América do Sul. Era uma época em que milhares de pessoas partiam anualmente de uma
Alemanha sobrepovoada rumo aos Estados Unidos, sem que os governos alemães colocassem
empecilhos, como faziam com o Brasil, em função da falta de proteção legal aos
imigrantes.
125
De uma ou de outra forma, porém, o processo de imigração alemã ao Brasil
aconteceu, abrindo-se nele a possibilidade da ação missouriana no sul das Américas.
121
Boris FAUSTO, História do Brasil, p. 275.
122
Giralda SEYFERTH, Imigração e colonização alemã no Brasil: uma revisão bibliográfica, p. 3; tb. cf. dados
de J. Fernando CARNEIRO apud René GERTZ, O fascismo no sul do Brasil, p. 15, entre 1824 e 1949, 233.392
alemães ingressaram no Brasil.
123
Jean ROCHE, A colonização alemã e o Rio Grande do Sul, p. 109.
124
Houve, por certo, outros luteranos e protestantes, bem como luteranos de outras ascendências étnicas ou
nacionais que não a germânica, que vieram ao Brasil antes deste período. Todavia, o Luteranismo de base alemã
teve sua inserção brasileira marcadamente no contexto do fluxo migratório que se iniciou em 1824. É a esta
movimentação que estaremos nos referindo.
125
Jorge Luiz da CUNHA, A Alemanha e seus imigrantes: questões nacionais, p. 17-20.
127
No plano da política interna brasileira, Martin Dreher assinala que a imigração
aconteceu no contexto de alguns objetivos político-econômicos, a saber: o branqueamento da
raça; a eliminação dos indígenas; a ocupação dos territórios do sul, em contínuo litígio entre o
Império e os Estados do Prata; a valorização fundiária de terras baixas e pouco produtivas; a
construção e conservação de estradas; a instrumentação de mão-de-obra barata; e a formação
de uma classe média nacional, tão necessária ao projeto liberal-modernizador.
126
Também conforme o autor, ao analisar dados da colônia de São Leopoldo, percebe-
se que, apesar de entre esses imigrantes ter havido uma pluralidade de profissões ligadas ao
artesanato, a maioria acabou por se dedicar no estado gaúcho à agricultura.
127
Somente em
anos posteriores o artesanato viria a constituir uma fonte de renda mais estruturada, articulada
ao desenvolvimento comercial.
128
Inicialmente, os alemães emigrados, deixados ao léu pelos poderosos das
administrações centrais, se organizaram como puderam. Construíram suas escolas, suas
igrejas e congregações, e elegeram os pastores e professores que consideravam dignos. A vida
religiosa, nesse sentido, passou por um período de difícil auto-gestão, acostumados que
estavam os imigrantes aos meandros da Igreja Estatal Alemã. Pouquíssimos pastores com
treinamento teológico haviam de fato emigrado. Surgiu então a figura do “pastor-colono”, que
ao lado de suas atividades na agricultura desempenhava o ofício religioso de sua comunidade.
Muitas das vezes, tais pastores assumiam também as funções de mestre-escola, atuando como
professores.
129
Nesse contexto, firmava-se entre as comunidades um forte independentismo,
que se tornaria uma marcante característica.
Quando os objetivos dos Estados alemães se foram transformando após a queda de
Bismarck e surgiu o interesse de que os alemães emigrados não perdessem sua
“germanidade”, idéia que passava a ser cultivada também em solo brasileiro, os caminhos
escolhidos para tal preservação e construção identitária foram “a imprensa alemã, a escola
alemã, as congregações e igrejas de fala teuta e a marinha alemã”.
130
A partir de então, a
Igreja Estatal passou a enviar pastores ordenados para auxiliar os germânicos na diáspora
126
Martin DREHER, Os protestantismos rio-grandenses, p. 250.
127
Idem, O desenvolvimento econômico do Vale do Rio dos Sinos, p. 69-70.
128
Eliseu TEICHMANN, Imigração e igreja: as comunidades-livres no contexto da estruturação do luteranismo
no Rio Grande do Sul, p. 31-32.
129
Martin DREHER, História do povo luterano, p. 52; Eliseu TEICHMANN, Imigração e igreja ..., p. 31-32:
até os primeiros decênios do século XX, os pastores-livres eram ainda a maioria numérica entre os pastores no
Rio Grande do Sul; citando Stysinsky, Teichmann enumera diferentes profissões exercidas pelos pastores-livres:
“artesãos, operários, comerciantes, jornalistas, comediantes, professores, mecânicos, enfermeiros, agricultores e
oficiais do exército alemão”.
130
Martin DREHER, Igreja e germanidade, p. 44.
128
brasileira. Assim também o fizeram algumas associações missionárias alemãs, uma delas a
Associação da Caixa de Deus Luterana, fruto dos esforços de Wilhelm Löhe e de seus
continuadores.
131
Com a chegada de tais pastores formados em seminários teológicos ou em
universidades, os pastores-colonos passaram a ser por eles designados pejorativamente de
“pseudopastores” ou “pastores cachaceiros”, instaurando-se uma disputa de poder pelo
controle do discurso religioso, a qual seria também experimentada anos depois pelos
missourianos.
Em 1868, uma primeira tentativa de superar esse “período congregacional” se deu
pela formação de um Sínodo, implementado pelo pastor Dr. Hermann Borchard. Sem,
contudo, o apoio dos pastores e da Igreja-Mãe alemã, o esforço resultou frustrado. Somente
em 1886, a idéia ganhou concretude, com a fundação do Sínodo Riograndense através da
liderança do pastor Dr. Wilhelm Rotermund. Tratava-se de uma organização inicialmente
independente do Estado e sem um claro enunciado confessional, que se referia somente de um
modo geral às Escrituras e aos Escritos Confessionais da Reforma Alemã. Em sua
constituição o Sínodo já se apresentava, na verdade, diverso; por um lado, em função da
composição variada de seu corpo de pastores em termos confessionais, territoriais e de
formação – uns advindos de experiência acadêmica universitária, outros preparados em
escolas de missão; por outro, em função da tendência à autonomia apresentada por parte das
congregações, que já se haviam acostumado à auto-gestão.
132
Fato importante nesse percurso se deu quando, em 1901, em função de dificuldades
financeiras, o Sínodo recomendou que suas comunidades se filiassem também ao Conselho
Superior Eclesiástico Evangélico de Berlim, sob o qual estavam a Igreja Evangélica da
Prússia, a Sociedade Missionária de Basiléia (Suíça) e a Sociedade Evangélica para os
Alemães Protestantes na América (Barmen), da qual provinham recursos humanos e
financeiros para o Brasil. A conseqüência de tais filiações foi a intensificação dos sentimentos
de germanidade entre os imigrantes luteranos, sentimentos que se aprofundaram ainda mais a
partir de 1933.
133
O idioma alemão, nesse contexto, era um fator poderoso de articulação,
como eco do Idealismo e do Romantismo alemães a promover uma identificação entre
Protestantismo e germanidade.
134
131
Hans-Jürgen PRIEN, Formação da Igreja Evangélica no Brasil, das comunidades teuto-evangélicas de
imigrantes até a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, p. 75-80.
132
Idem, p. 98; tb. Roberto RADÜNZ, A terra da liberdade, p. 182-206; tb. Eliseu TEICHMANN, Imigração e
igreja ..., p. 45-66.
133
Martin DREHER, História do povo luterano, p. 53-56.
134
Dagmar E. Estermann MEYER, Língua e religião como instituintes da nacionalidade: cultura teuto-brasileiro-
evangélica no Rio Grande do Sul, p. 203-205.
129
Esforços de união semelhantes ao do Sínodo Riograndense desembocaram também
no surgimento de outras organizações, a saber, o Sínodo Evangélico Luterano de Santa
Catarina, Paraná e outros Estados da América do Sul (de 1905 – ligado à Caixa de Deus
Luterana), a Associação de Comunidades Evangélicas de Santa Catarina e Paraná (de 1911) e
o Sínodo Evangélico do Brasil Central (de 1912). Houve, entretanto, algumas comunidades
que se mantiveram sem filiação a esses sínodos: são as ditas Comunidades Livres
(Freigemeinden), existentes até os dias atuais.
135
A união dos quatro sínodos, em 1950,
resultou na Federação Sinodal, embrião da atual IECLB. A fundação dos Sínodos, perceba-se,
deveu-se assim à ação dos pastores formados e ordenados, e não dos representantes leigos das
comunidades, os quais mantiveram um papel secundário. Aos leigos coube, contudo, a
manutenção material de tais estruturas. As comunidades que surgiram com a atividade dos
missourianos ou que a eles se uniram não foram a exceção a tais características.
136
9. O início das atividades do Sínodo de Missouri no Brasil
Em relação ao início das atividades missourianas no Brasil, a primeira menção que
se deve fazer é ao pastor Johann F. Brutschin (1844-1919). Nascido na Alemanha, Brutschin
veio, em 1867, ao Brasil enviado pela Sociedade Evangélica para os Alemães Protestantes na
América (a Sociedade de Barmen). Foi assistente do pastor H. Borchard e participou da
fundação do Sínodo Riograndense, ao qual serviu como pastor por cerca de 20 anos nas
redondezas do Vale dos Sinos, região de São Leopoldo. Após algumas desavenças, contudo,
Brutschin havia, em 1890, se desligado do Sínodo Riograndense. Algum tempo depois, na
virada do século, pensando em aposentar-se e não querendo suas comunidades e escola
atendidas pelos riograndenses, o pastor passou a procurar ajuda no exterior. Sem sucesso
junto à Associação da Caixa de Deus, recorreu então ao Sínodo de Missouri, do qual tivera
conhecimento através de um pastor missouriano que lhe remetia o Der Lutheraner.
137
O Sínodo de Missouri, por sua vez, entre os anos de 1878 e 1899, fora presidido pelo
Rev. Heinrich Schwan, o qual, antes de ir da Alemanha aos Estados Unidos, servira na Bahia,
de 1844 a 1850, como pastor e professor de um fazendeiro alemão, na localidade de
135
Ver, para isso, Eliseu TEICHMANN, Imigração e igreja ..., passim.
136
Ricardo W. RIETH, Luteranismo rio-grandense no século 20: da independência à institucionalização, p. 286;
tb. idem, Igreja Evangélica Luterana do Brasil: uma abordagem histórica, p. 47; tb. para uma perspectiva dos
dois grupos ver: idem, Dois modelos de igreja luterana: IECLB e IELB.
137
Mário L. REHFELDT, Um grão de mostarda, a história da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, p. 26-27;
Ricardo W. RIETH, Luteranismo rio-grandense no século 20..., p. 287; tb. idem, Igreja Evangélica Luterana do
Brasil..., p. 49.
130
Leopoldina, tendo também pregado nas redondezas, inclusive em Salvador. Schwan levara do
Brasil uma imagem de indiferentismo religioso por parte dos alemães que encontrara e nutria
poucas esperanças de êxito de um trabalho missionário entre eles. Sendo assim, apesar de
algumas matérias publicadas no Der Lutheraner e no The Lutheran Witness sobre o Brasil e
as possibilidades missionárias que se apresentavam entre os imigrantes alemães que nele
viviam “sem cuidado espiritual adequado”, nada fora feito contra a vontade de Schwan.
Quando, porém, em 1889, assumiu a presidência o rev. Franz Pieper (que fora discípulo de
Walther), a situação se transformou. A partir daí foram levantados fundos e decidiu-se em
Convenção pelo início das atividades na América do Sul, especialmente no Brasil e na
Argentina. Nesse sentido, como sustenta Rehfeldt, a vinda do Sínodo de Missouri ao Brasil
não se deu primeiramente em função do pedido de Brutschin (o qual foi recebido, ao que tudo
indica, após a referida Convenção), mas deve-se antes a um senso de responsabilidade para
com luteranos alemães tidos como em “situação de abandono”. Tratava-se, assim, de um
grupo de imigrantes alemães com intenção de auxiliar a outro grupo semelhante ao seu. Em
março de 1900, embarcou rumo ao Brasil o primeiro pastor missouriano, o rev. C. J.
Broders.
138
O pastor Broders, que servira como capelão do exército estadunidense em Cuba
durante a guerra hispano-americana, veio ao Brasil na qualidade de “preposto” do Sínodo por
um período de até dois anos. Em Novo Hamburgo foi recebido por Brutschin e passou a
analisar e avaliar as condições para a abertura de um campo missionário entre os imigrantes
alemães. Suas avaliações sobre a economia local, as atividades do Sínodo Riograndense, os
“pseudopastores”, a situação escolar e o envolvimento dos alemães na maçonaria foram
enviadas aos EUA. O primeiro baque sofrido por Broders foi relativo à questão econômica.
Devido à precária situação dos imigrantes, concluía o pastor: “a missão no Brasil não custará
pouco ao Sínodo. Por longos anos essa missão vai ter que ser sustentada pelo Sínodo de
Missouri”.
139
Conforme o relatório, o Sínodo de Missouri havia também chegado tarde
demais em relação aos “irresponsáveis” riograndenses e os pseudopastores. Todos os postos-
chave estavam já ocupados, dizia Broders. Além disso, conforme o pastor, os imigrantes só
queriam saber de divertimentos, bailes, festas, bebidas, sensualidade e prazeres: “Nunca vi tal
degradação dos costumes. O indiferentismo religioso predomina. Para eles, pouco importa se
a igreja fechar suas portas por falta de freqüência, mas o salão de baile não pode fechar, daí a
138
Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, fatos históricos da Igreja Evangélica Luterana do Brasil: 1900-1974,
p. 09-13; Mário L. REHFELDT, Um grão de mostarda..., p. 29-33.
139
Apud Walter O. STEYER, Os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e o luteranismo, p. 27.
131
necessidade de freqüentá-lo assiduamente”.
140
A culpa por tamanha degeneração devia-se, em
parte, conforme o pastor, ao clima tropical (!). Também a situação escolar estava péssima e,
ademais, o Sínodo não haveria de tolerar em suas fileiras os muitos maçons que havia entre os
alemães. Diante do exposto, concluía por não recomendar o Brasil como campo
missionário.
141
Broders dirigiu-se então para o sul do estado, rumo ao porto de Rio Grande, de onde
partiria de volta aos Estados Unidos. Na região de Rio Grande, entretanto, encontrou, na
localidade de São Pedro (arredores de Pelotas), um grupo de imigrantes teuto-russos, entre os
quais o Sínodo Riograndense não havia ainda iniciado alguma atividade. Tendo sido levado
até um líder leigo de nome August Gowert, homem versado nas Escrituras, o pastor
estadunidense foi entrevistado sobre assuntos doutrinários a fim de que o líder local pudesse
ter certeza de que de fato se tratava de um “pastor real”. Aprovado no teste, Broders propôs
imediatamente a formação de uma comunidade evangélica luterana, a qual foi fundada em 1°
de julho de 1900, contando com 17 famílias. Logo em seguida, iniciou também entre eles
atividades de ensino escolar. Antes de retornar aos EUA, fez ainda uma viagem missionária
na qual abriu espaço na região para que seu sucessor prosseguisse com o trabalho, o pastor
Wilhem Mahler, que chegou ao Brasil ao final daquele mesmo ano.
142
Dessa situação, pode-se aferir, como salienta Rieth, que o acontecido deu lugar a
uma situação de convergência de mentalidades religiosas entre os missourianos e os
imigrantes teuto-russos sob a liderança de Gowert. Tal convergência, percebida de modo
especial no exame de catecismo ao qual Broders foi submetido, possibilitou o início das
atividades do Sínodo de Missouri na América Latina.
143
É curioso, nesse sentido, o relato
apresentado por Warth a respeito do sonho que Gowert tivera na noite que antecedeu a
chegada de Broders: “em sonhos, viu uma cruz alta, toda de ouro que emitia raios brilhantes
em todas as direções. O pé da cruz estava cercado de moedas estranhas, nunca antes vistas por
ele”. No dia seguinte, então, durante a entrevista, “Broders mostrou-lhe algumas moedas que
trazia no bolso. Formou com elas uma cruz e cercou com outras moedas”.
144
Estava ratificada
140
Walter O. STEYER, Os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e o luteranismo, p. 28-29.
141
Idem, p. 25-29. É visível a semelhança das impressões de Schwan e Broders sobre o Brasil dos imigrantes.
Ao que parece, a herança pietista do ambiente da Erweckung se fazia ainda bem presente entre os missiourianos,
estabelecendo uma distinção clara entre o que deveria ser o comportamento de um “cristão renascido” e o de
uma pessoa imiscuída nas “trevas do mundo”. A vida social era vista como contraponto à igreja. Nas palavras de
Broders: “Em poucas palavras, eu via nas pessoas, que nada lhes importava em ter uma igreja. Mas uma coisa
também nelas vi, que aguardente de cana-de-açúcar, luxúria, indiferença dominam as pessoas”, apud Roberto
RADÜNZ, A terra da liberdade, p. 211.
142
Mário L. REHFELDT, Um grão de mostarda..., p. 42-43.
143
Ricardo W. RIETH, O caráter missionário da IELB numa perspectiva histórica, p. 6.
144
Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja..., p. 15-16.
132
a ligação, agora também no nível mítico-simbólico. A cruz era a pregação do “evangelho
puro” pelo “Luteranismo puro e escriturístico”. As moedas, o auxílio das ofertas enviadas
pelos luteranos estadunidenses. “Achei petróleo da mais fina qualidade!”, foi a notícia
enviada por Broders aos Estados Unidos.
145
Com a chegada e as atividades do pastor W. Mahler, entre contratempos e sucessos,
mesmo tendo de disputar o campo com o Sínodo Riograndense e os pastores-livres, no espaço
de dois anos mais pastores foram enviados e o trabalho propagou-se pelas regiões nordeste,
sul, oeste e noroeste do estado, além da capital, Porto Alegre. Relatando sua visita ao novo
campo missionário, feita em 1904, o presidente do departamento de missão interna do Sínodo,
rev. L. Lochner atestou:
A tarefa principal que queremos executar no Brasil será a de combater a falta de
interesse religioso e o indiferentismo com relação à palavra de Deus.
Quebraremos o silêncio reinante a respeito da doutrina e da confissão. Queremos
que seja pública a doutrina luterana e que os nossos adversários se manifestem a
este respeito. Serão constrangidos a nos atacar e se responsabilizar. A doutrina
será discutida publicamente. Isto é o que falta na igreja do Brasil. Há grande
miséria espiritual e sérias providências deverão ser tomadas. A palavra de Deus
durante 40 anos tornou-se escassa... A juventude, em geral, carece de ensino
religioso. Muita inimizade teremos que experimentar dos “pseudopastores”.
146
Para Lochner, portanto, a questão seria resolvida no campo doutrinário. Era da
verdade que as pessoas no Brasil precisavam. No momento em que a reconhecessem, tudo se
resolveria. Em tais concepções percebem-se os ecos daquele espírito intelectualista que os
confessionalistas herdaram do repertório ortodoxo do Dezessete. Era preciso o embate
teológico para que se provasse quem estava certo e quem estava errado. As coisas, contudo,
não seriam assim tão simples. Não estavam na Europa. Nem nos Estados Unidos. Os
“inimigos” aqui teriam outro perfil. As armas dogmáticas contra eles teriam pouca ou
nenhuma eficiência. Mesmo assim, os embates que se estabeleceram neste período
configuraram a identidade e o ethos do grupo e determinaram fronteiras que podem ser vistas
até os dias atuais.
Nesse processo, novas comunidades foram fundadas ou filiaram-se ao sínodo
missouriano, algumas desligando-se do grupo riograndense, dentre as quais também algumas
que posteriormente percorreriam o caminho de volta. Houve a abertura de diversas escolas,
nas quais, na maioria dos casos, os pastores assumiam também a função de professores.
145
Apud Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja..., p. 16.
146
Apud idem, p. 19.
133
Passou-se ainda a editar um periódico, o Evangelisch-Luterisches Kirchenblatt fuer
Suedamerika, precursor do Mensageiro Luterano, que tinha por objetivo apresentar as
posições doutrinárias e práticas eclesiásticas do grupo, bem como defender o trabalho
missionário das críticas feitas pelos concorrentes – bem ao modo, como dissemos, do Der
Lutheraner de Walther. O periódico servia também para divulgar o trabalho nos EUA, a fim
de levantar recursos financeiros para a continuação da obra. No Kirchenblatt, Mahler, seu
primeiro editor, hasteou a bandeira do Confessionalismo Luterano em combate à heresia.
Outro fato importante foi, em 1903, a fundação de um instituto para a formação de pastores e
professores na cidade de Bom Jesus, arredores de Pelotas, o qual, após vários percalços,
formou em 1912 seus primeiros professores e em 1915 seus primeiros pastores. A língua
portuguesa foi ensinada desde a fundação do instituto de Bom Jesus, atual Seminário
Concórdia de São Leopoldo.
147
Diante do aumento das perspectivas missionárias, reuniram-se as lideranças e
pastores em atividade no Brasil para sua primeira convenção, entre os dias 23 e 27 de junho
de 1904, na cidade de São Pedro do Sul, onde tudo começara, contando com a presença do
pastor Lochner, o já referido presidente do departamento de missão interna do Sínodo de
Missouri. Naquela ocasião fundaram o Der Brasilianische District der Deutschen
Evangelisch Synode von Missouri, Ohio und Anderen Staaten, o 15° Distrito do Sínodo de
Missouri. A identidade confessional do Distrito foi atestada nos Estatutos de modo idêntico
aos Estatutos de fundação do Sínodo de Missouri de 1847. Os critérios de pertença
permaneciam sendo os seguintes: confessar a Bíblia como a palavra escrita de Deus e única
norma de fé e vida; aceitar todos os livros simbólicos da Igreja Luterana; rejeitar a qualquer
forma de unionismo; uso exclusivo de literatura luterana; expedição de chamados pastorais
efetivos pelas congregações; providência de educação cristã às crianças; e uso exclusivo da
língua alemã nas reuniões sinodais, com a permissão de uso de outro idioma somente aos
hóspedes que não soubessem o alemão. De fato, afirmou-se no Kirchenblatt, em 15 de julho
de 1904: “A Convenção Distrital declara-se de acordo com a Constituição do Sínodo de
Missouri”. Estava, assim, aberto o caminho institucional para a implantação do Luteranismo
Confessional Ortodoxo no Brasil.
148
O ano de 1914 é colocado por Mário Rehfeldt como demarcação do fim de um
primeiro período da história da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. O ano foi apontado não
147
Mário L. REHFELDT, Um grão de mostarda..., p. 43-55; Walter O. STEYER, Os imigrantes alemães no Rio
Grande do Sul e o luteranismo, p. 111.
148
Ricardo W. RIETH, Igreja Evangélica Luterana do Brasil..., p. 52; Walter O. STEYER, Os imigrantes
alemães no Rio Grande do Sul e o luteranismo, p. 111-113.
134
somente em função do início da Primeira Guerra Mundial e a conseqüente interrupção da
imigração alemã, mas também em razão da partida do pastor Mahler em retorno aos EUA.
Mahler fora o primeiro missionário do Sínodo residente no Brasil, o primeiro presidente do
Distrito e o primeiro editor do Kirchenblatt. À época, todos os outros pastores vindos dos
EUA para lá já haviam retornado. Quando chegara ao Brasil, Mahler encontrara 17 famílias.
Ao partir em função da saúde de sua esposa, o 15° Distrito contava já com 15 mil membros
batizados.
149
10. Algumas considerações
Os acontecimentos que privilegiamos até aqui foram escolhidos a fim de que o leitor
pudesse, a esta altura, ter alguma noção acerca dos processos formativos que envolveram o
surgimento da LC-MS e da IELB: conhecer um pouco da história desse grupo, da formação
de suas crenças e teologias, articuladas à produção de discursos, memórias e identidades. Para
tanto foi preciso a análise de tempo longo que empreendemos desde o primeiro capítulo.
O Stephanismo, nesse percurso, foi um dos tantos movimentos que representaram
resistência diante dos desenvolvimentos decorrentes do período pós-napoleônico, sua
modernização conservadora e as políticas da União Prussiana. Resistência, é verdade, nutrida
pelo traço personalista de Stephan e de sua re-interpretação de repertórios ortodoxos e
pietistas. Tal personalismo, por sua vez, ficou como herança, por substituição, para C. F. W.
Walther.
O decorrente surgimento, nos EUA, do Sínodo de Missouri deve, assim, ser pensado
na convergência de tais forças. A LC-MS nasce na resistência de pessoas “despertas” que
queriam proteger o que consideravam ser a verdadeira fé das ameaças representadas pelo
Racionalismo e pelo unionismo, pelas políticas da modernidade, enfim. Em solo
estadunidense, o grupo, sob a liderança de Walter, cunhou sua identidade confessional pelo
estabelecimento de fronteiras claras em relação a outros grupos “heréticos e separatistas” que
não reconheciam o “Luteranismo puro e escriturístico”. Uma ortodoxia precisa, como se vê,
de heterodoxias. Em tal percepção, a Igreja Luterana, representada pelo Sínodo de Missouri,
continha, como nenhuma outra, as “marcas essenciais da verdadeira Igreja de Cristo na terra”:
uma ortodoxia.
149
Mário L. REHFELDT, Um grão de mostarda..., p. 74-75.
135
Criou-se, assim, no Luteranismo Missouriano um comportamento endógeno – já
existente, porém, no Stephanismo na Alemanha –, intimamente conectado a um conceito de
igreja compreendida como comunhão confessional e exclusiva ao redor da Palavra e dos
Símbolos luteranos, conceito que convergiu em Walther no período pós-Stephan. Uma
pesquisa posterior poderia averiguar o quanto o debate identitário acerca de serem ou não os
imigrantes saxões uma igreja, no episódio pós-Stephan, marcou a produção e reprodução do
discurso de pureza e de verdade em Walther e na LC-MS, afetando, então, também a IELB.
Nesse contexto, também o fato de o Luteranismo Confessional Ortodoxo ter-se
revestido de traços étnicos tanto nos EUA como no Brasil, dada a condição migrante de
ambos os grupos, foi um fator de reforço da preservação doutrinária e do isolamento do
grupo. Configura-se, assim, uma religião de alemães luteranos ortodoxos, na qual a pertença
étnica contribuiu para a preservação das tradições religiosas.
Dessa mesma forma, a memória que se criou de Walther como o “Lutero
Americano” colaborou para reforçar o separatismo missouriano por instaurar, como na
Reforma, uma “nova duração”, a duração da verdade, que conectava o Sínodo de Missouri
diretamente a Lutero e ulteriormente a Deus. Tal percepção de um tempo fundante, contada,
recontada e ritualizada até os dias atuais, constituiu um poderoso fator de convergência ao
redor do Confessionalismo Ortodoxo Missouriano. O evento que envolveu Walther/Lutero e o
surgimento da LC-MS é revivido, então, pela memória como acontecimento hierofânico.
Também, o encontro de Gowert com Broders no Brasil adquiriu status de narrativa exemplar
da pureza a ser buscada: um pastor avaliado por um leigo em sua fidelidade doutrinária.
Fundou-se, assim, uma igreja já com uma teologia pronta, revelada pelo próprio Deus. A
tarefa a ser continuada era a da preservação e proclamação desta revelação. Por outro lado,
tanto Stephan como as disputas e paradoxos internos foram esquecidos: a seletividade da
memória de que falávamos na introdução.
O sistema gerado de administração eclesiástica, o de um congregacionalismo
tutelado, capitaneado por pastores-atalaias-da-verdade, atestava, por outro lado, a centralidade
dada ao ofício pastoral e ao chamado regular dos pastores nos regulamentos originais do
grupo – ecos de Walther e Stephan. Nesse sentido, também na ação da transmissão do ofício
pastoral pela ecclesia confessional ao pastor acontece uma hierofania fundante,
constantemente repetida a atestar a veracidade da communio. O próprio ofício pastoral é então
vivido como tabu, conjuntamente à Revelação e aos Sacramentos: nestas esferas é preciso
cuidado. Preserva-se a ortodoxia com os pastores à frente na proteção da pura e sã doutrina.
136
Vale sublinhar, ainda, a inspiração que teve o empenho missionário do Sínodo de
Missouri no movimento confessionalista alemão. Como vimos, o Confessionalismo enviou
missionários para fora da Alemanha através de iniciativas diversas como, por exemplo, as de
Wilhelm Löhe. Ainda que uma vocação missionária seja parte constitutiva da religião cristã, o
espírito missionário dos missourianos pode ser entendido, assim, como herança do Pietismo
“reavivada” no Despertamento pelo Luteranismo alemão.
Por sua vez, as posturas políticas decorrentes das crenças que estivemos analisando
foram, em geral, conservantistas. Dado central para a compreensão de tais posturas são as
reinterpretações da doutrina dos dois reinos, que apontam para um papel da igreja na
sociedade apenas pela via espiritual. Nessa perspectiva, por um lado, a igreja não participa da
política, visto que esta é área de ação do Estado, por outro, ao cidadão cristão responsável
cabe a obediência à autoridade instituída por Deus. A única possibilidade de desobediência se
dá no caso de a autoridade conduzir ao afastamento da vontade de Deus. A conseqüência por
diversas vezes foi a da pregação de um afastamento do mundo pela opção religiosa, o que
seria, no mínimo, estranho a Lutero. Por outro lado, o que necessariamente aconteceu foi uma
inserção político-religiosa no social, ora mais, ora menos participativa, ora mais, ora menos
institucional.
Também nesse sentido, ainda que os discursos missourianos estivessem relacionados
mais diretamente à religião, é possível ao menos encontrar suas semelhanças para com um
tipo de identidade estadunidense que surgia também nesse mesmo período, no contexto da
“conquista do oeste”. Fortalecia-se naquele momento a idéia de que os estadunidenses eram
um povo eleito por Deus e com uma missão a cumprir: um “Destino Manifesto”, concedido
àquele país para tomar para si toda a América do Norte, mas também a Central e a do Sul, a
África e o mundo. Era esta a vontade de Deus e o destino do “Adão Americano”: ser ideal e
único, que ao romper com seu passado de dependência da Inglaterra, licenciara-se de sua
história e tornara-se, assim, inocente, puro, espontâneo e sem pecados ou culpas. Visão
arquetípica do primeiro homem do universo religioso cristão antes da queda em pecado, o
“Adão americano” tinha à sua disposição o vasto território das Américas como possibilidade
de povoamento. Era, por isso, também agente de um novo começo e tinha apenas o futuro
pela frente: começar a construção de um novo mundo sem precedentes a partir do zero. A
própria memória que a LC-MS e a IELB fazem de Walther tem precedência na memória que
137
se faz nos EUA dos grandes heróis fundadores da nação, como George Washington e Thomas
Jerfferson.
150
Não é difícil, portanto, a partir de tais metáforas, uma analogia com vistas à
compreensão da formação da LC-MS e de sua busca por expansão inclusive internacional.
Faziam, de alguma forma, parte desse esforço de construção de um novo mundo sem máculas
– a despeito do fato de que, para que chegassem a tal mundo, tivessem passado pelo sistema
escravista e pelo aniquilamento das populações indígenas. Há, nesse sentido, uma duplicidade
no universo religioso: temos de um lado um discurso ideal, ligado ao âmbito normativo das
crenças religiosas; de outro, sua dimensão real, imiscuída nas práticas e contingências
políticas e econômicas do social.
151
Em perspectiva latino-americana, portanto, é possível
dizer que, em sua empresa rumo ao Brasil, os legionários da doutrina pura missouriana, ainda
que por motivos diversos que os dos interesses imperialistas estadunidenses, fizeram parte de
uma dinâmica maior de expansão dos EUA, a qual envolveu desde a Doutrina Monroe e as
políticas do big stick de Roosevelt, até um intervencionismo generalizado nas Américas, que
passou pelo apoio aos sistemas ditatoriais dos anos 60, 70 e 80: desenvolvimentos que, como
se sabe, se estendem até os dias atuais.
152
Em meio a todos esses processos, muita coisa se passou interna e externamente ao
Luteranismo entre os séculos XVI e XIX para que o capítulo LC-MS/IELB acontecesse. Daí a
necessidade de que se contabilize tais transformações e permanências diversas. Não é demais
dizer que não há uma linha contínua de pureza que ligue Walther a Lutero, como o querem
algumas histórias oficiais. Walther não seria Walther não fossem os desenvolvimentos do
Confessionalismo e do Despertamento no Dezenove. Estes, por sua vez, têm seus laços
profundos com o Pietismo e, na contra-mão, com o Racionalismo iluminista. Assim também
são claros os débitos do Luteranismo de Walther para com a Ortodoxia e seu intelectuialismo
cunhado pelo Aristotelismo melanchthoniano. A formação da IELB resulta, então, no tempo
longo entrecortado por disputas políticas diversas, da convergência híbrida de múltiplos
fatores, dentre eles, os principais, uma teologia de base confessionalista e uma espiritualidade
que encontra inspiração nos movimentos de reavivamento pietista.
153
Como disse Foucault, o
século XIX foi “a pátria das misturas e das bastardias, época do homem mistura”.
154
150
Mary A. JUNQUEIRA, Estados Unidos: a consolidação da nação, p. 27-35, 49-50.
151
Cf. observação do Prof. Luís Dreher como membro da banca desta tese.
152
Ver p. ex. Voltaire SCHILLING, Estados Unidos e a América Latina, da Doutrina Monroe à ALCA, passim.
153
Tb. Ricardo RIETH, Igreja Evangélica Luterana do Brasil: uma abordagem histórica, p. 45.
154
Michel FOUCAULT, Nietzsche, genealogia, história, p. 276.
138
Tal religião, nesse sentido, não foi sempre um bloco monolítico em termos de
identidades e práticas sociais. Os processos de formação que estivemos analisando apontam
justamente para a circularidade entre as práticas historicamente situadas de elaboração de
discursos, memórias e identidades, e as estruturas de tempo longo. Nisso temos a dinâmica da
ortodoxia. Nos capítulos seguintes, trataremos de aprofundar esta perspectiva a partir do
recorte da inserção e recriação do Confessionalismo Ortodoxo Missouriano em terras
brasileiras, nos contextos da I Guerra Mundial e do final do Regime Militar. Buscaremos
analisar as formas pelas quais a estrutura confessional missouriana, articulada em discursos
memórias e identidades produzidas e reproduzidas, foi praticada, pensada, vivida,
reinterpretada, readaptada nas diferentes conjunturas sociais que pastores e líderes da IELB
encontraram no Brasil. Nesse caminho, procederemos também a algumas comparações entre
as duas situações.
PARTE II
O SÍNODO DE MISSOURI E A IELB EM DUAS
CONJUNTURAS NO BRASIL
CAPÍTULO 3: O SÍNODO DE MISSOURI NO BRASIL DA PRIMEIRA
GUERRA MUNDIAL
A conjuntura da I Guerra Mundial envolveu o Sínodo de Missouri em uma série de
situações e acontecimentos pelos quais os missourianos não passaram incólumes. A
identidade ortodoxo-confessional promulgada e desejada pela liderança do Sínodo, que
apontava mormente para a pregação da doutrina pura a fim de salvar as almas de imigrantes e
locais, foi posta em questão pela proibição do uso do idioma alemão, pelo clima de
desconfiança e perseguição para com os descendentes germânicos, bem como pelo contato
com outros grupos religiosos, o que dinamizou as práticas sinodais
Neste capítulo analisaremos as formas pelas quais os pastores do 15
o
Distrito do
Sínodo de Missouri reagiram às dificuldades causadas no contexto da I Guerra, perguntando
pelas percepções que se geraram acerca do lugar da igreja na sociedade entremeadas pela
produção de discursos, identidades e memórias confessionais. Teremos, assim, neste evento,
uma leitura das relações entre as estruturas analisadas nos capítulos anteriores e a conjuntura
brasileira que envolveu as lideranças missourianas – sem descuidar, porém, da conjuntura
estadunidense.
1. Teuto-estadunidenses, teuto-brasileiros e a I Guerra
O deslocamento de alemães para os Estados Unidos foi muito mais contundente que
para o Brasil. Perdendo numericamente apenas para a inglesa, a imigração germânica,
especialmente intensa a partir de 1850, levou ao solo estadunidense até 1910 mais de 8
milhões de pessoas – entre aquelas que, ou haviam nascido na Alemanha, ou que ambos os
pais tivessem mesma origem germânica.
1
Como mencionamos anteriormente, no Brasil os
imigrantes alemães somaram ao todo cerca 250 mil.
Conforme dados da “Estatística religiosa dos Estados Unidos” de 1919, as igrejas
protestantes contavam lá com 29.300.000 filiados e 52.300.000 aderentes, num total de
1
Frederick NOHL, The Lutheran Church – Missouri Synod reacts to United States anti-germanism during the
World War I, p. 50.
141
78.600.000 de pessoas. Os demais somavam 16.000.000 de católicos e 5.400.000 pessoas que
não definiam sua pertença religiosa. A estatística afirmava que nos últimos dez anos as igrejas
protestantes haviam crescido mais de 21%, enquanto que a Igreja Católica crescera apenas
11%.
2
Internamente ao universo protestante os números eram os seguintes: 7.263.000
batistas; 7.165.000 metodistas; 2.463.000 luteranos; 2.257.000 presbiterianos; 1.231.000
discípulos de Cristo; 1.093.000 episcopais; 790.000 congregacionalistas; além de 4.048.000
filiados a outros grupos. As propriedades asseguradas pelos protestantes estavam estimadas
em 1.676.600.000 dólares (cerca de dez milhões e 400 mil contos brasileiros) e haviam
aumentado em 40.000.000 nos últimos dez anos.
3
Se os dados estiverem corretos,
numericamente os luteranos haviam, portanto, passado do penúltimo ao terceiro lugar entre
1850 e 1919.
4
Os membros do Sínodo de Missouri, por sua vez, somavam na época da I Guerra
cerca de 1 milhão de pessoas. As escolas do Sínodo, por exemplo, formavam o maior sistema
escolar confessional depois do católico, com cerca de 100 mil estudantes matriculados.
5
É
interessante a comparação das estatísticas do Sínodo entre os anos 1917 e 1920:
1917 1920
Almas
972.000 1.006.065
Membros Comungantes
599.770 623.198
Pastores
2740 2893*
Comunidades e Estações
Missionárias
4170 4130
Escolas
2310 -
Professores
1120 -
Pastores que lecionavam
1230 -
Alunos (Escolas Paroquiais)
96.700 83.875
Alunos (Escolas Dominicais)
85.900 100.429
(Dados extraídos do relatório do presidente sinodal, Rev. Pfotenhauer, ML, 15/08/1920, p. 62).
* Incluso os pastores e professores em escolas e seminários.
Considerando que se tratava de um grupo de cerca de 700 pessoas em meados do
século XIX, o crescimento do Sínodo foi espantoso. Ainda, porém, que não esteja
especificado, é razoável supor que nestes números estivessem incluídos os filiados ao Sínodo
fora dos EUA, como no caso dos imigrantes alemães agregados ao grupo brasileiro. Perceba-
2
ML, 01/03/1921, p. 18-19. O comentário publicado no Mensageiro Luterano reconhece, porém, que os
católicos exerciam “sagazmente” uma influência política desproporcional ao seu número.
3
Idem, p. 18-19.
4
Cf. dado mencionado no capítulo anterior, p. 119, extraído de Jean-Pierre MARTIN, La religion aux Etats-
Unis, p. 67-76.
5
Neil M. JOHNSON, The patriotism and anti-prussianism of the Lutheran Church – Missouri Synod, 1914-
1918, p. 99.
142
se, também, que mesmo em meio ao conflito mundial, o grupo não deixra de crescer. A única
baixa percebida entre os anos computados na tabela referia-se ao número de alunos nas
escolas paroquiais, o que se deve provavelmente ao fechamento de escolas vinculadas a
grupos alemães durante a guerra. Infelizmente, o número de escolas em 1920 é um dado que
não consta no relatório oficial publicado no Brasil, o que talvez tenha sido um ato intencional,
a fim de não baixar o moral dos membros. No passo desse crescimento, o Sínodo de Missouri
contaria, em meados da década de 1950, com congregações em cada estado da União norte-
americana e em seis províncias do Canadá, além de manter missionários na Índia (desde
1895), no Brasil (desde 1900), na Argentina (desde 1905) e na China (desde 1915).
6
Quanto ao número dos imigrantes e seus descendentes que se filiaram ao Distrito
Brasileiro do Sínodo de Missouri, este foi estimado, no ano de 1924, em 21.225 pessoas,
espalhadas em 116 capelas pertencentes a 35 paróquias.
7
De um modo geral, os imigrantes alemães estiveram por algum tempo em situação
de marginalidade na sociedade brasileira. Eram tidos como pessoas de segunda categoria,
8
o
que deve ser levado em conta para pensarmos, por exemplo, as relações do Sínodo de
Missouri com o poder público e a sociedade brasileira. O Estado os considerava um mal
necessário, sendo sua cultura e também sua religião apenas toleradas, em vista da utilidade de
sua presença e de seu trabalho.
9
Tal situação agravar-se-ia com o advento da Primeira Guerra.
No período inicial da Guerra, entre 1914 e meados de 1917, a vida dos sínodos
luterano-alemães no Brasil e nos Estados Unidos não foi alterada substancialmente. Também
porque ambos os países desenvolviam políticas de neutralidade em relação ao conflito
internacional.
Não obstante, os recorrentes posicionamentos das comunidades alemãs em favor da
Alemanha em situações belicosas, o envio de verbas e auxílio à Alemanha, bem como o uso
contínuo e generalizado do idioma alemão (em igrejas e escolas) e o cultivo das tradições da
terra mãe tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, iam criando um certo espírito de
6
Abdel Ross WENTZ, Faith and works in the Lutheran Church – Missouri Synod, p. 209-220.
7
CEM ANOS DE GERMANIDADE NO RIO GRANDE DO SUL, p. 556; Informações mais detalhadas e
importantes sobre o contexto político-econômico da imigração no Brasil e o lugar social das igrejas nesse
contexto podem ser obtidas, por exemplo, em: Martin DREHER (org.), Imigrações e história da igreja no Brasil
- vide especialmente o Capítulo I, de José O. BEOZZO, “As igrejas e a imigração”, bem como o IV, de Martin
DREHER, “Protestantismo de Imigração no Brasil”. Sobre o fenômeno mais amplo da imigração, pode-se
lembrar de: Abdelmalek SAYAD, A imigração; tb. Herbert KLEIN, Migração Internacional na História das
Américas. Especificamente sobre a imigração no sul do Brasil, veja-se por exemplo: Jean ROCHE, A
colonização alemã e o Rio Grande do Sul; tb. Carlos Henrique OBERACKER, A colonização baseada na
pequena propriedade agrícola.
8
Martin DREHER, Igreja e germanidade, p. 39.
9
Idem, Rostos da igreja no Brasil meridional, o cristianismo no sul do Brasil, p. 24.
143
animosidade na opinião pública contra os teuto-imigrantes.
10
Também o crescente interesse
imperialista que surgira na Alemanha após a unificação, em 1870, agravava a situação.
Depois da queda de Bismarck, o governo assumira a idéia de que o “atraso” do Império
colonial alemão poderia ser compensado com o aproveitamento político da emigração, sendo
o sul do Brasil e a bacia do Prata seu principal foco.
11
Algumas suspeitas, portanto, tinham de
fato sua razão para existir.
Vejamos, por exemplo, o que declarou em agosto de 1914 Theodor Graebner, co-
editor do periódico missouriano Lutheran Witness, superestimando a inocência do Kaiser e
estimulando a desconfiança que se gerava quanto ao alinhamento germânico do Sínodo nos
EUA: “O Kaiser preservou mais de uma vez a paz mundial quando um conflito parecia
inevitável. Ele sabe que a prosperidade da Alemanha será arruinada seja qual for a situação de
guerra. A idéia daquele governante alemão sedento por Guerra e ávido por agarrar a primeira
oportunidade é ridícula demais para ser considerada seriamente”.
12
No esteio dessa mentalidade, alguns teuto-descendentes usaram mesmo de influência
política para criar simpatias pela Alemanha no período da neutralidade estadunidense. A partir
de jornais, periódicos e sociedades, buscaram disseminar opiniões dessa natureza
principalmente no Meio Oeste, onde sua presença era mais forte, de modo especial no Estado
de Wisconsin e em cidades como Cincinnati e Saint Louis, sede do Sínodo de Missouri.
13
No caso do Brasil, um vínculo mais incisivo com a Alemanha esteve por conta dos
representantes do maior dos grupamentos luteranos, o Sínodo Riograndense, que contava em
1924 com 122.754 membros.
14
O Pastor Wilhelm Rotermund, por exemplo, então presidente
do Sínodo e figura importante na região de São Leopoldo, com o advento da Guerra em 1914,
solicitou que se fizesse nas orações finais dos cultos “uma intercessão em favor de um final da
luta dos povos, honroso e rico em bênçãos para a Alemanha, para a germanidade e para a
Igreja Evangélica da Alemanha”. As orações deveriam ser dirigidas “ao condutor das
batalhas”.
15
10
P. ex.. Frederick NOHL, The Lutheran Church – Missouri Synod reacts to United States anti-germanism
during the World War I, p. 49-50; tb. René GERTZ, O perigo alemão, p. 13ss.
11
Jorge Luiz da CUNHA, A Alemanha e seus imigrantes: questões nacionais, p. 29-30.
12
Apud Neil M. JOHNSON, The patriotism and anti-prussianism…, p. 99: “The Kaiser more than once has
preserved the world’s peace when a conflict seemed unavoidable. He knows that the prosperity of Germany will
be ruined whatever the event of the war. The idea that Germany’s ruler thirsted for war and eagerly seized the
first opportunity is too ridiculous to be seriously considered”.
13
Frederick NOHL, The Lutheran Church – Missouri Synod reacts to United States anti-germanism during the
World War I, p. 50.
14
CEM ANOS DE GERMANIDADE NO RIO GRANDE DO SUL, p. 556.
15
Martin DREHER, Igreja e germanidade, p. 105. Faltam-nos, na verdade, estudos sobre a presença do
germanismo entre os missourianos no Brasil nesse período. Poderão, contudo, ser encontradas manifestações
144
Além disso, a idéia de que ser alemão era ser evangélico era em alguma medida
aceita em meio aos imigrantes teutos no Rio Grande do Sul, como atesta o caso de uma
comunidade luterana em Poço das Antas, que, entre 1917 e 1918, demitiu seu pastor
missouriano e uniu-se à comunidade local do Sínodo Riograndense a fim de com ela formar
uma “grande congregação alemã”. Da reunião realizada para discutir o problema com a
congregação, relatou o pastor Johannes Kunstmann, um dos destacados líderes do Distrito
Brasileiro no período em foco:
16
Eu disse à turba que somente sob certas condições um ministro do Evangelho
pode ser dispensado ou deposto por suas congregações, a saber, se persistir em
doutrina ou prática falsa, se negligenciar intencionalmente seus deveres na igreja e
na escola e se viver uma vida indigna. De outra forma sua dispensa é uma
violação de todos os direitos divinos e humanos. Mas a turba – não posso chamá-
los de congregação cristã – não daria atenção à Palavra de Deus, recusaram-se a
me deixar falar qualquer coisa mais e endossaram o procedimento de seus líderes.
A reunião como um todo tornou-se um tumulto. As pessoas queriam se unir às
congregações rio-grandenses de sua vizinhança para formar uma grande
congregação ALEMÃ. Elas não terão mais nada que ver com nosso sínodo, ainda
que tenhamos gasto 9 contos de réis com elas nestes últimos 7 anos. É o mesmo
tipo de gente – “Hundsbuckler” – que perseguiu o Rev. Becker de Campo do
Meio um ano atrás. O Rev. D[aschner, pastor missouriano local] recebeu depois
disso um chamado para Sta. Colleta, Mun. Pelotas, e limpou de seus pés a poeira
de Poço das Antas. Suas anteriores congregações filiais não decidiram todas até o
momento a qual sínodo querem enfim pertencer.
17
germanistas no período em que a Alemanha esteve sob o comando de Hitler. René GERTZ, O perigo alemão, p.
36, p. ex., diz ter achado no Arquivo Nacional de Koblenz, na Alemanha, “um relatório com data de 27 de
janeiro de 1937 enviado ao Deutsches Ausland-Institut, uma das principais instâncias alemãs que se dedicavam
aos ‘alemães no exterior’, pelo diretor da ‘Escola Evangélica Alemã Concórdia’ que encerrava com ‘Heil
Hitler’”. Cremos tratar-se do diretor da escola de Porto Alegre vinculada à comunidade Cristo, que, contudo, em
1937, ainda que mantivesse um ethos semelhante, encontrava-se por querelas internas afastada do Sínodo
missouriano. Ver nota 16 abaixo. O interesse pela Alemanha de Hitler foi também atestado diversas vezes em
matérias publicadas no ML, principalmente durante os anos 30.
16
Nascido em Reichenbach, Alemanha, em 1872, J. K. (como assinava no Mensageiro), intelectual eloqüente e
conhecedor das línguas semíticas, antes de vir ao Brasil ensinara no Seminário de Murtoa na Austrália (1894-
1901), fora pastor da Igreja Luterana Livre da Saxônia (1901-1914) e presidente desta mesma Igreja (1904-
1914). Chegado ao Brasil, exerceu os cargos de diretor e professor do Seminário Concórdia (1915-1922), 1
o
vice-presidente do Distrito (1916-1921), presidente (1921-1922), tesoureiro (1916-1922) e pastor da importante
congregação “Cristo” de Porto Alegre de 1919 até 1922, ano em que se separou do Sínodo juntamente com sua
comunidade, assim permanecendo até sua morte em 1942. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 38-39
e 273.
17
MC, 01/03/1918, p. 11: “I told the crowd that only under certain conditions a minister of the Gospel may be
dismissed or deposed by his congregations, viz. if he persists in false doctrine or practise, if he willfully neglects
his duties in church and school, and if he leads an ungodly life. Otherwise his dismissal is a violation of all
divine and human rights. But the crowd – I cannot call it a Christian congregation – would not listen to God’s
Word, refused to let me speak any further, and endorsed their elders’ procedure. The whole meeting became a
turmoil. People want to unite with the Rio-Grandense congregations of their neighbourhood to form a big
GERMAN congregation. They wont have anything to do with our synod anymore, though we spent more than 9
contos de réis on them these last 7 years. It is the same stamp of people – “Hundsbuckler” – as chased Rev.
Becker from Campo do Meio a year ago. Rev. D[aschner] has since than received a call to Sta. Colleta, Mun.
Pelotas, and wiped the dust of Poço das Antas from his feet. His former filial congregations have not all decided,
as yet, to which synod they ultimately wish to belong”. Cf. o Prof. Luís Dreher, em “assessoria via e-mail”,
145
A controvérsia apontava ulteriormente para o problema central entre os dois sínodos
naquele período: a questão da nacionalidade. O contexto estava propenso para o aumento das
retaliações e os imigrantes, também os luteranos missourianos, haveriam de se justificar
perante a opinião pública. Nisso, seriam também intensificadas as disputas entre os sínodos
em função dos desdobramentos do conflito mundial. Os missourianos, nesse contexto,
pretenderam ficar à parte dos movimentos pró-germanistas, o que, como veremos, não foi
uma opção de fácil solução.
2. Proibição do idioma alemão, nacionalidade, confessionalidade
A situação de relativa estabilidade em que viviam os imigrantes veio, então, a se
alterar, a partir de 1917, com a ruptura das relações diplomáticas com o Reich e a entrada
brasileira e estadunidense na Guerra ao lado dos aliados. No final do mesmo ano as
represálias à comunidade teuto-brasileira e teuto-estadunidense vieram à tona: escolas alemãs
foram fechadas e foi proibida a utilização do idioma alemão. No Brasil, a partir de então,
oficialmente estava permitido o uso do alemão apenas para o ensino de língua estrangeira nas
escolas.
18
A proibição, como se pode imaginar, causou sérias intempéries para o
desenvolvimento das atividades pastorais. Também as publicações em alemão foram
proibidas e o Distrito Brasileiro do Sínodo de Missouri teve de encerrar as atividades de seu
periódico oficial, o Evangelish-Lutherisches Kirchenblatt fuer Suedamerika (Folha da Igreja
Evangélica Luterana para a América Latina),
19
e dar início, em dezembro, ao Mensageiro
Christão, que, em julho de 1918, passou chamar-se Mensageiro Lutherano, periódico
publicado até os dias de hoje como órgão oficial de comunicação da IELB. O Kirchenblatt,
Hundsbuckler é o pejorativo para Hunsrücker, ou seja, do Hunsrück, região alta ao sul da Mosela e ao oeste do
Reno cujo nome significa literalmente “as costas do Huno”, pela invasão daqueles povos à Europa. Do Hunsrück
veio também o dialeto misturado com o português que se tornou hegemônico nas colônias entre o povo simples
no RS. Buckel, por sua vez, em alemão significa também “corcunda”, e Hunds lembra cachorro. No Estados
Unidos, conforme o
OXFORD ADVANCED LEARNER’S DICTIONARY OF CURRENT ENGLISH, p. 761,
o termo Hun (no plural, Huns), que pode ser traduzido por “uno” ou “bárbaro”, era também utilizado
informalmente de modo pejorativo para referir à pessoa alemã durante a I e a II Guerra Mundial.
18
René GERTZ, O perigo alemão, p. 13ss; tb. Hans-Jürgen PRIEN, Formação da Igreja Evangélica no Brasil,
p. 184, 193; Frederick NOHL, The Lutheran Church – Missouri Synod reacts to United States anti-germanism
during the World War I, p. 51; Frederick LUEBKE, Superpatriotism in World War I: the experience of a
Lutheran pastor, p. 7.
19
MC, 25/12/1917.
146
por sua vez, voltaria a circular com o final da I Guerra, sendo novamente silenciado em 1941,
durante o segundo conflito mundial, para então retornar a público até 1990 (!).
20
Nos Estados Unidos, especialmente os anos de 1917 e 1918 foram tempos difíceis
para os teuto-descendentes, em função do exacerbado patriotismo que se criou. “Estes eram os
anos em que um cidadão ou apoiava de todo o coração e sem criticismo a iniciativa da Guerra,
ou corria o risco de ser tachado de ser pró-Alemanha e traidor”.
21
Com uma presença alemã
tão grande em um mesmo país, a forte reação nacional antigermânica pode bem ser
compreendida: o Germanismo estadunidense era muito mais visível que o brasileiro.
Caso interessante e significativo nos relata Frederick Luebke, acerca dos problemas
vividos pelo pastor missouriano Herman E. Studier, de nascimento prussiano. Studier, na
segunda metade do ano de 1917, havia pedido explicações por carta às autoridades
relativamente à entrada estadunidense na Guerra, o que ele claramente considerava uma
decisão sem sentido. O reverendo foi por isso chamado diante do Conselho Nacional de
Defesa, órgão criado como parte dos esforços para mobilizar a nação norte-americana em
função da Guerra, cooperar na solução dos problemas da frente de batalha e educar os
cidadãos com vistas a um maior sacrifício e dedicação patriótica. Além disso, porém, o
Conselho desenvolvia interessadas investigações de casos de deserção e manifestações de
“Kaiserismo”, entre quais foi enquadrado o caso de Studier, suspeito de traição. Segundo
Luebke, o Conselho de Defesa do Estado de Nebraska, perante o qual Studier foi intimado a
comparecer, “(...) promovia um espírito de guerra que ulteriormente infringia os direitos civis
de muitos de seus cidadãos”.
22
O Rev. Studier, escapando inclusive de linchamento segundo o
relato, somente conseguiu livrar-se do encarceramento por ter acionado contatos pessoais
politicamente influentes que intercederam em seu favor.
Quanto à proibição do alemão, sabe-se que um idioma, mais que um instrumento,
permite um espaço de interação e comunicação e é, como componente articulador da cultura,
fator de construção dos limites e das possibilidades da existência comunitária.
23
Assim,
quando um determinado grupo é impedido de falar sua língua, está posta em questão sua
própria identidade. Diante das proibições, os líderes do Sínodo de Missouri no Brasil tiveram
de se posicionar politicamente, a fim de buscar espaço para a continuação de seu trabalho. A
20
Walter O. STEYER, Os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e o Luteranismo, p. 70-71.
21
Frederick NOHL, The Lutheran Church – Missouri Synod reacts..., p. 51: “These were the years when a
citizen either supported the war effort wholehearted and without criticism, or ran the risk of being labeled a pro-
German and a traitor”.
22
Frederick LUEBKE, Superpatriotism in World War I…, p. 3-11; p. 3: “(…) promoted a war spirit which
ultimately infringed upon the civil rights of many of its citizens”.
23
John LYONS, Linguagem e Cultura, p. 292.
147
estratégia utilizada foi, contudo, justamente a de afirmar oficialmente que a igreja não queria
envolvimento político nenhum: sua tarefa era a da pregação do evangelho verdadeiro.
Apontava nessa direção, por exemplo, a declaração a respeito da finalidade do
Mensageiro escrita na entrada do ano de 1919: “Ao começar do novo ano (...) Agradecemos a
Deus por ter nos deixado prestar um serviço, seja ainda tão humilde. Como Mensageiro
Lutherano espalhamos a Palavra de Deus e a doutrina de Luthero com toda simplicidade, mas
sinceramente. Nisso tentamos ficar firme no novo anno. E’ principalmente para este fim que
nosso Mensageiro ha de percorrer este nosso campo de trabalho”.
24
Esse posicionamento não impediu, entretanto, que os missourianos fossem
equiparados durante a guerra aos demais grupos que, como o Sínodo Riograndense,
cultivavam de modo mais intenso sua germanidade. Identidades étnicas são, nesse sentido,
definidas em relação à construção de fronteiras: um “eu coletivo” define-se pela aceitação ou
negação de um “outro coletivo”.
25
Apesar de a IELB ter-se definido desde o princípio mais
em termos doutrinários que étnicos, para os demais eles eram alemães. E tratava-se, de fato,
de um grupo de teuto-imigrantes que falavam, ensinavam e aprendiam, celebravam seus
cultos, pregavam e escreviam em alemão e portavam sobrenomes alemães. Já em sua
constituição o 15° Distrito assumira publicamente o alemão como língua oficial. O problema
não era, assim, de fácil solução.
Além disso, desde a Reforma protestante houve uma forte conexão entre a língua
alemã e o Luteranismo. Ao iniciar a celebração de cultos em alemão, ao traduzir e publicar a
Bíblia em alemão, ao incentivar a educação pública em alemão, ao promover o contato do
povo simples com o sagrado sem a mediação sacerdotal, Lutero não só rompeu com toda uma
cultura dominante letrada que se construíra em latim, como também deu, sem saber, um
primeiro passo na direção de um sentimento que veria no falar alemão um modo de ser
protestante e vice-versa, o que veio a colaborar posteriormente, nos períodos do Idealismo e
do Romantismo, para o nascimento do Nacionalismo alemão, bem como para a formação da
Kultur germânica.
26
24
ML, 01/01/1919, p. 1. Desde seu aparecimento em 25 de dezembro de 1917, até a edição de 15 de janeiro de
1920, o Mensageiro foi “publicado por uma commisão do Synodo ev.-lutherano”. Muitas vezes, nesse período,
os autores não assinaram suas matérias. O primeiro redator do Mensageiro, entre 1917 e 1919, foi o pastor e
professor Louis C. Rehfeldt, estadunidense, que serviu ao Sínodo no Brasil desde 1907 até seu falecimento em
Porto Alegre no ano de 1961. Rehfeldt ensinou também no Seminário Concórdia entre 1918 e 1959, e ocupou,
entre outros, os cargos de secretário (1908-1911) e de tesoureiro (1930-1959) da IELB. Cf. Carlos H. WARTH,
Crônicas da Igreja, p. 269.
25
Philippe POUTIGNAT e Jocelyne STREIFF-FENART, Teorias da etnicidade, p. 123-124.
26
Dagmar E. Estermann MEYER, Língua e religião como instituintes da nacionalidade..., p. 201-204; tb.
Norbert ELIAS, O processo civilizador, p. 21-50.
148
Tal elo não foi, contudo, o mesmo em todos os tempos e lugares. Entre os pastores e
líderes missourianos no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo, ao que parece, a relação
entre língua e religião não era algo de todo naturalizado. Pode-se perceber isso na busca que
empreenderam pela aprendizagem dos idiomas nacionais a fim de poderem continuar sua
missão. Sua fidelidade, de um modo geral, foi maior para com as Confissões e a “pura e sã
doutrina” do que para com a Mutterland ou Vaterland. O Sínodo de Missouri era fruto
justamente de um grupo que saíra do território alemão em busca de liberdade religiosa, e que
levava consigo sentimentos não muito românticos em relação à situação religiosa e política na
Europa.
Ainda que tenham acontecido, assim, manifestações de simpatia para com a
Alemanha, também por parte de pastores e membros missourianos, e que tenhamos de
enxergar ao menos bons motivos para o surgimento da desconfiança e da irritação geral contra
os teuto-imigrantes, é preciso dizer algo na direção de ponderar as conclusões, principalmente
para o caso brasileiro.
Em 1911, Pierre Denis publicou em Londres um livro sobre o Brasil no qual
dissertou também acerca do “perigo alemão”. Perguntava Denis: “os colonos alemães serão
absorvidos pelo seu contexto brasileiro ou continuarão como os campeões do Deutschtum
[Germanismo] no sul do Brasil?” Respondendo, em seguida, que era pouco provável que
aqueles pequenos grupos de alemães conseguissem manter sua nacionalidade européia.
Alertava por isso: “não podemos [nos] deixar enganar pela atitude de alguns jornalistas em
Porto Alegre ou São Paulo, alemães recentemente imigrados, e que nem sempre expressam de
forma muito confiável os sentimentos de seus leitores”.
27
Àquela época Denis já levantava a
suspeita de que o Germanismo não era no Brasil algo tão presente e definitivo como por vezes
se pensava.
A respeito da história política das regiões de colonização alemã, por exemplo, pode-
se sustentar que esta aconteceu de um modo regular. Conforme Gertz, tal história “pode e
deve ser entendida a partir da constelação local do poder, de sua inserção no Estado e no país
e não a partir de fatores externos (a política imperialista alemã e sua ação teleguiadora)”.
28
É
também esse o olhar que se deve deitar por sobre o Sínodo de Missouri.
Nessa direção, há de se relativizar, por exemplo, a idéia do sentimento de pertença
alemã como algo dado e bem acabado na construção identitária dos imigrantes germânicos no
Brasil. O surgimento de identidades étnicas decorreu de contatos múltiplos ao longo do
27
Apud René GERTZ, O perigo alemão, p. 17.
28
René GERTZ, O perigo alemão, p. 22.
149
processo de colonização, produzindo-se ao mesmo tempo uma cultura camponesa
compartilhada com outros grupos imigrados e uma cultura especificamente teuto-brasileira.
“A etnicidade teuto-brasileira”, afirma Seyferth, “tem sido reafirmada de diferentes formas ao
longo desse século, sempre destacando um modo peculiar, diferente de ser brasileiro”.
29
Segundo a autora, também as assertivas quanto à homogeneidade e ao isolamento da
comunidade alemã, tão comuns na literatura especializada, devem ser relativizadas.
30
É
preciso considerar, por exemplo, a clivagem religiosa entre protestantes e católicos, bem
como algumas identidades regionais que aparecem em determinados momentos e lugares do
processo de colonização. O próprio isolamento geográfico, por vezes evocado, deve da
mesma forma ser relativizado, uma vez que importantes colônias alemãs se situavam em áreas
muito próximas às capitais provinciais – como é o caso de São Leopoldo, distante apenas 30
quilômetros da cidade de Porto Alegre. Só se pode falar em Deutschtum nesse caso, conforme
Seyferth, se estivermos nos referindo a uma germanidade brasileira.
31
Ou, como constata o bem humorado escritor Zé do Rock, transcrevendo o sotaque
dos imigrantes alemães no sul do Brasil:
Os “alemães da Alemanha” acham que os “alemães do Brasil” son apenas alemães
que moram no Brasil. É verdade que a maioria dos alemães que vieram pro Brasil
continuaram a se considerar alemães. E muitos descendentes tambem. Só que a
maioria já é brasileira e não sabe. Um alemon da Alemanha se considera alemon
como substantivo. Um descendente de alemon se considera brasileiro como
substantivo e alemon como adjetivo. Ele é brasileiro, mas como ao redor dele todo
mundo é brasileiro, ele usa o adjetivo alemon pra se destacar dos outros
brasileiros. Tem brasileiro baixo, alto, gordo, magro, preto, e tem brasileiro
alemon. Nada é mais assustador prum brasileiro alemon do ke um alemon da
Alemanha. Além do mais, eu conhesso varios descendentes de alemães kom
nomes tipo Werner Schimidt e Helmut Mayer ke non tiveram duvidas em ir a
guerra pelo Brasil contra a Alemanha.
32
O que geralmente se criou, então, entre os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul
foi um sentimento de dupla pertença, ao mesmo tempo teuta e brasileira. É o que sustenta, por
exemplo, Dagmar Meyer, referindo-se, porém, somente ao universo evangélico que geraria a
IECLB, sem considerar, assim, o Luteranismo Missouriano. Conforme o argumento, a partir
da construção de sentimentos de pertença ao “povo alemão” ao redor do idioma e da religião,
29
Giralda SEYFERTH, A identidade teuto-brasileira numa perspectiva histórica, p. 13-14 [grifo nosso].
30
Relativize-se também a própria opinião de Seyferth algum tempo antes em, Idem, Imigração e colonização
alemã no Brasil: uma revisão bibliográfica, p. 4: “No contexto da imigração no Brasil, nenhuma outra etnia se
concentrou tanto em áreas homogêneas e compactas (...) Só a colonização italiana no Rio Grande do Sul e Santa
Catarina teve características semelhantes, mas sem o longo isolamento étnico dos alemães”.
31
Idem, A identidade teuto-brasileira numa perspectiva histórica, p. 17-18.
32
Zé do ROCK, Das Gaúcho-Deutsch, p. 8.
150
os imigrantes tinham sua nacionalidade na Alemanha, mas em função de sua inserção social e
de necessidades tanto de comunicação quanto econômicas e de sobrevivência tinham sua
cidadania no Brasil.
33
Creio que tal constatação possa ser válida também para o caso dos
missourianos.
De outra forma, a questão, do debate ao redor do uso do idioma alemão ou do
idioma português era controversa também entre os teuto-católicos, os quais cambiaram nos
anos 20 ora entre uma posição de preservação do idioma alemão, por motivos antes religiosos
que políticos, ora pela aprendizagem do idioma português, como bons cidadãos brasileiros
que queriam ser. De um modo geral, os imigrantes tiveram interesse e investiram grande
esforço para que seus filhos aprendessem o idioma português.
34
A fim de relativizarmos a situação também nos Estados Unidos, podemos lembrar
que o Sínodo de Missouri vinha já realizando trabalhos missionários entre anglo-falantes em
vários de seus distritos durante a segunda metade do século XIX. Quando, contudo, em 1911
um sínodo anglo-falante inteiro (o Sínodo Luterano Inglês de Missouri, Ohio e outros
Estados) foi incorporado ao Sínodo Luterano Alemão de Missouri, tais atividades passaram a
ser realizadas com ainda maior intensidade.
35
A situação não tardaria em reproduzir-se na ação missouriana no Brasil. Como
dissemos, ensinava-se português no Seminário Concórdia já desde sua fundação. Por
conseguinte, durante a Guerra, e mesmo em função dela, aumentaram entre os missourianos
as atividades regulares em português. Naqueles anos foram também iniciadas missões entre
luso-brasileiros, na cidade de Lagoa Vermelha, RS, em 1918, e entre negros, na localidade de
Manoel dos Regos, RS, em 1919 .
Levando em conta esses argumentos, queremos propor que a discussão sobre o
Sínodo de Missouri se concentre na idéia de uma confessionalidade com traços étnicos em
processo de troca constante com o meio social e cultural local, buscando nos desviar, então,
de concepções simplistas que alinhem o Sínodo seja ao lado brasileiro-estadunidense, seja ao
lado germânico. A questão não se resolve somente pela nacionalidade, mas principalmente
pela confessionalidade como fundamento das práticas.
33
Dagmar E. Estermann MEYER, Língua e religião como instituintes da nacionalidade: cultura teuto-brasileiro-
evangélica no Rio Grande do Sul, p. 207-209. Cf. tb. atestava, em 1933, o pastor Hermann Gottlieb DOHMS,
Textos escolhidos, p. 230: “Pertença a um Estado não determina pertença a povo e vice-versa”.
34
Lúcio KREUZ, Língua de referência na escola teuto-brasileira: as tensões entre o uso do alemão e do
português, p. 153-155.
35
Frederick NOHL, The Lutheran Church – Missouri Synod reacts to United States anti-germanism during the
World War I, p. 52.
151
3. Alemães, não, Luteranos!
Com o título “Paz seja convosco”, o editor do Mensageiro, Louis Rehfeldt, afirmava
em meio ao conflito mundial que, ainda que o mundo esperasse o restabelecimento da paz,
essa “utopia dos visionários”, a paz universal nunca aconteceria. Era necessária para isso a
paz de Cristo, “que excede todo o humano entendimento”, a qual o mundo, conforme o pastor,
não conhecia.
36
A idéia subjacente de “paz religiosa”, ao mesmo tempo oposta e alternativa ao
“mundo”, trazia consigo a semente do que entendemos ser a respiração fina da
confessionalidade luterano-missouriana daquele período, a qual embasou a identidade oficial
do Sínodo e norteou, por conseguinte, suas interações sociais.
Quando caíram, nesse sentido, as sombras da desconfiança por sobre o “perigoso”
Germanismo brasileiro, e as atividades dos missourianos no Brasil foram igualadas e
niveladas às dos demais grupos teutos, o professor Johannes Kunstmann achou por bem
reafirmar em de 31 de outubro, data da comemoração da Reforma Luterana, o que era em sua
concepção o verdadeiro Luteranismo representado por sua igreja:
Nesses tempos, quando o luteranismo, em países de fala inglesa, é confundido
com germanismo, e em nosso país, ao menos por parte da Igreja Evangélica alemã
unionista, com americanismo, vale a pena lembrar o que realmente significa
luteranismo. (…) Luteranismo, como tal, de nenhum modo significa germanismo
ou americanismo. (...) Luteranismo não tem, em absoluto, nada a ver com política
ou “Kultur”, ou com zonas de interesse, ou com qualquer outro assunto deste
mundo (...) O luteranismo sustenta o princípio ‘Sola Scriptura’. Ele reivindica que
a Bíblia, por ser a palavra inspirada de Deus, é a única fonte e norma de todas as
doutrinas de fé e moral. (...) afirma o ‘Sola Gratia’. Professa Cristo, e ele
crucificado, ensinando que não há outro nome pelo qual o homem possa ser salvo
(...) e que, portanto, o homem não é justificado por suas obras, mas pela graça, por
causa de Cristo (...) O Luteranismo é (…) o verdadeiro campeão da liberdade
diante do papa e do clero, da liberdade religiosa da consciência, da liberdade da
igreja e dos indivíduos, somente ordenando os luteranos a Cristo Jesus, seu único
mestre, e aos mandamentos de Deus. – Nós viemos a este país para propagar o
verdadeiro luteranismo, isto é, o Evangelho de Jesus Cristo.
37
36
MC, 15/04/1918, p. 21.
37
ML, Suplemento para leitores em inglês, 31/10/1918, n. 19: “In these times, when Lutheranism, in English-
Speaking countries, is confounded with Germanism, and in our country, at least on the part of the unionistic
German Evangelical church, with Americanism, it is worth while to remember what Lutheranism really stands
for. (…) Lutheranism as such, in no way, stands for either Germanism, or Americanism. (…) Lutheranism has
nothing to do whatsoever with politics, or “Kultur”, or zones of interest, or any other affair of this world. (...)
Lutheranism upholds the ‘Sola Scriptura’. It claims that the Bible, being the inspired Word of God, is the only
source and norm of all doctrines of faith and morals. (…) upholds the ‘Sola Gratia’. It professes Christ, and him
crucified teaching that is no other name by which man may be saved (...) and that, therefore, man is justified not
by his works, but by grace for Christ’s sake (…) Lutheranism is (...) the true champion of liberty from pope and
clergy, of religious liberty of conscience, of liberty of church and individuals, only biding Lutherans to Christ
Jesus, their sole master, and the commandments of God. – We have come to this country to propagate true
Lutheranism, i. e., the Gospel of Jesus Christ.(...)”
152
As palavras de Kunstmann são reveladoras no sentido de situar o discurso
missouriano confessional no contexto das forças constitutivas do social, em relação, ao
mesmo tempo, ao outro grupo protestante de vertente luterana, o Sínodo Riograndense – ao
qual se referia como
igreja evangélica alemã unionista”, dada a aproximação desta para com
a Igreja Evangélica da Prússia
38
– e à sociedade como um todo.
Conforme Gertz, o “Sínodo Missouri (…) para disputar o terreno com o Sínodo
Riograndense precisava apresentar, além de divergências teológicas abstratas, diferenças mais
palpáveis”.
39
Tais diferenças, em Kunstmann, consistiam no argumento de que a igreja nada
tinha que ver com política, Kultur ou qualquer outro assunto “desse mundo”, no que se
manifestava uma espécie de despatriamento terreno ou de cidadania celestial: a igreja tinha
somente que ver com a Bíblia e com a graça de Deus – Sola Gratia e Sola Scriptura,
princípios tão caros ao mundo protestante. As idéias de Kunstmann contrapunham-se, assim,
às posturas do Sínodo Riograndense, à medida que este se vinculava, como dissemos no
capítulo anterior, à Igreja Estatal Alemã e que seus líderes manifestavam geralmente uma
afeição maior a sentimentos de germanidade.
Por outro lado, o argumento deitava suas bases em uma compreensão de separação
entre Igreja e Estado que pode ser remetida a um entendimento da referida doutrina luterana
dos dois reinos, de acordo com o qual a Igreja não deve participar do mundo político.
Conforme essa compreensão, que já existia, como vimos, em Walther, ao passo que o Estado
estava para as coisas materiais, a Igreja estava para as coisas espirituais. Tratava-se, assim, de
uma interpretação dualista dos dois reinos.
40
Torna-se também interessante notar que Kunstmann, ao mesmo tempo em que
anunciava a liberdade em relação ao Papa e ao clero (não mais tão valiosa no século XX,
quanto o fora no XVI) e a liberdade de consciência, construía outras fortes amarras sob a
concepção de verdadeiro Luteranismo , em relação à qual deveria ser medida a fidelidade dos
crentes e da igreja. Paradoxalmente, o Luteranismo Confessional missouriano embandeirado
por Kunstmann e por outros líderes do grupo, se por um lado se afirmava livre de jugos
humanos, por outro, ao sublinhar sua ortodoxia, reinstaurava ele mesmo novo jugo, sob cuja
mão de ferro deveriam ser trilhados os rumos de suas práticas, discursos, memórias e
38
Vide Capítulo 2, pontos 3 e 8.
39
René GERTZ, O perigo alemão, p. 35.
40
Para teólogos como Nestor Beck e Ulrich Duchrow, tal percepção não condiz com o pensamento e a prática de
Lutero: Nestor BECK, Igreja, sociedade e educação; Ulrich DUCHROW, Os dois reinos.
153
identidades. Ulteriormente, os enunciados de Kunstmann estavam bem ao gosto dos interditos
do discurso confessional.
Uma vez, nesse sentido, que o “pensamento teológico dos pastores daquele distrito
foi sempre muito uniforme, porque seu treinamento nos seminários em Saint Louis,
Springfield e Porto Alegre era teologicamente muito similar”,
41
também a coesão ao redor da
propalada doutrina confessional, então apresentada ao Brasil, era algo em larga medida
almejado pelos missourianos.
No tocante aos Estados Unidos, também lá os líderes não queriam o Sínodo
confundido em tempos de Guerra com outros grupos de tendências germanizantes. “Temos
notado que o nome ‘Luterano’ é especialmente enfatizado e repetido quando algo infame é
lembrado”, atesta a declaração publicada em editorial do Lutheran Witness, publicação
periódica do Sínodo nos EUA, em meados de 1917.
42
O editorial, que atribuía tais
sentimentos tanto à ignorância quanto à malícia que confundia Luteranos (os verdadeiros,
portanto) com os Protestantes Livres Alemães, o Sínodo Evangélico Alemão ou a Igreja
Reformada Alemã, terminava dizendo: “Há algum conforto, entretanto, no velho ditado que
diz que ‘Debaixo da melhor macieira você sempre acha muitos paus e pedras’”.
43
Por detrás
de tais idéias estava também, além da reafirmação confessional dos missourianos como o
grupo que tinha a única correta interpretação do evangelho, a acusação de liberalismo
teológico e de Calvinismo aos demais protestantes alemães nos EUA, bem como a convicção
de que o verdadeiro Luteranismo não tinha de fato nada que ver com política – ou,
minimamente, que não queria naquele momento envolvimento algum com as políticas do
imperialismo alemão.
Bem ilustrava esse imaginário confessional do Sínodo de Missouri o cabeçalho que,
a partir de maio de 1918, o Mensageiro passou a trazer contendo um desenho de Lutero entre
duas paisagens, no qual estavam representadas algumas idéias importantes. No que se
entende, uma paisagem era européia, sombria, com casas de telhados grandes e torres. A
outra, brasileira, espaço ensolarado, amplo e sem construções humanas, somente a natureza:
um lugar para onde se deveria levar a mensagem luterana. A explicação da ilustração revelava
Lutero na mocidade: “a fisionomia de um reformador”.
44
E, enquanto à direita estava o
41
Mário REHFELDT, Um grão de mostarda, a história da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, p. 14.
42
Apud Neil M. JOHNSON, The patriotism and anti-prussianism of the Lutheran Church – Missouri Synod, p.
103: “We have noticed that the name ‘Lutheran’ is specially emphasized and repeated when something
discreditable is recorded”.
43
Idem, p. 103: “There is some comfort, however, in the old saying that ‘Under the best apple-tree you always
find the most sticks and stones’”.
44
ML, 15/06/1918, p. 40.
154
castelo de Wartburg, onde Lutero traduzira o Novo Testamento ao Alemão, “à esquerda, que
bellissima paisagem! Até aqui veiu o evangelho! Trazido pelos apóstolos, pelos ministros. O
caminho está aberto! Atraz dos coqueiros, onde os montes se extendem, nasce o sol. Nos pés
dos montes correm as águas cristalizadas e nos mattos os passaros cantam, Eis o solo bemdito
do Brasil! Nesta terra, os ministros de Deus, tem um vasto território para trabalhar, para
predicar o evangelho”
.
45
(ML, 01/02/1919, capa)
Finalizando, o autor citava a passagem bíblica de Apocalipse 14.6, que constava
também no cabeçalho: “Vi outro anjo voando pelo meio do céu, tendo um evangelho eterno
para pregar aos que se assentam sobre a terra, e a cada nação, e tribo, e língua, e povo”,
46
a
mesma imagem retórica extraída da Bíblia por Walther para referir-se a Lutero, “o arauto da
verdade integral”.
47
Aspecto interessante na imagem é o Brasil aparecer figurado como um espaço vazio
de pessoas e construções humanas, somente a natureza. A representação denota a idéia de um
grupo de imigrantes que vinha ocupar um espaço sem precedentes em uma terra de
ninguém.
48
Poderíamos dizer, de acordo com Marjo de Theije, que se tratava de uma
ideologia religiosa oficial em plena ‘campanha cultural’: “ações específicas voltadas para a
mudança da ideologia pública (...) [d]os sentimentos e [d]as práticas do povo”. Nesse
contexto, as “representações simbólicas oficiais da realidade”, como no caso das imagens e
45
ML, 01/07/1918, p. 43.
46
Idem., p. 43.
47
Vide Capítulo 2, p. 121.
48
Vale novamente a menção ao expansionismo norte-americano, cf. Mary JUNQUEIRA, Estados Unidos: a
consolidação da nação, p. 103: “o expansionismo fez parte da política e da cultura norte-americanas desde o
período colonial. A intenção de ocupar territórios considerados ‘vazios’, mas que na verdade eram habitados por
culturas diferentes da norte-americana, era pautada na justificativa de que os norte-americanos eram um povo
excepcional, uma espécie de povo eleito que tinha o Direito Natural à propriedade da terra. Segundo essa
perspectiva, os ‘enérgicos norte-americanos’ apenas ‘cumpriam um destino já traçado pela Providência’: o de
ocupar os territórios além de suas fronteiras e levar a ‘civilização’”.
155
textos que aqui analisamos, “são uma descrição excepcionalmente adequada das metas e dos
objetivos dos especialistas religiosos”.
49
O rosto à frente da campanha era o do próprio
Lutero, o arauto da verdade, aquele que para Walther era o próprio anjo a voar com o
evangelho e por ele julgar. E vemos, assim, a sobreposição de imagens míticas de hierofanias
espaciais a fundamentar discursos pela articulação de temporalidades múltiplas: a Bíblia, os
anjos, Lutero, Walther, a Alemanha, o Brasil. Para o último, Lutero era também o intrépido
pregador pelas vozes de Missouri, como demonstrava também sua figuração no púlpito
reproduzida abaixo.
(ML, outubro/1925, capa)
À imagem de capa seguiam as palavras do reformador: “Considera-o, pastor e
prégador, nosso ministério agora tornou-se outro do que era sob o papa: agora é sério e
salutar. Por isso tambem já abrange muito mais difficuldades e trabalho, perigos e tentações,
além disto pouca recompensa e gratidão no mundo. Mas Christo mesmo quer ser nosso
galardão, se trabalharmos fielmente”.
50
Na figura, como se vê, Lutero estava representado pregando do púlpito. Ao fundo,
como que um raio de luz passava pela mão do reformador e sublinhava o caráter de uma
pregação que vinha do céu para iluminar o caminho dos que viviam nas trevas. Entre as
pessoas que o escutavam, ricos e pobres, crianças e adultos, homens, mulheres e inclusive um
portador de deficiência: a mensagem de Lutero, “a” Palavra de Deus, era para a salvação de
todos, sem distinção. Quanto à tarefa dos pastores e pregadores, libertos estes do “erro papal”
49
Marjo de THEIJE, Tudo o que é de Deus é bom, p. 69 e 72.
50
ML, outubro/1925, capa.
156
tão presente no Brasil, a epígrafe do reformador admoestava: “o trabalho é sério, necessário e
acarreta dificuldades e frustrações”. A recompensa, contudo, era a maior de todas: o galardão
de Cristo, motivo da perpetuação da obra evangélica.
Por estas figurações passava o imaginário e o discurso missouriano em relação ao
Brasil e à própria vocação do Sínodo. A mensagem do 15
o
Distrito era a luz para os gentios,
única possibilidade de salvação aos perdidos desta vasta e bela terra, caminho amplo e aberto
para o Luteranismo Confessional, que, ao mesmo tempo, não desejava ligação alguma com
qualquer assunto “deste mundo”, nesta terra tropicana. A Primeira Guerra viria reforçar as
identidades que se articulavam a esse imaginário. A opção confessional, associada a uma
noção prerrogativa de ser o Sínodo um baluarte da verdade, levava o grupo a colocar-se acima
e de fora do poder e do mundo dito secular. Era algo como se o evangelho circulasse por uma
via extra-mundo: nada deveria ou poderia parar sua pregação. Independentemente da situação
social em que a igreja estivesse inserida, o evangelho teria de ser pregado.
Obviamente, por outro lado, os missourianos enquanto pessoas não estavam isentos
de sentimentos “menores” de pertença, como os de nacionalidade ou eclesialidade. O fato de
que em sua maioria retornavam aos Estados Unidos era sinal disso. O próprio Kunstmann,
pouco tempo depois, em 1922, em função de problemas administrativos, também “menores”,
viria mesmo a desligar-se do Sínodo com toda sua comunidade.
51
A despeito disso, essa espécie de sentimento evangélico “despatriado” podia levar os
pastores do Sínodo a posturas discursivas de superioridade inclusive em relação aos países em
que estivessem. Kunstmann, por exemplo, no já citado texto do período da comemoração da
Reforma, afirmava que Lutero era alemão e a Alemanha o berço da Igreja Luterana, o que,
para ele, não identificava o Luteranismo com Germanismo. Assim também, os Estados
Unidos, antes de outros países, haviam se tornado, conforme o pastor, “um refúgio para
verdadeiros luteranos” que tiveram de abandonar sua pátria mãe por questões de consciência.
Além disso, argumentava o pastor, outros países como a Noruega, a Suécia ou a Dinamarca,
tinham também suas igrejas luteranas. Então por que não chamavam o Luteranismo de
Escandinavismo? Para Kunstmann, luteranos, como indivíduos, podiam estar sujeitos a este
ou aquele país, isto fazia parte da liberdade de todo luterano genuíno. Em sua interpretação da
doutrina dos dois reinos, como a igreja não deveria intervir no reino secular, a ação política
ficava a encargo dos indivíduos enquanto cidadãos. O objetivo dos missionários missurianos
de propagar o verdadeiro Luteranismo, o evangelho de Jesus Cristo, estava, assim, em sua
51
Ver Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 38-39.
157
concepção para além de tais comprometimentos nacionais: “(...) O que quer que sejamos
como indivíduos, norteamericanos, brasileiros, alemães, ingleses, sejamos primeiramente
luteranos”.
52
4. Em português, inglês ou alemão, importava a pregação da Palavra
Ainda que os missourianos dos Estados Unidos e os do Distrito Brasileiro fizessem
parte de uma mesma organização, a proibição do idioma alemão não encontrou reações e
resultados idênticos nos dois grupos.
As relações do 15° Distrito com o Sínodo estadunidense foram estreitas desde o
princípio, estando o grupo brasileiro de um modo geral submisso ao norte-americano.
Tratava-se de uma relação pautada por uma dependência econômica e religiosa que
perpassava as diversas dimensões da ação do grupo; relação alicerçada na esfera doutrinário-
teológica e fortalecida na subalternidade material. Se considerarmos que, “numericamente, o
trabalho missionário no Brasil era o de maior sucesso do Sínodo de Missouri fora dos Estados
Unidos”,
53
poderemos imaginar a importância que galgava o Distrito Brasileiro junto à
opinião pública sinodal nos EUA, bem como a atenção que dedicavam à fidelidade dos
missionários no Brasil, que, é claro, assim deviam permanecer: fiéis.
Ulteriormente, a postura doutrinário-teológica dos missourianos era a mesma, tanto
no Brasil, quanto nos Estados Unidos. As declarações levam a crer que para os líderes do
grupo o idioma não era uma questão de lealdade a este ou aquele governo ou nação. Tanto o
grupo brasileiro, quanto o estadunidense, mantiveram, na verdade, em larga medida posturas
deveras ordeiras, colaborando com o Estado e respeitando suas determinações. Acreditava-se,
por outro lado, que uma querela idiomática não deveria prejudicar a pregação da Palavra:
importava antes obedecer a Deus que aos homens, como diziam a Bíblia e as Confissões.
54
Tais crenças compartidas, contudo, produziram diferentes práticas sociais. Nos
Estados Unidos, o idioma nacional oficial tornou-se após a I Guerra a língua falada pelo
Sínodo de Missouri, o que, no Brasil, veio a acontecer com o idioma português somente após
a Segunda Guerra Mundial.
Nos Estados Unidos, diante da dura repressão a que foram submetidas as centenas de
milhares de pessoas filiadas ao Sínodo e do afã patriótico que se instaurou, os dirigentes se
52
ML, Suplemento para leitores em inglês, 31/10/1918: “Whatever we are as individuals, North-Americans,
Brazilians, Germans, British, let us be Lutherans first”.
53
Mário REHFELDT, Um grão de mostarda, p. 13.
54
At 5.29; CA, XVI-7, p. 35.
158
viram, pela questão mesma da sobrevivência de sua obra, diante da exigência de uma maior
adequação à nova situação. Nesse sentido, de uma realidade primeira, na qual, enquanto
defendiam a neutralidade estadunidense na Guerra contra a Alemanha e identificavam a
adesão ao idioma inglês a um risco de perda da fidelidade doutrinária e de liberalização
teológica, o Sínodo foi se movendo na direção de um engajamento na campanha patriótica
pró-combate, promovendo inclusive a compra de títulos para auxílio nos custos da Guerra, e
da adoção do idioma inglês como símbolo desse mesmo patriotismo. Rapidamente, diante das
pressões, o Sínodo e suas congregações eliminaram a palavra German de seus nomes e o
idioma alemão foi substituído pelo inglês nos cultos, nas escolas, nas reuniões e nos
documentos sinodais. “Resumindo, as pressões inspiradas pela guerra colaboraram muito para
condensar em menos de dois anos um processo que normalmente teria durado muito mais”.
55
Os motivos religiosos que sustentaram essa mudança nos EUA foram, todavia, os
mesmos que embasaram as posições no Brasil, onde logo após a guerra um uso
indiscriminado do idioma alemão voltou a se impor. Tratava-se da certeza confessional de que
a tarefa real da igreja era a pregação do evangelho. Diante dessa tarefa, outros pontos
deveriam ser considerados periféricos, desde que não afetassem aquela questão central.
Associada a essa compreensão estava, porém, uma interpretação ordeira de Romanos 13 –
toda a autoridade é instituída por Deus –, como eco do pensamento da Reforma, embasando o
engajamento do Sínodo ao lado do governo estadunidense e subordinado-o em termos oficiais
ao governo brasileiro.
O processo num grupo tão grande não poderia, entretanto, ser unívoco e sem
conflitos. Exemplo disso foi o do Distrito de Dakota do Sul, que enviou protesto às
autoridades sobre a proibição do idioma alemão dizendo que as pessoas idosas, não por sua
culpa, não entendiam inglês e que tal lei estava impedindo sua relação com Deus, o que era
uma garantia da constituição estadunidense.
56
Seguiu mesmo caminho o posicionamento dos presidentes dos diversos distritos do
Sínodo, reunidos em Saint Louis em 1918. Asseguravam: 1) que a língua nada tinha que ver
com lealdade para com o governo; 2) que era preciso continuar pregando em alemão, visto
55
Frederick NOHL, The Lutheran Church – Missouri Synod reacts to United States anti-germanism during the
World War I, p. 58-59: “In short, war-inspired pressures did much to condense into less than two years a process
that normally would have taken much longer”.
56
ML, Suplemento para leitores em inglês, 01/09/1918. Após a Guerra cessa-se a publicação da coluna para os
leitores em inglês. Deve-se isto, creio, ao reinício da publicação em alemão do Kirchenblatt.
159
que entre 50 e 75% das pessoas não entendia inglês suficientemente, e 3) que por isso a igreja
só se submeteria pela força, fosse do governo, fosse do cidadão comum.
57
O pastor presidente do Distrito Brasileiro, Emil Müller, por sua vez, demonstrou
logo após o fim da notícia acima que uma vinculação dos missurianos brasileiros a essa forma
de pensar podia também ser sentida em alguns momentos: “Tudo indica que está soprando
um vento fresco, fortificante, porque é o único procedimento de requerer francamente o
direito garantido pelo governo aos seus subditos”, dizia ele.
58
De um modo geral, porém, entendia-se que a tarefa da pregação precisava ser levada
adiante a qualquer preço, em alemão, inglês ou português, como atestava a carta enviada dos
EUA, em 22 de janeiro de 1918, pelo Rev. F. Pfotenhauer, presidente geral do Sínodo de
Missouri, e publicada no Mensageiro na seção “Últimas notícias do quartel general”: “(...)
queremos ver nossos trabalhadores assistidos de maneira adequada, por causa dos tempos
ruins. Se necessário, portanto, aumentem os salários de nossos pastores e professor durante
esse período. Se estiver proibida a pregação em alemão no Rio Grande do Sul, nenhum pastor
deve deixar seu rebanho e voltar para a América do Norte por essa razão, mas antes servir a
seu povo individualmente”.
59
Perceba-se o tom disciplinador da voz do presidente geral. O assunto era sério, e
assim deveria ser considerado. Problemas econômicos ou políticos não eram razão suficiente
para que a pregação fosse suspensa. Se os salários estivessem baixos, que se lhes
concedessem aumentos. Se estivesse proibido o falar alemão em público, que os pastores
atendessem seu rebanho um a um, no idioma que conheciam, o alemão.
Essa mesma preocupação com a pregação, por outro lado, os conduzia à
aprendizagem do português. Já o primeiro número do Mensageiro Christão trazia na abertura,
após uma breve saudação, o seguinte texto, assinado por Emil Müller: “Uma necessidade.
Visto que moramos no Brasil, trabalhamos entre seu povo e no meio delle estamos passando
por uma grande crise, cumpre aos pastores e professores lidarem no estudo da língua
vernácula. Quem relaxa, saiba que não cumpre com seus deveres”.
60
Proibidos de utilizar sua
57
ML, 15/09/1918, p. 59
58
Idem, p. 59. Emil Müller nasceu em 1880 nos EUA e chegou ao Brasil em 1905. Atuou como pastor em Linha
8 Oeste, Ijuí (1905-1919), e em Porto Alegre (1919-1922). No Distrito Brasileiro foi 2
o
vice-presidente (1912-
1913), 1
o
vice-presidente (1913-1916) e presidente (1916-1921), tendo sido também redator do Mensageiro. Em
1922, após alguns desentendimentos, abandonou seu cargo em Porto Alegre e retornou aos Estados Unidos, onde
permaneceu até sua morte em 1967. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da Igreja, p. 38 e 268.
59
MC, 15/03/1918, p. 16: “(…) we want to see our workers taken care of in a proper way, on account of the
dreadful times. If necessary, therefore, increase the salaries of our pastors and teacher for the time being. If the
preaching in German should be prohibited throughout Rio Grande do Sul, no pastor should leave his flock for
that reason and return to North America, but serve his people individually”.
60
MC, 25/12/1917, sem pg.
160
língua costumeira, a aprendizagem do português tornava-se, assim, para os missionários
missourianos, dever conjunto à pregação do evangelho. “A santa causa do nosso querido
Senhor Jesus Christo não deve, não pode soffrer encurtamento pelo referido decreto
governamental. Por conseguinte é preciso que conformamo-nos com esta medida, a qual
sentimos muito severa”, dizia o presidente distrital
.
61
O objetivo missionário estava claro. O que se queria com o idioma português era
possibilitar a pregação do evangelho. A liderança do grupo, nesse sentido, “procurava difundir
o português e compreendia o alemão como instrumento de difusão do Evangelho, nunca como
um fim ou uma tarefa da igreja”.
62
Naquele momento já se havia inclusive chamado um
professor, o rev. Louis Rehfeldt, especialmente para ensinar a língua portuguesa no Seminário
Concórdia. Todavia, conforme Müller, ainda que Rehfeldt houvesse aceito o chamado, talvez
o governo por causa da Guerra requeresse alguém “verdadeiramente brasileiro” para a
tarefa.
63
A conjuntura, portanto, imprimiu a necessidade de que os esforços de lidar com o
português fossem redobrados. Assim, a fim de que a pregação não fosse interrompida, os
missionários uniram forças para produzir traduções do catecismo, das liturgias e dos hinos.
Chegado ao Brasil, Rehfeldt, após lamentar que precisariam de mais tempo para a tarefa,
festejava: “o catechismo está prompto (...) o tempo exige que pomos mãos à obra para ensinar
a doutrina pura na língua portugueza”.
64
A escrita do professor de português do Seminário revelava, menos que os escritos de
outros professores e pastores sinodais, as dificuldades dos missionários na lide com a
vernácula. Wilhelm Kemmner, por exemplo, pastor da comunidade de Roca Salles, lamentava
os problemas no convívio com o idioma português, afirmando que estava ensinando e
estudando a vernácula com pouco êxito. Falava da dificuldade que representava o idioma
brasileiro para ele e para os alunos que mal sabiam falar a “língua materna”, o alemão, e
afirmava ser o português um idioma estrangeiro para o ensino do qual estaria pouco
qualificado.
65
Além de revelarem a problemática relativa às atividades pastorais, as
reclamações de Kemmner sublinhavam também a situação de pessoas que, vivendo no Brasil,
consideravam o português ainda um idioma estrangeiro.
66
61
MC, 15/01/1918, p. 2.
62
René GERTZ, O perigo alemão, p. 36.
63
MC, 15/01/1918, p. 2.
64
MC, 01/03/1918, p. 14.
65
Idem, p. 27.
66
O próprio Wilhelm Kemmner (1888-1951), por exemplo, vivia no Brasil já desde 1912 (!). Foi pastor em
Erechim (1912-1914) e Roca Sales (1914-1921), quando então voltou à sua terra natal, a Alemanha, para atuar
161
A fim, então, de amenizar a questão, os líderes do Distrito Porto-Alegrense, reunidos
em conferência entre 11 e 12 de setembro de 1918, resolveram o seguinte: 1) que uma
comissão enviasse o quanto antes a cada pastor um numero de cânticos de natal em português;
2) que uma comissão compilasse orações para serem publicadas em português; 3) que o pastor
Theophil Strieter fizesse uma seleção de historias bíblicas para o ensino escolar.
67
Os esforços de aportuguesamento do trabalho se dirigiam, assim, no sentido de que a
doutrina pura trazida pelos missionários continuasse sendo pregada. Qualquer coisa que
trouxesse obstáculo à pregação deveria ser contornada. Era em relação à pregação da doutrina
pura, entendida como a própria palavra de Deus para a salvação dos gentios em terras
brasileiras, que se estabelecia a missão dos missourianos.
Essa coesão ao redor da busca pelo português e a não-naturalização da relação entre
o idioma alemão e o Protestantismo não deve, também, ser absolutizada. Está claro, como já
dissemos, que se tratava de um grupo de brasileiro-alemães e que seu idioma moldava as
possibilidades de suas construções identitárias. O que estamos argumentando, de outra forma,
é que, ao menos no caso das lideranças do Sínodo no Brasil, motivos religiosos agregaram
novas cores a tais construções. Se considerássemos, por outro lado, a vida dos leigos nas
congregações, possivelmente chegaríamos a conclusões bastante diferenciadas. Suas vidas
cotidianas seguiram muito provavelmente em todo lugar seu ritmo regular em alemão. A
análise, porém, das diferentes reações de pastores e de membros apresenta não poucas
dificuldades à pesquisa histórica em termos de fontes.
5. Os missourianos e os riograndenses
Como já se pôde perceber, as relações entre o Sínodo de Missouri e o Sínodo
Riograndense não foram naquela situação muito amigáveis. Eram sínodos diferentes que
abrigavam um mesmo povo imigrante alemão, com origens religiosas diversas. Ainda que
recentemente tenham acontecido alguns avanços no diálogo entre IELB e IECLB, diferenças
políticas e teológicas as mantêm, na verdade, afastadas até os dias atuais. Por parte dos
missourianos, ainda que a argumentação durante a I Guerra fosse eminentemente feita pelas
como pastor na Igreja Luterana Livre da Saxônia, em Bremen. Ocupou entre 1915 e 1921, o cargo de conselheiro
distrital, que, grosso modo, na estrutura missouriana se assemelha à posição de um bispo, porém eleito por um
período determinado de tempo. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 272.
67
ML, 01/10/1918, p. 68. O Rev. Theophil W. Strieter, alemão de nascimento (1889), chegara ao Brasil, vindo
dos EUA, em 1911. Fora, também, em 1913, o primeiro pastor do sínodo a pregar em língua portuguesa e esteve
à frente da missão luso-brasileira em Lagoa Vermelha entre 1919 e 1921. Faleceu em 1965, nos EUA. Cf. Carlos
H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 271; tb. IELB, site oficial.
162
vias da confessionalidade e da práxis eclesiástica, questões correlatas estendiam-se para os
campos da economia, da política nacional e da etnicidade: outros discursos atravessavam o
discurso religioso, e vice-versa.
Já no contexto do jubileu da Reforma de 1917 houve um sério confronto entre os
pastores doutores Johannes Kunstmann e Hermann Dohms (1887-1956), este último um dos
expoentes do Sínodo Riograndense, pastor em Cachoeira do Sul, RS, e fundador naquela
cidade de uma instituição educacional que daria origem à atual Escola Superior de Teologia
da IECLB. Numa das manifestações da querela, Kunstmann acusava Dohms de “germanista”
e argumentava em favor de seu grupo: “O germanismo dos missourianos não é um fim em si,
mas apenas meio para o fim (...) Perderíamos muito, se quiséssemos abrir mão do
germanismo sem uma necessidade que nos obrigasse a isso. No entanto, se for necessário,
também podemos de outro modo”.
68
Ao que Dohms reagiu:
Nós não conhecemos “a necessidade que nos obrigasse a isso”, que nos pudesse
mover a abrir mão de nosso etnicismo. (...) Para nós, o etnicismo é um bem moral,
que deve ser formado, sustentado e permeado por piedade sincera. Aqui vale
somente ruína, jamais “abrir mão”. Esse conhecimento da obra do etnicismo
naturalmente ainda não existiu quando surgiu a dogmática missouriana. O
caminho para ela passa por dois séculos de história do pensamento alemão, que a
dogmática missouriana não presenciou mais.
Como missourianos, os missourianos estão alheados do etnicismo alemão. (...)
Estão à parte e se queixam da Prússia e de nós e sobre todo o mundo alemão, que
é tão diferente deles. Não repreendemos a quem se aplica este juízo – e ele
certamente não vale individualmente para cada membro da igreja missouriana –
por causa de sua índole. Apenas esperamos o reconhecimento de que somos os
alemães mais felizes e mais firmes, porque cremos num valor próprio de nosso
etnicismo e negamos que, em alguma parte do globo, ele deva ser “apenas um
meio para o fim”.
69
Para Kunstmann, então, a germanidade era algo valoroso de se manter, mas
primeiramente vinha a pregação do evangelho. A equiparação do evangelho com o etnicismo
era para ele um escândalo. Já para Dohms, ser alemão e ser evangélico estavam no mesmo
patamar. Ecoava em Dohms aquele novo Protestantismo nacionalista que surgira na
Alemanha do século XIX.
70
Na opinião do riograndense, os missourianos não eram mais
alemães e, presos em seu dogmatismo, haviam perdido o “trem da história” alemã.
As próprias condições de surgimento dos dois grupos podem nos ajudar a
compreender as diferenças atestadas. Enquanto o Sínodo de Missouri viera para os
68
Apud Hans-Jürgen PRIEN, Formação da Igreja Evangélica no Brasil, das comunidades teuto-evangélicas de
imigrantes até a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, p. 530, 563.
69
Idem, p. 530-531.
70
Ver Hermann Gottlieb DOHMS, Textos escolhidos, p. 213-243.
163
imigrantes, o Sínodo Riograndense viera com os imigrantes. Para os primeiros, a cultura
alemã era um meio de atingir seus objetivos missionários, para os últimos, ao mesmo tempo,
um fim e um modo de auto-afirmação política no Brasil. Ainda que partilhassem pontos
comuns de uma história antiga do Protestantismo, a história recente de ambos os grupos, na
Alemanha, nos EUA e no Brasil era deveras diferente.
Tal conflito estender-se-ia ainda por muitos anos após a guerra. Como, por exemplo,
quando o pastor missouriano Otacílio Schüler, em 1924, após ter assistido a um sermão do
rev. Dohms, escandalizado constatou não ter ouvido durante a prédica uma vez sequer o nome
de Jesus Cristo, o que para ele provava “às claras, a decadência espiritual da Egreja Unida
(allemã)”. Conforme Schüler, Dohms falara pouco em fé, em salvação e apenas por quatro
vezes, de passagem, em Deus. Entretanto, narrava o pastor missouriano, quando o assunto
fora “Honra teu pai e tua mãe”, o riograndense tratara com vigor da “nova pátria dos allemães
no Brasil”. Do sermão, Schüler salientava expressões como “Alemanha”, “cultura respeitosa
das tradições de nossos antepassados”, “por energia e vigor próprio”, “anelamos cousas mais
sublimes”, “agricultura alemã”, e apresentava suas conclusões: “Qual seja o problema da
Egreja Unida é, pois bem claro ... não a evangelisação, mas antes ‘Kultur’” .
71
O envolvimento dos riograndenses com o Germanismo era, assim, abertamente
reprovado pelos missourianos. Como vimos, para os líderes do Distrito Brasileiro, por
princípio, o verdadeiro Luteranismo nada tinha a ver com sentimentos nacionalistas. “A
egreja que afirma o direito de existência por ser allemã antes de christã é uma egreja falsa”,
assertava sob o título “A Egreja Militante” Theophil W. Strieter, o primeiro entre os
missurianos a pregar em português.
72
Strieter relatava a ocasião em que uma autoridade do Sínodo Riograndense
procurara, por um “golpe terrifico”, arruinar as atividades dos missourianos. “O plano foi o
seguinte: ‘Missouri’ deve ser exterminado em Dois Irmãos e em São Leopoldo; os ministros
dos respectivos lugares ou se submetem á egreja unida ou saem privados dos seus cargos.” Os
riograndenses, conforme o pastor, querendo “ganhar de boamente os membros da Egreja
Lutherana”, alegavam que todos os de sangue alemão deveriam estar reunidos em uma
congregação – o que Strieter considerava um absurdo – e que o Sínodo missouriano
terminaria por escravizar as congregações sob a pesada dívida de 18 contos de réis – o que
segundo o pastor era uma afirmação mentirosa. Tal autoridade riograndense teria inclusive
71
ML, 07/1924, p. 47.
72
ML, 15/11/1918, p. 78.
164
convidado o Rev. August Heine,
73
da comunidade de Dois irmãos, à sua casa “promettendo-
lhe ao mesmo tempo, em nome daquelles que podem, um salario folgado e uma parochia a
seu gosto. Por que motivo?: ‘Pois, o reverendo tambem é allemão’!! Que sarcasmo! Então não
é convicção na palavra de Deus, mas nacionalidade e lingua que decide crenças!” E
exclamava: “O tempora! O mores!”
74
A autoridade riograndense então, de acordo com Strieter, propusera que as
congregações de Dois Irmãos e São Leopoldo cedessem todos os seus membros e bens às
igrejas riograndenses locais, do que levantava o missouriano a suspeita de que, se o fizessem,
estariam na verdade cedendo ao Preussische Oberkirchenrat (Conselho Eclesiástico Superior
Prussiano), órgão estatal alemão ao qual se filiava o Sínodo Riograndense e do qual mantinha
inclusive em seus próprios quadros um representante permanente. A proposta, por fim, incluía
que o pároco e o professor de São Leopoldo, desde que se submetessem ao “regime unido”,
poderiam permanecer na função de professores da escola paroquial da localidade, recebendo
pelo serviço um ordenado, “para elles não morrerem de fome”, lamentava Strieter.
75
Proposta feita, o pastor levara o convite aos membros, que o declinaram e decidiram
pela permanência no Sínodo de Missouri e ainda por incentivar seus filhos a se tornarem
também membros missourianos. Concluía, então, Strieter:
Ha mais de 25 annos antes que nosso Synodo foi chamado ao Brasil, a nossa
congregação Leopoldense se tinha desligada d’outra por motivos profundissimos.
Sem ser procurada, a nossa congregação ha 15 anos, nôs chamou de livre vontade.
Portanto, malfizeram os unidos tentando este roubo. Leiam elles 1 Pedro 4,15:
“Nenhum de vos se pareça como ladrão, ou como o que se entremette em
negócios alheios.”
Dahi é obvio que os instigadores de um projecto tão fraudulento, ou não
conhecem as Escripturas e agem como néscios, ou não querem conhecel-as e
ficam culpados de villania. Julgando outros por si, querem enredar-nos por lucro
vergonhoso. Mas graças a Deus, “assim vos tenham os outros em conta de servos
de Christo.” E como taes esforçamo-nos cumprir do que a egreja unida pouco se
importa: “Instrui-as a observar todas as cousas que vos tenho mandado.” Matt.
25,20. “Se vos permanecerdes na minha palavra, sois meus verdadeiros
discipulos.” S. João 8,31.
76
73
De nascimento alemão (1884) e formado nos Estados Unidos, August Heine serviu ao sínodo como pastor
primeiramente em Buenos Aires (1907-1910) e posteriormente no Brasil, em São Leopoldo, Dois Irmãos e Porto
Alegre. Dentre os cargos que ocupou, destacam-se os de 1° vice-presidente (1912-1913) e presidente (1913-1916
e 1930-1942). Heine viveria ainda a experiência de ser preso durante a II Guerra Mundial, na cidade de Santa
Maria, RS, entre os anos de 1943 e 1946. Faleceu em São Paulo, SP, em 1963. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas
da igreja, p. 270.
74
ML, 15/11/1918, p. 78.
75
Idem, p. 78.
76
ML, 01/12/1918, p. 82.
165
Tratava-se do caso de uma comunidade que se dividira em 1877, antes mesmo,
portanto, da fundação do Sínodo Riograndense, em 1886.
77
Com a chegada, porém, dos
estadunidenses ao Brasil, uma das facções afiliara-se ao Sínodo de Missouri, o que deu
margem à querela relatada por Strieter, decorrente da iniciativa da outra facção, afiliada então
ao Sínodo Riograndense, que demonstrava o intuito de reunir as partes em uma única igreja
alemã. Na maioria das vezes, esses conflitos e rupturas procediam a divergências que eram
mais de ordem econômica e política que teológica, como queriam os missourianos. Também a
ligação de tais comunidades a sentimentos de pertença alemã, pode-se supor, não seria
abalada somente por uma alteração de filiação sinodal. Não era possível evitar que os
membros continuassem se sentindo alemães. O que mudava mais profundamente na vida
destas comunidades com a troca de um sínodo pelo outro era sem dúvida, além de algumas
prováveis vantagens materiais, o discurso dos pastores acerca do Germanismo e talvez de
alguns pontos doutrinários. Os embates, porém, entre pastores e líderes no contexto da
Guerra, engendravam, articulavam e aprofundavam diferenças que iam crescentemente
afastando os dois sínodos.
Para além dos temas da germanidade, houve também, por certo, desavenças no
campo da práxis religiosa. Veja-se, por exemplo, a querela que relatou o pastor missouriano
Henry Ebelke, missionário no Brasil entre 1915 e 1921.
78
A controvérsia envolvera, em 1918,
Ebelke e um pastor do Sínodo Riograndense, cujo nome não foi citado, que atuava em Serra
[Cerro?] Branco, desde que um “pastor freelance (free lance Pfarrer) deixara o local.
Conforme Ebelke, tal pessoa, como pastor ordenado, para seu escândalo, exigira apenas os 10
Mandamentos e os três artigos do Credo para que uma jovem fosse confirmada.
79
O relato do
pastor missouriano, publicado sob o título “How they do it” [Como eles procedem], denotava
as dificuldades que se geravam no choque entre duas maneiras diferentes de conceber a ação
da igreja. Para Ebelke, a prática riograndense era uma grande vergonha (a crying shame): “E
eles chamam isso Confirmação!” – dizia o pastor. Era tal a dimensão do problema, que para o
missouriano quando uma criança dessas viesse a receber o sacramento, isso seria como jogar
pérolas aos porcos!
80
Em um modelo de religião no qual se aspirava que a pertença e a
vivência religiosa passassem necessariamente pelas razões da fé, isto é, pelo conhecer claro de
77
Observação do Prof. Ricardo Rieth como membro da banca desta tese.
78
Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 274.
79
Referia-se ao rito de Confirmação, no qual, após um período de instrução, o jovem comparece diante da
comunidade reunida em culto para confirmar seu batismo e sua pertença à igreja de Cristo, bem como, no caso
da LC-MS e da IELB, para ratificar sua fidelidade doutrinária, estando a partir daí autorizado a participar da
Santa Ceia. Trata-se, portanto, de algo similar aos ritos de Primeira Comunhão e Crisma no Catolicismo
Romano, e envolve a idéia de passagem da infância para a adolescência.
80
MC, 15/04/1918, p. 24.
166
doutrinas religiosas, um lassez faire prático-dogmático daquele tipo era escandaloso e
representava uma ameaça grave.
Ao passo que competiam no mesmo campo religioso, as diferenças em relação aos
opositores iam sendo ressaltadas pelos líderes do 15° Distrito. Agravava a situação, como
vimos acima, o fato de que diversas das comunidades então vinculadas ao Sínodo de Missouri
haviam antes sido ligadas ao Sínodo Riograndense, tendo deste se desligado por diferentes
tipos de desentendimento – dentre estas, como dissemos, algumas que retornariam ao Sínodo
de origem. O caráter independentista de comunidades que, na verdade, haviam surgido do
esforço de imigrantes e não de pastores colaborava, certamente, nesse “vai e vem”.
81
No contexto dessa disputa, os missurianos iam, assim, sublinhando seu zelo
doutrinário em contraposição ao afrouxamento dos riograndenses. As congregações, por sua
vez, deveriam perceber e aceitar as diferenças demarcadas pela linha divisória da “correta e
luterana pregação do evangelho” e “administração dos sacramentos” – no Luteranismo , o
batismo e a eucaristia. Era ao que se referia o presidente geral do Sínodo de Missouri, Rev. F.
Pfotenhauer, em carta publicada em julho, demarcando fronteiras entre as suas práticas e as
dos riograndenses e “free lancers” ou “pseudopastores” que antes dominavam o cenário: “As
congregações devem aprender que nossa prática é muito diferente daquela que estavam
acostumadas e que a Palavra de Deus deve reinar se as pessoas quiserem ser atendidas por
nossos homens”.
82
Também nos EUA, vale a comparação, as ações dos líderes do Sínodo mantinham
sua direção exclusivista. Assim, por exemplo, quando foi organizada uma Comissão Luterana
Nacional, a fim de tratar do bem-estar de luteranos nas forças armadas estadunidenses, a
Conferência Sinodal, uma organização de grupos luteranos conservantistas sob liderança do
Sínodo de Missouri,
83
decidiu colaborar, mas de maneira restrita. Propunham-se a cooperar
81
Eliseu TEICHMANN, Imigração e igreja: as comunidades-livres no contexto da estruturação do luteranismo
no Rio Grande do Sul, passim.
82
ML, Suplemento para leitores em inglês, 15/07/1918, p. 49: “Congregations must learn that our practice is far
different from what they have been accustomed to, and that the Word of God must rule, if the people wish to be
served by our men”.
83
Fundada em 1872 a partir de um esforço dos sínodos de Missouri, Ohio, Norueguês, Minessota e Wisconsin,
tendo Walther como seu primeiro presidente, a Conferência Sinodal representou uma tentativa de união entre
grupos luteranos conservantistas em meio a diversos conflitos teológicos nos EUA. Todavia, como fora criada a
partir de critérios de pertença eminentemente doutrinários, a Conferência não teve forças para enfrentar as
controvérsias internas que se desenvolveram ao longo já de sua primeira década de existência. Como resultado, a
partir de meados da década de 1880, a Conferência tornou-se como que uma organização do Sínodo de Missouri
com alguns poucos delegados de outros sínodos. Terminou por ser extinta em 1954. Cf. Paul G. BRETSCHER,
...As I saw it, the dissolution of the Synodical Conference, 1954, passim; George J. GUDE, C.F.W. Walther and
the Synodical Conference, passim; Mary TODD, Authority vested, p. 88-89. Esforços como estes nos conduzem
a não absolutizar o caráter exclusivista e isolacionista do Sínodo de Missouri. Algumas tentativas de união foram
167
(1) de todos os modos possíveis, (2) a pagar sua parte nas despesas gerais, (3) a auxiliar nas
tratativas com governantes e militares e (4) a indicar pastores para o campo sancionados pela
comissão. Reservavam-se, contudo, (5) o direito de atender às necessidades espirituais dos
homens de suas congregações através de seus próprios representantes sempre que fosse
possível, o que significava que somente pastores chamados e registrados regularmente pela
Conferência seriam indicados para a tarefa. Quanto aos três primeiros pontos, observava-se
que os representantes da Conferência Sinodal na Comissão e em seu Comitê Executivo
deveriam estar de fato representando sua corporação, ou seja, assumindo responsabilidade
somente nos assuntos em que a Conferência estivesse em completo acordo com a Comissão.
84
Para Johannes Kunstmann, que relatou o episódio, aqueles eram “tempos perigosos”,
nos quais ficava alegre em poder atestar a posição de separação entre Igreja e Estado e a
rejeição de todo o unionismo por parte do Sínodo de Missouri: “Deus permita que nós
defendamos todos e s e m p r e os princípios da verdadeira Igreja Luterana”, concluía.
85
Mesmo em situações extremas como a da atividade de capelania militar no front, o zelo
confessional dava, assim, a tônica das preocupações missourianas. A verdade não deveria ser
contaminada nem sob tais condições.
Sob o assunto do unionismo, vale ainda mencionar o episódio, narrado também por
Kustmann sob o título “The limit”, a respeito de uma circular enviada pelo presidente do
Sínodo Riograndense que chegara às mãos do presidente do Sínodo Evangélico Luterano de
Santa Catarina, Paraná e Outros Estados. Na correspondência, que não fora recebida pelos
missourianos, o presidente riograndense convocava os leitores a uma união com
“presbiterianos, episcopais e etc.” Vejamos o comentário de Kunstmann:
Não me espanta muito o Sínodo Riograndense tentar se unir a todos os tipos de
seitas r e f o r m a d a s – um pouco mais ou um pouco menos de unionismo ou
sincretismo não importa muito para essas pessoas – estou mais surpreso de
tentarem se unir a denominações americanas. Que mudança de fronte! O velho
ditado permanece verdadeiro mais uma vez: A e s n o n o l e t [dinheiro não
tem cheiro]. Eles querem dinheiro, com certeza, mesmo que cunhado na America.
Consideramos uma honra termos sido esquecidos.
86
de fato realizadas. Como, porém, não admitiam união sem unidade doutrinária, e quem estabelecia as regras do
jogo eram os próprios missourianos, não foram obtidos grandes sucessos nessas tentativas.
84
ML, 15/09/1918, suplemento, sem pg.
85
Idem, sem pg.: “God grant that we all and a l w a y s uphold the tenets of the true Lutheran Church!” [grifo
no original]
86
ML, 15/06/1919, suplemento para os leitores em ingles, sem pg.: “I do not wonder so much about the Rio
Grandense Synod trying to unite with all kinds of r e f o r m e d sects – a little more or less of unionism or
syncretism does not matter much with those people – I am more surprised about their trying to unite with
American denominations. What a change of front! The old saying holds true once more: A e s n o n o l e t.
168
Note-se como as acusações transcendiam por vezes a questão doutrinária e religiosa,
e iam até o campo dos interesses econômicos. Kunstmann não só desaprovava as supostas
alianças que realizava o Sínodo Riograndense, ao que chamava de sincretismo,
87
como
também os acusava de tomarem tais direções por interesses econômicos. As acusações de
alinhamento religioso (dogmatismo) e econômico (americanismo) feitas aos missourianos
pelos riograndenses não eram, assim, deixadas de lado pelos acusados.
O curioso nesse caso específico é que, algumas décadas mais tarde, o Sínodo
Evangélico Luterano de Santa Catarina, Paraná e Outros Estados, que fora criado com o apoio
dos “homens de Löhe” e que por sua opção confessionalista era visto com simpatia pelos
missourianos, de fato unir-se-ia ao Sínodo Riograndense na formação da atual IECLB – o que
Kunstmann, é claro, não poderia prever.
Os embates entre os líderes sinodais, ao redor das idéias de germanidade e de
confessionalidade, fluíram, portanto, de modo ardente de ambas as partes durante a guerra – e
podem, como dissemos, ser percebidos até os dias atuais. Todavia, as acusações mútuas que
circundavam a questão étnica parecem ter se restringido aos momentos em que a
nacionalidade entre os alemães tornara-se um fator maior de tensão, em função justamente da
guerra. Em outros períodos, elas restaram ao universo mais propriamente religioso ou
doutrinário.
No contexto do conflito mundial, todavia, a argumentação missouriana, quer fosse
contra a política germanista dos riograndenses, quer contra as posturas doutrinárias e pastorais
dos mesmos, tinha seu motivo principal na afirmação de sua própria confessionalidade e da
necessidade de fidelidade para com as questões doutrinárias. O velho espírito confessionalista
anti-unionista estava lá bem presente. Isso, contudo, não nos deve desviar a atenção dos
motivos “menos nobres” que alavancavam o embate, desde as relações econômicas que
envolviam ambas as partes até, como veremos a seguir, as relações dos sínodos com o poder
público. A luta pela palavra verdadeira não foi travada somente no nível do embate teológico.
They want money, to be sure, even if it coined in America. We deem it be an honor to have been passed by”
[grifos no original].
87
Cf. etimologia do DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAIS: “gr. sugkrétismós,oû 'união de cretenses contra
um adversário comum', donde 'coligação de dois adversários contra um terceiro', de sún 'conjuntamente, ao
mesmo tempo' e v. krétízó 'agir como um cretense, p.ext., agir como um velhaco, ser impostor', pelo fr.
syncrétisme (1611) 'união de dois antigos inimigos contra uma terceira pessoa', (1687) 'tentativa de promover a
fusão de diversos cultos, diversas doutrinas religiosas', (1765) 'tentativa de reunião, de síntese de várias doutrinas
filosóficas', (1890) psic 'apreensão global, mais ou menos confusa, de um todo', (1909) 'apreensão global,
indiferenciada, que precede a percepção e o pensamento em relação a objetos nitidamente distintos uns dos
outros', (1933) na acp. de ling; f.hist. 1858 syncretismo”.
169
6. Os missourianos e o poder público
A situação política do Rio Grande do Sul, sob o comando de Borges de Medeiros,
em relação aos estados centrais no Brasil do “café-com-leite”, pode ter reforçado as atitudes
conservadoras quanto ao “perigo alemão” em nível local. Por exemplo, desde os tempos do
Império o estado gaúcho concentrava os maiores efetivos do exército nacional, variando entre
um terço e um quarto na Primeira República. Os gaúchos, além disso, haviam na época
contribuído com o maior número de ministros da Guerra e de presidentes do Clube Militar.
Por outro lado, os políticos locais precisavam garantir a proteção da economia gaúcha, voltada
essencialmente ao mercado interno, cujo principal produto era o charque, constantemente
ameaçado pela concorrência platina.
88
Diante dessa conjuntura, poder-se-ia esperar que não
fosse reservado no Rio Grande do Sul nenhum empenho especial em proteger teuto-
descendentes em meio a uma guerra contra a Alemanha, principalmente se tal proteção
implicasse no desenvolvimento de conflitos políticos com os poderosos do centro do País.
Nesse contexto, o embate que se articulou à problemática da proibição do idioma
alemão, fez também transparecer, como veremos, a percepção dos líderes do 15° Distrito em
relação tanto ao poder público brasileiro, quanto ao lugar que se dispunham a ocupar no
espaço público. Já no primeiro número do Mensageiro relatava-se que o presidente distrital
Emil Müller, após não obter resposta a uma carta enviada, dirigira-se pessoalmente ao
General Carlos Frederico de Mesquita, Comandante da 7
a
Região Militar, entregando-lhe
outra correspondência, com vistas à negociação de uma solução para os problemas que a
proibição do uso do alemão acarretava ao Sínodo. Desta, dada sua exemplaridade, vale a
transcrição de um trecho mais longo:
Requeri uma audiência para expôr a V. Exa. o prejuizo e o embaraço causado ao
nosso trabalho missionário pelo decreto do governo federal que prohibe o uso da
língua allemã nos ajuntamentos e reuniões populares o qual foi interpretado em
muitos municípios a tal que prohibe igualmente o uso da idioma allemã nas
reuniões religiosas.
A nossa corporação religiosa e missionária, chamada “Synodo Evangelico-
Luterano de Missouri, Ohio e Outros Estados”, com sede nos Estados Unidos da
América do Norte (...) desde de 1900 (...) está trabalhando neste progressivo
estado do Rio Grande de Sul entre os teuto-brazileiros, sendo meio d’instrucção
pela maior parte a língua allemã.
88
Boris FAUSTO, História do Brasil, p. 269.
170
O decreto que se refere ás escolas allemãs (...) há de contribuir muito para a
naturalização dos estrangeiros que vivem neste paiz, principalmente para o
conhecimento da lingua vernacula. (...)
[Porém] (...) lastimamos o impedimento e prejuízo causado pelo decreto
estabelecido ao nosso trabalho missionário, visto que a nossa sociedade americana
não tem nem quer ter absolutamente nada em comum com o império allemão, os
seus fins e intentos ou os seus interesses neste grande paíz. Desejamos, pois, que a
ordem tomada pela autoridade militar para guardar os próprios interesses
nacionaes contra o governo allemão e seus interesses nacionaes não prejudique ou
impeça o nosso trabalho missionário.
Peço muito respeitosamente a V. Exa. que se digne considerar o meu pedido de
exempção (...) chamo a atenção de V. Exa. ao facto que a nossa sociedade não tem
nada em commum com a corporação religiosa e missionária, que se chama
“Synodo Evangelico-Allemão do Rio Grande do Sul”, a qual tem relações com as
autoridades da Egreja Prussiana, mesmo tem estacionada uma autoridade em
Porto Alegre para guardar os interesses da mesma. Chamo ainda a atenção de V.
Exa. ao facto que a nossa corporação religiosa desde o principio encarregou-se
com o ensino da língua vernacula.
Sendo americanos conhecemos bem o orgulho que nos incita a obrigar a todos os
estrangeiros que vivem em nossa grande pátria a aprenderem bem a língua
vernacula, que é a ingleza. Este principio temos guardado aqui tambem (..) era
nos, porem, impossivel com os idosos e nas novas colonias, por exemplo em
Guarany, partes de Ijuhy etc.
Peço pois muito respeitosamente a digna intervenção de V. Exa. (...)
Rev. Emilio Müller.
89
À solicitação, respondeu o General a Müller que, caso o estado de sítio instaurado se
prolongasse por tempo indeterminado, lhe concederia uma outra conferência.
Como se vê, a posição do presidente distrital em relação à decisão governamental
era ao mesmo tempo de desgosto e de submissão, o que não resultava, porém, em
acomodação. Antes pelo contrário, desde o início da proibição, os líderes do Distrito
missouriano buscaram as autoridades competentes a fim de solucionar o problema que
impedia seu trabalho. Como fora na Alemanha e nos Estados Unidos com seus antecessores,
no Brasil, o grupo manifestou não uma fuga do mundo, mas uma inserção neste pela via
religioso-confessional. Algo que faz lembrar o ascetismo intramundano que Weber refere aos
protestantes.
90
Em termos de estratégia política, perceba-se, primeiramente, que quando Müller
apresentou a “corporação religiosa” omitiu do nome do Sínodo a palavra “Alemão”, o que nos
EUA foi feito de modo oficial e definitivo. A omissão fazia parte do jogo político, dada a
clara contingência que sofriam os germânicos naquele momento. O Sínodo Riograndense, por
sua vez, este sim era referido com o designativo “Alemão”, e ainda sublinhado o fato de ter
89
MC, 25/12/1917, p. 1-2.
90
Max WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 65-109; tb. Cecília Loreto MARIZ, A
sociologia da religião de Max Weber, p. 74-79.
171
relações estreitas com a Igreja Estatal prussiana. Eis aqui, como anunciamos, um exemplo da
extensão do embate entre os sínodos para o campo do espaço público.
Por outro lado, ao passo que Müller buscava independência em relação à Alemanha
e a seus propósitos imperialistas, reforçava a aproximação para com os Estados Unidos e o
Brasil. Ao dizer-se “americano”, nesse sentido, sublinhava que a nação por detrás do Sínodo
era a estadunidense, com a qual o Brasil alinhava-se na Guerra. Ao subscrever-se Emílio, ao
invés de Emil, fazia-se então também brasileiro.
Coerentemente, portanto, ao circular no espaço público, Müller utilizava categorias
públicas, não religiosas. O que buscava, porém, era um fim religioso, a saber, a preservação
da obra missionária do 15° Distrito. O descompromisso com o Germanismo, nesse sentido,
não se desdobrava em uma lealdade à jovem república brasileira, apesar do cultivo do
português, mas em reforço de sua empresa missionária confessional. O coração do modelo
confessional era a pregação do evangelho, não a pertença a este ou aquele país, como dizia
Kunstmann.
No mês seguinte, em 10 de janeiro, depois de três investidas, receberam eles a
resposta do chefe de polícia, Annibal Loureira, após ter este conferenciado com o presidente
do Estado, Borges de Medeiros:
communico-vos que, consoante uniforme deliberação
anterior, são prohibidas as predicas publicas em idioma allemão, devendo, por conseguinte,
serem as mesmas exclusivamente feitas em lingua vernacula”.
91
Mesmo assim, ainda que sem retorno positivo, os líderes do 15° Distrito
perseveraram em sua busca pela liberação do uso do idioma alemão. No empenho de
continuação da pregação do evangelho, esforçavam-se em ganhar espaço para poderem se
movimentar em um contexto no qual os teutos desfrutavam de pouca liberdade.
Iam também nessa direção as orientações de Kunstmann para o preenchimento dos
formulários estatísticos das igrejas protestantes, enviados pelo Sr. Dr. Bulhões de Carvalho,
Diretor Geral de Estatísticas do Rio de Janeiro. Conforme Kunstmann, os pastores deveriam
registrar como Brasileiros todos os nascidos no Brasil ou naturalizados brasileiros, inclusive
as crianças, que, uma vez batizadas, eram consideradas como membros da congregação cristã
da mesma forma que um adulto votante.
92
A inclusão das crianças entre os membros
brasileiros deve ter de fato incrementado o número de filiados substancialmente. Tais
informações poderiam, talvez, aliviar a associação do grupo ao movimento germanista e
permitir a continuação do atendimento espiritual em alemão aos imigrantes no trabalho
91
MC, 15/01/1918, p. 2-3.
92
MC, 01/05/1918, p. 28.
172
missionário. Não suponho, porém, que tal estratégia tenha dado certo, considerando que seus
sobrenomes germânicos dificilmente disfarçariam a origem étnica do grupo.
Também por ocasião do fechamento do Seminário Concórdia os missourianos
tiveram de interagir com as autoridades civis. O diretor Kunstmann relatou o episódio: “O
Seminario Concordia esta fechado por ordem da Policia Militar, em vista de haver suspeitas
de que não é cumprida a lei prohibitiva do ensino em allemão. O seu fechamento foi
determinado em 10 de janeiro de 1918”.
93
Diante do fato, Kunstmann e Rehfeldt encaminharam um “requerimento” ao então
Secretário do Interior, Dr. Protásio Alves, no qual narravam o episódio do fechamento do
Seminário sob a suspeita levantada pelas autoridades. Conforme os missourianos, durante o
acontecido, o oficial da Polícia Militar encarregado negara-se a assinar o documento que
exigia o fechamento, alegando que um ofício seria enviado por um tal general Mesquita, o que
não acontecera. Relatavam também que haviam, então, ido à procura do General Tito
Escobar, o qual dissera que o fechamento passara a ser assunto das autoridades estaduais, o
que, então, os levava a solicitar ao Dr. Protásio Alves naquele requerimento a reabertura do
Seminário, sustentando que as suspeitas eram sem fundamento e que o grupo estava se
empenhando no ensino do português e na produção de livros no idioma.
94
Sem obter resposta, o presidente Emil Müller decidiu que o Seminário permanecesse
fechado até a Páscoa de 1918. Iria enquanto isso continuar a busca por permissão para sua
reabertura junto às autoridades. Passado o período da Páscoa, Kunstmann pediu, então, aos
pastores Louis C. Rehfeldt e Martin Frosch
95
que fossem novamente ao General Tito. Deste,
os missourianos obtiveram a resposta de que a matéria passara a ser assunto das autoridades
civis. Os pastores se dirigiram, então, ao encontro do Sr. Limeira, “submajor” do bairro de
São João e Navegantes, o qual afirmou não poder reabrir o Seminário porque “não o tinha
fechado”...
Kunstmann, então, findando sua digressão, convocou aos estudantes que haviam
ingressado em 1917 no curso teológico para retornarem a fim de dar prosseguimento a seus
estudos privadamente.
96
93
MC, 15/01/1918, p. 3.
94
MC, 15/04/1918, p. 22.
95
Martin Frosch (1881, Ontário, Canadá – 1941, Illinois, EUA). Pastor em Porto Alegre (1904-1905), Sítio
(1905-1911), Vila Clara (1917-1924) e professor do Seminário Concórdia (1911-1916). Faleceu em 1941, nos
EUA. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 268.
96
MC, 15/04/1918, p. 24.
173
Permanecia, assim, na controvérsia relativa ao fechamento do Seminário – lugar
maior da formação sinodal – a busca pela continuação da obra confessional. O fechamento do
Seminário consistia num impedimento que precisava ser superado, ou driblado, como foi o
caso. Nesse sentido, a tônica confessional indicava a preeminência do espiritual-religioso por
sobre o material-político, ou, ao modo de Eliade, do sagrado por sobre o profano,
97
com o
qual os missourianos lidavam a fim de que sua ação missionária não fosse obstruída. Portanto,
se as aulas não podiam acontecer regular e publicamente, que se formassem os pastores
atendendo-os em particular. Como vimos, já desde a Alemanha os confessionalistas haviam
empreendido uma desnaturalização da identificação entre obrigações civis e religiosas.
98
A
própria submissão do profano ao sagrado dava a possibilidade da insurgência política. Viu-se
isso no Stephanismo, via-se também nos missourianos.
Nos Estados Unidos, porém, em uma conjuntura diferente da brasileira, as respostas
do Sínodo foram também diferenciadas. Conforme falamos, o Sínodo foi passando de uma
atitude contrária à entrada dos EUA na Guerra até uma inserção bastante intensa e patriótica
em favor da mesma.
99
Todavia, o discurso acerca do papel da igreja numa esfera religiosa
desligada do mundo político permanecia também lá. Vejamos, por exemplo, as palavras do
supracitado Rev. Studier nas anotações sobre seu comparecimento diante do Conselho
Estadual de Defesa de Nebraska, em outubro de 1917:
“Mais questões: Você fala sobre a
guerra? Você fala contra a guerra? Eu respondi que disse ao meu povo: ‘Temos de obedecer
ao governo.’ Você prega contra a guerra? Eu não prego sobre a guerra, mas preguei baseado
em Romanos 13. ‘Que cada alma esteja sujeita aos poderes superiores,’ e que devíamos
obedecer ao governo, visto que este detinha o poder, estivesse certo ou errado”.
100
O conservantismo e o modo ordeiro da atitude do Sínodo em relação ao Estado
assentava, assim, suas bases no evento da Reforma de Lutero no século XVI, desde a leitura
do já mencionado texto de Romanos 13, bem como do Artigo XVI da Confissão de
97
Ao diferenciar entre estes “dois modos de ser no mundo”, Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, p. 16,
atesta: “o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de
poder. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. (...) É, portanto, fácil de
compreender que o homem religioso deseje profundamente ser, participar da realidade, saturar-se de poder”.
98
Vide Capítulo 2, p. 99.
99
Frederick NOHL, The Lutheran Church – Missouri Synod reacts to United States anti-germanism during the
World War I.
100
Apud Frederick LUEBKE, Superpatriotism in World War I..., p. 6-7: “More questions: Do you talk about the
war? Dou you talk against the war? I answered that I told my people: ‘We have to obey the government.’ Do you
preach against the war? I don’t preach about the war, but I have preached on Romans 13. ‘Let every soul be
subjected to the higher powers,’ and that we had to obey the government as it had the power whether right or
wrong.”
174
Augsburgo, Da ordem política e do governo civil.
101
Tratava-se de uma memória longínqua,
mas bem presente, que emoldurava a identidade e a ação do Sínodo em termos de política
naquele momento.
102
Sendo assim, uma vez que os atores e os contextos nos EUA e no Brasil, ainda que
guardassem algumas semelhanças, eram ulteriormente diferentes, desde um mesmo repertório
foram acionadas também diferentes significações. A intensidade da represália que os
missourianos receberam no espaço público estadunidense, eles só encontrariam no Brasil da II
Guerra Mundial. Da mesma forma, ao passo que a paulatina substituição do idioma alemão
pelo inglês iniciou-se ainda no contexto da I Guerra, uma real substituição do mesmo pelo
português só se daria em meio aos desdobramentos do segundo conflito mundial. O Sínodo,
assim, “americanizou-se” antes de “abrasileirar-se”. Também porque já estavam nos EUA
desde meados do século XIX. A aplicação política da ortodoxia guardava, então, suas
diferenças na comparação entre Brasil e EUA. Se considerarmos, por exemplo, a tão estimada
separação entre Igreja e Estado, perceberemos que no caso estadunidense, esta foi posta em
segundo plano pela participação das comunidades na mobilização material em favor da
guerra. Pontue-se, porém, que tais posturas não colocavam em cheque publicamente a
confessionalidade do Sínodo. Se a colocassem, talvez suas respostas tivessem sido diferentes.
Mesmo assim, ainda que o processo de “abrasileiramento” tenha demorado um
pouco mais a acontecer em relação à inserção do grupo nos EUA, um esforço missionário em
direção à população brasileira já começava a ser empreendido em 1918.
7. Uma
investida extramuros: o início da missão em Lagoa Vermelha
A controvérsia ao redor da questão do idioma e a decorrente aprendizagem da língua
portuguesa intensificaram o interesse de alguns dos líderes do Sínodo no Brasil para além do
grupo de imigrantes teutos que inicialmente recebera sua atenção. A partir daquele momento,
passariam também a desenvolver atividades voltadas especialmente à pregação para povo
local. “O tempo chegou, em que cumpre-nos iniciar o nosso trabalho missionário entre os
101
Vide Capítulo 1, p. 67.
102
Tal explicação é também sustentada por Ralph MOELLERING, Some Lutheran reactions to war and
pacifism, p. 123; para lembrar tb. Dario P. B. RIVERA, Tradição, memória e modernidade: a precariedade da
memória religiosa contemporânea, p. 1: “Na perspectiva clássica da sociologia da religião (weberiana ou mesmo
durkheimiana) pode-se dizer que não existe religião que não deva sua constituição ao desenvolvimento de uma
tradição cujas origens se encontram em fatos fundantes, sejam estes hierofânicos ou profético-religiosos com
implicações sociais e políticas, como foi o caso da Reforma Protestante. Neste último, a Reforma simplesmente
forneceu novas maneiras de se remeter aos mesmos fatos fundantes, não eliminando os elementos misteriosos
originais”.
175
luso-brasileiros”, afirmava Müller, informando em seguida que o Sínodo havia recebido uma
solicitação de Lagoa Vermelha para lá pregar o evangelho.
103
Conforme o presidente:
Uma propriedade significativa da fé verdadeira sempre era e sempre será a
vontade de espalhar a Palavra salutifera entre os homens privados desta, ou
seducidos por outros, afim de elles serem salvos. Conhecendo a igreja catholica, e
as doutrinas falsas e as praticas seductores daquella, e vivendo entre brasileiros,
ouvindo delles mesmos de vez em quando a mortifera ignorancia nas coisas
divinas; sabendo a idolatria praticada por elles na convicção que seja esta a
religião verdadeira, quem é de nós que não sentiria compaixão profunda no
coração desejando ferventemente juntar-se a obra de salva-los? Essa disposição
missionária estava á espreita de uma occasião opportuna já por muito tempo. Foi
offerecida finalmente sem que nos procuramo-la fanaticamente.
104
Com essas palavras Müller introduzia o texto “Uma viagem a Lagoa Vermelha”, no
qual propunha-se a trazer aos leitores alguns dados sobre a excursão que empreendera, em
conjunto com o Rev. T. Strieter, com vistas ao início das atividades do grupo naquela
localidade. Além da viagem em si, Müller objetivava também contar o que lá haviam feito e,
o que era de maior importância, as oportunidades oferecidas ao Sínodo “naquelle campo
destituido da Palavra salutifera”.
105
Conforme Müller, o pastor Strieter encontrara em uma viagem de trem o intendente
do município de Lagoa Vermelha, o qual queixara-se da Igreja Católica e o convidara a ir até
a cidade para proferir uma pregação, oferecendo-lhe auxílio no que fosse possível. Convite
feito, Müller e Strieter partiram, passando por Ijuí e Erechim, “suplicando a bênção de Deus
para a viagem; os corações cheios de boas esperanças e as malas repletas de Novos
Testamentos destinados a distribuição gratuita”.
106
Alugaram uma “aranha” e se foram, três dias, até Sete de Setembro, onde, conta
Müller, “pousaram num hotel sem nome dirigido por uma mulher polaca com uma
volubilidade da lingua tambem sem nome”.
107
Prosseguindo com a viagem, no dia seguinte
encontraram no caminho um tal “velho Keiser”, cujos filhos estavam prontos a sentar praça
“como cidadãos brazileiros, motivando esta sua resolução pela palavra da Bíblia: ‘Buscae a
paz da cidade, para a qual vos fiz transferir, e orae por ella ao Senhor, porque na sua paz terei
vós a vossa.’ Com grande prazer ouvimos esta dedicação á Bíblia”, alegrava-se o pastor.
108
103
MC, 15/01/1918.
104
ML, 01/05/1918, p. 26.
105
ML, 15/04/1918, p. 22.
106
MC, 01/05/1918, p. 26.
107
Idem, p. 26.
108
Idem, p. 27.
176
Encontraram ainda no mesmo dia a cidade de Sananduva, habitada por imigrantes italianos.
Lá, as impressões de Müller não foram boas: “Uma grande igreja catholica está colocada alli e
um troço de monges e freiras está fazendo inseguro este lugar. Os italianos que encontramos
mostraram-se brutos, cheios de vinho, o qual é bebido por elles como agua. No hotel onde
paramos para tomar almoço encontramos tantos contestadores e brigadores todos cheios de
vinho. Não há differença neste respeito entre homens e mulheres. Aquele lugar, ao dizer, é o
mais perto do verdadeiro inferno. Deixemo-lo!”
109
Ainda no mesmo dia, à noitinha, chegaram
ao “Baratilho de Pantaleão Cardoso Aguiar”, em Três Pinheiros. Lembrava o pastor o
episódio:
Ouvimos gritos na casa que fizeram nos pensar que a família estivesse em
disaccordo. Entrou o rev. Strieter com grande reluctancia. Mas a nossa anciedade
foi totalmente fútil. O dono da casa, como logo intendemos, era possuidor de uma
voz tão alta e tão engraçada que fez nos difficil distinguir se fosse ou brigadora ou
caracteristica. Era um homem de grande coração, mas indescriptivelmente
singelo. Vou ilustrar esta observação. No correr da noite o rev. Strieter falou com
elle de Deus, da depravação humana, dos peccados, da justiça divina, do inferno e
finalmente de Jesus como o unico salvador dos peccadores, e apresentou-lhe o
Evangelho de St. Lucas. Ao ver e ouvir o nome “Lucas” elle ficou cheio de
alegria. Porque? Numa santa simplicidade contava-nos o facto, que tinha tantos
vizinhos chamados assim e os quaes irão regosijar ao ouvir d’um livro de S.
Lucas, pedindo ao mesmo instante um livro de São Pantaleão, porque os padres
haviam-lhe dito, que houvesse um livro desta denominação.
110
Partiriam, então, no dia seguinte, para Lagoa Vermelha. O relato foi, infelizmente,
encerrado antes da conclusão, sem dar o presidente continuidade à bela narrativa. Eram
missionários, vê-se, em busca de novos campos para sua pregação. O contato com um
universo novo, nessa caminhada, não deixava de causar algum estranhamento: vinham de uma
outra cultura, profundamente influenciada por práticas pietistas. Os líderes missourianos
teriam ainda um longo percurso em seu processo de inserção nacional. Lagoa Vermelha seria
seu primeiro desafio maior, tanto no contato com o povo enraizado no Brasil, quanto nos
embates com o Catolicismo Romano.
8. Os missourianos e o Catolicismo
A investida extra-muros principiada em Lagoa Vermelha deu origem a uma intensa
controvérsia entre missourianos e católico-romanos, a qual envolveu principalmente questões
109
MC, 01/05/1918, p. 27.
110
MC, 15/05/1918, p. 81.
177
doutrinárias e de separação entre Igreja e Estado. Ao analisarmos as relações entre os grupos,
portanto, teremos como pano de fundo os conflitos naquela localidade. Como no caso dos
conflitos entre missourianos e riograndenses, a desavença ocasionada a partir de Lagoa
Vermelha gerou-se em função das relações entre igrejas diferentes atuando num mesmo
campo religioso, desta feita, tradicionalmente católico. Inicialmente, os missourianos
empenharam-se, fundaram uma congregação e construíram uma grande escola no local. Como
veremos, entretanto, apesar de algum sucesso inicial, o trabalho não foi duradouro.
Quando um “jornal romanista” de São Paulo confessou o crescimento do
Protestantismo entre o povo brasileiro, festejou-se no Mensageiro: “São nossos oponentes que
o dizem (...) Trabalhemos sempre (...) para a salvação das almas brasileiras”.
111
Era essa, de
um modo geral, a visão dos sinodais missurianos em relação aos luso-católicos: de um lado, a
instituição Igreja Católica, entendida como oponente, concorrente, adversária; de outro, as
pessoas, compreendidas como almas a serem salvas, perdidas que estavam nas trevas do
desconhecimento do verdadeiro evangelho.
Interessante comparação apareceu na edição comemorativa à Reforma, em 31 de
outubro de 1918, quando o padre Antônio Vieira foi contraposto a Lutero, acerca da questão
das boas obras. O expositor citava primeiramente o padre Vieira, que, com seu estilo peculiar,
ironizava o Reformador: “As boas obras são pecado (e pudera accrescentar) peccado em que
nunca pecou Luthero. Assim o ensinaram elle e Calvino (aquelles dous monstros mais que
infernaes do nosso seculo) para tirar do mundo a oração, o jejum, a esmola, a castidade (...)
pregando contra o que Christo pregou.”
112
O articulista missuriano, então, não menos irônico,
comentava em seguida: “Entendeu mal o Padre Antonio Vieira o nosso Luthero. Recebido a
sua educação nas escolas Jesuitas é claro que devia conceber taes ideaes atraiçoadas.”
113
Havia de ambas as partes um entendimento do outro como alguém que professava fé
errônea, prestando um desserviço ao evangelho que deveria ser abertamente combatido. O
clima era de guerra, como atestava o depoimento do jovem pastor Rodolpho Hasse,
114
111
ML, 01/10/1918, p. 67.
112
ML, 31/10/1918, p. 70.
113
Idem, p. 70.
114
Rodolpho Hasse (1890-1968) viria a tornar-se o mais eminente líder do grupo durante a primeira metade do
século XX. Foi pastor em Lagoa Vermelha (1918-1925), Getúlio Vargas (1925-1926) e Porto Alegre (1926-
1929). Em 1930, iniciou as atividades do Sínodo na Capital Federal, onde permaneceu até sua morte. Foi o
redator do mensageiro por quase 50 anos (1920-1968) e também do Lar Cristão (1953-1957). A partir de 1962,
iniciou no Rio de Janeiro o trabalho da Hora Luterana, o qual dirigiu também até o fim da vida, destinado a
divulgar a mensagem luterana por intermédio de programas radiofônicos. Ocupou, ainda, os cargos de 1° vice-
presidente (1937-1940), 2° vice-presidente (1933-1937 e 1940-1942) e presidente (1942-1957), tendo sido
também diretor de missões, iniciando a missão da Igreja em Portugal. Foi também o compilador do 1° hinário da
178
brasileiro de nascimento, formado no Brasil e primeiro responsável pela missão entre os luso-
brasileiros em Lagoa Vermelha, em carta a seu ex-professor em Porto Alegre:
Lagoa Vermelha, 3/11/1918,
ilmo. Snr. Prof. Rehfeldt, Porto Alegre.
Logo que cheguei aqui o “frade” catholico abrio uma campanha extraordinária
contra a nossa igreja, dando culto todos os dias e todas as noites (...) Os seus
“sermões” (...) dizendo que os lutheranos tinham parte com o demonio e que até
hoje ainda nenhum delles se tinha salvado. Excomungou os livros (...) e convidou
o povo a reunirem estes livros (...) queimando-os na praça! (...) Mas não obstante,
com todos que falei e visitei, são contra a Igreja Catholica. O intendente disse-me
que havia de trazer todos á nossa igreja (...) É de summa urgencia abrirmos até
março um collegio e o campo será nosso; e isso deve suceder, antes que os
catholicos abram um collegio, pois elles agora não tardarão (...) Pelo calculo que
fizemos aqui, podemos contar com 150 a 200 alumnos pelo minimo.
115
Se o clima era de guerra, a batalha seria travada “corpo a corpo” por ambos os lados.
E Hasse, como afirmou Warth, era um “homem talhado para iniciar a missão naquela região”:
brasileiro nato, fluente em alemão e português e casado com “uma senhora luso-brasileira de
família católica e que fora educada em colégio de freiras, mas que fora instruída e confirmada
na Igreja Luterana”.
116
Conhecia o pastor, assim, já desde sua própria casa, o contato do
Luteranismo com o Catolicismo brasileiro.
Entre as identidades e memórias em questão, se os padres faziam fogo da literatura
luterana, os missourianos, de sua parte, guardavam também a lembrança do episódio em que
Lutero queimara, às portas de Wittenberg, a bula papal que o ameaçava de excomunhão,
como atestava a imagem abaixo, publicada alguns anos depois no Mensageiro por ocasião dos
450 anos do nascimento do reformador. Tratava-se, assim, de uma briga muito antiga,
arquetípica, então revivida no Brasil. A educação seria, nesse caso, a principal estratégia
empregada pelos missourianos no combate.
IELB em português, para o qual traduziu e compôs muitos hinos. Recebeu o título de Doutor em Teologia pelo
Concordia Seminary em 1945.
115
ML, 15/11/1918, p. 78.
116
Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 40.
179
(ML, 11/1933, p. 83)
Logo após a chegada de Hasse à cidade, a “febre espanhola” assolou o território
gaúcho. Em função disso, os já pouco freqüentados cultos foram cancelados e o pastor
procedeu a atividades de visitação, conforme ele, “mais proveitosas que uma dúzia de
sermões”. Nas visitas, pôde entrar em contato mais diretamente com o povo, que lhe falava
com menos timidez, abrindo também maior espaço para a pregação luterana. Dizia o pastor
que as pessoas “admiravam-se de que as visitava e consolava, apezar de ser uma molestia
contagiosa, cousa que até então ignoravam, pois o padre catholico com nada se importara”.
117
Após a retomada dos cultos regulares, Hasse passou a sentir que a doutrina luterana
estava sendo bem aceita, ainda que fosse baixa a freqüência da instrução doutrinal, o que para
ele não era de causar espanto, “visto que o povo se achava em profunda lethargia espiritual,
causada pelo relaxamento dos ministros romanos”.
118
Achava que era necessário despertar o
interesse espiritual nas pessoas, das quais, dizia: “Christo é apenas conhecido pelo nome, mas
da sua missão neste mundo o povo não tem um vislumbre”.
119
Segundo o pastor, o pároco romano local impedia de irem aos cultos especialmente
as mulheres, cuja maioria fazia parte da “irmandade do coração de Jesus ou Maria”,
repreendendo-as severamente a não quebrarem seus votos: “há de custar muito trabalho até
que se tire todas estas tolices da mente do povo”, dizia.
120
Acreditava, contudo, que o trabalho
não era sem esperança: lá também Deus teria “seus escolhidos que elle quer levar ao
117
ML, 01/02/1919, p. 11.
118
Idem, p. 11.
119
Idem, p. 11.
120
Idem, p. 11.
180
conhecimento da verdade e ao caminho da salvação”.
121
A empresa, porém, não seria nada
fácil.
Em outro trecho da correspondência, Hasse pintava mais um quadro do conflito:
(...) No momento em que estou escrevendo esta carta, estão estallando os foguetes
e bombas nesta villa, pois já quase 8 dias está sendo celebrado uma estrondosa
festa pelos “frades”; trouxeram uma banda de música etc; missa ha 3 vezes por
dia; querem recuperar o povo a força de festas publicas (echt römisch!) [genuínos
romanos!]. Mas este embuste de Satanaz se desfará perante o Evangelio do nosso
amado Salvador. A nossa igreja naturalmente excomungada em todas as
formularidades por esses ministros do filho do peccado e o meu serviço por
grande parte destruido, mas lá por isso não desanimarei, pois Deus me collocou
aqui para trazer os seu escolhidos ao conhecimento da verdade.
122
Impunha-se, então, para o pastor a necessidade de abrirem lá uma escola o quanto
antes fosse possível, “um collegio bem organisado afim de podermos trabalhar com mais
impulso, educando o povo já desde a infancia e será este um meio de approximar-mo-nos com
mais facilidade tambem aos adultos”.
123
Dizia que todos esperavam a abertura do mesmo, e
que as freiras tentavam sem sucesso recuperar alunas perdidas. Sustentava, nesse sentido, que
o melhor meio de “missionar” eram as Bíblias que distribuía gratuitamente, mas que haviam
acabado. O que lhe levava a pedir, então, aos pastores e comunidades que fizessem coletas
para a compra de 200 bíblias para distribuição em Lagoa Vermelha, uma vez que se as
vendesse poderiam recair sobre ele “suspeitas de negociante, o que os frades logo
aproveitariam para terem por onde pegar”.
124
Relatava, por outro lado, feliz que o subintendente do município cedera o antigo
cinema local para os cultos. A situação era, conforme o relato, a seguinte: “o povo vem de
todos os lados, pedindo enterros, baptizados e casamentos. Porém, tem ficado surprehendido
por eu não fazer esse serviço sem previa instrucção e exigir primeiro o casamento pelo
cartório civil, o que tem agradado muito ás autoridades, pois os ‘frades’ nada disto
exigem”.
125
Animado com os progressos, empreendeu também algumas viagens missionárias
exploratórias. Contou ter ido a Sananduva, onde foi bem recebido pelo povo, que se
demonstrou interessado e satisfeito com a doutrina, e falou de seus planos de ir até Barracão,
121
ML, 01/02/1919, p. 11-12.
122
Idem, p. 11.
123
ML, 15/01/1919, p. 15.
124
Idem, p. 15.
125
Idem, p. 15: é curioso o uso da sala de cinema para cultos, uma vez que tanto a sétima arte quanto sua
audiência não eram na época algo moralmente bem visto.
181
distante 12 horas de Lagoa Vermelha, “onde os padres catholicos já não querem ir mais,
devido serem quasi sempre espancados pelo povo, o qual os detesta”.
126
Finalizava dizendo:
“Deus abençoe sua obra entre o nosso amado povo brasileiro e o conduza das trevas do
papismo á luz do conhecimento da verdade ao caminho da salvação!”
127
Em meio a tal clima de contenda, foram, então, publicados no Mensageiro doze teses
que consistiam numa “Prova Curta que a Egreja Romana não seja a Verdadeira Egreja”, de
autoria do alemão J. Gerhard, teólogo da Era da Ortodoxia – e note-se o paralelo com o texto
de Walther de 1868 “A Igreja Evangélica Luterana, a verdadeira Igreja visível de Deus na
terra”, outro traço das temporalidades em questão.
128
Conforme o argumento, a Igreja Romana
não tinha a “sincera predica da Palavra nem a legitima administração dos sacramentos” e não
era, por conseguinte, “a verdadeira, sincera, catholica e orthodoxa igreja”.
129
Os pontos
segundo os quais se desviavam os romanos das Escrituras eram os seguintes:
1. “A verdadeira igreja reconhece sómente a Christo como a sua cabeça e o seu
esposo. (...) A igreja romana, pelo contrario, tem ao pontifice romano por sua
cabeça e seu esposo.”
2. A verdadeira igreja nada reconhece como fundamento além da Palavra. A Igreja
Romana de hoje considera tanto as tradições como a Palavra, de modo igual, e
sustenta que se deve ter a mesma piedade para com ambas.
3. A verdadeira igreja invoca somente a Deus. A Igreja Católica invoca aos santos e
aos mortos.
4. “A verdadeira igreja adora a Deus segundo a Palavra manifestada.” A Igreja
Romana institui novos cultos para além da Palavra.
5. A verdadeira igreja preserva o artigo fundamental da gratuita justificação pela fé
em Cristo. A Igreja Romana defende o merecimento das obras e a satisfação
própria.
6. “A verdadeira igreja tem a doutrina genuina da lei”: que exige obediência perfeita,
a qual a carne nos impossibilita prestar. A Igreja Romana ensina que, além de ser
possível o cumprir da lei, pode-se prestar obras superabundantes.
126
ML, 15/01/1919, p. 15.
127
Idem, p. 15.
128
Vide capítulo 2, p. 119-120.
129
ML, 15/03/1919, p. 22: pontos 1-7; ML, 01/04/1919, p. 26-27: pontos 8-12 .
182
7. A igreja verdadeira ensina que a má concupiscência é pecado, mesmo nos
regenerados. A Igreja Romana ensina que a má concupiscência, após o batismo,
não é pecado.
8. “A verdadeira igreja ensina uma alegria e certeza da fé”. A Igreja Romana ensina
que o homem deve sempre estar em dúvida e assim anula o artigo principal da fé:
“Creio na remissão dos pecados.”
9. A verdadeira igreja recomenda a todos os seus a leitura da Bíblia. A Igreja
Romana proíbe que os seus leiam a Bíblia.
10. A verdadeira igreja não impede a ninguém o matrimônio e o honra como uma
santa ordem de Deus. “A igreja romana não permite ao parocho o consorcio”.
11. “A verdadeira igreja guarda aos sacramentos instituidos por Christo como
invioláveis. (...) A igreja romana ajunta ainda aos dous sacramentos instituidos por
Christo 5 outros, muda a Eucharistia para um sacrificio, tira dos leigos o uso do
Calix, ensina, que o pão se muda para o corpo de Christo, etc.”
12. “A verdadeira igreja soffre persecução”. A Igreja Romana, porem, está
“embriagada do sangue dos santos”.
Estavam aí listadas, pela pena de um teólogo ortodoxo, praticamente todas as
questões conflitantes da Reforma, a saber, as doutrinas acerca do poder do Papa, da Palavra
de Deus, dos santos, da justificação pela fé, da lei e do evangelho, do pecado original, da
salvação, do matrimônio e dos sacramentos. Era, assim, como se estivessem vivendo
novamente a Reforma do Dezesseis. Como já vimos, as maneiras pelas quais os missourianos
elaboravam suas memórias de Lutero indicavam de fato a experiência de re-presentação dos
atos do reformador nas próprias ações dos líderes do Sínodo no Brasil. Todavia,
diferentemente de Lutero na Alemanha, no Brasil os missourianos estavam em larga
desvantagem política e religiosa.
Mesmo assim, permaneciam firmes e o combate prosseguia. Alguns meses depois da
publicação da “Prova Curta”, Hasse enviava notícias a respeito dos problemas com o frade de
Capão Bonito, localidade que ficava a quatro dias de distância de Lagoa Vermelha. Conforme
Hasse, o frade havia dito que Lutero fundara o Protestantismo porque contraíra dívidas com a
Igreja Católica que não pudera pagar. Também que quando sua mãe o chamara no leito de
morte, Lutero dissera que o Protestantismo era melhor para viver, mas que para morrer a
Igreja Católica era a melhor. E, ainda, que o reformador ensinava que para obter salvação
bastava crer e que por isso se podia cometer todas as formas de pecado. Em função de tais
183
afirmações, a recém fundada “Sociedade Lutherana” do local chamara, então, o padre a
comparecer publicamente para provar o que havia dito, o que ele não fez. Decorrência disso,
os fiéis católicos, então, pediram ao bispo que afastasse o padre, alegando sua incompetência
para enfrentar o pastor luterano.
130
Outros conflitos seriam ainda gerados com a criação da escola dos missourianos,
que, em 1920, sob a direção do já mencionado pastor T. Strieter, contava com 70 alunos, dos
quais 60 eram internos.
131
Hasse, por exemplo, contou que ao narrar a história do fariseu e do
publicano, perguntara se existiam ainda fariseus e obtivera de uma criança a resposta: “O
frade! (...) Porque usa um grande Rosario para que todos vejam que reza bastante!” Contou
também que estando um dia inteiro fora, o padre aproveitara-se de sua ausência tentando levar
os alunos da escola luterana para a sua igreja, e que a reação das crianças fora a seguinte:
“todos correram a minha [igreja] para que eu os protegesse. Então minha esposa os protegeu;
vendo-se abrigados, um pequeno gritou ao padre: ‘Não vou lá, não! nem tenho medo de
ti!’”.
132
Estas eram, é claro, memórias apresentadas pelo lado luterano em questão. Se
tivéssemos acesso aos argumentos católicos, a comparação seria certamente interessante. Fica
a idéia para a pesquisa posterior. Os relatos de Hasse são, contudo, profícuos para acessarmos
o tipo de mentalidade que se criara entre os missourianos a respeito dos católicos: eram o
inimigo, o portador da mentira a querer destruir a pregação da verdade pura.
Nessas disputas pelo poder simbólico e discursivo, uma figura interessante viria
ainda a fazer parte do grupo missouriano alguns anos depois da guerra. Tratava-se de
Francisco Carchia, ex-sacerdote católico, nascido na Itália, que veio ao Brasil em 1919 como
missionário da ordem de São Carlos. Ainda em 1921 Charchia desligou-se da Igreja Católica
Romana para filiar-se, primeiramente, à Igreja Metodista e então, em 1924, ser aceito como
pastor missionário no grupo que à época já se denominava Sínodo Evangélico Luterano do
Brasil.
133
Por ocasião da comemoração da Reforma de 1928, escreveu o ex-padre no
Mensageiro:
130
ML, 15/06/1919, p. 47-48.
131
Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 40.
132
ML, 15/06/1919, p. 47-48.
133
Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 282. Charchia foi missionário nas localidades de Sananduva
(1924-1925), Santa Maria (1926), Bagé (1927-1929) e então professor do Seminário Concórdia (1929-1944).
Faleceu em 1944, em Porto Alegre. Foi também co-redator do Mensageiro Luterano, além de profícuo
colaborador.
184
Dest'arte a Palavra de Deus foi levando as multidões aos pes de Christo, emquanto
que os que continuaram nas trevas da egreja papal ainda encurvam-se deante dos
idolos e prostram-se para beijar os pés do papa. Os filhos da Reforma, os christãos
evangelicos, com a Biblia na mão, seguem os ensinos de Deus, ouvem a voz
divina revelada; ao, envez, os catholicos romanos, não conhecendo a Biblia,
obedecem á ordem do padre e correm ao balcão da sacristia papal, para
comprarem a salvação por missas, indulgencias, medalhas e bentinhos. Ainda
hoje, apezar da grande obra da Reforma, ha massas de povo, victimas dessa
ingnorancia religiosa, que precisam de luz e de paz; portanto ainda hoje é mister
que a luta da Reforma continue a desmascarar a superstição de Roma e a prégar o
Evangelho da graça. Proclamar o Evangelho e profligar o erro, no pulpito e na
imprensa, é, pois, nosso unico e supremo dever. Seguindo esta rígida e
escrupulosa conducta, por certo commemoramos condignamente a data
memoravel que recorda um propheta inspirado e um feito divino: Luthero e a
Reforma.
134
Na capa da mesma edição, sob a figura do reformador reproduzida abaixo, Carchia
proclamava: “Dr. Martinho Luthero, o augusto reformador religioso do seculo XVI,
verdadeiro paladino da luz e da civilização moderna, cuja obra é maior que a de qualquer
estadista”.
(ML, 10/1928, capa)
Carchia era o exemplo vivo das movimentações dinâmicas e fluídas das trocas
simbólicas e sociais que articulavam as construções identitárias, memórias, discursos e
práticas de ambos os grupos, católicos e luteranos. Em sua “libertação” do Catolicismo, o ex-
padre via em Lutero a “luz” da civilização, por oposição, é claro, às “trevas” de Roma. A
própria libertação de Carchia das trevas do papado estava, assim, pré-figurada na libertação de
Lutero.
Na foto abaixo, da esquerda para a direita, postavam-se os missionários envolvidos
nas atividades entre luso-brasileiros em 1927: o rev. Octacilio Schüler, missionário do campo
de Lagoa Vermelha; o rev. F. Carchia, missionário em Bagé, sobre o qual explicava Hasse:
134
ML, 10/1928, p. 75.
185
“outróra padre romano, natural da Italia, hoje esforçado prégador do Evangelho”; o rev. R.
Hasse, “missionario nesta capital e redactor desta folha”, atuando portanto já em Porto
Alegre; o rev. Carlos Mundel, “missionário no vasto campo de Barra do Ouro”; e o rev.
Augusto Drews, que servia uma comunidade alemã e mantinha além disso “uma prospera
missão entre os pretos de Cangussú”.
135
(ML, 02/1927, p. 11)
Eram estes os atalaias missourianos que nos anos 20 serviam no front não
germânico. O referido trabalho desenvolvido entre os negros na cidade de Canguçu, RS, mais
especificamente na localidade de Manoel dos Regos, iniciado pelo pastor Augusto Drews,
136
também nascido e formado no Brasil, existe até os dias de hoje; assim também as
comunidades de Bagé e de Porto Alegre. Mesma sorte, porém, não teve a missão de Lagoa
Vermelha.
137
9. Roma, o Anticristo: Hasse e os contornos de um discurso fundamentalista
Nos conflitos com o universo católico-romano, os missourianos passaram por um
processo profundo de demonização do outro, que se estenderia pelas décadas seguintes na
direção também de outros grupos. O Papa e seu séqüito eram, assim, referidos com freqüência
135
ML, 02/1927, p. 11.
136
Augusto H. Drews (1893-1986) foi pastor em Solidez e Manoel dos Regos (1919-1930), Três Léguas (1930-
1939 e 1955-1957), Santo Antônio da Patrulha (1939), Maquiné (1940-1949) e Carazinho (1950-1954), todas no
Rio Grande do Sul. Afirmava categórico que a guerra fizera a IELB interessar-se pelas missões entre os luso-
brasileiros (Entrevista com Arnaldo Huff, pastor de Drews ao final de sua vida enquanto residiu no Lar
Ebenézer, casa de idosos da IELB em Gravataí, RS). Para uma referência aos conflitos entre brancos e negros no
contexto da missão em Cangussú/Manoel dos Regos, ver Ricardo RIETH, Evangélicos de “alma branca”: os
negros e o protestantismo no Brasil, p. 187-198.
137
Não temos conhecimento sobre o destino da missão em Barra do Ouro.
186
cada vez maior como a própria encarnação do Anticristo. Lutero, na verdade, já os alcunhara
da mesma forma por diversas vezes no século XVI e, vale dizer, a recíproca era verdadeira.
O termo começou a entrar em circulação no Mensageiro em princípios dos anos 20,
quando o jus canonicum do papa Benedito XV foi chamado pelo pastor Hasse de “A voz do
antichristo”.
138
Poucos meses depois, era o tema do “Celibato” que trazia a referência demoníaca,
novamente nas palavras de Hasse. Afirmava o escritor missouriano que o matrimônio fora
instituído por Deus, mas que a Igreja Romana, “arrogando-se mais sábia e mais poderosa que
Deus”, o contradizia. “O celibato é testemunho da igreja do Anticristo”, ratificava Hasse.
139
E
concluía utilizando histórias bíblicas como as de Davi, Paulo e Timóteo: “Quem poderá ainda
duvidar que o papa seja o Antichristo? Sómente aquelle que tambem duvida a veracidade de
Deus”.
140
As referências advinham de um novo confronto com o frade de Lagoa Vermelha, o
qual afirmara que era um grande pecado o casamento de pastores. Ao que respondera Hasse:
“Certamente que [Deus] não [proibiu o casamento aos pastores]! Pois Elle não é romano. Pelo
contrario disse: ‘Convem, pois, que o bispo seja m a r i d o d e u m a m u l h e r.’ Note
bem: de uma mulher e não dum c o n v e n t o c h e i o d e m u l h e r e s”. E prosseguindo
sua argumentação, a fim de atingir o cetro papal, alegava que se Jesus curara a sogra de
Pedro, este, portanto, fora casado.
141
Sendo assim, o que seria melhor ao pastor, ser casado e
ter uma família exemplar ou “ser celibatario e commetter toda a sorte de crimes sexuaes?”
142
Por fim, contava o pastor sobre a prisão de um padre em Santo Ângelo, acusado de
“defloramento de menor” e, rebatendo um provável argumento de que o celibato era da
natureza da religião e inseparável desta, assertava:
[só se for,] note bem, da religião ou pseudoreligião c a t h o l i c a r o m a n a, e
a natureza desta é do diabo. Tome isto a peito. Pois pelo contrario ver-se-á nas
garras aduncas de Satanaz, sem que a Virgem, o papa, o grande rozario, as duzias
de escapularios e medalhas de zinco e todos os santos o possam livrar. Trata de ter
a carta branca com Deus, porquanto só a este ha de prestar contas. O Papa, tyrano
de consciencia, não poderá attender do inferno. Ahi verá o que vale o R o m a
h o c d i x i t [Roma disse isto].
143
138
ML, 01/03/1920, p. 20.
139
ML, 01/06/1920, p. 37.
140
Idem, p. 37.
141
Idem, p. 37 [grifos no original].
142
Idem, p. 37.
143
Idem, p. 37 [grifos no original].
187
A guerra contra o Catolicismo perduraria ainda por muito tempo. A missão entre os
luso-brasileiros de Lagoa Vermelha, por sua vez, tornar-se-ia nos anos seguintes o grande
fracasso da ação do Sínodo no Brasil. Mário Rehfeldt viu as razões para o fracasso na própria
inexperiência dos missionários, bem como nas oposições católica e maçônica e nos
desdobramentos da sangrenta Revolução de 1923, que assolou o território gaúcho.
144
Acredito
que, além destas razões, deva-se considerar também o choque cultural entre teutos e luso-
brasileiros. O Sínodo, em sentido lato, não “falava a língua” dos brasileiros, ou ao menos não
a falava bem. Desde o início, na verdade, a ação do Sínodo em Lagoa Vermelha deu-se em
oposição aos católico-romanos, presentes no local e no imaginário popular havia muito mais
tempo. O fracasso, contudo, não elimina o significado do episódio no que tange aos processos
que naquela conjuntura envolveram o 15° Distrito levando-o para além da sociedade de
imigrantes alemães que inicialmente o acolheu.
Os embates acerca do anticristo trazem, nesse contexto, ao pesquisador a
possibilidade da discussão sobre um outro movimento: o Fundamentalismo,
145
cuja influência
por sobre os missourianos no Brasil pôde ser sentida no contexto da investida extramuros que
estivemos discutindo.
O movimento fundamentalista teve suas raízes de teologia e prática em uma corrente
protestante conhecida como “Evangelicalismo”. O termo faz referência aos movimentos
reavivalistas que apareceram em diversas formas durante os séculos XVIII e XIX,
especialmente no mundo de fala inglesa. Tema central nas manifestações evangelicais era a
proclamação da obra redentora de Cristo através de sua morte na cruz e a necessidade de
confiança pessoal nele para a salvação eterna. Nos Estados Unidos, o caminho para os
reavivamentos evangelicais foi em parte preparado pela forte herança puritana da Nova
Inglaterra. Marcavam o estilo evangelical a ênfase na Bíblia, o modo fervoroso e as narrativas
de conversão dramáticas. Antes de ser, todavia, um movimento organizado, o
Evangelicalismo consistiu mais em um estilo e em um conjunto de crenças protestantes.
146
No
Brasil, tal estilo evangelical tornou-se conhecido através de pregadores televisivos como, por
exemplo, Jimmy Swaggart, e pode ainda ser notado em diversos grupos, mesmo entre os
carismáticos católicos.
144
Mário REHFELDT, Um grão de mostarda, p. 99; Para informações gerais sobre a Revolução de 1923 no RS,
veja p.ex.: Sandra Jatahy PESAVENTO, História do Rio Grande do Sul, p. 83-89; tb. Danilo LAZZAROTTO,
História do Rio Grande do Sul, p. 129-130.
145
Ver, p. ex., Ivo Pedro ORO, O outro é o demônio, uma análise sociológica do fundamentalismo, p. 127-129.
146
George M. MARSDEN, Understanding fundamentalism and evangelicalism, p. 1-3.
188
Perceba-se, por conseguinte, o paralelo cultural e cronológico do Evangelicalismo,
assim compreendido, em relação ao Pietismo e ao Despertamento na Europa. Eram faces de
um mesmo fenômeno.
Durante a primeira metade do século XIX, Protestantismo e Evangelicalismo foram
praticamente sinônimos nos EUA, envolvendo uma coalizão de grupos protestantes que tendia
para o lado das teologias calvinista e metodista. Em suas ações, fundaram institutos bíblicos,
associações missionárias e realizaram diversas campanhas para caridade e reforma social,
normalmente associadas a um espírito fortemente patriótico e anticatólico.
147
Entre 1870 e 1920, contudo, o outrora coeso grupo evangelical viveu uma grave
crise e dividiu-se entre liberais e conservantistas. Os liberais, a fim de manterem sua
credibilidade no mundo moderno, manifestavam-se dispostos a rever algumas das doutrinas
centrais do movimento, como a fidedignidade da Bíblia e a necessidade da salvação pelo
sacrifício redentor de Cristo. Os conservantistas, por sua vez, permaneciam fiéis a tais
doutrinas essenciais. Permeava e agravava o conflito o processo de secularização e de
abandono dos costumes e da moral tradicional que se instalou nos Estados Unidos após a I
Guerra.
148
A questão da autoridade da Bíblia logo se tornou o foco central do conflito. Os
conservantistas não aceitavam o criticismo hermenêutico que recaía por sobre as Escrituras
pelo empenho dos liberais. A reação mais significativa teologicamente ficou por conta de um
grupo de teólogos e professores do Seminário de Princeton, os quais reafirmavam e garantiam
enfaticamente a inspiração verbal e a total inerrância da Bíblia em sua primeira escrita pelos
autores originais.
149
Instaurava-se, com eles, um tipo de Racionalismo religioso no tocante à
Bíblia semelhante ao que se vira na Europa durante Era da Ortodoxia, no Dezessete,
intensificado porém pelo conflito com o inimigo moderno. Nessa perspectiva conservantista,
portanto, “um texto, por mais difícil e misterioso que seja, por ser uma revelação de Deus, é
acessível e admite um só sentido”.
150
Outra importante face da reação antiliberal no meio evangelical foi a publicação,
entre 1910 e 1915, de uma série de doze panfletos que visavam a reafirmação das doutrinas
fundamentais do Cristianismo. Chamavam-se “The fundamentals: a testimony to the truth
[Os fundamentais: um testemunho para a verdade]. Os panfletos foram impressos e
147
George M. MARSDEN, Evangelical and fundamental Christianity, p. 191-192.
148
Idem, Understanding fundamentalism and evangelicalism, p. 3.
149
Ernest R. SANDEEN, The origins of fundamentalism, p. 12-13.
150
Martin E. MARTY, O que é fundamentalismo? – perspectivas teológicas, p. 16 [grifos no original], p. 17: “A
tarefa do teólogo será então coordenar os ‘fatos’ históricos e literários da Bíblia e ordená-los sistematicamente”.
189
distribuídos gratuitamente, em números que variaram entre 175.000 e 300.000 cópias, por
dois irmãos presbiterianos que eram também os fundadores e principais acionistas da Union
Oil Company, de Los Angeles. A elaboração e a escrita dos Fundamentais ficou por conta de
um grupo de teólogos ligados principalmente às tradições batista e presbiteriana.
151
Nesse afã, a ala conservantista fundou, em 1919, a World’s Christian Fundamental
Association [Associação Mundial do Fundamento Cristão], a fim de combater o modernismo.
Também, no ano seguinte, a Convenção Batista do Norte dos EUA instituiu uma conferência
dos “Fundamentais”, com vistas à oposição ao liberalismo dentro de suas próprias trincheiras.
O termo “fundamentalista” originou-se nesta ocasião.
152
Note-se, assim, que se tratava de uma
autodenominação, que não carregava o conteúdo pejorativo que se conhece atualmente.
A campanha pela interpretação literal da Bíblia e pela recuperação dos valores
tradicionais cristãos empenhada pelos fundamentalistas teve uma importante manifestação no
combate ao Darwinismo, que ganhava espaço no Estados Unidos. Com um crescimento
numérico significativo, os fundamentalistas iniciaram na primeira metade dos anos 20 uma
campanha pela proibição do ensino do evolucionismo nas escolas públicas. Nada menos que
37 projetos de lei antievolucionista foram apresentados em 20 Estados. Quatro dessas
tentativas obtiveram sucesso. Todavia, a única ação judicial decorrente de tais proibições deu-
se em Dayton, Tennessee, em julho de 1925, quando um professor secundarista foi levado a
julgamento sob acusação de continuar ensinando teorias evolucionistas. Ambas as correntes
em questão colocaram competentes advogados para atuar no caso, que ganhou a atenção da
mídia nacional, normalmente resistente aos fundamentalistas. Tal publicidade acabou
conduzindo o movimento fundamentalista ao descrédito e pôs fim à primeira fase de sua
combativa história.
153
Podemos dizer que um espírito fundamentalista esteve em alguma medida também
presente no Distrito Brasileiro do Sínodo de Missouri. Entre junho de 1919 e julho de 1920,
Hasse publicou no Mensageiro uma série de matérias sob o título “Os fundamentaes”, assim
introduzida pelo pastor:
Visto que o justo pela sua fé viverá, pois é necessário que cada christão conhece a
Deus e saber confiar nelle a fim de sempre estar preparado para responder com
mansidão e temor a qualquer que lhe pedir a razão da esperança que ha em si.
Deve saber responder aos inimigos da fé e defender esta joia sua contra seus
151
Ernest R. SANDEEN, The origins of fundamentalism, p. 18-19.
152
George M. MARSDEN, Understanding fundamentalism and evangelicalism, p. 57.
153
Lluis DUCH, El alud fundamentalista, p. 320; Milton L. RUDNICK, Fundamentalism and the Missouri
Synod, a historical study of their interaction and mutual influence, p. 60-64.
190
attaques, mas principalmente deve estar consolada na tribulação e na ultima hora
desta vida para apparecer justificado diante o throno de Deus no juizo. A rocha
firme da fé, pois, é a Santa Palavra de Deus manifestada no Velho e no Novo
Testamento. A palavra é o leite racional, sem dolo, pelo qual cresce o christão
para a salvação; é a armadura de Deus, pelo qual pode ficar firme contra as ciladas
do Diabo; é uma lampada para os seus pés e uma luz para o seu caminho. Assim é
mister ficar assegurado na Palavra visto que somente nesta ha vida e salvação.
154
Tratava-se, como se vê, de uma manifestação brasileira, confessional e luterana,
daquilo que acontecia concomitantemente nos Estados Unidos. Se Hasse teve ou não contato
direto com os Fundamentals, não se pode saber através do Mensageiro. A intenção era,
porém, a mesma. A ênfase em ancorar os fundamentos na Bíblia, também. O que era, então,
diferente? O inimigo. “Um fundamentalista é um evangelical com raiva de alguma coisa”,
disse Marsden.
155
E os motivos da “raiva” não eram no Brasil e nos Estados Unidos os
mesmos. O processo de secularização que lá aconteceu, não se deu no Brasil pós-I Guerra. O
repertório dos “fundamentos” foi aqui acionado em função de outras disputas. No caso de
Hasse, essas disputas estiveram claramente relacionadas tanto ao Catolicismo, os emissários
do Diabo, a encarnação do Anticristo, quanto às demais tradições religiosas.
O ponto número um dos “Fundamentaes” de Hasse estava posto da seguinte forma:
“Tudo que o christão deve saber para se salvar, deve tomar unicamente da Biblia, isto é das
escripturas dos prophetas e apóstolos”. A subseqüente explicação era visivelmente combativa
às demais tradições religiosas:
Já aos gentios é sabido que sobre aquelles que vivem em iniqüidade há de passar
juízo severo á condemnação.
(...) Os gentios não conhecendo o verdadeiro Deus crearam-se imagens segundo a
sua imaginação. E, como elles se não importaram de reconhecer a Deus, assim
Deus os entregou a um sentimento perverso, para fazerem cousas que não
convêm. (...)
Os turcos seguem ao falso propheta Mahomet e aos preceitos do Alcorão, livro
sagrado dado por elle e attribuido a Deus mesmo. O Islamismo, como é chamado
a religião do turco, offerece enormes obstaculos aos progressos da propagação do
evangelho. (...) os Mahometanos com seu Alcorão são conductores cegos de
cegos, porque não reconhecem aquelle que é o caminho, e a verdade e a vida.
Os Judeus aceitam as escripturas de Moyses e dos Prophetas, porem mais confiam
no seu Talmud, isto é, numa collecção de tradições rabbinicas e negam o Christo
(...).
Os papistas confessam já sua crença na Bíblia, porem insistem que são
necessarios tambem as tradições e os demais livros dos santos padres e o direito
canonico.
154
ML, 01/07/1919, p. 50.
155
George M. MARSDEN, Understanding fundamentalism and evangelicalism, p. 1: “A fundamentalist is an
evangelical who is angry about something”.
191
Muitas seitas hoje em dia ainda referem-se á Bíblia, mas tem se afastado da sua
doutrina de tal maneira que realmente nada ficou da Palavra de Deus. Prohibem
fumar, combatem o alcool, predicam a etica e reformas de toda especie, civica e
espiritual, falam muito de liberalidade para com os pobres etc., mas se esquecem
daquillo que é necessario, se esquecem da lei de Deus; também elle se esquecerá
delles.
A tudo isso respondemos que a Palavra de Deus é sufficiente para ensinar-nos o
que é necessario á salvação e á vida eterna. (...)
156
Ao relacionar a verdade bíblica missouriana a percepções dos demais grupos
religiosos – que incluíam curiosamente o Islamismo e o Judaísmo, com os quais certamente
não disputavam o campo religioso local, mas que eram também “religiões do livro” –, Hasse
apresentava o que para ele consistia o “vir a ser” de sua religião luterana. A palavra de Deus,
conforme interpretada no Luteranismo Confessional Ortodoxo, bastava-se a si mesma. Os que
não a aceitassem, seriam também por Deus esquecidos, tornar-se-iam sua lethe...
No segundo ponto dos “Fundamentaes”, afirmava: “Para se salvar é mister ter
sciencia da santidade innata, da queda, da misericordiosa vontade de Deus, e dos meios pelos
quaes Deus nos conduz a salvação”.
157
Nessa perspectiva, Deus criara o homem justo e bom,
mas o homem caíra em desobediência. Deus, contudo, compadecera-se reabrindo à
humanidade as portas do seu reino ao enviar seu filho Jesus Cristo, o qual
tomou em si a natureza humana (mas sem peccados), obedeceu a lei, tomou sobre
si as nossas enfermidades, foi ferido pelas nossas transgressões, e moido pelas
nossas iniqüidades (...). Assim, Jesus Cristo nos resgatou de nossos os peccados.
Esta boa nova nos deixa proclamar o evangelho. (...) Todos que crêm em Jesus
Christo terão remissão de seus peccados, a vida e salvação. Porem, aquelles que
rejeitam esta palavra procurando outro modo de se salvar serão condemnados
(...)
158
Jesus Cristo era, portanto, a verdadeira e única possibilidade de salvação de acordo
com a palavra de Deus revelada na Bíblia. A natureza desse Deus, do qual procedia a salvação
almejada, era aclarada no ponto seguinte: “um ser espiritual, eterno, omnipotente,
omnisciente, omnipresente, infinito, veridico, misericordioso, santo e justo”;
159
uma trindade
conforme a Escrita, “tres pessoas, Pae, Filho e Espirito Santo, em um só ente divino”. Quem
quisesse ser salvo deveria, portanto, “ter conhecimento deste Deus, amar e temer a Elle e
156
ML, 01/07/1919, p. 50-52.
157
ML, 15/07/1919, p. 53.
158
Idem, p. 53.
159
ML, 15/09/1919, p. 70.
192
confiar n’Elle sobre todas as cousas”.
160
Era este o Deus verdadeiro que criara “os céus, a
terra, os anjos, e todas as creaturas visiveis do nada”.
161
A publicação dos “Fundamentaes” foi encerrada a esta altura, sem serem
apresentadas razões para tanto. Teria o pastor percebido diferenças doutrinárias entre o
Luteranismo Confessional Ortodoxo e as teologias calvinista e metodista que embasavam o
Fundamentalismo nos EUA? Talvez sim. Mas isso não podemos afirmar com certeza. O fato é
que um mesmo intuito de aclarar os fundamentos da fé luterana permaneceu nos escritos de
Hasse ainda durante as décadas seguintes, período no qual comandou com pulso firme a
edição do Mensageiro Luterano.
Em outubro de 1921, por exemplo, o pastor iniciou uma outra série de matérias sob
o título “As doutrinas Luteranas”, das quais novamente o primeiro ponto aclarado era relativo
às Escrituras Sagradas.
162
Assim também, entre fevereiro e março de 1922, publicou sua
“Catechese sobre a justificação”, com 161 perguntas e respostas que definiam a doutrina
luterana confessional sobre o tema, buscando ao mesmo tempo diferenciar-se do
“papismo”.
163
Significativa, nesse sentido, foi também a publicação, entre fevereiro e maio de
1923, de “O que o Synodo de Missouri, Ohio e outros Estados ensinou durante sua existencia
de setenta e cinco anos e ainda ensina.” A página comemorativa era do eminente teólogo
missouriano Franz Pieper (1852-1931), que entre 1917 e 1924 publicou também sua
Christliche Dogmatik [Dogmática Cristã], fundamental fonte de ensino e pesquisa do Sínodo
para formação de seus pastores.
164
O texto sobre os ensinamentos do Sínodo de Missouri veio
traduzido e apresentado por Hasse, que cuidou também de incluir as passagens bíblicas que no
original estavam somente indicadas. A seqüência dos temas foi assim organizada: Da
Escritura Sagrada; De Deus; Da criação do mundo; Do homem e do pecado; Da redenção; Da
conversão; Da justificação; Das boas obras; Dos meios da graça; Da Igreja; Do ofício da
pregação; Da eleição da graça; Do milênio; Do anticristo; Da Igreja e do Estado.
165
Depois
disso, em 1939, quando já era o pastor responsável pela missão do Sínodo no Rio de Janeiro,
160
ML, 01/07/1920, p. 49-50.
161
ML, 15/07/1920, p. 54-55.
162
ML, 10/1921, p. 70.
163
ML, 02/1922, p. 9-12; 03/1922, p. 17-20.
164
Entre 1950 e 1957 a Dogmática de Pieper foi publicada também em inglês, sempre pela editora do sínodo, a
Concordia Publishing House. Ainda antes disso, porém, em 1934, uma epítome em inglês foi preparada por John
Theodore Mueller, a “Christian Dogmatics: a handbook of doctrinal theology for pastors, teachers and laymen”,
cf. Milton L. RUDNICK, Fundamentalism and the Missouri Synod, p. 68 e 127. A “Dogmática de Mueller”,
traduzida para o português, tem sido a principal fonte de ensino de teologia dogmática para a formação dos
pastores do grupo no Brasil. A primeira edição que tenho conhecimento em português data de 1957 (vol. 1) e
1960 (vol. 2).
165
ML, 02-05/1923.
193
então Capital Federal, Hasse publicou ainda, desta vez por sua própria pena, as “Doutrinas
fundamentais da Igreja Luterana”: Da Escritura Sagrada; de Deus; do homem; do pecado; da
redenção; a justificação do pecador; dos meios da graça; do dia derradeiro; da Igreja; da
separação da Igreja e do Estado.
166
O estudo do desenvolvimento de tais temas e de tal consciência doutrinária é outro
ponto que valeria uma pesquisa mais refinada. É interessante notar, por exemplo, a introdução
do tema da separação entre Igreja e Estado, em meio a outros temas mais voltados para a
questão religiosa. Por outro lado, a organização racional de uma economia da salvação, de
uma Heilsgeschichte, nos remete novamente a Melanchthon e à Ortodoxia, da mesma forma
que o fervor intenso dessa busca de salvação pessoal nos leva às raízes do Pietismo.
167
A afirmação do grupo como igreja que sustentava a única verdade possível, pois
ancorada nos fundamentos da fé cristã e luterana, estender-se-ia por todo o período em que
Hasse esteve no comando não só do Mensageiro Luterano, de 1920 a 1968, mas também do
Sínodo, no qual ocupou diversos cargos diretivos entre 1933 e 1957. Em 1920, a “Era Hasse”
estava, portanto, apenas começando. A cruzada combativa do Luteranismo Confessional
Ortodoxo seria a partir desse momento intensificada ainda mais e aprofundado aquele
sentimento já compartilhado entre os pastores de serem eles portadores de uma verdade única,
os defensores da fé verdadeira em combate às forças do mal. Seu Luteranismo era a presença
da própria palavra de Deus no Brasil, como ilustra a imagem abaixo, uma verdadeira
hagiografia imagética de Lutero, veiculada no Mensageiro por ocasião do quarto centenário
da Confissão de Augsburgo, em 1930.
(ML, 07/1930, p. 35)
166
ML, 06-07/1939.
167
Vide Capítulo 1, pontos 5 e 6.
194
Deste Lutero, os herdeiros de Walther eram os fiéis continuadores. Nas palavras de
Hasse, em 1940:
Ortodoxia
Ousamos dizer que a nossa igreja, fielmente luterana, é ortodoxa. E não receiamos
ser reduzidos no que afirmamos, por nenhuma contraprova bíblica. O
racionalismo poderá verberar contra a nossa doutrina. Isso, no entanto, não nos
impressiona. Basta que ela tenha fundamento sólido na Palavra de Deus. Esta e
não a acanhada e obscura razão do homem deve ter autoridade na Igreja de Deus.
(...) Ortodoxas, no sentido próprio da palavra, são aquelas igrejas ou corporações
e comunhões públicas, que na sua doutrina oficial e nas suas prègações trazem e
oferecem única e exclusivamente a Palavra de Deus, conforme a encontramos nas
Sagradas Escrituras, sem acrescimos nem diminuição. Esta Palavra é mui firme e
não de particular interpretação, como diz S. Pedro. De outra maneira não é
possível aquela unidade de espírito na Igreja de que falam as Escrituras. (...)
Deus conservou-se no mundo até hoje uma Igreja verdadeiramente ortodoxa,
detentora da doutrina correta, legítima e integralmente bíblica.
(...) Por isso mesmo deve conservar-se pura, isenta do unionismo, do
cooperacionismo, de tôda a mesclagem e promiscuidade com as igrejas
heterodoxas, de credo falso, discordante em todos ou num ou noutro ponto da
Bíblia. Pelo unionismo antibíblico o diabo pretende apagar a divisa que separa a
verdade bíblica do erro. Os atalaias de Israel não podem ser cães mudos ou fazer
causa comum com as igrejas que se prostituíram. A nossa linguagem pode parecer
dura, mas é inteiramente bíblica. Devemos essa franqueza aos que nos ouvem,
sejam amigos ou não.
(...) A ignorância não o pode desculpar. Peior, porém, passará aquele que erra
aquele que era consciente de que está errando. Do mesmo que a igreja detentora
da doutrina cristã completa. Ai do membro da Igreja ortodoxa, ai daquela
congregação ortodoxa e ai daquela Igreja ortodoxa de que o Senhor tiver que
dizer: “Por que me chamais Senhor, Senhor e não fazeis o que eu vos digo?” S.
Luc. 6:46. (p. 38)
(...) A ortodoxia é necessária e de vontade divina.
168
10. Algumas considerações
A confessionalidade luterana de moldes ortodoxos, conforme apresentamos, pautou
os discursos do Distrito Brasileiro e do Sínodo de Missouri no contexto da Primeira Guerra,
de forma a embasar sua autocompreensão enquanto grupo religioso e a concepção de sua
168
ML, 06/1940, p. 37. Cabe, então, lembrar a análise de Antonio G. MENDONÇA, O protestantismo latino-
americano entre a racionalidade e o misticismo, p. 20, tratando o confessionalismo conservantista do
protestantismo como o “pai de todos os fundamentalismos”: “Não seria demais acrescentar aqui o papel que o
fundamentalismo tem desempenhado no protestantismo nos últimos cinqüenta anos. Seu apego à letra da Bíblia
ao mesmo tempo que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais
fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma que é o livre exame por
ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, que são verdadeiros tratados teológicos, voltou
a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente. A
extrema racionalidade, fundamentalista, com sua filosofia da história - história linear construída em etapas ou
dispensações em que a última encerra-a com a segunda vinda de Cristo (...) levou o protestantismo ao
desinteresse total pelo mundo”.
195
missão perante a sociedade. Foi significativo, por exemplo, na ação do grupo, o empenho com
que os missionários se entregaram à evangelização em terras tão distantes: sinal da
continuidade de sua doutrina, de seu fervor evangélico e de suas heranças confessionalistas.
Todavia, essa continuidade não deve nos desviar o olhar do fortuito da história. No
Brasil, o Luteranismo Missouriano foi rearticulado em práticas conjunturais singulares. A
proibição do idioma alemão, as negociações com o poder público, os embates com o Sínodo
Riograndense e com o Catolicismo, formaram a conjuntura na qual os confessionalistas
buscaram significar o mundo desde sua tradição.
A eles, assim, a proibição do idioma alemão apresentou o desafio de se recriarem
pela aprendizagem do idioma português e de se diferenciarem confessionalmente em relação a
outros grupos religiosos e tendências germanizantes. Nesse contexto, o sentimento de
germanidade não foi o principal norteador dos discursos do Distrito, da mesma forma que não
o foi o sentimento de pertença estadunidense, ainda que este transpareça em alguns
momentos. Para os líderes distritais do Sínodo de Missouri no Brasil, a despeito de sua
nacionalidade ou da situação de estrangeiros em que se encontrava boa parte deles, a
fidelidade para com a doutrina pura e a pregação do evangelho constituiu o eixo principal que,
na relação tensa com os outros sociais, norteou suas práticas, identidades e discursos na I
Guerra. Um comportamento endógeno foi, assim, aqui revivido, semelhante ao dos
missourianos de Walther, todavia por razões práticas diferentes.
Nesse sentido, quem estivesse de fora da verdade, a heterodoxia, o outro-falso, era
concebido ou como um alvo da missão do Sínodo, alguém que precisava ser salvo; ou, de
outra forma, principalmente no tangente às instituições, como um adversário. Houve, nesse
contexto, pouca ou nenhuma abertura ao diálogo, tanto da parte dos missourianos, quanto dos
demais grupos. Na verdade a própria idéia de diálogo hoje partilhada é anacrônica para tratar
a questão. A identidade confessional foi, de fato, reafirmada em oposição aos demais grupos
religiosos, de modo que os próprios conflitos se tornaram fatores de reforço identitário da
confessionalidade, ancorada nos limites rígidos internos ao discurso ortodoxo. Então sim
podemos falar de uma notável continuidade que remonta ao século XVI: a ortodoxia na
prática, não como uma estrutura imóvel que se impõe por si mesma. Como veremos, nos anos
80, as práticas, como as conjunturas, seriam outras.
Quanto à relação entre memória, tempo e espaço, empreendeu-se nos discursos
textuais e imagéticos uma hierofanização das ações missourianas, especialmente as
missionárias, como é normal no universo religioso. Nessa perspectiva, a expansão das
atividades para outras localidades foi vivida e imaginada como recriação arquetípica de
196
origens que encontravam fundamento, simultaneamente, na Bíblia, em Lutero e em Walther.
Sendo assim, questões de ordem doutrinário-religiosa devem ser colocadas contra o pano de
fundo de tempo longo que traçamos, entendidas enquanto atualizações das estruturas
confessionais, como no caso das idéias que precisamos reportar a Lutero, às Confissões, à
Ortodoxia Luterana, ao Pietismo ou ao Confessionalismo: um processo histórico quase
imóvel, que, ao passo que se sobrepõe, se transforma, mas num tempo muito lento, em
descontinuidades tênues que não seguem necessariamente uma linha evolutiva ou
secularizante; são discursos que perpassam e perfazem mentalidades e práticas, na maioria das
vezes de modo inconsciente, como sombras de tempos que se foram, mas que aqui estão.
Nessa perspectiva, também a inclinação fundamentalista representada por Hasse, ao
evocar conteúdos antigos adaptados a novos contextos, é por um lado resultado de
estruturações conjunturais locais, por outro, de um parentesco discursivo com o
Fundamentalismo estadunidense e com outras estruturas próprias ao Cristianismo. O discurso
religioso confessional é atravessado por formações discursivas em processo em outros tempos
e lugares.
A Deutschtum é também outro exemplo de formação discursiva que perpassou nesse
período o discurso e a identidade confessional ortodoxa, ainda que na contramão. Todavia, a
questão da condição migrante como fator de propulsão do conservantismo político ou
religioso, nesse caso, é uma possibilidade interpretativa que mereceria maior aprofundamento.
No tangente à participação do Sínodo no mundo político, como no caso da busca
pela liberação do uso do idioma alemão junto ao poder público, isso se deu concebendo o
espaço público como algo que deveria permitir ou não atrapalhar a pregação do evangelho,
não como um fim em si. Tais atitudes vinham reforçadas por uma desobrigação para com o
mundo social, por parte de líderes imbuídos não de uma missão terrena, mas com fins
celestiais. A idéia de dois reinos, um espiritual e outro secular, ligava a igreja ao primeiro,
afastando-a das coisas do mundo. Tratava-se de uma mentalidade desapegada em relação às
coisas da vida social cotidiana, mais voltada para uma missão preocupada com a pregação da
Palavra, carregada de oralidade e com vistas à salvação das almas perdidas, do que para com a
realidade social em que estavam inseridos os imigrantes e seus descendentes – diferentemente
do Sínodo Riograndense. Todavia, os posicionamentos do Sínodo de Missouri no Brasil, onde
o grupo pretendia se retirar do universo político, e nos EUA, onde participaram mais
ativamente, são exemplos das dinâmicas pelas quais uma mesma estrutura em conjunturas
diferentes pode gerar práticas também diferenciadas, porém ainda ortodoxas e não sentidas
como contradição.
CAPÍTULO 4: A IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL AO
FINAL DO REGIME MILITAR
Muita coisa mudou no Brasil e na IELB entre o final da I Guerra e o final do Regime
Militar. O Brasil deixara de ser um país rural, passara por processos de urbanização e
industrialização, tivera de enfrentar as benesses e os problemas da inserção nacional no
sistema capitalista e experimentara longos anos de ditadura sob Vargas e sob os militares. A
IELB, por sua vez, já não era mais um ajuntamento de comunidades de imigrantes alemães
amparados por pastores estadunidenses. Tornara-se uma organização presente em todo o país,
constituíra uma burocracia administrativa em nível nacional e mantinha missões no Paraguai e
em Portugal. Faziam parte dessa organização centenas de escolas e comunidades e um
número considerável de pastores e professores. Passara, também, por um difícil processo
durante a II Guerra Mundial, no qual, para além do preconceito e das restrições, tivera de
abandonar o uso do idioma alemão como meio de comunicação principal e achar seu rumo
como igreja de fala portuguesa e interessada no contexto brasileiro.
Nos anos 80, o final do Regime Militar traria ainda novas questões ao grupo. As
dinâmicas que envoleram a IELB nessa conjuntura são o objeto deste capítulo.
1. O Brasil dos anos 80
(...) envidaremos sinceros esforços para o gradual, mas seguro aperfeiçoamento
democrático ampliando o diálogo honesto e mutuamente respeitoso e estimulando
maior participação das elites responsáveis e do povo em geral para a criação de
um clima salutar de consenso básico e a institucionalização acabada dos
princípios da Revolução de 64. Os instrumentos excepcionais de que o governo se
acha armado para a manutenção da atmosfera de segurança e de ordem,
fundamental para o próprio desenvolvimento econômico-social do país sem
pausas de estagnação nem muito menos retrocessos sempre perigosos, almejo vê-
los não tanto em exercício duradouro ou freqüente, antes como potencial de ação
repressiva ou de contenção mais enérgica e, assim mesmo, até que se vejam
superados pela imaginação política criadora capaz de instituir quando oportuno,
salvaguardas eficazes dentro do contexto constitucional.
1
1
Apud Bernardo KUCINSKI, O fim da ditadura militar, p. 14.
198
As palavras são do general Ernesto Geisel, pronunciadas por ocasião de sua primeira
reunião ministerial, em março de 1974. O período de seu governo como presidente do Brasil
marcou o início tanto de um processo de abertura do regime militar, “lenta, gradual e que
evitasse retrocessos”, quanto de um momento de profunda crise política e econômica. Uma
grande alta no preço do petróleo, causada pela suspensão das exportações pelos países árabes
em função da guerra do Yom Kipur (1973), e a votação esmagadora nos candidatos da
oposição ao Senado, sacudiram o aparentemente inabalável regime militar, que com Geisel,
ironicamente, demonstrava-se disposto a eliminar seus traços mais antidemocráticos. A partir
daquele momento, o “milagre econômico” entrou em crise e o país passou a experimentar
uma série de transformações sociais que se estenderam a períodos posteriores ao Regime
Militar.
2
Entre 1981 e 1983, especialmente a recessão econômica sob a mão de Delfim Neto
teve pesadas conseqüências. Pela primeira vez desde 1947, quando foram estabelecidos os
indicadores do PIB, em 1981 o resultado foi negativo, caindo em 3,1%, sendo os setores de
bens duráveis os mais atingidos. O desemprego tornava-se um grave problema e a inflação
permanecia assoladora: 99,7% em 1982. As orientações do FMI para melhorar as contas
externas do país guiavam ao corte de despesas e à compressão salarial, a fim de que se
mantivesse o serviço da dívida externa, que aumentara, entre 1978 e 1984, de 43,5 bilhões
para 91 bilhões de dólares. A inflação, por sua vez, se acelerara no mesmo período de 40,85%
para 223% (!).
3
Em termos de população, as transformações também foram muitas. O Brasil crescera
de 51,9 milhões de habitantes, em 1950, para cerca de 146,1 milhões em 1990. Conforme o
censo de 1980, 50% de tal população tinha menos de vinte anos, e havia uma expressiva
redução na taxa de fecundidade desde 1970. Também em 1980, a maioria da população
passara a ser urbana, 51,5%, contrastando com os 16% de 1940. Em 1990, onze das capitais
nacionais já tinham mais de 1 milhão de habitantes, estando São Paulo à frente, seguida de
Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. O fato devia-se especialmente ao êxodo rural
das pessoas que iam à procura de oportunidades de emprego nas grandes cidades.
4
O Brasil, portanto, deixara, desde 1950, de ser um país agrícola. Mesmo assim, a
situação no campo era tal que, em 1980, os minifúndios, ou seja, os estabelecimentos
agrícolas com menos de dez hectares, os quais representavam 50,4% do total de
2
Bernardo KUCINSKI, O fim da ditadura militar, p. 15.
3
Cf. Boris FAUSTO, História do Brasil, p. 502-504.
4
Os dados que seguem foram extraídos de Boris FAUSTO, História do Brasil, p. 531-550.
199
estabelecimentos, ocupavam apenas 2,5% da área total de terras, enquanto que os latifúndios,
estabelecimentos com mais de 10 mil hectares, que constituíam somente 0,1% dos
estabelecimentos, detinham 16,4% das terras. A agroindústria, por sua vez, avançava,
impulsionada por um novo setor de pequenos e médios proprietários, em meio a uma massa
enorme de produtores pobres ou miseráveis, dentre os quais 73% ainda cultivavam a terra sem
o uso do arado, fosse mecânico ou de tração animal, e tinham uma renda per capita de meio
salário mínimo ou menos.
Nas cidades, por sua vez, a indústria e os serviços cresciam e o Brasil tornara-se um
país semi-industrializado, com o produto industrial mais elevado entre os países do dito
Terceiro Mundo. Nesse contexto, a produção de bens não duráveis (p. ex., alimentos e
bebidas) diminuíra em relação à produção de bens duráveis, apresentando-se como setor de
ponta a indústria automobilística, que em 1980 representava 10% do PIB.
Em relação aos indicadores sociais, havia, por exemplo, avanços significativos na
taxa de alfabetização. Em 1950, 53,9% dos homens e 60,6% das mulheres eram analfabetos.
Tais porcentagens caíram respectivamente para 34,9% e 35,2%, em 1980, e para 25,8% e
26,0%, em 1987. Assim também, ao passo que, em 1949, de uma população escolarizável de
23,8 milhões, havia 4,8 milhões de matrículas nas escolas (15,1%); em 1987, de uma
população escolarizável de 74,3 milhões, 34,4 milhões estavam matriculados (47%).
Além disso, a esperança de vida crescera de 45,9 anos, em 1950, para 60 anos, em
1980, e a taxa de mortalidade infantil diminuíra no mesmo período de 130 para 86 óbitos em
cada mil crianças até um ano de vida.
As mulheres, por sua vez, a partir de 1970, ingressavam intensamente no mercado de
trabalho. Assim, ao passo que, naquele ano, 71,9% do conjunto dos homens faziam parte da
PEA (População Economicamente Ativa) e apenas 18,2% do conjunto das mulheres, em 1985
tais percentuais haviam subido para 76% entre os homens e 36,8% entre as mulheres, como
conseqüência tanto do grande crescimento econômico e dos novos espaços conquistados pelas
próprias mulheres, quanto do incentivo ao consumo e das crescentes disparidades sociais, que
tornavam o Brasil um dos países mais desiguais de todo o mundo.
Em meio a tal crise e a tais transformações, passavam a surgir manifestações de
resistência e luta pela redemocratização desde dentro dos próprios quartéis. Também os
sindicatos atuavam de modo intenso na mesma direção. As manifestações populares e as
greves eram muitas. A anistia a torturados e a torturadores, a fundação do PT, o aparecimento
200
de Lula, os atentados, a campanha “Diretas já!”, a crise da dívida externa. Estas e outras eram
dinâmicas que marcavam o Brasil dos anos 80.
5
Em relação às igrejas, muitas delas, logo após o golpe de 64, consideraram a
ditadura como a solução enviada por Deus para combater os males do Comunismo. O clima
era geralmente de apatia em relação ao universo político. Ao longo do processo, entretanto,
alguns setores foram assumindo posturas de oposição às políticas repressivas e
antidemocráticas dos representantes da linha dura militar. Tanto entre os protestantes, quanto
entre a Igreja Católica, inclusive a CNBB, atendendo aos ecos do Vaticano II e especialmente
de Medellin, houve setores que se organizaram em resistência à ditadura, preocupados com
uma presença cristã que denunciasse o que acontecia. Diversas tentativas fracassaram, mas se
teve também algum sucesso, principalmente em nível de conscientização política dos
cristãos.
6
Por outro lado, o campo religioso brasileiro deixara de ser o domínio do Catolicismo
e abrira-se à construção da miríade que hoje conhecemos. Nesse contexto, pentecostais,
espíritas, umbandistas, candomblecistas, carismáticos, evangélicos, budistas, muçulmanos,
espiritualistas e mesmo luteranos perfaziam um campo religioso dinâmico e cada vez mais
plural.
Ao final do regime militar, a IELB e seu Luteranismo Confessional Ortodoxo foram
também sacudidos e convidados a se manifestar extramuros.
2. A IELB no Brasil dos anos 80
Em 1981, a IELB somava 178.000 membros batizados, divididos em 1.206
congregações e pontos de missão ou pregação. Estava presente em 22 Estados e territórios da
Federação, nos quais atuavam 252 missionários e pastores paroquiais, apoiados por 23
pastores aposentados e 44 obreiros em escolas e trabalhos especiais.
7
Era uma igreja não só
maior, mas também diferente daquela da I Guerra Mundial.
Após a breve proibição do idioma alemão, entre 1917 e 1919, a vida do sínodo
voltara ao normal. A situação de normalidade seria, todavia, alterada com as políticas de
nacionalização de Vargas. A partir de 1938, em um momento em que 84% dos sermões eram
5
Bernardo KUCINSKI, O fim da ditadura militar, passim.
6
Agenor BERGER, A postura da Igreja Evangélica Luterana do Brasil frente ao regime militar (1964-1985), p.
31-55; tb. Rolf SCHÜNEMANN, Do gueto à participação, o surgimento da consciência sócio-política na Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil entre 1960 e 1975, 30-41.
7
ML, 03 e 04/1982, p. 4-6.
201
ainda pregados em alemão, o uso do idioma foi sendo gradualmente suprimido por iniciativa
estatal. Em 1939, toda a pregação em alemão foi proibida no Rio Grande do Sul, sendo
facultado no idioma somente o serviço litúrgico. Pouco tempo depois, entre 1941 e 1942,
também os três periódicos que o grupo publicava em alemão tiveram de cessar, o
Kirchenblatt, o Luther-Kalender e o Andachtskalender. A tiragem das três publicações no ano
anterior somara 12 mil exemplares.
8
A partir de 1942, com o ingresso do Brasil na Guerra, a situação agravou-se ainda
mais. Sobre esse período, o Dr. F. C. Streufert, secretário de missões do Sínodo de Missouri,
após visita feita ao Brasil, declarou:
Eu sabia que estava constantemente sob observação e que o Departamento de
Serviço Secreto tinha seus olhos pousados sobre mim. (...) Por lei, todos os cultos
precisavam ser dirigidos em língua portuguesa. Todas as nossas congregações
cumpriram com a determinação imediatamente. Mas isso foi um grande problema
para elas, já que muitas pessoas não compreendiam o português. (...) estes foram
dias de perigo e amargo sofrimento. Nunca, na história do Sínodo de Missouri,
nossos cristãos, em algum lugar, sofreram tanta ameaça, antagonismo,
animosidade, perseguição às nossas congregações, pastores e irmãos em Cristo
como está acontecendo no Brasil. A antiga ameaça do mal agora significava
aflição. (...) Nossos cristãos estão em silêncio. Eles não sabem o que o futuro pode
trazer. É um crime receber uma carta da Alemanha. Um membro foi preso por
causa disso... Nenhum dos nossos pastores pode escrever sobre as aflições pelas
quais estão passando. Que o Senhor tenha piedade deles.
9
Todavia, mesmo que os membros do Sínodo no Brasil não pudessem saber o que o
futuro lhes reservava, concretizava-se naquele momento o início de um processo que tornaria
o grupo uma organização de caráter nacional.
Em 1940, através de sua Casa Publicadora Concórdia, já o Sínodo lançara em
português o Hinário Luterano e iniciara a publicação dos periódicos O jovem luterano, O
pequeno luterano e Igreja Luterana, este último de cunho teológico acadêmico. Além disso,
permanecia firme o Mensageiro Luterano sob a mão de Rodolfo Hasse, o qual iniciara, em
1937, também uma série de programas radiofônicos no idioma nacional, que em 1947 já eram
transmitidos nas cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro, Recife, Juiz de Fora, Curitiba,
Joinville, Salvador, Passo Fundo e Pelotas.
10
Quando o idioma alemão pôde novamente ser utilizado após a II Guerra e parte do
trabalho de fato tornou a ser realizado nesta língua, o português era já, contudo, o idioma mais
8
Mário REHFELDT, Um grão de mostarda, p. 140-141.
9
Apud Idem, p. 142-145 [grifo no original].
10
Idem, p. 147-148, 164-165.
202
usado nos cultos. Após oito anos de supressão do uso do alemão, a nova geração havia
esquecido boa parte daquela língua e usava quase exclusivamente o português. Tal momento
de transição trouxe efeitos duradouros para a inserção do Luteranismo Confessional Ortodoxo
no Brasil. O Sínodo Evangélico Luterano do Brasil não era ainda uma igreja totalmente
nacional. Era dirigido e mantido em larga escala pelo Sínodo de Missouri, a “Igreja-mãe”, e
formado quase em sua totalidade por imigrantes alemães e seus descendentes. Contudo, após
a II Guerra, a liderança do grupo passara das mãos de pastores estadunidenses para pastores
brasileiros, a igreja queria se expandir pelo Brasil e as oportunidades surgiam como nunca
antes.
11
Nesse passo, as transformações socioculturais pelas quais passava o Brasil afetavam
também a IELB. Mudanças podiam ser percebidas, por exemplo, na compreensão das formas
de culto e de música. Ainda no começo dos anos 70, o pastor Arnaldo Schmidt, reitor do
Seminário Concórdia, assumia: “Em todas as igrejas cristãs levantam-se, hoje, vozes contra a
rigidez e formalidade dos cultos. Exigem-se novas formas de cultuar a Deus. O culto do povo
de Deus (...) deve ser transformado num acontecimento cada vez mais divino, atrativo e feliz”.
Para o pastor, os cultos tradicionais nem sempre estavam correspondendo à vontade do povo.
Por isso, afirmava: “Devemos ter a coragem de criticar o que está mal e buscar novas formas,
novas modalidades. Tudo com ‘ordem e decência’. Tudo para que os cristãos recebam
edificação espiritual. Tudo para que o nome do Salvador Jesus seja anunciado e
glorificado”.
12
A sensibilidade de Schmidt para com o entorno social da IELB ficava clara, e isso
tratando de um assunto que é ainda hoje tabu em muitas igrejas tradicionais, a forma do culto.
Estava, na verdade, em curso um processo de renovação litúrgica entre as igrejas e Schmidt
não estava alheio a isso. Apresentava, então, algumas observações para discussão:
1) O nosso culto é bastante clericalizado (...) A congregação deve participar, com
o ministro (...). 2) Nossos cultos são bastante sacralizados e, por vezes, estão
distantes da realidade do mundo presente. (...) Corremos o perigo de criar cristãos
de domingo, para os quais o culto nem sempre traz a resposta de seus problemas
da vida diária. 3) Nossos cultos igualmente são bastante intelectualizados. (...)
Por que não pensar em cartazes, filmes, diafilmes, diálogos, encenações? 4) A
forma de nosso culto vem de uma época cuja cultura era marcada pelo
cristianismo, refletindo o ambiente da sociedade de então. (...) Que criações e
11
Mário REHFELDT, Um grão de mostarda, p. 174-175.
12
ML, 09/1973, p.17; Arnaldo Schmidt, formado em e filosofia e teologia no Brasil, nasceu em Ijuí (1922) e
pastoreou comunidades em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, foi reitor do Seminário Concórdia, 1° vice-
presidente (1960-1963) e presidente da IELB (1963-1966). Faleceu em 2002, em Porto Alegre. Cf. Carlos H.
WARTH, Crônicas da igreja, p. 298; tb. IELB, página na internet.
203
expressões culturais de hoje podem ser empregadas no culto para termos formas
para a nossa cultura brasileira e a nossa sociedade?
13
Como princípios para uma revisão litúrgica, Schmidt propunha que a mesma se
baseasse num estudo comparativo das diversas liturgias existentes, antigas e modernas, do
Oriente e do Ocidente, e que tivesse um “caráter ecumênico”: “Ela não deve ser sectária. A
forma de culto não deve ser dogmatizada. Deve ser flexível. Deve se procurar uma
uniformidade ecumênica, isto é, universal, para a cristandade”, afirmava.
14
Tratava-se, por certo, de uma pessoa bastante aberta teologicamente para os padrões
do grupo, ainda que ocupasse a reitoria do Seminário Concórdia. Por isso mesmo é que se
torna interessante e intrigante que um discurso pronunciado desde um tal lugar passasse a
fazer menção a temas como o da revisão litúrgica e mesmo o do ecumenismo, em uma igreja
fundada por gente que emigrara justamente para não se unir.
A IELB, nos anos seguintes, teve de fato de lidar com a renovação de suas formas
rituais e de espiritualidade. Ainda nos anos 70, por exemplo, houve em Porto Alegre, um
movimento de renovação carismática interno ao grupo, o que gerou algum alarde. No
desenvolver da trama, diante da exigência de retratação e correção apresentada por parte da
direção da igreja, o movimento veio a dissidir, resultando na formação da Igreja Luterana da
Renovação, hoje com sede no município de Cachoeirinha, RS.
Assim também foi exemplar, nos anos 80, o surgimento dos primeiros “conjuntos
musicais” da IELB. Na 48
a
Convenção Nacional, em 1982, houve a apresentação De um dos
pioneiros destes, o “Sal da Terra”, com suas guitarras, baixo e bateria, diante dos ouvidos e
olhos atentos de pastores e líderes leigos. Concomitantemente, em outras instâncias
protestantes, criava-se no Brasil, através de grupos como o conhecido “Vencedores por
Cristo”, a base do atual mundo da música gospel.
15
Naturalmente, porém, o Sal da Terra era
um tanto convencional, comparado às atuais bandas de rock gospel.
13
ML, 09/1973, p. 17-18 [grifos no original].
14
Idem, p. 18.
15
ML, 03 e 04/1982,
204
Conjunto Sal da terra (ML, 03-04/1982, p. 54)
Conjunto Sal da Terra (ML, 03-04/1982, p. 54)
A partir dessa época, passaram a surgir diversos grupos musicais de estilo
contemporâneo, dito “jovem”, multiplicando-se nas igrejas da IELB ao redor do país,
cantando em cultos, congressos, eventos e mesmo realizando gravações em estúdio. Nos é
pertinente, nesse sentido, a comparação feita pelo também jovem pastor Dieter Jagnow, entre
o Rock in Rio e o “Congressão”, evento bienal da Juventude Evangélica Luterana do Brasil
(JELB), órgão auxiliar da IELB. Jagnow principiava destacando as dimensões do evento
carioca: ao todo 1 milhão de jovens que haviam deixado a marca de sua música: “um
autêntico culto aos decibéis ensurdecedores das guitarras, baterias e, especialmente, aos
‘vocalistas-deuses’”. Em sua apreciação, tal sucesso estava ligado ao processo de consumo
capitalista. As gravadoras haviam descoberto entre os jovens o potencial mercadológico do
rock, que fazia sucesso porque era barato, de fácil consumo e não fazia pensar. Na opinião de
Jagnow, a manifestação mais marcante ficava por conta dos altos decibéis do heavy metal e
dos “metaleiros”. Sobre estes, afirmava: “não ‘curtem’ religião, mas têm como rei o demônio,
simbolizado com os dedos mínimo e indicador em riste (como dois chifres!)”.
16
Para o pastor,
o Rock in Rio, de uma forma geral, havia sido:
(...) um imenso espelho dos meandros que comandam muito a existência do jovem
de hoje. Um jovem que se vê lançado diante de crises de valores éticos, morais e
religiosos; de desagregação familiar galopante; de uma sociedade voraz,
consumista, materialista; de instituições sociais e políticas bastante desacreditadas
16
ML, 04/1985, p. 13-14. Formado pelo Seminário Concórdia em 1984, com mestrado nos EUA, Jagnow é o
atual editor do Mensageiro Luterano e da Editora Concórdia. Cf. IELB, página na internet e memória do autor.
205
e impotentes para realizar os seus desejos e necessidades mais prementes: saúde,
estudo, profissão, justiça, paz. E se não bastassem estas esfinges todas, ainda se
encontra mergulhado no conturbado mar dos seus problemas existenciais, típicos
da juventude. Diante desta tenebrosa pilha de rupturas, tensões, incertezas, o
jovem se lança em caminhos alternativos como a música (e, particularmente o
rock). O rock passa a ser seu canal de comunicação, sua voz de desabafo, seu grito
de contestação, a sua fuga da realidade. Para muitos jovens o rock é o deus urbano
e contemporâneo, a cujos ídolos rendem culto; cujos decibéis, ensurdecedores,
têm a função de abrandar o mau cheiro da podridão que brota da sociedade
moderna.
17
Após o diagnóstico, Jagnow, então, no contraponto do rock, relatava a
movimen
anecia, assim, na contramão da modernidade e de seu filho
dileto, o
por exemplo, a fúria da rebeldia dos metaleiros e punks
dos anos
tação dos jovens ielbianos com sua “musijelb”, sob a batuta do conjunto Sal da
Terra, no Congresso Nacional que acontecera em Piracicaba no início de 1985. Para o pastor,
havia diferenças de motivação, conteúdo e finalidade entre a música do Rock in Rio e a do
“Congressão”. Ao passo que o rock era o brado de desabafo de uma sociedade-problema, a
“musijelb” tinha sua origem em Deus, dele falava e era a ele dirigida: “falando do perdão dos
pecados, da salvação em Cristo, do amor de Deus, da esperança eterna, ela oferece as
respostas às indagações mais variadas que os jovens fazem através do rock. O amor de Deus
em Cristo é a resposta”, pontuava. A distância que separava uma música da outra, era, assim,
“uma distância de vida ou morte” e se traduzia “num contínuo desafio para um contínuo
anúncio do evangelho de Cristo”.
18
A IELB de Jagnow perm
Capitalismo. Era, todavia, indisfarçável o festejar das novas formas que revestiam a
mensagem confessional e a habilitavam à batalha. A “musijelb”, nessa perspectiva, era uma
nova forma a levar velhos conteúdos em meio à batalha espiritual travada contra a
modernidade e suas conseqüências.
Na do pastor Lauro Patzer,
80, perante a qual o momento dos Beatles e da jovem guarda nos anos 60 não
passava “de revólveres de brinquedo diante de metralhadoras automáticas”, era curiosamente
“fruto da filosofia sartreana, que implodiu a ordem social”. Em sua opinião, a raiz do mal
estava nas idéias existencialistas do autor francês: “Não há bem nem mal, salvo se é
inventado. Portanto, cada qual tem a sua moral, a sua verdade e os seus deuses... Todas as
17
ML, 04/1985, p. 14.
18
Idem, p. 15; a avaliação teológica e sociocultural de Jagnow, apesar de fazer sentido no repertório
compartilhado entre os líderes ielbianos, não fazia justiça ao todo do movimento musical que ocorria entre os
jovens na época. Compartilho da hipótese de que a manifestação “musijelb” pode ser equiparada ao rock em sua
dimensão de força contestatória, de manifestação de insatisfação e mesmo de brado de desabafo. Eram jovens
descendentes de alemães que gostavam de sua igreja mas queriam espaço pra dizer a ela e à sociedade o que
pensavam. Isso, porém, mereceria uma outra pesquisa.
206
coisas são um absurdo. O mundo e nós mesmos”, citava a Sartre. Para aclarar o problema,
recorria às palavras de Lutero: “Cada qual faz um deus das suas inclinações e dos desejos de
seu coração. Mas o seu erro está em que um tal confiar é falso, pois não se baseia num único
Deus (...) A idolatria consiste em afastar os olhos de Deus e construir a vida sobre os desejos
da carne”. Para Patzer, o pensamento de Sartre abrira as portas para o caos. Sartre, “talvez
indiretamente”, dizia o professor, era por isso “o pai dos ‘metaleiros’”: “o fenômeno
‘metaleiro’ é um indício de corações vazios”, concluía. A solução era buscada novamente no
conselho de Lutero. No Catecismo Maior, Lutero ensinara que a juventude devia ter atenção
especial e os pais deviam estimular os filhos a freqüentar lugares onde a palavra de Deus
fosse honrada, os sacramentos usados e houvesse ambiente para “crescer em Cristo”: “Quem
ama o seu Criador, ama também a natureza, os pássaros, as flores, as árvores, o pôr do Sol.
Ama os pais. Respeita as autoridades e serve ao próximo”, lembrava o pastor.
19
E colocava-se
então o “motivo social” do Luteranismo Confessional tradicionalmente reafirmado: manter o
mundo como a boa criação de Deus, com ordem e decência.
Para que tal objetivo fosse alcançado, novas formas seriam buscadas, a exemplo da
“musijelb
ão da mensagem confessional do alemão
para o po
”. A JELB, aliás, completava, em 1985, seus 60 anos, no mesmo momento em que
se celebrava o Ano Internacional da Juventude. Vejamos a apreciação do vice-presidente da
organização, o futuro pastor Douglas Flor: “Vemos que, hoje, o mundo oferece ao jovem
muitas outras coisas que substituem uma união de jovens cristãos na união juvenil. O jovem
procura somente programas aparentemente agradáveis ou que acha serem interessantes”.
Perguntava, então: “Porque não fazer de nossa união juvenil um programa agradável e
interessante?” Para Flor, o “mundo” lembrara o Ano Internacional da Juventude “promovendo
o macabro ‘Rock in Rio’”; a IELB, por sua vez, permanecia ainda estagnada. Sugeria, então:
“você, com sua união juvenil, pode fazer algo para melhorar este ano. É hora de fazermos
algo pela nossa identidade jovem. O importante é que comemoremos esta data como jovens
cristãos e dando exemplo em nossos atos diários”.
20
Se considerarmos a necessidade de traduç
rtuguês ou o inglês que se impôs aos missourianos durante a I Guerra, poderíamos
dizer que uma semelhante situação estava então envolvendo o grupo em meados dos anos 80.
No início do século, a fim de pregar o evangelho, haviam aprendido a falar português ou
19
ML, 06/1985, p. 8. Patzer formou-se pelo Seminário Concórdia em 1971. Natural de Getúlio Vargas, RS
(1946). Foi pastor em Pedro Osório, Niterói e Gravat, sempre no RS. Foi professor na ULBRA e não consta
mais na lista de pastores da IELB. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 326; tb. IELB, página na
internet.
20
ML, 06/1985, p. 15. Douglas Flor formou-se em 1987 pelo Seminário Concórdia, em São Leopoldo, e em
1991 em comunicação social pela UNISINOS. Atualmente trabalha na ULBRA. Cf. CV Lattes.
207
inglês. Ao final do regime militar, estavam aprendendo a traduzir sua mensagem em outras
novas linguagens; dessa vez, contudo, também pela iniciativa dos leigos, nesse caso, os
jovens. Importava, ainda, continuar a pregação do evangelho da verdade pura.
A própria participação dos leigos era, na verdade, outra das características que
marcavam
. Ainda luteranos e confessionais
A IELB, ao final do regime militar, ainda que entrecortada por algumas
transform
ão da Reforma, no ano do 75° aniversário
da IELB,
O grande testemunho cristão ao mundo é a transmissão da doutrina bíblica da
o rosto da IELB nos anos 80. Não se tratava mais, porém, de um grupo de
imigrantes agricultores que não falava português, mas de pessoas de classe média com
razoável formação escolar ou universitária que apresentavam uma série de necessidades,
percepções e diferentes experiências que de alguma forma colaboravam na diversificação dos
discursos e identidades do grupo. No Mensageiro, estas pessoas passaram também a se fazer
mais presentes, tanto através de cartas e perguntas que enviavam, quanto através de artigos e
colunas especiais que escreviam. A sra. Placita Layser, por exemplo, psicóloga, por diversas
vezes escrevia sobre temas associados à educação e à psicologia, como a educação dos filhos,
a sexualidade, a violência contra a criança, etc., numa abordagem que ia além da perspectiva
religiosa. Aos poucos, então, ia se percebendo, entre as páginas do Mensageiro, preocupações
outras que não somente com a preservação da confessionalidade luterana ortodoxa,
preocupações de caráter moderno que podiam ser tidas como existenciais.
3
ações, permanecia uma igreja luterana, confessional e ortodoxa. As novidades do
mundo moderno, que chegara também ao Brasil, coloriam, porém, tal confessionalidade e
ortodoxia com tonalidades outrora desconhecidas.
Em outubro de 1979, mês da comemoraç
Johannes Gedrat, pastor presidente, reafirmava assim a vocação de sua igreja:
salvação. Deus nos preservou a doutrina pura até esta data e assim nos habilitou a
transmitir todo o conselho de Deus e a sermos atalaias fiéis. Os que deturpam a
doutrina ou a ensinam erradamente, diminuem ou enfraquecem a mensagem,
podendo mesmo tornar-se culpados da condenação de alguns. Cada membro da
IELB (pastor ou leigo) precisa zelar para que se ensine a verdade e que se viva
sempre mais em conformidade com ela. Deus nos preserve fiéis e unidos, dando-
nos perspicácia para distinguir o erro e determinação para combatê-lo, mas, acima
208
de tudo, fervor para conhecer melhor o verdadeiro ensino bíblico e para dar
testemunho da verdade.
21
A liderança da IELB permanecia, assim, a frisar sua confessionalidade, como
testemunho da doutrina pura, a verdade que Deus lhes concedera enquanto atalaias. Era
também o que reafirmava o pastor Horst Kuchenbecker a respeito do lema da IELB para os
anos de 1981 e 1982 , “Jesus Cristo é o Senhor”. O grande objetivo, segundo o pastor,
consistia em: “levar todos nossos membros a compreenderem bem a pessoa e a obra de Cristo,
para serem fortalecidos na fé e, conseqüentemente, na vida santificada”. Sublinhava que em
“dias conturbados por toda sorte de falsos profetas, falsas ideologias, crises sociais,
indiferentismo e sincretismos (tentativa de combinar todas as religiões, dizendo: todas as
religiões são boas, e expressam a mesma verdade sob outro ângulo e outras palavras)”, não
havia “nada melhor do que contemplar a Cristo”.
22
A inspiração provinha, para Kuchenbecker, também de Lutero, que na explicação do
segundo artigo do credo apostólico, no Catecismo Maior, declarara: “‘creio que Jesus Cristo é
meu Senhor’”; “creio que Jesus Cristo me remiu a mim homem perdido e condenado”; “todo
pecador que confia em Cristo, tem perdão, vida e salvação”; “e o sirva em eterna justiça,
inocência e bem-aventurança”; “vigiai e orai, para que não entreis em tentação”. “Toda a
explicação do segundo artigo é um hino de louvor a Cristo”, pontuava Kuchenbecker.
23
Estava aí, perceba-se, o todo da teologia da justificação pela fé. Da mesma forma
que estava também a antropologia da fé e do amor de Lutero: o homem perdido e condenado,
a salvação pela fé em Cristo para a eternidade, a vida santificada. Tratava-se do coração da
teologia da Reforma luterana, a qual o Sínodo de Missouri e a IELB haviam cuidado em
manter. Também a mesma busca pela compreensão, pelo entendimento, como meio para
acessar a fé e a vida cristã, estava aí a revelar, como no Dezenove, os débitos da teologia
confessional para com a Ortodoxia do Dezessete e sua fé intelectualizada.
Ao mesmo tempo, porém, outras vozes se erguiam em diversificação especialmente
da concepção de quem eram os guardiões das verdades confessionais, ou seja, a doutrina da
Igreja, ponto cardinal do Confessionalismo do século XIX, de quem a IELB era herdeira
21
ML, 10/1979, p. 2. Brasileiro formado no Brasil em 1957, Gedrat (1934-) foi pastor em Três Coroas, Pelotas,
Três Vendas e Canela, todas no RS. Diretor da Hora Luterana Internacional em SP, vice-presidente (1963-1970)
e presidente da IELB (1974-1990), e diretor de missões para a América Latina da LC-MS. Trabalha atualmente
na ULBRA. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 310; tb. memória do autor.
22
ML, 11/1981, p. 16-17. Alemão de nascimento, Kuchenbecker (1935-) formou-se em Porto Alegre e atuou
como pastor em Passo Sant’Ana, Três de Maio, Moreira e Porto Alegre. Foi professor do Instituto Concórdia de
São Leopoldo, que funcionou nos anos 70 e 80 como pré-seminário, e secretário de educação paroquial da IELB.
Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 314.
23
ML, 11/1981, p. 16-17; Martinho LUTERO, Catecismo maior, p. 450-451.
209
direta. Assim, por exemplo, na mesma edição do Mensageiro em que Gedrat conclamava
pastores e leigos da igreja a zelarem pela preservação da doutrina pura, como parte das
comemorações dos 75 anos da IELB, o pastor Dr. Nestor Beck escrevia sobre o tema da
unidade da igreja, manifestando, se entendemos bem, preocupações ecumênicas semelhantes
às que Arnaldo Schmidt apresentara ao redor do tema da renovação litúrgica alguns anos
antes. Dizia Beck: “a unidade do povo de Deus está enraizada na unidade ou identidade do
próprio Deus e de sua ação no mundo”. Assim, uma vez que Deus é um e coerente no que faz,
seu povo também é um e assim deve permanecer. Quem, por sua vez, perturbar a unidade do
povo de Deus, estará agredindo a Deus mesmo, e sabotando sua ação em favor da
humanidade. “Na unidade do povo de Deus, o ‘eu’ egoísta precisa ceder ao ‘nós’, e o ‘nós’
submeter-se por inteiro a Ele, que é a origem e mantenedor da nossa unidade”, pontuava
Beck.
24
Havia algo de heterodoxo para o Confessionalismo da IELB nessas afirmações? À
primeira vista, não. Havia contudo, uma sensível diferença qualitativa em relação àquele
discurso doutrinário combativo, que Hasse representara tão bem. A partir das declarações de
Beck, por exemplo, o argumento poderia ser facilmente conduzido pela afirmação de que há
uma igreja verdadeira, aquela que tem a doutrina pura, e somente dentro desta pode haver
unidade. Não foi isso, todavia, que Beck fez, apesar de ser parte da direção da igreja e de ter
recebido sua educação teológica da graduação ao doutorado nos seminários de Porto Alegre e
Saint Louis. Antes, evitou sistematicamente a questão das fronteiras humanas da igreja,
localizando a formação, manutenção e identidade desta em Deus, isto é, ao largo das divisões
eclesiástico-doutrinárias tradicionalmente caras aos missourianos. Concluía, então, o pastor,
apresentando questionamentos a respeito da unidade na igreja local do leitor: “Estão
preconceitos de raça e classe social perturbando a unidade e comunhão na igreja local? Se
Cristo constituiu uma única igreja, como se explica que haja na cidade tantas igrejas, alegando
cada uma ser a única igreja de Cristo? (...) Estou dividindo ou estou preservando a
unidade?”
25
Não há, somente por seu pronunciamento, como saber se Beck se referia ou não nas
entrelinhas a alguma desavença interna à igreja. Ulteriormente, isso também não tem tanta
24
ML, 10/1979, p. 5. Nestor Beck nasceu em 1942 em Ibirubá, RS, formou-se em teologia pelo Seminário
Concórdia (1964) e em filosofia pela UFRGS (1965). Mestre (1967) e doutor (1973) em teologia pelo Concordia
Seminary, com estudos de pós-doutorado na Universidade de Mainz, Alemanha (1985). Foi pastor em Ijuí,
secretário executivo do departamento de ensino da IELB (1978-1984), professor da UNIJUÍ, da PUCRS, da EST
e é atualmente pró-reitor de graduação na ULBRA. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 317; tb. CV
Lattes.
25
ML, 10/1979, p. 5.
210
importância. O que nos interessa é o fato de que seu discurso deixa transparecer uma pertença
identitária a um corpo social maior que a IELB e agrega fundamentos teológicos para tal
percepção.
Alguns anos depois, o próprio Gedrat, ainda presidente do grupo, incorporaria
também idéias semelhantes:
A posição das igrejas luteranas confessionais no mundo de hoje não é muito fácil.
Já não é possível ser irredutível em matérias que não estão claramente explícitas
nas Escrituras e nas Confissões (...). Não podemos esquecer que nossos tempos
são diferentes e desafiam com problemas e perguntas muito diversas dos tempos
em que as Confissões Luteranas foram produzidas. Devemos admitir que estas
não apresentam respostas específicas para os nossos problemas peculiares, se bem
que servem de parâmetro e orientação seguros e confiáveis (...).
Por outro lado, é muito triste uma igreja e seus membros quererem viver sem
documentos confessionais claros e incisivos. Sem escritos confessionais que
promovem e garantem unidade e uniformidade de ensino e testemunho, a igreja
perde seu caráter de comunhão e família coesa (...).
É tão importante reconhecer o valor e importância de nossas Confissões
Luteranas, estudá-las bem, conhecê-las sempre melhor, compará-las sempre de
novo com as Escrituras e crer, ensinar e confessar conforme as mesmas, porque
são a clara exposição dos ensinamentos bíblicos! Tal posição de fidelidade
confessional não pode levar-nos a um separatismo imbecil, mas deve impulsionar-
nos amorosamente ao encontro e ao diálogo aberto, franco e fraterno com outros
cristãos e denominações (...). Não podemos assumir compromissos que nos levem
a negar o que cremos e confessamos, mas também não temos o direito de pensar
que somos os únicos que conhecem toda a verdade.
26
A IELB era ainda uma igreja confessional? Sim. Seu Confessionalismo era o mesmo
dos tempos de Kunstmann e de Hasse na I Guerra? Não.
No que conseguimos perceber pelos discursos no Mensageiro, a IELB dos anos 80,
ainda que preocupada com sua confessionalidade, passava a concentrar seus esforços na
evangelização e na expansão de sua atuação pelo território brasileiro, amenizando o espírito
combativo de antes. O Mensageiro, nesse contexto, tornava-se mais um espaço de divulgação
da igreja, de marketing, do que de defesa da pureza doutrinária, como fora na “era Hasse”. Tal
estratégia levava, geralmente, a que se evitasse o conflito doutrinário escancarado e que se
buscasse a apresentação das doutrinas centrais do Luteranismo Confessional não em forma de
debate, mas de modo narrativo.
Não faltariam, todavia, as vozes da ortodoxia tradicional, como a do rev. Eugênio
Dauernheimer, por exemplo, em sua reação à mudança de linha editorial do Mensageiro,
quando este em 1984 passou das mãos de Leopoldo Heimann para as mãos de Nilo Figur e
26
ML, 05/1987, p. 24.
211
Astomiro Romais, ganhando uma forma mais participativa e um tom crítico, teológica e
politicamente.
27
Virou um verdadeiro galiré
Há artigos que me agradam muito no Mensageiro. Exemplos: o “Editorial”, o
“Estudo Bíblico” e outros. Gostaria de cumprimentar a cada um dos que
escrevem, e animá-los em sua tarefa – testemunhar a própria fé e doutrina
confessada para contagiar outros. Por isso, é preciso que todos os colaboradores
sejam de doutrina e fé bíblicas e se apeguem aos conceitos luteranos em escrevê-
las.
Mas tenho também sentido que o Mensageiro está baixando de conteúdo e de
confissão de fé luterana, mesmo quando luteranos escrevem. O nº de abril de 85,
então, virou um verdadeiro galiré – de conteúdo e apresentação. Reportagens que,
miudinhas de conteúdo que edifique, estão cheias de vaidade da “penosa” citada.
E os luteranos se escondendo qual ela faz, debaixo das pernas (palavras) de
“galos” alheios ao nosso galinheiro confessional, mas que sabem dizer com
orgulho bem macho suas idéias.
28
As forças de resistência ortodoxa estavam lá bem presentes, com os traços de um
biblicismo fundamentalista semelhante ao dos anos 20. A doutrina luterana confessional,
nessa ótica, precisava ser preservada e os pastores e leigos seriam constantemente lembrados
disso, tanto em suas práticas discursivas, quanto em seus esforços missionários, mesmo que
isso representasse a atitude de “remar contra a maré”, como afirmara Heimann: “adotar e
praticar o ‘não adianta remar contra a maré’ como princípio, é sinônimo de pessimismo, de
comodismo, de conformismo. É sinônimo de fraqueza, de medo, de covardia. É sinônimo de
fuga, de desânimo, de desespero. É rendição. É depor as armas.” Para o pastor, Isaías,
Jeremias, Daniel, Paulo, Lutero e milhares de cristãos, a exemplo de Jesus, haviam remado
contra a maré. A IELB era, assim, agraciada e privilegiada por receber a incumbência de
também remar contra a maré. The orthodoxy must go on…
29
Havia, além disso, o
encorajamento de Cristo: “Eu vos enviei ao mundo; não se turbe o vosso coração; mas tende
bom ânimo, eu venci o mundo”. Mesmo estando em minoria, “nestes tempos já do fim,
ridicularizados, zombados e criticados, estamos entre os ‘sete mil que não dobraram seus
27
Nascido em 1933, em Erechim, RS, Leopoldo Heimann formou-se em teologia em Porto Alegre e foi pastor
em Ponta Grossa, PR, e Porto Alegre. Desde 1973 era o Secretário de Publicações Periódicas da IELB e desde
1966 o redator do Mensageiro. Seria ainda, durante os anos 80, professor do Seminário Concórdia e, nos anos
90, presidente da IELB. É atualmente o coordenador do Centro de Teologia da Universidade Luterana do Brasil.
Nilo Figur (1950-), por sua vez, nasceu em Getúlio Vargas, RS, e foi pastor em Cruz Alta após sua formatura em
Porto Alegre em 1975. Os dados de Romais serão apresentados adiante. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da
igreja, p. 314, 331. Tb. memória do autor.
28
ML, 06/1985, cartas do leitor. Dauernheimer é natural de Arroio do Meio, RS (1933), e formou-se pelo
Seminário Concórdia em 1957. Foi pastor em diversas localidades no RS. Carlos H. WARTH, Crônicas da
igreja, p. 310.
29
Arnaldo Érico HUFF JÚNIOR, The orthodoxy must go on…, official discourses and political identities among
confessional German Lutherans in Brazil, passim.
212
joelhos a Baal’”. Mais do que nunca, para Heimann, era necessário manter a convicção e a
coragem, a sabedoria, a sensatez, a fé, a confiança ao remar contra a maré, “sabendo que com
Deus sempre estamos na maioria e que em Cristo somos mais que vencedores!
30
4. Um afã evangelístico
O título de uma entrevista com o Dr. E. Wescott Jr., secretário executivo do
Conselho para Serviços Missionários da LC-MS, propalava, em 1982: “A igreja só tem uma
razão para existir: Pregar o Evangelho”. Os números apresentados pelo pastor demonstravam
que havia 70 milhões de luteranos no mundo, a maioria pertencente a igrejas estatais. Nos
EUA, a LC-MS era numericamente o segundo grupo, atuando em 28 países.
31
A expectativa
missouriana em relação ao Brasil aclarava-se na resposta de Wescott à pergunta “como a LC-
MS vê a IELB?”: “como instrumento de Cristo, trazendo seu evangelho para todo o povo de
todo o Brasil, e sente-se feliz com o status de igreja associada da IELB”.
32
Como conselho,
orientava: “que vocês tenham uma contínua preocupação em sair em ação missionária para
todo o Brasil” e também para a América Latina. Para Wescott, parte da motivação era que a
IELB tinha “sólida base doutrinária para compartilhar” e um também “sólido treinamento de
ministros”.
33
Naquela época, conforme o redator do Mensageiro, Leopoldo Heimann, crescia o
fervor missionário da igreja nos EUA. Explanava Heimann que, entre o final da década de 50
e o início da década de 70, a LC-MS concentrara sua atenção sobre si mesma, debatendo-se
com uma série de problemas teológicos. Vencidas estas dificuldades internas, a igreja passara,
então, “a viver novo espírito de interesse pela atividade missionária”, também em favor do
Brasil. Nesse contexto, na 47
a
Convenção Nacional do grupo brasileiro, em 1980, após 75
anos de atividades, a IELB e a LC-MS haviam firmado protocolo no qual era concedida a
independência administrativa aos brasileiros, passando a IELB a ser considerada como “igreja
irmã”. Para Heimann, apesar de muitos pensarem que a independência administrativa podesse
trazer um esfriamento ou um distanciamento entre a IELB e a LC-MS, era exatamente o
contrário o que acontecia: o intercâmbio aumentara e os luteranos da LC-MS demonstravam-
30
ML, 01-02/1984, p. 3 [grifos no original].
31
Cf. dados da Evangelical Lutheran Church in America (ELCA, página na internet), em 1996 existiam
60.978.623 luteranos no mundo, sendo 8.589.366 na América do Norte. O Sínodo de Missouri, por sua vez,
contava em 2004 com 2.463.747 membros batizados, sendo 1.880.213 os que fizeram sua confirmação (cf. LC-
MS, página na internet).
32
ML, 03-04/1982, p. 7-8 [grifos no original].
33
ML, 04/1980, p. 6.
213
se “cada vez mais interessados e dispostos a enviar suas ofertas em favor das missões da
IELB”.
34
O presidente da IELB, Johannes Gedrat, que havia estado presente na 54
a
convenção
do Sínodo de Missouri, em 1981, obtivera de lá impressões de que a igreja brasileira era vista
com carinho e respeito pelos estadunidenses, que “vibravam” com os “progressos
missionários, estatísticos, financeiros” dos brasileiros. Para Gedrat, a percepção da LC-MS
em relação ao Brasil era essa: “um lugar onde vale a pena investir na missão, na educação, na
mordomia, no evangelismo e no serviço social, em virtude das evidentes bênçãos que Deus
derramou sobre as nossas atividades até aqui”.
35
Após a independência administrativa, contudo, a influência estadunidense
continuaria a fluir tanto em termos materiais quanto em termos teológico-religiosos. Ademais,
“valia a pena investir no Brasil”. De fato, um clima de expansionismo missionário, bem ao
modo estadunidense, tomou conta das mentes e dos corações dos ielbianos nos anos 80. A
igreja precisava crescer, numericamente, e isso era uma tarefa da igreja toda, jovens e adultos,
homens e mulheres, leigos e pastores.
Conforme o Dr. O. Hintze, secretário executivo de Serviços Missionários para a
América Latina da LC-MS, o “número de almas sob responsabilidade da LC-MS” na América
Latina era, na época, de 1200 no México; 2000 em El Salvador; 2000 na Guatemala; 50 em
Honduras; 2000 no Panamá; 830 na Venezuela; 178.000 no Brasil; 27.500 na Argentina; 300
no Uruguai; e 350 no Chile. Nesse contexto, a expectativa dos líderes luteranos dos Estados
Unidos em relação ao Brasil, sua missão numericamente mais expressiva, ficava explicada da
seguinte forma: “todo homem, ao assumir um empreendimento, gosta de ver progresso. (...) os
norte-americanos vêem o Brasil como igreja crescente. E qual é o desejo deles que não o
crescimento do reino de Deus?” Segundo Hintze, os missourianos oravam e ofertavam “a fim
de que o reino de Deus se expanda o mais rápido possível e assim o mundo seja atingido pelo
evangelho salvador”.
36
Afirmava, por fim, sua admiração pelo crescimento da IELB,
sublinhando qual era, em sua opinião, a maior responsabilidade da igreja, “a obra que Cristo
nos confiou: a missão, o evangelizar o mundo. Esta é a razão da existência da igreja”.
37
O alvo principal da igreja, para a maior parte dos dirigentes no Brasil e nos EUA,
continuava sendo, assim, a pregação da Palavra para a salvação das almas perdidas, o que
demonstrava também o cartaz do mencionado lema da IELB para os anos de 1981 e 1982.
34
ML, 11/1981, p. 4.
35
Idem, p. 5.
36
ML, 03-04/1982, p. 10.
37
Idem, p. 11.
214
(ML, 11/1981)
Jesus Cristo, o senhor do mundo, através do Mensageiro, em diversos idiomas:
imagem forte e representativa da campanha cultural embandeirada pela liderança da IELB e
da LC-MS. De fato, diversos setores da igreja se envolveram em um processo de
conscientização acerca da importância da evangelização na vida da igreja, entendida quase
que estritamente como anúncio, oral ou escrito, da mensagem da salvação em Jesus Cristo.
Departamentos de jovens, de senhoras, de leigos e pastores engajavam-se na campanha do
anúncio das boas novas. “(...) Retiremos da palavra de Deus a força necessária para a lida
diária e falemos de Cristo. O trabalho não será em vão!”, dizia o futuro pastor Gerson Linden,
pelo conselho geral da JELB.
38
Missão através da música, missão entre surdos, missões pelo Brasil. A missão era a
tônica na IELB do início dos anos 80. Um convidativo cartaz espalhado pelas comunidades ao
redor do país dizia “Anuncie boas novas – torne-se pastor”. E eram à época já três instituições
de formação teológica: o Seminário Concórdia de Porto Alegre, o Instituto Concórdia de São
Leopoldo e o Instituto Concórdia de São Paulo. O Seminário Concórdia contava em 1982 com
156 matrículas, ao passo que outros 235 alunos se preparavam no curso pré-teológico de São
Leopoldo. No Instituto Concórdia São Paulo, por sua vez, conforme decisão da 48
a
Convenção, preparava-se a abertura do segundo seminário da IELB, justamente com o
objetivo de preparar pastores com um espírito mais missionário.
39
38
ML, 02/1982, p. 22. Linden formou-se pelo Seminário Concórdia em 1984 e obteve seu mestrado em teologia
pelo Concordia Seminary, de Saint Louis, em 1993. É o atual reitor do Seminário Concórdia de São Leopoldo e
professor na ULBRA. Doutorando em teologia pelo convênio Concordia Seminary/ULBRA. Cf. CV Lattes.
39
ML, 06/1982, p. 25-28.
215
Ao mesmo tempo, uma série de matérias vinha sendo publicada no Mensageiro
contando histórias da “Nossa Igreja no Rio Grande do Sul”, “... em Santa Catarina”, “... no
Paraná”, passando por todo o Brasil e chegando até a “Nossa Igreja no Pará” ou “... em
Roraima”. Construía-se um clima de crescimento e uma identidade de igreja nacional.
Publicavam-se livros, transmitiam-se programas de rádio e televisão, promoviam-se encontros
com vistas à formação de obreiros, desenvolviam-se atividades de assistência social. Contava-
se, para isso, é claro, com os investimentos estadunidenses.
Em 1983, uma significativa movimentação aconteceu entre os luteranos ao redor do
mundo em função dos 500 anos de Lutero. Nesse contexto, ainda em janeiro, eram aclarados
os objetivos e as metas da IELB para aquele ano comemorativo:
Objetivos
1 - Conhecer a obra que Deus realizou na igreja através de Lutero
2 - Analisar a história da igreja de ontem e hoje
3 - Examinar a Palavra de Deus exposta nos escritos de Lutero e nas Confissões
Luteranas
4 - Mostrar a urgência de a igreja cumprir a ordem evangelizadora de Cristo
5 - Sublinhar a importância de cada um investir dons, talentos e vocações no reino
de Deus
6 - Orientar o justificado pela fé na prática da mordomia cristã da oferta
7 - Buscar a participação de leigos, professores e pastores na dinâmica
administrativa e missionária da igreja
8 - Aperfeiçoar meios e estratégias para levar o evangelho de Cristo a todos
brasileiros
9 - Prioridade nas áreas de missão, educação, ensino, assistência social, finanças e
comunicação
10 - Agradecer ao Senhor da igreja pelas bênçãos recebidas
Metas
1 - Devoções Domésticas em todas famílias
2 - Com todos em todos templos, todos os domingos
3 - Estudos bíblicos em todas congregações
4 - Ensino religioso em todas escolas
5 - Todos obreiros no Concílio Nacional da Igreja
6 - Todas congregações formando equipes de líderes
7 - Todos trazendo oferta especial em favor do projeto Obras de Lutero em
Português
8 - Todos jovens, senhoras e leigos participando dos congressos nacionais
9 - Bibliotecas em todas paróquias
10 - Mensageiro Luterano em todos lares
40
Buscava-se, assim, uma participação total, com concentração também total na
educação para a evangelização: a propagação do evangelho puro e corretamente interpretado
conforme a herança de Lutero. Finanças e meios de comunicação deveriam se prestar como
40
ML, 01-02/1983, capa.
216
auxiliadores nesse processo. O editor Leopoldo Heimann já anunciara suas esperanças ao final
do ano anterior: “Acreditamos que, a partir de 1983, surgirá uma nova era para o Luteranismo
brasileiro. Acreditamos que, a partir de 1983, os cristãos da Igreja Evangélica Luterana do
Brasil, mais do que nunca, saberão agradecer a Deus pela graça e bênção de serem
luteranos”.
41
Ponto alto, durante as comemorações do ano de 1983, foi o lançamento do Selo do
5° Centenário, segundo Heimann, “um monumento dinâmico” que deveria “voar para todos
os cantos do Brasil e do mundo e levar a todos os pecadores a mensagem central do
Cristianismo, a qual a Igreja Luterana, pela graça de Deus, crê, ensina e confessa: O justo
viverá por fé”.
42
A nova era luterana tinha também seu simulacro, Lutero.
(Disponível em: <www.oselo.com.br/loja/images/C1312.JPG>.
Acesso em: 17/08/2005)
Já no ano anterior, em um anúncio publicado no Mensageiro divulgando a venda do
quadro com a imagem que constaria no selo (de autoria de Franz Tscherzovsky), afirmava-se:
“É uma das mais belas gravuras de Lutero. O Reformador aparece com a expressão de um
homem consagrado a Deus, uma das mãos sobre o coração e a outra segurando a Bíblia (...):
‘Não morrerei; antes virei, e contarei as obras do Senhor’”.
43
Era, assim, o mesmo velho,
intrépido e fiel Lutero. Todavia, também então interessado em missão.
O selo, uma iniciativa dos líderes da IELB junto à Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos (EBCT), teve seu lançamento em solenidade oficial na qual se fizeram presentes
tanto autoridades civis, quanto religiosas, entre estas, ressalte-se, o rev. Augusto Kunert,
presidente da IECLB, a outrora “igreja unida alemã”. A solenidade aconteceu em São
Leopoldo no dia 18 de abril, o mesmo dia em que, 462 anos antes, Lutero comparecera diante
41
ML, 12/1982, p. 3.
42
ML, 06/1983, p. 6.
43
ML, 11/1982, p. 19.
217
da Dieta de Worms, num episódio arquetípico sempre rememorado na IELB, ocasião em que,
em reação à solicitação de que se retratasse, o monge dissera aos líderes reunidos da igreja e
do império: “Sim, estes livros são meus; eu os escrevi, e escrevi ainda outros. A menos que
me convençam, pelas Escrituras ou por razões claras, de que estou errado, eu permaneço
constrangido pelas Escrituras. Não posso me retratar. Deus me ajude. Amém”.
44
Passados
quinhentos anos, era então a vez da IELB representar a coragem do reformador em terras
brasileiras. Solenidades semelhantes aconteceram simultaneamente em Pelotas e Goiânia.
As tratativas entre a IELB e a EBCT haviam se iniciado em janeiro de 1980 e, para
Heimann, a execução do projeto demonstrara “perfeita coordenação entre as duas grandes
ordens - Igreja e Estado - cada uma em seu lugar e com sua parcela”.
45
O editor se valia então
novamente da doutrina dos dois reinos, numa interpretação curiosa, uma vez que, nesse caso,
a igreja utilizara o aparato estatal para divulgação de sua mensagem. De fato, inclusive o
programa de lançamento do selo incluíra uma solenidade cívico-religiosa, com abertura em
nome do Deus Triúno, formação da mesa de honra, saudação dos presidentes da IELB e da
IECLB, do diretor regional da ECT e do presidente da comissão Lutero 500 anos, obliteração
do selo, apresentação coral, recepção e exposições de selos e sobre Lutero.
Na ocasião, pronunciou-se o presidente Gedrat:
Para nós, luteranos, não é preciso explicar quem é, e o que é o Dr. Martinho
Lutero. Assim não ocorre, no entanto, com 99% dos brasileiros. Para a grande
maioria destes 99% de brasileiros Lutero era, no máximo, um nome que já se
ouviu, ou então alguém de quem jamais ouviram falar. (...) Este selo não apenas
deverá levar o nome do Brasil e de Lutero, mas deverá ser um testemunho vivo
daquilo que Lutero descobriu como a coisa mais preciosa para ele e como a coisa
mais preciosa para nós: de que o homem é salvo pela graça, de Deus mediante a fé
em Cristo Jesus, o qual morreu para nos redimir do pecado, e ressuscitou para
nossa justificação. Tudo isto vai expresso no lema significativo, tirado das
Escrituras Sagradas, e que é o lema da nossa igreja e dos festejos do 5° centenário
de Lutero: “O justo viverá por fé”.
46
Quanto à relação de Lutero com a missão, era corrente a idéia de que o reformador
não se ocupara suficientemente com o tema. Daí a necessidade de o pastor Geraldo Stanke,
Secretário de Missão da IELB, sair em sua defesa. Conforme o pastor, Lutero “estava
totalmente integrado e envolto numa mentalidade missionária”. Em sua ótica, para o
44
Dentre outras tantas vezes, o episódio foi rememorado no ML, 01-02/1983. Publicou-se lá, entre as páginas 11
e 61, parte do livro “Luther, servant of God”, de Victor Paulos, editado originalmente pela Concordia
Publishing House. Os trechos foram traduzidos por Francisco Simões, membro da comunidade da IELB de
Maceió. ML, 06/1983, p. 3; ML, 07/1983, p. 29-30.
45
ML, 06/1983, p. 3.
46
Idem, p. 7-8.
218
reformador, a missão não era uma imposição à igreja, por isso não era necessário “badalá-la”.
A missão pertencia à própria natureza da igreja: “é tão natural à ela como as uvas aos ramos
que habitam na vinha. Havendo conhecimento adequado dos objetivos e funções da igreja,
não há necessidade maior de se falar em missão”.
47
E justificava sua posição citando alguns
escritos de Lutero.
Se, por um lado, é claro que as idéias acerca de missão e missiologia podiam variar
enormemente entre Lutero e o Luteranismo no Brasil, por outro, é também certo que nem por
isso os luteranos abdicariam de encontrar no reformador o espírito que imprimiam em suas
próprias práticas, como o selo e as investidas missionárias.
Havia, entretanto, também no terreno do expansionismo missionário ielbiano dos
anos 80, algumas novas colorações. No intuito de “alcançar o Brasil”, era preciso abrir mão
de algumas coisas, de alguns tradicionais modos de ser luterano-ielbiano, bem como buscar
novos meios a fim de que a mensagem chegasse com mais eficiência a seu destino. No
contexto de tais trocas, nas diferentes conjunturas, novas percepções das estruturas iam,
assim, sendo geradas.
A situação foi diagnosticada também pelo presidente do sínodo nos EUA, Dr. Ralph
Bohlmann. O pastor dizia, primeiramente, valorizar a amizade calorosa dos brasileiros e
também aquilo que nos EUA chamavam de “espírito pioneiro”, ou seja, “pessoas que olham o
futuro com otimismo, que percebem que há neste País muito a fazer e explorar”. E temos
novamente a correlação com uma figura do imaginário estadunidense: o intrépido pioneiro a
desbravar o desconhecido trazendo civilização. Além disso, o pastor notava, “ao lado do jeito
amistoso e do espírito pioneiro”, um “interessante” desejo “de progredir, avançar, querer fazer
do Brasil um País melhor”,
48
e festejava o fato de que a IELB estava se tornando uma igreja
brasileira, com equilíbrio entre a preocupação com a doutrina e o empenho missionário,
assumindo, porém, que para que houvesse sucesso algumas mudanças seriam necessárias.
O que está acontecendo no Norte - Nordeste é muito importante. Significa que a
IELB está gradualmente tornando-se uma igreja do Brasil, não somente uma
igreja alemã, importada, “imigrada”. A situação é muito semelhante à nossa igreja
nos EUA. No século XIX e parte do século XX nós éramos uma igreja alemã, sem
identidade própria. Hoje somos uma igreja norte-americana. Às vezes isso requer
uma série de ajustes. Isto as pessoas mais velhas ou gerações mais antigas acham
difícil de entender, encontrando dificuldades em tomar consciência que quando
nos tornamos uma igreja nativa, local, a liturgia, os hinos, as formas de adoração,
47
ML, 12/1982, p. 7. Stanke, formado pelo Seminário Concórdia (1965), é natural de Itá, RS (1940), e atuou em
Recife e no Rio de Janeiro. É atualmente pastor cedido pela IELB à Igreja Reformada no Brasil. Carlos H.
WARTH, Crônicas da igreja, p. 320 e memória do autor.
48
ML, 03/1984, p. 24.
219
o modo de falar deve muitas vezes mudar, adaptar-se à realidade local para
realmente refletir e atingir aquelas pessoas que estão ali assistindo ao culto. A
igreja de vocês, parece, está agindo neste sentido e nos alegramos com isso.
49
E temos aí um interessante jogo de construção identitária. Conforme o pastor, sua
igreja antes não tinha identidade própria. Afirmação curiosa vinda do presidente de um grupo
que desde suas mais tenras raízes buscou construir uma identidade confessional clara.
Bohlmann, porém, fazia referência então não a identidades religiosas, mas nacionais e étnicas.
Talvez o sentimento que estava por detrás das afirmações era o de que a LC-MS, como a
IELB, havia sido etnicamente germânica “demais”, e que naquele pretendia-se uma igreja
local. A vontade que norteava a construção identitária de então era a de se tornar uma igreja
estadunidense ou brasileira para melhor poder predicar o evangelho.
Era preciso mudar para crescer. A já mencionada “musijelb” era exemplo de tais
tendências. Todavia, no contexto das iniciativas missionárias que agregaram novas cores ao
repertório ielbiano, o englobar do campo da assistência social como parte da missão da igreja
foi, a meu ver, a mais significativa transformação.
Criado em janeiro de 1978, na 46
a
Convenção Nacional da IELB, o Departamento de
Assistência Social era o mais jovem dentre os demais departamentos (de missão, de educação
paroquial, de ensino, de finanças e de comunicação). Para o pastor Bruno Rieth, secretário
executivo do Departamento, o ministério social era parte da missão da igreja.
50
Conforme o
pastor, numa leitura fielmente confessionalista, Deus criara o mundo bom mas o pecado
introduzira a destruição nessa criação perfeita. A mais terrível conseqüência de tal destruição
era a “separação do Pai”, somando-se a ela, “a doença, a dor, a luta pela sobrevivência, a
pobreza, a miséria, a inimizade, a guerra, as calamidades, o luto e, finalmente, a morte”.
Jesus, porém, vencera esse pecado. Sua própria vida fora “uma luta contra o pecado e suas
conseqüências. Uma luta a favor do homem, sua alma, seu corpo, sua vida como indivíduo, na
família e na sociedade”. Sendo assim, a missão de “fazer discípulos em todas as nações” era
apenas uma parte de uma missão maior. “Ortodoxia se comprova na prática”, assertava Rieth,
“o ensino, a teologia, a religião do Senhor Jesus não é uma coleção de preceitos teóricos”. E
citava, então, o evangelho de Mateus: “Porque tive fome e me destes de comer; (...) estava nu
49
ML, 03/1984, p. 24.
50
Bruno Rieth nasceu em São Leopoldo, RS, em 1937, e formou-se no Seminário Concórdia em 1959. Foi
pastor em Cerro Branco, Porto Alegre e Esteio, RS. Secretário de educação e de assistência social da IELB.
Coordena atualmente uma entidade social em Esteio. Graduado também em Sociologia. Cf. Carlos H. WARTH,
Crônicas da igreja, p. 313 e memória do autor.
220
e me vestistes; (...) Em verdade vos afirmo que sempre que o fizestes a um destes meus
pequeninos irmãos, a mim o fizestes”.
51
Prosseguia:
O ministério social faz parte da missão da igreja. Creio que estas recomendações
da palavra de Deus que brotam do próprio centro da teologia cristã luterana – a
doação e o sacrifício do Filho de Deus pelos pecadores – mostram suficientemente
que o serviço, ou ministério social, pertence à missão de cada discípulo do
Senhor, de cada congregação e da igreja cristã. Nossa missão é demonstrar o amor
de Deus em Cristo Jesus a todos os pecadores. Isto nós fazemos testemunhando e
agindo, por palavras e obras.
52
A problemática situação social brasileira passava, assim, a refletir-se nas
preocupações da liderança da IELB. Aos poucos, alguns encontrariam significados dentro do
próprio repertório luterano confessional para uma tomada de posição da igreja também em
meio ao mundo social e político. Uma “ortodoxia se comprova na prática”. A palavra de Deus
tinha também algo a dizer e consolo a trazer àqueles que sofriam neste mundo, mais
especificamente no Brasil, transcendendo-se, assim, a percepção prévia de que a tarefa da
igreja era somente a de salvar as almas. O corpo passava também a ter importância, para Deus
e para os líderes ielbianos. Como bem denota a imagem abaixo, sobre “a compaixão de
Jesus”:
(ML, 09/1983, p. 23)
De fato a IELB já possuía algumas instituições de Assistência Social, principalmente
no Rio Grande do Sul, como o Lar Ebenézer, destinado ao atendimento de idosos, em
Gravataí; a Escola Especial Concórdia, voltada para a educação de surdos, em Porto Alegre;
e, o mais antigo deles, o Instituto Santíssima Trindade, em Gramado, destinado ao abrigo de
51
ML, 09/1982, p. 17-18.
52
Idem, p. 18 [grifo no original].
221
órfãos e idosos. A própria existência dessas instituições, bem como os projetos de criação de
outras com finalidades semelhantes, apresentava a possibilidade dessa variação de teologia e
discurso. Eram, afinal, instituições da IELB, nas quais atuavam pastores e líderes leigos
vinculados ao grupo.
Um dos pontos altos desse esforço assistencial foi a abertura de uma série de Centros
Integrados de Missão, os CIMs, principalmente no norte, nordeste e oeste do Brasil. A idéia
era de realizar uma “missão integral”, “um ministério o mais abrangente e completo possível,
evangelizando, educando e servindo”.
53
A partir destas iniciativas, a IELB passava então a ter
também contato e a estabelecer acordos com instituições nacionais e internacionais e com o
poder público, principalmente em nível local. Em 1984, estavam sendo desenvolvidas
atividades desse tipo em Belém, Tomé-Açu, Paragominas e Marabá, no Pará; Imperatriz,
Paulistão e São Luís, no Maranhão; em Campina Grande, na Paraíba; e em Anastácio,
Aquidauana e Dourados, no Mato Grosso do Sul.
CIM de Tomé-Açu (ML, 05/1982, p. 10) O pastor Rieth (à esq.) e o Prefeito de Paragominas (à
dir.) autorizando a escolha de um quarteirão (ML, 05/1982, p. 11)
No contexto de tais iniciativas, bem como nos desenvolvimentos de tais parcerias e
interações, o Brasil dos anos 80 também passava a incidir sobre a IELB. Nos entremeios
desses processos, questões relacionadas diretamente ao universo político se fariam presentes
nas identidades e discursos em disputa no grupo.
53
ML, 09/1982, p. 23.
222
5. Luteranos, sim, mas também cidadãos
“Vivemos num país maravilhoso. Devemos ser gratos a Deus por isso”, dizia o
pastor Lindolfo Pieper, de São Gabriel da Palha, ES. Perguntava ao mesmo tempo, porém,
como podia “um país tão rico, tão maravilhoso e tão grande ter tantos problemas?”
54
Tal questionamento poderia certamente ser compartilhado pela maioria dos pastores
e dos membros da IELB, bem como pela esmagadora maioria dos brasileiros que sentiam na
pele os problemas nacionais. Todavia, é claro, as respostas a tal questionamento e as
propostas de solução poderiam variar também enormemente. Uma das conseqüências desse
tipo de preocupação foi o surgimento de discussões acerca das relações entre política e igreja,
desde as quais poderemos observar também as mais claras transformações na visão acerca do
lugar da igreja na sociedade compartilhada por parte da liderança da IELB.
A pequena história contada pelo pastor Horst Kuchenbecker, secretário executivo de
educação paroquial, sobre o tema “leigos, política e missão”, é exemplar. Ocorrera, conforme
o pastor, uma reunião sobre o tema “o cristão e a política”, a qual fora iniciada com uma
meditação feita por um
leigo que, à base do texto bíblico de Romanos 13, abordara o tema “a
autoridade como instituição divina”. Após oração e hino, o
pastor, então, passara a uma
pequena explanação introdutória. Demonstrara que Deus havia instituído a autoridade, mas
não determinado a forma de governo, e que, por isso, a pessoa que retivesse o poder deveria
ser respeitada, não importando a forma pela qual houvesse se apossado do poder. Abordara
então as diferentes formas de governo: monarquias, democracias, etc., e demonstrara que um
bom governo não dependia, em primeiro lugar, da forma de governo, mas de as autoridades,
assim como o povo, serem tementes a Deus, afinal, tanto em governos absolutistas, como em
democracias, a história registrava bênçãos e maldições. Todavia, uma democracia na qual o
povo escolhesse suas autoridades, seria sem dúvida uma das formas mais adequadas de
governo. Pontuara, então, o pastor, prosseguia a história de Kuchenbecker, que a democracia
havia tido seu auge nos países cristãos, mas que, com a perda de influência do Cristianismo e
o desaparecimento do temor a Deus, a democracia estava então em perigo. Era, por isso, dever
do cristão: “cumprir fielmente com o compromisso de ser sal e luz da terra, anunciando aos
homens a vontade de Deus”.
55
54
ML, 09/1986, p. 12-14. Pieper formou-se pelo Seminário Concórdia em 1976 e é atualmente pastor em Jarú,
Rondônia. Cf. IELB, página na internet.
55
ML, 10/1982, p. 13-14.
223
Seguiu Kuchenbecker, então, com uma série de perguntas e respostas, cujo conteúdo
remetia a interpretações dos ensinamentos de Lutero. Assim, por exemplo, à questão sobre se
o cristão podia ou não se candidatar a um cargo político, respondeu o pastor: “Mesmo tendo
Deus nos chamado para fora do mundo, ele nos envia ao mundo para nele sermos sal e luz da
terra, e isso em todos os setores da vida. (...) Assim, cabe ao cristão participar também na vida
política”.
Em seguida, sua resposta à questão sobre se os cristãos deveriam ou não se unir,
votar em pessoas cristãs e lutar contra o desarmamento era taxativa:
Não! A igreja não é um partido político. Igreja e Estado estão separados quanto a
seus objetivos e funções. Quanto às campanhas em favor do desarmamento, é
necessário ter cuidado (...) porque Deus entregou a espada ao governo, tanto para
punir os malfeitores, como para defesa contra inimigos. Por isso, quando vemos
nossa liberdade ameaçada, lançamos mãos às armas, por mais que amemos a paz.
Cumprimos assim nosso dever com a pátria. E por vivermos num mundo cheio de
injustiças, cabe a cada governo armar-se.
56
Estava, assim, pautada a versão historicamente tradicional do Luteranismo acerca da
política. Primeiro, a participação política se localiza na esfera da ação individual, não da
igreja. Segundo, o cristão enquanto indivíduo deve colaborar para manter a ordem social.
Kuchenbecker desenvolvia seu argumento no mesmo tom com que Lutero e Melanchthon, no
contexto do Confessionalismo territorial e de todas as batalhas da Reforma do Dezesseis,
haviam afirmado a separação entre os dois reinos, a submissão às autoridades e o direito
instituído por Deus ao uso da “espada” por parte de tais autoridades.
Algum tempo depois, Kuchenbecker reafirmaria sua opção pela manutenção da
ordem em uma curiosa comparação entre Lutero e Marx, por ocasião das comemorações
centenárias dos dois alemães, em 1983. A história contada, desta feita, envolvia o jovem
Fernando em um diálogo com seu professor de sociologia. O professor argumentara que
Lutero fora um revolucionário. Ainda que não houvesse compreendido toda a profundidade
do problema, segundo o docente, Lutero iniciara uma revolução social. Dizia, por isso, o
professor: “todo o bom cristão precisa ser forçosamente um socialista. Os escritos de Marx
deveriam formar o quinto evangelho. Pois não é isso que a religião quer: igualdade e justiça
para todos?” Diante das afirmações, o jovem Fernando então contra-argumentou: ao passo
que “Marx julgou que os homens podem trabalhar e alcançar a felicidade plena aqui na terra”,
uma “utopia defendida até hoje tanto por socialistas como não socialistas (...), [mesmo sob o
56
ML, 10/1982, p. 13-14.
224
preço do] sacrifício da liberdade individual”, Lutero, que não era um revolucionário, “ao
pregar suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg não convidou os homens à rebelião, mas
a discutir aberta e francamente os ensinos da igreja”. Conforme o estudante, a luta do
reformador consistira antes em “recolocar a palavra de Deus no seu devido lugar na igreja, a
saber, como autoridade máxima” e em mostrar à igreja a sua missão: “anunciar aos homens o
juízo e a salvação de Cristo, e anunciar não pela força, mas pela pregação da palavra de
Deus”.
57
Seguia, então, o argumento final do jovem Fernando:
1. Vivemos num mundo cheio de pecados. (...)
2. É preciso lembrar que toda a autoridade é instituída por Deus e deve ser
obedecida por um dever de consciência, não só por medo do castigo. Por mais
fraco e injusto que seja um governo. Por isso os cristãos, mesmo nos países
comunistas, respeitam a autoridade e não promovem revoluções. É uma bênção de
ver as crianças irem à escola, homens ao trabalho, jovens se amando e
constituindo família. Apesar de muitas injustiças. Pois quebrar a autoridade é
instituir o caos.
3. Precisamos distinguir entre instituições e pessoas. A autoridade é instituída por
Deus. Se uma pessoa usa mal o poder que o cargo lhe confere, se ela oprime e
explora, isso não nos dá o direito de desprezar a autoridade instituída.
4. Devemos distinguir entre coisas principais e secundárias. Por exemplo: o fato
de um governo usar mal os impostos cobrados, não nos dá o direito de subverter a
ordem e sonegar.
5. Mas se a autoridade nos ordena algo que é contra os mandamentos de Deus,
cabe-nos obedecer mais a Deus do que aos homens. Isto não é uma ordem para a
revolução, mas terá, normalmente, como conseqüência, o martírio. Aqui está a
grande virtude do cristianismo: ele não prega a revolução. Ele anuncia a palavra
de Deus e age em amor. “Pois o temor do Senhor é o princípio de toda a
sabedoria” (Pv 1.7).
58
Assim, se tínhamos em Kuchenbecker um convite à participação política, este era no
sentido de uma participação pela ordem. A única possibilidade de sublevação contra a
autoridade, vê-se, dava-se pelo martírio. A tarefa do cristão era obedecer a Deus. Deus, por
sua vez, ordenava que obedecessem à autoridade instituída. Quando esta se afastasse dos
preceitos de Deus, ao cristão caberia não a revolução, mas o testemunho da pregação e o
martírio, a partir da conhecida (e frágil) diferenciação entre obedecer a Deus e aos homens
tendo como base os mandamentos de Deus.
59
Há alguma diferença destas proposições em relação àquela de Kunstmann na I
Guerra, quando sustentava que Luteranismo não tinha nada que ver com política,
Kultur, ou
quaisquer assuntos “deste mundo”? Ou em relação às opiniões de Walther sobre o assunto no
57
ML, 05/1983, p. 20-21.
58
Idem, p. 20-21.
59
O que, por exemplo, escolher: não matar ou obedecer pai e mãe? Mandamentos estes que estariam imbricados
em situações de tortura exercida por autoridades, como no caso do regime militar brasileiro.
225
Dezenove? Sim, há. Porque, de um modo ou de outro, anteriormente a questão política estava
ou fora do universo de discussão ou ganhava importância mínima, realidade que, nos anos 80,
estava transformada no Brasil. A participação política do cristão passava a ser um dos focos
centrais das atenções.
60
Vejamos novamente o pronunciamento de Gedrat que citamos na
epígrafe da introdução a este trabalho, agora em seu contexto:
Enquanto vivem neste mundo, os cristãos não podem afastar-se do contexto sócio-
político em que Deus os colocou e têm a tarefa sagrada importante de atuarem
social e politicamente para melhorar o mundo em que vivemos, para colaborar
com os seus semelhantes no tornar mais agradável a vida nesta terra. Não há como
fugir da responsabilidade que temos de cooperar com as autoridades constituídas
[para um] governo mais justo e mais agradável a Deus. Isto ocorre quando
apoiamos as boas iniciativas e quando criticamos o que não é feito conforme o
desejo do Senhor supremo. Nós temos condições de fazer mais em nosso país e no
governo do mesmo como indivíduos cristãos conscientes das atribuições que Deus
relegou aos seus filhos na terra.
61
A tarefa mais importante continuava sendo o anúncio da boa nova da salvação em
Cristo Jesus. Todavia, ficava claro que estava reservado ao cristão um papel não somente
religioso na sociedade. Vê-se, por outro lado, que posições como a de Kuchenbecker, ainda
que representassem o lado mais ortodoxo da ortodoxia, não eram de modo algum o único
discurso oficial, e menos ainda algo com que todos concordassem. Vejamos, por exemplo, o
argumento do pastor presidente da LC-MS, Ralph Bohlmann, em sua resposta à questão sobre
se a igreja deveria ou não se engajar no combate à proliferação das armas nucleares:
A igreja fala somente onde a palavra de Deus fala e somente quando a palavra de
Deus fala. Devemos ser cuidadosos no nosso falar para não dizermos mais nem
menos do que diz a palavra de Deus. Sobre as armas nucleares, sabemos, a Bíblia
não se pronuncia especificamente. Mas a Bíblia fala e admoesta os cristãos a se
preocuparem com a paz. Devemos trabalhar pela paz. Em todos os dias e épocas,
os cristãos devem ser bons cidadãos para ajudarem a sua comunidade, sua nação
e, hoje, e vivendo numa “aldeia global”, ajudar o mundo todo para viver em paz.
Esta é uma tarefa dificílima, porque acarreta muitas coisas, dentre as quais
combater a fome, desfazer a injustiça, lutar contra as causas da guerra, etc. Em
nossos dias as armas nucleares se colocam como questão delicada no que se refere
à paz. Penso que a igreja, como igreja, deve é encorajar os seus membros
individualmente para lutar pela paz, ajudá-los a estarem informados, levá-los a
entender as diferentes opções e conseqüências da proliferação de armas nucleares.
Mas a igreja, como tal, desenvolver estratégias específicas para dizer, por
exemplo, que deve haver um congelamento nuclear neste ano ou no ano que vem,
60
Cf. observação do Professor Luís Dreher, membro da banca desta tese, nessa perspectiva, o próprio sentido do
político era diferente. Homens como Kunstmann e Walther habitavam o mundo das políticas da Igreja Estatal e
do protestantismo cultural alemão (Kulturprotestantismus), ao passo que para Gedrat e seus contemporâneos o
ambiente era o da democracia.
61
ML, 01-02/1984, p. 7-8.
226
ou que devemos adotar o desarmamento unilateral ou algo parecido, não julgo o
mais acertado. Acho que isso torna o problema uma questão de estratégia ao invés
de uma questão de princípios, e a igreja, como eu penso, deveria estar mais
preocupada com princípios do que com estratégias específicas. Tanto ao cristão
que está a favor do congelamento nuclear bem como àquele que está contra, a
ambos deve a igreja pregar a lei e o evangelho, a ambos deve pregar Jesus Cristo
como perdoador dos pecados. É melhor, creio, a igreja ensinar a paz e então,
ajudar os membros individualmente a tomarem decisões responsáveis acerca
destas questões. Quando discordamos, então não discordamos como cristãos;
discordamos como indivíduos.
62
Também para Bohlmann, portanto, a tarefa da igreja era a de pregar o evangelho.
Aos cristãos, por sua vez, que em sua atuação política poderiam divergir, cabia a atenção à
pregação de tal evangelho em sua luta pela paz, fossem ou não a favor das armas nucleares.
Ao mesmo tempo, todavia, perceba-se que a argumentação de Bohlmann não partia do
pressuposto da unanimidade sob a orientação da Palavra, uma vez que em sua perspectiva os
cristãos podiam divergir. Dessa forma, também a Escritura não era tida como a contentora de
todas as respostas sobre qualquer assunto que o ser humano necessite consultá-la: onde cala a
Bíblia, a igreja também cala, dizia Bohlmann. Tal espaço para a divergência era já em si um
dado de diferenciação entre o argumento do estadunidense e argumentos mais conservantistas
como o de Kunchenbecker.
Nesse contexto, crescia a preocupação com o universo político entre os ielbianos de
um modo geral. E isso havia já algum tempo. Torna-se interessante, então, nos voltarmos
novamente à cultura visual acerca de Lutero. Se, por um lado, as figurações continuavam a
mostrar o mesmo homem forte e intrépido, que segurava a Bíblia junto ao peito (como no selo
do 5° centenário), traduzia fielmente as escrituras ou afixava corajosamente suas ‘95 teses’ à
porta da Igreja de Wittenberg (como nos desenhos abaixo); por outro, novos conteúdos
políticos iam sendo projetados sobre essas mesmas antigas imagens.
62
ML, 03/1984, p. 25.
227
(ML, 01-02/1983, p. 50) (ML, 10/1972, p. 7)
Assim, por exemplo, ainda em 1969, no momento em que o Brasil entrava em um
dos períodos mais duros da ditadura militar no contexto do Ato Institucional n° 5 (AI-5),
foram publicadas algumas opiniões de pastores e professores ressaltando diferentes facetas do
reformador: Lutero e a educação; Lutero, o teólogo; Lutero, o reformador; Lutero e a igreja;
Lutero e a Bíblia; Lutero e a música; e Lutero, o pastor. Nessa reveladora matéria, sob o título
“Lutero, este homem de Deus”, podem ser percebidas entre as antigas memórias novas
construções da imagem do monge saxão, especialmente no tangente à educação e à igreja.
Restringir-me-ei a um exemplo das novidades.
O pastor Donaldo Schüler, que além de ensinar no Seminário Concórdia era também
professor da UFRGS e da PUCRS, foi o responsável sobre o tema ‘Lutero e a educação’. Para
o professor, “o interesse central da atividade de Lutero foi o preparo do homem para a
eternidade; mas Lutero não descuidava a vida bem sucedida do homem aqui. Incentivava os
pais a dar aos filhos uma instrução adequada a fim de serem homens úteis à sociedade”. Do
que concluía:
Lutero, nos ideais de educação, foi revolucionário. Na Idade Média o homem
era educado para a igreja, agora esta ênfase está no indivíduo, o homem deveria ser educado
para si mesmo. A educação deveria levar o homem a uma vida individual e responsável”.
63
Como pessoa do meio universitário, versado em cultura e literatura gregas, Schüler
acrescentava à discussão a distinção entre Idade Média e Idade Moderna e conceitos como o
de ‘revolução’ - ainda que o “jovem Fernando” de Kuchenbecker provavelmente dissesse de
63
ML, 10/1969, p. 8. Donaldo Schüler, escritor atualmente renomado e professor do Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da PUCRS, nasceu em Videira, ES, no ano de 1932, e formou-se no Seminário
Concórdia de Porto Alegre em 1955. Foi pastor em Porto Alegre entre 1956 e 1961, professor no Pré-Seminário,
de 1961 a 1968, e no Seminário Concórdia, de 1969 até o final dos anos 80. Licenciado em Letras e Livre
Docente pela PUCRS e pela UFRGS. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 309; tb. cf. Curriculum
Lattes CNPq.
228
novo o contrário. Ao que parece, um certo interesse pela existência terrena com pitadas de
modernidade, antes inexistente ou em ostracismo, começava então a aparecer nas penas dos
escritores ielbianos e em suas memórias do reformador. Havia pouco mais de 20 anos que um
certo número de pastores da IELB passara a ter acesso aos meios universitários externos à
igreja e algumas conseqüências podiam ser sentidas já nos anos 70.
64
A imagem de Lutero sofreria a partir daí alterações recorrentes em seu conteúdo.
Assim foi, por exemplo, a percepção apresentada em outubro de 1985 pelo rev. Werner K.
Wadewitz, então vinculado ao Sínodo de Missouri, mas que havia trabalhado como pastor da
IELB por 20 anos e atuava naquele momento por um breve período como professor visitante
no Seminário Concórdia. Sob o título “Lutero - homem do povo”, escreveu Wadewitz:
“Lutero - homem do povo? Sim, em todo sentido,
do povo, pelo povo, para o povo, para seu
povo também, pois Lutero se sentiu muito cidadão de seu povo, de sua nação, de sua realidade
política”.
65
É curioso notar, por exemplo, que a idéia de nação e nacionalidade de Wadewitz,
derivada do Estado moderno, era estranha a Lutero, homem do Antigo Regime. A pertença
nacional propagada pela sentença acima era, obviamente, uma questão não de Lutero, mas de
Wadewitz e de sua “comunidade imaginada”, como disse Benedict Anderson.
66
Passava-se
assim, em função das questões de então, a imaginar Lutero articulado a novos conteúdos.
Especialmente a partir de 1984, com a mudança na redação do Mensageiro, tais
nuances puderam ser ainda melhor percebidas. Na edição de setembro daquele ano, por
exemplo, o redator-chefe Astomiro Romais, citando Cícero, afirmou que o país era uma nau
na qual todos estavam embarcados, cabendo aos cristãos um papel de mais alta relevância na
condução da mesma. Apontava a indiferença como o maior dos inimigos do homem moderno,
maior que a inflação, a ditadura ou o comunismo, e colocava, então, a seguinte questão: “mas
participar como?” Sua sugestão era de que, primeiramente, dever-se-ia orar pela pátria, pelos
governantes e também para que se fizesse a vontade de Deus; e então
denunciar as injustiças, clamar contra elas (a exemplo dos profetas do Antigo
Testamento), combater o erro e a corrupção e atacar tudo o que fere os princípios
cristãos da honestidade, da dignidade e da justiça.
(...) Devemos, como cidadãos cristãos responsáveis, examinar criteriosamente a
posição de nossos políticos numa perspectiva bíblica e conferir suas ações,
64
De acordo com os dados de Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 280, o primeiro pastor da IELB a
receber um grau acadêmico fora da teologia foi o rev. Otacílio Schüler, formado pelo Seminário Concórdia
(1921), licenciado em farmacologia (1935), bacharel em filosofia (1940) e em jurisprudência (1950).
65
ML, 10/1985, p. 11 [grifo no original]. Wadewitz faleceu em 2002, nos EUA, cf. IELB, página na internet.
66
Benedict ANDERSON, The nation and the origins of national consciousness, p. 43-45.
229
atuação e comportamento. Quando esses representantes não espelham mais o
interesse do povo que os elegeu, devem ser eliminados pela votação e substituídos
por aqueles que têm competência, honradez e fidelidade para com seus
representados.
(...) Devemos, em primeiro lugar, cumprir nossas responsabilidades de cidadãos
do reino espiritual de Deus, sem, contudo, nos esquecer da responsabilidade de
cidadãos cristãos que vivem no reino temporal, buscando, a todo o custo, a paz, a
harmonia, a justiça e o bem-estar de todos nossos concidadãos.
67
Era perceptível a mudança de tom, talvez mesmo de “lado”, como que da situação
para a oposição. O discurso movia-se entre
anúncio do evangelho e a denúncia da injustiça e
do erro. A participação esperada aqui era mais ativa e menos submissa. Também novos
conceitos eram utilizados, como o de “concidadãos”. Ser cristão, para Romais, significava
também ser um cidadão crítico, além de responsável, participativo e atento aos
desenvolvimentos políticos e econômicos. E, perceba-se, Romais não deixava de ser
confessional, e menos ainda luterano.
Vale, por fim, vermos ainda uma entrevista feita por Romais com os professores do
Seminário Concórdia Acir Raymann, Martin Warth e Donaldo Schüler. A entrevista, valiosa
para nossa análise, versou sobre o tema “o cristão no atual momento político”.
68
A primeira
pergunta feita aos professores foi: “como vê o atual momento político (e econômico) do
Brasil?” A resposta de Schüler veio à frente, afirmando que a superação da crise não se daria
sem grandes sacrifícios, com a indigência e a fome de milhões de Brasileiros. Disse o
professor: a “preocupação pelos que sofrem, expressa em palavras e atos, é exigência primária
da ética cristã”. A resposta de Warth, por sua vez, apontou a crise como um estágio no
processo de amadurecimento político e econômico do Brasil, na direção de uma estabilidade e
tranqüilidade que outros países já haviam alcançado. Em suas palavras: “me parecem mais
sinais das dores da juventude que nota seu corpo crescer e não sabe bem o que fazer com ele.
Eu creio no Brasil, apesar de suas fortes dores de juventude”. Raymann, por fim, ressaltando a
situação conturbada, de desorientação e de falta de liderança, tomou um argumento
67
ML, 09/1984, p. 3. Astomiro Romais formou-se em teologia pelo Seminário Concórdia (1980) e em letras
(1983) e jornalismo (1994) pela UFRGS, onde obteve também seu mestrado em comunicação (2001). É
atualmente o coordenador do curso de comunicação social da ULBRA. Foi secretário nacional (1989-1993) e
editor (1983-1994) na IELB. Cf. CV Lattes.
68
Martin Carlos Warth nasceu em Moreira, RS, em 1926, e faleceu em Canoas, RS, em 2004. Formou-se no
Seminário Concórdia em 1949. Foi pastor em São Leopoldo e Porto Alegre. Por várias vezes membro do corpo
diretivo da IELB. Bacharel em Filosofia em 1964. Mestre e doutor em teologia pelo Concordia Seminary, Saint
Louis. Professor no Pré-Seminário, Seminário Concórdia e, após aposentar-se, coordenador de Pós-Graduação
na ULBRA. Acyr Raymann nasceu em 1947, em Imbituva, PR, e formou-se no Seminário Concórdia em 1970 e
nas Faculdades Portoalegrenses em pedagogia em 1974. Foi pastor em Porto Alegre de 1971 a 1973 e é, desde
1974, professor no Seminário Concórdia. Mestre (1974) e doutor (1999) em Teologia pelo Concordia Seminary
de Saint Louis. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 304, 325. Cf. CV Lattes do último.
230
semelhante ao de Warth: “estamos em fase de transição, de mudanças. E as mudanças sempre
são críticas. Contudo, estou certo que chegaremos a uma maturidade política”.
69
Veja-se, assim, que ao passo que a leitura de Schüler era conduzida na direção de
lamentar uma realidade dada e de apresentar a exigência de compaixão em palavras e ações,
as visões de Warth e Raymann concebiam a situação como uma parte passageira de uma
história que se conduzia à própria superação. Eram percepções diferenciadas de um mesmo
problema e compreensões diferentes do devir histórico.
À segunda questão, “como um cristão deve portar-se diante da política? Deve
omitir-se ou tomar parte dela?”, todos responderam de modo positivo, ou seja, o cristão devia
participar. Os motivos para tal participação eram, todavia, também diferentes. Para Schüler,
os deveres dos cidadãos eram “definidos pela Constituição”. Em sua concepção, da
combinação das declarações da introdução da Constituição brasileira, onde se afirmava “O
Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga o seguinte” e “Todo
o poder emana do povo e em seu nome é exercido”, se podia concluir que “Deus governa
através do povo”. Afirmava, por isso, o professor: “como integrante do povo, o cristão tem o
dever sagrado de participar da vida política (...) pelo trabalho, pela manifestação de idéias,
pela crítica, pela vigilância sobre os que governam, pela admoestação, pela oração”. Warth,
por sua vez, entendia que “fazer política sadia é dever do cristão como de qualquer cidadão
desta terra”. Em sua atuação, o cristão, podia ajudar a lembrar “que todo serviço que fazemos
ao próximo e ao país também fazemos, em última análise, a Deus (...), pois o reino é de
Deus”. A ação do cristão é, portanto, testemunho “deste reino de Deus em todos os setores da
vida humana”. Raymann, por fim, fazendo uso da doutrina dos dois reinos de Lutero,
afirmava que “pelo batismo o cristão pertence ao reino espiritual de Deus. E sua função
principal é viver, proclamar e ensinar o Evangelho de Jesus Cristo para a salvação eterna dos
pecadores”. Nada deveria obscurecer este projeto principal. Por outro lado, porém, o cristão
“é também um cidadão, pertencente ao reino temporal de Deus. E como tal ele possui
responsabilidades comuns a outros cidadãos”. Mesmo aí, contudo, as responsabilidades do
cristão “não são responsabilidades de um cidadão comum. Sabedor de que o SENHOR é o
criador e conservador deste mundo, o cristão deve participar consciente e efetivamente da
política de seu País”, primeiramente orando a Deus por ele, mas também “atuando
politicamente dentro do seu grupo, comunidade social ou nação para promover a paz, a
igualdade, o equilíbrio social e a justiça para o bem-estar de todos os seus habitantes”.
70
69
ML, 09/1984, p. 6-8.
70
Idem, p. 6-8.
231
Existe diferença entre os argumentos? Uma diferença sensível. Percebo que Schüler
abordava a questão da atuação política numa perspectiva mais secularizada. Seu ponto de
partida era a própria Constituição. O cristão devia atuar politicamente porque esta era sua
responsabilidade como cidadão, como qualquer outro, como parte do povo, pelo qual Deus
governa. Para Warth e Raymann, de outra forma, o cristão deveria atuar no universo político
porque essa era sua tarefa cristã. Seu ponto de partida era religioso. Todavia, a argumentação
de Raymann revelava uma confluência entre os dois reinos que estivera esquecida
anteriormente nos discursos ielbianos: em sua perspectiva, Deus atuava através dos cristãos
no reino secular, o qual passava por isso também a ser foco de teologia.
A seguinte questão apresentada foi “O que um filho de Deus pode fazer por sua
Pátria?”, à qual responderam endossando as perspectivas anteriores. A análise torna-se
interessante novamente nas respostas dadas à quarta e última questão colocada por Romais
aos professores: “Quando a Bíblia diz que ‘Toda a autoridade procede de Deus’, como o
cristão se porta diante de descalabros, mandos e desmandos, corrupções ‘institucionalizadas’
daqueles que detêm (às vezes à força) o poder?” Das respostas, vale a transcrição mais longa:
SCHÜLER: Como vimos no item 2; no Brasil a autoridade suprema é o povo
brasileiro. Todo o ato praticado por quem quer que seja contra o povo é ato contra
a autoridade procedente de Deus. Quem fere a autoridade do povo deve ser
responsabilizado e punido, desde o Presidente da República até o cidadão bem
modesto. A Constituição, na Seção III, que trata da “Responsabilidade do
Presidente da República” declara crimes de responsabilidade os atos do Presidente
que atentarem contra “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”,
entre outros.
WARTH: Bem, você sabe que descalabros sempre houve onde houve pecadores.
Basta olhar para o tempo de Caim e Abel, ou para a época dos profetas, ou para o
império romano do tempo de Jesus e de Paulo. Como é que reagia Jesus? Embora
aceitasse a autoridade arbitrária de Pilatos, Jesus lhe fez saber que “nenhuma
autoridade teria se não lhe fosse dado de cima”. Ora o que significa isso?
Certamente quer dizer que é necessário distinguir entre autoridade e
arbitrariedades da pessoa que exerce a autoridade. A autoridade evidentemente
vem de Deus, pois é uma delegação de poder que Deus dá às “suas máscaras”,
como diz Lutero. As “máscaras” de Deus são as ordens que Deus instituiu neste
mundo para preservar o mundo do caos. Assim o casamento, a família, a
economia, o governo são “máscaras” de Deus que exercem o poder “em nome de
Deus”, pois esta é a sua maneira de governar o mundo. A mais alta autoridade
entende Lutero, foi dada aos pais. Como não conseguem governar tudo, eles
autorizam outros, como o vizinho, os amigos, o governo, para auxiliarem no
governo e educação dos filhos para a justiça. Logo, o governo como tal é uma
autoridade “que procede de Deus”. O que não procede de Deus são os erros que os
pais, os economistas, o governo fazem. Mas é interessante notar que Jesus, mesmo
diante de um governo não tão perfeito, como o de Roma, ainda reconheceu a
autoridade velada debaixo dos desmandos. Jesus não incitou a qualquer revolta
física, mas iniciou a revolta contra o pecado e o mal dentro do homem. Com o
homem modificado também a sociedade tinha chances de convívio fraterno e
232
pacífico. Parece que nossa atitude deveria ser semelhante à de Jesus, não te
parece?
RAYMANN: Quando a Escritura diz que “toda a autoridade procede de Deus”
não está se referindo a pessoas, mas ao princípio da autoridade em si. A
autoridade, como tal, tem origem em Deus. E quando servimos à autoridade
estamos servindo a Deus. Infelizmente, um dos posicionamentos mais perniciosos
da sociedade moderna é de que as atividades do governo deveriam ser
desvinculadas de qualquer referência a Deus. Para muitos, a separação entre a
Igreja e o Estado veio a significar a separação entre Deus e Estado. E esse
secularismo extremado traz conseqüências trágicas também na área do poder
político. Eventuais abusos e corrupções só poderão ser evitados quando os que
estão no exercício da autoridade atuarem dentro de uma ética cristã. O cristão,
pois, deve servir e obedecer à autoridade. Quando, porém, a autoridade não puder
ser obedecida sem que haja pecado, é melhor obedecer a Deus. Além disso, leis e
práticas injustas bem como abuso e corrupção merecem o nosso veemente
protesto e ao mesmo tempo um empenho árduo e pacífico em busca da justiça e
correção.
71
Vejamos algumas considerações. Primeiramente, conforme os argumentos, Schüler
estaria mais para o universo secular-profano, Raymann e Warth, mais para o universo
religioso-sagrado. Quando, contudo, Raymann fala em favor de um protesto veemente e um
empenho, ainda que pacífico, em busca de justiça, aproxima-se de Schüler, afastando-se de
uma submissão incondicional à autoridade. Talvez a questão realmente central seja que ao
argumentarem a partir de Lutero, Warth e Raymann não contabilizam que o poder que no
século XVI esteve nas mãos do Rei, no século XX estava nas mãos do povo, assegurado pela
Constituição. De uma certa forma, assim, todos os três concebiam a autoridade como
instituída por Deus. Ao localizarem humanamente tal autoridade, porém, divergiam. Sendo
assim, as interpretações dos professores, feitas a partir um mesmo repertório religioso-
teológico, produziram conclusões que iam em sentidos diferentes. Entravam em jogo, por
certo, as opções políticas, teológicas e teóricas dos que se pronunciavam, bem como suas
próprias histórias de vida. Nem por isso, deixavam de ser luteranos. Nem por isso, deixavam
de ser confessionais. Eram diferentes vozes da polifonia ortodoxa. Por outro lado, além da
pertença institucional, compartilhavam também a crença de que o cristão, de uma ou de outra
forma, havia de participar politicamente. Todavia, as diferenciações existentes, relativamente
às visões do lugar da igreja na sociedade, resultariam em também diferentes modos de
perceber as relações entre Igreja e Estado, bem como em diferentes práticas culturais
desenvolvidas no contexto de tais relações.
71
ML, 09/1984, p. 6-8.
233
6. Uma aproximação do poder público
Durante a maior parte do período ditatorial militar, a liderança da IELB, de um
modo geral, posicionou-se a favor do golpe, ou da “Revolução”, como se dizia. A opinião
recorrente era a de que por vezes era necessário o uso da força pelo governante, para que se
mantivesse a ordem. Força essa que lhe era outorgada pelo próprio Deus, conforme o já
referido texto de Romanos 13.
Principalmente no início dos anos 60, a grande preocupação dos líderes da IELB sob
a direção de Hasse era ainda o combate ao Catolicismo e às “falsas mudanças” do Concílio
Vaticano II, o que, segundo Agenor Berger, lhes embaçava a visão em relação à situação
política do país. Os incidentes envolvendo padres católicos e militares, bem como o medo de
que o Comunismo se infiltrasse no país, apenas agravavam a situação.
72
Ao longo dos anos 70, outros inimigos foram sendo qualificados, de forma mais
clara, a IECLB e sua teologia considerada liberal e ecumênica e a própria Teologia da
Libertação. A liderança da IELB, ocupada com tais questões, permanecia afastada dos
assuntos políticos nacionais. Seu apoio aos governantes dava-se principalmente em função da
garantia de liberdade religiosa que estes lhes asseguravam.
73
“O governo sabe que nossa igreja não interfere em política, seja local, nacional ou
internacional”, afirmara o presidente da IELB, pastor Elmer Reimnitz, no início da ditadura.
74
Ademais, consideravam-se como difamadores os “boatos” sobre a tortura e os abusos de
poder por parte dos militares. A tarefa da IELB, nesse contexto, era entendida no sentido de
preparar bons e leais cidadãos através da pregação da Palavra. Igreja e Estado estavam, afinal,
separados e ao último cabia a preservação da paz e da tranqüilidade, da ordem e do progresso.
Os cristãos deveriam, individualmente, ser “obedientes ao governo por Deus instituído e
trabalhar pela grandeza da pátria”, como afirmava o pastor Gustavo Scholze.
75
“Conte
comigo, Presidente”, se posicionava o editor Leopoldo Heimann diante do governo nacional,
72
Agenor BERGER, A postura da Igreja Evangélica Luterana do Brasil frente ao Regime Militar (1964-1985),
p. 109.
73
Idem, p. 110-113.
74
Apud idem, p. 68. Reimnitz era natural de Toropi, RS (1919), e concluiu os estudos de teologia, que iniciara
nos EUA, no Seminário Concórdia em 1942. Fez mestrado nos EUA, foi pastor em algumas localidades no RS e
ocupou diversos cargos na direção da IELB, dentre os quais o de presidente. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas
da igreja, p. 297.
75
ML, 09/1972, p. 13. Scholze foi pastor no PR e no RS. Natural de Linha Silva Jardim, RS (1922), formou-se
pelo Seminário Concórdia em 1947.
234
antes de apresentar a IELB em seu valoroso trabalho de educação e evangelização no preparo
de cidadãos responsáveis.
76
Nos anos seguintes, porém, essa certa inércia política dos líderes da IELB viria a se
transformar. Na década de 80, em meio ao afã evangelístico que delineamos, a liderança
ielbiana passou a apresentar posturas mais ativas, em um percurso de ocupação de um espaço
religioso junto ao poder público. Nessa ótica, também os governantes precisavam ser
evangelizados.
A edição do Mensageiro de outubro de 1980 trazia em sua capa os seguintes dizeres:
“Também falarei dos teus testemunhos na presença dos reis, e não me envergonharei”. Na
foto de capa, o presidente da IELB, Johannes Gedrat, entregava ao presidente do Brasil, João
Batista Figueiredo, o Livro de Concórdia (edição daquele ano, a primeira em língua
portuguesa), os livros “Confissão da esperança” (uma introdução ao Livro de Concórdia) e
“Crônicas da igreja” (uma abordagem da história da IELB), uma edição especial do
Mensageiro Luterano, o livreto “Minha igreja”, a pasta comemorativa dos 75 anos da IELB e
o LP “Celebrai com júbilo”, do Coral Luterano. No encontro, Gedrat esteve acompanhado do
secretário executivo do Departamento de Missão da IELB e professor do Seminário
Concórdia, pastor Walter Steyer, do pastor de Goiânia e de dois militares membros da
comunidade local, um coronel e um major do exército. Os assuntos tratados com Figueiredo
giraram em torno da distinção entre a IELB e a IECLB, “evitando assim que essa confusão
ocorresse”,
77
de dados estatísticos e feitos da igreja, dos problemas das escolas, do salário-
educação e da Lei dos Estrangeiros. Falou-se também da expansão missionária da IELB
principalmente para o norte e nordeste, onde sentia-se uma “mais premente necessidade de
assistência espiritual e material”. Gedrat aclarara ao Presidente que o interesse precípuo da
IELB estava centrado no aspecto espiritual do homem, acrescentando que somente o bom
cristão poderia ser um bom cidadão, mas que a igreja não se esquecia do material, do homem
como um todo: “os luteranos não são desertores do tempo em que vivem e se preocupam com
os irmãos que padecem necessidades”, dizia.
78
Ao comentar a importância da visita ao Presidente nacional, Gedrat afirmou que se
tratava de apresentar oficialmente a IELB à autoridade máxima do país, com entrada
franqueada em toda a imprensa, divulgando a igreja pelo rádio, televisão e jornais em todo o
76
ML, 09/1972, p. 02.
77
A IECLB, à época, estava em rota de colisão com o governo militar (direitos humanos, reforma agrária,
questão indígena, etc). Era, por isso, politicamente estratégico para a IELB dela diferenciar-se. Cf. observação do
Prof. Ricardo Rieth, como membro da banca desta tese. Tb. Rolf SCHÜNEMANN, Do gueto à participação, o
surgimento da consciência sócio-política na IECLB entre 1960 e 1975.
78
ML, 10/1980, p. 4-5.
235
território nacional. E pontuava: “criamos para a igreja um canal de acesso ao Planalto”.
79
Aos
comentários que reproduzia, Astomiro Romais, que à época ainda não era o redator da revista,
acrescentava:
(...) esse encontro se reveste de ampla importância também por outros fatores,
dentre os quais o de sobraçar-se o escudo da fé e erguê-lo à altura do tempo em
que se vive. Parece que aí começou a ficar para trás a época de permanecer de
fora observando, deixando para os outros o peso das escolhas decisivas; começou-
se a deixar de assinar procurações em branco para que outros construíssem a
história, e construíssem, muitas vezes, de maneira errada, desfavorecendo a igreja
e o evangelho. Foi o primeiro passo. É certo que a igreja deva possuir também a
inteligência do momento presente, adotando um comportamento histórico – que
nada tem a ver com certa “atualidade de estilo”, com certo “mundanismo”, com
“evangelho social” ou com “igreja politicante” que pululam no cristianismo atual.
Entendemos que o encontro foi um passo de inserimento vital da igreja no mundo
em que se vive, dando provas de seu testemunho em todas as frentes, numa
demonstração clara do reconhecimento de que uma igreja, além da função básica
de levar Cristo aos corações de todos os homens, é medida também pela
capacidade de comprometer-se com os problemas do próprio tempo, pela
contribuição dada para a solução de tais problemas e pela decifração dos
acontecimentos. (...) Muitos, talvez, nada de extraordinário vejam em tal encontro
(...) Mas para nós, luteranos, ele foi e é significativo ao extremo, porque nos
reporta, de maneira bem real, a um ponto longínquo no tempo, quando, há 450
anos atrás, teólogos intrépidos escolheram como lema da Confissão de Augsburgo
as palavras do Sl 119.46: “Falarei dos teus testemunhos na presença dos reis e não
me envergonharei”.
80
O encontro com o presidente fazia parte das novas estratégias de uma igreja que se
adequava aos processos nacionais. Entendia-se que a IELB dos anos 80 “não queria desertar
de seu tempo”. Romais, por sua vez, festejava o “inserimento” ielbiano no mundo social,
dando talvez maior peso a isso em sua reprodução das palavras de Gedrat, e inclusive
adicionando seus próprios comentários. Por princípio, diferenciava a IELB das demais
correntes em moda, mas sublinhava que o Cristianismo deveria ser integral, ao mesmo tempo
“levando a Cristo” e “decifrando acontecimentos”. O modelo para a façanha vinha novamente
de Lutero e dos reformadores, que 450 anos antes haviam estado intrépidos diante dos reis
com sua confissão de fé. Estes, porém, além de serem considerados os guardiões da doutrina
pura, passavam também a ser valorados por erguerem tal doutrina “à altura do tempo em que
viviam e na presença dos reis”.
Todavia, à exceção de parcerias locais como as relativas aos CIMs, pouco foi feito
concretamente nessa aproximação do poder público. A nós, nos interessa, mesmo assim, a
79
ML, 10/1980, p. 5.
80
Idem, p. 5.
236
mudança qualitativa tangente à cultura política que se apresenta entre os líderes da IELB
nesse período. Para alguns destes, a IELB não deveria mais ser uma igreja que “não interfere
em política”.
Essa aproximação das coisas públicas continuou de modo crescente e algumas outras
vozes se ergueram, como, por exemplo, a de Oscar Lehenbauer, secretário executivo do
departamento de educação paroquial da IELB. Para o pastor, a nação que perde seu senso de
valores, que badala o sexo explícito e os livros pornográficos, em que leis, direito e justiça são
desrespeitados, que permite a transmissão de comerciais altamente prejudiciais à saúde moral
e espiritual do povo, que permite a prática dos juros altos, “que é forçada a se dobrar diante de
decretos que privam a população de seus direitos mais fundamentais como saúde, educação,
direito e justiça”, que é enganada com “mentiras oficiais”, “que permite que revoltas e greves
sejam insufladas e estimuladas por líderes populares e religiosos, e até governantes com fins
meramente políticos e filosóficos (ideológicos) – essa nação precisa de nossa oração e
preocupação”.
81
E afirmava, então, sobre a participação dos membros da igreja no mundo
político:
A nação toda espera uma mudança política, econômica, social. Muitos já tentaram
e estão tentando, a seu próprio modo, fazer a mudança. Eu sei que a sugestão da
oração pode parecer uma sugestão luteranamente passiva. Entretanto, uma oração
só é verdadeira quanto aquilo que é orado, e que é segundo a vontade de Deus, é
posto em prática lá onde estou e lá onde tenho chances de trabalhar por alguma
mudança concreta. Isto não invalida a ação particular de Deus que não se limita à
minha pessoa apenas, mas à soma de cristãos que, como eu, querem participar
mais concretamente nos rumos políticos, sociais e econômicos do país. São muitas
as evidências bíblicas em que Deus respondeu as orações de seu povo fiel
concernente a interesses nacionais. Deus tem seu modo próprio de estabelecer e
fazer cair tronos, reinantes, governos e governantes. Deus está atento às
necessidades do povo. (...) Peça a Deus que coloque sobre nós autoridades que
nos permitam viver uma vida pacífica, honesta e temente a Deus. Peça por
governantes que não coloquem barreiras à proclamação do evangelho. Peça por
sabedoria para votar e, acima de tudo, para que “seja feita a sua vontade assim na
terra como no céu”. Ore pelo Brasil!
82
Não se trata em absoluto, como se pode perceber, de um discurso revolucionário.
Entretanto, também não era mais um discurso passivo, mas uma inserção religiosa no mundo
político. A ação era, como antes, reservada aos indivíduos. A discussão do tema, porém, era
81
ML, 09/1984, p. 9. Lehenbauer nasceu em Concórdia, SC, em 1948, em formou-se pelo Seminário Concórdia
em 1973. Foi pastor em Santa Maria, RS, e fez mestrado nos Estados Unidos. Exerceu uma (curiosa) “capelania
parlamentar” comissionada pela IELB, tendo sido assessor do deputado Ônix Lorenzoni (PFL) e candidato a
vereador em 2004, pelo PFL, em Porto Alegre. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 329 e memória do
autor.
82
ML, 09/1984, p. 9.
237
levantada pela própria igreja, que passava a exercer também uma função de promotora de
conscientização em relação aos rumos das políticas nacionais.
As percepções em relação à autoridade e às posturas do cristão diante desta podiam
também variar nesse novo contexto. Os posicionamentos do pastor Elmer Flor, à época
segundo secretário da IELB e professor no Instituto Concórdia de São Leopoldo, eram
exemplos de tais variações. Na coluna opinião, sob o título “Uma questão de autoridade”,
afirmava Flor: “a verdadeira autoridade conhece seus próprios limites e procura conquistar
pela força da persuasão, respeitando a dignidade pessoal e a igualdade de direitos de seus
governados”. Nesse sentido, “qualquer postura autoritária necessariamente distancia, e a
tarefa primeira de um bom governante é diminuir a distância social que tende a separá-los
[povo e governante]. A base bíblica para este princípio é Lucas 22.26: ‘Aquele que dirige seja
como o que serve’”. Assim, quando uma autoridade abusa do poder, torna-se culpada da
desconfiança do povo e, no caso do governo civil, afasta os governantes do povo, que é a
“fonte legítima de todo poder na democracia”. Para o pastor, a “autoridade arbitrária é
correlata da desobediência”, e assim como “a desobediência do subalterno merece punição
porque segue seus caprichos”, também a autoridade prepotente “se torna culpada das
convulsões sociais que por seus atos desencadeia”. A ação política, por sua vez, estava,
também para Flor, reservada ao cristão individualmente, o qual teria “o direito e o dever de
posicionar-se diante das injustiças sociais e denunciá-las, como o fizeram Jeremias, Amós e
outros profetas bíblicos”.
83
Note-se, primeiramente, que ao tratar do tema da autoridade Flor não faz referência
ao tradicional texto bíblico de Romanos 13, mas a uma passagem que trata o dirigente como
servo. Note-se também o deslocamento, que pode ser dito “moderno”, do centro de gravitação
do poder para a esfera do povo, tido como fonte do poder democrático – o que não fazia de
Flor, contudo, um teólogo “secularizado”. Havia, porém, um tom consideravelmente crítico
em seu argumento, algo bastante incomum entre os demais líderes ielbianos. Para ele, tanto a
distância entre governantes e governados, quanto entre Deus e os seres humanos, deveriam
diminuir. E os cristãos tinham um importante papel nesse processo.
Havia, por outro lado, também cobranças por parte das “bases” de que a igreja se
manifestasse oficialmente em relação a questões políticas. Quando tais questionamentos
apareciam, a ala que cria não ser este o papel da igreja buscava orientação na tradição bíblica
83
ML, 09/1984, contracapa interna. Flor formou-se pelo Seminário Concórdia (1964) e fez mestrado no
Concordia Seminary, Saint Louis. Foi pastor no RS e no PR. Desligou-se da IELB nos anos 90 e trabalhou na
África do Sul. Natural de S. Pedro, RS (1940). Carlos H. WARTH, Cronicas da igreja, p. 317-318 e memória do
autor.
238
ou nos reformadores, orientação que entendia como a única possível a partir de tais fontes.
“Nem sempre a Igreja tem sua atividade facilitada pelo Estado. Nem sempre o Estado age
como inimigo da Igreja. Podem ocorrer erros nas atitudes de ambas as partes. E, no
reconhecimento disto, torna-se tanto mais importante humilhar-se sob a poderosa mão de
Deus e buscar orientação em sua palavra”, dizia o pastor Erni Seibert.
84
E continuava:
Não é uma das tentações de nosso tempo transformar a Igreja em plataforma de
lutas políticas, em nome de Deus? A questão do relacionamento entre o poder
civil e a Igreja continua sendo de enorme atualidade. Muitos acreditam que a
Igreja deveria se manifestar mais em questões sociais, alegando a dimensão ética
das mesmas. Muitos acusam a Igreja, quando esta permanece silenciosa, de estar
colaborando com os que estão em erro. Como agir? Qual a saída?
85
O texto escolhido para extrair a resposta foi o de Mateus 22.15-22: “Daí a César o
que é de César e a Deus o que é de Deus”. A chave interpretativa, a doutrina dos dois reinos.
“Deus é Deus. Governo civil é apenas governo civil. São dois reinos distintos que devem
permanecer distintos na ordem que Deus deu a este mundo”, ratificava Seibert. Para ele, “os
inimigos de Cristo tiveram de calar-se quando ouviram a resposta de Jesus. Toda
argumentação humana cessa quando Deus se pronuncia. Não importa se o que Deus diz seja
do agrado do homem ou não seja”.
86
Não havia o que discutir. A Bíblia, a Palavra de Deus,
assim o declarava: Igreja e Estado estavam separados e a IELB não deveria se manifestar em
questões políticas. Desenvolvimentos posteriores, porém, demonstrariam que a IELB,
oficialmente, o haveria de fazer.
Do lado das “bases”, em 1986, durante as movimentações dos processos de
redemocratização no Brasil, a Nova República, o Cruzado, alguns jovens universitários
luteranos criaram o “Grupo de Luteranos pela Constituinte”, com o objetivo de “
propor um
debate
com todos os pastores, pais, jovens e todos os leigos da Igreja, em cada comunidade,
para, a partir desse debate, organizarmos a nossa participação ativa no processo” de
elaboração da Carta Magna. No texto publicado no Mensageiro de agosto daquele ano, sob o
título “IELB, questão social e constituinte”, os integrantes do grupo, após abordarem em “sete
capítulos” a “trágica novela das constituições brasileiras”, avaliavam, em claro tom marxista,
que o confronto ao redor da Constituinte tendia a “se polarizar em dois campos distintos: o
84
ML, 11/1982, p. 12. Seibert é natural de Novo Hamburgo, RS (1952), tendo se formado pelo Seminário
Concórdia em 1973. Foi pastor no RS e professor no Instituto Concórdia de São Paulo. Doutor em Ciências da
Religião pela UMESP, trabalha atualmente na Sociedade Bíblica do Brasil. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da
igreja, p. 330 e memória do autor.
85
ML, 11/1982, p. 12.
86
Idem, p. 12.
239
campo do latifúndio, do empresariado, e no campo dos assalariados, isto é, a polarização
histórica entre os que procuram acumular o capital e os que querem socializá-lo”. Tal
polarização exigia dos luteranos “compreensão clara e posição firme para evitar
compromissos mal assumidos”. E sublinhavam a tradição de luta pela justiça de que eram
herdeiros: “É necessário que os cristãos façam a redescoberta da dimensão social do amor
cristão (...) [que] é um princípio central do Novo Testamento enunciado por Cristo e resgatado
por Martinho Lutero no século XVI, após séculos de obscurantismo e alienação”.
87
As
propostas apresentadas ao debate incluíam: liberdade de culto; ensino democrático e gratuito;
escolas que relacionassem alimentação-saúde-ensino; fim da Lei de Greve; soberania nacional
na política econômica; reforma agrária ampla e massiva com participação dos trabalhadores
do campo; fim da Lei de Segurança Nacional; eleições diretas em todos os níveis; autonomia
e liberdade de organização sindical; jornada de trabalho de 40hs semanais sem perdas
salariais; fim do serviço militar obrigatório; e plebiscito para aprovação da Constituinte.
88
As reações não tardaram. O líder leigo Décio Dalke, por exemplo, avaliou o
pensamento do grupo como “um tanto partidário” e com “um forte cheiro de PT”, que em sua
opinião era “um dos grandes perigos à nossa democracia”. Para Dalke, as reivindicações
sociais de Lutero foram feitas “sem demagogia, conclamação à luta armada ou tomada do
poder pela força”,
89
no que se opunha o leigo já de antemão a algum possível discurso
revolucionário.
Ainda no mês de setembro, foi então também criada a “Comissão Constituinte-
IELB”, esta designada pelo Conselho Diretor da igreja, sob a chancela de Gedrat. Tendo em
vista a elaboração de um documento com sugestões da IELB aos constituintes, a comissão
solicitou às congregações, escolas e membros que se manifestassem enviando colaborações
sobre uma série de temas
90
e apresentou algumas orientações de voto, extraídas estas de um
documento elaborado pela Comissão de Justiça e Paz da Diocese de Bauru: “O voto é a arma
87
ML, 08/1986, p. 21 [grifos no original]; os integrantes do grupo: Fernando Schüler, Gilberto Schüler, Carlos
Lange, Ricardo Rieth e Márcia Rieth.
88
Idem, p. 21.
89
ML, 10/1986, capa interna.
90
ML, 09/1986, p. 6. Os temas sugeridos foram os seguintes: “Família: Planejamento Familiar. Divórcio.
Aborto. Educação e Cultura: Escola Pública e Escola Particular. Ensino Religioso na Escola Pública. Civismo.
Direitos Individuais e Justiça Social: A igualdade Perante a Lei. Liberdade Religiosa. Direito à Vida e Pena de
Morte. Propriedade. Uso da Terra. Recursos Naturais. Ecologia. Trabalho Como Direito e Obrigação Social com
salário Justo. Sindicato. Direito à Greve. Previdência Social. Direitos Políticos: Direito ao Voto. Eleições.
Partidos Políticos. Estrutura do Estado: Harmonia e Independência dos Poderes. Justiça Eficaz. Soberania
Nacional. Forças Armadas. Parlamentarismo ou Presidencialismo”. A Comissão era constituída por: Dr. Jalmar
Tornquist (advogado), Profa. Sílvia Jeck, Dep. Romeu Scheibe, Rev. Elmar Hepp e Rev. Prof. Ari Lange.
240
do povo para influir no seu próprio destino. Não aponte nem dispare essa arma contra você”,
dizia o documento.
91
O debate prosseguiu acirrado ao longo de 1986 e 1987, envolvendo principalmente o
“Grupo de Luteranos pela Constituinte” e seus interlocutores mais conservadores. Em ambos
os grupos, porém, a participação foi o tema dominante e convergente. “É preciso
evangelizar
a Constituição”, afirmava o pastor Dieter Jagnow.
92
O episódio do debate mereceria, por
certo, uma maior atenção de pesquisas posteriores.
A Comissão Constituinte-IELB – mais tarde denominada “Comissão Oficial de
Estudos da Constituinte da Igreja Evangélica Luterana do Brasil”, aclarando ainda mais as
diferenças entre os dois grupos –levou de fato as propostas oficiais da igreja, em 36 artigos,
aos deputados e senadores constituintes em Brasília, contendo suas “posições quanto à
religião, à vida, à família, à educação e à ordem social e econômica na futura Constituição do
Brasil”:
A Igreja propõe, entre outras coisas, que haja liberdade de culto religioso e que o
ensino religioso nas escolas públicas seja facultativo (não obrigatório). Defende o
direito à vida, à existência digna, não aceitando situações permanentes de fome,
subnutrição e a impossibilidade de acesso de todos aos serviços de saúde e
habitação. Defende a família como célula base da sociedade e a igualdade de
deveres e direitos do homem e da mulher no casamento. Aceita o divórcio
“fundamentado em causas justas e relevantes” e assegura ao casal a
responsabilidade do planejamento familiar (limitação de filhos). Na educação, a
IELB defende a manutenção do ensino privado sem fins lucrativos e propõe ao
Estado e a todo o processo educacional a formação de uma consciência crítica da
realidade, de uma ação participativa, do respeito à natureza e ao pluralismo
cultural do povo e do compromisso com uma ordem internacional, com base na
autodeterminação dos povos. (...) a IELB se posiciona quanto à ordem social e
econômica, propondo princípios fundamentais de justiça social. A ordenação da
atividade econômica foi proposta com base nos princípios da valorização do
trabalho, da liberdade de iniciativa, da função social da propriedade e da empresa,
da harmonia entre as categorias sociais de produção, da segurança de emprego,
etc. A Igreja apóia o princípio de o Poder Público limitar a área máxima da
propriedade rural em função de sua destinação social e da justa distribuição da
riqueza natural.
93
As propostas oficiais apresentadas aos constituintes advinham de um grupo que por
certo buscava um espaço no cenário brasileiro, não só religioso, mas também político. As
idéias poderiam não ser as mais avançadas na visão dos partidários do “Grupo de Luteranos
91
ML, 10/1986, p. 11. Note-se o exemplo de uma estratégia ecumênica em nível político.
92
Idem, p. 11 [grifo no original].
93
ML, 07/1987, p. 27.
241
pela Constituinte”, mas representaram uma nova articulação no nível das estruturas e das
práticas ielbianas tradicionais.
Na comparação com os desenvolvimentos da I Guerra, a principal questão a ser
destacada era a diferença de postura em relação ao universo político e ao poder público.
Naquele primeiro momento, a interação política acontecia porque a igreja precisava garantir a
continuação de seu trabalho e de sua própria existência. O tipo de aproximação que se dava
acontecia numa instrumentalização do político para fins religiosos. Ao final do Regime
Militar, todavia, ainda que tais percepções permanecessem fortes na mentalidade ielbiana,
uma aproximação política do universo político surgia entre a liderança do grupo. Eram
religiosos, por certo, mas a finalidade com que se achegavam do poder público visava
contribuir também política e não só religiosamente.
No contexto turbulento, interna e externamente ao grupo, do final da ditadura, o jogo
de significados ao redor do Confessionalismo Ortodoxo tinha também sua dinamicidade. A
análise das relações que a IELB manteve à época com a IECLB nos abrirá ainda outras
percepções desse processo.
7. IELB e IECLB em diálogo
No capítulo anterior, vimos um pouco da conturbada história das relações entre as
instituições precursoras da IELB e da IECLB no Rio Grande do Sul, a saber, o 15° Distrito do
Sínodo de Missouri e o Sínodo Riograndense. Como afirmou Walter Steyer:
A vinda do Sínodo de Missouri prejudicou o objetivo do Sínodo Rio-Grandense,
pois impediu a formação de um único sínodo evangélico alemão sul-rio-
grandense. O Sínodo Rio-Grandense, vendo-se alijado na sua posição
hegemônica, tentou impedir a presença e expansão do Sínodo de Missouri entre os
imigrantes alemães. O distrito Brasileiro do Sínodo de Missouri, por sua vez,
vendo-se cerceado na sua liberdade pastoral, rebateu os ataques e críticas e passou
a construir seu crescimento na pregação apologética contra o Sínodo Rio-
Grandense. O objetivo doravante era, além de arrebanhar luteranos dispersos,
“libertar” as famílias alemãs evangélicas da influência pastoral de um Sínodo sem
definição confessional e de cunho unionista. O resultado deste mútuo confronto
constitui-se numa das mais tristes e chocantes páginas da história eclesiástica do
Rio Grande do Sul.
94
Não temos como afirmar “quem começou a briga”. O fato é que ela aconteceu e
trouxe conseqüências para o Luteranismo brasileiro que se mostram até os dias atuais. Muitas
94
Walter O. STEYER, Os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e o luteranismo, p. 127.
242
das diferenças teológico-doutrinárias arroladas ainda hoje para a não identificação da IELB
com a IECLB foram definidas no contexto de tais conflitos no começo do século XX.
Ao final do século, porém, a situação havia se transformado substancialmente. As
próprias afirmações de Steyer eram exemplo disso. Historiador da igreja e professor no
Seminário Concórdia, Steyer representava também as vozes do Confessionalismo ielbiano.
Todavia, à época de sua declaração já se haviam criado atenuantes teológicas e políticas para
que pudesse definir o conflito entre os grupos como uma “das mais tristes e chocantes páginas
da história eclesiástica do Rio Grande do Sul”.
95
O livro de Steyer em si era já representativo das rearticulações pelas quais passara a
IELB naquele período. “Os imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e o Luteranismo” vinha
prefaciado por outro historiador da igreja, Martin Dreher, pastor da IECLB e por muitos anos
professor na Escola Superior de Teologia (EST). O texto fora originalmente apresentado
como dissertação de mestrado, sob orientação do professor Arthur Blásio Rambo, ex-religioso
católico, ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, a Unisinos, onde também Dreher era professor – uma instituição mantida por jesuítas, a
ordem que Ignácio de Loyola criara justamente para combater a Reforma Protestante. Com a
transferência do Seminário Concórdia para São Leopoldo, em 1984, as três instituições (o
Seminário Concórdia, a EST e a Unisinos) passaram a habitar o mesmo espaço geográfico em
relativa harmonia. Assim, em comparação à I Guerra Mundial, o clima entre os grupos já não
era mais o mesmo.
A IECLB, durante a segunda metade do século XX, movera-se “do gueto à
participação”, como disse Schünemann.
96
De uma situação em que a germanidade orientava
mais que o Luteranismo sua identidade e sua participação política, a IECLB, após a II Guerra,
passara a mostrar claras intenções de tornar-se uma “Igreja de Jesus Cristo no Brasil”,
confessionalmente luterana, porém ecumênica. Tais opções tiveram obviamente
conseqüências políticas. Agiram como fatores dessa mudança tanto as transformações da
sociedade brasileira e o surgimento de uma teologia latino-americana, quanto acontecimentos
95
Steyer nasceu em Canoas, RS, em 1936, formou-se em teologia pelo Seminário Concórdia e em Geografia
pela USP. Além de ter exercido o cargo de secretário executivo do Departamento de Missão da IELB, Steyer foi
pastor em Trombudo Central, SC, entre 1959 e 1965, professor no Instituto Concórdia de São Paulo, de 1965 a
1973, e foi docente no Seminário Concórdia por muitos anos. Atualmente está associado à ULBRA. Cf. Carlos
H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 312 e memória do autor.
96
Rolf SCHÜNEMANN, Do gueto à participação, o surgimento da consciência sócio-política na IECLB entre
1960 e 1975. Pontue-se, todavia, que desde seus primórdios o Sínodo Riograndense e a IECLB participaram
politicamente, através de nomes expressivos como Rottermund e Dohms, entre outros. Cf. observação do Prof.
René Gertz, como membro da banca desta tese, em franca reação ao argumento de Schünemann. Nesse sentido,
somente se pode sustentar a tese de um gueto étnico, não político. A mudança que de fato aconteceu deu-se na
esfera das posturas políticas oficiais do grupo.
243
internos ao grupo, como por exemplo a transferência da 5
a
Assembléia Geral da Federação
Luterana Mundial que estava marcada para o ano de 1970 em Porto Alegre. A transferência,
que aconteceu com intenções de represália internacional ao regime militar brasileiro, terminou
por desinstalar setores da igreja rumo a uma maior pertença brasileira e a um engajamento nos
problemas sociais nacionais. Após esse episódio, através do “Manifesto de Curitiba”, a
IECLB tornou pública sua responsabilidade para com o país, bem como sua intenção de
dirigir-se “ao homem como um todo, não só à sua alma”. Com o Manifesto, a igreja passou a
assumir uma “postura crítico-profética” em relação ao universo político e econômico do
Brasil. Atestava-se que a igreja deveria “desempenhar uma função crítica – não de fiscal, mas
antes de vigia e de consciência da Nação. Ela alertará e lembrará às autoridades a sua
responsabilidade em situações definidas, sem espírito faccioso, e sempre com a intenção de
encontrar uma solução justa e objetiva”. Entre outras coisas, protestava-se contra a Lei de
Segurança Nacional e havia manifestações sobre questões relacionadas à anistia, à política
indígena e à reforma agrária, além de florescer também o envolvimento ecumênico da
instituição.
97
Das palavras que dirigiu o pastor presidente da IECLB, rev. Augusto Kunert, aos
presentes na solenidade de lançamento do selo do 5° centenário de Lutero, em 1983,
extraímos alguns trechos ilustrativos do momento que o grupo experimentava:
Presentes no Brasil desde 1824, os evangélicos luteranos, mesmo formando um
grupo eclesial minoritário, souberam contribuir de maneira decidida no campo
teológico, social, educacional e ético-moral para que, como brasileiros,
pudéssemos ter, como identidade e fundamento, os ideais de democracia e
liberdade, elementos vitais para a existência da justiça social, política e
econômica.
(...) Lutero era um cristão radical, um cristão comprometido com a verdade, por
que o próprio Cristo é a verdade descoberto e vivido a partir da palavra de Deus.
Mas esta palavra não lhe foi extemporânea. Soube dizê-la em palavras e ações às
gentes de sua época, desencadeando, então, a Reforma. A coerência com que
encarou este compromisso nos inspira e nos desafia hoje, como cristãos batizados,
a sermos instrumentos que apontam para a soberania de Cristo e sua palavra com
todos os dons e capacidades que o Senhor nos deu em favor do povo brasileiro. E
nesta caminhada não podemos ignorar também, neste momento importante, os
milhões de migrantes, os empobrecidos de nossa sociedade, de nossa época, que
vivem às margens do processo e dos bens que deveriam beneficiar a todos. A
IECLB, com as suas comunidades e instituições sociais e educacionais, quer
testemunhar este compromisso, recebido, em 1983, como tema central que moveu
também o próprio Martinho Lutero: “Eu sou o Senhor teu Deus, temer e amar a
Deus e confiar nele acima de todas as coisas”.
97
Cf. Martin DREHER, História do povo luterano, p. 53-61; tb. Rolf SCHÜNEMANN, Do gueto à
participação, p. 81-119.
244
E é na cruz e na ressurreição de Cristo que Deus revela a sua misericórdia e a
reconciliação para com o mundo e para com os homens, como tanto o enfatizou
Lutero. Na cruz de Cristo, Deus se identifica com o sofrimento da comunidade
falida pelo pecado, e lhe oferece participação em seu reino. A cruz de Cristo nos
liberta para o serviço a toda gente, mormente aos que carregam hoje as pesadas
cruzes da marginalidade e da injustiça social. Lutero, um sinal do Senhor, que
aponta para o Cristo e seu reino. Que nos deixemos abrir os olhos para aquilo que
Deus em Cristo nos lega como responsabilidade cristã em nosso país para o bem
da própria pátria.
98
Vê-se que a IECLB de Kunert deixara de ser aquele grupo de imigrantes que,
durante a primeira metade do século XX, fizera questão de exercer seu Cristianismo
embandeirado em sua germanidade. Estava lá ainda, por certo, aquilo que Schünemann
chamou de “síndrome de minoria”,
99
porém tratava-se, conforme Kunert, de uma minoria que
fizera alguma coisa pelo Brasil. As comemorações do 5° centenário de Lutero serviram para
que a IECLB renovasse ao redor da imagem arquetípica do reformador seu compromisso de
ser igreja no Brasil. E isso, é claro, precisava ser afirmado diante dos líderes da IELB.
A IELB, por sua vez, também não era mais a mesma. E suas relações com a IECLB
igualmente não haveriam de ser.
“O relacionamento e diálogo com outras igrejas mereceu
maior atenção recentemente. Foi estabelecida uma comissão permanente entre IELB e
IECLB. A mesma está coordenando encontros e diálogos sérios entre as duas denominações”,
anunciava o presidente Gedrat, trazendo notícias da 49
a
Convenção Nacional.
100
Comunicava
também que o Conselho Diretor aprovara a ida de observadores à assembléia da Federação
Luterana Mundial – da qual a IELB não faz parte principalmente por haverem igrejas filiadas
à Federação que não subscrevem as Confissões na íntegra, como a própria IECLB – e que
haviam solicitado estatutos, regimento e descrição dos objetivos e compromissos desta, a fim
de basear suas “posições oficiais em estatutos sérios e objetivos e não apenas em sentimentos
e informações parciais”. Estavam também participando como observadores de reuniões de
diferentes organizações e encontros ecumênicos. Segundo Gedrat, “mesmo que não possamos
filiar e comprometer-nos, podemos e devemos cumprir nossa missão de testemunhas e nossa
tarefa de orar e de lutar pela unidade verdadeira de todos os cristãos”.
101
A posição de observadores marcou de fato a inserção institucional da IELB em
diversos níveis. Foram observadores políticos, econômicos, ecumênicos. Participações reais
estiveram durante estes anos por conta principalmente de iniciativas particulares de pastores e
98
ML, 06/1983, p. 8-9.
99
Rolf SCHÜNEMANN, Do gueto à participação, p. 63.
100
ML, 03/1984, p. 3 [grifo no original].
101
Idem, p. 3. Vide Introdução, p. 3, para filiação internacional da IELB.
245
comunidades, não da oficialidade da igreja. Gedrat mesmo confessava pela IELB uma
“tendência de ser uma igreja que pensa quase só em si mesma”. E sublinhava: “Inclinamo-nos
facilmente a ‘guardar o nosso próprio troféu’, nosso cantinho exclusivo na vinha do Senhor –
quer seja nossa congregação local, nosso projeto distrital ou um programa nacional – em lugar
de preocupar-nos e de participar no trabalho global do nosso Deus”. Além disso, dizia ele,
conclamando à ação:
Não falamos forte que chega contra os males sociais do nosso tempo: aborto,
divórcio, imoralidade, impunidade, corrupção, mau uso do poder e da força,
opressão dos menos favorecidos, mau uso do solo, habitação desumana, trabalho
injustamente remunerado, desrespeito às autoridades constituídas, protestos
injustos, etc. Somos cidadãos e inseridos num contexto social e político onde o
cristão tem o que dizer e sabe o que fazer! Sejamos operosos também no
cumprimento da nossa função de cidadãos cristãos.
102
O discurso
mea culpa de Gedrat indicava, ao mesmo tempo, as mudanças que
ocorriam na mentalidade dos líderes ielbianos. Algumas coisas estavam mesmo sendo feitas e
em termos de visão de mundo as concepções das lideranças haviam se transformado a ponto
de serem promovidas aproximações com a IECLB, sua outrora grande inimiga. Assim, após
analisar “que igreja somos”, enfatizava Gedrat a “igreja que queremos ser”, destacando as
seguintes diretrizes: sublinhar a doutrina bíblica sã e também a missão mundial confiada à
igreja; apreciar profundamente as tradições, mas também ser criativos diante dos desafios
novos; dedicar cuidado pelas almas das pessoas, mas não descuidar de suas necessidades
corporais; valorizar tanto a disciplina quanto o cuidado pastoral; valorizar tanto o ministério
pastoral quanto o sacerdócio de todos os crentes; dar ênfase ao testemunho pessoal; manter
uma organização centralizada ao administrar os que servem uns aos outros do centro para as
bases, e descentralizada enquanto mantêm uma medida saudável de respeito às decisões locais
e regionais; perceber que existem os recursos necessários para fazer o que Deus espera;
conservar o sentido de unidade; guardar em mente que não basta a capacidade da sabedoria
humana, mas que é preciso as bênçãos do próprio Senhor da Igreja.
103
Estava aí, no enunciado de Gedrat, o jogo discursivo que surgia da confluência entre
tradição e modernidade, entre estrutura e conjuntura, entre mudanças e permanências. Era
preciso manter a confessionalidade e a sã doutrina bíblica, mas o mundo de então, que
demandava da igreja novas posturas, se abria em também novas possibilidades. O contexto
social brasileiro, que na I Guerra Mundial afastara as duas igrejas, ao final da ditadura, assim,
102
ML, 03/1984, p. 3 [grifo no original].
103
Idem, p. 4.
246
as aproximava. As diferenças históricas, surgidas na disputa entre o Sínodo de Missouri e o
Sínodo Riograndense pelas comunidades dos imigrantes alemães luteranos, estavam então em
franco processo de arrefecimento.
Conforme a apreciação do pastor Ari Lange, professor da Faculdade de Teologia do
Instituto Concórdia de São Paulo, em sua origem, o trabalho dos missourianos estivera
“impregnado com um espírito missionário, sem ser missão propriamente dito”. O princípio
das atividades do grupo dera-se já pelo contato de pastores primeiramente estrangeiros e
depois nacionais com comunidades cristãs que já existiam, lembrava o pastor. Como muitas
dessas comunidades haviam tido vínculos com outras igrejas ou sínodos, “seu novo vínculo
com os ‘missurianos’ causou, não raras vezes, sérios problemas de relacionamento”.
104
Pontuava, então, Lange, numa ótica semelhante à de Steyer:
É bom esclarecer que não se estabelece aí nenhum juízo desabonador na atuação
dos pastores do passado, já que a situação espiritual deficiente destes grupos ou
congregações reclamava uma orientação pastoral mais efetiva e responsável.
Ocorreu, entretanto, que esta ação pastoral foi caracterizada mais como
intromissão na “seara alheia” do que como ajuda e cooperação para uma melhor
atuação do luteranismo no Brasil. Compete, pois, à geração presente das igrejas
luteranas brasileiras repensar este passado e buscar e encontrar posições mais
positivas do que se tem tirado até o momento. O fato é que este passado
estabeleceu uma situação de não-diálogo, o qual perdurou por muitas décadas
mas, cremos, está em fase de acomodação atualmente.
105
Era latente a diferença, tanto no estilo quanto no conteúdo de tais pronunciamentos,
em relação àquelas manifestações que se referiam ao Sínodo Riograndense no contexto da I
Guerra como “a igreja alemã unionista”, aquela que tratava o evangelho como quem atirasse
“pérolas aos porcos”. O estilo era, nos anos 80, cordato e o conteúdo apontava para uma
aproximação ecumênica. O diálogo de fato se acentuaria, bem como as ações conjuntas.
Criou-se, por exemplo, nos anos seguintes, a CIL, Comissão Inter-Luterana de Literatura,
através da qual passou-se a publicar a coleção “Obras de Lutero”, hoje em seu oitavo volume,
pelas editoras Sinodal e Concórdia, respectivamente da IECLB e da IELB. Além desta, as
duas igrejas já publicavam também um devocionário conjunto, o “Castelo Forte”, título de
104
ML, 07/1987, p. 10-11.
105
Idem, p. 10-11. Ari Lange é natural de Joaçaba, SC, e formou-se em teologia pelo Seminário Concórdia em
1967. Foi pastor em Cruz Alta, RS, e em Campo Grande, MT, onde esteve envolvido com as atividades dos
CIMs. Fez mestrado na Alemanha e foi professor e diretor da faculdade de teologia do Instituto Concórdia de
São Paulo. Atualmente ensina no CETEOL, faculdade de teologia afiliada à IECLB em SC. Cf. Carlos H.
WARTH, Crônicas da igreja, p. 322 e CV Lattes.
247
conhecido hino de Lutero, contendo pequenas meditações para cada dia do ano, com grande
tiragem. As meditações, escritas por pastores e leigos de ambas as igrejas.
106
Vale mencionar também a aproximação acadêmica entre as igrejas, que vem se
intensificando desde o final dos anos 80, principalmente com as criações do Instituto
Ecumênico de Pós-Graduação da Escola Superior de Teologia da IECLB e da Universidade
Luterana do Brasil, vinculada à IELB. Diversos pastores da IELB têm acorrido à EST em
busca de formação pós-graduada e eventos acadêmicos com a participação de professores e
alunos de ambas as igrejas têm acontecido regularmente.
Novas dinâmicas acadêmicas e eclesiásticas aceleravam, assim, o processo de
aproximação entre IELB e IECLB, facilitado este, é verdade, por um herói comum: Martinho
Lutero.
(Disponível em: <www.lutero.com.br/obras_de_lutero.htm>.
Acesso em: 15/08/2005)
8. Guerra e paz com o Catolicismo
A relativa abertura ecumênica que observamos nas relações da IELB com a IECLB
não se estendeu totalmente aos outros domínios do campo religioso. As mesmas estruturas
comuns que permitiam a aproximação entre os dois grupos luteranos, permaneciam, por outro
lado, proporcionando significados e articulações sociais que afastavam a IELB dos demais
grupos religiosos presentes no Brasil. Mesmo assim, algumas concepções se haviam
transformado durante o século XX. A mais clara dessas, a percepção do Catolicismo, o qual
também, depois do Vaticano II e de Medellín, bem como das dinâmicas relativas ao
surgimento da Teologia da Libertação, não era mais o mesmo.
Se a pergunta “O que significa anticristo?”, feita por um leitor ao final do ano de
1981, houvesse sido feita alguns anos antes, a resposta, principalmente se viesse pela pena de
106
As atividades da CIL podem ser conferidas na home page <www.lutero.com.br>.
248
Hasse, poderia ter sido a seguinte: “significa a ação dos romanistas e papistas, que são os
emissários do diabo para a destruição do verdadeiro evangelho e da pura doutrina bíblica”.
Não obstante, a resposta apresentada à questão pelo pastor Paulo Jung, responsável por
responder a perguntas de leitores no Mensageiro, tomava outro rumo:
anticristo é o nome que se dá à força demoníaca que luta contra Cristo e sua
igreja. O anticristo se manifestou de maneiras diferentes através do curso da
história, nem sempre como inimigo aberto e declarado, mas também com
aparência de bom e até como seguidor e discípulo de Jesus. Anticristo, pois, é a
força do diabo agindo no sentido de destruir o reino de Cristo, desmerecer a
eficácia da mensagem salvadora do evangelho, prejudicar e até mesmo destruir a
fé dos cristãos.
107
Passados oitenta anos dos primeiros baques entre luteranos missourianos e católicos,
a situação já se havia acomodado bastante. Os grupos já não eram mais tão estranhos um ao
outro e, além de todos os processos da modernidade, também um certo relativismo pós-
moderno se instalava nas sociedades, produzindo sensações de diversidade e pluralismo que
bem se evidenciavam no campo da religião. Assim, a Igreja Católica deixara de ser para os
ielbianos “a” encarnação do anticristo, ao menos não com essas palavras.
A tensão, por outro lado, estava ainda lá bem presente sob outras formas. Como
quando um leigo escreveu ao pastor Jung tecendo algumas considerações e formulando uma
pergunta que já incluía uma sugestão de resposta: “muitas congregações luteranas insistem no
uso de imagens de escultura em seus templos, o que dá origem a confusões, na medida em que
isso não permite uma diferenciação clara em relação à Igreja Católica (...) Deixemos de
insistir neste assunto, e ao invés de imagens coloquemos só a cruz e as velas sobre o altar.
Não seria esta uma solução válida?” Jung, respondendo à pergunta iconoclasta, admitia a
distorção no uso das imagens por parte da igreja católica. Afirmava, todavia, também, que
imagens
são instrumentos que nos auxiliam na compreensão do simbolismo bíblico dos
elementos que fazem parte da história e da conquista da nossa salvação por Cristo.
(...) O cuidado todo, portanto, deve estar voltado ao esforço constante de dar
condições a uma correta compreensão de todas essas coisas (...) também deve se
voltar à cruz e às velas sobre o altar, que não deixam de ser “imagens”, mas aí
estão apenas como identificação da fé que temos no coração.
108
107
ML, 11/1981, capa interna. Paulo Jung nasceu em Arroio do Meio em 1939 e formou-se pelo Seminário
Concórdia em 1962. Trabalhou como pastor no RS e foi o primeiro missionário da IELB em Portugal (1968-
1973). Ocupou também os cargos de secretário e vice-presidente na diretoria do grupo. Carlos H. WARTH,
Crônicas da igreja, p. 315.
108
ML, 03/1984, capa interna.
249
A apreciação de Jung continha mais informação e conteúdo que as diferenciações
correntes entre o que “é católico” e o que “é luterano”, como o senso comum que católicos
têm imagens e protestantes luteranos não. As diferenciações estavam, por outro lado,
razoavelmente demarcadas: era preciso “cuidado” com as imagens, para lhes dar a “correta
compreensão”, cuidado, para Jung, que os católicos não tinham. As imagens deveriam ser
“identificações da fé”, e esta estar centrada em Cristo para a salvação. Assim, o centro de tal
correta compreensão a ser buscada era ulteriormente a doutrina da justificação pela fé de
Lutero num recorte intelectualista melanchthoniano.
Era o que representavam também os esquemas do pastor Vilson Scholz, futuro
professor do Seminário Concórdia, nos quais buscava as diferenças entre a doutrina luterana e
a católica. Conforme o pastor, na compreensão luterana, Cristo é o centro para a salvação, a
justificação do pecador: “Jesus Cristo, sua pessoa e obra deve estar no centro de tudo!
Somente Cristo! Que ninguém ouse tomar o lugar de Cristo! Que nada obscureça a glória do
mérito de Cristo!”
109
(ML, 01-02/1984, p. 29)
E afirmava: “Lutero diz que as igrejas da Reforma têm, em primeiro lugar, a palavra
pura e o uso correto dos sacramentos. Ter a palavra pura – que é mais do que simplesmente
ter a Bíblia! – é colocar Jesus Cristo no centro de tudo, na doutrina e vida da igreja. Foi o que
Lutero fez”. De outra forma, “do lado católico romano, por exemplo, a doutrina de Cristo, ao
invés de estar colocada no centro, é uma doutrina entre outras, conforme o esquema que
segue”:
110
109
ML, 01-02/1984, p. 29. Scholz formou-se pelo Seminário Concórdia em 1978 e recebeu os graus de mestre
(1981) e doutor (1993) em teologia pelo Concordia Seminary. Professor no Seminário Concórdia e na ULBRA.
Cf. CV Lattes.
110
ML, 01-02/1984, p. 29-30.
250
(ML, 01-02/1984, p. 30)
Por isso, dizia Scholz, “torna-se necessária a continuada pregação de que Cristo deve
ocupar o centro, e não ser um entre outros”. Em sua opinião, nem o concílio de Trento, nem o
Vaticano I e nem o Vaticano II haviam sido o concílio que Lutero desejara. Sobre o Vaticano
II afirmava o pastor: “este não tratou da doutrina da justiça da fé, não alterou o esquema, não
devolveu a Cristo o lugar de único e suficiente Salvador, apesar de todas as modificações que
introduziu”, como por exemplo o cessar das missas em latim. Em Scholz, assim, a referência
identitária ao reformador estava também fortemente presente. Como concluía: “em tudo isso
Lutero continua atual. Por quê? Porque, em grande parte, ainda neste final de século XX sua
pregação de Cristo se dirige a situações e necessidades em muito semelhantes àquelas do
século XVI”.
111
A realidade era a do século XX, as respostas, porém, pertenciam ao século XVI e a
pregação luterana do Cristo salvador permanecia para a maioria dos líderes da IELB como
único remédio para a aflição dos seres humanos subjugados pelas idéias de salvação por obras
impostas pelo Catolicismo.
O próprio esforço missionário da IELB era, nesse contexto, um fator a colaborar na
resistência para com o mundo católico. Ao desenvolver-se pelo Brasil, a liderança da IELB
reconhecia nas práticas e crenças do Catolicismo popular um mal a combater. Para os pastores
Leonardo Neitzel e Selson Potin, por exemplo, responsáveis pela missão no Ceará, o povo
cearense tinha “sede e necessidade do evangelho puro genuíno”, vivia “na superstição, na
confusão religiosa e na idolatria”. Em sua opinião, Canindé e a Juazeiro de Padre Cícero
eram “verdadeiros centros de idolatria”, para os quais queriam pregar o evangelho puro, “o
poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê”.
112
O Brasil era uma seara missionária
e os adeptos de outras crenças eram, portanto, alvos de missão.
O foco do debate teológico com o universo católico conduzido pelos líderes da IELB
gravitou, contudo, mormente ao redor de suas reações às propostas da Teologia da Libertação.
111
ML, 01-02/1984, p. 30.
112
ML, 06/1985, p. 20-21. Leonardo Neitzel formou-se pelo Seminário Concórdia em 1978, é mestre em
teologia e doutor em missiologia pelo Concordia Theological Seminary, de Fort Wayne. Foi professor do da
faculdade de teologia do Instituto Concórdia de São Paulo. Atualmente é pastor em Vancouver, Canadá. Selson
Potin é graduado pelo Seminário Concórdia (1982) e pastor em Serra, ES; cf. IELB, página na internet.
251
Como linha mestra do argumento, estava a idéia de que só uma teologia
verdadeiramente
evangélica seria libertadora, no sentido de trazer libertação não meramente exterior, mas
principalmente do pecado. Como declarava o pastor Rubens Schwalenberg, de Capanema,
PR:
Teólogos e grupos ligados a igrejas estão semeando precisamente esta idéia
errônea de um “evangelho social” e de um “Messias político”. Aos pobres está
sendo pregado um tipo de “evangelho libertador”, não do pecado, mas de
estruturas econômicas injustas. Vemos logo a necessidade premente de descobrir-
se novamente o verdadeiro sentido de libertação segundo a palavra de Deus.
Descobriremos então que a ênfase da ação libertadora de Jesus Cristo não
coincide com o ensino da teologia da libertação. Enquanto estas falam de
libertação meramente econômica, de injustiças sociais, da miséria e pobreza, o
cristianismo proclama a liberdade muito maior e mais importante – a liberdade
dos cativos do pecado e das trevas, do justo que vive pela fé, de novas criaturas,
de vidas fundamentadas no amor a Deus e no amor ao próximo.
(...) Para compor o mundo, precisamos primeiro compor o homem. A palavra de
Deus é esta “revolução” necessária para criar novos homens – transformados pelo
poder salvador e santificador do Espírito Santo. (...)
A libertação maior é esta: “... pregar boas-novas aos mansos, curar os
quebrantados de coração, proclamar libertação para os cativos, pôr em liberdade
os algemados”. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Is 61.1; Jo
8.31,32).
113
E eis aí o antigo conceito pietista de curar a sociedade desde dentro do ser humano.
Estava, porém, também aí presente a força que continuaria a conduzir a IELB “para fora” do
universo político-social, na contramão das tendências que mencionamos anteriormente. Nessa
percepção, a tarefa humana da igreja permanecia sendo a de proporcionar a cura para os males
interiores das pessoas. Somente conhecendo essa
verdade haveria libertação. Uma Teologia
“social” da Libertação era, nessa perspectiva, falsa.
“Em primeiro lugar, não há uma Teologia da Libertação”, afirmava na coluna
“opinião” o pastor Roberto G. Huebner, Argentino e professor de teologia luterana no
México. Conforme o professor, mesmo os partidários da Teologia da Libertação admitiam
que tinham mais um método que uma teologia, e que esse método consistia num compromisso
com as pessoas necessitadas e oprimidas. Entendia, por isso, que os teólogos da libertação, a
partir de uma análise marxista-leninista da história, buscavam conscientizar as pessoas do que
as oprimia, a fim de que reagissem: e “que nessa reação não se confie que Deus o vá salvar,
mas recorra a todos os meios, sejam armas, revoluções ou o que se fizer necessário para
113
ML, 01-02/1984, p. 60 [grifos no original]. Schwalemberg formou-se pelo Seminário Concórdia em 1980 e é
pastor em Cascavel, PR; cf. IELB, página na internet.
252
eliminar o opressor”, pontuava. Contra tal postura alertava então: “é essa solução que me
preocupa, porque é humanística, homocêntrica, sem Cristo, e por isso mesmo perigosa”.
114
Huebner, por outro lado, porém, reconhecia: “há uma parte dessa ênfase que nós
tememos demasiadamente. Tememos que estamos nos metendo em política, e mesmo vendo
cruas e duras realidades, vendo opressão e injustiças, não a denunciamos”.
115
E afirmava:
“Isso me preocupa. Como me preocupam os que não pregam o Evangelho do Cristo que
morreu e ressuscitou por nós para que tivéssemos uma nova vida. Preocupam-me os que não
reconhecem que o pecado não está somente no poderoso, naquele que oprime, mas também
no pobre, no que deseja, no que cobiça, no que quer eliminar pela violência o opressor”.
116
Ainda que discordasse da solução apresentada pelos teólogos da libertação, Huebner
ressaltava, portanto, a proeminência do problema. Havia, assim, uma identificação com a
causa levantada, mas não com a solução. “O diagnóstico é consciente e realista, porém o
remédio não vai às origens. (...) é só um ‘paliativo temporal’”, concordava o pastor Walter
Mormello, de Cruz Alta, RS. A Teologia da Libertação, na perspectiva de Mormello, “ao
invés de preocupar-se com a questão espiritual na sua raiz, na sua origem mais profunda”,
deixava “de apresentar a Cristo como a solução de tudo aquilo que atormenta o homem física
e espiritualmente”.
117
Por conseguinte, como dissera Scholz, era preciso continuar com o
anunciar do Cristo crucificado, ressurreto, salvador.
Podia-se, por outro lado, compreender o próprio universo católico como o produtor
de tamanha problemática social. Nessa perspectiva, os países que abraçaram a Reforma,
“cativos apenas da Palavra divina, portanto, não mais subordinados a Roma”, haviam se
desenvolvido “intelectual, científica, social, política e economicamente”, como afirmava o
leigo Décio Dalke, de Porto Alegre, no artigo “Lutero e o mundo capitalista”, no qual
sustentava que a Reforma representara uma ruptura em termos de religião e consciência.
Prosseguia Dalke: “Hoje, verificando os países devedores ao FMI (Fundo Monetário
Internacional) constatamos que a grande maioria deles são católicos e aí, os credores, na sua
maioria, protestantes”.
118
Admitia, sim, as exceções de França, Itália e Japão, como países não
devedores. Mas ressaltava que a França era a filha rebelde de Roma e que lá também estavam
presentes os calvinistas. A Itália, por sua vez, se não era protestante, era uma católica que não
prestava obediência ao Papa, além de abrigar o maior partido comunista do ocidente. Sobre o
114
ML, 04/1985, contracapa interna.
115
Idem, contracapa interna.
116
Idem, contracapa interna.
117
ML, 09/1986, capa interna. Mormello formou-se pelo Seminário Concórdia em 1985 e é atualmente pastor na
cidade de Esteio, RS. Cf. IELB, página na internet.
118
ML, 10/1984, p. 14-16.
253
Japão limitava-se a afirmar que era um país budista. Do outro lado porém, estava para Dalke
um “mundo ocidental católico, subdesenvolvido e devedor de bilhões de dólares, [que] sofre
invasão, domínio e mesmo matanças por parte de empresas multinacionais oriundas de países
protestantes”. Perguntava, então, por fim, “Será por isso Lutero culpado?”, respondendo
negativamente e ressaltando que, apesar de Lutero estar primeiramente preocupado com o
homem justificado, nunca ignorara que a criatura de Deus merece respeito e amparo.
119
E,
após citar alguns textos de Lutero, concluía: “Assim, não é a obra de Lutero - que libertou a
consciência escravizada, manipulada e esmagada do homem - a culpada pelo que hoje fazem
os países protestantes. Essa culpa encontramos numa palavra que resume todo o
comportamento pernicioso e corrupto do homem: pecado. O pecado reina e domina no
mundo, onde ‘os maus sempre superam em número os justos’”.
120
Em Lutero, portanto, Dalke
encontrava soluções, tanto econômicas quanto religiosas, e não problemas. A questão central
era novamente, perceba-se, o pecado. E sua cura, Cristo. Este, assim, associado ao universo
protestante, representava a solução total.
Podiam, contudo, advir significados a partir deste “mesmo” Lutero que dirigissem a
posturas mais generosas para com os demais grupos, como argumentava o já mencionado
professor Nestor Beck:
Ocorre que a IELB, juntamente com a “igreja-mãe”, o Sínodo de Missúri, se
considera “a verdadeira igreja visível”, isto é, “o conjunto daqueles que têm,
ensinam e confessam a doutrina da Palavra de Deus clara e puramente em todos
os pontos e entre os quais os Sacramentos são administrados retamente segundo a
instituição de Cristo.” À base dessa convicção de possuir toda a verdade, acredita
só poder “estabelecer comunhão de altar e púlpito” com igrejas e organizações
religiosas que concordem com ela em todos os pontos da (sua) doutrina.
Resultado: Não tem comunhão com igreja alguma em território nacional, há mais
de oitenta anos...
A situação seria outra se os líderes da IELB definissem o relacionamento com
outras igrejas e organizações eclesiásticas a partir da confissão básica da Igreja
Luterana, a Confissão de Augsburgo. Ao representarem uma igreja luterana
confessional, estariam refletindo a posição original da Igreja Luterana expressa no
seu documento básico: A Igreja é uma só; para preservar a unidade da Igreja,
basta anunciar o Evangelho de comum acordo e distribuir os Sacramentos em
conformidade com este mesmo Evangelho.
121
Conforme Beck, os líderes da Reforma do Dezesseis, por solicitação do Imperador
Carlos V, haviam submetido “na Confissão de Ausgsburgo a sua proposta de como se
poderiam superar as dissensões religiosas e reunir os cristãos sob a bandeira do mesmo
119
ML, 10/1984, p. 14-16.
120
Idem, p. 16.
121
ML, 07/1987, p. 6.
254
Cristo”. Queriam, assim, os líderes luteranos permanecer na Igreja, não sair dela. Era,
portanto, culpa dos líderes católicos o acordo não acontecer. Todavia, “apesar de não ter sido
aceita, a proposta luterana de harmonia à base de unanimidade no uso dos meios do Espírito
Santo, que criam a fé, e de tolerância em relação à diversidade de ritos e tradições”
continuava sendo válida e poderia gerar “entendimento não só com a Igreja Romana, mas com
todas as igrejas protestantes”.
122
Frisava, por fim:
Admitindo, pois, que a IELB de fato seja Igreja, que efetivamente anuncia o
Evangelho e distribui os Sacramentos de acordo com o Evangelho, estamos
dispostos, com a Confissão de Augsburgo, a reconhecer como tais as igrejas que
igualmente anunciam o Evangelho e distribuem os Sacramentos em conformidade
com o Evangelho? Estamos dispostos a expressar com elas a unidade da (única)
Igreja de Jesus Cristo? Ou vamos preferir adotar a posição dos bispos católicos à
época da Reforma e dizer: “Nós somos a igreja; só haverá comunhão se
concordarem conosco em todos os pontos da (nossa) doutrina”?
123
Para Beck, a postura correta de um Luteranismo Confessional seria, então, aquela
que estivesse aberta ao menos à discussão, senão à tolerância, para com outros grupos cristãos
que pregassem o evangelho e administrassem os sacramentos. Vozes como a de Beck
permaneciam, porém, um tanto solitárias no meio ielbiano. Mesmo assim, a tolerância
aumentara significativamente. O “Romanismo” ao menos não era como antes um grande
inimigo a ser combatido, e talvez pudesse mesmo ser acolhido.
A consideração das posições ielbianas em relação às demais formações religiosas,
dentro ou fora do Cristianismo, nos abrirá ainda outras perspectivas das tensões que
envolviam os ielbianos no campo religioso daquele período.
9. Confissão, ciência e demais religiões
Um discurso exercido na busca de caminhos que se querem singulares em um meio
plural deve passar pela desqualificação de outros discursos e práticas como inverossímeis ou
falseados. Assim, diante da religiosidade mística brasileira, a tendência dos ielbianos era de
considerá-la como algo de gente simples e sem instrução, pessoas que ainda não possuíam o
verdadeiro conhecimento, a fé que vinha pelo ouvir. Para tanto, necessitaram, porém, do
auxílio de uma velha conhecida, já dos tempos do Dezesseis: a razão, sob suas novas formas
122
ML, 07/1987, p. 8.
123
Idem, p. 9.
255
científicas. Esta, aliada aos “fundamentos” confessionais, co-laborou na sustentação das
posições ielbianas relativas às demais religiões naquele momento.
Os transes pentecostais, por exemplo, podiam ser tidos como “manipulação mental”,
algo semelhante ao que consideravam como “técnicas psico-espirituais para obter a
transcendência mística”, comuns a algumas religiões orientais. Para o pastor Willem C. van
Hattem, tratava-se de “técnicas dirigidas à eliminação do pensamento consciente, enquanto a
Bíblia enfatiza a importância do entendimento”. Em sua opinião, o que acontecia era que
através de estímulos repetidos a mente parava de funcionar normalmente e o pensamento
consciente era suprimido, trazendo “todos os perigos ligados a este estado mental”. Tais
práticas deveriam ser eliminadas simplesmente porque era “realmente desumano privar o
homem do uso normal dos seus sentidos”. Sob a foto que reproduzimos abaixo, anunciava-se,
assim, o novo mandamento religioso que para o ielbianos era impresso por tradições místicas
nas mentes do povo brasileiro: “não pensarás”.
124
(ML, 11/1981, p. 7)
Havia, porém, na argumentação um fator novo: as práticas religiosas estavam sendo
“desmistificadas” a partir de conceitos extraídos do campo científico/racional. Hattem, por
exemplo, fazia uso de conceitos científicos atrelados a interpretações doutrinárias também
racionalizadas, sublinhando o ensinamento claro da Bíblia a respeito da fé raciocinada. E
note-se novamente a diferenciação de enfoque na comparação com a Primeira Guerra
Mundial, quando a religião do outro era simplesmente ligada ao demônio.
A apreciação do professor Arnaldo Schüler, sobre o trabalho dos curandeiros no
Brasil, ia na mesma direção. Conforme Schüler, calculava-se que 80% da prática terapêutica
no Brasil era ilegal, ou seja, “exercida por pessoas sem título nem habilitação”: “O Brasil é
campeão mundial em número de curandeiros. E temos medicastros aos quais se atribuem
poderes curativos espantosos”. O professor, que à época lecionava no Seminário Concórdia
124
ML, 11/1981, p. 7. O pastor Hattem faleceu em 1985 em Dois Irmãos, RS; cf. IELB, página na internet.
256
uma disciplina intitulada “Parapsicologia e cura d’almas”, afirmava que a arma principal dos
curandeiros era a
sugestão, o que lhes permitia “obter curas espetaculares nas inúmeras
disfunções produzidas por influências psíquicas tais como emoções, desejos, medo”.
Conforme Schüler, através da sugestão a “vítima pensava que estava curada”, enquanto que
na verdade o que acontecia era apenas a eliminação dos sintomas, pontuando que a maioria
dos agentes de cura no Brasil era constituída por espíritas.
125
E concluía:
Não é preciso acrescentar mais nada para fazer que pessoas de coração bem
informado se interessem pela aquisição das noções claras sobre esse tipo de
fenômenos, coisas de enorme importância num país cada vez mais assolado e
dominado por indivíduos e movimentos de vários tipos, mas que mexem, todos,
com os imensos e misteriosos poderes do psiquismo humano, valendo-se muitos,
além disso, dos poderes que lhe são oferecidos pelos dominadores desse mundo
tenebroso, as forças espirituais do mal de que fala o apóstolo Paulo em Efésios
5.
126
Para Schüler, portanto, as “pessoas de coração bem informado”, estas sim resistiriam
aos “dominadores deste mundo tenebroso”. Trata-se de uma das expressões que nos pode
ajudar a compreender as tendências que se manifestavam no seio da IELB em meio ao
pluralismo religioso brasileiro. Entre o coração e a razão estava o
locus desde o qual Schüler e
outros se pronunciavam. Usava-se da ciência, mas para explicar a religiosidade “mágica” do
outro. A fronteira com o discurso da modernidade era, na verdade, o mais distante que podiam
ir. Ultrapassando-a, deixariam de ser confessionais e ortodoxos e a coesão se tornaria
insustentável. Tais processos, porém, não eram obviamente intencionais ou racionais, mas
flertes ocasionais de pessoas religiosas que habitavam a modernidade e dela se serviam para
freqüentar a religião.
Permaneciam, por outro lado, aquelas tendências demonizadoras do outro,
fundamentalistas, semelhantes às de Hasse ao fim da I Guerra, bastante atuantes entre os
líderes ielbianos, imiscuídas entre um mundo meio religioso, meio racional. Assim, por
exemplo, após enumerar uma série de “superstições”, tais como figa, ferradura, n° 13, pata de
coelho, pé de arruda, defumação, quiromancia, astrologia e numerologia, bem como “o
absurdo dos horóscopos e a influência demoníaca da Magia Negra, do Espiritismo e das
125
ML, 01-02/1985, p. 42. Arnaldo Schüler nasceu em 1925 e formou-se no Seminário Concórdia em 1949.
Também bacharel em filosofia, foi o 1° pastor da IELB em Pernambuco. Atuou ainda no ES e como professor no
Instituto Concórdia de São Leopoldo e no Seminário Concórdia. Traduziu, numa iniciativa oficial da IELB, o
Livro de Concórdia para o português, publicado em 1980. Doutor honoris causa pelo Concordia Seminary de
Saint Louis. Faleceu em 1999, em Porto Alegre. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 303 e memória
do autor; tb. IELB, página na internet.
126
ML, 01-02/1985, p. 42.
257
demais assim chamadas forças ocultas”, o pastor Lauro Petry, de Candelária, RS,
sentenciava:
127
Temos pena das pessoas dominadas pela superstição. Pois elas são levadas a
conhecimentos de falsos e absurdos deveres e, o que é pior, são levadas a confiar
em coisas antibíblicas e ineficazes. Assim como a fé nos coloca em união com
Deus, a superstição coloca as pessoas em união com as trevas satânicas. As
conseqüências da superstição são trágicas, catastróficas.
O supersticioso tem o seu sistema nervoso abalado. Não possui paz de espírito.
Falta-lhe serenidade, harmonia e alegria. É dominado por pensamentos perversos.
Torna-se rebelde, inquieto, melancólico e insuportável. O supersticioso é
facilmente tentado à prática do suicídio. O supersticioso é um sério candidato à
condenação eterna, pois ele perde a crença em Deus, a fé em Jesus Cristo e a sede
pela palavra de Deus. É muito comum o supersticioso abandonar,
inesperadamente, a comunidade cristã a qual pertencia.
128
O cristão, por sua vez, deveria, para Petry, ter a certeza de que Deus o abençoava
sempre, “inclusive no dia 13, na sexta-feira e no mês de agosto”. Dizia o pastor: “O cristão
detesta e combate a superstição (...) O cristão entrega sua vida e o seu caminho aos cuidados
do Senhor”.
129
Era, pois, preciso estar alerta em relação às forças demoníacas e místicas. Devia-se
evitar também qualquer coisa que desviasse de Cristo o centro das atenções. Todavia, encarar
a crença do outro como superstição, falta de informação ou como “coisa de gente simples”,
era já assumir a primazia da razão no campo da fé, visto que se entendia o Confessionalismo
bíblico ielbiano como a religião da
verdade revelada, informada pelo próprio Deus. Assim, ao
buscar a pertinência de sua mensagem para o mundo em que viviam, os líderes da IELB
atavam-se a desenvolvimentos da modernidade, por vezes em sua contramão, por vezes em
sua confluência – dinâmica reconhecível no Luteranismo desde seu surgimento.
Atestavam isso também as posições do pastor Dr. Hans Horsch, professor de
teologia sistemática no Seminário Concórdia, ao introduzir sua avaliação sobre a situação dos
“cultos afro-brasileiros”: “o surgimento constante de novas religiões, no mundo inteiro,
evidencia que o homem moderno, no meio da cultura científica e tecnológica da qual ele é o
criador, constata uma carência na área de sua vida espiritual”. A idéia era a do “ressurgimento
do sagrado”, comum às apreciações acadêmicas de então e presente na também reflexão desse
teólogo treinado na secularizada Alemanha. Entendia os “cultos afro-brasileiros” também sob
127
ML, 09/1984, p. 22-23. Petry foi pastor no Paraná e no Rio Grande do Sul. Nasceu em Maquiné em 1940 e
formou-se pelo Seminário Concórdia em 1964. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 318.
128
ML, 09/1984, p. 22-23.
129
Idem, p. 23.
258
essa ótica – ignorando sua presença sempre constante no Brasil desde o princípio do tráfico de
escravos. Tratava-se, para Horsch, de uma religião entre outras que surgia pela busca de
sentido de um ser humano perdido na modernidade. O sentido verdadeiro, por sua vez, a
IELB poderia oferecer. Quando não o fazia, era vítima de seus próprios problemas de
comunicação ou de sua “frieza espiritual”. Por isso, das mesmas manifestações afro-
brasileiras, Horsch trazia suas questões aos ielbianos. Para ele, a tradição religiosa africana
estava “muito próxima da ‘alma brasileira’” pois permitia “uma expressão espontânea e
autêntica do homem brasileiro determinado no seu comportamento por uma herança resultante
de diversas raças e culturas”. Tal situação representava, segundo o pastor, “uma pergunta para
todas as igrejas”: “O evangelho de Cristo é somente anunciado ou igualmente vivido? Até
onde, nas igrejas, encontramos somente um discurso escrito ou oral sobre o sagrado no meio
de estruturas eclesiais e institucionalizadas e deixa-se de lado a vivência desafiadora do
evangelho de Cristo que, com seu imenso amor, deve ser anunciado pelos membros de sua
igreja na ação e vivência em comunhão?”
130
A IELB de Horsch era, assim, uma igreja que, por querer-se missionária,
interessava-se também pelo sucesso de outros grupos, e deles extraía questões e ensinamentos
para suas próprias práticas. O evangelho anunciado, devia fazer sentido à alma brasileira. Para
isso, entretanto, a ortodoxia necessitava ser re-vista, re-conhecida em sua prática. Portanto,
mesmo onde se fechavam os líderes ielbianos ao diálogo ecumênico, terminavam eles por
extrair novos significados para suas práticas no intuito que partilhavam em buscar a “alma
brasileira”. E veja-se novamente uma argumentação entrecortada por apreciações científicas,
desta feita vinda do próprio campo das humanidades: as teorias sociológicas da
secularização.
131
A complexidade dos questionamentos que brotavam nas mentes dos líderes da IELB
em busca de espaço no campo religioso de então esteve também exemplificada nas
apreciações do pastor responsável pela missão ielbiana em Portugal, rev. Paulo Weirich, a
respeito do contexto religioso português. Perguntava Weirich:
130
ML, 06/1986, contracapa interna: “O Dr. Hans Horsch, nascido no dia 13 de junho de 1941 em Heidelberg,
República Federal da Alemanha, formou-se primeiramente como missionário no Seminário de Missões da Igreja
Luterana Livre, em Bleckmar. A partir de 1966 trabalhou como pastor da Igreja Evangélica Luterana do Brasil.
Em 1984 obteve o grau de Doutor em Teologia na Universidade Frederico-Alexandre em Nuremberg-Erlangen,
trabalhando atualmente como Professor de Sistemática no Seminário Concórdia em São Leopoldo, RS”. Foi
pastor da IELB em Pomerode, SC, e em Porto Alegre, RS, e diretor do Seminário Concórdia. Voltou à Alemanha
e trabalha atualmente em Munique. Tb. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 321 e memória do autor.
131
Ver, p. ex., Peter BERGER, O dossel sagrado, elementos para uma teoria sociológica da religião; em revisão
a sua teoria, ver idem, A dessecularização do mundo: uma visão global. Tb. os já referidos textos de Antônio
PIERUCCI e Reginaldo PRANDI.
259
Numa sociedade que se diz cristã por ser católica-romana, onde existem igrejas
protestantes centenárias, que ajustamentos temos que fazer como igreja na missão
de pregar e viver o Evangelho tal como o recebemos? Devemos aliar-nos ao
protestantismo português de cunho fundamentalista? Ou àquele de cunho
progressista? Vamos sublinhar o ecumenismo praticado com uns outros? Ou
procurar humildemente as boas graças da Igreja Católica? Ou então, se bem que
em alguns aspectos apoiemos uns e outros, deveremos permanecer humildemente
sós, como que desconhecidos, trazendo entretanto nos corações e lábios esta
preciosa herança, confessional que insistimos em compartilhar, mesmo que
poucos por ela se interessem?
132
A resposta positiva seria dada somente à última questão. Na percepção de Weirich,
no contexto pós-ditatorial português, a Igreja Católica estava perante a opinião popular
associada com os antigos e repressores donos do poder, e por isso carecia de prestígio. Dessa
situação, o mundo evangélico português tirava proveito. Assim, por exemplo, quando das
discussões ao redor do tema da liberalização do aborto, ao passo que a Igreja Católica
manifestara-se oficialmente contra, o mundo evangélico, apesar de também se posicionar
contrário, silenciara oficialmente, de modo que perante a opinião pública ficava a impressão
de que tais posições conservadoras pertenciam ao universo católico somente. Nesse sentido,
para Weirich, o que os protestantes compartilhavam era apenas sua oposição ao Catolicismo,
e tal resistência não era sistematizada doutrinariamente.
133
A IELB, por sua vez, buscava seu espaço diante de um povo que, conforme Weirich,
“se pensava católico”, com suas devoções populares a santas como Maria e Fátima e seus
setores “progressistas” preocupados com militância política. Além disso, 62,1% da população
via a religião como perdendo sua importância, e 22,4% a considerava dispensável. Nesse
contexto secularizante, o pastor Weirich construía um espaço de significação e de demanda
para a mensagem luterana confessional, considerando dados de uma pesquisa segundo ele
feita por uma equipe contratada por um jornal português: “Existimos portanto numa sociedade
desiludida com as religiões. Mas sabemos também que todos que hoje se afirmam
arreligiosos, desiludidos e anti-clericais, são também pessoas que não conseguem esconder
que ainda estão à procura e sem resposta”. E citava as conclusões da referida pesquisa: “Para
a maioria dos portugueses adultos de hoje a idéia de pecado é mais importante que a de
paraíso e o inferno é mais valorizado que a ressurreição e a vida eterna...
somos um povo
132
ML, 11/1982, p. 8. Weirich nasceu em Jaguari, RS (1947), e formou-se pelo Seminário Concórdia em 1969.
Antes de ir a Portugal, foi pastor em Carazinho, RS. Voltou ao Brasil para atuar em Canoas, RS, e ensina
atualmente no Seminário Concórdia e na ULBRA. Mestre pelo Concordia Theological Seminary, de Fort
Wayne. Cf. Carlos H. WARTH, Crônicas da igreja, p. 324 e memória do autor.
133
ML, 11/1982, p. 8-9.
260
obcecado pelo pecado e o castigo, e mesmo quando praticamos uma religião, acreditamos
pouco na salvação”.
134
Abriam-se, nessas constatações, as portas para a pregação da
justificação pela fé, núcleo duro da teologia luterana. Num contexto em que Deus, para a
maioria, conforme a pesquisa, era “alguém que do alto constantemente vigia nossos atos...
capaz de premiar ou punir as ações humanas”, ficava clara para um ielbiano a associação com
a necessidade da pregação do evangelho que libertara Lutero das mesmas amarras e
opressões. Nas palavras do pastor: “a Igreja Evangélica Luterana Portuguesa sente-se pequena
diante da responsabilidade que lhe foi dada em confiança do Senhor da Igreja de traduzir,
pregar e viver o evangelho claro e puro e administrar os sacramentos conforme a ordem e
instituição de Cristo”. E, diante da grande tarefa, confiava: “Deus provê os recursos e move
corações assim que esta pequena igreja prossiga no desempenho da missão que lhe foi
confiada e da qual agora toma real consciência”.
135
Inseria-se, assim, Weirich, naquele afã missionário compartilhado pelos ielbianos no
Brasil: a verdade ortodoxa precisava prevalecer “trazendo nos lábios e corações a preciosa
herança confessional”. Como pastor em um campo missionário, porém, estava diante da
necessidade recorrente de tradução de sua mensagem a um contexto diferente da qual
provinha. Construía, para tanto, novos espaços de significação, a partir, é claro, de antigas
estruturas de significado advindas da herança confessional luterana.
A missão centrada na verdade ortodoxa resistia. Como também se publicara
provocativamente em uma espécie de coluna de curiosidades a respeito de uma pesquisa
imaginária sobre as preferências religiosas no Império Romano: se essa tivesse acontecido,
“no ano de 65 d.C., elas [as preferências] se teriam revelado 51% por Júpiter, 30% por Zeus,
uns 9% por Mitra e 1% por Jesus. E o apóstolo Paulo, que andava fazendo a promoção de
Jesus, poderia ter ido para casa e desistido de tudo. Mas Paulo ficou... e o resultado foi o que
se sabe”.
136
A IELB pretendia-se a continuação desse resultado.
10. Algumas considerações
A IELB do final do Regime Militar brasileiro, diferentemente do contexto da I
Guerra, era uma ortodoxia que se construía em fronteira com uma heterodoxia dissimulada,
um inimigo não tão claro que se apresentava em frentes diversas. Ao passo que a sociedade
134
ML, 11/1982, p. 10 [grifo no original].
135
Idem, p. 10.
136
ML, 09/1984, p. 22.
261
brasileira tornava-se mais complexa e percebia sua diversidade, a própria IELB se tornava
também mais plural. Permanecia uma igreja confessional, sua confessionalidade, porém,
estava imbricada e potencializada em vozes diversas de pastores e leigos.
Era, nos anos 80, uma igreja que, afastando-se de suas origens na Alemanha e nos
Estados Unidos, partia na direção do Brasil e se queria brasileira. Por isso mesmo, precisava
constantemente traduzir-se e reavaliar-se. Repensava, assim, suas formas e sua exclusividade,
tanto política quanto doutrinariamente; e em função disso conhecia internamente a diferença,
a tensão e o debate. Tais contradições, todavia, não eram necessariamente sentidas como tal.
O discurso oficial continuava sendo o da unidade na doutrina e Confissões: identidades
múltiplas, vozes da ortodoxia.
Naquele contexto, a IECLB não era mais a inimiga de antes, mas uma recente e
potencial parceira, ainda que diferente. A Igreja Católica, por sua vez, deixara de ser “o”
anticristo e o confronto com o Catolicismo, ainda que presente, mudara de tom: passara de um
debate unilateral e agressivo a uma proclamação evangelizadora, que podia ir às fronteiras da
tolerância. Os demais grupos religiosos, porém, estes não eram aceitos como também
portadores da verdade. A crítica a eles, todavia, não partia mais somente desde dentro da
religião ortodoxa, mas também de informações advindas das ciências, utilizadas em desabono
dos novos inimigos, novas heterodoxias que iam sendo qualificadas.
Havia novidade também no campo político público: a liderança da IELB não se
queria mais “de fora” ou “desertora” de seu tempo. Tinham coisas a dizer, modos de
contribuir. Sua herança religiosa da Reforma provia antigos significados políticos a fazer
sentido em novas conjunturas. Um outro Lutero tomava lugar. A política tornava-se também
hierofania, lugar sagrado, e a doutrina dos dois reinos ganhava interpretações diferentes das
da I Guerra. Ainda que as propostas de participação pudessem divergir, a participação em si,
fosse como igreja ou individualmente, dava a tônica da opinião corrente.
As antigas estruturas do Luteranismo Confessional Ortodoxo, suas memórias,
discursos e identidades – o Confessionalismo, a Ortodoxia, o Pietismo – se faziam ainda vivas
e presentes, todavia ressignificadas e disputadas nas conjunturas diversas do Brasil dos anos
80. Experimentavam os ielbianos, naquele contexto, aproximações com universos políticos e
religiosos outrora desconhecidos. Neles se viam. Neles se re-viam. E dava-se assim a
dinâmica das mudanças e das permanências socioculturais entre as estruturas e os eventos.
CONCLUSÃO
Podemos agora voltar às questões que apresentamos na introdução: Como se deu a
formação desse Luteranismo Confessional Ortodoxo? Como pastores e líderes da IELB
construíram tal Luteranismo no Brasil? Que percepções acerca do lugar da igreja na sociedade
foram geradas nesse contexto?
Tentemos, então, elaborar algumas conclusões, divididas aqui em também três
pontos centrais, a partir dos argumentos e considerações que apresentamos.
1. O Luteranismo Confessional Ortodoxo do Sínodo de Missouri e da IELB é, ao mesmo
tempo, o resultado de longos processos de formação de estruturas socioculturais e de
recriações locais destas mesmas estruturas.
Com a Reforma do século XVI, o Cristianismo experimentou uma reorganização
estrutural que resultou no processo de confessionalização e, ulteriormente, no surgimento do
próprio Protestantismo. Instaurou-se uma nova duração com a Reforma, na qual a estrutura do
universo cristão foi reordenada. Conseqüentemente, os processos que envolveram os
desdobramentos desse primeiro momento, como a Ortodoxia, o Pietismo e o Racionalismo,
em meio a disputas políticas de diversas ordens entre o Dezesseis e o Dezenove,
possibilitaram o surgimento de teologias, mitos, memórias, discursos e identidades diversas
próprias ao Luteranismo e aos demais grupos. Criaram-se, assim, nesse contexto, também as
estruturas sociais e de significado sobre as quais ergueu-se, no século XIX, o
Confessionalismo. São as possibilidades e condições de surgimento da verdade luterana
ortodoxa.
O Sínodo de Missouri e a IELB são frutos desses processos. A ortodoxia de tais
igrejas afirma-se pela instauração autoritativa de um tempo arquetípico, entrecortado por
discursos e imagens, que teve sua formação nos desenvolvimentos que analisamos nos
capítulos 1 e 2. Trata-se do surgimento de discursos alinhavados em um “tempo fora do
tempo”, religioso e mítico, sempre novamente rememorado em outros discursos e práticas
datadas historicamente. Nesse movimento, os a priori, estes também históricos, que sustentam
263
as formações locais do luteranismo missouriano e ielbiano são articulados conjunturalmente.
Assim, por exemplo, de um lado, a ortodoxia se opõe a grupos que têm outras verdades, as
heterodoxias, de outro, é exercida como saber verdadeiro que se objetiva ao passo que se liga
a um passado fora do tempo.
A repetição simbólica da cosmogonia da nova vida em Cristo, um novo mundo que
surge e ressurge, uma nova criação ante o caos da vida social, dá à estrutura um fundamento
que pertence ao Cristianismo de modo mais amplo. Nessa dinâmica, um passado profano é
apagado e um novo tempo sagrado instaurado, na esperança de uma regeneração total do
tempo pelo retorno do eterno. A esta teofania primordial, porém, vão sendo agregados novos
eventos hierofânicos internos ao próprio Luteranismo Confessional. Assim, a nova vida em
Cristo é recebida pela fé que torna a pessoa justa diante de Deus e a conduz ao mundo: pura
graça, como foi com Lutero. No que temos a soteriologia luterana, ainda não delimitada ao
Luteranismo Missouriano. Dessa base, podem, então, surgir ainda novas especificidades, daí
sim como o Luteranismo Confessional Ortodoxo que estivemos analisando. Pelas instaurações
de tempos primordiais através de narrativas da Bíblia, da Reforma, das Confissões, de
Walther, ou de histórias como a do encontro entre Broders e Gowert na chegada dos
missourianos ao Rio Grande do Sul, se criam memórias e identidades confessionais que
conclamam uma origem mais pura, o fundamento da verdade confessional. Há, portanto, no
discurso intelectualizado do Luteranismo Confessional Ortodoxo da LC-MS e da IELB uma
lógica simbólica complexa que ressignifca eventos passados sem os quais o presente não
existiria. Tempos muito longos estão aí institucionalizados e recriados.
Todavia, ainda que existam componentes no repertório de significados e mesmo nas
formas de organização social da LC-MS e da IELB que remontem ao século XVI, o modo
como estes estão articulados nos discursos, memórias e identidades têm um re-começo ou
uma reorganização no Confessionalismo do século XIX. O ofício pastoral, por exemplo,
ganhou no Confessionalismo uma centralidade singular. Assim também a ligação intestina
entre Igreja e Confissão representa novidade. Surge, de certa forma, com o Confessionalismo,
uma outra nova duração interna ao Protestantismo, da qual a LC-MS e a IELB são ao mesmo
tempo herdeiras e cativas. O Confessionalismo Missouriano, nessa ótica, representa, no
Dezenove, o surgimento de um Deus que se fala intelectualizadamente através de uma igreja e
de seus pastores reunidos ao redor de suas Confissões em resistência à modernidade.
Por outro lado, as identidades, discursos e memórias que se geraram nesses processos
foram também negociadas nas práticas religiosas discursivas e não-discursivas dos contextos
brasileiros que analisamos. Há uma “gramática” que a conjuntura impõe à estrutura do
264
Luteranismo Confessional Ortodoxo.
1
Os confessionalistas ortodoxos, ao exercerem sua
confessionalidade, o fizeram em larga escala determinados por outros discursos e gramáticas
em trânsito, como por exemplo o Humanismo, o Iluminismo ou o Fundamentalismo. A
própria idéia de uma pureza confessional, de uma verdade que deve ser reconhecida
intelectualmente, revela o atravessamento do Luteranismo pelo Racionalismo, ou seja, o
aparecimento de um sujeito religioso racional. Assim também, por exemplo, o argumento
utilizado pelos missourianos no Brasil para desqualificar os concorrentes do Sínodo
Riograndense ao dizê-los germanistas e unionistas surgiu em um contexto no qual a negação
de intenções étnicas ou políticas foi a estratégia empregada para a continuação das atividades
missourianas. Já nos anos 80, diferentemente, a aproximação entre os dois grupos deu-se em
uma conjuntura em que se discutiam questões relativas à participação ecumênica e política
das igrejas. Perceba-se, assim, a confluência no discurso confessional missouriano no Brasil
de outras formações discursivas como o Germanismo, o Ecumenismo, a Teologia da
Libertação. Note-se também os processos pelos quais discursos são disputados e definidos em
práticas não discursivas e contingências sociais externas ao Confessionalismo. E temos, então,
na percepção sincrônica e diacrônica do fenômeno histórico, o Confessionalismo no
caleidoscópio.
Não existe, nessa ótica, uma ortodoxia, mas ortodoxias praticadas e objetivadas
relacional e historicamente. A Bíblia e as Confissões agem como a “matéria” que é articulada
nas relações, como uma espécie de referencial protodiscursivo a ser articulado em práticas e
discursos locais. O que é, então, contínuo? A idéia de pureza, a vontade de verdade como
disse Foucault,
2
e não tanto o Luteranismo Confessional Ortodoxo em si, seus discursos,
identidades, memórias, estes, conjunturais, dispersos, rarefeitos.
2. Os discursos, identidades e memórias do Luteranismo Confessional Ortodoxo foram
disputados e re-significados em conjunturas históricas específicas como o surgimento
do Stephanismo, a I Guerra e o final do Regime Militar.
Se não há uma ortodoxia, mas ortodoxias conjunturais, como se dá então o processo
de apropriação e recriação das estruturas nas conjunturas? A esta questão procuramos
responder pela análise das múltiplas disputas e negociações que marcaram a história do
Luteranismo da LC-MS e da IELB nos períodos delimitados.
1
Paul VEYNE, Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história, p. 269.
2
Michel FOUCAULT, A ordem do discurso, p. 14.
265
O surgimento do Luteranismo na Reforma do século XVI foi já o fruto primevo de
uma conjuntura política para a qual concorreram questões e disputas de ordens diversas.
Confluíram, assim, no Luteranismo, no Calvinismo, no Catolicismo Pós-Tridentino práticas e
discursos que vinham já se articulando pela via de uma macro-transformação das
mentalidades na Europa, que resultou no processo de confessionalização. Os
desenvolvimentos decorrentes da Ortodoxia, do Pietismo, do Racionalismo e do
Confessionalismo, estiveram entrecortados pelas tensões que envolveram o nascimento da
modernidade: a razão, a filosofia, a ciência, o Capitalismo, a urbanização, as guerras, a crítica
bíblica, a fé e a piedade – políticas da modernidade.
O Stephanismo, nesse contexto, foi o resultado de uma articulação conjuntural
singular desses fatores a priori, dessas estruturas. A personalidade forte e carismática de
Stephan, bem como suas vivências pietistas e confessionalistas, reuniram qualidades para que
outras pessoas fossem por ele atraídas, sedentas de verdades tradicionais justamente quando
estas estavam sob fogo cerrado. Das brigas políticas de Stephan e seus seguidores com os
poderes locais resultou a emigração saxã para os EUA. Sem Stephan, sem o Pietismo, sem o
Confessionalismo, portanto, não se compreende totalmente a Walther ou à LC-MS. Foi das
articulações práticas destas estruturas nos eventos da Saxônia e dos EUA que o Sínodo de
Missouri surgiu com sua teologia confessional.
É significativo, nesse sentido, que Stephan tenha se tornado o grande esquecimento
dos discursos do Luteranismo Confessional brasileiro, o que não aconteceu nos Estados
Unidos. O episódio foi totalmente suprimido das memórias que analisamos no Brasil. Não
havia, até agora, material em português sobre o caso. Identidades e discursos fizeram
regularmente a conexão direta da IELB a Walther e a Lutero e a Deus. Sem passar pelo
Stephanismo, o Luteranismo Confessional fica, de fato, mais puro. O tema mereceria
pesquisas posteriores de maior detalhamento.
Nas conjunturas brasileiras houve, da mesma forma, permanências, mudanças e
tensões. Durante a I Guerra a questão central que movimentou o discurso confessional girou,
primeiramente, em torno da Germanidade, depois dos conflitos com o universo do
Catolicismo. Impedidos de exercer sua missão de pregar o evangelho puro em alemão e
tachados de germanistas, os missourianos se disseram luteranos, não alemães. Sua missão era
antes de tudo religiosa, não política. Os adeptos da “igreja unionista alemã”, o Sínodo
Riograndense, estes foram tidos como afastados da verdade e, conseqüentemente, próximos
da Alemanha, terra-mãe que, em seus discursos, os missourianos transpareciam haver deixado
para trás há muito tempo. Já no contato com o Catolicismo, o embate foi ainda mais
266
agressivo, privilegiando a desqualificação do adversário pela via de sua demonização: o Papa
e Roma eram o próprio Anticristo. As memórias evocadas nesses contextos estiveram, então,
ligadas, por um lado, à pureza religiosa do Confessionalismo e de Lutero, o campeão da
verdade, por outro, às disputas com os unionistas alemães, representados pelos riograndenses,
e à infidelidade de Roma. Nesse (des)compasso, uma comunidade de (pastores) imigrantes
buscava significação religiosa e hierofânica para suas atividades, em meio a tantas disputas e
incertezas.
Ao final do Regime Militar, numa outra conjuntura, também as práticas foram outras.
Assim, se na I Guerra, pela existência de inimigos claramente definidos e de um problema
concreto a resolver que afetava diretamente as atividades do grupo, os líderes do Distrito
Brasileiro demonstraram uma notável coesão em seus discursos; nos anos 80, diante de uma
heterodoxia dissimulada e relativizada, bem como de complexas questões sociais que não
impediam as atividades do grupo diretamente, manifestaram-se vozes plurais e contraditórias
entre a liderança da IELB. Assim também, ao passo que surgia uma relação mais próxima
com a IECLB e não tão hostil com o Catolicismo, a questão da participação política impunha-
se e dividia os discursos e práticas oficiais da IELB.
Nessa ótica, os líderes da LC-MS e da IELB estiveram “fazendo política” durante
todo o processo que analisamos – ainda que dissessem que não. A forma específica da
ortodoxia na história, na estrutura da conjuntura, foi atravessada por relações de poder
definidas e disputadas ao redor de saberes, de dispositivos de controle, de modos de pensar,
de falar e agir que se destinavam a nortear a conduta das pessoas, processo que aconteceu pela
incorporação de mitos e tempos hierofânicos nos discursos onde foram geradas identidades de
modo relacional e histórico e, assim, político. Mesmo que a inserção no mundo social
aconteça pela via religiosa, ela implica também em posturas políticas.
Nesses processos, deu-se também uma significação dos espaços. Cerca de 700 saxões
migraram para os EUA, a fim de lá poderem viver sua fé pura e verdadeira sob a liderança de
seu pastor. Com a queda de Stephan, Walther assumiu a tarefa de significar aquela empresa
grandiosa com a ajuda de Lutero e da Teologia da Ortodoxia. Assim, os Estados Unidos e o
Brasil constituíram espaços, além de almas, a serem conquistados para a verdade. A Igreja,
nessa ótica, é espacialmente móvel, ela está onde estiverem os verdadeiros crentes. E onde
estes estiverem, lá estará o centro do mundo: recurso que flui de uma comunidade de
migrantes. A missão torna-se, então, também a conquista espiritual de um espaço a ser
267
sacralizado.
3
A própria Palavra confessional, o fundamento do discurso em sua materialidade
e sua intelectualização potencial, permite, assim, a mobilidade da igreja, a ressignificação
permanente e contínua de outros tempos e espaços profanos no esforço missionário, ou seja, a
criação de outros centros do mundo. “Ide por todo o mundo”, disse Jesus.
A comumente aceita compreensão estrita da IELB como protestantismo de
imigração
4
deve, nesse sentido, ser relativizada. Trata-se, sim, de uma igreja composta por
imigrantes e que nasceu no e do contexto da imigração, mas que, por outro lado, construiu
práticas, identidades, discursos e memórias, em conjunturas que evolveram recorrente e
fundamentalmente os esforços da missão confessional.
As permanências que garantiram a ortodoxia, nessas dinâmicas, foram possibilitadas
pelas próprias estruturas do Luteranismo Confessional Ortodoxo enquanto regra discursiva,
conjunto de procedimentos que ao mesmo tempo estrutura uma forma de pensar e falar e a
interdita a outras formas, consideradas falsas. Existem séries de tabus permanentes que agem
nesses interditos, definindo quem pode falar e qual o conteúdo autorizado. Conjunturalmente,
assim, o Luteranismo Confessional Ortodoxo resistiu justamente negando a secularização e
outros desdobramentos da modernidade. Resistiu como permanência de verdades absolutas,
como reticência de uma inteligência iluminista que se emancipou pela racionalidade para fora
do medievo.
5
Concomitantemente, porém, refez-se também no encontro com o novo, re-
estruturou-se justamente para combater o que foi considerado não ortodoxo na modernidade.
Refez-se para o “bom combate”.
3. Os discursos e práticas relativos ao lugar da igreja na sociedade que se geraram foram
diversos e não unânimes, mormente nos anos 80, e construídos internamente às
relações em que estiveram envolvidas a IELB e o Sínodo de Missouri nas diferentes
conjunturas.
As reatualizações dos mitos, teologias e tempos hierofânicos pelos discursos,
identidades e memórias que analisamos incidiram por sobre a inserção intramundana dos
luteranos confessionais ortodoxos, e vice-versa, ou seja, as práticas socioculturais também
incidiram sobre as estruturas de tempo longo. Nesse processo, à medida que novos eventos
3
Mircea ELIADE, Tratado de história das religiões, p. 308.
4
Para a diferenciação tipológica usual entre protestantismo de missão e protestantismo de imigração, ver
Antonio Gouvêa MENDONÇA, Evolução histórica e configuração atual do protestantismo no Brasil, p. 27-46,
29-30.
5
Michel FOUCALUT, Nietzsche, genealogia, história, p. 270.
268
hierofânicos surgiram, novas formas ou reformulações de mitos e teologias foram geradas e
inseridas nos sistemas pré-existentes, estes readequados e recriados. Nesse movimento
dinâmico que podemos entender como um Confessionalismo conjuntural, Walther e seus
herdeiros construíram uma religião e uma fé: significados para se defenderem do
insignificante, do nada, para escapar à esfera do profano, como disse Eliade.
6
Notamos, nesses processos, uma continuidade ou uma similitude de práticas e
discursos entre Walther e os líderes do 15° Distrito no período da I Guerra, a qual, porém, não
se repetiu unanimemente nos anos 80. Naqueles primeiros momentos, a principal idéia a
nortear identidades vislumbrava uma igreja imbuída de uma missão celestial: sustentar e
propagar a palavra verdadeira para a salvação das almas perdidas. Identidades, memórias e
discursos foram produzidos sustentando uma missão e um Deus que agiam “de fora” do
universo político. A política tornara-se território profano.
Por outro lado, como vimos, nos EUA o Sínodo terminou por envolver-se no apoio à
Guerra. O que impede, portanto, que reconheçamos práticas como concordâncias ou
conseqüências sempre bem arrumadas dos discursos. Há, por assim dizer, um já dito que se
diz e um já dito que não se diz. Da mesma forma que há um já dito que se faz e outro que não
se faz.
Nos anos 80, de outra forma, o debate político aconteceu internamente ao discurso
religioso e teológico. A política, então, tornou-se hierofania, lugar onde habita o sagrado, e as
disparidades se afirmaram de modo mais claro. Foram agregados, nesse contexto, aos
significados que conduziam à missão da pregação para salvação das almas, outros conteúdos
que advogavam uma missão integral, destinada também ao cuidado dos corpos.
Os ortodoxos da LC-MS e da IELB estiveram, portanto, entre os séculos XIX e XX,
ora mais ativos politicamente, ora mais passivos. Estiveram também, ora mais subordinados
ora mais críticos. E diversos fatores externos às Confissões nortearam tais condutas, que se
diversificaram tanto sincrônica, como diacronicamente. A concepção de missão sofreu,
portanto, alterações nos processos sociais brasileiros. Nesse movimento, também as
interpretações da doutrina dos dois reinos e do texto bíblico de Romanos 13 ganharam
contornos diferenciados. Nos anos 80, parece inclusive que o velho pessimismo luterano foi
sendo abandonado por alguns que assumiram atitudes mais positivas em suas práticas sociais,
ancorando-as, todavia, também em Lutero. As contradições, nesses eventos, simplesmente
não vieram à tona, ou não foram reforçadas ao ponto da cisão, ou não foram vividas e sentidas
6
Mircea ELIADE, Tratado de história das religiões, p. 37.
269
como contradições: alethéia e léthe em complementaridade a fundamentar identidades
múltiplas, vozes diversas da ortodoxia.
São estes os principais argumentos a sustentar nossa percepção da LC-MS e da IELB
não como um todo bem acabado e a-histórico, mas como uma ortodoxia plural e diversificada
internamente, desafiada pelo entorno social a apontar seu vir-a-ser e, por isso, transformada
pelas práticas históricas. Uma tal perspectiva pode, por um lado, abrir ao leitor interessado
algumas das dinâmicas que envolvem a auto-afirmação de uma religião ortodoxa. Pode
também, por outro lado, colaborar, pela relativização histórica, para a construção de atitudes
mais generosas e compreensivas entre nós, seres humanos que, tateantes, buscamos pela
verdade.
Uma vez que estivemos lidando nessas páginas principalmente com discursos e
práticas de pastores e líderes e, assim, identidades e memórias oficiais, faltou-nos, como já
havíamos apontado na introdução, a perspectiva do leigo comum. Seria interessante, nesse
sentido, que em um estudo posterior fosse averiguada a relação das pessoas leigas nas
comunidades com as verdades ortodoxas dos pastores, podendo-se incluir também outros
grupos religiosos além da IELB no universo da pesquisa. Poder-se-ia perguntar pelos modos
como os significados, identidades, memórias e discursos ortodoxos são recriados pelas
pessoas em suas vidas cotidianas e em meio a outras práticas que não as dos especialistas
religiosos, o que nos abriria novas perspectivas de compreensão, como representa, por
exemplo, a imagem de Lutero abaixo, criada por alguns jovens da IELB no final dos anos 90
por ocasião do Lutherstock, festival de bandas gospel inspirado no estadunidense Woodstock,
porém sem o sexo e as drogas, somente o rock’n’roll. Essa, todavia, é uma outra história.
(Imagem recriada por Priscila Bueno)
BIBLIOGRAFIA
1. Fontes Primárias: periódicos
Mensageiro Christão
Mensageiro Luterano
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