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LUÍS SOARES DE CAMARGO
VIVER E MORRER EM SÃO PAULO
A vida, as doenças e a morte na cidade do século XIX
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial
para a obtenção do título de Doutor em História Social, sob a
orientação da Profª Drª Denise Bernuzzi de Sant´Anna
PUC – SP
SÃO PAULO
2007
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Comissão Examinadora:
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VIVER E MORRER EM SÃO PAULO
A vida, as doenças e a morte na cidade do século XIX
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Resumo
O presente estudo tem como objetivo a análise das relações que se construíram na
sociedade paulistana do século XIX tendo em vista a presença constante das doenças e da morte.
Fonte de tensões e de arranjos, rica em elaborações que se forjaram no intuito de elucidá-la, a
morte será tratada enquanto parte de uma intrincada rede social vivenciada numa cidade em
constante transformação. Anotada a sua maior incidência entre crianças, mulheres, pobres e
escravos, coube investigar as possíveis razões para isso, bem como utilizar as quantificações
apuradas como base para a elaboração de tabelas que permitiram estabelecer a expectativa de
vida dos paulistanos em meados do século XIX. Estas, por sua vez, não estarão aqui inseridas
apenas enquanto demonstração senão, também, como fonte para outras análises. A morte,
portanto, torna-se o objeto de uma história complexa, por vezes ambígua, até porque, como
constatamos, ela é uma das várias etapas de um processo que, iniciado através do contato com a
doença, não se esgota com o fim da vida, posto que resta ainda um corpo, daí por diante
também transformado em fonte de conflitos e apropriações diversas. Numa interface com a
cidade, com seus problemas e costumes, essas complexas relações somente se tornam inteligíveis
e passíveis de serem desvendadas quando consideradas no bojo de uma sociedade
hierarquizada, submetida a diversas esferas de poder e com elas interagindo. Nesse sentido, a
doença e a morte estarão aqui sendo consideradas enquanto fenômenos sociais, objetos passíveis
de reflexão histórica, até porque elas não ocorreram apartadas do seu tempo, do seu espaço ou
dos indivíduos que as vivenciaram.
Palavras Chaves: São Paulo, século XIX, doença, morte, cemitério, demografia, expectativa de vida.
4
Abstract
In the present thesis we analyse the social relationships in the city of São Paulo in the
nineteenth century having in mind the constant presence of disease and death during this
period. Source of tensions and arrangements, rich in mental elaborations attempting its
elucidation, death is treated here as part of an intricate social mesh existing in a city in
permanent transformation. Noticing its greater incidence among the children, the women, the
poor and the slaves, we have investigated the probable reasons for this and quantified it in a
set of tables that made possible the evaluation of the life expectancy of the inhabitants of de
city of São Paulo in the mid nineteenth century. The tables are also used as source for further
analyses. Death thus becomes the object of a complex history, ambiguous at times, since it is
one of several stages in a process that starts by the contact with disease but does not end with
the end of life, for there remains a body that is to become the source of conflicts and
appropriations of diverse kinds. These complex social relationships in an interface with the
city, with its problems and customs, can only be understood and disclosed when considered
in the context of a hierarchical society submitted to several spheres of power and interacting
with them. This being so, disease and death will be approached here as social phenomena,
objetcs for historical reflexion, not the least because they do not occur secluded from their
time, their space, or the individuals that experience them.
Key Words: São Paulo, 19
th
century, disease, death, cemetery, demography, life expectancy.
5
Agradecimentos
A todos os professores da PUC-SP que me auxiliaram nesta caminhada.
Em especial agradeço à Prof
a
Dr
a
Denise Bernuzzi de Sant´Anna que se dispôs a
dividir comigo o seu vasto e erudito conhecimento e que me incentivou – às duras penas,
devo confessar – a ousar e ir além, buscando muitas vezes na simplicidade de um gesto ou de
uma palavra, a complexidade das experiências sociais, bem como a relação dos homens com a
cidade e com a natureza.
Agradeço também à Prof
a
Dr
a
Estefânia K. C. Fraga, orientadora no Mestrado, e que
muito contribuiu para o amadurecimento deste estudo.
Ao Professor Dr. José Leopoldo Ferreira Antunes pelas pacientes explicações sobre os
métodos e técnicas de análises demográficas, sem as quais não seria possível desenvolver,
com o rigor necessário, grande parte da tese.
Aos Professores Doutores Jaime Rodrigues e Maria Odila Leite Silva Dias pela leitura
atenta, pelos comentários, sugestões e conselhos preciosos.
Aos sempre amigos, Alfredo Pio N. R. Galeão, pelo incentivo e ajuda em momentos
difíceis e pelas discussões esclarecedoras sobre temas controversos; D. Celeste Figueiredo
Noronha Galeão, Celeste Aída N. R. Galeão, Emília Maria Galeão Lyra, Antonio Gilberto
Ramos Nogueira, Ana Rita e Carlos Magno Borella, Maria Eugênia Silva, Bertila Trevisan
Simioni, Gabriela Simioni de Araújo, Maria Inês Mecca, Maria José Sanfins, Hermes Simas,
Giancarla Giovanelli de Camargo e Maria Aparecida Soares de Camargo, bem como a todos
os amigos de Itatiba, também pelos incentivos e cobranças para a finalização do trabalho.
A todos os amigos do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís e, em especial, à
Celina Yoshimoto, Liliane Schrank Lehmann, Myrthes Mitue Samoto e Maria Stela F.
Nogueira de Lima. À Silvia Maria Galdino Bezerra de Lima, Elizabeth De Lucca e Breno
Berezovsky pelos incentivos.
Agradeço também à historiadora Amanda Aparecida Pagoto e aos colegas do Arquivo
do Estado de São Paulo; aos funcionários da Seção de Obras Raras da Biblioteca Municipal
Mário de Andrade, bem como aos amigos Jair e Roberto do Arquivo Dom Duarte Leopoldo
da Cúria Metropolitana de São Paulo.
6
SUMÁRIO
Apresentação ..................................................................................................................... 009
Parte I
Antigas ameaças e novas preocupações
Capítulo 1 - Foi Deus quem quis..................................................................................... 019
Capítulo 2 - A infecção no Anhangabaú........................................................................ 061
Capítulo 3 - A pestilência na várzea e no Tamanduateí.............................................. 100
Capítulo 4 - O pútrido nas ruas
4.1- Os tigres do quartel e da cadeia................................................................ 150
4.2- O despontar de um novo perigo............................................................... 161
Capítulo 5 - Novos caminhos
5.1- Afecção, Infecção e Poluição...................................................................... 198
5.2- A neurose da poeira.................................................................................... 212
Parte II
Vida breve
Capítulo 1 - Entre epidemias, febres e bexigas............................................................. 227
Capítulo 2 - A mortalidade infantil................................................................................ 282
Capítulo 3 - Uma frágil existência.................................................................................. 312
3.1- Esperança de vida: considerações preliminares e quadros resumidos..... 317
3.3- Tábuas de cálculos...................................................................................... 331
Capítulo 4 - O tempo: as idades da vida....................................................................... 346
Capítulo 5 - Diante da vida, a morte: o corpo e o cemitério
5.1 - Algumas hierarquizações: anjos e adultos, ricos e pobres................... 386
5.2 - Inquietações diante do corpo................................................................... 395
5.3 – Memórias, lembranças e esquecimentos................................................ 412
5.4 - Pobres, escravos e indigentes................................................................... 453
5.5 - Tensões e ambigüidades: o retorno dos mortos.................................... 470
Considerações finais.......................................................................................... 507
Créditos das imagens........................................................................................ 512
Fontes.................................................................................................................. 515
Bibliografia......................................................................................................... 521
7
“A doença pertence à história ... e não só à história
superficial dos progressos científicos e tecnológicos como
também à história profunda dos saberes. Onde estão as
febres terçãs e quartãs dos nossos antepassados?”
Jacques Le Goff, 1985
8
Apresentação
Quando da passagem por São Paulo, em janeiro de 1817, os viajantes Spix e Martius
observaram detalhadamente as características das doenças que atingiam os paulistanos.
01
Estas, concluíram eles, divergiam em muito das dos moradores do Rio de Janeiro e das
províncias do norte e, conforme a análise que fizeram, isto ocorria “tanto pela diversidade da
constituição física dos habitantes, como do clima”. Ao completar o relato, disseram ainda os
mesmos viajantes que:
“aqui se encontram, mais comum do que nas províncias do Norte, o
reumatismo e estados inflamatórios, sobretudo dos olhos, peito, pescoço e,
por conseqüência, tuberculose dos pulmões e da laringe, e blefarites
[inflamação das pálpebras]. As doenças gástricas são, pelo contrário, mais
raras e aqui não existem a fraqueza geral do sistema digestivo, assim como
cardialgias, que parecem andar de par com o calor do país, e tornam-se quase
diátese geral dos habitantes das regiões situadas mais perto do Equador.”
02
Bastante utilizadas como fontes para descrever a história de São Paulo de início do
século XIX, as memórias de Spix e Martius muito serviram para a construção de uma
historiografia que valorizava a terra e os feitos dos paulistas, uma “raça de gigantes”, cujo
melhor exemplo seria a forjada imagem do bandeirante nas primeiras décadas do século XX.
Nesse caminho, e em especial a partir da segunda metade do século XIX, época em que o
crescimento econômico alavancou a construção de um passado épico para São Paulo, o fator
climático foi muito utilizado como subsídio para análises que diziam respeito não apenas à
melhor compleição física dos moradores, senão também para valorizar o caráter
empreendedor dos paulistas, o seu pioneirismo, a sua coragem.
03
Este clima, mais ameno do
01 - Johann Baptiste von Spix, zoólogo, e Carl Friedrich Philipp von Martius, botânico. Os dois alemães, fizeram parte
da comissão científica austríaca que veio ao Brasil em 1817, tendo permanecido no país por cerca de três anos.
0
2 - Spix, Johann Baptist von; “Viagem pelo Brasil: 1817-1820/Spix e Martius”; S.P. Edusp e M.G. Itatiaia, 1981; p. 145 e 146.
0
3 - Exemplar nesse caso é o texto de João Alberto Salles, publicado em 1880, com o sugestivo título de "Como o
clima da província de S. Paulo influi sobre o caráter de seus habitantes", e do qual destaco os seguintes trechos: "Bem
diferente sem dúvida é o clima da província de São Paulo do das outras províncias do império. (...) ao mesmo tempo, que
(nelas) aparecem quase periodicamente os terríveis flagelos da seca e da fome, mantém o clima de São Paulo um justo meio
termo, não sendo nem muito rigoroso no inverno nem no verão, e servindo antes para estimular a energia do homem do que
para sufocar as variadas manifestações do seu engenho. (...) Em S. Paulo não há como no Amazonas e no Pará, superioridade
das forças físicas (da natureza "exuberante") sobre a energia humana; aqui o clima é regulado de modo a incutir vigor no
animo do homem e não desalento; os agentes físicos são inferiores aos estímulos da inteligência. (...) Daí a proverbial energia
dos paulistas, revelada desde os tempos coloniais. (...) D´onde vem essa energia? Qual a razão de não se encontrarem exemplos
semelhantes nas outras províncias? Parece-nos que a explicação desse fenômeno encontra-se em parte na influência benéfica
que sobre o desenvolvimento da atividade humana exerce o clima desta província. (...)" Salles, João Alberto de; "Como o
clima da província de S. Paulo influe sobre o caráter de seus habitantes"; In: “Almanach Litterario de S. Paulo para 1880”;
Ed. fac-similiar, Governo do Estado de S. Paulo e Instituto Histórico e Geográfico de S.P., s/ data, p. 173 a 187.
Alberto Sales (1855-1904), era irmão de Campos Salles. Estudou engenharia nos E.U.A e formou-se em Direito em
9
que “nas províncias do norte”, foi sempre elogiado e tido como altamente benéfico para a
saúde dos moradores e, nesse sentido, disseram os mesmos viajantes que
também as febres
intermitentes (sezões) são raras em São Paulo, e quando aparecem, são freqüentemente devidas a
catarros e reumatismos, a que predispõem o menor calor local e as mudanças rápidas de temperatura.”
04
Esta análise consolidava a opinião do médico sueco Gustavo Beyer, que aqui estivera
quatro anos antes, época em que descreveu a Capitania de São Paulo como “o paraíso do Brasil
por causa de sua altitude e seu ar saudável e fresco”, chegando mesmo a classificá-la como o “lugar
mais saudável de todo o continente americano”. Em seu detalhamento, o médico diria ainda que “os
casos de moléstia são raros em São Paulo, não existindo na cidade qualquer epidemia”.
05
Décadas mais tarde o poeta Álvares de Azevedo, estudante da Faculdade de Direito
entre 1848 e 1851, escreveria à sua mãe no Rio de Janeiro dizendo que o mal que lhe afetara
“não foi coisa de muita importância, mesmo porque São Paulo não é clima de febres”
06
, completou.
Este relato de Álvares de Azevedo ganha certa credibilidade, pois sabemos que ele era um
crítico mordaz da cidade e por diversas vezes teve a oportunidade de tecer comentários nada
enaltecedores à urbe e aos costumes dos paulistanos.
0 7
Contemporâneo dos viajantes Spix e Martius, o naturalista francês Auguste Saint-
Hilaire, que esteve em São Paulo pela primeira vez em 1819, anotou em seus cadernos o
discurso de um dos presidentes da província, proferido em 1844, onde o mesmo dizia que “é
indiscutível que o clima de nossa cidade é bastante salubre, porquanto, durante seis meses do ano, ela
permanece, por assim dizer, no meio de um lago formado pelas enchentes do Tietê e do Tamanduatehy,
sem que, entretanto, a saúde de nossos concidadãos sofra qualquer alteração.” Mas, comentando esta
fala, e já um tanto quanto desconfiado, Saint-Hilaire completou com suas próprias palavras
dizendo que:
“é incontestável que a posição elevada de São Paulo e os ventos que reinam
na região preservam seus habitantes das febres e de outras moléstias
endêmicas que semelhantes inundações provocam em muitos outros lugares.
Entretanto, custa-me acreditar que as inundações ocorridas anualmente em
São Paulo nenhuma influência tenham contra a saúde pública. (...) Em São
Paulo muitos indivíduos encontrei com a pele amarelada e ar doentio.”
08
Os relatos de uma São Paulo saudável permearam o discurso de inúmeros forasteiros
São Paulo. Foi jornalista e diretor da Escola Normal de São Paulo.
0
4 – Spix e Martius, op. cit.
0
5 - Beyer, Gustavo; Ligeiras notas de viagem do Rio de Janeiro à capitania de São Paulo, no Brasil, no verão de 1813,
com algumas notícias sobre a cidade da Bahia e a ilha Tristão da Cunha, entre o Cabo e o Brasil, e que há pouco foi
ocupada; Trad. de Alberto Löfgren, In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S. P., Vol. XII, 1907, p. 275 a 329.
0
6 - Azevedo, Manuel A. Álvares de; “Obras Completas”, Org. Homero Pires, S.P., Cia. Ed. Nacional, 1942, Vol. II, p. 475.
0
7 – Desde a infância, Álvares de Azevedo sofria com problemas relacionados à saúde; de compleição frágil,
sofreu durante alguns anos com as mais variadas “febres”; adquiriu tuberculose ainda jovem e sofreu uma
cirurgia para a remoção de um tumor na fossa ilíaca, provavelmente uma apendicite suporada. Dessas
complicações ele faleceu no dia 25 de abril de 1852, no Rio de Janeiro, aos vinte anos de idade.
0
8 - Saint-Hilaire, Auguste; “Viagem à Província de São Paulo”, S.P., Livraria Martins Editora, 1945, p. 183 e 184.
Nesta edição, em nota de rodapé, explica-se que o discurso foi proferido pelo então presidente da província,
10
que por aqui passaram no decorrer do século XIX e seria mesmo cansativo citar a todos.
09
Entretanto, se tomarmos como base outras fontes – como os registros de sepultamentos de
finais do século XVIII e início do XIX – algo de diferente, e não condizente com as descrições
apontadas, se nos apresenta. Com respeito às febres, por exemplo, Maria Luiza Marcílio já
nos mostrou que, entre as doenças especificadas nas causas de morte, nenhuma superava este
mal (classificadas como febres intermitentes, febre podre ou febre maligna) com um total de
260 casos, entre 1799 e 1809, registrados na paróquia da Sé. A segunda causa de mortes no
mesmo local e período, explica Marcílio, eram as verminoses com 177 casos, que atingiam
especialmente as crianças e, em terceiro lugar, estavam as doenças do parto e puerpério
(período subseqüente ao parto) com 160 mortes.
10
Este quadro, apresentado por Marcílio, não
vai sofrer grandes alterações até finais do século XIX. Em 1860, por exemplo, as “febres”
ocupavam o segundo lugar entre as causas de falecimento, com 53 registros; em 1882 elas se
mantiveram em segundo lugar com 57 casos e, em 1890, já estavam em primeiro com 232
casos anotados de falecimento, superando mesmo os de tuberculose com 201 registros.
Mesmo nos primeiros anos do século XX, como se verá adiante, as febres se mantiveram
sempre entre as doenças mais letais para os paulistanos, oscilando entre os segundos e
quartos lugares em todas as estatísticas de morte no período entre 1908 e 1912.
Ora, estariam então equivocados os relatos inicialmente apresentados dos viajantes?
Sim e não. Em primeiro lugar, devemos atentar para o fato de que as mortes ocorridas no
século XIX e que hoje poderíamos considerar como prematuras, não eram exclusividade do
Brasil, pois estas também ocorriam em grande quantidade na Europa. E surtos epidêmicos,
apesar de serem vistos como momentos de exceção eram, de fato, uma rotina tanto aqui
quanto lá. Em segundo lugar, é preciso lembrar que a situação encontrada em São Paulo
estava sendo descrita sempre em relação às outras localidades, como as “províncias do norte”
ou com o Rio de Janeiro. Nesse sentido, e certamente pela comparação com outras cidades,
talvez as condições presentes em São Paulo fossem menos graves e as mortes, quiçá, não
chamassem tanto a atenção dos estrangeiros, estes já bem acostumados com sua grande
ocorrência.
11
De qualquer forma, e tomando como exemplo o caso das “febres”, elas
estavam sim na categoria das doenças mais temidas pelos paulistanos, não ganhando
Manuel Felizardo de Souza e Melo, no dia 07/01/1844.
0
9 - Para a primeira metade do século XIX destacam-se, além dos viajantes aqui citados, John Mawe, Von Martius,
Daniel P. Kidder, dentre outros. Para a segunda metade do século XIX ver: Emílio Zaluar, Tschudi e Koseritz.
10 - Marcílio, Maria Luiza; “A Cidade de São Paulo: Povoamento e População, 1750-1850”, S.P., Pioneira e Edusp,
1973, p. 176. Como base para este estudo, a autora utilizou-se dos Registros Paroquiais de sepultamentos.
11 - Apesar das análises dizerem respeito a São Paulo, bem como a sua comparação com o restante do país, é
preciso lembrar que o Brasil como um todo, e isso até meados do século XIX, era tido uma região bastante
saudável; esta perspectiva, posteriormente, altera-se radicalmente quando então os médicos acadêmicos
“descobrem” um país doente. A esse respeito veja Sidney Chalhoub (1996, p. 60 e seguintes), bem como Lilia
Moritz Schwarcz (2005, p. 224 e seguintes).
11
muita importância para este estudo o fato de que, certamente, elas fossem sintomas de algo
mais grave. No século XIX, morria-se mesmo era de
febre, e assim devemos considerar, pois era
a aparência e o visível que contava. A classificação das atuais doenças (ou causas de morte) é
algo recente e, como sabemos, altera-se a curtíssimos prazos, sempre ao sabor das novas
descobertas.
12
Durante boa parte do século XIX, ao contrário, o que hoje chamamos de
sintomas era a doença em si o que, é claro, era capaz de abrigar uma gama variada de males.
Não podemos nos desviar muito desse caminho, pois correríamos o risco de perder de vista
uma situação intrínseca daquela época, alguns aspectos importantes sobre a vida e o
cotidiano dos antigos paulistanos e, mais especificamente, ficaríamos mais distante de um
entendimento sobre os pequenos e grandes temores que se faziam presentes.
Diante da vida, eis que notamos a presença sempre constante das doenças e da morte,
fato este que redundou, por exemplo, na elaboração de diversas estratégias visando tanto sua
cura quanto um trespasse seguro. Já estamos, portanto, no primeiro capítulo desta tese, onde
apresentamos e analisamos algumas concepções sobre os males que afetavam o corpo numa
sociedade dinâmica, composta por brancos e negros (escravos ou libertos), ricos e pobres,
com alguns poucos representantes da medicina acadêmica e muitos outros especialistas nas
artes de curar, a exemplo de benzedeiras e curandeiros de diferentes matizes. Conjugadas em
alguns momentos e apartadas em outros, essas práticas acabaram por nos indicar que a
história da saúde não pode ser vista apenas sob o prisma da ciência médica e, mais ainda, que
a emergência desta como a única portadora da cura resultou na desapropriação de um saber
popular, tema este que será retomado em outros momentos do estudo.
Mas levando em consideração o fato de que algumas condições presentes na cidade
estavam sim na origem de muitas doenças – aqui incluindo os hábitos e costumes de seus
habitantes – exercitamos uma viagem pelas ruas, ladeiras, becos, rios e várzeas da São Paulo
do século XIX tentando investigar as possíveis causas para os males que tanto afetavam seus
moradores. Além disso, nesse mesmo percurso foi possível verificar os usos que os
paulistanos faziam dos espaços da cidade, bem como os conflitos então vivenciados. O meu
olhar, é claro, carregado de concepções e conhecimentos deste início do culo XXI, esteve
sempre voltado para os perigos, para aquilo que meus poucos conhecimentos conseguiram
12 - Atribui-se ao inglês John Graunt o primeiro estudo estatístico sobre doenças e causas de morte que se chamou
“Natural and Political Observation Made Upon the Bills of Mortality”. Publicado em Londres no ano de 1662, listava um
total de 83 doenças. Em 1893 o francês Jacques Bertillon, chefe dos serviços de estatística de Paris, apresentou aquela
que seria conhecida como a primeira “Classificação Internacional de Doenças” (CID) com 161 categorias ou causas de
morte. Revisada aproximadamente a cada 10 anos, até 1992 encontrava-se em vigência a 9ª CID (ou CID-9), contendo
um total de 1.178 (mil cento e setenta e oito) doenças ou causas de morte. Atualmente, a comunidade médica trabalha
com a CID-10, esta contendo um total que chega a 2.032 (duas mil e trinta e duas) causas de morte. A esse respeito ver
“CID-10 Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde”, 10ª ed. Revisão; S.P.,
EDUSP, 1994 e Laurenti, Ruy; Análise da informação em saúde: 1893-1993, Cem anos da Classificação Internacional de
Doenças, In: Revista de Saúde Pública, vol. 25, nº 06, S.P., Dezembro de 1991.
12
identificar como prováveis causas de doenças e de morte.
Em seguida, e já fechando esta primeira parte do estudo, analiso mais de perto a
emergência e o embate entre as teorias médicas e de como as mesmas acabaram por influenciar
o despontar de novas sensibilidades numa cidade que se queria “civilizada”.
Após essas primeiras análises nos aproximamos das doenças, e em especial daquela
que era a fonte dos maiores temores entre os paulistas, ou seja, da varíola então conhecida
como bexiga. Seja em decorrência das epidemias, das “febres” ou de outros males que
afetavam especialmente as crianças, constatamos a priori que as taxas de mortalidade eram
altas na São Paulo do século XIX. Coube então quantificá-la, dando-lhe uma visibilidade
através dos números, até como forma de comprovar a sua grande ocorrência. A partir desses
dados, foi possível elaborar alguns quadros que indicam a esperança de vida para os
paulistanos entre as décadas de 1870 e 1880. Claro que para além dos números, o desafio aqui
é o de trazer a fragilidade da vida humana no século XIX como um problema, buscando na
história suas relações e interfaces, até porque essa fragilidade hoje pode assim ser entendida,
mas naquela época não o era.
Por fim, e já que diante da vida está a morte e que diante da morte resta um corpo, o
último capítulo tratará das apropriações, hierarquizações e tensões provocadas pela morte.
Como será visto, a história da morte não termina com o fim da vida.
As possibilidades de análises que o tema oferece não se esgotam com este trabalho.
Esta é uma certeza que se coloca uma vez que o mesmo tema poderia, por exemplo, ser
estudado no mesmo espaço, mas em épocas diferentes ou ainda tendo em vista outras
abordagens: ou bem a morte, ou bem as doenças; ou ainda em diferentes perspectivas como
se nos apresenta a história da morte ou do morto, das doenças ou dos doentes.
Pensando no primeiro problema, o corte cronológico privilegiou o século XIX, mas
sempre que necessário, recorro também às últimas décadas do XVIII e primeiras do XX. As
razões para essa escolha justificam-se seja pela possibilidade de cálculos mais seguros, seja
pelas grandes rupturas se fizeram sentir naquele período; São Paulo, por exemplo, inicia o
oitocentos ainda com “ares” de vila colonial, aspecto este perceptível não apenas na sua
arquitetura e na disposição geral da urbe mas, também, nas várias práticas dos moradores,
então muito próximas das concepções de mundo dos séculos XVIII e mesmo do XVII. Nas
últimas décadas, porém, encontramos a mesma cidade inserida num outro contexto, já com as
características de uma “jovem metrópole”, como diria Richard Morse
13
, que experimentava e
sofria com um aumento populacional explosivo, especialmente nas últimas décadas; e que
recebia com mais rapidez as novidades produzidas no exterior. Por conta disso, práticas e
13 - Morse, Richard M.; De comunidade a metrópole – Biografia de São Paulo; S.P., Comissão do IV Centenário, 1954.
Ver especialmente a parte III, “Surge a Cidade-Organismo”.
13
comportamentos foram alterados e, no decorrer de 100 anos, encontramos expressivas
modificações no entendimento dos males e nos “caminhos da morte”. Em suma, é mesmo no
oitocentos que se inicia uma ruptura entre a concepção sobrenatural dos males e os
ensinamentos da medicina acadêmica, o que nos leva a perceber, por exemplo, os intrincados
rumos que a morte vai tomar. É ainda no século XIX que, paulatinamente, a doença e morte
escapam ao entendimento popular, distanciamento este que se consolida no novecentos.
Assim, entendo que é mesmo no século XIX que se lançam as novas bases para um velho
jogo: o da doença e da saúde que, a partir do século XX em São Paulo, passou a ser jogado
“cada vez menos em casa do doente e cada vez mais no palácio da doença, o hospital.”
14
Com respeito às diferentes abordagens que o tema proporciona, optei por trabalhar
com a doença e morte numa relação conjunta e isso, outra vez, tendo em vista os dados mais
seguros oferecidos pelas fontes. Não obstante, no último capítulo foi possível fazer emergir
não apenas uma história da morte senão, também, dos homens diante dos mortos. E aqui,
como poderá ser visto, desaparecem as sutilezas indicadas pelas palavras.
Com o objetivo de estudar o desenvolvimento desse complexo processo na cidade de
São Paulo do século XIX, escolhi como fontes principais três coleções de documentos: as
Atas
da Câmara Municipal, os chamados Papéis Avulsos do Arquivo Histórico Municipal e os
Livros de Inumação dos cemitérios públicos.
Da primeira coleção, já bastante conhecida e utilizada como subsídio por diversos
pesquisadores, é preciso dizer que ela guarda ainda um enorme potencial. A sua leitura no
original foi extremamente importante seja para a investigação de aspectos até então não vistos,
seja para a complementação de várias outras informações. Mais ainda, as Atas – e aqui incluindo
a sua condição de documentação seriada - oferecem uma rara oportunidade para o
entendimento dos agentes que atuavam na cidade em diferentes períodos, pois nas reuniões dos
vereadores os problemas urbanos estavam sempre em pauta, propostas eram apresentadas e
discutidas, sendo muito comum o afloramento de diferentes posicionamentos, ou de forças
políticas, num embate que hoje se nos apresentam como bastante reveladores. Assim, torna-se
possível recuperar através das Atas as várias falas sobre uma mesma questão, os projetos e os
debates travados; podemos, além disso, examinar as propostas não vencedoras para tamm
incluí-las na história. Cabe ainda ressaltar que a cidade de São Paulo é privilegiada nessa questão,
pois possui esses documentos desde os seus primórdios: a primeira Ata remonta a 1562 e a série, já
transcrita e publicada, vai até 1903 (com uma pequena interrupção nos últimos anos do século
XIX), somando um total de 85 volumes impressos.
Os Papéis Avulsos, por sua vez, podem ser entendidos como uma complementação das
14 - Le Goff, Jacques, Uma história dramática; In: As doenças têm história, 1985, p. 08. O autor analisa a questão em
outro contexto, ou seja, na Europa e faz esta referência tendo como base a Idade Média.
14
Atas. Nas reuniões dos vereadores, dezenas de papéis eram recebidos, despachados e arquivados.
Posteriormente (no início do século XX), toda essa massa documental foi classificada
genericamente como Papéis Avulsos e agrupada em volumes por ordem somente cronológica. Esses
documentos não se encontram transcritos e nem publicados, não existindo também qualquer
instrumento remissivo para o resgate das informações. Nesse caso, torna-se necessário efetuar uma
leitura completa de todos os documentos do período escolhido o que, certamente, contribuiu para
o quase ineditismo dessa fonte; somente há alguns anos ela está sendo incorporada aos estudos
sobre a história da cidade. De qualquer forma, são nos Papéis Avulsos que encontramos os
relatórios dos fiscais urbanos, as correspondências trocadas entre os vereadores, médicos e
engenheiros e, principalmente, os abaixo assinados da população seja denunciando alguma
irregularidade, seja reclamando e apresentando soluções. Esta coleção encontra-se disposta em
2.058 volumes que percorrem o período de 1800 a 1909 e, para que tenhamos uma idéia da
quantidade de documentos, basta dizer que no início do século XIX temos, para cada ano, uma
média de 200 a 300 documentos arquivados; já nas décadas de 1840 e 1850, esse número sobe para
1.200 documentos, que dobram sucessivamente até o início do século XX.
Como terceira fonte temos os chamados Livros de Inumações (ou de sepultamentos) dos
cemitérios municipais. Esta documentação começou a ser produzida no âmbito municipal a
partir de 1858, data da inauguração do Cemitério da Consolação, o primeiro cemitérioblico a
céu aberto que atendeu a região central cidade. Antes disso, os corpos eram sepultados no
interior das igrejas católicas, nos pequenos cemitérios paroquiais, ou no chamado Cemitério dos
Aflitos, este também administrado pela Igreja e destinado aos escravos e condenados pela justiça.
Nesse sentido, documentos similares a estes e anteriores a 1858 podem ser encontrados no
Arquivo Dom Duarte Leopoldo da Cúria Metropolitana.
Ainda a espera de pesquisas mais aprofundadas, esta fonte tem servido mais para estudos
de genealogia, para a obtenção da 2ª via do Atestado de Óbito, ou para resolver questões familiares
como a posse de túmulos, terrenos e jazigos. Mas esses registros se constituem também numa fonte
preciosa para os estudos históricos sobre saúde, higiene e diversos outros temas relacionados com
a cidade. Para um melhor entendimento dessa documentação, transcrevo a seguir dois exemplos
encontrados nos livros do Cemitério da Consolação, o primeiro deles de uma personagem bastante
conhecida, e o segundo referente a um escravo:
Marquesa de Santos
“Aos 4 dias de novembro de 1867, foi sepultada no cemitério monicipal, na sepultura feita na rua
larga do meio que sai da capella para o lado da cidade, descendo o lado direito, e sepultura nº 3,
nella está sepultado o cadáver da Exma. Sra. Marquesa de Santos, morreu conforme o atestado
15
seguinte: atesto que a exma. sra. Marquesa de Santos morreu hontem as (...) horas e meia da
tarde de uma enterocolite. S. Paulo 4 de 9bro de 1867, G. Elis. Sepultou no cemitério publico. S.
Paulo 4 de 9bro de 1867, o coadjutor Padre Joaquim Theodoro Arrego Tavares. Nada mais
constava a dita guia, o Administrador Faria.”
Antonio – Escravo
“Aos 8 dias do mes de janeiro de 1863 foy sepultado no cemitério monicipal no Quadro Geral
sepultura nº 29 o cadavel de Antonio, fallecido hontem nesta Freguesia no Hospital de Caridade
de diarrea, com 60 anos de idade, criollo, filho de M. e de sua mulher Antonia, Escravo da Snra.
D. Maria Joanna Gavião, pode ser sepultado no Semeterio Publico. S. Paulo 8 de Janeiro de 1863.
O Cura Marcelino F. Bueno. Nada mais constava a ditta guia, o Administrador Faria.”
É preciso lembrar que, a partir de 1858, proibiu-se (com raras exceções) qualquer outro tipo
de sepultamento que não nos cemitérios a céu aberto. Por isso, e até a década de 1950, encontram-
se no Arquivo Histórico Municipal o registro de mais de 2 milhões de sepultamentos contendo,
como visto acima, a identificação de cada pessoa, sua idade e condição, a data e a hora do
falecimento e, também, a causa da morte. Em seu conjunto, esses registros expressam ainda
inúmeros aspectos a respeito da vida dos habitantes de São Paulo em diversas épocas, assim como
algumas das transformações sociais, econômicas e culturais da cidade. Apesar de não estar
presente neste estudo, sob essa perspectiva tal documentação poderia revelar, por exemplo, uma
cartografia social e territorial da morte e das doenças na cidade, sendo possível ainda propor as
seguintes questões: quais eram as doenças que mais afetavam os paulistanos e que causavam sua
morte em diferentes períodos históricos? Diferenciando por cada bairro da cidade (mediante os
cemitérios locais), poderíamos perceber diferenças entre as doenças que mais afetavam os
moradores do Brás (um bairro operário) dos de outras regiões mais ricas como Higienópolis?
Dentre os inúmeros estudos possíveis, poderíamos ainda trabalhar com a questão de gênero, ou
seja, identificando quais as doenças que mais afetavam homens e mulheres nas diferentes fases da
vida e em períodos históricos dos mais diversos. Lembro ainda que esses mesmos registros podem
também subsidiar estudos sobre a escravidão e sobre a vida dos escravos em São Paulo. De tudo
isso, depreende-se que os registros da morte são, na verdade, registros da vida, e aqui os mesmos
serão assim considerados para revelar aspectos ainda não totalmente desvendados da história da
cidade e dos próprios paulistanos.
Vale ainda citar que, nessa mesma perspectiva, foi desenvolvido, no período de 2002 a
2003, o projeto denominado “Registros da Morte ... Registros da Vida – A informatização dos
registros de sepultamentos realizados no município de São Paulo no período de 1858 a 1940.”
Coordenado pela Prof
a
Dr
a
Denise Bernuzzi de Sant´Anna através do Programa de Pós-
Graduação em História da PUC/SP, e tendo como instituição parceira o Arquivo Histórico
Municipal, os trabalhos foram desenvolvidos com base nos sepultamos realizados no Cemitério
do Braz.
15
Durante a sua vigência, cerca de 25.000 (vinte e cinco mil) registros de óbitos de
15 - Tendo como proponente a Profa Dra Denise Bernuzzi de Sant´Anna, orientadora desta tese, a coordenação
16
corpos inumados naquele cemitério foram informatizados e disponibilizados à consulta
blica. Seja pela quantidade de dados, seja pelo período que abrange (de 1893 a 1916), esses
dados acabaram por se constituir numa importante fonte para a história das camadas médias e
baixas da população, ou dos imigrantes e operários, uma vez que era esta a característica
daquele bairro paulistano. Apesar de sua não continuidade, reputo este projeto como um dos
mais importantes dos quais participei, pois além de sua relevância pública, o mesmo conseguiu
ampliar em muitas vezes o meu entendimento sobre o tema da morte em São Paulo e, nesse
sentido, os mesmos subsidiam algumas das análises efetuadas.
Como complementos para essas fontes, utilizo-me também dos relatórios produzidos
pelos intendentes e prefeitos, do relato de alguns viajantes, da imprensa e, também, arrisco-me
na literatura, apoiando-me especialmente em Bernardo Guimarães e Alvares de Azevedo.
Não menos importante para a criação da minha concepção de cidade (em diferentes
períodos) foi a incorporação de fontes iconográficas, em seus diversos suportes, como as
pinturas, as fotografias e os mapas urbanos.
O trabalho com este tema, bem como a abordagem escolhida, implica correr vários riscos
e enfrentar muitos desafios. Uma primeira tentação é a de abarcar a cidade no lugar de
historicizar suas construções a partir das questões propostas
.
Por outro lado, as fontes dispersas – especialmente as primárias, manuscritas –
demandaram um longo período de pesquisa, catalogação, transcrição e classificação. Tempo este
em que outras preocupações surgiram, e algumas das antigas tornaram-se mais claras. E foi
nesta etapa de amadurecimento que algumas das fontes inicialmente coletadas perderam sua
importância e outras, ao serem “percebidas”, se mostraram fundamentais. Este processo, que
diríamos comum à toda pesquisa histórica, implicou em recortes antes não pensados e em
caminhos não explorados, mas cheios de potencialidade.
A abordagem deste tema exigiu, ainda, a exploração e enfrentamento de áreas até então
um pouco distantes dos meus conhecimentos como a estatística e a demografia. A coleta dos
dados, que implicou num longo período de pesquisa, o seu tratamento e a elaboração de tabelas
e listagens foi facilitada pela utilização da informática e de programas específicos. Mas, para a
interpretação das quantificações apuradas, as ciências exatas já não mais nos servem tanto,
devendo entrar em seu lugar o nosso olhar de historiador.
Devo reconhecer, por fim, que a grande inspiração para a realização deste trabalho veio
justamente de um ensinamento da professora Denise Bernuzzi de Sant´Anna, passado em uma de
suas aulas. Disse-nos ela naquela oportunidade que uma das tarefas do historiador é a de
dos trabalhos, no Arquivo Histórico Municipal, ficou a cargo do Professor Doutor Jaime Rodrigues, então diretor
da instituição, e dos historiadores Luís Soares de Camargo e Celina Yoshimoto. O financiamento deu-se através
do programa “Políticas Públicas”, disponibilizado pela FAPESP.
17
encontrar – ou conseguir ver – um problema que, aparentemente, antes não existia; não se
esquecendo, porém, de utilizar muito rigor, bom senso e honestidade no trabalho com as fontes.
Parte I
Antigas ameaças e novas preocupações
18
Capítulo 1 - Foi Deus quem quis
“A vida tem uma porta só, a morte tem cem.”
(antigo provérbio português)
Tomados de uma alegria sem par, a família real portuguesa anunciava do Rio de
Janeiro que, no dia 6 de março de 1821, nascera um príncipe em terras brasileiras. Era o
menino D. João Carlos Pedro Leopoldo de Bragança e Áustria, terceiro filho de D. Pedro e
de sua esposa D. Maria Leopoldina de Habsburgo.
16
De imediato, mensagens foram
despachadas para todas as Capitanias do reino dando conta do feliz acontecimento. Em São
Paulo a notícia chegaria poucas semanas depois, no dia 23 de março de 1821. Recebida a
correspondência no palácio, o então governador João Carlos Augusto de Oeynhausen
redigiu um Bando no qual anunciava “a feliz sucessão dos augustos monarcas” e, nada
comedido, exultava:
“Parabéns ó leais Paulistas! Os votos que todos fazíamos para que Deus
Nosso Senhor concedesse um feliz sucesso a Sua Alteza Real, a Princesa Real
do Reino Unido, foram propiciamente ouvidos, e S. A. R. deu á luz no dia seis
do corrente a um príncipe herdeiro das virtudes de seus augustos pais e avós,
e a visível proteção do Altíssimo sobre o Reino Unido se manifestou assim
mais uma vez, favorecendo certamente em todas estas nossas necessidades e
deprecações, pelo muito que amamos, somos, e protestamos ser sempre fiéis
ao muito alto e poderoso Senhor D. João VI que nos governa com a inveja de
todos os mais povos da terra.”
17
16 - D.Pedro e Leopoldina tiveram sete filhos: D.Maria da Glória, nascida em 1819; D. Miguel, nascido em 1820 e
falecido precocemente; D. João; D. Maria Januária, nascida em 1822; D. Paula Mariana, nascida em 1823; D. Francisca
Carolina, nascida em 1824 e Pedro de Alcântara (D. Pedro II), nascido em 1825. Veja mais detalhes em Züquete, Afonso
Eduardo Martins (coord.); Nobreza de Portugal e do Brasil, Lisboa, Editorial Enciclopédia Ltda., 1960. (Vol. I).
17 - Bando do General João Carlos Augusto de Oeynhausen Grevenburg, Registro Geral da Câmara de São Paulo,
Vol. XVI, p. 156 a 158.
19
Quando do recebimento desta notícia no plenário da Câmara Municipal, igualmente
exultantes ficaram os vereadores paulistanos. E tanto, que não se contiveram na resposta,
dizendo que “o feliz nascimento do novo Augusto Príncipe (era)
um penhor sagrado com que o
u afiança a real sucessão do nosso augusto e, ao mesmo tempo, o bem geral da Luza
Monarchia.” Mais ainda, fizeram eles questão de reafirmar que, “por tão fausto
acontecimento,
rendiam graças ao Céu, que parecia cada vez mais empenhado e com mais esmero em
reproduzir a nobre estirpe da Casa Bragantina (...)” Ao término desta missiva os edis saudaram o
governador e registraram que só restava “pedir ao mesmo Céu felicite e guarde a muito
interessante pessoa por muitos anos.”
18
Talvez pela ocasião, o fechamento deste ofício mereceu uma redação mais elaborada,
pois o comum era finalizar qualquer missiva (e isto até finais do século XIX) com a frase
“Deus Guarde a V.S.” e, às vezes, com o complemento “por muitos anos”.
Partindo desse exemplo, no caso a troca de correspondência pelo nascimento do
príncipe, o fato é que, pela maneira como o episódio foi relatado, ele se torna revelador de
uma realidade – ou de uma concepção de mundo onde Deus, o céu, os santos e toda uma
força sobrenatural estavam a agir. Nesse caso nada a estranhar que a princesa Leopoldina,
além de outros cuidados que a cercaram, tenha recebido durante toda a sua gravidez preces e
orações para que tivesse sucesso no parto e, arrisco mesmo a dizer, essas ações foram
consideradas tão ou mais importantes do que aquelas praticadas pelos médicos que a
rodeavam. Em outras palavras, a segurança para o feliz nascimento do príncipe estaria
também nas mãos de Deus e, por isso, nada desprezíveis seriam os pedidos – neste caso o dos
paulistas – para que os Céus e Nossa Senhora do Bom Parto se fizessem presentes com sua
proteção visando a um desfecho favorável. Daí o fato do governador dar os “parabéns” aos
paulistas, não apenas pelo nascimento do príncipe, mas também pela “ajuda” que
proporcionaram à princesa mãe.
19
18 - Ofício da Câmara Municipal de S. P. ao Governador Oeynhausen, Id. Ibidem, p. 158 a 160
19 - A gravidez de Leopoldina foi acompanhada com muita preocupação e os cuidados, após o nascimento do
menino, foram redobrados. Naquela época, era de conhecimento geral uma “maldição” que pesava sobre a Casa
de Bragança, qual seja, a de que “nenhum primogênito desta família sobreviveria para assumir a coroa”. Segundo
Glória Kaiser, esta “maldição” teve início por volta de 1670 quando, em Portugal, um príncipe Bragança negou
esmola a um monge franciscano, chegando mesmo a expulsa-lo a pontapés. Este então proferiu a maldição
dizendo que “em todas as gerações seguintes os primogênitos morreriam.” Daí por diante, infelizmente esta maldição
realizou-se, atingindo todos os primogênitos da Casa de Bragança nascidos em Portugal e no Brasil. Kaiser,
Gloria; Leopoldina, Princesa da Áustria, Imperatriz do Brasil: um diário imperial 01/12/1814 Viena, 05/11/1817 Rio de
Janeiro; Trad. Celeste Aída Noronha Rodrigues Galeão; no prelo. Veja também Oberacker Jr., Carlos H.; A princesa
Leopoldina, R.J.: Conselho Federal de Cultura e Inst. Histórico e Geográfico Brasileiro, 1973, p. 244.
20
Tratando-se de uma dimensão da vida já um tanto quanto distante de nosso mundo
contemporâneo, chamo a atenção para este cotidiano vivido até meados do XIX, período em
que eram bastante tênues os limites entre o mundo divino e o da ciência.
20
Nessa dimensão,
aquela era uma época em que os caminhos para a saúde e a doença ou para a vida e a morte
eram conhecidos e, mais ainda, todos poderiam interferir no processo através de rezas e
orações, poderiam pedir a ajuda dos santos para que estes interferissem junto a Deus
21
,
poderiam realizar promessas a favor de outrem ou de si mesmo para conseguir uma “cura”
ou um “remédio” para os males
22
e, caso comum no Brasil, consultavam-se também os
curandeiros, muitos deles de origem africana, que poderiam ajudar na quebra de algum
feitiço que, talvez, causara a enfermidade. De todo modo, também essencial e poderosa era a
participação individual (ou em grupo) no ato de expressar uma vontade, um desejo íntimo
visando alcançar o bem. Nesse último caso, a redação final das missivas é bem representativa,
já que era de bom tom se desejar que “Deus o guarde por muitos anos”, e isto até finais do
século XIX, quando a frase foi substituída por “Saúde e Fraternidade”. Assim, e apesar dos
mistérios divinos e de outras forças sobrenaturais, todos conheciam as maneiras pelas quais o
bem poderia ser alcançado, eram personagens ativos em todo o processo e, no caso de algum
infeliz acontecimento ou mesmo uma fatalidade, a sempre correta mão divina estaria
presente para explicar o ocorrido.
E assim quis Deus que o pequeno D. João, filho de D. Pedro e Dona Leopoldina, não
vivesse muito tempo. Trazendo à memória do povo uma antiga maldição que pesava sobre os
membros da Casa de Bragança, o príncipe morreria no dia 4 de fevereiro de 1822, sem nem
20 - É preciso sublinhar, entretanto, que mesmo na atualidade esses aspectos vez ou outra reaparecem, tornando-
se visíveis especialmente no caso de doentes terminais ou quando os males atingem grandes personalidades.
Nesse sentido vale lembrar, por exemplo, os casos do presidente brasileiro Tancredo Neves, morto em 1985, e o do
papa João Paulo II falecido em 2005. Nas duas ocasiões, uniram-se um tratamento médico altamente especializado
mas, também, preces e orações do povo que pediam a Deus e aos santos pelo restabelecimento da saúde dos
pacientes. Por outro lado, mesmo na medicina contemporânea, são empregados termos como manifestações
clínicas e entidades mórbidas, “de inspiração notadamente sobrenatural, e que integram o jargão médico
moderno, referindo-se aos sintomas e doenças”, como bem lembrou Gil Sevalho (1993).
21 - Dentre os inúmeros Santos com qualidades protetoras ou “curativas”, destaco alguns poucos como exemplo
para a saúde do corpo e que ainda permanecem na crença popular: São Lázaro e São Roque atuariam na defesa
contra a lepra, úlceras, feridas, dermatoses e outros males da pele; a reza para São Bento protegeria contra a
picada de cobra; Santa Luzia é tida como a protetora dos olhos; São Braz protege contra os males da garganta, atua
contra o soluço e resolve os afogamentos com alimentos; São Sebastião evitaria desastres e acidentes. Sobre este
tema veja o excelente estudo de Cabral, Oswaldo; A medicina teológica e as benzeduras: suas raízes na história e sua
persistência no folclores: IN: Revista do Arquivo Municipal, vol. CLX, 1957, p. 05 a 204, ver especialmente os
Apêndices: “As doenças e seus Patronos” e “As doenças, afecções e os padroeiros contra elas”.
22 - Na sua origem, o termo “medicina” veio do latim medeor, com o amplo sentido de cuidar, proteger, tratar.
Remédio, por sua vez, também provém do latim remedium, e compreende tudo que é empregado para a cura de
uma doença. Veja: Saraiva, F.R.S.; Dicionario latino-português, R.J., Liv. Garnier, 1993 e Lacerda, J.M.A.A.C.;
Dicionário enciclopédico ou Novo dicionário da língua portuguesa, Lisboa, F. Arthur da Silva, 1874.
21
mesmo ter completado um ano. Desolado, o mesmo governador Oeynhausen, agora alçado à
condição de Presidente do governo provisório paulista, escreveria:
“Sua Alteza Real o Sereníssimo Senhor Príncipe Regente por portaria de
quatro do corrente (...) mandou participar a este governo que naquelle dia
pelas nove horas e três quartos da manhã
chamou Deus á sua Santa Glória o
Sereníssimo Senhor D. João Príncipe da Beira (...). É esta real ordem que o
Governo cumpre fazendo saber a Vossas Mercês aquelle infausto
acontecimento que magoa o coração de todos os bons Portuguezes.”
23
(meu
destaque)
Não obstante algumas informações posteriores sobre o falecimento do príncipe, neste
comunicado o governador nada disse sobre a causa da morte e, talvez, isso nem fosse preciso,
pois Deus havia chamado para Si a criança e isso bastava para explicar o infausto
acontecimento.
24
Poucos anos depois desses acontecimentos, e já refeita dessa perda (assaz muito
comum naquela época), seria a própria Imperatriz Leopoldina que cairia doente, tendo
permanecido acamada de 03 a 17 de dezembro de 1826. Segundo muitos autores que se
debruçaram sobre este caso, o mal que atingiu a Imperatriz do Brasil teria sido, em grande
parte, conseqüência dos constantes atritos entre ela e D. Pedro I.
25
Porém, o que mais importa
para este estudo não é o motivo em si, mas os acontecimentos posteriores, o tratamento
médico que ela recebeu e as várias manifestações populares que tomaram conta do Rio de
Janeiro naquelas duas primeiras semanas de dezembro de 1826.
Tendo em vista a importância da personagem que sofria, o caso foi notícia diária nos
jornais da corte, tendo sido, tudo leva a crer, a primeira cobertura do tipo conhecida no Brasil.
De fato, a Imperatriz esteve durante todo o tempo de sua moléstia acompanhada por um
séquito de médicos coordenados pelo Dr. Vicente Navarro de Andrade que, pelos bons
trabalhos prestados à família imperial, acabou sendo agraciado com o título de Barão de
Inhomirim. Diariamente o Dr. Vicente elaborava boletins médicos detalhados que, depois de
lidos em palácio, seguiam para publicação na imprensa. Em minúcias, a doença de
23 - Registro Geral da Câmara de São Paulo, Id. Ibidem, p. 329 e 330.
24 - Sobre a causa da morte do príncipe, falou-se depois que esta teria sido em decorrência de uma meningite e
que seus últimos momentos foram vividos “em condições muito penosas” – mais detalhes em Souza, Octavio
Tarquinio de; “Iniciação de D. Pedro na vida conjugal”, In: “D. Pedro I e Dona Leopoldina perante a História: vultos e
fatos da Independência”, S.P., Instituto Histórico e Geográfico, 1972, p. 632. Entretanto, em uma carta da própria
Leopoldina dirigida à sua tia Maria Amélia aos 12/02/1822, a Imperatriz diria sobre a morte do filho que “o pobre
pequeno que tinha uma constituição fraca do sistema nervoso apanhou uma espécie de
inflamação de figado que não sarou
bem, ou que talvez jamais foi reconhecida, morreu no espaço de 15 dias entre sofrimentos contínuos e em
consequencia de um
ataque epilético de 28 horas.” (meus destaques) Ver: Oberacker Jr., op. cit.
25 - Segundo várias versões, D. Leopoldina havia dado, por volta de setembro de 1826, um ultimato a D. Pedro I
no sentido de que este fizesse a sua opção entre ela ou a Marquesa de Santos. Enfurecido, o Imperador teria
agredido fisicamente sua esposa que redundaria, mais tarde, num aborto e prostração de Leopoldina. A esse
respeito veja: Farina, Duílio Crispim; Doença e Morte da primeira imperatriz do Brasil; In: Boletim da Academia
Paulista de História, Março de 1997.
22
Leopoldina foi tornada pública e, por isso, a população ansiosa ficava no aguardo de cada
informe para melhor acompanhar os acontecimentos e o estado em que a Imperatriz se
encontrava, sendo certo que muitos compartilhavam de seu sofrimento como deixam antever
os diversos relatos da época.
Num sucessivo, e desde os primeiros dias de dezembro de 1826, os boletins foram
reproduzidos nos jornais. Através deles, ficava-se sabendo, por exemplo, que a “Imperatriz
passara a tarde anterior com pouco cômodo; a febre conservara-se do mesmo modo que dantes e,
também, as evacuações biliosas, abundantes e numerosas, a tosse gutural teimosa, o sono pouco e não
suficiente. Pelas oito horas da noite houve um ligeiro espasmo de garganta com algum suor durante o
mesmo espasmo. As dejeções perto da noite tornaram-se menos biliosas e como pela qualidade e cópia
eram menos conferentes e a tosse fosse um dos motivos que afastava e interrompia o sono, e tivesse
havido não só o espasmo da garganta, mas algum tremor de mão e meteorismo
, o médico administrou-
lhe um carminativo
∗∗
, com pequenas porções de xarope de diacódio
∗∗∗
, em conseqüência do que
diminuiu sensivelmente a tosse; diminuíram as evacuações, e dormiu pequenos sonos, e em ocasião de
acessos que teve de noite, notou-se alguma incoerência no que dizia, por cujo motivo se lhe puseram
sinapismos
∗∗∗∗
26
Não obstante esses informes que tornavam público os problemas que acometiam a
Imperatriz – bem como os remédios e métodos curativos empregados – pouco a pouco outras
notícias sobre a enfermidade de Leopoldina começaram a aparecer nos periódicos. Estas, ao
contrário dos boletins, não faziam qualquer menção à terapia ou aos procedimentos médicos,
senão apenas à dor e ao sofrimento, que bem poderiam ser minimizados ou estancados por
uma força maior, muito mais poderosa que a da ciência:
“Ainda o Céu não atendeu aos nossos rogos, cada vez mais freqüentes e mais
fervorosos. Debalde se tem atulhado os templos de humildes suplicantes e as
preces, com que a Igreja implora a Divina Misericórdia tem ressoado ante os
Altares; Sua Majestade a Imperatriz ainda suporta as cruelíssimas dores, ainda é
preza da terrível enfermidade, que nos consterna. O povo desta capital continua
na sua ansiedade a procurar em todos os momentos conhecer o seu estado
aflitivo, já pelos boletins, já pessoalmente dirigindo-se à Imperial Quinta, onde
(...) fazem tremendo esta pergunta: - Como está a Imperatriz?”
27
meteorismo: presença de gás em excesso no tubo gastrintestinal.
∗∗ carminativo: medicação antiflatulência.
∗∗∗ xarope de diacódio: xarope preparado com extrato de ópio
∗∗∗∗ sinapismos: cataplasma de mostarda aplicado geralmente contra inflamações.
26 - Boletim médico de 03/12/1826 assinado pelo Dr. Barão de Inhomirim, publicado no jornal “Diário
Fluminense”. Apud França, Mário Ferreira; A Doença que vitimou Dona Leopoldina, In: “D. Pedro I e Dona
Leopoldina perante a História: vultos e fatos da Independência”, S.P., Instituto Histórico e Geográfico, 1972, p.
280. Neste documento, fica bastante patente os antigos procedimentos da medicina, ou seja, para cada sintoma
buscava-se um remédio; o sintoma, ou a aparência (aquilo que se notava) era a doença em si.
27 - Jornal “Diário Fluminense”, editorial de 07/12/1826, apud França.op. cit.
23
Diante do agravamento da moléstia, o povo não se conteve com as orações e achou
por bem promover “devotadas procissões” até a imperial capela nas quais iam carregando
imagens e cruzes das diversas igrejas e ordens religiosas. No dia 06 de dezembro, por
exemplo, numa dessas procissões pelo restabelecimento da Imperatriz, um jornal anotou a
presença de diversas ordens, irmandades e confrarias e, dentre elas estavam: “a da Imperial
Casa da Santa Misericórdia, com o Painel e Crucifixo; a da Ordem Terceira de São Francisco da
Penitência, levando a Imagem do Santo Patriarca; as Irmandades do S. Sacramento e da Senhora das
Dores da Freguezia da Candelaria, com a Imagem da Senhora; a Ordem Terceira de Nossa Senhora do
Carmo, com a Imagem da mesma Senhora; a de São Francisco de Paula, com a Imagem do Santo (que
ficou na Capela Imperial); e a de Conceição e Boa Morte com o crucifixo, cuja Sagrada Imagem
terminava igualmente todas as Procissões mencionadas. Depois destas, concorreram as Freguezias da
Sé (com a Imagem de Nossa Senhora do Terço); da Candelária, São José e Santa Ana, indo incorporadas
às ditas Irmandades e Confrarias filiais respectivas”. Nessa procissão, completou o jornal, “todos
juntavam suas súplicas cordiais e ardentes ao Supremo Árbitro da Vida e da Morte, para que
prolongasse os preciosíssimos dias de Sua Majestade a Imperatriz”.
28
Entendia-se que a saúde de Leopoldina poderia ser restabelecida mediante preces,
orações, missas e procissões, porque tanto a vida quanto a morte estavam nas mãos de Deus.
Havia, nesse caso, um convencimento de que somente Ele é que poderia decidir, não obstante
os procedimentos médicos que a cercavam. Nesse sentido nada a estranhar, por exemplo, a
redação do último boletim redigido pelo médico da corte que, ao anunciar a morte da
Imperatriz no dia 17 de dezembro de 1822, escreveu:
“Pela maior das desgraças, se faz público que a enfermidade de Sua
Majestade, a Imperatriz, resistiu a todas as diligências médicas,
empregadas com todo o cuidado por todos os médicos da Imperial
Câmara.
Foi Deus Servido Chama-la a si pelas dez horas e um
quarto. Barão de Inhomerim.”
29
(meu destaque)
A frase indicando que “Deus a chamou” não está aqui gratuitamente e, tão pouco,
aquela citada anteriormente e utilizada como despedida nas cartas, ou seja, “Deus o guarde por
muitos anos”. A relação íntima entre a vida, os males, as doenças e a morte com essas forças
divinas estavam de tal modo presentes que mesmo o médico, um homem da ciência,
reconhecia que, a partir de um determinado ponto, nada mais poderia fazer, pois a vontade
de Deus era maior. Não obstante a angústia e tristeza presentes nesses momentos, o fato é
que a morte (apesar de ser uma tragédia) era algo natural, comum e previsível porque parte
28 - Id. ibidem.
29 - Jornal “Diário Fluminense”, 17/12/1826, ibidem.
24
da vida. A morte e a ressurreição de Jesus, nesse caso, foi sempre o grande modelo.
Na São Paulo dos séculos XVII, XVIII e até as últimas décadas do XIX, esta
concepção estava presente
30
e, de tal maneira, que hoje a encontramos registrada em diversos
documentos como, por exemplo, nos testamentos, que eram elaborados poucas horas
antes do falecimento ou, em minúcias, com uma grande antecedência, na intenção de preparar
uma “boa morte”. Deles encontramos uma profusão em São Paulo, até porque disseminado entre
a população estava o pavor de uma morte inesperada, a chamada morte súbita, que significava
uma morte sem o testamento e sem a garantia de receber os últimos sacramentos, benefícios
esses fundamentais para quando a alma fosse se encontrar com Deus.
31
Os testamentos, por sinal,
encontravam-se mesmo regulamentados na legislação, havendo diversas disposições sobre a sua
obrigatoriedade, bem como a respeito daqueles que estavam proibidos de o fazerem.
32
Padecendo desse medo – o de morrer sem testamento – estava o bandeirante paulista
Bartolomeu Paes de Abreu:
“... estando eu Bartholomeu Paes de Abreu em meu perfeito juízo
(...) temendo-me da morte por ser cousa natural e me achar enfermo
(...) encomendo minha alma a Nosso Senhor Jesus Cristo que a criou
(...) e que
quando for vontade de Deus levar-me para si desta vida
presente, que meu corpo seja sepultado na capella dos Passos da
Ordem Terceira do Carmo...”
33
(meu destaque)
30 - Em 1880, por exemplo, e por ocasião do falecimento do Duque de Caxias (07/05/1880), os vereadores
paulistanos assim se manifestaram: “Chegando ao conhecimento desta Câmara que
foi Deos servido levar desta para
melhor vida o bravo General Duque de Caxias, indico que se manifeste a sua Exma. Família o pesar de que achamos possuídos
por tão lamentável perda que acaba de sofrer.” A. C., 29/05/1880, p. 69.
31 - O medo da morte súbita, sem testamento, foi estudado por diversos autores como Philippe Áries em “História
da Morte no Ocidente” e “O Homem diante da morte” Vols. I e II; João José Reis em “A morte é uma festa” e por
John Bossy em “A Cristandade no Ocidente 1400-1700”. Para o caso de São Paulo veja Camargo, 1995 e Pagoto,
2004. Estudando essa mesma questão, Adalgisa Arantes Campos verificou que “a boa morte tornou-se motivo
recorrente na época Moderna, destacando-se em diversas realizações da cultura. (...) O morrer bem constituiu
assunto da maior relevância para o cristão, pois considerava-se que dele dependia, em grande parte, a salvação.
Religiosos como o padre Manoel Bernardes, Antônio Vieira, Nuno Marques Pereira, Inácio de Loyola, entre
outros, deixaram mensagens específicas relativas ao bem morrer. Não foi ao acaso que, em meados do Seiscentos,
funda-se em Roma a
Confraria da Boa Morte, devoção essa difundida com êxito em Portugal e Império
Ultramarino durante o século seguinte.” Veja: Campos, Adalgisa Arantes; A morte, a mortificação e o heroísmo: o
homem comum e o santo na Capitania das Minas; IN: Revista do FAC, Publicação do Instituto de Filosofia, Artes e
Cultura (IFAC) Universidade Federal de Ouro Preto Número 2 - Dezembro de 1995, p. 05 a 12. Cabe observar que
em São Paulo, desde o século XVIII, já existia a “Irmandade dos homens pardos de
Nossa Senhora da Boa
Morte”, cuja igreja, ainda existente, foi construída em 1810.
32 - A esse respeito ver “Ordenações Filipinas”, Livro IV, Título LXXXI, p. 908 a 911. Estavam proibidos de fazer
testamentos as seguintes pessoas: o homem menor de 14 anos e a mulher menor de 12 anos, com exceção daqueles
cujos pais fossem incógnitos ou que não tivessem pais; os loucos que houvessem perdido totalmente a razão, já
que aqueles que conservassem momentos de lucidez poderiam fazê-lo nesses espaços de tempo; os nascidos
mentecaptos; os “filhos-família”, ou seja, aqueles que de qualquer idade estivessem sob o pátrio poder; os
apóstatas; os hereges; os escravos, com exceção daqueles cujo senhor o permitisse; os religiosos professos; os
mudos e surdos de nascença; mas os que ouviam e falavam com dificuldade poderiam fazê-lo; os condenados à
morte, com exceção daqueles que quisessem dispor da terça parte de seus bens para comprar a liberdade de
escravos, para fazer casar órfãs, dar esmolas aos hospitais, mandar rezar missas, consertar e edificar igrejas e
mosteiros. Entretanto, não tinham nenhuma possibilidade de “testar” aqueles que houvessem praticado crimes de
heresia, traição ao Estado ou sodomia.
33 - Testamento de Bartholomeu Paes de Abreu, ano de 1738, in: Coleção Inventários e Testamentos, Vol. XXV,
Arquivo do Estado de São Paulo, 1921, p. 449. Sobre a vida deste bandeirante veja Franco, Francisco de Assis
Carvalho, Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil, 1954.
25
Apesar de ter exercido importantes cargos na então Vila de São Paulo nos
primeiros anos do século XVIII e de sua vasta experiência como sertanista, com várias
viagens empreendidas pelos sertões de Goiás, Minas Gerais, Curitiba e Rio Grande do Sul,
onde granjeou fortuna, Bartolomeu Paes de Abreu encontrava-se pobre e enfermo pelos
idos de 1737. Padecendo do mal das “bexigas” (varíola) ele morreria no dia 1º de janeiro
de 1738, poucas horas depois de preparar o seu testamento. Como parte de suas últimas
palavras, ele informou que, apesar de temer, já estava preparado para a morte, até porque
esta era uma “coisa natural”. A hora do falecimento, por sua vez, dependia única e
exclusivamente da vontade de Deus, que decidiria quando “o levaria para Si desta vida
presente”.
Somente ficamos sabendo que Bartolomeu Paes faleceu de varíola ao consultar a
prestação de contas dos funerais, onde encontramos uma petição assinada pelo seu filho,
Pedro Taques de Almeida Paes, que foi anexada aos autos para explicar o fato de seu pai
ter sido enterrado “pelas duas horas da noite”. Diz Pedro Taques que isso ocorreu porque
Bartolomeu faleceu “do venenoso e contagioso mal de bexigas”.
34
No testamento, porém,
nenhuma menção à doença cuja existência, é preciso frisar, dependia da vontade de Deus.
Fig. 01: Paulista ditando seu testamento.
Em casos como esse, não havia a necessidade de se determinar o mal que acometia
o corpo e a possível causa da morte, a não ser que uma explicação fosse solicitada. Mas,
34 - Id. ibidem, p. 471. Cabe observar que o personagem aqui citado é o conhecido historiador e genealogista
Pedro Taques de Almeida Paes Leme.
26
isso era raro de ocorre ntendimento que Nosso Senhor me
eu doente”
35
ou ficar “doente em uma cama de uma doença que Nosso Senhor Jesus Christo foi
r. O comum mesmo era estar no “e
d
servido dar”
36
Mesmo quando citado, em excepcionais momentos, o mal que acometia o
doente era tratado com generalidade, como foi no caso de Maria Álvares, que disse em
1600 estar “doente em uma cama de
doença perigosa e não sabia o que Nosso Senhor faria della”
37
ou Estevão Furquim em 1660, que se declarou “doente de alguns
achaques que Deus Nosso
Senhor foi servido dar-me”
38
Não importava ser a moléstia por demais visível – passível
portanto de uma identificação imediata – a mesma era, nesses casos, sempre atribuída a
Deus, como relatou outro conhecido bandeirante em 1645:
“... estando eu João Missel Gigante, morador nesta Villa de Sam Paulo,
doente de huma ferida em hua mão que Deus Nosso Senhor foi servido dar-
me, e por não saber o que Deus de my ordenaria (...) determinei fazer este
meu testamento ...”
39
(meu destaque)
Como documentos que expressavam a religiosidade católica, os testamentos deixam
além e os
do contágio, pois a respeito da varíola tinha-se uma certa experiência e
transparecer que a doença e a morte eram consideradas como “coisa ordinária e natural”, um
desígnio de Deus.
40
E caso o doente já estivesse diante desse desfecho, o tempo que lhe
restava deveria ser aplicado na tarefa mais importante que era a salvação da alma visando
a uma vida eterna no Paraíso. De fato, e em todos esses antigos documentos, sobressai uma
questão que precisa ser relembrada, ou seja, a de que o medo da morte não se fazia tão
presente quanto o temor de “não saber o que Deus faria da alma”, como expressou
claramente João Missel Gigante. Esta dimensão que emerge dos velhos testamentos
paulistas já havia sido percebida por Georges Duby em suas análises sobre a França
medieval: “Mais do que a morte, nossos ancestrais temiam o Juízo Final, a punição do
suplícios do inferno.”
41
E estas eram parte importante das crenças daquela época que, por seu turno,
marcaram profundamente o entendimento dos males que afligiam o corpo. Porém, seria
exagero se considerássemos apenas esse aspecto da questão, até porque no próprio
documento de Pedro Taques, antes citado, ele deixou escapar que a varíola era venenosa e
contagiosa, sendo este o motivo de seu pai ter sido sepultado às pressas. Aqui, é claro, estava
presente o medo
35 - Testamento de Mateus Leme, 1715, Inventários e Testamentos, Arquivo do Estado de São Paulo, s/ ref. de Vol., p. 361.
36 - Idem de Isabel Soares, 1629, Vol. VIII, p. 114
37 - Idem de Maria Álvares, 1600, Vol. I, p. 194.
38 - Idem de Estevão Furquim, 1660, Vol. XVI, p. 197.
39 - Idem de João Missel Gigante, 1645, Vol. XXXII, p. 117.
40 - Idem de Beatriz Rodrigues, 1625, Vol. VIII, p. 06 e de Izabel Soares, 1629, Vol. VIII, p.114.
27
sabia-se que, de algum modo, ela poderia migrar de um corpo doente para outro; algo bem
concreto e terreno, pode-se dizer.
42
Mas, não havia contradição alguma, pois as duas
concepções conviviam e estavam presentes no cotidiano.
Entre finais do século XVIII e início do XI
saúde e as enfermidad
e na velha teoria grega dos humores. Nesta
eriam provocadas por desordens naturais como, por exemplo, uma grande tempestade, raios
... esta inteperança, aos contínuos relâmpagos que continuamente se viram
“a doença
ficava no ar
X, a medicina acadêmica, ao falar sobre a
es do corpo, buscava uma complexa explicação nas forças da natureza
interpretação, cheia de meandros, as doenças
s
ou ventos em demasia. Essa alteração, externa ao corpo, provocaria um desequilíbrio dos
elementos que constituíam o organismo (os humores), sendo este “desarranjo” a causa das
enfermidades.
Baseado nesse princípio, e para explicar as causas da “terrível praga” das icterícias em
São Paulo, por exemplo, o então governador Morgado Mateus escreveria ao Marquês de
Pombal, em 1768, atribuindo o problema ou...
cintilar por todos os meses em que por cá costuma ser o inverno, durante
estes metheoros té chegarem a formar no emisfério desta cidade uma terrível
trovoada.”
43
Na missiva o governador daria ainda alguns detalhes da doença dizendo que
“horrorizava a vista esses homens tomados pela peste (as icterícias); transformavam-se em defuntos
vivos, com os olhos amarelos, o rosto cheio de nódoas, a queixada caída e o nariz já apertado se
comprimindo; nunca vivem mais que três dias e era preciso enterrá-los depressa.” Claro, o
procedimento de se enterrar os mortos rapidamente era uma necessidade frente à corrupção
que o cadáver sofria, mas o medo maior, conforme explicou o governador expressando
caráter fugidio deste mal era que
, nunca se sabendo ao certo onde ela
staria.”
44
(meu destaque)
Ao permanecerem “no ar”, as dendo da ocasião – estavam também
or ambientes desconhecidos e inóspitos
– carregavam consigo várias orações, escritas em pequenos pedaços de papéis, para serem
e
doenças – depen
em todo lugar, e talvez por um acidente (e por que não?) o mal poderia ser introduzido no
corpo, causar a corrupção dos humores e levar à morte. Não por outro motivo, os
bandeirantes e sertanistas – que mais se arriscavam p
41 - Duby, Georges; Ano 1000, ano 2000 – na pista de nossos medos; S.P., Ed. Unesp, 1998, p. 123 e 128.
42 - Sobre o entendimento que se tinha a respeito do contágio trataremos com mais vagar no capítulo “Afecção,
infecção e poluição” e sobre a varíola, especificamente, analisaremos este mal no capítulo “Entre epidemias, febres e
bexigas”.
43 - Taunay, Affonso de E.; Antigos aspectsos paulistas, 1927, p. 97 e Farina, Duílio Crispim; Medicina no Planalto de
Piratininga, 1981, p. 49 e 50. Já no século XX, alguns autores associaram as antigas “icterícias” à febre amarela
(Santos Filho, 1991, p. 123).
44 - Idem ibidem.
28
lidas em momentos específicos, quando da ocorrência de alguma doença entre os membros
da expedição. Dentre as que conhecemos, destaca-se a do paulista Antonio Correa Pinto, este
com várias incursões pelo sul do país, e fundador da cidade de Lajes em Santa Catarina. Nos
seus pertencentes foi encontrada a seguinte oração:
Benssam do ar
Em nome de D.
s
Padre? Em nome de D.
s
f.
o
? Em nome de espírito Santo?
Ar vivo, Ar morto, ar de estupor, ar de perlezia, ar arenegado, ar escomungado, eu te
arenego. Em nome da Santicima trindade q. sayas do corpo desta Creatura, ou animal e q. vas
parar no mar sagrado p.
a
que viva sam e alliviado.
45
Sabia-se, é claro, que algumas mortes poderiam ser provocadas por ferimentos ou
decorrentes de agressões ao corpo, mas mesmo assim sempre presentes estavam também os
humores e as forças sobrenaturais a agir, como no caso anotado nessa mesma época por
ocasião da morte do padre Estanislau de Campos. Atacado por um parasita, o bicho-de-pé,
muito comum em São Paulo, o padre havia cometido a incúria de extraí-lo à sua maneira,
resultando “daí uma erisipela, em conseqüência da qual transmitiu-se o mal aos intestinos por força
do retrocesso dos humores, conforme dizem, e depois seguiu-se a gangrena, que lhe trouxe a morte
(...)
46
. O relato não faz qualquer menção, mas podemos supor que a agonia do padre
Estanislau foi acompanhada de muitas orações.
45 - Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo, Vol. III, Arquivo do Estado de S.P., 1913, p.
58. No Rio de Janeiro, entre finais do século XVIII e início do XIX, utilizava-se uma variante dessa oração: “Todo mal
que neste corpo entrou, / Ar de nevoa, ar de cinza, / Ar de galinha choca, ar de cisco, / Ar vivo em pecado, / Ar morto
excomungado, / Ar de todo o mau olhado, / Seja deste corpo apartado, / Deus te desacanhe de quem te acanhou, / Deus te desinveje
de quem te invejou.” Outras orações populares podem ser vista em Edmundo, Luiz; O Rio de Janeiro no tempo dos vice-
reis (1932), p. 472 e 473.
46 - Holanda, Sérgio Buarque de; Caminhos e Fronteiras, 1975, p.112. A respeito desse parasita em São Paulo, bem
como as técnicas para extraí-los, ver também p. 120 e 121.
29
Fig. 02: Falecimento de Fernão Dias no Sumidouro, sertão de Minas Gerais, em 1681.
Nessa concepção, a saúde deveria ser buscada através da não agressão, do equilíbrio
ha como premissa uma crença inabalável no poder curativo da physis, a
atureza. Esta era constituída por quatro elementos que, para Empédocles era a água, o ar, a terra e o
go. A estes elementos Aristóteles associou quatro qualidades: quente, frio, úmido e seco que, em
vel no cosmos. O ar era quente e úmido; a água,
ente e seco, todos relacionando-se, por sua, vez às quatro
estações. A esses quatro elementos primários foram vinculados os humores, que resultavam da mistura,
em quatro proporções diversas, os elementos primários (veja quadro abaixo). Definidos como elementos
secundários do corpo e caracterizados por sua fluidez, miscibilidade e condição de suporte das quatro
qualidades naturais, os humores básicos eram também em número de quatro: sangue, pituíta (fleuma ou
catarro), bile amarela e bile negra (ou melancolia). Cada um deles tinha um centro regulador da sua
dinâmica e para ele era atraído: o sangue, para o coração; a pituíta, para a cabeça; a bile amarela, para o
fígado; e a bile negra para o baço. Eram igualmente portadores de um par de qualidades, de tal forma
que o sangue era quente e úmido; a pituíta, fria e úmida; a bile amarela, quente e seca; e a bile negra, fria
e seca. A saúde, nesse caso, seria conseguida via um equilíbrio ou, enquanto os humores estivessem
balanceados. Certos processos, entretanto, podiam determinar um acúmulo maior de um dos humores,
levando ao desequilíbrio da physis. O organismo acionava então um mecanismo de defesa, caracterizado
por uma faculdade expulsora, que assegurava a eliminação do humor excedente. Este desequilíbrio era
o causador da doença.”
48
interno e externo: nada de mais, nada de menos. Nesse caso, a doença originar-se-ia da falta de
harmonia entre o homem e o ambiente.
47
Quando aplicada às pessoas, a receita pregava que
todos os excessos eram perniciosos: a abundância ou a falta de alimentos, por exemplo, assim
como a de líquidos, ou mesmo a exposição demorada ao frio ou ao calor incluindo, também, os
exageros “libidinosos”. O método curativo das sangrias, muito utilizado no Brasil naquele
período, tinha como uma de suas bases esta busca de um equilíbrio que fora perdido e, por isso,
tentava “expulsar” para fora do corpo aquilo estava alterando a sua composição ideal e natural.
Entendia-se que a saúde dependia, ao mesmo tempo, das atitudes e costumes
individuais ou coletivas e, também, do meio em que vivia. O controle da vida pessoal cabia a
cada um, mas o equilíbrio ou o “desarranjo” da natureza, ao contrário, estava entregue a
Deus ou a outras forças insondáveis que, inclusive, poderiam enviar algum castigo se
ofendidos.
A respeito das antigas teorias médicas gregas explica a historiadora Tânia Andrade Lima:
“A medicina hipocrática tin
n
fo
múltiplas combinações, compunham tudo o que é visí
fr a e úmida; a terra, fria e seca; o fogo, qui
47 - Veja Rosen, op. cit., p. 37.
48 - Lima, Tânia Andrade; Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX; In:
História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. II, nº 3, p. 44-96, 1996. A representação gráfica também foi
baseada em modelo da autora.
30
Fig. 03: Representação dos humores na Idade Média
A medicina acadêmica, como visto, guardava uma certa distância do sobrenatural até
um determinado ponto quando, então, as duas concepções uniam-se para explicar a
ocorrência dos males. Desse modo, era perfeitamente cabível o entendimento –
principalmente pelo povo – de que outros elementos atuavam, e isso tanto para o bem,
quanto para o mal. Quando da ocorrência de epidemias em São Paulo nos séculos XVIII e
XIX, por exemplo, pensava-se também na presença de alguma força maligna e que a moléstia
poderia ser debelada através de orações, promessas e procissões. Caso tudo isso não
resolvesse, solicitava-se a vinda da imagem de Nossa Senhora da Penha que, transladada de
sua igreja, distante poucos quilômetros do centro, permaneceria pelo tempo necessário na
catedral. Na cidade, a santa estaria como que a proteger os habitantes, servindo de
intermediária entre eles e Deus mas, também, com a clara missão de combater as forças
negativas que estariam “alimentando” a epidemia reinante.
49
Já em plena segunda metade do
49 - Nas justificativas que se fizeram para a vinda da Senhora da Penha, sobressaem não apenas o poder da
imagem, como também a intercessão da Santa junto ao seu Filho, como podemos ver num abaixo assinado de
1828: “Ilustríssimos Senhores do Nobre Senado – A plena confiança que o povo desta Imperial Cidade tem na intercessão da
Virgem Mãe de Deus invocada sob o título da Penha de França, e representada na Sagrada Imagem que existe na Matriz de
mesmo nome, é tão notória, que não necessita ser encarecida. Nas grandes pestes, nas longas secas, e em outras calamidades
funestas, os devotos desta Soberana Senhora tem recorrido a ela e tem achado o alívio e remédio, que imploram de seu Filho
Onipotente. Sem remontar a épocas mais remotas, na seca, e peste, que grassou nesta Província no ano de 1816 e depois na
seca de 1819 foi evidente o prodigioso efeito que resultou de se ir buscar a dita Imagem para colocá-la na Catedral, onde se lhe
dirigiram súplicas e votos sinceros (...)” (Registro Geral da Câmara, Vol. XIX, p. 456 a 458). Ou ainda num outro de
1783: “... atendendo a perniciosa peste que lavra e frequenta com grandes excessos nesta cidade e suas vizinhanças queira por sua
alta piedade mandar vir para esta cidade a Virgem Nossa Senhora da Penha para com a sua vinda ser festejada com novenas e
31
século XIX, a milagrosa imagem, a pedido da população, foi deslocada várias vezes para São
Paulo. Em maio de 1858, ela viria para “ver se com esse meio aplacava a peste das bexigas”,
conforme documento assinado por 136 moradores
50
; em agosto de 1863, a imagem da santa
retornou para, novamente, ajudar no combate de outra epidemia de varíola
51
; em setembro de
1869 ela voltaria, mas dessa vez a sua ajuda fora solicitada por conta de uma grande seca que
atingia a cidade
52
; em setembro de 1873 o seu translado seria pedido tendo em vista
novamente “se achar grassando a varíola com grande intensidade”, conforme relataram os
moradores através de um abaixo assinado. Porém, e para surpresa geral, este último pedido
foi negado pelo Bispo, que alegou “motivos ponderosos” para “não permitir a transladação”. De
toda forma, completou o religioso, e tendo “em vista o flagelo da varíola que nos aflige” resolveu
“que se fizessem preces solenes por três dias”
53
.
Aqui um parêntesis: o original desta carta (do Bispo em resposta à solicitação dos
Rodrigues de Carvalho, Bispo que recém assumira suas funções em São Paulo naquele
mesmo ano de 1873, e que permaneceria no cargo até 1894. De orientação católica
conservadora, autoritária e romanizadora, D. Lino Deodato foi um dos luminares de uma
nova doutrina que começou a ser implantada no Brasil a partir da segunda metade do século
XIX: o ultramontanismo.
moradores) não foi localizado e, por isso, os pequenos trechos que citamos foram retirados
das Atas da Câmara. Sabemos, entretanto, tratar-se de uma missiva de D. Lino Deodato
Segundo Gaeta (1997), “essa nova espiritualidade sacramental
engendrou a condenação de práticas religiosas anteriores, vigentes desde o período colonial,
igreja da Sé, e isto não pela devoção em si,
mas sim pela exterioridade das cerimônias, do cortejo festivo, das músicas e dos diversos
54
isto é, as vivências de um catolicismo português leigo e despojado de um rigor teológico.
Essas formas devocionais foram vistas então como com uma forte carga de negatividade e
acusadas de serem portadoras de sobrevivências pagãs, de suprestições, e de apresentarem atos
exteriores e sem profundidade.
55
Explica-se, portanto, a negativa do Bispo para o translado da
milagrosa imagem de Nossa Sra. da Penha para a
Senhora queira pedir a seu Bendito Filho se lembre de todos com a sua graça e destrua uma tão
exados e queira abençoar esta cidade (...)” (R. G. da Câmara, Vol. XI, p. 527 e 528.)
6 cidadãos pedindo a vinda da Milagrosa Imagem da Senhora da Penha”, A. C.,
preces para que assim a mesma
grande peste como nos vimos v
50 - “Representação de 13
29/05/1858.
51 - A. C., 29/07/1863, p. 160 e 01/08/1863, p. 163
52 - A. C., 16/09/1869, p. 214 e 22/09/1869, p. 216 a 218
53 - A. C., 11/09/1873, p. 196 e 197, A.C. 30/10/1873, p. 225.
54 - A respeito desse novo modelo eclesial instalado no Brasil e em São Paulo, veja Gaeta, Maria Aparecida
Junqueira Veiga, A cultura clerical e a folia popular; In: Revista Brasileira de História, Vol. 17, nº 34, S.P.: 1997.
55 - Idem ibidem. Esta autora percebe, ainda como conseqüência dessa orientação, a gradativa e discreta retirada
dos altares centrais das igrejas das imagens de santos católicos populares e de tradição negra como São Benedito,
Santa Ifigênia e Santo Elesbão, dentre outros. Mas, ao mesmo tempo, afirma Gaeta que “as camadas populares não
se constituíram num receptáculo passivo”, o que obrigou, aos dois lados, uma série de reelaborações.
32
outros componentes d ziam presentes em tais ocasiões. Daí que, na
a to que, nas procissões mais
orr
itos negros
articip
migas quitandeiras, chamadas a dançar na
rocissão do Corpo de Deus em 1741 ou, nessa mesma cerimônia realizada dois anos
depois, a “preta forra
“concorrerem com suas
escrava do irmão do Rev
eram ordens e sujeita
Mas, desde aqu
da epidemia dar sin
alamidade, muitos estavam já a criticar a atitude do Bispo, responsabilizando-o em parte
para 40 (quarenta) em outubro. Esta quantidade era muito alta, pois representava a metade
e cunho popular que se fa
mesma ocasião, o Bispo ter dito que se fariam preces por três dias tendo em vista o flagelo
das bexigas. Estas preces, por sua vez, seriam realizadas no interior da igreja, não dando
motivos a procissões que, a partir de então, “passaram a ser incessantemente devassadas,
vigiadas e normatizadas.”
56
Dentre as várias manifestações presentes nas antigas procissões paulistanas, certamente
chamava a atenção do Bispo aquelas promovidas pelos negros – escravos ou libertos – que, por
vezes, irrompiam pelos lados e pelos flancos do cortejo com seus batuques e danças. Tal
ocorrência, aliás, era velha conhecida das autoridades e t n
conc idas, os vereadores tentavam coibir tais práticas. Em 1713, por exemplo, decidiram eles...
“... que pela desordem que havia nas procissões públicas, entrando muita
gente por elas, assim rapazes como carijós, negros e outras muitas pessoas,
interrompendo o ornato, compostura e decência com que se devem celebrar
as ditas procissões, que nenhuma das pessoas sobreditas possam acompanhar
as procissões senão adiante ou atrás (sendo que) pelos lados nenhuma pessoa
poderá ir; de qualquer qualidade que seja, salvo (quando) incorporada no
corpo da procissão (...)”
57
Por certo que sob as ordens da Câmara e sua supervisão, mu
p avam das procissões, incorporados oficialmente às mesmas, como o caso da “preta
Paschoa de Maria de Siqueira” e de suas a
p
Josefa” e suas colegas padeiras, bem como as quitandeiras para
danças”, estas últimas lideradas por “Josefa mina preta forra e Quitéria,
erendo Padre Mestre Frei Ângelo (...)”
58
. Esses “convites”, na verdade,
vam os infratores à pesadas multas.
59
ela negativa de D. Lino, passaram-se três meses de sofrimento e nada
ais de que “iria embora”. Numa situação considerada como de
c
pelo aumento dos casos de bexigas, já que o mesmo não teria permitido a vinda da santa para
a cidade. E o caso era grave, uma vez que em agosto de 1873 foram anotados 08 (oito) casos
de mortes por varíola na cidade, número este que subiu para 19 (dezenove) em setembro e
56 - Idem ibidem.
57 - A. C. sessão do dia 19/02/1713, p. 275
58 - A. C. 13/05/1741 p. 237 e 01/06/1743, p. 105 e 106.
59 - A respeito da participação das mulheres em procissões veja Maria Odila Leite Silva Dias (1984) especialmente o
capítulo “Padeiras e quitandeiras da vila: resistência contra o fisco” p. 44 e seguintes. Sobre os vários outros elementos
como a tradição africana e indígena que, no Brasil Colônia, se incorporaram ao cristianismo europeu, veja Laura de
33
das mortes ocorridas naquele mês, que somou um total de 81 falecimentos.
60
Fazendo coro aos aflitos paulistanos, alguns vereadores reclamaram, e coube ao
capitão Portilho fazer a seguinte indicação:
“Que não tendo cessado ainda os sofrimentos porque está passando grande
parte da população desta capital em conseqüência do terrível flagello da
epidemia reinante, isto não obstante as preces e mais orações recomendadas
pela Igreja, indica que esta Câmara a quem não é indiferente tais sofrimentos,
oficiando ao Exmo. Vigário Geral do Bispado, peça-lhe suas ordens para ser
trasladada para esta capital, como é de costume em casos taes, a Imagem da
Santa Virgem da Penha, marcando S. Exa. o dia em que deverá ter logar a dita
trasladação, afim de que esta Câmara, encorporada aos seus munícipes, vá
buscar a referida Imagem a sua Igreja.”
61
No dia 08 de dezembro do mesmo ano, e por conta da resposta afirmativa do Bispo
permitindo a vinda da imagem, uma sessão especial da Câmara foi convocada para tratar
exclusivamente desse assunto e um grande aparato foi montado. Comissões especiais de
recepção foram nomeadas com os mais destacados membros das quatro freguesias
centrais da cidade, a da Sé, Santa Ifigênia, Consolação e do Brás.
O presidente da Província
foi convidado para fazer parte da comitiva, bem como
62
“todas a autoridades civis e militares da
63
na cidade e fazendo a mediação entre os homens e Deus. Somente ela poderia restaurar a
capital, chefes das Repartições Públicas com seus empregados.” Ofícios foram expedidos ao
Presidente da Sociedade Musical Enterpe, pedindo a cooperação daquela agremiação para
que sua respectiva banda acompanhasse o cortejo. Igual pedido foi ainda dirigido aos
comandantes do 1º e do 2º Batalhão da Guarda Nacional para que também “concorressem com
música.”
Apesar de ser uma cerimônia que D. Lino não queria ver realizada (e se autorizou
foi certamente sob grande pressão), era assim que até então sempre se costumara fazer. A
partir dessas ações, esperava-se aplacar a epidemia e neutralizar os fatores negativos que
estariam trazendo a doença e provocando mortes. Nesse caso, tanto o clamor popular
verificado com a recusa do Bispo, quanto as dimensões que tomaram as cerimônias e o cortejo
após a autorização, são provas inegáveis de que os paulistanos acreditavam em forças sobre-
humanas para explicar o mal que tanto os afligiam. A imagem da santa e tudo o que ela
representava, estaria assim como que travando uma luta com os espíritos malignos instalados
Mello e Souza (2005), especialmente o capítulo 2, “Religiosidade Popular na Colônia”, p. 86 e seguintes.
60 - Livros de Inumação do cemitério da Consolação, Livro nº 05, 1873, p. 217 a 247.
61 - Indicação do vereador Capitão Portilho, A. C., 04/12/1873,p. 244 e 245.
62 - Por essa época, o município de São Paulo era composto por nove Freguesias: as quatro citadas que
compunham o núcleo central, bem como as mais distantes como a Freguesia do Ó, a própria Penha, além de
Guarulhos, São Bernardo e Juqueri (atual município de Mairiporã).
63 - A. C., 08/12/1873, p. 246 a 249.
34
proteção que se perdera.
64
Diante desses procedimentos, é preciso notar que os pedidos dirigidos à santa, bem
como as rezas e as procissões, devem aqui ser vistos menos como um meio para a salvação da
alma, e sim como algo que visava a conservação do corpo diante do mal que se anunciava.
Nesse sentido, os rituais empregados – bem como todos os contatos dos homens com o
sobrenatural – guardavam certas diferenças com relação à situação anteriormente
apresentada, ou seja, com aquela vivenciada pelos moribundos. Estes, como vimos,
colocavam-se numa posição de total submissão diante das forças divinas, confessavam seus
pecados, pediam perdão e solicitavam a interferência dos santos no sentido de encaminhar
suas almas ao céu. As argumentações presentes nos testamentos nos mostram a perda de
qualquer esperança na vida terrena e, por isso, cuidava o doente de se preparar para uma
boa morte, como então se dizia. Marca-se, portanto, uma diferença na situação e nos ritos
que se faziam presentes nas quadras epidêmicas. A subordinação dos homens, por exemplo,
não se mostrava de modo tão claro e apesar dos santos das igrejas, bem como as rezas, os
bentinhos e as feitiçarias estarem sempre presentes no arsenal daqueles que se julgavam em
erigo, “o céu é aqui simples dependência da terra, disposto sempre a amparar os homens” na sua vida
terrena.
65
A tradi
visto, interferiam nos
que era atribuição dos
que, na medida do pos espalhados pela
idade. O “atestado” ou o chamado “bilhete de sepultamento”, também era uma das várias
ultamentos nas igrejas – ocorrida em São Paulo
p
ção católica esteve por séculos a regular a vida das pessoas e, como o
casos de doenças e de morte. A esse respeito vale notar, por exemplo,
padres dar a extrema-unção e encaminhar o cadáver para a sepultura
sível, deveria localizar-se em um dos vários templos
c
funções dos religiosos, sendo este o motivo principal para a não indicação da causa mortis na
maioria desses antigos documentos até meados do século XIX.
66
Ora, ao se imaginar que “foi
Deus quem quis” chamar a Si determinado indivíduo, não havia mesmo razão para indicar a
causa da morte. Mesmo após a proibição dos sep
a partir de 1858 com a inauguração do Cemitério da Consolação – muitos enterros foram
realizados apenas com tais “bilhetes”, não havendo qualquer participação de médicos na sua
redação:
64 - A imagem de Nossa Senhora voltaria para a sua igreja, na Penha, no mês de setembro de 1874. No ano
seguinte, ela novamente foi trazida por conta de outra epidemia de varíola. Dessa vez ela retornou à Penha nos
primeiros meses de 1876 e, desde então, as referências sobre a sua vinda para São Paulo não mais são encontradas
nos documentos oficiais. E isto, certamente, pela ação do Bispo D. Lino Deodato. Veja A. C., 06/08/1874, p. 59;
12/08/1875, p. 101 e 30/03/1876, p. 29 e 30.
65 - Holanda, Sérgio Buarque de; Monções; R.J.: Casa do Estudante, 1945, p. 120 e 121. Apesar do contexto diverso,
posto que o autor se refere aos temores que cercavam os sertanistas quando se embrenhavam pelo sertão
desconhecido, julgo que a análise é válida para a situação aqui apresentada.
66 - No decorrer do estudo daremos mais detalhes sobre os “atestados” e “bilhetes de sepultamentos. Para o caso
dos mais pobres ver especialmente o capítulo 5, item 5.4 “Pobres, escravos e indigentes” na Parte II.
35
“Aos 8 dias do mes de Dezembro de 1862, foi sepultada no cemitério Público
(...) o cadáver de Raimunda,
falecida ontem de febre com 2 anos de idade,
filha natural de Joaquina Vasconcelos Machado, preta, solteira, criola liberta
desta Paróquia, poder ser sepultada no cemitério público como pobre que é.
Sé de São Paulo 8 de Dezembro de 1862. O Cura Marcelino Ferreira Bueno.
e a municipalidade exigia a
identifi
Apesar de constar na lei a obrigatoriedade de um “facultativo” (médico) verificar a
morte, tal determinação não foi cumprida à risca, e isso pelo menos até a década de 1870.
70
A
Nada mais constava a dita guia.”
67
(meus destaques)
Esta situação permaneceu inalterada por muitos anos, pois eram geralmente os padres
que atestavam a morte e, como visto, a diferença agora era qu
cação da doença para que o corpo fosse aceito no cemitério público – regra esta, é
preciso frisar, nem sempre cumprida à risca.
E fosse pela novidade que estava sendo introduzida (a escritura de um documento
público sobre a morte), fosse pela falta de informações mais precisas sobre o mal que havia
acometido o falecido – porque os médicos não estavam presentes – ou mesmo devido à pouca
importância que davam ao fato, os padres estavam sempre a depender do relato de familiares
e amigos, já que, por si, não conseguiam determinar a causa da morte. Exemplar, nesse caso,
foi o bilhete de sepultamento do africano Domingos, 55 anos, escravo de Augusto Mouran,
falecido no dia 1º de fevereiro de 1860. O cura Marcelino Ferreira Bueno, da Sé, diante da
obrigatoriedade de identificar a causa de falecimento, pergunta aos que estão próximos do
corpo e então escreve: “O cadáver de Domingos, falecido hoje, segundo disseram,
repentinamente...”
68
A falta de rigor, ou mesmo a pouca importância dada à causa do falecimento, ficaria
explícita em outro bilhete, este acompanhando o corpo de D. Francisca Fagundes, 64 anos,
viúva, falecida no dia 2 de fevereiro de 1860. Nele, o mesmo Marcelino escreveria que D.
Francisca havia “... falecido ontem de estupor ou paralezia ...”.
69
67 - Arquivo Histórico Municipal, Livros de Inumação do Cemitério da Consolação, Vol. 01, p. 287 (verso).
68 - Bilhete de Enterramento, Coleção Papéis Avulsos do Arquivo Histórico Municipal, ano de 1860, Vol. 188,
documento nº 129.
69 - Idem, ibidem, documento nº 137.
70 - A legislação sobre os enterramentos exigiu, a partir de 1858, um “atestado original do facultativo (médico)
que certificasse o óbito”, sendo os mesmo facultativos obrigados a “declarar nos atestados de óbito a naturalidade,
idade, condição, estado, profissão, moradia do finado, a moléstia de que faleceu, sua duração e o dia e a hora do
falecimento”, conforme consta no “Regulamento para os Cemitérios da cidade de São Paulo, aprovado pela
Assembléia Legislativa Provincial aos 03/05/1856”, Capítulo II, “Da polícia do Cemitério”, Arts. 10º e 12º. Tais
disposições, é preciso lembrar, não se vinculavam apenas a questões médicas, senão, também, a uma outra
dimensão da morte, ou seja, a ocultação de crimes. A esse respeito, ou sobre a obrigatoriedade de um médico
verificar o óbito antes do sepultamento do corpo, assim se manifestou o jornal Correio Paulistano na sua edição de
02/09/1858: “Este objecto é importantíssimo, tanto pelo lado científico, como humanitário e moral (...) chamamos vossa
atenção para o indesculpável desprezo que até hoje tem havido sobre este assunto, e indicamos que a autoridade competente
intervenha diretamente neste ramo, (...) fazendo com que nenhum cadáver seja inumado antes de um médico ter verificado o
36
não observação da legislação nesse quesito pode ser atribuída ao costume muito antigo e
arraigado no povo, que chamava sempre o padre e não um médico, para acompanhar os
últimos momentos do doente. Isso certamente obrigou a uma negociação entre a
municipalidade e a Igreja, já que todos reconheciam essa prática. Por outro lado, era possível
uma outra interpretação na mesma Lei dos cemitérios, pois o Art. 10º dizia que “Nenhum
enterro terá lugar, tanto nos cemitérios públicos como particulares, sem prévia autorização da
autoridade competente escrita no atestado original do facultativo que certificou o óbito”
71
(meu
pagar um médico particular, restava apenas a solução de
pelar
destaque).
Ora, quem seria a autoridade competente? O regulamento dizia ser um médico,
mas, para o povo, os padres continuavam a ser uma “autoridade” no assunto. Além disso,
para aqueles que não podiame
a para o médico da Câmara, este obrigado a atender não apenas os casos de
falecimentos naturais, como também aqueles provocados por acidentes, casos de suicídios
ou resultantes de crimes. Sempre que possível, o médico se esquivava desses
atendimentos mas, em 1865, ficou deliberado “não mais dar sepultura aos cadáveres dos
doentes que sucumbirem, tratados por facultativos não legalizados,
ou por outro.
72
Nessas
circunstâncias, e obrigado a atender a todos, o médico pediu demissão alegando que resultava
“daquela medida que o médico da Câmara se vê obrigado a ir, sob as ordens da Delegacia, verificar a
morte. Resolvido a não prestar esse serviço, cujo alcance não conheço, e justamente por este motivo e só
por ele que peço exoneração do cargo.”
73
Restava para a população, portanto, o atendimento
proporcionado pelos religiosos na hora da morte e, inclusive, para atestar o falecimento.
74
óbito, classificar a enfermidade que deu a causa (...) declarando tudo isto com um atestado. Só desta forma é que poder-se
obter a certeza da morte, e de sua causa,
para não se passarem desapercebidos crimes domésticos ...”
71 - Regulamento para os Cemitérios da cidade de São Paulo, op. cit.
72 - Arquivo Histórico Municipal, Coleção “Papéis Avulso”, 1865, Vol. 214, doc. nº 84.
73 - Id. ibidem. Em outro contexto, mas numa situação correlata ocorrida na França entre finais do século XVIII e
princípios do XIX, Philippe Ariès concluiu que muitos os médicos não aceitavam de bom grado a incumbência de
verificar a morte de um indivíduo; havia mesmo, segundo suas palavras, uma certa repugnância ao ato. Para
consolidar esta análise, o autor cita o verbete Inhumation de um dicionário médico editado em Paris em 1818: “Os
médicos raramente são chamados para constatar a morte, esse cuidado importante é abandonado a mercenários ou a indivíduos que
são inteiramente estranhos ao conhecimento do homem físico. Um médico que não pode salvar um doente evita encontrar-se em
sua casa depois de ter exalado o último suspiro e todos os práticos parecem penetrados desse axioma de um grande filósofo: não é de
civilidade um médico visitar um morto.” Ariès, Philippe; O homem perante a morte, vol. II, p. 128 e 129.
74 - Os problemas com os “Atestados de falecimento” ou sobre quem tinha competência para assiná-los, foi uma
constante durante todo o século XIX. Em 1900, por exemplo, tal confusão ainda persistia, tendo denunciado o então
administrador do cemitério do Araçá que muitos escrivões passavam “certidões de pessoas fallecidas sem assitência médica,
não tendo para tal fim o attestato de facultativo”. Coleção “Papéis Avulsos”, 1900, Vol. 1.476, doc. s/nº, de 11/10/1900.
37
Fig. 04: Exemplo de sepultamento
realizado no interior das igrejas antes da abertura do cemitério da Consolação, este quadro representa as exéquias de
Líbero Badaró ocorrida na igreja do Carmo, em São Paulo. Assassinado no dia 20 de novembro de 1830, seu corpo foi
inumado em sepultura próxima ao altar daquele templo, um dos mais ricos da cidade. Prática arraigada, tal
procedimento passou a ser duramente criticado por médicos e higienistas que viam nesse costume um enorme risco
para a saúde.
Além da participação de padres e de toda a tradição católica nos casos de doenças e
da morte, havia ainda um aceite tácito de outros personagens (ou de forças) quando se
tratava de diagnosticar os males do corpo e, como conseqüência, o de propor tratamentos.
Sobretudo na área rural, mas também presentes na cidade, estavam os chamados
curandeiros, que se dividiam entre aqueles com conhecimentos empíricos sobre ervas, raízes
e diversas plantas curativas, e outros que adotavam práticas religiosas como rezas e
benzeduras vindas da tradição indígena, da religiosidade africana ou mesmo do catolicismo.
o raro, um único curandeiro detinha todos esses conhecimentos. Segundo análises de
Lycurgo Santos Filho, estes eram bastante populares no Brasil, justificando em seguida
talvez pela proverbial falta de médicos
que
, o fato é que as Câmaras de certas vilas se viram
compelidas a deixar que uns tantos curiosos e curandeiros exercessem a arte de curar; por vezes,
foram os habitantes que solicitaram aos camaristas que não obstassem, não tolhessem este exercício aos
notórios, e por eles estimados, curandeiros.”
(meu destaque) De outra parte é preciso considerar, e
com razão, a descrença generalizada quanto aos meios terapêuticos dos profissionais e, por
isso, “o povo sempre preferiu entregar-se aos cuidados dos curandeiros e benzedores, que através de
rezas especiais deixavam qualquer indivíduo de corpo fechado ou curado”.
Tocando de relance no envolvimento das Câmaras Municipais nas questões que
75
76
envolviam a saúde do povo, Lycurgo Santos Filho nos fala da falta de médicos e das práticas
pouco confiáveis desses profissionais e que, por isso mesmo, o Estado – aqui representado
75 - Santos Filho, Lycurgo; História geral da medicina brasileira, Vol. 1, p. 206 e 262. Apesar de considerar essas
práticas como “atrasadas”, o autor tem um interessante capítulo sobre este tema: “Medicina popular e
Curandeirismo”, p. 346 a 356.
76 - Id. Ibidem.
38
pelos governos locais – estaria a transigir com curandeiros e curiosos que aplicavam curativos
baseados em métodos “atrasados” posto que não científicos. De fato, este autor não é o único
a trazer esta análise que, mais ou menos explícita, com este ou com outros argumentos, estão
sempre a considerar os séculos XVII, XVIII e mesmo parte do XIX como uma época de curas
mágicas e onde imperava o obscurantismo. Caso continuemos com esta linha de raciocínio
esqualificando ou negando essas práticas), não nos será possível entender, por exemplo,
por que os “serviços médicos em São Pau ira, 1995, p. 34)
ou, ainda, por que “da ineficiência dos serviços de combate às doenças” no mesmo período (Morse,
1954, p Assim, também escapa te império,
pouca c
utra maneira? Fico com esta última opção, até porque
se pens
pre cheia de
doente
o
sereno
madrugada seguinte, e acompanhado de um familiar muito próximo (um dos pais, marido,
mulher, irmão ou irmã), o mesmo deveria fazer a aplicação do remédio, espargindo com o ramo
de alecrim por três vezes. Cada aspersão deveria ser precedida do seguinte diálogo:
(d
lo eram tão restritos” no século XIX (Teixe
à nossa compreensão o fato de que, “duran o. 195).
oisa se fez em relação à saúde pública”, sendo que “as Posturas Municipais permaneceram
solitárias e inoperantes” (Ribeiro, 1993, p. 26).
77
Ora, estariam então os antigos administradores
completamente despreocupados com a saúde do povo, não lhes importando a grande
ocorrência de doenças e de mortes? De outra parte, podemos imputar aos antigos
camaristas uma incúria, ignorância ou atraso pela autorização dada aos curandeiros no
sentido de atuarem livremente? Ou, ao contrário, não estaria aqui uma preciosa indicação
sobre o entendimento que se tinha a respeito da saúde, da proteção contra as doenças que,
no caso, poderia ser conseguida de o
ava que a origem dos males estava em outro lugar.
Vejamos o caso de D. Anna Curandeira, ou Ana de Oliveira Rosa. Residiu ela por
muitos anos no Largo da Forca (atual Largo da Liberdade), vindo daí seu apelido de D. Ana do
Largo da Forca. Falecida em 1890 com a idade de 83 anos, ela era paulista de Apiaí “... uma boa
velhinha, de cor fortemente bronzeada”, como disse Affonso A. de Freitas, o que denunciava a
sua origem. Era curandeira, a mais afamada de sua época, e sua casa estava sem
s em busca de tratamentos. Dos remédios que prescrevia, muitos tinham origem no
conhecimento empírico das plantas como as receitas do Cangirão e a do Bule Grande.
78
Outras,
porém, demandavam um complexo ritual como a cura do cobreiro, onde deveria ser aplicada
uma simpatia chamada Água da Fonte e da folha do monte. Nesse caso, o doente devia deixar, a
da noite, um prato pleno de água límpida e nela mergulhado um ramo de alecrim. Na
77 - Além dos autores aqui citados, muitos outros também analisam a saúde no Brasil sob este prisma. Veja, por
exemplo, Massako Yida, Cem anos de saúde pública – A cidadania negada, especialmente o 1º capítulo “O caráter
eventual da saúde pública: as comissões (até 1889), p. 23 e seguintes.
78 - Cangirão: cozinhava-se na mesma panela japecanga, carobinha, sabugueiro e cipó. Grande bule: uma infusão
de sene, maná, rosa legítima ou cem folhas e cipó. Veja Freitas, Affonso A, de; D. Anna Curandeira, In: Revista do
39
Que é isso (fala-se o nome do doente)
Cobrelo, senhor.
Com que se cura?
Com água da fonte e folha do monte.
79
Muitas vezes, as práticas indígenas mesclavam-se com as tradições africanas e
católicas, uma vez que para esta mesma receita contra o cobreiro, poderiam ser invocadas as
Três Pessoas da Santíssima Trindade sendo o galho de alecrim substituído pelo de arruda; em
outras simpatias, o pedido era dirigido à Virgem Maria; em algumas variações, a receita
incluía ainda o ato de assoprar e de se cuspir na lesão.
80
A esse respeito, Laura de Mello e
Souza notou que “sopro e sucção tiveram papel de destaque nas curas mágicas e na motivação de
doenças e malefícios”, sendo essas práticas largamente utilizadas pelos Tupinambás, “a sucção
era comum também entre africanos”
81
A falta de médicos, nessa cultura, era relativizada. Spix e Martius perceberam que “o
sertanejo era notável pelo conhecimento perfeito das plantas medicinais da terra; sobretudo as mulheres
(que tinham) fama de grande proficiência na prática da medicina.” A esse mesmo respeito,
completaram os viajantes, “em quase todas as casas, uma ou outra exerce as funções de curandeira,
que não lhe são disputadas por nenhum médico, nem cirurgião; na época em que percorremos a
capitania de São Paulo, não existia na capital nem fora, médico diplomado algum.”
82
Na cidade sobejavam muitas Anas do Largo da Forca, que guardavam os segredos das artes
de curar, de feitiçaria e macumbas africanas, “... que retiravam do Tietê amuletos e mesinhas contra
ramos de ar, estupor, mau olhado, envenenamentos, mordeduras de animais, que curavam com anhumas,
esterco de vaca, de gambás, misturados com fumo, camina, pimenta a d terra, suco de limão azedo.”
83
Presença anotada por diversos autores que estudaram este tema, os africanos ou seus
descendentes participavam ativamente das artes de curar, seja através da sua relação com o
sobrenatural, seja aplicando técnicas propostas pela medicina acadêmica como as sangrias.
84
Arquivo Municipal, Vol. VIII, 1935, p. 13 a 15.
79 - Esta receita, recolhida por Affonso A. de Freitas, foi também citada por Silvio Romero e, com algumas alterações,
por Cabral, Oswaldo; A medicina teológica e as benzeduras; In: Revista do Arquivo Municipal, Vol. CLX, 1957, p. 05 a 204.
Neste estudo, Cabral aponta cerca de 21 simpatias contra o cobreiro. Ainda sob esse aspecto, e para o caso de tradições
que sobreviveram no século XX em São Paulo e região, veja Araújo, Alceu Maynard, Alguns ritos mágicos: abusões,
feitiçaria e medicina popular; In: Revista do Arquivo Municipal, Vol. CLXI, 1958, p. 39 a 162.
80 - Cabral, op. cit., p. 98 a 106.
81 - Souza, Laura de Mello e; O diabo e a terra de Santa Cruz; S.P.: Cia das Letras, 2005, p. 168 e 169. A respeito da
prática de sucção entre os africanos veremos um exemplo mais adiante.
82 - Spix & Martius, op. Cit., p. 160.
83 - Dias, Maria Odila Leite Silva; Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX; S.P.: Brasiliense, 1984, p. 183.
84 - Veja Sidney Challhoub, Cidade Febril (1996) e sob sua organização “Artes e Ofícios de Curar” (2003); Gabriela dos
Reis Sampaio, Nas trincheiras da Cura (2005); Tânia Pimenta Salgado, Entre sangradores e doutores: práticas e formação
médica na primeira metade do século XIX (2003) e Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro durante a
primeira metade do Oitocentos (2004). Jaime Rodrigues (2005), por seu turno, nos oferece uma excelente análise a
respeito do entendimento que os negros da África ocidental tinham a respeito dos males que afetavam o corpo.
40
Em São Paulo, nada de muito diferente ocorria e, para exemplificar, temos um rumuroso caso
que se passou em 1780. Em abril daquele ano, em plena Semana Santa, chegava à cidade um
delegado do físico-mor do reino chamado José Teixeira Guimarães. Com ordens para
proced
apresentação das ordens e demais papéis que dizia trazer de Lisboa. A partir daí, teve início
de “doze mil réis” dos comerciantes. E quem eram esses
comerc
das sangrias e, certamente, não apenas nesse ramo como já comprovaram os vários estudos
preparados para o Rio de Janeiro nessa mesma época. Aqui, porém, vale a informação de
que seja nessas funções ou na de comércio de remédios, muitos dos quais preparados
provavelmente com base no poder curativo das plantas, estavam também a atuar os
próprios administradores da cidade e, nesse caso, explica-se o temor dos edis frente à
devassa vinda do reino.
Nessa linha de raciocínio, vale lembrar que, para algumas das conclusões antes
citadas e que nos falavam de uma certa incúria na área de saúde, faltou a compreensão de
er “uma devassa” nas boticas e estabelecimentos que vendiam remédios, ele estava
ainda incumbido de visitar e realizar os exames necessários junto aos cirurgiões, barbeiros e
parteiras. Imediatamente o delegado foi chamada à Câmara Municipal e dele foi exigida a
uma celeuma entre o delegado e os vereadores que perdurou por mais de vinte dias, período
em que o delegado ficou na cidade. Procedendo as “devassas, indo visitar e conhecer dos que
curavam e sangravam”, José Teixeira Guimarães provocou a fúria dos vereadores, que o
acusaram de não ter poderes para isso e chegando, inclusive, a passar uma “Certidão” que o
proibia de tais atos. De fato, e para resumir esses acontecimentos, o problema não era o
“vexameque estaria sendo imposto aos povos, conforme alegavam ou vereadores, mas sim o
fato de que a Câmara sentiu-se tolhida em seus poderes e mais, ainda, porque o delegado,
por cada visita, cobrava a quantia
iantes? José Teixeira Guimarães os apresentou: eram eles alguns dos próprios
vereadores. E os camaristas, por sinal, não estavam apenas nesse ramo de negócio, senão
também mantinham “escravos sangradores que não querem que se examinem”, conforme as
palavras do delegado. Esses escravos, por sua vez, não estavam registrados como
sangradores e nem possuíam licença para isso, arrematou.
85
Do muito que poderíamos retirar dessa questão entre os vereadores e o delegado,
sobressai o fato de que eram os negros, escravos ou não, os que mais atuavam na prática
85 - O conflito entre os vereadores e o delegado do físico-mor do reino pode ser acompanhado através das Atas da
Câmara nas sessões dos dias 01/04/1780, p. 256 a 258; 08/04/1780, p. 260 e 261; e também através da
correspondência transcrita no Registro Geral da Câmara (Vol. XI, 1764-1795), ano de 1780, p. 281 a 291. A questão,
afinal, foi resolvida em outra instância, tendo como árbitro o governador da Capitania. Este autorizou as visitas do
delegado às boticas, mas não aos outros estabelecimentos comerciais que também vendiam remédios (certamente
nessa categoria estavam alguns dos vereadores); das demais incumbência poderia ele desempenhar sem
problemas, como o exame junto aos sangradores, parteiras e outros que praticavam a arte de curar. Infelizmente,
41
que, talvez, o médico não fosse tão necessário naquela época (daí a sua pequena quantidade),
assim como os seus métodos curativos já que, friso novamente, os médicos daquele período
ão eram tidos pela maioria como os portadores da saúde ou mesmo da cura.
86
E tal situação
não ocorria apenas em
mesma concepção. Pa
inclusive que mesmo
absolutos da arte de curar”, e completou sua análise ao dizer que “não é a ausência de médicos que
explica
e os outros
três em
a área urbana entre a
Sé e San
n
São Paulo, posto que por todo o Brasil encontramos exemplos da
ra o Rio de Janeiro, por exemplo, Márcio Soares de Souza concluiu
entre as elites, os médicos não eram, como pretendiam ser, os senhores
a ampla aceitação dos curandeiros, mas antes a concepção de que a origem das doenças tinha
uma natureza sobre-humana (...)”
87
Representativo, nesse caso, é o censo de 1872 que apontava, para todo o município de
São Paulo, a existência de apenas 06 (seis) médicos; três deles residindo na Sé
Santa Ifigênia. Nas demais freguesias como a Consolação, Braz, N. Sra. do Ó e Penha,
bem como em Guarulhos, São Bernardo e Juqueri (que compunham o município), nenhum
médico foi anotado.
88
Seis anos depois, em 1878, o número de médicos subiria para 19
(dezenove) mas, do mesmo modo, todos eles encontravam-se atuando n
ta Ifigênia.
89
Mesmo em finais do século XIX, como anotou Sesso Júnior, eram muito
deficientes os serviços prestados pelos médicos acadêmicos e, não apenas na Freguesia do
Braz como em toda a zona leste da cidade, o povo...
“...quando necessitava de socorros médicos, recorria aos velhos hábitos do
passado: imediatamente procuravam os pretos véios que infalivelmente lhes
receitavam os tradicionais chás preparados à base de ervas e raízes de
m localizados.
ão aos médicos foi uma constante nos séculos XVIII e XIX. No Brasil e em
Portugal, por exemplo, er
moléstias”, “A despeito dos
e “Guarde-nos Deus do físi
em Costa, J. R. M.; Livro dos
dos provérbios, Lisboa, Edito
pelo Dr. Luís Manuel da Gr
de Lisboa, intitulado “Repr
Língua Portuguesa”, Lisboa
87 - Soares, Márcio de Souz
Ciências Saúde – Manguin
contundente ao afirmar que, em sua pesquisa, jamais encontrou “qualquer evidência de que os próprios segmentos
populares se ressentissem da ausência de médicos (...). Ao contrário, esse tipo de protesto partia sempre de viajantes
estrangeiros, autoridades administrativas e de médicos que, para legitimar suas argumentações, estendiam suas próprias
representações como um problema pertinente a todo o conjunto da sociedade.” Nesse estudo, Soares se encarrega também
de demonstrar a pequena procura pela carreira médica entre os jovens brasileiros no período de que percorre o
século XVII e até meados do século XIX, uma vez que a esmagadora maioria preferia sempre as ciências jurídicas.
88 - “Censo de 1872”, Arquivo do Estado de São Paulo. Como forma de comparação existiam, no mesmo período,
22 (vinte e dois) advogados atuando na cidade.
89 - “Indicador de São Paulo para o ano de 1878”, editado por Abílio A. S. Marques, p. 168. Na mesma
comparação, esta publicação registra, para o mesmo período, cerca de 43 (quarenta e três) advogados na cidade.
os resultados desses exames não fora
86 - A desconfiança do povo em relaç
am correntes diversos provérbios populares como: “Quanto mais médicos, mais
médicos, viveremos até morrer”, “Deus cura os doentes e o médico recebe o dinheiro”
co experimentador e de asno ornejador”. Outros provérbios podem ser encontrados
Provérbios Portugueses, Lisboa, Ed. Presença, 1999 e em Machado, J. P.; O grande livro
rial Notícias, 1996. Veja também um estudo específico sobre esta questão produzido
aça Henriques, professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova
esentações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em
, 2000, disponível no site www.ensp.unl.pt/luis.graça/textos74.html.
a, “Médicos e mezinheiros na Corte Imperial: uma herança colonial”, In: Revista “História
hos”, Vol. VIII, nº 02, Julho/Agosto 2001, p. 407 a 438. O autor, aliás, é bastante
42
plantas, quando não recorriam aos famosos benzedores e curandeiros, cujos
conhecimentos sobre as várias doenças haviam adquirido ao acaso (...)”
90
tolerância da Polícia’, tem sido entendida como significando que a Polícia
Ao acaso, disse este autor levado talvez por uma certa descrença. Mas, mas bem
sabemos o quanto de experiência tinham esses “pretos veios” tão procurados pela população
nos locais onde nenhum médico existia – ou não existiam justamente porque o povo deles
não necessitava, posto que eram atendidos pelos seus vizinhos curandeiros.
O fato é que, ao lado de “Donana Curandeira”, muitos outros especialistas nesta arte de
curar estavam a atuar na cidade e, como demonstra a documentação, a presença dos mesmos
não se constituía em nenhum problema para os dirigentes municipais ou mesmo para as
autoridades policiais, e isso pelo menos até meados do século XIX.
91
Exemplar, nesse caso, foi a manifestação do delegado de polícia da capital em ofício
enviado à Câmara no dia 27 de julho de 1865. Naquela oportunidade, e por conta de
problemas relacionados com os bilhetes de sepultamentos (mais especificamente sobre as
pessoas que poderiam atestar a morte), os vereadores ordenaram que o administrador do
cemitério aceitasse os atestados assinados “por todas as pessoas que a Polícia tolere que curem.
92
Decisão repercutida com crítica pelos jornais, o delegado se viu numa situação
bastante incômoda e respondeu que:
“...tendo visto no Correio Paulistano nº 2748 a declaração da Câmara
Municipal, cuja redação em seu final [dizia] ‘pessoas que curam com a
fecha os olhos e não aplica a lei,
vem por isso declarar que não tem
penalidade alguma que possa aplicar a quem quer que seja que tenha a
veleidade de exercer qualquer dos ramos da arte de curar no Município;
acrescendo que não lhe consta ainda oficialmente que o Governo tivesse
atendido o pedido da Polícia desta Capital, apoiado pelo Presidente da
Província, para que o regulamento e conseqüente penalidade da Junta Central
de Higiene Pública fosse declarada em vigor na Província.”
93
Por certo que o delegado fazia menção ao Regulamento da Junta de Higiene Pública,
expedido no Rio de Janeiro aos 29/09/1851, e que dizia, em seu capítulo IV, artigo 25, que
“ninguém poderia exercer a medicina ou qualquer dos seus ramos sem título conferido pelas
90 - Sesso Júnior, Geraldo; Retalhos da Velha São Paulo, p. 89. A respeito da atuação de alguns curandeiros negros
que acabaram registrados pela imprensa ver Lilia Moritz Schwarcz (1987), especialmente os capítulos “O bruxeiro,
o feiticeiro” p. 125 e seguintes e, também, “As práticas
91 - Até as primeiras década
eram regulamentados pela
a incumbência de fiscalizar tais práticas. A esse respeito veja Pimenta, Tânia Salgado; Terapeutas populares e
instituições médicas na primeira metade do século XIX; In: Chalhoub, 2003, p. 307 e seguintes.
92 - A. C., 01/08/1865, p. 211.
bárbaras: dos sambas às capoeiras e bruxarias”.
s do século XIX, os ofícios de sangrador, boticário, parteira e curandeiro, por exemplo,
Fisicatura (esta extinta em 1828). Posteriormente, ficaram as Câmaras Municipais com
43
Escolas de Medicina, ias ou
administrativas ou pas
autoridade policial, o d e nem
poderia ser diferente, pois o mesmo estava em vigor já há 14 anos, ou desde 1851. Mas diante
aplicada porque o Regulamento da Junta de Higiene ainda “não fora declarado em vigor na
Província” poderia ser interpretado como uma manobra bastante sutil, pois transferia culpa
(se alguma houvesse) para os governos municipal e provincial. Entretanto, seria simplificar
muitos curandeiros (ou o contrário, como tivemos a oportunidade de analisar); por outro
lado, o que se pode perceber em todo este processo é a condescendência de todos os
gras e penalidades.
De fato, a situação legal desses práticos no âmbito da municipalidade somente
sofreria uma alteração mais profunda a partir das últimas décadas do oitocentos, mais
que encontramos aprovados dois artigos no
Código de Posturas especialmente preparados para coibir a sua atuação. Incluídos no Título
XVII, que versava sugestivamente “Sobre vagabundos, embusteiros, tiradores de esmolas, rifas”,
estava consignado:
Art. 199. – Todos os que se intitularem curandeiros de feitiços, ou
effectivamente empregarem orações, gestos ou outros quaesquer embustes, a
pretexto de curar, incorrerão na multa de 30$ e oito dias de prisão.
Art. 200. – Os que se fingirem inspirados por algum ente sobrenatural e
prognosticarem acontecimentos que possam causar sérias apprehensões no
animo dos crédulos, soffrerão a multa de 30$ e dez dias de prisão.
95
Apesar de cristalizada na Lei, esta regulamentação pouco ou quase nunca foi aplicada,
nem poderia servir de perito perante autoridades judiciár
sar certificados de moléstias para qualquer fim que seja”.
94
Enquanto
elegado deixou transparecer que bem conhecia o Regulamento;
da argumentação de uns e de outro, fica explícito o fato de que, em relação aos que se
aplicavam nas artes de curar – incluindo aqui os curandeiros – havia mesmo uma tolerância
por parte da polícia. A alegação do delegado dizendo que nenhuma penalidade poderia ser
demais a análise. Tal regulamentação existia e fora promulgada por um órgão do governo
imperial. Nesse caso, a sua validade atingia todo o território nacional. Mas, e por que a
mesma não estava sendo observada em São Paulo? Um dos pontos a serem considerados era
o já citado pequeno número de médicos acadêmicos na cidade, o que permitia o exercício de
envolvidos: a Câmara Municipal, pois declarava abertamente que aceitava todas “as pessoas
que curassem com a tolerância da polícia”, o Governo da Província que, conforme o
delegado, não providenciara de forma adequada a aplicação do Regulamento na cidade e, por
fim, o próprio delegado, pois ele sabia da existência de re
especificamente a partir de 1886, ocasião em
93 - Idem, p. 219.
94 - Regulamento da Junta de Higiene Pública, apud. Machado (1978), p. 212
44
e isto é bastante signifi
pelos negros, livres
autoridades municip
(ajuntamentos), festas
“suspeitas”. No caso d
aqui um parêntesis: talvez pelas suas características, poderíamos concluir que as fontes
consult
to, se constavam do Código de Posturas
s citados artigos contra feiticeiros e outros que empregavam forças sobrenaturais, cabia
sim à Câmara Munic
sua documentação de
em torno desse tema
imprensa, conforme notou Schwarcz (1987), mas, na maioria dos casos, os relatos eram
quase
Anhangabahú costumam os negros e carijós e bastardos jogarem vários jogos
negros e carijós ou desta nação pena de que todo aquelle que for apanhado
jogando sendo captivo ser açoitado á grade da cadeia com cicoenta açoites e
trinta dias de cadeia e sendo forro condenado em seis mil réis e trinta dias de
cativo uma vez que o ofício de curandeiro era exercido especialmente
ou escravos. Estes, por sua vez, sempre estiveram na mira das
ais, especialmente quando ocorriam reuniões não autorizadas
, danças, jogos ou quaisquer outras atividades que se tinham por
os curandeiros, o mesmo não ocorreu com tanta regularidade. Abro
adas (as administrativas municipais) não seriam as mais adequadas para perceber
esse tipo de repressão aos curandeiros.
96
Entretan
o
ipal a fiscalização dos mesmos e, conseqüentemente, a menção em
casos ocorridos. Ao contrário disso, o que notamos foi um silêncio
. As referências a estes curandeiros foram mais recorrentes na
sempre no sentido de menosprezar e ridicularizar os crédulos. Outras práticas
relacionadas aos negros, ao contrário, sempre foram motivos de vigilância e de repressão
como, por exemplo, explicitou um edital de 1742:
“Porquanto nos tem vindo a notícia que costumam nesta cidade na paragem
e serem estes o motivo de haverem vários furtos e mortes e por evitar-se
semelhantes danos (...) ordenamos que pessoa nenhuma jogue na referida
paragem do Anhangabahú ou em outra qualquer parte com os referidos
95 - “Código de Posturas do Município de São Paulo – 6 de Outubro de 1886”, p. 40.
96 - Outra fonte que traz referências sobre essa questão são os chamados “Processos Crimes” abertos pelo poder
eclesiástico e hoje custodiados pelo Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Entretanto, no rol dos 309
crimes investigados no século XVIII, apenas 3 (três) deles citam claramente a “feitiçaria” como crime: um em 1749,
ocasião em que a ré usou de magia para “matar gente”; outro em 1765 e o último em 1771. Já no século XIX, para
um total de 53 crimes investigados até 1862, nenhum deles teve como motivo a feitiçaria ou curandeirismo. Não
consultados para este trabalho, mas com bastante possibilidade para pesquisas, são os “Processos Penais”
custodiados pelo Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Com base nesta última documentação,
Boris Fausto (2005, p. 140), relata apenas um caso envolvendo um suposto curandeiro que foi condenado. Mas, é
preciso frisar, tal condenação não ocorreu pelo exercício da profissão, e sim pelo crime que o mesmo curandeiro
cometeu ao esfaquear um italiano nas imediações do Mercado Municipal. Em 1908, o mulato Jerônimo do Espírito
Santo, chamado de Sabará, ganhava a vida livremente nas imediações do mercado vendendo raízes, peles e dentes
de cobra, explica Fausto. Chamado de “caipira e negro macumbeiro” por um grupo de crianças das imediações,
Sabará aplica alguns safanões num dos garotos que corre chamar seu pai. Este, um italiano valentão, desafia
Sabará. A resposta foi uma facada mortal. Apesar desse único caso, Boris Fausto chama a atenção para o fato de
que nem todos os presos pela polícia tiveram inquérito instaurado (para 3.466 pessoas presas na Capital em 1893,
foram abertos apenas 329 inquéritos), o que demonstra, segundo o autor, que a prisão por um curto período e sem
abertura de inquéritos, era, de fato um instrumento de controle social. É possível, portanto, que nesse caso
pudessem estar incluídos alguns feiticeiros ou curandeiros.
45
cadeia (...).
97
Não obstante ter sido esta uma ordem, o fato é que muitas denúncias ocorreram,
omo a registrada pelo fiscal da cidade em 1831:
e e
c
“Participo a VV. Sas. que no dia 1º do corrente pelas 5 horas da tarde,
andando de passeio fui á fonte denominada bica do gaio e achei 40 e tantos
pretos divididos em 4 Secções, com o jogo do búzio, e diz a vizinhança que é
de sempre continuado alli estarem e por vezes ter havido pancadas (...)”
98
A hipótese que levanto para a não aplicação regular daquela parte da legislação, ou
seja, para a não repressão sistemática aos curandeiros, é a de que os mesmos eram bastante
considerados pela população que deles se serviam constante e comumente na busca de curas
para seus males.
99
De outra parte, é preciso notar que não eram apenas os mais pobres que
recorriam a esta alternativa e, a exemplo do que ocorria no Rio de Janeiro
100
, também a lit
branca paulistana buscava os conselhos dos pretos-véios residentes na região do “Saracura” ou
de João Manoel e Generosa Maria, feiticeiros residentes no Braz
101
, do mulato Manuel de
Freitas, chamado de o curandeiro das Perdizes, de tio Dito, também conhecido como feiticeiro do
Belém, ou de Antonio Euzébio de Assumpção, o Catimbau.
102
Costume arraigado, a consulta a
esses feiticeiros passou a ser desqualificada entre finais do século XIX e primeiras décadas do
XX, época em que o jornal Correio Paulistano denunciava que:
97 - Registro Geral da Câmara, Vol. V, p. 427. Como complemento deste edital, estabeleceu-se ainda um prêmio de
2 mil Réis aos milicianos que prendessem os tais jogadores.
98 - R. G. da Câmara, Vol. XXI, p. 252 e 253. A “Bica do Gaio” localizava-se nas barrancas do Anhangabaú, limites
do bairro da Liberdade, mas nas proximidades do antigo Largo da Forca onde residia Dona Ana Curandeira.
99 - Para auxiliar o trabalho diário dos fiscais na cidade, em 1888 expediu-se uma “Instrução para a boa execução
das Posturas Municipais”. Em seu Art. 1º, § 1º podemos ler que “Cumpre que da infração em que verificar que está o
indivíduo não resultar mal material ao público, ou a qualquer particular, (o fiscal) se limitará a advertir o infractor que ainda
não tiver sido admoestado por aquella falta.” Ora, e apesar de estarem presentes na Lei os artigos referentes aos
curandeiros, esta “Instrução” de 1888 afrouxava a sua aplicação e, somente em casos comprovados de reincidência, é
que estava obrigado o fiscal a emitir um auto de infração (§ 2º do mesmo artigo). Talvez disso resulte o silêncio
verificado sobre os curandeiros nos relatórios apresentados pelos fiscais à Câmara Municipal (A.C. 03/07/1888, p.
206 e 207), e isso não obstante ao Código Penal de 1890 que proibia o exercício da medicina sem habilitação (Art. 156),
a prática “do espiritismo, da magia e de seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancia para despertar sentimentos
de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis e incuráveis para fascinar a credulidade pública” (Art. 157), bem
como o ato de “ministrar ou prescrever como meio curativo, sob qualquer forma preparar, substâncias de qualquer
dos reinos da natureza, fazendo ou exercendo, assim, o ofício denominado de curandeiro.
100 - A esse respeito veja as análises de Gabriela dos Reis Sampaio: “Tenebrosos mistérios: Juca Rosa e as relações
entre crença e cura no Rio de Janeiro Imperial, In: Chalhoub (2003), p. 388 e seguintes.
101 - Koguruma, Paulo; A Saracura: ritmos sociais e temporalidades da metrópole do café (1890-1920); 1999, p.95. A
região conhecida como Saracura é o vale do ribeio de mesmo nome, por onde hoje corre a Av. 9 de Julho. As
barrancas desse ribeirão, bem como as do córrego do Bexiga e do Anhangabaú, entre os bairros da Liberdade e da
Bela Vista (Bixiga), eram tradicionais redutos negros na cidade oitocentista.
102 - Bertucci, Liane Maria; Remédios, charlatanices ... e curandeirices; In: Chalhoub (2003, p. 216).
46
“não é tão somente a plebe ignorante que se deixa vencer da crendice, que traz
mascotes e colleciona ferraduras. Compreende-se que seria indiscreto relevar
segredos da gente boa, mas impõe-se ao homem da sciencia um estudo dessa
face interessante do espírito popular.”
103
De outra parte, é preciso lembrar que, em certos casos, alguns curandeiros ganharam
fama e respeito inclusive entre médicos acadêmicos, o que tornava bastante tênue os limites
entre uma e outra prática de cura.
104
De toda a forma, curandeiros e benzedeiros também se
utilizavam de práticas sobrenaturais que, apesar de suas origens africanas ou indígenas, bem
poderiam se ajustar ao catolicismo: “Medicina, magia e religião eram então indissociáveis”
105
Colaborando ainda para a sua aceitação, é preciso frisar que os curandeiros sabiam
muito bem utilizar a flora e a fauna brasileira, estas de longa tradição indígena e de há
muito empregadas em São Paulo
106
: “dentes de jacaré eram poderosos talismãs capazes de
contrabalançar eficientemente a influência de certas entidades funestas ao homem; outro
bom remédio eram as unhas de tamanduás e das preguiças: curavam os males do coração;
a cauda do gambá era matéria para preparar diversas mezinhas contra doenças dos rins,
curava cólicas, fazia gerar leite e acelerava o parto; para acalmar dores reumáticas, os
paulistanos costumavam friccionar as partes com banhas de anta, de capivara e
até
afetadas
de cobra...”
107
ano”, edição do dia 08/11/1907, notícia sob o título Superstição, In: Koguruma, op. cit., p.
ales e suas curas – práticas médicas na Campinas oitocentista; In: Chalhoub (2003, p. 331 e
a autora examina alguns casos em que ocorreram colaborações entre médicos e
a segunda metade do século XIX.
as práticas de cura era algo corriqueiro em São Paulo desde os primórdios da cidade.
, vários mor
103 - Jornal “Correio Paulist
96.
104 - Xavier, Regina; Dos m
seguintes). Neste estudo,
curandeiros na Campinas d
105 - Idem, ibidem, p. 345.
106 - A utilização de ervas n
Entre os séculos XVIII e XIX adores mantinham em seus quintais fornidas “farmácias” com tudo o que
fosse necessário. Data dessa época, por exemplo, uma verdadeira “caça” às formigas que, além de provocarem
estragos nos “templos sagrados e nos ornamentos das mesmas igrejas” também causavam sérios
prejuízos nas plantas
e curas medicinais...” Registro Geral da Câmara, Vol. XI (1764-1795), “Edital contra formigas”, 24/11/1764, p. 68 a
70.
107 - Holanda, Sérgio Buarque de; Caminhos e fronteiras (1975) p. 94 e seguintes.
47
Fig. 05:
o vendedor de ervas, raízes e pássaros no antigo mercado dos caipiras
de São Paulo na década de 1920.
, como observou o botânico Frederico Carlos Hoehne, os ervanários de
além d
Pai Inácio: conhecid
Ainda em 1920
São Paulo expunham pelas ruas e comercializav a banha de anta, a de capivara,
vendida em pequenos vidros ou garrafas, a de quati, as de cobras – jibóia, sucuri, jararacuçu,
cascavel, coral e urutu – a do gambá, a do tamanduá, a do tatu, todas indicadas
especificamente contra o reumatismo.
108
Aliás, o próprio Hoehne, ao mesmo tempo em que
criticava algumas “crendices” (mas reconhecendo as propriedades curativas de algumas
plantas) lembrava que:
“O resultado de qualquer negócio não depende da oferta e sim da procura. Se pois o
povo ainda não chegou a um grau de adiantamento capaz de avaliar e compreender a
nulidade dos amuletos, figas, rezas e benzedeiras;
se mesmo pessoas de famílias mais
am
cultas muitas vezes procuram favas e figas contra quebranto e mau-olhado, para
dependurá-los ao pescoço dos seus herdeiros, e têm confiança em uma oração, por que
razão haveríamos de censurar as pessoas que se dedicam a tal comércio?”
109
(meu
destaque)
108 - Idem, ibidem, p. 94.O botânico Hoehne, então funcionário do Serviço Sanitário do Estado, publicou em 1920
a obra “O que vendem os ervanários na cidade de São Paulo”, resultado de uma ampla pesquisa que realizou.
109 - Hoehne, 1920, Apud: Santos, Carlos José Ferreira dos (2003, p. 77).
48
Parte integrante do dia-a-dia dos paulistanos desde os oitocentos, ainda nas primeiras
décadas do século XX podia-se encontrar pelas ruas ou mercados da cidade uma infinidade
de ervanários que, a exemplo de Pai Inácio, não estavam a postos apenas para a venda de seus
produtos senão, também, para aconselhamentos. E de tal maneira eles eram recorrentes na
paisagem que mesmo nos cartões postais, estes especialmente destinados a divulgar uma
imagem da cidade, esses profissionais apareciam com freqüência.
Fig. 06
Neste postal da década de 1930, a presença de vendedoras de ervas medicinais –
macacos, ouriços, ervas medicinais, etc.”
110
:
provavelmente nas imediações do Largo do Arouche.
Seja pelas ruas da cidade, nas imediações da Av. São João e Largo do Arouche onde
havia uma concorrida feira, seja nos mercados, a presença desses profissionais não passou
desapercebida para alguns memorialistas, como foi o caso de Jacob Penteado:
“Todas as semanas, eu e tia Romana íamos ao Mercado Municipal, antes
Mercado Grande, na Rua 25 de Março, ao pé da Rua General Carneiro, antiga
Ladeira João Alfredo. Ao seu lado, já nos terrenos da Várzea, havia o
chamado Mercado Caipira, onde ficavam os vendedores de farinha de
mandioca, milho, doces de frutas, aves domésticas, papagaios araras,
110 - Penteado, Jacob; Belenzinho 1910; 1962, p. 58
49
Fig. 07
Entre os vários negociantes presentes no antigo Mercado dos Caipiras da Rua 25 de Março,
notamos, no canto inferior esquerdo, a presença altiva de uma vendedora de ervas
(ampliado abaixo) neste cartão postal de 1909.
50
Na história da medicina brasileira – e não na da saúde ou das práticas de cura no
Brasil, é preciso sublinhar – fica muito claro o fato de que os médicos acadêmicos, desde as
primeiras décadas do século XIX, almejavam uma participação mais ativa no aparelho de
Estado para o controle das ações ligadas à saúde o que, de fato não ocorria. Com esta análise
concordam todos os estudiosos da medicina no Brasil, bem como com o fato de que apenas
em épocas de crises (de epidemias) os médicos faziam valer sua opinião de modo mais
efetivo. Em períodos normais, eles se restringiam às assessorias esporádicas e nunca
ais entender a
“histór
mesmo, deveriam ser totalmente desconsideradas. No caso brasileiro, por exemplo, esta
vinculadas ao comando da saúde pública.
111
A inclusão desses profissionais como gestores de
políticas na área da saúde somente se daria, efetivamente, nas últimas décadas do século XIX
e, em São Paulo, especialmente com a República.
112
Nesse sentido, cabe uma indagação, pois
se não era ainda tão somente na medicina que se buscavam as curas, ou a proteção contra os
males, onde então elas ocorreriam? Nesse campo, é preciso alertar, muitas das questões
tornam-se incompreensíveis ao nosso olhar contemporâneo caso finquemos os pés na
atualidade – e disso bem sabem os historiadores.
Uma das primeiras conclusões nesse caso, é a de que não podemos jam
ia da medicina” como sinônimo da “história da saúde”, e isso apesar da aparência de
que uma representaria a outra, ou que as duas seriam uma só. Em outras palavras, a primeira
é parte integrante da segunda, mas não a sua totalidade até porque a vida, a doença e a morte
– como é óbvio na história da humanidade nem sempre estiveram sob o comando dos
médicos. Acredito que para uma História da Saúde Pública, devemos considerar outros
aspectos e elementos que não apenas os da ciência, pois do contrário muitas das práticas
vigentes no passado quedam desqualificadas, como magia ou fantasias, e que, por isso
questão salta aos olhos, uma vez que há um reconhecimento de que a medicina como
promotora da saúde pública – bem como a sua inserção no aparelho de Estado – é algo
bastante recente e foi precedida por quase um século de lutas. Este fato é algo bastante
111 - Não obstante os governos locais terem entre seus empregados os “cirurgiões de partido” ou “físicos”, como
foi o caso da Câmara Municipal paulistana ou mesmo da Capitania e depois Província, o fato é que eles não
determinavam as ações na área de saúde, ou do que hoje chamamos de políticas públicas. Eles obedeciam ordens,
restringindo o seu trabalho às determinações superiores.
112 - Um dos vários exemplos que podem ser citados a esse respeito foi o da instalação, em 1886, da “Repartição
de Higiene da Província de São Paulo” e que foi praticamente ignorada pela administração municipal. No ano
seguinte, reclamava seu diretor à Inspetoria Geral de Higiene do Império no Rio de Janeiro: “... é assim que a
Chefatura de Polícia e a Câmara Municipal desta Capital têm obstado, entorpecido ou negado cumprimento ás mais razoáveis,
refletidas e úteis providências de higiene e saneamento, emanadas desta repartição...”. Relatório do dr. Marcos Arruda,
inspetor de higiene da Província de São Paulo apresentado a “Exma. Inspetoria Geral de Higiene do Império” a
19/01/1887. Apud: Sá, A. Nogueira de; Notas a margem dum relatório, In: Revista do Arquivo Municipal, vol XXIX,
1936, p. 69 a 86.
51
representativo e de sua história conhecemos algumas minúcias, posto que são inúmeros os
seus registros bem como as análises que se procederam.
Uma das etapas mais conhecidas na trajetória da medicina quando em busca de sua
identificação como a verdadeira e única portadora da saúde (ou da cura), foi aquela ocorrida
logo nas primeiras décadas do século XIX e que se caracterizou pela desqualificação de
quaisquer outros métodos curativos que, a partir de então, foram taxados como
charlatanismo. Estudi achado nos
trouxe análises signific
exemplo a tese de Tho
Rio de Janeiro em 1
compartilhada entre o
avidez do charlatão, p ário “e
elo império que exerce sobre a morte, é de alguma sorte a imagem da Divindade sobre a terra (...)”.
113
em arrogante e nem herética, a frase do médico Antunes de Abreu está consoante com o
momen
ue
estaria a atuar para o aparecimento das doenças. Nesse sentido, configura-se para sociedade
daquela época a importância de certas práticas religiosas ou, ampliando a questão, de uma
proteção divina que se almejava para obstar os males. Entendendo a saúde sob este prisma,
poderemos perceber que no Brasil daquele tempo já estava colocada para a população uma
ampla rede de práticas curativas, esta engendrada principalmente num conjunto formado pelo
Estado e pela Igreja, mas que, como vimos, incluía também outros elementos.
Deve-se ressaltar mais uma vez que a prática médica como hoje a conhecemos não nos
serve tanto de parâmetro para entender os antigos caminhos da saúde, da doença e da morte.
oso desse momento da história da medicina, Roberto M
ativas de tal processo e, ao falar das táticas então utilizadas, cita como
maz Antunes de Abreu, esta apresentada à Faculdade de Medicina do
839. Nessa passagem, Machado nos fala de uma opinião então
s médicos, ou seja, a de que “o medo da morte, quando usado pela
roduzia a imaginação e o maravilhoso”, mas o médico, ao contr
p
N
to vivido. Se a morte era entendida como um desígnio de Deus, estavam os médicos
agora tentando tomá-la para si e, com base na ciência, procurando entender melhor os seus
caminhos na intenção de evitá-la. Nesse caso, não apenas os médicos, mas toda a ciência,
estaria representando Deus na terra.
Esta frase, por sinal, é grande relevância para a história da saúde no Brasil, e isto porque
apesar de querer ser um divisor de águas, reconhece a existência de uma força sobrenatural q
113 - Roberto Machado et al.; Danação da Norma, p. 203, aqui citando a tese do médico Thomaz Antunes de Abreu “A
medicina contribui para o melhoramento da moral e manutenção dos bons costumes”, Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
1839, p. 6. Para um contraponto às teses de Roberto Machado, especialmente no que diz respeito ao seu conceito de
“medicalização da sociedade”, veja Sampaio, Gabriela dos Reis; Nas trincheiras da cura – as diferentes medicinas no Rio de
Janeiro Imperial; S.P.: Unicamp, 2005, onde a autora mostra que esse caminhar da medicina acadêmica em busca de sua
hegemonia não ocorreu de modo tão tranqüilo, senão com muitos percalços e disputas internas.
52
Se tanto a doença quanto a saúde estavam mais no mundo sobrenatural, também ali a
proteção deveria ser buscada. Por isso a atuação dos governos em conjunto com a Igreja e não
com a medicina (o que ocorreria bem mais tarde), daí as práticas e costumes que, apesar de
diferentes das atuais, tinha a mesma finalidade, pois tentava abarcar
todos os indivíduos com
o intuito de protegê-los contra os males. Esta proteção por sinal, tal e qual as atuais, também
previam regras que deveriam ser seguidas, como as orações, a presença nas igrejas, nas
missas, etc., bem como condenava comportamentos inadequados que, se não corrigidos,
poderiam trazer a doença.
114
Rezas e orações, ou pedidos de clemência dirigidos ao Todo
Poderoso, eram entendidos como parte desse processo e, por isso, nada a estranhar que, na
epidemia de cólera que atingiu o país em 1850, própria Câmara Municipal de São Paulo tenha
solicitado uma ajuda ao vigário capitular da cidade nos seguintes termos:
om
semelhante calamidade, e condoendo-se da sorte de seus irmãos espera que
os, as práticas religiosas católicas não estavam
ou, mais ainda, com o intuito de prevenir as doenças e epidemias.
“Oficio da Câmara ao Vigário Capitular: Illmo. e Rmo. Senr.
A V. S. Revma. roga a Câmara Municipal desta Imperial Cidade que preces
sejam feitas afim de se impetrar a clemência do Todo Poderoso a cessação do
flagelo epidêmico que devasta a Capital do Império e outras Províncias delle
e para que o mesmo flagello se não toquem a esta e outras Províncias ainda
não contaminadas. A Câmara Municipal em extremo sensibilizada c
V. S. em seu coração piedoso receba esta presente rogativa e se servirá
providenciar na forma pela mesma Câmara pedida.
Ds. Ge. a V. S. - Paço da Câmara em S. Paulo 9 de Abril de 1850.”
115
Aqui podemos perceber a existência de uma rede de proteção, utilizada para não só
prevenir o mal na cidade, como também para diminuir seus efeitos em outras províncias.
Assim, e além de outros importantes significad
a servir apenas como uma purificação visando uma vida eterna no paraíso senão, também,
para um cuidado mais objetivo, servindo como um remédio para os males presentes na terra
114 - Essas “redes de proteção à saúde” sempre existiram na história da humanidade. O fato é que, dependendo
da época, elas acabaram por ganhar outros nomes e outras formas de ação, sempre a partir das diferentes bases
em que se assentavam. Como estamos vendo, ela já foi religiosa e, depois, alterou-se nas mãos de médicos e
engenheiros quando do triunfo da teoria dos miasmas para, finalmente, transformar-se na moderna “política
médica de saúde pública. Os fins, no entanto, sempre foram os mesmos, ou seja, buscar uma “proteção” contra a
doença para retardar ao máximo a morte.
115 - Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, Vol. XXXIV, 1850, p. 222.
53
Fig. 08
“Primeira saída de um velho convalescente” – aquarela de J. B. Debret que relata:
“Submetido desde a infância às práticas religiosas, é o brasileiro naturalmente levado pela devoção, quando atacado
de doença grave, a fazer uma promessa em benefício da igreja, a fim de merecer a convalescença; essa promessa é
aprovada pelo confessor e o convalescente apressa-se em cumpri-la imediatamente após a sua cura. Mas, em virtude
de um sentimento mundano que se ajunta ao dever religioso, esse ato de humildade e de gratidão para com o Criador
adquire, no homem rico, um caráter de ostentaçãoque eclipsa diariamente, aos olhos do povo, a mesma promessa do
pobre, cuja oferenda modesta, mas igualmente meritória, penas se nota ao ser levada ao pé do altar.” a
116
Seja para conseguir uma maior proteção, seja para afastar um mal já instalado, não
bastavam as missas, orações e promessas, bem como um comportamento adequado. Para o
bem de todos, fazia-se necessário uma união entre os moradores da cidade que, em
momentos especiais, saíam às ruas para participar de uma verdadeira catarse coletiva: as
procissões. Em certos casos a participação tornava-se obrigatória e, até o século XVIII,
conhecemos vários exemplos de moradores que foram multados pela Câmara por se
ausentarem de tais compromissos.
Para as crises mais agudas, procissões eram especialmente preparadas e, nesse caso,
reportamo-nos tanto às realizadas em 1822 para auxiliar no restabelecimento da Imperatriz
Leopoldina, quanto a muitas outras preparadas em São Paulo com o intuito de atenuar os
11 bret, Jean Baptiste; Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil; S.P., Livraria Martins, Vol. II, Parte III, p. 484 a
486. Para esta aquarela (prancha nº 5) nos é dada a seguinte explicação: “O grupo principal do desenho representa
6 - De
um velho convalescente descendo de sua carruagem e sustentado pela filha e pelo genro ao entrar na igreja
descalço, a fim de depositar parte de seu pesado presente, cujo resto é carregado pelo escravo. A dádiva, como em
geral tudo o que se oferece à igreja, é toda enfeitada de fitas. Num plano mais afastado, mas na mesma escadaria,
uma negra, entrando pela segunda porta, segura nos braços uma criança, encarregada de entregar a vela
prometida. Um pouco mais longe, embaixo da escadaria, uma velha negra indigente, antes de entrar com sua vela,
dá um vintém de esmola a outra mais pobre ainda. Essa verdadeira compreensão da caridade cristã observa-se
54
efeitos das perigosas "bexigas". Não obstante a realização destas cerimônias em momentos de
crises (para alcançar uma finalidade específica), bem sabemos que as procissões eram uma
constante em São Paulo. Idealizadas pelas inúmeras igrejas, confrarias e irmandades – e
muitas
dências no trajeto, que dispunham de flores
e toalh
como momentos de sociabilidades, ressaltando nelas
algumas características não religiosas como as de divertimentos ou festas populares. Paulo
Cursino de Moura, po
reuniam “o povo em pes
nesta questão, incluiu
com sugestivo título
conservação de “certos
começo do século XIX, a
Enterro, segundo ain
“para os moradores de São Paulo, a recreação máxima, o motivo maior de atração (...)
as outra
que elas “promoviam a reunião do povo, reuniam o passeio, a visita, o piquenique, e representava de
fato a única válvula através da qual podia se exibir a vaidade humana, que não encontrava aqui as
oportunidades que se tinha na Europa.”
119
Não restam dúvidas que as procissões também guardavam esse aspecto, mas não
delas tendo como finalidade alcançar uma proteção – muitos desses eventos tinham
inclusive um caráter oficial, ou seja, eram pagas pelo poder público. No século XVIII, estas
eram em número de quatro: a de São Sebastião, a do Corpo de Deus, a da visitação de Nossa
Senhora à Santa Izabel e a do Anjo Custódio. A preparação destes e de inúmeros outros
cortejos obedeciam a um ritual meticuloso que previam desde o reparo das ruas por onde elas
passariam, a limpeza das mesmas, e até ao que poderíamos hoje chamar de “decoração”,
incluindo as preparadas pelos moradores das resi
as ricamente bordadas nas janelas. Justamente por isso, ou por estarem no caminho
das procissões, estas residências eram as mais valorizadas da cidade e estavam localizadas no
antigo Largo da Sé (de onde partiam a maioria dos cortejos), passando pela Rua da Imperatriz
(atual 15 de Novembro), Boa Vista, São Bento, Direita para, novamente alcançar o Largo da Sé.
Como existiam em profusão na São Paulo dos séculos XVIII e XIX, muitos autores
analisaram estas manifestações mais
r exemplo, as classificou de “imponentíssimas” e “concorridíssimas”, pois
o nas ruas e, por toda a parte”
117
; já Ernani da Silva Bruno, mais explícito
um minucioso relato das antigas procissões num capítulo de sua obra
de “Festas de brancos e de negros”, e chamou a atenção para a
aspectos burlescos” que esses eventos “ostentavam no setecentismo e no
pesar de estarem proibidas, desde 1831, o uso de máscaras”. A procissão do
da a análise do autor, “exibia aspectos um tanto carnavalescos” e
representavam
s diversões de rua eram reduzidas”.
118
A contribuir com estas análises estavam os relatos
de estrangeiros, como os do naturalista inglês Richard Francis Burton que reputava uma útil
intenção às procissões, mesmo que não fosse encarada sob o ponto de vista religioso, uma vez
diariamente na classe indigente.”
117 - Paulo Cursino de Moura, 1980, p. 54.
118 - Ernani da Silva Bruno, 1984, p. 754 e 755.
119 - Burton, Sir Richard Francis, Viagens aos planaltos do Brasil; S.P., Cia. Ed. Nacional, 1983, Vol. I, p. 192. Burton
foi vice-cônsul britânico em Santos a partir de 1865 e em 1867 empreende uma viagem através do Rio de Janeiro,
55
apenas isso. A esse respeito, lembra-nos Affonso de Freitas sobre o “espírito religioso
profund
es, os quais, nessa ocasião, machucavam-se, rasgando, alguns, as suas
roupas,
casas, e muros branqueadas, e testadas limpas, e varridas
has e flores pelas ruas em que ha de passar a mesma procissão
m d sa de
certas regras quando d
remontava a D. João V
amente arraigado na população e suas externações, idealistas e contemplativas” que,
completou ele, “hoje nos pareceriam exageradas”.
120
E por que exageradas? Através de vários relatos, um primeiro ponto a ser levantado é
justamente o fervor do povo que delas participava. Antonio Egydio Martins nos fala a esse
respeito e lembra da já citada e “concorridíssima” procissão do Enterro na Semana Santa, na
qual lanternas e tocheiros eram distribuídos aos fiéis. Por conta da grande concorrência de
público, disse Martins, a disputa era aguerrida, sendo a entrega das lanternas feita “no meio de
empurrões entre os pretendent
tal era o desejo de fazer parte do préstito”
121
De outra parte, um certo “exagero” observado por muitos autores já no século XX,
pode ser atribuído à participação efetiva do governo nesses antigos cortejos. Além da Câmara
Municipal arcar com os custos de algumas procissões consideradas oficiais, todo um aparato
sob a supervisão dos vereadores era empregado, inclusive com obrigações aos moradores,
como ocorreu na procissão de Corpus Cristi de 1820. Naquela oportunidade publicou-se um
edital com as seguintes disposições:
“Fazemos saber a todos os moradores desta cidade que no primeiro de junho
do presente anno se ha de celebrar na Sé Cathedral a festividade de Corpo de
Deus na conformidade das reaes ordens de S. M. com solenne procissão, que
ha de sahir pelas ruas publicas desta cidade, a que todos os fieis vassallos são
obrigados acompanhar, para que mandamos aos sobreditos moradores
tenham suas
lançando fol
tendo cada um suas portadas, e janellas ornadas como é devido, debaixo das
penas de serem condemnados em seis mil réis para as despesas do Concelho,
e trinta dias de cadeia (...) Senado em vereação de 17 de maio de 1820.”
122
Alé es terminação dirigida ao povo, a própria Câmara era obrigada a seguir
a participação de seus membros nos cortejos. Segundo uma ordem que
, "a Câmara incorporada e com o Real Estandarte" deveria ser "o corpo que
oas. Seu livro foi publicado originalmente em Londres no ano de 1869.
, 1955, p. 98
Minas Gerais, Bahia e Alag
120 - Affonso A. de Freitas
121 - Antonio Egydio Martins, s/ data, p. 52. Nessa mesma linha de análise, ou seja, a de considerar as procissões
mais como momentos de diversão e de criticar os “exageros” então empregados, veja Debret, Jean Baptiste; op.
cit., p. 371 a 387. Na análise que procedeu sobre as cerimônias religiosas realizadas no Rio de Janeiro nas primeiras
décadas do século XIX, Debret chega a dizer que estas “conservaram seu caráter bárbaro, exagerado”, sendo as
mesmas eram “uma oportunidade de luxo e de divertimento público...”. A exemplo do que ocorria em São Paulo,
Debret cita que, no Rio de Janeiro, existiam oito procissões principais: São Sebastião, Santo Antonio, Nosso Senhor
dos Passos, a do Triunfo, a do Enterro, a do Corpo de Deus e a da Visitação de Nossa Senhora. Para cada uma
delas, o autor traz uma detalhada descrição do cortejo.
122 - Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, 1820-1822, Vol. XVI, p. 60 e 61.
56
fecha a procissão (...) seg
consistentes, é preciso lembrar que para os africanos, especialmente para os
minas
uindo atrás dela a guarda militar"
123
As minúcias na preparação das procissões, a participação do povo e do governo local,
bem como o circuito percorrido pela cidade e as manifestações que então eram promovidas,
nos fazem crer que esses cortejos não apenas homenageavam os santos ou relembravam
certos ritos do catolicismo senão, também, tinham a função de abençoar a cidade e seus
moradores, livrar a comunidade de quaisquer males, purgar os pecados e solicitar a
benevolência divina. Daí as regras a serem seguidas pela população e pelos vereadores, pois
do contrário, ou seja, quebrá-las, poderia resultar em punição, castigos que bem poderiam vir
sob a forma de epidemias.
Apesar das fontes consultadas para São Paulo não oferecerem dados mais
, esta
a crença de que Soponna (orixá conhecido ainda pelos
correlação religiosa também estava presente. Jaime Rodrigues (2005, p. 280) nos lembra que
“no interior dessas tradições, estabeleceu-se
nomes de Omolu, Obaluaiê, Xapanã ou Sapata, conforme a região da África onde era originalmente
cultuado) castigava aqueles que o provocam, violam seus tabus
ou negligenciam seu culto, enviando-
lhes doenças.”
124
(meu destaque) A colaborar para com a influência dessa crença entre os escravos
paulistanos, vale lembrar que a presença dos minas na cidade pode ser recuperada através da
existência, bem ao lado do antigo Largo do Sé, do conhecido Beco dos Minas, logradouro
hoje desaparecido, posto que parte foi incorporado à Praça Clóvis Bevilacqua e parte à Rua 11
de Agosto. Esta antiga denominação (referendada por vezes como “Beco
das Minas”, e isso
pela existência de inúmeras negras quitandeiras) é, portanto, uma forte referência da
presença desse grupo na cidade.
E não por outro motivo (a quebra de regras) é que as procissões mereciam, inclusive,
um assentamento oficial, e isso da mesma maneira como se registravam as grandes
discussões de governo. Nesse sentido, os cortejos religiosos eram, também, atos políticos:
Aos dez de novembro de 1822 nesta cidade de São Paulo, e casas da Câmara
Paços do Concelho della onde se juntaram o juiz pela lei presidente o capitão
Bento José Leite Penteado, e vereadores, e procurador abaixo assignados para
irem á Sé Cathedral assistirem á missa cantada, e procissão que a santa igreja
celebra hoje pelo patrocínio de Nossa Senhora, e daqui sahiram incorporados
e procissão, e depois de finda recolheram-se á estas casas do Senado; e para
constar mandaram lavrar este termo que assignaram: e eu João Nepomuceno de
cobertos com o real estandarte para a mesma Sé onde assistiram a dita funcção,
123 - Ofício do General Oeynhausen, Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, 1820-1822, Vol. XVI, p. 50 e 51.
124 - Rodrigues, Jaime; De costa a costa – Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de
Janeiro (1780-1860); S.P.: Cia das Letras, 2005, ver especialmente o capítulo 8 “Saúde e artes de curar”. Também sob
esse aspecto ver Chalhoub (1996), em especial o capítulo “Raízes culturais negras da tradição vacinophobica”, p.
134 e seguintes.
57
Almeida escrivão que o escrevi. – Penteado – Ramos – Bueno – Barbosa.”
125
Todos esses rituais eram parte constituinte da proteção que se queria efetiva, ajudando a
população na prevenção dos males ou na debe ção dos mesmos quando já instalados no meio.
Dessas antigas práticas não participava a medicina e sim o Estado em conjunto com a Igreja. E
este poder da Igreja, por sinal, a riamente, hora a hora através
dos seus símbolos dispostos em toda a cidade representados que eram pelos seus inúmeros
a
o
o
ejas dos Jesuítas, da Sé, de São Pedro, de Santa
ereza, do Carmo e da Ordem 3ª, da Boa Morte, São Gonçalo e dos Remédios. Para os que
chegavam do interior, pelo lado oeste, a paisagem era dominada pelas igrejas de São
Francisco e da Ordem 3ª, Santo Antonio, São Bento e a de Nossa Senhora do Rosário, sendo
que estas duas últimas também eram vistas po aqueles que demandavam do norte. O círculo
estava
ispostos os edifícios religiosos impressionava aqueles que chegavam, por
hora ou acontecimentos diversos. Nesse caso, estavam a visão e a audição sempre a lembrar
la
mpliava-a em muitas vezes - dia
,
templos. Chega mesmo a impressionar o número de igrejas circunscritas apenas na chamad
colina histórica ou no hoje chamado centro velho da cidade. Considerando-se como limites
ribeirão Anhangabaú no lado oeste, o Tamanduateí a leste, o morro de São Bento ao norte e
início do bairro da Liberdade pelo lado sul, a cidade tinha, nas primeiras décadas do século XIX,
um total de 13 (treze) edifícios religiosos estrategicamente colocados para formar um cinturão
de proteção ao redor do núcleo urbano.
Dentre as várias construções da cidade, eram as igrejas as mais sólidas e artísticas,
destacando-se na paisagem por possuírem as suas torres uma altura muito superior aos dos
outros edifícios. Assim, quem chegasse à cidade, logo teria sua atenção desviada para essas
igrejas, não importando qual das entradas o viajante escolhesse, pois em todas elas, a
dominar o horizonte estavam as igrejas.
Para os que vinham do Rio de Janeiro ou de Santos (entradas sul e leste) os primeiros
elementos em destaque eram as torres das igr
T
r
completo e a cidade encontrava-se protegida por todos os lados como, aliás,
demonstram os registros de diversos artistas que marcaram essa antiga vista de São Paulo em
aquarelas, desenhos e gravuras, nos quais, sempre em destaque, estão as torres das igrejas.
Ora, se esta imagem exterior logo denunciava a força da religiosidade católica, em seu
interior (nas ruas), o poder da Igreja se fazia mais presente e visível. Por um lado, se o modo
como estavam d
outro, dominava quem ali ficasse. Raros eram os locais públicos de onde não se avistava uma
igreja e impossível seria não ouvir os sons emitidos pelos seus sinos, estes presentes a cada
125 - “Ajuntamento”, A. C., 10/11/1822, p. 674 e 675.
58
cada morador da proteção presente; a rede estava completa.
Fig. 09
As igrejas de São Paulo em 1877
Boa Morte; 02 – Carmo e Ordem 3ª do Carmo (duas igerjas); 03 – Santa Tereza; 04 – Matriz (Sé);
5 – São Pedro; 06 – Jesuítas; 07 – Rosário dos Homens Pretos; 08 –São Bento; 09 – Santo Antonio; 10
– Misericórdia; 11 – São Francisco; 12 – N. Sra. dos Remédios. Apesar de não representada neste
01 –
0
59
mapa, existia ainda a igreja de São Gonçalo, localizada nas imediações do “Largo da Cadeia”. Nessa
mesma área, hoje permanecem 09 (nove) delas.
Em todas as culturas se aprendeu muito cedo a combater o mal físico com os meios
isponíveis
126
e, para o caso de São Paulo (como de resto para o Brasil), os moradores valiam-
de práticas que acreditavam serem eficientes e suficientes para dar combate às doenças e
so da religiosidade, ou tacitamente aceitas como no exemplo dos curandeiros. De fato,
reocupação da humanidade e, em cada época
e lugar, sempre se buscaram meios para atenuar e prevenir a doença. Assim sendo, ao dar um
uilo que sempre existiu na história, a medicina apropriou-se de algo que
de pública ou, a saúde dos homens que vivem
em comunidade. Por razões óbvias a medicina venceu, mas nem por isso outras práticas
devem ser desconside
em
complexo caminho. Às vezes ela poderia ser encontrada na própria natureza – ou no
desarranjo dela; ora ela estava nas forças sobrenaturais que atuavam como que a punir ou
d
se
abreviar a morte. Estas, por sua vez, ou eram oficialmente admitidas pelo Estado como no
ca
podemos concluir que a saúde sempre foi uma p
novo nome para aq
nem sempre lhe pertenceu na totalidade: a saú
radas nesse processo.
*
* *
Das práticas populares à medicina – incluindo certamente o entendimento religioso
sobre a vida e a morte – temos aqui uma rede complexa de conhecimentos, ora sobrepostos,
ora interagindo, fundindo-se mesmo uns nos outros, e que se fizeram presentes durante todo
o século XIX na cidade de São Paulo. A opção no estudo por um determinado viés não deve
excluir os demais, mas esta é uma tarefa difícil, pois são diversos os aspectos a serem
considerados.
De qualquer forma, trabalhamos com algo real, pois as pessoas viviam, ficavam
doentes e morriam na São Paulo do século XIX. De outra parte, temos as representações
criadas e também parte integrante deste real. Todos os moradores, adultos ou crianças – e
seu cotidiano – estavam expostos ao ambiente e aos perigos, alguns deles perceptíveis ao
olhar e aos conhecimentos da época, muitos outros não. Optei, daqui por diante, em
identificar esses perigos, seja tentando uma aproximação com o mundo sensível daquela
época, seja a partir do que hoje podemos entender como importantes causas dos males
presentes na cidade e que afetavam a vida de todos.
Porém, aqui devemos tomar um certo cuidado, pois a morte, percorreu um tortuoso e
60
castigar o povo. Houve um tempo ainda que o mal estaria na podridão e nos fugidios
miasmas que campeavam pela cidade. Não raro, todos esses “lugares da morte”
embaralhavam-se sem, contudo, haver qualquer alternância. Dependendo, portanto, de seu
lócus, o entendimento sobre a morte demandava sempre novas posições e enfrentamentos,
estes somente possíveis através de uma reeducação dos sentidos que, necessariamente,
deveriam redundar em rápidas alterações na prática cotidiana. Mas, é preciso dizer, nem
sempre tal rapidez se fez presente. E isso porque o mal, a doença e a morte tomavam rumos
desconhecidos e confusos para a maioria da população, pois frente aos ensinamentos da
medicina acadêmica, por exemplo, o que antes era visto e sentido como inofensivo, tornava-
se perigoso; a morte poderia estar em qualquer lugar e, sobretudo, em todos os lugares, como
concluíram os higienistas em finais do século XIX. Tentaremos seguir este caminho, aquele
percorrido pela morte na cidade de São Paulo, tentando perceber os seus lugares, ou onde o
mal poderia ser encontrado, e isso em diferentes momentos.
126 - Bottéro, Jean; A magia e a medicina reinam na Babilônia; In: Le Goff; Jacques; As doenças têm história; p. 12.
61
Capítulo 2 - A infecção no Anhangabaú
“Transponhamos depressa a ponte sobre o Anhangabaú, triste nome, que bem
corresponde ao miserável regato que ai corre, separando a freguesia central da
cidade da de Santa Ifigênia. Si o nome é dissonante e lúgubre como o piar do
mocho, não o é menos o ribeiro turvo e lodoso que parece esconder-se
envergonhado no fundo do seu imundo leito.”
127
Cursando a Faculdade de Direito em São Paulo entre os anos de 1847 a 1851, o
romancista e poeta Bernardo Guimarães, mineiro de Ouro Preto, era um arguto observador da
cidade. Nada escapava ao seu olhar aguçado que, ora se dirigia para uma paisagem mais
ngínqua, ora fixava-se nas ruas, pontes e rios que cruzavam a cidade. Contemporâneo e
amigo de Alvares de
acompanhava seu cole
cotidiano vivido em Sã
a Enjeitada”, os do século XIX, e do qual foi
lo
Azevedo, Bernardo Guimarães - um boêmio convicto - por vezes
ga nas críticas mordazes que este fazia a respeito da sociedade e do
o Paulo. E de suas observações nasceram peças literárias como o romance
ambientado na capital paulista de mead“Rosaura
retirado este pequeno trecho que traz uma descrição do Vale e do Ribeirão Anhangabaú.
Sobre o “triste e miserável regato, turvo e lodoso ... que parecia esconder-se,
envergonhado, no fundo do seu
imundo leito”, falaremos a seguir. Antes disso, gostaria de
chamar a atenção para algo que facilmente poderia passar desapercebido, algo que, pela sua
desimportância nos dias atuais – ou até pela facilidade com que é empregado – de maneira
pronunciado centenas ou milhares de vezes num único dia. Mas, damo-nos conta de que este é
“um triste nome para um triste regato”, como diria o autor? A dimensão que o nome ganha na
interpretação de Bernardo Guimarães é algo que escapa às nossas práticas contemporâneas
alguma nos indicaria qualquer fatalidade. Falo aqui do nome Anhangabaú ou, mais
especificamente, do som que esta palavra ganha quando pronunciada, seja de modo pausado ou
rapidamente, não importa. Guimarães destaca que esta denominação “é dissonante e lúgubre
como o piar do mocho” ou, de outra maneira, que o som de Anhangabaú estaria a lembrar o piar
de uma coruja, tendo em vista o alongamento que damos à última sílaba, a letra “u”. Por estar
localizado no centro da maior cidade brasileira, este nome é nacionalmente conhecido, sendo
127 - Guimarães, Bernardo Joaquim da Silva, “Rosaura a Enjeitada”, Tomo I, Livraria Garnier, R.J., Paris, 1914, p.
09. Ao lado de José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Manuel Antonio de Almeida, Bernardo Guimarães é
considerado como um dos fundadores do romance brasileiro. Sua obra mais conhecida é “A Escrava Isaura” ( Rio
de Janeiro, 1875).
62
com a linguagem, pois como um topônimo corriqueiro como este poderia conter marcas tão
negativas; como a sua pronúncia poderia lembrar algo tão
triste? Essa dimensão do termo
Anhangabaú foi perdida ao longo do tempo, o nome não mais traz vinculada uma idéia de
algo “lúgubre” como no passado e, tão pouco, lembramo-nos da
morte ou de doenças quando
o pronunciamos. Mas, ampliando a questão trazida por Guimarães, percebemos claramente
que tantos eram os males causados pelo “triste regato” que mesmo o seu nome e sua
pronúncia estavam a funcionar como um prenúncio do mal. A morte, nesse caso, estaria
presente num “local” inesperado, ou seja, nas palavras, seja pelo que elas representavam de
concreto (e disso trataremos nas próximas páginas), seja pela angústia intrínseca à sua
pronúncia e, neste caso, falamos do piar triste de uma coruja na mata escura. Certas palavras
e termos contemporâneos, e apesar de seu uso recorrente na escrita, são por vezes evitados
na fala cotidiana e, se utilizados, causam um certo mal estar. Certas doenças para as quais
ainda não existem curas ou a própria
morte , por exemplo, estão dentre elas, pois
representam um mal, o definhamento do corpo, a supressão da vida. Mas o caso Anhangabaú
nos traz uma outra dimensão, a dimensão de um tempo em que as palavras continham em si
um mal, representavam-no ou lembravam a sua existência. Palavras interditas, pragas e
maldições. A morte poderia ser encontrada, portanto, também nesses “locais” inesperados,
nas palavras e nos nomes dos lugares.
128
De qualquer forma, não restam dúvidas de que o vale e seu ribeirão se constituíam
num um lúgubre local que deveria ser transposto rapidamente. Tendo em vista as águas
infectas e mau cheirosas que por ele escorriam, imputava-se ao famoso Anhangabaú vários
males sofridos pela população o que, por sua vez, o transformaram num sério problema para
a cidade durante todo o século XIX. Mas, ao mesmo tempo, o “imundo regato” era, também,
uma solução. O aparente paradoxo explica-se pela própria geografia do local escolhido para a
fundação da cidade, ou seja, em uma cercada por dois cursos d´água: o Rio
Tamanduateí de um lado e o Ribeirão Anha vez,
colina
ngabaú de outro. A colina, por sua
128 - Na língua Tupi, Anhangabaú significa “Águas assombradas” ou “Águas do diabo”. De Anhangá = diabo,
assombração, mau espírito + y = rio. Chamado também de Anhangavay, transformou-se em Anhangabay e,
finalmente, em Anhangabaú. Uma questão diz respeito justamente a este tema: haveria uma relação entre o nome
indígena do rio e os problemas que ele causava? As primeiras referências que encontramos sobre ele nas Atas da
Câmara datam de 1625 quando foi citado como Ribeiro de Aganobay (06/01/1625) e, também, Ribeiro Anangahu
(15/02/1625). Posteriormente, o encontramos com ahy (18/03/1715), Anhangabahy (05/11/1719) e
mes so, os
colo
ocorriam ção o fato de
que o nom opulação de
São Paulo era composta por índios. Por conta disso, a língua mais falada era justamente o tupi “pelo menos até
meados do século XVIII, quando cedeu lugar ao português” (ver Monteiro, John Manuel, Negros da Terra - índios e
bandeirantes nas origens de São Paulo, S.P., Cia das Letras, 1995, p. 164). Nesse sentido, tudo leva a crer que a
denominação do ribeirão tenha surgido no século XVII e representava, desde aquela época, os “malefícios” que ele
causava à população por conta de suas “águas assombradas”. Este tema será retomado mais adiante, na Parte II
do trabalho, onde analisarei a modificação do nome do bairro do Bexiga para Bela Vista.
o Anhangav
mo Inhengabahul (12/06/1724). As línguas Tupi e Guarani não possuíam escrita e, por conta dis
nizadores sim, muitos erros utilizaram a grafia portuguesa para representar o som das palavras indígenas. As
elo menos, existiam duas ou três versões para o mesmo termo. Mas, nos chama a ou, p aten
e do ribeirão tenha sido citado pela primeira vez em 1625, época em que grande parte da p
63
proporcionava uma vista privilegiada dos arredores, constituindo-se, assim, em uma base
importante e segura contra os ataques indígenas dos primeiros tempos; e os rios, por seu turno,
de um grande rio que a atravesse do levante ao poente. Esta disposição não
s demais preceitos foram seguidos: a cidade foi
ofereciam alimentos através da pesca, além de apresentar um outro fator positivo: as suas águas
serviam como que um escoadouro para a sujeira, carregando consigo parte do lixo e todo o
esgoto produzido na cidade. De fato, sabemos que a presença de cursos d´água era uma
condição básica que orientava a escolha de um sítio ideal para a fundação de novas cidades, uma
vez que:
“... a melhor maneira de dispô-la, (uma nova cidade) é sem dúvida, numa
planície, na confluência de dois rios navegáveis; ou ainda, à direita e à esquerda
somente seria vantajosa para o comércio e para a importação de gêneros
necessários à alimentação dos habitantes, como também contribuiria, devido ao
curso de sua água, à salubridade do ar.”
129
Ao eleger-se o topo de uma colina para a fundação de São Paulo, a primeira regra não
estava sendo seguida. Porém, existia aqui um sério problema relacionado à segurança, qual seja,
o do ataque de índios à nova povoação. O
construída à esquerda de um grande rio (o Tietê) que atravessa seu território do levante ao poente
(de leste a oeste), bem como o seu núcleo principal estava entre dois outros cursos menores.
Preceito muito caro aos higienistas do século XIX, sobretudo, a renovação do ar era
tida como essencial para a saúde dos povos e, em São Paulo, isso seria realizado
naturalmente, uma vez que a cidade era servida por dois rios no seu entorno que, além de
lavar a sujeira do núcleo urbano, contribuiria também (através de sua correnteza) na
constante substituição de uma atmosfera viciada por outra nova e pura. Os rios, portanto,
além de levar para longe as impurezas sólidas, estariam também interagindo com o ambiente,
forçando a circulação e a purificação do ar.
130
Nessa mesma perspectiva e a partir de outra realidade, Georges Vigarello nos mostra
que, no século XVIII, “a atmosfera e o ar tinham prioridade absoluta. E a água os corrige ainda
melhor na medida em que pode atingir as ruas. Absorve até mesmo os odores, simplesmente por seu
movimento. Representação de turbilhões afogando as impurezas. Imagem física de cascatas rompendo e
dissolvendo as poeiras. A água atrai e apaga. É o próprio ar que se lava dessa maneira”. E, citando J.-
B. Banau e A. -F. Turben, completou dizendo que havia um entendimento de que a “a água
129 - Patte, Pierre, “Memórias sobre os objetos mais importantes de Arquitetura”, Genebra, Monkoff Reprint,
1973; Edição facsimilar do original impresso em Paris no ano de 1769 - tradução de Ivone Salgado e Beatriz P.
Siqueira Bueno para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (Curso de Especialização em Urbanismo Moderno e
Contemporâneo) P.U.C. - Campinas s/data.
130 –Na realidade, os urbanistas dos séculos XVII e XVIII preconizavam inclusive a construção de canais artificiais
que “comunicando-se com o rio que atravessaria a cidade, tanto na sua entrada como na sua saída,” ajudaria sobremaneira
a renovação contínua do ar no entorno da mesma e, também, no centro. Patte, Pierre – Id. Ibidem.
64
corrente exercia uma atração sobre o ar, e em conseqüência disso absorvia os miasmas
pútridos” de que estaria carregado.
131
Fig. 10
O sítio original de São Paulo entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú em mapa de 1818.
131 - Vigarello, Georges, “O Limpo e o Sujo - Uma História da Higiene Corporal”, Trad. Monica Stahel, S.P.,
Martins Fontes, 1996. Ver especialmente a 3ª Parte, Cap. 04 “Eflúvios populares e urbanos”, ítem “A água que
corrige o ar”, ps. 169 a 172. Os miasmas, entendidos como causadores de doenças, estará sendo detalhado no
decorrer do estudo.
65
Fig. 11
Uma das mais antigas representações do ribeirão Anhangabaú entre 1765 e 1775.
No núcleo urbano, o destaque para as torres das várias igrejas.
(a cor original do rio foi alterada digitalmente para melhor destacá-lo nesta reprodução)
Essas qualidades – entendidas co
mo bastante positivas e presentes nos dois rios que
o núcleo urb
de meados do século X
escolha do sítio origina
como locais de perigo
população. Infectos e perniciosos por conta dos despejos neles realizados, a situação dos rios
agravou-se cada vez mais com o adensamento da população: de cerca de 31.000 habitantes
em 1872 para 240.000 em 1900.
132
E não era para menos, uma vez que a maneira mais fácil e
rápida para descartar o lixo produzido no dia-a-dia era, sem dúvida, jogando-o ribanceira
abaixo na intenção de que as águas levassem consigo toda a impureza para bem longe. Tal
procedimento fazia parte do cotidiano vivido na cidade desde o século XVI e continuava, com
todos os seus agravantes, ainda no XIX.
A partir desses “usos e costumes”, como então se dizia, o governo municipal, aqui
representado pela Câmara e seus vereadores, vez por outra tentava disciplinar e
regulamentar a questão dos despejos através de editais que determinavam os locais onde o
lixo poderia ser depositado e outros onde tal prática estava proibida. Exemplo disso foi um
cercavam ano – perduraram por um longo período. Mas, e especialmente a partir
IX, eles que foram considerados como fatores preponderantes para a
l, passaram a ser condenados – pelas mãos de médicos e engenheiros
, fontes de miasmas e de doenças que colocavam em risco a saúde da
132Com base em diversos estudos, apresento um estatística da população paulistana: em 1554a rápida , 100
moradores;
1765, 20.873; 1798, 21.933; 1872, 31.385; 1886, 47.697; 1890, 64.934; 1900, 239.820; 1905, 275.840; 1910,
375.439. Fontes: “O Novo Retrato de São Paulo”, SEADE, 1993; “Memória Urbana – A grandeza de São Paulo até
1940” Vol. I, Arquivo do Estado de São Paulo e EMPLASA – 2001; Marcílio, Maria Luiza, “A Cidade de São Paulo
– Povoamento e População 1750-1850”, USP, 1974; Anuário Estatístico do Estado de São Paulo”, Departamento
66
edital expedido em 1790 que, inclusive, nos mostra a municipalidade já exercitando um maior
controle da população e da cidade através da divisão da mesma em setores. A ordem
convencido, pois do contrário poderíamos aqui acompanhar uma certa modificação nos seus
hábitos. Nesse caso, talvez a relação entre o lixo e a doença não estivesse ainda totalmente
as.
134
estipulava que os moradores das ruas do Colégio, das Flores, do Convento do Carmo e do
Largo da Sé, deveriam despejar o lixo no buracão do Carmo, ao lado do convento e da igreja
de mesmo nome, nas margens do rio Tamanduateí; já os moradores das ruas do Rosário dos
Pretos, Boa Vista e São Bento, deveriam dirigir-se ao buraco localizado nas imediações da
atual Ladeira Porto Geral esquina com a Rua 25 de Março, também nas margens do
Tamanduateí; por outro lado, os moradores das ruas Direita, da Quitanda, dos Camargos,
São Francisco e Nova de São José, deveriam fazer seus despejos defronte ao “Curral do
Conselho”, este localizado nas margens do Anhangabaú e, finalmente, aqueles que residiam
no bairro de São Gonçalo e ruas próximas, deveriam jogar o lixo no “córrego que vae para
Santo Amaro”, ou seja, um dos afluentes do mesmo ribeirão Anhangabaú.
133
Em 1859, época em que ocorreu uma grave epidemia de varíola, já havia uma
deliberação proibindo terminantemente a utilização desses lugares para o descarte do lixo.
Entretanto, esta ordem não foi seguida à risca pela população que, burlando uma fraca
fiscalização, continuava a proceder como sempre o fizera. Decerto que para esta atitude,
estava a colaborar antigas práticas e costumes, mas, também, a compreensão que se tinha a
respeito dos males que afetavam o corpo. Apesar da difusão das teorias que colocavam os
miasmas como causas de enfermidades, ao que parece o povo ainda não estava totalmente
esclarecida para o povo comum que, ao contrário, ainda relacionava as enfermidades como
um castigo do céu ou decorrentes de outras forç
Nessas circunstâncias, e principalmente pela epidemia que grassava na cidade, o
então Chefe de Polícia cobrou uma atitude mais firme por parte dos vereadores e lembrava
“... a conveniência de mandar-se postar alguns Guardas Urbanos para vigiar durante as
primeiras horas da noite,
para que não se façam despejos em lugares proibidos, como sejam
a rua Municipal, ladeira do Carmo, Porto Geral , e a Ponte do Acu ...”. Em resposta, o
Presidente da Câmara “... comunicou haver já providenciado, ordenando aos Fiscais para
mandar postar os ditos Guardas das Ave Maria até as 10 horas da noite nos pontos indicados,
Estadual de Estatística, 1940.
133 - Edital da Câmara Municipal de São Paulo publicado em 1790. In: Ribeiro, José Jacintho, “Cronologia
Paulista”, Vol. I, p. 125, S.P., Governo do Estado, Gráfica do Diário Oficial, s/ data.
134 - Outras concepções sobre a varíola serão tratadas no Capítulo 1 da Parte II, “Entre epidemias, febres e bexigas”
67
e bem assim na ponte de Lorena”
135
(meu destaque)
Determinados os locais proibidos - e nesse caso em especial a “Ponte do Acú” que
transpunha o Anhangabaú - os moradores se viam obrigados a procurar outros pontos de
despejo. De fato, esta era uma necessidade, frente à maneira “defeituosa”, como se dizia na
época, pela qual a municipalidade cuidava do recolhimento do lixo domiciliar. Para cada
local interditado, um outro era rapidamente encontrado para substituí-lo. Se proibido estava
lançar os detritos domésticos da ponte, bastava descer um pouco mais pela Ladeira do Acú
(primeiro trecho da atual Av. São João), dobrar à esquerda na Rua de São José (hoje Líbero
Badaró), e entrar sorrateiramente no Beco do Cisqueiro, também conhecido como beco da rua de
São José. Poucos passos adiante, o lixo poderia ser atirado no ribeirão Anhangabaú logo em
frente. Corria-se, é claro, um certo risco, seja pela denúncia de algum vizinho, seja pela
infelicidade de se encontrar um guarda urbano pela frente:
Foi preso no dia 30 do mez próximo passado as 9 oras do dia, pelo Guarda
Urbano José Sebastião Pereira o escravo do Exmo. Sr. Conselheiro Dr. Manoel
Dias de Toledo, de nome João,
por ter sido apanhado em occasião de faser
despejo no beco da rua de São José: participei ao Sr. Dr. Delegado de
a sujeira de uma casa necessitava ser “expulsa”. Diante da impossibilidade de se manter o
lixo no interior das residências e tendo em vista as regras impostas pela vigilância, não
restava outra alternativa senão um ato clandestino que, por isso mesmo, deveria em certos
casos ser praticado na calada da noite:
Por ter observado que na Ponte do Piques costumão fazer despejos, dei
Polícia.”
136
(meus destaques)
Para escapar dessa situação de perigo, alguns moradores abrigavam-se na escuridão
da noite e, sorrateiramente, procuravam aquelas águas que limpariam, levando para bem
longe os restos, sobras ou dejetos que eles mesmos produziam. Prática que hoje entendemos
como corriqueira, o ato de colocar o lixo para fora, transformou-se num caso de polícia
durante toda a segunda metade do século XIX. Entretanto, esta era uma necessidade, ou seja,
ordem a dous Guardas para rondarem aquelle logar das 6 as 8 oras da noite, e
de prenderem aos que fizessem taes despejos.
Em consequencia foi presa a 23
do corrente as 8 oras da noute pelos Guardas Urbanos Joaquim Gz. da
Silveira e José Ramos da Cruz, a escrava do Ilmo. Sr. Tenente Coronel
Antonio José Ozório da Fonseca, de nome Benedita.”
137
(meus destaques)
135 - Atas da Câmara Municipal de São Paulo, sessão do dia 10/11/1859, p. 191. A rua Municipal, a Ladeira do Carmo
(o “Buracão do Carmo”) e a Ladeira Porto Geral, desembocavam no Rio Tamanduateí; já as pontes do Acú e a de
Lorena, estavam colocadas por sobre o Anhangabaú, a primeira na atual Av. São João e a segunda na Praça da
Bandeira.
136 - Relatório do Fiscal Antonio Joaquim de Lima, apresentado aos vereadores no dia 04/02/1865, A.C., p. 51.
137 - Relatório do Fiscal Antonio Joaquim de Lima, apresentado aos vereadores no dia 23/01/1865, A.C., p. 39. A
“Ponte do Piques” localizava-se nas imediações da atual Praça da Bandeira
68
Fig. 12
A Ladeira e a “Ponte do Acú” em 1827. À esquerda e à direita, vemos a depressão do Vale do
Anhangabaú. No canto superior, à esquerda, observamos o “Morro do Chá” e, à direita, o início do
casario de Santa Ifigênia. No centro, e em continuação da ponte, está a atual Av. São João.
138
Uma outra maneira de livrar-se dos dejetos era, pura e simplesmente, atirá-los nas
ruas na esperança de que as carroças de limpeza à serviço da Câmara Municipal, por ali
passassem e os recolhessem. Apesar de muito criticada pelos médicos, especialmente em
períodos de epidemias, tal costume não causava maiores celeumas e, em certas épocas,
chegou mesmo a ser regulamentado, tornando-se obrigatória a colocação do lixo na calçada
para que a empresa de limpeza contratada pela municipalidade procedesse o recolhimento.
Com respeito a essa prática, cabe uma observação: tudo leva a crer que, ao proibir o
recolher o lixo na rua ou calçadas do que no leito de um rio. Seguindo essa premissa, e
aprofundando um pouco mais a questão, levanto, inclusive, a hipótese de que ao atirar
qualquer dejeto no Anhangabaú (ou em qualquer outro rio) o lixo estaria entregue às forças
da natureza, saindo portanto do controle dos homens. Mais ainda, nessas águas já saturadas
de detritos, qualquer lixo atirado passava a ser, imediatamente, anônimo. Nas ruas, ao
descarte do lixo doméstico nos ribeirões e, ao mesmo tempo “liberá-lo” nas ruas, o poder
local estava levando em consideração uma questão muito prática, ou seja, era mais fácil
contrário (lembrar que as ruas, seus leitos e calçadas já são construções do homem na
tentativa de “domar” a natureza) esse poder poderia ser exercitado com grande facilidade.
Em primeiro lugar, a administração pública poderia rapidamente recolher os detritos e deles
138 - Nesta aquarela, Debret escreveu: “Ponte de Santa Ifigênia”. Tal referência levou a interpretações equivocadas
sendo esta pintura, em muitos casos, referendada erroneamente como sendo o primitivo Viaduto de Santa Ifigênia.
69
dispor da maneira que bem entendesse; por outro lado, o lixo na calçada (defronte às
residências) identificava rapidamente o seu proprietário, possibilitando a aplicação de
sanções por qualquer problema que ocorresse.
A constituição de uma vida urbana na São Paulo de meados do século XIX,
certamente levava em consideração esse controle, bem como muitos outros. Mas, para o já
Entretanto, a chuva que limpava também poderia causar catástrofes e trazer muitas
doenças, e isso caso
obstante os danos m
identificamos seria os
sas ocasiões, elas eram sempre lembradas como causadoras de um sem
sofrido ribeirão Anhangabaú, o costume de deixar o lixo nas ruas também trazia sérias
conseqüências. Sabemos que a limpeza dos diversos logradouros da cidade não ocorria com
freqüência e, por isso mesmo, o lixo comumente ficava acumulado nas vias públicas. Em
1863, como denunciou um dos fiscais da cidade, a empresa contratada para a limpeza das
ruas não realizara a tarefa a contento. Assim, disse ele “... o lixo se acha nas seguintes ruas -
Becco da Lappa, Ladeira Dr. Falcão, Ladeira de São Francisco, Rua da Consolação desde a Ponte do
Piques, Rua da Palha, Rua de São José.”
139
Exceto a Rua de São José, que era paralela ao Vale do Anhangabaú, todas as demais
possuíam comunicação direta com o ribeirão, algumas pela sua margem esquerda, outras
pela direita. A acentuada declividade do terreno, por sua vez, já nos faz antever o problema:
toda a sujeira das ruas encaminhava-se para o vale e, conseqüentemente, para o leito do rio.
Bastava uma chuva para que as ruas fossem “lavadas” e todo o lixo conduzido para o já
infecto Anhangabaú. Mas, como bem notou Ernani da Silva Bruno, este problema não ocorria
apenas em São Paulo uma vez que "essa era na época uma situação comum a todas as cidades
brasileiras, escrevendo o viajante inglês George Gardner que mesmo nas capitais de província era a
chuva o único varredor que conservava as ruas sofrivelmente limpas, quando construídas em
declive.”
140
ela viesse em grande quantidade, provocando enchentes. Não
ateriais que dela poderiam resultar, o problema maior que
de saúde diante da invasão das moradias ribeirinhas por águas tão
infectadas. Nes
número de febres.
141
Debret assim a chamou pelo simples fato dela ligar o centro da cidade com a então Freguesia de Santa Ifigênia.
139 - A.C. Sessão do dia 29/07/1863, p. 160 a 162 - Relatório do Fiscal “Rufino” apontando várias ruas onde o lixo
estava acumulado. Aqui, porém, citamos apenas as ruas que possuíam comunicação direta com o Anhangabaú.
140 - Bruno, Ernani da Silva - “Histó
Prefeitura do Município de São Paulo
ria e Tradições da idade de São Paulo”, Vol. II (1828-1872), S.P., Hucitec,
, 1984, p. 506.
141 - Uma das piores enchentes no Anhangabaú ocorreu na noite do dia 1º de janeiro de 1850. Naquela ocasião as
águas ocuparam todo o vale e, como conseqüência, a ponte do Acú foi completamente destruída. Algumas casas
vieram abaixo e outras tiveram suas estruturas seriamente comprometidas. Em todas as demais, localizadas nas
proximidades, famílias perderam quase tudo que possuíam, de móveis a utensílios e outras miudezas. A primeira
vítima do desastre foi Maria Januária, “tintureira e senhora já avançada em idade”, que residia no Largo do Riachuelo;
em seguida, as águas do Anhangabaú atingiram a Ponte do Lorena e a casa do sapateiro José Manoel, “homem
70
Não por outro motivo, um fiscal alertava em fevereiro de 1873 “Que os esgotos do largo
da Memória e canto da rua Formosa que recebem as agoas da Consolação e rua da Palha se achão
completamente arruinados ... Que a rua Formoza de uma á outra estremidade se acha em estado de
abandono pelo grande depósito que ali fazem, os moradores vizinhos, de lixo e immundicies,
necessitando por isso de ser providenciado.”
Paulo. Ao emitir este alerta, o fiscal bem sabia das conseqüências caso o problema não fosse
142
Estava ele preocupado não apenas com o lixo
acumulado nas ruas mas, também, com os esgotos, ou canais de águas pluviais,
completamente arruinados. E tudo isso num período muito crítico como eram os meses de
janeiro e fevereiro, épocas do ano em que mais chovia (e ainda chove) na cidade de São
solucionado, pois um temporal mais forte, seria suficiente para alagar o Vale do Anhangabaú
e espalhar todo o tipo de sujeira numa vasta área, atingindo quintais e residências, o que
poderia resultar em doenças.
143
Além de receber diretamente o lixo atirado pelos moradores, bem como aquele
depositado nas ruas, o Anhangabaú tornava-se cada vez mais infecto por conta do esgoto
doméstico (ou águas servidas, como então se dizia), que para ele era encaminhado. Na
primeira metade do século XIX, costumava-se fazer o despejo desse material através de barris
de madeira - conhecidos como tigres - que, após serem transportados pelas ruas da cidade,
eram esvaziados nas margens do ribeirão.
144
Mas, logo em seguida, uma nova técnica se
impôs, principalmente entre as camadas mais abastadas da cidade, e que consistia na
condução do esgoto através de encanamentos subterrâneos: “As casas esgotavam-se para a rua e
velho e de pouca fortuna” e, adiante, D. da pelos anos, que perdeu de todo a casa que tinha
a beira do Anhangabaú “. No rastro da ia Manoela do Nascimento, “mulher idosa, pouco
sadia, e mãe de numerosa família que tu -lhe os móveis, fez-lhe perecer a escrava, e
abateu-lhe a casa, que está reconstruindo a mais ingida foi a região do “Beco
do Sapo, nas proximidades da A a casa de D. Reginalda Maria do
Nascimento, a da viúva Francisca de Paula, a do “pobre alfaiate” Benedito Alves dos Reis e a de D. Joaquina Maria
Mendes, uma “senhora há muito infortunosa e desvalidaque ficou em estado de indigente. Não obstante serem estes os
casos mais graves, é certo que dezenas de outras residências também foram invadidas pelas sujas e “assombradas”
guas do
Formosa, hoje praticamente desaparecida devido às reformas levadas a efeito no Vale do Anhangabaú, foi aberta
em paralelo à sua margem esquerda.
143 - Outras duas grandes enchentes ocorridas no Anhangabaú no século XIX: dia 19/02/1874, ocasião em que a
inundação carregou consigo todo o tipo de sujeira, inclusive "troncos de madeira e árvores que pararam embaixo da
nova ponte do beco do Sapo, onde ficaram enroscados no cano de gás.” (A. C., 20/02/1874, p. 35 e 36); dia 10/02/1890,
quando as águas causaram grandes estragos por toda a cidade, chegando mesmo a levar consigo o “paredão da
ponte do Acú”. (Ofício do Fiscal “Olegário”, apresentado aos vereadores na sessão do dia 12/02/1890, A.C. p. 43).
144 - Trataremos com mais vagar sobre este tipo de despejo no capítulo 4 “O pútrido nas ruas”, item 4.1 “Os tigres
do quartel e da cadeia”, analisando a sua relação com as doenças que atingiam a população.
Anna Theresa, “senhora já quebra
destruição, outra vítima ser
do perdeu com a inundação, que arrebatou
, a ár com dinheiro emprestado.” Po m e at
v. São João, onde a enchente destruiu
á Anhangabaú, o que nos leva a crer que muitas doenças vieram em seu rastro, dias ou semanas depois do
ocorrido. Veja “Relatório do Fiscal”, A. C., 02/01/1850, p. 08 e Arquivo Histórico Municipal, Fundo CMSP, Grupo
“Conselho de Vereadores”, série “Comissões”, 1831-1907, parecer de 29/05/1850.
142 - Relatório do “Fiscal do Norte” da cidade, apresentado aos vereadores no dia 13/02/1873, A.C., pg. 57. A Rua
71
pelos fundos dos quintais, segundo o pendor do terreno. Alguns conventos e casas ricas tinham, porém,
sua canalização particular, de que ainda hoje se encontram vestígios numa e noutra encosta da colina.”
145
Mas, ao nos aproximarmos das residências mais pobres, contíguas umas às outras e
com quintais separados apenas por sulcos na terra (as valas) ou por frágeis cercas, a questão
do esgoto nos revela outros conflitos vividos no cotidiano. Na impossibilidade de dar saída às
águas servidas de suas casas através dos caros e difíceis encanamentos, esses moradores ou
despejavam o esgoto diretamente na rua, fazendo-o escorrer ladeira abaixo, ou simplesmente
atiravam toda a sujeira em seus quintais. Esses detritos não incomodavam os seus produtores
ou, por certo, eram tolerados. Entretanto, quando a sujeira ultrapassava os limites de cada
quintal (fato corriqueiro naquela época) o fato gerava repulsa e reclamações. O lixo “do
tentar controlar os despejos no Anhangabaú,
e que, ao lado de Victor Nothman,
dos responsáveis pela abertura dos bairros Campos Elíseos e Higienópolis. Em 1878 ele
estava cuidando da implantação do Grande Hotel, o mais elegante de sua época, localizado na
esquina das ruas São Bento e Dr. Miguel Couto
147
. E foi nessa condição que ele solicitou a
“permissão para fazer um esgoto subterrâneo para escoamento das águas pluviais a encontrar com o
esgoto geral na rua de São José em frente a Loja Piratininga”. Ao analisarem este pedido, os
outro” era insuportável e, constantemente, redundava em desentendimentos entre vizinhos.
Algumas dessas brigas entre moradores chegaram, inclusive, a motivar representações
encaminhadas aos poderes municipais. Em um desses casos, por exemplo, a Sra. Maria
Benedita da Silva Prado, de tradicional família paulistana, queixou-se “dos inquilinos das casas
nº 3 e 5 da rua do Ouvidor, pelos despejos de águas servidas e imundas no esgoto que dá sobre o terreiro
da casa em que habita a mesma suplicante.
146
Imediatamente, os vereadores solicitaram ao “fiscal
Vergílio” para que verificasse o fato. Claro, aqui a intolerância era maior e o incômodo
aflorava, pois era insuportável o fato do lixo produzido por um pobre invadir a propriedade
de um abastado.
Com a expansão da cidade a partir da segunda metade do século XIX, as construções
de encanamentos particulares não mais foram autorizadas pela municipalidade. Por essa
época, já estava instalada na cidade a Cia. Cantareira de Águas e Esgotos que, entre as
décadas de 1870 e 1880, construiria a rede de distribuição de água, bem como a de coleta de
esgotos. Certamente por isso, e também para
vários pedidos individuais com esta intenção foram negados. Dentre esses casos,
encontramos o do rico empresário Frederico Glet foi um
145 - Sampaio, Teodoro – op. cit., p. 74
146 - A.C. Sessão do dia 13/05/1875, p. 53.
147 - Tendo em vista a importância desse estabelecimento para a cidade, a rua que hoje se chama “Dr. Miguel
Couto” era conhecida, naquela época, como “Travessa do Grande Hotel”.
72
vereadores, sem qualquer explicação, simplesmente o despacharam como “Indeferido”
148
.
Claro, Frederico Glete estava se utilizando de uma artimanha para aprovar não apenas o
encanamento das águas pluviais mas, também, do esgoto das “águas servidas” de seu hotel.
Tanto isso é verdade que, meses depois, chegava uma outra solicitação que melhor esclarecia
a questão:
“De Frederico Glette por seo procurador Victor Nothman pedindo licença
para poder fazer a conducção das agoas servidas do Grande Hotel por canos
que atravessando a rua de Sam Jose vão a outro lado em terreno de sua
propriedade nos consumidores, evitando que desemboquem no rio -
Indeferido
149
(meus destaques)
Apesar de apresentar uma solução para esse esgoto - os consumidores ou fossas, que
armazenariam os detritos - novamente o pedido foi negado. Certamente, os vereadores ou
desconfiavam das reais intenções do empresário, ou então não estavam certos de que os
consumidores resolveriam o problema de um estabelecimento que produziria grande
uantidq ade de águas servidas.
O argumento utilizado para vetar tais solicitações era que, se aprovados, os despejos
fariam piorar o estado do ribeirão. Em 1874, por exemplo, essa explicação aparece no
despacho dado ao requerimento do Senador Francisco Antonio de Souza Queirós e do
empresário João Adolfo Schritzmeyer que, em conjunto, pediram uma autorização “para
construírem um encanamento que dê esgoto as águas pluviais e servidas de suas casas da rua do
Ouvidor a sair no córrego Anhangabaú logo acima da ponte do Piques”
150
. Para este caso, os
vereadores solicitaram a opinião de uma comissão formada por três médicos. A resposta,
assinada pelos doutores Reichert, Luis Lopes Baptista dos Anjos e Francisco Honorato de
Moura, opinava
que não devia ser dado o consentimento para a canalização das águas pluviais e
servidas das casas da rua do Ouvidor para o córrego Anhangabaú
pela razão de tornar aquele riacho
mais imundo e infecto e consequentemente mais prejudicial do que ora é a saúde pública da cidade,
maxime aos ribeirinhos d´esse riacho que consigo já acarretam dissolvidos ou em suspensão os detritos
do matadouro
151
(meus destaques)
Esta situação no Anhangabaú, identificada pelos médicos como altamente
prejudicial à saúde pública, num outro viés já havia sido percebida pelos paulistanos desde
há muitos anos antes, sendo que um dos maiores exemplos do medo que sentiam pelas
148 - A.C. Sessão do dia 11/04/1878, p. 141
149 - A.C. Sessão do dia 14/12/1878, p. 50.
150 - A. C. Sessão do dia 26/-3/1874, p. 50
151 - Relatório lido na Sessão da Câmara do dia 23/04/1874, A.C., p. 53. A respeito da participação dos médicos
na administração da cidade no século XIX, suas ações e, posteriormente, a sua inserção no aparelho de governo,
ver Camargo, Luís Soares de, “Sepultamentos em São Paulo: 1800-1858", Dissertação de Mestrado apresentada na
73
suas águas era justamente o significado de sua denominação indígena: águas assombradas
ou do diabo. Mais ainda, este ribeirão, na altura da ponte do Acú, recebia as águas de um
córrego denominado Yacuba que, na língua Tupi, significa “água envenenada”. A
conjugação de tão mal fadadas águas estimulava a imaginação popular que, unindo o
perigo existente mais a fragilidade da ponte do Acú, concretizou-se numa modinha muito
em voga nos meados do século XIX:
“Eu fui passear na ponte
e a ponte estremeceu
Água tem veneno, morena ...
quem bebeu, morreu!”
152
Diante de tamanho risco de doenças e de morte que rondavam o local, a população,
por intermédio da forte presença do catolicismo, também houve por encontrar uma solução.
Claro, se aquelas águas estavam cada vez mais ameaçadoras e endiabradas, nada melhor do
que recorrer a São João Batista, considerado como o protetor das águas na tradição religiosa.
Por isso, as festivas procissões em homenagem a São João tinham como roteiro certo uma
passagem pela Ladeira do Acú e, certamente, ali faziam uma parada estratégica como que a
pedir uma proteção do santo. Tomando vulto, esse costume interferiu na história local e
quela
avenidas de São Paulo. Porém, vou arriscar uma outra interpretação que, antes de invalidar a
a que era conhecida como Ladeira do Acú, passou a ser identificada pelo povo como
Ladeira de São João Batista. No dia 28 de novembro de 1865, o então vereador Malaquias
Rogério de Salles Guerra (dele falaremos mais adiante) sugeriu que a tal “ladeira da ponte do
acú” fosse chamada oficialmente de Ladeira de São João. Mais tarde ela seria transformada em
Rua e, posteriormente, em Avenida São João.
Poderíamos parar por aqui, e isso se estivéssemos satisfeitos com esta parte da história
do Anhangabaú, do Yacuba, do Acú e de São João Batista nomeando uma das mais tradicionais
primeira, soma-se à ela ao introduzir na análise uma questão até certo ponto conhecida, mas
sempre negligenciada. A primeira pista nos foi dada por João José Reis que, ao estudar a
denominação do tradicional bairro do Acupe em Salvador, explica a sua origem como uma
derivação de Acú, nomenclatura esta presente também em São Paulo e da qual já demos a
explicação corrente em nossa história. Entretanto, Reis analisa que este nome “pode estar
PUC-SP, 1995, Parte II, Capítulo 01, “Civilização X Barbárie”.
152 - Marques, Gabriel; “Ruas e Tradições de São Paulo”, S.P., Conselho Estadual de Cultura, 1966. A
denominação “Yacuba” foi, posteriormente, reduzida para “Acú”.
74
relacionado com Ikú, morte em ioruba.”
153
Eis aqui o elemento que nos faltava e, por sinal,
muito bem lembrado pelo Prof. Dr. Jaime Rodrigues quando da leitura deste trabalho. Em
outras palavras, Anhangabaú, Yacuba, Acú e agora Ikú, termos das línguas indígenas
brasileiras e africanas, estavam a representar uma região inóspita, cheia de perigos que,
inclusive, poderiam trazer a morte; Acú e Ikú, portanto, e para além da similaridade fonética
que salta aos olhos (e ouvidos), lembravam igualmente algo de muito ruim que, por certo,
confundiam-se: v
Desde San
as barrancas da L
grande população
no censo, calculam
3.760 pessoas (ou
residiam 1.537 ne
(ou 37,57% para o
apesar de não se c
ser considerada c
E a conce
existência das ig
Homens Pretos, l
ue
e “escondiam escravos fugidos” e onde se davam concorridos “jogos e capoeiras entre negros”
eneno e morte.
ta Ifigênia
154
, passando pelo Vale do Anhangabaú e até o Saracura, Bexiga e
iberdade com sua Bica do Gaio
155
, esta era uma região que abrigava uma
constituída por escravos e libertos. Aliás, nas projeções efetuadas com base
os para 1872 a seguinte população negra nessa região: para a Sé cerca de
40,72% da população total que somava 9.233 habitantes); em Santa Ifigênia
gros (ou 34,46% na proporção para 4.459 habitantes) e na Consolação 1.248
total de 3.321 habitantes).
156
Média de 37,58% do total da população que,
omparar com outras grandes cidades brasileiras daquele período, pode sim
omo bastante representativa.
ntração dessa população na região poderia ainda ser medida seja pela
rejas e irmandades citadas, seja pela principal delas, a do Rosário dos
ocalizada justamente no antigo Largo do Rosário, início da Ladeira do Acú.
pelos lados da Bica do Gaio, do Bexiga e principalmente do Anhangabaú qMais ainda, eram
s
sempre reprimidos pelas autoridades – e isso desde pelo menos finais do século XVIII e até
início do XIX.
157
153 - Reis, João José; A morte é uma festa, 1991, p. 159
154 - Santa Ifigênia e Santo Elesbão, os dois protetores desta igreja e do bairro, são santos tradicionalmente
cultuados pelos negros brasileiros. A Irmandade de Santa Ifigênia e Santo Elesbão, por exemplo, responsável pela
construção da primeira capela naquele local em 1795, nasceu na igreja do Rosário dos Homens Pretos, onde foi
provisionada no ano de 1758. A esse respeito veja: Arroyo, Leonardo; Igrejas de São Paulo, 1954, p. 189 e seguintes.
Sobre os santos de devoção dos negros veja: Scarano, Julita; Devoção e escravidão: a Irmandade de N. Sra. do Rosário
dos Pretos no Distrito de Diamantina no século XVIII, 1975, especialmente o capítulo “Nossa Senhora do Rosário,
protetora dos homens de cor, p. 38 e seguintes.
155 - Sobre a “Bica do Gaio” já nos referimos, mas é preciso lembrar que, naquelas proximidades, estavam
também erigidas duas igrejas que abrigavam irmandades de negro a Irmandade de São Gonçalo dos Pardos, na
igreja de São Gonçalo, cujo edifício ainda existe; e a Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, na igreja dos
Remédios já demolida, todas elas nas imediações da atual Praça Dr. João Mendes. A Irmandade dos Remédios,
s:
por sinal, desempenhou um papel fundamental na luta pela abolição, já que nela abrigava-se Antonio Bento e
muitos de seus caifazes. A esse respeito veja: Andrews, George Reid; Negros e brancos em São Paulo (1888-1988);
1998, p. 210. Sobre “São Gonçalo dos Pardos” veja: Abreu, Manuel Cardoso de; Divertimento admirável; In: Revista
do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol. VI, p. 253.
156 - Cálculos efetuados com base no Censo de 1872, Arquivo do Estado de São Paulo, e aqui considerando-se
escravos e libertos.
157 - A. C., sessões dos dias 09/05 e 18/05/1831, p. 62 e 83; Registro Geral da Câmara, Vols. V, p. 427, e XXI, p.
138 e 139. Ainda em 1870, conforme reclamou o vereador Pacheco de Toledo, continuava o Anhangabaú como um
75
Nesse sentido, e no caso do Acú ou do Anhangabaú e da proteção de São João Batista,
mesclaram-se tradições indígenas, católicas e africanas, até porque – vale ainda lembrar – que
na religião afro-brasileira a divindade representada pelo Orixá Xangô foi associada a São
João, seja pela relação daquele com a água, seja com o fogo: Xangô é a divindade que rege o
fogo (que purifica), os raios e trovões; por outro lado, o fogo e as fogueiras estão sempre
presentes nas festas em homenagem a São João. A esse respeito, é irresistível falar de uma
ais
foitos
provenientes do abate de animais. Os detritos, por seu turno, seguiam pelo dito córrego,
delas, muito tradicional na São Paulo dos oitocentos, que ocorria pelos lados da Liberdade,
nas imediações do conhecido reduto negro da Bica do Gaio. Organizada por João Manoel
Floriano – chamado sugestivamente pelo apelido de “João nhá mãe”, e isso “pelas suas
qualidades femininas no arranjo doméstico, notadamente de sacristias”
158
– a festa consistia
em bailes, rezas e procissão iniciada em sua casa antes da meia-noite e seguia, em direção
ao Anhangabaú e Bexiga, por um caminho estreito, com mato de lado a lado. No tanque
do matadouro (falaremos dele a seguir) nas proximidades da Rua Humaitá, ocorria então
o banho da imagem de São João. No acompanhamento dessa procissão, explica Antonio
Egídio Martins, presentes estavam muitos rapazes que ganhavam, cada um deles, um
rolinho de cera e breu que eram acesos. O festeiro, sabendo das brincadeiras que ocorriam,
pedia o maior respeito. Porém, os mais galhofeiros não perdiam a oportunidade e, vez por
outra, levantavam vivas a São João e ao organizador, chamando-o pelo apelido. Nada
muito grave, não obstante a descompostura que o festeiro fazia questão de passar aos m
a . O cortejo fazia o caminho de volta e terminava na Liberdade, com festas, fogueira e
bailes, estes geralmente animados pelo músico Chico Metralha.
159
Apesar dos cronistas não
especificarem, o caso é que, seja pela tradição, seja pelos locais onde ocorria o cortejo,
certamente a concorrência dos negros era intensa nesses festejos a São João Batista.
Voltemos ao relatório preparado pelos médicos e que nos falava dos problemas
existentes no Anhangabaú. De fato, ele nos mostra uma terceira causa de infecção das águas
do Anhangabaú, ou seja, o despejo dos detritos produzidos no matadouro municipal. Este
começou a ser construído em 1853 nas encostas do bairro da Bela Vista (também chamado de
Bexiga), imediações da atual rua Humaitá. Nessa condição, o matadouro utilizava um dos
afluentes do Anhangabaú (o córrego do Bexiga) para o descarte de toda a sorte de resíduos
conhecido local onde se escondiam escravos fugidos e aqui, especificou o edil, o caso se dava no famoso “Campo
do Chá”, nas barrancas do Anhangabaú, local onde depois seria construído o Teatro Municipal. Disse o vereador:
“Proponho que esta Câmara mande roçar as matas virgens existentes quase no centro da Freguesia de Santa Ifigênia, no
Campo do Chá, por constar que ali se acoutam escravos fugidos; (...)” A. C., 21/04/1879, p. 73.
158 - Moura, Paulo Cursino de, São Paulo de outrora; 1943, p. 68.
159 - Martins, Antonio Egídio; São Paulo antigo; p. 109 e 110.
76
chegavam ao Anhangabaú e, atravessando o vale de lado a lado, desembocava mais adiante
no rio Tamanduateí.
Não obstante os problemas que se fizeram sentir, a escolha daquela região para a
edificação do novo matadouro fora muito bem planejada anos antes. O matadouro anterior –
a transferência do matadouro foi defendida
principalmente pelos
solução encontrada p
matadouro não pod
circunscrevia-se à coli
transferência, em 185 ra das pontes”, ou seja,
idade indiclinavel e tam urgente que a Assemblea Legislativa Provincial não
ou votar fundos para que ella se realizassem logo, ainda que
provisoriamente: neste proposito, tratou-se de escolher hua localidade para os
habit
também conhecido como “curral do conselho” – localizava-se nos limites do bairro da
Liberdade mas, desde 1830, o mesmo passou a ser motivo de reclamações que diziam
respeito especialmente ao mau cheiro que o material em decomposição produzia.
Invadindo a área central da cidade, esses “miasmas pútridos” foram condenados pelos
higienistas, que entendiam ser este um fator que contribuía sobremaneira para com a
insalubridade reinante. Num processo que teve como intenção principal o saneamento da
área urbana para livrá-la dos miasmas,
médicos que, inclusive, participaram da escolha do novo local. A
ara este problema deve ser entendida a partir desse contexto: o
eria mais continuar tão próximo da cidade; esta, por sua vez,
na delimitada pelos rios Anhangabaú e Tamanduateí; quando de sua
, o Bexiga era ainda pouco habitado e “fo6
além Anhangabaú; e, ponto fundamental, era necessário a presença de um curso d´água
para o descarte de toda a sujeira
160
. Nesse sentido, e para aquela época, o matadouro na rua
Humaitá fora muito bem planejado e serviu aos seus propósitos. Claro que, durante a sua
construção, algumas pessoas já anteviam os problemas que surgiriam com mais força a
partir da década de 70 do século XIX:
Os abaixo assinados moradores nas margens do Ribeirão Anhangabau, vem
perante esta Ilustre Camara representar contra a pessima localidade escolhida para
a construção do novo matadouro. A remoçam do antigo matadouro, era huma
necess
duvid
antes desta cidade, foi escolhido o valle em que se acha situada a
chacara de
João Sertorio; contra cuja conveniencia altamente protesta o simples bom senso:
de ser hum lugar baixo, humido, e cercado de montanhas, esta colocado na além
parte superior da cidade, de sorte, que o ar mephitico que se procurava desviar do
povoado, muito facilmente será conduzido para elle, ou mesmo para todos os
moradores da margem do dito Ribeiram incanado por toda a extençam do valle
cercado de montanhas, até o lugar em que o mesmo desagua no Tamanduatehy:
a
esta inconveniencia acrece muito que este Ribeiram que poderia ser tam util se se
removecem as causas que o tornam immundo e nocivo, he enriquecido de novos
elementos de insalubridade
, a realizar-se a funesta ideia de construir-se o novo
matadouro no lugar indicado. Os abaixo assignados confiam de sobejo na
Ilustraçam e interesse que tomam pelo bem do Municipio os Membros da Camara,
160 - A transferência do matadouro do centro para os “arrabaldes” do Bexiga, pode ser acompanhada em
Camargo, op. cit.
77
e certos disso pedem a V.V. se dignem providenciar para que tam grande
calamidade não se realize. S. Paulo 30 de Setembro de 1851 - Jacob Micheb,
Domingos Sertorio, Malachias Rogerio de Salles Guerra”
161
(meus destaques)
Dentre os signatários deste documento, encontramos o Sr. Domingos Sertório e
Malaquias Rogério de Salles Guerra. O primeiro deles era, certamente, parente de João Sertório,
cuja propriedade localizava-se ao lado do local escolhido para o matadouro. Aliás, esta mesma
Chácara do Sertório (como era conhecida) começava nas proximidades da Praça da Bandeira e,
seguindo pelo Vale da atual Av. 23 de Maio, chegava até os altos do conhecido “Morro do
Caaguaçú”. Posteriormente, essas terras foram loteadas e deram origem ao Bairro do Paraíso.
Voltando ao Major Domingos Sertorio, sabemos que ele foi Vereador e Vice-
Presidente da Câmara Municipal de São Paulo em 1887, diretor da Cia. Economizadora de
Gás em 1890 e diretor do Banco da Lavoura em 1893.
162
O segundo, Malaquias Rogério de
Salles Guerra, era outro grande proprietário na região. Com comércio estabelecido no “Largo
do Bexiga” nº 2, seu estabelecimento era um dos maiores e mais movimentados. Bastante
influente, ele foi um dos fundadores do Partido Republicano Paulista (P.R.P.) em 1873, na
fa Convenção de Itú. Vereador e Presidente da Câmara na década de 1860, participou de
diversas discussões, sendo dele, por exemplo, a proposta que modificou o nome do Largo do
Bexiga para Largo do Riachuelo em 1865. Atualmente, este antigo largo é a conhecida Praça
da Bandeira.
mosa
ndo sempre citada nos discursos e
163
Tamanho era o prestígio e influência de Malaquias naquela região da cidade que, com
o tempo, a sua propriedade transformou-se num marco, se
projetos que visavam o saneamento do local. Assim ocorreu em 1865, quando o também
vereador (e por certo amigo de Malaquias) José Maria de Andrade, propôs a canalização do
ribeirão Anhangabaú através da construção de “hum arco de tijollos” desde a casa do Vereador
Malaquias até a ponte do piques. Para que não se tomasse esta proposta como um benefício
particular, alegou o mesmo vereador que a canalização do córrego traria um “espaçamento do
largo, actualmente o mercado de madeiras, e o logar em que ha talves mais affluencia de tropas, facilita
o transito, aformozea hum local importante, e
deminue esse foco de miasmas quazi no centro da
161 - Coleção “Papéis Avulsos”, Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, Vol. 157, 1851, documento nº 103.
162 - História dos Bairros de São Paulo”, acervo do Arquivo Histórico Municipal e Camargo, Luís Soares de,
“História das Ruas de São Paulo” In: www.dicionarioderuas.com.br . Domingos Sertório faleceu em 1910, aos 86 anos
de idade.
163 - Em 1859, o estabelecimento de Malaquias era fornecedor da Câmara Municipal que, em uma das compras,
adquiriu “hum cargueiro de azeite para a iluminação da cadeia” ao custo de 52$000 Rs. No recibo impresso,
podemos ler: MALACHIAS ROGERIO DE SALLES GUERRA – Largo do Bexiga N. 2. Em sua propaganda
constava: “RECEBE A COMISSÃO TODOS OS GENEROS DE PRODUCÇÃO DO PAIZ” e “COMPRA E
VENDE SOMENTE GENEROS DE PRODUCÇÃO NACIONAL” - Papéis Avulsos, Vol. 187, doc. 193.
78
Cidade.
164
(meu destaque) No ano seguinte (1866), foi a vez de Vicente Mamede propor que se
“mandasse proceder a limpeza do Anhangabaú, da casa de residência do cidadão Malachias Rogério até
a ponte da Constituição”. E isso era necessário, alegou o vereador, porque era preciso “facilitar o
curso do ribeiro,
evitando que fiquem estagnadas tão feias e nocivas águas.”
165
(meu destaque)
Quanto ao requerimento de Malaquias e outros contra a instalação do matadouro nas
imediações de suas propriedade, identificamos os seus autores como personagens influentes
da época e, por isso, os mesmos conheciam os
Daí, talvez, muito mai
mais pesaram na recla
motivos para isso nã
vizinhanças certament
pois muitas vezes, som
assinados ou reclam
n trado, as pess grandes proprietários e, nesse
residentes nas margens do Ribeirão Anhangabaú”. Mas, de qualquer forma os
meios de se fazerem ouvir junto ao governo.
s do que o interesse público alegado, foram razões particulares as que
mação contra a construção do matadouro dirigida à municipalidade. E
o faltavam, uma vez que a presença de tal estabelecimento nas
e depreciaria as propriedades. Acredito ser pertinente esta observação,
os tentados a generalizar e tomar como de interesse geral os abaixo-
ações dirigidas ao poder público e, também, à imprensa. Como
oas que assinaram o documento eramdemo s
sentido, o mesmo não pode ser classificado como uma representação de “todos os
peticionários não estavam enganados, já que o matadouro seria realmente um “foco de
miasmas” e produziria muitos detritos que acabariam “infectando” a região, seus córregos
e, principalmente, o ribeirão.
Seja em consideração à proeminência dos personagens que redigiram o abaixo-
assinado ou talvez em razão dos fundamentos que embasaram a reclamação, o fato é que os
vereadores resolveram estudar o caso. Ouvindo a opinião de alguns médicos, pouco tempo
depois chegava a resposta sob a forma de um extenso relatório onde, se por um lado,
reconheciam o problema, por outro tentavam minimizá-lo ao dizer que o matadouro não
seria a única fonte de “infecção” no Anhangabaú:
(quanto) “a infecção da água do arroio Anhangabaú, pelo sangue das rezes
mortas (...) observa a Comissão que a mistura do sangue d´algumas rezes nas
águas do mencionado arroio, não as tornariam peiores do que são, por quanto
a Câmara e todo publico sabem que tais águas apenas poderão servir para
regas;
visto q. são diariamente infeccionadas pelos despejos não só da cadêa,
como pelos de todos numerozos moradores de suas margens, e recentemente
pelo estabelecimento d´uma fabrica de chapeos q. della se serve pa. lavagem
de tintas em grande quantidade.” (meu destaque)
Ainda neste relatório, a comissão tratou também das possíveis “emanações pútridas”
164 - A.C. Sessão do dia 13/06/1865, ps. 165 e 166.
165 - A.C. Sessão do dia 13/11/1866.
79
originadas no matadouro dizendo que quanto a “possibilidade de infecção atmosférica pelas
anações do sangue, e matérias fecais das rezes mortas (...) observa a comissão que no sistema em
que será feito o matado
emanações não podem se
e das principais cidades d
alguns acham-se situad
seguinte argumento:
ve descuidar-se de prevenir este mal, porem isso só se
em
uro, uma vez que se observe a policia e limpeza que tal sistema exige, as
r tais que inspirem receio de infecção danosa. Os matadouros do Rio de Janeiro
a Europa, feitos seguindo esse sistema, não estão mais distantes do que este; e
os em pontos bem centrais da povoação.” E, completando, lançaram o
A Câmara não de
conseguirá com mais demora e muita difficuldade
pr. q. muito difficil será
obrigar aos moradores visinhos a não sujarem essas águas.”
166
(meu destaque)
O último trecho deste documento nos apresenta um dado fundamental para o
entendimento de todo o problema que já se apresentava de forma aguda desde meados do
século XIX: reconhecia-se o perigo, mas era preciso se conformar com a situação. A solução,
além da capacidade inanceira do município. Entretanto, e mais
co de doenças; os culpados
elos d
chama a nossa atenção. Trata-se de João Adolfo Schritzmeyer, que apareceu explicitamente
em 1874 quando, ao lado do Senador Francisco Antonio de Souza Queirós, solicitou
diziam eles, estava muito f
importante, o discurso revela também um certo desconhecimento de como fazê-lo ou, em
outras palavras, eles se debatiam com o seguinte dilema: sim, as águas do ribeirão estavam
sujas e imprestáveis, transformando-se mesmo num perigoso fo
p espejos poderiam ser identificados e eram todos eles moradores ou proprietários
estabelecidos nas imediações do Anhangabaú. Posto dessa maneira, pensaram, a única
maneira de coibir tal “abuso” seria a de convencer a todos (moradores, comerciantes,
industriais) para que não realizassem seus despejos no local. Claro que isto seria impossível
naquele momento e, dessa maneira os vereadores - numa manobra muito inteligente –
transformavam as supostas vítimas (os signatários do abaixo-assinado) em algozes. Ora, eles
não residiam nas proximidades do rio? Pois era certo que eles também faziam seus despejos
no local e ajudavam a poluir as águas assombradas do ribeirão Anhangabaú. Quanto ao
matadouro, tentavam argumentar os vereadores, estava ele sendo construído de tal maneira
que não ofereceria perigo algum. Claro que a previsão otimista não se confirmaria após a
inauguração do estabelecimento, mas as razões apresentadas (sem muita consistência, hoje
podemos dizer) foram fortes o suficiente para convencer os peticionários naquele momento.
Além das observações e análises feitas ao documento, um personagem ali citado
80
autorização para construir um encanamento de esgoto e neste, referendado como proprietário
de uma fábrica de chapéus que “diariamente infeccionava” as águas do Anhangabaú por
conta da “lavagem de tintas em grande quantidade”.
167
Eis aqui um outro dado muito importante sobre os problemas existentes no
Anhangabaú durante todo o século XIX: além do despejo de material orgânico, como as águas
servidas, esgotos, lixo doméstico e dejetos do matadouro, o seu leito servia também como
receptáculo para os resíduos industriais das fábricas e oficinas instaladas na região. E estas,
r sua
Todas essas fábricas utilizavam-se das águas do Anhangabaú, ou de um de seus
po vez, não eram em pequeno número como poderíamos supor. O matadouro, por si só,
atraía para as suas proximidades não apenas aqueles que sobreviviam de seus restos mas,
também, estabelecimentos que se utilizavam dos sub-produtos, como os curtumes e as
fábricas de velas que empregavam o sebo como matéria prima. Além dessas indústrias
diretamente ligadas ao matadouro, outras fábricas também ali funcionavam, literalmente, a
todo o vapor como a indústria de licores de Henrique Henriksem & Filho, localizada na Ponte
do Piques, e as duas fábricas de Jacob Michels na Ladeira de São Francisco nº 5: uma de
cerveja e outra de chapéus.
afluentes, para a limpeza diária das máquinas e para o descarte do lixo industrial:
“Diz Henrique Henriksem & Filho que elle suplicante tem uma Fábrica de
Licores e Genebra estabelecida na Ponte do Piques da Freguesia de Santa
Ifigênia, e chegando agora ao seo conhecimento a Postura desta Câmara de 10
de setembro pp. (...) e querendo o suplicante dar cumprimento ao art. 5º da
mesma Postura vem declarar que emprega em sua Fábrica as seguintes
Canella = Cravo = Aniz = Erva dosse = Bagas de zimbro e essência do mesmo
matérias a saber = Agoardente = Assucar = Essência de Roza, de Limão =
sendo seu alambique de cobre o qual todos os dias he limpo = Vem pois
requerer a VV. SSas. que tomando as declarações do suplicante se dignem
conceder-lhes licença para continuação da mesma sua Fabrica. São Paulo 22
de outubro de 1855.
168
(meus destaques)
É certo que essas fábricas, abertas em meados do século XIX, não eram de grandes
proporções se comparadas com as indústrias que se instalaram na cidade a partir das
166 - A.C. Sessão do dia 19/11/1851, p. 268 a 273.
167 - A respeito de João Adolfo, sabemos que ele nasceu na cidade de Hamburgo, Alemanha, em 1828 e que veio
para o Brasil no ano de 1848. Chegando em São Paulo em 1851, residiu inicialmente na Rua do Ouvidor,
proximidades do Largo de São Francisco. No "Bairro do Piques", localizado na margem esquerda do Anhangabaú
e ao lado da "Ladeira da Memória", ele adquiriu um grande terreno no qual construiu, em 1851, a sua residência e
a “Fábrica de Chapéus João Adolfo”. Posteriormente, a "Chácara João Adolfo" foi loteada pelos herdeiros, dando
origem à Rua João Adolfo ainda hoje existente no mesmo local. João Adolfo Schritzmeyer faleceu em São Paulo
aos 16/09/1902 e foi sepultado no Cemitério da Consolação.
168 - Coleção “Papéis Avulsos” do Arquivo Histórico Municipal, 1855, Vol. 173, docto. n.º 79. A respeito de outras
indústrias no local ver: A.C. sessão do dia 23/10/1855, p. 169 e A.C. sessão do dia 01/10/1855 p. 152.
81
primeiras décadas do século XX. Justamente por esse motivo, a maior parte da historiografia
acabou classificando esses antigos estabelecimentos como indústrias rudimentares, pequenas
oficinas artesanais ou, ainda, como apêndices de casas comerciais.
169
Assim procedendo,
perderam esses estudos a chance de buscar na história o significado desses estabelecimentos
para a São Paulo
existiam, quem n
ambiente. De fato
quanto em relato
mais cuidadoso p
As indúst
dos cursos d´água
Tamanduateí. A
1851, na margem
Ribeirão Saracura
atenção daqueles
daquele período, seja numa interface com seus habitantes (se fábricas
elas trabalhavam?), sejam os sinais ou rastros que as mesmas deixaram no
, muitas pistas sobre o tema - presentes tanto na documentação oficial
s - permanecem, até hoje, inexploradas. Assim, cabe-nos lançar um olhar
ara que possamos chegar a algo mais próximo da realidade.
rias paulistanas de meados do século XIX concentravam-se nas imediações
que delimitavam o sítio urbano: de um lado o Anhangabaú, de outro o Rio
fábrica de chapéus de João Adolfo, por exemplo, estava colocada, desde
esquerda do Anhangabaú e servia-se das águas de um de seus afluentes, o
. Motivo de orgulho para a cidade, a indústria de João Adolfo chamava a
que visitavam São Paulo:
"Hoje de manhã, em companhia do dr. Rath, visitamos a grande fábrica de
chapéus do sr. João Adolfo Schritzmeyer,
uma das maiores do país, na qual
ocupam 132 pessoas. Fica situada em uma das ruas de baixo, em um edifício
especialmente construído. (...) Daí prosseguimos nosso caminho pelos
grandes espaços da fábrica onde se pode acompanhar a fabricação de chapéus
em todos os seus sucessivos aspectos. Como já disse trabalham 132 pessoas na
fábrica,
que tem as máquinas de mais recente construção e cuja produção é
colossal. É uma criação de primeira ordem, da qual o sr. Schritzmeyer deve
estar orgulhoso a justo título. São Paulo, novembro de 1883."
170
(meus
destaques)
Muito dos elogios presentes neste relato devem ser creditados ao fato de que seu
redator, Carl von Koseritz, era conterrâneo de João Adolfo. Porém, chama a atenção o
número nada desprezível de 132 operários trabalhando no local. Ao adicionarmos este dado
com as “máquinas modernas” ali instaladas mais a “produção colossal”, podemos concluir
que também o lixo industrial era produzido em grande quantidade. E, no final, o mesmo era
despejado nas águas já saturadas do Anhangabaú.
169 - Dentre outros ver, por exemplo, Bruno, Ernani da Silva, "História e Tradições da Cidade de São Paulo", Vol.
II, p. 673 e 711, SP, Hucitec, 1984.
170 - Koseritz, Carl von - "Imagens do Brasil", Tradução: Afonso Arinos de Melo Franco, B.H. Itatiaia e S.P. Edusp,
1980, p. 271.
82
Fig. 13
Foto tomada do Viaduto do Chá em direção à Ladeira da Memória nos primeiros anos do século XX.
Em eiro plano, as obras de remodelação do Vale do Anhangabaú e, à direita, casas e quintais da
Rua Formosa. Ao fundo, uma indústria e sua chaminé. Tendo em vista esta localização trata-se,
provavelmente, da fábrica de chapéus de João Adolfo Schritzmeyer.
A técnica mais comum utilizada para a captação da água necessária às indústrias,
resumia-se na abertura de um canal entre o leito do rio e o estabelecimento. Depois do uso, outro
canal encarregava-se do despejo, servindo o mesmo como esgoto. Era assim que se procedia na
fábrica de João Adolfo, ou seja, desviando parte da água do Ribeirão Saracura que, por sua vez,
vertia do chamado “Tanque do Bexiga”. Após sua utilização na indústria o líquido, já carregado
de impurezas, era encaminhado para o leito do Anhangabaú. Vez ou outra alguns fiscais ou
vereadores detectavam os problemas existentes com esses canais abertos em plena via pública e
denunciavam o fato. Em 1895, por exemplo, o vereador Alípio Borba solicitava a “obstrução das
valas existentes nos terrenos que margeiam o rrego Anhangabaú, no trecho entre o Largo do
Piques e a ladeira de São João”, alegando que as mesmas estavam “cheias de águas estagnadas
e concluindo que estas “valas eram nocivas à saúde pública”.
prim
na cidade que, anos antes, uma
fiscalização das ruas daquela parte da cidade, “participou que entre a casa do Sr. João Adolpho e a
ponte do Piques, existia uma valeta por onde se escoavam as águas vindas do Tanque do Bexiga, o que
tinha tornado aquele lugar um constante depósito de lixo.” Para solucionar o caso, completou,
171
A existência desses canais era algo tão comum
reclamação do mesmo tipo havia recaído justamente naquela aberta por João Adolfo
Schritzmeyer. Corria o ano de 1889 e o funcionário Joaquim Leite Penteado, encarregado da
171 - Requerimento nº 94 do vereador Alípio Borba ao Intendente de Justiça - A.C. sessão do dia 27/11/1895,
volume manuscrito, p. 242 e 243
83
“seria conveniente a Câmara mandar fazer uma galeria”.
172
A galeria subterrânea certamente
solucionaria o problema do lixo depositado na vala aberta em plena via pública, mas não o
das águas da fábrica de João Adolfo que, cada vez mais sujas e continuariam a impregnar o
Anhangabaú.
Porém, e com respeito a este tema, um fato concreto deve ser trazido à luz: a
quantidade de reclamações contra os detritos industriais na cidade de meados do século XIX
é bem menor do que aquelas que referentes ao lixo orgânico. Nesse ponto, devemos levar em
consideração que as grandes fábricas eram uma novidade para o período e, assim sendo, não
havia ainda uma sensibilidade aguçada contra os dejetos produzidos por estes novos
quipa
produziam esse tipo de documentação, ou seja, as camadas privilegiadas da população. Em
hábitos e costumes da população – algo
ertamente difuso pois imputado a todos. As reclamações contra os grandes empresários e
mpresas não aparecia
observação, vale a pen
anos, esta situação não
quantidade cada vez
físico.
O medo maior
residenciais ou dos de
visão horrenda, uma v
miasmas pestilentos. M
guardar distância de qualquer descuido e o “ar
envenenado” já estaria nos pulmões causando um desequilíbrio nos humores e, por
conseqüência, traria a doença. E o que apodrecia, todos sabiam, era a matéria orgânica e não
os resíduos industriais. E não por outro motivo que, em 1855, dois anos depois de inaugurado
o matadouro da Rua Humaitá, um outro relato chegava às mãos da municipalidade dando
conta dos problemas:
e mentos. Podemos mesmo dizer que os narizes e olhos dos paulistanos não estavam
ainda treinados o suficiente para perceber esses males. Por outro lado, a menor quantidade
de reclamações pode ser, também, um indício revelador a respeito daqueles que mais
outras palavras, e explicitando melhor a análise, tudo leva a crer que a maioria absoluta dos
abaixo-assinados era elaborado pela elite e tinham como alvo certo ou um estabelecimento
administrado pelo poder público ou, então, os
c
e m em grande número até porque ninguém critica a si próprio. Esta
a frisar, refere-se ao período citado, uma vez que, com o correr dos
se mantém – seja pelo aprendizado sensível da população, seja pela
maior de detritos produzidos pelas indústrias no mesmo ambiente
, portanto, se colocava em presença do lixo orgânico, dos despejos
tritos do matadouro. A matéria em decomposição causava aversão,
ez que ela trazia consigo o perigo (este invisível) do mau cheiro e dos
édicos e higienistas daquela época ensinavam que era preciso
tudo que estivesse em putrefação, pois
172 - A.C. sessão do dia 22/10/1889, p. 294
84
“Ilmos. Snrs. Presidente e Membros da Camara Municipal, os abaixo assignados
moradores nas margens do Corrigo denominado Moringuinho, abaixo do
Matadouro Publico, vem respeitosamente a presença de V. sas. reclamar, e pedir
providencias
para que cesse o abuso de se lançar immundicies no dito corrigo, que
se tem tornado um foco de podridão. V
diariamente ali se matta, as barrigadas de todo e
endendo os couros do gado que
sse gado,
ha pessoas que fazem
commercio com elles contra todos os principios de hygiene, e salubridade publica,
vão essas pessoas lavarem, e limparem essas barrigadas no referido Corrigo,
lançando nelle todo o estrume que das mesmas tirão, pela agua abaixo; bem como
os chifres de maneira que com o calor do sol, impossível he soffrer-se as exhalações
putridas, e pestilentas que todo esse Corrigo exhala; e quando em todas as
Provincias do Imperio se procura o aceio geral
para afugentar essa horrivel peste
que nos ameaça em nossa Provincia, de proposito se fo
molestias. Os abaixo assignados estão convencidos que V.
rma um imenso foco de
sas., ignorão este abuso e
he por isso que contra elle vem reclamar, esperando sabias e energicas
providencisa, que tenhão por fim prohibir a liberdade dessa lavagem e de se
lançarem os chifres no dito Corrigo, não só no lugar indicado, como mesmo no
tanque que se acaba de construir; pelo que P.P. a V. Sas. que se dignem prover de
remedio pronto
os males do facto exposto podem resultar, não só aos Suplicantes,
como aos mais habitantes desta cidade, pois assim lhes incumbe o art. 72 da Lei do
1
0
de Outubro de 1828. - Antonio de Padua Lisboa, Joaquim do Monte Carmelo,
Joaquim Lopes Guimarães, Domingos de Paiva Azevedo, Fortunato José dos
Santos, Delfino Antonio da Pureza.”
173
(meus destaques)
É certo que este abaixo-assinado difere do anterior, pois tratava-se agora do relato de
algo que estaria ocorrendo e não mais de uma previsão do que poderia acontecer em relação à
matança do gado nas imediações. Em outras palavras, aquilo que era considerado como uma
ameaça ainda não concretizada em 1851, quatro anos depois os moradores vizinhos ao
afluente do Anhangabaú já tinham exemplos para apresentar.
Mas, apesar da quantidade de assinaturas ser maior - o que poderia conferir certa
representatividade popular ao documento – o caso é que, se analisarmos mais
detalhadamente o discurso, perceberemos certos termos e concepções que mais os
aproximam de uma camada média ou superior da população. Um exemplo é que a
reclamação principal estava sendo dirigida aos trabalhadores que ganhavam sua vida com
o comércio de miudezas (sobras) do matadouro como os chifres e as entranhas do gado
abatido no local. Estes por sua vez, emudecidos no documento, deveriam ser em grande
número, dada a quantidade de “sujeira” que lançavam no córrego. A reclamação,
portanto, não era contra a existência do matadouro no local - este sim o grande problema -
mas, especificamente, condenava a ação daqueles que viviam dos restos ali produzidos. Deve
ser lembrado ainda que este estabelecimento (o matadouro) era público, ou seja, ele foi
construído e era administrado pela municipalidade.
173 - Coleção “Papéis Avulsos”, Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, Vol. 169, 1855, documento nº 147.
85
O fato é que, novamente, os signatários eram pessoas influentes, empresários do
comércio, grandes proprietários, políticos e membros do clero, senão vejamos: Joaquim do
Monte Carmelo era cônego da Sé (ex-beneditino) e proprietário de uma grande chácara na
Várzea do Carmo; Joaquim Lopes Guimarães foi vereador e Prefeito de São Paulo em 1835;
“horrível peste” que
ameaçava a província. Apesar de não mencioná-la, certamente pelo horror que ela causava,
tratava-se do cólera que já havia atingido o Rio de Janeiro. Mediante a possibilidade da
doença ser introduzid
visita do chefe de polí
vários buracos onde se
danificar a salubridade p
pela sua posição, levava t
Anhangabaú.
175
Dez an
solicitaram “... a remoç
Domingos de Paiva Azevedo era um dos maiores comerciantes da época e proprietário do
sobrado mais imponente, com três andares, na esquina da Rua 15 de Novembro com o Largo
do Tesouro; o Capitão Fortunato José dos Santos fez parte de diversas comissões nomeadas
pela Câmara Municipal, inclusive para festejos religiosos; e Delfino Antonio da Pureza,
conhecido como “Delfino Tabaqueiro”, foi meirinho (antigo Magistrado) da Câmara
Eclesiástica.
174
Uma outra particularidade neste documento é o registro à
a em São Paulo, naquele mesmo ano de 1855 o matadouro recebeu a
cia que, através de uma inspeção, relatou “as más condições do piso e os
acumulavam água e sangue que faz exalar miasmas pútridos que hão de
ublica” e, também, sobre “o péssimo local escolhido para o matadouro, pois
odos os miasmas pútridos para dentro da cidade, pelo vento reinante e pelo rio
os depois, em 1865, os médicos elaboraram uma nova representação e
ão do matadouro público para um lugar apropriado,
evitando assim que o
sangue apodrecido espalhe a morte nas águas do rio Anhangabahú”.
176
(meu destaque) Eis aqui
nte alteração: em 1855 o Anhangabaú e o seu vale estariam como que a
s para a cidade; em 1865, eram já as próprias águas
uma sutil mas importa
“encanar” os miasma que apodreciam,
“distante” Vila Mariana
177
. Assim, e durante todo o tempo em que esteve funcionando na
tornando-se ele mesmo (o rio) num foco de infecção.
Não obstante a identificação do matadouro como o produtor maior de emanações
pestilentas, sendo também o responsável pelos detritos que atingiam o ribeirão Anhangabaú,
ele permaneceu no mesmo local até finais do século XIX quando, então, foi transferido para a
174 - Camargo, Monsenhor Paulo Florêncio da Silveira, “A Igreja na História de São Paulo”, S.P., Cúria
Metropolitana, 1953, Vols. VI e VII; Martins, Antonio Egídio, “São Paulo Antigo 1554-1910”, S.P., Paz e Terra,
2003; Arroyo, Leonardo, “Igrejas de São Paulo”, Livraria José Olympio Editora, R.J., 1954. Dentre os signatários, o
personagem mais polêmico foi, sem dúvida, o cônego Joaquim do Monte Carmelo. Grande orador sacro,
envolveu-se em diversos conflitos religiosos, inclusive com o próprio Bispo de São Paulo. Passou depois para o
Santuário de Aparecida, onde teve atuação de destaque na construção da Matriz daquela cidade.
175 - Coleção “Papéis Avulsos”, Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, Vol. 172, 1855, doc. nºs 94 e 95.
176 - A.C. sessão do dia 26/05/1869, p. 135. Este documento é citado como “Uma representação do povo desta
Capital e Freguesias anexas, com um documento dos médicos”.
177 - O novo matadouro da Vila Mariana foi oficialmente inaugurado no dia 05/01/1887 conforme o Auto da
inauguração do Matadouro Público desta Capital, novamente concluído na Várzea de Santo Amaro” (A.C. sessão do dia
86
Rua Humaitá, o estabelecimento carregava consigo, ao mesmo tempo, as imagens de vida e
de saúde mas, também, as da doença e da morte. Um bom exemplo dessa imagem (ou
qualidade) positiva presente no matadouro, pode ser encontrado num local inesperado pois a
certa distância do mesmo, ou seja, no nome do estreito caminho utilizado pelos tropeiros que
conduziam o gado para aquele estabelecimento: era o famoso Beco do Mata-fome, hoje
desaparecido, mas cuja localização pode ser encontrada no cruzamento da atual Av. Ipiranga
É certo, portanto, que no matadouro eram produzidos alimentos para a vida (que
“matavam a fome”) mas decorrente desse processo, resultavam os dejetos que poluíam águas
e ares, causando o medo de doenças. É certo, também, que muitos trabalhadores sobreviviam
das sobras ao realizarem o comércio dos fatos do gado. Porém, esse meio de vida trazia outro
efeito negativo, uma vez que redundava no lixo (o resto do resto) disperso pelas ruas e
impregnando as águas do ribeirão Anhangabaú. Esta atividade, aliás, continuou sendo
exercida durante muito tempo já que, desde aquela reclamação de 1855, em 1885 - tr
com a Rua da Consolação.
inta anos
mais tarde - chegava a seguinte representação:
“Ilmo. Sr, Presidente e mais senhores vereadores da Ilma. Câmara Municipal.
Os abaixo-assinados moradores na rua de Santo Amaro fiados no interesse
que VV.SS. tomam sempre pelo bem estar dos seus munícipes vem
respeitosamente chamar a atenção de VV.SS. para o estado lastimoso em que
de tempos a esta parte se acha a rua de Santo Amaro.
Grande porção de
italianos, vulgarmente chamados tripeiros residem naquela rua onde
diariamente se ocupam da limpeza dos intestinos do gado morto no nosso
Matadouro,
lançando na rua ou nos respectivos quintais as partes não
aproveitadas dos ditos intestinos e isto em tamanha quantidade que
produzem tais miasmas que torna impossível a vizinhança com eles a ponto
de obrigarem
princip
a mudança daquele lugar a varias pessoas por ser
almente insuportável o mau cheiro que naquela circunvizinhança se
sente durante a noite e dias quentes. Os abaixo assinados expondo este fato a
VV.SS. esperam uma providência qualquer a bem da salubridade pública.
(...)
178
Seguem 37 assinaturas (meus destaques).
Tudo isso somado, não era por outro motivo que “as águas do tanque do matadouro
público que corriam no Anhanhabaú, que então atravessava o largo do Bixiga, na ponte do Lucena
(Piques) e próximo ao mercado de São João e na ponte do Miguel Carlos, na rua Florêncio de Abreu,
05/01/1887, páginas 07 e 08). Os terrenos próximos ao novo matadouro foram, na mesma época, vendidos a
funcionários públicos municipais (muitos deles trabalhadores do próprio matadouro), o que deu origem à Vila
Clementino (ver Angrimani, Danilo, “V
Departamento do Patrimônio Histórico
ila Clementino”, Coleção História dos Bairros de São Paulo, Vol. 25,
da Prefeitura de São Paulo, 1999). Na Vila Clementino, os detritos do
matadouro passaram a ser despejados no Córrego do Sapateiro que, atualmente, abastece o lago do Parque do
Ibirapuera. O antigo prédio do matadouro abriga hoje a Cinemateca Brasileira.
87
exalavam, em certas horas do dia, cheiro insuportável (...)”
179
Identificado como estava o problema, o que chama a nossa atenção nesse caso é o fato
dele persistir durante um longo período na vida da cidade. Não obstante ter sido tratado
muitas vezes como verdadeiro escândalo em alguns discursos, o caso é que, por décadas, o
paulistano conviveu com um ribeirão infecto e perigoso correndo a céu aberto na cidade e
passando, inclusive, por diversos quintais e fundos de residências.
cristalizadas na historiografia da cidade, especialmente naquela que tem como tema a
urbanização. Uma primeira delas diz respeito às “rápidas e radicais transformações” pelas
quais passou a cidade - e a sociedade - entre finais do século XIX e início do século XX. Ora,
como podemos perceber através das demoradas discussões, os problemas, apesar de
identificados, não foram resolvidos de modo pleno e nem rapidamente. Mediante essa
situação, podemos perguntar se o Anhangabaú (bem como a sujeira nele presente) era, por
De fato, aqui devemos voltar nossos olhos para algumas questões até certo ponto já
resolvia muito bem a questão do esgoto e lixo
oméstico, bem como levava para longe outros dejetos como os do matadouro. Era a “água
que lavava e purifica
aparente paradoxo, po
mesmo tempo, nas ág
egativo estivesse por algum momento predominando (como já visto), talvez bastasse uma
nte dos moradores, não havia, naquele
omento, maneira mais adequada de livrar-se de toda a sujeira que eles próprios produziam.
E assim deveria ser. Tratava-se dos usos e costumes de uma época ou, de práticas arraigadas
que já estavam presentes na comunidade desde há muito tempo. Estas, por sua vez, não
todos, entendido realmente como um problema. Ou, visto de outra maneira, não seria ele
uma solução? Em outras palavras, o rio
d
va” como demonstrado por Vigarello. Nesse sentido, explica-se o
is qualidades positivas e negativas conviviam e estavam presentes, ao
uas daquele ribeirão. Caso algum problema ocorresse, ou o fator
n
procissão ou uma fervorosa oração dirigida a São João Batista para solucionar o problema,
pensavam os paulistanos.
Por outro lado, não podemos desconsiderar o fato de que uma menor ou maior
sensibilidade à sujeira dependia sempre da posição ocupada pelos sujeitos, seja na sociedade,
seja no ambiente físico da cidade. Claro está que os narizes e olhos daqueles que residiam nas
imediações do rio, estavam mais atentos e treinados para perceber quaisquer alterações nas
águas. Os administradores, por seu turno, bem como os médicos e engenheiros, também
detinham informações que lhes mostravam os constantes perigos de águas tão pútridas. Mas,
tanto para uns e outros e, principalmente para o resta
m
178 - Arquivo Histórico Municipal, Fundo CMSP, Grupo: Conselho de Vereadores, Série: Correspondência
(abaixo-assinado) 1730-1889, documento datado de 25/04/1885.
88
desaparecem de modo tão rápido e nem facilmente de uma sociedade.
Uma outra que
interesses de determin
os costumes e o modo lgo que,
num primeiro momento, pode se nos apresentar como bastante corriqueiro
180
, uma análise
mais aprofundada, ao contrário, nos mostra que o ribeirão foi um palco de lutas onde
estavam em jogo diversos interesses e, dentre eles, os dos empresários e comerciantes
ribeirinhos:
“Ilmos. Snrs. Prezidente e Vereadores da Camara Municipal. Os abaixo
assignados, moradores no largo do Riachuelo e nas ruas adjacentes ao
mesmo, vem, com a mais viva fé, pedir a VV. Ssas. que se dignem ordenar a
factura de uma obra, que muito credito e honra dará a esta Camara.
Esta obra
stão, que deve ser levantada em todo esse processo, diz respeito aos
ados grupos que disputavam seus espaços na cidade e, de outra parte,
de vida do povo comum. Assim, ao nos aproximarmos de a
consiste em tapar-se o logar por onde em o dito largo passa corrego
Anhangabahu, de modo que fique uma praça, desde a ponte em que começa
a ladeira de Santo Amaro, até a ponte de Lorena. A urgencia e utilidade desta
obra são manifestas.
Com ella passarão inteiramente as exhalações pútridas
que diariamente há no bairro, não mais se fa do dito córrego um despejo
público. No logar, ficará uma praça extensa, que arborizada, servirá de
passeio e distracção da população,
alem de que mais acomodação offerecerá
para a feira de madeiras que semanalmente ali se faz. Accresce que com
menos de sette contos de reis, será feito esse grande melhoramento. Os abaixo
assignados tem fé que VV. Ssas. sollicitos como são no benefício público hão
de tomar com consideração este pedido: com que Rs. Mces. São Paulo, 16 de
agosto de 1871.”
181
- seg ssinaturas. (meus destaques)
suas águas
pútridas pelos despejos que ali se faziam, o tários apresentaram uma solução: a sua
tapag a
a atenção o fato dela já es tiva para solucionar
uem 64 a
Utilizando como argumentação principal o fato de o ribeirão estar com
s signa
em ou canalização subterrânea. Esta seria a técnica adotada bem mais tarde, mas cham
tar sendo sugerida desde 1871como uma alterna
o problema. Na verdade, porém, sabiam eles que esta simples tapagem não resolveria a
grande questão que era a sujeira presente nas águas. Apesar da menção correta de que,
realizada canalização subterrânea, não mais se faria do dito córrego um despejo público - e isso
pelo simples fato de que as pessoas não mais conseguiriam atirar o lixo diretamente nas
águas - eles estavam cientes (e conformados) de que a infecção continuaria, pois o
79 - Martins, Antonio Egídio, “São Paulo Antigo 1554-1910", S.P., Conselho Estadual de Cultura, s/ data.
180 - Digo “corriqueiro” pois não é novidade na historiografia o fato do Anhangabaú ter sido um receptáculo de
impurezas durante muito tempo – e ainda hoje continua sendo, diga-se de passagem, mesmo que “escondido” nas
tubulações.
181 - Coleção “Papéis Avulsos”, Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, Vol. 253, 1871, doc. nº 54.
1
89
Anhangabaú ainda r
canalizado e, também,
de que o mau cheiro e s considerados
forjaram
eito à delimitação de áreas para grupos específicos ou, de resto,
uma di
eceberia os despejos do matadouro, parte do esgoto doméstico
os detritos das indústrias locais. Por conta disso, estavam eles cientes
os miasmas pestil nto, as exalações pútridas ou
perniciosos, não seriam eliminados de vez, já que eles escapariam para o ambiente através
das bocas-de-lobo que, desde essa época, já eram motivos de medo por parte da população. O
mais importante, porém, é que subjacentes a este pedido estão presentes as relações que se
frente à sujeira, uma vez que a sensibilidade visual era a mais aguçada. Esconder e
tirar da vista mais próxima equivalia a limpar. Em seguida, o olfato era solicitado, mas, antes
de tudo, era essencial colocar a imundície de lado, guardar uma certa distância e promover a
sua circulação. Nesse sentido, a limpeza privilegiava, antes de tudo, a aparência.
Porém, no mesmo documento encontramos de maneira muito clara uma outra
intenção - talvez a principal - de que o local, depois de “tapado”, ofereceria melhores
condições para a realização da feira de madeiras. De certa maneira, todos entendiam que
escondendo as águas pútridas, o local estaria saneado e isso muito interessava aos
empresários e comerciantes que, concluída esta obra, teriam mais acomodação ou espaço para
a realização de seus negócios. Aqui, a argumentação nos mostra a cidade sob um outro
prisma, pois nesta segunda metade do século XIX, estava já colocada uma questão muito
importante e que dizia resp
sputa de territórios.
No caso específico do Vale do Anhangabaú, devemos nos lembrar que grande parte
da área localizada entre as proximidades do Viaduto do Chá e até os limites da Av. São João
era, até a primeira metade do século XIX, propriedade do barão de Itapetininga. A intenção
da Câmara Municipal em sanear aquela parte da cidade sempre esbarrou nos obstáculos
colocados pelo barão que, recorrendo aos seus direitos, não admitia ceder os terrenos
necessários para as obras. Uma primeira vitória da municipalidade ocorreu em 1855, quando
então foi aberta e inaugurada a Rua Formosa, obra esta que foi considerada como essencial
para a urbanização do Vale.
182
Entretanto, aquela representação dirigida à Câmara em 1871, referia-se ao espaço hoje
182 - A respeito da urbanização dessa parte da cidade conhecida como “centro novo”, bem como as disputas entre
a municipalidade e o barão de Itapetininga, ver: Camargo, Luís Soares de, “O Morro e a Chácara do Chá na
história de São Paulo”, in Revista Histórica, Arquivo do Estado de São Paulo, nº 13, janeiro de 2004, páginas 12 a 18.
Sobre a importância da Rua Formosa para o saneamento do Vale do Anhangabaú ver: Camargo, “Sepultamentos
em São Paulo”, op. cit. páginas 137 a 139.
90
ocupado pela Praça da Bandeira, local para onde confluíam os córregos Saracura (hoje
canalizado sob o leito da Av. 9 de Julho), Bexiga e o próprio Anhangabaú que, daí por diante,
corria pelo vale até desaguar mais adiante do Rio Tamanduateí. Terras de uso comum como se
dizia, ou públicas, o antigo Largo do Riachuelo (também conhecido como Largo do Piques e
do Bexiga) já era, por décadas, utilizado para o comércio de vários gêneros. Exemplo disso é
que em uma parte do Largo do Piques, imediações da atual Ladeira da Memória, localizava-
se o maior mercado de escravos da cidade; já na década de 1870, a feira de madeiras ali
olvimento de seus negócios.
Mas, a questão não seria resolvida de modo tão rápido, pois tendo em vista aquela
solicitação, os vereado
realizada atraía grande público. É nesse contexto, portanto, que devemos inserir o abaixo
assinado, pois num movimento único, conjugavam-se dois interesses: o de alguns moradores
que, amedrontados pela ameaça constante de doenças, pediam pelo saneamento da área e,
também, dos comerciantes, estes mais interessados no desenv
res responderam:
“A Comissão de obras públicas é de parecer que se defira o abaixo assinado
dos moradores do Largo do Riachuelo sobre a canalização do corrego
Anhangabaú entre as pontes da rua Santo Amaro e o do Lorena,
ficando
porém, para fazer-se a dita obra quando houver dinheiro. (...) Aprovado.”
(meus destaques).
Seja pela falta de dinheiro aqui apontada, seja porque o ribeirão a céu aberto era uma
solução para o lixo da cidade ou, também, por conta dos terrenos particulares em que ele
corria, o fato é que o Anhangabaú permaneceu durante todo o século XIX a descoberto e num
estado de constante ameaça. Não obstante, os problemas que ele cau
183
sava nessa situação eram
isíveis
térias fecais que infectavam todas as
casas com ave perigo p incômodo dores.”
184
Três anos depois,
eria a vez dos próprios vereadores denunciarem o estado calamitoso do local por conta do
anal que servia de le aú porque ...
“... o lixo e as immundicias lançadas naquella valla, e mesmo os reziduos das
v e constantemente denunciados. Em 1873, por exemplo, vários moradores reclamavam
uma solução, pois ali se lançavam “águas servidas, lixos e ma
gr ara a salubridade pública e dos mora
s
c ito ao Anhangab
reses cortadas no matadouro público que por ella diariamente passam, deve
fazer daquelle lugar um foco de exhalações miasmáticas por certo
comprometedoras e prejudiciaes a salubridade publica, e muito
183 - A.C. Sessão do dia 31/08/1871, p. 109
184 - Coleção “Papéis Avulsos” do A.H.M., 1873, Vol. 263, documento nº 39.
91
particularmente aos moradores daquelle populoso bairro...”
185
Fig. 14
A expansão urbana nas últimas décadas do século XIX. Neste mapa de 1881 vemos os ribeirões Saracu
(vale da atual Av. 9 de Julho), o do Bexiga e o Anhangabaú, bem como os Largos do Riachuelo e da
Memória (hoje Praça da Bandeira), e o Vale do Anhangabaú até a atual Av. São João.
ra
Fig. 15
O antigo Largo do Riachuelo (também conhecido como do “Bexiga” ou do “Piques” e atual
185 - Indicação dos vereadores Portilho e Cantinho Sobrinho; A.C. Sessão do dia 21/09/1876, p. 89 e 90
92
Praça da Bandeira) entre 1862-63. Ao fundo, vemos uma tropa que conduzia
mercadorias e, ao centro, o ribeirão Anhangabaú.
De fato, havia uma con que o local havia se transformado numa área
ue, ao mesmo tempo, algo deveria ser feito para sanear aquela baixada. Porém, os
étodos utilizados nunca foram vos ou mesmo duradouros. Em outras palavras, as
bras que ali eram realizadas duravam pouco tempo e logo precisavam ser refeitas. Nesse
sentido, tornou-se rotina a realização de serviç s de limpeza no ribeirão que, passados alguns
meses, voltava ao seu antigo estado:
Achando-se o corrego do Anhangabaú bastante sujo
cordância de
perigosa e q
m definiti
o
o
,
am
e fazer a limpeza d
proponho que esta
ara
mand
C
o mesmo pelos galés onte do
iqu Miguel Carlos - Paç ra Municip ulo, 8 de
186
E num contínu limpar o
ito do or va transformado nu e m 869), ora
ara e e limp gens do rio desde a p a até a d
187
os ar apresentados nas representações, bem como nas ordens
mit d ereadore resente o medo que se tinha das águas estagnadas, fontes
de pod sma rrendo solto não er e temor,
na dispersão da sujeira; o contrário, entretanto, era uma ameaça.
o analisar essa mesma questão na França dos séculos XVIII e XIX, Alain Corbin
conside
, uma vez que a vegetação ribeirinha poderia
, desde a p
P es até a do o da Cama al de São Pa
janeiro de 1867 - João Ribeiro da Silva - Approvada”
o, as solicitações multiplicavam-se ora para “que se mandasse
le rio Anhangabaú p que ele esta m verdadeiro foco d iasmas” (1
que se roçass asse as mar onte de Loren o Bexiga” (1873).p
Subjacente a gumentos
e i as pelos v s, estava p
ridão e de mia s. O rio co a motivo d posto que ajudaria
A
rou os argumentos dos higienistas da época e concluiu que toda água estagnada
exercia uma ameaça e que só o movimento poderia purificá-la: “a correnteza leva, mói, dissolve
os restos orgânicos...”; o leito dos rios, por sua vez, “ponto de concentração dos fluxos, contribui
para a salubridade da cidade e, bem estruturado, pode tornar-se um dos mais eficazes reguladores.”
188
Nessa linha de análise, era perfeitamente justificável a preocupação em roçar e destrancar o rio
conforme as ordens dos vereadores paulistanos
reter e colocar em putrefação vários componentes orgânicos que se encontravam em
dispersão naquelas águas.
Entretanto, não podemos deixar de notar o fato da não perenidade das ações, ou seja,
a de roçar e limpar as margens do ribeirão. De fato, a vegetação, por natureza, cresceria
depois de algumas semanas, e da mesma maneira o ribeirão, pouco depois de desentulhado,
186 - A.C. Sessão do dia 08/01/1867, p. 10.
187 - A.C. Sessão do dia 16/09/1869, p. 215 e Sessão do dia 15/05/1873
188 - Corbin, Alain; Saberes e odores – O olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX, S.P.:, Cia das letras, 1987,
páginas 47 e 129.
93
voltaria a apresentar o mesmo problema. A alegada falta de recursos para uma solução de
omo teremos a oportunidade de ver em detalhes, a
e ocorrência, as febres se
longa duração é algo que deve ser levado em consideração, mas esta, por si só, acaba por
empobrecer a análise, uma vez que tal argumento reforçaria as teses de uma incúria do poder
público em resolver as questões de saúde da população, o que reputo um tanto quanto
enganosas para o período que estamos analisando. Mediante as teorias que defendiam, cabia
sim aos higienistas, médicos e engenheiros o papel de reclamar e alertar para o problema, o
que, de certa forma, produzia também um efeito nas camadas médias e altas da sociedade.
Entretanto, devemos voltar novamente nossos olhos para as crenças populares e verificar se
este entendimento médico-acadêmico sobre as enfermidades era consenso.
De qualquer forma – como hoje sabemos – tal estado ou situação presente na cidade
interferia no organismo causando um sem número de febres e outros males que ceifavam ou
abreviavam a vida dos paulistanos. C
existência do paulistano era breve se comparada com os dias atuais. E se a morte era
antecipada em alguns anos, isso também se devia a determinadas condições presentes na
cidade que interferiam no processo como, por exemplo, o contato com toda essa infecção
presente no meio.
E dentre as doenças que mais atacavam os paulistanos, estavam as já mencionadas
febres (nos seus diferentes tipos) que muitos atribuíam às exalações provenientes das águas
pútridas que corriam e escorriam por toda a cidade. Pela sua grand
constituíam numa das doenças mais temidas em São Paulo:
“Indico que a Intendência Municipal por meio da Comissão de Saúde Pública
dê ao respectivo fiscal os meios de que precisa para a
limpeza e desinfecção
do córrego Anhangabahu, no lugar denominado Miguelzinho, fundos da
chácara da baronesa de Limeira,
onde começam a desenvolver-se febres
palustres.
189
(meu destaque)
Chamadas simplesmente de “febres” até meados do século XIX, paulatinamente elas
deixam essa característica genérica e ganham uma individualização através do vários tipos
possíveis, conforme a observação médica ou o vocabulário do período. Assim, já no final do
século XIX, tínhamos a febre palustre ou paludosa (antigo nome da malária), a febre terçã,
tifóide, inflamatória, intermitente ou remitente e a perniciosa ou “maligna”, dentre muitas
outras. Mas, para o povo comum, morria-se mesmo era de febre.
Em 1860, numa São Paulo cuja população beirava os 25.000 habitantes, ocorreram 461
189 - Indicação apresentada pelo Vereador Hipólito da Silva ao Intendente Municipal. A.C. Sessão do dia
94
mortes. Destas, 441 tiveram as suas causas especificadas:
Já em 1872, as
a lado a mesma
quantid
1º - Vermes / verminose 57 casos
2º - Febres 53 casos
3º - Hidropesia 37 casos
4º - Tuberculose 35 casos
5º - Recém-nascidos 30 casos
febres atingiam o primeiro lugar como causa de falecimentos entre os
com a tuberculose e com a “lesão cardíaca”, que apresentarampaulistanos, lado
ade de óbitos. Nos anos de 1882 e 1890, esse quadro não sofreu grandes alterações:
190
Causa mortis entre os paulistanos no ano de 1882
1º - Enterite/entero colite 69 casos
2º - Febres 57 casos
3º - Tuberculose 39 casos
4º - Lesão orgânica 35 casos
5º - Lesão cardíaca 31 casos
Causa mortis entre os paulistanos no ano de 1890
1º - Febres 244 casos
2º - Enterite/entero colite 201 casos
3º - Tuberculose 172 casos
4º - Bronquite/bronco-pneumonia 147 casos
5º - Atrepsia (desnutrição das crianças) 145 casos
Por outro lado vale lembrar que anos mais tarde, já nas primeiras décadas do século
XX, as febres continuav
entre 1908 e 1912 pela
os números de óbito
“moléstias gerais” e a
transmissíveis”, na qu
am a ser muito temidas pela população. Num levantamento realizado
antiga Diretoria Geral de Estatística do governo federal, encontram-se
s por moléstias, estes divididos em duas grandes categorias: as
s “localizadas”. Dentre as gerais, destacamos o grupo das “doenças
al somamos (deliberadamente) os casos de
febre tifóide e os de febre e
caquexia palustre.
191
Os números são os seguintes:
15/01/1890, pg. 09
190 - Os dados apresentados nas tabelas foram coletados junto aos “Livros de Inumação” ou Registros de
Sepultamentos do Cemitério da Consolação, Acervo do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, com base os
anos de 1860, 1872, 1882 e 1890.
191 - “Annuario Estatístico do Brazil 1908-1912”; Ministério da Agricultura Indústria e Commercio, Rio de Janeiro,
95
1908
1909 1910
1º - Tuberculose 381 casos
2º - Varíola 183 casos
3º - Sarampo
Febres
76 casos
76 casos
4º - Gripe 43 casos
5º - Sífilis 37 casos
1º - Tuberculose 426 casos
2º - Febres 89 ca
1º - Tuberculose 456 casos
1911 1912
2º - Sarampo 79 casos
sos
3º - Sarampo 87 casos
4º - Gripe 56 casos
5º - Varíola 48 casos
3º - Febres 71 casos
4º - Gripe 52 casos
5º - Sífilis 38 casos
1º - Tuberculose 438 casos
2º - Varíola 239 casos
3º - Sarampo 133 casos
4º - Febres 124 casos
5º - Gripe 106 casos
1º - Tuberculose 447 casos
2º - Febres 83 casos
3º - Sarampo 80 casos
4º - Sífilis 59 casos
5º - Desinteria 55 casos
Na São Paulo do século XIX, os médicos insistiam que as febres - como de resto outras
doenças - eram adquiridas através do contato olfativo com os miasmas pestilentos ou,
simplesmente, com o cheiro de matéria orgânica em putrefação. E estas, como vimos,
estavam dispostas em profusão no leito e margens do Anhangabaú, bem como nos seus
afluentes, o ribeirão Saracura e o córrego do Bexiga cujas águas, não raro invadiam mesmo as
residências em épocas de chuvas mais fortes:
Typographia da Estatística, 1916 (não incluídos os casos de febre amarela, inexistentes para o período em São
Paulo). Assumo aqui o risco de agrupar sob a mesma denominação os vários tipos de “febres”, pois entendo que o
saber médico não era assimilado com tanta rapidez por parte da população. Nesse sentido, o ponto de vista que
assumo é o do povo comum: morria-se mesmo era de febre. Cabe observar que de tal maneira se fazia presente o
medo das “febres” em São Paulo que criou-se mesmo o forte designativo de “febre paulista” para qualificar um
tipo de enfermidade muito comum e temida na cidade, “causadora de estados febris de longa duração,
debilitamento e, em alguns casos, diarréias e outros sintomas” (Luiz Antonio Teixeira). Explicada simplesmente como
“febre paulista” até finais do século XIX, a doença foi tema de um aguerrido debate, em 1897, na Sociedade de
Medicina e Cirurgia de São Paulo, pois para alguns médicos tratava-se de febre tifóide e, para outros, de malária. Ver:
Teixeira, Luiz Antonio; As febres paulistas na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo: uma controvérsia entre porta-
96
“... falleceo hontem de febre na cadeia d´esta cidade, Francisco, preto Africano de vinte annos escravo
que foi de Francisco de Albuquerque da Silva, foi sepultado hoje, ao primeiro de setembro de 1859, no
quadro commum do Cemitério Municipal. E nada mais se continha na guia do Rev. Cura da Sé”
“... foi sepultado no quadro commum do Cemitério Municipal (...) Silvestre, mulato natural da Bahia,
de dezesseis annos, solteiro, escravo de José Antonio Lima, morador d´esta cidade onde
falleceo
hontem de febre e sepultado hoje quatorze de Setembro de 1859. E nada mais se continha na guia do
Rev. Cura da Sé”
“...
falleceo hontem de febre no Hospital de Caridade, Maria Joaquina, natural desta cidade de
cincoenta annos, livre, solteira, filha de Gertrudes Maria do Nascimento e sepultada hoje, aos vinte e
seis de dezembro de 1859, no quadro commum do Cemitério Municipal. E nada mais se continha na
guia do Rev. Cura da Sé”
192
(meus destaques)
Soube-se bem mais tarde que muitos desses casos poderiam ser classificados como
sendo de febre tifóide e que tal moléstia é “causada por uma enterobactéria do gênero
salmonela, o bacilo S. typhi, que penetra pela via digestiva e começa a se multiplicar no
intestino, propagando-se pelo sangue. A doença é transmitida pela água contaminada por
dejeções e por alimentos que se comem crus.”
193
Mas, até finais do século XIX, os médicos
identificavam este e outros males como provenientes dos miasmas, sendo estes os grandes
por mau
c os
“odores pestilentos”. De qualquer forma – e podemos “dizer que a
hipótese dos miasmas foi uma das mais importantes e úteis teorias médicas de todos os
tempos, embora estivesse errada.”
194
o obstan diversas reclamações
que chegavam ao poder público, o fato é que s queixas contra a situação presente no Vale do
Anhangabaú eram, em
tadores da morte. Assim, as recomendações eram sempre no sentido de evitar-se o
heiro, afastar-se de locais onde estavam em decomposição material orgânico, temiam-se
numa análise positiva –
te as análises que procedi anteriormente a respeito das
a
grande medida, motivadas pelo medo de alguns moradores frente à
possibilidade de se adquirir alguma moléstia. Em diversos documentos daquela época este
receio aparece de modo bastante claro como, por exemplo, num abaixo assinado dos moradores
do Largo do Riachuelo elaborado em 1884 e solicitando providências “contra o mau estado em que
se acha o córrego Anhangabahu que, em aberto, atravessa aquele largo, prejudicando a salubridade
pública com os depósitos de materiais imundos que ali depositam.”
195
Tendo em vista a não solução do problema, o receio da população diante das “águas
assombradas” do Anhangabaú só fez aumentar e transformou-se em pavor cinco anos depois
quando, então, a epidemia de febre amarela atacou de modo virulento algumas cidades do
interior. Momentos de crise, a eclosão de epidemias obrigava a que o governo tomasse (ou
discutisse) medidas para debelar o mal e, nesse caso da febre amarela, para a sua prevenção
vozes de diferentes saberes; História, Ciência, Sde Manguinhos, vol. 11 (suplemento 1), 2004.
192 - Livros de Inumações do Cemitério da Consolação, vol. 01, 1859, p. 72 verso, 74 e 89 verso, respectivamente.
193 - Teixeira, Luiz Antonio, op. cit.
194 - Martins, Roberto de Andrade; Tradição e Inovação na Microbiologia: Lemaire e os miasmas.
97
em São Paulo. Por isso, no dia 30 de abril de 1889, o vereador Silveira Motta pediu prioridade
para a discussão de medidas urgentes e “de salvação pública” a serem tomadas frente “o estado
calamitoso das cidades de Santos, Campinas, Descalvado, Rio Claro e outras assoladas por epidemias...”
196
Nessa situação de calamidade onde milhares de vidas foram ceifadas em importantes municípios
paulistas, o pânico alastrou-se pelas ruas da capital e atingiu, literalmente, o famoso ribeirão.
Aquele que, há anos, já estava sendo apontado como um dos maiores problemas da cidade, foi
eleito, agora, como o ponto mais crítico diante da catástrofe que parecia iminente:
“A pedido de urgência (...) entra em discussão a seguinte indicação: Tendo de
se reunir a 20 do corrente a Assembléia Provincial, convocada especialmente
com o fim de tratar de medidas hygienicas com relação, não só ás cidades
flageladas pelas epidemias reinantes, como em geral a medidas de hygiene
pública, indicamos que,
no intuito de preservar de uma possível propagação
nesta capital de epidemias, como as que infelizmente ora tanto lastimamos
vizinhas, se represente a Assembléia, pedindo uma verba nas cidades
sufficiente para
a cobertura do corrego Anhangabahú, na parte que atravessa
o centro da cidade até tresentos contos de réis, attendendo que
este corrego
com os despejos de toda a sorte que ali se fazem pode tornar-se em perigoso
fóco de infecção. - Sala das sessões, 09/05/1889 - João Augusto Garcia,
otta, Approvada”
197
(meus destaques)
1890,
por exemplo, foram anotados apenas 05 (cinco) casos de óbitos tendo como causa a febre
amarela - não obstante outras 40 (quarenta) mortes terem sido classificadas como resultantes
e febre perniciosa que, como desconfia-se, poderiam ser de febre amarela mas, para não
ausar pânico (ou mesmo para esconder o problema), eram citadas com esta denominação e,
milhares de óbitos ocorridos em Campinas, por exemplo. Nessa situação, logo o projeto de
Silveira da M
Entretanto, a epidemia de 1889-1890 não atingiria a cidade com tanta força. Em
d
c
anos antes, como febre maligna. De qualquer forma, esses números não chegavam perto dos
tapagem do Anhangabaú foi esquecido.
Porém, não demoraria muito para que, novamente, as suas águas fossem qualificadas
como perniciosas e causadoras de doenças. Em 1892, algumas vozes se levantaram contra um
dos afluentes do famoso ribeirão, o córrego do Saracura. Dentre elas, estava a do respeitado
médico Bráulio Gomes que, naquela época, fora eleito para a Câmara Municipal de São Paulo.
Com trabalhos reconhecidos publicamente, o Dr. Bráulio atuara em Campinas por ocasião da
epidemia de febre amarela e, anos antes, havia estudado e clinicado Paris e Viena. Por tudo
isso, sua opinião era ouvida com muita atenção pelos seus pares. No dia 11 de agosto de 1892
não foi diferente e ele, subindo à tribuna proferiu o seguinte discurso:
195 - A.C. Sessão do dia 01/10/1884, p. 167.
196 - A.C. Sessão do dia 30/04/1889, p. 148 e 149.
197 - A. C. Sessão do dia 09/05/1889, p. 159
98
Como médico, venho trazer ao conhecimento desta Intendência o lamentável
estado em que se acha o corrego Saracura
sendo um foco constante de infecções
palustres sob a sua mais grave forma oferecendo dessa sorte perigo iminente
aos que habitam as proximidades daquelle corrego. Como intendente indico
que se mande orçar a cobertura do modo mais vantajoso e com a mesma
urgencia se mande fazer a obra antes da estação calmosa para que a esta
Intendência não caiba a responsabilidade de permanecer tal foco de infecções.
Sala das Sessões 11/08/1892 - Braulio Gomes – Aprovada”
(meu destaque)
198
Apesar de opinião tão abalizada, praticamente de nada adiantaram as severas críticas
do médico. Alguns orçamentos foram preparados, concorrentes se apresentaram para a
realização dos trabalhos mas, concretamente, pouco foi feito.
Não obstante o fato de ter sido considerado como um verdadeiro foco de infecções e
um local que amedrontava os moradores pelo mau cheiro que exalava, as soluções
apresen
do ribeirão, o fato é que o
aberto pela cidade. A solução para o “imundo regato”, como havia classificado Bernardo
do século XX, época em que um belo
rdim ao estilo europeu tomou conta do lugar. Desde então, o rio encontra-se escondido em
tubulações subterrâne
assombradas” teimam
túneis ali construídos. A
tadas para o caso Anhangabaú esbarravam em diversos obstáculos como, por exemplo,
a propriedade particular dos terrenos no entorno do ribeirão. Os quintais das casas, tanto os
da Rua Formosa quanto os da Líbero Badaró, estendiam-se até as suas margens e seus
moradores faziam uso de suas águas. Esse aspecto da questão gerava, inclusive, uma certa
indefinição quanto caráter público do rio, cujo domínio era atribuído ora ao Estado, ora aos
residentes às suas margens.
199
Seja por problemas como a falta de dinheiro para tão dispendiosa obra, seja por aspectos
que envolviam questões como o uso do leito e das águas
Anhangabaú, por décadas, esteve a desafiar quaisquer intervenções na sua passagem a céu
Guimarães, somente ocorreria nas primeiras décadas
ja
as, mas vez ou outra - e sempre na “estação pluviosa”, as suas “águas
em reaparecer sob a forma de inundações que hoje ocupam os modernos
pior delas, por sinal, ocorreu no dia 1º de março de 1999, quando levou
vereador Bráulio Gomes proferido na Sessão da Câmara Municipal do dia 11/08/1892,
O Doutor Bráulio Joaquim Gomes nasceu em Barra Mansa (São José do Turvo), R
198 - Discurso do médico e
A.C., exemplar manuscrito.
25/02/1854. Médico, estudo
Campinas onde, entre 1889 e
Recebeu do povo campineir
fundador das Escolas de Farmácia, Odontologia e Obstetrícia, em 1898, e também da Maternidade de São Paulo em
1894. Foi vereador da primeira câmara republicana de São Paulo. Faleceu em São Paulo aos 06/12/1903.
199 - Essa ausência clara de limites apresentou-se de forma bastante explícita em algumas ações do próprio
governo municipal, cujos membros não se entendiam a respeito das atribuições de cada uma das partes
envolvidas: a pública e a privada. Em 1877, por exemplo, o vereador Luiz Pacheco de Toledo pediu para que a
Câmara mandasse “roçar o mato das margens do rio Anhangabaú”, transparecendo aqui o fato de que a
municipalidade era a responsável pela tarefa de conservar um bem público. Aprovada a indicação, um fiscal ficou
encarregado de dar cumprimento à ordem. Porém, dois dias depois, o mesmo funcionário informava “haver
intimado os proprietários e moradores dos prédios por cujos quintais corre o córrego Anhangabaú para roçarem as suas
margens, e limparem o seu leito na parte que lhes tocar” (A. C. 09/01/1877, p. 13 e 11/01/1877, p. 15), ou seja, partes
do ribeirão foram consideradas como propriedades privadas. Permeando todo esse processo estava a indefinição
.J. , aos
u e clinicou nos hospitais de Paris e Viena; regressando ao Brasil, passou a atender em
1890, prestou serviços no combate da febre amarela tendo, inclusive, contraído a moléstia.
o uma medalha de ouro em gratidão pelos trabalhos prestados. O Dr. Braúlio Gomes foi o
99
consigo inúmeros auto de muitas pessoas. móveis e colocou em risco a vida
Fig. 16
O Vale do Anhangabaú com o ribeirão já retificado, mas correndo a céu aberto em 1900.
Destaque para os quintais da Rua Formosa (à direita) e os da Rua Líbero Badaró (à esquerda).
Ao fundo o primeiro Viaduto do Chá, inaugurado em 1892.
de que falamos, certamente um sério obstáculo para qualquer plano de saneamento no local.
100
Fig. 17
O mesmo Vale do Anhangabaú, agora no ano de 1927.
Nada mais enganador do que supor que, em poucos anos, o Anhangabaú tenha sido
“domado” e o seu Vale, de local infecto, tenha se transformado em belos jardins. O fato é que,
desde o século XVIII pelo menos, ele já estava a desafiar os administradores da cidade,
transformado que foi num palco de conflitos e disputas. Algumas parcelas da sociedade, por
sua vez, ao mesmo tempo em que nutria um pavor pelas suas águas assombradas, entendia que
o ribeirão era uma solução (às vezes a única possível) para o descarte de toda a sujeira que
produziam. Certamente que ele foi um perigo para as pessoas, pois suas águas infectas
causavam uma série de doenças que poderiam causar a morte. Mas, mesmo levando em
consideração os problemas como a propriedade das terras, a falta de verbas, ou de
conhecimentos específicos para sanar o problema, podemos conjecturar – e isso pelo longo
tempo decorrido – que
inevitáveis já que parte
sua presença marcada
Anhangabaú infecto o
Mas por outro lado, e t
uma das linhas de ação visando a neutralizar possíveis danos à população, concretizou-se nas
várias ações de limpeza do ribeirão, na tentativa de se proibir o descarte de lixo em seu leito
ou mesmo na sua cobertura. Essas ações, é fácil perceber, estavam sendo realizadas com o
as doenças e a morte eram tidas, pela grande maioria, como tragédias
da vida. Em outras palavras, no cotidiano do século XIX a morte tinha
, era certa e infalível e, talvez por isso mesmo, não importava um
u não, pois ela viria inexoravelmente até como um desígnio de Deus.
endo em vista os conhecimentos da época, percebemos claramente que
101
intuito de proteger a p
eram parte daquilo qu
aqui certamente pensa
políticas (não com esse
do século XIX é que o E
a morte ora no mundo sobrenatural, ora nos fugidios miasmas, na matéria orgânica que
políticas, portanto, tinham suas ações definidas mediante os conhecimentos e
Na manhã do dia 25 de abril de 1883, os paulistanos acordaram sobressaltados. Os
avisos de que algo de muito grave havia ocorrido na cidade começaram a “correr” de boca
em boca com o alarme dado pelos moradores das áreas ribeirinhas ao Tamanduateí. Alguns
operários que começavam seus trabalhos nas oficinas da estrada de ferro e vários pescadores
residentes nas imediações do Pari foram os primeiros a se espantar com o triste espetáculo:
boiando no leito do rio estavam centenas, talvez milhares, de peixes já mortos e outros tantos
se debatendo. Imediatamente, o burburinho atingiu o centro da cidade. Do terraço localizado
na colina histórica do Pátio do Colégio, vários curiosos se aglomeravam e, ato contínuo,
desciam as encostas na direção da Rua 25 de Março para melhor se inteirar do desastre que
atingia a cidade de São Paulo. A pouca distância dali, dos lados da Ladeira Porto Geral, mais
e mais pessoas se juntavam: foi justamente naquela região que a tragédia havia começado e
onde a quantidade peixes mortos era maior. Mas, e o que teria causado tamanha fatalidade? -
perguntavam atônitos os paulistanos.
Em busca de informações mais consistentes para os seus jornais, os vários repórteres
ali presentes se aproximaram dos moradores da antiga Várzea do Carmo, atual Parque D.
opulação dos males, das doenças e da morte. Mais ainda, essas ações
e os médicos chamariam mais tarde de “políticas públicas de saúde”, e
ndo também na prevenção aos males. Ressalto mais uma vez que tais
nome, é claro), sempre existiram; a diferença para a segunda metade
stado, aqui representado pela Câmara e seus vereadores, localizavam
apodrecia. Tais
circunstâncias de cada época.
De qualquer forma a existência do ribeirão Anhangabaú a céu aberto na cidade, não
obstante os danos que causava à saúde, era considerada como essencial. Eis aqui o paradoxo
cujas nuances tentei recuperar.
Todavia, este não era o único local perigoso da cidade. No século XIX, outras regiões
também possuíam essa mesma característica, inclusive um outro rio e sua várzea.
Capítulo 3 – A pestilência na várzea e no Tamanduateí
102
Pedro II. Claro, eles tinham uma história para contar e conheciam muito bem os fatos que
levaram ao “acidente”.
Para entender as razões que levaram ao desastre daquele fatídico 25 de abril de 1883,
precisaremos recuar no tempo, cerca de vinte anos antes, quando tudo teve início. E, ironia do
destino, o triste espetáculo que todos presenciavam naquele momento estava relacionado
com uma grande conquista da “modernidade”: os lampiões de gás. Vamos tentar nos inteirar
daquela situação.
O avanço tecnológico em São Paulo a partir da segunda metade do século XIX foi algo
surpreendente.
200
Além da inauguração da ferrovia em 1867, a cidade ganhou também, em
1872, um moderno sistema de iluminação a gás. Para que isso fosse possível, foi construída,
em 1870, uma fábrica de gás (o Gasômetro) na antiga Várzea do Carmo, localizada
estrategicamente às margens do Rio Tamanduateí.
201
Este rio, por sinal, era de grande
importância para os moradores da cidade que dele se utilizavam para navegação, pesca,
lavagem de roupas, e mesmo para o abastecimento em épocas de estiagem quando, então,
secavam os chafarizes da cidade.
produziu um
“GASÔMETRO – Realizou-se explendidamente a experiência da iluminação a
ainda a
hor possível. Na frente do
edifício, estavam as armas imperiais, formadas de luzes de diversas cores que
A troca dos antigos lampiões de querosene (ou de óleo) pelos combustores a gás
a reação imediata na comunidade:
gás neste estabelecimento, na noite de 6. A luz, apesar de não ter
perfeição desejada pelos empresários, é a mel
ofereciam uma vista deslumbrante. A concorrência de povo, não obstante o
mau tempo, foi imensa, e os empresários não se pouparam em dar
explicações e mostrar tudo àqueles, dos espectadores, que desejavam ver tão
importante estabelecimento,que, podemos dizer, já é uma realidade em São
Paulo. Dando esta notícia, aproveitamos o ensejo para consignar aqui os
nossos emboras ao Sr. Francisco Taques Alvim a quem deve a nossa capital
tão importante melhoramento.”
202
Iluminado inicialmente apenas o centro da cidade, logo os moradores de outros locais
passaram a exigir que também suas ruas e bairros recebessem esse melhoramento. Os
200 - Uma excelente análise sobre esse período na história de São Paulo, as novidades e os seus significados na
vida da cidade pode ser encontrado em Morse, Richard M.; De Comunidade a Metrópole, 1954, especialmente no
Capítulo III: “Surge a cidade organismo – período de espectativas”; numa outra perspectiva, ver Matos, Odilon
N. de; Café e ferrovias, S.P.: Arquivo do Estado, 1981. As implicações desse mesmo processo na gestão da cidade e
na política urbana podem ser vistos em Rolnik, Raquel; A Cidade e a Lei – Legislação, política urbana e territórios na
cidade de São Paulo”,1997.
201 - O edifício do antigo Gasômetro ainda existe no mesmo local, sendo hoje mais conhecido como “Casa das
Retortas”.
202 - Jornal “Diário de São Paulo”, edição do dia 09/01/1872.
103
lampiões, que no início eram um luxo, passaram a ser uma necessidade. Porém, a
Vale
lembrar que a fábrica de gás utilizava coque como matéria prima, o qual, ao ser manipulado
no estabelecimento, ge
Não obstante a
a nova iluminação a gá
mas por outro lado, o
Sem resolver
desastre. As águas do
peixes foram as vítim
“morto”.
mensões trágicas desse acontecimento, a imprensa paulistana registrou e
denunc
muito peixe. É condemnavel o procedimento, tanto mais que ha posturas
pela
Tamanduateí. Mas, até então, não se supunha que algo de mais grave pudesse ocorrer.
Um outro periódico que se ocupou do acidente foi o “Correio Paulistano” que assim
descreveu o episódio:
modernidade trouxe consigo um problema para os paulistanos. No dia 05 de dezembro de
1881, por exemplo, foi lido na Câmara Municipal um abaixo-assinado de vários moradores da
rua do Gasômetro que reclamavam “ contra um depósito que faz a Companhia do Gaz, de piche e
outras matérias em uma valla que existe em terrenos próximos ao estabelecimento da mesma
Companhia.”
203
Problema não resolvido, em fevereiro de 1882 os mesmos moradores
novamente se manifestam contra “o abuso da Companhia do Gás de lançar no vallo existente na
rua, piche e mais matérias que produzem miasmas insalubres, e prejuízos aos supplicantes”.
204
rava resíduos como o alcatrão e piche.
s reclamações da população local, o caso não teve solução. Certamente,
s não poderia ser interrompida sob risco de protestos gerais na cidade,
que fazer com o lixo do Gasômetro?
o problema, a descarga aumentava dia-a-dia, até que sobreveio o
Rio Tamanduateí, não mais suportando o atentado, sucumbiram. Os
as da primeira hora; anos depois, seria o próprio rio que estaria
Pelas di
iou de forma contundente aquele que teria sido o primeiro grande desastre ecológico
ocorrido na cidade de São Paulo. Já na manhã do dia 26 de abril, “A Província de São Paulo”
estampava em uma matéria interna:
Mortandade de peixes - Do Gazometro foi hontem atirada ao rio
Tamanduatehy uma porção do residuo do gaz, o que produziu a morte de
municipaes a este respeito. Ahi fica o facto, que aliás já não se dá
primeira vez, competindo a quem de direito dar providencias.”
205
De fato, como dizia a reportagem, não era a primeira vez que isso ocorria, pois como
vimos, desde 1881 a população ribeirinha já denunciava o descarte de pixe no rio
203 - A. C., sessão do dia 05/12/1881, p. 224.
204 - A. C., sessão do dia 13/02/1882, p. 40.
205 - “A Província de São Paulo”, edição do dia 26/04/1883, Arquivo do Estado de São Paulo.
104
“Hontem, no rio Tamanduatehy desde o porto da varzea do carmo, em que
desagua naquelle rio um canal que passa ju
escoamento do pixe e de outros residuos
nto ao Gazometro, e destinado ao
da fabricação do gaz,
veio á tona
d´agua enorme quantidade de peixes mortos, sendo esse facto geralmente
atribuido a excessiva porção de pixe deixada escoar do gazometro.
É bem ver
que não faltaram pescadores de occazião para recolher os peixes mortos e
prodozil-os á venda na cidade. A ser verdadeira a causa que ouvimos apontar
da morte dos peixes, seria de desejar que a Camara Municipal tratasse de
syndicar do facto.
Não nos faltava senão esta: a Companhia de Gaz, que não
nos dá luz, mata-nos agora os peixes. Quando será o gerente da Companhia
condecorado pelo governo?”
(meus destaques)
Ironias à parte, o “Correio” apontou uma outra questão, con
206
seqüência direta da
tou que “com urgência os fiscais
rocura
a dar explicações. Dois dias depois do ocorrido, o jornal “A Província de São Paulo” voltou a
tratar do assunto:
“Sobre a materia que demos hontem, de haver a Companhia de Gaz, com um
tragédia, e muito importante para a saúde dos paulistanos, ou seja, a de que alguns
pescadores (a maioria deles residentes no bairro do Pari) se aproveitaram do ocorrido para,
facilmente, apanharam os peixes na intenção de vendê-los na cidade.
Chamada a atenção, os membros da Câmara Municipal se manifestaram. Tratando o
caso com um certo cuidado, o vereador Ribeiro de Lima solici
(p ssem) saber quem foi que hontem (dia 25) lançou no Rio Tamanduatehy objectos immundos ou
outra qualquer substancia de que resultou a destruição de uma grande quantidade de peixes
existentes nesse rio.
207
Por outro lado, o vereador Gabriel Franzem foi mais explícito e
acusou diretamente a Companhia de Gás, exigindo que a diretoria da mesma fosse intimada
desembaraço e falta de asseio inqualificaveis lançado ao rio Tamanduatehy os
residuos da sua fabrica,
ocasionando assim a destruição quasi completa de
quanta criação de peixe que havia no referido rio, temos tido queixas de
innumeros individuos, uns revoltados pela maneira porque n´esta nossa terra
se pula por cima da lei, sem receio do merecido correctivo,
outros
prejudicados seriamente nos seus interesses, pois da pesca tiravam e tiram os
parcos meios de sua subsistencia. Cumpre que se ponha de uma vez por
todas um paradeiro a estas constantes e manifestas infracções da lei, que se
estão reproduzindo entre nós num crescendo assustador. Ha posturas da
Camara Municipal, ha, se bem nos recorda, uma multa estabelecida pelo
fallecido senador Florencio, quando presidente, e imposta aos que
estabelecerem nos rios
parys, cevados, aos que se servirem de dynamite na
pesca e aos que lançarem nos rios substancias venenosas. Applique-se a lei. -
é o remédio único aconselhado em taes circunstancias, mas aplique-se a
qualquer infractor, seja elle ... a Companhia de Gaz. Naturalmente d´esta,
206 - “Correio Paulistano”, edição do dia 26/04/1883, Arquivo do Estado de São Paulo.
207 - A. C., sessão do dia 26/04/1883, p. 127 e 128
105
como das demais vezes, fica tudo como d´antes. Bem bom !”
208
(meus
destaques)
Instada pelos vereadores da Câmara Municipal, e também pela imprensa, a diretoria
da Fábrica de Gás foi obrigada a manifestar-se. Através de um ofício, assinado pelo gerente
da companhia, a empresa explicava e reconhecia o fato “de terem sido lançados no rio
Tamanduathey alcatrão e resíduos da fábrica, motivando a morte dos peixes. Mas, ao mesmo
tempo, declarava que tomaria as providências para que isso não mais ocorresse, e
aproveitava “a ocasião para oferecer à municipalidade alguns resíduos da fábrica, como o alcatrão,
para serem oportunamente aproveitados como desinfetante poderoso a bem da salubridade de seus
munícipes”. Após um parecer do médico da Câmara, a oferta foi aceita.
209
E assim foi ... o primeiro grande desastre ecológico e uma das etapas da destruição do
Rio Tamanduateí ocorreu em 1883. E tudo por conta da iluminação à gás. Era a
“modernidade” chegando em São Paulo ...
aulo”, edição do dia 28/04/1883, Arquivo do Estado de São Paulo. Na reportagem, a
pary” é bastante significativa. Originalmente um instrumento de pesca, consistia num
ara que era lançado em determinados pontos do rio de margem a margem.
208 - “A Província de São P
menção ao termo indígena “
trançado de cipó ou taqu
Posteriormente, esta armadilha foi proibida. Porém, o seu nome permaneceu na cidade, designando o local onde
residia a comunidade de pescadores, atual bairro do Pari.
209 - A. C., sessão do dia 23/05/1883, p. 153. O alcatrão, extraído do carvão de pedra (coque), já havia sido
estudado em 1860 pelo químico francês François Jules Lemaire, que dele extraíra um preparado anti-séptico muito
utilizado no Brasil, a “creolina”. Veja Martins, Roberto de Andrade op. cit.
106
Fig. 18
881. À esquerda o Rio Tamanduateí e a Rua 25 de Março. À direita, as
m o nº 29), bem como o aterrado e a Rua
do Gazômetro. Entre o rio e a fábrica de gás, vemos o canal que foi
A Várzea do Carmo em 1
instalações do “Gazômetro” (identificado co
utilizado para o despejo dos resíduos.
Fig. 19
Rio Tamanduateí na altura do “Porto Geral” e Várzea do Carmo por volta de 1862,
numa vista tomada do Mosteiro de São Bento.
Tamanduateí já se fazia notar há tempos. Desde os primórdios da cidade, por exempl
Não obstante este acontecimento, a presença de pestilências na várzea e no rio
o, o rio e
estavam colocados pelo menos dois grandes “esterquilínios”, um na altura da atual Av.
Rangel Pestana – então chamado de buracão do Carmo - e outro nas imediações da Ladeira do
Porto Geral. Essa prática, que já era um costume secular, foi, inclusive, regulamentada no
ano de 1790. Naquela oportunidade, um edital da Câmara estabelecia que “os moradores da
rua do Colégio, Largo da Sé, rua das Flores e do Convento do Carmo deveriam realizar seus
despejos de lixo no buracão que se acha fronteiro do Convento dos Carmelitas, junto à
estrada que vai para a ponte de baixo do mesmo Convento; e que os moradores da rua do
Rosário dos Pretos, Boa Vista e São Bento, deveriam fazer o mesmo despejo no buraco que se
acha junto ao caminho que vai para Tamanduatehy, fronteiro ao quintal amurado do Padre
sua várzea (então chamada de Várzea do Carmo) já eram utilizados para o descarte de parte
dos resíduos e do esgoto das residências que lhe ficavam próximas. Nas suas margens,
107
Ignácio de Azevedo Silva”
210
O rio servia muito bem a este propósito. Com um volume de água bastante superior
o seu congênere, o Anhangabaú, o Tamanduateí melhor se prestava ao trabalho de dissolver
ato contínuo, encaminhá-las para bem
ea estavam num território
espeito de ocupar uma posição contígua ao núcleo urbano, logo
mara mandou publicar, destinando ao publico
ra despejos dos lixos, e imundícies
a
as impurezas produzidas pelos habitantes da cidade e,
longe das vistas. Além disso, tanto o rio quanto a sua várz
considerado “ermo”; e isso a d
após as escarpas da colina, à leste. Tendo em vista esta conformação, era o Tamanduateí e a sua
planície - muito mais do que o Anhangabaú - o local ideal para os despejos da cidade:
“Registro do Edital que a Câ
logares baldios pa
. Fazemos saber a todos
General
a Câmara pelo qual nos recomenda
a conservação da limpeza das mesmas:
que este
Senado passa a destinar, afim de cessar este procedimento contra a dita
os moradores desta cidade, que pelo officio do Ilmo. e Exmo. Senhor
do Primeiro do presente mês dirigido a est
o aceio das ruas desta cidade e
mandamos a todos os sobreditos moradores tenham suas testadas sempre
limpas, isentas de todo e qualquer lixo, que será lançado em logares,
limpeza, a saber: (...)
no terreno que fica além da última casa pertencente ao
Mosteiro de São Bento – no terreno próximo ao rio Tamandatahi que fica nos
fundos das casas do tenente coronel Antonio Maria Quartim –
no buracão do
Carmo no logar imediato á primeira casinha pertencente a este Conselho...“
211
(meus destaques)
Chamo a atenção para o fato de que, na década de 1820, toda aquela região ser ainda
considerada como uma área baldia da cidade. De fato, aqui teremos que voltar nossos olhos
para a questão da ocupação dos espaços por uma população que beirava os 20 mil habitantes
principalmente por chácaras, bem como o do Pari, que abrigava uma comunidade de
em todo o município. Os que residiam na área urbana – na chamada colina histórica - eram
em número bem menor, cerca de 5 a 6 mil moradores.
212
Os demais se dividiam em núcleos
como os do Brás, Pari e Santa Ifigênia, mais próximos, e os da Penha e da Freguesia do Ó,
mais distantes. Daí, portanto, a ocorrência de grandes vazios bem ao lado da cidade.
A várzea do Tamanduateí estava a meio caminho entre o que poderíamos chamar de
centro da cidade e o incipiente núcleo do Brás que, naquela época, era ocupado
210 - Ribeiro, José Jacintho; op. cit.
211 - Registro Geral da Câmara de S.P., Vol. XVI, 1820-1822, p. 131 e 132, S.P., Arquivo Municipal, 1922.
212 - A esse respeito ver Marcílio, Maria Luiza; “A cidade de São Paulo: Povoamento e População (1750-1850),
especialmente terceira parte, capítulo I, “A Estrutura da população”, p. 102 e 103. No estudo, Marcílio aponta os
problemas decorrentes dos recenseamentos globais para São Paulo que incluíam a população dos diversos bairros
limítrofes. Nesse sentido, aponta a autora, no ano de 1836 a população total do município era de 21.933 habitantes.
Mas, na área central residiam apenas 5.568 moradores. Os demais se dividiam entre o Brás (669 hab.), Santa
Ifigênia (3.064), Penha (1.206), Freguesia do Ó (1.779), bem como em bairros mais distantes e integrantes do
município de São Paulo como São Bernardo, Juqueri (atual Mairiporã), Guarulhos e Cotia. A grande população de
Santa Ifigênia (3.064 habitantes) é explicada pela extensão que este bairro possuía, abrangendo toda a parte norte e
ultrapassando mesmo os limites de Santana, depois do Rio Tietê.
108
pescadores. É certo, portanto, que as bordas da várzea já eram habitadas, e isso a despeito dos
fugidios miasmas condenados pelos médicos e higienistas.
E é justamente por conta dessa ocupação que necessário se faz introduzir a questão do
parcelamento e loteamento daquela região da cidade já que, bastante imprópria para a
habitação, a mesma foi ocupada majoritariamente pelos mais pobres. Da conjugação desses
uena taxa. Colocava-se apenas uma condição: que a casa fosse construída em 6 meses,
pois caso contrário a po
Em 1859, por e
distribuído muitas dat
várzea, na altura da
algumas reclamações
terrenos dados a diversos no lugar denominado
Lava-péz, deixando do lado de cima a largura de vinte palmos, e do lado da
fatores, as doenças e as mortes logo se fizeram presentes. Mais ainda, proponho descrever
rapidamente o processo de especulação que se fez presente na várzea em meados do século
XIX e que partiram justamente das suas bordas, dos dois núcleos contíguos: Brás e Pari. Os
terrenos públicos, pelo menos aqueles mais secos e que poderiam ser aproveitados para
moradia, tornaram-se desde então o centro de uma acirrada disputa.
Naquela época, era costume a municipalidade destacar lotes das áreas públicas e
concedê-los aos interessados mediante solicitação. Eram as chamadas Datas de Terras que, até
finais do século XIX, foram distribuídas quase que gratuitamente, bastando o interessado pagar
uma peq
sse do terreno voltava para a Câmara.
xemplo, dos lados do Cambuci e do Lavapés os vereadores já haviam
as. Como conseqüência, os arruamentos estavam quase que chegando à
ponte do Carmo, nas margens do rio Tamanduateí. Após receber
de outros munícipes sobre esta “invasão”, os vereadores decidiram:
“... demarcar novamente os
margem do rio mais largura
para servidão pública, e que esta nova
demarcação seja feita na presença de alguns senhores Vereadores.”
213
(meus
destaques).
De fato, entre os anos de 1859 e 1860, havia o risco de toda a várzea (incluindo a área
ue D. Pedro) ser
permitiria que, naquele momento, isso acontecesse: a planície mais próxima da margem
direita do rio sofria com constantes inundações. Não obstante
do atual Parq retalhada em lotes. Porém, uma condição física do local não
as várias ações para dessecar a
uenos canais e tentativas de retificar o leito do rio, as
águas do Tamanduateí espraiavam-se e ocupavam
Esses terrenos úmidos
para moradias e, com
maneira sui-generis.
várzea através da construção de peq
uma grande área a cada estação chuvosa.
, já que sujeitos a enchentes constantes, acabaram sendo desprezados
o conseqüência, a ocupação daquela parte da cidade ocorreu de uma
Ao contrário do que acontecia pelos lados do Anhangabaú (cuja
213 - Relatório da “Comissão Permanente” da Câmara - A. C. sessão do dia 03/11/1859, p. 184. Curiosidade: um
dos vereadores nomeados para verificar essa nova demarcação foi justamente o nosso conhecido Malaquias
Rogério de Salles Guerra.
109
expansão se dava, pa
anta Ifigênia e do Bexi T anduateí existia um vazio entre a colina e os núcleos
e população rarefeita como o Brás e o Pari. Ocupando inicialmente as terras secas, o avanço
das con
muito elevado, representado pela necessidade
onstante de drenagens e aterros que, por sua vez, deram origem ao
aterrado
ulatinamente, na direção centro-periferia a partir do Morro do Chá,
ga) da parte do amS
d
struções, e a conseqüente conquista da várzea, ocorreu na direção contrária, ou seja, da
periferia para o centro. E isso a um custo
c
do Brás pelos anos
de 1860 e ao
aterrado d
Esses trabalho
aqueles terrenos pant l de ser utilizada para construções e, como
a despertar a cobiça de muita gente. De fato, na década
ue nos aproximam dessas questões.
214
outros que lhe possão tocar pelos alinhamentos que pede, e que a Comissão
o Gazômetro na década seguinte.
s, levados a efeito pelo poder público, acabaram por tornar parte
anosos em uma área passíved
já era de se esperar, a várzea começou
de 1850, discutia-se um melhor aproveitamento daqueles terrenos o que, naquele momento,
significava a sua privatização, via parcelamento, em detrimento o uso público que então
vigorava. Mas, que usos eram esses? E, também importante, qual o entendimento que se tinha
das áreas de servidão pública? O embate que ocorreu em meados do século XIX é bastante
esclarecedor e dele podemos retirar alguns elementos q
Em 1859, por exemplo, Caetano Ferreira Balthar, proprietário de uma chácara nas
proximidades da igreja do Brás
, solicitava a aprovação para uma rua que ele mesmo se
incumbia de abrir, desde a sua propriedade até uma determinada ponte (construída pelo
próprio Caetano) que transpunha um dos canais abertos para o dessecamento da várzea.
Além disso, “oferecia” ainda a possibilidade da continuação desta rua que, cortando toda a
planície, encontraria com a Rua Municipal (hoje General Carneiro), do outro lado do rio, já no
centro da cidade. Como iria abrir esta rua parte em sua propriedade e parte em área pública,
ele oferecia para a municipalidade o leito da via que lhe pertencia e porções de terrenos, “em
compensação de algum outro que lhe tocasse por alinhamento e pelos melhoramentos que ali iria realizar”,
declarou o empresário. Em outras palavras, era uma tentativa de privatizar uma área pública.
Tal pedido, analisado por uma comissão de vereadores, recebeu a seguinte resposta:
“(...) entende a Comissão que he conveniente dar-se o alinhamento pedido
para a referida rua. Quanto ao outro alinhamento, entende a Comissão ser
ainda mais vantajozo ao público, huma vez que pelo alinhamento da rua
Municipal se abra huma rua que vá terminar na rua do Pary, visto ser de
grande utilidade aproximar-se a comunicação d´esta Cidade com os
habitantes do Pary, e n´esta hypoteze o terreno que ficar para o lado opposto
a chácara do Suppe., ficará pertencendo a Câmara, em compensação de
214 - Grande proprietário e comerciante na cidade, Balthar possuía uma outra chácara nas imediações da atual
“baixada do Glicério”, entre as ruas Américo de Campos e Barão de Iguape.
110
julga justos.”
215
Nesse meio t
municipalidade se viu
estava sendo objeto de
para o que eles chamav públicos. Estes, por sua vez, se constituíam em terras
ue deveriam ser conservadas para o uso comum dos povos.
216
A preocupação com
sas ár
pansão urbana.
Considerando o problema, resolveu-se definir com mais clareza a natureza e a
extensão dessas áreas,
excessiva ou supérflua qu
a necessidade, diziam
o e ainda segundo os vereadores, já não
oderia mais subsistir de maneira tão ampla e indefinida o velho costume - definido como
- d
empo, e instada por uma consulta do governo provincial, a
obrigada a discutir uma questão premente e que, naquele momento,
muita especulação: a necessidade de se delimitar e reservar espaços
am de logradouros
públicas q
es eas já estava presente na cidade desde 1850, época em que foi promulgada a chamada
Lei de Terras
217
. Porém, em 1859 o caso foi agravado por conta da ex
para que não fossem “diminutas a ponto de não dar préstimo algum e nem
e prejudicasse a maior utilidade pública”. Na base dessa discussão estava
eles, de ocupar as terras que se achavam incultas e abandonadas e que
proveitadas. Por outr lado, poderiam ser melhor a
p
abuso e se considerar como logradouro público tantas terras, simplesmente pelo fato de não
se encontrarem “fechadas por título algum...”
218
o que, nesse caso, as tornariam devolutas.
Ora, a discussão naquele momento continha outros elementos e era mais profunda,
pois ao questionar a utilidade pública das terras ou o uso que os moradores delas faziam,
percebemos que subjacente estava a intenção de uma ocupação via privatização. O choque
não poderia ser maior, pois há séculos, os paulistanos estavam a utilizar os campos de servidão
como as várzeas, margens e leito dos rios para os seus afazeres.
Como forma de regulamentar essa questão através da legislação, determinou-se então
que tais logradouros públicos deveriam ter a “máxima extensão de um quarto de légua quadrada,
215 - Relatório da “Comissão Permanente”, A. C., sessão do dia 03/11/1859, p. 183 e 184
216 - Atualmente define-se “logradouro público” como todo e qualquer espaço utilizado para a circulação de
pessoas e de veículos, tais como o leito de ruas e avenidas, bem como as pontes, viadutos e as áreas de praças e
parques. No século XIX, porém, a definição era outra e entendia-se como logradouro público as terras públicas
utilizadas por um grande número de pessoas nos seus afazeres como a retirada de água, lavagem de roupas,
pastagem de animais, etc., definição esta na qual se encaixava perfeitamente a “várzea do Carmo”.
217 - A Lei nº 601 de 18/09/1850, a chamada Lei de Terras, estipulava em seu artigo 1º que, em todo o Brasil,
determinou o fim do antigo costume das concessões gratuitas. Além disso, estabelecia que “medidas e
demarcadas”, as terras poderiam ser vendidas para empresas particulares. No
que “Os campos de uso comum dos moradores de uma ou mais Freguesias, Município
ficavam “proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra”. Na prática, a lei
§ 4º do Art. 5º, ficou regulamentado
s ou Comarcas serão conservados em
toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a pratica atual, enquanto por Lei não se
dispuser o contrário.” O que se viu, a partir de então, foi uma disputa em torno das terras públicas que se
cristalizou num conflito entre os governos do município e da província pela posse dessas áreas. Por outro lado, os
chamados campos de usos comum não demarcados oficialmente, também poderiam ser "cercados" e vendidos.
218 - Parecer da Comissão Permanente da Câmara, A. C., sessão do dia 18/11/1859, p. 194 a 196
111
ou meia légua em perímetro de campos e várzeas”.
219
Mais ainda, foram definidas as áreas
passíveis de serem res
01 - a Várzea de Santo Am
02 - as vertentes do rio Ipi
3 - a região do rio Pirajuçara;
4 - na Estrada de Jundiaí os chamados Campos do alto do Anastácio (atual Parque Anhanguera e,
ossive
7 - na r
0 - na E
onta do crescimento da cidade e da conseqüente falta de espaços
para co
ervadas para o futuro como campos de uso comum e eram eles:
aro (atual Parque do Ibirapuera);
ranga (atual Parque do Estado e Zoológico);
0
0
p lmente, incluindo a área do Pico do Jaraguá);
05 - os Campos do alto de Santana (Parque da Serra da Cantareira);
06 - na direção de Guarulhos, os Campos do Guapira;
0 egião da Penha o Alto do Tatuapé;
08 - na Estrada da Mooca, os campos e várzeas do mesmo nome;
09 - na Estrada de Santos, os campos do Alto do Ipiranga;
1 strada da Freguesia do Ó, as várzeas do mesmo nome localizadas no rio Tietê.
220
Chama a atenção o fato de que, naquela época, todas essas áreas estavam distantes da
cidade e, dentre elas, a mais próxima era a Várzea da Mooca. E aqui notamos um total silêncio
em relação à várzea do Carmo, esta sim o verdadeiro logradouro público dos moradores, já
que mais próximo da cidade e utilizado pelo povo em diversas atividades. Não pairam
dúvidas de que este silêncio era estratégico, pois não estava nos planos a intenção de deixar a
várzea nessa condição, mas muito pelo contrário promover a sua privatização através da
concessão de terrenos e fomentar o parcelamento das chácaras.
Gestada seja por c
nstruções, seja pela força da ideologia liberal que vicejava nas primeiras décadas após
a Independência
221
, tal decisão, aliada ao projeto de Caetano Ferreira Balthar para a várzea
do Carmo, acabou por provocar na comunidade uma forte reação e, acredito, não esperada
pelos vereadores. Já nos primeiros dias de dezembro de 1858, chegava aos edis “um abaixo
assinado, elaborado por várias pessoas, representando contra a Câmara sobre a concessão de terrenos a
219 - Id. ibidem. ¼ de légua = 1 Km.; ½ légua = 2 Kms.
220 - Id. ibidem
221 - João José Reis, ao analisar a intervenção do Estado nas práticas e costumes da população, escreveu que “A
Independência e as primeiras décadas subseqüentes colocariam no centro da política brasileira a ideologia liberal.
Essa é uma questão bem conhecida. Menos estudados que a manifestação liberal no plano macropolítico foram os
efeitos na vida cotidiana do povo comum. Liberais radicais e moderados, liberais de centro e de fora do poder
visualizaram uma intervenção global da sociedade, com características de um projeto de hegemonia ideológica e
cultural. Nesse nível, o liberalismo se manifestou como uma campanha da civilização contra a barbárie, da cultura
de elite contra a cultura popular, e de uma nova cultura pretensamente européia e branca contra uma definida
como atrasada, colonial e mestiça. A idéia era fazer das “instituições liberais” um mecanismo eficiente de
intervenção nos costumes do povo, sem abandonar uma longa tradição de dominação paternalista. A “instituição
liberal” estrategicamente melhor posicionada para executar essa tarefa foi o Município.” Reis, João José; “A Morte
112
Caetano Ferreira Balthar entre o rio Tamanduateí e a chácara do mesmo.
222
Tamanha foi a celeuma
criada que, imediatamente, a reclamação foi encaminhada para uma comissão dar a sua
resposta. De fato, o caso merecia atenção principalmente porque o documento continha sérias
acusações e, como nunca visto antes, no intervalo de poucas horas o parecer foi elaborado e
lido ... na mesma sessã
Dentre as den
alienação por parte da omo eram os da
te sua transferência para Caetano Ferreira. Após várias considerações a
respeit
esta
o!
úncias contidas no abaixo assinado, a mais grave versava sobre a
Câmara dos terrenos municipais (públicos, portanto) c
várzea median
o dos alinhamentos que seriam feitos, os vereadores rebateram o argumento dizendo
que a transação, de certa forma, importaria em perda de uma área por parte de Caetano e
que, por isso, ele merecia uma compensação. Mas, logo em seguida, lançam mão de uma
argumentação bastante autoritária (hoje podemos dizer) fazendo ver aos reclamantes que,
pelo direito e leis estabelecidas, cabia tão somente à Câmara deliberar sobre este assunto:
“Os signatários da representação não podem desconhecer o direito que tem a
Câmara de dar alinhamentos para a abertura de ruas, e embelezamento das
construções urbanas, dentro dos limites que formam a área que constitui
Cidade a qual compreende as duas próximas Freguesias, e devem convir que
a concessão ou aquisição de terrenos havidos por alinhamentos, é, como está
demonstrado, o resultados d´estes, e convencerem-se por conseqüência que a
sua representação tende a subverter atribuições e deveres por Lei
estabelecidos e impostos às Câmaras, e por isso estão no caso de não serem
atendidos.”
223
Certamente que a acusação contida na representação irritou sobremaneira os
vereadores. Logo em seguida, porém, a discussão que foi travada nos aproxima dos usos que
a população fazia da várzea. Argumentando que o local deveria permanecer na mesma
situação em que se encontrava, colocando-se contra, portanto, ao seu parcelamento em lotes
(ou datas de terra, como se dizia), os reclamantes receberam a resposta de que a
municipalidade estava ali realizando diversas e caras obras que se constituíam
principalmente no
“... dessecamento do terreno e, por conseguinte proporcionando as melhores
condições para se utilizar a várzea que, no estado de alagamento periódico a
que está sujeita, não se presta convenientemente. (...) Ninguém dirá que tais
melhoramentos que a Câmara tem em vista, e está convencida de os poder
realizar, não sejam preferíveis a
conservar a várzea no péssimo e inútil estado
é uma Festa”, S.P., Cia. das Letras, 1991. Ver especialmente Capítulo 11 “Civilizar os costumes”, p. 275.
222 - A. C., sessão do dia 03/12/1859, p.198.
223 - A. C., id. Ibidem, p. 204.OBS: O abaixo-assinado original não foi encontrado. Por isso, as argumentações
contidas no mesmo estão sendo retiradas da própria resposta dos vereadores.
113
em que se acha, como almejam e se desvanecem os signatários de aconselhar
á esta Câmara.”
224
E, talvez tocando no ponto principal que norteou aquele abaixo-assinado,
responderam os vereadores com irritação:
“... e que se alguns se interessam em ter animais soltos na várzea (que está
dentro da área da Capital) não é isto que se deve consentir; não é isto que as
posturas devem permitir; e nem é o que se observa em Cidades bem
policiadas.”
225
(meu destaque)
Nesse mesmo dia, e como que a desafiar os que queriam transformar toda a várzea e
logradouro público, os vereadores decidiram pela concessão de expressiva quantidade
m
de
datas de
m da
várzea
s eram expressivos: de um lado, 181 pessoas pediam pela imediata
terras na várzea, 56 no total, entre os bairros do Pari e do Brás.
226
Mediante esta ação,
as solicitações de terrenos só fizeram aumentar, e de tal maneira que, em janeiro de 1860, os
lotes distribuídos já ultrapassavam o número de 181.
Em meio a todo esse processo de parcelamento da várzea que, inclusive, já ameaçava
chegar às margens do Tamanduateí, vários protestos foram anotados, especialmente dos que
queriam reservar um espaço para uso público. Por outro lado, aqueles que haviam sido
agraciados com terrenos, temerosos que estavam de um retrocesso, também reclamavam da
demora na confirmação das concessões. Naquele momento, cristalizava-se uma disputa
envolvendo a utilização de um espaço que, por séculos, havia sido considerado como de
“servidão pública”, já que aproveitado pelos moradores na sua labuta diária. Os primeiros a
serem atingidos pela medida eram certamente os carroceiros e tropeiros, que se servia
para a pastagem de seus animais e que, também, matavam sua sede no rio. Mais
ainda, esse processo de privatização poderia atingir de forma diferente outros profissionais
como os pescadores, aguadeiros e lavadeiras que da várzea retiravam os parcos recursos para
a sua sobrevivência.
E os grupo
confirmação da posse dos terrenos e, de outro, 125 pessoas citadas como “moradores nas três
freguesias da cidade” escreviam pedindo a “revogação das mesmas datas de terra concedidas na
várzea”
227
Os contrários eram, principalmente, os citados tropeiros e carroceiros que se
224 - Id. ibidem, p. 205
225 - Id. ibidem.
226 - Id. ibidem p. 206
227 - Relatório da Comissão Permanente, A. C., sessão do dia 26/01/1860, p. 23 a 29
114
utilizavam da área para o descanso e pastagem dos seus animais e, com isso, os vereadores
não concordavam:
“Por certo, devemos penalizar que na Capital da Província de São Paulo se
manifeste o pensamento de querer-se converter em pastagens de animais
terrenos dentro e contíguos a área da Cidade, para proveito de alguns
animais (...) com preterição do direito e
necessidade que tem os habitantes
de edificar?”
O projeto de tornar toda a várzea em “logradouro público”, desejo este manifestado
pelos 125 requerentes, foi igualmente rechaçada:
“Em verdade, Snres., a pretensão de se querer considerar as Várzeas do Braz
e do Carmo como terrenos de logradouro da Municipalidade, é
essencialmente não só absurda, como contrária ao interesse da Civilização e
crescimento d´esta Cidade; e o ato desta Câmara que a tal se prestasse, sem
passar pelos trâmites competentes, seria ilegal, e além disso atentatório dos
direitos dos habitantes.”
228
vereador Diogo de Mendonça subiu à
artífices e comerciantes...” uase
exclusivamente a população paulistana.
230
Aqui, e de maneira bastante explícita, nos é
revelada a exclusão de parcela
nem mereceriam ser citadas o
talvez, não exerceriam funçõe
opinião a respeito da várzea e
229
A várzea, que por séculos havia sido considerada como de servidão pública, agora
estava ameaçada pela privatização via distribuição de terrenos – o que realmente veio a
ocorrer nas suas bordas. O embate, porém, envolvendo acusações e duras palavras de ambos
os lados, perduraria ainda por muito tempo, voltando sempre quando os vereadores
resolviam distribuir novas datas. A esse respeito, um último exemplo merecer ser trazido,
pois o mesmo reforça as diferentes características e apropriações que se faziam da várzea, o
que dependia, é claro, da posição que cada um ocupava. No dia 19 de julho de 1860, o
tribuna da Câmara e pronunciou um longo discurso a
respeito do aumento dos aluguéis na cidade e sobre a necessidade de se aproveitar os
terrenos da várzea para a construção de casas para “... o povo, principalmente as classes menos
abastadas...”, sendo estas identificadas por ele como os “... empregados públicos, estudantes,
que, conforme suas palavras, compunham a imensa parte ou q
s significativas, justamente os mais pobres que, para o vereador
u, na sua maneira de pensar,não fariam parte do “povo” já que,
s dignas de serem mencionadas. Mais adiante, ele expõe a sua
confirma a nossa suspeita:
228 - Id. Ibidem
229 - Id. Ibidem
230 - A. C. sessão do dia 19/07/1860, p. 151 a 154
115
“... ignoro a razão porque há de a Câmara conservar a várzea tal como se
acha,
sem proveito digo de ser respeitado e mantido. Diz-se ser ella
necessária para pasto de animais, mas são meia dúzia de cavalos ou bois que
unicamente em tempo seco ali pastam, e eu não sei como seriamente possa
alguém entender que o povo deve sofrer a escassez de casas, a falta de
habitação, afim de que esses animais não sejam desacomodados.”
231
Os pontos de vistas antagônicos que envolviam grande número de pessoas, bem como
as apropriações e significados da várzea para cada uma delas, nos faz ver que uma solução
para o local teria que ser, necessariamente, negociada ao longo dos anos.
pesar da longa exposição aqui realizada sobre a ocupação dessa parte da cidade, a
mesma se fez necessária para
para quem, naquele momento
Tendo em vista a sua c
tortuoso Tamanduateí que lhe margeava, bem como a presença adiante do rio Tietê, que
represava as suas águas em épocas de cheias, o fato é que, não raro, a várzea do Carmo
A
encaminhar uma questão que reputo ser de muita importância:
, a várzea se mostrava perigosa?
aracterística de planície sujeita à inundações periódicas mais o
permanecia cerca de metade do ano inundada.
232
Em tais condições, dava-se como certa a
vinculação dessas águas paradas – medonho viveiro e sepulcro de animais e plantas – com as
doenças que atingiam a população. Não por outra razão, eram constantes as reclamações
contra a umidade presente no local e contra as “... águas represadas (que) inundam as (...)
propriedades, como (também) a mesma vargem, formando estagnos, cuja putrefação
contaminando a atmosphera produzem moléstias como nunca se conheceram nesta
cidade.”
233
(meu destaque).
Desde meados do século XIX, na verdade, estavam os pântanos a desafiar os médicos
e administradores da cidade. Tidos como locais insalubres e fontes de miasmas pestilentos,
mesmo em sua forma natural eles eram considerados como “misteriosos laboratórios de vida e da
morte, (servindo) ao mesmo tempo de berço e de sepultura a muitas plantas, a inumeráveis gerações de
animálculos, apresentam o contraste da imobilidade de suas águas dormentes com a agitação de tantos
entes diversos que abrigam, e como para proteger as orgias de uma criação imunda, repelem o homem,
fazendo em torno de seus bordos a moradia da infecção e da moléstia.”
234
A umidade, as águas
231 - Id. ibidem.
232 - Ver Saint-Hilaire op. cit. e o “Relatório do Presidente da Província” Manoel Felizardo de Souza Mello
apresentado à Assembléia Legislativa de São Paulo aos 07/04/1844, reproduzido em Egas, Eugênio; Galeria dos
Presidentes de São Paulo, vol. I, p. 149.
233 - Representação do Brigadeiro Joaquim José Pinto de Moraes Leite e outro, enviado ao presidente da província
em 1824 e citado na íntegra em Antonio Egídio Martins, “São Paulo Antigo”, p. 65 e 66.
234 - Machado, Roberto et alii; Danação da norma, R.J.: Graal, 1978, p. 267, aqui citando a tese de Francisco de Paula
Pereira Lagos para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1853.
116
paradas e os terrenos encharcados como eram os darzea do Carmo, eram muito temidos
pelos médicos e engenheiros que, por isso mesmo, não se cansavam de pedir ao poder
público as obras necessárias para o seu dessecamento:
“sendo geralmente reconhecidas as vantagens que devem rezultar do
dessecamento da várzea do Carmo; (é) certo que vários Presidentes tem
ordenado exames e trabalhos n´esse sentido, e que tantos Engenheiros como
juntas de hygiene tem sido concordes na opinião de que as águas ali
estagnadas são prejudiciaes a salubridade publica (...)”
235
Nesse ponto devemos voltar nossos olhos para o fato de que, apenas pelas suas
características naturais, a várzea do Carmo já apavorava uma parcela mais “esclarecida” da
população, especialmente os médicos. Porém, aqui é preciso adicionar pelo menos dois outros
componentes: o lixo e o esgoto de boa parte da cidade que ali eram atirados. Estes, por sua
vez, e em contato com as águas estagnadas das enchentes, produziam fermentações e
miasmas pútridos tid
exemplo do Anhanga
antagônicas: o rio e su
A historiografi
frente às áreas alagad
encontrarem em cons
imenso caldeirão onde
mefíticos.A vizinhanç
ressecamento ao ar livre na; sobre ele delineia-se toda uma cosmologia.
Na vasa nauseabunda mesclam-se os restos vegetais em fermentação, os dejetos orgânicos putrefeitos e
os cadáveres de todos os seres imundos engendrados pela desunião dos corpos. Trocas incessantes de
vapores se operam entre o subsolo, a turba fétida que o recobre e a massa aquática
(Corbin, 1987, p. 48 e
49
) e, por isso, “A drenagem de pântanos pestilenciais, situados na vizinhança de cidades, inscreveu-se
na ordem do dia
(Id. ibidem, p. 122). Mas, poderíamos questionar, na ordem do dia para quem?
Vigarello ressalta ainda que “Os ventos, soprando sobre os pântanos, poderiam determinar a
diferença do número de mortes”
(Vigarello, 1996, p. 161).
No Brasil, reproduziram-se os estudos que partiram dessa mesma premissa, ou seja, a
de que os pântanos causavam terror pelos miasmas ali produzidos. Citando um estudo de
Manuel Vieira da Silva datado de 1808, Roberto Machado escreve que “A presença das águas
estagnadas no Rio de Janeiro chega a ser vista como causa principal de insalubridade. Cercado de lugares
os como insuportáveis pelos higienistas. De qualquer forma, e a
baú do outro lado, também aqui conviviam duas características
a várzea eram, ao mesmo tempo, um problema e uma solução.
a vem repetindo, há anos, o temor que nossos antepassados possuíam
iças, brejos e pântanos, que causavam repulsa pelo fato de ali se
tante decomposição toda a sorte de matéria, vegetal e animal, num
ocorria a mais horrenda putrefação que infectava o ar com vapores
a aquática multiplica os danos da fermentação e da putrefação, enquanto o
atenua o perigo. O pântano fasci
235 - Relatório da “Comissão de melhoramento de edificações da cidade”, apresentado na sessão da Câmara de
01/02/1859, A. C., p. 23 a 25.
117
pantanosos, onde substâncias animais e vegetais se encontram em dissolução, o clima quente da cidade
provoca a rápida putrefação dessas substâncias, dando origem a ´pestíferos gases que devem levar a todos
os viventes preliminares da morte´”
(Machado, 1978, p. 266) e, com base nesta e em outras citações da
época, ele arremata com suas próprias palavras que “Assim os pântanos aparecem como perigo para
a saúde pública, por serem focos de exalações de miasmas (...)”
(Id. ibidem, p. 267 e 268). Para
complementar um tal horror frente aos pântanos, é exemplar a denominação que se deu a uma
das várias febres que atingiam a população: a paludosa, palustre ou febre dos pântanos
(identificada mais tarde como malária). Ou, ainda, a clara determinação contida na Lei Imperial
de 1º de outubro de 1828 que, ao reorganizar as funções das Câmaras Municipais no Brasil,
deliberou que a elas caberiam “tudo quanto diz respeito à Polícia e Economia das Povoações (...) pelo
que proverão (...) sobre (...) o esgotamento de pântanos, e qualquer estagnação de águas infectas (...)”
236
determinação esta que, invariavelmente, constou de todas as recomendações médicas.
Essas representações do passado podem nos levar a concluir que
todos temiam
esses lugares infectos e que, por isso mesmo, deles se afastavam frente ao pavor de
adquirirem doenças. Porém, as disputas e todo o processo de ocupação da várzea nas
décadas de 1850 e 1860 nos revela um outro lado da questão e que diz respeito às
aprop tilidade riações que a população fazia em relação a locais tão “infectos”. Assim, a u
da várzea em seu estado
natural não pode nunca ser negada: os aguadeiros dali retiravam
seu sustento num ir e vir constante durante boa parte do dia; tropeiros e charreteiro
transformaram o local num ponto certo de parada para descanso próprio e de seu
animais. E, principalmente, tínhamos as lavadeiras, majoritariamente negras que,
calçando seus tradicionais tamancos, desciam da rua do Glicério e de toda a encosta d
colina central da cidade rumo às margens do rio. Nas mãos elas levavam uma tábua d
bater roupa e, na cabeça, uma trouxa com tudo o que seria lavado naquele dia.
237
s
s
a
e
nheiros e em parte para o poder público,
Estas nuanças devem ser levadas em consideração quando tratamos de reconstruir o
passado e, emprestando as palavras de Jean-Claude Schimitt, acredito que a História, ou “a
compreensão (dela) brota da diferença: é preciso, para tanto, que se cruzem múltiplos pontos
Ao considerarmos os vários usos julgados salutares da várzea – lazer e lavagem de
roupa, por exemplo – restaria perguntar para quem de fato este local representava uma
ameaça à vida. Certamente para os médicos, enge
uma vez que parcelas da população não se intimidavam diante de local tão “nauseabundo” e
danoso à saúde.
mpério do Brasil desde a Independência; Ouro Preto: Typ. de Silva, 1833, p. 320 a 322.
Paulo naquele tempo 1895-1915; S.P.: Edições Saraiva, 1957, p. 146. Sobre as lavadeiras
236 - Colecção das Leis do I
237 - Americano, Jorge; São
no Tamanduateí, ver também um interessante relato em Menezes, Raimundo de; São Paulo dos nossos avós, S.P.:
Saraiva, 1969, p. 25.
118
de vista que revelam suas margens ou do
es, reciprocamente ocultas.”
237
da de sinais positivos, seja para aqueles que lutaram por um terreno
oubado ao alagado para construir suas casas, seja para outros que ali tinham o seu local de
trabalho, de ganho diá
de im erava a doença e a morte, agora poderemos entender o pântano como
mínimo, a chance de entender as negociações
engendradas que certamente nos relevam perspectivas ignoradas. Estas, por sua vez, podem
estar na origem da len
Em estudos an
deste problema.
238
Em
médicos e higienistas a
que estariam colabora alubridade geral: a posição do antigo matadouro no
bairro da Liberdade, os sepultamentos nas igrejas e os pântanos. Em 1853 o matadouro foi
Mces. que tomem este objeto na devida consideração, conforme
reclama a salubridade publica em época tão melindrosa...”
239
o objeto – considerado, dessa vez, a partir de
exterior – múltiplas fac
Assim, não obstante a característica negativa a ela imputada por muitos, para outros a
várzea estava carrega
r
rio. Nessa perspectiva, a questão ganha outros contornos, pois de um
local on p
importante fonte de vida, já que muitos retiravam dele a sua sobrevivência. Nesse sentido, e
não refutando as imagens pavorosas que diversas análises nos deram a conhecer sobre esses
caldeirões de putrefação bem ao lado das cidades (visão do inferno, conforme Alain Corbin),
afirmo que aquelas não são excludentes a esta que procedi. O fato é que devemos também
voltar os nossos olhos para aqueles que não venceram a disputa e tentar “ouvir” suas
argumentações. Caso contrário perderemos, no
ta transformação daquela área considerada tão perigosa e insalubre.
teriores, eu mesmo já havia detectado uma certa demora na resolução
meados do século XIX – e seguindo os preceitos então vigentes –
cadêmicos elegeram os três maiores problemas presentes na cidade e
ndo para com a ins
transferido para o bairro do Bexiga; em 1858 era aberto o cemitério da Consolação tornando-
se proibido, desde então, a utilização das igrejas para a realização de sepultamentos. Mas, o
caso da várzea (e a exemplo do Anhangabaú) demoraria ainda um bom tempo.
Esgoto da cidade e ao mesmo tempo ganha-pão de alguns moradores, o rio
Tamanduateí e sua várzea representavam tudo quanto os médicos não desejam para a urbe.
Se no Rio de Janeiro a luta era pela extinção dos mangezais, em São Paulo o olhar médico
recaía sobre a Várzea do Carmo e, principalmente nas épocas de epidemias, sempre
lembravam ao poder público:
“... a conveniência de se tratar com urgência da limpeza do
Tamanduateí, ou tapando a nova vala para que as águas corram pelo
leito antigo, ou dessecando o leito antigo, que contem atualmente
àgua estagnada e substancias em putrefação, (recomendando) a V.
237 - Schimitt, Jean-Claude; A história dos marginais, In: Le Goff, Jacques; A história nova, 1993, p. 261 a 290
238 - Camargo, Sepultamentos em São Paulo 1800-1858, op. cit.
239 - Coleção “Papéis Avulsos”, Vol. 173, 1855, doc. nº 63. Consta na margem deste mesmo documento o seguinte
119
A solução encontrada naquele momento foi sempre a abertura de valas que, paralelas
ou perpendiculares ao rio, ajudavam a dar um melhor escoamento às águas estagnadas
de cheias, na estiagem, ao contrário, essas mesmas valas exalavam um forte odor por conta
do material em decomposição que nelas ficavam depositadas. Por vezes erros aconteciam
tanto na abertura, quanto na tapagem dessas valas, o que, neste último caso, acabava por
represar as águas alagando ainda mais os terrenos. Na década de 1850, o olhar médico
esquadrinhava a várzea e não apenas apontava os erros cometidos, como também alertava
para prev
responsáveis pela conformação pantanosa do local. Resolvendo parte do problema em épocas
enir males futuros, causas de novos miasmas:
“...tapou-se a nova vala do tamanduateí com terra de uma escavação
da vargem sem esgoto algum, de sorte que
dentro em pouco tempo
terá de converter-se em novo foco de infecção formado pelas águas
estagnadas que necessariamente devem subsistir nesse lugar, mesmo
no tempo em que toda a margem costuma dessecar-se.”
240
(meu
Não obstante, estava a várzea bem posicionada, ao lado da cidade e de seus
moradores, sendo por isso bastante freq
destaque)
üentada diariamente. Os paulistanos que residiam
reço e a qualidade dos toucinhos ou do feijão, aproveitando
tempo para uma conversa com os vendedores e amigos ali reunidos. Continuando um
pouco mais se encontrava, à direita, o famoso buracão do Carmo. Caso o objetivo do trajeto
fosse justamente o de s
contrário, o seu destin
transpunha o Tamand
várzea ele certamente e
da região e mesmo da Penha, São Bernardo
animais, cansados dessa viagem, estariam ali a pastar e a matar a sede num dos canais ou na
nas imediações da Sé e da Rua Direita, chegavam até ela pela íngreme Ladeira do Carmo e,
no trajeto, poderiam observar a igreja e o convento dos carmelitas, cujos edifícios se
posicionavam à direita. Descendo um pouco mais, valia a pena parar por alguns instantes
nas casinhas
241
para verificar o p
o
e livrar do lixo, o morador poderia ali realizar seu despejo. Mas, se ao
o fosse o de seguir em frente, ele passaria pela ponte do Carmo que
uateí e, pelo aterrado, chegaria até o subúrbio do Brás. Na travessia da
ncontraria com tropas carregadas de mercadorias vindas das chácaras
e das Vilas de Atibaia e Bragança. Alguns
despacho feito pelos vereadores: “Se mandou tapar o canal novo do rio Tamanduateí”.
240 - Coleção “Papéis Avulsos”, Vol. 174, 1855, doc. 52
241 - Ascasinhas, em número de treze, foram construída pela Câmara naLadeira do Carmo nas últimas
décadas do século XVIII. Espécie de mercado, estabelecido em cômodos, ali se negociavam produtos não só dos
arredores de São Paulo, como também de Jundiaí, Juqueri, Atibaia e Bragança, trazidos pelos próprios produtores:
arroz, feijão, milho, farinha, toucinho, carne, leite, aves, ovos, aguardente, etc. Depois de demolidas, foram elas
reconstruídas em outro local, no início da “Rua Municipal”, hoje General Carneiro, que também era uma das
ladeiras que levavam à várzea. Ver: Guimarães, Olmária; “O Papel das Feiras-Livres no Abastecimento de São
120
própria margem do Tamanduateí. Se sobrasse um pouco de tempo, era o caso de observar as
lavadeiras que se esmeravam na batida vigorosa das roupas contra as pedras e, no mais das
vezes, utilizando-se das lavanderias, que eram uma espécie de banquinhos de madeira que se
fixavam nas margens do rio.
242
Esse trajeto não era percorrido apenas pelos paulistanos nos seus afazeres diários, já
que muitos forasteiros, viajantes e estudantes da Faculdade de Direito também se utilizavam
Penha. Não raro,
do caminho para curtos passeios entre as chácaras do Brás ou para uma visita à igreja da
o destino era o próprio rio Tamanduateí, que servia para divertidos banhos.
Saint H
ilaire, por exemplo, que visitou São Paulo em 1819, hospedou-se inicialmente no
Bexiga, mas logo em seguida, conseguiu uma boa casa justamente no Brás. Desta sua
caminhada ele diria:
“Atravessei a cidade de São Paulo, incontestavelmente a mais bela de todas
por mim visitadas desde que estava no Brasil.
Chegando ao convento do
Carmo, de onde se descortina belíssima vista, desci por uma rua calçada, a
qual, por uma ladeira bastante íngreme, estende-se até o córrego
Tamandatahy, e que é cercada de um lado por pequenas casas e do outro pelo
terraço do convento. O córrego corre abaixo da cidade, constituindo ali um
dos limites da mesma; é o mesmo transposto por uma ponte de pedra, de um
só arco. Além dessa ponte,
apresenta-se uma vasta planície (...) que, muito
pantanosa nas vizinhanças do córrego, apresenta, mais longe, uma alternativa
de pastagens e de capões de matos pouco elevados. No espaço de algumas
centenas de passos a partir da ponte,
o caminho é bordado e embelezado
pelos tufos espessos de uma grande seneceonácea de flores de um amarelo
doirado; depois, além dessa parte do caminho, vêem-se várias casas de
campo.”
243
(meus destaques)
Paulo”, S.P., USP, Instituto de Geografia, 1969, série “Teses e Monografias”, nº 02.
242 - Até as últimas décadas do século XIX, foi intenso o trabalho das lavadeiras no Tamanduateí. Essa prática era
inclusive reconhecida pela Câmara Municipal que, em 1889, analisou e aprovou uma indicação do vereador Carmillo
no sentido de que a própria municipalidade mandasse contruir “duas ou três lavanderias na varzea do Carmo sem prejuízo
de qualquer melhoramento que por ventura se faça naquelle logar.” A. C., sessão do dia 29/01/1889, p. 42.
243 - Saint-Hilaire, Auguste; “Viagem à Província de São Paulo”, S.P., Livraria Martins Editora, 1945, p. 166. A
leitura deste relato de Saint-Hilaire poderá ser feita ao mesmo tempo em que se observa a aquarela de Debret (veja
Fig. nº 20 a seguir).
121
Fig. 20
de Janeiro e Conventos dos Carmelitas
ante).
omada nas imediações das atuais ruas Roberto Simonsen e do Carmo vemos, em primeiro plano, a
Ladeira do Carmo” (atual Av. Rangel Pestana), à direitas encontram-se duas igrejas: a do Carmo e
m Terceira do Carmo, bem como o edifício do Convento dos Carmelitas. Nesta
composição podemos ob
cidade (à direita). Na área em destaque vemos as famosas “casinhas” que eram alugadas aos
comerciantes pela Câmara Municipal e, ao fundo, a várzea do Carmo – provavelmente inundada
Entrada de São Paulo pelo caminho do Rio
Nesta aquarela, data de 1827, Jean-Baptiste Debret registrou uma vista da cidade que,
posteriormente, seria tema de uma das fotos de Militão Augusto de Azevedo (veja Fig. 22 adi
T
a da Orde
servar ainda alguns tropeiros chegando (à esquerda) e outros saindo da
122
bem como a estrada e o
Nenhum sinal
suas descrições, Saint
pântano e as possíveis
Cerca de quare
Emílio Zaluar, mais ta
entrada na cidade, em
ado Brás. É um dos
arrabaldes mais belos e concorridos da cidade, já notável pelas elegantes casas
, que também deixou registros de suas caminhadas por São
aulo. Numa das várias visitas que fez aos arrabaldes da cidade ele - que antes já havia
lançado seu olhar críti
pela várzea do Carmo
... e aquele comprido e monótono caminho do aterrado entre os charcos do
Tamanduateí,
exalando infectos miasmas
núcleo do Braz.
de pavor, nada de medonho foi anotado pelo viajante. Detalhista nas
-Hilaire não percebeu naquele momento qualquer ligação entre o
doenças que ele causaria.
nta anos depois desta visita, São Paulo recebeu o português Augusto-
rde naturalizado brasileiro e que residiu no Rio de Janeiro. De sua
1860, ficou a seguinte impressão:
“Entramos finalmente em S. Paulo pelo lugar cham
de campo e deliciosas chácaras onde residem muitas famílias abastadas, ao
lado todavia de alguns casebres e ranchos menos aristocráticos, mas que nem
por isso deixam de formar um curioso contraste.”
244
Zaluar também encantara-se com o rio e, numa noite em seu quarto, ao observar a
várzea, inspirou-se:
“Ao longe, no meio da vasta campina, brilhavam, como uma toalha de prata,
as águas adormecidas do Tamanduateí”
245
Os elogios de Saint-Hilaire em 1819 e os de Zaluar em 1860, podem ser contrapostos
ao olhar de um outro “forasteiro” que ali esteve em meados do século XIX. Trata-se do nosso
conhecido Bernardo Guimarães
P
co para o imundo regato do Anhangabaú assim descreveu sua aventura
:
de maresia, transposto o qual essas
planícies, que de longe pareciam vastas e aprazíveis, vistas de perto não são
mais do que áridas e acanhadas charnecas entre rincões estéreis, onde não
murmura um regato, não sussurra um arvoredo, não canta um passarinho...
terra de águas mortas e de formiga saúva, campos sem relva e sem flores...”
246
(meus destaques)
Tudo leva a crer que Bernardo Guimarães tenha feito esta observação numa das
estações mais secas do ano, no inverno, provavelmente. Caso contrário, ele encontraria toda a
244 - Zaluar, Augusto-Emílio; Peregrinação pela província de São Paulo (1860-1861), Livraria Martiins Editora, 1945,
1953, p. 123.
245 - Id. ibidem, p. 129
123
várzea inundada ou, pelo menos, prestes a sê-lo, ocasião em que o aviso das enchentes viria
precedido pelo aumento do volume de água do Tamanduateí. De qualquer forma, não
estava ele errado. Fora esses meses, geralmente entre dezembro e março, as águas
realmente estariam mortas entre canais e poças que se sucediam entre os monturos do
aterrado. Porém, chama mais a atenção as diferentes opiniões e representações do mesmo
local feitas inicialmente por Saint-Hilaire e, depois, por Bernardo Guimarães. Uma primeira
explicação, certamente redutora, seria considerar a diferença de épocas: o primeiro aqui
esteve em 1819, período este em que a várzea ainda conservaria alguns aspectos dos
primeiros tempos, e Bernardo Guimarães, que residiu em São Paulo entre os anos de 1847 e
1852, ocasião esta já de certo crescimento e expansão da cidade. Mas, ao mesmo tempo,
temos o contraponto oferecido por Zaluar em 1860. Nesse sentido, quais das representações
estariam mais próximas da realidade? No meu entender, todas elas, e aqui não apenas
levando em consideração as múltiplas temporalidades, mas também a rede de
representações que se sobrepõem, formando uadro aparentemente confuso. Parte da
olega Álvares de Azevedo, este mais explícito nos seus julgamentos desfavoráveis a São
Paulo.
247
o aterrado intercalavam-se com
as poças de águas mortas resultantes da última enchente. Não raro, o lixo que escorria do
público
um q
inteligibilidade nos é dada quando nos aproximamos de cada um daqueles que produziram
o discurso como é o caso de Guimarães, um crítico da cidade, e que colocou-se ao lado do
c
Entretanto, a representação de Bernardo Guimarães não pode e nem deve ser
invalidada, pois cotejada com outras fontes, é possível perceber que ele não estava errado. É
certo, portanto, que em meados do século XIX, os monturos d
buracão do Carmo a elas se misturava provocando, através da decomposição e fermentação,
um forte odor que incomodava, ao mesmo tempo em que colocavam sob alerta todos os que
enxergavam ali a presença de doenças.
Mas, atirar o lixo na várzea era uma prática comum, sendo este um costume que
perdurou por séculos no cotidiano da cidade. Reconhecido e regulamentado pelo poder
, tudo era feito no sentido de facilitar os despejos no Tamanduateí – e isso pelo menos
até as décadas de 1840 e 1850:
246 - Guimarães, Bernardo Joaquim da Silva; “Rosaura a Enjeitada”, op. cit., p. 14.
247 - Caso não levássemos em consideração essas diferentes imagens que, ao mesmo tempo, conviviam e se
integravam uma às outras, poderíamos considerar que o próprio Bernardo Guimarães era contraditório, uma vez
que em outra passagem de “Rosaura a Engeitada” ele disse que “A capela do Brás, com o seu campanário branco, e
124
“Indicou (o sr Dr. Rodrigues dos Santos) que se mande proceder ao
orçamento do aterro, e calçamento do
beco entre a casa da Marquesa de
Santos, e o fallecido dr. Moura, afim de facilitar a descida dos que tem de
lançar lixo na várzea, e que não fazem por causa do mau estado do dito beco.
Que o sr. Presidente convide aos moradores contíguos ao dicto beco, e que
imediatamente se interessão no asseio d´aquelle lugar a concorrerem para as
despezas do aterro e calçamento.”
248
(meu destaque).
O citado beco d
para a várzea, pois, m
undícies. Reconhecendo essa facilidade como costume antigo, um edital de 1850 estabelecia
ue o
tal, aliás, marcava
inda outros locais próximos do Tamanduateí para o descarte do lixo como o “Porto Geral de
São Bento, a Ladeira
Tabatinguera”.
249
Por certo que a duateí era entendida pela grande maioria como uma
área de servidão, “ um vasto logradouro público, encharcado, onde se faziam os despejos da cidade,
a Marquesa não se constituía apenas em uma passagem ou caminho
ais do que isso, ele próprio era um conhecido local para despejo das
im
q becco entre as casas da Exma. Marquesa de Santos e do falecido Dr. Antonio Maria de Moura”
era um dos lugares autorizados para os “despejos públicos”. O mesmo edi
a
do Carmo, além da ponte ao lado esquerdo e a Ladeira do
várzea do Taman
soltavam-se animais, cortava-se lenha, e onde os ociosos vinham caçar e as lavadeiras fazer o seu
mister.”
250
Mas, ao mesmo tempo em que era bastante utilizada pela população, a várzea se
constituía também no receptáculo de vários canais de esgotos e de águas servidas que, até as
primeiras décadas do século XIX, desciam quase que exclusivamente da colina
acompanhando o traçado das ladeiras do Carmo, Porto Geral ou da rua Municipal. Estes
desembocavam na margem esquerda do rio, mas posteriormente, e devido à ocupação do
Brás e do Pari, outras valas de despejos foram construídas na planície da margem direita
aquelas casas dispersas pela planície,exalam um perfume idílico que enleva a imaginação.”
248 - Requerimento do vereador Rodrigues dos Santos, A. C. sessão do dia 12/02/1849. O beco citado no documento
ainda existe e pode ser localizado entre o Solar da Marquesa de Santos e a chamada “Casa nº 1” na Rua Roberto
Simonsen. Atualmente ele recebe o nome de “Beco do Pinto” e encontra-se fechado ao trânsito público.
249 - Edital da Câmara de 04/03/1850; Registro Geral da Câmara, 1850, p. 213. Nesse mesmo edital ficaram ainada
marcados como ponto de despejos a “Ponte do Acú, em baixo e junto ao córrego Anhangabaú; o beco em frente ao paredão
da chácara de Luis Pereira Machado; a Rua do Cemitério, nas escavações (o cemitério aqui citado é o antigo “dos Aflitos”
no bairro da Liberdade) e o beco de Santa Cruz, no fim onde não houverem moradores.” Em aditamento a este edital, no
dia 09/03/1850 a Câmara autorizou também os despejos na antiga “Rua da Palha”, atual Rua 7 de Abril; Registro
Geral da Câmara, 1850, p. 217.
250 - Sampaio, Teodoro; op. cit.
125
do Tamanduateí. Correndo a céu aberto, esses canais eram tolerados, ou pelo menos o
foram até cerca de 1860, quando, então, passaram a ser duramente criticados por alguns
moradores que se sentiam ameaçados diante de águas tão pútridas escorrendo ao lado de
suas casas.
Na impossibilidade de fazer cessar o mal dessas valas tão fedorentas, pediam eles
sempre pela “canalização dos regos por onde corriam as águas servidas”, especialmente o da
rua Municipal.
251
Este canal, por sinal, foi motivo de muita preocupação, pois acumulava
grande quantidade de esgotos produzidos na área mais habitada como eram as imediações
do largo Sé, largo do Tesouro, rua Direita, Pátio do Colégio e da antiga rua da Imperatriz,
hoje 15 de Novembro. E foi justamente por isso, ou seja, pelo aumento contínuo do esgoto
que corria pela então rua Municipal (hoje rua General Carneiro) que o vereador Manoel
Rodrigues Jordão reclamou:
“... fazendo sentir que o canal da rua Municipal que corre pelos fundos das
alem do mau cheiro que exala por ser esse canal o recebedouro de matérias
252
tos em seus quintais. Tendo em vista
esse co
a escorria para a rua 25 de Março e
egava até as margens do rio, causando incômodo e medo por conta das exalações pútridas
uma das costumeiras chuvas de verão, os quintais daquela região foram “lavados” e toda a
sujeira acumulada acabou sendo encaminhada para as margens do Tamanduateí que corria
casas ali construídas, recebendo grande quantidade d´aguas pluviais, vai
desmoronando aqueles terrenos de modo a ameaçar ruína ás propriedades,
infectas; pelo que pede que a Câmara Municipal determine aos proprietários
d´aquellas casas e terrenos que façam assegurar os prédios e a evitar a
exalação má.”
Bem próximo daquele ponto, na altura das residências situadas na rua Boa Vista e
ladeira Porto Geral, cujos quintais terminavam na rua 25 de Março, os problemas com o
lixo e com as águas servidas também se faziam sentir. Mas, ao contrário do canal da rua
Municipal, onde os despejos eram anônimos já que provenientes de grande área da
cidade, aqui o caso era diferente, uma vez que os culpados pela sujeira acumulada eram os
próprios moradores que atiravam toda a sorte de detri
stume, mais a depressão do terreno e a soma do lixo com as águas servidas, o fato é
que, de tempos em tempos, essa mistura explosiv
ch
que então se verificavam. Em janeiro de 1865, por exemplo, e certamente pela ocorrência de
251 - Abaixo assinado lido na sessão da Câmara do dia 24/09/1863, A. C., p. 207. A antiga “Rua Municipal” hoje é
a conhecida “Rua General Carneiro”.
252 - A. C., sessão do dia 28/03/1865, p. 112
126
ao lado da rua 25 de Março. Não por outro motivo, os “proprietários das casas localizadas na
a, com frua da Boa Vist undos abertos para a rua do Porto Geral”, e cujos quintais serviam,
“infeliz
o
e
Oliveira, sitos a rua 25 de Março, um pequeno córrego que, vindo do alto da
mente, para depósitos de águas podres e outras imundícies”, tiveram a ordem de nivelar
seus terrenos, fazer os competentes aterros e cercá-los num prazo de 30 dias sob as penas
da Lei.
253
Não muito longe dali, pelos lados do convento do Carmo, o incômodo ocorria por
conta de um fio d´água que se tornara infecto nas últimas décadas do século XIX:
“Diz Benjamin Constante de Oliveira que existindo entre os prédios d
Comendador Joaquim F. Cantinho e o professor Otaviano Augusto d
cidade, termina no Tamanduatehy, passando pelos fundos dos quartos da
municipalidade existentes na ladeira do Carmo,
cujos moradores nele fazem
despejo d´águas servidas e outras matérias, provindo dahi uma constante
exalação de miasmas delecterias prejudicialissimos á saúde, não só do
supplicante e sua família, como dos demais vizinhos. Para remover estes
inconvenientes
e evitar o aparecimento de qualquer doença, muito fácil de
manifestar-se, principalmente agora que estamos na estação calmosa, vindo
em breve a força do verão, vem o supplicante lembrar a VV. SS. a grande e
urgente necessidade que há em
fazer esta Câmara uma coberta ou galeria
sobre o dito córrego, prestando assim (...) um relevantissimo serviço aos
moradores da rua 25 de Março.”
254
(meus destaques).
dos fiscais a
Num contínuo, ora abriam-se sulcos na terra para o escoamento da sujeira, ora
aproveitavam-se pequenos córregos que, tornando-se imundos pela quantidade de detritos,
em seguida deveriam ser canalizados. O lixo neutralizado seria aquele dissolvido em água
corrente e que, sempre em movimento, seria encaminhado para bem longe.
Ao ser expulsa da cidade, a sujeira necessariamente reaparecia poucos metros adiante
ao desembocar nos cursos d´água. E assim é que, pelo despejo de esgotos, águas servidas, e
toda a sorte de impurezas, cada vez mais o rio Tamanduateí, suas margens e sua várzea
tornavam-se infectas. Esta situação, por sua vez, era agravada por um antigo costume que
ainda se verificava na várzea e cuja notícia nos é dada pelos relatórios semanais
serviço da Câmara Municipal:
253 - Proposta do Vereador Vicente Mamede, A. C. Sessão do dia 23/01/1865, p. 37
254- Representação datada de 14/11/1884, Papéis Avulsos, Vol. 433, doc. s/nº, lido na sessão da Câmara de
19/11/1884. No dia 26/11/1884, esta obra foi aprovada, mandando-se então “fazer a cobertura do referido
córrego”.
127
“Participo a V. Sas. Que as ruas do meu destricto forão limpas; mandei limpar
o chafariz da rua do Quartel, e abrir o esgoto da rua Formoza; foi feita a
porteira para a mangueira do matadouro;
mandei enterrar um Cavallo que
estava morto na várzea do Carmo; (...)
255
(meus destaques).
Fig. 21
Rio Tamanduateí e várzea do Carmo entre 1862/63. Área muito freqüentada, ali se reuniam lavadeiras,
o
a
tropeiros e o povo em geral que descia da colina pela Rua Municipal (à direita) vindo do Pátio do Colégi
(no alto à esquerda). Destaque para uma lavadeira em pleno trabalho e para os vários animais saciando
sede nas margens do rio.
255 - Relatório do Fiscal Rufino Mariano de Barros, A. C., sessão do dia 08/04/1865.
128
Fig. 22
Numa vista muito parecida com a tomada por Debret em 1827 (veja Fig. 20), o fotógrafo Militão registro
esta cena da Ladeira do Carmo por volta de 1862. À esquerda, vemos o “paredão do Carmo”, construído
para conter as encostas do morro. Em seguida, está o rio Tamanduateí em época de cheia, esta perceptív
pelo represamento das águas, à direita e, na continuidade, o núcleo do Braz. À esquerda, vemos
“casinhas” e, no canto, o rio numa de suas famosas “7 curvas”.
Numa época em que a tração animal era utilizada em diversos afazeres, não era nada
incomum a circulação de centenas deles na cidade, num constante ir e vir pelas ruas
transportando toda a sorte de mercadorias e pessoas. Nada incomum também era a morte
dos mesmos que, pela dificuldade de transporte, acabavam enterrados nas proximidades da
ocorrência, em valas não muito profundas. Assim, não causavam maiores espantos o fato de
ter-se que “remover um animal morto no tanque do Arouche”
u
el
as
mal morto”.
257
Entretanto, o local mais utilizado para o enterramento de animais era mesmo a
árzea, área por onde circulavam uma infinidade deles, seja por que ali tinham pastagem,
seja pelo trânsito de tropeiros, aguadeiros e carroceiros. Decerto que podemos ver aqui uma
das causas da pestilência do terreno, uma vez que os animais eram depositados em covas
rasas. Num curto espaço de tempo a terra era revolvida, expondo então toda a podridão ao
sol e à chuva, bem como entrava em contato com muitas pessoas que por ali circulavam,
inclusive crianças que brincavam pelas redondezas. Mas tal acontecimento (os enterramentos
de animais) era tão natural e comum na vida da cidade, que não mereceu tantos registros na
256
ou a notícia de que o então
“contratante da limpeza ter mandado enterrar há dias no meio da rua da Luz um ani
v
256 - Relatório do Fiscal no Norte Antonio Joaquim de Lima, A. C. sessão do dia 12/11/1868, p. 153.
257 - Indicação do vereador Ribeiro de Lima, A. C. sessão do dia 02/04/1884, p. 82. Apesar desta indicação ter
129
documentação oficial. Vez por outra, informava-se laconicamente:
“Offício do exmo. sr. governador da província, sem data, remettendo por
cópia, a informação do commandante da Companhia de Cavallaria
sobre o
facto do enterramento de um cavallo na várzea do Carmo. – Inteirada.”
258
(meu destaque)
Esses cavalos, ou mesmos bois e vacas, morriam de causas naturais (velhice), pela
exploração e maus tratos, ou pelo ataque de algum animal peçonhento:
“Parte do Fiscal do Norte, pela qual communica ter fallecido duas Bestas do
serviço das Carroças, sendo huma d´ellas encontrada morta no pasto da
Câmara;
e outra mordida por uma cobra, de que veio a morrer em curativo.
259
(meu destaque)
pos, que, ocultos durante o
dia nos quintais, de noite vinham para a rua tratar da vida (...) e “o mesmo se dava também com as
De fato, outros “animais” também rondavam, de dia ou de noite, as cercanias e as
ruas da cidade, o que dava motivos algumas vezes a “pisar-se em sa
cobras,
m
, o sueco completou que “Este remédio que a experiência
rovou
pela contigüidade de alguns matagais. Estava coberto de capoeira todo o terreno compreendido
entre o Tamanduateí e a rua Tabatinguera (...) da ponte do Carmo para baixo, toda a marge esquerda
do Tamanduateí era também um matagal.”
260
Os sapos, por certo, não representavam perigo, mas
as cobras e aranhas sim. Tanto quanto os cavalos e o gado, era comum o fato de também os
moradores “toparem” com esses perigosos animais pelo caminho ou serem vítimas de algum
ataque repentino, inesperado mesmo, durante a sua labuta diária. Para esses casos – aliás
bastante corriqueiros como observou o médico sueco Gustavo Beyer em 1813 – os paulistanos
desenvolveram uma maneira toda especial de cura: “O remédio mais comum contra as
mordeduras de cobra é deixar um negro chupar o lugar mordido, o que ele faz do seguinte modo: começa
por marcar bastante tempo um pedaço de fumo e em seguida sugar, cuspindo fora o que tira da ferida;
depois faz-se uma mistura de fumo e água que se deita no lugar ofendido mudando duas vezes por dia.”
Reconhecendo a eficácia do método
p ser o melhor, deveria ser experimentado em outros países, si ai houvesse facilidade de ter
sugadores como no Brasil.”
261
Este método de cura, aliás, não era exclusividade de São Paulo,
notando Laura de Mello e Souza que “sopro e sucção tiveram papel de destaque nas curas mágicas”
sido feita com o intuito de denunciar o fato, nenhuma punição foi aplicada.
258 - A. C., sessão do dia 29/05/1888.
259 - A. C. sessão do dia 18/11/1859, p. 191
260 - Bueno, Francisco de Assis Vieira, op. cit., p. 22 e 23
130
e, também no seu contrário, ou seja, “na motivação de doenças e malefícios”. Entre os
upinambás, por exemplo, essa prática era bastante comum: “os índios doentes procuravam os
pajés para terem remédi
cuspindo o mal”. Como
ucção era comum também entre africanos...”
262
em fatalidades, em ataques mortais:
“Faleceu ontem, dia 23 d
T
o e, imediatamente, estes principiavam a soprar na parte doente, sugando e
no caso citado pelo médico Beyer em São Paulo, Souza lembra que “a
s
De qualquer forma, se faltassem os sugadores no momento, todo o cuidado era pouco
na várzea, e disso bem sabiam as lavadeiras, os tropeiros e todos que por ali passavam, pois
alguns desses encontros poderiam mesmo resultar
e outubro de 1858, de
mordidura de cobra, Maria, 38 anos de idade, solteira,
Ribeiro dos Santos Camargo e foi sepultada hoje no Cemitério Municipal.”Africana, escrava de João
“Faleceu ontem, dia 02 d
263
e maio de 1859, de
mordedura de cobra, João Albertino de Abreu, de 25 anos
Residia na Freguesia de Santa Iphigenia e foi sepultado hoje no Cemitério
etanto, não estava apenas na várzea ou nas capoeiras e touceiras de
no interior das próprias residências, este um bom refúgio para as
o seu habitat. O mesmo viajante Beyer assustou-se com elas quando
cidade: “Por toda a parte há aranhas de tamanho descomunal, vermelhas,
udas. É som
de idade, livre, solteiro.
Municipal.”
264
O perigo, entr
capim, senão também
aranhas que ali faziam
de sua passagem pela
pardas, variegadas e pel ente durante as horas mais quentes dos dias de verão que uma
espécie de aranha grande, extremamente fria aparece. Desta aranha emana um cheiro fétido que
envenena as bebidas e mata com frio excessivo e tremor.”
265
Tão ou mais letais que as cobras, as aranhas invadiam sorrateiramente as casas,
alojavam-se em locais escuros e também atacavam:
“Faleceu hoje logo depois da meia noite,
de mordedura de aranha , Joaquim Antonio de seis meses,
no cemitério municipal.”
filho natural da sra. Brazilia Maria das Dores, solteira. Foi sepultado hoje, dia 07 de setembro de 1861,
menos, estes eram bastante visíveis e, por isso mesmo, cada um poderia se prevenir
266
Por certo que esses perigos estavam a espreitar a vida dos paulistanos, mas, pelos
261 - Beyer, op. cit. p. 303.
262 - Souza, Laura de Mello e; O diabo e a terra de Santa Cruz; 2005, p. 168 e 169. A autora completa ainda que a sucção
estava presente também em Portugal o que, por sua vez, aproximaria “práticas mágicas comuns a sociedades tribais e a
sociedade européia da época pré-industrial, lançando por terra a possibilidade de distinguir rigidamente uma das outras.”
263 - Livro de Inumação do Cemitério da Consolação, vol. 01, 1859, p. 14.
264 - Livro de Inumação do Cemitério da Consolação, vol. 01, 1860, p. 57 verso.
265 - Beyer, op. cit. p. 303 e 304. Contra esta terrível aranha, completou o médico sueco, “Há pouco tempo,
felizmente, achou-se no vinho um antídoto certo e agradável contra o veneno.”
266 - Livro de Inumação do Cemitério da Consolação, vol. 01, 1861, p. 189 verso.
131
mantendo-se sempre em alerta na presença de tais animais peçonhentos. Porém, os males que
mais ceifavam vidas naquela época eram, ao contrário, invisíveis. E invisíveis eram os
microorganismos (perigo este desconhecido em meados do século XIX) e, também, os
do rio Tamanduatehy com alguma perfeição, de maneira que por alguns
fugidios “miasmas pestilentos” conforme divulgava a medicina acadêmica que, tal e qual um
espírito do mal ou uma fantasmagórica nuvem incolor, estava a espreitar os incautos que se
aproximavam dos caldeirões da várzea onde fermentavam as matérias em decomposição:
“Havendo ainda muito trabalho a fazer para que consiga a limpeza completa
annos fique preservado dos aguapés e capim guassú, que invadem, demoram
e impedem a correnteza
formando no rio immensos depósitos de ciscos,
conjunctamente com animaes mortos, que é costume desgraçadamente
mandarem lançar ao rio formando focos de matérias pútridas muito
prejudiciaes á saúde pública, requeiro que a Câmara peça ao Governo
(provincial) sua coadjuvação para tão importante e salutar serviço (...)”
267
(meus destaques)
uás, evitavam as inúmeras poças estagnadas
no aterrado e escolhiam as margens onde nteza estava sempre a renovar as águas,
arriscavam a um passeio, ou para aqueles que apenas observavam a várzea a uma certa
Tendo em vista as diversas utilizações que se faziam da várzea, bem como pelo
conjunto de práticas então vigentes como o descarte do lixo e a presença dos canais de
esgotos que por ali desembocavam, é certo que ela transformara-se (e hoje bem o sabemos)
numa uma região extremamente perigosa para aqueles que a freqüentavam, seja diariamente
a trabalho, seja esporadicamente a passeios. Mas, o medo era de outra natureza e as bem
treinadas lavadeiras, que ali ficavam por longas horas, bem sabiam que deveriam evitar
certos trechos onde a “irregularidade do terreno (era) a causa de ficarem estagnadas as águas
da inundação” passada e que, por isso, “produziam miasmas insalubres” e, mais ainda,
tomavam o cuidado de desviar, aqui e ali, dos monturos de lixos e de “matérias pútridas”
que, “n´aquella várzea (tornavam) mais iminentes o perigo de epidemias”.
268
Frente a esses males, certamente as lavadeiras e carroceiros desenvolveram algumas
estratégias e, além de talvez carregarem seus pat
a corre
mesmo que numa curva ou num pequeno braço do rio. O conhecimento dos riscos, este
trazido por anos de convivência diária com eles, bem como os meios que empregavam para
neutralizá-los, geralmente não era de conhecimento dos mais desavisados. Para os que se
267 - Requerimento do vereador Telles, A. C. sessão do dia 20/12/1854, p. 229.
268 - A. C. sessão doa dia 15/07/1885 p. 104 a 110.
132
distância, qualquer descuido seria fatal. Para estes, o receio maior era o de se adquirir ali
alguma febre de mau caráter.
evitá-los. Por isso os estudantes formavam um dos grupos que mais temiam esses focos de
miasmas, até pelo contato que tinham com as teorias a esse respeito. E foram eles vítimas
constantes desse mal,
turma de 1854-58) qu
segundo ano, foi vítima
várzea então muitos d
da Luz, que freqüentou a faculdade entre os anos de 1844-48. A seu respeito nos fala o
imo, vim convidar-te para fazermos uma falada. Veste-te depressa. O
asseio á chácara do Bispo, no Braz.
270
Antonio Maximo não pestanejou. Continuou a fumar tranqüilamente a ponta de
cigarro, que se afigurava
--- Entã
E, com
gato.
--- Ora, meu amigo! Deixa-te de passeio! Não vez como o sol chammeja? Ouve! Lá está
uma cigarra a cantar no quintal.
Nesse grupo de não-iniciados, incluíam-se os estudantes da faculdade de Direito
que, em sua maioria, vinham de outras cidades. Faltava-lhes a experiência nesse meio
cheio de perigos invisíveis, bem como o conhecimento das estratégias desenvolvidas para
como ocorreu com Afonso Celso (Afonso Celso de Assis Figueiredo,
e “morava numa república de mineiros, da qual ele era o chefe. No seu
de violenta febre tifóide, assaz comum nesse tempo em São Paulo”.
269
Da
eles queriam distância, como foi o caso de Antonio Maximo Ribeiro
colega J. L. de Almeida Nogueira:
“Morava elle á rua das Flores numa casa que foi posteriormente propriedade e
residência do conselheiro Amaral Gurgel.
Numa quinta-feira, dia de descanso acadêmico, fui visital-o
--- Antonio Max
dia está bonito. Vamos dar um p
estar fazendo officio de brûle-gueule.
! Anda dahi! Deita fora a preguiça! o
effeito, elle espreguiçava-se naquelle momento com a voluptuosidade de um
--- Que temos com a cigarra? Nasceu para festejar o estio.
--- É signal de chuva.
--- Homem, essa!
--- Estou aqui tão a gosto! Não!
Não vou arriscar-me a apanhar alguma febre no
269 - Nogueira, J. L. de Almeida; “A Academia de São Paulo – Tradições e Reminiscências – Estudantes,
Estudantões e Estudantadas”, S.P., Typ. Vanorden & Co., 1907, Vol. I, p. 124.
270 - Chácara localizada entre os bairros do Pari e do Brás, pertenceu inicialmente a Dom Manoel Joaquim
Gonçalves de Andrade, 5º Bispo de São Paulo (1826). Com o falecimento do Bispo em 1847, a propriedade passou
ao seu sobrinho de mesmo nome, o cônego Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade, este falecido em 1879.
133
Aterrado!
271
(meu destaque).
De fato, para aqueles que não dominavam os seus segredos, a várzea se mostrava
bastante perigosa e, nesse sentido, valia mais a pena evitá-la
.
272
De certa forma, o risco de se
apanhar alguma febre, por exemplo, poderia assim ser eliminado pelo distanciamento
ali
miasmas. O caso, porém, é que a partir da década de 1860 mais e mais pessoas passaram a
ocupar os terrenos marginais à várzea, sendo certo que a partir de então este e outros
seguro, lá no alto da cidade.
Entretanto, a várzea do Carmo estava localizada bem ao lado do núcleo urbano que
lhe ficava sobranceiro, sendo certo, portanto, que os vapores pestilentos dela emanados bem
poderiam atingir as ruas e as pessoas mais acima. Apesar de muito propalada naquela
época, tudo leva a crer que esta ameaça não se colocava como de primeira ordem para os
moradores, especialmente para aqueles que guardavam uma distância do local. Portanto, o
risco maior estava, até meados do século XIX, restrito a grupos específicos como os que
trabalhavam (e que, por isso mesmo, desenvolveram estratégias para fazer frente ao mal),
para os não iniciados que se aventuravam por conta própria em passeios e, em certa medida,
para a rarefeita comunidade do Brás e do Pari que também sabiam conviver com os focos de
problemas advindos com o adensamento de uma área de planície e sem o competente
esgotamento, passaram a atingir um número cada vez maior de moradores.
ra, J. L. de Almeida op. cit, 1908, Vol. III, p. 32 e 33
272 - Com
famosos
atingido. Com grande dificuldade ele conseguiria ajuda, mas começava ali um longo martírio que levaria à
amputação do pé, além de problemas infecciosos e pulmonares que o levariam a morte. Sobre este episódio ver:
Menezes, Raimundo; São Paulo dos nossos Avós, 1969, p. 159; Secchim, Antônio Carlos; Memórias Póstumas de Castro
Alves, disponível no sítio www.projetomemoria.art.br/CastroAlves/ e Mascarenhas, Maria da Graça (coord.);
Castro Alves — Poesia e Biografia (2 volumes), Nova Terra Comunicações, 1997.
271 - Noguei
o um claro exemplo da falta de conhecimento do terreno e de seus perigos, podemos citar um dos mais
e trágicos acontecimentos que se passaram no local e que envolveu o poeta Castro Alves, então estudante
da mesma faculdade em 1868. Triste pelo rompimento do romance com Eugênia Câmara, Castro Alves planejara
um passeio e uma caçada na várzea do Carmo. No dia 11 de novembro de 1868, percorria ele a planície trazendo
uma espingarda debaixo do braço.Quando tentou transpor um dos vários canais abertos para “dessecamento”,
um desequilíbrio momentâneo trouxe como conseqüência o disparo acidental da arma. Seu calcanhar esquerdo foi
134
Fig. 23
“Inundação na Várzea do Carmo” - Em primeiro plano, vemos o antigo Mercado Municipal e parte da
Rua 25 de Março. Ao fundo, o rio Tamanduateí, sua várzea inundada e, na continuação, um dos
“aterrados” e parte dos bairros do Pari e do Brás já bastante adensados.
Em 1894, os moradores das ruas Caetano Pinto e Carneiro Leão “quase
exclusivamente de nacionalidade italiana e de poucos recursos, queixavam-se do cheiro
infecto que exalam as águas servidas estagnadas nas frentes de seus prédios”
273
; em 1900
foi preciso verificar com urgência “o estado de umas valetas na rua Maria Marcollina,
especialmente na parte entre as ruas Oriente e Silva Telles, pois que além de águas
estagnadas continham ali toda a sorte de imundícies que pelo miasma que exalava
ameava a saúde pública”
274
; o “becco do Lucas, no Brás, estava sofrendo com “as poças de
águas estagnadas ali existentes, o que poderia prejudicar a saúde dos moradores do lugar”.
275
Todas essas novas ruas, ao invadirem a várzea, acabaram por traze-la, literalmente, para a
porta das casas. Nas lembranças do memorialista Jacob Penteado, esse problema aparece de
forma contundente: “Fomos morar na Rua Benjamim de Oliveira (que) fica bem perto da
Várzea do Carmo (...). Qualquer pancada de chuva inundava-a, (...) muitas vezes a água
chegava até o peitoril da janela.”
276
Sem o esgoto adequado, tanto as águas servidas quanto as pluviais, eram lançadas em
valas abertas no leito das ruas. Na colina, elas escorriam ladeira abaixo, mas do outro lado,
num terreno plano, ficavam elas estagnadas em poças esverdeadas, apodrecidas e exalando
273 - Indicação nº 57 do Intendente Municipal, A. C. sessão do dia 18/09/1894, volume manuscrito, p. 136 e 137.
274 - Indicação do vereador João Antonio Julião, A. C. sessão do dia 05/06/1900,p. 190
275 - Indicação do vereador José Oswald, A. C. sessão do dia 04/03/1901, p. 76
276 - Penteado, Jacob ;Belenzinho, 1910 – Retrato de uma época”; S.P.: Livraria Martins Editora, 1962, p. 57.
135
um forte odor que apavorava. O risco agora era para toda a cidade:
Indico que o Snr. Prefeito haja por bem providenciar para que seja obstruída
uma valla que passa ao longe da rua Barão do Ladário a qual serve para
repositório de immundicies, que
infeccionam a cidade.
277
(meu destaque).
dição da várzea, agora já ocupada por residências
Uma nova con
início do século XX, podem ser vistas a part
empres
278
e indústrias no
ir do relato de um grupo de moradores e
ários:
V. s. não ignora que a rua Catumby é das mais movimentadas do
Belenzinho,contando três fábricas e sendo a artéria natural do movimento dos
materiaes que do porto do Catumby demandam a cidade. Apesar destas
valiosas circunstancias e dos moradores terem reclamado com quatro abaixo-
assinados á Câmara Muncipal e com dois á Repartição de Hygiene, não
somente não conseguiram uma providencia siquer, mas ultimamente as
condições da rua ficaram peoradas.
As águas não tendo escoamento nenhum,
com a menor chuva a rua fica uma verdadeira lagoa intransitável, as águas
entram pelas casas, com quaes conseqüências funestas v. s. poderá facilmente
imaginar. Para comprehender que há aqui um verdadeiro foco de infecção,
basta dizer que os animais mortos, o cisco, as latas vazias, os cacos, tudo que
for enfim resíduo e que for encontrado na avenida Celso Garcia, vem parar na
rua Catumby, donde as águas só desapparecendo pela ação do sol, ou pela
infiltração no terreno, desenvolvem miasmas e cheiro insuportável.”
279
(meus
Os problemas com a várzea, bem como a imagem de uma área perigosa e
as que não pode deixar de ser
280
Desde então, o melhor encanamento para o rio foi sendo
tentado através da co
destaques).
causadora de danos à saúde, foi sendo construída desde as primeiras décadas do século
XIX, ao mesmo tempo em que surgiam as propostas para saneá-la. Estas, por sua vez,
baseavam-se em dois pontos principais: a retificação do rio Tamanduateí e a drenagem
(dessecamento) dos terrenos. Em 1835, por exemplo, tal obra já era listada como a de
maior necessidade para o município, ou seja, era preciso dar um “melhor encanamento ao rio
Tamanduateí afim de evitar o grande estagnamento das águ
prejudicial á saúde pública.”
nstrução de canais paralelos e perpendiculares, nem sempre com
icação do vereador Gomes Cardim, A. C. sessão do dia 04/04/1902, p. 112
278 - Pela condição de terrenos “roubados” à várzea, úmidos e insalubres, esta região foi ocupada especialmente
por operários e imigrantes, até porque os lotes eram bem mais baratos, muitos deles concedidos pela Câmara
277 - Ind
como vimos. A elite, ao contrário, pagou por terrenos mais secos e salubres, construindo, por exemplo, a sua
“cidade da higiene”, ou higienizada, saudável, numa elevação a oeste do núcleo original, o bairro de
Higienópolis.
279 - Parte de um abaixo-assinado dos moradores da rua Catumby, A. C. sessão do dia 16/04/1910. Muitas
indústrias instalaram-se naquela região não apenas pela condição plana dos terrenos, seu preço mais em conta,
mas também, pela proximidade com as linhas das estradas de ferro.
280 - Ofício enviado ao Governo da Província “sobre as maiores necessidades deste município”, A. C.,
19/01/1835.
136
resultados positivos, como nos dá a conhecer um relatório do fiscal Rufino Mariano de
e predominaram até
elo menos a década de 1870 quando, então, projetos mais amplos foram apresentados como
o de João Floriano M
posterior edificação”
2
hygiene” mas sem de
sempre ter sido um log das ruas,
as praças a deixar”, conforme manifestaram os vereadores em 1885.
284
nicialm
les loteamento
stou-
em 1
Barros que falava sobre a “necessidade de aterrar o antigo leito do rio Tamanduatehy, por
começar a aparecer algumas enfermidades nos moradores á beira desse leito”
281
As ações isoladas e pontuais desenvolvidas pela municipalidad
p
artins de Toledo, em 1878, que propunha um “arruamento para
82
, ou o de João Maxwel Rudge que falava no “embellesamento e
scartar um loteamento para o local.
283
Pela sua condição histórica de
radouro público da cidade, preocupava não apenas o traçado
mas também “
I ente pensado como um loteamento tradicional com ruas e praças, a proposta para
aquela área mais próxima do rio Tamanduateí foi, aos poucos, sendo modificada e tomou
forma a idéia de um grande parque que conciliasse, nas suas bordas, a possibilidade de
aproveitamento de terrenos para loteamento.
Porém, além de ser uma área perigosa (e daí a necessidade de saneá-la) o caso da
várzea do Carmo requeria especial atenção, pois ela era considerada por muitos como de
“servidão pública”. Na própria modificação do projeto original de um simp
para o de um parque, já estava implícita a preocupação de não fazer desaparecer uma área
muito utilizada há séculos. Exemplo maior desse fato – advindo, tudo leva a crer, mediante
pressão popular – foi o fato de que, sem exceção, todos os projetos apresentados nas
últimas décadas do século XIX faziam constar a construção de conjuntos de lavanderias
para o uso do povo. Configurando uma tal situação, o vereador Vicente Ferreira manife
se 889 e, tomando a palavra, alertou seus pares a respeito de uma das propostas que
estava sendo analisada, pois deveria ficar “entendido que o público em nada sofrerá quanto ao uso
que tem de tempos imemoriais sobre as águas desse rio, que serão mantidos e até ampliados quanto
possível for. Assim, além das lavadeiras, se estabelecerão banheiros públicos, reservando-se lugares
apropriados para lavagem de carros e animais (...)”
285
281 - Relatório dos Fiscais da cidade, A. C., 05/12/1865 p. 316.
282 - A.C. sessão do dia 31/10/1878, p. 122.
283 - A. C. sessão do dia 15/03/1883, p. 81.
284 - A. C. sessão do dia 15/07/1883, p. 114 e 115.
285 - A. C. sessão do dia 13/12/1889, p. 388 a 393
137
Fig. 24
Tradicionais na paisagem da cidade, as lavadeiras no Tamanduateí foram tema desta imagem do fotógrafo Gaensly,
utilizada numa série de cartões-postais. Descrevendo o cotidiano dessas trabalhadoras, Jorge Americano disse: Já na
beira do rio, e antes de iniciar seu trabalho elas “juntavam a parte traseira da saia à dianteira por um nó no apanhado, a
qual tomava aspecto de bombacha. Sungavam-na pela parte posterior, amarravam-na à cintura com barbante, de modo
a encurtá-la até os joelhos ou pouco acima, tomando agora o aspecto de calção estofado. Deixavam os tamancos que
calçavam, entravam n´água e debruçavam-se sobre o rio, sem perigo de serem mal vistas pelas costas. Terminada a
lavagem recompunham o vestuário, calçavam os tamancos e subiam as encostas da colina” rumo à cidade.
286
Terreno perigoso e delicado o da várzea. Se reconhecido estava o uso do rio e da
planície pelas lavadeiras, o mesmo não ocorria em relação ao lixo, verdadeiro “escândalo” no
parecer de muitos médicos e vereadores. Prática em parte tolerada nas ocasiões mais calmas,
em epidemias, o mesmo não ocorria quando a ameaça estava próxima ou já instalada na
cidade como ocorreu e
o acontecer ser trazido para (...) esta
Província (...) e para esta Cidade; julgo conveniente tomar-se desde já todas
despejos da cidade. Mas, o perigo não estava apenas nesses locais, senão também nas
s
m 1865:
“Grassando ainda infelizmente entre nós a epidemia das bexigas, e
accrescendo que o Cholera está fazendo estragos em diversas partes da
Europa (...) que podendo por iss
as medidas preventivas que cabem a esta Câmara, e assim proponho se
recomende aos fiscais ponham em pratica as recomendadas pelas Posturas,
como limpeza dos quintais, proibição de deposito de imundícies nas ruas e
praças (...)”
287
As zonas próximas ao Anhangabaú e à várzea do Carmo recebiam especial atenção e
deveriam ser as mais vigiadas, frente ao costume generalizado de ali serem efetuados os
286 - Americano, Jorge, op. cit., p.146.
287 - Indicação do vereador Salles Guerra, A. C. sessão do dia 24/10/1865 p. 284 e 285.
138
diversas ladeiras que levavam aos rios. Na parte do Tamanduateí, a rua Municipal (atual
General Carneiro) era uma das mais utilizadas e, por isso, ali estavam sempre os guardas
urbanos a rondar:
“Foi preso no dia 13 do corrente as 9 horas da noite pelo Guarda Urbano
rondante, o escravo de José Barbosa Braga, de nome Francisco, por ter sido
apanhado na ocasião de fazer despejo na Rua Municipal”
288
“Foram presos no dia 26 do mês próximo findo – Josepha escrava do Capitam
deu por encerrado este trabalho, ocasião em que informou ter mandado “colocar na várzea do
Carmo um pau como sinal indicativo do ponto determinado onde se deviam fazer os despejos da limpeza
Antonio Ribeiro de Escobar, e Bento Africano livre, pelos Guardas Urbanos
rondantes, por terem sido apanhados em ocasião de fazem despejo na Rua
Municipal”
289
Passada a ameaça, porém, tudo voltava ao normal e nenhuma punição era aplicada
aos que atiravam seus detritos seja no rio, seja na várzea. Nessa situação, vez por outra
tentava-se colocar uma certa ordem nesse costume, até porque difícil era terminar com ele.
Assim, em 1873 o vereador Silva Ramos solicitou “os serviços dos galés para roçarem e destocarem
as moitas de mato na várzea do Carmo, que estavam em lugares baixos e onde as águas se conservavam
estagnadas, desenvolvendo por isso miasmas”. Como a grande causa dos miasmas era justamente
a imundície que para ali era encaminhada sem qualquer controle, o mesmo vereador pediu
para que o fiscal em serviço marcasse “um ponto determinado na várzea do Carmo para só ai serem
feitos os despejos da Cidade, e não como até agora ao lado do aterrado que vai para o Gasômetro, e desde
já tratará de queimar tudo que ai se acha que for combustível e enterrar o que não for.”
290
Enfrentando certamente vários obstáculos para cumprir essa tarefa, a qual dependia é
claro, de muita negociação junto aos moradores, somente quatro meses mais tarde o fiscal
da Cidade, e (lembrava) a Câmara a necessidade de se colocar sentinelas na ponte do Mercado das 7 as
10 horas da noite para prevenir que não se façam os despejos fora do lugar designado até que os
condutores fiquem habituados a isso.” (meu destaque).
Com uma grande naturalidade, o fiscal arremata o seu relatório com uma frase que,
talvez, até pudesse passar desapercebida ao nosso olhar contemporâneo. Porém, devemos
estar atentos para tentar compreender o ideal médico que estava sendo construído naquele
291
momento, bem como os métodos que utilizava para “domar” o mal no meio urbano, este já
eleito como alvo de sua reflexão. Intervir na própria natureza foi um de seus primeiros atos e
288 - Relatório dos fiscais da cidade, A. C. sessão do dia 19/05/1865, p, 145.
289 - Id. ibidem, A. C. sessão do dia 01/08/1865, p. 220.
290 - A. C. sessão do dia 09/01/1873, p. 20.
139
daí a preocupação excessiva, por exemplo, com os dessecamentos e as retificações de rios e
córregos. Num segundo momento, seria a própria sociedade que, por sua desorganização e
mal funcionamento, seria a causa de doenças. Partindo desse pressuposto, a medicina deveria
“refletir e atuar sobre seus componentes (...) visando a neutralizar todo o perigo possível.” Desse
processo surgiria um controle que se queria rígido contra os perigos que, até então, não eram
assim entendidos. Nasce, portanto, a prevenção, segundo a análise de Roberto Machado.
Entretanto, eu diria que naquele momento nascia não a prevenção como querem os
estudiosos da medicina brasileira, mas sim uma nova precaução, posto que agora ela estaria
baseada em novos princípios. A prevenção e a proteção, como tive oportunidade de
demonstrar, já existiam mas, é claro, sob outras bases e de modo diferente desta que se quer
original.
De qualquer forma, neste novo momento não mais bastava apenas rep
292
rimir os abusos,
s ulamentar
bem como algumas práticas que passaram a ser vistas como nocivas, pois era necessário,
também, ”uma nova tecnologia de poder capaz de controlar os indivíduos e as populações tornando-os
produtivos ao mesmo tempo que inofensivos”. Ao mesmo tempo em que se recriam os
mecanismos de normatização, o ideal fala também da normalização ou “a transformação do
desviante – sejam quais forem as especificidades que ele apresente – em um ser normalizado”.
293
Era
preciso organizar o que estava desorganizado e causando os male , era preciso reg
e, para isso, foi bastante significativo o ato de se “fincar um pau” num determinado ponto da
várzea para, só ali, fazerem-se os despejos. O objeto, portanto, era o símbolo de uma ordem
onde imperava a confusão e a desordem. Mas, isso não bastava, pois era preciso, também,
fazer com que essas novas regras fossem seguidas, os moradores precisavam ser vigiados ou
“ensinados”, os costumes precisavam ser modificados, até que todos
ficassem habituados a
isso, como disse o fiscal.
Entretanto, o novo aprendizado não era algo fácil de ser conseguido frente às práticas
muito antigas e que envolviam necessidades básicas, imediatas e diárias do povo como era o
descarte da sujeira. Como parte dos detritos não poderiam ser simplesmente atirados nos
quintais, alguns dos restos certamente acabariam no rio. De um lado as novas regras sendo
estabelecidas, de outro uma população que não as aceitava passivamente. O motivo poderia
ser a simples comodidade: dirigir-se até o ponto determinado poderia resultar numa
caminhada mais longa. A não aceitação dessas novas regras poderia ter, também, uma
291 - Relatório dos fiscais, A. C. sessão do dia 21/05/1873, p. 125.
292 - Roberto Machado, op. cit. p. 155
293 - Id. ibidem, p. 156.
140
relação direta com os vários canais de águas fedorentas que escorriam pela cidade. Nesse
ulo oitocentista, e nem com aqueles personagens. De todo modo, como vivia-
naqu
nas margens.”
295
Ao mesmo tempo, a cidade enfrentava um crescimento
xtraor
caso, como exigir do povo algo que a própria administração não resolvia? Não obstante o
risco de anacronismos, aqui salta aos olhos o problema hoje enfrentado em diversas várzeas
de rios e córregos da cidade: com a ocupação dessas áreas, a prática corrente da população é a
de também fazer o descarte dos detritos nas margens e no próprio leito dos rios e ribeirões.
Ignorância da população, como querem fazer ver nossos administradores ou, ao contrário,
um sinal de que os serviços públicos ali não chegam? De mais a mais, é preciso lembrar que, a
exemplo dos infectos canais que existiam por toda a cidade no século XIX, também os nossos
grandes rios (Tietê, Pinheiros e mesmo o Tamanduateí), carregam consigo toda a sorte de
detritos – industriais, por exemplo – sem que uma solução duradoura para isso seja
encontrada (e os culpados por este tipo de sujeira?). Assim, esta é uma história que não se
esgota na São Pa
se ele momento uma fase de transição, poderíamos também questionar a respeito do
convencimento sobre os novos rumos que a doença e a morte tomavam. Era este um
consenso? Ou, em outras palavras, todos acreditavam no que os médicos diziam? Penso que
não, pois tanto esses profissionais, quanto engenheiros e outras autoridades não se cansavam
de tentar impor regramentos para os despejos (normalmente não obedecidos) e sempre
chamando a atenção para os seus perigos:
“Do sr. Américo Brasiliense: Indico que seja determinado pela Câmara um
lugar conveniente, onde se faça deposito de lixo, e águas servidas, ficando
prohibido que se continue a effectua-lo na Várzea do Carmo, nas
proximidades do tio Tamanduatehy, por ser prejudicial á saúde pública,
como já se reconheceu (...)”
294
Como parte da nova precaução ou proteção que se queria contra as doenças e contra a
morte, tudo indicava que, no final do século XIX, uma intervenção mais séria deveria ser
realizada na várzea, pois frente aos costumes desviantes, não bastava mais, por exemplo, o
chefe de polícia declarar “ter providenciado no sentido de não continuar o publico a fazer despejos no
rio Tamanduateí , entre as pontes do Carmo e aterrado, afim de impedirem que se faça deposito de lixo
no mesmo e
e dinário naquelas últimas décadas e, dentre os novos moradores, estavam os
imigrantes que, em sua maioria, ocupavam os terrenos “roubados” à várzea como os do Brás
e do Pari. Uma nova preocupação surgia, já que eles também adoeciam na cidade:
294 - A. C. sessão do dia 05/06/1882, p. 160.
141
“Do médico da Câmara (...) para que se franquee o Lazareto de variolosos ao
immigrante italiano Arthur Langue, atacado de varíola”
296
Não apenas isso, pois o crescimento trouxe também a proliferação de cortiços cujos
moradores, cada vez em maior número, não tinham outra alternativa que não aquela de
encaminhar seus detritos para a várzea. Não por outra razão, esses moradores e suas casas
tidas como infectas pa
recaiu justamente naq
no ambiente da cidad
ue lançam os
ssaram a preocupar e, num primeiro momento, o olhar fiscalizador
uilo que o cortiço “jogava fora”, naquilo que lhe era externo, fora dele,
e. Por isso pedia-se, á todo momento,
“providências sobre a limpeza de vários canais de exgotos q
moradores de vários cortiços no rio Tamanduatehy (...)”
297
(meu destaque).
rmilo.”
299
mente a várzea
eixaria de ser o local mais procurado para os despejos – e por isso mesmo uma fonte
privilegiada de miasm
foram pensadas para o
venda dos terrenos”.
300
vereadores para tratarem
De mais a mais, a falta de providências para resolver esses e outros casos, fazia com
que a margem desse rio “ao lado da rua Vinte e Cinco de Março” ficasse cada vez mais num
estado de total falta de asseio.
298
Nessa situação, sabiam os médicos e administradores que qualquer ameaça mais
grave poderia se transformar numa tragédia. Por isso, sempre que vislumbravam uma
situação de risco, como a ocorrida em 1887, pediam eles que fossem:
“(...) tomadas providencias tendentes a impedir o desenvolvimento de
epidemia na cidade, nomeando-se uma commissão de vereadores para
resolver o que for necessário e propor a esta Câmara quaesquer medidas. Sala
das sessões, 20 de Agosto de 1887. – Francisco de Pennaforte Mendes de
Almeida. – Approvada, foram nomeados para a Commissão os Snrs. Dr.
Pennaforte, Domingos Sertório, Silveira da Motta e Ca
Seja pelo aumento excessivo da população, seja por entender que dificil
d
as – o fato é que a partir da década de 1880, intervenções mais sérias
local, sempre “... tendo em vista o saneamento e por base o aforamento ou
Em fevereiro de 1888, foi nomeada “uma comissão de profissionais e
sobre a divisão dos terrenos da várzea em lotes para serem vendidos e
295 - Ofício do chefe de polícia de 18/04/1885, A. C. sessão do dia 22/04/1885, p. 64
296 - A. C. sessão do dia 28/10/1885, p. 159
97 - Ofíc
300 - A. C., 21/02/1888, p. 51
2 io do inspetor de higiene, A. C. sessão do dia 28/07/1886 p. 156. Posteriormente seria o próprio cortiço,
ou o interior do mesmo a sofrer uma intervenção.
298 - Ofício do inspetor de higiene, A. C. 08/05/1888 p. 156.
299 - Indicação do vereador Francisco Pennaforte Mendes de Almeida, A. C. sessão do dia 20/08/1887, p. 237.
142
organização de um plano geral de embelezamento e saneamento desses terrenos”.
301
Nessa fase, surge o projeto de Victor Nothmann & Cia. para “o saneamento e
embelezamento de uma área completamente abandonada” e que seria “dotada de parque e lavanderias
da em
1860, também aqui estavam em jogo muitos interesses. De um lado, certamente o
ais visível era o econômico. Porém, de outro, percebemos que todos os projetos de
“saneamento e embele
e a retificação do rio. S
tradic s lavadeiras, os aguadeiros, tropeiros e carroceiros. Com a
onstrução do parque e o loteamento previsto, estes últimos certamente não mais teriam seus
antigo Hospício dos Alienados (área hoje localizada nas imediações da Av. Rangel Pestana e
Rua Tabatinguera) que, também, serviria para represar as águas do rio durante as
públicas (...) além de ruas e avenidas completamente preparadas”. Prevendo a venda de terrenos e a
concessão de áreas para a iniciativa privada (ou empresa) que se dispusesse a realizar os
melhoramentos, decidiu-se chamar outros concorrentes para apresentar propostas.
302
No decorrer desse debate veio a República, ocasião em que todas as comissões da
Câmara foram extintas. Aquela encarregada do “saneamento e melhoramento da várzea”
entrega então todos os papéis referentes ao caso e apresenta as duas únicas propostas que
chegaram para julgamento, a primeira de Victor Nothmann e a segunda assina
conjunto por Augusto Cezar de Miranda Azevedo e pelo engenheiro Samuel Malfatti. Mesmo
destituída, a comissão oferece um parecer favorável ao projeto de Miranda Azevedo e
Malfatti, em detrimento ao de Victor Nohtmann. E isso porque, “sob o ponto de vista econômico,
eles fariam as desapropriações por sua conta, a estética era preferível e as obras reconhecidas como
superior.”
303
Como sabemos, a construção de um grande parque na várzea do Carmo não seria
realizada naquela época, senão muitos anos depois, já na década de 1920. Nos interessa,
porém, a recuperação desses discursos sobre uma área de muita importância para a cidade,
bem como a análise das diversas opiniões sobre um mesmo local. Como já havia ocorrido na
década de
m
zamento” ultrapassavam em muito o simples dessecamento do terreno
ubjacente a todo esse processo, estava também a “limpeza” da área de
ionais, aseus tipos mais
c
espaços e, conseqüentemente, deveriam procurar por outras “várzeas”, já que esta estaria
agora a embelezar a cidade. As lavadeiras, por seu turno, que ocupavam uma grande
extensão das margens, seriam agora deslocadas e agrupadas em conjuntos de lavanderias em
pontos pré-determinados. No projeto de Victor Nothmann, por exemplo, as lavanderias
ficariam confinadas ao redor de um grande lago (chamado de reservatório) na altura do
301 - A. C., 04/09/1888, p. 244.
302 - A. C. 12/02/1889, p. 59 e 60
143
enchentes.
304
Pela proposta de Miranda Azevedo e Malfatti – a vencedora naquele momento –
seriam construídas quatro lavanderias públicas e, nesse sentido, argumentaram que:
“Algumas pessoas se levantam ainda contra o plano do saneamento, dizendo
que vae-se tirar a uma classe numerosa o local que tem para exercer a sua
profissão: a lavagem de roupa. Respondida fica esta objecção com o nosso
recemos a
As quatro lav
memorial por escrito,
anexo, e ao qual não tiv as lavanderias, a exemplo
das de Nothmann, fica
Mas, mesmo que assi
livremente qualquer p
conformar-se com loca
queria tanto para o pa “limpeza” e o
saneamento” da várzea do Carmo incluía não apenas os charcos pestilentos, mas também o de
term
de ver adiante.
projeto para a construção de quatro lavanderias públicas que offe
Ilma. Câmara Municipal.”
305
anderias de Miranda Azevedo e Malfatti foram apenas citadas no
fazendo eles a menção de que elas estariam no desenho que seguia em
emos acesso. Porém, tudo leva a crer que ess
riam restritas a um determinado local e não divididas ao longo do rio.
m fosse, o caso era que as lavadeiras não poderiam mais escolher
onto do rio para realizarem seus trabalhos, pois agora elas deveriam
is pré-determinados e, certamente, bem longe do embelezamento que se
rque quanto para a cidade. Sob esse ponto de vista, a
de inados grupos sociais. Aliás, de uma proposta aqui apenas esboçada, a mesma tornar-
se-ia bem mais explicita nas primeiras décadas do século XX como teremos a oportunidade
Antes, porém, reputo como da mais alta importância a análise do projeto assinado por
Augusto Cezar de Miranda Azevedo e Samuel Malfatti. O primeiro deles, Miranda Azevedo,
era um dos mais conceituados médicos paulistas. Participou da Sociedade de Medicina e
Cirurgia de São Paulo e foi o seu presidente de 1897-1898. Em 1900, participou dos debates
para a criação de uma faculdade de medicina em São Paulo. Além de sua atuação na área
médica, engajou-se na política e foi eleito deputado. Miranda Azevedo é reconhecido ainda
pela divulgação no Brasil das teorias evolucionistas de Darwin, tendo organizado em 1875,
no Rio de Janeiro, a “Conferência popular sobre do darwinismo”.
306
O segundo autor do
303 - A. C., 17/12/1889 p. 354 e 355
304 - Victor Nothmann, “Proposta para o saneamento e aformozeamento da várzea do Carmo e terrenos
circunvizinhos”, A. C. sessão do dia 17/12/1889, p. 376 e 377.
305 - Augusto Cezar de Miranda Azevedo e Samuel Malfatti, “Projecto para saneamento da várzea do Carmo”, A.
C. sessão do dia 17/12/1889, p. 363 a 369.
306 - Melo, Luís Correia de, Dicionário de Autores Paulistas, S.P.: Comissão do IV Centenário, p. 73. Ver também
Sheppard, Dalila de Sousa, A literatura médica brasileira sobre a peste branca: 1870-1940, In: Revista História,
Ciências, Saúde Vol. VIII (1), p. 173 a 192. Augusto César Miranda de Azevedo nasceu em Sorocaba (1851) e
faleceu em 1907. Além de sua carreira e política, Miranda de Azevedo foi também escritor, jornalista e historiador.
144
projeto, o engenheiro Samuel Malfatti, era italiano e trabalhou em Campinas junto às estradas
de ferro. Ainda naquela cidade, e colaborando com o arquiteto Ramos de Azevedo, projetou
, o
Eleita a várzea do Carmo como uma das áreas mais perigosas de São Paulo, uniram-se
(cerca de 1883) o conjunto de edifícios do “Circolo Italiani Uniti”, hoje Casa de Saúde
Campinas. Ainda com Ramos de Azevedo, Malfatti foi o responsável pela elaboração, em
1880, do projeto de um parque naquela cidade, hoje conhecido como Bosque dos Jequitibás.
Malfatti também teve participação política, tendo sido eleito deputado.
307
Eram, em suma, um médico e um engenheiro trabalhando em conjunto, definindo
estratégias e localizando os problemas que poderiam ajudar na geração e propagação da
doença o que, no final, redundaria numa intervenção no meio urbano. Um dos fatores que
deveriam ser analisados era certamente o aspecto natural da cidade u seja, a condição física
ou geográfica do sítio urbano. Isso explicaria ou tornava legível, por exemplo, o clima e a
direção dos ventos que, por sua vez, poderiam ser as causas dos males do corpo. Contra esses
fatores naturais pouco se poderia fazer. Mas, não esquecendo que a cidade é uma criação do
homem, esta poderia ser transformada a fim de que, pelo menos, se atenuassem algumas das
condições naturais que influenciariam na saúde dos moradores. Baseado nesse princípio de
atuação, e pensando nos fatores maléficos criados pelo próprio homem em seu ambiente
como a sujeira, a aglomeração de pessoas, casas e ruas estreitas, etc., a cidade torna-se o
objeto privilegiado de intervenção. É a cidade, podemos dizer, regida sim pela natureza, mas
também, pela ação humana, sendo esta última uma das causas da insalubridade.
308
Cabia,
pois, promover a modificação do meio urbano, seja pela eliminação dos pântanos (um fator
natural produtor de miasmas) e canalização de rios, seja pela interferência no modo de se
dispor as ruas e as casas e até na falta de asseio da população que, nesse caso, precisaria ser
reeducada. A saúde naquele final do século XIX estava, portanto, nas mãos não apenas dos
médicos, mas também na de engenheiros que, como profissionais especializados, melhor
saberiam projetar as reformas necessárias para tornar o ambiente salubre.
307 - Informações disponíveis nos sítios www.fec.unicamp.br/~arquitetura/pesquisas/ramos/circolo.htm e
www.fec.unicamp.br/~arquitetura/pesquisas/ramos/bosque.htm Samuel Malfatti nasceu em Lucca, Itália, e foi
o pai da pintora Anita Malfatti.
308 - Termos recorrentes nos documentos médicos e administrativos até as últimas décadas do século XIX,
salubridade e insalubridade já foram citadas algumas vezes neste trabalho. Mas, não obstante a semelhança entre
Salubridade e Saúde, é preciso esclarecer que os conceitos guardam uma diferença. Foucault (1995, p. 93) ao analisar
o surgimento de uma medicina urbana na França na segunda metade do século XVIII, esclarece: “Salubridade não
é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, dos meios e seus elementos constitutivos, que permitem a
melhor saúde possível. Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos
indivíduos. E é correlativamente a ela que aparece a noção de higiene pública, técnica de controle e de
modificação dos elementos materiais do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a
saúde. Salubridade e insalubridade são o estado das coisas e do meio enquanto afetam a saúde; a higiene pública –
no século XIX, a noção essencial da medicina social francesa – é o controle político-científico deste meio.”
145
para discuti-la o médico Miranda de Azevedo e o engenheiro Malfatti. O resultado desse
esforço foi elaboração de um projeto que visava a reformar, sanear e extirpar da cidade uma
área chagosa, insalubre. Não por outro motivo que, já na introdução da proposta, eles dizem
que “principalmente sob o ponto de vista da hygiene, não se comprehende que tenham consentido na
existencia desse
vasto foco de infecção tão prejudicial à saúde pública
309
(meu destaque).
Aqui está uma primeira imagem da várzea que, no decorrer do discurso, será
detalhada minuciosamente em seus horrores. Mas era necessário, logo de início, contrapor
argumentos no sentido de desacreditar aqueles que ainda não haviam se convencido dos
perigos ali existentes, e isso pelo simples fato de que não aparecera ainda nenhuma grande
epidemia em suas margens e nem mesmo na cidade ou, pelo menos, concretamente a ela
atribuída. Assim, arg
deletérios oriundos da V
palustres generalizadas c
predominam
umentaram os autores, que não “se diga ilusória a ameaça de agentes
árzea do Carmo, (e isso) por não terem ainda aparecido entre nós febres
om o caráter epidêmico, pois que não é esse o tipo de tais afecções, (as que ali)
(são) endêmicas, flagellando continuamente as populações que lhe são sujeitas.” (meu
destaque)
Portanto, não se tratava de epidemia e sim de casos endêmicos aqueles que ocorriam
na região da várzea, justificavam os autores. Mas, ao mesmo tempo em que tentavam dirimir
quaisquer dúvidas ao explicar o caráter das doenças, eles alertavam que este era um mal
possível de ser evitado, uma vez que guardava relação direta com o pântano. Nesse sentido,
explicaram eles, já era um “fato conhecido na clinica civil dos médicos que trabalham nesta cidade as
constantes e numerosas agressões do principio palustre, coincidindo com as elevações de temperatura e
com as
evaporações lentas dos charcos formados pelas águas pluviais e transbordos do Tamanduateí na
aludida planície que os proponentes pretendem sanear.” (meu destaque) E arremataram, com toda
a força e credibilidade que lhes era imputada que, “ainda neste ano (1889) as circunvizinhanças
de toda a Várzea do Carmo foram flageladas por febres palustres graves, e as perniciosas ai fizeram mais
de uma vitima.”
Dado este alerta e em parte já explicada a relação do pântano com as doenças, era
preciso agora reforçar a periculosidade da várzea lançando mão dos conhecimentos
científicos da época, pois já era “sabido que durante a estação chuvosa afecções palustres do mais
grave caráter reinam e desenvolvem-se em conseqüência da formação de pântanos nesses terrenos; são
repetidas e freqüentes os prejuízos de ordem material, quer para o estado, quer para os particulares, por
causa das inundações anuais, e, sobretudo, a nenhuma utilidade pública que resulta do abandono desse
309 - Augusto Cezar de Miranda Azevedo e Samuel Malfatti, “Projecto para saneamento da várzea do Carmo”,
op. cit. Os demais trechos do documento (citados a seguir em itálico) deverão ter a sua referência nesta nota.
146
terreno é por todos reconhecida e censurada.” O convencimento é conseguido através da união, na
mesma frase, de condições diferentes: se causavam infecções, os terrenos eram inúteis. Na
realidade, como vim aos ntes, não era isso o que ocorria com a várzea ou, pelo menos, inúteis
os terrenos não eram. De qualquer forma, tal argumento ganharia mais consistência e
credibilidade s
decomposição de
estagnadas pela
colaborador inó
ciência.” Ao de
popular, estav
da ciência.
Mas, se
menção aos d
poderíamos di
estatística mortu
palustres) ver-s
causas inofensiv
futuros, repousa
aos que pensa
embellezamento (...) e não se tem preocupado muito com as questões
e confrontado, novamente, com as vozes discordantes: “Fora singular que a
um poderoso acúmulo de matéria orgânica que se dissolve no fundo dessas águas
cocção de um sol abrasador, pudesse ser considerada como um agente ou um
cuo da atmosfera. Semelhante hipótese contraria todos os preceitos e indicações da
sacreditar outras versões, onde certamente estavam incluídas as de caráter
am também os autores reforçando o caráter inútil da várzea, agora valendo-se
tudo isso ainda não convencesse, eles dariam um cheque-mate com uma
ados da morte - mesmo que num exercício de puro impressionismo,
zer, mas que, para eles, não o era: “Si, além de uma consulta cuidadosa da nossa
ária, pudéssemos conhecer uma outra que não existe (a dos casos curados de afecções
e-ia que a tranqüilidade dos que só descobrem nos banhados que rodeiam a cidade
as feitas pela mão da natureza,com o fim de insinuar (apenas) aformoseamento
m (eles) à sombra de uma suposição funesta. A crítica aqui estava sendo dirigida
vam apenas no embelezamento da várzea, esquecendo-se do processo de
saneamento que deveria precedê-lo:
“A idéia (...) mais geralmente attendida tem sido a do exclusivo
technicas necessárias para dissecal-a, aterral-a e sanifical-a de acordo com os
interesses geraes e particulares. A questão de salubridade pública tem sido
completamente posta de lado; no entanto
as tristes e dolorosas lições que nos
offereceram agora Campinas e Santos do quanto são importantes as questões
de hygiene publica, devem chamar a atenção especial desta ilustríssima
Câmara para o ponto do saneamento da várzea do Carmo.”
ofissionais e dava mais credibilidade para a imagem de uma várzea
(e desvia) forçosamente as actividades
úteis para o lado de precauções que acautela a sorte do lar e da família, no que eles tem de mais
melindroso e de mais urgente.” Aqui está: todos os esforços deveriam ser feitos no sentido de
Esta menção à epidemia de febre amarela em Santos e Campinas solidificava a
osição dos dois prp
horrenda, cheia de perigos bem ao lado da cidade e de seus habitantes. Todo o cuidado era
pouco, especialmente para as famílias pois “a vida atribulada de enfermidades, salteada de
incertezas pelo receio de agressões mórbidas, impede o trabalho,
147
livrar as famílias e cada um dos habitantes individualmente, dos perigos, das doenças pois,
cerrar esta parte do projeto (a introdução, poderíamos dizer), os autores
hamam novamente a atenção para a higiene e para os perigos da várzea:
Nenhum povo deixa de utilizar as bellesas naturaes de seu paiz, porque ellas
educam o gosto e suavisam a existência, influindo sobre a vida moral da
sociedade; mas o que fazem
as nações policiadas é consultar no
caso contrário, eles estariam a “desviar” um tempo precioso no “acautelamento”, deixando
de aplicá-lo no trabalho. Tais argumentos, certamente, encontraram eco na administração e,
acredito, foi uma das razões que influíram na aprovação da proposta.
Para en
c
embellesamento das cidades os severos conselhos da hygiene. O projeto que
ora offerecemos aos Ilmos. Snrs. vereadores desta cidade vem realizar esse
ideal, porque
saneia a vasta planície, ora reduzida a um perigoso pântano;
embeleza-a e utiliza a área esperdiçada que até hoje permanece
inaproveitada, inculta, exprimindo uma permanente ameaça à saúde pública.
(meus destaques).
Apesar das obras não terem sido realizadas naquele momento, o projeto Miranda de
zevedo e Malfatti conseguiu o feito de amadurecer a idéia de um grande parque para a
árzea que conjugasse, além do embelezamento, o seu dessecamento e saneamento. Esta era,
mbém, a grande solução para o problema dos detritos ali atirados por uma parte da
opulação que não se enquadrava nos novos moldes propostos.
De qualquer forma, a não concretização do projeto naquele momento muito tinha a
uro público da várzea, questão esta levantada pelo
ereador Pennaforte no dia 30/12/1889. Por isso, dizia ele, a Câmara não poderia aliená-lo,
em mesmo em parte, para particulares e tão pouco vendê-los. Nessa situação, ele sugeriu
em rejeitados. Não atendido pelos demais, foi oficialmente aprovado
o projeto do enheiro Malfatti. Não conformado,
ennaforte declarou que iria recorrer dessa decisão junto ao governo do Estado.
310
E o caso da várzea, com seus problemas e perigos, se arrastaria ainda por um bom
tempo. Nada foi tão r
verbas para a interven
foi o único. E aqui refo um
lado, as qualidades ou a natureza positiva que persistiam nesses locais para muitos dos
A
v
ta
p
ver com o caráter público ou de logrado
v
n
que os dois projetos foss
médico Miranda Azevedo e do eng
P
ápido, nem no Anhangabaú e tão pouco no Tamanduateí. A falta de
ção que se queria pode ter sido um dos motivos, mas certamente não
rço minha tese de que outros grandes embaraços tenham sido, de
moradores e, de outro, a confusão que se instalou quanto aos rumos que os males e morte
tomavam naquele momento. Este problema, que já estivera nas mãos de Deus e de outras
forças sobrenaturais foi, depois, imputado aos miasmas e agora, diziam os médicos e alguns
148
administradores, as doenças e a morte estavam vinculadas aos micróbios. Nos jornais, já se
podia ler:
O bairro do Chá, onde o solo pede construções altas, arejadas e limpas,
quintaes seccos e sem estrumeiras, é o mais estragado [pelos cortiços]
verdadeiros focos de epidemias,
verdadeiros asylos de micróbios.”
311
(meu
destaque)
Ao mesmo tempo, porém, os mesmos periódicos estampavam anúncios de remédios
com características milagrosas, seja contra o reumatismo, afecções escrofulosas, tuberculosas e
cancero
ociavam-se à Graça de Deus?
onfinação do
pelos canais
sas, gonorréia, erisipela, asma, bronquite, catarro pulmonar ou tosse. Todas as pílulas,
charopes e “águas” (inglesa e brasileira) de acordo com os anúncios, eram preparadas “com
vegetais indígenas”, ou com “lealima, remédio indígena” ou, ainda, “... exclusivamente com plantas
indígenas do interior da Bahia”
312
Decerto que os anúncios “faziam efeito”, principalmente
porque vinculavam-se a um universo conhecido dos paulistanos. Os novos remédios
causavam sensação: que segredos guardariam as plantas indígenas vindas de longe, lá “do
interior da Bahia”? Irresistível. Mais ainda, como não considerar os remédios que, além
dessas poderosas propriedades, ass
Aparecimento Milagroso – Pílulas vegetaes da Graça de Deus
preparadas de Tiborna, Acácia e Pacari.
Contra: febres intermitentes de Macacú, tifóide e todas as febres em geral. (...)
No século luminoso em que vivemos, auxiliados pela Graça de Deus, foi-nos
concedida a protecção de espantar as trevas de nossos espíritos para
apresentar á humanidade martirizada uma taboa de salvação.
Este produto (...) garante a qualquer doente de sezões, embora esteja em
eminente perigo de vida, a cura completa. (...)
A podridão e a decomposição da vegetação são a causa principal das febres
intermitentes. Os miasmas dos terrenos humidos e paludosos vão todos os
dias arbitrariamente apoderando-se do organismo humano, e, cooperando
para o desenvolvimento de febres. (...)
As sezões, além do exposto, sabe-se que pela decomposição dos charcos,
mangues, madeiras, ramagens, isto é, pela decomposição de matérias
orgânicas, tanto animaes como vegetaes, são produzidas pela c
ar. Este ar sendo absorvido pela respiração, espalha-se
irrigadores do sangue como uma paralisia vegetal. (...)”
313
310 - A. C. sessão do dia 30/12/1889, p. 388 a 393.
311 - “A Província de São Paulo”, edição do dia 12/01/1887, primeira página, Hygiene Pública.
312 - “A Província de São Paulo”, edições dos dias 28/03/1883, 18/07 e 29/07/1884. Apesar dos anúncios aqui
recolhidos referirem-se a finais do século XIX, a vinculação dos mesmos na imprensa continuou ainda por muito
tempo, até as primeiras décadas do século XX. A esse respeito veja a esclarecedora análise de Bertucci, Liane
Maria; Remédios, charlatanices ... e curandeirices – Práticas de cura no período da gripe espanhola em São Paulo; In:
Chalhoub (2003), p. 197 a 227.
313 - “A Província de São Paulo”, edição do dia 13/06/1882, p. 03, anúncio.
149
Sobrepunham-se simultaneamente – e sem qualquer problema, como podemos
perceber – saberes vindos dos mais variados matizes: para valorizar as propriedades
curativas das pílulas, recorreu-se inicialmente a algo que produzia grande efeito pelo poder
que representava, ou seja, à Mão Divina que, nesse caso e como que num milagre, havia
concedido privilégios ao autor da façanha, alguém certamente puro e, talvez, santificado. A
interface com este saber, porém, parava por aí, uma vez que o anúncio sobre o aparecimento
das Pílulas Milagrosas da Graça de Deus enveredou por um outro caminho, este também
bastante conhecido: o preparado levava tiborna, acácia e pacari, plantas valorizadas pelas
suas qualidades curativas. O discurso em seguida – e com a intenção de consolidar os
argumentos anteriores – muda novamente e, valendo-se das teorias médicas (que pouco
depois seriam desqualificadas pela microbiologia), explica didaticamente a etiologia dos
males, imputando-os aos miasmas. Neste último tópico, não há como não relacionar as
doenças com a infernal decomposição dos charcos que ocorria na várzea do Carmo. Hoje
poderíamos avaliar como contraditórios os caminhos escolhidos para a apresentar o remédio
com
das a
e presentes na propaganda. Entretanto, estes não eram assim percebidos naquela época. De
fato, nesse caso temos um claro exemplo de que novas concepções não substituem
plenamente (e nem rapidamente) as anteriores e, nesse sentido, presenciamos a convivência,
num mesmo período, de várias visões de mundo.
314
Na São Paulo das últimas décadas do século XIX conviviam, sujeitos e grupos das
mais diferentes matizes, fossem eles os nacionais, fossem os recém-chegados imigrantes.
Saberes, experiências e variadas concepções sobrepunham-se uns aos outros, o que resultava
numa tensão própria diante do processo de urbanização da cidade. Nesse sentido, São Paulo
apresentava um inusitado cosmopolitismo, já que em seu ambiente citadino conviviam,
simultaneamente, práticas referendadas na antiga cidade provinciana oitocentista –
to s suas crenças e valores – ao lado de outras, que se queriam “civilizadas”, e que
buscavam suas referências ora na Europa, ora nos Estados Unidos.
315
Essa tensão, como não
314 - Mesmo no campo da medicina, e devido às constantes modificações experimentadas nas últimas décadas do
século XIX, isso ocorreu, ou seja, a permanência de antigas teorias que ajustavam-se às novas sem qualquer
problema aparente. Exemplo disso é um discurso oficial (melhor analisado em capítulos posteriores) e que, ao
chamar a atenção para o perigo das bactérias existentes na lama das ruas “... na quantidade de 30 bilhões por
centímetro” estas estariam “... acelerando as exalações miasmáticas.” A. C. sessão do dia 06/03/1894, vol. manuscrito,
p. 143 a 163. Mais detalhes no capítulo 5 adiante.
315 - Comum na historiografia é a análise da vertente européia como modelo para nova cidade que se edificou a
foi buscado nas grandes cidades americanas. Em 1893, por exemplo, prenunciava o vereador Pedro Vicente de
partir de finais do século XIX. Entretanto, desde a década de 1890, pelo menos, nota-se que este modelo também
Azevedo: “... a cidade de São Paulo, que em menos de 20 annos triplicou em população, que não está estacionada,
mas
destinada a ser a Chicago da América do Sul, não imite jamais as cidades platinas ...” (aqui ele discursava contra os
endividamentos das “cidades platinas”). A. C., sessão do dia 19/12/1893, p. 538. A respeito dos vários e
diferenciados grupos que conviviam na cidade, veja Koguruma, Paulo (1999) e Santos , Carlos José Ferreira de
(2003) op. cit.
150
poderia deixar de ser, fazia-se representar inclusive no poder público e aqui damos o
exemplo da várzea, cujas longas e demoradas discussões, bem como o tempo decorrido para
a implementação do projeto higienizador, são provas inequívocas de que também entre os
administradores não havia ainda um consenso.
Trazendo esta análise para os personagens envolvidos naquela disputa, cabe ressaltar
que temporalidades e ritmos sociais diferenciados interpunham-se e tencionavam um quadro
já complexo. A experiência de uma lavadeira ou de um carroceiro que se serviam da várzea
vam-se anúncios onde os miasmas ainda
pareciam como um grande perigo. Mediante esses descompassos, as curas para as doenças
poderiam, por exemp
ou, também, recorrend
iativos oferecidos pelos tradicionais ervateiros. Portanto, ao mesmo tempo em
ue se tentava impor um parque higienizado à várzea do Carmo ou ao Anhangabaú, curas
mágica
neamento da várzea do Carmo.”
317
Ou a paulatina ocupação da área vizinha, e as
divulgação recente de que seriam os micróbios (tão invisíveis quanto os miasmas) os causadores
não era a mesma dos administradores ou a de médicos e engenheiros – não obstante a
existência de diferenças entre estes; ao mesmo tempo em que se chamava a atenção para os
perigos que os micróbios representavam, divulga
a
lo, serem tentadas com a ajuda das Pílulas Milagrosas da Graça de Deus
o-se a Pai Inácio. De toda forma, também nas ruas podia-se encontrar
uma série de pal
q
s para os males do corpo poderiam ser conseguidas a cada esquina. Mediantes essas
tenções, não seria ainda naquele momento que tais projetos cosmopolitas se concretizariam.
316
Não bastou, por exemplo, uma nova ameaça de epidemia de febre amarela em 1892,
quando então foram discutidas “medidas de higiene e salubridade” e onde foi lembrada “a urgente
necessidade de sa
denúncias de construção de casas, especialmente nos limites do Braz, Mooca e Bom Retiro, sem
levar em consideração o propalado projeto de saneamento.
318
Não bastou, principalmente, a
de tantos males sofridos pelo corpo, como alertou o vereador Ricardo Guimarães Filho no
mesmo ano de 1892 por ocasião da ameaçadora epidemia de febre amarela:
316 - A esses descompassos registrados entre indivíduos ou grupos que viveram numa mesma época podemos
dar o nome de temporalidades, diferentes ritmos ou experiências sociais ou, como nos fala Alain Corbin, de
sensibilidades diferenciadas. Segundo este autor, “de certa forma os indivíduos que vivem um mesmo período não são
contemporâneos”. Nesse sentido, “a história cultural é feita de recobrimentos, de sedimentações, de inércias”, posto que os
indivíduos não “sentem a as mesmas coisas, segundo uma série de critérios: o sexo, a idade, a categoria social, o local
geográfico, a tradição ou a cultura que recebeu.” Portanto, completa Corbin, “o historiador da cultura deve tentar sempre
entender essa complexidade, essa simultaneidade de atitudes muito diferentes segundo os indivíduos e segundo os grupos.”
Para este estudo, tomo as palavras de Corbin mais como um alerta, pois consegue clarear algumas questões e
aponta alguns caminhos cheios de possibilidades. Digo isso pois aqui existe um risco, qual seja, o de se verificar
um certo estilhaçamento da história por conta de particularizações demasiadamente exageradas e considerando as
inúmeras micro-variantes. Veja Alain Corbin – o prazer do historiador; entrevista a Laurent Vidal, trad. de Christian
Pierre Kasper, In: Revista Brasileira de História, vol. 25, nº 49, São Paulo, 2005. Aqui de modo bastante sucinto,
este caminho sugerido por Alain Corbin está presente em suas obras como Saberes e Odores (S.P.: Cia das Letras,
1987) e História dos Tempos Livres (Lisboa:Teorema, 2001).
317 - A. C., reunião extraordinária de 12/03/1892.
151
“A Intendência Municipal compenetrada dos seus deveres de zelar pela
salubridade pública e de attender para as condições melindrosas e altamente
danosas aos habitantes dos bairros adjacentes às várzeas do Tietê e
Tamanduateí, agora inund ideração os estudos (...) adas, e tomando em cons
para o saneamento das mesmas várzeas (...) resolve pedir ao Dr. Governador
do Estado de mandar por em execução o dito projeto, na parte relativa às
obras de caráter urgente destinadas à proteção da parte baixa da cidade e
impedir o desenvolvimento de
germens danosos à salubridade pública (...)”
319
(meu destaque).
As obras de retificação do rio e a construção de seu canal somente tomariam impulso
a partir dos primeiros anos do século XX, sendo levadas a efeito pela administração estadual.
O discurso, porém, já era outro uma vez que os fugidios miasmas já haviam deixado a cena –
í que, protegida
ao menos na fala dos governantes substituídos que foram pelos temidos micróbios. Ao lado
destes, certos “macróbios” também preocupavam e acabaram sendo considerados tão ou
mais perigosos quanto aqueles. Como todos estavam a viver numa “promiscuidade nojosa”,
era preciso, concreta e explicitamente, realizar também uma “limpeza social” na várzea, ou
expulsar dali tudo o que fosse entendido como podridão e que, naquele momento, incluía os
seus freqüentadores menos desejados. A esse respeito disse em 1916 o então prefeito
Washington Luís:
“(...) o que hoje ainda se vê, na adiantada capital do Estado, a separar brutalmente o
centro comercial da cidade e os seus populosos bairros industriais, é uma vasta
superfície chagosa, mal cicratizada em alguns pontos e, ainda, escalavrada, feia e suja,
repugnante e perigosa em quase toda a sua extensão. Nessa vasta superfície
acidentada, de mais de 25 alqueires de terra, após a época das chuvas, ficam
estagnadas águas em decomposição que alimentam viveiros assombrosos de
mosquitos, que levam o incômodo e a moléstia aos moradores confinantes; no tempo
da seca formam-se aí trombas de poeiras que sujam e envenenam a cidade; a espaços,
o mato cresce a esconder imundícies que sustentam, não obstante o zelo da Limpeza
Pública, tudo isso com grave dano para a saúde dos munícipes. É a
pelas depressões do terreno, pelas voltas do Tamanduateí, pelas arcadas das pontes,
pela vegetação das moitas, pela ausência de iluminação
se reúne e dorme e se
encachoa, à noite, a vasa da cidade, numa promiscuidade nojosa, composta de
negros vagabundos, de negras edemaciadas pela embriaguez habitual, de uma
mestiçagem viciosa,de restos inomináveis e vencidos de todas as nacionalidades, em
todas as idades, todos perigosos. É aí que se cometem atentados que a decência
manda calar; é para aí que se atraem jovens estouvados e velhos concupiscentes para
matar e roubar, como dão notícias os anais judiciários, com grave dano para a moral e
para a segurança individual, não obstante a solicitude e a vigilância de nossa polícia.
Era aí que, quando a polícia fazia o expurgo da cidade, encontrava a mais farta
colheita. Tudo isso pode desaparecer e tendo sido já muito melhorado com a
canalização e aterrados feitos, sendo substituídos por um parque seguro, saudável e
belo, como é o do projeto Cochet. Denunciado o mal e indicado o remédio, não há
lugar para hesitações porque a isso se opõem a beleza, o asseio, a higiene, a moral, a
318 - A. C. sessão do dia 19/03/1892
319 - Indicação (aprovada) do vereador Ricardo Guimarães Filho, A. C., sessão do dia 03/03/1892, volume
manuscrito, p. 183 e 183 verso.
152
segurança, enfim, a civilização e o espírito de iniciativa de São Paulo.”
Apesar desta preocupação “moderna” explicitada no discurso de Washingto
320
n Luís, o
fato é que antes desses macróbios, foram os micróbios presentes na várzea os maiores
responsáveis pela perda prematura de grande número de vidas. Eram eles, e não os miasmas
como se pensava, os causadores de um sem número de febres contraídas ou pelo contato com
as águas pestilentas do Tamanduateí, ou diretamente com os detritos ali jogados diariamente.
E, dentre as inúmeras febres que atacavam os moradores da região, estava uma das mais
graves delas, a tifóide:
“Faleceu ontem as 12 horas da noite, de
Febre Renitente de Forma Tiphoide, Maria Adelaide, com 20
annos de idade, portuguesa, cazada com Gregório Tavares e foi sepultada hoje dia 30 de março de 1893
no cemitério do Brás”
321
“Foi sepultado ho
filho do português
je no quadro geral 1º dos anjos grandes, o cadáver de Emydio com 5 annos de idade,
João Lopes Theotonio, falleceu ontem as 10 horas da manhã de Febre Tyfoidea,
sepultou
-se hoje como pobre. Cemitério do Brás, 11 de Abril de 1893.”
322
É certo, entretanto, que muitas das condições presentes na cidade – e que poderiam
causar algum mal às pessoas - não estavam presentes apenas no infeccionado Anhangabaú
ou no pestilento Tamanduateí, até porque outros graves perigos estavam a rondar os
paulistanos.
320 - Relatório do Prefeito Washington Luís, 1916, p. 172, ofício nº 1.191 de 16/12/1916.
321 - Livros de Inumação do Cemitério do Brás (Quarta Parada), Vol. 33, 1893, p. 34 .
322 - Livros de Inumação do Cemitério do Brás (Quarta Parada), Vol. 33, 1893, p. 44.
153
Capítulo 4 – A podridão nas ruas:
4.1 – os tigres do quartel e da cadeia
“Sendo uzo fazer-se o despejo das immundicies da Cadêa no Rio
Anhangabahú, affectando assim aquellas águas, requeiro q. se officie a Policia,
afim de que haja de dar providencias necessárias; e bem assim para que se não
deite no largo da Cadêa as sobras ou lavagem da comida dos prezos”
323
No período transcorrido entre as décadas de 1860 e 1880 vários perigos estavam à
espreita dos que residiam ou circulavam pelas ruas, becos e largos da cidade. Porém, numa
área em especial o paulistano deveria redobrar sua atenção, olhar mais firmemente ao redor e
ficar atento aos odores. Bastante freqüenta o centro da cidade, nas imediações do
ssa Senhora dos Remédios e a de São Gonçalo. Por si só, esses grandes marcos
a infecção dos ares e dos terrenos adjacentes.
do, já que n
antigo Largo da Sé e da atual Praça Dr. João Mendes, era este o conhecido Largo Municipal ou
da Cadeia. Ali se encontravam diversos prédios importantes a exemplo do Teatro São José (o
primeiro assim chamado), os edifícios da Câmara Municipal e da cadeia, o Quartel de Linha,
as igrejas de No
físicos da administração pública, de religiosidade e de lazer, atraíam muita gente. Mas,
mesmo se o destino não fosse um deles, diversas outras pessoas por ali transitavam, visto que
esta era a melhor comunicação entre a cidade e o bairro da Liberdade, logo adiante, sendo
ainda intensa a movimentação de viajantes que demandavam ou seguiam para Santos.
E o problema é que nesse mesmo local subsistia, há anos e sob a vista de todos, um
costume que passou a ser considerado como dos mais maléficos à salubridade, já que o
mesmo redundava numa constante causa para
Tratava-se do descarte das águas servidas e de toda a sorte de detritos produzidos pelos
presos da cadeia e pelos soldados do quartel. Estes, por sua vez, agrupados em dois únicos
prédios, somavam centenas de homens, sendo que somente na cadeia o número de presos já
chegava a 126 pessoas no ano de 1867.
324
Nesse sentido, era grande o volume de dejetos
produzidos nas duas instituições.
A primeira delas, a cadeia, esteve por muitos anos sob a supervisão da Câmara
323 - Indicação do vereador Porfírio apresentado na sessão da Câmara do dia 24/03/1860, p. 89 e 90.
324 - Informação do carcereiro da cadeia aos vereadores, A. C. sessão do dia 22/01/1867, p. 19
154
Municipal e localizava-se no térreo do mesmo edifício utilizado pelos vereadores, no antigo
Largo Municipal (ou Largo da Cadeia), hoje um dos cantos da Praça Dr. João Mendes,
sobranceiro ao Anhangabaú. O segundo estabelecimento, chamado de “Quartel de Linha” ou
do “Trem”, abrigava muitos soldados e era de responsabilidade do governo provincial. Com
sede em
do rio Tamanduateí.
oucos metros separavam os dois edifícios, mas, pela disposição dos mesmos na colina, cada
qual escolhia o rio ma
eram realizados exclus
preferencialmente no
Todavia, nem s
várzeas, sendo muito c
exposto, corrompendo ass
fato, e até 1865, a limpeza da cadeia era realizada diariamente pelos próprios
condenados que, de manhã e
s tampa, de modo que
o prédio.
De qualquer fo
pois muitas famílias
Utilizando-se de tonéi
despejos aos seus escr
um prédio situado na antiga “Rua do Quartel” (hoje desaparecida, incorporada que
foi à Praça da Sé), estava o quartel mais próximo da igreja do Carmo e
P
is próximo para fazer os seus despejos. Os da cadeia, por exemplo,
ivamente no Anhangabaú; os do quartel, por outro lado, eram jogados
Tamanduateí e, vez ou outra, também no Anhangabaú.
empre os dejetos eram encaminhados rapidamente para os rios e suas
omum o fato deles permanecerem a descoberto e por um longo “tempo
im o ar contra a salubridade pública”, conforme denunciaram os vereadores
em 1860.
325
De
à tarde, saíam pela cidade carregando cerca de vinte ou trinta
tonéis de madeira cheios de toda a sorte de imundície como os restos da alimentação, as águas
servidas e matéria fecal.
326
Esses barris, também chamados de “cubos de limpeza”, logo
receberam, pelo forte odor que exalavam de sua boca, o acertado apelido de tigres da cadeia.
Para sair da prisão, os tonéis eram transpassados em uma vara, sendo esta
empunhada pelos presos que, já na rua, atravessavam todo o largo de São Francisco para, em
seguida, descerem as ladeiras rumo ao Anhangabaú. Porém, ocorria que os cubos da cadeia
estavam quase sempre em péssimo estado muitos “quebrados e outro sem
(no mínimo) exalavam mau cheiro”
327
mas, também, sofriam eles com o constante balançar
pelas ruas da cidade e iam derrubando, aqui e ali, boa quantidade do material que
carregavam. Talvez por este motivo, não raro lixo e esgotos eram atirados diretamente da
cadeia no largo Municipal em frente, sem cobertura nenhuma, o que irritava muitos dos
vereadores que por ali eram obrigados a passar em direção à Câmara que funcionava no
andar superior do mesm
rma, não apenas os presos se utilizavam destes barris para limpeza,
também assim procediam e, é claro, com os mesmos problemas.
s do mesmo tipo, moradores mais abonados delegavam a função dos
avos, outros pagavam vintém a ambulantes acostumados ao trabalho.
325 - Oficio ao ”chefe de polícia pedindo providências para que se obrigue aos presos que fazem a limpeza da
cadeia que cubram o lixo onde depositam (...)” A. C. sessão do dia 14/06/1860, p. 129.
326 - A. C. sessão do dia 05/12/1865 p. 317.
327 - Ofício do delegado de polícia à Câmara Municipal datado de 19/11/1867, P. A., vol. 197, 1867, doc. nº 51
155
Piteco era um deles. Li
em São Paulo na décad
à casa de um abastado no largo do Colégio para retirar o vasilhame
oturno, a fim de descarregá-lo na várzea do Carmo. Certa vez, quando ele descia a ladeira Porto
distância rio Tamanduateí e da várzea do Carmo, era muito mais
travessa da rua da Glória” e, de outro, o alferes do corpo fixo
r.Fiscal a respeito do Chafariz de detraz
berto, fora escravo do padre Chico Amaro, e era um tipo muito popular
a de 1870. “Durante o dia, ganhava alguns trocados levando águas às
residências. À noite, ia
n
Geral, o vasilhame, que estava com o fundo estragado, destampou-se e a imundície foi toda
sobre ele, quase asfixiando-o, o que não sucedeu por ser socorrido a tempo. Era tão lastimável o
seu estado que ele saiu correndo e foi jogar-se n´água, ali perto, na Ilha dos Amores.”
328
Na limpeza do quartel, por sua vez, nada de muito diferente acontecia. Apesar de
estar colocado a pouca
cômodo fazer os seus despejos diretamente numa das ruas laterais como a Tabatinguera ou
na própria rua da Glória. Aqui, porém, havia um problema: os militares sediados no quartel
eram subordinados ao governo provincial, enquanto que a fiscalização das ruas era realizada
pelos Guardas Urbanos, estes sob a responsabilidade do município. Por conta dos despejos,
ou mesmo para resolver pequenas rixas entre eles, vários conflitos envolveram as duas forças
e acabaram mesmo em prisões como a ocorrida em agosto de 1861. De um lado, estava o 2º
sargento urbano Justino Fiel da Fonseca que mandara prender “a um preto do Quartel no acto
em que lançava agoa immunda na
Fernando Martins Bonilha que, achando-se ofendido, libertou o preso e, ato contínuo,
mandou prender o próprio guarda Justino numa das celas do quartel. A querela perdurou
por 27 dias, de 10 de agosto a 7 de setembro de 1861, período este em que o guarda urbano
ficou preso “injustamente”, conforme manifestação dos vereadores ao presidente da
província, uma vez que ele “não fez mais do que executar uma postura municipal”.
329
Os soldados do quartel não se intimidavam e, não raro, realizavam seus despejos nos
chafarizes das proximidades, colocando assim em risco muitos daqueles que ali iam em busca
de água para seus afazeres e para matar a sede:
“A Câmara, ouvindo verbalmente o S
do Quartel resolveu que se officiasse ao Exmo. Governador pedindo as
necessárias providencias para que o Comandante do Corpo da Guarnição
prohiba que as praças façam ali despejos como costumam.”
330
(meu destaque)
A repugnância ou o medo maior frente a tais despejos em plena via pública, eram
expressos principalmente pelos que residiam nas imediações do quartel e da cadeia. Sempre
328 - Freitas, Affonso A. de, op. cit., p. 68
329 - Reclamação do 2º Sargento Justino aos vereadores e Ofício ao presidente da província, A. C. 22/08/1861, p.
161 e 162; Portaria do presidente da província, A. C., 12/09/1861, p. 177.
330 - A. C. sessão do dia 23/01/1865, p. 38.
156
em alerta para tais casos, eles reclamavam, denunciavam os acontecimentos mais graves e
ens e 8 mulheres que, de acordo com o mesmo
o completamente infecto.”
334
Em 1836, por exemplo, a quantidade de
presos
imundícies e, segundo um projeto que oferecia, os mesmos
lembravam, a todo o momento, a “necessidade de remover-se a limpeza da Cadêa e do Quartel para
outro lugar”.
331
Um outro problema que se fazia presente nos dois locais, e que contribuía para com a
insalubridade geral, era o fato de neles viverem centenas de pessoas, sejam confinadas em
celas, sejam de passagem, como no caso do quartel. Muitos presos eram admitidos já doentes,
outros ali mesmo contraíam seus males. A cadeia de São Paulo, segundo denunciava um
relatório de 1831, era das mais “imundas, pestilenta e com todo o seu ar infectado”. Não existia
uma divisão entre os presos e, por isso, resultava que “em uma mesma cela conviviam o ladrão, o
assassino, os correcionários e outros de menores crimes.” Naquele mesmo ano de 1831, o número
de presos chegava a 59, sendo 51 hom
relatório, “eram tratados com a última desumanidade, pois seu alimento era quase nenhum, dado no
longo espaço de 24 horas.” A realidade era que eles “conviviam com a fome, com a nudez e com a
falta de asseio.” Para remediar essa situação, era comum os presos prepararem suas refeições
ali mesmo, acendendo fogueiras no chão das celas, do que resultava um “ar impestado pelo
carbônico e pelo fumo”, um verdadeiro tormento, finalizou o relato.
332
Não obstante a denúncia,
nos anos seguintes a situação permaneceria a mesma, pois na enfermaria da cadeia continuava
“a falta de colchões, cobertores e travesseiros” e a comida encontrada era “pouco asseada e em diminuta
quantidade”.
333
Durante boa parte do século XIX, continuou a cadeia com uma “falta geral de aceio,
com ares mefíticos e num estad
já chegava a 100, e destes nove eram mulheres. A aguardente ali entrava sem nenhum
controle, reclamava o fiscal Bernardo Justino da Silva aos vereadores, tanto que um dia os “dois
galés da limpeza achavam-se tão embriagados na ocasião em que iam fazer a limpeza das imundícies,que
derrubaram uma tina na 1ª enxovia, e outra na escada principal da cadeia.” O fiscal resolveu então
mandar buscar alfazema “para sanar o grande fétido que ali existia.”
335
De tal maneira a limpeza da cadeia preocupava que, em 1831, o engenheiro alemão
(marechal de campo) Daniel Pedro Muller ficou encarregado de elaborar um plano para dar
uma solução a este problema. Não havia outro modo para resolver a questão, disse ele, a não
ser que se comprasse “um pequeno quintal nas proximidades do edifício, onde deveria ser
construído um depósito” para as
331 - Relatório do fiscal Rufino Mariano de Barros, A. C. sessão do dia 05/12/1865 p. 316.
332 - Arquivo Histórico Municipal, Fundo C.M.S.P., Conselho de Vereadores, Comissão de visitas a prisões e
estabelecimentos de caridade, Relatório de 30/08/1831.
333 - Id. ibidem, relatório de 23/08/1839.
334 - Id. ibidem, relatório de 1841.
335 - Arquivo Histórico Municipal, Papéis Avulsos, 1836, citado em Sant´Anna, Nuto; São Paulo Histórico, vol. II,
S.P.: Departamento de Cultura, 1937, p. 86
157
não prejudicariam “a salubridade da vizinhança”, visto que seguiam um modelo que se
inventara na França, sendo os mesmos de pouca despesa.” Para este terreno seriam então
“conduzidos dos quartos ocupados, as imundícies, com facilidade, duas vezes ao dia, pelos
serventes, em barris tapados, feitos para esse efeito.”
336
Mas, não seria dessa vez que a
questão seria resolvida. Após analisar o projeto, os vereadores responderam que “tendo em
consideração o desgraçado e miserável estado da dita cadeia, e os melhoramentos que se lhe projetam, é
deia, pela aglomeração de indivíduos que ali existem, sem as precisas condições
higiênicas, um foco de infecção colocado, por assim dizer, no centro da cidade, e de onde nas ocasiões de
epidemia, como a experiência ultimamente mostrou com as das bexigas, se propaga o flagelo com maior
intensidade.”
340
De tal forma a
cólera que já estava “a
de parecer que o dito plano seja adotado na parte só relativa ao pavimento baixo (...). Porém, na “parte
que diz respeito á água para o serviço dos presos, e o quintal para as latrinas, a Comissão é de parecer
que por ora se não se trate disto, até que o tempo mostre melhores comodidades.”
337
No quartel, por sua vez, inaugurado em 1791 para nele instalar-se a chamada Legião
de Voluntários Reais, era grande o trânsito e a hospedagem de soldados vindos de outras
cidades e mesmo de diferentes regiões do país. Ali eles viviam “ou antes morriam, pelos tempos
afora, seminus, com soldos em atraso, com a família andrajosa e a barriga vazia...”(sic)
338
Os dois edifícios eram, portanto, locais propícios para o desenvolvimento de diversas
moléstias, muitas vezes com caráter epidêmico, como a de varíola que atacou os presos em
maio de 1863 e, aos poucos, espalhou-se por toda a cidade, causando muitas mortes até
fevereiro de 1864. Como o mesmo edifício abrigava tanto a cadeia (que ficava no térreo)
quanto a Câmara, os vereadores, bastante apavorados, abandonaram o local e passaram a se
reunir em casas emprestadas aos colegas, fato este, aliás, que se repetia amiúde, a cada
epidemia que assolava a cidade.
339
Não por outro motivo, reconheciam os vereadores em 1866
que “... é sabido ser a ca
cadeia era preocupante que, em 1886, e diante de uma ameaça de
ssolando a vizinha República Argentina”, lembrava o médico da Câmara
336 - Sant´Anna, ib. ibidem Como parte desse projeto, Daniel Pedro Muller sugeriu ainda a completa separação
dos presos que poderia ser os homens condenados à morte; outro para
os processados por delitos capitais; e assim sucessivamente para os delitos não capitais - mais decentes; menos
decentes; para os que deve
condenadas à morte ou d
Deveriam existir ainda quar
Arquivo Histórico Municipal, 1831, vol. 36, doc.nº 131.
337 - A. C. sessão do dia 13
338 - Sant´Anna, Nuto; São Paulo Histórico, vol. VI, S.P.: Departamento de Cultura, 1944, p. 52.
339 - Na abertura da sessão da Câmara de 16/05/1863, por exemplo, os vereadores consignaram que: “As 10 e ½
horas da manhã em as Cazas do Sr. Major Gabriel Marques Cantinho achão-se prezentes os Snres. Vereadores (...), e isto por
occazião das bexigas na Cadêa desta Cidade (...)”, p. 111.
340 - Relatório da Comissão Permanente, A. C., 04/01/1866, p. 10. Este relatório foi preparado com para justificar a
transferência dos presos condenados da cadeia para a “Casa de Correção”, presídio construído pela Província na Luz.
.
feita da seguinte maneira: um espaço para
m sofrer pena de prisão e para os escravos fugidos. No caso das mulheres, separar: as
elitos capitais; as de mau procedimento; as presas por dívidas; as escravas fugidas.
tos de correção separados, para homens e para mulheres. Ver coleção Papéis Avulso do
/09/1831, p. 156 e 157.
158
sobre as péssimas con
hygienicas que deveriam
nos dois edifícios, viv esos na cadeia e os
soldados no quartel:
46 anos de idade, livre, casado, condenado pela justiça,
tísica
dições em que viviam os presos e reclamava sobre “diversas medidas
ser tomadas, principalmente sobre a Cadeia.”
341
O caso portanto era que,
iam, adoeciam e morriam muitas pessoas, os pr
“Faleceu ontem Melquiades Souza Soares, de
faleceu na enfermaria da cadeia de e foi sepultado hoje, dia 12 de agosto de 1859, no
“Faleceu ontem, dia 26 de agosto de 1859, Manoel Jacinto do Espírito Santo, de 29 anos de idade, cabo
cemitério municipal.”
342
(meu destaque).
da esquadra do corpo fixo, natural da Bahia, solteiro,
faleceu de pneumonia na enfermaria do corpo
fixo e foi sepultado hoje no cemitério municipal”
343
(meu destaque).
Fig. nº 25
Nas imediações do ant o
destaque a indicação d io
do quartel e, no destaq s,
vemos o “Teatro São J á
representada a antiga
igo Largo da Cadeia vemos, à esquerda, o prédio da Câmara e Cadeia. N
os despejos que seguiam o rumo do Anhangabaú. À direita está o préd
ue, a direção dos despejos para o Tamanduateí. Entre os dois edifício
osé” e a igreja de N. Sra. dos Remédios. No canto superior, à direita, est
matriz e o Largo da Sé.
341 - Ofícios do Governo Provincial e do médico da Câmara, A. C. sessão do dia 07/12/1886, p. 236.
342 - Livros de Inumação do Cemitério da Consolação, vol. 1, 1859, p. 69 verso.
343 - Id. ibidem, p. 71.
159
É certo que o lixo e as imundícies das prisões e do quartel escorrendo pelas ruas
róxim
estar a uma distância segura, bem longe da
cidade,
p as, infeccionando o chafariz, ou misturados às águas dos rios, bem que poderiam
trazer o cólera ou a febre tifóide, por exemplo. Mas, a percepção dos perigos naquela época
dava-se de modo diverso, eram os monturos estáticos de sujeira que incomodavam, eram os
detritos visíveis nas portas das casas que causavam medo, era enfim tudo aquilo que, mais
próximo da visão e do olfato, pudesse entrar em decomposição, já que, em seguida, o
“veneno” dos miasmas seriam lançados no ar.
Não por outra razão, era necessário cobrir os tigres da cadeia, transportá-los em carros
fechados até o seu destino final que deveria
de preferência “além do rancho dos tropeiros, na Luz”.
344
Frente ao incômodo que estava
literalmente debaixo dos narizes dos vereadores e na frente de suas vistas, o caso dos
despejos e dos tigres da cadeia mereceram uma resposta pelos anos de 1865, quando então
lançou-se um edital para a contratação de um particular que ficaria incumbido de fazer a
“limpeza da Cadeia duas vezes por dia, de manhã e de tarde, (transportando) 30 barris de cada
vez”
345
, pois não era mais possível “remediar o gravíssimo mal resultante da imperfeição com que se
fazia este serviço”, ou seja, “o despejo das matérias fecais que diariamente saiam da Cadeia da Capital”
que, a partir de então, deveriam seguir “em carro de mola e fechado”
346
Se resolvido estava o caso da cadeia (pensava-se, pelo menos), continuavam os
despejos do quartel a serem feitos com o maior “escândalo” possível:
“Constando-me que os Quartéis do Corpo Fixo e Permanente mandam fazer
a limpeza dos respectivos estabelecimentos na várzea do Carmo,
e ainda mais
que tem lugar este serviço entre as nove e as onze horas da manhã; proponho
que esta Câmara represente com urgência ao Governador pedindo
providencias a esse respeito. Os inconvenientes de semelhantes limpezas são
de primeira intuição, e em nem um caso devendo a Câmara sanccionar com
seu silencio tão grande mal, menos o deve hoje, que como lhe cumpria e era
instantemente reclamado pela salubridade e aceio públicos tem a Câmara
providenciado do melhor modo sobre a limpeza da Cadea.
347
(meu destaque)
da cidade, num roteiro nauseabundo que ora seguia do quartel para a várzea do Carmo, ora
para o ribeirão Anhangabaú. Na várzea, o local preferido dos soldados para realizarem os
despejos era um ponto conhecido como Figueira (atual rua da Figueira), logo após a Ladeira
Diariamente, portanto, continuavam as imundícies do quartel circulando pelas ruas
344 - A. C. sessão do dia 05/12/1865, p. 317
345 - Idem ibidem.
346 - Relatório da Comissão Permanente, A. C., 11/09/1866, p. 113
160
do Carmo e ao lado do buracão ali existente. Do outro lado da cidade, eles geralmente
escolhiam o antigo “caminho de Santo Amaro, nos valos da chácara do Capitão Benjamin” que
ficava ao lado do ribeirão Anhangabaú. Todos estes locais “inconvenientes como reclama a
salubridade pública”, conforme denuncias de um vereador em 1867.
348
O problema maior, porém, não era identificado nos pontos de despejos às margens
dos rios até porque a correnteza, pensava-se, cuidaria de levá-los para longe, mas sim na
condução dos barris pelas ruas da cidade que, no trajeto, iam derramando imundícies pelas
ruas que lá ficavam expostas. Ao contrário da cadeia, que fizera “desaparecer o triste e miserável
espetáculo que duas vezes ao dia se dava na cidade com o vergonhoso sistema por que era feito o despejo ...
“... Desgraçadamente (e) para vergonha nossa, o despejo do quartel continua
a
manhã, e das 3 as 6 da tarde, andam pelo centro da cidade de 4 a 6 pessoas a
conduzirem
mais de 40 barris em contínuo balancete por irem pendurados
com o maior escândalo possível a ser feito, pois que desde as 7 as 11 horas d
em um páo, de sorte que muitas vezes vão derramando matérias fecaes pelas
ruas!!! E para cumprir com o meu dever proponho que com urgência se
officie ao Exmo. Governo para que se digne dar suas ordens para que o
despejo não continue a ser feito como se está fazendo, pois que alem de ser
inconveniente offende á decência. São Paulo 8 de janeiro de 1867 – Justo da
Silva – Approvada – officiando-se ao Exmo. Governador”
349
(meu destaque)
Pouco ou de nada adiantaram as reclamações. Argumentando o governador que não
havia verba disponível para o transporte dos tonéis em carroças fechadas, “os galés do quartel
continuaram a fazer a limpeza e os despejos junto à estrada de Santo Amaro” e na várzea do Carmo,
prometendo ele apenas providencias para que “as matérias fecais fossem depositadas em um lugar
distante da cidade.”
350
Dos lados da cadeia, porém, duraria pouco o “sucesso” alcançado com a contratação
de uma empresa particular para a realização da limpeza. Menos de dois anos depois, em
janeiro de 1868, tal sistema já dava sinais de colapso pela falta de capacidade do contratante
em realizar os serviços. Vários dos anim puxavam as carroças morriam ou ficavam
inutilizados por tombos nas íngremes ladeiras, a
empresa alegava não ter condições para fazer os reparos. O resultado de tudo isso era que,
por div
ais que
os veículos por sua vez desgastavam-se e
ersas vezes, ficava a cadeia sem limpeza, permanecendo os tigres acumulados nos
corredores e salas do edifício.
Frente a esta situação, os ânimos acirraram-se e, na noite do dia 3 de fevereiro de 1868,
347 - Indicação do vereador Vicente Mamede, A. C. 23/10/1866, p. 139.
348 - Discurso do vereador Vicente Mamede, A. C. 13/11/1866, p. 143 e 144.
349 - Discurso do vereador Justo da Silva, A. C. 08/01/1867, p. 10
350 - A. C. sessões dos dias 29/01/1867 p. 20; 12/02/1867 p. 31 e 02/04/1867 p. 63.
161
uma medida extrema – verdadeira retaliação – foi tomada contra o empresário da limpeza.
Sob as ordens do delegado de polícia, o carcereiro abriu todas as celas da prisão. Escolhidos e
reunidos os presos necessários, pelas nove horas da noite receberam eles a ordem de retirar
para fora os vários tonéis ali largo da Cadeia” novas instruções
foram dadas e, ato contínuo, fi
cidade em direção da casa de J ocurador da empresa. Pouco tempo
depois cheios na cadeia estavam na porta da casa do
procurador, e lá permaneceram manhã do dia seguinte, com grande
incômodo dos vizinhos, do procu
1
Pelos lados do quartel
das matérias fecais e das águas servidas a serem feitos de modo inconveniente, num “sistema
eia que infeccionavam suas águas e suas margens, bem como a todos que
tinham contato com tais imundícies por intermédio do ribeirão. E isso tudo quando algo de
mais grave não ocorria, ocasião em q na
via pública, esta ocupada por pessoas de passagem e por crianças que ali estariam a brincar.
Nas lad
acumulados. Já em pleno “
zeram uso das varas, ajeitaram os barris e saíram pelas ruas da
oão Francisco Pereira,o pr
, “todos os cubos de matérias fecais que existiam
até as oito ou nove horas da
rador e de sua família!”
35
o caso não era diferente, pois continuava o serviço de limpeza
mui prejudicial à saúde pública e não apropriado ao grau de civilização de nossa capital”.
352
Da
mesma forma, perpetuava-se o “abuso que se pratica no Quartel da Guarnição de se fazerem os
despejos de lixo e outras imundícies pelo canal que do mesmo Quartel vai sair á rua do Trem em frente
a casa de José Theodoro Xavier”.
353
Os graves problemas com os despejos do quartel e da cadeia continuariam ainda por
longos anos, e isso a despeito de estarem eles sempre na “mira” dos higienistas que
reclamavam dos constantes incômodos por ele causado à salubridade pública. Era certo que,
duas vezes por dia, o Anhangabaú recebia cerca de vinte a trinta barris contendo todo o tipo
de dejetos da cad
ue os oderiam pender e mesmo virar em ple tonéis p
eiras de um e outro lado da cidade, escorriam as impurezas e o lixo pelo meio fio
rente às calçadas, em frente das casas.
Caso algum morador tomasse seus devidos cuidados, evitando e escapando dos
miasmas e da podridão ao seu lado, certamente algo poderia ocorrer quando ele e sua família
tivessem sede. A água, vinda de algum chafariz nas proximidades poderia conter impurezas
que lhe fariam algum mal. Havia ainda a possibilidade de se abastecer de um dos vários
aguadeiros que, nas ruas, apregoavam sua mercadoria. Mas, via de regra, o líquido ou havia
sido apanhado nos mesmos chafarizes ou, como era mais comum, nas margens infectas do
próprio Tamanduateí. Não restam dúvidas, portanto, que os despejos da cadeia e do quartel
351 - Ofício do procurador da Empresa da limpeza da cadeia, A. C. 11/02/1868, p. 29 e 30.
352 - A. C. sessão do dia 05/06/1874, p. 90.
353 - Relatório do Fiscal Virgílio, de 02/08/1876, A. C. sessão do dia 10/08/1876, p. 77
162
estiveram por anos na raiz das diversas doenças que afetaram a população paulistana,
causando muitas mortes.
Parte desses problemas somente foram resolvidos em 1883, época em que foi
inaugurado o novo sistema de esgotos implantado pela Cia. Cantareira . No dia 29 de
agosto de 1883, por exemplo, foi lembrado que “continuando a ser feita a limpeza da cadeia por
conta da Câmara, em carroças e barris com trânsito pelas ruas, e tendo a Companhia Cantareira e
Esgotos colocado bacias por ordem do governo na Penitenciária, indico que se oficie ao Exmo.
Presidente da Província, pedindo-lhe para ele autorizar (...) seja feita a limpeza da cadeia
“um exemplar de arquitetura daquela natureza”
356
sua destruição foram encaminhados ao governad
provisoriamente naquelas bacias (...)”.
354
Pouco tempo depois, no dia 15 de outubro do mesmo
ano, o presidente da província informava que já estava tudo providenciado “a cerca dos
despejos que fazem de águas servidas no Quartel de linha”
355
certamente também já contando
com os serviços da Cantareira.
Mas, se neutralizadas estavam as impurezas lançadas fora pelo quartel, a vigilância
agora seria deslocada do exterior para o interior, o olhar mudaria de direção e, da rua,
entraria pelos seus espaços internos, identificando ali grandes focos de infecção. Antes
considerado como um dos mais sólidos e belos edifícios da cidade, o quartel passou ser
qualificado como um mero “barracão que serve de quartel ao 3º corpo e polícia, antigo quartel
federal”. Em finais do século XIX, pedia-se pela sua demolição, “por ser um atentado à
salubridade pública, moralidade e segurança, visto o péssimo estado em que se acha” e não cabia mais
em São Paulo
Como o prédio era de responsabilidade do governo estadual, diversos pedidos para a
or que, no entanto, não se manifestou. O
caso ganhava amplitude num momento muito sensível para a municipalidade. Proclamada a
República e instalado o novo governo, a antiga província – alçada agora à condição de Estado
– acabou por exercer ainda mais influência nas Câmaras, completando um processo que se
iniciara, com a Lei Imperial de 1º de Outubro de 1828, época em que suas funções foram
redefinidas. O crescente poder do governo estadual e de suas secretarias, não era bem visto e,
muitas vezes, entrava em choque com as ações da municipalidade. O poder de intervir na
cidade, uma antiga prerrogativa dos vereadores, estava a partir de então sendo transferido
para as mãos dos poderosos secretários estaduais. Especialmente na área da saúde, e por
354 - Indicação do vereador Ribeiro de Lima, A. C., 29/08/1883, p. 232
355 - Ofício do governador, A. C. sessão do dia 07/11/1883.
356 - Abílio Soares, Indicação nº 5, A. C., 18/01/1899, vol. Manuscrito, p. 34. O vereador Abílio Soares era
português de nascimento e veio ainda rapaz para o Brasil. Já em São Paulo, e além de seguir a carreira política e de
ter sido um grande comerciante, ele havia alcançado o posto de coronel da antiga Guarda Nacional. Certamente
por isso, Abílio Soares conhecia muito bem o edifício que agora criticava.
163
conta das várias epidemias que atingiam o interior, a ação do Estado se fez sentir de forma
mais ag
smo tempo, um protesto e
uma mordaz ironia:
erando:
reclamações.
2º Que o Snr. Dr. Prefeito já por duas vezes pediu o arrazamento do Quartel
de Polícia (na Rua do Quartel) quer pelas condições hygienicas, quer pela sua
Estado de São Paulo, fóra de qualquer medida sanitária e fóra das leis que
para elle, senhor soberano e absoluto, não o podem attingir.
nocividade algo extremamente corriqueiro na cidade. A partir de então, anunciava-se que era
preciso estar mais atento ao se caminhar pela cidade e, da mesma maneira, dedicar especial
atenção na vigilância aos vizinhos da rua, aos seus quintais, ao capim que crescia por toda
parte. O novo mal anunciava-se como devastador.
uda, o que certamente representava uma ameaça ao poder dos edis. No bojo dessa
acalorada discussão, e por conta justamente do prédio do quartel, levantou-se o respeitado
vereador Abílio Soares para apresentar um projeto que unia, ao me
“Consid
1º Que o Governo do Estado tem faltado para com esta Câmara, com os
preceitos da mais comesinha attenção, para as suas
segurança pública, pois está ameaçando ruína, e não ter até hoje, apezar de
terem decorrido 11 mezes, o Exmo. Governo do Estado se dignado dar
resposta ao mesmo Snr. Dr. Prefeito.
Proponho o seguinte projecto de lei:
Art. 1º - Fica concedido ao Exmo. Governo do Estado o privilégio exclusivo
de conservar as repartições a seu cargo na maior immundicie, quer interna,
quer externamente.
Art. 2º - Em tempo de epidemia não será permitido nas ditas repartições o
ingresso a quaesquer commissões sanitárias, por se suppor que o Governo do
Art. 3º - Revogam-se as disposições em contrário.”
357
Projeto lido, ele serviu como desabafo num momento crítico, ocasião em que estavam
sendo definidas com mais clareza as esferas de poder, estaduais e municipais, bem como as
suas respectivas áreas de atuação. Em seguida, o projeto não foi considerado como objeto de
deliberação, sendo logo arquivado.
Mas, nos resta saber por que o quartel tanto incomodava, por que estava ele a ameaçar
a saúde pública, e de tal maneira que merecia mesmo ser destruído? De fato, tudo leva a crer
que não era propriamente o edifício senão uma de suas alas, aquela que abrigava um perigo
novo, recém percebido. Tudo continuava como antes, é preciso dizer, mas agora um novo
saber – acompanhado de uma nova sensibilidade – estava a transformar em fonte de
357 - A. C. sessão do dia 04/11/1899, p. 524 e 525.
164
4.2 – O despontar de um novo perigo
Ao examinar aquela pretensão de Abílio Soares, que pedia pela destruição do quartel,
bem como as análises feitas em seguida pelos seus colegas de bancada dando-lhe apoio, surge
com mais clareza o entendimento que eles tinham sobre o real perigo que se apresentava no
interior do edifício, ou em uma de suas alas:
“A comissão de Justiça examinando a indicação feita pelo sr. vereador Abílio
Soares (...) está de pleno acordo com a mesma visto que a necessidade de
demolição daquele prédio, é há muito reclamada por todos que o conhecem,
já pelo seu estado ruinoso que ameaça os transeuntes e ainda
pelas más
condições higiênicas impossíveis de se melhorar, acrescendo mais a
inconveniência da existência de uma cocheira, sempre sem o asseio
necessário, o que é um perigo para a saúde pública. S. Paulo 28/01/1899”
(meu destaque)
Eis aqui o verdadeiro mal que se queria ver extirpado com a demolição do quartel:
uma cocheira vista agora como em péssimas condições higiênicas e que, por isso mesmo,
transformara-se em motivo de apreensão.
De fato, foi somente a partir da década de 1880
que “notou-se” este novo perigo, ou aquele representado pelos animais (bestas, mulas,
cavalos e bois), bem como pelas suas respectivas cocheiras. Mais ainda, neste documento
aparece com clareza uma outra novidade, pois aos poucos o
358
359
estado das coisas na cidade que
so repetia-se, pois não havia uma
poderiam redundar em salubridade ou insalubridade, acaba sendo substituído por saúde
pública, ou seja, sem mais intermediações.
Antes dessa novíssima preocupação, e num período que remontava aos primórdios da
cidade, nada mais natural do que o transporte de pessoas e mercadorias via tração animada.
Até 1865, data da inauguração da ferrovia, toda a comunicação terrestre pelo interior da
província era assim realizada. Pelas ruas da cidade o ca
outra maneira que substituísse o andar a pé. O transporte individual, de grupos e de
mercadorias estava sempre a se utilizar de mulas e bestas, bois e cavalos que transitavam livres
tanto pelas estradas quanto no interior da cidade. Nesse caso, muito comum também era a
358 - Parecer nº 03 da Comissão Permanente, A. C., 01/02/1899, vol. Manuscrito, p. 41 e 42.
359 - Essas cocheiras, bem como o próprio quartel, tiveram suas obras concluídas no dia 15/04/1791. Quanto às
“cavalharisses” (cocheiras), não sabemos ao certo a quantidade das mesmas que funcionavam em anexo ao
edifício. Nuto Sant´Anna, porém, deixa transparecer que eram várias, pois “... cabiam em cada huma delas somente
165
existência de cocheiras na área urbana, sejam as particulares (a exemplo das atuais garagens)
sejam aquelas dos quartéis, da polícia e das empresas especializadas em transporte, sendo que
estas últimas chegavam a agrupar dezenas e dezenas de animais num mesmo espaço.
Para que possamos ter uma rápida noção da quantidade de veículos movidos por tração
animada na cidade, podemos ver os registros do ano de 1855, época em que foram cadastrados
cerca de 631 carros, número este que, no ano seguinte, aumentaria para 650.
360
Por certo que tais
quantidades referiam-se ao município como um todo, pois em 1871 e num levantamento feito
com base apenas na área urbana, estavam circulando pelas ruas da cidade cerca de 596 veículos
assim divididos: “400 carroças de carga, 62 de pipas de água, 40 de carros particulares, 67 de
aluguel, 22 tílburis e 5 diligências.”
361
Parte integrante da paisagem urbana, os animais estavam a prestar um serviço e, no
máximo, anotava-se pelos idos das décadas de 1850 e 1860 um certo incômodo causado pelo
seu aumento constante nas ruas da capital o que trânsito de
pedestres e de outros carros, especialmente quan
portas e mesmo nos postes da iluminação pública.
362
Um perigo ocasional que esses animais
ofereciam era o de algum atropelamento ou acidente decorrente de um desembestar ligeiro,
seja ele provocado pelo próprio condutor, seja por algum susto sofrido pelo animal. Por isso,
vez ou outra reclamava-se “das disparadas d de
cangalhas ou cargas aos trambolhões pelo meio do povo”, causava um certo risco para as
pessoas.
363
Nada mais.
, de certa maneira, atrapalhava o
do amarrados nas esquinas, nos batentes das
e bestas pelas ruas que, levando rastos
vinte cavalos”. Veja Sant´Anna, Nuto; São Paulo Histórico, Vol. VI, p. 51.
360 - Arquivo Histórico Municipal, Fundo CMS
matrícula de veículos, 1855.
P/INTDM/PMSP, Série Impostos (1738-1903), Vol. 1.326, Imposto
361 - Rel
362 - Bru
363 - Jornal “Correio Paulistano”, edição do dia 07/07/1854.
atório da Repartição de Polícia da Província de São Paulo, 1871, p. 40 e 41.
no, Ernani da Silva, op. cit., p. 596 e 597
166
Fig. 26
Tropas conduzindo mercadorias no antigo Largo do Riachuelo, atual Praça da Bandeira (c.1863).
Fig. 27
As ruas de São Paulo, desenho crítico e satírico publicado no jornal “O Cabrião” em abril de 1867
De qualquer forma, era considerado como muito seguro o transporte de passageiros
nesses carros, especialmente se comparado com o infeliz acidente ocorrido justamente na
viagem inaugural da E. F. Santos-Jundiaí, em 1865, nas proximidades da ponte sobre o rio
Tamanduateí. Naquela oportunidade, morreu o maquinista e pessoas importantes da
167
comitiva saíram esfoladas da trágica experiência. Por conta disso, circulou na cidade alguns
versinhos que zombavam do trem, mostravam seus perigos e louvavam os carros de aluguel
puxados por cavalos e cujo ponto principal ficava no “Largo da Sé”:
Vou “prô” Rio de Janeiro
Fazer queixa ao delegado
Que o malvado trem de ferro
Muita gente tem matado
Seguro morreu de velho;
Quem avisa amigo é:
Quem quiser dar bons passeios
Tem carrinhos – sem receios
Bem baratos lá na Sé
364
E era na Sé onde todos se encontravam, homens e animais, carroças e tílburis de
aluguel, para tratar da vida e dos negócios, contratar uma corrida ou simplesmente se inteirar
das últimas novidades. Centro nervoso da cidade, não por outro motivo ali estava o maior e
mais concorrido ponto para carros de aluguel. Já com uma certa distância no tempo, Paulo
Cursino de Moura relembrou esse aspecto e destacou que “os tílburis paulistanos tinham, no
espécime da raça, característicos da velha tipóia. Sonolentos e tardos, a algazarra dos
cocheiros os despertava, no jogo da morra ou no tridio do respeito e da linguagem para a
conquista dos fregueses, vexados e confundidos, diante daquela fileira de acenos e
preferências.”
365
364 - Freitas, Afonso A. de, op. cit., p. 76 e 77.
365 - Moura, Paulo Cursino de, São Paulo de Outrora, S.P.:, Livraria Martins Editora, 1954, p. 24.
168
Fig. 28
1880: no antigo Largo da Sé o maior e mais concorrido ponto de carros de aluguel da cidade.
As qualidades dos animais eram sempre ressaltadas, pois deles dependiam o
transporte de cargas e de passageiros, ade em diversos
outros
bem mo auxiliavam a comunidco
afazeres, constituindo-se numa importante ajuda para as tarefas diárias. Entretanto, o
caráter positivo dos animais que circulavam pelas redondezas de São Paulo ia além e
extrapolava a mera força de trabalho. No século XVIII, por exemplo, foi anotado um caso que
ultrapassava essa característica utilitária, uma vez que eles foram utilizados justamente para
aplacar uma espantosa epidemia de varíola, então conhecida como bexigas. Para combater
o terrível mal, o então capitão general Martim Lopes escreveu à Corte, em novembro de
1775, e explicou que a vista do “excessivo estrago e mortandade em todos”, nas tropas,
entre as crianças e adultos, além das preces públicas, a Deus e a muitos santos, se decidira
laar mão de todos os meios possíveis para debelar a peste e, por isso,
fizera girar pelas ruas
da cidade numerosos rebanhos de bois e carneiros para atrair sobre os animais a força da
peste, e desviá-la dos humanos; mandara queimar também no hospital “grande copia de
perfumes”
366
(meu destaque). Decerto que a experiência realizada naquela época supera em
muito a mera curiosidade uma vez que, ao contrário, nos esclarece sobremaneira a concepção
que se tinha a respeito do caráter sobrenatural dos males e das doenças que atingiam os
homens, bem como sobre os métodos de cura.
Para atender e dar suporte ao crescente número de animais, existia na cidade uma
169
bem montada estrutura que incluía os terrenos de pastagens (muitos deles de aluguel), bem
como d
o e na atual Rua
Florêncio
iversas oficinas de ferreiros e ferradores. A exemplo de outras cidades brasileiras do
século XIX, São Paulo era uma comunidade onde se poderia encontrar uma igreja e um
ferrador praticamente a cada esquina. Nada a estranhar numa comunidade que muito se
utilizava dos animais para as suas tarefas cotidianas. De fato, tal e qual os templos religiosos,
os ferradores, ferreiros e fábricas de carros estavam dispostos como que a cercar a cidade
pelos seus flancos, e isso desde a Av. São João, onde existiam alguns ferradores; passando
pelo Piques e Largo do Riachuelo, com seus pastos e fábricas de carroças; e, subindo a colina,
encontrávamos também os mesmos profissionais pelos lados da Glória, Carm
de Abreu (esta ainda hoje mantendo a característica de ser uma rua especializada
em
ferragens), que fechava o círculo. Somente no exercício de ferrador, o censo de 1822
apontava existência de quinze desses profissionais na cidade. Nas décadas seguintes, esse
número subiria para a casa das várias dezenas.
367
A existência de um grande número de ferradores na cidade já se fazia notar desde
pelo menos o século XVIII e isso acompanhando a quantidade crescente dos animais. Nessas
circunstâncias, era comum entre eles a disputa por fregueses, cada um oferecendo melhores
preços e vantagens que o outro, o que gerava, por vezes, sérios conflitos. Não por outro
motivo que em 1753
resolveu estabelecer um
elos s
e. A esse
respeit
-- Uma forja de ferreiro para ferrar cavalos, não lembra?
369
– e de comum acordo com esses profissionais – a municipalidade
regimento que estipulava, dentre outras regras, o preço a ser cobrado
p erviços. Assim, “os ferradores que tinham ferraduras e cravos comprados na cidade a vários
preços, concordaram e assentaram que ferrassem as bestas muares e cavalos a duzentos e quarenta réis
por cada ferradura nova composta e pregada.” Mas, o trabalho de um ferrador não se resumia ao
ato de ferrar, uma vez que eles também exercitavam a arte de curar os animais e, nesse
sentido, estipulou-se que “por sangrar somente levarão por cada uma sangria seis vinténs”.
368
Referências significativas na malha urbana e na vida dos moradores, as oficinas dos
ferradores tornaram-se marcos indicativos e de localização no emaranhado da cidad
o, relembrava Jorge Americano numa “conversa caseira”:
-- Você se lembra de uma portinha que havia no Largo do Rosário, em frente da
ferraria?
-- Que ferraria?
366 - Taunay, A. de E., Antigos aspectos paulistas, p. 95.
367 - Arquivo Histórico Municipal, Fundo CMSP/INTD/PMSP, Série “Impostos Serviços e Profissões”,
especialmente volumes das décadas de 1880 e 1890. Ver também Affonso A. de Freitas, Tradições e Reminiscências
paulistanas, p. 135.
368 - “Regimento para usarem os ferradores”, A. C., sessão do dia 23/06/1753, p. 435.
369 - Americano, Jorge; São Paulo naquele tempo 1895-1915; S.P.: Edições Saraiva, 1957, p. 97. O “Largo do Rosário”
170
Não apenas esta oficina marcou a memória do autor, como também as que existiam
nos bairros, “até que a tração elétrica e os motores de explosão eliminaram burros e cavalos”.
Na esquina do quarteirão onde residia, na Rua dos Andradas em Santa Ifigênia, uma delas
em especial lhe chamava a atenção, pois quando criança ele ali permanecia para “ver ferrar os
cavalos”.
370
Pelos lados do Brás, na antiga Av. da Intendência (hoje Celso Garcia), lembrava
Jacob Penteado, “viam-se várias oficinas de ferreiros, seleiros e espingardeiros, devido ao
grande número de veículos de tração animal e dos caçadores, numerosos, que pululavam do
Brás à Penha.”
371
De tal maneira eram essas oficinas significativas na vida da cidade que, desde meados
do século XVIII, existia na capital um logradouro muito conhecido pelos serviços que
oferecia: era a famosa Rua do Ferrador, atual Benjamim Constant, que liga a Praça da Sé ao
Largo de São Francisco.
372
Este largo, por sua vez, também ficou conhecido durante muito
fecção catarral, que se
manife
tempo como Largo do Capim, certamente pela gramínea que ali crescia e que servia de
alimento natural aos bois, cavalos e muares de passagem.
O conjunto formado pelos dois locais – Largo de São Francisco e Rua do Ferrador – era
bastante procurado por aqueles que desejavam consertar seus carros, ferrar seus animais e,
não raro, para a cura de mulas e cavalos doentes. Localizado a meio caminho entre a cidade e
o Largo do Riachuelo - este um grande ponto de chegada para tropeiros – o largo de São
Francisco abrigava também um dos hotéis mais famosos da cidade, o “Hotel Palm” (veja Fig.
nº 31) no qual ficou hospedado, em 1860, o diplomata suíço Von Tschudi. A escolha não
poderia ter sido melhor, uma vez que Tschudi necessitaria, dias depois de chegar à capital,
dos préstimos de um afamado ferrador estabelecido naquele largo. Conta-nos o suíço que,
numa manhã, foi surpreendido com a notícia de que a sua “rica mula encontrava-se
gravemente enferma, sem poder levantar-se. A besta sofria de forte a
stava por um corrimento pegajoso na boca e nas narinas, tosse, respiração pesada e
absoluta falta de apetite, sintomas estes que provocavam acentuada fraqueza geral.” Tschudi
deu a mula como perdida e pediu que lhe arranjassem uma outra. Nesse meio tempo, e
depois de várias tentativas vãs para curar o animal, um amigo lhe recomendou um ferreiro
que morava no Largo de São Francisco, em frente ao hotel, ao qual deveria levar o animal.
é a atual Praça Antonio Prado.
370 - Idem ibidem, p. 107
371 - Penteado, Jacob, op. cit., p. 231.
372 - A antiga “Rua do Ferrador” já era assim conhecida desde pelo menos 1765. Denominação alterada em 1770
para “Rua São Francisco”, e em 1810 para “Rua do Jogo da Bola”, voltou a chamar-se “do Ferrador” em 1830.
Posteriormente, ficou conhecida como “Rua da Princesa” e, em 1889, foi oficializada como “Rua Benjamim
171
Dizia-se que este homem era muito prático em tais assuntos, sendo o único capaz de resolver
o caso. O tratamento que foi aplicado à mula deixou o suíço de tal maneira estupefato que ele,
inte a mula estava boa,
comia
alteração do caráter utilitário suíam. De qualquer forma, localizamos
aqui o início de uma transform a não percebida pelos homens, mas que,
com o correr do tempo e em seu conjunto, influíram mesmo na percepção desse novo perigo
(que já existia, é preciso dizer
uma novíssima sensibilidade: e olfativa, frente aos excrementos e a
toda e qualquer sujeira produ
A partir de finais da década de 1860, portanto, cocheiras e mais cocheiras pertencentes
mp sas de ransp rtes es m-se pela cidade. Cada uma delas com
um variado leque de serviços ofertados: desde um simples passeio, até casamentos, batizados
no seu diário, desculpa-se e diz que relataria “este incidente apenas para falar de um método
bastante curioso de tratamento dos animais, de que antes nunca tivera notícia.” Conta-nos
ele que “de noite, a muito custo, levou o pobre animal à casa do dito ferreiro. Este, depois
de haver auscultado minuciosamente a mula, confessou que o caso era grave, mas não
sem remédio. Sangrou-lhe uma veia e despejou pelo corpo álcool muito forte, ao qual
ateou fogo em diversos lugares. O álcool ardeu naturalmente com viva chama azulada,
enquanto o animal se contorcia de dores” – tudo isso sob o olhar espantado do suíço.
“Depois de alguns instantes, o ferreiro apagou as chamas com um cobertor e mandou que
fizessem o animal se movimentar durante uma hora.” Tschudi completou que “este
heróico método foi coroado do mais amplo êxito. No dia segu
bem e nunca mais sofreu de mal nenhum.”
373
Apesar do método inusitado de cura, o relato do suíço é bastante representativo de
uma época em que os animais eram fundamentais, e isso a tal ponto que mereciam todos os
cuidados, inclusive os dispensado à saúde, pois era grande o medo de perdê-los. Aliás, o
receio da morte dos animais nos é sugerido não apenas por esta, mas por diversas outras
fontes. Este medo, por sua vez, é algo hoje esquecido, tendo em vista a não mais utilização
dessa força de forma expressiva como era no passado.
Em decorrência das transformações econômicas ocorridas em São Paulo justamente
a partir daquela década de 1860, a quantidade de mulas, bois e cavalos a transitarem pelas
ruas da cidade, redundou num aumento bastante expressivo.
374
Por certo que aqui já estavam
sendo criadas as condições que levaram, 30 anos mais tarde, à condenação explícita das
cocheiras e dos animais como focos de doenças, como danosos à saúde, numa completa
que até então eles pos
ação, claramente aind
, mas ainda não considerado como tal) e no “aprendizado” de
a repulsa, que era visual
zida nas cocheiras.
às e re t o pecializados espalhara
Constant”. Veja: Amaral, Antonio Barreto do, Dicionário de história de São Paulo”.
373 - Tschudi, J. J. Von; Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo; S.P.: Edusp e B.H.: Itatiaia, 1980, p. 130 e 131.
374 - Trata-se aqui da conhecida expansão econômica experimentada a partir da introdução da lavoura cafeeira
no oeste paulista o que, por sua vez, transformou a capital num grande centro de negócios.
172
e mesmo enterros. Outros empresários, após a inauguração da estrada de ferro, chegaram
mesmo a implantar um serviço de diligências, com horários pré-determinados de saída e de
chegada, num exercício do que seria mais tarde o transporte coletivo da cidade.
Fig. 30 Anúncio publicado no jornal
Diário de São Paulo de 14/03/1866.
Fig. 29 Anúncio de uma das várias empresas que se instalaram em
São Paulo a partir das décadas de 1860 e 1870.
Ao mesmo tempo em que ocorria uma expansão desses serviços a partir da década
de 1860, os tradicionais carros de boi, algo até então muito comum na paisagem da cidade,
começaram a incomodar. Naquela época, o despontar dessa intolerância foi provocado por
um processo no qual estavam presentes as modificações urbanas causadas pelo avanço da
economia cafeeira, pelas novidades que chegavam a São Paulo e, também, devido à
o de uma cidade que buscava civilizar-se e que já contava
com uma linha de trem à vapor, não haveria mais espaço para este símbolo de um passado
recente. Assim teve início a expulsão dos primeiros animais do centro da cidade: os bois.
Presente estava nesse processo uma novíssima intolerância, pois nessa época os ouvidos
sofisticação nos meios de transporte. A relação deste novo incômodo com a insalubridade
era percebida ainda de modo tênue, uma vez que a repulsa causada pelas imundícies e
pelos excrementos que os animais depositavam nas ruas somente ocorreria de maneira
mais explícita a partir da década de 1880. Porém este incômodo, ou o despertar desta
sensibilidade que não existia, redundou na condenação dos carros de boi na cidade e,
mais ainda, abriu um caminho para que, décadas mais tarde, todos os animais fossem
“condenadosa sair das ruas, agora sob o novo argumento de que causavam um mal
muito grande à saúde das pessoas.
A questão presente em 1860 era que numa cidade onde circulavam diligências, tílburis
e outros carros mais “modernos”, não cabia mais o incômodo daqueles pesados e
ultrapassados carros de boi que estavam sempre a lembrar um meio rural, uma estrada de
terra, um sítio afastado. No cotidian
173
ficaram por demais sensíveis ao chiar característico desses veículos que, desde sempre,
estiveram a circular s
rangido provocado pe
escangalhavam-nos os o
Uma radical transformação operava-se no mundo sensível aqui representado pelos
ruídos
em incômodo algum pelas ruas da cidade. Aquele peculiar e triste
las rodas de madeira em veículos de eixo móvel, agora “... amolavam e
uvidos”
375
que se escutavam diariamente pelas ruas da cidade. Ao contrário do que poderíamos
supor, essa intolerância não surgiu como que num instante mas, muito pelo contrário, este foi
um lento aprendizado que se iniciou por volta de 1860 e continuou pelas décadas seguintes.
A irritação com o barulho, ao que tudo indica, esteve inicialmente vinculado às marcas de
atraso que esses veículos traziam. Affonso A. de Freitas, por exemplo, os chamou de
antidiluvianos carros de boi, que azoinavam os ouvidos e o sistema nervoso dos paulistas, percutido pelo
seu chiar característico, monótono e irritante que, diariamente,
se arrastavam pesados e morosos pelas
ruas da cidade, mercadejando lenha às carradas e às mocutas.”
meus destaques
376
Jorge Americano, por
sua vez, também lembraria desses carros, dos chiados característicos e de seus condutores, “um
caipira descalço”, personagem este que já não mais caberia na capital de finais do século XIX:
“Escuta-se a distância um chiado estridente, como o canto de cigarras. Vem aumentando, e aparece o
carro, com lenha bruta, vindo de Santo Amaro, puxado por juntas de bois. Tange-os, ao lado, um caipira,
descalço, de chapéu grande e lenço no pescoço, com uma vara de acicate ao ombro."
377
Para resolver esse novíssimo problema, tentou-se obrigar a todos os proprietários de
veículos com eixo móvel que os substituíssem pelo fixo.
378
A troca não foi possível, uma vez
que “seria um pesadíssimo ônus na actualidade crítica para os nossos carreiros, pela maior parte sem
forças para essa despesa”.
379
Diante disso, optou-se pela “proibição do chio do carro d´eixo móvel
dentro dos limites da povoação”
380
que, na prática, significava a simples expulsão dos mesmos
da área urbana. Aprovada definitivamente uma postura em fevereiro de 1867, a reação logo
se fez sentir com uma
suspensão”.
381
Inconfor
Joaquim José de Sant´
“representação assinada por cento e tantos (sic) carreiros pedindo pela sua
mados com a medida estavam, por exemplo, João Antonio Pereira e
Anna que, sob o risco de perderem o ganha-pão diário, solicitaram
375 - Jornal “O Cabrião”, nº 10, 1866, p. 77.
376 - Freitas, Affonso A. de, op. cit., p. 27 e 99.
377 - Americano, Jorge; op. cit., p. 121
378 - A respeito do antigo sistema de eixo móvel e seu barulho, explica-nos Waldemar Corrêa Stiel: “carro de eixo móvel,
que era o carro de boi, lento e vagaroso, tendo seu eixo quadrado nas pontas, encaixado nas rodas, virando junto com estas. Se
não estivesse bem engraxado, chiava barbaramente pelo atrito na junção com a carroceria do carro. Alguns carreiros
colocavam pó de carvão, para o chiado ser mais forte ...” (sic) – Stiel, Waldemar Corrêa; História dos transportes coletivos
em São Paulo, S.P: Edusp e Editora McGraw-Hill do Brasil, 1978, p. 09.
379 - Parecer da Comissão Permanente, A. C., 05/10/1866,p. 133.
380 - Id. ibidem
381 - A. C., 02/04/1867, p. 63.
174
insistentemente ao governo que atendesse o pedido.
382
Entretanto o caso estava decidido e, por
modernidade e que, naquele momento, fazia sua entrada triunfal na
q alidades lubrificantes, sendo rapidamente
, os carros de boi foram lentamente
à morte.
parte das autoridades, não haveria volta, alegando os vereadores que era grande o “encommodo
que cauza á população o chio dos carros constantemente em transito pelas ruas da Capital”.
383
Chama justamente a nossa atenção o período em que ocorreu a proibição dos chiados e
a conseqüente restrição com a proposta de expulsão dos carros de boi da área urbana, ou seja,
entre os anos de 1865 e 1867. Nessa época foi construída a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí,
maior símbolo da
cidade. Daí o incômodo, a irritação com o barulho que representava um passado visto como
atrasado. Mas, o fato concreto, é que esta aprendizagem perdurou ainda por algumas décadas,
até porque as residências necessitavam da lenha trazida pelos carros de boi. Numa medida
paliativa, lembravam os vereadores que aquela chiadeira poderia “desaparecer dos carros de
eixo móvel desde que fosse untado com qualquer gordura ou matéria oleosa, tais como
azeite, sabão, etc.”
384
Mas, esta era uma solução momentânea, de curta duração, já que os
materiais aplicados logo perdiam suas u
absorvidos pela madeira. Tal e qual o seu andar modorrento
desaparecendo da paisagem paulistana, expulsos que foram principalmente pelo seu ruído
que lembrava o atraso. De qualquer forma, e pelo menos até por volta de 1890, ainda se
notavam, aqui e ali, alguns deles circulando pela cidade e, em maior número, pelos bairros.
385
O aparecimento desta sensibilidade auditiva demonstra que um amplo processo de
ruptura com o passado estava em andamento. Apesar de tomarmos aqui apenas um de seus
exemplos, inusitado talvez, o fato é que neste novo ambiente algo ocorria, a sociedade
modificava-se e, de tal maneira, que seus reflexos logo se fariam sentir nos temas ligados à
saúde, à doença e
382 - A. C., 12/07/1867, p. 91 e 27/08/1867, p. 99.
383 - Parecer da Comissão Permanente, A. C., 21/11/1867, p. 137
384 - Id. ibidem.
385 - A aversão ao “chiado” dos carros de boi em meados do século XIX nos remete aos ruídos hoje tidos como
normais ou inerentes à vida urbana e, dentre eles, estão os vários “sons mecânicos”. Alguns deles, pela
modernidade e tecnologia que representam, são suportados, outros nem tanto.
175
Fig. 31
Carros de boi nas imediações do Largo de São Fr
ancisco (c.1863)
Como parte desta modificação e também em
veículos e de animais
adotado em 1865. A p
dos o
s da capital, praticados pelos condutores de veículos de aluguel que,
decorrência do aumento excessivo de
em trânsito pelas ruas do núcleo urbano, um primeiro controle foi
artir daquela data, criou-se a obrigatoriedade de serem numerados
to s veículos da cidade, fossem eles “carros, tílburis, diligências, carros de aluguel ou
carroças de condução”.
386
Posteriormente, esta regulamentação ganhou em detalhes,
sofisticou-se e, saindo do âmbito privado (da propriedade particular dos carros), acabou
expandido-se pelo espaço público. E isso tornou-se necessário, disseram os legisladores, por
conta dos “fatos perigosos que continuamente põe em sobressalto e grave perigo ás pessoas que
transitam pelas rua
imprudentemente, se encontram, atropelam e abalroam nas ruas,ainda as mais estreitas desta cidade”.
Esta nova situação criou as condições que permitiram a elaboração de “posturas determinando
quais devam ser as ruas para subidas e descidas dos veículos, e marcando em outras a maneira por que
deva ser feito o trânsito dos mesmos, por meio de signaes”.
387
Em fevereiro de 1871, estavam
prontos e instalados os primeiros sinais de trânsito e de “mãos de direção” nas ruas de São
386 - Ofício do procurador da Câmara, A. C., 28/02/1865, p. 80 e Ofício do delegado de polícia, A. C.,
19/02/1867, p. 34 e 35.
387 - Ofício do Dr. Tito Augusto Pereira de Matos, chefe de polícia da província, A. C., 28/01/1868, p. 20 e 21.
176
Paulo.
388
Não restam dúvidas de que este foi um momento muito importante na vida da cidade, pois
de maneira inequívoca estava marcada uma ruptura com o passado. Incorporava-se na vida das
pessoas e em seu cotidiano, um novo equipamento de forte apelo visual, ou seja, a sinalização
urbana que, a partir de então, estaria sempre presente para regulamentar e colocar “ordem” na
circulação não apenas de veículos, mas, também, no andar tranqüilo das pessoas. Criava-se uma
paisagem da cidade e que, por si só, causou uma grande
necessitavam desse serviço, eram obrigados a alugar um veículo, algo que a imensa maioria não
tinha condições de fazer.
390
nova regra, alterava-se o andar despreocupado pelas calçadas e leitos das ruas; este demandava
agora um novo aprendizado, seja para os condutores, seja para os pedestres. O hábito de olhar os
sinais precisou ser incorporado pela população nesse meio urbano modificado.
Na São Paulo da década de 1870, podemos concluir, aumentava progressivamente a
presença do Estado no cotidiano das pessoas, e isso para regular ações das mais comezinhas,
como era o andar livre pelas ruas da cidade. Decerto que este controle seria exercitado por
outras vias, bem como em outros momentos da vida ou, até, conjugado com um novo saber
que estava a substituir a igreja e o mundo divino: a ciência médica. Assiste-se, especialmente
a partir da década de 1860, um declínio constante da religiosidade popular, cujo efeito fez-se
também sentir na redução da importância que era dada às procissões. O esplendor e o
interesse que despertavam em outros tempos foi, aos poucos, arrefecendo-se:
“Aperta-se o coração do verdadeiro católico ao contemplar o estado
deplorável de abandono e indiferentismo a que se acham reduzidos o culto e
festividades religiosas desta capital, outrora tão notavelmente afamadas pelo
espírito de devoção e de fervorosa religiosidade de seus habitantes”
389
As novidades, porém, não paravam de chegar. Já em 1872, por exemplo, um outro
equipamento seria introduzido na
revolução na movimentação e no transporte do paulistano. Além da citada inauguração da
Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, a área urbana passou a contar com os serviços de uma
companhia de bondes que ligava a área central aos bairros. A nova modalidade trazia uma
rapidez de locomoção até então nunca vista pelo povo que, de agora em diante, poderia
pagar uma passagem no valor de Rs. $200 (duzentos réis) e realizar sua viagem.
Os bondes vieram atender a uma demanda, mas, também, criaram novos hábitos e
necessidades. Antes de sua existência, aqueles que não possuíam seu próprio carro e
388 - Relatório do Fiscal do distrito norte Flamínio Alves Ramos, A. C., 16/02/1871, p. 33.
389 - Jornal “Correio Paulistano”, edição do dia 23 de setembro de 1860
390 - O aluguel por hora de um carro variava de 2 mil réis para os mais simples (um tílburi) até 8 mil para os mais
luxuosos. Na época de sua implantação, o preço de 200 réis pela passagem de bonde não era acessível a todos os
trabalhadores. Um pedreiro, por exemplo, ganhava em 1875 cerca de 2 mil réis por dia; se tomasse dois bondes
diariamente, ele gastaria 400 réis de seu salário, ou 20% do mesmo, despesa esta difícil de suportar. Porém, este
preço de 200 réis pela passagem do bonde permaneceu inalterado desde até 1947, quando as linhas já estavam
eletrificadas - uma proeza que, enfim, barateou o custo deste transporte. Sobre os preços das passagens veja Stiel,
177
No início de sua implantação, os bondes fascinavam pela novidade que
representavam, pela rapidez e pela modernidade. Todos desejavam utilizá-lo, muitos
paravam para vê-los passar. O espanto era geral e provocava reações entendidas como
normais, aqui representadas por um olhar mais demorado e sempre acompanhado de um
comentário entusiasmado de elogio, ou então inusitadas, como nos conta Affonso A. de
Freitas: ”Tia Maria era escrava da família Santa Bárbara, ricos moradores na rua Santa
Tereza, próximo à cocheira da Califórnia. Lá pelo ano de 1879, Tia Maria, sempre que
encontrava oportunidade, fugia da casa dos seus senhores e ia postar-se no alto da ladeira do
Carmo, em atitude de quem fiscalizava os cocheiros dos bondes puxados a burro da
Companhia Viação Paulista, e gritava-lhes quando passavam: -- na subida devagá prende, na
descida devagá prende. Não era alcoólatra e nem desordeira, apenas maluca ou pancada, sendo
necessário que os transeuntes a advertissem: -- Maria, olha o carro!, para que ela não fosse
apanhada por algum veículo em disparada.”
391
Porém, esse mesmo sistema apresentaria um sério problema – agravado mais tarde –
mas que, no início, não fora percebido seja pelos empresários do transporte, pelo poder público
e, tão pouco, pela população. Os bondes corriam em trilhos assentados no meio das ruas e,
como visto, eram movidos por tração animada. Essa particularidade, aliada à acidentada
geografia da cidade, trouxe como conseqüência um exagerado aumento no número de bestas e
jumentos que circulavam pelas ruas. Explica-se: pelas condições naturais da cidade, ora os
novos animais estariam a puxar os bondes, ora estariam em grandes levas estacionados em
cocheiras estrategicamente colocadas nos vales que cercavam (e ainda cercam) o velho centro. O
bom funcionamento do novo empreendimento dependia dessa estratégia e, por isso, o
Anhangabaú, no início da Av. São João, e a antiga Várzea do Carmo eram os locais preferidos
para as cocheiras uma vez que, por qualquer problema com os bondes nas íngremes ladeiras,
rapidamente mais animais eram deslocados para auxiliar na subida.
Uma curiosidade anotada naquela época diz respeito justamente a esse constante atrelar
e desatrelar animais. A
eram soltas e, de tão ac
o início do percurso e,
esse respeito Jorge Am
onde a tração animal da Rua Vitória, que passou pela estação da Luz, recém-construída, cuja imensa
rre podia ser vista de qualquer ponto da cidade, e entramos na rua Florêncio de Abreu. No lugar onde
pós vencer qualquer ladeira, e já no centro da cidade, as bestas “extras”
ostumadas que estavam a esta rotina, acabavam voltando sozinhas para
no ponto inicial, elas permaneciam no aguardando o próximo bonde. A
ericano nos conta que: "À tarde tomamos na esquina da Rua dos Andradas, o
b
to
Waldemar Corrêa, História dos transportes coletivos em São Paulo e, do mesmo autor, Ônibus – uma história do
transporte coletivo e do desenvolvimento urbano no Brasil. Sobre os salários dos trabalhadores veja a coleção “Papéis
Avulsos” do Arquivo Histórico Municipal, 1875, Vol. 292, documento nº 148.
391 - Freitas, Affonso A. de; op. cit., p. 68.
178
hoje há uma ponte sobre a rua Anhangabaú, atrelaram mais um burro ao bonde, para facilitar a subida da
ladeira. Ao chegar ao largo de São Bento soltaram o burro, que desceu a ladeira sozinho."
392
Inaugurado o novo serviço de bondes, poucos anos depois notou-se um grande acúmulo
de animais na cidade, nas ruas e nas cocheiras. Percebido como um problema, os animais
passaram, paulatinamente, a incomodar. Em fevereiro de 1874, por exemplo, os fiscais intimaram
o gerente da companhia para que “ removesse da ponte do Acú os animais ali estacionados destinados a
auxiliar a subida dos bonds na aspera ladeira que segue do lado da cidade.” A ponte do Acú aqui citada,
localizava-se no Anhangabaú que era o trecho inicial da Av. São João. Em resposta, o gerente F.
M. Reisenberger alegou ser impossível tal remoção, pois colocaria em risco as viagens e, mais
ainda, solicitou que o município cedesse gratuitamente um terreno na rua Formosa, ao lado da
Av. São João, para a construção de um telheiro que serviria para abrigar tanto seus funcionários
quanto os animais tão necessários ao novo sistema de transporte.
393
Com a expansão das linhas de bondes para o Brás em 1877, Santana e Consolação em
1879, o
registros mostram que,
excetua
126 carros particulares
49 carretões
10 carros fúnebres
395
que se viu foram mais bestas, mulas e cavalos da companhia a transitarem pelo centro
da cidade. Estes, por sua vez, somavam-se às centenas de outros, utilizados seja para o
transporte particular, seja para movimentar as carroças e tílburis de aluguel. Tudo isso, aliado
ao crescimento da cidade e a necessidade cada vez maior de um transporte rápido,
redundaram num novo problema: agora, a quantidade de animais presentes nas ruas havia
passado rapidamente da casa centenas para a os dos milhares. Apenas os pertencentes à
companhia de bondes, por exemplo, já somavam cerca de 473 no ano de 1889, estes
necessários para a movimentação dos 41 carros de passageiros.
394
Dez anos depois, e somente
com respeito à quantidade de veículos movidos por tração animada, os
ndo-se os bondes, circulavam pelas ruas de São Paulo 5.472 veículos assim divididos:
1.848 carroças de mola
1.050 carroças de lenha
993 carroças de aterro (tijolo, terra)
581 carros de eixo móvel
305 caminhões
190 tílburis particulares
185 tílburis de aluguel
135 carros de praça
392 - Americano, Jorge; op. cit., p. 130
393 - Ofício de F. M. Reisenberger contestando uma intimação dos fiscais. Atas da Câmara, sessão do dia
20/02/1874. Em resposta, os vereadores paulistanos autorizaram a construção do barracão no local, mas não
cederam o terreno que, diziam, deveria ser solicitado ao Governo da Província.
394 - Bruno, Ernani da Silva, op. cit., p. 1076, referendado no “Relatório da Diretoria da Companhia Carris de
Ferro de São Paulo (1889) p. 13 a 15. Além desses veículos, existiam ainda “504 carroças de mão”.
395 - Stiel, Waldemar Corrêa, 2001, op. cit. p. 02. Conforme o “Relatório do Prefeito Antonio da Silva Prado para
179
Fig. 32
Bondes que serviam os bairros mais afastados e pobres.
1903”, p. 08, naquele ano o número de veículos em circulação na cidade elevara-se para 5.934 e, dentre eles, já
existiam
16 automóveis.
180
Fig. 33
Bondes que serviam o centro da cidade e bairros mais ricos.
Toda essa situação, já bastante agravada, acabou por aguçar uma nova irritabilidade
que, a exemplo dos antigos carros-de-boi, atingiu inicialmente os ouvidos. Agora eram os
barulhos causados pelos animais que, agrupados e presos nas inúmeras cocheiras espalhadas
pela cidade, produziam um alarido que se tornara insuportável. Em 1889, por exemplo, os
moradores da rua do Gasômetro reclamaram contra uma delas, localizada justamente ao lado
de suas residências, alegando que os jumentos “causavam dano à saúde, além de serem animais
impróprios de se ter em quintais, como que no centro de uma capital civilizada,
por causa do alarido
ocasionado pelo zurrar constante, que durante a noite perturbavam o sono e repouso dos reclamantes.”
396
(meu
estando de conformidade com as leis municipais, não guardando distância legal
dos prédios limítrofes (...)
incomoda os moradores da vizinhança com o barulho
destaque). Por conta desse novo problema, as cocheiras passaram a ser um alvo
privilegiado de vigilância e de reclamações que, por sua vez, não atingiam apenas as
garagens das grandes companhias, senão também às de particulares, pertencentes muitas
vezes ao vizinho da casa ao lado:
“Os moradores da rua Galvão Bueno reclamam contra uma cocheira que existe
em uma casa situada na mesma rua, esquina da rua Barão de Iguape, a qual não
que fazem os animais durante a noite (...)”
397
(meu destaque)
De qualquer forma, seria reduzir demais a análise caso imputássemos essa maior
396 - Parecer dos vereadores Vicente Ferreira da Silva, Francisco Pennaforte Mendes de Almeida e Silveira da
Motta, A. C., 29/01/1889, p. 49
181
sensibilidade apenas ao aumento exagerado da quantidade de animais na cidade. É certo que
isso ocorreu e contr
consideração um out
entretanto, já estava às
inauguração, em julho
aulo ao Rio de Janeiro, e passando pela antiga E. F. Sorocabana de 1872, a população já tinha
xempl
é e de Santa Ifigênia.”
399
Apesar deste projeto não ter sido concretizado, a sua
propos
ibuiu para com essa intolerância. Mas, aqui devemos levar em
ro elemento que não aparece de modo claro no discurso e que,
vistas de todos: o trem a vapor. Desde a Santos-Jundiaí de 1865 e até a
de 1877, da então chamada Estrada de Ferro do Norte que ligava São
P
e os de um transporte rápido e entendido como menos barulhento do que aquele
movido por jumentos. A partir da década de 1880, alguns empresários já pensavam na
possibilidade de utilizar essa nova força para movimentar linhas mais curtas no município
398
mas, em 1888, Alberto Kullmann apresentava uma proposta considerada revolucionária para
a construção “na rua de São João, de uma via férrea elevada, a vapor, para ligar as duas colinas das
freguesias da S
ta fazia ver que era possível substituir, no transporte público, os jumentos pelas
máquinas. Um claro exemplo dessa nova situação (caso houvesse a substituição dos animais),
pode ser encontrado na análise que fez o engenheiro da Câmara no projeto para o
estabelecimento de uma linha à vapor do centro da cidade para o bairro do Ipiranga. Na
ocasião, ele assim manifestou-se:
“o systema de tracção a vapor, por meio de locomotivas silenciosas e
apropriadas ao trafego urbano, proposto por Justo Nogueira de Azambuja e
Francisco Antonio de Souza Paulista, concessionários da linha de carris de ferro
para o Ypiranga, é vantajoso por poderem vencer essas locomotivas rampas de
cinco e seis por cento sob a carga de vinte mil kilogramas”
400
(meu destaque)
Para os novos bairros que se abriam, também existiam propostas de ligá-los via
tramways, como a do engenheiro Luiz Bianchi Betoldi que solicitou uma “autorização para
construir uma linha de tramways entre a estação da Água Branca e a ponte do Anastácio, passando
pelo bairro denominado Villa Romana”.
401
Se este projeto não foi concretizado na zona oeste da
397 - Indicação nº 88 do vereador Pedro Aubues, A. C., 05/06/1899, p. 278.
398 - Petição de Miguel Escoffon pedindo concessão para estabelecer uma “linha (tranway) por tração animada ou
399 - Parecer da Comissão de Justiça ao projeto e plantas oferecidas por Alberto Kullmann, A. C., 21/08/1888, p. 237.
Por essa mesma época, foram apresentados muitos outros projetos que não mais utilizavam a força dos animais,
como para a construção de elevadores na rua 25 de Março e ladeira do Carmo. Ver Projetos da Cia. Carris de Ferro de
São Paulo, A. C., 20/11/1889, p. 320 e do engenheiro Eugenio de Carlos, A.C., 10/12/1889, p. 340.
a vapor” desde a Ponte Grande até a serra da Cantareira. A. C., 19/05/1886, p. 113.
400 - Ofício do engenheiro da Câmara, A. C., 17/12/1889, p. 349. A linha a vapor para o bairro do Ipiranga foi
inaugurada oficialmente em 1892. O então chamado “Tramway” do Ipiranga utilizava dois tipos de tração no
mesmo percurso: os veículos partiam do Largo ad Sé puxados por parelhas de mulas e, 500 metros depois do
Largo do Cambuci, os animais eram desatrelados e locomotivas a vapor passavam a tracionar o tramway até a colina
do Ipiranga, ao lado do Museu. Veja mais informações sobre esta linha em Stiel, Waldemar Corrêa, 1978, op. cit.
401 - Requerimento de Luiz Bianchi Betoldi, A. C., 14/12/1890, p. 241. O engenheiro italiano Betoldi foi o
fundador do bairro que se chamou Vila Romana. Certamente que o seu projeto de loteamento teria muito mais
sucesso com a implantação dessa linha férrea. Entretanto, seu pedido foi negado, pois a Câmara já havia
182
cidade, o mesmo não ocorreu ao norte, pois em 1892 era inaugurado o Tramway da Cantareira,
movido a vapor.
De fato, e enquanto não existiam outras possibilidades, o zurrar das bestas, jumentos e
cavalos eram tidos como naturais, inevitáveis mesmo e, por isso, não incomodavam tanto.
Entretanto, essa percepção seria alterada com o surgimento de novas tecnologias, tornando
incômodos os tais alaridos que não mais se justificavam, posto que passível de serem
substituídos. Assim havia ocorrido, anos antes, com os chiados dos carros de boi; agora a
intolerância voltava-se contra outros animais presentes na cidade, e muito porque eles
Mais importante para esta análise, porém, está a questão de que, a contribuir com essa
nova intolerância, não estavam presentes apenas o incômodo dos alaridos
começavam a ser vistos como supérfluos.
402
que a todos
perturb
ncretamente, um dos primeiros alertas foi
emitido
avam, senão um aspecto mais grave, aquele que colocava em risco a própria vida, já
que trazia consigo a possibilidade de doenças e mesmo de morte. A reunião de vários animais
num mesmo espaço (o das cocheiras), bem como o descarte de toda a sorte de detritos que ali
eram produzidos, passou a ser motivo de medo e tema recorrente nas discussões a respeito
das doenças que atacavam os paulistanos. Co
em 1881:
“Constando que vários moradores da rua de Lourenço Gnecco estão sofrendo
de febres intermitentes, indico que vá uma Comissão composta dos Doutores
Médico e Engenheiro da Câmara examinar os encanamentos existentes na
Cocheira da Companhia de Bonds, para informar com urgência se as febres
são provenientes das agoas que esses canos despejam na rua , e o que é
preciso fazer para evitar que continue o mal."
403
(meus destaques)
O entendimento de que as águas sujas das cocheiras poderiam trazer algum risco à
saúde era algo recente desde que, é claro, não permanecessem empoçadas. Antes disso, elas
eram percebidas como prejudiciais apenas porque podiam provocar buracos no leito das ruas
de terra, como explicou o fiscal Antonio Joaquim de Lima em 1866, ao pedir pela proibição da
“lavagem de carros nas ruas em que existem cocheiras, por causa dos estragos que causam à rua.”
404
concedido esse privilégio a outro empresário, e mesmo a Companhia Carris de Ferro de São Paulo (que explorava
os bondes) protestou e recorreu ao governo do Estado por considerá-la prejudicial aos seus negócios.
402 - Esta situação presente em São Paulo tornou-se muito mais desconfortável com a notícia da última maravilha
implantada no Rio de Janeiro: a inauguração dos bondes elétricos em 1892. Seguiram-se os de Salvador em 1897 e
o de Manaus em 1899. Buenos Aires, na mesma época, já possuía também a nova tecnologia. Talvez por isso a
sigla C. V. P. (de Companhia Viação Paulista, pintada nos bondes à burro) passou a ser motivo de chacota e
traduzida para “Cada Vez Pior”. Mais ainda, o bonde tracionado por animais passou a ser sinônimo de algo ruim,
ineficiente e que causava transtorno. Surge então a expressão “trambolho”, numa junção de TRAM (de Tramway)
+ BO (Bonde) + LHO (contração). Veja a esse respeito Menezes, Raimundo, 1969, op. cit. e, do mesmo autor,
Coisas que o Tempo Levou, 1938.
403 - Requerimento do vereador Sertório, A. C., 18/07/1881. A rua citada no documento ainda existe com o
mesmo nome e localiza-se nas encostas do Pátio do Colégio, nas imediações da Rua 25 de Março.
404 - Relatório dos fiscais, A. C., 05/07/1866, p. 91.
183
Anos depois, o “estrago” seria visto como bem maior e mais grave. Ensaiava-se a saída de
cena dos miasmas como caus ar, entravam os micróbios. A
febre tifóide, cujo bacilo havia sido descoberto em 1880 pelo alemão Karl Joseph Eberth, agora
alimentava o pavor frente às ementos vindos das
cocheiras e que escorriam ind iversas ruas da cidade. Em 1890, por
exempl , e diante do novo capital nos casos de falecimentos em
consequencia de enfermidades transmissíveis por proximidades”, logo foi lembrado do problema
causad
tenha a máxima cautela na higiene de seu estabelecimento e que não permita
que sejam lavados os carros funerários, principalmente os fechados, na rua do
omissão formada por
médico
almente às
“águas sujas e de lavagem de animais que, do edifício do quartel, eram jogadas nas ruas do
Trem e do Carmo, bem como na ladeira do Carmo”.
407
Desde essa época e até 1914 –
passando é claro por 1899, ocasião em que o vereador Abílio Soares “perdeu a paciência” com
adores dos males e, em seu lug
águas pútridas misturadas com os excr
iscriminadamente pelas d
risco “para o público dao
o pela “lavagem de carros e outros veículos nas ruas e praças públicas”. O medo, como não
poderia deixar de ser, voltou-se também para os mais perigosos veículos em trânsito pela
cidade: os carros funerários que transportavam os mortos, muitos deles falecidos em
decorrência de moléstias transmissíveis, como agora era sabido. Por isso, e em complemento
às várias deliberações, lembrou o vereador Anhaia Mello:
“Indico que seja providenciado para que a cocheira da Empresa Funerária
Carmo, onde o trânsito é considerável”
405
Recém-percebidos como redutos de doenças, esses inúmeros estabelecimentos
espalhados por toda a cidade – as cocheiras e os estábulos – entrariam no rol dos locais a
serem evitados por conta do alto risco que representavam. Não se sabia ainda muito bem
como agir, mas, paulatinamente, as cocheiras passariam a ser classificadas como danosas à
saúde, fossem elas de propriedade particular, de empresas de transportes ou mesmo do
próprio governo.
Em 1884, o principal alvo dessa nova empreitada já estava eleito: as cocheiras do
Quartel. Não por outro motivo, alertou o vereador Franzen, que “tendo-se dados casos de tifo
e de outras febres perniciosas na rua do Trem”, era preciso que uma c
s e vereadores fosse examinar as “cavallariças dos Corpos de linha e dos permanentes ali
existentes, ficando a comissão autorizada a por um paradeiro a tais abusos, visto que os esforços do
fiscal não foram suficientes.”
406
Os tais abusos ali praticados diziam respeito princip
405 - Indicações dos vereadores Luiz de Anhaia Mello e Hipólito da Silva, A. C., 12/03/1890. Essas medidas
estavam sendo lembradas por conta da ameaça da febre amarela.
406 - Indicação do vereador Franzen, A. C., 23/04/1884, p. 89.
407 - Ofício do fiscal Alfredo Augusto de Azevedo, A. C. 26/03/1889,p. 102.
184
o governo estadual – permaneceu o Quartel a infeccionar as ruas e os moradores vizinhos.
408
Do outro lado
Carmo, o problema se
colocar em mau estado que partiam” da
mesma cocheira. A sol
que, a partir de então, passaram a ser jogadas diretamente no Tamanduateí. A imundície era
expulsa das ruas, mas agora infeccionava o rio com todos os seus agravantes.
409
Também
idades.”
412
Na análise de todos esses discursos, sobressai uma questão muito importante, pois até
até
animai
na sensibilidade, tornando intolerável um ruído até então normal na vida de todos.
Posteriormente surgiu o receio diante dos detritos produzidos nesses estabelecimentos e que,
escorrendo pelas ruas, poderiam estar na origem das febres tão comuns na população,
da cidade, nas imediações da rua 25 de Março, ao lado da várzea do
repetia com a cocheira da companhia de bondes, acusada que foi de
“um valo que serve de receptáculo às águas podres e infectas
ução, nesse caso, foi o encanamento subterrâneo dessas águas pútridas
insalubre foi considerada uma cocheira particular, situada na rua das Flores nº 57. Denunciada
pelos próprios vizinhos, o seu estado foi observado como altamente prejudicial à saúde dos
moradores, até porque, além de abrigar vários animais, conservava em seu interior um deposito
de guano animal (esterco) que causava uma grande “infecção pelo mau cheiro que exalava.”
410
Pelos lados do Brás, era péssimo o estado da rua Oriente, “conservando-se sempre cheia
de urina e lixo” por conta da cocheira de bondes, “sendo isso muito prejudicial aos moradores do
lugar.”
411
Na rua Santa Luzia, outra ainda foi condenada pois não tinha “condições higiênicas e
o seu estado de conservação era péssimo, exalando sempre um mau cheiro insuportável que incomodava
os moradores das proxim
a década de 1880 pelos menos, o centro das discussões ou o foco do problema não eram tanto
os animais senão as suas cocheiras. Elas é que deveriam ser expulsas da área urbana,
porque não havia ainda um substituto completo para o tipo de transporte então utilizado.
Mulas, jumentos e cavalos ainda desempenhavam um papel de suma importância e eram
prescindíveis na vida urbana. Assim, o medo e a intolerância voltavam-se não para os im
s individualmente, mas para a reunião de muitos deles num mesmo local, ou seja, nos
estábulos e cocheiras. Essa prática trouxe, inicialmente, o incômodo dos alaridos e dos zurros
coletivos que, incessantes, atrapalhavam o sono. Dessa maneira, foi provocada uma alteração
408 - O “Quartel de Linha” foi demolido em 1914 para, em seu lugar se construir o Palácio da Justiça, edifício ainda
hoje existente, localizado ao lado da Catedral da Sé. Veja Santana, Nuto; São Paulo Histórico Vol. VI, op. cit., p. 52.
409 - Ofício do engenheiro da Câmara respondendo um ofício do inspetor interino de higiene, A. C., 20/08/1889, p.
254.
410 - Ofício do chefe de polícia, A. C., 30/04/1889 e ofício dos drs. Antonio Benedito Marques e engenheiro Luiz
César do Amaral Gama, A. C., 26/02/1890, p. 57.
411 - Informação de Guilherme M. Rudge ao Intendente, A. C., 03/04/1894, exemplar manuscrito, p. 198.
412 - Indicação nº 56 de Abílio Soares ao Prefeito, A. C., 08/04/1899, p. 180.
185
especialmente a tifóide. Portanto, e ao contrário dos animais, as cocheiras poderiam sim
sofrer uma intervenção como, por exemplo, serem colocadas para fora da cidade ou, caso isso
não fosse possível, pelos menos as imundícies ali produzidas poderiam ser neutralizadas em
seus males via encanamentos ou métodos mais seguros de coleta dos resíduos. Para isso
existiam soluções já testadas e implantadas em alguns estabelecimentos. O caso, entretanto,
era que muitas outras cocheiras seguiam fazendo o que sempre fizeram, lavando seus carros
nas ruas, promovendo a limpeza dos estábulos e despejando suas águas servidas em plena
via pública e, quando não o faziam, a matéria fecal ficava exposta nas redondezas,
impregnando terra, ares e, por conseqüência, também pessoas. Era, certamente, uma nova
situação, pois agora (entre as décadas de 1880 e 1890) classificava-se como danosa uma
prática antes corriqueira. Em 1887, por exemplo, e diante de uma ameaça de cólera que já
afetava a Argentina, alertava o inspetor de higiene da província sobre a falta de asseio na
cidade e pedia especial atenção para uma “fiscalização rigorosa dos alimentos, bebidas, lotação
de habitações e
estábulos, pelo rigoroso asseio de higiene pública e individual ...” e, dentre as
medidas sugeridas para atalhar o mal, sugeria “desinfecções generalizadas, principalmente nos
cortiços, hotéis,
estábulos (...) e em todos os lugares onde existam fermentações pútridas.”.
413
(meus destaques) Aqui chama a atenção a recente inclusão dos estábulos entre os locais
passíveis de vigilância, o que até então não ocorria ou, pelo menos,o no sentido de que
os mesmos pudessem causar algum mal à saúde. E isso devido a uma novidade, esta
explicitada nas próprias considerações do mesmo inspetor de higiene:
“E, mais que tudo, indispensável, para obter-se qualquer saneamento, é que a
Câmara Municipal, e a polícia atuem de boa mente e de comum acordo com a
Inspetoria de Higiene, antecipando, desde já, a profilaxia da peste, pois,
infelizmente é certo que deixa muito a desejar o saneamento e higiene da
província e principalmente da Capital, hoje, entretanto, que
se sabe depender
a epidemicidade tanto do micróbio como do receptor.” (meu destaque)
A partir desse momento nota-se um sensível aumento na quantidade de reclamações
contra estábulos e cocheiras que, muitas vezes, concretizou-se em denúncias e até ameaças de
fechamentos de diversos desses estabelecimentos. Em 1896, por exemplo, e por conta da Lei
414
nº 234 de 17 de abril daquele ano, o intendente de higiene ordenou o fechamento de alguns
estábulos e obrigou outros tantos a serem reconstruídos de acordo com um novo padrão que
413 - Relatório do dr. Marcos Arruda, inspetor de higiene da Província de São Paulo, op. cit., p. 77
414 - Idem, ibidem.
186
se estabeleceu. Não obstante o aumento contínuo dessa nova intolerância, o fato é que
ainda por alguns anos as cocheiras estiveram presentes na área urbana, mas não sem uma
vigilância que antes inexistia. Várias foram as tentativas de enquadrá-las numa nova ordem
que, entretanto, esbarravam numa simples questão: o automóvel ainda não fizera a sua
entrada na
415
cidade e, por isso, os ricos ainda se utilizavam de transportes particulares
movido
a ser adotado para o calçamento das vias públicas. Para as ruas centrais e de
maior
tridas,
esverdeadas, que presentes estavam no leito de diversas vias, fossem elas calçadas com
pedras, pedregulhos ou pelo sistema chamado macadam, este o mais utilizado nas ruas da
s a tração animada o que redundava na necessidade de cocheiras anexas às
residências. Era este um problema de difícil solução e que somente seria equacionado nas
primeiras décadas do século XX, ocasião em que se tornou possível uma legislação mais
proibitiva.
416
Ao mesmo tempo em que cocheiras e estábulos ganhavam essa característica negativa,
o olhar educado pelos novos conhecimentos, deslocava-se rapidamente para a própria rua,
esta também um ponto de reunião e de trânsito de centenas de animais diariamente.
Inicialmente percebidos como um problema somente quando reunidos em um grande
número em locais fechados, e isso por conta do barulho e da concentração de imundícies
produzidas, rapidamente o foco da questão em torno da saúde ampliou-se e incluiu, desde
então, cada animal individualmente. A grande novidade, portanto, foi que eles passaram a
ser perigosos não apenas enquanto num conjunto em uma cocheira como antes, mas,
também, quando de sua passagem constante pelas ruas da cidade.
Essa nova percepção, que colocava em jogo o caráter utilitário dos animais, apareceu
de maneira bastante explícita em 1894, e isso no bojo de uma acirrada discussão sobre o
melhor método
movimento, parte das autoridades optava pelo paralelepípedo, já utilizado em
algumas delas, sendo que outros apoiavam um novíssimo sistema que utilizava o asfalto, este
oferecido por uma empresa com o sugestivo nome de Pavimento Sanitário Fluminense. O
calçamento das ruas era entendido como primordial para a saúde, pois era uma das maneiras
de se evitar o acúmulo de lixo nos interstícios e nos buracos formados pela chuva; com um
calçamento bem nivelado e abaulado, evitava-se também o aparecimento de lagoas pú
415 - Relatório do Intendente de Polícia e Higiene para o ano de 1896, p. 10
416 - Em junho de 1912, por exemplo, proibia-se a construção de estábulos e cocheiras nas imediações de qualquer
estabelecimento escolar, dos quais deveriam guardar uma distância mínima de 300 metros (Lei nº 1.550 de
11/06/1912, Projeto nº 11 de 1912, A. C., sessões dos dias 08/03/1912, p. 59 e 60; 07/06/1912, p. 243 e 244); o Ato
nº 774 de 10/07/1915 impôs sérias restrições à construção de cocheiras, cavalariças e estábulos no perímetro
urbano; em 1918, através da Lei nº 2.117 de 09/02, aumentou-se sobremaneira o valor dos impostos a serem pagos
sobre as cocheiras, (de 100$000 para 250$000 Rs. no caso de cocheiras com capacidade para 10 ou mais animais), o
que desestimulava a existência das mesmas, especialmente no chamado perímetro central da cidade.
187
capital,
m
parecer
rina por mês. A cada ano,
portant
já que de menor custo para a sua realização.
417
Tema bastante complexo, a questão do calçamento das ruas reunia aspectos delicados
como o seu financiamento, o problema de higiene e saúde, bem como a parte técnica numa
cidade que se irradiava por declives, vales e ladeiras. Não por outro motivo, o tema foi
inclusive submetido aos engenheiros da recém-inaugurada Escola Politécnica, que deram u
favorável ao calçamento de paralelepípedos em detrimento ao de asfalto, o que
contrariou muitos dos vereadores.
Para defender o asfalto e o “Pavimento Sanitário Fluminense”, sistema este
impermeável e de fácil limpeza, os edis Elias Fausto, Joaquim Gomes Stella e Guilherme Rudge,
produziram um relato aterrador dos fatos que diariamente ocorriam nas ruas da capital.
Constataram eles, por exemplo, que existiam cerca de 7.500 animais em trânsito diário pela
cidade. Estes, por sua vez, depositavam nas ruas 30 mil quilos de excrementos e 30 mil litros de
urina por dia. Não obstante o trabalho realizado pela limpeza pública, alegaram eles que, pelo
tipo de calçamento então utilizado, infiltravam-se no solo ou ficariam expostos na superfície,
nada menos do que 7.500 quilos de excrementos e 900.000 litros de u
o, a imundície exposta ou absorvida chegaria ao impressionante número de 2.700
toneladas de excrementos e 10.800.000 litros de urina. Numa nova perspectiva em que se
reconhecia a existência dos letais micróbios, completaram eles a análise dizendo que:
“O higienista não pode fechar os olhos a esta parcela de detritos orgânicos
que podem aumentar o número de
bactérias que existe na lama das ruas, na
extraordinária proporção de
30 bilhões por centímetro. E acelerando
exalações miasmáticas, concorrendo em grande escala para a poluição do
ambiente em geral. Estas infiltrações constituem um verdadeiro foco de
mefitismo patogênico, além de gerarem toda a sorte de insetos nocivos,
verdadeiros transmissores de
micróbios.”
418
(meus destaques)
Do impressionante e tenebroso relato que mostrava ruas totalmente infectadas, com
nojosas concentrações de micróbios pululando nos interstícios das pedras do calçamento e nos
buracos cheios de urina, estes prontos ue por ali
passass a
a
individual, passaram a ser percebidos como parte responsável pela geração de doenças. Cada
um deles era um problema, pois urinavam e defecavam em plena via pública.
419
Mas, não havia
para o “ataque” a qualquer desavisado q
e, percebemos, de qualquer forma, que estava em construção uma imagem maléfica
respeito dos animais – estes tão comuns na cidade – e que agora, até mesmo de form
417 - O sistema chamado “macadam” ou “macadame” foi desenvolvido pelo engenheiro escocês John Loudon
McAdam e consistia na compressão de algumas camadas sobrepostas de pedregulho e terra. Em São Paulo
utilizava-se também o saibro quando se queria dar uma boa qualidade ao calçamento.
418 - A. C. sessão do dia 06/03/1894, volume manuscrito, p. 143 a 163. Veja a transcrição completa deste
documento bem como uma outra análise no Capítulo 5, item 5.1 “Afecção, Infecção e Poluição”.
419 - Por essa época, inicia-se um aprendizado no que tange aos perigos presentes nos excrementos animais, algo
188
ainda um substituto à altura para a sua força de trabalho; eles ainda eram úteis e isso até qu
algo viesse para desbancá-los e, dessa maneira, torná-los supérfluos. De qualquer forma,
conscientização a respeito dos perigos que mulas, jumentos e cavalos causavam já estava e
andamento, permanecendo este aprendizado em curso durante toda a década de 1890.
Como visto, a partir dos últimos anos do século XIX o mal alcançava novos espaços
rumava por caminhos ainda não trilhados; a doença e a morte poderiam agora sere
encontrados nas cocheiras, animais individualmente pelas ruas e, também, nos próprio
veículos, muitos deles classificados como extremamente perigosos, já que conteria
impregnados os germes de doenças. A intolerância contra os animais – e principalmen
contra os estábulos – foi ganhando força. O inspetor de higiene do Estado dizia, em 1890, “s
muito prejudicial à saúde pública a construção de cocheiras no perímetro urbano”
e
a
m
e
m
s
m
te
er
a
s
particu
stituídos pela eletricidade, a exemplo do que já acontecia no Rio
de Janeiro. Nesse sentido, pensavam os paulistanos, por que eles ainda conviviam com
aquela forma arcaica e
otícias dando conta d
“Quando, porém, não proviesse outra vantagem da substituição do actual
420
e, três anos
depois, um projeto do Dr. Guilherme Rudge tentava proibir “novos estábulos e cocheiras” n
cidade, sendo que as já existentes deveriam ser demolidas num prazo de 60 dias.
421
A
proposta era por demais audaciosa para aquele momento, uma vez que atingia diverso
lares, empresas estabelecidas, e muita gente grada da sociedade que possuíam suas
próprias garagens. Assim sendo, o projeto passou por uma negociação e somente os
estábulos, aqueles que continham muitos animais, foram proibidos, sendo admitidas as
pequenas cocheiras particulares.
422
Não obstante essa negociação, o caso é que o primeiro
passo já havia sido dado e, iniciando pela área central da cidade, os animais começavam, aos
poucos a serem expulsos da vida cotidiana.
Uma parte importante desse processo pode ser acompanhada através da intolerância
que se construía em torno dos animais que movimentavam os bondes. E isso ocorria porque
eles, agora, poderiam ser sub
muito perigosa de transporte? Da capital da República chegavam as
as vantagens advindas coma instalação das linhas eletrificadas: n
systema de tracção animal pelo da electrica,
bastaria a cessação da estrumeira
e concomitantes exhalações fetidas e nocivas, inevitáveis por mais que se
procure manter rigoroso o prejuizo das molestias contagiosas e infecciosas,
taes como o mormo, lamparão e outras que se desenvolvem e propagam-se
ainda não totalmente reconhecido, posto que a muitos deles eram imputados qualidades curativas para diversos
males, entrando os mesmos na receita para alguns remédios como veremos adiante no capítulo que tratará da
mortalidade infantil.
420 - Ofício do inspetor de higiene do Estado, A. C., 12/03/1890, p. 66
421 - Projeto nº 73 do vereador Guilherme M. Rudge, A. C., 01/07/1893, p. 286.
422 - Discussão final do projeto nº 73, A. C., 26/12/1893, transformado na Lei nº 86 de 29/12/1893 que proibiu a
“a existência de estábulos no 1º perímetro da cidade.”
189
nessa accumulação. Que diferença para o asseio e elegância dos carros
electricos! Quanto!
Quanto com elles lucra a hygiene?
423
meus destaques
Entretanto, e ao contrário dessa maravilha da modernidade, o centro da capital
paulistana continuava a abrigar, por exemplo tal quartel com suas cocheiras infectas, e isso
”com maior escândalo” possível. Nesse contexto, entendemos melhor a intolerância e a falta
de paciência do vereador Abílio Soares que apresentou aquele irônico projet
, o
o “concedendo
ao Governo do Estado o priv
relação aos seus excrementos e a tudo que os
ilégio exclusivo de conservar as repartições a seu cargo na maior
imundície”.
De qualquer forma, a construção de uma nova sensibilidade em relação aos animais,
bem como o despontar de uma intolerância em
rodeava, ganhou novos contornos e tornou-se, entre os anos de 1899 e 1904, uma real ameaça
frente à funesta possibilidade da cidade ser invadida pela peste bubônica, que já se
manifestara em Santos. Nesse processo, outros animais – os ratos – entrariam em cena como
os grandes responsáveis pela transmissão do mal e, tendo em vista a sua proliferação na
cidade, bem como os lugares específicos que estes escolhiam como esconderijo, a campanha
pela sua extinção acabou, também, por afetar a sobrevivência de cavalos, mulas, jumentos e
mesmo a de bois e vacas no entorno e na área urbana. Detalharemos essa inusitada
correlação, pois a ameaça da horrível doença, bem como os métodos empregados para barrar
a sua entrada na cidade, redundaram num episódio até agora pouco estudado, mas que
afetou a vida de muitas pessoas. Poderíamos chamá-lo de a “polêmica dos capinzais”.
Em outubro de 1899, os jornais paulistanos dariam o primeiro alerta: em Santos,
confirmara-se a existência de alguns casos de peste bubônica. O fato era gravíssimo, pois São
Paulo mantinha uma comunicação diária com aquele porto via estrada de ferro e, por isso, a
doença poderia chegar muito rapidamente à capital. Decerto que o pavor repercutido pelos
jornais demandavam a tomada de sérias decisões “afim de prevenir o mal que fatalmente”
chegaria, tendo em vista a grande movimentação de pessoas entre as duas cidades.
424
Médicos e higienistas passaram a alertar que “a peste era a mais terrível doença epidêmica” e,
fazendo reviver um antigo pavor, lembravam que esta doença, “na idade média, havia provocado
423 - Relatório do Intendente de Polícia e Higyene Dr. José Roberto Leite Penteado, 1896, p. 159. O trecho aqui
citado foi transcrito pelo intendente paulistano (a titulo de exemplo) diretamente do relatório da “Companhia
Jardim Botânico” do Rio de Janeiro de 1893. Esta companhia foi a primeira a adotar, na América do Sul, a tração
elétrica em substituição a animal em 1892.
424 - Discurso do vereador Abílio Soares na Indicação nº 146, A. C., 18/10/1899, p. 486. A respeito do trem, de
sua velocidade e de sua influência na rápida propagação das doenças e epidemias no Estado de São Paulo, ver
Ribeiro, Maria Alice Rosa; História sem fim ... Inventário da saúde pública, 1993.
190
a morte de 25 milhões de pessoas na Europa e, no mundo, 42 milhões num período de 16 anos.”
425
Entretanto, a situação presente em 1899 não era a mesma da Europa medieval,
principalmente porque agora estava
provado que da terrível peste são os ratos os principaes
vehiculos.
426
Nesse sentido, a primeira medida sugerida (e que realmente foi colocada em
prática) foi a eliminação desses pequenos e mortíferos animais. Claro que os ratos viviam
escondidos nos monturos de lixo, no quintal das residências ou mesmo no interior das casas
e, por isso, as autoridades lembravam também a necessidade das
negativas colaborou para transformá-lo num animal
cruel, aquele que carre
“visitas domiciliares” que
deveriam ser feitas “diariamente e com o máximo rigor” possível.
427
Estabelecida uma relação entre os ratos e a peste, entendeu-se que a sua eliminação
era primordial para obstar a doença e, por isso mesmo, todos os locais onde eles se escondiam
foram vasculhados. Numa busca constante, o governo lançou uma campanha, na qual
engajaram-se adultos e crianças, para a chamada “caça aos ratos” que, abatidos, eram
comprados a 400 reis no Desinfectório Central.
428
Até então, anotava-se uma aversão aos ratos muito mais pelo que eles poderiam trazer
de prejuízo aos armazéns, aos grandes depósitos de alimentos ou mesmo aos mantimentos de
cada residência.
429
Mas, a partir da grande ameaça de epidemia, os mesmos passaram a
representar a doença e a morte, numa imagem de horror que então foi sendo construída a seu
respeito. A difusão de tais qualidades
gava consigo o símbolo da morte.
Rato velho descarado roedor
Rato velho como tu faz horror
rastros dos restos – as trajetórias do lixo na cidade de São Paulo, 2001, p. 89. A autora cita
ento intitulado “O rato e seu
425 - Miziara, Rosana, Nos
aqui o trecho de um docum s malefícios: conselhos e instruções hygienicas ao alcance
de todos”, produzido pelo Serviço Sanitário do Estado de São Paulo.
426 - Abílio Soares, op. cit. No discurso do vereador
descober
número de qualidades e defeitos; é verdade que se vê nele a mácula e o animal rapace, mas é ele também o
já está presente o conhecimento sobre o bacilo da peste, este
to em 1894 por Alexandre Yersin.
427 - Id. ibidem.
428 - A respeito dos ratos, de sua vinculação à peste e seu extermínio, ver o excelente trabalho de Miziara op. cit.,
especialmente o capítulo “Personagens e monumentos cosmopolitas: as moscas, os ratos, os trapeiros e o
incinerador”,p. 67 a 107. Desse tema trata também Ribeiro, Maria Alice Rosa , 1993.
429 - A influência negativa do rato na história da peste somente foi reconhecida depois da descoberta do bacilo
por Yersin em 1894 e depois dos trabalhos de Simond que, em 1898, chamaram a atenção para o papel da pulga.
Antes disso, como reconheceu Delort para o caso europeu, no início do século XVIII “o rato surge dotado de igual
modelo de solidariedade, da entre ajuda, da coragem, da astúcia acima de tudo (...)” é ele que, em grupo, dá o
primeiro alerta sobre o desabamento de uma casa, abandonando rapidamente sua toca, assim como avisando
sobre um tremor de terra, ou que o navio está prestes a afundar. Delort, Robert; Que a peste seja do rato!, In: Le
Goff, 1985, p.109 e seguintes. Diferente opinião manifestam Sournia e Ruffie (1986) que apontam várias
referências aos ratos em antigos textos sobre doenças e epidemias, inclusive na Bíblia. Daí eles concluírem que
“nossos antepassados teriam verificado o animal culpável pela transmissão, muito antes de o micróbio causal ser
identificado” em 1894. Entretanto, esta análise torna-se frágil quando lembramos que os relatos e a iconografia, são
sempre posteriores aos acontecimentos e, por isso, os ratos aqui estariam presentes mais com o sentido de “aviso”, de
que algo muito ruim estaria por acontecer, ou que a catástrofe já estava em curso, como demonstrou Delort.
191
Nada valerá teu qui-qui
Morrerás e não terás quem chore por ti
Vou provar-te que sou mau
Meu tostão é garantido
Não te solto nem a pau
430
Por certo que não eram apenas nos locais mais visados ou “acostumados” que os ratos
viviam e se reproduziam, senão também nos
capinzais que abundavam na cidade e no seu
entorno. Grandes plantações dessa gramínea poderiam ser encontradas pelos lados da várzea
do Carmo ou nos bairros do Bom Retiro e do Pari, por exemplo. E isso ocorria porque o capim
era o alimento mais barato para as numerosas mulas, cavalos e jumentos que estavam a
trabalhar pelas ruas p
de bois e vacas, sendo
na cidade.
Ocorre, porém
poderia r tomadas entou o então presidente da Câmara, Dr.
Albuqu
aulistanas. Da mesma forma, a gramínea também fazia parte da dieta
estas últimas de muito préstimo, porque produziam o leite consumido
, que, diante da fatalidade que se avizinhava, medidas de exceção
e isso seria necessário, argumm se
erque Lins, porque era preciso “combater o mal a todo custo”. Nesse sentido, e
sempre tendo em vista a “salubridade pública, que é afinal de contas a primeira das necessidades”,
ele completaria dizendo que sacrifícios não deveriam ser medidos para barrar a entrada do
mal na cidade.
431
E de tal maneira a doença apavorava que, no âmbito do governo estadual,
por exemplo, foi devido à peste que se organizou o Instituto Butantã, idéia esta sugerida pelo
Dr. Emílio Ribas, e que ficou sob a direção do Dr. Vital Brazil.
432
De fato, a ameaça era uma
constante para São Paulo e a situação só veio a piorar em 1901, ocasião em que foram
registrados os primeiros casos oficiais da doença no Rio de Janeiro.
No governo municipal, discussões e mais discussões foram realizadas e, dentre as
medidas mais polêmicas, a então comissão especial de higiene fez ver que não bastava buscar
os ratos nos locais já esquadrinhados e, por isso, apresentou o seguinte projeto:
“Considerando que pela Diretoria do Serviço Sanitário, como medida
profilática, foi ordenada a destruição dos ratos;
Considerando que as grandes
plantações de capim e bambus existentes na área urbana da cidade,
430 - Versos da música “Rato, Rato”, sucesso no carnaval carioca de 1904, numa composição de Casemiro Rocha e
Claudino Costa. Veja mais dados em Histórias ou estórias da MPB, Omar Jubran, disponível no sítio
www.jornalmovimento.com.br/omar.htm
431 - Relatório do Presidente da Câmara, Dr. Manoel Joaquim de Albuquerque Lins, A. C., 07/01/1900, p. 28.
432 - Sobre o histórico dessa instituição e sua vinculação à peste bubônica, veja Antunes, José Leopoldo Ferreira
(org.); Instituto Adolfo Lutz – 100 anos do laboratório de saúde pública (1992), Silva, Luiz Jacintho; O controle das
epidemias no Brasil e sua história, In: Revista Ciência e Cultura vol. 55, nº 01, S.P., jan/mar 2003 e Teixeira, Luiz
Antonio, Ciência e Saúde na terra dos bandeirantes; R.J.: Ed. Fiocruz, 1995, especialmente p. 49 a 53.
192
constituem séria ameaça á população, porquanto são verdadeiros focos de
propagação dos ratos; Considerando, finalmente,que a Câmara também tem
por dever cooperar na defesa sanitária da cidade, propõe:
Art. 1º:
Fica proibida a plantação de capim e bambus, dentro do 1º e 2º
perímetro da cidade.
433
(meus destaques)
a ficou resolvido, até porque a epidemia não
atingiu a cidade, anotando-se apenas quatro casos em 1899.
434
Em 1900 ocorreram duas
ral 69 das moléstias
contagiosas, sepultura nº 150, o cadáver de André Bo
e principalmente porque em 1901 nenhuma morte
Apresentado como proposta, o tema era passível de discussões até ser concretizada
através de uma lei. E a medida era mesmo polêmica, pois feria os interesses de várias pessoas,
e isso desde os grandes empresários do transporte, e até o pequeno carroceiro. Por isso, os
debates foram acirrados. De imediato, nad
mortes – no mesmo dia e mês diagnosticadas como peste bubônica. Os doentes estavam em
tratamento no Isolamento, hoje Hospital Emílio Ribas, e os corpos foram sepultados no
cemitério do Araçá em um local especialmente preparado e que se chamava quadro das
moléstias contagiosas:
Francisco: aos 3 dias do mês de janeiro de 1900 sepultou-se no quadro geral 69 das moléstias
contagiosas, sepultura nº 149, o cadáver de Francisco Martins, com 12 anos, espanhol, solteiro, faleceu
no Isolamento vítima de peste bubônica. Atestado do dr. Espinheira. Sepultou-se como pobre.”
André: aos 3 dias do mês de janeiro de 1900, sepultou-se no quadro ge
nacica, com 25 anos, italiano, casado, faleceu no
Isolamento vítima de peste bubônica. Atestado do dr. Espinheira. Sepultou-se como pobre.”
435
conta desses poucos casos –Por
ocorrera – a proposta ficou esquecida por quase um ano quando, então, foi reapresentada
com uma novidade: todo o tipo de mato deveria ser roçado e queimado, ficando bem
esclarecido que esses matos seriam aqueles “constituídos pelas vegetações rasteiras e não pelos
jardins, bosques ou pomares que servem de ornamento às habitações.”
436
Salvavam-se assim os
433 - Projeto de Lei nº 20, A. C., 16/10/1901, p. 348. O primeiro perímetro englobava o centro da cidade (chamado
de “parte comercial”) e o segundo era formado pelos limites dos atuais bairros da Liberdade, Brás, Pari, Luz e
Bom Retiro, Campos Elíseos, República, Consolação e Bela Vista, desde que suas ruas fossem servidas com águas,
luz e esgotos. Veja o detalhamento completo dessa divisão administrativa da cidade em A. C., 23/04/1890, p. 113
a 115. Nos artigos subseqüentes (2º e 3º) desta proposta, tal proibição era estendida às áreas mais afastadas do
centro da cidade, desde que os capinzais estivessem em ruas que possuíssem “os seguintes melhoramentos:
iluminação, nivelamento ou abaulamento, sarjetas e guias.” Caso essas plantações não fossem destruídas num prazo de
60dias, o proprietário pagaria uma multa de Rs. 50$000, ficando a Câmara no direito de arrasar o capinzal,
pagando o proprietário do terreno todas as despesas decorrentes da ação.
434 - Apesar da mortalidade causada pela peste em São Paulo nunca ter sido alta, os poucos casos apavoravam.
Para a primeira década do século XX os números são os seguintes: 1901, nenhum caso registrado; 1902, um caso;
1903, sete; 1904, seis; 1905, quatro, 1906, oito; 1907, três; 1908, cinco; 1909, nenhum caso; 1910, cinco casos. Veja
Sposati, Aldaisa; A Secretaria de higiene e saúde da cidade de São Paulo – história e memória, Tabela 2.
435 - Livro de Inumação do cemitério do Araçá, vol. 33, fl. 201.
436 - Projeto de Lei nº 20 dos vereadores João Amarante, Dr. Pereira da Rocha e Dr. Evaristo Veiga, A. C.,
02/08/1902, p. 212.
193
jardins das belas residências da Av. Paulista e de Higienópolis, por exemplo, bem como os
organizados canteiros de alguns parques como os do Jardim da Luz. O que de fato
preocupava era o matagal (rasteiro ou não) que crescia confuso, sem ordem e nem beleza, a
vegetação deixada ao acaso, inculta. Eram as “charnecas”, conforme dizia Bernardo
Guimarães, que ofereciam um perigo constante devido a sua profusão pela cidade já que
presentes na maioria dos quintais, nos terrenos que margeavam os rios e em muitos dos
logradouros públicos. Sem vigilância, a natureza exuberante que vicejava sem qualquer
controle passou a ser, também, a morada da morte. Os jardins planejados, ao contrário, já que
cultivados com cuidados diários, não ofereciam qualquer perigo. Eram duas condições
diversas, uma vez que a natureza virgem e indomada – e isso por diversas razões – sempre
foi temida.
engendrado em São
O mato, uma vegetação típica que abundava em todos os lugares, e antes visto apenas
como vergonhoso seja por lembrar um aspecto rural, por representar um certo desleixo – já
que relacionado à sujeira – ou não condizente com a “civilização” que se queria
437
, agora era
qualificado como algo medonho pelo abrigo que dava aos pavorosos ratos que, no
imaginário, poderiam mesmo invadir ruas e casas a partir dessa confusa rede no entorno
da cidade. É certo que todos sabiam serem os matagais um viveiro de cobras e aranhas,
mas delas os moradores conheciam os hábitos; os ataques desses animais vitimavam apenas
os incautos ou, quem sabe, numa ocasião inesperada, por conta de algum acidente. A peste,
porém, era invisível, e o povo sabia que, de alguma maneira, os ratos estavam envolvidos
nessa horrenda cadeia de infecção, podendo os pequenos animais serem a causa da morte de
centenas ou milhares de pessoas.
As práticas adotadas contra os antigos perigos estavam caindo no esquecimento frente
às novas descobertas; não bastavam mais as rezas e as procissões, mas evitar e destruir os
ratos, bem como os matagais, era algo que se podia fazer. Transformados que foram em um
dos lugares onde a morte fazia sua morada, os capinzais que vicejavam sem muita ordem
receberam um ultimato e foram, aos poucos, sendo eliminados da paisagem até porque a “sua
extinção era de grande necessidade em benefício da higiene”.
438
E tudo isso, agora, como parte de
uma bem planejada política de saúde pública cujo melhor modelo, este
437 - Em 1893, o então Intendente Cesário Ramalho da Silva diria em um de seus relatórios trimestrais: “A
vegetação exuberante nas ruas da cidade conquanto seja um attestado poderoso da fertilidade do nosso solo, é
também uma nota dissonante em uma cidade civilizada.” A. C. 01/08/1893, p. 339 e 340.
438 - Parecer nº 41 da Comissão de Justiça da Câmara Municipal, A. C., 25/07/1902, p. 269. Iniciada em finais do
século XIX, a polêmica sobre a extinção dos capinzais em São Paulo ainda permaneceria nos primeiros anos do
século XX. E isso porque, além de envolver os interesses de grandes empresários do transporte, o caso refletia
também na vida de trabalhadores que tiravam seu sustento do corte e transporte da gramínea para a alimentação
dos animais. A esse respeito ver A.C. sessões dos dias 14/03 e 20/06/1903, onde este problema foi tratado.
194
Paulo, foi tomado como exemplo para os demais Estados da federação
439
. Mas, como já
demonstrado, na verdade criava-se uma nova denominação para algo que sempre existiu,
s na
olêmica dos capinzais, propugnavam que a sua extinção visava a “acabar com os mosquitos, os
estancamentos d´água, o
saúde pública”
440
, ou po
(pois) é um foco de pro que na sua maioria são veículos dos diversos germens
patogênicos”
, servindo também como local para a procriação de “ratos, cobras e outras cousas
mais (...)”
de parte dos moradores. No caso da polêmica dos capinzais, outros animais entraram em cena
como portadores da doença e da morte e, como conseqüência da proposta visando o
Entretanto, e a despeito dos novos conhecimentos sobre as doenças, a sua etiologia e
formas de transmissão ainda não estavam totalmente desvendadas. O papel das moscas nessa
anos do século XX e, nesse
s casos relacionados às “febres”, doença esta
temores dos paulistanos. A tifóide, por exemplo,
stava nessa categoria, uma vez que a todos atingia, não poupando ricos ou pobres.
A esse imprensa naquela época e terminou por
nvolver algumas autoridades, pessoas gradas da sociedade, bem como os profissionais da saúde
pois seria a mesma precaução antes citada e que agora era lançada sob novas bases para a
população.
Nesta rede se faziam presentes os novíssimos conhecimentos que, expresso
p
s ratos e muitas outras coisas que podiam de algum modo produzir dano á
rque “a existência de capinzais em centros povoados é um perigo iminente,
criação de moscas,
441
e cuja existência numa capital civilizada causava estranhamento e “ horror”
442
.
Do relato sobre estes novos perigos e ameaças – não obstante algumas delas não se
concretizarem como a da peste – depreende-se que elas tiveram um forte impacto na construção
de um novo modelo urbano que, invariavelmente, acabava por se refletir na vida e nos hábitos
aniquilamento dos mesmos, este novo quadro acabou por tornar ainda mais difícil a
sobrevivência dos outros animais utilizados para o transporte na cidade: as mulas, jumentos e
cavalos, uma vez que o alimento dos mesmos rareava na cidade, aumentando os custos de
manutenção.
cadeia ainda era um motivo de discussões naqueles primeiros
caso, debatia-se em 1901 a relevância do inseto no
que permanecia um como um dos grandes
e
respeito, um rumoroso caso ocupou a
e
tanto do município quando do Estado. Porém, o mais importante é que o mal foi imputado a
439 - A respeito das condições políticas, econômicas e sociais existentes em São Paulo em finais do século XIX e
início do XX, condições estas que proporcionaram a elaboração de uma moderna legislação em torno da saúde,
veja Ribeiro (1993) especialmente parte II “São Paulo: a capital do café” e o capítulo “Legislação sanitária e saúde
pública”. Outro autor a tratar desse tema, Tellarolli Júnior (1996) apresenta uma circunstanciada análise na
segunda parte de seu trabalho “Fundamentos tecnológicos do modelo sanitário e a febre amarela”, p. 87 e
seguintes.
440 - Discurso do vereador Nicolau Baruel, Anais da Câmara Municipal, 15/10/1904 p. 80 a 83.
441 - Parecer nº 02 da Comissão de Higiene, Anais da Câmara, 29/03/1912, p. 109 a 112.
442 - Discurso do vereador Sampaio Vianna, Id. ibidem.
195
uma cocheira e aos animais ali presentes e, também, falou-se da presença de moscas, num
discurso bastante esclarecedor a respeito das concepções que se tinha a respeito do mal.
A doença, por sinal, atingiu diretamente a família de um conceituado médico da
cidade, o Dr. Orêncio Vidigal, que ocupava uma importante posição junto à Repartição
Sanitária do Estado, órgão este responsável por várias ações no campo da higiene e da
saúde.
4
ia
junto ao serviço de saúde do Estado, ele acusou explicitamente a coc
estavam
43
Debruçando-se sobre a moléstia que atingiu seus familiares, o médico julgou que o
mal provinha de uma cocheira, vizinha a sua residência, e pertencente a uma das mais
poderosas famílias de São Paulo. Mediante seus conhecimentos e d nte do cargo que exercia
heira existente nos fundos
do prédio da rua D. Veridiana nº 55” como a responsável pelos casos de febre tifóide que
ocorrendo em sua residência, esta localizada na rua Marquês de Itú nº 93 (todas no
aristocrático bairro de Higienópolis), e solicitou, formalmente, que uma comissão de médicos
– provavelmente seus colegas – realizasse uma vistoria no local.
Apesar do primeiro relatório condenar a cocheira, nenhuma decisão foi tomada, o
que obrigou o médico a solicitar uma nova inspeção e, ato contínuo, enviar todos os
documentos à Prefeitura. O tema era delicado, como disse um vereador, pois o caso atingia “a
honorabilidade do Executivo Municipal” uma vez que o Dr. Orêncio acusava explicitamente
uma “pessoa intima do Prefeito”, cargo este exercido naquela época pelo Conselheiro Antonio da
Silva Prado.
444
Nos documentos municipais, o nome dos proprietários de tal residência, bem
como da cocheira, nunca foram citados, mas quando o caso resvalou para a imprensa, alguns
jornais não se furtaram em dizer que o imóvel, acusado de propagar a febre tifóide naquela
região e localizada na rua D. Veridiana nº 55 era, nada mais, nada menos, que o famoso palacete
de D. Veridiana da Silva Prado, mãe do então prefeito em exercício e dama de alta consideração
na sociedade.
445
443 - O Dr. Orêncio Vidigal (1868-1949) era formado em ciências médicas, cirúrgicas, odontológicas e
farmacêuticas. Veio para São Paulo em 1891, trabalhou na Santa Casa e foi nomeado médico legista em 1892.
Sócio-fundador da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo em 1897, exerceu importantes cargos na
administração pública estadual como os de Delegado de Higiene, Inspetor Sanitário, Médico da Penitenciária,
sendo ainda o chefe de muitas comissões sanitárias enviadas ao interior para dar combate às epidemias.
Comissionado junto ao governo de Minas Gerais, auxiliou no combate ao Cólera Morbus naquele Estado. Fonte:
acervo da Seção de Denominação de Logradouros Públicos do Arquivo Histórico Municipal e informações
biográficas constantes na Justificativa do projeto de Lei nº 436 de 17/10/1952 (autoria do vereador Mayer Filho),
para a denominação da atual “Av. Dr. Orêncio Vidigal”.
444 - Parecer nº 15 da Comissão de Higiene da Câmara Municipal, A. C. 02/09/1901, p. 237 a 239.
445 - Jornal “Diário Popular”, edição do dia 02/08/1901.
196
Fig. 34: O palacete de D. Veridiana em Higienópolis
conhecimentos médicos, ou quem sabe pelo desespero de ver a sua
o Dr. Orêncio não tenha calculado muito bem, ou não percebera
gnitude de seu protesto e da acusação que fizera, pois no “jogo” que
saúde, nem sempre os argumentos médicos eram a regra principal.
es que condenavam “a bem da saúde pública” cortiços, estalagens, e
s
Fiado em seus
família doente, talvez
naquele momento a ma
envolvia a doença e a
Como parte de comissõ
residências mais pobre
de vítima da doença e p
uosas residências de ato era
aginável uma vez que outros médicos e higienistas julgavam que insalubres eram ainda
da era a
446
, agora ele assumia um outro lado, ou seja, o desconfortável papel
odia verificar que nem ele e nem sua família estavam a salvo em suas
Higienópolis. Para os demais moradores do bairro, porém, tal flux
nimi
as áreas de várzea (Brás, Pari e imediações), bem como Santa Ifigênia com suas infectas
pensões e cortiços que abrigavam operários, imigrantes e toda uma sorte de desclassificados,
jamais a “cidade da higiene” ou “da saúde” que havia sido construída pela elite nos altos da
Consolação. Daí o caso de febre tifóide na residência do Dr. Orêncio causar tanta celeuma e
sofrer, pelas mãos de algumas autoridades estaduais e municipais, um processo de
desqualificação no qual foram inclusive utilizados vários argumentos médicos. No embate
que então se travou, muitos outros elementos estavam presentes e, sem dúvida alguma, a
proeminência da família Prado se fez sentir com toda a sua força, até porque a acusa
mãe do prefeito, que possuía um grande relacionamento político também na área estadual.
No âmbito da Câmara Municipal, o caso foi discutido entre os meses de julho e agosto
de 1901, ocasião em que chegou às mãos dos vereadores a reclamação do Dr. Orêncio. Ao
acusar a cocheira pertencente à residência de D. Veridiana como a causadora de alguns casos
446 - A respeito da condenação de residências classificadas como insalubres, bem como a demolição de um grande
número delas, especialmente na região de Santa Efigênia, veja “Relatório da Commissão de exame e inspecção das
habitações operarias e cortiços no districto de Santa Ephigenia” In: Relatório apresentado á Câmara Municipal de
São Paulo pelo Intendente Municipal Cesário Ramalho da Silva, 1893”. Uma análise a respeito desse mesmo tema
foi feito por Telarolli Júnior (1996), especialmente no capítulo 10 “O modelo sanitário em ação”, item “Epidemias
e repressão aos cortiços”, p. 139 e seguintes.
197
de febre tifóide em membros de sua família, o médico solicitava a imediata demolição
daquela construção. Mais ainda, ele anexava alguns pareceres médicos que atestavam tal
ocorrência, ou seja, a de que a febre havia sido propagada através da cocheira, seja pela
estrumeira que infiltrava no solo, seja pela ação de moscas.
447
Encarregado de verificar a
denúncia contra a cocheira. Deste último faziam parte os vereadores José Oswald, Carlos
Petit, Dr. Pedro Vicente (vice-prefeito) Dr. Olavo Egydio, João Penteado, Serafim Leme,
Hermann Buchard e o
de uma comissão form
depois apresentava um
Neste novo re
inicialmente que havia
legava” para, em seguida, tecer várias considerações a respeito da mesma, tanto sob o ponto
procedência da denúncia, o então vereador Francisco Amaro visitou o imóvel e, através de
um curto parecer, concluiu:
“Examinando a cocheira existente nos fundos do prédio da rua D. Veridiana
nº 55, verifiquei estar a mesma em completo desacordo com lei (...)”
448
O texto, apesar de sucinto, foi suficiente para desencadear uma acalorada discussão
entre os que julgavam ser justa a reclamação do Dr. Orêncio, este um bloco formado pelos
vereadores Francisco Amaro, Abílio Soares e Dr. João Bueno, em oposição ao grupo que ficou
ao lado de D. Veridiana e, portanto, ao lado do prefeito, pois diziam não ser procedente a
Dr. Albuquerque Lins.
449
Uma nova visita foi agendada, agora através
ada pelos vereadores José Oswald e Carlos Petit que, pouco tempo
relatório isentando a cocheira de qualquer culpa.
latório, ao qual o Dr. Orêncio teve acesso, a comissão afirmava
visitado a tal cocheira “afim de verificar a verdade do que o Dr. Orêncio
a
de vista legal, quanto os da saúde e higiene.
450
Num jogo de palavras, disseram inicialmente os vereadores que a cocheira de D.
Veridiana havia sido construída em período anterior ao da casa do Dr. Orêncio, o que
deixava implícita uma provável responsabilidade (ou imputando culpa) ao próprio médico, e
isso por ele ter construído sua residência nas proximidades de uma cocheira que já existia!
447 - Anais da Câmara, sessões dos dias 02/09 (p. 237 a 239) e 04/10/1901 (p. 335 a 338).
448 - Parecer do Sr. Francisco Amaro datado de 01/08/1901, Anais da Câmara, 02/09/1901, p. 237.
449 - Naqueles primeiros anos do século XX a efetivação de um poder executivo, este personificado na figura do
prefeito, era ainda algo recente já que fora implantado a partir da República. Antonio da Silva Prado, também um
vereador, foi o primeiro prefeito da capital, eleito indiretamente pelos seus pares na Câmara. Nesse sentido, tanto
o prefeito quanto o seu vice, eram também vereadores e por isso todos eles participavam das sessões da Câmara.
Daí a presença do vice-prefeito, nesta sessão do dia 04/10/1901, bem como a do prefeito, Antonio da Silva Prado,
que ouviu toda a discussão a respeito da cocheira localizada no palacete de sua mãe, mas retirou-se antes das
votações finais das Indicações e Pareceres finais.
450 - Parecer nº 15 dos vereadores José Oswald e Carlos Petit, id. ibidem, p. 237 e seguintes. As demais citações
desta relatório deverão ser referendadas nesta nota.
198
Mais ainda, disseram os vereadores, a cocheira lá estava antes da Lei que regulamentava a
aprovação de novas construções desse tipo na cidade. Em seguida apontaram que, mesmo
levando em consideração a nova lei, a cocheira de D V. eridiana atendia a vários requisitos ali
estipulados como, por exemplo, o seu isolamento uma vez que ela estaria “isolada e afastada
um metro e vinte e cinco centímetros da habitação que lhe fica mais próxima, que é a do Sr. Dr. Orêncio
Vidigal e que está afastada oito metros da rua que lhe fica mais próxima, que é a do Marquês de Itu”
eu destaque). A partir desse ponto percebe-se com clareza a posição dos vereadores, uma vez
que 1,25 metros é um
relação à residência do
impermeabilidade, po
live necessário para a lavagem das imundícies e também aprovaram a
xistên
(m
a distância muito pequena para o total “isolamento” da cocheira em
médico. Continuando, os vereadores falam do piso e aprovam a sua
sto que calçado com paralelepípedos e cimento. Falaram ainda que
existia um dec
e cia de um tanque de retenção, provido de sifão, que se encarregava de levar a água
servida para o encanamento da rua. Entretanto, mais adiante eles deixaram escapar que,
apesar das “boas condições”, notaram uma “deficiência de luz” e isso
devido ás grandes
proporções da cocheira.” (meu destaque).
Por fim os vereadores, sempre na tentativa de desqualificar as denúncias do Dr.
Orêncio, lamentaram que a família do médico “tenha sido flagelada pela febre tifóide”, e
apresentaram um parecer elaborado pelos doutores Clemente Ferreira, Evaristo Bacelar e
Vieira de Melo que responderam a seguinte pergunta: Seria realmente a cocheira a causa das
febres tifóides desenvolvidas no domicílio nº 93 da rua Marquês de Itu?
A crucial resposta desses médicos, contrapondo-se às
que forneceram um pa
etiologia dessa doença
animais que ali perma
que somente na “hipótese da ocorrência anterior de fatos de semelhante moléstia no pessoal
encarreg
disseram eles. Em outras palavras, os médicos disseram que tanto a existência da febre no
local, quanto a sua transmissão via infiltração no solo, somente seria possível caso alguma
pessoa (os empregados na cocheira) a tivessem levado. Como nenhum dos trabalhadores
estava doente, a culpa não poderia ser imputada à cocheira, concluíram. De outra parte,
continuaram os médicos, que ao ...
“apresentar uma cocheira, nomeadamente com defeituosa higiene, um meio
favorável á paludação das moscas no caso de aí aparecer o germem tífico pela
superveniência de tal enfermidade no pessoal (trabalhadores) da estrebaria
análises de outros especialistas
recer ao Dr. Orêncio, é bem reveladora do quanto ainda era confusa a
, a sua transmissão ao ser humano, bem como o papel da cocheira, dos
neciam e, principalmente, das moscas. Assim, disseram os médicos,
ado de tratar dos animais se poderia operar a transmissão por conta das infiltrações no solo, e
isso no caso de ser o piso estanque, o que não era o caso da cocheira de D. Veridiana,
199
que, no caso que se trata, dorme no próprio edifício da cocheira, poderá o dito
germem ser transportado pelas moscas, para a habitação própria; nesse caso,
os especialistas – apesar de reconhecerem que as condições da cocheira não
eram a
go, pois os insetos
oderiam dali levar e e
quiçá, para toda a cida
chega a ser surpresa
Entretanto, revela-se
escapava; como no ca
vres, bem como tanto Daí uma certa recusa em se admitir
que tai
Numa análise mais apaixonada, poderíamos logo supor que ao isentarem a
residência de D. Veridiana de qualquer culpa pela febre, estavam os médicos optando pela
posição mais cômoda, ao lado da família Prado ou, no limite, elaboraram um parecer
previamente acertado. Não acredito ser este o caso, e isso por algumas razões. O despontar
da microbiologia na segunda metade do século XIX se, por um lado, respondeu a muitas
perguntas, por outro abriu um novo universo ainda a ser conhecido. Para cada questão
porém, qualquer domicílio infectado representaria, embora em maior escala,
idêntico papel visto como as moscas superabundam em todas as casas da
cidade”
Ou seja,
dequadas – novamente chamam a atenção para o fato de que as moscas somente
poderiam carregar consigo o germe da febre caso algum dos trabalhadores estivesse doente, o
que não era o caso. Mais ainda, eles alertaram que se isso fosse possível, todas as residências
onde se manifestassem tais casos poderiam ser colocadas sob suspeição, uma vez que as
moscas “superabundavam em todas as casas da cidade”. Com este argumento, a vítima (o Dr.
Orêncio) passava a ser suspeito, uma vez que em sua residência haviam comprovadamente
pessoas doentes e, nesse caso, era a sua casa uma potencial fonte de peri
p spalhar o germe da febre tifóide para todas as casas de Higienópolis e,
de. Não obstante esta análise – mas ainda com respeito às moscas – não
o fato delas existirem em grande quantidade por toda a cidade.
aqui que nem mesmo o aristocrático bairro de Higienópolis delas
so citado, nem a cocheira e nem a mansão de D. Veridiana estavam
s outros palacetes ali construídos.li
s insetos, tão comuns no dia-a-dia, poderiam carregar consigo os micróbios da febre
tifóide transformando-se, portanto, em portadores de doenças e da morte. Mais ainda, ao se
admitir tal hipótese de certa forma igualavam-se os perigos: as moscas presentes nos cortiços
eram as mesmas que entravam naquelas mansões. Resumindo toda essa argumentação, os
médicos finalizaram:
“Em resumo que uma cocheira, mesmo em estado hygienico defeituoso, não
pode produzir febre typhoide a menos que o germen da moléstia tenha ahi
sido levado ou ahi surja, oriunda de casos tal, infecção ocorrida no pessoal da
estrebaria, sendo só nesta hypothese a cocheira em questão responsável pelos
casos de infecção typhica que se manifestou na habitação nº 93, visto que o
gérmen de febre typhoide até hoje tem sido considerado como
exclusivamente hominicula.”
200
solucionada, muitas outras surgiam e daí as incertezas, seja em relação às doenças, seja na
forma d
os dos médicos que isentaram a cocheira do palacete.
es um ambiente especial, são
e transmissão do mal; tudo poderia ser, ao mesmo tempo em que poderia não ser.
Diagnósticos conflitantes eram comuns, pois cada especialista defendia ardorosamente o seu
ponto de vista.
451
Mas, é certo que no caso da cocheira de D. Veridiana, outros elementos
estavam presentes e nem digo aqui do grande poder político e econômico da família senão,
também, a de todo um grupo representado pela elite residente em Higienópolis. Nesse caso,
como concordar que aquela área construída especialmente apartada dos grandes focos de
infecção como eram o centro da cidade e as várzeas, pudesse ela mesma ser considerada
agora como propagadora de doenças? Como poderiam seus moradores serem comparados
aos de Santa Ifigênia, pobres operários vivendo em locais insalubres? É claro que aqui não
devemos analisar o caso apenas sob o ponto de vista da elite mas, também, tendo como
suporte os conhecimentos médicos daquela época. Assim, a ocorrência de uma epidemia em
Higienópolis, um local seco, com residências sólidas, salubres e bem construídas, com
moradores que prezavam a higiene, contrariava a maioria das teorias que se tinha sobre as
moléstias infecto-contagiosas. Não era isso possível e, portanto, explica-se a linguagem
rebuscada e cheia de meandr
Mas, o Dr. Orêncio não se calou diante de tal análise. Usando dos meios que
dispunha, publicou nos jornais as suas próprias conclusões e expressou suas dúvidas através
de longos artigos. Nada comedido, em um deles, cujo título bem explícito era “À Câmara
Municipal e aos meus concidadãos”, escreveu:
“Em vista da minuciosa descrição e ilustradas ponderações da comissão de inspetores
sanitários, que a 15 do mês p.p. procedeu a 2ª vistoria na cocheira pertencente ao prédio nº 55 da rua D.
Veridiana, de propriedade da veneranda e opulenta proprietária a exma. sra. d. Veridiana Prado, que
leiam e tirem as conclusões com todo o critério a respeito dos quesitos seguintes:
1º) Nas condições em que a cocheira foi encontrada e descrita nas duas vistorias, pode ela ser
considerada como absolutamente inócua em relação a saúde dos moradores do prédio visinho sob o nº
93 da rua Marquês de Itu?
2º) Abstraindo da hipótese de ter havido nessa mesma cocheira que aliás tem sido habitada,
algum doente de febre tifóide,seria absolutamente impossível que o gérmen desta moléstia fosse aí
implantado, aí germinasse e daí contaminasse o prédio visinho, servindo de veículo para esta
implantação, algum objeto infeccionado levado de fora para o interior da cocheira, ou mesmo as
moscas de que os peritos notaram que ela se constitui um abundante viveiro, encontrando aí um meio
propício para fixação, desenvolvimento e propagação do gérmen infeccioso?
(...)
4º) As exalações que se desprendem dessa cocheira assim descrita, e invadindo o prédio mais
próximo a rua Marquês de Itu nº 93, constituem para os morador
agradáveis e confortáveis?
(...)
451 - No caso das moscas, por exemplo, um outro documento já citado anteriormente e que será novamente
analisado no capítulo a seguir, já se reconhecia que esses “
insetos nocivos (eram) verdadeiros transmissores
de
micróbios.” A. C., 06/03/1894.
201
6º) Estando o depósito de carros “cocheira propriamente dita” em comunicação imediata e
permanente com as baias “estrebarias propriamente ditas” da aludida instalação, e , além disso, sendo
que naquele depósito de carros os animais bebem, são lavados, escovados, arreiados, e atrelados aos
coches, e sendo inevitável que muitas vezes aí façam dejeções, não só nessas ocasiões, como na
passagem a saída para a rua Marquês de Itu, e regresso do serviço para as baias, dever-se-ão ou não
considerar estas duas dependências fazendo parte de um só prédio, como igualmente infeccionados e
infeccionáveis, principalmente estando a fossa fixa mais próxima do depósito de carros?
(...)
9º) Não é verdade que se tem modificado, retirado, afastado, isolado, interditado, demolido e até
remado habitações, quando estas tem sido consideradas focos para os moradores circunvizinhos (...)?
10º) A cocheira é condenada, reconhecida e declarada como um foco de infecção, apta a
contaminar o prédio viz
c
inho.”
452
Fig. 35: Dr. Orêncio Vidigal
Dos itens transcritos, merecem destaque os contrapontos apresentados contra o laudo
anteriormente citado (o que confirma nossa análise sobre as incertezas ainda presentes naquela
época) mas, em especial, chamo a atenção para o item nº 9, onde o Dr. Orêncio faz menção ao
arrasamento de pensões, estalagens, cortiços e outras residências da classe mais pobre, tidas
como insalubres e cuja ocorrência se fez mais presente no bairro de Santa Ifigênia entre finais do
século XIX e início do XX. Como já citado, o médico era membro da comissão estadual que
fiscalizava, identificava e condenava tais moradias e, talvez por isso mais a angústia de ver a sua
família afetada pela doença, ele não se furtou em dizer que a tal cocheira deveria ser destruída.
Aliás, essa também era a opinião do próprio jornal Diário Popular que publicou a reclamação do
médico e, citando o Código Sanitário do Estado, artigos 337 e 338, o jornal concluiu que “a
cocheira deveria ser arrazada”. Mas, ao mesmo tempo o Diário ironizou e escreveu em seguida:
“Mas esse foco de ... higiene é quase da prefeitura ... Como demolir e para que?”
453
Apesar da tentação de discutir os meandros do público e do privado nesta questão da
452 - Jornal “Diário Popular”, edição do dia 02/08/1901, “Secção Livre”. Aqui foram escolhidos alguns itens
considerados mais relevantes para este estudo.
453 - Id. ibidem. Os artigos citados pertencem ao Decreto nº 233 de 02/03/1891, o chamado “Código Sanitário”.
Os artigos, na íntegra, estipulavam o seguinte: Art. 337 – Os estábulos e cocheiras devem ficar sempre isolados e
afastados das habitações; Art. 338 – Deverão ser colocadas a distância de 8 metros pelo menos das ruas e praças
públicas. “Collecção das Leis e Decretos do Estado de São Paulo de 1894, Typ. do Diário Official”, p. 31.
202
cocheira de D. Veridiana, não o farei de momento pois a intenção com este exemplo e análises
i a de trazer mais claramente os muitos “novos perigos” que se apresentavam para os
paulistanos naquele m
tomou a partir da segu
era, não mais o seria d
ameaças eram logo su
De qualquer fo
doenças (muitas delas
seja na apropriação do
morte?
Sabia-se, é clar
várzeas deveriam caus
pestilentos. Por isso, d e que:
les que afetavam o corpo e,
ortant
Capítulo 5 – Novos caminhos
fo
omento ou, mais especificamente, os rumos inesperados que a morte
nda metade do século XIX. O que não era perigoso, passou a ser; o que
e ora em diante; haveria, em seguida, rupturas constantes, pois antigas
bstituídas por novas preocupações.
rma, acredito que esta ruptura, muito mais do que explicar sobre as
novíssimas) causou também uma certa confusão, seja no meio médico,
s conhecimentos pelo povo. Ora, como entender agora os caminhos da
o, que a falta de asseio, a podridão presente nas ruas, quintais, rios e
ar algum mal, especialmente quando exalavam uma nuvem de miasmas
esde muito antes das descobertas microbianas, alertava-s
“Existindo nesta cidade grande quantidade de corvos que habitão nos
telhados de muitas casas e surgem dos quintaes, proponho que a Câmara
ordene aos Fiscaes e guardas, que procurem indagar se tal existência é por
falta de aceio”.
454
Sabia-se da relação entre os corvos e a sujeira e estava claro, também, que materiais
orgânicos entravam em decomposição, apodreciam, e de toda essa massa desprendiam os
temidos miasmas. Que as mesmas existiam em profusão na cidade, também era sabido, até
porque, como no alerta emitido, até mesmo as conhecidas aves que viviam da podridão
estavam por toda a parte, nos telhados e nos quintais. Mas, vinte anos depois, nessa mesma
cadeia entravam os jumentos e cavalos – tão úteis à sociedade – e, também, ratos e moscas.
Essas mudanças, radicais é preciso dizer, certamente causavam muitas dúvidas nas pessoas
comuns, sendo certo também que, devido aos avanços alcançados pela ciência, perdiam elas um
conhecimento ancestral que detinham sobre as causas e os ma
p o, também o controle que até então tinham sobre a doença e a morte. Estas, como vimos,
iniciaram uma trajetória cheia de meandros, confusa e desconhecida pela maioria.
Os novos conhecimentos impuseram muitas modificações, inclusive na concepção que
se tinha sobre algo tão comum na cidade: a infecção.
203
5.1 – Afecção, Infecção e Poluição
Durante boa parte do século XIX – e num período anterior à microbiologia – médicos e
higienistas protagonizaram um acirrado debate sobre a etiologia das doenças que afetavam o
corpo – especialmente as epidêmicas – ou, em outras palavras, a respeito da característica de
certas enfermidades, sobre sua origem e propagação. Variadas eram as concepções, mas dois
grupos podem ser destacados: de um lado estavam os defensores do contágio, e de outro os
adeptos da infecção. De fato, essa questão não é novidade na historiografia, uma vez que
455
sobre este mesmo tema: “poucas questões médicas tem sido mais debatidas e ficado mais indecisas.”
rna, a sífilis, a hidrofobia, a catapora e as temidas bexigas (varíola)
possuía
o) ou através de objetos
reveladas; tal veneno recebia, também, o nome de vírus:
alguns autores já se debruçaram sobre este mesmo problema e o analisaram sob diversos
aspectos. Não vou me alongar muito nessa discussão, até porque minha intenção é a de
introduzir outros elementos que proporcionem uma nova reflexão sobre esta velha questão.
De qualquer forma, seria interessante recuperar, inicialmente e em rápidas pinceladas, as
teorias subjacentes às duas correntes que então se apresentavam.
Para a primeira delas, que abarcava os contagionistas, tinha-se como certo que as
moléstias possuíam “uma determinada propriedade de se comunicar de um a outro indivíduo pelo
contato, ou por intermédio do ar”, como definiu o médico Chernoviz.
Mas, completou o autor
Por conta da experiência que os homens acumularam durante séculos em relação aos
males, não restavam dúvidas de que algumas doenças eram mesmo contagiosas e, no século
XIX, sabia-se que a sa
m essa característica; outras eram tidas como possivelmente contagiosas e, dentre elas
estavam o sarampo, escarlatina e coqueluxe; entretanto, dúvidas persistiam em relação ao
tifo, febre amarela, peste e cólera.
456
Os adeptos do contágio acreditavam que “os agentes
responsáveis pela doença passavam de pessoa a pessoa, através do contato de um corpo
doente com outro são, seja através da pele e do ar (contato diret
(contato indireto).”
457
Os contagionistas pregavam ainda que o surgimento das doenças se
explicava pela existência de um veneno específico que, uma vez produzido, poderia
reproduzir-se no indivíduo e se propagar; a varíola era o melhor exemplo em tais casos.
458
Mas, e o que seria este veneno? Para a medicina acadêmica este era um território ainda muito
nebuloso, sabia-se que ele existia e agia, mas sob princípios e condições ainda não totalmente
454 - Representação aprovada do vereador Pacheco de Toledo, A. C. sessão do dia 06/07/1871 p. 76.
455 - Chernoviz, Pedro Luiz Napoleão; Diccionario de Medicina Popular, Paris, 1862, p. 460.
456 - Idem ibidem.
457 - Telarolli Jr. (1996, p. 95), Almeida (2003, p. 125) e Beltrão (2004, p. 97 e seguintes)
458 - Chalhoub (1996), p. 64.
204
VÍRUS: O vírus é um princípio não conhecido na sua natureza e inacessível
a nossos sentidos, que se desenvolve em certas moléstias, e que, inoculado em
um indivíduo são, transmite exatamente a mesma moléstia. Assim, a saliva de
um cão danado inoculado no homem ou em certo animal gera a hidrofobia, o
pus de um cancro sifilítico produz a sífilis: a vacina, as bexigas, o mormo, tem
também um vírus. O vírus difere do veneno de certos animais, que é produto
normal segregado por um órgão especial de um animal perfeitamente são
[como a] cobra cascavel, víbora, escorpião, marimbondo, abelha, etc.”
459
O contágio – ou o vírus – uma vez produzido, “não precisava, para se propagar, da
intervenção das causas que o haviam originado; ele se reproduzia por si mesmo, não obstante
as condições atmosféricas reinantes.”
460
Como forma de combater o mal, os contagionistas
pregavam o isolamento dos doentes (geralmente nos lazaretos) e, na ocorrência de surtos
epidêmicos, aconselhavam a realização de quarentenas e o estabelecimento de cordões
sanitários – as barreiras – que cortavam a comunicação entre as cidades, impedindo a
circulação de pessoas e mercadorias.
De outro lado, estavam os infeccionistas, posto que adeptos da teoria da infecção.
Nessa perspectiva, as doenças seriam causadas pelos miasmas que, tal e qual o vírus possuía
uma definição fugidia:
MIASMA: Tomando a palavra em toda a sua acepção, consideramos sob
este título todas as emanações nocivas, dissolvidas no ar, que atacam o corpo
humano. Nada há mais obscuro que a natureza íntima dos miasmas:
conhecemos muitas causas que lhe dão nascimento; podemos apreciar grande
número de seus efeitos perniciosos, e apenas sabemos o que eles são.
Submetendo-os a investigação de nossos sentidos, não temos senão o olfato
para nos advertir da sua presença: não nos é dado tocá-los nem vê-los. A
química mais engenhosa esbarra na sutileza das doses e combinações
miasmáticas; de ordinário não descobre nada no ar insalubre ou mortífero
que deles esteja
infectado, e quando consegue assinalar nele uma proporção
insólita ou a presença acidental de algum princípio gasoso, não nos revela
senão uma pequeníssima parte do problema.”
461
(meu destaque).
Não obstante essa indefinição, os infeccionistas acreditavam que as enfermidades
ocorriam pela ação de tais miasmas, sendo que a transmissão se dava unicamente na esfera do
foco, ou seja, nas imediações do local onde o miasma era produzido. A doença, por outro lado,
até poderia propagar-se de um indivíduo doente para outro são, como no contágio, mas sem
ser por contato, uma vez que o próprio doente seria responsável pela alteração do ar em sua
459 - Chernoviz (1862), p. 616 e 617. Um exemplo desta relação, ou similaridade, pode ser visto no relatório do
médico Mariano José do Amaral (físico mor da capitania de São Paulo) que, em 1808, explicava a transferência do
hospital dos bexiguentos para o bairro do Pari. Naquela ocasião ele dizia que a escolha se dera por que aquele era
um “local retirado da estrada, sendo mais adequado para interceptar
a comunicação do vírus variólico (...)” Veja
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, vol. 95, p. 202.
460 - Chalhoub (1996), p. 168.
461 - Chernoviz (1862), p. 48.
205
volta (através do hálito ou da transpiração, por exemplo), infectando assim o ambiente mais
próximo.
462
A malária e a febre amarela eram tidas como moléstias infecciosas.
Ao longo dos séculos – seja no Brasil, seja na Europa – ambas as teorias conheceram
momentos de valorização e desvalorização: ora o contágio ganhava terreno, ora eram os
miasma
íola, por exemplo, reconhecida pela medicina como uma doença
contagi
s – e a infecção, portanto – que alcançavam certa hegemonia. No Brasil, entre meados
e últimas décadas do século XIX, a teoria infeccionista triunfou na medicina acadêmica,
angariando também mais adeptos no interior da administração pública. Por conta disso, e
durante todo aquele período, várias foram as tentativas levadas a efeito no sentido de se
drenar os pântanos, bem como ações (nem sempre bem sucedidas) para a limpeza das áreas
urbanas, já que estas eram consideradas como as principais fontes de miasmas e de infecção
nas cidades.
De um lado o contágio e de outro a infecção. Porém, nada muito rígido, já que por
diversas vezes contagionismo e infeccionismo se ajustaram para explicar a propagação de
diversos males.
463
A var
osa, mereceu por vezes ações que combinavam terapias oriundas das duas concepções: o
isolamento do doente (contagionismo) e medidas para a limpeza da cidade (infeccionismo). Por
vezes o próprio doente, como citado, era considerado como um foco de infecção, como foi
observado em São Paulo no ano de 1875, e isso diante da ameaça de uma nova epidemia de
bexigas. Naquela circunstância, decidiu-se pela construção de um novo lazareto cuja finalidade
era abrigar, mas também afastar os enfermos da cidade. Na discussão sobre a necessidade desse
hospital, os argumentos utilizados indicam que os doentes, eles próprios, eram considerados
tanto como “focos de infecção” quanto de contágio:
“É de urgente necessidade a abertura de um Lazareto nesta Capital, onde
possam ser recolhidos e devidamente tratados os infelizes acometidos da
varíola, visto o incremento que ultimamente tem tomado essa terrível
enfermidade. A conveniência que há de
segregar dos centros populosos os
focos de infecção está no alcance de todos, por isso limito-me tão somente a
pedir a esta Câmara, que com a brevidade possível represente ao Exmo.
Governo da Província, e que por ela sejam dadas todas as providências que
estejam ao seu alcance, em ordem a evitar a propagação de semelhante mal.
462 - Langaard, Theodoro J. H.; Diccionario de Medicina Doméstica e Popular; R.J.: 1865, p. 609.
463 - Rosen (1994) chega mesmo a apontar uma terceira via além das duas apresentadas. Na Europa, disse ele, “a
terceira posição era a dos empenhados em conciliar, ou ajustar, as teorias miasmáticas e contagionistas.” (p. 222 e 223). Já
em São Paulo, e por ocasião de uma epidemia de varíola ocorrida em 1798, várias medidas pertinentes ao
Contágio foram tomadas como, por exemplo, o estabelecimento de um cordão sanitário em relação a Santos e o
isolamento dos doentes, mas o mal, como se disse, era mais funesto aqui por conta do clima frio e dos ventos; os
pobres eram os que mais sofriam porque suas casas não tinham “nenhum reparo ou cobertura necessária que as
abrigassem dos ventos” numa clara aluo aos “ares”, esteso prezados pelos infeccionistas. R. G., vol. XII, p. 272 e
273
206
São Paulo 22 de julho de 1875.”
464
(meu destaque)
Segregar e isolar o doente eram medidas típicas pregadas pelos contagionistas; mas,
m chamada de palustre ou febre dos pântanos, já definindo aqui a sua origem
os miasmas produzidos nesses locais; a peste e o cólera, por sua vez, também
a outra questão, esta intrínseca ao mesmo debate e ao momento histórico da medicina
do Meio do
cemitério público Jeronima, menor de dous annos e quatro mezes, natural
ao mesmo tempo, estes eram tidos como “focos de infecção” (num ajuste explicado por
Langaard) , uma clara alusão aos infeccionistas. De qualquer forma, o debate entre os adeptos
das duas correntes somente se acirravam em relação a certos males como, por exemplo, no
caso das inúmeras febres e, em especial, quando da ocorrência de epidemias de febre
amarela, també
n
proporcionaram discussões aguerridas.
465
Mas, não é este o problema principal que gostaria de trazer para discussão, senão
um
acadêmica. Iniciemos com a morte da menina Jerônima, ocorrida em 1860:
“Aos treze de julho de 1860 foi sepultada no Quadro dos Anjos
desta cidade, filha de José Mariglio e de D. Maria Marigliana, fallecida
hontem de
afecção de fígado e foi sepultada hoje no quadro dito. Nada mais
continha na guia do Cura da Sé (...)”
466
(meus destaques)
Apesar de não muito recorrentes nos registros de sepultamentos, as afecções estavam
na categoria das causas arroladas como determinantes da morte até as últimas décadas do
rica, pulmonar e uma morte por afecção verminose.
as, é também nesse mesmo ano, que encontramos um solitário caso de morte por infecção:
“Aos 4 dias de fevereiro de 1872. Caetano: foi sepultado no Quadro Geral nº 2
sepultura nº 8 o cadáver do preto Caetano conforme atestado seguinte: atesto
que o preto Caetano, africano de 60 anos de idade, sucumbiu ontem as 5
horas da tarde de uma
infecção pútrida
século XIX. No mesmo ano em que a menina Jerônima morreu de afecção de fígado, outros
casos foram apontados como, por exemplo, uma morte por afecção pulmonar,outra por afecção no
útero e finalmente uma devido a afecção de urinas. Em 1872, as afecções aumentam e para elas
encontramos um total de onze casos divididos entre afecções cerebrais, cérebro-espinhal, do
coração, hepática, interna, intestinal, mesenté
M
no hospital da Santa Casa, São Paulo
464 - Indicação do vereador José Homem Guedes Portilho, A. C., sessão do dia 22/01/1875, p. 88. Este lazareto
seria construído na antiga “Estrada do Araçá”, hoje Av. Dr. Arnaldo, dando origem ao “Isolamento”, atual
Hospital Emílio Ribas.
465 - A respeito do cólera,por exemplo, veja o excelente estudo produzido por Beltrão, Jane Felipe; Cólera – o
flaglelo da Belém do Grão Pará (2004), onde a autora trabalha com essa questão. Ver especialmente o capítulo III,
“Além do flagelo, a polêmica”, p. 93 e seguintes.
466 - Livro de Inumação do Cemitério da Consolação, v. 01, p. 119.
207
4 de fevereiro de 1872, Dr. A. C. de Campos.() Sepulte-se como pobre que é.
o
São Paulo, 4 de fevereiro de 1872.
O cura Marcelino Pereira Buen . Nada mais
consta a dita guia, o Administrador Faria.”
467
(meus destaques)
encontra
ção
por
“José: Aos vinte dias do mês
7, sepultura nº 4 o cadáver de
de idade, falecido de
infec
m 1882, ainda Dez anos depois, e mos as afecções como causa e ,s d morte estas
registradas em seis diferentes tipos como afec
novamente, mai as
cerebral, do coração, pulmonar e do útero. E,
s um c o de infecção que, daí
diante, tornar-se-ia uma doença corriqueira:
de Junho de 1882 sepultou-se no Quadro Geral nº
José Pereira da Silva Gomes dos Reis, com 21 anos
ção purulenta como consta do atestado do Dr.
Villaça, sepulto -se grátis.
e,
a
ue se dava “a toda alteração de uma ou de muitas partes do rpo”,
es
um rmo mai je é v lida.
, mé ico conte
ra a ecção nde inclu
"Afecção: Esta palavra é emp
sinônimo de doença. Diz-se
que . As afecções da alma tem uma
ir
ento e gravo do
gad
of coraçã , etc.; afecção
eir
icar as afecções da alma, Langaard nos remete
smo como origem de enfermidades, como
cepção estava muito mais ligada aos antigos
enç s, ou s a, sobre um desequilíbrio dos humores que, afetando o
loga a de afecção, posto que decorrentes dela,
e u
São Paulo 28 de Junho de 1882” (meus destaques)
468
é preciso esclarecer, afecção não pode ser Este preâmbulo foi necessário porqu
confundida com infecção, apesar da semelh nça entre os nomes. A afecção, segundo
coChernoviz (1862), era o nome q
manifestando-se “pelo desarranjo de suas funçõ
469
ou, em outras palavras, afecção seria o
mesmo que moléstia ou doença, te s geral, e cuja definição ainda ho á
Entretanto, Theodoro Langaard d mporâneo de Chernoviz, trouxe com mais
detalhes uma definição pa f o iu um outro elemento:
regada para designar um estado moral, ou como
: as afecções da alma, para designar as impressões
e as diversas sensações se experimentam
ação mais ou menos d eta sobre as doenças, e contribuem para o
melhoram a estado do doente, conforme são agradáveis ou
mo de oença, iz-se, tristes. Quando é empre o este termo como sinôni d d
, do opor exemplo, afecção escr ulosa, afecção do peito
470
recente, antiga, grave, lig
a, etc."
Ao dedicar algumas linhas para expl
aos sentimentos ou às emoções experimentadas (como o medo, por exemplo) enquanto
agravantes de determinas doenças ou me
veremos adiante. De qualquer forma esta con
conhecimentos sobre as do a ej
corpo, provocaria o mal. Numa categoria aná
() - Trata-se do Dr. Antonio Caetano de Campos, médico nascido no Rio de Janeiro em 1844 e falecido em São
Paulo no ano de 1891. Formado pela faculdade daquela cidade em 1867, veio para São Paulo em 1870 onde atuou
com consultório e junto à Santa Casa de Misericórida. Após a República, foi chamado por Prudente de Moraes
para reformar o ensino paulista. Era também professor de biologia da Escola Normal que, posteriormente, recebeu seu
nome. Mais detalhes no Almanak Administrativo da Província de São Paulo para 1873, p. 116 e Farina, Duílio Crispim; O
doutor Antonio Caetano de Campos e a medicina; In: Boletim da Academia Paulista de História, Agosto de 1991, p. 5 a 7.
467 - Idem, v. 05, p. 79 verso.
468 - Idem, v. 09, p. 78 verso
469 - Chernoviz (1862) p. 59.
208
e também outras causas mais comuns de morte no século XIX como as inflamações, as
enterites, bem como as indecifveis moléstias internas.
stariam
icos na escritura dessas ocorrências. Tomemos como exemplo os três
471
Nessa perspectiva, o organismo seria
afetado por algo - ou de alguma maneira que não se sabia muito bem ao certo, talvez por um
miasma, por exemplo – e, como conseqüência dessa influência maligna, viria a doença e, por
vezes, a morte.
Em São Paulo, antes da década de 1870, não encontramos quaisquer registros de
mortes que apontem a infecção como causa. Poderíamos, nesse caso, dizer que ninguém
morria desse mal ou, em outras palavras, que esta causa de morte inexistia até então.
472
E
mesmo depois, já em 1890, conviviam como motivos de falecimentos tanto as infecções (com
nove casos anotados) quanto as afecções (com vinte e um registros). Posto dessa maneira,
podemos concluir que a vulgarização das infecções no rol das causas de morte somente
ocorreria nas últimas décadas dos oitocentos, e isso certamente por conta de uma maior
participação dos méd
registros de sepultamentos já apresentados: o primeiro deles, que aponta uma morte por
afecção em 1860, teve a sua guia redigida apenas pelo Cura da Sé; já a segunda, de 1872, que
nos informa ter sido a morte causada por uma
infecção pútrida, teve como redator o Dr.
Antonio Caetano de Campos mais a assinatura do Cura Marcelino; na última delas, de 1882, o
médico Dr. Villaça é o único que atesta o falecimento causado por uma
infecção purulenta. Aos
poucos, os registros de óbitos deixam de ter a interferência dos padres, ou das antigas
“autoridades” da morte.
todo o século XIX,
mas ao
Antes, como citei, inexistem registros apontando a infecção como causa da morte - daí
a minha afirmação de que ninguém morria desse mal naquela época. Mas isso não significa
que ela não existisse ou que não estivesse presente. E é justamente isso que discutirei neste
item, uma vez que o termo infecção era comum e largamente utilizado em
contrário da atual acepção, esta palavra era também utilizada para identificar os
lugares sujos e mal cheirosos da cidade. Assim, a podridão presente nas ruas era logo
chamada de infecção e a própria rua passava a ser qualificada como infeccionada. Da mesma
470 - Langaard, (1865) p. 35 e seguintes.
71 - Os registros de sepultamentos produzidos em São Paulo entre meados e finais do século XIX, são fontes
rivilegiadas para o estudo de uma ruptura, esta já apontada por Foucault (1994), e que diz respeito à mudança
corrida com o olhar médico em relação às doenças.Foucault explica essa mudança, atribuindo-a a uma alteração
o suporte epistemológico da medicina que, a partir de finais do século XVIII e início do XIX, privilegiaria a
natopatologia, ou identificando os órgãos afetados. As “febres” (3ª causa de mortes em 1860 com 36 casos), as
moléstias internas” (6ª causa de mortes no mesmo ano de 1860, com 25 casos), ou as mortes identificadas apenas
rem em muito das afecções apontadas para os
m “lugar”: no pulmão, no fígado, no útero, etc.
472 - Esse processo não ocorreu apenas em São Paulo, lembrando Fabíola Rohden que o mesmo se deu no Rio de
Janeiro na segunda metade do século XIX quando, então, a palavra infecção passou a ser utilizada para explicar
muitas doenças. Rohden, Fabíola; Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher, R.J.: Fiocruz, 2001,p. 23.
4
p
o
n
a
como “repentinas” (10ª causa no mesmo ano, com 13 ocorrências), dife
últimos decênio do século XIX, posto que agora as moléstias tinham u
209
infecção sofriam os ares e as águas, como em referências já apresentadas, quando críticas
ram feitas ao antigo matadouro da cidade, uma vez que
a infecção da água
fo
do arroio
nhangabaú, pelo sangue das rezes mortas” trazia consigo a “possibilidade de
infecção
A
athmospherica pelas em
quando o chefe de pol
que, segundo ele, caus
anações do sangue, e matérias fecaes das rezes mortas” (A.C., 19/11/1851); ou
ícia reclamou sobre um depósito de esterco animal em uma residência
ava uma grande
infecção pelo mau cheiro que exalava” (A. C., 30/04/1889);
ú, nas palavras do vereador Hipólito da Silva em 1890, precisava
“ limpeza e
o mesmo Anhangaba
urgentemente de uma
desinfecção (A.C., 15/01/1890).
A infecção existia, mas a palavra guardava um certo distanciamento do significado
tual. Corriqueiramente, ela dizia respeito ao resultado maléfico da sujeira exposta no meio
urbano
do; por
a
, passível de apodrecer, e cujos eflúvios poderiam penetrar no corpo e causar algum
mal.
473
Nesse sentido é que Émile Littré, o conceituado filósofo e lexicógrafo francês definia,
no seu dicionário médico de 1865, a palavra infecção como a “ação exercida sobre a economia por
miasmas mobíficos”
474
e, no Brasil, muito parecida era a explicação, dizendo-nos Langaard que:
“Entende-se por infecção a ação que os miasmas morbíficos exercem sobre a
economia; propaga-se de um indivíduo doente para outro são, como o
contágio; mas sem ser por contato, é o ar ambiente que se acha altera
isso difere a infecção do contágio.”
475
Em outras palavras, entendia-se a infecção como uma ação exercida pelos miasmas,
não sendo, ela mesma, uma doença, assim como o contágio também não o era. Daí que,
reforçando o que disse antes (e conforme o entendimento daquela época), ninguém poderia
morrer de infecção e tão pouco de contágio, mas através deles. A diferença é sutil, mas os
autores da época (Chernoviz, Langaard e Littré), bem como os registros de óbitos confirmam
473 - A relação entre a podridão existente no meio e as doenças era algo já conhecido, sendo a teoria dos miasmas
um exem
da infec
infecções, estes anotados em São Paulo na segunda metade do século XIX, foram chamados de infecção
pútrida
plo disso. O médico italiano Fracastoro foi o primeiro, em 1546, a apresentar com certa clareza uma teoria
ção no sentido moderno do termo (Rosen, 1994, p. 92). Para ele, as doenças seriam causadas por
“diminutos seres infecciosos ou seminarias (sementes) que são transmissíveis e se reproduzem por si mesmos. A
doença se instalaria quando tais sementes introduzidas no organismo alteravam os humores e os princípios
vitais.” A podridão de fora instalar-se-ia no corpo. E é aqui que melhor entendemos a origem da palavra infecção,
do latim infectione e infectio que significava mácula, mancha e mesmo desonra (especialmente no francês infection)
com o sentido mesmo de pecado. O corpo doente seria aquele “maculado” ou “manchado”. A infecção, portanto,
era externa (a podridão no meio ambiente) que, de alguma maneira poderia introduzir-se no corpo e daí, como foi
percebido, causar a putrefação de partes vitais do organismo. Não por outro motivo, os primeiros casos de
e
infecção
purulenta, as duas denotando podridão. Sob esse aspecto, vale ainda notar que os primeiros antisépticos
desenvolvidos por Lemaire em 1860 na França, tinham o sentido de impedir a putrefação dos tecidos (veja
Martins, 1997).
474 - Anos depois, na edição de 1908 (Littré morreu em 1881), a mesma obra apontou que infecção seria a “ação
exercida sobre a economia por agentes animados pertencendo freqüentemente ao grupo das bactérias e agindo por intermédio
dos seus produtos solúveis”.
Apud. Sournia e Ruffie, As epidemias na história do homem; Lisboa, 1986, p. 221.
210
esta análise.
Mas isso não é tudo. Com respeito a este tema, podemos aprofundar um pouco mais a
discussão, uma vez que o antigo significado de infecção muito se aproximava do
entendimento que damos para a moderna poluição, e aqui quando aplicada ao meio ambiente.
Para desenvolver esse raciocínio utilizarei como ponto de partida o trecho de um documento
já citado anteriormente e onde essa questão aparece de maneira inequívoca. Trata-se daquele
antigo relatório produzido em 1894 pelos vereadores Elias Fausto, Joaquim Gomes Stella e
Guilherme Rudge que defendiam a utilização do asfalto para o calçamento das ruas
paulistanas. Disseram eles naquele momento que:
Transitam 7.500 animais, diariamente, pelas ruas da cidade de São Paulo;
cada animal deposita cerca de 4 kilos de excremento e 4 litros de urina nos
primeiros 2 kilometros que percorre. Desprezemos o resto e tomemos por base
as unidades acima; temos portanto, um depósito de excremento nas ruas de
30.000 kilos e de urina 30.000 litros. A limpeza pública consegue limpar parte da
primeira; mas permitindo este líquido apenas a evaporação da matéria volátil, e
deixando a amoniacal nos interstícios dos paralelepípedos, e esta última é mais
perniciosa à saúde pública. Suppondo que a limpeza pública remove 3/4 partes
do excremento (o que não é possível) ainda assim infiltram-se no subsolo das
ruas nada menos de 7.500 kilos de excremento cada mez e 900.000 litros de
urina; ou seja annualmente 2.700 toneladas de excremento e 10.800.000 litros de
urina.
O hygienista não pode fechar os olhos a esta parcella de detritos
orgânicos que podem aumentar o número de bactérias que existe na lama das
ruas, na extraordinária proporção de 30 bilhões por centímetro. E acelerando
exhalações miasmáticas, concorrendo em grande escala para a poluição do
ambiente em geral. Estas infiltrações constituem um verdadeiro foco de
mephitismo pathogenico, além de gerarem toda a sorte de insetos nocivos,
verdadeiros transmissores de
micróbios.”
476
(meus destaques)
Ao mesmo tempo em que entravam em cena os novíssimos micróbios, continuavam
os miasmas a serem entendidos como fator de insalubridade e de doenças. A união de duas
teorias,
transição, ela era perfeitamente cabível. No documento, por exemplo, “os micróbios estariam
como que acelerando as exalações miasmáticas”.
477
A desqualificação dos miasmas, portanto,
não ocorreu de forma imediata ao avanço da microbiologia, uma vez que as duas formas de
entendimento sobre as causas das doenças conviveram juntas por um determinado tempo.
Mas, aos poucos, “os miasmas deixam o palco da ciência” uma vez que as experiências científicas
acabaram por demonstrar “
que nem tudo o que fede mata e nem tudo o que mata fede
estranhas uma à outra, pode nos parecer confusa hoje, mas naquele período de
”,
478
numa clara alusão à ação dos micróbios que, a partir de então, passariam a ocupar o lugar do
475 - Langaard (1865) p. 609.
476 - A. C. sessão do dia 06/03/1894, volume manuscrito, p. 143 a 163.
477 - O mesmo ocorreu na França, relatando Alain Corbin que, durante algum tempo, denominou-se o micróbio
como “miasma microbiano”. Corbin, 1987, p. 284 e 367 (ver nota nº 04).
478 - Corbin, 1987, p. 284. A frase em destaque, reproduzida por Corbin, é do médico francês Paul Brouardel
211
mau cheiro como a causa maior dos males sofridos pelo corpo: “O mau cheiro e a ameaça
morbífica dissociam-se no espírito dos sábios, desde que estes adquiriram a convicção de que os
germes
infecciosos é que garantem a transmissão do mal.”
479
(meu destaque)
Além de representar e trazer com clareza esse momento de transição vivido pela
medicina acadêmica, o documento dos vereadores paulistanos ocupa-se também da divulgação
do novo perigo, das bactérias que, a exemplo dos fugidios miasmas, também não poderiam ser
vistas a olho nu. Aqui, porém, a grande diferença: o mau cheiro não poderia nunca ser “visto”,
posto q
mento representa uma grande novidade, algo que somente passa a fazer parte do
rido para a
ue pertencia única e exclusivamente ao campo sensível do olfato.
480
Com os micróbios,
ao contrário, provava-se a sua existência visualmente com a ajuda de aparelhos especiais. Eles
existiam concretamente e, de tal maneira, que poderiam mesmo ser mensurados na lama das
ruas “na extraordinária proporção de 30 bilhões por centímetro”. O relatório, portanto, é didático. Ao
fazer ver que existia agora um mundo novo e monstruoso, repleto de seres invisíveis e malignos,
todos os lugares – inclusive os mais comezinhos, como a rua, o quintal e a casa – poderiam ser
extremamente perigosos. Num misto de denúncia e alerta, miravam eles num alvo certo: as
práticas e os costumes até então tidos como normais e corriqueiros.
Entretanto, este documento é singularmente importante por uma outra razão, por
algo que até poderia passar desapercebido ao nosso olhar contemporâneo, mas que, pelos
signos que carrega, nos mostra a nova concepção que se criava em torno do mal que a todos
rodeava, das doenças que atingiam o corpo e, por que não dizer, do próprio ambiente
compartilhado por todos numa cidade: a poluição. De fato, a utilização do termo poluição
neste docu
vocabulário médio a partir desses últimos anos do século XIX. A esse respeito vale dizer que
o “Código Sanitário do Estado”, promulgado em 1892, trazia a palavra poluição em apenas
dois de seus 520 artigos e, curiosamente, sempre em relação ao abastecimento e ao consumo
de água
481
, fato este que demonstra ter sido a água o primeiro elemento passível de poluição
naquele momento.
482
Antes disso, e como já visto em diversas transcrições de documentos ao longo deste
estudo, a palavra utilizada nesses casos era infecção. Ora, e o que teria ocor
(1837-1906), proferida durante um debate ocorrido em Paris no ano de 1880.
479 - Corbin, id. ibidem.
480 - Aqui refiro-me exclusivamente ao mau cheiro e não ao foco do mesmo que, obviamente, era perceptível à visão.
481 - Os dois artigos do Código são os seguintes: Art. 94 – A água das cisternas deverá ser protegida contra a
acção dos agentes exteriores, que a possam polluir; Art. 311 – A água destinada aos usos domésticos deverá ser
potável e inteiramente insuspeita de polluição.
482 - Poluição (s.f.) veio do latim pollutio e pollutionis, sendo que o verbo poluir tem sua raiz em polluere. Além do
significado moderno de “sujar e degradar”, o termo era identificado com o ato de profanar e macular, num sentido
certamente religioso e moral. Veja Enciclopédia Larousse, Nova Cultural, 1998, p. 4.692 e 4.693.
212
substituição da palavra infecção por poluição? Ou, qual a justificativa para o emprego desse
termo que, a partir de então, passou a ser vulgarizado na nossa fala, tornando-o comum e
inteligível quando dizemos
poluição visual ou poluição sonora?
Uma pista para responder essa questão pode ser encontrada no próprio documento e
refere-se justamente ao novo embate presente no campo da medicina, ou seja,
miasmas X
micróbios. Como vimos, para os infeccionistas (grupo médico predominante no Brasil), as
doenças eram atribuídas genericamente aos miasmas. Estes poderiam ser os diversos tipos de
ment matéria, o lixo
males eram os microorganismos, as bactérias. Aos poucos, a infecção ganhava um novo estatuto
ao combinar-se com as novas descobertas e, em decorrência, a palavra acabou por incorporar
novos significados: antes, ela era utilizada para identificar a podridão imóvel, bem como a ação
ou maneira através da qual os males tinham origem, podendo se propagar; agora, ela era a
própria doença. Componente desta operação, as infecções ensaiavam outra mudança, deixando
aos poucos o meio externo que as abrigavam as ruas, os rios e as várzeas, por exemplo – e
mau-cheiro presentes na cidade, os “vapores pestilentos” emanados de locais úmidos e
impregnados de matéria orgânica em decomposição que, combinados com os ventos, com a
falta ou abundância de chuvas, com as tempestades e seus trovões, poderiam tornar o
ambiente infeccionado. Na medicina acadêmica convencionou-se, portanto, que o maior
problema era mesmo o cheiro ruim, aquele produzido pela putrefação. Estes eram os
miasmas mais ameaçadores; e aqui devemos explicar: não era propria e a
ou o excremento que deveria ser evitado. Eles existiam, não havia como não produzi-los. A
questão não era essa e sim os eflúvios advindos com exposição dos mesmos excrementos
quando parados (sem movimentação alguma) e em contato por muito tempo com o ar, com a
terra ou com a água. A imundície em si não representava um problema maior, tanto que ela
existia, como vimos, por toda a cidade. A gravidade, em outras palavras, era o seu tempo de
exposição a céu aberto, ou a falta de movimento (que poderia ser solucionado pelas águas de
um rio, por exemplo). A falta de mobilidade redundava na corrupção e no conseqüente mau
cheiro, então chamado de miasma deletério. Este, por sua vez, ao ser introduzido no corpo, e
ao combinar-se com ele, traria a doença. A diferença é sutil. Não era o excremento que metia
medo, mas sim a podridão decorrente de sua imobilidade. O ambiente, a terra, a água e os
ares estariam então infeccionados.
Experiências posteriores, principalmente as realizadas a partir de meados do século
XIX, demonstraram que o mau cheiro era inócuo.
483
Eis a grande inovação: os causadores dos
483 - Alain Corbin apresenta diversos exemplos dessas experiências onde se comprovou, por exemplo, que “a água
carregada de matérias orgânicas no último grau de putrefação pode ser evaporada quase até à completa sicatividade sem que
um único dos microgermes que nela pululam seja carregado pelo vapor”; Corbin, p. 284 e 285.
213
deslocando-se para o interior do corpo onde, daí por diante, faria sua morada.
Não obstante o caráter que possuíam nas últimas décadas dos oitocentos, acredito que
os termos infecção e miasma eram inteligíveis para a população: “Ar purgado – morte no cabo”,
dizia um antigo e popular provérbio português
484
; no Brasil, este entendimento (ou,
vereadores paulistanos. E aqui as palavras iniciam
m caminho que as levaria a ter um sentido diferente: com a “invenção” da poluição, a
infecção ganha outro
qualquer estado (sóli
acarretar algum mal
vereadores, falar em p
nter corpúsculos invisíveis (talvez até inodoros), mas que, mesmo assim,
teria a capacidade de provocar uma doença. Da mesma maneira, os ares e todo o ambiente
poderiam estar poluídos sem que mesmo o percebêssemos através do cheiro. A poluição
passou a ser identificada por elementos como a urina, o excremento ou o lixo, e toda
poderíamos dizer, conhecimento) acabou por dar origem a uma frase ainda hoje utilizada:
“...não me cheira bem”, que pode ser aplicada em várias situações, mas sempre antevendo ou
prenunciando ocorrências malévolas.
485
Mais ainda, a infecção e os miasmas – e apesar da
perfeita imprecisão dos conceitos naquela época
486
– podiam muito bem se adequar ao caráter
sobrenatural que muitos males possuíam, sendo estes também muitas vezes fugidios,
imprevisíveis (como um “mau olhado”), imperscrutáveis: “Ar vivo, ar morto, ar de estupor, ar de
perlezia, ar excomungado (...) saias do corpo desta Criatura ...”
Na mesma medida em que a infecção deixava de ser exterior, ela se afastava desse
entendimento médio passando, agora sim, a ser um termo exclusivamente médico. Somente um
conhecimento científico poderia determinar esta ou aquela infecção no corpo, este tornado
agora um objeto de estudo e de pesquisas. Em suma, antes dessa inovação qualquer pessoa
poderia sentir ou ver a infecção presente no Anhangabaú e no Tamanduateí, no Largo de São
Francisco com seus inúmeros cavalos, e mesmo no ar no entorno do quartel ou da cadeia.
Bastava abrir os olhos para ver a podridão inerte (nas ruas e nas várzeas) e apurar o olfato para
perceber a sua presença. Agora, porém, a infecção entrara no corpo e percorria um caminho
incerto e obscuro para a maioria; para conhecê-la era necessário uma sabedoria especifica que só
os médicos possuíam.
A operação completa-se: em substituição ao ambiente infeccionado entra o ambiente
poluído, como aparece no documento dos
u
significado. A poluição passou a ser toda e qualquer sujeira e em
da, líquida ou gasosa), parada ou em movimento, e que poderia
– e, aí sim, infeccionando o corpo. Como demonstra o discurso dos
oluição era, ao mesmo tempo, identificar com mais sabedoria que a
água poderia co
484 - Luís Graça, op. cit.
485 - Veja Cascudo, Luís da Câmara; Locuções tradicionais no Brasil – coisas que o povo diz” (1986), especialmente p. 130 e 131.
486 - Tomo aqui emprestada a análise de Chalhoub (1996, p. 169).
214
miríade de seres ali encontrados. Esses microorganismos, ao contrário dos miasmas – e
mesmo que invisíveis a olho nu – tiveram a sua existência comprovada e puderam,
inclusive, serem contados, um a um! A visão, como sentido, é valorizada. A rua e a calçada,
conforme disseram os vereadores, estavam agora
poluídas pelos excrementos dos animais e
não mais
infeccionadas, como se diria poucos anos antes. De qualquer forma, é preciso
lembrar que a supressão da palavra infecção, quando relacionada ao meio ambiente, não vai
ocorrer de imediato e nem rapidamente, pois alguns documentos ainda a manterão por
alguns anos.
487
Nesse sentido, o relatório dos vereadores reveste-se de importância por trazer
a marca de uma ruptura que, aos poucos, foi consolidada.
A poluição, em suma, é a aquela que se apresenta fora – no meio ambiente ou na
natureza – posto que externa ao corpo; a infecção, por sua vez, a partir de então penetra no
corpo, não mais como uma afecção indefinida, mas através de agentes concretos: os micróbios.
Sob a supervisão dos médicos e principalmente dos microbiologistas, a infecção transformou-
se em doença:
“Antonia: Foi sepultada hoje na Quadra perpétua, Rua 2, sepultura nº 9 D. Antonia de Brito Magnani,
brasileira, com 48 anos de idade, casada, falecida ontem as 2 horas da manhã de
infecção niemica,
conforme atestado do
Dr. José Fernandes de Magalhães Castro. São Paulo 2 de Setembro de 1890.”
Bonifácio: Sepultou-se
brasileiro, filho do Sr. Co
hoje no cemitério municipal o cadáver de Bonifácio, de 4 anos de idade,
mendador Manoel Bonifácio da Silva Batista, falecido de
infecção palustre,
r. Bráulio Gomes
conforme o atestado do
D . São Paulo 25 de Outubro de 1890.” (meus destaques)
po em que este processo estava em curso, algumas das causas de morte
s como sintomas foram sendo abandonadas como, por exemplo, o caso
onte do Espírito Santo, falecida em 1863 de uma pontada
, ou os vários
s (08 casos) ou por moléstia interna (12 casos), estes apontados num
s ocorridas em São Paulo no ano de 1872.
488
Ao mesmo tem
hoje consideradas mai
de Ignacia Maria do M
falecimentos repentino
universo de 529 morte
De fato, entre as décadas de 1880 e 1890, aumentaram sensível e espantosamente os
registros de falecimentos cujas causam foram atribuídas a algum tipo de infecção. Estas, por
sua vez, se sofisticam, ganham novas classificações que chegam ao impressionante número
de 65 (sessenta e cinco), estas anotadas no bairro paulistano do Brás no período de 1893 a
1918, como demonstra o quadro a seguir.
489
490
487 - Representativo também nesse caso é o fato de não mais utilizarmos o termo infeccionado para a qualificação
de lugares sujos ou poluídos, cabendo, entretanto, o seu derivado “infecto”.
488 - Livros de Inumação do Cemitério da Consolação, v. 14, páginas 49 e 125, respectivamente.
489 - Idem, v. 03, p. 16 verso e 17.
215
Quadro geral de causas de morte por infecção no bairro do Brás
491
(em ordem alfabética de doenças como aparecem nos registros)
2. 490 - Idem, volumes de 187
491 - Sant´Anna, Denise Bernuzzi de (PUC-SP); e S.M.C.-D.P.H, Arquivo Histórico Municipal; Registros da morte ...
Registros da vida; Projeto na área de Políticas Públicas, FAPESP, 2003. Cabe observar que muitas das causas aqui
arroladas poderiam ser agrupadas em uma única apenas, porém mantivemos as suas denominações separadas de
acordo com os originais.
Atrep sia por infecção intestinal
Auto infecção intestinal
Bronco pneumonia complicada com infecção
intestinal grave
Bronco pneumonia complicada com infecção
gastro enterite
Bronquite infecciosa
Bronquite infecturo
Cirrose infecciosa
Cirrose toxi -infecciosa
Colite infecciosa
Disenteria infecciosa
Diarréia infecciosa
Diarréia verde infecciosa
Endocardite infecciosa
Enterite infecciosa
Enterite infecciosa e escorbuto
Enterocolite infecciosa
Enterocolite infecciosa aguda
Febre gástrica infecciosa
Febre infecciosa
Febre verminosa
Gastro infecciosa
Hepatite infecciosa de natureza intestinal
Icterícia infecciosa
Icterícia infecciosa por parto
Inanição seguida de auto infecção intestinal
Infecção gastro enterite
Infecção gastro intestinal
Infecção gripal
Infecção intestinal
Infecção intestinal aguda
Infecção intestinal crônica e nutrite gonocacica
Infecção molenia de forma meningera grave
Infecção morbilar
Infecção nuluosica
Infecção paludosa
Infecção palustre
Infecção palutente
Infecção puerperal
Infecção purulenta
Infecção resinosa
Infecção serulenta
Infecção shyptacoccio
Infecção syphilitica
Infecção siphytica
Infecção steptocani e sarampo
Infecção streptacica
Infecção tífica
Infecção tifo malárica
Infecção umbilical
Infecção úrica
Infecção urinosa
Infecção rins
Infecção sytocenica
Meningite complicada com infecção intestinal
Meningite infectuoza
ão Infecç
Infecção anêmica
Infecção cancerosa
Nefrite infecciosa
Toxi-infecção intestinal
Infecção empepelotosa
Infecção epeciosa
Infecção fleguidiosa
Infecção gástrica
Infecção gastro
216
Menos pelo caráter ou etiologia de cada uma das moléstias aqui apresentadas, bem
mo s
o epistemológico da medicina.
492
Nesse momento não
co uas possíveis relações com aquela comunidade pobre, imigrante e operária como era a
do Braz (um estudo certamente instigante e possível de ser realizado), o quadro apresentado
vincula-se mais à complexidade que os males ganham a partir da experiência clínica. Aqui
reportam-nos novamente a Foucault que bem definiu a importância da palavra, da linguagem
e do enunciável nesse novo arcabouç
mais cabiam, portanto, as “moléstias internas”, mas sim uma infecção nos rins ou uma infecção
umbilical; o nome das enfermidades ganha uma nova e rigorosa arquitetura, combina-se com
outros elementos: meningite complicada com infecção intestinal. A linguagem médica começava a
ganhar um distanciamento dos saberes populares e redundando, conforme análise de Sidney
Chalhoub, num “processo de desapropriação de conhecimentos e práticas dos trabalhadores”
e do povo comum, “possibilitando assim a sua subordinação real na produção e em outras
esferas da vida”.
493
De fato, o que assistimos nas últimas décadas do século XIX é uma profunda
transformação e sofisticação na medicina acadêmica. E é esta nova medicina a responsável
pela recuperação do sentido original da palavra infecção: mácula, mancha, corrupção. Este
era o termo que melhor servia naquele momento, não obstante o significado ligeiramente
diferente antes adotado pelos anticontagionistas. A corrupção, ou a infecção, ao ganhar o
corpo, promovia a putrefação de partes ou órgãos vitais, e daí que devemos nos lembrar das
primeiras infecções que mataram os paulistanos: pútridas ou purulentas.
Agentes vivos e invisíveis a olho nu (os micróbios) estavam a promover tal corrupção.
De que maneira isso ocorria e como combater agora esses males? Somente a ciência poderia
dar a resposta e, nesse caso, conforme avaliou Chalhoub, os antigos conhecimentos populares
sobre as doenças e curas passam por um processo de expropriação.
Dando por concluída esta análise, lembro que nesse mesmo período em que a infecção
deixava o meio ambiente para entrar no corpo, uma questão análoga (e decorrente das novas
teorias) começava a preocupar, dando origem a uma “neurose” que, iniciada no meio médico,
repercutiu nos administradores da cidade e em grande parte da população paulistana.
492 - Foucault (1994). Ver especialmente o capítulo III “Ver, saber”, p. 121 e seguintes.
493 - Chalhoub (1996, p. 172 e 173)
211
5.2 – A neurose da poeira
494
“Ontem de manhã dei um grande passeio pelas ruas da cidade e depois (...) fui
até o Braz e a Santa Cecília, para conhecer os arredores. Devo dizer que tinha
ouvido tanta coisa sobre o Braz que fiquei um pouco decepcionado, pois além da
chácara do sr. Staudiegel e do jardim do velho francês Jolly, (...) não encontrei
nical do público alemão. Não tive a felicidade de descobri-
nada digno de nota. Uma cervejaria alemã, fundada por Jacob Friedrich, (...) é o
ponto de reunião domi
la e
voltamos para a cidade cobertos de poeira (...)”
495
Neste passeio pelos arredores de São Paulo, ocorrido em novembro de 1883, o alemão
Koseritz expressou um certo desconforto pela poeira que cobria seu corpo e, principalmente, suas
roupas. Até então era esta a relação que se tinha diante da poeira, ou seja, uma sensação
e poeirenta.
ase nada a reclamar das ruas de terra batida,
ue se utilizavam do sistema macadam. Nesse sentido, o
do
algum, como
desagradável frente a um volume muito grande de pó em suspensão e, também, a de respirá-lo.
Além disso, como demonstrou o viajante, a poeira se assentava por todo o corpo e vestimentas,
motivo maior de sua reclamação. Mas, nada muito grave neste início da década de 1880, até
porque o problema poderia ser rapidamente resolvido através de uma vigorosa sacudida nas
roupas e o seu corpo lavado numa das casas de banho que então existiam na cidade.
496
De qualquer forma, não deixa de ser representativo o depoimento de Kosertiz, até
porque esta reclamação é a marca de um período em que São Paulo descobre-s
Décadas antes, poucas citações a respeito e qu
calçadas com pedras irregulares ou q
relato viajante é um importante indício de que a poeira começava a incomodar, mas ainda
não tanto que pudesse ser considerada perniciosa à saúde, fato este que ocorreria poucos
anos depois. Até então a poeira era desagradável, mas inerente à cidade e, por isso, era
preciso tolerá-la; o pavor viria logo depois.
Alguns sinais de que o pó já estava a causar um certo incômodo, começaram a
aparecer por volta de 1860, período este em que ocorreu uma primeira ruptura com o passado
colonial, conforme já visto páginas atrás. A partir de então, o caso é que a poeirenta São Paulo
requeria ações do poder público para obstar aquela sensação desagradável, sentida por todos
que estavam a circular por suas ruas mal calçadas ou mesmo sem calçamento
494 - Este título foi inspirado na obra de Alain Corbin, Saberes e Odores, e cuja frase encontra-se na terceira parte do
livro “Odores, símbolos e representações sociais”, capítulo 2 “O hálito da casa”, p. 218.
495 - Koseritz, Carl Von; Imagens do Brasil, Trad. Afonso Arinos de Melo Franco, B.H., Itatiaia e S.P. Edusp, 1980, p. 265.
496 - A respeito das práticas de higiene corporal em São Paulo no século XIX veja Sant´Anna, (2004),
especialmente os capítulos 9 e 12, “O asseio a seco” e “Sêrea e Amores” respectivamente. Para o caso europeu ver
212
era o caso de inúmeras vias cujos leitos eram simplesmente de terra batida. No verão a
situação era agravada naturalmente, uma vez que o temido vento noroeste varria o centro da
cidade e levava consigo uma nuvem de terra seca cujas partículas invadiam casas e afetava
quem por ali estivesse. Daí que a solução foi a de molhar as ruas mais centrais, serviço este de
responsabilidade das empresas contratadas para a limpeza pública que, invariavelmente, não
realizavam o trabalho a contento, dando motivo a muitas reclamações. Certamente por isso
tentou-se, em 1869, a contratação deste serviço separadamente, o que permitiria um controle
mais rigoroso das ruas que deveriam ser regadas.
497
Que a poeira começou a incomodar não restam dúvidas, até porque em todos os
contratos de limpeza pública existiam cláusulas que obrigavam as empresas ganhadoras a
realizarem este serviço em dias muito secos e sem chuvas, bem como o de tapagem de
buracos nas ruas e o recolhimento de lixo, esta a sua principal tarefa.
498
Por essa época, ainda
não havia uma ligação entre o pó e a saúde, lembrando Corbin que, na França de 1810, o
mesmo ocorria.
499
A esse respeito, devemos lembrar que, ao contrário dos temidos miasmas
deletérios provenientes de material orgânico úmido em decomposição, a poeira era seca e,
nesse estado, ela não causava tanto medo.
500
Somente quando ela se tornava insuportável é
que as ruas eram molhadas como ocorreu em 1870, ocasião em que o fiscal do distrito sul da
cidade (e certamente pelo não cumprimento da tarefa pela empresa de limpeza) gastou 3mil e
ara fazer com perfeição o
200 réis com quatro pipas de água para regar a rua do Quartel
501
; ou já em 1881, quando o
gerente da Cia. Cantareira atendia um apelo da municipalidade para proceder a “irrigação das
ruas da cidade, embora a companhia não estivesse perfeitamente preparada p
serviço.”
502
Em outras palavras, era este um serviço emergencial ou sazonal, aplicado somente
em casos de urgência ou épocas de maior incidência da poeira na cidade.
Decerto que a poeira, tão comum em São Paulo naquela época, também chamava a
Corbin (1996).
497 - Proposta do vereador Dutra Rodrigues, A. C., 14/01/1869, p. 38
498 - Em 1877, por exemplo, sugeriu-se que o novo contrato de limpeza pública contivesse a seguinte cláusula:
“Irrigação diária, na estação calmosa, das principais ruas do centro da cidade”. Esta cláusula foi, posteriormente,
complementada com a indicação de que “O serviço de irrigação será feito nas ruas, travessas, ladeiras e praças
calçadas a paralelepípedos ou pedra irregular durante a estação calmosa, isto é, de Novembro a Maio, e será feito
de modo que toda a rua, praça, etc. fique suficientemente molhada de sarjeta a sarjeta” Indicações dos Vereadores
Antonio Prado e Araújo Costa, A. C., 19/07/1877, p. 124 a 126.
499 - Corbin (1987), p. 170. Na análise do autor, naquele momento, a poeira ainda não entrava no rol das
preocupações.
500 - É preciso ressaltar que esta noção a respeito da poeira prevaleceu até a revolução bacteriana promovida por
Pasteur, e isso a despeito de outros estudos como os de François Jules Lemaire que, em 1864, já imaginava serem
os “os miasmas não apenas odores, mas microorganismos que acompanhavam o cheiro fétido de substâncias em
decomposição. Na concepção daquele cientista, eles poderiam se espalhar pelo ar tanto desprendendo-se dos
matérias durante sua putrefação, quanto através de pós secos desprendidos de organismos mortos.” Veja
Martins, Roberto de Andrade, Tradição e inovação na microbiologia:Lemaire e os miasmas”, 1997, op. cit.
501 - Relatório do Fiscal do Distrito Sul da cidade, A. C., 02/06/1870, p. 90
213
atenção pela estreita ligação com um mundo rural, lamacento ou poeirento, marcas estas que
já não mais poderiam ser toleradas numa cidade que se queria civilizada. E isso não ocorria
apenas no velho núcleo urbano como, também, nos novos bairros que se abriam ao seu redor,
como o Bom Retiro, Campos Elíseos, Vila Buarque, Braz e Mooca. Conforme manifestação de
alguns professores da recém-criada Escola Politécnica em 1894, passear por aqueles
u como
os os lugares, nas
as, n
os primeiros indícios de que algo de diferente estava ocorrendo em relação a
este caráter da comezi
que, pela primeira vez
criticou-se a atuação da empresa responsável pela limpeza da cidade e, em especial, foi
arrabaldes em determinas épocas do ano era como “se estivéssemos em viagem por paragens
remotas do interior do país ao em vez de nos acharmos num centro de população laboriosa.”
503
Assim é que permaneceu a poeira, como um incômodo, algo desagradável o
uma inaceitável marca de um mundo rural, distante e inculto em plena capital. Mas tudo isso
sem maiores agravos e somente perceptíveis em determinadas épocas do ano. De fato, todos
conviviam com as ruas de terra batida, pavimentadas pelo sistema macadam ou utilizando
pedras imperfeitas que, sem chuvas, desprendiam – como era natural – inúmeras partículas
que permaneciam em suspensão no ar, que entravam pelas casas através das portas e janelas,
ou pousavam nas roupas. No centro da cidade, tal incômodo, aliado à sensação desagradável
de se respirar o pó, era por vezes resolvido com a irrigação dos leitos das vias. A existência da
poeira na cidade, portanto, estava muito mais ligada ao que poderíamos chamar de conforto
(nesse caso a falta dele) do que com a saúde, pois nenhum relato daquela época traz qualquer
menção ou relaciona o pó às doenças. A poeira existia em profusão e em tod
ru as casas, no campo e nas estradas e, daí, o cuidado dos mais ricos em usarem os
tradicionais guarda-pós em viagens longas, uma vez que apenas as roupas mereciam
proteção.
A poeira, como visto, irritava o olfato em determinadas épocas, era desagradável tê-la por
perto, nas roupas ou em casa e, nesse sentido, percebemos que o pó, motivo de tanta
preocupação nas últimas décadas do século XIX e início do XX, era tido mesmo como inofensivo
à saúde, algo presente na natureza e que deveria ser suportado. Foi somente a partir de um
período bem marcado na história que a poeira passa a ter um caráter pavoroso, representada
como portadora e transportadora de um sem número de doenças através de sua suspensão e vôo
no ar . Iniciava-se, nas duas últimas décadas do século XIX uma neurose da poeira.
Um d
nha poeira que infestava as ruas paulistanas, ocorreu 1889, ocasião em
, a sua existência foi relacionada explicitamente à saúde. Naquele ano
502 - Ofício do Dr. Clemente Falcão Filho, A. C., 19/09/1881, p. 168.
503 - Ofício e relatório da diretoria da Escola Politécnica de São Paulo datado de 15/05/1894, A. C., 22/05/1894, v.
214
chamada a sua atençã ridade
pública”, pois era necessário “fazer-se a irrigação das ruas o número de vezes estipulados, sem
que a mesma adquiriu “três carroças de pipas d´água para irrigação”
a empresa Reis e Cia.
505
Daí por diante
calçamento seriam as m
períodos de seca quan
spalhada por toda a cidade (...). Anos antes, esta seria uma reclamação que se perderia entre os
úmer
ue a varrição das ruas e praças deveriam ser precedidas por uma
507
Relatórios minuciosos foram elaborados a respeito das
ruas que não tinham s
limpeza multada pela
bondes que circulav
diretamente em ruas
bondes de irrigação (...) c
o pelo não cumprimento de cláusulas “que interessavam a salub
preterição por motivo algum que se alegue.”
504
A partir de então, a irrigação das ruas deixaria de
ser uma atitude que visava o conforto para, mais importante que isso, transformar-se num
caso de saúde pública. Já no ano seguinte o serviço foi, em parte assumido, pela própria
municipalidade, posto
d
, a inquietação só fez aumentar; as inúmeras ruas sem qualquer tipo de
ais perigosas, colocando em risco toda a população, especialmente em
do, então, ocorria uma grande “acumulação de poeira que, pelo vento, é
e
in os papéis da Câmara Municipal, mas agora o pó era considerado como muito
perigoso, pois “contribuía para originar e propagar certas moléstias.
506
A relação estava estabelecida: a poeira poderia causar doenças e, por isso, ela agora
era considerada muitíssimo perigosa, fonte de constantes preocupações e reclamações,
especialmente por que, pelo crescimento da cidade, nem a empresa de limpezablica, e tão
pouco a municipalidade tinham mais condições de regar todas as ruas. Esta ação, por sinal,
passou a ser regulamentada através do Código Sanitário de 1894, ocasião em que se tentou
estabelecer que o “jorro de água deveria ser largo, sobre o macadam ou calçamento
estanque”, bem como q
umidificação que evitaria a poeira.
ido irrigadas (112 delas, entre março e abril de 1894) e a empresa de
grave falha em 20 mil réis.
508
A Light, companhia responsável pelos
am pela cidade – muitos deles correndo em trilhos assentados
de terra batida – foi advertida para “estabelecer em suas linhas alguns
ujo trajeto era feito sob espessa poeira que, além de incômoda, é anti-hygienica
manuscrito, p. 299 a 322.
504 - Indicação do vereador Vicente Ferreira da Silva, A. C., 17/12/1889, p. 353
505 - Requerimento de Reis & Cia., A. C., 16/04/1890, p. 109.
506 - Proposta dos vereadores Henrique Schaumann, João Antonio Julião e Guilherme M. Rudge, A. C.,
17/10/1892, p. 22 e 23.
507 - Código Sanitário, op.cit., artigos 16 e 19. Apesar de não citar explicitamente o temor em relação à poeira,
muitos outros artigos deste Código fazem menção aos cuidados que deveriam ser tomados para que as partículas
de pó não se espalhassem. Em um deles, por exemplo (o de nº 228) regulamentava a altura dos telhados para os
teatros, sendo que estes deveriam ser suficientes para que, no palco, “os panos de boca e vistas de fundo possam subir e
descer inteiros, sem dobrar”, o que nos revela uma preocupação com o constante agitar dos tecidos, potencial fonte
para espalhar a poeira entre os espectadores.
508 - Relatório do Intendente Rodrigo Monteiro de Barros, A. C., 01/05/1894, v. manuscito, p. 239 a 264.
215
(...)
509
; além do mais, como se afirmou em 1908, a mesma empresa deveria diminuir a
ue era respirada pela população, que mais causava
mor e já considerad
tem sua origem.”
512
Par
chuvas, formava-se um
a crosta nojosa que se dissolvia ao menor
tâncias, como disseram alguns membros da
omissão de Obras da Câmara Municipal em 1895, “entrava em jogo a saúde pública.”
514
De um simple
XIX e até a profunda
estava subjacente o temor frente a uma doença considerada das mais perigosas: a
tuberculose. Era ela a
ue se levantavam por toda a capital:
Dr. João Theodoro, compreendido entre a avenida Tiradentes e o Hospital
velocidade dos bondes que transitavam pela cidade, velocidade exagerada segundo
reclamações na imprensa, que apontaram esse fator como a causa principal da “grande
quantidade de poeira que ultimamente se levantava em São Paulo.”
510
A água consumida pela população também era fonte de preocupação contra as
terríveis nuvens de poeira que, de repente, invadiram a cidade. Trechos lindeiros ao
reservatório da Consolação precisavam ser imediatamente calçados “afim de se evitar que a
poeira invada aquele grande depósito, tornando a água menos pura.
511
Entretanto, era mesmo a
poeira em suspensão na rua, aquela q
a, em 1894, um “terrível flagelo para população, onde muitas moléstias
a esta análise foi considerado o fato de que nas ruas, em épocas de
imenso lodaçal saturado de urina e excrementos dos animais. Com
te
a volta do sol e evaporada a água, formava-se um
contato, encarregando-se o vento de levar essa podridão diretamente para dentro do
corpo através do nariz e da boca, infectando-o. Este pó, facilmente posto em suspensão no
ar, passou a ser considerado pelos higienistas como “um meio perigosíssimo de transmissão de
moléstias.”
513
Nessas temerosas circuns
C
s incômodo que se observava diante da poeira em meados do século
transformação que se operou nos primeiros anos do século XX,
fonte de todos os medos então presentes frente às nuvens de poeira
q
“Indico que o sr. prefeito (...) mande calçar a paralelepípedos o trecho da rua
Militar. A saúde pública exige que se faça com a possível brevidade aquelle
serviço.
O pó que se levanta naquelle trecho de rua pode e deve concorrer
grandemente para a
propagação da tuberculose nesta capital, o que convém
combater por todos os modos. Creio ser tão justa esta indicação, que não
precise de mais fundamentações – Goulart Penteado.”
515
09 - Indicação do vereador Gomes Cardim, A. C., 06/03/1902.
510 - Requerimento e dis
consentido, o vereador Ber
insuportável.”
511 - Indicação nº 38 do ve
512 - Relatório da Comissão de Obras, A. C., 06/03/1894, v. manuscrito, p. 143 a 166.
513 - Id. ibidem.
514 - Projeto para o calçamento da cidade apresentado pela Comissão de Obras, A. C., 12/01/1895, v.manuscrito, p. 12.
515 - Indicação nº 222 do vereador Goulart Penteado, A. C., 16/12/1905.
5
curso do vereador Sampaio Viana, A. C. 20/06/1908, p. 160 a 162. Num aparte
nardo de Campos chegou a dizer: “—É impossível continuarem as cousas como estão; o pó é
reador J. Amarante, A. C., 14/03/1903, p. 78.
216
O temor era grande e, conforme já indi
amedrontar os paulis
quartas maiores causas de falecimento. A partir dos primeiros anos do século XX, e até
908, f
va uma poeira
ue asfixiava os
cado, a tuberculose esteve sempre a
tanos. Entre 1860 e 1890, esta doença oscilou entre as terceiras e
1 oi ela a primeira causa apontada para as mortes decorrentes de doenças
transmissíveis, conforme a nova classificação.
Por isso o pavor, daí uma neurose da poeira que se espalhou por toda a cidade: na Av.
Brigadeiro Luís Antonio, moradores e transeuntes reclamavam que ali “levanta
extraordinária, excessiva e intolerável”
516
e, por vezes, formava-se uma “nuvem de pó simplesmente
insuportável,que acarretava grandes males aos moradores, e isso devido ao grande trânsito de veículos,
carros, carroças, bondes, etc.”, como citou o vereador Bernardo de Campos em 1908.
517
No
centro da cidade, eram as ruas Direita, 15 de Novembro e Álvares Penteado que desprendiam
partículas diariamente, e isso por conta do tipo de calçamento ali empregado: blocos de
madeira rejuntados com areia.
518
Na praça da República, a “poeira era infernal, e se levantava a
mais leve aragem.”
519
Na zona norte continuava todo o Bom Retiro e Luz, especialmente a
problemática Rua João Teodoro, com “uma profundíssima camada de pó, q
transeuntes e emporcalhava as habitações”.
520
Na alameda Barão de Limeira, a situação também
era “asfixiante e aflitiva”, conforme o relato dos moradores:
“Os abaixo assinados, moradores na alameda Barão de Limeira, via pública
que não parece, mas que fica alguns minutos do coração da cidade, vem,
respeitosamente, impetrar de vv. excs. uma medida que venha minorar a
aflitiva e asfixiante situação em que os mesmos se acham. Asfixiante sim, pois
é tal a poeira que naquela alameda ora se acumula, que tornando-se já
inabitável, atentatória da já precária saúde dos que nela habitam e
comprometedora dos créditos de uma cidade que timbra em se dizer:
civilizada. O viajante que percorre o inóspito Saara, de tempos a tempos, de
distancia em distancia, tem o seu desedentador oásis, quem, porém, tiver de
atravessar a nossa desprotegida alameda, não encontrará, além da
estonteadora poeira, o refrigério que se depara no inóspito deserto. Os abaixo
assinados não vêm pedir melhoramentos de monta, para a alameda Barão de
Limeira, deixam de parte o higiênico asfalto, o corriqueiro paralelepípedo,
516 - Indicações nºs. 130 e 142, dos vereadores Correa Dias (25/08/1906) e João Amarante (10/09/1906),
respectivamente.
51 ., 20/06/1908, p. 160 a 162
rais da cidade entre finais do século XIX e início
7 - A. C
518 - O calçamento de madeira foi utilizado em algumas ruas cent
do XX. Londres e Paris, em 1887, também possuíam várias ruas assim calçadas. Porém, com o problema da poeira,
este tipo de revestimento também passou a ser criticado, como disse o vereador Sampaio Vianna em 1910: “A
prefeitura não levou em conta as despesas com a conservação do calçamento a madeira; e essa conservação é muito dispendiosa
com esse sistema de calçamento. Além disso, há o trabalho de se espalhar areia sobre o calçamento quando chove, e o de varrer
depois. E a poeira que daí resulta prejudica não só o comércio, mas a higiene em geral”. Complementando esta fala, disse o
vereador José Oswald: “o calçamento de madeira traz mil inconvenientes, entre os quais de ser muito escorregadio quando
chove e muito poeirento quando há vento (...)”. A. C., 12/03/1910 p. 46 a 48.
519 - Indicação nº 414 de 1911 do vereador Alcântara Machado, A. C., 22/09/1911, p. 361
520 - Indicação nº 415, idem ibidem.
217
contentam-se com o burguês e antiquado macadam, que já existiu, o que vêm
solicitar é que vv. excs. interced
quando, mande lá aparecer um
am ante á Prefeitura, para que, de vez em
misericordioso varredor, que torne um pouco
mais transitável essa ex-graciosa alameda, hoje desprotegida e tornada foco
de miasmas os mais pestilentos e mortíferos.”
521
Vale notar neste documento a permanência, ainda em 1911, de antigas referências
omo os miasmas pestilentos, estes agora mais perigosos ainda diante dos temidos micróbios.
as, não era apenas na alameda Barão de Limeira, até então uma área nobre do elegante
ampos Elíseos que apresentava tais problemas no início do século XX. Em 1906, o vereador
elso Garcia realizaria uma visita para fiscalizar as condições de alguns dos “arrabaldes” da
idade, e aqui incluindo o recém-aberto bairro da Lapa e a velha Freguesia do Ó. Naquela
casião, ele manifestou um grande espanto pelo estado em que se encontravam as ruas dos
ois bairros.
522
Em 1913, seria a vez de outro vereador, o Dr. Orêncio Vidigal
523
, realizar uma
isita aos bairros de Santana, Barra Funda, Bom Retiro, Braz e Mooca. Ao relatar “o clamor
eral” da população em vista da falta de higiene nesses lugares, o Dr. Orêncio destacou que
aquelas condições funestas resultaram, “de 1 de janeiro a 31 de maio daquele ano,71 falecimentos
or febre tifóide” e, mais ainda, faz menção à terrível poeira que observou, indicando uma
usitada fonte produtora: as contínuas demolições de prédios que se verificavam em todos
s pontos da cidade. Esta é uma dimensão perdida quando se trata do espantoso crescimento
e São Paulo naquele período, ou seja, ao mesmo tempo em que o velho era demolido para a
onstrução do novo (ação esta sempre elogiada pelos médicos e higienistas) o fato é que o
ontínuo refazer também acarretava um problema identificado como prejudicial à saúde. Por
so, disse o vereador, o ideal seria “determinar que em todas as casas demolidas, se fizesse a
rigação dos escombros” para evitar a grande quantidade de poeira.
524
Porém, o Dr. Orencio não foi o p ertar para essa nova condição presente na
cidade. Dois anos antes, o vereador Sampaio Viana já tocava no tema:
“Sendo de reconhecida e urgente necessidade encontrar-se uma solução
definitiva para o problema de irrigação da cidade, que devido não só ao
aumento de seu tráfego,
como á continuidade de suas construções
c
M
C
C
c
o
d
v
g
d
p
in
o
d
c
c
is
ir
rimeiro a al
, além da
má conservação do calçamento a macadam,
é invadida pelas grandes nuvens
de poeira, e que tem concorrido incontestavelmente para a sua insalubridade
bem manifestada nas moléstias dos órgãos respiratórios que em maior
número se tem apresentado nestes últimos tempos (...)”
525
(meus destaques)
- Representação dos moradores da alameda Barão de Limeira, A. C., 06/06/1913, p. 219 e 220.
2 - Discurso do vereador Celso Garcia, A. C., 19/05/1906, p. 76 a 79. A respeito da falta de serviços públicos nos
chamados bairros populares e a aplicação de grandes somas no embelezamento da área central e nos bairros da
ite nesse período, veja o estudo de Rolnik (1997), especialmente os capítulos “Mercados: legislação urbana e
valorização imobiliária” e “Compromissos: legislação urbana e cidadania”.
3 - Agora eleito vereador, este é o mesmo Dr. Orêncio Vidigal que, em 1901, havia entrado em conflito com a
família Prado por conta da cocheira de d. Veridiana.
524 - Discurso do vereador Orencio Vidigal, A. C., 06/06/1913, p. 217 a 219.
525 - Discurso do vereador Sampaio Vianna, A. C., 25/08/1911, p. 325.
521
52
el
52
218
Algumas áreas mais ricas da cidade como as avenidas Paulista e Brigadeiro Luís
ntonio, receberam um tratamento especial com regas diárias de seu leito (às vezes em
ois turnos, de manhã e à tarde), sendo que a mais aristocrática delas, a Paulista, foi a
rimeira ter o problema do pó resolvido: em 1911 ela seria a primeira via da cidade a
ceber uma camada de asfalto.
Em outros bairros, porém, o problema continuava, pois apenas cessavam as chuvas e
cidade ficava “imersa em densas nuvens de poeira, absolutamente intoleráveis”, nas palavras de
icial á saúde”, completou.
526
E de tal
aneira o caso era grave, disse Alcântara Machado, que “a luta contra a poeira não poderia
deixar de consti
oi
pensado, inclu m
isso, pudesse a
A poeir a
tuberculose, ha o,
não havia com s
de elite, não ba a
de 1910 como la
m va
is
lo
is
se
s
e sua
e
ra
Nessas circunstâncias, e diante da ameaça à saúde dos moradores, ele buscou
entender os reais perigos então imputados ao pó, pediu a opinião de médicos e leu
A
d
p
re
a
Silva Telles, sendo que isso era “extremamente prejud
m
tuir numa das mais sérias preocupações da prefeitura.”
527
Nessas condições f
sive, um complexo sistema elevatório das águas do rio Tietê para que, co
cidade ser “regada” diariamente.
528
a, tida naquele momento como altamente facilitadora para a transmissão d
via transformado o ar que todos respiravam em um gás letal e, pior que iss
o dele escapar. As ações localizadas, estas aplicadas mais amiúde nos bairro
stavam, ricos e pobres estavam expostos a este perigo, e tanto que, na décad
visto, as reclamações eram constantes uma vez que era comum, seja pe
pelos discursos dos vereadores, ouvir-se que “a poeira e São Paulo estaimprensa, seja
tomando proporções assustadoras, com grave ameaça para a saúde pública.”
529
Apesar de toda a cidade sofrer com o problema, em uma região específica o caso era ma
grave, justamente naquela em que residia a maioria do operariado e que, em meados do sécu
XIX, fora edificada na planície da várzea do Carmo. Era no Braz que a poeira se fazia ma
presente, era na sua principal via, a av. Celso Garcia, que a quantidade de poeira era tal que
tornava quase impossível o livre transitar por ela. Ocupando-se do caso, o próprio Celso Garcia
este homenageado em vida com o empréstimo de seu nome à rua – pronunciou duríssimo
discursos contra a prefeitura que, no seu entender, havia abandonado aquele bairro
população. Ali, disse ele, utilizava-se o pior dos calçamentos que era o macadam, “justament
condenado pela higiene por facilitar a tuberculose.” Estava o Braz, à vista de todos, o
mergulhado na lama, ora envolto em nuvens de poeira: lama com a chuva, pó com o sol.
526 - A. C., 12/02/1910 p. 24 e 25.
527 - A. C., 29/09/1911,p. 361
528 - Vereador Alcântara Machado, A. C., 17/04/1911,p. 170 e 28/07/1911, p. 302.
219
diversos textos escritos pelos maiores higienistas da época. Assim, o advogado Afons
Celso Garcia da Luz produziu um pequeno tratado sobre a concepção que se tinha
respeito da poeira e de seus perigos:
o
a
“As poeiras se distinguem em várias espécies: a poeira orgânica, isto é, sem vida, formada de partículas
de palha, de seda, de lã, de ervas secas, de folhas de árvores, etc., e a poeira organizada, isto é, com vida
própria, constituída por todas as variedades de micróbios. A poeira mineral, por último, de minúsculos
fragmentos de carvão, de macadam, etc.
Para transmissão de certas moléstias, da tuberculose, por exemplo, essas três qualidades de poeira se
combinam, produzindo cada qual seu efeito.
A poeira formada pelos germens de moléstias não é, per si, tão perigosa. Há, porém, a segunda poeira,
formada por pequenos fragmentos de palha, de folhas secas, de algodão, etc. Qual é o papel desta
poeira? É o de servir de condutor aos germens das moléstias. Exemplifiquemos. O gérmen de certa
moléstia, colocado numa felpa de algodão ou de palha, vai a atmosfera, é conduzido a grandes
distâncias. Si não houvera esse condutor, o micróbio, com peso específico superior ao do ar ambiente,
com tendência natural a recair no solo, não seria tão perigoso.
O micróbio está para o condutor, como a mecha para o balão. A mecha, abandonada no espaço,
cai.Mas, ligada ao balão, atravessa grandes distâncias.
Eis, pois, a combinação das duas poeiras. Qual a ação da última poeira, a de macadam?
A poeira de macadam, conforme dizer dos higienistas, exerce grande influência sobre a transmissão de
certas moléstias. A poeira organizada, com vida própria, formada de micróbios, conduzida pela poeira
orgânica (felpas de algodão, etc.) invadindo o organismo, não provoca, por si a moléstia. Outras
condições são necessárias.
Pasteur, quando fazia suas célebres experiências, costumava, si não me engano, moer vidro para dá-los
aos animais em que ia inocular a infecção carbunculosa. É que, para haver contágio, reprodução ou
pululação de germens, é necessário uma lesão anterior ou solução de continuidade.
O papel da poeira do macadam é o mesmo. Formada de partículas de pedra, umas arredondadas
outras de forma oblonga, etc., vai provocar lesões apropriadas ao desenvolvimento dos germens
patogênicos. Ora, o gérmen da moléstia, levantado na atmosfera, conduzido pela poeira orgânica, pode
ir invadindo o organismo, [aproveitando-se das] lesões causadas pela poeira mineral.
Não se diga que eu estou contando novidade sobre esta questão. (...)”
530
De fato, Celso Garcia não contava novidade alguma para um público letrado como
composto por seus pares na Câmara Municipal. Mas, a linguagem é simples e didática,
utilização da metáfora do balão representando um grão de poeira e o micróbio como a su
“mecha” (ou sua chama), tornava tudo perfeitamente compreensível. Nem por isso, o relato
menos dramático e aterrador. O alvo do vereador eram as ruas calçadas pelo sistem
macadam e a crítica dirigida à prefeitura que, na sua opinião, pouco fazia para resolver um
questão tão grave. De outra parte, o discurso visava a sensibilizar o morador comum, um
vez que a poeira - como que uma nuvem sombria – estava por toda a parte carregand
o
a
a
é
a
a
a
o
consigo micróbios mortíferos. Nesse sentido, a população estava em perigo.
529 - Vereador A. Batista da Costa, A. C., 10/05/1912, p. 182.
530 - Discurso do vereador Celso Garcia, A. C., 20/04/1908, p. 90 e 91. Colocado aqui de maneira simplificada,
pois visava um rápido entendimento, as teorias desenvolvidas pelo vereador estavam presentes em diversos
tratados mais complexos. A esse respeito, é extensa a lista de trabalhos que tratam do tema. No Brasil ver:
Hochman (1998), Teixeira (1995 e 2004), Czeresnia (2001), Benchimol (2000) e Mesquita Ayres (1992, 1993 e 1994);
220
As representações maléficas a respeito da poeira, porém, não se restringiam aos
u
e
b
e
e
A
o
s
e
e
dos palacetes, existia um acessório indispensável: a escarradeira, um
a
às
,
u
al
r
e,
r
construídas “sem quinas ou ângulos interiores”, sempre preferindo os cantos arredondados,
para proporcionar uma fácil limpeza. Nos quartos, por sua vez, não seriam admitidos
qualquer reentrância nas paredes e tão pouco os ângulos, quer horizontais ou verticais, a
nova regra previa uma construção lisa e com superfícies arredondadas.
532
Ora, como
sabemos, são nos cantos e nos ângulos das casas ou do hospital, dos salões e dos teatros,
que a poeira pousa, sendo mais difícil a sua remoção. Esta, em pequena ou grande
quantidade, sobe ao ar com grande desenvoltura ao mais leve toque da vassoura. Como
lembrava Celso Garcia, enquanto pousada no solo, a poeira e os germens eram inofensivos,
mas suspensos no ar seja por qualquer razão, a nuvem fantasmagórica estava pronta para o
ambientes abertos, o das ruas da cidade senão, também, àqueles mais íntimos como a casa o
centros de reunião como teatros e hospitais. Aquilo que chamo de “neurose da poeira”, entr
finais do oitocentos e início do novecentos, não poupava nenhum espaço. Tudo estava so
suspeita: o pó infectado do exterior poderia “viajar”, invadindo casas e outros locais,
mesmo no interior das residências encontravam-se focos, ali mesmo produzidos, e qu
passaram a ser uma fonte nojosa de minúsculos seres prontos para ataques letais.
transmissão da tuberculose estava subjacente a este pavor.
Hábito tão comum no final do século XIX, o ato de escarrar em público era tolerad
sendo mesmo sinal de saúde, uma vez que, permanecendo resquícios das antigas teoria
dos humores, seria esta uma maneira de expelir aquilo que corrompia o corpo. Cuspia-s
na rua, nos bondes e no chão das casas mais humildes. Nos grandes salões, nos teatros
nas salas de visitas
“bacião com aba coletora, no interior do qual se despejava uma solução anti-séptica, par
servir de alvo e pontaria ao exercício de escarrar.”
531
Modelos de escarradeiras existiam
dezenas para todos os bolsos e gostos, podendo ser encontrados em faiança, porcelana
vidro e metais nobres; já os mais pobres contentavam-se com exemplares modestos, o
expectoravam mesmo no chão, na rua ou dentro de casa.
Muito criticado pelos higienistas a partir de das descobertas de Koch em 1882, t
hábito permaneceu na sociedade paulistana por mais algumas décadas, e isso até que o pavo
da poeira, dentre outras condições, determinasse o seu fim.
No Código sanitário de 1894, o artigo 435 chama a nossa atenção. Através del
estipulava-se que, nos hospitais, as salas destinadas às enfermarias deveriam se
no exterior: Rosen (1994) e Sournia e Ruffie (1986).
531 - Antunes, José Leopoldo Ferreira, et alii (2000). Os autores produziram uma excelente análise sobre esse
antigo costume, sua aceitação social e posterior vinculação com a transmissão da tuberculose.
221
ataque. Visão horrenda seria aquela proporcionada por uma boa vassourada na sala
acompanhada, ao mesmo tempo, pelo penetrar do sol entre as frestas das janelas. U
mundo novo, vivo
e
m
e horrendo estaria então sendo apresentado. O pulular de fiapos e grãos
e
a
a
a
a
desde que não houvesse um acesso de tosse. Portanto, a
ermanência junto aos doentes não seria tão perigosa, “desde que se evitasse a entrada no
organismo dos produtos
s,
havia sim um perigo re
quanto o palácio do ri a
tuberculose”.
534
Conve s,
naquelas onde os cuid
Importante notar que aqui estamos ac
,
á não era apenas a
r
e
e
se
o
a
extensão, bem como sua propagação”, eles sugeriam como uma condição essencial para obstar
o mal seria:
“... entreter sempre no interior das casas luz e ar puro, removendo todas as
causas que o possam viciar, corromper e torná-lo
úmido
de pó, bem poderiam lembrar uma dança macabra entrecortada, aqui e ali, pelos fachos d
luz.
Essa combinação de cantos escuros e poeirentos, mais os dejetos advindos com
expectoração, seja na escarradeira ou no chão, bem como o medo da transmissão d
tuberculose, criaram as condições para que o ato de cuspir fosse então condenado.
A tuberculose, ensinava a Comissão de Higiene Municipal em 1900, “é transmitid
mais freqüentemente pelas vias respiratórias que absorvem o pó contendo o escarro seco do
tuberculoso ou envolto nos corrimentos procedentes dele.” O ar exalado pelos tísicos, por su
vez, era considerado inofensivo,
p
da expectoração.”
533
Entretanto, alertavam os médicos e higienista
medonho, a poeira, que poderia invadir tanto a “choupana do pob
co” e provocar dentre os incautos a “mais mortífera das doenças:
ncionou-se, porém, que o pior ocorria nas casas mais humilde
ados com a higiene não eram seguidos a contento.
ompanhando duas grandes alterações: num
primeiro aspecto, a casa – e, se quiserem, a intimidade – foi agora tornado objeto de pesquisa
passível de reflexão e, principalmente, de intervenção; em segundo, j
umidade que metia medo senão, também, o seco. Traduzindo essa mudança temos, po
exemplo, um documento da Comissão Central de Saúde Pública, preparado entre agosto
setembro de 1855, e redigido por conta da ameaça de cólera que já se apresentava no Pará
ameaçava o Rio de Janeiro. O título deste documento é deveras representativo, posto que ele
apresentava não como uma ordem ou determinação, mas sim como Conselhos ao povo, a
respeito dos preceitos higiênicos que deveriam ser guardados no decorrer da epidemia. Nã
obstante os médicos admitirem que “desconheciam de todo a causa geral da doença, su
. O melhor e mais
simples meio de alcançar este fim consiste em abrir de tempos a tempos as
532 - Código Sanitário, op. cit., artigos 435 e 455
533 - Parecer nº 3 da Comissão de Higiene da Câmara Municipal, A. C., 02/07/1900, p. 217 e 218.
534 - Id. ibidem.
222
portas e janelas que comunicam com o exterior (...)
535
(meu destaque)
Tempos depois, e mediante uma nova ameaça de cólera, a Junta Central de Higien
Pública redigiria um outro documento intitulado “Cautelas contra o flagelo da cóler
morbus”. Novamente, esta não era uma ordem. Como primeiro conselho ou cautela
e
a-
a
as
536
, dizia
Junta que era preciso:
“... conservar no maior asseio possível as habitações (...) expondo-
constantemente à ventilação durante o tempo seco (...). Destruir ou diminuir
quanto se puder a
umidade das casas, ou por meio da ventilaçã
conservando abertas as portas e janelas, ou por meio de fogos, quando falte
os recursos.”
o,
m
da
nspeção rigorosa no i m
especial, dos cortiços. e
urbana a habitação, não mula a classe pobre, a
es
na
as
m
e
he
Daí vem que o interior dessas pequenas casas tem paredes enegrecidas e
pouco asseadas; do teto já se lhes não conhece pintura sob a camada do sujo das
a
e
sobre si
empilhadas peças de roupa para lavar.”
539
537
Décadas depois, em outubro de 1893, período este que coincide com o início
neurose da poeira, são outras as condições presentes e que permitem, por exemplo, uma
i nterior das residências consideradas insalubres: as dos pobres e, e
Era preciso, conforme justificativa apresentada, “cuidar da unidad
já da habitação privada, mas daquela onde se acu
estalagem onde pulula a população operária, o cortiço como vulgarmente se chamam essas construçõ
acanhadas, insalubres, repulsivas algumas.
538
Aberto esse novo flanco, os médicos esquadrinham
a casa operária, a habitação coletiva, os cortiços, então qualificados como uma “chaga oculta
no coração da cidade.”
“São estas casinhas, em geral, soalhadas, forradas nos cômodos de dormir e
sala da frente, sem outro sistema de ventilação que o natural por intermédio d
janelas e portas. No cômodo do fundo, onde não há soalho nem forro, ne
mesmo ladrilhos assenta um fogão ordinário e rudimentar com chaminé qu
pouco funciona em vista da sua má construção ou do pouco cuidado que se l
tem.
moscas. As paredes, com quadros de mau gosto, tem o reboco ferido por um
infinidade de pregos e tornos de que pendem vários objetos de uso doméstico
a roupa de serviço. Os móveis, desagradavelmente dispostos, tem
e os preceitos hygienicos que deve guardar no curso da epidemia de cholera-morbus, e os me
rimentos” – Deliberação da Comissão Central de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 08 de
Papéis Avulsos do A.H.M, vol. 172, 1855, documentos de nºs. 227 a 231.
remetem a um fato já analisado, ou s
535 - “Conselhos ao povo sobr ios
de remediar aos primeiros soff
setembro de 1855. Coleção
536 - Essas disposições nos eja, os médicos apenas “aconselhavam”, posto que
não estavam eles ainda no comando das ações públicas ou determinando as políticas na área de saúde pública.
537 - “Junta Central de Hygiene Pública – Cautelas contra o flagello da cholera-morbus”, Coleção Papéis Avulsos do A.H.M,
vol. 224, 1867, documento nº 257, impresso, acompanhado por Circular do governo provincial de 23/03/1867.
538 - Relatório da Comissão de exame e inspeção das habitações operárias e cortiços no distrito de Santa Ifigênia”, In:
Relatório Apresentado á Câmara Municipal de São Paulo pelo Intendente municipal Cesário Ramalho da Silva, 1893.,
p. 43. Este relatório foi preparado em vista do aparecimento de alguns casos de febre amarela naquela região.
539 - Idem ibidem, p. 46.
223
Condições da casa operária, ou do cortiço, que nos parecem estranhas à saúd
como os quadros de mau gosto ou os móveis desagradavelmente dispostos, entravam n
composição de um ambiente insalubre, posto que pobre. Por outro lado, era este u
momento de transição, período no qual permaneciam ainda os miasmas e a umidad
como algo a ser combatido. Daí que o relatório daria especial atenção aos terrenos úmido
de Santa Ifigênia, fosse ele exterior ou interior à casa. O olhar médico desloca-se de fo
para dentro, entra na casa, descrevendo-a em minúcias, qualificando-a como uma ferid
prestes a contaminar toda a cidade:
“O soalho jamais se lava (...). A crosta de lama que o encobre não deix
reconhecer a madeira, e o todo se mostra sob um aspecto nojento e insalubr
A umidade do solo sobe pelas paredes puindo o papel ordinário que
sobre o terreno.”
e
a
m
e
s
ra
a,
a
e.
as
reveste e danificando o soalho que não é ventilado e se assenta diretamente
as
as
o
s,
540
Apesar de já ser possível a realização de um inquérito sobre a casa insalubre, ainda
encontramos aqui a umidade como a principal causa das doenças. Porém, não por muito
tempo. A febre “palustre” cedia seu lugar à tuberculose como fonte maior de medo; ao
úmido, juntava-se o seco, da água ao pó:
“É freqüente ser habitada uma casa por família que a encontre em péssim
condições de asseio, com as paredes e portas das alcovas horrivelmente chei
de catarro seco, causando repugnância, com o assoalho lodoso, indicand
nunca ter sido lavado. Compreende-se que o desprendimento de tais crosta
se a casa foi habitada por tuberculoso anteriormente que, juntamente com o
pó, são [tais crostas] respiradas quando varre-a, [podendo] mui facilmen
determinar um mal que seria evitado, caso houvesse desinfecção e asse
te
io.”
541
Em 1913 ocorre uma grande novidade que, no meu entender, seria o ápice de todos os
temores frente à poeira o da
ta
aprovado o projeto nº 7:
“Considerando que está demonstrado pela ciência e pela observação médica,
que a tuberculose pulmonar e outras moléstias contagiosas das vias
respiratórias se transmitem ativamente pelos produtos da expectoração; e
, e isso tendo em vista o pavor então instalado por conta do avanç
chamada “peste branca”. Através de uma representação assinada por membros da “Liga Paulis
contra a Tuberculose” e entregue na Câmara pelo Dr. Orêncio Vidigal, pedia-se a “votação de uma
lei que ponha fim á nociva e repulsiva prática de se escarrar nos locais de freqüência pública.”
542
As discussões foram muitas e demandaram um longo período, mas em 1919 era
540 - Idem ibidem.
541 - Parecer nº 3 da Comissão de Higiene da Câmara Municipal, A. C., 02/07/1900, p. 217 e 218.
542 - Representação, A. C., 20/06/1913,p. 242 e 243
224
sendo indispensável por em prática medidas profiláticas que embarguem ou
restrinjam a disseminação do mal por esta via de propagação, a Câmara
Municipal Decreta:
Art, 1º - Fica proibido cuspir ou escarrar no piso de tranways, carro
ou no chão dos lugares cobertos acessíveis ao público e nos passeios das vias
públicas. (...)”
s
a,
; e
rimeira metade do século
IX, até a proibição de se cuspir no chão em público, como ocorreu em 1919.
Mas, o acomp te
algumas análises, po a
presença do medo dia o
advento da microbiolo m
simples “grão” de pó. Numa análise ainda bastante simples, poderíamos verificar outros
s
es
o espantoso.
Entretanto, e mais do que isso, é preciso esclarecer que as medidas preconizadas no
final do século etiz go a seguir, encontravam um certo eco na
sociedade ou, se quisermos, mais apoio do que reprovação. Em outras palavras, a nova
medicina – já acompanhada da microbiologia – encontrou um espaço bem maior para sua
atuação, inclusive ganhando força na administração pública. Algo que antes seria
impensável, como a devassa nas residências mais pobres, agora tinha um suporte mais
concreto. Em poucas décadas passou-se dos “aconselhamentos” à uma proposta de
intervenção e, nesse caminhar, a construção de um mundo novo e pavoroso que encontrava
abrigo nas nuvens de poeira, por exemplo em muito colaborou. Ao mesmo tempo em que
fornecia as justificativas para uma remodelagem do centro da cidade, via ajustes ou mesmo
demolições de residências populares, a ação médica acabou por redundar num aparte ou
exclusão dessa mesma camada, até porque não apenas as suas residências foram
consideradas como “focos de infecção”, senão eles próprios, com seus hábitos e costumes.
544
De todo modo, e durante o correr do século XIX, o paulistano viveu ao lado das várias
543
A doença e o medo da morte, bem como os avanços da medicina e da microbiologi
estiveram sempre a construir representações e determinando, por vezes, comportamentos
isso desde a obrigação de se acompanhar uma procissão ainda na p
X
anhamento deste caso específico – o da neurose da poeira – permi
sto que o processo possui outras implicações. Como está claro,
nte das partículas em suspensão no ar somente foi possível com
gia e explica, também, a nova e pavorosa imagem construída para u
aspectos que acompanharam o rápido crescimento da cidade e o ambiente em que viviam o
moradores de áreas periféricas, ou os problemas de saúde imputados às constant
demolições no centro da cidade, que se processavam num ritm
XIX e concr adas muitas vezes lo
543 - A. C., 01/02/1919, p. 30. Este projeto deu origem à Lei nº 2.186 de 25/03/1919 que, em seu preâmbulo dizia:
“Estabelece medidas profiláticas que embarguem ou restrinjam a disseminação da tuberculose pulmonar e outras
moléstias contagiosas das vias respiratórias e dá outras providências.” Nessa mesma lei, previa-se em
determinados locais como hotéis, pensões, cafés, escolas, igrejas e estações, a utilização de escarradeiras cujo tipo
seria determinado pela Prefeitura.
544 - A respeito da condenação de outros hábitos e costumes das camadas populares que residiam no centro da
cidade, o que em muito colaborou para com essa mesma exclusão, veja a original análise de Santos, Carlos José
Ferreira; Nem tudo era italiano - São Paulo e pobreza (1890-1915), especialmente o capítulo III “Em busca da presença
225
doenças que poderiam lhe tirar a vida muito precocemente. Vivia-se, por exemplo, entre as
epidemias, ent a
re as febres e s temidas bexigas.
Parte II
Vida breve
dos nacionais: espaços urbanos, trabalho, cultura e transgressão; p. 65 e seguintes.
226
Capítulo 1 – Entre epidemias, febres e bexigas
“Ilmo. Exmo. Snr. Presidente e mais Vereadores da Ilma. Câmara Municipal: Não
vos deve ser desconhecido o desenvolvimento que ultimamente tem tomado o bairro
denominado Bixiga nesta Capital, esse desenvolvimento, porém, não corresponde
aos esforços empregados pelos proprietários e moradores d´aquelle bairro para
torná-lo um arrabalde de primeira ordem, embora seja elle dotado de todas as
condições para isso necessárias, já pela fertilidade d´aquelles terrenos, já pela linda
vista que d´alli se descortina e pela abundância d´água vertente que circunda todo
o campo.
Observando de perto o progresso rápido de vários outros arrabaldes desta
Capital e reconhecendo que elle tem sido o resultado de mudanças de nomes, de
ruas e dos mesmos arrabaldes, vem os abaixo assignados respeitosamente pedir a V.V.
Excias.
a mudança do nome de Campo do Bexiga para o de Campo da Bella Vista,
visto como aquelle nome nenhuma tradição nos fez recordar.
545
(meus destaques)
Nas últimas duas décadas do século XIX, São Paulo experimentou um crescimento
impressionante e poucas vezes antes anotado em outras cidades. A sua população, por
exemplo, saltara dos 31.385 habitantes em 1872 para os 47.697 moradores em 1890, número
este que atingiu 239.820 dez anos depois. Em decorrência dessa nova situação, antigas
áreas de chácaras que circundavam o velho núcleo urbano acabaram sendo retalhadas em
loteamentos sucessivos; novos bairros foram abertos a toque de caixa, alguns deles
dedicados exclusivamente aos mais abastados como Campos Elíseos e Higienópolis,
enquanto que outros foram reservados às camadas médias e pobres da população.
Nesta última situação encontrava-se o então chamado Campo do Bexiga, cujo
arruamento, iniciado em 1879, ocorreu a partir da antiga Chácara do Bexiga, propriedade
muito conhecida na cidade. Era nas suas imediações, por exemplo, que se encontrava o
545 - Coleção Papéis Avulsos do Arquivo Histórico Municipal, vol. 404, 1883, doc. s/nº com data de
22/06/1883. Constam desse documento 51 assinaturas e, dentre elas, reconhecemos as de Fernando de
Albuquerque, engenheiro formado nos E.U.A e intendente em 1891; João Pedro da Veiga Filho, advogado,
professor da Faculdade de Direito, vereador e deputado estadual; Juvenal Francisco Parada, advogado,
deputado provincial e intendente municipal; e, finalmente, João Francisco de Oliveira Godoy, advogado,
promotor público, desembargador, historiador e genealogista.
227
matadouro da cidade, um pólo que atraía para a região diversas outras atividades; num de
seus flancos, por outro lado, estava o vale do Saracura, local onde viviam muitos negros que
anhavam a vida em pequenos expedientes, fossem eles ligados ao próprio matadouro, ou
por conta de trabalhos e
de seus limites. E certam
do século XIX, uma das poucas estalagens existentes em São Paulo que, inclusive, abrigou por
alguns
or sua vez, foram reputados como “imundos e repugnantes” o que
deu motivos ao viajante para procurar
A denominaçã
futuro bairro, guardav
origem staria ligada a (ou Antonio
Manue
alidade, nenhuma menção
existiri
vos atacados deste mal” e isto por ocasião da epidemia ocorrida em 1798.
547
Afonso A. de Freitas descarta todas essas
de que nas imediações
das sobras do gado aba
Baseado no fato de que o sobrenome Bexiga não era algo tão comum, poderíamos ainda
supor que o próprio Antonio (ou Manuel) teria padecido do mal, ficando-lhe as marcas da
g
sporádicos gerados pelo intenso comércio desenvolvido no Piques, um
ente por essas características, ali estava localizada, nos primeiros anos
dias o viajante Saint-Hilaire em 1819. Segundo o relato do francês, o local não era dos
mais agradáveis, uma vez que o terreiro era “cheio de lama, uma buraqueira danada”. Os
quartos da hospedaria, p
rapidamente outro local na cidade.
o bexiga (ou bixiga) tanto para a estalagem, quanto para a chácara e o
am até o momento uma certa indefinição. Para alguns autores, a sua
o sobrenome do proprietário, um certo Antonio Bexigae
l), referência esta apontada pelo mesmo viajante Saint-Hilaire. Estudando o
assunto, Nuto Sant´Anna concluiu que, ao contrário dessa hipótese, nas imediações teria
existido um lazareto ou uma casa para os atacados de varíola, doença então conhecida
como bexiga. Na sua opinião, a denominação bexiga antecedeu ao do proprietário Antonio,
que teria herdado do local este apelido. O autor, entretanto, nos dá a entender que esta
seria uma hipótese, pois nos documentos oficiais da municip
a a respeito de tal estabelecimento na região, sendo certo que os únicos isolamentos
para bexiguentos apontados naquela época eram algumas casas alugadas pela Câmara na
rua de São Bento e um pequeno sítio “adiante da Tabatinguera”, locais estes distantes da
chácara do Bexiga.
546
Apesar de não citada por Sant´Anna, existia ainda uma outra chácara
destinada aos bexiguentos, qual seja, a do bairro do Pacaembú, para onde foram levados
“dois negros no
hipóteses e nos apresenta uma outra, ou seja, a
do antigo matadouro da cidade, realizava-se o preparo e a venda
tido, incluindo as bexigas bovinas, vindo daí o nome da chácara.
0548
546 - Sant´Anna, Nuto; São Paulo histórico vol.I, S.P.: Prefeitura do Município, 1937, p. 153 e segs. A respeito
dessa discussão veja também uma esclarecedora análise em Marzola, Nádia; Bela Vista, Vol. 15 da coleção
“História dos bairros de São Paulo”, S.P.: Prefeitura do Município, 1979, especialmente p. 34 e seguintes.
547 - Registro Geral da Câmara, Vol. XII (1796-1803), p. 273
548 - Freitas, Affonso A. de, Tradições e reminiscências Paulistanas, 1955.
228
doença impressas na pele, bem como o apelido e a denominação de sua propriedade.
549
la não era assim denominada, sendo mais conhecida como Sítio da Samambaia,
Leme, mais especificamente de Pedro Taques de Almeida
n
conjun
bexiguentos. Esta, por seu turno, foi muitas vezes referendada como Casa da Samambaia ou
Hospita
primei
efetuad
XVIII e
isolam
desativ
caráter
epidêm
Emílio
conclu
E era isso o que se sabia até agora, ou seja, muito mais hipóteses do que conclusões.
Entretanto, nem sempre a chácara do Bexiga teve este nome e daí, certamente, a
dificuldade de se buscar na história a sua relação com a varíola. De fato, por volta de 1750
e
propriedade da família Paes
Paes Leme.
550
Entre as sucessivas transações (em 1773 ela já era propriedade de Antonio
Marti s de Almeida e, em 1789, de Francisco Martins do Monte), o governo municipal, em
to com o da Capitania, ali instalou uma casa para abrigo e isolamento dos
l das bexigas
0551
, sendo certo que a denominação chácara Bexiga foi citada pela
ra vez em 1794, conforme o registro em uma escritura de compra e venda então
a.
552
Como pode ser observado, em um curto espaço de tempo (entre finais do século
início do XIX) a cidade teve pelo menos quatro retiros destinados aos doentes de
varíola. De fato, esta era uma característica marcante daquela época, ou seja, esses
entos ou hospitais eram criados e abertos mediante a eclosão de epidemias, sendo
ados logo após o fim das mesmas. Tinham esses estabelecimentos, portanto, um
provisório, uma vez que somente estavam ativos durante a ocorrência de surtos
icos. Nesse sentido, vale lembrar que mesmo o Hospital de Isolamento (atual
Ribas) também se pautava por essa prática: iniciada sua construção em 1875 – e
para substituir um outro que existia no Areal no bairro de Santana – ele somente seria
ído em 1880. Em fevereiro de 1882 o “Isolamento” seria fechado, e isso por “se
esar de não ser muito comum na cidade, o sobrenome “Bixiga” aparece vez em quando. Em 1834, por
, encontrava-se preso na cadeia da cidade um certo Manuel Bixiga, tido como “demente”, quase desnudo,
camisa tinha, e que estava a perturbar os demais presos. Não conseguimos dados mais seguros a
deste Manuel Bixiga, permanecendo aqui a dúvida se o mesmo seria aquele apontado por Saint
omo o dono da estalagem. Veja “Relatório da Comissão de visitas a prisões e estabelecimentos de
”, Relatório de 10/01/1834, Arquivo Histórico Municipal, Fundo C.M.S.P., Conselho de
549 – Ap
exemplo
pois nem
respeito
Hilaire c
caridade Vereadores.
Bartolom
Samamb
doada a
Paim, Ch rquivo Municipal”, Vol. CXVIII, S.P., Departamento de Cultura, 1952.
Pe aia” veja “Escorço biográfico de Pedro Taques de Almeida Paes
p istória da Capitania de São Vicente;
551 – Of aral, ao governador e capitão general José da
, A
552 - Marzola
550 – A respeito de Pedro Taques já falamos no 1º Capítulo da Parte I citando, inclusive, que seu pai
eu Paes de Abreu, faleceu em decorrência das temidas “bexigas” no ano de 1738. O sítio da
aia, em 1750, já era uma parte destacada da antiga “Sesmaria do Capão” (ou Chácara do Capão),
Fernão Dias Paes Leme ainda no século XVII. A esse respeito veja mais dados em Vieira, Antonio
ácara do Capão, In “Revista do A
Sobre dro Taques e o “sítio da Samamb
Leme” or Afonso de E. Taunay, In: Leme, Pedro Taques de Almeida Pais; H
Brasília: Edições do Senado, Vol. 25, 2004, especialmente p. 51.
ício do físico mor da Capitania, Mariano José do Am
Franca e Horta datado de 06/02/1806. In: Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo,
vol. 95 rquivo do Estado, 1990, p. 202.
, op. cit., 37
229
acharem ali poucos doentes em plena convalescença.”
553
Nessas circunstâncias, nomeava-se
um zelador que cuidaria do edifício até a sua próxima abertura, sempre ao sabor apenas
em ple
entre e
m
aquele
uma or na qual
relatav
Disse e
âmara,
sendo por ela
de novos surtos.
554
Mas voltando ao hospital das bexigas, no bairro do Bexiga, sabemos que ele estava
na atividade no ano de 1803, época em que ocorreu mais uma epidemia da doença
em São Paulo. Naquela ocasião, para ele foram enviados cerca de trinta e nove doentes
scravos, libertos e brancos, dos quais dois morreram.
555
Tudo leva a crer que desde
epelo nos 1794 ali já existia um isolamento para tais casos, mas o reconhecimento de que
era o melhor local para um hospital somente ocorreria em 1800, e isto através de
dem do então governador Castro e Mendonça à Câmara Municipal, e
a os funestos acontecimentos verificados num dos surtos anteriores da doença.
le na ocasião:
“E desejando que no meu tempo se não se renove a triste cena que encheu
de luto esta cidade, com tão notável detrimento da povoação, lhes ordeno
que tanto que vossas mercês receberem esta, logo estabeleçam uma casa
nos subúrbios desta cidade, na qual á custa das rendas dessa C
sejam assistidos os pobres miseráveis que forem acometidos das bexigas,
os quais ou comunicarão o seu mal á sociedade, não sendo separados e
assistidos fora dela, ou perecerão necessariamente, não
socorridos como convém. [Este é] o único meio de evitar a propagação de
um contágio tão prejudicial a todos.”
556
Aberto pois naquela chácara, este hospital seria transferido, em 1804, para as
cercanias do atual bairro do Pari, nas margens do rio Tamanduateí.
557
Veremos adiante quanto os paulistanos se apavoravam diante da simples
menção à palavra bexiga e, por isso, talvez esta busca da origem do nome do bairro
nem fosse necessária. Porém, e já esclarecidas as dúvidas que existiam a esse respeito,
podemos agora analisar aquele abaixo assinado dos moradores do “Campo do Bexiga”,
datado de junho de 1883. Nesse caso, a vinculação que se fazia entre a denominação do
local e o mal das bexigas,era patente, sendo este o principal motivo para a elaboração do
documento solicitando a troca do nome para “Bela Vista”. Claro que esta argumentação
553 - A. C., sessão do dia 13/02/1882, p. 37
554 - A esse respeito veja Antunes (1992), especialmente o capítulo “O hospital de isolamento da Capital”, p.
23 e seguintes.
555 - Ocio do físico mor da Capitania, Mariano José do Amaral, ao governador e capitão general José da
Franca e Horta datado de 10/06/1803; Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo, vol.
95, Arquivo do Estado, 1990, p. 88 e 89.
556 - “Carta que o senhor general escreveu à Câmara sobre o objeto das bexigas”, 10/05/1800; Registro Geral da
Câmara, vol. XII (1796-1803), p. 446 e 447 e Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo, vol.
87, p. 193 a 195.
557 - Ofício do físico mor da Capitania de 06/02/1806, op. cit.
230
não consta do abaixo assinado, mas a varíola sempre fora conhecida como bexiga, nome
este ainda utilizado em 1883. Mas, ao contrário, preferiram os signatários dizer que
aquele nome nenhuma tradição os fazia recordar, certamente como forma de escamotear
uma verdade da qual queriam distância. O bairro, disseram eles, desenvolvia-se, mas
não tanto quanto esperavam seus moradores, que empregavam todos os esforços para
torná-lo um arrabalde de primeira ordem. Estava ele dotado de todas as condições
necessárias para isso, ou seja, possuía um terreno fértil, a paisagem era linda e contava
ainda com alguns ribeirões a cercá-lo. Nesse sentido, qual era o problema, ou em outras
palavras, o que estaria a entravar seu pleno desenvolvimento? Era o nome, diziam eles.
Um nome que lembrava uma doença, um nome no mínimo desagradável, mas também
maldito por conta do rastro de morte que deixara na cidade durante mais de 300 anos.
Um nome que causava medo aos paulistas, e isso desde o século XVIII, como apontou o
médico português João Rodrigues de Abreu em 1714:
“Na cidade de São Paulo e em muitas outras do País dos Paulistas (...) são
morbos endêmicos as bexigas e é rara a pessoa a quem commettam que
não matem.
São tão medrosos os seus habitantes desta queixa que até
desconfiam de ouvir falar nella.
558
(meu destaque)
Cerca de cem anos depois deste relato, o padre Manuel Aires de Casal teve a
oportunidade de observar a mesma situação, e surpreso num primeiro momento,
constatou o pavor “que os paulistas tinham das bexigas”. Porém, logo em seguida ele
completava reconhecendo que este mal ...
“... é que mata a maior parte dos que morrem, quando delas são atacados.
Em se dizendo a um doente que seu mal são bexigas, ei-lo já abatido, e
sobremaneira descorçoado: muitos nem querem sujeitar-se a remédios,
nem tomar alimentos, persuadidos que não podem vencer a moléstia.
559
Nome maldito e que causava horror aos paulistas. Mas não por acaso, como
fizeram ver os vereadores respondendo a uma consulta do governador em 1798:
“O horror que os povos desta capitania têm a esta moléstia, não provem
de um terror pânico, nem nesta parte tem vossa excelência que desabusá-
los: ele provem de uma longa experiência, que tantas vezes se tem feito
funestas aos nossos olhos.”
560
558 - Abreu, Dr. João Rodrigues, Historiologia Médica, apud. Taunay, A. de E., História da Villa de São Paulo no
século XVIII, 1701-1711, p. 90.
559 - Casal, Manuel Aires de; Corografia brazilica ou Relação histórico-geográfica do Reino do Brazil; B.H:, Itatiaia e
S.P.: Edusp, 1976, p. 110.
560 - “Carta da Câmara ao excelentíssimo senhor general”, 08/11/1798; Registro Geral da Câmara, vol. XII
(1796-1803), p. 272.
231
Ao contrário do “Campo do Bexiga”, outros bairros com denominações bem mais
aprazíveis estavam se desenvolvendo ou sendo planejados nas últimas décadas do século
XIX com
ga passou se chamar Bela Vista.
561
Doença antiga, naquela oportunidade as bexigas teriam atacado com especial virulência os
rrível doença, explicaram os vereadores paulistanos que ...
Ao que tudo indica, a ocorrência desse mal em São Paulo entre os anos de 1563 e
o, por exemplo, os Campos Elíseos e Higienópolis. Eis aqui o contraste observado, uma
vez que estes bairros, nas palavras dos moradores do Bexiga, estavam a progredir por conta
dos idílicos nomes adotados. Esta argumentação presente no final do documento, e antes de
provocar uma surpresa pelo inusitado, deve ser analisada sob um outro prisma, pois ainda
se fazia presente na sociedade daquela época o medo diante da ocorrência concreta da
doença ou das epidemias, bem como a angústia frente a tudo que pudesse “despertá-las”. As
palavras, nesse sentido, eram parte importante do processo, seja no sentido de se alcançar
uma proteção quanto, ao contrário, para atrair os males. As orações eram redios;
palavras malditas – ditas ou não com intenção poderiam trazer conseqüências funestas. O
nome bexiga não merecia e não deveria mais ser pronunciado pelo mal que poderia causar e,
nesse sentido, quanto mais denominar uma comunidade inteira. Tanto isso sensibilizou os
vereadores em junho de 1883 que, poucos dias depois de lido o abaixo assinado, o nome do
bairro foi alterado, ocasião em que o Bixi
Bexiga, portanto, não era uma denominação agradável; lembrava uma doença, a
terrível varíola, que perseguia os paulistanos desde os primórdios da cidade, desde pelo
menos 1564, época em que ocorreu o primeiro registro oficial de uma epidemia na cidade.
poucos moradores da então vila de Piratininga, produzindo algumas mortes e deixando
outros tantos temporariamente incapazes. Para justificar o estado de penúria que se instalou
naquele ano por conta da te
“... as doenças foram muitas e as bexigas mataram muita gente e os que
escaparam estão ainda que não podem trabalhar.”
562
(meu destaque)
1564 foi em conseqüência da primeira grande epidemia de varíola anotada no Brasil que,
iniciada em Salvador em 1561, atingiu seu clímax justamente em 1563, ocasião em que
matou cerca de 30 mil índios até então indenes, que não possuíam qualquer tipo de
561 - Apesar da alteração promovida na denominação em 1883, a designação Bexiga permaneceu e nos serve até
hoje como referência para este antigo bairro paulistano. Nesse sentido, a hipótese aqui apresentada poderia ser
naquela região, qual seja, a da chegada, a partir dos últimos anos do século XIX, de um novo grupo de m
imputada como equivocada. Porém, esta permanência pode ter relação com um outro processo histórico ocorrido
oradores:
os imigrantes europeus, especialmente os italianos. Nesse caso, vale lembrar que, na língua italiana, a palavra
utilizada para identificar as tão temidas bexigas é o termo buttero. Assim, reputo como inofensivo aos novos
moradores a expressão bexiga (ou bixiga, como eles pronunciavam); o contrário ocorreria se o nome do bairro fosse
Buttero.
232
imunidade contra a doença. De fato, frente ao horror causado pela doença que nunca
tinham visto e diante da tragédia que se lhes abatera, registraram-se muitos casos de
índios que “abandonavam os irmãos e companheiros atacados e fugiam espavoridos,
dando grandes voltas pelas matas, para despistar o demônio da varíola.”
563
seu superior na Europa, o padre Lainez, e ao dar alguns detalhes sobre a mesma epidemia,
deixou um relato dramático de como a doença atacava o corpo:
“Cubre-se todo el cuerpo, de pies a cabeça, de una lepra mortal que parece cuero de
muc
De passagem por São Vicente em janeiro de 1565, José de Anchieta escreveria ao
caçon y ocupa luego la garganta por dentro, y la lengua, de manera que com
ha dificuldad se puede confesar, y en tres o quatro dias muere. Quebra-se les
la carne, pedaço a pedaço com tanta podredumbre de materia que salle dellos un
terrible hedor, de manera que acuendele las moscas, como a carne muerta y
ntos Filho
565
, foi possível elaborar um quadro onde
aiores epidemias até finais do século XVIII:
pudrida y sobre ellos en gusanos que sino les socorriessem vivos los
comerian
y les pon
564
Desde então, as bexigas não mais deixaram de “visitar” o Brasil e, utilizando os
dados apresentados por Lycurgo dos Sa
apontamos as m
Ano Região atingida
562 - A. C., sessão do dia 29/04/1564.
563 - Santos Filho, 1991, op. cit., p. 157 e 158.
564 - Citado o trecho no original conf. Taunay, Afonso de E.; São Paulo no século XVI, p. 111. Entretanto, a carta
de Anchieta traz ainda muitos outros detalhes, conforme pode ser visto na tradução portuguesa: (...) “Depois
que eu vim de minha peregrinação há Nosso Senhor visitado e castigado esta terra com muitas enfermidades,
de que há morto grande parte dos escravos (...) Dos meninos inocentes se há enviado uma boa copia deles á
gloria com estas enfermidades. Louvores ao Senhor de que todos tem tanto cuidado. (...) A principal destas
doenças hão sido varíolas, as quais ainda brandas e com as costumas que não tem perigo e facilmente saram;
mas há outras que é cousa terrível: cobre-se todo o corpo dos pés á cabeça de uma lepra mortal que parece
couro de cação e ocupa logo a garganta por dentro e a língua de maneira que com muita dificuldade se podem
confessar e em três, quatro dias morrem; outros que vivem, mas fendendo-se todos e quebra-se-lhes a carne
pedaço a pedaço com tanta podridão de matéria, que sai deles um terrível fedor, de maneira que acodem-lhe
as moscas como á carne morta e apodrecida sobre eles e lhe põem gusanos que se não lhes socorressem, vivos
os comeriam. Eu me achei em Piratininga um pouco de tempo, (...) ali se encrueleceu muito esta enfermidade,
de maneira que em breve espaço morreram muitos e a maior parte foram meninos inocentes, de que cada dia
morriam três, quatro, e ás vezes mais, que para povoação tão pequena foi boa renda para Nosso Senhor; dos
adultos morreram alguns (...) dava em as mulheres pejadas, e morriam elas e os filhos, os quais se batizavam
(...) tive ali, como sempre, acudindo a todos, sangrando dez, doze cada dia, que esta é a melhor medicina que
achamos para aquela enfermidade, (e) alguns deles, como são de baixo e rude entendimento, diziam que as
sangrias os matavam, e escondiam-se de nós outros, e mandando fazer umas covas longas á maneira de
sepulturas,e depois de bem quentes e com muito fogo, deixando-as cheias de brazas e atravessando paus por
cima e muitas ervas, se estendiam ali tão cobertos de ar e tão vestidos como eles andam, e se assavam,os quais
comumente depois morriam, e suas carnes, assim como aquele fogo exterior como o interior da febre,
pareciam assadas. Três destes que achei revolvendo as casas, como sempre fazia, que se começavam a assar, e
levantando-os por força do fogo, os sangrei e sararam pola boa vontade de Deus. A outros que daquele
pestilencial mal estavam mui mal e esfolei partes das pernas e quasi todos os pés, cortando-lhe a pele corrupta
com uma tesoura, ficando em carne viva, cousa lastimosa de ver, e lavando-lhes aquela corrupção com água
quente, com o que pola bondade do Senhor sararam (...). Deste Colégio de Jesus de S. Vicente, 8 de janeiro de
1565.”
ANCHIETA, José de, S.J., 1534-1597,Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões / Padre Joseph de
Anchieta; R.J.: Civilização Brasileira, 1933, p
. 238 a 240.
565 - Santos Filho, 1991, op. cit., p. 156 a 163
233
1598 Norte, especialmente Salvador e Paraíba.
1615 a 1621 Começa em Cabo Frio (R.J.) e propaga-se por todo o norte.
1641 - 1642 Norte, atingindo índios e soldados holandeses.
1650 Norte, especialmente no Brasil holandês.
1662 a 1666 Começa no Maranhão e atinge todo o litoral brasileiro
1695 Norte, atacou o Pará e Maranhão.
1705 - 1715 Pernambuco.
1720 Pará (morte de 15 mil pessoas).
1730 Maranhão.
1732 - 1733 Bahia
1743 a 1749 Belém, no Pará. Esta grande epidemia redundou na
publicação, em Lisboa, do opúsculo “Notícia verdadeira do
terrível contágio, que desde outubro de 1748, até o mês de maio de
1749, tem reduzido a notável consternação todos os sertões, terras e
cidade de Belém, e Grão Pará. Extraída das mais fidedignas
memórias.”
1762-63 Pará
1771 Pará e Goiás
1785-87 Maranhão
1793 Pernambuco
1799 Maranhão
Em São Paulo, e após a primeira epidemia de 1563-64, a doença não deu mais
tréguas, sendo raros os períodos nos quais não foram anotados quaisquer casos. A
moléstia causava pavor aos paulistas e qualquer ameaça de epidemias era m tio vo para que
São Paulo. E
permaneceram depositadas na Câmara Municipal. Ao que tudo indica, a edilidade não tinha
fazer sentir. Grandes comerciantes com negócios pendentes em Santos e alguns padres do
todos se pusessem em alerta para que o mal não os atingisse. Em 1665, por exemplo, um
novo surto iniciado três anos antes no Maranhão já atingia a cidade de Santos.
Horrorizados, os paulistanos recebiam notícias aterradoras do que estava ocorrendo
naquele porto tão próximo. O primeiro alerta, dado em dezembro de 1665, redundou que,
em janeiro do ano seguinte, se tentasse criar um posto de fiscalização ao pé da serra, nas
proximidades de Cubatão, com o intuito de controlar o trânsito de pessoas para
tudo isso, diziam as autoridades, por que as bexigas eram “um mal que se pega”
566
. Em março
chegaram as informações de que a epidemia continuava avassaladora, calculando-se que um
terço da população santista já havia falecido do mal. Por essa época tomou-se a drástica
decisão de cerrar as comunicações com o porto; uma barreira foi então criada na estrada,
fechando o caminho do mar. O medo era tanto, seja do contágio, seja das pavorosas notícias
sobre a epidemia que, em abril do mesmo ano, interceptou-se um mensageiro com as malas
do correio (este fato, por sinal, nos faz ver que o bloqueio não era tão rígido assim). Ato
contínuo, todas as cartas foram confiscadas e, sob as vistas dos vereadores, elas
a intenção abrir as correspondências, mas vozes contrárias a esta decisão não tardaram a se
566 - A. C., sessões dos dias 31/12/1665 e 23/01/1666.
234
Convento do Carmo estavam dentre eles. Mediante essa pressão, no dia 19 de abril de 1666
procedeu-se a abertura das tais correspondências confiscadas. Nessa ocasião, grande número
de pessoas dirigiu-se ao senado da Câmara para ouvir o que as cartas diziam e,
horrorizados, ficaram sabendo que a epidemia de bexigas continuava grassando na vila de
Santos; além disso, obteve-se a informação de que de vários comerciantes estavam se
utilizando de “paragens e caminhos ocultos” para realizar seus negócios, não obedecendo,
portanto, às ordens impostas.
567
Tal epidemia somente cessaria em maio de 1666 quando,
então, as comunicações foram restabelecidas entre Santos e São Paulo que, por sinal, não foi
atingida.
De qualquer forma, o caso do confisco das malas e das cartas merece mais algumas
palavra
? Um dado que não pode ser desconsiderado em relação
s bexigas era justamente o seu caráter contagioso e cuja transmissão, acreditava-se,
poderia se dar de mod
que poderiam carrega
existia, esta também d
as más notícias poderia
ruim, tal e qual uma in
facilitar (ou mesmo gerar) o aparecimento de doenças. Em outras palavras, seria o medo –
le próprio – um fator que desencadearia o mal e, por conseguinte, a morte. A esse
“afecções da alma” citadas por Langaard páginas atrás ou, ainda, de alguns dos conselhos
sugeridos pelos médicos acadêmicos quando da eclosão de epidemias. Em 1855, por
s. Em primeiro lugar é preciso dizer que este acontecimento não é novidade na
história da cidade, uma vez que o episódio já foi relatado por Taunay e por Ernani da Silva
Bruno, dentre outros, mas as análises produzidas por esses autores sempre foram no
sentido de que este ato visava, antes de tudo, punir aqueles que ainda teimavam em se
comunicar com a vila de Santos. Entretanto, penso que a questão merece ser analisada
com mais profundidade. O confisco, pela Câmara das malas do correio certamente visava
punir uma desobediência, mas como vimos, não era a intenção dos vereadores abrir as
cartas. E se o fizeram, foi somente devido a pressões e pedidos insistentes dos
destinatários que esperavam ansiosos as correspondências. E qual a razão dessa atitude,
ou seja, por que não abrir as cartas
à
o direto ou indireto, como já mencionamos; as cartas, portanto, bem
r o “veneno” do mal e, daí, o medo em violá-las. Mas, outra razão
e muita gravidade, e que dizia respeito às emoções, ou ao medo que
m provocar nos indivíduos. Experimentar tais sentimentos era algo
fluência maligna que, provocando um certo desequilíbrio, poderia
e
respeito, vale citar as palavras esclarecedoras de Sournia e Ruffie (1986) que, ao tratarem
dessa mesma questão, lembraram sobre “a importância mental do pânico, pois até meados do
século XIX, na Europa, discutia-se o medo como causa possível da doença e da morte.”
568
Nada de muito diferente ocorria no Brasil e, para isso, basta lembrarmo-nos das
567 - A. C., sessão do dia 19/04/1666.
235
exemplo, a Comissão Central de Saúde Pública do Rio de Janeiro incluía entre os
“preceitos higiênicos” contra o cólera a seguinte indicação:
“As contrariedades do espírito, os temores exagerados da epidemia, as
precauções excessivas contra esta são tão prejudiciais quanto a coragem, a
confiança e a tranqüilidade são disposições morais favoráveis para
preservar-se dela (...)”
569
Anos depois, e por ocasião de uma nova ameaça de cólera, a Junta Central de
Higiene Pública, prescreveu dezesseis “cautelas” contra o flagelo e, dentre elas, a de nº 12
dizia que era preciso:
“Fugir de todas as causas que possam excitar paixões vivas ou deprimentes,
desterrar do espírito o temor exagerado da epidemia, e não empregar contra
esta excesso nas precauções, porque tudo isto pode ser tão prejudicial quanto
a coragem, a confiança e a tranqüilidade são disposições favoráveis para
arredar ou atenuar o ímpeto da epidemia.”
570
(meu destaque)
Assim, aquele caso ocorrido em São Paulo em 1666 com a interceptação das cartas
vindas de Santos, bem poderia ser visto sob esse prisma, ou seja, o isolamento da
comunidade deveria ser total, inclusive evitando-se as notícias que pudessem causar
pânico: não saber da situação pavorosa que ocorria em outra cidade era, também, uma
medida de precaução, útil para salvaguardar os paulistanos da doença ou, em última
análise, seria esta uma ação visando a saúde da população.
Para esclarecer ainda mais este processo (tirando-lhe, portanto, o caráter de mera
ação punitiva contra comerciantes e outros mais) e tentando uma aproximação com os
seus outros significados, temos um relato bastante elucidativo do então físico mor da
Capitania de São Paulo, o médico Mariano José de Amaral que, em 1803, analisava a
ocorrência de mais um dos vários surtos epidêmicos de bexigas na cidade. Disse ele na
ocasião que:
“... tem durado semelhante contágio três meses. Do que parece se deve
concluir que
o terror pânico e a forte impressão que nos ânimos dos
habitantes deste país [São Paulo] faz o contágio varioloso, contribui não
pouco para o funesto êxito de tão mortífera doença (...)”
571
(meus destques)
rnia e Ruffie (1986) op. cit. p. 153.
569 - “Conselhos ao povo sobre os preceitos higiênicos que deve guardar no curso da epidemia de cólera-
morbus”, Papéis Avulsos do A.H.M, vol 172, ano de 1855, documentos de nºs. 227 a 231. A cidade de São Paulo
não foi atingida por esta epidemia de cólera; mas diante da ameaça, o então vereador Gabriel José Rodrigues dos
Santos logo sugeriu, dentre outras medidas, que “se proibisse a abertura das malas do correio em Santos, ou a remessa
568 - Sou
das mesmas para São Paulo. A. C., sessão do dia 20/09/1855.
570 - “Cautelas contra o flagelo da cólera-morbus”, Papéis Avulsos do A.H.M, vol 224, ano de 1867, documento nº
257.
571 - Ofício do médico Mariano José do Amaral endereçado ao governador Antonio José da Franca e Horta e
assinado aos 10/06/1803. Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, vol. 95, p. 89.
236
Apesar de não ser atingida pela epidemia de 1666, as ameaças não deram tréguas e,
como poderá ser visto a seguir a partir de um quadro preparado para o século XVIII, em
várias oportunidades os paulistanos não foram poupados do terrível mal das bexigas:
Ano:
1702
32
fossem
“muito bem limpas e defumadas por dentro com bosta de gado e depois de muito bem basculhadas,” os
lixos deveriam ser queimados e não postos “nas ruas e becos da cidade em que costumam.” Mais ainda,
estas casas deveriam ser rebocadas com “Tabatinga por fora e por dentro”, deixando-as “abertas por
alguns dias para que corrompa o ar algum fétido ou resquício que houver nas tais casas”
1735 Pela nova ocorrência da doença, os vereadores passaram um edital para que “nenhuma
pessoa que não fosse ocupado em curar os feridos da bexiga não entrassem na casa onde se curam os
empestados desse contágio e outrossim não fizessem enterros públicos dos que morrem do dito
contagio, por evitar a multiplicação da peste, e que serão os tais defuntos enterrados de noite, com
licença do Juiz Ordinário.”
1741 Anotado um pequeno surto.
1742 Nova ameaça: as autoridades restabelecem a quarentena.
1744 Anotado um pequeno surto; a Sra. Josefa Dávila é levada presa sob a acusação de “estar
tratando de bexiguentos ocultamente em sua casa.”
1761 Grande epidemia; a cidade permanece quase que vazia pela fuga da população para o
interior; uma grande autoridade (o juiz ordinário e capitão mor) também foge.
Questões anotadas:
Epidemia; a Câmara Municipal permaneceu fechada durante meses, “por causa da peste das bexigas”.
1722 Apreensão devido à chegada de levas de africanos, estes tidos como perigosos transmissores da
doença. Nomeou-se um médico para examinar os escravos; um pequeno surto foi anotado.
1723 Epidemia; as autoridades entenderam que o mal tivera início com a chegada de “alguns negros
novos sem lhes fazer o exame necessário” e, por isso, ordenaram que “nenhuma pessoa de qualquer
estado, e condição que seja, que vier de portos de mar, e trouxer negros novos, não entrem com eles na
cidade.”
1724 Em março surgem rumores sobre a doença; em abril irrompe a epidemia; no dia 23 de abril, o
juiz Pedro Taques Pires foi o único presente na reunião da Câmara, pois os demais vereadores
“estavam ausentes com receio das bexigas”. A coragem do edil lhe trouxe conseqüências: poucos
dias depois ele próprio caía doente, vindo a se restabelecer um mês depois; em junho anotou-se
que os vereadores estavam ainda “ausentes por causa do contagio das bexigas”. A epidemia leva as
autoridades a criarem um isolamento para os doentes de varíola.
1727 Novo receio de epidemia; repete-se o edital para que na cidade “não entre pessoa alguma, de
qualquer qualidade ou condição, seja trazendo negros escravos tanto para vender como para seu serviço,
vindo do caminho do Cubatão do mar ou do caminho de Parati” sem que antes fossem examinados
pelo médico.
1729 Abriu-se uma nova frente de ameaça através do intenso trânsito entre São Paulo e as recém
descobertas “Minas de Goiás”. Um novo edital dispunha que “Como de ordinário nos anos
passados causou notável prejuízo, perda e dano a esta cidade e seus moradores o contágio das bexigas,
e porquanto com a nova freguesia das minas dos goiases se vem freqüentando a muita quantidade de
negros novos para esta cidade, e estes de ordinário costumam sempre trazer vários contágios de
doenças...” deliberou-se novamente estabelecer a quarentena num local distante da cidade
chamado “moinho velho”. Além disso, determinou-se “debaixo das penas a todos os médicos,
cirurgiões e barbeiros (que) não curem nem sangrem a pessoa alguma do dito mal sem primeiro dar
parte (...) e assim mais as pessoas que tiverem em suas casas pessoas que tenham o dito mal...”, pois
deveriam imediatamente avisar as autoridades.
1730 Grande epidemia; um abaixo assinado informava que “Em 9 de julho de 1730 entrou nesta
cidade o pestifero contágio de bixigas que não só tem infestado a toda esta cidade como também além
dos horríveis efeitos que tem resultado, tem despojado considerável parte deste povo...”. Uma nova
ordem estabeleceu, para os escravos recém chegados, dois diferentes locais para
quarentena: “no ribeiro Lavapés para aqueles que vierem da vila de Santos, e para os que vierem de
Parati ou minas gerais, no ribeiro chamado de Santo Antonio.”
17 Ocorre um pequeno surto; uma nova ordem foi emitida: ninguém deveria manter bexiguentos em
casa; os doentes deveriam ser enviados para longe da cidade. Estabelecia-se também que, nas casas
em que tivessem ocorrido casos de varíola “ainda que passados seis meses e mais tempos”, as mesmas
237
1768 Epidemia; apesar de não citada qual seria a doença, tudo leva a crer que tratou-se de varíola; na
se lhe fazer preces e novena, e procissão no fim para por sua intercessão alcançar de Deus Nosso Senhor o
remédio de aplacar as moléstias de doenças que nesta cidade, e suas vilas vão cada vez em aumento”
1775 Grande epidemia; para combater o terrível mal, o capitão general Martim Lopes dete
vereança do dia 09/02/1768, solicitou-se ao Bispo a vinda da imagem de N. Sra. da Penha “para
rminou
sta cidade os
ada por este
undo
Chalho
nsmitida no Brasil.
573
Além disso, sabe-se hoje que determinados grupos, como os
varíola, possuindo certa resistência natural a outros males como as febres.
574
Longa
que, além das preces públicas, a Deus e a muitos santos, decidira lançar mão de todos os meios
possíveis para debelar a peste e, por isso, fizera girar pelas ruas da cidade numerosos rebanhos
de bois e carneiros para atrair sobre os animais a força da peste, e desviá-la dos humanos;
mandara queimar também no hospital “grande copia de perfumes” (já citado na 1ª parte).
1780 Epidemia; novamente não citada a doença, mas provavelmente era a varíola; no dia
11/03/1780 “se lavrou um edital para todos os moradores irem aos pés de N. Sra. da Penha que hão de
entrar nesta cidade no dia domingo doze do corrente mês para aplacar a grande epidemia de moléstia que
está na cidade”
1784 Novo surto da doença; os vereadores passam um edital “... para que toda a pessoa que tiver bexigas
nesta cidade dentro do termo de vinte e quatro horas os ponham para fora desta cidade e seus arrabaldes, e
das estradas públicas de saídas e entradas, debaixo da pena de seis mil réis de condenação e trinta dias de
cadeia, e todo o oficial de justiça que souber e não der parte ficará suspenso do seu ofício...”
1790 Grande epidemia; muitos moradores fogem da cidade. Em dezembro, como os casos estavam
diminuindo, várias pessoas retornam. Porém, alertou o então governador Bernardo José de
Lorena, que “Achando-se quase extinta a epidemia das bexigas, que tem causado ne
estragos que são notórios, principiou a concorrer para a mesma a gente que se achava retir
motivo, e como o mal não estava de todo extinto, tenho certeza de que vai grassando outra vez com força.”
Nesse sentido, ordenou o mesmo governador que se realizassem cuidadosos exames “... dos
doentes de bixigas, e sem demora os façam sair logo da cidade (...) pois que a condescendência em
semelhante ponto tem mostrado a experiência ser bem funesta...”. Por fim, completava com extrema
clareza o governador aos vereadores: “vm.
ces
farão despejar as casas de julgarem precisas para os
doentes, e se em algum ponto destes lhes faltar a jurisdição, eu lha concedo por esta carta.”
1798 Grande epidemia; foi determinado que “não enterrem dentro da cidade os mortos de bexiga falecidos
no hospital interino que se nomeou fora desta cidade para a cura desta enfermidade; e (também) que fosse
ordem ao dito hospital para que os cadáveres fossem sepultados na capela do Ó.”
572
Apesar de rápida, esta cronologia sobre a varíola em São Paulo no século XVIII traz
algumas questões relevantes. A primeira delas a chamar nossa atenção é a vinculação que
se fazia entre as epidemias e o tráfico negreiro. Havia mesmo um consenso na época de
que os negros novos, recém-chegados da África, seriam os mais perigosos. Seg
ub (1996) estudos mais recentes demonstram a validade dessa observação sob o
argumento de que um aumento do contingente de africanos sujeitos ao comércio negreiro
coincidia com períodos de grandes secas em determinadas regiões da África; estes, por sua
vez, já debilitados pela fome, por exemplo, seriam presas fáceis da doença que, mais tarde,
seria tra
negros, por exemplo, são mais sensíveis às doenças que se manifestam na pele como a
572 - Na elaboração deste quadro foram utilizadas as seguintes fontes: A. C. sessões dos dias 08/09/1702,
14/02/1722, 29/03/1723; 26/03, 23/04 e 20/05/1724; 23/07/1735, 13/01/1742, 09/02/1768, 11/03/1780,
10/07/1784 e Vol. XX, pgs. 139 e 140; Ordens Régias: nº 226 de 01/02/1727, In: Revista do Arquivo Municipal
– vol. XXIX, 1936, p. 127; idem nº 03 de 02/12/1730, R.A.M, vol. XL, 1937, p. 124; idem nº 23 de 28/01/1732,
R.A.M, vol. XLII 1937, p. 215; Arquivo Histórico Municipal, Fundo CMSP, Grupo Conselho de Vereadores,
Correspondência (abaixo assinado); Documentos Interessantes para a história e costumes de S.P., vol. XLVI, 1924,
p. 146.
573 - Chalhoub, op. cit., p. 108 a 110. A respeito do tráfico e das doenças que mais atingiam os cativos veja
Rodrigues, Jaime; De Costa a Costa – Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de
Janeiro (1780-1860);S.P.: Cia das Letras, 2005, especialmente o Capítulo “Saúde e artes de curar”.
574 - Trata-se aqui de uma pré-disposição de determinados grupos para certas doenças. A esse respeito veja o
238
experiência, portanto, tinham os africanos com o mal das bexigas e, como conseqüência,
desenvolveram eles várias práticas e ritos de curas para atalhar o mal. Uma delas, em
especial, nos interessa nesse momento e isso pela sua relação com a cidade de São Paulo.
Comecemos com um relato de Sérgio Buarque de Holanda que nos fala a respeito da
“misteriosa afinidade que no espírito dos antigos paulistas parecia associar freqüentemente a baeta
vermelha a determinadas moléstias, sobretudo moléstias contagiosas, pois pendurada, por exemplo,
à porta de uma casa,
servia para anunciar a presença de bexiguentos, e empregadas em cueiros
e cobertores
fazia sair a doença, mormente quando se tratasse de escarlatina ou de sarampo.”
575
Ora, qual a relação entre a cor vermelha e as doenças e, no nosso caso específico, com a
varíola? Mais ainda, quais as referências para um entendimento de que esta cor ajudava na
cura? Apesar de Holanda não identificar a origem de tal costume, estudos mais recentes
são cap
buscado lançar alguma luz neste
problem
azes de nos fornecer algumas pistas. Seguirei uma delas com apoio nas obras de
Sidney Chalhoub e de Jaime Rodrigues.
576
Não obstante as imensas dificuldades impostas ao trabalho de identificar os grupos
étnicos a que pertenciam os escravos paulistanos
577
, estudos mais recentes, como os da
historiadora Regiane Augusto de Mattos, tem
a.
578
Utilizando livros de batismo e de óbitos das paróquias paulistanas entre 1808
e 1850, a autora identifica que cerca de 5% dos cativos registrados em São Paulo foram
classificados como mina ou da costa ocidental.
579
Rodrigues já nos mostrou que entre os
profissionais de saúde embarcados nos navios negreiros, os identificados como minas eram
estudo de Sournia e Ruffie (1984), especialmente os capítulos III “Poliformismo genético e doenças” e IV “A
etiologia multifatorial dos caracteres normais e patogênicos”.
575 - Holanda, Sérgio Buarque de; Monções; R.J.: Casa do Estudante, 1945, p. 117 e 118.
576 - Seguirei aqui num diálogo com Jaime Rodrigues (2005), especialmente a partir do capítulo 8 “Saúde e
artes de curar” p. 252 e seguintes e com Sidney Chalhoub (1996), a partir do capítulo “Raízes culturais negras
da tradição vacinophobica”, p. 134 e seguintes.
577 - Lembra-nos Rodrigues (2005) op. cit., p. 311, que os cativos desembarcados no Rio de Janeiro eram
identificados como benguelas, cabindas e minas mais em referência ao porto de embarque ou regiões
litorâneas da África do que à etnia, posto que muitos vinham também de regiões não especificadas do interior.
578 - Mattos, Regiane Augusto de; A população africana e suas formas de organização social na cidade de São Paulo
(1808-1850); In: Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH/SP – UNICAMP.
Campinas, 2004. Da mesma autora veja também: Os grupos étnicos africanos e suas formas de organização social na
cidade de São Paulo na primeira metade do século XIX; XXIII Simpósio Nacional ANPUH, Universidade Estadual de
Londrina, 2005.
579 - Mattos, (2005) op. cit. Apesar da autora ressaltar que estes são dados ainda preliminares, a partir dos
registros de batismo foi possível identificar a origem de 971 escravos paulistanos na primeira metade do
século XIX assim divididos: 366 (ou 37,70%) forram citados como “da Guiné”; 224 (23,06%) foram chamados
genericamente como “da África”; 150 (15,45%) eram “da Costa”, sendo que outros 68 (7%) foram descritos
como “da Costa da África”; 66 (6,80%) foram classificados como do “Centro Oeste”, expressão que abrange os
termos angola, cabinda, cassange, congo, munjolo e rebolo; os “Ocidentais” perfaziam um total de 51 pessoas
(5,25%), que abrangiam os minas; 32 (3,29%) eram da “Costa da Guiné”, sendo que apenas 14 (1,45%) eram da
África Oriental, expressão esta que abrange o termo Moçambique.
239
a maioria entre os sangradores.
580
Chalhoub, por sua vez, nos fala sobre a influência
religiosa desses povos no Rio de Janeiro, não obstante a sua pequena presença numérica,
cerca de 6,5% do total de africanos.
581
Em São Paulo, por sua vez, e não obstante a semelhança entre os números
apresentados para a corte, sabemos que ficou marcado na rede urbana o já citado Beco
dos Minas, num raríssimo exemplo de topônimo desse tipo na cidade. Este fato, por sua
vez, nos sugere que o
apresentam ou, como
artes de curar, por exe proporcional ao seu número. De
toda forma, devemos ainda lembrar que, dentre as quitandeiras paulistanas, as pretas
minas s
Mas,
ambém, somente ele é
que surgiria a possib
divindades possuíam o
– o chamado controle d
Entre os povos
pidemia de varíola, to er purificada e não apenas indivíduos
predomina a cor vermelha
u a presença desse povo era bem maior do que as estatísticas nos
no caso do Rio de Janeiro, que sua influência (na religião e nas
mplo) fossem inversamente des
obrepujavam as demais. Não obstante as quantificações apresentadas, tudo leva a
crer, portanto, que o número deles, vindos da África ocidental, não seria nada
desprezível na cidade. E é justamente dentre esses povos que encontramos a crença de
que a doença nunca era algo natural, posto que sempre provocadas por forças sobre-
humanas, evocadas por feiticeiros ou causadas por ofensas a divindades. A cura, nesse
sentido, seria prioritariamente ritual.
O orixá da varíola era Omolu (ou Soponna, Obaluaiê, Xapanã e Sapata, conforme a
região da África onde eram cultuados) que, se ofendido, poderia trazer a doença.
t poderia curar ou, em outras palavras, da própria fonte do flagelo é
ilidade da purificação e da cura. Conforme Chalhoub “certas
poder de causar determinada doença e o de controlar seus efeitos”
ual.
do Daomé e da África central, havia ainda a crença de que numa
da a comunidade precisava se
isoladamente. Quando da ocorrência de epidemias entre os bakongos, por exemplo, o
sacerdote se empenhava em preparar e evocar o nkisi (que poderia ser um objeto ou uma
preparação mágica) que seria utilizado para purificar toda a comunidade. Força
“proveniente da terra invisível dos mortos” o nkisi poderia se submeter ao controle dos
vivos, para ajudá-los, desde que obedecidos alguns rituais. No nkisi, explica Chalhoub,
, e um dos saquinhos é feito de fibras de ráfia, detalhes que
lembram imediatamente objetos e rituais dedicados a Omolu no candomblé.”
580 - Rodrigues (2005) p. 275.
581 - Chalhoub (1996), p. 139 e 140.
240
E eis que essa tradição pode nos encaminhar para a “misteriosa afinidade dos
antigos paulistas” com as baetas
vermelhas que, pregadas à porta das casas, não apenas
denunciavam o mal ali existente como explicou Sérgio Buarque de Holanda senão,
também, serviam como remédio para os afetados de varíola. Esta hipótese, por sinal,
ganha relevância com a descrição que o mesmo autor faz logo em seguida, ou seja, a de
que tecidos (ou baetas) na mesma cor vermelha eram os preferidos para as roupas de
crianças doentes: acre
sair a doença, numa c
Rodrigues e Chalhoub
ditava-se que cobertores e cueiros vermelhos, vale repetir, faziam
lara alusão aos ritos de origem africana, estes bem explicados por
.
582
582 - Não obstante a análise, bem como o caminho aqui escolhido, vale lembrar que a cor vermelha possuía
significados mágicos em diversas culturas. Pela lembraa com o fogo e o sangue, associava-se esta cor à força
e ao poder. Entre os alquimistas, explica-nos Israel Pedrosa, esta era “a cor do fogo central que anima o gênero
humano e a terra. Estava ligada ao centro onde se operam a digestão e o amadurecimento,
a regeneração do ser (...) era a
cor da alma, da libido e do coração”, associando-se também ao princípio da vida. Veja: Pedrosa, Israel; Da cor à cor
inexistente; R.J.: Leo Christiano Editorial Ltda., 2002, especialmente os capítulos “Utilização mística e
simbólica” (P. 99-103) que traz o subtítulo “A cor nos cultos afro-brasileiros” (p. 102 e 103) e “Cores” (p. 107-
119). Gilberto Freyre, por sua vez, atribuiu o uso freqüente do vermelho entre os brasileiros como “um caso
típico das três influências – a ameríndia, a portuguesa e a africana – que aparecem reunidas numa só, sem
antagonismos nem atrito”, conforme suas palavras. Para os índios, esta cor (quando aplicada ao corpo)
desempenhava “uma função puramente mística, de profilaxia contra os espíritos maus (...) E como profilaxia, era o
encarnado cor poderosíssima (...)”. Freyre lembra ainda que, junto aos portugueses, a mística do vermelho teria
sido comunicada através dos mouros e pelos negros africanos; “e tão intensamente que em Portugal o vermelho
domina como em nenhum país da Europa (...) Vermelho deve ser o teto das casas para proteger quem mora debaixo dele,”
como expressa uma antiga quadra: “As telhas do teu tellhado / São vermelhas, tem virtude: / Passei por elas
doente, / Logo me deram saúde. E, numa relação direta com a nossa análise, completou: “Nos africanos, encontra-
se a mística do vermelho associada às princiapis cerimônias da vida, ao que parece com o mesmo caráter profilático que entre os
ameríndios. Nos vários xangôs e seitas africanas (...) é o vermelho a cor que prevalece (...)”. Veja : Freyre, Gilberto; Casa-
Grande & Senzala; S.P.: Livraria José Olympio Editora, 1950; p. 235 a 243.
241
Fig. 36
Antiga Rua do Quartel, hoje não mais existente, em foto tomada na direção do Largo da Cadeia, atual
Praça Dr.João Mendes, por volta de 1860. Esta rua estava há poucos metros do Beco dos Minas,
tradicional reduto dos negros em São Paulo, motivo pelo qual os vemos nesta foto. No alto, a igreja
de Nossa Sra. dos Remédios (já demolida) e, à direita, um quarteirão também desaparecido,
incorporado que foi
à atual Praça da Sé.
sde a antiguidade, sabe-se em detalhes sobre a sua ocorrência
especialmente na Europa durante o período medieval. Para o caso de São Paulo já no
século XVIII, o ato de s
o do compreensível m
daqueles já atacados p
caráter sobre humano
fuga individual, ou co
escapar da fúria ou do
nesse caso, é que e
principalmente, dos is
escravos (quarentenas
causavam um verdad
Voltemos à cronologia da varíola. Um outro ponto a ser destacado é a fuga dos
moradores quando da eclosão de epidemias mais agudas. Costume este adotado no
mundo ocidental de
e evadir pode ser analisado sob dois prismas; o primeiro deles seria
edo do contágio, pois assim guardar-se-ia uma certa distância
ela moléstia; em segundo lugar – mas não menos importante – era o
imputado às doenças e, em especial, às epidemias. Nesse sentido, a
letiva como muitas vezes foi anotada, teria o sentido de se tentar
castigo divino que pairava por sobre a cidade. O que importa dizer,
sta fuga voluntária era muito diferente das quarentenas ou,
olamentos impostos nas mesmas épocas. Geralmente aplicados aos
) e ao povo comum da cidade (os isolamentos), essas medidas
eiro terror, pois significava um duplo castigo: o primeiro era a
242
doença em si, o segun
dessa angústia, era o f
casa, o que, por vezes, , a parteira Francisco Araújo
foi acusada de dar abrigo “a dois africanos afetados com o mal de bexigas”; já em outra casa no
Largo de São Francisco uma família dava abrigo a
arredores da cidade. Outros ainda, valendo-se de uma rede de solidariedade entre
vendedores e pequenos comerciantes, esgueiravam-se por entre as pilastras do mercado
central da rua 25 de Março e, à noitinha, sempre conseguiam a ajuda de algum amigo que
Na
de 1730, por exemplo, uma das primeiras vítimas foi o padre Antonio Pires da
Rocha que, caindo do
quebradas e no caso
faleceu “sem sacrament
denunciaram o fato ao
E as epidemias
novo surto. Este, por s
raros exemplos de co
propagação dentre a
atingiu pessoas de ce tórios e
esa dos envolvidos, inclusive a do físico mor Mariano José do Amaral, que
e resguardou por escrito das acusações que lhes foram imputadas por negligência. Mas,
menos pelo imbróglio, o caso traz pistas impo
do era o exílio forçado em retiros afastados da cidade. Decorrente
ato de algumas famílias esconderem seus doentes tratando-os em
era denunciado. Em 1851, por exemplo
“um moço vindo da corte”com o mesmo
mal.
583
Entretanto muitos outros doentes, geralmente indigentes ou muito pobres, nem
com esta solução poderiam contar, o que os obrigava permanecer escondidos nos
lhes garantiriam um teto nos quartinhos ali existentes, e onde dormiriam.
584
O horror diante da varíola independia de classes e extrapolava condições.
epidemia
ente, morreu 36 horas depois. Em tais momentos, regras eram
deste padre, ninguém quis dele se aproximar, motivo pelo qual
o algum”, e isso para escândalo de alguns moradores que, inclusive,
s vereadores e exigiram providências a respeito.
585
de bexiga não mais deixaram a capital anotando-se, em 1804, um
inal, foi muito bem documentado e nos chega hoje como um dos
mo se dava a introdução da doença na cidade, bem como a sua
população. Aliás, esses registros apenas existem porque a morte
rta influência, o que redundou num processo, interroga
conseqüente def
s
rtantes sobre o início e a disseminação do
mal, sugerindo-nos um caminho para a doença na cidade.
Segundo o médico Mariano, o caso teve início em setembro de 1804, ocasião em
que chegava à cidade um grande negociante de escravos, este identificado apenas como
sendo natural de Sorocaba e tendo, mais ou menos, trinta anos de idade. Procedente do
Rio de Janeiro com uma leva de africanos, estes permaneceram em quarentena na cidade
de Santos. O negociante, entretanto, “imprudentemente subiu” a São Paulo e hospedou-se na
583 - Coleção Papéis Avulsos do A.H.M., 1855, Vol. 157, documento nº 141.
584 - A. C., sessões dos dias 28/07/1876, p. 68, e 10/08/1876, p. 77.
585 - A.H.M., Fundo CMSP, Conselho de Vereadores, Correspondência (abaixo assinado) de 1730.
243
casa do também comerciante Antonio Gomes de Castro.
586
Na noite do mesmo dia em que
chegou, o negociante de escravos começou a sentir certos incômodos de saúde, ocasião em
que seu amigo Antonio Gomes aplicou-lhes os primeiros remédios. O doente então
“vomitou três vezes e purgando, gastou seis dias debaixo do frívolo pretexto” de que o mal seria
uma simples constipação.
Na pequena São Paulo, temerosa do contágio das bexigas, logo o caso gerou
comentários para, finalmente, transformar-se em denúncia que foi levada ao governo. O
físico mor foi então chamado a dar sua opinião, mas não realizando a visita pessoalmente,
incumbiu a um cirurgião espanhol, João Paes Lima da Motta (ou João Paulino da Motta),
para um
om bexigas abatidas no centro, a maior parte confluentes, exceto no
, onde cada vesícula tinha seu centro próprio e igualmente abatido;
exame do doente. Sob os protestos de Antonio Gomes de Castro, o cirurgião
“anunciou serem bexigas” os males sofridos pelo enfermo e, por isso, já no dia 29 de
setembro de 1804, ele era encaminhado para o Hospital dos bexiguentos – este rem-
instalado no bairro do Pari e que antes, como vimos, ficara por um bom tempo na chácara
da Samambaia, no bairro do Bexiga. Visitando-o, o médico Mariano José de Camargo
relatou que achara o paciente ...
“... c
rosto
estava justamente no sétimo dia de moléstia: o prognóstico era funesto, já
pela demora daquela matéria exantemática, já pela direção primeira, e em
conseqüência pelo abatimento de todo o sistema. E com efeito, faleceu no
dia 16 de outubro (...),
tendo ainda assim resistido alguma coisa por lhe
sobrevirem tumores críticos, dos quais alguns retrocedendo para o
interno, produziram diarréia, inflamação e gangrena.”
587
(meu destaque)
teressante notar, nas linhas finais deste documento (as quais sublinhei) a concepção
médica dos humores já
e, no interior do organi
De qualquer fo
outubro de 1804, não t
do surto naquele ano
isso pode ser compro
bexiguentos o relojoei
menos”, também hósp
In
referida páginas atrás, ou seja, os tumores (bexigas) que retrocederam
smo, acabaram por produzir diarréia, inflamação e gangrena.
rma, a morte deste negociante de escravos, ocorrida no dia 16 de
eve maiores repercussões, mas tudo indica ter sido ele o introdutor
e que, por alguns meses, ainda se faria presente na cidade. E tanto
vado que, a 13 de outubro, dava entrada no mesmo hospital dos
ro Jerônimo José de Freitas, “de idade de 20 anos pouco mais, pouco
ede na casa de Antonio Gomes de Castro e que, por isso mesmo,
586 - Ofício do físico mor Mariano José do Amaral ao governador Antonio José da Franca e Horta,
Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, vol. 95, p. 202 e 203. Ao que tudo indica, a
residência de Antonio Gomes de Castro era, na verdade, uma pensão, pois muitas outras pessoas estavam ali
hospedadas, inclusive uma jovem meretriz.
587 - Ofício do físico mor Mariano José do Amaral, idem, ibidem.
244
havia entrado em contato com o primeiro doente.
estadia dos doentes no hospital, dois outros escravos que lá estavam também
ireção; três sobreviveram (o escravo de Antonio Gomes de Castro, um dos escravos do
hospital e o ajudante
Entretanto, estas não
mesmo Mariano que de” de setembro a dezembro de 1804;
s casos por ele relatados referiam-se apenas aos que deram entrada no hospital,
zendo-nos supor que muitos outros ocorreram sem que nem mesmo ele soubesse,
Ainda na casa de Antonio Gomes, caíram enfermos um escravo e um ajudante de
cirurgia da Legião de Voluntários Reais que para lá fora auxiliar os doentes. A quinta
pessoa que adoeceu foi uma “meretriz de idade pouco mais de dezoito para dezenove anos” que,
nas palavras do médico Mariano José do Amaral, “seja pelo desprezo que fez da doença,
supondo-se constipada, seja pela pobreza em que se achava, veio para o Hospital no dia 30 de
novembro, podendo-se dizer quase morta (...) falecendo daí a três dias.”
588
Conforme relatava o médico, o mal “comunicou-se” de uma a outra pessoa, sempre
a partir do primeiro doente. De fato, aqui ficava explícito o caráter dessa doença, ou seja,
sabia-se que ela era contagiosa. Nesse sentido, o documento de Mariano José do Amaral
ganha relevância, pois nos dá um claro exemplo da ação médica baseada na teoria do
contágio: “o paciente era imediatamente inserido em sua rede de relações pessoais, e essa
rede era exatamente a hipótese de encadeamento epidemiológico que cabia investigar.”
589
Prosseguindo ainda em suas explicações, o físico mor dizia que, por conta da
contraíram o mal, sendo que um deles faleceu. Por fim, e no balanço que fez, o médico
concluiu que sete pessoas foram tratadas de bexigas no estabelecimento sob sua
d
de cirurgia da Legião de Voluntários Reais) e quatro morreram.
foram as únicas pessoas que contraíram o mal, admitindo o
a epidemia “reinou na cida
o
fa
pois era comum o fato das famílias tratarem de seus doentes em casa, às escondidas.
De qualquer forma, dentre os falecidos no hospital estava o relojoeiro Jerônimo
José de Castro, hóspede e amigo de Antonio Gomes de Castro. Pois bem, esta morte (a do
relojoeiro) foi a que desencadeou uma série de comentários na cidade. Bastante
contrariado com tal acontecimento, Antonio Gomes passou a criticar publicamente o físico
mor Mariano José do Amaral por negligência, imputando a ele a culpa pelo falecimento de
Jerônimo. Tais comentários logo se transformaram em calúnias e ameaças de ambas as
partes. Tal situação, por fim, redundou num processo cuja investigação foi levada a efeito
588 - Idem, ibidem.
589 - Chalhoub (1996) p. 174
245
pelo próprio governador Franca e Horta.
590
Apesar de rico em detalhes, separamos deste inquérito apenas algumas partes mais
esclarecedoras, ou aquelas que nos informam a respeito dos métodos curativos que então
se aplicavam a pacientes com varíola, bem como o procedimento dos médicos e de outras
pessoas envolvidas. Nesse sentido, uma primeira questão que merece ser trazida é o
distanciamento do principal médico da cidade (o físico mor) em relação aos doentes; este
nas mãos de cirurgiões e aprendizes.
591
Assim, no caso de Jerônimo, todos os remédios
foram receitados e em parte aplicados pelo cirurgião João Paes Lino da Motta que, em seu
trabalho, era auxiliado por um ajudante de cirurgia e também por uma
apenas estava a avaliar a situação, e após diagnosticar o mal, deixava todo o tratamento
mulher assalariada
(ao que tudo indica funcionár palhou-se pela cidade
que o paciente Jerônimo esta em, e que sua morte fora em
decorrência de “um copo de o e mad a, pelas três ou quatro
horas da manhã. Questionado pelo governador se desconfiava de algo, ou de que, além do
vinho, algum outro remédio h urgião respondeu que
sim e acusou prontamente a m tra alhava nd uito provável que esta
tivesse lançado mão de “alguma mezinha”, pois ele sabia de sua fama como mezinheira.
592
Completou ainda o cirurgiã sualmente, umas notas
suspeitosas em uma colher de pr o motivo de estar
assim aquela colher, ela lhe dera uma resposta insuficiente, ou totalmente arbitrária.” E nada mais.
A respeito do copo de vinho, disse o cirurgião, o mesmo fora administrado ao
paciente pela mesma mulher o fess ndo, p que ele o teria receitado
porque o enfermo estava com o “seu método
curativo, deitando mão de medicam ente reclamou de
“um calor excessivo, que o abrasa depo o pac rônimo falecia.
Destacado este trecho do interrogatório, chamo a atenção para a presença da
mulher tida como mezinheira , fato e te rev das práticas curativas
ia do mesmo hospital). Ocorre que es
va se recuperando muito b
vinho”, administrad d rugad
avia sido fornecido ao paciente, o cir
ulher que lá b dize o ser m
o que realmente havia notado, “ca
ata, e tendo perguntado a dita mulher qual era
u pelo ajudante, con a orém,
pulso muito abatido, o que deu motivos a mudar
entos animantes.” Após tomar o vinho, o do
va.” Poucas horas is iente Je
naquele h l s eladorospita
590 - “Interrogatóri
Paulo sobre a morte do Bixiguento Jerônimo José de Fr
o a que procedeu o Ilmo. e Exmo. Sr. Governador e Capitão General desta capitania de S.
eitas.”; Documentos Interessantes, vol. 95, p.159 a 164.
91 - Até princípios do século XIX, denominavam-se físicos ou licenciados os médicos formados em universidades;
os cirurgiões
requerer
todos com carta de aprovação, além de um sem número de “aprendizes”. Aceitos tacitamente, mas não
reconhecidos legalmente, tínhamos ainda os curandeiros, os curiosos, os entendidos, mezinheiros, etc. Veja Santos
Filho (1991) p. 63, 64 e especialmente o capítulo VII, “Físicos e cirurgiões”, p. 303 e Soares (2001) p. 407 a 438.
592 - Mezinha: remédio caseiro revestido, muitas vezes, de caráter mágico; chás, poções, etc., muito utilizada
por curandeiros e benzedeiros. A respeito de tais práticas no Brasil veja Soares, Márcio de Souza; Médicos e
5
eram práticos, ou seja, exercitaram seu ofício em hospitais ou ao lado dos físicos e por isso poderiam
uma carta de aprovação após um exame. Apesar da existência de cursos superiores nessa especialidade
em universidades européias, os cirurgiões-licenciados foram minoria no Brasil. Como pode ser visto no topo da
hierarquia estavam os físicos aos quais se seguiam os cirurgiões e, depois destes, os barbeiros, parteiras e boticários ,
246
então adotadas e aceitas tacitamente, bem como a utilização de “remédios animantes”
(bebidas alcoólicas) ministradas aos doentes por conta do desequilíbrio dos humores.
593
Aliás,
no mesmo interrogatório, há uma menção ao médico da municipalidade, o Dr. Tomás
Gonçalves Gomide, que recusou tratamento aos bexiguentos do hospital dizendo que de
nada adiantariam seus conselhos e seus remédios, pois mesmo que com eles melhorassem,
os pacientes certamente procurariam outros métodos de cura. Apesar de não dizer
claramente, o médico dá a entender que seu trabalho seria perda de tempo.
594
A distância dos médicos (então chamados de físicos) de seus pacientes, a presença
de uma conhecida curandeira num hospital, ou o tratamento dos doentes entregue a
cirurgiões e ajudantes, nos aproximam de uma realidade onde a própria concepção do
trabalho médico, ou da função de um hospital, por exemplo, diferem quase que
radicalmente da atualidade. Nesse caso, e como já visto anteriormente, nada estranhar a
prática de outros métodos curativos para as doenças (no hospital, inclusive), uma vez que
a medic
que a vacina fosse transmitida, braço a braço, até
ina acadêmica ainda não detinha a hegemonia no campo da saúde, e isso apesar da
presença de alguns médicos no governo, suas ações eram muito mais de aconselhamentos
ou de assessoria em ocasiões críticas como, por exemplo, nos surtos epidêmicos.
Em relação à varíola, a doença mais temida pelos paulistanos, os médicos estavam
encarregados também de realizar os testes necessários com a então recém-descoberta vacina
jenneriana
595
e, nesse particular, tenho algo a acrescentar nas análises e discussões que se
procederam sobre a introdução de tal preservativo no Brasil e, particularmente, em São
Paulo.
Considerando as diferenças entre variolização e vacina,
596
muitos autores chegaram a
um consenso de que a vacina propriamente dita (a jenneriana) foi introduzida no Brasil em
1804 por iniciativa do marechal Felisberto Caldeira Brant (marquês de Barbacena), que enviou
a Lisboa sete escravos e um médico a fim de
mezinheiros na Corte Imperial: uma herança colonial, op. cit.
593 - Utilizadas constantemente na composição dos remédios, as bebidas alcoólicas – como a cachaça,
principalmente – eram produtos muito procurados. A esse respeito vale lembrar que até meados do século XIX
existiu, no centro da cidade, o famoso “Beco das Cachaça”, hoje trecho inicial da Rua da Quitanda, esquina
com a Rua 15 de Novembro.
594 - As palavras do médico foram as seguintes: ele “não fora tratar dos bexiguentos porque mesmo que com seus
remédios melhorassem, os aviariam com outros.”
595 - Acredito poder dispensar maiores informações sobre a descoberta da vacina pelo médico inglês Dr.
Edward Jenner, cujas conclusões foram publicadas em 1798. Para maiores detalhes, veja Chalhoub (1996),
especialmente o capítulo “Variolização e vacinação”, uma vez que concordo com este autor de que é realmente
“irresistível o charme pastoril” que envolveram tais pesquisas.
596 - A variolização, método antiqüíssimo, consistia em aplicar o pus das feridas diretamente de uma pessoa a
outra. A vacina antivariólica (ou jeneriana), por sua vez, tinha uma etapa anterior: ela era conseguida por
intermédio da inoculação em animais para, daí sim, ser retirado o material que seria aplicado nos homens. A
partir dessa primeira aplicação, o pus dos vacinados davam origem a outras vacinas, reaplicadas sucessivamente,
braço a braço.
247
a Bahia. Nessa viagem, a vacina chegaria ao Rio de Janeiro em 1804. Outros estudiosos,
porém, afirmam que esta iniciativa de Caldeira Brant, apesar de meritória, não teria sido a
primeira, uma vez que as vacinas já estariam em uso no Rio de Janeiro desde 1798.
597
Para São
598
Pouco mais, pouco menos, a simples definição de datas mais precisas talvez nem
seja de muita importân
que ocorre com a intro
da medicina, para su
reveladora do embate que se travou na sociedade.
sé do Amaral,
e o gov
ma posição pois defendo que a
acina jenneriana foi aplicada pela primeira vez em São Paulo no ano de 1803.
Antes dessa da
confundem nas linhas
suas conclusões sobre
de 1770; antes dessa de
Paulo as datas são mais imprecisas ainda, e a sua determinação percorre um longo período,
desde um impreciso final do século XVIII e até a certeza de que em 1819 já havia vacinação
pública na cidade. Outros ainda estabelecem, com certa dúvida, o período entre 1805 e 1811,
mas para não correr grandes riscos, a grande maioria prefere mesmo dizer que a introdução
da vacina em São Paulo teria ocorrido no primeiro quartel do século XIX.
cia, e isto se ficarmos na simples observação do fato. Porém, não é o
dução da vacina jenneriana, processo este relevante para a história
a consolidação como portadora da cura e, ao mesmo tempo,
Para o caso de São Paulo, analisaremos o processo inicial da introdução da vacina
através da troca de correspondências entre o físico mor da capitania, Mariano Jo
ernador Franca e Horta, ocorrida entre os anos de 1803 e 1806.
599
Nesse caso, e ao
contrário dos autores que já trataram dessa questão, marcarei u
v
ta o terreno é ainda muito nebuloso, pois vacina e variolização se
dos antigos documentos. Sabe-se que o dr. Edward Jenner publicou
a vacina (cowpox) em 1798, mas seus estudos remontavam à década
scoberta, o método utilizado era o da
variolização, também chamado
de
inoculação. E eis aqui um grande problema, ou seja, as fontes consultadas para aquela
poca (finais do século XVIII) utilizam quase sempre o termo “inoculação” que,
atualm
01/12/1798, o então governador da capitania de São Paulo, Antonio Manoel de Melo
é
ente, pode causar um certo embaraço e ser entendido como vacina e não como
variolização. Por outro lado, não podemos descartar totalmente a hipótese de que, num
primeiro momento, a vacina também tenha recebido o nome de inoculação, e isso pela
relativa semelhança entre os métodos. Vamos dar um exemplo desse problema: no dia
597 - Veja Challhoub (1996) p. 107, Fernandes (1999) p. 32, Rodrigues (2005) p. 286. Como contraponto, veja Santos
Filho (1991) p. 270 a 271, que afirma ter sido a vacina introduzida no Brasil já em 1798 e aplicada pelo cirurgião mor
Francisco Mendes Ribeiro. Este autor teve como fonte a obra de Alfredo Piragibe, “A primeira página da história da
vaccina no Brasil” (R.J. 1881), sem levar em conta as críticas de José Fazenda Vieira, “Antiqualhas e memórioas do Rio de
Janeiro” (R.J. 1924), que afirmou ser apenas variolização o método aplicado no país em 1798.
598 - Farina (1981) p. 54, Teixeira e Almeida (2003) p. 475 a 498, Bruno (1984) p. 330, 344, 347 e 348, Santos
Filho (1991) p. 272.
599 - Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, vol. 95, especialmente p. 88, 89 e de 200 a
204.
248
Castro e Mendonça
600
, dirigiu uma mensagem à Câmara de Santos em que tratava da mais
recente epidemia de varíola e nela ele citaria que ...
“... o sistema da inoculação era aqui mais conveniente que em qualquer
outra parte;
a nossa corte e toda a Europa o tem adotado, mas é preciso
que os homens primeiro se desabusem, ou que algum bom cidadão, com
seu exemplo, faça conhecer a vantagem que dela resulta e felicite assim a
raça vindoura.”
601
(meus destaques)
Estaria o governador falando de variolização ou da vacina jenneriana? Pela
mais força em Portugal e no Brasil a partir de 1790, às vésperas da propagação do método
jenneriano.
proximidade de datas entre esta carta e a descoberta de Jenner, poderíamos supor que se
tratasse mesmo de variolização, lembrando Chalhoub que essa precaução somente ganharia
nessa capitania a
inoculação
602
A mensagem de Castro e Mendonça datada de 1798 pode, portanto, ser lida a
partir das explicações deste autor. Mas, o caso complica-se a partir daí. Em 1799, por exemplo,
chega a São Paulo uma ordem vinda de Lisboa e dirigida ao mesmo governador da capitania.
Esta, por sinal, recebeu o título de “Sobre a inoculação das Bexigas” e diz o seguinte:
“Constando aqui os grandes estragos que as bexigas tem causado e
continuarão a causar em todo o Brasil, ordena o Príncipe Regente Nosso
Senhor, que V. S.ª procure introduzir, e promover por todos os meios
principalmente nos meninos negros e índios,
pois que tem mostrado a experiência ser este o único meio, e o verdadeiro
preservativo contra o terrível flagelo das bexigas, que fazem diminuir tão
consideravelmente a população desse continente. Deus guarde a V. S.ª
Palácio de Queluz em 29 de Julho de 1799 – D. Rodrigo de Souza
Coutinho.”
603
(meus destaques).
A citação de que a inoculação era o único meio e o verdadeiro preservativo contra
o mal impõe uma dúvida: esta inoculação se referia a qual método? O signatário desta
ordem, o poderoso e ilustrado ministro português D. Rodrigo de Souza Coutinho (futuro
Conde de Linhares), encabeçava o conjunto de conselheiros de D. João VI e, nessa
condição, mantinha estreitas ligações com a Inglaterra. Além do mais, ele acumulava o
cargo de ministro com o de inspetor geral do Gabinete de História Natural e do Jardim
Botânico da Ajuda, ou seja, ele era um homem que se interessava pelas ciências.
604
Por tudo
isso, seria muito estranho o fato do ministro não conhecer os estudos de Jenner. Mas, de
qualquer forma e caso se tratasse mesmo da vacina, este documento nos mostra que a
600 - Castro e Mendonça foi o 14º governador e capitão-general da Capitania de São Paulo, governou de
28/06/1797 a 10/11/1802. Mais detalhes em Antonio Barreto do; Dicionário de História de São Paulo (1980) Amaral,
p. 309.
601 - Registro Geral da Câmara, vol. XII (1796-1803), p. 282
602 - Chalhoub (1996) p. 105.
603 - Documentos interessantes op. cit., vol. 89, p. 166
604 - Zuquete, Afonso Eduardo Martins (org.), Nobreza de Portugal e do Brasil, Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1960.
249
mesma não estava ainda sendo utilizada em São Paulo, posto que estas ordens ou
recomendações eram para se introduzir o preservativo na capitania. Este fato, aliás, pode ser
confirmado a partir de outro documento, uma carta do governador Castro e Mendonça
dirigida à Câmara Municipal paulistana em maio de 1800:
“... ao paternal e indefeso cuidado do nosso amabilíssimo príncipe não
tem esquecido prevenir estas causas do atraso da povoação, mandando já
que as Câmaras imponham um tributo para a conservação de médicos e
cirurgiões,
e já recomendando encarecidamente a introdução do sistema
da inoculação das bexigas para desta sorte se evitarem os terríveis e
sempre lastimosos estragos que este contágio costuma ocasionar. Ora, não
sendo moralmente possível praticar a inoculação em todas as pessoas
adultas de que se compõe esta cidade e seu termo, tomo o meio de ocorrer
aos conhecidos danos que esta epidemia traz consigo, consiste em praticar
este sistema nos pequenos e evitar que grasse o contágio entre os
grandes.
uso no Rio de Janeiro ou em Salvador, por exemplo.
Inicialmente, vamos tentar nos aproximar do contexto ou dos acontecimentos que
prevenir o mal ou para controlar a disseminação da varíola caso ela já tivesse se
manifestado. Entretanto, e como nos mostram os fatos ocorridos em 1803, mesmo com a
experiência adquirida, ou já com um certo conhecimento da etiologia da doença através do
contágio, estas não redundavam em ações ou ordens permanentes, mostrando-nos que as
determinações eram sempre relaxadas logo após a passagem do mal. De qualquer forma,
esta não é uma conclusão original, até porque todos os que se ocuparam dessa questão
perceberam o problema. Via de regra, o fator relevante para a não observação dessas
medidas quase sempre foram imputados aos prejuízos causados pela imposição de
605
(meus destaques).
Ou seja, fosse vacina, fosse variolização, é certo que a “inoculação” (pelo menos de
maneira oficial) não era ainda praticada em São Paulo. Posto dessa maneira é que faço a
opção pelo ano de 1803 como o marco para a introdução da vacina em terras paulistas e,
em assim sendo, podemos supor que antes disso - ou mesmo em 1803 – ela já estaria em
se fizeram presentes naquele período em São Paulo, ocasião em que a vacina jenneriana foi
aplicada ela primeira vez. De fato, em março de 1803 a cidade se via às voltas com uma
nova epidemia de varíola; esta, aliás, outra vez imputada à chegada de um comboio de
negros novos vindos do Rio de Janeiro e que seguiam para a Capitania do Mato Grosso.
Segundo o físico mor Mariano José do Amaral, foram esses “negociantes e seus comboios que
aqui ficaram que trouxeram a epidemia”.
Nessas circunstâncias, e desde o século XVIII pelos
menos, adotava-se a quarentena para os africanos recém-chegados, e isso seja para
606
605 - “Registro de uma carta que o senhor general escreveu á Câmara sobre o objecto das bexigas”, Registro Geral
da Câmara, vol. XII (1796-1803), p. 444 e 445.
606 - Documentos interessantes, vol. 95, op. cit.
250
quarentenas ao comércio; mas, penso eu, não apenas isso.
O caso, porém, é que esta epidemia de bexigas ocorrida em 1803 foi uma das mais
s de março, quando os primeiros casos foram
distinguir os tipos de varíola então
contraídas pelos doentes, ao mesmo tempo em q
número de pústulas; em outros estas ainda que separadas no princípio,
não se elevavam em forma esférica, [permanecendo] achatadas (...) e
outras vezes, depois de elevadas, se abatiam,
como aconteceu
Nesse caso, não podemos deixar em segundo plano outras concepções que se
tinham para os males ou para a eclosão de epidemias, estas já merecedoras de discussão
páginas atrás. Mas, vale lembrar que o ato de deixar a cidade “aberta” após a passagem do
mal, ou o de não se ter muito cuidado com a prevenção de novas epidemias (pelo menos a
prevenção ditada pelos médicos), era algo comum e entendido por todos que assim
deveria ser. A proteção, bem como a cura, acreditava-se, poderia ser conseguida de outra
maneira.
graves, tendo permanecido ativa desde o mê
anotados, e até junho. Somente no hospital, que ainda funcionava no bairro do Bexiga,
deram entrada 39 (trinta e nove) pessoas “entre escravos, libertos e brancos”, dois dos quais
morreram. Muitos outros, a grande maioria dos doentes deve-se dizer, não foi ali tratada,
lembrando o médico Mariano que, nesse caso, “o número de mortos superou o dos que
sobreviveram” o contrário, portanto, do que teria ocorrido com aqueles sob tratamento no
estabelecimento.
Em seu relatório, o médico fez questão de
ue mencionou um caso particular que nos
aproxima do horror causado pelas bexigas na população e a prostração a que chegavam
muitos dos doentes:
“... [sobre] a natureza do contágio, (...) nove tiveram bexigas benignas, da
espécie discretas, [com] seus (...) períodos regulares, cessando a febre
desde que a erupção se fazia,sendo as pústulas (...) em pequeno número,
distintas, e de forma circular e elevada. Não foi porém o mesmo em todos
os mais, que tiveram a espécie confluentes, com sintomas mais ou menos
anômalos, continuando a febre ainda depois da erupção, ou ora
desaparecendo, ora tornando; sendo as pústulas numerosas, flácidas,
pouco elevadas, unidas e não regularmente circunscritas. Em alguns casos,
o semblante afetava antes uma só vesícula do que um determinado
especialmente a um homem branco de Cuiabá que, persuadido de não
poder vencer a moléstia, teria um êxito funesto se não obstassem os
estímulos continuados e o bom tratamento que constantemente o
dissuadiam da sua opinião, vindo por fim a ter vários tumores críticos que
o salvaram. Não falo de diarréias de uns, delírios em outros, tendo-se
obtido de todos estes trabalhos um feliz êxito por meio do tratamento
sthenico ou estilulante.”
607
(meu destaque)
251
Além do detalh
ção ao uiabá”, este prostrado diante do mal e esperando
omente a morte. Casos como este foram anotados inúmeras vezes, sendo mesmo muito
comum
amento da doença, que nos aproxima mais dos próprios doentes, o
“homem de Cmédico faz men
s
“os atacados de varíola aguardarem resignadamente seu fim, recusando
alimentação ou tratamento.”
608
E essas ocorrências se davam tanto no hospital quanto fora
dele. Mas nesse último caso, ou seja, para aqueles que recusavam o tratamento do médico
ou o oferecido no hospital, não restavam outros cuidados que não aqueles administrados
por certos experientes ou por outros especialistas nas artes de curar, aos quais o médico
Mariano dirigiu uma crítica feroz, chamando-os de algozes da humanidade:
“... para o funesto êxito de tão mortífera doença, [une-se o] nenhum ou
mau tratamento que se lhes dão, porque se não chegam a desamparar aos
miseráveis enfermos, entregam-se a Certos a que elles chamam [de]
experientes, por não dizer
algozes da humanidade, que tanto abunda
nesta Capitania, com detrimento não pequeno do Estado; os quais
superior [ou] inferiormente, prestando-lhes certas bebidas a que a crédula
superstição tem dado o nome de medicamentos, dando-lhes enfim untura
oleosas externamente, unturas mais capazes de embaraçarem a saída d
[exaurindo-os] em sangue, ministrando-lhes copiosas evacuações, já
s
a
matéria exantemática, do que de a promover, sacrificam afinal a morte a
sistema animal; a razão mostra e os fatos o decidem; por quanto o
s vivos que [estiveram] fora do
Cura.”
609
as informações a
respeito dos métodos aplicados fora do ho iros – e
conden
as exag quecer que este era um
método muito comum na época e cujo exercício era beiros, muitos deles
african r terap nava de
copiosa
inferior és dos m do mais, continuou, os doentes tomavam certas
bebidas
não permitiriam a saída da matéria corrupta do corpo, fato este considerado de muita
gravida i acredi disso em muito de
estas desgraçadas vítimas do contágio, pois que [as condições de São
Paulo], o Contágio [e] todas as potências aqui obram de mãos dadas sobre
o
número dos mortos é superior ao do
hospital, tratados pelo seu extravagante método de
Apesar da escrita truncada, retiramos deste documento algum
spital – certamente por curande
ados pelo médico. Em primeiro lugar, ele recriminava as sangrias (ou pelo menos
eradas) em se tratando de varíola. Aqui não devemos nos es
pr los baraticado pe
os. Out a ia que o esculápio conde eram as evacuações (qualificadas
s), fossem elas superiores, ou seja, com a aplicação de vomitórios, fossem
es, atrav purgativos. Alé
(infusões das mais diversas) e se deixava untar com produtos oleosos, os quais
de, po s tava-se que pendia a cura. Ou seja, através dessa
607 - Documentos Interessantes, vol. 95, p. 89
608 - Morse (1954) p. 28.
252
crítica, nos aproximamos dos métodos usualmente empregados pelos barbeiros,
sangradores e curandeiros em tais moléstias.
como u primeiros passos da medicina acadêmica na sua luta contra os charlatões,
process
dizer q
governador Franca e Horta
610
para um novo tratamento: a vacina jenneriana que, tudo leva
a crer, já estava sendo aplicada no Rio Janeiro e em Salvador. Afirmo que a mesma já
estava e
riano José do Amaral que a humanidade devia uma
eterna gratidão aos médicos que a trouxeram, e com especial “particularidade ao imortal
Jener”,
611
ou seja, referia-se ele sem qualquer dúvida à vacina jenneriana e não mais ao
método
Paulo em 1803 era proveniente de Londres e Lisboa, onde fora coletado entre fevereiro e
março do mesmo ano. No dia 17 de novembro de 1803 a vacina foi aplicada pela primeira
vez em dez escravos, todos menores de idade, no já famoso hospital dos bexiguentos da
chácara da Samambaia ou do . Dessa primeira experiência, ficou o seguinte relato:
terminando-se estas tentativas a 28 de dezembro do mesmo ano...”
Por outro lado, esse discurso pode ser visto
m dos
o este que ganharia força mais adiante, especialmente a partir da década de 1830.
Resta ue, pela sua gravidade, a epidemia de 1803 alertou o então
m uso no Brasil desde pelo menos 1803 porque, na seqüência de sua aplicação em
São Paulo, disse o mesmo físico Ma
da variolização.
Através deste relatório médico, ficamos sabendo que o pus vacínio utilizado em São
Bexiga
“... em novembro do mesmo ano [de 1803] chegaram a esta cidade uns
vidros de pus Vacínio, de fevereiro e março do mesmo ano, vindos de
Londres e de Lisboa. Vacinaram-se logo dez escravos de S. A., todos de
menor idade em o dia 17 do dito mês; em nenhum [deles] apareceu o
menor sintoma, a exceção de dois, nos quais passado o quarto dia, entrou
a inflamar-se o braço, com febre tosse e dores de cabeça, estado em que
permaneceram até o sexto para o sétimo dia, quando todo aquele aparato
desapareceu, caindo-lhes a escara do braço sem sinal de matéria. E
repetindo-se a vacinação em todos eles, onze dias depois da primeira,
nenhuma novidade apareceu nos dois acima ditos, entretanto que alguns
dos outros logo no segundo dia e lugar picado, parecia elevar-se; mas tal era
o prazer comum, tal o desejo de afugentar o pernicioso contágio variólico,
que continuou-se a vacina terceira e quarta vez,porém sem frutos,
612
Finalizada essa primeira experiência com a vacina em dezembro de 1803, em
setembro de 1804 foi recebida uma nova “dose” que, dessa vez, havia sido recolhida na
Bahia entre os meses de abril, maio, junho e julho do mesmo ano. Entretanto, e como
609 - Documentos Interessantes, vol. 95, p. 89.
610 - Antonio José da Franca e Horta, 15º governador e capitão-general da Capitania de São Paulo, governou
de 10/12/1802 a 31/10/1811. Mais detalhes em Amaral (1980), op. cit., p. 225 e 226.
611 - Documentos Interessantes, vol. 95, p. 200.
612 - Documentos Interessantes, vol. 95, p. 202
253
ocorreria diversas vezes daí por diante, elas não produziriam nenhum sinal nos escravos
vacinados, demonstrando que ou o remédio já estava enfraquecido nos seus efeitos, ou
mesmo corrompido pela dificuldade e demora no transporte dos mesmos.
613
Estando apenas em teste durante esse período, posto que aplicadas em poucas
pessoas, as vacinas de nada adiantaram para obstar a entrada de uma nova epidemia que
apareceu em abril de 1805 e, outra vez, imputada à passagem e estadia na cidade de uma
leva de “escravatura vinda por terra da cidade do Rio de Janeiro” com destino a Cuiabá.
Manifestada inicialmente em cinco dos escravos, logo caíram mais dezoito. Antes, porém,
os mesmos já haviam passado por Lorena, advindo daí uma das maiores epidemias
anotadas naquela cidade e “com mortandade não pequena”.
614
Pela ocorrência sucessiva de
epidemias em 1803, 1804 e 1805 e já conhecendo o método jenneriano, o governador
Franca e Horta enviou, no segundo semestre de 1805, diversos...
“escravos à cidade da Bahia para que, vacinando-se uns após os outros,
chegasse enfim – como se conseguiu – a matéria fresca e capaz de
preservar do triste flagelo das bexigas aos povos da capitania e desta
cidade de São Paulo (...)”
615
Iniciada portanto a experiência com a vacina em 1803 e 1804, em 1805 já havia
material suficiente para se tentar a propagação. E foi o que ocorreu: regulamentações
foram expedidas tornando-a obrigatória; na capital, designou-se a própria sede do
governo, o Palácio dos Governadores no Pátio do Colégio, como local para a vacinação
e, nas vilas do interior, elas deveriam ser aplicadas nas Câmaras Municipais ou nas
igrejas. Guardadas as devidas proporções para aquela época, bem como as reações
contrárias ao novo método, pode-se dizer que a vacinação se fez com certa intensidade.
Nesse aspecto, o governador Franca e Horta determinou, já em 1805, que os capitães-
mores de todas as vilas reunissem os chefes de família com todos os parentes, agregados
e escravos, para se deixarem vacinar. Os que se recusassem deveriam ser presos,
613 - A respeito dos problemas com a vacina jenneriana nesses primeiros anos no Brasil veja Fernandes, Tania;
Vacina antovariólica: seu primeiro século no Brasil (da vacina jenneriana à animal); 1999 e, da mesma autora,
Imunização antivariólica no século XIX no Brasil: inoculação, variolização, vacina e revacinação; 2003.
614 - Documentos Interessantes, vol. 95, p. 203
615 - Idem ibidem.
254
obtendo a liberdade apenas após a inoculação, a qual seria realizada mesmo na cadeia.
616
Apesar dessas ordens, sabe-se que a vacinação nunca foi popularmente aceita e, como
veremos adiante, muitas reclamações foram anotadas na época. De qualquer forma, e
além das ordens expedidas pelo governo, tínhamos aqui um outro fator preponderante
de convencimento: o medo do contágio, especialmente em épocas de epidemias que,
como o visto, quase que anualmente se faziam presentes na cidade. Assim, em fevereiro
de 1806 já era possível elaborar um quadro das pessoas vacinadas:
Quantidade de pessoas vacinadas na
Capitania de São Paulo entre finais de
1805 e até janeiro de 1806
617
São Paulo (Capital) 1.250
Vilas:
Parnaíba 2.056
Sorocaba 1.600
Itapetininga 882
Santos 642
Iguape 637
Castro 623
Itu 597
Lorena 585
Ubatuba 564
Atibaia 403
Paraitinga 398
Pindamonhangaba 245
São Vicente 221
Itanhaém 191
Itapeva 187
Jundiaí 175
Guaratinguetá 155
São José
105
Jacareí 68
Arassariguama 56
Total 11.640
A considerar verdadeiros estes números (ou pelo menos próximos da realidade),
uma outra dificuldade se impõe, qual seja, a verificação da porcentagem das pessoas
vacinadas em relação ao total da população da cidade. Maria Luiza Marcílio, por exemplo,
aponta para o ano de 1798, uma população de 21.304 habitantes para todo o município,
dividindo-se estes moradores entre as paróquias da Sé (10.542) e as demais (10.762). Já
616 - Santos Filho (1991) p. 272
617 - Documentos Interessantes, vol. 95, op. cit., “Documento 3º”, p. 204.
255
para o ano de 1836, a autora calcula o total dos moradores em 21.933 e, da mesma forma,
espalhados entre a Sé (5.568) e as demais paróquias (16.365). De fato, Marcílio alerta para a
consideração desses números, bem como para a grande diferença entre os anos de 1798 e
1836 para a paróquia da Sé (10.542 e 5.568 habitantes, respectivamente), lembrando aqui as
muitas divisões ocorridas no território abrangido pela antiga Freguesia da Sé.
618
Levando
em consideração este problema, arrisco dizer que, entre 1805 e 1806, a população do
município deveria estar por volta de 21.500 habitantes. Nesse sentido, chega-se a uma
média entre 5,5 a 6% o total da população vacinada até janeiro de 1806. Julgo serem esses
os números mais aproximados para a época até porque, não obstante os problemas com os
recenseamentos, havia ainda uma grande a resistência da população em se deixar vacinar.
O método então utilizado, a vacina braço-a-braço, soube-se mais tarde ser um
caminho muito propício para a transmissão de outras doenças, mas nesses primeiros tempos
disso não se ti esclarecido.
Para os vários autores que estudaram o tema, o consenso geral das análises indica que o povo
percebi
nha conhecimento ou, pelo menos, não da maneira como hoje está
a a não imunização através da vacina, e isto ocorria por diversas razões como a falta de
conhecimentos dos profissionais que as aplicavam, à corrupção do próprio pus que não
resistia ao tempo decorrido para o seu transporte ou mesmo ao enfraquecimento de suas
propriedades pela transmissão constante. Diante desses problemas – alguns deles conhecidos
já naquele momento e outros não – os médicos reclamavam que “... espalhou-se que as vacinas
não preservam das bexigas naturais...” e isto, na opinião dos mesmos, não passava de fantasias de
“... de um povo ainda bárbaro, incrédulo diante de tão interessante descoberta e antecipadamente tímido
sobre tudo o que respeita a bexigas naturais.”
619
E o povo comentava. Falava-se, por exemplo, de pessoas vacinadas uma, duas, e
até três vezes e que, mesmo assim, haviam contraído a doença; falava-se ainda que
pessoas já acometidas pelo mal anteriormente estavam imunes, não necessitando de
vacinas; falava-se também que crianças, filhos de mães vacinadas ou das que já teriam tido
a doença, também não necessitariam do preservativo, posto que isto seria conseguido
através da amamentação; outros ainda diziam que a vacina, ao contrário de preservar,
trazia a doença para o corpo.
620
Este conhecimento popular, em muitos casos corretos, foi
618 - Marcílio (1973) p. 102 e 103
619 - Documentos Interessantes, vol. 95, p. 200.
620 - A esse respeito o médico José Pereira Rego, na condição de presidente da Academia Imperial de Medicina
entre 1864 e 1883, assinalaria alguns fatores que estariam afetando o desempenho da vacinação no Rio de Janeiro:
“Os serviços de vacinação têm tido resultado de um modo pouco profícuo, como sucede sempre entre nós, por causas
numerosas, entre as quais sobressaem, de um lado, a indiferença com que a nossa população olha para os efeitos de sua
aplicação e só buscando o auxílio que ele lhe oferece para livrá-lo do terrível flagelo da varíola ao surgir alguma epidemia
256
desprezado pelos médicos naquele momento, uma vez que a luta era pela vacinação de
todos. E, para cada versão ou reclamação que ouviam, tinham eles uma explicação.
Em primeiro lugar, argumentou o físico mor Mariano José do Amaral, dos escravos
que ele vacinara, todos ficaram imunes à doença; ele mesmo, o médico, havia se auto
inoculado com a vacina, bem como o cirurgião da Legião dos Voluntários Reais – prova
maior de segurança não poderia haver. Entretanto, informou o mesmo, havia sim ocorrido
um caso aos moldes dos boatos que se espalhavam pela cidade, porém a causa seria outra:
“... uma mulher de vinte e seis, ou vinte e sete anos de idade, que já tivera
bexigas, enfermou com bastante incômodos originados da vacinação que
consentiu lhe fizessem na certeza de nada sofrer, eu chamado a ver esta
enferma achei-a em um estado de irritação grande, sendo a inflamação
efeito [não] da operação com vacinas espúrias:
a enferma era muito móvel
de sistema nervoso.”
621
(meu destaque)
Ou seja, nas palavras do médico o mal que atingia a doente estaria mais próximo
de uma “afecção da alma” e não de problemas decorrentes com a vacina.
A respeito das crianças que se imunizavam através da amamentação, tinha o
esculápio uma interessante teoria que merece ser relatada:
“Não se pode duvidar que algumas crianças tem tido aqui vacinas em
conseqüência da mãe ou ama as ter, o que observado faz ver que elas [as
crianças] tem (...) alguma esfoladura, arranhadela ou sarna nesta ou
naquela parte do corpo e que, roçando pela vacina, rompe-a, absorvendo-
se o pus vacínio; o mesmo digo dos adultos, que tendo feridas pelo corpo,
e dormindo com pessoas vacinadas, contraem várias vacinas (...)”
622
Não obstante esses problemas enfrentados pelos médicos, muitos dos quais já
analisados por estudiosos do assunto, creio que para a questão da não aceitação da vacina
naquele primeiro momento dois outros fatores devem ser levados em consideração. Em
primeiro lugar o documento que estamos analisando faz uma clara menção ao “povo
bárbaro” e, por isso, incrédulo a respeito da nova descoberta. Ora, para aqueles
paulistanos de 1806, o que mais valeria como proteção, a vacina ou algum ritual, uma boa
prece talvez? Ainda considerando a concepção religiosa da doença, mas já pensando em
algumas das teorias médicas então em voga, temos que atentar para o fato de que, desde a
devastadora; de outro lado, os preceitos que atuam no espírito dos habitantes do interior de todas as províncias, encarando-a
como meio de transmissão e desenvolvimento da varíola.” Veja mais detalhes em Karepovs, Dainis (texto e
pesquisa); São Paulo - a imperial cidade e a Assembléia Legislativa provincial; S.P.: Assembléia Legislativa, Divisão de
Acervo Histórico, 2005., p. 63.
621 - Documentos Interessantes, op. cit. p. 200 e 201.
257
antiguidade, tinha-se como base as amplas noções de puro/impuro como sinônimos de
são/doente. Daí, por exemplo, a teoria miasmática explicada páginas atrás: o impuro, a
matéria corrupta entrando no corpo através de suas emanações estaria a causar os
males.
623
Nesse caso, como admitir a introdução direta de material corrupto no próprio
corpo como eram as vacinas então empregadas? Ao nos basearmos apenas na medicina
acadêmica daquele momento, temos que ter clareza quanto à imagem que se tinha da
doença em relação ao corpo; o equilíbrio interno precisaria ser restaurado o que, em
muitos casos, correspondia à expulsão da matéria corrompida. As erupções cutâneas eram
disso a prova mais cabal, o pus das feridas (como os da varíola), era a sua materialização.
Como então, e de forma deliberada, introduzir no próprio corpo a corrupção alheia? De
fato, e numa concepção mais religiosa, lembra-nos Chalhoub
(1996 p. 115) que as vacinas,
um pouco mais adiante, seriam combatidas pelos padres em Portugal (e muito
provavelmente também no Brasil) sob o argumento de que “tal invento era um presente de
satã e que vinha
perturbar a marcha da natureza e que a divindade infernal queria por esse modo
introduzir-se no corpo de suas religiosas e piedosas ovelhas para se apoderar de suas almas.”
624
Aliás, a frase que sublinhei na referência nos mostra um outro entendimento a respeito das
doenças e das epidemias, ou seja, para muitos a sua marcha não deveria ser interrompida
pelos h
ra São Paulo a partir de outras constatações como, por exemplo, a ocorrência
de gran
omens, já que se tratava de uma provação.
Ainda sob esse aspecto, tratarei mais adiante de um outro fator preponderante
para o caso das vacinas, qual seja, o das marcas deixadas na pele. Porém, e não obstante
esses percalços, o fato é que as vacinas alcançaram relativo sucesso, apontando Chalhoub
que o mesmo ocorreu no Rio de Janeiro. Lembra este autor, porém, que a partir da década
de 1830 houve um sensível declínio dessa prática naquela cidade, fato este que também
observei pa
des surtos da doença após um período de relativa “calmaria”. Sobre as causas
desse declínio na vacinação concordam todos os analistas que foram dois os motivos mais
preponderantes. O primeiro deles era imputado às dificuldades impostas pela necessidade
de se importar a linfa diretamente da Europa, uma vez que o Brasil ainda não dominava a
técnica de produção, o que somente ocorreria em 1887.
625
Ultrapassada essa barreira – que
622 - Idem ibidem, p. 201.
623 - A respeito desse tema veja a esclarecedora análise de Diniz (1999), Epidemia: história epistemológica e
cultural de um conceito.
624 - Aqui o autor faz referência à obra de Barbosa, Plácido, e Resende, Cássio Barbosa de; Os serviços de saúde
pública no Brasil, especialmente na cidade do Rio de Janeiro de 1808 a 1907; R.J.: Imprensa Nacional, 1909.
625 - A esse respeito veja Fernandes (1999).
258
incluía certamente o grande tempo decorrido durante o transporte nem sempre em boas
condiçõ
brigatório, a grande maioria não o fazia.
626
os presos da cadeia, motivo pelo qual o então
cirurgião mor José Gonçalves Gomide, ordenou a queima “de breu em todas as prisões, por ser
este o antídoto mais eficaz do que o de folhas aromáticas.” Somente em junho é que chegaram
novas lâminas de pus vacínico que, então, foram utilizadas em São Paulo. Outras doses
foram ainda encaminh Cotia, com
a ordem expressa par “do maior
número de pessoas possí
Nessa primeira 1845 e em
1847, ocasião em foi solicitada a vinda da imagem de Nossa Senhora da Penha para
“aplacar a fúria” do m te a cidade
es até a inoculação – ocorria, já em território nacional, um enfraquecimento das
qualidades preservativas do pus, uma vez que sua disseminação ocorria braço-a-braço. O
sistema então adotado seguia o seguinte caminho: uma pessoa inoculada deveria retornar
ao vacinador após uma semana, tempo necessário para que a pústula estivesse em
condições de fornecer novo pus que, por sua vez, serviria a outra pessoa. Apesar desse
retorno ser o
A não ocorrência de surtos mais graves de varíola nas décadas de 1810 e 1820 é um
forte indício de que a vacinação expandira-se e fizera efeito, mas como no Rio de Janeiro,
as epidemias recrudescem a partir de então. Em novembro de 1837 ocorreria uma de
grandes proporções que, devido à sua virulência, estender-se-ia pelos primeiros meses de
1838. Era público e notório, disse um vereador naquele momento, que “o flagelo das bexigas
achava-se disseminado em vários pontos da cidade” e, por isso pedia-se o socorro do governo
provincial para “atalhar o progresso” do mal. Decorridos alguns meses, a epidemia não dava
sinais de arrefecimento, atacando inclusive
adas para as Freguesias da Conceição (hoje Guarulhos) e
a que os padres e juízes de paz realizassem a vacinação
veis.”
627
metade dos oitocentos anotaram-se ainda epidemias em
al que se instalara d ntre 1858 e 1859 nona ci ade. E vamen
26 - Além desses problemas, um outro foi apontado pelo médico Antonio Manoel da Silva que, a 14 de março
e 1877, enviou uma petição à Assembléia Legislativa de São Paulo propondo seus serviços para a vacinação.
legou o médico que “
É sabido que a província de S. Paulo é infelizmente visitada uma vez e outra por
6
d
A
epidemias de varíola (bexigas) ceifando milhares de vidas e paralisando a lavoura, o comércio e a indústria, mal este
s. É também sabido que o único e poderoso preservativo d´esta devastadora moléstia é o verdadeiro pus vacínico
devidamente inoculado. Mas infelizmente o povo em geral da província não goza nem gozará d´este precioso preservativo
enquanto o governo provincial não tiver médicos ou cirurgiões contratados para vacinarem anualmente por toda a
província correndo as povoações, a exemplo de muitas nações mais civilizadas. O povo tem abnegação de ir à cidade ou
vila vacinar-se onde há médicos, e estes também como não são pagos (salvo algumas honrosas exceções), quase que não se
prestam a vacinar algumas pessoas que se lhe apresenta, nem vão deixar de exercer a sua clínica diária para se entregarem
a esse serviço gratuito.
para todo
As câmaras municipais nada podem fazer a este respeito porque às vezes nem dinheiro tem
para pagar aos seus empregados, e algumas nem para mandar varrer as ruas. Para o governo encarregar a pessoas
caridosas e inexperientes o serviço de vacinar, embora sejam pagas, vale o mesmo que nada, porque essas pessoas são leigas na
matéria. Finalmente n´este estado de coisas está a província de S. Paulo sujeita a continuadas epidemias d´esta natureza e às
suas funestas consequencias.” (meus destaques)
Karepovs (2005) op. cit., p. 66.
259
se viu invadida pela “peste das bexigas”, e além da transladação da Santa da Penha para
“ver se com esse meio aplacava a peste das
ou em ações mais
concretas e de longa duração como, liz as obras do primeiro
cemitério da cidade, o da Consolaçã e ês de agosto para
receber a grande quantidade de mort
Por conta dessa epidemia a cidade ficou isolada durante alguns meses, sendo que
houve m
“Tendo chegado ao conhecimento deste governo que se continua a
enterrar no cemitério da igreja de Santa Efigênia
os cadáveres dos
bexigas”,
628
esta epidemia redund
por exemplo, a agi ação d
o, inaugurado às pr ssas no m
os.
esmo um risco de fome entre a população, e isso pelo desabastecimento iminente
uma vez que este, realizado por tropeiros, foi interrompido pelo medo do contágio. Em
junho de 1858 anunciava-se, por exemplo, que “aterrorizados, os negociantes e tropeiros não
queriam vir para a cidade, sendo certo que os que vem de Minas e de Franca, tem vendido seus
gêneros em Campinas e outros lugares, e daí voltam...”
629
Entre 27 de junho e 05 de agosto de
1858, a Câmara Municipal permaneceu fechada.
O grande número de óbitos causados pelas bexigas punha todos em alerta,
especialmente os médicos, pois os cadáveres seguiam ainda sendo sepultados no interior
das igrejas. Relatos de horror chegam ao governo:
bexiguentos, e ste itéri m extremo excasso, tem-se que sendo e cem o e
tirado alguns cadáveres sepultados poucos dias para lançar
conjuntamente es covoutros na m ma a cumprem que V. Mces. me
informem se ainda não está servindo o cemitério da Consolação, que em
meu oficio de 1º de Junho declarei achar-se convenientemente fechado, e
se ainda não se acham em execução as Posturas dessa Camara relativas
aos enterramentos. Cumprindo que Mces. em todo o caso
providenciem em semelhante praticas tão nocivas.”
630
(meus destaques)
V.
ordem a que cesse
627 - A. C. sessões dos dias 19/12/1837, 30/05 e 09/06/1838.
628 - Representação “de 136 cidadãos pedindo a vinda da Milagrosa Imagem da Senhora da Penha”, A. C.,
29/05/1858.
629 - Discurso do vereador Souza Barros, A. C., 27/06/1858. O risco de desabastecimento, e mesmo de fome,
esteve sempre a rondar os paulistanos em épocas de epidemias de varíola, não sendo este fato uma novidade
em 1858. Em 1800, por exemplo, dizia o governador aos camaristas de São Paulo: “Vossas mercês mesmo, e todo o
povo desta capitania são testemunhas de que a pouca atenção que se deu no tempo do meu antecessor à funestas
conseqüências deste mal, foi causa de morrerem por ele assassinadas mil e tantas pessoas só no distrito da cidade, e as
diligências de atalhar a mortandade, de que foram vítimas tantos habitantes, tudo foi inútil, tudo foi frustrado.
s
Acresceu a este
flagelo outro não menos temível, que foi o da fome, porque não tendo esta cidade em si provisão de mantimentos para mais de
oito dias, o justo terror que conceberam os povos circunvizinhos á dita epidemia, fez que a desamparasse, e não trouxessem os
viveres necessários á sua subsistência, sendo tão fresca e tão lastimosa a memória desta terrível catástrofe (...)” Registro Geral
da Câmara, vol. XII (1796-1803), “Registro de uma carta que o senhor general escreveu á Câmara sobre o objecto
das bexigas”, p. 445.
630 - Ofício do presidente da Província enviado aos vereadores paulistanos aos 07/07/1858, Coleção Papéis
Avulsos do Arquivo Histórico Municipal, Vol. 179, 1858, doc. nº 100.
260
Tendo em vista esta situação e mediantes pressões, a partir de 15 de agosto de 1858
abria-se o cemitério da Consolação para o sepultamento dos corpos, ficando daí por diante
proibidos os enterramentos nas igrejas. A partir desse momento, a municipalidade passa a
ser responsável pelos registros dos corpos que ali davam entrada gerando, com isso, a
centralização dos sepultamentos nas Freguesias do Braz, Santa Ifigênia, Consolação e Sé,
que, a partir de então passaram a ser anotados nos Livros de Inumações, hoje sob a guarda
do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo. A unificação desses
registros da morte,
antes divididos por cada paróquia ou mesmo pelas diversas igrejas, facilitaram
em 1858, podemos acompanhar dia-a-dia a sua marcha através das mortes. Nesse sentido
tivemos, para o período de 15/08 a
sobremaneira a computação dos dados e, para o caso desta epidemia de varíola ocorrido
31/12/1858, um total de 246 sepultamentos realizados;
estes, 191 tiveram as suas causas especificadas; 30 foram por varíola como segue:
erv
16/08 Jacinto Vieira Leite (n/c)
19/08 Francisco Antonio Indigente
2/08 Joaquina Indigente
2/08 Benedito “Creoulo”
Ana “de tal” (n/c)
seja o pai da menina Bella, acima)
21/12 José 1 mês, pardo, liberto, filho de Maria Joaquina.
d
Dia: Nome: Obs ações no registro:
20/08 Antonio Indigente
22/08 Antonio Indigente
2
2
23/08
27/08 Antonio Escravo de José Pinto Nunes.
27/08 Justa Escrava “creoula” de Henrique F........
29/08 Antonio Lourenço 40 anos, branco, agregado de Antonio Joaquim.
01/09 Felícia “de tal” (n/c)
02/09 Claudina “de tal” Indigente
02/09 João “de tal” Indigente
04/09 Joana Maria de Jesus 30 anos, solteira, natural de Minas.
04/09 Gregório 40 anos, escravo de Joaquim de Castro Ferreira.
08/09 Ângela 09 meses, filha de Manoel Gomes Pereira.
13/09 Carlos Augusto 5 anos, filho de Margarida ...
13/09 Benedita “menor”, filha de Manuel Benedito.
16/09 Ana Bernardina Faleceu no Hospital dos Indigentes.
12/10 Joaquina Rosa de Lima 36 anos, viúva.
20/10 João Cipriano Mendes 23 anos, solteiro.
27/10 Ana Jacinta 26 anos, solteira, natural de Itapecirica.
30/10 Filisbina 15 meses, filha de João Francisco das Chagas.
20/11 Bella 1 ano, filha de Luis Antonio da Silva.
29/11 Luis Antonio da Silva 25 anos, livre, casado (tudo leva a crer que
11/12 Antonio Lima 20 anos, livre casado.
18/12 Joaquim José Floriano 18 anos, livre, solteiro.
19/12 José 4 anos, liberto, filho de José Antonio Rodrigues.
261
24/12 João 10 anos, livre, filho de João de Paula.
Esta epidemia faria mais vítimas entre janeiro e fevereiro de 1859, ocasião em que
mais cin o óbitos fora
Dia
1/01 Benedito 3 anos, livre, filho de Antonio Leme.
Nascimento, este já falecido.
esus 60 anos, solteira.
ui, a não ser, é claro, q
liberto e um agregado, sendo que de dois outros (Ana de tal e Felícia de tal) nada foi
especificado. Somente aqui temos 23 dos 30 casos de “bexigas”. Do restante, sete pessoas,
tudo leva a crer que não pertenciam às elites, figurando eles certamente entre aqueles das
c m anotados:
Nome Observações no registro:
1
23/01 Manoel 1 ano e 10 meses, livre, filho de Joaquim
Inocêncio Santana.
07/02 Maria 6 anos, filha de Francisco Antonio do
11/02 Ana de J
18/02 Adão 6 anos, criolo, escravo de Maria Vicência Novaes.
Apesar desses registros já serem de responsabilidade do governo civil que
estipulava, por exemplo, ser obrigatória a anotação da causa mortis, nesses primeiros anos
de funcionamento do cemitério da Consolação tal procedimento não foi adotado na
íntegra. De fato, e como já mencionado anteriormente, os corpos davam entrada no
cemitério acompanhados de uma guia ou “bilhete de sepultamento” que, nesses primeiros
tempos, eram quase que invariavelmente assinados pelos párocos. Daí, portanto, que entre
os 246 sepultamentos realizados entre 15/08 e 31/12/1858, apenas 191 deles registram as
causas da morte. Este silêncio anotado para os 55 registros restantes tem muito a nos dizer,
posto que nos remete ao entendimento que se tinha a respeito da morte, ou seja, para os
padres a ela estaria nas mãos de Deus e, por isso, a causa terrena era algo que poderia ser
desprezado. De outra parte, chama a nossa atenção o fato de que, para o mesmo período,
somente 30 registros apontam como causa da morte a varíola. Ora, era de se esperar que,
num período epidêmico, muito mais mortes ocorressem; porém, não é o que se observa
aq ue entre os 55 sepultamentos com registros “emudecidos” muitos
tivessem esta causa. Eis aqui uma hipótese com grandes chances de acerto.
Dos dados recolhidos e aqui expostos, salta aos olhos a condição dos mortos por
varíola: entre as 30 pessoas falecidas deste mal em 1858, 07 deles estavam na condição de
indigentes , 07 eram crianças, 03 eram escravos, sendo anotado ainda um “creoulo”, um
262
camadas medianas ou pobres da sociedade, posto que verificamos terem sido todos eles
sepultados nas Quadras Comuns do mesmo cemitério, estas reservadas aos pobres e, por isso,
gratuitas.
631
Sabemos que, pelas condições em que viviam, escravos, pobres e indigentes
estavam mais expostos
atingia também os rico
no mais um grande silêncio, o que nos leva a supor que o temor em torno da varíola
estaria ligado, também, a um caráter maldito da doença, marca de um pecado ou punição
que, a e
que da
ao contágio, porém não restam quaisquer dúvidas de que a varíola
s. Mas, salta aos olhos a condição dos que aqui morreram do mal;
xemplo da lepra, tornava-se visível pelas feridas.
632
Nesse caso, a doença precisaria
ser escondida, inclusive na hora da morte. Os mais ricos morriam especialmente de
apoplexia, febres, moléstias internas ou afecções diversas, e não de “bexigas”, como nos
mostram esses primeiros registros do cemitério da Consolação.
Ampliando essa questão, e retomando a comparação entre a lepra e a varíola,
devemos sublinhar que as duas moléstias eram bem perceptíveis e notadas por todos, o
que expunha o doente, quiçá, à vergonha e culpa por tê-la adquirido. Mesmo entre aqueles
varíola sofriam e dela não morriam, ficavam-lhes as marcas das feridas. No rosto e
nas mãos (partes do corpo que se mostravam) impressas estavam as cicatrizes do mal
adquirido e daí, talvez, também o medo e a angústia frente às primeiras vacinas, pois
aquelas também provocavam uma forma branda da doença, muitas vezes deixando os
mesmos sinais. E estes de tal maneira incomodavam, nos lembra Mary Del Priore, que
muito comum era a utilização, pelas mulheres do século XIX, de vário cosméticos como o
pigmento branco alvaiade, que cobria o rosto e “escondia as marcas das doenças”, servindo
mesmo para “dissimular, apagar e substituir as imperfeições então corriqueiras, como as da
varíola”
633
, doença que freqüentemente deixava cicatrizes profundas na face.
634
Na falta
desses “disfarces”, as paulistanas tinham a seu favor uma indumentária que as
631 - Com a abertura deste cemitério, criou-se a possibilidade da compra de terrenos por particulares seja por um
tempo determinado, seja perpetuamente. Dependendo da condição financeira de cada um, túmulos poderiam ser
construídos, sendo estes chamados inicialmente de “carneiras”.Entretanto, tanto a aquisição de terrenos, quanto a
construção das carneiras, somente era acessível às camadas mais privilegiadas da população. Os pobres, por sua
vez, eram sepultados gratuitamente nas “Quadras” para eles destinados.
632 - A respeito das imagens e símbolos que se criaram em torno da lepra (como uma marca do pecado, por
exemplo) veja a esclarecedora análise de Béniac, Francoise; O medo da lepra, In: Le Goff ( 1985); também do
assunto trata Rosen (1994) e, para o caso do Brasil, veja Machado (1978), capítulo “Lepra, filha mais velha da morte”,
p. 72 e seguintes.
633 - Priore, Mary Del; Lindas e sedutoras desde 1500, em especial o item “A origem dos cosméticos”; In: Revista
Nossa História, R.J.: Ed. Vera Cruz, Ano 2, nº 23, setembro 2005, p. 54 a 58.
634 - Na sua fase evolutiva, as máculas da varíola surgiam inicialmente na face para depois tomar todo o
corpo. E é justamente no rosto onde permaneciam as marcas e cicratizes mais profundas. A esse respeito veja
Levi, Guido Carlos e Kallás, Esper Georges; Varíola, sua prevenção vacinal e ameaça como agente de bioterrorismo;
263
preservava: as famosas mantilhas. Estranharam-nas alguns viajantes que por aqui
passaram em meados do século XIX, dizendo que tais vestimentas já estavam em desuso
no Rio de Janeiro ou em Salvador es em 1775, o próprio
governador Martins Lopes Lobo de Sa davam “rebuçadas
em dois côvados de baeta preta assim co ja com chapéus desabados na
cabeça; e deste modo com as caras todas t ejas...”
635
Já o nosso
conhecido romancista Bernardo G característica das
paulistanas, mas disse que em sua é das escravas e das
mulheres mais pobres, que co tumav rulhar s ombros em dois côvados de
pano ou
, por exemplo. Ant disso,
ldanha diria que as paulistanas an
mo se cortavam nas lo s, e
apadas, tanto nas ruas como nas igr
uimarães também tou no essa
poca esta vestimenta era típica
s am “emb a cabeça e o
de baeta em que não andara nem tesoura nem agulha”
636
A moda e os cosméticos, como
lembrou Del Priore, serviam a tais propósitos, ou seja, para esconder e disfarçar o mal das
bexigas, suas marcas e sinais.
In: Revista da Associação Médica Brasileira, vol. 48, nº 04, São Paulo, Out./Dez. 2002.
635 - Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, vol. XXVIII, p. 42 e 43.
636 - Guimarães, Bernardo; Rosaura a enjeitada, op. cit. p. 119 e 147.
Figs. 37, 38 e 39
264
Trajes típicos das paulistanas na primeira metade do século XIX.
637
s que egu m a 1 , a epi
fale ento ela d ça entr 2
m azen com e os pa cost as com os
sq t tanto m abr e 18 ela
la doença ocorreria na infecta cadeia pública
ando a m d pres exemplo dos surtos ocorridos nos primeiros anos
é p a pa ir dos gistr de
liza ma onst ção dos e iss esde do
ue cons rar d rime vítim da
o iolo
ll
igas, como visto,
ecido doi nos. nforme
havia ido d Mog scondera-se em Santos quando, então, foi capturado
ev tenha
v o para o Pa . De qu
m nte na ade, os par que o c m cer ispl ncia, ue
m
da
a prim ira oc ncia governantes somente iriam p ber e a sit ão
grave mês eguin quando arcera orr do m o
s Si
e
ausou ma gr e ap nsão, a
acram os a morib o – alg
Nos ano se s ira 859 demia deu uma trégua à cidade, não sendo
anotado qualquer cim p oen e 1860 e 1861. Em 186 apenas duas mortes
por bexigas oco , do qurrera f ulistanos – até então já a um
surtos anuais da varíola – quase que dela se e uecessem. En re , e il d 63
voltaria, sendo que o primeiro caso de morte pe
da cidade, vitim li u os os. A
do século XIX, m e e 1tamb para ste d 863 é ossível (e agora rt re os
sepultamentos) r r u re ituiea c acontecimentos, o a entrada d
mal e até a sua propagação na cidade.
Assim, e a partir do histórico q eguimos recupe a p ira a
varíola em 1863, ficamos sabendo que ele era sentenciado Benedito, cr de 43 anos de
idade, escravo de Jos Tibúrcio Ribeiro de Me é o, de Mogi das Cruzes. Este preso, é preciso
dizer, não sofreu na cadeia e nem em São Paulo onde as bexo contagio
tinham desapar por s a Co os dados encon s u r tro trado em se egis de
morte, Benedito fug e i e e
e trazido para São Paulo.
638
es o, tu N se cas do l a a crer que qu o mBenedito ad irido al
em Santos e com ele ei ulo alquer forma, e não obstante a presença da
doença nova e cid n ece aso foi tratado co ta d icê já q
nenhum aviso ou alerta foi emitido. Nem mes o a morte do escravo, ocorrida no dia 12 de
abril de 1863, foi capaz de despertar as autori des para quaisquer ações. Não levando em
consideração ess e orrê , os erce qu uaç
poderia ser mais no s te, então outro enc do m eu esm
mal.
639
Este era o pre o a galés José Peres da lva que, certamente, havia mantido contato
com o primeiro doent , dando-se ai a transmis o da varíola. O falecimento de José Peres no
dia 2 de maio já c u and ree té porque nenhum padre fora chamado para
dar os últimos s ent o und o de muito grave naquela época. Este fato,
637 - Não obstante esta relação entre as roupas e as marcas da doença, vale lembrar que o “disfarce” proporcionado
enta típica das p listanas se dava também ppela vestim au
arecedo
o
s respeit a a es nálise de
qui a tora n ostra “por trás
ocesso ultip ção de as pobres,
isteri ente à a à noi ra cumpri er r – m
ancas.
ento “Bened Livro Inumação
or
s, o médico Candido Ribeir
presos não estavam gravemente enfermos, sendo portanto desnece risã A. C. 0 /186 95.
r outro motivo, qual seja, para esconder a pobreza de
muitas delas. A e se o vej cl ra a Maria Odila Leite Silva Dias (1984) especialmente nas
páginas 71, 83 e 174. A au os m que
a
da moda furtiva de mantos e baetas negras, para esconder a
pa era um bpobreza, desvenda-se o pr de m lic moç
saía m
brancas.” Nesse caso, a rou om disfarce para
zmulheres que m osam ru te pa
r misteres – buscar água, fa compra que cabia antes a
escravos que a donas br
am638 - Termo de sepult de ito”, de
639 - Os problemas c de am nga
do cemitério da Consolação, 1863, vol. 02, fls. 27 verso e 28.
om a ca ia vinh de lo data e co
nem o médico da Câmara, obrigado a realizar visitas aos pr
ntinuaram por um bom tempo. Em 1862, por exemplo,
esos, dessa função não se incumbia. Reclamando dessa
situação, os presos protestaram junto ao carcereiro que, p sua vez, levou o fato a hec do gadoo con imento Dele de
o dos Santos responderia laconicamente que “... os ditos Polícia. Instado a dar explicaçõe
ssária qualquer visita” à p o. 3/07 2, p.
264
por sua vez, pode revelar que ou os padres se recusaram a ir até a ca ia já nt a”,de “co agiad ou
os c mara prop tadame com o intuito de tentar esconder
d e a q tida de
pre fo uito uper ao número de óbitos. Falta-nos em absoluto as
a,
m nos o bro d pesso com a e
ferma da
ta reple e do tes. tro
r d
víru o gê ro or oxvíru
pe inala o de ículas c u
ades cro s infectadas,
have mbé infe o aérea m use e ro as,
eríodo de incubação médio é de 12 dias, variando
abrupt
a
ue estas
io em S o de 1 63 – e te sempre
as du nici uma ao a a 02/ 5 – se es de
d a
c gi s m g
gusto d n ia 14 05; lo
a e Mari
rd m do ico andid ibeiro ma vez e a mesma estava
ntos”.
foco d olé ser també
mês d nho s so dos Joã 40 a s, e é An io
e ias 13 e 22/06/1863. Entre essas duas últimas
do “pr l de O eira, siden em
os carcereiros nã ha m osio nte, e isso
este segundo caso da doença.
E aqui vale uma observação a respeito a varíola, ou seja, a de qu uan de
infectados sem i m s ior
quantificações dos doentes para aquela époc mas podemos supor que, para cada morte,
existiria pe e do e aslo nfermidade.
640
Nesse caso a en ria
cadeia pública, onde faleceram os dois presos, já deveria es r ta d e Oun
ponto que merece se observado é a etiologia este mal que hoje conhecemos. A varíola é
causada por um s d ne top s, sendo que o contágio se dá, na grande
maioria das vezes, “ la çã got ontendo o vírus em s spensão, eliminadas
pela mucosa oral, nasal ou faríngea dos doentes. Embora o vírus esteja presente em
grandes quanti e stad m este mecanismo de transmissão é menos
freqüente. Pode r ta m cçã à distância ou p a io d upelo n
lençóis e cobertores contaminados. O p
de 7 a 14 dias. O início dos sintomas é o, com febre muito alta, cefaléia, calafrios,
dores nas costas, com duração de dois a qu tro dias, surgindo a seguir a erupção (as
“bexigas”) que evoluem para crostas, sendo necessário mais dez dias para q
caiam.”
641
Seguindo o caminho do contág ão Paulo no an 8 es
acompanhando as mortes i ais, s 12/04 e a outr 0 ria m mo
se esperar a sua expansão para o resto da cida e. E esta ocorreu, ultr passando as prisões,
saindo do centro da id e ndade atin o o oradores de Santa Ifi ênia. Ali a primeira
vítima foi Benedita, esc e J Aurava d oão e Azevedo, falecida o d / go em
seguida, a varíola ap nhou a “indigent a Fernandes”, sepultada às pressas no dia
21/05 por o e méd C o R dos Santos, u qu
internada na “Enfermaria dos Bexigue Da cadeia para as ruas e atingindo Santa
Ifigênia, outro a m sti ia oa m infecto Quart zin a o. Ael, vi ho d prisã li
morreriam, n e ju , ldao o o dos Santos, de no Jo tons
Pereira, de 24, ct ent s dresp ivam e no
mortes, ocorreria também o falecimento eto” José Manoe liv re te
640 - Uma indicação res ode ncon a ess peito p ser e
a epidemia de 1803. Naquela ocasião ele declar
e trada no
ou que apenas no Hospital dos bexiguentos deram entrada 39
o nteressa ostum de Sã Paulo, cit.
llás 002) op Os au s info m ainda m”, u outro de va de
a mort de gi va em t o de 1 a 2% dos infectados.
relatório do físico mor Mariano José do Amaral sobre
doentes, dos quais dois m rreram. Documentos I ntes para a história e c es o op.
641 - Levi e Ka (2 . cit. tore rma que no caso do “Alastri m tipo ríola
forma menos grave, alida ra orn
265
Santa Ifigêni e , segu do ta “muito pobre” n odos in
Con lação o f l desse jun as xigas se
oda cidad ting o mesm ana da e e, est ui
lo fal ent eno Joã enas u ano vida ho
Lau o Jo Pereira
ad v
fechar a sala onde fazi
reg traram ue a são est
ex dad
os v ado tom m, ou s
g ja ais fize na ele
mui e exp ndira de
na so as a orida munic ar tan om ras
or mai que almente r o dar p vidên s qu o à
em
e atingiu seu pico entre agosto de setembro, com 52 e 51 casos fatais,
a i r
s da doença, acompanhou a
o s desde a igreja do Braz e até a Sé. Além disso,
vide aram iluminação de suas casas nas noites dos dias 5, 6 e 7, como
nagea san e pe do sua
id ia d 858/ er ofer és
umação do cemitério da Consolação, o fato é que os ditos registros não
brangeram todo o período do surto. O contrário, porém, ocorreu com o de 1863/64, uma vez
ue os dados estão completos e, a partir deles, podemos construir diversas tabelas
formaram, sendo sepultado gratuitamente
no cemitério da so . N ina mesmo mês de ho be
espalhavam por a e, a ind t o as classes medi s e lit a aq
representad e ecim o qua p do pe o, branco, de ap m de , fil
do conceituado cidadão ri an e de D. Alexandrina Maria da Conceição,
moradores na Sé.
642
Receosos do contágio, uma vez que a c eia e a Câmara ocupa am o mesmo prédio,
os vereadores resolveram am suas reuniões e, na er a do dia 16 v eanç de
maio de 1863, eles is q ses ava sendo realizada nas “casas do Sr. Major
Gabriel Marques Cantinho, e isto por ocasião das b igas na cadeia desta Ci e.” Normalmente era
esta a atitude que er res avae eja, em épocas de grandes epidemias ou se
fechava a Câmara por alguns meses, ou a mesma passava a funcionar em casas dos próprios
vereadores ou em a u as rsal ma d dive s igre s da cidade. não r quE m am
momento.
Talvez confiando na ação preservativa das vacinas, que em to s a des
1803, ou mesmo rte, ut des ipais não se preocup am to c out
medidas mais sérias, lembrando apenas um solitário vereador que “pelo receio da epidemia das
bexigas tomarem prop çõ ores atues , seria neces i ro cia ant
limpeza dos quintais particulares, para “evitar que a epidemia aumente pela falta de aceio.”
643
A
rede de contágio, porém, já estava formada e julho de 1863 morreram mais 19 pessoas,
número este qu
respectivamente.
Em meio a est situação, novamente fo equisitada a presença da milagrosa imagem
de Nossa Sra. da Pe a. No dia 05 agostonh de o povo, temero o
procissão junt com a mais altas autoridades
os moradores pro nci a
forma de e r ta din hom a proteção diante de tamanho mal que os
assolava.
644
Apesar da ep em e 1 59 t ecido alguns elementos para análise atrav
dos livros de In
a
q
642 - Livro de Inumação do cemitério ad Consolação op. cit., fls. 33, 36 e 36 v., 38 v., 45, 47, 48 e 48 v. e 50 verso.
643 - Indicação do vereador Cavalheiro, A. C. 21/05/1863. Eis aqui um outro exemplo do ajuste entre as duas teorias
médicas, ou seja, entre o contágio e a infecção.
266
representativas que clareiam bem mais a situação então vivida. Nesse sentido, a seguir estão
algumas das possibilidades que os registros de morte nos proporcionam e, inicialmente,
apresento os cômputos gerais
mensais de falecimento por varíola, não obstante ser possível
um acompanhamento diário dos casos.
1863:
185 mortes 1864: 23 mortes
Abril 01 Janeiro 05
Maio 03 Fevereiro 06
Junho 04 Março 09
Julho 19 Abril Ø
Agosto 52 Maio 01
Setembro 51 Junho 01
Outubro 29 Julho Ø
Novembro 20 Agosto 01
Dezembro 06 Fim da epidemia
Os dados brutos, portanto, nos mostram a evolução da epidemia mês a mês que, no
final, apresentou como resultado um total de 208 pessoas falecidas do mal. Entretanto, dos
dados disponíveis sobre os indivíduos sepultados (muitos deles incompletos, é preciso
esclarecer) podemos extrair ainda as seguintes informações: a doença atingiu mais os homens
(123 casos) do que as mulheres (82 casos), sendo que de três registros não foi possível
identificar o sexo. Mais ainda, é possível destacar os mortos pela sua condição:
Pobres 53
Escravos 50
Indigentes 21
Presos da cadeia 12
Soldados 08
Africanos libertos 05
Total 149
Além dessa identificação, mais detalhada, outros 59 casos referiram-se a brancos
cujas famílias tiveram condições de arcar com as despesas do sepultamento incluindo, nesse
caso, a aquisição de um terreno ou cova, por prazo determinado ou perpetuamente. Nesse
sentido, fica claro que as bexigas atingiam muito mais os membros das classes populares, e
isso pelas próprias condições em que viviam, mas não poupava também os das camadas
medianas e altas da população.
644 - A. C., 01/08/1863, p. 163.
267
Dentre outras possibilidades que nos números nos oferecem, creio ser importante
trazer uma tabela construída a partir das idades indicadas dos falecidos (quando anotadas).
Nesse sentido, a mesma se apresenta da seguinte maneira:
00 a 05 anos 43 mortes
06 a 10 “ 10
11 a 15 “ 07
16 a 20 “ 19
21 a 25 “ 18
26 a 30 “ 26
31 a 35 “ 04
Total 166
Não obstante as inform relevantes, os
dados brutos obscurecem algo caminho percorrido
pela contaminação. Este some onstru ed te o a panhamento diário
dos sepultamentos como fizemos. Analisando o conjunto das informações coletadas
percebemos, também, a veloci m rtir de junho e julho,
e em especial entre os home enos e e m heres rianças.
645
Estas (as
crianças) somente começam a ser atingidas em finais de agosto, recrudescendo o contágio em
setembro. No cômputo final, t mal e, quanto à
faixa etária, o de crianças entr t
Com respeito ainda a u ser explicitada, uma
vez que ela nos informa sob ressão em relação à
quantidade normal de falecimentos na cidade? A esse respeito, computei a mortalidade na
cidade entre os anos de 1860 e
epidemia girava em torno de ucos casos anotados
ntre os meses de abril (início da epidemia) e até junho, não interferiram nessa média. Porém,
partir
normalidade somente ocorreria entre os meses de abril e junho de 1864, já na etapa final da
pidemia, quase um ano depois.
36 a 40 “ 15
41 a 45 “ 04
46 a 50 “ 07
+
de 50 13
ações contidas nesta tabela por faixa etária serem
que julgo de muita importância, ou seja, o
nte foi possível c ir m ian com
dade com que a epide ia se espalhou a pa
ns adultos e m ntr ul e c
emos o fato de que mais homens faleceram do
e 0 e 5 anos superou odas as demais.
esta epidemia, u t la ce ma o ra tabe mere
re a seguinte questão: qual a sua exp
1865, e const iate que o número de falecimentos em épocas sem
55 a 60 mortes/mês. Nesse sentido, os po
e
a de julho de 1863 a situação se modifica, como pode ser visto a seguir a partir da soma
total de falecimentos divididos por mês e incluindo os mortos por bexigas. Uma volta à
e
645 - Dos 19 falecimentos anotados p m e duas delas atingem crianças com dois anos de idade
(um menino e uma menina); as mulheres
ara este mês, so ent
, por sua vez, são apenas quatro.
268
1863
Julho Agosto Dezembro Setembro Outubro Novembro
75 mortes 99 mortes 6 mor 66 mortes 93 mortes 7 tes 78 mortes
1864
Janeiro Fevereiro Março Abril Maio Junho
70 mortes 46 mortes 61 mortes 47 mortes 52 mortes 45 mortes
Vale registrar ainda que a varíola, que tanto marcou a vida na cidade dos oitocentos,
manifestava-se quase que an corrida entre
1863/1864, já em 1865 uma outra grassava na cidade. Esta, por sua vez, merece uma menção
especial devido aos problem
decorrência de denúncias que chegaram ao jo responder
obre as péssimas condições em que se encontrava aquele estabelecimento, o governo
De fato, como
nunciaram, o dito hospital encontrava-se repleto de doentes, cerca de 32, o que excedia a sua
capacidade; apesar dos leitos estarem com todos os seus pertences, anotaram o médico e o
vereador que os remédios não eram fornecidos no horário correto, uma vez que “os
medicamentos formulados a 10 horas da manhã, não haviam chegado ao hospital as 4 ½ da tarde”.
Porém a crítica maior não seria esta e relato de horror que sempre se fazia presente
m períodos críticos como este. Disseram eles na ocasião que ...
mais para o hospital, uma vez que isso afetaria negativamente o ar ali respirado, e isso pelo
ualmente e, nem bem curada desta epidemia o
as ocorridos com o antigo Hospital dos Bexiguentos, e em
rnal Correio Paulistano. Instado a
s
municipal enviou seu médico que, na companhia de um vereador, realizou uma vistoria. Do
relato final desta comissão sobressaem informações contundentes a respeito da forma como
funcionava tal estabelecimento (também conhecido como lazareto), sobre o tratamento dos
doentes, bem como uma crítica aos procedimentos então adotados que, tudo leva a crer,
sempre ocorriam em épocas dramáticas como eram as de epidemias.
a
sim um
e
“encontraram dois cadáveres jazendo um ao par do outro e (que), e em uma
saleta escura fronteira, achava-se gemendo um enfermo tendo por luz,
companhia e consolação só aquela desolante vista! E se em um Hospital é de
razão e humanidade que se oculte a morte a aqueles que ainda podem levantar-
se, não é menos horrível que o moribundo em seu juízo tenha por última triste
consolação esse espetáculo, digo, perspectiva, a dos mortos!”
646
A comissão finalizou este relatório com um alerta: nenhum doente poderia entrar
646 - A. C., sessões dos dias 11/07/1865, p. 191 e 18/07/1865, p. 197 e 198.
269
grande acúmulo de pessoas.
De acordo com Roberto Machado, os antigos hospitais brasileiros eram destinados,
ase a
ue o estabelecimento
ntre as novas
desse tipo, que grassou na cidade em períodos quase que ininterruptos
o mal somente seria controlado em março de 1876. E de tal maneira marcou esta epidemia
que, ela mesma, passou a ser considerada como a causa de falecimentos (e não a varíola ou a
sobretudo, aos doentes pobres e, pela sua organização e funcionamento, visavam muito mais
a “preparar o doente, pela religião, a uma boa morte.”
647
E, de fato, eram essas as
características encontradas no único hospital permanente na cidade, o da Misericórdia, bem
como nos vários lazaretos que se abriam e fechavam ao sabor das epidemias. Entretanto essa
regra, um tanto quanto geral, não significava que ações não fossem empreendidas no sentido
de proporcionar uma terapia de cura aos doentes; as experiências com a vacina em 1803 disso
são provas, bem como a administração de remédios (mesmo que falha) como citado neste
documento. De qualquer forma, e pensando na análise de Machado, observamos que este
lazareto para bexiguentos guardava semelhanças com os antigos hospitais, pois tinha como
b exclusão dos doentes como forma de se evitar a propagação do mal (colocado que
estava a uma certa distância da cidade) e de ser destinado aos pobres.
648
Mas frente a esta
situação notamos uma crítica - mesmo que velada – no sentido de q
deveria “curar” e oferecer condições para o restabelecimento dos enfermos e, de
medidas a serem adotadas, estaria o ato de poupar os doentes da “perspectiva da morte”.
De qualquer forma essas críticas, bem como a introdução da vacina na cidade, não
obstaram a eclosão de novos surtos de bexigas, como a ocorrida em 1869, bem como a maior
de todas as epidemias
entre 1873 e 1876. Esta iniciaria o seu caminho de destruição em setembro de 1873 e avançou
até agosto de 1874 para, em fevereiro de 1875, voltar com bastante intensidade. Nesta quadra,
bexiga) como nos mostra este registro de sepultamento:
“Atesto que pelas 4 horas da tarde do dia 8 de outubro [de 1873]
faleceu o inocente João, com 4 anos de idade, filho do Sr. João Xavier
Vieira de Moraes,
vítima da epidemia reinante ...”
649
Posteriormente, a epidemia reapareceria em fevereiro de 1878, ocasião em que
começou a ser planejado o Hospital de Isolamento nos altos do Araçá, atual Hospital Emílio
647 - Roberto Machado et alii, “Danação da Norma”, pg. 63 e 66
648 - Por essa época é comum encontrar-se nos registros de óbitos dos mortos por varíola, a menção de que o
doente falecera
no hospital dos indigentes, o que nos mostra claramente a condição dos doentes ali internados.
649 - Livro de Inumação do cemitério da Consolação, nº 5, 1873, p. 218.
270
R
50
ibas.
6
rtes; em 1898 ocorre um surto de
maiore
rias) e, com isso,
ontrib o para com a diminuição da expectativa de vida dos paulistanos. Por vários
Hidropisia 89
Verminose 70
Tísica 62
Febre 47
Congestão cerebral 16
Pequenos surtos ocorreram ainda em 1883, 1886 e 1889. Já a partir de 1895, com a
centralização das ações de saúde na esfera estadual, as estatísticas da morte passaram a ser
realizadas anualmente e, para a varíola, temos as seguintes informações quanto ao número
de mortos: 1895, 22 mortes; 1896, 21 mortes; 1897, 26 mo
s proporções, com 345 mortes anotadas; 1899, 07 mortes; 1900 com apenas 01 morte.
651
Entretanto, o que mais importa notar até aqui é que, durante toda a segunda metade
do século XIX, a varíola esteve a ceifar vidas na cidade de São Paulo, influenciando
enormemente nos índices gerais de mortalidade (nas diversas faixas etá
c uind
motivos ela causava terror, mas sabe-se que outras doenças eram tão ou mais letais que ela.
Fora das quadras epidêmicas, muitos outros males afetavam a saúde dos paulistanos,
matando-os muitas vezes em maior número e silenciosamente, poderíamos dizer, já que
muitas delas eram tidas mesmo como causas “naturais” a exemplo das verminoses nas
crianças e as inúmeras moléstias e inflamações internas. Para o período epidêmico que
ocorreu entre 1863 e 1864, por exemplo, registramos outras 676 mortes com causas diversas,
excluindo os 208 óbitos por varíola. Nesse sentido, a tabela a seguir é capaz de nos mostrar as
demais enfermidades que resultaram em mortes na mesma época em que a epidemia estava
em curso.
Inflamação intestinos 41
Moléstia interna 37
Tifo 29
Estupor 19
Paralisia 17
Repentinamente 13
Diarréia 10
Total 450
Para o caso de São Paulo, as análises que focam as áreas médicas e da saúde quase
sempre centram suas preocupações na tuberculose ou na febre amarela, que muitas vítimas
650 - Em fevereiro de 1878, o antigo lazareto para variolosos, já em ruínas, estava instalado no Areal, no bairro de
Santana. Mediante a necessidade de um novo lazareto, uma comissão escolheu um terreno localizado na “colina
do Araçá”, ao lado da “estrada de Pinheiros”. Seguindo os preceitos então vigentes, o que mais pesou nessa
escolha foi o
isolamento ou a distância em que a colina se encontrava “de pontos povoados”. Mais ainda, o novo
hospital ficaria “não muito distante do cemitério” da Consolação, algo de suma importância, alegou a comissão, e
isso “pela convicção em que está de que a propagação da varíola se opera muito eficazmente pelos miasmas virulentos que
exalam os cadáveres (...), completando que “Se pois o lazareto fosse colocado de modo que os corpos das vitimas da varíola
tivesse de percorrer centros populosos para irem ao cemitério, não se conseguiria o fim a que o estabelecimento se destina, qual
seja a
extinção do mal pela segregação tanto das pessoas afetadas, como dos corpos impregnados do vírus. (meus destaques)
A.C., 03/02 e 14/03/1878. Sobres este hospital de isolamento (atual Emílio Ribas) daremos mais alguns detalhes
nos capítulos seguintes.
271
fizeram finais do século XIX e primeiras décadas do XX. Sem dúvida alguma elas merecem
essa relevância, até porque a ocorrência desses males naquele período desencadearia ações
controversas e já amplamente discutidas como, por exemplo, o foco de seu combate centrar-
se na população mais pobre, nos moradores dos cortiços localizados no centro da cidade
(Santa Ifigênia, princip
amarela morriam os p
elas anotadas pelos m
A esse respeito
cinquenta e uma) doen
1860, elas eram apena
ue separam e se modificou, sofisticou-se,
ateve-se a detalhes, par a par com o avanço da microbiologia. Como já foi detalhado páginas
atrás, até meados dos oitocentos era a aparência ou aquilo que poderia ser visto e sentido (os
u
nome d
tos por cada doença. Algumas enfermidades, dada a sua maior ocorrência, encontram-
se sublinhadas ou em destaque; de algumas delas falaremos a seguir.
1890 M
almente). Porém, não apenas de varíola, de tuberculose ou de febre
aulistanos; muitas outras doenças se faziam presentes na cidade, todas
édicos nos registros de sepultamentos.
as pesquisas revelaram, para o ano de 1890, cerca de 351 (trezentas e
ças causadoras de morte na cidade e, vale lembrar, trinta anos antes, em
s 90 (noventa). Claro, nenhuma doença nova foi “inventada” nas três
1860 de 1890, apenas o olhar médico é qudécadas q
sintomas, portanto) que classificavam as doenças e a causa das mortes, assim nada a estranhar
que alguém morresse de uma pontada, ou por conta das inúmeras moléstias internas, afecções ou
inflamações diversas, de cupim nos pés, de histeria ou de alienação. Disso o povo entendia. Mas, a
partir das últimas décadas do século XIX, os r mos das doenças e da morte galgaram caminhos
desconhecidos, entraram pelo corpo, numa área que somente os médicos dominavam. Esta
sofisticação e todo detalhamento pode ser visto na tabela a seguir, esta elaborada com base nos
2.415 sepultamentos realizados na cidade no ano de 1890, onde listamos todas as causas de
morte, bem como suas quantidades. Seguindo uma ordem alfabética, na primeira coluna está o
a doença, em seguida a quantidade de sua ocorrência nos óbitos, estes divididos entre os
sexos masculino (segunda coluna) e feminino (terceira coluna); finalmente, na última coluna, a
soma de óbi
F T
651 - Anuário Estatístico do Estado de São Paulo, op. cit.., quadro Mortalidade das doenças infecto-contagiosas.
Abscesso fígado 02 - 02
Acesso algido 01 01 02
Acesso algido tifóide 01 - 01
Acesso intra abdominal 01 - 01
Acesso paludoso - 01 01
Acesso pernicioso 24 10 34
Adinamia 01 01 02
Afecção cerebral 01 - 01
Afecção coração 02 01 03
Afecção hepática 01 - 01
Afecção intestinal 03 05 08
Afecção palustre 02 - 02
Afecção pneumônica - 01 01
Afecção pulmonar 03 - 03
Afecção uterina - 01 01
Afecção vulminosa - 01 01
Afogamento 10 - 10
Aftas generalizadas 01 - 01
Alcoolismo 03 02 05
Amolecimento cerebral 03 03 06
Anasarca 01 01 02
Anasarca escarlatina 01 - 01
Anemia 06 07 13
Anemia cerebral 01 02 03
Anemia intestinal - 01 01
Anemia profunda 01 - 01
272
Aneurisma 01 - 01 Catarro tráqueo 01 - 01
Cestiane 1º grau 01 - 01
Cetenio intestinal - 01 01
Cirrose 02 01 03
Cirrose atrófica - 01 01
A a aorta 06 neurism 01 07
Aneurisma, ruptura de - 01 01
Angina 03 04 07
Angina crupe 01 - 01
Angina iftérica 04 04 08 d
Angina escarlatina 02 03 05
Angina gangrenosa 01 02 03
Angina maligna 01 - 01
Angina puerperal - 01 01
Angina putacis 01 - 01
Angina ulcerosa 01 - 01
Aorta, ruptura de - 01 01
Cirrose fígado 12 04 16
Cistite hepática 01 - 01
Colapso - 01 01
Colapso cerebral 02 01 03
Cólera infantil 01 - 01
Colerina 02 01 03
Coma diabético - 01 01
Concupção 01 02 03
Congestão cerebral 20 07 27
Congestão hepática - 01 01
Congestão pulmonar 02 03 05
Constipação 01 - 01
Convulção cerebral 01 - 01
Convulção-convulsões 16 06 22
Convulsão intestinal - 02 02
Coqueluxe
Aorta toráxica 01 01 02
Apoplexia 02 01 03
Apoplexia cerebral 02 01 03
Apoplexia cerosa - 01 01
Apoplexia pulmonar 01 - 01
Ascila (Ascita?) 01 - 01
Asma - 01 01
Asma cardio vascular 02 - 02
07 08 15
Criança abandonada 02 01 03
Assistoba - 01 01
Atematite
Crupe 01 01 02
Defitomon mesentérica - 01 01
Degenerência - 01 01
Delirium tremens 02 - 02
Demência - 01 01
Dentição 01 05 06
Dentição eclampsia - 01 01
Diabetis 01 - 01
Diactose gangrenosa - 01 01
Diarréia 26
- 01 01
Atrepsia 80 65 145
Atrepsia fígado 01 - 01
Atrepsia por diarréia - 01 01
Atrepsia tuberculose 01 - 01
Atrofia fígado 02 - 02
Auramento cerebral - 01 01
Bacilose pulmonar - 01 01
Beriberi - 01 01
30 56
Diarréia coleniforme - 01 01
Bronco pneumonia 27 25 52
Bronco pleuro pneumonia 01 01 02
Bronquit
Diarréia hepática - 01 01
Diarréia palude 01 - 01
Diarréia palustre 01 - 01
Diarreia verde 04 01 05
Difteria 03 01 04
Difteria variolosa 01 - 01
Dugor petoris 01 - 01
Eclampsia 06 04 10
Edema cerebral -
e 24 11 35
Bronquite asmática 01 01 02
Bronquite capilar 42 53 95
Bronquite pulmonar 01 - 01
Cancro no estômago 03 - 03
Cancro na face - 01 01
Cancro no seio - 01 01
Cancro no útero - 02 02
Caquexia 04 01 05
01 01
Caquexi
Edema geral 01 - 01
Edema pulmonar 01 - 01
Efisema 01 01 02
Embolia cerebral 04 05 09
Encefalite
a arterial 01 - 01
Caquexia cancerosa 01 02 03
Caquexia cardíaca - 01 01
Caquexia hepática 01 - 01
10 06 16
Encontrado morto 01 - 01
Endo artenite 01 - 01
Endocardite reumática 02 - 02
Engorgitamento fígado 01 - 01
Enterite 48 49 97
Enterite (A)Otronico 01 - 01
Enterite abnomica - 02 02
Enterite catarral 01 - 01
Enterite cloriforme - 01 01
Enterite perniciosa - 01 01
Entero chagia - 01 01
Enterocolite 60 44 104
Epilego nefrite epitedial - 01 01
Epilepsia 01 01 02
Escarlatina 02 01 03
Eschuose medular - 01 01
Caquexia paludosa - 02 02
Caquexia 01 01 02 palustre
Caquexia senil - 01 01
Caquexia sifilítica - 01 01
Caquexia tuberculose 01 - 01
Caquexia ulcerosa 01 - 01
Carbúnculo 01 - 01
Carcinoma - 01 01
Carcinoma abdominal 01 - 01
Carcinoma estômago - 02 02
Carcinoma interno - 01 01
Carcinoma intestinal 01 01 02
Carcinoma útero - 02 02
Catarro pulmonar 01 02 03
Catarro senil 01 - 01
Catarro sufocante 10 10 20
273
Escorbuto 01 - 01
Esmagamento tórax 01 - 01
Espasmo 01 01
02
Esteatose cardíaca 02 - 02
Estomatite - 02 02
Estomatite ulcerosa 02 - 02
Estrangulação 01 - 01
Estrangulamento interno 01 - 01
Estreitamento do esôfago - 01 01
Febre - 01 01
Febre amarela 04 01 05
Febre americana 01 - 01
Febre angina 02 - 02
Febre biliosa 02 03 05
Febre catarral 01 01 02
Febre cerebral - 01 01
Febre dinâmica 01 - 01
Febre escarlatina 01 01 02
Febre gástrica 02 - 02
Febre inflamatória - 01 01
Febre malárica 01 03 04
Febre paludosa 11 06 17
Febre palustre 25 08 33
Febre peritonite - 01 01
Febre perniciosa 20 20 40
Febre puerperal - 02 02
Febre remitente 13 24 37
Febre tifóide 38 21 59
Febre tísica 02 03 05
Ferimento coração 01 - 01
Ferimento penetrante 01 - 01
Idem pulmão e coração - 01 01
Fimatose - 01 01
Fimatose pulmonar 01 - 01
Fraqueza - 02 02
Fraqueza congênita 08 10 18
Fratura cervical - 01 01
Fratura crânio 01 01 02
Fratura rachis 01 - 01
Gangrena 02 - 02
Gangrena boca - 02 02
Gangrena esterinos 01 - 01
Gangrena geral - 01 01
Gangrena pés 01 - 01
Garpina pulmão 01 - 01
Gastrite 01 - 01
Gastro nterite 41 43 84 e
Gastro enterocolite 02 06 08
Gastro hepático 02 02 04
Gastro intestinal 01 - 01
Glânglios mesentéricos - 01 01
Hemorragia 01 02 03
Hemorragia cerebral 21 14 35
Hemorragia consecutiva 02 - 02
Hemorragia interna - 01 01
Hemorragia por ferimento 02 - 02
Hemorragia pós parto - 04 04
Hemorragia pulmonar 06 01 07
Hepaterção pulmonar 02 - 02
Hepatite 03 10 13
Hepatite infecciosa - 01 01
Hepatite intestinal 01 - 01
Hepatite suporada 01 - 01
Hepato aplenite - 01 01
Hepato enterite - 01 01
Hérnia estrangulada 01 - 01
Hernia umbilical - 01 01
Hidro encefalite 01 - 01
Hidrofobia 01 - 01
Hidropericardite 02 - 02
Hidropesia 01 01 02
Hidroteção 01 - 01
Hipertrofia do coração 02 - 02
Hymanegite 01 - 01
Icterícia - 03 03
Ictus apoplético - 01 01
Impaludismo 08 15 23
Inanição 01 04 05
Infecção - 01 01
Infecção cancerosa 01 - 01
Infecção malitosa - 01 01
Infecção morbilosa 01 - 01
Infecção palustre 02 03 05
Infiltração purulenta 01 - 01
Infecção urêmica 01 - 01
Influenza 01 - 01
Insolação 01 - 01
Insuficiência aorta - 02 02
Insuficiência mitral 08 05 13
Intoxicação 02 - 02
Intoxicação palustre 01 - 01
Intoxicação teltúrica - 01 01
Inviabilidade 10 11 21
Irregularidade circulação 01 - 01
Laringite perniciosa - 01 01
Laringite Hysmutosa - 01 01
Lepra tuberculosa - 01 01
Lesão no coração 68 48 116
Lesão mitral 02 - 02
Lesão orgânica - 01 01
Lesão orgânica pulmonar 01 - 01
Lesão renal - 01 01
Lues cerebralis (hospício) - 01 01
Mal de Bright (nefrite) 06 03 09
Marasmo 07 08 15
Marasmo melancólico 03 - 03
Marasmo paralítico 02 - 02
Marasmo do sangue - 01 01
Marasmo senil 03 07 10
Meningite 24 13 37
Meningite cerebral 02 - 02
Meningite e dentição - 01 01
Meningite encefalite 06 03 09
Meningite tuberculosa 03 01 04
Mesenterite 04 03 07
Mesenterite tuberculosa - 01 01
Metro peritonite - 06 06
Metro puerperal - 01 01
Mielite 01 - 01
Miocardite infecciosa 01 - 01
Misério orgânico 01 - 01
Moléstia natural 01 - 01
Mórfea 01 - 01
Necrose ossos 01 - 01
Nefiterite pneumatoce - 01 01
Nefrite 08 02 10
274
Nefrite panchimatose 01 - 01
Nefrite parenchimatose 03 03 06
Septecemia puerperal - 01 01
Serose renal - 01 01
Seselento 01 - 01
Sífilis 05 02 07
Obstrução intestinal 01 01 02
Oclusão intestinal 01 - 01
Opressão no ventre 01 - 01
Paralisia 03 03 06
Paralisia agitante 01 - 01
Paralisia geral 03 01 04
Parto - 03 03
Paturmismo 01 - 01
Pelendinâmica 01 - 01
Peritonite 01 06 07
Peritonite puerperal - 01 01
Peritonite suporada 01 - 01
Peritonite tifóide 01 - 01
Sífilis congênita 04 01 05
Sífilis constitucional - 01 01
Sífilis pulmonar 01 - 01
Síncope - 01 01
Síncope cardíaca 04 06 10
Talies dorseales 01 - 01
Tétano 05 04 09
Tétano recém nascidos 08 06 14
Tétano traumático 01 - 01
Tifo 05 04 09
Tifo abdominal 02 - 02
Tifo palustre - 01 01
Tiro revólver 01 - 01
Tísic 04 04
P.H. tísica - 01 01
Pleurisia (pleurite) 02 - 02
Pleuro pneumonia
a -
Tísica 05 07
01 03 04
Pleuropneumatórax
pulm a 0on r 2
Tosse uls 2 01 03
02 - 02
Pneumatose pulmonar
conv a 0
Tubé s ge eralizad 04 04
01 - 01
Pneumonia
rculo n os -
Tubérculos laringe 1 - 01
21 15 36
Pneumonia dupla
0
Tubérculos mesentéricos 4 18 42
07 03 10
Pneumonia hepática
2
Tubé s pu onare 9 60 109
01 - 01
Pneumonia tífica
rculo lm s 4
Tuberculose 2 31 63
01 - 01
Polinerite infecciosa
3
Tumor 1 - 01
01 - 01
Poscumoneto 1
0
Tumor cerebral 1 - 01
- 0 01
Pústula maligna
0
Tumor garganta 1 - 01
01 - 01
Queimadura 3
0
Tumores escrofulosos 1 - 01
05 0 08
Raquitismo 3
0
Ulceração intestinal 01 -
05 0 08
Reumatismo 1
-
Urem igti Bright) 01 01
01 0 02
Rutonite 01
ia Br a ( -
Valvulo - 01
- 01
Sanani (snani)
01
Varíola 01 04
- 01 01
03
Velhice 03 10 13
Veneno ofídico 01 - 01
S o arampã 04 03 07
Sarampo 07 01 08
Sem Assistência médica 64 61 125
Septecemia 01 04 05
Septecemia cardíaca - 01 01
Vermes 11 05 16
Volvo - 01 01
Para a construção deste quadro, optamos pelo registro de cada uma das doenças da
forma como elas se encontram nos livros de óbitos, atualizando apenas a sua grafia e
desconsiderando os lapsos ocorridos na escrita de outras. Dessa forma, temos para a cidade
de São Paulo, no ano de 1890, a mais completa estatística de morte que, certamente, poderá
subsidi
As crianças, por exemplo, eram afetadas pela atrepsia (problemas relacionados à
desnutrição) com 145 casos e que, somada à coqueluxe (15 casos), crupe (02) e verminoses
(16), podem já nos oferecer um quadro a respeito da mortalidade infantil que, em mais
detalhes, será tratada no próximo capítulo. Outras análises, por sua vez, poderiam ser
realizadas com base nos males que atingiam o sistema respiratório, incluindo aqui as
ar outras análises como, por exemplo, a partir dos órgãos afetados, o caráter infecto-
contagioso das enfermidades, bem como outros agrupamentos possíveis, cuja morbidade são
altamente reveladoras da vida e das condições sociais.
275
bronqu es, pneumonias e tuberculose que somadas, representam cerca de 450 casos de
morte. ssa mesma concepçã os c aparelho digestivo (muitos
deles de caráter infeccioso) fo
que, dos 2.415 óbitos anotados rido devido a lesões
número bastante expressivo por sinal, sendo que a enfermidade afetou –
como n
m assistência médica. De fato, a expressão
ntes indicaria uma situação do que uma enfermidade, posto que diz respeito a uma
rovável falta de “assistência médica” durante a doença. Sem dúvida que isso ocorria, porém
um registro de mort , qual seja, a de que
o atestado de óbito não fora firmado por um médico. A falta de assistência médica, portanto,
seria em relação à morte, não obstante a grande possibilidade de também o ter sido durante a
enfermidade. S eriam
“atestar” como
se que
80% dos casos citados como sem assistência médica referem-se a crianças, desde recém-
nascidos até a idade de dois ou três anos. Os emais idem e entr pessoas com
60 anos ou ma anto a
atenção por serem consideradas “naturais”; completaram a lista muitos indigentes
encontrados m de tal
causa uma vez alquer
identificação o mava
dizer. Mais ain pelos
profissionais da medicina naq le m ento A mor usa e uito comum
em épocas anteriores, agora já não deveria mais ser aceita e, para a sua verificação, a opinião
aspecto, a identificação de que houvera
um fale
it
Ne o, os problemas relacionad om o
ram a causa de mais de 160 mortes. Chama a atenção também
para o ano de 1890, 116 deles tenham ocor
no coração, um
a atualidade – mais os homens (68 casos) do que as mulheres (48 casos). A varíola, por
sua vez, não fez muitas vítimas naquele ano, anotando-se apenas 4 casos. Por último, cabe
uma explicação a respeito de uma causa que, num primeiro momento pode nos parecer
estranha, ou seja, os 125 casos registrados como se
a
p
e assim redigido explicitava uma outra circunstância
egundo as disposições legais daquela época, outros profissionais pod
, por exemplo, os delegados de polícia ou as parteiras.
652
Assim, verifica-
d casos div -s e as
is (10%) e cujas mortes, a exemplo do das crianças, não chamavam t
ortos. De qualquer forma, não deixa de ser representativa a citação
que, entre as décadas de 1860 e 1870, tais óbitos não mereceriam qu
u, então, cairiam no comum das “moléstias incógnitas” como se costu
da, a causa mortis sem assistência médica nos revela o espaço galgado
ue om . te sem ca specífica, m
de um médico não poderia ser dispensada; sob esse
cimento “sem assistência médica” até poderia dar direito ao sepultamento no cemitério,
mas era também um alerta que, antes, jamais seria feito.
Resta-nos analisar o caso das “febres”, estas apontadas como causa para 244 mortes
652 - Tal prerrogativa acabou sendo utilizada por outros profissionais que também se julgavam aptos a passar tais
certidões. Em 1900, por exemplo, o administrador do cemitério do Araçá reclamava: “Acontecendo que alguns
escrivães passam certidões de pessoas falecidas
sem assistência médica, não tendo para tal fim o atestado do facultativo e
trazendo isto embaraços ao serviço desta administração, peço-vos digneis providenciar perante ao Sr. Secretário do Interior,
para que os srs. escrivães deixem de passar as referidas certidões (...) para serem os cadáveres depositados no necrotério deste
cemitério a disposição do médico da Polícia afim de constatar a causa mortis.” Coleção Papéis Avulso do A.H.M., 1900,
vol. 1.476, doc. s/nº, datado de 11/10/1900.
276
ocorridas em 1890, incluindo aqui o chamado “impaludismo”, também conhecido como febre
palustre, terçã ou quartã, nomes esses que identificam hoje a malária.
1890 M F T
Febre - 01 01
Febre amarela 04 01 05
Febre americana 01 - 01
Febre angina 02 - 02
Febre biliosa 02 03 05
Febre catarral 01 01 02
Febre cerebral - 01 01
Febre dinâmica 01 - 01
Febre escarlatina 01 01 02
Febre gástrica 02 - 02
Febre inflamatória - 01 01
Febre malárica 01 03 04
Febre paludosa 11 06 17
Febre palustre 25 08 33
Febre peritonite - 01 01
Febre perniciosa 20 20 40
Febre puerperal - 02 02
Febre remitente 13 24 37
Febre tifóide 38 21 59
Febre tísica 02 03 05
Impaludismo 08 15 23
Total de casos 244
Em 1890, portanto, registraram-se 20 (vinte) tipo diferentes de “febres” nos óbitos, mas oito
anos antes, em 1882, a quantidade delas foi bem menor, 09 (nove), como podemos ver na tabela:
1882 M F T
Febre 07 05 12
Febre intermitente 01 - 01
Febre maligna - 01 01
Febre miliar 01 - 01
Febre paludosa 01 - 01
Febre perniciosa 05 02 07
Febre puerperal - 02 02
Febre remitente 03 02 05
Febre tifóide 12 10 22
52Total de casos
Para 1872, anotamos um número ainda menor, apenas 07 (sete), assim descritas: febre,
febre catarral, febre cerebral, febre consumptiva, febre escarlatina, febre perniciosa e febre
tifóide. Como podemos retroceder ainda mais, para o ano de 1862 o levantamento indicou
somente
04 (quatro) diferentes “qualidades” deste mal assim contabilizados:
1862 M F T
277
Febre 22 23 45
Febre tifo - 01 01
Febre catarral - 01 01
Moléstia de febre 01 01 02
Total de casos 49
Como em todos os anos apontados, é possível ainda verificar a ocorrência dessas
febres tendo em vista a faixa etária e, para os 49 casos anotados em 1860, em apenas três
deles não constava a idade do falecido. Assim, a tabela por idade de falecimento em
decorrência de febres nos mostra a sua grande incidência entre as crianças, com 21 registros
para os menores de um ano e 17 para os que se encontravam na faix
653
a entre um e cinco
anos.
O quadro, portanto, é o seguinte no que diz respeito à faixa etária:
- 01 ano 21
01 a 05 17
06 a 10 02
21 a 25 03
26 a 30 01
+ de 50 02
Importa, certamente, não apenas verificar a pequena quantidade de 04 tipos de febres
1860,
já identificando um problema
otamos
1890 espelha justa
por arcabouço uma ep
em primeiro lugar, e o
em e a sua variação para 20 em 1890. De fato, e para o primeiro período, temos que
levar em consideração a questão de que a maioria dos bilhetes de sepultamentos não era
redigida por médicos, e sim por padres. Estes, ao atestarem a morte, geralmente se valiam de
informações passadas por familiares ou pessoas mais próximas do doente. Porém, as
informações não devem ser invalidadas, até porque aqui conseguimos nos aproximar das
referências, da experiência, ou de um saber popular a respeito das doenças e da morte:
morria-se mesmo era de febre, não importando qual o tipo, o órgão afetado ou menos ainda
as suas origens.
Entre 1872 e 1882, a febre ganha algumas individualizações, intensifica-se a sua
classificação, seja a partir do órgão atingido (febre cerebral) ou
específico (febre puerperal), o que nos mostra uma presença mais ativa dos médicos na
avaliação das enfermidades e, principalmente, sua atuação mais efetiva quanto à elaboração
dos atestados de óbito. Por outro lado, o aumento excessivo nos tipos de febres que n
para mente essa sofisticação de um olhar médico que, naquela época, tinha
istéme anatomopatológico; os órgãos atingidos e suas lesões visíveis,
s seus sintomas, por último. A proliferação de inúmeras “febres” no
653 - Aqui apenas como um exemplo das possibilidades oferecidas pelos Registros de Sepultamentos, o caso da
278
final do século XIX, como demonstrado no quadro para 1890, é um claro exemplo disso.
E já que a distância no tempo obscurece o entendimento que se tinha a respeito das
febres, podemos nos valer de um “Guia Médico”
654
daquele período onde o verbete que
descreve este mal foi redigido da seguinte maneira:
Febres. – Não symptomaticas das moléstias agudas. Na Europa e em todas as regiões existem muitas febres
distintas. No Brasil não temos senão uma febre, é a febre palustre, a febre do veneno dos pântanos, que
ora se chama Febre intermitente, ora Maleitas, ora Sezões, ora Febre thyphoide, ora Febre perniciosa,
ora Febre larvada, ora Febre biliosa grave dos países quentes. Todas estas designações não indicam
s m só e o mesmo fato: o envenenamento do sangue pela absorção de plantas microscópicas, enão u
geradas nos pântanos.
Ao trazer esta primeira explicação, o guia já nos mostra a relação que se fazia entre as
febres e os pântanos, as áreas alagadas, tão comuns em São Paulo naquele período, e
esclarece um pouco mais sobre os perigos então presentes naquele momento, especialmente
os imputados à Várzea do Carmo como já tivemos a oportunidade de analisar. Por outro
lado, afirma-se: apesar dos vários nomes, existia mesmo apenas uma febre em São Paulo, a
alustre. Em seguida, continua o guia, era preciso dizer que a febre amarela, tão comum no
litoral, não ultrapassav
também estariam ele
absolutamente as condições de origem e da propagação.” O que se chamava por tal nome nada
mais er
na cor da pele, da língua, etc., era muito mais aguçada que a nossa, já que exigia-se isso em
relação à doença; hoje não mais. Daí que o mais leve tremor no corpo, ou uma simples dor de
cabeça mereciam atenção, até porque existia mesmo a febre sem febre:
p
a a serra do mar e, por isso os paulistanos dela estavam livres. Livres
s da febre tifóide, porque para ela em São Paulo “faltariam-lhe
a do que “a nossa febre palustre”, muito ardilosa, por sinal, já que ela se apresentaria
“sob todas as formas, revestindo todas as feições, todas as máscaras, ocasionando assim graves erros de
diagnósticos pela variedade de tipos que pode afetar e de sintomas que pode apresentar.”
Toda essa descrição, como lembrado por Foucault, pode nos parecer confusa, mas
certamente não o era para aquela época. Como disse este autor, aquela rede “desordenada para
os nossos olhos” contemporâneos é um problema moderno, pois ela“se tornou confusa no dia
em que o olhar médico mudou de suporte epistemológico”.
655
A sensibilidade do olhar, a prática em perceber pequenas alterações na temperatura,
mortalidade infantil será tratado com mais vagar no próximo capítulo.
654 - “Guia Médico” publicado no “Almanacha Litterario de São Paulo para o ano de 1879” por José Maria Lisboa;
S.P.: Ed. fac-similiar, Governo do Estado de S. Paulo e Instituto Histórico e Geográfico de S.P., s/ data, p. 05 a 43.
Apesar de não conter assinatura ou qualquer outra indicação, constatei que este “Guia Médico” foi baseado em
dois grandes dicionários médicos do período, um de autoria de Chernoviz, e o outro de Langaard.
655 - Foucault, Michel; O Nascimento da Clínica, 1994, especialmente o capítulo X, “A crise das Febres”, p. 199 e segs.
279
A nossa febre palustre apresenta todos os graus de intensidade: desde o mais benigno arrepio de
corpo, ou a mais leve dor de cabeça, manifestando-se a uma hora certa, até a mais violenta explosão de
um ataque pernicioso.Nenhuma moléstia existe no mundo mais traiçoeira. Devemos estar sempre
alerta, na cabeceira de qualquer doente, para não deixar escapar o menor indício de sua presença.É
uma febre de tal ordem que muitas vezes o doente, no estado mais perigoso, não acusa absolutamente
reação febril alguma, não tem sede, não tem dor, não se queixa de cousa alguma. É uma febre sem
febre ! É a esta forma que se dá o nome de febre larvada, que quer dizer mascarada. Neste caso, o mais
seguro indicio da gravidade da moléstia, é o aspecto de apatia, de indiferença, de irresolução, de
grande abatimento moral e físico, que se nota no rosto do doente: é a sua nenhuma vontade de deixar o
leito, no qual conserva-se indefinidamente deitado de costas; é, enfim, um tremor mais ou menos
pronunciado, que se observa nas mãos, nos braços e na língua, que é ordinariamente seca, e coberta de
uma camada de muco espesso, mais ou menos escuro ou cor de fuligem, do mesmo modo que as
gengivas, os dentes e os lábios. (...) Os doentes que morrem de pneumonia, morrem realmente de febre
perniciosa. A pneumonia franca e simples é uma moléstia benigna, da qual ninguém morre. (meus
destaques)
656
A cautela diante das febres era algo compreensível, pois elas se constituíam, ao lado
varíola, numa das grandes causas de morte durante todo o século XIX como bem
demonstram as estatísticas. Ao mesmo tempo, o receio dessa doença, bem como o
conhec
águas pútridas”. Ao ler as reclamações enviadas à municipalidade fica a impressão de que,
imento que se tinha a respeito de suas causas, possibilitou a construção de uma nova
imagem da cidade enquanto portadora de perigos. Apesar de já existirem reclamações a
respeito das águas pútridas e estagnadas por toda cidade, foi somente a partir do último
quartel do século XIX que verificou-se, a exemplo da poeira, uma verdadeira “neurose das
instantaneamente, todas as ruas da cidade estavam cheias de buracos com águas estagnadas,
o lodo esverdeado invadira as ruas, especialmente as do Bom Retiro e de Santa Ifigênia,
febres pipocavam nas margens do Tamanduateí e do Anhangabaú; clamava-se por
calçamentos e completo “esgotamento” da cidade como forma de se evitar os focos
“paludosos” que, se ainda não haviam provocado doenças, certamente as trariam com a
exposição dos moradores às suas “exalações pestíferas”:
“Ofício do Dr. Chefe de Polícia de 23 de Feverreiro findo, comunicando que
tendo denúncia da existência de
agoas estagnadas no campo dos Curros
produzindo typho nas proximidades, para ali se dirigio acompanhado de um
médico, encontrando com efeito agoas acumuladas que pela natureza do
terreno não podiam ter fácil derivação; mas foram informados que os casos
de typho que ali se deram foram antes das chuvas, concordando entretanto o
médico que
a conservação das agoas pela acção mais ou menos demorada do
sol pode produzir moléstias, pelo que pedia providências a respeito – Que se
656 - “Guia Médico”, op. cit. Apesar de não ser citada nos registros de sepultamentos, existia ainda uma febre
exclusiva na região, a chamada “Febre Paulista”, tal era a importância do mal e suas características ditas especiais.
Em finais do século XIX (entre 1896 e 1897) travou-se inclusive uma discussão no meio médico se tal febre
realmente existiria ou, se ao contrário, não seria ela uma forma de malária ou de febre tifóide. Tal discussão pode
ser acompanhada em Antunes (1992) e em Teixeira (2004).
280
lhe responda que já está providenciado.
657
(meus destaques – o antigo Campo
dos Curros é a atual Praça da República)
E assim, num contínuo, a cidade foi tematizada por este viés: percebia-se que a rua 24
de Maio estava coberta com águas estagnadas; que a rua da Imperatriz (hoje 15 de
Novembro) até o Largo do Rosário (Praça Antonio Prado) estava cheia de poças exalando
uma fedentina insuportável, havendo queixas “dos transeuntes que vem-se obrigados a tapar o
nariz pa
Apesar desse cheiro nauseabundo ainda causar temor, a ele adicionou-se a existência
dos monstruosos micróbios. As águas pútridas transformam-se então num verdadeiro caldo
ra não serem atacados de dor de cabeça”
658
, da antiga rua dos Bambús nos Campos Elíseos
(atual Av. Rio Branco), passando pelas problemáticas baixadas do Brás e do Pari, e até as ruas
do centro, as reclamações somavam-se ás dezenas: notava-se com temor a formação “de
verdadeiras lagoas em dias de chuva”. Estas, por sua vez e com a ação do sol, produziam
“miasmas deletérios”, transformando-se em verdadeiros “focos de infecção e de moléstias.”
mortífero:
“A comissão de Hygiene examinando a petição de Dyonizio Pereira
dos Santos, proprietário de diversas casas no Largo do Arouche,
casas esses em que estabeleceu
um esgoto de matérias fecaes para o
tanque do Arouche, sem licença nem siquer consulta desta
Intendência a exemplo do que também fez, segund
Jaguaribe Filho, em suas casas contíguas, attendendo
o diz, o Dr.
-se a que esses
exgotos que servem cerca de seis casas além das duas do Dr.
Jaguaribe, todas hoje ocupadas com moradores, convergem para um
córrego que passa pelos fundos das diversas casas da rua Santa
Cecília e D. Maria Thereza, córrego esse
cujas águas são aproveitadas
por todos os moradores dessas casas para os diversos misteres, tendo
em vista o enorme perigo que d´ahi provém não só a esses
moradores, como a todo o bairro, é de parecer que se mande obstruir
esses encanamentos (...)”
659
O nosso olhar contemporâneo – não o daquela época – percebe aqui a origem de
muitas das diversas febres que grassaram na cidade durante todo o século XIX, ou seja,
através do consumo de águas carregadas de impurezas por conta dos despejos de lixo e
esgotos realizados nos córregos. Como vimos em detalhes na primeira parte deste estudo, o
lixo escorria por toda a cidade e, descendo as encostas, “infectavam” as águas do
Anhangabaú e do Tamanduateí. Por vezes eram as águas dos próprios chafarizes que,
657 - A. C., sessão do dia 07/03/1874 p. 40. O “campo dos Curros” é a atual Praça da República.
658 - A. C. 18/04/1892, volume manuscrito, p. 32 verso.
659 - A. C. sessão do dia 03/12/1890, p. 236.
281
abastecendo as residências, levavam consigo os germens da febre e de inúmeras doenças.
660
A
esse respeito, aliás, lembrou o memorialista Vieira Bueno - muitos anos depois, é preciso
dizer – do verdadeiro horror que deveriam ser tais águas:
chafariz da Misericórdia, que era a que se gastava em nossa casa. Vinha do
tanque chamado Reúno, que era uma represa dum pequeno córrego afluente
do Anhangabaú; e em seu trajeto, até chegar na cidade, passava por um rego,
descoberto, parte do qual atravessava um arrabalde escuso, chamado rua do
sabugos, de chifres, de ossos, e de outros resíduos imundos, porque os
moradores eram quitandeiros de miudezas do matadouro.”
“... arrepiam-se-me os cabelos quando me lembro da impureza da água do
Rego, cujo ar era empestado, e cujo chão era juncado de caveiras de boi, de
ito a desejar, a caixa d´água era alimentada por uma tubagem única de trinta
centímetros de diâmetro, provinda dos mananciais da serra da Cantareira; pouquíssimas eram as
residências” que podiam contar com tal benefício mesmo nos anos de 1890.
662
De tal maneira
stavam seus moradores às voltas com as febres e um sem número de outros males que
eifavam-lhes as vidas, a grande maioria ainda em tenra idade.
661
Claro que desde a década de 1870 a cidade já contava com um sistema de água
encanada implantado pela Cia. Cantareira, mas como nos informa Everardo Vallin de Souza,
este “serviço deixava mu
era a vida na cidade que, não fossem as quase anuais epidemias,
e
c
Capítulo 2 – A mortalidade infantil
660 - Entre finais do século XIX e início do XX, a água esteve relacionada também com um outro perigo, como nos
mostra o seguinte discurso: “Indico que o Exmo Sr. Dr. Prefeito mande intimar aos proprietários de terrenos alagadiços e
brejos existentes na rua Anhangabaú, a saneá-los visto ser o ninho de enorme quantidade de mosquitos, hoje francamente
considerados transmissores do germen da febre amarella. S.Paulo 07 de março de 1903 - Dr. P. da Rocha - À Prefeitura.”
A.C. 07/03/1903, pg. 63 e 64.
661 - Bueno, Francisco de Assis Vieira; A cidade de São Paulo – recordações evocadas de memória; S.P.:, Academia
Paulista de Letras, 1976, p. 23.
662 - Souza, Everardo Vallim Pereira de; Reminiscências acadêmicas 1887-1891 – metamorfose da paulicéia provinciana
em grande metrópole; In: Moura, Carlos Eugênio Marcondes (org.); “Vida Cotidiana em São Paulo no século XIX”;
S.P.: Ed. da Unesp e Imprensa Oficial do Estado, 1999, p. 205.
282
As crianças morriam cedo, àquele tempo. Raras medravam.
663
Seu nome era Ana, nasceu em São Paulo em 1860 e morava no distrito da Sé. Ela não
tinha sobrenome, e este era o costume. Essas crianças eram apenas filhas de Franciscas,
Ana, a exemplo das inúmeras Marias, Josés e Beneditos, passaram rapidamente pela
cidade e, enquanto isso, estavam a andar descalças em casa, nas ruas e calçadas; brincavam
nos quintais de terra onde era costume criar-se algumas galinhas e porcos, bem como era o
local onde se despejavam part
Antonias ou, quanto muito, de um certo Manoel ou Joaquim.
es do esgoto e do lixo doméstico. E as crianças da casa viviam
por ali.
ógnito, um caso corriqueiro na São Paulo daquela
época.
6
Foi sepultada no dia seguinte, no cemitério da Consolação, na Quadra 2ª dos Anjos do Meio,
em exceção, eram, na verdade, a
regra n
Ana era filha de Margarida, tão somente. Mãe e filha sem sobrenomes. Margarida era
criola, nascida no Brasil, e escrava; Ana também. De seu pai nenhuma informação. A menina,
como centenas de outras, era filha de pai inc
64
Ana, portanto, nascera escrava e sua mãe, Margarida, pertencia a Gabriel Serafim da
Silva. A menina, por sua vez, e mesmo com pouca idade, tinha outra senhora, já que escrava
de D.Maria Leopoldina de Siqueira.
Ana passaria rapidamente por São Paulo, pois viveu muito pouco. Com apenas dois
anos já sofria com uma verminose que lhe tiraria a vida, e isto no dia 8 de fevereiro de 1862.
sepultura nº 44.
665
Ana teve uma breve existência e, a não ser talvez pela anotação de seu de
batismo, o registro mais detalhado de sua vida foi aquele onde constou a sua morte. E como
ela, assim ocorreu com milhares de outros pequenos que, quase anônimos, viveram
pouquíssimo tempo na cidade do século XIX.
Casos como os de Ana, antes de se constituírem
aquele período.
666
Para exemplificar este caso, ou seja, para que tomemos um contato
inicial com a impressionante taxa de mortalidade anotada entre as crianças nascidas em o
Paulo, podemos nos valer do estudo pioneiro de Maria Luiza Marcílio que, para o ano de 1798,
anotou (entre adultos e crianças) um total de 310 mortes na paróquia da Sé. Repartindo os
663 - Penteado, Jacob; Belenzinho 1910 (1962), p. 30.
664 - Marcílio (1974) registra, no período de 1741 a 1845 na paróquia da Sé, cerca de 21.681 batismos. Destes, 5.032
eram “filhos ilegítimos”, numa proporção de 23,20%.
665 - Livro de Inumação do cemitério da Consolação, 1860, cujo termo de sepultamento é o seguinte: “Aos 8 dias do
mês de Fevereiro de 1862, foi sepultada no cemitério Municioal o Quadro 2º dos Anjos do Meio, sepultura nº 44, o cadáver de
Ana, párvula de 2 anos de idade, falecida hoje nesta Paroquia de bichas, filha de Margarida, criola, solteira, escrava do Sr. Gabriel
Serafim da Silva e sendo a dita Ana escrava da Sra. Maria Leopoldina de Siqueira, pode ser sepultada no Cemitério Público. Sé de
São Paulo 8 de Fevereiro de 1862. O Cura Marcelino Ferreira Bueno, e nada mais constava a dita guia. O Administrador.”
666 - A mortalidade infantil já foi tema de vários estudos. Para o caso europeu veja George Rosen (1994),
especialmente o capítulo “Uma chacina de inocentes”, p. 118 e seguintes. No Brasil, veja Jurandir Freire Costa
283
óbitos por idade, a autora construiu a seguinte tabela:
Idade Homens Mulheres Total
- de 1 ano 62 43 105
01 a 04 anos 31 19 50
05 a 09 anos 04 06 10
10 a 19 anos 07 06 13
20 a 29 anos 14 26 40
30 a 39 anos 16 18 34
40 a 49 10 11 21
59 a 59 07 06 13
60 a 69 07 08 15
70 a 79 02 04 06
+ de 80 02 01 03
Total geral 162 148 310
Dos
óbitos verificados no período (310 no total), 50% deles, ou 155 casos, diziam
respeito a crianças de até quatro anos de idade.
667
Apesar de não apresentar as causas
faixa etária, a autora nos traz um dado muito
importante, qual seja,
eram as febres com 2
sabemos, este mal (as
de vida, o que nos leva
origem este problema
E é justamente isso que confirmamos, por exemplo, para 1860. Naquele ano,
egistraram-se 461 mortes na cidade e, dentre elas, 194 (ou cerca de 43%) foram de crianças
até de 1
específicas para os falecimentos nesta
a de que no período entre 1799 a 1809, o primeiro fator de mortalidade
60 casos, e em seguida as verminoses com 177 anotações. Como
verminoses) atingia quase que exclusivamente as crianças até 10 anos
a deduzir que a maioria das 155 mortes acima citadas tiveram como
.
r
0 anos de idade, assim divididas por faixa etária:
Recém nascidos e - 01 ano 100
De 01 a 05 anos 076
De 06 a 10 anos 018
Total 194
Dentre as causas anotadas para esses falecimentos, a verminose liderou com 55 óbitos,
em segundo lugar, foram apontados 32 óbitos referentes a “recém-nascidos” e, em terceiro
lugar, estavam as febres com 20 registros. Vejamos a tabela completa a seguir para que
(1983), especialmente o capítulo V “Adultos e crianças”, p. 153 e seguintes.
667 - Marcílio (1974), p. 174. A autora calcula que, para o período de 1796 a 1809, a taxa da mortalidade infantil
chegava a 239 por 1.000 nascidos vivos. A título de comparação, e não obstante as grandes diferenças regionais, o
Brasil registrou, para o ano de 2003, a taxa de 24,3 por 1.000 (no sudeste era de 17 por 1.000). Em 2004, o Estado de
São Paulo registrou a taxa de 14,25 por 1.000 e, a capital, 13,96 por 1.000 crianças nascidas vivas. Fontes: IBGE e
Fundação Seade.
284
possamos analisar algumas dessas informações:
Ano de 1860: óbitos entre crianças de 0 a 10 anos
Causa nº de óbitos
Verminose 55 Catarro 01
Recém nascidos 32 Congestão cerebral 01
S/ causa 18 Dentição 01
C
T
Febre 20 Coqueluxe 01
âimbra de sangue 09 Derramamento sangue 01
ifo 06 Doença de garganta 01
Inflamação de intestinos 05 Exaurido 01
Moléstia de peito 05 01
Moléstia incógnita 04 01
Pneumonia 04 Mal de 7 dias 01
Moléstia interna 03 Moléstia de umbigo 01
Queimaduras 03 Pústula 01
Bronquite 02 Repentinamente 01
Tosse 02 de urinas 01
Abortivamente 01 Tuberculose 01
Afecção de fígado 01
Tumor no peito 01
Icterícia
Inanição
Retenção
Gastrite 02 Sarampo 01
Defluxo 02 Sarna 01
Apoplexia 01 Total 194
Além da verminose – um mal compreensível na atualidade – temos, na tabela, a
menção aos recém-nascidos, este como o segundo fator determinante para a morte das
crianças. De fato, e durante todo o século XIX, os registros de falecimentos definiram esta que
seria uma condição, como a causa da morte. Assim, não era nenhuma doença, moléstia ou
enfermidade que tirava a vida, senão o próprio processo que, neste caso, era o do nascimento,
bem como a sua condição: o de ser um recém-nascido.
Causa que hoje se nos apresenta como estranha ou mesmo incompreensível, o enigma
dos recém-nascidos merece mais algumas palavras e, a partir dessa questão, um tanto quanto
imponderável, duas análises são possíveis. A primeira delas pode nos levar a entender que
fato – a morte ao nascer – era algo tão comum e previsível que não havia necessidade
alguma de se buscar as razões e, por isso, a simplicidade nos registros. Era normal,
corriqueiro mesmo e, por isso, natural que se morresse no momento do parto, e isso tanto
quanto era também natural e esperado que os idosos morressem de “velhice” ou de
decrepitude. E esta era mesmo uma ocorrência comum e já esperada, posto que os bebês
tinham mesmo grandes probabilidades de morrer na São Paulo, no Brasil e no resto do
este
285
mundo do século XIX. Daí a explicação de q e os recém-nascidos transformavam-se, eles
mesmos, em causa mortis ou, de outra forma, carregando em si tamanha fragilidade que esta
lhes suprimiria a vida. A segunda hipótese que levanto pode ser traduzida em uma pergunta:
seriam a gravidez e o parto, sob determinadas condições e em alguns de seus momentos,
considerados como um mal? Nesse caso, tal estado poderia até diferir do de uma doença,
mas nem tanto. E aqui estamos levando em consideração o fato de que a gravidez e o parto
eram sim momentos de grande risco tanto para a mulher quanto para a criança, posto que
nas condições em que ocorriam, tais situações poderiam mesmo redundar em morte. A
gestação e o ato de dar à luz, nesse caso, eram momentos traumáticos na vida de uma
mulher, momentos em que a sua vida corria um grande perigo. Esses problemas, portanto,
não diziam respeito apenas aos recém-nascidos, posto que as próprias mulheres estavam
sujeitas ao risco de morrer, seja no momento do parto, seja em decorrência de complicações
puerperais. Esta condição, aliás, se fez representar na alta taxa de mortalidade anotada entre
as mulheres que, por sua vez, acabou por se refletir nos cálculos para a sua expectativa de
vida: no século XIX, como teremos a oportunidade de detalhar no próximo capítulo, as
mulheres viviam menos que os homens, numa relação oposta ao que hoje ocorre. De
qualquer forma, e não obstante as dua ses levantadas, o que os registros nos
informam cla eram recém
nascidas, sendo esta a causa para a sua não sobrevivência.
Para determinados falecimentos, os registros apontam também o fato de que a criança
teria sobrevivido poucos minutos ou horas; m outros, informa-se que a mesma já teria
nascido morta ou mesmo de que ela teria morrido ao nascer. Como podemos notar no quadro,
para o ano de 1860 existe ainda a menção de uma morte que teria ocorrido abortivamente, num
dos raros registros deste problema. Apesar da conservação pelos anos seguintes da causa
recém-nascido como um dos maiores fatores para a morte de crianças, nas décadas seguintes
ocorre uma grande alteração, ou seja, a partir de 1870 e 1880 nota-se que esta foi, aos poucos,
sendo substituída por “inviabilidade” e “insuficiência congênita”, ou seja, um mal foi
tomando o lugar de uma condição. Sob esse aspecto, aqui está a confirmação de que muitos
recém-nascidos, seja pelas condições em que ocorriam a gravidez, seja pelo estado debilitado da
mãe, já nasceriam tão enfraquecidos que não teriam mesmo condições de sobrevivência. E
desse processo resultou que muitas das crianças que “passaram” pela cidade em 1860, não
mereceram quaisquer anotações que explicassem suas mortes, e aqui nos referimos ao caso dos
8 óbitos onde nada foi assinalado: bastava ser criança.
Explicando ainda uma outra causa, a câimbra de sangue, cuja designação não mais
u
s hipóte
ramente é que muitas crianças morreram simplesmente porque
e
1
286
usamos, basta dizer que eram as diarréias
qualquer forma, e como já visto antes, as causas de morte não eram tão complexas e existiam
em peq
Porém, o mal que mais matou naquele ano foi mesmo a verminose e, por isso, os 55
camos que dentre essas crianças encontramos 16 escravos,
03 liber
negros, não havendo aqui qualquer restrição.
“Attesto que faleceo de morte natural
para que fiquem mais compreensíveis. De
ueno número (especialmente se comparadas com as das décadas seguintes). Ainda
prevaleciam para 1860 as “moléstias”, internas ou incógnitas, as “doenças” simplesmente e,
também, a referência ao “mal de 7 dias” ou à “moléstia de umbigo”, as duas representando
infecções adquiridas por algum trauma no corte do cordão umbilical.
casos merecem um detalhamento. Em primeiro lugar, o termo que aparece nos registros para
esta causa é sempre bichas ou vermes, posteriormente é que temos a verminose, a febre verminose
e as convulsões verminosas, como poderá ser visto adiante. Daqueles óbitos ocorridos em 1860,
encontramos 23 meninos e 22 meninas, ou seja, havia uma eqüidade entre os sexos. Com
respeito às condições sociais, desta
tos e 03 citados como pardos ; 07 eram filhos de mães solteiras e 03 eram de brancos
pobres. O restante, que somam 23 casos, ou eram da camada mediana ou mesmo da elite. Ou
seja, a distribuição desse mal ocorria tanto entre pobres quanto entre ricos, entre brancos e
De fato, este mal era tão comum que, apesar do fácil diagnóstico, alguns desses
falecimentos foram classificados como mortes naturais, como foi o caso do menino José,
falecido no dia 9 de maio de 1860, e em cujo bilhete de enterramento podemos ler:
no Quarteirão 11 o filho de Manoel da Cruz
que attesta o Inspector – Francisco da Penha Xavier de Toledo.”
668
Chamado para fazer o encaminhamento do corpo, o então vigário de Santa Ifigênia,
Joaquim Barbosa, pergunta aos familiares, percebe o engano (provavelmente corriqueiro
naquela época) e, utilizando um espaço no mesmo papel, reescreve o bilhete:
“Vai sepultar-se o cadáver de José de idade mais ou menos 8 annos, filho
legítimo de Manoel da Cruz e de sua mulher Maria dos Anjos, já fallecida,
cujo José falleceo ontem pelas 9 horas da noite de
lombrigas
de nome José da Cruz, de idade 8 annos, e é sumamente pobre, o que afirmo por
ter pleno conhecimento e debaixo do meo cargo. Palmeiras 10 de maio de 1860 – O
Inspector João Manoel Floriano” [Consta ainda abaixo da assinatura:] “Confirmo o
. Santa Iphigenia
10 de maio de 1860.”
669
Certamente que as crianças eram as mais afetadas e, para entendermos essa situação,
668 - Coleção Papéis Avulsos do A.H.M., 1860, Vol. 190, documento nº 13.
669 - Confrontado este bilhete com o livro de sepultamento, verificamos que a causa da morte do menino José foi
registrada como “lombrigas” e, por isso, ele faz parte do grupo de 55 crianças falecidas deste mal naquele ano de
1860. De qualquer forma, este foi apenas um caso em que foi possível fazer tal verificação. Muitos outros,
certamente, escaparam ao nosso olhar.
287
devemos nos lembrar do cotidiano vivido por elas naquele período, ou seja, andando
escalças pelas ruas e quintais infectados, pela Várzea do Carmo (algumas possivelmente
acompanhando suas m
que escorriam pela cid
Penteado que, em seu
provavelmente insalu
a Ramos. Na época
das chuvas, o Buracão transformava-se em lagoa,
a nossa piscina
d
ães lavadeiras), brincando entre monturos de lixo e águas pútridas
ade. A esse respeito, vale lembrar uma experiência relatada por Jacob
tempo de menino, não via qualquer problema em brincar em águas
bres:
“o jogo de futebol era praticado no Buracão, uma grande escavação existente na
confluência da Rua Conselheiro Cotegipe com Avenida Álvaro
.”
670
(meu destaque)
Somente bem mais tarde ele confessaria: “Apanhei esta [febre tifóide] em 1911, talvez
pêndios de doutrina católica
ue circularam no Brasil colonial, posto que recomendavam às mães e amas que se
empenhassem “em fazer com que as crianças pronunciassem primeiro que tudo os Santíssimos nomes
de Jesus e Maria. Depois de levantados, quando tiverem algum conhecimento,
os mandem beijar o
por tomar banho em águas pluviais contaminadas, no Buracão.”
671
E muitas crianças assim se
contaminaram, ou seja, em momentos de diversão; outras, ainda – especialmente as
pequeninas – adquiriam verminoses pela compulsão de levarem à boca tudo o que pudessem
tocar. Nesse caso, qualquer objeto por elas encontrado, seja em casa, seja na rua ou nos
quintais poderiam conter o mal que, inocentemente era introduzido no organismo.
672
Uma
outra prática muito perigosa era, inclusive, aconselhada por com
q
chão, e que prostrados por terra lembrem e vão parar as crianças que fazem obras más e
lhes expliquem o horror do fogo do infern
Outra grande possibilidade era a ingestão de água contaminada e, também, através
fato eles não sabiam e muitos médicos ainda consideravam os
do inferno ond
o.”
673
(meu destaque)
de frutas e verduras apanhadas na beira do rio ou cultivadas em hortas regadas com aquelas
águas infectadas pelos despejos de casas particulares, da cadeia ou do quartel. Na cidade do
século XIX, tudo contribuía para que as crianças adquirissem verminoses, mas é preciso
sempre lembrar que de tal
670 - Penteado, op. cit., p.
671 - Idem ibidem, p. 280.
672 - É preciso lembrar que
ainda hoje na periferia das Rita de Cássia Rego (2002)
r algumas mulheres trabalhadoras em lixões e delas ouviu que os filhos estariam doentes
entavam ver nada, tudo eles ca, qualquer coisa” (entrevista com Nazú); uma outra ainda
disse que “a verminose é problemas de lixo também. Ela pequenina (apontou a criança) ficou com problema de verminose,
porque ela estava começando a se arrastar e eles iam para a rua andar lá fora ... Elas ia pro chão, botava a mão na boca e pegou
verminose, então pegou de lixo ...” (entrevista com Agda). Veja Rego, Rita de Cássia Franco, Barreto, Maurício L. e
Killinger, Cristina Larrea; O que é lixo afinal? Como pensam mulheres residentes na periferia de um grande centro urbano.
In: Cad. Saúde Pública; nov./dez. 2002, vol.18, no.6, p.1583-1591.
673 - Del Priore, Mary; O cotidiano da criança livre no Brasil entre a colônia e o império; In: História das crianças no
Brasil, org. da autora, S.P.: Contexto, 2006, p. 94.
257.
essa questão não é algo tão distante no tempo, ocorrendo com bastante freqüência
grandes cidades. Num estudo esclarecedor, a pesquisadora
chegou a entrevista
porque eles “não gu põem na bo
288
vermes como decorrentes de geração espontânea, não existindo ainda um consenso sobre
como eles penetrariam no corpo.
674
Pensava-se mesmo que certos alimentos, como aqueles
engrossados com farinha, tinham o poder de causar “azedumes, lombrigas, obstruções do
mesentério e opilação do estômago.”
675
Assim, práticas tidas como inocentes ou brincadeiras das
mais diversas poderiam esconder inúmeros males e colocar, acidentalmente, os menores em
contato com o perigo.
Mas também era comum que, nas travessuras infantis, deliberadamente “entrassem
no jogo” um dos mais danosos e divertidos elementos: os excrementos, transformados muitas
s no objeto principal das travessuras. Recolhidas de suas memórias, o mesmo Jacob
enteado nos apresenta uma série de folguedos com esta temática e bastante comuns entre os
meninos do Belenzinh
consistia numa batalh
espreitavam outros qu
atacava, dando nós na
com excrementos. Em
sorrateiramente, pass
“Garibaldi”, que consi
este retornava de alg
pernas - ou a “maquia
mais fedido havia”. A última travessura citada por Penteado envolvia, de um lado, os mesmos
lementos mau cheirosos e, de outro, os bondes, estes ainda tracionados por mulas. Nessa
rincadeira, grupos de meninos se postavam no ponto final da condução e, aproveitando o
veze
P
o nos primeiros anos do século XX. A mais simples das brincadeiras
a envolvendo dois ou mais grupos de garotos que, à beira do Tietê,
e estavam nus a nadar naquele rio. Na saída da água, o “inimigo”
s roupas que ficaram na margem e besuntando os corpos dos incautos
outras diversões, pedaços de madeira eram lambuzados com fezes e,
ados às mãos dos distraídos. Havia ainda a brincadeira chamada
stia na imitação do herói de mesmo nome, no justo momento em que
uma batalha. Nesse caso, tanto os ferimentos quanto o sangue nas
gem”, poderíamos assim dizer - era reproduzida com “aquilo que de
e
b
descuido de cocheiros e cobradores, “besuntavam o veículo, banco por banco. Coitado do
passageiro que ali se sentassem.” Penteado explica ainda a facilidade de se obter a “matéria
prima”: “Eram montes de fezes, colhidas nas proximidades, muito encontradiças, àquele tempo.”
676
Ao lado da revelação de um universo infantil de meninos entre finais do século XIX e
início do XX, o texto de Penteado ganha relevância também pelo que ele não diz, ou pelo
silêncio anotado em relação aos perigos que tais elementos poderiam causar em contato com
674 - Madel Luz, ao estudar a ação dos médicos da chamada Escola Tropicalista Bahiana, mostrou com clareza essa
tendência no Brasil entre as décadas de 1840 e 1870. Não obstante o médico Wücherer ter demonstrado todo o ciclo de
variados vermes, desde a incubação dos ovos e até a sua instalação no organismo, bem como os danos que estes
causavam, especialmente os chamados ancilóstomos, a sua tese foi duramente criticada pelos seus colegas cariocas
pelos anos de 1840. Veja Luz, Madel Therezinha; Medicina e ordem política brasileira – políticas e instituições de saúde: 1850-
1930; R.J.: Graal, 1982, especialmente o capítulo IV “A Escola Tropicalista Bahiana: o modelo de conhecimento”, p. 129 e
segs.
675 - Del Priore (2006), op. cit., p. 87.
676 - Penteado op. cit., p. 256, 257, 292 e 293.
289
o . Ao contrário, o autor antes exalta a folia dos garotos, qualificando os dejetos como
divertidíssimos, posto que seriam apenas “mau-cheirosos” e próprios, portando, para as
travessuras. Assim, essas brincadeiras foram classificadas apenas como folguedos e
traquinagens sem qualquer conseqüência, não merecendo por isso nenhuma censura,
recriminaçã
corpo
o ou castigo por parte dos adultos (pais, professores e vizinhos), ao contrário de
“entrassem no jogo”.
Em assim sendo, as traquinagens relatadas por Penteado nos encaminham para a
nálise de certos aspectos perdidos ou, em outras palavras, que explicitam as relações um
tanto quanto ambígua
abjeção que existia fre
animais, como vimos p
pelos anos de 1900; an
não havia ainda uma c
xcretos não haviam ainda adquirido o estatuto que hoje possuem. O seu
mprego na agricultura, por exemplo, era algo milenar posto que sabia-se de suas poderosas
qualida
(human
, logo, de correr.”
679
Sérgio Buarque de Holanda , por sua vez, nos lembra desse aspecto
“nada irrelevante da arte de curar, tal como praticavam médicos e curandeiros da era
outras tantas que Penteado faz questão de mencionar. Apesar do texto não identificar de
modo claro, tudo leva a crer que os excrementos utilizados pelas crianças naquelas
brincadeiras eram de animais que pastavam pelas redondezas. Contudo, não devemos
descartar a hipótese de que também dejetos humanos
a
s que se tinha diante dos excrementos. Não obstante o sentimento de
nte a essas imundícies, uma grande apreensão em torno dos dejetos
áginas atrás, somente ganharia terreno a partir das décadas de 1890 e
tes disso – e a não ser que ficassem expostos “infectando” o ambiente
lara percepção dos perigos resultantes de seu manuseio e utilização,
até porque os e
e
des fertilizantes.
677
Mas, não apenas isso. E aqui devemos voltar nossos olhos para
uma antiga relação – esta construída há séculos e em diversas civilizações – entre as fezes
as ou animais) e a cura de determinados males. Para a cicatrização do umbigo dos
recém-nascidos, por exemplo, muito comum era a utilização de “fumo com excrementos de
cavalo” que deveriam ser postos na ferida.
678
Luiz Edmundo nos fala de uma antiga técnica
utilizada pelos sangradores “quando, na hora da sangria, por distração ou imperícia, o operador
cortava algum vaso mais importante, era dos livros: um pouco de esterco de jumento. O sangue
deixava
677 - A esse respeito vale lembrar que a man entos animais – omo o do lixo orgânico
produzido nos mercados (restos de frutas e d a ativi de inte a cidade, já que serviam
como ótimos fertilizantes. Em São Paulo, o rec ões do Mercado
dos Caipiras, na Rua 25 de Março, conforme explica Jorge Americano ao citar o caso de um chacareiro que
fornecia para o mesmo estabelecimento: “Vendia como podia, juntava o lixo que podia dentro do carro, para servir de
adubo.” Jorge; São Paulo naquele tempo 1895-1915; Saraiva, 1957, p. 110. Num outro contexto, Alain
Corbin (1987, p. 154, 285 e 286) examina a mesma qualidade positiva dos excrementos, agora humanos, na Paris
do século XVIII: “Líquido ou sólido, ele constitui o mais rico dos adubos”, explica Corbin.
678 - Del Priore (2006) op. cit., p. 16.
679 - Edmundo, Luiz; O Rio de janeiro no tempo dos vice-reis; 1932, p. 476.
ipulação de excrem bem c
e verduras) – era um da nsa n
olhimento desses materiais realizava-se nas imediaç
Americano,
290
colonia
de garganta, esquinências e bexigas, mas de
certa fo
izer o Pay ou a M ta,
o de bexigas, qu
680
ra ocorria, já que em Portugal tais elementos eram
largamente utilizados nos séculos XVIII e XIX, como o chá de excremento de rato para os
desarra
como a urina, e o um
podero
es da Europa, “e ava
as picadas de abelhas e vespas”, s o ainda usual na região do Bessin, na França, pregar-se o
excreme inho branco noutro ra se curar
machucaduras internas; já na Lorraine, retomavam os franceses o mesmo material “só que
desta vez diluído em vinho vermelho aquecido” para as cóli
e aos séculos XVII Em
São Paulo, Alceu Maynard de Araújo recolheu, entre 1 da
medici pir o ele a chama) utilizadas na cidade de São Luís do
Paraitinga. Dentre elas, não faltou o tradicional campo, da bem
branqui do sarampo. stac capítulo
denom tes preparados fervente,
colocar fezes recentes de vaca em cima da ferida; para curar tosse comprida, recolher um
pouco e estrume fresco de vaca e colocar numa “trouxinha” de pano, fazendo uma
“boneq
l”, ou seja, utilizando-se largamente dos excretos animais. No século XVIII, um
médico português já se referia ao amplo emprego do esterco de cão (o célebre jasmim-de-
cachorro ou jasmim do campo) contra tumores
rma criticou:
“... o mesmo he d ay, que ao seu filho lhe doe a gargan
estan já comd sinaes e já a Alva de Cão vem pelo caminho.”
E não apenas no B sil isso
njos intestinais e icterícia
681
, bem tida entre os portugu ses com
ra o estrume de vaca aquecida que cur
so cicratizante.
682
Em outros país
“emend
nto de gato diluído em água e em v s lugares da Normandia” pa
cas.
683
E esta prática não se r stringiu I e XIX, como poderíamos supor.
946 e 1951, várias receitas vindas
na popular (ou a, ccai om
“chá de jasmim do
nha,”para ser utilizado na cura O autor ainda de a no
inado “Excretoterapia”, os seguin : para queimadura de água
d
uinha”, e fervê-la no leite que a criança deve bebê-lo em jejum.
684
Cansativo seria citar
outras inúmeras e hoje repugnantes receitas, imagino que estas já foram mais que suficientes
680 - Holanda, Sérgio Buarque de; Caminhos e Fronteiras; R.J.: Liv. José Olympio Ed.,1975, p. 97 a 99. O trecho aqui
citado é do médico Manuel da Silva Leitão em Arte com Vida ou Vida com Arte, escrito em 1738.
681 - Edmundo (1932) op. cit., p. 490 e 491. Aqui o autor se apóia na obra Origens da Cirurgia Portuense, de Hernani
Monteiro, publicada em 1926.
682 - Andrade, Mário de; Namoros com a medicina; B.H.: Itatiaia, 1980, p. 75.
683 - Idem ibidem, p. 73, 83 e 84.
684 - Araújo, Alceu Maynard; Alguns ritos mágicos: abussões, feitiçaria e medicina popular; In: Revista do Arquivo
Municipal, vol. CLXI, 1958, p. 121. Aqui citadas apenas três das doze receitas recolhidas pelo autor.
291
e, por isso, pouparei o leitor.
Resta, entretanto, verificar as possíveis origens para tal costume e que, nesse caso,
podem nos esclarecer as “divertidas” brincadeiras do menino Jacob Penteado. Para isso,
seguiremos algumas indicações sugeridas por Mário de Andrade, mais especificamente, três
delas que julgamos as mais relevantes.
685
A primeira delas diz respeito aos ritos mágicos de renascimento da terra que ocorriam
entre os povos antigos. Após o inverno, um tempo em que a terra “morria”, e mesmo depois
do último plantio que a depauperava, ela poderia reviver mediante a estrumação. “Ora, as
terras gastas (doentes, mortas ...) revivem.” Nesse caso, fácil seria associação de imagens: se o
estrume conseguia dar vida a ao solo achacado, o mesmo poderia ocorrer aos homens
também doentes. Já no Brasil Colônia, um outro costume pode ter contribuído para reforçar
essas qualidades positivas dos excrementos, ou seja, aquele empregado na refinação de
açúcar,
portante notar, porém, que estes atributos positivos se contrapunham a outros
menos nobres e que, acredito, também coexistiam em certo grau e ao mesmo tempo como os
de repulsa e aversão às imun aract ica, antes de diminuir suas
qualidades enquanto elementos vivificadores pode, ao contrário, enfatizar ainda mais este
conceito e contribuir para o
Desde os tempos pré-cristãos, está entre os requisitos da medicina popular atingir os demônios da
Esta qualidade, aliás, pode ser exemplificada: “em São Paulo, o excremento do rato, torrado
na chapa do fogão e guardado em caixa de papelão, preserva a casa dos maus espíritos; em Pernambuco,
onde entrava o estrume de vaca. “Com [esse] excremento, o açúcar se purifica e aperfeiçoa.
O açúcar se limpa. O excremento adquire assim um conceito de elemento lustral, purificador (...)” que,
naturalmente, se juntava ao anterior: o de vivificador.
686
Im
dícies. Mas esta mesma c eríst
seu emprego medicinal. Vejamos de que forma isso ocorre.
doença através” de uma excitação por meio do horror. A imundície, nesse caso, transforma-se
num poderoso instrumento para tais práticas, já que empregadas “como um valor expurgatório,
exorcístico, afastador de coisas detestáveis, perigosas, ou decididamente ruins.” Daí que uma
pequena porção do malefício pode servir para instigar outra força do mal forçando a sua
saída: as doenças.
excremento seco de boi era queimado como desinfetante, eficaz até em epidemias de varíola; no vale do
Paraíba, o caboclo queima estrume à porta da casa com a finalidade de espantar os males.”
685 - Andrade (1980) op. cit., especialmente Parte II: A medicina dos excretos, p. 63 a 124. Os trechos em seguida,
destacados entre aspas e em itálico, devem ser referendados nesta nota.
686 - Com esta análise concorda Sérgio Buarque de Holanda (1975) p. 98
292
Adepto dessas práticas, o famoso médico português Curvo Semedo
687
relatou um caso
em que magia, qualidades positivas e negativas se juntaram para proporcionar a “cura” de
um caso passio
h ido as mulheres,
as podiam
a m amizade,
n sapatos do
com rco d s da manceba
a onverteu em
o que aquelle momento tinha sido
Tendo oncep s é que los anos de
1910 em São P rtidas vessuras o ato de
besuntar o próprio corpo (ou dos panhe ento as mais diversas
procedências. , a grande
maioria morria
Em alg hoje sa os ter a orte, o era pela década
de 1860. Em 18 morri o Hosp eni “Fellipe, criolo, com
treze anos de id orador Santa Ifigênia”. A
causa de sua m ja roveni de comer terra”.
689
Este era um ca elo médico
Wücherer na B ã r ada mais era
do que uma anemia causada por este tipo de verme nos intestinos, levando suas vítimas a
uma “estranha instin a do ferro, um dos
remédios da
forme monstr b m 1840, os
ancilóstomos, rgani de du p ou ingeridos. No
primeiro caso, a infestação poderia ocorrer, por exemplo, através da sola dos pés
esprotegidos.
nal:
“Aquelles que avendo s bem casados e mu antito am es de su
passaram a uma tal metamo
itar ell
rphose ou mudança odiosa que nem
, fiz r ciliar ever, nem de -se com s na mesma cama econ
mandando que, ás esco didas, untassem a palmilha dos
amancebado o este a manceba, e a palmilha dos sapato
com o esterco do amanceb do. E daquelle dia por deante se c
desagrado e aborrecimento de ambos até
cegueira do amor lascivo...”
688
em vista essas c çõe se explica, por exemplo que pe
aulo, ainda se considerassem apenas como dive tra
com iros) com excrem s d
E assim, brincando muitas vezes, meninos e meninas adoeciam
.
uns casos, o que bem sido a causa d m não
62, por exemplo, a n ital de caridade o m no
ade, escravo do Sr. Antonio Joaquim Pereira Braga, m em
, uma “opilação p enteorte foi bem espe da, ocifica u se
so típico de infestação pelos vermes ancilóstomos, estudados p
ahia na década de 1840. A opilaç o, ou hipoemia inte opicalrt , n
compulsão de comer terra, o que se atribui à busca tiv
anemia.”
690
Con de ado pelos médicos aianos e
penetravam no o smo as maneiras: ou pela ele,
d
687 - João Curvo Semedo (1635-1719) granjeou respeito e foi médico da Casa Real. Considerado como o pioneiro
da indústria farmacêutica portuguesa, foi o criador do “bezoártico de Curvo Semedo”, uma concreção calculosa
proveniente dos intestinos de animais. Utilizava-se de muitas poções e mezinhas, cujas fórmulas somente ele
sabia. Veja mais detalhes em Cadernos de Cultura, nº 18, Nov. 2004, p. 53 a 57, UBI-Portugal.
688 - Curvo Semedo, João; “Observações doutrinais de cem casos gravíssimos”, 1754. Apud: Edmundo, Luiz (1932) p. 472.
689 - Livro de Inumação do cemitério da Consolação, vol. 01, fls. 233 e 233 verso.
690 - Benchimol (2001), p. 113; veja também Rey (2001). A opilação, ou ancilostomose, era a doença do famoso
293
Fig. 40
Crianças ao redor do “Bonde de Santana” em 1900. Nos detalhes abaixo os pés nus, como era o costume.
personagem “Jeca Tatú”, criado por Monteiro Lobato.
294
Fig. 41
Grupos de crianças na antiga Travessa de São Francisco em 1910.
Nos detalhes ampliados abaixo, algumas delas com os pés descalços.
295
Um outro aspecto relevante que deve ser levantado para o caso da morte de crianças
no século XIX é um silêncio – quase que total – por parte dos administradores, sendo ainda
tudo leva a crer, eram tidas como inevitáveis e que deveriam ser suportadas. A morte como
lizamos, ou seja, mortalidade infantil. Esta
iferenciação, é preciso lembrar, não existe para as demais faixas etárias da vida, ou não com
ma denominação específica.
692
Diante dos males que atingiam as crianças, aplicava-se unicamente o que era geral
para todos, como no caso da varíola, onde havia a obrigatoriedade dos pais vacinarem seus
filhos, obrigação esta estendida para toda a população.
E a espantosa mortandade de crianças não era uma situação presente apenas em São
Paulo, senão também em todo o Brasil.
693
Para o caso de Salvador, por exemplo, das 536
crianças recebidas em 1852 no Hospital da Misericórdia, 407 delas morreram.
694
No Rio de
Janeiro, nas primeiras décadas do século XIX, em treze anos a roda dos expostos recebeu
cerca de 12 mil crianças, 11 mil delas faleceram.
695
Na roda dos expostos de São Paulo, das
109 crianças que ali entraram entre 1825 e 1831, 60 delas morreram, o que provocou uma
reação solitária da comissão encarregada da fiscalização do estabelecimento:
poucos os médicos e higienistas que dela trataram.
691
Foram estas mortes, na maioria das
vezes, tidas como naturais e apenas hoje percebidas como tragédia, mas que, naquela época
parte da existência o era muito mais na vida das crianças. E tanto, que somente para elas foi
cunhada uma expressão que até hoje uti
d
u
691 - Alguns jovens médicos formados pela Faculdade de medicina do Rio de Janeiro não se furtaram ao
problema e teses por eles defendidas tratavam dessa questão. A esse respeito veja Marcílio (1998) especialmente o
capítulo “A roda dos enjeitados em debate”, p. 196 e seguintes. Veja também o original estudo de Vailati, Luiz
Lima; A morte menina: práticas e representações da morte infantil no Brasil dos oitocentos, Rio de Janeiro e São Paulo, Tese
de Doutorado apresentado na F.F.L.C.H.-USP, 2005, que chama a atenção para o fato de que, majoritariamente,
esses estudos trataram da gravidez e dos problemas relacionados ao parto; o autor percebe, também, algumas
críticas sobre a grande mortalidade entre as crianças que somente se avolumam a partir das últimas décadas do
século XIX, algo que também ocorre em São Paulo.
692 - No século XIX, falava-se “mortandade de crianças”, como na memória de José Pereira Rego intitulada
“Algumas considerações sobre as causas da mortandade de crianças no Rio de Janeiro e moléstias mais freqüentes nos 6 ou 7
primeiros anos de idade”, publicada 1847 no jornal da Academia do Rio de Janeiro. Em 1869, o médico Luiz Corrêa
de Azevedo já falava em “mortalidade das crianças”, no que foi seguido por José Maria Teixeira com a memória
“Causas da mortalidade das crianças no Rio de Janeiro”, publicada em 1888. Veja mais detalhes em Vailati, op. cit., p. 40
693 - Na Europa, por exemplo, o mesmo ocorreu até pelo menos finais do século XVIII. Veja Rosen (1994),
especialmente o capítulo “Uma chacina de Inocentes”, p. 118 e seguintes; Áriès (1981) também estuda esse tema,
veja capítulos 1 (As Idades da Vida) e 2 (A descoberta da Infância).
694 - Leite, Miriam L. Moreira, A infância no século XIX segundo memórias e livros de viagem, In: Freitas (1997), p. 17 e
seguintes. A respeito das crianças abandonadas no Brasil veja o extenso estudo de Marcílio (1998).
695 - Relato do Imperador D. Pedro I à Assembléia Constituinte aos 03/05/1823; Apud: Passetti, Edson; Crianças
carentes e políticas públicas; In: Del Priore, Mary; História das crianças no Brasil; S.P.: Contexto, 2006, p. 348.
296
“consterno e 109 exposto na a
4 de ra d ar
o Mor s empregasse mu este artigo:
a conv 15 ou 20 dias fizesse ir a sua presença
as as am xo delas em
o esto efe é preci bre isto, para
hum
es nã ão
u a comissão ver que d s que tem sido lançado rod
desde julho de 1825 até o presente, 60 tem falecido: seria pois pa esej
que domo dos exposto ita atividade sobre
seri eniente que porventura cada
tod as que criam os expostos, pois que sem dúvida ao deslei
parte se p de atribuir tão fun ito: so providenciar so
que a anidade não seja iludida,
e pobres vítimas inoc n o ve t
encontrar a morte onde procu vidram a a.
696
(meu destaque)
De todo o modo, havia um consolo para os pais e familiares dos pequenos falecidos,
u am fre
co a t a a ciada o as
o m o fal a
no seu tende tr s e ver para a o
cantavam:
o
6
ns do trange lo asil no
s a r e e dos enterr
p da mo ervou funeral
:
mo u oneco ma de a,
ãozin cruza
nj e
até porque t m es es era tidos como anjos, almas imaculadas que se encaminhariam
diretamente para o cé . Pais e igos, diante do úni infort o da perda, se resignavam nte à
fatalidade; e estas o rriam odo dia, a tod hora, nun s que eram pelos sin s d
igrejas. Luiz Edmund , por exe plo, anotou para o Rio de Janeiro essa tradição e ar d, a
constância dos dobr s de sie nos que a muitos enervava, revelou que os cariocas
(maldosamente, en r) atribuíam a sos le companhar o badalo, send
que “quando b ti cria a pelas anças que iam enterr ar
Feliz anjinh
Que vai p´ro céo!
Feliz anjinho
Que vai p´ro céo!
97
Para algu s es iros que passaram pe Br século XIX, muito marcante
foram as imagens retida espeito da mort os de crianças, todas elas
relacionadas com a ureza alma infantil, co obs Carl Seidler num
preparado no sul do país
“O pequeno cadáver jazia c m bo de cera sobre a ca gal
enfeitada de coroas e flores, m has das,
trajado como um a o qu
como alva e ment ra o cé pomba iria dir ta e pa u.”
698
Dentre to s pdas a assage iaja , nenh explícita e
nt Jo
ns citadas pelos v ntes uma delas é tão
impressionante qua o as de hn Luccock, inglês que chegou ao Brasil em 1808 e que aqui
u elho de eadore e vis as a pri e
O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, R.J.: Imprensa Nacional, 1932 p. 107 e 108.
.P raria M 4 5.
696 - Arquivo Histórico Municipal, F ndo C.M.S.P., Cons Ver s, Comissão d it sões
estabelecimentos de caridade, Relatório de 05/05/1831.
697 - Edmundo, Luiz;
698 - Seidler, Carl; Dez anos no Brasil, Trad. Bertoldo Klinger; S .: Liv artins Editora, 1951, p. 14 e 14
297
permaneceu por dez nos. Ao a fa dic s cr o
es que ixavam to me s quan rem s
ade d nco an licid , com “neste clima
o ocupe e cedo com as roupas das crianças.”
ch a te da
“notei uns tantos fatos curiosos rridos por ocasião dos funerais de
crianças; entre os parentes mais distantes, maior complacência que pesar e,
mesmo na mãe, nenhuma dor profunda, nada que a pudesse ao menos
distinguir dos outros acompanhantes. Em uma dessas ocasiões foi ouvida
lar dos cuidados de ados à ianças, ele criticou um cert
seus filhos “tan nino to meninas”, a anda nudesleixo das mã de
pela casa até a id e ci os ou mais. Por fe ade pletou Luccock,
tão quente não se exige do desvel das mães que se desd
Porém, o que mais amou a tenção do inglês foram as reações de familiares dian
morte de uma criança:
oco
uma mãe que assim se exprimia: Ó como estou feliz! Ó como estou feliz, pois que
morreu o último dos meus filhos! Que feliz que estou! Quando eu morrer e chegar
diante dos portões do céu, nada me impedirá de entrar, pois que ali estarão cinco
criancinhas a me rodear e a puxar-me pela saia e exclamando: Entra Mamãe, entra!
Ó que feliz que sou! repetiu ainda, rindo a grande. Se isso fosse um exemplo
isolado de sentimentos maternais estranhos, poderia ainda ser considerado
efeito de um desvio mental passageiro; o caso, porém, é que a satisfação em
tais momentos é geral demais, e por demais ostensiva, para que deixe lugar a
desculpa dessa espécie. Não posso ter opinião boa sobre o futuro de um
estado onde assim se dissolvem os mais fortes laços dos seres deste
mundo.”
699
Analisado já por alguns estudiosos
700
, este relato de Luccock pode levar a
interpretações parciais se tomado for este acontecimento como geral na sociedade. De fato,
estudos recentes do historiador brasileiro Luiz Lima Vailati apontam outros caminhos, ou
seja, o autor percebeu diferentes posicionamentos e identificou mudanças, pois “apesar do tom
de resignação e do fato de por vezes apresentar uma argumentação que leva a crer que a morte infantil
[era] encarada com naturalidade, esse discurso, com a intensidade daquilo que é confidenciado, [foi]
diversas vezes pontuado por uma profunda manifestação de dor que a morte prematura propiciava.”
701
É certo que essas imagens e representações da morte de crianças conviveram em
espaços e momentos diferentes, fazendo-se presentes entre as camadas mais pobres e as da
699 - Luccock, John; Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil - 1808 a 1818; S.P.: Livraria Martins
Editora, 1951, p. 79 e 80.
700 - Veja, por exemplo, Costa, Jurandir Freire, Ordem médica e norma familiar”, R.J.: Graal, 1983, especialmente o
capítulo V “Adultos e crianças”, p. 153 e seguintes.
701 - Vailat, Luiz Lima; A morte menina: práticas e representações da morte infantil no Brasil dos oitocentos (Rio de Janeiro e São
Paulo) Tese de Doutorado, Depto. de História da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas, U.S.P., 2005, p. 226.
298
elite, como bem o demonstramos para o caso das verminoses em São Paulo no ano de 1860.
Daí, talvez, que a imagem do anjinho servisse a todos como a maior e mais poderosa
consolação.
De qualquer forma as crianças, tendo em vista seu organismo ainda em formação,
adoeciam e morriam muito mais do que os adultos. Apanhavam mais facilmente uma febre,
tinham mais condições de adquirir verminoses ou gripes, como nos fala Jorge Americano,
citando uma passagem comum na sua infância:
“Todas as crianças ficaram doentes. Uma espirrando, espirrando. O nariz
escorria sem parar. Depois a outra, depois mais um, e foram todos.
Não havia
a noção de contágio da gripe. Era uma friagem. Vinham espirros, e o defluxo.
Em seguida passava para o peito. Era constipação ou bronquite. Prendia o
peito. O peito preso, com chiado, era asma, e dava febre. Outras vezes afetava
a garganta, febre alta, era angina.
Mais tarde, com caráter epidêmico, aqueles
resfriados passaram a chamar-se influenza, e mais recentemente gripe. (...)
o; mas,
nos e meninas.
Nesse sentido,
mortalidade infantil e
1860, acompanharemo
1890. Para 1872 coligimos os dados que nos informam terem ocorrido 528
ortes na cidade; destes, 196 foram de crianças entre 0 e 10 anos assim divididos por faixa
tária:
De 01 a 05 anos 069
De 06 a 10 anos 014
Todas as crianças estavam doentes.”
702
(meus destaques)
E as doenças foram mudando de nome, como aponta singelamente American
de qualquer forma, elas não deixavam de provocar a morte de muitos meni
poderemos agora acompanhar um quadro mais completo a respeito da
m São Paulo e, para além daquele já demonstrado com os dados de
s a seguir os números da morte nessa faixa etária ocorridas nos anos
de 1872, 1882 e
m
e
Recém nascidos e - 01 ano 113
Total 196
Quanto ao sexo, manteve-se uma equidade entre meninos, com 95 óbitos, e meninas,
com 99 casos anotados; sendo que duas crianças não tiveram essa informação registrada.
702 - Americano, Jorge; São Paulo naquele tempo 1895-1915; S.P.: Edições Saraiva, 1957, p. 34.
299
Quanto às causas, elas foram as seguintes:
Causas nº de óbitos
Insuficiência congênita 03
Bronquite
Diarréia
Enterocolite
Gangrena
Hidropsia
Insuficiência org
Inanição
Reumatismo
Afecção hepátic
Afecção mesent
Afecção pulmon
Anomalia congênita 01
Doença de umbigo 01
Febre escarlatina 01
Febre tifóide 01
Ulceração gástrica 01
Enterite 18
Recém nascidos 17
S/ causa 17
Convulsão 15
Gastroenterite 10
Verminose 09
Hepatite 07
Moléstia interna 07
Pneumonia 07
Tétano recém nascidos 07
Meningite 06
Febre 05
Inviabilidade 05
Dentição 04
Afecção intestinal 03
Ataque repentino 03
Apoplexia 01
Asma 01
Catarro sufocante 01
Cianose 01
Congestão 01
Congestão hepática 01
Congestão pulmonar 01
Derrame cerebral 01
Disenteria 01
Doença cardíaca 01
Doença do fígado 01
Eclampsia 01
Escarlatina 01
Febre catarral 01
02
02
02
02
02
ânica 02
02
02
a 01
érica 01
ar 01
01
Gastro hepato enterite 01
Hemorragia pulmonar 01
Hidro tórax 01
Icterícia 01
Impigens 01
Mesenterite 01
Mielite 01
Moléstia intestinal 01
Paralisia 01
Prematuridade 01
Queimaduras 01
Anemia
Angina 01
Angina fonsilar 01
Uremia 01
Total 196
Como já observado nas listagens para o restante da população, também aqui
encontramos um número muito maior de doenças daquelas especificadas em 1860, não
obstante pouca variação na quantidade de falecimentos de crianças, 194 para aquele ano e
196 para este. Outra variação encontrada refere-se à causa principal de falecimentos: no
levantamento anterior eram as verminoses e neste a enterite. Tomando a enterite como uma
inflamação do intestino, podemos aqui aventar duas hipóteses para esta modificação: ou as
verminoses de 1860 eram na realidade enterites, ou muitos dos casos de enterites registrados
em 1872 seriam, de fato, um mal causado pelos vermes. Tudo indica que a segunda hipótese
seja a mais correta, até porque não foram anotadas na cidade quaisquer ações que pudessem
300
obstar esse mal, conforme verificamos na primeira parte do estudo; em segundo lugar,
grandes alterações não seriam notadas em apenas doze anos para algo que afetava as
crianças desde pelo menos o século XVIII, conforme demonstrou Maria Luiza Marcílio. De
outra parte, ocorre aqui algo já discutido, ou seja, uma modificação na maneira como a
medicina percebe a doença: os sintomas são substituídos pelas lesões visíveis nos órgãos.
Nesse sentido, privilegia-se o
dano causado pelo verme no intestino e não o verme em si; a
verminose de antes transformou-se em uma lesão no intestino, numa inflamação, numa
enterite. De outra parte, a denominação popular para as moléstias infantis também começam
a ser substituídas por designações próprias da medicina acadêmica como foi o caso do “mal
de 7 dias” para “tétano dos recém nascidos”.
Passados dez anos, outras modificações ocorrem. A cidade cresce bastante e esta nova
condição se faz representar no número de mortes, que quase dobram, passando para um total
de 919 casos. Deste total, 374 eram crianças entre 0 e 10 anos assim divididos:
Recém nascidos e - 01 ano 206
De 01 a 05 anos 117
De 06 a 10 anos 017
Anotado apenas como criança 034
Total 374
Nos registros do cemitério da Consolação para este ano de 1882 encontramos, fora
dos registros normais, uma quantidade expressiva de 34 óbitos sem a indicação de idade e,
entre eles, 32 sem a menção ao sexo. Apesar dos esforços, não conseguimos maiores
informações a respeito dessa ocorrência, mas tudo leva a crer que se tratavam de fetos ou de
recém-nascidos, uma vez que a falta dessas duas informações indicavam, geralmente,
cadáveres nessa condição. É preciso dizer, entretanto que este foi um caso anotado apenas
para este ano. Excetuando-se aqueles não indicados, em 1882 faleceram 174 meninas e 168
meninos. Com respeito às causas de morte, algumas inovações também ocorrem nesse
período: pela primeira vez (e explicitamente) duas crianças mortas são recolhidas das ruas,
outra foi sepultada por ordem da polícia e um menino de 1 ano e meio faleceu por conta de
uma pisadura do carro nº 14, ou seja, atropelado por um bonde.
703
A cidade crescia e casos
703 - A partir de finais do século XIX, este era um novo perigo que se apresentava, ou seja, a morte por
atropelamentos, especialmente por bondes. A esse respeito veja, por exemplo, o belo e trágico conto
301
como estes passariam a ser rotineiros. Dos demais, as causas foram as seguintes:
Causa óbitos
“Gaetaninho”, de Alcântara Machado, e cujo personagem morre atropelado por um desses veículos enquanto
brincava nas ruas do Braz no início do século XX. Machado (2004), p. 21 e seguintes.
Fraqueza congênita 04
Inanição 04
Meningite aguda 04
Tétano
Anemia
Bronquit
Enterite
Sífilis co
Tifo
Diarréia
Eclamps
Gastrointestinal 02
ânico 01
Lesão cardíaca 01
Leucemia 01
Linfatite 01
precoce 01
Parto prematuro 01
S/ causa 46
Recém nascidos 46
Enterocolite 29
Cloroze 01
Congestão 01
Defeito org
Enterite 21
Gastroenterite 21
Convulsão 16
Inviabilidade 15
Meningite 11
Vermes 09
Atrepsia 08
Bronquite 07
Febre 07
Febre tifóide 07
Bronquite capilar 06
Catarro sufocante 06
Marasmo 06
Dentição 05
Disenteria 04
Enterite crônica 04
Difteria 01
Edema pulmonar 01
Erisipela 01
Escrófulas 01
Estomatite 01
Faringite 01
Febre maligna 01
Febre miliar 01
Febre remitente 01
Febre verminose 01
Fraqueza 01
Gangrena 01
Gastrite aguda 01
Infecção sifilítica 01
Intestinos 01
Intoxicação uremica 01
04
03
e crônica 03
aguda 03
ngênita 03
03
02
ia 02
Mal de 7 dias 01
Nascimento difícil 01
Nefrite crônica 01
Nefrite intestinal 01
Operação obstétrica 01
Paralisia cerebral 01
Parto laborioso 01
Parto
Meningite cerebral 02
Sífilis 02
Albuminuria 01
Pericardite 01
Peritonite 01
Pneumonia 01
Anasarca 01
Angina 01
Asfixia por submersão 01
Astma 01
Atelektere 01
Bronquite aguda 01
Caquexia 01
Catarro brônquico 01
Cerema 01
Queimaduras 01
Tísica 01
Tísica mesentérica 01
Tísica pulmonar 01
Tosse convulsa 01
Tubérculos 01
Tubérculos mesentéricos 01
Tuberculose intestinal 01
Tuberculose 01
Cistite aguda 01
Cloro anêmico 01
Total 374
Um dos destaques para este quadro de 1882 é o aumento das mortes sem causa
302
identificada. Aqui esta ocorrência já divide o primeiro lugar com os recém-nascidos que
continuavam a serem tratados dessa maneira. Mas, se voltarmos para o ano de 1860, esses
casos colocavam-se em 4º lugar, subindo para 2º em 1872 e agora alcançando o topo, numa
ue se mante
situação merece algum
freqüência na década d
os bilhetes de sepult
“silêncio” na docume
hipótese uma vez que
legislação pertinente –
a 22 casos. Dentre essas crianças, 15 delas foram
ponta
demográfica verificada na cidade nas duas últimas décadas do século XIX. Eis aqui uma outra
face do crescimento e que se fez representar nos números da morte. De fato, entre 1880 e 1889
entraram no Estado de São Paulo cerca de 183.504 imigrantes, destes 144.654 eram italianos.
situação q rá para o ano de 1890 (veja o quadro a seguir). Pela sua relevância, esta
as palavras, até porque se este problema tivesse ocorrido com mais
e 1860, poderíamos explicá-lo a partir da crença daqueles que emitiam
amentos, ou seja, os padres. Porém, o aumento progressivo deste
ntação para as últimas décadas do século XIX não se apóia nesta
, cada vez mais, os médicos se faziam presentes neste processo; e a
mesmo com falhas – já era aplicada com certo rigor, havendo sempre a
obrigatoriedade de se indicar a causa do falecimento.
O não cumprimento dessa parte do regulamento para o caso das crianças é algo que
pode nos surpreender. Porém, um primeiro dado a ser visto refere-se justamente à condição
dos recém nascidos: para eles nada precisaria ser dito ou explicado, haviam nascidas já mortas
ou permanecido vivas poucas horas e isso bastava. Mereceram essas crianças um registro até
porque elas precisavam ser sepultadas, mas esta situação (a de natimorto) e certamente pela
grande quantidade de casos, fosse mesmo considerada “natural”, não obstante a crítica de
alguns médicos. Mas, era justamente a classe médica que apontava a causa da morte e, por
isso, tudo leva a crer que realmente esses bebês não mereceriam muita atenção, mais do que
nunca estes eram os verdadeiros anjinhos.
704
Esta hipótese se confirma quando confrontamos
os dados da estatística: para estes falecimentos sem causa identificada (46 no total),
encontramos a referência de idade par
a das com idade inferior a um ano, sendo que muitas acabaram registradas apenas com
“uma hora de vida”, “duas”, “vinte e quatro”, ou “poucas horas” e “por momentos”. Assim, restava
a consolação. De qualquer forma, e para o caso de São Paulo, um outro fator deve ser levado
em consideração. Especialmente no que se refere ao aumento expressivo da morte dessas
crianças, os seus números devem ser vistos numa relação direta com os da explosão
704 - Ariès (1981), analisa a questão sob o mesmo ponto de vista, ou seja, que havia um “sentimento de indiferença
com relação a uma infância demasiado frágil, em que a possibilidade de perda era muito grande...” p. 22.
303
Na década seguinte, esses números saltariam para 734.985 e 430.243, respectivamente.
705
Tendo em vista o tempo e as condições da viagem, muitos desses imigrantes já chegavam
enfraquecidos ou mesmo doentes; depois, havia o problema da adaptação ao meio, aos
costumes alimentares o que, certamente, acabava por tornar ainda mais frágil o organismo e,
o de tempo, resultando disso uma falta crônica de moradias e assistência. Tais
ucos dias,
dava-se como causa da morte a “inviabilidade” que, como a própria designação nos diz, eram
situações onde nada se podia
Atrepsia, Anemia, Fraqueza, Inanição ou Marasmo, todas elas significando (como hoje
sabemos) q
s o
Recém nascidos e - 01 ano 847
anos 635
De 06 a 10 anos 070
no que se refere aos natimortos, cabe ressaltar especialmente o caso das mulheres. Ao mesmo
tempo, sabemos que a cidade não estava preparada para receber milhares de pessoas em tão
curto espaç
condições que afetavam o organismo dos adultos, maior conseqüência tiveram sobre a vida e
a morte dos pequenos.
Ainda com respeito ao quadro elaborado para 1882, vale notar o avanço da medicina
acadêmica neste campo, que já atribuía causas com nomes muitas vezes diferentes para a
mesma situação. No caso do natimorto ou daqueles que tenham sobrevivido po
fazer. Os que viviam por alguns meses poderiam morrer de
ue a criança não recebeu a alimentação suficiente ou adequada. Mas, apesar de
poucos, estes de qualquer forma já foram individualizados em suas causas de morte.
Passemos agora para a última tabela elaborada para o ano de 1890 e que, a exemplo de
1882, também espelha o espetacular crescimento da cidade. Neste ano, registramo
sepultamento de 2.857 pessoas, dessas 1.552 eram crianças entre 0 e 10 anos de idade, ou cerca
de 55% das mortes ocorridas. Quanto ao sexo, faleceram 825 meninos e 719 meninas, sendo
que para 8 casos esta identificação não aparece. A divisão por faixa etária é a seguinte:
De 01 a 05
Total 1.552
exemplo de 1882, fogem aos padrões como o caso de “um menino morto abandonado pelo pai
Dentre as causas especificadas para este ano, encontramos também algumas que, a
705 - Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo, Depto. de Imigração e Colonização: Estatística dos
304
no cemitério” (sem especificar a causa); uma menina “encontrada morta em uma cocheira do
Braz” e já em estado de decomposição, bem como o de um outro menino também
abandonado no cemitério, não se sabendo dizer por quem, mas falecido de gastroenterite.
Dos demais, as causas foram as seguintes:
trabalhos executados pelo Depto. De Imigração e Colonização em 1961; S.P.: 1962, p. 44.
305
Causa
óbitos
Meningi
Enterite
Diarréia verde 04
Febre remitente palustre 04
Inanição 04
Mesenterite crônica 04
Nefrite parenchimatose 04
Queimaduras 04
Disenteria crônica 03
Febre paludosa 03
Convulsões verminosas 03
Escarlatina 03
Caquexia 03
Gastroenterite aguda 03
Marasmo 03
Mesenterite 03
enterite 01
ca 01
Angina puttacis 01
Angina tísica 01
Angina ulcerosa 01
Apoplexia pulmonar 01
Asfixia e eclampsia 01
Assistoba 01
Atematite e convulsões 01
Atrepsia por diarréia 01
Atrepsia tuberculose 01
Bronquite catarral 01
Bronquite e convulções 01
Bronquite enterite 01
Bronquite generalizada 01
Bronquite pulmonar 01
Cólera infantil 01
Cólica verminosa 01
broncopneumonia 01
Enterite perniciosa 01
Febre tifica 01
Febre tifo 01
Febre tifóide remitente 01
Fraqueza capital 01
Fraqueza 01
Gangrena 01
Gastro enterocolite 01
Gastro hepato enterite 01
Tubérculos mesentericos
e meningite 01
Gastro intestinal 01
Gastroenterite crônica 01
Gastroenterite e eripsela 01
S/ causa 210
Atrepsia 140
S/ causa (feto) 91
Bronquite capilar 89
Enterocolite 88
S/ assistencia medica 87
Gastroenterite 64
Recém nascidos 37
Bronco pneumonia 37
Tubérculos mesentericos 33
Meningite tuberculose 03
Tétano espontâneo 03
Tosse convulsiva 03
Tubérculos generalizados 03
Tifo 03
Sífilis hereditária 03
Sífilis congênita 02
Sífilis 02
Caquexia paludosa 02
Difteria 02
Asfixia por submersão 02
Bronquite mesenterica 01
Caquexia hepática 01
Caquexia sifilítica 01
Catarro laringis e tétano
dos recém nascidos 01
Catarro traqueo 01
Cestiane de 1º grau 01
Cirrose hepática 01
Cirrose 01
te 32
29
Enterite aguda 29
Enterite crônica 28
Convulsões 21
Catarro sufocante 20
Inviabilidade 19
Fraqueza congênita 17
Coqueluxe 15
Diarréia 14
Bronquite 14
Febre palustre 13
Bronquite aguda 10
Febre remitente 10
Angina 09
Febre perniciosa 09
Enterocolite aguda 08
Febre tifóide 08
Vermes intestinais 08
Raquitismo 08
Tétano recém nascidos 08
Angina diftérica 07
Acesso pernicioso 07
Eclampsia 07
Sarampão 07
Sarampo 06
Congestão cerebral 06
Disenteria 06
Ataque de bixas 02
Bronquite pneumonia 02
Colerina 02
Crup 02
Diarréia crônica 02
Doença ilegível 02
Enterite grave 02
Enterite tuberculose 02
Espasmo 02
Estomatite 02
Estomatite ulcerosa 02
Febre amarela 02
Febre biliosa 02
Febre gástrica 02
Gangrena na boca 02
Infecção morbilosa 02
Lesão cardíaca 02
Mal de sete dias 02
Nefrite 02
Perniciosa 02
Tétano 02
Tísica 02
Tuberculose e marasmo 02
Tuberculose mesenterica 02
Abcesso 01
Acesso paludoso 01
Afecção gastro
Afecção hepáti
Congestão pulmonar 01
Coqueluxe complicada de
broncopneumonia 01
Constipação 01
Convulsão intestinal 01
Convulsões pneumonite 01
Defimoton mesenterica 01
Dentição eclampsia 01
Dentição laboriosa 01
Derrame cerebral 01
Diacthose gangrenosa 01
Diarréia coleniforme 01
Diarréia ataque de vermes 01
Diarréia e dentição 01
Diarréia paludica 01
Diarréia verde infantil 01
Difteria variolosa 01
Disenteria de dentição 01
Disenteria e dentição 01
Edema geral 01
Edema pulmonar 01
Encefalite aguda 01
Encefalite 01
Enterite catarral 01
Enterite cloriforme 01
Enterite e
Febre remitente paludosa 06
Gastroenterocolite 06
Impaludismo 06
Impaludismo agudo 05
Afecção gastro intestinal 05
Angina escarlatinosa 05
Meningo encefalite 05
Pneumonia 05
Anemia 04
Dentição 04
Afecção intestinal 01
Afecção pulmonar 01
Aftas generalizadas 01
Anasarca de escarlatina 01
Anemia cerebral 01
Anemia intestinal 01
Angina crupal 01
Angina gangrenosa 01
Angina maligna 01
Angina puerperal 01
Entero 01
Enterochagia 01
Enterocolite crônica 01
Febre angina 01
Febre catarral 01
Febre cerebral 01
Febre escarlatina 01
Febre inflamatória 01
Febre peritonite 01
Febre remitente tifóide 01
306
Hemorragia 01
Hepatite aguda 01
Hepatite infecciosa 01
circularização 01
Meningite cerebral 01
Meningite e dentição 01
Queimadura de 2º grau 01
Hepateração pulmonar 01
Marasmo do sangue 01
Rutonite 01
Sarampos recolhidos 01
Septcemia 01
01
Hepato enterite 01
Hidrocefalia aguda 01
Hidrofobia 01
Hidropsia 01
Hymanegite 01
Infecção cancerosa 01
Infecção palustre 01
Infecção palustre crônica 01
Interite aguda 01
Intoxicação palustre 01
Intoxicação 01
Irregularidade da
Meningite encefálica 01
Meningite traumática 01
Miserio orgânico 01
Parto laborioso 01
Peritonite 01
Pleurisia 01
Pleuro pneumonia 01
Pneumonia aguda 01
Pneumonia complicada 01
Tumores sanguíneos na
garganta 01
Pústula maligna 01
Sincope cardíaca 01
Tetania 01
Tifo palustre 01
Tiro de revolver 01
Tubérculos mesentericos
e meningite 01
Tubérculos pulmonares 01
Tuberculose
Ulceras sifilíticas 01
Uremia brigtia 01
Total 1.552
Uma primeira observação refere-se, novamente, o aumento expressivo na quantidade
de novas denominações para os males ou para as causas de morte; se em
1860 tínhamos
38
doenças listadas, em 1890 elas já eram
226. Tornaram-se comum, também, as doenças
conjugadas, ou seja, a Anasarca conseqüente de escarlatina, Tubérculos mesentericos e meningite,
linguagem médica aumenta sensivelmente e, como conseqüência, as doenças e a morte
escapam cada vez mais do controle e dos saberes populares. Aliás, como forma de avançar
nesse campo de conhecimento, mantendo para si o controle da saúde, da doença e da morte, a
medicina muito se valeu das positivas d
Enterite e broncopneumonia ou Coqueluxe complicada de broncopneumonia. A complexidade da
escobertas e para elas deu-lhes uma nova
enominação. Somente os iniciados (os formados nas escolas médicas) é que detinham esse
ovo conhecimento e bem sabiam manejar a nova linguagem; a grande luta contra os
harlatões já ficara para trás, agora o alvo era o próprio doente e sua família; dar um novo
ome e um novo estatuto para os males que afligiam o corpo significava, também, ter o
ontrole sobre eles; as classes populares não precisavam saber e nem deveriam.
Um outro ponto que merece ser novamente ressaltado quando analisadas
onjuntamente as quatro tabelas apresentadas, é a grande quantidade de mortes dos recém-
nascidos e, também, entre aqueles que se encontravam com menos de um ano; para os que
estavam na faixa de idade até os cinco anos, o perigo também era muito grande. Dos números
totais de falecimentos para cada período estudado, verificamos que a porcentagem desses
casos específicos sempre girou em torno dos 90% se considerados os totais de crianças
falecidas entre 0 e 10 anos. Como é próprio da constituição biológica do ser humano, sabemos
que a faixa etária entre 0 e 5 anos requer cuidados especiais, até porque o mundo lhes é mais
hostil. Nesse sentido, poderíamos sim considerar como vitoriosos aqueles que chegaram vivos
d
n
c
n
c
c
307
na idade de 5 ou 6 anos no d er ua vez, redundou em uma
concepção de “ser criança” - sa na atualidade. Desse
tema trataremos com vagar mais adiante,
adolescência tal qual a conhecemos, não existia, até nfância, para os parâmetros
atuais, era muito breve, como
Como vimos nesta taram positivamente os
conhecimentos sobre as molésti
o que, sem dúvida é uma das quer forma, toda esta ação
acaba por se refletir nos cuid tir desses últimos anos do
século XIX. Apesar das ações os do Estado logo após a
República, também na esfera municipal essas q 1894,
por exemplo, e a pedido Rodrigues dos Santos, a
municipalidade auxiliou com tal especializado da cidade,
a “Maternidade São Paulo”, q ia 12 de agosto do mesmo
ano.
706
Nesse mesmo ano, e ao Camilo Passalaqua, diretor
da Associação das Damas de Ca a, o então vereador Pedro
Vicente produziu um discurs ção a respeito das crianças
que, en ão, cristalizava-se. Em disse ele que era preciso:
“Preparar as crianças para as luctas da vida, instruindo-as, educando-as e
formando-lhes o caráter, é assunto sobre o que não há duas opiniões:
ecorr do século XIX o que, por s
ou de infância – bem diferente da nos
mas vale indicar desde já que a infância e a
porque a i
a vida.
última tabela para 1890, aumen
as, e aqui identificados apenas através de suas nomenclaturas
possibilidades de análise. De qual
ados com a saúde da criança a par
de saúde concentrarem-se nas mã
uestões não deixam de ser tratadas. Em
dos doutores Bráulio Gomes e
verbas a fundação do primeiro hospi
ue entrou em funcionamento no d
discutir um requerimento do padre
ridade que pedia subsídios à Câmar
o esclarecedor de uma nova concep
t alguns trechos escolhidos,
ninguém desconhece o enorme proveito que dahi provém para a sociedade.
(...)
A infância é sempre uma esperança que submetida a preparo conveniente
pode redundar em esplêndida realidade.”
707
(meu destaque)
As crianças como esperança para o futuro, eis aqui uma grande alteração operada com
respeito à infância
. Não que ela não houvesse antes, porém, agora em outras condições, até
porque a medicina prometia fazer cessar a grande mortalidade que, até então, havia
706 - Req erimento dos Srs. Rodrigues dos Santos e Bráulio Gomes, A. C. 30/01/1894, vol. manuscrito, p. 76. Este
auxílio (ou subsídio) passou a ser anual e somava, em 1896, o montante de 500 mil Réis (A. C. 25/02/1896 p. 149).
Segundo Maria Lúcia Mott, esta maternidade, além de ser a primeira em São Paulo, possivelmente seria também a
primeira do Brasil. Ainda segundo a autora, a criação a maternidade teria ocorrido da seguinte maneira: Em
1894, o ara a
sua própria residência onde deu toda a reunião e convidou um grupo de
senhoras para participar de uma subscriçã à mãe pobre. Fundou-se então a
Associaçã tetora da Mãe Pobre, a partir de donativos particulares” que, meses depois, daria origem ao hospital.
Veja: Universidade Federal Flumi Núcleo de Documentação,
http://www.ndc.uff.br/portaldereferencia/noticias.asp?cod=322 (notícia publicada aos 27/11/2004). Não
obstante o reconhecido altruísmo do médico, vale lembrar que somente naquele momento (em 1894) é que
estavam dadas as condições para a criação de tal estabelecimento, antes não.
u
d
médico Bráulio Gomes, se deparou no meio da rua com uma mulher que estava dando à luz. Penalizado, levou-a p
assistência. Naquele mesmo dia organizou um
o para criação de uma casa de assistência
o Pro
nense,
308
imperado. A vida das crianças especialmente
ade e o discurso de Pedro Vicente
estavam
de 1894, e através de uma denúncia dos mesmos doutores Bráulio Gomes e Rodrigues dos
a-se uma radical transformação no estatuto das
crianças, agora citados como pequenos cidadãos, já que munícipes. Porém, não nos iludamos
com as belas palavras do vereador, até porque se ele mirava nas crianças, o seu alvo, na
verdade, eram as amas de leite:
“... aqui na capital de São Paulo tal profissão é vil, desapiedosa e
gananciosamente explorada e exercida por mulheres que não apresentam as
condições de aptidão para amas de leite, visando as mais das vezes o
ordenado, pouco lhes importando o grito de fome e desespero dos pequenos
seres que lhes caem nas mãos, pouco lhes importando as lágrimas dos pais
que ignorantes e inconscientes lhes entregam seus filhos, pouco lhes
importando ainda a
inoculação na criança do terrível veneno que lhes
, mas também a dos adultos, não dependeria
mais das forças sobrenaturais.
De toda a forma, a inauguração da maternid
já afinados com uma época ou um tempo em que a recente microbiologia alertava,
por exemplo, para o caso do principal alimento das crianças: o leite. A partir do mesmo ano
Santos, tentou-se regulamentar o trabalho exercido pelas amas-de-leite ou, em suas palavras,
que fosse “regulamentado o serviço das mulheres que se alugam para amas de leite.”
708
Essas
mulheres, conforme explicou o Dr. Zuquim em 1897, colocavam em risco a “a saúde e o futuro
dos pequeninos munícipes”, ou seja operav
mortificará a existência inteira. [São diários] os abusos que se dão aqui na
capital no exercício da profissão de ama de leite,
acarretam a morte de muitas
crianças ou degeneram-lhes a saúde pela transmissão freqüente do vírus
sifilítico , da tuberculose e outras modalidades patológicas transmissíveis.”
709
(meus destaques)
As amas de leite, como bem sabemos, tiveram uma longa trajetória na história da
mília brasileira. Se a criança pertencesse a uma classe “distinta”, como disse o viajante
Ferdina
Thomas Lino d´Assumpção, escolhiam-se as amas entre as negras, “escravas voluntárias das
fa
nd Denis, “raro é que a própria mãe o amamente”; eram antes as escravas incumbidas
desse trabalho que, por isso, gozavam de certos privilégios como se refere o mesmo viajante
ao dizer que “a ama não (era) considerada como escrava, mas sim como fazendo parte da
família.”
710
Quando havia a necessidade de uma de leite e esta não se encontrava dentre os
escravos da casa, podia-se mesmo alugá-las, porém, a um preço muito mais alto do que se
cobrava por uma engomadeira, uma cozinheira ou uma mucama.
711
Em 1876, como lembrou
707 - Discurso do vereador Pedro Vicente de Azevedo, A. C. 23/10/1894, vol. Manuscrito, p. 278 e 279.
708 - Parecer do Dr. Pedro Vicente, A. C. 18/09/1894, vol. manuscrito, p. 123 a 125.
709 - Indicação nº 12 do vereador Dr. Alfredo Zuquim, A. C. 14/04/1897, vol. manuscrito, p. 63 e 64.
710 - Denis (1980), p. 213
711 - Charles Expilly, 1862; Apud: Leite. Miriam L. Moreira; A infância no século XIX segundo memórias e livros de
viagem; In: Freitas (1997), p. 29 e 30.
309
crianças (com) leites riquíssimos e abundantes.”
712
Da mesma forma, as crianças mais pobres,
as expostas nas rodas, por exemplo, também eram alimentadas pelas escravas ou, muito mal
alimentadas, por libertas que se encarregavam desse trabalho como complemento de sua
renda ou mesmo como atividade principal.
713
As amas de leite, portanto, estavam nessa
categoria: negras e pobres, tiveram elas esta rara oportunidade de ganho após a libertação.
Consideradas até então como essenciais na vida das crianças, em 1894 percebemos a
emergência de um novo discurso onde elas agora eram parte da cadeia de infecção, da doença e
a mor
década de 1880 e vai permear toda uma série de ações na área da
aúde. Uma delas foi justamente a tentativa de enquadramento desta que agora havia se
ansformado em uma profissão livre e não mais privatizada como ocorria até então, posto que
sob o domínio dos proprietários de
a esta grande parcela da população, a
disciplina e o regramento agora estavam nas mãos do Estado. Por outro lado, a medicina alertava
contra os costumes e vícios dessa classe, da sua moradia insalubre, do ajuntamento promíscuo em
que se encontravam. Tudo isso poderia ser fatal, especialmente para as crianças brancas e da
elite, que sugavam seu principal alimento de corpos, talvez, corrompidos e infectados. A
microbiologia estava, também, a serviço da moral e dos bons costumes, excluindo aqui os
elementos que pudessem prejudicar uma sociedade civilizada. O corpo do pobre foi tematizado
nessas novas condições e, também a vida na cidade. Não por outro motivo “descobriu-se”, em
1891, que as ruas de São Paulo “infestadas de mendigos, velhos,
crianças
d te de inúmeros bebês à elas confiados. Ora, possivelmente isso realmente ocorresse aqui e
ali, mas como bem nos lembra Chalhoub, esta não era a questão principal, senão a identificação
dessas mulheres (ou de todos os pobres) como uma “classe perigosa”. No Brasil, esta noção vai
aparecer com mais clareza na
s
tr
escravos.
714
Par
estavam
e até de homens
sadios que podiam empregar-se em serviços honestos” mas q o contrário, muitos deles nada mais
eram do que “guardas avançadas das quadrilhas de ladrões que andavam revistando as entradas das
casas.”
715
Ao mesmo tempo tentou-se, entre 1892 e 1893, a aprovação de um “Regulamento
Sanitário para as Prostitutas”, também muito perigosas para a saúde pública, já que elas
“propagavam moléstias venéreas” conforme disse o então Intendente de Higiene.
716
Aqui, a imagem
da prostituta infectada poderia se igualar, em perigo, às amas de leite. Não por outro motivo
ue, pel
712 - Id. ibidem, p. 30
713 - A esse respeito veja Marcílio (1998), op. cit.
714 - Veja Chalhoub (1996), especialmente capítulo 1, item “Classes pobres, classes perigosas”, p. 20 e seguintes.
715 - Indicação do presidente da Câmara, Clementino de Souza e Castro, determinando a proibição de mendigos
na cidade e prevendo a prisão dos adultos nessa condição, bem como a entrega dos menores ao Juiz de Órfão.
716 - O acompanhamento da discussão a respeito deste regulamento pode ser feito através dos pareceres e dos
discursos registrados nas Atas da Câmara, sessões dos dias 10/12/1892, p. 133 a 135; 07/01, 04/02 e 11/02/1893,
p. 05, 65 e 82, respectivamente. Tal proposta não foi aprovada e isso por dois motivos principais: o primeiro dizia
respeito à falta de verbas para fiscalização e construção de uma enfermaria e hospital exclusivo para prostitutas
conforme previa o projeto; em segundo lugar, a proposta foi considerada bastante vaga pelo então médico e
vereador Henrique Schaumann e por Guilherme M. Rudge, principalmente por que previa o “estabelecimento de
regras para decidir se uma mulher devia ou não ser considerada prostituta”, sem dizer como isto ocorreria.
310
também foi possível nessa nova ordem uma “desinfecção geral” no bairro de Santa Ifigênia,
processo que incluiu a destruição de cortiços delas queimadas
simplesmente) por conta do saneamento que queria contra a propagação de epidemias e
visando, principalmente, a tub e a feb mar
pesar de fazer parte dos debates no âmbito da Câmara Municipal, a questão das amas
de leite seria regulamentada pelo governo estadual que, desde finais do século XIX, já assumira a
direção
ntes
mórbidos pessoais de da família,
cor
e casas mais humildes (muitas
se
erculos e re a ela.
A
dos serviços de higiene e saúde. E foi nesse contexto que editou-se o Decreto nº 1.294 de
19 de julho de 1905 estabelecendo o “Regulamento para o serviço das amas de leite na capital do
Estado”, sendo bastante sugestivo o fato de que, apesar de ser um decreto estadual, o
regulamento seria aplicado apenas na capital, deixando de lado as cidades do interior.
717
Através
dele criou-se, na antiga Diretoria do Serviço Sanitário, um “gabinete de inspeção de amas de leite
e um consultório destinado a lactantes, filhos de indigentes”, conforme o artigo 1º do decreto.
Todas as amas “que se quizessem alugar” (art. 3º), deveriam passar por um exame nos seguintes
moldes:
Artigo 6º - No exame a que proceder o inspetor encarregado do serviço,
deverá atender particularmente ao estado geral da nutris, antecede
, cabelos, dentes, gengivas, adenopatias,
vestígios de moléstias cutâneas ou outras contagiosas, antecedentes
puerperais, número de filhos vivos e mortos, conformação dos seios,
mamelão, apojadura e a qualidade do leite (elementos físicos, químicos e
microscópicos).
(meus destaques)
A menção à cor e aos vestígios de moléstias cutâneas (prováveis marcas de varíola),
são recomendações mais do que suficientes para nos mostrar o caráter de tal regulamentação.
É certo que a discussão a respeito das amas de leite, referia-se à saúde das crianças
brancas da elite, uma vez que seus pais poderiam pagar por tais serviços e, do mesmo modo,
ocorreu pouco tempo antes, em 1895, com a ameaça de que também as vacas leiteiras
poderiam transmitir várias outras doenças através do leite que era ingerido in natura.
Discussão longa foi esta, posto que em 1913 ela ainda estava sendo feita.
Com respeito ao leite destinado às crianças mais pobres, uma das soluções mais
duradouras somente ocorreria a partir de 1904, ocasião em que se foi fundada na cidade uma
instituição chamada “Gota de Leite” que, no ano seguinte, já atendia a mais de 70 crianças
“que ali eram levadas pelas mães que não tinham absolutamente recursos nem estavam em condições de
717 - Collecção das Leis e Decretos do Estado de São Paulo de 1905 – Tomo XV, p. 101 a 103. No município da capital,
ao contrário das cidades do interior, a quantidade de escravos urbanos (muitos deles do “serviço doméstico”)
suplantava os demais. Nesse sentido, e após a libertação, houve uma grande disponibilização dessa mão-de-obra na
cidade, o que incluía as amas de leite. Por outro lado, data dessa mesma época um aumento expressivo no número de
imigrantes que escolhiam a cidade para residência e, dentre eles, estavam também as amas européias brancas. Estas
eram as preferidas pelas famílias da elite conforme demonstram os anúncios publicados nos jornais da época que
solicitavam essas profissionais. Nesse sentido, a legislação visava especialmente as libertas num momento em que,
também, se colocava claramente uma política de branqueamento da população.
311
pagar a quem lhes cuide dos filhos e ao amamente.”
718
O vereador Carlos Garcia, defensor daquela
instituição, atacou o problema da mortalidade e produziu um discurso onde sobressaem
conclusões somente possíveis naquele momento:
“O elevado coeficiente da mortalidade infantil, nas crianças de 1 a 2 anos,
muito principalmente vem, desde longe, despertando a atenção dos
higienistas e poderes públicos. A observação e estatísticas tem demonstrado
que a causa principal desta mortalidade tão absurda é devido (...) às moléstias
do aparelho gastro-intestinal, ocasionadas pela ignorância dos preceitos
higiênicos da alimentação infantil e pela miséria das mães operárias que, não
tendo leite para alimentar os seus filhos, se vêm privadas de recursos para
obter o leite de vaca em boas condições. Em São Paulo a mortalidade Infantil
é mais elevada do que em qualquer outra cidade do mundo, e essa
mortalidade é pura e simplesmente devida às moléstias dependentes da má
alimentação fornecida às crianças, quando as mães não tem leite ou não
podem aleitar seus filhos.”
719
Com o avançar dos tempos, porém, uma outra causa de infortúnios para as crianças se
fez presente. Apesar de não anotada nas estatísticas do estudo que empreendo, vale dedicar
algumas linhas a um problema que começou a ser notado em 1896: a presença cada vez maior
de crianças a perambular pelas ruas da cidade. Estas foram então chamadas de “menores
vagabundos” que estariam a provocar “contínuas desordens e impedindo o livre trânsito”, nas
palavras do vereador João Bueno.
720
Ora, que crianças eram essas? Pobres, certamente, muitas
delas naturais da cidade que, a esse tempo, se juntavam aos milhares de imigrantes ou filhos
destes. Alguns dos meninos poderiam realmente estar à mercê de mendigos e de ladrões,
como já havia sido denunciado, mas o que faziam essas crianças nas ruas? O jornal da colônia
italiana, o “Fanfulla” já pregava a “necessidade de medidas em relação à verdadeira legião de
menores que vivem nas ruas, no vício e no embrutecimento”, e denunciava que “a uma da manhã se
vêem grupos de garotos (...) nos pontos centrais da cidade, vendendo jornais que àquela hora já não são
comprados mais, trocando impropérios e socos (...), no Largo do Rosário, um menino de três anos e um
mês de idade, vende bilhetes de loteria!”
721
Muitos dos “menores vagabundos”, portanto, poderiam ser esses pequenos que estariam já
a ganhar as ruas para sobrevivência, exercendo tarefas como as de engraxate, vendedor de jornais e
de bilhetes de loterias, como bem reconheceu a Comissão de Justiça da municipalidade em 1911.
722
Eram eles meninos em tenra idade, que se atiravam num comércio difícil e num meio cheio de
perigos; andavam descalços, alimentavam-se mal, com os restos que adquiriam nas confeitarias e
restaurantes; entregues estavam “às moléstias de que são férteis as nossas madrugadas úmidas, e aos
718 - Proposta de auxílio à instituição “Gota de Leite”, apresentada pelo vereador Carlos Garcia, A. C.,
14/10/1905, p. 165 e 166.
719 - Id. ibidem, sessão do dia 21/10/1905, p. 174 e 175.
720 - Requerimento do vereador João Bueno, A. C., 14/02/1896, p. 125.
721 - Fanfulla, 11/03/1899, p. 02 e 31/10/1892, p. 02. Apud: Moura (1999)
722 - Parecer da Comissão de Justiça sobre o projeto que regulamentava “o exercício da profissão de vendedor de
jornais”; A. C. 19/05/1911, p. 240.
312
vícios q
a
o
mortalmente na Av. São João. O seu corpo foi ali abandonado:
sepultura nº 104, brasileiro, solteiro, com 12 anos, falecido ontem às 7 horas da noite na Av. São João
Castilho.”
ruas”
, ou à noite, “maltrapilhos e sonolentos, amontoam-se à porta das redações, numa promiscuidade
ue se contraem e propagam na promiscuidade.”
723
Não raro, disputas ocorriam, seja num
enfrentamento com companheiros, rivais ou concorrentes. Nessas refregas, ocasionalmente um
faca aparecia, o que dava motivos tragédias como a que sofreu o menino Rafael, ferid
“Cemitério do Braz. Rafael de Castro, aos 31 de janeiro de 1912 sepultou-se no quadro 12º dos adultos,
(encontrado na rua) vitima de ferimento no pulmão esquerdo, conforme atestou o dr. Archer de
724
Era este um novo perigo que se apresentava para as crianças, meninos especialmente que,
segundo os cálculos para 1904, já seriam mais de quinhentos, “dormindo nas tipografias aos magotes
de cinqüenta e mais, acumulados sobre o cimento, sem higiene e sem moral, dormindo às dezenas pelas
725
lamentável, à espera da madrugada, que é quando se inicia a venda avulsa” dos jornais.
726
Fig. 42: Vendedores de jornais no Rio de Janeiro, 1889
Para esta nova situação de perigo que se apresentava para as crianças – obrigando-as a
buscar sua sobrevivência nas ruas – infelizmente não temos os cálculos totais referentes aos
males sofridos e, também, para a aqueles menores empregados na indústria das primeiras
décadas do século XIX. Mas este é um trabalho possível de realizar, ficando aqui a indicação para
um estudo tendo como suporte esta “nova” fonte, ou seja, os registros de sepultamentos.
De qualquer forma, fica a certeza de que, a cada novo momento, um novo perigo se
apresentava, seja para as crianças, seja para os adultos e nesse aspecto, as más condições de vida
723 - Id. ibidem.
724 - Livro de Inumação do Cemitério do Braz, Vol. 46, f. 22
725 - Requerimento do vereador José Oswald, A. C., 17/12/1904, p. 135
313
repercutiam sob a forma de doenças e de morte. Tal fato por sua vez, uma constante durante todo o
século uela
o palácio de Queluz, em Portugal, o primeiro imperador do Brasil agonizava. Era
setemb hido aos mesmos aposentos onde havia nascido, trinta e
seis anos antes, em 1798. Esta área do palácio, aliás, tinha lá as suas peculiaridades, sendo
conhecida como Sala D m Qui ois fora decorada c pinturas que lembravam o
famoso itas esperanças e ali recolhido desde início de
setembro, no dia 17 ele resolveu ditar seu testamento ao ministro do Reino Bento Pereira do
Carmo de 1834, D. dro I o Bra l (e IV ortugal)
falecia d tuber ulose, 6 anos de idade ain pletos
XIX, implicou na menor quantidade de anos vividos pelos paulistanos nascidos naq
época ou, numa frágil existência.
Capítulo 3 – Uma frágil existência
N
ro de 1834 e ele estava recol
o xote, p om várias
romance de Cervantes. Sem mu
. Sete dias depois, a 24 de setembro Pe d si de P
vítima a c aos 3 da incom .
Fig. 43
“Morte de D. Pedro IV”
726 - Parecer da Comissão de Justiça, 1911, op. cit.
314
A doença, todos são unânimes em dizer, fora adquirida durante as batalhas que Pedro
movera
ram-se explicações nos maus tratos sofridos e numa
infeliz g
cionais. Mas, é preciso
l, e isso principalmente porque a expectativa de vida média do brasileiro
chegou, em 2004, a 71,7 anos. Mas, nem sempre foi assim.
Segundo Jean Bernard, o homem da pré-história morria geralmente aos dezoito
anos.
727
Na Inglaterra quinhentista, vida era extremamente
baixa: 29,6 anos
728
, sendo q olvid país, esta chegava a
37 anos entre 1628 e 1699, e 42 os de 700 a
ranc séculos XVII e início
do XIX, freqüentemente mor ant dos
0
E é quase um consenso entre os
historiadores europeu dia, a esperança de
vida na e continente se situava, em média, entre 35 e 40 anos.
731
Os velhos – de acordo
com os nossos padrões contemporâneos – eram figuras raras naquela sociedade; e, quando
tados
contra o irmão, D. Miguel, pela posse do trono português. Esta campanha, por sua
vez, tivera início em 1832 nos Açores, onde ele mesmo criara uma força expedicionária para
invadir Portugal. As condições impostas pela guerra, trouxeram-lhe o mal.
Para os nossos padrões, D. Pedro teve uma curta existência, assim como sua primeira
esposa, D. Leopoldina. Para ela, busca
ravidez e, para ele, nos conhecidos exageros de juventude que bem poderiam ter-lhe
debilitado o organismo, razão pela qual a tuberculose avançou. Em outras palavras,
fatalidades, muitas das quais impossíveis de serem previstas.
É preciso deixar claro, entretanto, que essas justificativas somente hoje são
necessárias, posto que muitos entendem essas mortes como casos excep
sempre lembrar, não para aquela época. Causa-nos uma certa perplexidade a morte
prematura de duas figuras públicas e do porte histórico como as do imperador e da
imperatriz do Brasi
a média geral para a esperança de
ue s reg ões ma na i is desenv as daquele
an 1 1774.
729
O f ês, entre os
ria es quarenta.
73
s com formação em demografia que, na Idade Mé
quel
ci em textos da época, os personagens assim qualificados (como velhos) não possuíam
mais do que 40 ou 45 anos
732
; “entre os cavaleiros do século XIII, um homem de quarenta anos era
visto quase como um velho”.
733
Arnolphe, o velhote enganado de Escola de mulheres (Molière,
1662) ironizado por Agnès e Horace, mal passara dos quarenta anos e seu amigo Chrysale já
727 - Bernard, Jean; Esperanças e Sabedoria da Medicina; S.P.: Unesp, 1997, p. 9.
728 - Souza, Laura de Mello e; O Diabo e a Terra de Santa Cruz; (2005) p. 167.
729 - Chaunu, Pierre; A história como ciência social; R.J.: Zahar, p. 458
730 - Bernard op. cit.
731 - Le Goff, Jacques e Truong, Nicolas; Uma história do corpo na Idade Média, R.J.: Civilização Brasileira, 2006, p. 93.
732 - Idem, ibidem, p. 103.
315
lhe recorda a idade na primeira cena do primeiro ato: “Que diabo fez você resolver, aos
quarenta e dois anos, a se desbatizar?”
734
A mulher de trinta anos, escreveu Balzac em 1832, ainda poderia apaixonar-se e ser
amada. Causou furor e o “todas as namoradas
de romances tinham vinte anos, e ele prolongou até aos trinta, até aos quarenta sua vida afetiva.”
735
O
comum seria que, aos 30 anos, as mulheres já estivessem casadas, carregadas de filhos e
próximas do fim ou, ao contrário, seriam elas perigosas sedutoras:
“Uma mulher de trinta a para uma sociedade
nde a morte chegava, geralmente, por volta dos 40 anos.
Em São Paulo, ainda na década de 1890, morria-se de senil aos 47 anos de
idade
736
; das 9.233
foi um suc ãesso imediato pelo inusitado: até ent
muito experientes e sábias,
nos tem atrativos irresistíveis”, ousou Balzac dizer
o
marasmo
pes da Sé penas 414soas que residiam na Paróquia em 1872, a delas (ou
cerca de 4,5%) indicaram ter m s de s tenta uação era agravada:
apenas
34
ai e anos; entre os escravos a sit
deles declararam idade igual ou su ano e 1,7% do total.
737
De
fato, e como poderemos obse ar a eguir, a de aulistanos entre as
décadas de 1870 e 1890 esteve sempre em torno dos 40 anos
738
e, como comparação, lembro
que, para o ano de 2004, o IBGE já calculava para os brasileiros uma expectativa de vida em
perior a 70 s, ou cerca d
rv s a esperanç vida dos p
torno dos 67,9 anos para os homens, e de 75,5 para as mulheres, ficando a média nacional
para ambos os sexos em 71,7 anos. Entre 1980 e 2004, a esperança de vida ao nascer, no Brasil,
elevou-se em mais 8,3 anos para os homens e mais 9,8 para as mulheres.
Antes de especificarmos os cálculos para o século XIX, seria importante compor um
quadro geral para a cidade no século XX. Nesse sentido, apresento uma tabela qüinqüenal
para o período de 1900 a 1994, com os dados referentes à esperança de vida ao nascer para os
733 - Elias, Norbert; A solidão dos moribundos; R.J.: Jorge Zahae Editor, 1990, p. 14
734 - No orig
verdade,
inal: Qui diable vous a fait aussi vous aviser, à quarante-deux ans, de vous débaptiser? O personagem, na
não se conformava com a insistência de Arnolphe em trocar o nome para “Monsieur de la Souche”
735 - Rónai, Paulo; Introdução, In: Balzac (2004).
736 - Livro de Inumação do cemitério da Consolação, vol. 14, 1890 a 1891, fls. 187, onde se encontra o seguinte
registro: “Guerino, aos 27 dias do mês de novembro de 1890. Sepultou-se no quadro geral 42, sepultura 70 o cadáver de
Guerino de tal, de 47 anos de idade, brasileiro, solteiro, falecido no Hospital de Caridade hontem de
Marasmo senil. (...)”
Marasmo: enfraquecimento geral.
737 - Recenseamento Geral de 1872, Província de São Paulo, original no Arquivo do Estado de São Paulo (veja Fig.
nº 44, adiante). Charles de la Roncière apresentou números muito próximos a estes para algumas regiões da Itália
medieval: considerando a mesma faixa etária (entre 65/70 anos ou mais), eles representavam 3,8% da população
em Prato no ano de 1371 e 4,8% na Florença de 1480. Veja Roncière, Charles de la; A vida privada dos notáveis
toscanos no limiar da Renascença; In: Ariès e Duby (1995), p. 231.
738 - Ao estudar essa mesma questão, Marcílio (1986) indicou que a esperança de vida dos paulistanos, entre as
décadas de 1870 e 1890, seria de
33,9 anos, passando para 39,3 entre 1890 e 1920.
316
paulistanos. Parte de um estudo desenvolvido pelo cientista social José Leopoldo Ferreira
Antunes, a tabela foi gentilmente cedida pelo autor. Na primeira coluna especifica-se o ano e,
na segu
o
nda, a esperança de vida ao nascer.
An Esperança de vida ao nascer
19 46 00
1905 48,25
1910 48,28
1915 47,16
1918 31,08 ()
1920 41,93
19 41,58 25
19 46,75 30
19 48,93 35
19 50,37 40
1945 54,84
1950 57,65
1955 59,64
1960 62,01
1965 62,16
1970 63,17
19 64,66 75
19 67,84 80
19 68,94 85
19 68,77 90
1994 70,1
Para que os números das estatísticas não ocultem outras questões, já que os mesmos
homogeneízam as imensas e históricas desigualdades presentes no país, um segundo quadro
() - Decréscimo na esperança de vida ocasionado pela epidemia de Gripe Espanhola.
317
se faz necessário. Nesse sentido, a seguir apresento um outro, este elaborado a partir da
diferenciação entre homens e mulheres, brancos e negros, tendo como base os anos de 1980,
1991 e 2000.
Esperança de vida ao nascer entre os brasileiros, este divididos por sexo e cor,
entre os anos de 1980, 1991 e 2000
60.58
58.15
56.98
58.71
50,00
55,00
60,00
Homens Negros
65.62
63.43
63.27
68.24
64.36
65,00
Mulheres Negras
69.52
Homens Brancos
no século XIX, ou seja, para as condições de vida que os registros de morte poderão revelar
para as diversas parcelas da população.
73.80
71.80
70,00
75,00
Mulheres Brancas
1980 1991 2000
Como o quadro bem demonstra, ainda hoje temos uma perversa desigualdade na vida
que, inclusive, se faz representar na hora da morte.
739
Para os números que virão a seguir, destaco não apenas os cálculos efetuados para o
geral da sociedade, como em especial aqueles distinguindo homens e mulheres, bem como
livres e escravos. Não obstante o ineditismo de tais projeções para a população escrava e
urbana, elas apontam ainda uma grande possibilidade para o estudo da sociedade paulistana
739 - Reproduzido do “Atlas Racial Brasileiro – 2004”; Banco de dados eletrônicos, PNUD-Programa das Nações Unidas
318
3.1 Esperança de vida: considerações preliminares e quadros resumidos
Os cálculos da esperança de vida para determinada comunidade em um período
specífico, somente são possíveis mediante a existência de dois dados: a quantificação das
nais da área são dificultadas, não obstante a
e
pessoas vivas e os números da mortalidade. Os recenseamentos suprem a primeira
demanda, desde que abranjam toda a população local e disponibilizem os dados relativos à
faixa etária de cada grupo mensurado. Para o caso do Brasil, o primeiro censo com tais
características foi realizado em 1872;
740
antes desse período, portanto, a aplicação das
fórmulas matemáticas indicadas pelos profissio
possibilidade de aproximações. De fato, as equações utilizadas neste estudo necessitam ser
alimentadas com números que indiquem, separadamente, a quantidade de pessoas com
para o Desenvolvimento e UFMG, disponível no sítio http://www.pnud.org.br/publicacoes/atlas_racial/index.php
740 - No Brasil colônia foram realizados alguns levantamos censitários que visavam, essencialmente, a objetivos
militares e estratégicos. Deles participavam os membros do clero, que contavam os fiéis de sua paróquia e
enumeravam os fogos. Data dessa época, por exemplo, a constituição para a Capitania de São Paulo dos chamados
Maços de População, atualmente disponíveis no Arquivo do Estado. Conforme Oliveira (2003), “A finalidade dessas
listagens – como o recrutamento militar ou a cobrança de impostos, quando não ambas – justificavam o temor e a
resistência que tais contagens provocavam na população.”Muitos, portanto, fugiam da contagem. O primeiro
regulamento censitário do Brasil data de 1846, sendo que somente em 1850 o governo foi autorizado a despender
os recursos necessários para a sua realização. A regulamentação do processo viria no dia 18/06/1851 com os
Decretos 797 e 798, porém, com uma novidade: na mesma época a responsabilidade pelos registros de
nascimentos passariam para os cartórios, algo até então de responsabilidade da Igreja. O primeiro censo, marcado
para 1852, não aconteceu devido a uma revolta popular ocorrida principalmente nas províncias do Ceará,
Alagoas, Sergipe e Pernambuco. O temor era que, com a nova legislação, os dados de nascimentos pudessem ser
falseados visando a escravização dos nascidos livres. Segundo Silva (1920/1986, p. 14 e 15), “a oposição feita pela
parte da população menos sensata e ilustrada á execução do Regulamento do registro dos nascimentos e óbitos, não se
cifrava unicamente no protesto da abstenção (...) eram ameaças, manifestações criminosas, reuniões armadas [pelo] boato,
arteiramente espalhado e loucamente acreditado pelo povo rude, de que o registro só tinha por fim escravizar a gente de cor
(...) em Pernambuco, apelidaram-na de LEI DO CATIVEIRO.” A esse respeito veja também uma esclarecedora
análise de Secreto (2003), onde esta revolta é estudada num processo que inclui outras manifestações ocorridas
no nordeste no mesmo período.
319
menos de 1 ano e, sucessivamente, com 1, 2, 3, 4 e 5 anos. Daí por diante, agrupa-se a
população por qüinqü decênios.
741
Estes números, por su fr m as da morte para o
período, também divididas conforme as faix de os vivos.
Os dados sobre a po lação de São ra o 72 são amplamente
conhecidos e, conform que, na área total
abrangida pelo muni 1.385 pessoas assim
ivididas por faixa etá
enso d
ênios (até os 30 anos) para, em seguida, considera-las em
a vez, devem ser con ontados co quantificações
as etárias já scritas para
pu Paulo pa ano de 18
e o censo divulgado naquele período, sabe-se
cípio, os moradores somavam um total de 3
d ria:
C e 1872:
Fa ár Quantidixa et ia ade
0 e –1 anos 1.154
1 ano 539
2 anos 565
3 527
4 601
5 a 4.21 9 9
10 3.52 a 14 3
15 3.04 a 19 5
20 a 24 3.124
25 a 29 3.085
30 a 39 4.261
40 a 49 2.955
50 a 59 1.821
60 a 69 963
70 a 79 471
80 e + 396
742
Incluídos na soma geral dos habitantes da capital estavam, além dos moradores das
Paróquias da Sé, Braz, Santa Ifigênia e Consolação, também os da Penha e da Freguesia do Ó.
Mais ainda, naquela época o município englobava também as Paróquias de Guarulhos (hoje
741 - Apesar de existência de outros métodos, como os de Pollard (veja Yazaki 1990), optamos por utilizar neste
estudo o proposto pelo Prof. Dr. Jair Lício dos Santos e descrito na obra “Dinâmica da População – teoria, método
e técnicas de análise”, especialmente no capítulo “Principais técnicas de análise e projeção”, p. 103 a 155; também
disponível em IBGE (2000) p. 03 a 23. As equações para o cálculo da esperança de vida sugeridas pelo autor foram
facilitadas pelo desenvolvimento das mesmas em uma base informatizada, cujo programa foi gentilmente cedido
pelo cientista social José Leopoldo Ferreira Antunes. Veja no capítulo 3.2, logo após as tábuas completas de
“Esperança de Vida”, um detalhamento oferecido por Santos a respeito dos cálculos que compõem esta base.
742 - Recenseamento Geral de 1872, Província de São Paulo. Consultado o original custodiado pelo Arquivo do
Estado de São Paulo. Posteriormente, este mesmo censo foi divulgado no Annuario Estatístico do Brazil 1908-
1912; R.J.: Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, Typ. da Estatística, 1916; p. 308 e 309.
320
município), Juqueri (atual Mairiporã) e São Bernardo (hoje município de mesmo nome). No
total do
s habitantes calculado para a cidade de São Paulo, portanto, encontravam-se somados
os números de regiões que hoje não mais fazem parte da capital. Eis aqui um problema que
pode facilmente passar desapercebido e, em assim o sendo, provocar alterações nos cálculos
que estamos procedendo. Ponderando esse aspecto da história, Maria Luiza Marcílio já
alertava para o problema uma vez que, para cada período estudado quanto à população
devemos, antes, situar a área de abrangência do município nas diferentes épocas.
743
743 - Veja Marcílio, 1974, especialmente Capítulo 4º, p. 31 e seguintes.
321
322
Nesse sentido procedeu-se a uma primeira exclusão, no censo da população
paulistana de 1872, das Paróquias de Guarulhos, Juqueri e São Bernardo, uma vez que os
mortos
aos falecimentos, fato este que poderia elevar artificialmente a expectativa de vida.
o natural
onsiderarmos os moradores desses bairros como parte integrante do município o que, na
ealidade, o eram. Entretanto, para cada uma dessas localidades havia um pequeno cemitério
am enterrados. O cemitério da Freguesia do Ó,
or exemplo, começou a ser construído em 1860 sendo que suas obras foram finalizadas entre
862 e 1863
745
; já o cemitério da Penha começou a ser planejado em 1855 e foi aberto pouco
mpo depois.
746
No ano de 1872, portanto, o cemitério da Consolação servia aos residentes
as paróquias da Sé, Braz, Santa Ifigênia e Consolação, ou ao que podemos chamar de
eguesias centrais da cidade. Este fato pode, inclusive, ser confirmado através dos próprios
egistros de sepultamentos deste cemitério, uma vez que as guias que acompanhavam os
clusivamente pelos párocos responsáveis por estas paróquias,
istindo quaisquer referências de cadáveres que tenham vindo da Freguesia do Ó ou da
enha. Nesse sentido, a população residente nessas duas últimas freguesias também foi
dessas localidades não eram sepultados no cemitério da Consolação.
744
Em outras
palavras, seria um erro considerar para este estudo esses núcleos mais afastados no tocante à
soma geral da população, uma vez que não teríamos disponíveis neste momento os dados
referentes
De outra parte devemos analisar a situação de duas outras freguesias que, até o último
quartel do século XIX, encontravam-se distantes da chamada região central da cidade e aqui,
especificamente, estamos nos referindo à Freguesia do Ó, localizada a noroeste, bem como a
Penha, no lado leste do núcleo principal. Num primeiro momento, seria mesm
c
r
paroquial a céu aberto onde os seus mortos er
p
1
te
d
fr
r
corpos eram assinadas ex
inex
P
44 - Não obstante a proibição dos sepultamentos no interior das igrejas a partir de 1858, nessas localidades tal
rática permaneceu até por volta de 1861, época em que a municipalidade encarregou-se da construção de
equenos cemitérios nas paróquias do Juqueri e de Guarulhos (A. C., sessões dos dias 09/03 e 22/03/1861, p. 63 e
de Guarulhos, por exemplo, já estava servindo em 1865 (A. C. de
1/10/1865, p.289, e 19/12/1865, p. 323); o de São Bernardo teve os seus muros concluídos bem antes, ou seja, em
1854 (Coleção Papéis Avulsos, vol. de 1854, recibo datado de 24/11/1854). De outra parte, essas localidades
stavam a uma longa distância do centro urbano paulistano e do cemitério da Consolação, o que tornava muito
alculada a partir da Praça da Sé, as distâncias eram as seguintes: Juqueri, 30
m.; Guarulhos, 18 Km. e São Bernardo 21 Km. A esse respeito veja Marcílio (1974), especialmente p. 50 e 51.
45 - Ofício do encarregado das Obras do Cemitério da Freguesia do Ó, A. C. 17/11/1860 e 20/12/1860, p. 220 e 225,
spectivamente; e Ofício do vereador Fortunato Alves de Siqueira, A. C., 08/05/1862, p. 68 e 69. Antes da existência
esse cemitério, os falecidos naquela freguesia eram enterrados no interior da igreja ou em seu adro, como demonstra
ma reclamação datada de 1917, ocasião em que se pediu a remoção “... para o cemitério da Freguesia do Ó um túmulo que
ata de 1839 e que se conservava no largo da Matriz Velha, daquela Freguesia.” A.C. 29/12/1917, p. 890.
- Ofício assinado pelo vereador Gabriel José R. dos Santos e pelo vigário da Penha, Antonio Benedito de
Camargo, A. C., 07/12/1855 e Registro Geral da Câmara, Ofício datado de 03/12/1855.
7
p
p
70 respectivamente). O novo cemitério
3
e
difícil o transporte dos cadáveres. C
K
7
re
d
u
d
746
323
excluída.
Apesar de utilizarmos comumente o cálculo de 31.385 habitantes para o município de São
aulo em 1872, o fato é que este número não é adequado para as projeções que realizei. Nesse
entido, e apesar da aproximação que pode ser utilizada para todo o município, a esperança de
ida do paulistano levará em consideração os vivos residentes nas paróquias da Sé, Braz, Santa
igênia e Consolação, uma vez que os dados da morte referem-se também a esta população.
ssim sendo, as duas tabelas que serão utilizadas, a dos vivos e a dos mortos, serão as seguintes:
1872: população residente
P
s
v
If
A
Faixa etária Quantidade
0 e1 528
1 305
2 303
3 277
4 336
5 430
6 a 10 2.431
11 a 15 2.058
16 a 20 1.795
21 a 25 2.019
26 a 30 1.962
31 a 40 2.569
41 a 50 1.846
51 a 60 1.165
61 a 70 582
71 a 80 321
81 a 90 165
91 a100 92
100 e + 12
1872: mortes
Faixa etária Quantidade
0 e1 113
1 37
2 16
3 07
4 04
5 05
6 a 10 14
11 a 15 08
16 a 20 19
21 a 25 17
26 a 30 29
31 a 40 63
41 a 50 51
51 a 60 43
61 a 70 33
71 a 80 19
81 a 90 12
91 a100 02
100 e + 01
Antes porém de nos determos nos dados gerais a partir das tabelas produzidas,
chamo a atenção para um cuidado que devemos ter diante dos números. Vale, nesse sentido,
lembrar o alerta de Jean-Louis Besson já que, para ele, as estatísticas não refletem de todo
uma realidade, posto que não podem existir cifras absolutamente exatas: estas provêm de
observações, requerendo, portanto, observadores e informadores que podem ser falíveis. Os
recenseamentos, devemos nos lembrar, não podem nunca ser exatos, o que não quer dizer
que sejam falsos. Em resumo, toda a observação estatística é afetada por um certo grau de
324
inexatidão, cuja estimativa é incerta.
747
Eis aqui um problema, bem como um utro já velho conhecido dos historiadores, ou
ja, o fato de que tal e qual as fontes escritas ou imagéticas do passado, os resultados das
quações devem ser encarados enquanto representações que podem nos aproximar de uma
alidade, já que parte dela, mas não nos informam nunca sobre sua totalidade . Um outro
alerta é no sentido de que, se por um lado os cálculos nos mostram algumas verdades, por
outro podem encobrir tantas outras.
De qualquer forma, as quantificações aqui foram cercadas do maior cuidado e rigor
possível, especialmente no que tange aos números da morte que, pela primeira vez, se
conhece por inteiro para o núcleo central da cidade de São Paulo no período especificado. Na
seqüência, apresento os quadros resumidos para um total de 12 (doze) tabelas produzidas
que, na íntegra, poderão ser consultadas no capítulo 3.2 a seguir.
No primeiro quadro, produzido para o ano de 1872, os cálculos foram baseados na
população geral da cidade
748
, aqui incluindo homens e mulheres, livres e escravos. O
resultado nos oferece uma média geral para a expectativa de vida que pode ser visualizada da
seguinte maneira:
Quadro 01: ano de 1872 – Geral
o
se
e
re
Esperança de vida ao nascer 31,53 anos
c/ 1 ano 37,40
c/ 2 anos 41,07
c/ 3 anos 42,27
c/ 4 anos 42,34
c/ 5 anos 41,84
Esses cálculos gerais para a cidade melhor esclarecem uma questão já colocada, ou
seja, a de que os paulistanos viviam, em média, cerca de 40 anos. Entretanto, e como já
alertado no início, apesar desses números nos aproximarem de uma realidade eles não dão
conta de algumas especificidades, pois acabam por homogeneizar os diferentes grupos que
viviam na cidade. Assim, e utilizando a mesma base, realizamos os cálculos tendo em vista
747 - Besson, Jean-Louis, A ilusão das estatísticas (1995), especialmente “Editorial” e parte 1 “As estatísticas: verdadeiras
ou falsas?” p. 17 e seguintes. A esse respeito veja também Szwarcwald e Castilho (1992) que alertam não apenas sobre
o
propósito que fundam algumas estatísticas, mas também sobre métodos inadequados ou, mais grave ainda, as
induções que são possíveis se serem feitas mediante a escolha detodos de apresentação.
748 - Entendendo-se aqui “cidade” como o núcleo central, composto pelas já citadas Freguesias ou paróquias.
325
uma divisão entre os sexos. Vale antecipar que essas novas tabulações, ao mesmo em que
clareiam um pouco mais a situação, também nos apresentam outros problemas. Vejamos
então o quadro geral para homens e, em seguida, para as mulheres:
Quadro 02: ano de 1872 - Homens
Esperança de vida ao nascer 33,23 anos
c/ 1 ano 40,52
c/ 2 anos 43,88
c/ 3 anos 44,10
c/ 4 anos 44,42
c/ 5 anos 44,30
Quadro 03: ano de 1872 - Mulheres
Esperança de vida ao nascer 29,78 anos
c/ 1 ano 34,41
c/ 2 anos 38,39
c/ 3 anos 40,36
c/ 4 anos 40,21
c/ 5 anos 39,42
Não obstante o caráter ainda geral – posto que incluem livres e escravos – os dois
últimos quadros nos oferecem algo que, à primeira vista pode surpreender, ou seja, uma
diferença de 4 a 5 anos favorecendo os homens. Esta ocorrência, por sua vez, além de se
manifestar à época do nascimento, acaba mantendo-se nas idades posteriores. Como sabemos,
a situação inverteu-se no século XX uma vez que, atualmente, as mulheres vivem mais do que
os homens. Anotado este fato, impossível seria analisá-lo unicamente com base nesse ano, até
porque esta ocorrência poderia ser específica para 1872. Nesse sentido irei fazê-lo em seguida,
com base em um segundo bloco de tabelas, onde o período para o cômputo das mortes foi
ampliado.
As três tabelas apresentadas, é preciso frisar, oferecem uma imagem restrita ao ano de
1872 e, nesse sentido, refletem uma conjuntura única, já que presente apenas naquele
momento. Dito isto, torna-se necessário uma ampliação dos dados para se chegar a resultados
médios e mais próximos para um período mais longo. Com o intuito de melhor dimensionar a
expectativa de vida dos diversos grupos que viviam em São Paulo na segunda metade do
culo XIX, este novo cômputo dos dados, bem como a projeção segmentada, foi realizada da
eguinte maneira: reunindo as quantificações para as mortes no período entre 1869 e 1874,
estas foram somadas e divididas pela quantidade de anos (seis), chegando-se assim a uma
s
326
média de falecimentos no intervalo. Dessa maneira atenuam-se (eliminando-se por vezes) as
ocorrências extemporâneas ou muito singulares a um determinado ano.
749
Realizadas estas operações encontramos, como média para o período de 1869 a 1874,
as seguintes projeções com relação à esperança de vida do paulistano (os três primeiros
quadros repetem os grupos antes apresentados):
Quadro 04: média entre 1869/1874 - Geral
Esperança de vida ao nascer 28,67 anos
c/ 1 ano 33,36
c/ 2 anos 37,70
c/ 3 anos 38,98
c/ 4 anos 39,53
c/ 5 anos 39,48
Quadro 05: média entre 1869/1874 - Homens
Esperança de vida ao nascer 28,26 anos
c/ 1 ano 33,37
c/ 2 anos 37,72
c/ 3 anos 38,85
c/ 4 anos 39,31
c/ 5 anos 39,35
Quadro 06: média entre 1869/1872 - Mulheres
Esperança de vida ao nascer 28,24 anos
c/ 1 ano 32,36
c/ 2 anos 36,53
c/ 3 anos 37,87
c/ 4 anos 38,75
c/ 5 anos 38,59
Apresentados esses resultados, cabe a pergunta: qual deles é o correto? Ou, em outras
palavras, qual das projeções mais se aproxima da realidade? Ambas estão corretas, é preciso
izer, sendo que os números para 1872 indicam os fenômenos ocorridos exclusivamente
d
749 - Técnica elaborada sob a orientação do Prof. Dr. José Leopoldo Ferreira Antunes.
327
naquele ano e que, necessariamente, não estavam presentes nem antes e nem depois. Nesse
caso, as demais projeções espelham a média alcançada num período onde alguns fatores
singulares puderam ser amenizados.
Talvez nem fosse necessário apresentar as três primeiras tabelas, posto que as demais
melhor indicam a tendência verificada qu à esperança de vida dos paulistanos nesta
segunda metade do século XIX. Porém, elas aqui estão justamente como um alerta para o
problema apontado por Jean-Louis Besson (1995) e por Szwarcwald e Castilho (1992), ou seja,
a produção de uma estatística, bem como a escolha do método de sua apresentação – e apesar
de revestir-se de um caráter científico – não é uma atividade neutra. Assim, os dados
singulares para 1872 não servem para 1871 e nem para 1873, dada a ocorrência fenômenos
específicos em cada período (como as epidemias, por exemplo) que mais atingiam este ou
aquele grupo. Nesse sentido, faço a opção de trabalhar com os resultados médios, já que os
reputo como os mais corretos e, principalmente, mais honestos.
E dentre os vários grupos que viviam e morriam na cidade, temos aquele composto
pelos escravos. Pelas condições de vida a que estavam submetidos esperava-se desde o início
das tabulações resultados inferiores aos dos livres, ou a de que eles viveriam menos.
Segundo o censo geral de 1872, o município de São Paulo possuía um total de 31.385
habitantes. Cerca de 37% deles eram negros (pretos e mulatos), sendo que 12,2% do total geral
dos habitantes – ou 3.828 moradores – estavam na condição de escravos. Nos cálculos
utilizados especificamente para a esperança de vida, e excluindo as Freguesias já citadas, o
núcleo central paulistano contava com 19.196 moradores. Destes, 2.968 (ou 15,4%) eram
escravos.
Para o país como um todo, os cálculos dão conta que, na mesma época, 58% dos quase
10 milhões de brasileiros eram de origem africana, pura ou mestiça.
750
Com respeito à
longevidade dessa importante parcela da população brasileira, já vimos num quadro anterior
que sua expectativa de vida ainda se mantém numa escala inferior à dos brancos, variando
para menos entre 4 e 5 anos segundo a projeção feita para o ano de 2000. Recuando no tempo,
e antes de 1872, várias circunstâncias nos impedem de realizar um cálculo que poderíamos
chamar de científico, mas algumas aproximações já foram feitas como, por exemplo, a de que
nas lavouras a “vida útil de um jovem escravo compreendia entre 7 e 15 anos”, ou que, na mesma
situação, a “esperança de vida para os escravos do sexo masculino seria de 18,3 anos.”
751
De fato, são
anto
750 - Bacci, Massimo Livi; 500 anos de demografia brasileira: uma resenha, (2002), p. 147
751 - Id. ibidem, p. 150. O autor, entretanto, chama a atenção para as fontes utilizadas nesses cálculos,
“gravemente deficitárias devido à ausência de registro dos eventos (mortalidade e natalidade), e às peculiaridades
da estrutura por idade e sexo.” (p. 151) Na relação entre escravos e senhores, e nas questões ligadas à saúde,
doença, trabalho e morte, Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos (1951, p. 385-386) cita a tese do médico David
328
aproximações que não fogem muito da realidade como teremos a oportunidade de ver em
comparação com os escravos que residiam e trabalhavam, em sua grande maioria, na cidade.
Um primeiro dado que poderá ser observado nos quadros elaborados para os escravos
é a ausência dos cálculos para a
e
o
, ou seja
para a esperança de vida ao nascer. As equações
não foram possíveis de serem realizadas para esta idade por um simples motivo: no ano
anterior ao censo, mais precisamente no dia 28 de setembro de 1871, era promulgada a Lei do
Ventre Livre e, por isso, o censo, não poderia assumir, como é óbvio, a existência de escravos
com menos de 1 ano de idade. Estes, portanto, foram incluídos ou na categoria de livres ou na
de libertos. Sabe-se, porém, que esta Lei teve poucos efeitos práticos, até porque deixava os
menores sob a tutela dos senhores.
752
Nesse sentido, e apesar de não constarem nessa
condição nos registros do censo, alguns deles foram tratados como escravos na hora da morte
como podemos observar nos seguintes casos:
-Ermelina, com 3 meses de vida, falecida no dia 14/05/1872, escrava do Dr. Antonio Pinto do Rego Freitas.
-América, com 10 meses de vida, falecida no dia 14/08/1872, escrava do Dr. Martinho da Silva Prado.
-Isabel, com 3 meses de vida, falecida no dia 05/10/1872, escrava do major Sebastião de Azevedo.
-Joana, com 4 meses de vida, falecida no dia 02/12/1872, escrava de Rufina Maria da Conceição.
753
Tendo em vista este problema optei por não correr riscos e, mediante os erros que
certamente ocorreriam com a
e
o
para os escravos (se considerados fossem os óbitos sem a
indicação dos vivos), os cálculos mais seguros iniciam-se com a expectativa de vida a partir
da idade de 1 ano. A seguir veremos as três projeções preparadas para este segmento da
população e que nos apresentam os cálculos médios para a esperança de vida dos escravos
entre 1869 a 1874. A primeira tabela refere-se ao geral e, em seguida, as mesmas dividem-se
Gomes Jardim, de 1842, que, ao indagar de um fazendeiro porque lhe adoeciam e morriam tantos negros,
surpreendeu-se com a resposta: “Respondeu-nos pressuroso que [a mortandade], pelo contrário, não dava dano algum, pois
que
quando comprava um escravo era só com o intuito de desfrutá-lo durante um ano, tempo além do qual poucos poderiam
sobreviver, mas que não obstante fazia-o trabalhar por um modo que chegava não só para recuperar o capital que neles havia
empregado, porém ainda tirar lucro considerável.” (meu destaque). Em contraposição a esta perspectiva, Betânia
Gonçalves Figueiredo cita o trabalho do cirurgião português Luís Gomes Ferreira que atuou nas Minas Gerais no
culo XVII. Esta autora nos mostra que “boa parte da clientela do cirurgião português era composta por donos de escravos
cupados com a saúde da sua mão-de-obra.” Veja Figueiredo, Betânia Gonçalves; As doenças dos escravos: um campo
estudo para a história das ciências da saúde, In: Nascimento, Carvalho e Marques, “Uma história brasileira das
2 - A respeito das ambigüidades dessa Lei veja a análise de Arethuza Helena Zero (2003)
753 - Livro de Inumação do cemitério da Consolação, 1872, Vol. 5. Outras crianças foram ainda citadas como
preo
de
doenças” (2006), p. 252 a 273.
75
329
por sexo.
Quadro 07: Escravos – Geral (média entre 1869/1874)
Esperança de vida c/ 1 ano 20,70 anos
c/ 2 anos 23,63
c/ 3 anos 31,27
c/ 4 anos 34,00
c/ 5 anos 34,95
c/ 6 anos 33,95
Quadro 08: Escravos – Homens (média entre 1869/1874)
Esperança de vida c/ 1 ano 20,30 anos
c/ 2 anos 22,73
c/ 3 anos 34,92
c/ 4 anos 36,01
c/ 5 anos 35,01
c/ 6 anos 37,69
Quadro 09: Escravos – Mulheres (média entre 1869/1874)
Esperança de vida c/ 1 ano 18,36 anos
c/ 2 anos 22,04
c/ 3 anos 26,92
c/ 4 anos 30,72
c/ 5 anos 34,15
c/ 6 anos 36,05
Uma primeira constatação que pode ser feita diz respeito a esta oscilação negativa
notada em relação ao geral da cidade, especialmente nesta última projeção com relação às
mulheres. Estas são explicadas pelas características que envolviam a vida desse segmento da
população, na qual se destacava uma baixa natalidade acompanhada por uma altíssima taxa
de mortalidade infantil. No censo de 1872, por exemplo, anotamos a existência de apenas 16
crianças escravas apontadas com 1 ano de vida, sendo que nesse mesmo ano 8 delas (ou 50%)
morreram.
754
Para a população livre, ao contrário, os números são bem mais favoráveis, ou
seja, nesse mesmo ano existiam 289 crianças livres vivas, sendo que 29 delas morreram (ou
10%). Como pode ainda ser observado, nota-se uma clara desvantagem das mulheres em
relação aos homens e, nesse sentindo, uma análise mais geral será realizada em seguida. Para
libertas.
754 - Segundo os estudos de José Roberto de Góes e Manolo Florentino, “... os escravos com menos de dez anos de idade
correspondiam a um terço dos cativos falecidos; dentre estes, dois terços morriam antes de completar um ano de idade, 80% até
os cinco (...). Aqueles que escapavam da morte prematura, iam, aparentemente, perdendo os pais. Antes mesmo de
completarem um ano de idade, uma entre cada dez crianças já não possuía nem pai nem mãe anotados nos inventários. Aos
cinco anos, metade parecia completamente órfã, aos 11, oito a cada dez.” Góes e Florentino; Crianças escravas, crianças dos
escravos ; In: Del Priore (2006) p. 180.
330
o caso específico das mulheres escravas, veremos mais alguns detalhes no próximo capítulo.
Como já visto anteriormente, os primeiros anos de vida se constituíam na fase mais
crítica da existência, período em que a fragilidade se apresentava de forma mais aguda. No
caso dos escravos esta também era a realidade, mas que, somada à baixa natalidade,
produziam resultados como estes que podem ser observados nas projeções para a esperança
de vida. Ultrapassada essa fase e chegando à idade entre os 4 e 5 anos, ocorre a estabilidade
que, também, pode ser verificada para a população livre (veja as tabelas completas presentes
no final deste capítulo).
755
Registrada essa primeira oscilação, o fato é que podemos depurar ainda mais esses
cálculos, uma vez que a comparação aqui realizada não é a mais correta. Nesse sentido, e em
relação aos escravos, devemos contrapor os seus quadros com aqueles preparados para os
livres e, nesse sentido, os de nºs 7, 8 e 9 devem ser comparados com os de nºs 10, 11 e 12 a
seguir:
Quadro 10: Livres – Geral (média entre 1869/1874)
Esperança de vida ao nascer 29,49 anos
c/ 1 ano 34,33
c/ 2 anos 38,76
c/ 3 anos 39,88
c/ 4 anos 40,04
c/ 5 anos 39,60
Quadro 11: Livres – Homens (média entre 1869/1874)
Esperança de vida ao nascer 29,41 anos
c/ 1 ano 34,78
c/ 2 anos 39,32
c/ 3 anos 40,29
c/ 4 anos 40,32
c/ 5 anos 39,99
Quadro 12: Livres – Mulheres (média entre 1869/1874)
Esperança de vida ao nascer 29,58 anos
c/ 1 ano 33,95
c/ 2 anos 38,27
755 - Lembramos aqui que a população escrava tinha um crescimento vegetativo muito abaixo da população livre,
sendo o seu aumento (ou a reposição dos que morriam) devido muito mais ao tráfico. Nessas circunstâncias é que
explica existência de apenas 16 crianças escravas com 1 ano de idade na região central da cidade em 1872, ao
meros que melhor esclarecem essa questão: no mesmo
eríodo encontramos para a área central da cidade cerca de 2.255 escravos na faixa entre 1 e 40 anos; destes 155 eram
entre 1 e 5 anos, ou
6,9%
se
contrário das 289 livres na mesma faixa etária. Outros nú
p
crianças
do total. Já para os livres as quantificações são as seguintes: 12.230 pessoas,
ndo 1.496 delas na faixa entre 1 e 5 anos, ou
12,2%
se
.
331
c/ 3 anos 39,27
c/ 4 anos 39,53
c/ 5 anos 39,01
Refletidos nesses quadros estão, por um lado, a maior fragilidade anotada
anteriormente com respeito às crianças e, por outro, a constatação de que esta situação era
agravada quando se tratava de crianças escravas. As condições de vida impostas a esta
parcela da população afloram nos números da morte e consubstanciam as informações que já
tínhamos sobre a alta taxa de mortalidade entre adultos e, mais ainda, entre as crianças.
Poderíamos aqui supor que a vida na cidade não implicava nos rigores da lavoura, mas nem
por isso eles eram menos escravos; daí a constatação de que, no geral, entre as crianças
escravas com 1 ano de idade, a sua esperança de vida era de menos 14 ou 15 anos em relação
aos livres. A comparação entre os quadros nos mostra também que a fase mais crítica estaria
entre o nascimento e até os três anos de vida, estabilizando-se depois para menos 5 ou 6 anos.
A conclusão geral nesta parte é a de que os livres na sociedade paulistana tinham uma
expectativa de vida que variava entre os 30 e 40 anos. Para os escravos, no entanto, esta
mesma esperança estava na casa dos 20 a 36 anos.
Com os últimos quadros apresentados, conseguimos nos aproximar de uma
questão explicitada anteriormente e que diz respeito à diferença na expectativa de vida
entre homens e mulheres. Os quadros 02 e 03 nos mostraram uma média de quatro a cinco
anos a menos para as mulheres, número este que foi atenuado quando da elaboração da
média geral. Ou seja, foi um fenômeno típico daquele ano. Entretanto, uma comparação
entre as projeções apresentadas nos quadros 05 e 06 (diferença média de um ano a mais
para os homens), 08 e 09 (com grandes oscilações de um a oito anos a favor dos homens),
bem como entre os de números 11 e 12 (com uma diferença média de um ano a favor dos
homens), percebemos que em todas as categorias estudadas, a mulher vivia menos que os
homens, numa relação oposta aos dias de hoje.
É certo que tantos os homens quanto as mulheres estavam expostos, na cidade, aos
inúmeros riscos à saúde, aos perigos de uma epidemia, por exemplo, ou a possibilidade de
adquirir quaisquer outros males que poderiam levar à morte. Entretanto, a condição feminina
trazia um outro risco que não fazia parte do universo masculino: a debilitação do organismo
provocado pela gravidez. Esta, inclusive, poderia vir acompanhada de vários problemas pré e
pós-parto. Esta situação de morte prematura das mulheres em relação aos homens no século
XIX fez com que, no próprio censo de 1872, este dado fosse anotado da seguinte forma: em
todo o município de São Paulo existiam 129 viúvos contra 123 viúvas contados entre os livres,
ou seja, o homem sobrevivia alguns anos a mais que a esposa. No caso dos escravos, esta
332
situação agravava-se (como, aliás, demonstram as projeções já apresentadas); entre eles,
existiam 23 viúvos contra 13 viúvas.
A ocorrência desse fato, portanto, está plenamente confirmada para meados do século
XIX, sendo este um tema bastante instigante e certamente com muitas possibilidades para
aprofundamentos. Entretanto, a intenção deste capítulo foi a de trazer a expectativa média de
vida para os paulistanos do século XIX, comprovando que esta nunca esteve acima dos 40
anos.
Algumas análises sobre os reflexos dessa baixa expectativa de vida na sociedade serão
tentadas adiante. Antes, porém, apresento as tábuas completas referentes à esperança de vida
do paulistano (cujos resumos já foram apresentados), bem como uma rápida explicação a
respeito das equações que fazem parte do programa informatizado que utilizei.
333
3.3 – Tábuas de cálculos
334
335
336
337
338
339
340
341
342
343
344
345
346
347
Os cálculos
(conforme especificações do Prof. Dr. Jair Lício dos Santos)
Convenções utilizadas para representar a esperança de vida:
e
o
- representa a esperança de vida (e) ao nascer (
o
)
e
x
- representa a esperança de vida (e) nas idades subseqüentes (
x
)
A primeira quantificação é assim representada:
n
P ndo “n” o número da
x
: se População em determinada idade (x) e cujas informações para
este estudo foram retiradas dos recenseamentos
A segunda quantificação (os dados da morte), está representada da seguinte maneira:
n
D
x
: sendo “n” o número de óbitos (D) em determinada idade (x). Para esta parte, as os
dados foram retirados dos livros de inumações do cemitério da Consolação.
A terceira coluna das tabelas já é o resultado de um cálculo que assim se representa:
n
O
x
: sendo “n” o número de Óbitos esperados em determinado idade (x). A equação leva em
conta o número de óbitos ocorridos numa certa população durante determinado ano,
dividido pela população (estimada ou recenseada) no meio daquele ano. Nas tabelas finais,
n
E
x
: sendo “n” o número de E
poderá ser observado que este resultado, quando indicadas as idade entre 0 e 4 anos
separadamente, se igualam ao
n
D
x
, alterando-se daí por diante, uma vez que agrupam-se
pessoas de idades diferentes no mesmo campo (somam-se os indivíduos entre 5 e 9 anos, por
exemplo) e computam-se as mortes. O resultado, na verdade, é
n
O
x
, ou, como o próprio nome
diz, “óbitos esperados” sendo, portanto, uma probabilidade, uma vez que o
x
tornou-se
variável.
A quarta coluna das tabelas também é uma equação que calcula o número de pessoas
em determinada idade expostas ao risco de morrer e sendo assim representada:
xpostos a morrer em determinada idade (x). O resultado é
obtido através de uma equação com a seguinte fórmula:
n
E
x
= n
P
x +
a
x
n
n
0
x
A quinta coluna (representada por
n
q
x
) vai nos oferecer a probabilidade de uma
348
pessoa de exata idade “x” vir a falecer. O resultado é calculado com base na seguinte equação:
qx = n
n
.n
0
x
n
x + a .n. 0
n x
P
x n x
A sexta coluna (representada por d ) apresenta o número de mortes no intervalo,
ue iniciaram a idade x, representado por l
x
).A
equaçã
sempre a partir de uma proporcionalidade hipotética com o número 100.000. A equação
possui a seguinte fórmula:
n
d
x
= 1
x
.n
q
x
A sétima coluna (
n
L
x
) apresenta o número de sobreviventes que iniciaram a idade x,
normalizada aqui a partir da proporcionalidade entre o quantidade pessoas na idade “0” e o
número 100.000 (campo “Nº de sobreviventes q
o é a seguinte:
n
L
x
= n.{1
x
(1 – ax) + a
x
1
x
+ n}
A penúltima coluna (T
x
) apresenta o total de anos vividos a partir da idade x , sendo
também chamadas de tábuas de sobrevivência: pessoas/anos vividos).
A última coluna apresenta o resultado final, ou seja, a esperança de vida, ou “e
x
”.
349
Capítulo 4 – O tempo: as idades da vida.
or deveria repetir por três vezes a última frase.
Não o fez. Sua voz foi emudecida pela saudação de milhares de pessoas concentradas no
Terreiro do Paço. Nos festejos q
para visitação pública às “pessoas decentemente vestidas, que se apresentassem com este intuito”,
757
o paço imperial recebeu somente no primeiro dia cerca de 15 mil pessoas; outros tantos não
conseguiram entrar, sendo obrigados a retornarem no dia seguinte. As comemorações
continuaram por 5 dias seguidos, ocasião em que algumas dependências do palácio
permaneceram franqueadas à visitação.
Na época de sua coroação, ocorrida no dia 18 de julho de 1841, D. Pedro II contava
com 15 anos de idade; mas, ele já era imperador de fato desde os 14 anos e 7 meses, ou desde
23 de julho de 1840, dia em que se deu o desfecho de um processo que, na história brasileira,
ficou conhecido como Golpe da Maioridade.
Apesar de assim classificado (como golpe), os debates a respeito da emancipação do
imperador ocorre , tendo recebido,
inclusive, grande apoio popular. A questão, portanto, não era novidade em 1840, até porque o
ar D.
37.
Naquela época, todas as propostas previam que o então príncipe poderia ser considerado
maior quando completasse 14 anos de idade ou, mais precisamente, a partir de 02 de
dezembro de 1839.
758
O primeiro projeto, de 1835, foi considerado inconstitucional e sequer
“Então o Rei de Armas, alçando a mão direita, na qual tinha um rico chapéu
de plumas, disse em alta voz: -- Ouvide, ouvide, estai atentos!
A este tempo o Exmo alferes-mor saindo da linha avançou em frente ao
peristilo do templo, e desenrolando a bandeira disse:
-- Está sagrado o mui alto e mui poderoso príncipe o senhor D. Pedro II por graça de
Deus, e unânime aclamação dos povos. Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo
do Brasil. -- Viva o Imperador!
756
De acordo com o protocolo, o alferes-m
ue se seguiram, a participação do público foi intensa: aberto
ram abertamente no Senado e na Câmara dos Deputados
desejo manifestado por alguns grupos políticos no sentido de abreviar a Regência e coro
Pedro II, já havia dado origem a projetos de modificação da constituição em 1835 e em 18
756 - “Coroação e Sagração de D. Pedro II”, Jornal do Comércio, R. J., edição do dia 20/07/1841; In: Bonavides, Paulo e
Amaral, Roberto (orgs.); Textos Políticos da História do Brasil; Brasília, Ed. do Senado Federal, 2002, Vol. I, p. 63.
757 - Idem, ibidem, p. 64
758 - Pela constituição de 1824, D. Pedro II somente atingiria a maioridade aos 21 anos; com o Ato Adicional de 1834,
esta idade foi reduzida em três anos, ou seja, sua emancipação ocorreria no dia 02/12/1843, data em que ele
completaria 18 anos; com esta hipótese não concordavam grupos liberais que queriam reduzi-la ainda mais, para 14
350
foi discutido; o segundo, de 1837, chegou a ser apreciado, mas foi derrotado em plenário.
759
Apesar de apresentadas no Parlamento, essas duas primeiras propostas não encontraram um
ambiente propício para um desfecho favorável, principalmente a de 1835, posto que D. Pedro
ainda era muito jovem à época, com apenas 10 anos; já o projeto de 1837 conseguiu a façanha
de seguir para votação e, dentre outras condições presentes, certamente pesou o fato de que o
futuro imperador já chegara à casa dos 12 anos de vida.
760
O tempo, aos poucos, se encarregava de alterar as perspectivas em torno da questão e,
se anotada de forma tímida em 1837, a proposta ganharia vigor a partir de 1839, ano em que o
monarca completou 14 anos de idade. No início de 1840, por exemplo, era fundado no Rio de
Janeiro o Clube da Maioridade pelas mãos do senador José Martiniano de Alencar. Com um
jornal próprio também chamado Maioridade, este realizava um trabalho em conjunto com o
Despertador, órgã m força, seja na
Câmara dos Deputados, seja no Senado. Em maio de 1840, época da abertura dos trabalhos
legislativos, a discussã maioristas”, composto
majorit
te pela
xposição de problemas, mas também por amenidades, elogios e saudações de ambas as
partes, poucas vezes a
até porque a proposta
“Senhor:
o do partido liberal. A partir de então, os debates ganhara
o opôs claramente dois grupos: de um lado os “
ariamente pelos liberais, e de outro os conservadores, estes contrários à proposta. O
clímax do confronto ocorreu por conta da redação de um texto protocolar que se chamava
“Resposta à Falla do Throno”, com a qual os deputados costumavam retribuir o discurso do
monarca por ocasião da abertura dos trabalhos legislativos. Composto geralmen
e
“Resposta” trouxe qualquer problema. Não foi o que ocorreu em 1840,
inicial estava assim redigida:
A Câmara dos Deputados rende graças ao Todo Poderoso pelo
completo restabelecimento da saúde preciosa de Vossa Majestade Imperial, e
pela continuação da que felizmente gozam as augustas Princesas brasileiras.
A Câmara, Senhor, profundamente convencida da importância do
consórcio das augustas Princesas,
sobre o qual tem Vossa Majestade Imperial
grande interesse pela natureza e pela lei, e vendo com prazer aproximar-se a
nos.
759 - Uma das primeiras p
Albuquerque que, em 183
02/12/1839; tal proposta nã
seria apresentado pelo dep a última proposta foi
errotada, sendo apoiada po do iro: Câmara dos Senhores
eputados, volumes de 1835, 1837 e 1840.
760 - Ne
relevante
como de linha moderada, e a subida ao poder de Pedro de Araújo Lima, este representante dos conservadores.
Como esta última Regência deveria perdurar até 1842 – mas com grandes chances de chegar até dezembro de 1843,
época em que o monarca completaria 18 anos – os liberais perceberam na proposta da antecipada maioridade um
caminho para se aproximarem do poder. Outras questões inerentes à política do momento podem ser vistas na
obra de Maria Odila Leite Silva Dias, A interiorização da metrópole e outros estudos (2005), especialmente o capítulo
“Ideologia liberal e construção do Estado” p. 127 e seguintes, bem como na de Caio Prado Júnior, Evolução política
do Brasil (1980), especialmente a Parte III, “A revolução”, capítulo “A menoridade”, p. 58 e seguintes.
a
ropostas coube ao deputado pernambucano Luiz Francisco de Paula Cavalcanti de
5, apresentou um projeto que antecipava a maioridade de D. Pedro II para o dia
o foi sequer discutida, sendo considerada inconstitucional. Outro projeto de mesmo teor
utado carioca José Joaquim Vieira Souto no dia 20/05/1837; est
r apenas nove outros deputados. Veja: Annaes Parlamento Brasiled
D
sta análise, privilegio o viés que norteia o trabalho. Entretanto, outras condições e questões políticas
s se fizeram presentes naquele momento. Data de 1837, por exemplo, a renúncia do Regente Feijó, tido
351
maioridade de Vossa Majestade Imperial; assegura a Vossa Majestade Imperial
que se ocupará oportunamente, com toda a solicitude, deste objeto, que o trono
se dignou oferecer a consideração da assembléia geral (...)”
761
(meu destaque).
suas irmãs, citando
inclusiv sua responsabilidade no
âmbito a imp rial e, tação de
que a m da e do f turo im partido
conservador e, em especial a partir de então tomou as
funções z d grupo mancipação. A discussão
n endo veio a vitória
ue as menções referentes à maioridade (as quais
sublinhei no texto transcrito) foram retiradas. Basicamente, os conservadores invocavam os
dispositivos legais para não antecipar a maiorida
ões
A parte referente ao interesse pessoal de D. Pedro em relação às
e que este estaria assegurado por lei (uma clara referência à
da famíli e portanto, uma prova de maturidade), bem como a ci
aiori d u perador estava próxima, irritou alguns membros do
o deputado Carneiro Leão, que a
de porta-vo o cujo posicionamento era contrário à e
foi demorada, perma ec durante dias na pauta do legislativo, até que sobre
dos conservadores, momento este em q
de e os liberais, por seu turno, além de se
aproveitarem das brechas na legislação, incluíam também outros argumentos nos quais
sobressaíam, por um lado, a necessidade de se ter uma figura forte e incontestável como a do
Imperador no comando do país num período de crises constantes como foi o da Regência e,
por outro, a reconhecida maturidade intelectual de D. Pedro. No entender de algumas facç
políticas, esta era a solução para uma série de problemas que pipocavam por todo o país
como a revolta dos Cabanos no Pará, a dos Balaios no Maranhão e a dos Farrapos no Rio
Grande do Sul. E foi justamente nesse sentido que se manifestou o Cônego Antonio Bento, no
dia 25 de maio de 1840, em discurso no Senado:
“Sr. Presidente, na época presente, à vista das críticas circunstâncias em que
está o país,
todos olham para o monarca ... Se alguns brasileiros,pouco
orientados, tiveram algumas idéias contra o regime monárquico –
constitucional representativo, eles, como V. Ex.ª muito bem disse, aprenderam
dos governos regenciais quais os males que lhes reserva um tal sistema”
762
(meu destaque)
Por sinal, esses mesmos argumentos chegaram inclusive a convencer parte da ala
conservadora, fazendo-se presente, por exemplo, no dia 20 de maio de 1840, ocasião em que
761 - Annaes do Parlamento Brasileiro, Câmara dos Srs. Deputados, 1840, primeiras sessões ordinárias. A respeito das
discussões que se seguiram, veja também um interessante estudo intitulado “A declaração da maioridade de Sua Magestade
Imperial o Senhor D. Pedro II, desde o momento em que essa Idea foi aventada no corpo Legislativo até o acto de sua realização”, R.J.:
Typographia da Associação do Despertador, 1840 (consultado um exemplar disponível na Biblioteca Municipal Mário
de Andrade, de São Paulo). Esta obra, na verdade uma compilação dos debates ocorridos na Câmara e no Senado, não
tem um autor definido, mas é certo que o livro foi redigido pelos deputados da ala liberal, até porque o mesmo foi
impresso na tipografia do “Despertador”. Tudo leva a crer que o livro teria sido escrito em resposta a outro documento,
este intitulado “Exposição do Sr. Bernardo Pereira de Vasconcelos, ex-Ministro do Império, sobre os memoráveis acontecimentos
ocorridos ultimamente nesta Corte”, que também foi reproduzido na obra. Este último texto (o de Bernardo Pereira de
Vasconcelos) também pode ser consultado na íntegra em Bonavides e Amaral (2002), p. 53 a 58.
762 - Citado em Calmon (1959), p. 1628 e 1629.
352
um dos projetos que propugnavam pela maioridade foi à votação no Senado: acolhido
silenciosamente pelos conservadores, o mesmo acabou sendo rejeitado por pequena maioria
trabalhos
legislat
e, em assim o sendo, sua concretização foi tratada como um golpe. Esta era a opinião, por
de votos: 16 a favor e 18 contra.
763
A partir desse momento verificou-se um fortalecimento da proposta em favor da
maioridade. Não conseguindo barrar as discussões, estas já com a participação do povo
que invadira as galerias da Câmara, o governo optou por suspender os
ivos. Ao não concordar com tal medida, um grupo formado por deputados e
senadores da ala liberal rebelou-se e, em reuniões não autorizadas, decidiram consultar o
próprio monarca sobre a questão. Tais acontecimentos culminariam, no dia 23 de julho de
1840, com a declaração da maioridade de D. Pedro II, tendo o Imperador feito o seu
juramento na mesma data. No ano seguinte, aos 18 de julho de 1841, ele seria coroado com
todas as pompas.
Episódio complexo, desde sua configuração a maioridade do imperador Pedro II foi
classificado pelos seus opositores como um ato inconstitucional, que feria a legislação vigente
exemplo, do poderoso e breve ministro do Império, Bernardo Pereira de Vasconcelos, que
qualificou o movimento como uma conspiração ou revolução, urdida no interior da facção
liberal.
764
O próprio imperador, por outro lado, se viu beneficiado e, daí, a sua concordância,
bem como a explicação pelo seu ato de, rapidamente, prestar o juramento. Era certamente um
“golpe” a seu favor, fato este reconhecido por ele anos mais tarde.
765
Apesar de bastante explorado na historiografia, os estudos sobre a antecipada
maioridade de D. Pedro ora destacam os bastidores, ora o processo político subjacente,
deixando sempre ao largo um dado fundamental que agora cabe ressaltar. Em parágrafos
antecedentes relatei rapidamente as anteriores e frustradas tentativas de emancipação do
763 - Profundamente comprometidos com o regime monárquico, ficaram os conservadores numa posição muito
desconfortável diante da mobilização pela maioridade. O então regente Pedro de Araújo Lima (que substituiu
Feijó), e tido como ultra-conservador, foi o responsável, por exemplo, pela reintrodução da cerimônia do beija-
mão, que reconhecia a autoridade do jovem monarca; tempos depois, seria ele quem recomendaria a suspensão da
Assembléia Geral, aos 22/07/1840, quando o movimento pela maioridade ganhou força e, por fim, o mesmo
regente esteve presente no dia 23/07/1840, quando uma comissão de deputados e senadores levou a D. Pedro a
proposta para assumir a coroa imediatamente; ao que parece, Araújo Lima não se opôs tenazmente ao intento. A
esse respeito veja Galanti (1913), capítulo “A maioridade”, p. 392 e seguintes; e “Exposição do Sr. Bernardo Pereira de
Vasconcelos, ex-Ministro do Império...” (1840) op. cit., especialmente p. 57.
764 - Bernardo Pereira de Vasconcelos, da ala conservadora, já exercera interinamente o cargo de Ministro do
Império, mas somente no dia 22 de julho de 1840 ele foi nomeado oficialmente. Considerado como uma afronta
aos liberais, teria sido este ato a gota d´água que faltava para a revolta verificada no Senado e na Câmara que
culminou, no dia seguinte, com a decretação da maioridade de D. Pedro II. Assim, Bernardo de Vasconcelos
permaneceu oficialmente neste cargo por apenas 9 horas. Veja “A declaração da maioridade de Sua Majestade
Imperial...” (1840) e a “Exposição do Sr. Bernardo Pereira de Vasconcelos, ex-Ministro do Império...” (1840) op. cits.
765 - No dia 23/07/1840, quando recebeu uma comissão formada por deputados e senadores que lhe questionavam se
preferia esperar mais algum tempo para assumir o governo ou se o ato se daria naquele mesmo momento, D. Pedro teria
respondido “Quero já”. Esta versão, por sinal, consta inclusive da “Exposição do Sr. Bernardo Pereira de Vasconcelos, ex-
Ministro do Império” (1840) op. cit. Sobre a definitiva resolução do imperador, disse Bernardo de Vasconcelos, “Sua Majestade
dignou declarar que queria tomar já as rédeas do governo(p. 53). Entretanto, o próprio D. Pedro II ofereceria, em 1863, uma outra
versão para esses acontecimentos. Na verdade, disse ele, “não me exprimi assim”, pois questionado se queria “ser aclamado
logo”, respondi que “sim”. Sobre a legalidade do ato ele não deixou dúvidas e disse que a proclamação da maioridade não
353
monarca, e afirmei que um dos motivos relevantes para a sua não aceitação seria a pouca
idade de D. Pedro à época dos acontecimentos, seja em 1835 ou em 1837. Esta situação sofreria
uma alteração em dezembro de 1839, período este em que o imperador completava 14 anos de
vida. Antes disso, e não as
chances de sucesso daq em 1835, a
idéia foi reputada simplesmente como inconstitucional. De fato, D. Pedro era omo muito
jovem aos 10 anos – ida a; com 12 ele se encontrava numa fase
intermediária, mas aos lta. escartando
os demais elementos q
ao sucesso da empreita o s culo X , a ida 14 anos era
um dos principais marcos que estava
A partir de 183 n , todo avam para o
onarca, o que antes não faziam, ou pelo menos não no sentido de considerá-lo como aquele
ue estaria pronto para governar. A consolidar estas análises estão, por exemplo, as
que tivera durante a infância.
766
...”
767
; ou a argumentação utilizada pelo Marquês de Paranaguá que, no Senado, disse: “Sr.
que ele se acha mais que suficientemente habilitado para governar o
obstante as disputas políticas e as gravíssimas crises, mínimas eram
ueles que intentavam pela emancipação. Prova disso é que,
tido c
de esta muito próxima da infânci
14 anos ele já se encontrava às portas da idade adu Não d
ue se fizeram presentes no processo, foi esta uma das razões que levaram
da, ou seja, na sociedade brasileira d é IX de de
a separar adultos de crianças.
9, como disse o senador Cônego Antonio Be to s já olh
m
q
justificativas apresentadas pelos liberais na defesa do projeto em prol da maioridade a partir
de 1840, nas quais a maturidade de D. Pedro – aos 14 anos – foi sempre um dado muito
valorizado. No século XIX, como será detalhado adiante, a definição da idade adulta não
levava em consideração apenas o fator cronológico, ou o tempo vivido senão, também, o
desenvolvimento intelectual do indivíduo. Nesse caso, muito contribuiria para a maturidade
do monarca a excelente educação
E nesse caminho seguia o deputado Holanda Cavalcanti, dizendo que era “... a todos
notório que o nosso augusto imperador se acha presentemente muito desenvolvido em suas faculdades
Presidente, trata-se neste projeto de declarar maior a Sua Majestade Imperial o Senhor D. Pedro II, que
está próximo a contar 15 anos de idade; trata-se de se lhe suprir por lei, pois que inteligência lhe sobra
bastante...”
768
; ou, finalmente, o deputado Álvares Machado que questionou: “Ora, perguntarei
eu, há alguém que duvide de que Sua Majestade o Imperador se acha nas circunstâncias de poder bem
governar-nos? Quem poderá negar
país e elevá-lo à sua prosperidade?”
769
É certo que tal eloqüência chegava pelas vozes dos defensores do projeto, mas essas
palavras não foram e jamais poderiam ser pronunciadas antes que D. Pedro tivesse
completado 14 anos, idade esta considerada como um dos divisores etários mais importantes
fora feita de acordo com as disposições constitucionais. Citado em Calmon (1959), p. 1631.
766 - Sob esse aspecto, Philippe Ariès chama a atenção para o fato de que “as idades da vida não correspondiam apenas
a etapas biológicas, mas a funções sociais”, estas passíveis de serem exercidas mediante um amadurecimento
intelectual que poderia ser conseguido, por exemplo, através de uma boa educação. Veja Ariès (1981), p. 9.
767 - “A declaração da maioridade de Sua Majestade Imperial...” (1840), op. cit., p. 6 e Annaes do Parlamento Brasileiro,
1840, sessão ordinária de 13/05/1840.
768 - Idem ibidem, p. 20 e seguintes.
769 - Idem, ibidem, p. 29.
354
durante todo o século XIX.
Fig. 45
D. Pedro II coroado aos 15 anos, em 1841
Abaixo a Proclamação da Maioridade onde a maturidade do imperador foi destacada.
770
Proclamação da Assembléia Geral ao povo sobre a maioridade
Brasileiros!
A Assembléia Geral Legislativa do Brasil, reconhecendo o feliz desenvolvimento intelectual de
S.M.I. o Senhor D. Pedro II, com que a Divina Providência favoreceu o Império de Santa
Cruz; reconhecendo igualmente os males inerentes a governos excepcionais, e presenciando o
desejo unânime do povo desta capital; convencida de que com este desejo está de acordo o de
todo o Império, para conferir-se ao mesmo Augusto Senhor o exercício dos poderes que, pela
Constituição lhe competem, houve por bem, por tão ponderosos motivos, declará-lo em
maiorid de, pa o exercício desses poderes, como a ra o efeito de entrar imediatamente no plen
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil.
Brasileiros! Estão convertidas em realidades as esperanças da Nação; uma nova era apontou;
seja ela de união e prosperidade. Sejamos nós dignos de tão grandioso benefício.
Paço da Assembléia Geral, 23 de julho de 1840 - Ma rquês de Paranaguá, Presidente - Luiz Jo
de Oliveira, 1º Secretário do Senado - Antônio Joaquim Álvares do Amaral, 1º Secretário da
Câmara dos Deputados.
770 - Anais do Parlamento Brasileiro, Câmara dos Senhores Deputados, sessão de 23/07/1840. Meu destaque para
o trecho inicial da Proclamação onde, novamente, a maturidade do imperador foi destacada.
355
m 1825, mesmo ano em que D. Pedro II nascia no Rio de Janeiro, era criado em São
Paulo o
] operações aritméticas, porque a diretora confessou
que nad disto
avam sendo preparadas para que fossem, num
futuro bem próximo, ) dignas de serem companheiras de
homens sizudos
para uma vida
que logo assumiriam.
E
Seminário das Educandas da Glória. Quatro anos depois, em 1829, a instituição já
abrigava cerca de 28 órfãs. Destas, “a maior parte eram de meninas com mais de 12 anos de idade”,
informaram os membros de uma comissão encarregada de verificar as condições das prisões e
estabelecimentos de caridade existentes na cidade.
771
Em 1831 registrou-se que ali estavam
“27 educandas, sendo 9 pensionistas e 18 sustentadas por conta na nação” e, conforme consigando
nos relatórios, elas recebiam uma instrução “própria para meninas”, ou seja, aulas de costura,
bordado e outros trabalhos domésticos, sendo esporádicas as de escrita e leitura; “além disso,
as meninas não aprendiam tabuada [e tão pouco
a sabia.”
772
As meninas ali est
“donas de casa [e] mães de família (...
e graves.”
773
Em outras palavras, cuidava-se de educá-las para o casamento,
junto ao marido e para bem desempenhar as tarefas decorrentes do novo papel
Tinha-se como certo que futuro melhor não poderia haver para aquelas jovens, pois
caso contrário, conforme registrado em 1836, corriam elas o risco de cair na “vil devassidão” e
isso levando em conta qualquer “infortúnio que sobrevenha”, ou mesmo decorrente de um
“desastre da sorte”.
774
Nesse caso, tudo indica que a ausência de pretendentes para as órfãs – o
que as obrigaria a permanecerem solteiras – bem poderia ser visto como um real “desastre da
sorte” ou como um grande “infortúnio” que rondava a vida dessas moças. E as que se
encontravam nessa situação não eram em pequeno número. Em 1839, por exemplo, existiam
no estabelecimento treze pensionistas e “vinte e oito recolhidas por conta da Fazenda, entre as quais
doze estavam em idade de se casarem” ou, como se dizia naquela época, na idade “de tomar
771 - “Relatório da Comissão de visitas a prisões e estabelecimentos de caridade”, Fundo C.M.S.P., Conselho de
Vereadores, Arquivo Histórico Municipal, Relatório datado de 26 de setembro de 1829. Destinado principalmente
à educação de meninas órfãs e filhas de militares falecidos, o Seminário das Educandas de Nossa Sra. da Glória
também aceitava pensionistas cujas despesas eram pagas pelas respectivas famílias. Criado em virtude d
expedido pelo Governo Imperial de 08/01/1825, foi instalado sob as ordens do Visconde de Congon
o aviso
has do
nas imediações da Av. São João e Vale do Anhangabaú. Voltou depois para a Chácara da Glória, de onde retornou
ao Beco do Sapo em 1844. Funcionou ainda na antiga Chácara do Fonseca e, a partir de 1898, num prédio ao lado
da igreja da Consolação que fora adquirido de D. Veridiana da Silva Prado. Veja mais informações em Amaral,
Antonio Barreto do; Dicionário de História de São Paulo, p. 425 e 426 e também os relatórios dos presidentes de
província em Egas, Eugênio; Galeria dos Presidentes de São Paulo, Vol. I, Período monárquico, 1822-1889; S.P. :
Publicação oficial do Estado, Seção de Obras de “O Estado de São Paulo”, 1925.
772 - Idem, Relatório de 05/05/1831.
773 - Idem, Relatório de 29/09/1836. A respeito do Seminário da Glória e sobre a educação feminina em São
Paulo, veja Marcílio, História da Educação em São Paulo e no Brasil, S.P.: Imprensa Oficial e Instituto Fernando
Braudel, 2005, especialmente p. 63 a 65.
774 - Idem ibidem.
Campo, então Presidente da Província, na Chácara da Glória, propriedade da Fazenda Imperial. Em 1833 foi
transferido para o prédio do antigo hospital militar, este localizado no “Beco do Sapo” – atual Rua do Seminário,
356
estado”
775
; já em 1841, o total das internas chegava a 42 meninas, “das quais 18 já com precisão de
tomar estado”, informaram.
776
Mas, em que fase da vida estariam elas prontas para o
casamento? Ou, em outras palavras, com que idade elas deixariam a infância já que aptas
para “tomarem o estado” de casadas?
Um primeiro indício para o esclarecimento dessa questão se nos apresenta logo naquelas
primeiras linhas do citado relatório de 1829, ou seja, ali constou a indicação de que, dentre as 28
meninas internadas na instituição, a maioria já estava com mais de
12 anos de idade. E esta
informação não estava ali gratuitamente como poderíamos supor num primeiro momento. O
limite, ao contrário, era bastante relevante, pois a idade de 12 anos representava um corte e
servia de parâmetro para dividi-las em grupos etários diferenciados; ou, de outra maneira, o
relato denuncia que, a partir daquela idade, tinha início uma nova fase na vida das jovens.
Complementando este primeiro subsídio – que já esclarece um pouco a respeito das
idades da vida de uma jovem – uma outra parte da resposta para a questão proposta pode ser
encontrada em outro relatório, este de 1833, em que os membros da comissão de fiscalização, ao
criticarem uma situação encontrada no dormitório do Seminário, explicitaram com mais nitidez o
entendimento que se tinha a respeito da maturidade das mulheres. Disseram eles na ocasião que:
“Vimos misturadas meninas de oito a nove anos com meninas de quinze;
qualquer chefe de família conhece o mau resultado de tal ajuntamento. Além
disto, vimos que algumas camas acomodam duas meninas: também não nos
pareceu isto bom:
desde que ellas chegam a idade próxima á puberdade, isto é,
desde que tocam os nove annos, é necessário infundir-lhes o desejo de se
respeitarem a si próprias, de se arranjarem e de conservarem a maior decência e
honestidade em tudo. Se a falta de tudo isto produz inconvenientes nos homens,
muito mais produz nas mulheres.”
777
(meu destaque)
Ao citarem o “amontoamento” de meninas entre 8 e 9 anos com as de 15, o relato
pode nos levar a entender que a crítica estava sendo dirigida ao fato de se encontrarem
misturadas no dormitório as menores (ainda crianças) com as maiores que, apesar de
adolescentes para os nossos padrões, naquela época já poderiam ser consideradas como
775 - Idem, Relatório de 23/08/1839. Para os romanos, estado (do latim status) designava as qualida
indivíduo deveria possuir para tornar-se sujeito de direito na sociedade civil. Posteriormente, já
des que um
no direito
moderno, o sentido de estado permaneceu intimamente ligado ao de capacidade. Estado, nesse caso, seria “a soma
das qualificações da pessoa, permitindo sua apresentação na sociedade, em dada situação jurídica, para que possa
usufruir das vantagens e sofrer os ônus dela decorrentes.” A esse respeito veja: Monteiro, Washington de Barros.;
Curso de direito civil; S.P.:, Ed. Saraiva, 2001, especialmente p. 77 e Diniz, Maria Helena; Curso de direito civil
brasileiro; S.P.:, Ed. Saraiva, 2001, especialmente p. 131. Nesse caso, tomar estado como diziam os paulistanos no
século XIX em relação às mulheres, bem poderia adquirir o sentido de “tornar-se capaz” ou ”emancipar-se”, e isto
sempre tendo em vista o matrimônio.
776 - Idem, Relatório de 07/04/1841.
777 - Idem, Relatório de 22/10/1833.
357
adultas. Porém, não é este o ponto principal e, arrisco mesmo a dizer, a censura passou a
uma certa distância deste fato. O que realmente preocupava, ou a questão mais
importante, foi explicitada logo em seguida a esta crítica, ganhando o documento bastante
relevância quando nos informa sobre a chegada da puberdade – fase da vida que
significaria a perda da ingenuidade, como veremos adiante. Esta, nas palavras dos
comissários, dar-se-ia por volta dos nove anos. Nesse caso, chegamos ao âmago da
questão, posto que a crítica estava sendo dirigida muito mais ao “ajuntamento” noturno –
na mesma cama, por exemplo – de
todas as meninas acima dos nove anos. Este era um fato
que nã
casiões, ou entre duas
jovens púberes dormindo no mesmo q um
trecho do relatório d
lampião para ilumina
escuras, porque nas trevas de uma noite inteira, muito mal se pode facilmente praticar.”
778
a falta de camas ou mesmo de
uartos
ro limite o período entre os 8 e 9 anos,
poca em que deixavam de ser crianças mas, é pr
etapa se configurava como um divisor etário importante, entrando as meninas a partir daí
numa fase intermediária que as levaria para a seguinte, ou para serem consideradas adultas.
E eis aqui o ponto principal da questão proposta, ou seja, com que idade isso ocorria, ou
quando estariam elas prontas para se casar? De fato, tudo indica que um período da vida ao
qual hoje chamamos de adolescência, chegava bem mais cedo para as mulheres que viviam
no século XIX, ou por volta dos nove anos. Mais ainda, esta “adolescência” também
o poderia ocorrer, já que essas jovens, não sendo mais crianças, não eram tão pouco
inocentes. Com respeito ao temor do que poderia ocorrer nessas o
uarto e até na mesma cama, é bastante sugestivo
e 1836, ocasião em que os membros da comissão solicitaram um
r os quartos alegando que “não é útil que tantas meninas durmam ás
Não eram adultas ainda essas meninas entre os 9 e 10 anos, mas tudo leva a crer que,
nesta fase, considerava-se que elas já haviam deixado para trás a pureza característica da
meninice. Nesse sentido, nada o opor quando da ocorrência (ou necessidade) de se colocarem
para dormir em uma única cama meninas até os 7 ou 8 anos; a partir dos 9 anos, isto não
poderia mais ser tolerado. Essa questão, aliás, pode ser confirmada pelo fato da não existência
de quaisquer críticas quanto ao fato de dormirem juntas crianças abaixo dos oito anos de
idade, episódio cuja ocorrência era bastante freqüente, dado
q suficientes para todas.
779
Até aqui já estamos com dois indícios importantes e que identificam algumas das fases
da vida, ou seja, para as meninas tinha-se como primei
é eciso sublinhar, ainda não eram adultas. Esta
778 - Relatório de 29/09/1836.
779 - No edifício da Chácara da Glória em 1829, por exemplo, dormiam 28 meninas “em três quartos mui estreitos”; quase
o triplo da capacidade, posto que, juntos, os três dormitórios poderiam acomodar quanto muito de “8 a 10 pessoas”,
conforme o Relatório de 26/09/1829. Em nenhum dos demais relatórios foi anotado qualquer censura ao fato de
dormirem juntas crianças menores de oito anos (consultados aqui um total de 14 relarios entre os anos de 1829 a
358
terminava mais rapid tapa esta em que elas já poderiam
ual ficariam elas sob a tutela do Estado. Pensando nesse
pratica só sahirem aquelas educandas que, tendo chegado a idade da
nubilidade, recebem o estado de casadas; porém isto offerece alguns
amente, em torno dos 12 anos, e
contrair matrimônio.
780
Entretanto, e como já visto em parágrafos antecedentes, não era
incomum o fato de algumas das jovens internadas no Seminário das Educandas passarem
pela dificuldade de não encontrar pretendentes, motivo pelo qual elas lá permaneciam numa
idade já considerada “avançada”, aos 18 anos. As chances de casamento para essas moças
eram bastante estreitas, motivo pelo q
problema, a comissão nomeada para o ano de 1841 chegou inclusive a sugerir que, nessas
circunstâncias, melhor seria:
“... dar-se destino a todas aquellas educandas que já [tenham] chegado ao
ponto de sua educação ou que, pela sua idade, convenha fazer sahir do
estabelecimento para dar lugar ao ingresso de novas (...). Até aqui tem sido
embaraços [porque] não [são] poucas [as] defficuldades de se achar maridos; e
eis ahi por que é necessário haver algum outro expediente. Lembra a
comissão que
aquellas que tiverem chegado a idade de 18 anos, e fossem
órfãs, faltando-lhe o casamento, o governo [as] desse a qualquer família
honesta, que o requeresse a título de criadas (...)”
781
(meu destaque)
Muito mais do que o limite de 18 anos para deixar a instituição – especialmente no
caso de órfãs mantidas às expensas do governo – chama a atenção um outro critério, qual seja,
a questão de que “se chegada nessa idade e ainda faltando-lhe o casamento” as jovens
deveriam sair para dar lugar a outras menores. Ora, nesse caso, as núpcias poderiam ser
aos 17, 16, 1
isso mesmo o esperado
definitivamente um o
contraídas 5 ou mesmo aos 14 anos, deixando o documento transparecer que era
, pois era nesse intervalo que uma mulher deveria se casar, assumindo
utro papel. Por outro lado, difícil era a situação das demais ou para
na Ramos, no século XVI, em Portugal, as meninas de 15 anos eram consid
1841).
780 - Conforme Fábio Pesta eradas aptas
ara se casarem; as que estavam na faixa dos 12 aos 16, já estavam em idade considerada casadoura pela Igreja
tólica
rtuguesa
pela província e 12 pensionistas. Existiam 16 alunas maiores de 14 anos e era necessário estabelecer medidas que assegurassem
o futuro das que deviam sair para entrarem outras.” Veja “Relatório dos Presidentes da Província” In: Egas (1925), op.
cit. Vale ainda registrar que a proposta para empregar as meninas “mais velhas” em casas de família realmente foi
concretizada através da Lei nº 337 de 16/03/1847 ao estipular em seu artigo 2º que “O governo fará contratar com
famílias os serviços das que não forem julgadas aptas para o magistério (...)” - Leis da Província de S. Paulo – Anos de
1846 e 1847, p. 24.
p
Ca e eram caçadas e cobiçadas. Ramos, Fábio Pestana; A história trágico-marítima das crianças nas embarcações
po s do século XVI; In: Del Priore (2006), p. 48.
781 - Idem, Relatório de 20/04/1841. Desde 1836, pelo menos, preocupavam-se os Presidentes da Província com a
grande quantidade de meninas no seminário em idade de se casarem. A esse respeito manifestou-se, por exemplo
o Presidente José Cesário de Miranda Ribeiro (presidente entre 1835 e 1836), dizendo que “algumas das órfãs ali
existentes já estavam em condições de se casarem e outras ali continuavam sem haver necessidade...”; já o Brigadeiro Rafael
Tobias de Aguiar (presidente entre 1840 e 1841) registrou que, no seminário, permaneciam “30 alunas sustentadas
359
aquelas que chegavam aos 18 anos sem pretendentes: elas dificilmente conseguiriam ver
concretizados os planos previamente idealizados, seja por aquela instituição, seja pela própria
sociedade, posto que o comum seria a realização do casamento em idades anteriores a esta,
antecipadas, prematuras ou abreviadas, como de resto era toda a vida que, como vimos,
possuía uma expectativa em torno dos 40 anos em média.
782
Esta situação, aliás, não ficou restrita aos oitocentos, já que nas primeiras décadas do
século XX ela também se fazia presente. Ecléa Bosi, por exemplo, recolheu diversos relatos
nesse sentido, sendo as memórias de D. Alice uma das mais esclarecedoras:
“Com dez anos comecei a trabalhar numa oficina de costura na rua Apa (...) com doze
anos, comecei a trabalhar na oficina de costura na rua Duque de Caxias (...) conheci
meu marido numa sociedade musical do Bom Retiro. Eu tinha treze anos, ele vinte e
dois; foi meu primeiro namorado (...) eu já tinha 17 anos, podia ficar noiva (...) eu
casei em abril, com dezoito anos.”
783
Nada de muito diferente ocorria com os meninos no que se refere a este rápido
processo de amadurecimento e, permanecendo com Ecléa Bosi, podemos ler nas memórias do
Sr. Amadeu: “Fui muito feliz na infância, porque, já aos nove anos, tinha muito juízo e fazia aquilo
to obedecia as necessidades de uma época, onde o risco de
nos
que achava certo. (...) Comecei a trabalhar com nove anos numa oficina de gravura (...) quando entrei
na fábrica ganhava 500 réis por dia, então era menino...”, reconheceu ele muito tempo depois.
784
Ou nas memórias do Sr. Ariosto, que nasceu em 1900: “Comecei a trabalhar com doze anos num
armazém de secos e molhados na Av. Brigadeiro Luís Antonio.
785
Ou, ainda, nas lembranças do Sr.
Antonio, nascido em 1904: “Na época [1918] eu tinha quatorze anos, era aprendiz de ourives, no
centro da cidade. Comecei a trabalhar com dez anos.”
786
O precoce amadurecimento dos jovens era visto com naturalidade, assim deveria ser e
questionamentos a esse respeito somente seriam anotados com mais freqüência a partir das
primeiras décadas do século XX. Antes disso, ou antes que a vida fosse prolongada em mais
alguns anos, tal comportamen
falecimento em tenra idade era uma constante. Já tivemos a oportunidade de quantificar e
demonstrar, páginas atrás, os altíssimos números da mortalidade infantil e ressaltamos que a
esmagadora maioria falecia antes dos 5 ou 6 anos; os que permaneciam vivos aos 7 a
782 - Sob esse aspecto, bastante esclarecedoras foram as palavras do 8º presidente da Província, Brigadeiro
Bernardo José Pinto Gavião Peixoto que governou de agosto de 1836 a março de 1838; em seu relatório ele
escreveu que no “colégio de meninas se vão juntando moças que já passaram da idade da puberdade [e é ] por isso que nem a
todas se oferecem casamentos (...)”, ou seja, ao chegar a puberdade estavam as meninas em condições de se casar. Veja
Egas op. cit., p. 64.
783 - Bosi, Ecléa; Memória e sociedade: lembranças de velhos; S.P.: T. A. Queiroz/Edusp, 1987, “Lembranças de D.
Alice”, especialmente p. 57, 59 e 61.
784 - Idem ibidem, “Lembranças do Sr. Amadeu”, especialmente p. 80 e 84
785 - Idem, “Lembranças do Sr. Ariosto”, p. 110.
786 - Idem, “Lembranças do Sr. Antonio”, p. 177.
360
poderiam ser considerados grandes vencedores. E isso não ocorria apenas dentre os mais
pobres, lembrando-nos Ana Maria Mauad da apreensão e dos temores que também cercavam
as mães da elite: “Desde o momento em que uma mulher se descobre grávida e até os sete anos,
quando se considera que a criança superou as crises das diferentes doenças, ditas da infância, tudo é
e no Brasil dos séculos XVIII e XIX, ao
15 anos,idade
ínima prevista pela Lei de 11 de agosto de 1827, para iniciar o curso de Direito. Muitos deles
chegavam a São de
Curso Anexo e d is pr
Mas, n dúvi mais bres
infância trouxe aiore riscos tas p rcebid s mais tarde como tragédia. Seja na Europa a
partir de finai tocentos e
princípios dos nstante.
Para as classes mais oprimidas, onde não
restava outra a ilhos no
mundo da fábrica. Este era “u e traba hadora dificilmente poderia abrir
mão”.
789
E foi contexto -se ma b xa expectativa de vida mais a
necessidade d trabalho
desses jovens lo XIX e
início do XX.
Em 189 estavam
na faixa dos 1 caso das
tecelagens. Em menores;
incerteza e expectativa.”
787
Na origem desse comportamento – o de se antecipar as etapas da vida – estava
subjacente a experiência de séculos com respeito à fragilidade da existência humana e, daí, a
necessidade de se viver mais rapidamente as etapas que, no nosso mundo contemporâneo,
foram possíveis de serem expandidas. Na São Paulo
contrário, a vida era muito breve, o que obrigava os indivíduos que sobreviviam a deixar
rapidamente a infância para ingressar o quanto antes no mundo dos adultos. E aqui, vale
lembrar, não importava a classe social, posto isso ocorria tanto entre os mais pobres quanto
nas camadas médias e mais privilegiadas da população. Uma forte referência para este último
caso pode ser verificado, por exemplo, dentre os rapazes da elite que se matriculavam na
Faculdade de Direito de São Paulo: “Os estudantes que vinham eram meninos com
m
Paulo mesmo antes desta idade para freqüentar o curso preparatório, então chamado
epo e exames para o ingresso efetivo n iastar os a Academ ”.
788
ão restam das de que foi mesmo entre os po que a abreviada
m s , es e a
s do século XVIII, ou na São Paulo das últimas décadas dos oi
no arga u lização dessa in ivecentos, a l ti mão de obra na dústr a foi co
o risco de morte era mais presente,
lternativa para a sobrevivência senão apressar a entrada de seus f
m recurso do qual a class l
nesse , onde conjuga u aivam
e sobrevivência que possível se tornou a exploração da força de
pelos empresários da nascente indústria paulista de finais do sécu
0, por exemplo, cerca de 15% dos trabalhadores nas fábricas da cidade
2 (ou até menos) aos 18 anos, número este que chegava a 25% no
todo o Estado, no ano de 1919, 37% dos trabalhadores têxteis eram
787 - Mauad, Ana Maria; A vida das crianças de elite durante o império”, In: Del Priore (2006), p. 156.
788 - Martins, Ana Luiza e Barbuy, Heloisa; Arcadas – Largo de São Francisco – História da Faculdade de Direito da
USP; S.P.: Melhoramentos/Alternativa, 1999, p. 31
789 - Moura, Esmeralda Blanco Bolsonaro de; Crianças operárias na recém-industrializada São Paulo”; In: Del Priore
(2006) p. 273.
361
porcentagem e p a ital.
790
A legis ual nº 233 de
02/03/1894, p s menores de 12
anos não deveria possibilidade
para que “as au el às crianças de
10 a 12 anos”.
7
ntratação nas
tunados, cujos filhos deixavam a infância
ingressarem nas faculdades, em função da pobreza as crianças das classes operárias
estavam já nas fábricas cumprindo jornadas de
vez, se comunicava com o cano de esgoto:
oras e meia da manhã na casa nº 42 da rua Cesário Alvim, victima de choc eletrico conforme o
dapata
Giacomo de Biasi: aos 18 dias do mez de março de 1910 sepultou-se no quadro geral 17 dos adultos,
sepultura nº 127 v no, cor br olteiro,
faleceu hontem as 6 horas da mnhã na rua Fernandes Silva,
Fábrica Matarazzo
sta que subia ara 40% na C p
lação, por sua vez, referendava tal situação. O Decreto Estad
or exemplo, ao mesmo tempo em que estipulava que “as criança
m ser admitidas aos trabalhos comuns das fabricas e oficinas”, abria a
toridades competentes determinassem certa ordem de trabalho acessív
91
De fato, este passou a ser o limite mínimo de idade para a co
indústrias, ou seja, 10 anos de idade.
792
Ao contrário do que ocorria com os mais afor
para
12 horas ou mais, incluindo aqui o trabalho
noturno. Frente a esta situação – que se tornaria uma das maiores bandeiras do movimento
operário nas primeiras décadas do século XX – acidentes ocorriam e, não raro, acabavam por
vitimar mortalmente inúmeros jovens. Este foi o caso de Arnaldo Dias, 14 anos de idade, que
faleceu na manhã do dia 19 de novembro de 1913. Arnaldo estava junto de seus
companheiros, as 6 e meia da manhã, esperando pela abertura dos portões da fábrica de
tecidos de juta, no Braz, onde trabalhava. Inadvertidamente, ele pousou a mão num cano e,
para surpresa dos outros operários, caiu fulminado por uma corrente elétrica. Ele não sabia,
mas durante a madrugada um fio de alta tensão havia se rompido, caindo sobre o telhado de
zinco da fábrica que, por sua
“Arnaldo Dias, aos 20 de novembro de 1913 = Sepultou-se no quadro 14 o cadáver de Arnaldo Dias,
filho de Arthur Francisco Dias, natural desta Capital, com 14 annos de idade, falecido hontem as 6
h
attestado do Dr. Paiva Lima (...) Cemitério do Braz 20-11-1913.”
793
E casos como os de Arnaldo juntavam-se às dezenas de outros operários, que ainda se
a vam à recente novidade que foi a eletrificação da indústria paulista na primeira
década do século XX. Nesse sentido, muitos acidentes ocorriam pela falta de experiência com
a nova energia:
, o cadá er de Giacomo de Biasi, italia de anca, com 23 anos de idade, s
, victima de choque
790 - Moura, op. cit., p. 262 e 266.
91 - Decreto Estadual nº 233 de 02/03/1894, Art. 180.
792 - Posteriorme
14/11/1911 estip
executar serviços leves” (Art. 173); já em 1918, através do Decreto 2.918 de 09/04, estabeleceu-se que a idade limite
seria de 12 anos: “Nas fábricas, oficinas e quaisquer outros estabelecimentos industriais, bem como nas construções, é
proibido o trabalho às pessoas menores de 12 anos.” (Art. 210).
793 - Cemitério do Braz, Livros de Inumações, Vol. 49, fls. 38. Este caso foi recolhido por Moura (2006, p. 259) e,
mediante a referência, localizamos o registro de falecimento de Arnaldo Dias nos livros do cemitério do Braz.
7
nte, e no âmbito do Estado, esta disposição foi mantida uma vez que o Decreto nº 2.141 de
ulava que “Não serão admitidos como operários os menores de 10 anos, podendo os de 10 a 12 anos
362
elétrico.”
794
(meu destaque)
Apesar de contarmos com estudos bastante relevantes nessa área
795
menores traba do, pois
caso contrário o co seguir os e m
rapidamente a i rmos aqui
este dado sobr ssível se
torna analisar ões que
tornaram poss dustriais
entre finais do
, a questão dos
lhadores merece ser analisada sob este ponto que estamos detalhan
n em ntender de todo o fato de muitas crianças deixare
infância para ngressarem no mundo do trabalho. Assim, ao inclui
e os conceitos que então vigoravam a respeito das idades da vida, po
um aspecto de suma importância, qual seja, a respeito das condiç
íveis esta larga exploração da mão de obra infantil por parte dos in
século XVIII e início do XX.
Fig. 46: Trabalhadores da mina de cal “Olhos d´Água”, em Caieiras (SP), 1898
794 - Cemitério do
795 - Veja, por exe sto, Boris;
Trabalho urbano e c menores no
trabalho industrial: Machado
Borges; Cotidiano p, 1994.
Braz, Livros de Inumações, Vol. 43, p. 197.
mplo, Dean, Warren; A Industrialização de São Paulo (1880-1945), S.P.: Edusp, 1971; Fau
onflito Social (1890-1920); S.P.: Difel, 1976; Moura, Esmeralda Blanco B. de; Mulheres e
os fatores sexo e idade na dinâmica do capital; Petrópolis: Vozes, 1982 e Pinto, Maria Inez
e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo, 1890-1914; S.P.: Edus
363
Fig. 47: Oficina de Francisco Soler, de dourados e relevos, 1920
Fig. 48: Indústrias de papéis Melhoramentos, equipe de manutenção das locomotivas, c. 1920
Interessante composição fotográfica onde cada operário posa com seu instrumento de trabalho.
Fig. 49: Trabalhadores na indústria de papéis Melhoramentos
364
Fig. 50: Pastifício de Stefani de L. Stefani & C, 1920
E de tal maneira os conceitos eram outros que inúmeros são os vestígios deixados
pelos nossos antepassados sobre essa questão. Um deles, por sinal, data de 1792, época em
que o então governador da Capitania de São Paulo, o general Bernardo José de Lorena,
remeteu aos capitães mores das vilas do interior uma ordem com o seguinte teor:
“O Ilmo. e Exmo. Sr. General ordena a v. mce. que em recebendo esta, mande
prontificar em seu Distrito
dez rapazes que tenham até dezesseis anos de
idade, e dos mais suficientes, para lhes sentar praça de soldado nas tropas
desta cidade, para onde v. mce. os remeterá com toda a brevidade.”
796
(meus
destaques)
Apesar do documento não explicitar a idade mínima a partir da qual os rapazes
poderiam ser engajados, sabemos que muitos deles eram recrutados entre os 12 e 14 anos,
como nos informa uma ordem de outro governador, esta datada de 1610, e que foi lida no
plenário na Câmara Municipal paulistana:
“... e também ordenaram com ordem do sr. governador que todos os
moradores dessem por rol toda a gente de guerra que em suas casas tivesse a
saber
filhos de quatorze anos arriba...”
797
(meu destaque)
Mais esclarecedoras ainda são as listas das “Companhias de Ordenanças” da cidade,
elaborada em 1772, e que apontam, dentre outros, os seguintes rapazes engajados:
Manoel: 12 anos, filho de Anna Maria Salles, residente na Rua das Flores.
Francisco Alves Filho
12 anos , pardo, sobrinho de Rosa Angélica.
Manoel da Fonseca: 13 anos, residente da Rua Direita.
José de Toledo: 13 anos, residente na Rua da Quitanda.
Joaquim: 13 anos, residente na Rua de São Bento, caminho da Luz.
José: 13 anos, residente na Rua de São Bento, caminho da Luz.
José: 13 anos, residente na Rua de São Bento, caminho da Luz.
Manoel Monteiro: 13 anos, residente na Rua do Rosário.
Manoel Alves: 14 anos, residente na Rua da Quitanda.
JoséRibeiro: 14 anos, residen
João da Cruz: 15 anos, residen
te na Rua da Quitanda.
te da Rua Direita.
798
(meus destaques)
796 - General Bernardo José de Lorena – Ofícios aos diversos funcionários da capitania: 1788-1795; Documentos
Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, vol. XVI, p. 189. Aqui transcrevemos o ofício dirigido ao
Capitão Mor de Jundiaí, Antonio Jorge de Godoy, aos 07/12/1792.
797 - A. C., sessão do dia 20/02/1610, p. 261.
798 - “Recenseamentos das Ordenanças da Cidade de São Paulo e seu município”, In: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, vol. XXIV, 1938, p. 505 a 526. A respeito das antigas Companhias de Ordenanças e sua
atuação em São Paulo veja: Leonzo, Nanci; As Companhias de Ordenanças na Capitania de São Paulo – das origens ao
365
O recrutamento desses meninos entre os 12 ou 13 anos, antes de serem considerados
como casos excepcionais permaneceu, pelo contrário, como regra durante os séculos XVII e
XVIII.
799
Já no século XIX, esta ocorrência pode ser comprovada por ocasião dos
recrutamentos levados a efeito durante a Guerra do Paraguai. Entre as crianças que
participaram do conflito, a serviço da Marinha, estavam meninos de 9 a 12 anos.
800
Como visto, desde o século XVII, pelo menos, estavam esses meninos-homens
engajados e em condições de se apresentarem nas lutas mais encarniçadas. Este foi o caso
de José Moreira, com 14 anos em 1642, e já na condição de soldado. Ele era órfão de Pedro
Moreira e, por isso, estava sob a custódia de um tutor, o seu tio João Moreira. Naquele
mesmo ano, o Juiz de Órfãos de São Paulo, ao questionar o tio sobre o paradeiro do
sobrinho, recebeu como resposta que “... o dito órfão José estava na cidade da Bahia,em serviço
de Sua M
s.
802
ajestade, para onde fora em socorro por soldado, em companhia do capitão Antonio Raposo
Tavares.”
801
Nada mais foi dito ou perguntado pelo Juiz, o que demonstra a naturalidade
com que o caso foi encarado. Mas, tendo em vista a data (1642), a cidade onde o rapaz se
encontrava, bem como a menção ao nome de Raposo Tavares, tudo leva a crer que o jovem
José Moreira fora engrossar as fileiras das tropas que lutavam contra os holandeses no
Nordeste brasileiro.
De acordo com as conclusões de Belmonte, que estudou esse mesmo tema em uma de
suas obras, “aos quatorze anos de idade, o paulista do seiscentismo já se não considerava um menino”
e participava ativamente de diversas empreitadas, seja nas tropas como soldados, seja como
integrante de expedições, embrenhando-se pelo sertão em busca de riqueza
Já como sertanista em 1670 encontramos, por exemplo, o menino Antonio Pires de
Campos na companhia de seu pai, Manuel de Campos Bicudo, internado numa Bandeira pelo
norte de Mato Grosso. Marchando para leste, esta mesma Bandeira acabou por encontrar a
expedição de Bartolomeu Bueno da Silva, o velho Anhanguera, que por sinal estava
acompanhado do filho, o jovem Bartolomeu (o 2º Anhanguera), então com 14 anos.
803
Tendo
governo do Morgado de Matheus; In: Coleção Museu Paulista, série de História, vol. 6, 1977, p. 123 a 239.
799 - Não apenas na capital, mas sobretudo no interior da antiga Capitania paulista, o engajamento de menores a
partir dos 12 ou 13 anos acabou por gerar um problema bastante sério para as famílias camponesas. Os pequenos
sitiantes, por exemplo, necessitavam da mão de obra desses meninos-homens para a sobrevivência do grupo. Não
por outro motivo, quando da elaboração das Listagens anuais de População nas vilas, freguesias e bairros rurais
(documentos estes hoje sob a custódia do Arquivo do Estado), muitos pais ou omitiam os filhos naquela idade, ou
imputavam-lhe deficiências para que estes não fossem chamados às milícias. Na região de Jundiaí, Bragança e
Atibaia, inúmeros foram os meninos apontados como “mudos” ou “incapazes”. Veja coleção “Maços de
População” das Vilas de Atibaia, Bragança e Jundiaí, 1795 a 1836, Arquivo do Estado de São Paulo.
800 - Venâncio, Renato Pinto; Os aprendizes da guerra, In: Del Priore (2206), ver especialmente p. 208.
801 - Inventários e Testamentos, Arquivo do Estado de S. Paulo, Vol.XI, 1921, Inventário de Pedro Alves Moreira, p.
355.
802 - Belmonte ou Barreto, Benedito carneiro Bastos; No tempo dos bandeirantes; S.P.: Melhoramentos, 1948, ver
especialmente o capítulo “Meninos-Homens”, p. 189 a 195.
803 - Idem ibidem, p. 188.
366
como base os inventários dos séculos XVII e XVIII, constata-se que esta era a regra, ou seja, a
intensa participação de rapazes com pouca idade, mas já considerados homens feitos, nessas
de julho
de 1673, ao ser questionado pelo Juiz de Órfãos sobre o destino de Francisco, então com 16
anos, Fernão Dias não titubeou e declarou “que o órfão Francisco Dias da Silva o levará elle dito
Curador ao descobrimento da prata em serviço de Sua Alteza, por ter idade e ser capaz para isso.”
804
Uma outra referência a respeito das fases da existência humana - e de suas
classificações – nos chega através dos antigos censos realizados na então Capitania de São
Paulo. Chamados de Listas de Habitantes, essa documentação começou a ser produzida no ano
de 1765 por ordem do governador e capitão-geral D. Luis Antonio de Souza Botelho Mourão.
A contagem da população atingia os mais remotos rincões, desde as Vilas estabelecidas,
Freguesias, Capelas, Bairros Rurais e sítios mais afastados. Documento inicialmente de cunho
militar, hoje eles recebem a denominação de Maços de População, encontrando-se sob a
custódia do Arquivo do Estado de e estamos analis ndo, o que mais
companhias de ordenanças, prática que se tornou obrigatória a partir da Ordem Régia de 25 de
7ª - mulheres de 14 a 40 anos .........
expedições ao sertão. Esse foi o caso de Francisco Dias da Silva, filho de Bento Pires Ribeiro e
de Sebastiana Leite da Silva. Sua mãe, falecida em 1670, era irmã do afamado bandeirante
Fernão Dias que, por isso, tomou a função de curador do menino Francisco. No dia 4
São Paulo. No quesito qu a
nos interessa nessa fonte não é a contagem em si, mas o resumo (ou quadro geral) que deveria
acompanhar cada listagem. Era o que se chamava de mapa geral resumido de cada uma das
maio de 1768. Nos resumos, a população deveria ser dividida em 10 classes assim dispostas:
805
Classes: Total
1ª - crianças do sexo masculino até 7 anos completos .........
2ª - meninos de 7 a 15 anos .........
3ª - homens de 15 a 60 anos .........
4ª - homens de 60 a 90 anos e mais .........
5ª - crianças do sexo feminino até 7 anos completos .........
6ª - moças de 7 a 14 anos .........
8ª - mulheres de 40 a 90 anos ou mais .........
9ª - os que nasceram no ano, ambos os sexos .........
10ª- os que morreram no ano, ambos os sexos .........
804 - Inventários e Testamentos, Arquivo do Estado de São Paulo, Vol. XVII, 1921, Inventário de Sebastiana Leite
da Silva, p. 290, 317 e 318. Este caso de Francisco Dias da Silva também foi citado por Belmonte, porém,
equivocou-se o autor ao dizer que o rapaz tinha 14 anos na época do fato narrado. Na verdade, Francisco tinha tal
idade quando da abertura do inventário de sua mãe em novembro de 1670. Em 1673, ocasião em que Fernão Dias
fez esta declaração, seu sobrinho Francisco estava com 16 anos.
367
Chama a nossa atenção a classificação dos meninos enquanto homens (adultos,
portanto) já a partir dos 15 anos e para as mulheres a partir dos 14. Outro dado a ser
40. Implícito aqui está o fato de que elas viviam menos que os homens, como já demonstrado
base do direito poderia ser encontrada
nas Ordenações Filipinas, conjunto de normas que estava em vigor, por exemplo, em 1808,
quando do desembarque da família real no Rio de Janeiro, sendo que alguns de seus
o Título LXXXI, que tratava especificamente “Das pessoas a que não é permitido fazer
p e um forte indício de que a
ade adulta – época em que se poderia exercer direitos e sofrer sanções – começaria após
negociações. Nos códigos analisados, por exemplo, chama a atenção o caráter fluido das
regras estabelecidas, posto que muitos dos seus artigos dependiam de análises subjetivas.
Cada caso era um caso, poderíamos dizer. No interior da legislação civil, portanto, diversas
eram as possibilidades de entendimento para este tema, o que dava margem a diferentes
julgamentos a respeito da maioridade ou da fase adulta de um indivíduo.
considerado é a diferente divisão etária entre homens e mulheres na terceira etapa da vida:
para os homens esta iria dos 15 aos 60 anos, mas para as mulheres, esta chegaria apenas até os
anteriormente.
A partir das informações até aqui expostas, seja em relação às meninas quanto aos
meninos, teríamos já condições de arriscar a elaboração de um quadro que nos informasse a
respeito das “idades da vida”, especialmente no que toca à infância, juventude e idade adulta.
Com pequenas diferenças, as fases parecem coincidir tanto para as mulheres quanto para os
homens. Entretanto, torna-se necessário um refinamento desses dados e, uma das maneiras
para levar a termo esta tarefa, seria a de confrontar os elementos até aqui apontados com as
legislações civil e eclesiástica.
No Brasil Colônia, e mesmo no Império, a
conjuntos (códigos) permaneceram vigentes até a República. Ali, um primeiro dado
revelador da concepção legal que se tinha a respeito das idades da vida estava consignado
n
testamento.” Documento de suma importância no que tange aos ritos fúnebres e tido como
uma das principais garantias para a “entrada da alma no céu”, mesmo assim estavam
proibidos de testar, conforme a regulamentação, “o varão menor de quatorze anos e a fêmea
menor de doze .
806
A delimitação entre os grupos etários está aqui colocada de maneira
astante clara ou, em outras alavras, a legislação nos oferecb
id
os 14 anos para os rapazes e, para as meninas, após os 12.
Entretanto, e sob o aspecto legal, a maioridade dos indivíduos apresentava várias
outras nuanças, o que dava margem a diferentes entendimentos e proporcionava algumas
805 - Conforme modelo coligido por Marcílio (1974), p. 90.
368
De toda a forma, e apesar de seu caráter fugidio, os códigos civis e criminais nos
oferecem informações valiosas, até mesmo no sentido de esclarecer que a percepção a respeito
da maturidade de uma pessoa decorria em grande parte de seu discernimento, ou da astúcia e
Comecemos pela análise da maioridade à luz dos códigos criminais. Apesar de
queles
inteligência do jovem que, em agindo com perspicácia e sagacidade, já poderia ser
considerado como adulto. Nesses casos, a idade cronológica ou biológica do sujeito era menos
importante do que o critério intelectual, este sempre dependente de avaliação por terceiros.
“Ser capaz”, ou adulto no século XIX, dependia, portanto, de outros juízos e valores que não
poderiam ser mensurados apenas de forma cronológica.
estabelecida em lei que a plena maioridade civil era uma prerrogativa conferida apenas para
a que completassem 21 anos de idade
807
, o código criminal de 1830 estabelecia que a
inimputabilidade seria conferida apenas para os menores de 14 anos ou, em outras palavras,
os jovens a partir desta idade já poderiam ser considerados responsáveis por delitos cometidos
e, portanto, passíveis de serem incriminados. Nesse sentido, dispunha o código de 1830:
“Art. 10º. Também não se julgarão criminosos:
1. Os menores de 14 anos (...)
Art.13º - Se se provar que os menores de 14 anos que tiverem cometido crimes
obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás casas de correção pelo tempo
que ao Juiz parecer contanto que o recolhimento não exceda a idade de 17 anos.”
808
(meu destaque)
Além de responsabilizar criminalmente pessoas a partir dos 14 anos, havia ainda a
um longo período e mesmo na
“Art. 27. Não são criminosos:
iz
possibilidade de julgamento dos que se encontravam abaixo dessa faixa etária – entre os 7 e
13 anos – desde de que se julgasse que o menor praticara o delito com discernimento, ou seja,
estando ciente do que fazia, ou com plena capacidade intelectual para entender a ação que
praticara. Esta determinação permaneceu vigente durante
República, com a edição do “Código Penal dos Estados Unidos do Brasil”, foi alterada apenas
a parte relativa aos menores de 14 anos, posto que agora poderiam ser julgados apenas os
maiores de 9 anos e não mais a partir dos 7:
§ 1º. Os menores de 9 anos completos;
§ 2º. Os maiores de 9 e menores de 14, que obrarem sem discernimento; (...)
Art. 30. Os maiores de 9 anos e menores de 14, que tiverem obrado com discernimento,
serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriais, pelo tempo que ao ju
806 - Ordenações Filipinas: Livro IV, Título LXXXI; Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. 908.
807 - Esta disposição, que se apresentava desde as Ordenações Filipinas, permaneceu vigente durante muito
tempo no Brasil, e somente recentemente (em 2002) é que ela foi reformulada através da Lei nº 10.206 de
10/01/2002 (Código Civil Brasileiro), que diminuiu a idade de 21 para 18 anos.
808 - Código Criminal do Império: 1830; In: Collecção das Leis do Império do Brasil desde a Independência 1830 e
1831; Vol. III, 2ª edição, Ouro Preto: Tipografia De Silva, 1875, p. 173 e seguintes.
369
parecer, com tanto que o recolhimento não exceda à idade de 17 anos.”
809
em mais alguns anos e, por conseqüência, ocorreu uma requalificação da adolescência sob um
a maioridade a partir dos 21 anos e, de outro, os
ódigos criminais avaliavam como responsáveis os maiores de 14 anos e, dependendo da
época, chegou-se mesmo a criminalizar os menores entre 7 e 9 anos.
811
O limite de 21 anos era,
portanto, algo bastante tênue e não apena parado com o código criminal, posto que
esde as Ordenações Filip ibilidade dos indivíduos
manciparem-se antes da idade prevista, e isso seja mediante uma concessão feita pelos pais
u, num ponto que já tocamos ao analisar a situação das meninas do Seminário da Glória,
iante do casamento. Nada era tão rígido, principalmente se levarmos em consideração que,
ara muitos casos, a idade biológica importava menos do que o desenvolvimento intelectual,
ste medido pelo discernimento, algo bastante subjetivo como podemos observar, ou através
de outro critério que, em parte, se fazia representar na lei: a aparência. Este era medido a
partir do desenvolvimento físico dos jovens; o corpo graúdo à semelhança dos adultos era
Nesse quesito, a idade de 14 anos continuaria ainda por décadas como um marco na
legislação brasileira, adentrando mesmo no século XX, e sofrendo uma alteração apenas em
1940, quando então foi fixado o limite de 18 anos para a inimputabilidade penal.
810
Por essa
época, vale lembrar, a expectativa de vida já se estendera em mais 10 anos, ou para cerca de
50,37 anos, como foi anotado na cidade de São Paulo, contra a média de 40 calculada para
meados do século XIX. Em assim o sendo podemos concluir que, através dessa alteração, a
legislação penal incorporava todo um contexto onde estavam presentes as modificações
advindas com o aumento da expectativa de vida. Esta, por sua vez, acarretou numa profunda
alteração das fases ou das “idades da vida”, posto que a infância poderia ser agora estendida
novo estatuto. Nesse caminho, também a fase adulta (esta considerada sob o ponto de vista
da responsabilidade penal) agora seria medida sob critérios puramente biológicos, e não mais
subjetivos como antes quando se levava em conta o “discernimento”, sendo possível alocá-la
para mais adiante, tendo como limite não mais os 14, mas sim a idade de 18 anos.
De qualquer forma, mesmo no interior da antiga legislação estabeleceu-se uma certa
contradição. De um lado, a parte civil fixava
c
s se com
d inas, por exemplo, estava colocada a poss
e
o
d
p
e
809 - Decreto nº 847 de 11/10/1890. Esta idade foi também o marco utilizado quando da criação, em 1902, do
Instituto Disciplinar de São Paulo (Lei estadual nº 844 de 10/10/1902). Ali deveriam ser recolhidos menores a
partir dos 9 anos de vida. A esse respeito veja Santos, Marco Antonio Cabral dos; Criança e criminalidade do início do
século; In: Del Priore (2006), p. 210 e seguintes.
810 - A Lei federal nº 4. 242 de 05/01/1921 (Art. 30, § 16) , o Decreto nº 22.213 de 14/12/1922 e o Decreto a Lei nº
17.943-A de 12/10/1927 (o chamado “Código de Menores” ou “Código Mello Mattos”) mantiveram o critério de
14 anos. Nesse sentido, o estabelecimento da idade de 18 anos como marco para a inimputabilidade somente viria
com o Código Penal de 1940 (Decreto-Lei nº 2.848 de 07/12/1940) que, em seu Artigo nº 23, estabeleceu: “Os
menores de dezoito anos são penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.”
811 - A esse respeito veja Torres-Londoño, Fernando; A origem do conceito de menor, In Del Priore, Mary (org.)
História da criança no Brasil, S.P.: Contexto (1991), que explica: “Assim, a pessoa ficava submetida ao pátrio poder até os
21 anos, enquanto sua responsabilidade penal podia começar aos 7 ou 9 anos, dependendo do juiz. Na prática, (...) essas idades
passavam a marcar a entrada na vida adulta.” (p. 131).
370
uma forte indicação de que o processo de amadurecimento já chegara, não importando muito
a idade cronológica.
812
Em parte, como dissemos, este último critério se fazia representar nas leis vigentes e
aqui, especificamente, classificava pela diferença a maturidade de homens e mulheres
mediante as características físicas notadas numa fase que vai dos 12 aos 14 anos. Nesse caso,
as modificações verificadas no corpo de meninos e meninas serviam para distinguir a idade
adulta de uns e de outros, numa classificação puramente biológica. Desde sempre percebeu-se
que, em relação aos homens, as mulheres chegam antes à puberdade, acarretando
transformações evidentes no seu corpo. A diferença de tempo é pequena, geralmente cerca de
dois anos, mas suficiente para ficar consignado na legislação, como citamos parágrafos atrás,
que as meninas poderiam testar a partir dos 12 anos, ao contrário dos rapazes que somente
poderiam fazê-lo após os 14. Sob esse aspecto, vale lembrar que a mulher sempre foi
considerada apta para se casar antes que o homem; no Código Civil de 1916, por exemplo, a
cla o, ser tecip nsentimento dos pais.
813
Em linhas gerais, a legislação brasileira vigente no século XIX consegue demonstrar
ue, ao lado da idade cronológica, uma criança era definida através de critérios subjetivos
como a
r.
idade núbil para a mulher era de 16 anos, e para os homens ela foi fixada aos 18; mas
podendo sempre, é r an ada mediante o co
q
capacidade para obrar com discernimento ou, como qualificava a Igreja, esta era a idade
da inocência, definição esta reveladora de um ideal concebido para os menores.
E o inocente seria aquele desprovido de pecado, sem malícia, ainda ingênuo e que,
tanto na vida quanto na morte, poderia também receber o nome de anjo.
814
Nas Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, e em referência à administração da extrema-unção, a
posição era de que “Todos os fiéis Christãos, que tiverem discrição, e malícia para peccar, são capazes
deste Sacramento”, mas havia um senão, posto de “Não se há de administrar este Sacramento aos
meninos, que não tem uso da razão.”
815
Ou seja, os inocentes ou as crianças até uma determinada
idade, não necessitariam deste Sacramento, posto que não estariam ainda no uso da razão e,
portanto, sem condições de peca
Conforme registravam os antigos dicionários, a idade da infância, ou aquela fase de
inocência, terminaria entre os 5 e 7 anos. Vejamos alguns verbetes:
Menino [e] criança: (...) diz-se da idade do homem até os 7 annos.
816
812 - A determinação da idade baseada apenas na aparência se aplicava especialmente aos escravos, posto que não
havia meios seguros para se determinar com precisão a data de nascimento dos cativos. A esse respeito veja uma
esclarecedora análise de Scarano, Julita; Criança esquecida das Minas Gerais; In: Del Priore (2006) p. 113.
813 - Código Civil de 1916, Lei nº 3.071 de 01/01/1916, Art. 183, § XII.
814 - A respeito dessa classificação trataremos com mais vagar no capítulo 5 a seguir.
815 - Vide, D. Sebastião Monteiro da; Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, S.P.: Typographia 2 de
Dezembro, 1853, Título XLVII, § 196, p. 82.
816 - Silva, Antonio de Moraes; Diccionario da Língua Portugueza; Lisboa, Typographia Lacerdina, 1813, Tomo I p.
495 e Tomo II p. 288.
371
Anjinho: (...) dá-se particularmente este nome aos meninos, ou vivos, ou
podemos chamar “de passagem” – era a administração da Eucaristia, em que se estabelecia a
ia, nesse sentido,
mortos, por ser o seu estado o da innocencia.
Anjo: (...) Na linguagem vulgar, nome com se designa qualquer criança menor
de cinco annos.
817
A passagem deste para um outro estágio se daria a partir da “perda da inocência”, ao
mesmo tempo em que se adquiria a capacidade para distinguir o bem do mal; ou quando o
indivíduo já possuía a capacidade de “obrar com discernimento” conforme registravam os
antigos códigos penais. Nesse sentido, acordavam as legislações civis e eclesiásticas: o fim da
infância ocorreria aos 7 anos de idade.
818
Ainda sob esse aspecto, um outro rito – que
idade de 12 anos para as meninas e 14 para os meninos.
819
E chegamos, finalmente, à confirmação sobre a idade apropriada para o casamento,
rito este que estabelecia a entrada dos indivíduos na idade adulta. Estabelec
as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia:
“O varão para poder contrahir Matrimonio deve ter quatorze annos, e a fêmea
doze annos também completos.”
820
Alguns dos ritos presentes no catolicismo como a crisma e a primeira comunhão, por
exemplo, deveriam ocorrer em idades próximas a estas, lembrando-nos Ana Maria Mauad de
um problema que tocava especialmente às meninas: “a primeira comunhão realizava-se
geralmente entre os dez e 13 anos [mas] no caso das meninas, o mais cedo possível para se evitar a
proximidade com o casamento(...).”
821
E foi geral no Brasil, explicou Gilberto Freyre, “o costume das mulheres casarem cedo (...)
aos doze, treze, quatorze anos. Com filha solteira de quinze anos dentro de casa já começavam os pais a
se inquietar e a fazer promessas a Santo Antonio ou São João.”
822
Costume bastante disseminado
como já analisado no caso das meninas do Seminário das Educandas de São Paulo, as que
ultrapassavam essa faixa etária sem contraírem matrimônio poderiam ser consideradas já
velhas para o fazerem, mesmo que aos 18 anos: “antes dos vinte anos, estava a moça solteirona”,
817 - Idem ibidem, p. 127 e 429.
818 - Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, a idade de 7 anos era um marco, o grande
divisor etário que anunciava o fim da infância. Era a partir dessa idade, por exemplo, que os “desposórios futuros”
(promessas de casamentos) poderiam ser feitos: “Desposorios futuros são o mesmo que promessa de futuro matrimônio:
para elles é necessário que tenham os promittentes assim homens, como mulheres sete annos completos de idade” (Título
LXIII, artigo 262); ou, ainda, seria nessa mesma idade que começavam os “anos da discrição” (do discernimento)
devendo observar-se, a partir daí, o rito da confissão: “Por preceito da Santa Igreja catholica todo o fiel Christão assim
homem, como mulher, tanto que chegar aos annos da discrição, que regularmente são os sete annos, e antes delles, tanto que
tiver malícia e capacidade para peccar, é obrigado, sob penna de peccado mortal, a se confessar inteiramente, ao menos uma vez
cada anno a seu próprio Parocho.” (Título XXXVI, parágrafo 142).
819 - Constituições Primeiras, op. cit., Título XXIV, parágrafo 86.
820 - Idem ibidem, Título LXIV, parágrafo 267.
821 - Mauad, Ana Maria; A vida das crianças de elite durante o império; In: Del Priore (2006) p. 166.
822 - Freyre, Gilberto; Casa-Grande & Senzala; S.P.: José Olympio, 1950, 2º volume, p. 582
372
completou Freyre.
823
O casamento em tenra idade, ao mesmo tempo em que marcava a entrada para a vida
adulta, determinava também o início de uma precoce decadência e, nesse aspecto,
nte século
am m
pelo suceder contínuo de gravidez e partos.
humor das suas maneiras, assumindo em seu lugar uma carranca
Não obstante a confirmação de que as brasileiras amadureciam rapidamente e,
também, de que o seu de en nte acelerado, o fato é que nesta
observação o viajante dama siderou esta
“velhice prematura” co stituição enfraquecida e deteriorada pela
inatividade”, esta somente possível para as mulheres de classes mais privilegiadas. Mais ainda,
disse el
vestindo-se até mesmo de um certo escândalo; mas, podemos
desconfiar que situações parecidas ocorriam em certas regiões da Europa. Na França, por
exemplo, Michelle Pe num primeiro momento,
poderiam ser vistas co os operários do século XIX
asavam tardiamente: os homens com cerca de 28 anos e as mulheres com 26, e isto no
período
viverem certo período em concubinato para, tempos depois, oficializarem a união: “em Paris,
os bairros operários são os que têm o maior índice de concubinagem, este podendo chegar a 472 em mil
habitantes e abrangendo mais da quarta parte dos casais.” Apesar da autora não especificar a idade
desses casais, tudo leva a crer que eles não estariam numa faixa muito diferente das que
especialm para as mulheres. Já tivemos a oportunidade de verificar que elas, noe
XIX, vivi ens e isso em grande parte por conta dos traumas causadosenos que os hom
Até os doze ou treze anos, como observou o viajante Luccock, a mulher brasileira era
bastante graciosa, “com olhos negros, vivos e curiosos, feições redondas e traços
moderadamente belos.” Mas, completou ele, era justamente nessa época que se dava o
casamento ...
“(...) época na qual costumam assumir os cuidados de um lar, ou melhor,
apesar de evidente incapacidade, o caráter de matronas. O fato é que, aos
dezoito anos, uma dama brasileira já atingiu sua plena maturidade. Poucos
anos após já ela se torna corpulenta e mesmo pesadona, adquire uma sensível
corcova e um andar desajeitado e vacilante. Começa a decair, perde o bom–
desagradável (...) as faces perdem seu viço e o rosado e, aos vinte e cinco anos,
trinta no máximo, já se tornaram perfeitas velhas enrugadas.”
824
processo velhecimento era basta
focava as s da elite, e isso porque, em seguida, ele con
mo resultado de uma “con
e, a decadência física ocorreria “acima de tudo, pela idade precoce, vergonhosa e contra a
natureza, com que se permite às mulheres que se casem.”
825
Aos olhos do inglês talvez o caso fosse
encarado como vergonhoso, re
rrot anotou determinadas práticas que,
mo distantes dos costumes brasileiros; ali
c
entre 1821 e 1825. Entretanto, completou a autora, era muito comum o fato dos casais
823 - Idem ibidem.
824 - Luccock, John; Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil, S.P.: Livraria Martins, 1951, p. 76.
825 - Idem ibidem, p. 77.
373
apontamos para o Brasil, até porque, em seguida, Perrot relata o caso de Ernestine, jovem
operária que começou a trabalhar aos 12 anos; aos 16 ela já vivia com Eugène, de 22 anos, aos
17 ela estava grávida.
826
Ainda no que se refere ao modelo europeu, Pierre Chaunu nos fala que, no século
XVIII, as mulheres geralmente casavam-se numa faixa etária entre os 25 e 28 anos, uma idade
considerada tardia.
Entretanto, esta não era a regra para todo o continente, uma vez que a
Europa oriental conservou, até cerca de 1930, uma idade média no casamento feminino entre
os 18 e 19 anos.
827
Mais ainda, Chaunu notou – como Perrot na França – que em diversos
cantões da Inglaterra, a maioria das jovens casavam grávidas. Era este um resquício, disse ele,
de uma estrutura um pouco arcaica que contemplava um casamento em duas etapas: a
oficialização era precedida por um longo noivado de conteúdo sexual preciso; “os noivos têm
relações sob o teto dos pais.” Tal prática ocorria nos cantões da Europa setentrional, na Frísia e
na Alemanha, completou.
828
De fato, as uniões informais – ou concubinatos – obviamente não podem ser
mensuradas devido à falta de registros formais. O contrário ocorre com os casamentos
Não obstante este problema, em São Paulo a questão se agrava por conta dos próprios
registros de casamentos, já que não se costumava anotar a idade dos noivos nos assentos, e isso
pelo menos até finais do século XIX. Não é preciso dizer que tal prática em muito dificulta o
trabalho, já que pesquisador deverá recorrer a outras fontes menos confiáveis, como os censos
gerais, por exemplo. Maria Luiza Marcílio percebeu este grav
oficiais, inscritos que estão nos livros paroquiais. Eis aqui o alerta de Perrot e Chaunu.
o
e problema e, com toda a razão,
argume
De qualquer forma, a partir da década de 1890, algumas paróquias já começavam a
especificar as idades e, dentre elas, estavam as do Braz e a de Santa Ifigênia. Na paróquia da
Sé, por sua vez, essa prática somente se tornaria corrente nos primeiros anos do século XX.
Nesse sentido, foi possível verificar a idade dos nubentes para o bairro do Braz já a partir de
meados de 1892 e, para Santa Ifigênia, desde 1894.
Veremos, inicialmente, um levantamento efetuado com base nos Livros de Registros
de Casamentos da paróquia do Braz no período entre 01/08/1892 a 31/07/1893. Este
intervalo se explica por conta das falhas encontradas em períodos anteriores. Nesse caso, e
apesar da existência de vários registros onde não constam as idades dos nubentes, este foi o
ntou que não seria possível estudar “a repartição dos casamentos em primeiras núpcias por
idade” entre 1750 e 1850 tendo em vista falta bases seguras.
829
826 - Perrot, Michelle; A juventude operária.Da oficina à fábrica.; In: Levi, Giovanni e Schimitt, Jean-Claude (org.);
História dos Jovens; S.P.: Cia. das Letras, 1996. p. 83 a 136. Ver especialmente p. 97, 126 e 127.
827 - Chaunu, Pierre; A história como ciência social; R.J.: Zahar, 1976, p. 411 e 412.
828 - Idem, ibidem, p. 425.
829 - Marcílio (1974), ver especialmente p. 66, 67 e 74, bem como p. 163.
374
período onde foi possível contar com dados mais seguros. Neste intervalo foram realizados
176 casamentos e, para 106 deles, a idade dos nubentes aparece com clareza.
830
48 casos ou
--- 45,28%
22 37 casos ou 08
01
42
--- ---
--- ---
48 --- ---
49 --- 01
50
56 --- 01
Como pode ser observado, 13 anos foi a idade mínima encontrada para as mulheres,
com um casamento anotado. Entretanto, ao somarmos as núpcias realizadas até os 17 anos,
estes já se elevam a 26 casos, ou cerca de 24,52% do total, um número nada desprezível.
Mais ainda, se tomarmos como base a idade de 19 anos, a quantidade de casamentos atinge
a impressionante marca de 49,05% do total. Os casamentos em idades antecipadas eram,
Idade Mulheres (quantidade) Homens (quantidade)
13 01 ---
14 02 até 17 anos: até 19 anos: ---
15 03 26 casos ou 52 casos ou ---
16 04 24,52% 49,05% --- de 19 a 24 anos:
17 16
18 17
---
19 09 02
20 06 04
21 11 de 20 a 24 anos: 08
23 05 34,90% 14
24 03 12
25 --- 12
26 05 de 25 a 29 anos: 05 de 25 a 29 anos:
27 01 11 casos ou 08 33 casos ou
28 03 10,37% 04 31,13%
29 01 04
30 01 06
31 --- 04
32 --- 01
33 01 01
34 ---
12
35 --- 01
36 01 04
37 --- 01
38 01 01
39 --- ---
40 03 acima de 30 anos: 01 acima de 30 anos:
41 --- 06 casos ou --- 25 casos ou
0,56% 23,58%
43 --- ---
44 --- ---
45 --- 01
46
47
--- 01
--- ---
830 - Livros de Registros de Casamentos, Paróquia do Braz 1890 a 1898, Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.
375
portanto, uma realida
mesmo ocorria décad
Luccock, bem como a
omum deveriam ser os casamentos de meninas como Albina Cortallotti, de 13 anos, ou
Vicenta
annos, italiana,
“Aos 16 dias do mês de Outubro de 1892 na Matriz do Bom Jesus do Braz em minha presença e das testemunhas
Idade Mulheres (quantidade) Homens (quantidade)
14 02 até 17 anos: ---
15 12 46 casos ou ---
16 15 24,33% até 19 anos ---
17 17 93 casos ou ---
18 23 49,20% ---
19 24 06 de 19 a 24 anos:
20 14 05 86 casos ou
08 45,50%
22
30,15% 23
22
25 05 18
26 de 25 a 29 anos: 11 de 25 a 29 anos:
s ou
29 05 05
41 5% --- 24,86%
42 --- 01
de na São Paulo de finais do século XIX, o que nos leva a crer que o
a antes, talvez até com mais freqüência, conforme os relatos de
argumentação e análises de Gilberto Freyre. Nesse sentido, bastante
c
da Costa, de 14:
“Aos 29 dias do mês de Outubro de 1892 na Matriz do Bom Jesus do Braz, em minha presença e das testemunhas
(...) se recebeu em matrimônio Christofo Balestro e Albina Cortallotti; elle filho de Bartoldi Balestro e Theresa
Bellabuoni, 24 annos, italiano; ella filha de Modesto Cortallotti e Carolina Bovolatta, de 13
moradores ambos nesta Parochia.”
831
(...) se receberam em matrimônio José dos Santos e Vicenta da Costa; elle filho de João dos Santos e Margarida dos
Santos, 24 annos, desta Parochia; ella filha de Manoel da Costa Júnior e Maria de Paula Oliveira, da Sé, 14 annos.
Moradores ambos nesta Parochia.”
832
Seguindo o mesmo modelo aplicado para o Braz, vejamos agora dois quadros para a
paróquia de Santa Ifigênia.
833
O primeiro deles engloba os casamentos realizados no ano de
1895. Para um total de 211 registros, 189 deles trazem a idade dos nubentes:
21 16 de 20 a 24 anos:
22 12 57 casos ou
23
24 04
11
05
27 06 29 casos ou 10 56 caso
28 08 15,34% 12 29,62%
30 01 12
31 01 04
32 --- 05
33 03 06
34 --- 01
35 01 ---
36 01 02
37 --- 03
38 --- 02
39 --- acima de 30 anos: --- acima de 30 anos:
40 01 10 casos ou 05 47 casos ou
---
43 01 02
44 01 01
831 - Livro de Registro de Casamentos da Paróquia do Braz, 1889-1898, fls. 70 verso.
832 - Idem ibidem, fls. 69 verso.
833 - Livro de Registro de Casamentos da Paróquia de Santa Ifigênia 1895 a 1899, Arquivo da Cúria Metropolitana
de São Paulo.
376
45 --- ---
47 --- ---
48 --- ---
49 --- ---
50 --- 01
56 --- 01
Santa Ifigênia, casamento
46 --- 01
s realizados em 1897. Para um total de 192 registros, 183
deles tr
Idade Mulheres (quantidade) Homens (quantidade)
18
azem as idades dos nubentes:
14 02 até 17 anos: ---
15 06 37 casos ou ---
16 08 20,21% até 19 anos ---
17 21 79 casos ou ---
18 25 43,16% --- de 19 a 24 anos:
19 17 03 85 casos ou
20 24 08 46,44%
21 22 de 20 a 24 anos: 22
22 15 74 casos ou 23
23 06 40,43% 12
24 07 17
25 02
26 05 de 25 a 29 anos: 07 de 25 a 29 anos:
27 04 15 casos ou 14 57 casos ou
28 03 8% 10 31,14%
29 01 08
30 02 08
31 01 03
32 01 06
33 01 05
34 03 04
35 --- 02
36 --- ---
37 --- 02
38 --- ---
39 01 01
40 01 acima de 30 anos: 02 acima de 30 anos:
41 --- 15 casos ou --- 41 casos ou
42 03 8% --- 22,40%
43 --- 01
44 --- ---
45 --- 01
46 --- ---
47 --- 02
48 --- ---
49 --- ---
50 01 ---
51 --- ---
52 01 ---
53 --- 03
57 --- 01
377
Do mesmo modo como observamos no Braz, aqui também chama a atenção a alta
porcentagem de mulh
1897. A título de ilustra
registros de casament
“Aos 8 de Novembro de 1
ello, elle de vinte e oito annos de idade, solteiro, natural do Rio Grande do Sul, filho legítimo de José Ferreira de
fallecidos
eres que se casaram entre os 14 e 19 anos, 49,20% em 1895 e 43,16% em
ção, mas também para um ligeiro comentário, a seguir transcrevo dois
os de noivas com 14 anos de idade:
894, nesta Matriz de N. S. da Conceição de Santa Iphigenia as três horas da tarde,
proclamados e não constando impedimento algum, na presença do Rev
mo
pe. Coadjutor Dr. Guilherme Landell de
Moura e das testemunhas abaixo indicadas, receberam-se em Matrimônio Justo Juiz de Guiné e Benedicta de
M
Guiné e de Maria Isabel,
; ella de quatorze annos de idade, solteira, natural desta Capital, filha natural
de Rosalina de Mello, fallecida, sendo ambos freguezes desta Parochia.
834
(meu destaque)
“Aos 30 de Janeiro de 1897, nesta Matriz de N. S. da Conceição de Santa Iphigenia depois de proclamados e não
constando impedimento algum, (...) receberam-se em Matrimônio Benedicto da Costa e Silva, de vinte e nove
annos de idade e Paulina Rosa de quatorze annos de idade, elle filho legítimo de José Bonifácio da Silva e de Maria
Thereza,
fallecidos; ella filha legítima de Manoel José da Cruz e de Anna Joaquina de Moraes, freguezes desta
Parochia
.
835
(meu destaque)
Uma questão observada nesses dois registros – e que poderia até passar desapercebida
– é o fato dos pais dos noivos não sobreviverem ao casamento dos filhos. Este é o caso dos
pais de Justo Juiz de Guiné, de 28 anos, e o de Benedito da Costa e Silva, de 29 anos. O fato se
repete com inúmeros outros registros de casamentos de pessoas com mais de 25 anos. Ou
seja, devido à baixa expectativa de vida, os filhos geralmente tornavam-se órfãos numa idade
muito mais precoce. Aos 30 ou 40 anos de idade, pouquíssimos eram os indivíduos com pais
ainda vivos. De qualquer forma, esta não era uma situação presente apenas em São Paulo, já
ou seja, numa região já bastante povoada por
ainda, pelo fato do Brasil – e de São Paulo, especificamente – possuir ainda no século XIX
grandes porções de terras a serem ocupadas para o cultivo.
que para a França dos séculos XVII e XVIII, como notou Chaunu, “em mais de 50% dos casos, os
pais dos noivos já não estavam vivos no momento do casamento. Menos de ¼ casavam-se na presença
da totalidade de seus quatro pais; o habitual era um ou dois, bastante raramente três, muito
freqüentemente nenhum.”
836
Conforme ainda os estudos desse autor, os casamentos precoces ou em idades
antecipadas, vinculavam-se à existência de terras passíveis de exploração; o contrário
redundava no atraso da idade do casamento,
mais homens do que ela podia alimentar.
837
Esta é uma das linhas de análises que o autor
explicita, porém, não a única. Mas, ela pode ser conjugada com as que realizamos e, mais
834 - Livro de Registro de Casamentos da Paróquia de Santa Ifigênia, 1893-1895, fls. 109 verso e 110.
835 - Idem ibidem, fls. 67.
836 - Chaunu (1976), p. 430.
837 - Idem, ibidem, p. 418 e 484
378
Examinando essa mesma questão em relação ao homem, Antonio Cândido expôs uma
das características do caipira paulista: a intensa mobilidade que os levava sempre adiante na
usca de terrenos propícios para ganharem sua sobrevivência.
838
Mais ainda, este autor
entificou , nas décad
como um verdadeiro
Na área rural estudad
mulheres, sendo os limites extremos 13 a 20. Os homens casavam-se em
édia entre 18 e 22 anos; depois de 30, era mais difícil arranjar casamento
840
; ou seja, os
esmo ocorria. Vejamos o caso da família
Prado e
se casaram, em 1868, a noiva tinha 14 anos e o noivo 24.
841
b
id as de 1940 e 1950, certos costumes familiares que permaneciam ainda
fóssil social”, conforme classificou Alzira Lobo de Arruda Campos.
839
a, Candido observou que a idade mais comum de casar era dos 15 aos
16 anos para as
m
mesmos padrões etários encontrados para a cidade de São Paulo de finais do século XIX.
Avaliamos, portanto, que aqui estão conjugados dois aspectos: por um lado temos a
antecipação das etapas da vida tendo em vista a contração da mesma face à mortalidade e,
por outro, conforme as análises de Chaunu para a Europa, a existência de novas áreas
passíveis de exploração. De qualquer forma, essa tendência não era notada apenas entre a
população mais pobre, já que na elite paulistana o m
, em especial o de D. Veridiana da Silva Prado, ela já citada páginas atrás por conta da
questão com o médico Orêncio Vidigal.
O primeiro Antonio da Silva Prado (português de nascimento e avô de D. Veridiana)
casou-se, em 1786, com Ana Vicência Rodrigues de Almeida, ela com 16 anos de idade e filha
de um rico tenente português. Já Veridiana se casaria com seu tio, Martinho da Silva Prado,
irmão de seu pai também chamado de Antonio da Silva Prado, o Barão de Iguape. Veridiana
mal completara 13 anos quando foi para o altar com o tio de 27. O casal, em seguida, mudou-
se para desbravar a fazenda São Martinho, transformada, a partir de então, numa das mais
ricas propriedades produtoras de café. Ainda nesta família, vale citar o caso de um dos filhos
de Veridiana, Martinho Prado Júnior. Martinico, como era conhecido, apaixonou-se por
Albertina de Moraes Pinto, filha do alferes Antonio José Pinto. Albertina tinha apenas 12 anos
quando Martinico começou a cortejá-la em 1866. O namoro durou um ano e meio. Quando
finalmente
Não obstante todos os indícios até aqui apresentados, é preciso abordar e analisar essa
838 - Candido, Antonio; Os parceiros do Rio Bonito – estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos meios de sua
vida; S.P.: Livraria Duas Cidades, 1979.
839 - Campos, Alzira Lobo de Arruda; Casamento e família em São Paulo colonial, S.P.: Paz e Terra, 2003, ver
especialmente p. 106.
840 - Candido (1979), p. 236 e 237. O autor ilustra essa condição com o depoimento de Nhá Justina, que disse ter
casado já velha e passada, aos vinte anos de idade. Citando uma passagem do poeta caipira Sebastião Roque,
Candido relata: “Quando um pai tinha uma filha de 15 ou 16 anos, ele ia à casa de um dos seus conhecidos que tivesse um
filho de 18 ou 20 anos e lá combinavam o casamento dos dois, sem que os filhos soubessem.” Veja p. 231.
841 - Veja mais detalhes em D´Avila, Luiz Felipe; Dona Veridiana – a trajetória de uma dinastia paulista; S.P.: A Girafa
Ed. Ltda., 2004.
379
mesma questão em relação aos escravos. Como já demonstrado em capítulos antecedentes, a
expectativa de vida dos cativos, na infância, alcançava picos de menos 13 anos em relação aos
livres. Após esta fase, verificamos que tal diferença, apesar de não tão aguda, permanecia.
Resumidamente, e com base nos cálculos efetuados, concluímos que a esperança de vida dos
paulistanos livres girava em torno dos 40 anos; já para os escravos esta medida era mais
estreita, situando-se na casa dos 20 aos 38 anos. Nessas circunstâncias, explica Julita Scarano,
“a partir dos 35 anos, o escravo já era considerado idoso (e) dificilmente alcançava idade avançada.”
842
Com estas avaliações concordam José Roberto de Góes e Manolo Florentino ao concluírem
que, entre os cativos do Brasil, poucos chegavam aos 50 anos de idade.
843
Como resultado desse processo, e a exemplo do que ocorria entre a população livre, as
da eram considerados como “crianças novas,
844
Góes e Florentino concordam com Matoso e
explica s 12 esta
idade, o as começavam a trazer a profissão por sobrenome: Chico Roça, João Pastor,
Ana Mu iam c
Nessa mesma linha o artista Jean Baptiste Debret, ao descrever uma de suas mais
No Rio, como em todas as outras cidades do Brasil, é costume, durante o tête-à-tête de um jantar conjugal, que o
marido se ocupe silenciosamente com seus negócios e a mu lecotes,
mimados seis omam a
chicotad m, a c
fases da vida de um escravo eram bastante antecipadas. Segundo as análises de Kátia Matoso,
duas eram as idades que poderiam ser identificadas na infância dos cativos: a primeira iria até
os sete ou oito anos, época em que eles ain
geralmente sem desempenho de atividades de tipo econômico”; a segunda iria dos oito até os doze
anos, período este em que iniciava-se o aprendizado para, a partir de então, entrarem
definitivamente no mundo dos adultos.
m que, “por volta do anos, o adestramento que os tornava adultos estava concluído. N
s meninos e as menin
cama. Algu a omeçado muito cedo (e) ns h v aos 14 anos, trabalhava-se como adulto”.
845
famosas aquarelas explica:
lher se distraia com os negrinhos (...). Esses mo
até a idade de cinco ou anos, são em seguida entregues à tirania dos outros escravos, que os d
as e os habituam, assi ompartilhar com eles das fadigas e dissabores do trabalho.”
846
842 - Scarano, Julita; Criança esquecida das Minas Gerais; In: Del Priore (2006) p. 113 e 123.
843 - Góes e Florentino op. cit., p. 178.
844 - Matoso, Kátia; O filho da escrava; In: Del Priore (1991), p. 76 e seguintes.
845 - Góes e Florentino op. cit., p. 184. Completam ainda os autores com a informação de que “o aprendizado da
criança se refletia no preço que alcançava. (...) Assim é que, comparativamente ao que valia aos 4 anos de idade,
por volta dos sete um escravo era cerca de 60% mais caro e, por volta dos 11, chegava a valer até duas vezes mais.
Aos 14 a freqüência de garotos desempenhando atividades, cumprindo tarefas e especializando-se em ocupações
era a mesma dos escravos adultos. Os preços obedeciam a igual movimento.” (p. 184 e 185)
846 - Debret, Jean Baptiste Debret; Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, vol. I, p. 172, “O jantar no Brasil, Prancha nº 7.
380
Fig. 51: O jantar no Brasil
infânci trado na Lei nº 2.040
de d
livre os filhos de mulher escrava”
perma utoridade dos senhores de suas mães, os quais [teriam] a
obr to
Outro forte indicativo a respeito das fases da vida de um escravo, ou da curta
a e de sua rápida entrada no mundo dos adultos, pode ser encon
28 e setembro de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre. Apesar de declarar “de condição
nascidos a partir daquela data, as crianças ainda
neceriam “em poder e sob a a
iga riedade de criá-los e tratá-los
até a idade de oito anos completos”
847
(meu destaque).
Chegando o pequeno a esta fase, teria o proprietário duas opções: a primeira seria a de
seus
serviços até os 21 anos. De fato, a idade de 8 anos aparece aqui como um marco na vida de
um escravo, época em que ele deixava a infância para se iniciar no mundo do trabalho. Aos
emonstrar suas aptidões e, por isso, poderia ser treinada
nas atividades que seriam mais úteis ou lucrativas para seu senhor. Via de regra, este
treinamento estava concluído por volta dos 12 anos, idade esta em que o escravo, segundo
indica
mãe.
848
partir da edição da Lei do Ventre Livre, um controle mais rígido foi imposto aos
senhor
receber do Estado uma indenização de 600$000 Rs., ou então a de utilizar-se dos
8 anos, uma criança já conseguia d
a Lei 2.040, já estaria entrando na idade adulta, pois poderia viver separado de sua
A
es quanto ao registro de nascimento dos filhos de seus escravos. Além da compra e
847 - Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871, Art. 1º, § 1º.
848 - A Lei 2.040 em seu Art. 1º, § 5º estabeleceu que “No caso da alienação da mulher escrava, seus filhos livres, menores
de 12 anos, a acompanharão, ficando o novo senhor da mesma escrava, sub-rogado nos direitos e obrigações do antecessor”. Tal
disposição complementou-se com a redação do § 7º: “Em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos, é
proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges, e os filhos menores de doze anos, do pai ou mãe.” Nesse sentido, a Lei
2.040 indicava que, a partir dos 12 anos completos, o escravo já vivia sob um novo estatuto.
381
venda ções peci l
tenção ada s crian
ssentos de nascimento detalhados como forma de não burlar a legislação. Exemplo dessa
de cativos, transa estas normalmente anotadas nas coletorias, uma es a
a foi dedic à ças. Estas, após 28 de setembro de 1871, tiveram os seus
a
nova situação podem ser encontrados nos documentos preservados pelo fazendeiro Lucas
de Siqueira Franco Netto, que mantinha sua residência na cidade de São Paulo e cuidava de
suas extensas propriedades localizadas no interior do Estado, em Atibaia e Mogi Mirim.
849
Entre setembro de 1872 e abril de 1887, nasceram em suas fazendas um total de 26 crianças
filhos de suas escravas. Dentre as várias averbações anotadas nas coletorias de Atibaia e
Mogi-Mirim encontramos os seguintes registros:
“Lucas de Siqueira Franco Netto, residente no município da cidade de São João de Atibaia declara que
no dia 23 de junho de 1877 nasceo de sua escrava solteira de nome
Angélica, preta de 11 anos, de
serviços domésticos, que foi averbada nesta collectoria a 4 de novembro de 1874, uma criança preta do
sexo feminino, baptizada com o nome de Roza no dia 17 de julho de 1877.”
850
(meu destaque)
“Lucas de Siqueira Franco Netto, residente em São Paulo, declara que no dia 3 de maio do corrente
anno, nasceo em sua fazenda do Engenho deste destricto de Mogy-Mirim, de sua escrava solteira de
nome
Balbina, parda de 10 annos, solteira, natural de Campo Largo, filha natural de Constança, de
serviços domésticos e matriculada na Collectoria da cidade de Atibaia (...); uma criança parda do sexo
asculino, que há de ser baptisada com o nome de Arthur; por isso quer que o Sr. Collector faça
verba-lo no livro competente. Província de São Paulo – Paróquia da Penha e município de Mogy-
irim, 27 de outubro de 1885.”
851
(meu destaque)
Antes de serem considerados como casos excepcionais, essas meninas-mães eram, na
verdade, a regra nas propriedades de Lucas Siqueira Franco. E de tal modo que, das 19
mulheres que engravidaram e deram à luz naquelas propriedades, 14 delas (ou 74%)
r
m exemplo dessa condição. Tendo o seu primeiro filho aos 11 anos em 1877, posteriormente
m
a
M
de
poderiam ser consideradas como “meninas-mães”, pois estavam numa faixa etária entre 10 e
15 anos; duas outras tinham 18 anos quando engravidaram e apenas três delas eram mulheres
casadas e com idade superior a 20 anos
852
.
Apesar de citadas como solteiras nos registros, tudo indica que algumas dessas jovens
viviam em concubinato e, sob esse aspecto, o caso da menina Angélica antes citado pode se
u
849 - Esta documentação encontra-se custodiada no Arquivo Histórico Municipal sob a denominação “Fundo
Particular XVII – Família Siqueira Franco (Atibaia, Mogi-Mirim e São Paulo).
850 - Fundo Particular XVII – Família Siqueira Franco, Livro I, Escravos 01, doc. 006.
851 - Idem ibidem, doc. 017.
852 - Das 26 crianças nascidas, 6 (seis) eram filhas de
Carolina, preta, casada, de serviço doméstico, com 30 anos em
1885; duas de
Rita,preta, casada, de serviços domésticos, com 40 anos em 1875 e uma de Luiza, preta, casada, lavradora.
382
ela ainda daria à luz a uma menina, Cristina, em 1882; à Benedito, em 1884 e à Juliana, em
o regular d os entre os três últimos nascimentos é um forte indício de
que ela já estaria vivendo maritalmente com um companheiro.
por seu turno, findava geralmente aos 12
1886. O interval e dois an
Além de Angélica, chama também nossa atenção o caso da menina Balbina, mãe ao 10
anos de idade. Dela sabemos que nasceu em Campo Largo (hoje município de Jarinú), sendo
filha da escrava Constança. Balbina pertencia à mãe do fazendeiro, D. Gertrudes da Silveira
Franco e, por morte desta, ficou-lhe pertencendo pela partilha dos bens conforme inventário
de 1874 (sendo este, provavelmente, o ano de seu nascimento). Ainda menina, ela veio residir
com seu senhor na cidade de São Paulo. Balbina era considerada pelo fazendeiro como uma
excelente escrava, muito “boa de serviço, nos serviços domésticos”.
853
Posteriormente, ela seria
novamente transferida, agora para a fazenda de Mogi-Mirim, onde engravidaria e daria à luz
ao menino Artur em 1885. No ano seguinte, mais precisamente no dia 7 de abril de 1886,
Balbina veio a falecer na mesma fazenda.
854
O caso da menina Balbina mereceu este detalhamento, pois bem ilustra as fases da
vida de um escravo: ainda pequena para os nossos padrões – entre os 7 e 8 anos – ela já
deixara a infância para trás e desempenhava uma função nos serviços domésticos; aos 10
engravidou e teve seu filho, morreu com 11 anos de idade.
Das demais meninas-mães pertencentes ao plantel de Lucas de Siqueira Franco Netto
(e excetuando-se Balbina e Angélica), podemos ainda citar, dentre muitos outros, os seguintes
casos de mães que se encontravam numa faixa etária abaixo dos 18 anos:
Matilde, preta, solteira, com 13 anos: teve a filha Francisca aos 05/09/1884.
Benedita, preta, solteira, do serviço doméstico, com 14 anos: teve a filha Alexandrina, aos 25/11/1878.
Petronilha, preta, solteira, do serviço doméstico, com 15 anos: teve o filho Bento aos 18/11/1878.
Delfina, preta, solteira, do serviço doméstico, com 15 anos: teve o filho Joaquim aos 18/06/1885.
855
No que se refere às idades da vida, podemos perceber que existia uma certa
coincidência entre as fases vividas pelos escravos e pelos livres. O fim da infância ocorria,
para ambos os grupos, entre os 7 ou 8 anos; em seguida, vivia-se uma fase intermediária ou
de preparação para a entrada na vida adulta. Esta,
anos para as meninas e aos 14 anos para os rapazes. A diferença notada em relação aos
Fundo Particular XVII, op. cit.
853 - Idem ibidem, doc. nº 58, transferência de escravos da fazenda de Atibaia para São Paulo.
854 - Idem ibidem, doc. 54, 58 e 60.
855 - Idem ibidem, dados separados dos documentos de nºs. 002 a 027.
383
escravos é que, entre eles, a natureza – ou o fator biológico que determinava transformações
to de uma escrava engravidar aos 10 anos de idade, ou
é que a
no corpo – era um marco definitivo para a entrada dos jovens numa uma nova fase da vida; e
isso sem passar por algumas intermediações ou regras sociais como ocorria entre os livres.
Decorrente disso, não surpreendia o fa
assim que seu corpo o permitisse. E ela ainda poderia ser e permanecer solteira, algo muito
malvisto nas demais camadas da sociedade. Apesar da puberdade chegar para as meninas
rancas na mesma época que para as escravas
856
, somente alguns anos mais tarde
b
jovem livre estaria disponível para o casamento, a partir dos 12 ou 13 anos. A diferença, como
dissemos, é pequena, mas representativa.
Fig. 52
Escravos na colheita do café, cerca de 1882.
856 - Lembremo-nos aqui da frase proferida pelos membros da comissão de visitação aos estabelecimentos de
caridade e prisões de 1833 e citada na p. 340 retro, ou seja, a de que as meninas brancas chegavam à puberdade
com cerca de 9 anos de idade.
384
Fig. 53: Vendedor de aves na roça, Fig. 54: Trabalho de adulto Fig. 55: Escravos (?) cerca de 1865
Cerca de 1859. aos 14 anos
Os conceitos sobre as idades que norteavam as fases vividas por homens e mulheres
o século XIX, diferiam das atuais. A adolescência, tal como a conhecemos, por exemplo, não
xistia, uma vez que meninos e meninas muito cedo adentravam no mundo dos adultos. Para
sobrevivência dessa prática no Brasil e em São Paulo até as primeiras décadas do século XX,
omo vimos, muito pesou a experiência de longa data frente ao elevadíssimo número de
ortes que ocorriam na infância. Fruto de uma necessidade, poderíamos dizer, tal processo
inculava-se mais à sobrevivência do grupo: as crianças que medravam ou que venciam as
difíceis e perig passavam por um rápido processo de
madurecimento. As demais etapas, por conseqüência, eram também bastante abreviadas se
omparadas com a atualidade.
Frente aos perigos que então se apresentavam ou diante das inúmeras doenças, a
existência individual
neste estudo, os males
todo o século XIX, se
organismo – este já com
circunstâncias, a decad
logo se faziam sentir. Como decorrência de todo esse processo, aos 35 ou 40 anos a grande
maioria dos paulistanos já estaria vivendo seus últimos anos, adentrando, portanto, na
derradeira fase da vida: a velhice.
n
e
a
c
m
v
osas etapas até os seis ou sete anos,
a
c
estava sempre sendo colocada em cheque. Conforme já explicitamos
endêmicos e epidêmicos que se fizeram presentes na cidade durante
não traziam como resultado o fim da vida, acabavam por debilitar o
balido por trabalhos extenuantes como no caso dos escravos. Nessas
ência física e um envelhecimento, que hoje entendemos como precoce,
385
Exemplo dessa circunstância foi o caso de Guerino que, aos 47 anos de idade em 1890,
veio a falecer em conseqüência de um marasmo senil conforme explicitamos páginas atrás;
ou, aind
elhice guardam alguns aspectos um tanto quanto imprecisos
a, como o registrado nos discursos dos deputados na Assembléia Legislativa paulista
em 1868, época em que se discutia um recrutamento para a formação da Força Pública no
Estado. Naquela ocasião, e em face da ausência de pessoal adequado, o então deputado
Prudente de Moraes dizia que, diante dessa conjuntura, talvez o regimento pudesse contar
somente com indivíduos menores de 18 anos ou maiores de 35. Estes últimos não serviriam,
disse o deputado, pois tanto para ele quanto para o seu colega Paula Ferreira, os homens
nessa faixa etária não passavam de “velhos inutilizados”, pelo menos para aquele tipo de
trabalho.
857
De qualquer forma – e ao contrário da farta existência de dados, relatos e informações
a respeito da brevidade da infância e de um detalhamento sobre os limites cronológicos das
fases seguintes, notamos que as fontes guardam um certo silêncio sobre a velhice.
858
Em
outras palavras, e não obstante os exemplos até aqui citados, escassas são as informações a
respeito dos idosos ou, mais especificamente, sobre o momento em que uma pessoa entraria
nessa fase. No que toca aos cálculos efetuados para expectativa de vida na segunda metade
do século XIX, a idade de 40 anos agora se nos afigura como um dado fundamental.
Entretanto, e ao contrário dos limites mais tangíveis que encontramos para a infância, os
contornos ou a demarcação da v
e que, num primeiro momento, escapam ao nosso entendimento.
Percebido este problema na documentação primária, a nossa análise acabou por ser
consubstanciada quando cotejada com os dicionários da época. Apesar de suas referências
situarem-se um tanto quanto distantes das práticas populares – estas mais simplificadas – os
verbetes apostos nessas obras conseguem fornecer importantes subsídios que, se por um lado
reforçam as apreciações que fizemos sobre a infância, juventude e idade adulta, por outro
explicitam uma certa ambigüidade a respeito da velhice. Comecemos com o “Dicionário da
857 - Anais da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo - 1868-1869, 13ª sessão ordinária realizada aos 19 de
fevereiro de 1868. Naquela ocasião, Prudente de Moraes estava com 27 anos e este era o seu primeiro mandato
como deputado. A esse respeito veja: Karepovs, Dainis (coord.); Prudente de Moraes – parlamentar da Província de São
Paulo; S.P.: Assembléia Legislativa, 2004.
858 - Ao tratar desse mesmo tema, Simone de Beauvoir apontou idêntico problema: “Não é nada fácil estudar a
condição dos velhos através dos tempos. Os documentos de que dispomos fazem raras alusões a este assunto: o ancião é
incluído no conjunto dos adultos”, escreveu a autora. Veja Beauvoir, Simone de; A Velhice (1970), ver especialmente
Capítulo III, “A velhice nas sociedades históricas, p. 98 e seguintes. Com este argumento concordou o médico
português Antonio Lourenço Marques que, num breve estudo sobre a velhice em Portugal na Idade Média,
escreveu: “As particularidades que permitem individualiza-los [os idosos] num grupo social próprio, ou são silenciadas ou
então são apresentadas de tal maneira que causam perplexidade sobre as validades dos juízos dominantes acerca da velhice nas
diferentes épocas.” Veja Marques, Antonio Lourenço; A velhice no tempo de Amato Lusitano; In: Cadernos de Cultura,
Vol. 08, Outubto de 1994, p. 17 a 20; Universidade da Beira Interior – UBI.
386
Língua Portuguesa” de 1813, onde encontramos as seguintes referências sobre as idades da vida:
Meninice: Idade até os 7 anos; também chamada de infância.
Puerícia: Idade entre a infância e a adolescência, desde os 3 ou 4 anos, até os 9 ou 10.
Adulto: Crescido, chegado ao ponto de força e vigor; chegado ao uso da
que tem 14 anos.
razão; maduro; o
e as fases da
nários conseguem captar com
dmirável precisão a perfeita imprecisão do conceito:
861
Esta indefinição – especialmente para o nosso olhar contemporâneo – permaneceu
ainda e
859
A partir dessas antigas classificações, e levando em consideração as análises até aqui
produzidas, podemos concluir qu vida, e para além de envolver um processo
biológico marcado pelo tempo, são também o resultado de investimentos sócio-culturais e
frutos de elaborações simbólicas. Em outras palavras, as idades da vida são conceitos
historicamente construídos; o regramento que hoje conhecemos não se aplicava a um passado
não muito distante – o que nos leva a dizer que no futuro, tão pouco, elas poderão se manter:
as normas etárias mudam com o tempo
860
. Exemplos contundentes, nesse caso, são os
verbetes acima transcritos que definiam a adolescência e a fase adulta de um indivíduo no
início do século XIX.
Mas, é realmente na descrição da velhice que os dicio
a
Idoso: homem de anos, velho.
Velhice: a idade do velho, ancianidade.
Velho: aquele cuja idade já declina da varonilidade.
Varonilidade: homem feito.
862
m meados do século XIX, conforme podemos verificar através do “Dicionário da
Língua Portuguesa” de 1848:
Ancião: o que tem muitos anos, velho, idoso.
Idoso: velho, ancião.
Velho: homem de idade avançada, ancião.
863
Tal imprecisão, no entanto, somente se apresenta diante do nosso olhar
contemporâneo. E isso devido a uma característica da modernidade que sente a necessidade
859 - Silva, Antonio de Moraes; Diccionario da Língua Portuguesa; Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.
860 - Não obstante as excelentes obras organizadas por Mary Del Priore, bem como os estudos de Maria Luiza
Marcílio, dentre outros, sentimos que este tema foge u
maior reflexão no campo da Sociologia e Antropologia.
m pouco aos historiadores brasileiros, sendo motivo de
Nesse sentido, um grande apoio para estas análises podem
861 - Apesar de produzida num contexto totalmente diverso, esta frase é de Sidney Chalhoub (1996), p. 169, que a
utiliza para definir o fugidio conceito de “Miasma” de Chernoviz.
862 - Silva (1813) op. cit.
863 - Fonseca, José de; Diccionario da Lingua Portugeza; Paris-Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1848
ser encontrados em Debert, Guita Grin; A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do
envelhecimento (1999); em Néri, Anita Liberalesso (org.); Desenvolvimento e envelhecimento: perspectivas biológicas,
psicológicas e sociológicas (2001) e em Loureiro, Altair Macedo Lahud; A velhice, o tempo e a morte: subsídios para
possíveis avanços no estudos (1998).
387
de números precisos, de quantificar os anos vividos para separar e qualificar as faixas etárias,
metrificando as idades.
864
Tal procedimento não era algo tão presente num passado mesmo
que recente
, até porque não eram apenas os números que contavam.
865
Ao lado destes, outros
componentes – alguns deles subjetivos – estavam a atuar para compor as faixas etárias. Um
adulto, como vimos, poderia ter 14 anos desde que apresentasse sinais de “madureza” e
discernimento; com o casamento, uma menina de 12 ou 13 anos já era adulta. A velhice, por
seu turno, poderia chegar aos 25 ou 30 anos para uma mulher, como relatou o viajante
Luccock; ou aos 35 anos em se tratando de escravos. Além da idade cronológica, datada e
metrificada, um grande marco para a velhice era a decadência física dos indivíduos.
866
E esta
chegava mais cedo, seja para os cativos submetidos aos rigores da escravidão; seja para as
mulheres, que sentiam os traumas de contínuos estados de gravidez desde tenras em idades;
ou, ainda, para todos os homens que viviam numa época em que as doenças se faziam
presentes ininterrupta e sucessivamente, como no caso das epidemias. O referencial,
portanto, era distinto e outras eram as bases para classificar um indivíduo como idoso, pois
não bastava apenas a quantidade de anos vividos. Por outro lado, seja pelas elevadíssimas
taxas da mortalidade infantil, seja pelas tradições religiosas ou frente à necessidade de se
imputar responsabilidades, as fases da vida na infância e juventude eram bem
determinadas.
867
O contrário ocorria com os adultos e idosos, pois não haveria mais a
necessidade premente de se estabelecer tais parâmetros.
De qualquer forma, e levando em consideração as circunstâncias em que viviam, nada
a estranhar as palavras de Luccock sobre a aparência senil das mulheres cariocas aos 30 anos,
ou a respeito da nossa projeção de que, em média, aos 40 anos os paulistanos já
864 - A Lei nº 10.741 de 01/10/2003, que implantou o Estatuto do Idoso no Brasil, por exemplo, dispõe em seu
Artigo 1º que os idosos são as “... pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.”
865 - Em 1925, por exemplo, o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de F. J. Caldas Aulete, define: Adulto:
o que chegou ao período da vida entre a adolescência e a velhice; Ancião: de provecta idade, que tem muito
tempo, velho; Edoso: que tem muita idade, senil; Senil: edoso. Da mesma maneira que os verbetes do século XIX,
também aqui a velhice não é datada ou quantificada em anos.
866 - Segundo análises recentes de Sheila de Castro Faria, seria “bastante difícil estipular a idade em que uma
pessoa passava a ser considerad
A aparência indicava mais a
a velha no período colonial, bem como as características do que seria a velhice (...)
s categorias etárias do que a idade em si. A falta do uso da razão também era indicativo
de velhic
de inocên
da vida: Puberdade: Epocha da vida em que o individuo se torna proprio para o acto da geração; edade na qual a lei permite
que se case: no Brasil, a edade da puberdade é de 14 annos para os rapazes e de 12 annos para as raparigas. / A puberdade
apparece, em geral, no homem, dois ou três annos mais tarde que na mulher. Na Asia, na Africa e na America do Sul, os
homens são púberes dos 10 aos 12 annos e as mulheres dos 8 aos 10. Nas partes septentrionaes da Russia, Suiça e da
Dinamarca, esta faculdade só apparece na edade de 15 a 17 annos nos rapazes e de 13 a 15 nas raparigas. Nos climas
temperados, os mancebos são púberes cerca dos 14 annos e as donzellas aos 12. A apparição da puberdade pode ser adeantada,
aliás, pelo genero de vida da pessoa: inacção, abuso de bebidas espirituosas, comidas apimentadas, frequentação dos espetáculos
e. Em registros de óbitos, há referências a velhos que faleceram sem os sacramentos por viver já no estado
cia ou já não fazer uso da razão (...) Tornar-se velho era, na colônia, prerrogativa de poucos. Veja: Vainfas,
Ronaldo (direção); Dicionário do Brasil Colonial 1500-1808; R.J.: Ed. Objetiva, 2000; p. 579 e 580.
867 - Nessa perspectiva, é bastante representativo o verbete sobre a puberdade publicado na “Encyclopedia e
Diccionario Internacional” por W. M. Jackson. Inc. Editores / Rio de Janeiro – Nova York entre as décadas de 1920
e 1930 que, ao contrário do de Caudas Aulete para a velhice (veja nota nº 290 antecedente), bem definiu esta etapa
388
apresentassem sinais da velhice para, pouco tempo depois, vir a sucumbir.
O idoso, conforme expõe os glossários do século XIX, seria o indivíduo com muitos
nos (sem dizer quantos)ou aquele cuja idade declinava da varonilidade, conforme a obra de
Silva (1813). Mas, é ju
remete novamente à
dicionário, seria a idad
A morte, porta
ida, seja no passado, seja no presente, decorrendo daí o seu caráter histórico. Em outras
alavras, as fases vividas pelo homem no passado eram distintas das atuais; outras eram as
s diversos males que atingiam o corpo – estavam a
afetar s
. As variações anotadas de um século para outro,
escreveu Ariès:
a
stamente a partir desta última concepção que o início da velhice nos
idade de 40 anos, posto que varonilidade, de acordo com o mesmo
e do homem feito.
868
nto, é o mais importante dos padrões que estão a abalizar as idades da
v
p
suas classificações e diversa era a concepção sobre a infância, a juventude e a velhice. Como
vimos, a rápida entrada de meninos e meninas na fase adulta era uma necessidade frente a
uma altíssima mortalidade a que estavam sujeitos os homens do século XIX. A infância
reduzida, assim como as demais fases vividas, mais a rápida decadência física dos indivíduos
– seja pelo trabalho extenuante, seja pelo
ensivelmente tais classificações e concepções.
Apesar de não muito detalhada (até porque não era esta a sua intenção) tal
perspectiva aparece referendada por Philippe Ariès na sua clássica obra “História Social da
Criança e da Família”. De fato, a velhice não é o objeto de estudo deste autor, mas, vez ou
outra, ele acaba por tocar na questão. Num desses momentos ele acaba por reconhecer a
importância da fragilidade como um fator determinante para a periodização da existência
humana, seja no passado, seja no presente
“dependem das relações demográficas. São testemunhos da interpretação
ingênua que a opinião faz em cada época da estrutura demográfica, mesmo
quando não se pode conhecê-la objetivamente. Assim, a ausência da
es e de poesias eróticas, exemplos de libertinagem, etc.”
amento sobre este mesmo tema e, dentre os inúmeros
e dos bailes, leitura de romanc
868 - Simone de Beauvoir (1970) realizou um amplo levant
exemplos sobre a precária e rara longevidade dos europeus, citou que “ao morrer, em 1380, Carlos V contava 42 anos
de idade e deixava uma reputação de
velho sábio” (p. 158); dentre os camponeses na mesma época, e “dadas as
condições de vida, 30 anos já representavam muita idade” (p. 153); para Dante, o homem começa a declinar aos 35 anos:
“O tempo da velhice vai dos 45 aos 70 anos.” (p. 159); já no século XVI, Montaigne – com pouco mais de 35 anos,
declarou-se envelhecido (p. 178). Do folclore alemão, Beauvoir recupera ainda um conto dos irmãos Grimm, este
trazendo uma curiosa interpretação das idades da vida: “Havia Deus concedido 30 anos de vida ao homem e a todos os
animais; parecendo-lhes penosa tão longa existência, o asno, o cão e o macaco obtiverem uma redução de 18, 12 e 10 anos do
prazo estabelecido. O homem, menos sábio que os animais, pediu um prolongamento de sua existência, obtendo os 18 anos do
asno, os 12 do cão e os 10 do macaco. Mas, não compreendeu ele que o preço da longevidade seria a decrepitude. Tem o
homem, portanto, 70 anos de vida. Os 30 primeiros anos lhe pertencem e passam depressa. Chegam, em seguida, os 18 anos do
asno, durante os quais tem de carregar nas costas fardos e mais fardos;é ele quem fornece trigo ao moinho para alimentar os
outros ... Vem depois os 12 anos do cão, no decorrer dos quais não faz mais do que rosnar, arrastando-se de um canto para
outro, pois já não tem dentes para morder ... Decorrido esse tempo, só lhe restam os 10 anos do macaco. Já não é senhor de todo
o seu juízo, torna-se meio esquisito e faz coisas estranhas que provocam o riso e a zombaria das crianças.” (p. 152 e 153)
389
adolescência ou o desprezo pela velhice, de um lado, ou, de outro, o
desaparecimento da velhice, ao menos como degradação, e a introdução da
869
ação do cadáver-criança, os anjos, e pela distinção entre ricos e
pobres.
da morte, temos o “nascimento” do cadáver. Ou a mutação
do ser-em-vida, situação esta que, necessariamente, deverá ser reconhecida, acomodada e
resolvida. Mas, para além de fonte provocador abe ressaltar que
o s
do meio em que viveu, de sua condição sócio-econômica, das peculiaridades da enfermidade
que o vitimou ou, como analisaremos inicialmente, da idade que tinha na época do
falecimento.
preciso esclarecer que também na morte as idades se faziam presentes como forma de
adolescência, exprimem a reação da sociedade diante da duração da vida.”
Acredito que não tão ingenuamente, como coloca Ariès, a sociedade reage diante do
aumento da expectativa de vida; nesse sentido, uma dilatação no tempo acabou por alterar,
como analisamos, as perspectivas em relação às próprias idades do homem.
De qualquer forma, estes exames não se esgotam com os registros da vida uma vez
que eles também podem se valer daqueles preparados diante da morte. O corpo sem vida,
antes de significar a aniquilação de tudo, será ainda uma fonte de tensões, de problemas, bem
como de apropriações diversas. As representações que se criaram em torno do cadáver, a sua
qualificação e distinção podem nos mostrar, por exemplo, que nem todos são iguais diante da
morte. Comecemos pela qualific
Capítulo 5 – Diante da vida, a morte: o corpo e o cemitério.
5.1 – Algumas hierarquizações: anjos e adultos, ricos e pobres
Como resultado imediato
a de inúmeros sentimentos, c
defunto não se desliga totalmente do mundo dos vivos, pois ele ainda guardará as marca
No capítulo precedente, quando estudamos as fases que compunham a existência
humana numa sociedade em que a morte era uma presença constante, nossa base foi
composta majoritariamente por indícios que diziam respeito à própria vida. Entretanto, é
869 - Ariès (1981), p. 16.
390
classificar o defunto e, nesse caso, elas serviam igualmente para diferenciar adultos de
crianças, seja através dos espaços especiais reservados ao sepultamento de uns e de outros,
seja pela adjetivação do cadáver infantil que, como veremos, dava continuidade a uma
hierarquização entre os corpos.
Aproximemo-nos então das imagens construídas em torno do cadáver e, em especial,
do defunto-criança. Nesse caminho, os registros da morte nos fornecem provas
circunstanciadas sobre uma classificação etária distinta daquelas que analisamos
anteriormente. Em outras palavras, a morte infantil implicava na idealização de uma nova
reservada aos adultos. Estabelecia-se uma clara distinção ou hierarquia entre os cadáveres, e
tanto, que aos corpos infantis um título em especial foi conferido. Considerava-se que as
crianças mortas eram portadoras de uma natureza diferenciada e, por isso, somente elas
mereciam um nome específico que as identificava após a morte, fato este não verificado com
qualquer outro grupo social ou nas demais faixas etárias.
categoria, os anjos, qualificação esta que, no cemitério, afastava os seus corpos da área
morte infantil – com a
ras Gerais ou Comuns (com covas
clusive gratuitas e destinadas aos mais pobres), bem como os demais cujos terrenos
poderiam ser concedid
únicas grandes divisõe
ocorreu na prática, poi
base legal, é preciso l
Quadras Gerais acabara
adultos
870
Mais próxima do catolicismo popular, tal concepção de
decorrente individualização dos defuntos – acabou sendo assumida pela municipalidade
paulistana quando da abertura do cemitério da Consolação. Expliquemos: quando de sua
construção, o cemitério obedeceu a um planejamento no qual sua área foi dividida em
grandes quadros ou quarteirões intercalados por ruas.
871
Coube então aos legisladores
designar quais seriam os quadros destinados às sepultu
in
os (leia-se “vendidos”) a particulares.
872
Estas eram, portanto, as duas
s previstas na regulamentação do cemitério. Entretanto, não foi o que
s um outro desdobramento foi imediatamente aplicado (sem qualquer
embrar) e que, ao longo dos anos, foi consolidado. O fato é que as
m subdivididos em 4 outras grandes categorias: a quadra geral para
, a quadra geral para os anjos pequenos, outra para os anjos do meio e, finalmente,
jos grandes
uma última para os
an . Esta subdivisão não estava prevista na legislação, sendo
que a única diferenciação entre adultos e crianças dar-se-ia somente quanto à profundidade
da cova
gerais como nos particulares, sete palmos de profundidade, com largura e
. A esse respeito estipulava o Artigo 16º do Regulamento do Cemitério:
“As covas para os enterramentos das pessoas adultas deverão ter, tanto nos
870 - A esse respeito veja a análise de Vailati (2005) op. cit., p. 34 e 35.
871 - Este plano constava do “Regulamento para os cemitérios da cidade de São Paulo”, op. cit., Artigo 2º.
872 - Idem ibidem, Art. 3º.
391
comprimento suficientes, devendo ficar, entre uma e outra, intervalos de dois
palmos pelos lados, e três na cabeça e
caixões ou corp
nos pés, a terra que se lançar sobre os
os deverá ser socada da altura de quatro palmos para cima.
As
covas para os enterramentos das pessoas de idade menores de 12 anos bastará
que tenha 6 palmos de profundidade, e cinco se forem para inocentes
menores de 7 anos de idade
.” ( meu destaque)
Em outras palavras, e segundo o Regulamento, num mesmo quadro geral destinado
aos pobres (os que mais nos interessam nesse momento) existiriam, lado a lado, covas para
adultos, outras para aqueles que se encontravam na faixa entre 7 e 12 anos, havendo ainda
uma 3ª distinção para os
menores de 7, aqui chamados de inocentes. Não podemos deixar de
notar a divisão etária proposta, posto que muito se aproxima daquelas que já analisamos: os
adultos seriam os maiores de 12 anos, uma faixa intermediária estaria entre os 7 e 12 e,
finalmente, crianças seriam aqueles abaixo dos 7 anos de idade. Todas essas covas estariam na
mesma quadra, sendo que a diferença ocorreria apenas no quesito “profundidade”. Mas não
foi esse o sistema adotado no cemitério, uma vez que, ao contrário de um grande espaço que
abrigaria adultos e crianças, na realidade criaram-se quatro quarteirões distintos: o dos
adultos, o dos anjos pequenos, um outro para os anjos do meio e, finalmente, outro ainda
para os
anjos grandes. Para cada idade, ou fase da vida, áreas diferenciadas estavam
reservadas aos corpos na hora da morte.
Chama a atenção o fato de que esta hierarquia não foi, em momento algum, baseado
em leis escritas, pois inexistem quaisquer referências a este quesito nas discussões que
precederam a construção do cemitério, no seu planejamento, ou mesmo depois, quando de
sua abertura. É certo, portanto, que tais subdivisões não fariam parte da organização do
cemitério, mas seja por conta da tradição católica presente na necrópole paulistana, seja
porque este era o costume usual, tal ordenamento foi conseguido mediante um acordo tácito,
sem a necessidade de estar consignado em
qualquer modo, e além desta divisão ficar
toridades. Em 1865, por exemplo,
os vereadores discutiram um ofício enviado pelo administrador do cemitério em que o
mesmo
lei.
873
De
consignada nos registros oficiais de sepultamentos, outros documentos municipais fariam
menção ao fato, o que demonstra o aceite por parte das au
comunicava ...
873 - Na legislação referente aos sepultamentos (e não na do cemitério, é preciso notar), a menção aos anjos
apareceu pela 1ª vez em 1856, antes mesmo da abertura do cemitério. Naquele ano, o governo provincial firmou
um acordo com o empresário Joaquim Marcelino da Silva que se encarregaria do transporte dos corpos até a
Consolação. Na tabela aprovada (Lei nº 548 de 28/04/1856) os defuntos foram divididos em duas grandes
categorias: a dos Adultos e a dos Anjos. Todos eles, por sua vez, poderiam ser transportados para o cemitério em
carros de 1ª, 2ª ou 3ª classe; sendo esta a única subdivisão anotada. Já pela Lei nº 69 de 02/04/1876, esta tabela foi
modificada, surgindo uma nova categoria: a de donzela. As duas outras continuam, ou seja, a de Adultos e a de
392
“... que o quadro destinado para a sepultura dos anjos está findo, não
podendo passar a outro lugar por falta da respectiva demarcação ou
designação, que deve ser dada em vista da nova planta – pelo que
consulta se pode proceder a exumação dos corpos.”
874
Diante das altíssimas taxas de mortalidade infantil, era mesmo de se esperar que os
Quadros dos Anjos logo se esgotassem, sendo eles os primeiros a terem todas as suas covas
ocupadas. Daí a necessidade de se agregar uma outra área ou, então, a de se realizar a
exumação dos corpos para dar lugar a novos sepultamentos conforme as palavras do
administrador. A solução naquele momento foi a de designar outro terreno para os anjos que,
quatro anos depois, já estava cheio novamente.
875
Importa verificar, no entanto, que esta hierarquia com os seus nomes próprios (um
quadro para adultos e três outros para as crianças ou anjos), foi seguida no cemitério da
Consolação até finais do século XIX. Já no cemitério do Braz aberto em 1893, encontramos as
mesmas divisões entre adultos e crianças, mas com uma pequena alteração na nomenclatura:
ali existia um quadro para os
anjos pequenos, outro para os anjos maiores (que substituía o
dos anjos do meio, como utilizado no cemitério da Consolação) e um último para os
anjos
grandes. Já a partir de 1900, não mais encontramos neste cemitério a categoria “anjos
grandes”, permanecendo apenas o dos
pequenos e maiores. No cemitério do Araçá, por sua
vez, e desde a sua abertura em 1897, a hierarquia se resumia em apenas duas classes: a dos
anjos pequenos e anjos do meio, inexistindo a dos anjos grandes. No cemitério da Lapa, por
fim, aberto em 1918, os anjos não mais aparecem. Paulatinamente, portanto, as crianças
mortas deixam de ser anjos ou, pelo menos, não mais assim foram nomeadas nos cemitérios
públicos.
Acredito que para o declínio desse costume a partir de finais do século XIX e primeiras
décadas do XX, três condições se fizeram presentes: em primeiro lugar, cada vez mais a
medicina acadêmica assumia o controle nesse campo que, antes como vimos, pertencia mais
ao mundo religioso; ao mesmo tempo, com o aumento da expectativa de vida anotada a partir
das primeiras décadas do século XX, as idades da vida sofreriam uma alteração, o que
Anjos, sem qualquer referência aos anjos pequenos, do meio ou grandes, conforme o critério adotado no cemitério.
874 - A. C., sessão do dia 19/12/1865, p. 323 e 324.
875 - Por esta época, o engenheiro Carlos Rath apresentou uma nova planta em que reorganizava cemitério e já
incluindo as novas áreas incorporadas. Não conseguimos localizar este projeto, mas no relatório que enviou à
Câmara ele citou: “Os lugares marcados com letra são para os
anjos, os de números para as sepulturas gerais, e os de cor
rosa ou roxo para os particulares com monumentos; cada qual de 11 palmos de comprido e 10 de largo.” A. C., sessão do dia
02/09/1869, p. 203 e 204.
393
colocava em cheque a divisão até então adotada; e, por último – mas não menos importante –
devem s o (o único na
cidade durante um longo período), seria depois rep u interior e sim
na configuração de outros cemitérios que se e Braz, aberto em
1893. E onsolação
ocorria adros erais ou Comu
876
, es is pobres. Com a
bertur tério nos ba rros o rários, por exemplo, a divisão de classes se
s
nas cat
anos.
Adultos: a partir dos 12 anos.
Já no cemitério do Braz, no ano de 1893, encontramos a seguinte situação:
Anjos pequenos: a partir do nascimento até a idade máxima de 2 anos.
Anjos maiores: a partir dos 2 anos de idade e até o máximo de 8 anos.
Anjos grandes: a partir dos 5 ou 6 anos de idade e até o máximo de 12 anos.
Adultos: a partir dos 12 anos.
A ausência de um padrão mais rígido no tocante à idade cronológica como forma de
classificar as crianças mortas – ou os anjos – é algo que se nota tanto no interior de cada
cemitério, quanto na comparação entre eles. Porém, aqui devemos levar em consideração uma
questão antes citada, ou seja, a de que para a qualificação do defunto-criança e sua posterior
divisão entre anjos pequenos, médios e grandes, importava não apenas o tempo vivido mas,
também, a aparência. Um recém-nascido, ou um nati-morto, era sempre um anjo pequeno,
mas que, dependo de sua constituição física, poderia ainda assim ser considerado até os dois
anos ou três anos. Já para os anjos do meio, a idade variava entre 1 e 2 anos e até um máximo
os nos lembrar que a divis o es o cemitério da Conão cial pr ente n solaçã
roduzida não mais no se
dificaram na cidade como o do
m outras palavras, aquela divisão entre anjos que existia na necrópole da C
somente nos Qu G ns
tes destinados aos ma
a a de outros cemi s i pe
operou mais entre os próprios cemitérios do que no seu interior.
E eis que chegamos a uma questão importante: qual seria a idade especifica dos anjo
egorias idealizadas para os defuntos-criança no século XIX e, também, com quantos
anos um falecido já era considerado adulto?
Comecemos pelo cemitério da Consolação. Ali, em registros sucessivos a partir de
1860 e até 1890, a divisão etária era a seguinte:
Anjos pequenos: a partir do nascimento e até a idade máxima de 3 anos.
Anjos do meio: a partir de um ano de idade e até o máximo de 6 anos.
Anjos grandes: a partir dos 3 ou 4 anos de idade e até o máximo de 12
de 6 ou 8. Entretanto, existia um limite sempre seguido: a idade de 12 anos. Raríssimos foram
876 - As crianças da elite ou eram sepultadas nos jazigos familiares ou então túmulos especialmente comprados
para elas, inexistindo para essa classe qualquer divisão por faixa etária.
394
os caso
anos
s de pessoas com 12 anos sepultadas como “anjos grandes”
877
, até porque o comum
mesmo era que, a partir dessa idade (ou até antes) elas fossem sepultadas já na quadra dos
adultos como demonstram alguns dos muitos exemplos encontrados:
- Otaviano,
10 de idade, criolo, escravo, foi sepultado na quadra geral dos adultos no
cemitério da Consolação aos 18/03/1860 (Livro 01, fls. 102);
- Rafaela,
12 anos, africana, foi sepultada na quadra geral dos adultos do cemitério da
Consolação no dia 05/01/1870 (Livro 04, fls. 180 verso);
- Leocádia,
10 anos, escrava, foi sepultada na quadra geral dos adultos do cemitério da
Consolação no dia 13/02/1870 (Livro 04, fls. 192 e 192 verso);
- Antonio Presciliano do Nascimento,
12 anos, foi sepultado na quadra geral dos adultos do
cemitério da Consolação no dia 17/03/1875 (Livro 06, fls. 165 verso);
- Theresa Pessalano,
11 anos, filha do italiano Ascenso Pessalano, foi sepultada na quadra geral
dos adultos do cemitério da Consolação no dia 05/01/1890 (Livro 13, fls. 98);
- José Vaz,
12 anos, foi sepultado na quadra geral dos adultos do cemitério do Braz no dia
24/02/1893 (Liv
- Luigi Bozzetto,
ro 33, fls. 13);
10 anos, italiano, foi sepultado na quadra geral dos adultos do cemitério do
Livro 33, fls. 13 verso). Araçá em 1897 (
Já a partir de 1900, e especialmente nos cemitérios do Braz e do Araçá, nota-se uma
Araçá (em 1900):
idade máxima de 2 anos.
padronização nas idades dos anjos sendo que, nos respectivos cemitérios, como já citado, a
partir dessa época desaparecem os anjos grandes. Nesse sentido, a classificação (igual para os
dois cemitérios) é a seguinte:
Braz (em 1900):
Anjos pequenos: incluía desde recém nascidos até a idade máxima de 2 anos.
Anjos do meio: a partir de 2 anos de idade e até o máximo de 11 anos.
Adultos: a partir dos 12 anos.
Anjos pequenos: incluía desde recém nascidos até a
Anjos do meio: a partir de 2 anos de idade e até o máximo de 11 anos.
Adultos: a partir dos 12 anos.
877 - No levantamento efetuado entre 1860 e 1890 no cemitério da Consolação e de 1893 a 1900 no cemitério do
Braz, encontramos apenas dois casos nessa situação: o de José Paschual, 12 anos, falecido de febre em 1860 e
sepultado na quadra dos Anjos Grandes do cemitério da Consolação (Livro nº 01, fls. 125 e 125 v.) e o de Cezar, 12
anos, filho do italiano Damasio Bretim, falecido de febre remitente em 1893 e sepultado na quadra dos Anjos
Grandes do Cemitério do Braz (Livro nº 33, fls. 75).
395
A grande questão a ser notada é que, apesar de não encontrarmos no Regulamento
oficial dos cemitérios a condição de anjo para a qualificação de crianças falecidas, o seu uso
era bastante comum e como prova de que esse costume foi seguido, dividiu-se extra-
oficialmente o cemitério (ou as quadras gerais) em quarteirões específicos para o
sepultamento desses que eram considerados como defuntos especiais, à parte dos adultos. Tal
prática, por sua vez, se fez representar nos registros de sepultamentos, estes firmados pelos
antigos administradores dos cemitérios municipais. É certo que para a consolidação desse
hábito durante todo o século XIX muito pesou a tradição religiosa que diferenciava os
inocentes dos adultos conforme já explicitado em outr
não foi a única difere
cemitério, conforme
os capítulos. De qualquer forma, esta
nciação que se fez entre os corpos sem vida, uma vez que o próprio
estipulava a legislação, estava dividido entre
pobres e ricos. E é
ito que podemos avançar um pouco mais na explicitação do problema
na morte todos são iguais.
*
justamente nesse ques
de que a nem mesmo
* *
inusitado, ou contradição presente no registro, o mesmo merece ser transcrito na íntegra:
“Aos oito dias do mês de janeiro de 1861 foi sepultado no cemitério municipal na catacumba da Rua do
Portão, subindo da Capela para cima, lado esquerdo nº 5, o cadáver de Jesuína Maria de Godoi de idade
39 anos, casada com João José Batista, falecida no dia 7 de abril do corrente
de morte natural
Jesuína Maria de Godoi tinha 39 anos. Era casada com João José Batista e residia em
sua chácara no Braz. No dia 7 de janeiro de 1861 ela sofreria um ataque trágico que lhe tiraria
a vida. Nos registros de sepultamento foi anotado que seu falecimento ocorrera por “morte
natural” e, em seguida, foi dada a seguinte explicação: “assassinada por um escravo.” Seja pelo
assassinada por um escravo, e foi por mim recomendada, Freguesia do Senhor Bom Jesus do Braz, 8
de janeiro de 1861.”
878
(meu destaque)
396
A incoerência verificada neste registro pode ser esclarecida, uma vez que a causa
“morte natural” não está aqui gratuitamente. Já naquela época algumas mortes tidas como
uspeitas deveriam se
corpo para a confirma
poderia ser realizado p
estes eram feitos geral
onde havia uma sus
fogamentos verificados nos rios da cidade. Como pudemos constatar através dos registros,
zar o sepultamento, algo que
época – tiveram seus corpos devassados e, dentre eles, podemos citar:
“Aos 16 de dezembro de 1859 foi sepultada no Quadro Comum do cemitério municipal o
cadáver de Maria Gertrudes, natural desta cidade, de 70 anos, solteira, livre, falecida ontem
s r investigadas, sendo por isso necessário a realização de exames no
ção, ou não, de qualquer crime. Este exame (o chamado corpo de delito)
or médicos ou, como era mais comum, pelas autoridades policiais. E
mente quando se encontravam cadáveres nas vias públicas, em casos
peita de homicídio, suicídio ou, mais comum ainda, quando de
a
tais exames eram bem simples, bastando o olhar do médico ou do policial e uma rápida
descrição das condições do corpo. Somente os casos mais graves eram investigados, mas
invariavelmente os cadáveres eram sepultados no dia seguinte ao do falecimento, e isso
mediante sempre uma autorização emitida pela polícia.
Entretanto, o corpo de D. Jesuína não passou por este procedimento. A causa de seu
falecimento, assassinato, foi encoberta pela expressão morte natural, esta rascunhada pelo
vigário do Braz no bilhete de sepultamento, a qual passou para os registros oficiais sendo
copiada pelo administrador do cemitério público. Assim procedendo, o exame de corpo de
delito não precisou ser realizado. De qualquer forma isso certamente não inviabilizou a
incriminação do escravo, uma vez que ali também estava descrito um homicídio.
Ora, a Sra. Jesuína fora em vida uma mulher de posses. Prova disso é que ela possuía
alguns escravos (tendo sido assassinada por um deles), residia em sua propriedade no Braz e,
mais ainda, seu marido adquiriu uma catacumba para reali
somente os mais ricos poderiam fazer. Daí que mesmo sem vida seu corpo ainda estava
carregado de signos que a diferenciavam dos demais. Uma mulher branca, casada e de posses
(não obstante sem vida) não deveria ter seu corpo devassado pelo olhar de homens estranhos,
mesmo que de autoridades. Eis aqui uma das intenções de se escamotear a verdade (veremos
uma outra nas próximas páginas): os familiares, ou o marido, não permitiriam este
procedimento e, com isso, concordou o vigário.
Ao contrário de Jesuína outros casos bem menos graves, é preciso dizer, e na mesma
878 - Cemitério da Consolação, Livros de Inumação, Vol. 1, fls. 147
397
de desastre em Santa Ifigência onde morava, foi sepultada hoje no dito Quadro depois de se
proceder o auto de corpo de delito.”
“Aos 24 de fevereiro de 1860 foi sepultada no Quadro Comum do cemitério municipal Benta,
creoula, natural de Parnaíba de 60 anos, viúva, moradora em Santa Ifigênia onde faleceu
afogada, foi sepultada hoje depois de procedido o ato de corpo de delito.”
“Aos 18 de outubro de 1860, foi sepultado no cemitério municipal, no Quadro Geral sepultura
nº 120, o cadáver de João da Luz, preto, solteiro, com mais ou menos 58 anos de idade,
falecido
repentinamente a 17 do corrente pelas 2 horas da tarde. (...) Sub Delegacia da
Freguesia de Santa Ifigênia, 18 de outubro de 1860: pode ser sepultado o cadáver de João da
Luz que faleceu ontem repentinamente
tendo já se procedido o corpo de delito.”
“Aos 29 de outubro de 1860 foi sepultado no cemitério municipal no Quadro Geral “D”
sepultura nº 13, o cadáver de D. Gertrudes Olímpia Goularte, casada com João Batista Leite,
de idade mais ou menos 40 anos, falecida ontem pelas 4 horas da manhã de
parto. E como
este corpo não estava perfeito, eu requeri ao Juiz sub delegado o corpo de delito que foi feito
= Sub delegacia da Freguesia de Santa Ifigênia 29 de outubro de 1860. O sr. Administrador do
cemitério público pode mandar sepultar ao cadáver de Gertrudes Goularte
visto ter
procedido o corpo de delito.”
879
(meus destaques)
Em todos esses
delito, e isso não obsta
desastres, afogamento
a realização do exame
casos – dentre dezenas de outros – procedeu-se ao exame de corpo de
nte as causas de morte serem até corriqueiras naquela época como os
s, morte repentina ou por ocasião do parto. De fato, o que determinava
não era apenas a suspeição da morte senão, também, a condição social
da pessoa que, é preciso notar, se mantinha no corpo sem vida: pretos, criolos, pobres. No
último caso apresentado, o de D. Gertrudes Olímpia Goularte, e apesar de seu corpo ter sido
sepultado gratuitamente no “Quadro Geral”, ela certamente não se igualava aos demais, pois
era casada e, como o marido, foi citada com nome e sobrenome – situação esta que denotava
uma diferenciação social – e, inclusive, foi referendada como
Dona Gertrudes, um título não
aplicado ao nome dos outros falecidos. Daí a necessidade de uma explicação que, para o
restante seria dispensável: o seu corpo não estava perfeito, eis a razão alegada e que o caso
exigia, pois, provavelmente, os trabalhos de parto foram realizados com a utilização dos ferros
(fórceps) que feriram seu corpo.
A partir da exposição e análise desses primeiros casos, podemos concluir que nem
mesmo diante da morte os corpos são iguais, já que ainda carregam consigo as marcas das
diferentes situações que tiveram em vida. Nesse sentido, e apesar da constante divulgação
879 - Cemitério da Consolação, Livros de Inumação, Vol. 1 fls. 87 verso, 98 verso, 133 verso e 135, respectivamente.
398
através dos tempos a respeito da morte enquanto niveladora, igualitária e que reduz os
á mais tarde, quando consumada a decomposição.
até qu
5.2 – In
paço do conselho, nela estando os oficiais da Câmara abaixo assinados, por
homens à mesma sorte, explica Vovelle, “nada mais desigual ou diferenciador do que ela”
880
; e
aqui, poderíamos ainda completar, também diante das três fases que a compõe: na doença, no
falecimento e mesmo depois, quando do sepultamento.
Seguindo esse caminho, e não obstante a possibilidade de análises a respeito dos
sentimentos inerentes à supressão da existência, o que me interessa particularmente são as
sensibilidades diante do cadáver ou as tensões que ele provocaria. Assim, podemos verificar
que a morte ainda não é fim de tudo já que, para os vivos, resta ainda um corpo. Um corpo
cuja morte real e absoluta somente ocorrer
E e isso ocorra, ele ainda será fonte de conflitos, mediações e articulações.
quietações diante do corpo
“Aos dezesseis dias do mês de julho de 1668 nesta vila de São Paulo em casa e
eles foi dito ao procurador do conselho se tinha alguma cousa a que requerer
do serviço de sua majestade e bem comum deste povo o fizesse. E pelo dito
procurador foi dito e requerido que se fixasse quartel que
todo morador que
tiver doentes no termo desta vila, tiverem sarampo em sua casa, não tragam
os ditos a esta vila a enterrar, senão os enterrem nas ermidas donde moram,
com pena de seis mil reis aplicados para as despesas do conselho
(...)”
881
(meu
destaque)
880 - Vovelle, Michel; A história dos homens no espelho da morte; In: Braet & Verbeke, “A Morte na Idade Média”;
S.P.: Edusp, 1996, p. 18.
881 - A. C., sessão do dia 16/07/1668, p. 586
399
As tensões provocadas pela morte e a existência de um corpo sem vida sempre
estiveram presentes em diversas épocas e sociedades. A boa morte, conforme os costumes
vigentes em São Paulo nos séculos XVIII e XIX, seria conseguida mediante a elaboração de
testamentos e da preparação de diversos ritos de passagem como o velório, missas, cortejo e
sepultamento que, até 1858, deveria ser realizado preferencialmente no interior de uma igreja.
obstante o mesmo ter ocorrido devido a um homicídio. O
igário do Braz, nesse
distrair a atenção para
morte natural – com o d
como que uma salvag
Mas as inquietações geradas pelo cadáver não se restringiam apenas a esses aspectos
ações. Na verdade,
A morte violenta ou abrupta era temida pelos vivos, pois colocava em risco a salvação, e isso
devido principalmente a não realização dos últimos sacramentos – a confissão,
principalmente. E caso isso ocorresse, os próprios defuntos tornavam-se perigosos, mas por
um outro motivo: acreditava-se que os mortos poderiam voltar, especialmente quando o
corpo desaparecia (como no caso de afogados levados pela correnteza) o que inviabilizaria o
sepultamento e, mais ainda, nos casos de morte por suicídio ou assassinato.
882
Eis aqui, talvez,
uma outra razão para que o já citado falecimento de D. Jesuína Maria de Godoi fosse
classificado como morte natural, não
v caso, e certamente porque se tratava de uma rica senhora, tentava
real causa de seu passamento. Apesar da verdade vir logo a seguir, a
evido destaque de estar em primeiro lugar na escrita – poderia servir
uarda.
senão, também, a outras determinações como, por exemplo, o medo diante das doenças que
poderiam ser adquiridas. Com respeito ao sarampo – tema do documento acima transcrito –
pairavam ainda algumas incertezas sobre o seu caráter contagioso, mas na dúvida, os
governantes resolveram não arriscar, determinando, em 1668, que nenhuma pessoa vitimada
pela doença viesse a ser sepultada na cidade. A relação entre o cadáver vítima de alguma
epidemia – bem como o local de sepultamento e o perigo que o mesmo poderia representar
aos vivos estava, no século XVII, no centro de algumas discussões. Na França, explicou
Philippe Ariès, alguns médicos até acreditavam nesse perigo, mas não se arriscavam ainda a
laudos mais conclusivos, pois sentiam que era preciso realizar mais observ
completou Áries, eles “estavam aborrecidos porque não tinham ainda a certeza das causas reais desses
fenômenos que bem podiam ser devidos ao demônio.”
883
Assim, a determinação dos vereadores com
respeito aos mortos pela epidemia de sarampo em 1668 estava consoante com essas duas
possibilidades: eram eles cadáveres perigosíssimos, seja pela enfermidade que poderiam
882 - Nessa linha de análise, ver Schimitt, Jean-Claude; Os vivos e os mortos na sociedade medieval; S.P.: Cia. das
Letras 1999 e, para o Brasil, Reis (1991), especialmente o capítulo 7 “O espaço sagrado do morto: o lugar da
sepultura”,p. 171 e seguintes.
400
transmitir, seja por guardarem ainda resquícios de alguma força maligna. A confinação numa
distância razoável era o meio mais seguro de se evitar qualquer dano.
Guardando ainda essas interpretações, mas já com uma certa experiência de
períodos anteriores, a varíola em São Paulo no século XVIII chegou a ser classificada como
um “venenoso e contagioso mal”.
884
Eis aqui um claro sinal de conhecimento sobre esta
enfermidade, de que ela poderia ser adquirida por contágio ou que, de alguma maneira, o
“veneno” das bexigas (vírus) poderia passar de um corpo para outro. Nesse caso, não
apenas os doentes (os vivos) deveriam ser isolados, mas também os mortos já que, da
mesma maneira, seus cadáveres continuariam sob a influência maléfica da doença e
passíveis de contaminar outras pessoas. Os mortos de varíola eram, portanto, dos mais
ameaçadores e isso principalmente na avaliação das autoridades. E foi justamente por este
motivo que, na vereança do dia 5 de novembro de 1798 ...
“... se recebeu uma carta de sua excelência em que determina que esta Câmara
dê a necessária providência para que
não enterrem dentro da cidade os mortos
de bexigas falecidos no hospital interino que se nomeou fora desta cidade para
cura desta enfermidade; e nesta mesma vereança se respondeu a dita c rta e
a
a se
am seguir adiante (sem passar pela cidade) e
após transpor o rio Tietê seriam sepultados na
ncontrava-se separada por um obstáculo natural,
este representado pelo maior rio da cidade.
Posteriormente, e somente para os falecidos dessa moléstia, espaços especiais para
sepultamentos foram criados. Após a abertura do cemitério da Consolação, uma área
específica nele foi reservada aos bexiguentos sendo que suas covas, ao contrário dos “7
determinou que fosse ordenado ao dito hospital para que os cadáveres fossem
sepultados na capella do Ó.”
885
(meu destaque)
Não restam dúvidas de que esta ordem tinha um alvo certo, ou seja, os doentes
isolados no hospital criado em 1798 e que, conforme visto páginas atrás, naquela época estava
funcionando no então distante sítio do Pacaembú. Assim, esses doentes seriam
preferencialmente pobres e escravos, uma vez que muitos outros em melhores condições
tratavam de seus enfermos em casa, às escondidas. De qualquer forma esses corpos metiam
tanto medo que, daquele hospital, eles deveri
longínqua capela de Nossa Senhora do Ó. Há
que se notar aqui o apartamento pretendido, pois a capela não apenas estava a uma grande
distância do núcleo urbano como, também, e
883 - Áriès (1988), p. 212
884 - Documentos constantes do testamento de Bartholomeu Paes de Abreu, ano de 1738. Veja referência completa
nas notas 33 e 34 do Capítulo I, primeira parte.
885 - A. C., sessão do dia 05/11/1798, p. 139 e 140.
401
palmos” de profundidade, deveriam ter 10 e – além de já separadas das demais – seriam
elas marcadas com um sinal específico que serviria como que um alerta, um indicativo ou
lembrança do perigo ali existente. Estipulado estava que a reabertura dessas covas
somente poderia ser realizada após decorridos 5 anos do sepultamento.
886
E desses
terríve bros da elite que possuíam suas
própria
autorização especial para sepultar os familiares falecidos de varíola nos seus túmulos
particulares, e isso desde que eles também deixassem gravados na sepultura as mesmas
marcas aplicadas nas covas dos pobres.
887
Sob esse aspecto, e em face da ameaça,
igualavam-se as apreensões
Um outro exemplo d
verificado durante o surto oc
a esses mortos já es , não restava outra
ue não o reaproveitamento das covas mais antigas, estas resultado das epidemias
que grassaram na cidade entre 1873 e 1876. Assim, algumas delas poderiam ser reutilizadas,
opinião do
dr. Feli
olucionar o caso, resolveu aumentar a área do cemitério “fechando mais um pedaço do terreno
adjacente” e reservando-o para os mortos de varíola. Ato contínuo, encarregou o engenheiro
para que, rapidamente, levan
grande urgência.
889
Especialmente nas q icas, o temor diante do cadáver ganhava
eram impostas ao mesmo tempo em que outras
u
is “sinais” não escaparam nem mesmo os mem
s catacumbas. Na eclosão de epidemias, e mediante uma ordem, tiveram eles uma
diante do cadáver, sem distinção de classes.
o pavor despertado pelos corpos dos bexiguentos pode ser
orrido em 1878. Naquela oportunidade, a área do cemitério
tava totalmente ocupada. Nessas condiçõesreservada
alternativa q
pensou o administrador do cemitério, pois não haveria mal algum em reabrir e exumar os
corpos enterrados em 1873: os cinco anos estipulados em lei para realizar tal procedimento
haviam passado. Mas, ao receber esta consulta, os vereadores logo solicitaram a
zardo Cavalheiro, médico da Câmara. E este, diante de tão temerária ação, descartou
totalmente essa possibilidade, concluindo que “não se deve resolver a abertura de tais sepulturas”,
mesmo que decorridos os 5 anos.
888
Seja por conta do medo (5 anos seria um tempo suficiente
para neutralizar o perigo?), seja porque havia o risco de se abrir algumas covas fora da época
prevista, o fato é que a municipalidade optou por não tocar naquelas sepulturas e, para
s
tasse uma planta para a execução desse trabalho tido como de
uadras epidêm
exterioridade e, para ele, regras especiais
eram q ebradas. Já instalado um novo surto em 1873, uma das primeiras medidas que se
tomaram em relação aos cadáveres foi uma ordem expedida para que o cemitério
886 - Ofício do chefe de Polícia à Câmara, A. C., sessão do dia 27/11/1873, p. 228
887 - Ofício do Administrador do cemitério e resposta às suas indagações, A. C., sessão do dia 29/11/1873.
888 - Ofício do Administrador do cemitério de 22/08/1878, A. C., sessão do dia 24/08/1878, p. 92 e 93; Ofício do
médico da Câmara, A. C., sessão do dia 14/09/1878, p. 100.
889 - A. C., sessões dos dias 24/08 e 14/09/1878, p. 92, 93 e 98.
402
permanecesse aberto 24 horas por dia, conforme especificou o chefe de polícia:
“Leu-se um ofício do Dr. Chefe de Polícia, datado de hoje, solicitando desta
Câmara a expedição das convenientes ordens para que o administrador do
cemitério não demore nos enterramentos dos cadáveres victimas da varíola,
como lhe consta ter acontecido, o que pode ser funesto na quadra epidêmica,
convindo por isso que o administrador esteja vigilante a qualquer hora para
encarregar-se do serviço a seu cargo.”
890
E tão grande era a quantidade dos enterros noturnos que se dirigiam ao cemitério, que
necessário se fez uma melhoria no sistema de iluminação pública na rua que demandava à
necrópole: os sombrios e antigos lampiões foram trocados por combustores a gás, e isso a
artir da igreja da Consolação em diante, oferecendo assim mais segurança e visibilidade para
o transporte dos temidos cadáveres.
891
Nas q amento
ram quebrados. A despedida era feita do modo mais rápido possível, assim como o
partamento do corpo. Era urgente retirar os cadáveres “o mais rapidamente possível da cidade
o cemitério,
garantindo assim uma maior segurança:
“Que no trajeto para o cemitério público dos corpos das pessoas que
houverem falecido afetados da epidemia reinante haja todo o cuidado; que
este se faça pelos lugares e ruas de menor trânsito, e isto todas as vezes
que se possa; que o carro tanto na ida como na volta ao cemitério não pare
em parte alguma, e que quando regresse desse serviço seja imediatamente
recolhido em lugar conveniente e não esteja exposto na rua; o mesmo se
deverá observar a respeito dos veículos que conduzem os enfermos para o
lazareto.”
893
p
uadras epidê cessários ao sepultmicas, os ritos comuns que se faziam ne
e
a
para se evitar a propagação da moléstia”, explicitou o chefe de polícia em 1875
892
e aqui, é claro, a
ordem era para que esses corpos fossem excluídos rapidamente do mundo dos vivos
prevendo-se, inclusive, medidas especiais para a condução dos mortos até
890 - A. C., sessão do dia 02/08/1873, p. 165.
891 - Proposta do presidente da Câmara ao Governo Provincial, A. C., sessão do dia 27/11/1873. A ocorrência de
enterros à noite era algo bastante comum na São Paulo do século XIX. Mesmo antes da abertura do Cemitério da
Consolação, os ricos se utilizavam desse expediente para, literalmente, dar mais brilho às cerimônias; os pobres,
por outro lado, esgueiravam-se na calada da noite para, em segredo, depositar os corpos de seus familiares nas
igrejas, o que obrigava os párocos a realizarem o enterro sem a cobrança de taxas. A esse respeito veja minha
Dissertação de Mestrado “Sepultamentos em São Paulo”, Parte I, capítulos 4 e 5. Já em 1858, um colunista do jornal
Correio Paulistano chegou a aconselhar que, em época emia, os enterros no novo cemitério fossem feitos “a
n i
devemos nos lembrar dos sentimentos (ou das emoções) como fatores agravantes ou mesmo geradores de males
epidêmicos como já analisamos. Veja Correio Paulistano, edição do dia 02/09/1858.
892 - Ofício do chefe de polícia de 20/07/1875, A. C., sessão do dia 22/02/1875, p. 32.
893 - Proposta do vereador Portilho apresentada e aprovada na sessão da Câmara de 12/08/1875, p. 102 a 104.
s de epid
oite para poupar os vivos a impressão aterradora que a vista repetida deste acto pode causar, como de facto acontece.” E aqu
403
a atenção nessa regulamentação o fato de que não apenas o corpo, mas
mbém o veículo tornava-se perigoso. Enquanto transportando o cadáver, ele não deveria
parar
quando a febre amarela ameaçava
os como esses eram muitíssimo bem aproveitados por parte do
de 1863-1864, a quantidade
Chama
ta
em lugar nenhum” e, depois da viagem, não deveria ficar exposto na rua já que,
possivelmente, poderiam eles estar impregnados com o “veneno das bexigas”. Quinze
anos depois dos acontecimentos aqui narrados, e já na era microbiana, medidas parecidas
foram tomadas em relação aos veículos fúnebres, e isso
a cidade. Naquela ocasião, como já vimos na primeira parte, foi determinado que a
empresa encarregada tivesse a máxima higiene em seu estabelecimento, proibindo-se a
lavagem de seus carros na rua do Carmo, onde estava localizada a garagem (ou cocheira)
da companhia.
894
Aliás, períod
empresário Joaquim Marcelino da Silva, ele o proprietário da companhia funerária que
detinha o privilégio da condução dos corpos até o cemitério. Apesar das bexigas e outras
doenças contagiosas atingirem mais os pobres, delas não escapavam os remediados e nem
mesmo os das classes mais altas. Como vimos, na epidemia
mensal de mortes elevou-se de um patamar médio de 55 a 60 ao mês para 99 falecimentos
verificados em agosto de 1863. Nessas circunstâncias a agência de Marcelino prosperava e
ele, por sua vez, tudo fazia para não perder nenhum “cliente”. Tal procedimento não
escapou da crítica pena de Ângelo Agostini no jornal o Cabrião que, em outubro de 1866,
recriminou de maneira muito clara (mas utilizando o humor, como era de seu feitio) o
comportamento da empresa.
894 - Requerimento do vereador Sertório, A. C., sessão do dia 18/07/1881.
404
Fig. 56
Agostini, uma crítica à rapidez com que se realizavam os sepultamentos. Nos traços de Ângelo
De qualquer forma, a exclusão desses corpos não ocorria apenas quando mortos senão,
mbém, em vida, como bem demonstram as últimas linhas do documento. Nesse caso, os
epidêmicas – o corpo ganha um outro significado. Portador de um mal, infectado,
ando na localidade chamada de Areal no bairro de Santana. Apesar
lugares populosos”, conforme explicou o presidente da Província.
896
ta
enfermos (e os carros que os transportavam) eram igualmente perigosos, demandando uma
série de cuidados. Ao adquirir uma doença – e aqui nos referimos especialmente nas quadras
manchado ou
maculado, opera-se a sua reclassificação o que, por fim, permite a sua separação. A doença, nesse
caso, pode ser identificada com a morte e, daí, a existência dos “isolamentos” tão comuns na São
Paulo do século XIX. Como vimos, vários deles foram abertos e fechados na cidade e, na década
de 1870, ele estava funcion
da rigidez das regras criadas para os sepultamos após a abertura do cemitério da Consolação
em 1858 (pelo menos no que se refere à proibição de qualquer sepultamento que não nessa
necrópole), os mortos nos isolamentos nelas não estavam incluídas. Prova disso era que o
hospital do Areal tinha o seu próprio cemitério, este construído em 1875 “a fim de ali serem
sepultados unicamente os variolosos que falecerem.”
895
E a explicação para tal procedimento
reafirmava o receio que se tinha pelos corpos dos bexiguentos, uma vez que a razão alegada foi a
de que os cadáveres não poderiam ser “transportados ao cemitério da Consolação, passando por
895 - Ofício do governador da Província de 03/09/1875, A. C., sessão do dia 09/09/1875, p. 108 e 109
896 - Idem ibidem.
405
ção sobre o perigo que tais cadáveres representavam
por este lado oferece condições de completo
el para obter-se o fim a que se destinam os lazaretos.
É preciso notar que esta avalia
não se alterou rapidamente, até porque ela permaneceria com a criação do novo Isolamento
nos altos do Araçá, atual Hospital Emílio Ribas. Indicada como foi a chácara do Major
Benedito Antonio da Silva para sediar o Lazareto, esse terreno, na avaliação dos vereadores,
era o que reunia as melhores condições porque estava ...
“... situado bastante arredado dos caminhos ou estradas que comuniquem
pontos povoados; de modo que
isolamento indispensáv
A circunstância de ser este logar não muito distante do Cemitério Municipal,
parece a esta Comissão de suma importância, pela convicção em que esta
propagação da varíola se opera muito eficazmente
pelos miasmas virulentos
que exalam os cadáveres. Se pois o lazareto fosse colocado de modo que os
corpos das victimas da varíola tivesse de percorrer centros populosos para
irem ao Cemitério, não se conseguiria o fim a que o estabelecimento se
destina, qual seja a extinção do mal pela
segregação tanto das pessoas
affectadas como dos corpos impregnados do vírus.
897
(meus destaques)
Ou seja, os corpos sem vida daqueles atacados pela varíola eram extremamente
perigosos por conta do
mais ainda, o relato de
em conexão direta com
corpos impregnados com
Tendo em vi
representavam, nada
Ora, além de se tratar
inda a vantagem de istância do cemitério da Consolação, o que
andes riscos. Apesar de não citado neste
própria colina, em 1897, para a fundação do cemitério do Araçá.
s miasmas virulentos que poderiam afetar quem deles se aproximasse;
horror acabava também por justificar a segregação dos doentes, estes
os cadáveres, posto que ambos (doentes ou mortos) tinham os seus
o vírus.
898
sta as palavras que advertiam para a ameaça que tais mortos
melhor do que a colina do Araçá para a edificação do novo Lazareto.
de uma região ainda não habitada e longe da cidade, o sítio possuía
não estar a grande da
possibilitaria o transporte dos mortos sem gr
documento vale lembrar que para a eleição deste local também influiu um prévio
conhecimento sobre as condições naturais daquela colina, ou seja, sabia-se que dali os ventos
não sopravam com freqüência para a cidade, tendo sido este um dos motivos principais pela
escolha de uma de suas encostas para a edificação do cemitério da Consolação em 1858 e da
897 - Relatório da “Comissão encarregada de dar parecer sobre a escolha do local para a fundação de um lazareto
de variolosos”; A. C., sessão do dia 14/03/1878, p. 34 e 35.
898 - Lembremo-nos aqui da definição de vírus dada por Chernoviz em 1862 e já citada páginas atrás: “O vírus é
um princípio não conhecido na sua natureza e inacessível aos nossos sentidos, que se desenvolve em certas
moléstias e que, inoculado em um indivíduo são, transmite exatamente a mesma moléstia. Assim, a saliva de um
cão danado inoculado no homem (...) gera a hidrofobia, o pus de um cancro sifilítico produz a sífilis; (...) as bexigas
tem também um vírus.” Veja a definição completa na Parte I, Capítulo 5, item 5.1 “Afecção, infecção e poluição”.
406
Fig. 57
A construção do cemitério do Araçá em 1897. À esquerda vemos os operários e as obras do muro do
mesmo cemitério.; no centro, em primeiro plano, temos a antiga Av. Municipal (hoje Dr. Arnaldo) e ao
fundo, à direita, o Hospital de Isolamento, atual Emílio Ribas.
De qualquer forma, todos esses cuidados não bastaram para frear o temor diante dos
cadáveres dos bexiguentos. Iniciada a construção do Isolamento em 1878, em 1880 ele foi aberto.
Mas, já no ano seguinte, e em conseqüência do aparecimento de alguns casos da doença na
cidade, o médico da Câmara alertava que se fazia necessário...
“a retirada imediata do zelador e sua família do Lazareto de variolosos para
evitar-se a propagação da varíola de que se acham afectadas duas crianças ali
recolhidas por ordem da polícia,
e pedindo providências para o
estabelecimento de um cemitério junto ao mesmo Lazareto.”
899
(meu destaque).
eram ativados em face de epidemias e daí a presença de um zelador e sua família que apenas
vigiavam o edifício, chama a nossa atenção a solicitação para o estabelecimento de um cemitério
anexo ao hospital. Não obstante a grande vantagem alegada em 1878 de que o lazareto estaria a
pouca distância do cemitério da Consolação, mesmo assim pedia-se pela abertura de um outro,
este destinado apenas aos mortos pela temida moléstia. Nesse caso, o que teria ocorrido nos três
anos que separam o relatório da comissão da Câmara e este ofício do médico em 1881? O pronto
atendimento do pedido (já que este cemitério foi logo estabelecido no local) nos permite
algumas análises. Em primeiro lugar devemos considerar o receio, mas este agora conjugado
Além da informação (esta já analisada anteriormente) de que os isolamentos somente
899 - Ofício do médico da Câmara, A. C., sessão do dia 19/12/1881, p. 231
407
com uma questão antes não prevista, qual seja, o adensamento ocorrido no entorno do cemitério
da Consolação, bem como na sua principal via: a própria rua da Consolação, o que colocava
novamente os doentes e os mortos em contato com os vivos.
900
Autorizado a funcionar pela municipalidade a partir de 1881, o cemitério do Isolamento
serviu exclusivamente aos pacientes daquele hospital. Por conta disso, ali foram inumados
inicialmente os corpos dos falecidos por varíola e, posteriormente, também o das vítimas de
outras doenças que passaram a ser classificadas como infecciosas.
901
A esse respeito vale notar
que, na época de sua abertura, os documentos produzidos no Isolamento chamavam aquela
alteração esta que remete à discussão ocorrida no período entre os adeptos do contágio e da
infecção, conforme nos referimos páginas atrás. E como este hospital não perdera ainda a
característica de abrigar apenas os desvalidos, ali foram sepultados apenas os brancos
empobrecidos, os negros e, também, inúmeros imigrantes europeus, como comprova uma
relação elaborada nas primeiras décadas do século XX a respeito dos epitáfios que ali restavam:
necrópole de “Cemitério dos Contagiados” e, anos depois, como “Cemitério de Moléstias Infecciosas”,
“Relação das sepulturas existentes no Cemitério de moléstias infecciosas do Hospital de
Isolamento, cujos epitaphios estão ainda legíveis: -
Joaquim Esteves Martinez sepultado em 16 de Dezembro de 1894
Rudolf Christian Rostod 5 de Abril de 1894
Friedrick Lehmann 20 de Abril de 1895
Gino Mazzanti 24 de Julho de 1895
Salvatore Mastrogianni ......... Março de 1896
Wolf Goldenberg .......................... 1896
Elisabeth W chi mann ......... Março de 1896
Emma Priewe 1897 ......... Janeiro de
Dora Klatsohko ......... Junho de 1893
E mais cinco com epitaphios completamente illegiveis. Há outras ainda, apenas com cruzes,
sem inscipção alguma, e ainda outras apenas com vestígios apagados de inhumações.”
902
Apesar de não mais existente na paisagem da cidade, a localização desse antigo
cemitério do Isolamento pode ser conseguida através dos mapas da época e, como poderá
ser visto na página seguinte, ele estava situado onde hoje se encontra o edifício da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na Av. Dr. Arnaldo.
vagar dessa questão no item 5.5 deste capítulo.
arela que fizera algumas vítimas na Capital, o governo
900 - Trataremos com mais
901 - Em 1892, e diante da ameaça da epidemia de febre am
do Estado recomendou ao município que esses cadáveres não fossem enterrados no cemitério da Consolação e sim
“no cemitério anexo ao Lazareto de variolosos.” Mediante essa indicação, o médico e vereador Bráulio Gomes chegou a
cogitar no aumento da área daquela necrópole. Veja A. C., sessão do dia 21/05/1892, Vol. manuscrito, p. 45 verso.
902 - Coleção “Ofícios Expedidos” de 1919 do antigo Hospital de Isolamento; acervo em catalogação custodiado
pela Divisão Administrativa do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e disponível no “Serviço de Informação e
Documentação Científica” (Biblioteca) daquele Instituto, uma cópia desta Relação (s/data) nos foi gentilmente
cedida pela sra. Fátima Aparecida Chiuratto.
408
Fig.58: Região no entorn
ocupada pelo Hospital
cemitério destinado aos
o da antiga Av. Municipal – atual Dr. Arnaldo – em 1913. Destaque para a área
de Isolamento onde, à esquerda dos prédios principais, encontrava-se o
mortos por doenças contagiosas (terreno marcado com uma cruz).
Fig. 59: A mesma região em 1924. Neste mapa a área em destaque aparece referendada como “Cemitério”
409
Tudo indica que o cemitério do Isolamento esteve aberto até pelo menos o ano de 1897,
época em que foi construído o cemitério do Araçá. E de fato não havia mais razão para a
manute
mos sublinhar novamente que tais hospitais, ou isolamentos, eram destinados
preferencialmente aos
suficientes para tratá-l
metiam medo, já que
dirigidas. Porém, é pr dos bexiguentos recebiam
sse tratamento senão, também, aqueles afetados por outras moléstias que, visivelmente,
idas parecidas com aquelas antes aplicadas aos mortos pela varíola
ram
nção daquele, já que uma área especial para esses casos foi reservada no novo
cemitério: era o quarteirão de nº 69, chamado a partir de então de “Quadra das moléstias
contagiosas”. Em janeiro de 1900, por exemplo, já estavam ali sepultados cerca de 150
cadáveres.
903
Deve
mais pobres, ou para aqueles que não possuíam famílias com posses
os em casa. E eram justamente os corpos dessa camada social que mais
muitas das regras aqui especificadas para segregação a eles eram
eciso salientar que não apenas os cadáveres
e
marcavam o corpo, a exemplo da lepra:
“O Sr. Presidente fez ver à Câmara que, tendo-se dado o caso de falecer um
lazarento no respectivo Hospital, e de véspera, e com quanto o Regulamento
do Cemitério público não autorize o enterramento de cadáveres desta
natureza fora dele, com tudo parecendo-lhe impossível de fazer por não haver
quem quisesse incumbir-se no actual cemitério pelo máo e adiantado estado
de putrefacção, annuiu que fosse feito no cemitério dos lázaros.”
904
A corrupção do corpo aqui citado pelo presidente da Câmara não se refere ao tempo
em que o morto ficou insepulto, pois o doente, como é informado, faleceu na “véspera”,ou
um dia antes da recusa de seu cadáver no cemitério da Consolação. Nesse caso, a repulsa foi
devido ao estado avançado da doença, e tanto que nem mesmo os coveiros, tão acostumados
a esse tipo de trabalho, quiseram se encarregar do enterro.
Na década de 1890, e diante da eminência de um surto de febre amarela que já atingia
o interior do Estado, med
fo recomendadas, tendo solicitado tanto o Inspetor de Higiene do Estado, quanto o
Intendente de Polícia e Higiene municipal que “não fossem conservados por muitas horas no
centro da cidade os cadáveres de pessoas falecidas de febre amarela.”
905
E se persistiam os receios diante dos corpos insepultos atacados por males epidêmicos,
após a inumação todos os cadáveres – sem qualquer exceção – eram considerados como
altamente ameaçadores. Daí a estipulação de algumas regras para as exumações que, com
903 - Livro de Inumação do cemitério do Araçá, 1900, vol. 33, fl. 201 e seguintes.
904 - Informação do presidente da Câmara, A. C., sessão do dia 10/11/1859, p. 190
905 - A. C., sessão do dia 27/03/1890, p. 90.
410
bastante freqüência, passaram a ocorrer no cemitério, e isso seja visando a mudança dos
restos mortais de um túmulo para outro, de uma cova rasa para um túmulo, ou mesmo para a
transladação dos ossos até outras localidades.
906
Para esses casos, o Regulamento do
Cemitério estipulava que “a abertura das covas para novas sepulturas somente poderia ter lugar
depois de passado o tempo que, pela experiência, se julgar necessário para completa consumação dos
corpos, segundo a natureza do terreno,
mas nunca antes de cinco anos.”(meu destaque)
907
Ocorre,
porém, que este prazo de cinco anos nem sempre foi respeitado a não ser no caso dos mortos
pela varíola, como vimos. Para os demais, e por várias vezes, a municipalidade chegou a
autorizar a abertura das sepulturas decorridos 4 ou 3 anos após a inumação, conforme deixa
ansparecer o ofício de José Gomes de Faria, administrador do cemitério em 1869:
annos de que
tracta o Regulamento pode-se ou não fazer a exumação, informa que a vista
tr
“Ofício de José Gomes de Faria, administrador do cemitério público datado
de 12 do corrente communicando que na informação que havia dado acerca
da exumação pedida no requerimento do Doutor Moura Câmara, não tractou
de referir-se ao art. 18 do Regulamento, porque tem sido de costume seu
informar unicamente o dia, mês e anno do falecimento e da sepultura dada,
porém como a Câmara lhe ordena que informe se antes dos 5
do art. 18 entende que se não poderia fazer;
mas tendo as Câmaras transactas
por várias vezes mandado fazer exumações antes do prazo de 5 annos,
achando-se sempre consumidos os cadáveres e sommente as ossadas, julga
que nenhum inconveniente haverá em que esta Câmara mande proceder a
que ora se requer.”
908
(meu destaque)
De fato, algumas exumações ocorreram antes do prazo estipulado, mas havia um
limite e, como pudemos verificar, as autorizações nunca foram concedidas antes de passados
dois anos do sepultamento. Exemplar nesse caso foi a solicitação de Francisco José de Lima
que, em dezembro de 1859, comprara uma sepultura perpétua no cemitério. Ocorre que
meses antes, sua esposa falecera e fora sepultada na “Quadra Comum”, e agora desejava ele
transladar para a dita sepultura os restos de sua finada.
909
Mas tendo em vista o fato de que
este era o primeiro pedido que chegara para realizar uma exumação (o cemitério fora aberto
06 - A p
junho de 1865” (A. C., 01/07/1869, p. 165 e 166) ou a de José Maria Largacha, que pedia a “exumação do cadáver de
sua esposa D. Joaquina Amália Xavier Largacha e de sua filha menor de nome Maria, afim de serem seus restos conduzidos ao
cemitério de Santos, onde reside sua família.” (A. C., 28/05/1874, p. 82).
907 - Regulamento para os cemitérios da cidade de São Paulo, Capítulo III, Art. 18.
908 - Este ofício do administrador informava justamente o pedido de Gustavo Balduino de Moura Câmara que
solicitava a transferência dos restos mortais de Afonso Henrique de Souza Ribeiro de São Paulo para Porto Alegre
(conf. citado na nota 361). Como o sepultamento havia ocorrido no dia 22/06/1865, questionava-se se o prazo de 4
anos seria suficiente, posto que o pedido estava sendo feito em julho de 1869. Após as ponderações do
administrador do cemitério, os vereadores autorizaram a exumação. Veja A. C., 15/07/1869, p. 178.
9 artir de meados da década de 1860, diversas foram as solicitações para a transferência de restos mortais
para outras cidades como, por exemplo, a do dr. Gustavo Balduino de Moura Câmara, que desejava “traspassar
para a cidade de Porto Alegre os restos mortais do falecido Afonso Henrique de Souza Ribeiro, sepultado no cemitério em 22 de
411
em agosto de 1858) e certamente pela falta de experiência nesses casos, o médico da Câmara
foi convidado a dar um parecer:
“Ilmos. Srs.: Em portaria de 13 do corrente, ordena-me V. Exa. que informe
sobre a pretensão do suplicante. Com quanto seja ela justa, não pode todavia
ter lugar agora, porque faz apenas seis meses que foi sepultada, está portanto
o cadáver agora em estado de putrefação = e por isso
desenvolverá gazes que
fará imediatamente sucumbir aquele que tiver de desenterra-la. Em todos os
cemitério públicos, tem-se tomado o termo médio de 2 anos para se poder
fazer estas transladações por isso julgo que antes deste tempo não se poderá
fazer, sem perigo de vida. Candido Ribeiro da Silva – Cirurgião Mor.”
910
A
entação médica, ou seja, a de
ue os cadáveres eram um risco aos vivos tendo em vista os “gases” – ou miasmas,
poderíamos dizer – q tivessem nas
proximidades. O cirur
corrente teórica da qua
produzidos pelos cadá
se proibissem os enter
céu aberto longe da cid
epultados não fossem mesmo aprovadas. De qualquer forma, e subjacente a todo esse
rocess
Seja em época de epidemias, seja em períodos normais, torna-se imperativo o
sepultamento do cadáver. Esta evidência inequívoca explicita uma outra verdade, ou seja, a
a inquietação, um sentimento ambíguo que
sendo estes últimos representados somente pelos ossos.
Decorrido um determinado
petição de Francisco José de Lima, por fim, foi negada, reforçando os vereadores em
seu despacho que, para se “fazer transladações de cadáveres, era preciso que se passassem pelo menos
dois anos” desde o sepultamento.
911
Não obstante o fato de que aqui uma regra do
Regulamento do Cemitério estava sendo desconsiderada (abrindo um precedente de que faria
menção o administrador Faria em 1865), cabe analisar a argum
q
ue afetariam mortal e imediatamente aqueles que es
gião Candido Ribeiro da Silva, médico da Câmara, explicita assim a
l fazia parte, ou seja, ele era um infeccionista. Na verdade, os miasmas
veres foram a grande motivação para que, em meados do século XIX,
ramentos nas igrejas e, conseqüentemente, se edificasse um cemitério a
ade. Assim, era de se esperar que exumações de corpos recentemente
s
p o, estava o medo provocado pelos corpos sem vida.
de que o corpo sem vida provoca sempre um
combina sensibilidades afetivas, mas também receios. Uma certa indiferença somente será
conseguida bem mais tarde: dois, três, cinco anos, ou quando restarem apenas os ossos; não
antes. Daí que, no século XIX, havia uma clara diferença entre “cadáver” e “restos mortais”,
912
909 - A. C., sessão do dia 03/12/1859, p. 201
910 - Coleção “Papéis Avulso” do A.H.M, 1860, Vol. nº 188, documento nº 81.
911 - A. C., 03/02/1860, P. 34.
912 - Tal definição aparece com clareza num relatório apresentado pela Comissão Permanente da Câmara
Municipal para o esclarecimento de algumas dúvidas suscitadas pelo administrador do cemitério em 1869. Ali o
funcionário perguntava sobre a “retirada de cadáveres do cemitério”, no que foi alertado pelos vereadores de que
o termo não estava correto, pois tratava-se da exumação de “restos mortais” ou das “ossadas achadas nas
sepulturas abertas”. Veja A. C., sessão do dia 03/07/1869, p. 173 a 173.
412
período, conseguia-se a neutralização dos perigos e, em certa medida, também um
abrandamento dos vínculos emocionais. A morte, portanto, somente será completa quando do
desaparecimento da matéria e, daí, os processos de mumificação em antigas culturas ou dos
embalsamamentos mais recentes: mediante determinados processos, susta-se a decomposição, o
corpo mantém suas feições e, por isso, consegue-se uma sobrevida do morto.
913
E esta concepção de que os ossos (ou os restos mortais) pouco representavam não
estava apenas no ideário médico senão também nos cânones católicos, mas por outro motivo.
Santo Agostinho, por exemplo, e numa dura crítica às pompas funerárias e ao costume de se
enterrarem os mortos junto às relíquias de Santos (costume este passado depois para o
interior das igrejas), disse textualmente que “as providências relativas aos funerais, escolha de
sepultura, pompa de enterro, tudo isso é mais para o consolo dos vivos do que alívio para os mortos.”
914
E indo além, alertava que o bom cristão não deveria preocupar-se com os cadáveres como
faziam os pagãos, pois que o corpo morto não conserva qualquer sensibilidade: “qualquer que
seja o tratamento a ele infligido, de nenhum efeito será, visto que um corpo privado da vida, que se
separou dele, nada pode sentir.”
915
E a “vida” nesse caso, era a alma:
“Pouco importa que um corpo sem vida esteja aqui ou lá. O essencial é que a
alma encontre seu repouso. Deixando este mundo, ela leva consigo a
consciência da sorte que lhe é reservada, para a felicidade ou para o
infortúnio. Não é da carne que a alma espera ajuda para a sua vida futura. É
ela que lhe comunica a vida, aqui na terra. Partindo, ela a retirou. Ao voltar,
ela lha devolverá. É a alma que prepara para a carne o que lhe será devido no
momento da ressurreição. E o corpo, ela o fará revivificar-se, seja para o
castigo, seja para a glória.”
916
O corpo, portanto, pouco significaria depois da morte já que desprovido da alma. Os
quando possíveis de serem realizados – eram atos de piedade
na salvação. De fato, ele julgou que mesmo a
ausência de qualquer sepultura não tocava em ada o destino do defunto.
917
O que realmente
importava, ensinava Santo Agostinho, eram os atos praticados em vida e mesmo as orações,
“as súplicas feitas pelos fiéis pelos defuntos que eles
terem merecido, durante a vida, beneficiar-se depois da morte.”
918
Em suma, explicava o pregador,
funerais, os sepultamentos –
cristã e até um dever, mas em nada ajudariam
n
lhes são caros, serão úteis a estes, só no caso de
caso a alma fosse beneficiada pelo enterro privilegiado do corpo, “bastaria alguém ter dinheiro
suficiente para comprar uma sepultura bem colocada. Seria, portanto, distinguir mais uma
913 - A esse respeito veja a esclarecedora análise de Philippe Ariès (1988), Vol. II, Capítulo 8 “O corpo morto”.
914 - Santo Agostinho, “O cuidado devido aos mortos (De cura pro mortuis gerenda)”; S.P.: Paulos (2002), p. 159.
915 - Idem ibidem, p. 170
916 - Idem ibidem, p. 165 e 166.
917 - Idem ibidem, Julgamento crítico, p. 145.
918 - Idem ibidem, p. 163
413
vez os ricos em detrimento dos pobres, até no além.”
919
Como sabemos, os alertas de Santo Agostinho no ano de 421 (época em que ele
escreveu o opúsculo “De cura pro mortuis gerenda”) não foram de todo seguidos, mas pelo
menos uma relação entre seus ensinamentos e o tratamento dispensado aos corpos sem vida
em São Paulo na primeira metade do século XIX pode ser observada, ou seja, antes da
existência do cemitério da Consolação, e numa época em que os enterramentos estavam ainda
sub a tutela da Igreja, verifica-se que havia um certo descaso para com os cadáveres, seja num
curto período, logo após o sepultamento, ou mesmo depois, quando apenas ossos restavam. E
mais ainda, fossem eles ricos ou pobres.
Nas igrejas mais abastadas da cidade como as do Convento e Ordem 3ª de São
Francisco e 3ª do Carmo (as que cobravam o preço mais alto pelas covas) estavam, em 1851,
com suas sepulturas cheias e como não recusavam “aceitar cadáveres, abriam aquelas fora de
óprio vigário em 1855 que ali ...
que alguns ossos humanos sejam resepultados.”
922
individualidade. A movimentação era uma constante e sempre devido aos novos
tempo, fazendo inumações em lugares que não são próprios, desenterrando corpos muitíssimo
extemporaneamente, e sepultando novos quase a flor da terra, em covas que a pouco foram ocupadas, e
que ainda o estão”, denunciou o delegado de polícia.
920
Em agosto 1858, poucos dias antes da
inauguração do cemitério da Consolação, era a igreja de Santa Ifigênia que estava repleta e
sendo seu terreno “em extremo escasso, tem se tirado alguns cadáveres sepultados a pouco dias para
lançar conjuntamente outros na mesma cova”, relatava o governador da Província aos vereadores
da Câmara.
921
Nas paróquias mais distantes como a Freguesia do Ó, nada de muito diferente
ocorria, informando o pr
“... os corpos eram sepultados no interior e no pátio da igreja Matriz,
acontecendo por muitas vezes amanhecerem escavadas algumas sepulturas
por cães (...) e que, além disso, era o pátio um lugar por onde passava uma
estrada, lugar íngreme, onde correndo as águas com impetuosidade, tem feito
Apesar de poderem ser vistos como relatos de horror, uma vez que todos eles foram
produzidos na década de 1850, período este em que tais argumentos muito serviram para
viabilizar a proibição dos sepultamentos religiosos e a conseqüente construção do cemitério
público, o que mais se percebe é que, até então, o cadáver não possuía qualquer
919 - Idem ibidem, p. 145 e 146.
920 - Coleção “Papéis Avulsos”, 1851, Vol. 157, doc. nº 118
921 - A. C., sessão do dia 05/08/1858. OBS: foi a partir justamente dessa reclamação do governador da Província
que os vereadores tomam a decisão de abrir o cemitério da Consolação. Apesar de não estar ainda com suas obras
totalmente concluídas, foi deliberado que “se publique por editais que do dia 15 do corrente em diante fica aberto o
Cemitério da Consolação e proibidos os enterramentos em outros lugares.Idem, ibidem.
922 - Coleção “Papéis Avulsos”, 1855, Vol. 173, doc. nº 113.
414
sepultamentos; as covas comuns eram a regra, especialmente no pequeno cemitério dos
Aflitos, este também administrado pela Igreja. No que toca aos templos paulistanos, podemos
perceber que, na prática, decorridos alguns meses depois do sepultamento, os cadáveres não
eram merecedores de tantos cuidados. Claro que essa “movimentação” vinculava-se também à
possibilidade da cobrança de novas taxas mediante a retirada de um corpo para o sepultamento
de outro; em grande medida, as finanças dos templos dependiam desse expediente.
Vale observar que pouquíssimos eram aqueles que conseguiam no interior das igrejas
paulistanas covas privilegiadas como aquelas próximas dos altares, posto que custavam
verdad
desta vila e todos os clérigos que nela se acharem, como também os religiosos de
com as centenas de missas que solicitou, bem como
com o acompanhamento das irmandades e confrarias, pagou somente pela cova a quantia de
120$000 Réis. Ou seja
pagamento anterior),
nada desprezível, post
ada em
apela Mor mereceu uma especial autorização, posto que ali somente poderiam ser
enterra
depois seus restos foram dali removidos. Em 1755, o comissário Frei Inácio do Nascimento,
considerando determinação recente da Sé Apostólica, retirou os ossos de Catarina “por ser
proibido celebrar-se missa em altar debaixo do qual esteja enterrado corpo de defunto” e por este
eiras fortunas. E mesmo que assim fosse, passadas algumas décadas nenhuma garantia
existia de que o morto ainda ali estivesse. Dentre os inúmeros exemplos documentados, vale
citar o de D. Catarina da Silva, rica dama paulistana, casada com o português Gonçalo Lopes.
Conforme o testamento que elaborou em 1693
923
, ela já se encontrava viúva e, temendo a
morte próxima, declarou que desejava ser sepultada na cova de seu marido na igreja da
Ordem Terceira de São Francisco:
“Meu corpo será sepultado na capela de meu Padre São Francisco com o hábito
da sua sagrada religião, e levado á sepultura com todas as cruzes das confrarias
Nossa Senhora do Carmo e a Irmandade das Virgens, de que sou irmã, e peço ao
Senhor Provedor e Irmãos da Mesa da Santa Misericórdia acompanharem meu
corpo na sua tumba e toda a Irmandade, e com a bandeira da mesma Santa Casa,
como irmã que sou.”
924
Falecida no ano seguinte, todas as disposições constantes em seu testamento foram
seguidas e, além do considerável gasto
, apesar de seu marido já estar lá enterrado (o que pressupõe um
para o seu sepultamento uma nova taxa foi exigida. E o valor não era
o que no inventário a casa de “três lanços” em que Catarina residia na
180$000 Réis.
925
Aliás, o sepultamento de Catarina da Silva no chão da
cidade foi avali
C
dos os ministros da Ordem, o que não era o caso de Catarina.
926
Não obstante toda essa preparação, bem como as ordens especiais emitidas, décadas
923 - Coleção Inventários e Testamentos do Arquivo do Estado, Vol. 23, p. 223 a 307
924 - Idem ibidem, p. 230
925 - Idem ibidem, p. 243 e 280.
926 - Valladares, Clarival do Prado (1972), Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros, Vol. I, capítulo 5
415
serviço pagou a dois pretos duzentos Réis. Os seus restos, bem como os de seu marido e dos
demais irmãos ali sepultados foram então “ajeitados” em outro espaço da Capela Mor
927
,
comprometendo-se apenas que naquela “sepultura não se sepultaria mais irmãos porque nela
estavam os ossos da Irmã Catarina da Silva, conforme anotou um escrivão no Livro de Óbitos da
igreja. Entretanto, tal disposição de nada valeu, posto que outro assentador de óbitos logo
escreveu à margem daquela anotação que “Este assento não vale nada ... e há de continuar ser
enterrado quem for quem lhe toque.”
928
Para o sepultamento no interior das igrejas, portanto, pagava-se uma taxa que variava
de acordo com o espaço escolhido, mas a cova nunca era uma “propriedade” privada. Assim,
o cemitério público, com suas covas separadas e a possibilidade de aquisição (até perpétua)
de jazigos, muito se adequava aos novos moldes burgueses, até porque possibilitava a
construção e o culto de uma memória individual que, na igreja, não seria possível.
929
E mesmo
para os mais pobres, sepultados gratuitamente nas Quadras Gerais ou Comuns da nova
necrópole da Consolação, havia a possibilidade de se colocarem “pequenas grades de madeira e
havia sido sepultado, algo impossível de ser realizado antes no interior das igrejas.
Por razões diferenciadas, e passados mais ou menos tempo, os restos mortais pouco
uma cruz, também de madeira” que serviriam para demarcar e sinalizar o local onde o corpo
930
representavam. Para a Igreja, e apesar do sepultamento ser considerado um ato de piedade
cristã, o corpo sem vida não era algo a ser valorizado, pois o que importava era a alma – e
aqui lembremo-nos dos ensinamentos de Santo Agostinho. Assim, e decorridos poucos meses
do enterro, já era possível devassar as covas nos templos. Já na segunda metade do século
XIX, e certamente pela influência cada vez maior da medicina acadêmica, o corpo era motivo
de tensões até que completasse um ciclo de dois a cinco anos e, exceto para as vítimas de
enfermidades epidêmicas, decorrida essa quadra os malefícios que os cadáveres poderiam
causar estariam neutralizados.
931
A morte total do corpo seria então alcançada, posto que
atenuados estariam todos os incômodos.
Mas o efêmero, ou a transitoriedade do corpo não obstava – especialmente para os
mais ricos – a possibilidade de, literalmente, construir marcos mais duradouros ou, de uma
memória, que sobrepujasse a morte física.
“Sepultamentos da igreja de S. Francisco da Penitência de São Paulo”, p. 141.
927 - Valladares (1972), p. 143
928 - Idem ibidem p. 144
929 - Trataremos com mais vagar desse tema no próximo item.
930 - Regulamento do Cemitério, Artigo 7º. Neste mesmo artigo, garantia-se que tais cercados e cruzes poderiam
ser conservados por 3 anos.
931 - A neutralidade alcançada após a extinção da matéria, deu motivos a que o esqueleto pudesse ser utilizado e
manipulado de diversas formas, sem causar tanta apreensão ou horror. Nesse estado, a não conservação das
feições humanas seria outra grande motivação para caracterizá-lo como inofensivo, como veremos com mais
detalhes no item 5.5 “Tensões e ambigüidades: o retorno dos mortos”.
416
5.3 – Memórias, lembranças e esquecimentos.
obrigada a exhumar os restos
“No caso de vir a fechar-se o cemitério, a administração deste será
mortaes existentes nos terrenos de
concessão perpétua, e collocá-los no novo cemitério por forma que se
perpetue nelle a
memória da pessoa ou pessoas a quem os mesmos
restos mortaes pertencerem.”
932
(meu destaque)
No dia 3 de julho de 1894, chegava à municipalidade paulistana uma representação da
colônia francesa residente na Capital “solicitando da Câmara uma área de terreno no cemitério da
Consolação para erigir um monumento que perpetuasse a memória de Sadi Carnot.”
933
Em condições normais, tal requerimento passaria ainda por algumas discussões até ser
ou não aprovado nas sessões seguintes, o que demandaria um tempo não inferior a 15 dias – e
so nos
Resolução de nº 51 e através da qual autorizou-se a concessão “de uma área de terreno de
is casos mais urgentes. Porém, não foi o que ocorreu com este pedido. Na mesma sessão
do dia 3 de julho, os vereadores João Antonio Julião e Carlos Garcia consideraram de máxima
prioridade a representação e pediram que, imediatamente, fosse discutido o seguinte projeto:
“Indicação nº 53:
Fica o Intendente municipal autorizado a conceder no cemitério
numa área de trezentos palmos quadrados, independente de
qualquer retribuição, para a creação de um monumento a Sadi
Carnot.”
934
Consultados os demais vereadores sobre a relevância e urgência da indicação, todos
concordaram. Ato contínuo a mesma foi aprovada, rapidamente e sem qualquer discussão,
por unanimidade de votos. Enviada então ao intendente municipal, o projeto deu origem à
932 - Regulamento para os cemitérios da cidade de São Paulo, 1858, Capítulo I, Art. 9º, § 3º.
933 - A. C., sessão do dia 03/07/1894, volume manuscrito, p. 364
934 - Idem, ibidem, p. 371
417
quatorze metros e quarenta centímetros quadrados (14m
2
, 40) no cemitério da Consolação,
independente de qualquer retribuição, para a criação de um monumento a Sadi Carnot.”
935
Pouco tempo depois, um grandioso cortejo tomaria as ruas de São Paulo. E tamanha
foi a importância do ato que ele mereceu inúmeros registros, inclusive fotográficos.
Organizado com pompas dignas de um chefe de Estado, o préstito reuniu centenas de
pessoas que, do centro da cidade, seguiam em direção ao cemitério da Consolação. Na sua
organização, o séquito era precedido por uma banda de música em uniforme de gala. Em
seguida, senhores de fraque e cartola se encarregavam das coroas de flores acomodadas numa
espécie de esquife – este empunhado a quatro mãos. Logo depois, mais componentes da
banda e uma comissão de pessoas ricamente trajadas. Por fim, tudo se confundia com a
multidão ao lado e mais atrás, a perder de vista, na rua 15 de Novembro.
Fig. 60
Manifestação à mem
O préstito passa pela rua 15 de Novembro
ória de Sadi Carnot .
em direção ao cemitério da Consolação.
935 - Resolução nº 51 de 10/07/1894, “Leis, Resoluções e Atos da Câmara Municipal de 1894 a 1895”, S.P.: Casa
418
Já no cemitério, uma nova fotografia registrou a inauguração do monumento: o busto
e Sadi Carnot foi entronizado no topo de um pedestal, este construído aos moldes dos ricos
mausoléus que já se d
d
estacavam na área nobre daquela necrópole.
Fig. 61
Inauguração do monumento a Sadi Carnot no cemitério da Consolação em 1894. A assistência se
aglomera em volta do pedestal, este encimado pelo busto do homenageado.
936
François Marie Sadi Carnot (5º presidente da III República francesa) faleceu após
sofrer um atentado, no dia 24 de junho de 1894, na cidade de Lyon. Os golpes fatais foram
esferidos pelo anarquista italiano Santo Geronimo Caserio que, por este ato, foi condenado à
orte, sendo guilhotinado no dia 16 de agosto de 1894.
Sob comoção geral, o corpo de Sadi Carnot foi levado a Paris. As cerimônias fúnebres
ocorreram na catedral de Notre Dame e o sepultamento verificou-se no dia 1º de julho de 1894
no monumento conhecido como Panthéon, dedicado aos heróis franceses e onde, aliás, já
estava inumado o seu avô Lazare Carnot, considerado um grande cientista, político e
d
m
Vanorden, 1915, p. 82.
936 - Em visita de estudos que realizei no cemitério da Consolação no mês de abril/2007, verifiquei que o busto de
Sadi Carnot ainda se encontra no mesmo local (na Quadra 26, terreno 35); entretanto, o terreno foi vendido para
particulares que construíram um túmulo familiar. A base original não mais existe, trocada que foi por uma coluna
de mármore em estilo grego. Conforme informações do Sr. Francivaldo Almeida Gomes, funcionário da necrópole
e atualmente responsável pelas visitas monitoradas ao cemitério, o Dr. Délio Freire dos Santos já o havia alertado
para o busto de Sadi Carnot dizendo tratar-se de uma “pessoa muito importante, um presidente”, conforme suas
palavras. Advogado e historiador falecido em 2002, o Dr. Délio foi durante muitos anos o responsável pela
Comissão Municipal de Identificação de Jazigos com valor histórico, trabalho pioneiro iniciado na década de 1980
e cujo resultado hoje serve de base às visitas monitoradas. O Dr. Délio exerceu também o cargo de administrador
daquela necrópole na década de 1990.
419
estrategista militar.
Tendo em vista a trágica ocorrência, inúmeras manifestações de condolências foram
enviadas por diversos países ao povo francês e, em São Paulo, parte da sociedade se
poderiam querer transmitir uma outra mensagem.
ar nossas
inalizar que o perigo não estava apenas em Paris, mas ao contrário,
também na capital paulista. E eis o perfil amplamente divulgado do assassino: ele era italiano
e anarquista.
Naquele momento, a existência de anarquistas entre os operários italianos de São
Paulo não era ignorada. Um ano antes, entre julho e agosto de 1893, por exemplo, o jornal
Correio Paulistano publicou uma série de quatro reportagens com o título “Imigrantes
Anarquistas”, através das quais alertava para a presença dessas pessoas qualificadas como
“chefes partidários” de uma terrível seita destruidora que buscavam ...
“... penetrar nesta grande e hospitaleira terra que se chama o Estado de São
Paulo, usufruindo as vantagens que nossos cofres públicos lhes dão, tais como
o transporte gratuito (...) e o seu primeiro estabelecimento na capital, até que
lhes apareçam as ambicionadas colocações, para no fim das contas virem aqui
implantar a desordem e um luta fraticida, incompatíveis com a abundância e
a excelência dos nossos recursos de vida.”
937
mobilizou para edificar, no cemitério da Consolação, um monumento em memória ao
presidente francês. Não sem antes preparar, como vimos, uma grande manifestação ou quase
que uma representação dos funerais que ocorreram em Paris.
Não obstante o monumento em si, bem como o local escolhido para sua ereção (tema
que trataremos a seguir) as imagens do cortejo chamam a nossa atenção pelas circunstâncias
em que ocorreram, ou seja, com pompas, uma ostentação que nos parecem exageradas, até
porque o corpo do ex-presidente francês já se encontrava sepultado a uma longa distância, em
Paris. Nesse sentido, a exterioridade que tais cerimônias ganharam em São Paulo bem
Num primeiro momento, poderíamos atribuir tais acontecimentos à presença e
influência dos franceses (e da França) no Brasil e, em particular na comunidade paulistana
daquele período. Mas, arrisco dizer, não apenas este fato deve ser considerado. Para entender
as manifestações em memória a Sadi Carnot na São Paulo de 1894, devemos volt
atenções não apenas para figura do ex-presidente francês senão, também, para seu assassino.
De fato, alguns aspectos da cerimônia como a presença de banda de música, bem
como o trajeto pelas ruas mais importantes da cidade, visavam claramente angariar a
simpatia popular e s
937 - Correio Paulistano, 30/07/1893, p. 1, Apud: Lopreato, Christina Roquette; O espírito das leis: anarquismo e
420
Naquele mesmo ano 20 pessoas foram presas e identificadas como “anarquistas” e
outras 10 como “anarquistas e socialistas”. Já em 1894, e certamente sob o impacto da morte
do presidente francês, o chefe de polícia de São Paulo registrava em seu relatório que as
medidas mais importantes que tomara se referia a “essa perigosa classe de indivíduos (...) que
celebravam conferências públicas visando o desenvolvimento da tenebrosa doutrina na sociedade
paulista, obrigando-o a vigiar e a observar os indivíduos denunciados como adeptos extremados da
perigosa seita e em momento oportuno apreende-los em seus planos e frustrar de pronto a realização dos
seus sinistros intentos.”
938
Nesse cenário, as manifestações a Sadi Carnot em São Paulo ganham outros
significados. Foi um ato de desagravo e, também, um alerta, posto que possíveis “Caserios”
bem poderiam estar presentes, por exemplo, entre os operários italianos que trabalhavam nas
fábricas do Braz. Daí que também se explicam as rápidas medidas tomadas pela
municipalidade paulistana que, imediatamente, concordou e ofereceu um terreno no
cemitério da Consolação para a edificação de um monumento que perpetuasse a
memória do
ex-presidente francês em São Paulo.
939
Mas, e por que no cemitério?
Desde que se aventou a possibilidade da construção de um cemitério público a céu
aberto em São Paulo – este conjugado com proibição dos enterramentos nas igrejas – muitas
discussões ocorreram. A proposta nunca alcançou unanimidade e, por isso, um longo tempo
foi necessário para que a obra viesse a ser concretizada. Apresentado o projeto pela primeira
vez na Câmara Municipal em 1831, somente em 1858 o cemitério seria aberto.
940
E mesmo
depois, logo após a sua inauguração, não poucas vozes se levantaram contra a sua existência e
contra as novas práticas de sepultamentos.
As reclamações mais comuns que chegavam à imprensa e aos vereadores a respeito
do cemitério, diziam respeito ao despreparo dos funcionários nomeados pela Câmara que
ora recusavam dar sepultamento a algum corpo, ora o faziam com desleixo. Em setembro
de 1858, por exemplo, e nem decorrido um mês desde a abertura do cemitério, o delegado
repressão política no Brasil; In: Revista Verve, nº 3, 2003, p. 77.
938 - Idem ibidem.
939 - A partir desse capítulo utilizarei com freqüência os termos “memória” e “monumento”. Nesse sentido,
esclareço que a partir das fontes consultadas e especificamente no que toca à morte e aos ritos funerários, a
memória estará aqui definida nãoapenas enquanto
lembrança – de algo ou de alguém que não mais esteja presente
– senão também com o sentido de “comemoração” ou
homenagem. E é sob esse aspecto que se torna fundamental
a presença de diversos elementos (objetos inclusos) que, ao se articularem, facilitam e tornam possível um culto à
memória. Os monumentos ou “memoriais” estariam então nessa categoria, já a serviço da memória e contra o
esquecimento, portanto.
940 - As análises sobre esta questão encontram-se em minha Dissertação de Mestrado “Sepultamentos na cidade
de São Paulo: 1800-1850”, PUC-SP., 1995.
421
de polícia informava aos vereadores que não recebera qualquer denúncia, mas ...
“... vagamente ouvira dizer que em uma ocasião, levando-se um cadáver para
ser sepultado e não sendo encontrado o porteiro e nem a entrada do cemitério
aberta, levaram o corpo para dentro por cima do muro, e que em outra o
porteiro exigira para receber o corpo o pagamento de emolumentos, e como o
portador do cadáver não tivesse o dinheiro, vencera a instância do porteiro
em não receber o corpo, abandonando-o dentro do cemitério; que no
cemitério não há coveiro nem recebedores de corpos, querendo o porteiro que
os portadores abram as covas e os sepultem. Devo porém declarar que não me
foi possível descobrir com que pessoas tais fatos se deram e se eles são
verdadeiros, pois por maledicência e indiscrição, todos nesta terra falam
demais (...) porém para auxiliar a justiça, todos negam-se e ocultam
vergonhosamente a verdade, como infelizmente por observação tenho
reconhecido.”
941
O delegado claramente nos faz ver que pessoas ou grupos contrários ao cemitério
estavam a agir, espalhando boatos aqui e ali de forma anônima, não sendo possível para ele
descobrir a verdade. Mas tal campanha, tudo leva a crer, estava sendo comandada
principalmente por alguns membros de irmandades e confrarias (senão por elas próprias),
pois algumas delas possuíam privilégios nesse campo, inclusive financeiros, que foram
derrogados com a existência do cemitério.
942
De qualquer forma, alguns casos vistos como verdadeiros escândalos ocorreram nos
primeiros meses logo após a abertura da nova necrópole, e estes foram perfeitamente
documentados, inclusive com testemunhas que não se furtaram a falar. O primeiro grande
problema referia-se ao horário de funcionamento ou, mais especificamente, ao horário de
fechamento do cemitério. Em períodos no m epidemias) ele era aberto às 6 horas da
manhã, sendo que seus portões eram cerrados às 18 horas no verão, e às 17 no inverno. Eis
aqui uma prática que demandava um novo aprendizado, pois antes, nas igrejas, os horários
não eram tão rígidos, posto que se aceitavam corpos à noite. E foi justamente o que ocorreu
com Caetano José de Oliveira que, querendo sepultar sua filha Tereza de um ano de idade,
mandara abrir uma cova na tarde do dia 9 de setembro de 1858. Chegando o cortejo no
rmais (se
941 - Ofício do delegado Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça ao governador da Província, Coleção
Papéis Avulsos, 1858, documento s/nº datado de 09/09/1858
942 - As maiores reclamações que se apresentavam nos jornais eram justamente com respeito ao privilégio dado
pela municipalidade ao empresário Joaquim Marcelino da Silva para a condução dos cadáveres e, também, por
algumas taxas cobradas no cemitério. Deve ser lembrado que, até então, esse mesmo privilégio (no que tange à
armação da residência para os velórios e transporte dos corpos para as igrejas) era da Irmandade da Misericórdia.
Um grande indício de que a Misericórdia era a irmandade que mais atuava contra o cemitério – ou contra as bases
em que ele se organizara – é que, já na década de 1870, e após o término do contrato entre a Câmara e Marcelino, o
privilégio foi novamente entregue a esta irmandade que, por sua vez, o repassou para as mãos de terceiros, não
sem grande lucro.
422
cemitério entre 17h30 segundo algumas testemunhas, ou às 18 horas, conforme outras, o fato
é que os coveiros recusaram-se a fazer o enterramento alegando que suas jornadas haviam
terminado. Somente com a ajuda de familiares e do administrador do cemitério, o
sepultamento finalmente pode ser realizado, tudo terminando por volta das 19h30.
943
Em janeiro de 1859, e por ocasião do sepultamento do distinto Coronel Bento Tomás
Gonçalves, uma forte chuva caía na cidade. Chegando seu corpo ao cemitério, quiseram os
familiares e amigos depositar o corpo na capela na esperança de que o aguaceiro passasse.
Mas eis que o administrador não foi encontrado e um rapaz que por ali estava disse nada
saber a seu respeito e, tão pouco, sobre chave que abriria a capela. O resultado foi que,
retirando-se o carro que o conduzira, o cadáver foi então “depositado no chão, exposto à chuva, e
sem decência alguma, cujo ato muito sensibilizou e revoltou os ânimos dos que sobrevivem, relatou o
presidente da Câmara.
944
tecimentos foram suficientes para alimentar os falatórios que corriam pela
idade e, ao mesmo tempo, serviram para fomentar a ira dos grupos contrários ao novo
cemitério que se encarregavam de espalhar novos boatos. De certo que a inexperiência com
este novo equipamento urbano provocou alguns constrangimentos, mas nada de muito
diferente já ocorria anteriormente com os sepultamentos nas igrejas ou no cemitério dos
Aflitos. A diferença agora era que os enterros estavam concentrados num único local, o que
proporcionava maior visibilidade aos problemas que ali ocorriam; por outro lado, este era um
cemitério a céu aberto, descoberto, o que o deixava sujeito às intempéries. Novas técnicas para
sepultamento deveriam, portanto, serem desenvolvidas, aprendidas e assimiladas, seja pelos
funcionários do cemitério, seja pela população. De toda forma, não apenas essas dificuldades
iniciais influenciaram para a formação de uma imagem ruim do cemitério da Consolação
nesses primeiros tempos. A grande distância da cidade (cerca de 2 Km. a partir do largo da
Sé, e 4 do Braz) provocaram inúmeras reclamações que se aliavam a uma outra questão: a
necrópole fora inaugurada às pressas, sem um mínimo de acabamento, com muros de taipas a
descoberto, sem reboco, com ruas e quarteirões apenas minimamente aplainados e sem
qualquer revestimento, terra nua, portanto, que aliada à declividade do terreno, fazia com que
as chuvas provocassem inúmeros estragos. Nessas condições a necrópole, ao tempo de sua
inauguração, nada mais era do que um grande terreno – antes utilizado como pasto para
Tais acon
c
943 - A. C., 16/09/1858, com documentação correspondente no Fundo Câmara Municipal, Série “Correspondência
Passiva – Representações Populares” (abaixo assinado s/data) e, também, na coleção Papéis Avulsos, com
documentos datados de 10/09/1858 (resposta do administrador do cemitério) e 13/09/1858 (ofícios do secretário e
delegado de polícia).
944 - A. C., sessão do dia 07/01/1859, p. 06 e 07. Outros casos parecidos foram relatados por Pagoto (2004),
423
animais – mal emparedado, sem qualquer acabamento e, por isso, muitos eram aqueles que o
definiam como uma “monstruosidade, medonho fantasma mal acabado e construído num bruto e
montanhoso pasto.”
945
Fig. 62: O cemitério da Consolação em 1864.
946
Apesar das críticas demasiadamente carregadas, posto que tinham como objetivo
desqualificar não apenas o cemitério senão também a proibição dos enterros nas igrejas, tais
análises não estavam muito longe da realidade. Quando da escolha dos altos da Consolação
para esta edificação, o engenheiro Carlos Rath avaliou, em primeiro lugar, a sua boa distância
da cidade e a posição do mesmo em relação aos ventos dominantes que varriam o núcleo
urbano. Escreveu ele na ocasião que:
“Os terrenos altos acima da Consolação (...) são os mais convenientes (...) e a
respeito dos ventos direi que o lugar que eu indico é tão alto que o seu nível
passa acima de 400 palmos sobre as torres mais altas desta cidade, sendo tal a
sua colocação que o [vento] noroeste que é, como disse, o vento que mais
especialmente no Capítulo III.
945 - Pagoto (2004), p. 117, 121 e 122. A autora utiliza-se de abaixo assinados constantes da Coleção Ofícios
Diversos do Arquivo do Estado de São Paulo, mas principalmente de matérias insertas no jornal O Publicador
Paulistano que, ao que nos parece, era o porta-voz privilegiado de grupos religiosos como algumas irmandades.
946 - Desenho baseado em litografia de Ângelo Agostini. Concepção de Reinaldo Ferreira elaborada especialmente
para esta tese.
424
constantemente reina, dá contra o morro do Caaguaçú e, a sul, passa de alto
sobre os terrenos do lado esquerdo do Campo Redondo e da Luz, o [vento]
norte dá contra o mesmo morro, e o leste sobre os terrenos por onde
atualmente passa a estrada de Jundiaí, ao lado do Caaguaçú.”
947
Daí que o critério “salubridade”, tendo em vista a teoria miasmática, foi o fator que
mais pesou na decisão pelos altos da Consolação. Em segundo lugar, entrava em questão a
qualidade do solo, essencial para promover a decomposição dos corpos. Nesse quesito, o
mesmo engenheiro tinha muito a dizer uma vez que já havia realizado algumas experiências
com relação ao “Campo Redondo” (hoje bairro dos Campos Elíseos e um dos locais indicados
para a construção do cemitério) e os terrenos da Consolação:
“A respeito do solo que devem ter os lugares destinados ao consumo e
decomposição dos corpos, é indiferente para o caso de que se trata, o
desenvolvimento de miasmas, primeiro porque estando esta cidade colocada
quase a 3.000 pés de altura sobre o nível do mar, não é natural que aqui
penetre o cólera morbus que ordinariamente não sobe a mais de 1.000 pés, e
em segundo lugar porque os terrenos úmidos que mais depressa consomem
os restos orgânicos, tais como as várzeas, são aqueles que com mais força
tempo, e mesmo faz com esses fiquem secos; nesse caso o
desenvolvimento dos gases é menos considerável, além de mais lento. As
terras barrentas, e um pouco calcária e férreas, como as da Consolação,
consomem lentamente, porém fazendo-se covas suficientemente fundas,
penetra a água fluvial, e isto contribui para o consumo mais rápido, sem
promover em energia o desenvolvimento dos gases.
948
Ao mesmo tempo em que recorria aos seus conhecimentos sobre os miasmas e os
terrenos passíveis de desenvolvê-los com maior ou menor intensidade, Carlos Rath
embasava suas análises em experiências concretas e, por isso, a sua afirmação de que as
ras da Consolação eram “pouco calcárias e férreas”. O terreno do Campo Redondo, por
sua vez
se mais e mais, dando origem a uma terra de porcelana extremamente inapropriada para
cemitérios. Assim, concluiu o engenheiro, melhor seria edificar a necrópole nos altos da
desenvolvem os gases, pelo que torna-se esse desenvolvimento mais perigoso.
Nas terras arenosas e secas, conservam-se os cadáveres algumas vezes por
mais
ter
, não era o mais adequado para a finalidade que se queria, pois ali o solo era por
demais argiloso, condição esta não propícia à decomposição dos cadáveres que poderiam
ser “conservados por até 6 anos”, segundo suas palavras. Ainda sobre o Campo Redondo,
suas análises mostraram que o solo continha saibro que, em contato com a água, infiltrava-
947 - Carlos Rath, Memória sobre os cemitérios e sobre o uso de enterrar nas igrejas e sua origem, Coleção Papéis Avulsos,
1856, Vol. 175, documento 338. Este estudo de Carlos Rath influiu decisivamente na escolha dos altos da
Consolação para a edificação do primeiro cemitério público de São Paulo que, antes, estava sendo planejado no
“Campo Redondo”, atual bairro dos Campos Elíseos. O “morro do Caaguaçú”, citado no documento, é o atual
espigão da Av. Paulista.
948 - Idem ibidem. Vale observar que, neste trecho, Carlos Rath se preocupa principalmente com as condições que
poderiam facilitar o desenvolvimento de miasmas ao mesmo tempo em que procura atenuar os receios pela
invasão da epidemia de cólera, uma grande ameaça que então se apresentava.
425
Consolação.
Mas, como ocorreram as análises empíricas de Carlos Rath e, também, que
instrumentos ou técnicas foram utilizadas para exames tão detalhados do solo paulistano?
Nesse caso, ele mesmo confessa a facilidade que aqui encontrou: a cidade era abundante em
formigas, e delas o engenheiro muito se utilizou em suas observações. Nas suas próprias
palavras ...
“O Campo Redondo é composto por saibros, áreas e outras de argilas pretas e
brancas no fundo,
como mostram as cavas das formigueiras tiradas que são
imensas (...) O lugar do Campo Redondo é tão estéril como o da Consolação,
e também cheio de formigueiras, porém a terra da Consolação é de outra
composição, e as causas da esterilidade de lá dependem de influências físicas
e locais e não geognosticas.”
949
(meus destaques)
A prosaica formiga que proliferava em São Paulo muito auxiliou o engenheiro, pois
como sabemos, este inseto, ao cavar seus túneis, depositam os sedimentos mais profundos do
subsolo na camada superficial do terreno, o que por certo facilitou o trabalho de Carlos Rath.
Por outro lado, a incessante tarefa dos funcionários da Câmara, sempre obrigados a retirar os
formigueiros que sobejavam na cidade, também produzia um bom material para análise, ou
seja, as “cavas”. De toda forma, aqui está uma outra antiga característica nada agradável dos
terrenos localizados nos altos da Consolação: ali era um local cheio de formigas e de
“formigueiras”, conforme as palavras do engenheiro.
E se num primeiro momento os insetos foram de grande utilidade, posto que
ajudaram na análise do melhor terreno para o cemitério, logo em seguida – após os primeiros
enterramentos – eis que as formigas transformam-se em verdadeiras pragas. Além de tornar
mais feio aquele “bruto e montanhoso pasto”, as formigas eram extremamente prejudiciais
porque poderiam, no seu trabalho diário, fazer ressurgir algo que se queria imóvel, morto e
enterrado. A neutralização do corpo via sepultamento a 7 palmos de profundidade corria
assim um grande risco.
Não por outro motivo uma das principais atividades desenvolvidas no novo cemitério
foi o extermínio das formigas, seja no seu interior, seja na “pastaria” ao seu redor. Ano a ano,
e até finais do século XIX, inúmeras foram as ações nesse sentido. Em dezembro de 1860, por
exemplo, o administrador da necrópole relatava aos vereadores os serviços mais importantes
ali realizados e, dentre eles, informou que mandara “tirar um grande formigueiro dentro do
cemitério” mas que “existindo um outro fora, convinha mandar tirar em razão do grande mal que
estão fazendo.”
950
Em 1877, outro administrador participava “que as formigas ainda continuavam
949 - Idem ibidem.
950 - Ofício do administrador do cemitério, José Gomes de Faria, datado de 03/12/1860. Coleção Papéis Avulsos,
426
a fazer estragos no cemitério, pelo que pedia providências” da Câmara
951
e em 1881, numas das
últimas menções a esses insetos, o fiscal da Câmara informava que havia gasto “uma lata de
formicida” e pedia autorização para comprar “mais três, que necessitava para a extinção de
formigueiros no cemitério municipal.”
952
Frente a esta situação verificada na época de sua abertura, e no calor das críticas, um
leitor anônimo do Correio Paulistano escreveu em tom de galhofa que para ele tanto se dava
que, após a morte, seu corpo fosse sepultado “no cemitério público, no das Ordens Terceiras ou no
das confrarias e irmandades” e explicou:
“... dotado de alma e corpo, daquela é que tenho sérios cuidados (...). Ora bem,
sr. Redator, o que há de acontecer ao meu físico, também por via de igualdade
caberá aos dos outros, porque por ora ainda não obtive privilégio exclusivo (...)
pois se esta é a sorte que hão de ter nossos corpos, para que tanta bulha, tanta
gritaria, e tantos queixumes contra o cemitério público? Que mal fez ele? (...) ele
não nos procura, e nem nos incomoda: somos nós que o incomodamos e o
procuramos.
Ora pois; será porque ele é feio? E os das Ordens Terceiras serão
mais bonitos? Isto é paixão ou ciúme?
953
(meu destaque)
Além de tomar partido na discussão, fazendo uma clara defesa do cemitérioblico, o
leitor nos esclarece de forma cabal que a disputa envolvia as irmandades de um lado e a
municipalidade de outro; e mesmo defendendo a nova instituição, ele não poderia negar: o
cemitério realmente era feio, mas tanto quanto os demais. Entretanto, na carta enviada ao
jornal ele faria uma ressalva, pois se fosse o caso de ter o seu corpo enterrado no cemitério
público “... só farei questão de gabinete si me quiserem lançar dentro de algum formigueiro.”
954
Eis a
explicitação de um grande receio.
Assim, o medonho e mal acabado cemitério certamente causava algumas tensões que,
somente com o passar do tempo, puderam ser atenuadas. E um dos caminhos utilizados para
apaziguar situação foi a cessão de grandes áreas exclusivas às irmandades, como a do Carmo,
uma das mais ricas e poderosas, que inaugurou seu próprio cemitério ao lado do municipal
no ano de 1868.
De fato, e ao lado daquelas primeiras críticas, também encontramos os defensores do
projeto que, durante décadas, foi tido por médicos e higienistas como um grande marco de
“civilização” para a capital e que substituiria o “bárbaro” costume dos enterros nas igrejas.
955
1860, Vol. 192, documento nº 97.
951 - A. C., sessão do dia 26/07/1877, p. 128.
952 - A. C., sessão do dia 21/03/1881, p. 57.
953 - Correio Paulistano, edição do dia 14/09/1859.
954 - Idem ibidem. A expressão “gabinete” tanto pode indicar um caixão quanto um túmulo construído com tijolos
ou pedras.
955 - Sobre essa questão, ou como o termo “civilização” significaria hoje “progresso” e “barbárie” representaria o
atraso, veja mais detalhes em minha Dissertação de Mestrado, Parte II, Capítulo 1 “Civilização X Barbárie”.
427
Nesse sentido, publicava o Correio Paulistano nos primeiros dias após abertura do cemitério:
“... felizmente a Câmara Municipal, essa instituição característica das
liberdades populares que irradiam do nosso pacto social, parece ter
compreendido a importância desta reforma a tantos anos reclamada pela
civilização da capital de São Paulo, não recuando diante dos sacrifícios que se
apresentaram para a criação do cemitério fora da cidade, e vencer hoje
maléficos entraves que surgem a cada momento contra a necessária e urgente
execução de sua sábia postura.”
956
Ao mesmo tempo, alguns dos vereadores que lutaram pela sua construção – e na clara
intenção de consolidar a necrópole na cidade – logo trataram de adquirir terrenos perpétuos
para nele serem enterrados quando de suas mortes. Nesse sentido, a primeira concessão (ou
venda) de terreno no novo cemitério foi feita justamente ao vereador Antonio Joaquim
Tavares Rodovalho que, a 30 de setembro de 1858, solicitou:
“Ilmos. Srs. Presidente e Vereadores da Câmara Municipal:
Diz Antonio Joaquim Tavares Rodovalho que pretende aforar perpetuamente
no Cemitério Municipal um terreno de 12 palmos de comprido e 10 de largo,
para nele construir de pedra e cal ou tijolo, três ou quatro jazigos, sendo um
abaixo do solo e três acima do solo; sendo um desses jazigos para o suplicante
para nele ser enterrado perpetuamente
para nunca se bulir nele (...) [e] os
outros dois ou três jazigos é para os ascendentes e descendentes do suplicante
em conformidade da lei e regulamento que criou o cemitério, e para isso pede
a V. Sas. que mande passar carta de data do dito terreno pagando o suplicante
a jóia estabelecida no regulamento.”
957
(meu destaque)
Defensor das novas práticas de sepultamentos, o vereador Antonio Joaquim
aproveitaria a mesma sessão em que adquiriu o primeiro terreno perpétuo do cemitério da
Consolação para exigir dos párocos que, nos bilhetes de sepultamentos que passariam para o
enterro dos cadáveres, declarassem a naturalidade, condição, idade e estado de cada um deles.”
958
E aqui
se faz necessário abrir um parêntesis, pois a família Rodovalho esteve, por décadas, no centro
das intrincadas relações (e negociações) que diziam respeito aos sepultamentos na cidade; e
de tal maneira, que o sobrenome Rodovalho Júnior passou a ser sinônimo de “funerária” em
São Paulo até pelo menos a década de 1940. Num rápido retrospecto, e desde a inauguração
do cemitério da Consolação, o privilégio para a condução dos corpos esteve a cargo do
956 - Correio Paulitano, edição do dia 02/09/1858.
957 - Coleção Papéis Avulsos, 1858, Vol. 180, documento nº 107; veja também A.C., sessão do dia 09/10/1858.
Antonio Joaquim Tavares Rodovalho exercia o mandato de vereador quando fez este pedido que, imediatamente
foi aprovado pelos seus pares. Falecido de “febre perniciosa” no dia 18/04/1871, ele foi sepultado onde queria, ou
seja, em seu “Mausoléu construído na rua larga que desce da capela para a cidade, nº 02” conforme consta no Livro de
Sepultamentos do cemitério da Consolação, Vol. 5, folha 15 verso.
958 - A.C., sessão do dia 09/10/1858 e Registro Geral da Câmara, Ofício de 11/10/1858.
428
empresário Joaquim Marcelino da Silva cujo contrato expirou em 1876. A partir dessa data, e
conforme a Lei Estadual nº 69 de 02/04/1876, a Irmandade da Misericórdia teve de volta a
concessão que possuía desde o período colonial. Porém, ela nunca mais assumiria de fato esse
trabalho, pois através de “vendas e revendas do seu contrato”
959
(ou arrendamentos) os trabalhos
ficaram a cargo de diversos particulares – não sem grande lucro para a Santa Casa de
Misericórdia.
960
E de tal maneira o contrato para condução dos cadáveres e demais serviços
fúnebres quedaram pulverizados que, em 1891, o rico empresário Antonio Proost Rodovalho
(filho do vereador Antonio Joaquim) também entrava nesse ramo de negócio e abria, em
sociedade com seu filho Antonio Proost Rodovalho Júnior, uma empresa de “Pompas
fúnebres e carros para o serviço funerário”com sede na rua da Mooca.
961
Sentindo-se
prejudicada, a Santa Casa reclama aos vereadores e estes proíbem a empresa Rodovalho Júnior
de realizar os serviços de condução de cadáveres, consentindo, porém, que a mesma exercesse
as funções de armadores.
962
Mas, não demorou muito para que a Rodovalho Júnior entrasse em
acordo com a Santa Casa e dela adquirisse todo o privilégio nesse ramo. Não obstante as
diversas reclamações que chegavam aos jornais e à Câmara sobre o “escândalo” de uma
empresa privada assumir um monopólio que era de uma Irmandade (veremos alguns
detalhes desse problema no próximo item), o fato é que a Rodovalho Júnior permaneceu, de
893 a 1941, com a exclusividade dos serviços funerários em São Paulo.
963
Assim, longa foi a
xperiência dessa família com o cemitério, bem como com os demais “negócios” ligados à
morte. Fechamos aqui este parêntesis com a intenção de retomá-lo em alguns momentos no
item “Pobres, escravos e indigentes” a seguir.
*
* *
Com a aquisição do primeiro terreno perpétuo por Antonio Joaquim Tavares
Rodovalho em setembro de 1858, outros interessados se apresentaram com o mesmo intuito,
como o professor de primeiras letras Carlos José da Silva Telles que, em novembro do mesmo
ano, “solicitava a compra perpétua da sepultura de seu mano Jaime da Silva Telles no cemitério
1
e
959 - A.C. sessão do dia 01/03/1900, p. 74 a 76
960 - Idem ibidem, veja também A.C., sessão do dia 24/03/1911, p. 139 a 152.
961 - A.C. sessão do dia 11/12/1891 p. 219.
962 - A.C. sessão do dia 31/12/1891, p. 236. O trabalho de “armador” consistia na preparação do ambiente onde o
cadáver seria velado.
963 - Veja: Serviço Funerário do Município de São Paulo; 100 anos de serviço funerário; S.P.: P.M.S.P., Secretaria
de Serviços e Obras, 1977.
429
público, onde o mesmo se achava enterrado, ficando a dita sepultura pertencendo a sua família.”
964
Apesar do sobrenome Silva Teles ser muito respeitado na cidade e ter membros
proeminentes, os irmãos Jaime e Carlos não estavam entre os mais endinheirados, muito pelo
contrário. O próprio peticionário, Carlos da Silva Teles, se sustentava através de seu ofício de
professor, dando aulas na então Freguesia de Santa Ifigênia para onde seguira depois de
prestar concurso em 1831.
965
Já o seu irmão, Jaime da Silva Teles, fora oficial da contadoria
provincial e depois bibliotecário da Faculdade de Direito
966
, nunca se casou e faleceu no dia 4
de novembro de 1858, aos 64 anos. Foi sepultado no dia seguinte na catacumba nº 10 do
cemitério municipal, esta alugada pelo seu irmão Carlos.
967
Vinte dias depois do
sepultamento, Carlos da Silva Teles adquiriu de forma perpétua a referida catacumba.
De fato, esta segunda aquisição foi de grande importância para construção de uma
nova imagem para o cemitério da Consolação – ou para a sua consolidação – pois mostrava a
possibilidade de que outros na mesma posição do requerente (aqui considerado como
representante de uma classe média urbana) poderiam solicitar a conversão de covas e
s seus mortos, mas também como
possibilidade de deixar uma determinada marca. Ao mesmo tempo, a elite paulistana
vislumbra a possibilidade de realizar seus cultos privados num espaço público, ao lado de
outros túmulos construídos por diferentes famílias. Tem início então algo semelhante a uma
“disputa”: por conta da individualização dos mortos e tendo como finalidade a construção de
uma memória familiar, era preciso adequar as sepulturas aos melhores exemplos que
sepulturas temporárias em perpétuas, ou mesmo adquiri-las. Mais ainda, e nas petições aqui
citadas, aparecem claramente duas intenções antes impossíveis de serem realizadas: a reunião
de vários membros de uma mesma família num único local, de forma perpétua, e em uma
propriedade privada.
A partir desses primeiros exemplos verificamos que foi a adesão de alguns
representantes das classes altas e médias da cidade ao cemitério – bem como às novas práticas
de sepultamentos – a responsável pela construção de uma nova identidade para a necrópole
da Consolação.
Paulatinamente, percebeu-se que não apenas os terrenos poderiam ser comprados, os
túmulos construídos, mas, também, que estes eram passíveis de receber inúmeros
melhoramentos, e isso seja por piedade, respeito ao
964 - A.C. sessão dos dias 25/11 e 31/12/1858.
965 - Sobre Carlos José da Silva Teles veja Ernani da Silva Bruno (1984) p. 835 e Neves, Fátima Maria; O método
Lancasteriano e o projeto de formação disciplinar do povo (São Paulo 1808-1889); Tese se doutorado apresentada na
Faculdade de Ciências e Letras da UNESP (Assis), 2003, especialmente p. 141.
966 - Martins, Antonio Egídio, São Paulo Antigo, p. 93. Este autor cita ainda que Jaime da Silva Teles fora tenente e
participara da Bernarda de Francisco Inácio e do movimento liberal de 1842 comandado por Rafael Tobias de Aguiar.
967 - Livro de Inumação do cemitério da Consolação, Vol.1, fls. 16
430
surgiam, seria humilhante não fazê-lo. Em 1861 os herdeiros do Brigadeiro Gavião pedem
uma autorização para “cortar um dos lados da sepultura do mesmo finado para colocar sobre ela uma
léu em
mármore. E a façanha coube ao rico empresário português Antonio Teixeira de Carvalho que,
no dia 24 de maio daquele ano, dirigiu um requerimento “pedindo concessão para poder colocar
um degrau de cantaria em roda da sepultura onde jaz sua mulher e sua sogra, levantando nela um
mausoléu de mármore.”
970
Nesta sepultura estavam enterradas sua esposa, D. Margarida
Leopoldina Rosa, ela falecida meses antes, no dia 7 de janeiro de 1863, e sua sogra D.
Margarida Maria da Conceição, que fora sepultada no dia 31 de janeiro de 1862.
971
E o pedido
causou um certo alvoroço entre os vereadores; o Regulamento do cemitério permitiria uma
obra em tamanha proporção? Após algumas discussões, resolveram incumbir o experiente
João Mendes de Almeida para verificar o assunto e emitir um parecer. E ele realmente o fez,
mas com uma demora de mais de 4 meses, o que nos sugere a existência de algumas dúvidas
sobre a construção desse monumento no cemitério. Mas apesar do tempo decorrido, sua
resposta foi favorável ao pedido:
“Encarregado de dar parecer sobre o requerimento de Antonio Teixeira de
Carvalho, que pediu permissão para levantar um mausoléu sobre o túmulo de
sua finada esposa, entendo que não há inconveniente em que o mausoléu seja
levantado como pede o suplicante, não encontrando disposição no
regulamento que se oponha ao seu deferimento. Paço da Câmara Municipal,
1º de outubro de 1863. Mendes de Almeida. Aprovado unanimemente.”
972
Por certo que essas obras, apesar de algumas dúvidas nos casos de maior
envergadura, em muito embelezavam aquela necrópole que já havia sido taxada de
“monstruosidade e medonho fantasma”. Disso bem sabiam os vereadores que, um ano antes
da construção desse primeiro mausoléu em mármore, fizeram inaugurar uma carreira de 20
catacumbas construídas ao longo da entrada principal do cemitério, a chamada “rua da
lápide sepulcral”
968
e, pouco depois, D. Ana Jacinta Lopes Ferraz solicitava “mais um palmo em
todas as faces da sepultura onde está jazendo seu finado pai no cemitério afim de mandar colocar grades
e roda do túmulo.”
969
Em 1863 surgia uma grande novidade: a construção do primeiro mauso
968 - A.C. sessão do dia 10/06/1861, p. 114.
969 - A.C. sessão do dia 25/07/1861, p. 151.
970 - A.C. sessão do dia 24/05/1863, p. 207. Antonio Teixeira de Carvalho era dos mais prósperos comerciantes de
São Paulo. Estabelecido na rua Direita nº 7, ele era o proprietário da famosa “Casa da Águia”, loja de ferragens.
Além disso, ele aparece referendado como Grande Capitalista e proprietário de prédios. Veja Marques, Abílio A. S.;
Indicador de São Paulo para o ano de 1878, p. 163 e 199.
971 - O termo de sepultamento de Margarida Leopoldina Rosa encontra-se no Livro de Inumação do cemitério da
Consolação, Vol. 2, p. 05 e o de Margarida Maria da Conceição no Vol. 1, p. 215. A sepultura em que se levantou o
mausoléu foi referendada como “Catacumba da Rua Larga do Portão, subindo da Capela para cima, lado direito, nº 5.”
972 - A.C. sessão dia 01/10/1863.
431
Capela”. Estavam elas divididas em blocos de 10 unidades para cada quarteirão, à esquerda e
à direita da rua, formando um caminho que era percebido logo a partir do portão daquela
necrópole. Feitas de tijolos, “em três compartimentos dispostos uns sobre os outros e com entrada
pela parte posterior, a parte confrontante foi destinada a inscrição do nome e mais circunstâncias que se
quiserem
memorar da pessoa morta.”
973
(meu destaque). Além disso, cada uma das sepulturas
foram encimadas por uma cruz de ferro, dispondo-se o empresário que contratou as obras a
individualizá-las com “inscrições religiosas ou extraídas de livros santos.”
974
Mais ainda, esta rua
principal do cemitério foi então “apedregulhada”, posto que antes nenhum revestimento
possuía. Nessas condições, conseguia-se “preencher perfeitamente as condições de simetria e de
cados – dividido em dois, poderíamos dizer – pois logo na
ntrada, em vias paralelas ou perpendiculares, mas próximas à rua da Consolação,
ficavam as sepulturas mais ricas, perpétuas na maioria dos casos. Seguindo adiante, e
numa área espacialmente desprestigiada já que atrás da Capela, estavam as Quadras
Gerais ou Comuns. O efeito conseguido com esta delimitação dos espaços sociais da morte
foi bem
o jardim; nos fundos ficavam as
Quadra
amento, era o quintal do cemitério. Um jardim na entrada, um
quintal
interior dos mesmos muros,
vivos”,
posto que, geograficamente, seus espaços estavam bem delimitados. E eis aqui um dado
fundamental que escapa aos estudiosos de nossa urbe, uma vez que essa ocorrência no
cemitério da Consolação antecipava em alguns anos o que ocorreria na própria cidade de
São Paulo décadas depois – especialmente a partir de 1880 – quando da constituição de
embelezamento que jamais deveriam ser esquecidas”, ponderou o capitão Francisco Antonio de
Oliveira que se encarregou de avaliar o projeto.
Além do embelezamento que se queria, esse melhoramento levado a efeito pelo
poder público mirava em duas outras direções: em primeiro lugar, consolidava uma
separação entre ricos e pobres ou entre aqueles que poderiam adquirir tais sepulturas e os
demais, enterrados gratuitamente. Assim, os espaços do único cemitério da cidade
puderam ser bem demar
e
marcante: defronte da capela, logo na entrada do cemitério estavam os sólidos
mausoléus e alguns monumentos, a exemplo de um bel
s Comuns, com suas covas que continham, quanto muito, uma cruz de madeira a
sinalizar o local do sepult
nos fundos, eis a disposição espacial que, aos poucos, construía-se na necrópole da
Consolação, reproduzindo na “cidade dos mortos”, a topografia social: todos reunidos no
mas cada um no seu lugar. Mais ainda, o cemitério
representaria uma redução mais do que simbólica da sociedade e da “cidade dos
973 - Parecer de Francisco Antonio de Oliveira sobre a construção de catacumbas no cemitério, Coleção Papéis
Avulsos, 1860, Vol. 189, documento nº 177.
974 - A.C., sessão do dia 23/02/1861, p. 42 e 43.
432
bairros específicos para elite (como os Campos Elíseos, por exemplo) cujo projeto previa o
apartamento entre ricos e pobres que até então viviam no mesmo espaço: a velha colina
localizada entre o Anhangabaú e Tamanduateí. Aliás, o cemitério foi ainda precursor de
um projeto urbanístico que ainda não se vira na “cidade dos vivos”, posto que executado
com ruas retas que se entrecruzavam em ângulos retos, a divisão dos quarteirões em lotes,
a exemplo do chamado tabuleiro de xadrez que seria aplicado décadas depois no mesmo
Campos Elíseos e, depois, em Higienópolis.
Uma segunda questão que deve ser levada em consideração na construção dessas
catacumbas pela Câmara é que as mesmas passaram a ser uma fonte alternativa de renda,
pois previa-se que as mesmas poderiam ser alugadas a 30$000 Rs. (trinta mil réis) anuais num
período de 4 a 6 anos, ou mesmo tornadas perpétuas, pagando o interessado 50$000 Rs.
somente pelo terreno e mais 120$000 Rs. pelo túmulo.
975
Para aqueles que podiam arcar com
tais custos, este não era um mau negócio, posto que o potentado Mateus Fernandes Cantinho
gastara muito mais para construir “uma catacumba de três andares” em fevereiro de 1860:
277$850 Rs., resultado da utilização de 1.700 tijolos (110$850), 7 cargueiros de cal (37$000),
mais a mão de obra (130$000).
976
Como medida de comparação, o salário de um coveiro no
cemitério, na mesma ocasião, era de 45$000 Rs. por mês.
977
Até a construção dessas catacumbas, a renda do cemitério era composta por taxas de
cômputos anuais podemos perceber que o cemitério (já a partir de 1859 e até finais do século
XIX) sempre apresentou lucros. Mensalmente, o administrador era obrigado a apresentar as
contas de receita e despesas, todas elas devidamente analisadas pelos vereadores e transcritas
nas Atas da Câmara.
979
Assim ficamos sabendo que no mês de agosto de 1862, por exemplo, a
renda do cemitério foi de 494$000 Rs. e as despesas importaram em 301$666, sendo que o
saldo a favor de 192$334 foi recolhido junto aos cofres municipais; em junho de 1866 a receita
atingiu 350$000 e as despesas 186$666, restando um saldo positivo de 163$334; em janeiro de
sepultamentos, aluguéis de covas, bem como pela venda de terrenos por tempo determinado
ou perpetuamente. E é preciso notar que o cemitério da Consolação somente contabilizou
prejuízos em suas contas nos primeiros meses de funcionamento, como em abril de 1859
quando a receita foi de 108$000 e as despesas atingiram 135$333 (aqui incluindo os salários
dos empregados), gerando um déficit de 27$333 Réis.
978
Situação esta logo revertida, nos
975 - A.C., sessão do dia 06/11/1862, p. 192.
976 - Coleção Papéis Avulsos, 1860, Vol. 188, documento nº 103.
977 - A.C., sessão do dia 20/01/1863, p. 20.
978 - Prestação de contas do cemitério da Consolação, A.C., sessão do dia 26/05/1859.
979 - Além dessa referência nas Atas da Câmara, as prestações de contas podem ser encontradas no seu original na
Coleção “Papéis Avulsos” do Arquivo Histórico Municipal.
433
1884, por fim, o balancete apontava um superávit de 272$000 Réis.
980
Por certo que os “lucros” com o cemitério poderiam ser aumentados em favor da
municipalidade, sendo isso justamente o que apontava o empresário Francisco Taques Alvim
em 1860, quando apresentou seu projeto para a construção das 20 catacumbas inauguradas
em 1862. Tais túmulos já prontos, alegou Alvim, seriam uma grande facilidade que a Câmara
poderia oferecer aos munícipes, e isto devido as inúmeras dificuldades que se colocavam para
aqueles que desejavam dar sepultura a um cadáver, principalmente no caso de falecimentos
repentinos, o que obrigava a família a edificar o túmulo no mesmo dia do enterro.
981
Eis aqui
um grande problema enfrentado naqueles primeiros tempos do cemitério, ou seja, ele era
praticamente um descampado cercado por muros e, nesse caso, tudo ainda estava para ser
feito, inclusive as sepulturas. Uma relativa facilidade somente era verificada nos casos de
enterros grátis, pois bastava abrir uma cova na terra nua dos Quadros Gerais; para os demais,
a preocupação era redobrada, pois além do sofrimento experimentado com a morte de um
familiar, as atenções deveriam ser rapidamente voltadas para a construção do túmulo. De
fato, o hábito de se construir com antecedência um jazigo familiar foi uma prática que
demandou uma aprendizagem.
E naqueles primeiros tempos, como ressaltou o empresário, tudo concorria para
dificultar esse triste momento. Dentre as inconveniências anotadas para se levantar um
túmulo, a maior delas era a grande distância do cemitério, o que resultava em atrasos, seja
por parte dos pedreiros, seja para a entrega dos materiais necessários. O tempo gasto para se
levantar o mais simples dos jazigos variava de três a quatro horas e, não raro, o corpo dava
entrada no cemitério com o túmulo ainda inacabado. Nessas ocasiões, ressaltou Alvim, a obra
era “concluída ao som de motejos dos biógrafos de brocha e martelo, que não se compadecem com o
respeito devido aos mortos...”
982
e aqui a crítica estava sendo dirigida aos pedreiros e serventes
que davam os últimos acabamentos na obra e, sob a pressão dos familiares, realmente
poderiam emitir alguns comentários.
De qualquer forma, Francisco Taques Alvim era um empresário que oferecia sua
“mercadoria” à Câmara e, por isso, valorizava a sua obra. Mas, ele fez ver aos vereadores os
lucros que teriam e, nesse sentido ...
980 - A.C., sessão do dia 13/02/1884, p. 38.
981 - Proposta do empresário Francisco taques Alvim para a construção de catacumbas no cemitério municipal da
Consolação, Coleção Papéis Avulsos do Arquivo Histórico Municipal, 1860, Vol. 188, documento nº 173-A datado
de 08/02/1860.
982 - Idem ibidem.
434
“Cônscio da ilustração desta Câmara, não me demorarei em demonstrar as
vantagens da proposta que apresento, lembrando somente que as catacumbas
podem ser vendidas a aqueles que as quiserem perpetuamente, e alugadas
aos menos favorecidos de fortuna, que não podem fazer uma despesa maior.
Ora, é sabido que a classe que pode gastar cento e vinte mil réis em uma
catacumba, e de cem a duzentos em um caixão é diminuta em comparação aos
que podem despender vinte mil e bem fará a Câmara em lhe proporcionar um
meio de enterramento que é ao mesmo tempo econômico e igual ao do rico
poderoso. [Isto] por certo atenuará o clamor público, se bem que infundido,
contra o cemitério.”
983
As novas catacumbas serviriam, portanto, tanto aos mais ricos que poderiam adquiri-
las perpetuamente, quanto aos das classes medianas, posto que alugadas. Tais facilidades,
completou o empresário, poderiam atenuar as críticas que estavam sendo dirigidas ao novo
cemitério, sendo esta realmente uma forte razão para adoção da proposta. De outra parte,
argumentou Alvim, tocando num ponto muito sensível e que estava sendo motivo de
desagrado por parte das Irmandades que muito haviam perdido com a construção do
cemitério público:
“Nem se diga que a Câmara vai fazer negócio com as catacumbas: ela cobra
uma taxa para sepultura e enterramento, fará o mesmo com as catacumbas
que alugadas, suponhamos, a vinte mil réis é preço mais que módico, se nos
lembrarmos que nas ordens terceiras se cobravam duzentos mil réis. Não
ocultarei a esta Câmara que antes de submeter a sua consideração esta
proposta, sondei o espírito público a tal respeito, e posso asseverar que ele se
posicionou a favor da idéia, sem distinção de classe.”
984
Os vereadores entenderam a mensagem e perceberam que ali estava a possibilidade
is abonadas, ao mesmo tempo em que teriam
ma nova fonte de renda. Assim a obra foi realizada e as catacumbas postas a venda ou
oferecid
morte e dos sepultamentos: tratava-se também de um grande negócio, uma fonte de lucros
rapidamente percebida pela Câmara. O cemitério, aliás, fora construído com verba do
governo provincial repassada à municipalidade e em dezembro de 1859, calculou-se que o seu
custo já chegara a um total de 28:954$187 Rs. (Vinte e oito Contos, novecentos e cinqüenta e
quatro mil, cento e oitenta e sete Réis)
985
, e como o gerenciamento do mesmo ficara a cargo da
de oferecer uma facilidade para as famílias ma
u
as para aluguel em janeiro de 1862.
E eis um outro aspecto que deve ser levado em consideração no caso do cemitério, da
983 - Idem ibidem.
984 - Idem ibidem
985 - A.C., sessão do dia 29/12/1859. Nesse total, estava incluído o valor de 2:000$000 (Dois Contos de Réis) que
fora doado pela Marquesa de Santos com a finalidade de ser utilizado exclusivamente com as obras da capela.
435
Câmara, os lucros com os vários negócios ali realizados seguiam diretamente para os cofres
municipais.
Levando em consideração esse aspecto, temos aqui uma outra razão para a
constituição de espaços privilegiados no interior do cemitério ou a sua divisão entre ricos e
pobres. Certamente apoiado pelo poder público, já que lhe interessava tal organização,
também a elite paulistana se apropria e faz uso dessa área exclusiva. É ali que ela vai
construir seus grandes jazigos, verdadeiros monumentos de pedra e cal mas, conforme as
posses, também em mármore e, depois, com peças em bronze. Aqui está uma grande
novidade: o culto aos mortos ganha outra dimensão. Numa propriedade privada que poderia
ser melhorada e aperfeiçoada – e em muitos casos seria humilhante não fazê-lo – os mortos
das famílias mais ricas e mesmo o das classes médias da sociedade, ganharam um endereço
fixo. Não que antes, nas igrejas, isso não ocorresse, mas como vimos, a transitoriedade dos
mortos naqueles espaços era muito freqüente, o contínuo enterrar e desenterrar era a regra
“Leu-se o Requerimento do Dr. Joaquim Antonio Pinto Junior apresentando
os recibos de 3 terrenos comprados em diversos lugares do cemitério público
para sepultura do Cirurgião Mor Joaquim Antonio Pinto, do Dr. Rodrigo José
Maurício e João Pereira Pinto, pai, cunhado e irmão do suplicante, e pedindo
que se lhe conceda igual porção de terreno em um só ponto para reunir os
restos mortais dessas pessoas.”
986
A ausência de um túmulo – ou diante da dificuldade de construí-lo no mesmo dia do
enterro – trouxe como conseqüência o sepultamento de membros de uma mesma família em
lugares diferentes e que, agora, poderiam ser reunidos. Outros casos se deram com algumas
famílias depauperadas, onde a falta de dinheiro resultou que o cadáver fora enterrado em covas
gratuitas ou mesmo temporárias. Posteriormente, e mediante uma certa economia, poderiam elas
agora comprar um terreno perpétuo. Tudo leva a crer que esta tenha sido a experiência vivida
pela viúva D. Eulália Amélia de Assumpção em 1878, cujo marido, o Dr. Manoel Dias da Silva,
geral, sendo que edificação de túmulos suntuosos algo impossível de se realizar.
A individualização do cadáver fora conseguida com o cemitério e, daí por diante,
seguiu amplamente exercitada pelos mais privilegiados. E não apenas individualmente já
que, possível se tornou a reunião de vários membros de uma mesma família num único local:
o grande mausoléu:
986 - A. C., sessão do dia 25/08/1864, p. 129. Tal solicitação foi aprovada, decidindo a Câmara “passar os títulos
436
falecera anos antes. Em 1874, o mesmo ocorria com seu filho Eudoro, de apenas 3 anos, cujo
sepultamento foi realizado gratuitamente na Quadra nº 3 dos Anjos Pequenos.
987
Quatro anos
depois, e já com o montante suficiente, ela adquire uma sepultura perpétua:
“Requerimento de D. Eulália Amélia de Assumpção, com informação do
administrador do cemitério, pedindo autorização para a exumação e
transferência do cadáver de seu filho menor Eudoro Dias da Silva da
sepultura nº 298 para outra que comprou e é de sua propriedade.”
988
Seja pela inexperiência com este novo equipamento urbano chamado cemitério
público, seja pela falta de dinheiro, muitos casos como esses ocorreram. Entretanto, e quando
se podia pagar, todos eles puderam ser resolvidos a contento das famílias que desejavam,
mesmo após a morte, reunir seus membros num único local. O culto aos mortos pode assim
ser experimentado em novas bases e ampliado na nova necrópole – e aqui especialmente se
comparados com o que era possível de ser realizado nas sepulturas existentes nas igrejas,
onde “não era permitido que se levantassem mulos de pedra, ou madeira”, aceitando-se
somente que se pusesse “uma campa de pedra, contígua com o mais pavimento” e caso
tivesse um “letreiro, ou armas [brasões]” os mesmos seriam inscritos “na mesma campa, de
maneira que não fiquem mais altos que ela.”
989
E aqui vale um parêntesis: é preciso notar que os sepultamentos nas igrejas paulistanas –
ou pelo menos em duas delas – já haviam sido motivo de reformas nas primeiras décadas do
século XIX. Parte de um movimento que também ocorreu em outras cidades brasileiras como Rio
de Janeiro e Salvador
990
, aqui duas das mais ricas e que concentravam o maior número de
sepultamentos em seus templos, a Ordem 3ª do Carmo e a Ordem 3ª de São Francisco,
promoveram a construção de catacumbas separadas do piso comum de suas igrejas. Entretanto, a
elas tinham acesso apenas seus irmãos ou aqueles que pagavam altíssimas taxas para
simplesmente alugá-las, sendo raríssimos os casos em que as mesmas foram concedidas de forma
perpétua.
991
Nas catacumbas da Ordem Terceira de São Francisco, por exemplo, foram sepultadas
figuras muito conhecidas da história, como o padre Diogo Antonio Feijó e o brigadeiro Rafael
requeridos, e bem assim, que seja demarcado um lugar em que reuna as três sepulturas como pede.”
987 - Livro de Inumação do cemitério da Consolação, Vol. 6, p. 111. Consta no registro que o “inocente faleceu de
ataque de vermes”, como era bastante comum naquela época.
988 - A.C., sessão do dia 19/09/1878, p. 105.
989 - Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
990 - Veja João José Reis (1991), Capítulo 7 “O espaço sagrado do morto: o lugar da sepultura”, especialmente o
item “Novas divisões no espaço da morte”, p. 178 e seguintes.
991 - A respeito dessas duas Ordens e de suas igrejas como as que mais concentravam os sepultamentos na cidade
até meados do século XIX, bem como os locais onde nelas se sepultavam, veja minha Dissertação de Mestrado,
437
Tobias de Aguiar.
992
Aliás, conforme explica Reis (1991, p. 182) a posse de uma sepultura
perpétua nas igrejas era “privativa de uma elite mandatária absoluta”, fato este que em São
Paulo, como constatamos, foi modificado com a construção do cemitério público uma vez que
representantes de uma classe média urbana também puderam adquiri-las. De qualquer forma, e
esmo que representassem uma inovação, as catacumbas não admitiam qualquer alteração em
seu formato ou aspecto e, mais ainda, comportavam apenas um corpo. A sua disposição, afastada
do piso principal da igreja, e num local exíguo, não permitia também a comum “visita”, ou pelo
menos não com a comodidade verificada depois no cemitério.
m
Fig. 63:
As antigas catacumbas da Ordem 3ª de São Francisco encontradas em 1933 durante as obras na
Faculdade de Direito de São Francisco (USP), antigo convento dos franciscanos.
As sepulturas individualizadas, familiares na maioria dos casos, e principalmente
enquanto propriedades privadas, por si só já representavam uma radical transformação em
relação às que se encontravam nas igrejas. E estas agora, elevando-se na paisagem em
construções sólidas, poderiam ser o suporte para representações que lembrariam a presença física
do falecido. Segunda grande transformação: continuam as orações pela alma, mas estas agora
serão acompanhadas pelas
recordações e pelo lamento. Na análise certeira de Ariès, a sepultura
torna-se então o que não era, “é sobre o túmulo que se virá recordar, recolher, orar e chorar.”
993
O cemitério, portanto, passou a ser um local privilegiado para a recordação ou, em
outras palavras, para um culto à
memória, seja ela num âmbito particular (familiar), seja em
Parte I “A cidade católica enterra seus mortos”, especialmente os capítulos 1, 2 e 3.
992 - Martins, Antonio Egídio, São Paulo Antigo, p. 89
993 - Ariès (1988), p. 270 e 274.
438
referências mais amplas, com a exaltação de biografias, de modelos de vida, notadamente de
personagens da cena política que se queriam como grandes marcos para a história.
994
E esta prática no cemitério da Consolação, especialmente no espaço reservado aos
ricos paulistanos, ganhou em esplendor, tornando-se cada vez mais aristocrático, pois acabou
recebendo monumentos especialmente encomendados na Europa:
“Leu-se o requerimento de Antonio José de Melo, com informação do
engenheiro da Câmara, pedindo mais cinco palmos de comprimento no
terreno da sepultura de sua finada mulher Dona Francisca, afim de colocar ali
um mausoléu que mandou vir da Europa, e que excede no comprimento ao
terreno marcado pelo regulamento, sendo-lhe por isso necessário mais cinco
palmos para acomodar a laje de mármore, obrigando-se a fazer qualquer
indenização que for justa. – Despacho: Que se lhe conceda.”
995
A partir desse primeiro exemplo particular e familiar, outros se seguiram, mas foi no
culto aos personagens públicos, aqueles que se queriam como grandes heróis, que encontramos
as pistas ou mesmo as explicações que nos levam a compreender o episódio ocorrido em 1894
com a entronização do busto em memória do presidente francês Sadi Carnot.
Claro que não devemos desconsiderar a edificação dos verdadeiros monumentos
particulares que, como vimos, já se encontravam no cemitério desde 1863. Mas foi através de
um her
página 37). Contrário à política absolutista
e D. Pedro I, Líbero Badaró muito incomodava a alguns conservadores, e tanto que sua
morte chegou a ser atribuída a um atentado comandado por pessoas ligadas ao imperador
ou até a mando do próprio.
996
Italiano da Ligúria, seu nome completo era Giovanni Baptista
Badaró, sendo que o epíteto Líbero foi-lhe atribuído pelos paulistanos tendo em vista suas
convicções e mediante sua atuação no jornal “O Observador Constitucional” que ele mesmo
fundara em 1829. Tendo em vista sua origem, foi ele o primeiro personagem a ser cultuado
pela colônia italiana que, entre os anos de 1888 e 1889, já somava alguns milhares na
cidade. Decerto que muito interessava aos italianos de São Paulo esta homenagem ao
compatriota, pois aproveitando-se de um mito já construído em torno do personagem,
ói paulistano, para lá transladado em 1889 que, de fato, percebeu-se o cemitério como
um guardião da memória ou mesmo de uma determinada história. Assassinado em 1830 na
rua que hoje leva seu nome, o jornalista João Batista Líbero Badaró foi inicialmente sepultado
na igreja de Nossa Senhora do Carmo (veja Fig. 4,
d
994 - A respeito da construção de mitos e de heróis, especialmente no período pré e pós República, veja Carvalho,
José Murilo de; A Formação das Almas – o imaginário da República no Brasil”; Cia das Letras, 1995.
995 - Requerimento de Antonio José de Mello, A.C., sessão do dia 12/10/1871.
996 - Veja, por exemplo, Silva, Nicolau Duarte; Libero Badaró – contribuição para a sua biografia; In: R.I.H.G.S.P, Vol.
439
esses novos imigrantes melhor poderiam se inserir na sociedade.
E foi nesse contexto que, em 1889, formou-se na cidade o Comitato Libero Badaró
a confecção da obra. No dia programado para
transladação, 24 de novembro de 1889, um grande público reuniu-se no antigo largo do
Carmo. Formado o cortejo com mais de 4 mil pessoas, à frente seguia uma banda de música
que tocava o “hino de Garibaldi.”
998
Além do povo, participaram também da homenagem os
membros do recém constituído governo provisório republicano, que foram ao lado do coche
s também estavam os oficiais de 10 regimentos
alguns pelotões da cavalaria, estes empunhando o estandarte da República que, pouco
antes,
a da Consolação.
Ou seja, o cortejo de Líbero Badaró em 1889 muito no lembra as cerimônias ocorridas cinco
anos depois, em 1894, quando das homenagens prestadas a Sadi Carnot.
Já no cemitério, a honra de depositar as cinzas de Líbero Badaró em seu novo túmulo
coube a Prudente de Morais, então membro do governo provisório e, conforme noticiou o
rnal D
uirino dos Santos.
999
Francisco Quirino dos Santos (falecido aos 06/05/1886) e Luiz Gama, este considerado na
composto por proeminentes figuras da colônia italiana. E o objetivo da comissão era bastante
específico, ou seja, construir no cemitério da Consolação “um túmulo digno do nome de
Badaró”
997
cujos restos mortais estavam ainda na igreja do Carmo. A intenção, portanto, era
muito clara: construir um marco ou um monumento onde melhor se pudesse exercitar o culto
à memória daquele que já havia sido eleito como um herói da liberdade.
E assim foi feito. Angariado os fundos necessários, encarregou-se aos marmoristas
italianos da “Ferdinando Martinelli & Irmãos”
fúnebre, pegando nas fitas do esquife; presente
e
havia sido consagrado na igreja de N. Sra. dos Remédios. Programada com
antecedência, a marcha para o cemitério seguiu o seguinte trajeto: largo do Carmo, praça da
Sé, rua 15 de Novembro, praça Antonio Prado, av. São João e desta para a ru
jo iário Popular, as várias comissões que ali estavam retiraram-se na necrópole por volta
das 16 horas, não sem antes visitarem os túmulos de Luiz Gama e Q
Eis a nova característica que o cemitério ganhara (o de culto a alguns personagens, aos
heróis), pois aproveitando aquele momento, os novos representantes da República visitaram e
homenagearam dois outros mortos ilustres ali enterrados: o advogado e republicano histórico
XXVIII, 1930, p. 463 a 577.
997 - Silva (1930), p. 489
998 - Idem ibidem, p. 491.
999 - Diário Popular, edição do dia 25/11/1889, 1ª página, matéria com o título “Exéquias de Badaró”.
440
época como o maior abolicionista de São Paulo e motivo de adoração por parte da
comunidade negra.
1000
Figs. 64 e 65: O túmulo de Líbero Badaró no cemitério da Consolação (veja descrição abaixo), no destaqu
“retrato” do homenageado.
“O túmulo é todo de fino mármore branco, tendo em mármore preto apenas um friso circundando o retra
de Badaró, e mede uma altura de 4 metros. Consta de uma caixa central em que foram depositadas as cinz
do morto, (...) e colocada sobre um pedestal também retangular, com frente de cerca 1,50 m. e lados d
metros. Na lousa que descansa sobre esta caixa foi escrito: S. Paulo
se entre duas colunas quadriláteras um bonito frontal, encimado
e o
to
as
e 2
21 Novembre 1889. Da retaguarda eleva-
por uma urna funerária (envolta, a meio,
por bem rói
reprodu rna
ogo
acima do retrato uma estrela. Ainda no centro do frontal, abaixo do referido busto, inscreveram o seguinte
iero
cinzelada toalha) e ornada no centro superior pelo retrato em busto, do pranteado he
zido de barbas à suíça (como usava), gravata de laço curto, colete e casaca de gola. Entre a u
funerária e o retrato, desenharam uma pena cruzada com um ramo de oliveira, o símbolo da paz; e l
epitáfio: Alla Mano Del Sicario / All´Ingiuria Del Tempo / Vendicano / In G. B. Libero Badaró / Il Pens
Del Sofo / Il Cuore Del Medico e Del Cittadino / L´Umanitá. (...)”
1001
a faleceu vítima de diabete aos 52 anos de idade e foi sepultado no cemitério da Consolação no
ia 25/08/1882 em terreno de sua propriedade localizado na rua 12, sepultura nº 17 (Livro de Inumação do
emitério da Consolação, 1882, Vol. 09, p. 91). Seu enterro foi dos mais concorridos e, segundo Tancredo Amaral,
apesar da cerimônia ter sido marcada para as 4 horas da tarde, desde o meio dia que o povo em massa procurava o
cemitério: “velhos, mulheres e crianças, principalmente pretos, dirigiam-se para a triste necrópole, á conquista de um lugar
para aguardar a chegada do féretro. Duzentos e tantos carros acompanhavam a este, mas vazios. Era uma verdadeira procissão
cívica, composta de perto quatro mil pessoas, quase todas as associações científicas, literárias e beneficentes de São Paulo, com
estandartes em funeral, lojas maçônicas, de que o morto era dos mais graduados, etc. A beira do túmulo, orações fúnebres dos
nossos mais eminentes oradores. Veja R.I.H.G.S.P., Vol. III, 1898, p. 423.
1001 - Descrição do Dr. Argimiro da Silveira que esteve presente nas cerimônias; In: Silva (1930), p. 489 e 490.
1000 - Luiz Gam
d
c
441
Chama a atenção, tanto no mausoléu quanto na descrição do mesmo, a existência do
retrato d ore, a imagem do rosto de Líbero Badaró não se
equipara aos demais elementos do túmulo como as colunas ou a urna funerária que encima o
monumento e que poderíamos chamar de peças decorativas. O retrato de Badaró, ao
contrário, ultrapassa essa característica. O olhar do visitante pode passear por todo o
conjunto, mas é no retrato que alguns segundos a mais são dispensados. O busto, portanto,
cumpre a missão de marcar e dar uma certa materialidade ao falecido – cujos restos estão ali
depositados, mas invisíveis – o que facilita sobremaneira o exercício de um culto à sua
memória e na concepção de uma figura heróica. Tal monumento, portanto, servia à colônia
italiana de São Paulo que buscava sua inserção na sociedade e servia, igualmente, aos
representantes do novíssimo governo republicano recém-instalado que não se furtaram a
estar presentes no cemitério.
Logo após as cerimônias realizadas “em memória” de Líbero Badaró, a comissão
responsável fez a doação do túmulo à municipalidade que, a partir de então, ficou
rregada das homenagens fúnebres
endando à Câmara a guarda do
monumento levantado pela Colônia Italiana àquele grande mártir da
Liberdade.”
1002
E eis que o túmulo – já transformado no que não era – passa por outra alteração: ele
gora pode ser visto como um monumento público. A área nobre do cemitério da Consolação
pode então ser transformada num imenso memorial, com construções vistosas que fariam
recordar os “grandes nomes” que foram subtraídos do mundo dos vivos. Não por outra razão
que cinco anos depois, em 1894, concluiu-se que melhor lugar não havia para as homenagens
que a colônia francesa quis prestar ao presidente Sadi Carnot. Terceira alteração: no túmulo
não havia qualquer defunto; mas isso pouco importava, já que ele fora construído sob a forma
de um monumento. E para que ele cumprisse a missão de fazer recordar, um busto do
homenageado fora esculpido e, na implantação, uma nova estratégia foi aplicada, posto que o
mesmo foi deslocado para o alto da construção; tal monumento, é preciso notar, não estava
em desacordo com os demais, posto que ao lado de tantos outros que ali já estavam a
representar figuras célebres da história local e do país.
De fato, aquele cemitério ou aquela “monstruosidade, medonho fantasma mal acabado e
construído num bruto e montanhoso pasto” passara por algumas transformações e bem estava
o homenageado. Esculpida em márm
encarregada de sua guarda:
“Dito da Comissão Italiana enca
ao patriota Libero Badaró, recom
a
1002 - A. C., sessão do dia 24/12/1889, p. 379.
442
servindo a uma parcela da sociedade que possuía o capital suficiente para fazer erguer
grandes marcos antes impossíveis nas igrejas ou mesmo em outros locais públicos. Os
governantes, por sua vez, também se apercebem do grande potencial que poderiam
explorar para a construção de uma memória local e mesmo nacional. A exemplo de um livro em
branco da história, o cemitério da Consolação poderia ser “preenchido” (ou escrito) mediante a
edificação de seletos monumentos. Em 1912 a Prefeitura manda edificar, com dinheiro público,
o túmulo do Dr. Pedro Vicente de Azevedo, ex-vereador, presidente da Câmara, intendente de
finanças e vice-prefeito;
1003
em 1918 colabora com a quantia de 10:000$000 (Dez Contos de Réis)
para a “construção de um mausoléu sobre a sepultura de Bernardino de Campos.”
1004
Mas o ápice desse
movimento ocorreria em 1917, época em que foi edificado pela municipalidade e pelo governo
estadual um mausoléu que abrigou os restos mortais do ex-presidente Campos Salles, obra esta
levada a efeito pelo escultor Rodolfo Bernardelli.
1005
Os cemitérios, entretanto, e enquanto guardiões de memórias, era seletivo: sim a
Bernardino de Campos, Campos Salles e mesmo a Luiz Gama – reverenciado que foi pelos
republicanos naquela visita em 1889 – e não ao Preto Leôncio.
Clemente Antonio de Carvalho (por vezes chamado de Clemente Antonio Pereira e
Clemente José de Carvalho) era mais conhecido como Preto Leôncio. Nascido escravo em
residência da família Silva Carvalho, Clemente tinha quase a mesma idade de um dos
filhos da casa, Carlos Leôncio da Silva Carvalho, futuro conselheiro e ministro do
Império.
1006
Passaram, os dois, a meninice juntos e, como pajem, Clemente viveu em
companhia de Carlos Leôncio até que este completou seus estudos acadêmicos na
Faculdade de Direito. Do nome de seu senhor, o Preto Leôncio herdou o apelido pelo qual
se tornou popular, a ponto de quase ninguém lhe saber o verdadeiro nome.
1007
Excelente
cozinheiro, o escravo provavelmente fora alforriado em 1868, como era o costume entre os
1003 - A. C., sessão do dia 26/07/1912, p. 293 e 294.
1004 - A. C., sessão dos dias 23/02 e 09/03/1918, p. 63 e 74, respectivamente.
1005 - A respeito da edificação do mausoléu a Campos Salles, veja uma longa discussão que ocorreu na Câmara
nas sessões dos dias 27/01 (p. 37), 09/04 (p. 289 a 294) e 23/04/1917 (p. 303). Pela Lei nº 1.809 de 09/09/1914, a
prefeitura estava autorizada a gastar 25:000$000 (Vinte e cinco Contos de Réis) com o mausoléu de Campos Salles,
entrando o governo estadual com 50 Contos, uma vez que as obras foram orçadas em 75 Contos pelo escultor
Bernardelli. As discussões travadas na Câmara não entram no mérito da homenagem, mas sim no fato de não ter
havido uma concorrência pública para a realização do projeto.
1006 - Carlos Leôncio da Silva Carvalho (1847-1912) nasceu no Rio de Janeiro e estudou na Faculdade de Direito de
São Paulo onde recebeu o grau de bacharel em 1868 e o de doutor em 1869. Nomeado lente substituto da Faculdade,
tomou posse em 1872. Participou, em 1873, da fundação do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo e, posteriormente de
outras instituições de ensino. Ocupou a pasta do Império em 1878 e, nesse cargo, teve a oportunidade de colocar em
prática as leis da reforma que instituiu o ensino livre no Brasil. De volta a São Paulo, elegeu-se deputado e foi
nomeado lente catedrático da Faculdade de Direito em 1881, tendo ainda sido seu diretor em 1890. Mudou-se para o
Rio de Janeiro em 1901 e faleceu em 1912. Fonte: Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, acervo da Seção de
Denominação de Logradouros Públicos, “Rua Leôncio de Carvalho”, veja também http://www.direito.usp.br/
1007 - “O Preto Leôncio”, matéria sem assinatura publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, edição do dia
07/09/1908, p. 3, por ocasião do falecimento de Clemente Antonio de Carvalho.
443
estudantes de direito que se bacharelavam.
1008
E Leôncio se destacava entre seus pares, pois
conforme um curioso costume entre a escravaria dos estudantes, seguiam eles uma
hierarquia conforme seus senhores avançavam nos estudos: “eram, como eles, calouros ou
veteranos”, prevalecendo uns sobre os outros de acordo com a carreira dos estudantes e
não se furtavam a “medir a distância que os separava.”
1009
Mesmo após a liberdade, o Preto
Leôncio continuou a se mirar na projeção de Leôncio de Carvalho. Nas festas acadêmicas,
principalmente depois do decreto que aboliu o ensino obrigatório, a presença do
conselheiro era sempre saudada com delirantes ovações dos estudantes. E lá estava
sempre o Preto Leôncio, a ouvir os discursos do conselheiro. Decorava frases inteiras dessas
orações que, depois, repetia pelas ruas da cidade e, em especial, no próprio Largo de São
Francisco.
1010
Das figuras de rua, escreveu Byron Gaspar, a mais célebre era, sem dúvida, o
Preto Leôncio. “Escravo forro, tem ares de tribuno, quando encostado a um portal, diante
de estudantes aglomerados, a cabeça bem erguida, perpassando no auditório um longo
olhar sorridente, começa então o disparatado discurso dizendo: Como é nobre e generosa a
mocidade acadêmica!
1011
Manco de uma perna por conta de um tiro que o atingira por
engano da polícia em 1896
1012
e depois por uma queda num dos muros do Viaduto do Chá,
Leôncio continuava amigo e servindo as novas gerações de estudantes como a Alfredo
Pujol, que guardou boas recordações de seu empregado e, inclusive, dedicou-lhe uma
homenagem em 1906.
1013
Com o tempo porém, Preto Leôncio envelheceu; e a cachaça, que
tomava vez em quando, tornou-se um vício que o degradou fisicamente. Mas, mesmo
assim, sempre que podia ainda participava das festas, das brincadeiras e da vida boemia.
Alguns ex-estudantes, depois advogados bem sucedidos na cidade, ajudavam-no,
principalmente nos seus últimos anos de vida; enquanto um deles dava-lhe uma pequena
soma semanal, outro lhe pagava o aluguel de um quarto no cortiço onde pernoitava. Outro
ainda, abrindo-lhe crédito numa taberna, mensalmente concorria com as despesas de uma
conta que, invariavelmente, era composta de duas despesas diárias: aguardente e uma vela
1008 - Bruno (1984, p. 820) explica que “Era de praxe quando um acadêmico recebia sua carta de bacharel conceder
a de alforria ao escravo que o acompanhava.”
1009 - Nogueira, J. L. de Almeida; A Academia de São Paulo – Estudantes, estudantões e estudantadas; S.P.: Typ.
Vanorden & Co., 1908, Vol. VI, p. 168 e 169.
1010 - “O Preto Leôncio”, jornal “O Estado de São Paulo”, op. cit. Veja também Bruno (1984, p. 820).
1011 - Byron Gaspar, prefácio a “São Paulo Antigo (1554-1910)” de Antonio Egídio Martins, s/data, p. 11.
1012 - Este episódio foi narrado por Jorge Americano (São Paulo naquele tempo 1895-1915, p. 166 e 167) e teve
como pano de fundo os conflitos de rua que opuseram os estudantes de um lado e os imigrantes italianos de outro.
Foi a célebre questão dos “Protocolos” (veja Toledo, 2003, p. 481 a 483). Fugindo da polícia pela rua de São Bento,
um grupo de estudantes tomou a Ladeira de São João e entrou pela rua Líbero Badaró. No seu encalço, a cavalaria
chegou ao Largo do Rosário (hoje Praça Antonio Prado). “Era noite fechada e sem luz, porque o povo quebrara os lampiões.
O Preto Leôncio, que estava na esquina da São João com a Líbero Badaró, começou um discurso na esquina vazia e
apavorada.” Do alto da praça, os cavalarianos olharam para a ladeira de São João, ouviram-lhe os brados e fizeram fogo. O
Preto Leôncio teve a perna fraturada por bala, a cirurgia encanou-a como foi possível. A perna ficou torta, e Leôncio continuou
a fazer comícios até morrer.
1013 - “O Preto Leôncio”, jornal”O Estado de São Paulo”, op. cit.
444
de sebo.
1014
Quando faleceu, em 1908, Preto Leôncio foi sepultado em cova simples, no
distante cemitério da Penha, bairro este em que fora viver seus últimos dias:
“Aos sete dias do mês de Setembro de 1908 sepultou-se no 1º Quadro Geral dos adultos, sepultura nº
36, o cadáver de Clemente Antonio de Carvalho (vulgo Leôncio) com sessenta anos de idade, de cor
preta, falecido no dia 5 do corrente mês as oito e meia horas da noite nesta Freguesia, em uma rua e casa
sem número, digo rua e casa sem nome e sem número, victima de syncope cardíaca, conforme attestado
do médico Dr. Marcondes Machado. É o que certificou o escrivão de Paz interino deste Distrito.
Não
pagou a taxa em vista de ser pobre, conforme attestou o Sub Delegado de Polícia. Cemitério Municipal
da Penha de França, 7 de setembro de 1908. O Administrador Antonio Roiz da Silva”
1015
(meu destaque)
Diante dessa situação, três anos depois (em 1911), mobilizaram-se os estudantes da
Faculdade de Direito e, através de um ofício dirigido pelo Centro Acadêmico XI de Agosto,
solicitaram aos vereadores que fosse “declarada perpétua a sepultura de Clemente Antonio Pereira,
vulgo Preto Leôncio.”
1016
Analisado pela Comissão de Justiça da Câmara, esta ofereceu o seguinte
parecer:
“Havendo estudado o ofício do muito digno presidente do Centro Acadêmico
Onze de Agosto, com as simpatias que merece essa benemérita associação, a
Comissão de Justiça não julga plausíveis os motivos pelos quaes, atendendo a
uma representação de consócios,
solicita que seja declarada perpétua a
sepultura de Clemente Antonio Pereira, vulgo Preto Leôncio. Estão em seu
papel os estudantes, procurando amparar o túmulo do bohemio inoffensivo
que, em vida, tanto protegeram.
A Câmara, porém, não pode deferir o
pedido, pois abriria um mau precedente e privilegiaria a memória de um
indivíduo só por ter sido elle amigo de uma classe. Aos acadêmicos não seria
difícil cotizarem-se para obterem o necessário á declaração de perpetuidade
da sepultura do Preto Leôncio. – S. Paulo, 28 de março de 1911 – Armando
Prado, Alcântara Machado, E. Goulart Penteado.”
1017
(meus destaques)
Após a leitura, não se observou qualquer manifestação por parte dos demais
vereadores. Colocado em seguida para votação, o parecer que negava o pedido foi aprovado
por unanimidade.
Seja no interior do cemitério da Consolação, seja em relação a outros cemitérios, o fato
é que a preservação de memórias tinha um limite: não era qualquer memória, mas sim aquelas
que se julgassem dignas de exemplos a serem seguidos. Delas, portanto, estavam excluídas a
dos tipos populares, pobres, principalmente.
1018
1014 - Idem ibidem.
1015 - Livro de Inumação do Cemitério da Penha, Vol. 17, fls. 129 verso. A respeito dos “Atestados de probreza”
para sepultamentos, veja um melhor detalhamento a seguir no item “Pobres, escravos e indigentes”.
1016 - A. C., sessão do dia 07/04/1911, p. 166.
1017 - Idem ibidem.
1018 - A respeito dos pobres no cemitério da Consolação e do “apagar” se suas memórias , veja mais detalhes nas
próximas páginas, no item “Pobres, escravos e indigentes”.
445
Ao lado de outros grandes marcos que se construíam na cidade entre finais do século
XIX e primeiras décadas do XX (como a estação da Luz em 1900 e o Teatro Municipal de
1911), também o cemitério da Consolação foi redimensionado visando a sua transformação
num monumento da elite paulistana. Ao lado de uma determinada história inscrita em suas
ruas e quarteirões, desenhava-se já há tempos uma elitização desta necrópole, e isso desde a
inauguração dos cemitérios do Braz (1893) e do Araçá (1897). Em uma pesquisa junto aos
livros de sepultamentos desses três cemitérios tal processo fica muito claro, pois, na média, o
cemitério do Braz passou a receber principalmente os cadáveres dos pobres, imigrantes e
operários; no cemitério do Araçá, por outro lado – e até as décadas de 1920 e 1930 – eram
sepultados majoritariamente membros das classes medianas e imigrantes enriquecidos
recentemente; os mais ricos, ou os membros de famílias tradicionais, seguiam para o cemitério
da Consolação.
Tal processo redundou que, em 1909, o cemitério da Consolação já se tornara “a principal
necrópole da cidade, por todos admirada, principalmente pelos viajantes” conforme declaração dos
vereadores José Oswald de Andrade e Rocha Azevedo.
1019
A exemplo, portanto, de outros
símbolos que já se espalhavam pela urbe, estava o cemitério a despertar o interesse tanto dos
paulistanos, quanto dos viajantes por conta dos belos mausoléus ou monumentos que continha.
Daí que, por este processo, numa cidade que se queria europeizada, não caberia um túmulo
perpétuo ao Preto Leôncio, mesmo que na distante Freguesia da Penha de França.
Apesar de destacarmos a ocupação do cemitério da Consolação (e isto por ser ele o
mais antigo da cidade) ressaltamos que a seleção de memórias a serem perpetuadas não se
fazia presentes apenas nele, mas também nas demais necrópoles da cidade. E aqui numa
o cemitério Consolação, algumas
necrópoles mais antigas e afastadas do centro da cidade puderam simplesmente ser fechadas
ou arrasadas, poderíamos dizer. Nesses cemitérios de periferia, a memória não precisaria e
nem deveria ser cultuada. O que se viu então foram reformas em alguns deles ou mesmo a
destruição de outros. Esse processo, por sua vez, resultou no aniquilamento de algumas
referências e na desapropriação de muitas tradições.
Tomemos como exemplo o caso do cemitério da Penha – não aquele em que foi
sepultado o Preto Leôncio, mas sim o primeiro ali edificado.
Contemporâneo do cemitério da Consolação (pois ele também começou a ser
escala muito maior, posto que não apenas no interior de cada um deles senão, também, entre
eles. Alguns mereceram certos cuidados que visavam sua preservação, outros nem tanto.
Num processo inverso ao que ocorria na área nobre d
1019 - A. C., sessão do dia 21/08/1909, p. 163 e 164.
446
constru
io da
então Freguesia da Penha de França atendia à comunidade da região, sitiantes em sua maioria,
bem como aos mora Senhora da Penha.
Apesar de construído pela municipalidade, sua administração permaneceu a cargo da
paróquia local, a exemplo do que ocorreu com cemitério da Freguesia do Ó.
Não obstante os estudos que se realizaram entre 1854 e 1855 para a escolha do melhor
sítio para a fundação deste cemitério, o fato é que ele estava muito próximo da povoação, a
dois ou três quarteirões da igreja, numa posição sobranceira às ruas. Em 1892, “descobriu-se”
o problema, ocasião em que o vereador Guilherme Maxwell Rudge se pronunciou:
“Conhecendo o quanto é prejudicial a conservação do Cemitério da freguesia
da Penha de França, visto achar-se collocado dentro da freguesia, indico que
se nomeie uma comissão para a escolha de um outro terreno mais afastado e
melhor collocado para ser construído um novo cemitério.”
1021
Coube então à Comissão de Higiene o estudo do problema e a verificação do localpara
o novo cemitério. Dela faziam parte o sr. João Antonio Julião, o Dr. Henrique Schaumann e o
próprio Guilherme Maxwell Rudge. E a conclusão foi rápida: em menos de quinze dias,
escolhia-se um “terreno na estrada de São Miguel a menos de 300 metros do atual, com vertente para
o lado oposto da freguesia.”
1022
A Comissão de Higiene reconhecia a inconveniência do velho
cemitério e, tendo em vista a conformação dos terrenos que compunham aquela freguesia
(uma colina) escolheram, a pouca distânci tio propício situado do lado oposto e cujo
pendor
ído em 1855) esta primeira necrópole da Penha começou a servir pouco tempo
depois.
1020
De dimensões bem menores do que o seu congênere na cidade, o cemitér
dores do núcleo onde se destacava a igreja de Nossa
a, um sí
do terreno não poderia oferecer qualquer risco. Assim que estivesse concluída a nova
necrópole, sugeriu ainda a Comissão, seriam proibidos os enterramentos no antigo cemitério,
obrigando-se a municipalidade a ceder gratuitamente terrenos perpétuos no novo para
aqueles que os possuíam na necrópole que seria fechada. O relatório, por fim, concluía pela
desapropriação da área onde seria construído o novo cemitério.
Fiados nas informações do conceituado Dr. Henrique Schaumann que dizia ser muito
provável as infiltrações do cemitério nas vertentes de águas e nos poços que atendiam a
população (a Penha ainda não possuía água encanada), pensava-se que o caso seria
rapidamente solucionado. Não foi o que ocorreu.
lo vereador Gabriel José R. dos Santos e pelovigário da Penha, Antonio
Benedito
1021 - In
1022 - Relatório da Comissão de Higiene e Saúde, A. C., sessão do dia 17/10/1892, p. 21 e 22
1020 - Conforme ofício assinado pe
de Camargo, A. C., sessão do dia 07/12/1855 e Registro Geral da Câmara, ofício datado de 03/12/1855.
dicação do vereador Guilherme M. Rudge, A. C., sessão do dia 05/10/1892, p. 18.
447
Decorridos cinco dias, a Câmara recebeu uma “representação de diversos moradores da
freguesia da Penha reclamando contra o projeto de mudança do cemitério.” Nesse momento o
defensor do projeto, Guilherme Maxwell Rudge, pede para ser juntado aos papéis outro
parecer médico contra a velha necrópole da Penha.
1023
Tendo em vista as despesas que a municipalidade faria com a desapropriação da área
onde seria aberto o novo cemitério, o então intendente de Finanças, Álvaro Augusto da Costa
Carvalho, foi chamado a opinar. Estudando a questão, ele fez ver que existiam outras obras
de maior urgência e, ao mesmo tempo, estranhou a conclusão da Comissão de Higiene, já que
uma pequena distância estava a separar o velho e o novo cemitério:
“Assim opino considerando que o local para onde se pretende remover o dito
cemitério dista apenas do actual o espaço de trezentos metros, sendo assim
em muito pouco atenua o mal de estar o actual cemitério colocado no centro
da freguesia conforme foi alegado na indicação que deu origem ao presente
projeto.”
1024
Por fim, disse o intendente, os recursos da Câmara já estavam quase que esgotados
naquele mês de outub
Até então, a
proximidade com o nú
“infectar” as nascentes
velho e
ro de 1892, fato este que inviabilizaria a desapropriação.
mudança do cemitério da Penha era solicitada por conta da sua
cleo urbano da freguesia ou, ainda, tendo em vista a possibilidade de
ou os poços que abasteciam a população. De fato, a distância entre o
novo cemitério era pouca, mas tendo em vista o declive do terreno, esta seria suficiente
para neutralizar o perigo.
1023 - A. C., 22/10/1892, p. 36.
1024 - Relatório do Intendente de Finanças, A. C., 29/10/1892, p. 48.
448
Fig. 66: O bairro da Penha no início do século XX. Veja o antigo cemitério no final da rua Dr.João Ribeiro e
nas proximidades das nascentes de córregos. Ob
a minha projeção (em vermelho) para a área do novo
serve também a colina ao lado, com 800 metros de altura e
cemitério e a direção que tomariam as “infiltrações”.
Em suma, alegavam-se razões de interesse público para a aprovação da proposta, já
que a saúde da popula
Mas, eis que a s
declarados abertamen
Não obstante a
votação. A favor da pr
Schaumann; contra o p
Diante do imp ria ser
via à mesa a seguinte proposta:
pertenciam ao próprio vereador Guilherme Maxwell Rudge.
A família Rudge, por sinal, já detinha larga experiência no ramo imobiliário. O patriarca
ção poderia correr algum perigo.
ituação começa a tomar outro rumo, revelando interesses até então não
te.
s dificuldades financeiras alegadas pela Câmara, o projeto vai para
oposta falam os vereadores Guilherme Maxwell Rudge e Dr. Henrique
rojeto discorrem os vereadores João Bueno e Cesário Ramalho da Silva.
asse, Guilherme Maxwell Rudge, em uma atitude que pode
considerada como surpreendente, en
“Não havendo verba para se tratar das obras do novo cemitério na freguesia
da Penha de França e para que essas obras sejam efetuadas com a maior
brevidade, ofereço o terreno preciso para o mesmo na mesma estrada de São
Miguel em local escolhido pela comissão que para isso foi nomeada. S. Paulo,
5 de novembro de 1892 – Guilherme M. Rudge.”
1025
A surpresa, certamente, se apresenta diante dos nossos olhos, mas não era esse o caso
em 1892, posto que era de conhecimento geral tanto na Câmara quanto entre os moradores da
Penha que todas aquelas terras – num perímetro entre o velho cemitério, a antiga Estrada de
São Miguel (atual av. Amador Bueno da Veiga) e até o vale do ribeirão Tiquatira (ao norte),
449
John Rudge, por exemplo, viera da Inglaterra para o Rio de Janeiro e tornara-se proprietário de
de Guilherme
udge em fazer chegar alguns melhoramentos para a população local. E assim ele o fez, por
exemplo, em 1879, épo
Ferro de São Paulo. N
chegando mesmo até a
iversas vezes
o cumprimento de uma cláusula no contrato com a Cia. Cantareira para a canalização da água
aquela freguesia.
1028
Mas seus interesses não se restringiam à Penha, uma vez que ele já loteara
em 18
á
que obs
toda a região conhecida como “Engenho Velho”; transferindo-se para São Paulo adquiriu, em
1825, a Fazenda Morumbi. O irmão de Guilherme, João Maxwell Rudge, era o proprietário do
famoso “Sítio da Casa Verde” que, loteado, deu origem ao bairro de mesmo nome.
1026
Dono de uma extensa propriedade na Penha, seria natural a preocupação
R
ca em que não era vereador e exercia o cargo de gerente da Cia. Carris de
aquela ocasião, ele estendeu a linha de bondes para além do Brás,
Penha.
1027
Já como edil, entre 1892 e 1893, ele insistiria por d
n
n
, 77, parte de sua chácara no Pari e, em 1897, recebeu como concessão da Câmara uma
grande área no bairro da Lapa para a construção de casas operárias que ele mesmo exploraria,
recebendo inclusive os aluguéis.
1029
De qualquer forma, naquele ano de 1892 – e no calor dos debates sobre o novo
cemitério na Penha, o vereador Guilherme Maxwell Rudge já preparava um novo loteamento
que se chamaria Villa Guilherme Rudge. E o detalhe principal: esse novo bairro seria aberto em
sua propriedade na Penha, ao lado do velho cemitério. Este, por sua vez, era um entrave, j
tava a abertura da principal rua do loteamento, a “Av. Floriano Peixoto.” Veja a seguir
o projeto do loteamento aqui referido e aprovado em 1895.
1025 - A. C., 05/11/1892, p. 65 e 66.
1026 - Veja mais detalhes em Leite, Aureliano; Pequena história da Casa Verde; S.P.: Elvino Pocal Ed., 1940.
1027 - A. C., 03/07/1879, p. 57.
1028 - Ver, por exemplo, A. C., 29/10/1892, p. 50 e 18/03/1893, p. 131. Nessas solicitações, Guilherme Maxwell
Rudge era sempre acompanhado pelo amigo e também vereador Antonio Proost Rodovalho, outro grande
proprietário naquela região, e a respeito do qual já tecemos alguns comentários páginas atrás ao darmos alguns
detalhes da participação de sua família nos serviços de sepultamentos através da empresa “Rodovalho Jr.”
1029 - A. C., 03/05/1877, p. 91 e sobre a concessão na Lapa ver Lei nº 315 de 14/08/1897.
450
451
Não restam dúvidas de que alguns vereadores e parte da população da Penha
perceberam a real intenção da proposta para o fechamento do cemitério. O edil Francisco
Pennaforte, por exemplo, disse explicitamente que “não estava demonstrado a necessidade”
da obra, argumento este contra atacado por Guilherme Rudge com a junção de um abaixo
assinado a favor do novo cemitério e angariado junto aos moradores do bairro.
1030
Frente a essa disputa, decide-se pelo adiamento. Mas nos bastidores, Guilherme Rudge
conseguia arregimentar votos e, menos de dois anos depois, a situação já estava redefinida a seu
favor. E uma grande ajuda viria da Secretaria de Saúde do Estado que, em 1894, condenou “o
velho cemitério da Penha, por ser inconveniente à higiene local, por se achar na vertente das águas que
alimentam os poços que servem à população daquela localidade e pela aproximação do povoado.”
1031
No dia 17 de abril de 1895 – um dia depois de conseguir a aprovação para a sua Villa
Guilherme Rudge (veja esta data no canto inferior esquerdo do projeto) – o intendente de obras
enviava para avaliação uma proposta através da qual solicitava a aprovação da verba de
18:891$400 Réis (Dezoito Contos, oitocentos e noventa e um mil e quatrocentos Réis) para a
“construção de um cemitério na Freguesia da Penha.”
1032
Dois dias depois, o próprio Guilherme Rudge entra em ação e solicita urgência para a
discussão da proposta que, finalmente, foi aprovada a 22 de abril de 1895.
1033
E Rudge tinha
muita pressa, pois decorridos menos de três meses sem ver a obra iniciada, ele novamente
volta a pressionar, e agora cobrando também a instalação de iluminação pública, o que
certamente valorizaria os terrenos de sua Vila:
as obras do
no dia 10 de abril dava-se por
aberto o novo cemitério da Penha, ocasião em que foi realizado o primeiro sepultamento:
“Ferrucho Baptistelle – Aos dez de Abril de 1896 sepultou-se no Cemitério Municipal desta Freguesia
da Penha de França no quadro geral 1º dos menores, sepultura nº 1 o cadáver do inocente Ferrucho
Baptistelle, brasileiro, natural desta Freguesia, de 2 anos de idade, filho legítimo dos italianos
Baptistelle Ângelo e de Finotte Maria, residente do bairro do Aricanduva; faleceu hontem às sete horas de
interite crônica conforme attestado do Dr. Carlos Rosso. Cemitério da Penha 10 de abril de 1896.”
1035
“Não tendo sido até hoje executada a Lei nº 168 que autoriza
Cemitério da Penha, assim como a Lei nº 156 que autoriza a colocação de
lampiões na mesma freguesia, requeiro que o sr. Intendente de Justiça e
Polícia sem perda de tempo chame concorrentes para essas obras. S. Paulo 9
de julho de 1895 – Guilherme M. Rudge.”
1034
Nomeados o administrador e coveiro em março de 1896,
1030 - A. C., sessão do dia 05/11/1892, p. 65 e 66.
1031 - Citado no “Relatório da Comissão de Justiça, A. C. 12/06/1909 p. 126 a 133.
1032 - “Indicação nº 17” do Intendente de Obras, A. C., 17/04/1895, volume manuscrito, p. 300.
1033 - “Requerimento nº 46” de Guilherme M. Rudge, A. C., 19/04/1895,volume manuscrito, p. 315 e sessão do dia
22/04/1895, idem, p. 346 e 347.
1034 - A. C., 09/07/1895, volume manuscrito, p. 01 e 02.
1035 - Livro nº 01 de sepultamentos do cemitério da Penha (Vol. 17 do acervo), p. 01.
452
Dentre os dados a serem ressaltados no registro está o fato de que, agora, este era um
“Cemitério Municipal”, característica não presente no antigo.
1036
E este primeiro
sepultamento, além de acompanhar o alto índice de mortalidade infantil verificado em toda a
cidade, nos mostra ainda que no cemitério recém aberto não mais existia a “quadra dos
anjos”, aqui denominada como “dos menores”. Mais ainda, o falecido era filho de imigrantes
italianos, prováveis sitiantes ou empregados em propriedades ao longo do ribeirão
Aricanduva, que não tiveram dinheiro para comprar uma sepultura, pois o menino foi
enterrado na quadra geral, gratuitamente. E esta era a característica dos primeiros sepultados
naquele cemitério, ou seja, em sua maioria pobres, o que pode ser confirmado nos registros
que se seguiram. O segundo sepultamento realizado a 11 de abril, por exemplo, foi o de
“Modesto de tal (sic), natural da África, com 70 anos, casado com Bárbara Francisca de Jesus, falecido
em consequência de marasmo, sem que tivesse assistência médica, conforme attestaram o 1º Juiz de Paz
e o sub-delegado de Polícia. Sepultou-se grátis por ser pobre no quadro geral dos adultos, sepultura nº
1.”
1037
Não obstante o empenho de Guilherme Mawxell Rudge pela aprovação de seu
loteamento e o conseqüente fechamento do antigo cemitério da Penha, o fato é que os planos
não se realizaram como o previsto. A sua propriedade chegou a ser loteada, mas não da
maneir
pulação local o que,
provavelmente, inviabilizou os planos de Guilherme Rudge. Nas primeiras décadas do século
XX, portanto, o bairro da Penha contava com dois cemitérios: um municipal e outro ainda
com características paroquiais; os dois em funcionamento.
A pressão dos moradores a que nos referimos, pode ser vista através de algumas
petições que chegaram aos vereadores, como a de “João Cesário de Abreu, de Antonio José
Pinheiro e outros” que, em 1903, alegavam ter sepulturas perpétuas no velho cemitério e que,
por isso, recorriam contra o seu fechamento.
1038
Solicitações sempre negadas pela prefeitura, o
fato concreto é que o velho cemitério continuava a existir como, aliás, demonstram os mapas
da região.
a como foi idealizada inicialmente; a principal rua que se chamaria “Floriano Peixoto”,
por exemplo, nunca chegou a ser aberta e, lembremo-nos, o velho cemitério era o grande
entrave para a sua realização.
Apesar de instituído o novo cemitério em 1896, o antigo não chegou a ser fechado
totalmente. Eis aqui um indício de que houve uma pressão da po
1036 - Os registros de sepultamentos realizados no antigo cemitério da Penha, mantido pela paróquia local, não se
encontram no Arquivo Histórico Municipal. Provavelmente, tais registros possam ser localizados no acervo do
Arquivo D. Duarte, da Cúria Metropolitana de São Paulo.
1037 - Livro de sepultamentos do cemitério da Penha op. cit.
453
De outra parte, a então Freguesia da Penha de França estava a uma longa distância do
centro da cidade (e também do centro das decisões), possuindo uma comunidade que tecera
redes de solidariedade à margem da administração. Esses laços propiciavam acordos que,
inclusive, contrariavam as ordens emitidas: muito comum foi o “acerto” entre os moradores e
o administrador do novo cemitério que, por diversas vezes, não se negou a ir até a antiga
necrópole para realizar alguns sepultamentos.
1039
Mediante esses fatos, continuava a celeuma em torno do velho e do novo cemitério da
Penha, já que muitos moradores não aceitavam a ordem de fechamento, ao mesmo tempo em
que a municipalidade não autorizava os sepultamentos senão no novo. E o problema chegou
a tal ponto que, em outubro de 1908, os vereadores Goulart Penteado e Azevedo Soares
1038 - A. C., 10/10/1903, p. 333.
1039 - V
textualmente que “ depois que foi construído o cemitério novo, o velho ficou ainda aberto durante mais ou menos 8 anos, e o
zelador do novo e o respectivo coveiro, curavam também do cemitério velho (...) antigamente eles já faziam o serviço dos dois
cemitérios.” Na verdade, era assim que se procedia antes nos pequenos cemitérios paroquiais a céu aberto, como o
da Freguesia do Ó e da Penha que, conforme relato do Intendente Cesário Ramalho da Silva em 1893, “eram
mantidos e conservados por particulares, sendo que em alguns, os mesmos indivíduos que conduzem o cadáver, abrem a
sepultura; em outros esse serviço é feito por um coveiro, gratificado pelos habitantes locais.” Veja “Relatório do Intendente
eja A. C., 12/06/1909, p. 126 a 133. Ao explicitar este problema, o vereador Joaquim Marra disse
454
resolveram apresentar o seguinte projeto:
Art. 1º - Fica permitido às pessoas que tiverem terreno de foro perpétuo no
antigo cemitério da freguesia da Pe
enterramentos no referido cemitério.
nha de França, fazer os respectivos
a na esfera local, resolvido
que era
s
que tive
s e João Maurício de Sampaio Viana), entretanto,
descartou totalmente o projeto e o substitutivo, considerando-os ilegais e propugnou pela
total interdição do velho cemitério. O que se viu, a partir de então, foi um intenso debate
entre as partes e onde, explicitamente, colocou-se em causa a memória dos mortos.
rgumentando a princípio que, legalmente, o cemitério encontrava-se interditado, a
Comissão de Justiça lembrou que, mesmo assim, em 1903 “alguns interessados reclamaram sem
sucesso ntra o ato de fechamento (...) alegando direitos sobre os terrenos de sepultura perpétua” sem,
entretanto, apresentar qualquer prova do domínio.
1042
Após examinar a questão, continou, a
“Câmara denegou provimento (...) pelo que ficou mantida a interdição, a quem quer que seja, do anti-
higiênico cemitério.”
as eis que, em setembro de 1908, um dos antigos peticionários, João Cesário de
Abreu, voltou a reclamar “providencias no sentido de lhe ser facultado exercer, em qualquer tempo, o
seu direito de fazer inhumações numa sepultura que possue no cemitério fechado da Penha.” A esse
requerimento a Câmara, novamente, emitiu um parecer contrário.
Art. 2° - A Câmara poderá vender os terrenos que estiverem desocupados do
modo como se faz no cemitério da Consolação.
1040
Ernesto Rodrigues Goulart Penteado e Joaquim José de Azevedo Soares não imaginaram
a reação que enfrentariam. O problema que até então se acomodav
mediante acordos tácitos e vez ou outra chegava à Câmara, acabou por ser explicitado,
obrigando a uma tomada de posição por parte dos vereadores. E foi o que ocorreu.
Inicialmente, a Comissão de Higiene (formada pelos vereadores Augusto Gomes de
Almeida Lima, Joaquim José de Azevedo Soares e Joaquim Marra) optou por um substitutivo
ao projeto original, eliminando o artigo 2º e permitindo apenas os enterramentos às “pessoa
ssem terreno perpétuo no antigo cemitério da Penha.”
1041
De fato o artigo 2º, se aprovado,
reconheceria o pleno funcionamento do velho cemitério, pois permitiria a concessão de
terrenos abandonados ou em desuso, algo que já havia sido proibido mediante deliberação
anterior. Daí a opção pela exclusão desse item.
A Comissão de Justiça (esta formada pelos vereadores Álvaro Gomes da Rocha
Azevedo, Artur S. Ferreira Guimarãe
A
co
M
Municipal Cesário Ramalho da Silva apresentado à Câmara Municipal, ano de 1893”, p. 10.
1040 - Projeto de Lei nº 59, A. C., 24/10/1908, p. 293
1041 - A. C., 12/06/1909, p. 126 a 133.
1042 - Debates sobre o projeto de Lei nº 59 de 1908, A. C., sessão do dia 12/06/1908, p. 126 a 133. As demais
citações a este debate deverão ser referendadas nesta nota.
455
pós sintetizar o problema, bem como as ações da municipalidade, a Comissão de
Justiça emitiu seu parecer sugerindo a recusa, tanto do projeto quanto do substitutivo.
omeçavam então os debates, estes monopolizados por Joaquim Marra, de um lado, e
por Rocha Azevedo de outro. Joaquim Marra era o porta voz dos moradores descontentes
com a situação verificada na Penha e, ao que tudo indica, conhecia muito bem aquela
comunidade. O advogado Rocha Azevedo, por sua vez
1043
, baseava sua análise no estrito
campo da lei e, vez ou outra, resvalava para as questões ligadas à saúde.
Ao não concordar com o parecer da Comissão de Justiça, Joaquim Marra (da Comissão
de Higiene) defendeu o seu ponto de vista e, ao mesmo tempo em que reconhecia a
inconveniência higiênica de ser o cemitério velho aberto para todos”, alegou que não haveria
problema algum para o sepultamento daqueles que possuíam túmulos perpétuos, estes
construídos acima do solo, “de tijolos e argamassa, como na Consolação”, situação esta que não
oferecia qualquer risco de infiltrações, completou.
Com esses argumentos não concordava Rocha Azevedo, que atacou veementemente
essa posição, dizendo que a própria Comissão de Higiene condenava o velho cemitério e que,
até aquele momento, nenhum dos reclamantes apresentara qualquer título ou prova de que
possuíam sepulturas perpétuas.
1044
No debate, Joaquim Marra tenta modificar o foco e, com propriedade, diz que a
questão higiênica poderia ser resolvida desde de que se fizesse cumprir o contrato que
obrigava a instalação da água encanada no bairro, problema este que se arrastava desde 1892.
E, lançando mão de novos argumentos, relatou:
“Assim sendo, acho que o parecer da comissão de Higiene e o respectivo
projeto devem ser aprovados, porque [resultam] ao bem de todos, não há
prejuízo para ninguém e, sobretudo,
elle traduz um respeito muito digno pela
A
C
memória dos antepassados. Neste logarejo, onde a vida não é tão intensa
como no coração da cidade, e onde se guarda mais intensamente a nossa
tradição de povo latino, a população é conservadora por origem, respeita as
cinzas dos antepassados, repeito este consignado em toda a legislação, mesmo
penal. Estes homens acham um crime tocar nas cinzas dos velhos, dos seus
antepassados. E uma vez que estes ali repousam das labutações da vida, os
vivos reputam uma profanação tocar naqueles restos. E eu penso, sr.
1043 - Trata-se do Dr. Álvaro Gomes da Rocha Azevedo, advogado formado pela Faculdade de Direito de São
Paulo em 1888, e que, além de vereador, foi presidente da Câmara e prefeito de São Paulo entre 1919 e 1920,
secretário da Fazenda do Estado em 1920 e ministro do Tribunal de Contas em 1924. Por isso, ficou conhecido
“Ministro Rocha Azevedo”. Fonte: Seção de Logradouros do Arquivo Histórico Municipal.
1044 - De fato, nenhum deles possuía um “título” que comprovasse a aquisição de sepulturas perpétuas, até
porque o velho cemitério era administrado pela paróquia local e não pela municipalidade. Nesse caso, não havia
mesmo tal contrato a não ser, talvez, nos livros da igreja.
456
Presidente, que esse respeito deve ser acatado, si uma razão de ordem pública
não intervém.”
(meu destaque)
Esquecendo-se que um dos maiores problemas dos moradores da Penha era a falta de
água encanada – e não a existência do velho cemitério, portanto Rocha Azevedo, insistiu no
caráter anti-higiênico da velha necrópole e arrematou, em latim, que “salus populi, suprema lex
est”, certamente porque era mais fácil fechar o cemitério do que obrigar o cumprimento do
contrato para o encanamento das águas no bairro. Além disso, o mesmo vereador não deixou
passar em branco os argumentos alegados em favor da memória dos mortos daquela
população moradora num bairro periférico:
“Ora, desde que ficou interdito o cemitério, parece-me que toda e qualquer
pretensão sobre o uso daquela necrópole importa num
capricho (...) O colega
lembrou esse lado sentimental da questão: todo aquele que tem uma
sepultura, para lá tem voltadas as suas vistas, pelo amor ao passado, às
tradições. (...) Mas o colega bem sabe que o legislador não se atem a essas
sugestões de puro sentimentalismo.”
(meus destaques)
E, mais adiante, arrematou que se fossem permitidos os sepultamentos no antigo
cemitério, disso resultaria torná-lo ”francamente acessível a todos aqueles que, por um capricho, por
amor à tradição ou por sentimentalismo o adotassem para a sua eterna morada.”
Após algumas horas de discussão, as propostas foram postas a votos e, tanto o projeto
quanto seu substitutivo, foram rejeitados. Anos depois, o velho cemitério da Penha seria
extinto por completo. Em seu lugar, hoje se encontra a praça Dona Micaela Vieira, entre o
final da rua Dr. João Ribeiro e o início da av. Amador Bueno da Veiga.
Não obstante este detalhamento sobre o problema do velho cemitério da Penha,
algumas questões merecem ainda uma análise mais aprofundada.
Creio que o leitor atento pode detectar (já a partir do empenho com que agiu o
vereador Guilherme Maxwell Rudge em 1892) que, antes de ser um problema vinculado à
saúde ou higiene, o velho cemitério da Penha era um contratempo, um obstáculo aos planos
particulares de adensamento daquele bairro. De feições coloniais, o velho núcleo da Penha
não oferecia as condições necessárias para o novo urbanismo que se queria entre finais do
século XIX e início do XX. Daí a necessidade de adaptações ou retificações no traçado de suas
ruas que, especialmente no que dizia respeito à projetada Villa Guilherme Rudge, precisavam
ser feitos. Mas, o velho cemitério estava no meio do caminho.
Importa menos, nesse caso, a não concretização do projeto de loteamento, posto que
aqui já estava explicitada a disputa que se desenrolava. E a questão fica ainda mais explicita
457
quando a sua condição de fechado e
s sepultamentos – todos sabiam não oferecia mais qualquer risco. Muito
mais do que uma questão de saúde, portanto, o velho cemitério era como que uma barreira
para as pretensões imobiliárias que se desenhavam naquele momento.
Não obstante o seu fechamento, a antiga necrópole resistiu por mais alguns anos, e
isso certamente por conta da ação dos moradores. E isso até que o problema fosse novamente
explicitado na Câmara Municipal. De fato, este segundo debate consegue esclarecer uma
questão que se manteve eclipsada naquele primeiro, ocorrido entre 1892 e 1895: o respeito à
memória dos mortos. O velho cemitério da Penha, aberto pelo menos desde 1857, era um
depositário das tradições locais e uma referência à história familiar. Por suposto, nenhum
“grande nome” ali estava sepultado, senão pessoas mais humildes. Algumas famílias até
possuíam túmulos perpétuos, mas nada que se comparasse aos belos e ricos mausoléus da
Consolação. A memória, portanto, subordina-se a vários interesses, é seletiva ou passa por
uma seleção. Nem todas devem ser preservadas ou cultuadas; e aqui, é claro, tanto no que diz
respeito a uma concepção mais ampla, quanto no caso específico dos mortos. Tal processo,
como visto, se fez representar de maneira bastante explícita nos debates entre os vereadores
Rocha Azevedo e Joaquim Marra. Na superfície dos discursos encontramos uma discussão
que dizia respeito a um cemitério e seus mortos, mas numa análise mais aprofundada, o que
sobressai é a própria concepção de História. A memória, a tradição e tudo o que envolve a
preservação de elos entre os membros de uma camada mais humilde foi tratada como
“sentimentalismo” e qualificada (ou antes desqualificada) enquanto um “capricho”, o que
justificaria o seu rápido desvanecimento. Na mesma proporção, as memórias de uma classe
dominante deveriam ser conservadas, sendo motivos de comemoração e divulgação,
transformando-se assim em história. Nessa oposição entre uns e outros, o conflito repetia o
velho jogo travado entre Lembrança X Esquecimento.
“Aos vinte e um dias de 1913 foi inhumado na Rua 10, sepultura 10, lado esquerdo, o cadáver
de Guilherme Maxwell Rudge, desta Capital, de 71 anos de idade, falecido hontem às 2 horas
da manhã de arterio esclerose generalizada segundo o attestado do Dr. Caetano Duarte
da construção do novo cemitério. Ora, o antigo, n
interdito a novo
Aberto o novo cemitério da Penha em 1896, este deu continuidade às marcantes
características sociais locais, já que principalmente pobres foram ali enterrados. Guilherme
Maxwell Rudge, por outro lado, que tanto defendeu a sua construção (podendo mesmo ser
considerado o “fundador” daquela necrópole), não foi nele sepultado e sim no cemitério da
Consolação:
458
Nunes e certificado do escrivão de Paz da Consolação.”
1045
5.4 – Pobres, escravos e indigentes.
Gertrudes Maria do Espírito Santo nasceu em São Paulo pelos idos de 1800. Era parda,
viveu como escrava e, em 1860, encontrava-se na condição de liberta. Ela residia na então
Freguesia de Santa Ifigênia, mais especificamente no chamado Bairro da Cachoeira, numa
região próxima ao rio Tietê. Gertrudes não chegou a se casar e, no dia 7 de fevereiro de 1860,
por volta do meio dia, faleceu vítima de uma inflação.
1046
Pessoas próximas cuidaram de
chamar o vigário de Santa Ifigênia, José Joaquim Barbosa, bem como o fiscal do bairro,
Joaquim Firmino de Andrade. E isso era necessário não apenas por conta dos ritos fúnebres
senão, também, porque Gertrudes Maria era muito pobre e não havia como arcar com as
despesas do seu sepultamento:
“Atesto e faço certo que a falecida Gertrudes Maria do Espírito Santo é muito pobre e não tem meios
para o seu enterro, e por ser verdade passo este por me ser pedido e o referido é verdade, o que afirmo e
jurarei se necessário for. Bairro da Caxoeira do Quarteirão nº 17 da Freguesia de Santa Ifigênia, 8 de
Fevereiro de 1860. – Joaquim Fermino de Andrade – Inspetor.”
“Vai sepultar-se o cadáver de Gertrudes Maria do Espírito Santo natural desta cidade, e freguesa desta
Freguesia, solteira, de idade mais ou menos 60 anos, falecida ontem ao meio dia de inflamação de
intestino, no Bairro da Caxoeira. Santa Ifigênia 8 de Fevereiro de 1860. O Vigário José Joaquim
Barbosa.”
1047
E geralmente era assim que se procedia nos casos de falecimentos de pessoas mais
humildes. Constatada a morte, amigos ou familiares do finado pediam a presença de uma
autoridade local (o fiscal ou inspetor do bairro, por exemplo, que deveria conhecer os
membros da comunidade), bem como o padre responsável pela paróquia. O inspetor tinha
como função atestar a pobreza do falecido, especificando que o enterro deveria ser gratuito.
Ao mesmo tempo, o padre encomendava o corpo e preparava o “bilhete de sepultamento”
(u o
dava entrad es, ou seja,
reza e fornecia a autorização para o sepultamento. Esses “atestados” e
ma autorização para o enterro, poderíamos dizer), documento este exigido quando o corp
a no cemitério. Não raro, o padre desempenhava as duas funçõ
atestava a pob
1045 - Livro de sepultamentos do cemitério da Consolação, Vol. 23, p. 160 verso.
1046 - Livro de Inumação do cemitério da Consolação, 1860, Vol. 1, p. 96
1047 - Declaração de probresa e bilhete de enterramento, Coleção Papéis Avulsos do Arquivo Histórico Municipal,
1860, Vol. 188, documento nº 165.
459
“bilhet
nterro; em outros, como no
xempl
itério, existia a possibilidade de se
hamar a empresa de Joaquim Marcelino da Silva – que deteve o monopólio desse ramo na
cidade até 1876 – ou uma das outras funerárias que possuíam tal privilégio a partir da década
de 1880.
1049
Por contrato gratuitamente o enterro
rpo até o cemitério. Mas seja pela ineficiência
ue o trabalho era realizado, seja porque o costume era outro, o fato é que nem todas as
através da qual
ão teriam os 5 mil réis para fazer frente às despesas com o
funeral
es” eram muito simples, escritos em tiras de papel que, em muitos casos, eram
cortados à mão, sem régua nem tesoura. Para alguns sepultamentos encontramos dois
documentos: um atestado de pobreza e uma autorização para o e
e o de Gertrudes Maria do Espírito Santo, uma mesma tira de papel continha todas as
informações necessárias, o que nos faz supor que as duas autoridades (padre e inspetor)
estavam, ao mesmo tempo, diante do cadáver.
1048
Tomadas essas primeiras providências, o enterro poderia ser preparado.
Em seguida, e para o transporte do corpo até o cem
c
, estavam essas companhias obrigadas a fazer
dos mais pobres, o que incluía o transporte do co
com q
famílias se utilizavam desse serviço.
O primeiro contrato para a condução de cadáveres foi assinado entre o governo
provincial e Joaquim Marcelino da Silva em abril de 1856, época em que o cemitério da
Consolação ainda estava sendo construído. Por esse instrumento, o empresário Joaquim
Marcelino da Silva conseguiu aprovar uma tabela de preços uniformizados e
cobrava para os enterros de “1ª Classe” o valor de 30$000 (Trinta Mil Réis), montante este que
poderia ser acrescido de mais 10$000 Réis caso houvesse o acompanhamento de um padre; os
valores mais baixos da tabela referiam-se aos enterros de “4ª Classe”, pelos quais cobrava-se a
quantia de 5$000 Réis.
1050
Nesse primeiro contrato, é preciso frisar, nada constava a respeito
dos sepultamentos daqueles que se encontravam em extrema pobreza – os indigentes, por
exemplo – e que certamente n
mais simples.
Tal problema somente seria detectado mais tarde, quando da abertura do cemitério
em agosto de 1858, época em que se fez necessário um aditamento ao acordo anteriormente
1048 - Nesses primeiros anos de funcionamento do cemitério público da Consolação, poucos são os atestados
passados por médicos; esta situação altera-se a partir da década de 1870 e, já na década de 1890, são
majoritariamente os médicos que atestam a morte ao mesmo tempo em que declaram a pobreza do falecido.
1049 - Joaquim Marcelino da Silva explorou esse serviço com privilégio até 1876 qua
o governo da Província. A partir de então, o privilégio (ou monopólio) voltou para
ndo venceu seu contrato com
a Irmandade da Misericórdia
que, entr
trabalho a diversos particulares. Entre 1878 e 1881, po
etanto, nunca assumiu de fato os trabalhos. Terceirizando seu privilégio, a Irmandade repassou esse
r exemplo, a Empresa Funerária estava a cargo de Benjamin,
Silvado & Cia.; já em 1886, esse ramo de negócio estava sob a responsabilidade de Fernandes, Azevedo & Cia. Aberta
a empresa Rodovalho Júnior & Cia de “Pompas fúnebres” em 1891, de imediato ela não assumiu esse trabalho, fato
este que vai ocorreu de forma plena a partir de 1897.
460
firmado. Desde então, obrigou-se o empresário a “transportar gratuitamente os cadáveres dos
indigentes que falecerem na Capital, incluindo aqueles que falecerem no hospital da Santa Casa.”
1051
Trabalho este nunca realizado a contento como veremos a seguir, o fato é que havia um outro
problema: antes da existência do cemitério, os mais pobres também não tinham condições de
pagar por um acompanhamento ou por qualquer despesa relativa ao enterro, e disso
resultava que eles mesmos (familiares e amigos do falecido) se encarregavam como podiam
do transporte do corpo que, geralmente, seguia em redes, esteiras, lençóis ou padiolas até
cova. Reconhecendo essa prática, vale aqui registrar que não obstante o privilégio concedido a
Joaquim Marcelino da Silva, e exceto nos períodos de epidemia, não estava “proibido aos
articulares a condução dos cadáveres por qualquer outro meio”, conforme estipulou uma Portaria
do Governo da Província em agosto de 1858.
1052
Por volta de 1880, época em que já se encontrava disseminado o costume de se
enterrar em caixões individuais de madeira, era comum encontrar pelas ruas da cidade
cortejos da gente mais humilde levando “cadáveres a mão para o cemitério, especialmente crianças
que constantemente se observam expostas ao calor do sol, conduzindo os chamados caixões de anjinhos,
num percurso enorme como é do centro da cidade ao cemitério.”
1053
Caixões estes, é preciso dizer,
batidos a prego e martelo pelos próprios familiares como constatou o médico e vereador
Augusto Gomes de Almeida Lima:
“Quantas vezes eu vou à casa de um doente, que está a falecer, e já vejo lá as
taboinhas e os paninhos para fabricar o caixão que há de conduzir o falecido
ao cemitério. E, depois de morta esta criança, convidam-se os amigos e faz-se
o enterro. (...) Quantas vezes eu tenho visto nas ruas de São Paulo dois
indivíduos a carregarem caixões de adultos na cabeça e até em carroças.”
1054
E era a pé, com a ajuda de amigos, que se fazia a maioria dos enterros. Dos bairros
mais distantes localizados na parte sul da cidade como Vila Mariana, Aclimação e mesmo
parte do Ipiranga e do Cambuci, o cemitério mais próximo era o do Araçá, numa distância
que variava de 3 a 5 Km.
1055
Com uma população composta majoritariamente por “operários e
pequenos lavradores sem recursos para a condução em carros da empresa funerária”, os mesmos
traziam “seus mortos a mão, com imenso sacrifício, até o cemitério, fazendo a pé o percurso de duas e
p
1050 - Lei Provincial nº 548 de 28 de Abril de 1856, com Tabela em anexo.
1051 - Portaria do Governo da Província de 24/08/1858, A. C., sessão do dia 28/08/1858. Essa obrigação constou
dos demais contratos, inclusive naqueles repassados pela Irmandade da Misericórdia.
1052 - Portaria do Governo da Província de 17/08/1858, A. C., sessão do dia 28/08/1858.
1053 - Exposição do vereador Francisco Amaro, A. C., 01/05/1899, p. 194.
1054 - Manifestação do vereador Almeida Lima, A. C., 24/03/1911, p. 139 a 152. O Dr. Almeida Lima teve destacada
atuação junto à população pobre do bairro do Braz (histórico da Rua Dr. Almeida Lima, Arquivo Histórico Municipal).
461
meia a três léguas.”
1056
Apesar de mais próximos da cidade, os moradores do bairro do Braz
também sentiam o problema. E aqui havia um agravante, pois o cemitério utilizado era o da
Consolação, o que os obrigava a passar pelas elegantes ruas centrais, numa situação
considerada bastante vexatória:
“Os abaixo assinados, moradores na Freguesia do Senhor Bom Jesus do Braz,
atendendo as insuperáveis dificuldades com que lutam em geral os
moradores desta Freguesia, especialmente os que não são abastados e aqueles
que se podem chamar de não pobres, mas sim miseráveis, com relação aos
sepultamentos de cadáveres, vem a vossa presença rogar, pedir e requerer vos
digneis sem perda de tempo mandar construir um cemitério naquela
Freguesia. (...) Determinastes vós com a polícia que os enterramentos fossem
feitos no cemitério municipal da Consolação e os povos daquela Freguesia
tem obedecido com sacrifício visto ser a distância enorme. (...) o povo sofre, e
a pobreza não tem meios de condução dos cadáveres das pessoas que lhes são
caras para lugar tão longe, tão distante, tendo de passar pelo centro da cidade,
sujeito a irrisão porque suas roupas são remendadas, rasgadas e muitas vezes
sujas. Os carros da Santa Casa, da Polícia, além de não serem suficientes, não
chegam a tempo e a hora [pois] o cemitério, em virtude de seu regulamento,
tem hora de abertura e fechamento do seu portão.”
1057
Apontado o problema com os “carros” para o transporte gratuito dos cadáveres, do
outro lado da cidade, e já no início do século XX, eram os moradores da Lapa, “constituídos quase
todos por operários”, que sofriam com a condução de seus mortos, já que “os enterramentos eram
feitos a pé, a grande distância entre aquele bairro e qualquer um dos cemitérios”
1058
, situação esta em
muito agravada no tempo das chuvas, como bem detalhou o vereador Celso Garcia em 1908:
“Na Lapa não há sequer cemitério. Quando morre uma pessoa, se o tempo é
chuvoso, os moradores daquele bairro, às vezes, quase se vêem obrigados a
ter o cadáver dois ou três dias em casa, pois é impossível o seu transporte
para esta cidade; os carros não chegam até lá; os caminhos, além de longos,
são quase intransitáveis.”
1059
Mais próximos do cemitério do Araçá estavam os moradores de Perdizes, mas mesmo
assim eram grandes os obstáculos para se chegar à necrópole: de um lado, estava o vale do
ribeirão Pacaembú, verdadeiro despenhadeiro quase que intransponível para os lados de
Higienópolis pela falta de ligação entre as ruas dos dois bairros; de outro, o impedimento era
verificado na antiga rua Thabor (atual Cardoso de Almeida) que mal chegava até a rua
Bartira, final do loteamento dos Campos das Perdizes, ponto este em que começava a chácara de
Joaquim Floriano Wanderley. Decorrente dessa situação era o fato de que também a
1055 - O cemitério de Vila Mariana, que atendeu a população desses bairros foi aberto somente em 1904.
1056 - Manifestação do vereador Abílio Soares, A. C., 07/11/1899, p. 536.
1057 - Coleção Papéis Avulsos do Arquivo Histórico Municipal, 1890, Vol. 570.
1058 - Indicação nº 122 dos vereadores Joaquim Marra, R. Duprat e R. A. Gurgel para a edificação de um cemitério
no bairro da Lapa, A. C., 14/09/1918, p. 254.
462
população de Perdizes, “quando levam e acompanham um cadáver ao cemitério, tem de dar uma
volta quase que pelo centro da cidade, porque não há via de comunicação entre aquele bairro e o
cemitério”, num trajeto sempre feito a pé.
1060
De fato, e apesar de consignado em contrato, não havia muito interesse das funerárias
s transportes gratuitos e, tão pouco, dos indigentes que faleciam nas vias
obres e remediados, encarregavam-se os amigos e familiares, mas no caso dos
indigentes havia uma ausência absoluta de condutores, algo que passou a representar uma
ameaça de. Não por outro motivo, os
cadáveres dos mendigos eram um assunto de governo, merecendo regras especiais.
Desde o primeiro regulamento para os Cemitérios Municipais (de 1858), estipulou-se
que “os indigentes, os pobres que falecerem nos hospitais da Santa Casa da Misericórdia e suas
enfermarias externas, nos hospitais e enfermarias do governo, ou nas prisões, os padecentes e os corpos
que forem remetidos pelas autoridades policiais” seriam enterrados gratuitamente nas sepulturas
das Quadras Gerais do cemitério.
1061
Ao mesmo tempo, conforme visto, obrigavam-se as
funerárias a transportarem também gratuitamente esses corpos. Cumprido o regulamento na
parte que tocava ao cemitério, o mesmo não pode ser dito quanto às empresas responsáveis
pela condução de cadáveres. Em 1899, por exemplo, o dr. Abílio Soares fez ver que, “na
execução da cláusula referente à polícia e à pobreza”, tal era o desrespeito que a polícia fora
a uma situação vista como vexatória: os carros que transportavam os
em realizar esse
públicas. Dos p
à saúde face ao abandono dos mesmos nas ruas da cida
obrigada a adquirir carros e utensílios próprios para fazer frente a esse trabalho.
1062
Por essa
época, o privilégio da Irmandade da Misericórdia já estava sendo explorado pela companhia
Rodovalho Jr. Esta, por sua vez – e apesar de manter alguns carros para o serviço gratuito –
nunca realizou o trabalho a contento numa cidade que, em 1911, já anotava cerca de 1.000
(mil) mendigos falecidos a cada ano.
1063
Trabalho este reconhecidamente deficitário, o transporte gratuito de cadáveres para os
cemitérios impunha aind
indigentes, eram os mesmos utilizados para os pobres.
1059 - Discurso do vereador Celso Garcia, A. C., 19/05/1906, p. 76 a 79.
1060 - Manifestação do vereador Celso Garcia quando da apresentação da Indicação nº 222 de 1905, para a
abertura da Rua Thabor (atual Cardoso de Almeida) até a Av. Municipal (hoje Dr. Arnaldo); A. C., 23/12/1905, p.
217.
1061 - Regulamento do Cemitério, artigo 21.
1062 - Parecer nº 81 do vereador Abílio Soares, A. C., 18/10/1899, p. 487. Nas contínuas renovações do contrato
com a Misericórdia, alguns vereadores que defendiam aquela Irmandade sempre lembravam do desvelo com que
a mesma cuidava desse tema “fornecendo gratuitamente caixões aos indigentes, não só aos que falecem nos hospitais da
Santa Casa, como nos demais hospitais da cidade e os requisitados pela polícia.” (Discurso do vereador Sampaio Viana, A.
C. 09/07/1911, p. 283 a 286). Entretanto, não era a Irmandade, mas sim as empresas sub contratadas que
realizavam esse trabalho. E muito mal, como apontou a Comissão de Higiene da Câmara em 1911, pedindo a
atenção dos vereadores para o modo como se faziam “ os enterramentos de mendigos, em que caixões de taboas mal
ajustadas, através de cujas fendas, às vezes, o sangue vai pingando, sem a preocupação de ao menos envolver o cadáver em
panos que absorvam o sangue.” (Parecer da Comissão de Higiene, A. C., 24/03/1911, p. 139 a 152).
1063 - Manifestação do vereador Mário Amaral, A. C., 24/03/1911, p. 139 a 152.
463
Mediante essa situação, comum mesmo era a condução dos falecidos a pé até a
necrópole mais próxima que, como vimos, poderia estar a quilômetros de distância.
Fig. 69
Os carros do serviço gratuito de condução de cadáveres
464
Fig. 70:
Os carros fúnebres mais luxuosos da empresa Rodovalho
E como a prática da condução dos cadáveres a pé era muito comum, posto que cada
um se incumbia como podia para realizar o enterro de parentes e conhecidos, é bem possível
que, em 1860, Gertrudes Maria do Espírito Santo tenha sido assim transportado do distante
Bairro da Cachoeira em Santa Ifigênia até o cemitério da Consolação. Mas se dispensada fosse a
condução pela empresa funerária, exigiram as pessoas mais próximas que Gertrudes
recebesse o “atestado de pobreza”. Esta medida era de suma importância, já que desobrigava
o pagamento de qualquer taxa para a sepultura no cemitério. Somente os assim classificados é
que poderiam ser enterrados gratuitamente, uma vez que os demais (aqueles que não
possuíam o “sepulte-se como pobre” no bilhete de enterramento) deveriam pagar, mesmo que
por uma cova nos Quadros Gerais, a quantia de 6$000 Réis como estipulava o Artigo 26 do
Regulamento do Cemitério.
Chamado por muitos como o “novo imposto do cemitério”, essa taxa gerou algumas
dúvidas e muitas reclamações na cidade. O primeiro questionamento, por exemplo, surgiu
logo em 1859 e referia-se aos escravos. A pergunta era: deveriam eles ser enterrados como
pobres? A esse respeito manifestou-se a Comissão de Finanças da Câmara, emitindo uma
ordem para que, na relação dos escravos sepultados, o administrador do cemitério deveria
fazer constar “os nomes dos senhores, o que era necessário para verificar se a declaração de pobreza
465
era exata,”
1064
e isto porque os cativos “não poderiam ser considerados como pobres, visto que seus
senhores são obrigados ao pagamento dos enterramentos.”
1065
De outra parte, um protesto mais
contundente a respeito desse pagamento partiu da população do Braz, esta constituída em
sua maioria por pessoas humildes. Até então, aquela comunidade costumava sepultar seus
mortos no cemitério anexo à igreja Matriz do bairro e para isso pagava taxas que variavam
de 300 a 500 Réis; mas agora, com o cemitério público da Consolação, esse valor subira para
6$000 Réis. Este problema, que se aliava à grande distância da nova necrópole, deu motivos
a algumas representações dos moradores, como a que foi enviada para a Câmara Municipal
em março de 1861. Através da mesma, reclamavam os moradores ...
“... sobre a inconveniência e vexame que causa o enterramento dos Fregueses
d´esta Freguesia no cemitério municipal que, além do imposto de 6$000, tem
muitas vezes já caminhado três léguas de distância para virem à Freguesia e
daqui ainda seguirem para o cemitério na distância de mais meia légua. (...)
Além do exposto, tenho a certificar a V. S. que sendo a totalidade desta
Freguesia pobres, para escaparem do imposto municipal, com bastante
incômodo, seguem a fazer enterramentos na Freguesia da Penha.”
1066
Ao lado das petições enviadas ao governo, também a imprensa fazia repercutir o
descontentamento do povo com respeito à nova taxa. E as críticas mais contundentes vieram
justamente do Publicador Paulistano, periódico que vinha desenvolvendo uma intensa
de 1859, por exemplo, o jornal argumentava que
nada legitimava o pesado imposto, “nada senão a vontade tenaz e forte de acabrunhar o povo [e] o
desejo sórdido de ver se amontoar nos cofres da Câmara o ouro extorquido dos pobres.”
1067
Em ataques
sucessivos, o jornal por vezes alterava seu foco e convidava o leitor para se colocar na posição
de um filho que perdera o pai (ou qualquer membro da família), situação essa vivenciada com
muita freqüência na cidade dos oitocentos, e perguntava: Como poderia um “... pobre que
mendiga muitas vezes para sustentar seu pai no longo período de uma moléstia, veja-se forçado a pagar
um pesado Imposto para dar á cova aquele para cujo sustento recorre á caridade pública, e ver o escárnio
de homens sem moral, sem religião e que tudo sacrificam ao torpe interesse, não recuando ante a
dificuldade de despojar um cadáver?”
1068
As reclamações contra o chamado imposto do cemitério foram bastante freqüentes entre
1859 e 1861, mas cessaram a partir de então, não mais se apresentando qualquer queixa já a
partir de 1862. Ora, e o que teria ocorrido? Por acaso a população havia se acostumado com a
campanha contra o cemitério. Em março
1064 - Análise das contas do cemitério, A. C., 14/01/1859, p. 16
1065 - A. C., 24/05/1860, p. 119 e 120.
1066 - Coleção Papéis Avulsos do Arquivo Histórico Municipal, 1861, Vol. 193, documento 183. Esta petição foi
redigida com a finalidade de pedir uma autorização no sentido de que os moradores do Braz pudessem continuar
enterrando no velho cemitério paroquial, o que foi permitido por cerca de dois anos. Em março de 1863 o
cemitério anexo àquela matriz foi definitivamente fechado, voltando os moradores do Braz a serem sepultados no
Consolação. Veja A. C., 09/03/1861, p. 66 e 05/03/1863, p. 73.
1067 - “O Publicador Paulistano”, edição do dia 03/03/1859.
466
taxa? Não é o que nos parece, pois ao mesmo tempo em que as reclamações deixam de ser
feitas, algumas notícias sobre procedimentos estranhos começam a chegar aos vereadores. Em
1869, por exemplo, foram denunciados alguns casos de sepultamentos “de pessoas no cemitério
com guia de pobres” mas que, ao mesmo tempo, “eram enterradas em caixão”, sendo este um
le
“O senhor presidente propõe que se represente ao Reverendo Sr. Vigário
Geral deste Bispado para que chame a atenção dos Reverendos Párocos das
Freguesias desta capital a estrita observância nas guias para os enterramentos
no cemitério municipal de que trata o Art. 21 do Regulamento do cemitério,
observando-lhes que
nem todo o pobre é indigente, e que só podem
indício de que elas não eram tão pobres assim. Nessa situação, o vereador Cel. Rodovalho
lembrou a conveniência de alertar os párocos de todas as Freguesias para serem “cautelosos
nos atestados que derem.”
1069
E não eram apenas os casos com os caixões, como mbrou o
próprio presidente da Câmara em dezembro de 1873, uma vez que muitas famílias pagavam
pela presença do padre ou mandavam rezar missas, mas igualmente solicitavam o “sepulte-se
como pobre” nas guias de enterramentos:
aproveitar o favor de sepulturas grátis os que também não podem pagar os
emolumentos paroquiais; oficiando igualmente neste sentido ao Doutor Chefe
de Polícia pedindo-se a providência por parte dos Subdelegados dos Distritos
da capital sobre as certidões que também expedem para semelhantes
enterramentos, e aos Inspetores de Quarteirões.”
1070
(meu destaque)
Diante da taxa criada com o novo cemitério, inicialmente os paulistanos reclamam.
Mas, logo em seguida, percebem uma estratégia, pois bastava obter o atestado de pobreza
para que nada se gastasse com o enterro. A tática bem funcionava, desde que, é claro, se
contasse com a aquiescência de párocos e fiscais. E eles, tudo leva a crer, não se recusavam
diante dos pedidos que, pela quantidade exagerada segundo os vereadores, já podia ser
tratado como um escândalo. Em 1879, por exemplo, o vereador Guedes Portilho reclamava do
“grande abuso que se dá nas guias que acompanham os cadáveres dos pobres, considerando-se como
indigentes pessoas que não estão nesse caso” e concluía chamando a atenção “sobre tais
irregularidades
prejudiciais aos cofres da municipalidade.
1071
(meu destaque)
E certamente por isso – ou para que não restassem quaisquer dúvidas a respeito da
pobreza do falecido – que muitos dos bilhetes (ou atestados de pobreza) acabaram sendo
redigidos com muita ênfase na afirmação do estado de indigência do falecido e, por vezes,
ressaltando mesmo em detalhes a falta de recursos para seu sepultamento:
1068 - Idem, edição do dia 09/09/1859.
1069 - A. C., 09/10/1869, p. 226.
1070 - A. C., 04/12/1873, p. 245.
1071 - Ofício do vereador Guedes Portilho, A. C., 03/07/1879, p. 56.
467
“Attesto que faleceu de morte natural no Quarteirão 10 o preto forro de nome
Vicente Veloso e
é summamente pobre, vivendo de suas esmolas, o que afirmo
ter pleno conhecimento e debaixo do meu cargo. Palmeiras, 2 de março de
1860. O Inspector João Manoel Floriano.”
1072
(meu destaque)
Tais argumentações nos bilhetes, é preciso frisar, foram redigidas com o intuito de não
causar qualquer dúvida ou desconfiança quanto à veracidade da condição do finado, o que,
em caso contrário, poderia trazer um certo embaraço quando da entrada do corpo no
cemitério. Daí a veemência com que o inspetor Joaquim Firmino de Andrade, do “Quarteirão
17” de Santa Ifigênia, atestou a pobreza de Gertrudes Maria do Espírito Santo no bilhete já
citado no início, pois ele afirmava que Gertrudes era “muito pobre, não tinha meios para o
seu enterro” e, por ser verdade o que dizia, ressaltou que “juraria se necessário fosse.”
E foi justamente com este bilhete que, no dia 8 de fevereiro de 1860, chegou ao
cemitério da Consolação o corpo da liberta Gertrudes Maria do Espírito Santo. Em seguida,
seu cadáver seria acomodado numa das “covas rasas”, estas simplesmente cavadas na terra
nua das Quadras Gerais.
Vale destacar que a exemplo do que ocorreu com Gertrudes Maria, milhares de outros
paulistanos foram assim inumados no cemitério da Consolação, em covas rasas e temporárias,
na única necrópole existente na cidade até janeiro de 1893, quando então foi aberta a do Braz.
os páginas
atrás, temos como certo que um conjunto de 38.000 (trinta e oito mil) lembranças – senão mais
– quedaram simplesmente apagadas naquela necrópole, numa ação que, inclusive, redundou
numa alteração de sua disposição original. Através desse processo, quarteirões inteiros
desapareceram, a exemplo das Quadras Comuns, as dos bexiguentos e as dos Anjos. Nada
indica, na atual geografia do cemitério da Consolação, que ali foram sepultados membros de
todas as camadas sociais da cidade no século XIX. Atualmente, a crônica desses mortos
comuns somente pode ser encontrada nos grossos volumes dos Livros de Registros de
E chega mesmo a impressionar a quantidade de cadáveres que deram entrada no
cemitério da Consolação até aquela data, ou seja, um total de 42.242 corpos. Mais
representativo ainda é o fato de que apenas 10% tiveram condições de adquirir uma
sepultura. Os demais seguiram para as Quadras Gerais, aqui incluindo as Quadras dos Anjos,
também gratuitas.
1073
E com o processo seletivo de memórias ao qual nos referim
1072 - Bilhete de sepultamento, Coleção Papéis Avulsos do Arquivo Municipal, 1860, Vol. 189, documento nº 21.
1073 - No seu primeiro ano de funcionamento, o cemitério da Consolação contabilizou um total de 602
sepultamentos; desses, apenas 41 cadáveres (ou 6,5%) foram enterrados em túmulos comprados. Já para o ano de
1880, contamos um total de 881 sepultamentos, dos quais somente 98 deles (ou perto de 11%) foram realizados em
túmulos perpétuos ou alugados. Feitos esses cálculos ano a ano, chegamos a uma média de 10% do total de
enterros efetuados em túmulos de pedra, tijolo e cal; os demais foram para as covas gerais.
468
Sepultamentos e não mais na necrópole. Pobres, escravos, indigentes e crianças – aos milhares
desapareceram e daí que, para o caso de São Paulo (mas não descartando por certo outras
comunidades) não é possível reconstruir uma história da morte e de todas as suas implicações
na sociedade com base apenas nos vestígios encontrados nos cemitérios mais antigos. Estes,
como vimos, acabaram sendo alterados e, ao renovarem-se, preservaram a arquitetura e as
tradições de um determinado extrato da sociedade, e não de todos. A memória presente em
vários cemitérios da cidade (com especial destaque para o da Consolação, mas não
esquecendo os demais como o do Araçá, Vila Mariana e mesmo o do Braz) já não é a mesma
da época em que foram abertos e serviram à população. Em todos eles, por exemplo, não mais
encontramos os indícios ou a lembrança dos mais humildes; nada indica onde eram enterrados
os pobres, as crianças e os escravos (estes no cemitério da Consolação), os mortos por doenças
contagiosas, os bexiguentos (no Araçá e também na Consolação), ou então os indigentes.
E eis que, na análise de Philippe Ariès, conhecemos a antiguidade em grande parte
graças aos túmulos e aos objetos que aí se acumularam;
1074
mas o que temos como indícios
são, na verdade, fontes que resultaram de uma seleção. Seleção do tempo, nos fala Ariès, mas
por certo tendo como agentes os próprios homens e seus interesses como na esclarecedora
análise de Vovelle ao destacar que, “dos traços que a morte nos deixou ficaram as provas, os
testemunhos, os indicadores dos ricos, dos poderosos, mas nada para as massa anônima dos pobres.”
1075
Diante do processo que suprimiu dos nossos mais antigos cemitérios as marcas físicas
da população mais humilde, podemos então perguntar: onde, no cemitério da Consolação,
localizavam-se essas áreas destinadas aos sepultamentos dos mais pobres, dos escravos e das
crianças? Iremos tentar desvendar essa questão tendo como base uma preciosa fotografia
daquele cemitério datada de 1898, esta conjugada com as informações constantes nas fontes
do governo municipal.
1074 - Áriès (1988), Vol. II, capítulo XI “A visita ao cemitério”, especialmente p. 210.
1075 - Vovelle (1996), p. 18.
469
Fig. 71: O cemitério da Consolação em 1898.
Rara imagem do cemitério da Consolação num período em que o mesmo já estava
“totalmente ocupado” conforme as alegações dos vereadores, sendo esta a razão principal
para qu , no ano anterior (1897), fosse edificado o novo cemitério do Araçá. Vale lembrar que
esta fotografia não apresenta o traçado original do cemitério à época de sua inauguração (em
1858) posto que, passados 40 anos, algumas reformas já haviam sido realizadas como a
incorporação de novos lotes seja para as Quadras Gerais, dos Anjos ou dos bexiguentos, o que
obrigou a novas divisões nos seus quarteirões. De qualquer forma, ainda assim é possível
retirar valiosas informações desta fotografia que, ao serem cotejadas com outras fontes,
podem nos indicar com certa precisão as respostas para a questão que propusemos.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que a escolha dessa vista pelo fotógrafo é
deveras instigante, posto que esta não era a área nobre do cemitério a qual se localizava em
frente da capela. O que vemos nesta imagem, ao contrário, é a parte posterior ou os fundos do
cemitério (o fotógrafo posicionou-se por detrás da capela). Por essa época, os túmulos mais
ricos situavam-se defronte e ao lado do templo – nas chamadas ruas largas – nas proximidades
do portão que dava entrada pela rua da Consolação; parte desses túmulos, aliás, podem ser
vistos junto às árvores que se concentram em frente e ao lado da capela.
1076
e
1076 - Para uma melhor comparação, retorne para a página 414 e veja a imagem nº 61 que nos mostra a parte mais
rica do cemitério da Consolação no ano de 1894.
470
E como a fotografia bem demonstra, as quadras situadas na parte posterior eram as mais
simples, com alguns túmulos sem muita ostentação e outros bastantes humildes.
Mais à direita, é possível ver um “campo” onde prevalecem as cruzes (provavelmente de
madeira) e pequenas outras construções que lembram o local da sepultura mas que, pelas
dimensões, não podem ser consideradas como túmulos.
Nada a estranhar nessa configuração, uma vez que seria mesmo de se esperar que, na
Ao que nos parece, o plano original do cemitério da Consolação (datado de 1855) não
contemplava toda esta área posterior. Dizemos isso porque nos projetos que se apresentaram
como modelos para um cemitério público na cidade, a capela seria construída sempre no final
da necrópole, em frente ao portão principal, mas nos fundos, rente ao muro de fechamento.
Assim foi pensado em 1836, data do primeiro projeto para a construção de um cemitério
municipal. Sob proposta de uma Comissão especialmente nomeada pela Câmara, este
cemitério seria ser construído no terreno das religiosas da Luz, próximo ao Lazareto, devendo
“ter 150 braças de frente e 100 braças de fundo, com uma capela no centro do muro do fundo, em frente
do portão de entrada.”
1077
Ou seja, e a exemplo do que ocorria no Cemitério dos Aflitos, a
necrópole não deveria ir além da capela, esta localizada nos fundos. A medida em braças, por
outro lado, nos dá a dimensão desse cemitério: cerca de 330 metros de extensão por 220 de
sua divisão, os “fundos” do cemitério fossem reservados aos mais pobres e a frente para os
ricos, ou para aqueles que poderiam pagar pelos terrenos perpétuos e com condições de
levantar seus mausoléus de mármore. A entrada era como que a apresentação da necrópole
(uma sala de visitas, poderíamos dizer), sendo ela a que recebia grande parte dos
melhoramentos como o calçamento e o plantio de árvores, estas bastante visíveis na foto.
1077 - “Parecer da Comissão da Câmara encarregada de estudar o estabelecimento de cemitérios”, Coleção Papéis
Avulsos do Arquivo Histórico Municipal. 1836, Vol. 75, documento nº 1.047.
471
largura. Quando da apresentação do segundo projeto para o cemitério público de São Paulo,
em agosto de 1850, o local indicado foi o “Campo Redondo” (atual bairro dos Campos
Elíseos) sendo o plano elaborado pelo engenheiro José Jacques da Costa Ourique. Em sua
explanação o engenheiro indicou que este cemitério deveria ter “60 braças em quadra, com
muros de taipa de feixo de todo o terreno, cobertos de telha, caiados e rebocados por dentro e por fora,
m colunas laterais de cantaria, e uma capela no fundo com 40 palmos de comprido e 27
de largo...”
1078
Apesar de não concretizado, este projeto trazia novamente a capela nos fundos
do cemitério.
Em 1855, porém, seria outro o engenheiro escolhido para projetar o cemitério da
Consolação, ou seja, Carlos Rath. Além de escolher o local (nos “altos da Consolação), o
engenheiro alemão ofereceria ainda o plano geral da necrópole, bem como o projeto para a
sua capela. Apesar de não encontrarmos esses documentos, sabemos que Carlos Rath tinha
uma perfeita idéia de como deveria ser o cemitério da Consolação, ou seja, baseado nas
lembranças que tinha dos existentes em sua terra natal, a Alemanha:
“Na maior parte da Europa mais civilizada tem-se proibido os enterramentos nas igrejas, com
pequenas exceções, e mesmo estas com certas regras e cautelas. Mesmo em Roma e Nápoles
proibiu-se em 1809 os enterros nas igrejas, e na Alemanha encontram-se cemitérios que já
contam 300 anos, ornados de monumentos, pedras sepulcrais, epitáfios e mausoléus
construídos naquele tempo em honra a homens célebres dessa época. De todas as formas de
cemitério, merecem preferência, e tornam-se dignos de serem imitados os de que usa a secta do
Herrnhul, espécie de Guaken na Alemanha. Eles formam um jardim com passeios entre flores,
arbustos e pequenos bosques, que exalam um aroma agradável, neutralizando assim as
exalações mefíticas, visto que as flores e arbustos aromáticos entre os monumentos absorvem
esses gases. Por este método, goza-se um prazer, que modera as melancólicas idéias que
deixam as saudades de um amigo, de um parente que se há perdido. A beleza e os encantos da
natureza neste lugar,
e a vista da pequena capela colocada no fundo do cemitério
portão de ferro co
, eleva-se o
pensamento ao Criador e à eternidade, e a nossa dor transforma-se em uma doce comoção
cheia de esperança e consolação.”
1079
(meu destaque)
Eis aqui a inspiração de Carlos Rath para o cemitério da Consolação que, da mesma
maneira que os projetos anteriores, mantinha a capela no fundo do cemitério. E tudo leva a
crer que fosse mesmo esta a intenção quando do início de sua construção em outubro de 1855.
Utilizando-se de uma faixa de terrenos municipais ao longo da antiga “Estrada de Pinheiros”,
nos parece que o cemitério não teria mais do que 85 metros de largura, sendo esta a distância
do portão até a capela. Dois meses depois, em dezembro de 1855, houve uma modificação
nesse plano, quando então praticamente dobrou-se a largura mediante a aquisição de parte
do “pasto” pertencente à chácara de Marciano Pires de Oliveira.
1080
Nenhuma explicação nos é dada a respeito dessa alteração, mas é bastante provável
1078 - Projeto do engenheiro José Jacques da Costa Ourique, A. C., 14/08/1850.
1079 - Carlos Rath, “Memória sobre os cemitérios”, Coleção Papéis Avulsos do Arquivo Histórico Municipal,
1856, Vol. 175, documento 338 e seguintes.
1080 - Ofício de Marciano Pires de Oliveira, A. C., 05/01/1856.
472
que aqui já estava sendo colocada em prática a divisão social da necrópole: os ricos na
entrada, os pobres nos fundos. De fato, e arbitrada a quantia de 200$000 Rs. (Duzentos Mil
Réis) pelas terras de Marciano, um mês depois de iniciadas as negociações a Comissão da
Câmara encarregada do novo cemitério informou ao engenheiro Carlos Rath que a capela
deveria “ser assentada no encruzamento das duas ruas principais.”
1081
Tendo em vista esta configuração, toda a parte posterior do cemitério foi então
reservada para as “Quadras Gerais” ou “Comuns” que, na fotografia, podem ser vistas no
canto direito. De toda forma, o que vemos é senão uma parte dessas Quadras, uma vez que
elas continuavam à esquerda, parte esta não captada pelo fotógrafo.
Nesse sentido, percebemos que a imagem está consoante com as informações
prestadas pelos vereadores entre 1896 e 1897, ou seja, que cemitério da Consolação já estava
totalmente ocupado por sepulturas, não restando espaços para novos enterramentos. Seria
enganoso pensar, portanto, que o vasto terreno à direita estaria com poucos cadáveres, já que,
ao contrário, ali permaneciam depositados dezenas e dezenas de corpos em covas rasas sem
qualquer marca ou, quanto muito, com frágeis cruzes e indicações. Mediante este fato é que
surgiu a necessidade de se construir um novo cemitério, agora nos altos do Araçá.
Por fim, devemos voltar nossa atenção para uma quadra repleta de pequenas cruzes
bem próxima da capela. Tendo em vista estarem elas quase que “coladas” umas às outras,
certamente este terreno não servia para sepulturas de adultos. Aqui, portanto, estaria uma
das “Quadras dos Anjos” do cemitério da Consolação.
É importante notar que essas referências como as Quadras Gerais ou Comuns, bem
como a dos Anjos, não mais existem no cemitério da Consolação. Com o decorrer dos anos,
esses terrenos foram desocupados e postos à venda, o que redundou numa nova divisão,
sendo sua área redesenhada nos moldes que hoje se apresenta.
E em decorrência desse processo seletivo, que resultou na supressão das marcas da
população mais humilde daquela necrópole, tivemos como conseqüência imediata a elitização
deste que é o mais antigo cemitério de São Paulo. Os indícios que ali restaram nos falam,
sobretudo, a respeito das práticas de enterramentos (e da história) de uma camada
1081 - Relatório da Comissão encarregada do Cemitério, A. C., 21/01/1856.
473
privilegiada da população; perdendo-se, como é evidente, os vestígios de muitos outros.
Para finalizar a análise deste item, nas próximas duas páginas estarão presentes uma
ampliação da foto utilizada como fonte para essas linhas e, em seguida, um estudo que
realizei sobre as áreas agregadas ao cemitério desde a sua inauguração em 1858 e até o
presente. Trata-se de um desenho meramente ilustrativo de minha autoria e, portanto, sem
escala e numa proporção aproximada. Para a divisão dos quarteirões, utilizei como base a
planta oficial atual daquele cemitério.
474
475
476
.5 – Tensões e ambigüidades: o retorno dos mortos
Com a invenção do cemitério público da Consolação pelos idos de 1858, inventa-se
também, em São Paulo, a visita ao cemitério.
Distante do centro da cidade cerca de 2,5 Km. o percurso até a nova necrópole era, para
aquela época, considerado como uma “viajem”, custosa trajetória especialmente se o trajeto
fosse feito a pé. Do largo da Sé, por exemplo, o caminho não era vencido em menos de uma
hora, às vezes até mais. Grandes novidades, portanto, acabaram sendo introduzidas com o
cemitério e concorriam para alterar, concretamente, a relação dos vivos com seus mortos. Antes
pelas ruas, por exemplo – agora sofrera uma
modificação. Ao mesmo tempo em que se criava um “endereço” certo, em muitos casos até
perenes para os mortos
1082
, o contato, por conta da distância, quedou mais espaçado; as visitas
não poderiam ocorrer com a mesma freqüência e, por isso, as cerimônias coletivas em
determinadas épocas do ano ganharam vulto, especialmente no dia de finados.
Tímidas no início, essas cerimônias acabaram incentivadas pelo poder público que, a
vembro, cuidava de preparar a capela, contratava um padre para rezar uma
issa pelas 9 horas da manhã e custeava todas as “solenidades de costume” que, inclusive, eram
anunciadas por editais.
1083
E era de muito interesse para a Câmara Municipal que estas
fossem realizadas, principalmente nos primeiros anos do cemitério, pois esse ritual, com todo
o aparato religioso possível, poderia arrefecer os ânimos daqueles que se posicionavam contra
a necrópole.
Era preciso acostumar o povo a esse apartamento em relação aos mortos, até porque
estavam eles agora sepultados adequadamente, sem riscos à “salubridade”, conforme
preconizava a medicina acadêmica. Assim, interessava incentivar este novo hábito ou uma
nova maneira de se comemorar os mortos, e isto através de uma cerimônia ao mesmo tempo
coletiva e individual, com uma programação especial, até porque, para os padrões daquela
época, a necrópole da Consolação estava realmente muito além da cidade.
de sua existência, os finados estavam pelas redondezas, nas igrejas ou no cemitério dos Aflitos;
dentro das pontes, como então se dizia, numa referência ao núcleo urbano delimitado pelos rios
Tamanduateí e Anhangabaú. A partir de 1858, porém, foram eles alocados para longe,
separados do mundo dos vivos. Assim, a visita que antes poderia se dar diariamente – durante
uma missa ou numa prosaica caminhada
todo dia 2 de no
m
1082 - Lembrar aqui da situação verificada nos templos paulistanos (o constante enterrar e desenterrar, bem como
a não perenidade de muitas covas pagas) o que resultava na incerteza do local onde o corpo fora sepultado.
1083 - Ver Atas da Câmara a todo mês de outubro e novembro de cada ano. Nos meses de outubro, havia a
deliberação para a realização das cerimônias, em novembro a prestação de contas das despesas efetuadas.
477
Fig. 72
A grande distância do cemitério da Consolação quando comparado com o centro da cidade em
mapa de 1855, época em que a necrópole ainda estava sendo construída.
No destaque, em vermelho, a igreja e o largo da Sé.
478
Mediante esses esforços, e contando com o aumento do número de corpos ali
sepultados, tais cerimônias caíram no gosto popular e, em 1866, já estavam consolidadas
como um “evento” do qual participavam centenas de pessoas.
Pois data justamente dessa época a publicação de uma imagem que despertaria a
atenção dos paulistanos: uma charge do conhecido artista Ângelo Agostini pelas páginas do
jornal o “Cabrião”. De fato, na edição do dia 4 de novembro de 1866, o semanário estampou
uma crítica bem humorada aos acontecimentos verificados no cemitério da Consolação dois
dias antes, quando das solenidades pelo dia de finados.
Fig. 73
ue, antes da existência do cemitério, o culto aos
paróquia, fato este que redundava numa dispersão do povo
pelas igrejas da cidade. Com a necrópole, porém, as cerimônias acabaram centralizadas num
único local e, naquele mês de novembro de 1866, já estavam sepultados no cemitério um total
de 4.877 corpos, fato este que certamente concorreu para uma grande afluência de público,
talvez na casa das centenas ou mesmo milhares de pessoas num único dia.
Em face de tão numerosa assistência circunscrita num mesmo espaço e ao mesmo
tempo, era de se esperar que acontecimentos não previstos (ou não condizentes com a
piedade cristã) se fizessem presentes. Decerto que a ocasião era propícia para trocas sociais e,
“O cemitério da Consolação no dia de finados”
Há que se considerar o fato de q
mortos era realizado em cada
479
quem sabe, propiciava um certo tumulto decorrente do vozerio, da circulação intensa de
pessoas em busca dos túmulos de seus familiares e amigos o que antes, nas igrejas, não
ocorria de forma tão intensa.
A mistura de classes, bem como a presença de homens, mulheres e crianças durante as
cerimônias (e por todo o dia), também dava motivos a uma confraternização que não se
restringia à comemoração dos mortos senão, também dos (e entre) os vivos. A utilização de
bebidas, comida e cigarros no interior do cemitério – reconhecida depois como verdadeira –
era uma constante naquelas datas especiais; e, se tais artigos não fossem trazidos de casa,
podemos supor que já houvesse por ali, nas imediações do cemitério, um pequeno comércio
ambulante que se aproveitava de tão grande número de pessoas.
A crítica bem humorada, porém, despertou a ira de católicos mais conservadores,
especialmente a de Cândido Justiniano da Silva, então proprietário do jornal Diário de São
Paulo. Considerada ofensiva aos mortos, ao cemitério e à moral, a charge deu motivos a que
um processo fosse aberto contra o Cabrião e seus diretores por Cândido Justiniano:
“Ilmo. Sr. Delegado de Polícia: Diz Cândido Justiniano da Silva, que, havendo
sido evidentemente ofendida a moral pública na estampa do número 6 do
Cabrião, periódico de caricaturas, de que é editor o Alferes Joaquim Roberto
de Azevedo Marques, como proprietário da Tipografia Imperial e de que é
litógrafo Henrique Schroeder, alemão, protestante, porquanto nessa estampa
os mortos e enterrados no cemitério público da Consolação são
ridicularizados, sendo que a religião e a moral pública não só tem imposto o
respeito aos mortos, senão também têm considerado o cemitério e o túmulo
como cousa sagrada, res religiosa vem dar contra os mesmos editor e litógrafo
a presente denúncia, como incursos no art. 279 do Código Criminal,
protestando seguir por si mesmo a ação até aos finais julgamentos, e provar
que esse número do Cabrião foi distribuído por mais de quinze pessoas.”
1084
O citado artigo 279 do Código estipulava uma pena de prisão que poderia variar de dois
a seis meses, mais multa, para todos aqueles que ofendessem a “moral pública através de papéis
impressos, litografados, gravados ou em estampas e pinturas” desde que comprovada fosse sua
distribuição para mais de 15 pessoas, ou que estivessem expostas publicamente à venda.
1085
Um primeiro dado a ser notado na denúncia é que o desenhista Ângelo Agostini não
figurou como acusado, preferindo o autor denunciar Joaquim Roberto de Azevedo Marques
(citado
como editor, mas que, na verdade, era o proprietário da Tipografia Imparcial que
imprimia o “Cabrião”) e o litógrafo Henrique Schroeder, que o acusador fez questão de
1084 - Citado em Menezes, Raimundo de; Histórias da História de São Paulo”, S.P.: Melhoramentos, 1954, p. 228 e
seguintes. Veja também Santos, Délio Freire dos; introdução à edição fac-similar de o “ Cabrião”, S.P.: Ed. da
Unesp e Imprensa Oficial do Estado, 2000.
1085 - Código Criminal do Império do Brasil promulgado a 20/12/1830, Parte IV, Dos Crimes Policiais, Capítulo I.
“Collecção das Leis do Império do Brasil desde a Independência – 1830 e 1831, Vol. III, 2ª edição; Ouro Preto,
480
identificar como alemão e protestante.
O semanário humorístico Cabrião fora fundado meses antes, em setembro de 1866, por
Américo Brasílio de Campos, Antonio Manuel dos Reis e Ângelo Agostini
1086
, cujos nomes
não apareceram na denúncia. De fato, Cândido Justiniano da Silva
1087
conhecia bem todos os
personagens envolvidos e com eles já mantivera relações comerciais, inclusive com Henrique
Schroeder. O jornal Diário de São Paulo, que em 1866 era de propriedade de Candido
Justiniano, havia sido fundado em 1865 por Pedro Taques de Almeida Alvim, Delfino
Pinheiro de Ulhôa Cintra e, também, por Henrique Schroeder, sendo inclusive impresso na
ypographia Allemã, propriedade de Schroeder. Surgido como um “jornal diário e livre,
independente do governo”, o Diário seria vendido a Justiniano em agosto de 1866, passando
então a ser um periódico aliado do Partido Conservador e defensor das tradições católicas.
1088
A partir de então posicionaram-se os jornais Correio Paulistano (este sim fundado e dirigido
por Joaquim Roberto de Azevedo Marques) juntamente com o Cabrião, contra a nova fase de o
Diário de São Paulo. Deve-se notar que a união entre o “Cabrião” e o “Correio Paulistano” era
T
tão intensa que Américo Brasílio de Campos (fundador do Cabrião) era também redator chefe
do Correio. A troca de farpas entre eles era uma constante e Cândido Justiniano aguardava o
momento certo para desferir um ataque que atingisse os dois jornais. A publicação da charge
sobre o cemitério caiu, então, como uma luva para os seus propósitos.
Instalado o processo, uma certa confusão foi verificada logo na primeira audiência: um
dos acusados, Henrique Schroeder, pede licença para ausentar-se e retorna depois na
companhia de Azevedo Marques. Os dois portavam uma declaração de Américo Brasiliense que
assumia a total responsabilidade pela publicação da estampa.
1089
Chamadas as testemunhas,
pelo Diário depuseram Martinho da Silva Prado, Paulo Delfino da Fonseca e Joaquim Pacheco
Filho. Na defesa do Cabrião falaram José Maria Lisboa (que mais tarde fundaria o jornal Diário
Popular), bem como o desenhista Ângelo Agostini e Antonio Manuel dos Reis, um dos
proprietários do Cabrião. Vale destacar que em seu depoimento, José Maria Lisboa fez questão
de dizer que a única finalidade da caricatura fora a de “criticar os indivíduos que praticaram
atos desrespeitosos no cemitério da Consolação”, o que acompanhava os argumentos da defesa
do Cabrião, estas expostas através da coluna “A pedido” do Correio Paulistano:
Typografia De Silva, 1835, p. 232.
1086 - Santos (2000), op. cit.
1087 - Cândido Justiniano da Silva era um empresário muito conhecido na cidade. Filho do barão de Tietê (João
Manuel da Silva), era irmão do deputado e depois senador Rodrigo Silva (Rodrigo Augusto da Silva). Dentre os
ramos de negócio em que atuava estava o imobiliário e também o do comércio de carnes. Em 1858, por exemplo,
ele aparece citado nas Atas da Câmara como um dos marchantes (proprietário de gado) multados por tentar
manipular o mercado desse alimento na cidade. Veja A. C. 09/10/1858, p. 174.
1088 - Veja Freitas, Affonso A. de; A Imprensa periódica de São Paulo; In: R.I.H.G.S.P., Vol. XIX, 1914, especialmente
p. 499 e seguintes.
1089 - Menezes (1954), op. cit.
481
“Aquela caricatura não ofende nem vivos nem mortos, pela simples razão de
que comporta uma coisa impossível. A sátira ali existente é uma idéia
verdadeira, e que está no espírito de todos; refere-se, não aos mortos, que não
podem levantar-se de suas sepulturas, mas ao desrespeito que geralmente
ostentam os que visitam o cemitério, não como quem vai ali cumprir um ato
religioso, mas como quem vai a um lugar de passeio e de pagode, de chapéu na
cabeça, charutinho na boca, e a dizer sandices e blasfêmias, como muitos devem
ter visto e ouvido, e como está representado na caricatura aludida. A caricatura
exagera os vícios para torná-los bem salientes. Nesse sentido é que deve ser
compreendido o painel do cemitério da Consolação, pintado pelo Cabrião.
1090
O Cabrião, entretanto, não perderia a oportunidade para novas pilhérias e, diante do
processo, fez publicar novas e engraçadíssimas caricaturas sempre utilizando esqueletos e
fantasmas, tudo terminando com um “Grande baile dado aos mortos pelo Cabrião” quando da
absolvição do jornal, estampa esta que saiu na edição do dia 16 de dezembro de 1866.
1091
E eis que chegamos à sentença de absolvição do Cabrião. Concluído o processo, a
ecisão foi assinada pelo delegado de polícia Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça
d
e constava de 6 itens mais a conclusão assim redigidos:
Considerando:
1º) quem nem um sinal que existe desrespeito se nota em toda a estampa, quanto ao cemitério
em todas e quaisquer demais partes;
2º) que as lápides das sepulturas se não acham levantadas;
3º) que os esqueletos, materiais como são, não podiam sair dos seus jazigos fechados;
4º)
que nem um dos rostos dos esqueletos se acha encarnado;
5º) e
nem representando pessoas ou indivíduos que houvessem sido sepultados, dados ao vício
de embriaguez, ou aos que isso se pretendesse atribuir;
6º) finalmente que os esqueletos, impróprios no caso, só quando muito grosseiramente
sensibilizam o pensamento – que os vivos viciosos impiedosamente escolhem para passatempo
mundanos o lugar, em que se crê vagam de contínuo as sombras dos mortos – caso em que estas
serão mais próprias, se o executor do pensamento poética e artisticamente procedesse, mostrando
entender a linguagem de que deveria servir-se, em que nada deve haver de excesso ou defeito,
para que a imaginação se apresente revestida de suas verdadeiras formas exteriores.
Portanto, à vista do exposto e mais que dos autos consta, absolvo o Réu da acusação (...).
Como, porém, os fatos de comer, beber e fumar em cemitério – se possam consid
compreendidos na portaria 13 das de 8 de fevereiro de 1830, indague-se quem os praticou a
erar
fim
de ser devidamente processado na forma da lei.
1092
(meus destaques)
1090 - Correio Paulistano, edição do dia 08/11/1866. Veja também Santos (2000), op. cit.
1091 - Na edição de 11/11, por exemplo, um grupo de esqueletos ataca a vassouradas uma figura que
representaria o jornal “Diário de São Paulo”, ao mesmo tempo em que outras “caveiras” com denúncias em baixo
do braço entram na delegacia de polícia. Outras charges sobre o mesmo tema apareceram nas edições dos dias
de 11/11, a matéria foi aberta com a seguinte frase: “O cidadão argentino Cândido Silva, proprietário do Diário de S.
25/11e 16/12. Em textos, a zombaria também prevalecia; com o título “Caso de Pasmar”, na página 54 de edição
Paulo, denunciou à delegacia da Capital o Cabrião por ter atacado a religião, que o denunciante propõe-se a defender em todos
os sentidos.” Claro que Cândido Justiniano não era um “cidadão argentino” (nascido na Argentina, portanto),
sendo o adjetivo aqui empregado no sentido de caracterizá-lo como muito rico e poderoso.
1092 - Menezes (1954), op. cit., p. 233.
482
Resolvida a pendenga entre Cândido Justiniano da Silva (do Diário de São Paulo) e os
seus oponentes do Correio Paulistano e do Cabrião e aqui, devemos ressaltar, não apenas a
caricatura esteve presente no cerne da questão, senão também inimizades políticas e de outra
ordem, como a religiosa – o fato é que o cemitério esteve por mais de um mês pautando a
redação dos principais jornais da cidade. E o público, conforme análise de Délio Freire dos
Santos, aguardava cada lance e deliciava-se com aquele processo, o primeiro do gênero que
ocorria em São Paulo.
Mas voltando à caricatura e à sentença proferida pelo delegado de polícia,
percebemos que o desenho de Ângelo Agostini realmente “exagerava os vícios”
presenciados por todos aqueles que estiveram presentes no cemitério da Consolação no
dia de finados, 2 de novembro de 1866. No geral, porém, a situação apresentava-se como
verdadeira: pessoas fumando, bebendo, comendo, “dizendo sandices e blasfêmias” num
local que deveria merecer “um certo respeito”. O próprio delegado, nas últimas linhas de
seu parecer, reconhece esta situação, e pede uma apuração sobre quem havia praticado
tais atos – algo certamente quase que impossível de ser levado adiante. De toda forma, a
caricatura, além de ser um dos raros registros do cemitério nos seus primeiros anos
(mostrando seu portão de grades de ferro, suas colunas, bem como parte de seu muro de
taipa), consegue ainda retratar algumas cenas que chamam a nossa atenção. Em primeiro
lugar, temos a presença de pelo menos três viúvos “reencontrando” suas esposas falecidas,
sendo que estas aparecem com o traje típico das paulistanas de então: as mantilhas; uma
delas se destaca logo em primeiro plano, uma outra de perfil e uma última de costas, todas
à direita da estampa. É possível que o autor as tenha utilizado para melhor compor o
desenho, mas sabemos que esta era a realidade, ou seja, temos aqui a representação de
algo que se verificava na vida, pois a quantidade de viúvos era bem maior do que as de
viúvas (estas não representadas), dado que as mulheres viviam menos que os homens
como, aliás, tivemos a oportunidade de demonstrar. Assim, e num dia de finados no
cemitério da Consolação, contavam-se mais maridos em busca dos túmulos de suas
esposas do que o contrário. As crianças, por sua vez, também aparecem, mas não com a
representatividade devida, pois apenas uma delas faz parte do desenho. De qualquer
forma, o artista delas não se esqueceu até porque seus cadáveres, no cemitério real,
estavam em número muito superior a dos adultos, numa situação inversamente
proporcional ao representado na estampa. De outra parte, vemos que os visitantes estão
bem vestidos, com fraque, cartola e bengala; e mesmo o personagem embriagado, apesar
de amarrotado, denota uma certa elegância.E a explicação para isso é que a cena se passa
na entrada do cemitério, ou nas quadras perpétuas e pagas (a parte nobre do cemitério,
483
poderíamos dizer), e não nos fundos, onde eram enterrados os pobres e os escravos, estes
ausentes na caricatura.
Ora, nesse caso a cena retratada (e criticada) estaria ocorrendo apenas entre os mais
ricos? Não acredito nessa hipótese, mas sim numa certa dificuldade do artista em representar
a totalidade do cemitério em apenas uma cena. Assim, também nos “fundos” do cemitério
algo de parecido certamente poderia estar ocorrendo.
E vejamos o caso dos esqueletos, forma esta escolhida por Agostini para representar os
mortos. Na análise do delegado de polícia, nenhum desrespeito poderia ser notado na
gravura, e isso porque “nenhum dos rostos dos esqueletos se achava encarnado”, e dessa
maneira não poderiam lembrar, individualmente, quaisquer “pessoas ali sepultadas”.
Reduzidos à condição de ossos, todos ficam muito parecidos, motivo pelo qual o artista foi
obrigado a utilizar mantilhas para diferenciar homens de mulheres. Nessa condição de
materialidade empregada para os mortos, podemos dizer que eles já perderam muito de sua
identidade – estas dadas pelas feições humanas (encarnadas) que não mais possuem. Os
esqueletos, portanto, não expressam pessoas, até porque, como analisamos antes, a
decomposição redundava, fisicamente, na morte total, etapa esta em que prevalecia a memória
ou a lembrança; os ossos poderiam então ser manipulados (inclusive num desenho
humorístico), juntados e depositados nos ossários, prática esta aceita socialmente. Daí que,
nas palavras do delegado, os esqueletos, se considerados como impróprios no caso, quanto
muito grosseiramente poderiam sensibilizar o pensamento.
Como resultado da derradeira etapa da morte física, os ossos poderiam servir como
elos para recordação ou expressão de sentimentos; daí a reunião dos restos mortais de
diferentes membros de uma família num mesmo túmulo, ou o caso da transferência dos ossos
de Líbero Badaró, por exemplo; mas os esqueletos não eram mais indivíduos em si, e nem
poderiam ser. Resultado desse processo é que o
túmulo passa a ser a fonte de lembranças ou
de um culto à memória, daí os retratos e as esculturas que “lembram” o falecido; daí o caso
mais representativo dessa situação em São Paulo, ou seja, a existência de um túmulo sem
cadáver: o de Sadi Carnot.
Importa verificar, porém, que o cemitério da Consolação – pelos idos de 1866 – já se
encontrava inserido no cotidiano da cidade. Não obstante as críticas iniciais, acabou ele
sendo aceito como um novo equipamento urbano onde se poderia estar de vez em quando
– em dias de cerimônias – ou com mais freqüência, dependendo das posses e
disponibilidades de cada um.
E mais do que isso, o cemitério e seu entorno foi percebido como uma área de
expansão da cidade, passível de negócios imobiliários, especialmente com respeito aos
484
terrenos que lhe ficavam próximos.
Por essa época, o cemitério (ele próprio) já não se configurava mais num espaço que
deveria “trazer às pessoas, e à imaginação delas, as idéias de aniquilamento do homem e do nada das
vaidades mundanas, e que lhes afervorasse as orações, chamando-as à meditação e penitência”, como
definiu uma Comissão da Câmara Municipal em 1836.
1093
Contrariando esse preceito, como
vimos,
utro lado, concluiu-se que os sepultamentos ali realizados
não pod
tava
dividid
ive teve parte de sua propriedade utilizada para a
dificação do cemitério) e, mais abaixo na direção da cidade – do outro lado da rua da
onsolação – estava a c
proprietários reclamar le local e a alegação
principal, constante d
dessa proximidade, b
pútridas as águas das vertent
justamente o de Marciano de Oliveira, reconheceu a Câmara a existência de tais
problemas, motivo pelo qual aceitou pagar um valor maior pela desapropriação da parte
necessária para a construção do cemitério:
aqueles que podiam levantar ricos mausoléus no cemitério da Consolação o fizeram,
fato este que, aos poucos, acabaria por transformar aquela “monstruosidade mal acabada” num
espaço passível de visitas. Por o
eriam oferecer tantos riscos vivos, e aqui especialmente se comparados com o que se
observava antes nas igrejas.
Despido de alguns escrúpulos por um lado, e o de ser uma ameaça à saúde, por outro,
o cemitério começou a atrair as atenções de grupos que não estavam interessados
propriamente nas questões que diziam respeito apenas aos enterramentos ou aos mortos,
1094
mas sim no seu conjunto, posto que ele passou a ser visto como um atrativo para a
especulação entre os vivos, a imobiliária, principalmente.
Em meados do século XIX, toda aquela região em torno do cemitério ou es
a em chácaras como a de Joaquim Floriano Wanderley (na subida para a Av. Paulista),
a de Marciano Pires de Oliveira (que inclus
e
C hácara de Hermenegildo José dos Santos. Invariavelmente, todos esses
am contra a idéia de se construir o cemitério naque
e abaixo assinados, dizia respeito à desvalorização das terras diante
em como pela eminente possibilidade das sepulturas “tornarem
es” utilizadas pelos moradores locais.
1095
Em um desses casos,
Pires
“Leu-se ofício de 4 março [de 1857] assinado pelos Srs. Dr. Joaquim Inácio
Ramalho e Francisco José de Azevedo que, tendo examinado, na qualidade de
1093 - Relatório da Comissão encarregada do cemitério ao presidente da Província, A. C., sessão do dia
27/01/1836.
1094 - Não restam dúvidas que o cemitério, na parte que tocava aos sepultamentos, já era uma fonte de negócios e
de lucros. E aqui lembramos dos empreiteiros que construíam os túmulos, dos pedreiros e serventes contratados
individualmente, ou mesmo dos marmoristas e da empresa funerária, dentre outros.
1095 - Ver, por exemplo, Coleção Papéis Avulsos do Arquivo Histórico Municipal, 1855, Vol. 173, documentos 16
e 33 e, também, A. C., 23/10/1855, p. 1855.
485
louvados da Câmara Municipal, o terreno de Marciano Pires de Oliveira, que
foi ocupado na edificação do cemitério da Consolação, afim de darem seu
laudo acerca do valor do mesmo terreno; o avaliam em duzentos mil réis
(200$000), e isto não só [devido] à extensão do mesmo terreno,
como à
depreciação do que fica na propriedade do mesmo Sr. Marciano, pela
edificação de uma semelhante obra na proximidade dele.”
1096
E aqui cabe uma observação, posto que a quantia “exagerada” de 200$000 Réis, paga
pela área de Marciano, em muito contrasta com o valor cobrado depois pelos terrenos
perpétuos no próprio cemitério, ou seja, 50$000 Réis cada, ou ainda com o salário de um
coveiro que era de 45$000 Réis por essa mesma época. O fato é que o valor da terra nua, sem
qualquer benfeitoria, era pouco relevante naquele período.
1097
E como medida de
comparação, vejamos um exemplo recolhido por Richard Morse e que traz em detalhes os
valores dos bens materiais expressos num inventário datado de 1838:
1098
10.000 m
2
de terreno nas cercanias da cidade (no atual bairro dos Campos Elíseos) ......... 100$000
Uma residência na rua Boa Vista, de dois lanços, com paredes em taipa de pilão ............. 1:000$000
Maria, escrava de 60 anos, Benguela ........................................................................................... 40$000
Faustino, escravo de 35 anos, mulato, alfaiate ........................................................................... 600$000
Bois, com preços unitários variando de 12$000 a ..................................................................... 15$000
Uma cama de casal ......................................................................................................................... 4$000
Uma mesa grande de jantar ......................................................................................................... 1$250
Um piano .......................................................................................................................................... 100$000
Uma bacia de cobre ........................................................................................................................ 60$000
Visita de um médico (serviço) ...................................................................................................... $640
Despesas com o funeral (incluindo todas as despesas como caixão, cova, missas, etc.) .... 666$262
No que toca mais de perto a questão proposta, vale notar a diferença entre o valor da
área de 10.000 m
2
nas cercanias da cidade (100$000 Réis) e o da residência na área urbana
(1:000$000, Um Conto de Réis). Decerto que a localização privilegiada da segunda contribuía
para a sua valorização, mas principalmente porque se tratava de uma benfeitoria, uma casa
solidamente construída. Morse chama ainda a atenção para o preço de outras mercadorias
como a “bacia de cobre”, certamente um artigo manufaturado importado. De toda a forma, e
apesar dos 20 anos de diferença entre este inventário e a data da construção do cemitério, o
fato é que as terras incultas ou sem benfeitorias (mesmo que próximas da cidade) não
alcançavam a significância monetária que teriam mais tarde. Daí que o “distante pasto” de
Marciano – e principalmente pela depreciação que poderia ocorrer com o restante de sua
1096 - A. C., sessão do dia 05/03/1857.
1097 - A esse respeito veja a análise de Rolnik (1997), especialmente Capítulo 3 “Mercados: legislação urbana e
valorização mobiliária”, p. 101 e seguintes.
1098 - Morse (1954), p. 46. Reproduzimos aqui apenas parte deste Inventário.
486
propriedade por conta da construção do cemitério, foi avaliado em 200$000 Réis.
Vamos conservar esses dados e voltar para a ocupação da área no entorno do
cemitério. De fato, o primeiro requerimento dirigido à Câmara Municipal solicitando um
terreno de moradia ao lado do cemitério ocorreu logo em 1861, ocasião em que o alemão João
Wilck pediu “uma data de terra abaixo do cemitério público e abaixo do dos alemães.”
1099
Como já
nos referimos na Parte I deste estudo, as “datas de terra” se constituíam em pequenos lotes de
terrenos urbanos em áreas de domínio municipal e que poderiam ser concedidos pela Câmara
aos interessados em ocupá-los estritamente para moradias. Era uma concessão, portanto, cuja
posse p
s nas Posturas da cidade.
1100
Não temos informações mais seguras sobre a pretensão do alemão João Wilck ou a de
que ele tenha sido contemplado com uma data de terra no local pretendido, mas logo em
seguida a este pedido, muitos outros vieram, como a de Inácio Antonio de Castro e mais
quatro pretendentes solicitando datas em frente do cemitério:
“Ilmo. Snr. Presidente e mais membros da Câmara Municipal. – Diz Ignácio
Antonio de Castro que desejando possuir um terreno para nele edificar sua
casa para morar e achando-se devoluto um terreno defronte do cemitério
municipal, na estrada que segue para Sorocaba, e cujos fundos vai dar na
chácara do falecido Hermenegildo, vem por meio desta pedir a V. Sa. huma
data de terreno no mencionado lugar dando-lhe no cumprimento o que faltar
nos fundos visto que o terreno que o suplicante deseja obter não tem os
fundos suficientes obrigando o suplicante a fechar dentro do prazo das leis e,
portanto – Pede a V. Sa. lhe conceda a dita data de terreno procedendo-se
para esse fim o devido marcado na forma das leis – E.R.M.”
1101
Conforme os registros, Inácio Antonio de Castro conseguiu o seu lote de terreno em
maio de 1861, bem como
Fortunato Antonio Peixoto
oderia retornar à municipalidade caso o interessado não promovesse os melhoramentos
necessários na área, como o seu fechamento, a construção da casa, etc. Os prazos para isso
variavam de tempos em tempos, sendo sempre especificado
, Francisco Niterói, Justino Francisco
Rodrigues e Henrique Schmit que fizeram igual pedido na mesma época. Mediante a
confirmação pelo fiscal de que não possuíam datas em outro local, cada um deles pagou a
modesta quantia de $100 Réis (Cem Réis) para obter as cartas.
1102
(meus destaques para Fortunato
Antonio Peixoto e Justino Francisco Rodrigues porque os dois eram coveiros do cemitério)
1099 - A. C., 05/06/1861 p. 110.
1100 - na Postura de 6 de junho de 1865, por exemplo, especificava-se que “Todo aquelle que d´ora em diante obtiver
terreno por carta de data e não cercar no prazo de 6 meses e o de edificar no de 2 anos perderá o direito a concessão, voltando a
data ao domínio da Câmara.” Veja “Concessão de Datas de Terras”, Arquivo Histórico Municipal, Vol. 183,
manuscrito.
1101 - A. C., 15/07/1861, p. 147 e Coleção “Cartas de Datas de Terra”, Vol. XX (1861 a 1863), edição impressa, p. 50
e seguintes.
1102 - Coleção “Cartas de Datas de Terras” op. cit. A partir da Postura de 31/05/1875, o “imposto” cobrado pelas
datas de terra sofreu uma alteração, sendo então avaliado na razão de $20 Réis (Vinte Réis) por m
2
. No ano de
487
Confirmadas essas primeiras concessões, nelas constam a informação de que tais
terrenos localizavam-se “em frente do cemitério”, ou seja, do outro lado da rua da
Consolação, nos limites da chácara do já falecido Hermenegildo José dos Santos. Entretanto, e
partir desse momento, muitos outros pedidos são atendidos, seja ao lado, em baixo ou adiante
do cemitério, como a concessão dada a Joana Emília da Silva em julho de 1862:
“Pedido de terras de Joana Emilia da Silva: Ilmos. Srs. da Câmara Municipal
– Diz Joana Emilia da Silva que existem terrenos devolutos na estrada dos
Pinheiros de fronte do sitio do Capitão Hermenegildo José dos Santos, e como
a Suplicante pretende edificar e não tem terrenos para isso, requer a esta
Câmara que lhe conceda uma carta de data nesses terrenos que ficam aquém
do marco de meia légua e, por isso – Pede a Suplicante a esta respeitável
utros 23 requerimentos de mesmo teor são
provados.
1104
Num curto período, portanto, os terrenos distribuídos no entorno do cemitério
já somavam 29. Por vez
Esse provavelmente foi o caso de Escolástica Maria de Jesus, cuja solicitação chegou à Câmara
no dia 11/09/1862, e d
de Jesus e José Joaquim de Jesu
E o que nos faz supor que se tratasse de uma mesma família é o fato de que os pedidos
vieram juntos, agrup
Oliveira, Maria de Oliveira, R
D. Maria Francisca da Luz.
ja, para
conseguir um lote maior, dividia-se a família e cada um dos membros solicitava uma data
ue, depois, seriam reunidas. Raramente os fiscais “desconfiavam” dessa prática, motivo pelo
ual as datas poderiam não ser concedidas; raramente, dissemos, o que nos faz supor
ós ter
Câmara que seja servida mandar passar a referida carta de data de parte do
terreno assignado e assim espera.”
1103
Meses depois, em setembro de 1862, o
a
es, famílias dividiam-se e, cada um dos membros, requeria uma data.
e alguns de seus possíveis parentes que vieram em seguida: Joaquim
s que foram atendidos por cartas emitidas no dia 06/11/1862.
ados com os de Francisco Antonio de Oliveira, Felícia Januária de
ita Maria das Dores, Ana Joaquina das Dores, além de outro de
1105
E este era um expediente muito comum, ou se
q
q
algumas negociações entre as partes. E mesmo quando conseguiam seu intento alguns
concessionários, confiando numa fraca fiscalização, não se furtavam a incorporar mais terras
do que a carta previa, a exemplo do acima citado Francisco Antonio de Oliveira que, ap
sido contemplado com uma terreno, tentou “fechar” uma parte que não lhe pertencia:
“Do procurador participando haver, no dia 26 de fevereiro [de 1862] efetuado
o embargo nos fechos que Francisco Antonio de Oliveira estava fazendo nos
terrenos que esta Câmara havia distribuído em datas na
rua do Cemitério
1881, este valor ainda estava em vigor. Veja “Concessão de datas de Terras”, op. cit. Volumes 184 e 185.
1103 - Idem, ibibem, p. 177.
1104 - A. C., 04/09/1862, p. 143 e 11/09/1862, p. 158.
1105 - Coleção “Cartas de Datas de Terras” op. cit.
488
Público. (meu destaque)
E o cemitério da Consolação, pelos idos de 1862 e 1863, tornara-se uma referência, e
isso seja pela indisponibilidade de terras públicas verificada no centro da cidade (na mesma
época, tal processo de ocupação ocorreu também no Braz e na Várzea do Carmo, como vimos
na Parte I) seja por que o próprio cemitério estava sendo considerado com u
1106
m atrativo. Nesse
bem como aqueles que viam o cemitério como possibilidade de ganhos esporádicos. Mas,
existiam também aqueles que percebiam a valorização das terras e com elas especulavam
como, por exemplo, um personagem bastante conhecido na história da cidade, o empresário
Joaquim Eugênio de Lima.
Nascido em Montevidéu, Uruguai, em 1845, ele era filho de Dom Joaquim Miguel
Pereira e de D. Maria Polônia Moreyra. Em seu currículo consta que diplomou-se em
agronomia na Alemanha, vindo depois residir em São Paulo em data incerta.
1107
Seu maior
feito na cidade – e pelo qual é sempre lembrado diz respeito à abertura da Av. Paulista, esta
inaugurada em dezembro de 1891.
Apesar das incertezas que pairam sobre a sua chegada na cidade, sabe-se que seu
casamento com a paulistana Margarida Joaquina Álvares de Toledo ocorreu aos 10/10/1868.
Entretanto, é certo que desde agosto de 1866 Joaquim Eugênio de Lima já residia em São
Paulo, ocasião em que solicitou e recebeu uma data de terra em frente do cemitério municipal,
conforme parecer da Comissão Permanente da Câmara Municipal:
“A Comissão Permanente, a quem foram presentes as Petições juntas dos
cidadãos (...) Manoel Pedro dos Santos e
Joaquim Eugênio de Lima
último caso, devemos considerar os profissionais diretamente ligados à necrópole como os
citados Fortunato Antonio Peixoto e Justino Francisco Rodrigues – trabalhadores daquele
cemitério – ou outros ainda que ali poderiam prestar serviços como pedreiros e serventes,
[pedindo
cada um uma data de terra] no Cemitério (...) tomadas as necessárias
informações, é de parecer que sejam as mesmas atendidas. Paço da Câmara
aos 14 de agosto de 1866 – Vicente Mamede de Freitas, Barão de Itapetininga –
Aprovado.
1108
(meu destaque)
Este, talvez, tenha sido o primeiro negócio imobiliário realizado na cidade pelo
empresário que, depois, atuaria ainda no ramo de carnes como marchante de gado em 1869
1109
,
1106 - A. C., 03/03/1862, p. 34.
1107 - Almeida, Nelson Martins de (org.) ; Eles fizeram a grandeza de São Paulo”; S.P.: Sociedade Brasileira de
Expansão Comercial Ltda., 1954, p. 19.
1108 - A. C. de 14/08/1866, p. 104 e 105
1109 - Data dessa época um ofício do fiscal da cidade “participando que o marchante Joaquim Eugênio de Lima tentou
introduzir no matadouro uma rês que, pela magreza e vestígio de peste, não podia ser morta.” Diante da negativa do
veterinário do matadouro em receber o animal para abate, o marchante o fez fora, mas, logo em seguida,
489
com o comércio de madeiras em 1878
1110
e, finalmente, como grande empresário no ramo
imobiliário a partir de 1879, quando abriu e loteou os terrenos da antiga Chácara do Cônego
Fidélis, nos limites do bairro da Liberdade.
1111
Mediante esses dados, ficamos sabendo que,
antes da Av. Paulista, a primeira rua que o empresário abriu em São Paulo foi justamente
nessa chácara, a qual ele mesmo denominou como rua São Joaquim.
1112
Importa verificar, porém, o que ocorreria com aquele terreno cedido a Joaquim
Eugênio de Lima na rua da Consolação, em frente do cemitério. Recebendo a concessão em
agosto de 1866, Lima passou um bom tempo sem realizar qualquer melhoramento no local e,
tão pouco, construiu ali sua residência. Em novembro de 1867, o fiscal da cidade participava
aos vereadores que havia intimado Joaquim Eugênio de Lima para que suspendesse qualquer
“trabalho ou benefício que tinha de fazer no terreno que lhe foi concedido pela Câmara em frente ao
cemitério público, visto não ter até esta data cercado a frente do dito terreno.”
1113
Ao que nos parece,
o empresário aguardava pela valorização das terras, e tanto isso pode ser confirmado que,
dias depois, o procurador da Câmara anunciava que “Joaquim Eugênio de Lima cedia a data de
terra que tem defronte o cemitério” mas, tendo em vista alguns melhoramentos que realizara
(estes não citados no documento), pedia a quantia de 200$000 Réis como “indenização pelas
abandonou as carnes frente as péssimas condições em que se apresentavam. Veja A. C. 15/04/1869, p. 111 e 112.
- Em 1878, Joaquim Eugênio de Lima encontrava-se
nunca vista, em menos de três meses aquelas obras já se achavam concluídas, solicitando então o empresário
Joaquim E. de Lima o pagamento devido pela Câmara ao empreiteiro Pedroso. (A. C. 06/11/1879, p. 150). O
pagamento de 1:700$000 Réis é feito em janeiro de 1880 (A. C., 03/01/1880, p. 08).
1113 - Ofício do “Fiscal do Norte”, A. C. 21/11/1867, p. 135.
1110 estabelecido com um “Depósito de madeiras para
construção” localizado na antiga Rua da Estação da Luz. Veja Marques, Abílio A. da Silva; Indicador de São Paulo
para o ano de 1878; S.P. IMESP/DAESP, 1983 (Ed. Fac-similar), p. 205.
1111 - Esta conhecida chácara pertencia ao cônego Fidélis Alves (ou Álvares) Sigmaringa de Morais, antigo capelão
do Seminário da Glória, cônego da Sé e professor de retórica da Faculdade de Direito, falecido em setembro de
1875 aos 96 anos de idade. Consta que Fidelis Alves tomou posse como cônego em 1820, mas logo solicitou uma
licença (por problemas de saúde) e foi para Província do Rio Grande do Sul, onde se encontrava em 1838.
Obrigado a retornar para São Paulo, Fidélis alegou que ainda padecia dos males que o levaram a pedir licença e
que, devido às revoltas ocorridas naquela Província (a Revolta dos Farrapos) ele perdera toda a sua fortuna, não
tendo mais meios para se sustentar. Na verdade, como testemunhas apontaram depois, o cônego Fidélis no tempo
em que estivera no Rio Grande do Sul havia se aplicado “constantemente no emprego do comércio de fazenda
seca e no de tropa solta” e que o motivo para a licença era “frívola e escandalosa” ainda mais recebendo seus
vencimentos como cônego de São Paulo. Obrigado a retornar, ele se instalou na imensa chácara no bairro da
Liberdade. Não pudemos confirmar se haveria um laço de parentesco entre Joaquim Eugênio de Lima e o cônego
Fidélis, mas na Atas da Câmara de 18/03/1880 (p. 45) o empresário aparece citado como “herdeiro” da chácara do
cônego. Informações gerais sobre o cônego Fidélis podem ser encontradas em Martins, Antonio Egídio (p. 38, 113
e 114), bem como em Ribeiro, José Jacintho; Cronologia Paulista , 1901, p. 471. A respeito da vida do cônego no Rio
Grande do Sul e de seu retorno para São Paulo veja Camargo, Mons. Paulo Florêncio da Silveira; A Igreja da
História de São Paulo; S.P.:Cúria Metropolitana, 1953: Vol. 6º, p. 157 a 160.
1112 - No dia 31/07/1879, a Câmara recebe um ofício de Joaquim Eugenio de Lima oferecendo “uma rua que abriu
em seus terrenos na Liberdade, sem indenização alguma, dependendo a sua completa abertura da desapropriação
de um pequeno terreno na rua da Glória para comunicar a rua da Liberdade com os bairros da Glória, Cambuci e
Lavapés, o que seria de suma vantagem ao público, e pedindo que fosse denominada como Rua São Joaquim”.
Esta solicitação de Joaquim Eugênio de Lima foi aceita integralmente, inclusive tendo a Câmara desapropriado o
terreno citado. Veja A. C. 07/08/1879 (p. 92 a 94). Logo em seguida, o engenheiro municipal apresentou um
orçamento no valor de 1:957$020 para a complementação dos trabalhos nesta rua, quantia esta reavaliada depois
em 1:700$000. Os serviços foram entregues ao próprio Joaquim Eugênio de Lima que se incumbiu de realizá-los
(A. C. 22/08/1879, p. 104). Interessante observar, porém, que o empresário transferiu essa tarefa para Francisco
Antonio Pedroso, do qual passa a ser uma espécie de procurador (A. C. 06/11/1879 p. 150). Com uma rapidez
490
benfeitorias que fez no terreno.”
1114
Não temos a confirmação da quantia paga por Lima a título de “imposto” em agosto
de 1866, época em que recebeu a concessão desse terreno. Mas, conforme as Posturas em
vigor, este valor não ultrapassava os $100 Réis (Cem Réis). Nesse caso, o lucro do empresário
foi de 199$900 (Cento e noventa e nove mil e novecentos Réis) com a transação. E esta foi
efronte do cemitério:
“A Comissão Permanente, [vendo e examinando] as petições juntas dos
cidadãos Dr. Joaquim Au isco José Dias, Francisco
mesmo realizada, pois consta no final do citado documento o seguinte despacho: “Ao
Procurador para efetuar a compra.”
E muitos outros assim procederam, inclusive o próprio administrador do cemitério,
José Gomes de Faria, responsável pela necrópole a partir 1860 e até 1877, quando faleceu.
Ocorre que, em maio de 1866, ele também obteve uma data de terra d
gusto de Camargo, Franc
Ignácio de Freitas, Candido de Santiago Dias e Antonio Augusto da Fonseca,
que requerem cada um uma data de terra adiante do Cemitério; dos cidadãos
José Gomes de Faria e Joaquim Mathias da Silva Bueno, em frente do
cemitério público (...) é de parecer que se lhes defira favoravelmente, boas que
são as informaç sõe tomadas de suas situações.”
1115
(meu destaque)
Municipal, não dependo o adensamento da área somente dos loteamentos particulares que,
aliás, somente ocorreria mais tarde.
1117
E foi o próprio poder público municipal, portanto, o
grande incentivador do parcelamento e ocupação do entorno do cemitério por moradores,
transformando a mesma necrópole num ponto de referência urbano: em 1862, como citado em
documento, uma das antigas estradas que corriam ao lado da necrópole já estava sendo
Cerca de dois anos depois, e promovidos os melhoramentos, o mesmo José Gomes de
Faria dirige um ofício à Câmara “oferecendo para venda um terreno que possui em frente do
cemitério, compreendendo suas benfeitorias” e que bem serviria para uma “casa dos empregados” do
cemitério que os vereadores queriam construir. O negócio, porém, não foi realizado de
pronto, até porque o barão de Itapetininga, então vereador e encarregado de examinar o
terreno para dar um parecer, reputou que a “Câmara não deveria realizar semelhante compra, visto
parecer-lhe a mesma desvantajosa.”
1116
Para além da especulação que se verificava no entorno do cemitério, devemos reter a
informação de que mais e mais datas de terras eram ali concedidas pela própria Câmara
1114 - Ofício do procurador da Câmara, A. C., 26/11/1867, p. 139.
1115 - Parecer da Comissão Permanente, A. C., 05/05/1866.
1116 - Oício de José Gomes de Faria, A. C., 05/03/1868, p. 51 e Parecer do barão de Itapetininga, A. C., 24/03/1868, p.
51.
1117 - Em 1868, por exemplo, foram ainda concedidas datas aos seguintes peticionários: Amador José Nazário e
Joaquim Xavier de Miranda (24/03/1868) e a Maria Josefa Nogueira e Maria Angélica de Jesus (19/05/1868),
dentre muitos outros.
491
referendada como Rua do Cemitério.
Mediante todo esse processo – que, aliás, continuou pelas décadas de 1860 e 1870 –
temos o fato de que já em 1881, poucos eram os terrenos que subsistiam sem ocupação
naquela região. Diante dessa situação (e também pela falta de controle nas concessões),
indicou o vereador Frederico Abranches que se pedisse ao engenheiro da Câmara para
“levantar plantas dos terrenos que podem ser concedidos em datas nos
bairros do Cemitério, Perdizes,
Pacaembu de cima, Catumbi, Marco da Meia Légua, Hipódromo e Caaguassú” e isso para que a então
Comissão de Justiça pudesse analisar as inúmeras solicitações que chegavam.
1118
(meu destaque)
ob o peso de 7 palmos de terra; por maior que seja o
paradoxo, portanto, a reintrodução dos mortos no convívio urbano ocorreu por conta de
seu relativo afastamento, nos mausoléus ou na terra, conjunto este separado ainda da rua
por espessas paredes. Não obstante o receio que ainda pesava a respeito de alguns
cadáveres, o modelo higiênico então aplicado, diziam os médicos, não poderia oferecer
riscos aos vivos, e isto até por volta de 1890 quando, então, o cemitério e seus mortos
numa relação ambígua com os vivos, voltam a provocar algumas tensões.
A contribuir para com esse processo de ocupação e a decorrente valorização das
terras, estavam os diversos melhoramentos encetados pela Câmara naquele local. Não
devemos nos esquecer que o cemitério era um empreendimento municipal e, nesta condição,
ele se assemelhava a dois outros grandes equipamentos também gerenciados pela
E eis que existiu mesmo um chamado Bairro do Cemitério, identificação esta que o
colocava ao lado de outros loteamentos promovidos pela municipalidade como o de
Perdizes, por exemplo.
1119
De fato, era nessa condição que se colocava o entorno da
necrópole em 1881, ou seja, como um bairro, o que denota a sua intensa ocupação. E não
foi por outro motivo que, naquele mesmo ano e por ocasião da ameaça de uma epidemia
de varíola, foi autorizado o funcionamento do cemitério no Lazareto (atual hospital Emílio
Ribas) como vimos páginas atrás, e isso em decorrência do receio de se transportar esses
mortos pela rua da Consolação já repleta de moradores. Ou seja, em questão de duas
décadas, a cidade já chegava ao cemitério, colocando novamente os vivos em contato com
os mortos. Claro que agora numa nova condição, posto que apartados por grossos muros,
enclausurados em túmulos ou s
municipalidade, ou seja, o mercado da rua 25 de Março e o matadouro do Bexiga. Assim,
todos eles eram temas de investimentos, e aqui lembraremos inicialmente os que foram feitos
no entorno do cemitério, especialmente na rua da Consolação.
Já em 1861, por exemplo, a rua “por detrás do cemitério” e que servia de ligação entre
1118 - A. C., 18/07/1881.
1119 - A exemplo da Rua do Cemitério, a denominação “Bairro do Cemitério” não se manteve, alterada que foi para
“Consolação” de uma maneira geral, e parte por “Higienópolis”, aqui lembrando o loteamento promovido em
1890 por Martinho Buchard e Victor Nothmann nas terras que foram da antiga chácara do Conselheiro Ramalho.
492
o bairro do Arouche e a “estrada de Pinheiros” foi alargada, benefício este possível mediante
a doação dos terrenos necessários pelo proprietário Marciano Pires de Oliveira; em seis meses
s trabalhos estavam realizados, tendo sido gastos 46$000 Réis.
1120
Posteriormente, muitos
meça a
Rua do Cemitério, bairro do Cemitério e “Morro” do cemitério. Eis as referências
utilizadas para o local que se tornaram constantes a partir de então e que nos informam sobre
a mesmo o cemitério – enquanto um equipamento municipal – que
merecia as maiores atenções, pois não raro ele era o ponto determinante (ou o limite) para a
maioria dos benefícios: em 1870, por exemplo, o vereador Cantinho solicitava que a rua da
Consolação fosse novamente apedregulhada, e isto “até o Cemitério Municipal.”
1125
Tendo em
vista esta indicação, mais outros consertos necessários na mesma rua, verificou-se que seus
custos ultrapassariam as condições financeiras da Câmara. Instada a participar com seus
recursos, a Província deliberou colocar à disposição da municipalidade a quantia nada
desprezível de 5:120$000 Réis (Cinco contos, cento e vinte mil Réis) para as obras que ali se
fizeram.
1126
Esses trabalhos de vulto estavam prontos em 1872, numa obra que incluiu o
o
outros melhoramentos ocorreram, como o “conserto da rua da Consolação no lugar onde co
ladeira para ir ao cemitério, construindo-se ali um esgoto de tijolos,” obra esta realizada ao custo de
165$000 Réis.
1121
Conseqüência natural do adensamento verificado na rua da Consolação, em 1868 o
trânsito de pessoas e animais em muito aumentara, o que gerava mais problemas e
reclamações. A necessidade de reparos na então “estrada dos Pinheiros” era uma constante, a
exemplo de uma vala, um “verdadeiro precipício que se formara nessa estrada além do Cemitério, o que
impedia o trânsito de viandantes e atolava os animais.”
1122
E no mesmo mês em que esta reclamação
era feita – dias depois, poderíamos dizer – mais duas datas de terras eram ali concedidas:
“Requerimentos de Maria Josefa Nogueira e de Maria Angélica de Jesus,
pedindo datas além do Cemitério Público para edificar. – Concedidas, em
vista das informações dadas pelo secretário e fiscal da Câmara.”
1123
Já no ano seguinte, em 1869, novamente a rua da Consolação entrava na pauta das
obras mais necessárias a serem realizadas, indicando o vereador Proost Rodovalho que, “com
toda urgência se mandasse apedregulhar o morro do cemitério que se torna de perigoso trânsito com a
mais pequena chuva.”
1124
a integração da própria necrópole no emaranhado urbano que se constituía.
E de toda forma, er
1120 - A. C., 07/03/1861, p. 56 e 10/06/1861, p. 116.
1121 - A. C., 13/11/1866, p. 146 e 27/11/1866, p. 163 e 164.
1122 - A. C., 08/05/1868, p. 71, 74 e 75.
1123 - A.C., 19/05/1868, p. 78.
1124 - A. C. 14/01/1869, p. 38 e 42.
1125 - A. C., 02/06/1870, p. 102.
1126 - A. C., 24/09/1870,p. 150
493
“rebaixamento de parte de seu leito e o aterro de outro trecho em cerca de 12 palmos.”
1127
A
iluminação, por sua vez e conforme já visto antes, seria trocada por combustores a gás em
1873, mesma época em que a rede viária local entrava na pauta, pois necessário se fazia “abrir
uma rua em frente do cemitério da Consolação que comunique este bairro com o Campo de Santo
Amaro” para que por ela passasse o gado que seguia em direção ao matadouro, este localizado
as ime
São
é que, em 1890, toda a rua da Consolação até “os altos do cemitério”
n diações da rua Avanhandava.
1128
O transporte, por sua vez, chegaria em 1879, mas
apenas até a igreja da Consolação. Data dessa época o pedido e a autorização para que o
nosso conhecido Guilherme Maxwell Rudge (então gerente da Cia. Carris de Ferro de
Paulo) estendesse uma das linhas de bondes movidos por tração animada pela “rua da
Consolação até o adro da respectiva igreja.”
1129
E em relação ao próprio cemitério, a água encanada ali já estava disponível desde
1885
1130
e, dois anos depois, chegava uma das grandes “maravilhas” tecnológicas de finais do
século XIX: o telefone. Em novembro de 1887, a “Companhia União Telefônica do Brasil” que
já instalara algumas linhas na cidade (inclusive no mercado da rua 25 de Março e no
matadouro), pedia autorização “para colocar postes na rua da Consolação para assentamento de
aparelho no escritório do cemitério municipal”, solicitação esta aprovada dias depois.
1131
Resultado de todo esse investimento – com a decorrente ocupação dos terrenos
adjacentes ao cemitério –
era classificada como “cidade” e isso tendo em vista a cobrança de impostos.
1132
Muito antes,
portanto, do loteamento que se chamou Higienópolis ou da abertura da Av. Paulista, estava já
o entorno do cemitério da Consolação ocupado, fato este reconhecido pelo vereador Bráulio
Gomes em 1894, ocasião em que se discutia a construção de um novo cemitério que
substituiria o da Consolação. Disse ele na ocasião que:
“A mudança do cemitério terá vantagem quando o então existente se tornar
absolutamente interdito aos enterramentos; de modo contrário, a medida
higiênica que se quer por em prática será burlada.
As edificações que se fizeram
em torno do cemitério, de modo a torná-lo central, foram posteriores. Si se
mudar o cemitério e um certo número de indivíduos o quiser afastar para mais
longe, não tem mais a fazer do que edificar algumas dezenas de casas, e a
Câmara terá de ser coerente.”
1133
(meu destaque)
- Relatório das “Obras e melhoramentos públicos” realizados em 1872; A. C., 07/01/1873, p. 09 a 13.
1128 - Relatório da Câmara Municipal ao governo da Província a respeito “das obras e melhoramentos reclamados pelos
interesses municipais.” A. C., 30/01/1873, p. 44 a 48. Este “Campo de Santo Amaro” seria, na verdade, o bairro do
Bexiga, onde se localiza a Rua Santo Amaro, antiga estrada de mesmo nome. O matadouro, como sabemos,
funcionava nas imediações da Rua Avanhandava, também naquele bairro. E eram vários os caminhos utilizados
para o transporte do gado até ele. Um deles era o já citado “Beco do Mata Fome” (atual Av. Ipiranga) e, nas
imediações do cemitério da Consolação, existia uma trilha que tomava o nome de “Estrada da Boiada”, hoje trecho
da Rua Rio de Janeiro que serpenteia entre os bairros de Higienópolis e Pacaembú.
1129 - A. C. 03/07/1879, p. 57.
1130 - A. C., 15/07/1885,p. 110
1131 - A. C., 15/11/1887, p. 315; 06/12/1887, p. 347 e 13/12/1887, p. 352.
1132 - A. C., 07/05/1890, p. 133,.
1133 - Discurso do vereador Bráulio Gomes, A. C., 30/01/1894, volume manuscrito, p. 82 a 84.
1127
494
Através desse discurso, o m omes coloca-se contra a idéia de
uma nova necrópole. Para ele, o correto seria desapropriar mais uma área na região para o
para atender as
E eis que, nas palavras de Bráulio Gomes, a segunda hipótese apresentada não
m o cemitério da Consolação pelos idos de 1894
1895, ou seja, a partir desse momento voltaria com uma certa insistência a antiga tese
édico e vereador Bráulio G
aumento do já “velho” cemitério da Consolação.
Tendo em vista a insuficiência de terrenos para novos sepultamentos, bem como a
ocupação de seu entorno por residências, três hipóteses se colocavam naquela época para
resolver o problema. A primeira delas, defendida por Bráulio Gomes, já havia sido aplicada
antes, ou seja, a anexação de uma nova área ao cemitério. Entretanto, a facilidade encontrada
décadas antes com a aquisição ou desapropriação de terrenos, já não existia. A segunda
hipótese seria a de se construir um novo cemitério, em local mais distante,
freguesias centrais, mas continuando o cemitério da Consolação aberto para novos
sepultamentos, especialmente para as famílias que tinham seus túmulos perpétuos (idéia esta
combatida pelo vereador nas primeiras linhas de seu discurso). A terceira hipótese também
previa a construção de um novo cemitério e, ao mesmo tempo, pregava a interdição de novos
enterramentos no da Consolação. Neste último caso, aberto estava um caminho para o
simples fechamento daquela necrópole.
poderia ser adotada. Na sua crítica ele fez ver que a ocupação do entorno do cemitério foi
posterior à sua construção; e caso houvesse algum problema de saúde aos moradores do
entorno (algo em que não acreditava) dirigia ele uma censura velada ao procedimento da
própria Câmara que, em décadas anteriores, fora a responsável por este fato. E esta crítica
toma forma logo em seguida, pois de acordo com suas palavras, não bastava construir um
novo cemitério num local mais distante, já que ocorrendo a alguns indivíduos o levarem para
mais longe ainda, bastava que construíssem algumas casas ao seu lado. “Alguém” ou “alguns
indivíduos”, portanto, estavam implicando co
e 1895, fazendo retornar como problema a questão dos mortos no mundo dos vivos.
Em outras palavras, o discurso nos remete a uma questão que ficaria mais explícita em
(esquecida por um determinado tempo) de que o cemitério poderia causar algum mal aos
moradores. De fato, o ambiente era bem propício para a retomada desse tema uma vez que a
década de 1890 foi marcada pela eclosão de epidemias, especialmente as de febre amarela,
que aterrorizavam as cidades do interior do Estado.
1134
Nessa situação, onde já entravam em
cena os terríveis e invisíveis micróbios, a questão da proximidade do cemitério com o mundo
dos vivos (ou com moradores locais) volta como tema de discussões.
1134 - Data dessa época, por exemplo, um ofício já citado do secretário de Ju
Municipal no sentido de que se coibisse “o enterramento de indivíduos falecidos de
stiça do Estado dirigido à Câmara
febre amarela no cemitério municipal,
devendo tais enterramentos serem feitos no cemitério anexo ao Lazareto de variolosos”, conf. A. C., 21/05/1892, volume
manuscrito, p. 45 verso.
495
Em resumo, vejamos o que havia ocorrido até aquele momento: separado da cidade e
procedendo de acordo com as normas médicas então vigentes, o cemitério não poderia
oferecer maiores perigos; logo em seguida ocorre o parcelamento e ocupação de seu entorno,
ocasião em que as datas de terra foram geralmente concedidas a famílias não de todo pobres,
posto que com condições de edificar suas residências, mas, também, não ricas. Com esse perfil
de moradores ao seu redor, o cemitério não incomodava, até porque tanto as pessoas que
cemitério que estavam reclamando, e sim aqueles que se sentiam prejudicados pelas “águas
solicitaram os terrenos, quanto a municipalidade, bem sabiam da sua existência, aceitaram
essa circunstância e, não raro como no caso dos empregados, as datas de terra foram
escolhidas justamente por estarem próximas do cemitério.
Entretanto, entre 1894 e 1895, o discurso sobre a “insalubridade” causada pelo
cemitério reapareceria. Em junho de 1894, por exemplo, chegava à Câmara um “abaixo
assinado dos moradores das proximidades do cemitério da Consolação para mandar fazer um canal pelo
qual possam escoar as águas do dito cemitério”, sendo isso urgente, disseram os peticionários,
porque era necessário “desviar as águas que por ocasião das chuvas descem daquele cemitério para os
seus quintais com grande prejuízo da salubridade pública.”
1135
Apesar de não localizarmos o
original deste documento, o fato é que não eram “todos” os moradores dos arredores do
que
desciam” do cemitério. Nesse caso, e como é óbvio, esses quintais estavam numa posição
inferior (abaixo do cemitério), a exemplo dos terrenos localizados nas imediações da atual Av.
Angélica, das ruas Pará, Sergipe, Alagoas e D. Antonia de Queirós.
Conservando esses dados, podemos a eles adicionar a informação de que, já no ano
seguinte, o cemitério da Consolação seria classificado novamente como “prejudicial para a
saúde pública”, e isso através de um parecer emitido pelas Comissões de Justiça e Finanças da
Câmara a respeito do Projeto nº 51 do vereador João Bueno, que propunha aumentar a área
daquela necrópole:
“A Comissão de Justiça e de Finanças reunidas são contrárias a adoção do
construir um cemitério mais afastado do centro da cidade; assim não deve
concorrer para o prolongamento do atual,
projeto nº 51 visto que entendem que a Câmara deve o quanto antes tratar de
que muito pode concorrer para
prejudicar a saúde pública. São Paulo 20 de novembro de 1895 – João Antonio
Julião, Joaquim Franco de Camargo Jr., Nuno D. N. Motta, Cesário Ra
da Silva, Alípio Borba.”
1136
malho
Interessante notar que, quando de sua apresentação, este projeto foi lido na sessão do
1135 - A. C. 05/06/1894, volume manuscrito, p. 341 e 16/07/1894, p. 16 a 18
1136 - Parecer nº 29 da Comissão de Justiça ao projeto nº 51 do Sr. Dr. João Bueno para o aumento do cemitério da
Consolação; A. C., 22/11/1895, volume manuscrito, p. 215.
496
dia 11/11/1895 e imediatamente encaminhado às comissões de Justiça e de Finanças,
permanecendo “esquecida” a Comissão de Higiene e Saúde. Ora, as duas primeiras comissões
tratavam da legalidade do projeto (a de Justiça) e da existência ou não das verbas necessárias
para tais obras (a de Finanças). Nesse caso, cabia unicamente à Comissão de Higiene e Saúde
verificar se o cemitério era ou não prejudicial, algo que não ocorreu pelo simples fato dela não
naquele momento, até porque poderia contrari
ter sido consultada. Assim, é de se imaginar que o parecer desta comissão não interessaria
ar alguns dos argumentos utilizados pelas
duas ou
nto.
Tudo in
uele momento propiciavam uma tal
discussão; mas, além das já citadas preocupações com a saúde por conta da ameaçada de
epidemias, um novo fator se fazia presente
passava a ser o endereço da elite de São Paulo.
em que as ruas do novo loteamento “subiam” as encostas até atingir os muros do cemitério.
tras, as quais, efetivamente, não trataram dos aspectos legais e nem financeiros da
questão, emitindo sim um parecer sobre algo que não dizia respeito aos seus trabalhos ou que
não lhes competia. As duas comissões, aliás, uniram-se nesse caso e escreveram um parecer
em conjunto. Os doutores Henrique Schaumann e Bráulio Gomes, membros da Comissão de
Higiene e Saúde, não foram chamados a opinar, e isso ocorreu certamente por que pelo
menos a opinião de Bráulio Gomes já era conhecida e não interessava naquele mome
dica, portanto, que esta foi uma manobra encetada nos bastidores para proibir os
enterramentos no cemitério da Consolação e, quem sabe, até fechá-lo, mais tarde.
Como dissemos, as condições presentes naq
na área vizinha ao cemitério e, poderíamos
mesmo dizer, rente aos seus muros: o novo e elitizado bairro de Higienópolis que, entre os
anos de 1890 e 1895, passou a reunir os próceres membros da sociedade paulistana.
1137
Enquanto residência de uma classe mediana (ou talvez pobre, mas não indigente), o
entorno do cemitério não se colocava como “insalubre” e tão pouco a própria necrópole era
considerada como um vetor para doenças; o contrário se deu a partir do momento em que
Higienópolis começou a receber seus primeiros moradores. Não poderia haver melhor local
para as residências dos endinheirados paulistanos de então, pois era a subida da Consolação
um local alto, seco e arejado, bastante saudável, conforme preconizavam os higienistas (daí o
nome Higienópolis). O loteamento, por sua vez, fora planejado com amplos terrenos, somente
passíveis de aquisição por parte daqueles que possuíam o capital suficiente. Ao lado dos
Campos Elíseos, também Higienópolis
E não tardou para que o cemitério voltasse a incomodar, e isso na mesma proporção
1137 - A respeito desse bairro veja a esclarecedora análise de Homem, Maria Cecília Naclério; Higienópolis – grandeza e
decadência de um bairro paulistano;
E essa autora informa, por exemplo, que uma das primeiras mansões construídas em terrenos adquiridos naquele novo
S.P.: Prefeitura do Município, 1980, coleção “História dos bairros paulistanos”, Vol. 17.
loteamento foi justamente a do dr. Henrique Schaumann, na esquina da Av. Higienópolis com a Rua Itambé. Entretanto
o médico ali não residiu, preferindo alugá-la. Veja p. 80 da citada obra.
497
Fig. 74
O bairro de Higienópolis “chegando” ao Cemitério da Consolação no ano de 1895.
No destaque acima (através de setas vermelhas) observamos a direção natural das águas pluviais tendo em
vista a conformação dos terrenos do cemitério. Esta direção, por sua vez, foi estudada a partir do mapa
menor abaixo (de 1925) onde aparecem as curvas de níveis que reforçamos para esta reprodução. Como
referências, veja no mapa maior a “Rua do Pacaembú”, atual Av. Higienópolis, e a “Rua Itatiaia”, atual Av.
Angélica. As linhas tracejadas identificam as ruas não totalmente abertas ou ainda os antigos caminhos
entre as chácaras.
498
Não restam dúvidas que, nesse caso, não eram somente as “águas” do cemitério
que incomodavam algumas pessoas, senão ele próprio. Um encanamento mais adequado,
por exemplo, resolveria (e como resolveu) o problema. Por outro lado, e no tocante ao
projeto 51 do dr. João Bueno, logo os fatos se esclareceram e o mesmo, dias depois, foi
aprovado.
dependendo, portanto, apenas da vontade de
1138
Resta dizer, entretanto, que essa tensão se fez presente a partir de uma conjuntura não
alguns ricos empresários ou fazendeiros
instalados nas redondezas do cemitério. Dece
o.
Por outro lado, a relação entre o cemitério e o novo bairro de Higienópolis foi mesmo
conflituosa no seu início. E aqui analisamos apenas um de seus momentos, este surgido já na
abertura do loteamento entre os anos de 1894 e 1895. Entretanto, essa tensão permaneceria
ainda por alguns anos, adentrando mesmo no século XX. Em 1907, por exemplo, o então
prefeito Antonio da Silva Prado promulgaria a Lei nº 1.001 (de 31/05/1907) que, em seu
artigo 1º, alterava a denominação da “Rua Itatiaia” para Av. Angélica. Ao mesmo tempo,
rto que eles tinham um acesso facilitado junto
ao poder público e se faziam ouvir com especial cuidado; mas o intento de se fechar o
cemitério mediante a proibição de novos enterramentos não pode ser avaliado somente
através dessa circunstância sob o risco de quedar unilateral. O retorno do cemitério enquanto
um problema encontrou um ambiente mais do que propício, seja por conta da ameaça de
febre amarela e dos números de sepultamentos que se realizariam naquela necrópole caso a
epidemia invadisse a cidade, seja porque agora se sabia que, mesmo inodoros, os líquidos
bem poderiam conter uma miríade de micróbios extremamente letais, ainda mais se viessem
acompanhados da terra onde os mortos eram sepultados. Eis que, na conjugação de diversos
fatores, foi possível aventar a hipótese de interdição do cemitério da Consolaçã
1138 - A. C., 02/12/1895, volume manuscrito, p. 253 nos seguintes termos: “O Sr. Dr. João Bueno, pedindo a
palavra, requer e a Câmara consente seja discutido e votado em 1º lugar o projeto nº 51 visto considerar caso
urgente. – Discussão do projeto nº 51 do Sr. Dr. João Bueno autorizando a desapropriação de terreno para aumento
da área do cemitério da Consolação. – O Sr. Dr. João Bueno, pedindo a palavra, expõe os motivos porque julga de
499
estipulou em seu artigo 2º que “nenhum prédio poderia ali ser levantado sem que ficasse
entre o alinhamento e a frente da construção um espaço de seis metros pelo menos, para
m edificadas a uma certa distância do
jardim ou plantação de arvoredo” medida esta que visava o embelezamento das residências e
do próprio logradouro. Mas eis que, logo no ano seguinte, percebeu-se um problema que
inviabilizaria o cumprimento dessa determinação. A avenida Angélica, nas palavras dos
vereadores, estava dividida em duas: na sua parte inferior, entre a rua das Palmeiras e até a
Av. Higienópolis, já existiam belas residências que fora
alinhamento, no geral em 4 metros; a partir da Av. Higienópolis e até a Av. Paulista, porém,
estava ela “por assim dizer, praticamente desabitada”, conforme o parecer da Comissão de Obras
referendado pelos vereadores Augusto Carlos da Silva Telles, Ernesto Goulart Penteado e José
Oswald Nogueira de Andrade.
1139
Apesar de assinar este parecer, o vereador José Oswald de Andrade não concordou
com todos os seus termos, motivo pelo qual resolveu apresentar um voto em separado nos
seguintes termos:
“A avenida Angélica não é reta e tem duas características de habitações:
edificações de mais ou menos luxo entre as ruas Piauí e Palmeiras, e
edificações modestas no alto e extremo da mesma, para o lado da avenida
Municipal [atual Dr. Arnaldo];
estando quase todo baldio o terreno situado
nos fundos do cemitério da Consolação, é de se esperar que não seja ele
ocupado por edificações de luxo, que fogem ao espetáculo que diariamente se
vê, do lado dos fundos dos cemitérios e ao possível contágio de moléstias; ora,
descida do espigão para os lados de
assim sendo, e, como dificilmente as habitações modestas constroem e
mantém jardins nas suas frentes, sou de parecer que seja revogada a lei 1.001.”
1140
(meus destaques)
E José Oswald falava com conhecimento de causa. Assíduo freqüentador da região, ele
possuía algumas propriedades naquelas imediações, como o chamado “Sítio Rio Verde”, este
localizado na continuidade de Higienópolis, mas na
Pinheiros.
1141
De todo modo, a situação fica mais clara a partir do relato desse vereador. Em
primeiro lugar, não era verdade que a Av. Angélica estava “desabitada” na sua parte
swald Nogueira de Andrade era pai do escritor
is, a partir de 1890, dando
mália Nogueira até a Av. Dr. Arnaldo.
urgência a votação do projeto em discussão. – Encerrada a discussão e posto a votos é o mesmo aprovado.”
1139 - Aqui apenas uma curiosidade, pois o citado vereador José O
Oswald de Andrade. Veja Leme, Luiz Gonzaga da Silva; Genealogia Paulistana, Vol. VI, Título “Bicudos”, p. 392.
1140 - A. C., 31/10/1908, p. 301 e 302.
1141 - Este sítio, por sinal, seria loteado pelo vereador na mesma época de Higienópol
origem ao bairro Cerqueira César. Este, originalmente, era delimitado pela atual Av. Rebouças, rua Joaquim
Antunes e parte da Virgílio de Carvalho Pinto, rua Galeno de Almeida e A
Por sinal, neste loteamento seria edificada mais tarde (em 1925) uma outra necrópole, o Cemitério São Paulo. Veja
500
superior, mas sim ocupada por gente mais humilde, e isso se comparadas fossem suas casas
ro estava apenas
tingir o final da
a, bem como pela ameaça de doenças.
uma outra argumentação igualmente esclarecedora. Disse ele:
belas vias da
passar pela
com as que foram edificadas no seu lado oposto, a partir da rua Piauí (da Praça Buenos Aires)
em diante. Teríamos aqui alguns remanescentes das “datas de terras” antes concedidas pela
Câmara? Ou, pela proximidade do cemitério, tais terrenos teriam sido vendidos a um custo
menor? As duas hipóteses são possíveis e até mesmo as duas em conjunto. Ao observamos o
mapa do loteamento (veja a Fig. 74), percebemos que em 1895 este logradou
delineado a partir da rua Pará; desse ponto em diante, a rua se encaminhava para tortuosos
caminhos entre as chácaras, característica esta ainda hoje marcante em seu traçado, pois a
partir da rua Maceió, a Av. Angélica sofre uma deflexão para a direita até a
Av. Paulista. O segundo dado a nos chamar a atenção nesse discurso é o fato de que os terrenos
localizados nos fundos do cemitério estavam quase todos baldios e ali, na avaliação de José
Oswald, não haveria de ser edificado qualquer residência mais luxuosa e isso pelo “espetáculo”
ou visão do cemitério que dali se descortinav
E o debate prosseguiu, pois em seguida falou o vereador Silva Telles contrapondo
“Parece-me tratar-se de uma avenida que, se hoje não tem grande
importância, está, entretanto, destinada a ser uma das mais
nossa cidade, ligando a rua das Palmeiras à avenida Paulista, tornando-se um
percurso interessantíssimo da cidade.
O fato desta avenida
proximidade dos cemitérios não deve ser razão para que se sacrifique a
estética desejável nessa rua.Todas as cidades do mundo têm construções de
ente, ao
cidades
primeira ordem em proximidades de cemitérios. Estes, naturalm
serem fundados, ficavam distantes, mas com o desenvolvimento das
tornaram-se-lhes próximos. Assim acontece no Rio, onde os cemitérios estão
já nos centros populosos, como também acontece em Paris, com relação aos
cemitérios Pére Lachaise, Mont´Martre, etc.
E se não há ainda casas de
primeira ordem na avenida Angélica, é porque também não há casas de
1142
a fala de que “não haveria ainda casas de primeira ordem na
primeira ordem na cidade toda. Demais,o legislamos para os dias de hoje, e
tenho esperança que a Comissão de Justiça acabará concordando com a
Comissão de Obras. Vozes – Muito bem! Muito bem! (sic.)”
(meus
destaques)
Deixemos de lado
cidade” porque foi esta uma estratégia no discurso e não condizente com a verdade; nas
imediações já existiam, por exemplo, o palacete de D. Veridiana da Silva Prado (ao qual já nos
referimos antes), a “Vila Penteado” construída em 1902 pelo conde Álvares Penteado, bem
como as belas residências da Av. Paulista. Fixemo-nos no fato (este mais preciso) de que no
“Planta Geral da Capital de São Paulo” organizada pelo Intendente de Obras Gomes Cardim em 1897.
1142 - A. C. 31/10/1908, op. cit.
501
trecho citado da Av. Angélica as casas eram humildes e, também, na questão de que o
a.
r estética nesse caso, entendam-se belas e ricas residências. E
do lote – sem
permanecer como estavam, mas nas reedificações a nova regra deveria ser obedecida.
Em conclusão, o que assistimos nesse processo é a contínua elitização da rua que se
ao restante do bairro, pois novas residências mais simples não seriam admitidas.
Em curso estava a exclusão dos antigos moradores das imediações, muitos desses, tudo leva a
ris com os cemitérios Pére Lachaise e
De certa forma, e não obstante as tensões que se fizeram presentes, a reinserção dos
mortos na cidade ocorreu no bojo de um processo em que a morte foi, também,
gienistas, não poderia oferecer riscos à saúde dos vivos. Por outro lado,
que
Desde a década de 1830, pelo menos, tentava-se legislar sobre esse tema, sendo que
cemitério não poderia ser uma razão aceitável para prejudicar a “estética desejável” nesta vi
E eis que chegamos ao cerne da questão: a necrópole lá estava e não poderia ser ignorada;
entretanto, o cemitério não poderia e nem deveria ser um obstáculo para que se sacrificasse a
“estética” da Av. Angélica. E po
se esta avenida não se encontrava ainda totalmente ocupada em seu trecho superior, as casas
que lá existiam espaçadamente eram ainda simples, construídas no alinhamento
jardins, portanto. A lei 1.001, por outro lado, não deixava margens para negociação e seria
aplicada para as novas construções que ali se realizassem; as residências existentes poderiam
amoldava
crer, prováveis herdeiros dos concessionários daquelas primeiras datas de terras distribuídas
pela municipalidade décadas antes. A colaborar para com esta interpretação está o fato de que
a lei estipulando o recuo de 6 metros para as novas construções naquela avenida permaneceu
vigente, não sendo revogada.
E nem poderia ser, como argumentou Silva Telles, citando inclusive uma situação
parecida que ocorria no Rio de Janeiro e, também, em Pa
Mont´Martre. De fato, a menção a essas necrópoles não foi feita gratuitamente, pois pautado
na elegância francesa (modelo muitas vezes almejado) o cemitério da Consolação e o bairro de
Higienópolis seguiam um processo comum de elitização: no primeiro deles já não cabiam
mais os pobres e indigentes dos primeiros tempos, no segundo, eram os vivos na mesma
situação que deveriam sair.
paulatinamente esvaziada. Em primeiro lugar, estava ela já despida de seus aspectos mais
negativos para a sociedade como, por exemplo, através do método seguro de sepultamento
que, segundo os hi
assistia-se desde há tempos uma situação em que a morte – esta verdadeira tragédia
atinge os homens e que a tudo compromete
1143
– perderia alguns de seus aspectos mais
dramáticos ou aplacada em alguns de seus sinais mais visíveis.
502
uma das primeiras investidas do poder público foi em relação aos dobres dos sinos que
ecoavam, intermitentes, anunciando alecimentos e enterros que ocorriam na
idade. Esses repiques, na opinião de alguns vereadores em 1831, eram por demais
exagerados, incômodos aos ouvidos, o que motivou uma representação ao Bispo a respeito
de tais inconvenientes que prejudicavam o “sossego público”.
1144
Há que se lembrar que os
dobres dos sinos emitidos nessas ocasiões eram distintos daqueles que anunciavam as
; pausados e graves, tais sons eram logo
identificados pela população como um sinal d moções
r males sofrid ria causa das
doenças, o badalar triste era algo a ser evitado
in ito tais reclamaçõ
o itar uma
ostura a esse respeito, determinando que todas igrejas de São Paulo deveriam seguir as
ou
eja, três sinais breves e distintos para os homens que falecesse ulheres;
é 4 anos de sinal. Na saída do enterro ou durante o
s poderiam s o outros tant amento
e dito.
1146
leva a crer que ess
reclamar e lembraram novamente do estipulado nas Constituições Primeiras,
os do se fizessem sião de
riam ser bre ada um ma seja, a
brevidade (ou o tempo) estaria rado mecanicamente. Mais ainda, era
r esses repiq os que anunciavam festividades, que
ar 5 minutos; os d celeradosseriam utilizados apenas para
na intenção , enchente ntos.
1147
ssim uma dessac a mesma m adrava
ão. Os sinos ainda as deveria a vida e
ar emoções f us toques não deveriam ser mais ser
cada ocasião civil e met
vê a partir de rios indícios medida
os seguidos f
c
missas ou qualquer outro evento festivo
e morte. Num período em que as e
eram tidas como ag avantes dos os pelo corpo senão a próp
.
es,
1145
logo a Câmara ptou por ed
Mas não surt do efe
p
regras estipuladas nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia para esse caso,
s m e dois para as m
para as crianças at idade bastava um
cortejo iguais sinai er dados, bem com os quando do sepult
propriament
Tudo a postura nunca foi seguida à risca, pois em 1858 voltaram os
vereadores a
mas com uma novidade: bres ou toques que nas igrejas por oca
ves “não excedendo c is de 3 minutos”, oufalecimentos deve
agora sendo mensu
preciso diferencia ues de outros, como
obres “prolongados e apoderiam dur
chamar o povo de acudir incêndios s ou desmoroname
Exercitava-se a ralização do tempo n edida em que os enqu
via mensuraç eram necessários, m m antes servir para
não para provoc unestas, daí que se
confundidos. Para um tempo, o tempo rificado do relógio.
E o que se sse momento são vá de que a morte, na
1143 - Chaunu, op. ci
A. C., 11/07/1831.
t., p. 376.
1144 -
145 - Lembro aqui que os dobres dos s esta uma fonte ara as
aróquias. A esse respeito veja minha Dissertação de Mestrado “Sepultamentos em São Paulo 1800-1858”, Parte I,
inos eram pagos, sendo de renda nada desprezível p1
p
onde calculo o rendimento dos “sinos” para as finanças dos templos.
1146 - “Coleção de Posturas – 1830/1876”, Arquivo Histórico Municipal de São Paulo.
503
em que fosse possível, deveria ser esvaz pudessem iada, destituída de atos dramáticos que
viviam. Era esta uma longa caminhada.
adicais com
julho de
de Santa
br s de sin s” ; claro que
em algumas circunstâncias a regra não valeria, como no caso de falecimentos de membros da
as autoridades civis ou eclesiásticas, a exemplo de bispos e
ra
do
emitério, os quais estavam amplamente permitidos.”
1148
Ou seja, a morte e os seus sinais deveriam
rcunsc únic min c : o cemitério, equipamento este
ente para a finad e po e o espaço da morte sob controle.
ort um t etácu
ue ain algum e cu h spitais, especificaram os vereadores
Joaquim Augusto de Camargo e on e oura em 1865. Não mais se admitia,
mo ente, “cadáveres jazendo ao lado de enfermos que ainda podiam
e”, p a p ciso, ao que se “ocultasse a morte aos moribundos” e isso
lhes ta a persp mor
4
ga , com s, o a ento dos sinais que lembravam a
a m ivos f cio ta te e que ganhou maior impulso nas
ada XIX.
m neg te i uma série de serviços lucrativos, a
co o dos cadá co o e objetos fúnebres como os caixões.
à ven s casas espe se o assaram a incomodar. Não era nada
de en o e repente, com caixões expostos em
adas essa experiê ram s paulistanos que, procedentes do Largo
da Sé ou do Pátio do Colégio, inadvertidamente tomavam a Rua do Carmo onde estava
a m empresa fu a cid esta antes administrada por Joaquim
da S o º 51 da rua e, posteriormente, por Benjamin Silvado, no nº 53.
de epidemias, tal
ento s ia mais tolerado:
influenciar negativamente os que
A partir da inauguração do cemitério da Consolação, medidas mais r
relação aos sinos encontraram um contexto mais propício para serem testadas. Em
1860, por exemplo, apresentou-se um projeto proibindo, nas Freguesias da Sé e
Ifigênia, todos “os do e os por defunto fossem eles para adultos ou crianças
família imperial e de alt
presidentes de província. Entretanto, o artigo 2º deste projeto trazia também uma out
novidade, pois “nesta proibição não estavam compreendidos os dobres dos sinos da capela
c
estar ci ritos num o e deter ado lo al
especialm construído brigar os os. O t m
A m e enquanto riste “esp lo” era algo a ser evitado, especialmente aos
doentes q da tinham a chance d ra nos o
Francisco H orato d M
como já cita s ante iorr m
levantar-s ois er re contrário,
para tirar- da vis ectiva dos tos.”
11 9
Lon caminhada o dissemo afast m
eminência d orte aos v oi um exer cons n
últimas déc s do século
Já tratada como u ócio, a mor envolv a
exemplo da nduçã veres ou do rci d
Expostos da na cializadas, es s artig s p
incomum ao se dobrar uma esquina e dar contr , d
pé nas calç . Por ncia passa muito
localizada aior nerária d ade,
Marcelino ilva n n
Em 1892, período este de grande apreensão por conta da ameaça
procedim já não er
., 06/0 , p 02
to de P A C., 21/07/1860.
1149 - Relatório da Comissão encarregada da visita ao “Hospital dos Bexiguentos”, A. C., 18/07/1865, p. 197 e 198.
1147 - A. C 2/1858 . 1
1148 - Proje ostura, .
504
“Artigo de Postura. A Intendência Municipal, usando da faculdade que lhe
confere ro de 1890, resolve:
à empresas fúnebres e outros negócios
congêneres a exibição, nas portas dos negócios ou em lugares visíveis ao
público defunto e outros objetos destinados a
enterros a de finados.
ará a multa de 30$000 e o dobro na
reincidê
Art. 3º - Revogam-se as disposições em contrário.
regu assuntos referentes à morte e aos sepultamentos não apenas
e a ia o (o cemitério), senão também
esp o e egras aqui aprovadas não
r o, puderam ser codificados,
dos e do sob o gal o que, em contrapartida, em muito
a par taç o.
out t data esse m de 1892 uma outra regulamentação que,
se que estamos realizando.
proposta do Dr. Bráulio Gomes, foi aprovado o seguinte projeto:
ac mpanh r cadáveres de s smo
ualme a ução
ob tos. O infratores incorrerão na multa de
1151
dif rentes erspec : em
rtea am a p oposta do médico diante da eminência de uma
o Decreto de 15 de feverei
Art. 1º - É proibido s
, de amostras de caixão de
, exceto no dia e vésper s
Art. 2º - O infrator pag
ncia.
Paço da Intendência Municipal, 9 de junho de 1892 – Antonio Carlos de Salles
– José de Paula Queiroz Júnior – C. Paes de Barros – Aprovada.”
1150
A lação dos
levavam em conta a existência de um lugar certo propr d
uma dat ecífica: o dia de finados, ocas m qu aa e s r
precisavam ser seguidas. O tempo e o espaço da morte, po tant
controla condiciona s aspecto le
contribu a a sua ocul ãí
De ra par e, d esmo ano
transformada em Lei, nos é especialmente esclarecedora para a análi
Naquela ocasião, e sob
“Art. 1º - Fica proibido o a anjos ou adulto no me
carro ou coche; transportar cadáveres em carros que não sejam
exclusivamente destinados para esse fim; ig nte fica proibida cond
de cadáveres em caixões desc er s
50$000 e oito dias de prisão.”
da sobEssas proibições podem ser analisa s e p tivas, senão vejamos
primeiro lugar, tratava-se do projeto de um médico, o Dr. Bráulio Gomes; nesse sentido,
procurava ele distanciar os mortos dos vivos por óbvias razões de saúde tendo em vista um
possível contágio antes do sepultamento. Daí não se permitir que familiares ou amigos
estivessem juntos, no mesmo carro, com o falecido; daí proibir-se a condução de cadáveres em
carros particulares (que poderiam quedar “infectados”) e, também, de enterros em caixões
sem cobertura, o que trazia grandes riscos. Este é um lado da questão, e certamente foram
esses os principais motivos que no r r
ém a colaboração do Dr.
Henrique Schaumann e de João Antonio Julião.
1150 - A. C., 09/06/1892, Volume manuscrito, p. 73
1151 - A. C., 07/11 (p. 70), 12/11 (p. 79) e 19/11/1892, p. 108. Este projeto teve tamb
505
epidemia de febre amarela. Não restam dúvidas também de que esta regulamentação muito
e ta não foi a
ção é a
regulamentações apresentadas no mesmo ano. A primeira delas,
eferente aos caixões, interferia no espaço público, visando retirar das vistas os objetos que
miliares e amigos. Ou seja, no âmbito privado das afinidades. Mas, de qualquer maneira,
no espaço público, pois tratava-se do cortejo
to consegue nos mostrar que, sim, os
o cemitério,
juntos, no mesmo carro. Quando do falecimento de crianças, não era nada incomum os pais
edação inicial, o Dr. Bráulio
e que ficava proibido “acompanhar cadáveres de anjos no mesmo
arro ou coche”, disposição esta alterada depois pelo Dr. Henrique Schaumann que incluiu
também os adultos. De outra parte, como já tivemos a oportunidade de verificar, nem todos
utilizavam os carros das empresas funerárias, fazendo o enterro a pé ou em veículos alugados
pelo menor preço; por último, era certo também que muitos caixões não possuíam cobertura
aração entre os
ulo) determinava uma nova condição para o
público, e depois nos atos que mais diziam
em
a a porta da casa:
locarem pano preto na porta das casas onde se dão óbitos, indico que
esta Câmara, a imitação do que muitas outras já tem feito, até Câmaras de
de maio de 1900 – Serafim Leme.
1153
nto:
interessava aos empresários das empresas funerárias, mas ao que nos par ce es
razão determinante para a sua adoção. De fato, o que mais chama a nossa aten
comparação entre as duas
r
lembravam a morte; neste segundo o foco foi centrado nas relações entre o morto, seus
fa
diante de acontecimentos que se verificavam
pelas ruas da cidade. De outra parte, o regulamen
familiares costumavam estar lado a lado dos defuntos quando estes seguiam para
carregarem seus filhos no colo, e disso sabemos porque, na r
Gomes especificava clarament
c
(um tampo, por exemplo) numa outra prova de que os mesmos eram batidos a prego na
rópria residência do falecido.
1152
E eis aqui, no âmbito das relações privadas, a grande
p
modificação que se operaria: o caixão fechado promovia ainda mais a sep
vivos e seus mortos; o tampo (assim como o túm
defunto, distanciando-o.
A intervenção do governo no espaço
respeito às relações privadas, não cessariam. Mas, tudo tinha um limite; e este, pelo menos
São Paulo na virada para o século XX, er
“Indicação nº 248 – Causando má impressão aos transeuntes o uso anacrônico
de co
cidades do interior, determine que fique abolido esse uso, proibindo de então
para diante que sejam colocados tais distintivos nas casas em que se derem
falecimentos. S. Paulo, 4
O Coronel Serafim Leme não era homem de rodeios e, por isso, foi direto ao po
1152 - Talvez nem seja necessário, mas chamo a atenção para o fato de que as duas últimas proibições tinham um
endereço certo, ou seja, eram destinadas aos mais pobres.
1153 - A. C., 04/06/1900, p. 184.
506
para ele, os panos pretos causavam uma má impressão, sendo este o motivo principal de sua
dicação no sentido de que se abolisse tal prática na cidade. Grande cafeicultor e pecuarista,
s pares – estes
ndros que
er sido tão enfático na sua proposição.
inovação nos costumes antigos do
fazendo acompanhar a indicação de motivo algum plausível para a reforma
ue
stava.
onhecido Dr. José Oswald de Andrade que assim a
, de panos, fornecidas
Considerando que nas casas onde se dão falecimentos há sempre
recem grande perigo para a saúde pública
Art. 1º - Fica proibido o uso de armações mortuárias, de panos, nas
in
ao que nos parece Serafim Leme não tinha a desenvoltura verbal de seu
majoritariamente médicos, engenheiros e advogados – e nem estava afeito aos mea
pautavam as deliberações da Câmara para temas tão delicados.
1154
Nesse caso, como veremos,
o vereador não deveria t
Em fevereiro de 1901 a proposta entrou em discussão e, imediatamente, foi combatida
pelos vereadores João Bueno e João Antonio Julião:
“A indicação apresentada importa uma
povo cristão e até hoje adotado e respeitado pelas nações civilizadas, não se
pretendida, assim pensamos que não deve ser adotada.”
1155
Em defesa da proposta posicionou-se o vereador Pedro Vicente, argumentando q
não considerava inconveniente a sua adoção enquanto postura, mas seria necessário fazer
retornar a proposta ao seu autor para dar-lhe “a forma de projeto de lei, de acordo com suas idéias,
por ser isso mais harmônico com o regimento.”
1156
Ou seja, entendeu Pedro Vicente que a forma
estava errada, pois o caso não deveria ser apresentado como Indicação e sim como Projeto de
Lei. Nas entrelinhas, porém, percebe-se também uma crítica ao modo como ela foi redigida,
direta, sem meios termos num tema por demais delicado, o que poderia ser motivo de críticas
se aprovado fosse como e
E eis que a proposta volta ao seu autor, mas, sem qualquer surpresa, não foi ele quem
deu a nova redação e sim o nosso já c
reapresentou como projeto de lei nº 6 de 1901:
“Considerando que as armações mortuárias
pelas casas de armação, servem a milhares de casas onde se dão falecimentos
por variadíssimas causas;
aglomeração de pessoas que se reúnem para acompanhar o féretro;
Considerando que pelos motivos expostos, admitida a existência de
micróbios, tais armações ofe
A Câmara Municipal de S. Paulo decreta:
1154 - O Coronel Serafim Leme da Silva, exerceu o cargo de juiz de paz no distrito da Sé e elegeu-se por duas
vezes vereador, de 1898 a 1904. Foi também comerciante, fazendeiro, comissário de café e pecuarista, sendo um
dos pioneiros da indústria frigorífica no Estado através da “Empresa Frigorífica Paulista”, que inaugurou esse
nália Franco”. Fonte: Arquivo Histórico Municipal, acervo
sistema de fornecimento em São Paulo. Foi ainda proprietário de terras no bairro do Tatuapé, inclusive do “Sítio
Paraíso”, adquirido da família Rego Freitas em 1903, e vendido em 1911 ao então chamado “Lar Anália Franco”
que, posteriormente, daria origem ao bairro “Jardim A
da Seção de Denominação de Logradouros Públicos: Rua Cel. Serafim Leme da Silva.
1155 - A. C., 04/02/1901, p. 39
1156 - Idem ibidem.
507
casas em que se derem falecimentos.
Art. 2º - Fica permitido o uso de um laço de crepe, de fazenda não
servida, preso à porta e de objetos de metal, de madeira e cera.
Art. 3º - Os infratores incorrerão na multa de 50$000 Réis.
Art. 4º - Revogam-se as disposições em contrário.
S. Paulo, 2 de março de 1901. – José Oswald.”
1157
Caso tivesse sido apresentada nesses termos desde seu início, a proposta do Coronel
Serafim Leite teria grandes chances de ser aprovada. Mas, ele não percebeu que os meandros da
política prescindiam de argumentos tão simples e diretos como aqueles que elaborara.
Diferente das duas anteriores regulamentações que apresentamos e que diziam
uma interferência no espaço público no caso dos caixões expostos na rua e 2º: no
entes ou na entrada das residências.
a estavam presentes todos os argumentos
ue fariam dele um projeto vencedor. O principal , sem dúvida alguma, era a “existência de
icróbios” que, impregnados nos tecidos utilizados em “milhares de casas onde ocorriam
lecimentos por variadas causas” ofereciam grande perigo à população.
O “mal”, entretanto, estava feito. Toda essa discussão já era de conhecimento da
ue as sessões da Câmara eram notícia, sendo inclusive publicadas em
jornais através de contrato. Daí o cuidado que se deveria ter com as palavras e com a redação.
O caso dos “panos pretos” explicitara esse problema: ou bem a sua proibição era em
vido ao fato de colocarem em risco a saúde
as pessoas?
Produzida esta radical modificação na justificativa, o ato escapou ao controle de
eus protagonistas. Era por demais flagrante a manobra que se tecera; e seja justamente
or isso, ou mesmo porque realmente a proposta original não ganhara adeptos suficientes,
ue o projeto não prosperou. Posto a votos, ele foi recusado por cinco dos vereadores
resentes e apoiado por outros cinco. Verificado o empate, a decisão foi adiada.
ersistindo a mesma situação na sessão seguinte, o projeto foi rejeitado conforme
reconizavam as regras então vigentes.
1158
E eis que diante de uma simples proposta todo um complicado jogo vem à tona de
respeito 1º: a
modo como se dava o féretro, ou seja, já fora da residência a caminho do cemitério, a
regulamentação de Serafim Leme interferia das portas para dentro, já que o “pano preto” era
afixado nos bat
E ao dizermos que se fosse apresentada com a redação oferecida por José Oswald a
proposta poderia ser aprovada, é porque nesta últim
q
m
fa
imprensa até porq
decorrência da má impressão que causavam, ou de
d
s
p
q
p
P
p
157 - A. C., 02/03/1901, p. 64
- A. C., 02/09/1901, p. 245 e 246; e 03/09/1901, p. 252.
1
1158
508
maneira muito clara. Em primeiro lugar chama a nossa atenção o quanto os argumentos
e
m, como visto, a manipulação de linguagens e de contextos, a
as em outras situações.
palco
– e aqui devemos reter os argumentos de sua
vando em
rados na rua do Carmo)
grande era a diferença notada com relação aos testamentos redigidos no século XVII,
ocasião em que Beatriz Rodrigues considerou a morte como “cousa tão ordinária” ou Isabel
Soares que reputou ser ela “cousa natural.”
1159
distância das cidades, já que afastava uns de outros; posteriormente, com a sua reinserção na
malha urbana, uma tensão se faria presente. Reputo que a morte foi sempre considerada pela
ocorreria mais tarde, tornando-a distante e insuportável como
afastamento da morte, acredito que o aumento
médicos poderiam ser manipulados, dissimulando algumas verdades, e utilizados sem
qualquer pudor para quaisquer outras finalidades. De fato, e caso o vereador Serafim Lem
não tivesse sido tão afoito naquele momento, o que nos restaria hoje seria apenas aquela 2ª
proposta e, nesse caso, a nossa análise poderia seguir um outro caminho. De outra parte, essa
“embrulhada” teve o mérito de desnudar completamente as práticas e as estratégias
utilizadas e que incluía
camuflagem de intenções que, certamente, também foram utilizad
Fazendo uso de uma metáfora, o caso dos “panos pretos” trouxe os bastidores para o
principal, revelando diante de todas as vistas uma trama que se queria escondida.
Não obstante o fracasso da proposta
primeira redação, ou seja, a de que os panos pretos causavam uma má impressão – o fato é
que o tema estava em discussão o que, por si só, é bastante revelador e contribui para com a
nossa análise de que a morte e seus sinais estavam paulatinamente sendo esvaziados.
Numa comparação com o caso dos caixões expostos nas calçadas, e le
consideração o argumento de que uns e outros causavam uma certa apreensão ou má
impressão, estes sentimentos facilmente poderiam equivaler a um susto para, em seguida,
transformarem-se em repugnância. E em uma época onde as mortes ocorriam amiúde, de
fato os panos pretos (muito mais do que os caixões concent
estavam mesmo à todo momento “interceptando” a visão e, para alguns, causando tais
inquietações. A morte e seus sinais não seriam mais suportados como antes. De fato, já era
Por alegados motivos de higiene (ou de saúde), uma primeira grande ruptura entre os
vivos e seus mortos seria observada a partir da edificação dos cemitérios a uma longa
humanidade enquanto uma tragédia; tragédia muito próxima dos indivíduos num passado
mais remoto e, até por isso, ela poderia mesmo ser considerada como “coisa ordinária e
natural”; o contrário
observamos em períodos recentes.
E nesse processo que redundou num
na expectativa de vida a partir do século XX teve um papel fundamental. Com o
1159 - Coleção Inventários e Testamentos, Vol. VIII. Testamentos de Beatriz Rodrigues, 1625, p. 6 e Isabel Soares,
509
prolongamento da existência, a morte foi deslocada para idades mais tardias, cada mais
distante no tempo individual de cada um. Assim, um primeiro afastamento pode ser
tal distanciamento seria conhecido inicialmente apenas no interior
um
tados pelas elites, ao passo que para as classes inferiores nada disso ainda
XX) tínhamos,
or entre os pobres e cada vez mais
moradores de Higienópolis em relação ao cemitério da Consolação do que se percebia do
s entre os vivos ocorria de
mens outra vez diante dessa fatalidade, visão terrível (especialmente para os
Indicação nº 429 de 1910:
experimentado no ambiente familiar, por exemplo, onde as mortes precoces aos poucos
deixaram de existir. Por certo que esta ocorrência não se verificou em todas as camadas da
sociedade, uma vez que
das classes dominantes. O acesso aos novos conhecimentos a respeito das doenças ou a
ambiente saudável (incluindo aqui uma boa alimentação), bem como aos serviços de saúde
serão primeiro desfru
estava disponível. Num mesmo momento (entre finais do século XIX e início do
portanto, uma situação dual: o prolongamento da existência para alguns, e a brevidade da vida
como algo ainda presente para a grande maioria. Nessa circunstância, o contato com a morte
(na família ou entre amigos, por exemplo) era muito mai
espaçado entre os ricos. Próxima para muitos e distante – por isso insuportável – para outros.
Não por outro motivo é que verificamos uma resistência muito maior por parte dos
outro lado da cidade, no Braz, onde igual processo de urbanização em torno do cemitério da
4ª Parada também ocorria e onde anotamos a existência de uma única e solitária reclamação,
que logo foi resolvida.
1160
De fato, a tensão maior com respeito ao retorno dos morto
forma mais aguda nos bairros elitizados. Tal inclusão, já a partir de finais do século XIX,
colocou os ho
mais abastados) que os faziam relembrar a finitude da vida. Na medida do possível, era algo
a ser evitado, nem que para isso se lançasse mão de alguns artifícios:
“Indico ao exmo. sr. dr. Prefeito a conveniência de mandar colocar chapas de
1629, p. 114.
1160 - Ao contrário do cemitério da Consolação, custeado que foi na sua totalidade por verbas públicas, o do Braz
contou com a ajuda dos moradores locais. Iniciada sua construção em 1885, esta somente pode avançar por conta
Bento
choal
e 4$000 Réis - A. C., 05/08/1885. Este cemitério, por sinal, foi motivo de muitos abaixo-assinados,
s
, a partir daí, nenhuma outra reclamação chegou à
municipalidade, pelo menos até 1920, limite de nossa pesquisa.
de inúmeras doações da comunidade, como as de “João Boemer Júnior, que doou dois mil tijolos; José
Ferreira Moraes, Francisco José Dias Leite Júnior, Dr. João Siqueira Bueno, Domingos Mateus de Oliveira, Pas
Colangelo, João Caetano de Lima Brito, que doaram mil tijolos cada; José Augusto Lopes, Luiz Ferreira de Abreu,
Antonio Franco, Caetano Silva, que entraram com quinhentos tijolos cada e Francisco Monteiro de Castro que
doou a quantia d
mas no sentido do término de sua construção, e isso por conta dos atrasos verificados na obra. Em 1893, já com o
cemitério pronto, prontificou-se a comunidade a arcar com as despesas de conservação da capela, esta igualmente
edificada “às custas dos cidadãos.- A. C., 21/01/1893, p. 41. Uma única reclamação que se assemelha aos caso
verificados nos cemitério da Consolação e do Araçá foi anotada apenas em 1895. E ela dizia respeito ao pretendido
aumento da área do cemitério da 4ª Parada que se estenderia pela propriedade de Leoni Cavalere Ricci e outros.
Diante dessa reclamação, outro terreno foi escolhido e
510
ferro pelo lado interno do gradil do cemitério do Araçá, afim de poupar a
quem por ali transita o desgosto de estar a olhar túmulos todos os dias (...)
no então loteamento que se chamou
uito agradável dos túmulos do cemitério do Araçá,
compõe) seu
ulos, mesmo que por alguns segundos, incomodava. Pouco tempo depois,
es, portanto, marcaram o retorno dos mortos à cidade. Ao
numentos, os moradores que ocupavam as redondezas sentiam um certo
diários e a terem sempre como paisagem todos
o inexorável: o do fim da vida.
cido interlocutor, o vereador José Oswald de Andrade. Se em 1908 ele
e momento de
s as atenções no sentido de se manter limpa e asseada porque este
a, principalmente pelos
isitantes estrangeiros.”
1163
José Oswald.”
1161
Como dissemos, o vereador José Oswald de Andrade freqüentava aquela região, bem
como os inúmeros compradores de seus terrenos
“Cerqueira César”. Seja por ele próprio, seja por solicitação dos moradores locais, esta
indicação nos faz ver que o trânsito diário pela então Av. Municipal (hoje Dr. Arnaldo)
obrigava a uma vista considerada não m
estes perceptíveis através do gradil de ferro vazado que compunha (e ainda hoje
imponente portão de entrada. Nada muito extenso, já que as grades se alongam por poucos
metros para, logo em seguida, transformarem-se em grossos muros de tijolos. Mesmo assim, o
panorama dos túm
as chapas de ferro solicitadas pelo vereador seriam mesmo colocadas.
1162
Tensões e ambigüidad
mesmo tempo em que se observava no próprio cemitério do Araçá – e principalmente no da
Consolação – um contínuo embelezamento via túmulos e mausoléus que se construíam à
imitação de mo
desassossego, uma inquietação decorrente daquela indesejável proximidade, e isso porque
estavam eles obrigados a assistirem os cortejos
os artefatos que lhes mostravam um destin
E o melhor exemplo dessa ambigüidade se fez presente através de um discurso do
nosso já conhe
concluía que a “visão do cemitério” da Consolação comprometeria as construções de luxo
na Av. Angélica, e em 1910 solicitou chapas de ferro para esconder os túmulos do
cemitério do Araçá, em 1909 ele proferiria uma frase que seria a marca dess
antagonismos. Frase, aliás, já citada neste trabalho, mas que agora ganha outros contornos
num contexto ampliado. Numa outra situação, pois apresentava um projeto para a
elevação do salário do administrador do cemitério da Consolação, disse Oswald que esta
necrópole merecia toda
cemitério era “a primeira necrópole de São Paulo, por todos admirad
v
161 - A. C., 10/12/1910, p. 304
162 - Essas chapas permaneceram por um longo período nas grades do cemitério, sendo somente removidas no
nal da década de 1980, quando da construção da linha do metrô e da estação “Clínicas”, defronte à necrópole.
163 - Considerandos dos vereadores José Oswald e Rocha Azevedo ao projeto de Lei nº 14 de 1909; A. C.,
21/08/1909, p. 163 e 164.
1
1
fi
1
511
Dependendo do “lugar” de onde falava, opiniões diferentes eram emitidas a respeito
rios nas proximidades de um empreendimento; entretanto, e
rto. As memórias ali cultuadas serviam de modelo
nados
os.
ndabili, Bruno Giorgi, Materno Giribaldi, Nicola Rollo, Francisco
seus equipamentos, tais como capela, ossário e portal, projetados por Ramos
ntes, construído aos 11 de fevereiro de 1864 para serem enterrados os
êm
onsolação, em
onsolação, José Eusébio, Mato Grosso e Sergipe,
da mesma questão. Na posição de um empresário do ramo imobiliário, sabia Oswald dos
inconvenientes de cemité
enquanto um munícipe distanciado desse problema, realmente o cemitério da Consolação
colocava-se já como que um museu a céu abe
e contavam parte da história da cidade (e mesmo do país) através de ricos e bem cuidados
mausoléus. Com um certo afastamento, era até possível observá-lo enquanto um jardim
pinçado de monumentos, pontuado, aqui e ali, por belos exemplos de esculturas em refi
mármores. Eis então, na fala do vereador, a expressão máxima dessa ambigüidade em relação
aos cemitérios e aos mortos, agora reinseridos no mundo dos viv
E em decorrência desse último aspecto, ou seja, de ser o depositário de memórias
célebres e de consideráveis monumentos, o já elitizado cemitério da Consolação foi
recentemente (e de forma oficial) promovido à categoria de patrimônio histórico de São
Paulo, encontrando-se protegido por um ato de tombamento levado a efeito pelo
Condephaat.
1164
Não quero cansar o leitor, mas considero importante passarmos os olhos nos
considerandos e no artigo 1º desta Resolução de Tombamento:
Tombamento do cemitério da Consolação, dos Protestantes e da Ordem Terceira do Carmo.
Considerando que:
O Cemitério da Consolação foi a primeira necrópole instalada no município de São Paulo e possui uma
importância singular no contexto da história dos cemitérios da cidade e, em particular, em seu período
de formação e urbanização.
São muitas as personalidades sepultadas no Cemitério da Consolação e os seus túmulos, verdadeiras
obras de arte, executados por artistas responsáveis pela beleza das esculturas a eles aderentes, como
Victor Brecheret, Galileo Eme
Leopoldo e Silva.
O seu traçado interno e os
de Azevedo, são representativos da tipologia dos cemitérios construídos entre o final do século XIX e
começo do XX, período em que ocorreu um processo de laicização desse tipo de construção.
O cemitério dos Protesta
acatólicos, no qual as pequenas estelas são interpostas por jardins, e o da Venerável Ordem Terceira de
Nossa Senhora do Carmo, que iniciou as suas atividades em 12 de novembro de 1868, t
características importantes a serem preservadas e fazem um contraponto interessante na paisagem,
destacando-se os mausoléus suntuosos do da Consolação.
É relevante o aspecto paisagístico da quadra onde se situam os cemirios no bairro da C
razão da grande massa arbórea e do baixo gabarito de suas construções.
Resolve:
Artigo 1º– Ficam tombados como bens culturais de interesse artístico, urbanístico, paisagístico e
histórico os cemitérios da Consolação, da Ordem Terceira do Carmo e dos Protestantes, que ocupam
inteiramente a quadra definida pelas ruas da C
incluindo as calçadas e o conjunto arbóreo em torno dessa quadra.
1164 - Resolução SC 28/05, de 28 de junho de 2005, publicado no DOE de 09/07/2005, p. 35, pelo - Conselho de
Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo
512
Parágrafo 1º– Elementos de destaque do tombamento: o traçado das alamedas, quadras e ruas dos três
cemitérios.
Parágrafo 2º– no Cemitério da Consolação, a capela, o pórtico da entrada, o ossário e a atual
administração, de autoria de Ramos de Azevedo, além das inúmeras esculturas, de grande valor
artístico, listadas a seguir.
1165
Por serem demasiados explícitos, deixo aqui de analisar os critérios utilizados para
sse tombamento. São argumentos válidos, sem dúvida alguma, mas estamos ainda a espera
relação ao cemitério do Braz, também conhecido como da “4ª
Parada”, enquanto uma parte (e digno representante) do viver e morrer de uma classe menos
Diante desse processo que redundou na reintrodução dos mortos na cidade – o qual se
eu não sem tensões e numa relação ambígua, como vimos – restam ainda algumas poucas
alavras que podem enfeixar rapidamente algumas das proposições aqui explicitadas.
Aproveito para reforçar minha tese de que as doenças e a morte foram sempre
ncaradas pela humanidade enquanto tragédias. Prova disso foi o empenho dos homens em
esenvolver, nas mais diferentes épocas e sociedades, diversas práticas de curas e prevenção
om base nos conhecimentos e nas experiências que acumularam. A cuidadosa elaboração de
separação) dos entes queridos com menor ou maior
r que a morte
üilamente. Numa época em que se sentia sua presença com maior
mo “coisa natural”, como parte da vida e do
e
de igual procedimento com
abastada na cidade de São Paulo.
d
p
e
d
c
ritos de passagens (ou vinculados à
demonstração de sentimentos é um outro ponto em que nos apegamos para dize
nunca foi aceita tranq
intensidade, os antigos até poderiam aceitá-la co
165 - Como disse, não tenho a intenção de cansar o leitor e, por isso, sinta-se à vontade para não ler esta nota.
as, constam dessa Resolução um total de 112 mausoléus de pessoas notáveis e/ou com obras de arte assim
lacionados: Marquesa de Santos, Barão de Antonina, José Álvares de Cerqueira César, Família Paim Vieira,
amília Brasílio Machado (incluindo Antônio de Alcântara Machado, José de Alcântara e Machado de Oliveira e
aquim Machado de Oliveira), Família Sampaio Viana, Família Jafet, Família Matarazzo, Família Campos Salles,
amília Siqueira Campos, Olívia Guedes Penteado, Monteiro Lobato, Família Fauzi/Maluf, Eduardo da Silva
rado, Mausoléu do Chapeleiro – sociedade Beneficente dos Chapeleiros (fábrica de João Adolfo), Loja Maçônica
a Amizade, Família Toledo Piza, Família Siciliano, Chedid Jafet, Miguel Calfat, João Saad, Armando de Salles
liveira, Família Sabbado D'Angelo, Roberto Cochrane Simonsen, Afonso Arinos de Mello e Franco, Bernardino
e Campos, Carlos de Campos, Itália Fausta, João Mendes de Almeida Júnior, José Maria Lisboa, José Maria
hitaker e Firmino Antônio Whitaker Filho, Paulo Machado de Carvalho, Washington Luiz Pereira de Souza,
rmando Álvares Penteado, Paolo Mazoldi, Armando Bogus, Família Salim Taufi Maluf, Conselheiro Furtado,
ui e Antero Bloem, Coronel Luís Antônio de Anhaia Melo e Luís Inácio Romeiro de Anhaia Melo, Prudente de
oraes, José Vieira Couto de Magalhães, Família Antônio S. Noschese, Família Riskallah, 2a. Baronesa do Bananal,
arão e Baronesa de Sousa Queirós, Antônio Bento de Sousa e Castro, Clementino de Sousa e Castro, Ministro Luís
oberto de Resende Puech, Jules Martim e mais 134 túmulos não identificados, mas contendo obras de arte em
ronze e mármore. Além dessa identificação, o ato de tombamento é composto ainda por mais 5 artigos:
rtigo 2º
1
M
re
F
Jo
F
P
d
O
d
W
A
R
M
B
R
b
A – As intervenções a serem realizadas nos espaços das necrópoles deverão ser submetidas à aprovação do
ondephaat, nos seguintes casos: a) modificações nas dependências da capela, ossário, administração, pórtico e
nitários; b) intervenções ao longo do muro de fechamento dos cemitérios; c) cortes de árvores; d) intervenções
xternas nos jazigos, especialmente nas suas esculturas; e) modificações nos traçados das ruas e quadras.
rtigo 3º
C
sa
e
A – Este órgão não deverá ser consultado para sepultamento ou remoção de despojos, exceto se esta ação
plicar na alteração das características do patrimônio edificado.
rtigo 4º
im
A – Fica definida como área envoltória dos cemitérios tombados o polígono determinado pelos eixos das
as da Consolação, Coronel José Eusébio, Mato Grosso e Sergipe que circundam a área das necrópoles.
rtigo 5º
ru
A – Para efeito deste tombamento, ficam estabelecidas as seguintes diretrizes para as intervenções na área
envoltória: Parágrafo único – na calçada que circunda a quadra tombada em que se localizam os três cemitérios,
513
destino, mas nunca com resignação ou sem qualquer preocupação, fosse ela anterior ou
posterior à ocorrência.
De outra parte, e naquilo que pudemos observar pelo desenrolar desse processo na
cidade de São Paulo, o universo das doenças e da morte nos chega carregado de conflitos e
sua história uma constante hierarquização e
Preto Leôncio”. Dessa combinação, aliás, vimos
tulo aplicado a este estudo pode ser considerado como
r que este é um estudo da
vida
interesses dos mais diversos. A morte nunca iguala e, pelo contrário, está sempre a tensionar
com suas diferenças o mundo dos vivos. O cemitério, por sua vez – e literalmente – nunca foi
um território neutro, prevalecendo em
desigualdade, seja entre eles próprios, seja no interior de cada um (em relação aos seus
mortos). Tal conduta – na verdade um claro exercício político-ideológico – resultou, como
demonstrei, numa seleção e escolha das memórias que deveriam ser preservadas. Nesse
sentido, eis que cada vez mais ecoa o “Não ao
o seu último e mais recente lance.
Considerações finais
Tendo em vista a amplitude que nos recorda o tema “Viver” e face às complexidades
diante do “Morrer”, por certo que o tí
bastante ambicioso, uma vez que ele aponta para o desvendar de situações que não possuem
uma resposta uníssona. De qualquer modo, e mesmo correndo vários riscos, optei por mantê-
lo, até porque confio que o recorte efetuado consegue explica
em perspectiva das doenças e da morte na cidade São Paulo do século XIX.
Esboçada essa primeira delimitação, coube selecionar as diferentes e possíveis
cou como bastante viável na
rário daquele que leva em consideração a história das
o caso de dizer que ficamos mais à vontade para tratar da morte do que dos mortos ou
abordagens que se apresentavam no interior desse ainda grande universo. Não obstante o
caminho que escolhi seria possível, por exemplo, uma análise tendo como objeto apenas as
enfermidades, ou tão somente a morte. E tal perspectiva se colo
medida em que distintos tratamentos poderiam ainda ser exercitadas. Expliquemos. A
história do homem diante da morte é um campo que vem sendo explorado com certa
freqüência nos últimos anos, ao cont
sociedades diante do morto. O mesmo ocorre com as doenças, pois a história das
enfermidades, da saúde e da medicina tem alcançado relativo sucesso entre nós, ao contrário
daquela que toma como objeto o próprio doente, sobretudo em períodos mais recuados. Seria
então
não serão permitidas as instalações de anúncios de qualquer natureza, exceto quanto às placas de utilidade pública
514
mais das doenças do que dos doentes na história? Talvez, e sob esse aspecto, poderíamos até
as sim dos
ramente uma definição da abordagem
ez por isso mesmo os discursos que nos são
erferir na condução do estudo e, aí sim,
que enquanto um tema passível de análises históricas, a doença e a morte aqui
vilegiado de conflitos e tensões. Em
da
, pudemos verificar a atuação e a consolidação da medicina acadêmica sem,
o portador da saúde, e isso nas diversas esferas de sua atuação. Mas não
aventar a hipótese de que não é tanto das enfermidades que nos afastamos, m
enfermos; não da morte e sim dos mortos.
Questões instigantes, sem dúvida alguma, e que muitas vezes não se resolvem
facilmente seja pela dificuldade de se estabelecer cla
(algo que nos escapa e se embaralha o tempo todo pela pretensa sutileza das palavras), seja
devido a um problema crucial que se nos apresenta, qual seja, o limite imposto pelas fontes.
Fontes pesadas, amargas no mais das vezes, e talv
mais compreensíveis tratam da morte e não dos mortos, das doenças e não dos doentes; de
outra parte, muitas vezes pela familiaridade, disponibilidade ou facilidade com que são
encontradas, as fontes recolhidas acabam por int
corremos o risco de cair em algumas armadilhas como a de fazer da história da morte e das
doenças a história de uma outra coisa, tangenciando o objeto.
Mas eis
tratadas em seu conjunto – podem ser consideradas como parte de uma trama, integrando e
interagindo com a vida de pessoas num determinado tempo e espaço, incluídas numa rede
social hierarquizada e, em decorrência, como lócus pri
poucas palavras, foram a partir dessas premissas que tentei desenvolver o estudo.
E assim demarcado, o tema a que me propus estudar não poderia ocorrer apartado
época em que foi vivenciado e, nessa condição, necessário se fez inseri-lo num período em
que estavam em jogo diversas experiências que envolviam a elaboração e a constante
recriação de elementos simbólicos visando a explicação dessas fatalidades. Diante de um
longo e intrincado processo que ora unia e ora distanciava diferentes conhecimentos sobre o
mesmo assunto
entretanto, desconsiderar outras experiências presentes no universo das curas populares.
Incluídas na história, essas práticas que se forjaram nas fronteiras das doenças e da morte
conseguiram desvendar parte de um mundo onde nem sempre o conhecimento médico
prevaleceu enquant
obstante outras questões que se fizeram presentes, destaco aqui uma grande preocupação
que esteve subjacente a estas análises, ou seja, a minha estranheza diante de um contexto
bastante exercitado na historiografia e que enfatiza uma certa incúria dos nossos antigos
quando previamente analisadas e aprovadas pelo Condephaat.
515
administradores em relação à saúde, às doenças e, em particular, diante das epidemias e no
que respeita especialmente à prevenção dos males. Na tentativa de contrapor alguns novos
argumentos para esta velha questão, tentei não desqualificar outros procedimentos e
demonstrei que nem sempre a medicina acadêmica deteve o monopólio da saúde e, por isso, a
gar. Eis aqui um olhar
e: a
s populares.
da enquanto
hábitos e costumes
te. Nesse sentido, foi possível desvendar a cidade
tema, a história da
e dela.
s perspectivas.
deles diz respeito a algo
cura das doenças ( e até mesmo sua prevenção, que se quer original, mas que sempre existiu
em diferentes bases como vimos) deveria ser buscada em outro lu
diferenciado que se deve lançar ao passado quando o tema recair na história da saúd
medicina, como visto, é apenas uma parte dela, nunca a sua totalidade. A prevalência de
algumas terapias, por fim, redundou no desvanecer de outras e, principalmente, na
desapropriação de tradições e conhecimentos, notadamente das classe
Em seguida, procedemos a inclusão desse objeto na cidade, aqui toma
construção física num meio geográfico, mas também tendo em vista os
mais salientes de seus moradores e que o meu olhar contemporâneo conseguiu identificar
como prováveis causas de doenças e de mor
pelo viés da fatalidade, fosse ela percebida ou não pelos moradores. Nessa conjuntura, a
revelação de alguns meandros que envolviam as enfermidades e a morte acabaram por
explicitar que, nesse jogo, nem sempre as regras principais eram aquelas que diziam respeito
ao estrito campo da saúde ou, em outras palavras, percebemos que sob seu manto outras
vicissitudes se escondiam, notadamente aquelas que diziam respeito aos espaços que se
demarcaram na cidade durante o século XIX.
Na acertada perspectiva dos autores que já trabalharam com este
morte nos chega como marcada por silêncios, voluntários ou involuntários, mas sempre
comprometedores. E esta é uma verdade que pude constatar, pois realmente as lacunas
existem, graves em determinados momentos, o que nos obriga a uma meticulosa
garimpagem, trabalho este muitas vezes extenuante e nem sempre coroado de êxitos. Mas,
acredito ser esta uma história possível, e tanto que aqui pudemos ver uma part
E se considero “parte” é porque muitas outras análises estão ainda a espera de autores
com outras preocupações, até porque diferentes abordagens podem ser tentadas levando em
consideração outra
De qualquer forma, e não obstante a apropriação que cada leitor poderá fazer, gostaria
de aproveitar essas últimas linhas para mencionar três momentos que considero
particularmente como de interesse neste trabalho. O primeiro
516
bastante pontual (factual até), mas relevante para a história da saúde e da medicina no Brasil.
Refiro-me aqui ao despontar da varíola em São Paulo e sobre a introdução da vacina
jenneriana. Além das diversas outras enfermidades que se fizeram presentes na cidade, as
fontes me indicaram que o pavor em torno das bexigas superava qualquer outro, e isso até as
tano nas décadas de 1870 e 1880. Concordando
er da morte um objeto da história, o fato é que
nseguido para homens e mulheres, livres e escravos, certamente
les, por exemplo – e que me interessam sobremaneira – não puderam aqui se
passado (com todas as suas
uma questão que
re a
numa família onde os
últimas décadas do século XIX. Diante da necessidade de melhor entender os caminhos dessa
doença, recorri a outros estudos e percebi as dúvidas existentes quanto à introdução desse
preservativo no Brasil e, mais ainda, em São Paulo. Nesse sentido, considero a datação desse
momento em terras paulistas como algo de valor, pois dissipa dúvidas e certamente poderá
servir a outros estudiosos do assunto.
O segundo momento refere-se aos cálculos demográficos efetuados e que resultaram
nas tabelas de esperança de vida para o paulis
com Jacques Revel e Jean-Pierre Peter de que apenas os números ou a restituição dos fatos
mórbidos no tempo não são suficientes para faz
nem mesmo esse levantamento sistemático nós possuíamos para São Paulo no período
especificado. E aqui, é claro, abro um parêntesis para o estudo de Maria Luiza Marcílio que
tratou com muita propriedade do tema numa época mais recuada (e por isso mais difícil
ainda). O detalhamento co
poderá subsidiar outras análises e não apenas aquelas que procedi em relação às “idades da
vida”. Dois de
detalhados: o primeiro diz respeito à apreensão das medidas do tempo por parte das pessoas
que tinham uma esperança de vida em torno dos 40 anos. Em outras palavras, tenho especial
preocupação em verificar a expectativa de futuro e a medida do
possíveis implicações) para esses homens que viviam numa sociedade onde a morte se fazia
presente em idades tão prematuras se comparadas com a atualidade. Nesse caso, a diferença
de 30 anos que apontamos na esperança de vida entre nós e aquelas pessoas que viviam no
século XIX poderia, de algum modo, alterar a percepção do tempo? Eis aqui
ainda tenho como embrionária. Ainda com relação ao tempo de vida, algo que me chama
muito a atenção diz respeito à transmissão de conhecimentos entre as gerações, ou sob
educação, poderíamos dizer. Nesse caso, como esse processo ocorria
pais morriam cedo e quase nenhum era o contato das crianças com outros familiares como os
avós? São estes, todavia, temas que dependem ainda de um prévio amadurecimento.
O terceiro aspecto que gostaria de destacar neste estudo diz respeito à tentativa que
517
procedi de incluir na história a morte mais do que silenciada de membros das classes menos
favorecidas. Negros e brancos, livres ou escravos, fossem pobres ou indigentes, também eles
os maiores temores), acredito ter conseguido uma
os mortos
as por
a morte.
ebemos que
)
membros. Muito pelo
que a morte e o morto servem igualmente como instrumentos para o
idos (como o dos Aflitos e o velho cemitério da Penha),
cemitério da Consolação (justo, por sinal), mas sem
ilo que toca especificamente
o nosso passado: o
viveram e morreram na cidade. Apartados na morte assim como tinham sido em vida (até
porque sobre seus cadáveres pesavam
relativa aproximação do meio e das condições em que as fatalidades ocorreram, e isso não
obstante o grave limite imposto pelas fontes. Na continuidade, e já que todos
requerem um sepultamento, necessário se fez verificar quais eram as práticas adotad
esta parcela da população no que tange ao enterro. E foi justamente nesse momento (ou até
considerando em conjunto os itens do último capítulo) que pudemos nos aproximar daquela
abordagem antes citada e que toma como objeto o “homem diante do morto” e não d
E considerando que a história da morte não termina com o fim da vida, posto que
resta ainda um cadáver, um túmulo ou uma cova, bem como o cemitério, perc
esses elementos serão também manipulados, motivos de apropriações diversas, redundando
num processo que fez prevalecer a memória de uns sobre os outros. Diante dos vários
exemplos que citamos, uma conclusão nesse campo é a de que a morte (assim como a vida
não é igual e nem mesmo nesse momento ela serve para igualar seus
contrário, a hierarquização aqui se faz sentir com toda a sua força, resultando no desvanecer e
supressão de determinadas memórias e na preservação de outras. Decerto que aqui nos
referimos ao fato de
exercício da política.
Visto dessa maneira, os nossos cemitérios perdem sua aura de espaços neutros e
ganham outras perspectivas, ou seja, ele deve ser observado enquanto um território de lutas e
conflitos, cheio de lembranças, mas mais repleto ainda de esquecimentos. Alguns deles
simplesmente puderam ser suprim
outros ainda “expulsaram” de seu meio aqueles que não mereceriam mais ali estar (como no
cemitério da Consolação e do Araçá). De fato, um dos últimos lances que assistimos neste
velho jogo foi o ato de tombamento do
qualquer menção ao do Braz.
Ao acompanhar esse processo relativamente recente na cidade de São Paulo,
impossível não deixar de considerar o alerta de Vovelle, seja naqu
aos estudo da morte, seja numa ampliação para o conhecimento de temos d
que sobressai são sempre os registros e as marcas das classes dominantes, e pouco – muito
518
pouco – para os demais. Por suposto que este processo que não termina no século XIX, e daí a
cativos ou,
assa todo este trabalho, ou seja, para além
mos que nem mesmo a morte é o fim de tudo, já
de Machado,
.
entos/Alternativa, 1999.
que vendem os
ilva; Histórias e Tradições da
cartões postais, álbuns de lembranças; S.P.: Studio
7”, Fernando de Albuquerque e
, Paulo Cursino de; “São Paulo de Outrora”, S.P.,
intenção de preservar o rico e belo em detrimento de tantos outros também signifi
indo mais além, daqueles que estão fadados a desaparecer por completo na atualidade: os
corpos dos pobres que hoje seguem para os cemitérios periféricos como os de Vila Formosa na
zona leste da cidade, ou do Jardim São Luiz na zona sul. O processo seletivo de memórias e de
tudo o mais que deve servir de marcas para o futuro continua a sua marcha.
Por fim, gostaria de destacar algo que perp
de seu caráter biológico, a doença e a morte devem ser entendidas enquanto fenômenos
históricos e sociais, como parte de uma intrincada rede de relações e apropriações das mais
diversas. A sua inserção na cidade de São Paulo, especialmente no século XIX, nos relevou
essa posição, pois enquadradas num jogo dinâmico, percebemos que as muitas disputas não
levavam em consideração apenas as regras que estavam estritamente a serviço da saúde. De
fato, e ainda diante desse processo, percebe
que sua história continua.
Crédito das ilustrações:
Fig. 01 – “Testamento em causa mortis”, desenho de José Wasth Rodrigues, reproduzido
Alcântara; Vida e Morte do bandeirante; S.P.: Governo do Estado, Coleção Paulística, vol. XIII, 1978., p. 205
Fig. 02 – “Falecimento de Fernão Dias”, aquarela de José Wasth Rodrigues, reproduzido de Calmon,
Pedro; História do Brasil, vol. II, R.J: Liv. José Olympio Ed., 1959, p. 779.
Fig. 03 – Representação medieval dos “Quatro Temperamentos” ou Humores, reproduzido do sítio
http://usuarios.cultura.com.br/jmrezende/humores.htm
Fig. 04 – Sepultamento de Líbero Badaró: desenho original de Hercules Florence, pintura de A. Norfini,
acervo do Museu Paulista da USP; reproduzido de Martins, Ana Luiza e Barbuy, Heloisa; Arcadas –
Largo de São Francisco, história da Faculdade de Direito da USP; S.P.: Melhoram
Fig. 05 – “Pai Inácio”, original presente na obra de Frederico Carlos Hoehne, “O
ervanários na cidade de São Paulo”, reproduzido de Bruno, Ernani da S
Cidade de São Paulo; 1984, Vol. III, p. 1.171.
Fig. 06 – “Vendedoras de ervas medicinais”, postal da década de 1930, reproduzido de Gerodetti e
Cornejo op. cit., p. 147.
Fig. 07 – “Interior do Mercado”, postal de 1909, reproduzido de Gerodetti, João Emílio e Cornejo,
Carlos; Lembranças de São Paulo – a capital paulista nos
Flash Produções Gráficas, 1999, p. 144.
Fig. 08 – “Velho convalescente”, Debret, Jean Baptiste, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil;, prancha nº 05.
Fig. 09 – Parte do “Mapa da Capital da Província de São Paulo em 187
Jules Martin, reproduzido de “São Paulo Antigo – Mapas da Cidade”, Comissão do IV Centenário.
Excluídos digitalmente deste mapa outras referências urbanas e deixadas somente as igrejas.
Fig. 10 - Planta da Imperial Cidade de São Paulo, desenhada em 1810 pelo Capitão de Engenheiros
Rufino J. Felizardo e Costa. Reproduzido de Moura
Livraria Martins Editora, 1943.
Fig. 11 – “Desenho por idea da cidade de São Paulo”, artista desconhecido, século XVIII. Original na
519
Biblioteca Nacional do R. J., reproduzido de Reis, Nestor Goulart; “Imagens de Vilas e Cidades do
“São Paulo de
ão Augusto de Azevedo. Reproduzido de Lago, Pedro Correa do, “Militão
de G. Gaensly & Lindemann, reproduzido de Toledo, Benedito Lima de,
e”, Comissão do IV Centenário.
de 1860”, R.J., Ed. Capivara, 2001.
Fig. 21 - Foto de Militão A. de Azevedo. Reproduzida de Lago, Pedro Corrêa do; “Militão Augusto de
Azevedo: São Paulo nos anos de 1860”, R.J., Ed. Capivara, 2001.
Metalivros,
Reproduzido de Toledo, Benedito Lima de, “Prestes Maia e as
aulo nos anos de 1860”, R.J., Editora Capivara, 2001.
/04/1867,
ido de “Cadernos de Fotografia Brasileira – São Paulo 450
aia e as origens do urbanismo moderno
“São Paulo de
iana da Silva Prado; reproduzido de Kossoy, Boris; “São Paulo 1900”, S.P.:
Livraria Kosmos, 1988.
Brasil Colonial”, S.P., Edusp/Imprensa Oficial do Estado/Fapesp, 2000.
Fig. 12 - Gravura de Jean-Baptiste Debret. Reproduzido de Moura, Carlos Eugênio Marcondes de (org.);
“Vida Cotidiana em São Paulo no século XIX”, S.P., Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 1998.
Fig. 13 - Reproduzido de Pontes, José Alfredo Vidigal e Mesquita Filho, Ruy;
Piratininga: de pouso de tropas a metrópole”, S.P., OESP e Ed. Terceiro Nomes, 2003.
Fig. 14- Planta da Cidade de São Paulo, Henry B. Joyner, Cia. Cantareira e Esgotos, 1881, “São Paulo
Antigo – Mapas da Cidade”, Comissão do IV Centenário.
Fig. 15 - Foto de Milit
Augusto de Azevedo – São Paulo nos anos de 1860”, R.J., Editora Capivara, 2001.
Fig. 16 - Foto do atelier
“Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno em São Paulo”, S.P., Empresa das Artes, 1996.
Fig. 17 - Foto de autor desconhecido. Reproduzido de “Cadernos de Fotografia Brasileira – São Paulo
450 Anos”, S.P., Instituto Moreira Salles, 2004.
Fig. 18- Planta da Cidade de São Paulo, Henry B. Joyner, Cia. Cantareira e Esgotos, 1881, “São Paulo
Antigo – Mapas da Cidad
Fig. 19 - Foto de Militão Augusto de Azevedo. Reproduzido de Lago, Pedro Correa do, “Militão
Augusto de Azevedo: São Paulo nos anos
Fig. 20 - Pintura de Jean-Baptiste Debret. Coleção João da Cruz Vicente de Azevedo, reproduzido de
Lago, Pedro Corrêa do, “Iconografia Paulistana do século XIX”.
Fig. 22 - Foto de Militão A. de Azevedo. Reproduzido de Lago, Pedro Corrêa do; “Militão Augusto de
Azevedo: São Paulo nos anos de 1860”, R.J., Ed. Capivara, 2001.
Fig. 23 - Quadro de Benedito Calixto, “Inundação da Várzea do Carmo”, original no Museu Paulista da
U.S.P., reproduzido de Lago, Pedro Corrêa do, “Iconografia Paulistana do século XIX”, S.P.:
1998
Fig. 24 – Foto de Guilherme Gaensly.
origens do urbanismo moderno em São Paulo”, S.P., Empresa das Artes, 1996.
Fig. 25 – “Mapa da Capital da Província de São Paulo em 1877”, Fernando de Albuquerque e Jules
Martin, reproduzido de “São Paulo Antigo – Mapas da Cidade”, Comissão do IV Centenário.
Fig. 26 - Foto de Militão Augusto de Azevedo. Reproduzido de Lago
, Pedro Correa do, “Militão
Augusto de Azevedo – São P
Fig. 27 – Desenho de Ângelo Agostini, reproduzido do jornal “O Cabrião”, ano I, nº 27 de 07
p. 213. Edição fac-similar, S.P.: Editora ad Unesp e Imprensa Oficial, 2000.
Fig. 28 – Foto de Marc Ferrez, Reproduz
Anos”, S.P., Instituto Moreira Salles, 2004.
Fig. 29 - Reproduzido de Toledo, Benedito Lima de, “Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno
em São Paulo”, S.P., Empresa das Artes, 1996.
Fig. 30 - Reproduzido de Toledo, Benedito Lima de, “Prestes M
em São Paulo”, S.P., Empresa das Artes, 1996.
Fig. 31 - Foto de Militão Augusto de Azevedo. Reproduzido de Lago, Pedro Correa do, “Militão
Augusto de Azevedo – São Paulo nos anos de 1860”, R.J., Editora Capivara, 2001.
Fig. 32 – Reproduzido de Pontes, José Alfredo Vidigal e Mesquita Filho, Ruy; “São Paulo de
Piratininga: de pouso de tropas a metrópole”, S.P., OESP e Ed. Terceiro Nomes, 2003.
Fig. 33 - Reproduzido de Pontes, José Alfredo Vidigal e Mesquita Filho, Ruy;
Piratininga: de pouso de tropas a metrópole”, S.P., OESP e Ed. Terceiro Nomes, 2003.
Fig. 34 – Palacete de D. Verid
520
Fig. 35 – Dr. Orencio Vidigal; reproduzido do sítio www.etscience.com.br/funerarias.html
Fig. 36 – Antiga Rua do Quartel em 1860, foto de Militão A. de Azevedo, reproduzido de Lago, Pedro
Correa do, “Militão Augusto de Azevedo – São Paulo nos anos de 1860”, R.J., Editora Capivara, 2001.
Figs. 37, 38 e 39 – Reproduzido de Lago, Pedro Corrêa do, “Iconografia Paulistana do século XIX”, S.P.:
Metalivros, 1998.
Fig. 40 – “Bonde de Sant´Anna 1900”, reproduzido de Campos, Candido Malta et. al. (org.); “São Paulo
Metrópole em trânsito”, S.P.: Prefeitura de São Paulo e Editora SENAC, 2004.
Fig. 41 – Crianças na antiga Travessa de São Francisco em 1910: reproduzido de Pontes, José Alfredo
Vidigal e Mesquita Filho, Ruy (org.); São Paulo de Piratininga: de pouso de tropas a metrópole; S.P.: OESP e
rasil de Marc Ferrez; S.P.: Instituto
Pedro IV”, gravura de Nicolas-Eustache Maurin, reproduzido do sítio
em gentilmente cedida pelo IBGE, representação de São Paulo.
o Soler; reproduzido do álbum A Capital Paulista, S.P.: ed. da
e de manutenção das locomotivas; reproduzido de Donato, Hernani op. cit., p. 53
ani de L. Stefani & C.; álbum A Capital Paulista, op. cit., p. 174
72, Prancha nº 7.
ig. 52 – Fotografia de Marc Ferrez, reproduzido de O Brasil de Marc Ferrez; S.P.: Instituto Moreira Salles, 2005
ig. 53 – Obra de Victor Frond, reproduzido de reproduzido de Kossoy, Boris e Carneiro, Maria Luiza
ucci;
O olhar europeu – o negro na iconografia brasileira do século XIX; S.P.: Edusp. 1994.
Fig. 54 – Fotografia de José Christiano de Freitas Jr. & Lissovsky, reproduzido de Góes e Florentino, In:
el Priore (2006) p. 187.
Fotografia de José Christiano de Freitas Jr., reproduzido de Kossoy e Carneiro (1994), op. cit.
ig. 56 – Desenho de Ângelo Agostini, reproduzido do jornal “O Cabrião”, ano I, nº 03, 15/10/1866, p.
0. Edição fac-similar, S.P.: Editora ad Unesp e Imprensa Oficial, 2000.
Fig. 57 – Acervo da Seção de Obras Raras da Biblioteca Mário de Andrade.
Fig. 58 – Detalhe da “Planta da Cidade de São Paulo” de 1913 da Companhia Lithographica Hartmann-
eichenbach; acervo do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís.
Detalhe da “Planta da Cidade de São Paulo” de 1924; acervo do Arquivo Histórico Municipal
ashington Luís.
Fig. 60 e 61 – Fotos nºs. 16 e 43, respectivamente, do “Álbum Comparativo da cidade de São Paulo (1887-
1894-1919)”, acervo da Seção de Obras Raras da Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Títulos das
tos encontrados no original: “Manifestação à memória de Sadi Carnot, préstito dirigindo-se ao
o – 1894” e “Inauguração do monumento a Sadi Carnot no cemitério da
olição do antigo edifício da Faculdade de Direito de São Paulo, foto do
Escritório Severo & Vilares. Reproduzido de Martins, Ana Luiza e Barbuy, Heloisa; Arcadas – Largo de
Ed. Terceiro Nome, 2003, p. 86.
Fig. 42 – “Jornaleiros”, foto de Marc Ferrez, reproduzido de O B
Moreira Salles, 2005, p. 225
Fig. 43 – “Morte de D.
www.arqunet.pt/portal/imagemsemanal/setembro0303.html
Fig. 44 – Censo de 1872, Paróquia da Sé; imag
Fig. 45 – D. Pedro II coroado (1841), original na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Reproduzido da
revista “Nossa História”, ano 3, nº 26, dezembro de 2005, p. 16; Ed. Vera Cruz.
Fig. 46 – Trabalhadores da mina de cal Olhos d´Água, reproduzido de Donato, Hernani; 100 anso da
Melhoramentos: 1890-1990; S.P.:, Melhoramentos, p. 19
Fig. 47 – Oficina Soler, de Francisc
Sociedade Editora Independência, S. Férez & C., 1922, p. 177
Fig. 48 – Equip
Fig. 49 – Trabalhadores na indústria de papel Melhoramentos, reproduzido de Donato, Hernani op. cit., p. 21.
Fig. 50 – Pastifício Stef
Fig. 51 - “O jantar no Brasil”. Aquarela de Debret, Jean Baptiste Debret; Viagem pitoresca e histórica ao
Brasil, vol. I, p. 1
F
F
T
D
Fig. 55 –
F
2
R
Fig. 59 –
W
fo
cemitério da Consolaçã
Consolação – 1894”
Fig. 62 – Concepção de Reinaldo Ferreira a partir de um original de Ângelo Agostini publicado no
jornal “Diabocoxo”, ed. fac-similar, S.P.: Edusp, 2005, p. 07.
Fig. 63 – Aspecto da dem
521
São Francisco, história da Faculdade de Direito da USP; S.P.: Melhoramentos/Alternativa, 1999., p. 81.
Fig. 64 e 65 – Túmulo de Líbero Badaró no cemitério da Consolação; reproduzido de Silva, Nicolao
Duarte; “Líbero Badaró – contribuição para sua biografia”; R.I.H.G.S.P., Vol. XXVIII, 1930, p. 465 e 493.
Fig. 66 – Detalhe da “Planta da Cidade de São Paulo” de 1924; acervo do Arquivo Histórico Municipal
Washington Luís.
Fig. 67 - Projeto de loteamento da “Villa Guilherme Rudge”, na então freguesia da Penha de França;
do
Município de São Paulo”; 100 Anos de Serviço Funerário; Prefeitura do Município de São Paulo, 1977, p. 09 e 13.
de Obras Raras da Biblioteca
.: Editora ad Unesp e Imprensa Oficial, 2000.
lo “Washington Luís”
Arquivo Histórico Municipal, Plantas Avulsas, classificação “X.D: loteamentos”, planta X.D.8-B.
Fig. 68 - Detalhe da “Planta da Cidade de São Paulo” de 1905; acervo do Arquivo Histórico Municipal
Washington Luís.
Fig. 69 e 70 – Carros funerários da empresa Rodovalho Jr., imagens reproduzidas de “Serviço Funerário
Fig. 71 – Cemitério da Consolação em 1898. Original no acervo da Seção
Mário de Andrade.
Fig. 72 – Detalhe do Mapa Oficial da Cidade de 1855, acervo do Arquivo Histórico Municipal.
Fig. 73 – Desenho de Ângelo Agostini, reproduzido do jornal “O Cabrião”, ano I, nº 06, 04/11/1866,
p.48. Edição fac-similar, S.P
Fig. 74 – Detalhes dos Mapas da Cidade de 1895 e 1925, Acervo do Arquivo Histórico Municipal.
Fontes:
Arquivo Histórico Municipal de São Pau
Documentos manuscritos
Atas da Câmara Municipal de São Paulo:
Fundo CMSP
/INTDM, Série ATAS
Vol. 0115, Cód. A.4.3 –1893
Vol. 0116, Cód. A.4.4 –1893 a 1894
Vol. 0121, Cód. A.4.9 –1896 a 1897
Vol. 0122, Cód. A.4.10 – 1897
Vol. 0123, Cód. A.4.11 – 1897 a 1898
Vol. 0124, Cód. A.4.12 – 1898 a 1899
A.4.15 –1900
Vol. 05–1804 a 1806
Vol. 06–1807
Vol. 16–1821
Vols. 17/18–1822
ls. 23/24–1826
Vols. 32 a 34–1830
Vols. 35 a 40–1831
Vols. 41 a 47–1832
Vols. 48 a 55–1833
Vols. 71 a 75–1836
Vol. 0117, Cód. A.4.5 –1894
Vol. 0118, Cód. A.4.6 –1894 a 1895
Vol. 0119, Cód. A.4.7 –1895 a 1896
Vol. 0125, Cód. A.4.13 – 1899
Vol. 0126, Cód. A.4.14 – 1899 a 1900
Vol. 0127, Cód.
Vol. 0120, Cód. A.4.8 –1896
Vol. 0128, Cód. A.4.16 –1900 a 1901
Série (Coleção) “Papéis Avulsos”: Fundo CMSP/INTM/PMSP
Vol. 13–1816 a 1817
Vol. 27 – 1828
Vol. 03–1800 a 1801
Vol. 04–1802 a 1803
Vol. 14–1818 a 1819
Vol. 15–1820
Vols. 28 a 31–1829
Vol. 07–1808
Vol. 19 – 1823
Vol. 08–1809
Vol. 09–1810 a 1811
Vol. 10–1812
Vol. 20 – 1824
Vols. 21/22–1825
Vo
Vols. 56 a 62–1834
Vols. 63 a 70–1835
Vol. 11–1813 a 1814
Vol. 25 – 1827
Vols. 76 a 80–1837
Vol. 12–1815
Vol. 26 – 1827 a 1831
522
Vols. 81 a 88–1838
Vols. 181 a 187–1859
12 a 217–1865
Vols. 348 a 359–1880
–1881
–1882
Vols. 461 a 477–1886
Vols. 506 a 536–1888
1
2
3
. 765 a 830–1895
. 831 a 976–1896
iversos”
lação: Vols. 01 a 22 – período de 15/08/1858 a 31/12/1900
íodo de 10/04/1896 a 28/10/1916
pressos
Vols. 89 a 94–1839
Vols. 95 a 99–1840
Vols. 188 a 192–1860
Vols. 193 a 197–1861
Vols. 360 a 371
Vols. 372 a 391
Vols. 100 a 106–1841
Vols. 198 a 204–1862
Vols. 392 a 417–1883
Vols. 107 a 112–1842
Vols. 113 a 118–184
Vols. 119 a 124–1844
Vols. 205 a 209–1863
Vols. 210 a 211–1864
Vols. 2
Vols. 418 a 435–1884
Vols. 436 a 460–1885
Vols. 125 a 128–1845
Vols. 129 a 132–1846
Vols. 218 a 223–1866
Vols. 224 a 227–1867
Vols. 478 a 505–1887
Vols. 133 a 136–1847
Vols. 137 a 141–1848
Vols. 228 a 230–1868
Vols. 231 a 239–1869
Vols. 537 a 569–1889
Vols. 570 a 606–1890
Vols. 142 a 147–1849
Vols. 240 a 245–1870
Vols. 607 a 632–189
Vols. 148 a 152–1850
Vols. 153 a 157–1851
Vols. 246 a 257–1871
Vols. 258 a 261–1872
Vols. 633 a 666–189
Vols. 667 a 706–189
Vols. 158 a 161–1852
Vols. 262 a 273–1873
Vols. 707 a 764–1894
Vols. 162 a 164–1853
Vols. 165 a 168–1854
Vols. 274 a 286–1874
Vols. 287 a 297–1875
Vols
Vols
Vols. 169 a 174–1855
Vol. 175 – 1856
Vols. 298 a 310–1876
Vols. 311 a 325–1877
Vols. 977 a 1.071–1897
Vols. 1.072 a 1.181–1898
Vols. 176 a 177–1857
Vols. 178 a 180–1858
Vols. 326 a 337–1878
Vols. 338 a 347–1879
Vols. 1.182 a 1.336–1899
Vols. 1.337 a 1.496–1900
Posturas Municipais: Fundo CMSP/INTM/PMSP, Série “Assuntos d
Vol. 309, CM.1.38 – período de 1719 a 1753
Vol. 310, CM.1.39 – período de 1830 a 1873
Vol. 311, CM.1.40 – período de 1862
Livros de Inumações (sepultamentos): Fundo “Serviço Funerário Municipal”
Cemitério do Araçá: Vols. 33 a 37 – período de 04/07/1897 a 31/12/1900
Cemitério do Brás: Vols. 33 a 37 – período de 06/01/1893 a 31/12/1900
Cemitério da Conso
Cemitério da Lapa: Vol. 12 – período de 01/11/1918 a 08/03/1922
Cemitério da Penha: Vols. 17
a 19 – per
Documentos im
, do então "Departamento de Cultura". Foram utilizados os seguintes volumes:
IX 1836
XXVIII 1850 a 1851
Vol. XLIII 1857
. XLVI 1860
Vol. LII 1866
Vol. LVII 1871
Vol. LX 1874
Atas da Câmara Municipal de São Paulo: Documentação transcrita e publicada pela Prefeitura
do Município de São Paulo, inicialmente sob a responsabilidade do "Arquivo Municipal" e, a partir
da década de 1930
Vol. XX 1797 a 1809
Vol. XXXIV 1842 a 1843
Vol. XLVIII 1862
Vol. XXI 1809 a 1815
Vol. XXII 1815 a 1822
Vol. XXXV 1844 a 1845
Vol. XXXVI 1846 a 1847
Vol. XLIX 1863
Vol. L 1864
Vol. XXIII 1822 a 1826
Vol. XXIV 1826 a 1829
Vol. XXXVII 1848 a 1849
Vol. X
Vol. LI 1865
Vol. XXV 1829 a 1830
Vol. XXVI 1831 a 1832
Vol. XXVII 1832 a 1834
Vol. XXXIX 1852
Vol. XL 1853 a 1854
Vol. XLI 1855
Vol. LIII 1867
Vol. LIV 1868
Vol. LV 1869
Vol. XXVIII 1835
Vol. XX
Vol. XLII 1856
Vol. LVI 1870
Vol. XXX 1837
Vol. XXXI 1838
Vol. XXXII 1839
Vol. XLIV 1858
Vol. XLV 1859
Vol
Vol. LVIII 1872
Vol. LIX 1873
Vol. XXXIII 1840 a 1841
Vol. XLVII 1861
Vol. LXI 1875
523
Vol. LXII 1876
Vol. LXIII 1877
Vol. LXIV 1878
Vol. LXV 1879
Vol. LXVI 1880
Vol. LXVII 1881
Vol. LXVIII 1882
Vol. LXIX 1883
Vol. LXX 1884
Vol. LXXIX 1893
Vol. s/nº 1896
Vol. s/ nº 1899
Vol. s/nº 1900
Vol. s/nº 1901
Vol. LXXI 1885
Vol. LXXII 1886
Vol. LXXIII 1887
Vol. LXXIV 1888
Vol. LXXV 1889
Vol. LXXVI 1890
Vol. LXXVII 1891
Vol. LXXVIII 1892
Vol. s/nº 1902
Vol. s/nº 1903
524
Annaes da Câmara Municipal de São Paulo - Documentação transcrita e publicada pela
Prefeitura do Município e pela Câmara Municipal de São Paulo. Utilizados os seguintes exemplares:
Vol. s/nº- ano de 1904
Vol. s/nº- ano de 1907
ita e publicada pela
uivo Municipal" e, a
uintes volumes:
a 1851
Vol. XXXVII 1854 a 1856
Vol. XXXVIII 1857 a 1863
feitos: - Documentação transcrita e publicada pela Prefeitura do
ra Municipal de São Paulo. Foram utilizados os seguintes volumes:
ário Ramalho da Silva publicado em 1894
publicado em 1895
José Roberto Leite Penteado publicado em 1897
publicado em 1897
897 - Int. de Finanças, Antonio Proost Rodovalho publicado em 1898
Int. de Obras, Dr. Pedro Augusto Gomes Cardim publicado em 1898
898 - Int. de Polícia e Hygiene, Dr. João Álvares de Siq. Bueno publicado em 1899
1898 - Int. de Finanças, Antonio Proost Rodovalho publicado em 1899
1899 - Prefeito Dr. Antonio da Silva Prado publicado em 1900
900 - Idem publicado em 1901
1901 - Idem publicado em 1902
902 - Idem publicado em 1903
903 - Idem publicado em 1904
904 - Idem publicado em 1905
1905 - Idem publicado em 1906
1906 - Idem publicado em 1907
1907 - Idem publicado em 1908
1908 - Idem publicado em 1909
1909 - Idem publicado em 1910
1910 - Prefeito Raymundo Duprat publicado em 1911
Legislação:
Ordenações Filipinas, Livro IV, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985
Vol. s/nº- ano de 1905
Vol. s/nº- ano de 1906
Vol. s/nº- ano de 1908
Vol. s/nº- ano de 1909
Vol. s/nº- ano de 1910
Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo
- Documentação transcr
Prefeitura do Município de São Paulo, inicialmente sob a responsabilidade do "Arq
partir da década de 1930, do então "Departamento de Cultura". Utilizados os seg
Vol. XII 1796 a 1803 Vol. XXV 1835
Vol. XIII 1803 a 1808 Vol. XXVI 1836
Vol. XIV 1808 a 1813 Vol. XXVII 1837
Vol. XV 1814 a 1819 Vol. XXVIII 1838
Vol. XVI 1820 a 1822 Vol. XXIX 1839 a 1840
Vol.XVII 1822 a 1824 Vol. XXX 1841
Vol. XVIII 1824 a 1826 Vol. XXXI 1842
Vol. XIX 1826 a 1828 Vol. XXXII 1843
Vol. XX 1829 a 1830 Vol. XXXIII 1844 a 1845
Vol. XXI 1830 a 1831 Vol. XXXIV 1846
Vol. XXII 1832 Vol. XXXV 1852
Vol. XXIII 1833 Vol. XXXVI 1853
Vol. XXIV 1834
Relatório dos Intendentes e Pre
Município e pela Câma
1893 - Intendente Ces
1894 - Idem
1896 - Int. de Polícia e Hygiene, Dr.
1896 - Int. de Obras, Dr. Firmiano de Novaes Pinto
1
1897 -
1
1
1
1
1
525
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“Correio Paulistano” 1855-1900.
“Diário Popular” 1890-1910
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Livros de Registros de Casamentos da Paróquia do Braz: 1889 a 1898 (01 volume)
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