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que não descansasse, que fosse andando até à colina, onde tinha de ser
crucificado... Então uma voz anunciou-me do céu que eu andaria sempre,
continuamente, até o fim dos tempos. Tal é a minha culpa; não tive piedade para
com aquele que ia morrer. Não sei mesmo como isto foi. Os fariseus diziam que o
filho de Maria vinha destruir a lei, e que era preciso matá-lo; eu, pobre ignorante,
quis realçar o meu zelo e daí a ação daquele dia. Que de vezes vi isto mesmo,
depois, atravessando os tempos e as cidades! Onde quer que o zelo penetrou numa
alma subalterna, fez-se cruel ou ridículo. Foi a minha culpa irremissível.
Prometeu. — Grave culpa, em verdade, mas a pena foi benévola. Os outros
homens leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Que sabe um capítulo de
outro capítulo? Nada; mas o que os leu a todos, liga-os e conclui. Há páginas
melancólicas? Há outras joviais e felizes. À convulsão trágica precede a do riso, a
vida brota da morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamais abandoná-
lo inteiramente; é assim que tudo se concerta e restitui. Tu viste isso, não dez vezes,
não mil vezes, mas todas as vezes; viste a magnificência da terra curando a aflição
da alma, e a alegria da alma suprindo à desolação das cousas; dança alternada da
natureza, que dá a mão esquerda a Jó e a direita a Sardanapalo.
Ahasverus. — Que sabes tu da minha vida? Nada; ignoras a vida humana.
Prometeu. — Ignoro a vida humana? Deixa-me rir! Eia, homem perpétuo, explica-te.
Conta-me tudo; saíste de Jerusalém...
Ahasverus. — Saí de Jerusalém. Comecei a peregrinação dos tempos. Ia a toda
parte, qualquer que fosse a raça, o culto ou a língua; sóis e neves, povos bárbaros e
cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem aí respirei eu. Nunca
mais trabalhei. Trabalho é refúgio, e não tive esse refúgio. Cada manhã achava
comigo a moeda do dia... Vede; cá está a última. Ide, que já não sois precisa (atira a
moeda ao longe). Não trabalhava, andava apenas, sempre, sempre, sempre, um dia
e outro dia, um ano e outro ano, e todos os anos, e todos os séculos. A eterna
justiça soube o que fez: somou a eternidade com a ociosidade. As gerações
legavam-me umas às outras. As línguas que morriam ficavam com o meu nome
embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo; os heróis
dissipavam-se em mitos, na penumbra, ao longe; e a história ia caindo aos pedaços,
não lhe ficando mais que duas ou três feições vagas e remotas. E eu via-as de um
modo e de outro modo. Falaste em capítulo? Os que se foram, à nascença dos
impérios, levaram a impressão da perpetuidade deles; os que expiraram quando eles
decaíam, enterraram-se com a esperança da recomposição; mas sabes tu o que é
ver as mesmas cousas, sem parar, a mesma alternativa de prosperidade e
desolação, desolação e prosperidade, eternas exéquias e eternas aleluias, auroras
sobre auroras, ocasos sobre ocasos?
Prometeu. — Mas não padeceste, creio; é alguma cousa não padecer nada.
Ahasverus. — Sim, mas vi padecer os outros homens, e para o fim o espetáculo da
alegria dava-me a mesma sensação que os discursos de um doido. Fatalidades do
sangue e da carne, conflitos sem fim, tudo vi passar a meus olhos, a ponto que a
noite me fez perder o gosto ao dia, e acabo não distinguindo as flores das urzes.
Tudo se me confunde na retina enfarada.
Prometeu. — Pessoalmente não te doeu nada; e eu que padeci por tempos
inúmeros o efeito da cólera divina?
Ahasverus. — Tu?
Prometeu. — Prometeu é o meu nome.
Ahasverus. — Tu Prometeu?