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SUSANA MUSZKAT
Violência e masculinidade: uma
contribuição psicanalítica aos estudos
das relações de gênero
Dissertação apresentada no Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo
como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Social
Orientador: Prof. Dr. Nelson da Silva
Júnior.
v. 1
São Paulo
2006
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Muszkat, Susana.
Violência e masculinidade: uma contribuição psicanalítica aos
estudos das relações de gênero / Susana Muszkat; orientador Nelson da
Silva Júnior. --São Paulo, 2006.
207 p.
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Social) – Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo.
1. Violência 2. Gênero 3. Masculinidade 4. Construtivismo 5.
Psicanálise I. Título.
HM291
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Susana Muszkat
Violência e masculinidade: uma contribuição psicanalítica aos estudos das relações de
gênero.
Dissertação apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Psicologia
Área de Concentração: Psicologia Social.
Aprovado em:
Banca Examinadora.
Prof. Dr.: ________________________________________________
Instituição: ______________Assinatura: _______________________
Prof. Dr.: ________________________________________________
Instituição: ______________Assinatura: _______________________
Prof. Dr.: ________________________________________________
Instituição: ______________Assinatura: _______________________
AGRADECIMENTOS
Agradeço
Ao meu marido, Braulio e minhas filhas Alice, Adriana e Fernanda, pela importância
fundamental na minha vida, pela tolerância às horas passadas ao computador, pelo incentivo e
amor.
Aos meus pais, Rubens e Malvina e meus irmãos Eduardo e Debora por contribuírem com um
clima permanente de estímulos e desafios.
Ao meu orientador, Nelson da Silva Junior, pelo incansável apoio em todas as horas, pelas
inúmeras contribuições ao meu trabalho e por criar e manter um grupo de colegas sempre
participantes e colaboradores.
Aos professores e colegas que tive nos cursos do pós do IPUSP pela rica troca de idéias e às
secretárias Maria Cecília Rodrigues Freitas e Marinalva Almeida Santos Gil, sempre dispostas
a ajudar.
Aos meus colegas de grupo de orientação, Lívia Godinho Nery Gomes, Renata Udler
Cromberg, Daniel Rodrigues Lírio, Gláucia Faria da Silva, Clarissa Metzger e Flávia Blay
Levisky, pelas ricas discussões e apoio e, em especial, agradeço a Marcelo Gustavo Aguilar
Calegare pelas imprescindíveis ajudas técnicas e pelos artigos que me indicou, de total
relevância para este trabalho.
À Maria Coleta Oliveira, Malvina Muszkat, Sandra Unbehaum, , Rosemeire Brito e Samantha
Neves, colegas da pesquisa Nepo/Unicamp e PMFC, pelas valiosas discussões e horas de
trabalho conjunto que muito contribuíram para a elaboração das minhas idéias nesta
dissertação e no trabalho institucional de maneira geral.
Aos professores de minha banca de qualificação, Belinda Mandelbaum e João Alberto
Carvalho pela disponibilidade e cuidado na leitura, pelas contribuições com seus comentários
e por partilharem suas teses comigo, fonte de muita inspiração.
Aos meus amigos Tomi Borger e Gabi Feldman pela ajuda nas horas de aperto com o
computador e pelo apoio moral.
Aos meus queridos amigos e amigas, de cá e de lá, sem os quais a vida não teria tanta graça.
A todos aqueles da equipe da PMFC que me auxiliaram ou contribuíram de alguma forma
com meu trabalho em todos estes anos.
Aos muitos e diferentes homens que participaram dos grupos que coordenei com os quais
tanto aprendi.
RESUMO
MUSZKAT, S. Violência e masculinidade: uma contribuição psicanalítica aos estudos
das relações de gênero. 2006. 207f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
Este trabalho visa enfocar o tema da violência familiar por dois vértices: o primeiro
questiona a adoção de uma lógica simples e maniqueísta com a qual as políticas públicas
habitualmente enfrentam essa questão, atribuindo valores positivos e negativos à complexa
dinâmica das relações conjugais, de modo a polarizar a questão da violência em vítimas e
agressores, de forma rígida. Trabalhamos com a hipótese de que os efeitos destas políticas
tendem a cristalizar e perpetuar aquilo mesmo que pretendem combater.
O segundo vértice pretende explicitar qual o lugar destinado, ou “imposto
simbolicamente”, aos homens, procurando identificar quais os determinantes culturais,
sociais e psicológicos organizadores da subjetividade masculina, visando a compreender
como os papéis de gênero e as relações resultantes destes são distribuídas, transmitidas e
perpetuadas por esses mesmos gêneros.
Para tanto, esta investigação usa do arcabouço teórico psicanalítico para cotejá-lo com
estudos das relações de gênero desenvolvidos nas Ciências Sociais e na Antropologia, com o
intuito de ampliar a compreensão do modo de transmissão e perpetuação das relações
violentas.
Palavras-chave: Violência; Gênero; Masculinidade; Construtivismo; Psicanálise.
.
ABSTRACT
MUSZKAT, S. Masculinity and violence: a psychoanalytic contribution to the studies of
gender relations. 2007. 204p. Dissertation (Masters) – Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
The objective of this dissertation is to focus on the theme of gender violence under
two perspectives: the first one questions a non-complex and dualistic logic commonly adopted
by the public policies when dealing with violence practiced in intimate partner relationships,
attributing positive and negative values to the complex couple relationship dynamics, hence,
polarizing the understanding or such problematic giving it a rigid victim/ perpetrator form.
Our hypothesis is that the effects of such kind of policies tend to crystallize and perpetuate
that which they intend to eliminate.
The second perspective aims to explicit a place, ‘imposed symbolically’ on men, with
the objective of identifying the cultural, social and psychological factors which can be
determining organizers of the male subjectivity, so as to facilitate the understanding of how
gender roles and relationships based on such roles are distributed and perpetuated amongst the
genders.
In order to study such issues we will make use of the psychoanalytical theory and side
it with the most recent studies developed by the Social Sciences and Anthropology, in order to
try to offer tools to the comprehension of how these violent behavioral patterns are
transmitted and perpetuated.
Key-Words: Violence; Gender; Masculinity; Constructivism; Psychoanalysis.
SUMÁRIO
Introdução...................................................................................................................................8
1. Por que falar de homens?..............................................................................................16
2. O campo construcionista e a violência..........................................................................37
2.1. De que violências falamos?.................................................................................38
2.2. O construcionismo social....................................................................................44
2.3. Gênero, sexo e sexualidade nos estudos de gênero.............................................54
2.4. Identidade sexual e identidade de gênero...........................................................63
2.5. A cultura na definição de padrões de identidade................................................68
3. Material e Métodos.......................................................................................................72
3.1 Descrição da amostra.......................................................................................72
3.1.1 O funcionamento do grupo.............................................................74
3.2 Coleta dos dados..............................................................................................80
3.3 Metodologia....................................................................................................82
3.4 Aspectos éticos................................................................................................86
3.5 Quatro sessões dos grupos de reflexão masculina...........................................86
3.5.1 Grupo de 02.04.2004...................................................................... 86
3.5.2 Grupo de 16.04.2004.....................................................................102
3.5.3 Grupo de 23.04.2004.....................................................................115
3.5.4 Grupo de 30.04.2004.....................................................................132
3.6 Comentários...................................................................................................145
4. O universo masculino sob distintas óticas..................................................................148
4.1 Os autores........................................................................................................149
4.2 De quais homens falamos?..............................................................................155
4.3 Contribuições psicanalíticas............................................................................160
4.3.1 Identidade e gênero.............................................................................162
4.3.2 O princípio do prazer e a violência de gênero....................................167
4.3.3 O narcisismo e o ideal do ego: a cultura na constituição
da subjetividade .................................................................................170
4.3.4 Violência e civilização ......................................................................174
4.3.5 O desamparo, o mundo contemporâneo e a sociedade
brasileira ........................................................................................182
4.3.6 O sadismo e a violência de gênero.................................................... 184
4.4 Afinal...por que os grupos?............................................................................186
Referências Bibliográficas................................................................................................197
Anexo................................................................................................................................205
8
INTRODUÇÃO
Este projeto tem como seu ponto de partida o trabalho que vem sendo desenvolvido
há 12 anos na Organização Não Governamental Pró- Mulher, Família e Cidadania, cujo alvo
principal é a atuação junto às famílias de baixa renda do município de São Paulo que estão
vivendo em situação de violência, com o intuito de atenuar e prevenir as conseqüências
perniciosas deste tipo de relacionamento.
A violência praticada na família é normalmente denominada pelas políticas públicas
como violência doméstica, entendida como um tipo de ato praticado principalmente contra
mulheres e/ou seus filhos, por seus companheiros e/ou pais respectivamente
1
. Como
resultado deste tipo de compreensão, verifica-se uma predominância quase absoluta de
programas sociais voltados exclusivamente à proteção de mulheres, crianças e adolescentes,
evidenciando uma perspectiva polarizada onde a situação define-se por lados bem definidos
de vítimas e agressores.
Levantamentos estatísticos (de janeiro a julho de 2002) de registros de violência nas
Delegacias da Mulher do Estado de São Paulo revelam um contingente surpreendente de
uma média de 20.000 mulheres maiores de idade e 2.000 mulheres menores vítimas de
violência/mês. Ainda assim, as estatísticas são precárias quando se procura obter um real
quadro da situação, uma vez que os registros efetuados são em número bastante inferior à
verdadeira ocorrência destes atos. Esses dados falam por si e denunciam não só a
importância de programas voltados a esta questão quanto revelam a pouca eficácia dos já
1
Em SAFFIOTI, H. Violência Doméstica: questão de polícia e da sociedade. In: CORRÊA, Mariza (org.)
Gênero e Cidadania. Campinas: ed. Pagú; Núcleo de Estudos de Gênero-Unicamp, 2001. pág. 59-60, a autora
distingue de forma geográfica os termos violência doméstica e violência familiar, sendo a primeira a que se dá
no âmbito doméstico e não exclusivamente referente aos membros de uma mesma família, uma vez que
agregados não consangüíneos podem coabitar num mesmo local, e a segunda, aquela que se dá contra membros
de uma mesma família, não sendo necessariamente dentro do ambiente doméstico.
9
existentes. O caráter naturalizado da violência, evidenciado não só na experiência prática
com a população que atendemos na PMFC, como pelos boletins de ocorrência das DDMs,
deve-se principalmente a rígidas crenças calcadas numa ideologia hegemônica masculina,
compartilhada tanto por homens como por mulheres, que os aprisionam em papéis pré-
determinados e inflexíveis.
Ainda como resultado do caráter de naturalidade, muitas modalidades de violência
nem mesmo são reconhecidas como tal, uma vez que simplesmente reproduzem padrões de
relacionamento conjugal das famílias de origem. Alvim (2003), em sua dissertação de
mestrado, corrobora esta idéia, chamando de ‘invisíveis’ este tipo de violência naturalizada e
afirmando que, além disto, dados estatísticos comprovam que desde 1980 as mortes
violentas constituem o segundo maior índice de óbitos de homens jovens no Brasil, dado
verificado também por estudos da Organização Mundial de Saúde em seu relatório anual
(2002). Os homens são tanto os principais agentes quanto as principais vítimas de atos
violentos. É, portanto, um dado curioso que, no Brasil, programas de ações voltados aos
homens, ou que os incluam, sejam tão escassos (no Brasil há apenas cerca de 5 serviços
conhecidos, incluindo-se a PMFC), e que a questão da violência que se dá no âmbito familiar
tenha como viés principal a exclusão dos homens, sendo estes tratados como vilões que
devem ser exclusivamente punidos e isolados. Alvim (2003) argumenta ainda que, além do
pouco que se tem feito em nível de políticas públicas, muito pouco tem sido feito no âmbito
acadêmico, a fim de interferir com ou alterar tais padrões.
O tema da violência contra a mulher tem sido foco de muitos estudos e não há pouca
literatura sobre o assunto. Contudo, como ressaltam Gregori (1993; 2003) e Alvim (2003),
estes têm mantido um viés maniqueísta ao privilegiar uma tendência de entender o lugar da
mulher como um lugar predominantemente vitimizado, excluindo-a de sua condição de
sujeito. De maneira complementar, o lugar atribuído ao homem, no que diz respeito às
10
questões de violência contra a mulher, tem sido o de mantê-lo alienado da participação em
uma discussão da qual é parte fundamental, se pretendemos pensar em transformações nos
padrões de relacionamento entre homens e mulheres.
Em relação à produção sobre o tema, numrtice feminino, Gregori (2003) cita como
valiosa fonte a pesquisa realizada por Heilborn e Sorj (1999), na qual é feito um balanço
sobre os estudos de gênero desde 1975 no Brasil, identificando-se três principais linhas de
enfoque: a primeira é voltada à Justiça e ao Judiciário, descrevendo as formas de
compreensão e a forma de operação deste segmento em relação à questão da violência contra
a mulher. A segunda linha “se dedica ao universo de representações femininas acerca da
experiência da violência” (idem, p.12) e a última volta-se ao estudo das organizações e
agências sociais que atuam diretamente no tratamento de mulheres vítimas de violência.
Embora o tema desta dissertação esteja diretamente relacionado à mulher, uma vez que esta
é um dos atores envolvidos na complexa questão da violência de gênero, não pretendemos,
no escopo deste trabalho, nos aprofundar neste vértice. A justificativa para essa escolha
fundamenta-se em dois pontos: primeiro, pela própria complexidade do tema que,
acreditamos, mereça uma discussão que ultrapassaria o propósito deste trabalho. Em
segundo lugar, a já vasta e competente produção nesta área tornaria nosso trabalho
redundante. Portanto, optamos em apenas orientar o leitor para a consulta de alguns autores
cuja produção seja considerada relevante no âmbito do tema em questão
2
. Nosso intuito
neste trabalho é o de nos voltarmos para o estudo do universo masculino, mais
especificamente representado pelo grupo de homens atendidos na Instituição já citada, no
qual verificamos, ao longo dos anos de atendimento em grupos de reflexão masculinos, o
2
Citaremos aqui os autores sugeridos por Gregori (2003), autora que também apresenta relevante trabalho na
área (1993). Representando a primeira linha de pesquisa, destaca os trabalhos de Correa (1983), Ardaillon e
Debert (1897), Brandão (1997), Carrara (1996), Soares (1996), Mussumeci Soares (1999), Vargas (1999). Na
segunda linha de trabalhos por ela citados, destaca Grossi (1988, 1991, 1994), Fonseca (1984), Machado e
Magalhães (1998) Pontes (1983). Na linha sobre as Ongs e agências sociais, cita: Pontes (1985), Gregori (1993),
e Saffiotti e Almeida (1995) (p.12).
11
predomínio do tipo de relação pautada pelos padrões hegemônicos de gênero. Desta forma,
visamos poder contribuir com uma das facetas deste fenômeno ainda pouco estudadas, não
somente do ponto de vista acadêmico, mas também aproximando a literatura de uma prática
efetiva. Muitos estudos voltados ao universo masculino têm sido desenvolvidos (CONNEL,
1995; KAUFMAN, 1999; BIDDULPH, 2002, 2003; VALDÉS Y OLVARRÍA, 1997)
principalmente focados nos aspectos da socialização dos homens e dos motivos que os levam
a utilizar-se da violência nas relações não só com mulheres, mas também com outros
homens. Estes trabalhos visam compreender como as expectativas e padrões sociais
favorecem este tipo de desenvolvimento masculino e apontam para a possibilidade de novas
formas de socialização masculina como meio de interferir na violência, tanto em sua
manifestação na esfera pública quanto privada (doméstica, familiar). Encontramos, mais
especificamente, em Connel (1995) o que denominou de diferentes masculinidades,
evidenciando a impossibilidade de generalização ou homogeneização do universo masculino.
Uma descrição mais pormenorizada da população masculina que focamos neste trabalho será
feita em capítulo posterior, a fim de se evitarem tais generalizações.
A partir dos anos de experiência institucional e do desenvolvimento de uma
metodologia que possibilitasse uma forma mais satisfatória de abordagem das questões
familiares, ampliou-se o escopo da população atendida na PMFC, introduzindo-se, como
elemento novo, a extensão do serviço à parte normalmente definida como agressora: os
homens. Desta forma, a família como um todo pôde ser absorvido no programa, uma vez que
trabalhamos conforme a perspectiva de que, num ambiente familiar onde predominam
práticas violentas, todos os membros desta família estão sujeitos aos efeitos perniciosos
desta dinâmica.
O presente trabalho faz um recorte, tomando como foco, sobretudo a experiência com
o atendimento de homens e desenvolvendo subsídios teóricos concernentes à construção e à
12
desconstrução da subjetividade nas diferentes masculinidades, assim como de suas
expressões na violência em geral e na violência de gênero em especial.
Este estudo visa a enfocar o tema da violência praticada contra mulheres, assim
entendida pelas políticas públicas, por dois vértices: o primeiro questiona a adoção de uma
lógica não complexa e maniqueísta com a qual tais políticas habitualmente enfrentam essa
questão, atribuindo valores positivos e negativos à complexa dinâmica das relações
conjugais, de modo a polarizar a questão da violência em vítimas/agressores de forma
rigidificada. Trabalhamos com a hipótese de que os efeitos destas políticas tendem a
cristalizar e perpetuar aquilo mesmo que pretendem combater. A definição tradicional
adotada, tanto juridicamente quanto no âmbito das políticas em geral, é o de violência
doméstica. Esta definição tem sua utilidade para se identificarem e, por conseguinte,
punirem culpados em casos onde a mulher é vítima de violências físicas por parte do seu
companheiro íntimo. Contudo, de um lado, nem as punições têm qualquer efeito inibidor
sobre aquele que comete agressões (normalmente eles são ‘penalizados’ com o ineficaz
pagamento de uma cesta básica e voltam para casa com suas companheiras humilhadas e
desprotegidas), nem a violência física esgota o que se entende por práticas violentas entre
homens e mulheres. Assim, este tipo de definição, a nosso ver, reduz muito a dimensão desta
questão, reproduzindo o modelo maniqueísta de bom e mau, certo e errado, forte e fraco.
Por este motivo, não adotaremos esta definição mais convencionalmente utilizada, mas
bastante imprecisa, em nossas elaborações.
O segundo vértice pretende explicitar qual o lugar destinado ou “imposto
simbolicamente” aos homens, procurando identificar quais os determinantes culturais,
sociais e psicológicos organizadores da subjetividade masculina, visando a compreender
como os papéis de gênero e as relações resultantes destes são distribuídas, transmitidas e
perpetuadas pelos gêneros. Pretendemos realizar isto fazendo uso do referencial teórico de
13
que dispomos, mas, em especial, procuraremos identificar as expressões da violência entre
homens e mulheres, foco principal deste trabalho, por meio da análise do discurso dos
participantes dos grupos, descrita no terceiro capítulo.
Ainda no terceiro capítulo, descreveremos a metodologia utilizada nesta dissertação,
especificando a maneira pela qual os homens chegam à Instituição bem como
descreveremos, por meio da reprodução de quatro sessões, o funcionamento dos referidos
grupos de homens com os quais trabalhamos.
Embora não desejemos ignorar a inter-relação da violência praticada na esfera
particular - nas relações de intimidade - com a violência mais ampla e socialmente visível, já
que acreditamos que os modelos de relacionamento vividos na infância são grandemente
determinantes na reprodução destes na vida adulta, nosso foco se voltará para as relações
hierarquicamente desiguais entre homens e mulheres, objetivando verificar em que medida
esta desigualdade dá sustentação ou justifica como naturais práticas agressivas e/ou
violentas.
Para tanto, usaremos do arcabouço teórico psicanalítico a fim de cotejá-lo com
estudos das relações de gênero desenvolvidos nas Ciências Sociais e na Antropologia, com o
intuito de ampliar a compreensão da questão da transmissão e perpetuação das relações
violentas.
No primeiro capítulo, intitulado Por que falar de homens?,é feito um histórico da
Instituição onde a prática deste trabalho se dá. Faz-se também um apanhado da questão da
violência praticada na família, ressaltando-se a importância do movimento feminista no
processo que culminou com os estudos de gênero, e propondo, pela contextualização da
prática institucional na qual este trabalho se baseia e por meio de bibliografias referentes ao
tema da masculinidade e gênero, atualizar o debate acerca da violência de gênero, a fim de se
proporem novas formas de se pensar neste assunto.
14
O segundo capítulo, O campo construcionista e a violência de gênero, aborda os
estudos de gênero através da ótica do construcionismo social, área das Ciências Sociais
representada por autores como Carol Vance, Jeffrey Weeks, Gayle Rubin e outros, que
questiona a naturalização de conceitos, práticas e identidades ligadas à sexualidade e ao
gênero. O campo dos estudos de gênero aborda a questão da violência do vértice das
construções sociais e das relações de poder contidas nas mesmas, como será discutido
adiante neste trabalho. A abordagem construcionista representa o que há de mais
contemporâneo nos estudos de gênero, tendo sido fortemente despertada com base no
problema que representou o surgimento da Aids na década de 1980 e na necessidade de se
estudar as práticas sexuais que, se acreditava, estavam diretamente relacionadas à
disseminação do HIV.
O quarto capítulo, O universo masculino por distintas óticas, expõe a discussão de
diversos autores voltados ao tema da masculinidade (Oliveira, Connel, Hurst, Valdés y
Olavarria, Acosta e Barker). Propomos, ainda, a realização de uma discussão inteiramente
fundamentada na metapsicologia psicanalítica, utilizando-nos das teorias descritas por Freud
e seguidores, bem como das idéias de psicanalistas contemporâneos, como João Alberto
Carvalho, Isabel Kahn Marin e Maria Rita Khel, discriminando as diferentes acepções de
violência, pela ótica metapsicológica, na qual narcisismo, desamparo e idealização
articulam-se como conceitos-base. Procuraremos compreender a violência de gênero e suas
semelhanças e dessemelhanças com relação à noção de violência como entendida pelos
autores citados. A discussão destes temas por um prisma psicanalítico busca contribuir com
a ampliação da compreensão destes fenômenos, sem, contudo, restringir-se ao âmbito
teórico. Os autores contemporâneos escolhidos o foram justamente pelo aspecto de aplicação
prática na qual suas elaborações teóricas se fundamentam. Estes autores evidenciam, por sua
15
obra, o interesse em ampliar o escopo de utilização da psicanálise para a esfera sociocultural,
assim como haviam feito Freud, Winnicott e outros pensadores da cultura.
Finalmente, o trabalho encerra-se com uma discussão que procura articular os quatro
capítulos e levantar hipóteses que sugiram novas formas de enfrentamento e, em especial, de
prevenção das questões de violência na família e da violência permeada pelas questões de
gênero, ditadas por uma cultura de masculinidade hegemônica.
À guisa de conclusão, usarei extratos de falas de um grupo focal (entrevista de follow-
up) realizado ao final dos quatro encontros com alguns dos participantes.
A reflexão sobre o discurso destes tem o sentido não apenas de ampliar a
compreensão dos códigos pelos quais estes homens são regidos (uma vez que considerados
pela ótica da hegemonia masculina tradicional), mas também de nos fornecer subsídios para
o questionamento de políticas de transformação social mais eficientes do que as adotadas de
forma inoperante até os dias atuais. Verificamos, por meio da entrevista de follow-up -
realizada como parte de uma pesquisa que se deu concomitantemente aos atendimentos
3
-,
com um grupo de homens, suas opiniões e sentimentos a respeito da experiência de serem
atendidos nos referidos grupos.
3
A referida pesquisa (2004) foi um trabalho conjunto entre a PMFC e a Unicamp, com financiamento da Fapesp
(Fundo de Amparo à Pesquisa de São Paulo) e Prosare (Programa de Sexualidade e Saúde Reprodutiva) visando
avaliar a metodologia da instituição com vistas a proposição de novas políticas públicas. A pesquisa foi
coordenada pela Dra. Maria Coleta Oliveira, (Nepo- Núcleo de Estudos Populacionais/ Unicamp) e Malvina
Muszkat (PMFC), e intitula-se Avaliação de um Método de Intervenção no Enfrentamento da Violência
Intrafamiliar.
16
1. POR QUE FALAR DE HOMENS?
Foi com base em uma perspectiva pautada pela ideologia do movimento feminista da
década de 1970, pela qual se visava a intervir nas perniciosas práticas violentas impingidas à
mulher, que se criou a Pró-Mulher, hoje re-batizada de Pró-Mulher, Família e Cidadania
(PMFC).
A PMFC é uma Organização Não Governamental que conta com uma equipe
multidisciplinar de psicólogos, advogados, assistentes sociais e presta serviço às famílias de
baixa renda do município de São Paulo que se encontram em situação de violência e/ou
conflitos familiares e/ou conjugais.
De início, voltada exclusivamente ao público feminino vítima de violência
doméstica, que vinha encaminhado pelas Delegacias da Mulher, Varas da Infância e
Juventude, e serviços judiciários públicos, hoje presta serviço à família como um todo,
incluindo-se companheiros, filhos e outros familiares que se encontrem envolvidos no
conflito doméstico-familiar.
Até 1993, nosso trabalho centrava-se no atendimento jurídico e psicológico das
mulheres vítimas de violência e em situação de separação conjugal. O atendimento era
totalmente gratuito, e acompanhávamos seus casos juridicamente, quando necessário, até a
homologação dos processos. No entanto, verificávamos um alto índice de desistências ou
interrupções no atendimento, ou, ainda, um número significativo de mulheres agredidas que
se arrependiam das queixas contra seus companheiros e interrompiam o processo, ou, até
mesmo, voltavam a coabitar com os homens de quem haviam legalmente se separado.
Verificávamos também, com base nos relatos e demandas das mulheres, a
preocupante situação em que se encontravam seus filhos, testemunhas dos atos violentos
17
praticados contra suas mães. Essas crianças ou jovens apresentavam distúrbios emocionais e
de comportamento, baixo rendimento escolar e problemas de saúde. Cuidar exclusivamente
das mães, portanto, embora por extensão pudesse repercutir na condição de seus filhos, não
tratava de forma mais direta um problema de graves dimensões: as repercussões destas
vivências familiares sobre a prole
4
.
Outro fator, fornecido pela psicanálise de casal e família e observado na nossa prática
clínica, confirma como determinadas dinâmicas de relacionamento se repetem ainda que os
parceiros sejam distintos. Ou seja, o padrão de relacionamento deve ser compreendido como
uma forma de comunicação, já que a escolha de parceiros não é aleatória e, sim, calcada em
estruturas inconscientes primitivas, bem como em modelos identificatórios com as famílias
de origem de cada um dos sujeitos. Sem entender-se qual é a comunicação que está
ocorrendo e qual a necessidade de se estabelecerem determinadas pautas de relacionamento,
troca-se o parceiro, mas se perpetua o padrão quando da formação de uma nova dupla.
Considerando que o homem, como membro de uma família, é parte ativa e operante
de um sistema vivo de interações afetivas, ao simplesmente retirá-lo, impedimos que a
família possa refletir sobre seu funcionamento de maneira global e privamos seus membros
da possibilidade de aquisição de recursos pessoais capazes de prover o desenvolvimento de
relações mais gratificantes ou do ingresso num sistema ideológico alternativo.
Numa família onde há violência praticada contra a mulher, esta certamente não é a
única vítima: todos os membros desta família sofrem as conseqüências desta dinâmica de
relacionamento.
Tratar somente o pólo feminino reforça e perpetua a idéia de que a mulher é incapaz
de cuidar de sua própria história e destino, aprisionando-a num lugar vitimizado e
4
Dados levantados por RUDO, Z. E POWELL, D. Family Violence: A Review of the Literature. Florida, 1996,
do Florida Mental Health Institute da University of South Florida, corroboram nossos dados relativos aos
inúmeros efeitos danosos sofridos por filhos vivendo em famílias violentas. Um exemplo: Straus et al. (1980),
numa pesquisa nacional nos EUA , verificam que filhos de famílias violentas apresentam índices de violência
contra suas esposas, quando da constituição de suas famílias, 1000% maior que os de famílias não violentas.
18
aumentando as distâncias nas relações pautadas por um modelo hegemônico de relações de
gênero. A comunicação entre o casal vai-se inviabilizando, uma vez que o homem é afastado
e isolado como agressor.
Na violência doméstica, assim como entendida em sua acepção tradicional
5
, não há
vencedores: a destruição paulatina do sentimento de amparo, amor e auto-estima é comum a
todos os membros, incluindo-se aí o “agressor” identificado. Acreditamos que o homem,
quando visto exclusivamente como agressor, sofre um processo de exclusão dentro da
própria família e da sociedade, não lhe sendo facultada qualquer possibilidade de reparação,
ou de inclusão num sistema ideológico alternativo. Posto de outra forma, a abordagem do
fenômeno, ou das práticas violentas, feita por um prisma dualista, encerra os homens ora
como sujeitos da agressão, ora como vítimas da exclusão, o que impede uma compreensão
mais global de todos os aspectos envolvidos nesta questão, inviabilizando ações mais
eficazes na transformação destes padrões. Há ainda que se ressaltar, como observa Kaufman
(1994), que, na vivência de masculinidade hegemônica, há uma intrínseca associação entre
poder social e privilégios, e dor, isolamento e carência de poder. Em suas palavras:
Pelo fato de ser homens, gozam de poder social e de muitos privilégios,
mas a maneira como este mundo de poder foi armado causa dor,
isolamento e alienação tanto às mulheres quanto aos homens. Isto não
significa equiparar a dor dos homens com as formas sistemáticas de
opressão sobre as mulheres, somente quer dizer que o poder dos homens
no mundo tem um custo para todos nós (idem, p.63-4, grifo e tradução
nossa).
A estruturação das relações entre homens e mulheres, abordada do ponto de vista de
gênero, refere-se a uma concepção do masculino e feminino construídos na cultura. O
5
Usamos aqui a denominação comumente utilizada para tratar da questão da violência praticada no âmbito
doméstico, como sugere Saffiotti (nota 1, pág. 8), aquela que é praticada pelo homem contra sua companheira.
Acreditamos, contudo, que esta definição, embora descreva um dos tipos de prática violenta, a física, seja muito
restritiva e impeça uma compreensão mais abrangente, uma vez que trata da questão, atribuindo papéis fixos aos
atores –vítimas e agressores. A desconstrução desta fixidez e estereotipia dos lugares atribuídos a homens e
mulheres é um dos questionamentos centrais de nosso trabalho.
19
modelo de masculinidade hegemônica-homofóbica
6
, predominante na população que
atendemos na Pró-Mulher, não se restringe ao imaginário da população masculina, sendo
parte constitutiva também da população feminina. Marcadamente idealizado, torna-se, por
esta característica, impossível de ser atingido, exercendo, contudo, poder controlador sobre
homens e mulheres.
Uma definição de masculinidade hegemônica citada por Kimmel (1994), baseada no
sociólogo americano Erving Goffman, nos dá a dimensão não só do que se entende por
diferentes masculinidades, já que sua definição, uma vez que inclui uma série de prescrições
das quais os homens de nossa amostra estão excluídos, já os coloca, em relação àqueles, em
outra masculinidade. Esta, como se vê a seguir é uma definição bastante restritiva quanto às
possibilidades facultadas ao universo masculino daquilo que seria o desejável. São elas: ser
jovem, casado, branco, urbano, heterossexual, de classe dominante, com nível universitário,
de bom aspecto, peso e altura, com emprego de período integral e, ainda, um homem no
poder, com poder e de poder. A masculinidade hegemônica prescreve também aspectos tais
como: ser “forte, bem-sucedido, capaz, confiável e aparentar autocontrole. As próprias
definições de virilidade que desenvolvemos em nossa cultura, diz Kimmel, perpetuam o
poder que uns homens têm sobre outros e que os homens têm sobre as mulheres” (idem,
p.50-51). Evidencia-se, aqui, a impossibilidade de se caracterizarem todos os homens de
forma genérica, sem se considerarem as inúmeras variáveis e suas distintas inserções sociais,
culturais, raciais, étnicas, de escolaridade, de preferência sexual, o que implica uma vasta
6
O padrão de masculinidade denominada hegemônica baseia-se fundamentalmente no modelo patriarcal. Tem
como valores: o poder do homem sobre a mulher e crianças e a complementar submissão da mulher a ele,
atribuindo lugares de superioridade e inferioridade a uns e outros. Associa virilidade e masculinidade à força
física, prontidão sexual, coragem. Este homem é ainda provedor e emocionalmente forte, uma vez que
fragilidade é algo associado ao universo feminino. Sendo assim, é necessário afastar-se de qualquer atributo
vinculado ao mundo das mulheres, o que os leva a um comportamento homofóbico. O risco de uma aproximação
de cunho mais afetivo com um outro homem pode levá-lo a ser mal-interpretado como alguém com pendores
homossexuais. Ele é regido por rígidos padrões quanto ao comportamento sexual, em que é imposta uma
atividade intensa do homem e um recato e timidez da mulher. Ao homem está reservada a esfera do mundo da
rua, do público, e à mulher, o mundo da casa, doméstico, privado. Desta forma, exige-se que o homem tenha
emprego (implicando, assim, entradas financeiras suficientes para o provimento da família) e que a mulher cuide
da casa, dos filhos, do marido.
20
gama de composições hierárquicas e de opressão de determinados grupos masculinos sobre
outros. O desejável, acima mencionado, está intimamente relacionado à idealização, à
supervalorização e a um caráter ilusório (CARVALHO, 2003), portanto, irreal e inatingível.
Como descreve Freud em seu artigo Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914) e,
posteriormente, em 1921, em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, a idealização é um
mecanismo que empobrece o sujeito, implicando perda de partes do ego do indivíduo, com
base em um mecanismo pelo qual a libido do próprio ego é transferida para o objeto
valorizado, podendo este ser os valores hegemônicos disseminados na cultura. Trataremos
com mais detalhes destes mecanismos no capítulo 4, onde, a partir do vértice
metapsicológico freudiano, procuraremos levantar hipóteses que nos auxiliem na
compreensão de como se dá e por que se perpetua a adesão dos sujeitos a rígidos padrões
presentes na cultura.
Do ponto de vista da biologia, define-se masculino e feminino com base na
constituição biológica dos seres, sendo o aparelho reprodutivo o que demarca o que é próprio
a cada sexo. Esta visão, que irá configurar aquilo que é do universo feminino e do
masculino, firmada nas diferenças anatômicas, será, como veremos no capítulo 2, não só
refutada, como combatida, pelos estudiosos do construtivismo social, desassociando-se a
biologia da cultura. Com efeito, a constituição sexual de cada indivíduo está longe de esgotar
a questão da identidade de gênero. No campo de estudos sobre o masculino, a construção das
várias masculinidades
7
ocorre de maneira complexa e está vinculada tanto a modelos da
cultura quanto à estruturação inconsciente daqueles responsáveis pela criação dos seres
humanos: pais e mães, estes também produtos da cultura. Vemos assim que uma mãe, por
7
A concepção sobre as diversas masculinidades foi desenvolvida inicialmente por Connel (1995) e será
explicada de forma mais detalhada no capítulo 4.
21
exemplo, ao prover os cuidados básicos ao seu bebê-menino, o fará de maneira diferente de
como atuará com seu bebê-menina. (KERNBERG, 1995).
Neste sentido, vemos desde logo que não se pode tratar a questão do masculino
dissociada daquela do feminino, pois é a partir dos primeiros contatos com as figuras tanto
materna quanto paterna que irá sendo construída a noção relativa a cada gênero. Sendo tanto
produtores quanto produtos da mesma cultura, não se pode tratar esta questão isolando uma
das partes
8
.
Ainda calcados na constituição biológica do homem, fatores como a existência do
pênis como órgão sexual, massa e força física superiores às das mulheres deram caráter de
“naturalidade” à associação entre masculinidade e agressividade, como também à prontidão
e potência sexual, levando os homens, há muitas gerações, a adentrarem o chamado “mundo
dos homens” por vias geralmente bastante dolorosas, verdadeiros rituais de iniciação
(MILES,1991).
A homofobia nega, com freqüência, o aspecto emocional do homem (GIFFIN, 1994).
Não há nisto qualquer tentativa de justificar comportamentos violentos praticados por
homens, como tampouco de sobrecarregar as mulheres como responsáveis por relações de
violência na qual estejam envolvidas. Há isto sim, a constatação da existência de uma
situação muito mais complexa e dinâmica em que se encontram tanto homens como
mulheres.
A violência é uma forma possível, embora deletéria, de resposta, que tem a finalidade
de procurar solucionar um conflito por meio da eliminação de uma de suas partes.
Obviamente que nesta idéia está implícita a noção de força, pois o mais forte impõe sua
vontade ao mais fraco. Contudo, valendo-se de uma visão das dinâmicas familiares, sabemos
8
Apenas a título de viabilizar este estudo, voltamo-nos mais exclusivamente ao masculino. No entanto, estamos
cientes de que, embora haja características específicas neste universo masculino que estamos estudando, não se
pode, para efeito de políticas mais amplas e efetivas, tratar o masculino dissociado do feminino.
22
que a utilização da violência pode ser uma forma bilateral em que comumente se verifica
uma complementaridade - ainda que se manifeste de maneiras distintas - na pauta de
relacionamento.
Nesta perspectiva, faz-se fundamental a análise das questões de gênero, pois, se à
mulher é atribuído o papel de vítima, que lugar fica reservado ao homem? Que opções lhe
restam quando não lhe é dada a possibilidade de inclusão, de amparo, de escuta? O rígido
modelo cultural masculino, compartilhado tanto por homens quanto por mulheres, se por um
lado transmite uma herança de poder, por outro exige um desempenho quase impossível de
se atingir, gerando sentimentos de angústia, depressão e impotência.
Passamos, portanto, a referir este tipo de violência não mais como violência
doméstica, mas como violência INTRAFAMILIAR, e encontramos, ainda, na metodologia
de trabalho proposta pela mediação familiar, um instrumento que viabilizou que
passássemos a abordar de maneira mais integradora o fenômeno das relações violentas na
família.
A fim de contextualizar o trabalho realizado na Instituição, daremos uma breve
explicação sobre os princípios da mediação. Contudo, não nos estenderemos numa discussão
mais ampla sobre esta metodologia, uma vez que isto se encontra fora do escopo desta
dissertação
9
.
A mediação é um método alternativo de resolução ou pacificação de conflitos,
calcado em uma ampla gama de teorias do conhecimento: teorias da comunicação, teoria
sistêmica, teoria psicanalítica, princípios do direito e teorias construtivistas. Ela funciona
9
Sugerimos três trabalhos para uma compreensão mais abrangente do tema, sendo um deles o resultado de
10 anos do uso desta metodologia na instituição aqui referida: MUSZKAT, M. (org.) Mediação de Conflitos:
pacificando e prevenindo a violência. São Paulo: ed. Summus, 2003; MUSZKAT, M. Guia prático de
mediação de conflitos em famílias e organizações, São Paulo: ed. Summus, 2005;
SUARÉS, M. Mediación:
Conducción de disputas, comunicación e técnicas. Buenos Aires: ed. Paidós, 1996.
23
pelo princípio da não-adversariedade, ou seja, enquanto as formas jurídicas tradicionais de
disputa que conhecemos estão baseadas numa lógica do ganhador/perdedor, a mediação
baseia-se em princípios de negociação e busca, partindo da autodeterminação das partes para
encontrar soluções mutuamente satisfatórias. É uma metodologia que desperta os indivíduos
como agentes responsáveis por suas próprias decisões e ações, bem como pelas
conseqüências destes. Desta forma, atua na contramão da lógica paternalista, pela qual um
terceiro – um juiz – arbitra sobre a forma de se encaminharem questões dos sujeitos
envolvidos numa disputa familiar.
A mediação busca flexibilizar posturas, fazendo com que se possa pensar a situação
de conflito de outros pontos de vista. Assim, poder despertar no sujeito a possibilidade de
colocar-se no lugar do outro, torna-se um dos pontos fundamentais na facilitação das
relações cotidianas interpessoais. A mediação busca a desconstrução de paradigmas culturais
ou pessoais, a fim de que se refaçam e ampliem as narrativas pessoais. Como conto minha
história? Como me vejo no mundo? Que lugar ocupo nas minhas relações interpessoais e
familiares? Em que lugar me situo em relação ao outro? Todas estas indagações e as
respostas a elas são habitualmente pensadas como versões únicas e verdadeiras. “O trabalho
fundamental do mediador é construir uma história alternativa, que permita ver ‘o problema’
por todas as partes, a partir de outros ângulos.” (SUARÉS, 1996, p.62).
Ao longo dos anos de experiência da PMFC, desenvolveu-se uma metodologia que,
se por um lado atende e é pautada pelos princípios fundamentais da mediação (tais como a
garantia de equidade entre as partes, a postura imparcial do mediador, o desenvolvimento do
protagonismo e da noção de responsabilidade sobre as próprias ações, a busca por uma
mudança de mentalidades que amplie horizontes e flexibilize posturas para incluir-se a
percepção de um outro cujos desejos e necessidades mereçam reconhecimento), por outro,
ela acabou por incorporar novas formas de abordagem a fim de se atenderem às
24
especificidades da população-alvo. Deste modo, adaptou-se a metodologia e implantaram-se
os grupos inicialmente denominados de Grupos de Pré-Mediação masculinos e femininos
que são aqueles a partir dos quais desenvolvemos este trabalho.
Além do tratamento dado aos sujeitos que procuram a Instituição em busca de auxílio
no âmbito de seus conflitos familiares, busca-se também, por meio da intermediação da
Instituição com outros dispositivos sociais, inserir o sujeito na rede social mais ampla, para
garantir-lhe sua condição de cidadania com base nos princípios postulados pelos Direitos
Humanos, tornando-o responsável como ator de suas ações, a fim de transformar sua
história. Desta forma, cunhamos a designação mediação institucional, fazendo referência a
esta ampliação da metodologia.
A inclusão dos homens no atendimento da Instituição teve seu início em 1993. De
acordo com o World report on violence and health, publicado pela Organização Mundial de
Saúde em 2003, a questão da violência foi alçada como assunto de agenda internacional
quando do encontro do World Health Assembly em 1996, em Genebra, no qual se adotou
uma resolução declarando a violência um problema de saúde pública mundial de especial
relevância, tendo em vista que esta foi responsável por mais de 1,6 milhões de mortes em
todo o mundo, no ano de 2002. É também uma das principais causa mortis de pessoas entre
14 e 44 anos, sendo que por volta de 14% das mortes se dá entre homens, ao passo que as
mulheres representam 7% desta estatística. É fato comprovado estatisticamente que os
homens são os principais agentes de atos violentos, assim como as principais vítimas destes,
tendo em vista que a violência é responsável pelos altos índices de mortalidade entre homens
jovens (ROTHMAN, BUTCHART & CERDA, 2003; WHO, 2002; CONNEL, 1995;
CORSI, DOHMEN & SOTÉS, 1995). Sem dúvida, os dados acima atestam a pertinência da
inclusão dos homens nos trabalhos de violência de gênero.
25
Segundo Hurst (2003), a corrente ideológica predominante no primeiro mundo no
âmbito da violência doméstica foi dominada por uma abordagem cultural de estilo norte-
americano, cujo vértice era o de tratar os homens como sendo “do mal” e,
conseqüentemente, imprimindo temor ao “outro”. Essa visão estereotipada influenciou não
apenas programas de combate à violência como também o tipo de justiça criminal praticada
em diversos países, que ‘importaram’ a metodologia americana e sua forma de abordagem,
sem que estas pudessem ser adequadamente adaptadas às condições destas outras culturas,
levando ao fracasso dos programas em muitos locais. É, portanto, importante discriminar
entre programas voltados aos ‘homens batedores’ - ou de comportamentos violentos -, que
visam eliminar um comportamento indesejado - nesse sistema o homem é tratado como
alguém “do mal”, em um sistema normatizador de valores morais -, ou elaborarem-se
programas em que se proponha parceria aos homens, considerando-os como parte
interessada numa convivência mais prazerosa e gratificante. Programas cuja ideologia tenha
como base um princípio maniqueísta bom/mau, em que o mau deve ser eliminado,
disseminam sentimentos de hostilidade e persecutoriedade, criando barreiras ainda mais
intransponíveis nos relacionamentos, em razão do lugar que designa os “do mal”
10
.
Entendemos como duas as principais razões que determinam a escassez de programas
de inclusão masculina no Brasil: a primeira diz respeito ao fato de os atos violentos serem
com freqüência associados a questões de cunho legal ou criminal, sendo habitualmente
entendidos como circunstâncias a serem tratadas no âmbito da lei e ordem social. O foco
predominante é o do combate, erradicação, eliminação de um comportamento indesejado,
identificado normalmente com o parceiro masculino. Desta forma, atos violentos costumam
ser combatidos pelo sistema penal e órgãos policiais e, não, prevenidos. Embora isso venha
10
Em 2003 foi publicado pela World Health Organization relatório baseado numa extensa pesquisa realizada por
Emily Rothman, na qual são listados todos os programas de intervenção voltados às relações íntimas violentas
encontrados pela pesquisadora fora do circuito EUA e Canadá. O programa da PMFC encontra-se nesta lista.
26
mudando em todo o mundo, também no que diz respeito à saúde pública, ainda cabe aos
profissionais de saúde, como foco principal, o tratamento exclusivo das conseqüências destes
atos (WHO, 2002)
11
.
Em relação à violência de gênero, associada às práticas sexuais e reprodutivas,
pesquisadores (BARBOSA, 2003; PITANGUY, 2003) do âmbito das ciências sociais
verificam que esta se evidencia nas práticas de sexo inseguro a que mulheres se submetem,
uma vez que, em virtude das relações de poder desiguais presentes nas relações tradicionais
de gênero, elas se encontram impedidas de negociar com seus parceiros formas seguras de
prevenção das DST/AIDS. Conseqüentemente, pesquisas atuais indicam que mulheres
heterossexuais com parceiros estáveis têm representado o grupo de maior vulnerabilidade
nas estatísticas de contaminação pelas DSTs (CARVALHO, 2003; BARBOSA, 2003;
PITANGUY,2003)
12
.
O segundo motivo pode ser pensado como subproduto do movimento feminista, que
passou a ter forte impacto social a partir da década de 1970.
O movimento feminista foi responsável por ter revelado e explicitado a situação de
extrema desigualdade e violência imposta a milhões de mulheres em todo o mundo,
propiciando assim todas as mudanças e avanços que vemos hoje no campo dos direitos da
mulher, em todos os âmbitos dos espaços privados e públicos. Embora sejam inegáveis os
inúmeros avanços e conquistas das mulheres no que diz respeito aos seus direitos e à maior
igualdade de condições, principalmente na esfera pública, as relações entre homens e
11
Recente ato do atual presidente Luis Inácio Lula da Silva, de 25/11/03, cria lei que obriga profissionais de
saúde de organizações tanto governamentais quanto não governamentais a denunciarem qualquer ocorrência em
que se verifique que tenha sido praticada violência contra a mulher.
12
Regina Barbosa (2003, p.339-389) discute criticamente este dado, apontando para a necessidade de haver
políticas de transformação de mentalidades e paradigmas culturais que visem à prevenção e não, somente, ao
combate de comportamentos. Barbosa reafirma a necessidade de se introduzirem as dimensões culturais, sociais
e políticas nas categorias usadas na epidemiologia, em oposição às tradicionais abordagens comportamentalistas,
e propõe o fortalecimento de estratégias de alcance social, estimulando-se movimentos sociais organizados.
27
mulheres, pautadas por um imaginário tradicional de gênero, ainda as impedem de
estabelecerem relações mais igualitárias com seus companheiros, como também atesta
Carvalho (2003) ao evidenciar como ideais românticos presentes no imaginário cultural
feminino são, também, fatores relevantes na impossibilidade de muitas mulheres negociarem
relações sexuais protegidas com seus companheiros, resultando, dessa forma, no alto índice
de contaminação por HIV, já mencionado.
A concepção de imaginário que aqui utilizamos, bastante apoiada naquela descrita
por Carvalho (2003), está intimamente vinculada ao registro do narcisismo infantil, bem
como das noções relativas a ego ideal e ideal do ego da teoria freudiana. Embora o próprio
Freud não tenha feito a distinção entre estes dois termos (LAPLANCHE & PONTALIS,
1983), outros autores, tais como Lacan e Lagache, distinguem o ego ideal do ideal do ego,
associando o primeiro a um “ideal narcísico de onipotência forjado a partir do modelo de
narcisismo infantil” (idem, p.190). Para Lacan, segundo Laplanche e Pontalis (idem, p.190),
o ego ideal tem sua origem na fase por ele descrita como fase do espelho e pertence ao
registro do imaginário. É habitualmente definido como um momento mítico, de plenitude
narcísica, vivido na relação fusional entre o bebê e sua mãe. Nas palavras de Carvalho (2003,
p.65), “o ego ideal corresponde à imagem idealizada do ego feita a partir do discurso
apaixonado dos pais, havendo uma ausência de crítica e de objeção”. A impossibilidade de
manter-se no registro narcísico do ego ideal levaria o ego, já mais desenvolvido, a procurar
recuperar este estado de perfeição pela busca por atingir o ideal do ego que, dada a sua
possibilidade simbólica, pode então se associar aos valores da cultura que contenham ‘a
promessa’ de recuperação do ego ideal perdido na infância.
A distinção entre o ego ideal e o ideal do ego ocorre, portanto, como descrito por
Lacan, com o primeiro fazendo parte do registro do imaginário e o segundo, do registro do
28
simbólico. Segundo Maria Rita Kehl
13
, o imaginário não admite pensamento uma vez que se
encontra colado às imagens cujo significado é dado de forma fixa. Assim, o imaginário,
segundo ela, impõe uma realidade de forma que o sujeito ficaria impedido de ser agente de
si mesmo uma vez que suas ações e modos de ser já estariam definidos através de imagens
saturadas de sentido (grifo nosso). O mundo, encerrado em seu caráter imaginário, não cria
espaço para simbolizações e transformações. É esta, a concepção de imaginário, de forma
bastante resumida, na qual nos baseamos ao falar de imaginário masculino. Contudo, este é,
um conceito bastante abrangente, que envolve algumas das concepções básicas sobre as
quais se sustenta a teoria psicanalítica, tais como narcisismo, superego, complexo de Édipo.
Deste modo, ainda que retornemos à discussão psicanalítica no capítulo 4, sugerimos a
leitura do capítulo 2, intitulado O sonho, do livro de João Alberto Carvalho, O amor que
rouba os sonhos, que vimos citando, no qual o autor faz uma detalhada e rica elaboração
deste conceito.
Os estudos de gênero, que, juntamente com a teoria psicanalítica, usaremos como um
dos pilares principais de compreensão do fenômeno das práticas violentas, decorrem
diretamente dos movimentos feministas, sendo a expressão gênero tomada de início como
sinônimo de estudos feitos por mulheres, sobre as mulheres e suas lutas em direção à
igualdade e aos direitos plenos (BARBIERI, 1990; GREGORI, 1993).
O movimento feminista, contudo, tampouco pode ser pensado como um movimento
homogêneo, de definição unificada, como assevera a antropóloga Maria Filomena Gregori
(1993), uma vez que encerra tendências e práticas diversificadas. Ainda assim, seu impulso
como movimento expressava, de maneira geral, “uma preocupação de eliminar as
discriminações sociais, econômicas, políticas e culturais de que a mulher é vítima” (idem,
13
Informação conferida por Kehl em comunicação oral na livraria Pulsional, em São Paulo, em 30/03/05.
29
p.15). Desta forma explicitava, desde seus primórdios, uma relação desigual entre os sexos,
na qual à mulher era atribuído um lugar de inferioridade construído social e culturalmente.
A crítica da autora recai na constatação de que o que se exigia das mulheres como
decorrência do movimento, ou seja, o combate e a denúncia dos homens, não só excluía os
homens deste processo de conscientização como também exigia uma postura de afastamento
das mulheres, negando que estes mesmos homens fossem também seus companheiros.
Gregori ainda nos alerta: “O movimento feminista separa as mulheres dos homens,
não tanto no sentido de afirmar que cada homem é responsável pela opressão, mas na medida
em que todo o trabalho de conscientização é travado apenas por mulheres” (idem, p. 53). E
continua “cabe aos homens – vistos como coletividade – serem cobrados e denunciados em
suas manifestações autoritárias e/ou violentas. A eles não é dada a alternativa da conversão”
(idem, ibidem). Vê-se, assim, que o tratamento dado às questões relativas aos problemas de
gênero abordou o tema da violência contra a mulher, desde seu início, de maneira dualista,
priorizando ações de proteção à mulher, sem, contudo, debruçar-se sobre a dialética contida
nas relações interpessoais e conjugais.
Nessa ocasião, já se alertava para o cuidado necessário ao se tomarem as narrativas
das mulheres como verdades absolutas, embora isso tenha sido importante para se entender
sua visão e suas crenças quanto ao lugar que ocupavam nos relacionamentos e no mundo.
Contudo, considerando-se que os relacionamentos são dinâmicas que se retro-alimentam ou
complementam, é preciso também ouvir a versão masculina, “não tomando o masculino
como dado, mas também como uma identidade que se constitui na trajetória, na vivência”
(p.200), se o que se pretende é tratar das questões de relações de gênero.
Encontramos argumento semelhante em trabalho realizado por Arilha, Unbehaum e
Medrado (Org.), em Homens e Masculinidade (1998). Dizem as autoras que, desde 1994,
vem ganhando força a noção de que “indicadores de saúde das mulheres só se modificariam
30
efetivamente na medida em que a população masculina, jovem e adulta, também mostrasse
movimentos de mudanças em seus padrões de comportamento” (idem, p.16).
Lourdes Bandeira e Mireya Suárez (2002), em A polinização da violência contra a
mulher e o fortalecimento da cidadania, localizam o início do tratamento das questões de
violência de gênero no Brasil e citam artigo realizado por Elaine Reis Brandão, baseado em
sua dissertação de mestrado, no qual analisa depoimentos de mulheres que recorrem às
Delegacias Especiais da Mulher a fim de denunciar violência sofrida no âmbito doméstico. A
autora tem como ponto central “explicar os motivos que levam as mulheres a solicitar a
suspensão da queixa, concluindo que várias lógicas interferem entre vítima e acusado...
gerando pressões que desencorajam a maioria das mulheres a sustentarem as acusações”
(idem, p.301). A autora refere também a necessidade de se considerar que as relações de
violência se perpetuam porque trazem em si idéias firmemente arraigadas na cultura sobre o
que são imagens e papéis tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres.
O alto índice de desistência ou de arrependimento de mulheres em relação às queixas
feitas contra seus companheiros tampouco é um dado desconhecido de várias outras
instituições que se voltaram ao atendimento de mulheres vítimas de violência, como a Casa
Eliane de Grammont, as Delegacias Especiais da Mulher e o SOS-Mulher de São Paulo, o
qual foi descrito no trabalho de Gregori. Encontramos referências a este tema também em
Bandeira e Suárez (2002). Numa linha semelhante à desenvolvida por Gregori e outros
(SARTI, C., 1996; MUSZKAT & MUSZKAT, 2003) entendemos como necessário
identificar a demanda feita por estas mulheres que não se satisfaz ao simplesmente punir-se
ou afastar-se seu companheiro.
É interessante ressaltar que, embora tenha havido produção de trabalhos relativos ao
mundo masculino e à masculinidade, como resposta ao movimento feminista e à
conseqüente homogeneização atribuída aos homens sob a denominação de Masculinidade
31
(CONNEL, 1995), ainda assim estes estudos ficaram relegados a segundo plano, dada a
força com que foram enfocados os trabalhos voltados à mulher (ARILHA, RIDENTI &
MEDRADO, 1998).
Os resultados obtidos nos últimos 30 anos na tentativa de diminuir a violência
intrafamiliar têm sido pouco significativos. De maneira geral, contudo, há uma mobilização
que começa a dar-se em nível global, pela qual a questão da violência doméstica e/ou
familiar vem sendo enfocada como algo a ser tratado em parceria com os homens.
Em nível global, a questão de se trabalhar com homens em parceria a fim
de prevenir e superar a violência doméstica tem surgido como um novo e
fundamental desenvolvimento no campo da violência doméstica,
fundamentado por organizações tais como a UNICEF. Este é exatamente o
caso na América do Sul, Ásia e África (HURST, 2003. Tradução nossa).
Como exemplo, cito o movimento internacional denominado Campanha do Laço
Branco, cujo objetivo é sensibilizar homens pelos próprios homens, na luta contra a
violência praticada contra as mulheres
14
.
Mais recentemente, em pesquisa realizada por Acosta & Barker (2003), no Rio de
Janeiro, das organizações Noos e Promundo, também associados à Campanha do Laço
Branco no Brasil, encontramos subsídios que reforçam nossa convicção de incluir os homens
nas ações e projetos de prevenção à violência intrafamiliar, bem como confirmam nossa
hipótese quanto à maior prevalência de atos violentos nas camadas menos educadas da
população masculina. Esta pesquisa, como também os trabalhos de Robert Connel (1995),
evidencia a importância da reformulação das concepções sobre masculinidade e violência,
enfatizando a necessidade de inserção da população masculina num projeto mais amplo,
14
Para informações sobre este movimento no Brasil e no mundo, acesse o site: Campanha do Laço Branco.
Disponível em: <www.lacobranco.org.br>. Acessado em: 2003.
32
discriminando-se diferentes masculinidades e, assim, reafirmando-se a necessidade de
considerar-se o universo masculino com base nas suas especificidades e não como um
universo regido de forma homogênea, como ele tem sido abordado quando se pensam
políticas de enfrentamento da violência praticada por homens.
Encontramos em Oliveira (2002), no capítulo intitulado Persistências e o fator de
inserção social, de sua tese de doutorado, discussão que corrobora a necessidade de
discriminarem-se diferentes masculinidades, ao questionar-se uma crise da masculinidade,
ou seja, uma crise generalizada vivenciada pelos homens em relação a terem de exercer o
poder, ou se esta crise se refere a determinados extratos sociais masculinos. O autor sugere
que este descontentamento concentra-se nos segmentos socioeconômicos médios e altos,
mais sujeitos às mudanças da voga pós-moderna, pois se observa que o
padrão consagrado de conduta masculina ainda é bastante valorizado entre
boa parte dos homens pertencentes aos segmentos populares, menos
afetados pelas inúmeras possibilidades que o mercado oferece aos homens
de outros segmentos sociais melhor favorecidos (idem, p.234).
Nas camadas populares, os valores masculinos hegemônicos são mantidos como algo
que confere aos homens vantagens outorgadas por sua condição de gênero, ao mesmo tempo
em que sua condição de dominação em outras esferas sociais mais amplas são esparsas. Desta
forma, Oliveira e outros (MUSZKAT & MUSZKAT, 2003) verificam que a valorização do
masculino lhes agrega valor simbólico importante, uma vez que, quanto menos liberdade e
capital simbólico tiverem no âmbito social, maior será o apego a este outro capital,
conferindo-lhes ganhos específicos que a eles são recusados nas esferas acima referidas.
Retomando a citada pesquisa carioca de 2003, esta caracterizou-se num estudo
quantitativo e qualitativo sobre a violência de gênero e saúde sexual reprodutiva em homens
entre 15 e 60 anos, advindos de dois bairros distintos do Rio de Janeiro. O estudo foi
realizado com três grupos: dois advindos de comunidades de baixa renda e um grupo de classe
33
média, tendo sido entrevistados e avaliados 749 homens. O estudo verifica que, destes, um
total de 51,4% afirmam já ter usado algum tipo de violência contra suas parceiras íntimas, seja
física, seja psicológica ou sexual.
A pesquisa ainda associa o uso da violência contra mulheres a dois fatores: o nível de
escolaridade e o processo de socialização dos homens, com maior índice de práticas violentas
naqueles que foram vítimas ou testemunhas de violência contra a mulher em suas famílias de
origem. É importante ressaltar que os pesquisadores atribuem maior relevância ao nível de
escolaridade do que à renda como determinante de práticas violentas.
Estudos realizados no Brasil (ACOSTA & BARKER, 2002; PAIVA, 2000;
OLIVEIRA, M.C, MUSZKAT, M et. al, 2004 ; CORSI, DOHMEN & SOTÉS, 1995; e
outros), sugerem que os “papéis sexuais” ou os chamados “scripts de gênero”
15
, com os quais
os homens são socializados em nossa cultura, reforçam a noção de que práticas violentas de
gênero estão ‘autorizadas’ ou são ‘justificadas’ na medida em que as mulheres apresentem
comportamentos que sejam interpretados como estando em desacordo com a manutenção do
lugar do homem em um sistema hegemônico tradicional.
Em pesquisa conjunta realizada pela PMFC e Unicamp, financiada pela Fundação de
Amparo à pesquisa de São Paulo/FAPESP e Programa de Sexualidade e Saúde
Reprodutiva/PROSARE verificou-se que o rompimento de acordos na divisão sexual do
trabalho dentro do esquema tradicional de gênero desperta, tanto em homens quanto em
mulheres, um sentimento de traição, de ter sido lesado pelo outro. É interessante notar que,
para muitas mulheres de nossa mostra, comportamentos como: casos extraconjugais,
ocorrências de práticas violentas e falta de interesse nas questões domésticas eram plenamente
tolerados, enquanto se mantinha o acordo dos papéis sexuais. No caso de rompimento destes,
(quando o homem, por exemplo, se recusa ao papel de provedor, gastando seu dinheiro fora
15
No capítulo 2, sobre construtivismo social, faremos um maior detalhamento destes conceitos.
34
de casa), o sentimento de traição e desejo de retaliação se materializa nos inúmeros pedidos
de separação e pensão alimentícia que recebemos todos os meses em nosso serviço (Pesquisa
PróMulher/Unicamp, 2004).
Novamente, na referida pesquisa NOOS/ Promundo, é interessante observar que os
motivos alegados pelos homens pesquisados para justificar práticas violentas são semelhantes
àqueles que encontramos no grupo de atendimento a homens na PMFC. São eles: ciúme,
infidelidade, assuntos domésticos – que vão desde a criação dos filhos e problemas
financeiros até queixas quanto aos cuidados dispensados à casa e aos filhos pela mulher, ou,
ainda, serem importunados pelas mulheres (Acosta, F; Barker,G, 2003, p.6). É comum que,
nos grupos que coordenamos, sejam verbalizadas queixas como: “ela deixa tudo uma
bagunça... ta sempre na casa da mãe e não cuida das obrigações dela dentro de casa”, ou
ainda, “mãe que é mãe tem que pensar no filho em primeiro lugar, cuida direito, ama o filho e
depois pode pensar no prazer” (sic).
Aqui, é possível constatar a rigidez com que os papéis sexuais são significados,
determinando a atribuição de funções estáticas. Inexiste, com freqüência, a possibilidade de
dotação de sentidos distinta das preconizadas tradicionalmente, impedindo, por exemplo, que
seja identificada uma depressão numa jovem mãe, que a impeça de cuidar adequadamente de
seu bebê.
Recente artigo
16
do Caderno Mundo, do jornal A Folha de S. Paulo (12-10-05), sob o
título: Igualdade sexual combate pobreza, diz ONU, cita relatório do Fundo de População das
Nações Unidas em que este “impõe como condição para exterminar a pobreza no mundo a
igualdade entre homens e mulheres” (idem, p. A-10). Continuando, lemos: “O tema de 2005 –
o relatório é anual – é a igualdade de gênero e saúde reprodutiva. Segundo o fundo, não será
possível combater a pobreza enquanto mulheres sofrerem discriminações, violência e abuso
16
Flor, A. Igualdade sexual combate pobreza, diz ONU. Folha de São Paulo. São Paulo. 12 de Out. 2005.
Caderno Mundo, p. A-10.
35
sexual e não tiverem os mesmos direitos políticos, sociais e econômicos dos homens” (idem,
ibidem). O relatório fornece dados alarmantes, tais como: a metade dos 40 milhões de
infectados por HIV no mundo são mulheres, sendo a principal causa de mortalidade em
mulheres em idade reprodutiva e 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo foi espancada, ou
sofreu algum tipo de coação sexual. Sugere que a educação das meninas é um ponto
fundamental, contribuindo com o adiamento do casamento e de gravidezes prematuras.
Vemos aqui comprovada a relevância do tema não só em nível mundial como
especialmente em nível nacional, onde a pobreza e a desigualdade social são fatos observados
em nosso cotidiano. No entanto, chama-nos a atenção o foco direcionado apenas ao feminino,
desconsiderando-se a dialética presente na desigualdade de gênero, e a necessidade de se
proporem políticas voltadas aos homens. Verificamos um mosaico bastante abrangente, tanto
da literatura quanto dos autores dos estudos de gênero, no qual a discussão se volta à questão
feminina. Desta forma, entendemos como plenamente justificada a propriedade em
abordarmos a questão da desigualdade e violência de gênero, voltando-nos ao vértice
masculino.
Assim, o intuito do trabalho com os homens é o de poder aumentar a rede de
significações, seja de suas vivências, seja de suas crenças quase obrigatórias sobre o que é ser
homem e o que é ser mulher, e que, em razão de suas condições de socialização, se mostram
empobrecidas, restando-lhes poucas opções de significados que lhes garantam a identidade
desejada.
Citando João Carvalho (2003, p.26),
Distintamente de uma antropologia que considerava o mundo humano como
natural, consideramos agora a construção social, o relativismo das
produções sociais. Partimos do pressuposto de que a relação entre indivíduo
e sociedade é uma inter-relação, homem e cultura são indissociáveis. O
homem não é passivo diante da cultura, mas elemento constituinte de si
próprio e da sua cultura... Estamos atentos à dialética de mudanças e
36
permanências, considerando ambas as dimensões como presentes e se
constituindo mutuamente.
Embora ele, aqui, se refira ao homem ao falar do indivíduo e da cultura, acreditamos
ser este apenas mais um modo ‘naturalizado’ de referir-se ao ser humano no masculino.
Contudo, a idéia relevante é a de que há uma co-autoria, uma inter-relação na construção dos
códigos sociais, compartilhada pelos indivíduos de determinado agrupamento sociocultural,
que é transmitida não só de forma consciente, como, notadamente, de forma inconsciente,
uma vez que é revestida de seu aspecto ‘natural’.
Esta é uma perspectiva que pretendemos destacar na discussão deste estudo,
propondo que, em vista do que até agora foi discutido pelos diferentes autores apresentados,
bem como de nossos próprios achados no trabalho com homens, as atuais formas de
enfrentamento dos comportamentos em violência familiar e/ou de gênero têm-se mostrado
ineficientes, uma vez que abordam a questão de um ponto de vista dualista e normativo:
combatendo e punindo uns, e protegendo e vitimizando outros. Acreditamos que somente a
partir da incorporação dos gêneros (homens e mulheres), considerados pela dialética
proposta por Carvalho, verdadeiras transformações poderão ser alcançadas no âmbito das
relações violentas de gênero.
37
2. O CAMPO CONSTRUCIONISTA E A VIOLÊNCIA
Vimos no capítulo anterior como a questão da violência em geral e da violência de
gênero em particular têm se mantido com pouca ou nenhuma alteração nos últimos 30 anos,
apesar dos inúmeros programas voltados à proteção da mulher a partir dos movimentos
feministas dos anos 60-70. Descrevemos o caráter dualista, de tipo vítima/agressor, com que
o problema tem sido tratado, propondo a necessidade de romper com o caráter maniqueísta
de compreensão do fenômeno, através da inclusão dos homens em projetos que visem
facilitar a ampliação de uma rede de sentidos diversificada.
Neste capítulo, iremos definir o que entendemos por violência. Em seguida,
trataremos mais detidamente dos estudos de gênero a partir do campo construcionista,
naquilo que esta abordagem apresenta de mais original de nosso ponto de vista, ou seja, a
desconstrução do caráter natural ou essencialista, através do qual, atos violentos ou padrões
de relacionamentos entre homens e mulheres são compreendidos na cultura. Veremos
também, com base na concepção desconstrutivista que, sendo os valores hegemônicos
construções da e na cultura (e, portanto, de caráter mutável), podemos pensar em uma
fluidez ou não fixidez de padrões, sugerindo a possibilidade de transformações nestes
padrões, não limitada à expressão seja pelo ato violento, seja pela imposição de lugares
hierárquicos inflexíveis. Ainda discutiremos as concepções de identidade sexual e identidade
de gênero e como as construções destas se dão na cultura.
38
2.1- DE QUE VIOLÊNCIAS FALAMOS?
Ao longo dos anos em que vimos trabalhando na coordenação de grupos, tanto de
homens como de mulheres das classes populares
17
, constatamos a prevalência do que é
designado como ideologia naturalista. Esta denominação diz respeito a um modo de
organização das idéias que determina de forma quase dogmática os atributos femininos e
masculinos, ou ainda, o que é considerado próprio do comportamento de homens e mulheres,
como algo naturalmente dado, algo da constituição do indivíduo e que vem atrelado ou é
definido pelo sexo biológico. Embora a demanda de atendimento a homens na PMFC, seja
quase que inteiramente de cunho jurídico do âmbito do Direito da Família, é bastante comum
que, a medida que as discussões nos grupos caminhem, verifiquemos manifestações
violentas de gênero, que comumente envolvem, ofensas verbais, agressões físicas, idas à
delegacia para a realização de boletins de ocorrência, ou ainda, a presença da polícia
atendendo a chamados feitos pelas mulheres, vizinhos ou parentes na quase totalidade dos
casos que atendemos. Comportamentos que envolvem práticas tais como: agressão física,
desqualificação sistemática da/o companheira/o, negligência afetiva em relação a/o
companheira/o e/ou aos filhos, negligência financeira em relação aos filhos, proibição de que
a mulher exerça um trabalho profissional fora do âmbito doméstico, proibição de que
mulheres tenham vida social, acusações que põem em dúvida o caráter moral da mulher,
violência praticada por homens sob efeito de substâncias tóxicas (principalmente álcool),
infidelidade conjugal masculina, atos violentos desencadeados por ciúme e tantos outros não
são identificados nem como práticas violentas nem como atos que visam a manutenção do
lugar de poder, mas como práticas naturais, ligadas a um ou outro sexo, freqüentemente
consideradas necessárias para a constituição do caráter de identidade masculina, como
descreve Heilborn (1999) ao referir-se aos roteiros prescritos para o gênero masculino. Para
17
Anterior ao atendimento dos grupos de homens, realizamos, por alguns anos, a coordenação do grupo de
mulheres na Instituição.
39
exemplificar ao que nos referimos, dentro deste código é próprio do homem - o que em
outras palavras quer dizer que é justificado - que este agrida a mulher ou destrua os bens da
casa quando sob efeito do álcool. Embora, tanto homens quanto mulheres, ao relatarem fatos
como estes, adotem uma postura recriminadora (não acham uma conduta valorizável ou
desejável), isso não tem, contudo, um caráter de implicação do sujeito como responsável por
si mesmo e por seus atos: é, antes, efeito do álcool, sendo normal que homens bebam. Como
efeito complementar, tampouco as mulheres se vêem como sujeitos, com possibilidade de
autodeterminação, podendo aceitar ou recusar a convivência com tal comportamento.
Este é um exemplo dentre muitos, que tem como conseqüência não só autorizar ou
justificar práticas violentas e abusivas, quanto impedir que tais práticas sejam reconhecidas
como violentas. Assumem um caráter de ‘as agruras normais do casamento’, ou ‘homem é
assim mesmo’, ou ainda, ‘minha mãe também passou por isso’, impedindo que sejam
questionadas uma vez que adotadas como naturais, como também apontado em outros
autores (HEILBORN, 1999; MUSZKAT, M., 2003;MUSZKAT,S.,2003).
As práticas violentas de homens contra suas companheiras não se esgotam na
violência física, e estão inseridas dentro de um código perpetuado na cultura, que associa
estas mesmas práticas a valores à concepção de masculinidade.
Observamos também como determinados valores hegemônicos estão a serviço da
manutenção da hierarquização de poderes, freqüentemente definidos como naturais. Os
estudos de gênero, iniciados com o movimento feminista e amplamente teorizados desde o
final dos anos 70 por cientistas sociais do campo construcionista tais como Gayle Rubin,
Carol Vance, Jeffrey Weeks, Maria Luiza Heilborn, Joan Scott, contribuem de forma
significativa na desconstrução deste caráter essencialista que vem justificando e perpetuando
tanto a adoção de práticas violentas como o desequilíbrio de poderes nas relações conjugais
e familiares.
40
Assim, a adoção deste vértice se justifica por fornecer subsídios teóricos que nos
permitem questionar o caráter essencialista ou natural de determinados valores e práticas
culturais.
Na teoria psicanalítica que articularemos com a teoria construcionista acima
mencionada, encontramos ao longo da obra freudiana, uma longa série de trabalhos (Os três
ensaios sobre a sexualidade, 1905; Sobre o Narcisismo: uma introdução, 1914; Os Instintos
e suas vicissitudes, 1915; Luto e Melancolia,1917; O Mal- Estar na Civilização,1930, e
outros), que abordam a questão da agressividade, do ódio, da destrutividade e da violência
(embora o termo violência propriamente dito só tenha sido usado na correspondência com
Einstein, intitulada Por que a Guerra,1933). A pulsão agressiva ou o ato violento aparecem
tanto como elemento fundante e constitutivo do psiquismo, como ato que inaugura a
civilização e sua organização social, como propõe Freud em Totem e Tabu (1913).
Como elemento garantidor da integridade psíquica, Freud discorre sobre o desamparo
fundamental inerente à condição humana e o conseqüente estado de dependência de um
outro na constituição de sua subjetividade. Isso, ao mesmo tempo em que marca a
intersubjetividade como da ordem do imprescindível na constituição do indivíduo,
enfatizando a dependência de um outro na construção e manutenção de um si mesmo,
também evidencia o peso do social - transmitido inicialmente por este outro que cuida
imbuído de valores da cultura -, na construção da subjetividade e da identidade de cada
sujeito da e na cultura. Assim, o sujeito é ao mesmo tempo individual e social, como lemos
em Freud em Psicologia das Massas e análise do ego (1921, p.91), “a psicologia individual
é ao mesmo tempo também psicologia social”.
Descreve o aparelho mental como constantemente sujeito a pressões e excitações
tanto vindas do mundo externo quanto de seu interior, e a necessidade a que fica submetido
em eliminar tais excitações uma vez que tem seu funcionamento regido pelo Princípio da
41
Constância, princípio este que visa manter o nível de excitação do aparelho psíquico o mais
baixo possível, já que o incremento de excitação é sentido como desprazeroso, tal qual
postulado em seu artigo de 1911, Dois princípios do funcionamento mental.
O desprazer resultante da intensidade pulsional a que o aparelho psíquico fica
submetido, é vivido como desamparo, pondo em risco a integridade do aparelho psíquico e
do sujeito. Isabel Kahn Marin (2002) em seu livro, resultado de sua tese de doutorado,
intitulado Violências, irá argumentar a favor do que denomina como violência fundamental,
definindo-a como uma violência necessária para a constituição do sujeito, para a sua saída do
princípio do prazer, condição para o surgimento do sujeito socializado. Sem esta violência,
que na terminologia freudiana associa-se à castração, o indivíduo ficaria abandonado a uma
intensidade pulsional insuportável cuja resultante, segundo Kahn, seria a transformação
destas pulsões internas numa violência aniquiladora que impeliria o sujeito a expeli-las de
forma destruidora sobre o outro. A agressividade como meio de expulsar o mau, o
indesejado, é assim descrita em O instinto e suas vicissitudes (1915, p.160), “pode-se
asseverar que os verdadeiros protótipos da relação de ódio se originam não da vida sexual,
mas da luta do ego para preservar-se e manter-se narcisicamente”. Afirma que inicialmente,
são sentidos como idênticos o mau e estranho e aquilo que é externo ao ego. Freud descreve
o mecanismo de projeção, como sendo inicialmente um mecanismo de preservação do
aparelho mental, cujo intuito é o de procurar livrar-se, expulsar de dentro de si, sobre um
outro externo, aquilo que é sentido internamente como mau e desorganizador, atendendo ao
princípio norteador de funcionamento mental, o Princípio do Prazer. Com efeito, para Freud
a agressividade tem duas versões, uma no interior do Princípio do Prazer, e outra a partir do
abandono desta premissa básica para o psiquismo. Ainda que a agressividade seja inerente ao
ser humano em ambas, estas versões resultam em concepções muito diversas para o que nos
interessa. Inicialmente, na primeira teoria das pulsões, ela é pensada enquanto um elemento
42
da própria sexualidade, elemento que visaria possibilitar uma apropriação do objeto sexual
no caso deste não se oferecer espontaneamente. Esta primeira versão parece, de fato, se
aproximar da idéia de uma “naturalidade da violência” na sexualidade masculina. Em sua
segunda versão, após 1920, a agressividade se desvincula da sexualidade com o conceito de
Pulsão de Morte. Nesse caso, ela adquire, contudo um caráter destrutivo apenas quando
desfusionada de Eros, sendo, normalmente, garantidora da vida e da integridade psíquica
quando integrada às pulsões amorosas ou de vida. Essa segunda versão da naturalidade da
violência inerente a ambos os sexos, serve para compreender a própria organização vital a
partir de outras bases, sendo que dificilmente pode ser invocada para atribuir uma natureza
violenta de modo privilegiado ao gênero masculino. Novamente em 1921, em Psicologia
das Massas e Análise do Ego, Freud assevera a importância no sentido de uma unificação
dos instintos como condição de desenvolvimento, dizendo que há um “avanço irresistível no
sentido de uma unificação da vida mental” (idem, p.133), tal qual haveria no mito de Platão,
ao qual refere, em seu artigo de 1920, o desejo e a necessidade de fundir-se com a ‘outra
metade’ faltante.
Tomando como base as formulações freudianas acerca dos processos de fusão e
integração dos instintos como garantidor da vida e da saúde mental, seria possível
estendermos essas concepções para uma melhor compreensão quanto ao insucesso das
políticas públicas vigentes, uma vez que estas se apóiam habitualmente em modelos
dualistas? No mesmo sentido, é notável o modelo maniqueísta que rege as práticas de
dotação de valores positivos e negativos para tratar das diferenças, dado este plenamente
constatado tanto nas problemáticas relacionadas à violência de gênero, quanto do
preconceito em geral.
43
Uma das questões que nos colocamos é: se entendermos que uma das formas possível
de resposta frente a uma ameaça à integridade narcísica seja aquela que se dá por meio do
ato violento (no que este ato tem como tentativa de recuperação de poder e de resposta à
frustração face à impotência), seria viável pensarmos que a transformação dos ideais
culturais associados à noção hegemônica de masculinidade, -através da alteração ou
ampliação dos sentidos vinculados a estes ideais- implicaria também numa modificação dos
padrões nas relações de gênero? Para tanto, nos valeremos, mais adiante neste trabalho, dos
artigos freudianos que tratam sobre a questão grupal, a instalação e função do ideal de ego e
superego e sua relação com o narcisismo em sua articulação com os valores disseminados
em nossa cultura, de forma semelhante a que fez Carvalho (2003) ao tratar do tema da
violência de gênero e sua inter-relação com o universo do imaginário romântico feminino.
Uma outra questão que se nos coloca decorrente das anteriores é a de se podemos
pensar a violência de gênero como manifestação da mesma ordem daquela descrita por Kahn
ao relacionar a violência como resposta ao desamparo pulsional.
Ou ainda, seria cabível compreendermos atos violentos nas relações de gênero como
algo da ordem das pulsões sádicas cujo caráter básico diz respeito a uma satisfação libidinal?
Identificamos distintas violências, desde aquela do marido que espanca sua mulher de
forma recorrente que nos remete a pensarmos na violência da desfusão pulsional, do
sadismo, onde a violência associa-se ao prazer sexual, até aquelas que permeiam as relações
de maneira naturalizada evidenciadas na desigualdade de poderes.
Bourdieu (1998), referindo-se ao caráter naturalizado destas relações, nos oferece
uma interessante contribuição ao dizer que, a dominação de gênero impede que tanto homens
quanto mulheres possam pensar fora do esquema de dominação masculina, levando-os a
interpretar essa relação como natural e assim conspirar por sua própria dominação. Descreve
44
este modo de funcionamento social como esquemas não-pensados de pensamento, sugerindo
um caráter inconsciente compartilhado de funcionamento (idem, p.22).
Por fim, o que justificaria essa permanência ou adesão a esquemas tradicionais de
gênero e à violência a que mulheres são freqüentemente submetidas, que temos visto
repetirem-se por gerações e gerações, a despeito dos esforços dos movimentos feministas e
das políticas públicas destinadas a eliminação destas práticas?
Pensamos que uma análise da inter-relação das duas correntes teóricas aqui propostas
– a psicanalítica e a construcionista – nos forneçam maiores subsídios no sentido de
pensarmos as questões de gênero nos três níveis em que se articulam: o individual, o cultural
e o social.
Evidentemente não poderemos esgotar ou abarcar essa gama diversificada de
expressões violentas neste trabalho. Nossa intenção é bem mais modesta, propondo-nos a
identificar e discutir as expressões desiguais de gênero, assim como se manifestam no
discurso masculino dos grupos que coordenamos. Pensamos que a inclusão do vértice
masculino, assim como proposto por alguns autores (GREGORI, 1993 e outros), nesta
discussão, possa contribuir para uma melhor apreensão do fenômeno oferecendo um
instrumental para se pensar novas formas de abordagem do problema no âmbito das políticas
públicas. O aprofundamento dessa discussão será feito no capítulo quatro.
2.2-O CONSTRUCIONISMO SOCIAL
O construcionismo social se propõe a questionar como se produzem, na cultura, os
sentidos atribuídos às condutas, comportamentos, crenças, valores, ideologias e práticas
humanas, como processos que se dão dentro de um contexto histórico, social e cultural.
45
Neste capítulo, procuramos explorar a noção de construção das relações de gênero,
valendo-nos de autores do já citado campo construcionista – antropólogos, sociólogos,
historiadores e psicanalistas - que discutem o tema dentro desta perspectiva.
Por fim, uma vez que sabemos ser imprescindível considerar características tais como
sexo, gênero, raça, classe social, escolaridade, religião (e talvez ainda outras variáveis) de
cada indivíduo quando se pretende fazer uma análise de suas práticas, não pretendemos
esgotar ou generalizar para o universo masculino as idéias contidas neste capítulo. No
entanto, como estes homens com quem trabalhamos estão inseridos, tanto quanto são co-
construtores e reprodutores desta cultura, acreditamos que a análise e os exemplos que eles
nos fornecem através de suas falas possam ser representativos de uma determinada forma de
pensar e das práticas adotadas nas relações conjugais heterossexuais
18
, nas relações
parentais, bem como na interação com outros homens.
Vale, contudo lembrar que a cultura que reproduz e perpetua as relações hegemônicas
masculinas de gênero, onde práticas de dominação dos homens sobre as mulheres são
avalizadas, não se restringe ao universo masculino. Sem querer com isso culpabilizar as
mulheres por situações de humilhação ou violência a que são com freqüência submetidas,
não podemos desconsiderar que também as mulheres compartilham extensamente destes
mesmos códigos e valores, contribuindo com sua manutenção. É, portanto, essencial
despertarmos nosso olhar para um sujeito implicado como sujeito da e na cultura. Impedidos
de olhar para a questão da violência de gênero de um ângulo que abranja ambos os gêneros,
caímos numa armadilha maniqueísta que, de nosso ponto de vista, tem sido o grande
obstaculizador na obtenção de melhores resultados para a transformação destes padrões de
relacionamento. Voltando a Gregori (1993), esta faz em seu Cenas e Queixas, uma rica
18
Explicito as relações como sendo heterossexuais, uma vez que nunca houve um caso de homossexualismo que
tenha chegado a procurar a Instituição. Contudo, isto possivelmente venha a confirmar as hipóteses quanto ao
que é permitido enquanto prática sexual dentro de determinado grupo onde a ideologia predominante é a de
masculinidade hegemônica.
46
descrição do trabalho realizado numa instituição paulista, fundada nos anos 80, voltada ao
atendimento de mulheres vítimas de violência dentro de uma ótica feminista. Gregori realiza
uma ampla elaboração que converge com nossas observações de que a simples exclusão de
uma das partes do casal, e a atribuição de sentidos vitimizadores ou culpabilizantes às
mulheres e homens respectivamente, têm se mostrado ineficaz no que se refere a eliminar
comportamentos de tipo abusivo em relação às mulheres. Há que se considerar que as
relações de complementaridade, os desejos e sonhos das mulheres em relação ao
companheiro e a ligação afetiva entre eles impedem que a questão seja tratada
exclusivamente sob um prisma punitivo pelas políticas públicas vigentes. Ao falar da
intrigante observação de que embora as mulheres que procuravam assistência nesta
instituição estivessem ‘sendo ajudadas’ a desenvolver sua auto-estima, se fortalecer e poder
‘se livrar’ dos companheiros abusivos, isso não acontecia. Em suas palavras: “a adesão das
mulheres não é facilmente garantida, já que elas estabelecem relações de afinidade e
intimidade com os homens e, sem dúvida, encontram benefícios (afetivos, sexuais, de
estabilidade social e, muitas vezes, econômica) nessas relações” (idem, p.54).
Na mesma linha encontra-se o já mencionado trabalho de João Alberto Carvalho
(2003), que expõe a situação de maior vulnerabilidade em que se encontram, atualmente, as
mulheres com parceiros fixos em relação à contaminação pelo vírus HIV, fato também
descrito por outras autoras feministas como Pitanguy (2003) e Barbosa (2003).
É, portanto, no intuito de sair de uma abordagem dicotomizada, considerando os
exemplos fornecidos acima aliados à nossa experiência institucional e psicanalítica, que
buscamos outras formas de compreensão a fim de nos auxiliar na promoção de mudanças
nos padrões de relacionamentos de violência de gênero. Assim, voltemos aos sociólogos.
No campo construcionista, Jeffrey Weeks (1996) e Carol Vance (1995) descrevem
como preocupação central do construcionismo social não o que causa uma ou outra forma de
47
definição de sentidos – como por exemplo os sentidos atribuídos à homossexualidade ou a
heterossexualidade- mas sim o problema de por quê e como a nossa cultura privilegia um e
marginaliza outro. A que fim ou finalidade servem essas definições ou, ainda, a serviço do
que elas estão.
Coloca-se em xeque o caráter essencialista de determinadas concepções que, ao
serem dotadas de sentidos dados pela cultura, impõem padrões normatizadores de
comportamentos que são preconizados e perpetuados dentro dessa mesma cultura, tendo
como finalidade a institucionalização das relações de poder na sociedade. Ainda outras
autoras feministas citadas por Monteiro (2002), como Butler e Scott, procuram discutir a
desnaturalização ou desconstrução das noções de masculino e feminino através dos estudos
de gênero. Conforme dito por ele, estas autoras “buscam repensar como o corpo biológico
adquire identidades sociais e de gênero” (MONTEIRO, op. cit., p.247) numa crítica ao
pensamento feminista clássico que pressupõe a mulher como categoria única, de forma
generalizada, segundo a qual esta se encontra submetida à opressão exercida pela
masculinidade hegemônica.
Sob a perspectiva dos estudos de gênero, categorias como “homem” e “mulher”
devem ser entendidas dentro de seus contextos sociais e culturais, levando-se em conta não
apenas a constituição biológica, mas principalmente questões sobre como se articulam o
corpo biológico, o desejo sexual, e as práticas dos indivíduos, além de sua inserção dentro de
um determinado contexto sócio-cultural, levando sempre em conta características como raça,
religião, classe social, escolaridade, etc, (MONTEIRO,2002; PAIVA, 2000).
Referindo-se a Annamarie Jagose, Monteiro faz uma síntese esclarecedora ao
descrever os estudos desconstrutivistas como aqueles que visam criticar a “naturalidade da
correspondência entre sexo biológico (aquele associado ao aparelho reprodutivo, aos
cromossomos), identidade de gênero (vista como representação social a respeito do sexo
48
biológico) e o desejo sexual (homo, hetero ou bissexual)” (MONTEIRO, op. cit., p.248).
Esta corrente de pensamento põe em questão o caráter de naturalidade, de conceitos
fortemente enraizados na cultura tais como a heterossexualidade ou o lugar atribuído ao
feminino em função de sua condição reprodutiva, ou seja, questiona-se tanto o lugar quanto
os papéis naturalmente atribuídos a homens e mulheres em função de sua constituição
biológica e de sua capacidade reprodutiva.
Voltemos a Freud (1905) onde em seu artigo Os três ensaios sobre a sexualidade, irá
destacar as diferenças entre as concepções de instinto e de pulsão, retirando desta última o
caráter natural da sexualidade humana. A pulsão, segundo Freud, tem como objetivo sua
satisfação, admitindo, contudo, um objeto variável para tal fim. Visa à diminuição das
excitações do aparelho mental, vivenciadas como desprazerosas. A busca pelo objeto que
atenda à demanda da pulsão é, conseqüentemente, ao mesmo tempo interminável,
permanente e inalcançável, uma vez que o objeto almejado associa-se a um objeto mítico,
fantasiado, mediado pelo desejo e inspirado nas primeiras relações objetais da infância. Por
este motivo, é ao mesmo tempo um objeto buscado e nunca alcançado. Este não é um ponto
de menor importância quando nos deparamos com as falas dos homens de nossa amostra,
que com freqüência buscam encontrar em suas companheiras, um objeto idealizado,
preenchedor de suas demandas, e ao serem frustrados atribuem a falha ao objeto, disparando,
como veremos nos exemplos dos extratos, acusações de caráter maniqueísta.
Ao instinto, por sua vez, vincula-se uma necessidade, cuja satisfação só é possível de
ser preenchida no encontro com um objeto fixo, determinado, característica do
comportamento animal.
49
Encontramos em Manuel Castells (1999) uma interessante discussão sobre a forma de
construção social da identidade como um processo inter-relacionado que se dá num contexto
marcado pelas relações de poder.
Ele propõe três diferentes formas de origem dessa construção, as quais denomina:
Identidade legitimadora, introduzida pelas instituições dominantes na sociedade, cujo intuito
é garantir e expandir sua dominação sobre os atores sociais.
Este primeiro grupo seria constituído pelas instituições já legitimadas, ou ainda, por
aquelas que exercem uma maior ascendência na sociedade em termos de definição de
padrões e valores sociais. Carrega em si a proposta de transmissão ideológica de uma
identidade padronizada, não diferenciada, ou ainda, uma identidade imposta.
A um segundo grupo, denomina-o como de Identidade de resistência, caracterizado
pelo agrupamento dos atores em posições desvalorizadas e/ou estigmatizadas, ou seja, não
compartilha da atribuição de sentidos sociais que se verifica no primeiro grupo. Criam,
assim, um movimento de resistência aos valores hegemônicos, identificando-se entre si
como um grupo de identidade política.
O terceiro grupo descrito, o de identidade de projeto, se dá “quando os atores sociais,
utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova
identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade, e ao fazê-lo, de buscar a
transformação de toda a estrutura social” (idem, p.24).
Este é o caso de todos os movimento sociais organizados, como o feminismo,
movimento negro, movimento pela legalização do aborto, de igualdade de direitos a grupos
minoritários, etc, que agrupam atores sociais, inicialmente pertencentes ao grupo anterior,
mas que passam a se organizar de forma a sair do lugar de exclusão. Caso sejam bem
sucedidos, podem vir a ocupar o lugar definido pelo primeiro tipo de identidade – a
50
institucionalizada - dando-nos, portanto, a dimensão da fluidez contida na noção de
identidade; da possibilidade de transitoriedade ao longo da história do que são valores
hegemônicos ou excluídos.
Consideramos este um ponto que merece ser destacado uma vez que indica como
valores e padrões aceitos e/ou rejeitados na cultura podem ser alterados – o que atesta para o
caráter não estático e refuta a idéia essencialista destes padrões – através de atos de
resistência e projetos, como denominado por Castells, sendo assim, passíveis de
transformação. Essa idéia evidencia a incongruência de se pensar nos códigos hegemônicos
masculinos como códigos de valores absolutos, inalteráveis, e naturais, mas antes, ressalta
sua finalidade de manutenção de poderes dominantes. Esta perspectiva admite que pensemos
em ações que ampliem os códigos tradicionais pelos quais muitos dos homens da classe
popular são regidos. Esses códigos, se por vezes lhes outorgam um lugar de superioridade
em relação às mulheres, em outras situações – tais como quando perdem o emprego e
passam a depender financeiramente da companheira – vêem-se aprisionados num lugar de
absoluta solidão emocional uma vez que se vêem impedidos de atender a um modelo
idealizado de masculinidade. Assim, gostaríamos de ressaltar que a crítica que fazemos ao
tradicional esquema de gênero, não se deve ao que sua forma tem de tradicional mas sim à
sua inflexibilidade enquanto sistema de crenças e valores.
Continuando, Castells mostra-se principalmente interessado em apresentar
instrumental que nos possibilite compreender as mudanças sociais que têm levado a
transformações na construção da identidade coletiva, levando assim não só a mudanças na
identidade individual, como também nas formas de organização social. Discute a inter-
relação destas transformações com a forma de organização familiar patriarcal, que vem
sendo enfraquecida uma vez que novos modelos passam a coexistir dentro de um sistema
autorizado. Assistimos à mudança de uma forma de identidade legitimadora (a família
51
patriarcal como única existente) e a inclusão de outras formas de estruturação familiar que
passam a ser legitimadas, resultando em novas possibilidades de identidade no mundo
contemporâneo. Entende que este processo vem associado à intensificação de uma
diversidade de movimentos como os feministas, gays, lésbicas, sendo estes diretamente
relacionados a um abalo e desmantelamento da família patriarcal. A entrada das mulheres no
mercado de trabalho e a necessidade, nos dias atuais, que muitos homens têm da participação
de suas companheiras no orçamento familiar incide diretamente na ideologia do
patriarcalismo, que tinha como justificativa legitimadora a idéia de que o provedor deveria
gozar de privilégios de dominação.
Sustenta ainda que o movimento feminista que se deu ao final dos anos 60 e começo
dos anos 70, a princípio nos EUA e posteriormente difundindo-se para diversas partes do
mundo, teve um caráter social transformador, desafiando o patriarcalismo e evidenciando a
diversidade existente dentro de distintos grupos feministas, cujas lutas expressam seu
multiculturalismo. Diz ele:
O que asseguro é que a essência do feminismo, como praticado e relatado,
é a (re) definição da identidade da mulher: ora afirmando haver igualdade
entre homens e mulheres, desligando do gênero diferenças biológicas e
culturais... em todos os casos, seja por meio da igualdade, da diferença ou
da separação, o que é negado é a identidade da mulher conforme definida
pelos homens e venerada na família patriarcal (idem, p.211).
Embora o movimento feminista origine-se como movimento que recusa o lugar de
opressão e submissão atribuído ao feminino pelo universo dominante masculino, João
Carvalho (2003) nos relembra o que traz Bourdieu, que, questionando o caráter estático desta
dominação, propõe que se a submissão não é um lugar autorizado pelas mulheres, tampouco
é um modelo exclusivamente imposto pelos homens, ressaltando o aspecto dialético contido
nesta relação dominado/dominador, uma vez que nem uns nem outros “dispõem para o
52
pensar e para se pensar, senão de instrumentos de conhecimento que têm em comum com ele
(dominador) e que não são senão a forma incorporada da relação de dominação”
(BOURDIEU apud idem, p.28).
Consideramos este argumento altamente relevante uma vez que aponta para duas
questões fundamentais quando se pretende abordar a problemática de gênero: ao mesmo
tempo em que rompe com um sistema dualista de vítimas e opressores (no qual a maior parte
das políticas públicas se sustentam), evidencia a impossibilidade de pensar-se fora do
contexto histórico cultural no qual se está inserido. A reprodução, portanto, de determinados
modelos de relacionamento não se dá senão pelos próprios indivíduos daquela cultura, que
são, a um só tempo, produtores e produto dos valores culturais hegemônicos. Além disso,
atenta, como no trabalho acima citado de Gregori, para o questionamento de uma ideologia
que aprisiona às mulheres num lugar vitimizado, sendo conseqüentemente tratadas como
incapazes de gerir ou ter poder sobre seu próprio destino, numa posição infantilizada.
Castells, propõe olharmos para o caráter cambiante da noção de si mesmo (de
identidade), bem como dos papéis anteriormente associados a um ou outro sexo como sendo
naturais, uma vez que o sistema patriarcal vem perdendo força como sistema único na
sociedade contemporânea. Sugere que esta transformação traz em si uma correspondente
transformação coletiva da noção de identidade das mulheres, como também uma confusão
quanto ao que os homens entendem por identidade masculina, abrindo-se um leque de
possibilidades identitárias que antes ficavam relegadas a grupos marginais.
Já Carvalho (2003) é menos otimista, e a nosso ver, mais realista, ao afirmar que:
“apesar da observação dos avanços da mulher no domínio público como no emprego e na
escolaridade, sobretudo nos centros urbanos, não se verifica uma correspondência
equivalente de liberdade, autonomia e igualdade no terreno privado” (idem, p.25).
53
No entanto, não discordamos da visão de Castells, sendo importante a ressalva que
lembremos não ser possível tratar da questão genericamente desconsiderando os distintos
modos de funcionamento dos diferentes extratos sociais.
Uma pesquisa realizada em 1999, com sujeitos de classe média, com grau de
escolaridade superior na cidade de São Paulo, intitulada Os Homens, esses desconhecidos:
Reprodução e Masculinidade, apontam resultados que convergem com esta argumentação de
Castells no que se refere a novos arranjos entre homens e mulheres nas relações conjugais. A
pesquisa evidencia o questionamento e novas formas de organização entre estes jovens
casais de classe média paulistana, negociando funções e papéis que contrariam os antigos
sistemas de gênero de suas famílias de origem. Contudo, como já dissemos em outra parte
(MUSZKAT & MUSZKAT, 2003), verificamos algo distinto nas famílias com as quais
trabalhamos na PMFC. É sabido que as mulheres dos extratos mais pobres, sempre estiveram
inseridas no mercado de trabalho fora do âmbito doméstico, sendo inclusive, com
freqüência, a principal ou única fonte de renda destas famílias. Isso, no entanto, não alterou,
nestas famílias as expectativas em relação aos esquemas de gênero no nível do imaginário,
ou seja, embora essas famílias não se constituam segundo os modelos tradicionais de família
nuclear nem tampouco obedeçam à divisão sexual do trabalho deste modelo (uma vez que
nem os homens são provedores, nem as mulheres podem dedicar-se exclusivamente ao
cuidado doméstico e da prole), mantém, ainda assim, na esfera do imaginário, lugares e
funções que dizem respeito ao esquema tradicional hegemônico. Propusemos naquela
ocasião que a manutenção destes lugares imaginários fixos poderiam estar associados “a
tradução de uma manifestação simbólica em que o homem corporifica a idéia de autoridade
moral do grupo, de responsável pela respeitabilidade familiar” e que seria “este fator que
estimularia as mulheres a manter simbolicamente uma posição de subordinação que lhes
garanta respeitabilidade” (idem, p.130), o que é também compartilhado no universo de
54
representações masculinas deste extrato ao qual nos referimos. Vemos, portanto, que outros
valores - como o da respeitabilidade - atuam na esfera simbólica de forma a complexizar a
questão quando pensamos em discutir determinados lugares de poder, ou seja, que a
subordinação feminina no âmbito da família, como também lemos em Sarti (1996), por
paradoxal que seja, é a garantia de uma posição simbólica de poder dentro de um universo
cuja presença masculina outorga à mulher um diferencial quanto ao seu status social.
Pensamos que, esse também, seja um fator que mereça questionamento em função da
contradição evidenciada entre o universo imaginário e a vivência cotidiana. No entanto, é de
se destacar, como a força das representações que habitam o mundo mental dos sujeitos,
quando coladas a determinados sentidos, podem perdurar como esquemas de pensamento
fixos em detrimento da percepção da realidade externa.
2.3-GÊNERO, SEXO E SEXUALIDADE NOS ESTUDOS DE GÊNERO
Alguns termos como gênero, sexo, sexualidade, identidade de gênero e identidade
sexual são discutidos por diversos autores construcionistas, com o intuito de verificar os
sentidos atribuídos a eles dentro de um determinado contexto histórico-cultural.
Numa revisão da palavra “gênero” feito por Joan Scott (1995), ela descreve como seu
uso, anterior ao movimento feminista, era uma variante para termos como masculino ou
feminino, ou ainda para homem e mulher, de forma indistinta e sob um vértice francamente
biológico. O movimento feminista, no final dos anos 60 e ao longo dos anos 70, retoma a
expressão e passa a usá-la como sinônimo de feminino. Pensa-se em gênero ou luta de
gênero como a luta contra a opressão de mulheres por homens. Assim, passa-se do conceito
biológico de gênero masculino ou gênero feminino para atribuir ao gênero um caráter que
em muito se aproxima do conceito marxista de luta de classes e de opressão de uma classe
dominante (a masculina) sobre a classe oprimida (as mulheres).
55
Scott descreve ainda as ampliações que o conceito sofre, deixando de ser identificado
à mulher oprimida e passando a designar as relações entre os sexos: “o gênero torna-se,
antes, uma maneira de indicar ‘construções sociais’- a criação inteiramente social de idéias
sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres”, ou seja, é uma maneira de se referir
“às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres”
(idem, p.7).
A autora propõe uma definição que se apóia em duas partes,
O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre
duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um
primeiro modo de dar significado às relações de poder. As mudanças na
organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças nas
representações de poder (idem, p.14).
Comenta a fixidez com que os sentidos simbólicos são expressos nas doutrinas
religiosas, educativas, científicas e jurídicas, atribuindo aos gêneros caráter normativo
calcado numa oposição binária, que “afirma de forma categórica e sem equívocos os sentidos
do masculino e do feminino” (idem, p.14). Desafia, portanto, a história a contestar esse
caráter de fixidez binária colada à concepção de gênero, incluindo noções como a política e
referências às instituições e organizações sociais a fim de questionar um posicionamento que
é com freqüência confundido com um consenso social e não como expressão de um conflito
(idem, p.15).
Desta forma, conclui a autora, o uso de gênero coloca ênfase num sistema de relações
que pode incluir o sexo, mas não é determinado por ele como tampouco é determinante da
sexualidade (idem, p.7).
56
Carole Vance, em seu artigo A Antropologia Redescobre a Sexualidade (1995),
critica a atuação dos estudos antropológicos e da antropologia em geral como área que se
pretende interessada em investigar as práticas e costumes sexuais dos povos mas que, sob
seu ponto de vista, tem se mostrado muito reservada e até mesmo resistente no que diz
respeito a desenvolver programas de estudos seriamente voltados para a questão da
sexualidade humana. Atribui aos estudos dos construcionistas sociais o início de estudos
mais sérios voltados ao tema. Scott e Vance descrevem como os movimentos feministas e as
feministas acadêmicas passam a repensar o gênero, focando a questão de que “o que parecia
um corpo (o feminino) naturalmente marcado pelo gênero era, na verdade, um produto
mediado socialmente em alto grau: a feminilidade e os atrativos sexuais eram alcançados por
uma persistente socialização com respeito aos padrões de beleza, maquiagem e linguagem
corporal” (VANCE, 1995), segundo a qual sexualidade e reprodução ligavam-se de forma
aparentemente natural a uma concepção de gênero feminino.
Os esforços feministas visavam demonstrar, a partir de estudos antropológicos de
diferentes culturas, a grande variação do papel das mulheres nos diferentes grupos culturais.
Assim, colocou-se em questão a ideologia predominante quanto à naturalidade da
subordinação feminina, que baseada na reprodução biológica, associava gênero com
sexualidade e definia padrões de comportamento.
Teresita de Barbieri (1991) descreve como os estudos feministas que visavam
investigar as relações de subordinação verificaram a impossibilidade de se tratar ou
compreender a questão fazendo uso de um único modelo explicativo. Reconheceram a
necessidade do envolvimento e aportes das diversas áreas das ciências humanas, uma vez
evidenciada a importância de considerar-se, no estudo sobre mulheres, as diferentes
categorias de inserção social/cultural tais como: classe, grupo social, escolaridade, religião,
idade, estado civil. A importância de considerar-se estas diversas categorias, a nosso ver, diz
57
respeito ao reconhecimento de que a igualdade biológica sexual entre as mulheres não as
constituem como grupo homogêneo, em igual situação de opressão ou subordinação.
Essa autora explica a origem dos estudos de gênero a partir de estudos feministas que
buscavam entender como as formas de organização e funcionamento social condicionavam a
situação de subordinação das mulheres. Assim, o estudo das sociedades de maneira mais
ampla, incluindo-se aí estudos sobre os relacionamentos entre homens e mulheres nos
diferentes tempos e lugares sociais em que estes se dão, abre caminho para o enfoque do
conceito de gênero como uma categoria que corresponde ao “sexo socialmente construído”
(BARBIERI, 1991). Ela cita Rubin (1986, p.29, tradução nossa), que define gênero como:
O conjunto de dispositivos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade
biológica em produtos da atividade humana na qual se satisfazem essas necessidades
humanas transformadas”.
Barbieri explica que as categorias sexo/gênero
são os conjuntos de práticas, símbolos, representações, normas e valores
sociais que as sociedades elaboram a partir da diferença sexual anátomo-
fisiológica e que dão sentido a satisfação dos impulsos sexuais, a
reprodução da espécie humana e aos relacionamentos entre as pessoas em
geral (1990, p.30)
É interessante a discussão proposta por ela em relação à dominação/controle do corpo
reprodutivo feminino, em função do poder que este detém por sua condição reprodutiva e de
continuação das gerações. No entanto, esclarece ela, o poder do corpo é um poder outorgado
pelas sociedades e não imposto pelas mulheres (idem, p.32).
Não obstante, se não é imposto por elas, também não lhes passa como dado
irrelevante. Observamos em nosso trabalho com grupos de homens que, se por um lado os
homens se vêem com poderes no campo financeiro (não implicando que tenham dinheiro,
58
mas que usam o pagamento ou não da pensão alimentícia para os filhos como instrumento de
poder e retaliação contra suas ex-companheiras, mãe de seus filhos), estas por sua vez,
reconhecendo o poder que lhes é facultado em freqüentemente terem a guarda de seus filhos,
usam livremente desta prerrogativa no intuito de equilibrar poderes com os pais de seus
filhos, por exemplo proibindo a visitação dos pais a eles. Constatamos nos homens, como
fator bastante comum, o despertar de um sentimento de impotência e raiva em verem-se
impossibilitados de exercer o poder sobre a ex-mulher. É freqüente atribuírem a elas toda
sorte de acusações quanto à sua capacidade ou competência enquanto mães, bem como se
revoltarem contra o sistema legal que tende a privilegiar a determinação de guarda para as
mães. Novamente, vemos como nestas situações de frustração, os homens dispõem de
poucos recursos de negociação, quando retirados da posição de poder. Tampouco mostram
dispor de alternativas de elementos para pensar outras formas de exercer sua paternidade,
uma vez que estão comumente identificados exclusivamente como o papel de pais
provedores. Assim, se não têm dinheiro para pagar a pensão, é comum que nem mesmo
visitem ou se comuniquem com seus filhos, ao passo que quando pagam, usam esse
argumento como justificativa mor para que lhes seja autorizada a visita aos filhos. Algo
como ‘já fiz a minha parte’. Verificamos neste exemplo, bastante comum, que os papéis de
gênero atribuídos aqui a homens e mulheres, dentro de um esquema tradicional de divisão
sexual do trabalho (homem provê dinheiro, mulher cuida dos filhos), carrega em si uma
condição de alternância de poderes que estão na base das situações de conflito e violência
entre estes casais. A inviabilidade que estas famílias encontram em equacionar as relações
tradicionais de divisão sexual do trabalho com a realidade imposta por sua condição social e
financeira, não só evidenciam a falência de tal sistema de crenças que povoam o universo de
sentidos no imaginário, mas é também, em decorrência desta situação de impossibilidade,
que é geradora de sentimentos de impotência e frustração, o que os leva a projetarem estes
59
sentimentos (no sentido freudiano da projeção) atribuindo ao outro a responsabilidade por
seu sentimento de fracasso.
É importante destacar, que embora as mulheres dessa classe social sejam
normalmente sobrecarregadas com a criação dos filhos (uma vez que costumam ter que
prover não só os cuidados necessários à criação, como também garantir o provimento
financeiro das crianças), contando com pouca ou nenhuma ajuda por parte de seus
companheiros, ainda assim não podemos negar que, como contraparte disto, observamos o
poder que detêm em relação aos filhos e conseqüentemente em relação aos pais deles. A
situação, portanto, quanto às relações de poder associadas aos papéis de gênero e como
disparador de conflitos fica bastante evidente nestes casos. O não reconhecimento desses
poderes impede uma avaliação mais fidedigna das relações de poder, comumente atribuídas
de forma estática a homens e mulheres.
Barbieri descreve a função social exercida pelo controle da sexualidade, através de
normas ou padrões autorizados de comportamento como forma de manutenção do poder
sobre o corpo reprodutivo. Argumenta que a criação de mecanismos de controle que
assegurem direitos exclusivos sobre o corpo da mulher é uma forma de eliminar o risco que
adviria de uma autonomia das mulheres em relação ao próprio corpo. Diz ela que “controlar
o corpo das mulheres leva a controlar o trabalho delas... porque poderia ser que, sem
controlar a capacidade de trabalho, as mulheres teriam a possibilidade de dominar a
sociedade ou exigir o reconhecimento de sua produção” (idem, p33). De fato, encontramos
em outros autores a discussão que ora atribui à reprodução uma possibilidade libertadora
(RAMIREZ, 2003), ora associa-a a naturalidade de pensar-se a função reprodutiva feminina
como condicionante da mulher ao espaço privado, doméstico, explicando assim a
subordinação feminina. Autoras feministas como Gayle Rubin (1999), irão refutar essa
visão essencialista da mulher, uma vez que esta, reproduzida na cultura, seria a responsável
60
por dotar todas as mulheres de uma espécie de “identidade transcultural”, nas palavras de
Martha Ramirez, bem como pela manutenção de relações de subordinação das mulheres. A
idéia da condição reprodutiva como fator de subordinação, mostrou-se central nas
teorizações e mobilizações políticas feministas dos anos 70 (RAMIREZ, 2003).
Em seu artigo “Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality”,
Gayle Rubin (1999) faz um longo apanhado das práticas sexuais nas diferentes épocas da
história e nos diferentes momentos sociais e culturais. Procura evidenciar o quanto as
práticas autorizadas, preconizadas, proibidas ou proscritas estiveram sempre a serviço de
interesses políticos. Em suas palavras: “The realm of sexuality also has its own internal
politics, inequities, and modes of oppression. As with other aspects of human behavior, the
concrete institutional forms of sexuality at any given time and place are products of human
activity” (idem, p.143)
19
.
Sustenta que as formas de pensar a sexualidade não são destituídas de conflitos de
interesse políticos e/ou sociais, mas ao contrário, é categórica ao afirmar que “sexo é sempre
político” (idem, ibidem). Descreve, através dos diferentes momentos históricos, a maneira
como padrões e valores relativos às práticas autorizadas atendiam a interesses de
determinados grupos, restringindo e confinando a liberdade de expressão e práticas sexuais
dos indivíduos. Como exemplo, descreve a perseguição igualmente feroz que se deu contra
os comunistas e homossexuais nas décadas do pós-guerra americano. Lembra ainda as
concepções sustentadas sobre os perigos da masturbação, implicando em práticas sobre os
jovens para coibi-la. No Brasil, questões como aborto, uso de contraceptivos e a liberdade de
escolha sexual ainda mostram-se temas bastante controvertidos, suscitando calorosos debates
entre grupos que sustentam diferentes interesses e ideologias. Isto vai ao encontro do
19
O campo da sexualidade também tem suas próprias políticas internas, suas desigualdades e modos de
opressão. Tal qual outros aspectos do comportamento humano, as formas institucionais concretas de sexualidade
a qualquer dado tempo e lugar são produtos da atividade humana. (tradução nossa).
61
posicionamento da autora ao afirmar que ”há momentos históricos nos quais a sexualidade é
mais duramente contestada e mais abertamente politizada. Em tais períodos, o território da
vida erótica, com efeito, é renegociado” (idem, ibidem).
Sem dúvida, se há uma imposição de que novos padrões ou hábitos sejam admitidos
como existentes, até porque não se pode evitar sua constatação, verificamos que no âmbito
das relações conjugais, na população por nós atendida, é justamente a dificuldade em se
reconhecer a necessidade de renegociação a maior geradora de conflitos: à mudança de
hábitos não corresponde uma mudança de expectativas.
Jeffrey Weeks (1996), outro autor de referência nos estudos de gênero, descreve a
repercussão no âmbito acadêmico do surgimento da AIDS, tornando necessária a retomada
dos estudos das práticas sexuais não restritos a uma abordagem médica, uma vez que essa
exclusividade de enfoque implicaria no possível risco de patologização do tema e das
práticas sexuais.
Weeks propõe-se a estudar a relação que existe entre o corpo – com seus órgãos,
sensações, necessidades, impulsos e possibilidades biológicas – e os desejos,
comportamentos e identidades sexuais.
Ele define gênero como a diferença social entre homens e mulheres, retirando deste
conceito tanto o caráter biológico, que ele denomina “sexo”, quanto o diferenciando de
“sexualidade”, entendida por ele como uma série de crenças, comportamentos, relações e
identidades socialmente construídas e historicamente modeladas. Desta maneira, entende
gênero como algo que se dá através do exercício da sexualidade, sendo esta última mais
ampla que o primeiro. Afirma ainda que o lugar da sexualidade é o corpo sexual ou
biológico. Contudo, esclarece ele concordando com os autores aqui citados, os significados
associados aos corpos masculino e feminino são altamente históricos e sociais.
62
Assim como as feministas, Weeks entende a noção de gênero como a relação social
entre homens e mulheres, pautada por uma relação de poder, e não uma simples categoria de
análise. O poder ao qual ele se refere é o poder masculino que estabelece padrões à
sexualidade feminina, definindo o que é desejável ou não. Argumenta que as definições,
convenções, crenças, identidades e comportamentos sexuais não são o resultado de uma
“evolução natural”, mas são modelados no interior de relações definidas de poder, de forma
que a observação do exercício da sexualidade nos revela mais sobre a cultura do que sobre o
sujeito (grifo nosso), tendo em vista os diversos estudos antropológicos que evidenciam a
prevalência de diferentes formas de comportamento e papéis sexuais nas distintas culturas.
Propõe, portanto, que o estudo da sexualidade se dê dentro de um contexto histórico.
A idéia de que o exercício da sexualidade está diretamente relacionado aos padrões
de gênero, construídos em cada grupo cultural está ricamente elaborada no trabalho de Vera
Paiva (2000) com jovens de ambos os sexos, diferentes classes sociais e escolaridades. A
autora exemplifica, através de relatos de programas realizados com grupos de jovens, o fato
de ser imprescindível atentar às questões de gênero de cada grupo em seus diferentes
“roteiros sexuais”, uma vez que papéis de gênero são significativamente definidores da
forma como meninos e meninas entendem suas possibilidades de exercício sexual.
Os “roteiros” ou “scripts” sexuais são definidos como as possibilidades de exercício
ou práticas sexuais dentro de um repertório considerado como práticas “autorizadas”, dentro
de um determinado sistema de valores, crenças e expectativas.
Os jovens, aprisionadas em roteiros de gênero preexistentes e não questionados,
estarão sujeitos a exercer sua sexualidade de formas opressivas e opressoras, obstrutivas de
um compartilhamento de prazer e, principalmente, se verão privados da autonomia para se
exercerem enquanto sujeitos sexuais, ou seja, agentes de sua própria sexualidade.
63
Desta forma, é essencial ao pensar-se na implementação de políticas públicas, não
“separar a prática de quem pratica, dos sentidos atribuídos a cada contexto em que o
comportamento se dá, separar a prática das identidades atribuídas ou conscientemente
escolhidas” (PAIVA, 2000, p.208).
2.4-IDENTIDADE SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO
Como já dissemos, a construção da identidade de gênero está ligada à ideologia
predominante numa determinada cultura. Refere-se aos papéis atribuídos a homens e
mulheres, ou como definidos por Gagnon, Parker e Paiva, aos scripts associados aos sexos.
A expressão identidade sexual, em sua acepção anterior aos estudos de gênero, era
associada ao seu correspondente biológico, homem ou mulher, tal como o termo gênero. Nos
autores aqui citados, embora nos pareça clara a argumentação que evidencia a restrição
imposta pelos padrões de gênero às práticas sexuais dos indivíduos, ainda assim verificamos
a dificuldade em se estabelecer uma distinção clara nos diversos autores quanto a uma
definição consensual dos conceitos de identidade sexual e identidade de gênero. É, com
efeito, evidente a partir da leitura destes autores que há que se levar em conta nestas
definições, tanto a ideologia dominante (definidora do que é permitido a um ou outro sexo)
quanto os desejos e práticas de cada indivíduo, que dão a este a noção de si mesmo (mesmo
que seja conflitante com os esquemas de gênero vigentes). Desta forma, pensamos ser
adequado usarmos os termos identidade de gênero ao nos referirmos à construção de uma
subjetividade apoiada numa vinculação do sujeito à ideologia dominante e identidade sexual
para designar os desejos e práticas de um determinado sujeito, independente do sexo
biológico, tampouco sendo obrigatória a coincidência com esta ideologia. Entendemos
identidade sexual como a noção construída subjetivamente pelo indivíduo, aquilo que o faz
reconhecer-se como um ser sexuado, dotado de desejo, que o leva a adotar determinadas
64
práticas sexuais cujo intuito seja o de atender aos seus desejos. A identidade sexual, assim
como a pensamos, inclui o sexo biológico, mas este não é definidor das práticas como o é
nos esquemas de gênero. A identidade que constrói o indivíduo para si não necessariamente
estará em concordância com as ideologias dominantes, podendo assim ser fator de opressão.
A identidade de gênero, no entanto, construída dentro de “esquemas de gênero” e “esquemas
de gênero oposto” (PAIVA, 1999), obriga a uma identificação com os valores adotados na
cultura, uma vez que os esquemas são binários, ou seja, não admitem alternativas de
identidade, impedindo que a sexualidade seja exercida em conformidade com o que é
legítimo do indivíduo, próprio de seus desejos. Uma vez fora dos dois esquemas de gênero
possíveis, outras formas de exercer-se a sexualidade podem resultar na construção de
identidades definidas ou vividas como “desviantes”. Adotamos assim a idéia de que a
identidade sexual, embora não exclua os aspectos da cultura (uma vez que as práticas
sexuais, bem como os sujeitos que as praticam, estão inseridos na cultura), contém uma
gama maior de possibilidades de expressão em relação às práticas, aos desejos e às condutas
do que aquelas ‘autorizadas’. Desta forma, pensamos a identidade sexual como uma noção
de si mesmo que garante um maior grau de liberdade ao sujeito, enquanto que os esquemas
de gênero, definidores da identidade de gênero, funcionando dentro do esquema binário que
lhe é próprio, inviabilizam uma diversidade de opções que possa conter as diferenças.
Encontramos outras formas de ultrapassar as restrições impostas pelos esquemas de
gênero nas definições de scripts interpessoais, de Simon e Gagnon (1999) e cenas sexuais,
de Paiva (2000). Esta última ressalta a diversidade de possibilidades de valores e cenários
nas diferentes culturas, o que incide diretamente nas várias construções dos esquemas de
gênero.
Para tratar da “falta de congruência entre cenários abstratos e situações concretas”
(GAGNON, 1999, p.29), é necessário que se criem scripts interpessoais. Citando o autor
65
(idem, p.29), “este é um processo que transforma o ator social, de um mero ator, para ser
também, parcialmente, o autor ou adaptador, dando forma aos cenários culturais relevantes e
assim transformando-os em scripts de comportamento em contextos específicos”. (tradução
nossa)
Vera Paiva usa a expressão cenas sexuais como termo que envolve não só a cena em
si, mas todo o contexto cultural e pessoal que viabiliza que determinada conduta se dê da
maneira que se dá. Dito de outra maneira, o comportamento sexual dos sujeitos não pode ser
pensado de forma descontextualizada. É preciso levar em conta, como ressaltam os autores
já mencionados, os diversos aspectos de inserção do sujeito, tais como classe, educação,
raça, idade, grupo cultural.
Gagnon descreve três níveis de scripts sexuais para se pensar como se estruturam
para cada sujeito as vivências relacionadas às questões de gênero e sexualidade: cenários
culturais, interpessoais e intrapsíquicos, que variam grandemente não só em função das
diferentes organizações sociais ou culturais, como também de indivíduo para indivíduo em
cada possibilidade de cenário que se apresente.
Ele categoriza as sociedades como paradigmáticas e pós-paradigmáticas, sendo as
primeiras aquelas em que há uma grande quantidade de valores e sentidos compartilhados. É
um tipo de organização com menor diversidade de significantes e, portanto, mais restrita no
que diz respeito a significados. A pós-paradigmática, por sua vez, diz respeito a uma forma
de organização social mais diversificada, na qual é possível identificarmos uma maior
liberdade na atribuição de significados, propiciando aos sujeitos exercerem-se dentro de uma
gama maior de possibilidades.
Uma idéia semelhante a esta, no que se refere ao indivíduo, é apresentada por Sennet
(2000). Ele define o que entende por uma identidade fraca, aquela em que o sujeito
rigidamente se apega a valores e imagens fixas de si mesmo, não podendo reformulá-las, e
66
como identidade forte, aquela em que o sujeito se vê capaz de revisar as circunstâncias e
adaptar-se a essas mudanças sem prejuízo à sua noção de si mesmo. A impossibilidade, seja
por motivos culturais, de preconceitos, de determinadas estruturas mentais patológicas ou de
idealização narcísica, de alterar a noção que se tem de si mesmo, é um fator aprisionador e
impeditivo do poder narrar-se em construções alternativas mais gratificantes para o sujeito.
A estas idéias que se apresentam tendo um caráter rígido, e que são veiculadas e
compartilhadas na cultura tanto por homens como por mulheres, Sennet as denominou como
‘mitos controladores’, por exercerem um poder controlador de comportamentos e papéis, de
forma estereotipada. Não só aprisionam mulheres em posições passivas, dependentes do
sexo masculino, muitas vezes impedidas de atuarem de forma igualitária no mundo público,
garantindo seus próprios interesses (uma vez que estão designadas ao mundo privado), como
também aprisionam os homens no papel de provedor, responsável pelo bem estar e sustento
das mulheres e crianças, legislador, cujo âmbito de ação se dá na esfera pública, excluindo-o
no mais das vezes do contato com o mundo doméstico, sob pena de ver-se desmoralizado em
sua identidade masculina.
Pensamos que, embora o mundo ocidental contemporâneo se caracterize por uma
enorme diversidade em termos culturais, de valores e de sentidos – o que nos leva a pensar
numa sociedade pós-paradigmática-, vemos no trabalho realizado por Paiva que, para se
trabalhar as cenas ou scripts sexuais sem ignorar os esquemas de gênero, é fundamental que
se considere cada grupo cultural dentro de suas especificidades.
Neste sentido, não se pode generalizar o conceito de sociedade, mas sim considerar
as diferentes variáveis de inserção dos indivíduos para que se possa identificar um maior ou
menor grau de sentidos compartilhados. Da mesma forma, não se pode pensar em
implementar políticas públicas se não levarmos em conta os diferentes cenários bem como
os scripts definidos para os gêneros dentro de um determinado contexto histórico, social e
67
cultural. Portanto, para que seja possível desafiarem-se roteiros rígidos e aprisionadores para
homens e mulheres no que diz respeito a gênero, é fundamental que estes sejam conhecidos e
considerados, e não ignorados.
Se, como sustentam os diversos autores, os esquemas de gênero ou a dimensão de
gênero é algo construído social, histórica e culturalmente, com base nos valores
predominantes numa determinada cultura em determinado momento histórico, podemos
então pensar nesses conceitos (gênero, identidade de gênero, sexo, sexualidade, etc) como
concepções que admitem sua “desconstrução”. A mudança de valores e normas na cultura
implica conseqüentemente numa transformação dos sentidos de valor atribuídos aos diversos
conceitos. Estes não são meras definições de palavras, estáticas como palavras num
dicionário (que também tem certo grau de fluidez), mas são, antes de tudo, um desenho dos
valores sociais predominantes, de como se definem as relações de poder.
Se pensarmos que definições têm um caráter temporal e que atendem a interesses
dominantes, isso justifica pensarmos que projetos ou valores de grupos minoritários possam
passar de meras resistências (no sentido dado por Castells) a valores compartilhados ou, ao
menos, tolerados. Poderes institucionalizados representam a dominação de alguns e a
correspondente opressão de outros que, conseqüentemente, têm que se adaptar a uma
ideologia predominante e valorizada ou então ficar relegados a um lugar de exclusão, a fim
de evitar conflitos identitários com seus próprios ideais.
Em nosso trabalho com grupos de homens, observamos que estes, tendo pouco poder
na esfera pública em função da precariedade de recursos culturais, sociais e econômicos de
que dispõem, buscam exercer este poder no âmbito familiar, de forma a compensar sua falta
de poder no âmbito externo ao doméstico. Observamos como o que entendem como sendo
atributos do universo masculino ou feminino, está fortemente marcado por uma concepção
tradicional de gênero, segundo a qual papéis, funções e comportamentos são pré-definidos
68
dentro de um padrão hegemônico masculino, e onde o não cumprimento do padrão esperado
de comportamento compromete sua identidade de gênero, diretamente associada à noção de
masculinidade.
A construção e manutenção de uma identidade de gênero, seja ela masculina ou
feminina, está diretamente relacionada a pré-conceitos quanto ao que é desejável, social e
culturalmente, de homens e mulheres, sendo estas crenças compartilhadas por ambos os
sexos dentro de determinados subgrupos culturais. O desejo de ser reconhecido como um
homem de valor, viril, sexualmente capaz, poderoso, ou de uma mulher ser valorizada como
mãe, boa esposa, sexualmente moderada, que “se dá ao respeito”, são desejos calcados no
anseio de ser valorizado. Esse tema será discutido no capítulo 4, onde articularemos como
padrões valorizados na cultura se confundem com os desejos dos indivíduos, adquirindo uma
força controladora de padrões de comportamento.
2.5- A CULTURA NA DEFINIÇÃO DE PADRÕES DE IDENTIDADE
Assim como o merchandising é capaz de “vender” uma identidade desejável a quem
adquirir tal ou qual objeto, ou vestir esta ou aquela marca, também as crenças ou ideologias
veiculadas pelos padrões de gênero “prometem” a construção de identidades desejáveis.
A promessa de que determinado comportamento sexual possa ser atribuído ao
masculino como “garantidor” de masculinidade hegemônica, poder e virilidade, é
freqüentemente aprisionante, não possibilitando a estes homens que se expressem de forma
mais livre e mais em consonância com suas vivências e anseios pessoais. Sendo assim, pode-
se pensar que a identidade feminina ou masculina, é ‘contaminada’ por uma ideologia
daquilo que é ‘vendido’ como desejável em termos de identidade de gênero.
69
Desta forma, por exemplo, comportamentos violentos por parte de homens em
relação às suas companheiras justificam-se na medida em que o sentimento de humilhação
não pode ser admitido como algo do universo masculino.
A resposta violenta visa, com freqüência, o resgate da auto-estima através de uma
demonstração de poder sobre a mulher, condição esta entendida como essencial e natural
para a manutenção da virilidade e masculinidade dentro do sistema de valores aqui discutido.
Da mesma forma, a crença de que filhos são atribuições da mãe, ou a idéia de que o
sustento financeiro é atribuição masculina, não só aprisionam homens e mulheres em lugares
fixos, como também a impossibilidade de atender a estas demandas pelas dificuldades
inerentes à condição social destas famílias cria ilhas de isolamento de comunicação e afeto
entre homens, mulheres e seus filhos (que são, não raro, abandonados por seus pais, já que
muitos destes acreditam não poder contribuir com nada além de dinheiro, de que não
dispõem).
Consideramos que a rígida divisão sexual de trabalho, aprisiona tanto homens quanto
mulheres a uma condição de “insuficiência”, onde o que compartilham é a precariedade em
proverem seus filhos do cuidado necessário. Assim, o que constatamos é um movimento de
acusações mútuas, em que cada um procura atribuir ao outro o motivo de sua precariedade.
Homens e mulheres, aprisionados em papéis fixos, não podem vislumbrar novos arranjos de
cuidado com os filhos que não estes definidos numa cultura hegemônica masculina.
Embora a “desconstrução” destes papéis seja um dos temas com os quais trabalhamos
na instituição, ainda são muitos os casos em que a impossibilidade de mudança destes
valores culturais se apresentem como fortes impedimentos para que sejam feitos acordos
mais igualitários entre homens e mulheres no que diz respeito à vida cotidiana, ao cuidado
com os filhos, ou nas separações dos casais atendidos na PMFC.
70
A isto se agrega também à posição “oficial” do juiz, que costuma atribuir aos homens
a obrigação do sustento financeiro, e os ameaça com prisão no caso de não se
comprometerem. Se por um lado o juiz entende que muitos homens se abstêm de qualquer
cuidado com seus filhos, eximindo-se de suas responsabilidades quanto a seu
comportamento reprodutivo (como algo concernente exclusivamente às mulheres), por outro
reforça uma idéia de que o único aspecto da paternidade que concerne ao homem é o dever
de honrar com os compromissos financeiros.
Essa postura, supostamente aliada às mulheres, na verdade as onera ainda mais, pois
cria um abismo entre homens e mulheres pelo qual os primeiros se sentem espoliados e
queixam-se de uma atitude “interesseira” por parte das mulheres, enquanto que estas se
sentem sobrecarregadas com o cuidado exclusivo de seus filhos.
É interessante questionarmos se o sistema judiciário, o Direito em termos gerais, está
preparado para lidar com questões de âmbito humano, uma vez que se apóia num modelo
maniqueísta de deveres e direito
20
.
Todos nós, nos diferentes sub-grupos aos quais pertencemos, sejam eles sub-grupos
sociais, intelectuais, profissionais, acadêmicos, etc, estamos submetidos aos valores ditados
por estes grupos, com os quais nos identificamos.
O desejo de ser valorizado e amado é um desejo, segundo Freud, presente no ego.
Descreve a submissão do ego às demandas do id, submetido à observância do superego e a
serviço do ideal do ego e dos valores da cultura. Deve permanecer em bons termos com o id,
atendendo também às prescrições da realidade. Nas palavras de Freud (1923, p. 73):
20
Embora tenha havido mudanças no atual Código Civil equiparando direitos e deveres dos pais em relação aos
filhos, verificamos que às mudanças das leis não correspondem a mudanças nas práticas. Quem pratica a lei, com
freqüência o faz reproduzindo o sistema binário de gênero que aqui destacamos.
71
Para com as duas classes de instintos (de vida e de morte), a atitude do ego
não é imparcial. Mediante seu trabalho de identificação e sublimação, ele
ajuda os instintos de morte do id a obterem controle sobre a libido, mas,
assim procedendo, corre o risco de tornar-se objeto dos instintos de morte
e de ele próprio perecer. A fim de poder ajudar desta maneira, ele teve que
acumular libido dentro de si; torna-se assim o representante de Eros e,
doravante, quer viver e ser amado.
Ou ainda, em O mal-estar na civilização, postula o desejo de ser amado, não como
um desejo de ordem afetiva como pensamo-lo no âmbito do senso comum, mas sim ligado
ao temor imposto por uma ameaça de desamparo em função do abandono dos pais, ou de
seus representantes na idade adulta, a cultura. O mau, assim, para o ego é aquilo que
representa uma ameaça à integridade do mesmo, e é a isso que Freud denomina ‘a perda do
amor’. Risco para o ego é aquilo que leva ao desamparo, condição sempre presente no ser
humano (idem, p.147).
É com base na identificação que temos com determinados grupos que forjamos
também nossas identidades pessoais. A impossibilidade do sujeito em poder identificar-se
com aquilo que valoriza, leva-o a sentir-se desvalorizado. Podermos manter a dimensão de
que valores não têm caráter absoluto e que podem ser questionados cria condições para que
tais valores não se tornem impeditivos de um desenvolvimento mais pleno e gratificante para
cada indivíduo, mas sim que sejam construídos em consonância com suas necessidades
pessoais, dentro de um princípio ético e humano. O aprisionamento naquilo que
denominamos de identidades desejadas, como são as identidades de gênero, comprometem a
condição do sujeito de exercer-se enquanto agente de seu próprio destino e ter uma mente
própria, vivendo uma identidade pessoal ‘forjada’.
72
3. MATERIAL E MÉTODOS
Neste capítulo descreveremos mais detalhadamente o procedimento utilizado para a
seleção dos entrevistados e participantes dos grupos de homens cujas falas iremos analisar,
num subitem denominado Descrição da Amostra. Em documento anexado no final desta
dissertação, encontra-se uma breve descrição dos 5 participantes do grupo focal realizado ao
final de quatro encontros e os motivos que os levaram a procurar a PMFC. No subitem Coleta
de Dados, também descreveremos como a coleta dos dados utilizados foi realizada.
Em seguida, no subitem Metodologia, especificaremos a metodologia utilizada e
justificaremos nosso interesse pela adoção de uma compreensão psicanalítica na realização
da análise da fala dos participantes da pesquisa.
Por último, no subitem Quatro Sessões, será descrita uma seqüência de quatro sessões
de discussão dos grupos de homens, com as falas dos participantes e as minhas, que coordenei
os grupos. Estas quatro sessões serão entremeadas por comentários feitos a posteriori,
elucidando o tipo de análise e compreensão que fiz a partir destes encontros. Uma elaboração
mais pormenorizada das falas será feita em capítulo posterior, onde abordaremos o discurso
do ponto de vista dos estudos de gênero e de uma leitura psicanalítica.
3.1. DESCRIÇÃO DA AMOSTRA
A amostra é composta de homens, residentes na cidade de São Paulo, cuja renda não
ultrapasse cinco salários mínimos, sendo, portanto, pertencentes aos extratos mais pobres da
população. No próximo subitem, De quais homens falamos, apresentaremos uma descrição
mais elaborada do grupo social e cultural a que estes homens pertencem, a fim de
identificarmos o universo que pretendemos pesquisar.
73
A faixa salarial referida é determinada pela Instituição em virtude de convênio
existente com a Procuradoria de Assistência Judiciária de São Paulo.
Os homens atendidos chegam à PMFC por diversas vias: indicação de conhecidos que
já tenham sido atendidos na mesma, pelas Delegacias da Mulher, delegacias comuns, Fóruns,
oficiais de justiça, por encaminhamento feito pela Procuradoria de Assistência Judiciária
(PAJ), ou encaminhados por outros serviços de atendimento jurídico gratuitos da cidade de
São Paulo, como as universidades. Há os que vêm espontaneamente, seja porque leram
alguma reportagem, seja porque assistiram a algum programa veiculado pelos tradicionais
meios de comunicação, ou, ainda, há aqueles que tocam a campainha por terem recebido
informações, no bairro, sobre o tipo de atendimento realizado pela PMFC.
As questões que os trazem à Instituição são em sua grande maioria relativas ao Direito
de Família, uma vez que a PMFC, além do atendimento psicossocial, garante atendimento
jurídico gratuito, sendo este último o maior atrativo para a população que nos procura.
Estes homens encontram-se envolvidos em alguma espécie de conflito, seja com suas
atuais ou ex-companheiras, seja com seus filhos ou seus pais, ou com a justiça no âmbito do
Direito de Família. Muitos vêm em busca de separação, regulamentação de guarda e visita de
filhos, problemas com pensão alimentícia dos filhos, reconhecimento de paternidade, conflitos
conjugais.
Embora o motivo da procura pela Instituição não se mostre de início como algo
relacionado à violência de gênero, ou seja, a demanda não é colocada nestes termos, mas em
termos jurídicos, ainda assim fomos, ao longo dos anos de trabalho, verificando a intrínseca
relação existente entre conflitos familiares e as questões relativas a gênero. A maior parte dos
homens, que nos procuram, sentem que uma espécie de injustiça lhes está sendo feita quando,
por exemplo, suas ex-companheiras exigem que se regulamentem juridicamente as questões
referentes aos filhos em comum. Muitos se sentem humilhados e é freqüente se expressarem
74
de maneira bastante hostil ao se referirem às ex-companheiras, evidenciando uma
compreensão sobre o que lhes acontece apoiada numa concepção de tipo: certo/errado,
justo/injusto, bom/mau. Isso poderá ser acompanhado na descrição das sessões que seguem,
pela fala dos participantes
21
.
3.1.1. O funcionamento do grupo
22
O grupo de reflexão de gênero masculino tem encontros semanais de 2 horas de
duração, durante 4 semanas , com uma participação variável de 3 a 15 homens. O número de
sessões foi por nós (da Instituição) determinado como um tempo que se considerou
minimamente necessário para poder-se desenvolver a reflexão a respeito dos temas que
abordamos nestes encontros. É também um espaço voltado ao exercício de técnicas de
comunicação, visando à facilitação dos encontros de mediação com a parte contrária, e a
capacitação para a negociação de acordos mutuamente satisfatórios.
A determinação quanto ao número de grupos de que cada um deve participar, embora,
do nosso ponto de vista seja ainda insuficiente, considerando-se a quantidade de temas que
nos propomos a abordar e tendo em vista a possibilidade de uma reflexão mais frutífera sobre
os mesmos, foi, ainda assim, uma solução viável encontrada para que o processo total de
atendimento na Instituição não se prolongasse demais. Outro dado relevante que determinou a
escolha do número de sessões foi o fato de que estes homens apresentam dificuldades de
disporem, de maneira sistemática (semanalmente), de um horário para os encontros em razão
de seus compromissos de trabalho ou de procura pelo mesmo, ou, ainda, pelo custo financeiro
21
A Instituição atende homens e mulheres, sendo que a população feminina que nos procura, diferentemente da
masculina, vem também por questões do que é normalmente denominado como violência doméstica, ou seja,
atos de agressão física praticados pelo homem contra sua companheira. A população masculina não traz esta
queixa explicitamente formulada e pensamos que isso não seja algo casual. Entendemos que este comportamento
se coaduna com os modelos hegemônicos masculinos que procuramos destacar neste trabalho.
22
Uma grande parte do que se lerá aqui em relação ao funcionamento dos grupos está descrita em artigo da
autora, intitulado Novas práticas na abordagem de gênero e violência intrafamiliar, que se encontra no livro
Mediação de Conflitos: pacificando e prevenindo a violência. (MUSZKAT, S., 2003).
75
que representa o gasto com transporte. Além disto, ao serem informados do processo pelo
qual deverão passar, com freqüência expressam alguma oposição por considerarem ser um
tempo longo e pelo desejo de resolverem de maneira imediata seus problemas
23
. Entendemos
este desejo como um tipo de funcionamento culturalmente impregnado, de cunho
assistencialista, no qual a expectativa é a de que a Instituição se responsabilize por solucionar
suas questões pessoais sem que eles tenham de se envolver de forma mais ativa nas mesmas
24
.
A proposta de trabalho da PMFC é de que, ao longo do processo, eles possam desenvolver um
instrumental que lhes possibilite se apropriarem de suas problemáticas como sujeitos,
responsabilizando-se por seus destinos.
Um último fator a ser considerado na escolha do número de sessões foi o de atender às
demandas de nosso convênio, que estipula um número mínimo de atendimentos por mês. Um
número maior de sessões, portanto, inviabilizaria o cumprimento de tal acordo, uma vez que o
tempo de atendimento de cada usuário seria estendido. Consideramos, contudo, importante
ressaltar que seria desejável uma duração maior dos grupos, o que também é muitas vezes
verbalizado pelos participantes após o término dos encontros, o que, em nosso entender, vem
corroborar nossa impressão quanto à falta de serviços públicos de atendimento voltado às
necessidades da população masculina de baixa renda. Como se verá nas sessões de grupo
relatadas, a presença nos grupos não se dá sempre de maneira seqüencial, fazendo com que
seja comum haver um novo participante num grupo onde outros estejam terminando. Se por
um lado, isso representa uma dificuldade a mais no sentido de se desenvolverem atividades
durante os encontros, de acordo com um pressuposto de que ao seguirem juntos estaria
23
Os encontros em grupo são a 3ª etapa do processo de atendimento da Instituição. Passam inicialmente pelo
serviço social, em seguida por um grupo de triagem cuja finalidade é prestar esclarecimentos jurídicos, verificar
urgências de cunho legal e descrever o processo de atendimento da Casa, sendo coordenado por um/a assistente
social e um/a advogado. A próxima etapa constitui os grupos de reflexão (foco desta dissertação) e, por último,
eles são encaminhados para mediação ou para atendimento jurídico propriamente dito, quando a primeira é
inviável. É um processo que tem um tempo mínimo de dois a três meses de duração.
24
Na já mencionada pesquisa sobre metodologia realizada na PMFC em conjunto com a UNICAMP, verificou-
se um dado interessante: o número de desistentes reduzia-se drasticamente durante e após a passagem pelos
grupos, evidenciando um envolvimento nesta atividade, por parte dos homens, e contribuindo para a alteração de
uma postura inicial de oposição às etapas do processo.
76
garantida uma maior homogeneidade de desenvolvimento entre os participantes, por outro, há
que se considerar não apenas as dificuldades pessoais de cada participante em atender a esta
seqüência proposta, quanto à impossibilidade de garantir tal hegemonia, ainda que todos
sigam conjuntamente a seqüência dos grupos. O que é notadamente favorecido quando de
uma presença mais seqüencial é a vinculação que se dá entre os participantes e uma história
comum que vai sendo construída ao longo dos encontros. É comum apontarem a falta de um
ou outro colega, não no sentido da denúncia, mas como uma ausência que se faz presente; a
constatação da falta de alguém que é sentido como pertencente a este espaço comum
construído entre eles. Constata-se a construção do laço emocional, por meio de um processo
de identificação entre estes homens, fator característico nas formações de grupos, assim como
descreveu Freud (1921) em Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Em suas palavras:
A identificação pode surgir com qualquer nova percepção de uma
qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto do
instinto sexual. Quanto mais importante essa qualidade comum é, mais
bem sucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo
representar assim o início de um novo laço (idem, p.136).
Segundo Freud, o grupo se apresenta como um organismo que tem uma representação
psíquica próxima das estruturas de ideais de ego, contendo em si grande potencial
transformador sempre que se puderem questionar padrões estabelecidos de forma idealizada.
Sendo assim, pode-se pensar que, da mesma forma que o olhar alheio – do outro - em seu
caráter de espelhamento do sujeito, possa ter um efeito cerceador (em falas do tipo “os
vizinhos ficam falando” que veremos nos relatos adiante), o compartilhamento de
experiências e a constatação de que outros homens vivenciam situações semelhantes são,
muitas vezes, propiciadores de uma atitude mais benevolente e menos crítica entre os
participantes, alterando-se, assim, no interior do grupo, a adesão a valores rígidos de
comportamento tidos como masculinos.
77
Freud (1914), em seu artigo sobre o narcisismo, descreve o surgimento do ideal do ego
como instância separada do ego e herdeira do narcisismo original. O ideal do ego é o
substituto do narcisismo perdido da infância, sendo a permanente busca em atingi-lo uma
tentativa de recuperar o momento mítico, pleno, de ego ideal vivido com a mãe. Nas palavras
de Freud (idem, p.111, grifo nosso), “e quando ao crescer (o indivíduo) se vê perturbado pelas
admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não
mais reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ideal do ego”.
Entendemos a referência a terceiros, feita por Freud, como aquilo fora do sujeito, do âmbito
do social e cultural, que é transmitido ao sujeito, impondo-se como normas ou expectativas
cujo alcance ‘garantiria’ a recuperação do narcisismo perdido. Do mesmo modo, o elemento
crítico se encarregaria de vigiar o ego para que este não se desviasse da meta de alcançar o
ideal de ego. Assim, os valores veiculados no interior de grupos, sendo idealizados, agem de
forma normatizadora sobre estes, ditando (de maneira inconsciente) regras de funcionamento
para os membros deste ou daquele agrupamento.
É ainda importante destacar o poder de coesão e de normatização de padrões imposto
pelo grupo, uma vez que este, imbuído da função de ‘orientador rumo ao ideal de ego’,
determina valores associados a este ideal. Assim, num dado grupo, os indivíduos tenderão a
aproximarem-se destes valores sendo que o afastamento destes padrões implicará no risco de
distanciamento de seu narcisismo original, de seu estado de perfeição almejado.
Em relação a procedimentos de funcionamento do grupo, adotamos como norma
institucional, que um participante será desligado deste após duas faltas consecutivas sem
nenhuma justificativa. Ainda assim, é prática comum da Instituição tentar, por meio do
trabalho das assistentes sociais, um contato com o usuário que falta, a fim de verificar-se o
motivo das mesmas e certificar-se do interesse do usuário em prosseguir no atendimento da
PMFC.
78
A passagem pelos grupos é obrigatória a todos os que buscam o serviço da Instituição,
sendo assim uma das etapas do processo de atendimento da Casa.
O trabalho com os grupos tem como objetivo estimular discussões que possibilitem a
reflexão sobre temas variados, tais como a condição masculina, seja na família, seja no âmbito
cultural, a violência de gênero, a naturalização da violência, assim como concepções
adotadas na cultura na definição dos papéis de gênero, sexualidade, relações conjugais,
relações parentais, separação, conflitos, relações familiares, além de apresentar-se como
espaço aberto para qualquer assunto trazido pelos participantes relativo às suas experiências
de vida. Este trabalho tem ainda como objetivo proporcionar um espaço onde possam ser
prestados alguns esclarecimentos e orientações básicas de cunho social e legal, ser verificada
a necessidade de se fazerem encaminhamentos a outros serviços de atendimento da rede
pública, serem identificadas situações emergenciais dos usuários, seus filhos e companheiras,
ser avaliada com maior cuidado a situação vivida por cada participante e serem identificadas
possíveis urgências no âmbito da violência intra-familiar, a fim de garantir-lhes o atendimento
necessário conforme um princípio de cidadania e direitos humanos.
A coordenação do grupo é feita em dupla, sendo uma coordenadora principal do sexo
feminino e um assistente masculino. Além destes dois técnicos, ao longo dos quatro
encontros que serão descritos neste trabalho, havia a presença de duas pesquisadoras do sexo
feminino, que anotavam, sem falar, o desenrolar dos encontros, com a maior precisão
possível.
O fato de a coordenadora ser mulher (e o assistente homem) não é fato desprezível,
embora não seja possível se determinarem completamente os impactos deste dado. Deve-se
ter em mente, contudo, que estes homens procuram a Instituição por motivos que, na grande
maioria dos casos, se devem a intensos ou violentos conflitos com uma mulher, seja ela a
atual, ex, ou eventual companheira. Chegam numa postura bastante adversarial em relação às
79
mulheres, identificando estas com freqüência como as causadoras de uma situação pessoal
que entendem como injusta. Ainda, o predomínio de um tipo de compreensão das relações
entre homens e mulheres, fortemente ancorado numa concepção hegemônica de gênero, leva-
os a se ressentirem de uma perda de lugar de autoridade e poder na constelação familiar e
social, vendo-se submetidos a terem de levar seus casos ao âmbito de ações judiciais, o que é
amiúde significado como humilhação pessoal. Não podemos, portanto, desconsiderar que o
encontro no grupo, sob uma coordenação feminina, em certa medida reproduz uma situação
hierárquica invertida em relação aos padrões de gênero vigentes. Soma-se a isso o lugar do
assistente masculino, submetido à coordenação de uma mulher.
Bourdieu (1993) diz, acerca da pesquisa social, que embora não seja uma relação
semelhante às “trocas de existência comum, já que tem por fim o conhecimento, ela continua,
apesar de tudo, uma relação social que exerce efeitos” (idem, p.694). Embora o intuito do
trabalho com grupos não seja propriamente a pesquisa em moldes convencionais, em que há
um entrevistador e um entrevistado, as elaborações deste autor sobre o que entende por um
caráter intrusivo, em que a arbitrariedade do entrevistador – uma vez que é ele quem
estabelece o funcionamento da entrevista – e em que se evidenciam diferenças de variadas
categorias entre o coordenador e os participantes do grupo, não devem ser ignoradas. (idem,
ibidem). Há que se considerar a dessimetria social, de hierarquia dentro do grupo, de sexo, de
capital intelectual e simbólico, apenas para citar os mais evidentes. Ainda que seja difícil
medir o nível de interferência produzida por estas dessimetrias, uma vez que não estamos
fazendo um tipo de investigação pautada em análises quantitativas, não podemos ignorar sua
existência nem tampouco procurar negá-las na interação com os participantes, uma vez que
isto levaria a uma troca que, justamente, se opõe ao que nos propomos a desenvolver neste
trabalho: a dotação de sentidos que instrumentalizem os sujeitos para vivências mais
80
harmoniosas entre um dentro e um fora de seu mundo de representações
25
. No entanto, a
novidade que é a experiência vivida nestes grupos, levando-se em conta exatamente essas
diferenças citadas, pode resultar numa mudança em relação a concepções rígidas no que diz
respeito a trocas possíveis entre homens e mulheres, que são, em geral, experimentadas com
surpresa e entusiasmo. É comum, ao final dos quatro encontros, os participantes se
despedirem de maneira nitidamente afetuosa, expressando agradecimento pela experiência
vivida, como veremos num dos relatos aqui descritos.
Vale lembrar um dado interessante relativo a que, embora os homens atribuam às
mulheres o motivo de suas agruras e tenham em relação a estas um modo de funcionamento
predominantemente projetivo – no sentido descrito pela psicanálise –, é freqüente que
encontrem nas figuras femininas, em especial em suas mães (e às vezes em alguma amiga), as
únicas confidentes. Este fato possivelmente se justifique em razão de que o risco de se verem
ridicularizados por suas fragilidades seja maior em relação aos homens, como veremos
adiante em seus relatos, fazendo das mulheres personagens menos ameaçadoras. Essa é uma
hipótese que levantamos e que se ajusta a nossa observação nos encontros em grupo, uma vez
que o fato de a coordenadora ser mulher não tem impedido que a maioria dos homens que
participam logo se sintam bastante à vontade para expressar-se de forma livre e descontraída,
sem indícios de competitividade em relação à mesma.
3.2. COLETA DOS DADOS
A coleta dos dados deve ser distinguida em três tempos: o primeiro, e menos
sistemático dos três, é aquele que aparece ao longo deste trabalho quando são usados
exemplos de falas ou descrição de casos atendidos na Instituição, e que não estão contidos
25
A impossibilidade de vivências harmônicas daquilo que é interno e externo, baseando-se na necessidade de
atender a ideais culturais, será tema discutido ao longo de todo o trabalho.
81
num espaço temporal delimitado, mas foram extraídos de anotações nossas ao longo dos anos
de trabalho.
O segundo modo realizou-se num espaço temporal delimitado de quatro semanas
consecutivas, com atores mais ou menos fixos, assim como explicado anteriormente em
Funcionamento do Grupo. Durante este período, os grupos foram observados por duas
pesquisadoras que anotavam por escrito, de modo manual, cada sessão, o mais integralmente
possível
26
. A descrição das sessões aqui apresentadas foi construída com base em três
observações: aquelas feitas pelas pesquisadoras, junto com as nossas observações e
lembranças destas mesmas sessões. O documento final produzido é, assim, o resultado da
integração destes três relatos, ao que, posteriormente, fomos agregando nossos comentários e
análises, como se verá.
Há ainda uma terceira fonte de referência da qual serão usados apenas extratos de
falas. Essa fonte é a transcrição feita a partir da gravação de um grupo focal realizado ao final
dos quatro encontros, como parte da pesquisa realizada em associação com a Unicamp, com
cinco homens que concordaram em participar deste grupo. Como este grupo focal se deu ao
final de um dos grupos regulares, alguns dos homens não dispunham de tempo para o
próximo encontro. O grupo então se formou com um número que se considerou suficiente
para tal avaliação. O grupo focal teve como finalidade realizar uma avaliação do atendimento
da Instituição pelo qual haviam passado até aquele momento, tendo como ponto de referência
a opinião dos usuários. Não incluiremos nesta dissertação a descrição integral desta entrevista
por julgarmos que seria exaustivo para o leitor e fugiria de nosso propósito, que é
exclusivamente voltado ao trabalho nos grupos masculinos. Interessa-nos saber o que
pensaram sobre a experiência vivida nestes grupos: a troca de experiências pessoais num
26
Durante a elaboração desta dissertação, realizou-se uma outra pesquisa na Instituição, com financiamento da
Fapesp e Prosare, cuja finalidade era a de avaliar integralmente todas as etapas de atendimento da Instituição,
com o objetivo de verificar-se a forma como este se dava, tanto do ponto de vista metodológico quanto técnico, a
fim de avaliar-se sua adequação à proposição de novas políticas públicas, atendendo a edital da Fapesp e Prosare.
82
grupo masculino, a possibilidade de conversarem sobre temas pessoais, se os temas abordados
e as discussões realizadas haviam tido algum efeito em suas vidas pessoais ou suas
concepções de vida, e sobre a forma como foram coordenados tais grupos. Por este motivo,
optamos em apresentar apenas os extratos das falas que estejam diretamente relacionadas à
nossa investigação. Essas falas estarão na Conclusão.
3.3. METODOLOGIA
A metodologia de análise que usamos para discutir os relatos aqui descritos baseia-se
numa abordagem psicanalítica, associando-se a compreensão metapsicológica às formulações
do construcionismo social. O método psicanalítico propõe a construção de modelos de
funcionamento mental baseados em inferências relativas ao estudo das manifestações grupais
ou individuais, estando, em nosso trabalho, voltado à análise do discurso dos participantes do
grupo.
Procuraremos analisar e identificar, valendo-nos do material descrito e de maneira
análoga a um estudo clínico, as manifestações relativas à violência de gênero e suas formas de
expressão. Ao caracterizar como estudo clínico, não pretendemos fazer a análise psicológica
de cada indivíduo, como tampouco categorizá-los de forma genérica e estereotipada. O que
garantiria na abordagem psicanalítica uma ética da alteridade, do respeito pelo aspecto
desconhecido do outro que nos impeça de cairmos numa ‘redução’ deste outro a um simples
modelo representacional é o que questiona Nelson da Silva Jr., ao propor “uma possibilidade
de solução do impasse ético entre a psicanálise como ciência do inumano e como saber do
humano no homem” (1999, p.131). Diz o autor a respeito das condições a serem preenchidas
por aquele que se propõe a pesquisar em ciências humanas que: “a humildade de manter-se
diante do outro como diante de um enigma é uma condição de possibilidade na reflexão sobre
o humano em harmonia com uma postura ética” (idem, ibidem). Silva Junior (1999) descreve
83
processo de desligamento que os estudos da psicopatologia foram adquirindo em relação à
psiquiatria tradicional, de forma a eliminar a oposição existente entre normal e patológico. O
estudo da psicopatologia irá aproximar essas duas categorias, e Freud lhes atribuirá diferenças
meramente de intensidade e não mais, de qualidade. Vai-se eliminando a oposição entre estas
categorias. Mas Freud irá avançar para além do estudo da psicopatologia ao propor o método
psicanalítico para compreender a cultura, afastando-se de uma busca pela normalidade,
conceito do campo da psicopatologia. “A ‘normalidade’ é uma grande incógnita no método
psicanalítico de investigação” (1999, p.135), diz o autor. A pesquisa psicanalítica portanto,
em suas palavras, “supõe um profundo desconhecimento da cultura”, propondo-se a tratar a
“alteridade como enigma”. Tarefa difícil, afirma o autor, porém “essencial à noção de
respeito, não somente em psicanálise, mas em ciências humanas em geral” (idem, ibidem).
É, por conseguinte neste referencial que nos apoiamos, a fim de encontrar subsídios
que nos auxiliem a escutar as falas dos homens do grupo de forma a podermos construir
modelos de funcionamento mental, ainda que provisórios, visando à compreensão de como e
por que determinados valores culturais são incorporados, passando a exercer o poder de
determinar formas de comportamento. Assim, as falas não têm como objetivo a realização de
um estudo particular dos participantes dos grupos, mas, antes, de servirem como ilustração de
uma forma de funcionamento, em um determinado grupo, em seu específico contexto social e
cultural. Cito Carvalho (2003), ao justificar a pertinência do uso de uma metodologia não
quantitativa, apoiada em material subjetivo dos pesquisados: “as informações obtidas
funcionaram não só como ilustrações de nossas hipóteses, mas, sobretudo, como possíveis
norteadoras dos pontos teóricos mais essenciais que deveríamos abordar” (idem, p.32).
A maneira como desenvolvemos nossa metodologia de trabalho resultou do trabalho
em si, ou seja, tanto a idéia de escrevermos a dissertação quanto a forma que aqui utilizamos
para nossas análises não foram pensadas a priori. Durante alguns anos, vimos realizando a
84
atividade de coordenação de grupos de reflexão masculinos, cuja finalidade já descrevemos
anteriormente. Assim, estes grupos faziam parte de um processo maior dentro do serviço de
atendimento da PMFC. Ao longo dos anos, fomos observando certas repetições nos
relacionamentos, nas expectativas voltadas a estes e no tipo de respostas dadas, como
decorrência da frustração destas expectativas, o que nos despertou curiosidades e
questionamentos. Ainda que tenhamos observado nas falas destes homens uma repetição de
padrões ligados aos valores hegemônicos, é, contudo notável que, embora fazendo parte de
um mesmo grupo social, regido por normas e valores muito semelhantes, encontremos
variações no que diz respeito ao tipo de resposta mais ou menos violenta, ou à maior ou
menor possibilidade de abstração ou flexibilização de tais padrões da cultura. O que justifica
que alguns homens reajam de forma violenta contra sua companheira, evidenciando um
comportamento totalmente aderido aos padrões da cultura hegemônica, e outros se mostrem
mais abertos a questionarem tais valores? Essa observação por si só justifica que nos
questionemos quanto à exclusividade dada aos valores transmitidos pela cultura na
construção da subjetividade dos indivíduos. Se a cultura exerce, sem dúvida nenhuma, um
papel determinante, não obstante, acreditamos ser imprescindível olharmos para além desta a
fim de podermos levantar hipóteses sobre como e por que, a partir da compreensão das
dinâmicas psíquicas, estes valores podem adquirir estatuto de verdade normatizadora de
padrões de comportamento. Embora fora do escopo deste trabalho, fica ainda a questão a ser
pesquisada sobre o que leva às diferenças relativas à adesão a estes padrões, que, por sua vez,
levam a um maior ou menor grau de violência como resposta. É importante ressaltar que,
apesar do padrão de respostas violentas ser mais prevalente nas classes populares, como
veremos em outras pesquisas citadas nesta dissertação, a condição socioeconômica não pode
ser vista como única determinante deste tipo de resposta. Procuramos, ao longo do trabalho,
questionar os modos pelos quais os indivíduos se identificam com os elementos da cultura e
85
as formas de expressão destes nos relacionamentos entre homens e mulheres, em suas
relações de vinculação.
Para tanto, reproduzimos o mais fielmente possível quatro encontros de grupos, sobre
os quais fomos tecendo comentários, entremeados às falas dos sujeitos, procurando identificar
e oferecer subsídios, baseados nas teorias construcionista e psicanalítica, que nos auxiliem na
compreensão das relações violentas de gênero.
Do campo construcionista, adotamos autores que discutem o caráter naturalizado na
cultura do padrão de masculinidade hegemônica nas relações entre os gêneros, que dizem
respeito a formas de reprodução e perpetuação nas relações de poder.
Do ponto de vista psicanalítico, a questão da agressividade e da violência será
discutida, articulando-se conceitos tais como narcisismo, ideal de ego e superego, no que estes
têm de reprodutores dos valores culturais. Teceremos ainda formulações sobre o processo de
identificação, uma vez que este se relaciona com a adesão a valores veiculados no interior das
diferentes formas de agrupamento social, como também acerca do conceito de acting-out
como forma de expressão que substitui o pensamento por uma ação, assim como formulado
por Freud (1911) e ampliado por Bion (1991). Finalmente procuraremos discutir esses
conceitos em sua relação com as formulações sobre desamparo e violência, vistos em Freud e
amplamente discutidos no trabalho de Isabel Kahn Marin (2002).
É bem verdade que Bourdieu (1998) nos adverte sobre a dificuldade de tentarmos
pensar a dominação masculina “sob o risco de recorrermos ou nos submetermos a modos de
pensamento que são, eles próprios, produtos de milênios de dominação masculina” (IDEM,
p13).
Arriscaremos, ainda assim, a nos empreender no estudo do que ele caracterizou,
citando os trabalhos de Erving Goffman (op.cit, p.12), “a elevar à dignidade de objetos
científicos os ‘pedaços e bocados’ da vida social que estavam diante dos olhos de todos”.
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Não temos a pretensão de esgotar a questão, nem tampouco somos os únicos a estudar
a questão da violência de gênero. Simplesmente pretendemos, como psicanalista trabalhando
no campo da psicologia social, compartilhar nossas observações, fruto de nossa experiência, a
fim de trazer subsídios que possam contribuir para a transformação destes padrões de
relacionamento.
3.4. ASPECTOS ÉTICOS
Os aspectos éticos desta pesquisa estarão plenamente assegurados uma vez que, em
relação aos participantes dos grupos, será garantido total sigilo quanto à sua identificação, já
que suas falas serão usadas como material de apoio aos textos teóricos, não implicando
qualquer tipo de prejuízo pessoal, nem tampouco os expondo ao risco de identificação. Os
atores são aqui citados como representantes de um tipo de relação que pretendemos estudar
nesta pesquisa, usando a citação de exemplos como forma de ilustrar e contribuir para a
compreensão dos estudos da violência no campo das relações de gênero.
Os exemplos serão tratados de forma semelhante ao tratamento de um material clínico,
visando a contribuir com um fenômeno de amplas e graves repercussões no âmbito das
relações interpessoais, familiares e sociais. Ainda assim, foram preenchidos os termos de
consentimento informado pelos participantes das sessões relatadas e do grupo focal.
Por fim, uma vez que o uso de nomes próprios poderia causar algum desconforto e na
falta de recurso que julgássemos melhor para denominá-los, garantindo ao mesmo tempo, o
máximo possível, o anonimato dos autores das falas, optamos por atribuir, aos atores que aqui
falam, letras do alfabeto.
3.5. QUATRO SESSÕES DOS GRUPOS DE REFLEXÃO MASCULINA
3.5.1 Grupo de 02.04.2004
87
7 Usuários Presentes: A,B,C,D,E,F,G
Presentes também a coordenadora, o assistente e as duas pesquisadoras.
O grupo começa com a retomada da explicação da metodologia empregada na Casa.
Explicamos que irão procurar fazer um acordo (no processo de mediação), mas que,
para isso, devem ter em mente que, se o acordo for muito desigual para qualquer das partes,
nenhuma das duas irá concordar. É comum enfatizarmos a necessidade de considerarem que o
outro (a companheira, ex-companheira etc.) também deve ser atendido em suas necessidades,
para que seja possível a realização de um acordo em moldes diferentes do jurídico tradicional
no qual eles não terão interferência na determinação do juiz.
A: “e dentro da coerência também”.
Concordo com ele e prossigo: “esse acordo vai ser homologado, vai ser assinado pelo juiz”.
B: “eu vou sair, vou deixar a casa (onde mora atualmente), mas se for para eles (sua família)
venderem e sair para outro lugar, eu não aceito”.
Coordenadora: Isso também é um assunto que você pode conversar e combinar na
mediação”.
B continuou dizendo: “se for para vender, então eu quero minha metade”.
Tentando abordar a questão a fim de propor outros pontos, digo: “então, você coloca tua
posição, mas a gente sempre tem que considerar que o outro pode ter idéias diferentes das
nossas”.
Depois passamos a trabalhar com a dinâmica que havia sido preparada, dando continuidade a
um tema que havia sido discutido na semana anterior.
Coordenadora: “na semana passada eu perguntei qual é a coisa que uma mulher fala que
mais ofende o homem”.
88
As respostas vão sendo anotadas em um quadro. A lista consiste nos seguintes itens:
usar segredos, agressão, abandono e maus tratos, acusações de crápula, chamar de corno e
veado, traição.
Essa é uma atividade que visa a despertar e discutir, com base na fala dos
homens, suas expectativas em relação a valores e lugares desejados dentro da
constelação familiar. Nesta lista, denominações como corno, veado e traição se chocam
com as expectativas de masculinidade hegemônica e os desqualificam quanto a um ideal
de masculinidade , não só em relação a eles mesmos mas também perante outros
homens.
Visa, ainda, a discutir formas de comunicação sentidas como agressivas, o porquê
e como elas se dão e as repercussões dessas falas no relacionamento conjugal.
Connel (1995) nos fornece subsídios para a compreensão deste sentimento ao
dizer que “a opressão coloca as masculinidades homossexuais na parte mais baixa de
uma hierarquia de gênero entre os homens (...) Portanto, do ponto de vista da
masculinidade hegemônica, a homossexualidade se assemelha facilmente à feminilidade”
(idem, p.78).
Vivências de segredo, agressão e abandono denotam a perda de um lugar que
desejam manter: o de chefe da casa, de autoridade. Pensando nos ideais culturais de
masculinidade, a manutenção desta hegemonia garantiria aos homens a permanência
num lugar hierarquicamente privilegiado. Pela ótica psicanalítica, o sofrimento advindo
deste afastamento afetivo (real ou imaginado), por parte da companheira, sugere a
revivência de uma experiência arcaica na vida da criança: aquela que remete a um lugar
de exclusão e de castração. A compreensão de dinâmicas psíquicas, associadas aos
códigos definidores de masculinidade tradicionais e vigentes nestes homens (verificados
por meio de seu discurso), revela-se pela recusa em ocuparem esses lugares significados
89
como não-masculinos, castrados, desvalorizados. Assim, verificamos como muitas vezes
a tentativa de reverter esta situação se dá pelas falas acusatórias destes homens, de teor
denegridor da moral feminina, com o propósito defensivo de recuperação de um
equilíbrio narcísico.
Quando surgiu o tema da traição, tentei explorar a questão tratando das diferentes
interpretações dadas à traição quando praticada por um homem ou por uma mulher. Para os
usuários, o homem traído é visto como corno e alvo de chacotas em seu círculo de pares; já a
mulher traída é vista como trouxa e coitada. Por tais motivos, diziam que a traição da mulher
é absolutamente imperdoável.
C: “abandono é algo extremamente doído”.
A zombou do colega e disse: “é para quem gosta”.
A zombaria o distância de uma identificação com o companheiro que sofre e evita a
aproximação com o tema da perda e da dor que o traz à Instituição. Ele usa de um recurso de
tipo ‘machão’, que o protege da fragilidade.
Coordenadora: “você sente que tem muita coisa que deu para ela e ela não valorizou?”.
B: “não adianta nada, você dá o carinho, o afeto e ela não aceita”.
A: “mas aí, Susana, cada caso é um caso. De repente ele gosta da esposa dele, é uma perda.
Tem coisas que você confessa, é calúnia. De repente ela falou assim: eu apanhei de você 20
anos diante de um amigo que você conhece. Isso é uma ofensa grande. É covarde Susana,
acusar você de crápula. Tive uma história de agressão e chegou na delegacia e ela disse que
eu não ajudo lá há cinco anos. De repente ela não quer admitir que teve uma traição. Ela
arrumou outra pessoa e quer viver com ela e tirar eu de casa. Eu já falei para a mãe dela e
(ela) disse que se ela não sabia é porque não aconteceu”.
G: “essa coisa de que a mãe não sabe, não é bem assim, depende do histórico da relação
dela com os pais”.
90
A em tom lamurioso: “é horrível isso. Ela chegar para um amigo do casal e falar uma coisa
dessas de você”.
Coordenadora: “dessa vez que vocês foram à delegacia, o que aconteceu?”.
A: “eu não agredi ela. Eu agredi minha filha e meu filho. Minha filha deu um tapa na minha
cara e eu revidei. Eu me defendi e lá na delegacia da mulher eu fui discriminado pela
funcionária que não deixou eu sentar perto dela”.
F: “se ela chama de corno, ela está se prejudicando”.
B: “ela está revelando o que ela está fazendo, então ela é uma puta. Eu deixo para lá”.
Aqui verificamos novamente uma mudança no curso da conversa já que, se antes
falavam da dor, do abandono e da traição, isso se transforma em acusação da moral da
mulher, numa atitude de espelhamento, pois se o ideal masculino exige a eliminação do
“corno”, o feminino exige a garantia da mulher ‘pura’ e não, ‘puta’. Assim, não só
temos o exemplo de como a dor se transforma em agressão, como vemos a
complementaridade em espelho da comunicação agressiva, na qual os ingredientes
ofensivos são justamente aqueles ditados pela cultura hegemônica.
Coordenadora: “se ela fala quer dizer que é verdade ou será que esse tipo de acusação pode
ser usado pra outra finalidade?”.
Aqui a pergunta objetiva trabalhar a questão do compartilhamento de alguns
valores e que, portanto, as mulheres, ao usarem esse tipo de acusação, invertem a
balança dos poderes, atingindo os homens em seu ‘ponto fraco’. A fala, mais do que
revelar um fato, tem como intuito ofender a necessidade de manutenção de um lugar de
masculinidade onde ser ‘corno’ não é tolerável.
E sorriu e disse: “às vezes não é”.
B e F concordando entre si dizem que às vezes é apenas para ofender.
91
G partilha da mesma opinião: “eu vejo casais que ficam meio se alfinetando”.
Há uma mudança no discurso baseada na possibilidade que se abre de questionar
suas afirmações. Esse é um dado novo.
E: “traição, se acontecer comigo, não tem volta”.
A: “quando você gosta da pessoa é horrível”.
C: “o chato é todo mundo ficar sabendo, você é direito”.
O olhar do outro é definidor da identidade daquele que é visto. A impossibilidade
de manter-se no que consideram o ideal de masculinidade é dado a partir do olhar do
outro, sugerindo a indisponibilidade de outros signos definidores nos quais possam se
ancorar. A questão do olhar do outro como fundante na construção da identidade e
subjetividades do sujeito é tema bastante conhecido na teoria psicanalítica. Em capítulo
de O Brincar e a Realidade, Winnicott (1971), afirmando ter-se inspirado em Lacan, diz:
“No desenvolvimento emocional individual, o precursor do espelho é o rosto da mãe”
(idem, p.153)
27
. Essa afirmação contém a idéia de que o indivíduo constrói uma noção de
si mesmo através do que vê nos olhos de sua mãe ao olhá-lo. O olhar da mãe seria como
um espelho, refletindo para o sujeito sua identidade, ou, ainda, ele (o sujeito) é definido
por aquilo que encontra no olhar daquele que o olha. Esse modelo do olhar do outro
como espelho definidor da identidade é o que depreendemos da fala de C.
Coordenadora: “então pior do que a traição é os outros ficarem sabendo”.
E fez um gesto negativo com a cabeça e disse: “para mim só a traição”.
C retomando seu ponto de vista: “a gente trabalha no mercado, a gente sabe cada uma. Os
outros ficam sabendo e te aluga”.
27
Em recente conversa com Nelson da Silva Jr., este relatou uma Síndrome que lhe foi descrita por um médico,
denominada Síndrome do Vestiário. Desenvolveu-se como técnica para tratar desta síndrome, caracterizada pela
inibição em ter o pênis visto por outros homens nos vestiários, uma cirurgia de espessamento do mesmo, cujo
único intuito é o de evitar um sentimento de constrangimento quando visto por outros homens nos vestiários
masculinos, já que esta cirurgia, segundo o médico, não tem qualquer outro efeito, seja no tamanho que o pênis
atinge ao estar ereto, seja no desempenho ou no prazer sexual.
92
Coordenadora: “e quando o homem trai a mulher?”.
A: “normal, de repente acabou”.
Coordenadora: “e uma mulher quando é traída,como é que ela é vista?”
E: “como chifruda”.
B: “não vão falar que é corna, apenas que está sendo traída”.
Coordenadora: “chamar de corno, para os homens, tem o sentido de ridicularizar? E a
mulher não fica humilhada?”.
C: “é a mesma coisa”.
Coordenadora: “como assim, o que vão dizer dela?”
E: “que é trouxa”.
B: “a mulher é mais ameno porque as amigas ficam sabendo e o homem não fica”.
A em tom de concordância: “a coisa fica confusa. O homem quando trai não fica tão
discriminado”.
Neste momento, C, mais agitado, se levanta para dizer que sua ex-esposa andava de
cabeça baixa pelo bairro porque o traiu.
B então tentou sintetizar a idéia: “o cara é macho e a mulher é puta, mas trai porque ela não
foi bem tratada às vezes”.
C “eu acho que é a cabeça da pessoa. Tem uma vizinha que era bem tratada e começou a
conhecer colegas...”.
Neste pequeno extrato de discussão, podemos identificar uma certa unanimidade
em relação à atribuição de sentidos que é dada para a traição masculina e feminina.
Nota-se que o sentido dado ao homem traído é denegridor de sua moral masculina,
enquanto a mulher traída é vitimizada, mas não ridicularizada. É notável também a
dificuldade em buscar no interior do relacionamento fatores que determinem a traição
93
feminina, o que os leva a atribuir “às más companhias ou às colegas” a motivação para
tal ato.
Essa é uma formulação bastante habitual, a de buscar atribuir ou encontrar fora
da relação do casal a justificativa para a traição. Segundo esta teoria, a mulher que sai
de casa fica arriscada a ver outras coisas e “virar a cabeça”. O julgamento é imperioso:
“a mulher é puta”.
28
Não há um questionamento quanto a algo que possa ser do âmbito
da própria relação, que implique o homem como sujeito ativo. O mal está fora e precisa
ser eliminado para não contaminar a família. Pensamos que este tipo de (in) -
compreensão tem como finalidade evitar a desestabilização desses homens em relação ao
que entendem que seja sua base de suporte identitário, que são suas crenças, seus
paradigmas. É uma idéia de estrutura paranóide, uma vez que está calcada num
mecanismo de projeção ou expulsão do mal. Vemos este tipo de funcionamento também
como aquele no qual se sustentam as crenças e os comportamentos preconceituosos, de
intolerância e perseguição a homossexuais, prostitutas etc, em que o mal é aquele que,
pondo em cheque os valores de determinado sujeito, desperta neste o desejo de eliminar
aquele, livrando-se do risco de se “ver contaminado”
29
.
Visando questionar a idéia de que a vizinha tivesse sido influenciada e sugerir que há
outras possibilidades para entendermos a traição, pergunto: “será que a gente sabe o que
acontece entre as pessoas?”.
B respondeu, dizendo: “a gente mantém as aparências”.
28
Em um dos grupos, deu-se um fato interessante, quando um dos participantes, que hoje é casado em segundas
núpcias, conta que conheceu esta mulher quando os dois eram casados com outros companheiros, tendo ambos
se apaixonado um pelo outro e, assim, se casado após deixarem seus antigos pares. Ele afirmava que esta sua
mulher havia traído o marido, pois eles haviam se apaixonado e que hoje viviam muito bem e se respeitavam.
Fez questão de afirmar isso questionando a definição de que mulher quando trai é porque não tem valor.
29
Apoiados na teoria psicanalítica sobre a paranóia, Adorno e Horkheimer fazem interessante estudo sobre as
razões que determinariam a construção das personalidades fascistas. A descrição das características de
personalidade que coloca o mal de forma exterior ao sujeito, e o leva à perseguição do diferente, evidencia tanto
uma rigidez de códigos de valores, como um temor da ameaça do ‘contágio’. Sugiro a leitura de: La
Personalidad Autoritária (1945).
94
E: “eu acho que a traição é por conta da relação sexual em casa, se o cara é ruim, leva
mesmo. Eu tinha três namoradas e um amigo ficava vinte dias sem procurar a mulher. Se a
mulher procurar o homem e ele não quiser, ela não aceita”.
Aqui vemos a tentativa de encontrar uma explicação, diferente da anterior,
aproximando a questão para um dentro em lugar de um fora. Contudo, as hipóteses
continuam no terreno das regras quanto ao que deve ser um homem dentro deste modelo
hegemônico. Assim, caberia ao homem ter de apresentar prontidão sexual, atendendo a
um ideal numérico que se mostra não menos persecutório que o anterior, pois o risco do
não- preenchimento deste ideal justificaria à mulher busca-lo num outro homem,
substituindo o que o primeiro não se mostrou suficientemente competente para lhe
prover.
A: “As mulheres podem ficar sem transar por muito tempo, mas os homens não”.
E: “Se a mulher não quer, o homem aceita. Mas se o homem não quer, a mulher não aceita”.
B diz: “A mulher pode pensar que, se ele não procura ela há muito tempo, já vai pensar que é
porque ele tem outra”.
E sempre rindo, diz: “Tem que ser 2 vezes por semana. Para mulher pode ser uma vez por
mês”.
Coordenadora: “A mulher pode mostrar a sua sexualidade? Um homem disse outro dia em
um grupo que o homem convida a mulher para sair porque quer sexo, mas ela não pode
aceitar, porque se ela quiser, fica mal falada”, com o que todos concordaram.
B: “As difíceis é que valem a pena”.
Dirigindo-me a D, que ainda não havia falado: D, o que você acha?”.
E riu e disse: “esse aí tem trauma de mulher”.
Coordenadora: “é assim que homem provoca homem?”.
D sorriu timidamente e disse: “cada um tem sua reação”.
95
Coordenadora: “é uma provocação? Tipo,‘prova aí que você é homem’. E como é que é? O
homem quando é provocado precisa provar que é homem?”.
A olhou para a técnica e disse: “não sei, dá uma porrada no homem”.
G riu muito e disse: “como se isso fosse a coisa mais simples”.
C: “os homens costumam responder a uma provocação de outro homem dizendo que vão
comer a mãe ou a irmã do outro”.
A comentou: “isso aí dá uma briga feia, você ofendeu a moral do cara e ele ofendeu sua mãe.
Aí você explode, não dá tempo de você pensar”.
Coordenadora: “será então que homens e mulheres não podem desejar a mesma coisa?”.
A concorda: “é uma discriminação”.
Coordenadora:“então a mulher que gosta do que o homem gosta ela não presta?”
Todos riram dando-se conta da incongruência e G disse, rindo: “Assim você está
encurralando...”.
Coordenadora: “por quê?”,
G: “ambos querendo, seria perfeito (e fez um gesto com as mãos representando um
‘encaixe’), os dois querem o mesmo”.
A: “As coisas mudaram. Antes as mulheres casavam virgens”, e eu lhe pergunto o que achava
disso.
A, F e B: Não é bom. É melhor conhecer antes.
E: “O que interessa é o caráter da mulher.”.
À medida que a conversa avança e certos paradigmas são discutidos, há um
encaminhamento em direção a uma conciliação de interesses, indicando uma
transformação por meio do questionamento de um padrão rígido de comportamento
sexual atribuído a homens e mulheres, que vemos na frase que conclui este trecho: “o
que interessa é o caráter da mulher”.
96
Aproveito o tema para perguntar: “e se, por exemplo, uma mulher se insinuar para o
cara, ele pode recusar?”.
A:pode, lógico”.
Os demais não falaram nada; alguns riam e conversavam entre si em voz baixa,
evidentemente discordando da resposta dada.
Coordenadora: “eu estou pensando aqui que a situação dos homens deve ficar muito difícil
se ele não pode dizer não”.
B sorriu e disse em tom baixo, como se estivesse fazendo uma confidência: “a própria
mulher pode desconfiar que ele tem outra. Os outros vão falar que é um broxinha.”
Coordenadora: “por que vocês acham que tem essas diferenças? É uma preocupação ter
que provar que é homem?”.
B riu e falou para os que estavam próximos: “corno é pior do que veado.”
Nesta seqüência de conversa, vemos a questão da sexualidade masculina como
algo que, ao contrário de lhes garantir poder (como tendem a acreditar), lhes aprisiona
no que Corsi (1995) descreve como sendo a base sobre a qual se constrói a identidade
masculina: o hiperdesenvolvimento do eu exterior (fazer, conseguir, agir) e a repressão
da esfera emocional.
Em seguida, proponho uma dinâmica que consistia em um treino de mediação. Um
faria o papel do marido e outro, da esposa.
F propôs que G fizesse papel de mulher “porque ele usava vários brincos”.
97
É comum que se estabeleça um incômodo ou até mesmo uma recusa em
representar o papel feminino, sob o risco de que isso os aproxime de uma identidade
feminina, afastando-os do que denominei de sua identidade desejável. A maneira
encontrada para ‘se livrar’ ou proteger-se do lugar indesejado, dá-se, neste trecho, por
meio da identificação, no outro, de atributos rigidamente associados a códigos femininos.
Vemos também nesta passagem que, num mesmo grupo, encontramos expressões
de diferentes masculinidades e ainda a maneira como estas se chocam. O motivo de
pedir a F que fizesse o papel de mulher foi o de que pudesse experimentar-se em outro
lugar, diferente daquele que se vê obrigado a exercer. Assim, com o meu pedido, fica
autorizado e pode sentir-se menos ameaçado de ser ridicularizado pelos colegas.
G incomoda-se com o comentário do outro, mas tenta disfarçar levando na esportiva. Por fim,
F aceita fazer o papel solicitado.
Os outros devem fazer o papel de mediadores, fazendo perguntas, procurando
descobrir quais eram as versões de cada parte sobre o conflito entre eles: “vocês já viram que
para homens e mulheres às vezes as coisas são diferentes. O mediador não vai julgar. O
casal quer se separar, mas estão vivendo na mesma casa por uma questão financeira. Cada
um já tem interesse em outras pessoas e isso tem gerado muita briga dentro de casa”.
(Tratava-se do caso de um deles.)
Eles entenderam a proposta e F assumiu o papel de esposa e D foi escolhido pela
técnica para ser o mediador.
A entrevista começou com F dizendo: “meu marido e eu só brigamos, eu já tenho
outro namorado”.
D: “têm filhos?”
F concorda com a cabeça e o mediador indaga: “já é grande, já?”.
98
A interrompeu e rindo, disse: “eu acho que ele está conquistando a esposa, não está fazendo
pergunta”.
Este comentário é sugestivo de que a conversa de cunho mais íntimo pode ter
causado constrangimento, suscitando um comentário que visava aliviar este incômodo.
Propus então que D tentasse explorar um pouco mais a relação do casal: “lembra que
tem história de violência”.
F interrompeu-a para dizer: “mas eu digo que não tem”. E riu muito.
Mediador: “o que você está chamando de violência?”.
F respondeu: “traição com a vizinha, começou aí”.
Trocam-se o mediador e o casal por outros participantes para que eles possam
experimentar esses papéis.
A: “eu traí ela e ela não quer mais ficar comigo, acabou”.
Coordenadora: “lembrem-se que tem um namorado e isso está dando briga”.
A ficando mais exaltado diz: “ela quer tirar minha casa e não vou sair, se acha que eu vou
dar a casa para vagabundo”.
Mediador: “por quê? Você gostaria?”.
A: “eu jamais vou deixar minha casa com os filhos e ele lá dentro com ela”.
Mediador: “e se eles quiserem ficar com a mãe na própria casa?”.
Coordenadora:: “por que você está dando idéias para ele? a idéia é que eles possam chegar
a uma solução entre eles”.
Assistente: “e ninguém perguntou o lado dela”.
A:: “quem escolheu foi ela, ela teria que sair”.
99
Coordenadora: “o conflito parece que é a casa e nenhum dos dois quer sair de lá. E tem os
filhos e um sentimento de humilhação. Será que às vezes a briga pela casa e pela pensão não
tem a ver com esse sentimento de humilhação?”.
Mediador saindo do papel, diz: “o meu filho não vai deixar ela pôr outro homem lá”.
Coordenadora: “e se esse marido resolver levar outra mulher para aquela casa e a esposa
concordar em sair, aí pode?”.
G: “para o marido não ia pegar mal”.
A: nesse momento passa a falar abertamente sobre o que o traz à Instituição (havia pedido que
seu caso não fosse aberto aos outros pois se sentia muito envergonhado): “no meu caso, a
casa é dos meus pais e meus irmãos não aceitam ela levar alguém”.
B: “ele pode se dispor a pagar um aluguel para ela fora”.
A: “eu posso expor o meu caso e eles poderão analisar. Nós fomos casados durante vinte
anos. Ela disse e eu já sabia que ela tinha outra pessoa. Foram três vezes de traições, três
vezes já é demais. Não tem nada para me desabonar. Eu conversei com as crianças e elas
disseram que não poderiam mandar a mãe embora”.
Eu nunca cheguei, jamais eu disse: oh, sua vagabunda, levanta daí e vai fazer comida. Ela
resolveu sair de casa e eu propus que ela pensasse o que queria”.
Continua seu relato contando que depois disso decidiram ainda tentar viver juntos. Ele
lhe deu um presente do Dia das Mães que era uma cacharel (sic) de lã e em tom magoado
disse: “ela disse que era uma porcaria”.
Explica que havia feito isso para testá-la, pois tinha uma jaqueta de couro no carro,
presente de maior valor, e queria ver sua reação diante da cacharel. Conta que ela então jogou
a blusa em sua cara, insinuando que era um presente insignificante.
G: “a cacharel foi a gota d’água para ela descarregar vinte anos de frustração na sua
cabeça.”
100
A continuou dizendo que o filho tinha ficado muito chateado com a atitude da mãe,
especialmente porque ela aceitou e gostou muito da jaqueta de couro.
Em seguida propus que G fizesse o papel de mediador, mas ele recusa alegando que
sua cabeça já estava latejando de tanto pensar.
A continua sua narrativa dizendo em tom indignado que perdera 6kg, havia sofrido muito.
Não tinha com quem conversar, fui à Igreja rezar, para me acalmar. Pensei em matar ela.
Depois comecei a me relacionar com outras mulheres”. Em tom de indignação diz: “ela
namora um menino de 20 anos e tem 40 anos”.
Coordenadora:uma mulher mais velha não pode namorar alguém mais novo?”, ao que
todos responderam ser “estranho”.
E: “eu tenho duas namoradas de 27 e 33 anos, e tenho 48 anos. Sou machista mesmo: elas
não podem ter outro”.
Um dos integrantes ri muito e eu lhe pergunto o motivo da risada. Quem responde é
outro integrante, dizendo :“é o amante. Ela está provocando ele” (referindo-se à mulher de
A).
A: “você acha que ela tem o direito de fazer isso?”.
F responde que não e acrescenta: “ele fica humilhado”.
A explica que sua mulher havia trazido a roupa do namorado para lavar em sua casa,
escondido, e pendurado no varal. Conta que ficou nervoso e ameaçou pôr fogo em tudo se ela
não tirasse a roupa de lá. Dizia que seus irmãos queriam tirar todos de lá porque não
agüentavam mais as constantes brigas. Disse também que a esposa havia chamado a polícia
quando ele bateu no filho, pois acusava este de não ver que sua mãe estava colocando roupas
de outro homem no varal da família.
101
Continua dizendo: “Eu também estou saindo com outras pessoas, mas ela sai e passa o fim-
de-semana fora. É pior. Eu saio, mas volto todos os dias. Um dia eu percebi que ela estava
levando roupa dele (atual companheiro) para lavar em casa. Eu chamei minha filha, que
também disse que isso não estava certo.
Coordenadora: “será que o que te deixa bravo é que expondo as roupas no varal ela traz a
presença do namorado para a casa de vocês?”
A:não porque já não nos gostamos mais”.
Aqui, a questão do gostar, do envolvimento afetivo não é a questão principal, mas
a humilhação sentida, materializada pelas roupas no varal, que evidenciam a presença
de outro homem em seu lugar. A questão discutida no início desta sessão, sobre o
sentimento de vergonha de ser exposto como ‘corno’ ao olhar alheio se expressa na
situação do varal.
A: Diz ainda que estava preocupado em garantir a segurança dos filhos, deixando a casa para
eles, sem sair de casa, pois, do contrário, iria viabilizar que sua esposa vivesse com outro
homem naquele espaço.
Neste momento G aponta: “a preocupação não é com os filhos, pois se eles estão sendo
chamados o tempo todo para resolver tudo quando é picuinha, brigas”.
E propôs ainda que A saísse da casa deles, o que ele recusou, dizendo “A casa foi construída
pelo meu pai, imigrante. Ela escolheu, ela que saia.
B propôs que ele a ajude, pagando um aluguel, ao que ele disse “De jeito nenhum! Ela
escolheu o outro. Ela que saia”.
Coordenadora: “não é fácil desfazer um casamento de vinte anos, né?”.
102
A responde: “ela que escolheu essa situação. Ela tem que sair. Ela ganhava mais do que eu”.
E depois perguntou aos outros: “e aí vocês aceitam ela levar a roupa do cara?”. Vários
disseram que não.
Coordenadora: fazendo referência a comentário de A sobre o que havia dito que às vezes
sentia que iria perder a cabeça, diz: “quando você achar que vai perder a cabeça, venha
aqui”. Encerrou-se o grupo naquela manhã.
3.5.2. GRUPO DE 16/04/2004
Usuários presentes: A, B, C, D, E, H, I, J, P.
Em razão da presença de novos participantes, inicio o grupo me apresentando como
psicóloga da Casa, apresentando também o estagiário e as pesquisadoras. Explico a finalidade
dos grupos, a metodologia e esclareço dúvidas.
Em seguida proponho uma atividade usada quando há pessoas iniciando os grupos:
uma espécie de ‘treino de conversa’. Proponho que se juntem em pares, durante alguns
minutos, e cada participante irá ‘entrevistar’ o colega, que então será apresentado ao grupo
pelo entrevistador e não, por si mesmo.
Algo observado ao longo dos anos de atendimento nos grupos masculinos é a
dificuldade que muitos deles têm em relatar suas questões pessoais a outros homens. Assim,
este aquecimento visa a proporcionar uma situação de aproximação por meio da conversa,
propondo um modelo de relacionamento com o qual estão pouco familiarizados (numa
primeira desconstrução paradigmática contida na idéia muitas vezes expressa por
participantes dos grupos de que homens não trocam confidências com outros homens). É
também uma maneira de serem colocados no papel de ouvintes, alterando-se um modelo no
qual têm a expectativa de serem ouvidos por uma autoridade que se encarregará de resolver
seus casos de forma assistencialista. Deste modo, esta atividade propicia o início de dois
103
processos significativos: rompe com modelos e expectativas conhecidos dentro da proposta
institucional de desconstruir narrativas, bem como inicia estes homens, que se encontram em
conflito com suas companheiras, numa atividade de experimentar-se como ouvinte de outro,
reproduzindo e refletindo sobre estas outras histórias, que podem conter diferentes pontos de
vista.
Coordenadora: “Bom, é assim, eu tenho que saber o nome de todo mundo, a história de cada
um. Pensem que vocês são entrevistadores – perguntem, por exemplo, o que fez o colega
procurar a Instituição, o que esperam..”
I (que já fizera essa dinâmica em um outro grupo) diz: “Mas vocês têm que ser objetivos,
responder ao que a pessoa está perguntando.”
Coordenadora:Como assim?”
I:Porque já vão se fazer de vítimas...”
Coordenadora: “Bom, essa é uma das regras pra se fazer mediação: não dá pra ir
deduzindo coisas porque a gente não sabe o que está passando na cabeça do outro. Então
tem que perguntar pra saber.
Eles fizeram a dinâmica proposta, conversando entre si animadamente durante 15
minutos.
O primeiro a fazer a apresentação foi D, que apresentou C: “A história dele é a
seguinte: ele tem uma filha de 10 anos, ele pagava um salário mínimo de pensão. De um
tempo para cá, não pode dar mais esse valor porque tá desempregado. Vinha dando
R$146,00, mas ela (sua ex-mulher) não aceitou, acostumou-se com o salário mínimo. Ele veio
aqui atrás dos direitos dele”.
104
Pergunto se o entrevistado tinha outros filhos e D responde que não havia lhe
perguntado isso. É freqüente que o entrevistado refira somente os filhos em relação aos quais
haja alguma ação jurídica.
Coordenadora: “Que outras coisas ele poderia perguntar?”.
C, sem esperar resposta, começa a contar sua própria história: “eu tenho quatro filhos. Há dez
anos foi legalizada a pensão. Eu trabalho por conta, sou pedreiro, e o serviço caiu bastante.
Ela foi no juiz achando que eu não pago porque eu não quero. As vizinhas ajudam: vamos
pôr ele no pau”.
Conta que havia se casado uma vez anteriormente, tendo uma filha com esta primeira
companheira, que, por sua vez, tem outros quatro filhos “com outros pais que não pagam
nada”. Disse que depois se casou de novo, propondo acertar a pensão de sua filha na Justiça, e
que esta segunda união também não deu certo. Disse que fazia bicos e “muitas mulheres ficam
falando sobre pensão. As mulheres são assim...”, com o que os demais concordaram. Disse
ainda “Ela acha que qualquer coisa eu vou agredir ela.”
Pergunto-lhe o porquê de ela achar isso, ao que ele respondeu “Porque ela é cheia de
querer razão.”
Ao ouvi-lo lamentar-se de que tinha quatro filhos e do pouco dinheiro disponível que
tinha para pagar-lhes a pensão, pergunto a todos: “e será que tem jeito de a gente planejar
quantos filhos quer ter?” Todos confirmam que sim, há meios de se protegerem, e segue uma
pequena conversa sobre como os homens sentem-se com freqüência lesados pela mãe dos
filhos por estas pedirem a pensão dos mesmos, mas que a questão reprodutiva é algo que
comumente fica a cargo exclusivo das mulheres.
Meu comentário visa a questionar alguns pressupostos que venho anotando com
base em falas ao longo dos grupos e que refletem o sentimento acima expresso de ver-se
105
lesado pela mulher. São eles: 1- as mulheres querem explorá-los e viver às custas da
pensão paga; 2- muitas têm os filhos exclusivamente como meio de vida, explorando os
pais das crianças; 3- as mulheres se aproveitam dos homens e os enganam em relação à
prevenção, engravidando a contragosto dos companheiros. A idéia de que a prevenção
fica a cargo das mulheres e não diz respeito aos homens os impede de pensarem também
em prevenção. O que constatamos é o lugar vitimizado a partir do qual estes homens
falam, de quem foi enganado, uma vez que a contracepção é pensada como algo do
universo feminino, ou, ainda, é comum observarmos uma falta de correlação entre a
atividade sexual e a possível gravidez decorrente desta.
Vemos na fala deste usuário como se sente em desvantagem em relação aos outros
pais dos filhos de sua ex-companheira, uma vez que estes não pagam nada aos filhos e a
ele está sendo requisitado o pagamento.
Muitas mulheres ficam falando sobre pensão... As mulheres são assim.” O pedido
da pensão é verbalizado como uma espécie de punição injusta à qual se sente submetido,
desconectada de sua relação com a criança.
Com efeito, esta fala parece ser o resultado, na forma de ataque ou acusação
denegritória contra a mulher, do efeito que seu pedido de pensão tem sobre ele. Podemos
suspeitar que sua vivência seja também a de ser violentado, convocado a cumprir ou
atender a expectativas para as quais não está capacitado por sua condição de trabalho
(ou falta do mesmo). Não tendo recursos financeiros para pagar as pensões, a vivência é
de impotência e a resposta é agressiva, atribuindo à mulher uma má intenção e a
responsabilidade por despertar-lhe tais vivências.
C continua falando de seu caso: “jamais se pode fazer confusão na rua onde mora. Não posso
conversar com ela, que ela já fala que eu estou agredindo ela”.
106
Ouço-o e, ao terminar, procuro prosseguir com a dinâmica, pedindo que H apresente
seu colega.
B: “ele é I. Ele vem do Jardim São Jorge. A mulher saiu de casa com o filho. Ela foi na
Justiça e ele está desempregado, não está podendo pagar a pensão. Dia 20 tem uma
audiência para tratar da separação”.
Coordenadora: “você não ficou curioso sobre mais coisas. Vocês conversaram só a parte
jurídica?”
I: “homem não gosta de conversar muito”.
B continua: “a separação dele foi igual à minha. Ela trabalha e ele, não”.
Pergunto-lhe então: “o que levava às brigas?”, esclarecendo que o intuito da pergunta
não é o de julgar seus motivos: “aqui eu não sou o juiz”.
B respondeu dizendo: “pelo que ele me disse, ela é uma mulher muito grosseira, não quer
entender o lado dele.”
I, interrompendo o colega, diz: “Mas não era assim. É que acabou o amor, ela disse que não
me amava mais”, em um tom de voz baixo e bastante magoado - os demais ouviam atentos,
no mais completo silêncio.
Tivemos uma briga muito feia, não teve porrada não, mas foi muito xingamento, veio até
polícia. Ela foi embora no dia 25/12/2002, foi presente de Natal. No dia 21/12 ela saiu e não
disse para onde foi (esse é o dia da briga). Ela está com outra pessoa e dizem que ela está
grávida”. Acrescentou que vê a filha, “mas se eu for lá, ela vai querer dinheiro”, ao que
vários deles riram, em especial J, em um tom de concordância, como se dissesse que as
mulheres sempre têm atitudes como essa.
107
Pergunto a B: “então como é que ele faz para ver a filha?” B respondeu dizendo: “ele falou
que é liberado”. A coordenadora, sorrindo, comenta: “eu já vi que você tomou o partido dele
totalmente”.
I olhou para mim e disse: “eu não quero passar o telefone da minha casa para ela”.
Outro colega, demonstrando preocupação, pergunta a ele: “e se acontece algo com a sua
filha?
I diz que preferia que ela entrasse em contato com ele por meio de uma vizinha dele, que
estava sempre trabalhando em casa.
Depois, em tom queixoso disse: “ela não deixou nem eu dar um beijo na menina e já
perguntou da pensão”.
Percebendo sua aflição, procuro esclarecer a legislação que regulamenta esta questão, dizendo
que a autorização às visitas não depende do pagamento da pensão, e que isso era um direito
tanto dos pais quanto das crianças.
B concordou com ela, dizendo: “a criança tem que ter contato com os dois”.
C pensou em seu caso e disse: “quando paga a pensão, ela obriga a menina a me ver.
Quando não está em ordem, eu não chamo ela”.
Em seguida, P passou a apresentar J: “esse é o J. Ele tem um filho (diz seu nome) que
está com sete anos. Está separado há cinco anos e vive maritalmente com outra. Ele pagava a
pensão no valor de R$ 420,00. Ficou desempregado em dezembro e desde então têm ocorrido
problemas para ver o filho. Ela tem esperanças de reatar o relacionamento. Agora tem uma
ação correndo contra ele”.
Pergunto a J: “o que você fazia?” Ele respondeu rapidamente: “eu era representante
comercial”. Explica que ele e a ex-esposa se separaram porque estavam brigando muito.
Chegaram a anular a separação, voltaram, mas depois se separaram novamente. Ela vendera e
perdera tudo. Diz que a esposa não aceitava a separação e ligava para sua atual companheira,
108
quando ele não estava em casa, dizendo que estavam juntos num motel. Por isso, não tem
mais telefone em casa, mantendo apenas seu celular particular.
A então propôs: “acho que ela está querendo aproveitar dele”.
J discordou imediatamente: “acho que não. Ela ganha muito bem”.
E propõe que ela deve ter pensado: “agora vou ferrar com ele”.
J concordou com ele e disse que ela usava o dinheiro da pensão para custear sua faculdade.
Em seguida salientou que estava sustentando sua casa com quatrocentos reais. Falando mais
alto, disse: “eu tenho como provar”.
Digo-lhe, a fim de evitar que se sinta julgado por mim, que sou a representante da
Instituição para eles e assim ocupo lugar de autoridade: “aqui para mim você não tem que
provar nada, este não é nosso propósito,” ao que J fica evidentemente irritado.
Penso que a irritação deveu-se a ter entendido meu comentário de forma a
proteger sua ex-mulher. O fato de eu ser mulher faz com que, por vezes, seja
identificada com suas próprias mulheres, sendo interpretada como defensora delas,
ainda que tentasse esclarecer não estar tomando partido de nenhum deles, mas
propondo que há outros pontos de vista a serem considerados. Ao longo dos grupos, esse
sentimento tende a se dissipar e a idéia de que as histórias têm mais de uma versão é
algo que fica mais claro, como visto no relato do grupo de discussão final.
No extrato acima, percebemos claramente o que traz estes homens à Instituição:
a necessidade de auxílio jurídico. Vemos também a notada inter-relação entre o
exercício da paternidade e o provimento financeiro, sendo que a idéia de exercício da
paternidade associa-se de forma marcante como algo do âmbito da possibilidade
financeira desses pais. Desta forma, vemos a disputa de poderes entre pais e mães na
qual a falta de condição financeira tem a conotação de desqualificá-los como pais, ou,
109
ainda, de os impedir de exercerem sua função paterna, demonstrando se sentirem
faltosos: “quando não está em ordem eu não chamo ela.” Essa espécie de crença,
compartilhada pelas mães de seus filhos, as dotam de poderes sobre os filhos, no que
parece ser uma disputa por restabelecer um equilíbrio de poderes.
No relato acima vemos, em algumas falas, o sentimento de perda vivido em
virtude do abandono da companheira, ou da falta de amor. Assim, a conversa oscila
entre vivências de perda, raiva e agressividade, sugerindo pensarmos na existência de
uma relação de determinação entre estes sentimentos.
Em seguida C passou a apresentar D, dizendo: “o nome dele é D. Ele tem dois filhos
do primeiro casamento, que vivem com a mãe dele...,” ao que D diz: “eu estava sozinho, não
tinha como ficarem comigo. Tem também essa filha da pensão (cujo nome não consegue
lembrar) e agora tenho 2 filhos do meu atual casamento”.
C: A mulher dele está querendo as pensões atrasadas de 2000 e 2001. Ele pagou e não tem
recibo e ela está querendo receber de novo”.
Termina seu relato e então a coordenadora lhe pergunta: “só isso? não tem mais nada
sobre a história dele?”
P perguntou: “e a idade dos filhos?”
O próprio D responde: “ela tem cinco anos e quase não vejo ela” (fala somente desta filha,
que é o caso que o trouxe à PMFC).
I lhe pergunta: “você paga pensão?”
D: “pago. Ela está alegando que eu fiquei quinze meses sem pagar. Eu tenho testemunhas.
Isso foi na época que eu troquei de firma. Eu tenho cinco filhos: dois do primeiro casamento,
que moram com minha mãe em Minas, a mulher não tinha condições de ficar com elas. Era
alcoólatra.”
110
Aproveito a afirmação feita para lançar a seguinte questão, uma vez que verifico que,
quando pedem a guarda dos filhos, eles são cuidados por alguma mulher que resida com o pai
da criança, como suas mães, irmãs, tias ou uma nova companheira: “para morar com os filhos
é preciso ter uma mulher morando junto?”
D explica que não tinha condições de ficar sozinho com as crianças. B concordou com ele,
dizendo: “trabalhar e cuidar de criança é terrível”.
I também falou: “o casamento é coisa séria. No momento me encontro só e não a perdôo”.
B faz um longo relato, lamentando as dificuldades de ficar com uma criança pequena e
trabalhar, disse que tinha conseguido vaga na creche através do serviço social da Instituição,
mas que o menino estava doente há quatorze dias: “eu que tenho que fazer tudo”.
Aqui ouvimos o relato de um homem no lugar mais comumente ocupado pelas
mulheres que tem de se haver com a criação dos filhos e o trabalho fora de casa. É
interessante ouvirmos a história dele que dá a dimensão da dificuldade na criação dos
filhos de um ângulo inverso, feminino. É evidente em seu relato o sentimento de solidão e
sobrecarga no exercício desta função. Isso me leva a perguntar:
“e onde está a mãe dele?”
B, em tom raivoso, diz: “ela saiu de casa. Ela fica em mesas de cerveja. Ela tem ido comigo
ao médico, mas, se eu não ligo, ela não vem ver a criança. Acho que ela não liga, é o quarto
filho dela já. Ela não liga. Eu fico o dia inteiro sem ver ele e fico ansioso para vê-lo. Ela não
quer passar a guarda para mim. Eu não quero ficar com a criança sem estar legalizado.
Quero que ela fique no sábado com ele. Ela falou que se eu arrumar uma mulher, ela toma o
menino de mim.”
111
Com o intuito de aliviar sua aflição, dando-lhe um dado real, digo: “se você já está
com ele, e ele está bem assim, é provável que a guarda fique com você.”
Ele continua nervoso e agitado, dizendo: “ela está com outro cara.”
É comum a alegação de que a mulher não é boa mãe quando ela não corresponde
à mãe cuidadora, que mora com o filho, ou, ainda, a mãe que gosta de cerveja, como
ouvimos no relato de B. Sua vivência de abandono, solidão e exclusão, “ela tá com outro
cara” e ‘tenho que fazer tudo,” nos remete a uma idéia de que, ao falar da mãe de seu
filho, se ressente ao deparar-se com uma representante de mãe divergente de um ideal
materno frequentemente encontrado no discurso destes homens. Nessa mesma linha de
raciocínio, podemos pensar na vivência comum a todos os meninos, que ao longo de sua
elaboração edípica, devendo abrir mão de suas mães – primeiro objeto de amor-
experimentam esta ruptura como um processo de exclusão e abandono. A reivindicação
de uma mãe cuidadora para seu filho, embora legítima, pode também ser compreendida
como uma re-atualização de uma reivindicação passada, da infância.
A acusação feita contra mulheres, sobre sua competência como mães, é ainda, de
uma ótica de gênero, algo da mesma categoria que o correspondente masculino: corno
ou veado. Acusações tais como ”não é boa mãe” ou “é alcoólatra” estão atreladas a um
rígido código de valores cuja resultante é pensar-se que, se ele é um bom pai, que cuida
de seu filho, como nos conta H, isso se torna prova suficiente de que ela é uma má mãe,
não se podendo conceber uma mãe diferente daquela idealizada da infância, que é a
forma como estes homens costumam descrever as próprias mães.
Dou continuidade às apresentações.
E passou então a apresentar seu companheiro, dizendo: “esse é o H, veio do Grajaú.
Ele conheceu uma mulher, tiveram relações e ela falou que o filho não era dele. Depois que
112
nasceu, ela disse que acha que é dele e entrou com pedido de pensão, por isso ele está vendo.
O bebê está com quatro meses.
H: Eu só vi ele (a criança) duas vezes”.
H conta ainda ter-lhe perguntado: “como é que você deixou isso acontecer? Você é uma
mulher experiente”.
Coordenadora : “mas e aí, tem jeito do homem se cuidar se não quiser ter filhos?”
J logo diz: “Eu me cuido, tive só um filho. Só quero um”.
B: “Antes era tudo festa, agora eu tenho responsabilidade. Há um ano tudo mudou, com o
nascimento de meu filh.”.
H concordou que tem de se cuidar e D disse: “Daqui a 40 dias vou me operar, fazer
vasectomia”.
H disse: “o maior medo são as doenças”.
B: “eu só vim me preocupar com isso depois que tive o meu filho”.
H admitiu que ficou muito chateado e em dúvida diante da situação e J saiu em sua defesa,
dizendo: “ele quer saber se é seu para não deixar ao deus-dará. Pelo que eu estou vendo, ele
tem uma boa índole. Eu fico uma semana sem ver meu filho, eu fico louco. Ele podia ter dito:
é de outro, tchau. O filho é um pedacinho da gente com vontade própria. No caso dele, ele
está tendo boa vontade”.
Aqui, vemos que J parte para a defesa do colega, negando o tema principal que é
o da própria responsabilidade quanto à reprodução, e adere a um código de
masculinidade no qual o homem não pode ser feito de bobo e cuidar de filho de outro.
Pensamos ainda estar implícita nesta formulação uma acusação de caráter moral contra
a mulher, atribuindo-se exclusivamente a ela uma função que seria dos dois, ou de cada
um como responsável por seus desejos e ações.
113
H então disse: “eu adoro a criança, mas eu estou balançando. Eu moro e cuido da minha
mãe. Eu fico ansioso para ver meus sobrinhos”.
Depois disso passou a apresentar E, dizendo: E do Butantã. Ele procurou a casa
porque a mulher pegou as três crianças e viajou, disse que ia ficar 15 dias fora e ficou mais
de um mês . Quando ela retornou, ela disse que ia trabalhar e levou uma mala com roupas.
Ela não voltou na sexta, voltou só no domingo”.
Neste momento, o próprio E começa a falar: “eu tomo conta das crianças. Vendo
algodão doce e ela trabalha”.
E retomou a história que contara na entrevista de triagem, dizendo que eles haviam brigado
porque ele fizera comida e ela se recusara a comer. Também a acusava de ser relapsa, pois
ficava a cargo dele buscar e levar as crianças na escola.
H interrompeu o relato, dizendo: “Parece que ela está querendo voltar com você...” e E
retomou seu relato, que novamente repetia aquele que havia feito na triagem, aparentando ter
uma história pronta para si, que contava da mesma maneira todas as vezes. Dizia que seus
filhos estavam sendo maltratados no Paraná (lugar da família da mãe das crianças), e que sua
ex-mulher havia dito à tia deles que batesse neles se “bagunçassem” e, por isso, as crianças
tinham muito medo de ficar lá.
E conta, rindo, que, quando bagunçam demais, ele diz que vai mandá-los para o Paraná, para
que eles fiquem quietos.
H interrompeu-o para complementar: “ele falou que ela disse que não ia dar mais para viver
junto”.
E suspirou e continou: “tentei mudá-la e ela não mudou. Ela está dentro de casa porque o
escrivão disse para não expulsá-la, estamos separados de corpos. Ela batia no menino de
cinco anos e o obrigava a lavar roupa. Ela trabalha fora”. (Esta mulher, segundo a assistente
114
social que a havia entrevistado, tinha vários empregos e era quem mantinha financeiramente a
casa. Ele vendia algodão doce com uma máquina que ela havia comprado para ele, e como
ficava em casa, havia ficado responsável pelo cuidado das crianças).
E contou que após a entrevista (com assistente social da Instituição), tinha conseguido uma
vaga para a filha na escola, e que ela estava gostando muito.
Por último e porque já havia se esgotado o tempo, J apresentou rapidamente P.
J: “o P é garçom. Tem uma filha de um ano e sete meses. Está pagando pensão e ela não está
deixando ver a filha. Há um certo sentimento entre os dois. Ela pode estar usando a filha
para atingi-lo. Eles se separaram só por uma questão financeira e a família dela o
considerava um fracassado. As famílias de ambos não querem que eles fiquem juntos”.
Faço uma síntese do que havia sido discutido até aquele momento, indicando que as
duas principais questões que haviam trazido a maioria deles à PMFC diziam respeito à pensão
e guarda. Esclareço dúvidas de usuários quanto a assuntos relativos aos procedimentos da
Instituição e encerro o grupo.
Vale ressaltar, como comentário final deste grupo, a repetição na associação
entre pai/provedor financeiro e mãe/cuidadora. Arranjos alternativos ao modelo
tradicional de divisão sexual do trabalho, como os verificados nos relatos acima
descritos – em que ao pai cabe cuidar dos filhos e à mãe prover a família
financeiramente, como é o caso de E –, despertam falas que evidenciam como a ruptura
de arranjos tradicionais é vista como falta ou falha. Desse modo, um pai cuidador
parece implicar, segundo o ponto de vista do usuário, uma mãe desqualificada em sua
função materna, não sendo mencionado em seu relato o fato de ela ser a principal
provedora financeira da família. O enaltecimento de sua condição de pai às custas da
desqualificação da companheira como mãe, exemplifica um dos tipos de violência a que
115
nos referimos, como decorrência de um aprisionamento a padrões rígidos na divisão
sexual do trabalho.
3.5.3 GRUPO DE 23/04/2004
Usuários presentes: J, K, L, M, N, P, Q, R, S, H
O grupo começou com os técnicos se apresentando como psicólogos da Casa, pois,
como de hábito, havia novos integrantes presentes. Em seguida, justificamos a presença das
pesquisadoras em razão da pesquisa que estava sendo desenvolvida na Pró-Mulher e, então,
perguntei: “quem lembra o nome de cada um? Vocês que estão chegando, vamos só
esquentar. Esse grupo tem a finalidade de a gente conhecer vocês um pouco melhor, dar
algum encaminhamento urgente quando for necessário... A gente discute temas que tem a ver
com o que traz vocês aqui. Todos aqui têm liberdade para falar o que quiser, comentar sobre
o que um ou outro disser, dentro de um clima de respeito com todos.” Na seqüência,
expliquei o funcionamento da Casa e a proposta da mediação e sua diferença com relação aos
meios jurídicos tradicionais.
K então disse: “mediação é quando junta as duas partes e conversa os dois”.
Coordenadora: concordo com ele e complemento sua explicação, dizendo: “é para que
vocês possam resolver que tipo de acordo vão querer fazer e, para isso, a gente precisa se
preparar. Nós temos que ouvir o jeito do outro”.
Em seguida proponho a um dos participantes antigos: “Você pode fazer perguntas aos
três colegas do jeito ‘aberto’
30
para que a gente conheça eles? Pode começar com o Q.
30
O jeito ‘aberto’ é como denominamos o tipo de pergunta que possibilite uma gama mais variada de respostas e
não uma que já contenha em sua formulação a resposta a ser dada. É algo que não está descrito no relato, mas é
regularmente enfatizado, quando praticamos atividades de entrevista. O intuito deste tipo de pergunta é o de
116
L olhou para o colega e disse: Q, o que levou você a vir aqui?”
Este é um exemplo de pergunta aberta, sem induzir-se o colega a uma determinada
resposta, como havia sido proposto. Esta é uma aquisição das atividades feitas anteriormente
em grupo.
Q, de forma objetiva e com muito desembaraço, diz: “inadimplência de pagamento de pensão
alimentícia, desde o ano passado. Foi um envolvimento à parte, sou casado”.
L pergunta-lhe na seqüência: “e sua mulher fala o que para você?” Em seguida, tentou
justificar a pergunta, dizendo: “é porque tem mulher e homem que entra em acordo os dois”.
Q: “com relação ao acordo, a gente está empurrando com a barriga. Os filhos, no meu caso,
têm segurado a relação. Aceitar, ela não aceita”.
L: “e com a outra?”
Q responde de forma firme: “não tem contato”.
Isso parece ter um efeito sobre o grupo que logo toma o partido da criança,
assumindo uma postura de mudar o comportamento de Q, como veremos no que segue.
N pergunta-lhe se ele via a filha e, com a mesma firmeza (que talvez seja uma forma
defensiva de responder, já que iniciava o grupo naquele dia), responde que não.
N insiste: “você não tem vontade de vê-la?”
Q responde como antes: “por enquanto não, talvez por causa de toda a situação que ocorreu
e também para manter o afastamento da mãe dela”.
Neste momento, N sugeriu que ele poderia ajudar de outra maneira na criação da
criança, já que estava com dificuldades financeiras.
transmitir à pessoa que pergunta que não sabemos as respostas a priori, e cada participante pode ter formulações
distintas e particulares.
117
Coordenadora: num tom brincalhão, cuja intenção era a de abrandar o ‘bombardeio’ sobre
Q, digo: “mas você já está organizando a vida dele por ele? Que tal, em vez de fazermos
sugestões, ou julgamentos, fazermos perguntas para tentar entender os motivos dele?”
A tentativa, por parte do grupo, de influenciar Q é significativa, pois esse tema,
sobre quais seriam as funções ou possibilidades de exercício da paternidade que não se
esgotariam na questão da pensão, havia sido discutido anteriormente. Assim, vemos que
eles absorveram, ou estão questionando no novo participante, questões que também lhes
dizem respeito. Contudo, considerando que é o primeiro grupo de que Q participava,
intervenho a fim de evitar que ele se iniba e se sinta demasiadamente criticado, o que
poderia impedir sua participação mais aberta no grupo.
H, aderindo à posição dos outros colegas, diz: “criança a gente sente muito amor. Se ele
conviver com ela uma semana, um mês, não quer largar mais. Eu acho que às vezes tem
vergonha de se declarar. É machista”.
K assumindo a defesa de Q, diz: “o caso dele é como o meu porque vai trazer problema em
casa”.
H olhou para Q e perguntou: “ela é registrada?”
Q responde: “eu registrei para ver se eu tirava o casamento fora da situação”.
A seguir, peço-lhes que passem a entrevistar um outro dos novos participantes.
M olhou para P e perguntou-lhe: “o que trouxe você aqui para a Casa?”.
P, de maneira retraída e olhando para baixo, respondeu: “eu sou separado, tenho uma filha de
sete anos. Tive outro filho. Eu quero regularizar o divórcio e a pensão do j. Eu não estou com
essa pessoa hoje e eu quero regularizar a pensão do segundo filho. Eu a conheci e calhou
dela engravidar. Ele está com quatro meses. A mãe dele é minha amiga hoje. Eu vou pedir
uma revisão da pensão da s (primeira filha) e ver o quanto eu tenho que pagar para o j”.
118
A expressão usada ‘calhou de ela engravidar’ é sugestiva de como a questão
reprodutiva e de prevenção é aqui tratada como algo alheio à atividade sexual. Destaco
essa fala uma vez que ela é representativa de um tipo de discurso e prática masculina
que encontramos muitas vezes, em que a prática sexual é dissociada de sua implicação
reprodutiva.
Coordenadora: “e o j e a i foram planejados?” (referindo-se aos filhos dos dois novos
participantes.)
Ambos dizem que não.
H começa a falar de seu caso: “o meu a mulher disse que estava tomando comprimido para
evitar. Ela disse que tomou comprimido para dor de estômago e ele invalidou o efeito do
outro. Será que foi ela que fez a sacanagem?”
Coordenadora: “você acha que o fato dela ter engravidado foi sacanagem?” Em seguida
pergunto, dirigindo-me a todos: “e com vocês, como é que aconteceu?”
N foi o primeiro a dizer: “o meu foi planejado”.
Pode-se pensar que esta fala tem a intenção de responder conforme o que ele
acredita ser o desejo da coordenadora: assim responde de maneira a atender à
coordenadora, que também é mulher, e diferenciar-se da atitude dos colegas, em relação
à qual havia explicitado sua oposição, ao sugerir outras formas de relacionar-se com a
filha.
Ouço a explicação de N e pergunto em seguida: “tem alguém mais que não foi
planejado?”
119
Q: “o meu não, até porque era um relacionamento que não tinha estabilidade. Foi durante
três anos. Eu já não tinha mais contato com ela e ela falou que estava grávida. Eu não usava
proteção e ela usava”.
P: “ela dizia que nunca engravidava, tinha tido um outro cara por 8 anos e nada... e comigo
seis meses, engravidou. Eu não me sinto enganado. Os meus finais de semana são para os
filhos. Não estava na minha idéia, mas aconteceu”.
É interessante verificar, aqui, a repetição de um comportamento sexual que
delibera à companheira a questão da prevenção. Contudo, o comentário acima, de P,
sugere um sentimento de virilidade, ao relatar que em seis meses ele conseguira realizar
o que em oito anos o companheiro anterior da mãe de seu filho não conseguira. É
freqüente que a gravidez seja significada pelos homens como um atestado de virilidade.
Ao dizer que os finais de semana são dedicados aos filhos, podemos destacar dois pontos
relevantes: em primeiro lugar, o desejo de diferenciar-se de “pais que não cumprem com
suas obrigações”, uma vez que assumir a responsabilidade sobre seus filhos lhes dá
dignidade e respeitabilidade como homens. Ao mesmo tempo, de forma paradoxal, ele
nos informa o grau de envolvimento que assume na criação destes filhos, acreditando
que os finais de semana sejam suficientes, ou, ainda, uma forma intensa de dedicação na
criação dos filhos.
S: “eu adoro muito minha criança. A mãe não cuida e não me dá numa boa. Eu quero a
guarda e ela não está cuidando dele. Ele já fez seis cirurgias. Ela não tinha paciência, queria
sair, tomar cervejinha. O primeiro filho dela, ela deu, e esse, ela não vai dar.”
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Coordenadora: “você quer pedir a guarda por quê? Me dá a impressão de que a idéia de ter
a guarda é como ser o dono do filho?”
Faço essa intervenção para esclarecer que, independente de quem tem a guarda,
ambos os pais têm o direito de ver e estar com a criança, pois na verdade este é um
direito assegurado ao filho. Entretanto, a idéia de pedir a guarda parece conter em si
uma espécie de desejo de punição à mãe que o frustra, talvez mais do que querer estar
com o filho, atribuindo a ela um atestado de incompetência, ao mesmo tempo em que,
conforme vimos em casos anteriores, atesta sua competência como cuidador mais
qualificado.
S continua seu relato: “ela nem cuida e nem me dá a guarda numa boa. Eu não sei onde ela
está, eu dei a carta (convite regularmente enviado pela PMFC para que a parte contrária
venha participar dos grupos de mulheres na Instituição) e ela ainda não ligou. O único
conflito que a gente tem é da guarda da criança. Se não der, é juiz mesmo e pronto. Se você
for mãe, você vai entender. Agora ela quer que eu cuide da criança para ela ir para balada?
Se a minha prima não aceitasse a criança, o moleque ia para o orfanato” (esse comentário
refere-se ao fato de ele estar morando na casa de uma prima com o filho).
Vemos aqui como ele procura em mim uma aliada para seu argumento,
acreditando que qualquer mãe entenderia seu argumento como algo absolutamente
natural. Ao mesmo tempo, cria para mim uma situação de aprisionamento ao indicar
como devo ser, caso seja mãe. O sentimento materno, para este homem, é entendido
como algo essencialista, da natureza das mães. Observa-se também como o conflito, mais
do que algo que diga respeito ao interesse comum em negociarem uma condição
121
razoável para o filho, está voltado a uma disputa de quem exerce ou não seu papel
adequadamente, explicitando uma disputa de poderes.
S de forma nervosa continua: “uma mãe que é mãe não dá um filho. Se ele deixar de ver o
filho não é pai”.
Coordenadora: tento apresentar uma outra possibilidade: “ a gente sabe que às vezes um
homem é pai mas não está preparado, ou não desejava ser pai, como estamos vendo aqui.
Será que isso também não pode acontecer com as mulheres? Será que todas as mulheres
quando têm um filho estão preparadas ou queriam ser mães?”
Observamos que sentimentos de impotência e frustração vividos na experiência
cotidiana, nas dificuldades reais com o filho e sua ex-mulher, coadunam-se com a
concepção freudiana da eterna busca por completude narcísica e da incessante busca
pulsional por satisfação. A vivência frustrante afasta o sujeito da possibilidade desta
completude e do que Freud denominou de ideal do ego (o ego que preenche os requisitos
de valor preconizados pela cultura e pelo sujeito, sendo o superego a instância
responsável por garantir, por meio de vigilância constante, que o ego alcance este lugar
almejado), levando-o a buscar ‘responsáveis’ por esta falta, esta ferida. Assim,
justificado por uma lógica de gênero tradicional, calcada num modelo histórico de
papéis determinados a homens e mulheres, atribui à ex-mulher a condição de mãe
faltante, ou seja, aquela que não se enquadra no ideal de mãe-fusional (que atende a
todas as necessidades do bebê). Desta forma, projeta na mulher sua própria falta,
atribuindo a ela o motivo de sua vivência de dor. Como veremos logo a seguir, o ideal de
mãe presente no imaginário de alguns destes homens é o daquela que ‘naturalmente’
122
ama seu filho acima de tudo, dedica-se integralmente a ele, pelo simples fato de tê-lo
gestado. Não é possível, dentro desta lógica, considerar fatores tais como: depressão pós-
parto, o não-desejo pela maternidade, o desejo por diversão fora do âmbito doméstico
ou familiar, o despreparo, a imaturidade emocional etc.
Neste momento, H fala de forma enfática: “nove meses, ela não está preparada,
como?”
Aproveito a discussão para propor uma atividade: “acho que veio a calhar esta
conversa. Vou propor que vocês se dividam em 2 grupos e façam duas listas: uma com as
coisas que vocês acham que são do mundo da mulher, e outra, com as do mundo dos
homens.”
H: “como assim?”
Coordenadora: “Por exemplo, eu estou vendo que, em vários dos relatos de vocês, a
questão da prevenção de filhos é algo pensado como sendo do mundo da mulher. É a mulher
quem deve pensar nisso e não o homem. Então façam uma lista sobre o que acham que são
coisas da responsabilidade das mulheres, ou coisas de mulheres, e outra, do que são coisas
de responsabilidade ou do mundo dos homens”.
H diz: “quando é a mulher de casa, você fica sem querer usar preservativo. Só uso com
mulher de fora. Com a mulher da gente, assim de casa, a gente confia que ela tome
comprimido”.
L concorda com o colega.
H continua dizendo: “a gente usa preservativo só para evitar doenças.”
Coordenadora: “essa é uma das razões pra que se usa preservativo, mas também tem outras
finalidades. Por exemplo, eu estou ouvindo aqui várias histórias sobre deixar a questão de
123
evitar filhos com as mulheres e depois terem filhos que não foram planejados por vocês. Será
que quando a gente quer garantir alguma coisa na vida dá pra deixar por conta dos outros e
depois reclamar que não cuidaram como a gente queria, ou devemos cuidar nós mesmos
daquilo que é importante pra gente? Pensem nisso.”
Proponho-lhes que se dividam em dois grupos, para discutir e escrever o que pensam, em
folhas de papel sulfite, explicando: “cada grupo faz uma lista de cinco itens para homens e
cinco para mulheres.”
Q então me perguntou: “mas isso do conceito que a gente acha natural ou do conceito do
mundo de hoje?”
O natural versus o mundo de hoje nos dá a noção do descompasso existente entre
o que ele considera ideal, esperado, desejado, em oposição ao que vive atualmente e
como tem de se ‘submeter’ a regras de um modelo de mundo antinatural, que é muitas
vezes vivido como injusto. É aquilo a que ele sente que tem de se adaptar ou ‘engolir’,
mas que não está de acordo com o modelo de relação entre homens e mulheres que ele
tem introjetado para si (aquilo que denomina natural). Esta fala é paradigmática na
medida em que representa um discurso bastante freqüente dos homens que procuram a
Instituição. Eles se sentem lesados pelas mudanças do mundo contemporâneo, pela
perda de um lugar diferenciado na estrutura familiar. Este tema é bastante discutido no
trabalho de Pedro Paulo Oliveira (2002), como já apontado nesta dissertação.
Coordenadora: “é como vocês acharem que é”.
N então propõe: “para ficar mais fácil, por que não divide em direitos e deveres?”
Coordenadora: “tá bom, é uma idéia”.
124
Passaram a conversar entre si.
H dizia para os colegas: “não é raiva. É uma coisa que perturba a gente. Foi ela que fez com
que a gente se separasse”.
S dizia: “agora eu não quero mais acordo”.
H: “se só o homem trabalha, a mulher tem que cuidar da casa e cuidar da criança. Se ela
trabalha, o dever é dos dois.”
Enquanto discutiam, eu circulava pela sala e ia comentando o que ouvia deles: “isso é
um jeito de se pensar” (ao fazer comentários deste teor, pretendo despertar nestes homens a
possibilidade de avaliarem as situações de mais de um único ponto de vista, flexibilizando
seus posicionamentos).
Houve dificuldade em realizar a proposta. Vendo isto, penso em usar um referencial
comum a muitos (falava-se da novela em algumas ocasiões) e pergunto: “Quem viu lá o Nelito
da novela? Ele está morando na casa da Eliete. Fizeram um acordo em que ele cuida da casa
pra ela, em troca da moradia, e ela trabalha fora”.
K riu e disse: “ele daqui a pouco tem que vir aqui. Quando duas pessoas moram juntas é
assim”.
Todos riram.
Continuo: “às vezes tem outro jeito de pagar as coisas que não é com dinheiro...”
Aqui, procuro utilizar um código comum a todos: o da novela das oito (Globo), a que
quase todos assistiam e, muitas vezes, comentavam. Poder observar uma situação, como
espectador, assim como se dá com a leitura de livros ou com os contos de fadas para as
crianças, ao mesmo tempo em que propicia uma identificação/ou recusa de identificação
com o personagem da história, também garante determinado distanciamento
afetivo/emocional da questão, de forma a permitir que se pensem e experimentem estas
125
situações através da história alheia, que bem poderia ser a deles, já que, embora se
vejam como provedores, muitos estão desempregados.
K então diz: “mas só o homem paga pensão”.
Coordenadora: “a mulher não paga porque em geral a criança fica com a mãe, mas, se ficar
com o pai, a mãe tem que pagar também”.
J diz: “o homem não faz as coisas direito” (referindo-se ao serviço doméstico e justificando
que seria melhor que as mulheres o fizessem, já que o fazem melhor).
Digo sorrindo, a fim de não soar persecutório e disponibilizá-lo a me ouvir : “Ah, essa
é uma boa desculpa, hein?”
H então disse: “os melhores chefes de cozinha são homens”.
Vemos que encontrou exemplos que contestam a teoria do colega, mas ainda
sustenta uma posição dualista em que as hierarquias são mantidas: há um melhor e um
pior.
Digo, ainda, em tom jocoso, pois, embora o tema fosse sério, o clima divertido pode
facilitar o entrosamento e a disposição para ouvir comentários que divergem dos seus: “ah,
agora os homens são melhores do que as mulheres!”
J: “só dá pra fazer os serviços de casa se a mulher não ficar em cima dando palpites”.
H estava com muita raiva de sua ex-companheira e disse: “se eu não ligar, ela fica cinco, seis
dias sem aparecer. Ela não ama o filho. Ela não trabalha, fica a noite no forró e dorme
durante o dia. Quando eu ligo, ela vem sem problema nenhum”.
Coordenadora: “vocês estão dizendo que acham importante os pais estarem perto dos filhos,
mas vocês estão fazendo isso com acusações.”
126
S ficou muito contrariado e disse em tom alto: “você acha que é de ficar de mansinho?”
Pergunto-lhe então, com a intenção de questionar um modelo dualista de
funcionamento que observo neste comentário, pois, se um é bom, isso faz do outro mau:
“você está a fim de ser um bom pai ou de provar que ela não é uma boa mãe?”
H: “ela diz que, se eu arrumar outra mulher, tira o menino de mim. Como ela pode arrumar
um cara e eu não posso arrumar outra mulher?”
S, mantendo o tom, diz, referindo-se ao que eu havia dito sobre pagamento de pensão:
“agora, mulher vacilou, tem que pagar.”
Tento explicar o que significa ter a guarda de uma criança, já que havia certa confusão,
levando a crer que quem não tinha a guarda perdia também os direitos sobre o filho. S estava
muito insistente nesta questão, e ficava difícil distinguir se queria garantir a permanência do
filho com ele, ou punir a mulher por não ser a mãe que ele desejava que fosse. Digo: “dar a
guarda para alguém não significa que o outro perdeu o direito sobre a criança. Isso significa
que um dos pais vai se responsabilizar pelo dia-a-dia da criança. Isso não é castigo. É só
uma forma de organizar a vida da criança do jeito que for melhor pra todos.”
S ainda em atitude de rivalidade: “eu acho que ela não está preparada para ficar com o
moleque”.
Respondo, dizendo: “É, cada um cuida na medida daquilo que pode, não é isso que estamos
vendo aqui?”
N: “existe uma necessidade básica que é de cuidar da criança”.
Q: “o certo seria esse preparo ser natural, nós somos racionais. Esse vínculo é natural”.
A fim de questionar essa posição naturalizada, conto-lhes sobre formas diferentes de
organização em diferentes culturas, nas quais os papéis de homens e mulheres são diferentes
dos que conhecemos em nossa cultura.
Q, mantendo sua opinião, diz: “a mãe gera um filho, ela já cria um vínculo com a criança”.
127
Insisto em questionar esse paradigma, trazendo informações sobre outras situações que
levam algumas mães a não poderem cuidar de seus filhos, a fim de apresentar-lhes uma gama
maior de possibilidades de pensar sobre o tema: “mas isso não é sempre assim. Têm mães,
por exemplo, que ficam deprimidas depois de terem um bebê, que não conseguem nem cuidar
de si nem do bebê. Têm mães que ficam muito assustadas de terem que cuidar de um bebê tão
pequenininho, e isso é uma doença, chama depressão pós-parto e as pessoas às vezes nem
sabem que estão doentes, não sabem como tratar disso”.
N concorda e diz: “é que se encara a palavra doença como frescura, assim como a
depressão”.
Continuo: “a depressão é uma coisa muito séria, pode deixar a vida da pessoa bem
restrita”.
Q então concordou com eles, dizendo: “acho que algumas mães, a situação cria esses
problemas”.
Neste momento, P interrompeu a conversa, anunciando que precisava ir embora. Tento
convencê-lo a esperar até o final do horário, mas ele se irritou e disse: “você não está vendo o
meu lado”.
Percebendo sua irritação, concordo com sua saída.
Seria arriscado dizer que o tema da discussão tenha sido um dos determinantes
para seu pedido de saída antecipada, embora o tema se voltasse para ‘olhar o lado da
mulher’ por outro prisma. Sua fala em relação a mim pareceu uma reclamação de que
eu ‘não estava olhando o lado dele’, e isso pode sugerir que o tema também tenha sido
significativo para este movimento. Contudo, ficou bastante evidente que, ao me dizer
isso, reconhecia meu lugar de autoridade como coordenadora do grupo, lugar este
exercido por uma mulher, que quer lhe prejudicar sem ver seu lado. Ele não se dispõe a
128
conversar, e sua maneira agressiva de dirigir-se a mim sugeriu que este homem estivesse
se sentindo num lugar submetido, falando de sua vida pessoal para outros homens e
sendo coordenado por uma mulher que ‘manda’ no grupo. Ele se põe nitidamente numa
posição de rivalidade comigo, e eu logo concordo com sua saída, pois me pareceu que
não haveria conversa possível. Evidenciou-se uma disputa de poderes e me pareceu que
naquela situação só haveria uma resolução do tipo ganha/perde. Considerei importante
desfazer a disputa, concordando com ele e saindo do lugar de autoridade feminina ao
qual ele estava se opondo.
H, mudando o assunto, pergunta como seria a divisão de pensão quando há dois filhos.
Q lhe responde que o juiz também leva em conta a situação das mães.
H e S: a mãe tem obrigação de dar carinho. É mais a mãe...”, com o que L e Q discordaram
veementemente, assim como outros. Discutiram essa questão do cuidado dos filhos pela mãe.
S, explicando seu ponto de vista, diz: “É que, antes, ela (sua ex-companheira) não fazia nada,
não trabalhava”.
Coordenadora: “E trabalho de casa não é trabalho? Só é trabalho quando é fora de casa?”,
ao que ele e os outros concordaram que era de fato trabalho.
Embora, aqui, verbalizem uma concordância acerca de que o trabalho doméstico
seja também trabalho, ainda assim verificamos uma valorização do trabalho que resulte
em ganhos financeiros, em detrimento daquele necessário na esfera privada. É comum
ouvirmos afirmações do tipo “fiz tudo sozinho, criei os filhos sozinho”, referindo-se à
provisão financeira. Paradoxalmente, vemos ao longo desta sessão uma queixa em
relação às mulheres que não exercem o trabalho doméstico ou o cuidado com os filhos.
Eles entendem que o vínculo com o filho e o cuidado com este seja algo dado, natural do
universo feminino, o que sugere a idéia de algo feito sem esforço, dissociando-se assim da
129
noção de trabalho – algo que requer esforço para sua realização. Desta forma, a
associação naturalizada da mulher com a esfera doméstica faz com que estes homens
ajam de forma crítica, desvalorizando a mulher que não se adapta a esse modelo
cultural. Ao realizarem o trabalho considerado feminino – o doméstico e o cuidado
com os filhos -, interpretam esta configuração como algo ‘antinatural’, sendo forçados a
desempenhar uma tarefa que não seria atribuição deles. Esta situação, ao contrário de
despertar sentimentos de solidariedade e de compartilhamento das funções parentais,
leva-os a atitudes críticas em que a moral e a competência da mulher são postas em
cheque, por meio de verbalizações agressivas. Verificamos aqui um claro exemplo do
que vimos destacando quanto à fixidez dualista de lugares atribuídos a homens e
mulheres (o que é trabalho de homem e o que é de mulher), com nítido prejuízo nas
relações entre estes e no cuidado com os filhos. As acusações mútuas, apoiadas em
modelos idealizados incompatíveis com suas reais possibilidades, os afastam de poderem
se exercer com as competências que de fato possuem. Ainda dito de outra forma, a
intolerância que é expressa através das acusações feitas às mães de seus filhos, é
reveladora de que, ao deparar-se com as reais dificuldades inerentes aos cuidados com
os filhos, estes homens frustram-se, atribuindo, então, suas dificuldades não às condições
de realidade que os cuidados com os filhos impõem, mas a uma falha da mãe, que, caso
estivesse presente, os pouparia de tal condição. É um comportamento que nos leva a
pensar num modelo infantil de relacionamento, no qual a criança, incapaz de dar conta
de situações complexas, necessita que um adulto – via de regra sua mãe – o auxilie a
tornar digerível o indigesto
31
.
31
Esse modelo digestivo está descrito em Bion, (1991), em O Aprender com a experiência, e refere-se a uma
construção do modelo de pensamento semelhante ao processo digestivo. A impossibilidade de pensar, em
decorrência de uma sobrecarga do material a ser pensado, leva o bebê a necessitar que sua mãe realize uma
transformação, que chamou de reverie, cuja finalidade é tornar algo pensável, suportável, sugerindo assim uma
precariedade do aparelho mental. Encontramos em Freud (1923), em O Ego e o Id, idéia que nos remete a esta
quando ele diz que o ego é responsável por impor os processos de pensamento, assegurando um adiamento das
130
Como já estava perto do horário de terminar, peço-lhes que pensem e digam no grupo
se houvera algo, de tudo que havia sido discutido naquele encontro, que tivesse ficado mais
marcante para eles, se haviam pensado em algo novo ou diferente, ou, ainda, se alguma coisa
daquele encontro ficaria na memória.
N apresenta a discussão do grupo deles referente à proposta de atividade da seguinte maneira:
o carinho com os filhos ser obrigação do homem e da mulher; a mulher ter direito a uma
vida social, mas isso não pode vir antes dos filhos; os filhos devem ser prioridade para
ambos”.
H retoma a questão da importância do uso de preservativos, dizendo que não se pode ter
relações sem preservativos, ao que K acrescenta: “Mas na hora H o homem não desiste”, com
o que M concorda.
N, em oposição a esta idéia, diz “O homem é que tem o controle do sêmen, a mulher não,
como ela não controla, o homem tem que controlar... Se fosse o homem que engravidasse, ele
teria o medo maior”.
Digo a N que percebo que, ao falar deste modo, ele estava se colocando no lugar da
mulher, e isso fazia com que pudesse pensar com base num outro ponto de vista. A partir
disso, pergunto: “Como seria, por exemplo, se os homens é que engravidassem?”
K fazendo careta: “Seria difícil...” (referindo-se à dor e às dificuldades da gravidez.)
H concorda e diz: “Minha mãe teve os filhos na roça, tudo parto natural, sofreu muito no
parto do filho mais novo”.
descargas motoras, e um ego fraco ficaria sujeito às imposições do id, inviabilizando tal adiamento, cuja
expressão se verifica nas expressões acusatórias que visam a descarga de algo insuportável para o aparelho
mental.
131
A valorização da mãe é tema freqüente. A mãe que tem muitos filhos, ou que
apanhava do marido, ou, ainda, a que criou os filhos sozinha, abandonada pelo
companheiro, são temas que aparecem de maneira bastante regular. O lugar de
destaque e valorização da mãe não se relaciona em nada com o lugar desvalorizado e
hostilizado da mãe de seus filhos, estas vistas, em muitos casos, como mulheres
aproveitadoras e desonestas, diferentes de suas mães. Há um enaltecimento quase
religioso deste lugar concedido às próprias mães, sendo interessante notar que o tema
que segue é justamente o religioso.
Entraram em uma discussão sobre concepções religiosas que proíbem os métodos
contraceptivos; N e Q dizem que, entre os evangélicos, não se usa contraceptivos.
J diz: “gostei muito da entrevista, de falar da minha história, desabafar”.
L: “eu vou pensar sobre a mulher que tem tempo para ir a balada e não tem tempo para ver
a criança. Eu queria saber se existe amor sobre isso aí”.
Respondo-lhe: “às vezes a gente precisa ajudar o outro a poder vir ver os filhos. Pode ser
que, para evitar atritos entre vocês, ela também evite ir visitar os filhos.”
R disse: “Vou pensar no caso dele (H) e dele (Q), como têm certeza de que o filho é deles,
pois registraram as crianças”.
(H explicara ter registrado seu filho para evitar atritos com a ex-companheira e Q dissera que
o havia feito para evitar atritos com sua própria família).
Q disse que se lembraria “das várias histórias, de não me sentir tão sozinho, porque os
homens não se abrem”, com o que vários concordaram, que “era muito bom poder falar”.
H concordou com ele e disse: “os outros tiram a timidez. Você acaba notando que tem vários
igual você”.
132
K disse que gostara de ser “um grupo com várias histórias, a divisão homem e mulher, os
direitos iguais”.
M disse que se lembraria dessa questão de “uso de preservativo e pílula”.
J disse que pensaria “há homens que não dão nem 100 reais, e eu estou com dificuldade em
manter a minha pensão”.
N:Estou pensando como é o grupo das outras partes (refere-se às mulheres). Elas já devem
vir conversando desde a recepção...”
Despedimo-nos e termina o grupo.
É interessante observarmos nas falas acima uma inversão do que são
tradicionalmente queixas vindas das mulheres: a queixa de que os homens não
colaboram, se recusam a prestar auxílio, seja financeiro seja no trabalho cotidiano com
os filhos e a casa. Observamos com freqüência que, ao ficar responsável pela guarda ou
cuidado com os filhos, isso é compreendido com base numa lógica de que a mulher se
mostrou incompetente e não é uma mãe digna. A guarda da criança pelo homem se dá às
custas da desqualificação da mulher.
Vemos, ainda, como muitas vezes a prática sexual se dá como algo dissociado de
sua função reprodutiva. A reprodução e a contracepção são atribuições femininas, e a
gravidez indesejada produz o sentimento de ter sido enganado.
3.5.4 GRUPO DE 30/4/2004
Presentes: A, B, C, D, E, H, K, O.
Como havia um aparelho de vídeo na sala, começaram o grupo brincando “vamos
assistir novela essa semana...”
133
Explico que vamos assistir a um vídeo intitulado: ‘Não é fácil’, realizado pelo Instituto
ProMundo do Rio de Janeiro.
O filme trata do tema da violência de gênero por meio da história de um casal cujo
marido se encontra desempregado. Sua mulher tem emprego fixo, portanto, ganhando mais do
que ele, o que lhe causa sentimento de humilhação e inferioridade. O filme insinua situações
de violência praticadas pelo homem em razão desses sentimentos. Além disso, o filme aborda
a dificuldade do personagem em falar de seus problemas com sua companheira ou com
colegas, levando-o a um isolamento emocional e a uma pressão interna, uma vez que pauta
seu ideal de masculinidade por padrões tais como, citando falas do filme: “ser homem é ter
que fingir ser uma coisa que a gente não é?”, ou “ser homem é carregar o mundo nas costas?”
Explico, ainda, que O estava começando o grupo naquele dia, que tinha uma
dificuldade auditiva, e assim lhes peço que falem mais alto e o olhem de frente ao se dirigirem
a ele.
O vídeo é apresentado e todos assistiram atentamente, bastante envolvidos.
Ao final, abro a discussão, perguntando-lhes o que haviam achado.
B:Viu como é difícil ser homem? Passa tanta coisa na nossa cabeça. O vídeo é bem o dia-a-
dia. Agora estou trabalhando, mas fiquei muito tempo desempregado. Antigamente os homens
eram machistas” (referindo-se ao que é abordado no filme, em que a mulher está empregada,
trabalhando, e o homem não).
Coordenadora: “ele fala sobre estar se sentindo uma merda” (termo usado pelo
personagem).
B: “os homens não querem declarar que estão competindo com as mulheres”.
L: “mas ela provocou ele falando do patrão”.
D concordou com ele e acrescentou: “o cara se sentiu lá embaixo”.
134
H: “Mas isso não pode levar a ele agredir”.
E: “retrata o que acontece bem claro”.
A cena a que se referem mostra o personagem ameaçando bater na mulher, após esta
tê-lo provocado, sugerindo que seu patrão era mais homem do que ele. Sua fala é uma
agressão/provocação e tem por pano de fundo o fato de ela se sentir sobrecarregada com as
tarefas domésticas e financeiras e tê-lo visto no bar, bebendo, quando voltava para casa após o
trabalho. Ele, por sua vez, havia parado no bar, pois se sentira constrangido e envergonhado
de chegar em casa antes de sua mulher.
Assim, vemos, nesta cena, como ambos, impossibilitados de compartilharem seus
sentimentos de solidão, sobrecarga, fracasso e impotência, procuram reequilibrar-se
narcisicamente, atribuindo a impotência ao outro, ou livrando-se dela, seja através da
violência física (marido ao ameaçar bater na esposa), seja usando de recursos de violência
verbal (a mulher que o inferioriza em relação ao patrão), ambas as ações calcadas nos
estereótipos hierarquizados de gênero, pelos quais homem que é homem é provedor e forte, e
mulher cuida da casa e dos filhos, ganha menos que o marido e valoriza o marido pelos seus
ganhos financeiros, numa equação do tipo ‘vale quanto ganha’.
D retomou um aspecto do filme e disse: “ele estava batendo na mulher dele porque o pai
batia na mãe”.
Aproveitando a oportunidade, pergunto: “vocês acham que quem assiste isso em casa tem
mais chance de reproduzir esse tipo de relação em casa com sua família?”
B disse imediatamente: “ tem, a pessoa foi educada daquele jeito.”
O, parecendo um pouco alheio à discussão, possivelmente por seu problema auditivo, diz: “eu
fui criado pela minha avó, minha mãe morreu quando eu tinha sete anos. Quando morei com
meu pai, minha madrasta maltratava muito”.
135
Essa, talvez tenha sido a maneira que encontrou de expressar sua concordância com o que B
dissera, parecendo com isso dar sentido a alguma situação de violência em sua própria vida
familiar.
Retomando o vídeo, pergunto o que achavam que dera início à briga entre eles.
B disse: “a comparação com outro homem”.
L tenta justificar o personagem masculino, dizendo que o personagem feminino provocara o
homem: “com aquele problema todo, ela vai falar que o patrão dela é que é um homem!”
D traz um dado novo: “eles não tinham diálogo”.
E: “ele teve a calma de não bater nela naquela hora, mas tem muitos por aí que picam a mão
na cara.”
O filme usa do recurso de um menino, que só é visto pelo marido, e que é o
personagem quando criança (o que só fica claro no final do filme). Esse garoto aparece como
uma espécie de consciência questionadora, que o faz entrar de novo em contato com seus
sentimentos e questiona os valores hegemônicos masculinos que o impedem de conversar. O
menino aparece pela primeira vez em cena, justamente quando o personagem levanta a mão e
se prepara para bater na mulher.
L concordou com ele e acrescenta: “ela quis dizer que o patrão ganhava mais que ele”.
D novamente fala sobre a falta de diálogo e as conseqüências disso naquela situação: “eu
acho que ela provocou, como eles não tinha diálogo, ela ia tomar umas porradas.”
Eles continuaram o debate livremente, com D dizendo: “ali no boteco já começou. Ele achou
melhor chegar por último.”
H complementou a idéia, dizendo: “para ele ia pegar mal ele chegar mais cedo.”
Neste momento, D disse que não deveria haver diferença para homens e mulheres com
relação a isso: “eu acho que não tem diferença”.
136
A concluiu, dizendo: “isso é a vida real. A gente tem que participar dentro de casa, o
importante é se entender e dialogar.” (Vale ressaltar que A vem à Instituição por ter boletim
de ocorrência de agressão na família).
Pergunto-lhes: “o que vocês acham, será que ela podia estar se sentindo sobrecarregada?”
A discussão foi acirrada e, embora houvesse uma fala que aparentemente procurasse
‘entender’ ambos os lados e ‘condenar’ a violência física, isso pareceu estar relacionado com
o fato de haver três mulheres na sala (a coordenadora e as duas pesquisadoras que anotavam),
pois era evidente um sentimento de incômodo grande com a provocação da esposa, bem como
uma tentativa de justificar o comportamento violento dele como resposta inevitável àquela
provocação.
Assim, essa pergunta é feita com o objetivo de despertar neles a possibilidade de
avaliarem a situação de conflito de outro prisma, o do lugar da esposa, a fim de
desconstruir-se um pensamento de tipo maniqueísta, certo versus errado.
Na teoria psicanalítica desenvolvida por Melanie Klein (1946), esta descreve um
tipo de funcionamento mental, que denomina esquizo-paranóide, no qual predomina um
modo de compreensão maniqueísta dos fenômenos, de objetos parciais, ou seja, bom e
mau são atributos totais dos objetos.
Não há neste modo de funcionamento, que ela designa como ‘posição’ (já que é
algo passível de alteração), a possibilidade de uma integração dos aspectos bons e maus
do objeto. O intuito deste tipo de mecanismo é livrar-se do que é mau, indesejado ou
representa risco para o sujeito, projetando aquilo sentido como indesejado ou perigoso
sobre um outro, externo ao sujeito. Esse mecanismo visa restabelecer o sentimento de
equilíbrio do ego, evitando uma vivência insuportável de perda de identidade e
integridade mental.
137
D, respondendo à questão formulada, imediatamente diz que sim, e A acrescenta: “ ele se
separou totalmente da família. Ela estava puta da vida, mas não foi em termos de valores”
(dinheiro).
Coordenadora: “vocês acham que eles dois estavam se sentindo sozinhos?”
A disse que sim e B falando em relação ao personagem masculino: “ele se sentiu sozinho
porque é muito machista. É muito difícil se abrir”.
A concordando com B, diz: “nessa hora, o homem conversar com outro e se abrir é muito
difícil. As mulheres conversam mais.” (Aqui, refere-se a um momento do filme em que um
amigo se aproxima e se oferece para conversar com o personagem. Este recusa dizendo que
‘as coisas vão se ajeitar, de um jeito ou de outro’, insinuando que um desses jeitos pode ser
pela violência).
Coordenadora: “e o menino, quem era ele? O que será que representava?”
B e D disseram que o menino era “um anjinho”.
A diz: “é alguém que ajudou ele a refletir.”
Agrupando todas as falas até então, sugiro: “será que podemos concluir, do que vocês estão
dizendo, que, quando eles estavam na competição, eles estavam se sentindo sozinhos?”
Discutindo o vídeo, O disse: “o ser humano tem defeitos e qualidades, é mais fácil ver os
defeitos. Como a minha ex-mulher, por isso se separou de mim, só via meus defeitos”.
Vê-se que aqui, embora faça uma aparente integração dos diferentes aspectos do ser
humano, sua conclusão nos mostra como vivencia de forma parcial sua situação conjugal,
vendo-se como vítima e não, como partícipe de uma relação.
Eles continuaram dizendo o quanto era difícil para um homem se abrir.
138
A, retomando a discussão sobre a violência doméstica, diz: “as coisas mudaram muito, não é
por aí, não é porque viu o pai batendo, vai bater também”.
B concordou imediatamente com ele: “muita coisa mudou, as mulheres têm mais direitos.
Antes os homens batiam até tirar sangue da mulher com um facão grande assim (mostra com
as mãos). Problema de marido e mulher, ninguém metia a colher”, ao que K gargalha.
Nesta sessão, o tema da violência é bastante explicitado, não somente no filme
como também nas falas dos participantes, como se lê acima. De maneira geral,
verificamos uma postura mais à vontade que os levou a falarem de forma bastante livre
sobre o tema, relacionando-o com suas vivências pessoais.
No último trecho acima, a lembrança, por K, da violência praticada não desperta
compaixão ou espanto pelo ato praticado. Ao contrário, suscita risos. Podemos entender
este comportamento como algo que se relaciona com ‘as boas lembranças dos bons
velhos tempos’, quando era facultado ao homem bater em sua mulher, sem que isso
implicasse qualquer tipo de penalidade ou problema. Há que se lembrar que todos estes
homens que nos procuram o fazem porque, como dizem, “hoje a situação da mulher é
diferente”. De outro modo, o serviço da PMFC e o grupo de homens nem ao menos se
justificariam, e seus lugares de superioridade hierárquica estariam garantidos.
Observamos nesta fala aquilo que Pedro Oliveira (2002) descreve como o desejo
de manutenção dos lugares hegemônicos como um lugar vantajoso. Associando sua tese
à compreensão edípica, sabemos que a elaboração para a saída do Complexo de Édipo
no menino se dá em dois tempos: o temor suscitado pela ameaça de castração, caso
persista em seu intuito de querer a mulher de seu pai, sua mãe. Contudo há uma
promessa futura em jogo que lhe permite abrir mão deste desejo, isto é, a de que terá no
futuro aquilo que seu pai tem agora, mas com uma outra mulher que não sua mãe.
139
Podemos pensar que estes homens, já lesados na esfera social como cidadãos, vêem-se
duplamente lesados ao terem de abrir mão daquilo que outrora fora uma condição
garantida de superioridade masculina, da qual seus pais desfrutaram.
A propósito da discussão e com o intuito de trazer outros dados sobre a violência em
geral, comento: “eu ouvi ontem no rádio que só nós (no Brasil) representamos 11% dos
homicídios no mundo. Que vocês acham disso?”
A conversa segue num tom que poderíamos caracterizar como defensivo, pois um dos
participantes dizia que não eram violentos e que a situação das mulheres tinha passado por
muitas mudanças.
A, concordando com ele, diz: “você não pode dar um tapa num filho hoje. Isso eu acho que
está muito errado”.
Aproveito essa fala e pergunto: “você acha que os homens ficaram mais impedidos ou
prejudicados com as mulheres tendo direitos?”
B respondeu a pergunta, dizendo: “homem geralmente é muito machista”.
Coordenadora: o que é ser machista?”
B: “Mandar, exigir que a mulher obedeça, querer dar a última palavra, achar que ele tem
que carregar a casa nas costas, dar a última palavra.”
Vou anotando essas definições no quadro.
D complementou, dizendo: “não aceita que a mulher interfira”.
B continuou: “ele aceita opinião, mas ele tem que dar a última palavra”.
É interessante notar que falam dos homens como ‘eles’ e não ‘nós’. Há um
distanciamento deste tipo de comportamento violento num discurso que busca uma
aliança com as mulheres presentes no grupo. Pode-se levantar como hipótese, que esta
140
forma de discurso visa a despertar no outro (as mulheres do grupo) um olhar
aprovador. Algo como ‘não somos como estes homens, somos diferentes, queremos ser
bem vistos, valorizados’. Observamos, assim, a ambivalência presente nesta fala, que, ao
mesmo tempo em que expressa os desejos de dominação do homem sobre a mulher,
evidencia também seu desejo de ver-se valorizado através do olhar feminino, numa clara
mostra de que os poderes são instáveis e mutáveis.
D então perguntou aos colegas: e o que é dominado pela mulher, o que é ele?”
Neste momento, houve um grande alvoroço na sala, A: “É o amor. O cara aceita tudo porque
não quer perder ela.” Outros diziam que ele era um trouxa e seria considerado corno (sic).
A idéia de que o amor transforma o homem em uma pessoa submetida à mulher
revela a associação entre afeto e fragilidade ou fraqueza. Assim, conforme já dissemos
anteriormente, o homem que se deixa levar pelos afetos se aproxima do que é, do ponto
de vista de um modelo estereotipado ou tradicional de gênero, próprio do feminino,
caracterizando-o como um não-homem, ou corno. A necessidade de manter a hierarquia
dominante mostra-se, assim, como condição necessária para a manutenção de sua
identificação masculina.
Pergunto-lhes, referindo-me aos comentários feitos por D e A: “é um homem que não é
homem?”
D responde dizendo: “ pega mal. Eu não sou machista, mas para mim pega ma”l.
L:tem vários casos assim na minha família.
K: “Os vizinhos contam de caso assim, que pega mal ser dominado pela mulher”.
Coordenadora: “Os vizinhos chamarem de corno?”
141
D: “Isso de chamar de corno pega muito mal”.
E: “Tem que ser igual, os dois dominados”.
D: “E esse negócio das mulheres quererem sair para o forró, o baile?”
A disse que não aceitava. D diz: “Tem que ter confiança entre ambos”, com o que E
concordou.
A disse que isso acontecera com a mulher dele: “Ela disse que queria ir para o bar encontrar
uma amiga, como os homens podem”.
D disse: “Esse direito elas já conquistaram.
Coordenadora: “É, teoricamente sim (referindo-se aos direitos), mas, na prática, o que se
pensa se a mulher falar que quer sair?”
A e H disseram: “Já se pensa que é outro homem.
D relembrou que isso acontecera com B: Foi invertido, ele viu ela no bar, quando estava
com o filho no hospital”.
B: “Eu saio para procurar mulher, mas se tenho mulher em casa, não. Vou para casa,
estudar”.
Coordenadora: “Então, quando as pessoas se casam, não podem mais se divertir? Não
podem ir no forró, dançar etc? Assim, ser casado pode ser muito chato, não?...”
B disse: “Vou sair, correr o risco de tomar um tiro, com minha família em casa?!”
D: “É bom sair junto. Eu e minha mulher vamos no forró. A gente até dança em casa antes,
ensaia uns passinhos...”, com o que A concordou.
D: “Se se está sozinho e vai no forró, é para tentar arranjar alguém”, com o que B
concordou.
A: “No casamento é muita cobrança...”
Retomo a discussão sobre o vídeo, perguntando o que o menino (o menino que só o
personagem via e que questionava suas ações e idéias) representava. Alguns disseram que o
142
menino o fez tentar conversar. Também relembro a cena do filme em que a esposa tinha lhe
ouvido quando o marido decide conversar com ela sobre seus sentimentos. Pergunto-lhes
ainda, se achavam que o menino podia estar representando os sentimentos ‘não autorizados’
do personagem, com o que vários concordaram.
D comenta que percebeu uma diferença na postura dela quando a ajudou com o jantar (cenas
do filme em que o garoto imaginário questiona o porquê de o marido ficar olhando sua mulher
colocar a mesa e servir o jantar, sugerindo que ele a ajude. O marido, contrariado, concorda
desde que você – garoto - pare de falar, ta?’ Ao receber a ajuda do marido, a mulher o olha
com olhar perplexo, como se algo estranho estivesse se passando com ele.
O diz que conhece “um advogado que largou a mulher”.
Pergunto-lhe o que quer dizer com aquele comentário, ao que ele responde: “isso também
acontece com quem tem estudo”.
Comentário interessante deste homem quase sem estudo e com problema auditivo
que o faz parecer alheio ao que acontece. Possivelmente ele estava explicitando o que
verifica como diferenças de capital simbólico e classe social entre a coordenadora e ele,
numa fala de intenção crítica sobre ter sentido que a exibição do filme e as minhas falas
fossem uma forma de imposição de um saber sobre outro, assim como caracterizado por
Bourdieu (1993, p.695), com sua definição de violência simbólica, referindo-se à
dessimetria social entre pesquisador e pesquisado. De qualquer forma, explicita seu
desejo de sair de um lugar de exclusão e desvalorização como representante de um
comportamento que estava sendo criticado pelo grupo, o comportamento violento e a
falta de diálogo. Vale lembrar, contudo, que o casal retratado no filme é da mesma
classe social a que o grupo pertence.
143
Alguns disseram que “educação ajuda no diálogo”.
Pergunto-lhes se isso ocorrera no vídeo.
A insiste: “As coisas mudaram. Hoje se tem que conversar, dividir, ajudar em casa.”
Ainda referindo-me à cena do filme, pergunto sobre por que o personagem elogiara a comida
da esposa, e D responde: “as mulheres adoram que se elogie a comida”.
Coordenadora: “Mas todo mundo gosta de elogio, não é?...”, com o que concordaram e
então, pergunto: “E por que será que todo mundo gosta disso?
E diz: “É um carinho...”
A: “Seu ego vai lá em cima..”
Coordenadora: “Você se sente alguém, respeitado quando valorizam o que você faz?”
E:Se sente amado.
Coordenadora: “Dá pra elogiar, se a gente estiver se sentindo uma merda?” (essa é a
expressão usada pelo personagem do filme ao relatar como se sentia).
Respondem vários deles: “De jeito nenhum”.
A: “Você não vai encher a bola do outro para ficar mais por cima de você”.
Questiono sobre a importância (referindo-me ainda ao enredo do vídeo) “de o casal ter
diminuído a competição entre eles para conseguir conversar, se entender.”
Retomo a discussão a respeito de os homens não conversarem sobre o que sentem e
pergunto-lhes por que achavam que isso acontecia.
E: “Por machismo”.
Pergunto-lhes se conversam ou alguma vez conversaram sobre essas questões com
outros homens, ao que A diz: “Não as coisas do dia-a-dia, mas comecei a conversar mais no
último ano”.
Coordenadora: “ Vocês acham que esse tipo de conversa é possível aqui no grupo?”, ao que
todos responderam afirmativamente.
144
Coordenadora: “E por que não fora daqui?”
B e D: “Porque aqui todo mundo tem um problema e sabe disso. Fora daqui não, você não
sabe se o outro tem problema.”
Coordenadora: “ e com a mulher, também é difícil se abrir?
B diz que sim “porque se tem medo que ela não aceite.
Indago: “será que é porque os homens acham que elas esperam que ele seja o cabeça da
casa?”
A diz que sim em poucas palavras: “ a mulher não mudou muito ainda não. Elas querem
sombra e água fresca, ela ainda procura um cara que tenha estabilidade.”
Coordenadora:Você acha, então, que as mulheres são folgadas?”, ao que vários riram,
pelo inusitado do comentário.
D diz: “Mas também não é justo. Você está mal, vai procurar alguém para afundar mais
ainda?”
Era o último grupo de vários deles e já estava no horário de terminar. Aviso que está
na hora de encerrar, agradecendo a todos a presença e dizendo que a discussão havia sido
muito boa. Todos concordam entusiasmados. Saem falando que havia sido muito bom e
fazem questão de se despedir de todos com cumprimentos de mão, inclusive dos técnicos e
das pesquisadoras. Há um clima de envolvimento afetivo na despedida.
Em atendimentos em grupo, o momento de despedida é sempre um momento
vivido com pesar. A separação não é algo que passe despercebido e o rompimento do
vínculo traz um sentimento de perda. Vemos isso nesta última sessão, pela manifestação
de entusiasmo, pelo desejo de todos se despedirem de todos, pelo grande envolvimento.
145
A separação e a perda de vínculos importantes é também o tema desses homens,
não só nesta sessão mas como motivo que os leva a procurar a Instituição.
Acredito que o ambiente propiciador de conversas de cunho pessoal, tratadas
com respeito por todos, nestes encontros, é favorecedor do aparecimento de
manifestações mais espontâneas de afeto, assim como vimos neste grupo final.
Há também, como vimos nas falas acima, um sentimento de identidade entre os
participantes, que, ao se verem em situação semelhante à de outros colegas, sentem-se
mais acolhidos, sendo-lhes, assim, possível falar de assuntos que, em outro contexto, se
sentiriam expostos à humilhação e em situação de risco quanto à exposição da sua
masculinidade. Freud (1921, p.96), em seu trabalho sobre grupos, sugere que, se os
indivíduos se unem num grupo, numa unidade, deve haver algo para uni-los, um elo,
sendo este o que daria a configuração do grupo enquanto tal. Acredito que o elo comum
mais visível seja exatamente este processo de encontrar pares com quem possam
compartilhar suas idéias e sentimentos. Entretanto o grupo se constitui de indivíduos
heterogêneos, ainda que seja visível a tendência à homogeneização nesses grupos, assim
como lemos no referido artigo freudiano. Embora esta tendência seja o que dê o caráter
de força e estabilidade ao grupo, é também interessante verificarmos a existência de
posicionamentos diferentes, levando a discussões que questionem o estatuto de verdade
absoluta de algumas colocações feitas. Sendo assim, procuramos abarcar aquilo que é
homogêneo – uma vez que isso dá vida ao grupo --, sem perder de vista e distinguir o
heterogêneo, ao atribuir sentidos e propor alternativas às falas dos participantes,
resgatando o que é próprio de cada um.
3.6. COMENTÁRIOS
146
Verificamos nesta população o predomínio de um tipo de pensamento pautado pelos
ideais tradicionais de gênero. Sendo assim, costumam apresentar idéias bastante definidas
quanto a valores de conduta, comportamentos, idéias sobre o que é certo e errado, mostrando
pouca flexibilidade em relativizar suas opiniões. Apresentam freqüentemente narrativas
prontas e inflexíveis, atribuindo ao “outro” o motivo de suas disputas. Chegam à instituição
colocando-se amiúde numa atitude de passividade receptiva, esperando que os técnicos da
casa atendam às suas demandas de forma assistencial ou paternalista, ou seja, não se vêem
implicados com a própria história, esperando que “as autoridades” arbitrem sobre seus
destinos. A idéia de uma lei “justa”, definindo os encaminhamentos de suas vidas, carrega em
si a noção de hierarquia e poder, em que os mais poderosos determinam os destinos dos
menos poderosos, reproduzindo a mesma dinâmica presente nas relações conjugais regidas
pelos padrões tradicionais de gênero. Assim, o trabalho visa desenvolver nos participantes do
grupo condições de empoderamento e protagonismo, rompendo com este modelo hierárquico,
veiculando uma nova ideologia que pressuponha a equidade, parceria e responsabilidade,
formando sujeitos transmissores ou agentes de transformação de uma nova forma de
funcionamento social. Os conceitos de empoderamento e protagonismo, embora já um tanto
desgastados pela grande proliferação de ONGs nos últimos anos
32
, estão formulados mediante
uma concepção do ser humano como um indivíduo capaz de enfrentar situações de
dificuldade, refletir sobre elas e tomar decisões de forma responsável. Em outras palavras, que
sejam capacitados a responsabilizar-se por suas próprias vidas, seus atos, bem como as
conseqüências decorrentes destes (MUSZKAT, S., 2003, p.192).
É importante ressaltar que o que propomos ao falarmos de empoderamento não se
refere a tornar homens –muitos dos quais violentos – mais poderosos no sentido das relações
32
Sugiro a leitura da dissertação de mestrado de Marcelo Gustavo Aguilar Calegare (2005), desenvolvida no
departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP, sob orientação do Dr.Nelson da Silva Jr,
para a compreensão aprofundada do tema das ONGs no Brasil.
147
de poder, da ocupação de um lugar de domínio na hierarquia conjugal. Isso, ao contrário do
que visamos – encontrar meios alternativos de comunicação não violentos, para as relações
entre homens, mulheres e seus filhos – nos levaria a solidificar ainda mais relações pautadas
por poderes fixos, constituídos. Acreditamos que a necessidade de manutenção de
dominação e de poderes fixos constituídos não representa uma condição de poder, mas pelo
contrário, uma falta do mesmo, que faz com que homens tenham que se apegar de forma
adesiva a padrões tradicionais de masculinidade, acreditando que estes serão garantidores de
sua identidade masculina. O empoderamento consiste, a nosso ver, em poder abrir mão da
obrigatoriedade em funcionar dentro de preceitos rígidos, podendo contar com uma gama de
recursos identificatórios mais ampla. Ou seja, quando a manutenção da identidade masculina
depende de poucos indicadores tais como dominar mulher e filhos, ou ser o provedor
exclusivo da família, ao deparar-se com a alteração destas condições, o homem sente sua
identidade ameaçada, sobrando-lhe como recurso débil e precário de resgate de identidade o
uso da violência. Assim, entendemos que o uso da violência não se apresenta como recurso
de poder, mas sim evidencia o que chamaremos de desamparo identitário, construído a partir
de ideais culturais nos quais estes homens ficam mergulhados em função da precariedade da
rede de significados de que dispõem como definidores do que é masculino e feminino. A
concepção de desamparo identitário se contrapõe à noção de uma rede identificatória
diversificada, na qual a base de sustentabilidade do indivíduo se amplia, dando-lhe mais
recursos pessoais que lhe garantam um maior equilíbrio narcísico. Este tema será
desenvolvido posteriormente baseado nas teorias psicanalíticas.
148
4. O UNIVERSO MASCULINO SOB DISTINTAS ÓTICAS
Neste capítulo, dando continuidade ao capítulo anterior, visamos ampliar a
compreensão a respeito das formas de funcionamento que observamos nas falas dos homens
dos grupos relatados. Buscaremos ampliar nossas formulações a partir de dois vértices: nos
autores que se voltaram ao universo masculino e na metapsicologia freudiana. Com base
nessas duas fontes, procuraremos elaborar uma compreensão acerca do que identificamos
como a falta de uma rede maior de significados no discurso destes homens que os impede de
poderem manter sua noção de identidade masculina, levando-os a assumir uma posição
maniqueísta e violenta em relação às mulheres e a eles mesmos. Dividimos o capítulo em 4
sub-capítulos, iniciando com OS AUTORES, que indica autores e pesquisas de referência nos
estudos sobre a masculinidade e situa o leitor sobre alguns dos importantes estudos que vêm
sendo realizados. A seguir em, DE QUAIS HOMENS FALAMOS?, são definidos aspectos
tais como classe social, nível de escolaridade, acesso e inserção no mundo público e o tipo
prevalente de ideologia quanto ao que consideram fatores de garantia da masculinidade.
O terceiro sub-capítulo, CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS, propõe uma reflexão
inteiramente ancorada na teoria psicanalítica, com base nos trabalhos de Freud que tratam das
questões sociais, da teoria das pulsões e do tema da agressividade. Também articulamos os
conceitos de violência de gênero com o conceito de violência fundamental desenvolvido por
Isabel Kahn (2002), bem como com a concepção freudiana de desfusão pulsional e sadismo.
Nosso intuito é o de identificar as especificidades referentes ao tipo de violência que
abordamos neste trabalho, procurando distinguir, quando possível, as afinidades e
divergências desta - a de gênero - com as duas outras mencionadas.
149
O último item, E AFINAL... POR QUE OS GRUPOS?, analisa uma entrevista, nos
moldes de um grupo focal, realizada pelas pesquisadoras do projeto de pesquisa
(Unicamp/PMFC) com um dos grupos de homens, após a realização de quatro encontros
consecutivos. Nesta entrevista coletiva, vemos aquilo que nos motivou a realizar esta
pesquisa, ou seja, a possibilidade transformadora deste tipo de prática e a possibilidade de
pensar-se na replicação de projetos que envolvam homens, diferente do que têm sido as
políticas públicas em violência até a atualidade.
4.1. OS AUTORES
Desde o final dos anos 80, muitos estudiosos da área das ciências sociais vêm se
debruçando sobre as questões relativas à masculinidade, ou, ainda, como definido por
Connel (1995), referência importante nos estudos sobre masculinidades, aquilo que
conceituou como as várias masculinidades (VALDÉS & OLVARRÍA, 1997; CONNEL,
1995; KAUFMAN, 1999).
Verifica-se a existência, em diversos países que não o Brasil, de uma diversidade de
programas voltados à discussão sobre a masculinidade
33
, seja pelo vértice dos estudos de
gênero, ou através de programas para jovens rapazes, ou ainda como resposta a mudanças na
sociedade ocidental contemporânea. Em outras palavras, assistimos à entrada significativa
das mulheres no mercado de trabalho e sua responsabilidade total ou parcial no provimento
familiar, resultando numa crise das relações entre homens e mulheres, cujos padrões de
relacionamento, bem como da divisão de trabalho, se apóiam num modelo hegemônica de
masculinidade.
33
Refiro o leitor ao livro Masculinidades: poder y crisis (VALDÉS & OLAVARRIA, 1997), como também o
relatório realizado por Emily ROTHMAN, BUTCHART & CERDA, Intervening with Perpetrators of Intimate
PartnerViolence: a global perspective. Geneva: ed. World Health Organization, 2003, para uma rica listagem de
programas voltados ao trabalho com homens, em distintos países.
150
Valdés e Olvarria (1997) expõem interessante listagem feita por Clatterbaugh de 6
tipos prevalentes de perspectivas de estudos ou programas: 1) uma perspectiva conservadora,
que considera “natural” o papel de provedor e de dominância social e política masculina, 2) a
pró-feminista, que enfatiza o caráter opressor/oprimido entre homens e mulheres, 3) a dos
Men´s Rights, que ressalta o aspecto danoso ao homem obrigado a corresponder ao sistema
hegemônico masculino, sofrendo ainda danos maiores como conseqüência do movimento
feminista, 4) uma perspectiva espiritual, que acredita que a masculinidade deriva de padrões
inconscientes profundos, revelados através de rituais e mitos, 5) uma de cunho social, que
acredita que as diferentes masculinidades são definidas pelo tipo de trabalho exercido e pelo
grau de poder e controle sobre o trabalho de outros e, finalmente, 6) a que descreve uma
masculinidade universal, que contém uma diversidade, em razão das distintas experiências
dos homens, e que esta diversidade estaria igualmente presente nos diferentes agrupamentos
e grupos étnicos (idem, p.12).
Autores como Connel (1995), Kaufman (1999; 2003)
34
, e outros voltaram seus
estudos principalmente para o que se convencionou chamar “masculinidade hegemônica”,
incompatível não somente com melhores relações entre homens e mulheres, como também
com a possibilidade de haver uma diversidade maior de vivências dentro da condição
masculina. Estes autores dedicaram-se a elaborar programas dirigidos aos homens cuja
finalidade é o enfrentamento e a mudança de comportamento – diferente da punição – em
relação ao problema da violência praticada contra mulheres, da violência experimentada no
universo masculino (freqüentemente entendida como atributo natural masculino), e da
propagação de comportamentos violentos para as gerações seguintes, em virtude da repetição
34
Kaufman desenvolveu o que chamou de “The 7 P´s of Men´s Violence”, procurando identificar modos de
construção da identidade masculina na cultura, que estariam pautados por: 1-patriarchal power, 2-privilege, 3-
permission, 4-paradox of men´s power, 5-psychic armour of manhood, 6-psychic pressure cooker, 7-past
experiences. Estes modelos referem ao modo de criação dos homens em nossa cultura, e seriam facilitadores das
práticas violentas masculinas.
151
de modelos aprendidos. Seus trabalhos têm-se pautado por tentar envolver os homens em
programas de conscientização, que visam diminuir as diferenças nas relações de gênero e
promover a equidade.
Connel (1995), em seu livro intitulado Masculinities, questiona a propriedade de se
caracterizarem os estudos sobre a masculinidade como uma real disciplina, uma vez que
identifica a diversidade de padrões de masculinidade existentes dentro de uma mesma
cultura, que não se esgota naquele caracterizado como hegemônico. Como exemplo, cita
estudo realizado por Paul Williams com alunos de escola publica inglesa, que identifica o
surgimento de um grupo de masculinidade de oposição à dominante, embora esses jovens
compartilhassem de um mesmo ambiente institucional. Encontra estudos semelhantes
realizados em escolas de elite na Austrália, levando-o a considerar ainda que reconhecer a
diversidade é insuficiente, sendo fundamental, segundo ele, identificar as relações existentes
entre as diferentes formas de masculinidade. Por meio destas relações, que podem ser de
aliança, exploração, dominação e submissão, ele verifica que também no universo
masculino criam-se grupos de excluídos e incluídos, levando o autor a postular uma política
de gênero na
masculinidade. Vemos, nesse tipo de abordagem, que aquilo a que Connel
denomina gênero diz respeito, portanto, às relações de poder e dominância, e a conseqüente
submissão e/ou exclusão de um determinado grupo, independendo, nesse enfoque, do sexo
biológico.
Essa posição difere daquela adotada por autoras feministas e cientistas sociais e
antropólogos dedicados aos estudos de gênero (Scott, Weeks, Butler, Barbieri, Arilha, e
outros), que priorizam nestes estudos de gênero as relações de poder existentes entre os
sexos e as formas autorizadas de sexualidade.
152
No entanto, mais adiante em seu trabalho, Connel parece não sustentar inteiramente
este posicionamento, uma vez que configura como objeto de estudo, as relações de gênero,
enfatizando a noção de um masculino que só pode ser entendido ou estudado, em relação ao
feminino (1995, p 44). Define masculinidade como:
configurações de práticas estruturadas por relações de gênero (ou seja,
relações de poder e interesse de dominação ideológica - comentário
nosso).Elas são inerentemente históricas, sendo a construção e
reconstrução processos políticos que afetam o equilíbrio de interesses
numa sociedade bem como a direção das mudanças sociais (idem, p.44).
Concordamos, contudo, com a colocação de Connel de que, em se reconhecendo a
diversidade dos tipos de masculinidade, não podemos tratá-los como categorias fixas (idem,
p.38), como também foi verificado por Pedro Paulo de Oliveira (2000) em seu estudo sobre
masculinidade, ao ressaltar as especificidades de funcionamento dos diferentes
agrupamentos em função de sua condição socioeconômica e grau de escolaridade.
Outros autores (CORSI, DOHMEN & SOTÉS, 1995; OLIVEIRA, 2002) apresentam
trabalhos que consideramos relevantes, voltados aos estudos sobre a violência conjugal e a
construção da masculinidade. Pedro Paulo M. de Oliveira (2002), em sua tese de doutorado,
desenvolve uma interessante reflexão crítica a respeito do que se convencionou chamar de
“crise da masculinidade”. Questiona o posicionamento daqueles que, argumentando a favor
da existência da crise, atribuem aos homens a sujeição a um lugar de opressão em razão da
obrigatoriedade em terem de atender aos preceitos de uma masculinidade hegemônica. Em
suas palavras, “Há quem veja a condição masculina sob uma série de prescrições sociais
constringentes, mas alguns estudos apontam entre homens de camadas populares uma
valorização explícita desta mesma condição” (idem, p.89, grifo nosso). Refere-se
153
explicitamente à ideologia veiculada em movimentos do tipo citado acima (Men´s Rights),
em que o homem, ao contrário de ocupar um lugar de dominação, seria, na verdade, vítima
desta ideologia masculina. O autor justifica seu questionamento dizendo que “a crise, se de
fato existe, está fundada em mudanças ‘sócio-estruturais’ que devem abalar o regime
patriarcal, afetando assim o próprio valor social da masculinidade” (idem, ibidem).
A ressalva de Oliveira que queremos destacar é quanto à necessidade de se considerar
o tipo de inserção social de cada indivíduo quando se pretende entender códigos de valores
adotados, não se podendo, portanto, em concordância com diversos dos autores citados
(CONNEL, ACOSTA E BARKER), falar em masculinidade de forma genérica.
Oliveira vai mais além, definindo o que chamou de discurso vitimário sobre a
masculinidade, “uma vez que (este discurso) enfatiza a condição masculina como vítima de
um conjunto de fatores sociais e psíquicos” (2000, p.90). Cita, em sua argumentação, as
diversas estatísticas (repetidas não só nos diversos autores como na maioria das pesquisas
atuais sobre violência), nas quais se verifica que os homens são as maiores vítimas de
acidentes, homicídios, crimes violentos e abuso de álcool e drogas. Tais dados levariam a
confirmação deste lugar de maior vulnerabilidade – ou vitimação, como ele denomina –,
invertendo assim o discurso feminista que identifica a mulher como maior vítima de
violências. Este argumento, contudo, não invalida o fato estatisticamente comprovado
quanto ao alto índice de mortalidade masculina causada por mortes violentas. Constatamos
também que, se não por intermédio dos dados publicados com certa assiduidade na mídia,
ainda assim esta não é uma informação desconhecida de muitos deles, uma vez que há
diversos relatos, nos grupos que atendemos, que referem perdas de parentes próximos,
amigos, filhos, vizinhos ,como resultado de mortes por violência. No entanto, esses fatos,
embora contados com pesar, não parecem interferir significativamente num questionamento
154
acerca de alternativas de comportamento que promovessem uma diminuição destes atos
violentos.
Corsi (1995) descreve trabalho desenvolvido por ele com grupos de homens violentos
na Argentina e procura traçar um perfil de personalidade daquilo que encontra em comum
nos homens que praticam violência. Irá caracterizar a violência como algo que se dá em
razão de um desequilíbrio de poder, afirmando que o ato violento é uma forma de abuso de
poder. Enfocando, portanto, o ato violento como um ato de desejo
35
que visa a ocupação e/ou
manutenção de um lugar de poder, recusa a justificativa, muitas vezes adotada, que associa
atos violentos ao uso de álcool ou a psicopatologias, isentando o praticante de sua
implicação com suas ações. O álcool, por seu caráter de inibidor de censuras, freqüentemente
viabiliza uma maior impulsividade, prestando-se assim a ocupar um lugar de ‘outro’
responsável, depositário das projeções do sujeito, eximindo o indivíduo de responsabilizar-se
por seus atos. Vimos, nos relatos das sessões, como a violência praticada é amiúde
justificada por fatores externos, sejam ele o álcool, ou ainda mais freqüentemente, o
comportamento da companheira, numa atitude de não-comprometimento com as próprias
ações. Algo como ‘não tive culpa, fui levado por isso, ou aquilo’. Assim, ele afirma, logo ao
início de seu trabalho, que a violência praticada por homens não tem classe social. Diz ele:
35
Com base na teoria das pulsões, qualquer ato humano deve ser pensado como um ato permeado pelo desejo.
Dessa forma, não poderia discordar desta colocação, muito embora penso que seja essencial que diferenciemos
entre uma conduta movida por um desejo de destruição do outro, onde então estaríamos no campo do sadismo,
ou de outro, cuja finalidade é a recuperação narcísica através de um ato violento. Encontramos também em
Jurandir Costa (2003), argumentação apoiada na teoria das pulsões, distinguindo os conceitos de necessidade e
desejo, onde a necessidade é aquilo que atende ao instinto e portanto tem objeto definido, e o desejo é o que
permeia a pulsão, característica do humano. Define a violência, assim como Corsi, como um ato associado a um
desejo, portanto um ato significado. Esse é um aspecto interessante na medida em que, ao pensarmos que a
violencia não tem objeto fixo, esse pode ser substituido ou se valer de representantes substitutivos. Essa não
fixidez se presta a que a violência ou o sentido atribuido a ela, possa ligar-se a qualquer representante cultural.
Desta forma, a valorização cultural de um certo ideal de masculinidade, pode ser o objeto do desejo a ser
recuperado através do ato.
155
los hombres con los que se encontraron no respondían al estereotipo
construido pos el imaginario colectivo y sustentado por algunos modelos
teóricos. Los hombres violentos no eran los ‘pobres, borrachos y
enfermos’, sino que se los encontraba en cualquier sector social y
educativo… (1995, p.5).
É fato que atos violentos podem ser encontrados em qualquer segmento da
população, assim como é fato que tais atos podem ser praticados tanto por conhecidos como
por desconhecidos. Contudo, não podemos deixar de considerar dados que nos são
disponibilizados por pesquisas (como a do Noos), que indicam que, na incidência desses
atos, verifica-se uma prevalência maior associada à baixa escolaridade, assim como há maior
prevalência de atos violentos praticados por homens conhecidos, com algum vínculo com a
mulher do que por homens desconhecidos (SCHREIBER, L. & D´OLIVEIRA, A. F. P. L.,
2000- 2001).
4.2. DE QUAIS HOMENS FALAMOS?
Considerando, portanto, a discussão acima colocada, não podemos simplesmente
falar em grupo de homens, sem localizar a que grupo nos referimos, isto é, que tipo de
inserção social têm, quais os códigos que compartilham (se é que compartilham), sua
origem, grau de escolaridade, raça, religião, faixa etária, etc. Um outro aspecto não
abordado em nenhum dos estudos até aqui verificados, mas que nos parece fundamental é o
grau de desenvolvimento e de recursos psíquico-emocionais que lhes garantam uma
flexibilidade mental, viabilizando o questionamento de valores e posições adotadas.
Observamos em nosso trabalho que homens com menor grau de escolaridade tendem a aderir
de forma mais rígida às prescrições de uma masculinidade hegemônica tradicional. Este
156
também é um dado observado na já mencionada pesquisa realizada no Rio de Janeiro por
Acosta e Barker (2003) com homens de diferentes extratos sociais.
Contudo, como já ressaltamos no capítulo 3, ainda que seja possível fazermos tal
associação, há um certo número de homens que, embora tenham baixa escolaridade,
apresentam ainda assim recursos psíquicos mais desenvolvidos que lhes permitem um grau
de flexibilidade em suas concepções, ou uma abertura em relação a poder ocupar lugares
alternativos, que não exclusivamente o seu, de maneira mais marcante do que outros. Este
dado sugere que devemos buscar outra variável significativa no desenvolvimento de padrões
culturais e pessoais
36
.
A fim de definir o escopo de nosso grupo de trabalho e investigação, é importante
que façamos ainda, mais uma ressalva antes de considerá-los num mesmo agrupamento. Em
virtude da grave crise econômica do País, que resultou num alto índice de desemprego,
houve uma equalização do poder aquisitivo de muitos destes homens, equalização esta que
se expressou por uma significativa perda econômica, e que não correspondeu a uma
equivalência quanto ao nível de escolaridade e educação formal a que tiveram acesso. Isto
posto, podemos fazer um recorte para fins de nosso estudo, dos aspectos mais
freqüentemente encontrados na população atendida, uma vez que a PMFC tem como
restrição , que o usuário receba como renda máxima, 5 salários mínimos.
36
Embora não seja o escopo deste trabalho, é sem dúvida uma característica que deve ser pensada, a meu ver, do
ponto de vista da constituição do sujeito e não unicamente da cultura. Sugiro como possibilidade teórica para
pensarmos esse fenômeno, as formulações de Bion (1991), sobre as primeiras relações do bebê com sua mãe,
que, sendo capaz de prover ao bebê com a função de reverie, uma função capaz de conter ou acolher dentro de si
(ao que Bion chama de ‘sonhar’) as angústias do pequeno bebe, vai com isso provendo este de condições de
construir um aparelho de pensar os pensamentos. Neste processo, vai sendo possível transformar o que chamou
de elementos beta – elementos concretos, não passíveis de serem transformados ou sonhados – em elementos
alpha, necessários para a condição de sonhar, elaborar pensamentos, e abstrair.
157
Assim como descrevemos em outra parte,
37
os homens com os quais trabalhamos
pertencem a famílias de baixa renda, em situação de violência intrafamiliar, que se
encontram, geralmente, em conflito e sob o impacto de grandes tensões.
Constantemente expostas a ameaças quanto a sua sobrevivência e integridade, essas
famílias vivem em estado de marginalidade social, numa condição em que o desejo de
respeitabilidade é constantemente contrariado e o afeto densamente sobrecarregado de
frustrações. Carentes de educação e informação, discriminadas e desrespeitadas pela
sociedade, criaram para si um repertório de soluções compatíveis com os seus parcos
recursos. Por todas essas razões, pelas tensões e frustrações mantidas pelas dificuldades
materiais básicas, suas relações “matrimoniais” costumam ser pouco estáveis.
A população que hoje procura nossa Instituição é, na sua grande maioria, formada
por migrantes ou filhos de migrantes, vindos principalmente do nordeste brasileiro nas
décadas de 1970 e 1980, os quais trocaram as zonas rurais em que viviam pelas
possibilidades de trabalho e melhoria de vida que a cidade grande podia lhes oferecer.
Mesmo tendo ascendido socialmente, em relação às gerações que os precederam nas suas
cidades de origem, esta melhoria foi muito relativa. Os problemas de adaptação à cidade
grande para famílias extremamente pobres de origem rural, que, não dominavam a leitura e a
escrita, foram inúmeros. Concentrados na periferia da cidade, constituíram grupos pouco
homogêneos, cuja identidade comum foi a de serem pobres. São pessoas que, tendo baixa ou
nenhuma escolaridade, não apresentam qualificação para exercer trabalhos mais elaborados,
atuando, portanto, predominantemente, como operários da construção civil, encanadores,
motoristas de ônibus, frentistas de postos de gasolina ou ainda, em alguma atividade do
37
Amplamente baseado em capítulo publicado em co-autoria com Malvina Muszkat (2003), intitulado
Permanência na diversidade: um estudo sobre a conjugalidade nas classes de baixa renda In: GOMES, P. B.
(org.). Vínculos Amorosos Contemporâneos: psicodinâmica das novas estruturas familiares. São Paulo: ed.
Callis, 2003.
158
mercado informal. As dificuldades de trabalho e a parca renda familiar refletiram e refletem-
se ainda hoje, na expectativa frustrada de mobilidade social depositada no estudo dos filhos.
Há razões de sobra para justificar o baixo nível de escolaridade dessas crianças:
trabalho ou mendicância, abandono, ausência de adultos que exerçam algum tipo de estímulo
sobre sua vida escolar, e, inadequação do ensino público promovendo evasão escolar.
O fenômeno da crescente incorporação de mulheres no mercado de trabalho
38
não
encontrou, principalmente nas classes pobres, qualquer tipo de contrapartida por parte do
Estado no que diz respeito à proteção dos seus filhos (dispositivos sociais como creches,
centros de lazer, etc). As conseqüências dessa realidade são facilmente constatadas no
crescente processo de degradação do bem estar de crianças e adolescentes, criando um
movimento de desintegração social de conseqüências alarmantes. Além disso, é evidente,
nessas camadas, cujos pais já apresentavam baixa ou nenhuma escolaridade, a perpetuação
da defasagem cultural, principalmente quando comparados a outros jovens da mesma idade
advindos de classes mais favorecidas. Cronificou-se o baixo nível de competitividade,
agravado pela crescente deterioração do ensino público brasileiro.
No que diz respeito às influências no processo de socialização sobre os mais e menos
educados, verifica-se a disponibilidade dos mais educados de receberem e aceitarem a ação
de especialistas – médicos, psicólogos, pedagogos –, darem prioridade ao parceiro no que diz
respeito ao encaminhamento de suas questões, e demandarem, por conseqüência, maiores
demonstrações de lealdade dos mesmos. Os menos educados toleram laços maiores de
dependência com seus pais, (KOMAROWSKY, 1967) mantendo a família original
(especialmente a mãe) como principal fonte de referência cultural e social. A figura materna
38
Não podemos ignorar o fato de que as mulheres da classe pobre, sempre tiveram que ‘trabalhar fora’ ou para
fora de casa, antes mesmo da grande entrada das mulheres no mercado de trabalho, sendo este um fenômeno
mais característico das mulheres de classe média.
159
representa a principal fonte de informação positiva durante toda a vida, e mesmo quando ela
é considerada ultrapassada do ponto de vista da sexualidade ou da religião, sua opinião é
vital, no que se refere às regras da vida conjugal, tanto para as mulheres como para os
homens.
Constatamos, em nossa experiência com os grupos, relatos de vários deles que
afirmam não ter com quem conversar sobre questões pessoais, sendo que a pessoa escolhida
preferencialmente para esta atividade são suas mães. A estas pedem sugestões e conselhos e
recebem orientações sobre como proceder nas questões relativas à vida pessoal e afetiva. As
mães da maioria destes homens, além de, interferirem diretamente na vida dos casais, ainda,
por motivos econômicos e culturais, freqüentemente compartilham da mesma moradia ou do
mesmo quintal.
São, muitas vezes as mães, as responsáveis por levantarem suspeitas quanto à
idoneidade de caráter das noras, criticando o modo como estas dirigem suas casas, ou, no
caso de coabitarem, impedindo que estas ocupem um lugar de preferência afetiva junto aos
maridos (seus filhos). Ainda outro dado significativo é o fato de que são também elas quem
normalmente se encarregam da criação dos netos, desempenhando assim a função materna
para estas crianças, nos casos em que a guarda legal é concedida ao homem (pai da criança).
Exceção a isso se dá quando este homem encontra-se em situação de união estável com outra
companheira.
Assim, ideais de masculinidade, nessa classe, orientados pelo modelo hegemônico
masculino, provê um ideal de masculinidade que faz de muitos homens pessoas com
dificuldade de comunicação. Observamos com freqüência que a possibilidade de falar ou
trocar impressões a respeito de questões de âmbito pessoal ou familiar, é uma experiência
vetada aos homens. Somente às mulheres é permitido falar sobre estes assuntos, tidos como
160
“perigosos” nos círculos masculinos. O sentido do perigo está em abrir a outros suas
fragilidades ou dificuldades pessoais, fato este tido como denegridor de sua moral masculina.
4.3- CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS
Os estudos relativos às questões de gênero, desde seus primórdios quando do
surgimento do movimento feminista nas décadas 60-70, sempre ficaram a cargo dos
sociólogos e antropólogos, mais especificamente dos diversos grupos feministas. Com
raríssimas exceções (KERNBERG, 1995; CARVALHO, 2003), não encontramos na
literatura psicanalítica um interesse pelo tema. Ampliando um pouco o escopo para o plano
da violência em geral, encontramos ainda poucos autores do campo psicanalítico dedicados à
compreensão destes fenômenos, no que se refere à sua expressão no âmbito social.
Os estudos e a prática psicanalítica, posteriores a Freud, voltaram-se prioritariamente
à clínica, privilegiando-se o atendimento a pacientes individuais. Podemos levantar como
hipótese para o predomínio desta tendência, o próprio método desenvolvido por Freud, nos
primórdios de seus estudos com pacientes histéricas a partir de 1890, no qual objetivava
tornar consciente o inconsciente, revelando e dando sentido aos sintomas inicialmente
traduzidos por manifestações somáticas.
Essa metodologia, portanto, coadunava-se com um atendimento clínico individual,
fundamentalmente voltado para o tratamento das neuroses.
Contudo, as questões sociais nunca foram menosprezadas, nem por Freud, nem por
diversos outros autores de contribuição relevante para a teoria psicanalítica, como Winnicott,
Klein, e Lacan.
161
Encontramos na obra freudiana, importantes trabalhos tais como: Totem e Tabu
(1913), Psicologia das Massas e Análise do Ego (1921), O futuro de uma ilusão (1927), O
Mal-estar na civilização (1930), Por que a guerra (1933), Novas Conferências Introdutórias
(1933), onde o autor desenvolve formulações acerca do funcionamento e modos de
organização social, ou seja, descreve a possibilidade de formação da civilização com base
em exigências da cultura sobre as forças pulsionais do indivíduo. Vemos, assim, que a
preocupação investigativa com as questões do ser humano não se restringiu aos estudos
intra-psíquicos individuais, mas estiveram sempre acompanhando a cultura e a sociedade em
suas manifestações, nos diversos níveis de inserção humana.
A tradição da prática psicanalítica brasileira priorizou a clínica individual em
detrimento do que seu arsenal teórico tem a contribuir, não só para a compreensão dos
fenômenos sociais como também para a proposição de formas de ação. No âmbito da
violência, embora assistamos às suas manifestações com preocupação e assombro,
encontramos esparsas produções psicanalíticas contemporâneas voltadas ao tema.
Neste capítulo, procuraremos acompanhar dentro da obra de Freud, alguns dos
trabalhos que consideramos significativos para o entendimento de suas concepções acerca
das formas de organização social e processo civilizatório, assim como das expressões de
violência por meio da inter-relação das pulsões no interior do aparelho psíquico e no mundo
externo (Introdução ao narcisismo, 1914; Além do Princípio do Prazer, 1920; Psicologia das
Massas e análise do ego, 1921; O Ego e o Id, 1923; o Mal-estar na Civilização, 1930;
Conferência XXXV, 1933). Para tanto, iremos articular concepções tais como desamparo,
violência, narcisismo, ideal de ego e superego assim como desenvolvido em seus artigos,
bem como em trabalhos de autores contemporâneos, como Carvalho (2003), Khan (2002),
Kehl (2005).
162
Nossa hipótese é a de que a violência pode ser uma forma de proteção contra a
ameaça do desamparo decorrente da perda de traços e marcas identitárias da masculinidade.
Trata-se então de examinar, do ponto de vista da metapsicologia freudiana, as relações entre
violência, identificação e desamparo.
Ao percorrermos os trabalhos psicanalíticos que tratam de violência, deparamo-nos
com uma diversidade de usos e sentidos, que nomeiam as diferentes violências.
Identificamos, ainda, contido em todas estas diversas acepções, o conceito de desamparo
como fator que se repete.
Procuraremos, portanto, entender a violência e sua relação com o desamparo, com o
intuito de verificar se essa relação se sustenta ao pensarmos na violência de gênero.
Buscaremos na teoria das pulsões, com seu caráter dualista, fundamentos que nos auxiliem
na compreensão e questionamento do dualismo com caráter valorativo (bom/ruim,
certo/errado, etc) encontrado na cultura, aprisionando os indivíduos em organizações mentais
rígidas.
4.3.1. Identidade e gênero
Com base no material das 4 sessões apresentado no capítulo 3, pudemos verificar o
predomínio de um tipo de fala que expressa um modo de pensar pautado pelos ideais
tradicionais de gênero.
O que prevalece é um tipo de compreensão e explicação, sobre os acontecimentos
que esses homens vivenciam no âmbito de suas relações interpessoais, que vêm marcadas
por um maniqueísmo, no qual identificamos definições pré-formadas acerca dos lugares,
163
papéis e funções de homens, mulheres, pais e mães, bem como conceitos pouco flexíveis no
que se refere às noções de sexualidade, reprodução, parentalidade, vida conjugal e divisão
sexual do trabalho.
Há também uma tendência a atribuir o motivo de suas dificuldades ao outro, sendo
assim impedidos de pensarem na implicação deles próprios como sujeitos de suas
experiências de vida. Essa dificuldade, que vemos repetidas vezes nos encontros em grupo,
leva-os a darem a estas experiências significados bastante parciais: sentem-se, não raro,
vítimas ou injustiçados. O mau, a má ação, atribuído ao outro, fica fora, exterior a eles.
O desejo ou orgulho de ocupar este lugar hegemônico, como já destacado por
Oliveira (2000), é característico nesta população masculina. Oliveira, ao contestar a idéia de
vitimização masculina, contesta a idéia do sofrimento ou prejuízo resultante de um
submetimento imposto culturalmente aos homens. Concordo com sua argumentação e sugiro
o termo vitimização, como a expressão de um sentimento destes homens, que observamos
em suas falas, para descrever uma vivência de perda do lugar, outrora concedido aos homens
numa organização hegemônica tradicional. Ressentem-se quanto à perda do que entendem
como um privilégio, ou mesmo, um direito natural. Em outras palavras, a injustiça à qual se
referem diz respeito à perda de uma identidade, construída social e culturalmente, e que é
significada como modelo exclusivo de identidade masculina. Embora seja fato, assim como
diz Carvalho (2003, p.27), que
a ideologia igualitária ganhou destaque também no Brasil. As repercussões
disso nas relações de gênero têm sido salientadas, por exemplo, na
liberdade sexual, maternidade fora do casamento, modificações na maneira
como a sociedade pode observar as práticas homoeróticas e nas escolhas
amorosas.
164
Isso contrasta com as falas dos homens que estudamos, evidenciando que as práticas
ou as leis funcionam à margem do imaginário, dos desejos, e do que, portanto, é reproduzido
culturalmente. A igualdade existe como idéia, mas a prática da mesma é “questionada ou
boicotada” tanto por homens como por mulheres.
Vemos uma ilustração disto na fala a seguir, extraída de um dos encontros:
“...minha mulher nunca trabalhou fora de casa, ela começou a trabalhar e agora acha que
pode tudo... por causa das brigas e do telefone bati na filha e agora não falam mais
comigo”. Ainda em outro momento complementa, “O marido serve pra tudo, é o chefe,
educa a família, trabalha, cuida da casa...” e conclui explicitando um sentimento de
humilhação e pesar, “to muito chateado, construí tudo e é como se tivesse perdido tudo...”.
Este homem havia sido obrigado a sair de casa como resultado de uma ação cautelar
determinada pelo juiz, após ter batido em sua filha e ter sido feito um boletim de ocorrência
do fato. Verificamos, nesse pequeno exemplo, a confusão quanto a sua noção de identidade.
Durante muitos anos fora o provedor, chefe de família, e sua mulher trabalhava
exclusivamente em casa: a divisão sexual do trabalho dentro do padrão tradicional de gênero
lhe proporcionava um reasseguramento quanto à sua noção de identidade masculina. No
entanto, acredita que o fato de sua mulher ter começado a trabalhar fora de casa tenha feito
com que perdesse seu lugar, sendo este agora tomado por ela. Não dispõe de outros recursos
que lhe possibilitem a manutenção de uma noção de si mesmo.
A construção da identidade como aquilo que dá ao ser humano o sentido de sua
continuidade no tempo e espaço, que faz com que se reconheça como sujeito singular é um
bem precioso do indivíduo em sua luta permanente contra o desamparo fundamental que
marca o ser humano, sendo a identificação, processo pelo qual se dá a construção da
identidade, segundo Freud (1921) a mais remota expressão de laço ou vínculo emocional
com outra pessoa. É fato que, o ser humano sem um vínculo inicial com um outro ser (a mãe
165
ou substituto), responsável por seus cuidados, ficaria abandonado ao desamparo e à
impossibilidade de desenvolver-se tanto física quanto psiquicamente. É, conseqüentemente,
na relação de intersubjetividade – portanto com um outro – que se dá a construção da
identidade do sujeito, sendo também importante destacar que sem a relação com este outro,
não haveria sujeito. Conforme nos relembra Freire Costa (2003), a teoria psicanalítica postula
a fundação do psiquismo humano como algo possível somente na inter-relação com o desejo
do outro. A linguagem, veículo de transmissão do desejo e impregnada pela cultura, é
condição para a constituição do psiquismo (idem, p.21). Assim, não só se torna impossível
dissociar a constituição psíquica da noção de cultura, como também fica evidente a
incongruência em pensarmos, em se falando do humano, num caráter de naturalidade (dado
naturalmente) como explicação para os modos de funcionamento do indivíduo social.
A luta contra a ameaça do desamparo e de vivências de fragilidade e impotência
equivale, metapsicologicamente falando, à necessidade de manutenção de uma integridade
narcísica. André Green (1988), psicanalista francês contemporâneo, diz acerca de um tipo de
resistência à mudança que encontra na clínica psicanalítica:
Uma das principais razões desta oposição tenaz, quando a análise recai
sobre o Eu, é o narcisismo. O cimento que mantém a unidade constituída
do Eu reuniu seus componentes para adquirir uma identidade formal tão
preciosa ao sentimento de sua existência quanto o sentido pelo qual ele se
apreende como ser. Deste modo, o narcisismo opõe uma das mais ferrenhas
resistências à analise (p.9).
Embora não estejamos, neste trabalho, abordando aspectos da clínica psicanalítica,
penso ser possível a aplicação desta compreensão ao que observamos nos homens. A adesão
destes homens a determinados padrões de ideal de masculinidade é justificada se
entendermos que o abalo narcísico, decorrente de uma não-adesão, implicaria num risco de
perda do sentido de existência ou de identidade, quando este sentido se encontra atrelado a
tais padrões ideais.
166
Essa afirmação nos remete ao que amiúde observamos em nossa amostra masculina,
expressa como uma resistência em abrir mão de determinados lugares identitários, sob o risco
de se encontrarem sem apoios identitários, ou, ainda, ficarem mergulhados naquilo que
denominamos desamparo identitário.
Kehl (1996) define o que chamou de ‘produção da identidade’, como “artifício
protetor de nossa solidão subjetiva diante do enigma do desejo” (idem, p.12) como motor da
pulsão - incessante e poderosa - e em permanente busca de um objeto de satisfação. Freud
(1905), já sabemos, postula o objeto da pulsão como objeto variável, não definido e portanto
nunca definitivo. Essa formulação, por si, marca o eterno desamparo do ser humano, fadado a
jamais encontrar (já que inexistente), ou melhor, a jamais re-encontrar o objeto da plena
gratificação, propiciador do sentimento de plenitude, baseado na vivência narcísica originária
de onipotência e plenitude vivida com a mãe (ou representante responsável pelo bebê). O
objeto da gratificação será assim, sempre provisório e em última instância, frustrante. Sobre o
objeto frustrante, Freud (1915) dirá em Instintos e suas vicissitudes, que, sendo este causador
de desprazer ao ego, desperta-lhe ódio levando-o a querer destruir o objeto. Em Freud, como
afirma neste mesmo trabalho, a relação de ódio é anterior à de amor, uma vez que, antes de
mais nada, em seus primórdios, o ego visa a proteger-se da vivência de aniquilamento. Em
outras palavras, a agressividade ou a violência são manifestações que têm, como finalidade
máxima, a preservação do ego. A questão que vale salientar aqui é que, ao falar de amor ou
ódio, o que de fato está em jogo é o anseio pela manutenção da integridade egóica. O ego
‘odeia’ o que lhe ameaça a integridade e ‘ama’ o que lhe recupera ou garante a mesma. Esta
idéia é também amplamente discutida em seu artigo de 1914, Sobre o Narcisismo, ao
descrever os mecanismos utilizados pelo ego como forma de manutenção do narcisismo, ou
ainda, de forma mais coloquial, de amor-próprio. Este é, a meu ver, um ponto essencial para
os propósitos deste trabalho, uma vez que viabiliza distinguirmos diferentes manifestações de
167
violência. Deste prisma, o ato violento praticado, tem como finalidade principal, a
preservação narcísica do ego, sendo a destruição do outro conseqüência e não o objetivo que
leva ao ato. Mais uma vez desejo ressaltar, que esta colocação de forma alguma se presta a
justificar atos violentos, nem tampouco negar o caráter de destruição e prejuízo que estes atos
implicam para o outro. É, contudo, fundamental, para os propósitos desta dissertação, que
caracterizemos de forma mais precisa as distintas motivações que dão origem ao ato violento
a fim de que possamos dispor de recursos na lida com tais mecanismos. Dentre as várias
denominações de violência, desejamos, neste trabalho, ocuparmo-nos em distinguir três
delas: a violência de gênero, a violência fundamental, assim como descrita por Isabel Kahn
Marin (2002) e, por último, a violência como prática resultante da desfusão pulsional, que
implica uma ação independente do sadismo cujo caráter de pulsão destrutiva visa à obtenção
de prazer libidinal.
4.3.2. O Princípio do Prazer e a violência de gênero
Em Introdução ao narcisismo (1914, p.102), Freud diz, “reconhecemos nosso
aparelho mental como sendo acima de tudo um dispositivo destinado a dominar as excitações
que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeito patogênicos”. Como já
dissemos anteriormente, a conceituação formulada por Freud sobre as vivências de prazer e
desprazer, é construída como um modelo econômico, no qual o desprazer se relaciona a um
acúmulo de tensão no interior do aparelho mental. Prazer, portanto, para o ego é o que não é
sentido como desprazer, ou seja, não se dá como resposta a uma presença satisfatória, mas
como resultado da eliminação ou afastamento do desprazer, que ocorre quando há um
aumento de excitações. Tomando esse postulado, já desenvolvido por Freud em 1911 em seu,
Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, como ponto de partida para
nossa elaboração, procuraremos argumentar quais os fatores que do ponto de vista das
168
relações de gênero, representam um acúmulo desprazeroso ao aparelho mental e as soluções
adotadas que visam a livrar-se desta vivência de desprazer.
Freud inicia o referido artigo (1911, p.277, grifo nosso) dizendo que, “Os neuróticos
afastam-se da realidade por achá-la insuportável, seja no todo ou em parte” e continua,
“defrontamo-nos com a tarefa de investigar o desenvolvimento da relação dos neuróticos e
da humanidade em geral com a realidade”. Explica que o funcionamento sob o Princípio do
Prazer, associa-se ao modo mais antigo e primitivo do aparelho psíquico, regidos pelos
processos primários. Estes se caracterizam, em oposição aos processos secundários, por seu
conteúdo inconsciente, não sujeito aos princípios da lógica que regem a realidade e o
pensamento consciente. Assim, estando submetido a um desejo ou necessidade o aparelho
mental encontraria, num primeiro momento, via uma solução alucinada, atender ao desejo a
fim de eliminar o acúmulo de tensão gerada.
Neste tipo de solução, destacamos duas características fundamentais: seu caráter
primitivo e a solução instantânea (já que alucinada), não admitindo um espaço entre o
surgimento do desejo (tensão) e sua realização (via alucinação).
Destaco essas duas características em razão de sua semelhança de funcionamento
com o comportamento que observamos nos homens de nossa amostra. A resposta imediata,
não mediatizada por pensamentos que não os dos ideais hegemônicos, que visa a eliminar a
frustração, o desprazer ou a ameaça quanto à manutenção da identidade, reproduz o sistema
de funcionamento mental apoiado no princípio prazer/desprazer. Desta forma, esse modelo,
por sua característica dualista, nos parece interessante como instrumento para a compreensão
do modo predominantemente dualista e maniqueísta de funcionamento que verificamos nas
falas dos homens de nossa amostra.
Posteriormente, segundo Freud (1911), no que representaria uma etapa de maior
desenvolvimento do aparelho mental, é introduzido um novo sistema, o Princípio da
169
Realidade, que tem como característica a possibilidade de o aparelho psíquico tolerar, por um
tempo maior, o estado de tensão, efetuando uma transformação na realidade que possa
atender ao desejo não mais de forma alucinada. Este espaço criado entre o surgimento da
necessidade e a nova ação, admite então a entrada do pensamento, regido pelos processos
secundários (da lógica e do contato com a realidade), garantindo assim uma eliminação mais
eficiente e duradoura do desprazer. Freud esclarece que um organismo que insista em viver
de acordo com o princípio do prazer “deve possuir dispositivos que o capacitem a afastar-se
dos estímulos da realidade”, e mais, “trata os estímulos desagradáveis internos como se
fossem externos- ou seja, empurra-os para o mundo externo” (idem, p.279). Embora, nesta
passagem, não dê a esse mecanismo o nome de projeção, descreve o que assistimos com
freqüência nos relatos das sessões, quando o sentimento de frustração e impotência leva estes
homens, em inúmeras ocasiões, a atribuírem às mulheres o motivo de sua vivência
desprazerosa.
Observamos uma naturalização dos direitos do homem sobre os destinos da mulher,
sua companheira, bem como uma crença instituída quanto às diferenças hierárquicas de
poder. Isso é por eles compreendido como algo natural, isto é, da natureza dos homens e das
mulheres. Constatamos ainda este caráter na maneira como são atribuídos sentidos à
sexualidade masculina e feminina e às noções de atividade e passividade
39
. Nossa expectativa
com o trabalho grupal é o de promover, através das atividades e dos questionamentos
propostos, uma ampliação de sentidos e a construção de um repertório mais vasto de
significados, de forma análoga ao que Freud descreve no processo de passagem do Princípio
39
A este respeito, e apoiado nos Três Ensaios sobre a Sexualidade (1905), Carvalho (2003) faz um importante
esclarecimento das teorias freudianas concernentes às noções de atividade e passividade pulsionais. Diz ele:
“Freud aponta para a importância de não superpor termos, nem considerar aspectos como atividade ou
passividade como sendo destinos do homem ou da mulher. A distinção é essencial pois contribui para que ao
discutirmos a subordinação feminina, construída nas relações hierárquicas de gêneros, atreladas às noções de
superioridade e inferioridade, não entendamos que tais posições dizem respeito à tendência pré-determinada
de um ou outro sexo ” (grifo nosso, p.43). Este não é de forma alguma um detalhe sem importância, uma vez
que Freud é freqüentemente acusado como um pensador que, tendo influenciado o pensamento e a cultura em
geral, teria também contribuído em ditar padrões patologizantes e normatizantes às diferentes práticas sexuais.
170
do Prazer para o Princípio da Realidade. Neste último, torna-se possível a interposição do
pensamento à ação agressiva imediata, sendo esta imediatez resultado de uma atribuição
restrita de sentidos à experiência, representando uma ameaça à manutenção de uma
identidade masculina.
4.3.3. O narcisismo e o ideal do ego: a cultura na constituição da subjetividade
No artigo sobre narcisismo (1914), Freud deixa clara a vinculação entre o desejo, por
parte do indivíduo, pela manutenção de seu narcisismo - entendido como a representação de
uma vivência mítica originária na vida do bebê, de plenitude, onipotência, numa experiência
de amor fusional vivida com a mãe -, e os mecanismos que o ego desenvolverá para a
recuperação desta situação narcísica. A este momento inicial e mítico de experiência do ego
denomina-o ego ideal
40
. No processo de desenvolvimento, o ego, a fim de manter-se íntegro,
deverá reprimir seus impulsos edípicos e agressivos, aceitando as imposições da cultura, o
que implicará a renúncia ao ego ideal. A repressão pulsional, exercida por mecanismos que
provêm do próprio ego, tem como finalidade a proteção deste, e é o resultado do que Freud
denominou de amor-próprio do ego. O ego ‘percebe’ os riscos ao qual estará submetido caso
rejeite as imposições da cultura, ou seja, o risco da castração, da perda do amor que ameaça
sua integridade
41
. Paradoxalmente, é preciso que o sujeito abra mão deste narcisismo
originário a fim de manter sua integridade narcísica. Desta forma, o ser humano deve
40
Uma descrição pormenorizada da diferença entre ego ideal e ideal do ego, assim como formulada por Freud e
discutida por Garcia-Roza, encontra-se no trabalho de Carvalho (p. 64-65; 2003).
41
O temor à castração como o marco que leva o sujeito à entrada na cultura, representa a condição da
incompletude humana. Assim, a renúncia ao ego ideal, à plenitude fálica, promove por um lado a entrada na
cultura, e a promessa futura de ser recompensado através da adesão a valores culturais, levando o sujeito agora a
não mais buscar alcançar o ego ideal- perdido para sempre- mas sim seu equivalente social, o ideal do ego. É
importante a ressalva de que a busca em atingir-se o ideal do ego a fim de ‘livrar-se’ da castração, é o engano a
que o ser humano está fadado a viver, uma vez que a castração, a incompletude, a fragilidade são próprias da
condição humana, podendo ser apenas provisoriamente afastadas, mas nunca definitivamente eliminadas,
gerando uma eterna busca pelo ideal do ego fantasiado. Embora essa idéia possa ser fonte de desalento, é
também o que permite pensarmos em processos de transformação do sujeito da cultura.
171
renunciar à sua completude narcísica e, ao fazê-lo, passará a realizar uma busca incessante a
fim de recuperar seu narcisismo perdido.
O ideal do ego, é assim o substituto do narcisismo perdido da infância, diz Freud
(1914), postulando a criação de “um agente psíquico especial (futuramente, em 1921,
denominado superego), que realizará a tarefa de assegurar a satisfação narcísica proveniente
do ideal do ego, medindo o ego real por aquele” (idem, p.112). Esclarece ainda que, “o ideal
do ego desvenda um importante panorama para a compreensão da psicologia de grupo. Além
de seu aspecto individual, esse ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum
de uma família, uma classe, uma nação” (idem, p.119), dando-nos importantes subsídios para
a compreensão da relevância dos ideais culturais sobre os padrões de comportamento de
distintos grupos. A construção da identidade, resultante da interação do sujeito inicialmente
com o ambiente familiar – permeada pela cultura – e posteriormente com o grupo cultural no
qual está inserido, se dá com a introjeção das interdições e valores transmitidos por estes dois
grupos. Freud ainda adverte que a separação do ideal do ego, a partir do ego, impõe a este
último um esforço considerável nesta busca de equiparar o ego a este ideal, afirmando que
“há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o ideal do ego” (idem,
p.166). A partir disto, deduz-se que a distância experimentada entre o ego e seu ideal de ego,
é vivida como fracasso e sentimento de inferioridade, o que muitas vezes observamos no
universo de nossa amostra, ao por exemplo, serem confrontados com sua impotência real
ante as demandas que lhes são impostas com base num referencial hegemônico de
masculinidade (ser o provedor, ser o chefe da casa, ter o controle sobre mulher e filhos).
Assim como o ideal do ego diz respeito ao ego, a idealização diz respeito ao objeto,
que é engrandecido às custas da libido narcísica do ego, que, ao realizar este processo, se
enfraquece. Podemos observar a maneira como isso se dá pelas falas dos participantes de um
172
dos grupos ao descreverem o que pensam sobre a figura do pai. Ouçamos novamente a
definição de um desses homens: “O pai é tudo. É Deus”.
Esta afirmação é complementada por outras, atendendo a um pedido meu sobre o que
achavam ser a função de um pai do ponto de vista do filho. Anoto o que dizem: “O pai serve
para alimentar, dar carinho, brincar, conversar, dar atenção, sair juntos”.
A certa altura, dois outros participantes, relembram o fato de já estarem trabalhando
aos oito anos de idade, retirando assim o caráter idealizado por meio do qual a figura paterna
vinha sendo descrita e evidenciando uma realidade menos fantasiosa quanto aos ‘poderes’ do
pai em relação aos filhos. Vemos aí a contradição entre o pai-deus-tudo, idealizado, e a real
condição de um pai que não tem meios de manter os filhos, ou que não está presente,
impondo ao filho que trabalhe tão precocemente. Verificamos como aquilo que não tem
inscrição como experiência real é vivido no plano idealizado e preenchido com roteiros pré-
estabelecidos. Vale notar que as respostas sobre o que é ser pai, não raro são vagas ou
esparsas, denotando assim uma falta de idéias a respeito do universo que ocupam como pais,
maridos e filhos. As respostas mais comuns são: “para sustentar a família ou trabalhar, para
ensinar o que é certo ou errado para os filhos, para manter a ordem na casa e na família”. Por
vezes, ao falarem do tema, ainda do ponto de vista deles como filhos, afirmam a importância
da companhia do pai nas brincadeiras, ou, então, destacam a importância do pai para ‘ensinar
coisas’ para o filho. O afeto e a intimidade, experiências construídas no cotidiano familiar,
não se constituem como registro no mundo emocional da maioria destes homens, quanto às
funções de pai e de marido.
É comum ouvirmos, o relato orgulhoso daqueles que ‘nunca deixaram faltar nada à
família’, referindo-se exclusivamente ao sustento econômico da mesma, à guisa de expressão
afetiva. Da mesma forma, constatamos que, ao se verem impossibilitados de pagarem pensão
alimentícia a seus filhos, sentem-se humilhados, acreditando não terem quaisquer direitos
173
sobre os filhos, nem mesmo o de acesso às visitas. Com isso, muitas vezes afastam-se,
reforçando assim o sentimento de isolamento e desvalorização a que ficam submetidos, tanto
filhos quanto pais. Relacionamentos em que predominam a distância e a escassez de contato,
combinados com os valores disseminados por uma cultura hegemônica quanto aos papéis e
funções de pais e mães, têm como resultante a atribuição idealizada dos lugares parentais,
assim como vimos no relato acima. A idealização, como bem sabemos, é o reverso do
sentimento de persecutoriedade (conhecido disparador de atos violentos), tendo como
conseqüência inevitável, o sentimento de baixa auto-estima.
Também é freqüente se sentirem ofendidos e raivosos quando suas ex-companheiras
procuram, regulamentar (via homologação judicial) a pensão alimentícia dos filhos: “Não
precisava nada disso! Ir na justiça pra quê? Sempre que eu posso eu dou tudo que eles
precisam! Mas agora essa, eu fiquei com raiva mesmo”.
Entendem isto como um ato que depõe contra sua idoneidade moral e dignidade,
atributos altamente valorizados num universo de exclusão social como o que vivem e no qual
dispõem de tão poucas qualificações. Ser chamado a comparecer a algum órgão da Justiça é,
não raro, visto como ‘coisa para bandido’.
Nos casos em que as mães impedem a visita dos pais a seus filhos, predomina o
sentimento de pesar e ódio pelo afastamento. Constatamos que a rigidez dos papéis em que
homens são meramente provedores e mulheres são as responsáveis exclusivas pela vida
doméstica – onde se inclui a criação dos filhos- promove um abismo na comunicação e nos
afetos, produzindo ressentimentos para ambos os lados, bem como uma sobrecarga de tarefas
muitas vezes impossíveis de serem preenchidas, resultando em ódio, frustração e sentimentos
de baixa auto-estima para todos. Portanto, verificamos que a idealização e a manutenção do
sentimento de poder se dá às custas de uma negação de parte da realidade que vivem. A
possibilidade de manter-se o ideal de ego e a ocupação de um lugar idealizado de poder são
174
muitas vezes alcançados tendo em vista o apoio da companheira, de forma complementar.
Contudo, uma vez que a mulher recusa este lugar, exigindo que o homem proveja aquilo para
o qual está impossibilitado, desvela a condição real e não, a ideal. A sustentação da cultura
hegemônica de gênero se dá, portanto, desde que se perpetuem os acordos inconscientes
entre ambas as partes envolvidas, homens e mulheres.
4.3.4. Violência e civilização
Como vimos até aqui, podemos constatar uma inter-relação entre desamparo, ódio e
agressividade/violência, uma vez que estes últimos ocorrem como resposta a vivências de
desamparo, condição inerente ao humano. Se o desamparo é condição humana, devemos
entender que a agressividade também o é, já que encontram-se interligados. De fato,
encontramos no magnífico trabalho sociológico de Freud (1929), O mal-estar na civilização,
afirmação quanto ao caráter naturalmente mau, agressivo e abusivo presente no ser humano,
que, se manifestaria contra seus semelhantes, não fosse pelo processo imposto pela
civilização, que, em troca de garantir-lhe a segurança contra a vivência de desamparo, exige-
lhe que renuncie a uma grande parcela de seus impulsos agressivos e destrutivos.
42
Ainda
assim, verificamos que esta renúncia é parcial, sendo que os grupos (sociais, familiares, de
gênero, de raças, etc) representam uma forma de organização social que atende ao mesmo
tempo à necessidade de contenção do impulso agressivo (que então se manifesta contra
outros grupos), como também garante o cuidado e proteção no interior de um mesmo grupo,
onde todos se tornam semelhantes, por meio de um processo de identificação. Freud (1929)
atribuiu a esta hostilidade contra o diferente (mas não muito diferente, como faz questão de
42
Em Totem e Tabu (1913), Freud elabora uma construção mítica acerca da fundação da civilização, na qual, a
partir do assassinato do pai da horda primitiva, os irmãos a fim de garantirem sua própria sobrevivência não
sendo também assassinados como o pai, criam a primeira lei (o tabu do Totem), sob a qual, de comum acordo,
ficam impedidos de expressarem livremente seus impulsos sexuais e agressivos. Em Mal-estar na civilização,
Freud afirma, “o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de
segurança” (1929, p.137).
175
ressaltar), a já bastante conhecida denominação de narcisismo das pequenas diferenças. Em
suas palavras, “é sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor,
enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade”
(idem, p.136).
Kehl (1996), a esse respeito, faz uma crítica de como em nossa sociedade
contemporânea, a necessidade de manutenção das identidades e o temor de vê-las ameaçadas,
leva a práticas violentas. Em sua definição,
as identidades são as próteses subjetivas produzidas na sociedade de
massa- e quem vive no século XX, em qualquer período, sabe que a
afirmação das diferenças, constituídas como formação de grupos
identitários, tem tido antes o efeito de produzir a intolerância do que o
diálogo e a convivência na diversidade (idem, p. 12).
Mas se a condição de existência ou sobrevivência da civilização, como afirma Freud,
depende da contenção da agressividade, quais serão os meios através dos quais isso será
possível? O que fará com que o ser humano renuncie ao seu impulso agressivo submetendo-
se às imposições da civilização? Freud responde a isso referindo o temor ao desamparo e a
condição de dependência como fatores determinantes para esta renúncia. O medo da perda
do amor, diz ele, somado à noção do indivíduo de sua própria fragilidade e falta de
autonomia, faz com que, por temor a ser abandonado e ver-se sujeito a inúmeros riscos, o
indivíduo aceite a introdução do que em última instância podemos entender como a
introdução da cultura, da lei. (1929, p.147) Laplanche e Pontalis (1983), definindo a
concepção freudiana de desamparo, ressaltam o aspecto econômico deste estado,
caracterizado por um acréscimo de tensão cujo aparelho se vê impedido de dominar. Assim,
“no quadro da teoria da angústia, o estado de desamparo torna-se o protótipo da situação
traumática” (idem, p.157). É ainda, por caracterizar-se como um estado de total dependência
do outro, e em sua relação com uma mãe onipotente, que o desamparo “determina de forma
176
decisiva a estruturação do psiquismo, voltado a constituir-se inteiramente na relação com
outrem” (idem, ibidem). A condição de prematuridade do ser humano em relação a outros
animais, determina, dizem eles citando Freud, que “a influência do mundo exterior é
reforçada, a diferenciação entre o ego e o id é necessária, a importância dos perigos do
mundo exterior é exagerada e o objeto que é o único que pode proteger contra estes perigos e
substituir a vida intra-uterina, vê seu valor enormemente aumentado. Este fator biológico
estabelece pois as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado, que nunca
mais abandonará o homem” (idem, ibidem). Khan Marin (2002), baseando-se na concepção
Lacaniana do desamparo como significante na história do sujeito, diz,
É a partir desta condição de depender de um Outro por sua condição de
“falta de ser” (manque à-être) que irá atendê-lo e situá-lo na ordem social,
da cultura, que o sujeito se constitui num parlêtre (“ser que fala”), ou seja,
a simbolização é fundamental para o enfrentamento do desamparo e da
constituição subjetiva (idem, p.137).
É nesta relação com o outro que o indivíduo constrói a sua subjetividade e adquire
condições de simbolização, que, como sabemos, se dá a partir da falta. Sem esta condição, o
sujeito “se vê mercê de suas forças pulsionais, estando assim exposto a um excesso de
excitação” e um sentimento de abandono (idem, ibidem). É neste sentido que Kahn irá
argumentar a favor da necessidade da violência fundamental, como ato de contensão
pulsional e possibilidade de entrada na cultura. Se o desamparo é definido como a exposição
egóica ao descontrole psíquico, a castração remete à idéia da perda de um objeto valorizado.
Segundo Laplanche e Pontalis (1983) uma das características teóricas do complexo de
castração “é o seu ponto de impacto sobre o narcisismo: o falo é considerado pela criança
uma parte essencial da imagem do ego; a ameaça que lhe diz respeito põe em perigo, de
forma radical, essa imagem” (idem, p.112). O complexo de castração tem sua formulação
inicial em 1908, referindo-se à diferenciação sexual da presença ou ausência do pênis (idem,
177
p.111). Posteriormente terá assegurado seu “lugar fundamental na compreensão da evolução
da sexualidade infantil e sua articulação com o Complexo de Édipo” (idem, p.112). Freud
descreve em O mal-estar na civilização (1929), o superego, como a instância psíquica que
doravante será responsável por supervisionar o ego, comparando-o sempre ao ideal do ego a
fim de realizar a aproximação entre estes. Herdeiro do complexo de Édipo, o superego é
resultado da introjeção das prescrições parentais, às quais a criança se submete a fim de
garantir a permanência do amor destes por ela. Desta forma, é, a um só tempo, a expressão da
submissão do indivíduo à condição de ‘castrado’, uma vez que submeteu-se à repressão de
seus impulsos edípicos hostis e amorosos, bem como a saída possível para evitar-se a
castração, garantindo o amor parental e tendo como promessa futura a recuperação narcísica
por meio do ideal do ego. A introdução da lei civilizatória, embora implique uma renúncia, é
paradoxalmente o que garante ao indivíduo proteção e sua inserção na condição de
humanidade. Se na infância, o superego representa a introjeção das ordens parentais, na vida
adulta, estas são substituídas pelas ‘ordens da cultura’, o que faz com que siga submetendo-se
aos códigos vigentes em dada cultura. Dito de outra forma podemos de modo análogo,
entender que a impossibilidade de cumprir/atender às exigências do superego cultural,
desperte temores ligados à vivência de castração, de incompletude ou de desamparo. Desta
forma, o risco de perda da identidade masculina, caso não atendam aos ideais de
masculinidade pregados pela cultura hegemônica, representa uma ameaça de castração,
resultando num abalo do equilíbrio narcísico. Vemos aí a estreita associação entre superego,
ideal do ego, desamparo e castração.
É deste prisma, considerando a introdução da cultura como forma imprescindível de
corte pulsional, que Isabel Kahn (2002), em seu livro Violências, desenvolve sua tese. A
concepção acerca do que se denomina como violência simbólica, é bastante familiar no
universo psicanalítico sendo compartilhada por autores tais como Piera Aulagnier, Ferenczi,
178
Laplanche e outros, referindo-se, como explica Jurandir Costa (2003), à idéia de uma
violência primordial exercida sobre a criança ao dotar de sentido as experiências vividas por
ela, com base no vértice do adulto cuidador. Assim, a qualificação dos sentidos do mundo
social, é dada pelo outro (outro aqui com o sentido de um não-eu) e nesse sentido, arbitrária.
É este caráter arbitrário o que é significado como violência. Desta forma, se por um lado a
violência deve ser reprimida ou sublimada para garantir-se a manutenção da civilização, é
também, paradoxalmente, através do ato violento que se dará a constituição do sujeito como
sujeito da civilização.
Com base no que foi desenvolvido até aqui, fica clara a relevância, sob a ótica
psicanalítica, das implicações da agressividade (como são normalmente designadas as
expressões de hostilidade nos textos freudianos)
43
, com a constituição do sujeito, a
construção de sua identidade, as defesas do ego contra vivências de aniquilamento e
desamparo e a manutenção da ordem social humana com base na construção dos laços sociais
de proteção.
Obviamente, como cidadãos da cultura sabemos que a violência é algo bastante
presente, sendo a violência de gênero uma de suas formas de expressão que nos inspirou a
realizar este trabalho.
Sendo a violência entendida tanto como ato destrutivo (que age contra o outro ou
contra o próprio sujeito), como ato fundante – assim como descrito em Totem e Tabu-
procurarei, valendo-me do referencial psicanalítico e baseando-me amplamente no trabalho
de Kahn, que se volta à esta questão, discutir em que medida a problemática da violência de
gênero converge ou diverge da violência descrita pela autora, como resultado do desamparo
pulsional, procurando identificar as especificidades deste tipo de violência que se dá como
expressão das relações de gênero.
43
Remeto o leitor ao capítulo 2 do já citado livro de Isabel Kahn Marin (2002) para uma interessante digressão a
respeito do uso do temo violência ao longo da obra de Freud.
179
Kahn, encontra na teorização de Piera Aulagnier, fundamentação importante no que
descreve ser o “paradoxo trabalhado por Freud do jogo entre as pulsões, marcando o lugar do
adulto (social) na constituição do sujeito e lançando alternativas para se pensar na
possibilidade criativa de amansamento das pulsões da violência” (KAHN, 2002, p.30).
Sustenta a tese de que nossa sociedade contemporânea tem como característica o predomínio
de um funcionamento narcisista onde o sujeito é regido por sua satisfação pessoal e imediata
em detrimento de valores éticos e morais, garantidores de uma organização social (idem,
p.17). Denuncia, a partir de sua observação institucional e clínica, o fato de que embora
muito se fale acerca da preocupação com a violência no mundo atual, não verifica nos
indivíduo em geral (refere-se aos adultos cuidadores), a disponibilidade em assumir qualquer
lugar associado a ela. Desta forma, declara a dificuldade em assumir-se a função paterna ou o
lugar da lei, identificando o que denomina de “predomínio da ideologia do amor” (idem,
p.19), que ao contrário de promover um bem estar em crianças institucionalizadas com as
quais trabalhou, impedia-as de entrarem em contato com suas reais vivências e histórias
pessoais de sofrimento, não podendo assim, realizarem o luto simbólico necessário.
Percorrendo os trabalhos de Freud, identifica esta tendência de negação da violência como
“um movimento da humanidade, ao longo da história, em que o homem busca recuperar um
momento de estabilidade para sempre perdido, onde não havia nem dor nem necessidade de
representação –o estado nirvânico” (idem, p.27). O estado nirvânico foi usado por Freud pela
primeira vez em 1920 para definir o objetivo da Pulsão de Morte, cujo intuito é levar o
aparelho mental ao menor estado de excitação possível, daí a referência ao nirvânico
44
. Com
efeito, tal estado de suposto prazer e ausência de violência é paradoxalmente a expressão
purificada da Pulsão de Morte ou da destruição. Desta forma, a recusa em romper, cortar,
proibir –mecanismos contrários àquele da Pulsão de Vida, que visa acumular e unir - numa
44
No apêndice de As Neuropsicoses de defesa (1894), encontramos a referência à primeira citação de Freud ao
‘princípio do Nirvana’, feita em 1920 no trabalho Além do Princípio do Prazer.
180
fantasiosa pretensão de eliminar a violência e o desprazer, é, se seguirmos o raciocínio de
Freud, não só impeditivo da organização social e da introdução do sujeito na cultura, como
também um movimento que o levaria a morte.
Depreendemos do trabalho de Kahn sua formulação acerca da necessidade do
exercício de uma certa violência, a fim de se dar conta da violência pulsional a que o sujeito
estaria submetido, especialmente no início da vida, a fim de que se possa adentrar a ordem do
humano (idem, p.31). Assim, a autora denomina de violência fundamental a violência
necessária à produção do corte pulsional e à atribuição arbitrária de sentidos imposta pelo
adulto à criança, como descrita por Piera Aulagnier em sua definição de violência primária.
Sobre o risco que a negação da violência em nossa cultura apresenta, diz
a questão que se coloca, portanto, é como a partir da negação da violência,
que pode ser justamente reveladora da própria, facilitar que o sujeito
consiga entrar em contato com o que isso está expressando, que afetos
estão evolvidos, o que representam, para que possa encontrar meios
socialmente aceitáveis de expressá-los (idem, p.46).
Sabemos, como também é descrito por Kahn, que o excesso de excitação provoca
desprazer e pode reativar o desamparo (idem, ibidem), sendo que a impossibilidade da
realização do corte pulsional, através da violência fundamental, justificada por uma ideologia
do amor, ou, como também denominado por ela, sob o predomínio do Princípio do Ego Ideal
ou Império do Narcisismo, abandona o sujeito a vivências intoleráveis de intensidade
pulsional, vividas como trauma, uma vez que não encontram meios de escoamento. Essa
intensidade levaria ao ato violento aniquilador do outro, como forma de aliviar-se desta
intensidade. O desamparo e o estado de vazio, com conseqüente impossibilidade de
construção de uma identidade neste cenário, teriam no ato violento, destruidor do outro, uma
forma de expressão última da singularidade do sujeito.
181
Encontro neste ponto a necessidade de fazer uma primeira diferenciação entre este
tipo de violência e a violência de gênero. Sem dúvida, pelo que expus até aqui, podemos
entender o ato de violência praticado por certos homens como um recurso que visa ao resgate
e à afirmação de sua identidade masculina. Certa vez, um participante de um dos grupos me
disse: “às vezes, não é que o homem quer bater na mulher, mas ele tem que bater para
mostrar para os outros homens que ele é quem manda na casa”. A garantia do olhar que
confirma, um olhar que, como espelho, lhe reflete a imagem desejada é o que impulsiona este
ato. É possível, ainda, fazermos uma analogia com a violência por intensidade pulsional, no
que esta tem de recurso último de expressão da singularidade, de um resgate de identidade,
por meio de uma tentativa, ainda que precária e destrutiva, de sentir-se tendo um lugar no
mundo. Do ponto de vista do que temos observado em relação à violência praticada por
grupos de jovens que não encontram lugar de inclusão na esfera social, isso faz sentido, uma
vez que este ato lhes outorga um lugar de singularidade, lhes confere uma identidade que
antes não havia. Contudo, se este tipo de violência vem marcada, como diz Kahn, pelo
predomínio da fantasia do Ego Ideal, que, como dissemos, é regida por um narcisismo
onipotente sem a mediação das interdições da cultura, a violência de gênero é, por sua vez,
regida pela busca do Ideal de Ego, cuja marca é sua associação com os valores culturais que
substituiriam o primeiro modelo, sendo assim um ideal construído a partir da entrada na
cultura. A violência de gênero, como a entendo, se por um lado é resultado de um
desequilíbrio interno por falta de referencial e sentimento de afastamento do ideal de ego,
ainda assim não tem o mesmo sentido da violência resultante da intensidade pulsional que
visa a evitar o aniquilamento do ego.
É fator relevante que uma cultura, cujos valores são pouco flexíveis, é também
propiciadora do tipo de desamparo ao qual chamei de desamparo identitário na medida em
que a possibilidade de se alcançar estes ideais torna-se uma exigência psíquica intensa e de
182
resultados pouco criativos no âmbito das relações interpessoais. Nesse sentido, penso a
violência de gênero como um ato voltado a uma demanda de reconhecimento de sua
hegemonia, de recuperação de uma identidade idealizada, e não de um ato que visa à
‘formatação’ de uma identidade, como é a violência aniquiladora que descreve Kahn. Sendo
assim, na violência de gênero, o outro se torna imprescindível como ‘espelho’ que lhe restitui
o lugar desejado, lhe resgata o ideal de ego.
4.3.5. O desamparo, o mundo contemporâneo e a sociedade
Kahn descreve o que entende como sendo a marca da diferença entre o que denomina
de sociedades tradicionais e a sociedade moderna. Citando Lasch, diz: “O indivíduo da
sociedade moderna é livre para escolher seu destino, paixões, e deve construir sua identidade.
É a sociedade onde o Eu domina e que vai caracterizar a cultura do narcisismo” (LASCH,
1983 apud KAHN, 2002, p. 50). Essa descrição, de uma sociedade que parece valorizar e
voltar-se completamente para o indivíduo, é também a de uma sociedade que o deixa sem
contornos, sem lugar, numa vivência de abandono e desamparo.
Penso que não seria adequado caracterizar a população com a qual trabalho como
regida por este abandono no sentido caracterizado pela ‘liberdade’ de construção da própria
identidade, da forma descrita por Lasch. Como temos visto, muito ao contrário disto, estes
homens parecem ter a identidade já previamente definida, de forma bastante fixa, sendo a sua
luta a de adequar-se ou equiparar-se a este ideal de masculinidade. Há, no entanto, um outro
tipo de abandono ao qual estão relegados: o abandono de sua condição de cidadãos de direito
pelo Estado. Se não podemos dizer que esta amostra caracteriza o homem pós-moderno,
globalizado, criador de si mesmo, tampouco podemos pensar que não sejam permeáveis aos
valores de consumo e de mercado que regem nossa sociedade atual. Ainda como resultado
desta ideologia narcisista, assistimos a uma desmoralização da função paterna e dos valores
183
que representam a palavra do pai. Paradoxalmente, observamos que esta população é regida
por valores em que predominam, no universo imaginário, os ideais patriarcais, nos quais,
como sabemos, são demarcadas hierarquias, contornos, lugares determinados, que são
também lugares identitários. Assim também são suas relações e suas aspirações de trabalho,
sendo freqüente ouvirmos relatos de como preferem ter empregos que, embora bastante
insuficientes do ponto de vista de garantir-lhes o lugar de provedor patriarcal, ainda, assim,
lhes assegura como cidadãos de bem, uma vez que têm carteira assinada, registro, e a
condição de ser um empregado, ao contrário da condição de autônomo, com ganhos
variáveis, normalmente referida por eles como um estado de desemprego. A esta
desmoralização do pai na sociedade contemporânea, soma-se, o que Maria Rita Kehl (em
comunicação oral, 2005) descreve como uma situação mais enfraquecida diante da ideologia
de Estado dominante, pautada pelas leis de mercado e não pelo cuidado com seus cidadãos.
Sujeitos desta violência social, na qual não têm assegurado seu lugar de cidadãos,
impossibilitados de prover os seus, dada sua condição de precariedade de recursos materiais
e sociais , e tendo seu valor confundido com seu poder de compra/consumo, estes homens
devem ‘criar’ recursos para driblar a condição de humilhação a que se encontram
submetidos, sendo estes, muitas vezes, o abandono de seus filhos e o comportamento
agressivo contra suas companheiras, que lhes ‘espelham’ não o lugar valorizado, mas este
lugar de precariedade. Assim, no trabalho em grupo que desenvolvo com eles, procuro
fornecer subsídios que lhes ampliem o sentido de valor pessoal, sem que este esteja
vinculado ao valor financeiro de que dispõem. Algumas conversas que tivemos, por exemplo,
giravam em torno de irmos enumerando possibilidades de programas com seus filhos que não
dependessem de dispêndio de dinheiro, como jogar bola, ir ao parque, e alguns sugeriam
programas gratuitos oferecidos na cidade, enfim, atividades em que o privilégio recaísse nas
relações pessoais e não nos bens adquiridos para os filhos nos dias de visitas.
184
Não desejo de forma alguma idealizar o trabalho com o grupo de homens, mas
destacar situações que observo com razoável freqüência, como resultado dos encontros, que
são de estabelecer-se entre os participantes um sentimento de solidariedade, amparo e
reconhecimento de sua condição (seja ela de raiva, de dor ou de impotência), ou até mesmo
de respeitosa discordância diante de situações que consideram criticáveis, favorecendo o
sentimento de resgate de dignidade e respeitabilidade. Ao final de uma reunião, que era a
última da qual ele participava, um dos homens disse a todos “aqui aprendi que também tenho
direitos”.
4.3.6. O sadismo e a violência de gênero
Não desejo negar, nem tampouco diminuir, as conseqüências que penso serem
perniciosas tanto às relações entre homens e mulheres, como àquelas que se dão no interior
das famílias, e, mais ainda, no que representam como modelo violento de relacionamento,
reproduzido quando da constituição de novas organizações familiares, em que prevalecem
formas desiguais de poder, sob a forma de violência de gênero. Sabemos, e as estatísticas
estão aí para confirmar, que a violência praticada por homens contra mulheres é dado de
significativa relevância, levando mulheres a todo tipo de opressão, que se manifestam em
variados sintomas clínicos, em casos de depressão, chegando até mesmo em casos de morte.
Contudo, embora seja uma discriminação bastante tênue de se fazer, penso que atos
de violência praticados por alguns homens, sob a forma de espancamento, tortura e
humilhação sistemáticos, não caracterizam o tipo de violência de gênero a que me refiro,
sendo, a meu ver, expressão do que Freud caracterizou como sadismo. Lemos em Além do
Princípio do Prazer (1920, p.74):
Desde o início identificamos a presença de um componente sádico no
instinto sexual. Como sabemos, ele pode tornar-se independente e, sob a
185
forma de perversão, dominar toda a atividade sexual de um indivíduo.
Surge também como um instinto componente predominante numa das
‘organizações pré-genitais’, como as denominei. Mas como pode o instinto
sádico, cujo intuito é prejudicar o objeto, derivar de Eros, o conservador da
vida? Não é plausível imaginar que esse sadismo seja realmente um
instinto de morte que, sob a influência da libido narcisista, foi expulso do
ego e, conseqüentemente, só surgiu em relação ao objeto?
O que Freud propõe é que tenha ocorrido uma desfusão das pulsões de forma que a
corrente destrutiva passa a agir de maneira independente, não podendo ser atenuada por Eros,
com sua força de ligação. Ao longo da obra de Freud, como já mencionado neste trabalho,
vemos que a teoria dos instintos que, em 1920 resultará na formulação das Pulsões de Vida e
de Morte, tem caráter dualista.
Freud irá descrever o movimento característico de cada uma das pulsões (já referido
neste trabalho), sendo a união e ligação características da Pulsão de Vida, e o corte, a
destruição, o retorno a um estado anterior de coisas que tende a um estado nirvânico,
característicos da Pulsão de Morte. Retomando a articulação proposta por Kahn, sobre a
necessidade de exercer-se uma violência fundamental, podemos depreender que a desfusão,
ou a ação isolada de qualquer uma das pulsões, teria efeito destrutivo, seja voltado ao interior
do aparelho mental, seja voltado ao exterior como ato destrutivo do outro. A não interrupção,
através de uma violência fundamental, da intensidade pulsional, baseada numa premissa de
agir sem violência, atendendo narcisisticamente às demandas do sujeito, ao contrário de
aplacar a inquietação e intensidades pulsionais, levaria, como vemos descrito pela autora, ao
ato violento e destrutivo do outro, como forma de evitar o aniquilamento do próprio ego. A
exclusividade da Pulsão de Vida é, portanto, tão destrutiva e insuportável quanto a
exclusividade de ação da Pulsão de Morte, que, ao voltar-se para fora, se expressa como
sadismo.
Retomando o que propunha acima, sugiro pensar que - embora não possamos fazer
uma linha divisória nítida -, atos de violência que evidenciam características de crueldade
186
apóiam-se nas relações socialmente autorizadas de desigualdade de poderes entre homens e
mulheres, mas devem, no entanto, ser entendidas como manifestações que considero da
esfera da patologia e não, como expressão da naturalização das atribuições de masculino e
feminino construídos na cultura, assim como definido pelos estudos de gênero. É evidente
que a desigualdade de poderes está presente em ambas as formas de relação violenta, e
também é evidente que há nas relações hegemônicas de gênero, a intenção (ainda que
inconsciente) em manter-se esta desigualdade em favor do homem. Entendo, contudo, que há
que se considerar uma distinção bastante essencial: o ato violento, resultado da ação da
pulsão sádica, está a serviço da satisfação libidinal, de um prazer obtido no ato destrutivo ou
violento, ao passo que a violência ditada pelas relações de gênero, está a serviço da
manutenção de uma identidade masculina idealizada, ou, como denominei, é resultado do
seu desamparo identitário.
4.4. AFINAL... POR QUE OS GRUPOS?
Para finalizar este trabalho, escolhi usar as próprias falas de alguns dos homens de
nossa amostra, reproduzindo aqui trechos extraídos de uma entrevista coletiva realizada pela
equipe de pesquisadoras, com participantes que haviam completado a seqüência das 4 sessões
de grupo. O motivo desta escolha deveu-se a minha convicção de que suas falas, como
principais atores, fossem mais significativas do que qualquer elaboração teórica final que
pudesse ser feita sobre a vivência e o aproveitamento obtido nos grupos. Este grupo focal
teve como finalidade avaliar a eficácia de nossa metodologia institucional (a qual incluiu tanto
os grupos aqui estudados como todo o processo de atendimento da instituição), a eficácia dos
técnicos, e especialmente procurar identificar, através da entrevista com os participantes, em
que medida estas atividades haviam implicado algum tipo de transformação nos padrões de
187
relacionamento destes homens. Participaram deste encontro 5 dos homens que também estão
nas sessões relatadas no capítulo 3. São eles: A, B, C, D e H. Chamarei a pesquisadora de P.
Como já dito anteriormente, optei por reproduzir apenas alguns pedaços da entrevista
total, acreditando que a reprodução integral seria, além de muito longa, pouco relevante para
nossa discussão. Assim, excluí a maioria das falas da pesquisadora, bem como as explicações
sobre o funcionamento e a finalidade do grupo, que esclareci acima.
P –Como é que tá sendo essa experiência para o problema que vocês estão trazendo”?
D – “Pra mim tá sendo uma experiência muito boa, eu não tinha orientação nenhuma,
inclusive essa menina que a gente tem lá, eu registrei porque não tinha orientação nenhuma;
se eu tivesse orientação na época, eu não tinha registrado sem fazer DNA e nem nada.
P - Você veio pra fazer exame de DNA”?
D –“É. E também o DNA e porque a pensão ta atrasada, que na época eu paguei
pessoalmente, só que a gente não assinou nada, eu pagava em dinheiro pessoalmente, só que
ela quer me comer dinheiro de novo. É isso o que eu quero provar que eu paguei, só que não
existe recibo, e na época, se eu tivesse orientação que nem eu tenho agora, eu não tinha
registrado. Porque na época eu já fui sem advogado e sem nada, você sabe, o juiz chega, ou
então você tem que resolver ali naquela hora, eu achei melhor eu registrar, to pagando
pensão desde essa época. O mês que eu troquei de firma, não troquei de emprego, só que
troquei de firma, só que ai eu fiquei pagando ela pessoalmente, e ela ta querendo receber os
atrasados, e no caso aí a própria oficial de justiça que foi levar a intimação pra mim, eu
tinha três dias, ela me orientou pra mim vir aqui”.
P –E você encontrou respostas pras suas dúvidas, pra resolver a questão da pensão”?
D – “Encontrei, o pessoal (refere-se a seus conhecidos) falou ‘ assim você vai ser preso’, eu
tinha medo”.
188
D –“ ... mas é o que eu falei aqui, mas acontece que eu não to fugindo da minha
responsabilidade”.
D – “Mas se não fosse a orientação aqui, eu tava pondo aquilo na cabeça que eu ia preso
mesmo, entendeu? Eu tinha três dias”.
P –E ai você conseguiu orientação”?
D-“Não, agora eu to dormindo sossegado e tudo”.
Este é um trecho interessante, pois representa uma situação paradigmática que se
repete com uma razoável freqüência na população que nos procura. Vemos que há, por parte
destes homens, uma desinformação sobre seus direitos e deveres, ficando à mercê das
informações de ‘colegas’, já que dispõem de parco acesso a informações de cunho legal. É
comum que sejam processados judicialmente pelas mães de seus filhos, sem que tenham
qualquer conhecimento prévio de tal processo, evidenciando a inexistência de qualquer
vínculo com a criança ou sua mãe que não seja aquele imposto pela lei, via pagamento de
pensão. Não raro constatamos que o pagamento da pensão é vivido como uma pena, castigo,
ou entendido como uma atitude mal intencionada da mãe da criança, como na fala “só que ela
quer me comer dinheiro de novo”. Ainda na fala, “inclusive essa menina que a gente tem lá,
eu registrei porque não tinha orientação nenhuma se eu tivesse orientação na época eu não
tinha registrado sem fazer DNA e nem nada”, identificamos como o registro da criança
deveu-se ao que ele acredita ser aquilo que lhe obriga a lei, de forma bastante dissociada da
criança propriamente dita. Seu desejo de que fique claro que ‘cumpre com suas
responsabilidades’ não diz respeito às possíveis necessidades da criança ou sua implicação na
geração dela, mas antes se refere a querer garantir sua noção de respeitabilidade como
cidadão. A função da Instituição, do ponto de vista jurídico, não é a de liberá-lo de suas
obrigações, mas de informá-lo, orientá-lo e garantir-lhe uma representação legal (através da
presença de um advogado) perante o juiz, uma vez que ele, como muitos dos homens que
189
procuram a PMFC em casos de direito de família, tem seus casos julgados sem o auxílio de
um advogado. Esta prática é bastante intimidadora para estes homens que não dispõem de
informações de cunho jurídico, sendo com freqüência determinado pelo juiz um ‘acordo’ com
o qual eles não têm como discordar, gerando maior distanciamento e ressentimento destes
pais em relação às crianças e às mães destas, levando-nos a questionar em que medida as
práticas do sistema jurídico contribuem para a manutenção de um sistema no qual aos homens
fica reservado o lugar de devedor e culpado e às mulheres, o de vítima. Tanto num caso como
no outro – o de culpado ou de vítima –, a responsabilidade do que vai mal é sempre atribuída
a um outro ‘perseguidor’, excluindo ou eximindo o sujeito de despertar em si a noção de sua
implicação como um agente de seu destino.
P –E o A, o B, o H, o que acham disso”?
D Só mais uma coisinha. A minha mulher em casa ela disse, tá me sentido assim, ela disse
que eu to assim diferente” (risos).
A “ Quer dizer que tudo sobrecarrega a gente, é uma tensão muito grande assim”.
D “Parece que eu tenho mais diálogo assim”.
B É porque aqui é grupo de homens, se abrem bastante um com o outro, um falando com o
outro, o outro acaba se abrindo, ai você acaba falando. Pô coisas que eu deveria fazer em
casa, você não acaba fazendo, e tem muitas pessoas que fazem e tem muitas pessoas iguais ou
pior a mim”.
D “ Porque a minha mulher é legal nessa parte, eu tive um caso entendeu? Com a minha
mulher dentro de casa, se a gente não tivesse um diálogo, talvez eu não tivesse em casa, a
gente já tinha se separado”.
A – “A gente vem aqui por um objetivo, eu procurei, eu tinha uma audiência marcada, de
repente adiou essa audiência, eu prometi fazer essa experiência (procurar a Instituição) e pra
mim foi bom. Porque pra mim foi bom, eu nunca tinha passado por uma experiência dessa, eu
190
nunca passei por uma situação dessa, de repente você cai na real da lei, porque teoricamente
é uma coisa, na prática é outra. Eu ajo assim muito pela...Eu acho a realidade, o dia-a - dia,
a coerência. Eu penso assim, a lei às vezes ela é meio falha, eu falo. Caramba, porque ta me
acusando disso, se eu não mereço isso, sabe? Então justiça dos homens, justiça de Deus, eu
ultimamente eu tenho acreditado na justiça de Deus mais do que na justiça dos homens, então
agora eu to lutando para que a justiça seja dos homens. Eu vim aqui, porque aqui o que todo
mundo conversa, tudo o que a gente conversa é com um amigo e com outro, e todo mundo ta
vivendo o dia a dia. De repente a gente fala. Puta é tão fácil não é? Mas não é, é na teoria,
na teoria é uma coisa mais na prática é outra. De repente a gente vem aqui, a gente
conversa, de repente acontece da gente vê um vídeo e a gente vê que tem que conversar um
pouquinho mais, porque com a pessoa que a gente convive a gente conversa mais de repente
a gente não quer mostrar tudo o que a gente tem dentro da gente. Então a gente acaba não se
entregando por um orgulho tão bobo, que seria bem mais fácil resolver tantas coisas e não
resolve por causa de um orgulho, seria mais fácil”.
As falas acima explicitam algo que, a meu ver, merece destaque, ou seja, estes homens
vêm procurar a Instituição por um motivo- o jurídico- e encontram na atividade em grupo algo
novo: ouvirem uns aos outros, refletirem sobre suas vidas e as de outros, o que lhes possibilita
uma recontextualização de seu lugar no universo familiar e social a que pertencem,
experimentando o que foi denominado por Nelson da Silva Júnior como a ‘abertura ao
questionamento crítico’.
Minha intenção neste trabalho é a de propor algo que vá na direção contrária do que é
normalmente proposto pelas tradicionais políticas vigentes e dos rígidos códigos de gênero
aos quais se encontram submetidos, que os aprisionam num tipo de narrativa totalitária e
normativa. Em outras palavras, o que se pretende é que não haja apenas um discurso oficial e
191
autorizado, mas que no discurso de cada um haja também espaço para o discurso alheio,
distinto, promovendo-se reflexão e mudanças de posicionamento. A experiência em grupo
auxilia o sujeito a criar um espaço psíquico onde a vivência do desamparo não seja algo
intolerável, já que compartilhado por outros, criando-se uma espécie de fraternidade entre os
participantes. Desta forma, podem tolerar a aproximação com este sentimento, sem terem que
excluí-lo ou negá-lo de seu universo de experiências, abrindo-se, assim, um espaço para a
reflexão. Poder pensar sobre a ação, o processo ou a experiência vivida, tem repercussões
sobre o próprio processo vivido, ampliando o espaço de alternativas quanto às soluções de
seus problemas e viabilizando a reformulação de alguns paradigmas habitualmente adotados.
Continuando,
P –E como é que você chegou aqui”?
A – “Não, eu vim pra cá de repente eu conversei, o que que eu precisava?, eu não tinha
condições e eu precisava de uma assistência gratuita eu fui atrás porque ela ta com
advogado. Eu fui parar na PUC, me deram uma relação, vai pra tal lugar, eu fui procurando
e pelos endereços que eu tinha eu vim parar aqui. Me assistiram, eu fiz a entrevista, fiz a
triagem vim participar dos grupos, participar dos grupos é importante, é importante porque é
o que a gente ta falando. A gente conversa, conversa de bar entendeu?(querendo dizer que na
instituição podem ter outro tipo de conversa e que fora de lá a conversa que têm é a de
bar).Conversa com pessoas que não tem experiência e não é a teoria, a teoria é uma, a
prática é outra, você começa a se abrir um pouquinho mas você cai na realidade.
P - E conversa de bar rola essas conversas também, esses desabafos”?
C – “Rola. Mas não rola tudo. É um desabafo porque você quer conversar, mas você não fala
tudo, e quando você fala alguma coisa a mais. Oh! Você é um corno, você é um chifrudo.
Falando português claro. Você é um corno você é um chifrudo”.
D- “Não rola por causa disso, qualquer coisinha que você fala você é uma coisa...”
192
P –É como se você tivesse mostrando uma fraqueza....?”
D Isso”.
H Se você vai abrir o que rola com você”?
D Jogam piadinha”.
H É, vai jogar piadinha, e se jogar piadinha, eu não vou gostar, então já dá...”
D – “Dá confusão”.
H Dá confusão, se não der morte”.
P –E o B, não ouvimos você ainda, como é que foi pra você vir aqui e participar dessas
atividades”?
B “Tem uma amiga minha, eu estava na casa dela e ela estava me contando que tinha
participado da casa, e foi conversando com ela que ela falou que era legal e tudo o mais que
eu jamais pensei que eu também ia precisar. Eu não pensei que ia ser tão rápido e sem
correria. No fim, os assuntos não saem com falatórios, aqui da até vontade de chorar
entendeu? Porque é muita emoção. Aqui cada um tem um problema, ninguém tem vergonha
conta, e você não tem medo de piadinha, ninguém vai olhar pra você atravessado, não, aqui é
dialogo mesmo, aqui é o maior legal. Eu liguei pra cá minha amiga me deu o telefone, a
Carol (assistente social), não primeiro eu liguei ela já tinha ido embora era meio dia, porque
eu trabalho a noite eu acordei tarde e quando eu liguei ela já tinha ido embora. Então você
liga que antes do meio dia ela ta aqui, no outro dia eu liguei, a Carol já marcou a entrevista,
mas foi rápido, na mesma semana assim, ela falou pra mim vir na 6ª feira ela falou que ia
montar um grupo de triagem. Eu falei, ‘sem problema. To ai toda 6ª feira, o dia que for eu to
ai to vindo’, e aqui é legal, tem várias idéias, a sua cabeça começa a ficar completamente
diferente. E depois você olha pra trás assim e fala. Não é nada daquilo. Eu não comentei
nada com ninguém assim, eu falei que to passando por uma clínica..”.
D – “Por uma clínica? É bom mesmo”.
193
H “Lá na empresa é muita gente, vão querer tipo zombar de mim, eu já sei...”
D “É verdade”.
P “Tem preconceito”?
D “ Tem preconceito”.
B “Eu contei só pra família, só pra mãe”.
H No dia que eu falei ‘ vou no Pro Mulher’, os caras já vierem com piadinha. Pró-
Mulher, virou mulherzinha agora é? Eles falaram Pró- Mulher? E eu falei, Pró-Mulher é
uma instituição”.
Neste pequeno trecho de conversa, vemos com clareza a situação paradoxal em que se
encontram, nas falas de B, “no fim, os assuntos não saem com falatórios, aqui da até vontade
de chorar entendeu? Porque é muita emoção”, e de H, Pró-Mulher, virou mulherzinha
agora é?” Nestas duas falas podemos verificar tanto a necessidade e o prazer em serem
legitimamente ouvidos e não desmoralizados por seu sofrimento, como também vemos o
temor e a preocupação com a exposição de suas fragilidades e seus problemas. Ouvimos deles
que, ao serem flagrados em situação de vulnerabilidade, ficam sujeitos à ridicularização e
humilhação por parte de outros homens. A resposta que vem associada a isto é a da violência
confusão, se não der morte...”.
Embora se sintam ouvidos, compreendidos e acolhidos ao experimentarem um modelo
alternativo de relacionamento interpessoal (o atendimento pelo serviço social, o trabalho e
discussão em grupo), verificamos que este sistema de trocas, autorizado às mulheres, é vetado
ao universo masculino. Associam fragilidades e sofrimentos pessoais ao que é atributo
feminino. Sendo assim, expressões de solidariedade masculina, no ambiente de conversa mais
convencional, como nas chamadas ‘conversas de bar’, expõem tanto o ator quanto seu
interlocutor solidário ao risco de verem-se classificados como ‘fraco’, não viril, distanciado
do homem-macho-potente. Tal qual o que lemos nas falas acima, a exposição dos sentimentos
194
íntimos, desperta, naquele que ouve, o temor em ver-se identificado com aquele que fala (uma
vez que pode ‘encontrar-se’ com suas próprias vivências dolorosas e não potentes), afastando-
o dos padrões desejáveis de masculinidade, e levando-os muitas vezes a comentários de
ridicularização ou desvalorização através de falas como: “você é corno, é um chifrudo...”.
Ficam vetadas as conversas mais íntimas, a possibilidade de obterem amparo para a dor,
sendo estas freqüentemente transformadas e expressas através de falas ou atos violentos. Um
círculo vicioso se estabelece, inviabilizando a criação de canais de comunicação alternativos.
A precariedade de recursos emocionais, aliada a uma restrita gama de significação das
experiências emocionais (homem traído, por exemplo = corno= homem desvalorizado), nos
auxilia a compreender a desarticulação verificada nas conversas de muitos homens.
P –Você falou da questão das ofensas, dos xingamentos, são formas também de ofensas que
vão se construindo...”
H “Vão”.
P –E às vezes elas culminam, muitas vezes chega num ponto de agressão física de ambos os
lados, então era preciso trabalhar com os dois lados. Daí a intenção, o interesse da Pró-
Mulher também em desenvolver a questão da mediação, de tentar através de alguns conflitos,
preparar as pessoas para que elas possam conversar sobre aqueles problemas, e tentar achar
uma solução, tentar achar um acordo. Não é toda violência que é possível mediar, não é toda
situação de violência, às vezes existem casos mais graves que precisam de outro tipo de
atendimento, de tratamento, não é? Mas os conflitos fazem parte do nosso dia-a-dia e a gente
pode aprender a lidar com eles..”.
A Pode, pode.
P- Aí o D estava falando que a mulher dele estava falando que ele estava diferente em
casa..”.
A- “Mas é porque dá uma aliviada, dá um apoio, não é”?
195
D – “Não, porque antes pra contar essa situação do problema meu, eu quase não se abria
dentro de casa sobre esse lado de cá, entendeu? Agora não. Eu chego lá, eu explico pra ela
como é a situação, o que foi rolado aqui. Eu falei. É engraçado, quando eu falava dessa
mulher, aí você achavas ruim: Não, mas agora eu tenho orientação como que é as coisas,
entendeu? Antes não. Antes pra mim, quando eu via a menina, essa mulher ligava lá pra casa
e falava que eu tive lá e que fui me encontrar com ela, aí já virava aquele conflito”.
Aqui verificamos que se amplia a noção daquilo que pode ser caracterizado como um
comportamento violento, retirando-se o caráter ‘natural’ de algumas formas de comunicação.
Reconhece-se o valor agressivo de determinados comportamentos, uma vez que a vivência
correspondente, ou seja, o sentido dado a determinadas experiências é o de ser agredido ou
de estar agredindo. Também há um aprendizado que possibilita o participante a conversar
com sua mulher. Abrem-se novas trilhas nas pautas de relacionamento. Essa é uma das metas
do grupo: abrir novas possibilidades de pensar-se uma situação. O que antes lhes era vetado
e causava vergonha, ou ainda o que era sentido como motivo de provocação, pode ser
significado de forma diferente, gerando novos modos de relacionamento nos padrões de
gênero.
Assim como vimos descrito no trabalho de Carvalho (2003) em relação a uma
tendência idealizadora e de apego a valores de um amor romântico em mulheres, diante de
situações de maior desamparo (contaminadas por HIV), ou de menor condição de
significação alternativa, vemos de forma análoga, nos homens de nossa amostra, que
situações de desamparo, fragilidade e vulnerabilidade, os levam a se ‘ampararem’ através da
adoção de valores tradicionais de masculinidade hegemônica, assim como definido pelos
estudos de gênero, sendo uma de suas manifestações prevalentes o uso de alguma forma de
violência. Em ambos os casos, assistimos a uma estereotipia como último recurso
simbólico.
196
Poderem falar sem serem alvo de ‘piadinhas’, compartilhar de suas experiências de vida para
as quais não têm outro tipo de inscrição simbólica, mostrou-se, em alguns casos, propiciador
de modificação e produção de novas narrativas, trabalho este característico da escuta e prática
psicanalíticas.
Acreditamos, portanto, que é somente por meio da inclusão de ambas as partes, ou
ambos os gêneros, que ações transformadoras sejam de fato possíveis. A manutenção de
lugares fixos e desiguais para os distintos gêneros, como têm sido as práticas tanto das
políticas públicas quanto da cultura de maneira geral, só tenderá a reforçar e perpetuar a
desigualdade e a opressão ora de uns, ora de outros, em prejuízo para todos.
197
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______v. III: As Neuropsicoses de defesa.
______v. VII: Três Ensaios sobre a Sexualidade.
______v XI: Um tipo especial de escolha de objeto feita por homens (contribuição à
psicologia do amor I).
______v. XI: Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (contribuições à
psicologia do amor II).
______v. XII: Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental.
______v.XIII: Totem e Tabu.
______ v. XIV Sobre o narcisismo: uma introdução.
______ v. XVIII: Além do Princípio do Prazer.
199
______ v. XIX: O Ego e o Id.
______v. XXI: O mal-estar na civilização.
______v. XXII: Novas conferências introdutórias.
______v. XVIII Psicologia das massas e análise do ego.
______v. XXII: Por que a Guerra?
______v.XIV : O Instinto e suas Vicissitudes
______v.XIV: Luto e Melancolia
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205
ANEXO A – Este anexo contém uma breve descrição da situação familiar e dos motivos de
procura pela Instituição dos 5 sujeitos que participaram do grupo focal. Este grupo realizou-
se após o término de 4 encontros consecutivos e visava avaliar a eficácia destas atividades
em grupo tanto do ponto de vista do desempenho da coordenação quanto do ponto de vista
dos participantes, procurando identificar através de suas falas, se esta atividade gerara algum
tipo de impacto em suas vidas e/ou se identificavam alguma modificação em suas
concepções acerca de sua condição conjugal/familiar. A participação neste grupo era
voluntária.
206
Participante A: Veio encaminhado pelo Jecrifam (Juizado especial criminal da família),
conveniado com a Instituição, através do projeto de penas alternativas. Este projeto visa tratar
de forma alternativa, através de encontros grupais em oposição ao simples pagamento de
cestas básicas para o Estado como é habitualmente feito em casos de violência praticada pelo
companheiro contra a mulher. O pagamento de cestas básicas não só mostra-se como prática
ineficaz do ponto de vista da transformação de comportamentos violentos, como ainda
incrementa o risco vivido pela companheira ao ter que voltar para casa com um companheiro
humilhado e, não raro, raivoso pelo fato de ter tido que comparecer à presença do Juiz para
explicar seu ato. A tem 42 anos, vive em segunda união estável com uma companheira com
quem tem 3 filhos adultos, sendo que tem outro filho de uma primeira união. Tendo ameaçado
sua mulher e sido violento com esta, foi realizado um Boletim de Ocorrência de agressão por
parte desta, cujo resultado foi seu encaminhamento ao Jecrifam. Ele justifica seu ato alegando
que a mulher lavava as roupas de um outro homem (supostamente seu amante) e as pendurava
em lugar visível para toda a vizinhança ver.
Participante B: B tem 27 anos, é solteiro e viveu em união estável com sua companheira
durante 5 anos. Em dois filhos, um de 5 anos de um primeiro relacionamento e outro de 2 com
sua segunda companheira. Segundo conta, ele havia viajado com seu filho, e ao retornar sua
companheira havia saído de casa e levado todas as suas coisas, tendo ido viver com outro
homem que atualmente se encontra preso por roubo. Ao sair, fez um Boletim de Ocorrência
de Preservação de Direitos (a fim de resguardar seu direito a bens e não configurar sua saída
como abandono de lar e do filho). B procurou a Instituição a fim de pedir a guarda da criança
que tem com ela pois alega que a mãe o visita poucas vezes e o filho continuou vivendo com
ele desde a saída da mãe.
Participante C
: Tem 46 anos, é solteiro e vive em união estável com a terceira companheira.
Tem 4 filhos, sendo 2 de sua primeira união, 1 da segunda e 1 da terceira. Sua segunda
companheira entrou com uma ação de alimentos contra ele e C chegou à Instituição com
prazo de 3 dias para apresentar-se em Audiência perante o Juiz. Alega não ter condições de
pagar o que a ex-companheira exige e chegaram a fazer um acordo entre eles onde acertaram
um valor de pensão alimentar em troca da retirada da queixa. Contudo a ex-companheira não
cumpriu sua parte do acordo, tendo ido embora de São Paulo. Assim, C encontra-se ainda em
processo e não podendo encontrar a mãe de seu filho, sua dívida vem se avolumando com o
risco de ele ser preso.
Participante D
: Tem 43 anos, 5 filhos de 3 diferentes uniões e procurou a Instituição em razão
de uma ação de alimentos movida contra ele por uma das uniões anteriores. Ele alega ter
dúvidas a respeito da paternidade desta criança a quem não vê há muitos anos. Alega não ter
condições financeiras para pagar o que a ex-companheira pede, já que ganha entre 1 e 3
salários mínimos e tem, atualmente, outra família. Requereu, também, à Instituição, um
exame de DNA a fim de certificar-se da paternidade desta criança já que alega ter registrado a
criança sem ter certeza de ser realmente seu filho.
207
Participante H: Tem 29 anos e é solteiro. Procurou a casa a fim de obter um exame de DNA
de uma criança sobre quem tinha dúvidas quanto à paternidade. Conta que sua ex-namorada
alegou que o filho que esperava era dele. Ambos foram atendidos na PMFC para a realização
do exame que teve resultado negativo, isto é, comprovou-se que ele não era o pai da criança.
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