Download PDF
ads:
Diego de Souza Araujo Campos
Um Estudo sobre a Escravidão em
suas Relações com a Hierarquia
Social
Heranças e Particularidades da Instituição
Escravocrata
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio
como requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Roberto DaMatta
Co-orientadora: Porf. Sônia Giacomini
Rio de Janeiro
Setembro de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da
autora e do orientador.
Diego de Souza Araujo Campos
Graduou-se em Relações Internacionais pela UNESA
(Universidade Estácio de Sá) em 2004. Participou de
diversos congressos e seminários nas áreas de relações
raciais, cultura e relações internacionais. Possui experiência
internacional, tendo morado em países como Nova Zelândia
e Espanha.
Ficha Catalográfica
Campos, Diego de Souza Araujo
Um estudo sobre a escravidão em suas relações
com a hierarquia social: heranças e particularidades
da instituição escravocrata / Diego de Souza Araujo
Campos ; orientador: Roberto DaMatta ; co-
orientadora: Sônia Giacomini. – 2007.
81 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)–
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. Sociologia – Teses. 2. Hierarquia social. 3.
Escravidão na História. 4. Escravidão no Brasil. 5.
Relações raciais brasileiras. 6. Miscigenação. 7.
Relações sociais. I. DaMatta, Roberto. II. Giacomini,
Sônia. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Sociologia e Política. IV.
Título.
CDD: 301
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
ads:
Para minha avó Maria Eugênia
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
Agradecimentos
Ao meu orientador Professor Roberto DaMatta pelo ajuda preciosa e pela
paciência.
À Professora Sônia Giacomini pelo auxílio.
Ao Professor Valter Sinder e a Professora Yvonne Maggie pela gentileza de
comporem a banca examinadora.
À PUC-Rio pelo auxílio concedido.
Aos meus colegas da PUC-Rio, que sempre aceitaram de bom grado as minhas
opiniões.
A todos os professores e funcionários do Departamento de Sociologia e Política.
À minha avó Maria Eugênia pela dedicação e pelo carinho.
À minha tia Vera Lúcia pelo apoio moral nos momentos difíceis.
Aos meus pais pela educação que me proporcionaram.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
Resumo
Campos, Diego de Souza Araujo; DaMatta, Roberto. Um Estudo sobre a
Escravidão em suas Relações com a Hierarquia Social: heranças e
particularidades da instituição escravocrata. Rio de Janeiro, 2007. 81 p.
Dissertação de Mestrado – Departamento de Sociologia e Política,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Nesta dissertação, procurar-se-á compreender a escravidão por meio de
análise histórica de sociedades escravocratas para, só então, partir para o caso
brasileiro. Elucidar-se-á que a hierarquia social constitui a chave para a
compreensão da instituição escravocrata através da História. A análise da
escravidão desde a antiguidade bíblica mostra que ao longo do tempo a instituição
moldou-se a diferentes culturas e povos, trazendo sempre uma característica
basilar: a hierarquia social como legitimadora do controle de algumas pessoas
sobre outras. O caso brasileiro não foi diferente, mas com nuanças notórias. No
Brasil, paralelamente à hierarquia, o amálgama das três “raças” permitiu que a
miscigenação fosse inserida no código social brasileiro, com fortes ramificações
após o fim da sociedade escravocrata. Na sociedade brasileira, fortemente
hierarquizada, a mestiçagem serviu para dissolver, ou melhor, aproximar as
camadas sociais, mantendo diferenciações originais que são de grau e não de
qualidade. Sendo assim, para o melhor entendimento das relações raciais pós –
abolição, o estudo das heranças e particularidades da escravidão torna-se
substancial.
Palavras-chave
Hierarquia social; escravidão na História; escravidão no Brasil; relações
raciais brasileiras; miscigenação; relações sociais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
Abstract
Campos, Diego de Souza Araujo; DaMatta, Roberto (Advisor). A Study
about Slavery and its Relations with Social Hierarchy. Rio de Janeiro,
2007. 81p. Dissertation – Departamento de Sociologia e Política,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This dissertation seeks to study slavery through an analysis of the
institution of slavery in history and then focuses on the Brazilian slavery system.
The work explains that social hierarchy constitutes the key to understand slavery
through history. Ever since biblical time, slavery was forged in a number of
different cultures and societies with the same characteristic: social hierarchy as
the element that legitimated the control of a few by others. The Brazilian case was
not different but had significant particularities. In Brazil, parallel to social
hierarchy, the amalgam of the three races permitted miscegenation to be inserted
in the Brazilian social code, with strong ramifications even after emancipation. In
Brazilian society, miscegenation served to dissolve, that is to say, to bring
together social groups, maintaining original differences based on social level
rather than on quality. Therefore, to best understand Brazilian race relations, the
heritage and particularities of the institution in Brazil will be discussed in this
dissertation.
Keywords
Social hierarchy; slavery through history; slavery in Brazil; Brazilian
racial relations; miscegenation; social relations.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
Sumário
1. Introdução 10
2. Escravidão e Hierarquia na Antiguidade Bíblica 15
2.1. Status Social dos Escravos na Antiguidade Bíblica 19
2.2. Escravidão e Hierarquia na Antiguidade Clássica: Grécia e Roma 22
2.3. A Evolução das Idéias sobre a Escravidão: a Idade Média e o
Iluminismo 27
2.4. Os Elementos Constitutivos da Escravidão 32
2.5. A Escravidão na África Pré-Colonial 36
2.6. O Comércio Transatlântico de Escravos 40
3. Relações Raciais e Culturais na Escravidão Brasileira 42
3.1. Hierarquia, Trabalho e Autonomia: pequena análise comparativa 51
3.2. Hierarquia e Hegemonia 54
4. Herança da Escravidão: A Problemática da Miscigenação e da
Hierarquia 59
4.1. DaMatta e Nogueira: a “Fábula das Três Raças” e o Preconceito de
Marca 62
4.2. Teorias sobre a Miscigenação: o foco na eugenia 68
5. Conclusão 74
6. Referências Bibliográficas 79
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
A escravidão, por felicidade nossa, não azedou
nunca a alma do escravo contra o senhor (...) nem
criou, entre as duas raças, o ódio recíproco que
existe naturalmente entre opressores e oprimidos
(...) a cor, no Brasil, não é, como nos EUA, um
preconceito social contra cuja obstinação pouco
pode o caráter, o talento, e o mérito de quem
incorre nele.
Joaquim Nabuco
Se toda a humanidade menos um fosse da mesma
opinião, e apenas um indivíduo fosse da opinião
contrária, a humanidade não teria maior direito de
silenciar essa pessoa do que esta o teria, se
pudesse, de silenciar a humanidade.
John Stuart Mill
Todos os animais são iguais, mas uns são mais
iguais do que os outros.
George Orwell
Vivemos todos sob o mesmo céu, mas nem todos
temos o mesmo horizonte.
Konrad Adenauer
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
1.
Introdução
Toda sociedade se manifesta por meio de diversos espelhos e inúmeros
códigos sociais. Um dos mais significativos, no caso brasileiro, é,
indubitavelmente, o código das “relações raciais”. Este código está embasado na
mistura das três raças (o europeu, o negro e o índio) que transformou o Brasil em
país mestiço e mulato (DaMatta, 2000b).
O longo período escravocrata brasileiro – que durou até as vésperas da
proclamação da República – deixou marcas culturais e morais profundas na base
das relações raciais brasileiras. O Brasil escravagista, todavia, não deve ser visto
como algo peculiar, único na história da humanidade. Pelo contrário, a escravidão
no Brasil foi uma experiência que refaz, com suas singularidades, um sistema de
dominação humana que vem de tempos quase imemoriáveis, como prova, entre
outros documentos, a antiguidade bíblica. Como salienta David Brion Davis
(2003), autor de um livro fundamental para compreender a escravidão no mundo
Ocidental, a instituição escravocrata não pode ser vista como algo peculiar, mas,
sim, como um sistema que fez parte de alguns sistemas sociais e foi legitimada
pelas leis em boa parte das sociedades conhecidas, como a grega e a romana.
O leitor pode perguntar-se o motivo de começar o presente trabalho pela
análise sociológica e histórica da escravidão desde a antiguidade. A principal
justificativa para essa démarche reside no fato de o regime escravocrata brasileiro
ter reproduzido muitos traços e características comuns a regimes de sociedades
arcaicas ou tradicionais, sobretudo a hierarquia. Assim, pretende-se, neste
trabalho, olhar o passado com o olhar do passado e não com a visão do presente.
Muitos defendem a indenização aos descendentes de escravos para ressarcir
os danos morais e materiais que sofreram. Por isso, apontam a instituição
escravocrata brasileira como algo único, hediondo, e que deve ser lembrada como
a subjugação exclusiva do negro. O desafio está em compreender que, como se
mostrará, a chave para o entendimento da escravidão ao longo da História é a
hierarquia social e não meramente a cor e a origem das pessoas. Foi uma ética da
hierarquia que possibilitou a justificativa da escravidão como instituição social
legítima por milênios, respaldada, inclusive, na Bíblia.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
11
Ao se utilizar a hierarquia para o entendimento da escravidão ao longo da
História, mormente no Brasil, analisar-se-á, no capítulo II, o cenário racial e
cultural brasileiro durante a escravidão, evidenciando-se o valor da hierarquia
social nas relações raciais no país. No capítulo III, discutir-se-á a principal
singularidade do Brasil escravagista, a miscigenação e o mulato como “escape
hatch”, válvula de escape. Ver-se-á a possibilidade de ascensão dos indivíduos
mestiços como traço característico brasileiro.
Para se ter compreensão mais profunda e original das relações raciais que
existem no Brasil, convém utilizar o passado como decifrador dos códigos
presentes. Sendo assim, clarificar-se-á que a análise do regime escravocrata
transcende a questão fisiológica de raça, a concepção biológica de raça (DaMatta,
2000b). As teorias raciais que inferiorizavam negros, índios, amarelos e judeus
tinham seu cerne na hierarquia social, na tentativa de manter um grupo no topo da
pirâmide social e, mais que isso, manter esses grupos em relação sistemática e
fixa entre si. Cabe ressaltar que a hierarquia social é oposta à competição -
característica inerente das sociedades igualitárias. No caso da sociedade brasileira,
fortemente hierarquizada, a mestiçagem serviu para dissolver, ou melhor,
aproximar as camadas sociais, mantendo diferenciações originais que são de grau
e não de qualidade.
A importância do cenário brasileiro configura-se no elemento mulato como
válvula de escape (Degler, 1971), como meio de evitar o choque entre brancos e
negros, como suavizante das relações raciais brasileiras. Por causa do mulato,
muitos estudiosos acreditaram por décadas que no Brasil não havia racismo. Na
verdade, os visitantes e os estudiosos no Brasil impressionavam-se com a
capacidade brasileira de lidar com ambigüidades, em contraste com sociedades
que tinham definição rígida de grupos sociais, como a romana e a norte-
americana. A singularidade brasileira reside na valorização do mestiço, do
intermediário que ganha peso e espaço no sistema brasileiro. Para os europeus e
americanos, por exemplo, o sistema é completamente diferente, imperando
sistema binário de relações raciais, tipo preto no branco, isso ou aquilo.
A sociedade patriarcalista e patrimonialista não constituiu sistema social
totalmente hierarquizado, no qual a posição de negros, índios e brancos estava
tragicamente ligada à hierarquia das raças. Em uma sociedade onde não havia,
como ainda não há, igualdade entre as pessoas, o preconceito velado figurava-se o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
12
meio mais eficiente de discriminar, de manter “cada macaco no seu galho”, de
hierarquizar.
De fato, não foram criadas leis discriminatórias, pois a cultura e o poder do
branco impunham a supremacia dos europeus, com a peculiaridade da existência
de indivíduos de gradações intermediárias que ascendiam socialmente, seja pelo
estudo, seja pelo dinheiro. Ao refletir sobre a hegemonia, Antonio Gramsci
advertiu que a homogeneidade da consciência própria e a desagregação do
inimigo se realizam precisamente no terreno da batalha cultural (Gruppi, 2000).
Segundo alguns, o europeu no Brasil impunha sua cultura, legitimando a
prevalência de seus interesses, bem como os islâmicos, por exemplo, também o
faziam. Concorda-se aqui, todavia, com Gilberto Freyre (2002) quando este assere
que o europeu não impôs simplesmente a sua cultura ao negro e ao índio. Pelo
contrário, havia nítida troca cultural entre europeus, índios e negros, como se
exemplificará em momento oportuno.
A instituição escravocrata no Brasil, guardada as devidas proporções e
nuanças, deve ser analisada como repetição particularizada da história, herança de
instituições de outrora, de outros povos, de outras regiões. Por isso, o valor de se
estudar a hierarquia e o regime escravista brasileiro, comparando-o com os de
outros tempos.
No caso brasileiro, historiadores e cientistas sociais tenderam a relegar a
dialética existente entre individualismo e hierarquia. A suposta sociedade
igualitária que surgiu com a República, resumida na frase constitucional “todos
somos iguais perante a lei”, tentou nivelar os indivíduos hierarquicamente
díspares, trazendo grandes conseqüências para a sociedade brasileira. A partir de
então, o racismo ganhou força como perversão da hierarquia, para utilizarmos as
idéias de Myrdal (1972) e Dumont (1997). Os grupos antes superiores na escala
social pautaram-se pelo preconceito de cor para manter a posição social que
tinham durante a escravidão, visto que a abolição e o igualitarismo ofereciam
oportunidades para os escravos de outrora.
Como nivelar hierarquicamente os diferentes em uma sociedade
teoricamente igualitária? Somente pela lei é inviável, haja vista que a lei muitas
vezes não se coaduna com a realidade social. Por isso, no Brasil, para disfarçar a
hierarquia e as desigualdades sociais, a ambigüidade passou a ser vista como
valor. Assim, o valor da ambigüidade, consubstanciado na fórmula “desiguais,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
13
mas juntos”, manifestou-se na impressão de que não há racismo no país. Deve-se
chamar atenção, contudo, que, mesmo na escravidão, a sociedade não estava
bisseccionada em dualismo exclusivo e rígido. A dicotomia rígida “senhor x
escravo” não representava nitidamente a realidade brasileira. Esta estava marcada,
como até hoje está, por “um sistema de relações pessoais gradativo e inclusivo
que permitia estabelecer diferenciações dentro de todas as camadas” (DaMatta,
1997, p. 100). Havia o escravo do eito e o escravo da casa, o bom patrão e o mau
patrão, em “conduta que desconhecia a ‘consideração’, a ‘simpatia’ e todos os
valores que orientam a vertente hierarquizante da sociedade” (DaMatta, 1997, p.
100-101).
Em sistema assim instaurado, mesmo com linha jurídica rígida, a dimensão
fundada nas relações pessoais atuava com muito poder, permitindo personalizar e
dividir internamente os dois segmentos (senhor x escravo) separados pelas leis e
pelos sistemas de idéias (DaMatta, 1997). No Brasil, a superestrutura ideológica e
jurídica sofre influência da infra-estrutura formada pela teia de relações pessoais
imperativas, inserindo o elo entre simpatias pessoais e formulações jurídicas
universalizadoras. “Daí o ‘jeito’, o ‘sabe com quem está falando?’ e,
evidentemente, o favor e a consideração” (DaMatta, 1997, p. 101). As relações
sociais, um sistema de simpatias e de relações construídas pela proximidade
física, já na escravidão, eram reconhecidas em nível moral e social, permitindo a
criação de categorias intermediárias que têm valor, ou seja, peso e capacidade de
determinação social (DaMatta, 1997). Assim, o sistema social brasileiro forjou
intensa capacidade de relacionar instituições que o Ocidente anglo-saxão separou.
Com a abolição e a proclamação da República, a oposição casa/rua e
casa/trabalho perpetuou o sistema gradativo de relacionamento social. Agora,
porém, a igualdade mascara a hierarquia herdada dos tempos escravocratas,
interpondo posições polares onde todos deveriam ser iguais. A razão dualista da
escravidão foi absorvida pela razão prática do individualismo igualitário. Como
afirma Roberto Schwarz (1992), o liberalismo individualista passou a conviver
com o paternalismo e o patrimonialismo brasileiros, explicitando a fórmula “as
idéias estão fora do lugar”.
Em sociedade como a brasileira, onde a hierarquia impera, a miscigenação e
o branqueamento da população foram vistos como solução para o
desenvolvimento nacional baseado na cor. O embranquecimento da população
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
14
permitiria que o preconceito de cor diminuísse, o que proporcionaria melhor
inserção do igualitarismo liberal. Desse modo, a miscigenação, herança do
período escravocrata, possibilitaria que o embranquecimento da população levasse
a maior nivelamento hierárquico dos brasileiros. O problema é que a cor é apenas
um dos elementos que influem na hierarquia social. Outros como influência social
e dinheiro corroboram a idéia de que a herança da hierarquia persistiria velada na
sociedade igualitária nacional.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
2.
Escravidão e Hierarquia na Antiguidade Bíblica
Não há evidência de que a escravidão era mal que precisasse ser
erradicado por qualquer nação civilizada. Na verdade, a escravidão nunca foi
“problema” na antiguidade, embora alguns autores a vissem com preocupação,
como demonstram Davis (2003) e Vendrame (1981).
A primeira dificuldade que se defronta ao estudar o fato da escravidão na
Bíblia vem do sentido das palavras. O termo hebraico ebed – que significa escravo
– só permite sua compreensão segundo o contexto: pode tratar-se de verdadeira
escravidão no sentido técnico de sujeição involuntária ou da simples dependência
do empregado doméstico ou do trabalhador que presta seu serviço em troca de um
salário.
A escravidão era exemplo de subordinação completa de um indivíduo a
outro, da negação da autonomia jurídica pessoal. Os hebreus provavelmente foram
o primeiro povo a considerar Deus como um nobre senhor que podia ajudar e
orientar seus “escravos”, ou seja, os próprios hebreus. Passagens da Torah (Velho
Testamento) ilustram que personalidades religiosas judaicas como Abraão, Ló,
Moisés, Jó e Davi foram designados como escravos do Senhor.
De fato, Moisés sempre lembrava o povo hebreu de que foram escravos no
Egito, ressaltando a importância de Deus, que libertou os hebreus em troca de
obediência e abundância no futuro (Deuteronômio, 5: 15 e 15:15). A Torah
legitima, todavia, a escravização de outros povos, mas nunca a escravização de
hebreus, visto que estes são acolhidos na Bíblia como o povo escolhido por Deus
para perpetuar as palavras deste na Terra, como consta em Deuteronômio.
Além disso, dos filhos dos estrangeiros que se hospedam entre vós, deles
comprareis, e de suas famílias que estão com vocês, que geraram em vossa terra:
e eles serão vossa propriedade. E deixá-los-ei como herança para vossos filhos
depois de vós, para mantê-los como propriedade; deles tereis seus escravos para
sempre: mas sobre vossos irmãos, os filhos de Israel, não tereis domínio, um
sobre o outro, com severidade
(Levítico, 25:44-46).
Flávio Josefo observou que não era justo os judeus tornaram-se escravos
de seu próprio povo, uma vez que Deus tornou tantas nações subordinadas a
Israel. Um olhar atento em Êxodo comprova que o hebreu podia ser escravizado,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
16
mas no sétimo ano deveria ser alforriado (Êxodo, 21:2). Não se sabe ao certo o
porquê do sétimo ano, mas uma interpretação cabalística sugere que o número
sete está ligado ao dia em que Deus descansou após criar o mundo. Ademais, a
Torah não contém protesto algum explícito contra a escravidão. Pelo contrário,
em Êxodo, há partes chamadas “Lei acerca dos Servos” e “Leis acerca da
Violência”, nas quais consta como tratar os escravos.
Nos apócrifos, é dito aos senhores para tratarem seus escravos com
bondade, o que é repetido no Talmude – espécie de Torah oral do povo judeu. No
Eclesiástico (33:25-33) também está escrito que as correntes pesadas presas aos
pés deveriam ser colocadas nos maus escravos, e
Forragem e gravetos e cargas para o asno,
Pão e disciplina e trabalho para o servo!
Ponha teu servo para trabalhar, e ele procurará descanso;
Deixe suas mãos ociosas, e ele procurará liberdade!
Os escravos dos judeus eram hierarquicamente diferentes. Os netinîm, ou
oblatos, demonstram os diversos graus de sujeição dos servos em Israel e a
possibilidade da sua integração. Os netinîm foram colocados à disposição dos
levitas por Davi e seus príncipes. Esse grupo de escravos trabalhava nos serviços
religiosos com os sacerdotes e os levitas, e figuravam como pessoas que haviam
se afastado dos gentios para abraçar a lei de Deus. A origem deles é obscura, mas
se acredita que eram prisioneiros de guerra (Vendrame, 1981). O Talmud
menciona os netinîm com desprezo e proíbe o matrimônio dos judeus com eles.
Com o passar do tempo, todavia, a condição social desses escravos foi subindo à
medida que eles foram integrando-se à comunidade judaica, de cuja vida e
vicissitudes participavam, até adquirirem o status de israelitas e a conseqüente
liberdade (Vendrame, 1981).
Nem sempre os prisioneiros de guerra eram suficientes. Recorria-se,
muitas vezes, à compra de escravos nas nações vizinhas. Os hebreus praticavam a
compra de escravos como consta na aliança com Deus, segundo a qual todo varão
deveria ser circuncidado, inclusive o “comprado a dinheiro”. No livro do Levítico,
permite-se expressamente a compra de servos e servas das nações circunvizinhas
e mesmo dos estrangeiros residentes em solo israelita. Os escravos adquiridos
passavam a integrar definitivamente a propriedade que é transmitida como
herança aos filhos (Vendrame, 1981). A maioria dos escravos não israelitas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
17
provinha, porém, ao menos nos primeiros tempos, dos nascidos de escravos na
casa do senhor. Estes eram de maior confiança e não havia perigo que fugissem
para suas antigas terras. Os escravos aceitavam sua situação de submissão,
considerando o poder dos senhores (Vendrame, 1981).
Compreende-se que os escravos netinîm – “escravos sagrados” em
hebraico – eram hierarquicamente superiores na escala social aos outros. Os
netinîm ajudavam nos trabalhos sagrados no templo, os quais eram organizados
pelos dois grupos que estavam no topo da pirâmide social dos hebreus: os
cohenim e os levitas. Os primeiros eram os sacerdotes e os últimos os que
ajudavam nos serviços religiosos. Esses dois grupos sociais eram considerados
puros, não podendo, por exemplo, entrar em cemitérios, além de serem altamente
respeitados como os guardiães da religião judaica. Sendo assim, os escravos
escolhidos para trabalhar no templo, os netinîm, foram paulatinamente adquirindo
o reconhecimento da comunidade judaica a ponto de se tornarem membros desta,
como já explanado (Vendrame, 1981).
A venda de menores era bastante comum no Oriente Médio antigo e
processava-se de duas formas: pela venda pura e simples, como se usava na
Assíria e na Babilônia, e pela adoção, que não passava de venda camuflada, como
atestam os documentos de Nuzi, antiga cidade mesopotâmia. Era freqüente a
venda de moças menores para servirem de empregadas à patroa e de concubinas
ao patrão. “Nos contratos de ‘venda-adoção’, nota-se a preocupação dos pais de
incluir a cláusula do casamento da filha, a fim de que o patrão não a explorasse na
prostituição, que era sorte comum das escravas” (Vendrame, 1981, p. 130). A
adoção tinha motivação mais econômica do que afetiva. O que mais interessava
aos pais adotivos era ter serviço barato e assistência na velhice. Assim, na
Neobabilônia e na tardia Assíria, a adoção praticamente desapareceu por causa do
aumento do número de escravos.
Documentos do antigo Oriente Médio revelam a prática da “autovenda”
para saldar suas dívidas. Era freqüente entre os imigrantes estrangeiros que não
tinham parentes e amigos. Na antiga Babilônia, muitos se vendiam em troca de
comida e roupas. A pessoa assim vendida, ainda mantinha personalidade jurídica,
mesmo que ficasse economicamente dependente do patrão. No caso de tentativa
de fuga, porém, passava à escravidão pura e simples (Vendrame, 1981).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
18
O Levítico autoriza a autovenda de israelitas, explicitando que a pessoa
que se vende torna-se propriedade do comprador, isto é, um escravo (Levítico,
25:39). Segundo as normas ditadas pelos versículos seguintes, ele, embora
escravo, não deve ser tratado como escravo. Ainda que os israelitas fossem
obrigados a libertar seus irmãos israelitas escravizados no sétimo ano, muitos
preferiam continuar como escravos devido às condições socioeconômicas da
época: “(...) podia em certos casos ser menos onerosa a escravidão com mesa
assegurada do que a liberdade com pão incerto” (Vendrame, 1981, p. 133). O
Deuteronômio (15:16) veta a autovenda por outros motivos que não seja o da
extrema necessidade. Ademais, o Levítico (25:47) prevê a eventualidade de um
israelita vender-se a um estrangeiro residente no país, mas seus familiares devem
resgatá-lo o mais rápido possível.
Embora a Torah tolere a escravidão dos judeus em certas circunstâncias,
estes não deveriam ser escravizados por serem servos de Javé, um dos nomes de
Deus, o qual os libertou da escravidão do Egito. Eles não podem dispor de si para
se tornarem servos de outro senhor (Levítico, 25:38). Vendrame (1981) lembra
que a autovenda era comum no Oriente Médio, mas a legislação bíblica era a
única que se tem notícia a regulamentar o caso.
Na antiga Babilônia, os casos de insolvência de dívidas eram comuns por
causa das desgraças, das pestes, da guerra, mas, também, pelos altos juros que os
credores cobravam. Nos contratos, fazia-se penhora de casas, campos, escravos,
filhos e mulher. Só no fim, o credor se apoderava do proprietário. Muitas vezes, o
credor maltratava o escravo para comover a família a pagar a dívida (Vendrame,
1981). O Êxodo e o Deuteronômio explicitam, no entanto, que os judeus não
podem cobrar juros de seus irmãos, somente de estrangeiros.
A escravidão que se origina do crime de roubo foi talvez a que mais durou
entre os judeus. “O que não é de admirar, se levarmos em conta que também
nações que fazem alarde da própria democracia e proclamam a liberdade pessoal
como um direito inalienável da pessoa, defendem como legítimo o trabalho
forçado dos presos de guerra ou por crime” (Vendrame, 1981, p. 138).
Entre as diversas fontes de escravidão, a mais barata e a que podia
aumentar consideravelmente o número de escravos era a reprodução na casa do
senhor. Êxodo (21:4) estipula que se o patrão dá mulher ao seu escravo e ela lhe
dá filhos ou filhas, a mulher e a prole ficam como propriedade do patrão. No ano
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
19
sabático, ou seja, no sétimo ano, o escravo sai sozinho. Se a escrava que casou
com o escravo fosse israelita, ela também era libertada, mas não se fosse
estrangeira.
2.1.
Status Social dos Escravos na Antiguidade Bíblica
Hoje, os fazendeiros costumam marcar o gado com ferro em brasa para
identificá-lo e indicar posse. Os egípcios já carimbavam seus escravos a fogo
(Davis, 2003). A condição social na Babilônia dependia essencialmente da
posição econômica, visto que a pessoa livre poderia tornar-se escrava e vice-
versa. “Daí os documentos falarem da marca que os escravos recebiam e também
da purificação no momento da libertação” (Vendrame, 1981, p. 145).
O Código de Hamurabi
refere-se à marca em escravos em alguns artigos.
Determinava que a hierodula, cortesã sagrada, não podia vender a sua escrava
quando esta tivesse filhos de seu marido. Se a escrava se tornasse orgulhosa, a
senhora poderia marcá-la com um estigma e assim rebaixá-la à categoria dos
escravos comuns (Vendrame, 1981). O Código valorizava tanto a marca que
prescrevia o corte da mão do marcador de escravos que ousasse cancelar a de um
escravo alheio sem autorização do dono. O senhor que enganasse um marcador
fazendo-o cancelar a marca de um escravo alheio era punido.
No Oriente Médio, as marcas variavam de região a região. Não se tem
certeza se todos os escravos deveriam ter uma marca. Alguns eram marcados com
ferro e brasa ou em forma de tatuagem, na fronte ou no braço, o nome do
proprietário. Outros carregavam pedaço de metal com o nome do proprietário em
alguma parte do corpo. Alguns tinham a cabeça raspada como forma de punição.
Algumas vezes eram marcados com sinal simbólico (Patterson, 1982).
O escravo hebreu que escolhesse ficar na casa do patrão para sempre
recebia um furinho quase invisível na orelha, o que representava um rito
simbólico de pertencimento ao senhor (Patterson, 1982). Vendrame (1981)
ressalta que, mesmo em Israel, passagens bíblicas atestam o uso de marcas como
sinal de pertença.
O Código de Hamurabi é um dos mais antigos conjuntos de leis já encontrados, e um dos
exemplos mais bem preservados deste tipo de documento da antiga
Mesopotâmia. Segundo os
cálculos, estima-se que tenha sido elaborado por volta de
1700 a.C.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
20
Assim, na antiguidade bíblica, os escravos já eram marcados com o sinal
de propriedade de algum senhor. A marca no escravo significava a posição
hierarquicamente inferior do indivíduo escravizado na sociedade. Vale lembrar
que tal hierarquia era evidente mesmo entre os escravos como se pode perceber,
elucidando que a antiga prática da escravidão era fruto da inferioridade na escala
social de alguns. Indivíduos desprovidos de recursos e famintos viam na
escravidão o único meio de sobrevivência. Deve-se esclarecer que pela hierarquia
entre os escravos, alguns tinham mais autonomia do que outros, como ilustram as
concubinas dos senhores.
Como se perceberá no próximo tópico, a relação do escravo com a família
e com a comunidade na antiguidade bíblica é muito diversa da do escravo dos
tempos clássicos - da escravatura dos mundos grego e romano. Em Israel, o
escravo vivia no seio da família, participava da vida do grupo, conquanto em
posição social inferior. Segundo o Gênesis (17:12-13), era obrigatória a
circuncisão, sinal do pacto de Abraão com Deus, de todo escravo, mesmo o
estrangeiro. Para a mulher, era o batismo que significava a entrada na comunidade
e marcava sua conversão ao judaísmo. Os escravos perdiam a condição de
gentios, mas não adquiriam o status de judeus plenos.
Inserido na família de seu senhor, o escravo podia até tomar parte na
herança, à preferência do filho degenerado (Provérbios 17:2) e, na falta de
descendentes, tornar-se o herdeiro.
De modo que o escravo, embora seja considerado também na Bíblia como
mercadoria que se enumera entre os haveres da família, como se diz de Abraão
que ‘teve gado pequeno e grande, jumentos, escravos, escravas, jumentas e
camelos’, ele é mais que simples objeto; é pessoa que participa da vida social e
religiosa do grupo humano que ele integra, embora sempre com as limitações de
sua condição social inferior
(Vendrame, 1981, p. 158).
Na antiga Babilônia, os casamentos de escravos com mulheres livres eram
bastante comuns, desde que fossem celebrados com a prévia autorização do
patrão. O Código de Hamurabi prescrevia que se um escravo casasse com a filha
de um senhor, a qual lhe deu filhos, o dono do escravo não podia requisitar para
seu serviço os filhos da filha do senhor. O Código não contempla o caso do
matrimônio de escrava com homem livre. Considera, todavia, lícito um senhor
juntar-se com sua escrava ou com a escrava de sua esposa. Os filhos do senhor
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
21
com a escrava tinham direito à herança, caso o senhor os considerasse filhos
(Vendrame, 1981).
Êxodo (2:34-35) registra que o Código da Aliança determina que o escravo
que entrou na casa do seu patrão com a esposa, ao ficar livre sai com a esposa e os
filhos; se, porém, a esposa lhe foi dada pelo patrão, ao ficar livre, sai sozinho,
permanecendo a esposa e os filhos propriedade do patrão.
Levítico (25:49) afirma que o próprio escravo poderá resgatar a si mesmo,
se conseguir os meios, o que evidentemente supõe a capacidade de adquirir estes
meios. Documentos dos tempos mais remotos atestam na Babilônia, na Assíria e
no Egito, o “privilégio” de os escravos acumularem pecúlios, conseguindo, por
vezes, pagar o preço do próprio resgate.
Embora não esteja bem elucidada ainda a maneira como iniciava a base do
pecúlio do escravo, se por ofertas de seus parentes, por presentes obtidos do
patrão como prêmio da sua dedicação, se pela sua capacidade inventiva ou
comercial, o fato é que muitos escravos conseguiam aumentar seu capitalzinho e
transformar-se em hábeis administradores a cuja sagacidade os próprios homens
livres confiavam seus negócios
(Vendrame, 1981, p. 161).
No período neobabilônico (Dandamaev; Powell, 1984), os escravos
desempenhavam papel substancial na vida econômica da nação. Realizavam
transações de toda ordem, faziam empréstimos, compravam, vendiam e
arrendavam terrenos, reuniam-se em companhias imobiliárias e comerciais,
mesmo em sociedade com homens livres. Até mulheres escravas participavam dos
negócios. Escravos podiam tornar-se donos de escravos que, por sua vez,
tornavam-se donos de outros escravos, numa evidente hierarquia entre os
indivíduos escravizados.
O pecúlio, em si, dentro da conceituação do escravo, não passava de mero
privilégio, concedido pelo patrão e que podia ser legalmente retirado pelo mesmo.
A considerável utilização do pecúlio, todavia devia dar aos indivíduos livres a
sensação de liberdade e a percepção de serem iguais aos outros homens livres. A
habilidade de muitos escravos nos negócios demonstrava que as pessoas livres
não subjugavam a capacidade intelectual dos escravos, aproveitando a habilidade
deles para ganhar dinheiro (Dandamaev; Powell, 1984).
De acordo com Levítico (25:46), diferentemente do escravo judeu, o
escravo gentio era transmitido de pai para filho juntamente com a herança. Assim,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
22
o escravo judeu era hierarquicamente superior ao escravo gentio, uma vez que o
primeiro tinha a escravidão finda no sétimo ano, como já dito, o que demonstrava
a maior consideração pelo povo hebreu.
O caráter perpétuo da escravidão do gentio não era associado à natureza
humana. Quando o senhor atentava com grosseria contra a dignidade da sua
pessoa humana, o escravo deveria ser libertado (Êxodo, 21:26-27). Ademais, no
judaísmo era prevista a libertação do escravo gentio em algumas circunstâncias:
por vontade do dono; pela compra da liberdade por parte do escravo; pela morte
do dono, se este não tivesse filhos.
Com o panorama geral sobre a escravidão na antiguidade bíblica, pode-se
avançar na discussão, analisando, em seguida, a escravidão na antiguidade
clássica.
2.2.
Escravidão e Hierarquia na Antiguidade Clássica: Grécia e Roma
Costuma-se dizer que Platão era um opositor da escravidão. Nada consta,
no entanto, que Platão quisesse excluí-la de sua República ideal, visto que o
filósofo aceitava a servidão dos estrangeiros, dos bárbaros. Na Grécia antiga,
mesmo o escravo alforriado era obrigado a servir a seu primeiro senhor, não
havendo salvaguardas para evitar que seu ser fosse reduzido novamente à
escravidão. O homem liberto não tinha esperança alguma de vir a ser cidadão,
pois exigia-se que ele deixasse o Estado após um prazo limitado de residência.
Não havia proteção contra tratamentos severos. “Platão inclusive lhes negaria uma
relação estreita amigável com a classe dos senhores, e daria a quaisquer pessoas
livres o direito de julgar e punir um escravo por determinados crimes, ou de se
vingar sumariamente contra insulto” (Davis, 2003, p. 85).
Platão e outros filósofos gregos acreditavam contundentemente na
distinção entre helenos e bárbaros. A servidão estava ligada ao governo tirânico e
ao poder arbitrário, um povo com capacidade e desejo por liberdade, com
instituições políticas democráticas, não poderia ser legitimamente escravo. Um
“povo escravo” não teria o discernimento para governar, além de não possuir a
virtude e a cultura necessárias para reger suas vida. Assim, para Platão, um
escravo seria deficiente na matéria da razão (Davis, 2003; Patterson, 1982). Por
certo, o filósofo começou a dar os elementos para uma teoria de inferioridade
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
23
intelectual como base natural para a escravidão. Os discípulos de Platão,
particularmente Plotino, acreditavam que o mal, a escravidão, tinha razão para
existir, e não podia ser eliminado sem se destruir a beleza e o equilíbrio do todo
(Davis, 2003).
Aristóteles afirmou que sem trabalho não podia haver polis e, portanto,
nenhuma base para a virtude e a sabedoria. Vivendo em sociedade que dissociava
a cultura e o serviço público da menor contaminação do trabalho braçal,
Aristóteles via a escravidão como um meio necessário de suprir as necessidades
da vida. Para o filósofo, a verdadeira escravidão derivava de uma deficiência na
virtude interna da alma. Assim, uns nasceriam para a sujeição e outros para
governar. O escravo natural não tinha liberdade moral e intelectual para tomar
decisões e julgamentos. Aristóteles não concordou com Platão quando este
estabeleceu que os senhores deveriam apenas comandar seus escravos e nunca
conversar com eles de maneira amigável; a relação era claramente benéfica para
ambos, segundo Aristóteles (Davis, 2003; Patterson, 1982; Vernant; Vidal-
Naquet, 1989 ).
Todavia, uma verdadeira amizade era impossível, pois o escravo era incapaz de
retribuir uma genuína boa vontade ou benevolência. Seus verdadeiros interesses
só poderiam ser os de seu senhor. Na verdade, dificilmente um escravo poderia
falar de seus interesses, uma vez que como instrumento ou posse ele era somente
uma extensão da natureza física do seu senhor. O melhor escravo, parece, era
aquele cuja natureza humana tinha sido, em sua maior parte, quase apagada
(Davis, 2003, p. 90).
Havia o desafio intelectual da análise sobre o homem escravizado em
conseqüência de guerra. Aristóteles assumia que esse escravo não podia ter o
mesmo interesse que seus senhores. Dessa forma, a autoridade de seus senhores
não era mais legítima do que a de tiranos políticos. Além disso, Aristóteles
afiançou que uns foram feitos para trabalhos braçais, outros para a política e as
artes, mas admitia que as diferenças físicas não eram indicação clara do status
natural. Essa admissão abria lacuna significativa entre escravo real e teórico –
lacuna que seria ampliada pelos estóicos e pelos cristãos e que não se fechou
inteiramente até que gerações posteriores inventassem a teoria da inferioridade
racial (Vernant; Vidal-Naquet, 1989).
Aristóteles fazia objeção aos cidadãos que praticavam os ofícios de seus
inferiores, uma vez que isso finalmente tenderia a eliminar as diferenças entre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
24
escravos e homens livres. Segundo o filósofo, era perigoso que crianças ficassem
muito na companhia de escravos. Havia, contudo, ambigüidade no pensamento do
filósofo, já que ao mesmo tempo em que queria separar escravos e senhores,
defendeu a liberdade como recompensa pelos serviços do escravo. Daí, muitos
historiadores que sustentaram os interesses econômicos por trás da escravidão
acusarem os estóicos de formular contradições anuladas, com abstrações sem
sentido (Davis, 2003).
Enquanto Aristóteles sustentava que um escravo era realmente parte do ser
físico de seu senhor, Zenão e Crisipo viam sua alma como parte da substância
total de uma razão universal. Diferenciações externas entre gregos e bárbaros,
macho e fêmea, ou escravo e homem livre eram meros acidentes que não tinham
relevância para a natureza. Segundo esses estóicos, todavia, a maioria dos homens
era escrava do desejo e do preconceito (Davis, 2003).
Os estóicos, bem como os hebreus, acreditavam que a verdadeira liberdade
era privilégio de uma elite. Não poderia haver emancipação gradual da escravidão
moral, já que o mundo ético dos estóicos era pautado pela antítese: os homens
livres tinham a liberdade e a moral para governar, enquanto os escravos eram
desprovidos de razão suficiente para conduzir o próprio destino (Davis, 2003;
Patterson, 1982).
Para o estóico Epicteto, que foi escravo por parte da vida, a verdadeira
liberdade significava autotranscendência, desligamento do ego que estava em seu
redor. Assim, o ambiente do escravo não era mais perigoso do que qualquer outro
para a alma. Segundo o filósofo, mesmo se um escravo liberto desfrutasse de
sucesso material, ele não teria percepção da virtude e poderia tornar-se escravo do
amor, do desejo ou de uma facção política. O homem liberto tendia a
nostalgicamente relembrar o passado, no qual suas necessidades físicas eram
saciadas pelo senhor (Davis, 2003; Patterson, 1982). Assim como outros estóicos,
Epicteto via a escravidão com base nas imperfeições do mundo e o pecado a um
tipo especial de escravidão. O filósofo sugeriu que o escravo está em situação
melhor do que muitos homens livres, antecipando argumentos de teóricos pró-
escravidão no século XIX.
Sêneca afirmou que somente o corpo do escravo estava à mercê de seu
senhor, pois a parte interna não pode ser entregue ao seu senhor. Os senhores
deveriam tratar seus escravos do mesmo modo como eram tratados por seus
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
25
superiores. O filósofo acreditava que alguns homens, como resultado do pecado e
da corrupção, tinham alma de escravo. Associava os maus-tratos aos escravos à
luxúria, à arrogância. A discussão da escravidão era veículo para pregar
simplicidade e humildade, e para lembrar aos ricos o quanto eles deviam à
fortuna. Quando Sêneca quis dar provas de sua própria simplicidade de vida,
contou ter levado somente poucos escravos em uma de suas viagens (Davis, 2003;
Patterson, 1982).
Mais tarde, Ireneu de Lyon baseou-se no Velho Testamento (Torah) para
prefigurar salvação universal por meio do divino Logos
. Concluiu que os judeus
foram escravizados pelos seus pecados. A escravidão dos judeus serviu, portanto,
como meio de redenção do povo hebreu. A escravidão foi meio necessário como
preparação para a liberdade. A partir de então, a escravidão física começou a
adquirir novo significado na história da salvação humana (Davis, 2003).
Os sofistas foram, provavelmente, os primeiros a pregar que a escravidão
era obra da convenção humana, nada tinha de inerente à natureza humana. Os
sofistas Fílon e Díon Crisóstomo procuraram distinguir o significado verdadeiro
de “escravo” e o literal. Eles concordaram que o homem ama a natureza e a
escravidão é imoral. Díon mostrou que o verdadeiro escravo era um homem
ignorante a respeito do que era permitido e proibido pela lei natural. Um grande
rei podia ser escravo, um homem em cativeiro podia ser homem livre. O escravo
era um pecador. Para Fílon e Díon isso não era linguagem figurada, mas estado da
realidade. Segundo Díon, os prisioneiros de guerra não poderiam ser verdadeiros
escravos; mantidos à força, não havia razão para não escaparem ou retaliarem,
capturando seus senhores anteriores. Se isso era verdade, os senhores não
deveriam ter direito aos descendentes de cativos. Ganhar a posse de alguém não
era justo para o filósofo, sendo o termo “escravo” uma distorção da verdade. Esse
argumento parece similar ao dos abolicionistas no século XIX. Os abolicionistas
salientavam que os homens que nasciam livres estavam sendo submetidos a um
ambiente opressivo e deveriam ser libertados da coerção ilegal, da mentira que era
No estoicismo, força criadora e mantenedora do universo, agindo como princípio ativo
que anima, organiza e guia a matéria, além de determinar a lei moral, o destino e a
faculdade racional dos homens.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
26
a legitimação da escravidão estruturada pelas teorias da inferioridade racial
(Davis, 2003; Vernant; Vidal-Naquet, 1989).
Os cristãos foram fortemente influenciados pelos estóicos, pois
sustentavam que a verdadeira liberdade só pode vir a partir de uma mudança
interna na natureza do homem – a maior parte dos homens que se consideram
livres é realmente escrava. Logo que os cristãos reiteradamente conceberam o
pecado e a salvação em termos de escravidão e liberdade, as palavras adquiriram
diferentes significados que, necessariamente, afetaram a reação dos homens à
instituição escravocrata. Como disse Jesus aos Fariseus:
Se permanecerdes fiéis à minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos;
e devereis conhecer a verdade, e a verdade deverá vos tornar livres. Eles
responderam para ele: Somos descendentes de Abraão, e nunca fomos servos de
homem algum: como dissestes, vós devereis vos tornar livres? Jesus respondeu-
lhes: em verdade, em verdade eu vos digo: todo aquele que comete o pecado é
escravo [doulos] do pecado
(João 8: 31-35).
Enquanto Platão associava a desordem do mundo material à escravidão e
os estóicos consideravam a sociedade convencional irrecuperavelmente arruinada.
Paulo, apóstolo de Cristo, falava de toda a humanidade livrar-se da escravidão da
corrupção na liberdade dos filhos de Deus. Ele dizia-se escravo de Jesus e como
nenhum escravo podia ter mais de um senhor, pregava que os homens deveriam
escolher entre Deus e a riqueza material. Os cristãos consideram-se descendentes
de Abraão como os judeus, herdeiros de Isaac, “filho da promessa”, nascido de
uma mão livre, Sara - representando a liberdade espiritual. Já o irmão de Isaac,
Ismael, é considerado pelos cristãos e pelos judeus a representação da servidão em
relação ao corpo, visto que nasceu de uma escrava egípcia (Davis, 2003).
Como Aristóteles, os cristãos lembram que o escravo é passivo de
emancipação, mesmo aquele que era desprovido de virtude. “Pois aquele que era
escravo quando chamado ao Senhor, é do Senhor o homem livre: da mesma forma
que aquele que era livre quando foi chamado, é escravo de Cristo” (Primeira
Epístola aos Coríntios, 7:20-22).
Os primeiros cristãos podiam escravizar, inclusive, outros cristãos, embora
devessem tratar estes de forma digna. Santo Ambrósio, Santo Isidoro de Sevilha e
Santo Agostinho consideravam a escravidão, ao lado de todos os seculares
instrumentos de coerção e de governo, como parte da punição pela queda do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
27
homem do estado de graça. De acordo com Agostinho, a escravidão era remédio
para o pecado, e Deus escolhia quem deveria ser senhor e quem deveria ser
escravo. Assim, como Platão insinuara, a escravidão era parte do grande esquema
da ordem e do governo divino, força disciplinadora que restringia o fluxo
subterrâneo do mal e da rebelião. Dessa forma, todos os escravos mereciam ser
escravos por ordem divina. Em 362 d.C., o Concílio de Gangrae estabeleceu o
anátema para qualquer um que ensinasse um escravo a desprezar seu senhor ou a
abandonar seu serviço. Mostra-se, assim, que a Igreja, sob influência do
pensamento helenístico e romano, sustentou a escravidão como instituição. Deve-
se salientar que a própria Bíblia legitima a escravidão, o que será utilizado por
autores no século XIX para a defesa da superioridade de uns sobre outros (Davis,
2003).
2.3.
A Evolução das Idéias sobre a Escravidão: a Idade Média e o
Iluminismo
São Tomás de Aquino concordava com Aristóteles de que os princípios da
regra despótica e constitucional eram exemplificados nas faculdades humanas:
assim, o intelecto governava os apetites por meio de um poder político, mas a
relação da alma com o corpo era como a de um senhor com o escravo (Vernant;
Vidal-Naquet, 1989). Aquino afirmou que São Gregório, já no século VI, havia
dito que a escravidão era contrária à natureza. Negar esse julgamento, como
Aristóteles fizera, tenderia a invalidar o conceito estóico de liberdade original do
homem de acordo com o direito natural. Se a escravidão fosse um bem positivo e
uma parte necessária da criação, o mesmo poderia ser dito do próprio pecado
(Davis, 2003). Para São Tomás de Aquino, mesmo os anjos estavam sujeitos a
padrão hierárquicos, sendo os arcanjos pertencentes à ordem superior.
Fazendo alusão à escravidão, Tomás explicitou que a diferença entre esta e
a subordinação natural era mais de grau do que de espécie. São Tomás ainda
pensava na escravidão como causada pelo pecado, mas ele fazia que isso
parecesse mais natural e tolerável, identificando-a com a estrutura racional do ser,
o que requeria que cada indivíduo aceitasse a necessidade de subordinação a uma
ordem superior (Davis, 2003). Era questão de hierarquia, a qual pautava as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
28
relações sociais. Essa crença fez o santo católico aproximar-se de visão de
inferioridade natural dos escravos.
Maimônedes, um dos maiores sábios judeus de todos os tempos, em
contraste marcante com as idéias de São Tomás de Aquino, asseriu que os homens
que possuíssem muitos escravos aumentavam seus pecados a cada dia. Em vez de
comprar escravos, os homens deveriam dar emprego aos pobres. Como os judeus
eram considerados hereges pelos católicos, estes lutaram durante os séculos XIV e
XV para acabar com a escravidão de cristãos por parte de não-cristãos. Em 1425,
uma bula papal ameaçou os vendedores de escravos cristãos com a excomunhão e
mandou os judeus usarem uma insígnia de infâmia na roupa, em parte para evitar
que comprassem cristãos (Davis, 2003; Patterson, 1982).
No entanto, no século XV (...) A Igreja denunciava e ameaçava punir os fiéis que
raptassem e escravizassem forçosamente os companheiros cristãos. Todavia,
esses escrúpulos não se estendiam aos incrédulos, que costumavam ser
considerados indignos de liberdade. Quando os europeus capturavam ou
compravam pagãos, eles se viam atacando a infidelidade em geral, assim como
conseguindo novas almas para a Igreja ganhar. Essas foram as idéias que guiaram
a Igreja quando os europeus entraram em contato com a África Negra. Em 1452,
o papa Nicolau V autorizou o rei de Portugal a privar os mouros e os pagãos de
sua liberdade. Em 1488, o papa Inocêncio VIII aceitou um presente de Fernando
da Espanha de uns cem mouros e distribuiu-os entre os cardeais e a nobreza
(Davis, 2003, p. 122)..
Interessante notar que já em 1366, os governantes de Florença já haviam
explicado que com “infiel” queriam dizer todos os escravos de origem infiel,
mesmo se no momento de sua chegada eles pertencessem à fé católica; e “origem
infiel” significava simplesmente a terra e a raça dos infiéis. Com essa mudança
sutil na definição, os governantes de Florença evitaram o dilema do batismo,
substituindo a base da escravidão, fundada na diferença religiosa, pela origem
étnica (Davis, 2003; Patterson, 1982).
A Reforma protestante, no século XVI, não trouxe mudança imediata nas
idéias tradicionais sobre a escravidão. Quando os servos da Suábia
clamaram
pela emancipação, em 1525, alegando que Cristo morrera para libertar os homens,
A Suábia (em alemão Schwaben) é uma região administrativa (Regierungsbezirk) do Estado
(Bundesland)
alemão da Baviera, cuja capital é a cidade de Augsburgo. Na Idade Média, a maior
parte da atual
Suíça e da Alsácia (hoje pertencente à França) também fazia parte da Suábia.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
29
Martinho Lutero ficou tão apreensivo como qualquer outro católico ortodoxo.
Lutero provavelmente pensava como São Paulo: os senhores e os escravos
deveriam aceitar sua posição social presente, pois o reino da terra não poderia
sobreviver, exceto se alguns homens fossem livres e outros escravos (Davis,
2003).
Não era fácil combater uma instituição que já estava enraizada na Igreja e
nas idéias da maior parte dos escritores da antiguidade. As pessoas, que
demonstravam cada vez mais respeito por Platão, Aristóteles e pela Lei romana
(que autorizava a escravidão), não condenariam a escravidão como um mal
intrínseco. Por isso, o resgate dos autores clássicos pelo Renascimento acabou por
reforçar as justificativas tradicionais da servidão humana (Davis, 2003).
Em A Utopia de Thomas Morus, o autor criticou veementemente muitas
injustiças, como o enclosure e o código penal bárbaro. Morus percebeu que o
homem jamais alcançaria um estágio de perfeição na terra, mas poderia produzir o
máximo possível de felicidade. O autor admitia, no entanto, que o um trabalhador
pobre em outro país se tornasse um escravo na República Utopia. Pessoas
condenadas por crimes malvados seriam mais bem aproveitadas se fossem
escravizadas, e não condenadas à morte. As tropas capturadas em guerra deveriam
também ser escravizadas. Percebe-se que Morus defendia a escravidão, embora
não pregasse a escravidão hereditária (More, 19--).
Nenhum protesto contra a teoria tradicional emergiu das grandes
autoridades da lei do século XVII, ou de filósofos e homens das letras como
Descartes, Malebranche, Spinoza, Pascal ou Bayle. Jacques Bossuet alegou que
ninguém poderia rejeitar a escravidão sem rejeitar tanto a guerra quanto a lei das
nações. Bossuet citou que toda a autoridade, independentemente da origem,
tornava-se legítima com o tempo e a aceitação geral (Davis, 2003).
Jean Bodin estudava o código civil na Universidade de Toulouse quando
um mercador genovês visitou a província com um escravo. Quando o anfitrião do
mercador convenceu o escravo a demandar sua liberdade, os magistrados
descobriram registros estipulando que qualquer escravo que entrasse em Toulouse
tornava-se automaticamente livre. Bodin impressionou-se com o incidente,
percebendo que o precedente legal estava vagamente associado a uma lei maior
que dirigia e limitava inclusive o soberano, livre tanto quanto podia de toda
autoridade humana. Bodin argumentava que a escravidão trouxera sempre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
30
crueldade e corrupção. Era uma catástrofe a escravidão ter sido introduzida no
mundo e reintroduzida na América (Davis, 2003).
Bodin foi retratado pela história como defensor do poder absoluto,
enquanto Hugo Grotius (Grócio, 2004) foi classificado como humanista liberal.
Foi Grotius que livrou o direito natural da rede restritiva da teologia e ergueu-o
como autoridade suprema não só acima da vontade de todo soberano terrestre
como acima da vontade de Deus. Grotius, contudo, considerava a escravidão tão
harmoniosa quanto a justiça natural. Grotius tentou construir defesa da escravidão
racional e secular (Grócio, 2004; Davis, 2003). Grotius argumentava que os
senhores que forneciam sustento aos filhos de escravos tinham direito a seu
serviço perpétuo; não há nada de chocante, segundo o autor, em uma troca de
servidão como essa por uma certeza de alimentação eterna. Os pais tinham direito
natural de vender os filhos que não poderiam ser sustentados de outra maneira
(Grócio, 2004).
Para Grotius, havia certos limites relacionados ao dever de obediência do
escravo. Um escravo sujeito a brutalidades poderia buscar refúgio na luta. Da
mesma forma, o escravo ou o descendente que tivesse sido injustamente capturado
não seria moralmente culpado de furto se fugisse, desde que não devesse nada a
seu senhor (Grócio, 2004). Apesar das reservas quanto à escravidão, Grotius
associava a escravidão a toda a estrutura de disciplina social e de autoridade. Sem
se referir ao pecado original, ele citava Santo Agostinho sobre a necessidade de as
pessoas perdoarem seus superiores, e de os escravos submeterem-se a seus
senhores. Resistir ao senhor seria confrontar os direitos externos, ou seja, os
tribunais judiciários. Grotius negava o conceito de pecado original da escravidão,
mas considerava a instituição expressão da ordem racional do mundo (Grócio,
2004).
Thomas Hobbes dissertou que a escravidão não se inseria em ordem
racional, mas na lógica do poder. Esta não se definia nas questões de pecado ou
inferioridade natural. O filósofo abandonou a distinção estóica e cristã entre
servidão externa do corpo e liberdade interna da alma. A vontade do escravo era
tão completamente subordinada à de seu senhor que seria impossível o senhor
violar os direitos do escravo (Hobbes, 1982). Hobbes reconheceu que um
prisioneiro que fosse feito escravo poderia fugir ou tentar matar seu senhor.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
31
Quando não havia dominação puramente sob o poder físico, Hobbes
declarava que a dominação do senhor era sancionada por contrato, como um
contrato social. A única diferença entre sujeito livre e o servo era que um servia à
cidade e o outro servia ao semelhante. Por isso, o escravo não tinha por que
reclamar, visto que o senhor lhe provia de subsistência em troca de ser governado.
O contrato, contudo, não previa direitos e obrigações recíprocos. O escravo não
tinha direitos e era obrigado a obedecer a seu senhor (Hobbes, 1982; Hobbes,
1983). De fato, paradoxalmente, Hobbes pode ser visto como uma das fontes do
pensamento antiescravocrata.
À medida que Hobbes ligava a defesa da escravidão à defesa de um Estado
absolutista, partindo da distinção helênica entre servidão doméstica e governo
constitucional, abriu-se caminho para futuros pensadores passarem de ataque ao
absolutismo para luta contra a escravidão. Na França, é possível dizer o mesmo
de Bossuet
(Davis, 2003, 139).
John Locke condenava a escravidão de ingleses, mas não a de outros
povos, assim como Platão condenava a escravidão de gregos, mas não de
bárbaros. Na verdade, Locke chegou a ser investidor na Companhia Real Africana
e considerou a escravidão do negro uma instituição justificável. Essas idéias
parecem colidir com o liberalismo do autor e a defesa de direitos inalienáveis,
como o direito à vida. Havia clara ambigüidade, como de costume quando se trata
do tema escravidão, no pensamento de Locke. Este escreveu as Constituições
Fundamentais da Carolina, uma das 13 colônias britânicas, em 1669, ressaltando
no texto que o homem livre tem autoridade absoluta sobre os escravos. Como se
pode perceber, Locke e os colonizadores americanos combinavam estranha
combinação de amor à liberdade e aceitação da escravidão (Davis, 2003).
Para Locke, a origem da escravidão e da liberdade estava fora do contrato
social. Os homens seriam inteiramente livres ou escravos. O escravo seria
propriedade do senhor, propriedade privada, e a defesa dessa propriedade era
papel do Estado. Apesar disso, a teoria da liberdade natural de Locke impregnou o
pensamento abolicionista (Davis, 2003). A aceitação da escravidão pelo autor
mostra, no entanto, o quão distante o abolicionismo estava dos séculos XVII e
XVIII. Na verdade, a idéia de direito de propriedade de Locke foi herança grega e
romana. Segundo Fustel de Coulanges (2000), a idéia de propriedade privada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
32
estava na própria religião. Cada família tinha o seu lar e os seus deuses. Estes
eram sagrados e de propriedade exclusiva da família.
Percebe-se que a escravidão não deve ser considerada instituição peculiar
na História. A escravidão foi característica das grandes civilizações, marco que foi
a base da estrutura socioeconômica de antigas sociedades. Na Antiguidade, Grécia
e Roma eram genuínas sociedades escravocratas, bem como a Espanha visigótica,
a antiga sociedade inglesa, a França merovíngia, a Europa viking do extremo
norte. A instituição escravocrata ganhou força nos tempos medievais, passando
pela Renascença até alcançar o século XIX (Patterson, 1982).
A Renascença e a ilustração, longe de porem fim à escravidão, tiveram em
Veneza e em Gênova a prova de que sociedades européias eram extremamente
dependentes da escravidão. A Europa não foi a única, todavia. A ascensão do Islã
só foi possível graças à escravidão, uma vez que a elite e os intelectuais árabes
exploraram mão-de-obra escrava qualificada e não-qualificada com vistas a levar
a religião para além Oriente Médio.
Na África, igualmente a instituição estava associada à região, como ilustra
Gana medieval, Mali, Reino de Daomé (atual Benin - primeiro Estado a
reconhecer a Independência do Brasil), a cidade-Estado dos Iorubás, entre outros
(Patterson, 1982; Magnoli, 2004).
2.4.
Os Elementos Constitutivos da Escravidão
A escravidão é uma das formas extremas de relação de dominação. Esta
relação está relacionada à concepção de poder, a qual tem três facetas de acordo
com Orlando Patterson (1981). A primeira faceta é social e envolve o uso ou
ameaça de violência no controle de uma pessoa. A segunda mostra-se como a
faceta da influência psicológica, a capacidade de persuasão para mudar o jeito
com que uma pessoa percebe determinada circunstância. A última é a faceta
cultural da autoridade, o meio de transformar força em direito e obediência em
dever – segundo Jean Jacques Rousseau, o mais poderoso acredita ser necessário
assegurar o controle perene sobre o outro (Patterson, 1982).
Patterson (1982) afirma que a autoridade do senhor sobre o escravo está no
controle privado e público de símbolos e processos rituais que induzem as pessoas
a obedecer, porque estas se sentem satisfeitas ao cumprir o mando dos senhores.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
33
O escravo não tinha poder em relação a outro indivíduo, além de não existir
socialmente sem seu mestre – o escravo só se socializava por meio de seu senhor.
Assim, o escravo era uma pessoa socialmente morta, alguém desprovido de
individualidade (Patterson, 1982). O escravo morria e nascia novamente em um
outro sistema social.
O escravo era socialmente isolado de relações sociais e culturalmente
isolado da herança social de seus ancestrais (Patterson, 1982). No Brasil, os
escravos quando aqui chegavam eram separados como forma de apagar a ligação
cultural e social que indivíduos de uma mesma tribo ou nação possuíam. Os
escravos diferiam de outros seres humanos por não poderem integrar a suas vidas
experiências herdadas de seus ancestrais ou exercer na sua realidade social
aspectos culturais de seus ancestrais (Costa, 1999).
Patterson (1982) afirma que nas sociedades escravocratas, os casais
escravos eram separados e as mulheres obrigadas a se submeter sexualmente a
seus senhores. Davis (2003) elucida, entretanto, que, na baixa Idade Média, os
casamentos de escravos foram estimulados pela Igreja Católica como meio de
fazê-los respeitar os ensinamentos da Bíblia que versam sobre a importância da
família e do casamento. Ademais, muitos escravos eram batizados, o que os fazia
cristãos, mesmo que não tivessem autonomia sobre suas vidas. No Brasil, como os
escravos eram vindos de regiões “pagãs”, adeptos de religiões animistas ou
mesmo do islamismo, os senhores não tiveram dificuldades em separar famílias de
escravos, principalmente mães e filhos.
Ser cristão era considerado ser civilizado em contraposição aos bárbaros,
assim como na distinção entre povos helenos e bárbaros, cidadãos e não-cidadãos.
Além disso, a diferença de religião logo ganhou cunho racial, visto que os negros
africanos eram vistos pelos europeus como seres inferiores, menos desenvolvidos.
Deve-se salientar que não apenas os negros eram estigmatizados, mas, também, os
orientais e os islâmicos – além dos judeus. Como na Roma antiga, os bárbaros
eram para os europeus os estrangeiros, aqueles cultural e socialmente diferentes
(Patterson, 1982).
Ao ter seu passado apagado pelo senhor – pela condição servil -, ter
morrido socialmente, além da coerção física, os senhores costumavam usar
símbolos culturais de dominação. Os “chicotes” não eram suficientes para
sustentar a dominação, “chicotes culturais” eram necessários para influenciar
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
34
psicologicamente o escravo. Simbolismos, como nomear e marcar os escravos,
mostravam o negro como objeto que pertencia ao senhor, o qual tinha todos os
direitos sobre os subjugados (Patterson, 1982, Davis, 2003). O ritual de
escravidão possuía quatro características básicas já no mundo pré-moderno:
primeira, a rejeição simbólica pelo escravo do seu passado e de seus parentes;
segunda, mudança de nome; terceira, a imposição de uma marca visível de
escravidão; e, por último, a tomada de um novo status na organização econômica
do senhor. Ademais, a cor e a etnia também podiam ser usadas como meio de
diferenciar os escravos – e não apenas nas Américas. A “cor negra” em todas as
sociedades islâmicas, por exemplo, incluindo partes do Sudão, era e ainda é
associada à escravidão (Patterson, 1982).
Embora a cor tenha tido impacto na escravidão, sempre foi base fraca
como meio de estabelecer diferenças em sociedades inter-raciais. As variações de
cores entre brancos e negros é enorme, principalmente em áreas de grande
miscigenação. Nas Américas, muitas vezes, um escravo era mais claro do que o
seu senhor. Conquanto o estigma da cor não fosse eliminado, com o passar das
gerações o papel simbólico da cor como insígnia distintiva da escravidão mudava
significativamente. (Patterson, 1982). Vale lembrar que a cor branca em algumas
sociedades também era alvo de preconceito. Os egípcios tendiam a ter cor escura,
enquanto muitos dos seus escravos eram significativamente mais claros.
Para Thomas Hobbes (1983), honra e poder estavam intrinsecamente
ligados. Como os senhores tinham poder, os escravos eram obrigados a obedecê-
los, ou seja, a honrá-los. Já os escravos não podiam ter honra, pois a origem de
seu status não permitia – o escravo não podia existir socialmente de forma
independente. “To Value a man at a high rate, is to Honour him; at a low rate, is
to Dishonour him. But high and low in this case, is to be understood by
comparison to the rate that each man setteh on himself” (Hobbes apud Patterson,
1982, p. 10).
Por certo, nenhum meio de dominação sobrevive apenas pela violência.
Outros meios são necessários para manter o subjugado dominado. O Brasil, como
se verá mais adiante, exemplifica que a interação escravo-senhor se dava por
relação paternalista. Como já visto, a inserção do escravo na sociedade passava
pelo senhor, pois o escravo estava socialmente morto, não tinha autonomia para
exercer funções subjetivas de indivíduo essenciais na interação cultural e social
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
35
entre as pessoas. Assim, a interação senhor-escravo fundava-se em extrema
intimidade, seja por meio de relações sexuais, seja pela relação cotidiana com os
escravos que cuidavam da Casa-Grande (Freyre, 2002).
Os escravos não eram, portanto, apenas uma propriedade como
acreditavam autores do peso de Locke. A relação de propriedade entre as pessoas
pode ocorrer mesmo para aqueles que não são escravos. Sem dúvida, um escravo
era propriedade do senhor, mas igualmente um cidadão de Estado absolutista era
propriedade do rei. Assim, a idéia de propriedade pauta-se pela idéia de poder, na
concepção weberiana: “opportunity existing withing a social relationship which
permits one to carry out one’s will even against resistance and regardless of the
basis on which this oppotunity rests” (Weber apud Patterson, 1982, p. 1).
Em quase todas as sociedades escravocratas não-ocidentais, não havia
status de “pessoa livre” na lei. Realmente, não havia palavra para “liberdade” na
maioria dessas sociedades antes do contato com o Ocidente. Em vez de definir as
pessoas por “escravas” ou “não-escravas” em termos polarizados, as pessoas
tinham o status social de acordo com uma única dimensão do poder: todas as
pessoas eram vistas como propriedade. Indivíduos diferiam em gradação de poder,
espécie de hierarquia social, uns tendo privilégios e poderes sobre os outros
(Patterson, 1982). Eram sociedades em que o idioma personalístico do poder
imperava, de acordo com Patterson (1982).
Nessas sociedades, as pessoas não procuravam ser “livres” – na conotação
de liberdade individual ocidental -, pois, ironicamente, a liberdade era um
caminho certo para a escravidão. As pessoas tentavam entranhar-se numa rede
social de proteção de poder. A lógica é relativamente simples: com o apoio de
uma pessoa mais poderosa do que você, seria mais difícil que alguém o
escravizasse. Nas sociedades em que o idioma personalístico do poder dominava,
um pequeno número de reivindicações, poderes e privilégios estava nas mãos de
um grande número de pessoas. Nas sociedades escravocratas ocidentais, contudo,
o escravo dependia exclusivamente de uma pessoa para inserir-se socialmente, o
senhor (Patterson, 1982).
Foram os romanos que inventaram a ficção legal do domínio ou posse
absoluta. Os romanos enfatizavam duas categorias, a persona (o dono) e a res (a
coisa), criando um paradigma legal que acabou com a ambigüidade acerca do
objeto da propriedade. A partir de então, a propriedade não era mais a relação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
36
entre pessoas, mas a relação entre pessoas e coisas. Assim, os romanos puderam
considerar juridicamente o escravo como propriedade, res, fugindo do conceito de
não-cidadãos dos gregos. A persona, a res e o dominium foram os três elementos
que passaram a pautar a relação senhor-escravo. O escravo era acima de tudo uma
coisa, uma “coisa humana” (Patterson, 1982; Davis, 2003). Tal idéia tem muitas
semelhanças com a escravidão na África Pré-Colonial.
2.5.
A Escravidão na África Pré-Colonial
Convém lembrar que escravos foram usados como moeda. Esta tem muitas
funções: unidade de conta, unidade de valor, método de pagamento e meio de
troca. Nas economias arcaicas e primitivas, Karl Polanyi (1980) enfatiza que as
várias funções da moeda foram institucionalizadas separadamente, ou seja, um
tipo de objeto podia ser utilizado como unidade de valor, outro como meio de
pagamento, e assim por diante. A moeda multifuncional como se vê hoje é um
fenômeno muito moderno. Os escravos significaram para muitas sociedades
arcaicas o elemento mais próximo da moeda multifuncional moderna. No Oriente
Próximo, escravos eram usados para pagar dotes, casas e até mesmo multas
(Polanyi, 1980; Patterson, 1982).
Na África pagã e muçulmana, escravos também eram usados como moeda,
por exemplo, pelos Iorubás, no que hoje é a Nigéria. Os traficantes muçulmanos
de escravos freqüentemente utilizavam escravos como reserva de valor (Polanyi,
1980; Patterson, 1982). Os Sena de Moçambique vendiam pessoas de seu grupo
para tribos vizinhas para escapar da fome. Entregava-se o cativo em troca de
comida e ainda se diminuía o número de pessoas para se alimentar. “Esse tipo de
comércio muitas vezes garantia não apenas a sobrevivência de grupos inteiros,
mas também das mulheres, crianças e homens que eram transformados em
escravos nos grupos receptores” (Reis, 1987, p. 7).
A aquisição externa de escravos já se realizava na África pré-colonial por
meio da troca ou da compra. Dessarte, o escravo já era um tipo de mercadoria,
conseqüentemente uma moeda (mercadoria com que se pode adquirir outras
mercadorias). O método de aquisição por meio de rapto também existia, apesar de
ser menos difundido. O ataque a tribos para se escravizar tornou-se comum
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
37
quando se aumentou a demanda européia pelos escravos para suprir as colônias
americanas (Reis, 1987; Thornton, 2004).
Nos séculos VII e VIII, os árabes mulçumanos conquistaram o Norte
africano. O resultado foi a arabização da porção setentrional do continente
(Thornton, 2004). Os árabes referiam-se às regiões não-árabes ao Sul do Saara de
o país dos negros. Ibn Khaldun, um intelectual árabe do século XIV, foi um dos
primeiros a divulgar a noção de que o clima tropical condicionou a formação de
uma “raça” negra apática e indolente. O tráfico de escravos africanos foi
conduzido inicialmente pelos árabes, na orla da África Oriental, por meio de
enclaves no Oceano Índico, como Mogadíscio, na atual Somália (Magnoli, 2004).
O islã, é verdade, favoreceu ideologicamente tanto a escravização de infiéis como
sua libertação depois de conversos (...) a conversão não significava
necessariamente um passaporte para a liberdade. Na verdade, com freqüência os
escravos era catequizados e convertidos exatamente para que pudessem ocupar-se
de tarefas, como cozinhar, para a execução das quais a religião recomendava
mãos muçulmanas
(Reis, 1987, p. 10).
Os africanos davam muita importância à reprodução de escravos, o porquê
da preferência por escravas. Estas desempenhavam importante papel na estrutura
social africana, porquanto atuavam como concubinas – relação que estará
largamente presente no Brasil.
Nas comunidades muçulmanas a concubinagem era livremente aceita nos marcos
da religião e a concubina podia perfeitamente tornar-se esposa legítima de seu
proprietário. Ao contrário das sociedades cristãs do Novo Mundo, ali as amantes
não só eram bem aceitas, mas eram preferidas como companheiras e mães dos
filhos e de seus donos. O controle da sexualidade feminina nunca foi tão
explicitamente ligado à acumulação de prestígio e poder como aqui
(Reis, 1987,
p. 7).
As mulheres e crianças valiam mais no mercado interno africano. Havia
muitas vantagens em se obter mulheres e crianças. As mulheres, como
concubinas, inseriam-se com relativa facilidade na estrutura doméstica de seus
senhores – veremos o papel parecido da mucama no Brasil. Além disso, as
mulheres davam direitos sobre sua capacidade produtiva. Já as crianças
representavam força nova para o senhor e a casa (Reis, 1982; Boxer, 1969).
Adquiridos jovens, os escravos adaptavam-se mais rapidamente às estruturas de
parentesco da linhagem do senhor. O controle dos escravos era feito por base nas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
38
normas e ideologia do parentesco, atuando como principal meio de controle
social. Ao contrário de seu irmão ou sua irmã legítimos, o filho escravo jamais
alcançava a maioridade, não se livrava do paternalismo do senhor. Assim, havia a
dependência eterna do escravo, e como já visto, este não tinha autonomia em sua
inserção nas relações sociais (Reis, 1987; Thornton, 2004)). O escravo era
caracterizado pelo que Patterson (1982) chamou de social death, ou seja, o
escravo necessitava do senhor para sobreviver em realidade social na qual os
cativos não tinham poder algum de decisão sobre suas vidas.
A expulsão de um indivíduo de sua comunidade – cuja existência é
definida pela participação em grupo de parentesco – significava a transformação
do indivíduo em “estrangeiro”, mesmo que permanecesse no mesmo território
tribal. Dessa forma, ser vendido significava novos laços com um outro grupo.
Como estrangeiro, o indivíduo transformava-se no que os gregos chamavam de
não-cidadão, acarretando morte social do indivíduo, haja vista que o escravo tinha
a sua participação no grupo de parentesco de seu grupo natal apagada – tendo que
remodelar sua inserção no novo grupo pela dominação de seu senhor e pela falta
de livre-arbítrio (Reis, 1987; Patterson, 1982). A escravidão na África, assim
como no Novo Mundo, era sistema no qual os escravos formam categoria social
distinta, cujo trabalho é explorado de maneira diferente daquele de outros grupos
livres.
O historiador João José Reis (1987) pergunta-se o porquê da importância
do controle sobre pessoas em sociedades pouco diferenciadas na África pré-
colonial. Inicialmente, o autor sugere que em toda situação de abundância de
terras e escassez de mão-de-obra se verifica tendência ao trabalho forçado. O
controle sobre pessoas pode ser considerado também como forma de prestígio
social e poder político.
Reis (1987) sustenta que a África pré-colonial teve dois tipos de
escravidão: a doméstica (de linhagem) e a ampliada (ou escravismo). A primeira,
chamada de escravidão, funcionava como unidade reprodutiva ou como meio
multiplicador de dependentes para determinado grupo de parentesco. Seja
concubina, seja guerreiro, seja eunuco, a função do escravo não deve servir de
definição, uma vez que representavam apenas usos diferenciados dos escravos
pelos seus senhores. “O fato de que as variadas posições funcionais dos escravos
ocorriam tanto na escravidão quanto no escravismo africano mostra que elas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
39
fazem parte da definição geral do modelo africano, sem que com isso definam
sistemas escravocratas particulares” (Reis, 1987, p. 16). O uso ampliado de
escravos, ou escravismo, conheceu diversas formas na África. Como nas
Américas, os escravos foram utilizados maciçamente na produção comercial e
trabalharam sob condições semelhantes aos cativos brasileiros. A África teve,
contudo, um escravismo peculiar, pois formaram-se Estados africanos
especializados em escravizar povos mais fracos.
A produção de escravos incentivou a formação de Estados bélicos como
Daomé, Ashanti, entre outros. Transformou sociedades menores e pacíficas em
reservas de cativos. O escravismo africano, como o americano, organizou um
sistema de articulação e dominação de sociedades mais simples e com formas de
produção primárias (Boxer, 1969; Davis, 2003). Dessa forma, as plantações de
cereais e coco no Quênia, por exemplo, utilizavam escravos provenientes das
margens do lago Niassa, entre Maláui, Moçambique e Tanzânia. Deve-se
mencionar que o comércio transatlântico de escravos fomentou a formação desses
Estados produtores de escravos, respaldados pela “campanha civilizatória” dos
europeus. Impérios africanos, no entanto, como Gana e Mali, já praticavam a
escravidão intensivamente, mesmo antes do boom do comércio escravista
proporcionado pela demanda do Novo Mundo (Thornton, 2004).
O Estado africano medieval de Gyaman - atuais Gana e Costa do Marfim -
é exemplo emblemático de sociedade que ao mesmo tempo produzia escravos
para o comércio externo e o consumo interno. Os dumko (escravos) eram
utilizados para diversos serviços, desde lavradores até artesãos. A população livre
de Gyaman utilizava os escravos para os trabalhos braçais, com exceção da
prospecção de ouro, a qual era feita tanto por homens livres quanto por escravos.
A segunda geração de escravos era livre, o que obrigava a reposição de escravos
por meio da compra ou da guerra. No reino Gyaman, o escravismo tornou-se o
modus operandi das relações socioeconômicas locais (Reis, 1987; Thornton,
2004). Em Segou, no atual Mali, escravos-guerreiros eram a mão-de-obra usada
para capturar escravos. Vale recordar que a perseguição de africanos por africanos
gerou resistência, mormente, pela fuga individual, o que proporcionou a formação
de quilombos como no Novo Mundo (Reis, 1987).
. Os traficantes de escravos, árabes ou europeus, não se aventuravam na
captura de negros no interior da África. O trabalho de captura de futuros escravos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
40
ficava nas mãos dos próprios africanos, o que beneficiava muitas tribos ou clãs
que queriam eliminar seus rivais. Assim, muitos reinos e clãs africanos
enriqueceram à custa do sofrimento de seus irmãos africanos. Reinos negreiros
surgiram com o tráfico, configurados em Estados (Magnoli, 2004).
2.6.
O Comércio Transatlântico de Escravos
O último e maior sistema de comércio de escravos, o atlântico, começou
como desvio dos sistemas transaariano e mediterrâneo. Os primeiros grupos de
africanos mandados para o Novo Mundo vieram da península Ibérica e os
primeiros africanos mandados para as Américas diretamente da África foram
recrutados na costa do que hoje são Senegal e Gâmbia. Os traficantes
responsáveis pelo comércio transaariano e pelo mediterrâneo supriram, no
começo, a demanda de escravos pelo Novo Mundo. Com o passar do tempo,
todavia, a capacidade de abastecimento desses traficantes não deu conta de
atender a demanda do novo continente (Freyre, 2002; Davis, 2003).
Quase toda a Europa ocidental estava envolvida com o lucrativo mercado
negreiro do Atlântico. O papel dos escandinavos foi significativamente menor do
que o de portugueses, holandeses, ingleses e franceses. Não obstante a Espanha
ter sido importante consumidora de escravos, seu papel no tráfico transatlântico
era pequeno. O motivo não estava ligado a considerações humanitárias, mas pelo
fato dos espanhóis preferirem utilizar as populações autóctones de suas colônias
nas Américas como escravos. Os portugueses foram os primeiros a desenvolver o
comércio em escala significativa, tendo seu monopólico no tráfico sido rompido já
no final do século XVII pelos holandeses. Nesta época, ingleses e franceses
também já começavam a se aventurar no tráfico de escravos (Patterson, 1982;
Boxer, 1967; Thornton, 2004).
Os escravos vinham quase totalmente da costa oeste africana, da região da
Senegâmbia até Angola. Até o fim do século XVIII, a maior parte dos escravos
veio das tribos da costa da região de Guiné, área que, apesar do grande número de
tribos e línguas, possuía certa homogeneidade cultural. No século XIX, a maior
parte dos escravos veio do sudoeste africano e, em menor número, de
Moçambique e da África central (Boxer, 1967; Thornton, 2004). De acordo com
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
41
Patterson (1982), entre 11 e 12 milhões de africanos foram mandados para as
Américas.
Os Estados Unidos importaram proporcionalmente o menor número de
escravos no continente. O país tinha, no entanto, em 1825, o maior número de
escravos do hemisfério. As ilhas caribenhas importaram quase 40% de todos os
escravos, mas, em 1825, tinham menos de 40% da população escrava nas
Américas. A diferença entre os EUA e o Caribe pode ser ilustrada pelo alto índice
de crescimento vegetativo da população escrava norte-americana, comparadas a
alta mortalidade e baixa fecundidade dos escravos vindos para o Caribe e o Brasil.
O motivo da diferença é controverso, mas muitos apregoam que a dieta, o abrigo e
as condições materiais contribuíam para a maior taxa de crescimento vegetativo
nos EUA (Boxer, 1969; Patterson, 1982; Davis, 2003).
Segundo Charles Boxer (1969), Portugal era a nação européia que
praticava o tráfico negreiro mais individualista, isto é, contava menos com o
triângulo comercial Europa-África-Novo Mundo, dando ênfase ao comércio direto
entre a África e o Brasil. Além disso, durante o século XVIII, a taxa de
mortalidade dos escravos nos navios negreiros caiu drasticamente. A principal
causa da morte de escravos em navios estava na má qualidade da comida e da
água, e nas condições sanitárias precárias – o que ocasionava epidemias
(Thornton, 2004).
A questão da variação do preço dos escravos reforça a idéia de escravo
como mercadoria – herança dos tempos romanos. No último quartel do século
XVII, o preço médio de um escravo era de três a quatro libras esterlinas. Em
1740, o preço alcançou um pico de 18 libras, oscilando até chegar a 17 libras em
1770. A lei econômica da oferta e da demanda funcionava perfeitamente no caso
dos escravos: guerras, variação no preço do transporte e fatores políticos
influenciavam fortemente o preço do escravo (Boxer, 1969).
Com o panorama sobre o comércio transatlântico, enfocar-se-á a partir de
então o cenário brasileiro. Para a compreensão deste, é substancial a análise das
relações raciais e a escravidão na Colônia e no Império.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
3.
Relações Raciais e Culturais na Escravidão Brasileira
O regime alimentar brasileiro foi dos mais deficientes e instáveis. A ponto
de Gilberto Freyre afirmar que “Por ele possivelmente se explicarão importantes
diferenças somáticas e psíquicas entre o europeu e o brasileiro, atribuídas
exclusivamente à miscigenação e ao clima (Freyre, 2002, p. 106). A monocultura
e a pobreza química dos alimentos tradicionais contribuíram sobremaneira para a
má alimentação da população local, além da irregularidade no suprimento e da má
higiene na conservação e na distribuição de grande parte desses gêneros
alimentícios. Por mais que certos autores exagerem na influência da dieta
brasileira para o alto índice de mortandade (Freyre, 2002), deve-se admitir sua
contribuição para o baixo crescimento vegetativo da população escrava e para a
crescente necessidade de importar cativos, como já citado.
Como lembra Rugendas, no Viagem Pitoresca Através do Brasil, a
alimentação do negro teria sido parcimoniosa se não tivessem os negros a
possibilidade de melhorá-la com frutas, legumes selvagens e mesmo caça (Freyre,
1998). Além disso, Rugendas salienta que os empregados do serviço doméstico
tinham alimentação “boa”, melhor do que aqueles que trabalhavam no eito
(Freyre, 1998).
A base da alimentação consistia em feijão, angu, farinha e algumas vezes
charque e toucinho – o inhame, a mandioca, a abóbora eram raros para os
escravos. “A insistência com que os publicistas desse período recomendavam aos
senhores que alimentassem melhor os escravos e lhes dessem melhor assistência é
testemunho da insuficiência desse tratamento na maioria das fazendas” (Costa,
1999, p. 286). Mal nutridos, afetados por doenças, submetidos a intenso horário
de trabalho, que atingia dezesseis a dezoito horas diárias, os escravos morriam em
massa. A duração média da força de trabalho era de quinze anos. A mortalidade
infantil atingia 88% (Costa, 1999). A necessidade de importar escravos era
crescente, como já mencionado. Convém ressaltar que os negros e mulatos livres
tinham alimentação pior do que à dos escravos (Freyre, 1998).
No Brasil, país com predominante influência católica, a preocupação com
a religião dos escravos fez-se maior do que nos EUA e nas Antilhas. Os africanos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
43
importados de Angola eram batizados em massa antes de saírem de sua terra e
quando chegavam ao Brasil aprendiam os dogmas e os deveres do catolicismo
(Freyre, 2002). Traziam no peito a marca da Coroa Real como indicação de que
foram batizados e por eles pagos os direitos (Freyre. 2002).
Já os escravos trazidos de outras regiões da África geralmente só eram
batizados ao chegar ao Brasil. Muitos dos escravos desejavam ser cristãos por que
o negro sem batismo se sente inferior aos outros negros e brancos, sendo muitas
vezes injuriados por serem pagãos (Boxer, 1967). Segundo Freyre (2002), os
africanos chegados há muito tempo e já batizados se sentiam hierarquicamente
superiores aos escravos recém chegados, esquecendo-se que um dia já passaram
pela mesma situação. O batismo era obrigatório, pois antes deste os escravos eram
tidos mais por animais do que por pessoas. Em boa parte das fazendas, evitava-se
a formação de grupos homogêneos, o que possibilitaria a consciência de
solidariedade entre os escravos e o subterfúgio (Costa, 1999).
O método de desafricanização do negro “novo”, de recondicionamento do
escravo, seguido no Brasil, foi o de misturá-lo à massa de ladinos – termo que
designa comumente aqueles que já falavam português; de modo que as senzalas
foram escola prática do “abrasileiramento”. A iniciação do “escravo novo” na
língua, na religião, nos costumes dos brancos, fez-se nas senzalas, os novos
imitando os velhos (Freyre, 2002).
Havia evidente hierarquia entre os escravos, da qual a “aristocracia” eram
os escravos de serviço doméstico – incluídos mais no que Reis (1987) chamou de
escravidão do que no escravismo propriamente dito. Na hierarquia da escravatura
brasileira das grandes fazendas ou engenhos, o status do escravo ia desde o de
quase pessoa da família ao de quase animal. “Na vida da fazenda cada coisa tinha
o seu lugar, cada um o seu serviço” (Freyre, 2002, p. 527). Convém distinguir,
contudo, os escravos de trabalho agrícola e os de serviço doméstico – estes
beneficiados por assistência religiosa que muitas vezes faltava aos outros. Havia,
ainda, o chamado escravo de ganho, que servia para tudo no Brasil: carregar
fardos, vender quitutes, transportar água do chafariz à casa dos pobres, etc.
Função bastante difundida do escravo de ganho era a prostituição.
Algumas senhoras costumavam explorar as escravas, às vezes crianças de dez
anos, transformando-as em prostitutas. Era um meio de provento para viúvas e
senhoras que necessitavam de recursos. Como explicita Freyre (2002), foram os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
44
corpos das negras que constituíram, no escopo moral do patriarcalismo brasileiro,
a receita para salvaguardar a virtude das senhoritas brancas. “Aplicada ao Brasil
patriarcal, dá realmente nisso: a virtude da senhora branca apóia-se em grande
parte na prostituição da escrava negra” (Freyre, 2002, p. 501). Os senhores e
rapazes brancos saciavam-se com as negras, enquanto esperavam o momento de
desvirginar as futuras esposas.
As rivalidades dividiam os escravos. Minas, cassangues, moçambiques e
congos dividiam-se em nações nas cidades, quando era possível. Antigas
hierarquias permaneciam, influenciando a hierarquia nos grupos escravos. Costa
(1999) conta que alguns príncipes africanos conservavam no cativeiro o respeito
dos seus súditos. “Às posições hierárquicas tradicionais somavam-se novas
distinções estabelecidas com base na superioridade de ofício e de posição dentro
do regime escravista” (Costa, 1999, p. 296). Escravos, que pertenciam a um
poderoso senhor, sentiam-se superiores àqueles que trabalhavam para pessoa mais
simples (Costa, 1999). Basta lembrar que Freyre (1988) chama atenção para as
numerosas fugas de escravos de senhores pobres que vinham apadrinhar-se com
senhores ricos.
Nas casas-grandes fazia-se questão de negros batizados, visto que os
negros pagãos ou mouros eram repugnados supersticiosamente. As mucamas
podem ser consideradas hierarquicamente superiores a outros escravos, pois
tinham bastante intimidade com a família do senhor de engenho e eram tratadas
quase como pessoa da família (Freyre, 2002). Houve senhoras de tal modo
preocupadas com o bem-estar dos escravos que tratavam filhos e filhas de
escravos como filhos, chegando até mesmo a amamentar os órfãos.
Os anúncios de jornal elucidam a diferenciação entre os escravos. Os
anunciantes diferenciavam, por exemplo, cabra-escravo de cabra-animal. Freyre
(2002), mostra que os anúncios de jornal ilustram a diferenciação que se fazia
entre os escravos. As características físicas eram muito importantes na avaliação e
no preço de cada escravo: os dentes, o rosto, o formato do corpo eram avaliados e
descritos nos anúncios de jornais. Quando um negro forte e bonito de corpo fugia,
fazia-se atém mesmo promessa a santos católicos para achá-lo (Freyre, 2002).
Muitos senhores autorizavam os casamento de escravos. Os negros
batizados e constituídos em família tomavam, freqüentemente, o nome de família
dos senhores brancos. Por certo, no Brasil, o nome de família constitui meio
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
45
precário de identificação da origem da família. Na Roma antiga e em outras
sociedades, os escravos tinham nomes peculiares a eles, nomes próprios de
escravos como Faustus e Felix (Patterson, 1982). No Brasil, diferentemente,
quanto aos nomes cristãos, pouca discrepância havia entre os brancos e os negros.
Os “João”, os “José”, os “Pedro”, entre tantos outros, eram largamente difundidos
entre brancos e negros. Pode-se apontar, no entanto, que alguns nomes eram
típicos de negros: Benedito, Bento, Damião, Luzia, Felicidade, Esperança e
Romão (Freyre, 2002).
No caso dos escravos constituídos cristãmente em família, à sombra das casas-
grandes e dos velhos engenhos, terá havido, na adoção dos nomes fidalgos,
menos vaidade tola que natural influência do patriarcalismo, fazendo os pretos e
mulatos, sem eu esforço de ascensão social, imitarem os senhores brancos e
adotarem-lhe as formas exteriores de superioridade
(Freyre, 2002, p. 503).
Como se percebe, o patriarcalismo e a tentativa de ascensão social estavam
nitidamente interligados. Para obter graduação na hierarquia social, fazia-se
necessário o paternalismo do senhor, de modo que este desse o seu aval. O nome
exemplifica apenas tentame de ascensão social. Como, todavia, isso era possível
se o escravo estava socialmente morto? Como já visto, o escravo não tinha
autonomia e sua subjetividade decorria da vontade do senhor. Não havia,
conseqüentemente, liberdade individual do escravo. Por isso, os escravos
tentavam penetrar na rede social de proteção do poder dos senhores. A lógica nas
sociedades não-ocidentais, como dissertado anteriormente, era a de que com o
apoio de pessoa mais poderosa, seria mais difícil que alguém o escravizasse.
Analogamente a essa lógica, no Brasil, o escravo que tinha o apoio de um senhor,
o qual era obviamente superior hierarquicamente, tinha mais chances de aumentar
sua autonomia, saindo da esfera do escravismo para a da escravidão. Ademais,
muitos escravos conseguiam alforria, libertando-se de jure do senhor, mas não de
fato.
Mesmo que um escravo fosse alforriado, ele carecia de autonomia plena na
sociedade brasileira, uma vez que não possuía poder e relações sociais suficientes
para tornar-se cidadão. Embora fosse hierarquicamente superior a um escravo,
ironicamente, o negro livre mantinha sua autonomia na dependência de pessoa
socialmente mais poderosa. Assim, era comum que um escravo liberto ficasse
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
46
intrinsecamente ligado ao seu antigo senhor ou se aproximasse de outros, não
sendo possível relegar a rede social se quisesse ascensão hierárquica.
Os negros e pardos livres acreditavam que havia vantagem em vestir-se e
alimentar-se como branco senhoril, de quem a condição de livre de certa forma o
aproximava. Eles trocavam a cachaça pelo vinho, as sandálias pela botina.
Buscavam libertar-se do complexo de escravo e de africano, parecer-se com os
senhores nos gestos e nos hábitos (Freyre, 1998).
A figura do padrinho ou da madrinha teve papel substancial no
nivelamento da hierarquia social no sistema patriarcal brasileiro. Numerosos
foram os escravos que gozaram de situação de afilhados de senhores de casas-
grandes e sobrados e, pelo status especial, beneficiados em suas pessoas e
particularmente protegidos em sua saúde, em seu vestuário, em sua educação. Os
afilhados também eram beneficiados com alimentação superior à de inúmeros
indivíduos, seus superiores na hierarquia social. Não devem, todavia, esses
escravos serem considerados típicos. “Típicos eram os que não gozavam de outra
proteção senão a que o sistema patriarcal entendia ser do seu próprio interesse e
da sua obrigação estender às suas mãos e pés em troca do fato de serem mãos e
pés cativos” (Freyre, 1998, p. 288).
Nas antigas Grécia e Roma, reconhecia-se como cidadão todo homem que
tomava parte no culto da cidade, e desta participação lhe derivavam todos os seus
direitos civis e políticos. Renunciando ao culto, renunciava aos direitos. Para
definir o cidadão dos tempos antigos, basta afirmar que todo homem que seguisse
a religião da cidade, que honrasse os mesmos deuses, era considerado cidadão.
Pelo contrário, o estrangeiro era aquele que não tinha acesso ao culto, a quem os
deuses da cidade não protegiam. Na Roma antiga, no ato religioso oferecido aos
deuses nacionais, o pontífice, quando sacrificava ao ar livre, tinha o rosto coberto
por que não podia ver o rosto de nenhum estrangeiro – ou seja, aquele que não
tinha a mesma religião da cidade (Coulanges, 2000).
O escravo, a priori, era mais bem tratado do que o estrangeiro. Este era
membro de uma família, da qual partilhava o culto, estava ligado à cidade por
intermédio de seu senhor. Para que o estrangeiro tivesse alguns direitos dos
cidadãos, tornava-se indispensável a sua submissão como cliente de qualquer
cidadão. Roma e Atenas queriam que todo estrangeiro adotasse um patrono,
fazendo parte da clientela e, portanto, na dependência de um cidadão, este
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
47
intermediava o estrangeiro e a cidade. Participava então de alguns benefícios do
direito civil e adquiria a proteção das leis (Coulanges, 2000).
Ademais, as cidades antigas puniam muitas faltas, cometidas contra elas,
retirando do culpado sua qualidade de cidadão. A partir de então, o indivíduo
estaria socialmente morto, como um escravo que foi retirado de sua terra e
condicionado a um senhor, pois perdia seus direitos civis e político e sua religião,
tornando-se um estrangeiro (Coulanges, 2000). O escravo na Grécia antiga,
mesmo que liberto, jamais abandonava a família. Sob o nome de liberto, ou com o
de cliente, o escravo continuava a reconhecer a autoridade do chefe ou patrono e
as suas obrigações para com o senhor nunca cessavam (Coulanges, 2000).
Analogamente à antiguidade, no Brasil Colônia e no Brasil Império, o
cidadão deveria ter a religião católica. Esta era religião de Estado, como reza a
Constituição brasileira de 1824, o que não impedia que outras religiões fossem
praticadas, mesmo que às escondidas. Paralelamente à condição financeira e à
tradição da família – seja pelo nome, seja pela origem aristocrática – a religião
católica funcionava como um dos pontos de convergência da elite local.
Conquanto muitos desta fossem também maçons, não se tem notícia de membro
da elite que se recusasse a seguir a religião católica, mesmo que só o fizesse
aparentemente (Freyre, 2002). Por isso, o escravo liberto que quisesse ser cidadão,
sabia que a religião católica seria fator crucial para seu reconhecimento como tal.
Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de valores e sentimentos.
predominantemente coletivistas, os vindos das senzalas; puxando para o
individualismo e para o privatismo, os das casas-grandes. Confraternização que
dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado a
formação social do Brasil; um tipo mais clerical, mais ascético; mais ortodoxo;
calvinista ou rigidamente católico; diverso da religião doce, doméstica, de
relações quase de família entre os santos e os homens, que das capelas patriarcais
das casas-grandes, das igrejas sempre em festas (...) presidiu o desenvolvimento
social brasileiro
(Freyre, 2002, p. 409).
Freyre (2002) ressalta que havia troca de hábitos entre os senhores e os
escravos e desta sorte o superior e o inferior aproximavam-se. “Os escravos
tornados cristãos faziam mais progresso na civilização” (Koster apud Freyre,
2002, p. 409). Não foi somente no batismo que se resumia a política de
assimilação, ao mesmo tempo que de contemporização seguida no Brasil pelos
senhores de escravos: consistiu principalmente em dar aos negros a oportunidade
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
48
de conservarem, à sombra dos costumes europeus e dos ritos e doutrinas católicas,
formas e acessórios da cultura e da mítica africana. A religião tornou-se ponto de
encontro e confraternização entre as duas culturas – a brasileira e a africana -, e
nunca um intransponível obstáculo. Os próprios padres recomendavam aos
senhores permitirem as festas dos negros.
Não se quer aqui negar a repressão feita às religiões animistas trazidas da
África (e ao Islã ), mas apenas mostrar que o sincretismo religioso, hoje marca de
nosso país, começou indubitavelmente na interação entre o catolicismo europeu e
as religiões e seitas africanas. A própria Igreja vislumbrou a necessidade de atrair,
cada vez mais, os negros, elegendo santos negros, como São Benedito e Nossa
Senhora do Rosário.
Alguns senhores permitiam que os negros dançassem e cantassem aos
sábados, domingos ou dias de festas. Assim, os escravos aproveitavam o momento
para celebrar e cultuar os orixás e outras entidades. Por trás das danças e dos
batuques, hinos festejavam o animismo africano. Já nas cidades, a maior parte das
festas e práticas religiosas dos escravos era proibida, já que se temia a formação
de movimentos subversivos (Costa, 1999).
O catolicismo não passava de capa exterior que encobria tradições da
cultura africana. Ainda que houvesse o intento da Igreja de cristianizar
efetivamente os escravos, na busca de ensinar os dogmas e as práticas cristãs, a
historiadora Emília Viotti da Costa (1999) esclarece que foram poucos os
senhores que se empenharam em cristianizar escravos. Apesar de haver capelas
em quase todas as fazendas, não existia sacerdotes suficientes para iniciar os
escravos nas verdadeiras práticas do cristianismo. Nas zonas rurais prevaleciam o
culto doméstico, as práticas familiares. Sendo assim, reviveu-se a prática comum
nas cidades-Estado gregas e em Roma (Coulanges, 2000), de o patriarca da
família liderar a reza ajudado pelos familiares e pelos escravos. “O escravo
assistia à missa e adorava ao mesmo tempo a Xangô e Ogum. Confundiam-se na
prática as tradições africanas e cristãs” (Costa, 1999, p. 298). O sincretismo de
elementos culturais africanos e católicos permitiu a preservação de práticas
culturais africanas sob roupagem cristã. Os cultos importados da África, as antigas
tradições sofreram processo de reinterpretação baseado em novos quadros.
Algumas tradições africanas persistiram, embora profundamente modificadas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
49
Música e religião, além da magia, estavam significativamente ligadas à vida dos
escravos (Costa, 1999).
No Brasil, o escravo era o estrangeiro da antiguidade grega e romana, o
qual necessitava da tutela de um cidadão, no caso brasileiro um senhor. Como
estavam socialmente mortos, os senhores condicionavam os escravos à nova vida,
reconstruindo socialmente o escravo. Um dos meios da reconstrução era por meio
da religião, o catolicismo. Como visto, o escravo pagão e herege era considerado
socialmente inferior aos demais e, mesmo se liberto, jamais poderia ser
considerado um cidadão pela sociedade sem a religião católica. Alforriado, o
indivíduo precisava ser uma espécie de cliente de algum indivíduo mais poderoso,
o qual tinha o papel de inserir o liberto na rede social. Os escravos brasileiros que
trabalhavam dentro da casa dos senhores, como escravos de confiança, ilustram a
similaridade desses escravos com os da antiga Grécia. Freyre (2002) demonstra
que os escravos domésticos brasileiros, como as mucamas, eram praticamente
parte da família, assim como os escravos da antiga Grécia o eram.
Na sociedade patriarcal brasileira, a prepotência e o poder dos senhores
ditavam às regras sociais. A agressão física era meio de coerção contra os
escravos sob a autoridade patriarcal do senhor. Os castigos mais severos eram
aplicados aos assassinos e aos chefes de quilombolas. Açoite, palmatória,
máscaras de latão, algemas, argolas presas ao pescoço eram castigos comuns
dados aos escravos. Até mesmo o homem livre que desagradasse ao senhor ou o
desacatasse corria o risco de ser punido (Costa, 1999).
Stanley Elkins (1976) afirma, contudo, que, no Brasil, o preconceito
jamais criava antagonismos entre brancos e negros, e as poucas práticas
discriminatórias estabelecidas pelos códigos tradicionais acabaram por ser
abandonadas, permitindo que negros livres ascendessem na escala social. No
trabalho de Elkins 1976, este faz comparação instigante entre o escravismo no
Brasil e nos EUA, afirmando que os contrastes entre ambos estava nos diferentes
padrões culturais. Diferentemente dos EUA, no Brasil, a Coroa e a Igreja atuaram
como mediadores entre senhor e escravo, impedindo a classe latifundiária de levar
a escravidão até os limites da desumanização. Os direitos pessoais dos escravos,
enraizados nas tradições medievais da Península Ibérica – tradição que os anglo-
saxões não conheceram – e nas concepções da Igreja sobre a natureza da alma
humana, foram assim preservados na América Latina.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
50
O trabalho revisionista de Carl Degler (1971) veio a explicitar que os dois
regimes escravistas – o brasileiro e o norte-americano – diferiam menos do que
Elkins (1976) sugere. Ambas as sociedades viam o escravo como ser humano e
propriedade. Havia, todavia, significativo hiato entre a legislação e a práxis social.
Em ambos os regimes, muitos proprietários de escravos permitiam que seus
escravos guardassem o que haviam ganhado no tempo livre. Assim, muitos
escravos conseguiam guardar fundos suficientes para pagar a alforria e conseguir
a liberdade. O casamento religioso, tanto nos EUA quanto no Brasil, não tinha
garantia de estabilidade para a família de escravos. Se os escravos rebelaram-se
com mais freqüência no Brasil do que nos EUA era por que o comércio negreiro
durou muito mais tempo. Além disso, as instituições repressivas no Brasil eram
ineficientes, facilitando as revoltas de escravos.
Degler (1971) aproxima-se a Elkins (1976) ao afirmar que no Brasil não
havia a necessidade de criarem-se estereótipos negativos ou de se discriminarem
os negros, pois a sociedade era rígida, a mobilidade social limitada e controlada
pelas classes mais abastadas, e o sistema de valores desencorajava a competição.
Degler (1971) quase inteiramente como Elkins (1976) explica que a sociedade
brasileira tradicionalmente hierarquizada e católica possibilitava considerar o
negro escravo como humano. Nos EUA, a adesão à ideologia baseada na
liberdade e na igualdade levou os americanos a considerar como não-humanos
todos os que não podiam desfrutar da cidadania dos protestantes brancos.
Segundo Degler (1971), uma sociedade tradicional como a brasileira
desencorajava a competição social e econômica, explicitada na famosa fórmula
popular “cada macaco no seu galho”. Nos EUA, a sociedade estimulava a
igualdade de oportunidade, de competição e de mobilidade social. Na visita de
Alexis de Tocqueville aos EUA, na década de 1830, o autor francês concluiu que
os norte-americanos eram ardentes e invencíveis defensores da isonomia entre os
cidadãos. Tocqueville afirmou que os americanos tolerariam a pobreza, a servidão
e o barbarismo, mas nunca a aristocracia. A América é outra palavra para
oportunidade. Ademais, nos EUA, não havia fortes linhas demarcatórias de classe.
No Brasil, a linha de classe era difícil de penetrar e as oportunidades
econômicas limitadas. Brancos que eram pobres tinham poucos incentivos para
procurar avanço em seu status social. Ademais, a miscigenação brasileira foi
demasiadamente densa a ponto de não permitir linhas de cor rigidamente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
51
definidas entre os brasileiros. Assim, um branco pobre tendia a considerar um
negro ou um mulato um membro de sua classe e não uma ameaça individual ou
um rival (Degler, 1971).
.
3.1.
Hierarquia, Trabalho e Autonomia: pequena análise comparativa
Diz-se que a alforria era mais comum no Brasil do que nos EUA. No
Brasil, no entanto, a manumissão tinha restrições e nos EUA esta não era
totalmente negada. Do lado brasileiro, antes de 1871, não havia qualquer lei
autorizando um escravo a comprar a liberdade, embora muitos o tivessem feito. A
legislação brasileira não continha lei que proibisse a manumissão, diferentemente
do sul dos EUA, onde prevaleciam as leis que restringiam a alforria,
principalmente após 1830 (Degler, 1971; Patterson, 1982).
Georg Hegel e Karl Marx costumavam dizer que a História se repete.
Conquanto muitos discordem deles, a afirmativa é verdadeira para a análise da
instituição escravocrata. Como na Grécia antiga, os escravos libertos do sul dos
EUA eram obrigados a deixar o estado me que residia. No Brasil, havia lei que
permitia que o escravo liberto fosse reescravizado se expressasse publicamente
ingratidão ao antigo senhor, assim como na antiguidade bíblica, como já
apreciado. Tanto nos EUA quanto no Brasil os senhores tratavam os escravos
como menores, como se fossem incapazes de reger suas vidas individualmente.
Os senhores de escravos, similarmente aos filósofos estóicos, acreditavam que o
escravo não tinha a razão e a moral necessárias para seguirem sozinhos seus
destinos (Degler, 1971; Patterson, 1982).
A posse de propriedade por escravos – ou o famoso pecúlio da antiguidade
bíblica – foi proibida no Brasil (até quase a abolição) e nos EUA. Muitos senhores
permitiam, no entanto, que seus escravos ficassem com os rendimentos que
conseguissem no tempo livre (Degler, 1971). Ou seja, esse mesmo privilégio que
muitos senhores de escravos no Brasil e nos EUA davam aos seus escravos
coadunava-se com prática comum na antiguidade – como examinado -,
exemplificado em Levítico.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
52
No Brasil, era prática comum colocar negros e mulatos em cargos-chave,
como capatazes e caçadores de negros fujões. Nos EUA, era praticamente
impensável colocar pessoas de cor nessas posições, visto que o medo do negro no
país contrastava com a vontade dos senhores brasileiros de utilizar negros como
aliados naturais na subjugação de outros negros (Degler, 1971; Patterson, 1982).
Assim, esses negros e mulatos que exerciam cargos- chave eram hierarquicamente
superiores aos demais, quando não eram livres. Era mais fácil legitimar a
instituição escravocrata e evitar uma consciência “racial” entre os escravos, se
negros e mulatos estivessem em situação hierárquica diferenciada, uns subjugando
os outros.
Parte das altas taxas de manumissão de escravos no Brasil deve-se ao
mulato como “válvula de escape”, isto é, o reconhecimento de um lugar especial
para as pessoas mestiças. A outra parte da explicação reside na necessidade de
mão-de-obra, seja escrava, seja livre, em comparação com os EUA, onde a
população branca era consideravelmente maior – com rápido crescimento (Degler,
1971).
Além disso, a cultura ibérica não valorizava o trabalho manual, como
reitera Sérgio Buarque de Holanda (2002). Como observou Fernando de Azevedo,
lembrando o padre Antonil, os escravos eram as mãos e os pés dos senhores
(Azevedo apud Degler, 1971, p. 245). Como Portugal, faltava no Brasil a moral
protestante que valorizava o trabalho. O trabalho no Brasil era visto como coisa de
escravo, como algo que não conferia dignidade. O trabalho braçal era percebido
como dever dos indivíduos hierarquicamente inferiores, de classes menos
abastadas, de pessoas que não conseguiram ou não puderam ascender socialmente
(Holanda, 2002).
Nos EUA, a hierarquia social baseada no trabalho era apreciada de outra
forma. A sociedade norte-americana não via e não poderia ver o trabalho como
algo exclusivo dos escravos. Os escravos eram a maioria da força de trabalho
apenas em alguns estados do Sul, o que contrasta com a predominância do
trabalho escravo em praticamente todo o Brasil. Ademais, os imigrantes ingleses
levaram para os EUA a crença na virtude do trabalho em oposição à figura do
fidalgo português que preferia desfrutar o ócio. Na sociedade norte-americana, o
branco era hierarquicamente superior aos negros – incluindo os mulatos –, pois
não havia a famosa “válvula de escape” do mulato (Degler, 1971). No Brasil,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
53
havia diversas gradações para as pessoas de cor na hierarquia social, sendo que
quanto mais dinheiro e poder tivesse o indivíduo de cor, mas branco parecia –
conseqüentemente tinha maior status social (Nogueira, 1985; DaMatta, 2000a). Já
nos EUA, mesmo que a pessoa de cor tivesse dinheiro, ela continuava sendo
considerada hierarquicamente inferior, sem o mesmo status social do branco.
Torna-se manifesto a semelhança da sociedade brasileira com a sociedade
grega de Platão e Aristóteles no seguinte aspecto: o trabalho braçal como algo
indigno ao cidadão da polis. Como já comentado, Aristóteles via o trabalho como
algo necessário, mas que deveria ser exercido pelos escravos. Da mesma forma,
no Brasil, o trabalho era visto como necessário, mas não deveria ser exercido
pelos indivíduos de maior hierarquia social. Assim como na Grécia antiga, os
brasileiros de status social superior acreditavam que uns nascem para a sujeição e
outros para governar. Para eles, os escravos não tinham condição intelectual para
tomar decisões, o que os tornava eternos subordinados dos senhores. Como
Aristóteles recomendou (Davis, 2003), os senhores mantinham contato estreito
com os escravos , a ponto de nivelar a hierarquia deles, transformando escravas
em concubinas e amas de leite, escravos em capatazes, etc.
3.2.
Hierarquia e Hegemonia
Antes de discorrer sobre a relação entre hierarquia e hegemonia, vale
responder a seguinte pergunta: os escravos brasileiros constituíam uma classe? A
resposta é menos trivial do que parece. Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet
(1989) ao fazer a mesma pergunta sobre os escravos na Grécia antiga, elencaram
três pontos em comum a qualquer classe. Uma classe é um grupo de pessoas que
ocupa lugar definido na escala social; uma classe social ocupa lugar definido nas
relações de produção; uma classe social supõe a tomada de consciência de
interesses comuns, o emprego de uma linguagem comum, ação comum no jogo
político e social. O próprio Karl Marx, no 18 Brumário de Napoleão Bonaparte,
escreveu que os pequenos camponeses franceses são massa cujos membros vivem
na mesma situação, mas sem estarem unidos uns aos outros por relações
complexas, por consciência de grupo (Vernant; Vidal-Naquet, 1989). Por isso, não
poderiam ser considerados como classe.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
54
Assim, entende-se que os escravos no Brasil não eram uma classe, ainda
que possuíssem características desta. Os escravos tinham lugar definido nas
relações de produção, mas não tinham o mesmo status na escala social. Como já
examinado, havia evidente hierarquia entre os escravos, uns sendo considerados
superiores a outros. Além disso, os escravos, assim como os camponeses
franceses citados por Marx, não possuíam solidariedade e identidade de interesses
comuns que ligassem todos os escravos em um grupo, em uma classe. O máximo
que havia era solidariedade local entre escravos, o que, por vezes, não implicava
todos os escravos locais.
A Revolta dos Malês
mostra que a solidariedade de grupo não funcionava
para todos os escravos. O historiador João José Reis (2003) prova por meio de
depoimentos dados à época da rebelião que os escravos muçulmanos, uma vez
libertados, queriam ter escravos não-muçulmanos. Dessa forma, perpetuar-se-ia a
escravidão, ex-escravos manteriam escravos, ao utilizar a desculpa de que não
eram da mesma religião (Reis, 2003). Outrossim, os católicos utilizaram o mesmo
argumento para escravizar os “hereges” pagãos. Percebe-se que grupo de pessoas
com a mesma religião sentia-se hierarquicamente superior a grupos de outras
religiões, respaldando-se do argumento da superioridade de uma religião sobre a
outra. A Revolta do Malês exemplifica a máxima de George Orwell (1996) “todos
são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”, isto é, todos os escravos
são iguais, mas alguns escravos são mais iguais do que outros.
De acordo com José Murilo de Carvalho (1996), a elite imperial brasileira
é que formava uma classe. A elite imperial tinha consciência de seus interesses
comuns, formava grupo quase homogêneo - forjado pela educação comum e pelo
círculo de amizades. A divisão na política não impedia que o grupo dominante se
unisse em torno de ideais comuns, como a manutenção da unidade nacional e da
escravidão, grosso modo. Pode parecer discutível se todos desse grupo pertenciam
à mesma escala social e se ocupavam lugar definido nas relações de produção.
A chamada Revolta dos Malês registrou-se de 25 a 27 de Janeiro de 1835 na cidade de
Salvador, capital da então Província da Bahia, no Brasil. Consistiu em sublevação de caráter racial,
de
escravos africanos das etnias hauçá e nagô, de religião islâmica, organizados em torno de
propostas radicais para libertação deles. O termo "malê" deriva do
iorubá "imale", designando o
muçulmano. Foi rápida e duramente reprimida pelos poderes constituídos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
55
Certamente, a hierarquia social atuava também nesse grupo, formando ciclo de
dependência entre eles. O que importava, contudo, era a preservação da ordem
social, na qual os mais poderosos e abastados mantinham os demais em sua
dependência, cooptando os demais para sua esfera de influência.
Louis Dumont (1997) esclarece que as pessoas são feitas de idéias e
valores. “Adotar um valor é hierarquizar, e um certo consenso sobre os valores,
uma certa hierarquia das idéias, das coisas e das pessoas é indispensável à vida
social” (Dumont, 1997, p. 66). É completamente natural que a hierarquia englobe
os agentes sociais, as categorias sociais. O ideal igualitário durante o regime
escravocrata brasileiro, e mesmo hoje, é algo superficial, que visa a romper com
milênios de relações sociais pautadas pela hierarquia social. Desde a antiguidade
bíblica, passando pela Grécia e por Roma, a hierarquia social pautou as relações
entre os agentes sociais.
O senso-comum acredita que o racismo corresponde a uma função tão
antiga quanto a hierarquia. Tudo se passa como se o racismo representasse, na
sociedade igualitária, ressurgimento daquilo que se exprimia diferentemente, mais
direta e naturalmente, na sociedade hierárquica. À medida que a distinção social
tornou-se ilegítima, a discriminação passou a existir, a suprimir os modos antigos
de distinção, a ideologia racista emergiu (Dumont, 1997). As sociedades do
passado, inclusive a brasileira, conheciam hierarquia de estatutos que acarretava
privilégios e incapacidades – entre outras, a incapacidade jurídica total, a
escravidão.
A distinção entre senhor e escravo sucedeu a discriminação dos brancos
com relação aos negros. A essência da distinção era jurídica: suprimindo esta,
favoreceu-se a transformação do atributo racial em substância racista. Sendo
assim, a relação senhor-escravo não deve ser compreendida com base em situação
de racismo do senhor para com o escravo. A natureza da relação entre ambos
transcende a mera questão do preconceito de cor. Para os gregos, bem como para
outros como os romanos e os babilônios, os estrangeiros eram bárbaros, pessoas
estranhas à civilização e à religião, podendo, assim, ser escravizados (Dumont,
1997). A partir do momento que o reconhecimento de diferença cultural não pode
mais justificar etnocentricamente a desigualdade, o racismo surge para substituir a
distinção que era pautada pela diferença cultural.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
56
Já nas sociedades igualitárias, a hierarquia continua a ser colocada, mas
dessa vez ligada à fisionomia, à cor, ao “sangue”. Sem dúvida, esses sempre
foram elementos de distinção, mas, nas ditas sociedades igualitárias
contemporâneas, esses elementos tornaram-se a essência. No período
escravocrata brasileiro, como cada “macaco sabia o seu galho”, ou seja, cada
indivíduo sabia seu lugar na sociedade, a distinção hierárquica de poder prescindia
do uso do “racismo” como base do sistema de relações sociais. Na sociedade
escravocrata, a diferença cultural funcionava como o racismo na sociedade
igualitária, ambos com a função de hierarquizar socialmente os indivíduos
(Dumont, 1997). Segundo Talcott Parsons, a igualdade afirma-se no interior de
um grupo que se hierarquiza com relação a outros, como nas cidades gregas
(Dumont, 1997).
O ideal igualitário contemporâneo, diferentemente do regime escravocrata,
proporciona que a igualdade contenha desigualdades em vez de ser contida na
hierarquia. A hierarquia reprimida torna-se latente na sociedade: a hierarquia é
substituída por rede de desigualdades de fato e não de direito, tornando bastante
complicado a definição exata de classes sociais (Dumont, 1997). Como já
dissertado, no período escravocrata brasileiro, a hierarquia substituía a igualdade.
O que aparentemente representava homogeneidade de escravos e de senhores, na
verdade escondia a hierarquia social, com diferenciações no status social de
escravos e senhores.
A idéia de morte social do escravo de (Patterson, 1982) coaduna-se com a
concepção de renunciante de Dumont (1997). Assim como a morte social, o
renunciante abandona seu lugar na sociedade, morre simbolicamente para o
mundo. Como o renunciante, no entanto, o escravo nunca saiu “realmente” da
sociedade, nunca deixou de manter alguma relação de fato com os membros da
sociedade. No caso dos escravos, a inserção destes na sociedade dava-se pelo
senhor, sendo este o responsável por “ensinar” a moral e a cultura escravocrata.
Apesar do autor marxista italiano Antonio Gramsci ter teorizado sobre a
sociedade capitalista, opondo classes nas relações sociais complexas, pode-se
utilizar alguns pontos da obra do autor para identificar características da sociedade
hierárquica escravocrata para o entendimento desta. A ideologia da elite nacional
chegava aos outros grupos, inclusive o escravo, por diversos canais, por meio dos
quais o grupo dominante constrói a própria influência ideal, a capacidade de forjar
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
57
a consciência coletiva, a hegemonia dominante (Gruppi, 2000). Gramsci aponta
alguns canais, como educação e religião. No presente trabalho, indica-se a relação
paternalista das fazendas e engenhos como o principal canal de disseminação da
dominação dos senhores. Aproveitando-se do apoio da Igreja, os senhores
empregavam o poder e o convencimento para moldar o escravo – socialmente
morto – e legitimar a hegemonia do senhor.
Tal dominação era facilitada pela situação social do cativo vindo da
África. Tirado de seu povo, arrancado de sua cultura, o escravo tinha seu código
social – espécie de código genético herdado do convívio no meio social natal –
apagado, ou pretensamente apagado, sendo recondicionado a um novo estilo de
vida, pautado pelo modo de produção escravista (Patterson, 1982). Assim, o
batismo na Igreja, a marca de pertença a um senhor, a suposta inferioridade aos
escravos mais antigos (ladinos), o convivência com meio social alienígena a sua
cultura natal eram elementos, ritos, de recondicionamento social e cultural do
africano trazido ao Brasil (Patterson, 1982). Desse modo, os escravos não tinham
consciência de seus próprios interesses e de sua própria função no sistema
primário exportador.
A hegemonia do senhor não era meramente política, mas, também,
cultural, moral, de concepção das relações sociais. Conquanto houvesse o mulato
como válvula de escape do sistema de relações raciais no Brasil, atenta-se para
um detalhe não explicitado por Degler (1971): não havia, ipsis litteris, um
mediador entre os escravos e os senhores, uma vez que todos os indivíduos que
eram livres, mesmo os mulatos e negros, adquiriam escravos quando podiam,
tornando-se senhores de escravos. Dessa forma, a hegemonia dos senhores,
independentemente da cor, reinava, conservando a unidade ideológica de todo o
bloco social, que era cimentado pela ideologia escravocrata.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
4.
Herança da Escravidão: A Problemática da Miscigenação e da
Hierarquia
Muitos filhos ilegítimos de senhores com escravas aprendiam a ler e a escrever
mais depressa que os meninos brancos, distanciando-se deles e habilitando-se aos
estudos superiores. Muitos mulatos subiram econômica e socialmente pela educação,
enquanto muitos meninos brancos não valorizaram a instrução dando preferências às
frivolidades. O romance O Mulato, de Aluísio de Azevedo (1978), demonstra bem a
ascensão de mulatos: saindo criança de São Luís para Lisboa, Raimundo viajava órfão
de pai, um ex-comerciante português, e afastado da mãe, Domingas, uma ex-escrava
do pai. Depois de anos na Europa, Raimundo volta formado para o Brasil. Passa um
ano no Rio e decide regressar a São Luís para rever seu tutor e tio, Manuel Pescada.
Bem recebido pela família do tio, Raimundo desperta logo as atenções de sua prima
Ana Rosa que, em dado momento, lhe declara seu amor. Essa paixão correspondida
encontra, todavia, três obstáculos: o do pai, que queria a filha casada com um dos
caixeiros da loja; o da avó Maria Bárbara, mulher racista e de maus bofes; o do
Cônego Diogo, comensal da casa e adversário natural de Raimundo.
Todos três conheciam as origens negróides de Raimundo. Com efeito, o
Cônego Diogo era o mais empenhado em impedir a ligação, uma vez que fora
responsável pela morte do pai do jovem. Foi assim: depois que Raimundo nasceu, seu
pai, José Pedro da Silva, casou-se com Quitéria Inocência de Freitas Santiago, mulher
branca. Suspeitando da atenção particular que José Pedro dedicava ao pequeno
Raimundo e à escrava Domingas, Quitéria ordena que açoitem a negra e lhe queimem
as partes genitais. Desesperado, José Pedro carrega o filho e leva-o para a casa do
irmão, em São Luís. De volta à fazenda, imaginando Quitéria ainda refugiada na casa
da mãe, José Pedro ouve vozes em seu quarto. Invadindo-o, o fazendeiro surpreende
Quitéria e o então Padre Diogo em pleno adultério. Desonrado, o pai de Raimundo
mata Quitéria, tendo Diogo como testemunha. Graças à culpa do adultério e à culpa
do homicídio, forma-se um pacto de cumplicidade entre ambos. Diante de mais essa
desgraça, José Pedro abandona a fazenda, retira-se para a casa do irmão e adoece.
Algum tempo depois, já restabelecido, José Pedro resolve voltar à fazenda, mas, no
meio do caminho, é tocaiado e morto. Por outro lado, devagarzinho, o Padre Diogo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
60
começara a insinuar-se também na casa de Manuel Pescada. Raimundo ignorava tudo
isso.
Em São Luís, já adulto, sua preocupação básica é a de desvendar suas origens
e, por isso, insiste com o tio em visitar a fazenda onde nascera. Durante o percurso a
São Brás, Raimundo começa a descobrir os primeiros dados sobre suas origens e
insiste com o tio para que lhe conceda a mão de Ana Rosa. Depois de várias recusas,
Raimundo fica sabendo que o motivo da proibição devia-se à cor de sua pele. De volta
a São Luís, Raimundo muda-se da casa do tio, decide voltar para o Rio, confessa em
carta a Ana Rosa seu amor, mas acaba não viajando. Apesar das proibições, Ana Rosa
e ele concertam um plano de fuga. A carta principal fora interceptada, no entanto, por
um cúmplice do Cônego Diogo, o caixeiro Dias, empregado de Manuel Pescada e
forte pretendente, sempre repelido, à mão de Ana Rosa.
Na hora da fuga, os namorados são surpreendidos. Arma-se o escândalo, do
qual o cônego é o grande regente. Raimundo retira-se desolado e, ao abrir a porta de
casa, um tiro acerta-o pelas costas. Com uma arma que lhe emprestara o Cônego
Diogo, o caixeiro Dias assassina o rival. Ana Rosa aborta. Seis anos depois,
entretanto, vemo-la saindo de uma recepção oficial, de braço com o Sr. Dias e
preocupada com os "três filhinhos que ficaram em casa, a dormir" (Azevedo, 1978).
Carl Degler (1971) pergunta-se por que o sexo inter-racial ser tão comum no
Brasil colonial e imperial. A falta de mulheres no Brasil Colônia pode ser o primeiro
elemento da resposta, quiçá o principal. Os portugueses tinham paixão especial por
mulheres de pele escura, as quais lembravam as mulheres de descendência moura na
Península Ibérica (Degler, 1971; Freyre, 2002). Um cronista do século XVII relatou
que o brasileiro da elite fugiu da invasão holandesa em Pernambuco a cavalo com sua
amante mulata, enquanto sua mulher fugia a pé. Em Minas Gerais, no século XVIII, a
despeito da falta de mulheres nas zonas auríferas, os portugueses aparentavam preferir
as mulatas como amantes – o governo português chegou a proibir que mulheres
brancas voltassem a Portugal. Um viajante estrangeiro que estava na Bahia, em 1718,
concluiu que o fato de muitos brasileiros brancos terem crescido sendo amamentados
por escravas negras explicava o apetite dos brancos por negras e mulatas (Degler,
1971).
De fato, a miscigenação no Brasil foi mais forte do que em outras colônias
portuguesas. No século XVII, por exemplo, a proporção de brancos para mulatos era
de 1 para 3 na Bahia, mas de 1 para 10 em Luanda. Por certo, havia mais colonos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
61
portugueses no Brasil do que nas outras colônias portuguesas, na África e na Índia -
essencialmente presença de estabelecimentos militares nestes (Degler, 1971).
Ademais, as culturas da África e da Índia eram mais resistentes à penetração
portuguesa do que os povos autóctones brasileiros, os quais se miscigenaram com os
portugueses desde o início da colonização (Degler, 1971).
A miscigenação entre brancos e negros no Brasil gerou relacionamento menos
formal e laços não menos aficionados entre ambos os grupos. “In neither society,
then, was it uncommon or unnatural for a White man to show some concern for his
offspring. The difference is that in Brazil this concern, because of the greater amount
of miscegenation, had a larger field in which to express itself” (Degler, 1971, p. 232).
Aqui, a miscigenação influenciou a prática da integração, invadindo ou
derrubando leis discriminatórias. Já nas primeiras décadas depois da Independência, a
sociedade brasileira repudiava as leis discriminatórias dos tempos coloniais. Um
viajante estrangeiro escreveu, em 1835, que há algum tempo as leis que excluíam
mulatos dos escritórios civis e eclesiásticos já haviam caído em desuso. As pessoas de
cor estavam em todas as ramificações da administração pública, das Forças Armadas,
e muitos de excelente família. Algumas leis podiam restringir empregos para pessoas
de cor, mas nada era mais fácil do que desobedecer a lei. Muitas leis persistiam, mas a
sociedade não as considerava, nem era compelida por elas (Degler, 1971). Pessoas de
pele escura não tinham a menor dificuldade de reconhecerem-se como brancos, além
de conseguirem documentos legais que comprovassem sua pureza de origem – como
brancos (Degler, 1971) – galgando, assim, reconhecimento como indivíduos de
hierarquia superior às demais pessoas de cor.
Segundo Degler (1971), norte-americanos, que visitavam o Brasil no século
XIX, reconheceram que a posição de pessoas de cor livres no país era bem diferente
da situação nos EUA. No Brasil tudo parecia a favorecer a liberdade. Se um homem
tivesse dinheiro, liberdade e mérito, não importava o quão negro fosse, nenhum lugar
na sociedade era negado ao indivíduo de cor. D. P. Kidder, um visitante norte-
americano, disse que aqui havia muitas pessoas de cor ricas e que muitas negras
casavam-se com brancos. Estas negras não se incomodavam de usar escravos negros
(Degler, 1971), considerando-se hierarquicamente superior ao escravo.
A miscigenação brasileira possibilitou o que Degler (1971) chamou de “escape
hatch”, o papel do mulato na sociedade brasileira. O mulato seria válvula de escape
que permitiria conter o ódio racial entre negros e brancos. Diferentemente dos EUA, o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
62
Brasil possibilitou que negros e mulatos tivessem menos incentivos para demonstrar
suas competências e habilidades aos brancos. O mulato era uma gradação entre o
branco e o negro, gradação que não existia ns EUA – onde a pessoa de “sangue
misturado” era considerada negra. O mulato (válvula de escape) contribuiu para a
falta de solidariedade entre os negros, visto que os mulatos tendiam a se considerar e a
parecer brancos, sendo que nenhum deles queria ser negro (Degler, 1971).
Sob a pressão de preconceitos, desenvolve-se em mestiços certo complexo de
inferioridade. Um tipo enfático de preconceito é o que Freyre (2002) chama de
“arrivismo do mulato”, quando em situação superior de cultura, de poder ou de
riqueza – ou seja, com hierarquia social superior à de brancos. Exemplos não faltaram
no cenário brasileiro de tais mulatos: Tobias Barreto, Nilo Peçanha, Barão de
Cotegipe, Machado de Assis, entre tantos outros. Historicamente, o mulato tinha mais
propensão à ascensão social do que o negro. Grandes homens de cor do século XIX,
como Luis Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, Machado de Assis e Cruz e
Sousa eram todos considerados mulatos (Degler, 1971).
A Miscigenação teve profundas implicações para o cenário racial brasileiro,
seja avaliada com o preconceito, seja analisada sob a ótica da tão citada harmonia
racial brasileira. Por isso, é importante investigar quais são essas implicações para o
cenário racial brasileiro, as quais estão presentes, grosso modo, até os dias de hoje.
4.1.
DaMatta e Nogueira: a “Fábula das Três Raças” e o Preconceito de
Marca
Antes de começar a explanação, deve-se diferenciar preconceito e prejuízo.
Preconceito é uma atitude, enquanto discriminação é uma ação. Uma pessoa por ter
preconceito contra negros, mas pode não fazer qualquer coisa que os prejudique, pelo
menos não consistentemente. A discriminação é a ação, o que não significa que a
pessoa que a pratique conscientemente saiba que é um reflexo do preconceito. De
forma freqüente, discriminação e preconceito estão intrinsecamente ligados, mas não
sempre. No Brasil, onde a cor e a classe tendem a coincidir-se e onde o impulso dos
valores sociais e atitudes públicas são hostis à discriminação, esta e o preconceito nem
sempre coincidem (Degler, 1971).
Para Oracy Nogueira (1985), o preconceito brasileiro configura-se no
“preconceito de marca, enquanto nos EUA o preconceito é de origem, ou seja, de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
63
descendência. O de marca significa o preconceito em relação à aparência, isto é,
“quando toma por pretexto para a suas manifestações, os traços físicos do indivíduo, a
fisionomia, os gestos, o sotaque” (Nogueira, 1985, p. 17). O de marca determina
preterição, avaliação dos fenótipos, tende a ser mais intelectivo e estético, as relações
pessoais cruzam as fronteiras da marca (cor, traços físicos, etc) e a discriminação é
intermitente. O de origem caracteriza-se pelo traço contínuo, as relações entre
indivíduos do grupos discriminador e do discriminado são severamente restringidas
por tabus e sanções, há exclusão incondicional dos membros do grupo discriminado.
No Brasil, o preconceito é circunstancial, situacional, inconsistente e
relacional (Nogueira, 1985; Telles, 2003). Há vários sistemas de classificação do
indivíduo, o que acarreta em categorias de classificação variadas – as quais também
são influenciadas por classe social e gênero. Assim, uma pessoa rica dificilmente será
vista como “negro”, o mesmo podendo dizer de uma pessoa importante na sociedade.
Ademais, os brasileiros não têm a idéia de pertencimento racial tão forte quanto nos
EUA, onde a consciência de “raça” leva a conflitos entre “brancos” e “negros”. Não
poderia ser diferente, pois o Brasil sempre celebrou categorias intermediárias e evitou
a criação de leis para a classificação “racial”, evitando o conflito entre pessoas de
diferentes cores (Nogueira, 1985; Telles, 2003). Por isso, a classificação racial
brasileira tem sido ambígua; “sistemas múltiplos e categorias são permitidos e os
mesmos indivíduos podem ser classificados legitimamente em mais de uma categoria,
dependendo de quem faz a classificação” (Telles, 2003, p. 132).
No caso brasileiro, embora o cenário seja hierarquizado, sempre temos a
possibilidade de formar triângulos, isto é, sempre há a possibilidade de intermediar as
posições polares do sistema, pela criação de tipos intersticiais, tipos intermediários.
Como o Brasil é um país socialmente (fortemente) hierarquizado, as intermediações
triangulares – em três e nunca em dois, o que conduziria ao sistema binário
exclusivista – servem para evitar a confrontação e o conflito entre grupos estáticos e
separados como nos EUA – onde ou se é branco, ou se é negro, além de poder ser
índio (DaMatta, 2000a; Degler, 1971). O mulato, por exemplo, é considerado por
Degler (1971) como a “válvula de escape” que impede o conflito “racial” no Brasil,
exercendo a função de mediador entre o que é chamado de “negro” e “branco” nos
EUA. De fato, o sistema brasileiro é antiigualitário, fruto de um sistema abrangente de
classificação social fundado na hierarquia.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
64
O racismo à brasileira não foi só uma doutrina concernente à supremacia
política e econômica do “branco” europeu. Aqui, o racismo importado foi modificado,
adquirindo característica peculiar ligada à sociedade hierarquizada - o oposto da
sociedade igualitária norte-americana alicerçada na fórmula “separados, mas iguais”.
“Como a sociedade era hierarquizada, foi relativamente fácil refletir sobre categorias
intermediárias, intersticiais, ponto básico em sistemas onde existem gradações e se
está sempre buscando um ‘lugar para cada coisa’, de modo que ‘casa coisa fique em
seu lugar’” (DaMatta, 2000a, p. 84). Com efeito, o brasileiro faz elogio claro à
mestiçagem, principalmente à mulataria, sobretudo na vertente feminina. Sustentamos
que a mestiçagem, o amálgama dos supostos diferentes, foi utilizada como recurso
basilar da construção da nação, o que implica intrinsecamente construção da
identidade social.
A fábula das três raças foi um instrumento fundamental na concepção da
nação e da identidade brasileira. A fábula pressupõe a mestiçagem, da qual é parte
inseparável, sendo o mestiço considerado por muitos como o “tipo brasileiro”. A
ideologia da mestiçagem nada mais é do que ramificação da ideologia das três raças,
tão bem descrita por DaMatta (2000a), arma necessária para a idéia de pertencimento
do povo brasileiro, como algo uno derivado do amálgama. Tanto é que, ouve-se,
muitas vezes, pessoas dizendo que “todo o brasileiro é ‘misturado’”, ou “todos têm
um pezinho na África”. Assim, aos poucos a “mistura racial” passou a ser
característica inerente ao brasileiro, algo que engendrou a sentimento de
pertencimento entre os indivíduos, fundamental para a edificação da nação. “(...) o
mito das três raças une a sociedade num plano ‘biológico’ e ‘natural’, domínio
unitário, prolongado nos ritos de Umbanda, na cordialidade, no carnaval, na comida,
na beleza da mulher (e da mulata) e na música” (DaMatta, 2000a, p. 70).
Acrescenta-se às palavras do mestre DaMatta que a mestiçagem, hoje, é o
verdadeiro unificador da sociedade, pois, no nosso entender, um país sem grupos
estanques – como os grupos negro e branco nos EUA – possibilita a formação de um
tipo brasileiro criado pela mestiçagem, um tipo nacional e, não de vários tipos
nacionais, como nos EUA. Nos EUA, a palavra “americano” é uma referência
ambígua à nacionalidade. Só não é ambígua quando a relativa homogeneidade social
refere-se aos imigrantes das ilhas britânica e a alguns imigrantes de outras partes da
Europa. Legalmente, significa cidadão. Sociologicamente, a palavra “americano”
perde seu poder de identificação. Tanto é que se perguntarmos a uma pessoa o que ela
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
65
é, a resposta não é americano. Nos EUA, a palavra “americano” não pode vir só, e se
vier, guarda um significado de patriotismo, de repulsa a ideologias estrangeiras
(Glazer; Moynihan, 1963). O grupo étnico na sociedade americana não se tornou um
sobrevivente da era da imigração de massa, mas uma nova forma social. Um irlandês,
por exemplo, que seja protestante e não tenha um sobrenome irlandês distintivo, é
considerado um “americano antigo”, assim como qualquer outro. Um irlandês, assim
como os judeus, que têm sobrenomes distintivos, caracterizadores da etnia, não
conseguem ficar na ambigüidade (Glazer; Moynihan, 1963).
Para Dumont, a hierarquia (ou englobamento) – de um ponto de vista mais
formal – é a relação de um todo (ou um conjunto) com um dos elementos que o
compõem (Dumont, 1997). A hierarquia implica, portanto, princípio de gradação dos
elementos em relação ao conjunto, ou, mostrando de outra forma, ordem de
precedência, na qual uns vêm antes que outros. O exemplo que se utiliza Dumont é o
da Grande Cadeia do Ser, na qual o "mundo é apresentado como uma série contínua
de seres, do maior ao menor", isto é: a Grande Cadeia do Ser apresenta-se como uma
forma na qual as diferenças são reconhecidas, sem deixarem de estar subordinadas à
unidade e englobadas nela" (Dumont, 1997).
Um dos pressupostos fundamentais da abordagem de Dumont (1997) é que a
espécie humana apresenta formas de organização social diferenciadas, que irão
materializar-se de maneira diferente nas sociedades ocidentais (nas quais impera um
aparente igualitarismo), e nas orientais (onde predomina a submissão à hierarquia). A
valorização da ordem é, entretanto, elemento comum a essas duas sociedades, pois ela
é o elemento integrador das diferenças e mantenedor da própria sobrevivência
cultural. Com efeito, na Índia, as camadas diferenciadas da sociedade – as castas – são
vistas como rigorosamente complementares (Dumont, 1997). O racismo à brasileira
forneceu os elementos de uma visão semelhante, colocado no triângulo das raças
quando situa o branco, o negro e o índio como formadores de um padrão racial. A
falta de segregação parece, segundo DaMatta (2000a), estar fundada na ausência de
valores igualitários. Desse modo, as situações de discriminação só tendem a ocorrer
quando o elemento não é conhecido socialmente, quando a pessoa não tem relações
sociais com pessoa alguma do meio que está.
É claro que, nos sistemas hierarquizados, pessoas de cor sofrem discriminação (...)
mas não se pode esquecer que pessoas pobres e até mesmo visitantes ilustres podem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
66
ser discriminados pela simples razão de não terem nenhuma associação firme com
alguém da sociedade local. O maior crime entre nós, ou melhor: no seio de um
sistema hierarquizado, não está em ter alguma característica que permita diferenciar e
assim inferiorizar, mas em não ter relações sociais
(DaMatta, 2000a, p. 77).
Como dilucida DaMatta (2000a), tudo no Brasil coloca-se em gradações. A
priori, no Brasil colonial e imperial, a população dividia-se em duas partes: os livres e
os escravos. Como já discorrido, havia gradações nos dois grupos, dependendo da
condição social do indivíduo. Como afirma Nogueira (1985), o dinheiro e a posição
social tendem a embranquecer a pessoa. Já no período escravocrata brasileiro, a
hierarquia, tão citada por DaMatta (2000a), é a chave para a compreensão da gradação
por cor na Colônia e no Império. Quanto mais pobre e menor círculo de amizades
influentes, mais negro o indivíduo tendia a parecer – menor posição na hierarquia
social. Ao contrário, quanto mais rico e com maior rede de influência social, mais
branca a pessoa tendia a ser considerada pela sociedade. A cor estava nos olhos de
quem via, nos padrões sociais necessários para o indivíduo ser considerado branco –
hierarquicamente superior na escala social.
O folclore brasileiro ilustrava a ridicularização do negro, considerado
socialmente inferior. O negro era ridicularizado e desprezado não só pelas suas
diferenças somáticas, mas, também, pelos acessórios e formas de cultura africana que,
no Brasil, se conservaram peculiares ao negro e não foram assimiladas pelos mestiços
nem pelos brancos no período na Colônia e no Império (Freyre, 1998). Os dizeres
populares durante o Império são exemplificativos: “Negro de luva é sinal de chuva”;
“Bacalhau é comer de negro, negro é comer de onça”; “Negro nagô quando morre, vai
na tumba de bangüê” (Freyre, 1998).
Já contra o mulato, o folclore não ridicularizava do mesmo modo suas
afirmações de ascensão ou vitória social. O mulato foi objeto tanto do despeito do
negro e do caboclo como de sentimentos de rivalidade do branco, tocado pelo
triunfador ou pelo arrivista em privilégios antes de casta ou de classe do que de raça
(Freyre, 1998). Conquanto o negro se ressentia pelo mulato ser considerado
socialmente superior, o branco incomodava-se pela ameaça que a ascensão social do
mulato poderia representar. Exemplos não faltam de mulatos que se tornaram
oficialmente brancos pela sociedade devido a fatores econômicos e intelectuais. Além
disso, as pessoas procuravam negar sua ascendência negra, como expõe Freyre (1998,
p. 643): “Indivíduos alourados evitando que as visitas lhes vissem a avó ou a mãe,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
67
mulata vasta e culatrona.” O meio cultural era de vital influência sobre o indivíduo:
sobre o físico do mestiço que, entre origens diversas, pendiam para origem
socialmente nobre quando a favor dela agiam influências sociais e culturais (Freyre,
1998).
O mulato livre buscava encurtar a distância social entre ele e o grupo
dominante. Por isso, o mulato exagerava o uso do diminutivo, uso um tanto dengoso
segundo Freyre (1998), desejando aumentar a intimidade com as pessoas
hierarquicamente superiores na escala social. “Sinhozinho”, “doutorzinho”,
“padrinho”, “Machadinho”, “Pedrinho”, “branquinho”, entre tantos outros, são
exemplos de diminutivos que representavam a “denguice do mulato” (Freyre, 1998)
na ânsia de diminuir as dificuldades da transição de uma classe para outra. A
intimidade é o ponto central para encurtar as distâncias sociais e possibilitar o
reconhecimento por determinado grupo social.
Por mais que o mulato livre tentasse livrar-se do estigma da cultua africana, a
substância desta permaneceu entre os brasileiros na formação e na consolidação do
Brasil-nação. Na Colônia, as mucamas inconscientemente passavam para as crianças
que cuidavam muito das culturas africanas, africanizando seja a culinária, seja o
português (Freyre, 1998). Mulatas que se casavam com brancos levavam a sua origem
africana para dentro de casa, reavivando valores africanos: substituindo artigos de
vestuário íntimo europeu, cultos domésticos europeus, utensílios e temperos europeus,
pelos quitutes africanos, pelo excesso de adornos no corpo, pelo culto a São Cosme e
Damião, pelo vermelho e amarelo vivos na decoração da casa e pelos vestuários como
a chinela e o xale (Freyre, 1998).
Não é insistência recordar que dentro do regime de economia escravocrata, a
parte branca, e quando muito a mameluca, da população brasileira, é que desfrutou as
melhores oportunidades de desenvolvimento social e intelectual. Ademais, os maiores
apologistas do “arianismo” entre os brasileiros foram os mestiços (Freyre, 1998).
Percebe-se que a miscigenação era vista de diferentes formas pelos atores
sociais. Essas diferenças de pontos de vista levaram a teorias que buscavam a explicar
a miscigenação durante o Império.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
68
4.2.
Teorias sobre a Miscigenação: o foco na eugenia
A antropóloga Verena Stolcke, baseando-se em Arthur Ramos, assere que a
base de qualquer identidade nacional é um patrimônio comum, seja ele original ou
produto de um “mosaico histórico” composto por contribuições de diferentes culturas
(Stolcke, 1998). Para a construção de uma nacionalidade própria, apesar da maioria
negra da população
, o Brasil “branco” recém-independente escolheu o indígena
como símbolo da brasilidade, o “patrimônio” comum aos brasileiros – por influência
do romantismo europeu que pregava o resgate das raízes culturais dos povos,
elegendo símbolos nacionais na História de cada Estado (Alves, 2005). Por falta de
cavaleiros medievos, como os europeus, o índio foi alternativa à construção da
brasilidade e da identidade nacional. Não caberia ao negro tal papel à época da
Independência brasileira, haja vista que, apesar da inegável contribuição africana à
Colônia e, posteriormente, ao Brasil, os românticos queriam os índios como
alternativa à construção da brasilidade, por falta de cavaleiros medievos nos moldes
europeus, e por terem sido os primeiros habitantes de nossa terra brasilis. Com a
questão do desenho da identidade nacional, a “raça” foi vista como fator essencial
para a construção da nação:
Seja pela sua afirmação exótica, na versão romântica de inícios do século XIX; seja
por meio das teorias realistas e mais negativas de finais do século passado; seja na
visão idealizada dos anos 1930; ou na interpretação mestiça e mulata dos nossos dias
– o fato é que ‘a raça’ já deu muito o que falar
(Schwarcz, 1996, p. 153).
Desde os primórdios das ciências sociais no Brasil, a intelectualidade nacional
foi influenciada por teorias científicas deterministas que buscavam estabelecer
diferenças ontológicas entre as raças, ou, para ser mais exato, entre brancos e pessoas
de cor. Os adeptos das tórias deterministas, influenciados por teóricos europeus como
Gobineau, Agassiz e Gustave Le Bon, consideravam a miscigenação como fator que
levaria à degeneração e ao fracasso da nação. Diferentemente da postura romântica da
primeira metade do século XIX, a qual via o indígena como símbolo fundamental do
país, o que fez a mestiçagem ser vista com bons olhos, pelo menos entre brancos e
Num total de 3,8 milhões de habitantes, o Brasil contava, em 1818 – pouco antes da Independência -,
com 1.930.000 negros, 526.500 mulatos e 1.043.000 brancos, segundo o Visconde do Rio Branco
(Alves, 2005).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
69
índios, em fins do século XIX, com a divulgação dos ideais deterministas, o
cruzamento racial passou a ser contestado (Schwarcz, 1993).
Os europeus procuravam justificar a missão civilizadora e colonizadora
européia por meio de razões científicas. Estas eram explicações deterministas sobre a
superioridade dos “brancos” frente a outras “raças”, como a teoria do determinismo
geográfico de Henry Thomas Buckle (1821-62) ou a teoria do determinismo racial de
Arthur de Gobineau (1816-1882). Com efeito, o determinismo racial fora
politicamente endossado na América do Norte, onde a separação das raças “superior”
e “inferior” era sistema bem institucionalizado. “O Brasil, no entanto, era há
demasiado tempo uma sociedade multirracial para que uma segregação estrita, em
linhas birraciais, pudesse ser praticável” (Skidmore, 1976, p. 45). O próprio Arthur de
Gobineau afirmava que “nem um só brasileiro tem sangue puro porque os exemplos
de casamentos entre brancos, índios e negros são tão disseminados que as nuanças de
cor são infinitas” (Gobineau apud Skidmore, 1976, p. 46).
A miscigenação visava ao branqueamento da população brasileira, como já
havia afirmado o diplomata Joaquim Nabuco, ainda no Império. Assim, mormente os
abolicionistas brasileiros previram um processo evolucionista com o “branco”
triunfando gradualmente, sendo a imigração européia de fato tentativa de acelerar o
processo de branqueamento da população e de substituir o braço escravo com o fim da
escravidão (Skidmore, 1976). Os pensadores sociais brasileiros inquietavam-se,
todavia, com a mistura “racial” brasileira, porque utilizavam concepções racistas
européias para justificar a supremacia branca. Além disso, os acadêmicos viam no
branqueamento da população a solução para a construção do povo brasileiro, e,
conseqüentemente, da nação – o negro seria suplantado pelo branco.
O crítico literário Sílvio Romero (1815-1914), por exemplo, dizia que não
havia mais tipos raciais puros no Brasil, pois o produto de séculos de miscigenação
mostrava variados graus de influência dos três elementos formadores da nação: o
branco, o negro e o índio. Para Romero, o branco prevalecera, pois tinha aniquilado os
índios e brutalizado os negros, utilizando-os como “coisas”. O branco fora suplantado,
no entanto, pelo mestiço, seu filho e seu auxiliar, o que possibilitou o caráter de
miscigenação do povo brasileiro. O próprio Romero admitia, contudo, que a idéia de
raça era vaga e os próprios arianos eram fruto do cruzamento de “raças”, mas a idéia
de ambigüidade do conceito de raça não impedia o crítico literário de difundir teorias
racistas recorrentes na Europa, assim como muitos de sua geração (Skidmore, 1976).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
70
Se é mais fácil entender a penetração das teorias racistas no discurso
estrangeiro acerca do Brasil, graças ao “espetáculo das raças”, ou seja, ao amálgama
de raças que aqui existe, difícil é interpretar a sua moda científica entre as elites
intelectuais nacionais. Seja nos Institutos Históricos e Geográficos, nos Museus, nas
Faculdades, as teorias racistas importadas ganhavam força (Schwarcz, 1993).
Acreditava-se que haveria entre as raças a mesma distância percebida entre as
espécies e que, portanto, o cruzamento era fator de desequilíbrio e degeneração. Nas
Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, por exemplo, a
discussão baseada na degeneração sob a miscigenação era tão constante que de acordo
com Lilia Schwarcz (1993), estávamos a um passo do apartheid social.
Outro exemplo era o famoso médico e antropólogo Nina Rodrigues, da
Faculdade de Medicina da Bahia, precursor da medicina legal no Brasil. Na obra As
Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil (1894), o autor defendeu a
criação de dois códigos penais – um para brancos e outro para negros -, justificando
que os últimos não teriam discernimento suficiente para responder por seus atos.
Seguindo os preceitos do darwinismo social, Nina Rodrigues e vários de seus
contemporâneos buscavam diferenciar ontologicamente as “raças”, separando-as
física e judicialmente. Romero (1888) acreditava, todavia, em um mestiço de retorno
à raça pura, que representava esperança num quadro “racial” amplamente
desfavorável e marcado pela degeneração.
Assim, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, especialistas, como
Renato Khel, recomendaram a utilização de técnicas de eugenia, incluindo a
esterilização de mestiços, com a expectativa de aprimorar a suposta raça brasileira
(Schwarcz, 1993). Não muito distante do Rio de Janeiro, na Faculdade de Direito do
Recife, Sílvio Romero (1888) via a solução para a possível degeneração do povo
brasileiro no branqueamento, pregando que “somos mestiços na alma, isso é um fato e
basta” (Romero, 1888, p. 63). Devemos esclarecer, todavia, que Romero,
diferentemente de Rodrigues, conformava-se com a mistura acentuada, na
miscigenação existente em solo brasileiro. Romero, analisando as obras de
antropólogos da época, como Le Play e Herbert Spencer, concluiu que estava na
mestiçagem a saída da deterioração do país, recaindo sobre o mestiço – melhor
adaptado ao meio – as esperanças do autor de que a nação se recuperaria da
degeneração (Schwarcz, 1993).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
71
Os escravos recém-libertados incorporaram-se a estrutura social multirracial e
paternalista, que de há muito ensinara aos homens livres de cor os hábitos de
deferência no trato com empregadores e outros superiores, no que Roger Bastide
chamou de sociedade pós-industrial (Skidmore, 1976). A cor da pele, a textura do
cabelo e outros traços físicos determinavam a categoria racial em que a pessoa era
posta por aqueles que ficava conhecendo. A reação do observador podia ser também
influenciada pela aparente riqueza ou provável status social da pessoa julgada, então,
pelas suas roupas e pelos seus amigos – e qualquer similaridade com os dias atuais,
não é mera coincidência. Esse quadro conforma-se com as idéias já apresentadas de
Oracy Nogueira (1985) e DaMatta (2000a).
O Brasil nunca teve um sistema birracial rígido, como o norte-americano.
Existe uma categoria intermediária chamada de mulato, ou mestiço.
“A observância
estrita da endogamia com base na cor, santificada por lei nos Estados Unidos na
década de 90, jamais existiu aqui” (Skidmore, 1976, p. 56). Pode-se dizer que o
mulato foi a figura central da “democracia racial” brasileira, por ter escalado
permissivamente – embora com limitações ao cume social mais elevado. Os limites
sociais da sua mobilidade dependiam sem dúvida da aparência e do grau do que
Skidmore chamou de “brancura cultural” que era capaz de atingir.
Quais foram, todavia, os fatores que mais contribuíram para a formação da
sociedade multirracial brasileira? A existência de numeroso contingente de homens
livres de cor criou modelos para a existência futura dos escravos alforriados. Quando
veio a Abolição, o Brasil já tinha experiência com milhões de homens livres de cor. É
plausível que a escassez de mão-de-obra branca especializada e semi-especializada
tivesse forçado os colonizadores europeus a legitimar a criação de uma categoria de
homens livres de cor, capazes de desempenhar certas tarefas. Por certo, o mesmo
processo continuou pelo século XIX. Outro fator foi a taxa mais baixa de fertilidade
dos pretos brasileiros, em comparação com a dos norte-americanos, o que contribuiu
substancialmente para o processo de “branqueamento”. Finalmente, a relativa
ausência de sectarismo produziu um sistema multirracial (Skidmore, 1976).
(...) homens livres de cor tiveram importante papel no Brasil muito antes da
Abolição.
Haviam conseguido atingir considerável mobilidade ocupacional –
Como lembra Skidmore (1976), a palavra mestiço em português significa “de sangue misturado”, o
que inclui qualquer mestiço de fundo racial: índio, africano e europeu.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
72
admissão a ocupações especializadas e, até, ocasionalmente, a posições preeminentes
como artistas, políticos e escritores – enquanto a escravidão ainda era dominante em
todo o país. Tais oportunidades econômicas e sociais – abertas aos homens livres de
cor – dão prova de que o padrão multirracial da categorização racial estava
firmemente estabelecido muito antes de 1888
(Skidmore, 1976, p. 60).
Segundo DaMatta (2000a), a história do Brasil no século XIX e começo do
século XX foi pensada como uma “história de raças”, estas eram consideradas as
forças impulsionadoras de “tudo o que acontecia”. A partir do tema racial, tentava-se,
de certa maneira, compreender a história do Brasil proposta já desde os primeiros
anos do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil pelo naturalista Von Martius.
Começou-se, assim, a explicitar a especificidade nacional que estaria baseada na
presença de três raças fundadoras, as race founders, com potenciais distintos. O negro
era tido como fator de atraso da civilização, o que expressava a convergência de
idéias entre o Instituto e os intelectuais da época, os quais tendo como modelo uma
história católica, patriótica, evolucionista tinham a consciência de que mesmo que o
negro fosse uma das raças fundadoras da nação, ela era inferior à raça branca,
européia (Schwarcz, 1993). Assim sendo, muito poderia ser dito a respeito das teorias
racistas e de seus adeptos no Brasil, mas o fundamental é verificar que tais teorias
desautorizavam a igualdade e atribuíam aos negros e mestiços a culpa pelos males
brasileiros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
5.
Conclusão
Seja na antiguidade bíblica, seja na Idade Média dominada pelo
catolicismo, a instituição escravocrata era legitimada pela gramática social de
diferentes tempos e sociedades. Não por acaso, as principais potências mundiais
de todos os tempos, de Roma aos EUA, já praticaram, de uma forma ou de outra,
o escravismo.
Como analisado, os pensadores de diferentes tempos e regiões, de Platão a
Locke, defendiam o escravagismo. Por mais que alguns criticassem a instituição,
os expoentes dos pensadores de outros tempos percebiam a necessidade da
hierarquia baseada no escravismo como meio de manutenção da ordem social. Por
isso, com base nos autores clássicos estudados, a instituição era considerada
necessária. O fundamento era o seguinte: se mesmo os deuses na Grécia e em
Roma, e os anjos no judaísmo e no cristianismo, tinham patamares hierárquicos
diferentes, por que na terra seria diferente? Vale relembrar que a Bíblia contém
código de conduta para os proprietários e os escravos. Além disso, na Grécia
antiga e no Brasil, por exemplo, o trabalho braçal era observado com desprezo,
com sentimento de repulsa, o que favorecia a utilização de pessoas
hierarquicamente inferiores na pirâmide social para os trabalhos repugnados pela
elite.
O Brasil herdou a instituição escravocrata dos europeus e dos africanos.
Embora tenha havido peculiaridades no regime escravocrata brasileiro, o
escravismo não pode ser reputado como traço distintivo do Brasil em comparação
a outras sociedades. O que se deve fazer é analisar o escravagismo brasileiro
como herança de outros povos, cabendo precisar as nuanças do cenário brasileiro.
“O Brasil é criação dos brasileiros” e não dos portugueses (Boxer, 1967, p.
9). Tanto a cultura quanto a sociedade foram moldadas pela influência das três
“raças” que foram o alicerce de criação da sociedade brasileira. Mesmo assim, as
relações entre as diferentes culturas e povos foram sempre assimétricas –
característica basilar de qualquer sociedade escravista. Por vezes, o Brasil foi
destacado como “o inferno para os negros, o purgatório para os brancos e o
paraíso para os mulatos”, como bem salientou o padre Antonil (DaMatta, 2000b).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
75
Na prática, porém, a miscigenação, vista por teóricos europeus do século
XIX como a maior mazela da sociedade brasileira, contribuiu para integrar a
sociedade. Integração esta que deve ser entendida pela ótica da hierarquia social,
que não pode consistir apenas em hierarquia de poder. Pelo contrário, a hierarquia
consistiu no elemento capaz de trazer a relativa paz entre as “raças três”, o
elemento que possibilitou a visão de muitos da elite nacional de que o
desenvolvimento nacional passaria pela miscigenação. Esta possibilitaria o
branqueamento da população, o que livraria a sociedade nacional do estigma da
cor.
A hierarquia social e a miscigenação foram as duas principais heranças do
“Brasil escravocrata”, as chaves para a compreensão do Brasil que veio com a
abolição e a proclamação da República. Deve-se considerar a hierarquia, no
entanto, herança das instituições escravocratas pretéritas, importante característica
das relações sociais em boa parte do mundo antigo. Já a miscigenação, embora
tenha existido em outras sociedades, recebeu contornos especiais na formação do
Brasil.
O Brasil foi o único país de que se tem notícia que vislumbrou o
desenvolvimento nacional por meio do clareamento da população. Não poderia
ser, portanto, diferente o surgimento do mulato como “válvula de escape”, como
gradação intermediária entre o branco e o negro. Assim, a miscigenação, que era
vista na Europa como um mal, aqui ganhou a peculiaridade de ser aliada natural
do desenvolvimento da sociedade brasileira. Nem mesmo nas colônias espanholas
na América, a miscigenação contribuiu para a caracterização dos povos que ali
emergiram (Freyre, 2002; Boxer, 1967). Lembre-se de que os mestizos das
colônias espanholas não tinham a facilidade do mestiço brasileiro de ascender na
hierarquia social, seja pelo dinheiro, seja pela educação.
Hierarquia e Miscigenação andaram de mãos dadas na formação do povo
brasileiro, visto por muitos como o mestiço. Muitos indivíduos de cor buscavam
miscigenar-se com pessoas brancas para que os filhos tivessem a pele mais clara,
e, assim, pudessem ser considerados brancos, ou seja, hierarquicamente
superiores. A lógica da hierarquia transcendia, como já analisado, a miscigenação.
Como Nogueira (1985) e DaMatta (2000a) afirmam, o dinheiro, o poder, as
relações sociais e a educação são mecanismos de ascensão das pessoas de cor para
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
76
galgar degrau maior na escala social. Não é à toa que no Brasil se diz que “o
dinheiro embranquece a pessoa”.
No pensamento de Dumont (1997), todavia, a passagem da sociedade
escravocrata hierarquizada para a “República igualitária” transferiu a ênfase da
discriminação para a cor dos indivíduos. Antes, todos sabiam seu lugar na
sociedade brasileira, apesar de haver mobilidade social e, conseqüentemente,
hierárquica. Com o aprofundamento do ideal igualitário, a lógica inverteu-se,
dando lugar à busca utópica de um mesmo patamar hierárquico para todos. Por
conseguinte, os indivíduos da base da pirâmide social passaram a não reconhecer
“seu lugar no galho”. Assim, os indivíduos mais privilegiados na escala social
enfatizaram a diferenciação de cor para manter os indivíduos hierarquicamente
inferiores no “lugar certo”. Embora a lei mantenha os indivíduos em mesmo
patamar hierárquico, o código social brasileiro estipula a diferenciação hierárquica
dos brasileiros. Daí a famosa frase “desiguais, mas juntos” (DaMatta, 2000b).
A sociedade brasileira não se reduz, contudo, a uma simples dialética
entre senhores e escravos, favores e leis, igualitarismo e hierarquia, mas a um
sistema em que a relação entre elementos é crítica. Está-se diante de um sistema
social fundado na relação, no elo, no intermediário (como o mulato) que promove
a dinâmica social,
criando zonas de conversação entre posições polares rigorosamente exclusivas de
um ângulo prático ou individualista. Desta posição, talvez fosse possível revelar
que seria somente numa sociedade profunda e convictamente escravista que o
liberalismo poderia se erguer como uma ideologia do ‘radical chique’ e até
mesmo como modelo político ideal
(DaMatta, 1997, p. 103).
DaMatta (1997) retoma Louis Dumont (1997) ao afirmar que as posições
sociais estão relacionadas por uma lógica complementar. O englobador pode ser o
escravismo – no caso da casa-grande, quando se falava dos escravos como gente
relacionada aos senhores por simpatia e lealdade – ou o liberalismo impessoal
fundado nas leis e fundado na agora (praça pública): no mundo da rua, onde as
leis valem para todos, onde todos são “uma pessoa como qualquer outra”. A
dialética do englobador e do englobado ensina um fato crucial: a relação é um
dado estrutural básico da realidade social brasileira.
Parece curioso que uma sociedade hierárquica e com passado escravista
institua algo como o “favor”, que requer equivalente moral entre as pessoas,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
77
exigindo delas a reciprocidade. “Se o sistema assume a desigualdade e os
benefícios estão orientados para mantê-lo, o favor estabelece um meio de
relacionar pessoas sem extinguir ou ameaçar sua descontinuidade social, mas, ao
contrário, reforçando-a” (DaMatta, 1997, p. 105). Como escreve Roberto Schwarz
(1982), o favor é a mediação quase universal brasileira. O favor pratica a
dependência da pessoa, a exceção à regra, remuneração e serviços pessoais.
Em sistema como o brasileiro - no qual o valor fundamental é relacionar,
juntar, conciliar, incluir, mas nunca excluir - sintetizar modelos e posições parece
constituir aspecto importante da ideologia brasileira dominante. No Brasil, junção
e hierarquia andam de mãos dadas, incorporadas na fórmula “diferentes, mas
juntos”. Aqui, o sujeito não é o indivíduo, mas também a relação, o ponto de
ligação (DaMatta, 1997).
Não por acaso, o Brasil é o país das festividades, já que estas são
mecanismos de relacionamento, um meio de elo entre diversos domínios sociais.
Assim, festas como o Carnaval e as festividades esportivas possibilitam a reunião
de domínios sociais, realizando experiência substancial de vivência da totalidade.
Da mesma forma, são igualmente básicas a busca por ideologias inclusivas como
o positivismo, o racismo e o marxismo, já que a retotalização do sistema é algo
obsessivo na dinâmica social brasileira. A totalização pelas festividades e pela
ideologia parece ser função clara de uma sociedade dividida em muitos domínios
e éticas (DaMatta, 1997).
Duas dessas éticas são a hierarquia e o individualismo. Dois elementos que
aparentemente são antagônicos, mas convivem no Brasil em relativa harmonia. A
sociedade escravocrata e hierárquica deu lugar à sociedade baseada no
liberalismo. Este foi implantado aqui como modelo pronto vindo dos EUA e da
Europa. Por isso, Roberto Schwarz (1982) escreve que havia no país “idéias fora
do lugar”. Por sua mera presença, a escravidão indicava a impropriedade das
idéias liberais. Como foi possível, no entanto, conciliar o liberalismo igualitário e
a hierarquia?
Dumont (1997) tem a resposta ao atestar que o racismo foi pedra angular
da coexistência do liberalismo e da hierarquia. Em uma sociedade patriarcalista e
patrimonialista, fortemente hierarquizada, esta não tinha meios de ser colocada a
termo de uma hora para outra. Mesmo o igualitarismo liberal não foi capaz de
suprimir a hierarquia. Assim, o racismo configurou-se como uma perversão da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
78
hierarquia (Dumont 1997; Myrdal, 1972). A pergunta de Myrdal (1972), de como
encaixar o negro marginalizado na sociedade igualitária, é elucidativa para o caso
brasileiro. Com o amálgama de liberalismo e hierarquia, vários sistemas sociais
surgiram paralelamente na sociedade brasileira. A ambigüidade passou a ser um
valor que passava a impressão de que não há racismo. Desde de que “cada macaco
ficasse no seu galho” não haveria problemas entre os diversos grupos sociais.
O racismo só apareceria, todavia, quando alguém hierarquicamente
inferior buscasse tornar-se efetivamente igual socialmente a outro. Este tentaria,
então, mostrar sua posição superior na hierarquia social, como ilustra a fórmula
“sabe com quem você está falando?” (DaMatta, 2000b) . As leis foram inócuas
para nivelar os cidadãos, haja vista que letras e papéis podem pretender a
regulação da sociedade, mas nem sempre conseguem sobrepor-se aos códigos
sociais. O racismo, por exemplo, é insistentemente repudiado e proibido por leis
que, muitas vezes, ficam na retórica e pouco ajudam no combate às
discriminações, seja de negros, seja de judeus, seja de homossexuais.
Como as leis escritas não mudam sempre em consonância com as leis
sociais, a sociedade igualitária brasileira não passa de ficção. Ficção forjada para
“encobrir” a hierarquia social, herança dos tempos da escravidão. Essa ficção, no
entanto, deve ser considerada como uma pretensão e nunca como algo que poderá
ser atingido. Embora desejável, a igualdade de todos representa a velha utopia
defendida por muitos teóricos ao longo da História. Da teoria para a realidade
existe, entretanto, uma abissal distância que muitos resistem a perceber.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
6.
Referências Bibliográficas
ALVES, J. A. Lindgren. Os Direitos Humanos na Pós-Modernidade.
São Paulo: Perspectiva, 2005.
AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. 2. ed. - São Paulo : Atica, 1978.
BÍBLIA. Português. Biblia Sagrada. 3. ed. São Paulo : Paulinas, 1969.
BOXER, C. R. (Charles Ralph). O Império Colonial Português. Lisboa:
Edições 70, 1969.
__________. Relações raciais no império colonial português, 1415-
1825. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política
imperial ; Teatro de sombras : a política imperial. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1996.
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala a colônia. São Paulo : Difel, 1966.
_________. Da Monarquia a República. 6. ed. São Paulo: Unesp, 1999.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
DAMATTA, Roberto. Dona Flor e seus Dois Maridos: um romance
relacional. In: A casa & A Rua. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
________. Digressão: A Fábula das Três Raças. In: Relativizando: uma
introdução à antropologia social. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000a.
_________. O que faz o brasil, Brasil ?. 11. ed. Rio de Janeiro: Rocco,
2000b.
DANDAMAEV, Muhammad A.; POWELL, Marvin A.; WEISBERG, David
B. Slavery in Babylonia: from Nabopolassar to Alexander the Great (626-
331 B.C.). Rev. ed. DeKalb, Illinois: Northern Illinois University Press,
1984.
DAVIS, David Brion. O Problema da Escravidão na Cultura Ocidental.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
80
DEGLER, Karl. Neither Black Nor White: Slave and Race relations in
Brazil and the United States. New York: The Macmillan Company, 1971.
DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: o sistema das castas e suas
implicações. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 1997.
ELKINS, Stanley. Slavery: a problem in American Institutional and
Intellectual Life. 3. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1976.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 46 ed. Rio de Janeiro:
Record, 2002.
__________. Sobrados & Mocambos. 10. ed. Rio de Janeiro: Record,
1998.
GLAZER, Nathan; MOYNIHAN, Daniel. Beyond the Melting Pot: the
Negroes, Puerto Ricans, Jews, Italians, and Irish of New York City.
Cambridge: The MIT Press, 1963.
GRÓCIO, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Ijuí, RS: UNIJUÍ, 2004.
GRUPPI, Luciano. O Conceito de Hegemonia em Gramsci. 4. ed. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 2000.
HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo : Martins Fontes, 1992.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado
eclesiástico e civil. 3. ed. - São Paulo : Abril Cultural, 1983.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
MAGNOLI, Demétrio. Relações Internacionais: teoria e prática. São
Paulo: Saraiva, 2004.
MORE, Thomas. A Utopia. 21. ed. São Paulo: Ediouro, [19--] .
MYRDAL, Gunnar. An American Dilemma: The Negro Problem and
Modern Democracy. 2. v. New York: Pantheon Books, 1972.
NOGUEIRA, Oracy. Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de
Origem. In: Tanto Preto quanto Branco: Estudo de Relações Raciais.
São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1985.
ORWELL, George. Animal Farm. USA: Penguin Group, 1996.
PATTERSON, Orlando. Slavery and Social Death. Cambridge: Harvard
University Press, 1982.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
81
POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens da nossa época.
Rio de Janeiro: Campus, 1980.
REIS, João José. Notas sobre a Escravidão na África Pré-Colonial.
Estud. afro-asiát. Rio de Janeiro, n. 14, setembro 1987.
____________. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história
do levante dos malês em 1835. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
RODRIGUES, Raymundo Nina. As Raças Humanas e a
Responsabilidade Penal. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1957.
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1888.
SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: Raça e Nacionalidade no
Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas: forma literária e
processo social nos inicios do romance brasileiro. 4. ed. São Paulo : Duas
Cidades, 1992.
STOLCKE, Verena. Brasil: uma nação vista através da vidraça da “raça”.
Revista de Cultura Brasileña. Madrid, n.1, março de 1998.
TELLES, Edward. Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva
sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
THORNTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do
mundo Atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier: Campus, 2004.
TOCQUEVILLE, Alexis de; FURET, François. A democracia na América:
leis e costumes : de certas leis e certos costumes políticos que foram
naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social
democrático. São Paulo: M. Fontes, 1998.
VENDRAME, Calisto. A escravidão na Biblia: (com uma reflexão
preliminar sobre a escravidão no mundo greco-romano e na civilização
ocidental). São Paulo: Atica, 1981.
VERNANT, Jean Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Trabalho e escravidão
na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1989.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0521348/CA
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo