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Denise do Passo Ramalho
TROCANDO TAREFAS – Meu caso de amor de
leitora com a obra de Lygia Bojunga
Tese apresentada no Programa de Pós-graduação em
Letras – literatura brasileira da Puc-Rio como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutor.
Professora orientadora: Eliana Yunes
Rio de Janeiro
Abril de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210339/CA
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Denise do Passo Ramalho
TROCANDO TAREFAS – Meu caso de amor de
leitora com a obra de Lygia Bojunga
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de
Doutor pelo programa de Pós-Graduação em Letras do
Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
________________________________________
Profa. Eliana Lúcia Madureira Yunes Garcia
Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio
_______________________________________________
Profa. Rosana Kohl Bines
Departamento de Letras – PUC-Rio
_______________________________________________
Profa. Solange Jobim e Souza
Departamento de Psicologia – PUC-Rio
_______________________________________________
Profa. Edwiges Guiomar dos Santos Zaccur
Departamento Sociedade Educação e Conhecimento – UFF
____________________________________________________
Profa. Ana Maria Clark Peres
Faculdade de Letras - UFMG
_______________________________________________
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, ______ de ___________________ de ________.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210339/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial deste trabalho sem a autorização da
universidade, da autora e do orientador.
Denise do Passo Ramalho
Graduou-se em Português-Literaturas pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1983.
Concluiu na PUC- Rio o curso de mestrado em 1996.
Atua na área da educação, no ensino de Literatura
Brasileira e coordena curso de atualização para
professores da rede particular de ensino.
Ficha Catalográfica
CDD: 800
Ramalho, Denise do Passo
Trocando tarefas : meu caso de amor de
leitora com a obra de Lygia Bojunga / Denise do
Passo Ramalho ; orientadora: Eliana Yunes. –
Rio de Janeiro : PUC, Departamento de Letras,
2006.
122 f. ; 30 cm
Tese (doutorado) Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Letras.
Inclui referências bibliográficas.
1. Letras Teses. 2. Lygia Bojunga. 3.
Leitor. 4. Leitura. 5. Experiência. 6.
Transformação. 7. Intertextualidade. 8.
Literatura infanto-
j
uvenil. 9. Recepção. 10.
Intersubjetividade. I. Yunes, Eliana. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.
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Para Fernanda, que vê a obra de Lygia do mesmo
modo que eu e a quem eu vejo como a leitora, o ser
humano, a cidadã que a obra de Lygia é capaz de
formar.
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Agradecimentos
À Professora Eliana Yunes, minha orientadora, que, mais uma vez, com seu saber e sua
enorme generosidade me deu muito mais do que o apoio necessário, me deu o seu afeto.
À Coordenação de Pós-graduação do Departamento de Letras.
À PUC-RIO e CAPES ,pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não seria
possível.
A Nelson e à Luiza, Fernanda e Julia, meus parceiros na vida, por todo o amor, o apoio, o
incentivo que me deram e dão em tudo o que faço.
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RESUMO
Ramalho, Denise do Passo; Yunes,Eliana. Trocando tarefas – meu caso de amor
de leitora com a obra de Lygia Bojunga. Rio de Janeiro, 2006, 122p. Tese de
Doutorado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
Trocando Tarefas – meu caso de amor de leitora com a obra de Lygia Bojunga
analisa a formulação de uma proposta de formação do leitor na obra da autora. Através da
constante troca de papéis proposta na obra entre autor/leitor/personagens, Lygia estimula a
leitura como um processo de transformação em que a experiência do leitor, do autor e da
obra interagem no sentido de gerar um deslocamento, estimulando o pensamento reflexivo
e o compromisso dos sujeitos envolvidos nesse processo – autor/leitor – com a
coletividade, com o tecido social. A leitura, sob esse ponto de vista presente na obra da
autora, insere socialmente aquele que a produz a partir da compreensão das
intertextualidades que se estabelecem na obra e no contexto social no qual ela é produzida .
Palavras- chave
Lygia Bojunga, leitor, leitura, experiência, transformação, intertextualidade,
literatura infanto-juvenil, recepção, intersubjetividade.
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Abstract
Ramalho, Denise do Passo; Yunes, Eliana (Advisor). Exchanging tasks – my love
affair with Lygia Bojunga’s, Rio de Janeiro, 2006, 122p. Doc. Dissertation –
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Exchanging tasks – my love affair with Lygia Bojunga’s work analyses the
formulation of a proposal of reader’s formation in the work of the author. Through the
constant shift of roles proposed in the work among author/reader/ characters, Lygia
stimulates reading as a process of transformation in which the experience of the reader, the
author, and the work interacts in a way to make a shift, stimulating the reflexive thinking
and the commitment of the subjects involved in this process – author/ reader – with the
colectivity, with the social matter. The reading, from this perspectivewhich is present in the
author’s work, socially inserts those who produce it from the comprehension of the
intertextualities that are stablished in the work and in the social context in which it is
produced.
Key words
Lygia Bojunga, reader, reading, experience, transformation, intertextuality, child-
teen reading, reception, intersubjectivity.
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Sumário
1. “Para você que vai me ler” 10
2. Alargando a troca: a construtora em construção 25
2.2. Sob as reinações de Lobato 28
2.2.1. A imaginação libertando o pensamento 28
2.2.2. A linguagem: argila que fabrica tijolos 39
2.3. Dostoievski e Poe: personagens e ambientes 47
2.3.1. Moldando as personagens que habitam as casas 49
2.3.2. A casa habitada: que jeito tem? 54
2.4. Falando o milagre, deixando de lado o santo 57
2.5. Rilke e Fernando Pessoa: poesia na casa 59
2.5.1. A obra como identidade 60
2.5.2. Fernando Pessoa: encantamento pela linguagem 62
3. A arte como mediação 65
3.1. O carnaval, o circo, o teatro 67
3.2. Entre tintas e massas 73
3.3. Nós três e O abraço: a mediação impossível 81
3.4. A troca: uma profissão de fé 87
4. Três pedaços da laranja 90
4.1. O leitor na paisagem da obra 100
4.2. Ana paz e Carolina: um percurso 104
5. Autor-leitor-personagens: trocar tarefas, pra quê? 108
6- “Pra você que me leu” 118
7- Bibliografia 120
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Gostaria que essa aura de pressentimentos e dúvidas significasse para o leitor
destes escritos não um obstáculo acidental para a compreensão do que
escrevo, mas sim a própria substância do que escrevo; e se a cadeia de meus
pensamentos parecer fugidia a quem tentar segui-la com base em hábitos
mentais radicalmente mudados, o importante será que se transmita o esforço
que faço para ler nas estrelinhas das coisas o sentido evasivo do que me
espera.
( Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno)
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1.
“Para você que vai me ler”
As teorias literárias contemporâneas ressaltam a importância do papel do leitor na
produção de sentidos no texto, mais ainda, sublinham a responsabilidade desse leitor em
construir e fundamentar suas leituras. Pensar o texto literário como um espaço onde,
criativamente, essa questão esteja formulada permitirá um novo olhar sobre a função da
própria literatura, bem como sobre a questão da responsabilidade do autor e do leitor. Além
disso, a questão da formação do leitor é sempre abordada no campo da teoria e dela migra
para uma “aplicação” nos textos literários. É importante, portanto, estabelecer uma
contramão nesse processo: a própria literatura criando processos formação do seu leitor, ou,
melhor ainda, criando os mecanismos que permitem a um texto literário ser o formulador
de uma prática de formação do leitor .
Esse foi o objeto de estudo que primeiro se apresentou, quando da escolha da obra
de Lygia Bojunga e do tema – a formação do leitor –, como enfoque central do estudo que
se vai desenvolver. A partir daí foi-se levantando uma série de questões que justificam tal
escolha.
Identificada com o público infanto-juvenil, a obra de Lygia está longe de se
caracterizar por um discurso que subestima a capacidade de leitura e articulação de saberes
da criança. Muito pelo contrário, é o olhar da criança que vai descortinando temas dos mais
complexos: a identidade, a morte, o medo, a verdade, o suicídio, o assassinato, o
preconceito, as relações familiares, a intolerância, tudo isso e mais ainda está nos livros da
autora, ao alcance do olhar e da experimentação da criança e do jovem, numa linha
lobatiana, como reconheceriam seus críticos mais argutos.
Portanto, a obra propicia o estudo de uma série de representações feitas a partir da
infância e que se projetam para diante – já que se identifica nos textos da autora uma
proposta de acompanhar a experiência de seus leitores ao longo de sua formação. Nos
livros iniciais, Os Colegas e Angélica, o compromisso com o leitor infantil se estabelece
claramente na escolha dos animais como personagens; em A bolsa amarela a protagonista
já é uma menina de 7 ou 8 anos e, a partir daí as obras de Lygia darão voz sempre a
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crianças e jovens até que em Retratos de Carolina, seu último livro, se realiza o percurso
completo da infância à maturidade da personagem.
Destaca-se, portanto, o valor dado à experiência. Há nos textos de Lygia um
respeito profundo pela experiência, em todos os níveis, seja ela da criança, do jovem,
personagens, do leitor como da própria autora. A narração é sempre do vivido, mesmo
quando a fantasia tome conta das histórias jamais é pelo viés da alienação, mas antes para
resgatar experiências, tornando possível compreender e lidar com o que se apresenta.
Cláudio – em Meu amigo o pintor – , Lucas – em Seis vezes Lucas – são exemplos
de personagens que, sendo crianças, encontram os meios para atravessar episódios difíceis
de suas vidas, ignorando o fato de os adultos os considerarem “infantis” e, portanto,
incapazes de lidarem com a realidade em determinadas situações. A esse respeito, Walter
Benjamin, em artigo publicado no livro Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a
educação, diz que o adulto muitas vezes menospreza a verdadeira experiência das crianças
e jovens – a que é dotada de espírito – em detrimento do que considera experiência de vida,
ou seja, a que conduz ao conformismo e a mesmice: “(...) de antemão ele (o adulto)
desvaloriza os anos que estamos (jovens) vivendo, converte-os na época das doces asneiras
que se cometem na juventude, ou no êxtase infantil que precede a longa sobriedade da vida
séria.” (Benjamin,2002: 21-22)
O tratamento dado à criança na obra de Lygia vai de encontro a essa desvalorização.
O olhar da criança e do jovem são os condutores da maioria de suas histórias. A partir do
seu ponto de vista é que a vida se desenrola como espaço privilegiado da experiência e do
que se pode extrair da mesma. Justamente por isso é que essa obra também captura o leitor
adulto; por possibilitar o resgate de uma experiência a partir da recuperação do olhar
infantil.
A representação da infância e da juventude passa a estar vinculada à necessidade da
experiência e, sobretudo, da tomada de consciência de si mesmo e a recuperação da
memória como um caminho de transformação. Esse aspecto é marcante nos primeiros
livros – aqueles que têm um universo mais voltado para o leitor infantil ( basta citar
Angélica e seu compromisso com a verdade ) – que sabe como ninguém diferenciar da
fantasia.
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A palavra experiência será presença constante neste trabalho. Tal palavra é
praticamente uma chave na / da obra de Lygia, portanto é necessário explicitar com que
conceito aqui se trabalha quando se faz referência à experiência. Trabalha-se aqui com o
conceito de Benjamin e de Larrosa, leitor de Benjamin. Walter Benjamin, em seu artigo
Experiência e pobreza, publicado no volume I de suas obras escolhidas (1985), aponta o
fato de não ser mais possível, em nosso tempo, falar de experiência como uma história
exemplar, não há mais garantias ou segurança de que as histórias pessoais se transmitam
como tais narrativas exemplares, modelos de vida. Assim, diante de uma realidade
fragmentada, em que as certezas dos homens se perdem, só é possível pensar experiência
como quebra de hábitos, reestruturação do que cada ser humano vive em sua coletividade.
O percurso do ser humano, na tentativa de estruturar sua existência, é o da construção
cotidiana, o exercício de compreender passo-a-passo os acontecimentos, refletindo sobre
eles e buscando uma forma de expressão que leve ao entendimento da realidade. Deste
modo, não se acredita numa experiência vivida por outros, em narrativas exemplares que
passem a servir de modelo. O que a obra de Lygia proporciona a seus leitores é a
possibilidade de construir um percurso a partir do que a vida se lhes oferece.
Quando a autora propõe a seus leitores ( crianças, jovens e adultos ) temas tão
dilacerantes como o abandono, o suicídio, o assassinato, a desintegração familiar, o
preconceito, a indiferença e a morte, os coloca diante não de histórias que resgatam a paz e
a serenidade, ou que lhes ofereçam, ao final, uma moral apaziguadora e apaziguante. Não.
Suas histórias falam da vida e de como é possível seguir vivendo, ou seja, de como se pode
transformar em experiência – competência para estar no mundo – as pequenas e grandes
tragédias que se incorporam ao cotidiano de quem está no mundo. Neste sentido, e
retomando uma velha discussão no que diz respeito à literatura infanto-juvenil, a obra de
Lygia é pedagógica.
Até o século XIX, o conceito de pedagogia associado à literatura para crianças
estava fundamentalmente ligado à idéia de histórias exemplares, aquelas que ensinavam o
modo certo de ser e agir. Rompida essa possibilidade de gerar experiência a partir de
exemplos de vida, o que se entenderia por pedagogia numa literatura também voltada para a
criança e o jovem? O escritor Bartolomeu Campos de Queirós, certa vez, atentou para o
fato de a palavra pedagogo, etimologiamente associada ao conceito daquele que conduz a
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criança, também ser usada para denominar, em sua origem, aquelas que ajudavam nos
partos, portanto, a palavra também se referiria àqueles que conduzem a criança à luz. É
nesse sentido que aqui se diz ser pedagógica a obra de Lygia. Ao fugir do modelo da
narrativa exemplar, recusando-se a uma moral da história, a finais fechados, ou ao “foram
felizes para sempre”, o que se vê na obra da autora é o convite à reflexão. Aprende-se na
leitura de seus textos que não há uma única saída – muitas vezes não há saída alguma – o
que importa é o percurso, o caminho, o passeio que o leitor pode fazer ampliando, assim, a
sua competência para a vida, no sentido de assimilar, compreender e, sobretudo, questionar
as relações humanas. A própria Lygia afirma em Livro, um encontro que o leitor cria –
como para Barthes, toda leitura é também uma escritura – , assim, o que se percebe em suas
histórias é uma proposta de envolver o leitor com a vida, permitindo que, na constante troca
de papéis – criador, criatura – este encontre seu próprio caminho, a chave de suas portas –
como Alexandre, em A casa da madrinha.
Jorge Larrosa em seu Lectura e experiencia, leitor que é de Benjamin, segue
ampliando a questão da experiência não como busca ou repetição de modelos, mas como
uma construção a partir dos fragmentos que a vida e as leituras oferecem. Deste modo, o
autor sublinha o fato de só serem leituras profícuas, de texto ou de mundo, aquelas que
geram, não certezas, mas dúvidas, inquietações, aquelas de tiram o leitor de seu eixo,
sacodem o seu conforto e assim lhe permitem ocupar o lugar de criador de sua leitura e de
sua vida. É essa, e não outra, a experiência que a obra de Lygia é capaz de gerar para seus
leitores.
Aspectos para os quais aqui se quer chamar a atenção são as representações do
medo, da morte e a questão da identidade – todos marcantes na narrativa da autora, quer
nos primeiros livros, quer naqueles onde o olhar das personagens vai amadurecendo e
entrando no chamado mundo adulto.
Na abordagem destes assuntos se verifica, por exemplo, uma mudança de posição
dentro da obra. Em Tchau, no conto A Troca e a Tarefa, a narradoraque é uma escritora
afirma : “Não quero que ninguém, NINGUÉM, possa pensar que eu estou transformando
1
as minhas lembranças em livro.” (1987:64). Vale ressaltar que esse conto trata da questão
1
É bom lembrar que para a narradora desse conto “transformar” significa criar uma história, ou seja,
ficcionalizar.
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do medo, do ciúme, da busca por uma identidade, algo que marque a narradora-
personagem. Medos, buscas identitárias vão sofrendo avanços ao longo da obra de modo
que, em dado momento, a escritora vai incluindo as suas lembranças, a sua própria vida, às
narrativas. Exemplos são textos como Livro e O Rio e eu. Assim, perdendo o medo de se
expor completamente, a escritora convida o seu leitor a fazer o mesmo: usar seus medos
como fonte de um encontro – encontro consigo, com a obra e com a escritora, com a leitura.
Justamente nesta proposta de fusão-parceria é que se dá o processo de formação do
leitor na obra de Lygia . Transformando suas lembranças em livro, Lygia abre espaço para
que seu leitor junte suas próprias experiências às da autora e às das personagens que as
obras apresentam. Firma-se o pacto da transparência – a autora não mais se ausenta do
processo, muitas vezes ela claramente se aponta como a narradora, e o leitor não se
“esconde” fora da obra: vem morar nela, junto com a autora. Esta é a comunhão anunciada
em Paisagem, livro que aborda a relação leitor/autor. Depois de sonhar com o livro que sua
escritora predileta ainda está escrevendo, Lourenço, o Leitor, é incorporado à própria obra.
Resolvi ler Paisagem de novo, por que será que o final de meu conto tinha
batido tão mal no Lourenço? Fui lendo devagar, com toda atenção. Quando cheguei no
pedo que eu descrevo a paisagem e falo do barco no mar, de repente me deu a
impressão que o barco estava se mexendo ( indo? voltando?). Firmei a vista. Vi que o
barco estava vindo pra praia. E vi que tinha gente dentro. Fiquei um pouco alvoroçada,
meio confusa, não sabia se corria pra beira do mar ou se sentava no degrau da porta de
casa, esperando pra ver quem é que ia chegar.
Sento.
O barco vem vindo. Uma onda pega ele e os dois aterrissam na areia. O
passageiro é Lourenço, vestido feito naquele dia, bermuda, camiseta amarela, tênis no
pé. Me vê na porta e acena. (Paisagem, p.63-64)
Se a autora que não queria revelar a “ninguém” o quanto de si havia em seus escritos
se transforma, na própria obra, naquela que se revela através das experiências que propõe; o
mesmo convite está proposto ao leitor. A obra se assume como o espaço também da
transformação daquele que a lê, apontando a leitura como um processo de formação do
leitor e do leitor como indivíduo reflexivo. Esse exercício criativo reafirma as palavras de
Jorge Larrosa: “Pensar la lectura como formación implica pensarla como uma actividad del
lector: no sólo com lo que el lector sabe sino com lo que es. Se trata de pensar la lectura
como algo que nos forma ( o nos de-forma o nos trans-forma ), como algo que nos
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constituye o nos pone en cuestión en aquello que somos.” ( Larrosa, 1996, 16). Assim, ao
ato de ler se associa à idéia de deslocamento, mudança. Trata-se de uma experiência que
abre caminhos e, por essa razão se faz “trans-formadora”.
É necessário, ainda, ressaltar que se está diante de uma obra que, sendo literária,
abriga o diálogo com outras formas de expressão artísticas. O estabelecimento, dentro do
espaço literário, da convivência com manifestações artísticas diversas – o teatro, o circo, a
pintura, a escultura – permitirá que se constate a riqueza do material literário como fonte
de registro da cultura, assim como a arte como meio de expressão e de transformação da
realidade – quando aqui se fala em transformação da realidade não se está atribuindo à arte
nenhum caráter redentor, por transformação entenda-se mudança, movimento, o contrário
de paralisia e estagnação. Poder estabelecer pontes entre fazeres tão diversos, e assinalar a
produtividade dessa interação junto ao leitor, destaca a literatura como um espaço
interativo, não só da perspectiva obra / autor/ leitor, mas também como um espaço de
comunhão significativa de várias outras manifestações que expandem a capacidade de
percepção e significação daquele que lê.
O aproveitamento da experiência artística nos textos se aproxima do literário no que
concerne ao caráter transformador de ambos. Através do narrado ou da elaboração de um
projeto artístico, as personagens passam por um processo de auto-conhecimento que
promove transformações que, fatalmente, atingirão os leitores.
As artes, nos livros de Lygia, se mostram tão libertadoras – no sentido de impedir a
acomodação – como as palavras. Lucas ( Seis Vezes Lucas) só se liberta do medo ao moldar
uma máscara; as personagens de Angélica só encontram seu lugar no mundo fazendo a peça
de teatro; os animais de Os Colegas tomam as rédeas de suas vidas ao resolverem ser
artistas de circo, o trabalho artístico a todos liberta dos medos, das necessidades do
cotidiano e, principalmente, indicam o caminho da transformação a partir da experiência na
e com a arte.
Por outro lado, quando não há plenitude nessa força criadora que a arte representa,
ela conduz a finais trágicos. Em Nós Três, Mariana trai a força vital de sua arte – a
escultura – ao usar sua mão para matar Davi e por isso é condenada a esquecer sua arte,
reproduzindo sempre a mesma forma – os traços do cabelo de Davi – em todas as pedras
que manuseia. O Pintor (Meu Amigo Pintor) morre porque não encontra vida em sua obra,
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logo seus medos e frustrações não podem ser transformados, já que não se estabelece a
ponte vida/obra, vida/arte.
Partindo do conceito de que um texto literário, seja ele qual for, presume um
tratamento estético adequado ao tema que um autor pretende abordar, não se pretende aqui
tratar a obra de Lygia pelo viés da literatura infanto-juvenil. Em alguns momentos não se
poderá ignorar que esta é uma “designação” que se aplica aos textos da autora, porém a
questão estará longe do foco desse estudo. O que interessa é o aproveitamento que a autora
faz em sua obra do fato de escrever “também” para crianças e jovens, numa formulação
crítica antiga de Yunes (1974), já que, se verifica nos textos da escritora esse desejo de
parceria com o leitor e de produzir uma literatura longe do comodismo
O grau de complexidade que permeia os textos de Lygia obriga o leitor a se manter
distante de uma leitura superficial. Afastada de um tratamento meramente pueril em que a
criança e o jovem são tratados como tolos a serem conduzidos pelo adulto sabichão, a obra
abre espaços para a reflexão . Os textos têm densidade, não só no que diz respeito ao
conteúdo mas também ao tratamento estético, porém são elaborados de modo que, em que
pese o trabalho artesanal esmerado, não se perca de vista o grau de inteligibilidade que se
espera de um texto que, fatalmente, cairá nas mãos de crianças e jovens. Por possuir essa
qualidade, a obra de Lygia expande seus horizontes de possibilidade e vai ao encontro do
leitor adulto que, do mesmo modo que os jovens leitores, encontra nas narrativas um
universo com o qual se pode imediatamente identificar.
A própria obra levanta essa discussão. O Pintor vai dizer ao menino Cláudio, seu
amigo, que por vezes tinha vontade de ser você, quer dizer, de ser criança de novo.” (Meu
Amigo Pintor, p.34); deixando claro o desejo de refazer sua trajetória – o que só seria
possível através de um novo olhar infantil sobre o mundo, portanto o que o Pintor quer, de
fato, é resgatar a possibilidade que mora na criança. Em Seis Vezes Lucas é o momento de a
criança chamar atenção para o olhar viciado, nublado dos adultos: “ pensei que gente
grande sacava melhor.” (p. 112). Sendo Lucas, a criança, é o único que encara a verdade do
que se passa em sua família. Levanta-se a questão, mais uma vez, do olhar infantil ser a
porta de acesso que permite ao adulto resgatar a sua própria existência. Essa característica
marcante da obra salienta o projeto de formação do leitor nela implícito, já que será
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possível ao leitor, em todos os sentidos, “crescer” lendo Lygia. Mas isto não reverte o
quadro pedagógico do “adulto-sabe-tudo” para seu inverso ideológico.
Há, ainda, um outro ponto a ser destacado. Se o objetivo desse estudo é evidenciar
uma proposta de formação do leitor na obra estudada, se a obra sugere uma troca de papéis,
é necessário pesquisar a Lygia-leitora. Em Livro, um encontro com Lygia Bojunga, a autora
fornece a seu leitor o mapa das suas leituras. Descreve os seis casos de amor que teve com
a Literatura, através de seis autores diferentes: Lobato, Rilke, Dostoievsky, Poe, Fernando
Pessoa e com um não mencionado autor da chamada literatura de massa (um “best seller”).
Torna-se forçoso estudar de que modo esses autores estão presentes na obra da autora, o
que a Lygia-leitora acumulou como experiência dos autores que a formaram? Em que a sua
formação como leitora contribui para o seu próprio jogo de formar, ela também, os seus
leitores? Mais ainda: que relação a Lygia-autora mantém com seus leitores e personagens?
Em Fazendo Ana Paz já temos uma escritora-narradora declarando toda a sua
aflição diante da obra que não se conclui, da personagem que não vem. Tem-se também a
discussão escritora X personagem. Cansada de tentar dar coerência à história de Ana Paz –
e, sobretudo, de tentar criar um pai convincente para a personagem – , decide a escritora
rasgar seus manuscritos. Nesse momento, a personagem se insurge contra a criadora.
- Você não está resolvida, vê se entende!
- Mas por que eu não posso se assim mesmo?
- Assim mesmo o quê?
Assim: não resolvida, feito você diz, descosturada, mal acabada, tanto pedaço de
mim rasgado (sabia que você me rasgou demais?). Você sonhou pra mim uma vida toda
bem feita, só que a tua idéia não deu certo e eu fiquei desse jeito. (...) Por que você não
pode me contar pros outros assim? desacertada, inacabada, esperando a luz que, um dia, vai
acender (ou não) em tudo que é pedaço que eu tenho de escuridão? puxa vida! eu nasci pra
viver num livro! livre! ( você sabe tão bem quanto eu que não tem nada mais livre que um
livro); já chega o tempo que eu fiquei numa gaveta, já chega o tempo que eu fiquei na tua
cabeça: tudo tão fechado, tão cheio de complicação. Eu quero ir lá pra fora!! (p.54)
Vencida pela personagem, só resta a escritora-narradora por a última frase em seu
texto: “E hoje ela (Ana Paz) foi.” (p.54) . O reconhecimento do livro como o espaço da
liberdade reconduz o estudo ao seu ponto primeiro: o leitor e sua formação. O livro é o
espaço da liberdade já que é o espaço da interlocução por excelência. Espaço onde falam a
autora, as personagens e o leitor, criando histórias dentro de histórias, até que todos os
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papéis estejam redistribuídos, até que as tarefas estejam trocadas, e ,então, todas as
transformações se tornem possíveis na liberdade da arte.
A obra vai sempre incluindo um tratamento metalinístico, na medida em que
vão se desarticulando as fronteiras tradicionalmente aceitas pelas teorias literárias em
relação às narrativas. Autor e narrador não se confundem. Isto pode valer para os outros,
para a obra de Lygia não. Ela se confunde, sim, com a narradora de muitos de seus livros.
Em Paisagem, por exemplo, é quando a narradora ( uma escritora !) está em Londres ( onde
Lygia vive parte do ano ) que recebe as cartas do seu leitor Lourenço. Em Ana Paz, para
falar de como a personagem lhe chegou a escritora-narradora a compara com Rachel (
aquela de A Bolsa Amarela), com direito a reprodução do início da história daquele livro e
tudo. Em Retratos de Carolina, mais uma vez moradas e hábitos de Lygia estão lá,
marcando a figura da escritora-narradora que, em dado momento, assume a narração da
história.
Fica ainda à flor da pele toda a relação personagem/escritora. O ato de criar é
dividido com o leitor e com as personagens, num jogo que desloca papéis, que transgride
teorias. Em Retratos de Carolina, depois de ter posto o ponto final na história, a escritora é
assediada pela personagem – Carolina não está satisfeita com os retratos feitos pela autora,
quer outros mais, feitos de outros ângulos. É das discussões entre Carolina-personagem e a
escritora-narradora que surge mais um retrato de Carolina, aquele que explicita as
conquistas que o último capítulo planejado já deixara intuídas. Só então pode a escritora-
narradora despedir-se de sua criação – aliás, esse era o grande trunfo de Carolina, ela
conhecia bem a autora, sabia que enquanto esta não lhe desse “tchau” poderia ter esperança
de realizar seu desejo: “Se ela estivesse mesmo resolvida a me dar tchau, ela me levava
embora e pronto. É... Se ela não me levou é porque ainda não se desligou.” (Retratos de
Carolina, p.173)
Vale lembrar que a visita de Carolina à escritora altera o ponto de vista da
narrativa. A narrativa que se dava em terceira pessoa se desloca, agora é a escritora que se
faz narradora em primeira pessoa para contar aos seus leitores como foi o processo de
declarar pronta a história da personagem. Ou seja, vem dividir com o leitor o fato de que,
tendo pensado que a história já estava pronta, foi assaltada pela personagem que queria
mais. O testemunho da escritora se justapõe à obra, supostamente acabada, e ao verdadeiro
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final – que também não é quando se acabam os retratos de Carolina, mas quando a autora
consegue dar “tchau” à personagem.
(...) Carolina continuava no mesmo lugar. A fisionomia dela estava resignada.
Resignada, não: serena. Muito serena.
Respirei aliviada.
Levantei o braço e acenei com a mão.
Esperei.
Sem pressa, mas sem nenhuma hesitação,
ela respondeu ao meu aceno,
me dizendo também:
tchau. (p.232)
É como se, ao longo da obra, Lygia fosse incorporando os bastidores da criação e
deixando que o “esqueleto” da obra se revelasse ao leitor, não para saciar uma curiosidade
superficial de quem a lê, mas para gerar um real comprometimento entre leitor/obra/autora.
É como se a autora desejasse mostrar “olha como dói!” , “vê como é difícil!”, “tudo que a
gente cria está vivo, é nossa responsabilidade”. Portanto, se o Leitor ( aquele de que nos
fala Lourenço) pegou o jeito de Lygia escrever, se pode intuir a sua escrita, as suas
personagens, se pode habitar suas paisagens e visitar suas moradas, é bom que se prepare
para ser responsável também pelas leituras que vai criar, é bom que esteja pronto para a tal
letra maiúscula.
Em múltiplos aspectos Lygia Bojunga é uma artista especial. Sim, a palavra é essa:
artista. Lygia atriz, Lygia escritora, Lygia arquiteta, menina que construía casas de livros e
hoje fabrica tijolos para outros leitores/construtores, constrói casa onde se fabricam livros
2
.
Por tudo isso é que a autora de Os Colegas, Angélica, A Casa da Madrinha, Sofá
Estampado e mais uma dezena de livros é mais do que tão somente uma escritora; é,
mesmo, artista – artista da palavra, do encantamento, da edificação de um projeto que
resulta na formação de seus leitores.
Ao se acompanhar o processo de produção de Lygia e, conseqüentemente, penetrar
no universo de sua obra, uma das primeiras observações que se pode fazer é a de que de Os
Colegas a Retrato de Carolina há uma curva ascendente – não no que diz respeito à
2
Em seu Livro: um encontro com Lygia Bojunga, a autora reproduz texto escrito em comemoração ao Ano
Internacional do Livro. Nesse texto, Lygia cria a imagem dela menina a usar livros como tijolos de casas
imaginárias onde se punha a brincar e, em seguida, se assume como “fabricante de tijolos” (livros) para outras
crianças. Seu desejo foi além e a autora ousou mais, além dos tijolos/livros Lygia hoje dirige sua própria
editora, A Casa, tendo como projeto a edição de toda a sua obra sob sua supervisão direta.
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qualidade da produção, mas no que se refere às experiências registradas e no modo como
são abordadas em cada livro. É como se a autora fosse deixando os livros “crescerem” junto
com seus leitores, Lygia os acompanha com suas histórias.
Nessa perspectiva é que se coloca a questão de analisar a obra como um projeto de
formação do leitor, não somente pelo que vai ganhando em complexidade e profundidade,
mas também pelos pactos que nela vão se estabelecendo. Em Paisagem não é outra a
temática senão a da relação autora/leitor que, num longo processo de comunicação, se
descobrem autores da mesma história – como uma escrita a quatro os.
Eis o percurso que fiz ao longo desta pesquisa, nos capítulos que agora se seguem
como partes de uma tese, escrita com a liberdade de quem dialogou com Lygia a partir de
uma teorização internalizada. O estudo se processa sob a forma de um longo ensaio, sendo
esse um gênero textual que permite uma maior mobilidade de seu autor em relação ao
objeto de seu estudo. Aponto aqui, ao longo das páginas que se seguem, para a constante
proposta da troca de papéis nas narrativas de Lygia, leitor que é convidado a ser autor,
personagem que dá palpite em sua própria história, escritora que se faz leitora de seu
leitor... assim, não me pareceu coerente, ainda que seja esse um estudo formal, uma tese de
doutoramento, manter-me presa a um modelo acadêmico rígido. O diálogo proporcionado
pelo ritmo do ensaio pareceu, deste o começo, o melhor tom para percorrer os caminhos
dessa obra tão viva e aberta à vida.
A opção pelo ensaio não afastou os estudos teóricos necessários para a elaboração das
idéias e conceitos que expresso ao longo do estudo. As leituras foram muitas e são parceiras
de cada linha escrita, porém não as quis em primeiro plano. Antes, em relevo está o meu
próprio percurso de leitora que, tendo aceito o convite da autora, entrou no jogo das trocas.
A pesquisadora é também personagem desse extenso diálogo que inclui a sua própria voz, a
voz de Lygia, de seus personagens e dos teóricos que se somaram a esse passeio,
convidando a novas trocas.
O que se pretendeu analisar nesse estudo é a complexidade da proposição de como o
escritor, através de sua obra, realiza, literariamente, aquilo que está proposto pelas teorias
da leitura e da recepção. Umberto Eco já aludiu à intenção da obra, do autor e do leitor
como a tríade a partir da qual é possível dar-se a significação dos textos literários, porém
em Lygia o que se parece estabelecer é o pacto da autora com seus leitores de modo a
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deixar claro sua intenção: seduzi-los ou, antes, conduzi-los a um “status” de produtores
conscientes não só de sentidos, mas dos textos, sendo para isso constantemente sugerida
nas obras uma troca de papéis.
Em Paisagem – que juntamente com Livro e Fazendo Ana Paz compõe a trilogia-do-
livro
3
– , em dado momento, Lourenço – a personagem-Leitor – esclarece:
(...) Literatura é fazer esse personagem inventado virar um espelho pra gente (...)
Literatura é o jeito que um escritor descobre pra passar isso pra gente dum jeito que é só
dele, e quando um dia a gente afina com o jeito dum escritor inventar, com o jeito que é o
jeito dele escrever, nesse dia a gente vira Leitor dele e quer ler tudinho que o cara ou a cara
escreveu, mas quando eu digo a gente eu tô falando de Leitor feito eu, Leitor de letra
maiúscula, e aí então, (...), a gente fica tão ligado nesse escritor que é capaz de intuir o que
ele vai escrever... (Paisagem,p.35)
Portanto, o Leitor faz-se íntimo do processo de produção da obra e, somente aí, é
possível ser um multiplicador dos sentidos que dela extrai. Foi desse modo que, também eu,
como autora deste estudo quis seguir, e para fazer-me íntima dos processos de produção da
obra de Lygia quis, e quero, que o meu leitor também se sinta convidado à mesma
intimidade neste meu texto.
Eliana Yunes, em artigo publicado em 1980
4
, chama atenção para o fato de ser
freqüente na obra de Lygia a presença de narrativas encaixadas, ou seja, há histórias dentro
da história e essas histórias encaixadas são da responsabilidade das personagens. Este é um
modo lúdico da autora sugerir aos leitores que narrativas nascem de narrativas, portanto
todo autor é também leitor assim como todo leitor é um escritor. É curioso ainda notar que
essas narrativas encaixadas de certo modo funcionam como o espaço de conscientização
das personagens, posto que, através delas é que os conflitos apresentados nas obras irão
encontrar as suas soluções.
Exemplos deste artifício narrativo são a peça de teatro organizada pelos personagens
de Angélica, através da qual se estabelece uma grande catarse que re-alinha os desejos e
3
Nos livros Paisagem e Fazendo Ana Paz aparece o mesmo prefácio, intitulado Caminhos. É nesse prefácio
que Lygia declara sua intenção de a partir do Livro continuar a discutir a relação autor/leitor através do que
ela própria chamou de a trilogia-do-livro, isto é, a reunião desses três trabalhos :Livro, Fazendo Ana Paz e
Paisagem.
4
Yunes, Eliana A maioridade da literatura infantil brasileira in Literatura Infanto-Juvenil, Revista Tempo
Brasileiro no 63, outubro-dezembro de 1980.
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anseios do grupo, reconstituindo identidades perdidas; e as histórias que Rachel vai
escrevendo em A Bolsa Amarela, o que permite que não só a menina mas também outras
personagens se libertem dos papéis que lhes são impostos pela coletividade para, enfim, se
descobrirem sujeitos. De maneiras diversas essa prática está presente em todas as
narrativas de Lygia, o que sugere um convite ao leitor para fazer parte desse jogo – as
palavras transformam – e a narradora de A Troca e a Tarefa, conto que integra o livro
Tchau, já apontava o caminho.
Então um dia eu pensei: quem sabe a troca que eu sonhei no sonho serve pro Ciúme
também? E resolvi transformar o Ciúme em história. (...)
O Omar eu tinha transformado em mar.
E o Ciúme?no que que eu ia virar?
Eu achava ele tão feio. Resolvi virar ele numa coisa pra gostar de olhar.
Transformei ele num pássaro lindo! bem grande (...) Tudo que o Ciúme tinha feito eu sofrer
eu transformei em aventuras que aconteciam com aquele pássaro.
Quando um dia eu cheguei no fim da história a troca tinha acontecido de novo: no
lugar do Ciúme eu agora tinha um livro. (...)
Achei tão bom poder transformar o que eu sentia em história que eu resolvi
que era assim que eu queria viver: transformando. Foi por isso que eu me virei em
escritora. (Tchau, p.58)
Por todas as razões aqui expostas é que se justifica o interesse pelo estudo da obra
da autora, tal estudo se mostra relevante, na medida em que a análise de tais proposições
contribuirá não só para a construção de uma fortuna crítica de uma obra pouco estudada,
como para a formulação de conceitos que identifiquem, na obra literária, um caráter de
intencionalidade no que diz respeito à inclusão do leitor e a seu respectivo processo de
formação enquanto tal.
O estudo, dado o exposto, se fará em quatro blocos de pesquisa. O primeiro deles
diz respeito à formação da própria autora como leitora. Para tanto, o ponto de partida será
Livro: um encontro com Lygia Bojunga. Neste relato pessoal, a autora explicita os seis
autores que foram fundamentais em sua formação como leitora. Lygia vai mais além e trata
de se apresentar como leitora , deixando claro o pacto que estabelece com seus autores
prediletos e como, para ela, deve se dar essa via de mão dupla autor/leitor. Como já expus
aqui, já que o estudo se faz como um ensaio, este primeiro capítulo funcionará como um
capítulo teórico, ou seja, procurei neste primeiro momento do trabalho deixar a vista do
leitor as matizes teóricas que norteiam o estudo.
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A seguir, se fará o do estudo da tematização da arte nas obras de Lygia.
Identificando a relação que se estabelece entre um determinado fazer artístico e o discurso
literário, a partir do que será possível analisar a produtividade narrativa dessa interação e,
por conseguinte, o aproveitamento metafórico de semelhante tematização na construção de
uma relação com o leitor. Na obra de Lygia, a fusão de manifestações artísticas diversas
com a literatura propõe uma interseção de linguagens que resulta numa proposta, para o
leitor, de estabelecer uma mediação entre discursos, levando a compreensão da arte em
geral como um estímulo ao entendimento da realidade e transformação do sujeito.
Em um terceiro capítulo, o estudo será o de demonstrar a visão, expressa na obra,
sobre os papéis de autor, do leitor, do texto e da leitura; e de que modo essa visão conduz a
uma proposta de formação do leitor. Como a própria Lygia explicita no prefácio Caminhos
que re repete nos livros Fazendo Ana Paz e Paisagem, em dado momento de seu percurso
como autora, passa a ser uma preocupação a fusão autor/obra/leitor-leitura – transformados
nos “pedaços da laranja”, ou seja se integrando de modo a diluir fronteiras. Assim, - e
considerando-se que na publicação que a própria autora vem fazendo de sua obra, novos
prefácios aparecem, agora sob o título “Pra você que me lê” – se poderá constatar a
proposta que fica estabelecida de olhar para o processo de geração de sentidos na obra
como uma construção em que as “tarefas” não são definidas, havendo um constante convite
a uma “troca” de papéis e se dá ao leitor espaço para que seja ele, também, um criador.
Após essa análise, se vai demonstrar a produtividade da proposta de formação do leitor
na obra de Lygia. Se há um processo de formação de leitor, que leitor é esse?, o que se
espera dele?, que contribuição efetiva traz a obra ao formar determinado tipo de leitor? As
respostas a essas perguntas vão descortinar, como se verá, as relações éticas e políticas, latu
sensu, incluídas no tecido narrativo e que ganham significação a partir da reflexão do leitor.
Um leitor que se torna sujeito na relação com o outro ( e com o texto), assim podendo agir e
reagir ante a conflitos que ora são pessoais, ora coletivos.
Para se proceder ao trabalho de análise se fará necessário o apoio de múltiplas
fontes teóricas. Teorias da leitura, estudos da infância, histórias do medo e da morte nas
sociedades, estudos da família, estudos culturais, terias sobre a literatura infanto-juvenil
serão utilizadas para respaldar as análises e conclusões acerca do tema proposto, sem ,
contudo, estarem à tona, já que o enfoque do trabalho não é eminentemente expositivo-
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argumentativo; pois como já foi explanado, optei pelo modelo do ensaio.. O que Lygia
estimula em seu leitor é a construção em parceria, portanto o que se quer aqui é ser um
especial parceiro da autora em mais uma leitura possível de sua obra. Colocando-me como
a leitora que seu texto demanda, fiz-me tal, evitando transformar a leitura de sua obra em
um exercício entrecortado de citações e referências. Procurei corresponder ao gosto de ler
que provoca em seus leitores de qualquer idade, estando cada qual com seu repertório de
associações possíveis.
A primeira vez que Lygia cria uma personagem escritora é para estabelecer o ato de
narrar como uma tarefa que possibilita uma troca: trocar vivências negativas por
experiências transformadoras. A partir daí – e é o que se deseja com o estudo que se fará de
sua obra – essa troca e essa tarefa foram se alargando, assumindo novos significados, até
chegar ao leitor, permitindo que também ele participe desse processo, fazendo com que a
leitura seja também “uma escritura” , portanto, possa também o ato de ler ser espaço de
transformação e, sobretudo, de criação: numa dinâmica e construtiva troca de tarefas. Por
esse caminho optei escrever a tese que se lerá.
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Alargando a troca: a construtora em construção
“(...) eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé, fazia parede; deitado, fazia degrau
de escada; inclinado, encostava em outro e fazia telhado. E quando a casinha ficava pronta
eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro. (...) fui pegando intimidade com as
palavras. (...) o livro agora alimentava a minha imaginação. (...) Foi assim, devagarinho, me
habituei com essa troca tão gostosa que – no meu jeito de ver as coisas – é a troca da própria
vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava. (...) eu cismei um dia de alargar a
troca: comecei a fabricar tijolo pra – em algum lugar – uma criança juntar com outros, e
levantar a casa onde ela vai morar.”
( Lygia Bojunga, in Livro, p. 7,8 )
Muitos escritores já deram depoimentos sobre sua relação com o livro, porém não é
comum que nos deparemos com um relato tão íntimo, pessoal e apaixonado como o de
Lygia Bojunga. Em Livro, um encontro com Lygia Bojunga, a autora expõe não apenas o
seu modo de lidar com os livros que escreve – seu processo de criação – mas, sobretudo,
trata de dividir com seus leitores sua descoberta dos livros, seu modo de, também como
leitora, lidar com eles.
O resultado dessa troca de experiência é um testemunho pleno de afetividade,
distanciado da linguagem objetiva e informativa, em que o livro é sempre tratado como
objeto de paixão e sua relação com ele como “casos de amor” . As palavras “troca” e
“experiência” , ligadas à obra de Lygia, acabam carregadas de sentidos muito particulares.
Ao longo de toda a sua obra, “troca” será sempre uma imagem forte para transformar,
através da “experiência”, aquilo que, em dado momento, se apresenta como realidade
imediata – sendo o espaço onde se dá essa troca o do texto. São palavras de peso, pequenos
vocábulos que traduzem todo um universo em Lygia. Portanto, não é de estranhar que o
texto a ela encomendado pela Organização Internacional do Livro Infantil e Juvenil, em
1982, para a comemoração do Dia Internacional do Livro Infantil, tenha recebido o título de
LIVRO: a troca.
A literatura e as manifestações artísticas de um modo geral são experiências
transformadoras na obra da escritora que, freqüentemente em seus textos, sugere serem
esses os instrumentos mais contundentes no processo de tomada de consciência e
transformação do mundo. O texto como lugar de “troca” da experiência do mundo por uma
nova instância de consciência não é um espaço mágico, onde tudo se resolve e se
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transforma sempre de modo a permitir a redenção das dores ou solução dos problemas.
Antes, essa transformação, sugerida pela imagem da troca, aponta para a possibilidade de
lidar com a vida, compreender a adversidade, encontrar um ponto de tolerância que afaste a
paralisia e não seja sinônimo de conformismo e aceitação passiva. Lygia, ao iniciar seu
relato sobre sua relação com esse apaixonante objeto: o livro, o faz a partir da imagem da
troca, sugerindo que o movimento da experiência é um fundamento na relação com o texto,
a palavra, a literatura.
Assim, em Livro, um encontro com Lygia Bojunga, a autora escolhe por começar o
seu relato não do lugar de autora, mas sim do lugar de leitora. É na leitura que tudo
começa, isto é, na leitura começa a troca e nasce a experiência. Ao decidir expor-se como
leitora, Lygia o faz a partir de sua convivência afetiva com os livros que foram marcantes
em sua formação, identificando-os como os seus “seis casos de amor”. Despindo-se da
autoridade de quem é dona das palavras, de quem é autora de livros, apresenta-se como
aquela que se permitiu encantar com a palavra alheia e, através deste processo de
encantamento e troca, um dia, sentiu-se pronta a estar na outra ponta da linha – produzindo
“tijolos” .
Resulta dessa escolha um aspecto que mais adiante será abordado com propriedade:
a relação autor/leitor, e a conseqüente troca de papéis entre eles na obra de Lygia. Por
enquanto, o que se quer analisar é justamente a relação que Lygia-leitora mantém com
Lygia-autora, avaliando como os seus “seis casos de amor” , isto é, os seis livros e autores
que destaca como fundamentais em sua formação de leitora, estão presentes na obra da
autora. Uma presença que nem sempre é explicitamente revelada, não vem na forma de
referência direta, mas, muitas vezes, se expressa na sutileza de um detalhe, ou mesmo, de
uma intenção. Até porque, no relato dessa sua experiência como leitora, Lygia deixa clara
a estreita ligação que estabelece entre o ato de ler e o de criar : “(...) eu sou leitora, logo,
participo intimamente desse jogo maravilhoso que é o livro, eu sou leitora, logo, eu crio.”
(Livro, p. 21-22)
Revelando, portanto, os livros e autores que marcaram, mais do que sua formação
intelectual, seu modo de experienciar a leitura e transformar seu universo pessoal, Lygia
como que apaga as fronteiras entre o ato de ler e o ato de criar através da palavra,
transforma a leitura em gesto de criação, conferindo ao leitor o “status” de criador. Pode-se
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ainda entender esse depoimento que vem da emoção, da afetividade, como uma declaração
de o quanto o valor da leitura, e também da criação literária, se submetem à experiência de
quem lê e de quem escreve, permitindo que se façam transformações de toda ordem,
inclusive de papéis. Cabe aqui a lembrança de um conceito de leitura defendido por Jorge
Larrosa
1
.
No hay lectura si no hay esse movimiento en el que algo, as veces de forma
violenta, vulnera lo que somos. Y lo pone en cuestión. La lectura, cuando va de
verdad, implica un movimiento de desidentificación, de pérdida de sí, de escisión,
de desestabilización, de salida de sí. (...) Eso es la experiencia de la literatura:
aquello que pone en cuestión lo que somos, lo diluye, lo saca de sí. Es en esse
sentido que la literatura es una experiencia de trans-formación. ( LARROSA, 1996,
64)
Ao experienciar seu encontro com os livros de modo passional, deixando que os
textos entrassem em sua vida, transformando-a, Lygia pôde descobrir um outro lugar, o
lugar da criação. Ao longo de sua obra, como se verá em outro capítulo, é essa mesma
experiência que a autora desejará compartilhar e estender a seus leitores – evidenciando o
quanto são criadores em sua própria obra
2
.
Os “casos de amor” ( com os livros e seus respectivos autores ) são os seguintes:
Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato; Crime e Castigo, de Dostoiévski; os contos
de Edgar A. Poe; a obra de um autor, que Lygia intencionalmente não nomeia – “(...) eu
vou contar o milagre mas não vou dar o nome do santo.” (BOJUNGA, 1996, 11) – , mas
que é possível reconhecer como um “autor best-seller” ; Cartas a um jovem Poeta, de Rilke
e a poesia de Fernando Pessoa. O que se pretende neste capítulo é rastrear de que modo a
experiência da leitora Lygia com cada um desses autores, e respectivas obras, se transfere
para a obra da autora Lygia. A palavra chave é precisamente “experiência” . Não se vai
buscar nas palavras da autora as palavras aspeadas de seus autores preferidos, o que se quer
1
O conceito de Larrosa que se vai usar aqui encontra-se em seu livro La experiencia de la lectura,
estudios sobre literatura y formación.
6
É o que se vê no livro Paisagem, em que uma autora, a narradora-personagem da história, divide
a autoria do livro que escreve com um leitor. A narrativa do livro é justamente o testemunho dessa
experiência do contato leitor/autor através do texto ( da obra).
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é identificar daquela experiência de leitura declarada por Lygia o que se reconhece em sua
obra, como as transformações que a literatura proporcionou à leitora são passadas adiante
pela autora.
Para que se possa compreender como aquela menina que construía casinhas de
livros e que mais tarde começou a decifrar e ler suas paredes se transformou em
construtora, se faz necessário refazer com ela o seu itinerário, resgatando o percurso da
construtora em sua própria construção.
2.2 .
Sob as reinações de Lobato
“Esse livro ( Reinações de Narizinho ) sacudiu a minha
imaginação. Ela tinha acordado. Agora... ela queria imaginar.”
(Livro, um encontro com Lygia Bojunga, p. 13)
2.2.1.
A imaginação libertando o pensamento
Ao começar o relato de seu encontro com Monteiro Lobato, Lygia trata de situar
seus leitores no tempo e também deixa clara sua relação com a leitura então. Tinha sete
anos quando ganhou de presente Reinações de Narizinho e o tamanho do livro a
desencorajou. Na época, a menina Lygia andava às voltas com as histórias em quadrinhos.
Nesse ponto, a autora revela um dado da sua experiência:
Eu estava superfresquinha de recém ter aprendido a ler, e andava às voltas com história em
quadrinho. Era um pessoal legal, eu gostava deles, mas, sei lá! Era uma gente tão diferente
da gente. Eles moravam nuns lugares que eu nunca tinha ouvido falar; eles tinham cada
nome tão estranho (...), como é? como é mesmo que se diz Flash ? Flachi? Flachi Gordon?
(...)
Comecei a achar que aquela história de ler não era coisa descomplicada feito
descascar uma laranja, pular amarelinha, cantar junto a música que tocava no rádio.
(Livro, p 11-12)
O estranhamento da menina era grande pela falta de referências, as histórias em
quadrinhos lhe apontavam um universo com o qual a identificação se tornava difícil. A
leitura perdia o seu prazer porque não se aproximava das suas coisas cotidianas. É nesse
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ponto que surge Lobato; instigada pelo tio que lhe presenteara com o livro, a menina acaba
por decidir enfrentá-lo, quase como um desafio – uma vez que se tratava de um livro
aparentemente grande demais para uma menininha. Estava o cenário armado para o
primeiro caso de amor de Lygia. Como ela mesma diz, “(...) aquela gente do sítio do
Picapau Amarelo começou a virar minha gente.” (Livro,p.13). Monteiro Lobato trazia a
identificação, o reconhecimento da paisagem, das personagens, da língua. Lobato trazia,
sobretudo, o mundo mágico, a possibilidade de usar a imaginação, deixá-la correr.
Esse acordar da imaginação começou a mudar tudo. De repente, já não bastava
cantar junto a música que tocava no rádio só repetindo as palavras e mais nada. Eu
me lembro de uma música que (...) falava de uma tal Maria abrindo a janela numa
manhã de sol (...) , mas que, agora, eu cantava querendo imaginar a janela: era
verde? tinha veneziana? E a Maria como é que era? ela era gorda, ela era magra, ela
tinha uma franja assim feito eu? ( Livro, p. 13)
O gosto por imaginar, a presença de uma linguagem reconhecida como sua entram
para a experiência da autora como dados em sua formação, a obra de Lobato se integra a
sua vivência e vai ser devolvida ao seu leitor ( dela Lygia ) em sua obra.
Os dois primeiros livros de Lygia
3
são os que têm um maior compromisso com o
leitor infantil e neles a presença do mundo lobatiano é marcante ( não que em textos futuros
não encontremos também essa presença). Em Os Colegas e Angélica encontra-se o
mágico, a fantasia incorporados ao cotidiano. Desaparece, como nas histórias do sítio do
Picapau Amarelo, a fronteira entre o real e a fantasia. Os animais falam, são capazes de
gestos e comportamentos humanos, suas habilidades fantásticas convivem com o universo
dito real sem causar estranhamento de nenhuma ordem. Além disso, esse universo de
fantasia não se constitui num mundinho à parte, distanciado da vivência infantil, antes,
reproduz questões da ordem do dia – tal qual nos textos de Lobato, em que a fantasia jamais
foi instrumento distanciador da realidade, mas, antes, instrumento para compreendê-la e
nela interferir criticamente.
3
Eliana Yunes em seu artigo A maioridade da literatura infantil brasileira, publicado na revista
Tempo Brasileiro n º 63, cita que, em entrevista a Rejane C. de França ( Suplemento Literário nº
679, Minas Gerais, p. 7), “a autora ( Lygia) confessa que, deliberadamente escreveu apenas um
livro, o primeiro, para crianças, os demais foram se transformando ao longo da narrativa (....)”
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Se Emília, a boneca falante, é, nos textos de Lobato, um elemento questionador,
sempre apontando as disparidades dos homens e as incoerências do mundo ordenado pela
necessidade de manter as aparências, na obra de Lygia temos os animais buscando uma
vida mais livre dos condicionamentos vazios de sua sociedade marcada por preconceitos e
idéias pré-estabelecidas.
Em Os Colegas, um bom exemplo é a história de Flor-de-lis:
Fui comprada numa loja de cachorros. A mulher entrou e disse: “Quero uma cachorra
caríssima e de raça puríssima, pra todo o mundo achar linda e ficar sabendo quanto é que
custou.” E aí ela ficou sendo minha dona e me levou pra casa.
Vivia me enchendo de perfume. Eu espirrava o dia todo e pensava: “Puxa vida, se eu sou
cachorro por que é que eu não posso ter cheiro de cachorro?
Vivia me enchendo de roupas e pulseiras (...) Eu morria de vergonha
(...) e pensava “puxa,
isso não é jeito de cachorro andar.” (...) E a coleira era sempre tão apertada que eu
sufocava. Olha a marca, olha só. (...)
Viva me enchendo de talco e pó-de-arroz (...) e hoje, vê se pode, disse que ia furar minhas
orelhas pra botar brinco, e isso eu nunca vi cachorro usar.
Então pensei: “Puxa vida, quem sabe esse tempo todo eu tô achando que sou
cachorro, mas eu não sou cachorro? ...” Foi aí que eu comecei a achar que eu estava
ficando meio birutinha e me apavorei. Quando ela abriu a porta pra uma visita
entrar eu fugi. Corri à beça até chegar aqui. ( Os Colegas, p.13-14)
Como na obra de Lobato, o uso da fantasia não afasta do real, nem encobre o mundo
e as experiências cotidianas, antes é um elemento que permite não só o questionamento mas
também sugere uma tomada de posição. Flor-de-lis, diante do absurdo a que era submetida,
foge, se liberta para preservar sua própria sanidade.
Essa questão está presente também no livro seguinte, Angélica. Agora, tem-se a
história de uma jovem cegonha determinada a acabar com a mentira de que são as cegonhas
que entregam os bebês. Todo o desafio da personagem é a sua luta contra a mentira para
manter as aparências e garantir o poder à família das cegonhas. A luta de Angélica vai se
expandindo e atingindo a vida de todos os que com ela cruzam. No universo da fantasia, a
autora reproduz questões sociais contemporâneas como a submissão feminina, a
discriminação dos diferentes, o enfrentamento dos medos. Mais uma vez, a fantasia é
chamada para revelar o mundo cotidiano, dando ao leitor a possibilidade de, através do jogo
lúdico da imaginação, identificar-se com as situações propostas, superando suas próprias
limitações. Cabe ressaltar que em Lygia, como em Lobato, fantasia não dá a mão à mentira,
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ao que é falso, esse dado se explicita na própria fala de Angélica, a jovem cegonha que luta
contra as mentiras.
– E se tem uma coisa que eu não topo é fingir. Quando é pra brincar de faz-de-conta eu
gosto. Mas quando é pra viver o tempo todo enganando os outros e fingindo uma coisa que eu
não sou, ah isso eu não topo! De jeito nenhum! ( Angélica, p.34 )
Estabelece-se, assim, uma diferença fundamental entre viver a fantasia e viver na
fantasia. O faz-de-conta, o jogo da imaginação, o viver a fantasia aparecem como marcas
positivas – o imaginário e seu poder a serviço da reflexão, da capacidade de apreender o
mundo de formas novas e desafiadoras. Já viver na fantasia, com o olhar permanentemente
deslocado, gera equívocos, impede o estabelecimento de relações claras e de confiança.
Tudo isso fica evidente na peça de teatro organizada por Angélica. O faz-de-conta da peça
ajuda cada uma das personagens a ver claramente o que antes parecia impossível, mais do
que isso, permite que a experiência com a fantasia lhes devolva a integridade no mundo
real.
A família de Angélica, por exemplo, desistirá da mentira; a Mulher-do-Jota, jacaré
autoritário que exercia sobre a mulher um poder repressor, descobrirá sua identidade,
tornando-se, enfim, Jandira, liberta do julgo do marido; o Porco/Porto assumirá seu nome e
sua condição, sem mais se importar com a discriminação, assumindo finalmente sua
identidade.
Como já foi dito, o uso da imaginação, aprendido em Lobato, não se restringe a
esses dois primeiros livros, marcadamente comprometidos com o leitor infantil, sendo um
traço presente em grande parte da obra de Lygia. Em A Bolsa Amarela, por exemplo, tem-
se a utilização ativa do “apagamento” da fronteira real/fantasia. Rachel, a menina que quer
crescer e se tornar menino, escolhe escrever como modo se sublimar a realidade opressiva
em que vive
4
– já que à mulher e à criança, em sua família, quase tudo o que é bom e/ou
4
Em A Bolsa Amarela, pela primeira vez, a escrita aprece como forma de sublimar, ou melhor, de
transformar a realidade. Mais tarde, no conto A Troca e a Tarefa, que faz parte do livro Tchau,
Lygia vai passar, definitivamente, a lidar com a escrita como espaço de transformação das
experiências do mundo real. Para a personagem do conto, uma escritora, o exercício da escrita
permite a reordenação do mundo – a tarefa de escrever é a possibilidade de trocar de papel. A
escrita, o imaginário, é o espaço da liberdade, da escolha, enfim, da transformação.
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divertido está proibido. Vivendo num mundo de lugares marcados, só a fantasia consegue
resgatar experiências que vão conduzir Rachel à aceitação da sua identidade bem como dar
a menina instrumentos para lutar por mudanças no seu cotidiano.
A menina não se espanta quando é visitada pelo galo que acabara de criar como
personagem de uma de suas histórias.
– Sabe? Você é tão parecido com um galo que eu conheço, mas tão parecido mesmo...
Ele tirou a máscara e olhou pra mim. Parecido coisa nenhuma. Era ele mesmo. O Rei. O
galo do romance que eu tinha inventado.
- O que é que você tá fazendo aqui?!
- Psiu ! Fala baixo, tô fugindo.
- Isso eu sei, ué, fui eu que fiz você fugir do galinheiro.
- Mas a questão é que eles me pegaram.
- Não brinca!
- Me levaram de volta. Pra tomar conta daquelas galinhas todos outra vez.
- Ai!
- Você não sabia?
- o. Meu romance acabava no dia que você fugia. Foi até aí que eu inventei você.
- Pois é. Mas aí eu fiquei inventado e tive que resolver o que é que eu ia fazer da minha
vida. Pensei pra burro. Acabei resolvendo que ia lutar pelas minhas idéias. ( Bolsa Amarela,
p.34-35)
O plano do real e o da fantasia convivem sem que haja estranhamento de ambas as
partes, a convivência dos dois planos é perfeitamente natural, como universos
complementares. Há, no trecho destacado acima, ainda um outro componente que merece
comentário. O galo Rei, que apesar do nome não desejava ser rei de coisa alguma, recusava
até o poder de tomar conta do galinheiro, está decidido a lutar por suas idéias. Essa questão
da idéia, do pensamento é recorrente na obra de Lygia – e em muito lembra a boneca
Emília com suas idéias sempre soltas, jorrando sem parar; como a própria bolsa amarela de
Rachel tem um quê de canastra da Emília, lugar de onde sempre salta uma novidade, onde
se guarda o verdadeiro tesouro da imaginação.
Em Angélica tem-se a figura das idéias abotoadas, para que não se faça besteira, o
pensamento centrado em um objetivo. Em A Bolsa Amarela, o galo Terrível vai ter o
pensamento costurado para deixar de questionar os seus donos e aceitar sua condição de
galo de briga. Em A Casa da Madrinha é a vez do Pavão ter seu pensamento atrasado,
depois ( como Terrível) costurado; só que o Pavão já ouvira contar a história de um galo
que tivera o pensamento costurado – e aqui tem-se o recurso à intertextualidade dentro da
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própria obra, gerando, na verdade, uma intratextualidade, também um recurso emprestado
de Lobato –, esperto, o Pavão começa a dar puxões em seu pensamento para que não fique
todo costurado; o resultado é que ficam muitas linhas soltas e seu pensamento “se enredava
nos fiapos, ficava preso, não conseguia passar, e aí o Pavão só ficava pensando a mesma
coisa (...) até o pensamento desenredar.” ( Casa da Madrinha, p. 27). O Pavão ainda teve o
seu pensamento filtrado, mas como a torneirinha que colocaram nele veio com defeito de
fábrica, de vez em quando, pingava um pensamento.
Essa preocupação constante com a questão do pensar evidencia a importância da
reflexão. O melhor método para submeter o outro é domar o seu pensamento, comandá-lo,
deixando-o bem amarrado ou filtrado . Considerando-se que, ainda hoje, a criança ocupa na
sociedade uma posição tutelada, isto é, daquela que deve ser orientada, guiada, que deve ter
seu caráter moldado segundo os critérios do adulto; expressar, através da literatura,
portanto, do imaginário, da fantasia, a crítica à tutela do pensamento é, sem dúvida, dar à
criança um elemento de reflexão dentro de uma linguagem dominada por ela. Isso permite
que aqui se adiante uma questão que em outro capítulo se abordará com mais vagar: o
caráter pedagógico que se atribui à literatura dita infantil.
Nelly Novaes Coelho, em seu livro Literatura Infantil, recorda que “Ligada desde a
origem à diversão ou ao aprendizado das crianças, obviamente sua matéria (da literatura
infantil) deveria ser adequada à compreensão e ao interesse peculiar do destinatário. E
como a criança era vista como “um adulto em miniatura” , os primeiros textos infantis
resultam de uma adaptação ou minimização de textos escritos para adultos.” ( p. 29). Esta
concepção, de que a literatura infantil deveria “ensinar” algo às crianças – estando o adulto
no lugar do mestre e a criança, vazia de conceitos e/ou idéias, no lugar de eterna aprendiz –
foi predominante nos textos infantis até praticamente o início do século XX . No Brasil, é
justamente a obra de Lobato que rompe com essa relação, quase que de causa-efeito, entre
texto infantil e “bons ensinamentos”.
A obra de Lobato destinada às crianças traz uma nova proposta. Agora o imaginário
e a fantasia estão a serviço da experiência infantil, dando a criança-leitora instrumentos
para que reconheça e interaja com a sua realidade a partir do percurso que realiza nos
textos. O sítio do Picapau Amarelo é um espaço onde a riqueza do pensamento e da
percepção infantil têm licença para não só se revelar como também agir. Embalada nesse
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berço, Lygia funda sua obra nessa direção, em que o pensamento é a chave da intervenção e
tudo que contra ele se instaura deve ser desvelado ao leitor, pois esta é uma experiência que
a criança conhece muito bem – a de ter seu pensamento constantemente “amarado”. Em A
Casa da Madrinha o espaço em que o Pavão tem seu pensamento atrasado, amarrado e, por
fim, filtrado é o da escola – uma escola chamada Osarta, anagrama de Atraso.
Os textos de Lygia resgatam e ampliam uma questão que Lobato inaugura: a criança
ganhando voz para resistir à interferência opressiva do adulto sobre o seu universo infantil,
descartando ou limitando suas possibilidades. A busca das personagens de Lygia é sempre
pela liberdade, liberdade de ser, de dizer, de pensar, de agir. Novamente, aqui, se estabelece
a relevância da literatura como experiência, o texto como representação da realidade ( do
vivido) e também de novas perspectivas ( a troca, a transformação). Em texto já citado,
Nelly Novaes Coelho reitera essa posição afirmando que a criação literária é “um dinâmico
processo de produção/recepção que, conscientemente ou não, se converte em favor da
intervenção sociológica, ética ou política. Nessa “intervenção” está implícita a
transformação das noções já consagradas (...). Para além do prazer/emoção estéticos, a
literatura contemporânea visa alertar ou transformar a consciência crítica de seu
leitor/receptor ” ( p. 28 – os grifos são da autora ) .
Não é por acaso que o Pavão, aquele que teve seu pensamento agredido de todas as
formas, mas que, como pôde, resistiu às investidas, quando consegue, ainda que por breve
período, ser, novamente, dono de suas idéias, tem a clara dimensão da importância da
reflexão para fazer escolhas e determinar sua vida. A relação do Pavão com o Marinheiro,
em A Casa da Madrinha, reproduz a relação em que os espertos ( ou mais fortes ) tiram
vantagens dos que têm dificuldades com o pensamento ( ou os mais fracos ). A dominação
do Marinheiro é representada pelo fato de ser ele o que pode levar o Pavão para viajar
clandestinamente em seu barco, mas o Pavão vai , na verdade, pagar a passagem com suas
penas. O Marinheiro quer o poder de dispor das belas penas do Pavão para presentear suas
namoradas. Fica estabelecido assim um conflito em que se representa, ludicamente, para o
leitor como se estabelecem as relações de poder e exploração no mundo, mais do que isso:
a forma de resistir à essa opressão e exploração – pensar, refletir, tomar posição, fazer
escolhas.
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Ao ser comunicado do verdadeiro custo de sua passagem, o Pavão está num
daqueles momentos em que seu pensamento está livre e, claro, podendo pensar, ele se
rebela. Num discurso muito bem ordenado desmascara, para espanto de João, o marinheiro,
o comportamento explorador do companheiro que, de fato, não lhe está fazendo favor
nenhum, nem sendo generoso, mas cobrando caro, pois ao abrir mão de suas penas o Pavão
estará se desfazendo de um pedaço si mesmo: “(...) não posso ficar dando pedaço de mim a
toda hora; acabo acabado, sem pedaço mais nenhum.” (p.58). Afinal, “Se o pensamento
estava normal, como é que ele ia deixar os outros se aproveitarem dele e quererem fazer ele
de bobo?” (p.58)
O pensamento normal significa pensamento desenredado, livre da costura, e
pensamento aberto ( a tal torneirinha estava aberta, o pensamento não saía pingado).
Portanto, o Pavão estava livre. Como livre é a boneca Emília para dizer, sem censura, o que
pensa, mesmo que muitas vezes aos olhos alheios ela esteja com a torneirinha aberta” para
dizer asneiras. Em geral, as “bobagens” que Emília diz são o fruto do livre pensamento, da
reflexão e do questionamento que não se prendem à lógica do mundo determinado pelo
adulto (pelo poder).
Ao longo da obra de Lygia, essa faceta da fantasia como espaço libertador vai
assumindo formas diversas. Do primeiro livro, Os Colegas, até A Casa da Madrinha esse
recurso é predominante. É no espaço do imaginário que as personagens realizam sua
transformação, como um rito de passagem, podendo transformar sua realidade a partir da
experiência adquirida no percurso da fantasia. Os meninos Alexandre e Vera, personagens
de A Casa da Madrinha, em dado momento de sua viagem são aprisionados pelo escuro e,
nessa escuridão, surge o medo que vai tomando conta dos dois, paralisando-os. O que os
liberta é justamente o poder da imaginação e, num recurso completamente lobatiano, Vera
saca de um bastão de giz e os meninos começam a desenhar, pois “O escuro é que nem
quadro-negro (...)” (p.80). O medo desaparece e na hora de seguir viagem é ainda a
imaginação que resolve o problema.
E quando acabaram de rir tudo o que tinham vontade, Alexandre levantou e desenhou
uma porta. Com maçaneta, fechadura, chave e tudo. Num pulo, Vera rodou a chave na
fechadura, abriu a porta e os três saíram do escuro.
Do outro lado da porta tinha uma estrada iluminada por uma lua cor de abóbora. (p.81)
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A partir de Corda Bamba esse recurso como que se vai sofisticando. A fantasia que
liberta a menina Maria ( Corda Bamba ) do trauma de ter presenciado a morte dos pais é
uma verdadeira experiência psicanalítica. Cruzando sua corda bamba, a menina “abre as
portas” de seu inconsciente e as revelações das lembranças apagadas trazem de volta ao seu
pensamento a memória que a põe, definitivamente, pronta a encarar sua nova realidade e
enfrentar uma avó dominadora.
Em livros como O Meu Amigo Pintor e Seis Vezes Lucas o elemento que opera essa
possibilidade de transformação do real é a arte
5
( simbólica e também da ordem do
imaginário ). Lucas supera seus medos através das máscaras de massa que vai criando. As
máscaras revelam não só a força do menino como lhe conferem a capacidade de “ver” a
realidade do mundo à sua volta. Vivendo um momento de conflito familiar em que os pais
mantêm uma relação de aparência, é justamente o menino Lucas, a criança, o elemento que
dispões dos meios de compreender tudo o que vai acontecendo em seu núcleo familiar :
“pensei que gente grande sacava melhor.” (Seis Vezes Lucas, p.112). Aqui, novamente a
experiência da fantasia se aproxima mais uma vez do processo psicanalítico. Lucas vence o
medo quando “cola” sobre seu rosto uma máscara de massa que criara; assim, investido de
uma “persona” o menino é capaz de ser inteiro.
A Coisa voltou, era a garganta que estava doendo? Começou a apalpar o pescoço,
querendo ver se o dedo acertava onde é que a dor morava. Apalpando. Apertando.
Afundando o dedo na pele feito ele afundava na massa de modelar. (...) Deu vontade de
modelar. (...) O dedo cava um olho e depois cava mais outro, aí rasga uma boca, e depois
levanta um nariz, e olha que coisa engraçada! a massa agora é uma cara (...) Nem pescoço,
nem garganta, nem nado doía mais, a Coisa tina sumido (...) Botou a Cara na cara. Foi pra
frente do espelho e grudou a massa na pele, querendo se colar nela também. (...)
O Lucas estava contente de ter um cara ali no espelho; não se sentiu mais sozinho, deu
vontade de conversar com ele, foi logo querendo saber:
- Você é um herói?
A Cara fez que sim.
(...)
O Lucas suspirou fundo. Colou ainda mais bem colada a massa na pele. Tão colada,
que parecia que a massa era a pele. (...) e agora, um era tão o outro, que o Lucas marchou
decidido pra sala (...) ( Seis Vezes Lucas, p.21-22 )
5
O papel da arte nos textos da autora será devidamente analisado em capítulo posterior, aqui o
que se quer é somente estabelecer como, em algumas obras, o uso da arte tem o mesmo papel
que a utilização da fantasia no processo de construção de uma experiência de transformação das
personagens – que, evidentemente, se projeta no leitor.
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A arte de modelar passa a ser o espaço em que o menino representa o que desejava
buscar em si, a força do herói, para vencer seus medos. No ato de modelar, abandona o
temor da solidão ( a Coisa ) , a insegurança vivida pelas constantes brigas entre os pais, e se
“transforma” no outro ( que, de fato, está guardado nele mesmo) . Assumindo a identidade
que a Cara representa, Lucas é “o cara” , o herói e pode, enfim, enfrentar o que vier: o
mundo lá fora.
Também o menino Claúdio, personagem-narrador de Meu amigo Pintor vai
conseguir compreender o mundo, e assimilar a perda do amigo através da experiência
com/na arte. Logo no início da narrativa fica-se sabendo que o menino tem alma de artista
– “(...) o meu amigo me disse que eu era um garoto com alma de artista” (Meu Amigo
Pintor, p.8) – e recebe de presente do pintor um álbum com alguns trabalhos seus. É o
álbum do pintor e a relação do menino com a cor que vão permitir que, num processo de
descobertas e amadurecimento, a criança supere a perda do amigo e amplie a sua
capacidade de lidar com o mundo à sua volta. A arte, nesse caso, é o elemento que ajudará
a ordenar o pensamento ( sempre o sentimento), ou seja, será instrumento da tomada de
consciência, inclusive dos próprios afetos.
(...) cada vez que eu lembrava do meu Amigo ele vinha junto de por quê? por quê?
Tipo do pensamento ruim!
E de repente me deu vontade de experimentar (...) separar Amigo pra cá e por quê? pra
lá.
Experimentei. Era só pensar:
por que ele fez assim tão de propósito pra morrer?
por que ele não explicou nada na carta?
por que ele foi preso?
por que ele não me disse o que ele ia fazer?
por que ele queria botar vida no que ele pintava e não botava?
(...)
Experimentei dois dias. (...) na rua eu andava assim:
1 era amigo
2 era Por quê?
1 era Pensa!
2 era Esconde!
(...) deu um enguiço na minha cabeça que eu vou te contar.
Mas hoje, quando eu acordei, tinha um azul incrível entrando na minha janela. E tinha
um sol que era uma coisa linda de tão amarelo, um amarelo que quando eu experimentei
olhar pra ele na cara ele foi alaranjando.
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Lembrei da pintura que meu Amigo tinha feito no fim do álbum: era também um céu
assim de verão.
(...)
O meu Amigo tinha juntado as duas últimas folhas do álbum pra poder pintar bem
grande aquele céu.
Fiquei olhando e olhando o jeito que ele tinha juntado as duas folhas. Olhei tanto que
acabei sabendo que eu não tinha nada que separar Amigo pra cá e por quê pra lá. O que eu
tinha era que fazer o que ele fez com as folhas e com o azul do céu: juntar. (...)
E então juntei.
Agora quando eu penso no meu Amigo (...) eu penso nele inteiro, quer dizer: cachimbo,
por quê? gamão, flor que ele gostava, morte de propósito, por quê? relógio batendo,
amarelo, por quê, blusão verde: tudo bem junto e misturado.
E comecei a gostar de pensar assim.
Acho até que se eu continuo gostando de cada por quê que aparece, eu acabo
entendendo um por um . ( Meu Amigo Pintor, p. 50-51 – grifos da autora )
Em O Sofá Estampado, tendo ainda como personagens os animais, ao recurso da
fantasia e da imaginação, estudado em um ensaio de Eliana Yunes na Literatura infantil
(1981), vem se juntar uma certa superposição de planos da consciência. Vítor, o tatu que
cava não por uma determinação da espécie, mas para se esconder – do seu embaraço diante
do mundo, da sua incapacidade de lidar com o outro, do seu medo de afrontar as vontades
paternas que vão contra os seus desejos – , vai ganhar sua liberdade ( de escolher, de viver,
de encarar o mundo com o seu próprio jeito de olhar ) a partir das incursões que realiza
tanto entre o seu mundo ( o dos animais ) e o mundo dito real – suas visitas à casa de Dalva,
seu trabalho para a publicidade na TV . Neste livro surge ainda a figura da morte, questão
que, a partir desse momento, se fará presente em outras narrativas da autora.
Cavando, Vítor se distancia do “seu mundo” e vai dar em um lugar que lhe parece
calmo e seguro. O lugar tão fundo ( fundo do poço?) a que Vítor chega é descrito de forma
quase etérea. O jovem tatu está em uma rua deserta por onde passeia uma figura feminina
que, a princípio, o encanta. Porém, na medida em que Vítor vai se aproximando de sua
“vitória” – comandar o próprio destino, livrar-se da gagueira e poder enfrentar o pai,
assumir que a profissão que quer para si é a da avó, andando pelo mundo a lutar pelo que
acredita, acumulando mais histórias para guardá-las em sua mala de lembranças – , voltar
a esse lugar é cada vez mais angustiante. Descobrindo a vida, o protagonista se distancia da
morte, o lugar desejado passa a ser a superfície. Não é mais necessário enterrar os sonhos,
nem deixá-los morrer.
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A criança, na obra de Lygia – como na de Lobato – , embora à mercê do mundo
adulto, não se rende a ele, pois tem a seu lado o discurso da fantasia, através do qual é
capaz de traduzir a realidade, reordenando-a a seu favor. Assim como suas personagens
não são, ao final de cada história, as mesmas que eram, iniciados os seus percursos;
também os leitores de Lygia não o serão. A leitura assume um papel transformador, como
deve ser, sendo um meio pelo qual se capacita o leitor a vivenciar suas próprias
experiências. Aqui, mais uma vez, as palavras de Larrosa se encaixam:
La literatura, como el niño que hemos abolido en nosotros, no es ya de este mundo. Y
quizá es por eso por lo que nos fascina. Pero esa distancia que la literatura, al despertar lo
suprimido y lo olvido, abre com respecto al mundo diurno y com respecto a nosotros
mismos como conciencia instituída, esa distancia tene el poder de contestar esse mundo y
de contestar(nos) en lo que somos. (...) La literatura, como la infancia, pone en cuentión la
validez del mundo común. (LARROSA, 1996, 87)
Literatura e infância são colocadas no mesmo plano, aquele em que a fantasia
conduzia ao livre pensamento e a liberdade de expressão. Usando o recurso de aproximar o
mundo da fantasia e da imaginação ao da experiência cotidiana, Lygia realiza a literatura
sugeria por Larrosa, aquela que suprime a distancia entre o que desejaríamos ser e aquilo
ao mundo nos obriga. Não se trata de uma receita mágica de como vencer ou lidar com os
limites que a vida nos impõe, mas sim de entender a literatura como um espaço vivo de
questionamento e busca, onde existência e experiência aliadas à memória e à constante
reflexão abrem espaços para a mudança e a transformação, ainda que não espetaculares ou
redentoras.
2.2.2.
A linguagem: argila que fabrica os tijolos
O processo de construção narrativa na obra de Lygia é, talvez, um dos traços mais
pessoais que a autora imprime a seus textos. Uma narrativa que se aproxima muitas vezes
do poético, explorando recursos de linguagem que revitalizam a palavra e os próprios
elementos narrativos. Bakhtin, em Estética da Criação Verbal já afirmava:
A forma não pode ser compreendida independentemente do conteúdo, mas ela não é tampouco
independente da natureza do material e dos procedimentos que este condiciona. A forma depende,
de um lado, do conteúdo e, do outro, das particularidades do material e da elaboração que este
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implica. Um desígnio artístico puramente material pertence à experimentação técnica. O
procedimento artístico não pode reduzir-se apenas a um processo de elaboração do material verbal
( do dado lingüístico ), ele deve ser, acima de tudo, processo de elaboração de um conteúdo
determinado que, todavia, recorre a um material determinado. (p.206)
Como se disse, até aqui, a obra de Lygia estabelece um pacto com a fantasia,
portanto, com o lúdico na intenção de criar um diálogo reflexivo com o leitor, permitindo
que o texto seja por ele experienciado. Além disso, cumpre lembrar o papel desempenhado
pela criança em seus textos. Criança que subverte o papel de mera receptora, ganhando
personalidade, questionando e buscando soluções para os seus problemas em sua própria
vivência. É o caso de recordar o que diz, a respeito do papel da criança na obra de Lygia,
Eliana Yunes em artigo publicado na Revista Tempo Brasileiro nº 63 (1980)
6
.
A criança passa de uma posição passiva, em que aprendiz, recebe as “orientações” (
sem contudo compreender as ações ) para uma viva experiência em que se percebe agente e
pode dizer o que sente e pensa. A escolha desta ótica pela narradora implica não apenas em
alteração estrutural do discurso como faz incidir uma relação nova ao nível dos contdos.
(...) a palavra de ordem é inventar ao invés de imitar. ( p.109)
Assim sendo, não se poderia esperar dos textos da autora nada menos do que
inventividade no/do discurso narrativo de modo a se estabelecer uma relação entre forma e
conteúdo. Lygia cria, através de um tratamento muito pessoal da linguagem, o universo
lúdico em que transitam as suas personagens. Nesta pessoalidade, entretanto, é possível
reconhecer uma outra voz: a voz de Lobato. O que não se dá por acaso. Além de ser uma
referência na formação da autora, também Lobato explora o universo infantil do ponto de
vista da criança, lhe dando voz, permitindo o seu vôo pela fantasia. Um dos recursos
comuns aos dois autores, por exemplo, é o jogo de duplo sentido que se faz com as
palavras, estabelecendo uma ampliação de significados por demais criativa, já que se
trabalha com o rendimento tanto da denotação quanto da conotação.
A questão da identidade é uma constante na obra de Lygia, afinal é o que suas
personagens, na maioria das vezes, estão buscando. A nomeação, portanto, é um dos
processos em que se evidencia esse jogo do duplo sentido que expande significados. Veja-
se em Os Colegas o nome de algumas das personagens: Virinha e Latinha assim se auto-
nomeiam tanto porque ambos são vira-latas, como porque dividem a mesma identidade –
6
Yunes, E. A maioridade na literatura infantil brasileira.
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vivem nas ruas, gostam de música, são parceiros – resolvem dividir o nome por que, até o
momento de seu encontro, eram reconhecidos. Já a cadela Flor-de-lis tem nome de flor,
mas tudo o que deseja é ter cheiro e vida de cachorro, para, deste modo, recuperar a sua
identidade – como se vê na história de Flor-de-lis, trecho da obra aqui já citado. O coelho
Cara-de-Pau não se perdeu de sua família, foi perdido por ela quando davam um passeio e,
desde então, para que pudesse ser “achado” era preciso fazer-se notar, portanto ter muita
cara-de-pau.
Em Angélica o recurso se repete, agora em destaque o jogo de contrários. Ao
receber o nome de Angélica, em tudo diferente do nome de seus irmãos, todos começados
pela letra L, a pequena cegonha já é reconhecida por sua família como distinta. No entanto,
o traço angelical que o nome propõe se apaga quando a personalidade da pequena se revela
questionadora – é Angélica quem inferniza” a família, exigindo que a mentira das
cegonhas seja revelada. No mesmo livro, de novo o nome é usado com significação extra,
apontando para a insatisfação da identidade, ou mesmo sua perda.
É o caso do Porco que, cansado de ser discriminado, resolveu o seu problema “e
trocou o c por um t (...) agora se chamava Porto” ( Angélica, p. 17). Ele abre mão do nome,
da identidade, para livrar-se da perseguições sofridas. Porém a troca da letra sugere não um
nome, mas um sobrenome, portanto algo que se recebe de outro, não o que se dá a si
mesmo, além disso a palavra abre para um campo semântico de mar, imensidão, chegadas e
partidas, aventura, tudo o que a personagem evita, ou antes, não alcança.
Em A Bolsa Amarela, Rei é o nome do galo que não quer mandar; Terrível é o
galo-de-briga que quer paz longe das rinhas. Exemplos assim seguem por toda a obra.
Como não ligá-los tanto às questões que a autora problematiza – a busca por uma marca
própria, a contestação de um caminho imposto, o questionamento dos papéis sociais pré-
estabelecidos, as injustiças cometidas contra os diferentes – como ao universo de Lobato,
já que nele reconhecemos um tratamento semelhante quanto à nomeação.
Reinações de Narizinho está repleta de exemplos desse uso dos nomes. Não é o
Marquês de Rabicó um porco, cujo rabo é uma característica marcante; o Visconde traz no
nome a marca do que o constitui , um sabugo, é Visconde de Sabugosa; o peixe-príncipe é
Escamado; o Major Agarra, na verdade não agarra ninguém, dorme o dia todo; o Doutor
Caramujo, sábio médico da corte das Águas Claras, será chamado por Emília de Doutor
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Cara de Coruja, incluindo em tal nomeação tanto o deboche da boneca, quanto uma
referência no doutor, à sabedoria.
O aproveitamento do significado dos nomes em Lygia tem o mesmo rendimento que
em Lobato, ao mesmo tempo que estabelece um ponto de contato com o universo da
fantasia, porque, sendo um recurso multiplicador de sentidos, dá ao leitor a oportunidade
de explorar todas as possibilidades que o nome traduz; por outro lado, considerando o fato
de que, muitas vezes, expressa uma angústia da personagem, convida à reflexão de forma
bem humorada e lúdica – o que, como já se disse, é próprio do universo infantil e não do
“douto” mundo adulto.
O trabalho com sentidos denotativos e conotativos das palavras se expande pelas
narrativas gerando não só a possibilidade da ampliação do significado como também humor
– o que é mais um componente para reforçar, no nível da linguagem, o lúdico. Voltando ao
grupo de amigos de Os Colegas, quando Cara-de-Pau conta sua história ao grupo e explica
que fora “perdido” por sua família, Flor-de-lis encerra a conversa com um conselho.
– Bom, pessoal, vamos ver se agora a gente não perde o coelho, pra ele não ficar
achando que o mundo é só perdição. ( Os Colegas, p.19)
Ao usar a palavra “perdição” no contexto desta frase a personagem está criando um
vocábulo, através de derivação sufixal, e dando ao mesmo um sentido determinado: não ser
o mundo um lugar onde todos se perdem uns dos outros ( tal fora a experiência do coelho
Cara-dePau ). Porém, as referências a mundo e à perdição, associadas, remetam a um
outro nível de significação : o mundo que corrompe, que faz com que as pessoas se percam
de si mesmas. A dupla leitura enriquece o trecho, ainda mais se considerando a narrativa
em questão: um grupo de amigos, perdidos no mundo em busca da felicidade, de liberdade,
de afeto verdadeiro, de uma família, de trabalho – todos valores muito distintos do conceito
de perdição.
Angélica é um texto onde esse recurso é vastamente explorado e isto não se dá sem
uma razão determinada. Nessa narrativa há uma concentração de personagens deslocados
no mundo, isto é, o grupo que se reúne em torno de Angélica é formado por animais que
representam questões fundamentais do ser humano e da sociedade em que vivem. O jogo
metafórico, o duplo sentido, a ampliação de significado de expressões cristalizadas na
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língua permitem que, a partir da linguagem, tanto se estabeleça uma marca para cada
personagem como se associe, imediatamente, a tal marca à possibilidade de romper com
ela.
Angélica, por exemplo, á a cegonha que se rebela contra a família e que se apaixona
por um porco. Na peça de teatro que os animais organizam – e que funciona como um
recurso metalingüístico dentro da narrativa, como será visto adiante – a representação do
nascimento da cegonha é assim expressa:
ANGÉLICA: Nasci!!!
(...)
PAI: (...) vem por aqui. Olha, eu vou riscar uma linha com esse giz. Você só vai
andar na linha que eu riscar, viu?
(...)
LUTERO: Chi, ela não andou na linha !
(...)
LUTERO: Chi, ela é espírito de porco, papai. ( Angélica, p. 65-66)
Por não saber andar na linha traçada e por não fazer nada do que a família queria
que fizesse é que se diz que Angélica não anda na linha e é espírito de porco. No primeiro
caso, tem-se a expressão usada pelo irmão Lutero em sentido literal, mas imediatamente o
leitor a desloca para o nível metafórico, já que de fato a jovem cegonha será aquela que
contestará a família, saindo da linha ( da linhagem) da tradição imposta: as cegonhas devem
perpetuar a mentira de que são responsáveis pela entrega dos bebês. No caso de “espírito de
porco” dá-se o inverso. Lutero a emprega conotativamente: ela não faz nada direito, é
implicante, é espírito de porco ( do contra ). Porém, associando a expressão ao fato de
Angélica amar o Porco/Porto, essa ganha um sentido literal, a cegonha nasceu com um
espírito, uma alma, como a de um porco – conseqüentemente não será estranho que se
apaixone por um.
O mesmo acontece com a personagem da Mulher-do-Jota. Jota-Crocodilo representa
o marido opressor, à sua mulher não era concedido nenhum direito, não tinha voz, sequer
um nome próprio, no entanto, “Quando ela ficava nervosa dava pra espirrar. Mas bastava
um espirro que o crocodilo já brigava com ela ( ele cismava com espirros).” (p. 87). O uso
da expressão “não dar nem um espirro”, metaforicamente, aponta para a necessidade de
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calar, aqui, usada em sentido literal, reforçando a idéia do jugo a que era submetida a
esposa do crocodilo.
Já o elefante Canarinho é um deslocado. Sua mãe não queria um filho elefante, por
isso deu-lhe o nome de Canarinho. Em conseqüência, o elefante não se identificava com
seu próprio corpo, tudo o que era grande o incomodava profundamente. Enrolava as
orelhas, encolhia a tromba. Justamente na seqüência em que a personagem entra na história,
num diálogo com o Porco, e vai revelando as suas insatisfações, lá está, na linguagem, o
trocadilho com as palavras, como já indicara Yunes em seu artigo para a Revista Tempo
Brasileiro.
Você trabalha em quê?
– Vivo de biscate: pego um servicinho aqui, outro ali. Quando aparece. Mas às vezes
leva um tempão sem aparecer. Que nem agora. Desde o natal que não aparece nada. Ando
apertando o cinto que só vendo.
Porto olhou o cinto que o elefante usava.
– Puxa, mas que cinto bacana! É de crocodilo?
O elefante empinou o peito: adorava aquele cinto; mesmo vivendo apertadíssimo ele
não vendia o cinto de jeito nenhum. ( Angélica, p.24)
Fica evidente o jogo feito com a expressão “apertar o cinto” e a palavra
“apertadíssimo” . Além do humor que a troca significado/significante estabelece, o
trocadilho verbal reforça as “trocas” que o elefante tentava em sua aparência para alterar
seu aspecto, o corpo que deveria significá-lo. Assim, o discurso registra o estado de espírito
da personagem, as palavras têm deslocados os seus sentidos como é um “deslocamento” um
elefante desejar ser pequeno como um canarinho.
Esse uso do trocadilho remete imediatamente ao mundo lobatiano, visitado pela
autora. Em Reinações de Narizinho, a boneca Emília recebe de presente da Rainha das
formigas uma bandeja de croquetes e logo se põe a devorá-los. Quando se sabe que os tais
croquetes são de minhoca, Narizinho começa a debochar da boneca que, imediatamente, sai
com superioridade da situação:
–– É “por isso mesmo” que eu como minhoca e não como porco! – replicou a boneca
vitoriosa. Não sou porcalhona. (p.49)
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Aí está, porcalhona seria aquela que não prima pela higiene, aquela que faz ou come
porcarias ( coisas sujas, que provocam o nojo ), a boneca inverte o sentido que
habitualmente é dado à palavra; para ela o porcalhona passa a se referir àquela que come
porco e como Rabicó ( o porco ) não era exemplo de educação ou limpeza, melhor mesmo
comer minhoca. O trocadilho além de ser divertido na boca da boneca atrevida, se
transforma também numa chave dada ao leitor. O pensamento afiado, o verbo na ponta da
língua, a construção de argumentos são exemplos de comportamentos que garantem
enfrentar o mundo, defender idéias, poder ser tudo o que se quer.
Seguindo por esse caminho, Lygia vai sofisticando o recurso de revitalização de
significados como se vê em A Bolsa Amarela, quando Rachel vai à casa dos consertos. O
local onde uma família trabalhava consertando tudo, acaba por “consertar” mesmo o modo
de Rachel olhar a vida – a vontade de crescer e ser menino para, desse modo, fugir ao
modelo de sua família. A família de Rachel tipifica um esquema tradicional e conservador.
O pai é o chefe, homem faz coisa de homem e tem todos os direitos, mulher cuida das
coisas de mulher e não tem voz, criança não existe – obedece. A saída encontrada por
Rachel, ter vontade de ser menino e adulto, na verdade mostrava a menina ainda dentro dos
padrões da família, já que o que parecia solução funcionava mesmo como um reforço
daquela ordem instituída contra a qual a menina desejava reagir.
Na casa dos consertos ninguém tem lugar marcado, todos fazem tudo, podem tudo,
tomam decisões juntos, a troca de papéis é natural. Ao observar um modelo familiar
diferente, Rachel percebe que não é preciso deixar de ser menina ou abrir mão da infância;
descobre que existem outras saídas, pois o que se pode consertar é o modelo familiar que a
incomoda. Assim, o que nomeava um lugar onde se reparavam coisas, passa a significar na
narrativa o espaço em que Rachel aprende a pensar de outro modo, “conserta” o seu
pensamento e o seu olhar sobre o mundo.
Já que na obra de Lygia o espaço da literatura é privilegiado no sentido de permitir
o resgate da experiência, é natural que “contar uma história” seja um gesto tanto
significativo como imperativo. Daí resulta um jogo metalingüístico extremamente
interessante. É comum em diversos textos da autora que dentro da história que está sendo
narrada se encaixem outras narrativas. Recurso esse que também se percebe na obra de
Lobato. Basta recordar o entrelaçamento das diversas aventuras que as crianças do sítio do
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Picapau Amarelo vivem em Reinações de Narizinho.. A história da fuga do Polegar dos
livros de Dona Carochinha, o casamento de Emília, a história de Dona Aranha ( a
costureira) vão se somando à narrativa principal que envolve o encontro de Narizinho com
o príncipe Escamado.
O interessante é que Lygia, ao lançar mão desse recurso, estabelece relações
extremamente proveitosas entre a narrativas principal e àquelas que nela vêm se encaixar.
Às vezes o que se busca é a polifonia, como em Os Colegas, em que à narrativa principal,
em terceira pessoa, somam-se histórias como a de Flor-de-lis, por exemplo, narrada na
primeira pessoa. Outras vezes, as histórias que se somam reforçam aspectos das
personagens que participam da narrativa principal, como a história da Gata da Capa em A
Casa da Madrinha. A gata vira-lata, que ninguém quer e que, por isso mesmo, vai decidir
se esconder debaixo da capa de chuva, se aproxima da condição “vira-lata” de Alexandre,
menino pobre, vivendo pelas ruas e estradas que ninguém quer ver por perto também.
Como a gata, Alexandre não tem espaço no mundo, não tem um lugar, porém se a gata se
esconde, o menino busca na fantasia o seu lugar – a casa da madrinha.
Há ainda um terceiro uso para o “encaixe” : é quando a história encaixada é uma
representação da história principal, ou seja, naquela se realiza o que se quer na narrativa
primeira. A peça de teatro em Angélica demonstra isso. A transformação que a cegonha
deseja para sua família, como também as mudanças que cada um dos “atores” envolvidos
no espetáculo querem para si, se realiza no texto da peça de teatro que os animais estão
ensaiando. Em A Bolsa Amarela – já que Rachel escreve histórias – as narrativas que se vão
acoplando à história da menina são muitas e em todas elas há o reforço da idéia de romper
com aquilo que não se deseja, ou seja, viver sob o mando alheio, assumindo um papel que
não se quer ( a história do Rei e do Terrível são exemplos contundentes e já citados aqui ) –
a grande questão da protagonista.
Em Corda Bamba tal recurso também se manifesta. Nesse caso, os relatos que se
somam à narrativa vão preenchendo os espaços vazios na própria história de Maria – a
história do encontro de seus pais, a história dos maridos da avó, a da velha “comprada
para contar histórias para Maria. Os relatos que interferem e interagem com a narrativa
principal recuperam para a menina os momentos por ela vividos e aqueles perdidos na
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memória, esclarecem aspectos que, fazendo parte de sua vida, lhe foram sonegados. Narrar
torna possível o resgate de uma experiência.
Colocar histórias dentro da história assume, assim, um efeito maior do que o de uma soma
de episódios, antes, corresponde a um jogo textual em que o conjunto das situações
narradas se entrelaça, embora estruturalmente, muitas vezes, haja independência entre os
relatos, como “testemunhos” de experiências vividas. A narrativa de Lygia acaba por
recuperar, ao seu modo, um traço que para Benjamin a narrativa e o romance modernos
haviam perdido: a possibilidade de serem um registro de experiências que se possa
identificar com a coletividade. A narração, no caso da obra da autora, não é um processo
distanciado, solitário, nem isolado
7
. Há uma identificação profunda entre as personagens
que se encontram no espaço da ficção como há uma relação direta autor/leitor sendo
alimentada justamente pela atuação de narradores que não contam histórias inventadas a
partir de mundinhos extremamente pessoais. Os narradores da histórias de Lygia falam da
vida, das relações que se estabelecem entre o sujeito e os outros, do lugar que cada um
ocupa e do que desejaria ocupar no mundo.
Cada relato que se desloca dentro de uma narrativa principal fala da experiência de
um sujeito, fala da interrelação pessoal, fala da vida – onde caminhos se cruzam e
experiências se somam para gerarem transformação ( de si e do mundo ). De certo modo,
mesmo sendo histórias escritas, para serem lidas, os textos de Lygia acabam por funcionar
como aquelas histórias eram contadas de viva voz, portanto incluíam a experiência do
narrador e de uma comunidade de ouvintes, do mesmo modo que se expandiam a partir
dessas mesmas experiências.
2.3
Dostoiévski e Poe : personagens e ambientes
Seguindo no relato de seu encontro com o livro, Lygia passa a nos falar de suas
leituras adolescentes. Entram em cena Dostoiévski e Edgar A. Poe. Do primeiro, a autora
destaca como uma de suas paixões o livro Crime e Castigo; do segundo, faz referência a
seus contos, em especial alguns que estão reunidos em suas obras completas como Contos
7
Fala-se aqui dos conceitos que Benjamim desenvolve em seus artigos A crise do romance e O
narrador, ambos publicados no volume I de suas obras escolhidas, editora Brasiliense.
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de Terror, de Mistério e de Morte. O que chama a atenção de Lygia em Dostoiévski é a
construção das personagens, sempre movidas pela paixão; já em Poe, aprecia a ambientação
dos relatos que afirma ser, para ela, um dado de fascinação.
Um dado interessante no relato de Lygia-leitora é a necessidade de situar suas
leituras cronologicamente. Assim como Lobato foi descoberto na infância, a autora trata de
registrar que os dois “novos amores” vieram com a adolescência.
O que tinha contado tanto ponto na minha infância – a brasilidade do Lobato – parecia
que agora, na força da adolescência, não contava tanto assim: esses dois escritores vinham
lá do Norte, não tinham nenhum vestígio tropical. Dois homens que impregnavam a escrita
deles de uma atmosfera absolutamente peculiar (...) supercarregada de ... angústia? é:
angústia também; mas, tendo que usar uma palavra só pra tentar descrever o ar que se
respirava naqueles livros, eu usaria desespero. ( Livro, p. 14 )
O que torna esse dado tão interessante é o fato de, em sua obra, a autora apresentar
personagens e situações que vão “crescendo” com seus leitores. Ela vai deixando que seus
personagens amadureçam, cresçam, de livro para livro – como já se disse aqui. Portanto,
parece evidente que tenta levar para seus livros uma experiência pessoal de leitura: na
medida em que se cresce, os interesses se revelam e a relação com a leitura também se
transforma. Sendo importante situar em que momento cada um dos seus autores preferidos
começou a fazer parte de sua vida de leitora, Lygia demonstra ser esse um dado relevante
para o seu processo como escritora, o que reforça a idéia de ter, em sua obra, o
compromisso de seguir com seu leitor, fazendo parte de sua formação.
No artigo em que a aponta como filha de Lobato , Yunes assinala que nele são os
temas que vão se tornando complexos ( do casamento do peixe com a menina, um sonho, à
guerra , ao petróleo , à Lua...) ; em Lygia é sua relação com a literatura – ela vai deixando
de ser uma escritora obviamente para crianças, como diz Sandroni, em sua crítica de o O
Globo, para O Abraço, e sua linguagem começa a apontar para uma elaboração cada vez
mais complexa, que permite a um texto ter muitas isotopias de leitura e perder com isto a
certeza de que é “apenas” uma obra para crianças. Em Lobato ocorreria também uma outra
leitura, pelo avesso , em que se dirigiria aos “educadores”, criticamente.
Interessante, ainda, é que vai deixando claro que há, nas escolhas do leitor, uma
ligação direta entre o momento que vive e as leituras que elege. Se na infância o importante
era o reconhecimento imediato da brasilidade, de “sua” gente, para que a imaginação
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pudesse se libertar; agora, na adolescência, o que encanta é reconhecer nos livros a angústia
e o desespero, sentimentos intrínsecos ao processo de “adolescer”. Esse dado se revela
precioso, pois demonstra que, em sua experiência de leitora, Lygia reconhece uma ligação
direta entre as experiências vividas e àquelas resgatadas através da leitura, estabelecendo
que é preciso o leitor se reconhecer, ou seria se descobrir, nos textos que lê.
Esse mecanismo, experimentado na leitura, a escritora leva para sua obra,
estabelecendo sempre contato com seu leitor – aquele que, menino, aprendeu a vencer
dificuldades com os animais de Os Colegas, hoje, maduro, pode se ver através dos Retratos
de Carolina.
2.3.1.
Moldando as personagens que habitariam as casas
“ (...)Crime e Castigo. Esse livro foi pra mim o
exemplo perfeito do quanto nós, leitores, podemos nos
envolver emocionalmente com um personagem literário
“. (Livro, p.15)
O encontro com Dostoiévski foi um encontro com a personagem. Sobre
Raskólnikov, Lygia diz que “foi mesmo uma paixão” (Livro, p. 15). Paixão “pelo
desequilíbrio dele, pelo desespero dele, (...) pela necessidade que ele tinha de baixar o
machado no crânio daquela velha, que horror, e ir se entregando, devagarinho, pro castigo.”
(Livro, p. 15). A empatia da leitora-Lygia com a personagem de Dostoiévski se dá
justamente pelo que há de passional em Raskólnikov, por sua imprevisibilidade. Contendo
em si todas as contradições da sociedade em que vive, o jovem estudante da obra de
Dostoiévski, é sempre atropelado por suas emoções; o que o transforma em personagem
pronto a surpreender o leitor. Nada na trajetória do jovem se pauta pela lógica ou por
relações diretas de causa e efeito, é um constante jogo de mão-dupla: a vida o desafia e ele
desafia a vida. Esse é o embate que encanta a leitora o ponto de transformar-se em paixão.
A mesma que, como autora, levará para a construção de suas próprias personagens.
Como o jovem de Crime e Castigo, as personagens de Lygia são movidas por
desejos e paixões. Como ele, estão à mercê de um mundo nem sempre harmonioso ou justo
com o qual têm de lidar; como ele, são imprevisíveis e mutantes, prontas para um gesto
surpreendente que lhes transforme a vida, que rompa com a noção de um “destino”
previamente estabelecido.
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Mikhail Bakhtin, em Problemas da Poética em Dostoiévski, diz acerca da
construção das personagens na obra do autor:
A personagem dostoievskiana não é uma imagem objetiva mas um discurso pleno, uma
voz pura; (...) Afora sua palavra, tudo o que vemos e sabemos é secundário e absorvido pela
palavra como matéria sua ou permanece fora dela como fator estimulante e excitante.
Depois nós nos convenceremos de que toada a construção artística do romance de
dostoiévski está voltada para a revelação e a elucidação dessa palavra da personagem em
relação à qual é agente de funções excitantes e orientadoras. (...) Aquela espécie de tortura
moral a que Dostoiévski submete as suas personagens, visando a obter delas a palavra de
sua autoconsciência, que chega aos seus últimos limites, permite dissolver todo o concreto e
material, todo o estável e imutável, todo o externo, o neutro na representação do indivíduo
no campo da sua autoconsciência e da auto-enunciação. (1981, p.45)
A análise de Bakthin aponta duas questões relevantes: o discurso da personagem e o
alcance de uma autoconsciência. Através da palavra a personagem não só se constrói como
se revela, não apenas ao leitor, mas a si mesma, e todo o trabalho de elaboração do seu
discurso está voltado para a construção de sua própria consciência, sua auto-enunciação,
sua identidade. Narrando-se, a personagem se revela. Neste narrar, evidentemente, há o
cruzamento de diversos fatos e situações, há a presença de outras personagens, com suas
próprias vozes e histórias; o que remete à obra de Lygia.
O recurso que a autora utiliza em seus textos não passa necessariamente pelo do
monólogo da personagem, como se vê em muitas das obras de Dostoiévski – inclusive em
Crime e Castigo – , mas está presente no uso das histórias encaixadas” . De um modo ou
de outro, o rendimento é o mesmo : narrar conduz a tomada de consciência, a palavra
constrói a identidade da personagem, por isso mesmo ela nos surpreende, já que está se
fazendo no discurso, ao longo da narrativa.
Um exemplo é a personagem Maria de Corda Bamba. A menina que, ao início da
história, está fechada em si mesma, presa a seus medos e vulnerável à vida; à medida que
passeia por sua corda e visita o corredor onde atrás de várias portas, que abre pouco a
pouco, vai “assistindo” a sua própria história e a história de seus pais sendo contada,
começa a se inteirar de si mesma, toma posse de sua identidade, alcança a tal consciência,
chegando inteira ao fim da narrativa.
O tempo vai passando, mais portas vão aparecendo, e Maria vai abrindo elas todas, e
vai arrumando cada quarto, e cada dia arruma melhor, não deixa nenhum cantinho pra lá.
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Num quarto ela bota o circo onde vai trabalhar; no outro ela bota o homem que ela vai
gostar; no outro os amigos que vai ter. Arruma, prepara, prepara: ela sabe que vai chegar o
dia de poder escolher. (Corda Bamba, p.125)
O problema da construção da personagem está tematizado no livro Fazendo Ana
Paz. O que se vê, aqui, pelo avesso, também é a importância do narrar para que a
personagem se “faça”. O texto é o relato em primeira pessoa de uma escritora que divide o
momento da criação de um de seus livros com os seus leitores. Ela vai contando a história à
medida em que “inventa” a personagem central: Ana Paz. Tudo vai muito bem, surgem as
histórias dentro da história de Ana para que ela se constitua, porém, em dado momento, a
escritora se vê num impasse. É fundamental para que Ana saia inteira que se conte a
história de seu pai, só que a escritora não consegue contar essa história. Há um vácuo no
somatório de relatos que devem construir Ana, portanto ela está condenada a não existir, já
que para a escritora sempre lhe faltará algo.
Não podendo contar a história do Pai, a escritora desiste de Ana, pois lhe parece
impossível que ela esteja pronta para morar em livro assim, sem uma das histórias que
fariam a sua história. A situação é emblemática: a personagem do Pai não encontra o seu
discurso, por isso não pode “ser”, conseqüentemente, a personagem de Ana Paz tem o seu
discurso interrompido, já que lhe falta uma história, portanto não pode, ela também,
“existir”. A escritora decide rasgar Ana Paz e o segue fazendo até que começa a rasgar as
páginas que contam as histórias da Ana Paz moça, no momento em que ela se apaixona.
Sugestivamente, nesse ponto, a personagem se insurge.
– Não! mal ou bem, nessa hora eu tô me apaixonando por um homem, eu tô me
sentindo tão viva; eu ainda não sei que vou me casar com ele, que vou ter filhos com ele,
que eu vou se infeliz com ele, mas tudo que eu vou viver vai ser tão intenso! e você me
rasga? ( p.52)
Dentro do processo de construção das personagens a partir do seu discurso, dos
relatos que se somam para atingir a autoconsciência e a posse da identidade, não poderia ser
outro o momento de revolta de Ana se não o da Ana moça, porque esse era o momento da
narrativa em que a escritora tinha justamente conseguido criar histórias para a memória da
personagem. Havia o homem por quem ela se apaixonara, havia a história do amor, do
casamento, dos filhos, das infelicidades, a história dos filhos crescidos; a história da
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infância e a da velhice ficaram em branco pela falta do Pai, mas Ana moça tinha sido
narrada toda, completa, Ana moça existia. Os argumentos da escritora de que a personagem
está incompleta, não resolvida, não se sustentam diante do desejo de Ana de ir morar em
livro, “E hoje ela foi” (p.54) – rende-se a escritora para quem ela segue incompleta.
Ana Paz ganha o seu direito de partir através da palavra, Ana moça tinha existência,
como já se disse, tinha história, portanto tinha discurso e é com ele que enfrenta a escritora
e ganha sua liberdade. Assim, se revela a importância do relato na constituição e construção
das personagem na obra de Lygia, o somatório de experiências transformado em discurso é
o que dá a possibilidade de existência às personagens, a conquista da palavra é a conquista
da identidade. Criar uma personagem vai além de dar a ela características físicas e
psicológicas ou de determinar-lhe um “papel” na história, essa criação vem da soma de
experiências reservadas à personagem, vem do conjunto de narrativas que se somaram à
dela, vem da possibilidade da palavra ser um recurso de libertação.
Voltando à personagem de Dostoiévski que encantou Lygia, Raskólnikov, a respeito
de sua construção, Bakthin comenta:
O discurso monológico de Raskólnikov impressiona pela extrema dialogação interior e
pelo vivo apelo pessoal para tudo sobre o que ele pensa e fala. Também para Raskólnikov,
pensar no objeto implica apelar para ele. Ele não pensa nos fatos, conversa com eles.
(1981,p.209)
O diálogo da personagem é, portanto, com os relatos que esbarram com o seu ao
longo da narrativa. Incorporando em seu discurso outras vozes e dialogando com elas,
Raskólnikov vai se fazendo, vai ganhando consciência de si, até que possa assumir o seu
gesto. A proposição de que uma personagem se cria a partir das histórias que acumula se
confirma no parágrafo final de Crime e Castigo, quando o narrador sugere o futuro de
Raskólnikovi como o início de uma nova história.
(...) aqui começa uma outra história, a história da renovação gradual de um homem, a
história do seu paulatino renascimento, da passagem progressiva de um mundo a outro, do
conhecimento de uma realidade nova, até então desconhecida. Isto poderia ser o tema de um
novo relato – mas este está concluído. (p. 561)
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Tendo tomado posse de sua história, Raskólnikovi pôde restabelecer sua
integridade, assumir o crime, viver o castigo; para ir além somente um novo relato, uma
nova sucessão de histórias, um novo discurso, enfim, outras palavras.
Este parágrafo final de Crime e Castigo remete a um livro de Lygia, em que o
cruzamento de relatos também caracteriza o processo de elaboração das personagens,
possibilitando a estruturação e transformação das mesmas ao longo da narrativa; fala-se
aqui de A Cama. A história central, como sugere o título, é a de um objeto. Portanto, não é
a cama que se transforma ao longo da narrativa, mas sim aqueles que vão fazendo parte de
sua história. A cama é para Zecão, homem pobre, a lembrança de outros tempos vividos
pela família e um compromisso, assumido com os antepassados, de jamais se desfazer dela.
O objeto encarna a representação da memória, não só da família de Zecão mas de
todos a quem, eventualmente, pertenceu. O conflito se estabelece quando Maria Rita, irmã
de Zecão, herdeira da cama, vivendo em miséria absoluta, resolve vender a relíquia de
família. A partir daí a cama passa a representar o elo entre os dois pólos de um Rio de
Janeiro partido: a Zona Sul e a Zona Norte, o morro e o asfalto.
Petúnia, filha da compradora da cama, e Tobias, filho de Zecão, são as personagens
que a cama vai unir. Longe de se importarem com a diferença econômica e social ou com
os preconceitos, os jovens vão descobrindo as diferenças e identidades de seus mundos e de
si mesmos a partir do compromisso comum de restituírem a cama a Zecão. E novas
histórias vão chegando: Rosa e Jerônimos, que se separam por causa da cama, Américo e
Roberta, pai e filha que vão se reencontrar depois de anos de separação, é para Roberta que
Américo vai comprar a cama.
Cada uma das novas e velhas histórias vão começar a fazer parte da vida de Petúnia
e Tobias que, através delas, passam a entender melhor o mundo e as pessoas a sua volta,
passando também a serem outras pessoas. Petúnia vai descobrir que pode lutar pelo que
quer, que pode transformar sua realidade se fizer algo para isso. Tobias vai compreender
melhor os sentimentos de sua família, vai incorporar a esperança que a cama simboliza.
Sobretudo, os dois jovens vão descobrir o amor e a identidade nas diferenças.
Do mesmo modo que a narrativa de Dostoiévski, também A Cama se encerra
apontando para outros relatos, uma nova história.
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Molhada, lanhada, encostada na parede, a cama olhava chover.
E agora? quem é que vinha dormir nela?
Tantos! tantos já tinham vindo.
Vinham. Iam. Vinham. Iam, morriam.
Mas ela tinha nascido de uma árvore magnífica e forte (...) : ela continuava.
Continuava. Quem é que vinha agora dormir nela? amar nela? nascer nela? morrer nela?
A cama espera. ( p.170 )
2.3.2.
Casa habitada: que jeito tem?
“Eu já sentia, mesmo não me conscientizando muito bem, essa transa tão
peculiar, tão única, que liga o leitor ao escritor, e que faz com que a gente
passe a sentir falta da atmosfera que certos escritores criam nos livros que
eles escrevem. (...) E o meu caso de amor com o Poe caracterizou,
exatamente, esse aspecto atmosférico do livro”. (Livro,p.16)
A imaginação e o jogo criativo com as palavras levantaram paredes das casas, a
paixão e o encantamento, cruzando histórias, criaram as personagens que as habitariam.
Casa com gente morando nela ganha um jeito especial: o jeito do dono. Qual é a
“atmosfera” dos livros de Lygia?
A resposta para essa questão é tão fácil de ser vivida como difícil de ser escrita.
A leitura dos contos de Poe trouxe para Lygia-leitora o encantamento com o
universo das histórias, com a tal atmosfera do livro, isto é, uma identidade que alguns
autores conseguem imprimir aos seus relatos, tornando-os tão pessoais e instigantes que
prendem definitivamente seus leitores. No caso de Poe, a tal atmosfera se fazia imperiosa já
que seus contos transitavam entre o mistério, o terror, a morte. A própria natureza dos
contos determinava a criação de um universo muito especial para que soassem verossímeis
e conquistassem o leitor. Além de necessária, essa ambientação acaba sendo de fácil
identificação em um trabalho de análise da obra por conta das particularidades já
apresentadas.
Diante de uma história de mistério ou terror é fácil imaginar a importância, por
exemplo, dos cenários adequados, do uso da descrição, da seleção vocabular; e Poe usa
tudo isso com técnica e esmero apuradíssimos. Basta um pequeno trecho do Gato Preto,
conto citado por Lygia em Livro, para que se reconheça a habilidade do autor.
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Agarrei-o, mas, nisto, amedrontado com minha violência, deu-me ele uma leve dentada
na mão. Uma fúria diabólica apossou-se instantaneamente de mim. Cheguei a desconhecer-
me. Parecia que minha alma original me havia abandonado de repente o corpo e uma
maldade mais do que satânica, saturada em álcool, fazia vibrar todas as fibras do meu
corpo. Tirei do bolso do colete um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e,
deliberadamente, arranquei-lhe um dos olhos da órbita! (Obras Completas,1986, p.294)
Qualquer um que seja leitor de Lygia pode afirmar que há em sua obra também uma
atmosfera especial que alguns escritores sabem criar. Porém, diferente de Poe, os textos de
Lygia não tem um caráter específico, não se dirigem a um determinado gênero narrativo,
portanto é preciso que se perceba, no conjunto da obra, os recursos de que lança mão para
criar um universo tão pessoal e encantador.
A linguagem trabalhada de uma forma muito pessoal é um deles. A questão dos
trocadilhos, da revitalização de expressões cristalizadas na língua foi estudada, mas, além
disso, a autora marca seus textos com o aproveitamento de alguns recursos da linguagem
coloquial, construindo uma sintaxe própria. As reduções como “pra” , o uso de gírias, as
duplas negativas, o pleonasmo são alguns dos exemplos de traços da linguagem coloquial
que a autora incorpora à sua escrita, marcando com isso a identidade e o clima de seus
textos. Além disso, encontra-se o uso dos pronomes pessoais como complementos verbais e
as regras de colocação pronominal são subvertidas em nome da oralidade presente nas
narrativas.
O primeiro efeito de tal aproveitamento lingüístico é que, ao se começar a ler um
texto de Lygia, a intimidade com o leitor se estabelece. Uma intimidade construída nessa
linguagem que se faz próxima, bem como no fato de o leitor reconhecer, na escrita, a
autora.
Hoje saiu uma briga daquelas entre nós dois porque eu gritei pra ela que estava com
saudades da minha turma e da cuíca. Gritei também que estava achando que ela era uma
girafa muito chata. Ela então ficou danada e enfiou a perna na minha jaula pra me dar um
pontapé. ( Os Colegas, p.89 )
Os pais tinham resolvido que estava na hora de Alexandre e o Pavão irem embora: já
tinham dado comida pra eles, já tinham deixado eles ficarem um dia e uma noite no
sítio. (A Casa da Madrinha, p. 71)
A gente foi correndo espiar atrás das pedras. Acabamos encontrando a coitada da
Guarda-chuva caída na areia, já cansada de tanto pedir socorro. E foi só ela ver o
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Afonso que desatou a falar. Falou tanto que eu cheguei a me deitar pra dormir. Mas não
dormi não: a cara do Afonso foi ficando tão ruim que eu perdi o sono. Às vezes eu
perguntava:
O que é que ela tá contando? ( A Bolsa Amarela, p.77)
– Mas o que eu queria te contar é que foi aí, quer dizer, foi lá na floresta que eu saquei
uma coisa que eu não sabia que podia acontecer com a gente. (Seis Vezes Lucas, p.108)
Exemplos como esses se repetem em todos os livros, acentuando o uso da
linguagem como uma forma de estabelecer uma atmosfera particular às narrativas. Outro
traço marcante, é o modo como Lygia inicia suas histórias. Em, praticamente, todos os
livros a história começa com as personagens em ação, com isso o leitor como que é
capturado pelos acontecimentos, sentindo que é parte da cena que vai sendo narrada. Em Os
Colegas, Angélica, A Bolsa Amarela, A Casa da Madrinha e em A Cama as narrativas são
iniciadas pelo discurso direto, de modo que o leitor se vê lançado no meio da história e vai
descobrindo quem fala e do que se trata no próprio diálogo das personagens.
Em outros textos, como Paisagem, Fazendo Ana Paz, O Meu Amigo Pintor, Feito a
Mão, O Rio e Eu os relatos são em primeira pessoa, o que é uma alternância da autora, de
modo que a sensação de estar intimamente ligado ao que vai ser narrado também se
estabelece. O leitor se transforma no confidente desse narrador em primeira pessoa e segue
com ele sua história.
Se há, portanto, uma palavra que defina a atmosfera dos livros de Lygia essa palavra
é intimidade. A aproximação do leitor com o texto é um chamado da própria obra e nela
está traduzido na linguagem. Uma outra palavra que também define “o clima” das histórias
é lirismo. Do mesmo modo que busca a coloquialidade e a participação do leitor, a autora
também o quer encantar, seduzir, envolvendo-o cada vez mais na trajetória das
personagens, para isso lança mão de recursos poéticos introduzidos na linguagem narrativa.
O uso das figuras de linguagem e de recursos como a musicalidade, as associações
inesperadas dão um tom poético às narrativas, convidando o leitor a um maior
envolvimento. Nos contos de Tchau esse é um recurso muito presente.
E o Menino sempre daquele jeito, sem tirar o olho do Barco, sonhando um sonho que ele
tinha dado pra sonhar: ter um barco pra brincar. (...) O Menino alisou a madeira do banco, a
ponta do dedo tocou no leme, de leve, feito fazendo uma festa.
E o susto do Barco virou um suspiro. (...)
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O Menino desatou a laralalar de um jeito que o Barco bem que sentiu vontade de
cantarolar também. E os dois assim, um de olho no outro, lá se foram pelo mar. (Lá no
Mar, in Tchau, pp.74 – 77)
Experimentei pintar uma aquarela; pintar com tinha óleo também quis; pintar de qualquer
jeito, mas quem diz? Tentei, tentei, cansei; não sei mesmo como é que se vira uma coisa
com tinta, eu só sei, eu só quero é virar com letra. (A Troca e a Tarefa, in Tchau, p.63)
Se nos contos de Poe a Lygia-leitora se encantou com a atmosfera de mistério, com
a linguagem construindo a sombra, revelando o medo; os textos da Lygia-autora encantam
pela atmosfera de surpreendente desenlace com que a linguagem constrói a aproximação
com o leitor, igualmente encantando-o.
2.4
Falando do milagre, deixando de lado o santo
“(...) eu chafurdei ( a palavra é bem essa: cha - fur - dar ) num
caso meio vergonhoso da minha vida de leitora. É o tal que eu
disse que ia contar o milagre mas não ia dar o nome do santo. (...)
O que interessa é que foi esse caso – bem negativo por sinal – que
me deu a fantástica dimensão dessa coisa que a gente é. A gente:
nós todos aqui: leitores.” (Livro,p.17)
Depois de Lobato, na infância, Dostoiévski e Poe ,na adolescência, Lygia
encontrou-se com muitos outros livros e autores, experimentou “uns casamentos” com
livros que não tratavam de literatura, até que, de repente, foi capturada por um novo caso de
amor.
Talvez tenha sido esse um dos casos mais importantes de Lygia , pois, graças a essa
experiência meio frustrante, foi que ganhou a consciência dos laços que um leitor pode
manter com um autor, de o quanto essa interação é poderosa. Essa descoberta, doída para a
leitora, transformou-se em preceito para a escritora, uma vez que sua obra é um convite à
cumplicidade do leitor.
O caso de amor não nomeado de Lygia foi com a literatura dita de massa, com um
best-seller. Mesmo reconhecendo o truque da fórmula que se repete e reconhecendo que
“saía daqueles encontros ( com os livros do tal autor) me sentindo assim ... poluída. Mas era
feito fumar, me poluindo ou não, toca a ler o fulano.” (Livro, p19), o prazer de ler estava
instalado. Por alguma razão, naquele momento, as histórias do tal autor agradaram a Lygia,
talvez justamente porque a “poluíssem”, dando àquela leitora de gosto tão refinado uma
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prova de um jeito diferente de escrever – um jeito que mostrava um uso programado das
palavras, um roteiro pré-estabelecido que podia ser reproduzido inúmeras vezes, fazendo-se
trocas mínimas e, ainda assim, atrair leitores.
É provável que o caso tivesse durado muito tempo, não fosse um episódio de
traição. O “tal fulano”, depois de uma viagem à Índia, deixou-se influenciar pela cultura
recém descoberta e mudou a fórmula. No lugar da história conhecida, o que Lygia
encontrou no, esperado, último lançamento do “fulano” foram descrições e mais descrições
das coisas vistas na recente viagem.
Puxa, mas como é que ele fazia uma coisa dessas comigo? Eu não tinha falhado um livro
dele. Mesmo me poluindo toda eu tinha sido de uma fidelidade absoluta – e agora ele me
traía assim? (...) Rasguei o livro na hora. (...) E no meio dessa explosão emocional, de
repente, me dei conta de como é forte essa transa livro-e-a-gente.
Aquela sensação de frustração que eu estava amargando – e que se repete cada dia, cada
hora, em cada canto do mundo, cada vez que um escritor decepciona seu leitor – tinha me
dado a medida exata da minha parceria. ( Livro, p.20)
A contribuição decisiva do escritor-não-nomeado foi a de descortinar claramente
para a Lygia-leitora a fidelidade que há na relação do leitor com o escritor através do texto.
A palavra parceria é importantíssima aqui, pois é essa parceria que Lygia busca e promove
com seus leitores em suas obras. Não que lhes apresente sempre a mesma história, muito
menos que escreva a partir de modelos facilmente reconhecidos, nada disso. O pacto com o
leitor é feito através de sua inclusão na obra, primeiro por tratar do universo dele ( leitor),
depois por proporcionar-lhe uma leitura que gera transformação, que resulta em experiência
e, ainda, por dar a esse leitor o passaporte de cúmplice em sua obra.
A fidelidade não está em cumprir com seus horizontes de expectativa,
mantendo o leitor imóvel, mas como apontava Iser (1973), é impulsioná-lo para longe de si
mesmo, para seu interior , o que exige muito mais do escritor. No caso específico, o autor
de best-seller saiu do próprio horizonte para libertar o leitor da escravidão da mesmice,
como acontece com Louca Obcessão de Stephen King.
Esse processo de cumplicidade com o leitor começa a se estabelecer com clareza a
partir de Livro, um encontro com Lygia Bojunga e vai se estender, como projeto consciente,
por mais dois outros livros: Fazendo Ana Paz e Paisagem – formando o que a escritora
denominou a trilogia do livro. Em Fazendo Ana Paz, Lygia divide com seu leitor o seu
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59
processo de criação. Mesmo que não assuma, no texto, a identidade da escritora-narradora,
dá evidências disso nas referências que faz a outros livros seus, comparando, por exemplo,
a chegada da personagem Ana Paz com a Rachel de A Bolsa Amarela.
Paisagem é a história de intervenção do leitor na obra. Mais uma vez tem-se uma
escritora-narradora, mais uma vez, no texto, não há alusão direta que a escritora seja a
própria Lygia, mas também nesse livro, como em Fazendo Ana Paz, a autora empresta à
escritora-personagem dados biográficos que são seus, como o fato de viver parte do ano em
Londres.
Prefaciando os dois livros mencionados aparece o mesmo texto, chamado
Caminhos, nele Lygia declara sua intenção de seguir na direção da aproximação com seu
leitor, mas ainda, explicita o papel que atribui ao leitor diante do texto.
Sou de opinião que, quando um leitor mergulha no livro que um escritor escreveu, ele está
enveredando por um território sem fronteiras; nunca sabe direito até onde está indo atrás da
própria imaginação, ou em que ponto começou a seguir a imaginação do escritor. Foi
pensando nisso que – numa das paradas que eu dei no meu percurso com Ana Paz – eu
comecei a trabalhar um personagem chamado Lourenço.
Adiante, teremos uma aproximação melhor ao caso de Lourenço-leitor.
Ana Paz é a história da criação, da escritora diante da construção de uma
personagem; Lourenço é o leitor que sendo cúmplice da escritora “entra” em sua obra,
sonha com o que ela escreve, está na paisagem de seu livro – perde-se na fronteira desfeita
e trafega livremente entre sua imaginação e a imaginação da escritora.
A partir desses livros, a escritora, o leitor e a obra serão temas freqüentes em Lygia.
Não é por acaso que O Rio e Eu e Feito à Mão, ambos relatos autobiográficos surjam
depois da trilogia do livro, como também não é sem razão que O Abraço, também posterior
à trilogia, traga uma escritora como interlocutora da personagem-narradora. O projeto de
aproximar cada vez mais o tripé sem o qual não há leitura – autor, obra, leitor – vai, assim,
se construindo nos textos.
2.5
Rilke e Fernando Pessoa: poesia na casa
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60
2.5.1.
A obra como identidade
“ O que eu sei é que foi Cartas a um Poeta
que me mostrou que o escritor é o livro
que ele escreve.” (Livro, p.22)
A leitura de Cartas a um Jovem Poeta apanha Lygia já entrando na idade adulta e o
relato que faz desta experiência em Livro deixa claro que, agora, a reflexão está na ordem
do dia da Lygia-leitora. Os comentários sobre as anotações feitas à margem do texto, suas
conversas com a amiga Ana Lúcia, tudo mostra que o fundamental agora é pensar, refletir.
O resultado de tais reflexões, podemos acompanhar no traçado da obra, onde alguns
ensinamentos de Rilke ecoam.
“Fuja dos grandes assuntos e aproveite aqueles que o dia-a-dia lhe oferece.”
(RILKE, s/d, p.15), é isso que faz a autora em seus livros, trata dos assuntos cotidianos, das
experiências diárias, da vida comum de personagens comuns. Dos companheiros de Os
Colegas a Retratos de Carolina o que se vê é o registro da vida. Vencer desafios,
preconceitos, achar seu lugar no mundo, lidar com as crises na família, superar as perdas,
enfrentar o medo – pequenas grandes tarefas de todos os dias.
“Esforce-se por amar as suas próprias dúvidas, como se cada uma delas fosse um
quarto fechado (...)” (RILKE, p.30), como Maria, em Corda Bamba, passeava pelo corredor
onde cada quarto era uma interrogação, um momento apagado de sua memória, que cada
porta aberta transformava em revelação. Ou como Cláudio, às voltas com os porquês
deixados por seu amigo Pintor, que precisa vencer o cinza para chegar ao céu azul e
ordenar seu pensando, descobrindo que há perguntas para as quais não se tem resposta e
mesmo assim é possível seguir vivendo.
Porém, é certo que a descoberta, em Rilke, de que o escritor é o livro que ele
escreve, portanto a obra mantém uma relação de identidade profunda com o seu criador, foi
de longe a mais significativa para Lygia . Imediatamente se estabelece a relação entre essa
idéia e o fato de Lygia deixar rastros de sua vida pessoal nos livros que escreve.
Como aqui já apareceu, as personagens-escritoras que se manisfestam na obra de
Lygia ganham elementos de sua biografia. Este é o caso da protagonista de A Troca e a
Tarefa, no livro Tchau, que, como Lygia, freqüentou um colégio interno e também das
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escritoras-narradoras dos livros Fazendo Ana Paz, Paisagem, Retratos de Carolina – todos
exemplos já explicitados anteriormente.
De tanto deixar rastros parece que veio a vontade de se contar em livro. Surgem,
então, dois textos biográficos: O Rio e Eu e Feito à Mão. No primeiro, a autora estabelece
sua relação com a cidade do Rio de Janeiro, narrando os episódios de sua vida que se ligam
à cidade e, a partir daí, estabelecendo os elos que até hoje mantém com esse espaço. Mas é
o segundo livro o que tem interesse maior aqui.
Feito à Mão é um livro realmente feito à mão, a motivação de Lygia para criá-lo foi
o desejo de recuperar o seu lado artesã, aquele que exercitara criança nos cadernos de
caligrafia, desenhando letras, apagando o que saía errado, num trabalho de construir do
lápis e desconstruir da borracha – como nos conta na segunda parte de Livro, encontro com
Lygia Bojunga, a que chama de Livro: eu te escrevendo.
Era um volta sobre si mesma, recuperando o gosto de ser dona do livro todo, desde
a história até o modo de colocar as palavras no papel, passando pela escolha do próprio
papel, da capa, bem como do processo de montagem do livro. Foi assim que surgiu o
projeto de um livro produzido artesanalmente. Um livro feito assim só poderia conter a
história da própria artesã. Este livro representa para sua autora o resultado do processo de
busca pela identidade a que tantas vezes submeteu suas próprias personagem.
Na recuperação do lado artesã, no envolvimento em todo o processo de produção
artesanal do livro, Lygia parecia querer recuperar algo de seu. Tanto assim que a
conseqüência primeira de Feito a Mão foi a decisão de editar e publicar seus próprios livros
com a fundação de sua própria editora. O livro foi recuperado pela autora como parte tão
intimamente sua, a partir da experiência artesanal, que já não era mais possível deixar que
fosse feito pelos outros. O conselho de Rilke foi seguido à risca. A escritora tornou-se de
fato o livro que escreve.
O tema da identidade é recorrente na obra de Lygia. Suas personagens estão sempre
em busca do que verdadeiramente as constitui, ou lutam por compreender a vida a partir de
suas experiências. Essa aproximação da escritora com o objeto do seu trabalho – o livro –
projeta, portanto, um tema presente na própria obra: é preciso ser o que se é, e a
representação do que somos está no que fazemos: os colegas e seu bloco de carnaval;
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62
Angélica e a peça de teatro; Rachel e suas histórias; Maria e a travessia por sua corda
bamba; e assim por diante em toda obra de Lygia.
2.5.2.
Fernando Pessoa : encantamento pela língua
“E lia mais, e me encantava. E ia me ligando cada vez mais na
riqueza da língua portuguesa que o Fernando Pessoa usava.
( Livro, p.28 )
Fernando Pessoa é o último caso de amor relatado por Lygia, caso já da idade
adulta, se bem que antes, mais jovem, já houvesse flertado com ele. Com Pessoa Lygia faz
duas descobertas: a primeira diz respeito ao uso da língua, a sua sonoridade; a segunda está
ligada, mais uma vez, à relação do leitor com o livro.
Tudo que aqui já se explicitou sobre o uso intencional de recursos da linguagem,
demonstra bem as lições aprendidas por Lygia com o poeta – o domínio no uso poético da
linguagem na narrativa é prova de que bebeu dessa fonte. Por esta razão, muito mais do
que buscar nos textos elementos que justifiquem a preocupação e o encantamento no uso
das palavras, interessa aqui buscar traços da poesia de Pessoa que são marcas da obra.
Em Cancioneiro, há um poema chamado Isto que se inicia com as seguintes
estrofes:
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
o uso o coração
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
(Obras completas, p.165)
O poeta está interessado na imaginação como mediadora de sua poesia do mesmo
modo que Lygia estabelece a imaginação, a fantasia como condutores de sua obra. O
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universo poético de Pessoa é o da imaginação por excelência, a começar pela criação dos
heterônimos, personagens / personas do próprio poeta. Também Lygia cria suas
personagens escritoras, que podem ser ela mesma ou outras a quem empresta um pouco de
si. Parece, portanto, que com o poeta Lygia aprendeu o fingimento sincero que faz “fingir
que é dor / A dor que deveras sente.
O uso da imaginação vai além da construção de um mundo em que as personagens
podem transitar sem barreiras em busca de sua libertação, de novas descobertas, permite
que a própria autora crie um universo seu, com atmosfera própria, em que o lugar da autoria
também seja passível de deslocamento, à medida em que deseja que o leitor ocupe também
o espaço de criador no processo da leitura.
Em Pessoa, a Lygia-leitora descobre a multiplicidade de sentidos inerente ao
discurso poético. Tal multiplicidade é o que lhe permite construir uma obra que caminha
em várias direções, estabelecendo trocas constantes de papéis; fundada no pacto em que
livro/escritor/leitor formam a tal tríade inseparável. A mesma força que leva a autora a
querer deixar sua marca em seus livros, a ponto de desejar ser responsável por seu processo
de execução gráfica, também a impele a abrir espaço para que leitor também “marque” sua
obra.
Pessoa trocava de papel quando na pele de cada um de seus heterônimos,
desenvolvendo para cada um texto poético estruturado de maneira própria e particular,
ainda assim era Pessoa e todos os textos são obras suas. Lygia parece querer o mesmo no
projeto de sua obra, porém, no lugar de se partir em heterônimos, abre espaço para a voz do
leitor, convidando-o a romper as fronteiras da imaginação, de modo que não mais se
encontre o que é “invenção” da autora e o que é “invenção” do leitor – talvez, aí resida a
verdadeira identidade da obra de Lygia : nesse possibilidade de que as tarefas sejam, ou
estejam, trocadas.
A segunda estrofe do poema ao falar daquilo que passa, que é sonho, que se acaba
como uma espécie de terraço de onde se descortina uma nova paisagem, na verdade aponta
para a questão das possibilidades, dos horizontes possíveis. A obra do poeta é o próprio
exercício da possibilidade. Em sua poesia, na multiplicidade das vozes que criou, Pessoa
registrou toda a fragmentação de sua época, foi leitor de si mesmo. Isto não passa
desapercebido por sua leitora Lygia.
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64
Os textos de Lygia trabalham intensamente com a noção de que há sempre uma
saída, um caminho: uma nova possibilidade. Nova possibilidade para a solução de
conflitos, para a transformação da realidade, nova possibilidade de leitura do texto e do
mundo. Nessa perspectiva é que insere o seu leitor na obra, é assim que o quer : alguém
pronto a fazer da leitura uma experiência transformadora tanto do texto, quanto de si
mesmo. É este o tipo de leitora que Lygia demonstra ser, é um leitor como esse que está
interessada em formar. Mais uma vez é preciso notar que por transformação e novas
possibilidades não se entende uma visão redentora da leitura e da literatura. Fala-se aqui de
um determinado perfil de leitor ao qual a obra da autora se afina, ou melhor, o qual a obra
ajuda a construir. Esse leitor capaz de compreender leitura como troca, como experiência e
como possibilidade é o mesmo leitor capaz de manter com a literatura e com a arte essa
mesma relação.
Neste ponto, é bom lembrar da segunda descoberta que Lygia faz, quando se
reaproxima de Pessoa e tem com ele seu caso de amor: uma outra cara que o livro lhe
mostrou, “(...) a cara da paciência. Ele espera pela gente. Feito coisa que ele sabe que o
caso com a nossa imaginação vai ser tão mágico, tão sem limite, que vale a pena mesmo
esperar.” ( Livro, p.29). Essa paciência também está em sua obra. Uma obra qua foi
caminhando com seu leitor, que o apanhou criança com o grupo de animais de Os Colegas
e seguiu com ele até contar-lhe a história de Carolina, uma mulher em busca de suas
conquistas, aprendendo com seus tropeços. O convite ao leitor está feito, o processo que o
faz cúmplice e parceiro nos caminhos do texto está se fazendo, quando ele chegar será bem-
vindo e poderá exercer a tarefa que lhe cabe: imaginar e transformar.
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3.
A arte como mediação
O boom da literatura infanto-juvenil durante os anos setenta traz uma série de mudanças
significativas para a produção literária desse gênero no Brasil. Ainda que não se pretenda
aqui tratar a obra de Lygia dentro dessa perspectiva, é impossível não associar a narrativa
da autora ao contexto em que sua produção se inicia. Quando publica Os Colegas, Lygia o
faz tendo como pano de fundo um momento em que o olhar para o texto voltado à criança
passa por intensas transformações. A inclusão de temáticas antes distantes do universo
infantil começa a se fazer presente em obras como as de Bartolomeu Campos de Queirós,
Ana Maria Machado, Ruth Rocha e tantos outros nomes que vão surgir e ganhar força em
nossa literatura a partir desse momento.
A questão feminina, o autoritarismo, o exílio político, as tensões familiares, a exclusão,
o preconceito são apenas alguns dos muitos temas que passam a ser discutidos em textos
ditos infanto-juvenis. Surgindo num instante como esse, a obra de Lygia traz também a
marca dessa renovação. No seu caso, tal renovação não passa somente pela questão
temática ou por um novo modo de olhar o papel social da criança do e jovem, vai mais
além. Desde seu livro de estréia, Lygia vai escolher como parceira da literatura a
manifestação artística de um modo geral. Antecipando um procedimento tão comum nos
anos seguintes, em que a visão pós-moderna apagaria fronteiras
1
, a autora vai utilizar a arte
em seus textos de modo a caracterizar o fazer artístico como uma prática fundamental para
a experimentação da vida e a compreensão do mundo. A literatura vai dialogar com o circo,
a música, o teatro, a pintura, a escultura – enfim, com o processo criativo de toda e
qualquer natureza artística.
Tal diálogo produz na obra uma interessante rede intertextual, já que se aproximam
linguagens, antes vistas como distintas e distantes, e esse jogo de aproximação permite que
os significados traduzidos tanto pela literatura quanto por outras manifestações artísticas se
expandam e ampliem o próprio campo de significação do texto. O aproveitamento que
Lygia faz desse recurso de outros fazeres artísticos incluídos no texto literário é original e
1
“Nos gêneros mais recentes da literatura infantil e juvenil (...) pode-se ver que os códigos tornaram-se
vulneráveis no mesmo sentido metaficcional dos textos que se dirigem aos adultos em nossa cultura pós-
moderna.” (Colomer,2003, p.109)
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66
extremamente importante para o projeto da obra que vem criando. O uso reiterado dessa
aproximação de várias manifestações artísticas com a literatura, por si só, já aponta para um
diferencial dentro da obra da autora. Esse será um recurso fundamental nos e para os textos
de Lygia. Não se trata de usar a arte como cenário ou ilustração, o que se vê na obra é o
aproveitamento de linguagens diversas, mas que mantêm uma mesma identidade – a força
criadora como elemento que impulsiona.
Teresa Colomer discute a influência da visão pós-moderna na arte em seu livro A
formação do leitor literário dizendo o seguinte:
As interrogações artísticas pós-modernas se dirigem a explorar o que acontece quando se
confrontam mundos distintos, quando se violam as fronteiras entre realidades e categorias
diferentes. O resultado desta busca foi um aumento da autoconsciência na arte em geral e na
literatura em particular, uma exploração dos limites e possibilidades da arte, a partir da tradição
que as conforma. (Colomer, 2003, p.107-108)
É a partir dessa perspectiva que as manifestações artísticas são tratadas por Lygia em
sua obra. Diferentes linguagens se incorporam no intuito de propiciar ao leitor um meio
mais amplo de reflexão através das diferenças e identidades que estão no mundo e são
representadas na arte.
Na obra de Lygia, toda a ação de criação artística é motivada pelo desejo de ser, de
integrar-se, de fazer parte, bem como pelo desejo de transformar uma realidade.Constituir-
se como ser, como sujeito, na contemporaneidade, não é mais uma busca pela unidade ou
pela integridade, mas antes uma busca pelas possibilidades – é na construção do
conhecimento, no processo de entendimento das experiências que se dá o reconhecimento
de uma identidade.
Fayga Ostrower, em seu livro Criatividade e processos de criação, vai falar dos
processos criativos e sua elaboração explicitando o seguinte:
(...) mesmo que a sua elaboração permaneça em níveis subconscientes, os processos criativos
teriam que referir-se à consciência dos homens, pois só assim poderiam ser indagados a
respeito dos possíveis significados que existem no ato criador. Entende-se que a própria
consciência nunca é algo acabado ou definitivo. Ela vai se formando no exercício de si mesma,
num desenvolvimento dinâmico em que o homem, procurando sobreviver e agindo, ao
transformar a natureza se transforma também. E o homem não somente percebe as
transformações
como sobretudo nelas se percebe. (Ostrower, 1987, 10)
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Esse processo criativo está ligado, segundo Fayga, à integração do consciente, do
sensível e do cultural. Somente a interação desses três níveis dá significação ao ato criativo,
que é transformador justamente porque é capaz de trazer ao consciente uma determinada
percepção que vem do contato do indivíduo com o meio cultural. A transformação presente
no ato criador é a busca do homem em fazer sentido, ele mesmo, no meio em que atua e no
qual se insere. Essa é uma questão fundamental na obra de Lygia, a inserção do sujeito em
sua realidade. Como já se disse aqui, experiência é um dado fundamental nos processos por
que passam as personagens de Lygia, é a partir dela que a realidade é percebida e
transformada, portanto a capacidade de criar é a essência do entendimento da realidade
para a transformação desta e do próprio indivíduo.
3.1 O carnaval, o circo, o teatro
Em Os colegas
2
, dois cachorros vira-latas, uma cachorrinha de madame, um coelho e
um urso se encontram pelas ruas. Os integrantes desse insólito grupo têm um denominador
comum – buscam o seu lugar no mundo, sua identidade. O processo que vai levá-los ao seu
objetivo se desencadeia na narrativa depois que o grupo decide formar um bloco de
carnaval. É o processo de criar fantasias, instrumentos e música que vai levando o grupo a
superar suas questões pessoais, encontrar pontos de contato entre suas histórias e,
finalmente, dá a eles a possibilidade da transformação de dores e perdas em um novo
começo, uma nova realidade. Os talentos descobertos os levam ao circo – outra
manifestação artística – e como artistas eles encontram uma identidade, se percebem parte
de um todo.
Quando os cinco acabaram de apresentar o número, o circo quase veio abaixo com tanta
palma e pedido de bis.
E no fim do espetáculo, todo aquele pessoal que lotava o circo fez fila pra cumprimentar a
turma e dar a eles os parabéns.
Quando os colegas foram dormir já era um bocado tarde.
Virinha pensou: “Daqui a pouco vai ser de madrugada, mas eu não vou ter que sair para
revirar latas de lixo. Que troço mais bacana!”
2
Quando da elaboração desse trabalho, a obra de Lygia estava ainda em processo de edição pela própria
autora, por essa razão foram utilizadas edições anteriores. Com a conclusão do trabalho de edição de toda
obra pela autora, optou-se aqui, por manter a utilização das edições anteriores, comparando os textos com a
edição da autora. Havendo divergências, foi mantido o texto como aparece na edição da autora.
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Latinha começou a bolar um samba novo. Queria contar como estava se sentindo
importante.
Hoje quero contar pro povo
Esse sentimento novo
Que nasceu dentro de mim...
Mas o sono não deixou que ele acabasse de contar; dormiu.
E quando Latinha dormiu, Flor já estava até sonhando ( puxa vida, como todos estavam
cansados!). Sonhando que não precisava mais ter medo da antiga dona, de carrocinhas, de mais
nada. E o bom daquele sonho é que ela ia acordar e ver que tudo que tinha sonhado continuava
a ser verdade.
Já Voz de Cristal e Cara-de-pau custaram mais a dormir.
Pensando no sucesso todo que tinham feito, Voz de Cristal não resistiu: se comoveu e
desatou a soluçar.
Cara-de-pau ouviu o choro do amigo, mas como sabia muito bem porque é que ele estava
chorando nem se preocupou. Continuou lembrando pedacinho por pedacinho daquela noite tão
gostosa. E como estava tudo escuro e ninguém ia ver, ele tomou coragem e experimentou (
pra ver se acertava): deu um sorriso desse tamanho! (p. 91-92)
Se Fayga sinaliza a necessidade de interação do indivíduo e da cultura para o ato
criador ser também transformador, nas obras de Lygia o fazer artístico busca o diálogo com
a cultura e a experiência das personagens. O ato criador só tem esse poder transformador
porque se insere na cultura e na experiência do indivíduo. É o que acontece em Angélica
quando a jovem cegonha descobre que todo o poder que sua família exerce vem de uma
mentira: as cegonhas são responsáveis pela entrega dos bebes. Sendo impossível para
Angélica viver na mentira, ela opta por sair pelo mundo na tentativa de viver outras
experiências e de fazer com que sua família concorde em restabelecer a verdade. Em seu
caminho encontra personagens também desajustados, uns negam sua própria verdade – sua
realidade – outros não conseguem escapar da opressão imposta pelo poder. De um jeito ou
de outro, todos os que se juntam à jovem cegonha tem algo em comum com a sua própria
experiência de vida. A partir desse encontro surge a idéia de criar uma peça de teatro.
O trabalho de criação e a representação do espetáculo será o meio pelo qual cada uma
das personagens encontrará uma forma adequada de lidar com seus problemas, será o
elemento que permitirá a transformação da realidade de cada um, do grupo e do contexto
social, já que a partir daí a família de Angélica revela toda a verdade sobre o “trabalho” das
cegonhas; o elefante Canarinho se reencontra com seu corpo, assumindo sua forma;
Porco/Porto aceita sua identidade e suas características pessoais, recuperando a auto-
estima; a mulher do Jota se liberta da opressão do marido, revela seu nome, Jandira, e, com
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a auto-nomeação, passa a ter voz, a ocupar o lugar que é seu na estrutura familiar,
rompendo com um longo período de silêncio e dominação.
Uma das leituras que Angélica oferece ao leitor aponta a interação, o contato com o
outro, como uma saída para a resolução de problemas, o diálogo como fonte de
conhecimento, troca de experiências e, portanto, um caminho para a reordenação do
mundo, tanto interior como o mundo exterior, real e cotidiano. Ao final da apresentação da
peça de teatro que encenava os problemas de Angélica com sua família, o grupo de amigos
envolvidos com o espetáculo vai comemorar o resultado do trabalho e o sapo Napoleão
Gonçalves faz o seguinte discurso, ao qual se seguem comentários de outras personagens
envolvidas na representação:
Angélica e Porto,
s queremos dizer pra vocês
Que a nossa vida melhorou muito
Depois que a gente se conheceu
E começou a trabalhar junto.
Fim.
- Que bom! – gritou Angélica. – a minha vida também ta tão legal!
Porto quis dizer que a vida dele também estava ótima, mas viu que era só dizer um A que o riso
estourava.
A escolha do teatro como manifestação artística a interagir com o texto literário que
se apresenta ao leitor não é aleatória. Essa escolha reforça a idéia do diálogo como força
expressiva, da troca como um caminho para recriar experiências, ampliando-as e, assim,
modificando o olhar que se devolve ao outro e à realidade.
Luís Otávio Burnier em seu trabalho A arte de ator- da técnica à representação
define o teatro da seguinte forma:
Teatro não é arte. Do grego clássico, théatron tem por raiz théa, que significa o
ver, o comtemplar, e o sufixo tron, dos adjetivos, conota o lugar onde. Portanto, théatron é
o “lugar onde se vê, ou se contempla.
No entanto, além do nome que empresta ao edifício, esse termo é utilizado com
freqüência para designar uma arte. Ela acontece neste espaço vazio,théatron, para ser
observada por alguém. Segundo Peter Brook, para que a ação teatral possa ser esboçada,
são fundamentais três elementos: o espaço vazio, o espectador ( alguém que observa esse
espaço) e o ator ( alguém que cruza e, portanto, desenvolve uma ação nesse espaço). (...)
Como arte, o teatro pode ser entendido como o que acontece entre espectador e ator,
(...) Nesse sistema de comunicação, o ator é o emissor da mensagem, dos signos, é ele quem
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atua, faz. O espectador realiza a função de receptor, ele recebe e interpreta os signos
emitidos pelo ator, (...)
Os termos “poesia” , “poética” e “poeta” v6em do grego poíêsis, poiêtikê, poiêtês,
que se relacionam com o verbo da mesma raiz: poiéô, que significa fazer, criar. Enquanto,
na perspectiva das ciências, a prioridade é o objeto e a inteligência será verdadeira na
medida em que se adaptar a ele, nas artes, ela precede o objeto, conhece-o criando. O
conhecimento implícito no fazer artístico é, portanto, um conhecimento criador, fazedor,
produtor. (Burnier, 2001, p. 17) (Grifos do autor)
Ora, em uma narrativa que apresenta personagens vivendo realidades cristalizadas, o
diálogo é imperativo para um processo de reflexão. Somente no outro se pode encontrar
aquilo que a si mesmo, cada um, rejeita e nega por pura paralisia. O teatro é a mediação por
excelência nessa narrativa, o conhecimento só é possível no ato de produzi-lo, de criá-lo, de
fazê-lo. Assim, integrando o fazer teatral ao texto literário, Lygia amplia o significado
dessas duas formas de manifestações artísticas e as personagens, não só através da ação
narrada, mas também da ação representada podem desconstruir o que estava sedimentado
como “verdade” absoluta e passam a se mover, redesenhando suas próprias vidas e
alterando sua realidade. Além dessa questão intrínseca à obra, a utilização da representação
teatral em Angélica remete a relação texto / leitor.
Se no teatro a possibilidade de interpretação e significação está nas mãos do
espectador, no texto esse papel é do leitor. O que se coloca é mais uma vez é o diálogo. Ao
chamar ao texto o teatro, fica clara uma convocação do leitor para que este também se
mova, o que está sendo narrado não é a verdade absoluta do “autor”, não se submete o
leitor a uma única e uníssona voz – no caso, do narrador – mas, antes, a polifonia é dada
não só pelo recurso de cada personagens poder contar a sua história mas, e sobretudo, pela
representação ativa das experiências de vida das personagens que se fundem no espetáculo
representado no texto. Deste modo, o convite ao movimento, à ação, que se faz ao leitor
ganha força expressiva. Reforça-se a idéia de que é preciso construir seu próprio saber a
partir da vivência das experiências, do diálogo com o outro. A atuação, no caso do leitor, na
vida é fundamental para gerar transformações, ainda que nelas não encontrem “a solução”
de todos os conflitos.
O circo que aparece em Os Colegas vai estar presente também em Corda Bamba e,
mais uma vez, há uma intenção nessa escolha. Em ambos os livros, se está diante de uma
narrativa que apresentada os marginalizados. Os amigos de Os Colegas são exemplos de
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excluídos: os cães vira-latas ( vagabundos), a cachorrinha fujona ( que não se enquadra na
vida de luxo), o coelho “perdido” (esquecido, abandonado) pela própria família, o urso que
foge do zoológico ( aventureiro, queria conhecer o mundo lá fora e foge da “prisão” ). Já
em Corda Bamba temos o embate social, o preconceito de classes : a mãe de Maria foge de
uma vida de luxo e mimos, controlada por uma mãe preconceituosa e dominadora, para
viver com um artista de circo, transformando-se, ela mesma, em artista também. A escolha
da filha é inaceitável para a mãe que tentará de tudo para ficar com a neta, a menina Maria,
na tentativa de que esta cumpra o destino do qual aquela fugira – tornar-se uma dama.
É, portanto, através da arte popular que essas personagens vão se manifestar, esse
será o elemento transformador que lhes é dado. Bakhtin, em A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento, faz algumas considerações sobre as manifestações populares
que, guardadas as diferenças de contexto histórico, são úteis para se compreender o
cruzamento que Lygia estabelece entre suas narrativas e essas manifestações.
(...) A concepção estreita do caráter popular e do folclore, nascida na época pré-romântica e
concluída essencialmente por Herder e os românticos, exclui quase totalmente a cultura
específica da praça pública e também o humor popular em toda a riqueza das suas
manifestações. (...) Entre numerosas investigações científicas consagradas aos ritos, mitos e
às obras populares líricas e épicas, o riso ocupa apenas um lugar modesto. Mesmo nessas
condições, a natureza específica do riso popular aparece totalmente deformada, porque são-
lhe aplicadas idéias e noções que lhe são alheias, uma vez que se formaram sob o domínio
da cultura e da estética burguesas dos tempos modernos. (...)
No entanto, sua amplitude e importância na Idade Média e no Renascimento eram
consideráveis. O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura
oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro de sua diversidade, essas formas e
manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os
bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a
literatura paródica, vasta e multiforme, etc. – possuem uma unidade de estilo e constituem
partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, una e
indivisível. (...)
Todos esse ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma
diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do
culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão do
mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-
oficial, (...) pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma
segunda vida aos quais os homens (...) pertenciam em maior ou menor proporção, e nos
quais eles viviam em ocasiões determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade do
mundo (...) (Bakhtin, 1993, p.3-5) ( Grifos do autor)
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O que Bakhtin observa sobre as manifestações populares do riso, os ritos
carnavalescos, pode ser considerado no contexto das narrativas de Lygia. O uso do carnaval
e das artes circenses determina, nesses textos, uma diferença de olhar, reforça a
caracterização dos que estão à margem de um sistema social e cultural, destaca o
preconceito de classes através do preconceito às manifestações artísticas ligadas ao popular.
Por um outro viés, são justamente os que estão “à margem” que são capazes de uma
visão de mundo menos totalizante e totalitária, são eles que estabelecem no texto a
possibilidade de uma visão de mundo dual, representando a tolerância que falta ao olhar
único do preconceito. Transformados em artistas populares “os colegas” legitimam seu
talento para a vida e ganham inserção em um grupo social; optando pela vida no circo, a
mãe de Maria ganha identidade e pode ensinar a sua filha a sua arte. É através do passeio
pela corda bamba que a menina Maria recupera sua memória, resgata o passado, se
instrumentaliza para a vida num meio social ao qual não pertence nem quer pertencer.
Recuperando sua força em sua arte – que a torna um ser humano capaz de lidar com as
contradições –, a menina pode enfrentar a vida com a avó, estabelecendo limites e,
salvaguardando-se do preconceito, ,mantendo o elo com a gente do circo – a sua gente.
O tempo vai passando, mais portas vão aparecendo, e Maria vai abrindo todas, e vai
arrumando cada quarto, e cada dia arruma melhor, não deixa nenhum cantinho pra lá. Num
quarto ela bota o circo onde vai trabalhar; no outro ela bota o homem que ela vai gostar; no
outro os amigos que ela vai ter. Arruma, prepara, prepara: ela sabe que vai chegar o dia de
poder escolher. (Corda Bamba, p.125)
Aqui, como em Angélica, a interlocução que se dá entre literatura e carnaval e entre
literatura e circo tem uma funcionalidade narrativa que preserva a linguagem essencial das
manifestações artísticas incorporadas ao texto, na medida em que sua significação –
enquanto manifestações culturais específicas – está salvaguardada ampliando o que o
próprio texto deseja significar. Valida-se a arte como um espaço onde a experiência gera
transformação, mesmo que esse transformar não signifique a alteração imediata do estado
das personagens – até porque nem sempre isso é possível também na vida. O leitor é
convidado a incorporar, por meio de uma simbologia próxima ao seu cotidiano, a idéia de
que há instrumentos na vida, e na arte, que possibilitam a reflexão e o preparar-se para o
mundo que ai está e para aquele que já vem.
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3.2.
Entre tintas e massas
Em O meu amigo pintor, logo na primeira página do texto, o menino Cláudio,
narrador-personagem de sua história e de seu amigo Pintor, diz os seguinte:
O meu amigo me disse que quanto mais a gente prestava atenção numa cor, mais
coisa saía de dentro dela. Eu fiquei olhando pra cara dele sem entender. Não entendi mesmo
aquela história de tanta coisa ir saindo de dentro de uma cor.
Mas hoje teve uma hora que eu não estava a fim de olhar pra cara de ninguém.
Então abri o álbum que ele tinha me dado. Só pra poder ficar olhando pra cada cor e mais
nada. Olhei, olhei, toca a olhar. E de repente eu entendi direitinho o que ele tinha falado!
Me deu uma vontade danada de ir lá em cima dizer:
“Saquei o que você me disse naquele dia! estou entendendo demais esse preto; te
juro que me deu um estalo e eu estou entendendo o jeito que esse amarelo pegou.”
Só que não deu pra falar com meu amigo pintor; ele morreu. Hoje está fazendo três
dias que ele morreu. (p. 8 – grifos da autora)
Essa é a história que vai ser contada: um menino que perde o seu amigo, e a
mediação está mais uma vez em outra forma de expressão artística além da literatura – a
pintura. O que a palavra não explica ( “Não entendi mesmo aquela história de tanta coisa
saindo de dentro de uma cor”.), a pintura, a tinta, vai fazer compreender (“Então abri o
álbum que ele tinha me dado. Só pra poder ficar olhando pra cada cor e mais nada.(...) E de
repente eu entendi direitinho o que ele tinha falado!”).
Cláudio e o Pintor são os dois personagens que se encontram e se contrapõem nessa
história. O encontro permite ao menino ampliar o seu olhar sobre si mesmo e sobre o
mundo, para o Pintor, o menino é a tela em branco – cheia de possibilidades – , algo que já
não consegue enxergar em sua própria vida. O olhar curioso e ingênuo do menino se opõe à
visão desiludida e cansada que o Pintor tem da vida no momento em suas histórias se
cruzam. Na medida em que a pintura amplia o modo como Cláudio se relaciona com o seu
cotidiano, o pintor vai desistindo de sua arte e de sua vida. Está posto um tema bastante
freqüente na obra de Lygia: a capacidade, ou a incapacidade, de transformar uma
experiência em representação, criando a partir desse processo – que é o da arte – uma forma
de encarar a vida e lidar com os problemas – enfim, crescer.
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No plano da narrativa se constroem dois “painéis” – Cláudio e o Pintor – , logo a
utilização da pintura como uma simbologia dessa construção amplia os significados
presentes no texto. A pintura trabalha com cores e imagens visuais, a literatura com
palavras e seus sentidos figurados, no entanto em O meu amigo pintor essas duas
manifestações artísticas se combinam para dar visibilidade a questões abstratas – o
desespero do Pintor, a dor e angústia de Cláudio.
Dois momentos significativos desse uso combinado das palavras e da pintura se
apresentam quando o pintor revela o seu amor difícil por Clarice e sua insatisfação com a
própria pintura e, mais tarde, quando Cláudio expressa através do desenho e da cor seu
estado de espírito após o suicídio do amigo.
- Por que que tudo que é mulher que você pinta tem um jeito igual?
Ele continuou pintando; custou pra responder:
- Tem uma mulher que mora no meu pensamento, sabe; eu nem vejo quando ela sai
da minha cabeça e entra na minha pintura.
Eu perguntei sem nem pensar:
- É a Dona Clarice? – e ele respondeu na hora:
- É. – Mas aí ele parou de pintar. Levantou . Ficou olhando pra um quadro; pra
outro. Acabou dizendo: - Mas não era pra sair assim sempre igual. O amarelo, sim, eu faço
de propósito. Amarelo pra mim é também cor-de-Clarice, e eu gosto de botar um
pouquinho dela em tudo que eu faço.
- Um pouquinho só? olha essa aqui : ela é toda amarela.
- É que essa era a Clarice mesmo ( num dia de alegria ). Mas essas outras aqui,
não. Se eu fosse um bom pintor, mesmo com a Clarice morando dentro do meu pensamento,
eu pintava cada mulher do jeito que ela é, e não sempre igual.
- Mas você é um bom pintor !
- Não! não, eu não sou. Eu sei muito bem como é que se pinta; eu tenho técnica;
eu trabalho pra ver se eu dou vida aos meus quadros. Mas não adianta: são telas mortas. –
Foi apontando com o pincel: - Olha . Olha! Olha!! não dá pra ver? não dá pra sentir que a
minha pintura não tem vida? E aí ele jogou o pincel na mesa com um jeito meio, sei lá,
um jeito desesperado que, francamente, eu nunca tinha visto ele ter. (p.35-36)
Tudo começou porque eu estava desenhando um coração; só que em vez do coração
ser vermelho, ele era marrom; e em vez de ser feito coração que a gente conhece, ele era
todo achatado assim pro lado e acabava de repente, deixando a gente sem saber que fim ele
levava.
Quando eu terminei o desenho eu mostrei pro meu colega.
(...)
O meu colega olhou pro papel. Olhou pra mim:
- Não pode. Tem que ser vermelho. E tem que ser pontudo embaixo. Me dá aqui o
papel pra eu te mostrar como é.
- Pera aí! você não tá me entendendo. Acontece que...
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- Me dá o papel, deixa eu desenhar isso direito.
- Quer fazer o favor de escutar o que eu estou te explicando? Se o meu coração
diferente, todo ruim, todo chateado, eu não vou desenhar ele feito aquele coração que todo
mundo desenha pra namorada, não é? Pera aí! não puxa.
Mas ele puxou. E tirou do bolso uma caneta vermelha e foi mudando toda a cor do
meu coração. E fez ele embaixo bem pontudo. E ainda por cima lembrou:
- Coração tem que ter seta!
Tacou uma seta no meio. Foi corrigindo de um lado, corrigindo do outro, não
deixou mais o meu coração ficar nem um tiquinho esborrachado, e eu, de burro, ainda quis
explicar!
- Mas eu estava dizendo que ele se esborrachou de chateação.
- Pois se ele ta chateado diz logo, cara! – e puxou outra seta pra cima e escreveu:
“Estou esborrachado porque estou chateado.” – Pronto ! agora todo mundo entende. – E me
deu o coração de volta.
Aí eu não agüentei e disse, pra que que eu quero essa porcaria? e aí ele falou,
porcaria é aquele negócio que você desenhou; e aí ele viu a Denise ( uma garota que ele
acha o máximo); arrancou o coração da minha mão e onde tinha escrito “eu estou
chateado” ele botou dois pontos e rabiscou bem grande: VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM !!
Saiu correndo, deu meu coração pra Denise, e foi jogar bola.
Ah.
Melhor.
O que que eu ia fazer mesmo com um coração que já não tinha nada a ver com o
meu? (p. 30-31)
A pintura – no caso, representada no desenho – é a forma de linguagem de expressar
os sentimentos, de retratar o que é abstrato e foge à compreensão imediata; os sentimentos
precisam ser elaborados, digeridos e sua representação pela palavra fica impossível para
aquele que ainda não sabe o que fazer com eles. Parece lógico ao colega de Cláudio
desenhar o coração como todo mundo e usar a palavra como legenda para o que vai naquele
coração. Para o menino, imerso em uma dor e na impossibilidade de compreender o gesto
do amigo Pintor, era impossível dizer com palavras, era preciso viver a experiência do
coração esborrachado, sobretudo era necessário representar esse coração – pintá-lo de
marrom, desenhá-lo tordo, disforme.
Para o Pintor o traço repetido em sua pintura, a impossibilidade de liberta-se na
pintura – mesmo que por influência de um grande amor – era a marca do vazio, de uma arte
que não expressava a vida, que não saía do mesmo ponto. Essa incapacidade de representar
a vida na arte leva-o ao desespero.
As atitudes das personagens apontam para o próprio contraste representado no texto:
enquanto o Pintor não consegue transpor suas inquietações, sendo impossível para ele
representá-las em sua arte, Cláudio descobre nas cores e nos traços a possibilidade de
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expressar o que sente, o que não compreende. O menino estabelece com a pintura uma
troca, troca seus sentimentos por uma forma, uma cor: é o vermelho da paixão, da raiva; o
amarelo da alegria; a névoa da tristeza; a cor inexplicável da saudade; o branco do silêncio.
O Pintor com sua visão política e engajada olhava a pintura como um todo, a pintura tinha
que ter vida, representar a vida; o fato de reconhecer algo tão íntimo e pessoal – o seu amor
por Clarice – em todos os seus quadros gera frustração. Já Cláudio vivência a pintura no
que tem de desarticulado, pinceladas independentes, cores únicas que se misturam e,
dependendo do olhar que se dirige ao quadro, oferecem várias possibilidades de leitura.
Cláudio aprende a juntar cores e traços, aprende que não há respostas prontas nem únicas,
aprende a juntar os pedaços – das conversas que escuta; do que lhe dizia o pintor; do que os
seus olhos viam nas telas, aquarelas e tintas. Enfim, aprende a juntar os seus pedaços,
aqueles que compõem a sua experiência e, por isso mesmo, pode seguir em frente. Seu
amigo não pôde.
A relação desenvolvida pela personagem do menino com a pintura se aproxima do
que Fayga Ostrower define como o potencial criador na arte:
Quando se configura algo e se o define, surgem novas alternativas. Essa visão nos
permite entender que o processo de criar incorpora um princípio dialético. É um processo
contínuo que se regenera por si mesmo e onde o ampliar e o delimitar representam
aspectos concomitantes, aspectos que se encontram em oposição e tensa unificação. A
cada etapa, o delimitar participa do ampliar. Há um fechamento, uma absorção de
circunstâncias anteriores, e, a partir do que anteriormente fora definido e delimitado, se dá
uma nova abertura. Da definição que ocorreu, nascem as possibilidades de diversificação.
Cada decisão que se toma representa um ponto de partida, num processo de transformação
que está sempre recriando o impulso que o criou.
O potencial criador elabora-se nos múltiplos níveis do ser sensível-cultural-
consciente do homem, e se faz presente nos múltiplos caminhos em que o homem procura
captar e configurar as realidades da vida. Os caminhos podem cristalizar-se e as vivências
podem integrar-se em formas de comunicação, em ordenações concluídas, mas a
criatividade como potência se refaz sempre. A produtividade do homem, em vez de
esgotar, liberando-se, se amplia. (Ostrower, 1987, p.26-27)
É esse potencial criador que se manifesta nas atitudes de Cláudio, possibilitando que
o menino amplie sua percepção a partir da trágica experiência por que passou. A arte é sua
parceira e nela ele encontra os elementos para uma transformação que, absolutamente, lhe
traz respostas ou elimina sua dor, mas permite que siga em frente. No caso do Pintor,
ocorre o contrário – por isso se disse aqui do caráter contrastante das duas personagens – ,
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ele se distancia desse potencial criador, sua arte não o libera, antes, ratifica a cristalização
de seus caminhos e escolhas. Ele perde, em algum momento, a dimensão dialética do
processo, ainda que tenha sido capaz de ensiná-la ao menino. Essa percepção – de que há
algo que ele perdeu, mas que se recupera em Cláudio – aparece expressa no texto quando o
Pintor está explicando ao menino por que gosta tanto dele: “(...) – Às vezes eu gosto de
você porque você é meu parceiro de gamão; outras vezes porque eu tinha vontade de ser
você (...)” (O meu amigo pintor, p. 34 – grifo nosso)
Ao abordar um tema como a morte, algo para o que o homem não tem uma resposta,
Lygia opta por soar como interlocutora do/no texto literário a pintura que, sendo uma
manifestação de arte plástica, inclui questões como a percepção e os sentidos no texto. Da
morte o homem tem percepções, a sente de modo particular e diferenciado, portanto é
através dos sentidos que se pode estabelecer uma relação com o tema. Desse modo os
estados de espírito de Cláudio vão sendo descritos através de sua relação com as cores, seus
sentimentos se identificam com as aquarelas do pintor e todo o processo por que passa o
menino está sempre intimamente associado à sua relação com a pintura e a percepção que
essa lhe vai proporcionando. Sobre a percepção na obra de arte é, mais uma vez, em Fayga
que se encontra uma definição que se aproxima do uso que dela faz Lygia ao escolher a
pintura como parceira:
A percepção delimita o que somos capazes de sentir e compreender, (...) Articula o
mundo que nos atinge, o mundo que chegamos a conhecer e dentro do qual nós nos
conhecemos. Articula o nosso ser dentro do não-ser.
Nessa ordenação dos dados sensíveis estruturam-se os níveis do consciente; ela
permite que, ao apreender o mundo, o homem apreenda também o próprio ato de apreensão;
permite que, apreendendo, o homem compreenda. (Ostrower, 1987, p.13)
O casamento da literatura, tendo por matéria prima a palavra – que nos remete a
múltiplos sentidos que podemos explorar, mas também aos já estão cristalizados –, com a
pintura, e todo o universo do perceptível para o que essa manifestação aponta, resulta num
diálogo tenso, dialético, transformador. A troca que se estabelece entre os elementos das
duas linguagens presentes no texto é da mesma natureza daquela por que passa Cláudio – a
que permite unir as diferenças, lidar com os pedaços, as partes para compor um todo que
não sendo sinônimo de inteireza o é de compreensão, articulação. Não se pode esquecer que
o menino que, antes, procurara se expressar pelo desenho e pela cor ( o coração
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esborrachado) é, agora, o narrador de sua história – pode transformar percepção em
palavras.
Abri o álbum pra comparar o azul que ele tinha pintado com o azul que eu estava
vendo.
O meu Amigo tinha juntado as duas últimas folhas do álbum para poder pintar bem
grande aquele céu
Fiquei olhando e olhando o jeito que ele tinha juntado as duas folhas. Olhei tanto
que acabei até sabendo que eu não tinha nada que separar Amigo pra cá por que pra lá. O
que eu tinha era que fazer o que ele fez com as folhas e com o azul do céu: juntar. Bem
junto.
E então juntei.
Agora quando eu penso no meu Amigo ( e eu continuo pensando tanto! ) eu penso
nele inteiro, quer dizer: cachimbo, tinta, por quê?, gamão, flor que ele gostava,morte de
propósito, por quê?, relógio batendo, amarelo, por quê?, blusão verde: tudo bem junto e
misturado.
E comecei a gostar de pensar assim.
Acho até que se eu continuo gostando de cada por quê que aparece, eu acabo
entendendo um por um. (p.51)
Cláudio junta muito mais do que imagens e pensamentos, junta a si mesmo e
recupera a capacidade de expressar suas percepções, tornando-se o narrador de sua própria
história. Do mesmo modo, essas duas linguagens tão distintas – a literatura e a pintura –
estão unidas pelo seu potencial criador e permitem que a história de Cláudio e seu Amigo
se construa nessa tênue, e quase imperceptível, fronteira entre linguagens que, em comum,
traduzem as experiências humanas.
Esse recurso de buscar uma forma de expressão que, casada com a literatura,
revelasse um universo, que é o das angústias, paixões, sentimentos humanos, aparece
também em Seis vezes Lucas. Nesse livro, Lucas, a personagem principal, é um menino que
vive em uma família conflituada. A falta de entendimento dos pais, a crise conjugal em que
vivem, afeta diretamente o menino que é prisioneiro de seus medos e de uma profunda
insegurança diante da vida. Lucas começa sua história sem conseguir descolar a sua vida do
conflito do qual é testemunha e, de certo modo, vítima. Lucas é freqüentemente dominado
pela Coisa, a Coisa é um conjunto de sentimentos com os quais o menino não sabe lidar: o
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medo de ficar só, a insegurança gerada pelas constantes brigas dos pais, a sensação de que
nem o pai nem a mãe se importam verdadeiramente com ele, o ciúme que sente do pai.
Esses sentimentos reunidos assaltam o menino de uma forma tão contundente que se
transformam em dores físicas, porém Lucas vai descobrir um modo de lidar com eles. Certa
noite, o menino modela uma máscara, uma cara, usando massa de modelar. Ao colocar a
cara sobre o seu rosto, imediatamente sente uma transformação. O uso da scara afasta o
medo, dá-lhe confiança, usando-a ele é capaz de ser e fazer coisas que sem ela seriam
impossíveis. Esse interesse recém-descoberto leva Lucas a uma escola de artes, onde o
menino descobre também o amor – apaixona-se por Lenor, sua professora. Numa de suas
aulas Lucas aprende a seguinte lição:
(...) na aula de quinta-feira a Lenor começou a falar de Arte pra turma. Disse que cada
trabalho – uma pintura, um personagem de livro, uma música – tinha que ter vida, tinha que
ter alma, pra virar obra de arte. E quando ela falou que era difícil dar alma a um trabalho, o
Lucas ficou pensando se a Cara que ele tinha feito tinha alma ou não tinha. E quando Lenor
disse:
Por exemplo: Rembrandt botou tanta alma nos retratos que ele pintou, que, quando
eu olho pra eles, me dá logo vontade de conversar com aquela gente.
Ah! ele também tinha conversado com a Cara: então ela tinha alma, não tinha não?
E aí o Lucas sentiu uma enorme vontade de fazer a Cara de novo e dar ela de presente para
Lenor(...) ( p. 53)
A fala da professora condensa o modo como a arte é tratada e aproveitada na obra
de Lygia, o fazer artístico que se mantém em conexão com a vida, que, tendo alma, atinge a
alma dos outros, é gerador de transformações porque põe o homem e a vida em movimento.
No caso de Lucas, descobrir que sua Cara podia ter uma alma reforça a sua
confiança, desperta o desejo de repetir a experiência – recriar a máscara, agora para
compartilhá-la com alguém importante para ele, alguém com quem gostaria de dividir algo
que lhe fosse caro, alguém com quem quer estabelecer um contato. O mesmo contato que
ele pôde estabelecer com o mundo a partir do uso da primeira “cara” que criara. Somente
depois da experiência de encontrar-se consigo mesmo, de ver-se com e através da sua
criação, Lucas começa a despertar para o que de fato ocorre a sua volta.
(...) Foi pra frente do espelho e grudou a massa na pele, querendo se colar nela bem.
O Lucas estava contente de ter um cara ali no espelho; não se sentiu mais sozinho,
deu vontade de conversar com ele, foi logo querendo saber:
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- Você é um herói?
A cara fez que sim.
- Quer dizer que você é um conquistador?
A Cara fez que sim.
O Lucas suspirou fundo. Colou ainda mais bem colada a massa na pele. (p.22- grifo
da autora.)
A Cara é uma criação de Lucas e representa o que, nesse momento da narrativa , é o
seu modelo: o pai. É a seu pai que Lucas vê como poderoso, o pai é o conquistador – para o
menino “conquistador” porque não tem medo e vence, para a mãe de Lucas o pai é um
conquistador porque se envolve com outras mulheres ( o grifo da autora sugere a intuição
de Lucas sobre a dupla significação da palavra – o que mais tarde o menino vai
comprovar). Ver-se com a máscara no espelho produz uma dupla experiência: primeiro vê a
si mesmo como se pelos olhos do outro ( do pai) e a sensação de gostar do que vê gera uma
aprovação que o menino buscava e não encontrava no pai; por outro lado ele fez a Cara e
sabe disso, portanto está diante de uma criação sua, algo que é parte de si e dá ao menino a
chance de perceber que ele pode vencer os sentimentos e as situações que o assustam.
A partir desse momento, pouco a pouco, o olhar de Lucas vai-se transformando. A
sua realidade continua a mesma. Seu pai vai se envolver com Lenor, a primeira paixão do
menino, mas Lucas tem novos instrumentos para lidar com o ciúme – a arte lhe deu a
fantasia – e cria um espaço mágico onde tudo é possível, onde ele é corajoso, enfrenta o
pai, tem o carinho e a atenção de Lenor e da mãe. O conhecimento obtido através de todo
esse processo criativo – envolvendo a arte e a fantasia – não resolve os problemas de Lucas,
mas dá ao menino a capacidade de enxergar a realidade, uma realidade que os adultos se
negam a ver. Surge aqui um jogo interessante.
A partir de processos criativos, seja na feitura das máscaras, seja na criação de
lugares imaginários, Lucas se aproxima da realidade, enquanto os adultos aparentemente
lidam com os problemas reais de frente, porém, de fato, fazem questão de não ver a
realidade, pois preferem se acomodar num jogo de aparências que adia os conflitos e que
resulta na paralisia de suas vidas.
O desfecho da narrativa deixa isso bem claro: a mãe de Lucas prefere acreditar nas
promessas do marido e reata um casamento que na prática já não existe, Lenor “acredita”
no pai de Lucas quando esse diz a ela ter-se separado da mulher e continua tendo com ele
um romance. Somente o menino percebe que nada mudou, somente ele admite a verdade e,
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portanto, é o único que está preparado para a vida, porque não tem medo de enfrentá-la.
Invertem-se os papéis, o Lucas medroso das primeiras páginas do livro não existe mais, o
pai vitorioso e conquistador é um homem com medo de enfrentar as suas próprias escolhas.
Ao final do livro, Lucas coloca todas as personagens de sua história de vida no
espaço imaginário que tantas vezes visitou “o Terraço” e dali sai inteiro e maduro – como
num rito de passagem – ,enquanto lá, no escuro ficam seus pais e Lenor cegos e cobertos
pelas máscaras que usam, bem diferentes daquela cheia de alma criada por Lucas, máscaras
que os impedem de ver, de agir, de transformar, máscaras que os imobilizam porque são
apenas a representação de seus medos e inseguranças.
Olhou comprido pro Timorato e pro Pai. Pra um com saudade, pro outro não.
A Mãe e a Lenor estavam lado a lado; o Lucas chegou perto delas, olhou terno pra
uma, pra outra, mas só disse assim pras duas: pensei que gente grande sacava melhor.
E aí foi e apagou o sol.
Depois apagou a lua, depois o balão de São João, a lanterna e a lâmpada, e mais
tudo que é estrela também.
Quando acabou de apagar o Terraço, o carro parou na frente de casa.
- Se o pai chegar antes de mim, diz que eu fui no cabeleireiro dar uma caprichada
no visual. Mas diz pra ele que eu não demoro, viu? Tchau, meu filhinho.
- Tchau, mãe. (p.112 – grifo nosso)
3.3.
Nós três e O abraço – a mediação impossível
Até aqui se analisou o rendimento do diálogo entre a arte – em suas mais variadas
formas – e a literatura na obra de Lygia. Esse diálogo apontou sempre para o poder de
transformação, valorizando a experiência e a capacidade que o potencial criativo, destacada
nesse diálogo, como geradores de movimento, mudança de estado tanto em relação às
personagens como em relação ao que se apresenta ao leitor como objeto de reflexão. Há, no
entanto dois momentos na obra de Lygia em que esse resultado se frustra. Como o outro
lado da moeda, em Nós três e O abraço, a mediação que até aqui se analisou não se
concretiza.
Lygia na edição de sua obra feita em sua própria editora – iniciada com Retratos de
Carolina em 2002 – adotou o hábito de incluir um “Pra você que me lê” em seus livros. A
primeira vez que essa conversa com leitor se fez presente foi nas edições de Fazendo Ana
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Paz e Paisagem, que se seguiram a Livro e que com esse último formavam ( e formam) o
que a autora chamou de a trilogia do livro. Pois bem, Lygia faz agora do “Pra você que me
lê” uma prática e vai dividindo com o leitor a história do livro que coloca em suas mãos. Às
vezes essa conversa vem no início do livro, outras vezes ao seu final. No fim de Nós três,
editado pela Casa Lygia Bojunga, Lygia coloca sua conversa com o leitor e diz que Nós
três e O Abraço formam o seu “par sombrio”.
(...) concluí que, de fato, a Morte tem estado bastante presente na minha criação ( como, de
resto, e de uma maneira ou outra, na vida de todos nós), mas somente em dois dos meus
livros a presença da Morte é sombria o bastante pra não deixar uma brecha – por
pequenininha que seja – ao consolo e à esperança . Foi essa constatação que, naquele
momento, me fez batizar s três e O abro de par sombrio; e foi daquela rede em diante
que sempre penso neles com esse subtítulo.
De fato, o subtítulo se justifica, como também a observação da própria autora de
que se trata de narrativas em que não há brechas para nenhum apaziguamento,porém, mais
sombrio ainda é o fato de que não há consolo também para o leitor. O angustiante nos dois
livros não é só a presença da morte, a falta de consolo e esperança, é também a
impossibilidade de uma leitura segura “armada”, com desfecho consolador..
Em Nós três a menina Rafaela passa suas férias com Mariana que é escultora. Na
praia conhece Davi, um homem do mundo. Rafaela e Davi constroem uma forte relação de
amizade ao mesmo tempo em que esse se relaciona com Mariana. O encontro tem um
desfecho trágico quando, em uma discussão, Mariana mata Davi. Rafaela é testemunha do
crime e vê quando Mariana sai de barco para o mar levando o corpo de Davi. Não é a
primeira vez que a morte trágica aparece na obra de Lygia, porém nesse texto não há como
superar essa experiência, não há como transformá-la. A imaginação, seu poder criativo, e a
arte ( no caso a escultura ),dois dos recursos sempre utilizados por Lygia como
instrumentos de troca – ou seja, trocar uma experiência ou sentimento negativo por algo
que sublime ou supere o choque e que produza movimento, levando para adiante a vida e as
personagens – , aqui funcionam de modo inverso.
Ao se refugiar na fantasia, Rafaela se vê no fundo do mar a procura de Davi, ela o
encontra, mas não pode libertá-lo da rede que o prende. No lugar de uma saída criativa que
a levasse de volta à vida, o que a fantasia oferece a Mariana é o retrocesso. Davi pede que a
menina suma com a faca que o matou antes que ele conheça Mariana. A menina tenta, mas,
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por ser um movimento de retorno, o que se tem é a busca no passado e não a busca pelo
presente a caminho do futuro, a tentativa está condenada ao insucesso. A personagem vive
um momento de negação que se faz permanente. Ela não quer lidar com a perda. Assim,
Rafaela é prisioneira de uma experiência trágica.
Sem poder seguir adiante, a outra opção que encontra no refúgio da fantasia é o
castigo – uma condenação perpétua para Mariana.
- Não deu pra matar a faca. E ela matou de novo o Davi.
O anjo ficou olhando pra faca, mas o Peixe olhou pra Rafaela e meio que segredou:
- A faca não tem culpa. Ela estava quieta lá em cima da mesa, não estava? (...)
Rafaela olhou ora ele. (...)
O peixe insistiu: (...)
- Quem é que tem culpa então?
Ela baixou a cara e ficou olhando pra Flor Azul.
- Diz, diz!
O Anjo se aborreceu:
- Deixa ela quieta.
- Não deixo não. Diz quem é que tem culpa, diz! Diz o nome dela. (...)
Sem levantar o olho da flor, a Rafaela acabou dizendo: MA-RI-A-NA.
- Então ela tem que ser castigada.(...)
Ela olhou de rabo e olho pro Anjo e ficou meio admirada quando viu ele soprando
pra ela: tem.(...)
- O que ela gostava de fazer? (...)
- A Mariana ? Ah. bom, ela... trabalhava o dia inteiro cortando, batendo,
inventando. Pedra, metal, madeira. Tirando gente e planta e estrela daquilo lá. (...)
- Então ela não vai mais fazer. (...) É assim que ela vai pagar.
A Rafaela olhou pro Anjo querendo ver o que que ele achava. Ele estava
pensativo.(...)
O Anjo acabou de pensar:
- E se a gente faz diferente? e se a gente faz a mão dela nunca mais parar de
trabalhar, de querer criar...
O Peixe se impacientou:
- Mas isso é o que ela quer! que castigo então que é?
O Anjo nem ligou:
- ... só que tudo que ela vai faz vai ser sempre a mesma coisa. A última coisa que
ela estava fazendo quando pegou a faca e matou o Davi.
- O cabelo dele! – Rafaela gritou. Se assustou e tapou a boca.
- Então é o cabelo do Davi que a mão dela vai ficar repetindo. (p.114-119)
Diferente de Seis vezes Lucas, onde o espaço imaginário, fruto do exercício criativo
da fantasia, é o lugar em que Lucas pode ser e, portanto, proporciona ao menino os
elementos para compreender e enfrentar a sua realidade de forma mais preparada; aqui o
uso desse mesmo recurso não tem tal rendimento. A realização da fantasia de Rafaela não
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inclui a liberdade do potencial criativo, descrito por Ostrower, é quase que uma simulação e
não construção criativa e lúdica, isto porque Rafaela usa a sua imaginação não para
representar o que lhe é difícil compreender e sim para ratificar uma postura que a afasta da
compreensão de sua experiência. O que de fato a menina “encontra” ao criar sua fantasia é
o que já tinha: a não aceitação da realidade, o desejo de negar a morte de Davi e o reforço
para o desejo de vingança contra Mariana – não há superação, não há conforto, dessa vez a
fantasia não liberta Rafaela, no sentido de essa encontrar uma forma de expressão, antes a
aprisiona, definitivamente, a sentimentos com os quais não sabe lidar e não pode superar.
No caso do cruzamento de manifestações artísticas com a literatura, em Nós três não
se dá o diálogo entre linguagens. O fato de Mariana ser uma escultura é somente um dado
na narrativa, não se verifica um encontro entre o narrar e o esculpir. Em O meu amigo
pintor, como foi visto, a simbologia das cores, os quatros e aquarelas do pintor ganham
uma significação na narrativa de Cláudio, significação essa que permite ao menino
compreender a experiência de seu amigo e a sua própria; a arte da pintura está inserida na
narrativa como linguagem reveladora. Mesmo guardando tantos porquês, Cláudio sai do
contato com a morte pronto para vida porque
Se a fala representa um modo de ordenar, o comportamento também é ordenação. A
pintura é ordenação, a arquitetura, a música, a dança ou qualquer outra prática significante.
São ordenações, linguagens, formas; apenas não são verbais, nem suas ordens poderiam ser
verbalizadas. Elas se determinam dentro de outras materialidades. (...)
O aspecto relevante a ser considerado aqui é que, por meio de ordenações, se
objetiva um conteúdo expressivo. A forma converte a expressão subjetivada em
comunicação objetivada. Por isso, o formar, o criar, é sempre ordenar e comunicar. Não
fosse assim, não haveria diálogo. Na medida em que entendemos o sentido de ordenações,
respondemos com outras ordenações que são entendidas, por sua vez, justamente no sentido
de sua ordem.
Qualquer tipo de ordenação torna-se significativa para nós. Ao percebê-la
projetamos de imediato algum sentido ao evento. (...) Mas somente quando na forma se
estruturam aspectos de espaço e tempo, mais do que assinalar o evento, poderá a mensagem
adquirir as qualificações de FORMAS SIMBÓLICAS. (Ostrower, 1987, p. 24-25 – grifos
da autora)
O diálogo entre as linguagens verbal e não verbal se realiza na narrativa de Cláudio,
o menino pode transformar a “expressão subjetivada” ( sua experiência com a pintura / a
morte) em “comunicação objetivada” ( o relato de sua experiência ). Efetivamente, se chega
à forma simbólica, um processo que é pertinente ao fazer artístico que, por sua vez, inclui a
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mensagem simbólica e a ordenação, a partir das possibilidades de leitura ( lato sensu ) que
esse processo gera. É isso que revela a forma simbólica como um elemento de ordenações
também dos processos interiores, como processos afetivos, conduzindo à mudança, gerando
movimento, já que “Todo perceber e fazer do indivíduo refletirá seu ordenar
íntimo.”(Ostrower, 1987, p. 26)
Entre a atividade artística de Mariana e a experiência vivida por Rafaela esse
diálogo não existe, não existindo também na narrativa. A expressão artística, aqui, não
permite a nenhuma das personagens elaborar sua experiência através de uma forma
simbólica – tudo está paralisado, não há troca, não há representação. O resultado é que, de
fato, Mariana estará condenada a perder sua arte, a vê-la esvaziada de vida, transformando-
se num gesto repetitivo e sem nenhum significado. Sem entendimento ou superação,
também Mariana abandona a vida.
Não resta ao leitor mais do que uma constatação: a morte como evento trágico de
conseqüências igualmente trágicas. Esse fechamento é que torna ainda mais angustiante e,
sem dúvida, sombria a narrativa de Nós três. Não havendo espaço de interlocução no texto,
torna-se difícil o diálogo do / com o leitor.A estrutura narrativa aponta esse fechamento
quando produz um “epílogo”, que confirma a condenação de Mariana e o seu “castigo”, não
há espaço para a intervenção do leitor, não há a menor abertura, tudo está dado como
pronto e acabado.
Em O Abraço está-se diante das mesmas condições expostas sobre a narrativa de
Nós três. O tema também é a morte e também aqui não há saída. Cristina foi vítima de
violência sexual ainda menina, aos oito anos, mais tarde já moça, reconhece o seu agressor
e passa obsessivamente a desejar estar frente a frente com ele. O encontro acontece,
resultando em nova agressão e na morte de Cristina – a personagem-narradora.
Como em Nós três, as primeiras páginas da história já anunciam a presença da
morte. A representação teatral é chamada ao texto, Cristina e seus amigos freqüentam festas
em que os participantes formam grupos que encenam textos literários – está aí sugerido um
encontro ( literatura e teatro ), mas o que se vê no texto é a impossibilidade de concretizá-
lo. Do mesmo modo que teatro e literatura não interagem, também Cristina não consegue
transformar a trágica experiência da menina, a obsessão pelo agressor revela isso. Não
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conseguindo transformar em representação a sua experiência traumática, a moça não realiza
o passo seguinte, a superação, não há uma troca, não há movimento, mudança.
Numa festa onde o grupo de Cristina deveria encenar um conto onde a Morte era
personagem, a moça conhece uma mulher. No texto, essa é uma personagem que assume
vários sentidos: a própria presença da morte, um duplo de Cristina – Clarice. Ante a
possibilidade de representar a morte, a dor profunda, todas as perdas e se libertar do seu
sofrimento, guardado desde menina, Cristina se envolve pela / com a personagem da
mulher e escolhe o caminho inverso. Escolhe a morte, a obcessão, não pela representação,
mas pelo reencontro com a dor profunda. Entre perdoar / superar e buscar o enfrentamento
e a possibilidade da dor profunda, Cristina fica com o segundo caminho. Em um diálogo
com a misteriosa mulher que tantos sentidos traz para a narrativa se revela a
impossibilidade de superar.
- Ô meu deus ! mas que diferença faz se eu sou a Clarice-tua-amiga-de-infância-
que-um-dia-saiu-de-casa-e-nunca-mais-voltou, ou se eu sou a Clarice-que-se-fingiu-de-
morta, ou se a Clarice-que-botou-a-boca-no-mundo, ou se a Clarice-que-morreu-numa-
gravata-cinzenta, ou mil outras Clarices que eu posso te contar, o que importa isso, me diz!
o que importa é que você está sendo cúmplice de um crime...
- Eu?!
- Você e todos que calam, que perdoam, que esquecem um crime assim.
- Ah, pera lá! você tá dura demais comigo, você tá esquecendo que eu era uma
criança.
- Mas agora não é mais! E continua esquecendo, e continua perdoando.
- Eu não perdoei!
- Ah, não?
- Não.
- E esse tesão todo que você tá dele?
- ...
- Hem? ... responde!
- ...
- Cúmplice, sim! – Deu as costas e foi embora. E aí, sabe, em entrei num outro
parafuso: devagarinho ( eu já te disse que sou devagar pra sentir as coisas, não é?), muito
devagarinho, eu comecei a me dar conta do horror que foi. O episódio da fazenda de Minas,
eu quero dizer. Parece que só agora eu começo a entender direito a gravidade daquilo tudo.
Só que não está adiantando: eu continuo obcecada por ele. Pelo Homem da Água. E por ela
também: não paro de querer saber mais daquela mulher. A vontade de ver ela de novo ficou
tão grande que eu tô sempre falando sozinha, quer dizer, falando em pensamento tudo que
quero saber dela. Não paro de querer olhar bem pr’aquela cara. Mas sem máscara. Sem
máscara! Ah, que parafuso. (p.47-48 – grifo da autora )
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Cristina está, de fato, obcecada pelo passado, pela dor, pela morte ( a mulher
misteriosa que ela quer ver sem máscara), não consegue esquecer, nem perdoar, nem
entender, pode sentir, mas apenas o sentimento não adianta. A imagem do “parafuso”
também é reveladora: conotativamente palavra sugere tanto confusão como mergulho
profundo – deixar-se cair, afundar sem poder voltar.
Além da impossibilidade que se apresenta do teatro se transformar em meio de
representação da experiência dolorosa e, por ser possível trocar tal experiência por outra,
gerar instrumentos para que Cristina possa lidar com o que lhe aconteceu, a própria
narrativa fecha essa possibilidade transformadora também para a literatura. O texto é um
relato em primeira pessoa, porém o interlocutor não é o leitor. Cristina conta o que lhe
aconteceu e o que lhe está acontecendo a uma autora, uma escritora. Ao final da narrativa,
decida a ter o encontro com a mulher misteriosa e o seu agressor, Cristina é conduzida ao
local do encontro, uma festa (?), pela autora a quem confia seus segredos. A partir daí, é
essa autora que assume a narrativa.
Mas no caminho a Cristina foi ficando quieta, cada vez mais quieta. Se eu falava,
eu via que ela não estava prestando atenção (...)
Chegamos no tal endereço. (...) Estranhei:
- Pouca luz pr’uma festa, não é?
- Me espera um instantinho que eu vou ver se é aqui mesmo. – Saiu do carro,
atravessou o jardim e tocou a campainha. (...)
- É aqui, sim, é aqui. Foi ela mesma que abriu a porta.
- Eu vi.
(...)
- Sabe como é que eu estou me sentindo depois desse desabafo todo?
- Hmm?
- Você vai achar graça, aposto.
- ?
- Eu estou me sentindo como se eu fosse uma personagem tua.
- Ué. Por quê?
- Porque você foi a única pessoa que me deu vontade de fazer isso, quer dizer, de
entregar... assim... desse jeito... todo esse meu pedaço de vida.
Ficou parada. Eu pensei até que ela tinha desistido de voltar pra festa. Depois
apareceu uma expressão brincalhona no olho dela:
- Vê lá se você vai acabar que nem eu, hem?
- ?
- Achando que eu sou tua personagem e me botando numa história com princípio,
meio e fim.
- É quem sabe eu volto pra casa já inventando como é que vai ser essa festa.
- Não é? – Riu e me deu um beijo. Saiu correndo, entrou na casa e fechou a porta.
(p.51-53)
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A partir desse diálogo, a narrativa assume o discurso impessoal da terceira pessoa e
o que se narra é o encontro de Cristina com a morte, a experiência do estupro se repete,
seguida, agora, da morte da personagem. O fato desse segmento ser narrado em terceira
pessoal abre duas possibilidades de leitura que, no entanto, convergem para um mesmo
ponto. Ou se está diante, de fato, do “fim” de Cristina ou o que se lê é o que a autora foi
inventando, no caminho de volta a casa, sobre como teria sido a festa. De um ponto de vista
ou de outro, o que se vê é a impossibilidade da palavra, como força de expressão, ser capaz
de transformar uma experiência. O ato de criar uma história, fazer literatura, não atinge o
objetivo que está proposto em toda a obra de Lygia: o de ser uma troca, onde através da
representação, do universo simbólico é possível lidar com a vida. Aqui a morte vence.
Apesar da imensa carga simbólica em O abraço, a leitura se fecha: não há saída, o
fim de Cristina é mesmo o fim da história, não há nenhum aceno de outras possibilidades.
Talvez se possa compreender esse “par sombrio” de Lygia como a exceção que
confirma a regra, talvez as narrativas tenham surgido da necessidade de experimentar,
também na e com a arte a frustração, o impedimento da transformação, que deveria estar
presente no ato criador. Na arte, como na vida, nem sempre é possível ir adiante.A vida
quando não é troca, torna-se tarefa
3.4.
A troca: uma profissão de
Muitas vezes aqui se usou a palavra “troca” e na obra de Lygia ela tem um significado
realmente especial. A palavra surge como uma imagem no conto A troca e a tarefa
, que está
em Tchau, livro que reúne contos de Lygia. A protagonista dessa história é uma escritora
que descobre que sua tarefa na vida é escrever quando percebe que pode trocar suas
experiências dolorosas e sentimentos negativos por histórias, personagens, pela criação de
outros mundos, utilizando sua imaginação e fantasia.
A partir desse momento, troca , no sentido que aparece no conto, passa se incorporar à
obra da autora. A literatura e as manifestações artísticas, são, em sua obra, um instrumento
de revelação e compreensão da vida em toda a sua extensão. Não que se verifique uma
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idealização do papel da arte, ela não redime, não é a redenção dos homens, mas é sem
dúvida um caminho para se buscar respostas, para a representação da vida, é um universo
simbólico que pode ser instrumento de transformação na medida em que gera inquietação e
permite uma nova ordenação do mundo.
O diálogo entre a literatura e outras formas de expressões artísticas, tão presente nos
textos da autora, confirma esse entendimento, uma vez que valoriza o papel do leitor, pois é
justamente na leitura que a troca se efetiva. Ao leitor cabe estabelecer as relações possíveis,
por isso é ao leitor que Lygia revela suas intenções:
Acredito que nos meus próximos livros, quando a Morte se fizer presente, ela vá
deixar brechas para a esperança e para a valorização da Vida, feito ela deixou em todos os
outros meus livros por onde andou.
o é uma promessa que eu estou te fazendo, mas é, certamente, uma intenção... (Pra
você que me lê, in O abraço , Casa Lygia Bojunga, p.140)
A intenção de construir uma literatura em que mesmo a Morte seja um meio para a
valorização da Vida, aponta para uma visão da literatura como um meio de gerar
inquietação, transformação. A experiência da leitura é também uma troca, não somente de
informações com o texto, mas uma troca de visão de mundo, de valores, de estado. Como
afirma Jorge Larrosa “La experiencia de la literatura, si alguna vez va de verdad, si alguna
vez es verdadera experiencia, siempre amenazará con su fascinación irreverente la
seguridad del mundo y la estabilidad de lo que somos.”(Larrosa, 1998,p.89).
O que se verifica na obra de Lygia, em especial na imagem da troca e no uso reiterado
da arte como mediadora, é justamente esse desejo de que o contato com a literatura e a
experiência da leitura provoquem movimento, mudança, deslocamentos. Essa intenção vai
se expandir na obra no que diz respeito ao pacto que a mesma estabelece com o leitor,
como se verá adiante.
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4.
Três pedaços da laranja
A partir de Livro – um encontro uma inquietação, mais que um tema, vai se fazer
presente na obra de Lygia. Trata-se da relação autor / leitor/ obra. Na verdade, essa
“inquietação” já surgira um pouco antes, em Tchau, mais precisamente no conto A troca e a
tarefa. Este é o primeiro texto de Lygia em que uma escritora é personagem de sua obra. O
conto é emblemático também para compreender a visão de Lygia a respeito da literatura
como representação de experiências. No conto, a escritora , que desde a infância é assaltada
pelo ciúme e por toda a angústia que esse sentimento inspira, na adolescência descobre que
a tarefa de escrever a liberta de seus fantasmas, na medida em que, através de suas
histórias, pode transformar os sentimentos e experiências negativas em personagens,
enredos, cenários, realizando, assim, uma troca – a da experiência ruim por uma história.
Representando suas dores e dissabores, liberta-se deles: “Achei tão bom poder transformar
o que sentia em história que eu resolvi que era assim que eu queria viver: transformando.
Foi por isso que eu virei escritora.”( A troca e a tarefa, Tchau, p. 58)
Estando a imagem da troca inserida na obra, ela jamais vai abandonar os textos de
Lygia. Assim, quando ela assume em Livro – um encontro todos os seus papéis – a Lygia
leitora, a Lygia autora – surge a necessidade de ir mais fundo nesse universo. O resultado é
uma trilogia que inclui o próprio Livro, Fazendo Ana Paz e Paisagem. No primeiro, vem a
experiência da leitora, no segundo, a da autora às voltas com a construção de sua
personagem e no terceiro, a própria leitura, na troca entre autora e leitor dentro de uma
mesma obra que vai se fazendo, justamente, de tal encontro. São os três pedaços da laranja
a que a própria Lygia faz referência no prefácio
1
que inclui em Fazendo Ana Paz e
Paisagem. Um dado significativo nesses dois últimos livros é o fato de as autoras-
personagens incluírem em seu universo características biográficas da própria Lygia. Para
começar o seu relato da construção da personagem Ana Paz, a autora-narradora do livro
conta sua experiência com “a chegada” da personagem Raquel de A bolsa amarela; do
mesmo modo a autora-personagem de Paisagem divide seu tempo entre o Rio de Janeiro e
1
No prefácio, Caminhos, já citado, a autora estabelece a relação que pretende buscar em sua obra com o seu
leitor e a experiência da leitura, daí surge a imagem aqui mencionada : “os três pedaços da laranja”.
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Londres, onde escreve em um estúdio, descrito em detalhes, mais tarde, em livros
assumidamente biográficos como Feito à mão e O Rio e eu.
Essa mistura de identidades sugerida nas narrativas aponta para um procedimento que,
ao longo da obra, vai se tornar constante: apagar as fronteiras que pudessem existir entre
autor / leitor / obra, transformando esse tripé, já consagrado por Umberto Eco
2
como a
tríade que permite a interpretação de um texto – inteão da obra, do autor e do leitor – ,
em uma poderosa interseção que assume a imagem “dos três pedaços da laranja”. Deste
modo, não há limites visíveis para os elementos responsáveis por conferir à obra sua
significação, o que há é uma fusão de elementos e papéis – uma constante troca de tarefas –
, já que para a própria Lygia “Eu, leitora, crio com a minha imaginação todo o universo
que vem cifrado nesses sinaizinhos chamados letras.”(Livro, 1990: 21). O pacto com o
leitor, estabelecido na obra a partir da trilogia, não é o de uma superposição de níveis, nem
mesmo, apenas, o do discurso polifônico , é antes o da miscigenação. A conseqüência
direta disso é que o leitor vira co-autor – Paisagem – , como a escritora já o fizera consigo
mesmaFazendo Ana Paz.
A trilogia é o momento em que intencionalmente essas relações são tematizadas na
obra, porém esse percurso já vinha sendo traçado desde o lançamento de Os Colegas. Nesse
livro de estréia, como em Angélica que o sucede, a própria autora assume – e aqui já se
disse – que havia a intenção deliberada de escrever para um público infantil. Porém,
algumas das escolhas estéticas feitas pela autora para trabalhar seu texto apontam um
caminho que será seguido em outros livros. O uso dos animais como personagens remete às
fábulas, modelos oriundos da tradição oral, como também, seguindo os rastros da oralidade,
opta-se por construir um discurso narrativo com base na linguagem oral, na fala. Caso esses
recursos ficassem restritos aos dois primeiros livros, essa seria uma escolha para melhor
adequar a obra a um público infantil, porém o que se observa é que tal “escolha” passa a ser
uma marca na obra da autora – especialmente o uso da linguagem oral.
Ao chamar a oralidade aos textos, está implícita a proposta de uma relação com o
leitor que aponta para questões intrínsecas a esse tipo de relato, como Benjamin já
apontara: o senso de coletividade, de transmissão de uma memória coletiva, de
2
Este conceito de Eco aparece detalhado em sua obra Interpretação e superinterpretação, Martins Fontes,
1993.
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compartilhar experiências, de dar ao outro a condição de multiplicador no processo de
recontar ( recriar ) a história, levando a diante o conhecimento adquirido e transformando-
o. Além disso, esse discurso oralizado cria uma atmosfera de intimidade, elimina qualquer
distanciamento, a narrativa se torna cotidiana, próxima ao leitor, é quase que como se o
desejo fosse o de eliminar a idéia de que o discurso que está sendo construído pertence a
outro – a tradição oral apaga a noção de autoria – , portanto, o material lingüístico que se
oferece ao leitor pertence a ele próprio, é um código que ele domina perfeitamente, enfim,
são suas próprias palavras.
Do mesmo modo, em textos subseqüentes a Os Colegas e Angélica, quando a idéia de
escrever direcionada ao público infantil já foi superada, os animais ressurgirão como
personagens. É o caso de A bolsa amarela, A casa da madrinha e O sofá estampado. Essas
são narrativas em que a simbologia colocada nos animais é extremamente original,
recusando clichês.
A menina Rachel dialoga todo o tempo com os galos Terrível e Rei, cujos nomes
apontam para as características que ambos querem negar: Terrível não quer ser um galo de
briga e Rei não quer mandar no galinheiro, assim como Rachel não quer o papel que lhe
cabe em sua família ( na sociedade em que vive) : o de criança sem vontade, o de mulher
sem voz. A fábula” expressa através dos galos – que justamente não querem “cantar de
galo” – representa a realidade de Rachel, logo a narrativa oferece ao leitor a possibilidade
de estreitamento de laços entre o discurso ficcional e a realidade cotidiana, instigando a
imaginação e apontando a criatividade como uma competência dele, leitor, tanto diante do
texto como da vida.
O procedimento é o mesmo nos dois outros livros citados. Em A casa da madrinha, o
Pavão tem o seu pensamento atrasado na escola Osatra ( espelhamento de atraso), e mais
uma vez o animal vive um processo que diz respeito ao ser humano – ter suas
potencialidades neutralizadas por um discurso de poder dominador e uniformizador – , mais
uma vez o chamado ao texto de um recurso da tradição oral que carrega toda uma carga
voltada para a experiência – a fábula tem uma moral . O resultado é que se dá ao leitor a
possibilidade de empatia com esse pavão e ter empatia é se colocar no lugar do outro, é
pensar a si mesmo a partir do olhar do outro, logo há a sugestão de uma intersubjetividade
na construção do sujeito leitor.
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No caso de O sofá estampado, a própria Lygia declara em Livro – um encontro que, a
princípio, tentara escrever a história tendo como personagem um menino, mas o texto não
se concretizava. Ela já estava pronta para abandonar o projeto quando percebeu que “pra
ser um personagem não-oco o Vítor não podia ser um menino, ele tinha que ser um
tatu.”(Livro, p.44). A história de Vítor é a busca pela identidade, à medida que cava mais
fundo, o tatu vai descobrindo a si mesmo, as camadas mais profundas de seus desejos e
potencialidades, vai rompendo com o destino que a família traçou para ele e inventando seu
próprio caminho, enfim, se afasta da morte e abraça a vida com todos os seus riscos.
Repete-se a história: a fábula como recurso especular às avessas em que leitor pode se ver
vendo o outro, pode se ver no outro; nas palavras de Francisco Gregório Filho “Olhar o
olho do outro é sublimar o narrado, é destampar o vivido, é tornar possível, é possibilitar o
percurso e os atalhos, é estender o plausível a extremos tensionadores de descobertas, é
romper o conformado, é desejar o não-experimentado, é chorar de ver.”
3
O desejo de uma aproximação autor/obra/leitor e a preocupação com a questão da
leitura, portanto, já caminhavam nas palavras de Lygia muito antes da experiência
provocada pelo relato de Livro – um encontro, experiência essa que levou a autora a um
contato direto com seus leitores, já que a primeira parte do livro ( Livro – eu te lendo) se
transformou em um espetáculo teatral, um monólogo que Lygia apresentou em várias
cidades do país e no exterior. Foi esse encontro direto da Lygia-leitora com os leitores-de-
Lygia que acabou por trazer à tona algo que já estava intuído na obra escrita até então.
Surge a famosa trilogia do livro, ou seja, agora é uma intenção declarada essa a de
aproximar as instâncias que permitem que um texto tenha leitura, ganhe significação:
autor/obra/leitor.
A noção de o leitor ser também o criador do texto já está lá em Livro, quando Lygia
afirma que sendo leitora usa sua imaginação para criar a partir do que lê (1990:21). Se em
Paisagem o leitor estará explicitamente colocado dentro do texto, já que é a relação
escritor/leitor que o livro vai abordar, em Fazendo Ana Paz é a figura da escritora que se
despe diante dos leitores. O fato de agora o foco estar sobre aquela que produz o texto não
3
Francisco Gregório Filho,Oralidade, afeto e cidadania, in Pensar a leitura: complexidade, org. Eliana
Yunes, Loyola, 2002, p.62.
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afasta a interlocução e a proximidade com o leitor, até porque se há uma exposição é
preciso haver um outro a quem se revelar.
Mas como colocar o leitor no meio de uma narrativa que apresenta basicamente o
processo do escritor construindo uma personagem? Numa obra como a de Lygia essa é uma
possibilidade. Um projeto narrativo como o que aqui se explicita, em que as fronteiras se
apagam, em que o desejo é o de aproximar as figuras do autor e do leitor, em que se
valoriza a leitura como experiência, gera também sutilezas – “espaços em branco” para que
a troca de tarefas seja possível. Iser, em O ato da leitura (vol.2) , comenta que
(...) é preciso descrever o processo de leitura como interação dinâmica entre texto e leitor.
Pois os signos lingüísticos do texto, suas estruturas, ganham sua finalidade em razão de sua
capacidade de estimular atos, no decorrer dos quais o texto se traduz para a consciência do
leitor. Isso equivale a dizer que os atos estimulados pelo texto se furtam ao controle total
por parte do texto. No entanto, é antes de tudo esse hiato que origina a criatividade da
recepção. (...) O autor e o leitor participam portanto de um jogo de fantasia; jogo que sequer
se iniciaria se o texto pretendesse ser algo mais do que uma regra de jogo. É que a leitura
se torna um prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando
os textos nos oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades. ( 1999, p.10)
A idéia de leitura como interação dinâmica entre texto e leitor e a noção da leitura
como um prazer, porque oferece ao leitor o exercício de suas possibilidades, combina com
a obra de Lygia e com Fazendo Ana Paz.
A narrativa começa em primeira pessoa, é a escritora narrando o seu processo de
construção de uma de suas personagens. A primeira frase do livro é “Eu sempre gostei de
ler livro de viagens, um dia me deu vontade de escrever um.” (p.11). Ler aparece antes de
escrever, primeiro a escritora se mostra leitora. Essa não é uma escolha ingênua, também
em Livro – um encontro, Lygia prefere começar narrando sua experiência como leitora para
depois falar da sua tarefa como escritora. Já se aponta, portanto, a relevância que a o texto
dá ao papel do leitor, até porque sendo um relato em primeira pessoa, o interlocutor que se
elege é o leitor. Mais adiante a escritora vai revelar que, estando pronta para escrever seu
livro de viagens, uma personagem lhe chegou. Essa personagem é Rachel e o livro em que
ela mora é A bolsa amarela. Começa aqui, de modo explícito, um recurso que vai fazer
parte da obra de Lygia: a inserção de dados da biografia da autora para caracterizar algumas
de suas personagens escritoras sem que, necessariamente, assuma estar falando de si
mesma. É o tal jogo com o leitor, aquele que lê a obra de Lygia e começa a ler Ana Paz vai
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identificar imediatamente essa referência e se vê chamado a sobrepor essa escritora que
tenta criar sua Ana Paz com a Lygia que criou Rachel.
A seguir a escritora conta como Ana Paz chegou de modo semelhante à Rachel,
assim de repente e parecendo pronta. Ana Paz chega contando um episódio da sua infância,
marcado pelo desaparecimento de seu pai. Nessas páginas iniciais da narrativa, a escritora
já começa se expor, sem restrição, aos seus leitores, dividindo com eles o seu processo de
criação: a diferença que é a chegada de cada personagem, a de como se prepara para ir
criando e contando suas histórias. Essa atitude indica a disposição de diminuir a distancia
entre escritor/leitor, uma disposição que fora assumida objetivamente por Lygia no
prefácio do livro e que agora é transporta para o corpo do texto.
A narrativa segue e com ela a inquietação da escritora, que vai recebendo
“pedaços”de Ana Paz: uma Ana Paz adolescente, uma Ana Paz adulta, uma Ana Paz já
velha, mas não completa a Ana Paz menina. A escritora divide mais uma vez com seu
leitor a sua dificuldade, essa dificuldade é criar o pai de Ana Paz. Todo o livro se constrói
na alternância das vozes: ora fala a escritora em primeira pessoa, ora fala a Ana Paz
menina, ora a moça, ora a velha. A narrativa espelha a própria colcha de retalhos que é a
construção daquela personagem que vai chegando aos pedaços, mas a dificuldade maior é
criar o pai. Nessa tentativa de elaborar a história de sua personagem, a escritora não se
apresenta como a que sabe tudo o que vai acontecer, subvertendo a idéia de que o “autor
tem o controle do seu texto. Ela vai seguindo as pistas de Ana e, algumas vezes, é quase
uma espectadora dos acontecimentos, só não é passiva, interage o tempo todo com a
personagem que está criando.
A Moça-que-se-apaixonou-pelo-Antônio começou a se ocupar de lenha, graveto e
abano. Quando o fogo pegou ela sentou perto da Velha e as duas ficaram olhando pro fogo.
A duas, não: nós três: eu também estava parada na minha mesa, lápis parado, olho
perdido no fogão de lenha; e a gente ficou assim um tempão. E aí eu saquei o que as três
personagens tinham a ver uma com a outra. Mais que depressa eu fiz a Velha perguntar:
- Quando foi que você se perdeu da Ana Paz?
- E a moça respondeu (direitinho) o que eu tinha acabado de sacar:
- No dia que eu me apaixonei pelo Antônio.
- É isso! as três são a mesma! Não foi à toa que quando eu fiz a Moça e a Velha eu
não dei nome nem pra uma nem pra outra: lá no fundão escuro da minha cuca eu já devia
ter sacado o que só agora saquei. (p.28)
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A posição assumida pela escritora é praticamente a posição do leitor que tem, em
dado momento da leitura, por um índice qualquer, a confirmação de uma intuição acerca da
trama que está lendo. Ao trazer para a escritora essa reação típica do leitor, mais uma vez
fica sugerido, na própria obra, essa visão de que o processo de construção da narrativa se dá
na troca constante e efetiva dos papéis de leitor e escritor. Uma outra aproximação proposta
também nesse Fazendo Ana Paz é a da escritora com suas personagens. Num primeiro
momento, essa aproximação vem através de um sonho, mais tarde, já no final do texto, num
recurso de metaficção, a escritora se confrontando diretamente com a personagem. É no
instante em que a escritora decide que jamais concluirá Ana Paz, pois não consegue dar-lhe
o pai. Disposta a se livrar de Ana, a escritora começa a rasgar os manuscritos e, nesse
momento é a própria Ana que intervém:
- Não! mal ou bem, nessa hora eu to me apaixonando por um homem, eu to me
sentindo tão viva; eu ainda não sei que eu vou me casar com ele, que eu vou ter filhos com
ele, que eu vou ser infeliz com ele, mas tudo que eu vou viver vai ser tão intenso! e você me
rasga?
- Desculpa, Ana Paz, mas não dá.
- O quê?
- Você não ficou resolvida.
- Ora, não vem com isso, quem é que fica resolvido?
- Quem? muitos personagens, ué. Eu acabei de fazer um livro: tudo que é
personagem ficou resolvido.
- Pra quem? Pra você? Pra eles? Pra quem lê? (p.52-53, grifo da autora)
A intervenção da personagem defendendo junto à escritora suas razões para existir
traz para a narrativa a voz do próprio texto, sublinha a idéia de uma “intenção da obra” no
próprio jogo ficcional, é a obra defendo com a própria voz o seu direito de existir. A
imagem criada – autora e texto dialogando – sublinha a essência interativa das relações
entre autor / obra / leitor. O resultado desse diálogo é que a história de Ana Paz ganha
liberdade, vira livro “( você sabe tão bem quanto eu que não tem nada mais livre do que
livro)” (p.53). O livro – a obra – é esse espaço onde autor, leitor e texto têm liberdade de
dialogar, de interagir, de construir sentidos.
Além de ser um revelar do próprio processo de criação, partilhando com o leitor as
angústias, inseguranças e dificuldades nele inseridas, Fazendo Ana Paz é também uma
narrativa em que a memória é tematizada. E também nesse aspecto se revelam
superposições. A construção da personagem se dá a partir de relatos em primeira pessoa, é
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a própria Ana que está contando a sua história para a escritora – que desde já assume uma
dupla função: ela escreve a história, mas é leitora dos relatos de Ana, é leitora desses
retalhos de personagem que vão chegando – porém, muito do que vai na história de Ana
não é apenas memória dessa personagem, é também parte da experiência de Lygia. Como já
foi dito aqui, esse é um livro em que a escritora personagem “toma emprestado” alguns
dados biográficos de Lygia, pois bem, sua personagem Ana vai fazer a mesma coisa.
Como Lygia, ela também vem de uma pequena cidade do sul do país, como Lygia
também sua família foi dona de uma casa muito antiga, que uma vez restaurada,
transformou-se em um patrimônio da cidade. Nas primeiras edições de Ana Paz essa era
uma leitura improvável para os leitores em geral, porém a partir da publicação de livros
como O Rio e eu e Feito à mão, relatos auto biográficos, detalhes da vida de Lygia podem
ser lidos na história de Ana. Também na última edição da obra, agora editada pela própria
autora, há um “Pra você que me lê” – título que Lygia dá aos textos que vem incluindo nos
livros publicados por sua própria editora, criando um espaço para o diálogo aberto com
seus leitores – em que a autora explicita Fazendo Ana Paz como uma narrativa que gira em
torno da questão da memória. Nessa conversa com o leitor, diz ainda de sua cidade natal,
Pelotas, do sobrado da família Bojunga, de como esse sobrado foi descaracterizado e
restaurado, ao longo do tempo, e finalmente, informa a seus leitores que , hoje, o sobrado é
parte do patrimônio artístico e histórico da cidade, o prédio foi tombado e abriga uma
escola.
Não há como não estabelecer uma ligação direta entre esses dados e a conversa de Ana
com seu filho na cozinha do casarão que está em reformas.
O meu filho ficou me olhando. Eu achei melhor botar uns pingos nuns is:
- Eu já conversei com arquiteto, já consultei advogado, e já estou providenciando o
tombamento dessa casa. Eu quero que ela continue fazendo parte da memória da cidade.
Tomei essa decisão depois que cheguei aqui. E resolvi também doar a casa pra cidade e
transformar ele num espaço útil pra uma porção de gente, tipo uma escola de artes e ofícios,
um centro de cultura, uma biblioteca, uma coisa assim. (p.48)
Os limites entre ficcional e real se desmancham, o leitor é sacudido, posto em uma
situação de desconforto, tendo que reordenar sua visão de mundo, seu processo de leitura
diante desses dados, sua memória de leitor também é chamada a interagir com o relato
dessa escritora e dessa personagem, o que configura numa outra troca de papéis no texto,
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até que a escritora esteja pronta para libertar sua memória ao libertar Ana: “(...) já chega o
tempo que eu fiquei numa gaveta, já chega o tempo que eu fiquei na tua cabeça: tudo tão
fechado, tão cheio de complicação. Eu quero ir lá pra fora!! E hoje ela foi.”(p.53-54) . Fica
sendo “tarefa” do leitor transformar esse encontro e essa liberdade em significados, “outras
palavras”.
Emprestar a sua própria memória a uma de suas personagens, deixar as pistas desse
“empréstimo” para que o leitor o reconheça e o signifique, não foi, desde sempre, um
“gesto” artístico deliberado presente na obra de Lygia. Lá em Tchau, quando em A troca e a
tarefa, pela primeira vez a autora cria uma personagem escritora, essa personagem deixa
claro o que a tarefa de escrever significa para ela: transformação e grita no texto uma
advertência:
Tempos atrás eu comecei a escrever essas anotações. Mas parei logo. Achei que as
minhas lembranças do passado estavam com jeito de história.
É preciso ter cuidado.
Não quero que ninguém, NINGUÉM, possa pensar que eu estou transformando as
minhas lembranças em livro. (p.64)
Como não há escritor sem memória, é ao leitor que ela convida a recuperar suas
memórias pessoais, de leitura e de vida para ler.
No percurso da obra, as transformações propostas ao leitor atingem a autora. Ela que
criara uma personagem escritora que não desejava se revelar tanto em seu texto, acaba
desejando para si mesma uma obra em que os lugares não estejam marcados e onde todos
os encontros sejam possíveis. Assim, em Ana Paz, como já se viu, há o compartilhar da
memória com a própria personagem e com o leitor, já que lhe é revelado – no “pra você que
me lê” que acompanha a narrativa – o que da memória da autora está na obra. Essa
necessidade de não mais “se disfarçar”, de estabelecer uma integração total entre os
elementos envolvidos no processo de produção de sentido na obra – a escrita, a leitura – ,
vai conduzir Lygia ao desejo de revelar-se sem o anteparo da personagem escritora.
Surgem, assim, em sua obra dois textos biográficos: O Rio e eu e Feito à mão.
No primeiro há o relato das relações que a autora mantém com a cidade que adotou
como sua; no segundo, o depoimento daquela que, estando envolvida com a palavra,
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resolve ser a criadora de todo o processo de execução de um livro, tornando uma tarefa, até
então intelectual, num fazer artesanal,
(...) tudo que eu andava querendo escrever naquela hora tinha a ver com o fazer à mão:
eu queria falar do meu eu-artesã; e queria lembrar a marca que outros artesãos me deixaram;
eu queria voltar atrás na minha vida pra reencontrar o pano bordado, a terra cavada, o barro
moldado, e queria juntar eles todos numa pequenininha homenagem ao feito à mão. ( Feito à
mão, p.7 – Pra você que me lê).
O desejo de aproximar o leitor, a obra, a autora agora se expande também para o
objeto livro” , como representação do espaço do encontro, o livro passa a ser também um
“lugar” que a autora quer conhecer e com o que quer se relacionar intimamente. Como uma
de suas moradas, Lygia quer “construir” a casa onde habitam seus personagens, a autora e
seus leitores.
Feito à mão narra ao processo de produção desse livro todo feito artesanalmente e,
enquanto narra esse processo, Lygia também partilha com os leitores fatos de sua vida, os
espaços em que habita – suas moradas –, momentos de sua infância, sua relação com seu
trabalho. Vai espalhando suas memórias pelas páginas do texto, permitindo que seus
leitores “entrem” em sua vida, como conseqüência, vai permitindo também que eles
adivinhem o quanto de suas lembranças ela já transformou em livro.
O texto de O Rio e eu segue na mesma direção. Buscando um reencontro com a sua
cidade, Lygia, mais uma vez partilha sua memória com seus leitores, divide suas
experiências com eles, permitindo estreitar o encontro leitor/autor nos seus textos
ficcionais. Se a obra propõe aos seus leitores o movimento, a transformação, a reflexão, o
desabotoar do pensamento, a autora segue fazendo o mesmo: vai se transformando, agora,
diante dos leitores, numa exposição que ganha em compromisso estético, já que se insere
num projeto previsto internamente na obra.
Na Grécia homérica, a Memória era uma deusa primordial, pertencente à primeira
geração dos deuses, Mnemósine era a mãe de todas as musas – aquelas que inspiravam os
rapsodos e aedos.
4
Considerando que esses aedos e rapsodos , numa sociedade ainda ágrafa,
carregavam a responsabilidade de guardar e transmitir a memória coletiva, preservar a
4
Miriam Sutter, Pelas veredas da memória: revisitando ludicamente velhas palavras
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história é também uma tarefa desses “contadores de história”. O trabalho com a memória
em Lygia pode ser associado a essa idéia, levando-se em conta que, como já foi visto, a
proposição expressa na obra é a de que essa possa ser um relato de experiências comuns ao
autor e ao leitor – bem como à sociedade em que estão inseridos – que gere transformações,
portanto, a memória permite a aquisição de conhecimento que se traduz em ação,
deslocamento no plano social.
Há uma intenção de recuperar a memória como um espaço em que habita um saber
que não é só individual, mas que diz respeito à história de uma coletividade, desse modo
memória da autora e memória do leitor se cruzam, se reabastecendo mutuamente de
informações e experiências que ganham um sentido atualizado na leitura – quando autor,
leitor e obra, em interseção, permitem a ampliação de sentidos, conseqüentemente, de
experiências.
4.1.
O leitor na paisagem da obra
Em Paisagem é a vez do leitor “vir morar na obra” , diferente de Fazendo Ana Paz,
em que a autora permite que o leitor compartilhe com ela as angústias do processo de
criação, aqui o leitor é verdadeiramente cúmplice da narrativa que a autora está produzindo.
A coabitação leitor/autor/obra no espaço ficcional de Paisagem acaba por sintetizar todas as
referências a partir das quais Lygia conduz sua literatura. No primeiro contato com a
autora, Lourenço, o Leitor, justifica a letra maiúscula com que se apresenta:
Sou seu Leitor. Estou escrevendo Leitor com letra maiúscula de propósito: acho que ser
Leitor é uma ocupação maior, eu acho também que se um leitor se liga numa escrita do jeito
que eu me liguei nos teus livros é porque existe uma coisa chamada afinidade, é ou não é?
(Paisagem, p.9-10)
Essa relação de afinidade será levada às últimas conseqüências a partir do momento
em que se instala no texto uma espécie de “trio simbólico”: a autora-narradora, Lourenço-
Leitor, a Menina do Lado – que é leitora dos textos da escritora a partir da leitura de
Lourenço. A leitura é representada como essa possibilidade de enredar, de juntar fios por
todos os lados, de estabelecer significações de todas as naturezas e, por isso mesmo, as
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fronteiras se vão apagando no texto em questão, bem como na própria obra de Lygia. Se a
autora está escrevendo um conto onde há uma paisagem, o leitor, mesmo sem jamais ter
lido esse original de sua escritora preferida, pode sonhar essa mesma paisagem, que, por
sua vez, não chegou ao Leitor, assim, em primeira mão. Na verdade, Lourenço, o Leitor,
não sonha com a paisagem escrita lá em Londres pela autora, ele sonha com o desenho da
paisagem feito pela Menina do Lado – a quem Lourenço sempre contava as histórias da sua
escritora predileta – , ao ver o desenho, o Leitor tem certeza de que aquela é uma paisagem
possível de ser descrita pela autora com quem tem tanta afinidade. Afinidade é a palavra
eleita pela teórica Eliana Yunes para assinalar o clima inicial de sedução para cativar
leitores inexperientes, quando se seleciona um texto para um círculo de leitura. A partir
dela, será possível des / afinar, divergir, encontrar outras vozes e se perceber crítico.
O ato de narrar e o ato de ler acabam por ocupar o mesmo plano na produção
narrativa: produzir narrativa é derivação da leitura, é produção narrativa de escritura, como
queria Barthes, portanto, autor e leitor são sujeitos do mesmo processo. Um processo que
não tem por objeto o texto, mas sim a sua representação. A autora-personagem, em busca
de uma explicação para o fenômeno que fez com que seu Leitor sonhasse seu texto inédito,
se transforma em “leitora-ouvinte” das narrativas de Lourenço e da Menina do Lado que,
cada uma a seu modo, explicam ( contam ) como isso foi possível. Lourenço explica o fato
a partir da noção de intimidade com a obra:
- Pera aí, calma! Se uma pessoa tá superhabituada a imaginar tuas histórias, tá
superhabituada com teu jeito de escrever as coisas, não é uma coincidência assim tão
fantástica fazer um desenho de uma cena superparecida com uma cena que você escreveu.(...)
- Quer dizer que você interpreta esse mistério como “mera coincidência”.
- Mera não. É uma coincidência-só-possível entre dois seres profundamente afins, como
sói ( gostou desse sói?) acontecer entre um leitor (eu) superligado numa escritora
(você).(Paisagem, p. 52)
Já a Menina do Lado, explica o acontecido a partir da imaginação:
Pois é, história fechada no caderno, o caderno fechado na gaveta, tudo muito fechado,
não é? ninguém tava mais agüentando. Então, teve uma hora lá ( você nem tava em casa nem
nada ), que a gaveta foi abrindo devagarinho pra poder respirar um pouco. (...) e aí, quando o
caderno viu a gaveta aberta ele espiou lá pra fora e estava um dia bonito mesmo. (...) Aí o
caderno pensou, quer saber do que mais? eu não fico mais aqui. E saiu. Mas quando ele tava lá
fora curtindo um sol veio um vento (...) O vento abriu o caderno justinho na página que você
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escreveu (...) essa paisagem (...) e o vento foi passando nela. Foi passando e foi lendo tudo o
que você escreveu. Foi lendo e foi gostando. E aí ela resolveu arrancar ela do caderno pra ele.
(...) então os dois ficaram vivendo juntos, o vento e a página. (...) Até que um dia, sabe, o
vento nem reparou que a janela do meu quarto tava aberta e entrou. Ele e a folha do teu
caderno. Ele ficou rodando lá dentro, procurando um jeito de sair, mas a folha (...) não! ela
deitou na minha mesa. Ela tava cansada de voar (...) Aí eu cheguei perto dela e li tudo que ela
tava escrita. Mas quando eu acabei de ler ela desatou a chorar. Que foi? eu perguntei. (...) Ela
falou que queria ter nascido desenho e não letra (...) Eu então peguei minha aquarela e fiz ela
toda assim colorida, cada letra eu fui virando num pedacinho de desenho (...) – Quando eu
cheguei no fim da página dela, o meu desenho ficou pronto. (...) Foi isso que aconteceu. (
Paisagem, p. 44-45)
Intimidade com leitor, valorização da imaginação – esses são dois pontos importantes
em todo o processo de criação de Lygia bem como na sua relação com a literatura e com o
processo de leitura. Assim, suas personagens quando se envolvem com uma autora
carregam essas duas marcas. Desse modo, o objeto alvo dos sujeitos autor e leitor deixa de
ser a história narrada propriamente dita, o texto em si, e migra para as possibilidades de
representação. Para Lourenço a paisagem – que habita tanto o livro da autora, como o seu
sonho de leitor e também o desenho da menina – é uma representação da intimidade que
um Leitor de verdade tem com o seu escritor favorito, para a menina é a representação da
capacidade imaginativa, do desejo de criação e liberdade que envolve o ato de ler e
significar. De um modo ou de outro o que se celebra é um pacto de interação que aponta
para um nova tríade: autor / leitor / leitura. Na explicação, tão cheia de imaginação, da
menina para o fato de a paisagem ter chegado até a ela, não se pode deixar de ver a imagem
do texto que persegue e busca o seu leitor, que se recusa a existir virtualmente, portanto vai
em busca de quem lhe dê significação. A leitura como produção efetiva de sentidos no/do
texto, torna possível o encontro dos sujeitos envolvidos nesse processo ( autor e leitor)
Iser em O ato da leitura (vol. 1), sugere:
Se a princípio é a imagem que estimula o sentido que não se encontra formulado nas
páginas impressas do texto, então ela se mostra como produto que resulta do complexo se
signos do texto e dos atos de apreensão do leitor. O leitor não consegue mais se distanciar
dessa interação. Ao contrário, ele relaciona o texto a uma situação pela atividade nele
despertada; assim estabelece as condições necessárias para que o texto seja eficaz. Se o leitor
realiza os atos de apreensão exigidos, produz uma situação para o texto e sua relação com ele
não pode ser mais realizada por meio da divisão discursiva entre Sujeito e Objeto. Por
conseguinte, o sentido não é mais algo a ser explicado, mas sim um efeito a ser
experimentado.(p.33-34)
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Em Paisagem, Lygia propõe justamente que a leitura seja esse “efeito a ser
experimentado”, por isso autor / leitor / texto / leitura estão no mesmo plano, realidade e
ficção não são mais aspectos dicotômicos, mas interagem de modo a ressaltar o caráter vivo
da experimentação tanto na vida como na arte. Não se trata de compreender o que o texto
quer dizer, mas de carregá-lo intimamente como um conjunto de relações e possibilidades
de significação que podem se organizar de modo diverso em momentos distintos através de
leituras e representações múltiplas – já que as letras que primeiro descrevem a paisagem no
caderno da escritora se transformam no desenho da menina e no sonho de Lourenço.Em
Paisagem essa percepção está na voz de Lourenço, o Leitor.
(...) foi só aí que eu saquei que não é resenha, não é publicidade, não é nada disso que espalha
o que um escritor escreve, é a gente,Leitor, a gente espalha até sem querer, olha aí o meu caso
com a irmã da Renata, quando é que eu podia imaginar que ia transformar o Monstrinho numa
ouvinte tua? E outro troço que eu também não tinha sacado antes é a influência que uma arte
tem na outra, (...) a música da minha voz, lendo palavras da tua escrita passaram pra irmã da
Renata em forma de desenho, é uma interligação incrível, você não acha? (Paisagem, p.52 –
grifos da autora)
Lourenço revela esse potencial de interatividade que o exercício da leitura oferece
quando é possível estabelecer a intimidade entre autor/leitor/obra e chama atenção também
para a importância de um recurso que é próprio da obra de Lygia, aqui já se explicitado – o
diálogo entre literatura e outras formas de expressão artística. É através da fala do leitor que
essa questão entra em cena em Paisagem – o Leitor é capaz de reconhecer que nos
discursos da arte, representados por que tido de linguagem seja, se estabelece uma rede de
significações que resulta na possibilidade de interligação não só do leitor com o texto
como do texto com a vida. Já que reconhece as conexões que se estabelecem entre ele,
Leitor, a escritora, sua obra e a representação da leitura feita pela menina através do
desenho. Dar ao leitor voz para que esse revele um recurso, que é uma escolha estética da
autora, também sublinha o entendimento de que é a esse leitor que cabe a tarefa de ler os
sentidos que a obra oferece.
O final de Paisagem reforça esse entendimento, quando a escritora acaba por colocar a
si mesma, Lourenço, a Menina do Lado e João dentro de sua paisagem, ou seja, dentro de
sua história.
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Resolvi ler Paisagem de novo, por que será que o final do meu conto tinha batido tão mal
no Lourenço? Fui lendo devagar, com toda atenção. Quando cheguei no pedaço que eu
descrevo a paisagem e falo do barco no mar, de repente me deu a impressão que o barco
estava se mexendo ( indo? voltando? ). Firmei a vista. Vi que o barco estava vindo pra praia. E
vi que tinha gente dentro. Fiquei um pouco alvoroçada, meio confusa, não sabia se corria pra
beira do mar ou se sentava no degrau da porta da casa, esperando pra ver quem é que vai
chegar.
Sento.
O barco vem vindo. Uma onda pega ele e os dois aterrissam na areia. O passageiro é
Lourenço, (...). Me vê na porta e acena.
Levanto meu braço também.
E feito coisa que não podia ser de outro jeito, o Lourenço chega perto, senta também no
degrau e olha em volta.
- Eu já tinha gostado dessa paisagem no desenho e no sonho, mas assim, pessoalmente,
eu ainda tô achando ela mais legal. Cadê o Monstrinho? sabe que eu tô com saudade de ler pra
ela?
É só ouvir a voz de Lourenço que a Menina do Lado vem correndo pra janela; olha
gostoso pra ele, e o oi que ela dá se emenda logo num riso. (...)
Vem vindo do fundo da casa um som de clarinete. O Lourenço olha pra mim espantado,
mas eu vou logo dizendo:
- Você me disse que ele tinha sumido...
O olho do Lourenço larga o espanto, vai ficando brincalhão. E a gente não fala mais
nada, só ouvindo o João tocar. (p.63-64)
O texto e sua leitura aparecem como o lugar de relações possíveis, de encontros, de
representações de vozes diversas que se harmonizam na experiência da construção de
sentidos. Desistindo de tentar compreender como foi possível que sua paisagem saísse de
seu livro antes mesmo de ser lido por alguém, a escritora assume a leitura como um
movimento de interações e interseções. Na paisagem, podem agora conviver a imaginação
da Menina, a intimidade com o Leitor, a perplexidade da escritora e o desejo do Leitor
(representado pelo desejo de Lourenço de se aproximar de João). O desfecho das histórias –
a que a escritora está escrevendo e a da paisagem que chegou ao leitor antes da hora (?) –
só é possível quando todas as fronteiras se apagam e mais do que explicação, todas as
personagens – e o que representam na narrativa – se fundem na experimentação daquela
“unidade múltipla” desejada: os três pedaços da laranja.
4.2.
Ana Paz e Carolina – um percurso
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105
Na orelha de Retratos de Carolina há um texto de Lygia, cujo último parágrafo está
registrado também na contra-capa do livro e diz assim:
...É com Retratos de Carolina que eu começo essa nova caminhada. Aqui eu me misturo
com a Carolina, viro personagem também: queria ver se dava pra ficar todo mundo morando
junto na mesma casa: eu, a Carolina, e mais os outros personagens: na casa que eu inventei.
Esse desejo de misturar tudo e todos que dizem respeito ao livro ( autor, texto,
personagem, leitor) está, como se vem falando aqui, presente na obra de Lygia desde o seu
primeiro livro, ainda que essa intenção tenha somente se revelado de mansinho, pouco a
pouco. Ela sempre esteve na obra: na linguagem, na construção das personagens, no eco
dos livros pelos quais Lygia se apaixonou e que vieram morar nos seus livros, no desejo de
conversar com o leitor e trazê-lo para bem perto – tão perto que acabou dentro de livro
também.
Retratos de Carolina, último trabalho de Lygia publicado até agora, funciona, ao
mesmo tempo, como testemunho do percurso que tornou todas as inclusões possíveis e
também como um grande prólogo do que está por vir. Da escritora que não queria que
ninguém percebesse que estava transformando sua vida em histórias até aquela que
confessa ser ela mesma uma personagem em sua obra há um percurso. Esse percurso é o da
construção de um projeto arquitetônico que faz do livro um espaço – uma casa (?) – que
pode abrigar a vida na forma das experiências que se acumulam, se integram e se
transformam a cada linha em outras palavras e palavras de outros.
Apesar de explicitar em Retratos apenas essa relação íntima com suas personagens, o
que se vê é também o estreitamento do laço com o leitor e a confirmação da necessidade de
ter um leitor de pensamento desabotoado para habitar essa casa a ele , sempre, oferecida,
porque não se pode ler os Retratos de Carolina sem pensar em Ana Paz. É aí que o leitor de
Lygia se vê chamado a também entrar na casa e se misturar às personagens e à autora.
Ana Paz deveria ser uma menina com uma forte ligação com o Pai, sem superar sua
perda, e presa a uma promessa de nunca esquecer seus valores: ser uma mulher
determinada, batalhadora, lutando para abrir caminhos, Ana se tornaria a jovem que se
apaixona por Antônio, homem mais velho, que vai afastando Ana de seus valores e de sua
promessa – “ A Ana Paz-moça se entregando pro Antônio de corpo-e-alma, quer dizer, de
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corpo-e-valor. Ele fica com o corpo, mas joga os valores pela janela; e ainda de quebra
empurra pra ela os valores dele, e ensina ela a zelar muito bem por cada um...” (p.29) – e,
finalmente, a Ana Paz-velha se reencontraria com a Ana Paz-menina, com seus valores, e
poria, literalmente, a casa em ordem durante o tempo que ainda tinha para viver,
descobrindo a tarefa que transformaria o que fora sofrimento em um novo caminho. Mas a
escritora não consegue dar um Pai a Ana, e o leitor recebe o livro assim: aos pedaços,
pequenos “retratos” dessa mulher.
Carolina é contada também através de retratos, sua história não é narrada linearmente, é
uma construção em “flashs”, feita pouco a pouco, como uma casa que se vai edificando
devagar: um cômodo aqui, uma janela ali, um jardim mais adiante. O que faz com que os
retratos de Carolina ganhem o cimento que faltava a Ana Paz é, justamente, o fato de
Carolina ter um Pai . Esse Pai instiga Carolina a acreditar em si mesma, defender seus
valores, ser independente, sensível, determinada. Mas Carolina se apaixona pelo Homem
Certo, mais velho que ela, e que vai afastá-la dos seus sonhos profissionais – a arquitetura –
, de sua independência como ser humano, vai aprisioná-la numa vida pequena e longe de
tudo o que a moça desejara para si. Carolina perde seu Pai, que nunca se conformou com a
paixão pelo Homem Certo, em compensação, ganha de volta a sua vida. A dor impulsiona a
jovem a retomar seus projetos : “ – Ser dona da minha vida... Com essa minha mão aqui...
eu vou fazer.” (p.159).
Em ambas as narrativas a escritora se vê confrontada com suas personagens. Em Ana
Paz ainda de forma disfarçada, o leitor intuindo que a tal escritora é a Lygia, em Carolina
de forma evidente – o diálogo é da personagem com a própria Lygia, fica registrado no
“Pra você que me lê” escrito depois do final (?) da história e tem como cenário a casa de
Lygia em São Pedro da Aldeia. O que se oferece ao leitor é a possibilidade de estabelecer
uma ponte entre os dois livros e o processo de transformação da autora. Uma autora que foi
abandonando os “disfarces” e deixando que suas transformações ficassem aparentes na
obra. Tanto que é capaz de criar uma “nova” personagem que permita que ela conte uma
história que desejara contar tempos atrás.
A proposta de que o leitor pudesse, na leitura, encontrar instrumentos pra lidar com suas
experiências e transformá-las chega até a autora. E ao se oferecer assim, modificada, ao seu
leitor ratifica a possibilidade da literatura ser um espaço social em que a troca de papéis e a
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troca de experiências impulsionam, deslocam, conduzem a descoberta de novas tarefas
capazes de tornar a vida, não melhor, mas diferente.
O processo de construção ganha, a partir da interação desses dois livros – inter e
intratextualidade – e deles com toda a obra da autora, um novo significado. Ana se
reencontra no projeto de restaurar a casa da infância, Carolina é arquiteta, Lygia declara:
“A minha ligação com casas sempre foi muito forte. No princípio eu fazia casa pra brincar:
me fingia de construtora e usava livros para fazer de parede, de telhado, de degrau. Mais
tarde eu fazia casa pra morar(...)” ( texto justamente da orelha de Retratos de Carolina). O
leitor de Lygia é convidado a realizar mais essa tarefa: brincar de construtor, lendo
palavras, imagens, referências, recorrências, linhas e entrelinhas nos textos e construindo o
seu próprio texto, sua própria casa, pondo dentro dela as suas experiências, transformando
tudo em outra coisa, se re-inventando – como Ana que está em Carolina, como Lygia-
escritora que está na Lygia-leitora e na Lygia-artesã:
... no Feito à mão que eu perdi de vista o meu gosto de privacidade e trouxe minhas moradas
pro texto do livro. Agora aqui, nos Retratos, retome também essa prática: a de trazer minhas
moradas pro meu texto. Mas com um propósito um pouco diferente: o de começar a integrar
minhas personagens com os meus espaços ( pensando assim: eu sou uns e outras, por que
dissociar uns das outras?) (...)” ( p.163-164)
Este percurso – que vai da oralidade à escritura, passando pela memória, consciência da
linguagem, interatividade, intertextualidade, trocas de leitura, construção da subjetividade
pelo processo de intersubjetividade, comunicação da experiências, exercício crítico e
político do fazer artes – foi teorizado e tematizado ao longo da construção de um programa
teórico-metodológico de formação de leitores, publicado em Pensar a leitura:
complexidade (2002), como um caminho possível para o fomento da leitura. Observar que
a obra de Lygia percorre em grandes passos este mesmo caminho secreto, através de sua
literatura, pode não ser apenas uma eleição de leitura desta pesquisadora, mas a descoberta
de que, por vias diferentes, a da teoria e da ficção, leitores podem ser cativados por trocas
e tarefas a que são convocados em clima de partilha. Parece que esta eleição de Lygia,
confirma o percurso metodológico proposto academicamente. Que elo poderia existir aí, se
não o da responsabilidade social e política para com a leitura e a escrita em um país de
virinhas e latinhas? O processo pode torná-los Lourenços e Meninas do Lado.
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5.
Autor – leitorpersonagens : trocar tarefas para quê?
“Desabotoar o pensamento”, experiência, reflexão, interação, construir, movimento.
Essas foram algumas das palavras usadas para indicar o tipo de leitor que a obra de Lygia
pretende formar. O leitor está convidado, na e pela obra, a um deslocamento constante, a
uma reavaliação permanente de sua própria realidade, sem esquecer o contexto social no
qual se insere. Considerando que “falantes e leitores, somos forçados a enxergar através das
configurações a línguas. Isto não significa que o mundo material não exista ou não subsista
sem a nossa presença. Apenas o que ele é, aquilo a que chamamos realidade, em verdade,
corresponde ao sentido que lhe atribuímos: que dizer, o mundo assim é, se nos
parece.”(Yunes, 2002, p. 17), a obra de Lygia propõe que o seu leitor possa ler o mundo e
significá-lo a partir da reflexão e do contato indivíduo e coletividade. Assim, a
possibilidade que o sentido atribuído à realidade, por esse leitor, caminhe na direção da
transformação pessoal e coletiva se insere na proposta da obra.
Desde seu primeiro livro, Os colegas, há uma preocupação da autora em filiar a
realidade pessoal de suas personagens ao contexto social em que vivem. Os animais
desgarrados da história representam os que estão à margem de uma cidade, de um projeto
social que exclui as diferenças, o desejo de liberdade, a expressão popular da arte. O
encontro dessas personagens com um espaço em que sua arte, seu modo de vida ganhe
legitimação – o circo – não é a solução de todos os conflitos apontados no texto, mas acena
com a possibilidade da interação, da cooperação, da busca pessoal e coletiva ser um modo
de lidar com as dificuldades e superá-las, ainda que parcialmente.
O mesmo vai ocorrendo ao longo de toda a obra. Em momento algum, a valorização
da experiência, a transformação, a arte como um espaço de reflexão – intenções presentes
na obra – apontam para a garantia de um final feliz, de uma saída afirmativa para todas as
situações, antes, sublinham o fato de que é preciso pensar por conta própria, refletir, re-
significar para buscar um caminho, ainda que seja o do entendimento e o da segurança para
seguir na luta. É isso, por exemplo, que está em Corda Bamba. Maria, perdendo os pais,
tem de viver com Maria Cecília, sua avó, personagem dominadora, preconceituosa, que
avalia as pessoas por seu “status” social. Portanto, a menina fica impedida de ser quem
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realmente é, de ter esperanças de recuperar sua vida no circo onde nasceu e onde era
equilibrista, como seus pais. O processo desencadeado na narrativa é o de Maria
reencontrar-se com sua memória, apagada pelo choque traumático de assistir à morte dos
pais. De posse da memória, a menina pode articular o mundo a sua volta, pode voltar a ter
opções. Mesmo que no presente nada possa fazer para mudar sua realidade – viver com a
avó, submeter-se, aparentemente, aos valores que Maria Cecília representa – ser “dona de
sua história” confere a menina “o poder” de preparar o seu futuro: “Arruma, prepara,
prepara: ela sabe que vai chegar o dia de poder escolher.” ( Corda bamba, p. 123)
Essa relação indivíduo / sociedade está em toda obra. Por um lado cada texto apresenta
uma personagem em torno da qual gira a história, mas essa personagem está sempre
inserida em uma realidade social que se reflete na sua formação como indivíduo e sobre a
qual as decisões e escolhas desse indivíduo também reflete. Angélica é uma narrativa que
explicita bem essa questão. A jornada pessoal da pequena cegonha resulta no seu auto-
conhecimento, na descoberta de si mesma, porém essa trajetória é deflagrada no momento
em que se instala uma crise de ordem social: a pequena Angélica não admite a idéia de que
as cegonhas mintam para toda a comunidade com o único propósito de garantir poder.
ANGÉLICA: Mas barriga de mãe é lugar tão legal pra guardar criança – por que é que
bolaram então essa história das cegonhas?
(...)
LUTERO: Todo mundo nos respeita à beca por causa dessa bolação.
(...)
ANGÉLICA: Mas se a gente sabe que é mentira como é que a gente vive espalhando essa
idéia? (...)
LUTERO: Porque é por causa dessa mentira que a gente vive bem, que a gente ganha
presente, que todo mundo nos respeita, ...
ANGÉLICA: Mas se a gente sabe que é mentira, a gente não pode passar a mentira pros
outros! A gente tem que parar e dizer: é mentira! essa idéia não vale! (p.70)
Enquanto Angélica se revolta com a mentira, seu irmão, Lutero, está completamente à
vontade em seguir com a farsa. Fica apontado, na narrativa, o fato de as decisões pessoais
influírem no coletivo, a idéia de que toda coletividade é composta por indivíduos que
afetam o tecido social a partir das intervenções que nele fazem. Se as transformações
pessoais resultarão em finais felizes, isso é outra história, nem sempre acontece, o
importante é destacar a necessidade de construir uma relação consciente entre indivíduo e
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sociedade – refletir sobre si mesmo e sobre o mundo a sua volta são elementos pertencentes
ao mesmo conjunto, indissociáveis.
Em A casa da madrinha, Alexandre, menino pobre, que vive de biscates que faz pelas
ruas da cidade para poder sobreviver, sai em busca da casa da madrinha – representação do
seu lugar no mundo, já que o mundo não lhe dá lugar nenhum. Discriminado por sua
condição social e econômica, o menino busca um “porto” onde possa ter esperança de
futuro. A casa ele não encontra,mas encontra “a chave” para apagar o medo, e seguir na
busca. O encontro com a coragem para viver a vida que tem de viver, seguindo pelas ruas
em busca de uma vida melhor, uma oportunidade, só chega na interação com outras
personagens: Vera, que enxerga o caráter de Alexandre além dos preconceitos; o Pavão,
que vai tentando pensar por conta própria mesmo tendo tido seu pensamento costurado e
filtrado; a Gata de Capa, que não abriu mão da sua liberdade e identidade. Não há um final
feliz para Alexandre, a solução para seus problemas não chega, sua condição social não se
altera, mas ele tem a tal “chave” – e a chave nada mais é do que a disposição para enfrentar
a vida – que lhe dá segurança para continuar buscando.
Alexandre ficou olhando pra dentro da caixa. E aí, riu de contente:
- Olha a flor amarela que enfeitava o peito da porta azul. Como é que ela veio parar na
minha mala? Foi você que botou ela aqui?
Vera olhou a flor; olhou Alexandre; “por que será que ele tá achando que a flor que eu
botei na mala é a flor que enfeitava a porta azul? essa alamanda é muito menor...”
Alexandre enfiou a mão na flor pra pegar a chave da casa.
Vera pensou: pronto, agora ele vai ver que é uma outra for.
Alexandre pegou a chave e guardou no bolso:
- Que legal! Agora vou viajar com a chave da casa no bolso; não vou ter mais problema
nenhum. Lembra o que o Augusto falou?
Vera ficou olhando pra flor sem entender.
- Não lembra não, Vera ? Eu te contei. Ele disse que no dia que eu botasse a chave da
casa no bolso, o medo não ganhava mais de mim. (...) Agora eu posso viajar toda a vida.
Quando o medo bater eu ganho dele e pronto.
(...)
Se abraçaram. Forte, depressa.
Alexandre pendurou a mala no ombro e foi andando; o Pavão emparelhou com ele.
Foram sumindo e sumindo; e aí sumiram de vez numa dobra do caminho. (p. 93-94)
Alexandre lê na flor o que Vera não pôde ler. Leitura é um ato de significação e o
leitor precisa estar preparado para ler palavras, o mundo, a vida, de um modo singular,
reflexivo; a significação depende da capacidade de contextualização dos dados, de um
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movimento interativo, portanto, é uma construção que possibilita ao leitor transformar-se
em sujeito, não só de suas leituras, mas também de suas escolhas, tomar posse do seu lugar
no mundo. Assim,
O movimento que a literatura desencadeia, de natureza catártica, mobiliza afetos, a
percepção e a razão convocados a responder às “impressões”deixadas pelo discurso, cujo
único compromisso é do de co-mover o leitor, de tirá-lo de seu lugar habitual de ver as coisas,
de fazê-lo dobrar-se sobre si mesmo e descobrir-se um sujeito particular. O processo não é tão
simples e rápido, mas uma vez desencadeado, torna-se prazeroso e contínuo. (Yunes, 2002,
p.27).
Esse movimento complexo, lento, prazeroso e contínuo está proposto na obra de Lygia
também por eliminar a distancia, ou as fronteiras, entre as instancias que permitem a
realização do processo de leitura. A constante troca de papéis entre autor/ leitor/
personagens ( texto) constitui, em si, uma representação da leitura como um exercício de
deslocamento do olhar, um percurso sem lugares marcados. A proposição de formar
leitores, transformando experiências em escritura/leitura está formulada no percurso da
própria autora na obra. Nos livros de caráter biográfico que Lygia integra a sua obra, o que
se tematiza não é apenas uma visão intimista e personalizada da autora sobre sua vida,
antes, são relatos comprometidos com o corpo social.
Em Feito à mão se recupera a noção do produtor como um artesão, aquele que não foi
alienado do processo de produção do seu trabalho, aquele que transforma matéria prima em
artesanato/arte com suas próprias mãos, portanto é dono do seu caminho.
(...) eu ainda não tinha me dado conta do empobrecimento a que um ser humano é reduzido
ao ter que gastar um dia inteirinho de vida (...) “apertando o parafuso” de uma engrenagem da
qual ela desconhece o mecanismo, não sabe em cima de que está montada, o que que gera de
lucro, pra onde escorre esse lucro; não vai ter nunca a chance de assumir a responsabilidade
intelectual pelo “parafuso” que aperta; uma engrenagem na qual ele representa – à medida que
a tecnologia se exacerba – peça cada vez mais descartável (...) (Feito à mão, p. 86)
O que Lygia divide com seu leitor é essa descoberta de que a criação é um espaço
livre, por que “feito à mão”, não apenas no sentido artesanal a que essa expressão remete,
mas porque feito por quem tem um projeto, quem segue um caminho: o seu caminho, a sua
escolha; e partir dessa escolha toca outras mãos que farão novas escolhas, novos projetos –
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cria-se assim um tecido que, como aquele do poeta João Cabral, envolve todos que se vão
“entretendendo” nesse fiar.
De noite eu custei a dormir. As imagens do mercado se misturavam com a lembrança dos
ourives e prateiros e tecelões e cesteiros, que eu tinha visto trabalhando, numas oficinas desse
tamaninho, quando, de tarde, eu voltei pro hotel. Lembrava da cara deles. Séria. Concentrada.
Atenta. Lembrava a mão deles, ah! que vigor, que disposição de fazer, e de fazer bem feito, e
de fazer para durar. Quantos artesãos eu tinha visto trabalhando naquele dia, e que forte era a
ligação de cada um no que fazia, que intimidade tão grande com o material trabalhado! Cara,
corpo e mão do artesão formavam uma liga, uma integração, um redondo com o objeto feito,
meu deus! que lição de vida essa interação ser/fazer. ( Feito à mão, p.90-91)
Essa imagem da inteireza que o processo artesanal traz à mente de Lygia é, de certo
modo, coerente com aquela reservada à interação autor/leitor/ texto-leitura que aparecem
nos prefácios de Fazendo Ana Paz e Paisagem – os três pedaços da laranja. A
escritura/leitura é um processo semelhante ao artesanal porque não dispensa a consciência
dos que nele se envolvem com as etapas do processo de produção, nem com o resultado
final desse processo – autor e leitor são responsáveis pelo que fazem, pelo texto e suas
leituras.
Em O Rio e eu, novamente Lygia faz uso do relato autobiográfico, agora para
explicitar sua relação com a cidade que escolheu como sua: o Rio de Janeiro. A voz que
conduz essa narrativa, no entanto, é múltipla: Lygia-indivíduo, Lygia-autora, Lygia-leitora,
Lygia-cidadã. Personalizando a cidade, se dirigindo ao Rio como a um amigo com quem se
tem uma relação de intimidade vida a fora, Lygia vai contando a sua trajetória de vida,
cheia de mutações, de como ela, ser humano, foi se partindo, se dividindo ao longo de seu
percurso; ao mesmo tempo que sua cidade também se alterava, se partia.
A Lygia menina se encontra com o Rio no mar do Leblon, onde vence as ondas,
sentindo-se campeã, esse é o primeiro sentimento que a cidade lhe oferece, num Leblon que
era só Edifício baixinho, casa, jardim, e só de vez em quando um prédio mais alto. Não
passava carro nem muito ônibus, mas tinha tanta árvore espiando do fundo do
quintal.”(p.28). Mais tarde, a Lygia jovem encontra uma carreira, vai ser atriz e a cidade é
ainda sua companheira próxima: “(...) eu saía do teatro por volta da meia-noite. Quantas
vezes eu pegava a praia (...) e vinha andando na calma até a Constante Ramos, me
impregnando de maresia (...) E mesmo só na companhia de uma chuva miúda, ou até
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mesmo sozinha no nevoeiro que, às vezes, baixava à beira-mar, eu andava pelas tuas
calçadas numa boa, sempre achando que a tua companhia me bastava.”(p.31-32) . Anos
mais tarde, porém, algo mudará nessa relação : “Foi quando aconteceu aquela coisa chata
entre nós dois: comecei a desconfiar de tuas calçadas. Se era noite, ou se a rua era vazia, eu
já não te curtia mais; te achava perigoso, ficava ansiosa, arranjava pretexto pra ter outras
companhias e não ficar a sós com você. (...) Esse teu lado violento, que antes aparecia
pouco, foi se mostrando cada vez mais e mais. Eu me encolhia. E sofria de não confiar mais
em você.”(p.34-35)
Tanta relação de intimidade não apaga a consciência, apesar do tom amoroso do
relato, as questões sociais aparecem declaradas na narrativa, o Rio amigo da autora é
também uma cidade que se estabelecem outras relações, relações de poder, de desequilíbrio
social, de injustiças, de descasos e desmandos que vão contribuindo para que a cidade de
divida cada vez mais entre os que podem e os que não podem. As tensões sociais não
escapam à Lygia.
Alguns dos teus traços fisionômicos que eu sempre amei demais, agora espantavam
o meu olho, de tanto que me pareciam alterados, degradados. Os teus morros, por
exemplo,(...) se despiam de tudo que é árvore pra se vestir de barraco, testemunhando a
injustiça social que não-era-pra-ser-mas-é, a miséria que não-podia-existir-mas-existe.
Eu sei, não foi por querer. Eu sei você caiu vítima do mesmo mal que vem atacando
tantos, eu sei que você não está sozinho (...) no desfiguramento causado pelo desequilíbrio
econômico e social que nos assola. (p.35)
A cidade se parte tanto que Lygia resolve partir da cidade. A despedida é dolorosa,
mas não há mais entendimento com a cidade que assusta, nesse momento, mesmo a clareza
das questões sociais que contribuem para a degradação do espaço não foi suficiente para
oferecer uma leitura que impedisse o rompimento. Mas o tempo passa, e, mesmo à
distância, o processo de ler essa relação com o Rio continua sendo elaborado, até que uma
nova compreensão se apresenta, então é preciso voltar e dividir com a cidade o novo
entendimento.
Não sinto mais que estou longe de ti. Ao contrário: voltei a me sentir bem perto.
(...)
Só que, o meu estar perto e hoje é bem diferente do meu estar perto de ontem.
(...)
Porque o tempo passou, meu querido.
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E porque eu não sou mais a menina a quem você deu o título de campeã na praia,
nem a adolescente que viveu tanto namoro exaltado contigo, nem a mulher que se
enciumava, se irritava, reclamava, a mulher que vivia contestando tudo – eu, agora, te amo
de um jeito novo, diferente; de um modo mais meditativo; fingindo, às vezes, que nem vejo
nem sinto as tuas neuras (...)
E, também, porque eu entendi melhor o cerco.
(...)
Cerco! ( Eu, hem? Será que a gente não tá mais falando a mesma língua?)
Faz tempo que você vem sofrendo o cerco que se aperta em torno dos superdotados.
O cerco dos que te assediam, que te exploram, que te aviltam, degradam, e – quantas vezes!
– em nome do encanto que têm por ti.
Tem dias, que eu acho que você vai vencer o cerco, neuras, violência, tudo!
Outros dias, te confesso, acordo menos otimista...
Mas, de um jeito ou de outro, você tem sido tão parte de mim, da minha vida, que
eu acabo sempre fechando contigo. E cruzando meu dedo pra você dar a volta por cima de
tudo que é crise.
Se tive dúvidas, já não tenho mais: sem você eu sou bem menos eu. (p.69-70)
Os fatos são os mesmos, mas o leitor ( Lygia) pode reconstruir sua leitura, re-
significar os dados, reordenar sua visão de mundo, logo a leitura da cidade se transforma,
novas relações se estabelecem, destacando-se a questão da identidade e da memória. Por
mais que a cidade hoje seja diversa da cidade ontem, também a menina que a descobriu não
é mais a mesma. As mudanças ocorridas no sujeito (Lygia) estão ligadas às mudanças da
cidade, portanto se estabelece uma relação de identidade que não pode ser negada, ou
abandonada, não se pode partir de si mesmo. A interação do sujeito e do espaço social –
representado – pela cidade é o que constrói a memória e a identidade desse sujeito, isso não
pode ser deixado para traz, pode sim ser reorganizado, pode ser compreendido por um viés
diverso. É preciso integrar-se a sua paisagem para agir, para transformar, para dar e fazer
sentido.
Não parece coincidência que O Rio e eu tenha sido publicado, apenas, um pouco
depois de A cama – ambos em 1999 . A cama é uma narrativa ficcional, a única obra de
Lygia a estampar na capa uma designação de gênero: romance.Talvez, justamente, porque
possa ser tomada como uma escrita paralela a O Rio e eu. O fato é que, também, em A
cama a cidade e seus contrastes estão presentes. Aliás, esse é um livro muito interessante na
obra de Lygia porque nele se enunciam quase que todos os temas polêmicos e ligados a
experiências sociais que a autora discutiu em seus outros textos.
As novas relações familiares estão representadas pela família de Elvira. Rosa, sua
filha mais velha, resolve viver com o namorado, dispensando a idéia de casamento, tão cara
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à mãe. Ainda na família de Elvira, vemos ecos de A bolsa amarela, Petúnia é a irmã mais
nova, tem cerca de onze, doze anos, portanto é a menos ouvida, não tem nem mesmo direito
a um quarto na casa, como a própria personagem diz “vive em trânsito” . No encontro de
Américo e Roberta , pai e filha, se explora a relação do poder econômico – o pai que acha
que o dinheiro compra tudo, até mesmo afeto e respeito. A família de Tobias vem
representar as constantes mudanças econômicas na sociedade que fazem com que muitas
famílias vivam o drama do empobrecimento e da falta de recursos e esperança para
voltarem a viver dignamente. Maria Rita traz para o texto o grito da miséria e da fome, que
leva o ser humano a se afastar de todos os valores que lhe são caros na desesperada
tentativa de sobreviver. O elo que permite que todas essas histórias se encontrem é
justamente um objeto: a cama.
O objeto é um dos sujeitos da história por aquilo que representa. Simbolicamente, a
cama é, para a família de Zecão e Tobias, a esperança de uma vida melhor. Sendo o único
elemento onde se concentra a memória da família – uma família que lá na sua origem
distante teve dinheiro e poder e que, nos dias de hoje, vive na luta cotidiana de fazer o
dinheiro chegar ao fim do mês. A tradição de manter a cama na família, geração após
geração, é um modo de guardar essa memória, registrar e passar adiante essa história que
encerra, ao mesmo tempo, o drama de perder e a possibilidade de conquistar, um dia, uma
qualidade de vida que os antepassados puderam aproveitar.
A cama é vendida por Maria Rita, desesperada por não ter como alimentar o próprio
filho, o compromisso familiar lhe parece perder força e valor. Essa venda vai ligar duas
pessoas que estavam “marcadas” pela própria divisão da cidade a nunca se encontrarem:
Petúnia e Tobias – a menina da Zona Sul e o menino de Rocha Miranda. Os dois,
ignorando preconceitos, divisões de classes, zona norte ou zona sul, estabelecem um novo
pacto – em torno da cama – : Petúnia promete a Tobias que vai recuperar a cama para ele.
A menina que até então só tivera de lutar por um quarto em sua casa tem de sair
para a vida, enfrentar pessoas, se expor, brigar, fazer acontecer. E faz, a promessa se
cumpre, o novo pacto se realiza, dois pontos da cidade se unem e, ao devolver a cama a
Tobias, Petúnia lança uma previsão de futuro que sua história pode tornar possível:
- Te amo – ela disse baixinho no ouvido do Tobias.
(...)
Um toque de buzina separou o abraço.
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- Mas, Petúnia, como é que...
- Depois eu te conto tudo. Eles tão com pressa. – Apontou pra cama: – Trata bem
dela: vai ser da nossa primeira filha.
A cara do Tobias se abriu numa expectativa feliz. Mas nem deu pra mostrar alegria
nenhuma pra Petúnia : ela já tinha corrido pro carro e acenado um tchau da janela. (p.169)
A cidade partida por diferenças sociais e econômicas enunciadas por Zuenir Ventura
e já ilustrada em O Rio e eu é palco para esse encontro, nesse cenário se apresentam todos
os elementos de uma sociedade em crise de valores, aparência no lugar do que é essencial,
preconceitos vindo antes do desejo de conhecer as pessoas e entender sua realidade, o
desejo do lucro, do poder sobre o outro, se manifestando nas relações humanas. Se há uma
abertura para uma nova leitura da cidade e das suas relações sociais ela vem justamente do
olhar sincero e despojados que Petúnia e Tobias lançam um sobre o outro, são apenas dois
jovens que, de fato, vivem um momento de encontro, então há uma possibilidade de que as
coisas mudem. Há uma nova leitura para essa cidade e para as relações que nela e com ela
se vai estabelecer. Não há soluções mágicas, mas há o homem, o ser humano, e o seu poder
de ler além do que os outros escrevem, registrando assim outra história, sua própria
história, sua leitura da vida.
É esse tipo de leitor que a obra de Lygia é capaz de formar, é justamente isso que
sua obra propõe. Apagar fronteiras, estimular a troca de lugares, gerar movimento, centrar
suas histórias em experiências fundamentais e cotidianas ao ser humano, tratar a arte como
um espaço onde a transformação está implícita, buscar a intimidade no texto, aproximar
leitor/leitura e personagens/autora, todos esses recursos de que falou até aqui apontam para
a formação de um leitor crítico, sujeito de seu processo de leitura, consciente, reflexivo. E é
nesse sentido que a transformação está posta na obra de Lygia, naquele viés que Rachel é
capaz de perceber quando conhece a loja dos consertos e percebe que não há necessidade
de se viver num mundo de lugares marcados – tudo e todos – podem e devem estar em
movimento, trocando suas tarefas. O Leitor de Lygia, com maiúscula como sugere
Lourenço, é cidadão e está inserindo sua experiência na experiência coletiva, sabe que seu
papel não é marcado, mas depende das relações que se vão estabelecer no encontro com o
outro.
Nesse sentido Nós três e O Abraço ganham também uma nova possibilidade de
leitura, é preciso olhar o mundo, também, como um espaço onde nem sempre as relações
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são possíveis, onde nem sempre se faz a leitura, onde, muitas vezes, não há lugar para a
esperança – como no dia em que Lygia se despede do seu Rio, certa de que não é mais
possível conviver com ele. O Leitor de Lygia não é um ser redimido nem redentor, é um ser
que lê e relê sua própria experiência e a do mundo a sua volta, às vezes encontra a chave,
outras vezes desenha no escuro, com um pedaço de giz, a saída; outras, saca da bolsa uma
nova história que ajuda a levar a vida, ou atravessa numa corda bamba os sofrimentos do
cotidiano; pode usar uma máscara para disfarçar o medo ou transformar suas dúvidas num
teatro, ou pintar sua vida com as cores do seu coração; não importa. O que vale mesmo é
procurar a próxima tarefa e estar pronto para a troca.
Lygia não se coloca de outra forma diante do processo de produção de sua obra,
também ela foi alterando seu papel nesse processo, viveu e vive essa troca de tarefas. Da
autora que assim se assumia, disfarçando sua voz sob a de outros narradores, da escritora
que não queria que ninguém descobrisse a sua vida se transformando em suas histórias,
Lygia passa a condição de leitora e dividi essa experiência com seus leitores. Mais adiante
vai misturar-se com seus personagens, assumindo não só seu papel de autora identificada
com a narradora do texto, como também o de personagem de suas próprias histórias. Não
satisfeita de tanto trocar papéis, vai buscar o seu lado artesã e vai fazer seu livro à mão. E
agora, mais uma troca, mais uma tarefa, Lygia resolve ser editora de sua ppria obra, como
ela mesmo diz : “... queria ver se dava pra ficar todo mundo morando junto na mesma
casa: eu, a Carolina e mais outros personagens: na CASA que eu inventei.”
Essa casa é a sua editora Casa Lygia Bojunga onde, hoje, toda a sua obra está
publicada. Seu projeto não é o de publicar outros autores, ela quer mesmo experimentar
todos os papéis nessa tarefa de fazer os seus livros e nas suas edições está a marca de quem
tem uma preocupação com a leitura e a literatura. Os livros têm um belo projeto gráfico,
sem que isso onere demais os custos de edição e torne os preços proibitivos, em muitos
livros as ilustrações foram reduzidas de modo que se tornassem mais significativas em
diálogo com o texto, estando esse no lugar de “protagonista”. É como em Paisagem, leitor
e escritor no mesmo barco, na mesma cena, personagens vivendo esse moto continuo que é
a tarefa de estar no mundo trocando idéias.
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6.
“Pra você que me leu”
Não foi tarefa difícil escolher o tema desse trabalho, muito menos complicado,
ainda, entrar nessa dança de papéis trocados. Difícil foi achar o tom para fazer isso. Eu
ficava pensando: como colocar tanta proximidade sugerida dentro de um discurso
acadêmico e formal? Enfim, acabei achando que o melhor seria dar ao trabalho esse tom de
ensaio e tudo foi ficando mais fácil. Por isso, no lugar onde deveria haver uma “conclusão”,
resolvi que cairia bem uma conversa, tal qual Lygia propõe a nós, seus leitores.
O exercício mais exaustivo que esse trabalho me propôs foi o do distanciamento,
porque, em muitos pontos, minha relação com o livro-objeto, o texto e a leitura se parece
com a que Lygia descreve. Como ela, também entrei nesse mundo da leitura pelas mãos de
Lobato. Aos sete anos ganhei de presente não apenas Reinações de Narizinho, mas a obra
toda, os dezessete volumes verdes de frisos prateados que, mais do me assustar pelo
tamanho do desafio, me encantaram. Depois não parei mais. Livro sempre foi companhia
para tudo. Por isso, a primeira grande tarefa, quando iniciei esse trabalho foi deixar de lado
as identificações.
Feito isso, foi um passeio que, em diversos momentos trouxe muita satisfação,
apesar de alguma angústia e ansiedade. A satisfação reside em poder estar estudando uma
obra tão fundamental quanto pouco analisada no nosso circuito acadêmico, em que pese
ser obra premiadíssima. Lygia, ao longo de sua carreira como escritora, recebeu o prêmio
Hans Christian Andersen, concedido pelo Comitê Internacional do IBBY (International
Board on Books for Young People), mais tarde, na Alemanha, recebeu o prêmio criado
para comemorar os setecentos anos da lenda do Flaustista de Hamelin,o Rattenfanger
Literatur-Preis e do governo da Suécia recebeu, recentemente, o Astrid Lindgren
Memorial Award. Sua obra tem, portanto, importância e reconhecimento que extrapolam
nossas terras brasileiras. O que confirma tudo o que nesse trabalho se comentou a respeito
da obra e de sua relação com o leitor, porque mesmo “falando brasileiro”, o convite que
oferece ao leitor – a parceria – é entendido em qualquer idioma. É sempre melhor andar
junto, do que ser carregado pela mão de alguém, seja em que latitude for.
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Esse desejo de gerar parceiros-leitores e leitores-parceiros tem levado Lygia a trocar
sua discrição e sua timidez pelo seu lado atriz. Ao longo dos últimos anos, um dos
projetos que vem movimentando sua Casa – a sua editora – é o de levar aos palcos, sempre
de forma muito simples e artesanal, a sua obra. Já viraram espetáculos Livro, Ana Paz,
Feito à mão, Retratos de Carolina e outras tantas histórias suas. Ela chama esses projetos
de Mambembadas, numa alusão a essa manifestação do teatro popular que precisa de muito
pouco artifício para criar afinidade e encantamento com a platéia, porque “falam a mesma
língua”. Nas suas conversas com seus leitores em seus livros, sempre dá um jeito de dizer
como essas Mambenbadas são importantes, é sua forma de conversar mais diretamente com
o leitor, tendo ele ali, de corpo presente, fazendo outra arte – o teatro – parceira da
literatura.
Um dos maiores presentes que esse trabalho me deu foi a oportunidade de conhecer
Lygia, de ir a sua Casa, ver o lugar onde nasceram e nascem tantas das personagens das
quais eu iria falar. Passar um tarde lá, na casa de Santa Tereza, que reconheci pela foto da
primeira edição de Paisagem, entre bolo, suco, chocolate, Lygia, Rachel, Angélica, Maria ,
Alexandre, Lucas, Vitor, Vira, Latinha, Lourenço, Ana Paz, Carolina... livro saído do forno
– foi mais uma experiência de parceria das tantas que a obra já me proporcionara.
Agora, quando leio Lygia, junto ao que leio a visão que se tem do Rio de Janeiro lá
da casa dela em Santa Tereza, esse Rio com todas as suas contradições, as que ela mesma
apresenta em suas histórias, cheio de desigualdades e diferenças, mas também de uma
beleza tão profunda que mobiliza, faz a gente querer fazer dar certo, querer transformar,
querer mudar...o Rio e tudo mais que precisar de mudança. Então entendo melhor essas
histórias de trocas e de tarefas.
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7.
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