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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Psicologia
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
Curso de Mestrado
A
VERDRÄNGUNG
, A
VERWERFUNG
E A
VERLEUGNUNG
: UM ESTUDO PSICANALÍTICO A
PARTIR DAS MODALIDADES SEMIÓTICAS
POR
L
INA
C
ARVALHO
S
CHLACHTER
Dissertação De Mestrado Em Teoria Psicanalítica
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica
Orientador: Prof. Dr. Waldir Beividas
Rio de Janeiro, fevereiro de 2005
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2
A
VERDRÄNGUNG
, A
VERWERFUNG
E A
VERLEUGNUNG
: UM ESTUDO PSICANALÍTICO A
PARTIR DAS MODALIDADES SEMIÓTICAS
L
INA
C
ARVALHO
S
CHLACHTER
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Teoria Psicanalítica.
APROVADA POR:
______________________________
Prof. Dr. Waldir Beividas – UFRJ - Orientador
______________________________
P
ROF
ª Drª. Angélica Bastos – UFRJ
______________________________
P
ROF
. Dr. Ivã Carlos Lopes – USP
Rio de Janeiro, R.J. – Brasil
Fevereiro de 2005
ads:
3
S
CHLACHTER
, Lina Carvalho
A
Verdrängung
, a
Verwerfung
e a
Verleugnung
: um estudo
psicanalítico a partir das modalidades semióticas / Lina Carvalho
Schlachter – Rio de Janeiro. UFRJ, I. P., 2005.
VI, 91f., 31 cm.
Orientador: Prof. Dr. Waldir Beividas.
Dissertação (mestrado) – UFRJ/IP/Programa de Pós-
Graduação em
Teoria Psicanalítica, 2005.
Referências Bibliográficas: f. 88-91
1.Psicanálise e Lingüística 2. Verdrängung, Verwerfung e Verleugnung
3.Modalidades Semióticas.
I. Beividas, Waldir
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro
III. Título
4
R
ESUMO
A
V
ERDRÄNGUNG
,
A
V
ERWERFUNG
E A
V
ERLEUGNUNG
:
U
M
E
STUDO
P
SICANALÍTICO A
P
ARTIR DAS
M
ODALIDADES
S
EMIÓTICAS
Lina Carvalho Schlachter
Fevereiro de 2005
Orientador: Professor Doutor Waldir Beividas
Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Teoria Psicanalítica.
Esta dissertação tem como objetivo re-acionar o diálogo entre a
Psicanálise e as Ciências da Linguagem, sob a perspectiva de uma lingüística
mais atualizada. Para isto problematizamos mutuamente os conceitos
psicanalíticos e as estruturas de linguagem ou de discurso, via de regra. Os
conceitos psicanalíticos escolhidos para a discussão foram: a Verdrängung, a
Verwerfung e a Verleugnung. Fizemos um estudo minucioso abordando seus
conteúdos nocionais a partir dos textos originais de Freud, seus
comentários e, em seguida, na confrontação e na comparação de suas
estruturas modais tais como propostas pela teoria Semiótica européia, pois
acreditamos que estes conceitos partilham um quê de semelhança e um quê
de diferença que merecem estudo e justificação. Com o intuito de atingir
nosso objetivo, inicialmente discutimos a relação entre Psicanálise e as
Ciências da Linguagem em Freud e em Lacan. Depois, elucidamos alguns
equívocos encontrados nesta relação, para, em seguida, propor um meio de
trabalho que reúna as duas disciplinas. Posteriormente, fizemos um
rastreamento dos textos significativos onde Freud utilizava os conceitos,
percorrendo, respectivamente, a Verdrängung, a Verwerfung e a Verleugnung.
Após a discussão conceptual, em cada capítulo, aplicamos os dispositivos
modais da teoria semiótica para enriquecer o modo como a Psicanálise vem
tratando, e, assim, atingir o nosso objetivo de definir melhor os conceitos
freudianos. Por fim confrontamos os conceitos visando entender melhor as
diferenças e as semelhanças entre estes.
5
Abstract of thesis presented to IP./UFRJ as partial fulfillment
of requirements for the degree of Master of Psychoanalytical Theory
V
ERDRÄNGUNG
,
V
ERWERFUNG
AND
V
ERLEUGNUNG
:
A
P
SYCHOANALYTICAL
S
TUDY
U
SING
S
EMIOTIC
M
ODALITIES
Lina Carvalho Schlachter
February, 2005
Tutor: Professor Waldir Beividas
Post Graduation in Psychoanalytical Theory
This dissertation has the purpose of reviving the dialogue between
Psychoanalysis and the Language Sciences, from the perspective of a more
updated Linguistics. Our goal is to juxtapose both the psychoanalytical
concepts and the language, i.e. the speech’s structures using the following
psychoanalytical concepts: the Verdrängung, the Verwerfung and the
Verleugnung. This is a detailed study tackling the notional contents using
the original texts of Freud as well as his comments where the confrontation
and comparison of the modal structures, such as proposed by the
European Semiotics, are used. This is because we believe that these
concepts share similarities and differences that deserve to be studied and
validated. In order to reach this objective, we begin by discussing the
relationship between Psychoanalysis and the Language Sciences in Freud
and Lacan. Then, the inaccuracies found in the relationship will be
highlighted in order to propose a process that would combine the two
disciplines. After that step, we track the most significant texts, where Freud
used the Verdrängung, the Verwerfung and the Verleugnung concepts
respectively. After the conceptual discussion in each chapter, we use the
modal dispositives of the semiotics theory to improve the way
Psychoanalysis presents these terminologies, and thus attain the goal of
better defining the Freudian concepts. Resultantly these concepts have been
confronted with the aim of a better understanding of the differences and
the similarities between them.
6
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador Waldir Beividas por ter me apoiado enormemente
durante minha temporada no Rio de Janeiro, por ter sido um excelente
orientador e por ter me estimulado com sua imensa paixão pela pesquisa;
A meus pais, Willy e Gina, e irmãos, Juliana e Andre, por terem se feito
presentes mesmo à distância;
A minha avó Walkyria Schlachter e bisavó Clycia Sá por todo amor;
A minha avó Ana Maria por ter me inspirado a seguir a carreira
acadêmica;
A minha madrinha Carina Haley por ter me ajudado a fazer o “abstract” e
ter sido bastante cuidadosa na tarefa;
A tia Edith Baere e a Maria Cristina Negri Tupinambá por terem me
acolhido no Rio de Janeiro como filha e irmã;
Ao meu querido Manoel Mendonça de Castro Neto por ter acreditado em
nós dois e na importância de nossos sonhos;
A Ana Carolina Duarte Lopes e a Cristiana Magalhães por terem sido mais
que amigas durante minha temporada no Rio de Janeiro;
A todos os meus amigos que de longe ou de perto me apoiaram;
Ao Instituto Municipal Phillippe Pinel por ter me proporcionado uma rica
experiência profissional juntamente ao NAICAP (Núcleo de Assistência
Integrada à Criança Autista e Psicótica);
E ao CNPq por ter me concedido uma bolsa de estudos.
7
ÍNDICE
INTRODUÇÃO _______________________________________________ 8
CAP. 1 – PSICANÁLISE E LINGUÍSTICA:
O SIMBOLISMO FREUDIANO E
O SIGNIFICANTE LACANIANO
____________________________________ 15
1.1.
F
REUD E A LINGUAGEM
_____________________________________ 16
1.2.
L
ACAN E A
L
INGÜÍSTICA
____________________________________ 23
CAP. 2 - PSICANÁLISE E LÍNGUISTICA:
UMA RELAÇÃO AINDA
POSSÍVEL
____________________________________________________ 28
2.1.
A
PSICANÁLISE FREUDIANA
:
O INÍCIO DE UM ENCONTRO
___________ 28
2.2.
L
ACAN E O SIGNIFICANTE
:
CONTINUAÇÃO DE UM ENCONTRO OU INÍCIO
DE UM ROMPIMENTO
? _________________________________________ 29
CAP. 3 – PSICANÁLISE E SEMIÓTICA:
UMA PROPOSTA DE TRABALHO
40
3.1.
A
S
EMIÓTICA
G
REIMASIANA
_________________________________ 40
3.2.
S
EMIÓTICA E
P
SICANÁLISE
:
UMA PROPOSTA DE TRABALHO
__________ 47
CAP. 4 – A
VERDRÄNGUNG
__________________________________ 50
4.1.
O
CONCEITO NO TEXTO FREUDIANO
__________________________ 52
4.2.
A
TRADUÇÃO
_____________________________________________ 57
4.3.
V
ERDRÄNGUNG E A SUA MODALIZAÇÃO SEMIÓTICA
_______________ 62
CAP. 5 – A
VERWERFUNG
____________________________________ 69
5.1.
O
CONCEITO EM
F
REUD
____________________________________ 71
5.2.
A
TRADUÇÃO
_____________________________________________ 73
5.3.
A
V
ERWERFUNG E A SUA MODALIZAÇÃO SEMIÓTICA
______________ 74
CAP. 6 - A
VERLEUGNUNG
___________________________________ 77
6.1.
O
CONCEITO EM
F
REUD
____________________________________ 78
6.2.
A
TRADUÇÃO
_____________________________________________ 81
6.3.
A
V
ERLEUGNUNG E A SUA MODALIZAÇÃO SEMIÓTICA
_____________ 82
CAP. 7 - A
VERDRÄNGUNG
, A
VERWERFUNG
E A
VERLEUGNUNG
:
COMPARAÇÕES E CONFRONTAÇÕES
______________ 85
7.1.
C
OMPARAÇÕES E
C
ONFRONTAÇÕES
___________________________ 85
CONCLUSÃO________________________________________________ 91
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ____________________________ 94
8
INTRODUÇÃO
esde Freud, o estudo das interlocuções entre a Psicanálise e
as ditas Ciências da Linguagem se faz presente. No entanto,
com a entrada de Lacan na Lingüística, a partir de Saussure, e seu posterior
afastamento, com as proposições sobre a “lingüisteria”, as relações parecem
ter sido enfraquecidas e até mesmo quase condenadas à extinção. Diante
desta situação, alguns teóricos nadam contra a maré lacaniana e se esforçam
para mostrar que esta relação ainda é, sim, possível, e que as disciplinas são
capazes de colaborar uma com a outra.
Na Inglaterra, um pesquisador que tenta conciliar as duas disciplinas
é John Forrester. Em seu livro A Linguagem e as Origens da Psicanálise (1983),
lembra que o sintoma é equivalente a uma mensagem falada, funcionando o
recalcamento como uma perda de palavras apropriadas. Afirma que Freud
entende as palavras como fundamentais para o tratamento psicanalítico,
desde seus primeiros escritos sobre a afasia e a histeria, e pensa ser o
silêncio a causa da doença psíquica. Desta maneira, defende a ênfase do
psicanalista nas palavras e salienta o símbolo como um meio para a relação
entre a psicanálise e as ciências da linguagem, buscando a compreensão do
simbolismo em Jung, Freud e Jones.
Na França, Michel Arrivé faz uma investigação com muito afinco
para enfatizar que uma relação entre a psicanálise e a lingüística. Para
começar, lembra que tanto a psicanálise quanto a lingüística estudam e
exploram um objeto em comum: a linguagem. Se isto não bastar, parecem
algumas vezes partilhar de conceitos fundamentais. Arrivé detém sua
pesquisa nestes conceitos e em fatos históricos coincidentes entre as duas
disciplinas. Assinalamos, ainda, que a primeira vez em que nos deparamos
com um questionamento sobre o significante lacaniano é com o lingüista
francês, e, com isto, é iniciado um debate entre as disciplinas visando uma
D
9
melhor compreensão do termo. Em sua obra Lingüística e Psicanálise: Freud,
Saussure, Hjelmslev, Lacan e outros (1986/2001), salienta que a linguagem está
sempre presente, tanto em Freud como em Lacan, e que a muralha que se
ergue entre a psicanálise e a lingüística possui aberturas: as homonímias
entre as disciplinas. Desta maneira, escreve sobre pontos de abertura para a
afinidade: os símbolos e o significante. Elabora uma articulação entre o
símbolo freudiano e o símbolo de lingüistas tais como Saussure e
Hjelmslev, e destaca o caminho percorrido por Freud ao buscar
contribuições de lingüistas em sua teoria. Depois, salienta os pontos de
encontro e os de divergência entre os significantes lacaniano e saussuriano.
A partir daí, conclui que o encontro das duas disciplinas se por
“sinuosidades e chicanas” (p. 132), sendo, pois, a relação “porosa” (Ibidem),
portanto, não ‘impermeável’, embora necessitando ainda outro estudo para
melhor entender tal porosidade.
Esta idéia de uma outra pesquisa acaba por gerar o livro Linguagem e
Psicanálise, Lingüística e Inconsciente: Freud, Saussure, Pichon, Lacan (1994/1999),
uma continuação do estudo anterior. Arrientende que as disciplinas, por
vezes, atingem o objeto da outra. Aqui, localiza historicamente momentos
em que personalidades das duas correntes se entrecruzam, assim como na
obra anterior, e também aborda aspectos teóricos das disciplinas,
desvendando pontos de convergência e de divergência entre as concepções
teóricas de Freud, Saussure, Pichon e Lacan. Ressalte-se nesse estudo a
minuciosa pesquisa sobre a proveniência lingüística a partir da teoria de
Damourette & Pichon da concepção lacaniana do conceito de
“foraclusão” alicerçado no Verwerfung de Freud (p. 119-155), dentre
inúmeros outros esclarecimentos das fontes gramaticais e lingüísticas do
grande discípulo freudiano.
10
No Brasil, sem dúvidas é Waldir Beividas quem faz os maiores
esforços para a realização de uma interdisciplinaridade entre psicanálise e
semiótica. Em sua obra Inconsciente et verbum: Psicanálise, Semiótica, Ciência,
Estrutura (2000), apresenta-nos sua hipótese inicial de que a doutrina
lacaniana faz sentido se a linguagem for entendida como condição do
inconsciente. Defende uma semiotização do inconsciente, ou seja, “uma
transposição metodológica da semiótica para a psicanálise” (p. 378).
Semiotizar o inconsciente seria, portanto, explorar o inconsciente por uma
teoria do discurso, no caso, a de Greimas. Assim, inaugura uma nova
“hipótese de trabalho” (p. 299), o que, segundo ele, possibilitaria à
psicanálise uma “desterritorialização” (Ibidem), seguindo o modo estimulado
por Lacan nos anos 50. Resumidamente, Beividas trabalha com as seguintes
idéias:
“(a) de que o significante de Lacan, enquanto teoria geral, é
homologável à forma semiótica; (b) de que o aforismo ‘um
significante representa o sujeito para outro significante’,
enquanto teoria local do significante, pode ser reivindicado
como a construção da isotopia do desejo.” (p. 357).
O autor considera que essas proposições, se caucionáveis, indicam a
possibilidade de uma interlocução, mais que isso, uma “efetiva
compatibilização” (ibidem) entre a psicanálise e a semiótica. Ou seja, as
portas estariam abertas não para o questionamento de conceitos
aproximados nas duas disciplinas, como também para a transposição
metodológica do campo semiótico para o psicanalítico e para a transposição
das problemáticas inseridas na isotopia do desejo do campo psicanalítico
para o semiótico. Finalmente, propõe que a psicanálise utilize a semiótica
como recurso metodológico, sugerindo a possibilidade de um “percurso
gerativo da subjetividade inconsciente”.
11
Nesta presente dissertação, nosso objetivo é continuar os estudos de
fôlego realçados. A meta é re-acionar este diálogo, sob a perspectiva de
uma lingüística mais atualizada, de uma semiótica já bastante madura, o que
era impossível à época de Lacan. Salientamos que a semiótica encontra-se
amadurecida somente nos anos 70, e nesta época Lacan já havia se afastado
da Lingüística, além de estar idoso (cf.
BEIVIDAS
, 2000: 300). Desta maneira,
não encontramos referências de Lacan a Greimas.
A nossa idéia é um novo possível diálogo que problematize
mutuamente os conceitos psicanalíticos e as estruturas de linguagem ou de
discurso Tencionamos dar continuidade aos projetos de Beividas, e fazer
uma transposição metodológica do campo semiótico para o campo
psicanalítico. Consideramos que os conceitos psicanalíticos apresentam um
percurso gerativo, e passam de um nível fundamental, onde existem as
primeiras articulações inconscientes, para um nível discursivo, exposto por
intermédio da fala, de gestos, sonhos, atos falhos, chistes, entre outros.
Dentre tantos conceitos que poderíamos escolher, selecionamos para
a discussão: a Verdrängung, a Verwerfung e a Verleugnung, por sua importância
no campo psicanalítico (há uma ligação forte entre tais termos e as
estruturas psíquicas: neurose, psicose e perversão), e também pela confusa
compreensão dos mesmos a que levam as traduções disponíveis em
português. Para ilustrar um pouco a confusão que na definição de tais
termos, utiliza-se nas edições brasileiras como tradução tanto de Verleugnung
quanto de Verwerfung o mesmo vocábulo: “rejeição”. Evidentemente, a
tradução não nos satisfaz, nem parece fidedigna ao pensamento de Freud,
uma vez que não nos parece possível que duas palavras distintas, utilizadas
em momentos diferentes e específicos, signifiquem o mesmo em português.
A confusão ocorre devido ao problema de semelhança entre as palavras
Verleugnung e Verneinung. Ilustrando brevemente, notemos que a primeira
12
significa: afirmar que não se tem ou não se conhece algo/alguém < um
amigo, seu modo de pensar, seu Deus, seus ideais>” (
LANGENSCHEIDT
,
2003: 1114). Já Verneinung é: “1. Responder com não < uma pergunta,
balançar a cabeça negando, uma resposta negativa>, 2. Recusar < uma
proposta>“ (Ibid.:1117). Por causa desta similitude, os tradutores, desejando
diferenciar os dois vocábulos, preferem traduzir Verleugnung por rejeição, e
Verneinung por negativa
1
. No entanto, ao tentar tapar este buraco, abre-se
outro. A partir disto, nos deparamos com algumas questões: o que Freud
quer, de fato, dizer com esses termos? Quais os significados deles para a
língua alemã?
Assim sendo, temos como meta um estudo minucioso destas
exclusões (Verdrängung, Verwerfung e Verleugnung), abordando seus conteúdos
nocionais com a colaboração da confrontação e da comparação de
estruturas modais da Semiótica, pois acreditamos que estes conceitos
partilham um quê de semelhança e um quê de diferença, enquanto
estruturas de discurso, ou antes, enquanto estruturas de linguagem, tal
como as proposições mais fortes do pensamento de Lacan. Deste modo,
aqui nos cabe examinar e justificar as semelhanças e as diferenças entre tais
vocábulos.
Para iniciar nossos estudos, consideramos necessária a abordagem
inicial de como ocorreu o princípio da relação entre a psicanálise e as
ciências da linguagem, iniciada com Freud. Isto foi feito no Capítulo Um,
onde seguimos o exemplo de Arrivé e de Forrester, e tratamos de conceitos
homônimos às duas disciplinas, mais especificamente: o símbolo e o
significante. Além disto, apresentamos brevemente as teorias de Sperber e
Abel, lingüistas estudados por Freud, e de Saussure, estudado por Lacan.
1
Vide nota de rodapé. Freud, Sigmund. A organização genital infantil (uma
interpolação na teoria da sexualidade) (1923)”. Edição Brasileira das Obras Completas,
vol. XIX. Rio de Janeiro, Imago, 1996. p.159
13
Como sabemos, a relação entre as duas disciplinas não se dá de
forma tão amigável, e dificuldades surgem em seu caminho. Assim, no
Capítulo Dois, salientamos e esclarecemos alguns equívocos encontrados, e
das elucidações sugerimos uma nova possibilidade de re-encontro entre as
disciplinas, mais propriamente entre a psicanálise e a semiótica greimasiana.
Com esta idéia de um trabalho em conjunto, entendemos como
indispensável a apresentação, mesmo que sucintamente, da teoria semiótica
greimasiana. Fizemos isto no Capítulo Três, e detalhamos como a semiótica
pode colaborar para os estudos psicanalíticos. Acreditamos na possibilidade
de uma disciplina contribuir com a outra, e como exemplo e sugestão de
pesquisa, propomos que a semiótica ajude em uma conceptualização mais
bem definida da teoria psicanalítica.
Nos capítulos seguintes, Quatro, Cinco e Seis, fizemos um
rastreamento dos textos significativos onde Freud utilizava os conceitos,
percorrendo, respectivamente, a Verdrängung, a Verwerfung e a Verleugnung.
Após a discussão conceptual, em cada capítulo, aplicamos os dispositivos
modais da teoria semiótica para enriquecer a maneira como a psicanálise
vem tratando, e, assim, atingir o nosso objetivo de definir melhor os
conceitos freudianos. Desta forma, objetivamos colher todos os micro-
semantismos para saber o que Freud pensava sobre estes, que diferenças
conceptuais queria estabelecer entre eles. Amplamente, tomamos
formulações, comentários e exemplos freudianos que ajudavam a esclarecer
tais conceitos. Enfim, no Capítulo Sete, confrontamos os conceitos, com
base em conclusões alcançadas nos capítulos anteriores, visando entender
melhor as diferenças e as semelhanças entre estes.
Esperamos que esta releitura e discussão crítica levem a uma
revitalização e re-atualização dos conceitos psicanalíticos, o que, segundo
14
acreditamos, beneficiaria as definições destes na psicanálise e aprimoraria a
escuta do psicanalista.
15
Cap.
1
PSICANÁLISE
E
LINGUÍSTICA:
O SIMBOLISMO
FREUDIANO E O SIGNIFICANTE LACANIANO
“Como evitar, então, uma conexão entre linguagem e
inconsciente? E como dispensar o encontro entre lingüística e
psicanálise?”
Michel Arrivé (1999: 23)
Psicanálise nasce como um tratamento clínico particular e
peculiar, cujo método se principalmente através da fala, o
que a torna conhecida como talking cure. Tal apelido é dado por uma
paciente de Breuer, Anna O.
2
, ao se remeter ao método, em que o paciente
narra, verbaliza, os acontecimentos de sua vida.
Desde proposições pioneiras, a psicanálise acredita que, quando o
sujeito passa por uma situação em que o consegue encontrar expressão
verbal, surge o sintoma. Sua cura acontece apenas quando o trauma é
traduzido em palavras. Desta forma, toda a ênfase da terapêutica de Breuer
e Freud é colocada nas palavras, ou seja, no que cada paciente fala sobre
seu sintoma, baseado em sua história pessoal. Por esta razão, a linguagem é
um objeto de estudo muito importante para os psicanalistas. No entanto,
este campo, antes de investigado pela psicanálise, já o é por outras
disciplinas, tais como: a lingüística propriamente dita, e também a filologia,
a etimologia, as gramáticas e a retórica.
Sabendo disto, Freud percebe que as ciências da linguagem podem
contribuir para sua teorização, e por isto busca a ajuda de lingüistas, tais
como Carl Abel e Hans Sperber. Não se sabe por qual motivo, não faz uso
da teoria saussuriana, mesmo sendo contemporânea a ele. Arrivé (1999: 15-
2
Posteriormente, o nome verdadeiro desta paciente foi descoberto: Bertha
Pappenheim.
A
16
6) entende como estranha a ignorância de Freud, uma vez que o
psicanalista conhece um Saussure, Raymond, filho de Ferdinand. Freud
prefacia a obra deste, O Método Psicanalítico (1922), e salienta que o autor foi
analisado por ele. Questionamo-nos: será que o filho nunca falou do pai em
análise? Outra curiosidade neste prefácio é que o psicanalista enfatiza ter
lido toda a obra cuidadosamente, e nela encontramos várias referências ao
Ferdinand de Saussure. De qualquer forma, apenas posteriormente, com
Lacan, é que concretamente se busca uma aproximação da psicanálise com
a teoria saussuriana.
Neste capítulo, temos como objetivo entender como a psicanálise
estuda a linguagem, focalizando principalmente a teoria freudiana sobre o
símbolo e a lacaniana sobre o significante. Em suas teorizações, tanto
Freud quanto Lacan fazem uso de teorias lingüísticas, criticando-as ou
incorporando-as em suas hipóteses.
1.1.
F
REUD E A LINGUAGEM
Estudar Freud é estar em contato constante com suas hipóteses
sobre a linguagem. O que o psicanalista parece fazer em uma análise é, na
verdade, uma grande “tradução”, e a língua para qual traduz o discurso do
paciente é a do inconsciente. Seu interesse pela linguagem é demonstrado
desde seus primeiros e maiores trabalhos: “A Interpretação dos Sonhos”
(1900), “A Psicopatologia da Vida Cotidiana” (1901) e “Chistes e sua
Relação com o Inconsciente” (1905).
Em “A Interpretação dos Sonhos”, inicia seu trabalho de análise do
sonho a partir da linguagem do paciente, expressada por condensações,
deslocamentos, transformações regressivas de pensamentos em imagens,
entre outros. Estas formas com que o paciente se manifesta evidenciam o
encontro inevitável entre a psicanálise e as outras ciências, mais
17
especificamente as da linguagem, evidência esta salientada no seguinte
trecho em “As Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise”:
Condensações, deslocamentos, transformações regressivas
de pensamentos em imagens: eis os novos fatos cuja
descoberta premiou abundantemente os esforços da
psicanálise. E os senhores podem constatar, uma vez mais,
a partir das comparações com a elaboração onírica, as
conexões que se revelaram entre os estudos psicanalíticos e
outros campos do conhecimento especialmente os
referentes à evolução da linguagem e do pensamento
(1916-1917/1996: 183-4).
No entanto, as conexões entre a Psicanálise e os campos de
conhecimento referentes à evolução da linguagem e do pensamento são
evidenciadas não apenas através de condensações, deslocamentos e
transformações regressivas de pensamentos em imagens
,
mas também por
um outro meio de expressão do sonho, logo, do inconsciente: símbolos. O
símbolo, para a psicanálise, é algo que representa outra coisa, inconsciente,
que não encontra acesso direto à consciência.
O estudo dos símbolos é um dos pontos em que Freud busca a ajuda
de teóricos da linguagem para um melhor aprofundamento e comprovação
de suas teorias. Por este motivo, a exploração deste tópico é fundamental
para nosso estudo sobre as inter-relações entre a Psicanálise e as Ciências
da Linguagem.
1.1.1.
F
REUD E O SIMBOLISMO
O sentido amplo de símbolo, na psicanálise, é: “modo de
representação indireta e figurada de uma idéia, de um conflito, de um
desejo, inconscientes” (
LAPLANCHE
&
PONTALIS
,
1998: 481). Desta
maneira, qualquer palavra, qualquer elemento de um sonho, qualquer
sintoma, entre outros, podem ser nomeados “símbolos”, na medida em que
são manifestações do inconsciente.
18
Michel Arrivé (2002: 31-67) investiga intensamente a relação de
Freud com o simbolismo, e nos sugere três tipos de símbolos na teoria
freudiana: 1) o símbolo mnêmico; 2) o símbolo sem especificação (que
aparece em “A Interpretação dos Sonhos” e em “Introdução à Psicanálise”)
e 3) o mbolo como término de um processo de simbolização. Aqui, no
entanto, limitaremos esta divisão a duas: o simbolismo na histeria e o
simbolismo nos sonhos, que remetem, respectivamente, aos dois primeiros
tipos salientados por Arrivé. O último foi brevemente explicado através
da citação anteriormente feita a Laplanche e Pontalis.
- O simbolismo na histeria
O mecanismo de defesa da histeria é o recalque. O recalque é “a
perda das palavras apropriadas para uma representação, convertendo-se
essas palavras, de algum modo, no sintoma” (
FORRESTER
,
1983:
25-6). O
recalque incide, portanto, sobre fatos que não foram postos em palavras. O
efeito desse processo é a formação de sintomas que funcionam como uma
mensagem não-verbal. A psicanálise, no que induz à “associação livre”, se
insere aí, ao pedir para o paciente falar o que quer que lhe venha à cabeça, e
tentar verbalizar o que não foi posto em palavra. Freud garante que há uma
relação simbólica entre o sintoma do paciente e a sua causa. Os símbolos
mnêmicos (Erinnerungssymbol) manifestam essa relação, pois, como o
próprio nome diz, são símbolos de uma lembrança (Erinnerung).
A primeira vez que o pai da psicanálise discute sobre símbolo
mnêmico é em “As neuropsicoses de defesa” (1894), apesar de não o
conceituar. Ele apenas afirma, pensando sobre a conversão na histeria, que
“o ego consegue libertar-se da contradição (com a qual é confrontado); em
contrapartida, sobrecarrega-se com um mbolo mnêmico que se aloja na
19
consciência como uma espécie de parasita” (1894/1996: 56). Neste caso, o
símbolo mnêmico funciona como um substituto da contradição reprimida.
Posteriormente, em “As cinco lições de psicanálise” (1910[1909]),
encontramos uma ligação explícita entre sintoma e símbolo mnêmico,
que nos é mostrado que “os sintomas são resíduos e símbolos mnêmicos de
experiências especiais (traumáticas)” (p. 33). Freud conclui, após uma breve
comparação entre estes símbolos e monumentos londrinos, que os
símbolos mnêmicos o uma recordação de algo doloroso que aconteceu a
que o paciente se prende emocionalmente.
Podemos citar como exemplo de simbolismo mnêmico o caso da
Frau Cäcilie M., que se queixa de uma nevralgia facial. No decorrer de seu
tratamento, exprime a frase: “foi como uma bofetada em meu rosto”. Na
situação em que acontece o choque, não verbaliza, possibilitando a
conversão de seus sentimentos em sintomas, por meio da expressão
simbólica. Assim, os sintomas, tais como os sentidos por Frau Cäcilie M.,
são símbolos mnêmicos, uma vez que dizem respeito a algo latente,
inconsciente. Desta forma, uma relação explícita entre sintoma e
símbolo.
O simbolismo nos sonhos
Sem dúvidas, é a partir de “A interpretação dos sonhos” (1900) que
o conceito de símbolo, na psicanálise, torna-se de grande importância.
Freud discute longamente sobre os métodos utilizados desde a antiguidade
para se analisar sonhos, e um deles é o método simbólico. Definindo o
método simbólico, pensa que este “considera o conteúdo do sonho como
um todo, e procura substituí-lo por outro conteúdo que seja inteligível e,
em certos aspectos, análogo ao original” (1900/1996: 132).
20
Diante desta definição o método freudiano, no entanto, propõe algo
diferente. O pioneiro do inconsciente acredita que o sonho é construído
por processos de condensação, deslocamento e transformações regressivas
de pensamentos em imagens, o que nos indica a necessidade de colocar um
determinado elemento em uma série de associações, ou cadeias de
pensamento, antes que seu significado seja recuperado. Analisamos não o
sonho como um todo, tal como o antigo método simbólico, mas em partes
separadas de seu conteúdo, observando também a relação entre estas.
Desta forma, o método simbólico é considerado impróprio por não
privilegiar os elementos do sonho em separado, mas em união, significando
uma coisa só.
Contudo, entender o antigo método chamado simbólico como
inadequado na análise dos sonhos não significa dizer que o inconsciente
não utiliza símbolos para se expressar em sonhos. Em 1910, relatando sua
aprendizagem com a análise dos sonhos, Freud afirma: “pela análise de
sonho também pudemos descobrir que o inconsciente se serve,
especialmente para representação de complexos sexuais, de certo
simbolismo, em parte individualmente e em parte tipicamente fixo”
(1910[1909]/1996: 49). O psicanalista vienense lista uma série de “sonhos
típicos”, nos quais o mesmo conteúdo latente se expressa de maneira
semelhante em qualquer sonhador. os símbolos individuais, particulares,
prescindem, em sua análise, fundamentalmente da fala do paciente, ou
melhor, da associação livre. Desta maneira, o símbolo onírico é algo que
representa alguma coisa, e essa coisa é inconsciente.
Em “A Interpretação dos Sonhos”, Freud observa que vários
símbolos podem remeter a um único conteúdo simbolizado, assim como
um único símbolo pode remeter a vários conteúdos, ou amesmo a dois
conteúdos opostos (discutiremos sobre o assunto posteriormente).
21
O símbolo onírico é discutido pelo psicanalista vienense o
somente em “A Interpretação dos Sonhos”, mas em outros textos. Por
exemplo, em “As Conferências Introdutórias sobre Psicanálise” (1916-
1917), mais especificamente no capítulo X da parte II: Simbolismo nos
sonhos. Neste texto, o pioneiro do inconsciente comenta que há uma
relação simbólica entre um elemento onírico e o conteúdo inconsciente, e
leva-nos a crer que esta se manifesta no símbolo onírico.
Por aqui, concluímos que o sonho se expressa, sim, através de uma
linguagem, como se fosse um texto, e temos que lê-lo também de acordo
com os símbolos e suas relações com o conteúdo latente.
1.1.2.
F
REUD E OS LINGÜISTAS
:
UMA VIA PARA EXPLICAÇÕES E
COMPROVAÇÕES PARA A TEORIA DOS SIMBOLOS
.
Freud utiliza durante sua obra o trabalho de dois lingüistas: Hans
Sperber, que escreve Über den Einfluss sexueller Momente auf Entstehung und
Entwicklung der Sprache (Sobre a Influência do Elemento Sexual na Origem e
Desenvolvimento do Idioma
3
), texto referenciado em “As Conferências
Introdutórias sobre Psicanálise” (1916-1917), e Carl Abel, muito citado, e
comentado longamente em “A Significação Antitética das Palavras
Primitivas” (1910).
Sperber, segundo o próprio Freud comenta, “apresentou o
argumento de que as necessidades sexuais desempenharam o papel
principal na origem e no desenvolvimento da linguagem” (1916-1917/1996:
168), o que indica que muitas raízes de palavras têm sua origem sexual,
interessando o psicanalista vienense, uma vez que confirma sua hipótese de
3
Aqui, fiz a tradução literal do nome do livro, pois não encontrei nenhuma
publicação do autor na língua portuguesa.
22
que há uma estreita relação entre sexualidade e simbolismo, e possibilita a
compreensão do simbolismo nos sonhos, que é, em sua essência, sexual.
Abel é utilizado principalmente em “A significação Antitética das
Palavras Primitivas” (1910). Dele é extraída a informação de que “o
comportamento do trabalho do sonho que acabou de descrever é idêntico a
uma peculiaridade das línguas mais antigas que conhecemos” (1910/1996:
161). Neste ponto, há a indagação sobre o “não”, que parece não existir nos
sonhos. A partir do trabalho de Abel é possibilitado o entendimento do que
acontecia no sonho, e, mais especificamente, da negação.
Abel observa que na língua egípcia uma grande quantidade de
palavras com duas significações, uma das quais é o oposto exato da outra. É
como se a palavra “bom” pudesse significar ao mesmo tempo “bom” e
“ruim”. Outro caso existente nas palavras primitivas é a combinação de
conceitos contraditórios, como em “without” (com/fora), que, em inglês,
quer dizer “sem”. O lingüista acredita que no decurso do desenvolvimento
da linguagem a ambigüidade desaparece. Uma palavra que contém duas
significações separa-se em duas palavras com significações individuais.
A partir daí, concluímos que compreendemos determinado conceito
por causa de comparações. chegamos ao bom porque se tem o ruim.
Em sua conclusão, Freud cita o filósofo Bain, que fora citado por Abel:
“para cada significação deve haver dois nomes (Ibid.: 165). Com isto, é
salientado que:
Os mecanismos do trabalho onírico correspondiam aos
mecanismos de estágios primitivos no desenvolvimento da
linguagem. Explorações das raízes das línguas pareceram a
mais promissora talvez a única admissível direção de
verificação daqueles elementos, tanto do sonho como do
mito, que pareciam muito opacos: os símbolos
(
FORRESTER
, 1983: 147).
23
Desta maneira, é indiscutível que Freud atribui grande importância a
esses lingüistas, o que é reforçado quando diz que “nós, psiquiatras, não
podemos escapar à suspeita de que melhor entenderíamos e traduziríamos a
língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da
linguagem” (1910/1996: 166).
1.2.
L
ACAN E A
L
INGÜÍSTICA
Lacan busca as inter-relações entre a psicanálise e a lingüística de
uma forma muito ativa, chegando a afirmar que “(a análise lingüística) tem
a mais estreita relação com a psicanálise pura e simples. Elas chegam a se
confundir. Se examinarmos de perto, veremos que não são essencialmente
diferentes uma da outra” (1954-5/1999: 14). Ele estuda Saussure, faz uso
de sua explicação para os signos, e, mais intensamente, do termo
significante. No entanto, apesar de citar bastante “significante”, saliento, o
significante lacaniano é diferente do significante saussuriano.
No texto “Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise”
(1953), o psicanalista francês introduz os conceitos de significante e de
significado, e os expressa de forma saussuriana. O signo, para o lingüista
(1995:80), é representado de acordo com o seguinte gráfico:
conceito
imagem acústica
O “conceito” e a “imagem acústica” são equivalentes,
respectivamente, ao “significado” e ao “significante”. As setas o para
indicar que o conceito não existe sem a imagem acústica e vice-versa.
Naquele mesmo texto, o psicanalista apresenta a importância da remissão à
lingüística, e relata que:
24
A referência à lingüística nos introduzirá no método que,
ao distinguir as estruturações sincrônicas das estruturações
diacrônicas na linguagem, pode permitir-nos compreender
melhor o valor diferente que nossa linguagem assuma na
interpretação das resistências e da transferência, ou então
diferenciar os efeitos típicos do recalque e a estrutura do
mito individual na neurose obsessiva (1953/1998: 289)
Em “A Instância da Letra no Inconsciente” (1957), no entanto,
Lacan começa a fazer alterações no signo saussuriano, passando a
representá-lo da seguinte forma: significante/ significado, ou melhor, S/s.
Com a retirada da circunferência, das setas, e a instauração do S maiúsculo
e do s minúsculo, uma série de efeitos. O primeiro destes é uma
hierarquia do significante, que entra no significado, o que não em
Saussure. Para o lingüista, o significante e o significado “estão intimamente
ligados e um reclama o outro” (1995: 80). Outro efeito é posto a partir do
sentido que o psicanalista francês deu à barra: uma barreira resistente à
significação. Em Saussure, a significação acontece simplesmente pela união
do significante ao significado, enquanto que para Lacan ela ocorre por uma
penosa travessia da barra. Aqui, o psicanalista discorda declaradamente do
lingüista, e afirma que:
Fracassaremos em sustentar sua questão enquanto não nos
tivermos livrado da ilusão de que o significante atende à
função de representar o significado, ou melhor, dizendo:
de que o significante tem que responder por sua existência
a título de uma significação qualquer (1957/1998: 501).
Assim, para Lacan, o significante se antecipa ao sentido. Isto
acontece de tal forma que o significante pode ser inteiramente
desconhecido para a língua de um determinado sujeito e isto não ser uma
barreira para que haja atribuição de sentido. Desta maneira, uma crítica
ao conceito de arbitrariedade do signo, dizendo: “qualificou-se
erradamente, de arbitrária, a relação do significante e do significado. (...)
25
Ora, o que passa por arbitrária é que os efeitos de significado têm o ar de
nada terem a ver com o que os causa” (1972-3/1985: 30), e afirma que não
crê que “eles (os significantes) tragam a mínima mensagem, e é no que eles
são verdadeiramente significantes” (Ibid.: 32). Com isto, uma ruptura
feita por Lacan com Saussure.
Este rompimento lembra o feito por Freud com os teóricos que
viam o símbolo como algo pré-estabelecido. Para o pai da psicanálise,
existem símbolos universais e outros individuais, e podemos
compreender o significado de ambos escutando o paciente. Para o francês,
de igual forma, existem signos em que o significante não é aprisionado ao
significado. Assim, quando Lacan postula que uma primazia do
significante sobre o significado, ele parece entender o significante como o
pai da psicanálise compreende o símbolo, afirmando que só se pode dizer o
que significa o símbolo, ou o significante, de acordo com a cadeia
associativa do paciente. Quando Lacan desprende o significante do
significado, leva-nos a crer que não arbitrariedade do signo por si só,
mas que esta arbitrariedade depende do paciente, ou seja, acredita que os
significantes têm relação com o que os causa.
No entanto, também do ponto de vista lingüístico, estes significantes
propostos por Lacan parecem ser mais semelhantes aos símbolos. Em
Saussure, “o símbolo tem como característica não ser jamais
completamente arbitrário; ele não está vazio, existe um rudimento de
vínculo natural entre o significante e o significado”(1982: 82). o
significante é “imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o
qual não tem nenhum laço natural na realidade”.(Ibid.: 83)
Assim, para o psicanalista francês, o significante como tal, “não se
refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, quer dizer, a um modo
de funcionamento, a uma utilização da linguagem como liame” (1972-3/
26
1985: 43). Deste modo, apenas a partir das correlações de um significante
com outro significante (e assim por diante), é que a busca pela significação
é possível, o que salienta que é na cadeia significante, definida como “anéis
cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito de anéis” (1957/1998:
505), que há o sentido.
Para o psicanalista francês, podemos nos expressar
metonimicamente ou metaforicamente. Na primeira forma, uma parte é
tomada por um todo, e na segunda a conjunção de dois significantes. O
francês assemelha a condensação à metáfora (em que superposição de
significantes) e o deslocamento à metonímia, e é justamente por causa desta
associação que Lacan afirma: “Freud antecipa, notadamente, a metáfora e a
metonímia lacanianas” (1970:58).
O significante é um conceito utilizado praticamente durante todos os
seminários de Lacan, muitas vezes parecendo-se com o conceito de
símbolo freudiano. Por exemplo, uma afirmação do psicanalista francês
de que “o sintoma está sempre fundado na existência do significante como
tal” (1956/ 2002: 192). Esta relação também acontece em Freud, mas a
partir do símbolo, como já foi salientado neste capítulo. Ambos os teóricos,
utilizando conceitos diferentes, afirmam que o sintoma diz respeito a algo
inconsciente.
Outro ponto em que uma semelhança teórica é no momento em
que o francês afirma que o significante sempre se remete a um outro, nem
que seja para sinalizar a sua ausência, como quando salienta: “a linguagem
começa na oposição: o dia e a noite” (Ibid.: 192). Nesta proposição, parece
ter se inspirado no pai da psicanálise, que em “A Significação Antitética das
Palavras Primitivas”, discute sobre os pares opostos e sua importância na
constituição dos símbolos.
27
Desta maneira, a teoria do significante tem uma importância crucial,
tendo em vista que é um meio a partir do qual o psicanalista estuda as
manifestações do inconsciente. Pelo que foi observado, apesar de Lacan ter
utilizado a palavra “significante”, inspirado explicitamente no significante
saussuriano, ambos os conceitos não se confundem, uma vez que o
primeiro é inseparável da teoria do sujeito.
Observamos que, com o transcorrer do tempo, o psicanalista francês
diminui o número de citações com nome de lingüistas, como o de Saussure.
Parece que sua reflexão implica-se cada vez menos com a disciplina que
inicialmente lhe é tão útil, que ele referencia, como faz no final do texto “A
Instância da Letra no Inconsciente, em que escreve T. t. y. m. u. p. t (Ibid.:
533) , que Michel Arrivé (2002: 75) supõe ser o mesmo que Tu t’y (es) mis un
peu tard (você começou com isso um pouco tarde), e o isso, é o seu estudo
da Lingüística.
Por fim, o francês, apesar de ter visto como inevitável o seu
mergulho na lingüística, afirmando que: “um dia percebi que era difícil não
entrar na lingüística a partir do momento em que o inconsciente estava
descoberto” (1972-3/ 1985: 25), distingue esta disciplina da sua, batizando
a última de “lingüisteria”, uma vez que estuda a linguagem a partir da
fundação do sujeito, diferentemente da Lingüística. Assim, Lacan salienta
que “meu dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem não
é do campo da lingüística” (Ibidem), mas do campo da lingüisteria. está
marcada a diferença entre a lingüística e a psicanálise, o que pode ter
incitado a um distanciamento entre as disciplinas.
28
C
AP
.
2
-
PSICANÁLISE
E
LINGÜÍSTICA:
UMA
RELAÇÃO
AINDA
POSSÍVEL
o capítulo anterior, observamos brevemente como se a
interação entre a psicanálise e a lingüística, ou ciências da
linguagem. Percebemos que o caminho acontece, por vezes,
tranqüilamente, e, por vezes, tortuosamente. Os últimos culminam na atual
segregação entre psicanálise, principalmente a de fundamento lacaniano, e
qualquer ciência da linguagem. No entanto, pretendo mostrar neste capítulo
que os caminhos tortuosos apresentados na interação das duas disciplinas
ocorrem principalmente por conta de equívocos. Se estes forem
esclarecidos, há como tentar uma nova re-aproximação, o que indica a
possibilidade de um trabalho em que as duas disciplinas andem juntas.
2.1.
A
PSICANÁLISE FREUDIANA
:
O INÍCIO DE UM ENCONTRO
A psicanálise nasce a partir da observação de Freud do discurso de
seus pacientes. Discursos sobre sonhos, sobre sintomas, enfim, sobre os
mais variados assuntos. A clínica freudiana torna-se, assim, uma clínica
narratológica, onde pacientes narram acontecimentos de suas vidas. O pai
da psicanálise tenta entender os mecanismos inerentes aos discursos, e, com
isto, atribuir uma significação a estes.
Em trabalhos como “A Interpretação dos Sonhos”, Freud
desempenha, segundo Beividas (“Semiótica do Discurso Onírico. O Sonho
de Freud”, texto em análise para publicação na revista Psico-Usp), “um
trabalho notável de análise semiótica avant la lettre”. O psicanalista busca no
discurso dos pacientes, em que percebe uma entrelaçada rede, um sentido
imanente. Além deste trabalho, podemos citar o estudo realizado sobre os
N
29
símbolos, apresentado no capítulo anterior, onde o pai da psicanálise busca
o conteúdo latente por trás do conteúdo manifesto, coincidindo com uma
procura pelo sentido imanente.
Assim, em Freud podemos situar o momento inicial de encontro
entre a Psicanálise e a Lingüística, ou, mais propriamente, as Ciências da
Linguagem. Esta fase se de forma positiva, ou seja, uma crença de
que uma disciplina pode cooperar com a outra. Acredito que o pioneiro do
inconsciente abre as portas da Psicanálise para qualquer ciência da
linguagem, e apenas o pontapé inicial para uma futura investigação mais
aprofundada sobre como poderia acontecer uma colaboração da disciplina
à Psicanálise.
2.2.
L
ACAN E O SIGNIFICANTE
:
CONTINUAÇÃO DE UM ENCONTRO OU
INÍCIO DE UM ROMPIMENTO
?
Antes de discutir sobre o significante, que considero o cerne da
teoria lacaniana, afirmo que Lacan, durante toda sua teorização, discute
sobre a fala do paciente, fazendo apenas algumas inferências à língua, o que
marca uma distinção entre ele e Saussure, que privilegia em seus estudos
principalmente a língua. A fala remete ao que é individual, ou, segundo o
próprio lingüista: “É a soma do que as pessoas dizem, e compreende; a)
combinações individuais dependentes da vontade dos que falam; b) atos de
fonação igualmente voluntários, necessários para a execução dessas
combinações.”(1982, 27-8). a língua é necessária para a inteligibilidade da
fala, ou, de acordo com Saussure, é “a linguagem menos a fala. É o
conjunto dos hábitos lingüísticos que permitem a uma pessoa compreender
e fazer-se compreender.” (Ibid.: 92). Assim, é impossível pensar em língua
sem a fala, e vice-versa, pois são interdependentes, uma vez que a fala leva
ao desenvolvimento da língua e a língua torna possível a fala.
30
Apesar desta distinção inicial entre os teóricos, Lacan explicitamente
toma a palavra “significante” emprestada do conceito de significante
saussuriano, um dos componentes do signo. No entanto, sua adesão à
teoria saussuriana se a partir de críticas e discussões, o que nem sempre
ocorre coerentemente.
Inicialmente, podemos pensar na citação feita no capítulo anterior,
em que Lacan (1957/1998: 501) afirma ser a função do significante
representar o significado, o que nunca foi afirmado na teoria saussuriana.
Em momento algum o lingüista salienta isso, pelo contrário, sempre
relaciona um ao outro arbitrariamente e enfatiza que nenhum pode ser
pensado sem o outro.
Outro momento passível de discussão é quando o psicanalista
considera que um significante pode ser completamente desconhecido para a
língua de um determinado sujeito e isto não ser uma barreira para que haja
atribuição de sentido. Ora, se isto fosse possível, não haveria barreira
alguma para um analista brasileiro analisar um paciente chinês, que os
significantes utilizados pelo chinês não seriam simples “barulhos”, como
costumam ser aos nossos ouvidos palavras de idiomas estranhos. (cf. a
discussão proposta por Beividas (2000: 322-3)).
No entanto, sabemos que para Saussure “o que importa na palavra
não é o som em si, mas as diferenças fônicas que permitem distinguir essa
palavra de todas as outras, pois o elas que levam a significação.” (1982:
136-7). Assim, só afirmamos que algo é uma palavra porque nos traz
significação, e diferencia-se pelo som que carrega. O som, sem comportar
mínimo valor para nossa língua, é simples barulho. Desta maneira, o
significante é significante porque faz sentido para o falante. Portanto, o
que não compreendemos, ou o que nos chama atenção, seja por sentido
dúbio, por seu sentido metafórico ou por seu sentido metonímico, ou por
31
qualquer outra razão, é o que questionamos ao paciente. Quando o paciente
fala sobre si, usa palavras que são, senão todas, pelo menos a maioria,
compreendidas pelo analista, e é isto que faz a comunicação.
Além disto, podemos questionar a asserção de Lacan de que o
significante, enquanto tal, não significa nada. De fato, se formos pensar em
um significante isoladamente, ele não significa nada. Ele existe porque
está em relação com outros, e por isto sua significação depende do
contexto em que aparece. Assim, Hjelmslev muito bem nos relata:
Toda grandeza, e por conseguinte todo signo, se define de
modo relativo e não absoluto, isto é, unicamente pelo lugar
que ocupa no contexto. Portanto, torna-se absurdo
distinguir entre as significações puramente contextuais e as
que poderiam existir fora de todo contexto ou no dizer
dos velhos gramáticos chineses entre palavras ‘vazias’ e
palavras ‘cheias’. As significações ditas lexicais de certos
signos são sempre apenas significações contextuais
artificialmente isoladas ou parafraseadas. Considerado
isoladamente, signo algum tem significação. Toda
significação de signo nasce de um contexto, quer
entendamos por isso um contexto de situação ou um
contexto explícito, o que vem a dar no mesmo (...). (1975:
50)
Portanto, há uma compreensão de que o signo só é o que é por estar
em relação, assim como qualquer palavra dita por um paciente, que
significa o que significa por estar inserida em um discurso.
Desta forma, para que uma re-união entre a Psicanálise e as Ciências
da Linguagem ocorra, é necessário que alguns pontos, tais como os
salientados anteriormente, sejam repensados. A minha compreensão é a de
que Lacan, na realidade, nunca deixou de buscar os sentidos em suas
análises, e mesmo quando tentava defender uma primazia do significante,
fazia-o como se estivesse tratando do signo. Justifico esta minha afirmação
32
baseada principalmente na teoria da linguagem proposta por Hjelmslev, que
apresento adiante.
2.2.1.
A
TEORIA DE
H
JELMSLEV
:
UMA NOVA POSSIBILIDADE
Após Saussure, os lingüistas se dividem basicamente em dois grupos:
os que estudam o plano dos significantes (com a Fonologia e a Fonética), e
os que se atêm ao significado (com a Sintaxe e a Semântica).
Hjelmslev é um teórico, natural de Copenhague, Dinamarca, que se
encontra principalmente no campo da Semântica, e o faz a partir de sua
leitura de Saussure. Para ele, a palavra não é sinônima de signo, já que ela se
decompõe em partes menores que trazem significação. Por exemplo,
“desajustados”, “des” significa “não”, e “–os” significa “plural masculino”.
Assim, não podemos analisar uma palavra como um todo isolado, mas a
partir das relações entre as partes da mesma. A significação reside nas
relações que se dão no interior do signo ou de qualquer outro objeto. A
Lingüística Estrutural, tal como postulada por Hjelsmlev, sustenta que a
análise da linguagem permite separar partes que se condicionam
reciprocamente, em que cada uma depende das outras. Desta forma, um
signo também não deve ser estudado separadamente, mas sempre em
conjunção com outros signos.
Hjelmslev elaborou uma equação semelhante à de Saussure para o
signo, no entanto, com algumas diferenças, como: para o dinamarquês, não
uma forma única, mas uma união recíproca de duas formas: a forma do
conteúdo (FC) e a forma da expressão (FE), que, na leitura de Beividas (2000),
seriam definidas da seguinte maneira:
A forma de expressão responderia pelas demarcações que
a língua elege no contínuo sonoro, para a constituição das
suas estruturas discriminatórias do plano da expressão; a
forma do conteúdo responderia pela maneira como se
33
articulam os conteúdos ou as significações do plano do
conteúdo (
BEIVIDAS
, 2000: 340)
A equação de Hjelmslev se dá de acordo com o seguinte esquema:
Sc
Fc
Fe
Se
Atentemos que a forma não equivale a significante, assim como a
substância não equivale a conteúdo ou significado, mas sim que o plano da
expressão, do significante, tem sua forma e sua substância (Fe/Se), do
mesmo modo que o plano do conteúdo, do significado, tem sua forma e
sua substância (Fc/Sc). Para entendermos melhor a “forma do conteúdo”,
podemos nos remeter a distintas organizações utilizadas pelos mais
diferentes idiomas para a expressão do mesmo conteúdo, conforme o
exemplo que Beividas empresta do lingüista André Martinet:
Eu tenho dor de cabeça
Me duele la cabeza
J’ai mal à la tête
Aqui estão salientadas algumas maneiras pelas quais o sujeito pode
noticiar a sensação de dor-de-cabeça. um sentido anunciado em três
formas diferentes, ou seja, um mesmo sistema de conteúdo se organiza em
formas de conteúdo distintas. Para o falante português, diz-se que ele
“tem” uma dor especificada, enquanto que para o espanhol, é a cabeça que
Fc= Forma do conteúdo
Sc= Substância do conteúdo
Fe= Forma da expressão
Se= Substância da expressão
34
lhe dói. E na língua francesa, a dor vem “localizada”. E todas essas
especificidades e particularidades de cada língua, na comparação, se alocam
eminentemente no plano do conteúdo (do significado saussuriano),
especificidades sintático-semânticas que nada ficam devendo à conta do
plano da expressão (do significante). Portanto, o que o dinamarquês
defende é que as línguas utilizam, além das formas de expressão diferentes
(significantes), formas diferentes também de organização desse sentido
comum trocado em suas experiências, isto é, formas do conteúdo
(significados). O que se conclui com isto é que as formas de articulação dos
conteúdos independem das formas de articulação da expressão, que seriam os
fonemas (cf. a análise breve a que Beividas procede no capítulo “Um
conteúdo estruturável: a «forma do conteúdo»” (2000: 339-41)).
A glossemática, fundada por Hjelmslev, é uma pesquisa lingüística
puramente estrutural, insiste na forma (até aqui negligenciada em favor da
substância), e procura compreender a forma do conteúdo, não apenas a da
expressão. Uma forma não pode existir sem a outra, nem uma
prioridade em relação à outra. uma pressuposição recíproca da
expressão (E) e do conteúdo (C). O que nos traz a significação é
exatamente esta função recíproca, que manifesta o signo. A essa função,
que manifesta a dependência entre a forma do plano da expressão e a forma
do plano do conteúdo, Hjelmslev chama: função semiótica. Assim, uma
expressão é uma expressão porque é expressão de um conteúdo, e um
conteúdo só é conteúdo porque é conteúdo de uma expressão. Dito
saussurianamente, um significante é significante se tiver nele implicado
necessariamente um significado, e igualmente um significado pode ser
dito significado se expresso por um significante.
O dinamarquês interessa-se pela relação, acredita na
combinabilidade, manifesta na função semiótica. Para ele, existem dois
35
princípios básicos: a autonomia, em que a língua é fundante, mais que
fundada, e a imanência, que revela sua importância a partir da função
semiótica. Assim, para o lingüista, a linguagem é essencialmente uma
entidade autônoma de dependências internas, ou seja, uma estrutura.
um todo formado de fenômenos solidários tais que cada um depende dos
demais e pode ser o que é em e por sua relação com os demais. Desta
forma, falar de estrutura também implica falar sobre dependência.
2.2.2.
L
ACAN E
H
JELMSLEV
:
TENTATIVA DE UM RE
-
COMEÇO
O que pretendo salientar aqui é a idéia de que o uso de Lacan do
significante tem, segundo Beividas, uma “forte correspondência com o
conceito hjelmsleviano de forma semiótica (relação de pressuposição recíproca
entre a forma do conteúdo e a forma da expressão)” (2000: 310). O psicanalista
francês parece acreditar em um significante com duas faces, o que parece
poder ser compreendido apenas a partir da forma semiótica de Hjelmslev.
Além disto, pontuo que o psicanalista, apesar de discordar da concepção
saussuriana de signo, muitas vezes teoriza o significante como se este fosse,
na realidade, um signo. Citarei alguns exemplos para a melhor compreensão
do que acabei de afirmar, que o significante lacaniano parece ter dois lados.
Isto pode ser notado, por exemplo, quando o psicanalista faz uma
contraposição entre “dia X noite”, ou quando cita a oposição tão bem
estudada por Freud “fort X da”. Na primeira oposição, uma oposição
sígnica, somente possível porque o sentido de dia se contrapõe com o de
noite. Se o objetivo fosse, de fato, fazer uma contraposição entre
significantes, como lembra Beividas, ela teria que ser feita com, por
exemplo, “dia X tia”, em que o “d” e o “t” se contrapõem como fonemas, e
o conteúdo não interessa.
36
Outro exemplo que o psicanalista usa para ilustrar a construção a
partir de uma cadeia significante é se remetendo ao caso do “Familionário”
(Familionär) de Freud. Ora, podemos entender o que quer dizer esta
condensação à medida que compreendemos que Familionário é uma
síncope de duas palavras, ambas com seu sentido estabelecido em língua:
“Famili” (que concerne à família) e “-milionário” (que concerne a
milionário). O efeito de estranheza que surge quando se escuta a palavra
somente acontece porque “Familionário” não é uma palavra comum aos
nossos ouvidos, ou seja, não a entendemos como uma forma única que
carrega um sentido. No entanto, ao decompor a palavra, como devemos
fazer em uma análise, observamos que efeitos de sentido traz cada parte
dela.
Outro momento em Lacan que podemos apontar é na seguinte
ilustração:
O psicanalista usa este exemplo para “mostrar como o significante
de fato entra no significado” (1957/1998: 503). No entanto, parece se
prender ao significante como palavra, o que é um erro na compreensão de
Saussure. O significante é mera impressão acústica, ou seja, som, que só faz
sentido porque está acoplado ao sentido. Assim, quando lemos “homens”
em cima de uma porta, pensamos imediatamente no sentido da palavra e a
contextualizamos, ou seja, se “homens” está em cima de uma porta de um
HOMENS MULHERES
37
toilette, logo inferimos que o banheiro é para ser utilizado por pessoas do
sexo masculino.
Outro caso de equívoco é quando o psicanalista francês usa o
exemplo de uma metonímia em: “trinta velas” e “trinta barcos”. Ele afirma:
“onde se que a ligação do navio com a vela o está em outro lugar
senão no significante, e que é no de palavra em palavra dessa conexão que se
apóia a metonímia” (Ibid: 509). Ora, inferimos que trinta velas se
relacionam com trinta barcos por causa do contexto em que as palavras são
utilizadas, se nos é dito: “trinta velas estão ao mar”, contextualizamos as
palavras e inferimos que são trinta barcos. Não porque o significante
carrega o significado, mas porque uma forma de expressão pode trazer
diversos conteúdos e vice-versa. Ao relacionarmos “vela” com “barco”,
estamos, sim, relacionando a partir do conteúdo da palavra “vela”. Noutros
termos, no conjunto dos significados possíveis de vela, um deles « peça
de um barco » que permite intersecção semântica com barco. E é essa
intersecção semântica que permite a metonímia « parte pelo todo ». Tanto é
que, se nos fosse dito, ao contrário, “trinta velas estão acesas”, inferiríamos
outra coisa diferente, jamais a metonímia em exame. O papel do
psicanalista é então interrogar-se sobre essa polissemia – isto é, multiplicidade
de significados, e não de significantes, sobre o que o paciente quer dizer
com estas “velas” e com o que ele as relaciona.
Outro exemplo de metonímia que Lacan nos traz é em: trouver”,
afirmando que a palavra traz vários sentidos em um só. Fazendo um
paralelo com o exemplo lacaniano, cito uma palavra em português que
pode ter sentidos completamente diferentes se posta em contextos
distintos: “cachorro”. Podemos falar: “o cachorro é o melhor amigo do
homem”, e “o cachorro do meu patrão me demitiu”. Logo, vemos que
assim como em trouver”, a palavra “cachorro” pode trazer conteúdos ou
38
significados distintos expressos em uma mesma forma. Portanto, o que
torna possível a compreensão é o contexto em que a palavra é apresentada,
o que salienta que o sentido depende do contexto em que a palavra é
inserida. Fica-nos claro, portanto, que a teoria dos signos de Saussure foi
vista equivocadamente por Lacan, uma vez que ele a compreendeu
principalmente a partir de um aprisionamento do significante ao
significado, ou seja, acredita que o signo é rígido e imutável, erro este,
segundo Cañizal e Lopes, comum:
No estruturalismo clássico, cujo mentor é o autor do Curso
de Lingüística Geral, o modelo do signo pode gerar, como de
fato tem gerado, a noção errônea do signo como uma
entidade fechada, pré-construída, e estática. O modelo
glossemático, em contraposição, concebe essa entidade
como uma unidade de configuração; em virtude disso, a
forma do conteúdo de um signo é indiferente às
dimensões do plano da expressão que o manifesta.
(
HJELMSLEV
, 1975: IX)
Assim, Hjelmslev esclarece o pensamento de Saussure, não
permitindo que estas concepções errôneas sejam geradas. A glossemática
traz uma continuação a uma concepção de signo carregada de mobilidade, e
possibilita a asserção de que o significante “lacaniano” coincide com o
signo do modelo glossemático, uma vez que ambos são uma unidade de
configuração, que depende de seu contexto para que sua significação seja
inferida.
O dinamarquês defende que a língua, por ser estrutural, é uma
unidade de dependências internas, indicando que cada termo depende do
outro para que haja determinada significação, e que a análise desta procede
em uma “descrição de um objeto através das dependências homogêneas de
outros objetos em relação ao primeiro e das dependências entre eles
reciprocamente”.(Ibid: 34). Lacan salienta bem isto, de forma diferente,
quando afirma que o significante como tal, “não se refere a nada, a não ser
39
que se refira a um discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a
uma utilização da linguagem como liame” (1972-3/ 1985: 43). Daí
entendemos a importância dada pelo psicanalista francês à cadeia
significante, definida como “anéis cujo colar se fecha no anel de um outro
colar feito de anéis” (1957/1998:505), que apenas a partir das correlações
de um significante com outro significante (e assim por diante), é que a
busca pela significação seria possibilitada, o que quer dizer que é na cadeia
significante que há o sentido.
Concluindo esta breve discussão, me parece possível um estudo em
que haja uma inter-relação entre a psicanálise e uma disciplina que estuda a
linguagem de uma maneira renovada, baseada em estudos de Hjelmslev,
como a Semiótica. Para isto, me apóio em uma compreensão de que o
significante lacaniano não é esvaziado de significado e na afirmação
lacaniana de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, que
nos leva a crer que o único meio para se atingir o inconsciente é via
linguagem. Se isto não é suficiente, afirmo que a Semiótica pode se
autorizar plenamente em Freud, que em suas interpretações sempre busca
um sentido em conteúdos manifestos com os quais se depara.
40
Cap.
3
PSICANÁLISE
E
SEMIÓTICA:
UMA
PROPOSTA
DE
TRABALHO
“A semiótica pode contribuir, não para
fazer o poema falar, mas para escutá-lo
melhor”.
Claude Zilberberg
(1988:155)
Lingüística Moderna muito se desenvolve desde seu
surgimento, o que torna necessária uma constante
atualização por parte de um pesquisador. Ficar restrito aos estudos de
Saussure é o mesmo que ser impedido de prosseguir ao início de uma
caminhada. Sabendo disto, acreditamos que a Psicanálise deve estender sua
interlocução com esta disciplina que se encontra mais rica e refinada, e,
portanto, com mais contribuições a oferecer.
A Semiótica Greimasiana é um dos frutos das teorizações de
Ferdinand de Saussure, o pai da Lingüística Moderna. Greimas amplia os
estudos do suíço ao entender como objeto de estudo da disciplina não
apenas a linguagem verbal, mas todas as outras formas de realização
linguageira, tais como gestos, músicas e pinturas. Além disto, passa a
explorar a forma do conteúdo e a forma da expressão de qualquer linguagem,
conforme o ensino de Hjelmslev. Assim, podemos dizer que Greimas, com
sua pesquisa, re-significa a teoria saussuriana e a partir da leitura que lhe dá
Hjelmslev, procura instituir um novo saber.
3.1.
A
S
EMIÓTICA
G
REIMASIANA
Greimas, tendo por base a concepção estrutural de linguagem de
Hjelmslev, funda a Semiótica Estrutural, que estuda precisamente o modo
A
41
de construção das significações para todo e qualquer campo de discurso ou
de linguagens.
Natural da Lituânia e radicado na França, Greimas apodera-se do
conceito de semiótica do dinamarquês, que defende a existência de uma
hierarquia no interior da língua possível de ser submetida à análise e cujos
elementos podem ser determinados por relações recíprocas. A relação é o
objeto de estudo por excelência do semioticista, uma vez que não
significação em um elemento lingüístico isolado.
O que funda os objetos semióticos, afirmará mais tarde
Greimas, é o estabelecimento (a produção e/ou o
reconhecimento) das relações ou das redes relacionais’
(1979:314). Esse é o conceito central sobre o qual se erige
o projeto semiótico (
FIORIN
In:
OLIVEIRA
& L
ANDOWSKI
,
1995: 29).
Para Greimas, o mundo toma forma para nós por causa das
diferenças. Perceber as diferenças quer dizer: “Captar ao menos dois
termos-objetos, como simultaneamente presentes” (1973: 28) e apreender a
relação entre eles. Para isto, é preciso que estes termos tenham algo em
comum e que sejam diferentes. Para compararmos, é necessária a diferença,
ao mesmo tempo em que também tem que haver a semelhança.
Além disto, a semiótica greimasiana acredita que uma construção
da significação anterior a qualquer manifestação de efeito de sentido em um
discurso. Isto indica que o discurso é construído, e que ele “se deixa
decompor em unidades cada vez menores quanto mais a análise progride
em imanência”. (
BEIVIDAS
, 1987: 214). Desta maneira, podemos dizer que
“a análise semiótica é interna, ou seja, propõe fundar-se num princípio da
imanência, buscando, portanto, explicar os mecanismos discursivos de
produção do sentido, mostrar como o texto diz o que diz”. (
FIORIN
In:
OLIVEIRA
&
LANDOWSKI
, 1995: 36)
42
3.1.1. A
ANALISE DO TEXTO
Greimas, ao analisar o texto, parte das formulações do folclorista
Vladimir Propp sobre o conto maravilhoso. O russo acredita que no conto
existem sempre as mesmas funções, desempenhadas por sete personagens:
agressor, doador, auxiliar, pessoa procurada, mandante, herói e falso herói.
No entanto, as formulações de Propp são limitadas ao conto maravilhoso, e
o semioticista busca algo mais abstrato e com maior extensão, o que o
permite refinar o esquema de Propp. Assim, passa a determinar seis
actantes ordenados em três pares: destinador vs destinatário, relacionados
pela comunicação, adjuvante vs oponente, relacionados pela ação, e sujeito
vs objeto, relacionados pelo desejo. Os actantes acima mencionados se
encontram na esfera de manipulação de enunciados, definidas com uma
relação-função entre pelo menos dois actantes.
O destinador é quem comunica ao destinatário “não somente os
elementos da compencia modal, mas também o conjunto dos valores em
jogo; é também ele que é comunicado sobre o resultado da performance do
destinatário-sujeito, que ele sanciona”.(
GREIMAS
&
COURTÉS
, 1979: 95).
Contudo, o destinatário não é uma figura passiva no discurso, pois não
recebe apenas um saber, ele, antes de tudo, julga o que lhe é comunicado.
Os oponentes criam obstáculos, opõem-se à realização do desejo e à
comunicação, e os adjuvantes são os que auxiliam, agindo no sentido do
desejo, ou facilitando a comunicação. o sujeito é ativo, enquanto que o
objeto é passivo.
Esta sintaxe é a narrativa de superfície, ou simplesmente sintaxe
narrativa. Segundo Greimas e Courtés (Ibid.:383), “tudo parece mostrar que,
geneticamente, a sintaxe narrativa de superfície é a fonte originária de todo
processo semiótico”. No entanto, esta sintaxe é apenas a mais superficial,
43
como o próprio nome diz. A instância ab quo do percurso gerativo dos
discursos é a sintaxe fundamental, juntamente com a semântica
fundamental, cujo representante principal é o quadrado semiótico, que
exporemos em seguida.
3.1.2.
Q
UADRADO SEMIOTICO
As primeiras articulações da significação são representadas pelo
quadrado semiótico, explicitadas pelas relações (contrariedade/
contradição/ implicação) que organizam e definem uma categoria
semântica. O quadrado toma por princípio que para se conhecer é
necessário anteriormente negar. Assim, cercamos uma determinada zona e
negamos o que não é este lugar. Em seguida, categorizamos a perda deste
objeto, ou seja, fazemos uma contradição. Podemos exemplificar o
quadrado semiótico a partir da seguinte ilustração:
(Quadrado da veridicção)
Verdade
Ser Parecer
Segredo Mentira
Não- parecer Não- ser
Falsidade
No quadrado semiótico, existem dois tipos de relações binárias:
contrariedade (/
SER
/
VS
/
PARECER
/
E
/
NÃO
-
PARECER
/
VS
/
NÃO
-
SER
/) e
contradição (/
SER
/
VS
/
NÃO
-
SER
/
E
/
PARECER
/
VS
/
NÃO
-
PARECER
/). Na
relação de contrariedade, a presença de um elemento pressupõe a do outro,
44
e na de contradição “a negação de um termo que provoca a aparição do
outro” (Ibid.: 380).
Notemos que para a construção de sentido, há não somente pares de
opostos, mas um espaço onde todos os contrários e contraditórios são
possíveis, e combináveis entre si. O sentido surge da diferença. Isto
possibilita a natureza “diferencial” da significação. Quando falamos de
/
SER
/, remetemo-nos a todas as outras possibilidades de articulação no
“quadrado semiótico” acima. Qualquer asserção virá com uma memória
que pressupõe um enunciado de negação (eixo do contraditório) e um de
contradição (eixo dos contrários) que lhe é anterior e vice-versa. Desta
forma, uma transformação. O caminho de /
SER
/ a /
PARECER
/ passa
antes pelo /
NÃO
-
SER
/. Negamos o termo antes de afirmar o seu contrário.
Contudo, /
SER
/ o é uma simples asserção, mas um lexema carregado de
‘memória’, que pressupõe um enunciado de negação anterior. Assim, o
valor de cada termo tem que ser precisado pela relação que tem com todos
os outros, não com um só.
Pelo quadrado semiótico podemos observar de onde sai o percurso
que conduz da imanência à manifestação, ou seja, como passamos das
estruturas profundas às estruturas superficiais. Desta maneira, o quadrado
semiótico pode se prestar a representar qualquer enunciado, assim como
também o modal.
3.1.3.
M
ODALIZAÇÕES
Inicialmente, as modalidades são objeto de estudo da lingüística, que
as define como um predicado que modifica outro predicado.
Posteriormente, até os dias atuais, as modalidades passam a ser objeto da
Semântica, que a elas uma nova função: exprimir a posição do
enunciador em um discurso.
45
O estudo das modalidades é de grande importância para
compreensão do sujeito narrativo, e é uma peça fundamental das teorias do
sujeito, do objeto e da sintaxe semiótica. A sintaxe narrativa é articulada
principalmente pelas modalizações, que traduzem o “ser” do sujeito
narrativo, o que permite induzir que essas poderiam dar conta de
numerosas práticas humanas.
Para Greimas (1976), existem duas formas de enunciados
elementares: /
FAZER
/
e /
SER
/, encontrados tanto em enunciados
descritivos quanto modais. No /
SER
/, é determinado o estado do sujeito
em relação a um objeto (conjunção ou disjunção). No /
FAZER
/,
passagens de um estado a outro, ou seja, “opera-se uma transformação na
relação entre sujeito e objeto: de disjunção para conjunção ou vice-versa”
(
FIORIN
In:
OLIVEIRA
&
L
ANDOWSKI
, 1995: 77). No /
FAZER
/, “há uma
operação duplamente antropomórfica: enquanto atividade, pressupõe um
sujeito; enquanto mensagem, é objetivado e implica o eixo de transmissão
entre destinador e destinatário” (
GREIMAS
, 1975: 154).
O semioticista lituano propõe que tanto o enunciado de /
FAZER
/
quanto o de /
SER
/ podem ser regidos por quatro modalidades, acopladas
ao /
CRER
/, que modificam os seus predicados: /
QUERER
/, /
DEVER
/,
/
PODER
/
e /
SABER
/. Com elas, podemos prever lógicas possíveis.
Juntamente com o /
FAZER
/, modalizam a relação do predicado com o
sujeito, modalizando o sujeito para a ação, e com o /
SER
/
modalizam a
relação do predicado com o objeto. Assim, além de ser possível prever
lógicas do processo de modalização a partir destas classes de modalizações,
podemos calcular compatibilidades, conformidades e incompatibilidades
(por exemplo, o /
DEVER
-
FAZER
/ é compatível com o /
NÃO PODER NÃO
FAZER
/, enquanto que o /
QUERER
-
FAZER
/ não é compatível com o /
NÃO
46
SABER FAZER
/). Podemos resumir as modalidades a partir da seguinte
representação proposta por Greimas e Courtés (1979: 231):
Modalidades Virtualizantes Atualizantes Realizantes
Exotáxicas Dever Poder Fazer
Endotáxicas Querer Saber Ser
As modalidades exotáxicas são passíveis de entrar em relações
translativas (liga enunciados com sujeitos distintos) e as endotáxicas são
simples (ligam sujeitos idênticos ou em sincretismo).
O /
QUERER
/ e o
/
DEVER
/ são modalidades virtualizantes, ou seja,
nelas o sujeito não está em junção com o objeto. São elas que sensibilizam,
mobilizam e dinamizam a cadeia. o /
SABER
/ e o /
PODER
/ são
modalidades objetivantes e cumulativas. No /
SABER
/, o enunciador se
assegura do saber do enunciatário “Você sabe que...? te disseram que...?”,
e no /
PODER
/, na medida em que o sujeito fala “eu posso fazer”, ele quer
dizer “eu fiz”. Desta forma, o /
SABER
/ e o
/
PODER
/ são de uma
temporalidade retrospectiva, enquanto que o /
QUERER
/ e o /
DEVER
/, de
uma temporalidade prospectiva.
As modalidades, como apresentado anteriormente, também são
passíveis de serem representadas através do quadrado semiótico, uma vez
que apresentam um percurso de significação. Esquematicamente, podemos
representá-las da seguinte forma, segundo Greimas (1976: 98-9):
47
me me mf mf
me me mf mf
A inserção das modalidades no quadrado semiótico é crucial, pois
pressupõe a compreensão de uma geração do discurso, onde o mais
fundamental é a representação no quadrado e o mais superficial é o que se
nas paixões, que surgem da reflexão sobre os arranjos modais. Assim, a
semiótica das paixões encara a modalização do sujeito através do programa
de fazer em que o sujeito engaja-se.
3.2.
S
EMIÓTICA E
P
SICANÁLISE
:
UMA PROPOSTA DE TRABALHO
A Semiótica, como uma ciência da significação, analisa como se a
significação a partir de um discurso, e extrai deste modelos explicativos. Já a
Psicanálise “escuta” este discurso e busca a manifestação do inconsciente
do sujeito. Desta forma, as disciplinas têm um objeto de estudo em
comum, apesar de o verem de formas distintas, o que não quer dizer, no
entanto, que não possam colaborar uma com a outra. Pelo contrário,
acreditamos que a Semiótica pode colaborar com a Psicanálise
imensamente, uma vez que pode dar recursos para que esta organize
estruturalmente seus conceitos e definições, estabelecendo interdefinições
entre estes e “construindo-lhe uma metodologia de descrição do
m – enunciado modal (querer, dever, poder e
saber).
f – enunciado do fazer
e – enunciado de estado
48
inconsciente tendencialmente mais consistente (e, por conseguinte,
condição de otimizar a sua transmissão)” (
BEIVIDAS
, 2000:279) Portanto, o
que se propõe aqui, a partir da teoria semiótica e juntamente com os
estudos de Forrester, Arrivé, Beividas (entre outros) é uma semiotização do
inconsciente, ou seja, uma exploração do inconsciente sob o ponto de vista de
uma teoria do discurso. Saliento, no entanto, que o que se deseja aqui não é
adequar uma teoria à outra, ou, como expressa Beividas:
Não [se] pretende subjugar a psicanálise à teoria semiótica
greimasiana. Não significa abandonar conceitos da
psicanálise em prol de conceitos da semiótica. Significa
tão-somente a experiência teórica de utilizar-se de certos
dispositivos metodológicos de uma, a semiótica, aplicados aos
conceitos da outra, a psicanálise. (Ibid.:301 itálicos do
autor)
Devemos entender que a Semiótica coloca-se, antes de tudo, como
uma disciplina auxiliar para a compreensão dos mais diferentes tipos de
significação, em vel descritivo e metodológico. Antes de interpretar, ela
ajuda a estruturar a significação, que é dada apenas a partir das relações de
um termo com outros termos.
Para explicitarmos e começarmos a demonstrar desde aqui como a
Semiótica contribuiria à psicanálise, podemos pensar no uso que Freud, no
decorrer de sua teorização, faz de palavras corriqueiras na língua alemã,
como, por exemplo: Verdrängung, Verneinung, Verleugnung e Verwerfung
(Recalque, Negativa, Denegação e Rejeição), palavras hoje muito importantes, na
verdade tornadas conceitos, na Psicanálise. Estes termos estão quase
sempre distribuídos em uma ou outra frase de Freud, misturados com
outras palavras, nem sempre havendo um estatuto de conceito.
Acreditamos que a Semiótica pode ajudar, como dito anteriormente, a
estruturar a significação, precisar e detalhar os semantismos implícitos
destes, e, conseqüentemente, dar à psicanálise uma mais forte
49
conceptualização de seus objetos. A Semiótica, assim, seria de grande
importância para a Psicanálise, colaborando com uma conceptualização
mais definida e, com isto, com uma melhor observação das sutilezas
semânticas no discurso do paciente, na medida em que este expõe o sujeito
do inconsciente.
Dessa maneira, o nosso objetivo daqui adiante é fazermos um ensaio
exploratório de como a Semiótica pode contribuir com a Psicanálise. Por
acreditar que os conceitos acima citados (Recalque, Negativa, Denegação e
Rejeição) carecem de uma melhor definição e delimitação, propomo-nos a
estudá-los mais detidamente a partir da teoria das modalidades. Assim, o
que leremos adiante é apenas uma primeira tentativa de um trabalho de
colaboração entre a Psicanálise e a Semiótica. Esperamos que este seja
apenas o primeiro passo dado de uma longa caminhada.
50
C
AP
.
4
A
V
ERDRÄNGUNG
uando buscamos o significado do verbo do qual Verdrängung
é derivado (verdrängen) no dicionário Grosswörterbuch Deutsch
als Fremdsprache”, encontramos:
1. alguém recalca alguém/algo (de/de algo), alguém ocupa
o lugar de alguém <alguém da sua posição, do seu lugar>,
2. algo recalca algo (de/de algo), algo ocupa gradualmente
o lugar ou função de algo: os grandes veleiros foram
recalcados por navios a vapor, 3. deixar algo desagradável
psíquico desaparecer de sua consciência: ela recalcou (a
lembrança) a vivência terrível. (2003: 1041).
Nesta definição, uma limitação: em razão do dicionário ser
atualizado, provavelmente se encontra impregnado por conceitos
psicanalíticos. É bem provável que a terceira definição do termo tenha
origem em Freud, e antes dele não fosse encontrada no idioma alemão
coloquial. Então, nos indagamos: será que quando o psicanalista começou a
escrever suas obras, o verbo possuía essa significação? Ou ficava restrito
às duas outras definições?
Mesmo sem encontrar a resposta para o questionamento acima, por
não termos acesso a dicionários contemporâneos a Freud, detenhamo-nos
na última definição encontrada no dicionário: “deixar algo desagradável
psíquico desaparecer de sua consciência”, apesar de considerarmos também
as outras definições de grande importância, uma vez que, quando se pensa
em algo ocupar o lugar/função de outra coisa, é inevitável inferirmos as
formações substitutivas que surgem com a Verdrängung.
Na terceira definição, sublinho dois verbos: “deixar” e
“desaparecer”. O primeiro fala da posição do sujeito, e o segundo da do
Q
51
objeto. “Deixar” seria: “permitir ou possibilitar que alguém faça algo” (Ibid.:
634). “Permitir” significa “concordar que alguém deva fazer algo” (Ibid.:
311), “possibilitar” é “tornar possível”, e “possível” é “poder existir” (Ibid.:
702).
“desaparecer” significa: “1. Ir embora, e não estar mais para se ver
(...) 2. Não estar para alguém encontrar (...) 3. Algo parar de existir” (Ibid.:
1123). Saliento que antes de o objeto da frase estudada “desaparecer”, foi
classificado como “desagradável”, que é “1. difícil ou desfavorável para
alguém (...), 4. Algo doloroso para alguém” (Ibid.:1065)
Na definição etimológica de Verdrängung”, então, encontramos na
posição do sujeito os verbos modais:
FAZER
com que
POSSA
/
DEVA
EXISTIR
/
FAZER
a desaparição do objeto, ou seja, o
NÃO
-
SER
objetal para se
ver/ encontrar. O sujeito, portanto, permite, possibilita, que algo
desagradável, doloroso,
NÃO
-
ESTEJA
encontrável à consciência. uma
atividade do sujeito, que determina o que
PODE
/
DEVE
acontecer a este
conteúdo, ou, em outras palavras, qual
PODE
/
DEVE
ser seu estado.
Com a posse da definição alemã do termo, podemos pensar em sua
tradução psicanalítica para a língua portuguesa, que é: recalque ou
repressão. Hoje em dia, a tradução mais utilizada no meio psicanalítico é
recalque, provavelmente pela influência francesa que a psicanálise brasileira
sofre (na tradução de Laplanche das Obras Completas de Freud, o termo
utilizado é refoulement, mais bem traduzido por recalcamento). No entanto,
na atual tradução brasileira das Obras, como também nas traduções inglesa
e espanhola, o termo ainda utilizado é repressão.
O termo repressão remete-nos ao ato de reprimir (-se), que significa:
1. Sustar a ação ou movimento de; conter, reter, moderar,
coibir, refrear, represar (...) 2. o manifestar, ocultar,
disfarçar, dissimular (...) 3. Violentar, oprimir, vexar,
tiranizar (...) 4. Impedir pela ameaça ou pelo castigo,
52
proibir (...) 5. Castigar, punir (...) 6. Conter-se, moderar-se,
dominar-se, refrear-se (
FERREIRA
, A. Buarque de Holanda,
1986:1490)
Percebemos aí várias semelhanças com o conteúdo original do
termo. No entanto, como é de se esperar, seu significado não é de todo
igual. O que de semelhante é o sentido de contenção, de impedimento,
de algo cuja manifestação não se quer.
no termo recalque, onde há o ato de recalcar, temos como
significação: “1. Calcar outra vez; repisar (...) 2. Insistir em (...) 3. Impedir a
expansão de; conter, reprimir, refrear (...) 4. Bras., Luxar (um membro)”
(Ibid.: 459). Para definirmos este termo, portanto, temos que saber
previamente o que é “calcar”:
1. Pisar com os pés (...) 2. Machucar com força, comprimir
(...) 3. Fig. : Oprimir, humilhar, vexar (...) 4. Reprimir,
conter (...) 5 Não dar importância a , desprezar (...) 6.
Decalcar (...) 7. Machucar com força; comprimir (...) (Ibid.:
318)
Nesta tradução, apesar de nela estar inclusa a palavra “reprimir”,
encontramos um limite que necessitamos pensar: a palavra alemã não tem,
em nenhum ponto, algo que leve a pensar que algo aconteceu
anteriormente para depois se “fazer de novo”.
Contudo, para discutir qual seria a melhor tradução, observaremos
em Freud quando houve o uso do termo, para depois chegarmos a alguma
conclusão. Provisoriamente, a tradução utilizada será a de “recalque”.
4.1.
O
CONCEITO NO TEXTO FREUDIANO
O conceito é trabalhado em Freud desde suas teorizações iniciais,
como, por exemplo, em seu trabalho com Breuer Studien über Hysterie
(“Estudos sobre a Histeria”) (1895), em que expõe que um conteúdo
53
que o paciente “quis esquecer, que recalcou intencionalmente de seu
pensamento consciente, inibiu e reprimiu” (1895/1993: 89). Atentemos
para “quis esquecer” e para “intencionalmente”, que indicam um
esquecimento intencional, o que muda radicalmente a visão que se tinha
dos pacientes, que apenas sofriam, padeciam, de seus sintomas, sendo,
portanto, passivos. Havendo uma intencionalidade, há uma escolha do
paciente, consciente ou inconsciente, frente ao que sofre.
Para recalcar um pensamento consciente, em Freud, tem que haver
uma divisão da consciência anterior, uma vez que o esquecido vai para
outro lugar, onde não incomode mais.
A divisão da consciência, nestes casos da histeria adquirida,
é, com isso, querida, intencionalmente, ao menos através
da introdução de um ato volitivo. No fundo acontece outra
coisa, quando o indivíduo tenciona, gostaria de suprimir
uma representação, como se ela nunca tivesse chegado, e o
que bem sucede para ele é isolá-la psiquicamente (1895/
1993: 182) (itálicos meus)
Ao suprimirmos uma representação, retiramos esta da cadeia de
pensamento consciente, e por este ato de volição a divisão da
consciência. Esta hipótese de que há uma vontade do paciente, ou seja, uma
intencionalidade, um esquecimento voluntário, nunca foi abandonada pelo
psicanalista. Em Hysterische Phantasien und ihre Beziehung zur Bissexualität
(“Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade”) (1908), salienta:
As fantasias inconscientes ou eram inconscientes, foram
formadas no inconsciente, ou, o que é o caso mais
freqüente, foram uma vez fantasias conscientes, sonhos
diurnos e então esquecidos intencionalmente, mandados
pelo recalque ao inconsciente (1908/ 1982:190).
Em Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie” (“Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade”) (1905), Freud define o recalque como “um
processo psíquico em que a entrada para a experiência através da atividade
54
psíquica do consciente é recusada” (1905/ 1982: 73). O recalque é, então,
um impedimento voluntário (uma recusa) de que algo venha à consciência,
ou permaneça nela. Com isto, a amnésia histérica é um dos sintomas
freqüentes ocasionados pelo recalque:
A amnésia histérica, ocasionada pelo recalque, é explicada
somente através da situação em que o indivíduo possui um
tesouro de traços de lembrança privados da disposição
consciente e agora arrancados por ligações associativas, de
onde trabalham do consciente as forças de impelimento do
recalque (Ibid.: 83).
Assim, quando há um esquecimento, é porque o recalque aconteceu.
O conceito de recalque muitas vezes é, durante o desenvolvimento
da teoria psicanalítica freudiana, confundido com o de defesa. Prova disto é
que, em 1906, o pai da psicanálise expõe sua mudança: “recalque (que eu
comecei a falar em vez de “defesa”)” (1906/1982: 154). No entanto, apesar
de ter afirmado isto, diversas vezes, durante sua obra, uma diferenciação
entre recalque e defesa. Por exemplo, existem “defesas secundárias”
(1909/1982: 441) e não “recalques secundários”, e o psicanalista vienense
afirma “A defesa deixou-se enganar pelo recalcado” (Ibid.: 443), o que
mostra uma diferença entre defesa e recalque.
Em 1914, em Zur Geschichte der psychoanalytischen Bewegung (“A
História do Movimento Psicanalítico”), Freud, reconhecendo a importância
do recalque na teoria psicanalítica, salienta que “o ensinamento do recalque
é agora o pilar fundamental que suspende o edifício da psicanálise”
(1914/1993: 54). De fato, a importância atribuída ao recalque foi tão grande
que, em 1915, há a publicação do texto “Die Verdrängung (“O Recalque”).
55
4.1.1.
D
IE
V
ERDRÄNGUNG
(1915)
Este texto é inaugurado pela idéia de que o recalque é um dos
destinos possíveis de uma pulsão, e ocorre quando esta esbarra “em
resistências que querem fazê-la inoperante” (107). O que acontece neste
mecanismo é que a satisfação de uma pulsão gera prazer em um lugar e
desprazer em outro, mas o desprazer possui mais força, o que favorece o
recalque.
Aqui, o recalque é colocado como um mecanismo de defesa,
tornando clara a diferença entre ambos, como na passagem: “o recalque
não é um mecanismo de defesa que existe desde o início, ele pode surgir
quando se estabelecer uma forte cisão da atividade mental consciente e
inconsciente” (108). Mais uma vez, deparamo-nos com a divisão da
consciência como condição primordial para o acontecimento do recalque.
Apenas isto possibilita a essência do recalque, que “consiste na recusa
(Abweisung) e no afastamento do consciente” (108).
Há uma divisão do recalque em duas fases: (1) recalque original
(Urverdrängung) e (2) recalque propriamente dito (eigentliche Verdrängung).
(1) Recalque original: nega-se “a entrada no consciente ao
representante pulsional psíquico (representativo)” (109). A partir daí se
uma fixação;
(2) Recalque propriamente dito: as representações ligadas ao
representante recalcado, e derivados deste, sofrem o mesmo destino do
recalcado original. Ao dizer do que se trata nesta fase, Freud utiliza o verbo
nachdrängen“, que significa: “seguir, perseguir o inimigo” (
LANGENSCHEIDT
,
1982: 972), o que, de fato, se passa, persegue-se tudo que possui ligação
com o representante recalcado.
56
No entanto, com o recalque não se impede que este representante
permaneça a se organizar, produzindo formações, se articulando e tentando
se disfarçar para que se consiga um acesso ao consciente. Assim, quando
pedimos para que o paciente associe, não solicitamos nada além de
“produzir derivados do recalcado”, ou seja, elementos que, com a ausência
de críticas, possam ter acesso ao consciente.
Como características fundamentais do recalque, encontramos a
individualidade e a mobilidade. Isto é, cada derivado tem seu próprio
destino, e o recalque não acontece apenas uma vez. Sobre a última
característica, Freud faz a seguinte comparação: “se mata um ser vivo e a
partir daí ele está morto” (112). Com o recalque, isto não acontece, um
dispêndio constante de força para mantê-lo.
Enfim, o psicanalista, fazendo um paralelo entre o recalque e uma
situação corriqueira, afirma: “como se eu ordenasse a um spede
indesejado que saia do meu salão ou da minha sala de espera, não deixasse
entrar sobre a soleira da porta do apartamento após -lo reconhecido”
(113). Verificamos aqui uma operação ativa do sujeito, que não quer a
entrada do elemento em sua consciência.
Cada psiconeurose apresenta o recalque de forma diferente, mas via
de regra cria uma formação substitutiva e também “deixa sintomas em seu
rastro” (114), sendo os últimos sinais de um retorno do recalcado.
Na histeria de angústia, ou de medo, de modo geral, acontece uma
substituição do objeto da libido por um objeto de angústia. A parcela
quantitativa do representante transforma-se em angústia. Este é um caso
mal-sucedido por não se poupar o desprazer.
a histeria de conversão pode ser um caso bem sucedido, pois o
afeto pode desaparecer, se ligando ao sintoma.
57
Na neurose obsessiva (Zwangsneurose), podemos, antes de descrevê-la,
falar sobre seu nome, que seria mais bem traduzido por “neurose de
obrigação”. Inicialmente, a operação obtém êxito, “o conteúdo da
representação se recusado (abgewiesen) e o afeto levado ao
desaparecimento” (117), o recalque faz com que haja uma privação
constante da libido. No entanto, “o afeto desaparecido retorna,
transformado em medo social, medo consciente, autocensuras ilimitadas; a
representação recusada (abgewiesen) é substituída por um substituto por
deslocamento”(Ibid.).
A partir desta discussão sobre o texto die Verdrängung (“O
Recalque”), podemos ter uma idéia geral sobre o conceito de recalque em
1915.
Em 1926, em Hemmung, Symptom und Angst(“Inibições, Sintoma e
Ansiedade”), Freud indica mais uma vez o que já tinha sutilmente afirmado:
“nós diferenciamos a tendência generalizante de ‘defesa’ do ‘recalque’, que é
apenas um mecanismo de que a defesa se serve” (1926/ 1982: 258).
Portanto, o recalque é uma forma especial de defesa, que consiste em o
sujeito querer esquecer algo indesejável que entrou na consciência.
4.2.
A
TRADUÇÃO
Freud, ao trabalhar o conceito de “recalque”, coloca-o perto de
outras palavras que o ajudam a conceituá-lo, como: esquecer, recusar
(abweisen), querer fazer inoperante, afastar, negar entrada, não deixar entrar,
intencional e indesejado.
Esquecer é “perder da memória, não poder mais lembrar de alguém/
algo” (
LANGENSCHEIDT
, 2003: 1106). Recusar (abweisen) é “recusar (ablehnen)
decididamente alguém/ algo fortemente” (Ibid.: 21), e recusar (ablehnen) é
“não aceitar algo, porque não se quer ou não se pode.” (Ibid.:10).
58
Com isto, podemos pensar no recalque como um processo em que
decide-se, logo o sujeito manifesta o seu querer, sobre a estadia de algo na
consciência. Para tanto, faz um julgamento deste “algo”, classificando-o
em desejado ou não, e, posteriormente a isto, define se ele “pode/ deve”
ser lembrado pela consciência. Se não, o ser” do objeto deve desaparecer,
ou ir para outro lugar em que não seja visto. Assim, entenderemos o
recalque como o mecanismo em que desaparece (pelo menos é o que se
quer) o que lhe é desagradável.
Frente ao discutido, podemos agora pensar que tradução seria
melhor utilizada para o termo: repressão ou recalque.
Não se tem qualquer barreira ao utilizar “repressão”, podemos
utilizar em qualquer trecho escrito por Freud, sem qualquer problema. No
entanto, não é o que ocorre com o outro. Se falarmos em “recalque”, não
podemos dizer “recalque original”, pois o significado da palavra impõe
necessariamente que antes do recalcamento haja um calcamento, ou
calcadura (com isso, o “original” seria o calcamento).
Apesar deste obstáculo à tradução do termo por “recalque”,
ganhamos uma definição mais rica e mais apropriada ao que Freud queria
dizer por “Verdrängung”, uma vez que este mecanismo ocorre em duas
etapas: o “recalque” (com sérias ressalvas) original e o recalque
propriamente dito. Além disto, sabemos que a palavra remete à
“repressão”, o que nos beneficiaria, que em apenas uma palavra teríamos
a idéia da repressão e das fases.
Por causa dos ganhos com a tradução por recalque, aqui utilizo esta
tradução como a mais apropriada.
Durante a teorização do recalque, Freud não deixa de perceber que
outros mecanismos colaboram com a manutenção do recalque, entre eles a
59
negativa (die Verneinung) que, por ser uma forma de exclusão inerente ao
recalque, acreditamos valer a pena estudá-la.
4.2.1.
D
IE
V
ERNEINUNG
Etimologicamente, Verneinung significa: “1. Responder com não <
uma pergunta, balançar a cabeça negando, uma resposta negativa>, 2.
Recusar < uma proposta>” (
LANGENSCHEIDT
, 2003: 1117).
Em português, a tradução mais apropriada é a hoje utilizada pela
tradução brasileira das Obras Completas de Freud: negativa, e não negação.
Salientamos que esta última corresponderia a “Negation”.
Negativa é “a proposição com que se nega alguma coisa” (
FERREIRA
,
A. Buarque de Holanda, 1986:1186), e negar:
1. Dizer que não é verdadeiro (uma coisa) 2. Afirmar que
não (...)3. Não admitir a existência de; contestar (...) 4. Não
reconhecer como verdadeiro; abandonar, repudiar, trair,
abjurar (...) 5. Não conceder, recusar (...) 6. Desmentir,
contradizer (...) 8. Não admitir a existência de; não
reconhecer, contestar (...) 9. Não conceder, recusar (...) 10.
Dizer que não (...) 11. Contestar a existência de algo ,
formular negativa (1) ou negativas (...) 12. Não se prestar,
recusar-se 13. Não se apresentar, ocultar-se (Ibidem)
Esta definição de “negar” torna a tradução muito rica, uma vez que
nela também se fala em “ocultar-se”, que é exatamente o que busca se fazer
do conteúdo recalcado.
A negativa é uma defesa que acontece quando o recalcado ameaça
entrar, penetrar, na consciência. Quando o recalcado faz isto, a consciência
o nega, mascarando o conteúdo. Assim, quando o pai da psicanálise escreve
“responder com o”, devemos entender que o conteúdo recalcado se
apresentou à consciência, o que fez com que a resposta fosse “não”, ou,
60
“não, não é isso”. Logo, seu objetivo é fazer com que o recalque se
mantenha durante o tempo.
Freud trata do assunto desde seu artigo Das Unbewusste (O
Inconsciente), quando afirma que no inconsciente não negação (Negation).
Sabendo disso, escreve, em 1925, o artigo “die Verneinung(A Negativa), em
que se remete à negativa de maneira diferenciada.
Para exemplificar a negativa, contextualiza que quando o paciente
nega: “A mãe o é”, podemos concluir imediatamente que “é a e”.
Esse mecanismo funciona como se o paciente tivesse dito: “me veio à
mente mesmo que esta pessoa é a mãe, mas eu não tenho vontade (ich habe
keine Lust) de admitir esta idéia” (1925/1982: 373).
O que acontece é que um conteúdo, da representação ou do
pensamento recalcado, pode entrar no consciente, desde que se possa negá-
lo. Ou seja, a negação funciona de acordo com o princípio de prazer,
indicando que o que não me traz satisfação é maquiado de alguma forma.
Esse conteúdo é, então, disfarçado com o “não”. No entanto, isto não
indica que não se tome conhecimento do recalcado, pois este vem à
consciência, mesmo que não o aceite.
Como nos afirma Freud: “negar algo no juízo significa no fundo:
‘isto é algo que preferiria recalcar’ (Ibid.:374). Assim, este julgamento
ocorre como se fosse “isto eu quero em mim” ou então “isto eu quero
expulsar de mim”, de acordo com o princípio de prazer.
Um quadrado semiótico da negativa pode ser representado da
seguinte forma:
61
A
FIRMAÇÃO
N
EGAÇÃO
“É minha mãe “Não é minha mãe”
N
ÃO NEGAÇÃO
(N
EGATIVA
) N
ÃO AFIRMAÇÃO
Não é minha mãe”
Para Freud, é como se a partir da negativa, houvesse uma passagem
da negação para a afirmação, pois a negativa carrega em si não só a negação
como também a afirmação, é como se fosse uma passagem de uma para
outra. Para melhor compreendermos este percurso, podemos nos remeter
ao quadrado semiótico proposto por Greimas (1976: 91) que explica a
passagem do “sim” ao “não” no idioma francês:
S1 S2
Oui Non
S2 S1
“si”
A língua portuguesa não tem um equivalente ao “si” da francesa, mas
podemos entendê-la por meio do seguinte exemplo: uma pessoa pergunta
se o sujeito não viajará; se ele assim fará, a resposta dada será “si”. Então,
como Greimas (Ibid) nos salienta: “‘si’ não é uma simples asserção, mas um
lexema carregado de ‘memória’ e que pressupõe um enunciado de negação
que lhe é anterior.”.
No quadrado semiótico, a negativa seria inserida no lugar do S
2
, e
aconteceria diante de uma pergunta ou interpretação positiva. Por exemplo,
no caso Dora, Freud afirma que a paciente se coloca no lugar da mãe dela,
agindo como uma esposa ciumenta. Portanto, para o psicanalista, quem a
62
paciente ama é seu pai. Diante desta asserção de seu psicanalista, que
apresenta o conteúdo recalcado pela primeira vez, a jovem nega e reage
respondendo “eu não lembro disso” (
FREUD
, 1905[1901]/1982: 130). Este
“não” significa, na realidade, um “sim”. Quando isto acontece, ou seja,
quando um “não” carrega um “sim” que lhe é anterior, é o momento em
que o mecanismo da negativa ocorre. Greimas (1979: 381) afirma que a
denegação (entendo que o conceito, em Greimas, significa o mesmo que a
“nossa” negativa): “por exemplo, não é uma simples negação, mas a
negação de uma asserção anterior”.
Por fim, o pai da psicanálise ressalta: “não prova mais forte para
descobrir o inconsciente do que vermos o analisado reagir com estas
palavras: ‘não pensei isto’, ou ‘não (nunca) pensei nisso’” (Ibid.: 377).
4.3.
V
ERDRÄNGUNG
E A SUA MODALIZAÇÃO SEMIÓTICA
Neste momento, pensaremos sobre a modalização semiótica do
recalque. Inicialmente, discutiremos sobre um evento fundamental para o
recalque: a constatação da diferença anatômica entre os sexos. Somente
após a constatação é que há a inclusão do sujeito em uma lei, o que
possibilita o recalque.
4.3.1.
A
CONSTATAÇÃO DA DIFERENÇA ANATOMICA ENTRE OS SEXOS E SEUS
EFEITOS
A constatação da diferença anatômica entre os sexos se dá a partir do
complexo de castração. Inicialmente, a criança pensa que não distinção,
e apenas a partir das ameaças reais ou fantasísticas que sofre passa a se
interessar pelo assunto. se a manipulação, ou seja, uma ação
intersubjetiva em que um sujeito, por intimidação, transmite um
determinado saber, tendo em vista que tem o “poder” para tal.
Primeiramente, acredita que um dia o pênis das meninas vai crescer, mas,
63
posteriormente, ao constatar que sua mãe também não o tem, a ameaça de
castração passa a fazer sentido. Assim, aqui uma passagem de uma
interpretação do sujeito de que a castração é mentira (que
PARECE
, mas
NÃO É
) para a de que é verdadeira (
PARECE
e
É
). Então, finalmente,
acredita-se (
CRER SER
) nela, e aceita-se o saber. Em um quadrado
semiótico, poderíamos montar o processo da crença na diferença anatômica
entre os sexos da seguinte maneira:
/C
RER
SER
/
/C
RER
NÃO
SER
/
“As meninas não possuem pênis” “O pênis das meninas ainda vai
crescer
/N
ÃO
CRER
NÃO
SER
/
/N
ÃO
CRER
SER
/
“Minha mãe não possui pênis”
No entanto, o efeito da crença parece atrelado à volição do sujeito
por esse saber. Inicialmente, recusa-o, por acreditar ser falso, e apenas com
a constatação da diferença é que se torna possível a aceitação deste saber.
/Q
UERER
SABER
/
/Q
UERER
NÃO
SABER
/
Disposição: “É verdade, as meninas Relutância: “não, o pênis delas vai
não possuem pênis” crescer”
/N
ÃO
QUERER
NÃO
SABER
/
/N
ÃO
QUERER
SABER
/
Concessão: “Minha mãe não possui pênis, Indisposição
será que é verdade que nenhuma menina o possui?”
O reconhecimento da diferença traz uma série de efeitos, dentre eles,
o principal é que o menino reconhece o pai enquanto lei e entende a
interdição do incesto, respeitando-a. Isto evita que a ameaça torne-se real e
que, com isto, seu pênis lhe seja retirado. Desta forma, “a crise terminal
64
do Édipo, vindo interditar à criança o objeto materno” (
LAPLANCHE
&
PONTALIS
, 1998: 74), ou seja, acontece o recalque do complexo de Édipo.
com as meninas ocorre o contrário, elas passam a invejar o pênis.
Assim, odeiam a mãe por não ter lhes dado o pênis, e se aproximam do pai,
na esperança que lhes o órgão masculino. Essa aproximação culmina na
entrada no Complexo de Édipo. Posteriormente, substitui-se o desejo de
ganhar o pênis pelo desejo de ter um filho do pai.
Desta maneira, o que se recalca é o complexo de Édipo, o desejo do
filho pela mãe e o da filha pelo pai. Recalca-se porque se entende que
uma lei de interdição de incesto, que passa a operar graças ao
reconhecimento da diferença anatômica entre os sexos.
Então, quando pensamos na diferença anatômica entre os sexos,
uma aceitação deste saber, devido ao medo de uma efetivação de ameaças.
O que é recalcado, de fato, é a representação interna, ou seja, o desejo do
filho pela mãe e o da filha pelo pai.
4.3.2.
O
RECALQUE DE UM CONTEUDO PSIQUICO
Neste momento, tomamos como base para nossos estudos não
somente a explicação de Freud sobre o recalque, mas também, e
principalmente, seus casos em que o mecanismo estava exposto, tais como
o caso Dora e os explicitados em Studien über Hysterie (“Estudos sobre a
Histeria”). Com eles, podemos chegar a algumas conclusões no tocante ao
mecanismo do recalque e de seu colaborador: a negativa.
A primeira asserção que podemos trabalhar é com a hipótese de que
o recalque é mantido e ocasionado por um ato intencional, logo de volição,
o que nos permite afirmar que o /
QUERER
/ modaliza o discurso. No
decorrer da obra de Freud, nos deparamos com vários exemplos de
pacientes que falavam sobre esse “querer”, tal como no caso de Anna O.,
65
em que Breuer, esclarecendo a razão de sua paciente ter emudecido, salienta
que: “ela foi muito ofendida e decidiu não falar nada sobre isso.” (
BREUER
&
FREUD
, 1973:23) (itálico meu). Aqui, a paciente perde a capacidade de falar
após suprimir uma declaração (por inibição ativa).
No recalque, o “saber” parece também entrar em jogo, tendo em
vista que uma das suas principais características é o desconhecimento de
determinado conteúdo. Freud, ao relatar o caso de sua paciente Frau Emmy
von N., declara uma situação em que a questiona sobre a origem de sua
gagueira e se depara com a ausência de respostas. O analista interroga: “A
senhora não sabe isso? – Não. – Sim, por que não? – Por quê? Porque eu devo
não [saber]” (Ibid.: 51) (itálicos meus). O que nos chama atenção nesta
resposta, no entanto, não é apenas o discurso modalizado pelo /
SABER
/,
mas também o surgimento de um “dever” da paciente diante do
conhecimento.
No entanto, o caso que considero explicitar melhor que o
mecanismo do recalque é modalizado pelo /
QUERER
-
SABER
/ é o da
governanta inglesa Miss Lucy. No decorrer da análise, é suposto que a
paciente ama o patrão. Contudo, a paciente se omite quanto a esta idéia de
Freud. Quando esta suposição é confirmada por relatos da própria
governanta, o analista questiona a razão de não ter dito antes, e ela relata:
“eu não sabia disso, ou melhor, eu o queria saber, queria tirar da minha
cabeça, nunca mais pensar nisso, e eu acho que consegui nos últimos
tempos”.(Ibid.: 94) (itálicos meus). Há, portanto, uma idéia incompatível,
que é recalcada pelo Eu. Assim, há o recalque, e as pacientes querem não mais
saber sobre o evento recalcado, o que é demonstrado a partir de seus
discursos na situação de análise. Logo, inicialmente o discurso das pacientes
parece ser modalizado por um /
QUERER
NÃO
SABER
/, o que situa a
atitude inicial das pacientes no seguinte ponto do quadrado semiótico:
66
/Q
UERER
-
SABER
/ /Q
UERER
NÃO
-
SABER
/
/N
ÃO
QUERER
NÃO
-
SABER
/ /N
ÃO
QUERER
-
SABER
/
O querer dinamiza a cadeia, a um passo em que o saber é dirigido. O
saber surge, resta ao sujeito escolher o que faz com ele, se aceita ou não que
este permaneça em sua consciência. Inicialmente, a escolha do sujeito é não
saber, ou pelo menos passar a acreditar que não se sabe de determinado
conteúdo doloroso. Em todos os casos apresentados por Freud, o que
parece acontecer é que se passa de um conhecimento, mesmo que
momentâneo, de determinado conteúdo intolerável para, em seguida,
devido ao recalque desse saber, passar progressivamente (já que
inicialmente uma dúvida) a um desconhecimento. Assim, Dora recalca o
amor pelo pai, Miss Lucy uma paixão pelo patrão e Fräulein Elisabeth a
vontade de casar com o marido de sua falecida irmã, dentre outros. No
entanto, o saber está lá, mesmo que apenas inconscientemente. Desta
forma, após o recalque, há um sujeito modalizado pelo /
CRER
-
NÃO
-
SABER
/, que assim é articulado:
/C
RER
-
SABER
/ /C
RER
NÃO
-
SABER
/
Certeza: “Eu amo o marido da minha irmã” Improbabilidade: “Não, eu não o amo”
/N
ÃO
CRER
NÃO
-
SABER
/ /N
ÃO
CRER
-
SABER
/
Dúvida: “Não, eu não sei mais se o
amo, pois não devo. Tenho que esquecer
esta idéia”
Assim, falando com outras palavras, e resumidamente, quando o
paciente é questionado sobre o conteúdo recalcado, ele quer não saber
deste, quer manter o seu esquecimento, possuindo uma postura ativa nesse
67
processo. Há um desejo de que assim seja, por isto afirma-se um /
QUERER
NÃO
SABER
/ e não propriamente um /
NÃO
QUERER
-
SABER
/. Esta
vontade faz com que o conteúdo intolerável se mantenha ausente da
consciência, o que traz o efeito de uma crença, ilusória, da não existência de
tal conteúdo (/
CRER
NÃO
-
SER
/). Após o recalque acontecer, o paciente
crê não mais saber o que ocorreu, ou seja, é modalizado por um /
CRER
NÃO
-
SABER
/. Assim, ele sabia e não sabe mais, esqueceu. uma
passagem de um saber anterior para um esquecimento. No entanto, sabe,
por mais que apenas inconscientemente.
Ao irromper este conteúdo inconsciente em sua consciência,
temendo a deparação com o intolerável, o paciente nega-o, dizendo “não”,
“não sei nada disso”, “não pensei isso”, enfim, julga que quer aquilo longe
de sua consciência.
Em análise, o paciente se depara com o caminho inverso ao do
mecanismo do recalque. O que é proposto é que ele saia do
desconhecimento do conteúdo intolerável para o conhecimento.
Salientamos que isto é possível apenas porque a postura do paciente diante
deste saber é diferenciada, ele deixa de relutar (/
QUERER
NÃO
-
SABER
/)
para conceder (/
NÃO
QUERER
NÃO
-
SABER
/) que este saber venha à
consciência.
/C
RER
-
SABER
/ /C
RER
NÃO
-
SABER
/
Certeza: “Eu amo o marido da minha irmã, Improbabilidade: “Não, eu não o amo”
apesar de não dever.”
/N
ÃO
CRER
NÃO
-
SABER
/ /N
ÃO
CRER
-
SABER
/
Dúvida: “Eu o amo?”
Diante disto, o que a psicanálise se propõe a fazer é mostrar, a partir
do discurso do próprio paciente, que esta crença é ilusória, pois o saber
68
permanece, por mais que inconsciente, e provas de sua existência
diariamente, através de sonhos, sintomas, atos falhos, etc.
Os resultados obtidos deste capítulo, mesmo que apareçam
satisfatórios numa pesquisa inicial, são certamente ainda pequenos diante
da imensidão de fatos que podem ser investigados no mecanismo do
recalque. Poderíamos nos deter mais, por exemplo, na questão do
/
DEVER
/, a que Frau Emmy tanto se remete. Outro estudo possível de ser
realizado se refere à intensidade das diferentes modalidades, será que um
/
QUERER
/ mais forte ou mais fraco mudaria algo? A Semiótica tensiva
provavelmente daria boas colaborações nesta investigação. E este /querer/,
de onde vem? Ele é consciente ou inconsciente? Outro ponto seria sobre os
variados efeitos do recalque, tais como: histeria, neurose obsessiva, etc., em
que diferem? Enfim, futuras pesquisas salientariam mais dados sobre um
conceito tão vasto como o do recalque.
O que fizemos foi apenas dar uma definição geral ao conceito, para
que seja possibilitada uma discussão acerca das diferenças e semelhanças
entre recalque, denegação e rejeição. Esperamos, portanto, como dito,
que esta pesquisa seja apenas o primeiro passo do inicio de uma caminhada
em comum.
69
Cap.
5
A
VERWERFUNG
o momento, o interesse é o de estudar a Verwerfung, um
mecanismo de exclusão que Freud citou com maior ênfase
em “O Homem dos Lobos” (1918[1914]).
A tradução hoje utilizada nas Edições Standard Brasileira das Obras
Completas é a de “rejeição”, a mesma utilizada para Verleugnung. Em inglês,
encontramos repudiation ou foreclosure e em espanhol, repudio.
Lacan propôs a tradução do termo por forclusion, ao procurar algum
termo que equivalesse ao que Freud queria dizer ao falar em Verwerfung. No
Brasil, fazemos um aportuguesamento deste por “forclusão”, ou
“foraclusão”. No entanto, forclusion equivale a “prescrição” em português.
Prescrição é uma palavra que juridicamente significa:
5. Jur. Perda da ação atribuída a um direito, que fica assim
juridicamente desprotegido, em conseqüência do não uso
dela durante determinado tempo (...) 6. Jur. A maneira pela
qual se extingue a punibilidade do autor de um crime ou
contravenção, por não haver o Estado exercido contra ele
no tempo legal o seu direito de ação, ou por não ter
efetivado a condenação que lhe impôs (FERREIRA, A.
Buarque de Holanda, 1986: 1387)
Diante do significado do termo, fica-nos o questionamento de qual a
relação desta palavra com a utilizada por Freud. Etimologicamente, o verbo
de onde Verwerfung origina-se significa “Não aceitar algo, porque se acha
ruim. < um pensamento, um plano, uma proposta>” (
LANGENSCHEIDT
,
2003: 1133). Aparentemente, o sentido primordial da palavra nenhuma
relação tem com o proposto por Lacan. Devido a esta grande diferença,
entendemos que a tradução lacaniana é sugerida pelo que o psicanalista
N
70
francês teoriza em sua releitura freudiana, e não por uma preocupação em
dar uma tradução literal ao termo.
Como a pesquisa realizada no momento não é de cunho lacaniano, e
meu objetivo é discutir sobre a melhor tradução, apesar de entender que
não uma perfeita, que se adéqüe perfeitamente ao que Freud teoriza, e
que qualquer uma será passível de discussão, desejo não interferir tanto nas
palavras utilizadas por Freud. Assim, busco um entendimento dos termos
utilizados por outros idiomas, tais como: rejeição e repúdio.
“Rejeição” é: “ato ou efeito de rejeitar” (
FERREIRA
, A. Buarque de
Holanda, 1986: 1478), e rejeitar significa:
1. Lançar fora, largar, depor (...) 2. Lançar de si; tirar de si;
repelir (...) 3. Lançar de si; expelir; vomitar, regurgitar (...)
4. Não admitir, recusar (...) 5. Não aprovar; reprovar,
desaprovar (...) 6. Ter em pouca ou nenhuma conta;
desprezar, desdenhar (...) 7. Defender-se de, repelir (...) 8.
Opor-se ou negar-se a (...) 9. Atirar, arremessar, lançar,
arrojar (...) 10. Repelir, afastar, apartar (...) (Ibidem)
Repúdio é o “ato ou efeito de repudiar” (Ibid.: 1491), e repudiar: “1.
Rejeitar (a esposa) legalmente; divorciar-se de (a mulher) 2. Rejeitar, repelir,
recusar (...) 3. Abandonar, desamparar.” (Ibidem).
Das duas, pelo menos previamente, a tradução mais adequada é
“rejeição”, pois engloba a não - aceitação, ou seja, a oposição que está
presente na palavra alemã. No entanto, essa discussão será deixada em
suspenso, e investigaremos o que Freud teoriza e quando usa o termo, para
depois voltar a ela. Saliento que, por enquanto, traduzirei Verwerfung por
“rejeição”.
71
5.1.
O
CONCEITO EM
F
REUD
Nos textos originais de Freud, encontramos o termo em momentos
específicos. A primeira vez em que entramos em contato com a palavra é
em “Die Abwehr-Neuro-Psychosen” (“As Neuropsicoses de Defesa”) (1894),
em que explica:
Existe um tipo de defesa mais enérgico e bem sucedido,
que consiste em: o eu rejeita a representação intolerável
juntamente com seu afeto, e se comporta como se a
representação nunca tivesse se dirigido ao eu. Neste
momento, em que deu certo esta operação, a pessoa se
encontra em uma psicose, que se pode classificar como
‘confusão alucinatória’” (
FREUD
, 1894/1993: 72)
Aqui, como em outras passagens que citaremos, a palavra não tem
ainda o estatuto de conceito, mas de uma palavra qualquer misturada ao
discurso de Freud ao explicar uma forma de defesa. No entanto, ao
teorizar, o pai da Psicanálise relaciona esta defesa a uma rejeição que
desencadeia uma psicose. Atentemos, ainda, que a rejeição da representação
intolerável é enérgica e bem sucedida, diferentemente de outros tipos de
defesa.
Posteriormente, em “Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie” (“Três
Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”) (1905), o psicanalista relata:
Concomitantemente à dominação e à rejeição destas
fantasias claramente incestuosas, consuma-se um dos mais
significativos, mas também mais dolorosos, trabalhos
psíquicos da puberdade: o desligamento da autoridade dos
pais, fato unicamente através do qual cria-se a importante
oposição que permite o progresso da cultura: a nova
geração em relação à velha.(Ibid., 1905/1982: 130)
Neste trecho uma o-aceitação das fantasias incestuosas. No
entanto, parece que Freud es colocando Verwerfung (rejeição) como
72
sinônimo de Verdrängung (recalque). Afinal de contas, qual o destino
“neurótico” das fantasias incestuosas? O recalque.
Acredito que o artigo onde o pai da Psicanálise, apesar de nunca ter
parado realmente para o definir precisamente, desenvolve mais o conceito
de Verwerfung é em Wolfsmann ou “Homem dos Lobos”, relatada em:
“Aus der Geschichte einer infantiler Neurose [> Der Wolfsmann<]”(“História de
uma Neurose Infantil”) (1918[1914]).
Logo no início do texto, encontramos a passagem: “Deixado para
trás, rejeitado como erro, o que é novo na psicanálise é característico dela.”
(Ibid.: 171). Posteriormente, há uma elevação de Verwerfung a um conceito, a
partir do momento em que afirma: “Um recalque é algo diferente de uma
rejeição.” (Ibid.: 194). Com esta frase, começa a pôr em questão algo que
permita a comparação entre os dois conceitos.
No seguinte trecho, uma pista sobre de onde se poderia sair para
se procurar a definição:
A declaração inicial do nosso paciente sobre o problema
da castração se tornou conhecida. Ele a rejeitou e
permaneceu com o ponto de vista de que a relação sexual
seria no ânus. Quando eu falei que ele rejeitou, o
significado mais próximo desta expressão é o de que ele
não queria saber nada no sentido do recalque. (Ibid.: 199)
“Não querer saber nada no sentido do recalque” é algo a que
devemos atentar, pois indica que há uma relação entre o recalque e a
Verwerfung. Outro dado obtido é quando afirma que: “A terceira [corrente],
mais velha e mais profunda, onde teria simplesmente rejeitado a castração,
onde o juízo sobre sua realidade ainda não veio em questão, era ainda
seguramente ativo.” (Ibidem).
Rejeitar a castração, aqui, é sinônimo de não saber sobre sua
realidade, não se questionar quanto a ela. No entanto, por que não se
73
questiona? Por que não se aceita a castração? Segundo Freud, “Da análise
do sonho de angústia concluímos que o recalque se associa com o
conhecimento da castração. A novidade é rejeitada, pois sua aceitação
custaria o pênis.” (Ibid.: 221)
Na seguinte passagem, em Die Verneinung” (“A negativa”) (1925), a
Verwerfung parece ser tomada como uma expulsão, ou como uma rejeição,
de uma determinada representação, que chega à cabeça do paciente e ele a
nega terminantemente:
Um bom equivalente a esta afirmativa se apresenta
freqüentemente na neurose obsessiva, que está
prontamente introduzida no entendimento do seu sintoma.
“Eu recebi uma nova representação obsessiva, ela poderia
significar coisas exatas. Mas não, isso não pode ser
verdade, senão ela não teria podido ter-me vindo à
cabeça.” O que ele rejeita com esta afirmação é,
naturalmente, o sentido correto da nova representação
obsessiva.”(Ibid., 1925/ 1991: 11-2)
Aqui, podemos, mais uma vez, observar a rejeição como uma palavra
corriqueira em alemão, que não estaria necessariamente ligada a um
conceito psicanalítico. O pai da psicanálise a usa para explicitar como se
o mecanismo da negativa, e não parece dar-lhe um estatuto de conceito.
5.2.
A
TRADUÇÃO
Agora, podemos nos deter nas seguintes definições: “deixar para
trás”, “algo diferente do recalque”, “não querer saber nada no sentido do
recalque”, “não trazer em questão a realidade da castração” e “rejeitar,
porque seu pênis seria custado”. Percebemos que Verwerfung está sempre
relacionada com o problema da castração, que é abominada pelo homem
dos lobos.
74
De posse destes usos de Freud, temos uma possibilidade de
discussão sobre a tradução. A palavra “rejeição” continua a ser a mais
adequada, por englobar “lançar fora”, “não admitir”, “não aprovar”,
“defender-se”, “opor-se”, entre outros. Aqui, um saber pretende ser
passado: o saber sobre a castração. No entanto, o sujeito, antes de aceitar
ou rejeitar este saber, o interpreta, não acreditando que este seja verdadeiro.
Com isto, ele se opõe a este saber, manifestando-se contrário a este.
Assim, quando se diz: “não aceitar, porque se acha ruim”, podemos
entender o que não se aceita e porque é ruim, de acordo com Freud. Desta
forma, do que se trata na Verwerfung? Aqui o rejeitado é a castração, é sobre
ela que quer não se saber.
5.3.
A
V
ERWERFUNG
E A SUA MODALIZAÇÃO SEMIÓTICA
Primeiramente, para entendermos como se a rejeição, temos que
nos remeter ao caso “O Homem dos Lobos”. Neste caso, observamos
exemplos que salientam bem a ameaça de castração que a criança sofre,
como no momento em que brinca com o pênis na frente da babá e ela o
recrimina, afirmando que se fizesse aquilo, ficaria uma ferida no lugar. No
entanto, o menino o quer saber nada sobre esta ameaça, e recalca as
hipóteses remetidas a ela. A criança passa a procurar provas de que ela é
mentirosa, mas logo percebe que as meninas possuem um órgão diferente
do dos meninos. Assim, é como se ele saísse das seguintes hipóteses:
/C
RER
SER
/
/C
RER
NÃO
SER
/
“Elas possuem uma ferida” · “Não, todos possuem um pênis”
/N
ÃO
CRER
NÃO
SER
/
/N
ÃO
CRER
SER
/
“Mas por que o das meninas é diferente?”
75
No entanto, quando chega a idéia de que as meninas possuem uma
ferida, repele-a, não querendo saber mais nada neste sentido, buscando
inclusive novas explicações para, por exemplo, a diferença sexual (as
meninas possuem um “traseiro frontal”), e para o ato sexual (que se dá pelo
ânus), explicações estas que substituem a realidade da castração. Tudo isto
porque se aceitar a castração, seu pênis lhe é tirado.
Para manter essa hipótese da indiferença sexual, o homem dos lobos
recalca a idéia de que as meninas possuem uma “ferida”, pois isto o ameaça,
confirmando a ameaça feita pela babá. Então, com o recalque, é como se o
homem dos lobos voltasse ao ponto de partida, e permanecesse com a idéia
de que não há diferença sexual.
/C
RER
-
SER
/ /C
RER
-
NÃO
-
SER
/
Certeza: “As meninas possuem uma ferida” Improbabilidade: “Não, elas possuem
um traseiro frontal”
/N
ÃO
-
CRER
-
NÃO
-
SER
/ /N
ÃO
-
CRER
-
SER
/
Dúvida: “Se elas possuem uma ferida,
então corro o risco de que arranquem
meu nis. Eu não posso acreditar
nisto. Deve haver outra explicação. ”
Então, passa a acreditar não saber nada no sentido do recalque, pois
não castração e as provas disso são as conclusões a que chega sobre a
diferença sexual e sobre o ato sexual: o ato se realiza a tergo e as meninas
possuem um traseiro frontal, não uma “ferida”.
Assim, quando lembra de seu medo de borboleta (Wespe), e em vez
de falar esta palavra, fala Espe, ele parece ser modalizado pelo /
CRER
SABER
/ da diferença anatômica, ou seja, que as meninas não possuem o
pênis, e, sim, uma ferida (a borboleta não teria o W e suas asas lhe teriam
sido arrancadas). Aproximar-se da borboleta representa entrar em contato
com o conteúdo recalcado que tanto o apavora. A mesma coisa acontece
76
quando ele adoece por contrair gonorréia, reavivando a idéia de que as
meninas possuem uma ferida no lugar do pênis, e que ele pode vir a possuir
esta ferida. Outro exemplo oferecido por Freud que pode ilustrar esta
modalização é quando discute sobre uma alucinação que o paciente tem,
em que imagina que seu dedo havia sido arrancado. Ao se acalmar, o
homem dos lobos que seu dedo ainda está , ileso. Então, passa a
acreditar que os pênis das mulheres são arrancados ao nascer, mas ao
mesmo tempo afasta essa idéia pelo recalque.
Portanto, ao pensarmos na rejeição como Freud nos conceitua: “não
querer saber nada no sentido do recalque”, pensamos, novamente, no
sujeito modalizado por um /
QUERER
NÃO
SABER
/,
e seu efeito é a
descrença na diferença anatômica entre os sexos.
O que acontece nesta
confrontação é que o sujeito rejeita determinado saber (/
QUER
-
NÃO
-
SABER
/), pois se o aceitar o seu pênis é custado. No caso da rejeição, não se
acredita que há a castração, pois não quer isso.
Apesar de a modalização da rejeição ser aparentemente igual a do
recalque, saliento que na primeira o sujeito é modalizado por um /
QUERER
-
NÃO
SABER
/ da diferença anatômica entre os sexos, ou seja, de uma
realidade visual. Na segunda, não se trata disto, o sujeito deseja que um
conteúdo interno permaneça inconsciente.
77
Cap.
6
-
A
VERLEUGNUNG
timologicamente, Verleugnung significa “Afirmar que não se
tem ou o se conhece algo/alguém <um amigo, seu modo
de pensar, seu Deus, seus ideais>” (
LANGENSCHEIDT
, 2003: 1114).
Como dito anteriormente, a tradução brasileira nas Obras
Completas do pai da psicanálise para esse termo é a de rejeição. Em outros
lugares, podemos encontrar também “recusa” ou denegação”. A tradução
francesa utiliza déni, em inglês encontramos disavowal e em espanhol
renegación.
Neste trabalho, concluímos que a tradução “rejeição” é apropriada
para “Verwerfung, e para evitar com que haja mais confusões, no sentido de
má-compreensão do texto, nos deteremos apenas nas outras opções
encontradas: recusa, denegação, desmentido e renegação.
Recusa é o ato de recusar, e recusar:
1. Não aceitar (coisa oferecida); rejeitar (...) 2. Não se
prestar, opor-se, negar-se a 3. Não aceitar, não admitir (...)
4. Não permitir; não conceder; negar (...) 5. Não se prestar,
negar-se, opor-se (...) 6. Declarar-se incompetente (...) 7.
Não obedecer; desobedecer (...) (FERREIRA, A. Buarque
de Holanda, 1986: 1466)
Aqui, percebemos a semelhança entre “recusa” e “rejeição”.
“denegação”, assim como “renegação”, é o ato de denegar, ou de
desmentir. Denegar é:
1. Dizer que não é verdade; negar (...) 2. Não dar, recusar,
negar (...) 3. Desatender, indeferir (...) 4. Abjurar, renegar
(...) 5. o aceitar, recusar (...) 6. Desmentir, contradizer
(...) 7. Não conceder, recusar, negar (...) 8. Impedir, obstar
(...) 9. Recusar-se, negar-se” (Ibid.: 535)
E
78
Desmentido foi compreendido como “que foi contraditado” ou
“declaração ou palavras com que se desmente” (Ibid.: 569). E desmentir:
“1. Declarar que (alguém o diz a verdade); contradizer; contestar (...) 2.
Negar (o que outrem afirmara) (...) 3. Não corresponder a; destoar de;
discrepar de; desdizer. (...) 7.Contradizer-se.” (Ibidem).
Por ter mais proximidades com a definição do alemão, no momento,
aqui utilizaremos a tradução “recusa”.
6.1.
O
CONCEITO EM
F
REUD
A recusa é um mecanismo de defesa próprio da perversão. No
entanto, Freud nem sempre acredita nisto. Inicialmente, o coloca apenas
como um tipo de exclusão, como em: “a amência é uma reação sobre uma
perda que a realidade indica, mas que deve ser recusada do eu como
insuportável” (1917/1982: 190) ou em: “o tipo mais extremo deste
afastamento da realidade nos é mostrado por certos casos de psicose
alucinatória, no qual todo acontecimento deve ser recusado, o que provoca
a loucura” (1911/ 1982:17). Na última citação, Verleugnung começa a ser um
esboço de uma exclusão mais específica, que seria a da realidade, mas ainda
não possui um estatuto de conceito na teoria freudiana.
Alguns anos depois, percebemos em Freud a ligação da palavra
com o complexo de castração: “eles (os meninos) recusam (leugnen) este
defeito, acreditam ver um membro, atenuam esta contraposição entre a
observação e a pré-concepção com a afirmação: ele ainda é pequeno e ainda
vai crescer” (1923/1982: 239). No entanto, salientamos que, neste período,
Freud ainda não distingue a Verleugnung” de Verdrängung (recalque).
Assim, aqui, vemos a definição de “recusa” ligada ao primeiro momento do
recalque, onde o menino não acredita na diferença anatômica entre os
79
sexos. , ou seja, ele ainda está modalizado por /
CRER
NÃO
SER
/, e ainda
não percebe que sua mãe não possui pênis.
Em 1924, em seu artigo “Der Realitätsverlust bei Neurose und Psychose”
(“A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose”), o conceito está mais
delineado, ainda que atrelado à psicose, sobre o qual postula: “a reação
psicótica seria recusar o acontecimento da morte da irmã”
(1924/1982:
358), e depois:
A neurose não recusa a realidade, ela não quer saber
nada sobre ela, a psicose recusa e procura substituí-la. Nós
nomeamos um comportamento que conjuga traços de
ambas as reações, que recusa tão pouco a realidade, como
na neurose, mas que também se esforça para fazer suas
alterações, como na psicose (Ibid.: 359)
Neste ponto, a recusa está ligada a não aceitação da realidade e sua
conseqüente alteração. Assim também acontece com o garotinho, que,
como Freud relata no seguinte trecho, recusa a diferença anatômica entre
os sexos:
Uma oposição interessante no comportamento dos dois
sexos em casos análogos: quando o garotinho olha a
genitália da menina, primeiro ele se comporta
indecisamente, com pouco interesse, nada vê, ou recusa
sua percepção, diminui-a, procura informações para
colocá-las de acordo com suas expectativas (1925a/ 1982:
260).
Desta maneira, podemos observar que, por muitos anos, o
psicanalista vienense utiliza o conceito de Verleugnung especialmente na
reação das crianças à observação das diferenças sexuais anatômicas. No
entanto, há uma mudança a partir de novas observações clínicas, onde
conclui que quando há Verleugnung, há uma divisão no eu do sujeito. Apesar
80
de exemplificar esta divisão especialmente no fetichismo, leva-nos a crer
que tal movimento também ocorre em outras situações.
Em seu trabalho “Fetichismus” (“Fetichismo”) (1927), o pai da
psicanálise dá uma primeira descrição detalhada sobre a Verleugnung como
uma defesa do eu, e a descreve como reação a uma realidade externa
intolerável, separando-a do recalque. Freud afirma que:
Aqui não está em questão a parte mais velha de nossa
terminologia psicanalítica: a palavra recalque”, que se
relaciona com este caso patológico. Nele, quer-se
separar fortemente o destino da representação da do afeto,
então se reservaria a expressão “recalque” para o afeto, e,
para o destino da representação, o termo alemão correto
seria “recusa” (1927/1982: 384)
Na Verleugnung, a percepção não é inteiramente apagada, pelo
contrário, permanece e uma ação muito enérgica para manter a recusa.
O que acontece é que se sabe que a mulher é castrada, ao mesmo tempo em
que se recusa esta idéia. Assim, oscila-se entre a recusa e o reconhecimento.
O fetichista se mantém entre duas asserções: “a mulher mantém um pênis e
o meu pai castrou a mulher” (Ibid.: 388). Desta forma, nega-se a percepção
sensorial (falta um pênis às mulheres) e ao mesmo tempo reconhece-se. No
entanto, não se tem coragem de dizer que viu um pênis. “Em vez disso, o
paciente apodera-se de alguma outra coisa uma parte do corpo ou algum
outro objeto e lhe atribui o papel do pênis sem o qual não pode passar”
(Ibid.: 216). O fetiche se dá com uma divisão do ego, mas com uma
conciliação a partir do deslocamento. Cria-se o fetiche para “destruir a
prova da possibilidade de castração” (Ibidem).O sujeito deve:
Agora se decidir: ou reconhecer o perigo real (a castração),
ceder-lhe passagem e renunciar à satisfação pulsional, ou
recusar a realidade e fazer-se acreditar que não
nenhuma razão para temer, e com isto poder conservar a
satisfação (1938: 391)
81
Na perversão, nega-se a percepção ao mesmo tempo em que se a
reconhece. Esta é a divisão do ego. “Nos fetichistas, portanto, o
desligamento do ego em relação à realidade do mundo externo nunca
alcançou êxito completo” (1927/ 1982: 217). Não alcançou êxito, pois sua
tentativa de desligamento da realidade foi incompleto, como é salientado a
partir da seguinte passagem:
Essas recusas ocorrem freqüentemente, e não apenas com
fetichistas e, sempre que nos achamos em posição de
estudá-las, revelam ser meias-medidas, tentativas
incompletas do desligamento da realidade. A recusa
(Ablehnung) é sempre suplementada por um
reconhecimento: duas atitudes contrárias e independentes
sempre surgem e resultam na situação de haver uma
divisão do ego (1940[1938]/ 1993: 134)
Por fim, concluímos que a Verleugnung é a recusa de um fato da
realidade exterior, distintamente do recalque, onde uma defesa contra as
exigências pulsionais internas. Além disto, nela um sentimento
contraditório constante, pois ao mesmo tempo em que se sabe que um fato
ocorreu, se procura recusar sua existência.
6.2.
A
TRADUÇÃO
Na recusa, encontramos o seguinte mecanismo: sabe-se das
diferenças anatômicas dos sexos, mas não se quer acreditar nisto, e o
menino, para substituir esta falta da menina, cria um fetiche, para este
funcionar como um nis, um substituto por deslocamento. Recusa-se,
assim, uma realidade exterior. No entanto, não se trata apenas de uma
recusa, pois sabe-se da castração, mas não se tem certeza dela. Prova disto é
a oscilação entre /
SABER
/ e /
NÃO
-
SABER
/. O fetiche vem exatamente para
contradizer o saber que lhe foi passado, ou seja, para alegar o contrário.
82
Com isto, acreditamos que tratar este conceito apenas como
“recusa” é muito pouco. É muito mais enriquecedor falar em “denegação”
ou “renegação”, pois ambos tratam tanto da recusa, que é o que quer dizer
Verleugnungao da letra, quanto do mecanismo em si, onde o saber é
contradito através do fetiche.
Desta maneira, voltando ao conceito de Verleugnung no
Grosswörterbuch Deutsch als Fremdsprache” (afirma-se que não se tem ou o
se reconhece algo/ alguém), afirma-se que não se tem ou não se reconhece
o que? A diferença anatômica entre os sexos.
6.3.
A
V
ERLEUGNUNG
E A SUA MODALIZAÇÃO SEMIÓTICA
Na denegação, sabe-se da diferença anatômica dos sexos, crê-se na
diferença, ao mesmo tempo em que não se quer saber dela, e justamente
por esse não querer saber é que se criam substitutos para o pênis através de
fetiches. Ao pensarmos na denegação como um mecanismo em que o
sujeito oscila entre a recusa e o reconhecimento, temos, novamente, um
sujeito modalizado por /
QUERER
SABER
/, que representamos da seguinte
forma:
/Q
UERER
SABER
/
/Q
UERER
NÃO
SABER
/
Disposição: “É verdade, meu pai Relutância: “não, todos possuem pênis”
castrou as mulheres”
/N
ÃO
QUERER
NÃO
SABER
/
/N
ÃO
QUERER
SABER
/
Concessão: “Minha mãe não possui pênis,
será que é verdade que nenhuma menina o possui?”
Mas, ao mesmo tempo que este processo ocorre, ocorre um retorno,
pois o sujeito se encontra indisposto a aceitar este saber, já que sua
aceitação implica em uma renúncia à satisfação pulsional. Para tanto,
83
destrói a prova da possibilidade da castração. No retorno, o quadrado assim
é formulado:
/Q
UERER
SABER
/
/Q
UERER
NÃO
SABER
/
Disposição: “É verdade, meu pai Relutância: “não, elas possuem algo
castrou as mulheres” que substitui o pênis (o fetiche)”
/N
ÃO
QUERER
NÃO
SABER
/
/N
ÃO
QUERER
SABER
/
Indisposição: “Mas se eu aceitar isso,
teria que renunciar a minha satisfação.
Logo, isto não pode ser verdade.”
Penso que, na denegação, o sujeito fica predominantemente na
indisposição /
NÃO
QUERER
-
SABER
/, e circula entre a disposição e a
relutância a este saber o tempo todo. Encontrando-se em uma indisposição,
fica na interseção entre um e outro. Como efeito desta volição temos a
crença, ou não, na diferença anatômica entre os sexos, que seria
representada por /
CRER
SER
/.
Proponho que, inicialmente, haja uma passagem do
desconhecimento ao conhecimento da diferença anatômica entre os sexos:
/C
RER
SER
/
/C
RER
NÃO
SER
/
“Elas não possuem um pênis. “Não, as mulheres mantêm um pênis”
Meu pai castrou as mulheres”
/N
ÃO
CRER
NÃO
SER
/
/N
ÃO
CRER
SER
/
“Mas por que o das meninas é diferente?”
No entanto, um retorno, pois não se aceita a diferença, o que se
dá da seguinte forma:
/C
RER
SER
/
/C
RER
NÃO
SER
/
“Elas não possuem um pênis. “Não, em vez do pênis, elas possuem o pé
Meu pai castrou as mulheres” (fetiche). Então, elas mantêm um pênis”
/N
ÃO
CRER
NÃO
SER
/
/N
ÃO
CRER
SER
/
“Há uma probabilidade de que elas não
possuam o pênis, mas...”
84
Desta forma, é como se na denegação o sujeito ficasse sempre nesta
passagem entre o /
CRER
SER
/ e o /
CRER
NÃO
SER
/, ou seja, entre a
certeza da diferença anatômica e a improbabilidade desta. Assim, aqui não
um desligamento completo da realidade, pois sabe-se da diferença
anatômica entre os sexos, e, ao mesmo tempo, acredita-se no fetiche como
uma prova de que o pênis ainda se mantém no corpo.
85
Cap.
7
-
A
V
ERDRÄNGUNG
,
A
V
ERWERFUNG
E A
V
ERLEUGNUNG
:
COMPARAÇÕES E CONFRONTAÇÕES
iferenciar Verdrängung, Verwerfung e Verleugnung não é tarefa
tão fácil, pois nem sempre na obra de Freud tais conceitos
estão delimitados e segregados. Pelo contrário, até o momento em que o
pai da Psicanálise percebe que são realmente conceitos psicanalíticos, ele os
usa aleatoriamente, como um alemão qualquer os utilizaria. Desta forma,
com o decorrer da obra, percebe que uma diferença, sim, entre tais
palavras e que estas diferenças, apesar de sutis, precisam ser salientadas.
Umas foram mais bem descritas, outras menos. Cabe agora a nós buscar
uma melhor precisão e definição de tais conceitos, o que foi feito nos
capítulos no decorrer deste trabalho, para que assim se possa fazer uma
distinção entre eles.
7.1.
C
OMPARAÇÕES E
C
ONFRONTAÇÕES
Os três mecanismos possuem particularidades referentes ao
reconhecimento da diferença anatômica entre os sexos. No recalque, o
sujeito aceita a diferença, mas nos dois outros mecanismos, há recusas
distintas na rejeição e na denegação. No entanto, há pontos em que tais
conceitos se assemelham, o que pode ser evidenciado no quadrado
semiótico.
Em primeiro lugar, podemos evidenciar o quadrado semiótico do
recalque, por acreditarmos que ele é a base para a compreensão dos outros
dois mecanismos. Aqui, inicialmente, não se acredita que as meninas não
possuam pênis. Contudo, a criança um dia constata que sua mãe também
não tem, e a ameaça de castração passa a fazer sentido. Assim, começa-se a
D
86
crer na probabilidade da diferença. Apenas a posteriori acredita-se (
CRER
SER
) nela. Estas fases podem ser representadas no seguinte esquema:
/C
RER
SER
/
/C
RER
NÃO
SER
/
“As meninas não possuem pênis” “O pênis das meninas ainda vai crescer”
/N
ÃO
CRER
NÃO
SER
/
/N
ÃO
CRER
SER
/
“Minha mãe não possui pênis”
Na rejeição e na denegação, este caminho também ocorre. No
entanto, após a constatação da diferença anatômica, a realidade é o
dolorosa para o sujeito, que ele recusa este saber. Na rejeição, quando se
chega à idéia de que as meninas possuem uma ferida, o sujeito não quer
saber mais nada neste sentido. No caso “O Homem dos Lobos”,
observamos que o paciente acredita em uma relação sexual pelo ânus, e
que as meninas possuem nádegas frontais. Tudo isto porque se aceitar a
castração, seu pênis lhe é tirado. Então, a operação ocorrida é um recalque
da idéia de que as meninas “possuam uma ferida”), o que ocasiona a
permanência da idéia de indiferença sexual.
/C
RER
-
SER
/
/C
RER
NÃO
-
SER
/
Certeza: “As meninas possuem uma ferida” Improbabilidade: “Não, elas possuem um
traseiro frontal”
/N
ÃO
-
CRER
-
NÃO
-
SABER
/ /N
ÃO
-
CRER
-
SER
/
Dúvida: “Se elas possuem uma ferida,
então corro o risco de que arranquem
meu nis. Eu não posso acreditar
nisto. Deve haver outra explicação. ”
na denegação, é como se o sujeito ficasse sempre na passagem
entre o /
CRER
SER
/ e o /
CRER
NÃO
SER
/, ou seja, entre a certeza da
diferença anatômica e a negação desta. Com isto, aqui não um
87
desligamento completo da realidade, diferentemente da rejeição, pois sabe-
se da diferença anatômica entre os sexos, e, ao mesmo tempo, acredita-se
no fetiche como uma prova de que o pênis ainda se mantém no corpo
feminino.
/C
RER
SER
/
/C
RER
NÃO
SER
/
“Elas não possuem um pênis. “Não, em vez do pênis, elas possuem o pé
Meu pai castrou as mulheres” (fetiche). Então, elas mantém um pênis”
/N
ÃO
CRER
NÃO
SER
/
/N
ÃO
CRER
SER
/
“Há uma probabilidade que elas não
possuam o pênis, mas...”
Estas diferentes crenças nos três mecanismos se dão principalmente
por causa do “querer” do sujeito em questão. No recalque, apesar do
sujeito inicialmente querer não saber da diferença
4
, com o tempo ele se
dispõe a tal, a /
QUERER
-
SABER
/, como no seguinte quadrado:
/Q
UERER
SABER
/
/Q
UERER
NÃO
SABER
/
Disposição: “É verdade, as meninas não Relutância :”não, os nis delas vão
possuem pênis” crescer”
/N
ÃO
QUERER
NÃO
SABER
/
/N
ÃO
QUERER
SABER
/
Concessão: “Minha mãe não possui pênis,
será que é verdade que nenhuma menina o possui?”
na rejeição, após esta “breve disposição”, o sujeito recua, e
novamente reluta em saber da diferença, agindo como se este conteúdo
4
Salientamos que, se falamos em /
QUERER
-
NÃO
-
SABER
/ e não em /
NÃO
-
QUERER SABER
/, é porque um desejo, uma vontade ativa, de relutância, de
não saber. O sujeito, ao querer, se instaura como volitivo, sendo responsável pela
direção que dá ao objeto, que, no caso, é o saber.
88
jamais tivesse alcançado sua consciência. Assim, ele rejeita este saber, sendo
modalizado por um /
QUERER
-
NÃO
-
SABER
/.
/Q
UERER
SABER
/
/Q
UERER
NÃO
SABER
/
Disposição: “É verdade, as meninas Relutância :”não, elas possuem um traseiro
não possuem pênis” frontal”
/N
ÃO
QUERER
NÃO
SABER
/
/N
ÃO
QUERER
SABER
/
Indisposição: Se elas possuem uma
ferida, então corro o risco de que
arranquem meu pênis. Eu não posso
acreditar nisto. Deve haver outra
explicação. ”
Na denegação, diferentemente da rejeição, o sujeito fica entre os dois
pólos, e se situa principalmente na modalização de /
NÃO
-
QUERER
-
SABER
/:
/Q
UERER
SABER
/
/Q
UERER
NÃO
SABER
/
Disposição: “É verdade, meu pai Relutância :”não, elas possuem algo
castrou as mulheres” substitui o pênis (o fetiche)”
/N
ÃO
QUERER
NÃO
SABER
/
/N
ÃO
QUERER
SABER
/
Indisposição: “Mas se eu aceitar isso,
teria que renunciar minha satisfação.
Logo, isto não pode ser verdade.”
Assim, na denegação é como se houvesse determinada frase: “Sim, é
verdade, elas não possuem pênis, mas possuem os pés, que podem ser
correlatos ao pênis.”. Portanto, acredita-se na realidade externa, apesar de
não se querer saber. Preferir-se-ia que ela não existisse, mas se sabe que ela
existe. uma contradição nesse pensamento, que é demarcado por uma
negação e uma certa afirmação da realidade perceptiva. Assim, o rechaço se
complementa com uma aceitação.
Em conclusão, contrastando os três mecanismos, eles ficam
prioritariamente em pontas diferentes do quadrado semiótico, o que
89
significaria dizer que são assim representados, de acordo com a modalidade
do /
QUERER
-
SABER
/:
/Q
UERER
SABER
/
/Q
UERER
NÃO
SABER
/
Disposição: RECALQUE Relutância :REJEIÇÃO
(Verdrängung) (Verwerfung)
/N
ÃO
QUERER
NÃO
SABER
/
/N
ÃO
QUERER
SABER
/
Indisposição: DENEGAÇÃO
(Verleugnung)
E os efeitos destes “quereres” se resumiriam pelas seguintes crenças
da diferença anatômica entre os sexos:
/C
RER
SER
/
/C
RER
NÃO
SER
/
Certeza:
RECALQUE Improbabilidade:
REJEIÇÃO
/N
ÃO
CRER
NÃO
SER
/
/N
ÃO
CRER
SER
/
Dúvida: DENEGAÇÃO
Salientamos, contudo, que estes quadrados não se o de forma fixa
como foram apresentados nestes dois pequenos resumos das modalizações
do /
QUERER
-
SABER
/ e do /
CRER
-
SER
/. Como verificado anteriormente,
os sujeitos chegam até por uma construção subjetiva, ou seja, eles se
movem entre as diferentes pontas do quadrado, até se definir, na maior
parte do tempo, em uma modalização específica.
Assim, no recalque não um desligamento do sujeito da realidade,
enquanto na rejeição e na denegação há. Na rejeição, um rechaço
absoluto, e na denegação um rechaço da percepção do real, ao mesmo
tempo em que um certo grau de aceitação, ocasionando um registro da
castração.
90
Uma outra diferença que podemos apontar é que pelo recalque ser o
único mecanismo em que não há um desligamento da realidade, apenas nele
podemos discutir sobre recusas de pensamentos intoleráveis devido a uma
lei instaurada a partir do complexo de castração.
Em conclusão, a partir do quadrado semiótico podemos apresentar
pontos de semelhança e de diferença entre os principais mecanismos de
exclusão abordados por Freud em sua teorização: recalque, rejeição e
denegação.
91
CONCLUSÃO
ste trabalho teve como objetivo dar continuidade a uma
caminhada que está sendo realizada por poucos teóricos nos
campos das Ciências da Linguagem e da Psicanálise. Aqui, nosso esforço
foi de dar exemplos concretos de como a Semiótica pode contribuir para a
Psicanálise, e para isto tomamos os conceitos de Verdrängung (recalque),
Verwerfung (rejeição) e Verleugnung (denegação) e, a partir das modalidades,
propusemos uma nova forma, que acredito ser mais simples do que a
comumente utilizada nos meios acadêmicos e clínicos, de entendê-los.
Inicialmente, pudemos entender cada qual separadamente, e, depois, ao
perceber que eles partilhavam um quê de semelhança, os confrontamos, o
que pensamos ter enriquecido com novas perspectivas o nosso estudo
sobre eles.
Desta forma, mesmo que os três mecanismos possuam
peculiaridades referentes ao reconhecimento da diferença anatômica entre
os sexos, entendemos que existem pontos em que se assemelham, o que foi
evidenciado através do quadrado semiótico. Assim, concluímos que os três
conceitos estão situados em diferentes pontos do quadrado semiótico do
/
QUERER
-
SABER
/:
/Q
UERER
SABER
/
/Q
UERER
NÃO
SABER
/
Disposição: RECALQUE Relutância: REJEIÇÃO
/N
ÃO
QUERER
NÃO
SABER
/
/N
ÃO
QUERER
SABER
/
Indisposição: DENEGAÇÃO
Estes “quereres” desiguais geram diferentes crenças, o que
salientamos no quadrado semiótico do /
CRER
-
SER
/:
E
92
/C
RER
SER
/
/C
RER
NÃO
SER
/
Certeza:
RECALQUE Improbabilidade:
REJEIÇÃO
/N
ÃO
CRER
NÃO
SER
/
/N
ÃO
CRER
SER
/
Dúvida: DENEGAÇÃO
Mais uma vez, enfatizamos que estes quadrados são frutos de
construções subjetivas e não são fixos e imutáveis como aparentam. Com
isto, lembramos que antes mesmo de se definirem em alguma modalização
específica, os sujeitos se movimentam nas diferentes pontas do quadrado.
Aqui, apenas esquematizamos onde o sujeito, na maior parte do tempo,
permanece.
Apesar de nosso estudo ter perseguido os objetivos propostos, devo
apontar que o aqui feito foi apenas um pequeno ensaio, e que muito ainda
para ser feito para que esta escavação seja completa. Dentro dos
próprios conceitos escolhidos, ainda existem rios pontos que não foram
investigados, tais como: a intensidade do/
QUERER
/ mudaria algo nestes
mecanismos? Qual a origem deste /
QUERER
/? Ele é consciente ou
inconsciente? Quais as diferenças modais entre os variados efeitos do
recalque, tais como: histeria, neurose obsessiva, etc.? Temas relevantes que,
pelas delimitações do estudo, não couberam no âmbito das averiguações
aqui empreendidas. Isto indica que a presente pesquisa não está concluída,
mas que mais esforços devem ser feitos para a continuação e o conseqüente
estreitamento de relações entre a Psicanálise e as Ciências da Linguagem.
Dificuldades no decorrer deste estudo foram muitas, mas a principal
que assinalo foi a resistência encontrada em alguns psicanalistas para
debater sobre o assunto. Em vários momentos, percebi que o diálogo era
complicado demais, talvez por alguns profissionais acreditarem que toda
93
sorte de trabalho que sugira esta inter-relação esteja encerrada,
impossibilitada. Portanto, por vezes tive que “pisar em ovos” ao tentar ser
compreendida, e para que percebessem minha proposta não como uma
ameaça, mas, pelo contrário, como uma contribuição para o campo.
As obras que encontrei sobre a relação entre as disciplinas foram
escassas. Por isto, permito-me dizer que este trabalho que realizei nunca foi
feito antes, o que o torna, certamente, mais sujeito à discussão. Desta
maneira, gostaria de declarar meu trabalho como um trabalho ainda “em
construção”, que, apesar de concluído, ainda aguarda comentários e
sugestões de ambos os campos de estudo envolvidos em minha pesquisa.
94
REFERÊNCIAS
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