Download PDF
ads:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-graduação em História
LINHA DE PESQUISA: POLÍTICA E SOCIEDADE
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Representações Sociais e Práticas Políticas do Movimento Negro
Paulistano: as trajetórias de Correia Leite e Veiga dos Santos
(1928-1937)
Maria Cláudia Cardoso Ferreira
Rio de Janeiro
Agosto de 2005
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-graduação em História
Representações Sociais e Práticas Políticas do Movimento Negro
Paulistano: as trajetórias de Correia Leite e Veiga dos Santos
(1928-1937)
Maria Cláudia Cardoso Ferreira
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em História da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
como requisito à obtenção do grau de
Mestre em História.
ORIENTADOR:
Prof. Dr. Sílvio de Almeida Carvalho
Filho
Rio de Janeiro
2005
ads:
AGRADECIMENTOS
Esta dissertação é fruto de minha trajetória iniciada ainda na época em que me
preparava para o ingresso no curso de História. Com efeito, foi como aluna e
posteriormente militante do Pré-Vestibular para Negros e Carentes – PVNC que tive
os meus primeiros contatos com a história do movimento negro. Por isso agradeço,
primeiramente, aos amigos do PVNC pelo aprendizado e experiência adquirida até
aqui.
Neste processo não terminado de buscas pelo conhecimento, inúmeras pessoas
estiveram presentes contribuindo seja com ações e/ou palavras de apoio. Sou grata em
primeiro lugar aos meus pais, parentes e amigos. Especialmente minha mãe Judith,
por ter me mostrado a importância dos estudos e, minha madrinha Helena. Ao meu
irmão Alexandre e minhas irmãs Andréia, Elisângela, Elisabete e Érica, além das
emprestadas Jô e Janete, pela colaboração, incentivo e apoio cotidiano. E, com
carinho especial, ao meu marido/companheiro Márcio André dos Santos por ter
partilhado cotidianamente, minhas angústias, conquistas e limitações sempre com
palavras assertivas como bem sabe fazer.
Algumas pessoas além de amigas foram presenças imprescindíveis no
processo de feitura do trabalho. Assim sou grata à Luanda, Alain Kaly, Clícea e
Simone (Pós-graduação UERJ). Também ao amigos da JOC-SP, ao Prof. Dr. José
Jorge de Carvalho e a Joanice e Mariana por me acolherem nos momentos em que
precisei pesquisar em São Paulo. À Profa. Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva pela
relação de amizade e parceria intelectual iniciada na época da graduação e, as Profas.
Dras. Fátima Machado Chaves e Mônica Grin por suas contribuições no exame de
qualificação. Assim como ao Prof. Dr. Petrônio Domingues pelo desprendimento e
solidariedade de pesquisador ao disponibilizar suas fontes, quando a falta destas,
certamente comprometeria a qualidade de meu trabalho.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES
pela concessão de bolsa de pesquisa entre março de 2004 e março de 2005.
Meu orientador Prof. Dr. Sílvio Almeida Carvalho Filho, contribuiu
substancialmente para meu amadurecimento intelectual ao longo desses dois últimos
anos, com sua erudição, profissionalismo e dedicação. Numa época em que o tempo
parece cada vez mais escasso, sou grata a ti pelo desprendimento em me ensinar o
caminho das pedras. Pelos inúmeros encontros de orientação, alguns exaustivos, mas
imprescindíveis se buscamos resultados satisfatórios. Enfim, muito obrigado pela
paciência e pelo altruísmo! Prometo seguir o exemplo do mestre amigo.
RESUMO
O presente trabalho é fruto do estudo das trajetórias políticas de dois ativistas
do movimento negro, existente na cidade de São Paulo, nas décadas de 1920 e 1930.
José Correia Leite e Arlindo Veiga dos Santos fundaram organizações político-sociais
com expressividade local e até mesmo nacional, sendo o jornal Clarim d' Alvorada
(1924-1932) e a Frente Negra Brasileira (1931-1937), as entidades nas quais os dois
mais se destacaram, respectivamente. Nessas e noutras organizações desempenharam
os papéis de intelectuais-militantes, pois desenvolveram um tipo específico de
ativismo, capaz de no decorrer daqueles anos combinar a formação intelectual
adquirida, com a prática militante, tomando para si a missão de atuar em prol do
grupo racial negro. Enquanto intelectuais-militantes formaram e divulgaram
representações sociais e organizaram ações políticas visando diminuir o preconceito e
a discriminação racial naquela sociedade. Usavam a imprensa negra paulistana como
veículo de comunicação e as redes de sociabilidade construídas para arregimentar
seguidores e pôr em prática seus projetos. Não obstante, as ações de Veiga e Leite
tiveram formas de estruturação e atuação contrárias. No contexto político dos anos
1930, os dois se distanciaram optando por ideologias políticas conflitantes, o que
gerou rompimentos, revelando uma diversidade de projetos no âmbito do ativismo
negro paulistano.
(Movimento Negro – Trajetórias políticas – Intelectuais – Ativismo político)
ABSTRACT
This work presents the political trajectories of two activists of the black
moviment that existed in São Paulo, in the 1920’s. José Correia Leite and Arlindo
Veiga dos Santos funded socio-political organizations that reached national levels.
The two founders are most well-known for creating the jornal Clarim d’ Alvorada and
Frente Negra Brasileira, respectively. In these organizations and others, the two men
filled militant intellecttual roles, developing a particular type of activism that
combined their intellectual learnings with a militantism in the struggle for black racial
identity. As intellectual militants they created and disseminated social representatione
and organized political actions with the aim of reducing racial prejudice and
discrimination in society. They used the black press in São Paulo as a vehicle of
communications and their social networks was made looking for to get follawers and
put their projects into action. Nonetheless, Veiga and Leite’s projects were different
in structure and operation. In the political contest of the 1930’s, the two opted for
conflicting political ideologies which created ruptures, and which reveal the diversity
of projects in the black moviment in São Paulo.
( Black Moviment – Political trajectories – Intellectuals – Political activism)
8
SUMÁRIO
SUMÁRIO....................................................................................................... 8
BREVE APRESENTAÇÃO .......................................................................... 9
1. CAPÍTULO UMA OPÇÃO: TRAJETÓRIAS POLÍTICAS DE INTELECTUAIS
NEGROS PAULISTANOS
........................................................................................................12
1.1 Para entender seus contextos, seus escritos, suas memórias... ......................12
1.2 Os testemunhos: depoimentos, jornais e inventários policiais ......................42
2. CAPÍTULO - LIDERANDO ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS NO MEIO NEGRO
PAULISTANO
........................................................................................................................50
2.1 Uma combinação de variáveis: aspectos sócio-econômicos e político-
culturais propiciam a emergência dos ativistas negros........................................50
2.2 O alvorecer do ativismo negro: breve história das entidades negras em que
atuaram Correia Leite e Veiga dos Santos...........................................................58
2.3 Atuando em outros movimentos..................................................................101
3. CAPÍTULO - O "PROBLEMA NEGRO" E OS QUESTIONAMENTOS DO NEGRO: A
RAÇA E A PROBLEMÁTICA DA FORMAÇÃO NACIONAL
.....................................................116
3.1 O quantitativo populacional negro como um problema nacional................116
3.2 Uma saída para o Brasil do futuro: o branqueamento pela mestiçagem .....122
3.2 Década de 1930: a afirmação da democracia racial ....................................148
4.
CAPÍTULO OS PERCURSOS DOS INTELECTUAIS DA RAÇA”: PRÁTICAS
POLÍTICAS E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS ENTRE OS ANOS DE
1928 E 1937 ......................160
4.1 Veiga dos Santos e Correia Leite: duas personalidades singulares.............160
4.2 - Uma utopia: re-elaborar positivamente a imagem do negro brasileiro .....168
4.3- Década de 1930: adesão e dissensão entre José Correia Leite e Arlindo
Veiga dos Santos ...............................................................................................198
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................212
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................... 218
9
BREVE APRESENTAÇÃO
Arlindo José da Veiga Cabral dos Santos e José Benedito Correia Leite
atuaram em organizações do movimento negro sediadas na cidade de São Paulo, na
primeira metade do século XX. Essa dissertação analisa suas trajetórias políticas,
tomando como marco inicial 1928 - ano em que o jornal O Clarim d'Alvorada dirigido
por Correia Leite, assumiu o combate ao racismo como uma ação política e marco
final 1937 - data da deflagração do Estado Novo, porque proibiu o funcionamento de
todas as organizações político-sociais, inclusive da Frente Negra Brasileira, entidade
na qual Veiga dos Santos exerceu o cargo de presidente. Enfocamos o conjunto de suas
idéias e práticas políticas inseridas na agenda do movimento social negro na cidade de
São Paulo e optamos por examinar a posição de liderança intelectualizada, algumas
vezes em arenas opostas, que esses dois indivíduos assumiram. Investigamos essas
trajetórias no âmbito das relações raciais, ou seja, intentamos mostrar como os
militantes percebiam os papéis sociais atribuídos e representados pelos grupos raciais
branco-negro, no âmbito da sociedade brasileira no geral e paulistana em particular.
José Correia Leite e Arlindo Veiga dos Santos, por suas trajetórias, assumem
neste trabalho, a condição de porta-vozes de um conjunto formado em sua maioria por
homens, que se destacou no interior da chamada elite negra paulistana como o grupo
dos intelectualizados. Estes desenvolveram um tipo específico de ativismo, capaz de
no decorrer daqueles anos combinar a formação intelectual, adquirida muitas das vezes
durante a própria atuação, à prática militante, assumindo um papel singular: o de
10
intelectuais-militantes
1
capazes de tomarem para si a missão de atuar em prol do grupo
racial com o qual se identificavam.
Enquanto intelectuais-militantes foram organizadores, formadores e
divulgadores de idéias que visavam diminuir o preconceito e a discriminação racial
naquela sociedade. Podem ser considerados os precursores do movimento social negro
brasileiro, na medida que partilhamos do entendimento de que as organizações que
lideraram tiveram como um dos objetivos combater o racismo e à discriminação racial
contra o negro. Não obstante, as ações de Veiga e Leite terem tido, às vezes, formas de
estruturação e atuação contrárias, são discutidas neste trabalho, a partir das
representações sociais e práticas políticas resultantes do modelo de relações raciais
vigente naquela sociedade, ou seja, nos detemos, preferencialmente, sobre o que esses
dois intelectuais-militantes compreendiam e formulavam sobre a chamada questão
racial.
No primeiro capítulo discorremos sobre o tema e o contexto, apresentamos as
escolhas teórico-metodológicas consideradas mais adequadas à análise das
representações formuladas pelos dois intelectuais-militantes, além das fontes utilizadas
para a realização do trabalho. No segundo, optamos por apresentar as trajetórias de
Leite e Veiga no meio político paulistano, entre as décadas de 1920 e 1930. Para isso
fizemos um breve histórico das entidades nas quais os dois foram fundadores, líderes
ou simplesmente, componentes do quadro organizativo. No terceiro capítulo
intentamos apresentar o conjunto de idéias sobre a questão racial veiculada na
1
Adotamos aqui como noção chave de nossa análise, a construção intelectual-militante por designar
aqueles ativistas, surgidos entre as décadas de 1920 e 1930, fundadores das primeiras organizações do
movimento negro brasileiro que articularam a cultura à política. Esses líderes participaram como
divulgadores e mediadores culturais no espaço da cidade com a finalidade política de conscientização e
transformação social. Para tal, atuaram como jornalistas, oradores, literatos e articulistas. Na construção
desse termo, foram-nos úteis as contribuições de GRAMSCI (s.d) e mais recentemente, as de
SIRINELLI (1996), sobre os intelectuais na França. Para uma outra discussão crítica dessa acepção, ver
CUNHA (2000).
11
sociedade paulistana durante aqueles anos. Fizemos isso através da análise da
produção intelectual de alguns estudiosos tidos como referência na época. Enfocamos
a maneira que tais pensamentos foram assimilados pelos intelectuais-militantes na
chamada imprensa negra, dando ênfase especial às representações veiculadas por
Veiga e Leite. No quarto e último capítulo discutimos as formas de atuação política
empreendidas pelos dois ativistas, que em alguns momentos estiveram em sintonia e
em outros divergiram. Essa abordagem nos fez perceber uma diversidade de projetos e
frentes de atuação do Movimento Negro paulistano, causadores de alguns conflitos
mapeados em nesta dissertação.
12
1.CAPÍTULO UMA OPÇÃO: TRAJETÓRIAS POLÍTICAS DE
INTELECTUAIS NEGROS PAULISTANOS
"...Nós éramos tidos como loucos,
como gente que estava criando caso."
(José Correia Leite)
1.1 Para entender seus contextos, seus escritos, suas memórias...
O nascimento de José Benedito Correia Leite deu-se em 23 de agosto de 1900,
a Rua 24 de Maio, na cidade de São Paulo e foi fruto do envolvimento de sua mãe,
"uma negra, doméstica e muito lutadora", com um dos "quatrocentões de família bem
tradicional".
2
A mãe trabalhava como empregada doméstica, deixando ele e uma irmã,
sob os cuidados de vizinhos. Nessa época morava numa casa de pau-a-pique, numa
localidade conhecida como Saracura Grande, no bairro do Bexiga, originário do
quilombo da Saracura surgido a partir da segunda metade do século XIX. A Saracura
Grande era remanescente do quilombo e ficava onde é hoje a rua Marques Leão.
3
As
comunidades estrangeiras, no geral, se agruparam em bairros específicos. Os bairros
da Mooca, Lapa, Barra Funda, Bexiga e Brás foram ocupados preponderantemente
pelos italianos, que dividiram com espanhóis, a Mooca e o Brás. Na Liberdade,
concentraram-se os imigrantes japoneses. Já os negros chegaram em tempos diferentes
na cidade. Alguns lá já estavam desde antes da abolição. Outros migraram nos anos
subseqüentes a data de assinatura da lei abolicionista em busca de melhores condições
de vida. Entretanto, não podemos dizer que os negros se concentraram em bairros
específicos, ainda que possamos identificar algumas localidades com presença
substantiva dessa população. Foram os bairros do Jabaquara, Barra Funda e Lavapés,
2
Correia Leite contou que a mãe "nunca quis saber de nada" com seu pai, criando ele e a irmã sozinha.
Cf. depoimento cedido à Míriam Ferrara em 14/11/1980 (mimeo), p.1
3
LEITE,1992:23
13
além de regiões do Bexiga, locais onde a comunidade negra se concentrou e pôde, na
medida do possível, construir singularidades e elaborar um repertório comum.
4
Ainda na infância, Correia Leite trabalhou para os italianos como entregador de
marmitas, menino de recados e ajudante como forma de complementar a renda
familiar. Por conta de sua precária estrutura familiar, viveu na infância e na
adolescência um abandono intermitente que prejudicou a sua assiduidade a escola. A
situação agravou-se após doença psiquiátrica da mãe e seu posterior falecimento,
quando o menino tinha por volta de nove ou dez anos. No decorrer da infância e
adolescência tentou estudar de diversas maneiras: trabalhando em troca da instrução,
freqüentando uma escola maçônica para desvalidos, uma para jornaleiros fomentada
pelos monges beneditinos, mas não logrou sucesso.
Após a morte da mãe, foi trabalhar definitivamente com os italianos como
ajudante de carpinteiro, lenheiro e cuidador de crianças na maioria das vezes, em troca
de casa e comida. O militante relatou que "vivia em harmonia com os italianinhos,
filhos do seu patrão, em cuja casa morava, e com outros meninos brancos da
vizinhança". Em seus relatos informou que se sentava à mesa, já que era tratado como
se fosse da família. Paradoxalmente foi nessa mesma comunidade que viveu as
primeiras situações de preconceito e diferenciação racial. Ocorreram diversas ocasiões,
na qual sua condição de negro funcionou como um marcador de inferioridade e
exclusão. Lembrou que durante as partidas de futebol era xingado de negro e minelite,
o último em referência ao imperador Menelike II
5
, o que na época, muito o
amargurava. E que, quando começou a pensar em namoro, as moças escolhidas para
4
ROLNIK,1989:30
5
Menelike II foi o insólito dirigente africano não derrotado na luta contra o colonialismo europeu, desse
modo a Etiópia tornou-se o único Estado africano vencedor, em fins do século XIX, de uma potência
“branca”, a Itália, em suas ambições imperialistas na África (1896). Essa foi “a maior vitória de um
africano contra um exército europeu desde a época de Aníbal”. Por isso, esse imperador tornou-se um
dos símbolos da lutas dos negros na África e na América contra a hegemonia branca. Cf.
14
ele nunca eram as "da família, mas sim, mulatinhas". Que numa ocasião, os rapazes,
seus amigos, se preparavam para freqüentar a "sociedade de baile" e o máximo que
conseguiram foi que ele freqüentasse os ensaios de homem. Condição que aceitou num
"momento de deslocamento"
6
denotando um "comportamento de aceitação consciente
ou inconsciente dos padrões culturais existentes.
7
Mas, décadas mais tarde, essas
mesmas informações dadas pelo depoente, sofreram outro tipo de análise. O velho e
experiente ativista negro, com profundas impressões sobre as relações raciais no
Brasil, em suas novas lembranças chegaria a outras conclusões. Diria que quanto "à
discriminação eles, [os italianos] seguiam a regra dos brasileiros brancos": distância. O
italiano adotou muito bem o modelo brasileiro de tratar os negros. E, caso gostasse de
algum negro, não faziam restrições.
8
O cotidiano e as histórias de vida lembradas nos
fazem perceber que as relações raciais branco-negro em São Paulo foram marcadas por
significativos casos de apadrinhamento de indivíduos negros por famílias brancas.
Estes eram tratados como "da família", até que ousasse transpor as barreiras impostas
pelo grupo dominante, como nos mostrou as reminiscências de Correia Leite.
Correia Leite se alfabetizou apenas na juventude com a ajuda de Jayme de
Aguiar, amigo de infância, criado numa família da aristocracia paulista
9
, reencontrado,
por acaso num baile negro, após o término dos ensaios só para homens, do clube
italiano Duque de Lá Bruce, que passara a participar. Posteriormente, incentivado por
AKPAN,1991:281-286).
6
FERNANDES,1978:270-274 vol.I O autor não cita o nome do militante nestes relatos. Usa apenas a
abreviação J. porém, cruzamos as informações contidas em Fernandes com a biografia póstuma de José
Correia Leite e chegamos a conclusão que a história de vida de J. é mesmo, a do próprio.
7
FERNANDES,1978:320 volI
8
LEITE,1992:52-53
9
Jayme de Aguiar era amigo de infância de José Correia Leite e devido a uma aproximação de sua
família com os Paula Souza, que estavam no poder desde antes da abolição, pôde concluir os estudos
secundários, se tornando técnico de contabilidade e posteriormente funcionário público. Reencontrou
Correia Leite já na juventude num baile de negros. Reataram a amizade da infância a ponto de Jayme
completar o processo de alfabetização de Correia Leite e depois convidá-lo para organizarem um jornal.
A parceria dos dois iniciou-se em 1924, com a fundação do jornal O Clarim d' Alvorada. Jayme de
Aguiar deixou a direção do jornal no final da década de 1930 para se casar, mas continuou colaborando
15
Aguiar que o "ensinara a gostar de livros", iniciou uma espécie de curso técnico
noturno de contabilidade. Porém não conseguiu concluir. Na década de 1940, o pai o
ajudaria a conseguir um emprego estável na prefeitura de São Paulo. A primeira vez
que Leite procurou-o, tinha 22 anos. Depois de alguns desencontros, conversaram.
Segundo o próprio, o pai com medo da "índole dos negros" de "tirar coisas" disse que
não teve culpa pelo acontecido, pois sua mãe havia sido soberba e sumido com ele.
10
Ao apresentarmos esse resumo de sua vida, até o começo de sua iniciação na
política queremos ressaltá-lo como um típico representante do meio empobrecido. Até
os vinte e poucos anos, esta não diferia da maioria dos jovens negros de sua época,
marcada pela falta de escolarização, ocupações precárias e moradia subumana. Será a
descoberta de uma outra sociabilidade, nas festas organizadas pelas "sociedades
negras" e o desempenho intelectual potencializado a partir da atuação no jornal O
Clarim d'Alvorada, fundado juntamente com Jayme de Aguiar em 1924, que irá inseri-
lo no mundo das letras e da militância, tornando-o um dos principais ativistas
orgânicos do movimento negro que existiu nas primeiras décadas do século XX.
Em 1928, Correia Leite assumiu o posto de editor responsável pelo O Clarim d'
Alvorada. Em sua gestão, o periódico passou a pautar a questão racial de maneira mais
combativa e reivindicativa, tornando-se a vanguarda do ativismo negro que apareceria
na década seguinte. Ainda no final da década de 1920, liderou duas campanhas
encampadas pelo Clarim d' Alvorada: a da realização do primeiro Congresso da
Mocidade Negra Brasileira e a da criação de um monumento à Mãe-Negra. Foi em
torno da mobilização para a realização do Congresso que Santos e Leite, conhecidos
desde a época do Centro Cívico Palmares
11
, se aproximaram e se tornaram notórios no
na imprensa negra com textos, poesias além de freqüentar as comemorações organizadas pela militância.
10
FERNANDES,1978:275 vol.I
11
O Centro Cívico Palmares foi uma organização negra atuante entre os anos 1926 e 1929 da qual
16
meio negro letrado.
Arlindo José da Veiga Cabral dos Santos nasceu em 12 de fevereiro de 1902,
na cidade de Itu. Fez o curso primário no Grupo Escolar "Cesário Mota" e o ginasial
nos colégios São Luís - instituição jesuíta onde o pai era cozinheiro e no colégio Nossa
Senhora do Carmo, entre 1914 e 1919. Era comum esse tipo de favorecimento. Como
vimos no exemplo de Jayme de Aguiar, muitos negros ascenderam por conta desse
mecanismo de ajuda individual. No entanto, essa prática fazia com que tais pessoas
devessem gratidão aos seus protetores para o resto de suas vidas, ou seja, permaneciam
os padrões de relações tradicionalistas calcados ainda, em valores pré-abolição.
Certamente esse tipo de relação contribuiu para minar um processo de conscientização
política mais eficaz, capaz de lutar pela supressão radical da subordinação do negro
enquanto grupo racial. Percebemos, no decorrer da pesquisa que essa relação era
recorrente, sendo mais intensa ou não conforme o tipo de relação que se estabelecia
entre a aristocracia branca e o grupo negro.
Arlindo foi o único, numa família de muitos irmãos a cursar uma faculdade,
diplomando-se em 1925, em Filosofia e Letras pela Faculdade de São Bento, fundada
em 1908, por D. Miguel Kruse e filiada à Universidade de Louvain (Bélgica), em
1911. A São Bento, posteriormente tornou-se Faculdade de Filosofia e Letras de São
Paulo e, em 1959, integrou-se a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Atualmente a Faculdade de São Bento retornou suas atividades acadêmicas, mas
somente com o curso de Filosofia que nunca deixou de funcionar no prédio.
12
Foi
católico praticante durante toda a vida. Participou da Congregação Mariana da
Imaculada Conceição de Santa Efigênia, tornando-se presidente dessa irmandade, em
trataremos no capítulo específico sobre os espaços políticos em que os dois atuaram.
12
Informações tidas na secretaria da instituição e através de um panfleto publicitário, em agosto de
2004.
17
1940.
13
Também atuou como intelectual católico colaborando e dirigindo periódicos
dessa doutrina como o Mensageiro da Paz e o Século. Associado ao Centro D. Vital de
São Paulo colaborou para a revista A Ordem, responsável por divulgar as idéias da
Igreja. Além disso, foi declarado defensor do retorno da monarquia e em prol dessa
causa, fundou e presidiu, na maior parte do tempo de sua existência, primeiramente o
Centro Monarquista de Cultura Social e Política Pátria-Nova (1928-1932) e em 1932,
como desdobramento deste Centro, a Ação Imperial Patrianovista Brasileira - AIPB
(1932-1978) de orientação católica e monarquista.
Como intelectual escreveu e publicou poemas, romances e principalmente, suas
convicções político-ideológicas. Seus livros entre as décadas de 1920 e 1930 foram
Amar ...e amar depois menção honrosa na Academia Brasileira de Letras de São
Paulo, de 1923; As filhas da cabana (1921-1923), O carnaval (1925), O bálsamo das
dores (1926), Contra a corrente (1931), Satanás (1932); além de algumas obras que
traduziu do francês: Da floresta de Paris, de 1933, Do governo dos príncipes e do
governo dos judeus, de 1937.
14
Quase todos publicados com investimentos próprios.
Trabalhou na secretaria do Colégio São Bento e, a partir dos anos 1930, lecionou
inglês, latim e português em escolas particulares, tornando-se décadas mais tarde
professor universitário.
15
Arlindo Veiga dos Santos fundou junto com José Correia Leite e mais alguns
jovens negros a Frente Negra Brasileira (1931-1937), principal organização do
movimento negro, existente, entre a década de 1910 e 1950, se levarmos em conta o
13
DOMINGUES,s/d:5
14
MELO,1954:555-556
15
Cf.OLIVEIRA,1998:39. Arlindo trabalhou preponderantemente em instituições católicas. Foi
catedrático da Faculdade de Filosofia de Lorena, professor da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, da Faculdade de Ciências Econômicas do Sagrado Coração de Jesus e da Faculdade de Filosofia
da Universidade Católica de Campinas. Em 1956, foi eleito para o Instituto Histórico e Geográfico
Paulista. Além disso, participou do Instituto de Direito Social da Academia Brasileira de Ciências
Sociais e Políticas, da Sociedade Geográfica Brasileira e Association de poétes de Langue Française.
18
número de filiados e amplitude territorial alcançada. Com a Frente Negra Brasileira
seguiram-se anos bastante ativos na vida política de Veiga dos Santos e Correia Leite.
Ambos se tornaram referência no meio político negro, devido às posições políticas que
assumiram e textos que fizeram circular. Entretanto, logo dois grupos antagônicos se
formariam. Um representado por Veiga dos Santos propício das atitudes personalistas
e de caráter conservador, e outro liderado por Correia Leite, simpatizante das posturas
coletivas e democráticas.
Dessa ruptura surgiu o Clube Negro de Cultura Social fundado pelo grupo de
Correia Leite em 1932, depois que o jornal O Clarim da Alvorada foi empastelado
pelo pessoal de Arlindo Veiga dos Santos e com a finalidade de disputar poder com as
lideranças frentenegrinas. No Clube Negro de Cultura Social, Leite retomou suas
atividades jornalísticas publicando dois periódicos: a revista Cultura e o jornal O
Clarim, porém os dois não alcançariam a importância que tivera o Clarim d' Alvorada
anos antes. A Frente Negra Brasileira também teve seu periódico, o jornal A Voz da
Raça, veículo responsável por disseminar as idéias das lideranças frentenegrinas,
principalmente as de Arlindo Veiga dos Santos.
Entretanto, em 1937, com a instauração da ditadura de Vargas, os percursos
políticos tanto de Veiga dos Santos quanto de Correia Leite sofreram uma mudança
brusca, pois todas as organizações político-sociais foram impedidas de funcionar,
inclusive as entidades negras supracitadas, pois lograram articular práticas culturais às
políticas. Objetivo que ficou mais evidente com a candidatura de Arlindo Veiga dos
Santos a uma vaga na Assembléia Constituinte, ainda em 1933 e posteriormente, a
transformação da Frente Negra Brasileira em um partido político no ano de 1936.
Movimentos negros com características assumidamente políticas, só
ressurgiriam na cidade de São Paulo, a partir de 1945 com o fim da ditadura do Estado
19
Novo. Mas, estes apresentariam novas feições, estratégias de ação e objetivos, ainda na
busca, assim como aqueles de outrora, por integração no âmbito da sociedade
brasileira.
16
Problema que a ditadura do Estado Novo não resolveu, mas procurou
minimizar, pelo menos no plano discursivo, difundindo a idéia de que a nação
caminhava para uma brasilidade mestiça, em que as diferenciações e segregações não
constituiriam mais ameaças.
17
Neste contexto, se deu a apropriação pelo Estado do
mito da democracia racial, no sentido de harmonizar uma formação nacional que desse
conta de homogeneizar a diversidade racial, fundadora da sociedade brasileira, sem
que fosse preciso falar das desigualdades raciais históricas mantidas por essa mesma
formação.
18
Ao analisarmos a história do movimento negro dessas primeiras décadas
percebemos que Veiga dos Santos e Correia Leite foram dois personagens que se
destacaram e isso contribuiu para que suas trajetórias tornassem parte da memória do
movimento negro contemporâneo. Participaram como idealizadores, organizadores ou
articulistas da maioria das novas entidades que surgiram nos anos 20 e 30. Em alguns
momentos, estiveram politicamente em lados opostos, pois concebiam a militância de
maneira diferente. Podemos citar como exemplo, o episódio em que José Correia Leite
rompeu com a Frente Negra Brasileira, ainda que este tivesse participado de sua
fundação, por discordar veementemente do estatuto da organização que segundo ele,
espelhava idéias do fascismo italiano adaptadas por Veiga dos Santos.
19
O
antagonismo iniciado com este episódio se ampliou durante a década de 30 ocorrendo
outros incidentes, interferindo diretamente na dinâmica do movimento negro da época.
Acreditamos que suas trajetórias pessoais díspares contribuíram para a
16
Sobre o assunto ver ANDREWS, 1998;HANCHARD,2001;NASCIMENTO,2003:281-380.
17
COSTA, 2001 A construção sociológica da raça no Brasil (mimeo) apud GRIN, 2002:208
18
SOUZA, 2000:151; GUIMARÃES, 2002:121
20
existência das dissonâncias percebidas nas idéias e a práticas políticas analisadas.
Outras identidades oriundas de outras formações, como o caso da filiação monarquista
de Arlindo, influenciaram diretamente na dinâmica do movimento negro,
comprovando ausência de homogeneidade de concepção política. Nesse sentido, a
identidade racial construída aproximou-os, no entanto, outras interações existiram
tendo contribuído para aumentar os embates políticos travados.
Estudar as trajetórias de dois homens negros, entendidos aqui como indivíduos
que articularam atributos intelectuais com a ação militante, atuantes num período
importante da história nacional (os anos 1930), devido às transformações políticas,
econômicas, sociais e culturais ocorridas, torna-se fundamental, pois insere o
protagonismo negro no contexto da história republicana brasileira, numa perspectiva
que procura analisar, desde de dentro, suas concepções e demandas político-sociais.
Já existem trabalhos
20
sobre intelectuais brasileiros ligados aos movimentos
sociais, mas as abordagens seguem caminhos distintos da que optamos. Acreditamos
que pesquisas sobre grupos étnicos ou raciais que vivenciam ou vivenciaram alguma
situação de subordinação em relação a um outro hegemônico revelam-se importantes,
caso preocupem-se em examinar os papéis que desempenham os indivíduos mais
intelectualizados, que na prática cotidiana assumiram a liderança na transformação da
realidade de marginalização experienciada pelo grupo ao qual estavam inseridos. Além
do mais, estudos focados nos protagonistas dos movimentos sociais negros no Brasil
carecem de serem feitos, uma vez que a maioria destes trabalhos prioriza analisar as
entidades surgidas. Nesse sentido, nossa abordagem traz uma contribuição de outra
natureza, ao preocupar-se com as trajetórias políticas de dois representantes do
movimento negro que atuaram nas primeiras décadas do século passado, num mesmo
19
LEITE, 1992:94
21
cenário político-social, mas que por motivos contextuais e também de opção individual
construíram representações sociais e tiveram práticas políticas as vezes muito díspares,
evidenciando assim aspectos de uma pluralidade ideológica no movimento negro que
existiu neste período, pouco explorada pelas pesquisas acadêmicas até hoje.
Vale salientar que algumas dificuldades afastam os pesquisadores interessados
em estudar, a partir da Abolição, o racismo brasileiro e nossas relações raciais.
Podemos citar, a falta de linhas de pesquisas nas pós-graduações em História em
estudos que articulem o pertencimento "racial" à política, o posicionamento renitente
da maioria dos historiadores, que ainda optam por investigar as relações raciais
remetendo-se ao nosso passado escravista
21
e o tímido enfoque que a sociedade ainda
dá a temática, fundada na crença de que vivemos numa "democracia racial". Ainda
assim, alguns estudos
22
sobre o tema, mesmo que a maioria não seja de historiadores,
tornaram-se clássicos e são leitura obrigatória para os que optam pela temática.
Convém tecer aqui algumas considerações sobre as pesquisas mais relevantes, situadas
no espaço de São Paulo, as quais tivemos acesso.
Um olhar voltado para a organização do movimento negro em São Paulo,
privilegiando as condições sociais e econômicas propícias ao seu surgimento deram a
tônica das análises. A maioria investigou as organizações negras existentes no último
século com a finalidade de organizar, conscientizar e mobilizar a população negra ou
parte dela, no combate ao preconceito e a discriminação racial. Veiga dos Santos e
Correia Leite foram muito citados nestes trabalhos, visto que a maioria das pesquisas
analisa as organizações as quais eles dirigiram, sendo a Frente Negra Brasileira
23
20
Cf.ANDREUCCI & OLIVEIRA, 2002; REIS FILHO,2000;MAUES,1997
21
GRIN, 2002:215
22
Cf. FERNANDES,1978; BASTIDE&FERNANDES,1971; PINTO,1993
23
No próximo capítulo faremos um breve histórico das organizações negras em que atuaram Correia
Leite e Veiga dos Santos.
22
considerada a entidade mais complexa do período.
Os estudos publicados pela UNESCO
24
, encomendados pela Organização das
Nações Unidas, na década de 50
25
, mudaram os rumos das pesquisas relativas às
relações raciais no Brasil. Já que até então, a maioria deles, ou abordavam o negro pela
via da cultura "exótica" e folclorizada, ou como "degenerados" físicos, mentais vistos
pelo "saber" médico ou no mais, como potenciais criminosos na visão do Direito.
26
Contrariando a produção interna, o Estado brasileiro transmitia ao mundo uma visão
de paraíso racial, pois aqui não havia segregação como nos Estados Unidos da
América e África do Sul. Brasileiros brancos e negros conviviam numa suposta
harmonia, caminhando para uma evoluída democracia racial, um exemplo às outras
nações do mundo, traumatizadas com a tragédia do holocausto judeu.
Dentre eles, interessa-nos os trabalhos feitos por Florestam Fernandes
27
junto
com Roger Bastide, pois justamente, tratou das relações raciais entre brancos e
negros
28
na cidade de São Paulo, na primeira metade do século XX. O trabalho de
campo, iniciado em 1941, dividiu-se em três partes: a organização de debates com
lideranças negras da época, mas que também havia atuado nas décadas anteriores, a
aplicação questionários com brancos e negros a fim de perceberem formas de
discriminação e preconceito racial e pesquisas de campo em bairros populares de
maioria negra.
Especificamente sobre o movimento negro dos anos 1920 e 1930, os
24
UNESCO- United Nations Educational Scientific and Cultural Organization.
25
As três pesquisas tinham como perspectiva as nossas relações raciais. Talles de Azevedo estudou a
ascensão social dos negros na cidade de Salvador; Costa Pinto as organizações negras do Rio de Janeiro
a partir dos documentos produzidos pelo Primeiro Congresso Brasileiro do Negro realizado pelo Teatro
Experimental do Negro e Florestan Fernandes dedicou-se a compreender o cotidiano da população
negra na cidade de São Paulo.
26
Cf. SCHWARCZ, 1993
27
BASTIDE & FERNANDES, 1971 Brancos e Negros em São Paulo, 3
ª
ed. São Paulo: Nacional.
28
Fernandes não trabalhou com categorias étnicas ou raciais, mas sim de cor. Portanto, classificou como
negros, os visivelmente pretos, e mulatos, os visivelmente "miscigenados". Sua perspectiva percebia que
23
pesquisadores chegaram a conclusão, com a qual concordamos, que se tratou de
mobilização destinada a incluir o negro na sociedade competitiva, industrializada e
urbana no qual São Paulo se transformara. A diminuição da perseguição declarada a
população negra pela polícia, o surgimento do movimento modernista que incluiu a
estética negra em sua arte, o aparecimento de uma propaganda de cunho socialista ou
comunista destinada ao negro proletário e uma certa insatisfação frente ao governo de
Getúlio Vargas que não conseguiu resolver o problema do desemprego entre a
população negra, impulsionaram a organização política e social dos negros.
29
Portanto,
as lideranças surgiram no decorrer desse contexto de mudança cultural e político-
social, mas esteve muitas das vezes, despreparada ideologicamente para a empreitada.
Em conseqüência disso, acabou erigindo-se um movimento de reação às condições de
vida enfrentadas, e não de construção de reflexão e estratégia de ação organizada,
liderado por sujeitos cônscios do papel que poderiam assumir naquele momento.
Afirmativa da qual não partilhamos totalmente, pois Fernandes e Bastide deram pouca
importância as ambições individuais e o tipo de inserção que alguns sujeitos tiveram
no interior do movimento negro e também fora dele, como fatores que pudessem
explicar o desenrolar dos acontecimentos.
No final da década de 60, o autor publicou um outro trabalho
30
no qual
sofisticou as reflexões presentes no estudo anterior. Sua tese principal afirmava que
num período em que o capitalismo sedimentava suas estruturas na sociedade brasileira,
primeira metade do século XX, os negros experimentavam péssimas condições de
vida. Isto em larga medida, devido ao próprio despreparo dos mesmos e do preconceito
os dois grupos de cor sofriam as mesmas opressões, ocupando os mesmos estratos sociais, podendo ser
percebidos então, como um único segmento social, quase como uma "classe".
29
BASTIDE&FERNANDES,1971:196.
30
FERNANDES, 1978. A integração do negro na sociedade de classes vol. 1 e 2. 3
ª
ed. São Paulo:
Ática.
24
racial de grande parte da elite branca empregadora, que ainda pautava suas relações
sociais em bases tradicionalistas fundadas em valores oriundos do passado escravista.
31
Para Fernandes, o movimento social negro funcionou, para parcela mínima da
população negra paulista como uma forma eficaz de reação à pobreza, a baixa
escolarização e ao desemprego, logo com a finalidade de completar ainda, o processo
de libertação moral iniciado pela Abolição da escravatura.
32
Portanto, em linhas gerais,
o autor continuava a ver o ativismo negro existente naqueles anos, apenas como um
movimento reativo a um estado de coisas que teimava por permanecer.
Não obstante, Fernandes evidenciou o papel das lideranças no processo de
organização do ativismo. Percebeu que o ideal de democracia racial do movimento
negro, não tinha correspondência na ideologia branca dominante baseada ainda, nos
padrões tradicionais oriundos da sociedade escravista. Para ele, o movimento surgiu
com a finalidade de preparar o negro para a entrada na nova ordem econômica vigente,
instrumentalizando-o com escolarização e formação profissional, mas também, em
alguns casos, resultou da ação de um conjunto de homens negros letrados que
construíram uma "ideologia negra" capaz de vislumbrar alguns interesses comuns, pois
"achavam que o 'negro' devia despertar, sair do retraimento e impor-se como novos
alvos de 'integralização' à ordem econômica, social e política".
33
Sua análise afirmava
que as lideranças negras constituíram, aos poucos, uma ideologia que em alguns
momentos, até rivalizava com a ideologia dominante, mas que não alcançou "pureza
teórica e agressividade prática" capaz de intentar suplantar a ordem social vigente, ou
seja, não havia sofisticação ideológica e política capaz de fazer surgir um movimento
negro com intenções de tomada do poder. Ao contrário, era uma ideologia racial
31
FERNANDES, 1978:19-20 vol.1
32
FERNANDES, 1978:8 vol.2
33
FERNANDES,1978:93 vol.2
25
construída para minimizar os efeitos da subordinação do negro, pressupondo "a defesa
convicta da aceitação e da integração completa à nova ordem social". Seu foco era
desmascarar os padrões de relações raciais que nem a Abolição, nem a República
foram capazes de extirpar da sociedade brasileira, mantendo "uma dualidade
indesejável: um situação praticamente de castas sob o manto da "sociedade aberta" e
da "democracia racial".
34
De fato, não há evidências de que Veiga dos Santos ou
Correia Leite intentavam implantarem um Estado negro no Brasil. Mas, ao contrário
do que cria Fernandes, podemos supor que Veiga dos Santos pretendia suplantar a
ordem político-econômica vigente, instituindo a monarquia e uma nova política
econômica denominada de orgânico-sindicalista, e para isso o intelectual-militante
contava com a participação do segmento negro através de arregimentação realizada na
Frente Negra Brasileira.
35
Ações lideradas pelos militantes como a campanha da Mãe-Preta, visitas aos
túmulos dos heróis abolicionistas, a prática de se comemorar o 13 de Maio e a data das
outras leis emancipadoras e, é claro, a produção intelectual desses ativistas encontrada
na imprensa negra utilizada neste estudo, foram examinados por Fernandes.
Outrossim, vistos como iniciativas de um movimento negro que mesmo com poucos
quadros intelectuais, trabalhou para instrumentalizar a coletividade negra, quando
necessário, numa afirmação ideológica contra o "branco", construindo representações e
avaliações próprias e, impondo paradigmas que os brancos violavam ou pervertiam,
remetendo-se sempre a aspectos positivos do passado do negro no país e às práticas
discriminatórias da sociedade do presente que se dizia democrática, mas não incluía
plenamente o segmento negro.
36
34
FERNANDES, 1978:93.
35
Cf. MALATIAN, 1990 & MALATIAN,2000
36
FERNANDES, 1978:101-102
26
Investigações mais recentes
37
sobre o tema do movimento social negro, que
procuraram articular em suas análises o social à política ou, a política à cultura,
afirmaram que Fernandes estava preso a uma abordagem marxista clássica,
considerada bastante produtiva, mas que ao impor categorias como "classes sociais" e
"revolução" aos movimentos analisados, acabou por não situá-los em seus contextos
históricos de surgimento. Nesse sentido, as conclusões apresentadas por Fernandes não
estariam de todo erradas, embora ele devesse ter dado maior importância à formação
cultural diferenciada que existiu entre os próprios militantes e as projeções individuais
feitas em relação às organizações negras das quais participaram como fatores que
provavelmente influíram no sucesso ou não daquelas ações. Logo, concordamos que as
organizações atuantes no período necessitavam ser analisadas por novas abordagens
teóricas, capazes de revelar outras características não observadas por Florestam
Fernandes e Roger Bastide devido algumas limitações próprias do tempo em que
foram produzidas.
Assim, o historiador George Andrews, em investigação que também tratou da
relação entre negros e brancos no estado de São Paulo, de 1888 a 1988, analisou numa
perspectiva mais geral, as condições políticas, econômicas e sociais em que viveram
esses dois grupos, naquele estado, durante o século XX. Primeiramente, relatou a luta
do negro para se libertar da condição de cativo. Num outro momento, como ele
disputou os postos de emprego na cidade, num período em que o estrangeiro branco
era considerado o trabalhador em potencial. E por fim, o historiador esmiuçou a
história da mobilização política negra durante quase todo o século XX, apontando a
tentativa do movimento negro em se instituir como porta-voz da coletividade negra,
ainda que o mito da democracia racial tenha se estabelecido como um significativo
37
ANDREWS, 1998; HANCHARD, 2001
27
empecilho.
Andrews procurou demonstrar de que maneira políticas públicas e privadas,
gerenciadas pelo Estado, contribuíram para a subordinação do grupo negro e quais
foram as estratégias políticas de reação do grupo marginalizado frente à realidade em
que viviam. Como crítico de Florestan Fernandes, mostrou que a situação de
subcidadania enfrentada pela população negra esteve relacionada mais a uma ação
política do estado paulista que empurrava o negro para a marginalização, através da
pouca oferta de trabalho, a uma política de habitação inexistente e a quase nenhum
incentivo à educação e saúde, do que ao passado próximo da escravidão, causador
segundo Fernandes, da inabilidade para o trabalho livre.
38
Andrews incorporou em sua análise, a relação que existe entre a política e
outras esferas do social. Para ele, as vidas das pessoas comuns, as que são objetos de
uma "história vista de baixo" tem sido profundamente afetadas pela política e pelas
decisões tomadas pelos governos".
39
No entanto, a abordagem política durante muito
tempo esteve fora das análises de história social, reduzindo a complexidade da
realidade estudada, pois desconsiderava o papel que os indivíduos imbuídos de poder
político assumem, influenciando no destino das pessoas. Esta exclusão também nos
privou "da oportunidade de ver como as ações das pessoas comuns podem ter
conseqüências diretas e poderosas para os sistemas políticos em que elas vivem"
40
,
sendo fator preponderante na luta pelos direitos. Essa é a principal crítica de Andrews
a Fernandes e o viés que perseguimos em nosso trabalho. Portanto, inspirada em
Andrews, analisamos as representações e práticas políticas de intelectuais-militantes
negros que atuaram em momentos singulares da história política nacional e no
38
Cf. ANDREWS, 1998, Parte I "Trabalhadores" cap.3 "Imigração, 1890-1930". Neste o autor faz uma
revisão da historiografia sobre a escravidão no Brasil e posterior transição para o trabalho livre.
39
ANDREWS, 1998:44
28
movimento negro brasileiro.
Andrews quando analisou o protesto político negro trabalhou com a idéia de
“picos”, pois entendeu que a história do movimento negro no Brasil teve momentos de
maior atuação e outros de refluxo. Segundo ele, os protestos negros converteram-se em
mais revolucionários ou não, conforme o grau de exclusão e opressão que a população
enfrentou. Relacionando a reação negra numa dialética Estado-sociedade, ou melhor,
tentando esclarecer "o relacionamento interativo e recíproco que existiu entre esses
movimentos populares e as instituições do Estado"
41
, identificou a década de 1880, no
contexto do abolicionismo, como um período de ampla atuação do ativismo negro,
através das fugas e sublevações que culminaram na abolição do regime de escravidão
compulsória em 1888. Creditou aos negros escravos ou ex-escravos, a principal
participação nestes eventos. Só identificou novamente, processo de reação parecido,
com a fundação do Movimento Negro Unificado em 1978, através das manifestações
que o grupo realizou, ainda no período da Ditadura Militar e com a atuação de Abdias
do Nascimento, que futuramente se tornaria senador, junto a outros militantes de igual
importância, durante a década de 80 que teve como ápice os diversos atos políticos
reivindicativos em torno da comemoração dos cem anos da Abolição. Andrews,
mesmo consciente do contexto sócio-político da década de 1930, marcado por disputas
políticas e ideológicas e por um governo autoritário, concluiu que o movimento negro
surgido naqueles anos não se comparou às lutas do final dos séculos XIX e XX. Numa
crítica comparativa de longa duração, observou nas organizações daquele momento
pouca eficiência na medida que não conseguiram impactar a esfera política nacional.
Enfim, balizado pelas premissas da história social: longa duração, análise das
estruturas e do comportamento coletivo, ainda que tenha dado significativa
40
ANDREWS, 1998:45
29
importância às ações políticas dos indivíduos, considerou que as organizações da
primeira metade do século XX e, mais especificamente, a Frente Negra Brasileira não
soube congregar características transformadoras suficientes para levar a mobilização
das massas, presentes em outros movimentos protagonizados pelos negros na História
do país. Andrews inovou ao inserir a questão política e incluir o Estado como agente
do processo de exclusão racial, ainda que as premissas da história social tenham
predominado no seu trabalho. Portanto, estudos mais detalhados sobre as motivações,
expectativas e estratégias de ação dos militantes que lideraram tais movimentos ainda
carecem por acontecer.
Uma perspectiva analítica mais próxima do que nos propomos fazer é a de
Maria Angélica Maues
42
que se dedicou a examinar e interpretar o pensamento das
"elites negras" representadas pelos líderes políticos e intelectuais que militaram nos
movimentos negros que existiram entre as décadas de 20/30 até as décadas de 70/80 do
século passado. Sua definição para elite negra, da qual partilhamos, é de que tratava-se
de um "grupo de letrados, que conquistaram a ascensão econômica ou não, mas que
puderam formular concepções, a partir da reflexão das condições de vida dos negros e
formaram opinião nos diversos momentos em que estiveram militando".
43
Na mesma linha de Maués, alçamos os discursos produzidos pelas lideranças
dos movimentos negros do passado ao lugar de um pensamento social formulado por
legítimos intelectuais, representantes do segmento racial negro brasileiro. Em sua
análise, tanto os indivíduos que atuaram na imprensa negra e Frente Negra Brasileira,
ainda na primeira metade do século XX, quanto aqueles que foram protagonistas a
partir do final da década de 1970, mais especificamente, os que atuaram no
41
ANDREWS,1998:46
42
MAUES, 1997 Negro sobre negro: a questão racial no pensamento das elites negras brasileiras. Tese
de doutorado em sociologia, IUPERJ, Rio de Janeiro.
30
Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, não foram vistos
somente como militantes, mas sim como líderes políticos e intelectuais capazes de
formular uma ideologia racial negra, ainda que essa não tenha tido efeito mais eficaz
na estrutura social brasileira. Como Maués, nossa abordagem considerou as idéias das
lideranças-militantes negras, atuantes no decorrer do último século no campo dos
estudos sobre intelectuais. Entretanto, essa autora também investigou um longo
período de tempo, resultando em algumas generalizações, das quais procuramos nos
afastar quando escolhemos uma abordagem temporal e espacialmente circunscrita.
Especificamente sobre a militância dos anos 30, Maués disse que se tratava de
intelectuais que analisavam a questão racial e a sociedade brasileira, de forma prática e
inteligente, pois articularam uma ideologia racial com “propostas de ação efetiva”,
capazes de minimizar os efeitos da discriminação racial. Estes ativistas assumiram
para si, uma espécie de missão, pois ao contrário do restante da população,
conseguiam ver adiante percebendo que era preciso organizar-se para fazer algo mais
eficaz.
44
Nesse sentido, os militantes que atuavam nas diferentes organizações
"propunham um novo processo civilizatório para os afro-brasileiros"
45
fundamentado
em concepções próprias do momento, voltado à resolver dois problemas que impediam
o sucesso do negro: "o défict negro", visto como um atraso frente ao grupo estrangeiro,
por exemplo, e o "acúmulo de desvantagens" que deveria ser combatido através de
projetos pragmáticos como alfabetização, moradia própria e emprego estável para que
assim pudesse haver de fato, a efetiva integração na sociedade de classes
46
, já que na
percepção das lideranças negras, a falha da sociedade capitalista "era não incluir em pé
43
MAUES, 1997:12
44
MAUES, 1997:93
45
MAUES, 1997:134
46
MAUES, 1997:136-137. Maués articulou a tese "integracionista" e do "déficit negro" de Florestan
Fernandes (1978) com a do "acúmulo de desvantagens", pensada por Hasenbalg (1979)
31
de igualdade, o negro."
47
As pesquisas apresentadas optaram por abordagens que privilegiaram a longa
duração, cuja importância está em nos possibilitar compreender os efeitos das ações
em processos que incluíram mais que uma geração. No entanto, tais estudos acabaram
por não dar conta das interações que ocorreram no momento da efetivação dessas
mesmas ações, ao não incluir em suas análises os comportamentos, as tomadas de
decisão, os possíveis conflitos e as formações político-ideológicas de cada indivíduo
envolvido nos acontecimentos, movimentos e grupos de ação investigados. Nessa
análise mais geral, as ações e aspirações dos intelectuais-militantes desaguaram num
conjunto: o movimento social negro, ou seja, suas falas foram diluídas no decorrer da
crítica, dando corpo e significado às entidades que existiram.
Balizado pelas contribuições discutidas acima, nosso estudo insere-se no
campo teórico da História Política que numa abordagem renovada, inaugurada pela
historiografia contemporânea, fundamentalmente a partir da década de 1970 passou a
se preocupar com questões que envolviam os indivíduos e os grupos identitários em
geral. A abordagem política nos é pertinente, pois a partir dela as tomadas de decisões,
os eventos curtos, as movimentações e associações de pequenos grupos ou indivíduos
ficam mais evidentes, possibilitando uma melhor observação das atuações cotidianas
protagonizadas pelos agentes da transformação. Nesse campo o político figura como
local de configuração do social e da sua representação.
48
O agente social discute o seu
tempo, agindo sobre o mesmo. Logo, as pressões da sociedade e suas transformações
não são vistas como redutoras de ponto de vista. E mais, o vemos como o local em que
os estudos sobre indivíduos, pequenos grupos e curtos eventos têm seu maior destaque
e podem ser mais bem aproveitados.
47
MAUES,1997:240
32
Nesse sentido, nossa pesquisa enquadra-se dentro dos ditames supracitados,
uma vez que, trata-se de investigação histórica preocupada em acompanhar as idéias e
atitudes políticas de dois ativistas considerados os precursores do movimento social
negro no Brasil. Estes intelectuais-militantes iniciaram suas vidas políticas
desenvolvendo atividades ligadas ao campo da cultura, através da organização de
jornais negros, onde publicava seus textos, assim como através das entidades negras
que fundaram ou freqüentaram.
Indivíduos negros que, naquele contexto, pela condição de alfabetizados e
citadinos, destacaram-se do restante da população negra e potencializaram esse
diferenciador cultural ao atribuí-lo um estatuto de prática política, procurando dialogar
com e em favor de seu grupo racial, mas também com o grupo hegemônico branco.
Em outras palavras, o surgimento de uma intelectualidade negra na cidade de São
Paulo, colocou em evidência alguns indivíduos, capacitando-os para dialogarem, pelo
menos no plano discursivo, em igualdade com a elite branca, mas também com a base
negra através de uma estratégia de comunicação proporcionada pelos jornais e eventos
realizados.
A ampliação do espaço urbano e a inserção numa economia de base capitalista
vivenciada na região Sudeste, mais profundamente nas cidades do Rio de Janeiro e São
Paulo, a partir das primeiras décadas do século passado, possibilitaram a expansão de
alguns direitos básicos como educação, moradia, além de uma maior oferta de
trabalho. No caso específico de São Paulo, a discriminação racial e a concorrência com
os trabalhadores estrangeiros, atrelada a uma política de marginalização implementada
pelo Estado,
49
dificultavam a ascensão sócio-econômica da população negra nas
mesmas proporções que a branca.
48
Cf. ROSANVALLON,1995:16
33
Ainda assim, alguns indivíduos, em sua maior parte homens puderam estudar,
muitos já adultos, passando a ter uma ocupação profissional mais estável. Esse grupo
com o tempo diferenciou-se do restante da população negra, pois adquiriu novos
estilos de vida e novos interesses, desenvolvidos nos clubes dançantes e associações
culturais negras que passaram a existir. Foi substancialmente desse ambiente cultural
inovador que surgiu o intelectual negro que investigamos. Sujeito informado, inserido
no contexto da nova sociabilidade construída no convívio com seus pares, foi capaz de
desenvolver um ativismo específico através da imprensa negra em que forjou a
consciência de que fazia parte de um segmento racial preterido socialmente devido à
discriminação e ao preconceito racial existentes na sociedade paulista, que não o
aceitava como um igual.
Enquanto intelectuais combinaram uma definição mais ampla, sociocultural
daquele indivíduo criador e mediador cultural, na medida que fundaram jornais,
associações e organizaram eventos relativos aos interesses dos negros paulistanos; com
uma outra mais restrita, "baseada na noção de engajamento na vida da cidade como
ator", ou seja, do sujeito político capaz de comunicar as demandas de seu grupo.
50
Eram, nesse sentido, vistos pela coletividade como os especialistas, legítimos e
capazes de intervirem no debate da questão racial, colocando-se em prol da causa que
defendiam.
Os indivíduos podem assumir diferentes papéis concernentes aos intelectuais,
desde aquele que cria, que lança o novo, até aquele que assume uma atividade
divulgadora da cultura em voga. Foi, portanto, corroborando dessa noção mais ampla
do intelectual enquanto aquele que ""exerce uma função dirigente, organizativa e
49
ANDREWS,1998:100
50
SIRINELLI,1996:242-243
34
educativa não importando em que grau de atuação e aplicação efetiva""
51
, que fizemos
nossa análise das trajetórias de Correia Leite e Veiga dos Santos, entendidos como
indivíduos que combinaram a dimensão ativista e a intelectual a partir da inserção
política que tiveram. Daí a denominação "intelectuais-militantes" na medida que se
formaram, numa prática dialética e de "discussão cotidiana, privilegiada por seus
lugares na estrutura social e histórica”,
52
em relação à maior parte da população
nacional, empobrecida e analfabeta.
Veiga dos Santos e Correia Leite, como intelectuais-militantes, liam,
dialogavam com outras experiências análogas, refletiam e propunham soluções.
Correia Leite concebia a ação política de forma mais coletiva e inclinada ao consenso.
Assim, o identificamos próximo de uma cultura política democrática. A análise de sua
trajetória mostra-nos que a todo o momento percorria em sua práxis intelectual-
militante a via dupla do indivíduo ao grupo e do grupo ao indivíduo, ou seja, o
aperfeiçoamento intelectual dava-se na prática política realizada no grupo e pelo
grupo. Veiga dos Santos, ao contrário, teve formação católica tradicional do ensino
básico ao superior, ambiente que parece ter ajudado na formação de um sujeito
conservador e voltado às decisões personalistas que entendia a função do intelectual
como de uma liderança esclarecida forjada através de uma substancial formação
acadêmica. Sua trajetória intelectual evidencia uma total simpatia à cultura política
autoritária de cunho ultranacionalista, próxima dos fascismos crescentes na época.
Tratamos de histórias individuais que se cruzaram em meio as movimentações
políticas acontecidas durante os anos 1920 e 1930. Na maioria das vezes, as biografias,
trajetórias, histórias de vida trabalham descrevendo uma vida como um caminho, uma
estrada, um percurso orientado, um deslocamento unidirecional com seu início, meio e
51
GRAMSCI, In: Intellectual e l' Organizzacione de la Cultura 1948 apud MACCIOCCHI, 1980:202
35
fim.
53
Porém, uma carreira ou uma vida não pode ser compreendida apenas levando
em conta o sujeito que a protagoniza, pois o campo, ou melhor, os contextos que
simbolizam o espaço social, interferem-na completamente. Por essa abordagem, "o
sentido e o valor social dos acontecimentos biográficos" devem ser entendidos como
"colocações e deslocamentos do agente nesse espaço social"
54
, que "dadas sua origem
social e as propriedades socialmente constituídas do ambiente, pôde ocupar ou, em
certos casos, produzir posições já feitas ou por fazer". Assim, foi fundamental em
nossa abordagem investigar as condições históricas que tornaram possível ou não,
tomadas de posição, "encontros e desencontros", sucessos e fracassos protagonizados
por estes indivíduos e a partir destas construir uma análise mais coerente.
55
Veiga dos Santos e Correia Leite tiveram formações e conviveram em
ambientes sociais um tanto quanto diferentes que contribuíram na formação de suas
personalidades e concepções de mundo.
56
O pertencimento identitário relacionado ao
grupo negro foi um marcador importante, mas ainda que a causa do negro fosse uma
explicação coerente para a militância política, não devemos esquecer que as
identidades são plurais e negociadas. Portanto, "devemos considerar as diferenciações
culturais, não como tradução de divisões estáticas e imóveis, mas como o efeito de
processos dinâmicos"
57
que tomam diferentes variações e proporções conforme a
dinâmica social (gênero, raça, região), política e econômica em que se inserem. Assim,
a identidade racial atrelada à exclusão experimentada, fez com que os dois militantes
tomassem consciência do lugar social que ocupavam enquanto grupo. Contudo, a
inserção individual guardou suas particularidades, pois ao contrário de Correia Leite,
52
MACCIOCHI,1980:200
53
BOURDIEU,1996a:183
54
BOURDIEU,1996b:292 Grifos do autor.
55
BOURDIEU,1996b:244
56
Cf. LEVI,1996:175
57
CHARTIER,2002:76
36
sem profissão, um autodidata como ele mesmo afirmava, Arlindo teve a oportunidade
única, dentre tantos, de estudar e se tornar professor, rompendo assim a barreira da
baixa qualificação. Salvo essa especificidade, foi a partir de uma consciência de si
58
,
ou seja, de indivíduos que partilhavam situações comuns de denegação que
possibilitou a existência de uma prática política entre os dois militantes negros.
É por considerarmos as inserções individuais de cada personagem que não
cremos em trajetórias presumíveis em que fica evidente uma preocupação sistemática
com a evolução fatual dos eventos. Tais abordagens, na maioria das vezes, ao tentar
dar à narrativa uma lógica intrínseca, acabam por negligenciar os contextos,
esquecendo que não existe uma história individual que não tenha uma superfície
social, uma diversidade de campos, evidenciando que o personagem é um ser plural,
capaz de possuir diferentes comportamentos ligados a cada pertencimento.
59
Por
conseguinte, é importante afirmar que nosso estudo analisou apenas um período das
trajetórias de Veiga dos Santos e Correia Leite e ainda assim, sob uma perspectiva, a
militância política negra que os dois personagens desenvolveram, ou seja, não
intentávamos objetivo esgotar o assunto, mas proporcionar novos olhares para a
temática e o período.
A escolha pelo individual que fizemos aqui, não deve ser vista como
contraditória ao social, apenas tornou possível uma abordagem mais específica, ou
melhor, detalhada. Ao priorizamos as trajetórias e, a partir delas, a multiplicidade dos
espaços e relações sociais em que estas se inscreveram, pudemos compreender os
fatores externos e internos que tornaram possível a ascensão intelectual, tanto de um
quanto do outro, uma vez que representam dois grupos de intelectuais "ascendentes"
surgidos no ambiente político do movimento negro da época. O primeiro composto
58
Cf.GUIMARÃES,2002:10
37
pelos formados academicamente, respeitados no meio negro pelo título de "doutor". O
segundo, pelos saídos recentemente ou não, dos estratos mais empobrecidos, marcados
pelo abandono ou freqüência intermitente aos bancos escolares, mas que, contrariando
as estatísticas, devido a uma competência intelectual autodidata, sofisticada no fazer
diário proporcionado pelas atividades ligadas aos jornais negros, tornou-se referência
no meio negro letrado.
Assim, ao analisarmos estes personagens em seus contextos, mas sem deixar de
considerar suas próprias racionalidades, tivemos a oportunidade de verificar se as
"brechas", contidas nas normas, possibilitaram a estes dois intelectuais negros
tomarem outros caminhos e atitudes quem sabe algumas vezes, muito diferentes do
restante do grupo.
60
Por isso, a pertinência do conceito de representações sociais, o
mais apropriado na medida que pretendíamos compreender as concepções de mundo,
práticas e escolhas políticas realizadas por estes dois intelectuais-militantes.
Enquanto o conhecimento do senso comum as representações sociais
expressam a realidade, explicam-na, justificam-na ou a questionam.
61
Sua finalidade é
interpretar a realidade, organizar as relações do sujeito com o mundo que o cerca e
orienta-lo em suas condutas e comportamentos "permitindo-lhe interiorizar as
experiências, as práticas sociais e os modelos de conduta(...)."
62
Veiga dos Santos e Correia Leite foram alçados, em nosso estudo, à condição
de representantes de uma coletividade de militantes atuantes no passado próximo em
organizações que designamos hoje: movimento social negro. Estes dois personagens
agregaram características em suas trajetórias que nos levaram escolhê-los: dedicaram-
se ao ativismo negro, escrevendo, publicando textos e liderando organizações
59
BOURDIEU:1996a:191
60
LEVI,1996:180
61
MINAYO,2003:89
38
destinadas ao contingente negro. Os textos por eles divulgados na imprensa negra ou
que circulavam em livretos, panfletos, denunciavam, a partir dos constructos mentais
de que dispunham, uma sociedade hierarquizada na qual o negro ocupava o mais baixo
escalão, sendo visto como a mais vil das criaturas.
Nesse sentido, lidamos com as atitudes e formulações de homens que viveram
uma realidade que existiu e era concreta, não sendo apenas nomeação.
63
Passível de
interpretações, tal realidade era mediada por inúmeras representações sociais, advindas
das histórias de vida povoadas por situações de discriminação racial, além das
concepções de mundo originadas nos valores religiosos, ideológicos e nacionais
constituintes da formação tanto do indivíduo, como do grupo. Mas, em que medida se
dava a apropriação dessa realidade por tais pessoas? O que esses porta-vozes do grupo
negro compreendiam e formulavam em seus periódicos? Em outros termos, qual o
impacto e efetividade do discurso dessas pessoas? Procuramos responder a estas
perguntas aplicando as noções de ancoragem e objetivação que são constituintes do
processo formador de uma representação social.
Entendemos por ancoragem o ato de "integrar, cognitivamente o objeto
representado - idéias, acontecimentos, pessoas, relações etc. - a um sistema de
pensamento social preexistente".
64
Com esse mecanismo, os militantes negros
procuraram tornar inteligíveis, a si mesmos e aqueles que os cercavam, as questões
políticas e sociais que envolviam a realidade dos negros de então. Pelo processo de
ancoragem que o desconhecido, logo, o que lhes eram estranho, tornava-se
compreensível, passível de ser interpretado, pois a linguagem da representação inseria
62
XAVIER,2003:24
63
CARDOSO, 2000:10
64
JODELET, 1984 Represéntations Sociales: phénomènes, concept e théorie. In: MOSCOVICI, S. (ed.)
. Psychologie sociale. Paris, Presses Universitaires de France apud SÁ,1995:37
39
o objeto através de outros sentidos, num contexto coerente
65
. Nesse sentido, a
ancoragem efetivada pelos intelectuais-militantes intentava criar, a partir das
representações prevalecentes na cultura política brasileira de então, apropriações
conceituais e explicativas que permitissem esclarecer as razões da vulnerabilidade
social na qual se encontravam as populações negras no Brasil.
"Objetivar" está relacionado à capacidade das representações sociais em
naturalizar uma abstração, ou seja, em dar “uma 'forma' - ou figura - específica ao
conhecimento acerca do objeto, tornando concreto, quase tangível, o conceito abstrato,
'materializando a palavra'"
66
. Pois na tentativa de facilitar a compreensão dos
conceitos, idéias, ou melhor, do conhecimento em geral, esses são reduzidos a uma
imagem.
67
Caso da simbologia da Mãe-Preta e dos ícones do abolicionistas utilizados
pelos ativistas nos anos que investigamos.
Muitas das informações sobre os intelectuais-militantes que investigamos estão
contidas em publicações que tiveram a finalidade de contribuir na recuperação da
memória do movimento negro no passado recente e, ao mesmo tempo, fortalecer a
identidade dos militantes atuais, na medida que poucos sabiam do acontecido
anteriormente. A história da movimentação política negra no Brasil apresentava uma
lacuna entre o protagonismo ocorrido em torno da Abolição e o que existiu no retorno
democrático pós ditadura militar. Hiato que espelha obviamente um refluxo dos
movimentos sociais de cunho político nos períodos em que o Estado vestiu uma
roupagem autoritária como no caso do Estado Novo e da Ditadura Militar. Portanto,
foi acessando os mecanismos da memória social e individual que alguns jovens
65
SÁ,1995:34
66
JODELET, 1984 Represéntations Sociales: phénomènes, concept e théorie. In: MOSCOVICI, S. (ed.)
. Psychologie sociale. Paris, Presses Universitaires de France apud SÁ,1995:39; LEME,1995:48
67
MOSCOVICI, 1984a:38 The phenomenon of Social Representation In FARR, R. M. e MOSCOVICI,
S. (eds.) "Social Representations" Cambridge, Cambridge University Press. Apud SÁ,1995:40
40
militantes, atuantes no decorrer dos anos 1980 e 1990, trouxeram ao presente toda uma
gama de acontecimentos e tramas sociais ocorridos especialmente em São Paulo,
depois de 1888 e antes dos anos 1940.
A memória "é a presença do passado"
68
, ou melhor, a memória possibilita ao
passado estar no presente e efetivamente, os recursos à memória social são atualmente
muito úteis ao historiador, pois nos permitem cruzar informações, ver a interferência
do público no privado, além de perceber de maneira mais eficaz o uso das apropriações
e representações no decorrer de um caminho, quer seja individual ou coletivo.
A construção de uma identidade do movimento negro, voltado ao político, foi
iniciada entre os anos 1920 e 1930, e um dos mecanismos utilizados para amalgamar
essa unidade no presente, foi a recuperação da memória desse momento, a partir dos
depoimentos dos velhos militantes. Contudo, nesse processo houve um silenciamento
em torno da trajetória de Arlindo Veiga dos Santos e uma valorização das ações
protagonizadas por Correia Leite. A escolha dos depoentes denotou a prévia seleção do
que se queria saber e as falas desses mesmos sofreram enquadramentos, conforme o
enfoque dado às lembranças.
Com a passagem do tempo, a memória tende a associar-se a novas definições
identitárias, pois alguns comportamentos podem ser considerados antiquados,
incoerentes com a nova época ou incorretos ideologicamente. Verificamos isso na
relação que se estabeleceu entre a militância negra contemporânea e os personagens
que atuaram nos anos 1930. A memória dos dois militantes aqui estudados foi
apropriada assimetricamente, ocorrendo uma certa valorização da trajetória política de
José Correia Leite identificado como um militante de "esquerda" e, um
obscurecimento da figura de Arlindo Veiga dos Santos cristalizado no imaginário do
68
ROUSSO,1996:94
41
movimento como uma figura autoritária e conservadora, muito próximo das ideologias
partilhadas pela "direita". O esforço político para dar coerência e unidade ao grupo
atual, engendrou um enquadramento comprometido com o presente, não com o
passado. Portanto, a memória neste caso, funcionou como um recurso eficaz no reforço
dos sentimentos de pertencimento e fortalecimento da unidade do movimento negro da
atualidade.
69
Contudo, nem um nem outro personagem teve trajetórias incoerentes com a
época vivida, se os olharmos pela perspectiva da cultura política. Entendida aqui como
uma "espécie de código, um conjunto de referentes formalizados no interior de uma
dada organização social"
70
, como exemplos as crenças, valores e práticas próprios dos
partidos políticos, associações de classe, movimentos sociais, de líderes políticos ou
religiosos de um grupo, dentre outros. A categoria nos possibilitou compreender as
complexidades da realidade investigada, percebendo que, no mínimo, duas tradições
políticas pareciam disputar espaço no meio político negro: uma autoritária outra
democrática. Neste sentido, o olhar que dedicamos para esses dois ícones do ativismo
permitiu-nos descobrir através de suas falas, argumentos e gestuais, suas raízes e
filiações, restituindo-os a coerência dos seus comportamentos, estabelecendo uma
lógica a partir da reunião de parâmetros solidários que se estabeleceram.
71
Daí a
validade da noção de cultura política, na medida que revelou-se eficaz ao criticarmos
os comportamentos políticos dos grupos étnicos ou raciais pouco entendidos pelas
abordagens que utilizaram categorias analíticas mais abrangentes.
Enfim, líderes das principais organizações negras surgidas na cidade de São
Paulo, entre as décadas de 1920 e 1930, Veiga dos Santos e Correia Leite são
69
POLLAK,1989:9-10
70
SIRINELLI,1992:3-4 Histoire des droites apud BERSTEIN,1998:350
71
BERSTEIN, 1998:362
42
compreendidos na maioria dos estudos sobre o tema como intelectuais do meio negro.
Percorrendo caminhos às vezes distintos, resultantes de inserções socio-políticas
diferenciadas, os dois puderam atuar em favor de seu grupo racial construindo
representações sociais positivas, veiculadas na imprensa negra paulistana e
empreendendo ações políticas que visavam minimizar a discriminação e preconceito
raciais contra o negro. Fragmentos de suas iniciativas são encontrados em periódicos e
outros documentos de época e na memória transformada em publicação de alguns
personagens que estiveram diretamente envolvidos com a militância daqueles anos.
1.2 Os testemunhos: depoimentos, jornais e inventários policiais
Os procedimentos metodológicos que utilizamos neste trabalho, tiveram a
preocupação primeira, de entender os textos - as duas trajetórias - a partir de seus
contextos - os espaços em que atuaram Arlindo Veiga dos Santos e José Correia Leite,
com o entendimento de que o papel de intérprete cabe ao o pesquisador, pois é ele
quem julga e posiciona-se frente ao documento, explora o universo pesquisado e
deduz, a partir do mundo vivido pelos personagens e seu grupo social.
72
A montagem da trama contou com documentos orais publicados ou transcritos
por terceiros, jornais da imprensa negra e prontuários do Departamento de Ordem
Política e Social de São Paulo.
Dentre os documentos, estatuídos pela história oral, a maioria é de José Correia
Leite e relatam o ativismo existente nas décadas de 1920 e 1930. Consta de uma
entrevista datilografada de José Correia Leite, datada de 1980, concedida a Míriam
Ferrara, antropóloga estudiosa da imprensa negra, assim como um texto, não
publicado, escrito pelo pesquisador Renato Jardim Moreira em parceria com Correia
43
Leite, ao que parece no final da década de 1940. Além disso, há dois livros publicados
na década de 1990. O primeiro organizado pelo literato e militante Luís Cuti, intitulado
E disse o velho militante... José Correia Leite, trata da trajetória de vida pública do
ativista da infância até os anos 1960 aproximadamente. O segundo, também resultado
da iniciativa dos militantes do movimento negro paulistano, denomina-se Frente
Negra Brasileira: depoimentos/entrevistas e textos e foi organizado pela Organização
Não-Governamental Quilombhoje. Nele temos os depoimentos de cinco velhos
militantes que estiveram em algum momento nos quadros da Frente Negra: José
Correia Leite, Aristides Barbosa, Francisco Lucrécio, Placidino Damaceno Motta e
Marcello Orlando Ribeiro.
A maioria dos artigos do militante José Correia Leite está contido no jornal
chamado O Clarim , depois denominado O Clarim d' Alvorada. Os exemplares ao qual
tivemos acesso faziam parte da coleção dos próprios militantes. Foram microfilmados
e se encontram disponíveis para consulta na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
73
Tivemos acesso aos números de 1924 a 1932, mas nos dedicamos exaustivamente
sobre as publicações de 1928 a 1932. Já o A Voz da Raça foi analisado do ano de sua
fundação, em 1933, até o da publicação de seu último número, em 1937. A publicação
era semanal, depois passou a ser quinzenal e por fim mensal. Temos um conjunto de
70 periódicos. Nesse, identificamos os artigos escritos por Veiga dos Santos e
elencamos o conjunto de suas idéias políticas, priorizando sempre a relação que o
intelectual-militante fazia entre a questão racial e o contexto. Utilizamos também dois
exemplares do jornal Chibata, do ano de 1932, publicado por Leite e seu grupo,
72
MINAYO,1999:222
73
Os jornais encontram-se em dois rolos denominados "Jornais da Raça Negra". Devido a ocorrência de
duas greves, uma entre outubro e dezembro de 2004 e outra iniciada em março de 2005, tivemos
dificuldades de trabalharmos com o material da Biblioteca Nacional. Pelo contratempo, no final da
pesquisa fomos auxiliados pelo pesquisador Petrônio Domingues que nos cedeu um material
digitalizado que contém alguns números do Clarim d' Alvorada e do A Voz da Raça, oriundos do Centro
44
denunciando os irmãos Isaltino e Arlindo Veiga dos Santos por desvios morais
considerados imperdoáveis pelos seus opositores político-ideológicos. Esse episódio
será discutido oportunamente.
Os documentos do Inventário DEOPS estão divididos em prontuários nominais
e dossiês temáticos que abarcam o período de ação da Polícia Política entre os anos de
1924 e 1983 no estado de São Paulo. A Frente Negra Brasileira e transversalmente,
Arlindo Veiga dos Santos passaram a ser investigados pelo Departamento de Ordem
Política e Social (DEOPS), com o inventário de número 1538 depois que ocorreu o
empastelamento do jornal O Clarim da Alvorada e Correia Leite abriu processo contra
Arlindo Veiga dos Santos, na Delegacia da Ordem Política e Social. Outros militantes
que atuaram no movimento negro também foram investigados e presos pelo
DEOPS/SP, o Dr. Guaraná de Sant'anna, que foi advogado da Frente Negra Brasileira,
teve o prontuário 2029 e Isaltino Veiga dos Santos, que era irmão de Arlindo e foi
secretário-geral da Frente Negra Brasileira, o de número 2018. Decidimos analisar
alguns documentos contidos no DEOPS/SP porque identificamos nos três passagens
que nos informaram sobre as práticas políticas e representações tanto de Veiga quanto
de Leite na relação com o poder público e com o meio político negro.
Percebemos que um aspecto do nosso objeto: as representações sociais
produzidas por dois intelectuais-militantes em suas trajetórias políticas recortadas no
intervalo de 1928
a 1937, seriam mais bem compreendidas, caso criticássemos uma
gama de documentos com origens e características diversas. Através do cruzamento
de informações, da correlação das atitudes e tomadas de posição dos militantes
analisamos o efeito das regras sociais a eles imputadas. O método também nos
permitiu avaliar em que medida, as mediações de poder decorrentes de contatos,
de Documentação e Informação Científica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
45
negociações e apropriações foram viáveis.
O trabalho metodológico é, na verdade, um exercício de interpretação capaz de
ligar o documento, seja ele provindo da oralidade ou não, aos conceitos analíticos
advindos da teoria. Interpretar é "diferenciar que a compreensão do contexto do texto,
objeto que está sendo analisado difere do contexto do próprio pesquisador"
74
, portanto,
o método quando coerente, nos protege do risco do anacronismo. Desse modo,
compreender o texto nele mesmo, como resultado de um processo social de
conhecimento foi o objetivo que perseguimos. Cotejamos as falas contidas nos jornais
negros e nos depoimentos com as práticas evidenciadas pela análise, colocando-as em
seus contextos: o cenário político, social e cultural em que agiram os dois intelectuais-
militantes, no intuito de entendê-las a partir de seu interior, ou seja, no campo da
especificidade histórica em que foram produzidas.
75
Optamos por fazer uma leitura transversal do conjunto maior dos documentos:
os artigos de jornais e as memórias transcritas, recortando-os em unidades de registro
ou melhor, em conjuntos temáticos que estão relacionados com o material empírico e
com as reflexões sobre as representações sociais. Por essa abordagem, o material
empírico foi "o ponto de partida e o ponto de chegada da nossa interpretação", num
movimento de ida e volta entre o "concreto e o abstrato".
76
A crítica aos textos dos jornais fundamentou-se na perspectiva dialógica,
propiciando-nos perceber as representações e práticas sociais relacionadas a esses dois
intelectuais negros e as existentes na sociedade mais abrangente. A propósito,
utilizamos os periódicos como suporte para reconstruir parte da trajetória desses
personagens, não para contar a história desta imprensa, tarefa que já foi realizada por
74
MINAYO,1999:222
75
MINAYO,1999:231
76
MINAYO,1999:236
46
outros estudiosos. Os jornais foram analisados enquanto discursos que significam, ou
seja, faziam uma leitura da realidade, resultado do processo de criação de
representações sociais dos sujeitos que os produziam. Em vários momentos, houve
refrações, entre as reflexões que Arlindo Veiga dos Santos e José Correia Leite faziam
do contexto e o entendimento que a sociedade mais abrangente tinha. Fossem negros
ou brancos, militantes ou não, alguns rebateram ou corroboraram as representações
formuladas pelos dois intelectuais-militantes como demonstraram alguns artigos e
cartas-respostas, publicadas no A Voz da Raça e no Clarim d' Alvorada e mesmo na
imprensa mais abrangente. Uma crítica exaustiva dos diferentes documentos, atrelada
a uma argumentação teórica que consideramos pertinentes, foi o que empenhamos
fazer para dar conta do empreendimento de pesquisa.
Dentre o material citado, o que virou publicação sofreu dois crivos: a
sensibilidade dos velhos militantes, detentores de um passado ávido por ser descoberto
e o comprometimento político do intelectual negro contemporâneo responsável pela
realização do empreendimento, preocupado em entrevistar e constituir arquivos orais e
em difundir a memória do Movimento Negro, tal qual como era, sem um mínimo de
interpretação ou tentativa de análise.
77
O compromisso político dos militantes, ao
fazerem as publicações, era colocar em evidência o papel social do testemunho capaz
de "liberar o que estava reprimido e exprimir o inexprimível
78
", em outras palavras,
"contar a história" que ainda não havia sido contada sob a ótica daquelas pessoas.
Tanto Cuti quanto Barbosa, organizador da publicação do Quilombhoje, declararam
interesse inicial de realizarem trabalhos acadêmicos com os depoimentos. Entretanto,
esses tomaram um outro formato, ocorrendo a publicação dos dois livros de memórias,
na íntegra. Um entrevistador disse que "acabou constatando que os relatos falavam por
77
LOZANO,1996:22
47
si sós
79
", o outro que percebeu ser o momento de se fazer um livro "de" e não "sobre"
José Correia Leite.
80
Ainda que com isso a intenção fosse não influenciar os relatos, deixando que
eles seguissem um caminho próprio, percebemos que a relação entrevistador-
entrevistado balizou as narrativas. Os depoimentos publicados pelos militantes negros
do presente acabaram por priorizar a vida política e pública que aqueles homens
tiveram. A objetiva sobre a dimensão política aumentou em detrimento de outros
aspectos como as relações familiares, profissionais, afetivas etc.
Como já foi dito em outro momento, a maioria das fontes escritas são pequenos
jornais negros publicados por iniciativas individuais ou coletivas. Os jornais
funcionavam como veículos que informavam sobre a atuação das entidades mais
significativas (clubes, associações etc.). São fontes riquíssimas podendo servir a
diferentes estudos. Através deles, podemos identificar a difusão de idéias e concepções
políticas daquelas pessoas; a preocupação educativa estampada no veículo; o dia a dia
das organizações através da contabilidade, da divulgação de atividades e convocações
para comemorações etc.
Vale informar que os jornais e demais textos produzidos pelos militantes
estampados nos panfletos, convites etc. são entendidos aqui enquanto "sistemas de
comunicação" em que as engrenagens são os indivíduos que os escrevem, imprimem e
divulgam
81
, ou seja, nosso interesse foi conhecer os sujeitos responsáveis por
escreverem, imprimirem e fazerem circular aquelas idéias. Portanto, não foi nossa
tarefa traçar a história dos periódicos, nem esmiuçar as diferentes colunas e seções em
que estavam divididos, interessou-nos somente, expor as idéias dos personagens
78
FRANÇOIS,1996:12
79
QUILOMBHOJE:1998:10 Introdução de Márcio Barbosa organizador.
80
LEITE,1992:13 Prefácio de Luís Cuti quem entrevistou e organizou as memórias de Correia Leite.
48
relacionando-as com o momento vivido e com os projetos que intencionavam por em
prática.
A metodologia com o material contido no inventário DEOPS/SP foi diferente
da empregada nos jornais, pois a maioria além de ter origem indireta, ou seja, trata-se
da fala de outros sobre aquelas pessoas, são documentos policiais que nos obrigou ter
metodologicamente uma percepção diferenciada.
Se compararmos a documentação sobre o ativismo negro com outros dossiês
temáticos (comunista, anarquista, integralista)
82
organizados pelo DEOPS/SP
constataremos que se investigou muito menos material o movimento negro. Não
obstante, nela encontramos informações significativas relativas ao cotidiano dos
envolvidos, suas relações com o poder constituído, além dos pareceres dos
investigadores sobre as atividades realizadas pelas organizações políticas negras
enviados ao Delegado da Ordem Política e Social local para que o mesmo tomasse as
medidas cabíveis, caso oferecessem algum perigo à "ordem".
Contudo, o que explica esse desinteresse do DEOPS/SP pelo movimento social
negro que existiu entre as décadas de 1920 e 1930? No caso da Frente Negra
Brasileira, o fato de suas lideranças terem apoiado o interventor paulista e o governo
de Getúlio Vargas, modificou a atenção que a Polícia Política dirigiu à organização.
Alguns militantes da Frente Negra, em especial o grupo liderado por Arlindo Veiga
dos Santos, atuaram do lado da polícia política como informantes. Comparando a
outros movimentos, supomos que suas reivindicações, enquanto grupo social, não
oferecessem tanto perigo, devido às representações por eles adotadas em consonância
com o mito da democracia racial. A Polícia Política tendia a ver as associações negras,
81
Cf. ABREU,1992:261.
82
Sobre o assunto ver Coleção Inventário DEOPS. Ex.: ANDREUCCI, Álvaro & OLIVEIRA, Valéria
"Cultura amordaçada: Intelectuais e músicos sob a vigilância do DEOPS- São Paulo: Arquivo do
49
não como organizações políticas, mas sim como culturais como tantas outras que havia
na cidade de São Paulo.
Embora a ação da Polícia Política não tenha resultado em conseqüências
drásticas à ação do conjunto do movimento negro paulistano, caso comparássemos
com a documentação existente sobre os comunistas e anarquistas, a investigação
policial revela a face da repressão institucionalizada pelo Estado brasileiro, em relação
à expressão dos grupos sociais, num momento que este ainda não se encontrava em
regime de exceção política. O Estado Novo só ocorreria em 1937, mas há muito o
Estado atuava perseguindo e apartando do convívio social, indivíduos que tinham
como crime difundir concepções tidas como indesejáveis. Intelectuais e artistas muitas
das vezes eram considerados sujeitos que deveriam ser vigiados, pois eram
potencialmente "perigosos" ao difundirem idéias que poderiam ser consideradas
"subversivas".
Ao trabalharmos com fontes de origens diversas e que necessitaram de
tratamento distinto, nossa intenção foi proporcionar uma compreensão mais coerente
possível do objeto, completando o quebra-cabeça referente ao cotidiano político
daqueles intelectuais-militantes. A maioria das fontes já foi bastante utilizada, no
entanto poucas analisaram os próprios personagens e suas idéias, tarefa que nos
propomos realizar com os referenciais teórico-metodológicos que ora acabamos de
discutir.
Estado: Imprensa Oficial, 2002.
50
2.CAPÍTULO - LIDERANDO ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS NO
MEIO NEGRO PAULISTANO
"E uma de nossas idéias era essa:
se unir para ter uma retaguarda,
pra (sic) não ser um que apanhasse sozinho".
(José Correia Leite)
2.1 Uma combinação de variáveis: aspectos sócio-econômicos e
político-culturais propiciam a emergência dos ativistas negros
José Benedito Correia Leite e Arlindo José da Veiga Cabral dos Santos
iniciaram a vida política num período significativo da história nacional, numa cidade
que anos após anos, figurava como a mais importante do país devido a sua inserção
numa incipiente, mas crescente economia industrializada e conseqüente roupagem
urbana assumida. A inserção numa estrutura moderna e capitalista ao mesmo tempo
que trazia benesses, exacerbava as contradições do sistema econômico que através da
exploração de muitos, gerava benefícios que seriam gozados por alguns poucos.
No final da década de 1920, a crise econômica mundial, chamada Grande
Depressão que se estendeu pela década seguinte, influenciou negativamente a venda
do café, mola mestra da economia nacional, impactando diretamente o cotidiano dos
paulistanos, com o aumento do custo de vida e, conseqüentemente a exclusão social.
Tendemos a acreditar que a população negra foi a mais atingida, pois já respondia
pelos mais baixos indicadores sociais, potencializados na competição com o
trabalhador estrangeiro e por uma política de alijamento no mercado de trabalho
formal assumida pelos empregadores e pelo próprio governo em São Paulo. Durante as
três primeiras décadas de século XX, a utilização dos braços nacionais se deu de forma
51
acessória e residual. Estes trabalhadores permaneceram em “boa medida, à margem
das tarefas fabris, numa situação que desabou devido o preconceito de cor,
particularmente sobre o negro e o mulato”.
83
A culminância se deu em 1929, um ano
de "recessão muito grande, e as conseqüências na situação do negro muito graves".
84
Esta conjuntura social permaneceu na década seguinte, pois o desemprego era muito
maior entre os negros, especialmente entre os homens negros
85
. Os benefícios sociais
implantados pela política de Vargas pós 1930 estavam atrelados à sindicalização dos
trabalhadores, ou seja, era necessário um contrato formal de trabalho. Neste sentido
podemos afirmar que a euforia foi passageira, pois muitos trabalhadores nacionais, em
especial os negros não estavam empregados de carteira assinada.
No âmbito geral, a população negra das primeiras décadas do século passado
habitava em sua maioria na zona rural do estado de São Paulo. Dados colhidos nos
informam que em 1910, a população de pretos e mulatos da cidade foi estimada em
26.380, cerca de 11% da população geral. Em 1920, constituía cerca de 52.112
pessoas, o que se revertia em 9% do montante de habitantes.
86
E em 1931, os que
moravam na capital compunham apenas 11% do contingente populacional composto
de 922.017 pessoas, ou seja, os negros paulistanos não chegavam a 100.000.
87
Habitavam nas mesmas localidades em que moravam muitos estrangeiros pobres, no
Centro ou nas imediações como Bexiga, Barra Funda, Liberdade, Bom Retiro e Brás.
Na Barra Funda - anteriormente conhecido como Chácara do Carvalho devido
a localização da residência do primeiro prefeito da cidade, Antônio Prado(1899-
83
KOVARICK, 1997:117 Ver também FERNANDES,1978:142 vol.1 & vol. II pp.13-15
84
LEITE, 1992:91
85
Cf. BERNARDO, 1998:119; QUILOMBHOJE,1998:37 (depoimento do militante Francisco
Lucrécio)
86
Cf. DOMINGUES, 2004a:263 Tabela construída por Domingues a partir de diversos censos citados
em FERNANDES, Florestan, A integração do negro na sociedade de classes (3
a
. edição. São Paulo:
Ática, 1978), pp. 18, 21,, 23, 24, 108; e BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan, Brancos e
Negros em São Paulo (2
a
. ed. São Paulo: Nacional, 1959), pp.36, 43, 46.
52
1911)
88
- habitavam muitos italianos e portugueses que alugavam cortiços ou
sublocavam os porões de suas residências. Os cortiços não tinham banheiros e quando
os tinham era uma privada para todos.
89
Já os porões considerados piores que os
cortiços, não tinham janelas, eram fétidos e mal ventilados. Os migrantes negros do
interior do estado que acorreram para a capital nas primeiras décadas do século
passado, especialmente entre 1900 e 1915, ocuparam estas moradias. Para o Bexiga,
também, foram muitos negros, mas no final do século XIX. Já no Centro habitavam as
famílias negras originárias da cidade, ou seja, se comparados às outras, uma ocupação
mais tradicional e estável, geralmente ligadas às famílias da aristocracia paulistana.
Essa maioria de afro-brasileiros era preterida socialmente, não conseguindo
empregos estáveis, quase todos ocupados pela mão-de-obra estrangeira que imigrara
anos antes ou por seus descendentes. Além disso, quase todos eram analfabetos,
o que
os excluía da participação política, reforçando ainda mais o quadro de marginalização
social potencializado pela falta da educação formal.
90
Com atividades insalubres e
dispendiosas, a rotina laborativa de muitos negros não diferia muito da vivida antes da
Abolição, como podemos constatar a partir do fragmento do jornal Progresso:
Honório Gonçalves Silva, por exemplo, com
oitenta anos de idade ainda empurra sua carrocinha verde
e apanha lixo o dia inteiro nas ruas da cidade. Lino
Cândido, com 90 anos, ainda é um dos trabalhadores mais
pontuais ao serviço. Mais matusalém deles todos chama-
se José Pedro da Silva, nascera no Rio de Janeiro,
chegando a São Paulo com vinte e três anos de idade.
Tomou parte na campanha do Paraguai. Dedicou toda a
sua vida à lavoura. Foi escravo, da família do cadete
87
Cf. QUILOMBHOJE, 1998:11. Dados retirados do Anuário Estatístico do Brasil de 1931.
88
SILVA,1990:48
89
Depoimento de José Correia Leite, em Zeila de Brito Fabri Demartini, " A escolarização da população
negra na cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século", em Revista da Ande, 8(14), São Paulo,
1989, p.58 apud DOMINGUES,2004a:218
90
A lei eleitoral de 1881, que não foi modificada com o advento da República, além de continuar
impedindo a participação das mulheres, passou para 200 mil réis o limite de renda dos eleitores, tornou
o voto facultativo e proibiu a participação dos analfabetos, que na época somavam cerca de 80% da
população. Cf. CARVALHO,2004:38-39
53
Santos, em Rio Claro, tendo sido liberto com a lei de 13
de maio. Há dez anos que trabalha na limpeza pública.
Não lhe foi possível arranjar outro emprego.
91
Décadas se passaram e a memória dos velhos militantes reforça o que foi
publicado no Progresso: "as mulheres eram empregadas domésticas, não tinham
instrução. (...) E o homem ou trabalhava na rua como carregador, como carroceiro, ou
sempre nos trabalhos servis".
92
Certas atividades estavam intimamente vinculadas à
nacionalidade
93
e à origem étnica e racial do sujeito. Assim, dentre as atividades
realizadas pelos nacionais havia uma distinção: certas ocupações eram tidas como
"serviços de negros". Caso dos biscateiros diversos como lavadores de casas,
quitandeiras e dos coletores de lixo, carregadores, varredores públicos, limpadores de
trilhos ou qualquer outro serviço visto como perigoso ou desqualificado.
94
Daí a
preocupação recorrente na maioria dos escritos produzidos pelas lideranças
intelectualizadas com a instrução e qualificação profissional dessa população.
Entretanto, mesmo num quadro de significativa vulnerabilidade social vivido
pela maioria dos negros, o sistema deixou brechas que possibilitou uma sensível
ascensão de alguns. Estes foram a exceção, não a regra. Esse contingente de inseridos
na ordem socio-econômica são entendidos em nossa análise como uma "elite negra".
Não no sentido estrito do termo, que se remete a grupos possuidores de algum tipo de
prestígio e hegemonia numa estrutura social, mas sim como um grupo que no interior
da própria comunidade se destacou por ter conseguido manipular alguns bens
culturais,
95
em detrimento da maioria. Essa elite negra buscava uma "identidade de
91
Progresso, 31.1.1930 citado em DOMINGUES,2004a:225
92
QUILOMBHOJE,1998:95
93
PINTO, Maria Inez. 1984. Cotidiano e sobrevivência - A vida do trabalhador pobre na cidade de São
Paulo. 1890/1894. Tese de doutorado apresentada à FFLCH/USP. Apud SANTOS,1998:137
94
SANTOS,1998:157
95
O fato de saber ler e escrever, freqüentar eventos na cidade, usar roupas finas, ter um emprego fixo
etc. fazia com que este grupo tivesse maior prestígio.
54
grupo fundada em valores e símbolos, diferente dos negros pobres dos porões".
96
O
depoimento de um militante sobre a questão situa melhor o que se entendia por elite:
para ser visto como classe média ou elite negra “não precisava ser doutor. Bastava ser
funcionário público ou ter aquele outro emprego de caráter fixo,”
97
ainda que fosse de
baixo prestígio social como varredores de ruas, mensageiros, porteiros, escriturários
etc.
98
E andar bem trajado. As moças vestidas de saia balão redondas e engomadas e os
rapazes de terno, cartola e bengala na maioria das vezes usados, comprados em
belchiors, "braço aberto" ou "bricabraque", estabelecimentos hoje conhecidos por
brechós.
99
Mas a indumentária chique não os livrava do estigma de marginais: "eu
andava de bengala, com ar de importante. (...) Um dia eu vinha subindo a Rua Santo
Antonio e vieram três policiais. Aí eu tive que explicar quem eu era, onde trabalhava...
E eu nunca fui estável em emprego."
100
Por isso era o setor público visto como o lugar
mais propício para a ocupação, já que a eventualidade do desemprego inexistia. Os
intelectuais-militantes incentivavam nas páginas de seus periódicos a colocação num
emprego federal, estadual ou municipal como forma de fugir do desemprego e
minimizar a marginalização sofrida pelo conjunto da população negra.
Ocorre que os anos 1920 foram palco de movimentos de cunho político e
cultural, capazes de fazerem com que os diferentes setores da sociedade repensassem o
país e a nação. O Estado brasileiro controlado e a serviço efetivamente das elites
paulistas, mineiras e cariocas passou a ser disputado por grupos oriundos desses
estados, porém insatisfeitos com as práticas políticas das elites hegemônicas; por
setores pertencentes a elite agrária dos estados à margem e por grupos pertencentes as
96
SILVA,1990:108
97
"Os jornais dos netos dos escravos", Jornal da tarde (12/06/1975), p.17 apud ANDREWS,1998:201
98
ANDREWS,1998:200
99
LEITE,1992:45
100
LEITE,1992:82
55
classes médias como militares - tenentes em sua maioria -, intelectuais e profissionais
liberais. Este último grupo profundamente decepcionado quanto "à possibilidade de a
República realizar o ideal de uma sociedade nova".
101
Serão esses grupos insatisfeitos
que se organizarão durante os anos seguintes até culminar na crise da sucessão
presidencial que eclodiu com o golpe de três de outubro de 1930, colocando Getúlio
Vargas no poder.
No âmbito cultural após a 1
ª
Guerra, a intelligentzia brasileira procurava
efetivamente afastar-se da Europa, representada como uma "civilização decadente" e
aproximar-se da América, "espaço da nova civilização e do futuro". Orientação essa
que podemos encontrar, já no final do século XIX, com a chamada geração de 1870,
da qual Sílvio Romero foi um dos ilustres representantes.
102
Nesse sentido o Brasil era
por visto muitos como o local propício para o surgimento do novo, contudo se
voltássemos às "raízes brasileiras".
103
Nesse sentido o Modernismo que se instituiu efetivamente a partir de 1922,
com a Semana de Arte Moderna, procurou primeiramente combater o passado de
imitação brasileiro, elaborando uma estética coerente à vida moderna, citadina e
urbana que São Paulo representava. O automóvel, o cinema, a eletricidade eram
objetivações que procuravam representar o progresso da América. Consolidado esse
projeto, o segundo ato do movimento foi inserir a busca da brasilidade como seu foco
primordial.
Os intelectuais modernistas tinham entendimentos diferentes de como se
alcançar tal brasilidade. Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Plínio Salgado
priorizaram estritamente os símbolos e mitos nacionais e como a vida no litoral estava
101
LAHUERTA,1997:93
102
Cf. VELLOSO,2003:353-359
103
OLIVEIRA,1997:189
56
mais propícia à influência estrangeira foi desqualificada. Seu lugar seria ocupado pela
vida interiorana, local auntico, do contato do homem com a natureza. Mais tarde
alguns desses intelectuais fundariam a Ação Integralista Brasileira (AIB). Tendo
Oswald de Andrade como seu expoente, o Movimento Antropofagia entendia que as
influências européias poderiam ser incorporadas à nacionalidade a partir do recurso da
apropriação. Em outra vertente esteve um grupo de intelectuais interessados em
investir na incorporação de aspectos da cultura nacional até o momento, colocados à
parte. Estudos sobre o folclore e a música são exemplo de ações lideradas pelo grupo
"Pau Brasil" que reuniu Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral
dentre outros.
104
Tais acontecimentos não passaram desapercebidos pelos intelectuais da elite
negra paulistana, atuantes na imprensa negra e em algumas associações de cunho
cultural mais amplo. Estes intelectuais-militantes acreditaram que os novos ares que
sopravam trariam mudanças e estas, quem sabe, poderiam promover a inclusão de seu
segmento racial até aquele momento compreendido pelo Estado, elites políticas e
mesmo pela sociedade comum, como condenado ao desaparecimento físico via
embranquecimento. Graças à mestiçagem e a ocupação do território nacional pelo
imigrante estrangeiro. Daí, uma maior politização a partir da segunda metade dos anos
1920. Houve um encontro proveitoso entre as idéias ventiladas, ações organizadas
pelos intelectuais negros e os novos movimentos culturais surgidos na cidade. Alguns
movimentos sociais emergentes nos anos 1930 reconheciam as lideranças negras como
significativas e os encontros com trocas de experiências e idéias foram constantes.
Temos a presença de intelectuais ligados ao modernismo escrevendo esporadicamente
no Clarim d' Alvorada e a ocorrência, nas páginas do A Voz da Raça, jornal da Frente
104
OLIVEIRA,1997:190
57
Negra Brasileira, da freqüente participação de intelectuais, em sua maioria de
tendência conservadora, nas sessões doutrinárias domingueiras, visita aos núcleos do
interior e festividades referentes às datas comemorativas da comunidade negra como o
13 de maio, 28 de setembro dentre outras.
Enquanto grupo, ou melhor, na condição de movimento social seria um
equívoco afirmar que a militância negra gestou um projeto político-ideológico com o
objetivo de disputar poder no contexto de 1920 e 1930, como no caso dos movimentos
integralista e comunista. Entretanto, podemos afirmar que alguns militantes tiveram
participações significativas em alguns processos, ficando claro, os papéis que
assumiram no desenrolar de alguns episódios e, transparente, as ambições pessoais de
alguns personagens. Um maior ou menor comprometimento deu-se conforme o
envolvimento político-social, a conjuntura e a formação ideológica. Arlindo Veiga dos
Santos teve participação orgânica na Ação Imperial Patrianovista Brasileira,
organização conservadora de extrema-direita da qual ele foi dirigente geral durante
muitos anos, concomitantemente ao cargo de presidente geral da Frente Negra
Brasileira. Ou seja, a partir da articulação desses dois vínculos o intelectual-militante
traçou sua trajetória. Veremos mais à frente que havia muitas semelhanças entre as
reivindicações da Frente Negra Brasileira e da Ação Imperial Patrianovista Brasileira,
especialmente entre os anos de 1931 e 1934, período em que o Dr. Veiga dos Santos
esteve dirigindo as duas entidades. Essa análise reforça o caráter plural que tem a
identidade pessoal. Principalmente, aquela que se erige entre os ativistas de
movimentos sociais, ou seja, os sujeitos coletivos. Para esses, a identidade se constrói
cotidianamente. Esses assumem e fazem diferentes posições de sujeitos conforme as
conjunturas, se favoráveis ou não. Nessa análise, a identidade "é o precipitado de uma
série de pertencimentos, articulados e rearticuláveis contingentemente, com maior ou
58
menor estabilidade".
105
Em suma,
"o ator que constrói sua identidade afirma-se
diante das múltiplas relações sociais, capitalizando para si
a sensibilidade do sistema de ação, tornando-se
eminentemente sujeito de iniciativas do sistema político.
A identidade não se encontra a partir de dentro do
movimento, mas na "trama" que as relações sociais de
poder engendram nas representações derivadas das ações
dos próprios movimentos".
106
2.2 O alvorecer do ativismo negro: breve história das entidades
negras em que atuaram Correia Leite e Veiga dos Santos
Compreendemos as organizações surgidas e lideradas por estes militantes, com
a finalidade de combater o racismo e a discriminação racial contra o negro, como
movimentos sociais negros
107
, pois consideramos que mesmo que tenham tido origens
e maneiras de estruturação diferentes, todas tiveram motivação e um objetivo comum:
lutar para minorar a situação de inferioridade racial imposta ao negro na sociedade
paulistana pós-emancipação. José Correia Leite e Arlindo Veiga dos Santos lideraram
organizações em prol das melhorias de condições de vida da população negra e
projetaram-se politicamente no interior da elite negra paulistana. Se a construção e
consolidação de uma identidade têm a ver com a maneira que o sujeito se percebe
numa relação coletiva, ou seja, "não se restringe ao ator em si mesmo, mas à sua
relação com as atividades cotidianas da vida social"
108
pode-se afirmar que as
identidades de Veiga dos Santos e Correia Leite foram se forjando naqueles anos,
durante os embates e consensos que se estabeleceram nos diferentes espaços de
105
BURITY,1999:40
106
LIMA,1999:62
107
GONZALES&HASENBALG,1985;SANTOS & BARBOSA ,1994:89-92
108
LIMA,1999:60
59
sociabilidade em que os dois, enquanto intelectuais-militantes atuaram.
Num primeiro momento, ainda na década de 1920, estiveram ou agrupados em
torno do Clarim d' Alvorada ou do Centro Cívico Palmares. Já se cogitava a
organização de uma entidade que congregasse todas as iniciativas de agrupamentos
negros existentes na cidade de São Paulo. Em 1926, Correia Leite escreveu um artigo
intitulado "Por que queremos a Confederação", no qual, em linhas gerais argumentava
que "a luta moderna era a do preto contra o próprio preto (...) da inteligência contra a
ignorância." Portanto, acreditando numa apatia e falta de coesão político-social dos
próprios negros, bastante diferente do momento político pré-abolicionista, Leite
escreveria que "embora a lucta
109
fosse insana, os dirigentes do Clarim, não se
desanimam, aguardem novas iniciativas."
110
Um ano antes, o mesmo escrevia
animado, informando aos leitores da iniciativa de se fundar em São Paulo um partido
da mocidade negra, denominado Congresso da mocidade dos homens de cor.
111
Mas,
foi com a fundação da Frente Negra Brasileira que todos esses ideais que vinham se
gestando na década anterior puderam se concretizar. O grupo dos militantes se uniria
em prol de uma organização que se propunha lutar, preferencialmente pelas
reivindicações políticas de integração da coletividade negra. Daí a maciça participação
nas reuniões que precederam a sua fundação.
Veiga e Leite eram bastante jovens na década de 1920 e faziam parte do
grupo dos intelectualizados. Alguns tinham formação efetiva, exemplo de Veiga dos
Santos. Outros não, se tratavam de autodidatas, ou seja, indivíduos com parca
formação escolar, mas que a partir das redes de sociabilidade construídas, alcançaram
um nível de abstração e análise da realidade capaz de torna-los legítimos intelectuais,
109
Em todos os documentos respeitamos a grafia das palavras e as formas gramaticais utilizadas,
preservando-se, desta maneira, o documento original.
110
Correia Leite, "Por que queremos a Confederação", Clarim d' Alvorada, 25/04/1926 ano III, p.2
60
caso de Correia Leite. Analisando a história dos intelectuais franceses Sirinelli
identificou o espaço das revistas, a mobilização em torno da feitura de um abaixo-
assinado bem como os "salões" como estruturas de sociabilidade construídas ou
freqüentadas pelos mesmos.
112
No caso dos intelectuais-militantes que investigamos,
apontamos a organização dos jornais negros, os bate-papos nos bares e esquinas, as
associações de vários tipos e a existência dos "bailes negros" como os espaços que
ajudaram a forjar os intelectuais-militantes paulistanos. O aprendizado se dava a partir
da colaboração de amigos: "o Jayme já vinha me orientando na compra de livros.
Havia muitos sebos com preços baratos".
113
Em conversas informais nos bares: "então,
ele [Alfredo Pires] assobiava e cantava óperas, trechos de sinfonias... e acabava dando
uma aula de música, falava dos grandes compositores, os grandes gênios. Eu gostava
muito de conversar com ele".
114
Ou ainda pelas falas de oradores e pessoas públicas,
em especial políticos: "certa vez fui assistir uma palestra do Rui Barbosa, quando ele
foi candidato à Presidência da República contra o Epitácio Pessoa. (...) O discurso dele
foi contra seu adversário".
115
A representação do intelectual estava diretamente associada à noção de
esclarecimento que por sua vez ancorava a perspectiva da instrução como solução para
os problemas enfrentados pelos negros no período. Intelectual, segundo Correia Leite,
era aquele sujeito que "entendia que o negro deveria ir a campo para se conscientizar e
combater com a mesma arma do branco: cultura e instrução".
116
O intelectual também
111
Correia Leite, "A esmola", Clarim d' Alvorada, 1925, ano II, no.16
112
SIRINELLI,1996:248
113
LEITE,1992:33
114
LEITE,1992:50 Correia Leite citou alguns músicos com os quais tivera contato nos anos 1930. Falou
de Bonfilho de Oliveira, hoje considerado um clássico, de um pistonista chamado Justo e de Alfredo
Pires, sargento da Banda de Música da Força Pública que participou da sublevação tenentista de 1924,
foi expulso, mas depois retornou em 1930, como tenente da Banda de Música, aposentando-se como
Major.
115
LEITE,1992:51
116
LEITE,1992:19
61
era um visionário e tinha uma missão, sendo respeitado e reconhecido em seu entorno:
eu sempre fui um sujeito respeitado, mas as
vezes isso me prejudicava. (...) Se eu saísse para dançar:
'Ah, o Leite está dançando!...' Eu era um sujeito que para
ser respeitado não podia dançar. Com o tempo eu me
acostumei também com isso. E depois, as idéias ficaram
encarnadas em min de uma tal maneira que eu não sabia
falar de outra coisa que não fosse a situação do negro, o
problema do negro. Aonde houvesse lugar, onde o negro
se reunisse, eu estava lá para discutir também.
117
O exemplo da Frente Negra corrobora dessa dimensão do engajamento. Muitos
procuraram a Frente Negra por causa do curso de alfabetização para adultos, no
entanto, após concluí-lo continuaram. Agora na condição de professores, voltados à
instrução dos novos alunos. Esses novos quadros ajudavam no próprio curso de
alfabetização ou então no curso de formação social que tinha um programa mais
amplo, e versava sobre temas diversos, das boas maneiras à conjuntura política
nacional.
118
O curso de formação social fazia parte da programação das
"domingueiras". Todos os domingos à tarde as lideranças frentenegrinas juntamente
com o departamento cultural realizava-as. Era um encontro cultural, mas com fins
políticos. Nas domingueiras se declamava poesias, se encenava peças teatrais e se
apresentavam regionais. Num segundo momento, havia a sessão literária com palestras
realizadas por lideranças frentenegrinas ou convidados de fora, brancos e negros. Essas
palestras eram organizadas pelo departamento intelectual, dirigido por Veiga dos
Santos. Percebam que a organização social funcionava como uma espécie de
“intelectual coletivo orgânico”, com a preocupação maior das lideranças em elevar o
nível cultural, no sentido mais amplo do termo, de suas massas. Ainda que para
muitos, a entidade primeiramente funcionasse como opção de lazer:
117
LEITE,1992:59
118
PINTO,1993:passim
62
"eu ia todos os dias à Frente Negra porque ali
foi o ponto culminante da sociedade negra em São Paulo.
(...) Era um lazer de final de semana, mas havia moças e
rapazes que iam para serem alfabetizados. (...) Também
havia a orientação que era dada aos domingos. Um orador
falava sobre a Frente Negra, as funções, os objetivos, mas
nunca levando alguém a apoiar este ou aquele político ou
partido. Sempre visava-se a nossa própria recuperação, a
nossa própria integração social e uma união entre nós
mesmos."
119
"A Frente Negra tornou-se a minha segunda
casa. (...) Eu ia lá todas as noites. Era mocinho ainda,
aquele movimento todo me entusiasmava. (...) O que
atraía a gente era aquele aspecto de grandeza, quer dizer,
o conteúdo político só muito tempo depois a gente
conseguiu compreender."
120
"Embora não tivesse conhecimento político,
achei interessante porque, em princípio, era oferecida a
oportunidade de se ter uma associação com rapazes e
moças e também havia o aprendizado de algumas coisas
interessantes como música, alfaiataria, ler e escrever
bem."
121
"todo domingo tinha reunião geral, hora da
doutrinação, de ensinamentos, palestras, ouvir também
declamadoras... Tínhamos um regional e criamos uma
banda só de negros"
122
Durante toda a Primeira República, floresceram associações negras na cidade
de São Paulo.
123
Morando entre os italianos, Leite informou que "nunca havia
imaginado encontrar entidades organizadas, com aquele convívio de famílias, de
namoro."
124
Tais informações dão-nos uma noção do associativismo existente no
interior da comunidade negra paulistana. Prática essa que, guardadas suas
singularidades, remontava ao período anterior a abolição da escravidão com a presença
119
QUILOMBHOJE,1998:91 depoimento de Marcello Orlando Ribeiro.
120
QUILOMBHOJE,1998:18 depoimento de Aristides Barbosa.
121
QUILOMBHOJE,1998:82 depoimento de Marcello Orlando Ribeiro
122
Depoimento de Francisco Lucrécio apud SILVA,1990,135
123
DOMINGUES,2004a:329 contabilizou a existência de pelo menos 85 associações negras na cidade
desde a abolição. As dançantes eram 25, beneficentes: 9, cívicas: 4, esportivas:14, recreativas, dramático
e literárias:21 e carnavalescas 12.
124
LEITE,1992:47
63
de organizações beneficentes, irmandades religiosas, etc.
125
É certo, que tais
associações tornaram-se mais ativas com o passar dos anos, na medida que se
agudizava o processo de libertação. Podemos afirmar que a organização de uma
associação negra esteve intimamente ligada ao momento abolicionista e
posteriormente a situação de segregação racial imposta ao negro na cidade de São
Paulo, agravada na competição com o imigrante branco, em especial o italiano. Muitas
entidades surgiram com a finalidade de proporcionar espaços de sociabilidade e lazer
voltados ao segmento negro que se sentia discriminado naquelas lideradas por brancos.
Havia inúmeros clubes e salões de bailes administrados pelas colônias
estrangeiras. Os italianos eram os responsáveis pelo Gioconda, Itália Fausta e
Giuseppe Verdi, os portugueses pelo Lusitânia, Portuguesa de Desportos e Clube
Ginástico Português, mas os negros eram proibidos de freqüentá-los.
126
Diante desse
quadro de racismo recorrente e segregador, negador da existência plena de uma real
democracia racial, a única saída foi a organização das próprias associações, clubes,
irmandades e salões de bailes negros.
127
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que
promovia o apartamento social, o racismo paulistano provocava a organização dos
negros enquanto grupo distinto. Aos poucos surgia na cidade uma identidade racial
preocupada em reagir ao padrão das relações raciais naquele estado e cidade. Desse
processo, ou melhor, entre os que se agruparam no meio negro, surgiu um pequeno
grupo de ativistas preocupado em combater a discriminação e o preconceito racial
incidentes sobre a população negra.
Dentre todas as associações da época, o Grupo Dramático e Recreativo
Kosmos que surgiu em 15 de novembro de 1908, depois de uma dissidência na
125
DOMINGUES,2004a.330 e 341 aponta a existência de pelo menos 4 associações fundadas antes ou
no ano de 1888.
126
DOMINGUES,2004a:324
64
Sociedade 18 de Agosto, foi o mais organizado e um dos únicos a levar a frente o
objetivo beneficente. Através de um rígido controle de conduta, os dirigentes
procuravam proporcionar à família negra paulistana um ambiente "intelectual e
literário"
128
, com eventos teatrais, saraus poéticos, publicação de um jornal próprio
chamado Kosmos e realização de bailes. Seu dirigente histórico foi Joaquim Cambará
que, no período de 1917-18, tornou-se conhecido no meio negro como aquele que
primeiro tentou unificar as entidades em São Paulo. Seu sucessor chamava-se
Frederico Batista de Sousa, escrevente-secretário na Faculdade de Direito de São
Paulo e colaborador assíduo do jornal Clarim d' Alvorada e de tantos outros que
existiram no período. A entidade funcionava no Itália Fausta - um dos melhores salões
da cidade - situado na rua Florêncio Abreu, centro de São Paulo. Tinha um rígido
estatuto, investimentos na Caixa Econômica Federal e carteira de identificação para os
associados.
129
Deixou de existir na década de 1930, mas não temos informações sobre
os motivos de sua extinção.
Constata-se que o ativismo surgido no final dos anos 1920 e que atuou durante
toda a década de 1930, não apareceu de uma hora para a outra. Foram os encontros
proporcionados em vários espaços de sociabilidade, formadores desses indivíduos que
pôde gerar as ações que existiram. E o espaço da imprensa foi um locus privilegiado
para que estes sujeitos se instruíssem, se projetassem e encontrassem leitores.
Pesquisas
130
comprovam a existência de uma imprensa realizada por negros e,
preferencialmente, para negros desde os primeiros anos do século XX. Foi
basicamente, em meio a essa imprensa específica do meio negro letrado que os
intelectuais-militantes iniciaram suas vidas políticas, através da difusão de suas idéias.
127
DOMINGUES,2004a:315
128
LEITE,1992:33
129
DOMINGUES,2004a:331
65
Foram nos jornais negros que as primeiras representações sociais desses militantes
sobre a questão racial alcançaram a elite negra paulistana, fosse ela militante ou não.
Desse modo, os jornais da imprensa negra paulistana ocuparam nesta pesquisa, locus
privilegiado de análise, na medida que por eles pudemos acompanhar o curso das
idéias e práticas políticas de Arlindo Veiga dos Santos e José Correia Leite.
Muitos jornais surgiam ligados às associações negras. Tratava-se de uma
imprensa adicional
131
que cuidava do ambiente sócio-cultural negro que não saía
estampado na imprensa geral. Os pequenos periódicos noticiavam os acontecimentos
sociais realizados pelas organizações negras, serviam como espaço de expressão
literária para poetas e prosadores e também funcionavam como um veículo educativo
orientando os negros para uma nova sociabilidade dita "sadia". Em suma funcionavam
como órgãos de "reivindicação, educação e solidariedade".
132
Temos dados de jornais surgidos ainda na primeira década do século XX e
alguns já insinuavam parcas linhas sobre a questão racial em São Paulo, porém sem
reflexões profundas e com poucas propostas de ação efetiva. Os jornais mais
conhecidos com essas características foram: O Propugnador (?-1907), da Sociedade
Propugnadora 13 de Maio; O Menelik (1915-1916), em homenagem ao grande
imperador etíope Menelike II; O Patrocínio (1913-?), A Pérola (1911-1916), da
Sociedade Recreativa 15 de Novembro; O Binóculo (1915-?), O Xauter (1916-1916),
criado para combater o Menelik e o Binóculo; A Rua (1916-1916), O Alfinete ( 1918-
1921), O Bandeirante (1918-1919), do Grêmio Bandeirantes; A Liberdade (1919-
1920), A Princesa do Norte (?-1924) e ‘O Kosmos’ - órgão do Grêmio Dramático e
130
Cf. BASTIDE,1973;FERRARA,1986.
131
BASTIDE, 1973:130 Assim como a imprensa feita pelos negros norte-americanos na época.
132
BASTIDE,1973:156
66
Recreativo Kosmos ( 1922-1925).
133
A imprensa negra funcionava como elemento aglutinador e formador de uma
identidade de grupo, pois pelos jornais tinha-se informação das atividades realizadas
pelas entidades negras. Com o passar dos anos, mais precisamente a partir de 1923,
ano em que surgiu o jornal Getulino
134
, na cidade de Campinas, a imprensa negra
iniciou uma nova fase em que os responsáveis passaram a preocupar-se também, com
as questões sociais e políticas que envolviam a realidade do negro. O Getulino era
editado por um grupo formado por Benedito Florêncio, Lino Guedes
135
e Gervásio de
Moraes entre outros, portadores de uma visão mais politizada do chamado "problema
negro". Já faziam denúncias, mas sempre na perspectiva de que havia um
acomodamento do próprio segmento negro paulistano. Assim, notícias que
relacionavam as atitudes do negro que poderiam ocasionar reações preconceituosas e
discriminadoras, a falta de escolarização e freqüente desemprego passaram a compor a
pauta desse periódico. Outros jornais fizeram parte desse novo momento, como Elite
(1923-1924), do Grêmio Dramático, Recreativo e Literário Elite da Liberdade;
Auriverde (1927-1928), O Patrocínio (1928-?), Progresso (1928-1932); Chibata
(1932)
136
, A Voz da Raça (1933-1937) da Frente Negra Brasileira, Tribuna Negra
(1935), O Estímulo (1935). Alguns periódicos nos são mais significativos porque a
ênfase dada foi para a imprensa combativa, de esclarecimento e militância política. O
pioneiro foi o Clarim d'Alvorada. Depois do Clarim d'Alvorada, um outro jornal
133
DOMINGUES,2004a:349 Ver também BASTIDE,1973; FERRARA,1986 e PINTO,1993.
134
Getulino era o pseudônimo de Luiz Gama, negro e importante líder abolicionista. Daí a homenagem.
135
Lino Guedes era poeta, literato e jornalista. Migrou de Campinas no final da década de 1920. É
considerado o primeiro escritor negro do século XX a fazer da questão racial motivação para sua
produção literária, num período em que a poesia social ainda não era aceita. Além do Getulino, editou
na cidade de São Paulo, o jornal negro Progresso, surgido em 1928, com a finalidade de incentivar,
entre os paulistanos, a construção de um busto em homenagem ao advogado e líder abolicionista Luiz
Gonzaga da Gama. Não atuou apenas na imprensa negra. Trabalhou no Combate, no A Razão, no São
Paulo Jornal, na Folha da Noite e no Diário de São Paulo no qual exerceu o cargo de chefe de revisão.
Ainda sobre Lino Guedes ver MELO,1954:266-267, OLIVEIRA,1998:170; BERND, 1986.
67
importante foi o A Voz da Raça, no qual Arlindo Veiga dos Santos veiculou tanto suas
idéias ligadas ao ativismo negro quanto aquelas que discorriam sobre o movimento
monarquista Patrianovista ao qual era filiado.
Dentre os jornais da imprensa negra, deter-nos-emos sobre a história do Clarim
d' Alvorada por ter sido fundado por Correia Leite. O Clarim d’Alvorada não surgiu
do seio de uma entidade negra. Foi um periódico independente que se tornou uma das
mais atuantes organizações do movimento negro paulistano.
O Clarim d’Alvorada - 1924-1932
137
Com o primeiro número publicado em 06 de janeiro de 1924, a partir de
sociedade estabelecida entre Jayme de Aguiar
138
e José Correia Leite, o jornal O
Clarim (nome inicial do jornal),“era pequeninho, sem conotação política ou qualquer
idéia de aproximação da comunidade negra. Era um jornal de notícias literárias,
embora eu não fosse literato e mal tivesse acabado de ter as primeiras noções de
gramática"
139
Nos primeiros meses, com o intuito de creditarem mais importância ao
periódico, usavam pseudônimos, atraindo assim tanto leitores quanto colaboradores.
Aguiar criou para si os pseudônimos de Maria Rosa, Moysés Cintra, Jim de Araguary,
Praxedes, Ana Maria e Jim do Vale. Leite e Menotti Del Picchia mais modestos,
136
O Chibata saiu em forma de pasquim e foi editado pelo pessoal do Clarim d' Alvorada, no ano de
1932, para combater os dirigentes da Frente Negra Brasileira.
137
Conforme divisão feita pelos próprios militantes, o jornal teve três fases. A primeira, que foi de 06
de janeiro 1924 a 06 de outubro de 1927, compreende um conjunto de 31 periódicos; a segunda, de 05
de fevereiro de 1928 até o ano de 1932 contém 26 exemplares. Em 1932, após desavenças com
militantes da Frente Negra, O Clarim d' Alvorada foi extinto, só voltando a existir em 1940, data de
início de sua terceira fase. Para nossa pesquisa, interessou-nos somente os números da segunda fase, a
partir de setembro de 1928 quando Correia Leite assumiu a liderança do tablóide com o posto de
“redator responsável”.
138
Cf. MOURA,2004:46 A iniciativa de publicar o Clarim d' Alvorada partiu de Aguiar após sugestão
de um amigo, chamado José de Molina Quartin Filho, na época esse colega de trabalho de Aguiar na
Seção de Datiloscopia do Gabinete de Investigação. Quartin também fazia a Faculdade de Direito de
São Paulo e era cronista no Correio Paulistano. Aguiar que só confiava em Leite, convidou-o para a
parceria.
139
LEITE,1992:29
68
adotaram os pseudônimos de Tuca e Helius respectivamente.
140
A publicação era mensal e voltada ao público em geral, mas interessou
majoritariamente aos que freqüentavam entidades associativas como podemos
confirmar através de nota de agradecimento publicada em 03 de fevereiro de 1924:
"Para demonstrar o nosso contentamento e
gratidão pela feliz aceitação, aqui depositamos as
sociedades abaixo mencionadas os nossos
agradecimentos: XV de Novembro, XIII de Maio,
Paulistano, Primaveras, Bandeirantes, Flor da Mocidade,
União Brasil e Militar, Rio Branco e Princeza do Sul.
141
Alguns meses depois o jornal receberia seu nome definitivo: Clarim
d'Alvorada. Ameaçados de plágio devido à existência de um outro periódico com o
mesmo nome, os jovens redatores começaram a pensar num complemento para o nome
principal. As sugestões foram Clarim d'Vitória e Clarim d'Alvorada. Venceu o
segundo, pois o negro ainda não tinha alcançado "vitória nenhuma".
142
O contato com os organizadores do jornal Getulino, as conversas travadas nas
esquinas e bares até altas horas da noite, que quase sempre discorriam sobre a situação
do negro no Brasil e as transformações socio-culturais presentes na década de 1920
influenciaram sobremaneira as idéias e atitudes de Leite e Aguiar e por conseqüência,
o jornal que editavam. Tanto que em poucos meses, mais precisamente a partir de 06
de abril de 1924, O Clarim d’Alvorada sofreu uma modificação em seu subtítulo,
passando de "Orgam Literário, Scientífico e Humorístico" para "Orgam Literário,
Noticioso e Humorístico". Os jornalistas foram incorporando, aos poucos, a questão
140
Cf. FERRARA,1986:56 O poeta e romancista modernista Menotti Del Picchia colaborou com o
jornal em seus primeiros números. Provavelmente os editores do Clarim d' Alvorada e Picchia se
conheceram por intermédio do amigo de Aguiar Quartin Filho, pois na época, Picchia também era
cronista no Correio Paulistano.
141
O Clarim, 03/02/1924 ano I, no. 2.
142
LEITE,1992:43
69
racial, que era vista pela maioria dos que escreviam como um problema do próprio
negro que não conseguira, até aquele momento, se adequar à sociedade urbana e
burguesa em que São Paulo se transformara. Textos intitulados "O Preto e a Pátria",
"O Verbo do Preto", "Vivemos sem lar" são exemplos. Um outro "Por que queremos a
confederação", de 25 de abril de 1926 era contundente ao afirmar que "no Brasil não
existe o preconceito de raça como dizem vários patrícios, cremos que a nação não tem
culpa dos brasileiros pretos, não serem esforçados."
143
Podemos perceber com essas
frases, a representação do paraíso racial, futuramente nomeada como democracia
racial, veiculada no jornal. A função dos ativistas era provocar entre os leitores uma
movimentação em torno da ampla participação na sociedade como sujeitos com
direitos garantidos desde a data da abolição. Ou seja, nesse primeiro momento, Correia
Leite e seus companheiros não questionavam o status quo. A função dos jornalistas era
outra: reagir contra a propalada apatia do negro causadora daquele estado de coisas.
Nesse projeto de conscientização liderado por Leite e Aguiar, foi recorrente a
publicação de artigos sobre o abolicionismo, biografias de alguns poetas negros como
Castro Alves, Cruz e Souza e Luiz Gama, além de editoriais especiais nos dias
considerados significativos para a história do negro como a Abolição, Lei do Vente
Livre e aniversário de nascimento ou morte de algum abolicionista, tanto negro quanto
branco. Porquanto, os ativistas, assim como outros em outras entidades manipulavam
símbolos e mitos na luta por estruturar no interior da coletividade negra paulistana
grupos de interesses. Isso explica o fato de que as atividades realizadas pelas inúmeras
associações, clubes e centros culturais existentes na capital estivessem contidas nas
páginas do Clarim d' Alvorada. Suspeitamos que essa era a principal razão do sucesso
do periódico, pois como o Clarim d’Alvorada não estava vinculado a nenhuma
143
Clarim d' Alvorada, 25/04/1926, ano III.
70
associação negra, os jornalistas sentiam-se livres para publicar informações sobre as
diversas sociedades, multiplicando o número de leitores. Tática essa, confirmada por
Correia Leite anos mais tarde:
"O jornal O Clarim oferecia notícias pra que a
gente pudesse ter aceitação no meio das entidades negras.
Então eram anunciadas festas, bailes, casamentos...
Através desse expediente, conseguíamos que a entidade
distribuísse os jornais. Quando chegávamos no baile com
os exemplares, o mestre sala mandava parar a música e
anunciava. Algumas moças da entidade iam vendendo
para os freqüentadores, a duzentos réis. Mas a gente tinha
de ter muita habilidade, pois certas entidades não
aceitavam esse intercâmbio."
144
Em fevereiro de 1928, o jornal incorporou um novo subtítulo: "pelo interesse
dos Homens Pretos - Noticioso, Literário e de Combate" e passou a discorrer mais
sobre a “tão falada questão racial” que se tornou o “ponto principal do programa
145
.
Nessa época, Leite já dividia com Aguiar a direção do periódico, ou seja, suas
responsabilidades deixaram de ser preponderantemente mecânicas e passaram também
a ser intelectuais. O militante procurava estar a par de tudo que acontecia no meio
negro local, participando dos debates que se davam nas rodas, nas ruas, nos bares. Os
negros intelectualizados escolhiam pontos de encontro como a Rua Quintino Bocaiúva,
a Praça da Sé e a Praça João Mendes, onde tinha um café chamado Café do Adelino.
Muitos também se encontravam perto dos salões de baile, mesmo que o grau de
consciência política adquirida condenasse a associação de suas imagens a esses locais,
pois eram pontos de aglutinação de negros e negras, local propício para a troca de
informações, experiências, e logo, de convencimento de mais um para o grupo.
146
Precisamente, um ano depois, ou melhor, em três de fevereiro de 1929, quando
144
LEITE,1992:59
145
Correia Leite, “As verdadeiras verdades”, O Clarim d' Alvorada, ano I ,2º fase p.2 05/02/1928
146
LEITE,1992:61
71
se comemorava o primeiro ano da segunda fase do jornal, Correia Leite assumiu o
posto de redator responsável, depois que Aguiar ameaçara fechar o jornal uma vez que,
brevemente se casaria e não via como conciliar as duas responsabilidades. Com
Correia Leite o jornalismo conscientizador e engajado implementado pelos militantes
do Clarim d' Alvorada transpôs os limites da cidade de São Paulo. O jornal era
distribuído em cidades do interior do estado como Botucatu, São Carlos, Sorocaba,
Santos e pelo menos duas capitais: Rio de Janeiro e Salvador.
Foi a partir do Clarim d' Alvorada que se deu os primeiros contatos entre o
ativismo político que há muito existia nos EUA e o que se iniciava no Brasil. A
amizade com dois baianos que estavam morando em São Paulo possibilitou o início de
uma parceria com o militante Mário Vasconcelos da Bahia que tinham ligações com o
movimento negro americano. Mário Vasconcelos traduzia o The Negro World, ligado
ao movimento garveysta
147
além de outras notícias, relativas ao ativismo negro norte-
americano. Essas traduções passaram a sair nas páginas do Clarim d' Alvorada numa
coluna que recebeu o mesmo nome do periódico de Garvey: "Mundo Negro",
possibilitando assim uma ponte entre os ativistas do Brasil e os do norte da América.
Em 1930 a chamada era: "O Mundo Negro - Notícias e Trabalhos transcriptos e
traduzidos para o Clarim d'Alvorada dos mais importantes organs negros das
Américas".
148
Como exemplo apresentamos um pequeno texto intitulado "Máximas do
Mundo Negro", em que um colaborador da Bahia tecia as seguintes considerações:
O negro não será respeitado, enquanto fizer
trabalho baixo para o branco. Mundo Negro, resalta o
147
O garveysmo surgiu nos Estados Unidos, fundado pelo jamaicano Marcus Garvey e tinha em sua
meta fundar um Estado independente em que pudessem viver todos os negros que estavam na diáspora.
Garvey tinha muitas idéias e era muito carismático arregimentando vários seguidores para o seu
movimento. O garveysmo pode ser considerado um dos precursores do pan-africanismo que mais tarde,
na década de 1950 fundou o movimento da Negritute. Cf. NASCIMENTO,1981:81-86 &
DECRAENE,1962:13-21
148
Clarim d' Alvorada, ano VII, no.31, 07/12/1930, p.4
72
negro norte-americano, porque elle è um espelho aos
negros do Brasil. O sentimentalismo brasileiro, tem
matado o negro a migua, a brutalidade norte-americana
ensinou o negro a ser altivo. Enquanto o negro dorme,
temendo a separação, o branco se educa e toma conta de
tudo.
A mulher negra norte americana, tem sido um
grande factor no desenvolvimento de sua raça. O negro do
Brasil está em atrazo porque só pensa em ajudar o
branco.
149
Decerto os colaboradores baianos leitores do "The Negro World" faziam uma
releitura daquelas idéias, apropriando-se do que poderia ter relevância à realidade
brasileira. Nas assertivas acima está embutida a idéia de que era necessário criar uma
espécie de solidariedade racial entre os negros do Brasil como mecanismo que
minimizasse as mazelas sociais enfrentadas. Outros títulos ainda encontrados no
exemplar de 1930 foram: "Joanna D'arc da Índia", "A feira do deserto Sahara consegue
sucesso" e "A África dá prova de cultura antiga", o que demonstra já a existência e
uma preocupação em se veicular informações relacionadas ao continente africano. E,
um pequeno trecho atribuído a Garvey, citado no jornal nos dá uma noção da
importância daquele movimento para os intelectuais-militantes redatores do Clarim d'
Alvorada:
"O negro, diz Marcus Garvey, durante a phase
do captiveiro, aceitava os pensamentos e as opiniões da
raça branca admittindo a idea de sua superidade: o
Fundamentalismo Africano procura emancipar o negro
dos pensamentos de outros que encorajam-no a agir sobre
as suas opiniões e ideas".
150
Os ativistas do Clarim d' Alvorada também conheceram um outro periódico
149
Clarim d' Alvorada, Mundo Negro, "Movimento Pan Negro", 1931, p:2 (exemplar contido no
prontuário 1538, Frente Negra Brasileira).
150
Clarim d' Alvorada, Mundo Negro, ano VIII, no.33, p.4, 21/06/1931
73
americano, o Chicago Defender
151
. Isso por intermédio de um padre chamado Olímpio
de Castro, provedor da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e São
Benedito e colaborador do jornal paulistano, que conhecera o então diretor do Chicago
Defender, Robert Abbot, numa viagem que este fizera ao Brasil. Comparando a
situação do negro brasileiro e do afro-americano, Robert Abbot declarou ver no Brasil
uma democracia racial de fato, uma vez que aqui não tínhamos uma segregação socio-
espacial imposta pelo Estado. Num elogio, disse não ter identificado problema racial
no Brasil.
152
Conclusão quase unânime entre a maioria que na época chegava ao Brasil,
vinda de uma realidade na qual a segregação racial era imposta enquanto uma política
declarada de Estado.
Após trocas de correspondências, o padre colocou os ativistas brasileiros em
contato com os americanos. O Clarim d' Alvorada passou a ser enviando para os
Estados Unidos e o Chicago Defender para cá. Segundo Leite,
"os números do Chicago Defender chegavam
aqui muito atrasados. Nós tínhamos de arranjar os que
sabiam inglês para poderem traduzir ou ler para a gente.
O recebimento daqueles jornais foi para nós um motivo
de muito orgulho, de satisfação, e que provava que o
nosso jornal era uma coisa de utilidade, que o nosso
trabalho não estava sendo inútil, como houve outros casos
por aí."
153
Logo, Correia Leite escreveria um artigo em que comparava a realidade
americana com a brasileira. Em sua análise, o que tornava o negro americano um
vencedor era seu orgulho racial, conseqüência do "preconceito de cor" praticado pelos
seus "terríveis inimigos, que são os próprios patrícios brancos". Já no Brasil, não havia
151
O Chicago Defender foi um dos primeiros jornais da imprensa negra norte-americana e existe até
hoje. Já teve cerca de 200 mil sócios e hoje passa por problemas relativos a sua manutenção, contando
ainda com cerca de 18 mil associados.http://www.bahai.org.br/racial/historia/robert.htm
.
152
ANDREWS,1998:214
153
LEITE,1992:79
74
"preconceito nenhum a combater", pois a convivência era em "perfeita comunhão com
os brasileiros brancos" e com o próprio estrangeiro. Contudo, pregava que os negros
brasileiros deveriam aproveitar o que havia de positivo na experiência americana,
lutando para adquirir um "pouco de admiração, já que a inteligência não é privilégio de
ninguém", não apenas para o próprio bem, mas para o bem da "querida pátria".
154
Vemos que o militante acreditava, ou melhor, tinha como utopia a democracia racial.
A motivação do ativismo daqueles anos, ao contrário do que iremos encontrar no final
do século XX, fundava-se no fato de que juridicamente existia uma democracia entre
as raças. Não havendo na constituição nacional qualquer referência a separação racial.
No entendimento dos militantes, o que atravancava a efetiva existência da igualdade
entre brancos e negros era a pequena distância temporal entre a Abolição e o período
em que viviam, causadora da apatia e marginalização do negro e do desinteresse e
desrespeito do branco. Assim, cabia ao intelectual-militante contribuir para acelerar a
consciência de cidadão do negro brasileiro, muitos ainda vivendo numa “liberdade
esfarrapada”, palavras do próprio Leite.
Foi conhecendo a realidade norte-americana e comparando-a com a brasileira,
num exercício de alteridade que José Correia Leite pôde tipificar o racismo brasileiro e
daí fortalecer seus argumentos contra o preconceito e a discriminação racial aqui.
Ainda que suas conclusões não tivessem a perspectiva do rompimento com a ordem
estabelecida, não foram bem aceitas no final dos anos 1920. Leite declarou ter sido
acusado pelos colegas da imprensa negra de estar criando um "quisto racial",
importando idéias que não eram propriamente brasileiras
155
, numa prova evidente, que
de fato, o nosso racismo dissimulado e cordial levava a tais deduções.
Por outro lado, os contatos entre os intelectuais do Movimento Negro norte-
154
Correia Leite "Na Terra do Preconceito", O Clarim d' Alvorada, ano I, no. 2 , 2º fase, 04/03/1928
75
americano e brasileiro demonstram quão próximas estavam as lutas. Ainda que em
realidades diferentes, os dois grupos partiam de um mesmo fato histórico: a travessia
do Atlântico para exercer o trabalho escravo no Novo Mundo. Assim, a origem única e
a situação de subalternos, guardadas as diferenciações, proporcionaram as trocas de
experiências bem sucedidas e fracassadas que existiram.
Contribuindo para a formação política de Correia Leite, o contato com o
ativismo norte-americano fez com que ele percebesse que a luta contra o racismo não
era apenas do negro brasileiro. Desse modo, ainda que a doutrina garveysta tenha
ficado apenas nos meandros do ativismo feito pelos jornalistas do Clarim d' Alvorada,
fez Leite perceber que a finalidade do ativismo implantado no jornal era combater o
racismo, denunciando a sutileza do preconceito e as diferentes formas da
discriminação racial existentes na sociedade brasileira.
156
Os efeitos do racismo
brasileiro incidiam diretamente sobre a população negra: "os que estavam 'em cima'
eram os nossos 'protetores', os advogados, fazendeiros... esses tratavam a gente ainda
como descendentes de escravos ou filhos de escravos. Eu via que eles tratavam a gente
com a mesma empáfia, com aquele mesmo ranço escravocrata."
157
Os ativistas se
reuniam para reverter um estado de coisas: "começou-se a sentir a revolta que
causavam os negros capangas de políticos, bajudalores, e a necessidade de formar um
grupo consciente para lutar contra esses que tinham um sentimento de
inferioridade".
158
Os brancos se comportavam como no regime escravocrata, ou
melhor, herdaram da escravidão o padrão de distanciamento e isolamento socio-
cultural que os mantinham privilegiados em detrimento dos negros.
159
Nos anos 1980,
155
LEITE,1992:78
156
LEITE,1992:80-81
157
LEITE,1992:55
158
MOREIRA & LEITE,s/d:3
159
FERNANDES,1978:249
76
ao olhar para o passado o velho ativista avaliava que "o negro esteve sempre no
desamparo. E uma das nossas idéias era essa: se unir para ter uma retaguarda, pra (sic)
não ser um que apanhasse sozinho. (...) Só havia participação maciça em que coisa que
fosse pra (sic) divertir, dançar, senão..."
160
É importante ressaltar que as falas
distanciam-se em décadas. Portanto, a pessoa que escrevia no jornal e condenava os
próprios negros pelas condições de vida enfrentada, não era mais a mesma. Nos
depoimentos colhidos a posteriori, falou um antigo militante cônscio dos mecanismos
causadores e mantenedores daquele estado de coisas.
Os militantes dos Clarim d' Alvorada lideraram inúmeras iniciativas em prol da
conscientização da população negra paulistana. Campanhas com a da Mãe-Preta e para
a realização do Primeiro Congresso da Mocidade Negra foram idealizadas e colocadas
em prática. Além disso casos de racismo praticado na capital e mesmo no interior
foram apurados pelos ativistas do jornal, denotando uma preocupação e grau de
comprometimento com a questão racial que rompia com as lides do trabalho
intelectual responsável por divulgar idéias esclarecedoras através de uma imprensa
comprometida. Assim, com essas iniciativas O Clarim d' Alvorada deixava de ser um
órgão da imprensa negra paulistana para tornar-se uma entidade do movimento negro.
Eram atitudes ambiciosas, em especial, para aqueles envolvidos cotidianamente
com o jornal como Horácio Cunha, Frederico Batista de Souza, Henrique Antunes
Cunha, Luiz Gonzaga Braga, o poeta Cyro Costa que era branco e foi o autor do
poema Mãe-Preta e o Advogado criminalista Dr. Evaristo de Morais, dentre outros. Os
personagens citados, vinham participando da confecção do periódico desde os seus
primeiros anos. Na década de 1930, este grupo de colaboradores decidiu fazer do
jornal uma entidade coletiva. A partir daquele momento O Clarim d' Alvorada se
160
LEITE,1992:57
77
tornaria uma cooperativa. Numa assembléia geral realizada em 1
º
de janeiro de 1931,
contando com a participação de um número expressivo de cooperados se elegeu a nova
diretoria que ficou assim constituída: presidente: Frederico Batista de Souza,
secretário: Luiz Gonzaga Braga, editor: Henrique Antunes Cunha e redator-chefe: José
Correia Leite.
161
Com a Sociedade Cooperadora Clarim d' Alvorada os militantes
conseguiram comprar o próprio material para a feitura do jornal, tais como a prensa e
os tipos, gerando o barateamento do custo. A oficina ficava nos fundos da casa de
Correia Leite, na capital. Na memória de Leite, o dia da inauguração da oficina foi
uma festa: "descerramos o retrato do José do Patrocínio e o Dr. Guaraná de Santana
compareceu e fez um discurso bonito, realçando a nossa iniciativa em relação aos
grandes jornais."
162
Contudo, a Sociedade Cooperadora durou pouco mais de um ano, pois o jornal
deixou de circular em março de 1932. Isso aconteceu por dois motivos. Rusgas
políticas no interior do próprio ativismo negro resultou, a mando dos irmãos Veiga dos
Santos, na invasão da casa de Correia Leite e tentativa de empastelamento do
periódico. Fora esse episódio, por volta de 1932, tinha-se um cenário nacional não
muito propício às movimentações políticas de reivindicação, característica do Clarim
d' Alvorada. O clima de insatisfação na cidade de São Paulo estava estampado. Os
paulistas cada vez mais declaravam seu descontentamento com o governo de Getúlio
Vargas. A prometida Assembléia Constituinte não ocorria, retardando a implantação
de uma Constituição democrática e consequentemente, contribuindo para a
continuação de um regime de exceção política que vinha desde outubro de 1930.
Contexto que culminou na Revolução Constitucionalista meses depois. Diante dessa
realidade, seria mais prudente investir em outras formas de atuação, menos propícias a
161
O Clarim d' Alvorada, 13/05/1932, p.2
78
uma prisão política, por exemplo. Prova desse ambiente inóspito foi a declaração de
Leite de que em 1932, havia uma certa implicância por parte das autoridades com a
publicação de jornais.
163
Mas a iniciativa de Aguiar e Correia Leite não foi única
durante os anos 1920. Uma outra entidade negra surgiu em São Paulo com proposta
políticas e culturais inovadoras se comparadas às existentes. Seu surgimento figura
como um marco histórico na história do ativismo negro paulistano.
O Centro Cívico Palmares - 1926-1930
Relatos de antigos militantes informam que o Centro Cívico Palmares surgiu
em São Paulo, no ano de 1926, por iniciativa de um sargento da Força Pública
chamado Antônio Carlos. A idéia inicial era organizar uma biblioteca, espaço de
leitura e também ponto de encontro, diferente dos já existentes: os clubes dançantes. O
projeto inicial acabou se expandindo, originando um centro cívico que tinha no nome a
referência a luta do quilombo de Palmares. Representação da liberdade, ainda em
tempos coloniais. Prova de que os negros de outrora lograram algum tipo de êxito na
luta desigual contra a metrópole portuguesa, servindo de significado positivo para os
negros do presente.
No Palmares ocorriam palestras, cursos e atividades culturais ligadas ao teatro
e a poesia. Todas tinham como objetivo concorrer para a instrução e fortalecimento
conscientização dos participantes no sentido de fazê-los sabedores de seus papéis de
cidadãos. Fizeram parte da entidade Isaltino Veiga dos Santos, Arlindo Veiga dos
Santos, Gervásio de Morais, Manoel Antônio dos Santos, Roque dos Santos e alguns
outros. Militantes que, anos mais tarde, juntos a outros fundariam a Frente Negra
Brasileira.
162
LEITE,1992:97
163
LEITE,1992:111
79
Acredita-se que
"várias associações com tais características
surgiram, mas o que marcou ‘Palmares’ foi a união de
pessoas com um senso crítico bastante aguçado para as
questões políticas. (...) Um grande salão da rua Lavapés,
no bairro do Cambuci, em São Paulo, serviu para as
inúmeras discussões.”
164
Como resultado desse processo de tomada de consciência temos, liderado pelos
militantes do Centro Cívico Palmares, o primeiro movimento contra a discriminação
racial na cidade de São Paulo direcionado a uma instituição pública. No ano de 1926, o
chefe de polícia, Dr. Bastos Cruz baixou uma portaria impedindo os negros de
ingressarem na corporação. Os militantes palmarinos contataram um deputado estadual
de nome Orlando de Almeida Prado, este intercedeu politicamente no parlamento
fazendo com que a portaria deixasse de existir. Foi a partir desse desfecho positivo que
a entidade além de cultural, passou a ter também um teor político.
165
A memória dos militantes sobre a organização nos informa que ela existiu até
o ano de 1929, tendo seu declínio ocorrido, depois que alguns militantes começaram a
ver o Palmares em benefício próprio. O novo presidente, um inglês chamado Joe Foyes
Gittens, além de tentar dirigir a organização de forma ditatorial, foi acusado de lhe
desviar recursos o que provocou a desagregação do grupo.
166
No entanto, no jornal O
Clarim d' Alvorada encontramos uma notícia informando que em 1930 o Palmares
ainda existia. Vejamos:
"Comunicado - Estiveram nas obras deste
Centro, os srs. Isaltino Veiga dos Santos e Dr. Veiga dos
Santos que amortizaram os seus débitos em atrazos, com
esta veterana aggremiação, e, o Dr. Veiga dos Santos,
contribuirá com dez mil réis mensaes, para auxiliar na
164
CUTI,1991:19
165
MOREIRA&LEITE,s/d:7
166
DOMINGUES,2004a:333
80
construção das obras que vão bem adiantadas."
167
Na verdade as atividades cessaram em 1929, mas a obra da sede continuava, o
que justifica a notícia publicada acima. No final da década de 1920, com o fim do
Palmares, os ativistas ficaram um tanto quanto decepcionados e desarticulados, pois
faltava-lhes um espaço de encontro e debate de idéias. Os únicos existentes, ainda que
sem a dimensão concreta do Palmares, eram as páginas dos jornais negros. Através
deles os intelectuais podiam publicavam artigos, poesias e promover um debate de
idéias, ainda que poucos tivessem a perspectiva da denúncia e conscientização. A
insatisfação com o fechamento do Palmares fez com que os ativistas continuassem se
reunindo. E o resultado desses encontros foi a idéia de fundarem uma entidade que
pudesse, de certa maneira, continuar o trabalho do Palmares.
A Frente Negra Brasileira - 1931-1937
Como já ressaltamos, a idéia de fundação da Frente Negra Brasileira vinha
sendo gestada há algum tempo. No entanto, é importante evidenciar que um
importante fator para o surgimento da entidade em 1931 foi a reconfiguração política
nacional, decorrente do momento "revolucionário de 30". A ascensão de Getúlio
Vargas ao posto de comandante da nação em 3 de outubro do mesmo ano, reordenou a
esfera de poder na capital e nos diversos estados. Em São Paulo, políticos tradicionais
ligados à oligarquia cafeeira sentiram-se prejudicados. Estrategicamente Vargas
iniciou sua política de "Estado de compromissos" e formulou as bases para o nacional-
desenvolvimentismo
168
convencendo a seu favor setores que anteriormente se sentiram
subordinados ou contemplados insatisfatoriamente.
Ocorreu que, em 1929, cindindo um acordo de anos, a oligarquia paulista
167
O Clarim d' Alvorada 25/01/1930 p.2
81
resolveu indicar novamente o candidato ao pleito de 1930: o político local Júlio
Prestes, então presidente de São Paulo. A oligarquia mineira insatisfeita, rompeu com
os paulistas e apoiou a candidatura de Getúlio Vargas, ex-ministro de Washington
Luís, pela Aliança Liberal, uma "coligação de forças políticas e partidárias pró-
Vargas". Estiveram agrupados em torno de Vargas, os governos de Minas Gerais, Rio
Grande do Sul e Paraíba. Este último indicando João Pessoa como o vice da chapa.
Também estiveram com Vargas oposicionistas de outros estados, inclusive de São
Paulo, representado pelo Partido Democrático e facções civis e militares,
especialmente os insurretos tenentes de 1922 e 1924.
169
Com todo este cenário, os intelectuais-militantes viram na ascensão de Vargas
uma oportunidade singular. A agitação em torno da campanha presidencial em 1929
foi uma grande motivação política. Grupos se reuniam no Largo da Sé para discutir. A
disputa entre Getúlio Vargas e Júlio Prestes mobilizou a população nacional em geral e
a negra em particular, fazendo com que a militância se voltasse para esse assunto.
170
A possibilidade de o candidato Getúlio Vargas ganhar a eleição era ínfima,
uma vez que o pleito era conhecido pela corrupção e violência, sendo o voto de
cabresto um dos mais recorrentes métodos para arregimentar eleitores em favor dos
candidatos da situação. Contudo, o ideário da Aliança Liberal de justiça social e
liberdade política com propostas como: voto secreto e fim das fraudes eleitorais,
anistia aos perseguidos políticos e garantia dos direitos sociais como 8 horas de
trabalho, férias, salário mínimo, regulamentação do trabalho das mulheres
171
,
incentivou a população a interessar-se pelas eleições. Mas, a situação venceu e Vargas,
juntamente com sua base de apoio, reagiu aos resultados. Ideologicamente, muitos dos
168
OLIVEIRA, 2002, 26-29.
169
FERREIRA & PINTO, 2003:403-404
170
LEITE,1992:88-91
82
militantes negros paulistanos estavam afinados com as propostas da Aliança Liberal.
Postura que denotava um profundo descontentamento com a Primeira República,
muito em função das idéias difundidas e políticas implementadas pelas oligarquias que
dirigiam a política local. De certa forma, esperava-se algum tipo de transformação
radical capaz de colocar outras forças políticas em evidência. Na visão de Leite, os
militantes que já vinham amadurecendo uma consciência política, sentiram-se mais
incentivados com o episódio de 1930:
"O Getúlio perdeu as eleições e veio a
Revolução de 30. Aí foi a fase que a gente pode dizer que
parou o movimento. Desse modo é possível distinguir o
Movimento Negro antes de 30 e depois de 30. (...) Estava
sempre à frente o Isaltino Veiga dos Santos, o que mais
agitava os grupos. Foi um sujeito que lutou muito. Sem
ele não teria existido a Frente Negra Brasileira. Em 30,
não se tinha idéia de nome, mas se estava discutindo de
como o negro poderia participar. (...) E aqueles grupos de
discussão foram sendo engrossados, sobretudo o grupo do
Isaltino Veiga dos Santos, Francisco Costa, Marcos dos
Santos, Roque dos Santos e outros. Foram praticamente
os primeiros a agitar. Eu e outros companheiros do
Clarim d’ Alvorada participamos também. Estávamos
dentro do bolo"
172
" A palavra frente estava muito em voga
quando Isaltino Veiga dos Santos em companhia de
outros negros, entre os quais Francisco Costa, reuniram-se
em um escritório e resolveram fazer um trabalho de
agitação e arregimentação no meio negro".
173
A Frente Negra Brasileira (FNB) é considerada a organização negra mais
complexa que existiu na primeira metade do século XX, pois agregou em seus quadros
militantes com diferentes origens sociais e formações políticas
174
, arregimentou
centenas de sócios que em análises mais otimistas foram milhares
175
, prestou inúmeros
171
PANDOLFI,2003:16
172
LEITE,1992:91
173
MOREIRA&LEITE,s/d:16
174
MOREIRA&LEITE, s/d:17
175
PINTO, 1993; ANDREWS, 1998; HANCHARD, 2001 & MAUES,1991:99 corroboram dessa
83
serviços aos seus filiados através dos departamentos e teve amplitude nacional, através
de um mecanismo de filiação, pelo qual, entidades negras do interior de São Paulo e
mesmo de outros estados, se tornavam frentenegrinas.
176
As primeiras reuniões do grupo fundador da entidade aconteceram num salão
alugado, próximo a Igreja da Sé. Lá, elaboraram o estatuto e escolheram o nome da
organização: Frente Negra Brasileira. O estatuto foi questionado por Correia Leite -
esse episódio será analisado mais à frente - que alegava ingerência de Arlindo Veiga
dos Santos, pois o professor havia escrito tudo sozinho. Entretanto, suas reivindicações
não foram atendidas, provocando o primeiro rompimento. Devido a isso, o grupo do
Clarim d' Alvorada deixara a nascente entidade. Após, neutralizada a influência de
Leite, a organização foi oficialmente fundada, num evento aberto, no dia 16 de
setembro de 1931, no salão das Classes Laboriosas, situado à rua do Carmo, nº 25. A
mesa que redigiu os trabalhos estava constituída por
“Presidente: Dr. Arlindo Veiga dos Santos;
Secretário: Isaltino Veiga dos Santos; Orador: Alberto
Orlando e Membros do Conselho: Francisco Costa dos
Santos, Davi Soares, Horácio Arruda, Vitor de Souza,
João Francisco de Araújo, Alfredo Eugênio da Silva,
Isaltino B. Veiga dos Santos, Alberto Orlando, Dr.
importância da Frente Negra Brasileira. A última citou em seu trabalho o número de seis mil
frentenegrinos em São Paulo e dois mil em Santos. Se levarmos em conta as entidades do interior de
São Paulo e dos outros estados em existiram filiais da Frente Negra Brasileira, esse contingente pode ter
sido bem maior. Lucrécio informou que ultrapassaram da marca de 20 mil o número de sócios,
QUILOMBHOJE,1998. Já MOURA, 2004:49 afirmou que a Frente Negra Brasileira teve cerca de
setenta mil filiados. Números estes que consideramos superestimados, pois o autor se baseou no jornal
da organização para fazer a afirmativa, ou seja, o confrontou os dados do periódico com outros
documentos.
176
Cabia ao presidente geral nomear representantes nas cidades do interior e estados. Alguns saíram da
capital paulista com a missão de fundar delegações nos arredores. Outros já eram lideranças locais e
apenas se filiaram. Contabilizamos a partir do A Voz da Raça, a existência de delegações frentenegrinas
em São Paulo: Capital, Jundiaí, Sorocaba, Coroado, Biriguy, Amparo, Campinas, Santos, São Carlos,
Rincão, Brotas, Capivari, Itú, Tietê, Itapetininga, Mocóca, Ipaussú, Porto Feliz; em Minas Gerais:
Passos, Santana, Manhumirim, Manhuassú, Carangola, Guaxupé, Carmo do Rio Claro, Cabo Verde, São
João Del Rei, São Sebastião do Paraíso, São José do Rio Pardo, Muzambinho; no Espírito Santo: Veado,
Alegre, Cachoeiro do Itapemirim e Vitória; Bahia: Salvador; Rio Grande do Sul: Pelotas e Rio de
Janeiro: Capital.
84
Arlindo Veiga dos Santos e Oscar de Barros Leite"
177
Ainda que a documentação nos informe da atuação bastante produtiva de
Isaltino Veiga dos Santos, no movimento social negro desde antes da existência do
Centro Cívico Palmares. E, fale também, de um militante histórico mais idoso,
chamado Francisco Costa Santos, o nome de Arlindo Veiga dos Santos foi o escolhido
para presidir a FNB. Supomos que a atitude de escolher Arlindo, em detrimento do
irmão ou qualquer outro militante, estava imbuída de uma tática: dar a presidência da
entidade à uma liderança que tivesse prestígio e transmitisse a imagem do sucesso,
tanto entre os negros quanto para a sociedade paulista em geral. Daí a escolha de
Arlindo que, na época, já tinha curso superior e era reconhecido tanto entre os negros
quanto entre os brancos por suas idéias monarquistas e projeção intelectual dentro da
Igreja católica e militância no movimento patrianovista.
A FNB, enquanto organização que se pretendia popular e política, procurou na
sua prática cotidiana afastar-se da linguagem academicista utilizada na imprensa negra
e aproximar-se da massa negra, com atividades práticas e soluções possíveis para a
questão racial.
178
Sob a liderança do presidente geral, os associados contribuíam com
uma quantia fixa, recolhida por cobradores domiciliares comissionados chamados
"cabos". A partir dessa mensalidade, os associados passavam a ter benefícios como
banco de empregos, escola de alfabetização, de artes e de ofícios, assistência médico-
odontológica, serviços de advocacia, lazer e esporte.
179
177
RAMOS, 1971:194
178
OLIVEIRA,2002:46
179
PINTO, 1996:51
85
(Almoço da FNB. Ao fundo, à esquerda, de óculos e terno preto está Arlindo
Veiga dos Santos).
Um estudo de 1996
180
, mostrou a preocupação dos primeiros dirigentes da
organização, em especial Arlindo Veiga dos Santos, em erigir uma identidade própria
para a organização e assim atrair a adesão da população negra com a criação de um
conjunto de símbolos diacríticos: bandeira, hino, uniforme e documento de
identidade.
181
Trata-se das mesmas práticas de outras organizações existentes na
época, evidenciando assim, a aproximação entre a estrutura político-organizativa da
Frente Negra Brasileira e de outros movimentos do qual Arlindo e outros
frentenegrinos
182
foram filiados ou simpatizantes, como o patrianovismo e
integralismo, respectivamente. Além de Arlindo Veiga dos Santos, Isaltino Veiga dos
Santos e Salatiel Campos, que era redator no Correio Paulistano atuaram nos quadros
da Frente Negra Brasileira e da Ação Imperial Patrianovista Brasileira. Já em relação
ao integralismo, o prontuário 70236 DEOPS/SP, referente a Frente Negra de Tietê ou
180
A análise que apresentamos aqui, se baseia no artigo intitulado Frente Negra Brasileira, publicado
na revista Cultura Vozes, no. 4, jul./ago. 1996. O trabalho original intitula-se "O movimento negro em
São Paulo: luta e identidade" trata-se de sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo.
181
PINTO,1996:54
86
Sociedade Frente Negra de Tietê é bastante esclarecedor. Segundo consta no relatório
do investigador Dr. João Agostinho, datado de 1
o
de setembro de 1937:
Em Tietê, Olympio Moreira da Silva, 1
º
sargento reformado do 41
º
Regimento de Artilharia
Montada, com sede em Itu, pertencia a uma instância
regional integralista. O mesmo tinha ido à cidade
investigar o chefe integralista local que não cumpria suas
funções "a contento". O investigador conclui afirmando
que "o sargento de côr preta, muito inteligente, e por esta
razão tem procurado se infiltrar no seio da raça negra
local, por intermédio da Frente Negra, sociedade esta de
cultura e recreativa dos homens pretos; e segundo disse-
me tem obtido muitas adesões".
183
Ou seja, integralistas travaram diálogo ou tentaram arregimentar associados
ligados às organizações negras.Até mesmo o lema da Frente Negra Brasileira
evidencia a incorporação de alguns propósitos políticos do patrianovismo, ou melhor, a
total influência do presidente. Arlindo Veiga dos Santos aproveitou os termos Deus,
Pátria, e Família, utilizados tanto pelos integralistas como pelos patrinovistas,
incorporou a palavra Raça e compôs o lema da Frente Negra Brasileira: DEUS,
PÁTRIA, RAÇA e FAMÍLIA.
Em 1932, os frentenegrinos fixaram-se numa sede mais ampla, alugada que
ficava na Rua da Liberdade, número 193. Em 1933, fundaram um jornal próprio, o A
Voz da Raça que tinha distribuição nacional e acabou ocupando o lugar do Clarim d'
Alvorada que deixara de circular em 1932. O A Voz da Raça cumpria todas as funções
destinadas à imprensa negra da qual tratamos anteriormente. Através dele, as idéias
dos militantes que assumiram o corpo diretivo da organização eram ventiladas.
Arlindo Veiga dos Santos freqüentou assiduamente as páginas do periódico com
182
Malatian,2001:55
183
DEOPS/SP Inventário 70236, Frente Negra do Tietê.
87
artigos que versavam sobre situação política local, nacional e a questão racial.
Em julho de 1932, eclodiu a Revolução Constitucionalista. A elite política
paulista até então, aliada de Getúlio desde meados de 1931, apresentava
descontentamento com a política do dirigente nacional para com o estado. A principal
insatisfação era com a nomeação de interventores que não correspondiam a seus
anseios políticos. Todos os interventores indicados até julho de 1932, não conseguiram
governar por muito tempo. Pressões foram feitas e as falhas do governo central
colocadas em evidência. Como mecanismo de desestabilização, os paulistas
reivindicavam eleições, descentralização política e a realização da Assembléia
Constituinte. Numa tentativa de acalmar os ânimos, Vargas, em março de 1932 marcou
eleições para o ano seguinte, promulgou o código eleitoral e indicou o grupo que iria
elaborar o anteprojeto da constituição. Contudo, suas medidas não surtiram efeito, pois
meses depois eclodiu o movimento.
A cúpula da Frente Negra Brasileira posicionou-se favorável a Getúlio. E essa
atitude requer algumas explicações. Arlindo Veiga dos Santos era um partidário dos
regimes autoritários, logo entendia que os problemas do país deveriam der resolvidos
por um dirigente de pulsos fortes, que usasse mais a força que o consenso. Também,
meses antes, mais precisamente em fevereiro de 1932, surgiu a Frente Única Paulista,
resultado da união da oligarquia do Partido Republicano Paulista com a burguesia
industrial do Partido Democrático com o intuito de enfrentar o governo central.
Entretanto, pelo menos na capital, os negros não puderam se filiar, provocando uma
insatisfação ainda maior entre os militantes mais inseridos e consequentemente uma
maior aproximação com o dirigente federal.
A Frente Negra não organizou milícia para lutar contra os paulistas, bem como
não impediu que seus filiados compusessem os batalhões que se formaram no estado.
88
Desse modo se deu a segunda dissidência: Joaquim Guaraná de Santana, conhecido
advogado da organização, que meses antes havia defendido Arlindo e Isaltino no
episódio do empastelamento do Clarim d' Alvorada, fundou a Legião Negra. Um
batalhão de legionários formado só de negros, conhecido como os Pérolas Negras, que
reuniu cerca de 3500 combatentes de várias regiões do estado.
184
No final, os
frentenegrinos saíram favorecidos. Já que as forças federais foram vitoriosas. Havia
boatos de que Arlindo Veiga dos Santos seria nomeado Secretário de Justiça ou de
Segurança Pública.
185
O que não ocorreu. Não obstante, houve um estreitamento das
relações políticas com ass autoridades constituídas. É significante o número de
correspondências publicadas no A Voz da Raça, trocadas entre autoridades policiais,
representantes de órgãos trabalhistas, educacionais e mesmo do executivo da capital,
São Paulo e mesmo do estado. Também encontramos nos arquivos do DEOPS
paulista, correspondências que comprovam a estreita relação existente entre as
lideranças fretenegrinas e as autoridades locais.
Em 1933, Arlindo se candidatou ao cargo de deputado constituinte. Fizeram
campanha por todo o país, mas devido à escassez de recursos priorizaram São Paulo.
Não obtiveram êxito, porém se tratou de um exercício de aprendizagem e um passo
significativo para entrar no mundo político-partidário.
No ano seguinte ocorreu uma reconfiguração na entidade e os irmãos Veiga
dos Santos perderam força política. Escolheram novos dirigentes: Justiniano da Costa
tornou-se presidente e Francisco Lucrécio primeiro secretário. Justiniano da Costa
pertencia a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, foi o 1
º
184
DOMINGUES,2003:233 O excelente artigo do historiador Petrônio Domingues, intitulado Os
"Pérolas Negras": a participação do negro na Revolução Constitucionalista de 1932, retira do
ostracismo da historiografia da Revolução Constitucionalista a história da participação do segmento
negro. O autor denuncia a ínfima importância dada, tanto pelos historiadores do conflito quanto para os
memorialistas à atuação da Legião negra. Amplamente coberta pela imprensa paulista e lembrada ao
longo dos anos na memória dos paulistas.
89
tesoureiro da FNB e era funcionário público. Lucrécio migrou de Campinas para São
Paulo em 1931, com o intuito de trabalhar e cursar a Escola Livre de Odontologia. Foi
morar no Bexiga com os tios que participavam da Frente Negra Brasileira. Logo
começou a freqüentar ativamente a organização tornando-se uma liderança
expressiva.
186
Como podemos perceber, novamente as lideranças são escolhidas entre
aqueles que poderiam atribuir prestígio à organização: um funcionário público e um
estudante universitário. Os dois por suas trajetórias pessoais funcionavam
simbolicamente como exemplos do sucesso alcançado através do trabalho e educação,
realidade que a entidade esforçava em representar. Contudo, Arlindo não perdera
totalmente seu prestígio e força política, pois seus artigos tinham lugar cativo na
primeira página do A Voz da Raça, era sempre convidado para as visitas institucionais
às delegações do interior e ainda continuava respondendo pelo Departamento
Intelectual. O mesmo não ocorreu com Isaltino Veiga dos Santos, desligado da
secretaria geral da FNB, bem como do jornal A Voz da Raça por
imposição de quasi totalidade dos socios e de
seus diretores, por ter se afastado das diretrizes da F.N.B.,
que então só tinha este ideal: Defender o Brasil, Instruir
os Brasileiros Negros e desenvolver uma grande seção
Nacionalista, combatendo ideologias extranhas a vida
brasileira.
187
As informações acima foram apuradas pelo serviço de investigação do DEOPS,
provavelmente obtidas entre os próprios associados da FNB. Para Leite, o
desligamento de Isaltino deu-se após seu retorno do Rio de Janeiro. Cidade para a qual
o militante viajara, após ter supostamente, marcado uma audiência com o presidente
185
LEITE,1992:104
186
QUILOMBHOJE,1998:36 depoimento de Francisco Lucrécio.
187
Inventário DEOPS/SP, documento de 7 de março de 1938. Relatório do investigador no.
210 Prontuário 1538 da FNB.
90
Getúlio Vargas na qual tratariam de algumas reivindicações dos negros paulistanos.
Entretanto, o feito não trouxera notícias efetivamente satisfatórias, portanto o citado
"afastamento das diretrizes" ocorreu após este episódio. No entendimento de Leite,
Isaltino era aventureiro e volúvel, pois estava na Frente Negra com a "idéia de
conseguir qualquer coisa para ele". Ao contrário do irmão, que apesar de suas idéias
monarquistas de direita era um "sujeito de moral e coerência".
188
Com o afastamento
da FNB, Isaltino meses depois conseguiu um emprego no jornal Platéia de orientação
comunista e opositor de Vargas. Em decorrência disso, em novembro de 1935, foi
preso pela Delegacia de Ordem Política, sob acusação de crime político por participar
da Frente Popular Pela Liberdade, colaborar no jornal Platéia e ser mentor da
Federação dos Homens de Cor.
189
Isaltino teve a liberdade restituída em dezembro de
1936.
Ocorre que a partir de 1935, o exercício da democracia se tornava cada vez
mais difícil. Vargas iniciava uma campanha de retaliação aos grupos políticos que
divergiam de sua gestão. Inúmeras foram as prisões políticas. O estadista que havia
realizado a Assembléia Constituinte por pressão, passou a tomar atitudes cada vez
mais arbitrárias, principalmente após a deflagração do que se considerou na época a
“Intentona Comunista”. Contudo, a Frente Negra Brasileira não sofreu maiores
ameaças. Posicionada favoravelmente ao governo implantado em 1930, só colheu
benesses dessa opção política. Tanto que no aniversário de cinco anos da organização,
188
LEITE,1992:116
189
A Frente Popular pela Liberdade surgiu após a proibição da Aliança Nacional Libertadora. Era
liderada por Caio Prado Jr. que junto a outros militantes, incluindo Isaltino, fizeram o Manifesto que
foi apreendido pela polícia. Todos foram presos pelo DEOPS/SP. A Federação Nacional dos Negros do
Brasil consta no prontuário 2018, na ficha de atividades político-sociais de Isaltino Veiga dos Santos,
como uma organização comunista fundada e dirigida pelo próprio. Na listagem dos militantes dessa tal
Federação está o nome de José Correia Leite como um dos membros. No prontuário 1538, da Frente
Negra Brasileira, um relatório do investigador de polícia também faz alusão a Federação. No entanto,
não conseguimos qualquer outra informação sobre a tal Federação. Muito menos que relacionasse Leite
aos seus quadros.
91
comemorado entre os dias 19 e 20 setembro de 1936, estiveram presentes, além das
delegações do interior de São Paulo e de outros estados da federação, importantes
autoridades locais. O jornal A Voz da Raça registrou a presença do representante do
governo estadual, além de representantes do clero e da grande imprensa.
190
Um outro
exemplo de bom relacionamento entre as lideranças frentenegrinas e o governo de São
Paulo foi a nomeação da professora Aracy Ribeiro de Oliveira, adjunta num grupo
escolar local, para reger turma na sede da Frente Negra Brasileira, em 24 de agosto de
1937.
191
Em 1936, os militantes registraram no Tribunal Eleitoral da cidade de São
Paulo, o Partido da Frente Negra Brasileira, reconhecido nacionalmente em 1937.
192
Os ativistas argumentavam que o negro "constituía considerável força nacional" sendo
a identidade de frentenegrinos mais convincente e mobilizadora que a forjada nos
partidos como PRP e PC. Em agosto de 1937, a palavra de ordem era "procurar nas
urnas, o que nunca achamos no patriotismo dos governos".
193
Entretanto, em
novembro de 1937, nascia a ditadura do Estado Novo. Uma das primeiras atitudes do
governo foi proibir existência das organizações de caráter político. Os partidos
políticos foram obrigados a deixarem de atuar, inclusive o recém fundado partido da
Frente Negra Brasileira.
A Frente Negra Brasileira ainda procurou se reorganizar com fins puramente
culturais. Para isso, criaram uma outra organização denominada União Negra
Brasileira, "uma associação de fundo Caritativo-Cultural-Patriótico" composta por
190
A Voz da Raça, out/1936, no. 58, p.1
191
A Voz da Raça, set/1937, ano IV, no.69, p.4. Conforme depoimento de Francisco Lucrécio “a escola
da Frente Negra era formada por quatro classes, com professoras nomeadas pelo governo”.
QUILOMBHOJE,1998:42
192
QUILOMBHOJE, 1998:13
193
A Voz da Raça, "O Momento Político", ago/1937, ano IV, no.68, p 4
92
"brasileiros, amigos da ordem e elevadamente patriotas".
194
Porém, segundo
depoimentos de diversos militantes não surtiu o mesmo efeito. A União Negra
Brasileira ainda organizou o cinqüentenário da Abolição juntamente com o pessoal do
Clube Negro de Cultura Social e alguns intelectuais ligados à Secretaria de Cultura em
São Paulo. Depois dessa data a entidade deixou de atuar de fato. Retornando apenas
em 1945, com a volta da democracia.
Vimos que as lideranças políticas da Frente Negra Brasileira organizaram uma
associação de auxílio mútuo, mas com pretensões voltadas à participação nas
estruturas formais de poder, quase sempre pela via conservadora. Daí a aproximação
ideológica com o Estado brasileiro que durante os anos 1930 tendeu ao autoritarismo
de direita, com a Ação Imperial Patrinovista Brasileira e Ação Integralista Brasileira,
ainda que intelectuais com posicionamentos mais à esquerda não tivessem travado
contato e freqüentado os eventos da entidade. A prestação de inúmeros serviços à
comunidade negra, destituída de direitos básicos gerou uma filiação considerável nos
quadros da organização, tanto em São Paulo como em outros estados, proporcionando
prestígio e interesse de setores externos ao movimento negro. Razão para motivar as
lideranças frentenegrinas em registrar a entidade enquanto um partido político nacional
no ano de 1936, o que não logrou resultados efetivos, pois logo era instaurada a
ditadura do Estado Novo.
O Clube Negro de Cultura Social
O Clube Negro de Cultura Social (CNCS) ou O Cultura Social como era mais
conhecido no meio negro, foi fundado em São Paulo no dia 1
º
de julho de 1932. Neste
mesmo mês, se iniciou a Revolução Constitucional que mobilizou inúmeras forças
194
Inventário DEOPS/SP, Isaltino Veiga dos Santos, prontuário 2018
93
políticas, inclusive setores do movimento negro paulistano. A militância negra
bastante diversa, naquele momento, não tomou uma decisão única: alguns ficaram a
favor do governo central, outros do lado dos paulistas e ainda outros numa posição
neutra como foi o caso de Correia Leite e a maioria do grupo que vinha da formação
adquirida no Clarim d' Alvorada.
195
Por isso, o Clube Negro de Cultura Social ficou
quase fechado durante os três meses que durou a Constitucional, voltando suas
atividades normais apenas no mês de outubro.
O CNCS nasceu da iniciativa de José de Assis Barbosa, o Borba
196
e teve de
pronto três objetivos: retomar a militância com uma outra roupagem e estratégia de
ação com atividades voltadas ao esporte e a cultura como a encenação de peças
teatrais, organização de saraus, bailes e competições esportivas; dar uma resposta a
altura aos irmãos Veiga dos Santos que passaram a denegar Correia Leite e seus
companheiros chamando-os de "coveiros e judas da raça"
197
; além de viabilizar uma
moradia para Correia Leite e sua família.
O Clube existiu até o ano de 1938, desempenhando funções ligadas ao esporte
e a cultura em geral, como bailes, saraus, teatro, campeonatos esportivos e veiculação
de notícias. Estas atividades estavam distribuídas em três departamentos: o cultural, o
esportivo e o intelectual. O departamento intelectual fez circular durante a existência
do CNCS a revista Cultura (com apenas cinco publicações) e o jornal Clarim.
No Clube Negro de Cultura Social o postulado da democracia imperava, com a
realização de eleições periódicas onde se escolhia o corpo dirigente que tinha como
liderança máxima o cargo de presidente. Correia Leite foi o primeiro presidente da
195
No período da Revolução Constitucional a Frente Negra Brasileira que era oficialista ficou fechada.
196
José de Assis Barbosa era muito popular no meio negro e sua militância remontava à época do
Centro Cívico Palmares. Esteve com José Correia Leite em outros projetos do Movimento Negro. Além
do Borba, participaram do CNCS Osvaldo Santiago, Raul Joviano do Amaral, Benedito C. Toledo,
Sebastião Gentil de Castro, Manoel Antônio dos Santos, Benedito Vaz Costa, Átila J. Gonçalves, Luís
Gonzaga Braga, Antunes Cunha, entre outros.
94
entidade, depois em 1934 foi eleito dirigente novamente, concorrendo pela Chapa
Oficial com a Ala-moça.
198
A composição de uma chapa para disputar com o grupo de
Correia Leite denota, de fato, a base democrática em que se sustentava a organização.
Entretanto, seria interessante atentarmos para a denominação da chapa concorrente:
Ala-moça. A Ala-moça supostamente, deve ter agregado na sua agenda aqueles
associados ligados à nova geração que freqüentava o Cultura Social, muito
interessada, salvo alguns sujeitos, na dimensão cultural, decerto festiva do Clube.
Muitos do grupo dos moços, mais tarde romperiam com o Clube para liderar outras
iniciativas, condizentes com suas expectativas.
199
O ativismo que existiu no Clube Negro de Cultura Social foi se diferenciando
com o passar do tempo daquele liderado por Leite no Clarim d' Alvorada. O contexto
político apresentado pela sociedade paulistana pós Revolução Constitucionalista, às
polarizações políticas entre os grupos do Movimento Negro e o tipo de público que o
CNCS atraiu levaram a estas mudanças de atuação. A maioria dos associados era
formada de jovens que tinham seus pais nos quadros da Frente Negra Brasileira, mas
que não se identificavam com o programa da organização que era muito politizado.
De um modo geral, podemos afirmar que as atividades realizadas pelo "Cultura
Social" estiveram voltadas à sedimentação de uma identidade negra entre a juventude
paulistana, funcionando como um mecanismo de reconhecimento social frente a
comunidade negra e a sociedade paulistana em geral. Daí associar as competições
esportivas (o forte da entidade) com datas comemorativas ligadas à história do negro,
como a prova anual de pedentrianismo
200
, nomeada de "13 de Maio", realizada no dia
197
LEITE,1992:102-103
198
Revista Cultura. São Paulo, janeiro de 1934 apud, DOMINGUES, 2004b:8
199
LEITE,1992:113,128
200
Termo em desuso atualmente, mas utilizado no período para designar uma espécie de esporte que
consiste em grandes marchas a pé realizadas no espaço da cidade.
95
comemorativo da abolição da escravidão. A competição saía do Largo do Arouche, ao
pé da estátua de Luiz Gama, fazia um percurso de seis quilômetros e meio pelas
principais ruas da cidade e retornava ao seu ponto de partida. Da prova de
pedentrianismo, que era moda na época, participariam diversas organizações negras,
inclusive a Frente Negra Brasileira.
201
Os militantes do Cultura Social com esses eventos difundia entre os jovens o
interesse pelas biografias dos abolicionistas negros tidos como heróis pela militância
mais antiga, ou seja, não deixava que as gerações mais jovens os esquecessem. Essas
atividades também ajudavam a erigir uma identidade positivada entre eles,
contrariando as representações mais comuns que associavam o grupo racial negro as
figuras do maltrapilho ou pedinte espalhados pela cidade. Associar o esportista,
saudável e competitivo com a data do 13 de Maio significava mostrar um outro lugar
para o negro na sociedade, longe do senso comum do incapaz e indolente, como
afirmou Leite anos depois: "o esporte sempre leva a pensar em estudar, em melhorar
de vida. (...) Muitos moços me convenceram que o esporte era também uma parte da
cultura, para o jovem sair do marasmo, de certos pensamentos de bailes, coisas inertes,
sem conseqüências".
202
Uma análise recente supõe que "a prática desportiva ou cultural desta entidade
não passava de uma tática de conscientização e mobilização racial no bojo do projeto
político do movimento social dos negros na época, cujos resultados foram
satisfatórios".
203
A prova disso foi o status alcançado pelo CNCS na cidade de São
Paulo sendo a única entidade a rivalizar com a Frente Negra Brasileira na
arregimentação de associados.
201
A Voz da Raça, maio de 1937, ano IV, no.65
202
LEITE,1992:113
203
DOMINGUES,2004b:9
96
Entretanto, as lideranças negras que se utilizaram dessas práticas sofreram
outro tipo de crítica. A de que o chamado culturalismo não conseguiu fazê-los transpor
da cultura para a política, pois essa estratégia não foi capaz de mobilizar a coletividade
para uma luta de unidade e rompimento com a situação de subordinação racial
enfrentada pelo grupo negro no pós-abolição.
204
Ainda que essa discussão tenha
suscitado debates
205
, percebemos, pelo menos no caso do Cultura Social e mesmo da
Frente Negra, que a tática da cultura de entretenimento e do esporte, de fato, foi uma
maneira de atrair mais participantes para as organizações. Contudo, nem todos
tornaram-se engajados politicamente nas ações das entidades, até porque esse não
parecia ser o objetivo final da maioria das lideranças. Havia um grupo, o que
chamamos intelectuais-militantes que assumiram a vanguarda nessas organizações.
Cabia a eles formular, organizar e falar pela coletividade. Eram eles que mantinham as
pautas dos jornais negros e organizavam as celebrações consideradas significativas e
de interesse da comunidade negra. Tais práticas, pensadas e articuladas por esses
ativistas, contribuíram sim à formação de uma identidade negra entre aqueles que se
associavam, ou seja, os que usufruíam os "serviços", mas não significaram
necessariamente, o nascimento de sujeitos políticos preparados para romper com o
status quo. O objetivo maior era promover uma efetiva integração na sociedade
paulistana.
Para muitos, participar dessas entidades simbolizava estar entre os ditos iguais.
Iam a procura de espaços de lazer que propiciassem prazer, longe dos olhares de
interdição encontrados nos espaços organizados e liderados pelos brancos. Entretanto,
essa busca pelo lazer strictu senso no CNCS gerou algumas dificuldades para o grupo
de Leite, pois segundo seu relato tinha uma concepção distinta do papel do intelectual-
204
HANCHARD,1996:227-230
97
militante:
o esforço para ser criada uma ideologia a fim
de que o negro pudesse se sentir orientado, não por uma
pessoa, mas por idéias, tudo aquilo dentro de um clube
não era possível. Não sei por que cargas d'água as pessoas
que eram conhecidas como militantes não deram tanta
atenção para o Clube Negro de Cultura Social, que
acabou sendo um chamariz para a mocidade. (...) Então eu
comecei a ter dificuldades, porque eu tinha de cuidar de
esporte. Eu virei um esportista.
206
Antigos militantes do Clarim d' Alvorada, aqueles que criticavam o
comportamento festivo do negro não participaram efetivamente do Clube Negro de
Cultura Social. Nele esteve uma nova geração de negros, que iniciava a vida
associativa naqueles anos. Anos estes, em que movimentos de cunho estritamente
político, como os liderados pelo pessoal do jornal de Leite, não eram vistos com bons
olhos. Ainda que o ativismo negro parecesse não dispensar tanta preocupação, se
compararmos o universo da militância negra existente em São Paulo com o número de
investigados listados pela polícia política.
Era uma juventude que não tinha experienciado o que Leite e seu grupo havia
vivido na década anterior. Tudo isso significava um desafio, mas também uma certa
decepção para o militante. O desafio era promover o diálogo entre os grupos
geracionais. Aprender com o novo e também ensiná-lo em tempos difíceis. A decepção
passava pela questão da adaptação e do reconhecimento que muitas das vezes não
correspondia ao sentimento que Leite tinha do quanto havia sido importante o trabalho
realizado pelo grupo do Clarim d' Alvorada. Algumas lembranças retratam estes
sentimentos:
205
Cf. BAIRROS,1996:173-186.
206
LEITE,1992:110
98
O Clube continuou com tudo que era do Clarim
d' Alvorada (móveis, escrivaninha, máquina de escrever,
biblioteca), inclusive a nossa tipografia. Quando nós
fundamos o clube, a idéia era fazer com que ele
continuasse a publicar o Clarim d' Alvorada. Mas, diante
da avalanche de moços com aquelas outras idéias, ficou
difícil incentivar os membros do antigo O Clarim d’
Alvorada para voltarem naquela mesma linha de atuação,
de luta, de pregação de idéias.
207
Leite, como um intelectual ciente de seu papel conscientizador, herdado da
experiência com o Clarim d' Alvorada, não conseguia sintonia dentro da entidade. O
episódio em que esse se afasta, devido alguns burburinhos relativos a uma possível
doença contagiosa (tuberculose) e de que estaria se aproveitando do dinheiro da
organização, num momento em que ficara desempregado, são lembrados pelo militante
com decepção devido a falta de reconhecimento que parece não ter havido entre os que
estavam no CNCS. No entanto, o fato de Correia Leite até aquele momento, não ter
uma profissão e nem mesmo um emprego estável, colaborava para que se sentisse
instável emocionalmente, influenciando sobremaneira, suas relações tanto
particulares
208
como de grupo, devido o aparecimento de dúvidas sobre a sua
honestidade como as relatadas acima. Um outro exemplo de decepção e mágoa pela
falta de reconhecimento pelo pessoal do CNCS está na seguinte passagem:
"Nessa época eu fiquei sabendo que alguém foi
comprar carne num açougue da Rua Manuel Dutra e a
carne foi embrulhada num jornal. Esse jornal era uma
página do Chicago Defender. Nós, que tivemos tanta
alegria na redação do Clarim d' Alvorada de ter recebido
o exemplar desse grande semanário americano, não
podíamos imaginar aquilo, um fim tão melancólico para o
nosso acervo".
209
Mas o momento era outro. Uma nova geração foi atraída para o Cultura Social,
207
LEITE,1992:111
208
Apenas na década de 1940, Leite conseguiu um emprego estável na prefeitura da cidade de São
Paulo. Casa própria só foi ter nos anos 1950.
99
não pela trajetória de conscientização voltada ao negro que orientara as práticas e
representações dos militantes do Clarim d' Alvorada, mas pelas propostas de lazer e
esporte que a nova organização apresentava. Ou seja, suponhamos que os novos
militantes do CNCS não tinham dimensão do que havia acontecido antes e, portanto,
não dessem o devido reconhecimento aos pioneiros do ativismo negro. Esse é um dos
problemas que podem ocorrer no interior das organizações que têm em seus quadros
mais de uma geração. Muitas das vezes, os novos quadros não são formados no
interior do grupo mais antigo, contribuindo para que estes mais recentes minimizem os
feitos dos antigos. O não estabelecimento de uma identidade de pertencimento com
indivíduos que não partilharam as experiências passadas, pautadas por erros e acertos,
perdas e vitórias, acabou provocando um distanciamento ideológico e uma falta de
solidariedade por parte dos novos, ocorrendo, nesses casos, uma ausência de diálogo e
consequentemente um certo descaso pela história anterior. Fora isso, desde 1932, a
militância política vinha sendo perseguida pela polícia política em São Paulo. Mesmo
que os militantes não tenham se posicionado nem do lado de São Paulo nem do
governo central, optando por cessar as atividades do Clube que tinham poucos dias de
existência a deflagração do Estado Novo também proibiu a existência do CNCS. Os
militantes que já estavam desarticulados fecharam a entidade.
Os depoimentos, a literatura sobre o movimento e as análises históricas do
período, fazem-nos concluir que diferentes fatores explicam o refluxo do ativismo
político negro. A ditadura imposta pelo Estado Novo figura como um dos fatores mais
importantes
210
, mas a falta de um projeto e perspectiva única entre os próprios
militantes, além da crença difundida na maioria da população de que, ainda que num
período exceção política, as condições de vida dos trabalhadores nacionais caminhava
209
LEITE,1992:113
100
para uma possível melhoria se comparada às décadas anteriores, são pertinentes.
211
Depoimento colhido décadas depois reafirmam as hipóteses acima: "o governo do
Getúlio para o negro foi bom, porque ele atendia a todos os nossos pedidos, às nossas
reivindicações."
212
Para além do aparato propagandístico articulado a uma eficiente repressão e
censura, o Estado Novo valeu-se também de uma relação direta com o povo. Os
pedidos dos trabalhadores ou populares, seja em forma de audiência marcada seja de
cartas, se não eram atendidos, pelo menos eram ouvidos pelo estadista. Esses se
valeram desse recurso inúmeras vezes. Desconstruindo, assim, a retórica da
"manipulação das massas" e percebendo a capacidade do povo fazer escolhas que lhe
trouxesse benesses, aproximamos-nos de uma explicação mais coerente que nos faz
entender os comportamentos dos trabalhadores e populares, capazes de perceber
"naquela circunstância política, algum reconhecimento, obtendo, então, certos ganhos,
não exatamente os ideais mas os possíveis".
213
A breve história das organizações que por ora apresentamos, nos fez
compreender que foi exercendo uma escrita e uma prática que visava formar,
esclarecer e argumentar para e em prol do grupo negro, possível através da atividade
jornalística que Veiga dos Santos e Correia Leite tornaram-se referência no meio negro
letrado e entre uma emergente intelectualidade branca. Vimos que entre o final dos
anos 1920 e início da década seguinte, com as promessas de mudanças que vieram no
bojo da "revolução" e os desdobramentos políticos, tanto progressistas como
reacionários que decorreram desse contexto, o grupo dos intelectuais-militantes
210
ANDREWS,1991
211
Ver LEITE,1992 e GOMES,1995 respectivamente.
212
QUILOMBHOJE, 1998:55 depoimento de Francisco Lucrécio.
213
REIS,2001:56 interpretando as cartas de populares enviadas a Vargas, chegou a seguinte conclusão:
homens e mulheres que compunham as classes populares no período do Estado Novo, interpretaram-no
com um código cultural próprio, buscando vantagens e direitos. Contrariando, portanto, as análises que
101
negros, composto além dos militantes aqui citados, também por Jayme de Aguiar,
Lino Guedes, Argentino Celso Wanderley, Vicente Ferreira, Isaltino Veiga dos Santos,
Francisco Santos, Guaraná de Santana, Raul Joviano do Amaral, Justiniano Costa,
Francisco Lucrécio dentre outros, procurou articular e potencializar suas ações. Estes
fizeram com que essas ganhassem um caráter de militância política mais eficaz
dialogando com o Estado, gestor das políticas públicas e com a população negra, setor
que necessitava de tais direitos. Sendo essas atribuições tarefas típicas dos intelectuais
nas formações sociais nas quais tais sujeitos posicionam-se como vanguarda.
2.3 Atuando em outros movimentos...
Deixando por ora, a esfera da mobilização política negra e relacionando os dois
personagens com outros movimentos político-sociais que se organizaram durante as
décadas de 1920 e 1930, tanto José Correia Leite como, particularmente Arlindo Veiga
dos Santos dialogaram ou estiveram comprometidos visceralmente com outras
iniciativas de mobilização. Arlindo Veiga dos Santos fundou e foi uma das principais
lideranças da Ação Imperial Patrianovista Brasileira (AIPB) atuante entre 1932 a 1972.
Fora isso, foi militante católico durante toda sua vida, além de ter sido, nos seus
primeiros anos de existência, simpatizante da Ação Integralista Brasileira (AIB). José
Correia Leite teve participação em movimentos políticos não ligados à questão racial
de forma esporádica, comparecendo as reuniões de sindicatos operários e àquelas
organizadas por lideranças comunistas, doutrina política com o qual o militante
declarou simpatia.
Mas, se estamos analisando práticas políticas e representações sociais dessas
lideranças no interior das organizações negras em que atuaram, que importância teria
somente viam resignação e passividade no grupo.
102
inserirmos em nossa análise, um breve histórico das organizações políticas com as
quais estes dois sujeitos tiveram envolvimento, seja como efetivos ativistas, simples
simpatizantes ou freqüentadores esporádicos?
Constatamos que especialmente, Arlindo Veiga dos Santos teve sua prática e
representações produzidas no interior do movimento negro, permeadas por outras
vinculações político-culturais. Arlindo patrianovista, monarquista e nacionalista de
extrema direita, levou a Frente Negra Brasileira a essa filiação. Já Correia Leite
colocou-se à esquerda das posições de Arlindo. Inclinado às ideologias de esquerda,
dialogou com o comunismo, anarquismo e movimento operário. Portanto, essas
filiações políticas também marcaram profundamente as dinâmicas de Veiga dos Santos
e Correia Leite no interior do movimento negro paulistano, explicando, outrossim,
alguns de seus antagonismos.
O projeto político de Veiga dos Santos era ambicioso, pois não se reduzia a
questão racial brasileira. Sua participação enquanto militante negro se justificava pelo
pertencimento racial, mas mobilizar o grupo negro também fazia parte de uma outra
causa: difundir o patrianovismo. Assim, no curto período que acompanhamos a
trajetória do militante na condição de ativista do movimento negro, percebemos o
quanto seu discurso esteve implicado com o projeto patrianovista, confundido, através
do papel de presidente da Frente Negra Brasileira, as reivindicações do segmento
negro com as oriundas desse movimento católico monarquista direitista.
A simpatia de Arlindo pela monarquia não era uma exceção. Ela não se
dissolveu prontamente após a instauração da forma republicana de governar. A
historiografia informa a existência de inúmeros políticos ilustres, não ligados a
oligarquia paulista que preferiam o Império à República. O surgimento do Partido
Monarquista, em São Paulo, no ano de 1895, e do Centro Monarquista, no Rio de
103
Janeiro, em 1896, refletia esse ressentimento de setores da sociedade com o novo
regime. Esses espaços abrigavam desde jovens bacharéis em Direito, até jovens
ligados a políticos em decadência, católicos radicais e descontentes por inúmeras
razões. Outrossim, a participação de monarquistas em alguns episódios ocorridos no
início da República, nos dão idéia de que eles não foram poucos. Os monarquistas
atuaram na renúncia do Marechal Deodoro da Fonseca, na Revolta da Armada, na
Revolução Federalista, na Revolta de 1902, em São Paulo, na Revolta da Vacina e na
candidatura de Hermes da Fonseca.
214
Sobre Deodoro da Fonseca, um artigo publicado
no A Voz da Raça, em 24 de junho de 1933, escrito por Viriato Correa, intitulado
"Deodoro e a Idéia da República" usava como argumento final, fragmentos de uma
carta escrita pelo militar ao sobrinho Clodoaldo da Fonseca, provavelmente antes do
golpe republicano, em que constava o seguinte conselho: "não te metas em questão de
República, por quanto, República no Brasil e desgraça completa é a mesma cousa: os
brasileiros nunca se prepararam para isso."
215
Mas o que explica a simpatia que tiveram alguns negros pela Monarquia, uma
vez que, foi durante o império que vigorou a escravidão? Alguns estudos procuram
elucidar esta aproximação, ou melhor, compreender a dissociação que houve entre a
forma de governo e o sistema econômico, propiciando assim uma apologia ao Império.
Uma das hipóteses afirma que foi durante a Primeira República que se configurou um
novo projeto civilizatório para o país, através de uma política de branqueamento e de
uma série de medidas sanitárias autoritárias que visavam extirpar através de uma
espécie de "limpeza" étnica a massa popular que habitava as grandes capitais. Em
decorrência dessa política, o contingente de ex-escravos e seus descendentes ficou a
mercê de sua própria sorte, sem garantia de emprego, terra, habitação, educação,
214
MALATIAN,1990:8
104
direito à participação política, manifestação cultural ou religiosa. Práticas advindas das
massas populares, em sua maioria negra eram reprimidas pelas autoridades policiais
como os cultos de matriz africana, a capoeira e o jogo do bicho, ou seja, o segmento
populacional negro foi sistematicamente discriminado no período, provocando em
alguns a sensação de que no passado próximo a vida teria sido melhor. Tratava-se de
uma espécie de nostalgia pela ordem anterior ao compará-la com a vigente.
216
Uma outra perspectiva acredita que as razões para a afinidade com a
monarquia não devem ser explicadas apenas pela vertente político-social e sim levar
em conta a dimensão cultural, pois a representação social da realeza impregnava o
imaginário social desde antes do cativeiro. Assim, a escolha pela monarquia não seria
uma postura absurda dos negros, vistos como incapazes de "desfrutar da liberdade
alcançada"
217
, uma vez que na África esta era a forma de governo mais comum. Daí a
existência até os dias atuais de grupos culturais que festejam os reizados, as congadas,
os maracatus e as cavalhadas, momentos em que reis negros são coroados retomando
uma memória ancestral africana. Portanto, ao saudar e enaltecer "a princesa Isabel, os
negros estavam expressando sua concepção de realeza tal como a entendiam na
África".
218
O fato é que no final dos anos 1920 e no ano de 1930, o jornal Progresso
estampava em suas páginas artigos simpáticos à monarquia e notícias relativas as
organizações e clubes monarquistas do meio negro.
219
Por conseguinte, quando
Arlindo Veiga dos Santos lançou sementes do patrianovismo no meio negro, sabia que
algumas germinariam. Nessa brecha entrou a Ação Imperial Patrianovista Brasileira. O
215
A Voz da Raça, 24/06/1933, Ano I, no. 13, p.3
216
DOMINGUES,s/d:19-20
217
Afirmação atribuída a Rui Barbosa que não entendia o apreço dos ex-escravos pela família real. Cf.
DAIBERT JR.,2004:207
218
DAIBERT JR.,2004:208-209
219
ANDREWS, 1998:81
105
próprio editava um jornal mensal, Monarquia, que teve longa duração. Essa análise
contraria a afirmação de que os movimento sociais negros surgidos no período não
questionavam a ordem político-social estabelecida. Pelo contrário, estavam satisfeitos,
pleiteando apenas que "ela também valesse para eles".
220
A opção por analisar o
movimento negro dos anos 1930 como um bloco monolítico, originou essa conclusão.
Uma análise mais apurada das diferentes iniciativas existentes no período fez-nos
concluir que projetos diferentes existiram e até mesmo entraram em choque, ainda que
a maioria desses embates tenham tido ressonância no universo do ativismo negro. Ou
seja, não implicou outros setores da sociedade, o que pode ter gerado a conclusão
citada acima.
A Ação Imperial Patrianovista Brasileira
A Ação Imperial Patrianovista Brasileira - AIPB surgiu num contexto de
reorientação católica e quase todos os seus fundadores saíram da Faculdade de
Filosofia e Letras São Bento. Tratava-se de recém formados nacionalistas e
conservadores que condenavam os rumos da política no Brasil, considerando modelos
impróprios para o país, tanto o liberalismo capitalista quanto o comunismo. A única
saída seria a implantação de um "Estado orgânico" liderado por um chefe autoritário,
ou melhor, "uma monarquia orgânica, tradicionalista e coorporativa".
221
Nessa lógica,
o pensamento patrianovista se aproximou bastante de outros movimentos autoritários
como o integralismo, que atuou no âmbito nacional e os fascismos que existiram na
Europa.
A Igreja Católica no Brasil, mais especificamente, após a Primeira Guerra
Mundial, iniciou um movimento de recatolização do país "pelo alto", orientado pela
220
FERNANDES,1978:8 vol. II
221
MALATIAN,1990:36
106
principal liderança institucional do momento o Cardeal Sebastião Leme que
direcionava a atuação de intelectuais e movimentos de leigos à aproximação com as
classes médias urbanas emergentes.
222
A Igreja visava a recuperação do espaço
perdido, após o advento da República, quando o Estado se instituiu laico. Em 1922,
surgiu o Centro D. Vital, sendo resultado do esforço de D. Leme em "organizar e
formar um grupo de intelectuais a fim de fazer frente ao anti-clericalismo", 'ao
ateísmo, à indiferença religiosa das elites republicanas' ". O Centro tinha como
dirigente um leigo, o intelectual Jackson de Figueiredo. Esses intelectuais publicavam
para os fiéis e influenciavam a política local e nacional, mas sem assumirem uma
posição mais diretamente favorável a determinado partido político, ainda que as
doutrinas de esquerda fossem veementemente rechaçadas pela Igreja, com aprovação
do papado.
223
O Centro D. Vital publicava uma revista nacional chamada A Ordem e,
mais tarde, fundaram, em 1935, a Ação Católica. Os patrionovistas participaram do
Centro D. Vital de São Paulo, uma espécie de filial do Centro do Rio de Janeiro, além
de escreverem assiduamente para a revista A Ordem.
O movimento Pátria-Nova teve dois momentos. Um primeiro iniciado em
1928, com o Centro Monarquista Social Político Pátria-Nova, com sede em São Paulo
e Arlindo Veiga dos Santos como dirigente maior. Nesse período foi elaborado o
programa da organização composto pelas seguintes teses: Credo, Monarquia, Pátria e
Raça Brasileira, Divisão administrativa do país, Organização Sindical, Capital no
centro do país e Política internacional altiva e cristã.
224
Nesse período, surgiram mais
dois centros, o de Fortaleza e o de Petrópolis, além de se instituir a Guarda Imperial
Patrianovista constituída de jovens militares vestidos com uma camisa branca e uma
222
MALATIAN,1990:35
223
CARVALHO FILHO, 1983:passim.
224
MALATIAN,1990:37
107
cruz vermelha no braço esquerdo, mas que não se tornou um grupo armado, por
orientação da Igreja, pois pelo chefe geral, Arlindo Veiga dos Santos, caso fosse
necessário, os patrianovistas lutariam "violentamente, pela pena, pela palavra e pelas
armas".
225
O segundo momento se iniciou com a fundação da Ação Imperial Patrianovista
Brasileira, em 1932. A partir do ensejo, o grupo tornou-se um movimento político de
fato, passando a disputar declaradamente um projeto para o país. Essa mudança de
estratégia decorreu do contexto político iniciado com a "Revolução de 1930", que para
os dirigentes foi entendido como uma brecha para a instauração do III Império, devido
a conjuntura de instabilidade política que se apresentava. Para Arlindo, o processo
iniciado em 1930, seria um mal necessário. A AIPB na gestão de Arlindo, em especial
após 1932, ampliou os seus quadros através de uma propaganda agressiva e forte apelo
emocional
226
, chegando computar 93 núcleos entre 1932 e 1937.
Em 1933, alguns patrianovistas intentaram participar da Assembléia
Constituinte e para isso deveriam fundar um partido político. No entanto, a Igreja
decidiu apoiar o que chamou de Liga Eleitoral Católica, grupo composto de políticos
de diferentes origens partidárias de direita e comprometidos com algumas
reivindicações da Igreja, com a argumentação de que não cabia dividir os fiéis.
227
Deu-
se a primeira fragmentação do movimento, visto que Arlindo Veiga dos Santos na
época, também presidente da Frente Negra Brasileira, decidiu candidatar-se pela
entidade negra afastando-se da AIPB. Malatian supõe que um outro motivo deve ter
afastado Arlindo: a experiência do racismo.
228
Suposição que se confirma, caso
225
O Comando Patrianovista. Boletim pessoal do Chefe-Geral Patrianovista Arlindo Veiga dos Santos,
dez/1933, p.6 apud DOMINGUES,s/d:8
226
MALATIAN,1990:38
227
CARVALHO FILHO,1983:passim
228
MALATIAN,1978:113 A ação imperial patrianovista brasileira. São Paulo: Dissertação de Mestrado,
PUC/SP apud DOMINGUES,s/d:9
108
levemos em conta as considerações de Paim Vieira, um militante patrianovista que via
a Frente Negra como um "clubezinho de negros", local de uma "subcultura".
229
O novo dirigente da AIPB foi Paulo Dutra Silva que procurou rivalizar com o
comunismo, ocorrendo até mesmo, confrontos violentos entre os grupos,
principalmente após 1936 quando o Estado brasileiro passou a perseguir
declaradamente os militantes comunistas. Contudo, nem todos os patrinovistas
apoiavam a nova linha do movimento, orientada pela Igreja Católica no mundo,
ocorrendo nova dissidência com a fundação, em 1935, da Ação Católica Monarquista
Brasileira, no Rio de Janeiro e em São Paulo, pelos que se opunham a luta armada e
eram favoráveis à aproximação com o príncipe herdeiro.
230
Veiga retornou à direção no final de 1936, mas sem o apoio da maioria, pois
seguiu uma linha independente à influência do príncipe e voltada à tendência da Igreja
que buscava um diálogo com o segmento operário, com promessas de um "império dos
trabalhadores" no Brasil, com reformas sociais que garantissem "trabalho, pão, casa,
educação e proteção às famílias numerosas".
231
A mesma tática discursiva implantada
na Frente Negra Brasileira desde 1931, agora, se voltava para outros grupos
subalternos da sociedade.
As questões específicas do segmento negro estavam contidas no terceiro ponto
do programa da AIPB que convergia os interesses monarquistas e dos movimentos ou
grupos que faziam da identidade racial ou étnica o motivo para a mobilização.
Textualmente o item “Pátria e Raça Brasileira” propunha a
"afirmação da Pátria Imperial Brasileira. Sua
valorização espiritual, (intelectual, religiosa e moral),
física, econômica. Afirmação da raça brasileira em todos
229
MALATIAN,2001,58
230
MALATIAN,2001:52
231
Chefia-Geral da AIPB. Bolletim Patrianovista, SP, set.1936 apud MALATIAN,2001:53
109
os seus elementos tradicionais e novos-integrados (filhos
de estrangeiros). Solução definitiva do problema negro-
indígena-sertanejo. Formação e valorização física,
intelectual e religiosa-moral racionalista Raça-brasileira.
Definição da situação do estrangeiro dentro do império
instaurado. Reação contra todas as formas de
imperialismo estrangeiro no Brasil".
232
Os militantes católicos organizaram um conjunto de idéias, o qual
denominaram “orgânico-sindicalismo”, que segundo eles seria a “garantia única da
destruição político profissional dos liberais, e penhor da vitória da terra, da raça, da
tradição e do trabalho, contra o argentarismo e contra o bolchevismo.” Suas idéias
refutavam certo tipo de capitalismo “prepotente cuja injustiça vai aniquilando os
governos e a nação” e o socialismo, considerado uma “tirania que ameaça as tradições,
os nossos lares, nossa minguada economia e a nossa terra”.
233
Entendiam o Brasil
como uma terra singular, em que floresceria uma nova civilização. Essa nova
sociedade teria um regime monarquista, centralizado e seguidor da autodeterminação
do chefe maior, ou seja um Estado autoritário, anti-liberal. Único capaz de viabilizar a
redenção dos brasileiros e colocar o país entre as nações de grande porte, como a
Alemanha por exemplo.
O patrianovismo enquanto movimento político organizado existiu até a década
de 1970. Em 1964, quando aconteceu o golpe civil-militar, os patrianovistas estiveram
diretamente ligados à ditadura militar. Entretanto, passados alguns meses, Arlindo,
ainda uma liderança importante, declarava seu descontentamento com o que ele
chamou de "covardias, bobagens, impunidades, ignorâncias e traições" dentro do
movimento. Novamente, a estratégia dos ativistas monarquistas de se aproveitarem da
crise e prepararem o caminho para o III imrio, não surtiu efeitos positivos. Logo, a
AIPB seria proibida de organizar-se em território nacional, frustando as aspirações de
232
Programa Patrianovista apud MALATIAN,2001:56
110
seus dirigentes.
A Ação Integralista Brasileira
Outro movimento social de extrema-direita existente no Brasil, dos anos 1930,
foi o integralista, que teve como liderança maior Plínio Salgado. A Ação Integralista
Brasileira combinou o ambiente propício à ascensão das ideologias fascistas na Europa
com o contexto interno de incerteza política e reformulação do Estado-Nação iniciado
por Getúlio Vargas, convencendo as massas para uma luta nacionalista de extrema-
direita. Contudo, convém ressaltar que o próprio Salgado gostava de estabelecer as
bases que o afastavam do fascismo, afirmando ambiciosamente que seu movimento
não deveria ser confundido com o "hitlerismo e o fascismo", pois era "muito maior" e
"muito mais profundo que ambos".
234
Liderado pelo Chefe Nacional Plínio Salvado, um dos fundadores do
movimento Verde-amarelo que pregava o retorno do país as suas origens, a Ação
Integralista Brasileira surgiu na cidade de São Paulo, em 7 de outubro de 1932, se
ramificando como um partido político de massas por todo o país, a partir de 1935,
quando reunidos em seu II Congresso nacional, ocorrido em Petrópolis, os militantes
redefiniram a organização. Esta deixou de ser apenas uma associação nacional de
direito privado, voltada a promover estudos sociológicos, elevar moral e civicamente o
povo brasileiro e buscar implantar o Estado Integral
235
, para se tornar uma "associação
civil, com sede na cidade de São Paulo e um partido político, com sede no lugar onde
se encontrar o seu chefe supremo (...)"
236
233
A Voz da Raça, Ano 1, nº 7, p.1, 1933
234
CHASIN, J. 1999. O integralismo de Plínio Salgado. Belo Horizonte: UMA Editoria, São Paulo:
Estudos e Edições Ad. Hominem. Apud MACHADO,2005:57
235
Estatutos da AIB, Monitor Integralista, Ano II, n. 6, maio de 1934, p.3 apud CAVALARI,1999:16
236
Estatutos de março de 1935, Monitor Integralista, Ano V, n.22, 7 de outubro de 1937, p5 apud
CAVALARI,1999:16
111
A memória de Correia Leite relata o contato de Veiga dos Santos com algumas
lideranças integralistas, antes mesmo do movimento se instituir oficialmente no país.
É
certo que muitos patrianovistas participaram da Ação Integralista Brasileira em seus
primórdios, pois as idéias e bandeiras levantadas pelo integralismo estavam em
consonância com as do movimento Pátria-Nova. Os patrianovistas participaram dos
encontros integralistas em 1930, e aglutinaram-se na Sociedade de Estudos Políticos,
fundada em março de 1932, instituição da qual se originou o movimento integralista. O
afastamento dos dois grupos deu-se no processo de construção do Manifesto de
Outubro
237
, quando os integralistas decidiram estabelecer o "movimento como
republicano e assumiram uma postura dissonante dos patrianova em relação ao
catolicismo".
238
O conservadorismo e a religiosidade cristã eram as principais linhas de
aproximação, pois tanto os integralistas quanto os patrianovistas tinham como lema
Deus, Pátria e a Família. Entretanto, não devemos confundir os dois movimentos, pois
apesar de nacionalistas e conservadores implementaram ações e divulgaram idéias
muitas vezes antagônicas. Além do que, ambos tinham com objetivo final o controle
do Estado, tendo os integralistas oportunidade para serem mais radicais no propósito,
devido a total independência em relação as orientações da Igreja católica. Outros
movimentos de orientação de extrema-direita atuantes no período foram a Ação Social
Brasileira (Partido Nacional Fascista); Legião Cearense do Trabalho e Partido
Nacional Sindicalista.
239
As primeiras lembranças de Correia Leite sobre sua participação na política se
remetem à greve de 1918. Nessa época ele era lenheiro e, por curiosidade, foi numa
237
O Manifesto de Outubro é o documento de fundação da AIB, foi lançado em 7 de outubro de 1932,
mas vinha sendo escrito desde maio, estando pronto em junho daquele ano. O lançamento foi atrasado
devido a deflagração da Revolução Constitucionalista. Cf.CAVALARI,1999:15
238
MALATIAN,2001:66
239
TRINDADE,1979:97
112
manifestação. Surpreendeu-se com a organização dos trabalhadores, muitos
estrangeiros e de orientação anarquista. Posteriormente, esteve numa reunião do grupo,
mas não voltou a freqüentar por achar demasiadamente utópico.
240
Nessa época
também disse ter ido a algumas passeatas estudantis:
"gostava de participar do movimento da
estudantada, que sempre iniciava os protestos contra o
aumento da passagem de bonde e outros assuntos
políticos. Certa vez o Rui Barbosa fez uma conferência
atacando o Epitácio Pessoa e ele foi responder no Teatro
República. Houve uma agitação e eu também fui corrido
pela cavalaria".
241
Mais tarde, já como ativista no Clarim d' Alvorada, teve contatos com
membros do Partido Comunista, que tentaram lhe convencer da sensibilidade dos
comunistas para com a questão racial. Por eles, ficou sabendo do Caso Scottsboro, em
que jovens negros norte-americanos acusados de mexerem com prostitutas brancas
foram defendidos por advogados do Socorro Vermelho.
Contudo, sua relação com o comunismo não se aprofundou. Leite alegou ter se
afastado das organizações comunistas, pois não poderia confundir seus "ideais de
negro" com suas "obrigações de brasileiro, de cidadão".
242
O que demonstra estar
profundamente difundido na sociedade da época a concepção de que as idéias
importadas dos comunistas e anarquistas, na maioria das vezes trazidas por
estrangeiros, não condiziam com a realidade nacional. Essa representação do
comunismo como coisa de estrangeiros, possivelmente, afastou dos seus quadros
muitos militantes do movimento negro, pois a principal bandeira de luta dos ativistas
era a prerrogativa da nacionalidade do negro presente desde a formação das primeiras
instituições nacionais, porém preterido político e socialmente. Daí, a afinidade com os
movimentos direita, pois todos pregavam um nacionalismo exacerbado, quase sempre
240
LEITE,1992:54
241
LEITE,1992:27
113
xenófobo, mas que priorizava, ainda que, hierarquicamente, os grupos raciais vistos
como os pilares da nação. Uma lembrança de Correia Leite reforça essa nossa
afirmação que crê na possibilidade de uma maior afinidade com as ideologias de
direita. Em meados dos anos 1930, Leite reencontrou um conhecido da época do
Clarim d' Alvorada, que todo vestido numa farda verde, ou seja, trajado como um
membro integralista lhe disse: "agora sim eu acertei. Agora eu acertei o caminho da
nossa integração, da nossa participação. Porque nós temos a possibilidade de lutar para
a integração da família na nacionalidade..."
243
Fazendo um balanço, anos depois
Correia Leite disse não acreditar que qualquer uma das orientações políticas
antagônicas na época: integralista ou comunista fossem resolver a questão racial
brasileira. Para ele o racismo brasileiro tinha particularidades que deveriam ser
tratadas num âmbito específico, ainda que as idéias de esquerda lhe fossem mais
simpáticas por achar que elas tocavam na questão da imensa desigualdade que
afastavam abissalmente ricos e pobres no país.
244
Vale salientar que mesmo entre os
intelectuais comunistas brasileiros a questão racial não tinha uma discussão muito
progressista. Num ensaio de Otávio Brandão, importante dirigente, encontramos
afirmações que aproximam suas idéias daquelas expressadas pelos estudiosos
racialistas décadas antes. Revelando um positivismo latente Brandão escrevera: no
Brasil, o “homem, como a terra, ainda estavam em formação” e por isso ainda “não
havia um brasileiro, um tipo definido” e sim “uma mistura desordenada de raças e sub-
raças” o que interferia em “numerosos aspectos da vida nacional”. Mas o que revela tal
afirmação? Que a questão racial tal como pensava o movimento negro, não alcançava
a agenda comunista, mesmo que em seus quadros já constassem filiados negros que se
242
LEITE,1992:54
243
LEITE,1992:118
244
LEITE,1992:55
114
projetaram como o operário Minervino de Oliveira, primeiro vereador e candidato à
presidência da República pelo Partido Comunista, em 1930. E em 1934, o Partido
Comunista Brasileiro deferiu uma resolução que entendia as reivindicações dos negros
brasileiros como uma luta por território e nacionalidade e conclamava a todos
constituírem seus “próprios governos, separados dos governos federal e estaduais”,
saída para a efetivação de uma nação propriamente negra com “território, governo,
costumes, religião, língua e cultura próprios”
245
Como pode-se ver totalmente
contrário ao que almejavam os ativistas negros paulistanos daquela década.
Contudo, foram as incipientes convicções de esquerda citadas acima que
puseram Correia Leite em oposição às idéias de Veiga dos Santos e de outros negros
simpatizantes ou ativistas das ideologias mais conservadoras. Como vimos,
anteriormente, essa oposição de idéias políticas fez com que Leite e alguns outros
ativistas se afastassem da cúpula da Frente Negra Brasileira. E provavelmente, este por
suas idéias políticas, ao contrário dos irmãos Veiga dos Santos, pouco se beneficiou
das relações que envolviam o jogo político local e mesmo de âmbito nacional. Para as
lideranças frentenegrinas este alinhamento viabilizou a obtenção de empregos para o
corpo de associados à entidade, uma acomodação em cargos de confiança na esfera
municipal ou estadual, a visita prestigiosa à sede da organização de autoridades locais,
etc. Porque apesar da projeção nacional que a organização liderada por Veiga dos
Santos teve, com tão substantivo número de sócios, não seria exagerado afirmar que
seu prestígio se dera muito em função da afinidade de idéias existente entre os
dirigentes da FNB, declaradamente direitistas, e o ordenamento político nacional cada
vez mais à direita, posteriormente comprovado com a deflagração do Estado Novo em
1937. Conclusão corroborada pelo seguinte fragmento: "Frente Negra Brasileira
245
Augusto Buonicore, La Insígnia, 25/05/2005, p.1 www.lainsignia.org/2005/mayo/ibe_085.htm
115
congratua-lhe vivamente nova Constituição destino Pátria Brasileira. Tem a honra
apresenta felicitações Vossa excelência, Exército e Marinha nacionais. Queira V.
Excelência aceitar respeitosos cumprimentos".
246
246
A Voz da Raça, no.70, nov/1937 p.1 Telegrama enviado pelo presidente Justiniano da Costa a
Getúlio Vargas, parabenizando-o pela ditadura do Estado Novo.
116
3.CAPÍTULO - O "PROBLEMA NEGRO" E OS
QUESTIONAMENTOS DO NEGRO
: A RAÇA E A
PROBLEMÁTICA DA FORMAÇÃO NACIONAL
A cor da pele parece constituir obstáculo, a
anormalidade a sanar. Dir-se-ia que na
cultura brasileira o branco é o ideal, a
norma, o valor, por excelência
247
.
3.1 O quantitativo populacional negro como um problema nacional
O quantitativo populacional negro brasileiro e as demandas político-sociais do
grupo, na época constituído por cativos e libertos, foram encarados como "problema"
para o progresso do país ainda no Estado Imperial, quando vigorava a escravidão e o
trabalhador africano ou seus descendentes eram mão-de-obra indispensável.
Participaram do debate governo, políticos e cientistas toda vez que o assunto era a
ocupação do território nacional e a o fim do trabalho escravo. A situação se agudizou,
a partir da segunda metade do século XIX, depois que a elite dirigente e pensante,
percebeu que a abolição viria mais cedo ou mais tarde. Idéias hoje questionadas, mas
bastante hegemônicas na época, calcadas no darwinismo social, evolucionismo
248
e
positivismo foram combinadas pelos "homens de sciência" brasileiros - como eram
chamados os intelectuais ligados às instituições de pesquisas da época - na tentativa
de encontrar saídas à problemática de um país visivelmente diverso racialmente e
substancialmente composto por afro-brasileiros que a partir de 1888 quando a abolição
efetivamente se realizou e os negros, antes escravos passaram a ser juridicamente
247
RAMOS,1981:57
248
ORTIZ, 1994:14-15 A perspectiva evolucionista tentava estabelecer uma relação lógica entre as
diferentes sociedades humanas ao longo da história; aceitava o postulado que o "simples" (povos
primitivos) evoluía naturalmente para o mais "complexo" (sociedades ocidentais). O resultado final
disso tudo era estabeler leis gerais que ordenassem o progresso das civilizações.
117
cidadãos.
Podemos dizer que a unidade territorial e lingüística fora conquistada com
eficiência pelos governos monárquicos, mas o regime escravocrata que durou mais de
300 anos, atrasara o projeto de unidade do povo brasileiro que segundo concepções da
época, baseadas em teorias raciais importadas e adaptadas à nossa realidade, deveria
ser composto de apenas um tipo
249
, ou seja, não cabia a variedade de características
fenotípicas visíveis entre os brasileiros, fruto de uma sociedade formada pela
composição de povos com origens diversas.
Essa questão foi transferida para o Estado republicano. Daí a pertinência em
discutirmos as idéias sobre a raça e a formação nacional circulantes na Primeira
República. Essa problemática, por sua vez, esteve nos círculos freqüentados por Veiga
dos Santos e Correia Leite. Esses construíram representações sociais da realidade
racial brasileira, combinando a experiência vivida às idéias dos especialistas, tidos, na
maioria das vezes, como o pensamento de ponta sobre a realidade nacional. Por essa
razão que, numa parte do capítulo, relacionamos a produção intelectual desses
especialistas, especialmente aqueles citados na imprensa ou nos depoimentos com o
entendimento que tinham nossos intelectuais-militantes, a partir dos artigos que os
mesmos publicizavam nos jornais voltados à comunidade negra letrada. Era a maneira
que estes sujeitos tinham de refletir temas tão em voga e que diziam respeito,
efetivamente a manutenção ou não do grupo negro enquanto político, social e
culturalmente reconhecido.
No período da Primeira República, discussões em torno do ideal de nação e por
conseqüência, do modelo de Estado mais adequado à sociedade brasileira foram
inúmeras. Intelectuais, administradores públicos e governo, algumas vezes em arenas
249
A idéia de tipo remete-se as teorias racistas de cientistas europeus que classificava as populações
118
opostas, discutiam e lançavam propostas que, segundo o paradigma escolhido,
deveriam combinar três variáveis: povo (raça), cultura (civilização) e língua.
250
Dentre
as três, faltava a formação de um autêntico povo brasileiro que deveria ser composto
por uma unidade racial geneticamente superior. Essa era a condição imprescindível
para a existência de um efetivo Estado-nação e viável modernização capitalista.
251
Teorias raciais ligadas ao evolucionismo, que se erigiram com força política no
decorrer do século XIX, encontraram terreno fértil entre os "homens de sciência"
brasileiros que as adaptaram para os administradores públicos. Tais teorias viam a
diversidade humana como sinônimo de desigualdade e diferença racial, numa
hierarquia em que o branco europeu ocupava o topo da pirâmide, negros e indígenas se
revezavam na base e todos os outros tipos ocupavam posições intermediárias.
252
Nessa
perspectiva, na transição do trabalho escravo para a mão-de-obra livre, não parecia
viável que o trabalhador negro, tido como racialmente inferior, fosse capaz de
sobreviver à nova ordem econômica. Daí a urgência da ocupação do território nacional
com trabalhadores brancos europeus.
Com a abolição efetivada, cientistas de todas as estirpes tentavam a todo custo,
por meio de elucubrações cientificizantes, procurar saídas para uma nação que se
queria branca, condição imprescindível, no entendimento da elite política e intelectual
para o progresso econômico, tecnológico e político do país. O exemplo vinha dos
países da Europa Ocidental tidos como as nações mais ricas do mundo, pelo simples
fato de serem compostos por povos "arianos", os mais "evoluídos" na hierarquia das
raças. Algumas análises, da qual corroboramos, entendem que esta ideologia serviu
para legitimar a posição hegemônica do ocidente e expandir o capitalismo no
humanas.
250
SEYFERTH,1996:41
251
IANNI,1993:433
119
mundo.
253
Nessa lógica, duas noções foram muito utilizadas para explicar o atraso do
Brasil: a raça e o meio. Aprofundaremos a discussão sobre a raça devido importância
que tem em nosso estudo.
É importante salientar que a definição de raça fundamentava-se
substancialmente na biologia, acreditando na existência de caracteres genéticos
específicos, próprios de cada grupo humano, que além de estabelecerem o fenótipo,
determinavam as aptidões intelectuais, o comportamento sócio-político, em suma, o
destino das populações. Em nosso trabalho raça foi utilizada não no sentido biológico
stricto senso, mas como uma noção que no âmbito das relações sociais ainda se funda
em parâmetros biológicos para regular diferencialmente os grupos que agregam
características fenotípicas distintas e convivem em sociedades hierárquicas produtoras
de desigualdades. Portanto,
"não há 'raças' biológicas, ou seja, na espécie
humana nada que possa ser classificado a partir de
critérios científicos e corresponda ao que comumente
chamamos de 'raça'. 'Raça' tem existência nominal,
efetiva e eficaz apenas no mundo social e, portanto,
somente no mundo social pode ter validade plena".
254
Mas, no final do século XIX e início do XX, essa discussão da desigualdade
entre as raças trouxe a tona uma outra: a explicação da origem do homem. A maioria
dos cientistas acreditava no monogenismo, ou seja, na crença de que a humanidade era
una, conforme postulavam os escritos bíblicos. Contudo, nem todos os seres humanos
podiam ser colocados em pé de igualdade, ou seja, ainda não havia conseguido
alcançar os mesmos padrões evolutivos. Sendo necessário uma classificação que
envolvia caracteres fenotípicos, comportamentos e valores numa gradação decrescente
252
SEYFERTH,1996:43
253
ORTIZ,1994:15;
120
que ia dos "civilizados" aos "incivilizados". Para uma outra abordagem: a poligenista,
surgiram diferentes centros de criação da espécie humana. Ou seja, acreditavam na
existência de diferentes espécies humanas. Portanto, os humanos eram desiguais entre
si, "não redutíveis, seja pela aclimatação, seja pelo cruzamento, a uma única
humanidade".
255
Esse postulado servia, naquele momento, para contestar e enfraquecer
os dogmas da Igreja, além de fortalecer as áreas de conhecimento que interpretavam os
grupos humanos somente pelo viés biológico, como por exemplo, a antropologia. A
partir de investimentos em pesquisas e surgimento de teorias como a frenologia e
antropometria, a ciência passava a explicar, na perspectiva dos determinismos, os
comportamentos criminosos, os transtornos mentais, além da "ausência de
civilização", que afirmavam ocorrer em algumas sociedades humanas. O poligenismo
questionava qualquer tipo de solidariedade entre os povos, já que se tratavam de
espécies distintas entre si, incapazes de alcançar o mesmo nível algum dia. Na
verdade, o que os poligenistas fizeram, foi se apropriarem de maneira deturpada das
idéias de Charles Darwin sobre a seleção das espécies e sobrevivência dos mais aptos,
instituindo o darwinismo social, perspectiva que via diferenças fundantes entre as
raças. Esses teóricos colocavam por terra o próprio darwinismo que, pelo
evolucionismo postulava uma origem comum, além de ver positivamente o futuro da
espécie humana.
256
No Brasil, os "homens de sciência" não cansaram de se utilizar das duas
teorias, seja o evolucionismo social dos monogenistas, seja o darwinismo social dos
poligenistas. Serviam para explicar o nosso atraso em relação aos avanços alcançados
pelas nações européias e para condenar a mestiçagem como algo totalmente
254
GUIMARÃES,2002:50
255
SCHWARCZ,1993:49
256
Cf. SCHWARCZ, 1993:47-54
121
impraticável, visto que se tratava do cruzamento com espécies ou diversas ou em
níveis díspares de evolução, logo inexeqüível. O resultado seriam indivíduos
degenerados que herdariam os piores caracteres das raças em cruzamento, uma vez que
as características adquiridas, não se transmitiam por meio da miscigenação, "nem
mesmo num processo de evolução social", via educação por exemplo.
257
Mestiçagem mesmo, só como último recurso, caso os experimentos de
ocupação do território com o imigrante europeu não dessem certo. Respaldados pelos
escritos de Gobineau, Chamberlain, Haeckel e Lapouge, os cientistas brasileiros
projetavam a nação. Ela estaria comprometida, caso não se efetivasse, uma política
intensiva de recomposição do elemento nacional que deveria ser laborioso, inteligente,
obstinado e cristão. Todas essas qualidades, biologicamente herdadas, não seriam
encontradas segundo esses pensadores
258
, entre a maioria da população nacional da
época, composta substantivamente por descendentes de africanos e indígenas.
257
Cf. SCHWARCZ,1993:57-58 A eugenia foi um movimento que acreditava na perfectibilidade
humana a partir da genética e não da educação e que incentivou a "seleção da espécie" a partir do
cruzamento entre indivíduos puros e superiores. A prática da eugenia teve seu ápice com a instituição do
nazismo na Alemanha governada por Hitler.
258
SEYFERTH,1996:45 analisa os trabalhos de Tavares Bastos apresentado à Sociedade Internacional
de Imigração em 1867, de Augusto de Carvalho, de 1874 e o do Conselheiro Menezes e Souza
apresentados ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, de 1875 como representantes de
um pensamento que articulava a preocupação com a ocupação territorial do país e a construção de uma
civilização brasileira que passava necessariamente pela entrada do trabalhador do branco europeu, único
capaz desse feito.
122
3.2 Uma saída para o Brasil do futuro: o branqueamento pela
mestiçagem
Aceitar a idéia de um Brasil mestiço no final do século XIX era muito difícil
para aqueles interessados em resolver o problema negro brasileiro. Para muitos a
mestiçagem era a via que explicava o "atraso ou uma possível inviabilidade da
nação",
259
mas por outro lado, poderia ser o único instrumento capaz de proporcionar o
desaparecimento, a longo prazo, das características negro-indígenas na composição do
povo brasileiro. Portanto, em meio a todos estes debates que aconteceram na
passagem de um século para o outro, surgiria uma saída "científica", genuinamente
brasileira, resultado da combinação das teorias raciais citadas anteriormente: a tese do
branqueamento e do mestiço superior. Alguns especialistas que vinham readaptando e
reelaborando as teorias raciais desde o início do século XX, passaram a incentivar a
saída pela mestiçagem no Brasil.
Branquear, nesse segundo momento significaria ocupar sistematicamente o
território nacional com imigrantes europeus, em especial aqueles mais propícios a se
assimilarem. Sob estas novas perspectivas, passaram a condenar a imigração alemã
(colocada em prática no Império), organizada em colônias fechadas de estrangeiros,
dificultando a assimilação com o elemento nacional. O português, o espanhol e o
italiano seriam considerados os mais propícios ao empreendimento por serem tipos
latinos, tidos como racialmente mais próprios às misturas, capazes, portanto, de
provocar o chamado caldeamento das raças que daria futuramente no tipo brasileiro,
físico e culturalmente homogêneo.
260
Assim,
259
SCHWARCZ,1993:13
123
"o papel do imigrante, portanto, está bem
definido: concorrer para a formação de um tipo brasileiro,
elemento da unidade nacional (que, paradoxalmente, vê
comprometida pela 'desarmonia das índoles' decorrentes
da mestiçagem). Trata-se de uma construção racial -
clarear a pele do brasileiro do futuro, pelo menos -, pois a
nacionalidade já tem sua cultura, sua língua e sua
religião."
261
A mestiçagem, moral e biológico-cultural, possibilitaria a aclimatação da
civilização européia nos trópicos.
262
Nesse sentido, cabia ao branco "puro" concorrer
para a assunção da genuína raça brasileira, fruto da depuração racial gestada pelos
cientistas nacionais e colocada em prática pelos governantes. Percebamos que a
mestiçagem comunicava a metáfora do cadinho, que ao guardar as singularidades de
cada raça, acabava por contemplar o português, o africano e o índio brasileiro,
elementos fundadores do Brasil de acordo com a fábula das três raças.
263
Joaquim da Silva Rocha criticava o Império, que não resolveu a questão da
unidade nacional, diga-se "a fusão do sangue", propondo no I Congresso Nacional das
Raças, ocorrido em 1911, o efetivo aperfeiçoamento da espécie para que assim
ocorresse, de fato, a nacionalização da população brasileira, ou seja, a verdadeira
composição do "tipo definitivo".
264
Também Batista Lacerda, neste mesmo Congresso,
discursaria a favor do branqueamento, única maneira de se chegar a uma nação
homogeneamente branca num futuro próximo.
265
Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, apresentou um
quadro de Modesto Brocos, chamado A redenção de Can, exemplificando o efeito que
teria a depuração da raça negra a partir de sucessivos cruzamentos com a branca. Com
260
SEYFERTH,1991:174
261
SEYFERTH,1996:51
262
ORTIZ,1994:20
263
Da MATTA,1990.
264
SILVA ROCHA,1918:5 vol.II História da Colonização no Brasil apud SEYFERTH,1996:54
265
SCHWARCZ,1993:94
124
esse mecanismo de seleção dos mais "aptos", o cientista acreditava, fundado na
perspectiva do evolucionismo, que somente as características positivas de cada raça
seriam combinadas, surgindo o tipo ou raça ideal brasileira.
266
O progresso seria incompatível com o contigente nacional de origem africana,
finalmente cidadão, pelo menos no âmbito legal. Mas, a eles ainda cabia uma missão
derradeira: antes de desaparecerem totalmente deveriam promover a nacionalização
dos imigrantes através da difusão da língua e da cultura nacional.
267
Era como se os
negros, incapazes natos, devessem se doar em sacrifício, em favor de um desfecho
feliz para a nação. Esse pensamento de inferioridade dos negros, ou melhor, não
apenas desses, mas de todos os não-brancos, servia para justificar as condições em que
vivia essa população na Primeira República. A saída seria a mestiçagem maciça da
população nacional devendo ser incentivada, até que se conseguisse padrões de
brancura próximos ao europeu. A essas conclusões chegaram a maioria das produções
literárias e científicas da época.
Tratavam de idéias bastante difundidas entre os brasileiros letrados e que
convenceram, inclusive, alguns intelectuais-militantes que escreveram na imprensa
negra dos anos 1920. Chegando ao ponto de em 1923, o jornal negro Getulino, de
Campinas expor opinião contrária à vinda de imigrantes negro-americanos para o
Brasil. Influenciados pela fala dos especialistas ilustrados do início do século que
creditavam o atraso econômico e a inferioridade tecnológica do país à existência das
raças bárbaras, negra e americana, os militantes não aceitavam de forma alguma a
entrada de mais negros no país. Para eles, essa imigração prejudicaria a resolução do
"problema negro" brasileiro, caracterizado por um expressivo contingente
populacional de negros difícil de se assimilar e as mazelas sociais decorrentes disso,
266
Cf. SCHWARCZ,1993:12
125
ameaçando a harmonia da raça brasileira e a paz da nação. Aludindo às teorias raciais
da época, lembravam que a vinda desses indivíduos prejudicaria a equação matemática
que pregava o desaparecimento gradativo da raça negra do Brasil.
268
Em depoimento colhido entre os anos de 1983 e 1984, ao falar desse passado,
Correia Leite chegou a conclusão de que a maioria dos negros não tinha consciência
do tipo de preconceito que vigorava no Brasil, mesmo os militantes. No seu
entendimento, as teorias raciais que acreditavam no desaparecimento do negro eram
uma justificativa para a omissão do Estado. "Houve um tempo em que se ouvia muita
gente dizer que nossa luta não tinha razão de ser porque o negro ia desaparecer. Foi
uma idéia gerada por estudiosos."
269
Idéia essa que influenciou o pensamento de
muitos negros intelectualizados como pudemos ver. As teorias raciais chegavam ao
senso comum através da imprensa, especializada ou não, e pelos livros publicados.
Embora parte do conhecimento adquirido por Correia Leite e outros militantes,
também tenha ocorrido nos bares da cidade e reuniões informais, que muitas vezes
varavam a madrugada, uma vez que “pensar e sonhar requerem um tempo
desregulado”.
270
Com vidas de 'boêmios intelectuais"
271
, segundo as próprias palavras de
Correia Leite, os militantes tinham acesso as opiniões dos ditos sociólogos do
momento, em torno do tão discutido "problema negro". O intelectual-militante
lembrou que algumas opiniões eram corroboradas pelo grupo como "o negro
representa a redenção universal" creditada a Rocha Pombo e "o negro acompanha o
branco do berço a sepultura" ou "o negro madrugou no alicerce da formação da
267
SEYFERTH,1996:56
268
Jornal Getulino, Campinas 23-09-1923 apud DOMINGUES,2004a:306
269
LEITE,1992:21
270
JACOBY,1990:41
271
JACOBY, 1990:39-65 aponta a boemia com seus cafés, bares e ruas apinhadas de transeuntes como
um importante locus formador do intelectual.
126
nacionalidade e da nossa base econômica" ligadas a Sílvio Romero. Mas outras eram
refutadas, pois "não tratavam os negros com a devida justiça e viam neles um exemplo
de atraso". Entre essas, estavam as opiniões de Oliveira Viana, xingado pelos ativistas
de 'mulato safado'.
272
Décadas mais tarde, com uma trajetória de vida marcada pelo
engajamento na questão racial brasileira, pontuada por expectativas e decepções,
Correia Leite, partilhando de um outro olhar para com os sociólogos do passado, daria
menos importância àquelas idéia sobre a sua própria formação:
"Quando eu militava, nunca me baseei nas
palavras, nos conceitos dos teóricos, para levar a minha
luta. Era muito comum se falar em Nina Rodrigues, um
antropólogo que sempre viu negativamente o negro em
seus estudos. Só que de minha parte, eu nunca fui
procurar os estudiosos, embora mais tarde tivesse tido
contatos."
273
Mas um texto de Correia Leite de 1928, publicado no São Paulo Jornal e
reproduzido no Clarim d' Alvorada dias depois, abusou das citações de especialistas da
época para rebater as críticas de um colaborador do jornal paulistano, o Dr. Couto
Esher
274
que discordava do culto à Mãe-Preta por não ver qualquer valor positivo da
raça negra na formação da nacionalidade brasileira. O ativista contra-argumentou
citando Franklin Távora e Batista Pereira, vistos como "as maiores mentalidades da
nossa grande pátria". Ao primeiro atribuiu a afirmação de que o negro era uma "raça
épica" que "acompanhara o branco do berço a sepultura". Ao segundo, a já propalada
idéia de nossa fusão étnica, refutando assim qualquer tentativa de purismo racial entre
272
MOREIRA & LEITE, s/d:5
273
LEITE,1992:21
274
O médico Nicolau Soares de Couto Esher era protestante da Igreja Presbiteriana e figura influente no
estado de São Paulo. Em 1921, lançou sua candidatura avulsa ao senado. Entrevistado pela Folha da
Noite fez críticas ao voto de cabresto e a apatia das massas em relação ao pleito. Era contra a reeleição e
a favor do voto secreto. Foi o primeiro presidente da Associação Cristã de Moços de São Paulo e Rio de
Janeiro e é considerado um pioneiro entre os presbiterianos no Brasil. Ver
http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/brasil_19fev1921.htm e
www.ipb.org.br/especial_aniversario/pioneiro.leigos.php3
127
os brancos nacionais.
275
Meses mais tarde, Veiga dos Santos ao escrever no Clarim d' Alvorada também
iniciou seus argumentos remetendo-se aos especialistas. Selecionamos alguns excertos
escolhidos pelo intelectual-militante que faziam referências positivas a presença do
negro na formação da nacionalidade. Citava Arthur Bomílcar, de 1921: '"a única
espécie de immigrantes que aqui não veio para depredar as nossas riquezas naturaes e
exhaurir as nossas minas, e nos beber lentamente o sangue, foi a immigração preta"';
Sílvio Romero, Revista do Brasil, de 1916: '"A escravidão, apesar de todos os seus
vícios, operou como factor social, modificando os nossos hábitos e costumes. (...)
Desenvolveu-se como força econômica produzindo as nossas riquezas; e o negro foi
assim um robusto agente civilizador"'; Conde de Affonso Celso
276
: "no terreno social o
nacionalismo quer de todo extinguir o preconceito de raça ou de côr, conferindo ao
Índio e sobretudo ao Africano e ao Mestiço o ponto de honra que lhes compete na
evolução brasileira".
277
Foram frases estrategicamente retiradas dos textos produzidos
pelos ilustres homens de letras ou de ciências que comunicavam a metáfora do
amálgama das três raças fundadoras, conferindo a cada uma papéis significativos na
formação da nação, sobretudo ao trabalhador africano visto como resignado, forte e
afetivo, adjetivações que para aqueles militantes e leitores dos periódicos produzidos
eram vistas como positivas e dignificantes.
Dentre os chamados estudiosos em voga, escolhemos analisar os escritos de
Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Oliveira Vianna, além de alguns trabalhos do
historiador Rocha Pombo, porque foram citados nos textos produzidos na época pelos
275
LEITE, "A nossa raça é uma raça mestiça e superior", O Clarim d' Alvorada, nov/1928, no.10,
Segunda fase. P.2
276
Afonso Celso publicou em 1900, o livro Por que me ufano de meu país, trabalho extremamente
nacionalista que louvava o país, sua natureza, povo e cultura. O livro que segundo o autor tinha a
finalidade de incutir nas crianças o dever moral e cívico de respeitar e valorizar a pátria, foi bastante lido
conforme o número de edições que teve: em 1936 estava em sua 11
º
edição. Cf. LEITE, 1992:195-201
128
intelectuais militantes ou então lembrados especialmente por Correia Leite anos
depois. Como vimos anteriormente, outros intelectuais públicos na sociedade brasileira
foram citados na imprensa negra, porém mais pontualmente.
Como um paradoxo, o contato com as opiniões de alguns especialistas
favoreceu, pouco a pouco, o aparecimento de um pensamento próprio entre os
militantes. Vejamos de que maneira. Os especialistas estavam convictos de que a
primeira atitude no sentido de resolver a problemática racial seria conhecer,
profundamente o próprio país. Voltaram-se a estudar o que denominaram os elementos
constituintes do caráter brasileiro enquanto nação em formação. E, se a mestiçagem
estava na constituição de nossa formação racial, além de ser considerada, para alguns,
o caminho para o branqueamento do Brasil, se fazia necessário fundamentar os
benefícios decorrentes de sua efetivação. Esses estudos, baseados nos paradigmas
científicos produzidos pelos trabalhos antropológicos da época, procuravam enumerar
as características positivas e negativas do africano, indígena e português. A partir
desse esmiuçamento, acreditavam que poderiam melhor manipular tais caracteres,
eliminando os negativos e incentivando a manutenção dos positivos. Ainda que não
intentamos e nem tenhamos como mensurar a completa influência desses especialistas
sobre a formação intelectual de Leite e Veiga, constatamos que houve uma releitura,
ou melhor, uma apropriação dos dados sobre a história do negro publicados nas
publicações de Rodrigues, Romero, Oliveira Vianna e Rocha Pombo. Contribuindo
assim para a (re)elaboração de uma imagem positiva do grupo negro, a partir de uma
"imagem gratificadora de si próprio, de seu passado como agente histórico e de sua
dignidade no presente e no futuro".
278
Como já dissemos, durante todo o período de existência, seja do Clarim d'
277
Veiga dos Santos, Clarim d' Alvorada, 9/06/1929, no.17 p.1 Segunda fase.
129
Alvorada seja do A Voz da Raça, encontramos reelaborados, junto às idéias próprias
dos ativistas, referências a esses escritos. Alguns desses estudiosos foram citados na
íntegra, ou seja, caso algum artigo, publicado em jornal de grande circulação, fosse
julgado significativo para o público negro, era prontamente republicado nos jornais
negros. Outros não sofriam uma espécie de apropriação, seja pela veiculação de um
argumento interessante, seja pela citação literal de uma frase de impacto como vimos
anteriormente. Muitas das idéias desses especialistas eram ventiladas primeiramente
em revistas especializadas como a Revista do Brasil
279
, por exemplo. Depois saíam
livros, editados mais de uma vez. São considerados, até hoje, clássicos do pensamento
nacional. O caso de Rocha Pombo é excepcional, pois sendo um historiador,
diferentemente dos outros, foi mencionado inúmeras vezes na imprensa negra e
posteriormente nos depoimentos de Correia Leite, o que denota sua importância como
historiador.
A trajetória de Nina Rodrigues (1862-1906) se consolidou como a de um
profundo estudioso do negro entre o final do século XIX e início do século XX.
Preocupado com o que ele considerava "o problema O Negro no Brasil", o autor partia
do princípio que para resolvê-lo, seria necessário um sério conhecimento desse grupo
racial, composto por diferentes etnias advindas do continente africano. Foi em busca
desse objetivo que o médico baiano pesquisou e publicou inúmeros estudos sobre o
negro, seja em revistas especializadas ou livros.
Sua obra póstuma
280
, Os africanos no Brasil, muito colaborou para reforçar
uma inferioridade desses e seus descendentes, tidos como biologicamente responsáveis
278
FERNANDES,1978:24 vol.II
279
A Revista do Brasil teve início na Primeira República
280
RODRIGUES,1932 foi publicado mais ou menos 15 anos após a morte do médico. O organizador
recolheu todos os manuscritos durante anos e lhe deu uma feição lógica. Não sabemos portanto, se a
ordem estabelecida pelo organizador seria a mesma de Nina Rodrigues, pois em alguns momentos
sentimos que alguns capítulos estão desconexos. Na verdade, o livro não tem uma ordenação perfeita,
130
por entravar a marcha para a civilização no Brasil. Trata-se de um livro profundamente
etnocêntrico a ponto de atribuir todo sinal de "civilização" em África a feitos de
brancos ou "quase brancos" que lá estiveram. Segundo Rodrigues havia uma
"incapacidade orgânica e morfológica" que impedia os negros de alcançarem o mesmo
patamar de civilização atribuído aos brancos. Por isso, creditou aos "chamitas", uma
subespécie da raça branca, os sinais de civilização encontrados no continente africano,
em especial no Egito e Abissínia, atual Etiópia.
281
Mas contrariando Rodrigues, Arlindo Veiga dos Santos, em 1929, ao refutar
uma conhecida frase de Miguel Pereira que associava o país a um "vasto hospital", nos
mostra sua concepção a cerca do "problema negro". O intelectual não temeu dizer que
essa realidade desoladora derivava de uma doença mais grave: "o preconceito de raça e
de cor" legitimados pelos governantes, "deixando que pereça toda uma gente que
precisa ser substituída, porque é mestiça, porque é negra e deverá ser branca, custe o
que custar, mesmo à custa do esfacelamento do Brasil, pela vasa do arianismo
imigrado".
282
Percebemos que Arlindo, numa linguagem irônica e direta, criticava as
políticas imigratórias, interessadas ao fim ao cabo no branqueamento da população
nacional.
Não obstante o livro de Nina Rodrigues trouxe outras contribuições. Pesquisou
os diversos grupos étnicos africanos que vieram como trabalhadores escravos cá.
Enfocou a permanência das religiões, línguas, artes e história dos africanos durante a
Colônia e o Império no Brasil. Nele, os intelectuais-militantes negros possivelmente,
tiveram acesso a história dos quilombos, em especial do quilombo de Palmares, e das
sublevações mulçumanas do século XIX. Acreditamos que com a leitura dos
parece mais a junção de alguns ensaios e apontamentos de pesquisa.
281
RODRIGUES,1932:398-399
282
Veiga dos Santos, Clarim d' Alvorada, 9/06/1929, no.17 p.1 Segunda fase.
131
apontamentos de Rodrigues, os intelectuais-militantes do movimento negro puderam
incorporar positivamente, a história da resistência negra e do papel colonizador do
negro no Brasil. E ao mesmo tempo, desprezar ou então, repensar a partir da prática,
aspectos tidos como inferiores da cultura africana existentes no Brasil. Essa análise
explicaria, em parte, de certa forma, o afastamento dessa elite negra letrada e citadina
das manifestações culturais estritamente negras e sua conseqüente aproximação com a
cultura branca, européia e cristã.
Outro aspecto interessante desse trabalho de Rodrigues é a recorrente
aproximação entre a realidade brasileira e a norte-americana. Ao contrário do que se
crê nos dias atuais, já naquele período, as relações raciais nos dois países eram
comparadas. Num posicionamento que considerava a inferioridade dos africanos um
"fenômeno de ordem perfeitamente natural", mas que condenava o tipo de escravidão
tido nos EUA, Rodrigues afirmou que "o critério científico da inferioridade da Raça
Negra nada tem de comum com a revoltante exploração que dele fizeram os interesses
escravistas dos norte-americanos."
283
Num outro momento, ao se referir ao "problema
o negro", creditava uma certa vantagem aos EUA porque "tinham um excedente
respeitável de população branca", não tinham uma grande parte do país em plena
região tropical, portanto, mais suscetível aos negros que aos brancos, conforme as
teorias do meio geográfico da época. E, por último, já "estavam discutindo o seu
problema étnico" com diferentes propostas de soluções como a fusão, o êxodo para a
África ou à América Central ou Meridional.
284
Ainda num outro momento, fazendo
claramente uma diferenciação entre o padrão das relações raciais daqui com o de lá,
preocupou-se em distinguir e até mesmo criticar o que se definia como negro nos EUA
"compreendidos todos, com os mestiços, na rubrica coloured men, - forma de
283
RODRIGUES,1932:14
132
condenação a mais formal exclusão de qualquer tentativa de longo mestiçamento". No
caso brasileiro, entendia a questão como algo que estava no "cerne da constituição da
nossa nacionalidade", ou seja, a mestiçagem havia se incumbido desse amálgama. Mas
ainda assim, numa perspectiva negativa, própria dos apontamentos científicos do
momento, acreditava que "no sangue negro havemos de buscar, como em fonte matriz,
com algumas das nossas virtudes, muitos dos nossos defeitos".
285
Daí a importância e
atualidade de seu estudo, naquele momento.
Sílvio Romero pertenceu a chamada "geração de 1870", conhecida por
absorver e reelaborar os postulados científicos difundidos na Europa, mas também
pelo fato de tentar entender o país a partir do estudo das suas origens e apontamento
dos seus problemas.
286
Balizado pelo cientificismo que resultaria no progresso
nacional, Romero escreveu inúmeros trabalhos preocupados em avançar os estudos
sobre o país, além de resolver seus mais pungentes problemas, sendo um deles, a
constituição do que se entendia por povo brasileiro.
No decorrer dos anos seu pensamento diferenciou-se dos postulados da época
porque deu significativa importância para o tema da mestiçagem. Polêmico, afirmava
que todo brasileiro era um mestiço. Ou era no sangue, pela combinação de fatores
como convívio entre o português, o negro e o índio, somadas as peculiaridades do
meio, ou era nas idéias devido a prática de imitarmos tudo o que era estrangeiro. Em O
Brasil na 1
ª
década do século XX, publicado em 1911, inicia suas considerações a
partir de severas críticas a um autor da época chamado Onraldo Cruz que, ao analisar
as condições de vida da população no Pará, afirmara, em linhas gerais, que se tratavam
de "raças cruzadas profundamente desgraçadas". Cruz atribuía a desgraça, a um
284
RODRIGUES,1932:17
285
RODRIGUES,1932:26
286
MOTA,2000:25
133
conjunto de fatores relacionados ao meio e as condições sociais, políticas e religiosas,
no qual a predominância indígena concorrera para aquele estado de coisas, que
consequentemente também acabou influenciando as outras raças. Romero teceu
críticas virulentas e irônicas ao "eminente cientista" afirmando que o
"escritor é um genuíno rebento dos três povos
e foi nascido ali. Quem o ler, ignorando os fatos, poderá
pensar que quem está a escrever aquelas conclusões é
algum puríssimo ariano da Escandinávia ou da Inglaterra
nas zonas mais extremas de misturas.
Puro engano.
Trata-se de um cafuso irrecusável, exemplar
típico para servir de exemplo.
Nada mais cômico do que ouvir sujeitos, como
esse citado, fazerem referenciais as raças cruzadas
287
do
Pará, como alguma coisa que está fora deles, alguma
coisa que lhe é estranha, de que não fazem parte, a que
são superiores...
288
Como se pode perceber, Romero tinha as suas próprias conclusões acerca da
mestiçagem, que se relacionarmos com o pensamento da época devem ter sido vistas
como progressistas e até incômodas. Daí o interesse dos nossos intelectuais-militantes
negros por suas idéias. Mas não nos enganemos. Romero conseguia combinar doses de
pessimismo e otimismo quando o assunto era a mestiçagem no Brasil e nossos
militantes devem ter se apropriado do que os interessavam. Efetivamente, Romero
entendia a mestiçagem como recorrente na nossa constituição nacional e que, de certa
maneira, seria hipocrisia fugir dessa constatação. A mestiçagem era a "marca e a
afirmação de nossa identidade".
289
Sua obra mais conhecida é História da Literatura Brasileira. Nesse trabalho o
autor analisa a produção literária brasileira - autores e obras - desde a Colônia.
287
Grifos do próprio autor.
288
ROMERO,1911:69
134
Importa-nos aqui, entendermos como o autor abordou a temática racial, em especial a
questão da mestiçagem. Logo no início do capítulo intitulado: Diversas manifestações
na prosa - História, o tema aparece ao atribuir um certo atraso nas idéias de Karl
Friedrich von Martius em matéria etnográfica. O alemão ganhou o concurso realizado
pelo Instituto Histórico e Geográfico do Brasil sobre como escrever uma história do
Brasil. Para Romero o "afamado sábio" laborava em fantasias românticas pois ainda
acreditava no
"resultado maravilhoso da mistura de raças
inteiramente diversas, em oposição aos mais perfeitos
estudos dos mais competentes naturalistas, que
demonstraram que as raças demasiado distanciadas pouco
coabitam e, quando o fazem, ou não produzem, ou se
produzem, são bastardos infecundos, depois da 2
ª
ou 3
ª
geração."
290
Romero certifica o leitor da existência de mestiçagem também nos continentes
antigos. A mestiçagem havia causado a decadência da Europa. O surgimento das
doutrinas anarquistas e socialistas naquele continente seria a prova de "monstruosa
reversão racial". Nesse sentido, caberia ao "homem de sciência" não somente teorizar
sobre o assunto, mas com uso meticuloso de seus modernos conhecimentos ajudar. Seu
papel era interferir na realidade social brasileira manipulando o mecanismo do
mestiçamento que até ali vinha combinando "raças inteiramente diversas", no sentido
de concorrer para a completa arianização do povo brasileiro. Logo, a mestiçagem,
agora pela substituição do sangue africano pelo europeu, faria prevalecer com o passar
dos anos a raça mais numerosa e forte: a branca. O que nas projeções do intelectual
talvez ocorreria em quatro séculos, caso seguissem seus conselhos.
Em sua análise mesmo a mestiçagem que houvera durante a Colônia e o
289
MOTA,2000:70
135
Império, já concorrera para um melhoramento da raça. O que se comprovava pela
quantidade de mestiços que se destacaram na prosa e na poesia. Nomes como
Romualdo Seixas, os irmãos Rebouças, Torres Homem, Justiniano da Rocha,
Francisco Otaviano e Caetano Lopes de Mouraes foram citados por Romero. Além do
jurista e parlamentar Antônio Pereira Rebouças que para o autor era "quase negro".
Antônio Rebouças testemunhava "a capacidade do mestiço para instruir-se e chegar a
uma bela posição pelos seus talentos", pela junção de inteligência, "rara energia e
inteireza de caráter".
291
O teórico que também foi político e professor no colégio Pedro II durante 30
anos, colaborou na discussão dos problemas nacionais de várias estirpes. Costumava
culpar a distância entre o povo "ingênuo e generoso", composto pelas "gentes mais
apáticas do mundo _ índios negros e portugueses" da elite dirigente, formada
substancialmente, de políticos, jornalistas e literatos "incompetentes ou traficantes",
por arremedarem seja na política, economia e até mesmo cultura, os modelos
estrangeiros, ao invés de se debaterem na busca por uma via genuinamente nacional.
Contudo, malgrado essas críticas, Romero foi um homem de seu tempo. Para
ele, faltava reconhecer que a "raiz do mal" estava entre os próprios brasileiros, de
índole inconsistente naquele momento, "incapaz de grandes organizações, conquistas
reais e duradouras."
292
E com autoridade de cientista, dava conselhos projetando o
futuro:
"estas são idéias que propagamos para que,
pelo meios educativos, pela intrução, pela seleção, pela
mescla de bons elementos étnicos de contigentes
290
ROMERO,1943:143
291
ROMERO,1943:224
292
ROMERO,1911:42
136
imigratórios superiores, espalhados em todo o Brasil,
especialmente nas magníficas terras do Centro e do Norte,
nos regeneremos."
293
A obra escolhida de Rocha Pombo é História do Brasil Ilustrada, composta de
10 volumes. O historiador foi mais de uma vez citado no Clarim d' Alvorada.
Acreditamos que sua coleção de história do Brasil desde a chegada dos portugueses até
os primeiros anos da República deva ter sido um importante manual indispensável para
aqueles interessados em compreender e escrever sobre o país e o povo.
Num dos volumes, Rocha Pombo teceu o que ele denominou "considerações
gerais sobre os diversos elementos étnicos e as condições do caldeamento". E é o que
nos interessa para este trabalho. Analisando os povos formadores e comparando a
história do Brasil com a de outros países da América chegou a conclusão que, o
contato racial no Brasil até aquele momento, vinha contribuindo para que não se
falasse mais em várias raças, mas num amálgama, ou seja: seria impossível estabelecer
qual das três estava mais presente.
294
Contudo, as três raças também no entendimento
do autor, não ocupavam o mesmo lugar na hierarquia valorativa. No processo de
caldeamento, o branco europeu atuou como líder, o negro e o indígena apenas como
coadjuvantes. Esse processo deveria continuar. Por isso era partidário da entrada de
imigrantes europeus, não só para suprir a defasagem de mão-de-obra, mas
principalmente para promover a "melhoria da contextura das três raças". Isso não tinha
ocorrido, com efeito, até aquele momento, devido a preponderância dos elementos
bárbaros, pois era sabido que a mestiçagem de "dois typos diferentes produz um typo
médio, acima do mais rude, mas abaixo do mais culto".
295
Sua História do Brasil Ilustrada ajudou a fixar no senso comum a idéia de que
293
ROMERO,1943:162
294
ROCHA POMBO, 1905:21
295
ROCHA POMBO,1905:8-9
137
todo brasileiro é em essência um mestiço. Rocha Pombo também reforçou a visão de
que tivemos uma colonização pacífica, até mesmo providencial. Afirmando
textualmente que não foi uma conquista, mas sim "encontro, um concurso, uma
cooperação de raças." Analisando a participação das "três raças fundadoras",
assegurou que havia uma necessidade da Europa se expandir, pois estava exaurida. Por
outro lado, os brancos mais evoluídos acabaram por ajudar a "raça americana" na
marcha para alcançar uma "cultura e uma civilização própria". No saldo, os povos
autóctones lucraram com a fusão. Contudo quem mais perdeu foi o "negro que entrou
aqui como escravo e como escravo ficou".
296
O africano que para cá veio como escravo foi adjetivado pelo autor de afetivo e
resignado. O que demonstra um afinamento de opinião com relação à antropologia que
insistia em relacionar o comportamento social à constituição biológica. Sendo
características do africano negro a resignação e afetividade, quando posto na condição
de cativo essas permaneceram. Daí, certamente a representação da Mãe-Preta e Pai
João recorrente no imaginário social brasileiro. O escravo negro assumiu o Brasil
como sua pátria e no seu entendimento procurou cooperar para a edificação da nova
terra. No seu entendimento não cogitou retornar à África. Aqui estava a “civilização”.
Lá a “barbárie”. A escravidão seria o preço a ser pago para alcançar a evolução na
América. Assim, fugas, sublevações, quilombos, etc. são vistos pelo historiador como
protestos, não contra o cativeiro, mas sim contra os excessos do martírio.
297
Para todos esses autores a mestiçagem funcionou como o amálgama da
formação racial nacional, que ainda incompleta caminhava para um desfecho positivo
via sangue europeu proporcionado pelas levas de imigrantes brancos, é claro.
Pensamento uníssono entre Rocha Pombo, Sílvio Romero e mesmo, Oliveira Vianna.
296
ROCHA POMBO,1905:30-31
138
E, se por um lado, os textos de Nina Rodrigues afirmavam que, a mescla de raças
incompatíveis entre si e sem nenhum controle de especialistas provocou a
degenerescência do tipo brasileiro, com conseqüências na ordem política e social, por
outro, acabou por publicizar estudos sobre os negros nunca dantes conhecidos.
Frases de efeito de Sílvio Romero e Rocha Pombo foram utilizadas tanto por
Veiga como por Leite na imprensa negra. Convictos de que dentre os chamados
nacionais era impossível encontrar um indivíduo geneticamente puro, uma vez que na
constituição do povo brasileiro concorreu o elemento autóctone, o africano e o
europeu, os militantes recorriam a estes escritos para terem mais argumentos de
autoridade.
Por último, resta-nos Oliveira Vianna. Como vimos anteriormente, o advogado
niteroiense mais conhecido por seus estudos que, procuraram explicar a compleição
histórica, social e política do país pelo viés da constituição biológica do povo e sua
interação com o meio, do que pelos préstimos de sua profissão de formação, foi
rechaçado entre os intelectuais-militantes negros.
Vejamos se havia motivos. Oliveira Vianna via a diversidade de fenótipos
humanos como prova da existência de desigualdades biológicas. Seriam essas
diferenciações genéticas capazes de promover o progresso ou atraso de uma nação.
Tudo dependeria da quantidade de características tidas como inferiores ou superiores
que esse povo apresentasse. Daí a necessidade que tinham, os países interessados em
alcançar patamares mínimos de civilização, em estudar sua própria constituição racial
e as maneiras para alcançar a eugenia.
Assim como Romero, Vianna quis encontrar uma saída para a questão da
formação nacional brasileira. Para tal, foi um entusiasta do branqueamento ordenado e
297
ROCHA POMBO, 1905:32
139
controlado, capaz de gerar indivíduos eugenicamente mais aptos, os quais Vianna
chamou de "mestiços superiores".
Seus primeiros estudos saíram na Revista do Brasil, a partir de junho de 1917.
Depois foram compilados, o que resultou no livro Populações Meridionais, com
primeira publicação em 1920. Bastante lido e aceito na época, cumprindo trajetória de
sucesso. A todos que quisessem conhecer o Brasil, recomendava-se Oliveira Vianna.
298
Imbuído da tarefa de trazer a tona o passado "latente e obscuro" do brasileiro, único
mecanismo capaz de possibilitar ao homem do presente seu autoconhecimento, uma
análise fria e severa de sua composição e estrutura, além das "tendências particulares
de mentalidade e caráter", afirmava ser esse empreendimento somente viável com a
ajuda de alguns conhecimentos, no seu entendimento, os mais atuais. Para tal citava
Ratzel, Gobineau, Lapouge, Le Bom, Le Play dentre outros, tidos como os gênios das
ciências da natureza e da sociedade que contribuíram para suas formulações sobre o
Brasil e o brasileiro.
Fiquemos com suas afirmações sobre o estado de São Paulo. Negando de forma
gritante os dados sobre a história colonial, logo "inventando a história"
299
, o autor deu
significativa valorização ao estado, afirmando terem os paulistas desenvolvido uma
sociedade urbana e aristocrática composta de altivos e dignos proprietários de terras.
Todos "descendentes autênticos das mais notáveis e ilustres casas de Península".
Sobre a aristocracia rural, Vianna foi só elogios. Novamente contrariando as
evidências históricas, em Pequenos estudos de psicologia social, publicado
primeiramente por volta de 1921, Vianna tratou do poder político dos coronéis contra a
ordem imposta na Colônia e parte do Império, em que só parcela mínima da população
298
VENANCIO,2003:219; também um texto contemporâneo, datado de 1925, publicado na Revista do
IHGB, tomo 97, vol.191 cita o sucesso de Vianna com suas "obras sempre esgotadas".
299
LEITE,1992:224
140
podia votar e ser votada. Segundo ele, os "grandes proprietários do interior", atuavam
como "brilhantes caudilhos locais" levando até "a boca das urnas apáticas populações
rurais". Ou seja, no lugar de ver manipulação e coerção eleitoral no “voto de cabresto”
praticado pelos chamados coronéis, Vianna via compromisso com os mais fracos e
democratização do processo político eleitoral. O final trágico desse grupo, composto
por "pura" e "respeitável" aristocracia rural se deu em 1888, com a Lei da Abolição,
adjetivada de inopinada e inepta pelo autor.
300
Nessa passagem, deve ter começado a
antipatia dos ativistas negros. Vianna defendia declaradamente os latifundiários e
provavelmente deve ter sido um defensor da indenização aos proprietários de escravos.
Em Evolução do Povo Brasileiro, escrito em 1922, o autor se propunha fazer
uma correlação entre os indivíduos e os territórios habitados especialmente nos
primeiros séculos de ocupação. Lançou a tese do dólico-louro, um dos tipos do H.
europeus, do qual supunha que os antigos bandeirantes descendiam. Pela preocupação
do autor em minimizar, na segunda edição, o que havia escrito antes, suas conclusões
não devem ter agradado a muitos, pois se redimiu afirmando serem "simples
conjecturas para a psicologia excepcional dos antigos pioneiros paulistas". O livro
desfila um contínuo de dados sobre a constituição física e psicológica das "três raças
distintíssimas, duas das quais exóticas" presentes nos primeiros séculos de nossa
formação.
Nomeou os brancos que vieram para cá de "dólicos louros", originários da
nobreza portuguesa e "braquióides" ou "dolicóides brunos", "tão pobres que trazem
nas costas tudo o que possuem". No seu entendimento, os caracteres biológicos
conformavam a organização econômica e social. Portanto, todas as famílias da
aristocracia rural que dominaram o país desde o período colonial eram descendentes de
300
VIANNA,1942:103
141
dólicos louros puros ou cruzados. Vianna dedica muitas linhas para reforçar o
eugenismo
301
dos Cavalcantis, Prados, Lemes, Buenos dentre outros.
302
Especialmente sobre os africanos, disse que a variedade era ainda mais vasta,
contribuindo para "trazer a esse caos o contingente de maior confusão e discordância".
Descreveu fisicamente algumas das tribos ou nações, sempre de forma etnocêntrica e
preconceituosa, uma vez que o modelo comparativo era branco. Na sua concepção os
iebu, caçanje e haussás "têm fealdade dos tipos negros puros". Já os mina, fula, achanti
ou felani por serem de "cor mais clara" e terem "cabelos menos encarapinhados"
tinham "grande beleza e suavidade nos traços". Mas nenhum desses tipos citados
suplantavam os jolofos e sereres, "cuja soberba compleição tem a pureza, a graça e
nobreza do tipo europeu". Vemos, portanto, na caracterização desses tipos que tudo o
que se assemelha ao branco é positivado. E, se os comportamentos psico-sociais
decorriam da conformação biológica, suas conclusões continuariam na mesma linha.
Assim, afirmou que havia "tribos indolentes", como os gêges e angola. Outros eram
"laboriosos" como os timinins, minas e daomeanos. Algumas eram "pacíficas,
obedientes e humildes passíves de civilizar", caso dos minas, iorubás, egbas e felanis.
Quanto a moralidade, Vianna disse que iorubás, egbas e haussás tinham "costumes
honestos". Já os gêges e angolas eram "facilmente corrompíveis", ainda que superiores
intelectualmente em relação a outras nações.
303
Mas a formação racial brasileira e o problema da mestiçagem foram mais
detalhadamente discutidos em outro livro. Raça e assimilação saiu em 1932, e teve
assim como os outros grande repercussão, sendo divulgado como um livro teórico.
301
A eugenia foi um movimento que acreditava na perfectibilidade humana a partir da genética e não da
educação e que incentivou a seleção da espécie a partir do cruzamento entre indivíduos puros e
superiores. A prática da eugenia teve seu ápice com a instituição do nazismo na Alemanha governada
por Hitler. Cf. SCHWARCZ,1993:57-58
302
VIANNA,1956:128-132
303
VIANNA,1956:137-139
142
Nele, Vianna procurou atualizar seus conhecimentos sobre a questão racial iniciados
em Evolução do Povo Brasileiro.
304
Introduziu a noção de etnia e demarcou sua
distinção da categoria raça, ainda que continuasse a se pautar em pressupostos
biológicos. Fica parecendo que, as questões econômico-sociais da época resolver-se-
iam com a entrada de mais "dolicocéfalos louros", "pequenos braquicéfalos louros",
"grandes braquicéfalos brunos", "grandes dolicocéfalos brunos", dentre outros tipos
brancos citados pelo autor.
Especificamente sobre a mestiçagem, afirmava que intencionava contribuir
para resolver sua problemática, a partir de uma "seleção eugênica da imigração e da
distribuição racional das etnias arianas conforme uma maior ou menor adaptabilidade
às diversas zonas climáticas do país".
305
Esses mecanismos gerariam os "mestiços
superiores", resultado da diluição do sangue indígena ou negro numa maior quantidade
de sangue ariano. Duas práticas concorreram para o atraso da completa arianização do
povo brasileiro: a formação das colônias de imigrantes que, no mais, cruzavam-se
entre si e a existência de "preconceitos de raça, classe, origem e ideais de beleza",
entraves para a ascensão dos mestiços à elite.
306
Na hierarquia das raças continuaria enfático, destinava ao conjunto da raça
negra o último degrau. O negro foi mais de uma vez foi apresentado como simiesco,
troglodita, decadente moral e inferior.
307
Em resposta a uma crítica de Arthur Ramos,
que acusara Vianna de estar preso a "uma ciência do século passado", disse que os
argumentos de Ramos sobre o fato de terem sido encontrados vestígios de civilização
no interior do continente africano, logo, de que os negros possuíam as mesmas
capacidades dos brancos não procediam, pois se tratavam de afirmações infundadas
304
LEITE,1992:232
305
VIANNA,1938:90
306
VIANNA,1938:97
143
baseadas num estudioso "imaginoso". Disse ainda que tais civilizações devem ter sido
certamente criações de mestiços afro-semitas, isto é, negróides berberizados ou
arabizados.
308
A inferioridade racial de negros, indígenas e os ditos mestiços inferiores
serviria para justificar a dominação de classes. Nesse sentido o africano puro nunca
seria um criador de civilização, daí a subordinação do continente "negro" pelo outro,
"branco". De forma contundente conclui
"até agora a civilização tem sido apanágio de
outras raças que não a raça negra, e que para os negros
possam exercer um papel civilizador qualquer, faz-se
preciso que eles se caldeiem com outras raças,
especialmente com as raças arianas ou semitas. Isto é: que
percam a sua pureza.
309
Daí decorria a idéia dos mestiços superiores, sujeitos arianos pelo "caráter" e
pela "inteligência", prontos a "colaborarem com os brancos na organização e
civilização do país".
310
No seu entendimento, o valor de um grupo étnico deveria ser
medido pela capacidade que o mesmo tinha de gerar tipos superiores. Por isso, os
brancos ocupavam a hierarquia das raças, uma vez que pelo caldeamento com o
indígena e africano vinham proporcionando ao país uma geração de novos tipos
"capazes de ultrapassar pelo talento, pelo caráter ou pela energia da vontade, o escalão
médio dos homens de sua raça ou do seu tempo".
311
Talvez Vianna precisasse
acreditar nessa premissa, já que pelo menos dois estudos, além do depoimento de
Correia Leite, informaram-nos que o mesmo era mulato.
312
Pelo que nos parece, os
307
LEITE,1992:232
308
VIANNA,1938:277
309
VIANNA,1938:285
310
VIANNA,1952:153 Populações meridionais do Brasil: história, organização e psicologia. Rio de
Janeiro, José Olympio apud LEITE,1992:227.
311
VIANNA,1956:153
312
LEITE,1992:222 ; MAUES,1997
144
militantes tinham razões para repudia-lo.
Por conseguinte, diante dessas constatações, podemos afirmar que o "problema
negro" brasileiro teria uma significação e receberia propostas de soluções diferentes
conforme o segmento que o analisaria. Para parte influente da elite branca, formada no
interior do pensamento do racismo científico do final do XIX, do qual já tratamos
anteriormente, o negro representaria um estorvo ao progresso da nação, enquanto seu
fenótipo fosse encontrado entre os brasileiros, pois o que causava o atraso do país seria
a preponderância desse estoque genético inferior e não a insuficiência de políticas
públicas na área da saúde, educação, habitação e emprego incapazes de fazer com que
toda a população partilhasse de condições dignas de sobrevivência. Por outro lado,
para muitos militantes negros ao redor dos anos 1930, o pejorativo "problema negro"
passaria aos poucos, a ser tratado como uma questão racial, ou seja, eles entendiam
que havia entre alguns setores dirigentes falta de vontade política para promover a
efetiva cidadania da população negra, surgindo, portanto uma questão negra no Brasil.
Conscientes dessa realidade, os militantes procuraram formular outras explicações e
propor um conjunto de soluções pragmáticas que não passassem necessariamente, pela
perspectiva do branqueamento via mestiçagem, mas pela tomada de consciência tanto
do segmento negro que deveria se adequar ao novo ordenamento sócio-econômico-
espacial, como das elites políticas e econômicas responsáveis pela formulação de
políticas públicas capazes de incluir satisfatoriamente os negros. Essa postura política
dos militantes mantida desde meados dos anos 1920, seria, mais tarde, referendada
pela produção acadêmica dos intelectuais brasileiros, formados na Escola de Chicago,
conhecida por deslocar do biológico para o cultural as razões para as desigualdades
existentes em formações sociais diversas. Caso do Brasil.
Um pequeno texto do Dr. Veiga dos Santos, publicado em abril de 1937, ilustra
145
o que tentamos argumentar. Consideramos importante citá-lo, pois cremos que as
convicções teóricas e políticas do intelectual-militante tenham se fortalecido, a partir
do momento que novos paradigmas científicos surgiram no lugar das explicações do
determinismo biológico, como ocorrido mais sistematicamente, a partir dos anos 1930.
Numa retórica que visava positivar o negro e questionar os ditos especialistas, o
intelectual-militante inicia afirmando estar longe o tempo em que se cuidava apenas de
rebaixar a "maior contribuição racial da formação brasileira: o negro". E, se regozija
de "toda uma literatura séria que deixou o campo do romantismo racista para entrar no
campo rijo da observação real", provocando assim "uma rehabilitação nacional dos
filhos de Henrique Dias". Contudo, mais à frente, numa crítica irônica e virulenta às
práticas científicas brasileiras disse que "no nosso querido Brasil, vale muito mais do
que o testemunho do real a afirmação duma ciência , ainda que de carregação seja ela,
ralando portanto para o terreno resvaladio do cientificismo ôco." E conclui, citando o
caso do culto a Tiradentes, mártir da Inconfidência ou Conjuração Mineira, tido como
primeiro movimento de libertação nacional. Veiga dos Santos alertava aos
frentenegrinos: "há em nossa História, uma página épica de organização, trabalho,
sangue, luta e independência: O Estado Palmarino". Portanto, ao invés do culto a
Tiradentes, que pelo menos entre os frentenegrinos, se incluísse a celebração de
Palmares. O militante ainda propôs a fixação de um dia, "o dia dos Palmares e dos seus
reis ou Zambys. E não se dirá mais que foi Tiradentes quem primeiro pensou em
independência".
313
Além de uma outra abordagem para a questão racial brasileira,
Arlindo tocava já na década de 1930 numa questão que se tornou bandeira de luta no
final do século passado: o tema de Palmares. Prova de que semelhanças existiram entre
uma época e outra.
313
Veiga dos Santos, "Datas históricas", A Voz da Raça, abril/1936, pag.1
146
Diante desses novos postulados e cônscios do papel de paladinos, os
intelectuais-militantes através da imprensa negra incentivavam também a incorporação
pelo segmento negro leitor, dos valores advindos da cultura burguesa citadina, numa
tentativa de se afastarem de algumas objetivações negativas como do negro atrasado,
incapaz e fadado ao fracasso enquanto grupo racial. A incorporação de novos valores
estéticos (alisamento dos cabelos, uso de chapéus e vestidos finos) e de novos valores
musicais (dançar a valsa francesa em detrimento do samba e do maxixe) dentre outros
foram significativos. O branqueamento nesse sentido tinha um outro significado: pode
ser entendido "como a interiorização de modelos culturais brancos pelo segmento
negro, implicando a perda do seu ethos de matriz africana.
314
Para os intelectuais-
militantes, era demasiadamente importante que o conjunto da população negra
paulistana adotasse cada vez mais tais valores que figuravam, segundo eles, como
prova de que o negro seria capaz de se tornar um sujeito "civilizado" como qualquer
branco. Ou seja, poderia deixar de ser um "problema" para a sociedade. Assim, a
questão a ser enfrentada passaria a ser outra: provar a existência da discriminação e
preconceito racial no país e os mecanismos de diferenciação e exclusão social
decorrentes deles, causadores das desigualdades raciais existentes.
Daí os inúmeros artigos escritos pelos intelectuais-militantes sobre essa
temática. Dr. Arlindo Veiga dos Santos e José Correia Leite durante os anos que
militaram, em especial entre os que nos propomos investigar, freqüentemente falavam
dessa questão. Fizeram um verdadeiro movimento de incorporação de novos
comportamentos ditos sadios que passava pelo uso moralizante dos valores cristãos e
modo de vida burguês. O comportamento libertinoso decorrente do alcoolismo e
vadiagem, o subemprego, a moradia alugada nos porões e cortiços da cidade e mais a
314
DOMINGUES,2004a:253
147
baixa escolarização eram veementemente condenados. Os militantes em seus textos
incentivavam o nascimento de um "novo negro", emergido dessas novas condutas,
capaz de prezar pela família nuclear, comprar uma casa própria e participar das
sociedades ditas de família.
Mas convém pontuar que este movimento ao mesmo tempo em que numa idéia
de circularidade
315
consumia os valores da cultura branca, incorporava a história e a
tradição cultural negra, ou pelo menos parte dela, considerada mais coerente às novas
representações sociais que tencionavam construir.
No caso das festividades do carnaval, bastante praticado pelas classes
populares através das agremiações, podemos afirmar que não houve um total
afastamento, pois saía na imprensa negra a programação dos grupos carnavalescos.
Fora isso, tanto o grupo de Correia Leite quanto o da Frente Negra Brasileira, realizou
em vários anos concursos, nos quais se premiavam os melhores cordões.
316
Porém
constatamos que essa aproximação com o que conhecemos hoje por escolas de samba
se dava apenas durante o período do carnaval. Até os anos 1930, os participantes das
agremiações carnavalescas sofriam constantemente perseguição policial, pois o Estado
os viam como negros vadios. Talvez por isso, os intelectuais-militantes não quisessem
ver o nome das entidades que fundaram, associado a tais grupos.
Mas em relação a uma reelaboração positiva de práticas e símbolos da cultura
negra, um texto de Veiga dos Santos, intitulado o "Natal da Frente Negra" nos é mais
significativo:
(...) O simbólico papai-noel foi desde o ano
passado, exonerado do meio frentenegrino e em
substituição a ele, foi empossado o venerável pae João - o
progenitor da raça no Brasil desde a data do seu
315
GINZBURG, 1987.
316
Cf. Chibata, s/nº. ano 1932.
148
descobrimento; portanto, é das mãos do Pae João,
criançada, que recebestes as vossas alegrias _ o vosso
presentinho de Natal."
317
Vimos, pelo fragmento que desde 1933, Arlindo havia instituído um Natal mais
coerente com a realidade das crianças que freqüentavam a Frente Negra Brasileira,
pois a objetivação de um velhinho branco barbudo foi substituída por uma outra, a do
Pai João, considerado, nessa lógica, um símbolo mais apropriado por ser negro. Veiga
dos Santos associou Pai João a um homem sadio, forte e progenitor da "raça no Brasil"
contrariando a representação do velho escravo, trôpego, de fala engrolada e olhos
mansos, dedicado e servil que acompanhou o senhor branco por toda vida, ou seja,
uma antítese do quilombola revoltado. A objetivação do Pai João de Arlindo ainda
estava no vigor da vida adulta. Por isso sua imagem não representava a subserviência e
sim um agente na formação da nacionalidade brasileira, junto com o branco e o índio.
O que não deixava de comunicar a fábula das três raças e o desejo do militante de que
num futuro próximo o convívio fosse fraterno.
3.2 Década de 1930: a afirmação da democracia racial
A política nacional-desenvolvimentista do governo Vargas fez deslanchar a
industrialização e a urbanização nas cidades do centro-sul. São Paulo se tornava em
passos largos a principal cidade no cenário político-econômico nacional. Criaram-se
novos empregos, principalmente na área de serviços e negócios. A burguesia gerada
pela nova economia, era a mais importante no cenário político da época, que se
transformou com a inclusão de novas forças políticas no âmbito do Estado nacional. O
movimento de 30, liderado por Vargas, caracterizou-se por um reordenamento dos
poderes nacionais numa perspectiva que privilegiou outros setores das classes
317
A Voz da Raça, 29/12/1934 s/nº , ano II
149
dominantes. Mas de que modo a questão racial passava a ser encarada a partir dessas
mudanças? Será que no âmbito do pensamento social brasileiro as idéias foram
ventiladas?
A história da década de 1930 nos mostra que além de mudanças na esfera
política, outras em relação a questão racial ocorreram. Isto não se deveu somente a
uma política estatal que procurou incorporar no seu discurso o nosso mito de origem,
ou seja, o tripé das raças fundadoras e o resultado disso: a mestiçagem. As idéias em
1930 também decorreriam de uma tendência nacionalista que vinha desde a Primeira
Guerra Mundial que procurou se desvencilhar das teorias raciais e ambientais
características do início da "República Velha", ou melhor, tentava explicá-las por uma
vertente mais positiva: a da cultura.
Nesse sentido, a publicação do livro Casa Grande e Senzala, escrito pelo
sociólogo Gilberto Freyre, em 1933, veio para legitimar no âmbito de uma
intelectualidade de renome e mesmo dos dirigentes políticos, idéias que já vinham
sendo ventiladas na imprensa negra há anos. E também o médico Arthur Ramos,
discípulo de Rodrigues, mas influenciado pelos pressupostos teóricos da antropologia
cultural não mais biológica, publicaria uma série de escritos sobre o negro no Brasil e
se consagraria como um importante especialista. Os escritos de Vianna foram pouco a
pouco perdendo prestígio. E com essa nova abordagem as ações dos intelectuais-
militantes passam a ter mais respaldo. O ativismo dos militantes deixava pouco a
pouco o meio político estritamente negro, como disse o militante Francisco Lucrécio:
"os brancos que freqüentavam eram
intelectuais que iam lá para fazer seus discursos, iam
também transmitir ensinamentos. Eram aquela linha de
intelectuais nacionalistas, como Cassiano Ricardo,
Menotti Del Pichia, Jorge Amado, Oswald de Andrade,
Mário de Andrade. Esses eram os intelectuais com quem
a Frente tinha contato e que se entendiam muito bem
150
conosco, porque fazíamos troca de conhecimentos. Eles
iam fazer palestras e às vezes viajavam conosco para o
interior, mas não eram sócios.
318
Assim como todos citados por Lucrécio, Arthur Ramos também esteve na sede
da Frente Negra Brasileira. Uma notícia publicada no A Voz da Raça mencionou seu
comparecimento à sede da organização.
319
Não temos como saber se Ramos lá esteve
outras vezes. Se foi convidado para uma sessão domingueira. Mas podemos supor que
os trabalhos do especialista em medicina social devem ter chegado ao alcance dos
ativistas negros. Ramos, em 1934, publicou de sua própria autoria O negro brasileiro.
Em 1935, O folclore do negro brasileiro e em 1937, As culturas negras no Novo
Mundo. Entretanto, para nossa investigação sua publicação mais significativa foi O
negro na civilização brasileira, datada de 1939. Neste livro há um capítulo que trata
somente do que o autor denominou "O negro na política. Associações Negras
Contemporâneas". São inúmeras informações sobre as organizações negras das
décadas de 1920 e 1930, em especial sobre o Clarim d' Alvorada e Frente Negra
Brasileira, prova de que houve amplo contato entre o estudioso e os militantes. E, foi
uma via de mão dupla. Ou seja: os intelectuais-militantes paulistanos também
aprenderam sobre a história do negro com Ramos.
Contudo, podemos inferir que o estudo de Freyre encontrou mais ressonância
porque pensou uma outra saída à questão do povo brasileiro. Ela passava pelo
reconhecimento de que o Brasil era formado por uma "raça mestiça", ou seja "mestiço"
seria o povo brasileiro e não cabia ficar a procura de um outro, imaginário. A
mestiçagem não era vista apenas como um meio para se chegar a um futuro branco,
englobava de fato, uma parcela muito maior do contigente nacional, pois dentro da
318
QUILOMBHOJE,1998:40 depoimento de Francisco Lucrécio. Menotti Del Pichia vinha desde os
tempos do jornal Clarim d' Alvorada escrevendo na imprensa negra.
319
A Voz da Raça, julho/1936, pag. 2
151
categoria "mestiço" encontrava-se uma gradação de cores que ia dos mais brancos aos
mais pretos. Não estava mais à procura do branco brasileiro, mas de um povo
"moreno", homogêneo, para compor junto com a língua e o território, o tripé formador
do Estado-nação. Não obstante, nesse mesmo período as idéias de Adolf Hitler se
difundiam largamente na Alemanha e França, reforçando a hierarquia das raças e
consequentemente, condenando a mestiçagem como degeneração e vergonha racial.
Por outro lado, a França em oposição à ideologia nazista, lançava a idéia de
mestiçagem cultural num projeto de assimilação, com viés político e pedagógico,
direcionado às colônias em África.
320
Como podemos perceber, no Brasil e no mundo,
as idéias estavam em confronto. Nesse sentido as representações sociais formuladas
por Freyre em seus escritos iam ao encontro daquilo que anos antes vinha sendo
propagado pela imprensa negra pelos escritos dos intelectuais-militantes.
Entretanto, mesmo diante do paradigma freyreano, gradativamente incorporado
pelo Estado varguista, é importante salientar que havia uma significativa distância
entre a produção acadêmica e as representações formuladas pelos formadores de
opinião que abasteciam as concepções do sendo comum. O texto que se segue,
publicado no jornal Folha da Manhã, em 1935, pelo político Azevedo de Amaral é
representativo:
"Incluo-me entre os admiradores da raça negra.
Sem poder compartilhar do que se me afigura a ilusão dos
que acreditam na igualdade das raças e na homogeneidade
essencial da família humana; não tendo em relação ao
africano outros sentimentos, que não o do apreço pelas
magníficas qualidades que o caracterizam, tornando-o um
typo de vitalidade de força, em que certas aptidões
inevitáveis compensam até certo ponto as deficiências
mentais a que acha sujeito o seu grupo étnico."
321
320
MUNANGA,1999:45
321
Cf. Prontuário 1538 - DEOPS/SP Frente Negra Brasileira.
152
O texto de Azevedo Amaral, intitulado "A propósito da Frente Negra
Brasileira", foi escrito depois que ele tomou conhecimento do teor político da
organização, destoando, portanto da concepção difundida na sociedade paulistana de
que os negros tendiam a se associarem somente para atividades festivas. Tidos como
intelectualmente inferiores, ainda que portadores de "vitalidade e força", o autor
considerava que o surgimento de qualquer espécie de organização política entre os
negros, não lograria efeito positivo, pois haveria uma inviabilidade genética.
Observem que mesmo se posicionando mais à direita no confronto político dos anos
1930, a FNB enfrentava um ambiente hostil. Amaral ainda afirmaria:
"A crença de que a educação possa obliterar
profundas differenças biológicas e transmitidas de
geração em geração senão intatas, pelo menos com
alterações lentas, que seu valor social e político se torna
nuleo, pode ser incluida na mesma categoria da confiança
ingenua dos catechistas que julgavam transformar pela
agua do baptismo a alma do gentio (...)".
322
Provavelmente, o que disse Amaral seria perfeitamente comum entre as
concepções dos leitores. O articulista não era um especialista da questão racial como
deixou claro numa outra passagem de seu texto, mas tinha suas próprias convicções e,
consciente de sua condição de formador de opinião, achava importante externá-las.
Numa crítica declarada aos que acreditavam numa possível nação multirracial e
demonstrando preocupação com um contingente negro tão numeroso, ainda diria:
"O ponto essencial do problema ethnico
brasileiro é que se apresentam entre nós raças
profundamente afastadas antropologicamente umas das
outras, e tendo cada uma delas tendências culturais que
difficilmente podem ser harmonizadas. A circunstancia de
occasionalmente apparecer um afro-brasileiro de puro
sangue africano assimilando os aspectos scientíficos da
cultura branca, não tem mais significação no apreço do
322
Prontuário 1538 - DEOPS/SP - Frente Negra Brasileira
153
problema collectivo, que o fato de existirem muitos euro-
brasileiros perfeitamente brancos e sobre as quais a
influencia do fetichismo africano se exerce como força
preponderante, senão exclusiva de sua consciência
religiosa. (...) O conflito das culturas se apresenta no
Brasil como inevitavel conseqüência das differenciações
irredutiveis de grupos ethnicos psychicamente
inassimilaveis".
323
Fica evidente que o jornalista não tinha conhecimento para distinguir cultura
de raça, tratando as duas categorias como sinônimos. Vimos anteriormente que no
contexto das primeiras décadas do século XX, raça era o resultado do entrelaçamento
de características físicas e mentais, ou seja, não era meramente uma questão de
diferenciar a partir de um conjunto de traços fenotípicos semelhantes. Raça combinava
aparência externa mais etnia, língua, nacionalidade e religião
324
, tornando-se para a
maioria das pessoas, sinônimo para cultura.
Mas Veiga dos Santos, em 1934, já refletia, no A Voz da Raça sobre o
incômodo de alguns com os movimentos políticos negros. Segundo ele "a igualdade
para o negro está desviada de sua devida aplicação" e que "há quem continue dizendo
que o negro tem tudo no Brasil e que é injustificável a sua ação em querer justificar
uma União, como esta que se está verificando com o aparecimento da Frente Negra
Brasileira."
325
O fragmento apresentado, novamente fazia uma clara crítica às políticas
públicas implementadas que ao invés de proporcionar a devida cidadania ao afro-
brasileiro, concorria para a sua efetiva subordinação social. Além disso, o texto
mostra-nos que desde sua fundação, a entidade sofria questionamentos recorrentes por
uma parte da sociedade paulistana, quanto a sua efetiva necessidade como mostramos
no artigo do Folha da Manhã. Arlindo Veiga dos Santos, na perspectiva racista de
323
Prontuário 1538 - DEOPS/SP - Frente Negra Brasileira
324
LESSER,1995:308 O Brasil e a Questão Judaica apud RAMOS,1996:61
325
Veiga dos Santos: "Contra fatos não há argumentos", A Voz da Raça; 28/04/1934 ano II, no. 36, p. 2
154
Azevedo Amaral, era um daqueles afro-brasileiros que de forma ocasional, assimilou
os aspectos scientíficos da cultura branca
326
, portanto, grosso modo se por acaso um
negro alcançasse o status de doutor, seria uma espécie de erro genético que acometeria
aleatoriamente, alguns indivíduos do grupo racial negro, provocando o nascimento de
sujeitos inteligentes capazes de aprenderem os ensinamentos científicos, privilégio
biológico apenas dos brancos.
Entretanto, ao mesmo tempo que idéias pessimistas como as de Azevedo de
Amaral circulavam, outras mais otimistas acreditavam numa convivência ordenada
entre os diferentes e ainda desiguais grupos raciais formadores da nação. A idéia do
Brasil como um paraíso racial, ou seja, de que problemas de ordem racial seriam
minoritários no território brasileiro eram fáceis de serem encontradas entre a
população nacional. Volta e meia se fazia comparações com outros países, sendo a
realidade norte-americana a mais recorrente.
327
No ideal da nação perfeita, cada grupo
saberia de seu lugar, do seu papel, concorrendo todos para a perfeita convivência. Não
seria incorreto afirmar que a partir de 1930, essa idéia tornou-se uma espécie de
amálgama, importante na constituição e eficácia de nossa nacionalidade e conseqüente
governabilidade.
O período da Primeira República ou República Velha na sua acepção negativa
ficou conhecido como aquele que quis acabar com a presença negro-indígena do país.
O novo período inaugurado com a "Revolução de 30" vinha com um discurso que
procurava incluir esses segmentos sociais preteridos. A população nacional ainda
bastante composta de negros e descendentes de indígenas deveria ser contemplada pelo
novo ordenamento político-social e nesse sentido a idéia do Brasil como o espaço do
326
Azevedo Amaral: "A propósito da Frente Negra Brasileira", Folha da Manhã,1935 texto contido no
Inventário DEOPS/SP, prontuário Frente Negra Brasileira, no. 1538
327
RODRIGUES,1932:25-26;
155
convívio fraterno entre as raças deveria se consolidar.
Nesse momento, o mito da democracia racial
328
se consolidava na sociedade
brasileira num esforço do próprio Estado em contemplar, à sua maneira, grupos raciais
antes preteridos. Assim, o mito nasce com a tentativa de conter uma insatisfação com o
status quo, ou seja: evitar a conflagração dos segmentos subalternizados em sua
maioria negros como ocorrera outras vezes, especialmente no período em que vigorava
a escravidão.
Um mito "é uma fala, uma mensagem, um sistema de comunicação".
329
A
democracia racial como um dos nossos mitos fundantes, deveria comunicar a todos,
numa relação que envolvia o significante, o significado e o signo. Essa idéia só
sobreviveu na sociedade brasileira porque os diferentes segmentos sociais, em seus
pertencimentos raciais e identitários puderam significar e ressignificá-lo nos diversos
momentos da história do Brasil. Assim,
"um mito fundador oferece um repertório
inicial de representações da realidade e, em cada
momento da formação histórica, esses elementos são
reorganizados tanto do ponto de vista de sua hierarquia
interna (...) como da ampliação do seu sentido (...).
Assim, as ideologias, que necessariamente acompanham o
movimento histórico da formação, alimentam-se das
representações produzidas pela fundação, atualizando-as
para adequá-las à nova quadra histórica. É exatamente por
isso que, sob novas roupagens, o mito pode repetir-se
indefinidamente".
330
O Estado liberal republicano via o ideal democrático sob diferentes nuances, ou
seja, entendiam que a democracia poderia conter múltiplas definições. Mesmo antes do
328
Segundo Guimarães,2002:138-144 o termo foi usado pela 1
ª
vez em maio de 1944, por Roger
Bastide, num artigo publicado no Diário de São Paulo. O antropólo após encontro com Gilberto Freyre
e observações empíricas de nossa sociedade, afirmou que no Brasil a democracia se fundava numa
ordem social e racial, mas não social no sentido dos direitos civis e igualitários reivindicados desde a
Revolução Francesa e, sim, numa "região mais sublime: a liberdade estética e cultural e de criação e
convívio miscigenado".
329
BARTHES, 1999:132
156
Estado Novo alguns teóricos em suas conjecturas afirmavam que no caso específico
de nossa formação social, não tínhamos uma democracia fundada na noção de
igualdade e expressão individual de todos - no sentido clássico do termo - mas sim
uma "democracia racial", ou seja, a idéia da igualdade estava intimamente relacionada
com o pertencimento racial de cada indivíduo. Consequentemente a cidadania não
seria a mesma para todos. Assim, a imagem do Brasil como uma democracia racial foi
assumida pelo Estado moderno republicano como forma de convencimento para
justificar uma ordem de coisas.
331
Contudo, vale salientar que esse pensamento apesar de ter se consolidado no
período que investigamos, já povoava o imaginário social brasileiro há décadas,
alimentando um repertório de representações sociais como a do negro subserviente,
afetivo, fiel e festivo, ou seja, cabia a esse segmento racial exercer funções na
sociedade em que as qualidades citadas, atribuídas a sua raça, fossem potencializadas.
Também é importante salientar que até 1888, a condição de cativo era um marcador
importante para definir o limite entre o mundo dos cidadãos e dos não cidadãos. Logo,
a cidadania estava relacionada com a origem "racial" do indivíduo, uma vez que, a
partir da segunda metade do século XVII, os africanos tornaram-se a mão-de-obra
majoritária no Brasil escravista.
332
Contudo, o regime de escravidão aqui instaurado
deixara brechas, sendo um dos motivos de sua longa extensão no tempo, possibilitando
assim ascensão de alguns ex-escravos e/ou seus descendentes numa gradação
crescente, ainda que de forma diferenciada.
333
Portanto, "essa narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e
contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da
330
CHAUÍ, 2000:10
331
GUIMARÃES,2002:110
332
ANDREWS, 1998.
157
realidade.
334
Ela "tem a capacidade de ressurgir em momentos de grandes e intensas
mudanças, cumprindo, nesse retorno, a função de dar inteligibilidade ao que parece
incompreensível".
335
Logo, o componente ideológico do mito está na sua capacidade
de "se colocar como um filtro entre o fato e a exigência do conhecimento do fato,
deformando o real e estabelecendo um hiato fugidio entre o fato e a sua versão".
336
O
mito da democracia racial compôs junto com outros símbolos da nacionalidade uma
ideologia
337
formulada pelo grupo dominante como mecanismo capaz de comunicar
uma visão menos desigual e contraditória da sociedade brasileira, ou melhor, uma
visão na qual as desigualdades e as hierarquias presentes desde o período de fundação
do Estado-nação se justificassem. No caso aqui estudado, vemos nos momentos de
transformação mais lenta ou de ruptura mais radical, se retomar a representação social
da democracia racial como fala que procurava acomodar os ânimos mais exaltados,
como no Estado Novo. Portanto, o mito "projeta-se como componente intrínseco de
uma História de longa duração." Estará sempre "disponível na memória, passível de
ser utilizado todas as vezes que determinadas condições se impõem".
338
É nesse sentido que
"negros e índios, na nova política republicana,
são apropriados como objetos culturais, símbolos e
marcos fundadores de uma civilização brasileira, mas têm
333
Ver AZEVEDO,1999; SILVA,1997; GRINBERG,2002; MENDONÇA,1999 e 2001.
334
CHAUÍ,2000:9
335
MENEZES,2002:79
336
MENEZES,2002:80
337
Conforme EAGLETON,1997:6, o termo ideologia é bastante polissêmico sendo assim difícil
estabelecer uma única definição. No contexto desse trabalho, cabem as ideologias darem algum
significado às "experiências das pessoas"; além de comprometerem-se significativamente "com as
necessidades e desejos que as pessoas já têm". Portanto elas devem ser "reais o bastante para propiciar a
base sobre a qual os indivíduos possam moldar uma identidade coerente, devem fornecer motivações
sólidas para a ação efetiva, e devem empenhar-se, o mínimo que seja, para explicar suas contradições e
incoerências mais flagrantes". Em resumo, "para terem êxito, as ideologias devem ser mais do que
ilusões impostas e, a despeito de todas as suas inconsistências, devem comunicar a seus sujeitos uma
versão da realidade social que seja real e reconhecível o bastante para não ser peremptoriamente
rejeitada".
338
MENEZES,2002:81
158
negado o direito a uma existência singular plena como
membros de grupos étnicos".
339
E foi nesse momento que o conceito de democracia racial começou a ser
amplamente difundido pelo Estado vigente e "por conta disso, tudo que iria servir de
elemento formador de algum sentimento de 'brasilidade' e de especificidade cultural
seria os elementos da cultura negra: a música, a dança, o espírito festivo, a forma
'dionisíaca' de jogar futebol etc."
340
Através dessa apropriação o Estado incorporava o
legado africano dando um lugar de destaque, porém engessado - o das manifestações
culturais- ao grupo depositário desses saberes culturais além de informar que esse
patrimônio passaria a ser comum a todos os brasileiros. Sendo assim mais uma
maneira ressignificada do mito.
O grupo negro procurou então, abrigar-se no colo da democracia racial
representada pela nação, que na efetivação de políticas estatais procurou, à sua
maneira recebê-lo. A plena industrialização e a regulamentação do trabalho na cidade,
assumido pelo governo de Vargas ao longo daqueles anos, teve como conseqüência a
valorização deste contingente populacional nacional, ainda que a longo prazo. Com o
operariado de origem estrangeira não sendo tão bem quisto quanto antes da 1
ª
Guerra e
acusado de privar o nacional de seus empregos, Vargas instituiu a lei de sindicalização
de 1931, que de certa maneira, funcionou como uma política de “ação afirmativa”
estatal na medida que, pelo menos na letra da lei, obrigava as empresas a contratar um
mínimo de dois terços de operários nacionais. Ainda que não fizesse uma alusão ao
pertencimento "racial", essa política provocou uma euforia entre os negros militantes
conforme observamos nos escritos da imprensa negra daquele período, principalmente
no A Voz da Raça. Mas vale pontuar que entre 1930 a 1945, a legislação trabalhista no
339
GUIMARÃES,2002:121
159
país efetivou amplos direitos sociais. Contudo, trabalhadores rurais e empregados
domésticos onde estavam muitos dos descendentes dos escravos, não foram
contemplados.
341
Veiga dos Santos, Correia Leite e certamente todos os intelectuais-militantes
que atuaram nos anos 1930 viam a fala mitológica da democracia racial como
procedente. As organizações do movimento negro surgiam não para contestar a
democracia racial, mas sim com o intuito de regulamenta-la. Para aqueles militantes o
que impedia a efetiva existência da democracia racial entre os brasileiros seria o
próprio despreparo do negro, combinado as práticas discriminatórias de algumas
instituições tanto públicas quanto privadas. Daí a necessidade da instrução e
organização política entre aqueles que se encontravam em desvantagem social: os
descendentes dos africanos escravizados.
340
SOUZA,2000:151
341
CARVALHO,2004:85-126
160
4.CAPÍTULO OS PERCURSOS DOS INTELECTUAIS DA
RAÇA
”: PRÁTICAS POLÍTICAS E REPRESENTAÇÕES
SOCIAIS ENTRE OS ANOS DE
1928 E 1937
4.1 Veiga dos Santos e Correia Leite: duas personalidades
singulares
Arlindo Veiga do Santos e José Correia Leite dinamizaram politicamente
diversas ações encampadas pelo movimento negro existente em São Paulo entre os
anos de 1928 e 1937, pois muitas foram realizadas pelas entidades que dirigiram.
Algumas vezes estiveram juntos como no episódio em que os militantes do Clarim d'
Alvorada intentaram realizar o Congresso da Mocidade Negra Brasileira. Noutras, as
divergências foram maiores, caso da votação do estatuto da Frente Negra Brasileira,
explicitando o distanciamento ideológico existente entre os dois, contribuindo para a
exacerbação de conflitos, evidenciando o quanto plural foi o movimento negro que lá
existiu.
Como forma concreta de sociação o fenômeno do conflito não se caracteriza
como algo extrínseco às relações sociais. Logo,
"um grupo absolutamente centrípeto não só é
irreal, como não poderia mostrar um processo de vida
real. (...) a sociedade, para alcançar uma determinada
configuração, precisa de quantidade proporcionais de
harmonia e desarmonia, de associação e competição, de
tendências favoráveis e desfavoráveis".
342
161
A existência de posicionamentos discrepantes nas relações sociais está
relacionada à complexidade, ou seja, à diversidade de interações que podem existir no
interior dos grupos. Ao contrário do que se tende a pensar, a existência de desacordos
entre os intelectuais-militantes, denota quão fecundo em projetos foi o movimento
negro entre as décadas de 1920 e 1930. O conflito expressa a disputa por um poder que
se configura de forma difusa nas relações sociais, estando portanto, suscetível de
ocorrer nas competições entre grupos ou indivíduos. Diante dessa premissa, devemos
supor, que não foram unicamente as divergências havidas entre os dois militantes as
responsáveis pelo declínio do associativismo, mas sim, uma confluência de fatores
desfavoráveis à sua continuidade, dentre esses, a configuração de um outro contexto
político nacional com a radicalização autoritária do governo Vargas, a entrada de uma
geração nova de militantes nos quadros do movimento e mesmo, a interferência de
fatores advindos da vida particular na atuação pública dos mesmos, em especial de
José Correia Leite.
Intentamos apresentar neste capítulo como cada um, considerando
posicionamento sócio-político e formação ideológica, se movimentou a partir das
representações sociais formuladas nos textos e depoimentos que informam sobre suas
práticas políticas. Correia Leite e Veiga dos Santos eram compreendidos, aceitos e
respeitados da mesma maneira? Como cada qual desempenhava os papéis de
intelectuais-militantes que tomaram para si?
Estes intelectuais-militantes lançaram mão de representações de todo tipo e
com várias finalidades, para tornar compreensível
343
algum acontecimento, realidade
distante ou então fazer valer a efetividade de uma prática política. Usavam os jornais
negros e as atividades públicas realizadas pelas organizações que dirigiam, como
342
SIMMEL, Sociologia Evaristo de Moraes Filho (org.), São Paulo. Ática apud SILVA,1999:111
162
espaço privilegiado para medir suas capacidades de comunicação e liderança. Produto
das interações sociais, as representações formuladas por Veiga e Leite resultavam de
um processo de mediação em que se relacionava a sociedade e o indivíduo, esse
último, alçado ao papel de porta-voz de uma coletividade. Desse modo, cabia a elas,
as representações alinhavar o "micro com o macro, o indivíduo e a sociedade, as
mudanças cotidianas com a imaginação ideológica."
344
Por conseguinte, através de representações sociais concebidas pelos próprios
ou da apropriação de representações já conhecidas a partir de informações, imagens,
opiniões, crenças, dentre outros, os militantes estabeleciam vínculos de comunicação
com a comunidade negra não-militante. Enquanto conhecimento no senso comum, ou
seja, mecanismo que explica e interpreta algo através de uma linguagem simples, de
fácil assimilação, as representações sociais foram de vital importância, pois
proporcionaram, primeiro um meio de diálogo entre os militantes e a comunidade
negra e depois, possivelmente a tomada de consciência.
Os dois são entendidos, em nossa análise como militantes intelectualizados que
se projetaram no meio negro. Arlindo Veiga dos Santos era reconhecidamente, um
intelectual. Com formação superior iniciou sua carreira no ensino básico tornando-se
posteriormente professor universitário. Já Correia Leite não, foi um autodidata que
transpôs as barreiras relativas a falta de educação formal já na vida adulta por meio dos
amigos. Essa formação diferenciada fez com os dois tivessem inserções sociais
díspares apesar das mesmas origens. Veiga dos Santos pôde trilhar outros caminhos.
Assim, um maior domínio dos códigos culturais da sociedade paulistana contribuiu
para que Arlindo Veiga dos Santos se projetasse. Contudo, foram as filiações políticas
divergentes existentes entre o Dr. Veiga dos Santos e José Correia Leite que mais
343
JODELET, 2001:17
163
concorreram para a exacerbação dos conflitos ocorridos entre as entidades do
movimento negro nas quais os dois ocuparam posições de liderança durante os anos
1930. O embate entre esquerda e direita era o combustível para a movimentação
política no mundo e, no Brasil o cenário não foi diferente.
Comparando-os, cabe afirmar que segundo as próprias palavras de Leite, sua
trajetória política esteve direcionada, fundamentalmente, para o meio negro. O próprio
argumentou ter sido uma opção, pois entendia a luta contra o racismo com
especificidades incapazes de serem articuladas a outras demandas políticas existentes
na época.
345
Entretanto, supomos que fatores relacionados à sua personalidade também
podem ter influenciado neste seu posicionamento. Sujeito introspectivo, carregava
consigo, certamente, a frustração de não ter estudado. Como autodidata, procurou
sobremaneira, através da literatura, do teatro, da participação em debates, conversas e
afins, minimizar a defasagem da escolarização. Num contexto como o da época, em
que a instrução era vista como uma saída frente a condição de marginalidade que o
negro enfrentava, ou seja, era a via para a ascensão social, sua condição de semi-
alfabetizado deve ter sido utilizada como um capital simbólico para detratá-lo.
Pelo menos um episódio reforça o que afirmamos acima. Na época de fundação
da Frente Negra Brasileira, as divergências foram inúmeras. Os militantes colocaram-
se em arenas opostas, especialmente o pessoal do Clarim d' Alvorada e muitos se
surpreenderam com a atitude de Correia Leite como o próprio lembrou:
"Havia professores e doutores na direção da
Frente Negra. E eu não tenho título nenhum. Sou um
autodidata. Isso também me prejudicava. Os fanatizados
pela Frente Negra ficavam admirados da minha
discordância com os doutores e professores. Muitas vezes
eu cheguei a ouvir:
344
LIMA,1999:60-61
345
LEITE,1992:54
164
__ Como é que você consegue discutir com o
professor Arlindo Veiga dos Santos, o Dr. Guaraná de
Santana?...
Eu dizia:
__ É uma divergência de idéias e não de títulos.
Eu estou vendo que eles estão errados."
346
Em outros dois momentos Leite retomaria a questão do abandono e o efeito que
isso teve em sua personalidade: "... eu sou um sujeito arredio, tímido. Aliás, essa
minha timidez provém da minha formação de menino abandonado;"
347
"eu fui
crescendo muito complexado. Não gosto muito do convívio com gente importante. Eu
me sinto mal. Embora eu tenha quebrado esse complexo, ainda restou muito."
348
No
seu entendimento sua trajetória revelava uma espécie de realização quase impossível,
um sonho, pois como um sujeito "semi-analfabeto, tenha conseguido entrar numa
escola de comércio, feito parte de um jornal e convivido com um grupo seleto de
negros da época?"
349
Seu caso era de uma feliz exceção, pois a escolarização precária
funcionava como um dos entraves à politização do grupo negro. Fazendo uma auto-
reflexão, perguntava-se como pôde ter entrado para o ativismo anti-racista:
"sendo um ignorante, um sujeito semi-
alfabetizado? (...) Como é que consegui descobrir essa
questão de que o negro era um marginalizado, com um
problema que ele mesmo não discutia, os governos
negavam a existência, os brancos diziam que estava
resolvido?"
A resposta foi dada pelo próprio ativista algumas linhas depois: "o idealismo
surgiu por causa disso também, por causa dessa minha revolta de ver que uma porção
de gente confundia a inteligência do negro com esperteza. Nunca admitiam a
346
LEITE,1992:18
347
LEITE,1992:21
348
LEITE,1992:52
349
LEITE,1992:196
165
capacidade de inteligência".
350
Contudo, suas ações coletivas tornaram-lhe um homem
público, reconhecido entre os pares, ainda que o mesmo usasse de modéstia:
"Mas, quando me chamaram pela primeira vez
de intelectual eu fiquei espantado, Uma, porque eu não
tinha essas veleidades, e outra, eu não tinha os
conhecimentos para tão alto título. (...) E depois
começaram a me chamar de jornalista. Eu sei que tive que
aceitar aquela condição de jornalista porque eu estava
exercendo essa função à frente do grupo que me seguia.
(...) Eu comecei a me tornar uma espécie de teórico com
as pesquisas da Unesco na década de 50, e mais tarde com
outros pesquisadores que procuravam informações
relativas as lutas sociais do negro em São Paulo."
351
Essa fala nos remete às histórias de vida, as trajetórias e as maneiras com que
cada sujeito vem a lidar com um conjunto de condicionantes sociais, econômicos,
culturais e políticos vividos. Sendo Correia Leite um semi-alfabetizado, pelo menos
nos primeiros anos de sua militância no Clarim d'Alvorada, ainda assim desempenhou
tarefas e liderou projetos que poderiam consideram aquém de sua suposta formação
educacional formal. Jayme de Aguiar quando o convidou disse que o projeto era de um
"jornalzinho" e, Leite o único em quem Jayme depositava confiança, devido a amizade
de infância. Correia Leite seria uma espécie de "faz-tudo". Mas o que o levou a superar
o "mestre"? Já que foi o próprio amigo que efetivamente o inseriu no mundo das letras.
Podemos inferir que o contexto vivido pelo militante esteve propício a tal
transformação. Fora isso, sua personalidade reflexiva, propensa mais a ouvir do que
falar contribuiu para sua auto-instrução com o passar dos anos favorecendo o
surgimento de uma liderança singular, voltada às escolhas coletivas e ao trabalho em
conjunto, como pudemos perceber na trajetória do Clarim d' Alvorada e do Clube
Negro de Cultura Social.
350
LEITE,1992:196
351
LEITE,1992:196-197
166
Ainda assim, o pesar pela falta de estudos acompanhou o militante. Já na
velhice, gozando do prestígio e reconhecido como uma espécie de guardião da
memória do movimento negro brasileiro, ao ser procurado para relatar a história das
décadas anteriores, Leite lembrava da extrema pobreza e conseqüente freqüência
precária aos bancos escolares, ao comparar sua infância e a de Jayme de Aguiar:
"eu ficava às vezes despeitado com aquilo,
porque ele interrompia a brincadeira para se arrumar e ir
para a escola. Saía todo de colarinho engomado... Os que
freqüentava grupo escolar tinham pai e mãe. Eu
continuava naquela situação de não poder. Um dia
descobri que a maçonaria tinha formado um conjunto de
escolas pela cidade para meninos impossibilitados de
pagar. Consegui entrar para uma delas e passei a me
inteirar mais um pouco. Até que a escola terminou. Mais
tarde fui fazer um curso de alfabetização criado por um
abade do Mosteiro de São Bento, ali na rua Florêncio de
Abreu. A escola era destinada a jornaleiros. Mas, como
ninguém sabia se eu era ou não (nunca fui), consegui
entrar. Aprendi mais um pouco. No entanto, nunca
chegava a aprender o suficiente para dizer que sabia ler e
escrever.
352
Ao contrário, Arlindo Veiga dos Santos foi um homem de letras, escreveu e
publicou por conta própria poesias e até pequenos romances, além dos livros
doutrinários ligados ao movimento patrianovista. Ao ingressar na militância
provavelmente por meio do irmão, que estudara até o Colegial, logo alcançou prestígio
entre aqueles que freqüentavam as agremiações negras. Seus textos, modos falar e se
portar significavam que o negro poderia alcançar o sucesso por meio da educação.
Ainda que no começo de sua vida política, Arlindo só tivesse "uma calça, um paletó e
um sapato desbeiçado" como depôs o militante Raul Joviano do Amaral.
353
A carreira
de Veiga percorria uma gradação ascendente e por isso, figurava como exemplo para a
juventude negra. Esse destaque agregou prestígio a Arlindo Veiga dos Santos,
352
LEITE,1992:26
167
favorecendo-o quando da sua escolha para o cargo de presidente da Frente Negra
Brasileira. Ainda que suponhamos, sua condição ter sido de que o grupo abrisse mão
da confecção do regimento e aceitasse na íntegra, um documento escrito por ele, como
veio a acontecer. Ficando claro que ao escolher fazer sozinho o estatuto da Frente
Negra estava demarcada a distância intelectual entre o próprio e o restante dos
ativistas.
Comparativamente, passemos a partir daqui, a ter uma idéia de como se
configurou o ativismo liderado por Veiga e Leite, conhecendo alguns episódios,
momentos e situações em que os dois estiveram envolvidos diretamente ou não.
Os dois devem ter se conhecido, provavelmente, num dos encontros literários
promovidos pelo Centro Cívico Palmares, em que Isaltino Veiga dos Santos era um
dos organizadores. O jornal O Clarim d' Alvorada circulante em São Paulo desde
1924, tinha um amplo alcance e aceitação entre a comunidade negra, logo, Correia
Leite como um dos responsáveis pelo periódico, freqüentava as diversas agremiações
dos homens pretos, espaço de venda e também de inspiração para novas matérias. Com
o tempo Veiga passou a colaborar esporadicamente no Clarim d' Alvorada. Quando
em 1929, Leite e seu grupo tiveram a iniciativa de realizarem o primeiro Congresso da
Mocidade Negra, o Dr. Veiga dos Santos teve destaque no quadro organizativo do
evento, pois além da incumbência de expor uma tese, foi o autor do manifesto do
Congresso conclamando os "intelectuais da raça", as lideranças negras e as pessoas
comuns a participarem. Mas antes tomemos conhecimento da primeira ação de Correia
Leite ao assumir o cargo de editor principal do Clarim d' Alvorada, em 1928.
353
DOMINGUES,s/d:6
168
4.2 - Uma utopia: re-elaborar positivamente a imagem do negro
brasileiro
A campanha da Mãe Preta
A representação social é o resultado de práticas construídas pelos sujeitos
coletivos conclamando os indivíduos a se unirem em torno de uma ou de várias ações
grupais. A campanha em favor do monumento à Mãe Preta e da instituição do seu dia
no calendário oficial foi encampada pelos militantes paulistanos, em especial os do
Clarim d' Alvorada, com a finalidade incutir na sociedade em geral, a idéia de que
fortes laços afetivos uniam os descendentes dos europeus e dos africanos no Brasil.
354
Era a objetivação da cativa dedicada e afetiva que contribuiu "sem esperar nada em
troca" para a construção da nação. A imagem da mãe preta no presente objetivava as
amas-de-leite do passado escravocrata. Símbolo de status entre as famílias
tradicionais, o aluguel de seus préstimos tornou-se bastante lucrativo numa dada
época, sendo amplamente difundido nos jornais.
355
Cabia aos militantes resgatar, do
passado recente, o simbolismo do trabalho doméstico dessas mulheres e com ele erigir
uma representação positiva dos negros no presente. O papel da representação seria
funcionar como um mecanismo de conscientização entre os paulistanos, uma vez que
dispunha da utilização da visão de mundo e das concepções ideológicas e culturais
presentes na dinâmica social daquela sociedade.
356
Mas a idéia não nasceu entre os ativistas da imprensa negra. Em 1925, A
Notícia, um jornal carioca, publicou um artigo de seu diretor defendendo a fundação
do dia da Mãe Preta. Passaram-se alguns anos e o culto foi tomando forma, em
354
ANDREWS,1998:336
355
SILVA,2004:8
169
especial na cidade de São Paulo. No decorrer dos anos, os militantes do Clarim d'
Alvorada e Centro Cívico Palmares, no 13 de maio ou 28 de setembro, prestavam
homenagens à Mãe Preta e lembravam da iniciativa dos cariocas:
"cogita-se na capital da nossa república erigir
um portentoso monumento, significativo, à Mãe-Preta,
aquella a quem todos os brasileiros, cujos nomes se
immortalizaram devem um preito de gratidão e de
respeito verdadeiro (...) As mucamas, as mães estremosas
que até hoje procuram de quando em vez, o seu filho para
recordar os tempos de outrora".
357
Uma carta do presidente Washington Luís, favorável ao monumento, denota o
vulto que iniciativa vinha tomando. Em linhas gerais, a missiva reforçava a concepção,
já difundida, de que no país não havia "superstições de raças, preconceitos de cores, ou
exclusivismo de origem". Sendo assim, o local da América do Sul "fadado para a
realização da fraternidade" e a Mãe Preta, a demonstração dessa comunhão, por unir
"todos os homens como irmãos sem distinção alguma".
358
A publicação da
correspondência no jornal tinha o propósito de agregar mais simpatizantes devido a
importância que tinha uma carta do presidente da República.
Surgiram solicitações no parlamento estadual e federal reivindicando verbas
públicas para a construção do monumento e estabelecimento da data da efeméride: 28
de setembro. Quando em 1928, Correia Leite assumiu a direção do Clarim d'
Alvorada, decidiu conferir mais ousadia e politização ao periódico, lançando em São
Paulo a Campanha em prol da construção do monumento e da comemoração do dia da
Mãe Preta. Segundo o próprio,
356
SILVA,1999:99
357
Clarim d' Alvorada, ano I, 25/04/1926, 2
ª
fase. Texto de Moyses Cintra, pseudônimo de Jayme de
Aguiar.
358
Clarim d ' Alvorada, ano I, no.4 13/05/1928, 2
ª
fase Carta de Washington Luís a Vicente Ferreira,
colaborador do jornal e quadro efetivo do Centro Cívico Palmares.
170
"seria feito um monumento à raça negra
simbolizada na figura da Mãe-Negra. Esse monumento
teria um pedestal e em volta seriam representadas todas as
fases da participação do negro. (...) O governo federal
daria 200 contos, que naquele tempo era muito dinheiro, e
os estados iam contribuir com outra parcela."
359
No número especial do Clarim d'
Alvorada de setembro de 1928, vinha
estampada a figura de uma mulher negra
dando de mamar a uma criança branca. A
objetivação construída pelos militantes
negros intentava fixar a imagem do negro
como um dos grandes sustentáculos da
nação. Não somente através do trabalho
compulsório, mas numa doação do próprio
fluído vital ao homem branco, objetivado
aqui no leite humano, uma transubstanciação
do sangue, outro símbolo da vida. Essa mulher tamm representava a maternidade
desprendida da Mãe Preta, capaz de criar "filhos que não eram seus com a doçura do
seu amor dando provas de uma resistência incomparável". Uma interpretação que
mostrava a Mãe Preta tomando uma postura de resignação e equilíbrio entre o senhor e
o escravo, portanto numa atitude conciliadora, capaz de diluir as tensões sociais e os
conflitos entre os dois grupos durante o período que existiu a escravidão.
360
Leitura
coerente com os objetivos do ativismo que existiu durante os anos 1920 e 1930,
preocupado, particularmente, em alcançar padrões mais igualitários de existência, no
entanto, sem romper com a ordem vigente. Ou seja, a prova de que relações cordiais
359
LEITE,1992:97-98
360
SILVA,1990:126
171
marcaram nossa formação social.
361
Sendo a Mãe Preta, o Pai João as contribuições
do componente negro à essa representação da cordialidade.
As representações sociais estão diretamente relacionadas aos mecanismos da
memória e à capacidade de comunicação humana. No exemplo dado acima, o sistema
complexo que foi a escravidão negra no Brasil, reduziu-se a uma imagem que não
esgotava as questões que envolveram o escravismo, mas que fornecia um emblema às
reivindicações dos militantes negros organizados na busca por reconhecimento e
cidadania plena. No editorial do periódico de 28 de setembro, intitulado a "eloqüência
da raça" faziam um "apello à culta Imprensa Brasileira". Os intelectuais do Clarim da
Alvorada diziam-se humildemente cônscios de que até ali não haviam feito nada no
campo político nem econômico, mas advogando por justiça, apelavam à imprensa do
país em nome das agremiações dos homens pretos de São Paulo, para fazerem do 28
de setembro, o dia da Mãe Preta, como já havia feito o espírito "culto e generoso do
notável jornalista Cândido de Campos".
362
O jornalista como já dissemos era o dono
do jornal vespertino A notícia. Tratava-se de uma periódico popular e "do governo".
Ou seja, no contexto político da época em que a grande imprensa era efetivamente
controlada pelo aparato do Estado, A Notícia figurava entre os periódicos
subvencionados por recursos oficiais, logo alinhado com as orientações políticas do
mesmo.
363
O parecer favorável à homenagem foi dado. No final de 1928, o senador
Gilberto Amado destinou verba de duzentos mil réis ao monumento. Na cidade, os
militantes mobilizavam-se. Conseguiram que a Cia. Brasil Cinematográfica reservasse
à comissão, um dia de bilheteria. Exibiriam o filme "O preto que tinha a alma branca",
361
HOLANDA,1978:101-112
362
Clarim d' Alvorada, 28/09/1928, no.8, p.1, 2
ª
fase.
363
Ver www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/memoria_1htm
172
com a renda totalmente revertida ao caixa do monumento.
364
Percebe-se pelo título do
filme exibido, que mesmo intentando valorizar o negro, o branco permanecia como
paradigma, revelando um tipo interiorizado de racismo marcado pela idéia
preestabelecida de inferioridade/superioridade.
Entretanto, em São Paulo nem todos concordavam com a mobilização
empreendida pelos militantes do Clarim d' Alvorada e apoiada por alguns setores da
sociedade paulistana. Em outubro do mesmo ano, o diretor da Gazeta escrevia "Pede-
se um pouco mais de respeito para com os pretos", em resposta as opiniões contrárias
ao monumento. Inclusive, a do próprio redator do jornal que numa crítica irônica, dias
após o 28 de setembro, publicou a seguinte manchete: "No dia da Mãe-Preta, a
Josephina foi para o xadrez". A reportagem via como contraditória a homenagem às
mucamas do passado, se no presente uma empregada doméstica negra havia praticado
um furto, na mesma data em que se tentava instituir a data da Mãe Preta.
365
Atrelada a
concepção de um progressivo desaparecimento do segmento racial negro devido as
políticas de branqueamento, estava a convicção de que não havia qualquer valor
positivo da raça negra na formação da nacionalidade brasileira. Opinião expressada
pelo médico Nicolau Soares de Couto Esher, no São Paulo Jornal, também
descontente com a campanha.
366
A representação da Mãe Preta ainda seria utilizada em vários outros momentos
como forma de comunicação com o público, fosse ele militante ou não. Assim, num
artigo publicado em 28 de abril de 1934, no jornal A Voz da Raça portanto, seis anos
após a campanha liderada pelo Clarim d' Alvorada, Veiga dos Santos citou a Mãe
364
SILVA,1990:124
365
Clarim d' Alvorada, outubro de 1928. No.9, P.6 Segunda fase.
366
LEITE, "A nossa raça é uma raça mestiça e superior", O Clarim d' Alvorada, nov/1928, no.10,
Segunda fase. P.2 Leite escreveu esse texto publicado no São Paulo Jornal e Clarim d' Alvorada para
rebater as críticas do médico Couto Esher ao culto da Mãe Preta em São Paulo.
173
Preta ao fundamentar seu argumento contrário a presença e às políticas públicas
empreendidas em favor dos estrangeiros no estado de São Paulo e posicionar-se de
modo divergente dos grupos políticos que faziam oposição a Getúlio Vargas. Em sua
análise, a imagem da Mãe Preta fazia ancoragem com a de uma mártir por ter sido
ofertada pela "Pátria Brasileira" em benefício dos patrícios brancos, por serem estes
"ladrões do nosso trabalho e bem estar que a Pátria Brasileira dividiu generosamente
com êles, dando-lhes mesmo a melhor parte (como no caso das mães pretas
amamentando os patrícios brancos e deixando os pretinhos na mão!)(...)"
367
Nesse
caso, a Mãe Preta, e seus filhos "os pretinhos", além de objetivarem o martírio do
negro, ocupava o lugar de todos os trabalhadores nacionais que vinham sendo
sucessivamente colocados de lado em prol dos braços estrangeiros.
A representação da Mãe Preta também poderia significar uma espécie de
reparação aos descendentes dos escravos, acaso enfrentassem alguma situação
delicada. E foi à ela que Isaltino Veiga dos Santos recorreu, quando tentava a todo
custo, livrar-se da prisão política no ano de 1936. Em 13 de maio daquele ano, uma
data importante para o grupo negro, já que se comemorava o 48
º
aniversário da
Abolição, o militante escreveu uma carta ao Superintendente da Ordem Política e
Social, Dr. Egas Botelho, esperando sensibilizar a autoridade policial com uma
representação que também povoava sua memória social:
"Avocando aqui a mãe negra, que embalou o
Brasil pequeno, Mãe nossa essa, que para mim é
representada pela minha que inconsolavel chora a todo
momento por me ver preso, eu espero do espirito
justiceiro de V. Excia, a minha restituição à liberdade."
368
Como se vê, a Mãe Preta punha brancos e negros, ricos e pobres em condições
367
Veiga dos Santos, "Marchando", A voz da Raça, ano II, 28/04/1934, p.4
174
de igualdade, pois em certa medida, todos eram seus filhos. Se não legítimos, pelo
menos de leite, uma vez que esta alimentou o "Brasil pequeno". Por isso, Isaltino se
sentia a vontade para recorrer ao Superintendente com esse aparato simbólico.
Contudo, no caso do ativista, o recurso não foi suficiente, pois como mostra o
despacho do Dr. Egas Monteiro, datado de dezoito de maio de 1936:
" O (ilegível) é um signatários do manifesto da
"Frente Popular pela Liberdade", tendo sido por esta
delegacia processado em conjunto com os demais
assignantes da referida frente.
Não convém a ordem política-social, a sua
liberdade."
369
Contudo, a objetivação da Mãe Preta não teria a mesma finalidade quando
ancorada por sujeitos com outros pertencimentos identitários e inseridos em outras
relações sociais. A objetivação poderia ser a mesma, mas sua utilização bastante
difusa. Ela poderia atestar uma subordinação passiva do negro cativo sob o branco
colonizador. A assertiva confirma-se pelo significado que Afonso Celso deu à figura
da ama-de-leite. Para ele, seu exemplo mostrava quão menos bárbaros foram os
negros que vieram para o Brasil. As mulheres negras eram obrigadas a abandonarem
seus filhos, mas nem por isso deixavam de se dedicar aos filhos dos outros. O escritor
além de ver como um sinal de barbaridade, ou seja, de atraso, as iniciativas de rebeldia
do escravo frente a sua condição, dava graças a relação afetiva construída entre a Mãe
Preta e a criança branca. Um dos impeditivos do preconceito de cor no país.
370
Mais ou
menos na mesma linha, posicionou-se Gilberto Freyre, pois viu no símbolo da Mãe
Preta, o privilegiado lugar alcançado pelo negro cativo, resultado das características
singulares que teve o nosso escravismo:
368
Cf. Prontuário 2018. Isaltino Veiga dos Santos, DEOPS/SP.
369
Cf. Prontuário 2018. Isaltino Veiga dos Santos, DEOPS/SP
175
"quanto às mães-pretas, referem as tradições o
lugar verdadeiramente de honra que ficavam ocupando no
seio das famílias patriarcais. Alforriadas, arredondavam-
se quase sempre em pretalhonas enormes. Negras a quem
se faziam todas as vontades: os meninos tomavam-lhe a
benção; os escravos tratavam-nas de senhoras; os
boleeiros andavam com elas de carro. E dia de festa,
quem as visse anchas e enganjentas entre os brancos da
casa, havia de supô-las senhoras bem-nascidas; nunca ex-
escravas vindas da senzala.
371
Parecida com a última citação foi a informação deixada em 1852, pelo viajante
Charles Expily, no que ele considerava "profissão desejada - ama de leite", relatou que
"Com poucas exceções, todas as jovens negras
não tem outra preocupação além de ser mães. ... Uma ama
de leite é alugada por mais de uma engomadeira, uma
cozinha ou mucama. Para que dê honra e lucro, colocada
numa boa casa, o senhor, durante a gravidez, lhe reserva
trabalhos mais leves. Após o parto, a rapariga vê suas
camisas destruídas e suas roupas velhas destruídas aos
companheiros, enquanto seu guarda-roupa é renovado e
recebe enxoval novo."
372
O documento dá brechas para outras interpretações mais coerentes, pois
desprezou o contexto em que ocorria a maternidade dessas mulheres escravas,
decorrente, muita das vezes, de relações sexuais forçadas por seus senhores e o destino
de seus filhos legítimos deixados recém-nascidos para amamentar filhos de outros.
Dados de escravas de primeira "cria", alugadas ou vendidas sem a "cria", relatos de
amas contaminadas por sifilíticos através do aleitamento ou sexo e da morte de seus
filhos naturais, pois eram retirados do convívio materno e colocados na Roda dos
Expostos, reforçam essa outra interpretação pouco idílica da realidade das amas de
leite.
373
Mas voltemos aos anos 1930 e às ações de Leite. Nem o busto nem o dia foram
370
LEITE, 1992:197
371
FREYRE,1998:352
372
Citado por CARNEIRO, 2004:94
176
instituídos naqueles anos. Com o passar do tempo, o dia da Mãe-Preta, que atualmente
é chamada de Mãe-Negra, passou a ser comemorado junto com a data da abolição: 13
de maio. Somente em 1955, a estátua seria construída pela prefeitura de São Paulo, no
largo do Paissandu, perto da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.
Contudo, o feito não corresponderia à imagem pensada pelos militantes no passado.
Não na visão de Leite, um homem de seu tempo, seduzido pelo mito da democracia
racial:
373
GIACOMINI,1988:145-153
Estátua da Mãe-Preta
177
Por que fazer uma negra descomunal, quando
todo mundo sabe que uma negra daquela não entraria na
casa grande para dar mamá pra um filho do senhor, com
aquele pé grande...? Eles cuidavam muito bem das
mucamas. Precisava ser muito bonita, muito limpa, muito
direitinha. (...) Isso é ignorância da história
.374
Como pudemos ver, negros e brancos em lugares distintos e com
reivindicações muitas vezes antagônicas, partilharam representações análogas sobre a
escravidão como nos mostra o caso da Mãe Preta.
O Congresso da Mocidade Negra
Em 1929, ou seja, após cinco anos de existência do jornal Clarim d' Alvorada,
os militantes liderados por Correia Leite, ambicionaram realizar o que chamaram de
"Primeiro Congresso da Mocidade Negra Brasileira". O Congresso discutiria a questão
da "total integralização" do negro na sociedade brasileira, dando ênfase aos temas que
versassem sobre a educação da juventude negra.
375
Veiga dos Santos recém formado
em filosofia e letras, foi convidado, pelo pessoal do Clarim d' Alvorada para integrar a
comissão intelectual.
A primeira chamada para o Congresso deve ter sido escrita por Leite, apesar de
não assinada:
A nossa missão como arautos das idéias moças da
geração que neste instante está se estabilisando, arrastou-nos
à temeridade de o cogitar-mos a realização de um Congresso
da Mocidade Negra de São Paulo, cujo escopo, será o de
reunir a nata dos intellectuaes da raça, ao mesmo tempo que
constituirá, um passo gigante no instante. (...)
376
374
LEITE,1992:99 Acima imagens da Mãe-Preta esculpida pelo artista plástico Júlio Guerra. O mesmo
que esculpiu Borba Gato, o famoso bandeirante símbolo de São Paulo.
375
O Clarim d' Alvorada , "Congresso da Mocidade Negra de São Paulo", sem assinatura, 03/02/29, ano
IV, p.3
376
O Clarim d' Alvorada, ano VI, abril/1929, no. 4
178
Analisemos como Leite definia a si mesmo e seus companheiros: "arauto das
idéias moças". Sujeitos que se percebiam como a vanguarda da raça negra com a
missão de esclarecer o restante do grupo sobre as transformações que vinham
ocorrendo durante a década de 1920. A tentativa era de rompimento com a apatia
social do grupo negro:
"um dia saímos com uns cartazes - um negro
quebrando uma corrente - lambuzamos os postes e
fixamos a idéia: o Primeiro Congresso da Mocidade
Negra. Foi um barulho na cidade! A imprensa se
movimentou criticando, metendo o pau, achando que era
um absurdo, "Que necessidade há nisso? O que se vai
falar nesse congresso?"..."
377
Quanto a esse posicionamento uma leitora da Bahia teceu as seguintes
considerações:
"é verdadeiramente bella a idea lançada pelo
Clarim d' Alvorada, O Congresso da Mocidade Negra.
Para todos a primeira interrogação será: que vão tratar
elles? Que querem elles? Será alguma parada em
formação? Não, nada disso: não é idea revolucionária,
não vão tratar de fazer ataques grosseiros ou comparações
absurdas. Não naturalmente, trata de solidificar uma
grande idea! A instrução do negro no Brasil.
Como já se tem dito nestas colunas, o negro
neste paiz não vive vegeta; não devemos ficar nessa
liberdade esfarrapada, e não pense que é com fundações
de partido e disputas legislativas que vamos conseguir
nossa integralização, nem tão pouco é motivo para dar um
chá dançante pela passagem do treze de maio. Não é isto.
Os iniciadores da idea, apenas pedem que, devemos
batalhar em favor do nosso máximo problema. A
instrução e a formação dos negros dentro do lar, a
obrigação sincera para com a família, porque só assim
podemos ter elementos aptos para a defeza de nossas
causas.
Negros congressistas do Brasil que seja o nosso
programma, este ponto de partida a instrucção."
378
377
LEITE,1992:83
179
A leitora e, provavelmente militante de alguma agremiação baiana, vendo os
debates contidos no número anterior e possivelmente nas reuniões realizadas pelo
grupo do qual fazia parte, resolveu partilhar com os outros leitores do jornal de São
Paulo suas reflexões. Uma de suas primeiras considerações foi deixar clara a finalidade
primordial do encontro: “a instrução do negro no Brasil”, ou seja: a missão educativa
daqueles intelectuais negros. Em seu discurso, procurou definir em que bases isso se
daria. Propôs não convidar intelectuais, em sua maioria os brancos, que faziam
“comparações absurdas” entre os dois grupos raciais. O que prova sua desconsideração
pelas famosas pesquisas dos "homens de sciencia", da qual tratamos no outro capítulo,
por chegarem a conclusões baseadas numa hierarquia biológica das raças humanas. No
entendimento da autora, o problema negro resumia-se na falta de instrução. Instrução
que era sinônimo de educação, mas na sua acepção mais ampla. Por isso, a educação
deveria iniciar com a "formação do negro dentro do lar". Estes deveriam se organizar
ou então apoiar iniciativas coletivas voltadas a minimizar a falta de escolarização da
população negra da época. Em sua convocatória, a militante também fazia críticas ao
próprio meio intelectual-militante, desprezando aqueles acostumados a “fazer ataques
grosseiros” ou seja, os que de pronto não levaram a sério o evento. O que parecia ser
uma característica recorrente entre a elite negra.
No entendimento dessa ativista, o encontro deveria prezar pela integração, não
fazendo cobranças nem questionamentos ao Estado. Ainda que o tom de denúncia
permeasse seu texto, como se percebe na assertiva: "o negro neste paiz não vive
vegeta”. Mesmo que mais adiante o discurso se suavize, responsabilizando o próprio
negro por parte de sua condição subalterna em: “não devemos ficar nessa liberdade
esfarrapada”. Vemos nesse tipo de escrita uma estratégia que tentou ao mesmo tempo
378
Maria Amália Amaral, “O Congresso”, O Clarim d' Alvorada, 13/05/1929, ano VI, no. 5, p. 2
180
atrair e convencer novos adeptos, mas sem excluir aqueles que advogavam por uma
postura mais conciliatória.
O nosso trabalho enfoca as atuações de Veiga e Leite, na cidade de São Paulo
em especial, mas isso não nos impede de inferir que esses pensamentos foram
partilhados por militantes atuantes em outros locais da federação. A carta da ativista
baiana é prova disso. Podemos imaginar a possibilidade da existência de outras
organizações no mesmo período, em que a preocupação era a mesma: mudar o
imaginário pejorativo que enquadrava o conjunto da população negra através de outras
representações sociais que pudessem comunicar uma nova identidade positiva para o
negro no Brasil. Vimos que a tentativa de realização do Congresso suscitou polêmicas,
pois a sociedade paulistana não compreendeu o propósito do evento. Neste mesmo
número do jornal, um outro artigo, agora, assinado por Leite, vinha na mesma linha de
convencimento da militante baiana:
“(...) O elemento negro já sabe que precisa
trabalhar para a sua integralisação moral e material; é uma
conquista imprescindível, é uma necessidade inadiável
que nos apresenta, é a maior consagração que se pode
oferecer a memória do nosso antepassado. E será também
a segurança do futuro da nova geração que vem surgindo
e precisa por força, encontrar o exemplo da nossa
vitalidade moral, em volta das tantas ideas sans que temos
defendido e semeando no seara do bem e do bom viver.
Depois de oito lastros de liberdade os
remanescentes dos ex-escravos tiveram de lutar, para não
ficar intoxicados pela cachaça e outros vícios... Ficaram
libertos, porém, sem pão nem lar, embrutecidos pelos
martyrios do maldito regimem, tiveram também de
enfrentar as correntes immigratórias que sempre foram
bem remuneradas e amparadas por todas as leis do nosso
paiz... Do negro ninguém cuidou, elle que fora a
verdadeira machina de trabalho, para a construção dos
alicerces do progresso que hoje assistimos, mas que a
mocidade negra não toma parte activa, na tumultuosidade
dessa lufa-lufa diária. E, esta folha que, de uma feita
adquiriu a confiança da classe, e tornou-se o legítimo
181
arauto da nossa mocidade, que ainda não está aparelhada
devido a falta de cohesão daquelles que, que até esta data,
festejam o treze de maio nas reuniões dansantes, e não
numa reunião reivindicadora e nacionalista, espera que os
moços de côr sensatos, cumpram seus deveres, alistando-
se no primeiro Congresso da Mocidade Negra do
Brasil."
379
Correia Leite deixa clara a sua insatisfação com um associativismo voltado,
basicamente, para as festividades e sem projetos mais transformadores. Os negros em
geral organizavam-se em torno desses ajuntamentos sociais, mas o militante tinham
outras propostas, ao que parece pouco entendidas pela maioria, uma vez que, já
estavam em maio e, tanto os negros da elite, quanto os da massa não aderiam à
proposta do Congresso. Na sua compreensão, os negros elitizados “não queriam se
misturar”.
Entretanto, mesmo diante desse desinteresse Correia Leite continuou com o seu
posicionamento taxativo. Ao afirmar que os negros “ficaram libertos, porém, sem pão
nem lar”, além de terem de competir com “as correntes immigratórias que sempre
foram bem remuneradas e amparadas por todas as leis do nosso paiz...” o ativista
questionava ao mesmo tempo a Lei Áurea e as políticas públicas estatais da Primeira
República voltadas basicamente à imigração européia. À sua maneira, e com
evidências do cotidiano, culpava incessantemente a entrada de braços estrangeiros pelo
que ocorria com o trabalhador nacional, em sua maioria negros, colocados às margens
nas relações de trabalho. Fora esse dado relacionou de forma acertada a história à
política, ao implicar o quadro de exclusão social vivido pela população negra no
momento, à maneira como se dera o fim da escravidão e a implantação do trabalho
assalariado. Outra questão interessante apontada no texto é a afirmação que
relacionava a acumulação primitiva de capital decorrente do trabalho não remunerado
379
Leite, “A mocidade negra”, Clarim d' Alvorada,13/05/1929, ano VI, no. 5, p. 5
182
do negro durante séculos à inserção no sistema capitalista experienciada pelo
economia nacional naquelas décadas. O militante concluiu que o trabalho realizado
pelo negro no passado tivera significativa importância para o progresso urbano e
industrial que em particular São Paulo experimentara no presente, tese exaustivamente
comprovada.
Em 09 de junho de 1929, foi lançado na primeira página do Clarim d'
Alvorada, o manifesto do Congresso. Escrito por Veiga dos Santos, o documento tinha
uma estratégia política: alcançar o público não militante. "Negros de São Paulo e
quiçá do Brasil", tidos como "bons negros humildes e soffredores silenciosos".
Assumindo as verdadeiras funções do intelectual público, Arlindo se propunha
escrever com "clareza e em linguagem simples, accessível a todos”. Nessa linha
educativa, definiu o Congresso como uma reunião de pessoas, no qual a pauta seria
"estudos práticos ou especulativos", voltados para minimizar a "immensa miséria da
Gente Negra do Brasil" que no seu entendimento, vivia "das baldas do passado
homérico", mas num presente de "desgraça, degradação e humilhação nacional".
Decorrente, em parte, da própria "cegueira política" da Raça, mas também do "alude
dissolvente da oridas estrangeiras e estrangeirizantes".
380
Veiga dos Santos legitimou
seus argumentos a partir de outras falas. Assim, inúmeras foram as citações de
destacados intelectuais e políticos como Mello Moraes, Sílvio Romero, Basílio de
Magalhaes, Assis Chateaubriand, Vicente de Carvalho, Horácio de Carvalho, Conde
de Afonso Celso, Rocha Pombo, Tristão de Atahyde, Augusto de Carvalho dentre
outros. No manifesto, utilizando uma linguagem que uniu ironia e crítica virulenta,
denunciou um estado de coisas legitimado pela sociedade em geral e grupos dirigentes.
Em síntese estampou o que pensavam os intelectuais-militantes mentores do encontro.
380
Veiga dos Santos, "Manifesto do Congresso da Mocidade Negra Brasileira, O Clarim d' Alvorada
183
Passemos a conhecer alguns fragmentos do documento:
"Gosamos, theoricamente, de todos os direitos
que, juridicamente, nos garante a própria constituição
fundamental. Mas, como o direito, para o ser implica uma
expressão de vida real e não abstracção, as forças da
sociedade que estão, inapellavelmente, acima da lei ou
contra ella, evitam-nos e até nos expulsam de suas
instituições burocráticas, de utilidades ou 'polícia' social
de ensino, e de formação intellectual, moral e religiosa
também; abominam-nos nos orphanatos, e hospitaes e
mais casas de assistência social, e até nas casas de
expressão econômica em que, em suficiência de
capacidade de competência, poderíamos ganhar o pão de
brasileiros e humanos.
Não há, para nós, a mais das vezes, justiça
social. Em situação de direito, quando appellamos para
quem nol-a garantia. Já estamos antecipadamente
derrotados na demanda.
Relegam-nos, pois, a nós brasileiros, uma
posição horrível de inferioridade e desprestígio perante o
nacional branco e, o que mais revolta, perante o
estrangeiro.
Nada tem valido os protestos insulados. E elles
hão sido muitos, chegando as vezes tragicamente a
reacção violenta que é paga pelo castigo de crime
communs articulados no Código Penal, sem attenuante.
Somos a caricatura ambulante do grande Brasil
da epopéia dos 300 annos, para a gargalhada beócia dos
que não conhecem a história e as tradições nacionaes que
somos nós, que são os nossos antepassados.
Esbulhados de posses pessoaes e collectiva,
não há quem efficientemnete advogue a nossa causa,
enquanto muitos de nós na ignorância da situação, nos
esquecemos do futuro nosso.
Miguel Pereira e Belisário Penna afirmaram
que o Brasil é um immenso hospital. E nós não tememos
afirmar que este vasto hospital deriva da doença mais
grave, que é o preconceito de raça e de côr, enfim a dor da
mentalidade dos nossos dirigentes, deixando que pereça
toda uma gente que é preciso que seja substituída, porque
é mestiça, porque é negra e deverá ser branca custe o que
custar, mesmo a custa do esfacelamento do Brasil, pela
vaza do aryanismo internacional immigrado.
Começa a esboçar-se a reacção pelas correntes
,09/06/1929, ano VI, no.17, p.1, 2
ª
fase.
184
literárias e artísticas as quaes acuam os bonsos da
sociologia que cogitam pelos juízos ao preconceito que
arvoreia a Raça Brasileira de si mesma nos seus
elementos que o erro dos homens abandonou ao
infortúnio presente.
Despertae, patrícios!
(...)
Não precisamos consultar a ninguém para
vermos a verdade dos direitos, a realidade tétrica da nossa
situação, a rapidez da nossa decadência (...)
Isso tudo não está nos livros europeus nem
norte-americanos.
(...)
Auscultando a nossa realidade, tiraremos dela
da consideração della o remédio para os nossos males,
negando attenção aquelles que querem 'salvar-nos' contra
nossas tradições e contra o Brasil.
Tenhamos fé e essa fé nos indicará o caminho
de seguir.
Seja cada um de nós um obreiro dessa reacção
contra o sonegamento dos direitos sagrados da Gente
Brasileira, de côr, e mais para a efetivação delles; seja
cada qual um soldado contra a decadência dos nossos
costumes, contra o derrotismo dos perversos e traidores,
contra a ignorância e protervia aos preconceitos existentes
embora muitos os queiram negar, contra o imperialismo
dos advenas, contra a idéa e a política estrangeira
aryanizante e, sobretudo, mais que tudo, contra a negação
do que já há feito, pode fazer e quer ainda fazer o nosso
Sangue, cuja nobreza foi conquistada nas artes nas
sciências, na política, na guerra pela identidade, unidade e
independência nacionaes.
Gente Negra, sede digna dos pretos e índios
que ergueram Palmares, primeiro baluarte da pátria livre,
nas acercanias gloriosas do Norte.
(...)
Como quer que seja, seja congressista.
Pela Pátria e pela Raça!"
381
381
Veiga dos Santos, "Manifesto do Congresso da Mocidade Negra", Clarim d' Alvorada, 09/06/1929,
ano VI, no. 17, p.1, 2
ª
fase
185
Vejamos que uma das primeiras denúncias de Arlindo gira em torno de uma
estrutura político-social que burlava as leis nacionais, pois apesar de haver uma
constituição federal garantidora da igualdade entre todos, esta era mais uma abstração
uma vez que "forças da sociedade que estão, inapellavelmente, acima da lei ou contra
ella, evitam-nos e até nos expulsam de suas instituições (...)". Assim, a luta seria contra
uma situação de inferiorização, existente não devido a incompetência física do negro,
mas pela falta de investimento no grupo em igualdade de condições. Acusa também, o
desconhecimento no presente, da contribuição do negro com a história nacional. Nesse
sentido Palmares serve como um símbolo de realização, pois liderado por negros em
conjunto com outro grupo colocado em segundo plano: os indígenas, o quilombo lutou
quase um século contra o aparato colonial português. E mesmo ao se reportar aos 300
anos de escravidão negra, deixa subentendido que ante de ser escravo o negro foi um
trabalhador. Portanto, há uma tentativa de transformar a derrota do cativeiro em glória
pelo trabalho. Por fim é importante salientar o papel que Veiga atribuía as lideranças
negras, os chamados “intelectuais da raça” como dissera o ativista Francisco Lucrécio
anos depois.
382
Cabia a esses intelectuais-militantes liderar as massas, apontar o
caminho e formar um novo negro que pudesse por capacidade ser o "obreiro dessa
reacção contra o sonegamento dos direitos sagrados da Gente Brasileira, de côr, e mais
para a efetivação delles (...)".
Contudo, mesmo com o citado manifesto e chamadas que saíram em quase
todos os números do jornal desde fevereiro daquele ano, em 14 de julho, não se tinha
certeza de que o evento se realizaria. Outros textos conclamando a mocidade negra à
participar do Congresso foram publicados. Benedicta Correia Leite, esposa de José
Correia Leite, escreveu na Página Feminina do jornal, convocando as "mulheres, mães
382
Francisco Lucrécio, "O negro em face da situação atual", A Voz da Raça, n.º 70, nov/1937, p.1
186
e esposas" a ajudarem os "idealistas contemporâneos".
383
Concluímos que a iniciativa
não foi bem recebida fora do meio associativo negro. Além disso, entre os próprios
ativistas ou colaboradores do jornal havia algumas controversas com relação ao teor do
Congresso. Discutiam se deveria participar somente a juventude negra ou se não seria
melhor um encontro aberto a todos os brasileiros. Além disso, polemizavam sobre a
legitimidade e capacidade intelectual dos congressistas, uma vez que os organizadores
se propunham a convidar um conjunto de intelectuais, de preferência negros para
expor suas teses. Alguns membros da elite negra paulistana preocupavam-se em não
passar a idéia de que tínhamos um problema racial. Um próprio colaborador do jornal
questionou o fato do evento estar voltado para um público estritamente negro: "um
Congresso de negros só pode cogitar a idéia odiosa da separação". Para ele "seria
melhor a realização de um congresso da mocidade brasileira, tirando assim, a palavra
"Negra"."
384
Comportamento que pode significar a crença do mesmo na representação
do Brasil como o exemplo do convívio fraterno entre as raças ou então o medo de que
com o Congresso, o grupo passasse a ser visado pelas autoridades estatais como
sedicioso.
Reagindo a esse impasse no meio negro paulistano, Leite direcionou críticas
virulentas às “agremiações dançantes” que não se mobilizavam à realização do
referido Congresso. Novamente criticava uma suposta “neutralidade” dos diretores das
agremiações, que na verdade impediam seus associados de participarem dos
preparativos para o encontro. Para ele algumas sociedades dansantes, seguem a
vontade absoluta de um membro que faz o que entende sem consultar alguém, e assim
383
Benedicta Correia Leite, "A mulher negra e o nosso congresso" O Clarim d' Alvorada, 14/07/1929,
ano VI, no. 5, p.3
384
Clarim d' Alvorada, 14/07/1929, ano VI, no. 18
187
mata o apoio que podíamos obter da mocidade de São Paulo.
385
Como vemos, o
militante denunciava uma espécie de manipulação, existente no meio negro por
aqueles que lideravam as entidades associativas na maioria das vezes sujeitos mais
instruídos e inseridos preocupados em construir ao seu redor, um grupo cativo de
admiradores politicamente alienados. Leite ilustrava sua crítica afirmando que: não
percebem a decadência moral da nossa mocidade que, despreocupadamente, vai
descendo cotidianamente, para o lamaçal da ignorância dansando sempre e sempre
dansando”.
386
Ocorre que havia uma certa diferença entre os ativistas do Clarim d' Alvorada e
outras lideranças locais pelo menos desde 1928. O caso da construção de um busto em
homenagem a Luiz Gama é emblemático. Argentino Celso Wanderlei que era
presidente do Cordão Carnavalesco Campos Elíseos, situado na Barra Funda, decidiu
organizar um evento no aniversário de nascimento de Luiz Gama, cujo centenário seria
em 21 de junho de 1930. Para tal, pediu ajuda dos ativistas locais. Lino Guedes,
reconhecido como poeta e escritor entre a elite negra, resolveu ajudar. No entanto,
fazia uma ressalva: vetava a participação do pessoal de Correia Leite. Achava que eles
deveriam se ater ao Congresso. O que denota uma disputa política por visibilidade e
reconhecimento. Assim parte dos ativistas, se dedicou a construção da herma que
contou com ampla divulgação através do jornal Progresso, fundado com a finalidade
de divulgar o evento e promover uma cotização da sociedade em geral, em especial
dos políticos locais, através da circulação de um livro de ouro. O monumento foi
inaugurado no Largo do Arouche, em 1930, e ficou "coalhado de negros". Lá também
estiveram políticos locais e intelectuais brancos, impressionados com o que
385
LEITE, O Clarim d' Alvorada 14/07/1929, ano VI, no. 5 , p. 1
386
LEITE, O Clarim d' Alvorada 14/07/1929, ano VI, no. 5 , p. 1
188
costumavam chamar de o alvorecer da raça negra.
387
Luiz Gonzaga Pinto da Gama foi uma personalidade bastante cultuada pelos
ativistas da época devido a sua aguerrida militância abolicionista e exemplar história
de ascensão político e social, marcada fundamentalmente, pelo esforço pessoal.
Portanto, sua trajetória agregava características positivas que deveriam ser repassadas
aos negros da época como um exemplo de vitória. Nascido na Bahia, em 1830 era filho
de Luiza Mahin, africana livre que havia participado da Sabinada
388
, com um fidalgo
de origem portuguesa, pertencente a uma das principais famílias da Bahia. Após o
sumiço da mãe em 1837, o menino foi viver com o pai que falido, vendeu-o como
387
LEITE,1992:88
189
escravo aos 10 anos. Trabalhando em São Paulo e já sabendo ler e contar, Luiz Gama
fugiu de seu senhor quando tinha 18 anos, após reunir provas que certificavam sua
condição de livre. Serviu à Força Pública de São Paulo, trabalhou como amanuense da
Secretaria de Polícia de São Paulo e nesse cargo teve acesso a biblioteca do delegado
de polícia, o Conselheiro Furtado de Mendonça, que também era professor na
Faculdade de Direito de São Paulo. Tornou-se advogado autodidata, sendo bastante
admirado e temido nos tribunais de São Paulo.
389
Exerceu também a atividade de
poeta e jornalista. Publicou em 1859 Trovas Burlescas de Getulino e colaborou em
semanários de crítica política e humorísticos, como o Cabrião, o Diabo Coxo e o
Radical Paulistano.
390
Militante ativo da causa abolicionista, foi responsável pela
libertação de negros escravizados através de inúmeros estratagemas judiciais que
provavam a ilegalidade do cativeiro após a Lei do Ventre Livre, de 1871
391
; por
contribuir com a fundação de uma escola de instrução primária que chegou a ter 200
alunos e por angariar fundos destinados à libertação dos cativos.
392
A realização do Congresso também sofreu um outro revés de origem externa.
Foi toda a movimentação ocorrida em torno da sucessão presidencial no ano de 1929 e
posterior deflagração da "Revolução de 1930". Nesse sentido, os militantes negros se
viram impossibilitados de realizarem o encontro, já que não havia ambiente, devido os
acontecimentos de âmbito político mais amplo.
Um Congresso de envergadura nacional e conteúdo político-ideológico parecido
com o pensado pelos intelectuais-militantes que aqui analisamos, só iria acontecer vinte e
um anos mais tarde. Foi o 1
º
Congresso do Negro Brasileiro pensado e organizado por
militantes e intelectuais ligados ao Teatro Experimental do Negro, em especial Abdias do
388
Em outra bibliografia, Mahin aparece como sediciosa na revolta dos Malês. MOTT,1988:50
389
Cf. NASCIMENTO,1985:6
390
Cf. VAINFAS,2002:497
391
MENDONÇA,2001:81-82
190
Nascimento e Guerreiro Ramos, realizado no Rio de Janeiro, no ano de 1950.
393
Reagindo ao racismo
Os intelectuais-militantes Correia Leite e Veiga dos Santos tiveram atuações
emblemáticas nas organizações que participaram ou dirigiram. O Clarim d'Alvorada
foi tomando características de uma entidade com perfil de movimento negro, a partir,
sem dúvida das iniciativas de Correia Leite. São exemplares as atitudes como a de
noticiar e condenar os casos de racismo que chegavam aos seus conhecimentos. Vale
salientar que os contatos travados com os ativistas norte-americanos propiciaram uma
maior aproximação com idéias anti-racistas existentes em outras localidades. Por fim,
a mobilização em torno do monumento à Mãe-Preta e da organização do Congresso da
Mocidade Negra refletia uma perspectiva mais politizada, na qual a questão racial
passaria a ser o assunto principal do jornal, especialmente depois que, em 1928, Leite
tornou-se o redator-chefe com a saída de Jayme de Aguiar.
Veiga dos Santos vinha atuando em organizações negras desde o Centro Cívico
Palmares. São escassos os documentos que relatam suas idéias em torno da questão
racial nesse período. Um dos primeiros aparecimentos de Veiga nessa imprensa
específica deu-se com manifesto para o Congresso da Mocidade Negra. Anos mais
tarde, fundaram a Frente Negra Brasileira e Veiga dos Santos foi escolhido seu
presidente geral. Na FNB, o intelectual encontrou maior visibilidade e espaço de
atuação. A seu dispor estava toda estrutura burocrática da organização com a
expedição de ofícios, marcação de audiências, posicionamento público frente aos
assuntos que diziam respeito aos sócios, além das páginas do A Voz da Raça. A partir
de 1933, foi no jornal que Veiga dos Santos veiculou a maioria de suas idéias sobre a
392
VAINFAS,2002:498
393
Cf. NASCIMENTO,1982:121-401; PINTO, 1998:213-300 Parte Segunda.
191
questão racial e mesmo as ligadas ao patrianovismo. Apresentaremos a partir daqui,
uma mostra de como os ativistas procuravam, através das entidades que dirigiam reagir
ao preconceito e discriminação racial na cidade de São Paulo, seja com ações mais
efetivas, implicando até mesmo as instituições públicas, através da veiculação de suas
próprias opiniões pessoais em forma de artigos, moções de repúdio ou mesmo poesias.
A discriminação racial incidia sobre o negro em vários aspectos de sua vida
diária como no ambiente escolar, de moradia e trabalho. Em se tratando do acesso ao
trabalho, em especial, ao emprego formal, ou seja, de carteira assinada havia mais
dificuldades para os afro-brasileiros. Fatores como o analfabetismo e a falta de
profissionalização funcionava como potencializadores desse estado de coisas, mas
efetivamente o racismo paulistano concorreu para o desemprego dos negros entre os
anos que investigamos.
Bernardo
394
, ao analisar a memória de velhos e velhas negros e brancos
(italianos) na cidade de São Paulo, mostrou que as lembranças da vida passada desses
sujeitos comuns, ou seja, não foram nem líderes nem pessoas famosas, estavam
fortemente marcadas pelo tipo de inserção social que tiveram. Na memória dos velhos
negros e negras aflora uma cidade escura e desconhecida, enquanto que para os
brancos, ela representava o progresso e o trabalho. Marcados pela discriminação racial
sofrida, especialmente no âmbito do trabalho, São Paulo se tornara sombria e hostil.
Para os negros aspectos vividos no mundo do trabalho funcionaram como um núcleo
resistente em seus relatos. Este tema em suas lembranças, mais do que um relato, foi
um instrumento de reconstrução identitária
395
, pois suas trajetórias foram marcadas
pela busca pelo emprego que, para eles, significava dignidade. O que demonstra que os
negros em São Paulo tiveram muito trabalho para conseguir trabalho, como se pode
394
BERNARDO,1998
192
verificar nos seguintes depoimentos:
" Com oito anos eu já trabalhava como
aprendiz de sapateiro. Trabalhava numa loja onde aprendi
o ofício. Não ganhava quase nada. Era a comida e alguns
tostões. (...) Às vezes, ainda me divirto em casa, cortando
e modelando, mas tive que sair de lá. O Stacchini preferia
os italianos como ele. Era 1927 lembro como se fosse
hoje; eu agüentei todos aqueles anos as investidas dos
italianos, porque eu praticamente tinha sido criado na
loja, mas, em 1927, chovia italiano no Bom Retiro e aí o
preto saiu mesmo; acabou o lugar dos pretos nas
sapatarias e alfaiatarias. (...)"
"Consegui emprego fixo só com 28 anos.
Trabalhava em tudo até essa época, esperando conseguir
um trabalho em que me levassem a sério; fui menino de
recado, limpava casa na Rua São João, levava marmita de
pensão. Quando tinha 28 anos, foi o pior! Minha avó
desempregada, o meu pai e eu desempregados. Vendo a
situação, um nosso vizinho, branco, me arrumou um
emprego no Instituto Biológico como lavador de carro,
privada, tudo... Quando era qualquer coisa chamavam o
Raul e o Raul fazia."
"(...) Com 30 anos, quando consegui emprego
fixo na Otis, empresa de elevadores, foi a maior alegria da
minha vida, porque o que eu mais gostava era de
trabalhar. (...) Na Otis aprendi que trabalho não tem cor,
era empresa norte-americana lembrando agora. Acho que
não conseguia nada, porque eu sou preto."
"(...) Com 18 anos, fui trabalhar como lixeiro,
não era qualquer lugar que empregava preto, agora preto
pega qualquer emprego. (...) Em 1936, fui trabalhar como
servente de pedreiro, só que eu fazia tudo. Até hoje tem
duas casas que fui eu que construí na Avenida Dr.
Arnaldo,1504."
396
E no argumento de Arlindo Veiga, em favor do irmão que se encontrava preso,
395
POLLAK,1989:13
193
ao informar que o fato se deu porque o irmão não estava bem material e
psicologicamente devido a uma situação de preconceito racial
"realmente, não há muito arranjara um
emprêgo, por meio de um amigo, numa grande empresa
estrangeira,
desta capital, sem que, todavia, os chefes
tivessem conhecimento pessoal dêle; sem saberem,
portanto, que êle era negro. Certamente os ilustres arianos
hóspedes de nossa pátria não desejavam um negro nos
seus escritórios. Deram uma desculpa
, e não o
receberam."
397
Arlindo levantava a questão do problema da discriminação racial no acesso ao
emprego na cidade de São Paulo para minimizar a atitude do irmão preso por militar
numa organização de esquerda, a Frente Popular pela Liberdade, que fazia oposição a
Getúlio Vargas. Arlindo não teve receios de tocar na questão, demonstrando o quão
ciente o movimento social negro estava da problemática racial na cidade de São Paulo.
Acreditamos que a promulgação da "Lei dos 2/3", sancionada por Getúlio em 1930, o
tenha auxiliado na fundamentação do argumento. Sua correspondência, em caráter de
denúncia, ainda que exemplificando um caso único, o do irmão, pode ser uma prova de
que mesmo com a lei que já vigorava há anos, os trabalhadores negros continuavam
preteridos, ou seja, todo o imaginário social que reproduzia representações do negro
como o incapaz e incompatível à nova ordem econômica estabelecida, mantinha-se
vivo entre os paulistanos empregadores, dificultando o acesso ao trabalho formal pelo
negro, como mostram as pesquisas e os depoimentos sobre o tema.
Na tentativa de reverter esse quadro de exclusão no mundo do trabalho, os
militantes negros lideraram várias iniciativas no âmbito de suas entidades políticas.
Ainda no tempo do Centro Cívico Palmares ocorreu a mobilização dos ativistas para
396
BERNARDO, 1998:119-120
397
Carta enviada ao Dr. Egas Botelho, inspetor da Ordem Política e Social em 20/06/1936. Cf.
Prontuário 2018 (Isaltino Veiga dos Santos) grifos do próprio autor.
194
revogar a lei do chefe de polícia paulistano que impedia a entrada de negros na Força
Pública Estadual. Na década de 1930, a Frente Negra Brasileira liderou algumas
iniciativas para empregar os afro-brasileiros e uma delas foi criar um banco de
empregos. Lá senhoras iam a procura de empregadas domésticas porque consideravam
mais idôneas. Ocorreram também cursos profissionalizantes para que os sócios melhor
disputassem as vagas disponíveis. Os ativistas tentavam com essas ações, desqualificar
o discurso que argumentava pela incapacidade do negro em competir em condições de
igualdade com os trabalhadores brancos. Contudo, a iniciativa mais ousada foi pleitear
junto às autoridades, vagas para negros na Guarda Civil.
398
O A Voz da Raça informa-
nos de pelo menos uma correspondência em que fica claro a existência desse convênio
entre Frente Negra Brasileira e a Guarda Civil paulista. Num comunicado enviado a
Arlindo Veiga dos Santos, então presidente da organização, o Ten. Cel. Alcindo Nunes
Pereira, Chefe do Estado Maior solicitava a suspensão do envio de candidatos, pois, os
existentes excediam "em muito as vagas a preencher". A autoridade garantia que os
encaminhados seriam atendidos dentro do possível.
399
Os relatos dos velhos militantes
esclarecem melhor essa iniciativa das lideranças frentenegrinas:
Em relação à Guarda - Civil, na época em que
foi formada não aceitava negros. Exigiam do negro uma
certa altura, sabíamos que era só para nos impedir. (..) A
Frente Negra soube e mandou que os negros fossem fazer
a inscrição na Guarda Civil e eles foram barrados.
Organizamos uma comissão e fomos ao Rio de Janeiro
falar com o presidente Getúlio Vargas. Viemos do Rio
com a autorização do presidente Getúlio para procurar o
comandante da Segunda Região Militar que, depois da
Revolução de 30, era o general Góis Monteiro. Ele
398
A Guarda Civil não era o mesmo que a Força Pública (atual Polícia Militar). Começou com a
finalidade de organizar o trânsito em São Paulo, se estendendo posteriormente para a guarda de teatros,
parques, jardins, escolas, ruas e policiamento de bairros. O efetivo maior trabalhava a pé, mas
posteriormente houve um corpo de motociclistas. Sua sede nos anos 1930, ficava na rua Brigadeiro
Tobias embaixo do viaduto Santa Ifigênia. CF. QUILOMBHOJE,1998:88-89. Depoimento de Marcello
Orlando Ribeiro.
399
A Voz da Raça, ano I, no. 12, 10/06/1933
195
mandou que nós abríssemos inscrições para que os negros
fossem para a Guarda Civil. Então, de uma leva foram
mais de 200 negros para a Guarda Civil. Isso foi em 1933.
Uns que foram eram da Frente e outros foram para lá
depois que entraram na Guarda.”
400
A prerrogativa era ser sócio da FNB e como vimos, a própria entidade fazia
uma seleção prévia dos candidatos, denotando uma parceria pioneira entre uma
entidade da sociedade civil e uma instituição pública. Um velho associado que compôs
o corpo da Guarda Civil informou que com essa atitude, mudou o status das famílias
negras beneficiadas, pois as mulheres deixaram de trabalhar fora para serem donas de
casa, seus filhos puderam estudar e muitos compraram suas casas próprias. Fato que
até virou notícia na grande imprensa. Entretanto, no decorrer dos anos muitos negros
foram dispensados, "sob o pretexto de alguns não serem alfabetizados e outros por
terem passagem pela polícia". O que não valia para os brancos, pois eram admitidos os
de várias nacionalidades: alemães, russos, húngaros e polacos, além dos nacionais. O
depoente relatou que teve dois chefes brasileiros, porém analfabetos, admitidos porque
eram protegidos de políticos. Dos negros que entraram em 1933, ficaram cerca de cem
ou cento e vinte homens.
401
Outra iniciativa foi a de auxiliar os frentenegrinos nas situações de
desemprego, seja solicitando esclarecimentos quando o associado era dispensado, seja
encaminhando-o à uma colocação. Uma carta endereçada a Arlindo Veiga dos Santos
explicava os motivos para a dispensa de um sócio: "em resposta ao seu estimado ofício
n.79, de 29 de dezembro passado, cabe-nos comunicar-lhe que o sr. Eduardo A.
Morais foi dispensado desta Estrada, em vista de sofrer de ataques epilépticos. O
Diretor."
402
400
QUILOMBHOJE,1998:55 depoimento de Francisco Lucrécio.
401
QUILOMBHOJE,1998:83-84 Depoimento de Marcello Orlando Ribeiro.
402
Carta da Estrada de Ferro Sorocabana. A Voz da Raça, Ano I, no. 30, 20/01/1934, p.2
196
Era o Departamento Jurídico que resolvia esse tipo de problema. E, ao que
parece os assuntos que mais surgiam eram os referentes aos casos de discriminação
racial, não apenas no mercado de trabalho. Relatos dos velhos militantes e informações
por nós encontradas no A Voz da Raça dão uma noção da atuação do referido
departamento:
“ Era moda em São Paulo, no inverno, ter os
rinques de patinação. Negro não entrava. Nós saímos a
campo para saber por que não aceitavam negros. Era um
lugar chique, eles não falavam diretamente que não
aceitavam negros. (...) na época, a Frente Negra estava
com muita força diante do governo de Getúlio Vargas. O
chefe de polícia, o Cordeiro de Farias, emitiu uma nota:
rinque de patinação que não aceitasse negros fecharia
suas portas, como de fato houve rinques de patinação que
foram fechados.”
403
“ Queixas contra a polícia – com vistas ao Dr.
Chefe de Polícia . Crença na ‘marginalidade do negro’ -
As 21 horas, terminado o ensaio, retiravam-se para casa
diversas senhoritas, acompanhadas de rapazes quando, ao
chegarem a rua Conde de São Joaquim foram abordados
por inspetores de segurança... O inspector sem motivo
justificável deu imediatamente ordem de prisão a todos,
ordenando que entrassem para o carro de preso. Tal não
aconteceu devido ao protesto dos presentes... É necessário
Sr. Dr. Chefe de Polícia tome uma providência a fim de
coibir tais abusos de seus subordinados. A Frente Negra
não é uma organização suspeita ou clandestina e por isso
deve ser merecedora de respeito... Aí fica, pois, a nossa
justa reclamação a Sr. Ex. para que tal fato não mais se
reproduza.”
404
E o Departamento também atuava em outros municípios: "tinha cidade do
interior que nós íamos porque os negros não passeavam nos jardins aos domingos, nas
retretas musicais. (...) E aí os frentenegrinos chegavam nas cidades e iam entrando nos
403
QUILOMBHOJE,1998:54 depoimento de Francisco Lucrécio
404
A Voz da Raça, 1933, ano I, nº 1, p. 1
197
jardins, para espanto das pessoas.”
405
Essas ações dos militantes durante os anos 1930,
demonstram um processo de compreensão da questão racial em São Paulo que não
vemos nos anos 1920. Certamente o contato com a realidade das cidades do interior do
estado em que o padrão das relações raciais provavelmente estava assentado em bases
mais tradicionais mostraram-nos que o racismo guardava suas peculiaridades conforme
a sociedade ao qual erigia-se. Fora isso, os ativistas dos anos 1930, haviam passado
por um processo longo de formação, se pensarmos que muitos vinham atuando desde
1926, com a fundação do Centro Cívico Palmares, caso dos irmãos Veiga dos Santos.
Assim, muitas das certezas propagadas nos anos 1920, não seriam mais reproduzidas
na década subseqüente.
Anos antes, o Clarim d'Alvorada noticiava uma matéria que saíra no Correio
da Manhã, em 25 de novembro de 1928, relatando um incidente que envolveu o
médico baiano Enoch Carteado, o professor Fernando Magalhães e o embaixador
Souza Dantas. O Dr. Enoch era negro e reclamava de racismo por parte dos colegas
paulistas que tentavam impedi-lo de compor a caravana de brasileiros que se
encontravam na França. Fernando Magalhães mandou despacho a Souza Dantas
pedindo "proteção para o médico baiano" e circular aos outros médicos informando
que "aquelle médico tem direitos iguais aos outros". Em resposta, correspondendo a
ordem racial em voga, os médicos paulistas informaram terem "agido num excesso de
zêlo", pois ao esconder o colega da curiosidade francesa, tentavam evitar que o Brasil
fosse confundido com um povoado africano.
406
Como podemos perceber as
representações da África como a terra do atraso permeava o imaginário desses
profissionais, sendo por associação, os negros também sinal de atraso e barbárie. O
caso foi estampado na segunda página do jornal Clarim d' Alvorada, num período em
405
QUILOMBHOJE,1998:54 depoimento de Francisco Lucrécio.
198
que os ativistas estavam envolvidos na campanha do monumento à Mãe-Preta e que
inúmeros intelectuais e profissionais liberais como médicos, advogados e políticos
posicionavam-se de forma contrária a efetivação da homenagem. Nesse sentido, a
publicação dessas notícias tinha como finalidade maior sensibilizar a comunidade
negra leitora da necessidade de se refletir sobre a questão racial, especialmente na
cidade de São Paulo, locus privilegiado para a existência desse tipo de prática
discriminatória devido ao grande contingente populacional de origem estrangeira como
mostravam os ativistas.
Numa época que as ações preconceituosas e discriminatórias não eram
consideradas nem crime de injúria, muito menos de racismo, a função dos intelectuais-
militantes era de levar especialmente ao meio negro, as reflexões que faziam. Os textos
tentavam fazer com que negros e até mesmo brancos pudessem tipificar os
comportamentos racistas da sociedade paulistana para a partir daí, se posicionarem de
maneira mais assertiva contra esse estado de coisas.
4.3 Década de 1930: adesão e dissensão entre José Correia Leite e
Arlindo Veiga dos Santos
As lembranças em princípio, fazem parte da particularidade de cada um, logo a
memória é um fenômeno individual. Mas, nossa memória não é estática, passa por
processos de construção e reconstrução, a partir das nossas interações sociais, portanto
ela também é coletiva
407
, uma vez que "trata-se de uma representação do passado que é
compartilhada por toda uma coletividade"
408
.
Veiga dos Santos e Correia Leite compreendiam o campo político de maneiras
406
Clarim d' Alvorada, nov/1928 no.10 p.2
407
Cf.HALBWACHS,1990; POLLAK,1992
199
distintas. Enquanto Leite, numa posição mais à esquerda, incentivava a discussão e
encaminhamento coletivo das decisões, Arlindo, pelo contrário, mais à direita,
creditava ao "líder esclarecido", em outras palavras, à liderança intelectual a
capacidade de escolher o melhor caminho para a coletividade. Duas personalidades
fortes e por vezes antagônicas que influenciaram na mobilização do conjunto de
militantes negros no passado e em alguns momentos também contribuíram para a
ineficácia desta, ainda que esse não tenha sido o fator determinante de seu refluxo,
decorrente, na verdade, da deflagração da ditadura do Estado Novo. Os depoimentos
publicados nos anos 1990, pouco problematizaram tais divergências, apenas Correia
Leite, em suas memórias, toca em questões intestinas. Para ele atitudes e concepções
antagônicas influenciaram profundamente os rumos do ativismo negro.
409
Denunciamos uma preocupação dessa memória social em manter uma unidade de
práticas e representações, que não existiu no passado do ativismo negro porque foi rico
em formulações e projetos, logo passível da ocorrência de conflitos.
Discutiremos alguns episódios e a partir deles, intentaremos demonstrar como
Veiga dos Santos e Correia Leite, a partir de suas filiações identitárias, representavam
de dentro do movimento negro a questão racial e além disso, o tipo de filiação política
que cada um escolheu para si e, a maneira que essas escolhas afetaram ou não o
ativismo que tiveram.
Votando os estatutos da Frente Negra Brasileira
Como já foi dito, em 1931, se criou a Frente Negra Brasileira que nascia,
segundo informações dos depoentes e documentação consultada, de um projeto
coletivo e um processo exaustivo de discussão em torno da questão racial no Brasil.
408
ROUSSO, 1992:95
409
Cf. QUILOMBHOJE,1998
200
Entretanto, logo ocorreu um “racha” entre o pessoal do O Clarim d’Alvorada e o grupo
dos irmãos Veiga dos Santos. Os militantes do Clarim d'Alvorada foram à reunião de
votação do estatuto, com o intento de não deixar passá-lo, pois este havia sido escrito
estritamente pelo Dr. Arlindo Veiga dos Santos e levado para ser aprovado na primeira
assembléia geral. O grupo do Clarim d' Alvorada não concordava com alguns artigos
contidos no documento e acusavam Veiga dos Santos de estar usando a Frente Negra
para divulgar suas idéias patrianovistas que ideologicamente, situavam-se próximo do
integralismo de Plínio Salgado. Para Leite, Arlindo havia se inspirado no fascismo
italiano para fundar uma organização de negros em que ele pudesse se projetar como o
chefe maior, absoluto.
410
De fato, se considerarmos o artigo sétimo do estatuto, no qual
está textualmente escrito: "o presidente era a máxima autoridade e o supremo
representante da entidade, tendo suas ações limitadas pelos seus próprios princípios" e
os artigos primeiro e décimo contidos no item “Da autoridade na Frente Negra
Brasileira” que textualmente estabeleceram: “o Presidente Geral tem a última palavra
em todas as questões” e “Somente o Presidente Geral póde conferir, em última
instância poderes para delegações, comissões ou representações. (...)”
411
, não é de se
estranhar que Leite se colocasse contra tal documento, limitador da ação dos outros
militantes tão envolvidos e comprometidos com o projeto quanto Veiga dos Santos,
mas que institucionalmente, devido a uma manobra desse último, ficaram numa
condição de subordinação ao presidente geral.
412
Contudo, os militantes do Clarim d' Alvorada foram impedidos de participarem
da votação e o estatuto aprovado na íntegra. Dias depois, Leite encontraria Arlindo na
Rua José Bonifácio, em frente ao prédio em que funcionava o jornal integralista A
410
LEITE,1992:94
411
A Voz da Raça, estatuto da FNB, ano I, no. 6, 15/04/1933
412
RAMOS,1971:196
201
Razão, e ao perguntar-lhe se pretendia usar a FNB para a execução de seus ideais
políticos, Arlindo disse que sim, pois os integralistas haviam se apropriado de suas
idéias. Até tinham lhe convidado para dirigir o jornal, mas depois mudaram de idéia e
deram o posto a Plínio Salgado.
413
Vale informar que meses depois, Arlindo ainda
usaria o nome da Frente Negra para barganhar prestígio entre os integralistas. No
primeiro congresso da AIB, o mesmo fez um discurso no qual garantia ao novo
"partido a solidariedade da Frente e seus 200.000 negros".
414
Depois da votação do
estatuto e desse encontro com Veiga dos Santos, Leite que seria um dos conselheiros
da nova entidade, colocou-se no lado oposto das idéias propagadas pela Frente Negra,
tornando-se um dos seus mais ferrenhos críticos, rivalizando com a direção da
organização, em especial Arlindo Veiga dos Santos.
Para selar seu desligamento da organização, Correia Leite escreveu à entidade
nascente, informando as razões político-ideológicas que o afastavam. Alegando não
participar de uma organização da qual não partilhava as idéias, mas se colocando como
um “soldado”, disse não se habituar com "incoherencias e personalismos" além de
estar em "pleno desacordo com as ideologias políticas e o clericalismo do snr.
Presidente dessa instituição ultra-nacionalista", pois como um livre pensador,
condenava a "monarquia, a religião e a república aristocrática". Sobre sua simpatia
pela esquerda afirmou "ganho o pão para minha prole, com árduos trabalhos",
sonhando com uma república socialista democrática. Finaliza argumentando que, ao
contrário do que outros pregavam "devemos imitar tudo quanto é útil para nossa
elevação material". Por isso, os ativistas negros daqui deveriam encontrar motivação e
exemplo nas outras experiências de organização existentes fora do país.
415
Numa clara
413
MOREIRA&LEITE,s/d:20
414
MOREIRA&LEITE,s/d:17
415
Ver inventário DEOPS/SP, prontuário 1538. Frente Negra Brasileira.
202
referência à luta organizada dos negros norte-americanos ligados ao garveysmo e dos
ativistas comunistas europeus, motivos para críticas e denúncias das lideranças
frentenegrinas tempos depois. Todavia, Leite não sabia que a citada carta seria
oportunamente utilizada contra ele num episódio ocorrido meses depois.
O caso São Sebastião do Paraíso
Correia Leite não deixou a militância no Clarim d' Alvorada depois que saiu da
Frente Negra Brasileira. O jornal continuou sendo publicado. A Frente Negra
Brasileira era novidade para a maioria dos negros paulistanos. Dotada de prestígio no
meio negro e não-negro, logo a entidade alcançaria projeção na cidade e fora dela.
Associações de negros do interior pleiteavam se filiar à Frente. Para isso era necessária
a visita de uma autoridade central à entidade solicitadora. Foi o que aconteceu em São
Sebastião do Paraíso, situada em Minas Gerais. Uma delegação liderada por Isaltino
Veiga dos Santos foi aquele município para estabelecer contatos e realizar os trâmites
da filiação. Porém, Isaltino que era casado firmou namoro com a filha de uma
liderança negra local, que posteriormente ficou sabendo do embuste. O pai da moça
tomou providências, comunicando à direção da FNB, na pessoa de Arlindo Veiga dos
Santos, que não deu importância ao acontecido, declarando ter sido um caso de
"leviandade juvenil". O pai não satisfeito foi procurar os militantes do Clarim d'
Alvorada para que esses, no papel de "soldados da raça" cobrassem uma atitude mais
coerente do presidente frentenegrino e seu secretário. Já que o discurso produzido pela
Frente Negra Brasileira exaltava Deus, a Pátria, a Raça e a Família, com uma entidade
defensora dos valores morais cristãos poderia manter aquele secretário? O pessoal do
Clarim d' Alvorada pedia o desligamento de Isaltino do cargo de secretário geral da
entidade. E também declararam greve na redação do Clarim d' Alvorada até que a
203
situação se resolvesse. Atitude que procurava implicar a opinião pública, pois
certamente, estranhariam a ausência do conhecido periódico. Ao mesmo tempo, os
ativistas publicaram um novo jornal, na verdade um pasquim intitulado Chibata
416
que
além de relatar o acontecido em São Sebastião do Paraíso, aproveitava para fazer
outras críticas às lideranças da Frente Negra Brasileira. Assim, um caso hoje visto
como de foro íntimo, tomou proporções políticas interessantes envolvendo algumas
lideranças negras locais e autoridades constituídas, como veremos a seguir.
Arlindo não deixou passar despercebido, escrevendo também inúmeros
manifestos e panfletos contra o pessoal do Clarim d' Alvorada, chegando a alcunha-los
de "Judas da Raça". Já Isaltino dizia: "os nossos seguidores não precisam de
intelectuais, precisamos de mais ação e menos palavras."
417
Em resposta à alcunha de
“Judas da Raça”, o Chibata publicava em sua primeira página como subtítulo a
seguinte frase: Nós somos Judas da raça, quem serão os Christos?” Em vários textos
do jornalzinho há críticas explícitas ou veladas à filiação patrianovista e católica dos
irmãos Veiga dos Santos. Na primeira página piadas e textos sarcásticos nos dão idéia
do embate:
Patriavelha
(...)
Encarnar D. Juan e outras figuras dos nossos
tempos, deve mesmo ser preocupação do irmão do irmão
patriavelhista. Nos melhores dias “desses Brasis”
repousam nas velharias da Pátria que então tinha pastos a
“alimária” negra em pleno paganismo americano e
restringido na sensala.
Mas “nois” que philosophamos, nois que
confessamos, nóis que temo a pátria na vista” devemos
tirar a vista da raça porque negro nasceu para viver
tapeado. Deve ser analphabeto porém deve saber resar
tudinho direitinho sinão não serve p’ra ficar na
416
Saíram apenas dois números do Chibata .
417
MOREIRA&LEITE,s/d:20
204
patriavelha!
Adivinhação
Um homem casado que namora uma moça
solteira o que é?
D. João, conquistador e etc...
É apenas “leviandade juvenil”
Nós da mocidade negra
Não queremos tapeação
A bem da nossa moral
Exigimos punição!
Sahe da Frente secretario
Exigimos sem cessar
Precisamos gente seria
Que possamos respeitar
418
O ápice do conflito se deu com o empastelamento do Clarim d' Alvorada. A
casa de Correia Leite foi invadida, mas os agressores não chegaram a danificar a
oficina. O caso foi parar na Delegacia da ordem Política e Social, pois Leite registrou
queixa contra os irmãos Veiga dos Santos. Mas para sua surpresa, as lideranças
frentenegrinas também tinham uma denúncia contra sua pessoa: acusava-o de ser
adepto do comunismo. Entregaram ao delegado uma cópia da carta em que Leite se
demitia do Conselho Geral da Frente Negra Brasileira, meses antes após o episódio da
votação dos estatutos da organização, uma cópia do jornal Clarim d' Alvorada, além de
uma carta de acusação assinada por dez pessoas. Entre esses dez não estava o nome de
Arlindo Veiga dos Santos que de certo, foi protegido pelo grupo. O documento de 28
de março de 1932, continha as seguintes informações:
418
Chibata, fevereiro de 1932, s/no. p.1
205
"Patrício ilustre,
Embora julgassemos impotentes para acalmar
os animos exaltados dos nossos associados, com
referência ao caso da "A Chibata", e si bem que ela não
tinha sahido graças as providencias tomadas pôr V.excia,
apareceu ontem, um outro jornal, com termos identicos,
mas os dirigentes da "Frente Negra Brasileira",
conseguiram evitar qualquer idéia de desforra dos
associados fazendo ver que os mesmos deviam tão
somente da resolução da polícia, esperar a devida justiça
no caso, é assim que junto a presente lhe enviamos um
exemplar do referido jornal, e para que V. excia., possa
alcançar qual a intenção dessa gente, juntamos a presente,
uma profissão de fé, do chefe desse grupo".
419
O jornal, como já dissemos, era o Clarim d'Alvorada, o que denota a intenção
das lideranças frentenegrinas em intimidar o grupo da Sociedade Cooperadora que
editava o jornal. Parece que o objetivo era neutralizar definitivamente a ações dos
ativistas do grupo do Clarim d' Alvorada, já que mesmo o tradicional jornal passara a
ser perseguido. Já a cópia da carta de Leite vinha com um adendo, contento as
seguintes recomendações ao Delegado de Ordem Política e Social:
"Pela presente carta, verá V.S. que esse senhor
de a muito procurava um pretesto, para se desligar da
"frente", a fim de dar expansão, juntamente com o seu
grupo, das suas ideais contrárias, o caso pois que eles
exploram com o nome do secretário geral da frente,
macomunado com alguns elementos de S. Sebastião do
Paraízo, é de somenos importância, foi tão somente, uma
expansão para demonstrar claramente o seu despeito a sua
inveja, pois eles nem brasileiros querem ser".
420
A denúncia fazia referências claras à simpatia dos militantes do Clarim
d’Alvorada com o ativismo negro norte-americano e o socialismo. No entanto,
segundo depoimento de Correia Leite, a autoridade policial não se surpreendeu com o
conteúdo de sua carta. Pelo contrário, disse ao presidente da Frente Negra que ele é
que deveria se preocupar, pois poderia ser taxado de subversivo uma vez que a
206
monarquia não poderia conviver com a república. Já o “comunismo” de Correia Leite
entendido pelo grupo de Veiga como uma ideologia estrangeira, não era incompatível
ao regime republicano.
421
Por conta desse episódio, a Frente Negra Brasileira passou a ser investigada
pela Delegacia de Ordem Política e Social de São Paulo. E os ativistas do Clarim d'
Alvorada acharam por bem parar com o jornal. No meio negro paulistano pairava a
dúvida: "será o inimigo do negro o próprio negro?"
422
Arlindo também foi perdendo prestígio dentro e fora da organização. Artigos
publicados nos meses subseqüentes revelam uma certa instabilidade e uma tentativa de
convencimento dos duvidosos. No ano de 1933 Veiga também disputou uma vaga na
Constituinte, mas existia um outro candidato negro ligado à Legião Negra, o batalhão que
havia lutado na constitucionalista e essa candidatura dividia as opiniões no estado. Frases
de efeito e palavras de ordem foram utilizadas pelo ativista na tentativa de neutralizar as
forças opositoras. Vejamos:
“Gostamos desses momentos épicos quando as
forças do mal se desencadeiam, quando os instinto baixos
da escola e da plebe se manifestam, quando o cinismo, a
hipocrisia, a infâmia, a canalhice, a estupidez, a sórdida
mentira, o ódio e a inveja, os planos inconfessáveis se
revelam para destruir os baluartes da verdade e do bem.
(...)”. Atacam a FNB, por ser eu, com toda a honra
patrrianovista, como com toda honra sou frentenegrino,
por ser negro brasileiro. (...)
Na falta de argumentos, o pessoal negro-
envergonhado que jamais quis cousa alguma ou que, por
bons motivos, foi expulso da associação, grita
desesperadamente, ás vezes soprado por gente que muito
bem conhecemos, e que tem interesse na morte da
FNB.
423
419
Ver Inventário DEOPS/SP, Frente Negra Brasileira, prontuário 1538.
420
Ver Inventário DEOPS/SP, Frente Negra Brasileira, prontuário 1538.
421
LEITE,1992:100
422
MOREIRA&LEITE,s/d:21
423
Veiga dos Santos, “Alerta”, A Voz da Raça, ano I, no. 3, 1
o
./04/1933, p.1.
207
E até mesmo o conjunto de referências cristãs foram utilizados:
Judas Iscariotes:
Ai do homem por quem o Filho do homem é
traído...
(...)
Tu não serás um chefe digno de um – pois tu
não terás sentido o que se pode sofrer por mim - enquanto
não tiveres superado essa agonia: ser traído pelos teus,
caluniado pelos ‘de tua pátria e tua casa’, beijado por
Judas.
Desconhecido pelos de Nazaré. (...) O beijo de
Judas é a prova do ouro, na hora em que o Senhor se
prepara a nos pedir conta dos dinheiros que nos confiou.
Bessiéres, “E’ vangile du Chaf” tradução de
Arlindo Veiga dos Santos)”
424
Contudo, as ações de Arlindo parecem não terem tido efeito promissor, pois em
1934, o mesmo deixou a presidência geral da Frente Negra Brasileira, ainda que
permanecesse com destaque nos quadros dirigentes. Não sabemos se foi uma estratégia
das próprias lideranças para diminuir as críticas ou resultado da ascensão de outros
líderes menos controversos. Como se pode perceber, disputas políticas fracionaram o
movimento negro na década de 1930. As ideologias de esquerda e direita, além das
motivações individuais enfraqueciam a unidade, pois geravam identidades conflitivas
fragmentadoras da luta política de caráter racial.
Outros desafetos
No período de duração da Revolução Constitucionalista a Frente Negra
Brasileira posicionou-se do lado das forças federais. Por conta dessa escolha, há
relatos de que a instituição sofreu ameaças de invasão pelas forças paulistas. Muitos
424
Veiga dos Santos, “Uma página Christã para os Frentenegrinos”, A Voz da Raça, Ano I, no. 4,p 1,
08/04/1933
208
associados e militantes, antes assíduos da Frente Negra, saíram para lutar a favor de
São Paulo. E, após o conflito, a rivalidade se manteve, pois o prestígio dos dirigentes
frentenegrinos entre as autoridades locais aumentou, já que a oligarquia paulista
perdeu a guerra.
Um dos principais dissidentes foi o advogado da Frente Negra, o Dr. Guaraná
de Santana. Este que havia defendido os irmãos Veiga dos Santos no episódio do
empastelamento do Clarim d' Alvorada decidiu juntar-se as milícias paulistas contra o
poder de Getúlio Vargas, atuando como dirigente na Legião Negra. Logrando ocupar
um lugar de destaque no meio negro, o advogado via que não tinha espaço de atuação
na Frente Negra o que supostamente motivou-o a participar da Revolução
Constitucionalista. Esse posicionamento lhe rendeu perseguições posteriores,
culminado em sua prisão por crime político em 18 de novembro de 1932, sob a
acusação de se tratar de elemento perigoso à ordem devido a participação no
movimento liderado pelos paulistas meses antes. A delação partiu dos dirigentes
frentenegrinos, conforme a carta abaixo, escrita por Isaltino Veiga dos Santos, em
nome do Grande Conselho da Frente Negra Brasileira:
" Homem que ostensivamente procuraram
esfacelar o país"
"arregimentou homens negros para a dita
constitucionalista"
"tem causado extranheza continuar esse
indivíduo perigoso á coletividade completamente solto, a
exhibir a sua pose malcreada e, que é grave, conspirando
contra o atual governo e fazendo praça dessa
circunstância."
425
O episódio mostra o tipo de relacionamento que os dirigentes da Frente Negra
tinha com o Estado, representado pelo DEOPS de São Paulo. Volta e meia os irmãos
209
Veiga dos Santos acionavam as autoridades repressoras, especialmente para denunciar
os suspeitos de serem comunistas. Serviços prontamente retribuídos pelas autoridades
municipais ou estaduais em forma de favores ou presença assídua nas solenidades da
organização, conferindo-lhe prestígio político e social.
Era prática de Arlindo Veiga dos Santos e seu irmão prezar uma boa relação
com as autoridades locais, principalmente com a polícia. A Frente Negra como
oficialista
426
, ou seja, como uma organização que não procurou se contrapor ao
governo central, de todas as maneiras deixou clara sua posição de apoio a Getúlio
Vargas. Como vimos em 1932, a FNB não se posicionou a favor de São Paulo sendo
muito criticada por isso. A Frente Negra Brasileira, sob a direção do Dr. Veiga dos
Santos em inúmeras vezes usou dessa entrada nos meios oficiais como demonstra o
jornal A Voz da Raça e os prontuários do DEOPS/SP. Entretanto, era uma relação de
mão dupla. Mostraremos a partir desse momento como se deu essa relação.
Nos prontuários do DEOPS/SP encontramos inúmeras correspondências que
evidenciam a estreita relação que tiveram as lideranças frentenegrinas com o poder
local. Numa carta enviada ao interventor federal do estado de São Paulo, em maio de
1932, portanto antes da Revolução Constitucionalista, o Conselho Soberano da Frente
Negra Brasileira pedia ajuda, pois "fontes desconhecidas" traziam um "facto
summamente grave": planejava-se por "elementos pertubadores da ordem, um ataque a
mão armada a sede da entidade", entre o dia 27 e 28 daquele mês. O documento não
informava quem seriam esses pertubadores da ordem e nem a quais grupos pertenciam.
Termina reafirmando representações positivas do negro ao interventor Pedro de
Toledo, com as seguintes considerações: "não é, pois, o presente, um apello de
covardia. É um desejo sagrado e sincero de paz, de harmonia da família brasileira, pois
425
Arquivo DEOSP/SP Prontuário 2029 - Joaquim Guaraná de Santana
210
que todos somos pacatos, ordeiros, trabalhadores e nobres em prol da
collectividade".
427
Já um panfleto escrito por Arlindo no começo de maio de 1932, deixava
subentendido que forças ocultas se organizavam contra a Frente Negra Brasileira. É
importante lembrar que neste mesmo ano, entre fevereiro e março, havia ocorrido o
problema com o pessoal do Clarim d' Alvorada em decorrência da atitude de Isaltino
em São Sebastião do Paraíso. Parece então que na verdade se tratava de uma
continuação do problema que agora se politizara completamente. Como veremos em
alguns fragmentos do panfleto.
O panfleto tinha com o título "VIVA A RAÇA!", mas antes mesmo do título
tinha a seguinte chamada: "MEUS IRMAÔS NEGROS!", ou seja, mais do que uma
entidade política e social, a FNB, no projeto de seu dirigente maior, deveria objetivar a
idéia de uma fraternidade, de uma família que vivia em comunhão de idéias e práticas
orientadas pelo líder e perfeitamente compreendidas pelos liderados, os irmãos negros.
Aqueles que por algum motivo discordassem dessa orientação deveriam ser vistos
como traidores e deveriam ser afastados do convívio fraterno, pois agiam como os
"Judas da raça".
Arlindo que procurou não citar os nomes dos seus desafetos tentava esclarecer os
freqüentadores da Frente Negra e organizações similares, dos perigos que representavam
alguns sujeitos que segundo ele, faziam do negro paulistano "instrumento de ascensão no
campo político e talvez econômico". Sendo o presidente e seu grupo, os "verdadeiros
trabalhadores da Causa" seria lógico que seus inimigos desejavam afasta-los da direção.
Arlindo considerava os que se opunha um grupo de "esquineiros que conversam fiado,
426
OLIVEIRA,2002:83
427
Inventário DEOPS/SP, Prontuário 1538 Frente Negra Brasileira
211
mas não resolvem nada, criticam, mas não constróem".
428
Parece que era uma prática dos militantes da Frente Negra Brasileira denunciar
à polícia seus desafetos. Caso esse adversário representasse algum tipo de perigo
explícito, aí sim, que eles se empenhavam ainda mais. Uma correspondência
encontrada no A Voz da Raça, enviada pelo Delegado de Segurança Pessoal, Francisco
A C. Franco ao Dr. Arlindo Veiga dos Santos, agradecia a "nobre e digna sociedade" a
"gentileza das informações", finalizando com "votos de prosperidade e protestos de
estima e consideração".
429
Não sabemos do que se tratavam as informações
"gentilmente" cedidas ao delegado, mas desconfiamos que elas versavam sobre
supostas lideranças que no entendimento de Veiga dos Santos pudessem oferecer
algum perigo ao status quo. Fossem esses militantes do movimento negro ou não.
A conjuntura política iniciada em 1930, caminhava anos após anos para um
Estado autoritário, fato ocorrido em 1937, com a ditadura do Estado Novo. Num
período em que premia uma conjuntura revolucionária na qual muitos eram obrigados
a se posicionarem política e ideologicamente, Arlindo e seu grupo optaram pelo
oficialismo, ou seja, ficaram do lado do governo Vargas, contribuindo em muitos
episódios para com o a estrutura de repressão e perseguição política instaurada pelo
Estado a partir de 1930 e exacerbada sob o argumento do controle da ordem e paz
social depois da deflagração de movimentos como a Revolução Constitucionalista de
1932 e radicalização comunista em 1935.
428
Inventário DEOSP/SP, Prontuário 1538, Frente Negra Brasileira. Manifesto de Arlindo Veiga dos
Santos 04/05/1932
429
A Voz da Raça, ano I, no.12 10/06/1933
212
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando escolhermos como objeto de nossa pesquisa as trajetórias políticas de
militantes negros, nossa primeira intenção era olhar para o movimento negro existente
durante os anos 1920 e 1930 por uma perspectiva dos indivíduos, pois muitas
abordagens dedicaram-se as organizações surgidas no período, sem necessariamente
deterem um olhar mais pormenorizado aos seus protagonistas. Assim, ao iniciarmos as
leituras sobre esse passado, dia após dia, apreendíamos a história dessas organizações
negras, no entanto, ficavam algumas indagações que aumentavam no decorrer do
curso: quais as motivações individuais e coletivas daqueles ativistas? Que barreiras
enfrentaram? Quais percursos devem ter percorrido para alcançarem seus objetivos?
Que status alcançaram no interior e fora dos grupos em que atuaram? Eram perguntas
que não encontrávamos totalmente respondidas nos trabalhos produzidos até o
momento.
Estes personagens aparecem na maioria dos livros, teses e dissertações como
componentes de engrenagens que formaram as organizações seja de cunho cultural,
político ou social fundadas por eles ou nas quais compunham os quadros. Para
exemplificar, nos trabalhos de Fernandes
430
, os ativistas figuram como informantes
ficando claro para o leitor somente as iniciais de seus nomes. Limites do fazer
metodológico e da proximidade temporal entre o pesquisador e o objeto. E, em
Andrews, estes são abordados de forma irrisória. No caso de Arlindo Veiga dos Santos
os dados são escassos e incorretos, cabendo quase todos num único parágrafo que dizia
ter Arlindo nascido na Bahia, trabalhado na Faculdade de Direito de São Paulo e
430
FERNANDES,1978:volI e II.
213
presidido o Centro Cívico Palmares.
431
Outras informações estão contidas em notas de
pé de página distribuídas no decorrer do capítulo 5. Já sobre Leite não há qualquer
informação, ainda que o Clarim d'Alvorada tenha sido exaustivamente utilizado.
Portanto, e como já dissemos em nosso primeiro capítulo, as iniciativas preocupadas
em compreender esses sujeitos e suas motivações foram realizadas por ativistas
contemporâneos através das entrevistas colhidas por Cuti e Márcio Barbosa. Nesse
caso, Correia Leite pôde depor sobre sua própria história de vida. O mesmo não
aconteceu com Arlindo, falecido em 1978. Mas, um trabalho recente, ainda não
publicado dá conta de alguns aspectos da história de vida desse protagonista do
ativismo negro paulistano.
432
Assim, definidos os objetos e os questinamentos que nos levavam à
investigação, faltava-nos as abordagens teórico-metodológicas. A literatura mais
abrangente, a própria documentação atrelada as perguntas que remetíamos as
informações encontradas nos levaram a entender que aqueles personagens tiveram
atuações que os definem para além do termo militantes. Por isso os entendemos como
intelectuais-militantes, uma definição que combina a prática política do militante com
a ação reflexiva do intelectual. No caso de Veiga e Leite, foram formuladores de
representações sociais dirigidas à comunidade negra em especial, com a finalidade de
dar-lhe instrumental político e cultural capaz de dirimir as situações de discriminação e
preconceitos raciais na cidade de São Paulo.
Afirmamos no início de nosso trabalho e reiteramos nessa conclusão que de
fato, os percursos de vida são moldados, direcionados e freqüentemente modificados
pelas interações entre os sujeitos e seu meio coletivo socio-histórico. Entretanto,
431
ANDREWS,1998:230
432
Trata-se do artigo, ainda no prelo, de Domingues, intitulado O "messias" negro? Arlindo Veiga dos
Santos (1902-1978): "Viva a nova monarquia brasileira; Viva Dom Pedro III!", a ser publicado pela
214
também corroboramos das assertivas que acreditam ser a ênfase nos indivíduos um
mecanismo que permite extrair comportamentos gerais, mas também reconhecer as
diferenças particulares no nível individual, pois focando em ângulos de suas vidas, e
mesmo comparando-as, podemos alcançar aspectos singulares de suas experiências.
433
Portanto, para comprovar nossas assertivas iniciais e reafirmadas aqui, optamos por
abordar as trajetórias políticas desses dois intelectuais-militantes, numa perspectiva
comparada e no âmbito das organizações político-sociais por eles fundadas ou
freqüentadas. Somente nesse locus pudemos comprovar a prática intelectual e militante
desses indivíduos, pois percorremos as ações implementadas, relações travadas e
resultados obtidos.
As atuações políticas de Veiga e Leite entre as décadas de 1920 e 1930
guardam características específicas do tempo vivido. Personagens em evidência no
interior da coletividade negra, cada qual alcançou prestígio por um caminho distinto,
ainda que os dois viessem de famílias humildes como a maioria dos negros da época.
Veiga como vimos foi um intelectual erudito, publicou livros ainda na juventude e foi
respeitado também fora da comunidade negra por sua atuação católica, monarquista e
carreira profissional como professor. Correia Leite se construiu intelectualmente no
decorrer de sua trajetória política com reconhecimento preferencialmente no interior
do próprio meio político negro. Especialmente após os anos 1950, com a
comemoração de seus 50 anos, organizada pelo também ativista e intelectual Fernando
Góis. Já para o evento denominado "Semana Correia Leite", continuado no decorrer de
mais alguns anos, acorreram ativistas de São Paulo, Rio de Janeiro, além de
intelectuais brancos como os professores Roger Bastide e Florestan Fernandes.
434
Revista de História: Questões e Debates, de Curitiba.
433
SPITZER,2001:21
434
LEITE,1992:160
215
Posteriormente, mais precisamente a partir dos anos 80, com a descoberta desse
ativismo da primeira metade do século XX pelos participantes contemporâneos, José
Correia Leite tomou lugar destacado nesse universo, transformando-se numa espécie
de guardião da memória do passado e personalidade emblemática.
435
Sua trajetória
política simbolizava para aqueles que se envolveram no protesto político negro a partir
dos anos 1970, a personalização do ativismo negro agente décadas antes.
Especialmente por suas posições de esquerda, contrárias das de Veiga dos Santos,
declaradamente um conservador reacionário. Essa memória os ativistas do presente
não queriam conhecer, pelo menos não totalmente.
Contudo, é importante frisar que o trabalho com o resgate da memória desses
militantes esteve estreitamente ligado a questão da construção de uma identidade
social
436
do movimento negro brasileiro contemporâneo. As narrativas externadas
pelas lembranças muitas das vezes tiveram uma lógica intrínseca aqueles que viveram
o mesmo período, mas acabaram por estender-se ao presente, a partir do momento em
que os que aqui estavam partilhavam as mesmas filiações identitárias. Essa afirmação
é facilmente comprovada quando comparamos os depoimentos dos antigos militantes,
pois questões desagregadoras, como dissidências políticas, projetos antagônicos e
conflitos mais diretos, vividos por eles no passado, muitas das vezes foram colocados
em segundo plano, dando lugar a uma narrativa que procurou com que todos, os do
passado e do presente, se vissem como parte de uma coletividade una. Mesmo Correia
Leite, o mais crítico de todos os depoentes, em alguns episódios procurou
contemporizar. Afinal a importância maior desses mecanismos de resgate da memória
era o fortalecimento de uma identidade que ligasse os dois momentos, contribuindo
435
Outros personagens importantes foram os senhores Henrique Cunha, cooperado do jornal O Clarim
d' Alvorada na década de 1930 e Francisco Lucrécio, o segundo secretário da Frente Negra Brasileira.
436
POLLAK,1992:204
216
assim para a construção de uma história do movimento negro brasileiro.
Outrossim, os negros do presente repetiam o que fizeram Leite, Veiga em
suma, os intelectuais-militantes de outrora: engendraram inúmeros mecanismos de
conscientização e mobilização da comunidade negra. Os do passado todos os anos
realizavam as comemorações do 13 de Maio e demais leis abolicionistas, com visitas
aos túmulos dos heróis abolicionistas Luiz Gama e Antônio Bento e a publicação de
editoriais especiais que além de incluir as personalidades antes citadas, incluía José do
Patrocínio e mesmo os personagens brancos que concorreram para a efetivação da lei.
Vale salientar que com o passar dos anos a ênfase era cada vez mais dada as
personalidades negras. Além dos abolicionistas negros de destaque do passado eram
sempre lembradas datas de aniversário e morte como de Cruz e Souza, José do
Patrocínio, dos irmãos Rebouças, Henrique Dias e até mesmo o emblema Zumbi com a
história de Palmares. Essas ocasiões serviam como momento rico para a produção de
novas representações do negro que objetivando e ancorando essas imagens, construíam
uma história passada positivada, livre do clichê do negro escravo. E mesmo a
escravidão foi objetivada de uma maneira que os ativistas entendiam positiva, a partir
da representação da Mãe-Preta, manipulada em diversos episódios naqueles anos.
Em suma, José Benedito Correia Leite e Arlindo José da Veiga Cabral dos
Santos foram abordados em nossa análise como os extratos de um conjunto de
intelectuais-militantes responsáveis por dinamizar o ambiente político paulistano
durante os anos 1920 e 1930. Líderes natos, apesar das atuações públicas distintas que
nos esforçamos em descrever ao longo do trabalho, encamparam ações voltadas à
comunidade negra, paulistana em especial. Cônscios da condição de subordinação
enfrentada pela população negra naquele estado e mesmo no país atuaram com as
convicções político-ideológicas de que dispunham e limitações pessoais para
217
promoverem o que comumente chamavam de "elevação moral do elemento negro"
pela via da instrução, na mais ampla acepção do termo única saída à Segunda
Abolição.
218
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fontes Primárias:
Informativo publicitário da Faculdade de Filosofia São Bento - São Paulo. Cedido à
autora em agosto de 2004. São Paulo.
Depoimento de José Correia Leite cedido à Míriam Ferrara, em 14/11/1980 (mimeo).
Jornais da imprensa negra: A Voz da Raça (1933-1937), Clarim d’ Alvorada (1928-
1932) e Chibata (fev/mar de 1932) – Biblioteca Nacional e Centro de Documentação
da PUC-SP.
Inventários DEOPS/SP 1538- Frente Negra Brasileira; 2018 – Isaltino Veiga dos
Santos; 2029- Guaraná de Santana; 70236 - Frente Negra do Tietê
Fotos: monumento à Mãe-Negra e Luís Gama (acervo da própria autora / jul/2005)
Almoço da Frente Negra Brasileira ( Quilombhohe,1998:49)
ABREU, Alzira. 1992. Resenha de Os intelectuais e a revolução francesa, DARTON,
R. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, no. 10, p. 261-271
AKPAN, Monday B.1991. Libéria e Etiópia, 1880-1914: a sobrevivência de dois
Estados africanos. In: "História Geral da África". v.7: A África sob dominação
colonial. 1880-1895. Boahen, Albert Adu (Coord.) São Paulo: Ática, p 263-294.
ANDREUCCI, Álvaro & OLIVEIRA, Valéria. 2002 Cultura amordaçada:
Intelectuais e músicos sob a vigilância do DEOPS/SP, São Paulo, Arquivo do Estado:
Imprensa Oficial
ANDREWS, George.1998 Negros e Brancos em São Paulo - tradução Magda Lopes,
São Paulo:EDUSC.
AZEVEDO, Elciene. 1999. Orfeu de carapinha - A trajetória de Luiz Gama na
imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp/Cecult.
BAIRROS, Luíza. 1996. Orfeu e Poder: uma perspectiva afro-americana sobre a
política racial no Brasil. Salvador: Afro-Ásia, n.º 17, pp. 173-186
BARTHES, Roland. 1999. Mitologias trad. de Rita Buongermino e Pedro de Souza -
10
ª
edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan.1971 Brancos e Negros em São Paulo.
3
ª
ed. São Paulo: Nacional.
BASTIDE, Roger. 1973. A Imprensa Negra no estado de São Paulo. Estudos Afro-
Brasileiros, São Paulo: Editora Perspectiva.
BERNARDO, Teresinha, 1998 Memória em branco e negro: olhares sobre São Paulo.
São Paulo: EDUC: Fundação Editora da UNESP.
BERND, Zilá.1986. Introdução à literatura negra São Paulo: Brasiliense.
BERSTEIN, Serge. 1998. A cultura política In: RIOUX & SIRINELLI (orgs.) Para
uma história cultural, Lisboa: editorial Estampa.
BOURDIEU, Pierre, 1996a. A ilusão biográfica In: "Usos & abusos da história oral" J.
AMADO & FERREIRA (coords.), Rio de Janeiro: Editora da FGV.
219
BOURDIEU, Pierre, 1996b. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário;
trad. Maria Lúcia Machado, São Paulo: Companhia das Letras.
BUONICORE, Augusto. 2005. Os comunistas e o problema racial no Brasil, In La
Insígnia, 25/05/2005, www.lainsignia.org/2005/mayo/ibe_085.htm
BURITY, Joanildo.1999. Caminhos sem fim - caminho do fim? Movimentos sociais e
democracia. In "Movimentos sociais, produção e reprodução do sentido". Org.
FONTES, Breno Augusto S; Recife: Ed. Universitária- UFPE.
CARDOSO, Ciro, 2000. Representações: contribuições a um debate transdisciplinar.
MALERBA. J. (org.) Campinas, São Paulo: Papirus.
CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro.2004. Preta com muito bom leite, prendada e
carinhosa: maternidade, sexualidade e escravidão no Rio de Janeiro oitocentista -
1868-1888, Projeto de Qualificação de Doutorado, PPGHIS- UnB, Brasília.
CARVALHO, José M. 2004. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 5
ª
edição. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida.1983. A Ovelha Perdida e o Bom Pastor: o
reverso das Parábolas ( Igreja, Estado e Camadas Populares na Cidade do Rio de
Janeiro, 1921-1945). Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Federal
Fluminense.
CAVALARI, Rosa Maria F. 1999. Integralismo: ideologia e organização de um
partido de massa no Brasil (1932-1937), Bauru, São Paulo: EDUSC.
CHARTIER, Roger. 2002. Á beira da falésia: a História entre certezas e inquietude.
[trad.] de Patrícia C. Ramos, Porto Alegre, Ed. Univesidade/UFRGS.
CHAUI, Marilena. 2000. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo:
Fundação Perseu Abramo.
CUNHA, Olívia M. 2000. Depois da festa: Movimentos Negros e Política de
Identidade no Brasil. In "Cultura e Política nos movimentos sociais latino americanos:
novas leituras" (orgs.) ALVAREZ, Sonia, DAGNINO, Evelina, ESCOBAR, Arturo.
Belo Horizonte: Ed. UFMG.
CUTI. Luís Silva . nov/1991 Frente a Frente Negra Brasileira. A questão étnica e os
movimentos sociais. Revista Proposta, Rio de Janeiro, v.15, n.º 51, p. 18-21,
DAIBERT Jr. Robert. 2004. Isabel, a "Redentora" dos Escravos: uma história da
Princesa entre olhares negros e brancos (1846-1988), Bauru, São Paulo: EDUSC.
Da MATTA, Roberto. 1990. Digressão: a fábula das três raças, ou o problema do
racismo à brasileira, In "Relativizando uma introdução à antropologia social", Rio de
Janeiro: Rocco.
DECRAENE,Philippe.1962. O Pan-africanismo, tradução de Octávio Mendes Cajado,
coleção "Saber Atual", São Paulo: Difusão Européia do Livro.
DOMINGUES, Petrônio, 2003. Os "Pérolas Negras": a participação do negro na
Revolução Constitucionalista de 1932. In: Afro-Ásia. CEAO/UFBA. Bahia, no. 29/30,
pp. 199-245
DOMINGUES, Petrônio,2004a. Uma história não contada: negro, racismo e
branqueamento em São Paulo no pós-abolição, São Paulo: Editora Senac de São
Paulo.
DOMINGUES, Petrônio,2004b. "Paladinos da Liberdade". A experiência do Clube
Negro de Cultura Social (1932-1938) em São Paulo. In: Revista de História. São
Paulo, Departamento de História -USP, no. 150,pp.57-79.
DOMINGUES, Petrônio,s/d. O "messias" negro? Arlindo Veiga dos Santos (1902-
1978): "Viva a nova monarquia brasileira; Viva Dom Pedro III !" In: Revista de
História: Questões e Debates. Curitiba. (prelo).
220
EAGLETON, Terry.1997. Ideologia. Uma introdução. Trad. Silvana Vieira e Luís
Carlos Borges. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora
Boitempo.
FERNANDES, Florestan.1978. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. Vol.
1 e 2, São Paulo: editora Ática.
FERRARA, Mírian.1986. A Imprensa Negra Paulista (1915-1969). São Paulo: Edusp.
FERREIRA, Marieta & PINTO, Surama. 2003. A crise dos anos 1920 e a revolução
de 1930. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília. "O Brasil republicano: o
tempo do liberalismo excludente - da Proclamação da República à Revolução de
1930". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
FRANÇOIS, Etienne, 1996. A fecundidade da história oral In: "Usos & abusos da
história oral" J. AMADO e M. FERREIRA (coord.), Rio de Janeiro: Editora da FGV.
FREYRE, Gilberto. 1998. Casa-Grande & Senzala: formação da família sob o regime
da economia patriarcal, ilust. Cícero Dias; des. Antônio Montenegro. 34
ª
edição. Rio
de Janeiro: Record.
GIACOMINI, Sônia.1988, Ser escrava no Brasil, Estudos Afro-Asiáticos,
Universidade Cândido Mendes, nº 15, pp.145-170.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela inquisição. Trad. Maria Bethania Amoroso, São Paulo: Companhia
das Letras.
GOMES, Angela de Castro.1995. A ideologia do trabalho no Estado Novo. In:
PANDOLFI, Dulce (org.) "Repensando o Estado Novo, Rio de Janeiro: Editora FGV.
GONZALEZ, Lélia & HASENBALG, Carlos.1985 Lugar do negro. Rio de Janeiro:
Marco Zero.
GRAMSCI, Antônio. S.d. Os intelectuais e a organização da cultura, trad. Carlos
Nelson Coutinho, São Paulo: Círculo do Livro.
GRIN, Mônica. 2002 Modernidade, identidade e suicídio: o "judeu" Stefan Zweig e o
"mulato" Eduardo Oliveira Oliveira Revista Topoi, Rio de Janeiro, Programa de Pós-
graduação em História Social da UFRJ/7 Letras, no. 5, pp.201-222
GRINBERG, Keila.2002.O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito
civil no tempo de Antônio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
GUIMARÃES, Antônio.2002. Classes, raça e democracia, São Paulo: Editora 34.
HALBWACHS, Maurice. 1990. A memória coletiva. São Paulo: Vértice.
HANCHARD, Michel. 1996.Resposta a Luíza Bairros In Afro-Ásia, Salvador , no.
18, p. 227-233.
HANCHARD, Michael. 2001. Orfeu e Poder, Movimento negro no RJ e SP (1945-
1988) Trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Eduerj.
HASENBALG, Carlos.1979. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil .
Hasenbalg & Silva; Rio de Janeiro: Graal.
HOLANDA, Sérgio Buarque de.1978. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio.
IANNI, Otávio. 1993. Estilos de pensamentos In: BASTOS, E. R. & MORAES, J. Q.
de (orgs.) : O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da UNICAMP.
JODELET,Denise.2001. Representações sociais: um domínio em expansão In:
JODELET, D. (org.) “As representações sociais” trad. Lílian Ulup- Rio de Janeiro:
EDUERJ.
KOWARICK, Lúcio. 1997 Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no
Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Brasiliense.
LAHUERTA, Milton. 1997. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista,
modernização. In: "A década de 1920 e as origens do Brasil moderno", orgs. De
LORENZO, Helena & COSTA, Wilma, São Paulo: Editora da UNESP.
221
LEITE, Dante Moreira. 1992. O caráter nacional brasileiro: história de uma
ideologia. 5
ª
edição. São Paulo: Ática.
LEITE, José Correia.1992...E disse o velho militante José Correia Leite, CUTI, Luís
Silva, São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
LEME, Maria Alice V. 1995 O impacto da teoria das representações sociais In:
SPINK, M. J. (org.) "O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na
perspectiva da psicologia social", São Paulo: Brasiliense.
LIMA, Lenivaldo M.1999. Movimentos sociais: identidade, representação e ideologia.
In: "Movimentos sociais, produção e reprodução do sentido". Org. FONTES, Breno
Augusto S; Recife: Ed. Universitária- UFPE.
LEVI, Giovanni, 1996.Usos da biografia In: "Usos & abusos da história oral" J.
AMADO e M. FERREIRA (coords.); Rio de Janeiro: Editora da FGV.
LOZANO, Jorge.1996 Práticas e estilos de pesquisa na história oral contemporânea
In: "Usos & abusos da história oral" J. AMADO e M. FERREIRA (coords.); Rio de
Janeiro: Editora da FGV.
MACCIOCHI, Maria A.1980. A favor de Gramsci; trad. Angelina Peralva 2a. Edição.
Rio de Janeiro: Paz e Terra
MACHADO, Paulo Henrique. 2005. Pão, terra e liberdade na Cidade Imperial: a luta
antifascista em Petrópolis no ano de 1935. Dissertação de mestrado em história
apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Comparada do IFCS da UFRJ.
MALATIAN,Teresa,1990.Os cruzados do Império. São Paulo/Brasília:
Contexto/CNPq, Série República.
MALATIAN, Teresa, 2001. Império e Missão: um novo monarquismo brasileiro.
Editora Nacional.
MAUES, Maria Angélica 1991.Da branca senhora ao negro herói: a trajetória de um
discurso racial. Afro-Asiáticos dez/91,no.21, p.119-129
MAUES, Maria A 1997. Negro sobre negro: a questão racial no pensamento das
elites negras brasileiras. Tese de doutorado em sociologia, IUPERJ, Rio de Janeiro.
MELO, Luis Correia. 1954. Dicionário de autores paulistas, Luis Correia Melo,
coord. São Paulo: irmãos Andrioli.
MENDONÇA, Joseli. 1999. Entre a mão e os anéis - A Lei dos Sexagenários e os
caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp/Cecult/Fapesp,1999.
MENDONÇA, Joseli. 2001. Cenas da abolição: escravos e senhores no parlamento e
na justiça. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.
MENEZES, Lená Medeiros de. 2002. Tramas do mal. A Revolução de Outubro no
plano das representações (1917-1921). Tese apresentada ao concurso de professor
titular na área de História Moderna no Departamento de História da UERJ. Rio de
Janeiro, digitada.
MINAYO, Maria C. 1999. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde.
6
ª
edição, São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco.
MOREIRA, Renato Jardim & LEITE, José Correia . s/d. Movimentos sociais no meio
negro. Mimeo.
MOTA, Maria Aparecida R. 2000. Sílvio Romero: dilemas e combates no Brasil da
virada do século XX, Rio de Janeiro: Editora FGV.
MOTT, Maria Lúcia de B. 1988. Submissão e Resistência: a mulher na luta contra a
escravidão. São Paulo: Contexto.
MOURA, Clóvis. 2004 Formas de resistência do negro escravizado e do
afrodescendente. In: K. MUNANGA (org.) "O negro na sociedade brasileira:
resistência, participação e contribuição" v.1, Brasília: Ministério da Cultura, Fundação
Cultural Palmares e CNPq.
222
MUNANGA, Kabengele. 1999. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade
nacional versus identidade negra, Petrópolis: Vozes.
NASCIMENTO, Abdias. 1982. (org.) O negro revoltado. 2
ª
edição. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
NASCIMENTO, Elisa.1981 Pan-africanismo na América do Sul, Petrópolis: Vozes.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. 1985. Dois negros libertários: Luiz Gama e Abdias do
Nascimento - Sessão solene de homenagem realizada na Assembléia legislativa do
Estado do Rio de Janeiro no dia 24 de agosto de 1984. Rio de Janeiro, IPEAFRO.
NASCIMENTO, Elisa Larkin, 2003. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no
Brasil, São Paulo: Summus.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. 1997. Questão nacional na Primeira República. In: "A
década de 1920 e as origens do Brasil moderno", orgs. De LORENZO, Helena &
COSTA, Wilma, São Paulo: Editora da UNESP.
OLIVEIRA, Eduardo.1998. Quem é quem na negritude brasileira. volume 1; São
Paulo: Congresso Nacional Afro-brasileiro & Secretaria de Direitos Humanos do
Ministério da Justiça: Brasília.
OLIVEIRA, Laiana.2002 A Frente Negra Brasileira: Política e questão racial nos
anos 1930. Dissertação de Mestrado - PPGH/UERJ, RJ.
ORTIZ, Renato.1994. Cultura brasileira e identidade nacional. 5
a
edição. São Paulo:
Brasiliense.
PANDOLFI, Dulce.2003. Os anos 1930: as incertezas do regime In: "O tempo do
nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo". Org.
Ferreira, Jorge e Delgado, Lucilia, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
PINTO, Regina Pahim.1993. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. São
Paulo, Tese de doutorado apresentado a FFLCH/USP.
PINTO, Regina.1996. A Frente Negra Brasileira, Revista Cultura Vozes. n.º 4 p. 44-
59 Jul/ago.1996
PINTO, L. A Costa. 1998. O negro no Rio de Janeiro: relações de raça numa
sociedade em mudança. 2
a
edição, Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
POLLAK, Michel. 1989. Memória, Esquecimento e Silêncio, Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, p. 3-15.
POLLAK, Michel. 1992. Memória e Identidade Social Revista Estudos Históricos,
RJ, vol.5, no. 10, p.200-212
QUILOMBHOJE. (org.) 1998 Frente Negra Brasileira: depoimentos. Entrevista e
textos: Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje/Fundo Nacional da Cultura.
RAMOS, Arthur.1971. O negro na civilização brasileira Rio de Janeiro: Livraria-
editora da Casa do Estudante do Brasil.
RAMOS, Jair de S. 1996. Dos males que vêm com o sangue: as representações raciais
e a categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de
20. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CCBB.
RAMOS, Guerreiro.1981. O problema do negro na sociologia brasileira In: "O
Pensamento Nacionalista e os Cadernos de Nosso Tempo". Org. Simon Schwartzman.
Biblioteca do Pensamento Político Republicano, v.6. Distrito Federal: Ed. UnB e
Câmara dos Deputados.
REIS, José Roberto F. 2001. Cartas a Vargas: entre o favor, o direito e a luta política
pela sobrevivência (1937-45) Locus: revista de história. Juiz de Fora, v.7, n.º 2, p.53-
72.
REIS FILHO, Daniel Aarão (org.) 2000. Intelectuais, história e política: séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: 7Letras.
223
ROCHA POMBO, José F. 1905. História do Brasil- Ilustrada, vol. IX, Benjamim de
Aguiar Editor. Rio de Janeiro.
RODRIGUES, Nina.1932. Os africanos no Brasil, Revisão e prefácio de Homero
Pires, São Paulo: Companhia Editora Nacional.
ROLNIK, Raquel.1989. Territórios Negros nas Cidades Brasileiras: etnicidade e
cidade em SP e RJ, Rio de Janeiro: Estudos Afro-Asiáticos, n.º 17.
ROMERO, Sílvio. 1911 O Brasil na 1
ª
década do século XX, Lisboa: Tipografia da
Editora.
ROMERO, Sílvio. 1943. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, José
Olympio editora. [edição de 1888]
ROSANVALLON, Pierre.1995 Por uma história conceitual do político: Revista
Brasileira de História, São Paulo, vol. 15 no. 30 , p. 9-22.
ROUSSO,Henry,1996.A memória não é mais o que era. In: "Usos & abusos da
história oral" J. AMADO e M. FERREIRA (coords.), Rio de Janeiro: Editora da FGV.
SÁ, Celso P. 1995. Representações Sociais: o conceito e o estado atual da teoria In:
SPINK, M. J. (org.) "O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na
perspectiva da psicologia social", São Paulo: Brasiliense.
SANTOS, Carlos J. 1998. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza (1890-1915).
São Paulo: Annablume.
SANTOS, Joel. & BARBOSA, Wilson. 1994 Atrás do muro da noite. Dinâmicas das
culturas afro-brasileiras. Brasília: Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares.
SCHWARCZ, Lílian, 1993. O espetáculo das raças – cientistas, instituições e questão
racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras.
SEYFERTH, Giralda.1991. Os paradoxos da miscigenação. Estudos Afro-Asiáticos,
n.º 20, p.165-185.
SEYFERTH, Giralda.1996 Construindo a nação: Hierarquias raciais e o papel do
racismo na política de colonização In "Raça, ciência e sociedade". Rio de Janeiro:
FIOCRUZ/CCBB.
SILVA, Eduardo.1997. Dom Obá II D'África, o príncipe do povo: vida, tempo e
pensamento de um homem livre de cor. São Paulo: Companhia das Letras.
SILVA, José Carlos G. 1990. Os suburbanos e a outra face da cidade. Negros em São
Paulo (1900-1930):cotidiano, lazer e cidadania, dissertação de mestrado, Campinas:
Unicamp.
SILVA, Sérgio Luís P. 1999. Senso comum, cotidiano e conflito: elementos para um
estudo das representações sociais da política nos movimentos populares. In
"Movimentos sociais, produção e reprodução do sentido". Org. FONTES, Breno
Augusto S; Recife: Ed. Universitária- UFPE.
SILVA, Marilene. 2004. Tramas femininas no cotidiano da escravidão,Labrys,
estudos feministas, jan/jul.2004./www.unb.br/ih/his/gefem/labrys5/textos/
marilenabr.htm
SIRINELLI, Jean-François. 1996 Os intelectuais. In: REMOND, René (org). "Por uma
história política", Rio de Janeiro: editora UFRJ/FGV.
SPITZER, Leo. 2001. Vidas de Entremeio: assimilação e marginalização na Áustria,
no Brasil e na África Ocidental, 1780-1945. Tradução, Vera Ribeiro, Rio de Janeiro:
EdUERJ.
SOUZA, Jessé. 2000. Democracia racial e multiculturalismo: a ambivalente
singularidade cultural brasileira. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, no. 38, p.
135-155.
TRINDADE, Hélgio.1979. Integralismo - o fascismo brasileiro na década de 30. São
Paulo: Difel.
224
VAINFAS, Ronaldo. 2002. Dicionário do Brasil imperial. Direção Ronaldo Vainfas,
Rio de Janeiro: Objetiva.
VENANCIO, Giselle M.2003. Na trama do arquivo: A trajetória de Oliveira Vianna -
1883-1951. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: IFCS-UFRJ.
VELLOSO. Monica Pimenta.2003. O modernismo e a questão nacional. In: O tempo
do liberalismo excludente: da proclamação da República à Revolução de 1930. Orgs.
FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
VIANNA, Francisco José de O. 1938. Raça e assimilação: os problemas da raça; os
problemas da assimilação. 3
ª
edição. Série Brasiliana,vol.4 São Paulo, Rio de Janeiro,
Recife e Porto Alegre: Companhia Editora Nacional.
VIANNA, Francisco José de O. 1942. Pequenos estudos de Psicologia Social. 3
ª
edição argumentada. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre: Companhia
Editora Nacional.
VIANNA, Francisco José de O. 1956. Evolução do Povo Brasileiro. 4
ª
edição. Rio de
Janeiro: Livraria José Olímpio Editora.
XAVIER, Roseane. 2003. Representação social e ideologia: conceitos
intercambiáveis? Revista Psicologia&Sociedade; 14(2): p. 18-47; jul./dez.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo