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REPRESENTAÇÕES DA REALIDADE EM ROMANCES BRASILEIROS
CONTEMPORÂNEOS: A LITERATURA DA ANGÚSTIA
por
CATIA VALÉRIO FERREIRA BARBOSA
(Doutorado em Letras Vernáculas – Literatura Brasileira)
Tese de Doutorado em Letras Vernáculas
Literatura Brasileira apresentada à Coordenação dos
Cursos de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Orientador: Professor Doutor Wellington de Almeida
Santos.
Rio de Janeiro, 2º semestre de 2006
UFRJ- Faculdade de Letras
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TESE DE DOUTORADO
BARBOSA, Catia Valério Ferreira. Representações da realidade em romances brasileiros
contemporâneos: A literatura da angústia. Rio de Janeiro: UFRJ, Fac. de Letras, 2006. 264 fl.
mimeo. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas – Literatura Brasileira.
BANCA EXAMINADORA:
Professor Doutor Wellington de Almeida Santos – UFRJ
( Orientador )
Professor Doutor Alcmeno Bastos – UFRJ
Professor Doutor Adauri Silva Bastos – UFRJ
Professor Doutor Luiz Gonzaga Marchezan – UNESP
Professor Doutor Francisco Venceslau dos Santos – UERJ
Professor Doutor Flávio Martins Carneiro – UERJ (Suplente)
Professora Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens – UFRJ (Suplente)
Defendida a Tese:
Conceito:
Em: / / 2006.
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Por todo carinho recebido neste período de “dupla gestação”, pela
vida feliz que juntos construímos, dedico esta pesquisa ao Afrânio,
meu amor. Com o seu apoio finalizo este trabalho e, ao seu lado,
fico à espera do nosso presente de Deus, nossa sonhada filhinha:
Maria Luísa.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Wellington, por seus cursos na Pós-graduação, e pela ajuda no meu
crescimento na academia e na vida. A ele agradeço não pela conclusão desta investigação,
mas, sobretudo, pela amizade construída.
Aos professores Alcmeno Bastos e Adauri Bastos, pela generosa orientação no Exame de
Qualificação e pelos cursos que me seduziram para o trabalho com narrativas contemporâneas.
Aos Professores Flávio Martins Carneiro, Luiz Gonzaga Marchezan, Francisco Venceslau dos
Santos que gentilmente aceitaram este diálogo numa banca “fora de casa”.
À Dinah Callou, Elódia Xavier, Rosa Maria de Carvalho Gens, Godofredo Neto, Maria Eugenia,
Sonia Zyngier, Jorge Fernandes da Silveira e aos demais professores da UFRJ, que tanto
contribuíram para a minha formação.
Ao Colégio Militar do Rio de Janeiro, FAETEC, Universidade Estácio de e à Faculdade de
Educação da UFRJ, agradeço não o apoio institucional, mas principalmente o apoio afetivo
dos amigos encontrados em cada uma dessas instituições de ensino.
À Sueli, Vilma, Fátima e demais funcionários da Pós-Graduação, por tornarem a burocracia mais
leve, por todo apoio e amizade.
Com esse apoio, obtive a tranqüilidade necessária para o desenvolvimento desta pesquisa.
Aos meus pais, Sebastião e Erenita, por quem sou apaixonada e a quem devo tudo que sou.
À Andreia, minha irmã, Fernando e Letícia. À irmã, da qual muito me orgulho, agradeço por cada
vitória que partilhamos e, principalmente, por ter me apoiado nos momentos difíceis. Ao meu
cunhado, antes amigo, agradeço pela ajuda e amizade desde a infância. Ao dois, agradeço
ainda pela existência de Letícia, o “anjinho levado” que, nesse seu primeiro ano de vida, tanto
tem me alegrado.
Às minhas avós, à minha sogra, Thereza, aos demais familiares e amigos, por terem entendido o
meu silêncio e minha ausência.
A Célia Lopes, Urânia, Maria Spanó, César e Leonor, pela amizade construída na Pós-graduação.
Por fim, agradeço a Deus, por que, além de ter colocado essas pessoas em meu caminho,
fortaleceu o meu espírito nesta caminhada.
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A angústia se define como um sinal de alarme no eu que se produz numa
situação de expectativa de perigo que pode ser originalmente interno ou
externo. (Claude Landman)
O paradoxo do romance é o paradoxo de qualquer obra de arte: ela é
irredutível a uma realidade que contudo traduz . (Michel Zéraffa)
BARBOSA, Catia Valério Ferreira. Representações da realidade em romances brasileiros
contemporâneos: A literatura da angústia. Rio de Janeiro: UFRJ, Fac. de Letras, 2006. 264 fl.
mimeo. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas – Literatura Brasileira.
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RESUMO
Esta pesquisa diz respeito ao fazer ficcional de cinco autores contemporâneos no tocante à
prática do que é, aqui, denominado literatura da angústia e sua influência nas representações da
realidade por eles praticadas. Com base nos pressupostos teóricos de Yves Reuter, expostos em A
análise da narrativa (2002) e no trabalho de Linda Hutcheon, intitulado Poética do pós-
modernismo (1991), foram estudados os seguintes autores: Godofredo de Oliveira Neto, em O
Bruxo do Contestado (1996); Silviano Santiago, em O falso mentiroso (2004); Luiz Ruffato, em
Eles eram muitos cavalos (2001); Marçal Aquino, em Eu receberia as piores notícias de seus
lindos lábios (2005); e Carlos Sussekind, em O autor mente muito (2001), obra escrita em
parceria com Francisco Daudt da Veiga. A partir da análise desses romances, buscou-se o
entendimento das estratégias literárias comumente empregadas na pós-modernidade para abordar
a angústia do indivíduo pós-moderno e seu sentimento de impotência diante de uma realidade
brutal que o oprime. Dentro dessa perspectiva, também constituíram objeto de estudo elementos
tais como a metanarrativa, a intertextualidade, a matéria de extração histórica, o que viabilizou o
mapeamento mais eficaz das diferentes formas em que a fragmentação do eu aparece traduzida
nas obras, bem como possibilitou a melhor compreensão da tênue fronteira entre ficção e
realidade explorada por esses escritores.
BARBOSA, Catia Valério Ferreira. Representações da realidade em romances brasileiros
contemporâneos: A literatura da angústia. Rio de Janeiro: UFRJ, Fac. de Letras, 2006. 264 fl.
mimeo. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas – Literatura Brasileira.
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ABSTRACT
The present thesis examines the fictional works of five contemporary authors in the
perspective of what is here called litterature of anguish, and its influences on their
representations of reality. Based on the theoretical premises of Yves Reuter, as exposed in
L’analyse du récit (The analysis of narrative) (2002) and on Linda Hutcheon’s A Poetics of
Postmodernism (1991), the following authors and works were studied: Godofredo de Oliveira
Neto’s O Bruxo do Contestado(The wizard of Conestado) (1996); Silviano Santiago’s O falso
mentiroso (The fake liar) (2004); Luiz Ruffato’s Eles eram muitos cavalos (They were many
horses) (2001); Marçal Aquino’s Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (I would
receive the worse news from your pretty lips) (2005); and Carlos Sussekind’s O autor mente
muito (The authour lies a lot) (2001), written in partnership with Francisco Daudt da Veiga. After
the analysis of these novels, we sought to understand the usual postmodernist litterary startegies
that convey the anguish of the postmodern individual and their feelings of impotence facing an
oppressive and brutal reality. Within this perspective, metanarrative, intertextuality and the
matter of historical extraction were also objects of study. This made it possible to more
effectively map the different ways in which the fragmentation of the self appears on these works,
as well as to better understand the thin line between fiction and reality exploited by these writers.
BARBOSA, Catia Valério Ferreira. Representações da realidade em romances brasileiros
contemporâneos: A literatura da angústia. Rio de Janeiro: UFRJ, Fac. de Letras, 2006. 264 fl.
mimeo. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas – Literatura Brasileira.
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RESUMÉ
Le présent travail est le résultat d’une recherche sur la création fictionnelle de cinq auteurs
contemporains, concernant la pratique de ce que nous appelons littérature de l’angoisse, et aussi
sur son influence sur ses réprésentations de réalité. D’après les premisses théoriques d’Yves
Reuter dans L’analyse du récit (2002), et de Linda Hutcheon dans A Poetics of Postmodernism
(Une poétique du postmodernisme) (1991), les auteurs suivants furent étudiés: Godofredo de
Oliveira Neto, dans O Bruxo do Contestado (Le sorcier du Contestado) (1996); Silviano
Santiago, dans O falso mentiroso (Le faux menteur) (2004); Luiz Ruffato, dans Eles eram muitos
cavalos (Ils étaient plusieurs chevaux) (2001); Marçal Aquino, dans Eu receberia as piores
notícias de seus lindos lábios (Je recevrais les pires nouvelles de ses jolies lèvres) (2005); et
Carlos Sussekind, dans O autor mente muito (L’auteur ment beaucoup) (2001), oeuvre écrite en
coopération avec Francisco Daudt da Veiga. Après l’analyse de ces romans, on esseya à
comprendre les stratégies littéraires normalement utilisés au postmodernisme, cherchant aborder
l’angoisse de l’individu postmoderne et son sentiment d’impuissance vers une réalité brutale qui
l’opprime. Des éléments comme la métanarrative, l’intertextualité et la matière d’éxtraction
historique furent aussi objets d’étude, ce qui nous permit de mapper plus éfficacement les
différentes formes de fragmentation du self; ainsi, il nous devint possible de mieux comprendre la
subtile frontière entre fiction et réalité exploitée par les auteurs en question.
BARBOSA, Catia Valério Ferreira. Representações da realidade em romances brasileiros
contemporâneos: A literatura da angústia. Rio de Janeiro: UFRJ, Fac. de Letras, 2006. 264 fl.
mimeo. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas – Literatura Brasileira.
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SIGLAS
Dos romances do corpus citados no texto:
O Bruxo do Contestado (1996) BC
O autor mente muito (2001) AMM
Eles eram muitos cavalos (2001) EMC
O falso mentiroso (2004) FM
Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (2005) ERPNLL
In: BARBOSA, Catia Valério Ferreira. Representações da realidade em romances brasileiros
contemporâneos: A literatura da angústia. Rio de Janeiro: UFRJ, Fac. de Letras, 2006. 264 fl.
mimeo. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas – Literatura Brasileira.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
1.COMPOSIÇÃO DO CORPUS E METODOLOGIA 16
2. O AUTOQUESTIONAMENTO DO ROMANCE 20
2.1 O falso mentiroso : borradas fronteiras entre real e ficção 21
2.1.1 A importância da linguagem nos jogos de simulação 24
2.1.2 A verossimilhança e o discurso memorialístico 33
2.1.3 O diálogo entre a tradição e a modernidade 50
2.2 O bruxo do contestado : os feitiços da ficção no seu amalgamento ao real 60
2.2.1 Literatura e História: uma contradança reflexiva sobre o passado 62
2.2.2 A invenção do real 77
2.2.3 Metanarrativa: percepções e construções da realidade 84
2.3 O autor mente muito : intersecções entre mentira e ficção 99
2.3.1 Dos criadores à criatura 103
2.3.2 A voz do outro em verso & reverso 112
2.3.3 A colcha de retalhos literários: colagens e simulações 125
2.3.4 Metanarrativa: limites entre “O estar no e sobre o livro” 134
10
3. A MONTAGEM CINEMATOGRÁFICA E A INSTAURAÇÃO DE NOVOS
OLHARES SOBRE O REAL 147
3.1 Eles eram muitos cavalos : a importância dos flashes da sociedade paulistana
para a representação da realidade de São Paulo. 150
3.1.1 O romance-mosaico e a liberdade ficcional na representação do caos urbano 155
3.1.2 A linguagem literária: fonte de experimentos e conservações 179
3.1.3 O mundo ficcional em tela profunda 187
3.2 Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios : angústia e desen-
contros amorosos entrelaçando texto & contexto 194
3.2.1 O tom trágico de alguns personagens 197
3.2.2 O discurso memorialístico e a estrutura narrativa 209
3.2.3 Sexo: simbiose de corpos e vivências 221
4. INTERSECÇÕES E DISSONÂNCIAS NA LITERATURA DA ANGÚSTIA 232
4.1 Uma personagem chamada escritor 237
4.2 A Transcendência do mundo cotidiano 242
5. CONCLUSÕES 251
6. BIBLIOGRAFIA 254
6.1 Do corpus 254
6.2 Da fortuna crítica dos autores 254
6.3 Das obras teóricas e antologias e outras 256
11
INTRODUÇÃO
A sutileza do pensamento consiste em descobrir a semelhança
das coisas diferentes e a diferença das coisas semelhantes.
(Montesquieu)
Transformação, revisão de conceitos, caos, ruptura de valores, fragmentações, crises são
expressões cada vez mais freqüentes no vocabulário de análises sobre o homem contemporâneo.
No mundo pós-moderno, mais especificamente desde a virada do século XX para o XXI, o
estabelecimento de novos paradigmas de convívio em sociedade tem abalado os quadros de
referência social estável do sujeito, fazendo com que o indivíduo sinta um grande mal-estar ao
tentar definir seu papel e estabelecer um projeto de vida.
No lugar do sujeito centralizado pregado pelo Iluminismo, o que temos é um sujeito
polivalente que, depois de exercer os vários papéis da vida cotidiana (no lar, no trabalho, no
lazer, no âmbito espiritual), entra em crise, via de regra, por experimentar as diversas tensões
entre os projetos individuais e o contexto fragmentado no qual se encontra. Diante dessa crise,
vários estudiosos (sociólogos, cientistas políticos, psicólogos, etc.) buscaram entender a
sociedade pós-moderna ao mesmo tempo em que diversas manifestações artísticas fizeram do
próprio homem pós-moderno e de seus dilemas a grande matéria-prima.
No âmbito da Literatura Brasileira, constatamos que, entre o final do século XX e o início
do XXI, em meio a diversas tendências de criação artística, surgiram romances cujo teor, em
maior ou menor grau, contém duas preocupações recorrentes: a) a representação da realidade e b)
a abordagem da angústia experimentada pelo sujeito pós-moderno. A partir da constatação dessa
recorrência, selecionamos cinco romances contemporâneos, a fim de entendermos suas
12
estratégias literárias que, entre outros aspectos, permitem-nos identificar um filão literário que
passamos a nomear Literatura da Angústia.
Embora não seja o objetivo desta pesquisa cunhar rótulos e/ou nomenclaturas, adotamos o
termo Literatura da Angústia para melhor, isto é, de um modo conciso e enfático, referirmo-nos
ao grupo de romances contemporâneos marcados por um tipo de representação da realidade que,
por meios variados, está vinculado à angústia vivida pelo integrante de uma realidade brutal, que
o oprime.
Em tais obras, observamos que, na relação do eu com o seu mundo, existe um contínuo
processo de fragmentação desse eu, por conta de uma realidade que o esmaga de maneira
diferenciada. Como o sujeito se sente impotente diante desse processo, cria-se uma tensão entre a
consciência que o próprio possui de sua impotência e o seu desejo de não se render a essa
realidade esmagadora. O resultado desse embate acaba sendo uma forte angústia que pontua os
diversos romances em consonância com os dilemas sociais abordados em cada obra. Tal
sentimento de angústia marca as obras muito mais pelo que podemos depreender da
contextualização conferida ao tema que a um trabalho metafórico propriamente dito.
Trata-se de uma angústia diferente da angústia vivida no período romântico denominado
“Mal-do-Século”, pois, ao invés da fuga, os personagens das obras marcadas pela Literatura da
Angústia tentam resistir a uma realidade brutal. E, mesmo que não consigam evitar a
fragmentação da identidade, esses personagens não se anulam, posto que não aceitam
pacificamente o elemento que impede a felicidade.
Dentro dessa perspectiva, esta pesquisa diz respeito ao fazer ficcional de cinco autores
contemporâneos cuja bibliografia abriga, pelo menos, um título que reflete a Literatura da
Angústia. São estes: Godofredo de Oliveira Neto, Carlos Sussekind, Luis Ruffato, Silviano
Santiago e Marçal Aquino. Apresentaremos, então, as relações entre suas estratégias literárias
13
para a representação da realidade e a construção de um discurso abalizado em tensões, a partir da
análise de seus respectivos romances: O Bruxo do Contestado (1996), O autor mente muito
(2001)
1
, Eles eram muitos cavalos (2001), O falso mentiroso (2004) e Eu receberia as piores
notícias de seus lindos lábios (2005).
Dois fatores nos conduziram à seleção de livros de autores distintos. Inicialmente o que
nos chamou a atenção foi o fato de essas obras constituírem uma variedade dentro da unidade,
pois, ao mesmo tempo em que refletem uma forte preocupação do fazer ficcional com a
representação do real e a abordagem da angústia, distinguem-se a partir das estratégias literárias
adotadas. Posteriormente, como tais nomes, cada vez mais, têm obtido o respeito da crítica e se
fixado na historiografia literária brasileira, julgamos que seria uma boa oportunidade para
contribuirmos com os diversos estudos sobre o revisionismo crítico do cânone, no tocante aos
autores contemporâneos e à preservação da memória de escritores brasileiros.
Nesta investigação serão abordadas, basicamente, duas questões uma relativa à
macroestrutura e outra no plano da microestrutura. A primeira diz respeito à noção de
verossimilhança, considerando tanto os preceitos de Aristóteles quanto os da crítica moderna,
associada à maneira como a pós-modernidade, nos termos de Linda Hutcheon (1991), trabalha
com a representação do real. Paralelamente a isso, apresentaremos um estudo sobre alguns
elementos responsáveis pela organicidade da microestrutura ficcional. Em termos objetivos, com
base em Yves Reuter (2002) e Gerard Genette (1987), abordaremos os papéis do narrador, da
metanarrativa, da intertextualidade nesses romances bem como, pautados em Antoine
Compagnon (1996), mostraremos como os mosaicos textuais podem influenciar na representação
de uma realidade brutal e angustiante.
1
Obra escrita em parceria com o seu psicanalista - Francisco Daudt.
14
Esta tese será apresentada nos moldes tradicionais, ou seja, reservará os espaços iniciais e
finais para a Introdução e Conclusão, assim como destinará os capítulos intermediários para os
critérios de estabelecimento do Corpus e metodologia e para as análises literárias. Os
pressupostos teóricos, contudo, ao invés de preencherem um único capítulo, aparecerão, diluídos,
ao longo das análises toda vez que julguemos enriquecedor fundamentar nosso ponto de vista
interpretativo.
No que diz respeito aos capítulos de análise, adotamos a seguinte ordenação. No segundo
capítulo, intitulado “O autoquestionamento do romance”, abordaremos os textos de Silviano
Santiago, Godofredo de Oliveira Neto e Carlos Sussekind & Francisco Daudt, em função do
conteúdo metanarrativo característico das três obras. No terceiro capítulo, chamado A
montagem cinematográfica e a instauração de novos olhares do real”, trataremos dos romances de
Luiz Ruffato e Marçal Aquino, devido ao modo peculiar como ambos se contrapõem ao
convencional: o primeiro rompe abruptamente com o cânone e o segundo dialoga criticamente
com a tradição. Por fim, no capítulo “Intersecções e dissonâncias na literatura da angústia”,
faremos uma análise comparativa das obras estudadas, com o objetivo de destacarmos o diálogo
entre texto e contexto praticado pelos cinco autores.
Gostaríamos, em último lugar, de esclarecer que trabalhamos com as primeiras edições de
todos os romances. No caso de Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, contudo, alertamos
para o fato de que trabalhamos com sua reimpressão, que data de novembro de 2005. Isso
significa que, ao longo das análises, para fins de maior facilidade de localização das citações,
usaremos essa data e não a da 1ª edição (2001). Passemos ao trabalho.
15
1. COMPOSIÇÃO DO CORPUS E METODOLOGIA
Para resolvermos um problema, devemos pôr ao
claro: (a) o que conhecemos; (b) o que não
conhecemos; (c) o que procuramos.
(Edward Hodnett)
Quando iniciamos esta investigação, levantávamos algumas questões. Como se construiu
a vitalidade contida na representação da realidade em tempos pós-modernos? Quais os elementos
da tradição que se encontram agora digeridos? Como ocorreu a passagem da “transfiguração do
documental” para a “transfiguração do ficcional em real e vice-versa?” Tais inquietações
acabaram direcionando o nosso olhar para as obras contemporâneas que, de algum modo,
apresentam estratégias singulares no diálogo com o mundo não-ficcional.
Grosso modo, nosso corpus contém obras que, com maior ou menor força, privilegiam o
experimental, via uso exacerbado da mistura dos gêneros e da metanarrativa com fins de reflexão
sobre os limites entre a mentira e a ficção. Além disso, ele abarca livros nos quais, embora o
metaficcional ainda se faça presente, o diálogo real & ficcional ocorre obliquamente. Conforme
anunciamos, no primeiro grupo, temos O falso mentiroso (2004), de Silviano Santiago, O
autor mente muito (2001), de Carlos Sussekind & Francisco Daudt da Veiga e O Bruxo do
Contestado (1996), de Godofredo de Oliveira Neto. Já no outro conjunto, estão Eles eram muitos
cavalos (2001), de Luiz Ruffato e Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (2005), de
Marçal Aquino.
16
No âmbito da diegese dos três primeiros livros, enquanto o traço comum é a forte
presença de um personagem-escritor e seu diálogo com o leitor em meio à elaboração de uma
obra, a variedade se faz presente na condução desse exercício metanarrativo. As obras de
Silviano Santiago e de Carlos Sussekind são marcadas por uma espécie de radicalização do
ficcional e do metaficcional trabalhados, em diferentes graus, em outros momentos da
literatura.
Se, desde as produções de Machado de Assis, convivemos, mais intensamente, com um
narrador-escritor comprometido com a tessitura de um relato que se propõe a simular um
desnudamento dos bastidores, via diálogo com o narratário, nos autores subseqüentes – sobretudo
desde os anos 70 para assistimos a um contínuo exercício de se mesclarem o real e o
ficcional na cabeça do leitor. Na escrita de Silviano Santiago e Carlos Sussekind, ocorreu uma
hipérbole dessa situação, pois, nos romances O falso mentiroso (2004) e O autor mente muito
(2001), pessoas do mundo real e elementos do ficcional são propositadamente trabalhados de
modo correspondente.
Em O falso mentiroso (2004), o narrador e escritor Samuel reflete várias características do
escritor Silviano Santiago, a começar pela própria capa contendo uma foto do autor e o subtítulo
“memórias”. Nessa mesma linha, O autor mente muito (2001) acirra a questão, por ser uma obra
feita a quatro mãos (um escritor de ficção e seu psicanalista) com uma proposta clara de debater a
distinção entre os mundos imaginário e real.
Para Rouanet (1990), o imaginário, na concepção freudiana, está vinculado a uma
intenção de conhecer o real. Como a imaginação nega voluntariamente o real e essa negação
advém daquilo que se conhece, fica pressuposto que, pelo menos num primeiro momento, a
imaginação parte do real para, depois, negá-lo.
17
Essa linha de análise do imaginário aparece constantemente na obra de Sussekind e
Daudt, posto que o romance está impregnado desse tipo de trânsito entre o imaginário e o real,
calcado na negação da realidade conhecida. Há no livro, inclusive, uma nota de esclarecimento ao
leitor sobre o que chamam de “A VERDADEIRA HISTÓRIA DESTE LIVRO”, na qual o leitor
encontra uma informação sobre o distúrbio psíquico vivido por Carlos Sussekind que, durante
anos, impedia-o de distinguir ficção e realidade.
Em posição intermediária, conferimos em O Bruxo do Contestado (1996), de Godofredo
de Oliveira Neto, uma colagem velada das figuras do personagem-escritor e do autor. A obra
encontra-se dividida em capítulos da estória narrada e capítulos sobre os bastidores da escrita, nos
quais Tecla (a personagem-escritora) reflete, entre outras questões, sobre a dificuldade de manter
uma fidelidade entre a memória e os fatos vividos, ou ainda, o relato dos fatos vividos. Assim,
embora não apresente nem as referências claras ao nome do autor tal como ocorre em O falso
mentiroso (2004), nem a proposta de abordagem enfática dos limites entre o ficcional e o não-
ficcional de O autor mente muito (2001), O Bruxo do Contestado (1996) contém um intrigante
jogo de amalgamento entre criador e criatura, à medida que vários dados do perfil do seu autor
(Godofredo de Oliveira Neto) e de sua biografia podem ser recuperados ao longo de todo o texto.
No segundo conjunto de obras, essas questões de metanarrativa permeiam o texto
sublinarmente. O mais importante deixa de ser o discurso sobre o como fazer e passa a se a
valorização do próprio feito. Isso não significa que os romances não expressem a crise da
representação, ou mesmo um repensar sobre o fazer ficcional, mas que o enredo e a representação
da realidade a partir de estórias individuais assumem a tônica do relato.
No caso de Eles eram muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato, a experimentação da forma
é o intensa que dela resulta o que o autor denomina como romance-mosaico. no que diz
respeito a Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (2005), de Marçal Aquino, o
18
desenvolvimento de uma instintiva estória de amor figura como elemento principal, a partir do
qual diversos problemas de ordem político-social ou relativos ao fazer ficcional vão sendo
recuperados.
Durante a seleção dos romances para a montagem de nosso corpus, restringimo-nos ao
trabalho com títulos publicados no fim do século XX e início do século XXI, mas não fizemos do
cronológico um critério de ordenação das análises e/ou agrupamento das obras. O que, de fato,
motivou a formação de nossos subgrupos foi a semelhança temática.
Além disso, cumpre-nos destacar que, em função de não objetivarmos fazer um inventário
dos romances produzidos nos últimos anos, no lugar de um estudo predominantemente
quantitativo, optamos por uma análise qualitativa dos fenômenos literários encontrados. Se por
um lado, a predominância do qualitativo sobre o quantitativo não permitiu proferirmos
afirmações generalizantes a todo um período, por outro, viabilizou a verticalização da abordagem
de algumas das características, a um mesmo tempo, específicas de cada romance e – se não gerais
de uma época ou de um dado movimento representativas, certamente, de filões de tendências
literárias que se desenharam no painel brasileiro nos últimos tempos.
19
2. O AUTOQUESTINAMENTO DO ROMANCE
A verdade não está explícita numa narrativa
ficcional, está sempre implícita, recoberta pela capa
da mentira, da ficção. (Silviano Santiago)
Neste capítulo, serão apresentados estudos sobre os três romances do corpus que
exploram a metaficção na estruturação romanesca. Desmascarando a pretensa objetividade de
toda representação, os livros O falso mentiroso (2004), de Silviano Santiago, O bruxo do
Contestado (1996), de Godofredo de Oliveira Neto e O autor mente muito (2001), de Carlos
Sussekind & Francisco Daudt contêm narradores que, desdobrando-se em mais de um eu,
recorrem à ironia e/ou à ruptura com modelos ficcionais tradicionais, desmistificando o valor
conferido à verdade e pondo em relevo uma série de brutalidades que afetem o homem nas
décadas de transição do século XX para o XXI.
A fim de delinearmos um processo de radicalização no trato das questões metaficcionais,
ao invés de utilizarmos o critério cronológico para a ordenação dos subcapítulos, resolvemos
iniciar pelo romance de Silviano Santiago, pelo fato de ele apresentar densas discussões sobre o
fazer ficcional sem acirrar a mistura entre os planos da arte e do real. Em seguida,
apresentaremos o estudo do livro do Godofredo de Oliveira Neto, posto que o aproveitamento
ficcional de fatos de nossa História resulta num maior amalgamento entre o ficcional e o não-
ficcional e, por fim, trataremos do livro de Carlos Sussekind & Francisco Daudt, cuja autoria
inusitada (uma parceria entre um escritor e seu analista) por si só já reflete o grau de proximidade
entre a invenção e a realidade.
20
2.1 O falso mentiroso : borradas fronteiras entre real e ficção
A arte parece comprometida, histórica e socialmente. Daí o
esforço do próprio artista para destruí-la. (Roland Barthes)
Quando O Falso Mentiroso foi lançado em 2004, vários críticos retomaram o dilema
ficção versus realidade para destacar a tônica da obra. A estória de Samuel, um falsário e escritor
que resolve escrever suas memórias e questionar sua genealogia, suscita curiosidade, sobretudo,
porque, entre uma peripécia e outra, o personagem-escritor cria várias versões para o seu
nascimento, bem como reescreve inusitadamente alguns episódios de nossa História. Desde a
existência de quatro versões para o nascimento de um único personagem, passando levemente
pelo problema da Aids no Brasil, chegando até a uma recriação da história da camisinha, os
elementos da narrativa vão sendo articulados para que, num clima de rumores e boatarias, os
conceitos de verdade e mentira sejam desestabilizados.
No âmbito da crítica literária, a obra de Silviano Santiago ganhou destaque não pela
escolha temática, mas também pelo tom irreverente e ao mesmo tempo denso com que o autor
cuidou dos assuntos metaficcionais em seu romance. Em matéria veiculada pelo Jornal do Brasil,
em março de 2004, o livro foi apresentado por Flávio Carneiro como a biografia romanceada de
Silviano Santiago, erigida a partir da intertextualidade com importantes romances de memórias.
Tal como registra o crítico, personagens como João Miramar, de Oswald de Andrade, Brás
Cubas, de Machado de Assis, Leonardo, de Manuel Antonio de Almeida podem ser facilmente
reconhecidos em traços do protagonista Samuel, tão meticulosamente arquitetado por Silviano
Santiago. Para Flávio Carneiro:
21
O componente biográfico entra como mais um ingrediente no caldo da ficção. Assim
como o autor mistura personagens reais e fictícios - é o pai de Samuel que sugere ao
jogador Didi o apelido de folha seca para seu chute genial e traiçoeiro - também o sujeito
Silviano Santiago se transforma em figura híbrida, metade verdade e metade fingimento.
Nesse ''entrelugar'', o leitor, se quiser tirar do livro algum prazer, deve assumir sua cadeira
no clube da ficção, cujo estatuto, se é que existe, diz o seguinte: mentira é uma história
mal contada. Bem contada, toda história, por mais absurda que seja, é apenas uma falsa
mentira. (Jornal do Brasil, 27 de março de 2004, p.5)
Também se manifestou sobre esse tópico o escritor Rafael Cardoso. Na mesma linha de
análise de Flávio Carneiro, destacou, em resenha publicada no Jornal O Globo, o aproveitamento
ficcional de fatos reais, atribuindo aos jogos entre verdades e mentiras a responsabilidade do
sabor das memórias falseadas de Silviano Santiago. Segundo o crítico:
Se é no faz-de-conta que o escritor se permite dizer suas verdades, o que pensar de uma
ficção que introduz a verdade do autor como elemento ficcional? Samuel, o narrador de O
falso mentiroso, compartilha com Silviano Santiago, o verdadeiro, diversas características,
dentre as quais a data de aniversário. (Jornal O Globo, 10 de abril de 2004, p.4)
De fato, quando analisamos o livro, não constatamos a presença de tais jogos, como
verificamos que, de forma bastante recorrente, essa mistura entre ficção e realidade não
corresponde a um ingênuo resultado da inspiração ou das estratégias artísticas do ficcionista
Silviano Santiago. As passagens que esboçam um cruzamento entre os mundos intra e
extradiegéticos, em geral, estão marcadas pelo pensamento do crítico literário Silviano Santiago.
Em seus ensaios literários, Silviano Santiago defende a tese de que a constituição da
literatura é um paradoxo, ou seja, integra uma cultura em crise, falseada, pois, a cada vez que o
número de escritores de qualidade aumenta, a quantidade de leitores interessados nesse tipo de
literatura mantém-se pouco representativa, quando não diminui. No plano da crítica, podemos
dizer que isso não seria novidade. Entretanto, quando o autor pratica o aproveitamento desse
22
pensamento na ficção, tanto o seu romance, quanto o discurso ensaístico nele presente tornam-se
ainda mais interessantes e inovadores.
A ficcionalização das discussões intelectuais contidas nos ensaios de Silviano Santiago
enriquece o romance por conjugar experimentação artística e criticidade. As inovações referentes
à ordenação das partes do enredo, à linguagem e à proposta temática, longe de estarem
circunscritas ao âmbito estéril da “arte pela arte”, permitem a inscrição do contexto no texto, à
medida que viabilizam uma série de questionamentos político-sociais pertinentes ao nosso tempo.
Por meio de seres angustiados com suas fracassadas investidas rumo à descoberta de uma grande
verdade, o autor não consegue pôr em relevo problemas sociais tais como a dificuldade de se
manter íntegro em meio à tamanha competição profissional, a falência da família e demais
instituições tradicionais, como também, tenta promover uma derrocada do mito da originalidade
artística, a partir da abordagem irônica dos conceitos de plágio versus autenticidade.
Para expor a angústia experimentada por Samuel e demais personagens frustrados com a
inviabilidade de se postular uma verdade, o autor recorre a diversas estratégias de representação
da realidade. Embora dialoguem com a tradição, essas mesmas estratégias constituem uma forte
crítica aos métodos convencionais de criação ficcional. Vejamos isso passo a passo.
23
2.1.1 A importância da linguagem nos jogos de simulação
Silviano Santiago estrutura toda a sua narrativa a partir do paradoxo atribuído a Euclides
de Mileto (século IV a.C.) cuja tônica está no estabelecimento do conceito de mentiroso. A partir
de uma frase muito corriqueira “Eu minto”, levanta-se a seguinte questão: Se alguém afirma “eu
minto”, e o que diz é verdade, a afirmação é falsa; e se o que diz é falso, a afirmação é
verdadeira, ou seja, ele mente, e, por isso, a declaração é novamente falsa.
Atrelado a esse mote estão o perfil do narrador, o título da obra (O Falso mentiroso), os
diversos trocadilhos verbais presentes no romance, a idéia de literatura expressa nas passagens
metanarrativas de Samuel e, se nos permitirmos uma análise paratextual, a própria linguagem
não-verbal da capa do livro que, contendo uma foto do autor Silviano Santiago, ainda criança,
inicia o jogo especular entre as “pessoas de papel” e as pessoas propriamente ditas.
De acordo com Wolfgang Iser (In: LIMA, 2002, p. 949), na ficção:
(...) sempre se a representação de algo. Ao mesmo tempo, porém, por sua
ficcionalidade, o que por ela se representa tem apenas a qualidade de um como se, que não
é idêntico nem ao real nem ao imaginário; à diferença do imaginário, ele é dotado de
forma, e à diferença do real, é irreal.
Em busca do entendimento dessa questão, várias teorias tentam esgotar o assunto. De um
modo geral, enquanto na teoria literária a noção de ficção trata de dissipar possíveis misturas que
o leitor possa fazer entre texto e referente, em O Falso mentiroso (2004), o discurso do narrador
preza pelo contrário. Por exemplo, o parágrafo que abre o romance de pronto recupera o
paradoxo de Euclides de Mileto; no entanto, ainda não é hora de completar as proposições em
cadeia que servem para desenvolver o pensamento na estrutura típica de um paradoxo. Isso serve
para apimentar mais a questão:
24
Não tive mãe. Não me lembro da cara dela. Não conheci meu pai. Também não me lembro
da cara dele. Não me mostraram foto dos dois. Não sei o nome de cada um. Ninguém quis
me descrevê-los com palavras. Também não pedi a ninguém que me dissesse como eram.
Adivinho.
Posso estar mentindo. Posso estar dizendo a verdade.
(FM, p.9)
Simulando um raso conhecimento dos fatos, sem sequer se apresentar na narrativa,
Samuel recorre ao apagamento da memória, para, do ponto zero, obter a liberdade necessária à
especulação de sua origem. Como essa especulação não deriva de sérios questionamentos
existenciais, o narrador adverte: “Posso estar mentindo. Posso estar dizendo a verdade” e, assim,
convida o leitor para sua brincadeira ficcional.
Adiante, porém, a todo o momento, o narrador mostra para o leitor o quão falsas são suas
mentiras, chegando até mesmo a marcar uma distinção entre a mentira e a falsa mentira:
Na realidade mentirosa dos meus dezoito anos, papai perdia para mamãe a batalha de
minha profissionalização. Junto a ela justifiquei a preferência pela Faculdade de Direito.
Para justificar a impostura, pretextei rebelião silenciosa contra a autoridade paterna e
cumplicidade amorosa entre mãe e filho. Estava sendo sincero com ela. Só com ela.
Acrescentei. Minto de propósito para o papai. Por uma boa causa. Mais do que justa.
está deprimido pela desgraça no escritório. Não quero afundá-lo ainda mais no
desconforto da vida fracassada. (FM, p.146)
Samuel não mente quando diz que mente, logo não pratica a mentira plena de total
dissimulação. É como se brincasse de mentir e no fundo convidasse o leitor para uma nova leitura
do real. A todo o momento, sinaliza a manipulação do real: primeiro quando fala de seus vários
eus, depois quando justifica as mentiras contadas aos demais personagens e é por isso que não
se iguala ao pai, este sim, um legítimo mentiroso. Sobre esse ponto Samuel ponderava:
Se fosse adepto da contradição, teria cursado de mentira arquitetura e exercido a profissão
de advogado. Como papai, o falso. Não sou como ele. Sou um falso mentiroso. A
arquitetura era a mentira piedosa para o papai. A advocacia, para ela. Duas mentiras, duas
falsas afirmações.
(FM, p.148)
Ao transformar a mentira em um binômio (mentira falsa e mentira legítima), o narrador
descredibiliza conceitos ditos absolutos, demonstrando que a identidade não é formada de pares
25
excludentes, mas da convivência inquietante entre a presença e a ausência de caracteres, ou ainda,
ilustrando o quanto as virtudes e os defeitos podem ser elementos intercambiáveis dentro de uma
única personalidade.
Quando se lembrava de sua relação com o pai, fazia questão de destacar a sinceridade
contida em seus atos. Samuel dizia que, “Nada escondia do mentor. Passado e presente. As
mentiras que eram verdades. As verdades que eram mentiras. Sem desgaste emocional.” (FM,
p.152) e essa honestidade que julgava nortear suas decisões chegou, inclusive, a ser critério de
distinção entre a imagem que tinha de si e a do próprio pai. Este era falso, enquanto aquele um
falsário, ou ainda, “o mais original dos impostores”. (FM, p.218)
A fim de promover a ruptura de conceitos cristalizados, o autor fez da linguagem seu
valoroso instrumento. O discurso de Samuel não é linear, posto que abriga inversões de
componentes de sintagmas e sentenças, explorando a estética da sintaxe de colocação bem como
valoriza o caráter polissêmico do vocábulo, numa tentativa de resgatar o vigor comunicativo.
A palavra falsário em oposição a falso reforça a idéia da mentira intencional, revelando o
grau de consciência do narrador a respeito de sua inverdade: daí a amortização de sua culpa
quanto aos falsos juízos emitidos; daí a tese do falso mentiroso. Seu pai, um legítimo mentiroso,
não obteve a mesma liberdade e amargou as conseqüências de suas mentiras:
Anos 1970. Papai morria pouco a pouco de insensatez. Morreu bem antes de Donana. Não
tinha mais forças nem palavras para combater a pílula anticoncepcional. Na sala do júri do
mundo. Passou a ter pavor de toda e qualquer pílula. (...) Papai, o falso, definhava. A olhos
vistos. (FM, p.129)
26
Seu pai foi atormentado por se sentir impotente diante das pressões sociais até o leito de
morte, momento em que um capelão aliviou as tensões das mentiras e/ou falsas mentiras. Para
relatar essa angustiante trajetória, o narrador não economizou nos jogos polissêmicos que, via de
regra, ironizaram a idéia de verdade absoluta.
Várias são as passagens que constituem uma espécie de ficcionalização do Teorema de
Euclides de Mileto. Samuel não dissimula ao dizer que mentiu, ao contrário, confessa sua vida
implícita, logo, é verdadeiro ao dizer que mente e, neste caso, a afirmação é falsa, pois está
dizendo a verdade.
Para expressar tão complexo pensamento, o narrador recorre a refinados trocadilhos
verbais. A inovação da forma ativa o raciocínio para as novas leituras de fatos e verdades
consagradas. Por que receberiam essas memórias o título de O falso mentiroso, e não apenas O
falso ou O mentiroso? Ou O mentiroso falso?
Primeiramente, a posição nuclear poderia ser preenchida tanto por mentiroso quanto por
falso, posto que o artigo seria capaz de substantivar um ou outro adjetivo. Ao contextualizarmos
o sintagma no livro, a tendência mais provável é a de considerarmos mentiroso como nome base
e falso como seu modificador, pois a estória versa sobre um rememorador que, em crise com o
seu passado, resolve escrever suas memórias, explorando o ato de mentir nas suas mais variadas
acepções. Mas se optássemos pela leitura de falso como núcleo do sintagma e mentiroso como
seu determinante, o que aconteceria? Continuaríamos sentindo um estranhamento em face da
combinação vocabular? Certamente. Ainda que encontrássemos justificativas textuais para
classificação de falso como núcleo, o refinado trocadilho praticado pelo autor continuaria
provocando inquietações no leitor e revitalizando o caráter comunicativo do romance, uma vez
que, por meio da exploração da posição do adjetivo nos sintagmas de língua portuguesa, o autor
27
conseguiu reproduzir toda a polissemia contida no Teorema de Euclides de Mileto que deu
origem a trama.
A julgar pela posição do adjetivo nos sintagmas em língua portuguesa, conforme estudos,
entre outros, de Callou & Serra (2003), sabemos que sua anteposição, via de regra, confere um
efeito mais subjetivo na relação com o núcleo substantivo a que se vincula, ao passo que sua
posposição reforça um sentido mais objetivo. Essa objetividade da posposição, conforme Cunha
& Cintra (1985), traduz-se ou na natureza classificatória da indicação de uma categoria na
espécie designada pelo substantivo (água mineral, deputado estadual) ou pela designação de
características muito salientes, tais como forma, dimensão, cor, enfim, descrições de um ser
(calça preta, homem baixo). Dessa forma, a anteposição de um adjetivo pode alterar o caráter
objetivo de uma qualificação, criando uma nuança de subjetividade que ou altera por completo o
sentido do adjetivo (homem grande versus grande homem), ou o altera parcialmente ora
enfatizando seu caráter avaliativo (cidade maravilhosa versus maravilhosa cidade), ora
estilizando seu caráter objetivo, descritivo em tom misto com a avaliação (preta calça, verdes
olhos).
No caso do título do livro, falso posposto ao núcleo mentiroso (mentiroso falso) não faria
muito sentido em termos objetivos, dado que uma redundância na base, da mesma forma que
em pedra dura ou homem mortal, ou seja, a característica expressa pelo adjetivo é essencial no
substantivo: toda pedra é dura, todo homem é mortal, todo mentiroso é falso. Em outras palavras,
o adjetivo contempla uma característica intrínseca de todo mentiroso: a falsidade. Contudo, torna-
se plenamente possível e aceitável sem efeito de estranhamento a combinação entre falso e
mentiroso quando o adjetivo vem colocado antes do núcleo, posição avaliativa por excelência do
sintagma nominal em língua portuguesa. Aqui, a referida alteração de sentido promovida pela
anteposição não é completa nem enfática, mas estiliza o impossível (ou improvável) caráter
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objetivo de um adjetivo redundante ao núcleo, abrandando (ou mesmo anulando) a força de seu
efeito de estranhamento: se mentiroso falso pode soar estranho, falso mentiroso é um disfarce da
combinação inusitada. Com a anteposição, passa-se, novamente, a qualificar o sujeito que finge
mentir, ou seja, diz a verdade.
O título do texto e a tese de Samuel refletem um tipo de contradição designada por
Dominique Maingueneau (1995) como “Paradoxo pragmático”, ou seja, apresenta (...) uma
proposição que é contradita por aquilo que sua enunciação mostra” (MAINGUENEAU, 1995,
p.158). No caso do romance, desde o Teorema de Euclides de Mileto até os mais sutis jogos
metafóricos, o discurso narrativo gira em torno de uma ambigüidade desconcertante. A
proposição “Eu minto” aparece contradita na enunciação de diversas formas, principalmente por
meio de jogos de linguagem desestabilizadores que, além de relativizarem a noção de mentira,
chegam a esgarçá-la, em prol do trabalho com o conceito de invenção.
Ao longo da narrativa, notamos um trabalho diversificado com os recursos lingüísticos.
Para referir-se à figura de Falópio, o autor fez da soletração um caminho para se resgatar a
ambigüidade presente no plano fonético desse nome próprio: “Trazia o destino no próprio nome.
Às claras. Estampado nas quatro primeiras letras do sobrenome, f-a-l-o, que poderiam ter sido
desmentidas pelas três letras finais, p-i-o, e nunca o foram. Vejam que contra-senso: um falo
pio!” (FM, p. 79-80, grifo nosso)
O nome não usual (Falópio), por si só, não seria suficiente para chamar a atenção do
leitor. Foi preciso que a ambigüidade fonética resgatasse a oposição semântica sugerida nas
partes essenciais do vocábulo reinterpretado em uma divisão toda própria de supostos radicais
que a comporiam (falar x piar), transformando-o na metonímia das contradições típicas do
comportamento do Dr. Eucanaã, o personagem que homenageia Falópio.
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Esse nome também parece um embuste plantado pelo autor. Com exceção daqueles que
conheçam a história da camisa-de-vênus, os demais leitores serão induzidos a receber o nome
desse personagem como genuíno fruto da inventividade do autor. Quando, em verdade,
percebemos no nome Falópio uma fina referência a Gabrielle Fallopio, o anatomista e cirurgião
que, no século XVI, preocupado com a propagação das doenças venéreas, criou a “De morbo
Gallica” um forro de linho do tamanho do pênis embebido em ervas que seriam as precursoras
dos espermicidas da modernidade.
O resgate da figura de Gabrielle Fallopio coloca em xeque toda a polêmica e o tabu em
torno do uso de preservativos. Embora a AIDS tenha influenciado decisivamente a vida sexual do
século XX, o tratamento de questões como gravidez indesejada e doenças sexualmente
transmissíveis, em geral, é visto com constrangimento e pudor por muitas pessoas. E, não por
acaso, no romance, o que aparece com destaque é exatamente a gama de assuntos
comportamentais da vida em sociedade acrescida de valores hipócritas.
Quando Samuel toca na venda de camisinhas efetuada por seu pai, não o faz para refletir
sobre os perigos do vírus HIV, mas para explorar temas como gravidez indesejada, filhos
bastardos, promiscuidade. Para isso, nada melhor que recuar do tempo e revisitar personalidades
científicas como a de Gabrielle Fallopio.
Os jogos verbais também propiciaram uma espécie de reciclagem do discurso, à medida
que serviram para revitalizar cenas triviais ou clicherizadas nos mais diversos romances. Nos
relatos do cotidiano, o narrador se permitia comentários tais como:
Levou-me ao barbeiro da rua Barata Ribeiro. Pediu-lhe que deixasse a cadeira de costas
para o espelho. Frente a frente com o novo migo. A preocupação do papai tinha sido tola.
(FM, p.24, grifo nosso)
Paixão à primeira enxergada. À distancia. (FM, p.198, grifo nosso)
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A corruptela no pronome oblíquo tônico (comigo) frisa o encontro com o novo eu do
mesmo modo que a substituição da desgastada expressão à primeira vista por à primeira
enxergada ironiza o afeto despertado. Enfim, diversos exemplos de revitalização do código
podem ser encontrados no romance, o que nos permite concluir que o jogo com as palavras
possui uma função bem determinada no discurso narrativo.
Os nomes, além de fundamentarem a identidade das personagens, produzindo o “efeito de
real” defendido por Roland Barthes (In: PERSPECTIVA, 1972), funcionam como elo entre o ser
e o fazer de certos personagens. Não é à toa que, paralelamente aos designantes nominais e
pronominais, constatamos uma alta freqüência dos designantes perifrásticos. Não basta chamar a
mãe de Samuel de Dona Ana e seu pai de Eucanaã: é necessário marcar a condição de parentes
postiços, o que causa uma proliferação de expressões como “mamãe, a falsa”, “papai, o falso”,
“pai e mãe, os verdadeiros”. Nelas encontramos reflexos da variação de sentimentos que o
rememorador nutre por esses personagens:
Donana, a minha mãe falsa, justificava a dieta para a babá atônita. (...) Meu pai falso
tinha pavor de me ver crescer sem dentes. (FM, p.16, grifo nosso)
Ao lado de tantos perus e tantas peruas, mamãe se falsa ou não, pouco me importava
- se sentia uma galinha fora do cercado. (FM, p.75, grifo nosso)
Até mesmo a construção da identidade do narrador e do tema da dissimulação- que
perpassa todo o enredo estão, de algum modo, atrelados aos designantes dos personagens. Isso
se processa tanto pela recorrência de designantes perifrásticos carregados de juízo quanto pelo
próprio apagamento dos nomes. Primeiro, Samuel faz questão de destacar que esqueciam o seu
sobrenome. Depois, ao se apresentar, forja uma árvore genealógica a partir da composição de seu
nome: “Ainda não me apresentei. Me chamo Samuel. Caí de pára-quedas entre Carneiro, no
lado materno, e entre Souza Aguiar, no lado paterno. Samuel Carneiro Souza Aguiar.” (FM,
p.21, grifo nosso)
31
Aqui, vemos que, ao retardar a sua apresentação no corpo da narrativa, Samuel valoriza
sua identidade, contextualizando primeiro o seu leito familiar para então entrar em cena em
grande estilo. Na apresentação de seus pais, uma série de adjetivos seguem os nomes próprios,
ressaltando as características intrínsecas de cada personagem. A função materna é preenchida
por, pelo menos, dois tipos de mãe-a verdadeira, adúltera e católica e a nova mãe, a falsa e
casada com o pai falso, ou seja, o Dr. Eucanaã, o pai d’ égua que mantinha vida dupla. Essa
união poderia resultar num bastardo, cuja crise de identidade o impedia de discernir se seria o
filho do papai, o filho da mamãe ou apenas um filho da puta.
As escolhas lexicais nos permitem recuperar o imaginário ou a ideologia implícitos na
narrativa. Por meio da nominalização da família do narrador, visualizamos a existência de um
conflito de verdades na própria ficção. Na prática, seria como se essa tensão verdade - mentira
perpassasse as várias cascas narrativas:
1ª entre o mundo real e o mundo ficcional
2ª o saber do narrador versus o saber dos personagens
3ª as revelações de vidas secretas entre os próprios personagens.
Na abordagem dessa tensão experimentada pelo sujeito nos mais variados níveis da
narrativa, não uma preocupação em colocar a linguagem a serviço de uma representação
referencial dos seres e contextos. Tanto o inventário quanto o detalhamento puramente
ornamental são substituídos pela convicção de que, por meio da revitalização do signo, os
métodos convencionais de representação podem ser eficazmente questionados.
A nomeação dos personagens e os adjetivos destinados aos mesmos desvelam a
multiplicidade de camadas psíquicas contidas em cada sujeito. O discurso sensorial e a sintaxe
mais elaborada auxiliam na construção da imagem de seres complexos, uma vez que, de forma
diferenciada, apresentam profundidade no tocante ao mundo interior e na maneira como se
32
relacionam com seus meios sociais. Por isso, no lugar da simples exteriorização dos
pensamentos, uma voz irônica que se faz recorrente na alusão ao implícito, que ultrapassa o
nível dos fenômenos palpáveis e visíveis em toda sua extensão.
Quando invoca um personagem, sua mãe ou seu pai, o narrador fala de si ao se comunicar
com os outros. E, em meio a essa valorização do desnudamento dos desejos do indivíduo, a
parataxe se impõe no texto, garantindo um maior efeito dramático ao dizer. Além disso, nos
parágrafos marcados por repetidas justaposições de frases, geralmente, ocorre uma construção de
cenas tão desfigurantes quanto a própria realidade representada. Se no interior de Samuel estão
várias vozes conflitantes que, sem seguir a uma hierarquia, deixam o personagem confuso, no
relato, as distintas cenas, por vezes, também aparecem justapostas, sem que haja
obrigatoriamente uma regra hierarquizante, a partir de relações encaixadas, conforme os
princípios de causas e efeitos sintaticamente bem marcados.
2.1.2 A verossimilhança e o discurso memorialístico
A preocupação com o discurso memorialístico não é uma novidade no trabalho de
Silviano Santiago. Em 1981, no romance Em Liberdade, já havia o uso do diário, do fragmentário
e digressivo, da volta ao passado para desestabilizar identidades previamente fixas. Em O Falso
Mentiroso, no entanto, esse procedimento se intensifica e a inscrição do sujeito fragmentado
surge, principalmente, a partir da brincadeira de borrar as fronteiras entre a ficção e a realidade.
Enquanto no romance Em Liberdade, a referência a uma personalidade do mundo real é
feita às claras e integra o projeto de recriação literária do autor a simulação de Graciliano
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Ramos escrever suas memórias em O falso mentiroso, o diálogo com a realidade é velado e
ocorre via auto-referência literária:
que voltei a tocar nas circunstâncias do meu nascimento, adianto. Corre ainda uma
quinta versão sobre elas. Teria nascido em Formigas, cidade do interior de Minas Gerais.
No dia 29 de setembro de 1936. Filho legítimo de Sebastião Santiago e Noêmia Santiago.
A versão é tão inverossímil, que nunca quis explorá-la. Consistente a data do
nascimento. Cola-se à que foi declarada em cartório carioca pelo doutor Eucanaã e
Donana. Diante de padrinhos e testemunhas. (FM, p.180)
Nessa passagem, dados da vida de Silviano Santiago são tomados por empréstimo, como
se houvesse uma tentativa de colagem entre narrador e autor. Essa tentativa, por sua vez, é
sempre falha. Primeiro porque, segundo Mikhail Bakhtin (In: LIMA: 2002, p. 493):
À medida que a força da intencionalidade referencial das palavras de um personagem
aumenta, à medida que, correspondentemente, a objetividade diminui, a relação entre a
fala do autor e a do personagem começa a se aproximar da relação entre as réplicas de um
diálogo. A perspectiva entre elas diminui e podem vir a ocupar o mesmo plano. Isto,
entretanto, pode ser postulado como uma tendência em rumo a um limite nunca
efetivamente alcançado.
Depois porque, por mais irônico que seja, de todas as versões plausíveis do nascimento de
Samuel, a menos convincente advém de uma estória real. Logo, embora, às vezes, haja a idéia de
um embaralhamento de dados como ficção/referente, autor/narrador, leitor/narratário, nesse
momento reconhecemos um forte indício do retrato de real que se pretende na ficção, bem como
somos capazes de resgatar um conceito de verossimilhança à moda do divulgado em Poética, de
Aristóteles (2005, p.281), “é preferível escolher o impossível verossímil do que o possível
incrível.” Não adianta especular sobre a equivalência de um dado do mundo ficcional com um
dado do mundo real; para ser coerente, o fato narrado deve ser bem contado, estar amarrado na
estrutura interna da obra. Afinal, segundo Antonio Candido: (1993, p.10), “(...) a capacidade que
os textos possuem de convencer depende mais de sua organização própria que da referência ao
mundo exterior, pois este ganha vida na obra literária se for devidamente reordenado pela
fatura”.
34
Dentro desse reordenamento da fatura, percebemos no perfil do narrador o próprio
alinhavar das várias peripécias relatadas. Todo o jogo de verdades e simulações pode contar com
a solidariedade do leitor, porque, para além do pacto de aceitação comumente feito entre leitor e
obra de ficção, Samuel tem o cuidado de garantir a plausibilidade dos fatos, expondo digressões
sobre sua existência:
Este corpo, aqui, de carne e osso, que me escreve e abuso da mão direita. Esqueci que era
canhoto. Como esqueci que nunca consegui transformar o fedor digestivo em perfume de
lírios ensangüentados pelo sangue de anêmonas.
Dizem que sou mentiroso. Não sou.(FM, p.180)
Em verdade, Samuel fez o caminho inverso ao de Brás Cubas. Ele começa sua estória
pelo fim do enredo machadiano: não era herança de ninguém, posto que nunca teve mãe nem pai.
Nesse caminho inverso, ressaltado pelo comentário metanarrativo, identificamos mais um
aproveitamento ficcional de traços literários do crítico Silviano Santiago: a preferência pelos
discursos menos ornamentais. A modéstia retórica do narrador, ao invés de efetivamente expor
uma crítica ao estilo literário carregado de lirismos ornamentais, frisa a existência de uma escrita
ácida, assinalada por um riso corrosivo.
Quando adverte o leitor sobre sua mudança de hábito, Samuel não está se referindo
apenas à troca de mão mas ao próprio deslocamento do ponto de vista canônico, cristalizado para
um eixo mais provocativo e experimental. Diante das digressões metanarrativas, o leitor é
induzido a perceber o clima de boatarias e incertezas que envolve o narrador:
Para elas sou mentiroso, embusteiro, impostor. Não entendem. Às vezes fala um de mim.
Às vezes fala o outro de mim. Às vezes o terceiro de mim e ainda o quarto- aquele cuja
biografia escamoteei, lembram-se? E até o quinto o inverossímil formiguense, antes
referido. A lei nunca fez o cidadão. Sempre refutei as provas levantadas contra a minha
sinceridade. Apresentadas e rebatidas no tribunal da consciência (ele existe! E ela
também). (FM, p.180-181)
Essa recorrência de referências indefinidas aos agentes responsáveis pela qualificação
pejorativa do rememorador, ou seja, a existência de sujeitos marcados sintaticamente (Ela, outro,
terceiro, quarto), mas dificilmente recuperáveis no plano semântico, alimenta a desconfiança do
35
leitor sobre as incertezas dos fatos, preparando seu espírito para acompanhar um relato cheio de
interstícios e contradições que, por conta da postura do narrador, não representam fissuras ou
prejuízos na organicidade narrativa. Afinal, quem pontua essas memórias não é um escritor
convencional, mas sim um rememorador em forte crise de identidade. Ao buscar no passado o
entendimento de sua personalidade atual, Samuel não encontra respostas:
Não sei quando a troca de personalidade se deu. A personalidade do mímico autodidata
pela a do embelezador da realidade.
Só eu sei o que é ter personalidade zero. Só eu sei o que é ter cegueira falsa, a que constrói
a verdade de minhas personalidades postiças. Foram milhares e ainda são.(...)
Não podia não ser a favor da cópia. Era a salvação da lavoura. (FM, p.141)
Neste momento, ao matar a vida pregressa, Samuel conquista uma liberdade bem próxima
a do defunto-autor Brás Cubas. Se, nas memórias machadianas, Brás Cubas adquiriu liberdade
para a criticar ferozmente as hipocrisias da sociedade a que pertencera por estar além-túmulo, nas
memórias desse falso mentiroso são a morte simbólica e a conseqüente instauração do imaginário
nos moldes freudianos que livram o discurso do narrador-protagonista das amarras produzidas
pelas noções de mentira e verdade. Poderia ser quem e quantos quisesse, posto que falar
honestamente ou falsear os dados não faria diferença. Não tinha personalidade zero? Logo, não
precisava resgatar sua origem.
De acordo com Gerard Genette (1978), o que está por trás do estabelecimento do ato de
narrar não é a escolha da pessoa gramatical mas da atitude de narrar. Num caso, podemos ter o
relato a partir de um personagem e, noutro, podemos ter contato com a estória por intermédio de
um narrador alheio à mesma. O nosso Samuel integra o grupo dos típicos narradores de
autobiografias, confissões, diários, enfim relatos marcados pela retrospectiva da vida de um
sujeito.
Para a teoria narratológica, esse tipo de narrador conhece satisfatoriamente sua vida
pregressa, geralmente intervém na narrativa para comentar as experiências adquiridas com os
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demais personagens, embora nada possa garantir que as opiniões acerca dos outros personagens
correspondam aos sentimentos dos mesmos. A onisciência fica, geralmente, a cargo de narradores
heterodiegéticos que podem, inclusive, dosar o repasse das informações para o leitor conforme
sua proposta de suspense.
Distintamente do apregoado pelos manuais literários, Samuel coaduna os dois perfis de
narradores, provocando uma confusão ainda maior no tocante à relação ficção e realidade.
Embora comece sua narração com uma “humilde visão dos fatos”, sem nada saber a respeito de
seu nascimento, relatos depois, apresenta-se como um exímio conhecedor dos fatos e dos demais
personagens, permitindo a erupção da visão onisciente do narrador. A narrativa oscila, então,
entre momentos do narrador como testemunha de fatos que, com base na ordem interna da fatura,
fala de experiências pregressas e outros nos quais trata de assuntos com uma riqueza de detalhes
típica de quem testemunhou ou participou do episódio.
Se por um lado, durante o relato da difícil situação que seu pai viveu sob a ameaça de um
jovem sanitarista, Samuel preocupa-se em explicar como obteve essas informações, dizendo
“Presenciei a cena sem que os dois [papai e doutor Franco] soubessem que, por detrás da porta, lá
estava eu.” (FM, p.73); por outro lado, o narrador conta o seu nascimento como se fosse possível
um bebê se lembrar detalhadamente de fatos do início de sua vida, chega a apelar ao visual e ao
táctil para fornecer credibilidade ao relato:
Não me despeço de mamãe. Será que ainda está por aqui? Posso olhar, pensar, chorar,
ainda não posso falar. Abro o bué. Ao ser ninado pela enfermeira me extasio com os
berloques e pingentes dourados que soam como sininhos de chocalho. Me distraio com o
som matinal que se reflete neles.
Sou transportado de ambulância para a casa de meus pais. Os falsos. (FM, p.43)
Não se trata apenas de resgatar os acontecimentos marcantes do passado, mas de discutir a
criação literária. Nas lembranças de seu breve contato com os supostos progenitores,
encontramos:
37
Os dois primeiros mortos papai e mamãe, os verdadeiros não se retiraram da minha
vida por morte morrida. Evaporaram no ar da maternidade. Sumiram porque quiseram. Ou
porque foram obrigados por terceiros (e não por Deus) a desaparecerem da minha vista.
Assassinados moralmente e não fisicamente. De sobra fiquei eu com os torcicolos. Foram
eles os meus primeiros mortos psicológicos – friso o adjetivo. Morte psicológica é matéria
para as ficções do doutor Freud, como esta. Não é matéria para a reflexão filosófica que
depreendi dos ensinamentos do querido colega do colégio que um dia seria o famoso
Maciste. (FM, p. 38)
A comparação de Freud com Maciste, um domador de leões fajuto e especialista em
flatulências, libera uma voz irônica que, paralelamente ao registro das pessoas importantes do
passado, revela um dos princípios norteadores da criação dessas memórias: o apelo à fantasia.
Na concepção freudiana, a fantasia substitui uma realidade insuportável. Nesse sentido, da
morte psicológica de seus pais ditos verdadeiros derivou uma cadeia extensa de oportunidades
para a constituição de novos laços familiares, por meio do imaginário.
Esse perfil dual do narrador-personagem reflete princípios teóricos sobre o papel do
narrador pós-moderno discutido pelo próprio Silviano Santiago em seu artigo “O narrador pós-
moderno”, o que nos leva a retomar a sua pergunta:
Quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê? Ou seja: é aquele que
narra as ações a partir da experiência que tem delas, ou é aquele que narra as ações a
partir de um conhecimento que passou a ter delas por tê-las observado em outro?
(SANTIAGO, 2002, p.44).
No que tange a esse tipo de onisciência do narrador-personagem, ainda que cheguemos às
mesmas conclusões de Silviano Santiago, ou seja, que “O espetáculo torna a ação representação”
(SANTIAGO, 2002, p.60), continua complexa a capacidade do narrador-personagem dominar
com tanta destreza sua memória da fase pré-matura, inclusive, porque, nesse discurso
memorialístico, o comentário metaficcional está freqüentemente contaminando o relato dos
acontecimentos.
A inovação literária não recai apenas sobre o desenvolvimento da estória de vida do falso
mentiroso. A própria concepção de relato memorialístico é trabalhada no romance com
38
singularidade, pois enquanto os impasses de uma memória normalmente surgem dos fatos ou da
relação afetiva que o rememorador nutre por eles, em O falso mentiroso (2004), os impasses
ocorrem também em virtude de o autor constituir suas memórias a partir de outras memórias
ficcionais.
Com efeito, a intertextualidade com textos memorialísticos amplamente conhecidos na
literatura brasileira demonstra o grau de preocupação do autor em ficcionalizar a questão do fazer
literário. Além disso, é preciso, ainda, considerar o fato de o livro se anunciar como memória,
mas colocando-a como um subgênero que não chega sequer a integrar a ficha catalográfica do
romance. Assim, por mais alusões ao mundo extradiegético que encontre, o leitor acaba
recebendo como ficção aquilo que se apresenta como um relato ficcional de Samuel e não a
história da vida de Silviano Santiago.
Nesse romance, um aproveitamento ficcional da dicotomia mentira versus verdade que
se irradia de modo plural ao longo do texto. Isso não assinala a caracterização psicológica dos
personagens, como influencia no desenvolvimento do enredo e se amplifica nas questões
ideológicas que preenchem as entrelinhas da trama.
A partir de Umberto Eco (2006), analisamos o emprego da mentira como componente do
enredo. Em geral, o clima de falsidade decorre da exploração dos diversos tipos de linguagem,
mais especificamente do duelo estabelecido entre a linguagem verbal e a linguagem não-verbal.
Em boa parte do clima de boataria, a linguagem verbal, isto é, a fala dos personagens ou o
discurso do narrador, camufla a natureza dos fatos, num primeiro momento, para, posteriormente,
desconstruí-los, revelando algum segredo. Muitas vezes, esse embate entre o visual e o verbal
torna-se mais evidente à medida que os personagens até poderiam se entender pelo viés da
expressão, mas continuam se enganando com as palavras.
39
Macaco fingia ser domador de leões e, embora mantivesse essa imagem para o grande
público, Samuel sabia identificar, por meio do remelexo do quadril de seu amigo, como o
Macaco, no circo conhecido como Maciste, mantinha os leões sobre controle. Para o grande
público ficava a imagem da virilidade enquanto para Samuel restavam as recordações do tempo
em que seu amigo transformava o som do peido em notas musicais.
Vários fatos da vida de Dr. Eucanaã deixavam transparecer a existência da fábrica de
camisinhas, mas a revelação, por meio do discurso, demora acontecer. Os visitantes de seu
escritório na Av. Rio Branco jamais associaram o quadro de Falópio ao comércio da camisinha,
pois estavam todos mais interessados em se desfrutarem de sua secretária D. Teresa. Isso
comprova que até mesmo entre significante e significado pode ocorrer um descompasso no
tocante ao estabelecimento da verdade.
Em muitas situações, os objetos, pessoas ou situações são evidentes, mas não uma
vontade dos envolvidos na trama de tomar ciência dos mesmos. Donana, por exemplo, sempre
fingiu não perceber o caso de seu marido com a secretária, da mesma forma que Dr. Eucanaã
ficou cego para o crescimento da penicilina no Brasil, fingiu ter amigos, fingiu estar no domínio
da situação até que não teve tempo de reagir e, por mais que se enxergasse como um homem de
negócios, já estava em franca decadência sendo visto por todos como velho e louco.
Os segredos de Dr. Eucanaã (seu comércio e sua amante) causam surpresas aos
desatentos, pois sua personalidade sempre fora marcada pela ambigüidade. Por exemplo, ele não
defendia a teoria de que mais valem os dois pássaros na mão, como também era sócio do
flamengo e do fluminense e, ainda, recusou-se a votar nas primeiras eleições democráticas. Uma
ambigüidade quase equiparada a uma ambivalência: não havia dúvida entre dois caminhos, mas o
não querer optar promovia o querer de todas as possibilidades. Com uma personalidade tão
escorregadia, nada mais óbvio que possuísse duas mulheres e uma vida clandestina.
40
O filho, contudo, descobriu o segredo do pai depois de sua morte, graças à chantagem
da enfermeira. Somente quando conheceu tal mulher, Samuel foi capaz de unir a imagem visual à
linguagem verbal. Essa união ocorre pela memória do maço de notas que o seu pai passara
sorrateiramente àquela mulher para garantir a tranqüilidade de sua bigamia. Ocorre, também,
quando relembrando o enterro de seu pai, constata que todo o vestuário de D. Teresa estava a
serviço da discrição. Enfim, só no ato da chantagem, conseguiu deduzir que o sério tailleur, o véu
e demais aparatos sombrios tentavam dissimular o real papel da secretária D. Teresa na vida de
Dr. Eucanaã.
O discurso do narrador demonstra um gosto pela imprecisão histórica, alimentando uma
forma especial de tornar digna de confiança a relação entre o dito e cada fonte supostamente
consultada por Samuel. O testemunho não é um recurso recorrente na obra, uma vez que o
narrador se descreve como alguém solitário, sem origem ou passado e casado com Esmeralda,
uma jovem muda.
Apesar disso, na ocasião em que o testemunho ou uma fonte são citados no texto, isso não
significa necessariamente que o elemento seja de peso ou imanentemente confiável. A sua
credibilidade advém do simples fato de ter sido citado e apresentado como algo digno de
confiança, às vezes, o próprio personagem descreve como vai forjar uma prova a seu favor, o que
nos permite depreender que, mais uma vez, entre a mentira e a verdade subsiste um lampejo de
ironia frisando as incongruências da vida em sociedade.
A mãe Donana simulou uma gravidez, chegando até a forjar provas (dar entrada numa
maternidade, simular sintomas) e a contar com o falso testemunho de seu obstetra. O Dr. Eucanaã
não fez por menos e, para defender seu segredo profissional, deu até endereço errado. Dizia ter
negócios na Av. Rio Branco, quando, na realidade, tinha uma indústria em São Cristóvão.
41
As palavras do narrador também são enganosas. Ademais, seu passado é descortinado
apenas pelo viés da linguagem verbal e da versão dele que, embora cite a existência de
documentos, fala também da inacessibilidade aos mesmos. Sua certidão de nascimento estava
arquivada e o atestado médico capaz de auxiliar na descoberta de sua verdadeira identidade até
existia, mas pertencia a uma maternidade de nome desconhecido.
Essa manipulação dos dados propicia uma incessante construção e reconstrução da ordem
das ações, sobretudo, porque Samuel alterna momentos em que recorre à linguagem para mentir e
confundir o seu interlocutor deliberadamente com instantes em que se diz angustiado por não
saber dizer a verdade.
Embora defenda o plágio e se confesse impotente para criar estórias originais, ele não se
entrega à mentira convencional e encontra na sua tese da “falsa mentira” uma solução para
aplacar suas inquietações referentes à nocividade que a falsidade deliberada é capaz de gerar.
Flávio Carneiro (2004) considera O falso mentiroso um livro :
Divertido, leve e ligeiro, como se escrito ''ao correr da pena'', o romance nos leva também
por uma inusitada viagem pela história do Brasil, dos anos 30 até hoje. Viagem que segue
sobre os trilhos de uma outra história: a da camisinha. O pai de Samuel, Dr. Eucanaã, o
falso, que diante da esposa e dos familiares passa como honrado causídico com escritório
no centro da cidade, é na verdade o primeiro fabricante e exportador de camisinhas do
país.
A narrativa de suas peripécias com essa mina de ouro, escamoteada mais por questões
éticas do que propriamente legais, é também um passeio por momentos históricos
diversos, que vão compondo o retrato de uma sociedade, de seus preconceitos e,
sobretudo, de sua prática de conchavos, marcada pela alternância dos conceitos de verdade
e mentira conforme gostos e conveniências. (Jornal O Globo, de 10 de abril de 2004, p.4)
De fato, toda a incursão ficcional na história da camisinha enriquece o enredo ao mesmo
tempo em que suscita importantes questionamentos político-sociais no romance. No entanto, é
possível perceber que essa leveza de “como se escrito ao correr da pena” não se aplica ao
romance como um todo.
42
Nesse sentido, a análise de O falso mentiroso (2004) nos permitiu identificar os dois tipos
de escrita postulados por Roland Barthes em O prazer do texto (2004): o “texto de fruição” e o
“texto de prazer”. O romance de Silviano Santiago não é totalmente leve, pois se apresenta
predominantemente como um “texto de fruição”, contendo instâncias narrativas estruturadas tal
como um “texto de prazer”.
Com base nessa terminologia de Barthes (2004), podemos dizer que se comporta como
um “texto de fruição”, quando se configura carente de coerência imediata, assemelhando-se, em
muitos momentos, a uma anti-narrativa, encenando o jogo da linguagem ficcional,
desestabilizando pretensas certezas apregoadas pela tradição, enfim, promovendo a transgressão
da forma. Ao mesmo tempo, esse romance contém refúgios dedicados ao “texto de prazer”, por
apresentar pequenas estórias com início, meio e fim (os nascimentos de Samuel, o caso amoroso
de seu pai com a secretária Teresa, a criação da indústria de camisinha, a trajetória de
Macaco), que obedecem a uma certa lógica de sentido, a partir de uma força de coesão que emana
desses pequenos enredos – todos exemplares de angústias do mundo moderno.
Ambos os tipos de texto encontram-se o entremeados que, por meio da leitura
metafórica, conseguimos localizar passagens metanarrativas, típicas do “texto de fruição” nas
quais desemboca o “texto de prazer”:
O escritor que você lê, caro leitor, é a mensagem esperançosa que jogo ao mar envolto por
esta camisinha inflada, a que chamo de livro. Ela protege as folhas e as palavras impressas
das águas do tempo que, sem direção predeterminada, bóiam a caminho de mãos
cuidadosas. As tuas. As tuas. Se no presente não tenho colegas e amigos ao vivo e em
cores, torço para no futuro ter apreciadores da minha arte. Grande olhos abertos, acoplados
a muitos megabyties de memória. Pessoas que não conheço. Fabricadas de carne e osso.
Montadas com idéias. Cozidas em banho-maria com sentimentos e emoções. (FM ,p.215)
O trocadilho verbal pautado na conotação articula a estorieta da camisinha com o
exercício metaficcional empreendido. A camisinha aqui deixa de ser o objeto negociado pelo Dr.
43
Eucanaã, que sustentava a família, tentando driblar as hipocrisias sociais, para vender proteção
sexual e passa a estabelecer sinonímia com o vocábulo livro. Nesse contexto, a camisinha perde
toda e qualquer função castradora, por reter a semente da procriação, para significar apenas
preservação. Afinal, o livro aumenta a vida útil do texto escrito, permitindo sua difusão entre
milhares de leitores.
O discurso ganha certa leveza sim no modo como aproveita ficcionalmente elementos
extradiegéticos. E muito dessa leveza tem a ver com a maneira como Silviano Santiago emprega
as Marcas Registradas, ou seja, como nos termos de Alcmeno Bastos (2000, p.10), o autor
emprega:
(...) nomes próprios de figuras verídicas, de entidades, de lugares, datas de eventos etc.,
que soam imediatamente familiares ao leitor medianamente informado sobre a vida social
de uma determinada comunidade, um país, por exemplo. Tais marcas, em grau maior ou
menor, dependendo do repertório cultural do leitor, são por ele reconhecidas e o forçam a
um paralelo com o seu universo de referências (...) as marcas registradas podem até não
ser inteiramente registradas, isto é, não constarem dos registros documentais, não serem
verídicas, e ainda assim, por uma simulação de historicidade, provocarem o mesmo efeito.
O que importa em última instância, é que o referente para o qual apontam essas marcas
registradas, sem perder sua condição de entidade ficcional, produto de uma invenção,
portanto, ancora na realidade empírica e a convoca para a sua melhor compreensão. (...)
O recurso em si não representa algo extraordinário, posto que vários autores consagrados
lançaram o dessa estratégia. José de Alencar, por exemplo, fazia amplo uso desse tipo de
referência. O valor das marcas registradas justifica-se primeiramente pelo fato de Silviano
Santiago ter conseguido driblar o esfacelamento que essas têm sofrido nos tempos modernos,
período em que os rótulos mudam a todo instante. Destaca-se, também, em função da economia
verbal adquirida, uma vez que, por meio do emprego de tais marcas, em um tempo torna-se
possível delinear um dado contexto social e fazer evoluir o enredo.
44
Ao acompanhar o dia-a-dia de um personagem e reconhecer uma marca registrada,
mesmo que o leitor tenha um repertório cultural pequeno, os nomes cunhados da realidade
acabam por lançar seus olhos para o que se encontra ao seu redor:
Divertíamo-nos com os hilários moradores do edifício balança mas não cai”, com as
piadas da “PRK30 e escutávamos os programas de auditório da Rádio Nacional.
Fazíamos arruaça em casa, ridicularizando as macacas pululantes e esgoleadoras do César
de Alencar. Reinado primeiro e único dos reis e das rainhas da voz. De Chico Alves,
Orlando Silva, Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves e Carlos Galhardo, de Emilhinha,
Marlene, das irmãs Batista, Linda e Dircinha, de Dalva de Oliveira e da divina
Elizeth Cardoso. (FM, p.29)
Encontrou emprego no circo montado nos fundos da Pontifícia Universidade Católica.
Num terreno baldio. Anos depois a prefeitura do Rio de Janeiro não mais a do Distrito
Federal- mandaria construir o Planetário da Gávea. Cada geração tem os astros que
merece. A dos meus netos será a da guerra nas estrelas no céu do grande salão do
planetário. Ou na gigantesca tela de cinema, sob o comando de George de Lucas e
Steven Spielberg. (FM, p.30)
Quando isso acontece, sem ser panfletário ou engajado, o texto expõe as mazelas político-
sociais, bem como resgata determinados valores culturais. O cotidiano, por sua vez, também
ganha espaço preferencial no romance, o que pode ser observado em sua seleção de marcas
registradas. Elas não resgatam músicos, músicas e também pessoas afamadas de uma época,
mas também aludem aos produtos do mercado que se tornaram ícones de gerações inteiras, tais
como Mingau Quaker, Lojas Americanas, Band-aid, Chanel, Coca-cola.
Isso, contudo, não significa que a obra esteja circunscrita ao documentário, até mesmo
porque nada ocorre de modo gratuito ou apenas para montar um pano de fundo. Cada nome, cada
referência surge na narrativa na cadência da movimentação dos personagens, de seus desejos e
atitudes. Assim, o que, muitas vezes, o leitor vê em cena é a busca de uma transformação:
Desde a época em que as Lojas Americanas começaram a vendê-las, não passo 24 horas
sem tomar duas garrafas de Coca-cola. (FM, p.22)
Li na revista Time. Os afro-americanos do Harlem não bebem leite. Só tomam Coca-cola
for breakfast (...) O organismo do afro-americano compra coca-cola, enquanto a revista a
vende para todo o mundo. Ou vice-versa. Não faltam consumidores para os produtos
fabricados pelos ricos. A quem é pobre assaltam os diabetes. (FM, p.23)
De acordo com Ítalo Moricone (IN: MIRANDA,1997), a reconstrução do passado feita
por Silviano Santiago envolve uma problematização da relação com o passado. Nos moldes de
45
Barthes e Foucault, o escritor promove a autonomização da esfera estética e sua escrita literária
dissolve o caráter de referencialidade. Nos termos de Linda Hutcheon, seria “(...) uma metaficção
historiográfica. História e ficção operando interpretações de outras ficções (...) a ficção e a
história pautam-se aqui pelas operações intelectuais da desconstrução.” (MORICONE, IN:
MIRANDA, 1997, p.60)
A relação existente entre o mundo real e as pistas textuais do romance nem sempre são
equivalentes, o que, de um certo modo, reproduz um traço das narrativas modernas. Em seu
estudo sobre os romances das décadas de 70, 80 e 90, Therezinha Barbieri (2003, p.99)
ressaltava que:
Quase sempre, no trânsito entre História e ficção, o resultado é que acontecimentos
fictícios ganham plausibilidade histórica e o fato histórico se irrealiza nas teias da ficção.
A História não é um centro axial irradiador de sentido, nem a ficção uma idealidade
estética criada do nada. Na verdade, a narrativa histórica comporta elementos e
procedimentos de elaboração ficcional, assim como a ficção reelabora componentes
derivados de fontes históricas.
O texto de Silviano Santiago ganha singularidade porque reúne um certo tom ensaístico
sobre o fazer literário ao aproveitamento de dados documentais sem o compromisso de manter
todos eles fidedignos às fontes históricas. Isso pode ser observado, por exemplo, nas deformações
históricas que constrói, como no caso da invenção da camisinha.
Esse projeto de escrita de mistura (memorialístico, ensaio e ficção propriamente dita) gera
um corpo narrativo complexo que mantém sua harmonia e coesão porque lança mão de um
narrador responsável pela fatura interna da obra. Esse tipo de narrador, semelhantemente ao Brás
Cubas machadiano, serve de guia pelo vai-e-vem de diferentes narrativas encaixadas, sendo
capaz de orientar o leitor no acompanhamento do relato por meio de estratégias discursivas ou
visuais (como o uso de parênteses) para circunscrever avanços e retroações. Ao mesmo tempo,
46
por outro lado, confunde esse mesmo leitor com pistas falsas num tom mais coloquial, por vezes
galhofeiro.
Num discurso de falsa autocrítica, Samuel estabelece o seguinte diálogo com o narratário:
Macaco congratulou-se comigo. Deu-me um beijo na testa. E me disse, abusando do
linguajar poético combinado com o chulo. Envergonha-me a combinação esdrúxula. Não
recomendada pelos manuais de estilística. Sou obrigado a transcrever as palavras dele.
Que você não se sinta envergonhado, caro leitor. Se sentir, pule para o próximo capítulo.
Ipis litteris. (FM , p.42)
Depois de fazer do pedido de solidariedade do leitor uma irônica licença poética, mais
adiante, simula um gesto de humildade, relatando que mostrou o capítulo a uma amiga que o
odiou e machadianamente diz:
Continuei a revisão. Passo a você, leitor, o capítulo para a decisão final. Se julgar inútil tê-
lo e quiser deixar o livro arrombado, como quis Laura Maria, vá em frente.
Adianto. Não adianta me maltratar. Maltrate o livro. Espere pelo pior. Daqui a dois
capítulos te reencontrarei com duas pedras na mão. E com a língua mais afiada.
Vamos adiante (FM, p.151-152)
E esse aviso não é retórico, pois nos tais dois capítulos adiante, vem um discurso denso
sobre arte, quase um ensaio:
(Devore-me como exemplo e modelo.
Será esse caro leitor, o motivo que o levou a procurar estas memórias na livraria mais
próxima? A comprá-las e a lê-las?
Agradeço-lhe o voto de confiança. O nome do autor é verdadeiro. A proposta do livro que
o nome vende a narrativa autobiográfica duma experiência de vida corriqueira e triunfal
com o título de O falso mentiroso- é enganosa. Não encontrei melhor solução nem título.
Fui tentado por outro. O patinho feio. Estaria mais próximo da realidade. E seria pior.
Falta de imaginação? Falta de talento? Faltam-me as palavras? Dou-lhe direito à resposta.
Você chegou até aqui. Calculo. A duras penas. Parabéns. (...) Será que seus olhos
compreendem as segundas e terceiras intenções que se escancaram a cada página das
memórias? Duvido. Não está tirando prazer da leitura nem usufruindo os conselhos.
Arrefeço. Tudo vale a pena (...) Dou-me por satisfeito se com estas memórias conseguir
elucidar algumas poucas coisas sobre personalidades raras. (FM, p.174)
47
O romance de Silviano Santiago desencadeia uma confusão entre pessoa física e ficcional.
Mais uma vez, aquilo que a teoria separa, Samuel condensa. Além disso, o parêntese que,
conforme as regras de pontuação, permite o encaixe do elemento sintático não encaixável na
frase, aqui viabiliza o encaixe do relato “dificilmente encaixável” sobre o próprio relato dentro do
plano ficcional.
Segundo Umberto Eco (2006), a mentira por si não é capaz de provocar o riso, pelo
contrário, desperta raiva do mentiroso e compaixão com quem sofre as conseqüências da mentira.
Apesar disso, um texto que consiga desmentir a si próprio pode gerar o cômico. Em O falso
mentiroso (2004), são justamente as estratégias empregadas na incessante construção,
desconstrução e reconstrução de uma estória as responsáveis pela instauração do riso.
O narrador Samuel teria todos os ingredientes para elaborar um relato memorialístico
predominantemente amargo e nostálgico, pois vive em forte crise de identidade, é carente de
estrutura familiar saudável, entretanto, ao dialogar com seu passado, ele consegue romper o curso
narrativo num tom ora ácido e crítico, ora irônico e corrosivo.
Essa mistura do cômico com a abordagem das tensões entre a mentira e a verdade pode
até causar um certo estranhamento à primeira vista, mas tal incômodo logo se dissipa quando nos
lembramos de que o riso é próprio da natureza humana e do seu conhecimento a respeito da
finitude da vida. Para Umberto Eco (2006, p.108) “O cômico e o humorístico são o modo com o
qual o homem tenta tornar aceitável a idéia insuportável da própria morte ou arquitetar a única
vingança que lhe é possível contra o destino ou os deuses que o querem mortal.”
No caso do narrador “falso mentiroso”, brincar de apagar sua origem não deixa de ser
uma forma de não supervalorizar o seu fim. Do mesmo modo que defender a cópia não representa
uma negação pura e simples da autenticidade, mas põe em relevo todas as dificuldades inerentes
ao ofício do escritor.
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Em suas segundas e terceiras intenções, está uma prática de promover o deboche
intertextual. As passagens metaficcionais, em geral, exibem textos que caçoam uns dos outros,
principalmente, no que diz respeito à incorporação de textos consagrados: “Abro o intermezzo
lírico-sentimental destas memórias. Não quero soluço nem lágrimas. quero uma fita
amarela.”(FM, p.200)
De acordo com Luiz Gonzaga Marchezan (2003, p.69):
Os objetivos da paródia estão em argumentar com os princípios do discurso do outro, em
estabelecer, com as proposições do discurso alheio, relações analógicas a fim de ironizá-
las. Constitui-se dessa maneira o novo direcionamento que o discurso paródico dá ao texto
parodiado.
E, no que diz respeito ao “novo direcionamento” fornecido ao texto parodiado,
percebemos que tanto as digressões do narrador, via intertextualidade explícita, quanto o jogo de
empréstimos semi-ocultos tomados do discurso alheio testemunham a polissemia presente no
texto de Silviano Santiago. Por vezes, a narrativa figura como uma colcha de retalhos poéticos
que vão desde as retomadas irônicas do Hino Nacional à música popular:
Minha mamadeira, minha espada. Meu grito do Ipiranga às margens plácidas do colo dito
materno. (FM, p.16)
Papai era sábio.
Nem tenho uma nega chamada Teresa. Para me servir de secretária. (...) Não sou
Flamengo, não tenho uma nega chamada Teresa. (FM, p.209)
Tanto o deboche intertextual quanto autodeboche metaforizam as inquietações do próprio
crítico Silviano Santiago. Muitas vezes, ao manter contato com o narratário, o narrador
ironicamente constrói digressões sobre uma reformulação do próprio conceito de literatura:
Peço-lhe desculpa, caro leitor, por tê-lo feito sucumbir ao feitiço da linguagem. Por tê-lo
feito escravo do próprio e do figurado. Por fazê-lo acreditar na língua portuguesa (...)
Neste livro. Paisagens lingüísticas comoventes foram montadas contra o pano de fundo de
requintados cenários de musical da Broadway. (...) Que as paisagens lingüísticas encham
os olhos e os ouvidos de entusiasmo. E o paladar de delicioso e refrescante sabor de
hortelã-pimenta. Que nos façam esquecer cenários e salões. (FM, p.176)
49
Não satisfeito em apelar para a tolerância do leitor, o narrador novamente assume um tom
machadiano e posiciona-se como o fio de Ariadne, guiando o narratário em seu labirinto
memorialístico. No entanto, se por um lado, o narrador profere frases como: “Volto às primeiras
linhas deste longo parêntese e à estrutura básica das memórias.” (FM, p.176), por outro, também
alimenta um movimento catártico: “Meu reino por uma interjeição. Psiu! Hum-hum! Zás!
Arghhh! A literatura significa tanto quanto as interjeições em estado de dicionário. Tome a frase
como remédio. É uma falsa mentira. Tão profunda quanto a verdade.”(FM, p.177)
Em meio as suas reflexões, lança mão da ironia para atacar à mitificação do literário.
Nesse exercício de fazer literário, o autor segue ora destacando os signos de coesão de sua
escrita, ora destacando os indícios de contradição do relato e das visões de mundo nele contidas.
2.1.3 O diálogo entre a tradição e a modernidade
O tom pós-moderno dessa obra reside, entre outros aspectos, na leitura antropofágica que
a mesma é capaz de fazer de procedimentos estilísticos do passado. Logo no início do romance,
bem ao gosto dos romances do século XVIII e até dos folhetins do século XIX, o narrador
preocupa-se em naturalizar a narrativa, isto é, criar uma circunstância de plausibilidade para o seu
ato de escrita das memórias e reproduz um texto de anotações que ele diz terem dado origem ao
relato das memórias:
Não cheguei a anotar a teoria no meu Diário íntimo. Por preguiça ou por suspeita de que
não era original. Deixo para contá-la depois . Se e quando me lembrar dela. Dizem que a
gente aos oitenta anos, se lembra de tudo o que aconteceu. A memória é senil. Não é
juvenil. Não lembra nada do presente nem do ontem. Lembra tudo do passado remoto.
(FM, p.173)
50
De acordo com Yves Reuter (2002), uma das técnicas de naturalização da narrativa muito
empregadas no século XVIII era a simulação, no preâmbulo da obra, de que a estória a ser
contada havia sido recebida por uma carta, que era real e/ou havia sido contada ao narrador por
alguém de confiança. Enfim, havia o relato de um fato que justificasse a origem da narrativa. Em
O falso mentiroso, embora não tenhamos essa justificativa da narrativa no preâmbulo, temos na
citação da existência de um diário íntimo de Samuel como motivador do romance um fato bem
semelhante à naturalização da narrativa ocorrida no passado.
O dilema que integra seu diário íntimo (a questão da mentira) se propaga por toda a obra.
E, quando faz esse movimento, o autor reproduz uma prática de recorrência temática semelhante
a que Erich Auerbach descreve em seu estudo “A nomeação de Rolando como chefe da
retaguarda do Exército Franco”, publicado em Mimesis (2004),
2
como a “repetição variante do
mesmo tema” e que, segundo o crítico, provém diretamente da poética médio-latina e
indiretamente da velha retórica.
Enquanto em Canção de Rolando” acontecimentos semelhantes ilustram a retomada
temática ocorrendo nas diferentes estrofes do poema, no romance O falso mentiroso (2004), a
retomada do tema “as tensões entre mentira e verdade” aparece ou por meio da ficcionalização
dessa discussão ou por meio das diversas passagens metanarrativas e metaficcionais. Cada tipo de
abordagem produz um efeito específico para, no final, o conjunto recuperar todas as etapas do
projeto literário propagado na obra.
Quando ficcionaliza o projeto, num primeiro momento, o autor pode chocar o leitor em
virtude do caráter inusitado do tópico apresentado:
Erro ao adjetivar a terceira versão como mentirosa. Se (eu) original e (eu) cópia, por
que não pode haver um terceiro eu? Passo de gêmeos a trigêmeos.
O gêmeo mais velho filho de uma qualquer com um qualquer. O gêmeo mais novo
filho da Senhora X com papai.
2
Data da 5ª edição
51
Ou será que todas as três versões o falsas? Ou será que todas as três versões não são
falsas? Eu existo duas vezes. Ele existe uma vez conosco. Nós existimos, os três.
Insisto. As duas versões têm de ser falsas, para que surja uma terceira? E se a mais
fantasiosa das versões for a verdadeiramente verdadeira?
Verdade nada tem a ver com senso comum. Ou tem?
Senso comum nada tem a ver com bom senso. Ou tem?
Bom senso nada tem a ver com senso moral. Ou tem?
Com a palavra o meu trigêmeo, até agora silencioso. (FM, 62)
Em função das retomadas variadas desse mesmo assunto, o projeto de questionamento do
fazer literário vai se tornando mais evidente aos olhos do leitor. Em se tratando da reflexão sobre
o fazer ficcional, o narrador-personagem recorre às digressões metaficcionais não para
conseguir reatar o fio da narrativa antes alterado como para construir seqüências que conduzam o
leitor conforme a leitura dos fatos efetuada pelo próprio narrador:
Não sei por que nestas memórias me expresso pela primeira pessoa do singular. E não pela
primeira pessoa do plural. Deve haver um eu dominante na minha personalidade. Quando
escrevo. Ele mastiga massacra os embriões mais fracos, que vivem em comum como nós
dentro de mim (...)
Estas memórias têm de ter o mínimo de verossimilhança. Interna. Assumo a condição de
embrião solitário. Nasci desamparado e forte. Enjeitado e prepotente. Para o sol e a noite,
a lua e as estrelas, o hoje e o amanhã.
A primeira pessoa do singular. Gozado. Filho legítimo não precisa afirmar com tanto
empenho a individualidade (...) O eu é a forma que encontrei para comungar, na mesa
deste escrito, com os embriões que assassinei no útero da mamãe. (FM, p. 136)
Há também os momentos em que o narrador-personagem faz do comentário metanarrativo
um recurso de delimitação das estórias encaixadas: Baixo a cortina deste capítulo. Dou por
encerrado o intermezzo lírico-sentimental, em que foram narrados os arroubos da paixão sem
medida.” (FM, p.206)
Esse comentário delimita o capítulo em que o narrador se dedica a contar a estória de
Esmeralda. Observando o seu trabalho com as narrativas encaixadas, percebemos que aqui não
foi preciso recorrer aos parênteses, pois a intercalação de narrativas não seria capaz de ferir a
fatura interna da narrativa. A fala do narrador foi o suficiente para garantir o mínimo de efeito
de real.
52
É justamente essa postura do autor um dos responsáveis pelo efeito de naturalização da
narrativa. Ao beber nas escritas de John Barth, um dos fundadores da escola de metaficção
3
, e
criar um romance que imita a forma de um romance escrito por um autor que imita o papel de
escritor, o autor fornece credibilidade ao relato, ratificando sua opção por um “impossível
verossímil”. Graças ao diálogo estabelecido com o leitor, o discurso que carrega a ficção, ainda
que sob processo de desnudamento ficcional, não cai em suspeição.
Ao articular intertextualidade e reflexões sobre o fazer ficcional, Silviano Santiago
construiu um texto cujos traços revigoram práticas metaficcionais empregadas por autores
brasileiros e estrangeiros que o antecederam. Tanto na prosa quanto na poesia, encontramos
autores envolvidos com a criação de um discurso literário voltado para a sua matéria-prima: o
texto, a palavra.
Em 1975, Affonso Romano de Sant’Anna publicou “O homem e a Letra”, um poema
sobre a importância da literatura, ao qual o autor resolveu anexar uma lista de notas explicativas
acerca dos elementos que haviam sido incorporados ao texto, por meio da intertextualidade. A
primeira nota contém a seguinte ressalva:
Pela data no final do poema, percebe-se que antecede ao “Poema didático em três níveis”.
Julguei, no entanto, que a técnica das notas de pé de página deveria entrar aqui também. O
leitor que conhece os personagens que cito não precisa delas, quem não os conhece talvez
precise, e eu finalmente, acho que dão maior coerência a essa série de textos.
Dentre as 63 notas explicativas que sucedem a essa ressalva, uma chamou nossa atenção
em especial: a nota 19, sobre os romances Os moedeiros falsos e o Diário dos moedeiros falsos,
de André Gide, publicados na década de 20. Tais romances não contêm personagens
envolvidos com a escrita de um livro, como também abordam o tema da falsidade.
3
Importante movimento literário americano da segunda metade do século XX. John Barth é considerado um dos
fundadores e possui, entre outros, os seguintes livros publicados no Brasil: A ópera flutuante (1956-Editora
Brasiliense), Quimera (1972- Editora Marco Zero).
53
De acordo com Ubiratan Machado (In: GIDE, 1983), Os moedeiros falsos tratam da crise
social enfrentada pelas gerações dilaceradas que vivenciaram a I Guerra Mundial. Aproveitando-
se de dois fatos que chocaram a opinião pública por volta de 1918 (a descoberta de um grupo de
jovens que passava moedas falsas e o suicídio de um aluno em sala de aula), Gide criou um
romance original marcado pela montagem de narrativas paralelas.
Tais aspectos relativos à forma e ao conteúdo da obra de André Gide nos permitiram
visualizar uma proximidade entre esta e a obra de Silviano Santiago em estudo que, por sua vez,
encontra-se repleta de referências e semelhanças literárias com os mais diversos textos. Em
outros casos, porém, ao invés de semelhanças, identificamos um jogo explicitamente intertextual.
O diálogo com a literatura pregressa ou mesmo com a mitologia greco-latina não fica circunscrito
à semelhança temática e a recorrência de estratégias literárias parecidas, pois, muitas vezes,
elementos de textos consagrados bem como de traços da retórica clássica são aproveitados
ficcionalmente de modo que, pelo viés da paródia e da ironia, promovam borrões na fronteira
entre a realidade e a ficção.
Seja por conta de trocadilhos com a forma de argumentação clássica (o silogismo), seja
por conta da referência aos mundos de Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis
Carroll, ou mesmo pela recorrência da mitologia clássica, no romance O falso mentiroso,
visualizamos como o diálogo entre a tradição e a modernidade se converte em vigor narrativo.
De acordo com Wellington de Almeida Santos (2001, p. 153):
Desde que passou para o outro lado do espelho, Alice vive acontecimentos insólitos,
num mundo fantástico, onde o absurdo das situações narrativas vividas pela ingênua
menina é explicado pelo estado de onírico em que ela se encontra. Alice acorda e recupera
a normalidade de seu mundo plácido e seguro.
Samuel, por sua vez, não tem o estado onírico nem a mudança de mundo ou quaisquer
outros elementos que dêem conta de uma plausível distinção entre o insólito e o seguro. Assim
54
aproxima-se de Alice por conta do clima um tanto fantasioso de alguns fatos vividos, mas
distancia-se dela por viver na fusão entre realidade e ficção.
Quando se dedica a auto-definição, Samuel diz:
Penso no papai, o verdadeiro, logo dói.
Dói, logo penso no papai, o verdadeiro.
Para que pedir perdão ao filósofo? Assumo. Sou cartesiano, à minha maneira, e canhoto.
Ambidestro.
(FM, p.14)
E por ser ambidestro, vendo o mundo às avessas, evoca uma das mais perfeitas
personagens da literatura para explorar a mescla de real e irreal: Alice, de Lewis Caroll.
“De menina [a priminha Dorothy] já tinha o ar leviano de futura viciada. Que nem ingênua
Alice no país das maravilhas.” (FM, p. 20)
Assim como o personagem do clássico infantil, Samuel vivia entre suas ficções e suas
verdades, mas, ao invés de passar pelo espelho, intrigava-se com suas “vidas” diante “do
espelho” e com suas reflexões existenciais. Durante a narrativa, além desse aspecto simbólico, o
espelho é explorado de várias formas. Em termos lingüísticos, inúmeros trocadilhos pautados
na imagem e seu reflexo, ou seja, em correlações do tipo “o falso mentiroso” e “o mentiroso
falso”, assim como no tocante às imagens correlatas entre autor e narrador-personagem, podemos
identificar resquícios da teoria lacaniana sobre o apelo à linguagem na formação do sujeito e
sobre a construção da auto-imagem tomando o outro como ponto de referência.
Numa crítica ao mal-estar experimentado pelo sujeito na sociedade de consumo, os
personagens aparecem como produtos dos discursos dominantes de sua sociedade (os valores
morais no que dizem respeito ao adultério e ao filho bastardo, a visão da igreja contra a
camisinha, a importância do poder econômico para se obter status social). Diversos imperativos
de consumo e segregações impostas pelo ambiente social determinam quem tem acesso ou não ao
respeito de seus pares. Isso gera uma gama de personagens insaciáveis: Dr. Eucanaã e sua luta
55
pela ascensão de sua fábrica, Donana e sua batalha para ser reconhecida como uma mulher inteira
e não uma estéril qualquer, Samuel e seu eterno desejo de autoconhecimento, enfim, transita pela
obra um exército de sujeitos marcados pela incompletude, em função de terem estabelecido laços
com objetos e não com outros seres.
Dentro dessa perspectiva, numa visão bem semelhante à lacaniana, o eu de Samuel busca
construir-se à imagem do semelhante, mais especificamente da imagem que lhe é devolvida pelo
espelho. Funciona como se o olhar do outro devolvesse a imagem do que ele é e, como as
imagens que se refletem em seu espelho são, em sua maioria, estilhaçadas (mãe falsa, pai
desonesto) fica quase impossível encontrar-se nesse caldeirão de personalidades em crise.
Para amenizar a dor, restou ao nosso falso mentiroso rir de si mesmo e ininterruptamente
recriar-se, inventar-se. Tal jogo fora bastante arriscado, e, talvez o nosso protagonista não
tenha se perdido no mundo da fantasia, por possuir um fio de prumo:
O globo de opalina, aceso no teto, era o fio de Ariadne. Quer dizer: era a razão
filosófica, que guiava o exercício dramático abnegado, embaixo. Extraído do silêncio e
feito dele. Meu rosto, uma folha de papel em branco. Nele não escrevia palavras visíveis.
Escrevia palavras invisíveis, que nunca eram ou seriam pronunciadas- e foram lidas,
entendidas e assimiladas pelo espectador, meu espelho. (FM, p.140)
Do mesmo modo que o novelo de Ariadne permitiu que Teseu vencesse sua batalha e
conseguisse retornar do labirinto, a inclinação às artes cênicas era o novelo de segurança que o
narrador-personagem segurava durante o passeio dentro do seu labirinto memorialístico. Numa
postura tipicamente lacaniana, Samuel reconhece o fato de o plano real ser inatingível, em virtude
de as imagens que produzimos de nós mesmos e dos outros pertencerem ao plano do imaginário.
Essa lucidez aparece nas digressões metanarrativas, posto que ora o narrador-personagem
focaliza sua fuga do real, ora proclama a verdade e tanto num quanto no outro caso faz questão de
mostrar o seu domínio da arte de narrar:
56
Mais da representação do que da realidade. (...) Quando me dei pela troca, tinha virado
cego, sustentado pelo bastão da pícara-mãe. Ela me conduzia pelas ruas e avenidas da
imaginária vida cotidiana.
Passei a ser como ela. Totalmente contra a coisa real. A favor de algo extra que você
acrescenta à coisa real para que ela, sem se tornar irreal, seja mais bonita, frajola e fofa do
que já é. (FM, p.141)
A cegueira que lhe atinge curiosamente não desencadeia privação de sentido, ao contrário,
apresenta-lhe um novo mundo, expandindo-lhe o horizonte. Ao invés de deixar de ver o real, ele
adquire um tipo de visão que lhe permite enxergar além do real. A partir disso, ele vive um
dilema tão intenso que, encerrando sua luta em busca de um entrelugar confortável, anuncia o
seu mais precioso atributo: a vocação para reler o mundo. Por isso brada:
Chega de mentiras.
Não serei um falso pai falso, como o doutor Eucanaã.
Não me casei com Esmeralda. Não tive filho com ela.
Se me colocarem contra a parede deste relato, confessarei.
Tive dois filhos virtuais.
Não poderia tê-los tido. Não os tive. Inventei-os.
Inventar não é bem o verbo. Gerei-os em outro útero. Com a mão esquerda (sou canhoto)
e a ajuda da bolinha metálica da caneta bic. Com tinta azul lavável. Inseminação artificial.
O resto, pa-ra-rá, pa-ra-rá, pa-ra-rá....
Fim.
Lego ao mundo as minhas telas.
À história, uma família a menos.
(FM, p.222)
Machadianamente, Samuel despede-se do leitor. Brás Cubas, em suas Memórias
Póstumas, encerrou seu discurso aliviado por deixar o mundo livre daquilo que mais lhe causava
ojeriza: o ser humano e as hipocrisias sociais. Samuel também sente alívio por não deixar
heranças à humanidade. Nesse caso, contudo, o objeto de horror seria a estória “real” de uma
família “ficcionalmente verdadeira”.
Afinal, mesmo em se tratando de suas memórias, Samuel sempre deixou claro não ter
compromisso com o verdadeiro. Até sobre os fatos mais simples de seu cotidiano, como no caso
da pintura, ele deixava transparecer seu apreço pelo não real. Sobre isso, uma vez falou:
57
Trazia para o meu ateliê quatro por quatro a imagem três por quatro do outro. Intacta na
memória. Secreta. Emprestava-lhe com a análise e a imaginação o toque mágico. Dava-lhe
de presente a metamorfose que a reabilitava pela nobreza da maquiagem. (FM, p.144)
E a explicação fornecida para tal postura, coincidentemente, ratifica um dos propósitos da
própria tendência contemporânea de representação literária: desmistificar o conhecimento
objetivo dos fatos. Segundo Samuel:
Aqui, na realidade, as coisas são o que podem ser. Lá, na representação, as coisas são o
que devem ser. Principal lição da pantomima. Devidamente revista pelos ensinamentos de
Donana. (...) Roubar do real o que ele nos oferece de graça é tarefa . A ser aspirada
pelos espíritos novidadeiros, parcos de imaginação criadora. A noção de realismo estava
tão na moda que, para não ser dada como ultrapassada, recebeu o prefixo de neo e se fez
acompanhar de mil e um adjetivos pátrios. Neo-realismo soviético, neo-realismo italiano,
norte-americano, francês, germânico, latino-americano. Cada nação uma sentença.
Não gostava e não gosto de sair por escrevendo ou filmando documentário com os
olhos. (FM, p.144)
Nessa passagem, a coincidência conceitual reflete com maior nitidez uma das mais
vibrantes características da escrita de Silviano Santiago: a proximidade entre o discurso literário e
o discurso ensaístico. São em fragmentos como esse que percebemos uma brida presença do
autor que, por alguns instantes, dificulta a distinção entre a voz do ficcionista e a do crítico
literário. Esse hibridismo, por sua vez, em nada desqualifica o texto, pelo contrário, talvez esteja
nessa polifonia um dos prazeres da leitura. Não aquele dos sequiosos dos textos de
entretenimento, mas a dos leitores um pouco mais exigentes que não temem à digestão literária.
Essa obra dialoga com uma das tendências do romance do século XX a qual Jean Yves
Tadié (1992) define como uma desconstrução das convenções objetivas da ficção com o fim de
valorizar a voz do autor. O universo literário ordenadamente construído e fechado que parece ter
sido erigido num toque de mágica passa a exibir seu mentor e arquiteto em estruturas romanescas
mais flexíveis. Segundo Tadié (1992, p.12), “No século XX, o apresentador de marionetas surge
no palco com os seus bonecos: mais poderoso do que eles, deixa de esconder-se e torna-se ele
próprio o centro do espetáculo (...)”
58
No caso de O falso mentiroso (2004), um dos fatores que resguarda o caráter romanesco
da obra em meio ao forte tom ensaístico que torna a invasão da enunciação no enunciado
recorrente é a utilização de um personagem caracterizado como escritor. Dessa forma, o
romancista consegue formar coro com o narrador-personagem sem prescindir do ficcional. Mais
ainda, transforma a convencional cisão entre o papel do ficcionista e o do crítico literário num
exercício de continuidade.
A incisiva presença do caráter metaficcional não ocorre gratuitamente. A pouca
importância dos acontecimentos reflete o processo de dissipação interior empreendido pelos
personagens que, de certa forma, também reflete as rachaduras que minaram a postura
convencional do autor, apresentando-lhe um espaço de atuação para além do prefácio. Tal
ampliação espacial para a voz do autor combina com os novos compromissos de criação do autor
moderno. Ao lado de afirmações e construções exatas, também lhe é concedido o direito de
duvidar, desconstruir e questionar.
O grande dilema de Samuel não envolve lutas em defesa de um amor ou de um projeto,
mas o autoconhecimento. Foi preciso duvidar da verdade, desconstruir sua origem para, então,
questionar seus valores e procurar entender as amarras sociais de seu contexto de vida, muitas
vezes, feito de angústias e obsessões.
Nesse ambiente o marcado pelo conhecimento do interior, a valentia e a coragem dos
heróis clássicos foi substituída por um constante sentimento de culpa. Culpa por trair seus
familiares com suas mentiras, por trair a si próprio, pelo ofício do falsário. Tudo isso, faz com
que a obra produza sentidos ao invés de simplesmente reproduzir a realidade e, assim, transforme
o leitor num cúmplice do sofrimento e demais emoções experimentadas pelo narrador-
personagem.
59
2.2 O Bruxo do contestado: os feitiços da ficção no seu amalgamento ao real
O último objetivo da ciência é a verdade. O último
objetivo das artes é o prazer. (G. Ephraim Lessing)
Este capítulo contém uma análise da representação do real em O Bruxo do Contestado
(1996), de Godofredo Oliveira Neto, considerando, entre os aspectos, o aproveitamento ficcional
de fatos históricos, a partir do relato memorialístico de uma escritora e suas angústias durante o
exercício de sua arte. Juntamente com Pedaço de santo (1997) e Marcelino Nambrá, o
manumisso (2000), esse romance faz parte do que o autor considera como sua trilogia
catarinense. Além de conter uma série de dados sobre a formação e caracterização político-
social de Santa Catarina, O Bruxo do Contestado traz uma forte exploração literária da fronteira
entre o real e a ficção.
Embora trate da Guerra do Contestado, o texto de Godofredo de Oliveira Neto o se
deixa sufocar pela gama de informações extraídas do contexto histórico; pelo contrário, sopra
vida nova no factual pelo tratamento narrativo, sabendo efetuar a transformação da experiência
humana em trabalho de linguagem.
Na montagem de um painel que aborda a Guerra do Contestado, passa pelos anos da
Segunda Guerra Mundial bem como engloba anos da Ditadura Militar, o escritor não reproduz na
íntegra os fatos da História. Por meio do que Wolfgang Iser (In: LIMA, 2002) define como
combinação e seleção, Godofredo de Oliveira conjuga o visível e o invisível, grifando a
60
importância da fatura interna do enredo. Se, por um lado, o aproveitamento de um importante
fato histórico (A Guerra do Contestado) aproxima seu trabalho ao realizado por Euclides da
Cunha em Os Sertões (1902) a abordagem da Guerra de Canudos por outro, O Bruxo do
Contestado adquire singularidade no tocante à tipologia do relato.
Para o autor em estudo o “Bom romance, primeiro, é o que não busca reproduzir o real. O
romance deve usurpar o real pela mediação da linguagem” (VASQUES, 2004, p. 1). Em O Bruxo
do Contestado, encontramos um ficcionista que faz uma deformação consciente do real, ora
falando do que não viu em documentos, ora omitindo o que viu registrado. Assim, age como um
legítimo representante de uma geração cuja prática de representação do real o mais contém o
compromisso de manter um rígido equilíbrio entre o fato histórico e o relato.
O romance em análise não está exclusivamente nem para o relato naturalista que se
propunha o mais fiel possível aos acontecimentos, nem para os relatos da modernidade dos
últimos 30 anos que tentaram abandonar tal compromisso. Ele contém, sim, um impasse comum
ao de algumas obras dos séculos XX e XXI: a busca da literatura para conciliar esses dois
extremos de propostas ficcionais.
Nessa busca, muitos autores acabam por borrar a fronteira entre o ficcional e real. Desse
borrão surgem, então, diversas manifestações artístico-literárias. No caso de O Bruxo do
Contestado, encontramos, entre outras questões: a) um deslocamento de papéis, no qual o que é
inventado é o próprio real; b) um alto grau de mistura de elementos do mundo real com
categorias do mundo ficcional; c) a questão do autor implícito; d) uma metanarrativa peculiar,
posto que vai dar conta de uma obra supostamente em fase de acabamento e não da habitual
estória em curso; e e) uma tensão entre a fala do narrador e a experiência do personagem a
serviço de um projeto de vida. Vamos abordá-las em três etapas.
61
2.2.1 Literatura e História: uma contradança reflexiva sobre o passado
No período de 1912 a 1916, ocorreu um grave conflito armado entre a população cabocla
do sul do país e os representantes dos governos estadual e federal, numa região de mais ou menos
20.000 Km
2
, rica em erva-mate e madeira, que envolvia municípios do Paraná e de Santa
Catarina. O confronto conhecido como Guerra do Contestado resultou de um desentendimento
entre os camponeses expulsos de suas terras e as poderosas empresas madeireiras que, com a
autorização do governo, vinham se instalando na região.
Comandados pelo monge José Maria, homem considerado santo pelo povo da região, os
habitantes desse território contestado organizaram uma comunidade e resolveram lutar por seus
direitos. Essa batalha durou cinco anos e gerou prejuízos materiais e humanos incalculáveis.
Foram aproximadamente 9 mil casas queimadas e 20 mil pessoas mortas.
Havia vários interesses em jogo: disputas pela exploração dos ervais, disputas eleitorais
entre coronéis, a utopia de construir uma sociedade mais justa, sem falar no messianismo e
fanatismo que tanto influenciaram a população cabocla. Todos esses fatores sustentaram um
confronto sangrento entre oquito de José Maria e as tropas governamentais que chegou ao
fim em agosto de 1916, com a prisão do último líder dos caboclos, chamado Adeodato.
Esse evento, um dos marcos da História de Santa Catarina, despertou o interesse do autor
Godofredo de Oliveira Neto que resolveu abordá-lo em seu livro O bruxo do Contestado. Tal
como boa parte das obras pós-modernas, o romance conjuga a transgressão de modelos
convencionais ao diálogo com a tradição. Beber em fontes históricas para a construção de textos
ficcionais, por exemplo, não é tarefa inédita. Em nossa historiografia literária existem várias
práticas de se misturar História e Literatura, mas uma delas se assemelha bastante a alguns
62
aspectos característicos de O bruxo do Contestado. Trata-se da que foi aplicada em Os Sertões,
de Euclides da Cunha.
Analisando comparativamente esses dois romances, percebemos que, apesar das
significativas diferenças, existe uma série de traços estilísticos interligando tais obras. Ambas
contêm o registro de importantes fatos da História do Brasil, bem como convidam o leitor a um
passeio crítico por zonas um tanto quanto esquecidas da História de seu país. Nos dois romances
encontramos referências ao desequilíbrio da vida em sociedade, mais especificamente no que diz
respeito ao trato das diferenças. Aqueles personagens que não se enquadram passivamente nos
modelos comportamentais preestabelecidos em suas sociedades são facilmente tachados de
anormais e, a partir desse mote, originam-se distintas representações da loucura. O tom
messiânico que influenciou tanto os homens de Canudos, quanto os do Contestado é outro ponto
de contato, à medida que, ressalvando-se as diferenças de abordagem, está presente nas duas
obras.
Embora partilhem de um mesmo projeto articular História e ficção- esses textos
apresentam também interessantes diferenças no tocante à forma como cada romancista construiu
sua obra. Enquanto em Os Sertões, de Euclides da Cunha, a abordagem de um importante fato de
nossa História (a Guerra de Canudos) ocorreu de modo que os planos histórico e interpretativo
apareçam no corpo narrativo bem delimitados e haja uma voz testemunhal; no texto de
Godofredo de Oliveira Neto, o enfoque de outro relevante episódio de nossa História (a Guerra
do Contestado) deriva de uma intensa condensação do histórico com o interpretativo. Nesse caso,
a voz testemunhal é substituída pela leitura e aproveitamento ficcional de documentos históricos
que originam uma espécie de “relato terceirizado”.
63
Como o escritor de O bruxo do Contestado pertence a uma época bem posterior ao
Contestado, no lugar da observação in loco, restou-lhe a pesquisa de campo e o levantamento de
dados para fornecer um grau maior de credibilidade ao relato ficcional. Diferentemente de Os
Sertões, O Bruxo do Contestado não é uma obra de nascedouro documental que a posteriori se
fez ficção, mas sim uma ficção que a posteriori até poderia servir de documento. Nela, o
histórico caminha sorrateiramente sob o ficcional e o metaficcional, até eclodir em algumas
fissuras do enredo, roubando a cena. Sem capítulos ou partes especificamente ligadas a questões
da terra ou das raças, o Bruxo do Contestado parte da saga da família de Gerd, para, num
processo metonímico, resgatar o sofrimento dos que assistiram à Guerra do Contestado.
Isso decorre da própria diferença existente entre as gêneses das obras. O texto de Euclides
da Cunha é concebido em meio a interesses jornalísticos, para num segundo momento nascer
como produto ficcional. Já, o de Godofredo de O. Neto nasce como algo imanentemente
ficcional, mas sem estar aprisionado em bolhas de ilusão, ou seja, deve ser ficcional e crítico de
um determinado contexto social.
Tais percursos de criação deixam marcas distintas no corpo narrativo. Terminada a leitura
de Os sertões, o leitor prontamente localiza as teses do autor a respeito da raça e da mestiçagem.
Diante de O bruxo do Contestado, contudo, a interpretação da Guerra do Contestado não se
encontra nitidamente registrada no plano da enunciação, pois várias vozes narrativas que, nos
planos do simbólico e do metaficcional, expõem as diversas leituras desse acontecimento
histórico.
Além disso, percebemos que se, em Os sertões, o protagonista traça uma trajetória
ascendente, em O bruxo do Contestado, Gerd personifica a morte em vida de um sujeito. Não se
trata de vencer ou não uma batalha, pois em ambas as estórias a vitória resume-se ao valor da
resistência do grupo oprimido, mas sim do que fica de registro de suas imagens para a
64
posteridade: Conselheiro de foragido infeliz e delirante profético passa a ilustre representante
da causa do sertanejo pobre em sua luta por uma vida mais justa – e Gerd – de trabalhador, pai de
família passa a foragido, solitário e desequilibrado. Gerd não corresponde à grande personalidade
histórica da Guerra do Contestado, uma vez que esta o monge José Maria passeia mais
discretamente na narrativa. Gerd representa sim uma legião de anônimos, o homem comum que
sonhou e sofreu com a revolução.
Ainda que O bruxo do Contestado não apresente uma rígida obediência à cronologia e
seleção de todos os episódios de seu fundo histórico, a obra comunga com Os sertões do mesmo
interesse em refletir sobre uma realidade trágica e os efeitos dos estilhaços da guerra na vida
daqueles que presenciaram seus horrores. Em outras palavras, se por um lado os percursos de
montagem do tecido narrativo refletem as diferenças compatíveis com a gênese de cada obra (a
de Euclides da Cunha, mais documental e a de Godofredo de O. Neto, mais ficcional), os efeitos
semântico-ideológicos desses textos convergem para fins muito parecidos.
A inexistência de recortes narrativos que resgatem as etapas da guerra do Contestado, tal
como as passagens sobre o esquema de campanhas e as quatro expedições de Canudos presentes
em Os sertões, não implica o esquecimento dos dados históricos. O que corre, na verdade, é a
representação dos quadros coletivos e suas questões político-ideológicas servindo de matéria de
extração histórica. Com base em Bastos (2000), designamos como matéria de extração histórica
a matéria que, depois de concebida a partir de algum registro documental e de uma memória
coletiva, embora faça alusões a fatos históricos, transforma-se em matéria ficcional. Quando
estudamos, portanto, a matéria de extração histórica contida em O bruxo do Contestado, não
estamos nos referindo nem à pura e simples inventividade do autor, nem aos dados estritamente
documentais referentes à Guerra do Contestado. De fato, estamos falando das passagens
65
narrativas que, como objeto da ficção, têm um caráter alusivo a fatos importantes sobre esse
contexto histórico brasileiro.
Ao aproveitar ficcionalmente as referências à Guerra do Contestado, o autor livra-se do
compromisso de fidedignidade aos fatos históricos, sem, contudo, apagar o caráter interpretativo
de seu discurso sobre tais episódios, isto é, semelhantemente ao ocorrido no texto euclidiano,
deparamo-nos com a denúncia do mais forte aniquilando o mais fraco, ou ainda, com a reflexão
sobre o sofrimento dos habitantes do local da guerra.
Ao elencarmos algumas das similitudes e diferenças entre tais obras brasileiras, não o
fizemos como o objetivo de estabelecer qualquer espécie de juízo de valor, hierarquizando-as.
Objetivamos, sim, destacar o modo como Godofredo de Oliveira Neto tratou de conciliar História
e Literatura, posicionando-se numa situação intermediária entre o documental e o exclusivamente
ficcional, ou seja, ressaltamos que, mesmo sem detalhar exaustivamente as etapas da Guerra do
Contestado, o autor obteve um eficaz efeito de crítica dos fatos pregressos e de elucidação de
posicionamentos político-ideológicos de uma época pretérita.
O êxito de Godofredo de O. Neto deve-se, sobretudo, ao criativo tratamento concedido à
matéria de extração histórica. Sem abrir mão da arte de contar uma estória, o autor falou da
História e, assim, construiu uma ficção que contracena como o real, harmonizando inventividade
ficcional e dados históricos.
Por meio de um narrador predominantemente em primeira pessoa (Tecla), o autor concilia
a subjetividade do discurso memorialístico com a objetividade inerente às alusões aos fatos
históricos, para transitar entre o documental e o imaginário. Dessa forma, resgata dados sombrios
de nossa História, sem ficar circunscrito à frieza do registro documental.
66
Em função de abdicar da rígida ordem cronológica dos fatos e deixar o desenvolvimento
do enredo sob a responsabilidade da memória de Tecla, o autor empreende um jogo ficcional
capaz de transmitir uma consistente análise das condições de vida dos vencidos. Ao representar a
dor e a angústia dos injustiçados pelo sistema, pratica uma espécie de escrita democrática que,
sem perder a lucidez e o senso crítico, ainda se sustenta impregnada de utopia.
O cotidiano da família de Gerd não aparece gratuitamente na narrativa. Cada marca de
violência e dor amplifica as preocupações políticas que pontuam obliquamente o texto. Em
paralelo ao projeto de escrita de Tecla, estão as denúncias das agruras dos tempos de guerra, as
incoerências do fanatismo religioso e as diversas formas do discurso autoritário do poder. Seja na
opressão patriarcal experimentada por Juta, seja no exílio social vivido por Rosa, seja, ainda, na
loucura experimentada por Gerd, as tensões sociais estão sempre sendo colocadas em relevo. A
consciência de pertencer a uma realidade desigual, por sua vez, cria em Gerd uma inquietação
que, devido à consciência de sua impotência contra os poderosos, não passa de um esboço, de um
grande ensaio de luta social que já estréia falido.
O texto de Godofredo de O. Neto ratifica as considerações de Therezinha Barbieri (2003)
sobre a relação de alguns romances da década de 90 com a História. Para a crítica (2003, p. 89):
“Não se pode simplesmente dizer que a tentação do documentário político tenha abandonado de
vez os ficcionistas brasileiros nos anos 80 e 90. (...) Mas a novidade agora é a ficcionalização
abundantemente documental.”
Nesse tipo de devir histórico, o narrador onisciente e totalizador cede espaço a uma
orquestra de vozes sobre a Guerra do Contestado. Ainda que continue no controle final da
ideologia promulgada no romance, o narrador apresenta personagens que não se limitam ao papel
de marionetes atuando como pano de fundo histórico, pois, por meio do recorte psicológico, o
67
narrador reflete a refutação que o autor possui em relação à presença de figuras estereotipadas.
Funciona como se, a partir dos conflitos interiores, fosse possível fazer pulsar o ideológico.
A visão pluralizada que emana do imaginário lembra a própria noção moderna da História
não como o discurso das verdades absolutas alcançadas pelo aparente empirismo do factual
documentado, mas sim a História ela mesma compreendida como um discurso construído pelo
olhar teórico que seleciona e analisa os documentos. A História semelhantemente à ficção é um
discurso engendrado conforme o sistema simbólico de uma época.
Do coro de vozes ficcionais contidas em O bruxo do Contestado, fica a sensação de que
realidade política e utopia seguiram caminhos opostos. Gerd sonhava com o Contestado fraterno,
igualitário, mas o que encontrava ao seu redor estava bem distante daquilo que era idealizado.
Não se limitava sequer ao drama de um indivíduo subordinado ao coletivo; representava sim uma
vasta lista de pobres sujeitos massacrados pelos interesses dos dirigentes do coletivo. E tamanha
injustiça só poderia mesmo ser interpretada por uma visão não-linear da História.
Esse tipo de tensão entre as classes dominante e dominada geram no protagonista uma
angústia alucinante em decorrência de ele se sentir impotente diante dos empecilhos à realização
de seu projeto. A trajetória de Gerd e sua família, além de refletir essas tensões, chama a atenção
para o perigo que reside no ato de se tentar catalogar os indivíduos com rótulos não-cambiantes e
excludentes. Estabelecer rígidas leis para postular o certo e o errado, o permitido e o proibido,
entre outros valores dicotômicos, facilita o enquadramento dos tipos diferentes em subcategorias.
Por meio da sociedade irrealizável sonhada por Gerd, o narrador expõe as mazelas sociais
da época. Se Gerd alimenta utopia e esperança, é porque se encontra insatisfeito com as
condições de sua vida. O sonho, portanto, mais que um desejo individual, atua como um
manifesto contra os problemas sociais.
68
Dentro dessa perspectiva, ao tomar o histórico como um intertexto, sem assumir com o
próprio um compromisso de fidedignidade à dita verdade histórica, o autor aproxima-se do que
Linda Hutcheon (1991) postula como metaficção historiográfica, ou seja,
(...) sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas
(metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu repensar e sua reelaboração das
formas e do conteúdo do passado. (...) ela sempre atua dentro das convenções a fim de
subvertê-las. Ela não é apenas metaficcional; nem é apenas mais uma versão do romance
histórico ou do romance ficcional.(...) (HUTCHEON, 1991, p.22)
Desse modo, recorrendo à matéria de extração histórica, o romance exibe uma
intervenção transgressora nos fatos do passado que, no lugar de garantir a reduplicação da
História, promove uma revisão histórica da Guerra do Contestado. Como quer ser ficção, sem as
intenções históricas, sociológicas e científicas que marcaram o texto euclidiano, O bruxo do
Contestado apresenta uma visão plural que, com um olhar desconstrutor para o passado, usa os
discursos variados dos personagens e suas trajetórias para delatar as contradições ideológicas
predominantes naquela época.
Somemos a isso, o fato de, em muitas passagens, a matéria narrada passar a segundo
plano e, então, também pelo viés metaficcional, identificaremos que, no lugar de simular a
veracidade dos fatos, o autor pratica o exercício inverso, ficcionalizando questões e seres
históricos para, assim, escapar da escrita datada e grifar os questionamentos político-sociais
capazes de desmascarar a pretensa objetividade de todo tipo de representação seja ela histórica
ou ficcional – e de desconstruir o discurso dos dominantes registrados na História oficial.
Em cenas como a “Conferência de Elsa”, fica claro o projeto de desconstrução de
qualquer tipo de subserviência a uma verdade central. As várias vozes dos participantes da
Conferência, embora não rejeitem ou critiquem radicalmente a voz da História Oficial,
convidam-nos à coleta de novos significados dos fatos oficiais.
69
Essa seria uma maneira de expressar o desencanto com a verdade. Se em O falso
mentiroso, Silviano Santiago trouxe o tema da inviabilidade de uma verdade absoluta para o
centro do palco, em O bruxo do Contestado, o ataque à noção positivista sobre a verdade
sucedeu-se subliminarmente e a exploração da matéria de extração histórica comprova isso.
O resgate da Guerra do Contestado não se configurava uma tarefa árdua apenas por conta
da memória de Tecla, mas também pela própria compreensão da História como um produto
simbólico. No universo ficcional desse romance, também um desencanto com a verdade
absoluta dos fatos, anunciando a falácia de certos princípios positivistas. Em face da
impossibilidade de se tecer um discurso totalizante da realidade, reconhecemos na ficcionalização
do dado histórico uma forte ferramenta de manifestação política.
A escrita de Tecla, mais que compreender o passado, visa construir suas memórias nas
lacunas e silêncios das crises enfrentadas nesse passado. Sob os signos do resgate e da angústia, a
obra se desenvolve a partir do cruzamento de duas narrativas: a da saga da família de Gerd e a do
embate de Tecla com suas lembranças durante a escritura de sua grande obra.
Os recursos tipográficos foram empregados para delimitar os espaços das duas estórias.
Em itálico, temos a estória de Tecla e seu projeto de finalização do manuscrito em meio às
memórias do truculento período da Guerra do Contestado, entre outros fatos históricos.
No espaço reservado à estória de Tecla, a abordagem política se ramifica. Além das
reflexões sobre o Contestado, surgem as alusões a sua participação política no período da
Ditadura, como delatora anônima da corrupção e da tortura. Tecla assumiu o pseudônimo de “O
Bruxo do Flamengo” em homenagem ao “Bruxo do Contestado”. Dessa forma, metaforicamente
o narrador uniu dois períodos sombrios de nossa História, pois se as visões de Gerd buscavam um
mundo mais justo, as de Tecla também se orientavam nesse sentido. Ao assinar com esse
pseudônimo, a jovem grifa a importância de se ter “visões”, ou seja, de se buscar um mundo
70
melhor. Ela jamais pretendeu realizar um Novo Contestado como desejava Gerd, apenas se
inspirava nesse sopro de utopia, distinguindo-se radicalmente do “Bruxo do Contestado” que
passou boa parte de sua vida refém de um sonho impossível fundar uma terra tão justa e
humana quanto a que ele supunha ter sido fundada pelo monge José Maria.
No plano narrativo referente à vida de Tecla, ainda encontramos uma abordagem mais
explícita do exílio. Enquanto na estória de Gerd, o exílio é tematizado obliquamente, por meio da
loucura de Rosa ou do sumiço de Gerd, nas seções “Hotel do Levante”, o exílio é relatado como
uma experiência dolorosa da juventude de Tecla, sendo abordado em pormenores. As marcas
degradantes da vida do exilado (a eterna sensação de estar em país estrangeiro, o sentimento de
abandono) irrompem o texto pelo desabafo da própria Tecla.
Nessa evocação de um período de sombras de nossa História, memórias do plano
individual (as experiências de cada personagem) mesclam-se a memórias coletivas (alusões a
episódios históricos) no desnudamento das injustiças ocorridas na Guerra do Contestado, fazendo
com que o livro se inscreva no limiar da ficção e do registro histórico. Esse entrelugar fica
garantido em virtude de as palavras do narrador prescindirem o documental. O plano da realidade
foi absorvido no jogo ficcional a tal ponto que o próprio desejo de saber a “verdade”, via de
regra, alimentado pelo leitor, esvai-se.
O romance contém um certo caráter político, por tentar realizar uma reafirmação do lugar
da Guerra do Contestado na História brasileira. Isso não implica, por sua vez, uma defesa
incondicional daqueles que lutaram pelo Contestado, pois ao se dedicar à valorização do evento,
o autor acaba por esgarçá-lo, à medida que também aborda a própria falta de unidade do
Contestado, citando a presença dos mercenários entre outras mazelas. Logo no início do romance,
Tecla descreve esse tempo como um período em que “Falava-se muito em sangue e morte. As
virtudes humanas se faziam raras.” (BC, p.14)
71
Paralelo às considerações mais neutras do narrador a respeito da Guerra do Contestado,
encontramos diversas opiniões sobre esse fato histórico. Gerd carregava traumas da infância e,
marcado pelas sovas gratuitas que recebera do pai e da madrasta; cresceu carente de projetos
futuros até que desenvolveu verdadeira obsessão pelo monge José Maria e a vida no Contestado.
Seu discurso sempre enfatiza as vantagens desse espaço, pois ignorava qualquer tipo de
comentário que denunciasse os problemas do Contestado (fanatismo, violência, presença dos
mercenários). Nem mesmo o grave episódio de desrespeito à igreja relatado por Victor Bonnatti
afetou sua admiração pelo Monge José Maria. Para Gerd tudo seria resolvido nesse novo mundo,
até mesmo seus ciúmes cessariam, uma vez que sua mulher seria impedida de integrar tão
perfeita civilização, em caso de adultério.
Diversas vezes, Juta tentou trazer o marido para o presente, argumentando que cada um
tem o seu mundo, que o Contestado pertencia ao passado e ele devia tentar cuidar de seu próprio
mundo, no presente. Isso para Gerd, no entanto, era impossível, pois não conseguia ser feliz com
a vida que tinha. Chegou a surrar impiedosamente sua filha, Rosa, durante uma crise nervosa.
Após recuperar o controle sobre si, sentiu-se tão culpado que, julgando-se censurado por João e
José Maria, acreditou ser indigno de participar de tão perfeita civilização. Sem o Contestado, só
lhe restou a fuga da realidade, a selvageria, o isolamento.
Convivendo com essa utópica visão do Contestado, existem as críticas negativas sobre o
mesmo. Para vários personagens, esse não passou de um movimento dos arruaceiros. Dentre os
discursos sobre esse fato histórico, na Conferência de Elsa, encontramos a síntese das visões
sobre o Contestado. Há, inclusive, nesse episódio, um saldo da carnificina gerada pela guerra.
Segundo o autor (In: VASQUEZ, 2004), na Conferência da Elsa, está o agrupamento das
várias informações dispersas sobre a guerra naquele bloco narrativo. Entretanto, essa Conferência
não segue linear, tal como ocorre comumente na apresentação de trabalhos científicos e
72
acadêmicos. Ela é interrompida em vários momentos, pois os personagens participantes da
mesma não se contentam com o papel de espectador de Elsa e, ao interromperem-na, fazendo
comentários, conforme suas memórias dos fatos, constroem um discurso que dilui qualquer
perspectiva acadêmica ou científica sobre o relato de Elsa. Na Conferência há, pois, uma
compilação harmoniosa das diferentes visões do Contestado e, se para efeito ficcional, essa
Conferência contém um foco totalitário, na prática, ao mesmo tempo em que a discussão dos
participantes da Conferência torna o texto dinâmico, comprova que O bruxo do Contestado é a
utopia das utopias, pois se alimenta da fonte histórica e, ao questioná-la, coloca o discurso
científico em crise.
Embora pertença à trilogia catarinense idealizada por Godofredo de Oliveira Neto e
aborde como tema central a Guerra do Contestado (episódio de grande importância para a história
do sul do país), esse livro não se restringe à releitura de aspectos da História de uma região do
Brasil. Distanciando-se de qualquer espécie de atitude bairrista, o texto apresenta questões
nacionais tais como os problemas enfrentados na Era Vargas (1932-1954) e assuntos
internacionais como o fascismo e o nazismo (1919-1939), a Segunda Guerra Mundial (1939-
1945).
Para abordar coerentemente essa gama de fatos históricos, o autor ora recorre à
exploração do tempo narrativo, ora trata de construir um elenco diversificado de personagens. No
primeiro caso, temos a coexistência do passado de personagens como Gerd e Tecla sendo
resgatado pelo viés da memória com o presente experimentado por eles. Assim, a grande
cobertura da Guerra do Contestado (1912-1916) garante sua presença no texto em função das
memórias de Gerd e de sua obsessão por um movimento o qual julgava ser a única solução para
todos os problemas político-sociais e, quem sabe, até os pessoais. os demais acontecimentos
históricos, sobretudo os da Era Vargas (1932-1954), fazem-se presentes no texto por
73
caracterizarem o contexto político-social em que vivem a família de Gerd, a família de Tecla e a
própria Tecla, na fase adulta.
No início da estória de Gerd e de sua família, as referências ao Contestado, via
documentos e lembranças de Gerd, somam-se às alusões ao fascismo e ao nazismo (1919-1939)
que chegavam a habitantes do sul do país, por meio da imprensa e de algumas resoluções
governamentais. À medida que reproduz a caracterização do sul do Brasil como uma região
composta, principalmente, de colônias alemães e italianas, cenas de personagens como Otto
Undereich e Victor Bonnatti recebendo notícias de seu país de origem, ou mesmo, sofrendo
preconceitos e retaliações em terras brasileiras refratárias ao racismo e demais radicalismos nazi-
fascistas, aparecem constantemente na narrativa.
Em Diamante, cidade habitada por Gerd e sua família, todos eram cadastrados pela polícia
e impedidos de conversar em alemão ou italiano. Isso porque o governo tentava coibir grupos
hitleristas que vinham se reunindo no Brasil desde 1929. Nesse mesmo período, um primo de
Victor Bonnatti entrou em crise nervosa por ter de ir combater na Itália pela FEB. Enfim, existem
vários episódios do cotidiano dos personagens colocando a relação entre a Literatura e a História
em destaque.
Quando a estória de Tecla passa a ser enfocada na obra, recebemos, então, diversas
informações da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da Era Vargas (1932-1954). Aos doze
anos, período em que conhece os Rünnel, a Segunda Guerra ainda se fazia refletir no Brasil.
Depois disso, Tecla cresce acompanhando todas as atrocidades desse período brutal de nossa
História até que, com o final da mesma e a deposição de Getúlio Vargas em 1945, Tecla, jovem,
militante política, não perde sua mãe acometida de leucemia como presencia a derrocada
financeira de sua família.
74
A narrativa segue, esbarrando na volta de Vargas ao poder em 1950 e no subseqüente e
controvertido suicídio do estadista, para, em seguida, relatar a prisão de Tecla em 68 que, depois
de liberta, na década de 80, no rescaldo de toda brutalidade que experimentara a vida inteira,
luta em o contra a mesma doença que tanto castigara sua mãe. Ciente de que viveria mais
seis meses, Tecla resolve amenizar suas angústias, registrando, em forma de livro, a face brutal
da História de seu país.
Essa década de 80 chega-nos por meio das marcações temporais das seções “Hotel do
Levante” que começam em SP, 20/01/1981 e terminam em SP, 26/01/1981. Além disso,
encontramos também uma referência lacônica ao término do livro de Tecla, quando na seção
“Nota ao Leitor”, aparece uma menção à localização de seu manuscrito, no início dos anos 80, no
palacete que pertencera à família da personagem-escritora.
Como vemos, ainda que esteja centrado na Guerra do Contestado e, conseqüentemente no
sul do país, o romance constrói um vasto painel político-social. Traçar uma cronologia desse
porte e abordar realidades diferenciadas (Santa Catarina, Rio de Janeiro, São Paulo, Nova York)
sem incorrer em prejuízos para a “fatura interna do enredo” deve-se, em grande parte, ao
emprego de estratégias literárias que descentralizem o relato.
Em termos mais objetivos, a construção de uma abordagem histórica não-linear derivou
em parte da coexistência de vários fios temporais (o passado contido nas memórias dos
personagens, o presente experimentado por eles mais as marcas típicas das seções “Nota ao
leitor” e “Hotel do Levante”) e da diversificada caracterização do elenco.
Os vários núcleos de personagens não dinamizaram o relato como viabilizaram um
maior deslocamento geográfico. Enquanto o núcleo da família de Gerd inseriu-se no interior do
sul do país (Diamante) e recebeu influências de costumes estrangeiros, o núcleo dos Jonhasky
circulou nos grandes centros do sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Porto Alegre, Curitiba,
75
Florianópolis) e sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo), além de ter se espalhado por várias partes
do mundo: o tio Ludovick arrematou um palacete da família em São Paulo, Walter Kurt foi para a
Alemanha e Tecla viajou muito em função de suas atividades políticas. Como membro de uma
organização trotkista, ela foi enviada para missões no Rio de Janeiro e, no exílio, percorreu
diversos lugares (Estocolmo, Dinamarca, Estados Unidos).
Diante da flexibilidade obtida para a abordagem de diferentes fatos históricos, verificamos
que a ficcionalização do dado real, longe de distanciar o texto do contexto, acabou por promover
uma abordagem mais rica da História, sobretudo, porque a exploração literária das categorias
narrativas denominadas tempo, espaço e personagens, numa perspectiva pluralizada ampliou o
valor simbólico da matéria de extração histórica.
Cada uma dessas categorias foi trabalhada de modo que o menor detalhe adquirisse valor
funcional no corpo narrativo. A nomeação dos personagens, por exemplo, concentra importantes
informações, uma vez que sobrenomes como Jonhasky, Kurt, Rünnel, Kellner, Bonnatti
recuperam a formação heterogênea do povo brasileiro. Sem falar que nomes como Otto
Undereich e Tecla adquirem uma polissemia bastante provocativa, ou seja, por motivos
diferentes, reich e Tecla transportam o leitor para as entrelinhas do discurso.
O primeiro nos lembra o III Reich (Terceiro Império) alemão fundado por Hitler, depois
da morte do Presidente Hindemburg e de ele ter recebido o tulo de Fürher (guia), acumulando
as funções de Chanceler e presidente. É, no mínimo, irônico que um personagem dissimulado e
manipulador como Otto tenha em seu sobrenome o termo Reich.
O nome de Tecla, por sua vez, desprovido de conotações políticas, volta-nos para as
questões metaficcionais contidas na obra. Justamente a escritora do manuscrito, engajada em
registrar os acontecimentos marcantes do passado, possui o nome similar ao do objeto que,
integrando máquinas datilográficas ou computadores, viabiliza a produção do texto escrito.
76
Em síntese, para revisitar o passado, o autor forneceu credibilidade ao relato, investindo
em cada detalhe do tecido narrativo. Nomes, personagens, tempo, espaço, foco narrativo, as mais
variadas categorias e elementos do romance foram explorados de modo que a abordagem
político-social de importantes períodos da História brasileira fosse efetuada sem causar
sensaboria ao texto.
2.2.2 A invenção do real
Diante da reconstrução do real presente em O Bruxo do Contestado, num primeiro
momento tendemos a ver um alto grau de complexidade nas estratégias literárias empregadas
pelo autor. Todavia, basta refletirmos um pouco mais sobre o tema, para entendermos que a
complexidade não deriva de uma opção por uma estratégia de abordagem complexa e hermética
mas do próprio objeto da ficção: o real.
De acordo com Manuel Antonio de Castro (2004, p. 30-31):
A banalidade com que hoje empregamos a palavra real como sendo o que está e é
evidente ou como o que corresponde aos fatos não provém simplesmente de uma
doutrinação positivista que, de fato, desde o século XIX se impôs como evidência
científica. Não, o real não é evidente (senão para que a doutrinação científica?). O real é
misterioso, é fugidio, é estranho, é extraordinário. O que é então evidente? Simplesmente,
as opiniões (doxa) sobre o real. Essas são banais na sua evidência.
Logo, para dar conta de um objeto misterioso surge um conjunto de inúmeras estratégias
de apreensão do real. Ora mais totalizadoras, ora mais fragmentadas, estão todas em busca de um
mesmo resultado: a mais satisfatória representação ficcional do real, seu simulacro e seu virtual.
De início, em O bruxo do Contestado, deparamo-nos com a exaustiva exploração de um
recurso de criação de personagens capaz de aproximar os mundos ficcionais e reais bastante
77
estudado pela teoria da narrativa tradicional, ou seja, a criação de personagens a partir do real.
Segundo François Mauriac (1955, p. 9, tradução nossa),
4
Os personagens criados pelos
romancistas não são, de modo algum, criados, se por criação se entende fazer algo do nada.
Nossas desejadas criaturas são formadas por elementos retirados da realidade.”
No caso do romance em estudo, o entrelaçamento de texto & contexto resulta do modo
como Tecla foi transposta da experiência direta do autor Godofredo de Oliveira. Em vários
momentos, a vida de Tecla, suas aspirações e até mesmo as suas citações figuram como
simulacros das experiências do autor. Assim como ela, o ficcionista também morou e estudou
fora do país, escreveu um livro chamado O Bruxo do Contestado e foi ativista político.
Com base em Yves Reuter (2002), fizemos uma leitura intertextual e paratextual do
romance, isto é, analisamos alguns escritos que, mesmo sem pertencerem ao corpo narrativo,
estão fortemente vinculados a ele e ampliamos essa questão do aproveitamento de dados/fatos da
vida real. A partir do estudo de um ensaio crítico seu e de uma entrevista do autor concedida a
Marco Vasques, do Jornal “Ô Catarina”, em 2004, verificarmos que, paralelo ao diálogo entre
História e Literatura, existia um segundo tipo de conversa, mais sutil, quase circunscrita às
entrelinhas, presente nas memórias de Tecla: o entrelaçamento entre a ficção e a crítica literária.
O bruxo do contestado apresenta um narrador de primeira pessoa claramente identificado,
Tecla, sem que isso signifique que haja ortodoxas delimitações entre os espaços de atuação das
categorias denominadas autor e narrador. Em outras palavras, se é fato haver forte esclarecimento
sobre a narradora Tecla e o papel do autor, não é fato haver uma significativa distinção entre as
crenças teóricas do crítico Godofredo de O. Neto e os princípios de criação literária apresentados
por Tecla ao longo do relato de suas experiências na escrita de seu livro “O bruxo do
4
Versão da citação em espanhol, conforme o original da edição consultada: “Los personajes inventados por los
novelistas no son, em modo alguno, creados, si por creación de entederse el hacer algo de la nada. Nuestras
pretendidas criaturas están formadas por elementos tomados de la realidad. (...)”
78
Contestado”. A própria coincidência de o título da obra do plano real ser retomado como título de
uma obra do plano ficcional já evidencia a ocorrência desse diálogo.
Quando cotejamos a leitura do romance de Godofredo de O. Neto com a de seu livro de
ensaio A ficção na realidade em São Bernardo (1990), mesmo cientes de que a leitura do
romance não depende de conhecimento prévio do conteúdo de seu ensaio, nos detivemos na
análise de uma série de ressonâncias do discurso do crítico na voz do narrador-personagem Tecla.
Principalmente, nos momentos do romance nos quais os bastidores da ficção foram privilegiados
e, ao invés de acompanharmos a família de Gerd, convivemos com o projeto artístico da escritora
Tecla.
Durante a análise de São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, Godofredo de O. Neto
tomou a relação entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva como ponto de partida para
abordar a dificuldade de apreensão do real inerente à atividade do escritor. Dentro dessa
perspectiva, considerou que Graciliano Ramos tinha consciência da impossibilidade de se
apreender o real em sua plenitude e estudou essa questão por meio da análise do narrador-
personagem Paulo Honório.
De acordo com seu ensaio, em São Bernardo, encontramos uma conciliação entre a teoria
e a ficção propriamente dita, o que propicia uma representação dialética dos campos da ficção e
do real, pois enquanto a primeira pode mascarar o real, este também pode conter a ficção de
modo camuflado. Para o crítico, a escrita assume um valor de resgate do passado na vida de
Paulo Honório. Todavia, embora seja importante, o projeto de escrita desse personagem enfrenta
vários obstáculos, a começar pelo pouco domínio da arte de escrever apresentado por Paulo
Honório. Entram em cena, pois, conflitos entre a escrita e a oralidade, a impossibilidade de Paulo
Honório dividir tal tarefa com outros escritores (uma vez que a “verdade” dos fatos passados
poderia ser encontrada nas experiências do próprio Paulo Honório) e, ainda, uma diferenciação
79
no grau de conhecimento do enredo demonstrado pelo escritor das memórias e o do leitor. No que
diz respeito à ordenação dos fatos, percebemos na inviabilidade de Paulo Honório ser fiel a um
rígido esquema cronológico o elemento que produz uma apreensão fragmentada da realidade
narrada.
Quando questionado sobre tamanhas semelhanças e “o limite entre o personagem e o
autor”, o ficcionista Godofredo de O. Neto, embora não tenha assumido a semelhança
prontamente, em seguida declarou:
O personagem é a consciência testemunhal, a consciência autoral tenta ser independente.
Pelos tempos que correm (fim das grandes narrativas, em parte que buscavam entender o
mundo, fim de alguns paradigmas) para unir essas duas consciências. Euclides o
fizera. Em O bruxo... a narradora é propositalmente didática e detalhista (acho que tudo o
que se escreveu e se sabe o Contestado está ali) e mistura o seu vivido com o vivido
(textos de jornal) dos outros. (VASQUES, 2004, p.1)
Em outras palavras, Tecla é uma espécie de alter ego do autor. Tal fenômeno, de algum
modo, está, mais uma vez, relacionado com as reflexões de François Mauriac sobre os
personagens, mais especificamente quando diz que: “O grande arsenal do romancista é a
memória de onde extrai os elementos da invenção, e isto confere acentuada ambigüidade às
personagens, pois elas não correspondem a pessoas vivas, mas nascem delas.” (MAURIAC, 1955
apud Candido, 1998, p.66-67)
Outra explicação para esse fenômeno seria a existência de um autor implícito. Para
Wayne Booth (1980), nem sempre os planos do narrador e do autor são estanques, ou
radicalmente separados. Muitas vezes, uma aproximação desses planos por meio da figura do
autor implícito que se encarrega de contaminar o relato com traços da vida do autor e elementos
internos que podem ser identificados externamente. No fenômeno em análise, por exemplo, a
recuperação de dados da vida de Godofredo de Oliveira Neto e de seus princípios ficcionais
possivelmente decorre da existência do autor implícito.
80
O mais intrigante no romance, porém, não está circunscrito aos amalgamentos do real com
o ficcional já, de uma certa maneira, catalogados por uma vasta crítica literária. A questão torna-
se mais refinada à medida que constatamos uma inversão nesse procedimento de aproveitamento
do real.
Dando continuidade à leitura paratextual anteriormente realizada, detivemo-nos em uma
parte do livro que, sem estar inserida no corpo do romance, integra a obra, precedendo-a: a Nota
ao leitor. Nela identificamos que o texto, comumente escrito pelo autor, ou no máximo por uma
pessoa por ele designada, simulava uma falsificação por se aproveitar de um integrante do mundo
ficcional.
Esse recurso faz lembrar uma observação feita por Godofredo de O. Neto a respeito de
uma ambigüidade existente no início de São Bernardo. Segundo o crítico, o pronome em
primeira pessoa presente no início do romance de Graciliano Ramos pode passar a falsa idéia de
que estamos em contato com a voz do próprio Graciliano Ramos que, nesse momento, estaria
inusitadamente substituindo a voz do narrador Paulo Honório.
Coincidentemente, ou não, em O bruxo do Contestado, o leitor se depara com uma
ambigüidade similar. Ao avançar sua leitura, tal como acontecera em São Bernardo, o leitor
também consegue perceber o embuste. No caso da Nota ao leitor, podemos constatar que o texto
não contém dados biográficos do ficcionista, mas sim de um dos personagens do livro, Tecla, a
moradora do casarão, pertencente à família Jonhasky e, conforme declara mais adiante, a
escritora do manuscrito. Além disso, ao longo do livro, Tecla também explica que o material
seria rasurado em prol de seu melhor acabamento. O manuscrito de Tecla estava, pois, encerrado
no mundo da ficção e ao próprio teriam acesso os seres fictícios, tal como denomina Antonio
Candido (1998).
81
Mais do que condensações temáticas, essa parte da obra serve para dar credibilidade à
estória de Gerd, pois retomando o tom da “Nota ao leitor”, a narradora empreende-se na tarefa de
convencer o leitor sobre a existência da família de Gerd para além de seu manuscrito. Há todo um
esforço para transmitir ao leitor a idéia de que Tecla escreveria sobre a vida de pessoas com quem
conviveu. Ela cita o que chama de verdadeiro nome da família de Gerd, Rosa e Juta (os Rünnel),
faz questão de explicar que perdeu o contato com eles, enfim, cria toda uma atmosfera de
naturalização da narrativa. Em outras palavras, faz “(...) com que o discurso (narração,
textualização) que carrega a ficção não seja passível de suspeição.” (REUTER, 2002, p.158)
Depois de recuperar uma técnica de naturalização típica do século XVIII, justificando a
origem da estória, a partir da especificação de como o manuscrito teria sido encontrado (escrito
num caderno encontrado num palacete em demolição no Centro de São Paulo), a narradora segue
seu relato, mas agora rompendo com tendências do século XIX que se caracterizavam por
apagarem os indícios da enunciação. Tudo isso foi feito na expectativa de convencer o leitor de
que não escreveria uma simples ficção por ela imaginada, mas uma grande estória pautada em
fatos do seu passado.
Em vários momentos do romance, o tratamento concedido a Tecla a aproxima de
categorias próprias do mundo real. Quando reflete sobre o destino de seu manuscrito diz:
“Hesitei muito em dois pontos. Devia dar um título ao manuscrito. o tem como não
dar. E também fiquei na dúvida se atribuía aos membros de minha família nomes
fictícios. Optei, finalmente, por deixar os verdadeiros, inclusive o meu, Tecla.” (BC,
p.13)
De que mundo vem esta voz? Como seria possível falar em verdadeiro? E como inventar
nomes fictícios aos seres, por natureza, fictícios? Certamente, a voz vem de um real que não o
nosso, mas de um real inventado pela própria ficção, ou como preferirem alguns, de uma ficção
dentro da própria ficção que não se assume enquanto mundo imaginário.
82
Do mesmo modo, Tecla também não enxerga outros mundos ficcionais como tais. Ela se
comporta como uma pessoa e, às vezes, no limite da intertextualidade, trata Paulo Honório
(narrador-personagem criado por Graciliano Ramos) como uma pessoa de seu mundo. Durante
uma crise de criação, é a solução de Paulo Honório em São Bernardo que a escritora toma como
referencial: “Ia o manuscrito ao cesto. Foi ontem à noite. Justamente, sentia-me bem de saúde.
Avaliei que Paulo Honório, em São Bernardo, também devia ter jogado tudo fora”.(BC, p.64)
Isso mostra que ambos os narradores poderiam estar em um mesmo plano, fosse para nós,
o da ficção, fosse, no livro, o plano que se apresenta para eles como real. No entanto, parece-nos
ser mais eficiente continuar lendo a Tecla apenas como uma “personagem nascida de uma
pessoa”.
Os limites que se atenuam entre o ficcional e o real são melhor delimitados apenas depois
do ponto final do texto, no espaço intitulado Esclarecimentos. Daí emerge a voz do autor para
advertir que suas fontes de pesquisas são confiáveis, mas seu livro é pura ficção. Em síntese, do
documento saiu o monumento.
Dessas reflexões, fica-nos o fato de que Godofredo de Oliveira Neto o contou uma
estória como problematizou a arte da escrita e a sua relação com o real. Desse modo, o romance
em análise pode ser incluído no que o seu autor, na condição de crítico literário, define como o
grupo de obras literárias que, abdicando da lógica tradicional típica dos enredos mais objetivos,
escolhem um caminho de produção mais complexo que desloca a atenção do receptor para o
emissor.
83
2.2.3 A metanarrativa: percepções e construções da realidade
Diferentemente do Realismo praticado no século XIX, que negava a digressão, por refutar
a intromissão no relato; a representação do real presente em O bruxo do Contestado convive com
a metanarrativa. Aqui, a suspensão do relato em prol do desnudamento do processo de criação da
obra é tão intenso que passa a merecer várias seções ao longo do romance. No lugar de
parágrafos ou furtivos comentários do narrador, os fios da narrativa vêm entrelaçados e, numa
espécie de zigue-zague, o leitor ora está diante da estória, ora se depara com questões de seus
bastidores. É possível até mesmo ler as duas partes da obra separadamente, sem prejuízo da fatura
interna; mas isso com a devida ressalva de que é no conjunto que ambas as partes ficam mais
iluminadas.
Como se trata de uma metanarrativa que comenta o fazer ficcional no período pós-criação,
por vezes, tais seções lembram a tendência cinematográfica moderna de anexar o Making of
(bastidores da produção e filmagem) ao produto de mídia a ser comercializado, quer dizer, ao
DVD do filme acabado. Nas seções intituladas Hotel do Levante, o leitor vai encontrar
justamente as circunstâncias de elaboração do manuscrito. Se em outras obras, via de regra, as
divagações metanarrativas do escritor dão conta de suas dúvidas quanto ao fazer ficcional,
seleções e explicações acerca das estratégias literárias das narrativas em construção, em tais
seções, ao lado das opções literárias da escritora, estão as revelações sobre o estado de espírito de
Tecla. Lá, descobrimos suas motivações para a escrita, suas fontes de inspiração, seu contexto de
vida, suas angústias em relação ao literário e à obra de arte e, por fim, o valor do manuscrito em
sua vida.
De imediato, via, metanarrativa, Tecla apresenta as angústias vividas e a construção do
seu manuscrito como um exercício inevitável:
84
Os médicos me deram no máximo seis meses de vida. A doença, no meu caso, não tem
cura. Morrerei, pois, com cinqüenta e um anos. Meus pais também morreram
relativamente jovens. Eu tinha que voltar e confiar esta história ao meu país. Conto
deixar o manuscrito, que vim redigindo nestes últimos dez anos, na sala de nossa casa da
Avenida Paulista, em São Paulo. (...) Tentei deixar tudo para trás e ser livre como o
Paquequer e Peri em O Guarani de José de Alencar, começar vida nova. Mas o impulso
para a escrita não me permitiu. (BC, p.13 e 18, grifo do autor)
5
Em função de estar divagando sobre um produto praticamente acabado, Tecla divaga
também sobre os efeitos produzidos sobre sua escrita. Depois de conversar com Cindy, ela pensa:
Quando foi embora [Cindy], apressei-me em ler O bruxo e me dei conta de que grande
parte do que relatei a Cindy era, surpreendentemente, diferente do que eu escrevera.
Pode ser que no Bruxo esteja apenas o amigo diabo, este delicioso terror da nossa
infância católica de que nos falou Eça de Queirós.
Mexi em vários capítulos do meu texto. Acrescentei alguns trechos a lápis, como o título
(posso mudar!), risquei outros, voltei à leitura de Borges. (BC,p.47, grifo do autor)
Para o romancista, dar conta da totalidade ou da fidedignidade ao seu projeto de escrita é
sempre um desafio. Tal como propunha Iser (In: LIMA, 2002) em seu conceito de
intencionalidade, toda obra ficcional é um produto das seleções e combinações efetuadas pelo
autor. Ela resulta da observação do real que, por sua vez, não pode ser abarcado num golpe só, o
que impele o escritor à seleção dos elementos oriundos de sua observação com os quais vai
trabalhar. Tal empreitada, por si só, também não garante a harmonia entre criador e criatura.
Afinal, a linguagem literária é opaca, à medida que retorna a si mesma.
Tecla vive esse dilema. Sua luta de escritura e reescritura figura, pois, como a metáfora da
angústia vivida pelo escritor da modernidade. Embora o relato da estória de seu manuscrito não
apareça em pessoa, o tom e a sua concepção são memorialísticos, o que dificulta ainda mais a
tentativa de se obter distanciamento dos fatos, para uma apresentação mais imparcial dos
mesmos.
Para Tecla, a narrativa de seu manuscrito tem uma grande função: registrar importantes
acontecimentos da História do Brasil no tocante à Guerra do Contestado. Todavia, para dar conta
5
Como o autor, emprega o itálico em oposição ao redondo de modo peculiar, para distinguir as vozes na narrativa e
para indicar as citações, estamos transcrevendo os fragmentos com tipo de fonte idêntica à encontrada no texto.
85
de seu projeto, ela recorre a sua memória e passa a explorar acontecimentos e eventos, nos termos
de Alfredo Bosi (1986), ou seja, exibindo o acontecimento como uma espécie de fenômeno que
independe da consciência humana e o evento como algo que existe para o indivíduo, à medida
que ele o experimentou. São esses eventos que embaralharam seus fios narrativos, gerando-lhe
algumas angústias:
Para uma ex-militante política exilada, que sonha com um mundo melhor - que parece
sempre existir em algum lugar escrever o Bruxo é capitular? É renunciar a outras
formas de luta? É se vender?
Com a morte nas minhas canelas, não consigo ver se Hélio tinha mesmo razão e se, como
o Doutor Fausto, é lídimo vender a alma ao Diabo. Mas vou deixar o O bruxo do
Contestado amanhã na avenida Paulista assim mesmo. (BC, p.128, grifo do autor)
que o entregar não é assim tão fácil. Ele, de fato, é um instrumento de luta, talvez o
golpe letal contra o sistema. Entregá-lo significa pôr um ponto final em duas estórias, na
inventada e na vivida. Para Tecla essa não seria tarefa simples e sobre isso ela ponderou: Ia o
manuscrito ao cesto (...) voltou-me aquela dorzinha enjoada pelo corpo. (...) infelizmente não
são aquelas dores da adolescência. São outras. As que mamãe também ia sentir mais tarde. É
uma doença que não me larga. Vou manter vivo O bruxo”. (BC, p. 64, grifo do autor)
Escrever esse livro é uma grande utopia que te de conviver com o fantasma da
frustração, inclusive porque os personagens dessa obra quase nunca logram, representam, pois, a
constituição do ser humano como sujeitos precários, à medida que se desejam absolutos num
mundo de relatividade, no qual apenas a utopia pode ser absoluta. A finitude da existência
acompanha cruelmente o percurso produtivo de Tecla:
O tempo vai se esvaindo. É como se lâmias estivessem chupando, sem interrupção, o meu
sangue. Estou com aquele medo sartreano. Mergulho novamente na leitura de Fernando
Pessoa. Releio O bruxo do Contestado. Tenho dificuldade de deixá-lo na nossa casa em
São Paulo. Vou adiando, adiando. Pensei que eu aceitasse a morte com mais galhardia.
(BC, p.146, grifo do autor)
No momento de finalização de seu livro, a reação de Tecla reflete a utopia da paz que
perpassa toda a obra. Desde a menção a Canudos, passando pelo sonho do Contestado até as
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cartas de Tecla, presenciamos uma rie de movimentações utópicas paralisadas pela carnificina,
pois, de uma forma ou de outra, o gesto utópico está freqüentemente esbarrando em episódios
sanguinários. A morte de Tecla vem, então, coroar a derrocada dessa utopia:
Nem tudo foi exatamente como escrito no texto, mas foi assim que me veio à cabeça. As
palavras sobre sonhos e visões saíram escritas, mas me sinto com uma enorme mão na
boca, como a mão acho que era do Jardel Filho no Terra em transe, do Glauber
Rocha, que vi em fins de 68 no Rio. Cruz e Sousa no “Emparedado” me traduz: Mas que
importa isso? Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de
dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e
febre? Vocês terão lido uma história real e uma fantasia. (...) No caminho para o
aeroporto, deixarei na nossa ex-casa da avenida Paulista este meu testamento, este meu
legado. Não vou mais olhar para trás.Também não vai dar tempo para receber o meu
buquê de frailejones, nem para reconstruir uma nova América. Suerte, Jaime! (Se der
para escolher o tema, tenta valorizar o amor entre Frida e Diego!) É isso, amigo. La risa
y el llanto. É o fim. Talvez o descanso. (BC, p. 202-203, grifo do autor)
A dinâmica de finalização do manuscrito vem ditada pelo ritmo da vida da escritora.
Quando ela es bem, o trabalho corre tranqüilamente; quando o peso da morte a assombra,
irrompe o desejo de abandonar o manuscrito ou paradoxalmente de não entregar o produto final.
De um modo geral, mesmo as suas lembranças cotidianas também influenciavam no
trabalho:
A insônia me transporta inexoravelmente para Rosa, para a minha vida em Diariamente.
Releio e corrijo O bruxo do Contestado que, de alguma maneira, serão as minhas
memórias. Mudei as palavras e frases, pois redigi algum tempo, acrescentei ao
texto, a lápis, alguns dados e notas explicativas que julguei serem importantes para o
leitor, alterei a colocação de alguns pronomes, regências de verbos, concordâncias. Veio
me à cabeça Manuel Bandeira:
A vida não me chega nem pelos jornais nem
Pelos livros
Vinha pela boca do povo, na língua errada
do povo (...) (BC, p. 99, grifo do autor)
Ocorre, portanto, em alguns momentos a junção da voz testemunhal, via experiências
vividas por Tecla com a consciência autoral. Como um alter ego do autor, a figura de Tecla
aparece nos dois planos: no do enunciado, ela é apenas uma narradora e no da enunciação ela
atua como uma escritora que segue problematizando a questão da criação literária.
A semelhança entre a biografia do ficcionista Godofredo de Oliveira Neto e a da
personagem Tecla confere maior credibilidade ao discurso, a priori, não-testemunhal da
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narrativa. Em uma passagem, a personagem-escritora chega mesmo a provocar os críticos da
Estética da recepção, insinuando que, no seu manuscrito, havia uma narrativa bem urdida, com
pistas textuais, peças justapostas e um ritmo narrativo capaz de dar conta do relato.
Foi pensando neles [Platão, Lebi-Strauss, Sassurre] que decidi jogar fora O bruxo do
Contestado. Tudo o que eu tiver escrito será lido segundo a cabeça do leitor! Nossos
amores são amores Tântalos. Eu escrevo um texto e ele, o espertalhão, lê outro que não
escrevi! Rosa, Juta, o Contestado e as minhas memórias serão de autoria dele.
Claro que o leitor não quer ser escravo de um texto que vai à luta. Desse desejo de
liberdade sairá o seu próprio O bruxo do Contestado. Sabe ele muito bem que a escrita
vem travestida, é enganadora, e que ela pode matar o sentido da palavra. O leitor se
arma e contra-ataca. Para mim, muito mais aterrorizante que a folha branca é essa
reação do leitor. De fato a escrita é, para nós dois, o crivo da imaginação.(BC, p.63,
grifo do autor)
O efeito de surpresa oriundo da transformação de personagens como Gerd capaz atingir o
leitor demonstra o cuidado do autor para urdir a trama. Desde as epígrafes, passando por uma
postura, muitas vezes, irônica da narradora até o clímax da narrativa, várias pistas textuais sobre a
metamorfose de Gerd vão sendo ardilosamente disseminadas na obra, para que, no momento
exato, a transformação do personagem cause impacto.
As três epígrafes que abrem o romance constituem o primeiro alerta sobre: a) o caráter
flexível das personalidades envolvidas na trama e b) o tom de horror que deriva dos conflitos de
guerra. As palavras de Freud lembram-nos que a visão maniqueísta sobre a existência de
indivíduos bondosos versus indivíduos perversos deve ser superada, pois a complexidade do ser
humano reside justamente na sua capacidade de ser dialeticamente bom e mau. Em seguida, por
meio do famoso narrador roseano, o autor continua nos convidando a “ver” e “se arreparar” o
mundo, para entendermos que nem mesmo o contexto é capaz de garantir o caráter do indivíduo.
Afinal, na mesma terra nascem “a mandioca-mansa” e a “mandioca-brava”. Ora, se em
circunstâncias amenas o inesperado pode acontecer, imaginemos, pois, o que não seria capaz de
gerar um “sonho dantesco... o tombadilho”? Por fim, ao dialogar com Castro Alves, o autor
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prepara o espírito do leitor para apresentá-lo a homens transtornados pela dor. Não por acaso,
Gerd perdeu-se como homem para transformar-se no “Bruxo do Contestado”.
Essas epígrafes voltam à cena, incorporadas a falas de personagens da trama. Quando
Antônia, para defender Rosa, tenta convencer Wilfredo a perdoar o comportamento mais
agressivo da menina, argumenta, reproduzindo as idéias contidas na epígrafe de Guimarães Rosa:
“É como mandioca. Tem uma que mata e outra que engorda. E a mesma terra deu as duas.” (BC,
p.181)
Mais adiante, na tentativa de acalmar e orientar Gerd, com o fim de lhe mostrar o quanto
as pessoas podem ser boas e más ao mesmo tempo, Antônia não só dialoga com Guimarães Rosa,
como também retoma as idéias de Freud: “Mas é verdade que Deus e o Diabo moram dentro da
gente. Os dois estão em todos os lugares. A gente tem que cuidar e se controlar. Um dia está tudo
certo e, de repente, o fogo e a água vêm pra derrubar tudo. Tem que estar precavido pra se
defender.” (BC, p. 186-187)
Dentro dessa perspectiva, O bruxo do Contestado é um romance que aborda questões
históricas muito silenciadas, sem perder o viço narrativo. O texto não apenas promove um
resgate do processo de formação cultural do sul a partir da coexistência de vários grupos (alemão,
italiano, brasileiro, comunista, ditador, não-comunista) e resgata os horrores da Guerra do
Contestado, mas principalmente analisa as questões ideológicas adjacentes e enfoca a questão do
messianismo, a ação do fascismo, as hipocrisias e desigualdades sociais; enfoca, ainda, o papel da
mulher, os próprios costumes locais. Em suma, traça um panorama da sociedade sulista da época
ao mesmo tempo em que nos emociona com os dramas da família de Gerd.
Gerd é um projeto de guerrilheiro que se esgota no plano do sonhar e na espera de seu
messias com a próspera vida no Contestado, lugar onde “(...) só havia fartura e alegria. Injustiça
passava longe! Enfermidade nenhuma, se viesse de fora! Era o reino da paz, da justiça e da
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fartura - nos rios corria leite, e algumas montanhas eram de beiju (...)” (BC, p.20). Todavia
revelava-se pleno em humanidade quando, por exemplo, sofria com a deficiência de sua filha.
Admirando-a em poucos flashes e transpondo para a mesma as revoltas de seu mundo interior,
dizia ele: “Rosa é a minha maior tristeza” (BC, p.48). Também amava Juta, mas se deixava
corroer pelo ciúme, agredia sua esposa com adjetivações tais como vaca, filha-de-uma-égua,
traidora, aleijada de espírito ao mesmo tempo em que lutava por uma vida melhor. “Gerd
trabalhava duro. Sua destreza na serra-fita comparava-se à força no abate das árvores. Era o mais
requisitado e de quem mais se acatavam os conselhos nas áreas profissionais em que
atuava”.(BC, p.130)
Entretanto, seu trabalho não resultou em superação e sua revolta, somada a sua ira, foi lhe
rendendo fama de doidinho. Pouco a pouco, ele foi se transformando em “o bruxo do Contestado,
acusado pelo assassinato do menor Wilfredo Santos Gonzalez e transformado em suspeito
principal pela morte de Victor d’Angelo Bonnatti, nunca foi encontrado.” (BC, p.196)
O autor explora o caráter ficcional do termo Loucura. Começa pela oposição clássica à
Razão para depois, metaforicamente, trabalhar com seus múltiplos significados, mostrando que a
Razão não é integralmente positiva. Com essa desconstrução do mito da Razão, o texto apresenta
uma análise da vida em sociedade que expõe as deficiências de alguns dos níveis da ordem
daquela sociedade. A ordem política, por exemplo, primava por um tipo de Razão segregadora,
que privilegiava poucos homens.
A Razão nem sempre é suficiente para que entendamos o caos dos tempos modernos e,
muitas vezes, atitudes paradoxais perdem seu caráter contraditório quando são julgadas longe da
inflexibilidade de certos preceitos morais falidos e princípios políticos enganosos.
Em alguns casos, a Loucura é capaz de iluminar o lado nebuloso de uma Razão político-
social. Como entender como racional uma sociedade que enterra Stille (a vaca) e Victor (um
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homem) em covas iguais? Seria possível interpretar essa desvalorização do ser humano como
algo confortavelmente inerente ao que chamamos de civilização?
Muitas vezes, na ficção, o alienado ou o autista pode corresponder a um indivíduo que,
por sofrer com o seu excesso de lucidez, tenha se tornado incapaz de conviver com fatos reais,
porém, insuportáveis. Para Gerd foi duro demais enxergar que a Razão não se traduzia em
emancipação, mas em escravidão. Não por acaso, esse personagem constitua-se uma figura
enigmática. Embora o narrador elabore um discurso para apresentá-lo como um monstro
assassino, suas reações, por vezes humanizadas, diante dos acontecimentos,o margem a outras
questões.
A ironia corrói conceitos cristalizados, relativizando as noções de Razão e Loucura. A
própria falha no sistema dos poderosos que desapropriam os bens dos mais humildes abre uma
brecha para que se pergunte: onde reside o maior perigo? Na loucura de Rosa e seu diálogo com
as estrelas? Ou nas mãos de ferro do governo que retira de Gerd o principal meio de subsistência
de sua família (a vaca leiteira)? Os personagens desse romance são simbólicos, a própria Rosa é
uma figura ambígua que pode tanto ser entendida como alguém louco como alguém à frente de
seu tempo. Suas estrelas são, em última instância, a metáfora de seu desligamento de seu meio
social.
Dona Antônia conseguia se comunicar com Rosa e tal como sua mãe, D. Juta, não
enxergava a menina como louca ou retardada, apenas a considerava diferente. Seu pai, Gerd,
sempre a considerou retardada e vivia insatisfeito com sua apatia. Justamente na ocasião em que
Rosa tomou um atitude heróica e enfrentou o rio para salvar D. Felícia e sua filha Graça, ele
exclamou: “Rosa, não, por Deus! Volta, Rosa! Você ficou louca!” (BC, p.138). O que seria
loucura nesse momento? Arriscar-se na corrente endiabrada quinze metros acima para salvar duas
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vidas? Ora, em outros contextos, isso o seria visto como heroísmo? Portanto, mais uma vez,
assistimos ao jogo em torno de pretensas verdades.
Isso não significa que haja uma defesa absoluta da Loucura sobre a Razão. Os soldados
das tropas que, durante o confronto do Contestado, mataram crianças foram classificados como
loucos. O que existe é um discurso de moderação em torno das características positivas da Razão,
pois, à medida que os vícios de uma época são capazes de corromper a Razão, a Loucura se
apresenta como algo menos assustador.
Mesmo quando nos deparamos com cenas de selvageria, ainda assim é possível analisá-las
como um desvio plantado pelas injustiças sociais e não como um genuíno ato de maldade. A
loucura de Gerd começa mansa para somente no final eclodir em assassinatos e figurar como uma
metáfora da voz oprimida que, antes silenciada, agora deseja se rebelar contra o sistema. Em face
da falência do Contestado, encerra-se o período de placidez para instaurar-se a era da crueldade.
Sua loucura advém, pois, da impossibilidade de se construir uma vida exemplar, daquilo que não
seria possível experimentar no plano da vida real, da Razão.
Todo esse questionamento político-social mais as questões filosóficas enriquecem o texto
sem provocar desgastes no leitor. E a maneira tranqüila como o leitor consegue acompanhar a
narrativa, em muito, deriva da mistura de tons do relato. Diferentemente do que ocorre em O
falso mentiroso, de Silviano Santiago, cujas superposições de estórias colaboram com outros
elementos para tornar a estrutura romanesca complexa, no romance de Godofredo de Oliveira
Neto, a narrativa flui com menos desvios. Além disso, mesmo com a presença de diversas fontes
de pesquisa histórica na obra, o texto não perde a ludicidade típica das estórias ficcionais; muito
menos assume um aspecto demasiadamente documental, pois os vários episódios da narrativa, até
mesmo as aventuras do Contestados” que chegaram aos ouvidos de Gerd pelos relatos dos
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familiares – fazem com que o leitor informe-se historicamente sem sentir um sabor enciclopédico
no texto.
No romance, percebemos a recorrência de um certo direcionamento narrativo: partir do
relato de fatos cotidianos para a abordagem de questões político-sociais. A morte e o enterro de
seu Victor, por exemplo, abarcam vários temas, desde a brutalidade da guerra, passando por
reflexões político-sociais sobre as disputas pela terra e sobre os impasses religiosos (católicos e
protestantes), chegando ao movimento de nacionalização dos costumes. Nesse último, por
exemplo, aborda detalhes como as proibições em relação às inscrições em túmulos em “línguas
vivas estrangeiras”.
O entrelaçamento entre a Literatura e a História ocorre, por meio da contextualização
ficcional das passagens históricas mais densas. Os documentos citados, por exemplo, são sempre
encontrados pelos personagens ao longo do caminho. Um dos relatos mais precisos sobre o
Contestado chega a Gerd a partir de uma carta que, ainda menino, recebera de Rodolfo.
Semelhantemente, os discursos de Elsa e dos demais ativistas são feitos nas reuniões da GDD, ou
seja, mais uma vez, o enredo aparece marcado por episódios que permitem a absorção de dados
da História sem que se façam necessárias abruptas suspensões do plano do enunciado. Em tais
ocasiões, ocorre a inclusão de recortes jornalísticos, via personagens:
Permitam-me, membros e simpatizantes do Grupo de Defesa da Democracia, a leitura de
um pequeno texto do jornal de Florianópolis O Estado, de 12/08/1916, relativo à entrevista
feita na prisão com Adeodato, o maior estrategista militar dos sertanejos na Guerra do
Contestado (...) (BC, p. 124)
Ainda que não correspondam a recortes do mundo extratextual, esses encaixes do discurso
jornalístico refletem que as seleções e combinações efetuadas pelo autor não são gratuitas.
Metaforicamente falando, o “temor de Tecla sobre a intervenção do leitor” acaba por destacar o
quanto o autor cuidou do texto, fazendo com que cada peça textual exercesse um papel na obra.
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um lançamento de dados que vão sendo retomados ao longo da narrativa, por vezes,
estruturado em eco. A estória de Tecla é um dos maiores exemplos, pois na Nota ao leitor,
várias alusões à vida da escritora que depois são retomadas no texto. Na primeira seção de Hotel
do Levante, ela diz que sua “vida inteira foi pautada na história dessa família” (BC, p.13) e toda
a estória de Gerd e sua família contada no manuscrito, de fato, soma-se à estória da família de
Tecla, atando as pontas narrativas, quando a esposa de Gerd o abandona. Nessa ocasião: “Juta e a
filha continuaram trabalhando nos Jonhasky, onde eram bem-tratadas pela família, composta pelo
casal, uma filha Tecla e um filho, Walter Kurt, ainda crianças”.(BC, p.155)
Em algumas passagens, contudo, nem sempre é possível sustentar a tranqüilidade do
relato e o texto passa a exigir fôlego do leitor para o acompanhamento das linhas narrativas
entremeadas. Entre o aparecimento do corpo Victor (BC, p. 97) e o seu enterro (BC, p.111),
passam-se rios discursos: uma seção inteira do Hotel do Levante, seguida de um longo texto
lembrando do seu Victor vivo. Isso demonstra que o narrador não reflete uma postura de
submissão do autor em relação aos interesses do leitor.
O autor de O bruxo do Contestado, por meio de seu narrador, de fato, não deseja dar ao
leitor o direito da “co-autoria”. Não é apenas na justaposição dos relatos que o mesmo ratifica o
papel do seu narrador como o grande “engenheiro da palavra”. no texto uma linha de
persuasão que leva o leitor a reter as conclusões do narrador, ainda que essas estejam oblíquas.
No caso do assassinato do Victor Bonnatti, até o final da narrativa, Gerd é apenas anunciado
como suspeito, mas desde o início do relato, tudo é arrumado para que o leitor o condene.
De acordo com Antoine Compagnon (1999, p.109), “A ilusão referencial resulta de uma
manipulação de signos que a convenção realista camufla, oculta o arbitrário do código, e faz crer
na naturalização do signo. Ela deve, pois, ser reinterpretada em termos de código.” É exatamente
dessa forma que a leitura de O bruxo do Contestado torna-se mais rica. Atentar para a
94
manipulação dos signos vale a pena, posto que estão repletos de simbologia assim como o enredo
parece ter sido construído com alto grau de persuasão e manipulação dos fatos. Assim, Gerd é
apresentado como alguém violento e ciumento, as suspeitas da relação amorosa de sua mulher
com o Victor não são de todo desfeitas e Gerd se embrenha pela mata surtando de ciúmes numa
noite, na manhã seguinte Victor aparece morto, afogado no rio. Quando retornou de seu “exílio
da fúria,” Gerd “cumprimentou Anita com a mão dura, baixinho, cabisbaixo.” (BC, p. 107) e no
enterro, o narrador grifa que, para dissimular suas lágrimas de agonia, “(...) ele levou as mãos ao
olhos para dissimular a tensão.” (BC, p.116).
Por fim, como se não bastassem todas essas pistas textuais, ainda surgem as vozes dos
demais personagens evocando a desconfiança do leitor. “Para a viúva Schultz alguém tinha
empurrado Victor. Clara Udenreich também achava. Tudo era muito estranho! Falou-se até de
Lorelei. (BC, p.107-108)
O pronome indefinido alguém valoriza o relato à medida que oferece um espaço de
interação com o leitor, convidando-o ao preenchimento de tal indeterminação. Essa leitura,
porém, não será feita à revelia do texto, descartando a estória e a memória do “dono do relato”, o
narrador. Será sim resultante da coleta das pistas textuais que o narrador foi lançando ao longo da
estória.
Essa indeterminação do relato, inclusive, faz parte de um tom de dúvida constantemente
presente na narrativa que, ao invés de falsear os dados acaba ratificando-os. Funciona como se
houvesse uma “retórica do Acredite-se quiser”, simulando estar dando liberdade interpretativa ao
leitor. Os verbos da terceira pessoa do plural são muito explorados, sem falar nos sintagmas
típicos do discurso descompromissado com a comprovação das informações transmitidas, mas
que, semelhantemente ao boato, fortalece as informações transmitidas. A todo tempo, os
personagens emitem frases como:
95
“só estou dizendo o que me disseram” (BC, p.110)
“Quem relatava, com pormenores, era um primo de Anita” (BC, p.111)
“Espalhara-se na época a crença de que o monge José Maria era o irmão do monge
caminheiro, conselheiro e milagreiro João Maria” (BC, p.13)
“Durante muito tempo se falou daquela viagem, e os relatos messiânicos sobre a
Guerra do Contestado impressionaram o menino Gerd.” (BC, p.22)
Com essas estratégias, acreditamos que Godofredo de Oliveira Neto consegue fazer da
obra “uma simbiose entre leitor e texto”(VASQUES, 2004, p.1).
Em geral, em uma narrativa que se proponha memorialística, encontramos um narrador do
tempo presente que, ao se encontrar com o eu do passado, transforma-o numa figuração sua. Em
São Bernardo, de Graciliano Ramos, Paulo Honório é uma figuração de Paulo Honório assim
como em Dom Casmurro, de Machado de Assis, Bentinho é uma figuração de Dom Casmurro.
No texto em análise, a Tecla, filha dos Jonhasky, que aparece somente na página 155,
também é uma figuração da Tecla narradora. No entanto, diferentemente das figurações
existentes nos romances de Graciliano Ramos e Machado de Assis, a figuração de Tecla não
evoca questões existenciais profundas no plano do seu manuscrito. A Tecla personagem só ganha
profundidade psicológica no plano da obra O bruxo do Contestado, mas especificamente nos
espaços metanarrativos.
Talvez isso aconteça porque, distintamente do que ocorre convencionalmente, no romance
de Godofredo de Oliveira Neto, não há uma preferência do narrador pela releitura de si mesmo ou
pela busca da compreensão dos fatos do passado. Para Tecla, a escrita é um encontro com o
passado. Essa retrospectiva, contudo, não se reduz ao entendimento de questões internas, mas
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constrói-se como um “ato de delação”, de registro das mazelas sociais por ela vividas e/ou
observadas.
O manuscrito era um instrumento de luta e por isso não podia cair em mãos erradas, como
as do tio Ludovic. Mais que isso, Tecla cumpria um compromisso com o registro adequado das
questões político-sociais. Quando se propunha a pensar o seu passado, dizia: “E o meu passado às
vezes não parece passado. Parece um presente que caducou”. (BC, p.101)
no tocante a O bruxo do Contestado, constatamos nas seções metanarrativas uma
rememoração avaliativa da vida de Tecla, com um eu do presente lendo um eu do passado. Nesse
espaço, mais do que em qualquer outro, Tecla está compromissada com os seus sentimentos e não
com o que se supunha ser o seu real. Ela diz: “Nem tudo o que foi exatamente como escrito no
texto, mas foi assim que me veio à cabeça.” (BC, p.202)
Suas palavras dão conta de uma consciência de impossibilidade de abordagem absoluta
dos fatos que é muito comum nos relatos memorialísticos, sobretudo porque, de acordo com
Alfredo Bosi (2002, p.229): “(...) o recorte do pormenor supõe a confissão honesta de que a
totalização seria um ideal muito difícil de alcançar e talvez incompatível com os limites da
testemunha(...)”.
Ao fazer um balanço de sua vida, Brás Cubas narrador machadiano julga ter morrido
com um pequeno saldo, e deixa a célebre frase: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma
criatura o legado de nossa miséria.” (MPBC, p.639). Já, Tecla, em seu balanço final, refere-se a
suas memórias como “este meu testamento, este meu legado (BC, p.203)”.
97
O manuscrito de Tecla é a sua tentativa de driblar a morte, efetuando o prolongamento de
sua existência e resistência. Coincidentemente, a escrita ficcional é igualmente empregada por
Godofredo de Oliveira Neto como instrumento de luta, uma vez que, na esteira dos borrões entre
ficção e realidade trabalhados pelo escritor, recebemos um incisivo convite ao revisionismo
crítico do passado.
2.3 O autor mente muito : intersecções entre a mentira e a ficção.
O escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo
capaz de exprimir a sua originalidade, (que o delimita e especifica
98
entre todos), mas alguém desempenhando um papel social,
ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e
correspondendo a certas expectativas de leitores ou auditores.
(Antonio Candido)
O romance O autor mente muito (2001), de Carlos Sussekind e Francisco Daudt,
estrutura-se a partir de dois temas centrais: a discussão do papel da literatura e a ficcionalização
do trabalho do escritor. A estória versa sobre o projeto de escrita de um livro a quatro mãos,
empreendido por um personagem-escritor e seu psicanalista, ambos integrantes de uma sociedade
pós-moderna, na qual o mercado editorial encontra-se mais interessado no potencial de venda dos
livros do que preocupado em fomentar manifestações culturais de boa qualidade. Tal contexto
sócio-econômico oprime os protagonistas do romance, em virtude de eles se caracterizarem como
artistas compromissados com a construção de livros que efetivamente sejam significativos no
cenário cultural e literário.
Divididos entre o desejo de construir uma grande obra e a necessidade de conquistar
visibilidade no mercado editorial, esses personagens travam uma árdua batalha contra a
banalização da cultura. Como, desde o início, tinham consciência de que seus esforços seriam
insuficientes para promover a derrocada dos best sellers, esses personagens deixam transparecer
para o leitor toda a angústia que tal opressão lhes causava.
A abordagem do papel da literatura e do valor do escritor na atualidade pontuam o texto,
por meio do aproveitamento ficcional de tópicos, via de regra, discutidos no plano da crítica
literária. Ao empregarem um personagem-escritor e transformarem a criação de um livro em
componente do enredo, os autores conseguiram expor uma série de questionamentos sobre o
processo de produção literária da atualidade, sem fornecer um tom demasiadamente ensaístico à
obra. Os bastidores de criação do personagem-escritor e de seu parceiro psicanalista figuram
99
como metáforas das condições de trabalho impostas aos autores pós-modernos pela sociedade de
consumo, o que nos permite acompanhar o desenvolvimento do enredo e ao mesmo tempo refletir
sobre os diversos problemas da vida literária.
Semelhantemente ao romance O falso Mentiroso, de Silviano Santiago, a obra de Carlos
Sussekind e Francisco Daudt apresenta uma série de reflexões sobre o ato de mentir.
A mentira volta a ser matéria de criação literária, mas o enfoque fornecido a mesma
apresenta algumas singularidades. Se no texto de Silviano Santiago, a mentira estava
extremamente atrelada ao conceito de imaginário postulado por Freud e, por isso, freqüentemente
refletia as fantasias construídas por Samuel na expectativa de tornar sua realidade mais
suportável, agora, além de abarcar essa concepção, o ato de mentir passa a ser constantemente
comparado à natureza do trabalho de criação artística comumente empreendido pelos ficcionistas.
Dentro dessa perspectiva, o conceito de fictício postulado por Iser (In: Lima, 2002)
encontra-se obliquamente presente no texto. um jogo literário pautado na exploração de uma
suposta mistura dos mundos intra e extradiegéticos capaz de colocar em relevo o pensamento de
Wolfgang Iser acerca do fictício, ou seja, de mostrar que o fictício sai do empírico, mas ao passar
para o mundo da ficção o transcende.
Ao longo do romance, encontramos uma série de elementos cuja semelhança com dados
do mundo extradiegético é capaz de induzir o leitor a acreditar num projeto de rígida manutenção
da homologia entre a linguagem verbal e o mundo sensível. uma recorrência de nomes de
pessoas conhecidas, relatos jornalísticos parecidos com casos verídicos. Além disso, a própria
reduplicação dos nomes dos autores do livro no universo ficcional sob a pele de dois personagens
escritores reforça a idéia de que haveria uma possibilidade de cotejar a matéria narrada com seus
pares no mundo não-ficcional.
100
Surge então o problema da representação da realidade. De acordo com Antoine
Compagnon (1999, p.106), “(...) a ideologia burguesa é identificada a uma ilusão lingüística:
pensar que a linguagem pode copiar o real, que a literatura pode representá-lo fielmente, como
um espelho ou uma janela sobre o mundo, segundo as imagens convencionais do romance.” Tal
pensamento se torna cada vez obsoleto em pleno século XXI. Numa era de incertezas, qualquer
promessa de representação totalizadora e especular corre o risco de não se concretizar. No caso
de O autor mente muito, as coincidências onomásticas e demais aproximações entre os elementos
dos mundos intradiegético e extradiegético correspondem à problematização da relação realidade
& ficção e não à submissão de um signo a um referente preestabelecido.
Durante a análise de O autor mente muito, estivemos ocupados com duas grandes
questões. A primeira diz respeito à oposição entre mentira e verdade, envolvendo os conceitos de
mundo real e mundo ficcional, que, em muitas passagens, assemelham-se a pequenas “ciladas
interpretativas”. Já, a segunda refere-se à ficcionalização da tensão entre mentira e verdade
experimentada pelos personagens no mundo intradiegético.
No caso da oposição entre mentira e verdade, aguardavam-nos fronteiras entre o real e o
ficcional tão justapostas que, por vezes, foi difícil não visualizá-los separadamente como
também analisar as categorias ficcionais da narrativa (autor versus escritor/ pessoa versus
personagem) em conformidade com as considerações vigentes nos manuais teóricos de literatura,
sobretudo porque o referente empírico suposto ainda pulsa com força no texto.
Em face dos diversos jogos de aproximação entre dados do real e dados do ficcional,
analisamos algumas transfigurações de dados do mundo real, mas fizemos o levantamento dessas
identidades, sem nos preocuparmos valorativamente com as noções de fidedignidade e/ou
veracidade. Os nossos objetivos foram: primeiro, o de pôr em relevo todo o esforço dos autores
101
ao grifarem o caráter infinito da criação, pelo viés da ironia e, segundo, o de destacarmos que,
conforme assinala Umberto Eco (2006), depois de internalizados, quaisquer resquícios de aspecto
documental da obra se tornam tão inventados quanto os demais.
Na abordagem do aproveitamento ficcional de aspectos documentais, recorremos, mais
uma vez, ao conceito de marcas registradas postulado por Alcmeno Bastos (2000) e, assim,
avaliamos a funcionalidade desse tipo de referência aos elementos do mundo real no corpo
narrativo. Percebemos, entre outros aspectos, que a absorção de aspectos documentais pelo corpo
narrativo está atrelada a uma fina ironia de ataque às convenções falidas da sociedade burguesa e
sua obsessão consumista.
Em virtude da coincidência de nomes dos escritores do mundo real com os do mundo
ficcional, sentimos a necessidade de distinguirmos os tipos de alusões que faremos a Carlos
Sussekind, ao Francisco Daudt e ao Paulo Coelho ao longo deste capítulo, isto é, chamaremos de
autores às pessoas Carlos Sussekind, Francisco Daudt (aqueles que redigiram o romance em
estudo) e Paulo Coelho (Imortal da ABL) assim como designaremos como personagens-
escritores os personagens Carlos Sussekind, Francisco Daudt e Paulo Coelho (integrantes da
ficção em estudo).
2.3.1 Dos criadores à criatura
Segundo declarações dos próprios autores, Carlos Sussekind teve um surto psicótico na
adolescência que o impediu de distinguir a realidade da ficção durante um período de sua vida.
102
Em função de não ter conseguido discernir o que era real do que existia apenas em sua
imaginação, chegou mesmo a ser internado e tornar-se foco de interesse de alguns psicanalistas.
Na página eletrônica do grupo de psicanálise Estados Gerais da Psicanálise, fundado pelo Dr.
Renné Major, por exemplo, temos a seguinte nota de Fernando Coutinho Barros sobre Carlos
Sussekind:
Dentre os convidados de fora tivemos a presença de um escritor de reconhecido valor
literário- Carlos Sussekind - que tem como característica, basear sua obra literária, na
leitura que faz de um diário de 80 volumes, deixado pelo seu pai e escrito,
fervorosamente, durante cerca de 30 anos, a um ritmo obsessivo, cotidiano e
rigorosamente executado 2 vezes ao dia.
O autor dos romances, filho do autor do diário, durante um surto psicótico, por ele mesmo
tornado público, começa a se dedicar com paixão à escrita. Sugerimos inclusive, aos
organizadores dos Estados Gerais, que sua obra fosse traduzida para o francês, tanto pelo
seu valor literário, como pelo fato do autor se confessar um testemunho vivo de como
tanto a escrita como a psicanálise podem funcionar como um fator de transformação da
angústia psicótica em obra de arte.
Carlos Sussekind atendeu ao nosso convite e nos prestigiou com uma surpreendente
palestra onde prestou contas, da forma original que o caracteriza, de como funciona em si
os ''mistérios'' da escrita, da criação
literária.<www.estadosgeraisdapsicanálise.encontrolatino americano.htm>
Esse surto psicótico não foi o único episódio da biografia do autor a despertar o interesse
e a curiosidade da imprensa a respeito do comportamento dele. Quando comemorou seus 70 anos,
em setembro de 2003, não foi à toa que causou espanto aos convidados- aliás, criteriosamente
selecionados. Nesse evento, no lugar de receber presentes, pediu que seus pares cumprissem uma
missão- cada um deveria digitar 15 laudas datilografadas do famoso diário de seu pai e devolvê-
las a ele no dia 10 de dezembro do mesmo ano. Com isso, Carlos Sussekind, esperava finalizar a
digitalização de todo o diário de seu pai, pois embora tivesse datilografado boa parte do material
na década de 80, graças a uma bolsa oferecida pela John Simon Guggenheim Memorial
Foundation, a tarefa continuava em aberto.
Esses traços singulares de sua personalidade, indiretamente, exercem influência no seu
trabalho de criação literária. Seu romance O autor mente muito, por exemplo, contém
103
inquietações existenciais e um tom irreverente bem semelhante ao comportamento do autor. No
tocante à forma como trata o texto já publicado, Carlos Sussekind segue a linha de autores como
Lima Barreto, Guimarães Rosa, Paulo Lins, Dalton Trevisan que se permitem manipular o teor da
obra publicada, ora reduzindo-lhe o número de páginas, ora ampliando-a, ou mesmo,
alterando-lhe aspectos do enredo. Depois de lançar Ombros Altos, Sussekind revisitou
criticamente o material, alterando-o a cada nova edição. Em matéria de Flávio Pinheiro publicada
em No mínimo (0/10/2003), temos a seguinte referência ao livro:
A pequena novela de 80 e poucas páginas jamais ficará pronta, tem-se esta impressão.
Sussekind custeou do bolso a primeira edição da qual ainda restam vestígios esparsos em
sebos. Em 1985 a finada editora Taurus/Timbre editou uma segunda edição. Em 1996
Jorge Viveiros de Castro da 7Letras pôs na praça a terceira com duas impressões de
tiragens de 250 exemplares. Agora a 7Letras imprimiu mais 600 cópias de uma quarta
edição.
Em todas adições. Implantes que Sussekind vai fazendo. Comentários do Barão.
Fortuna crítica do enredo feita por Galocha, que aproveita para contar a estória de um
amor sem futuro por uma mulher casada. É de Galocha, "grande farsante", a teoria que
percorre todo o livro: "No verdadeiro amor não se fala dela com ninguém".
Como Carlos Sussekind também evocou o real no ficcional em Ombros Altos, na época de
seu lançamento, a cineasta Simone Paterman “entrou na brincadeira” iniciada pelo autor e
publicou, no site www.paralelos.org, uma apresentação epistolar do livro, ou seja, simulou a
redação de e-mails que poderiam ser enviados ao autor e aos personagens dele- figuras as quais,
em tais e-mails, ela tratou como se fossem pessoas reais. Assim a estudiosa conversou com uma
possível senhora Paula, com o barão e com o Francisco Daudt, que, àquela altura, funcionava
apenas como referência dentro da ficção de Carlos Sussekind:
Data: Fri, 24 Jan 2004 04:03:17 -0300 (ART)
De: "Simone Paterman"
Assunto: Carta a Francisco Daudt
Para: Carlos Sussekind
104
Caro Francisco Daudt,
Escrevo com a esperança de que Carlos Sussekind consiga encaminhar esta carta ao
senhor. (...) Disse que, nas sessões de terapia que fizeram durante quatro anos, se
conversava mais sobre as estórias que se passavam em sua cabeça do que sobre o que
poderia ter acontecido no seu dia. Mesmo porque, para o escritor, estes dois planos da
realidade se equivalem, quando não se sobrepõem. (...) Mas estou escrevendo por motivos
mais psicanalíticos que literários. Carlos foi diagnosticado como alguém que confunde
ficção com realidade, o que hoje, no moderno vocabulário médico, se chama "transtorno
bipolar" (isso li em "O Autor..." o senhor, então, deve ratificar). Sabe, já fui diagnosticada
com esta terminologia, mas, por sorte, todos ainda me crêem perfeitamente lúcida.
Inclusive eu mesma.
Depois, ela seguiu relatando outros fatos não mais especificamente relacionados a Carlos
Sussekind. Para nós, o que mais importa é perceber o quanto os jogos ficcionais do autor são
capazes de movimentar as pessoas a sua volta, estimulando a criatividade de seus leitores.
Durante a divulgação de O autor mente muito, não foi diferente, posto que sua proposta
de escrevê-lo em parceria com o seu psicanalista também causou polêmica. O livro apareceu em
livrarias virtuais acompanhado de sinopses como esta:
Escrito a quatro mãos - pelo psicanalista Francisco Daudt da Veiga e por seu ex-paciente e
escritor Carlos Sussekind - traz a estória do adolescente Teodoro Farpa. Internado em uma
instituição psiquiátrica, recusa qualquer tipo de tratamento e "rouba" as estórias dos outros
pacientes. (www.submarino.com.br)
Como vemos, desde sua gênese, o romance se apresenta como o diálogo entre a ciência
e a literatura, ou seja, a concepção autoral traduz-se num encontro de dois profissionais com
distintas perspectivas de mundo- um tem sede de lucidez enquanto o outro vive da arte. Francisco
Daudt da Veiga é psicanalista e publicou váriostulos (O aprendiz da Liberdade, O aprendiz do
desejo, Amor companheiro: amizade, dentro e fora do casamento) relacionados a essa área.
Para escrever O Autor mente muito, no entanto, Daudt compôs dupla com um autor de
ficção que, desde o seu primeiro grande sucesso, Armadilha para Lamartine, tem buscado
parcerias literárias: Carlos Sussekind. Ao escrever esse romance de sucesso, Sussekind explorou
de modo consciente e intencional um texto não- ficcional, isto é, depois de promover uma
intertextualidade crítica com o diário de seu pai, ele não assinou o livro como Carlos &
105
Carlos Sussekind como seguiu misturando elementos do real com o ficcional, até que, com O
Autor mente muito, radicalizou sua técnica e dividiu a opinião da crítica entre os admiradores da
proposta e os críticos reticentes à obra.
Enquanto no site da Revista Insight Inteligência, o resenhista Elloí Calage (s.d.: p.1) se
permite um tom neutro, fazendo trocadilhos para expressar a temática do livro - “sem distinguir
entre real e ficção, o escritor mente muito e inventa a fique-são”, no site da Correio Web, a crítica
Stefania Chiareli diz que:
A grande questão de Carlos Sussekind continua sendo aquela que diz respeito aos tênues
limites da normalidade e da loucura: ser louco, fingir-se de louco, enganar aqueles que
seriam capazes de julgar o que é uma coisa e outra. Se em Armadilha para Lamartine o
autor ousou na mistura entre ficção e realidade e acertou em cheio, neste livro ele repete a
fórmula sem o mesmo engenho. Que Pensam Vocês que Ele Fez, de 1994, retoma a
questão do primeiro livro. É fato que certos temas perseguem determinados autores, mas
isso não equivale dizer que as formas não possam se renovar. Não é o que acontece em O
Autor Mente Muito: o texto se revela longo demais, e a tão propalada preocupação dos
autores em ‘‘não engessar a escrita’’ o se traduz efetivamente no cuidado com a
linguagem, que inclui galicismos empolados e desnecessários (fou rire, forfait), clichês
antiquados sobre o amor e até piadas de mau gosto. <www2.correioweb.com.br>
O descontentamento de Stefania Chiareli é tanto que o final de seu texto reflete toda a sua
intolerância com o estilo do romance:
Os autores afirmaram em entrevista terem se divertido muito ao criar o texto, onde se
permitiram disparar críticas ao lado institucional da psicanálise e da literatura e expor suas
idiossincrasias. Entretanto, essa diversão não se estende automaticamente ao leitor, que sai
um tanto confuso e outro tanto decepcionado com o livro. <www2.correioweb.com.br>
De fato, o caráter experimental da obra mais as narrativas entremeadas e as diversas
divagações sobre o fazer literário tornam o texto bastante obscuro, o que, não necessariamente
precisa ser lido como uma deficiência de criação.
O enredo é construído a partir de uma “coleta indireta de experiências”. Por meio de uma
terceirização do relato, dois personagens-escritores, cujos perfis encontram correspondência
106
direta com Carlos Sussekind e Francisco Daudt da Veiga, resolvem escrever um livro sobre um
interno de uma clínica psiquiatra – Teodoro Farpa:
Teodoro Farpa nunca dirigia a palavra a ninguém da equipe do sanatório, nem mesmo a
Francisco, tendo consentido que ele fizesse parte de sua platéia vespertina das 16h em
ponto, o grupo de usuários que se reunia para ouvir as aventuras de Carlinhos Manivela
(...) (AMM: p.13)
Essas aventuras de Carlinhos Manivela compõem o enredo das estórias intercaladas que
chegam ao leitor, o que configura um processo singular de escrita: uma estória criada via relato
do relato, ou seja, há dois personagens-escritores que, a princípio, não criam, mas inspiram-se nas
estórias de Teodoro que, por sua vez, não conta, mas repassa a estória de Carlinhos Manivela.
Estória essa que parece advir de uma intertextualidade com outra obra existente (Armadilha
para Lamartine). Ou ainda, citando o narrador de O autor mente muito, “Havia algo de
vampiresco na situação: Francisco bebia do sangue de Teodoro; Carlos se alimentava em segunda
mão desse sangue, e reprocessava-o para saciar a sede literária de Francisco.” (AMM, p.17)
Essa situação vampiresca” poderia ser lida como uma espécie de mise en abyme o-
ortodoxa, posto que retoma parcialmente a estrutura de encaixe descrita no procedimento de
sintaxe narrativa postulado por A. Gide. De acordo com Dällenbach (In: PERRONE-MOISÉS,
1979, p.53-54):
(...) o conceito de “mise en abyme” designa um enunciado suis generis, cuja condição de
emergência é fixada por duas determinações mínimas: a sua capacidade reflexiva, que
vota a funcionar a dois níveis: o da narrativa, em que continua a significar como qualquer
outro enunciado; o da reflexão, em que ele intervém como elemento de meta-significação,
que permite à história narrada tornar-se analogicamente por tema; o seu caráter
diegético ou metadiegético. Nestas condições, nada impede, como é óbvio, que se
considere a mise en abyme” como uma citação do conteúdo ou mesmo um resumo
intratextual.
Assim, justamente em função de seu caráter metadiegético, essa mise en abyme não-
ortodoxa presente no texto expõe um primeiro dilema ao leitor: a questão da autoria e da
107
criatividade. Numa tendência metaficcional, os autores abrem o primeiro capítulo, abordando
ironicamente algumas visões da crítica a respeito do fazer literário:
Carlos Sussekind e Francisco Daudt acabaram escrevendo este livro por medo de Paulo
Coelho. Mas antes que esse ato covarde fosse perpetrado muitas outras canalhices da
dupla vieram à tona, como quando Francisco, contrariando seu juramento de Hipócrates,
chegou à conclusão de que não estaria nem um pouco interessado na cura do pobre
Teodoro Farpa (internado havia quase 40 anos no Sanatório Qorpo-Santo) se isso fizesse
secar a preciosa fonte ficcional que o usuário representava. Carlos Sussekind não lhe
ficava atrás: em crise de criatividade literária, mais uma vez se preparava para roubar as
estórias dos outros (já havia feito isso com os diários do próprio pai!) (AMM: p.7)
Os autores não só exploram fatos que podem ser reais, posto que Armadilha para
Lamartine fora escrito por Carlos Sussekind, a partir de dados do diário de seu pai bem como
nomeiam personagens e lugares, fazendo alusões a pessoas da vida real. Atrelado a essa
estratégia de criação, identificamos todo um investimento literário na nomeação de alguns
personagens e locais. O nome do hospício Qorpo-Santo é igual ao do dramaturgo gaúcho Qorpo-
Santo, tido como louco por ver a vida de maneira dual e essa semelhança onomástica grifa
algumas características desse hospício.
Afinal,o seria esse hospício um espaço da dualidade? A própria existência do hospício
comporta duas justificativas. Na versão amplamente divulgada, o local era um manicômio
comum; já, no segredo de D. Dora, era um hospício especial, feito com o único fim de proteger o
filho da dona – um são que se sabia louco.
A estória começa com dois capítulos que mais parecem um prefácio ficcionalizado.
Nessas seções, ao invés da narração, com enredo nos moldes do séc. XIX, repleta de intrigas, está
a representação dos bastidores: o encontro dos dois personagens-escritores, a motivação para a
escrita da obra, a apresentação de Teodoro Farpa, a contextualização do movimento de Francisco
no tocante à coleta das estórias no sanatório, o exercício da escrita a quatro mãos bem como o
desenvolvimento da relação do psiquiatra com o personagem-escritor, em função da decepção
108
dos dois com os percalços de suas profissões. Além disso, também são apresentados o princípio
de criação, o roteiro de leitura da obra e a justificativa do título.
De um modo geral, a estrutura do romance denuncia uma série de transgressões com a
escrita convencional. Numa perspectiva paratextual, a própria leitura do índice sinaliza a ausência
de uma disposição de capítulos contínuos no tocante à harmonia temática. Sucedendo ao índice, o
primeiro capítulo surge desprovido de título, o que, de certa forma, combina com o caráter de
prefácio assumido pelo mesmo. Na seqüência, aparece o capítulo 2, cuja estrutura permite-nos
entendê-lo como uma espécie de desdobramento do prefácio. Com o sugestivo título “O começo
de tudo”, ele acumula duas funções: se por um lado, introduz a narrativa, relatando o encontro
dos personagens-escritores e as primeiras estórias de Carlinhos Manivela, por outro lado, tem
uma forte carga metanarrativa.
De maneira muito sinuosa, o livro vai sendo tecido via alternância de capítulos de
natureza diversificada. Num esboço de catalogação, poderíamos destacar os seguintes tipos: a) os
que se dedicam à vida de Carlos Sussekind, b) os que intercalam a estória mais ampla das visitas
de Francisco ao Qorpo-Santo (seus relacionamentos amorosos e seu grande investimento na
escrita de um livro em parceria com Carlos Sussekind) com as pequenas aventuras vividas por
Carlinhos Manivela e Teodoro Farpa e c) os que se dedicam à metanarrativa e às reflexões de
Carlos Sussekind sobre sua vida, seu fazer literário e a própria literatura.
O romance apresenta um complexo mosaico textual. Na obra em curso cabe um pouco de
tudo: trechos de verbetes de dicionários, cartas de amor e de amizade, fragmentos de jornal e a
uma falsa sinopse inteirinha do próprio livro. Valendo-se do núcleo do enredo (dois personagens-
escritores com o desafio de escrever um livro em parceria), os autores narram uma cena em que
os personagens-escritores tentam divulgar na mídia o romance em construção, não só com
109
entrevistas, mas também enviando, entremeadas ao relato dos fatos, uma nota inventada sobre seu
livro e uma suposta sinopse.
Nesse momento, o leitor, exausto das idas e vindas narrativas, tende a pensar que a
estória poderá ser compreendida com mais facilidade por encontrar um resuminho da mesma que
o ajudará a entender melhor o relato. Isso porque, refletindo um estilo machadiano, esse
fragmento apresenta uma certa preocupação em guiar o leitor pelo percurso narrativo. Todavia,
um pouco adiante, a voz do personagem-escritor Francisco emerge inquietante, mostrando as
incoerências da sinopse:
-Ô Carlos, cadê a Dora? O que houve? E o Olegário? Que papel pequeno... Você mandou
uma sinopse esquisita...
- Ah, Francisco... Metade pode ser o Alzy (Carlos resolvera apelidar sua suposta doença
de Alzy, em português, o Alzheimerzinho, numa clara implicância com Francisco; “Se
Dora pode chamar Teodoro de Teddy, por que eu não posso chamar meu Alzheimer de
Alzy?”), metade pode ser uma coisa parecida com o medo de ter nossas idéias roubadas.
Acho que fiquei contaminado com os medos de Joaquim Assis. De qualquer maneira, está
feito: somos os donos da idéia. (AMM: p. 231)
A partir dessa passagem, podemos desenvolver várias questões. Essa é quase uma obra-
manifesto e não apenas um romance, isto é, à semelhança do que acontecera com algumas
produções do início do modernismo, aqui, o ficcional pulsa o teórico. Poderíamos dizer que, por
vezes, o como fazer brilha mais que o próprio feito. Melhor, poderíamos entender que o livro em
construção é a própria matéria narrada. Sendo assim, quando falamos em próprio feito, estamos
empregando a palavra feito em duplo sentido, ou seja, a do ponto de vista literário e a do
consumidor, inclusive, porque, nesse caso, quando os autores demonstram uma preocupação com
o caráter infinito da criação, isso ironicamente se reverte em matéria narrada.
Mais uma vez, estamos diante da ficcionalização de tópicos da crítica literária. A matéria
da obra (a escrita de um livro) reflete as transformações sofridas pelas estratégias de
110
representação da realidade. No lugar de um relato marcado pelo ideal de precisão e pela ilusão
verista de um copista, temos um tipo de representação que reflete o posicionamento crítico de
Antoine Compagnon (1999) sobre a ilusão referencial. Para ele, à medida que a língua é também
uma criação, não há como copiar o real. Em outros termos, a ilusão referencial deriva do trabalho
artístico sobre o signo e não da relação especular com o mundo real. Segundo Antoine
Compagnon (1999, p.109): “O referente é um produto da sèmiosis, e não um dado preexistente. A
relação lingüística primária o estabelece mais relação entre a palavra e a coisa, ou o signo e o
referente, o texto e um outro texto.”
Nesse sentido, a existência de um livro que represente a criação de um romance está, pois,
problematizando a relação entre “o signo e o referente, o texto e um outro texto.” Tal
procedimento, por sua vez, não provoca distanciamento do mundo real, pelo contrário, acaba
constituindo uma maneira singular de denunciar as dificuldades enfrentadas pelo escritor
brasileiro no atual mercado editorial.
Ao longo da simulação dessa escrita a quatro mãos, uma metanarrativa peculiar marcará a
representação da realidade. Ela não é apenas uma digressão sobre o fazer ficcional do que está em
curso, nem compõe os bastidores do que foi feito (tal como ocorre em O Bruxo do Contestado)
assemelha-se, sim, a uma dramatização do ato metanarrativo. Em algumas cenas, mais do que
acompanhar a angústia de um personagem-escritor em seu ofício, o leitor quase visualiza dois
personagens-escritores compondo sua obra. Ele acompanha as discussões, as marcas da rasura
no corpo do texto impresso, acompanha as crises artísticas dos mesmos, os diálogos e se
guia pelas iniciais de cada um deles registradas no texto (FD ou CS), fica a par de suas
desavenças e reconciliações, assim como toma ciência dos esforços envolvidos em todas as
etapas de composição e publicação de uma obra. E é durante o contato com essa última parte que
o leitor se sente mais estimulado a refletir sobre temas como mercado editorial, cultura de massa
111
versus literatura cult, plágio e autoria, a essência e o valor do literário. Sem falar nos demais
tópicos que percorrem o texto obliquamente: a loucura, a criação, a mentira etc.
2.3.2 A voz do outro em verso & reverso
Com base em Marta de Senna (2003), estudamos o modo como os autores empregaram a
intertextualidade para urdir a trama e caracterizar os personagens. Eles promoveram uma
metanarrativa indireta, isto é, via diálogo textual, revelaram o quanto estavam conscientes de seu
fazer literário e do modo de manipulação do objeto literário.
Em geral, a intertextualidade pode ocorrer tanto implícita quanto explicitamente, porque o
autor tanto pode anunciar o seu diálogo com outras obras quanto pode apenas fazer ecoar vozes
extratextuais em sua criação, a partir da retomada de um estilo ou elemento de outros textos. No
caso das citações e referências, inúmeras são as possibilidades de efeitos literários, uma vez que
as alusões servem tanto para abonar, quanto para dessacralizar o texto de origem.
Em O Autor mente muito, o aproveitamento do texto alheio tem, entre outras, a função de
construir verso & reverso. As citações nem sempre aparecem na íntegra e, ao longo do romance,
deparamo-nos com transcrições truncadas, parciais, ou, até mesmo, intencionalmente
interrompidas pelo narrador. Afinal, se, tal como alerta Leyla Perrone (1979), nem mesmo no
texto científico, as citações mantêm-se completamente fiéis ao texto de origem, no texto
ficcional, tal situação se acirra.
Citando Butor, Leyla Perrone (1979, p. 210) defende a impossibilidade de transposição
direta e fidedigna de excerto de texto não-literário para um outro texto não-literário, porque, no
112
que diz respeito à citação,(...) o simples fato de ser retirada do seu contexto a transforma assim
como o novo contexto no qual a introduzo (...)”. Em se tratando de texto ficcional, esse princípio
se intensifica, pois, além de não estarem presas ao papel de elucidação ou comprovação de uma
tese, no plano imaginário, as citações ainda podem se transformar na poção de turvamento do
olhar do leitor, já tão explorada por Machado de Assis.
Tal como a obra machadiana, O autor mente muito também é capaz de confundir o leitor,
apresentando falsas referências a dados extratextuais, por meio de um narrador embusteiro.
Acreditando no riso como instrumento corrosivo, os autores recorreram à ironia e ao caráter
lúdico contido em algumas passagens numa tentativa de convidar o leitor à releitura do atual
contexto social de produção da Literatura.
Em função dessa forte presença da intertextualidade no romance, encontramos um
caldeirão literário, no qual se misturaram escritos de diversos tipos e épocas. As várias artes
encontram-se, aqui, contempladas, fazendo com que haja um apelo aos vários sentidos do leitor,
fazendo com que este não apenas leia, mas ouça, sinta, e observe uma colcha de retalhos literários
e artísticos.
Enquanto as diversas narrativas seguem seu bailado, ora colocando o foco nas estórias de
Teodoro e Carlinhos Manivela, ora nas aventuras dos personagens-escritores Daudt e Sussekind,
os mais distintos tipos de alusões e citações vão emergindo do texto: menções a títulos de música
clássica e a seus compositores, jornais, verbetes de dicionários, sinopses, títulos de filmes, de
textos de literatura clássica e moderna. Por mais distintas que pareçam, essas referências e
citações, na macroestrutura do romance, apresentam um ponto de convergência: constituem uma
outra forma de apresentação das preocupações literárias dos autores. De modo diferenciado, elas
fazem ressoar temas inquietantes aos autores no tocante à originalidade de um romance e ao valor
da literatura nos dias atuais.
113
Muitas vezes, a citação e a alusão são discretíssimas, quase um leve sopro no ouvido do
leitor. Nesse caso, contudo, leveza não deve ser associada à superfície, pois tal sopro convida o
leitor ao desnudamento de densas questões. Na p. 75, por exemplo, uma listagem de túmulos
de autores brasileiros que se encontram no Cemitério São João Baptista marcada por uma
adjetivação contrastante, isto é, os mortos Machado de Assis e Euclides da Cunha são ilustres
moradores de túmulos simplezinhos ou pobrezinhos. Com Raul Pompéia e “outros
desconhecidos” o caso se inverte, pois os túmulos ganham relevo enquanto seus donos, em maior
ou menor grau, não mais garantem ilustres lugares na historiografia de nossas letras. Pouco
importa se as referências aos jazigos dos escritores servem de testemunho documental, se são
fidedignas ou não aos dados extradiegéticos, elas são importantes por terem sido vertidas em
matéria narrada e, nesse caso, terem no contraste entre morto e mausoléu uma fina ressalva às
curiosidades que permeiam os valores de uma sociedade movida por interesses materiais.
Não é a partir da referência a personalidades da literatura brasileira que podemos ler o
projeto ideológico presente no romance. A alusão seca e simples a uma obra também permite a
construção de elos interpretativos. Seja no campo do cinema, seja no do literário ou no da música
clássica, sempre uma forte recorrência a nomes que, assim como os dos autores Sussekind e
Daudt, misturaram fatos de suas biografias com suas ficções bem como estiveram envolvidos em
produções textuais cuja originalidade ou pode ser questionada, ou é declaradamente pautada em
outras obras já existentes.
Depois de ler a carta de Carlos Sussekind e saber que o amigo desistira de escrever o livro
a quatro mãos, Francisco fica muito triste tal como revela a hiperbólica expressão “luto
melancólico” e o texto cristalinamente diz ao leitor que “O repertório espelhava o que lhe ia na
alma: os réquiens de Fauré e de Mozart; a marcha fúnebre do Götterdämerung; o Liebestod do
Tristão e Isolda de Wagner e outros equivalentes.”(AMM: p.75)
114
Se o leitor se satisfizer com isto,o mal, posto que as alusões aos músicos clássicos
estão coerentemente encaixadas no corpo narrativo. Todavia, a depender de sua erudição, ele
pode refletir sobre fatos como: a) as lendas que rondam as criações dos réquiens citados b) a
alusão a autores que aproximam e misturam vida e obra e c) as semelhanças de estados
emocionais dos personagens que se movimentam em O autor Mente muito e dos que ali
aparecem revisitados.
Existem várias versões sobre a criação do Réquiem de Mozart. Para nós, as mais
interessantes são as que abordam o fato de essa missa ter sido encomendada por um patrono
misterioso (supostamente o conde Walsech von Stuppach) conhecido por tentar se apropriar dos
créditos autorais das obras que encomendava a outros compositores. Todavia, o podíamos
deixar de lembrar a tão divulgada versão de Mozart ter escrito seu próprio obituário enquanto
compunha o Réquiem, posto que já se sabia gravemente doente.
No caso do Réquiem de Fauré, temos a questão da morte da mãe do compositor como
motivo inspirador, ou seja, mais um somatório de biografia e ficção. Além disso, este organista
clássico, similarmente aos nossos autores, também não se contentava com o padronizado e,
ainda que soubesse de cor suas celebrações fúnebres, estava sempre buscando novas formas de
composição. Não por acaso, seu Réquiem teve três versões até 1900.
Refletindo essa linha de raciocínio, a citação dos títulos de ópera lembra um recurso
trivial dos libretistas para a composição das óperas: o aproveitamento de um texto literário
existente que, via de regra, tende a reproduzir o texto –base, mas, às vezes, pode sofrer pequenas
alterações, pois, por mais que o libretista exercite a fidedignidade, como o libreto figura como
suporte para a música, seu criador sente necessidade de condensar a peça. Paralelamente a esse
fator, as questões sócio-políticas também podem estimular pequenas alterações no texto original.
115
Francesco Maria Piave, na elaboração de Rigoleto (1850), sua Ópera trágica em três atos, baseou-
se na peça francesa O Rei se diverte (1832)
6
, de Victor Hugo, tendo apenas o cuidado de
substituir o rei por um duque, para eximir-se de problemas com a censura.
Deslocando o foco das oposições para as tensões entre mentira e verdade presentes na
obra, identificamos uma equivalência de sentidos entre o espírito de certos personagens de O
autor mente muito e o de personagens pertencentes às óperas citadas como um recurso
amplamente explorado no romance. Em termos de diálogo com a música clássica, percebemos
que tanto a marcha fúnebre do Götterdämerung quanto o Liebestod de Tristão e Isolda, de
Wagner, referem-se a personagens e dramas que, de algum modo, harmoniosamente dialogam
com as criações de Sussekind e Daudt, uma vez que Francisco, Carlos e Teodoro ora vivem uma
saga de porte semelhante a de Siegrefied ora experimentam relações tão intensas quanto estória
amorosa relatada em Tristão e Isolda. Em O Crepúsculo dos Deuses, Siegrefied viveu no limite
entre a mentira e a verdade e, vítima de uma poção mágica, ficou à mercê das artimanhas do
terrível Hagen, envolveu-se com Gutrune, magoou sua amada Brünnhilde, iniciando, dessa
maneira, uma seqüência de mal-entendidos os quais culminaram em sua própria morte.
Coincidentemente ou não, também não foi o limite entre a mentira e a verdade que confinou
Teodoro no Qorpo Santo? Que roubou o direito de felicidade da mãe do interno? Que,
principalmente, uniu Francisco e Carlos num dilema tão indissolúvel: a doença incurável de
Carlos?
A esse propósito vimos ainda que algumas alianças se eternizam, apesar de surgirem no
texto na forma de cisões. A força do amor fez com que Isolda renegasse seu ódio a Tristão por
ele ter matado seu noivo e sucumbisse aos encantos do mesmo com tamanha intensidade que,
mesmo depois da morte gostaria de revê-lo, mostrando, pois, o quanto a fusão deles era
6
Título original: Le roi S’ amuse
116
indissolúvel, ainda que necessitasse de um novo estado de existência (a morte). Do mesmo modo,
diferenças à parte, a fusão de Carlos e Francisco não permitia retrocessos e fragmentações: a
carta de Carlos enviada a Francisco, informando sua desistência da escritura do livro, marcava
somente um adiamento de seus projetos de criação, pois nexo & inventividade, escrita laboriosa
& escrita culta, escritor empenhado & escritor renomado, enfim, Francisco Daudt & Carlos
Sussekind compunham binômios sedimentados. Afinal, escrever o livro dava sentido à doença
de Carlos, apagando-lhes a idéia de fracasso, à medida que transformava o “imprevisto da
ausência de cura em diversão”.
Apesar de, por vezes, os autores empregarem os excertos de outras obras com interesse no
“reverso” de tais linhas, no que tange às alusões culturais, vimos que freqüentemente o diálogo
com outros textos veio para encorpar o ‘verso’. Os títulos de músicas e de filmes, em geral,
refletem o interior dos personagens, principalmente os de Carlos e Francisco. Nesse romance, de
fato, nenhum elemento aparece no enredo de forma gratuita. Quando Carlos se identifica com a
estória registrada no diário de Teophilo e percebe que seu analista o traíra, contando a outros os
seus relatos de divã, fica indignado. Para consolá-lo, Francisco diz:
-Caramba! Será possível, afinal? E eu que sempre suspeitei, hein? Ah, Carlos, não se
aborrece não... você sabe um filme do Woody Allen, provavelmente o filme mais
interessante dele, Crimes and Misdemeanors? (...) Pois um dos personagens, o Allan Alda,
diz que comédia “is tragedy plus time”, tragédia acrescida de tempo. Pense bem: o que foi
trágico em 1955, um psiquiatra contando o caso de seu paciente para a diversão dos
outros, hoje, quase cinqüenta anos depois, é cômico, é extraordinário, é tudo o que
queríamos para o nosso livro! (AMM, p.261)
Ao aludir a esse dado cinematográfico, os autores, mais uma vez, demonstram o gosto por
artistas que, como Woody Allen, apresentam fortes traços autobiográficos em seus filmes bem
como completam a figura do personagem Francisco a partir do que ele lê, ouve ou vê. A
117
caracterização dos personagens não se limita ao discurso descritivo, suas falas e atitudes,
abarcando a citação como mais uma forma de apresentação do elenco. Isso, ao mesmo tempo em
que enriquece a narrativa, pode torná-la hermética.
Francisco não conseguiu entrar em contato com a mãe de Teodoro, Dona Dora, com muita
facilidade. Suas investidas iniciais lograram sempre o mínimo necessário para o não
esquecimento da questão e, nesses embates, a viúva “foi se tornando um ser transparente”
7
ao
leitor muito gradativamente. Ela pouco se pronunciava, mas era objeto de especulações, o que,
para nós leitores, tornou-se bastante elucidativo. Numa tentativa de impedir o contato entre
Francisco e Dona Dora, como administrador do Qorpo Santo,
(...) explicou Astolfo para intimidar o estagiário. “Ela nunca concede nada para ninguém e
tem um humor do cão”. Quando Francisco pediu para falar com ela diretamente, Astolfo
quase desmaiou: “Jamais! Dona Dora é uma deusa reclusa! É “Norma Desmond rediviva”.
Francisco sabia quem era a personagem de Glória Swanson em Crepúsculo dos Deuses”
(Sunset Bouleveard- 1949; Billy Wilder), porque adorava filmes antigos, mesmo assim
não se impressionou. Passou-lhe pela cabeça, sim, que o apelido da viúva Farpa cabia bem
em Astolfo, mas como isso não vinha ao caso, continuou insistindo.” (AMM, p. 57)
Os autores indicam a trilha, mas o entregam o tesouro. Pelo contexto, o leitor tem um
primeiro plano de leitura garantido, posto que, mesmo sem conhecer Norma Desmond, ele
conseguirá deduzir que não se trata de uma benevolente associação. Entretanto para alçar vôos
mais altos de leitura, terá que pesquisar, “re-ler” e “re-entender”, enfim, plenamente interpretar.
Inúmeros são os exemplos de dados do mundo cultural capazes de revelar o perfil dos
personagens. O apelo aos títulos de livro, por exemplo, geralmente, vem combinado à abordagem
da ideologia do personagem ou do seu estado emocional. Títulos como “A ética dos judeus”, “Os
heróis italianos”, “Who is who in Puerto Rico” irrompem no texto numa espécie de “Você é
7
Para Anatol Rosenfeld (In: CANDIDO, 1998), na dramaturgia, o diálogo torna as personagens transparentes. Aqui,
não só o diálogo mas também as citações trabalham em prol da revelação do interior dos personagens.
118
aquilo que você lê” ou ainda “Diga-me o que lês que te direi quem és”. Quando aborda a
condição de Carlinhos Manivela, o narrador deixa isso muito claro. Segundo ele, Carlinhos era:
(...)Comunista entre seus amigos ricos; reacionário no partidão; são no hospício; esquisito
no mundo. Esta era a sua sina. Consolava-se às vezes com nosso poeta: “Quando eu nasci,
um anjo torto, desses de asa caída, disse: “Vai, Carlos, ser gauche na vida. (AMM, p.169)
A citação não reflete o espírito do personagem, como promove o lúdico a partir da
coincidência nominal (Carlos- Manivela, Sussekind e Drummond). Isso principalmente, porque a
alteração sofrida pelo texto de Drummond no ato de sua incorporação ao texto romanesco em
análise (substituição de “desses que vivem na sombra” por desses de asa caída” e mais a
mudança na ordem dos versos) metaforiza a liberdade de criação.
A presença de textos alheios, no entanto, não se esgota nesse tópico. Por vezes, a
transcrição ganha mais corpo, servindo ao desdobramento da questão da identidade e, mesmo, da
relação dos personagens. Na obra, temos dois mundos justapostos. No da dita sanidade, está
Dona Dora, enquanto no manicômio reside seu filho- Teodoro. Entre estes, temos Francisco e sua
árdua tarefa de conectar as partes.
Depois de várias investidas, Francisco começa a obter resultados concretos quando se
comunica com Teodoro. De todos esses, os mais relevantes são justamente aqueles em que o
interno revela o seu repertório. um período em que Teodoro cita títulos, pede livros, repete
frases complexas, tudo sem sentido aos olhos de Francisco até que ele soubesse da emoção que
esses elementos provocaram na e de Teodoro: ela reconhecera neles resquícios da vida
pregressa de seu filho e laços afetivos. Funcionava, mais ou menos assim: “Teodoro enuncia uma
daquelas frases enigmáticas que, Francisco sabia, funcionavam como uma chave junto a Dora
(...)” (AMM, p.122)
119
A questão do gosto literário como traço da personalidade é tão forte que os próprios
personagens são capazes de olhar uns para os outros pelo viés da leitura. Um dia, Francisco foi ao
encontro de Dora com notícias de seu filho e foi muito bem recebido:
-D. Dora, Teodoro me disse o seguinte: “O plano da imanência é como um corte no caos.”.
-Não posso acreditar, não, não! Ele sabe! Ele sabe!
Dora está com os olhos marejados. Francisco entende que ela recolheu mais uma prova de
amor de seu filho. Ela se levanta e pega um dos livros da estante, como na vez anterior,
apenas que esse é um do autor francês Gilles Deleuze, chamado “O que é a filosofia?” (...)
- De todos os nossos encontros, dr. Francisco, este foi o mais profícuo, pois entendi que
meu filho segue minha vida, não lhe é indiferente. Tornei-me uma deleuziana apenas
dez anos (...) (AMM, p.124)
Em outros casos, os fragmentos de outros textos dão vigor e realçam a própria conduta
dos personagens. Em vez de adjetivar o comportamento de Dona Dora e Astolfo, seu fiel
funcionário, Francisco recorre a Charles Dickens, dizendo que “(...) esse estratagema não era
estranho. Tratava-se do jogo do ´sócio bom e sócio mau’ descrito no romance ´David
Coperfield”. (AMM, p. 57)
Se tivéssemos uma câmera focalizando os personagens e seus livros, poderíamos esboçar
a seguinte movimentação da mesma, em close: o sujeito refletido nas letras de sua preferência;
após um ligeiro recuo, o sujeito, os livros e o conhecimento de seus pares; depois de mais um
recuo, teríamos as questões metanarrativas para, por fim, enxergarmos as grandes preocupações
ficcionais dos autores.
Quando revelou que Dona Dora era a proprietária de Qorpo-Santo e a mãe de Teodoro, o
narrador faz o seguinte paralelo: “(...) Francisco que esperava viver uma cena de Dickens e agora
estava mergulhado numa novela das sete com revelação de maternidades e tudo (...) (AMM, p.61)
Numa falsa retórica de auto-crítica, a ironia do personagem- escritor confirma a tese dos
que, à moda de Bakhtin (In: Lima: 2002), acreditam que o objeto parodiado pode se tornar muito
mais reforçado do que propriamente negado, uma vez que o riso não destrói por completo os
120
valores do passado; pelo contrário, a partir de uma falsa auto-crítica, vemos a atualização da
técnica narrativa que, criticada ou não, continua existindo no relato. O narrador diz não gostar da
estrutura da novela das sete, enaltece Dickens, mas continua relatando a estória nos moldes da
“novela das sete”, ou seja, narrando cenas melodramáticas, pautadas em grandes revelações a
respeito do passado.
Os narradores comportam-se como ávidos leitores e suas inferências, por meio da citação,
refletem as preocupações ideológicas presentes na obra. Os autores mesclam clássico e moderno,
promovendo um eficiente exercício crítico. O bilhete de Carlos à Júlia, fora extraído de Roman
du Châtelain de Coucy (século XIII), assim como a argumentação de Carlos em sua despedida de
Júlia lança mão de um conto alemão do século XVIII “Der Bauer und sein sohn”. Parece
inclusive que, numa referência irônica a Paulo Coelho, os autores empregam o mesmo recurso do
afamado autor, isto é, dialogam com textos antigos. Todavia, ao invés de reproduzirem partes de
enredos de textos antigos e pouco conhecidos, apagando as referências bibliográficas, Carlos e
Francisco fazem questão de fornecer os créditos, revelando a incorporação da idéia alheia.
No caso de “O coração comido”, o próprio texto original possui uma origem obscura,
pois, para alguns, a lenda do amor de Chatelain e da senhora Fayel, em sua origem, talvez seja
bretã. Não satisfeito com a referência a esse texto, o narrador ainda faz uma falsa citação de um
conto alemão do século XVIII, que, embora apareça no romance com o tema da mentira, e do
valor da honestidade, enfocando o quanto é complexa a vida e sua promessa de sinceridade a
partir da estória da ponte, no texto de origem, o tema da mentira versus verdade se confirma, mas
a estória versa sobre um dono de cavalos, a sua dificuldade em lidar com os bichos e a tentativa
desesperada de seu filho comprovar ao rei e à rainha ser o proprietário de um cavalo que havia
fugido, sem possuir provas materiais que ratificassem sua argumentação para comprovar ser o
proprietário do animal.
121
procedimentos intelectuais, porém, que, de modo mais ostensivo, dessacralizam o
texto original. O texto bíblico, por exemplo, serviu de inspiração para o título “Lázaro move-se
na tumba” do capítulo encarregado de apresentar o retorno de Carlos ao ofício da escrita de “O
autor mente muito”. Ao equiparar personagens de estirpes tão diferenciadas, o narrador acaba
promovendo uma dessacralização do texto original. No lugar da virtude humana, do milagre, da
ação divina, o romance em estudo contém um reaparecimento atabalhoado de um personagem-
escritor que, nada sacro, vive seus impulsos, é vaidoso, impõe seu ritmo ao parceiro de escrita e
não contempla a solidariedade cristã. Com Lázaro o personagem Carlos comunga apenas o
semelhante e abrupto retorno ao meio social.
Ao mesmo tempo em que pode funcionar como argumento de antiautoridade, o reverso de
um texto citado pode fornecer credibilidade à cena narrada. Vivendo uma crise de sonambulismo,
Carlinhos recita fábulas de La Fontaine em francês. Entretanto, a fábula O corvo e a raposa”,
que aparece transcrita à página 249 do romance, não corresponde à versão original, limitando-se
a ser um apelo onomatopaico que apenas faz lembrar a célebre conversa entre a raposa e o corvo
cujo tema principal era a vaidade. Se correlacionarmos essa lembrança com todo o romance,
iremos nos deparar com uma das denúncias sobre o atual mundo da literatura, isto é, assim como
o corvo perdeu seu pedaço de queijo por ceder aos falsos elogios da raposa, muitos escritores
renomados correm o risco de perder a sua identidade artística na busca de seus “quinze minutos
de fama”, ou mesmo, de condições de trabalho mais rentáveis.
O caos vivido no atual mundo literário é criticado na obra de várias formas. Tanto pelo
viés da reflexão metanarrativa quanto por meio da ficcionalização do tema, os autores estão
sempre mostrando ao leitor como é difícil a vida do artista consciente. Quando Francisco pediu
conselhos a Carlos Sussekind sobre a validade de se estimular Teodoro a escrever, mesmo
sabendo de sua falta de talento, Carlos respondeu assim:
122
-Ora Francisco, minha sugestão é você dar todo o seu apoio à Cura do Coelho. Esse
escritor, mesmo não sendo Carlinhos Manivela, como sei que não é, tem tal poder de
convencimento que é perfeitamente capaz de fazer Teodoro acreditar que tem mesmo
capacidade literária, com possibilidade de vender muitos livros e até de se sustentar assim.
Ainda mais com um padrinho desses.pensou no acontecimento de mídia que não seria?
(...) em questão não é o mérito literário do Coelho, e sim seu estilo sedutor de narrativa,
muito ao modelo Malba Tahan (...) (AMM, p.183-184)
Essa associação do fictício Coelho a Malba Tahan (autor que recorre muito a parábolas na
tessitura de suas obras) até poderia ser vista como uma tentativa de colocar em xeque as várias
denúncias de plágio direcionadas a Paulo Coelho, em função de sua suposta apropriação indevida
de parábolas pouco conhecidas. Todavia, isso resultaria numa leitura reducionista do enredo,
pois, atualmente, ficou mais difícil identificar, e provar, um plágio. Sobretudo porque, com o
aprofundamento da noção de intertextualidade, a questão autoral, na literatura, tornou-se mais
flexível, menos claramente enquadrada em questões jurídicas.
Por meio dessa freqüente “corrida à frente do Coelho”, a atenção do leitor se volta para
uma das grandes inquietações crítico-literárias presentes na obra: o problema da autoria de
qualidade na literatura brasileira. O “medo de Coelho” metaforiza o medo da mídia e do caráter
opressivo da cultura de massa.
O romance apresenta alternadamente partes herméticas do relato com passagens
claramente didáticas, contendo frases dos personagens explicativas sobre a trama delineada.
Nesse ritmo, logo após densas digressões, surgiu uma cena na qual os personagens-escritores
perceberam que Teodoro não seria escritor e, ironicamente, comentaram o caso:
-Pois é, Carlos. Se Teodoro não vai escrever, se vai contar suas estórias para o Coelho, se
um escritor usa como fonte as estórias que ouve, quem você pensa que vai acabar
escrevendo as estórias de Carlinhos Manivela?
Quedaram-se os dois mudos e preocupados com essa última observação. O leitor, que é
inteligente, deduziu que foi esse o tiro de partida para a maratona que resultou neste
livro. Isso. Como foi dito na primeira frase do primeiro capítulo: “Carlos Sussekind e
Francisco Daudt acabaram escrevendo o livro por medo de Paulo Coelho”, mais
precisamente, por medo de que Paulo Coelho roubasse, antes deles, as estórias de
Carlinhos Manivela. (AMM, p.188)
123
Como a maior parte das reflexões sobre o fazer literário aparece no livro ora
ficcionalizada ora na forma de digressão do narrador, linhas depois, o narrador discorreu sobre o
assunto declarando que “O ofício do escritor, aprenda de uma vez, consiste em copiar, plagiar,
reinventar, roubar, disfarçar e publicar! Nil sub sole novum (´Não nada de novo sob o sol`)”
(AMM, p.189)
Enfim, toda essa análise dos casos de intertextualidade presentes no romance mostrou-nos
que, ao construírem o enredo a partir da aventura de se escrever um livro a quatro mãos, Carlos
Sussekind e Francisco Daudt criaram um perfeito palco para as digressões e reflexões sobre a
criação literária. Essas, por sua vez, não ficaram circunscritas aos clássicos comentários do
narrador sobre o seu fazer literário, sobre a tessitura do texto em curso, mas expandiram-se rumo
ao próprio contexto de produção literária na atual sociedade e aos bastidores da criação lato
sensu.
2.3.3 A colcha de retalhos literários: colagens e simulações
A mancha gráfica do romance é algo que se destaca aos olhos do leitor dada a sua
pluralidade. Itálicos, negritos, tamanho de fonte, recuos de margens e até mistura de textos verbal
e não-verbal (fotos e desenhos) emergem do corpo da obra freqüentemente como sinais de
mudança do tom ou do tipo de relato. Graças a esse apelo visual, o leitor aguça o seu olhar e fica
124
mais desperto para os vários mergulhos nas pequenas estórias que vão surgindo ao longo do
caminho.
Além disso, em vários casos, esse investimento na mancha gráfica ajuda a simular um
efeito de colagem de fragmentos textuais no corpo maior do romance, o que muita
credibilidade aos elementos inseridos. Quando se depara com um bilhete, uma folha de diário,
uma bula de remédio, manchete de jornal, entre outros elementos que aparecem no texto
refletindo uma técnica naturalista de manipulação ficcional do documental, é provável que o
leitor receba a colagem dos diferentes tipos textuais sem sequer cotejar os elementos do texto
com seus possíveis pares no mundo real. Por mais que uma foto dos autores ou quaisquer outros
dados sinalizem a existência de um mundo real acoplado ao ficcional, há, neste último plano,
todo um investimento na autonomia do relato de tal porte que ele passa a valer por si só.
O texto está repleto de dados que poderiam ser documentais, mas que, manipulados em
prol do imaginário, compõem a narrativa, transfigurados. No que se refere à oposição entre
verdade e mentira, verificamos que, numa tentativa de fornecer ilusão de realidade aos fatos
narrados, eles praticam uma simulação de colagens. Em síntese, inspirados no romance de
colagem nos moldes de Max Ernest, que efetivamente trabalhava com a junção gráfica de textos
distintos, eles investiram no aspecto gráfico para inserção de fragmentos textuais que, apesar de,
na quase totalidade dos casos, serem frutos da imaginação e não cópias de textos existentes,
reforçam o ponto de vista de um personagem, viabilizam alguma crítica social ou desnudam o
processo de criação artística.
No mundo diegético, a oposição entre mentira e verdade revertida em tensão assume
caráter funcional importante e pode figurar até mesmo como um complicador ao desvendamento
do mistério que envolve a real estória da dona do hospício Qorpo-Santo. Quando divaga sobre a
predominância da mentira até em texto jornalísticos, Francisco revela seu prazer em ler a parte do
125
jornal a qual julgava mais fidedigna: o obituário. Nesse momento, surgem nas páginas 52, 53, 54
e 55 do romance retângulos parecidos com os que encontramos na parte do obituário de qualquer
jornal, registrando os sentimentos de uma possível amante do morto. É quando nos deparamos
com um irônico jogo textual para abordagem da dicotomia mentira versus verdade, pois enquanto
o recurso gráfico traz à memória do leitor a objetividade do texto jornalístico, numa tentativa de
documentar o relato (nesse caso a pesquisa de Francisco sobre a mãe de Teodoro), o conteúdo
dessas simulações de obituário é intrigante.
Tais dados também causam sobressalto a Francisco, “o escritor do nexo”. Afinal, ao invés
de pêsames e condolências, temos nesse obituário declarações de amor que vão marcando os
árduos anos da separação do casal. Para acirrar a questão do aproveitamento ficcional do
documental, o Jornal do Brasil é citado como fonte, sua parte gráfica ativa, então, a memória do
leitor, fazendo surgir diante dele as páginas de um jornal, enquanto o conteúdo reforça o estado
sublime de um texto com mistérios narrativos que tiram do eixo o próprio integrante desse mundo
de faz de conta- o personagem Francisco:
Ao psiquiatra ocorreu que outros anúncios fúnebres deveria haver, bastando pesquisar as
edições de aniversário do mesmo Jornal do Brasil. Talvez lhe trouxessem mais
informações. Assim pensou e assim procedeu. Depois de varejar microfilmes e
microfilmes na Biblioteca Nacional, em direção regressiva (comemoraria alguém 27 anos
de falecimento com um anúncio de jornal?) (AMM, p.53)
Isso funciona como se os autores fossem salpicando indícios de real no corpo imaginativo
do romance. Os jornais são, inclusive, tipos textuais extremamente explorados na obra. Eles
126
aparecem tanto para realçar algum ponto metanarrativo como para preservar a coerência da obra
em meio a tantas colagens e entrelaçamentos de estórias, por vezes, até insólitas.
Quando Carlos Sussekind resolve voltar a escrever, o fato não é anunciado de modo
corriqueiro. A notícia chega ao leitor e a Francisco indiretamente, por meio de uma entrevista
transcrita no texto como uma matéria do jornal “O Município de São Paulo, apelidado, como é
hábito naquela cidade, pelo seu aumentativo: o ‘Municipão’ (um dos poucos jornais que
Francisco às vezes comprava)”(AMM, p. 82). O susto de Francisco com a notícia contamina o
leitor, garantindo o dinamismo do relato.
Mais adiante, quando eles estão prestes a finalizar o livro, surgem novos diálogos com
jornais e sites. Primeiro, encontramos alusão a uma matéria sobre Paulo Coelho e o lançamento
de um livro seu sobre uma ex-interna de um manicômio. Tal aproveitamento da marca registrada
(alusão ao nome de um autor famoso) margem a vários comentários irônicos e provocativos
sobre a literatura de massa. Em um certo momento, Francisco recebe a seguinte notícia de Dora
Abigail:
- O sr. Viu isso? – era o segundo caderno de O Globo, 19 de julho de 1998:
DIÁRIO DA LOUCURA
PAULO COELHO TROCA ESOTERISMO POR MERGULHO EM
MANICÔMIO EM VERÔNIKA DECIDE MORRER
O escritor lançava novo livro que aludia a suas experiências como internado em
sanatório. Lá estava que a internação havia acontecido em 1965, na casa de saúde
dr. Eiras, em Botafogo. (AMM, p.156-157)
127
O psiquiatra passa, então, a estabelecer correlações entre as estórias de internação de
Carlinhos Manivela e Paulo Coelho. Nessa passagem, interessou-nos especialmente ver como
vários dados do real foram aproveitados ficcionalmente, posto que, embora o tenhamos
encontrado essa reportagem especificamente, visitamos o site oficial de Paulo Coelho e
localizamos uma entrevista concedida ao Estado de São Paulo, justamente na época de
lançamento do livro Verônika decide morrer. Ela foi publicada em Sábado, 25 de julho de 1998
com o subtítulo - Escritor propõe `loucura controlada' em novo livro e também aborda a
questão de o autor ter aproveitado literariamente a sua internação num manicômio. A entrevista
contém uma abordagem da relação entre a vida e a obra de Paulo Coelho:
Estado - Veronika inspira-se em sua experiência de juventude, quando você esteve internado
na Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio. Você chegou a pensar, em algum momento, em escrever
uma autobiografia e não um romance?
Coelho - Apesar de ter vivido a experiência da loucura num manicômio, eu logo percebi que não
poderia escrever uma autobiografia, pois o PAULO COELHO de hoje, um homem de 50 anos, não
poderia falar da experiência vivida por um rapaz de 17. Cheguei a pensar nisso, mas logo vi que
seria impossível. Então, resolvi valer-me, mais uma vez, da ficção, e assim minha experiência está
dividida entre os diversos personagens do livro e não concentrada apenas em Veronika.
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Nesse testemunho, o autor, assim como qualquer sujeito que deseje revisitar o seu
passado, revive antigas experiências contaminado pelo ponto de vista do presente. Essa máxima
também será recorrente no mundo narrativo, daí a dificuldade de Francisco para desvelar o
passado de Teodoro.
Voltando ao mundo diegético, deparamo-nos com uma cena simples: dois personagens
conversam até que um mostra ao outro uma matéria de jornal. O teor da notícia e a simulação de
colagem de um texto existente são ricos, principalmente, porque fazem parte de um mosaico
textual capaz de disseminar várias críticas à literatura de massa ao longo da obra.
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Num segundo momento, o recurso de colocar nas mãos dos personagens estilhaços do
mundo real fica voltado para a metanarrativa, pois a partir da publicação de uma suposta sinopse
do livro de Carlos e Francisco, os personagens-escritores não discorrem sobre o fazer literário
da obra em curso como encenam ao leitor as dificuldades enfrentadas por escritores do mundo
atual que desejem publicar suas obras. Na seqüência, o leitor se depara com a nota “ESCRITOR
CULT PREPARA NOVA INCURSÃO NO TERRITÓRIO DA LOUCURA! DESTA VEZ EM
PARCERIA COM UM ESTREANTE, O MÉDICO FRANCISCO DANT.”(sic) (AMM, p.222),
depois lê uma sinopse de aproximadamente quatro páginas mais o convite:
Prezado leitor, a intenção desta sinopse é despertar em você a curiosidade e a vontade de
interagir com um livro em andamento [mais uma mentira, que a intenção era registrar a
idéia. FD]. Gostaríamos de saber que efeito a sua leitura causou em você, e que tipo de
curiosidade foi despertada. Por favor, mande suas perguntas para este endereço. Você
estará participando da construção do livro. (AMM, p.230)
No fim, o leitor encontra um Francisco perplexo ao constatar que boa parte das notícias
era falsa. A sinopse não era fidedigna ao livro e a construção interativa do romance era uma
promessa fadada ao fracasso, em função da complexidade de tal processo. Diante disso, a
perplexidade de Francisco seria a metonímia das próprias incoerências ou manipulações da
notícia jornalística bem como o temor de Carlos Sussekind ter sua idéia roubada seria a metáfora
provocativa da crise literária atual.
Com muita freqüência, vemos os tipos textuais mais objetivos e, quando não, científicos
empregados em prol de uma crítica social que, pelo viés da ironia, deixa clara a impotência do
homem diante da relatividade dos fatos. uma luta velada entre ciência e emoção, mostrando
que o conceito de loucura pode ser altamente variável. A loucura de hoje pode ser o “ganha pão”
de amanhã. Paulo Coelho faz sucesso com seus dramas pessoais, o paciente e seu médico não
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lograram a cura científica, mas ganharam respeito social como artistas, o menino louco fingiu-se
de são e libertou-se do sanatório; o menino dito são recusou-se a aceitar sua cura e sente-se
protegido com os loucos; o Alzheimer ao mesmo tempo em que degenera, liberta, pois Carlos
sempre justifica a inserção do insólito ou do imponderável no texto por conta de sua debilidade
momentânea e, embora, sua segunda voz, Francisco, assuma a postura da falsa auto-crítica, os
textos continuam lá, misturados com a grande obra, existindo em sua plenitude.
A todo momento, desde a parceria de escrita estabelecida (o médico e seu paciente) até os
desdobramentos ficcionais, recolhemos indícios textuais de uma conflituosa relação entre a razão
e a emoção. Por vezes, esse embate aparece na forma de sanidade versus loucura, em outros
momentos, mostra-se na presença da ciência em contrapartida à falta dela. Mas, na essência, o
que permanece é a necessidade de se enxergar a vida dialeticamente. Na visão dos personagens-
escritores, a parceria deles é perfeita, não por Carlos ser um homem das letras, do imaginário;
e Francisco, um homem da ciência, dos dados organizados, mas, principalmente, pelo fato de
ambos reconhecerem as deficiências de suas áreas de atuação profissional: “(...) eles percebiam
que suas prisões, seja da psiquiatria, seja da literatura (sim: pode-se ser prisioneiro da literatura
quando se é escritor. O leitor não sabe o que é a tirania do mot juste), viviam lhes restringindo a
vontade de dizer o que queriam.” (AMM, p.19)
Para Carlos:
Conhecer aquele médico, completamente fora do seu universo institucional, com
um tipo de pensamento pragmático que podia considerar a literatura como um
lucro e não como uma obrigação, uma brincadeira encantada sobre a vida e não a
vida como ela tem que ser encarada (...) era um enorme alívio.(AMM, p.18)
No caso de Francisco, a vantagem era que “(...) estava conhecendo um jeito novo de
trabalhar (seria aquilo trabalhar?). Seu universo médico-acadêmico costumava ser árido e sisudo.
Tudo deveria ser classificado, diagnosticado e assegurado como verídico” (AMM, p.19) E para a
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obra, qual seria o lucro dessa união? Justamente a oportunidade de se permitir ousar novos
paradigmas sem o risco de degeneração do objeto.
A colagem de certos textos, por vezes, só não agride o fluxo da narração por vir a reboque
das ações dos personagens. Estórias que, a princípio, poderiam parecer estapafúrdias ou sem
ligação com o enredo encontram-se justificadas, em geral, de duas formas: ou resultam de um
surto de Carlos ou estão contidas em algum texto lido pelos personagens no cotidiano. No caso da
crítica de Bárbara Heliodora à peça Sapatóloga, a inserção do texto no tecido romanesco ocorreu
em função de o mesmo encontrar-se num exemplar do jornal O Globo comumente lido por D.
Dora.
Em O Autor mente muito, a metanarrativa torna-se vital na costura das várias partes do
relato, pois, além de ser elucidativa, dá ritmo à narração e acontece no texto de várias formas, isto
é, não é exclusiva de um narrador que, suspendendo o fio da estória contada, divaga sobre seu
ofício. Conseguimos encontrá-la no corpo de uma carta ou até mesmo, de modo indireto, na
transcrição de páginas de um diário.
A carta que Carlos envia a Francisco vai além da apresentação das dificuldades de um
narrador durante o seu trabalho. Esse recorte textual condensa a função de refletir-se sobre o
fazer literário e o efeito surpresa, pois, nesse caso, narratário (leitores em geral) e destinatário
(Francisco) tornam-se cúmplices e solidários no trato da frustração gerada pela interrupção da
grande criação.
Indiretamente, as supostas transcrições do diário do pai de Carlos constituem
questionamentos literários que mesclam, com veemência, real e ficção. Tanto a foto do autor
Carlos Sussekind quanto o desabafo do personagem-escritor Carlos incidem no grande desafio do
autor moderno: conquistar seu lugar na historiografia, sem viver à sombra dos ilustres nomes dos
que o antecederam.
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Inferindo sobre o papel da colagem na microestrutura, pinçamos passagens interessantes,
nas quais o discurso científico ratifica uma anomalia no comportamento dos personagens e nos
valores da sociedade representada. Em sua luta para aproximar-se de Teodoro, Francisco ouviu a
seguinte frase- “Teus micróbios, meu amigo, guarda-os contigo!” (AMM, p.65). Tal sentença
pôde ser melhor compreendida, quando a D. Dora muito emocionada, viu na mesma um laço
afetivo com seu filho que, em verdade, estava recitando um fragmento do livro “Bíblia da saúde”.
Nesse episódio, o leitor encontra, então, uma extensa transcrição de um capítulo do livro
intitulado “Perdigotos”, antecedido por uma inquietante observação da mãe de Teodoro sobre o
livro: “(...) com suas preciosas teorias que nos ajudaram a ser uma família saudável(!).” (AMM,
p.66).
Considerando que a pontuação entre parênteses pertence ao discurso do narrador e não ao
de D. Dora, fazemos desse indicativo de espanto a nossa ressalva concisa acerca da irônica
ambigüidade presente no episódio relatado.
A visão de D. Dora sobre as vantagens da ciência para o homem, de fato, nunca foi muito
animadora. Não seria o Qorpo-Santo a sua maior arma na tentativa de preservar o filho querido?
A mãe de Teodoro vive a afrontar a ciência, rejeitando anti-depressivos, eletrochoques e análises,
para à sua maneira, manter o filho saudável dentro de um hospício.
Remédios e receitas eram instrumentos aparentemente eficazes sim, mas para cuidar de
bichos. Uma das colagens mais inusitadas com as quais o leitor se depara é uma receita para a
cachorra de D. Dora que, ao invés de conter a assinatura de um veterinário, apresenta a prescrição
de um psiquiatra. Prescrição essa que, por não ter sido elaborada detalhadamente, acaba
provocando a morte do animal por overdose medicamentosa.
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A colcha de retalhos é tão colorida que, no início da narrativa, os autores vão fornecendo
instruções aos leitores:
E, duplo horror, escrever rápido. Para tanto convencionaram que o que fosse escrito em
primeira pessoa não seria mostrado ao outro, para evitar perda de tempo e aumentar as
liberdades literárias. Somente o texto em terceira pessoa, este que o leitor ora contempla,
que costura e nexo à estória (uma exigência de Francisco, claro) seria de comum
acordo. A intenção, como sempre, era boa, mas, numa identificação misteriosa com
Carlinhos Manivela, não se saíram tão bem assim no processo. (AMM, p.21)
Às vezes, o diálogo com o narratário mais a voz em terceira pessoa com tom explicativo
acerca do comportamento de Carlos aproximam o texto da oralidade, resgatando a
espontaneidade do relato ao mesmo tempo em que justificando a inclusão de pequenas narrativas
com temática incompatível com a macro estrutura. A estória do avô célebre, por exemplo, foi
incorporada ao tecido narrativo coerentemente graças a essa estratégia de diálogo com o
narratário. Nesse momento, o tecido narrativo é cortado por um texto escrito nos moldes das
anotações de cunho pessoal. Em sua apresentação, temos respectivamente uma referência ao
narratário (“Esperamos que o leitor o perdoe por mais essa. “- AMM, p.22), um subtítulo da
estória (“Anotações para se algum dia esta narrativa for escrita”- AMM, p.22) e uma fala de um
dos personagens-escritores que, como o habitual, segue entre colchetes: [vê se eu agüento isso?
FD]. Aqui temos uma rica sorte de estratégias literárias com o fim de não contextualizar a
pequena estória mas também de inserir o leitor nos bastidores do fazer literário.
O retrocesso, a repetição e a fragmentação refletem o funcionamento da memória. O
tempo é tratado como um objeto da consciência, ou seja, relacionado à memória e ao espaço que,
por sua vez, resulta dessa noção de tempo. Esse procedimento faz lembrar sessões de psicanálise,
pois toda a noção de verdade passa a ser construída conforme as simbologias presentes no
discurso do sujeito. No que se refere à ordenação dos fatos narrados, percebemos, pois, no
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emaranhado dos fatos, justamente os efeitos dessa junção do profissional das letras com o
psicanalista.
2.3.4 Metanarrativa: limites entre “o estar no e sobre o livro”
Em O Autor mente muito, há relações complexas entre “autor”, “escritor” e “narrador”. As
divagações do narrador sobre o seu fazer literário são abundantes. Tais comentários abordam
desde a motivação da escrita do livro até as dificuldades para a publicação do mesmo. Podemos
perceber quea construção de uma narrativa em eco. Além da presença da mise en abyme não-
ortodoxa anteriormente analisada, encontramos um paralelismo digressivo impondo uma
repetição sistemática de reflexões do narrador que, ao longo do texto, vão mantendo a
consciência do leitor viva e alerta aos percalços do atual mundo da literatura. Não por acaso, em
várias partes do romance, o leitor localize comentários acerca das desvantagens da mídia para a
produção literária, da necessidade de Francisco se unir a um nome cult e renomado e da tensão
entre mentira e verdade.
Como os autores optaram pela reduplicação de suas condições no mundo ficcional, isto é,
criaram dois personagens-escritores ocupados da elaboração de um livro, a metanarrativa assume
de pronto um caráter singular. Os flashes reflexivos de um narrador sobre o relato em curso são
substituídos por três tipos de comentários metanarrativos: um referente ao trabalho efetuado por
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Francisco, b) outro contendo a voz de Carlos e c) o de um narrador em terceira pessoa que cuida
dos pontos de contato entre eles e guia o leitor didaticamente pelo texto.
Logo no início, o narrador em terceira pessoa dirige-se ao narratário: “O leitor pode
perceber do que este capítulo trata: da relação que começou a se estabelecer entre Carlos
Sussekind e Francisco Daudt.” (AMM, p.15). Mais adiante, o narrador faz questão de expressar a
crítica de Francisco contra determinada contribuição artística de Carlos Sussekind: “O problema
é que Carlos Sussekind resolveu escrever a estória do a célebre, por conta da sua afamada
preguiça (...) Esperamos que o leitor perdoe por mais essa.” (AMM, p.22)
Dentro dessa perspectiva, temos ainda passagens metanarrativas contendo as críticas
mútuas dos personagens-escritores. Sempre vigilante quanto ao nexo narrativo, uma vez
Francisco expôs o seguinte ponto de vista: “A propósito eu reclamei da inverossimilhança de
alguém ordenar um grupo de usuários, mas agora vejo que, de certo modo, Teodoro conseguiu
essa coisa impossível.” (AMM, p.49)
Às vezes, o leitor chega a assistir a discussões literárias: “- Agora é tarde, Francisco.
Tomei gosto. E você, deixa de ser preguiçoso [Eu???FD]. Já esqueceu da mosca azul?” (AMM,
p.216)
Essa pluralidade acaba por fornecer um caráter dinâmico ao processo metanarrativo que
se assemelha ao texto dramático, pois o leitor acompanha uma junção de idéias artísticas que não
ocorre pacificamente. Carlos e Francisco são personagens-escritores com distintas visões de
mundo e achar um ponto de convergência na criação artística nem sempre figura como tarefa
fácil. Sem falar que as ressalvas feitas pelo narrador observador diante das inusitadas invenções
dos personagens-escritores clamam pela paciência e solidariedade do leitor na aceitação de uma
proposta literária mais arrojada. Ao final do livro, por exemplo, antes de expor um epílogo sob
uma linguagem cinematográfica, o narrador teceu os seguintes comentários:
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ANTES DE CORREREM OS CRÉDITOS DO FILME, O DIRETOR RESOLVE
CONTAR O QUE ACONTECEU AOS PERSONAGENS, PASSADOS DEZ ANOS
[ESTA IDÉIA FOI SUGERIDA POR CARLOS, E FRANCISCO QUE ADORA
CINEMA, ADERIU IMEDIATAMENTE. CS &FD] (AMM, p. 291)
Tudo isso faz com que haja uma mistura tão radical de planos romanescos que “Francisco
vivia um conflito (...) se conversava com Carlos, excitava-se por participar do mundo dos
escritores; quando estava com Dora, parecia-lhe viajar pelo mundo dos personagens. Com um
estava sobre o livro; com outra estava no livro.”(AMM, p.121)
Em O falso mentiroso, as questões da vida literária são apontadas mas tudo é marcado por
uma certa simulação, o próprio autor Silviano Santiago aparece apenas sugerido na obra. Já, em
O autor mente muito, as marcas registradas atuam com muita força, à medida que a alusão aos
nomes de pessoas famosas como Carlos Sussekind e Francisco Daudt são recorrentes e os autores
se convertem em tema da obra. A partir dessa conversão, questões, tais como o valor da mentira,
vão sendo discutidas e apresentadas nas digressões de Francisco. Embora estivesse envolvido
com a escrita de um romance, o psicanalista não conseguia conviver pacificamente com a
mentira. Sobre isso ponderou:
Quando ele veio com aquela estória de “o autor mente muito”, comecei a pensar que, de
fato, o autor mente muito, que não é Teodoro o mentiroso, mas Carlos Sussekind.
Todos os seus livros estão cheios de mentiras. Porque, eu aprendi recentemente, existe
uma diferença filosófica entre mentir e dizer uma mentira: quem diz uma inverdade sem
saber que a coisa é falsa não está mentido. Quem o diz sabendo, sim, é um mentiroso. Eu
posso testemunhar que o Carlos é exatamente isso. Mas é um mentiroso simpático e
acredito mesmo que a mentira deva ser a essência da literatura, ficcional ou não, haja vista
os jornais.(AMM, p:48)
O tratamento concedido ao narrador é complexo, pois uma mudança contínua da voz
narrativa. Paralelamente aos narradores principais de primeira e terceira pessoa, representados
por Carlos, Francisco mais um narrador-observador, várias cessões da voz narrativa. No caso
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da estória “A mulher bifocal”, o narrador de pessoa encosta-se ao personagem e anuncia uma
espécie de narrador-personagem “artificial”, pois, por meio da mistura de gêneros (teatro e
romance), o narrador-observador relata que Teodoro “(...) resolvia encarnar Carlinhos Manivela
diante de sua platéia, quando anunciava: “Agora, dramatizando”, e então, era como se Carlinhos
Manivela fosse o narrador (...)” (AMM, p.30). Com esse artifício, os autores conseguem reduzir o
tom indireto do relato, porque, ao invés de colocarem Teodoro repassando o discurso de
Carlinhos Manivela, colocam o próprio Teodoro no centro do espetáculo, e essa mistura de voz
narrativa de Teodoro (quem fala) com o ponto de vista de Carlinhos Manivela (quem percebe)
dá mais vigor ao texto.
O tipo de narração de O Autor mente muito possui alguns pontos de similitude com a
narração machadiana. Similarmente ao que ocorre nas criações de Machado de Assis, aqui a voz
narrativa trava ácidos diálogos com o narratário, fazendo questão de se mostrar no controle do
relato. Há, freqüentemente, o lançamento de dados para que os mesmos sejam recuperados mais
adiante, bem como existe o anúncio da omissão de alguns elementos para provocar-se o suspense.
O capítulo “Mulher Bifocal”, por exemplo, nasceu com ressalvas. Nas primeiras linhas, o
narrador-observador salienta que deverá ser o próprio caráter insano do relato mais que um
indício, uma verdadeira dica de onde ele ocorre: um hospício.
Independentemente de quem assuma a voz narrativa (Carlos, Francisco, Teodoro, o
narrador-observador), o relato tende a ser altamente digressivo. Nem mesmo Teodoro, cuja voz
narrativa apresentou o ponto de vista de Carlinhos Manivela, deixou de conter as marcas
machadianas. Quando decide rememorar suas aventuras com Júlia, dosa com muita perspicácia a
hora de conceder um tom mais erotizado a sua estória. Logo no início ele diz: “Mas vivemos dia
e noite com o coração aos saltos e a cabeça em fogo. ‘Chamar o fantasma’ (daqui a pouco explico
dando todos os detalhes o que vem a ser isso)” (AMM, p.31)
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Não satisfeitos com a transgressão aos modelos convencionais de criação romanesca, os
autores ainda tentaram causar impacto no leitor, abordando o erotismo um tema que, apesar de
ter sido constantemente tratado em nossa literatura, sempre sentiu o peso do moralismo no
tocante à seleção do vocabulário e ao encaminhamento do relato.
Sob os efeitos “da moral e dos bons costumes” de nossa sociedade, o autor do texto
erótico, que não quis correr o risco de sua produção ficar demasiadamente à margem do cânone,
tratou do tema por meio de pseudônimos e eufemismos. Isso porque, via de regra, a legitimação
da abordagem das cenas de sexo na literatura, quando ocorre, deve-se ao riso ou ao tratamento
metafórico de assuntos sociais tais como a repressão. Ao cristão, dividido em corpo e alma, não
convém o livre pulsar do prazer.
A libertação da linguagem chega a ser vista por muitos críticos como a fronteira entre o
erótico e o pornográfico. Termos que, em sua essência, distinguem-se pelo fato de o primeiro
estar para a insinuação da sensualidade enquanto o segundo estar relacionado à exposição direta
das questões do prazer sexual. Em geral, quando se deseja evitar a exploração do pornográfico,
não convém que a cena torne o sexo explícito. É dentro dessa perspectiva que surgem as cenas
eróticas de O autor mente muito, que, ironicamente, efetuam a representação do homem e seus
desejos. Para tal, os autores empregam a astúcia do narrador machadiano no apuro da linguagem
bem como embaralham o lúdico e a representação do real.
A voz de Júlia, ao telefone, ativou em Carlinhos suas lembranças do sexo oral que
praticaram na infância, e toda a experiência vivida pelos dois é simultaneamente tratada como
profana e inocente. Apesar de o texto não apresentar conotações proibitivas e chamar pênis e
vagina de Flau-Fantasma e Dudu-Fantasma respectivamente, a cena torna visual o erótico, à
medida que sugere com muita intensidade a concretude do envolvimento carnal dos seres. No
lugar da sensual aproximação temos a penetração:
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-Ainda sinto a garganta... ainda sinto a língua... Ainda sinto os lábios... ainda sinto os
dentes... Até o instante em que, de todo desprendida, Flau se comunicava com Júlia
apenas pelos sinais vibratórios que partiam do Hmmmmmmm e pelas lufadas de ar
introduzidas na caverna a cada vez que era renovada a respiração. Vinha de mim então a
resposta libertadora:
-Agora está só o fantasma. (AMM, p.34-35)
Em resumo, o texto não apresenta a palavra proibida, mas anuncia uma concepção de sexo
proibida, com a qual as instituições de nossa sociedade (família, escola, igreja) têm muita
dificuldade em lidar. Esse sexo é efêmero, ainda que evocado saudosamente, não une Júlia e
Carlinhos, inclusive porque, na contemporaneidade, o tempo parece implacável com os amantes.
Geralmente, eles se reencontram, mas não se reconhecem. Em O Bruxo do Contestado, Juta e
Gerd não conseguem reatar o casamento; em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos
lábios, Cauby e Lavínia vivem unidos no plano físico e separados no plano psicológico, do
mesmo modo que, depois de anos, o reencontro de Júlia e Carlotinho não gera reconhecimento.
De algum modo, esses personagens representam o frenético caos do mundo moderno, em que o
futuro é imperativo enquanto o presente quase nunca consegue resgatar o passado.
Os personagens integram um mundo em crise e, não por acaso, estão enredados pela
mentira ou sequiosos do resgate da verdade. Francisco busca recompor um mundo em
decomposição, daí a sua dificuldade para conviver com Carlos, D. Dora e Teodoro, todos
personagens que abdicaram do conceito de verdade e elegeram a mentira como um anestésico ao
sofrimento.
O duplo marca o texto, integrando uma série de dissimulações. O hospício abriga loucos e
sãos, não corresponde a um manicômio convencional, posto que fora criado por D. Dora como
uma “instituição de fachada”. D. Dora guarda segredos importantes e, sob a máscara de “Dona do
hospício” , convive com sua verdadeira identidadea mãe e viúva sofrida. Teodoro, mesmo são,
finge-se de louco por julgar-se inapto à vida em sociedade. Carlinhos Manivela burla as regras e
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livra-se do hospício. Francisco, escondendo seus interesses de coleta de material para a
composição de um livro, aproxima-se de D. Dora e Teodoro, fingindo ser apenas psicanalista.
Enfim, um conjunto de seres em crise com seus próprios sistemas. A família e as várias
instituições sociais incomodam os diversos seres angustiados que transitam na trama.
Em conflito com seus interesses, os personagens estabelecem uma relação com a mentira
que nos remete ao conceito do imaginário de Freud analisado por Sérgio Paulo Rouanet (1990),
segundo o qual, torna-se necessário fantasiar toda vez que a realidade fica insuportável. De
acordo, com Rouanet (1990, p. 199 ):
(...) o pensamento realista resulta na produção de idéias, que podem ou o ser
verdadeiras; o pensamento imaginário resulta na produção de fantasias.
Essas fantasias têm com a verdade uma relação ambígua. Elas contribuem, enquanto
produtos e agentes de defesa, para afastar do real os processos perceptivos e intelectuais.
Neste sentido, o imaginário é a sombra do conhecimento: infiltrando-se na esfera
cognitiva, ele concorre para obscurecê-la. Ao mesmo tempo, na medida em que ele
preserva, de alguma forma a frustração que o originou, ele pode constituir uma via de
recuperação do passado. Na medida em que o irreal que ele visa pode ser apenas uma das
dimensões do virtual, ele é o caminho para a compreensão do presente (...)
D. Dora, Carlos e Teodoro têm presentes insuportáveis. Por razões diferentes, esses
personagens estão frustrados com suas vidas, logo tanto a construção de vidas duplas como a que
a D. Dora efetuou para si e para o próprio filho quanto as invenções mirabolantes de Carlos
sinalizam indivíduos que, no fundo, buscam compreenderem a si mesmos.
No caso de Francisco, embora não se entregue plenamente à mentira, ele acaba
suportando a convivência com a mesma na esperança de compreender melhor o contexto no qual
se encontra inserido. Essa tolerância do psicanalista com a inventividade alucinada de seu
parceiro decorre de uma esperança de que a decomposição do relato auxilie na compreensão do
mundo em crise.
Francisco convive com um parceiro muito ardiloso. Às vezes, se sabendo falacioso,
Carlos dialoga com o narratário sobre a condução de sua estória numa tentativa de demonstrar
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coerência narrativa. Quando deseja explicar sua obsessão pelo diário de seu pai, primeiramente
Carlos faz um apelo ao lado emocional do leitor, mas, em seguida, cheio de ironia, joga com a
paciência do leitor e se defende:
(...) Que, se ele contava ao diário seus horrores, era porque via graça neles, era da
tragicomédia humana. Gostaria que ele soubesse que seu filho poderia rir com ele. [O
leitor que aceitar, por mais difícil que seja essa explicação, terá minha amizade para todo o
sempre. CS] (AMM, p.120)
Vemos nessa reflexão, o projeto de escrita de Carlos e Francisco stricto sensu, isto é, no
que concerne à construção imediata do livro. Entretanto, tais divagações não se limitam ao objeto
em construção e, lato sensu, abordam os valores de criação artística apregoados pelos
personagens-escritores Carlos e Francisco que, de algum modo, figuram como metáforas do fazer
literário dos autores Carlos Sussekind e Francisco Daudt.
Freqüentemente os personagens-escritores se mostram preocupados com a sobrevivência
do profissional das letras em tempos de globalização. Sabem que nem só de bom conteúdo vive o
livro, pois a mídia age impiedosamente, transformando obras de qualidade questionável em
sucesso. Para que isso ocorra, basta que sejam rentáveis, ou seja, o lucro advém da literatura de
massa, da cultura de apelo popular, capaz de atingir o leitor comum e menos exigente. E nessa
guerra por uma fatia do mercado, várias são as estratégias.
A fim de incrementar o lançamento de livro deles, Carlos deu a seguinte sugestão:
-Ah, Francisco, e ainda podíamos fazer uma coisa moderníssima: convidar o leitor do site
para enviar suas perguntas, sobre o que gostaria de saber do livro. As perguntas poderiam
dar algum rumo para nós também. Seria um pouco um livro interativo, como as novelas de
televisão... (AMM, p.218-219)
Tudo é elaborado tendo em vista o mercado editorial. Até a ordem dos nomes dos
personagens-escritores na capa do livro é programada em função do maior apelo comercial.
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Carlos Sussekind deve preceder Francisco Daudt, por ser mais famoso e considerado cult. “Ao
contrário de Francisco, Carlos Sussekind era um bem-sucedido na vida. Um dos poucos
brasileiros a viver de livros (sem contar os editores, é claro).” (AMM, p.108)
Ao lado das questões editoriais de Carlos e Francisco está um série de alusões irônicas a
um autor de best sellers renomado no Brasil. O autor Paulo Coelho:
(...) vendeu, até dezembro 2003, um total de 65 milhões de exemplares e, de acordo com a
revista americana "Publishing Trends", foi o autor mais vendido do mundo em 2003, com
o livro "Onze Minutos" - apesar do livro ainda não ter sido lançado nos Estados Unidos,
Japão, e mais dez países (o lançamento ocorreu apenas em 2004). Também na lista de
"Publishing Trends", "O Alquimista" se encontra em sexto lugar de vendas mundiais em
2003. "Onze Minutos" atingiu o primeiro lugar em todos os países onde foi lançado,
exceto Inglaterra, onde ficou em segundo lugar. O alquimista é um dos mais importantes
fenômenos literários do século XX. Chegou ao primeiro lugar da lista dos mais vendidos
em 18 países, e vendeu, até o momento, 11 milhões de exemplares.
Tem sido elogiado por pessoas tão diferentes como o premio Nobel Kenzaburo Oe e a
cantora Madonna, que o considera seu livro favorito. foi fonte de inspiração de vários
projetos - como um musical no Japão, peças de teatro na França, Bélgica, USA, Turquia,
Itália, Suíça. Agora é tema de duas sinfonias (Itália e USA), e teve seu texto ilustrado pelo
famoso desenhista Moebius (autor, entre outros, dos cenários de O Quinto Elemento e
Alien). Seu trabalho está traduzido para 61 idiomas, e editado em mais de 150 países.
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Não por acaso, uma marca registrada alusiva ao seu nome perpasse toda a narrativa como
uma ameaça permanente ao trabalho de Carlos e Francisco. Ele é a metáfora de alguns valores de
nossa atual sociedade no tocante à literatura. O nome Paulo Coelho divide a opinião da crítica,
suscitando diversas polêmicas. Para uns, um escritor talentoso; para outros, um engodo, um
produto do marketing e como tal superficial. João Alexandre Barbosa, em resenha sobre o livro
Onze minutos, chega mesmo a afirmar que a literatura praticada por Paulo Coelho pode ter levado
o autor para dentro da Academia, mas ele permanece fora da literatura. Para o crítico, o sucesso
dos livros do autor junto ao público decorre da maneira como o próprio manipula o lugar-comum,
construindo obras de mensagem fácil e nada problematizadora.
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Na primeira página do romance, temos a seguinte frase: “Carlos Sussekind e Francisco
Daudt acabaram escrevendo este livro por medo do Coelho” (AMM, p.7) Essa temática do
“Medo do Coelho” ecoa em todo o texto e, a cada alusão, surge uma crítica ao trabalho de um
tipo de escritor preocupado mais com o comércio do que com a criação artística. O personagem
Coelho pode ser Carlinhos Manivela, pode roubar estórias da vida alheia, para transformá-las em
ficção, pode até roubar a estória do livro deles e lançar um outro semelhante na frente deles, pois
escreve muito rápido. Segundo Dominique Maingueneau (1995, p.38-40):
(...) Por essência, o escritor não pode ter uma relação unívoca com um salário. Com a
escrita, da mesma forma que com a arte em geral, a noção de “trabalho”, de “salário”, só
pode ser colocada entre parênteses. O escritor está condenado a elaborar um compromisso
sempre insatisfatório. (...) O escritor que pretende fazer uma obra singular está condenado
a inventar à medida que percorre a estrada pela qual caminha, a desconfiar de qualquer
carreira previamente traçada. Não pode visar a riqueza, pois, visando-a, arrisca-se a se
tornar um escritor medíocre. Pior: o sucesso é um sinal ambíguo, que muitas vezes revela
uma conformidade inquietante a uma moda transitória e o garante qualquer glória
sólida.
Esse personagem-escritor, Paulo Coelho, era motivação e aversão. Diversas são as
passagens em que os personagens-escritores criticam o concorrente, temendo, entretanto, perder
espaço para o “colega de colágio” sempre seguem em frente. Na abordagem dessa temática, os
autores mesclam real e ficção ora falando obliquamente sobre dados do real no ficcional, ora
enfatizando a ocorrência desse fenômeno. No primeiro caso, temos a alusão à velocidade de
escrita do Coelho que, de fato, corresponde a fatos da vida real, à medida que o autor Paulo
Coelho declara, em seu site oficial, ser capaz de escrever num período de 2 a 4 semanas apenas,
sendo o resto do tempo destinado à confecção e revisão da mesma. Em seguida, temos as
semelhanças da entrevista com o suposto Paulo Coelho e a nota do lançamento de Verônika
decide morrer com dados da realidade.
Ao mesmo tempo em que incorporam dados da realidade no corpo narrativo,
ficcionalizando-os, os autores fazem questão de dessacralizar as clássicas delimitações
143
comumente estabelecidas entre o real e o ficcional. No meio dos desfechos ficcionalizados dos
personagens Teodoro, D. Abgail, Erotildes, Francisco Daudt e Carlos Sussekind, eles colocaram
uma referência provocativa ao Paulo Coelho, ressaltando que qualquer semelhança entre os fatos
narrados no livro envolvendo a participação de Paulo Coelho e a realidade seriam meras
coincidências.
Atualmente, a representação do real tem sido um desafio não apenas ao autor da ficção
mas aos próprios profissionais da ciência. Está sendo cada vez mais necessário assumir novas
posturas diante do acontecimento do real, sobretudo porque, por mais rigorosa que seja a
pesquisa e o compromisso com a realidade, o que se pode oferecer é sempre um “efeito de real”.
A realidade se apresenta múltipla e complexa, tornando qualquer tentativa de fidedignidade
insuficiente.
O leitor tradicional, tanto dos textos ficcionais quanto dos não-ficcionais, está acostumado
a receber uma suposta verdade e se sente confortável diante de um relato linear. Textos como O
Autor mente muito correm o risco de levar o leitor desavisado a um colapso, entretanto quando
conseguem ser decodificados, os romances são capazes de propor sérios questionamentos sobre o
momento presente.
Por fim, percebemos que tanto a oposição quanto a tensão entre mentira e verdade nos
colocam diante do seguinte problema: Como pensar em mentiras e verdades em tempos de
relatividade e estilhaços de real? Eis um dos grandes questionamentos do livro. Enquanto em O
falso mentiroso, de Silviano Santiago, o silogismo imperou, aqui, o ofício do escritor e a sua
relação com a mentira e/ou falsidade emergiram mais explicitamente.
144
Diferenças à parte, o que fica grifado tanto no texto de Silviano Santiago quanto em O
autor mente muito é que o ato de mentir não deve ser lido apenas como algo que macula a
verdade, mas como algo que produz verdades. De acordo com Píndaro, o grande poeta lírico
grego, o dizer é mais que o agir: o dizer pode dizer mais que a ação e pode perpetuá-la. Em
termos de ficção, resta-nos, pois, o fato de que, muitas vezes, a deformação do objeto permite-nos
depreender aspectos de sua essência.
Para Bastos (2006, p.7), “(...) o realismo , como representação ficcional da realidade, deve
ser visto como um comportamento, como a expressão de uma ética do narrador em relação aos
fatos narrados.” Nesse sentido, o que faz com que o romance em análise se aproxime das várias
tendências contemporâneas de representação da realidade o é a possibilidade de cotejarmos
documentos e elementos ficcionais, ou ainda uma supremacia da verdade sobre a mentira. Não, o
que alimenta tais tendências advém justamente de um suposto caos, da instauração de um
contexto nada tranqüilizador, em outras palavras, é a possibilidade de leitura da angústia de seres
oprimidos em uma dada sociedade a partir da construção de um mundo ficcional plural.
145
3. A MONTAGEM CINEMATOGRÁFICA E A INSTAURAÇÃO DE NOVOS OLHARES
SOBRE O REAL
De acordo com Yves Reuter (2002, p.156):
Quando o texto procura uma impressão, um efeito de realidade, o que é o caso mais
freqüente em nossa tradição romanesca, fala-se de realismo. Trata-se de um efeito de
semelhança construída pelo texto e pela leitura entre duas realidades heterogêneas: o
mundo lingüístico do texto e o universo do não-texto, lingüístico ou não (falas, objetos,
pessoas, lugares, acontecimentos...)
Esse efeito excedeu os movimentos literários do século XIX (Realismo, Naturalismo...),
aos quais se costuma reduzi-lo com excessiva freqüência. De fato, mesmo que esses
movimentos tenham estabelecido suas distinções e codificado um certo número de
técnicas, com as quais uma grande parte do romance contemporâneo ainda convive, eles o
integram em uma estética específica (particularmente oposta ao Romantismo) e
historicamente delimitada. Mas o efeito do real já existia antes dessas correntes, continuou
depois delas e pode se unir a diferentes projetos estéticos.
146
No mundo literário contemporâneo, o entrelaçamento da subjetividade e do “efeito de
real” tem sido cada vez maior. Narrações em perspectivas múltiplas, reflectorizações e polifonias
foram artifícios amplamente empregados em prol da queda do mito da objetividade. Vivemos
uma tendência de desestabilização do real, na qual alguns escritores parecem brincar de apagar a
fronteira entre real e ficcional, para instaurar um tipo de representação que emerge do próprio
texto para o contexto.
Nos romances O bruxo do Contestado, O Falso Mentiroso e O autor mente muito, tal
representação da realidade concretiza-se condensada a uma espécie de narrativa que conta a si
mesma. Mais do que a construção de estórias que dêem conta da representação do mundo
extradiegético, temos digressões ficcionais sobre o estado da questão. Todavia, as atitudes de
criação literária contemporâneas não se esgotam nesse viés, temos também, dentre as várias
manifestações artísticas, as narrativas de Luiz Ruffato e Marçal Aquino que, sem recorrerem
exaustivamente a jogos metanarrativos no corpo do romance, exibem novos olhares sobre o real.
Em textos como Eles eram muitos cavalos (2005
8
) e Eu receberia as mais belas notícias
dos seus lindos lábios (2005), um singular convite de encontro com um literário que se quer
literário sem abrir o da criticidade. Nessa perspectiva, segundo Terezinha Barbieri (2003,
p.58):
O leitor, assim, vê-se diante de um jogo ficcional cujas regras desconhece e, se quiser captar o sentido da nova
dinâmica, necessita refazer o pacto com o texto – já que este, sem deixar de ser literário, não é mais puramente
literário, antes sendo ficção com bossa de documentário e fábula romanesca rompendo a moldura do real.
Tal atitude realista requer uma rie de estratégias ficcionais. O diálogo assume
conotações preciosas, pois, à medida que os romances pós-modernos experimentam o abalo
da objetividade do olhar, surge uma renuncia à pretensão de se falar pelo outro que se
materializa ora pelo emprego da voz narrativa em primeira pessoa, ora pela exploração das
8
Data da 3 ª reimpressão. A 1ª edição é de 2001.
147
demais estratégias narrativas capazes de descentralizar o discurso. Por meio do diálogo, a
narração o se torna mais dinâmica como se instaura um clima de depoimentos, no qual
se deixa falar o outro, o marginalizado, relativizando-se qualquer pretensa certeza.
Paralelamente a esse projeto de descentramento do relato, a linguagem
cinematográfica torna-se cada vez mais predominante. Buscando uma abordagem mais táctil e
afetiva do real, muitos autores investem no pictórico, na plasticidade, refletindo o princípio do
cinema moderno que delega à imagem o poder de comunicação. Dessa forma, o texto literário
passa a ser alvo de constantes pesquisas de criação bem como incorpora características da
técnica cinematográfica tais como a montagem, imprimindo certo grau de simultaneismo ao
relato dos fatos.
Essa junção entre Cinema e Literatura, ao invés de dissolver os gêneros, acaba por
enfatizar suas características intrínsecas. Segundo Massaud Moisés (1982), o cinema continua
pautado na imagem que revela o mundo exterior, plasticamente concebido enquanto o
romance continua detendo o privilégio de atingir o mundo interior dos personagens por meio
da palavra. O que, de fato, acontece, de acordo com o crítico, é que, ao dialogar com o cinema
moderno, o romance logra sua libertação do modelo de romance oitocentista.
Em meio a essa libertação, uma extrema valorização da linguagem literária que
também passa a ser matéria de pesquisa artística e experimentação. À medida que o
significante vai ganhando autonomia diante dos significados pré-estabelecidos e a abordagem
referencial do contexto se esgarça, fonemas, morfemas, palavras, sintagmas e sentenças
ganham uma extrema funcionalidade no corpo narrativo. A experimentação artística
envolvendo a linguagem promove um choque capaz de revitalizar o discurso, aumentando o
seu potencial comunicativo.
148
Em função dessas características, os referidos textos de Luiz Ruffato e Marçal Aquino
possuem o mérito de sensibilizar o leitor, despertando sua consciência crítica em face das
diversas mazelas sociais. Cada um, a seu modo, resgata vozes marginalizadas e, ao invés de
falar sobre os diversos tipos de opressão experimentados pelo sujeito pós-moderno, tenta
exibir seres angustiados em meio a tensões sociais. E, assim, sem praticar a “apoteose do
sentimento” típica do Romantismo nem a “anatomia do caráter” característica do Realismo do
século XIX, tais textos integram um filão literário que, marcado pela escritura da angústia,
problematiza a relação entre o real e o ficcional.
149
3.1 Eles eram muitos cavalos : a importância dos flashes da sociedade paulistana para a
representação da realidade de São Paulo.
Considerando que a cidade é o lugar em que o fato e a imaginação teriam de se fundir,
aceitando, por outro lado, o fragmentário, o descontínuo, e contemplando as diferenças
e o multiculturalismo das megalópoles, os discursos contemporâneos centram e grafam
a cidade, com sua polifonia, sua mistura de signos, na busca de decifrar o urbano que
se situa no limite extremo e poroso entre ficção e realidade. (Renato Cordeiro Gomes)
Eles eram muitos cavalos faz parte da bibliografia de Luiz Ruffato, um escritor
mineiro que nasceu em Cataguases em 1961 e tem sua vida pessoal marcada pela migração.
Depois de cumprir os estudos básicos na cidade natal, ele seguiu para Juiz de Fora, onde
viveu até formar-se em Jornalismo. Com diploma em mãos, Ruffato foi para São Paulo,
cidade escolhida para viver - o retorno certo de suas andanças literárias pelo Brasil e pelo
mundo.
Enquanto o romance Eles era muitos cavalos o cede espaço ao discurso sobre o
fazer ficcional, apresentando um literário marcado predominantemente pela construção
literária dos fatos, o autor é generoso com os interessados em seu trabalho e concede muitas
entrevistas. Nesses vários bate-papos sobre a literatura, ele revela suas inquietações literárias,
seu repertório cultural, seus gostos e procedimentos artísticos, enfim, posiciona-se no atual
cenário da literatura brasileira. Ruffato chegou mesmo a criar um auto-retrato que
recorrentemente aparece como epígrafe de suas entrevistas. Numa espécie de “Luiz Ruffato
por Luiz Ruffato”, o autor assim se define (RUFFATO, 2002):
150
Luiz Ruffato - Nasci em Cataguases (MG), em fevereiro de 1961, filho de um
pipoqueiro e de uma lavadeira. Sou formado em Comunicação pela Universidade
Federal de Juiz de Fora (MG). fui, nesta ordem, pipoqueiro, caixeiro de botequim,
balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, jornalista, sócio de
assessoria de imprensa, gerente de lanchonete, vendedor de livros autônomo e
novamente jornalista, profissão que exerço atualmente em São Paulo, onde moro dez
anos. Publiquei dois livros de contos, "Histórias de Remorsos e Rancores" (1998) e "(os
sobreviventes)" (2000), ambos pela Boitempo Editorial, de São Paulo. Tenho um livro
de poemas inédito, "As Máscaras Singulares".
Obviamente, que por se tratar de um autor vivo, a esse retrato estamos sempre
somando as novas produções, os prêmios recebidos e, mesmo, as mudanças na carreira
profissional. Em função de Os sobreviventes, ele recebeu uma Menção especial- o “Prêmio
Casa de Las Américas”, na categoria literatura brasileira. O texto foi considerado inovador e
se destacou entre as 321 obras concorrentes. O júri, composto por Fernando Morais, Sérgio
Sant’anna e Ângela Leite Souza mais os cubanos Raul Roa e Carlo Marti, além de indicar o
livro para publicação em espanhol, justificou a premiação ressaltando a qualidade da obra- um
texto ficcional capaz de conciliar originalidade e efeito de real.
Com a publicação de Eles eram muitos cavalos em 2001, recebeu outros prêmios e
obteve grande projeção no cenário cultural. O livro teve duas edições em cinco meses, foi
transformado em peça de teatro e, ao ser traduzido em vários idiomas
9
, chamou ainda mais a
atenção da crítica brasileira. Desde então sua ascensão como escritor tem sido tão
significativa que, em 2003, largou o jornalismo para efetivamente viver como um “operário
da palavra”.
Em entrevista ao Jornal O Povo
10
, Luiz Ruffato explica que deseja se dedicar mais ao
literário. Todavia como não é fácil ser exclusivamente escritor num país onde pouco se lê, ele
estabeleceu um período de transição, segundo o qual, a cada seis meses uma avaliação de
9
Eles eram muitos cavalos está publicado também na Itália (Milano, Bevino Editore, 2003), na França (Paris,
Métailié, 2005) e Portugal (Espinho, Quadrante, 2006).
10
Entrevista concedida em 29 de julho de 2005, encontrada na página http://www.noolhar.com.br/opovo
151
sua carreira e condições de trabalho. Como tem conseguido viver dignamente, a literatura
segue como foco de suas atenções.
Para Luiz Ruffato, o atual jornalismo brasileiro é superficial e, muitas vezes, parece
obsoleto diante da sociedade, posto que, no lugar da reflexão expõe seções apelativas e com
baixa informatividade. A literatura torna-se, pois, um local privilegiado de análise social.
Cessar o trabalho diretamente ligado ao jornalismo não significou fechar os olhos para o
mundo, pelo contrário, como ele mesmo se apresenta como um cidadão atuante, seus textos
ficcionais exibem os problemas sociais da atualidade. Com isso, acabam refletindo a
necessidade de lutarmos por uma sociedade mais justa, mais solidária e tolerante.
Desde que conheceu a leitura na biblioteca pública de Cataguases aos 12 anos,
descobriu que a palavra é forte instrumento de luta por ser capaz de mostrar ao leitor o que
existe além de sua realidade; a partir disso, entendeu que se conseguisse se tornar um escritor,
“teria de ser para contribuir”, conforme declarou em várias entrevistas. Na fase adulta,
descobriu que sua contribuição, num plano imediato, seria traçar um panorama do Brasil,
enfocando o drama do trabalhador urbano condenado ao anonimato. Ruffato diz ter um sério
compromisso com a realidade de um País injusto, cujo crescimento urbano ocorreu graças ao
esmagamento sócio-econômico da classe operária composta, em sua maioria, pelo processo
de migração. Em nome disso, aborda os problemas dessa classe operária nos centros urbanos.
Embora se dedique mais intensamente à produção de narrativas ficcionais. O autor
publicou um livro de poemas em 2002- As máscaras singulares, bem como organizou
antologias e escreve vários ensaios. Em 2004, com Simone Ruffato, trabalhou na antologia
Fora da Ordem e do Progresso, da coleção História do Brasil, depois, sozinho lançou uma
coletânea sobre escritoras brasileiras, intitulada 25 Mulheres que estão fazendo a nova
literatura brasileira.
152
Na atualidade, Ruffato está trabalhando no grandioso projeto Inferno provisório. Ele
parte do trabalhador urbano como tema principal, para falar dos últimos 50 anos do Brasil,
tratando das mazelas sociais que acompanham o processo de migração presente no país desde
a sociedade agrária até a pós-industrial, sobretudo no que diz respeito ao deslocamento dos
nordestinos e moradores do interior para o eixo citadino Rio – São Paulo.
Essa história será contada em cinco livros e os dois primeiros foram lançados no
Brasil e na França: Mama son tanto felice (2005) e Mundo inimigo (2005). O primeiro
apresenta estória de um agricultor do interior de Minas Gerais que vivencia sua decadência
em função da modernização. Essa obra aborda o clássico dilema geracional de pais adeptos à
vida rural versus filhos seduzidos pela cidade grande.
No segundo volume, o espaço invocado continua sendo Minas Gerais, mas
percebemos um pequeno movimento migratório, pois a vida no campo é substituída pelo Beco
do Zé, um cortiço localizado em Cataguases. As décadas de 60 e 70 se fazem presentes e
vive-se o sonho da vida nas cidades carioca e paulista. A semelhança de tensões e de recorte
espacial (Minas Gerais) entre as duas obras não é mera coincidência, uma vez que os livros se
complementam, apresentando estórias interligadas.
Do ponto de vista temático, as sinopses de tais livros não contém ineditismos, todavia
é na forma como os temas são trabalhados ao longo do texto que a produção recente de
Ruffato ganha mais destaque. Como o próprio autor afirmou em várias entrevistas, ele não
gosta de se preocupar em “inovar tematicamente”, preferindo trabalhar temas ditos
conservadores de forma inovadora.
De imediato, no tocante à forma, chama-nos a atenção o fato de esses dois livros dele
conterem estórias aproveitadas de Histórias de remorsos e rancores (1998) e Os
153
sobreviventes (2000). Tais escritos, contudo, não são meras reproduções textos publicados,
posto que aparecem reformulados.
Embora não seja atraído pela idéia de publicar um livro eletrônico, as marcas da
fragmentação digital e da estrutura do hipertexto podem ser percebidas nos romances,
inclusive porque, segundo o autor (CORCI, 2005, p.2), sua idéia ao elaborar esses livros era a
de que “se pudéssemos clicar sobre o nome de cada personagem uma nova página seria aberta
e ali encontraríamos a história dessa nova personagem.”
Esses romances apresentam uma grande plasticidade além de uma linguagem
cinematográfica. o por acaso, estão sendo cobiçados pelo diretor José Luiz Villamarim e
pelo roteirista George Moura para serem levados ao cinema. A idéia seria a de fazer um filme
em Cataguases, abordando quatro ou cinco estórias de O Mundo Inimigo.
Até o momento da entrevista concedida a Danilo Corci (2005), os demais livros do
projeto Inferno Provisório possuíam os seguintes títulos: Vista parcial da Noite- volume 3,
Cataguases, 1970, 1980; O livro das Impossibilidades, volume 4, Cataguases, Rio e São
Paulo, 1980, 1990; e São São Paulo, volume 5, São Paulo, 2000. Esses textos devem
continuar o relato da saga do trabalhador urbano, numa espécie de desdobramento da reflexão
política proposta dos volumes já publicados.
Em quase todas as entrevistas concedidas, o autor faz questão de lembrar alguns fatos
de sua vida: sua origem geográfica e humilde, sua capacidade de superação e movimentação
geo-social, seu amor às letras e autores preferidos. Além disso, com freqüência, grifa a sua
concepção de literatura. Tais declarações nos convidam a uma leitura paratextual de sua obra,
pois estão muito relacionadas a algumas características literárias de seus romances.
De Cataguases e da vontade de vencer na vida recebemos o mote de boa parte de suas
obras- a preocupação com a desigualdade social e a importância da literatura na construção de
154
uma reflexão crítica sobre o país. De seu amor às letras e a determinados autores ganhamos
sua postura ficcional. Para Luiz Ruffato, Literatura circunscrita a Literatura não interessa,
posto que tal arte deve ser reflexo da vida vivida. Além disso, embora reconheça o valor do
romance tradicional e de autores como Jorge Amado, Érico Veríssimo, Hemingway, Dickens
e Balzac, é com Machado de Assis, Guimarães Rosa, Faulkner, Joyce e Proust que tem maior
identificação literária. Isso porque prefere, nos termos de Wayne Booth (1980), mostrar”
uma estória ao invés de “contá-la”, enfim, acredita que tal linhagem narrativa permita tratar
da questão do caos das cidades modernas de modo mais complexo. Funciona como se, através
de uma liberdade e complexidade formal, pudesse representar com olhares múltiplos cidades
eloqüentes como Rio e São Paulo.
3.1.1 O romance-mosaico e a liberdade ficcional na representação do caos urbano
Em Eles Eram Muitos Cavalos, temos exatamente o que o autor define como a “(...)
radicalização de um projeto que estava presente nos dois primeiros livros” (PILATI, 2005,
p.3). Daí o nosso interesse pela obra. À medida que nos importa entender como Luiz Ruffato
trabalha a questão do real a partir de uma significativa inovação da forma, estudar um
romance que se apresenta como o resultado da maturidade artística do escritor tornou-se
fundamental.
Antecipando a escrita caleidoscópica amplamente empregada na contemporaneidade,
autores como Graciliano Ramos, em Vidas Secas, Autran Dourado, em Ópera dos Fantoches,
investiram na composição híbrida do romance, explorando a mistura de gêneros e suas
formas. Em Vidas Secas, temos a famosa disposição de capítulos que se aproximam, para
155
críticos como Álvaro Lins, da forma narrativa denominada conto, em função de uma suposta
possibilidade de mudança da ordem de apresentação dos mesmos. Ainda que isso não seja
senso comum no meio crítico literário, posto que, para alguns estudiosos, a existência de um
ciclo temporal inviabilizaria tal mobilidade dos capítulos, o fato é que a estrutura dos mesmos
assemelha-se a estrutura do conto. No caso Ópera dos fantoches, Autran Dourado aplicou
toda a diagramação da ópera, na elaboração de um romance cuja estrutura se aproximasse a
dessa forma dramática.
Seguindo essa tendência, Luiz Ruffato também explora a questão dos gêneros e das
formas narrativas, promovendo uma radicalização desse processo, isto é, algumas formas do
gênero narrativo (conto, romance) encontram-se aqui tão diluídas que o autor chega a propor
uma nova categoria: o romance-mosaico. Sob esse rótulo, estariam justamente aqueles textos
que, para alguns, integrariam um conjunto de contos intensamente relacionados por um tópico
narrativo; mas, para outros, corresponderiam apenas a partes de um romance fortemente
fragmentado.
Toda a ação do livro está circunscrita a um tempo e um espaço, pois versa sobre
o dia 9 de maio de 2000 na cidade de São Paulo. Esse é o início de uma estrutura de
encaixe da diversidade na unidade que permeia a obra em seus vários planos, pois, embora as
marcas temporais e espaciais sejam bastante delimitadoras, o conteúdo ficcional tratado neste
dia e nesta cidade é altamente plural. O dia é único, contudo, longo e bem aproveitado, nele as
personagens das mais variadas classes sociais transitam fervorosamente nos turnos da manhã,
tarde e noite, expondo as mais distintas dores dos “muitos cavalos” comumente esquecidos na
sociedade.
Além disso, em função de São Paulo ser uma metrópole imponente, a unicidade
espacial se ramifica em prol da construção de um grande painel humano, o que nos permite
156
conhecer as várias cidades que integram a Cidade São Paulo. um contínuo desdobramento
de quadros que, aproximando literatura e sociologia, exibem a experimentação artística a
serviço da representação do caos.
São setenta capítulos fragmentados tanto no tocante à sua estrutura como no que se
refere à linguagem e à temática. Nesse conjunto, uma recorrência do aproveitamento
literário de textos não-ficcionais (santinhos católicos, classificados, horóscopo) que ratificam
o diálogo entre vida e literatura. Diálogo esse cuja complexidade, de certa forma, encontra-se
atrelada à composição híbrida do romance.
Na abertura da primeira página do romance, eis o espanto: capítulos que lembram a
estrutura fragmentada de Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade,
dizem ao leitor que esse romance em nada se assemelha à literatura extremamente voltada
para o mercado consumidor, tão em voga na atualidade sob os rótulos de Best Sellers ou
Auto-Ajuda. O texto de Ruffato não visa oferecer entretenimento, sem se preocupar com
permanência ou sacralização da obra, assim como não apresenta enredos e estruturas
narrativas simples, circunscritos aos clichês e ao senso comum. Os quatro capítulos da
primeira página, de imediato, convidam o leitor a um árduo exercício de leitura do romance.
Essa semelhança com as memórias oswaldianas, por sua vez, justifica-se muito mais
pelo texto telegráfico do que pelo tom parodístico, posto que em Ruffato o pastiche cede lugar
à estética do fragmentário ocupada do desnudamento das crueldades sociais banalizadas.
Os quadros urbanos representados no livro estruturalmente se isolam tanto quanto os
indivíduos citadinos.
O primeiro capítulo do romance retoma a estrutura inicial de uma carta. O segundo e o
terceiro contêm uma objetividade e um ritmo discursivos típicos das rias seções de um
jornal, pois neles temos desde as informações climáticas da cidade até histórias da vida de
157
santos. Somente a partir do quarto capítulo, o texto começa a delinear um dos elementos mais
marcantes dessa forma narrativa – o enredo, mas nem por isso, podemos dizer que se instaura
o momento da narrativa romanesca propriamente dita seguir seu curso tranqüilamente, pois a
disposição do texto na mancha gráfica bem como a peculiar marcação da mudança de foco
narrativo ou mesmo de fala dos personagens são regidas por uma nova utilização das regras
de pontuação e das marcas tipográficas.
O tipo e o tamanho de fonte abandonam seus aspectos meramente convencionais para
atuarem como delimitadores de vozes narrativas. No capítulo 4, geralmente, a fonte redonda
traz o discurso do narrador em terceira pessoa, o itálico ora marca um atributo e/ou estado do
personagem em foco (“o filho um babaca”/ “ela horrível”/ “amuada num canto
arrependida?”- EMC,p.12-13), ora assinala mudança de fala (“...contratei um desses veados
dinheiro não é problema ...”- EMC, p.13) enquanto o negrito marca um segundo plano
narrativo que semelhantemente a um refrão, segue repetindo o monólogo interior dos
personagens, ou ainda, combinado com o itálico, grifa o que talvez pudéssemos chamar de
cruzamentos de fluxos da consciência.
O fluxo da consciência do empregado marca suas angústias decorrentes de sua
condição social, ele era um funcionário adorado pelo patrão, mas por ser lucrativo, além
disso, ainda que tivesse encantado a filha do patrão, seria sempre um empregadinho. Do
mesmo modo, o velho endinheirado exercita-se quanto à tolerância e cegueira que deve ter
diante do desvio de caráter de seus filhos, justamente por estes serem seus filhos. Esses
personagens integram um capítulo bastante singular: sua estrutura parece a de um conto feito
à moda da obra aberta e sua temática abrange uma forte crítica ao sistema social paulistano
capaz de traduzir a denúncia que permeia todo o projeto literário de Ruffato (a exploração
selvagem dao-de-obra proletária). Tal crítica, por sua vez, não aparece explicitamente nas
158
linhas narrativas, integrando uma reflexão sobre o tema. todo um jogo de forma &
conteúdo que, preservando a “viagem literária”, sem desnudar o processo de criação, faz com
que o leitor enxergue a crueldade social praticada com a classe que sustenta a elite.
Nessa peça do mosaico, são traçados três perfis de jovens: um trabalhador competente
“tratado como filho”, o filho de grande empresário que “cocainômano passeia sua arrogância
pelas salas da corretora” e uma filha usuária de maconha “macrobiótica, artista plástica,
esotérica” que sempre pinta os mesmos quadros. Esse primeiro jovem ascendeu socialmente,
por ter aproveitado uma bolsa do American Fields em função de ter vencido um concurso, isto
é, esse jovem soube usufruir bem de uma das brechas, ou melhor, das fissuras democráticas
do sistema capitalista brasileiro que ainda permitem uma leve mobilidade social (o sistema de
concursos públicos, bolsas de estudos).
No entanto, tal ascensão financeira apenas o aproximou da elite, sem permitir sua real
integração com os ricos. Ele pode até usar Giorgio Armani, ter um Rolex, ir a Londres, mas
será sempre o “filho que o patrão gostaria de ter tido”. Ainda que esse futuro do pretérito
marque uma asseveração modesta em relação ao passado ou expresse uma admiração por um
fato que poderia ter se realizado, o discurso do patrão não se converte em atitudes concretas
bem como o ato de “tratá-lo como filho” serve muito mais para abrandar relações hierárquicas
do campo profissional que para real demonstração de carinho.
Ao empregadinho resta apenas o caixa-dois da corretora. Por outro lado, aos filhos do
patrão restam as festas, a arruaça, o descaso com os subalternos, tudo isso, é claro, sempre
“corrigido” pelo poder financeiro do pai que, escravo de sua prole, segue comprando a
“dignidade de seus filhos”, subornando delegados e afins.
Segundo a pirâmide social delineada nesse capítulo, enquanto o humilde passa a vida
lutando por uma ascensão social, alguns ricos vivem anestesiados pelo poder financeiro de
159
suas famílias, causando prejuízos sociais incalculáveis. Começa assim, o resgate da gente
simples de São Paulo.
Em função da coincidência entre a falta caráter dos personagens e suas boas condições
financeiras em contraposição à boa índole dos personagens pobres, num primeiro momento,
tendemos a enxergar um discurso maniqueísta na obra de Ruffato. Cabe-nos, pois, ressaltar
que, em outros capítulos, pobres se comportam mal do mesmo modo que nem todos os ricos
são cruéis, enfim, apesar da coincidência, via de regra, o personagem é caracterizado
conforme sua natureza e não de acordo com sua classe social.
Embora não seja uma narrativa topocêntrica, o romance apresenta a cidade de São
Paulo como lugar de referência. Tal abordagem não se esgota no fornecimento de contornos e
dimensões espaciais, vai além, promovendo a humanização da cidade que, para alguns
críticos, chega a figurar como personagem central.
Luiz Ruffato começou sua carreira com a escritura de poemas, passou aos contos até
chegar ao romance. Essa forma narrativa, contudo, ganha nova roupagem pelas mãos do autor
e passa a condensar os vários gêneros literários e suas formas, poderíamos mesmo dizer que
Ruffato veio do mais conciso (o poema) ao mais enredado (o romance). Para tal, incorreu em
mutações literárias não-circunscritas ao mero aumento de núcleos e de demais elementos da
narrativa ou ainda número de páginas; mas, ao grau de complexidade que o autor desejava
imprimir à construção de suas estórias. No fundo, ele coaduna a essência de cada gênero ou
forma em seu caldeirão literário, diluindo-os em prol de um dinamismo ficcional.
Eles eram muitos cavalos apresenta uma diversidade estrutural tão significativa que
qualquer tentativa de catalogação ou classificação analítica de suas partes estaria fadada ao
fracasso. Apesar disso, buscando uma linha analítica, verificamos que, em meio a tantas
diferenças, existem certas tendências ficcionais na estruturação desse mosaico. Isso significa
160
que localizamos três estilos de capítulos que aparecem na obra com freqüência: a) Filetes de
real, b) Flashes do cotidiano e c) Flagrantes de violência.
A partir do aspecto estrutural, separamos capítulos como “1. Cabeçalho” e “31. Fé”
dos demais e resolvemos chamá-los de Filetes de real em função do aproveitamento literário
de textos não-ficcionais que os mesmos apresentam. Além disso, considerando o aspecto
temático, instauramos as outras duas categorias para cuidarmos de estórias que apresentam
forte semelhança no tocante ao assunto tratado, isto é, no grupo Flashes do cotidiano,
incluímos textos como os dos capítulos “5. De cor”e “6. Mãe”, que trazem à tona o dia-a-dia
dos operários que movem a cidade de São Paulo. Por fim, reservamos o nome Flagrantes de
violência para os capítulos que semelhantemente ao “13. Vandalismo” exibem as dores e
traumas dos paulistanos acuados pela violência.
O aproveitamento de textos não-ficcionais acontece ora reproduzindo textos não-
ficcionais extraídos do mundo real, ora por meio de simulacros de textos não-ficcionais. Em
outras palavras, mesmo cientes de que um texto não-ficcional ao ser inserido no corpo
narrativo torna-se tão ficcional quanto quaisquer outros elementos da obra, continuamos
sentindo o efeito da mistura de mundos (extra e intradiegético) provocado pelo emprego de
certos princípios da técnica de colagem praticada por Max Ernest em La femme 100 têtes
(1929) e em Une semaine de bonté (1939).
Apesar de não ter promovido colagens de recortes textuais, tal como fez Max Ernest,
ao trabalhar com recortes de velhos romances ilustrados do século XIX em enciclopédias, a
partir da justaposição de tipos de textos distintos (uns semelhantes aos não-ficcionais, outros
semelhantes aos vários tipos de artes), Ruffato também foi capaz de promover um certo
choque no leitor, revitalizando o texto narrativo, sem, contudo, causar prejuízo à fatura
interna da obra, uma vez que tudo foi organizado pelo autor de modo que não houvesse
161
ruptura da harmonia do enredo na narrativa, ou seja, foi estabelecido um diálogo temático
entre o conteúdo de tais textos incorporados ao mundo ficcional e os demais elementos do
enredo que compõem o livro.
No capítulo “31. Fé”, o texto do panfleto de Santo Expedito é reproduzido na íntegra,
até mesmo o preço do milheiro(R$38,00) aparece conforme a moeda vigente no Brasil. O
título do capítulo contextualiza satisfatoriamente esse estilhaço de real à medida que revela
valores e costumes dos personagens que transitam no romance.
O texto de Ruffato exibe impiedosamente as mazelas urbanas enfrentadas pelos
paulistanos das mais diversas origens e classes sociais. Seus personagens não têm outra opção
além da convivência dolorosa com a violência. Chefes de família mudam seus hábitos no
regresso ao lar em função das guerrilhas entre traficantes e policiais, mães enlouquecem em
virtude de filhos que não mais regressam ao lar, vizinhos não m tempo de criar laços
afetivos, posto que vidas são interrompidas por jovens assaltantes que não obtiveram uma
chance no mercado de trabalho. Em outros termos, a violência apodera-se da vida dos
paulistanos que, sem alternativas, entregam seus destinos ao metafísico. Orações católicas,
cultos protestantes, simpatias, correntes de promessa, enfim, pedidos de auxílio ao divino
extraídos da atual realidade social brasileira aparecem salpicados ao longo do romance,
antecedendo ou sucedendo a um trágico relato.
Esse tipo de capítulo está intimamente relacionado aos demais. No grupo Flagrantes
de violência, o capítulo “35. Tudo acaba” mostra como a violência torna o presente um
imperativo inócuo. A total ausência de futuro em virtude dos atos de violência cada vez mais
corriqueiros que está, a todo o momento, lembrando o indivíduo que “tudo se perde num
átimo” (EMC, p. 73) ou o corpo caído de uma vítima da violência apenas atrapalhando o
162
trânsito são fatos que vão destruindo o sentido da existência para esses eternos candidatos ao
ponto-final.
Esses flagrantes da finitude da vida, por sua vez, vêm acompanhados de um
anestésico: o apelo ao divino. Não por acaso, o capítulo seguinte resuma-se a uma promessa
em busca de pedidos difíceis e impossíveis.
Raros são os relatos da vida seguindo seu fluxo natural sem interferência da violência.
No grupo Flashes do cotidiano, o capítulo “37. Festa” apresenta a da personagem Idalina
como a metáfora da postura religiosa do povo brasileiro. Sua amiga morreu em função de um
dos transtornos da vida moderna, ou seja, vitimada por uma das doenças sexualmente
transmissíveis mais graves a Aids, mas não foi uma vítima direta da violência, o que
permitiu a recuperação do ritual comumente empregado nas ocasiões fúnebres. Ela teve seu
corpo asseado e preparado por um ente querido, para que fosse enterrada dignamente
conforme o padrão de comportamento cristão.
Não por acaso, o título do capítulo é “Festa”. Esse vocábulo recupera não o ponto
de contato entre as amigas (ambas trabalhavam em buffet de festas) como está relacionado ao
ritual de despedida, no qual objetos do quarto da amiga morta exalam vida por recuperarem
antigos bitos do defunto-corpo ali estirado que, por sua vez, também ativa a memória de
Idalina quanto à sua vida pregressa com a amiga. Talvez seja por conta desse binômio corpo
morto-estórias vivas que Idalina, ao entrar no quarto da amiga, preserve certos hábitos de
gentileza: entrou pé-ante-pé, não abriu a janela, enfim, cuidou de garantir um sono tranqüilo
àquela que, apesar da vida severina, felizmente, não seria apenas um número na estatística do
IBGE.
No grupo Filetes de real, além dos panfletos, encontramos outros capítulos com uma
estrutura discursiva extremamente concisa. São textos que imitando a estrutura de textos não-
163
ficcionais inserem-se no corpo do romance, causando impacto visual por aparecerem em
forma de listas nominais. Há tanto os capítulos compostos basicamente por listas de objetos
(livros, móveis e discos) quanto três capítulos que integram uma série intitulada “Na ponta do
dedo”. São esses os capítulos: “18. Na ponta do dedo (1)”, “24. Uma estante”, “32. Uma
copa”, “42. Na ponta do dedo (2)”, “65. Na ponta do dedo (3)”, “69. Cardápio”.
Em tais capítulos, encontramos uma estratégia literária de justaposição de palavras
semelhante à empregada por Affonso Romano de Sant’ Anna no poema “A pesca”, que
também contém uma relação de elementos ligados à pesca, semelhante também à utilizada por
Ricardo Ramos em seu conto “Circuito fechado”, no qual temos uma lista de elementos do
cotidiano, e, ainda, à construção explorada por Aluísio Azevedo em Matos, Malta e Matta.
Essa construção narrativa que se estrutura a partir da ordenação de palavras com o mínimo, ou
quase nenhum, auxílio de elementos conectivos empreendida por Luiz Ruffato, ao mesmo
tempo em que está presa à tradição, sobretudo no que diz respeito à descrição naturalista,
subverte-a. Em outras palavras, Ruffato reproduz a técnica da justaposição nominal, mas
inova ao apresentar uma realidade que vai sendo construída e impregnada pela subjetividade
dos seres que a preconizam.
Na maior parte desses capítulos de Eles eram muitos cavalos, as palavras não têm
ligação sintática e, embora não haja explicitação lingüística de relação entre elas, as mesmas
não compõem um amontoado aleatório de itens lexicais. Tais estruturas discursivas nos
remeteram aos estudos de coesão & coerência elaborados por Ingegore Villhaça Koch e Luiz
Carlos Travaglia (1990), pois, para esses teóricos, uma lista pode não se resumir a um
amontoado de frases se a seqüência for apresentada como um texto e nele for possível
perceber uma intenção comunicativa. Em geral, o que ocorre é que o conhecimento de mundo
arquivado na memória do receptor pode ser ativado por um título ou pelo sentido de uma
164
última seqüência ou ainda por uma disposição das palavras, enfim, pode haver um indício
textual qualquer capaz de indicar o tópico discutido e levar o leitor à construção de um mundo
textual.
Citando Beaugrande & Dressler (1981) e Marcushi (1983), Koch e Travaglia
correlacionam a coerência textual à continuidade de sentidos e declaram:
A continuidade estabelece uma coesão conceitual cognitiva entre os elementos do texto
através dos processos cognitivos que operam entre os usuários (produtor e receptor) do
texto e são não do tipo lógico, mas também dependem de fatores sócio-culturais
diversos e de fatores interpessoais (...) A continuidade dos conhecimentos ativados pelas
expressões lingüísticas termina por constituir o que chamamos de tópico discursivo,
aquilo sobre o que se fala no texto (...) (1990, p. 25)
No capítulo “24. Uma estante”, o título funciona como um elemento perspectivo, isto
é, que desperta expectativas sobre o conteúdo, à medida que contextualiza os itens lexicais.
As várias obras não estão soltas no espaço e a leitura de seus títulos nos permite recuperar
uma série de valores sociais. São títulos condizentes com uma sociedade em crise: os
literários nos remetem ao homem e sua relação com o seu meio e seus semelhantes (Vidas
Secas, de Graciliano Ramos/ O Bobo, de Alexandre Herculano, Reunião, de Carlos
Drummond de Andrade etc.) do mesmo modo que os não-literários nos lembram das mazelas
político-sociais, dos valores em corrosão (Brasil potência frustrada, de Limeira Tejo/
Gestapo, de Sven Hassel/ O dinheiro, de Arthur Hailey/ Holocausto, de Gerald Green) bem
como das buscas do homem em prol de uma vida melhor (O homem à procura de si mesmo,
de Rollo May/ Curso Técnico em Transações imobiliárias, de João da Silva Araújo/ Nos
domínios da mediunidade, de Francisco Cândido Xavier/ Marketing Básico, Marcos Cobra/
Ajuda- Te pela psiquiatria, Frank S. Carpio).
A continuidade semântica representada por uma idéia unificadora (um retrato da
sociedade moderna) cria a relação entre os termos. Na série “Na ponta do dedo”, ocorrem
165
processos bem semelhantes, pois, nos e capítulos, uma lista de “ofertas humanas”
voltadas para relacionamentos amoroso e sexual, enquanto no capítulo da série uma
breve representação da busca por um lugar no mercado de trabalho. Nesse caso, além do
título, houve outro significativo indício textual: a interjeição Ah!. O texto é composto por uma
lista de 45 nomes de profissão que, ao seu final, o leitor recupera como uma espécie de
classificados de empregos. Os nomes são dispostos secamente até que no 43º nome temos o
seguinte:
MAÇARIQUEIRO- (Ah!)
MAÇARIQUEIRO grau até a série incompleta, experiência de 24 meses, idade
entre 28 e 50 anos
MAÇARIQUEIRO – (soldador), escolaridade não exigida, experiência 12 meses, idade
entre 25 e 45 anos.
A partir da interjeição e do detalhamento do cargo, a memória do leitor é ativada,
tornando possível que ele junte essa informação ao título e visualize um cidadão citadino, da
classe operária em busca de um emprego. Isso não só confere movimento ao texto como grifa
a dificuldade financeira enfrentada por vários brasileiros.
Em termos gráficos, se é verdade que comumente uma lista transmite uma idéia de
passividade, de apresentação estática dos elementos, também é verdade que, com a sutil
escolha do título e uma interjeição colocada no tempo certo, Ruffato destruiu as amarras
textuais típicas de uma listagem, conferindo movimento ao texto. Por meio desse recurso
lingüístico, a imagem que eclode do texto é a dos dedos percorrendo os itens dos classificados
mais a alegria de um trabalhador diante de uma nova esperança de recolocação no mercado de
trabalho.
Além disso, os demais itens da lista carregam leituras sociais. São 9 tipos de gerente, 7
tipos de impressor, 3 tipos de instalador entre outras subdivisões de funções capazes de
apontar o modo como a globalização e o progresso tecnológico interfere na vida atual;
166
inclusive, porque se conjugarmos essa nova exigência do mercado com o perfil de
trabalhadores traçado na rubrica de MAÇARIQUEIRO (baixa escolaridade), iremos
encontrar, nas entrelinhas, uma crítica ao capitalismo no tocante ao descompasso entre o
sujeito comum e as novidades de seu tempo.
Por vezes, essa técnica de listagem pode vir associada a outras estratégias. No capítulo
“32. Uma copa”, o autor misturou descrição, narração e listagem assim como no capítulo “69.
Cardápio”, ele não misturou listagem e narração como explorou o texto não-verbal e as
marcas de textos orais.
Em “32. Uma copa”, uma descrição subjetiva mais um ínfimo instante narrativo
contextualizam a lista dos móveis que compõem esse ambiente. Nesse momento, uma série de
marcas registradas referentes a eletrodomésticos, bebidas e Cds pintam o perfil social de uma
casa que figura como modelo da casa que comumente encontramos na famosa família de
“classe média baixa”.
A batedeira Walita, o rack, madeira aglomerada castanho-claro, o videocassete
Panasonic NV-SD 435, o CD da banda Eva ao vivo e as lembrancinhas de festas (bodas,
batizados e casamentos) promovem a manutenção temática a partir da justaposição de termos
de um mesmo campo semântico. Com isso, os objetos da copa não recuperam costumes
como permitem a identificação de um dado grupo social.
No caso de “69. Cardápio”, o requinte dos pratos (Miniquiche, Ovas de salmão, Risoto
de endívias, tortas de marzipã) nos transportam para outra esfera social cuja vida segue
repleta de privilégios alimentados por pessoas que seguem a vida entre suor e medo e que,
semelhantemente ao casal de personagens do capítulo 70 desse mosaico, tentam sublimar os
sofrimentos dos vizinhos,“virando pro canto e dormindo”. Não por acaso, entre esses dois
167
capítulos do romance, um grande quadrado preto. Este texto não-verbal simula, entre
outros, a imponente cisão de mundos na caótica São Paulo.
Num primeiro momento, tal mistura da lista com a imagem do quadrado negro e a
estória da insônia do casal pode anunciar alguma incoerência, todavia, tal conjectura
rapidamente perde a força quando atentamos para o fato de que nem sempre a
descontinuidade representa uma incoerência. Às vezes, ela é tão importante quanto à
continuidade, pois da ruptura pode resultar o riso, a ironia ou, como nesse caso, o choque
visual que revigorará a denúncia da desigualdade social.
Nos demais casos de colagem, percebemos que os simulacros de textos não-ficcionais
são empregados conforme a tradição, isto é, para dar mais ilusão de real ao relato. No capítulo
“50. Carta”, a carta que a mãe escreve a Paulino, seu querido filho, resgata a grande ferida de
qualquer imigrante: a saudade.
A partir da voz materna, desde seus simples informes sobre o cotidiano dos familiares
à exposição de suas angústias em face da separação, uma série de aspectos sobre a vida do
imigrante vai sendo desvelada. Por vezes, breves comentários alçam fortes questões sociais,
como o fato de D. Glorinha se chocar com os nomes dos netos (Gislaine e Maico). Ela chega
a sentir dúvidas quanto à grafia: “E o Maico? É assim mesmo que escreve o nome do
caçulinha? Desculpe meu filho, mas é um nome tão complicado... É bonito, mas é meio
complicado.” (EMC, p.106)
Isso traz à tona a valorização da cultura estrangeira recorrente nos centros urbanos.
Boa parte da classe operária sente-se seduzida pelo “glamour” exalado pelos nomes
americanos/ingleses. Então, a cada chegada de um novo membro da família, os pais vão
substituindo as “Marias” os “Pedros” e “Tõizinhos” por nomes com ares mais modernos.
168
Nas Mal traçadas linhas” de D. Glorinha, vemos o preço afetivo pago por cada
imigrante. O mito da vida farta em terras paulistanas logo se esvai, pois o operário, em geral,
até consegue um emprego, mas a renda não se torna suficiente para enviar ajuda financeira
aos que ficaram para trás, muito menos para visitar parentes distantes. Sendo assim, a
distância segue corroendo os laços afetivos, o que fragiliza os filhos postiços de São Paulo.
O tipo de texto e o título do capítulo (A carta) são polissêmicos tanto pelas imagens
que comportam (a saudade oriunda da distância entre mãe e filho) quanto por seu poder
simbólico. Afinal, muitos dos desgarrados de sua terra natal vêem nesse instrumento de
comunicação a luta, ainda que inglória, contra o apagamento de suas raízes.
Ruffato é um autor que prima pela busca da novidade ficcional sem banalizar o
enredo. Dentro dessa perspectiva, percebemos que, algumas vezes, a experimentação literária
cede espaço à abordagem de questões sociais, porque vários problemas do coletivo irrompem
no tecido narrativo em prol da representação do cotidiano paulistano. A sociedade pós-
moderna encontra-se gravemente doente, repleta de dilemas individuais e enfermidades
coletivas: Aids, obesidade, arrocho salarial, desemprego, transtornos sexuais, carência afetiva
e demais males eclodem num palco de violência impelindo o indivíduo ao vício ou a atitudes
egoístas que não têm servido nem mesmo como medidas paliativas de proteção. Tudo isso
preenche o mosaico do autor ora como Flashes do cotidiano ora como Flagrantes de
violência.
Os Flashes do cotidiano apresentam os cidadãos comuns no cumprimento de seus
deveres diários e, mais raramente, seus lampejos de sonhos de uma vida feliz. No capítulo “5.
De cor”, aparece o tema do desperdício humano; pois, ao acompanhar a caminhada de dois
homens e uma criança rumo ao trabalho, o leitor testemunha mais uma criança inteligente,
169
nesse caso craque em sabatinas sobre cidades e capitais, tendo que interromper os estudos
para auxiliar no sustento da família. A pobre criança
(...) largou a escola, vende cachorro-quente com molho de tomate ou de maionese e
coca-cola em frente à firma onde o pai trabalha. À noite, guarda o carrinho no pátio da
empresa, os vigias tomam conta. Quando crescer, perde-se Brasil afora, sonha,
caminhoneiro. (EMC, p.14)
Com a falência das instituições públicas, a inteligência do menino de “dez-onze-anos,
franzino” serve para envaidecer o pai diante de estranhos ou para tentar a sorte em
programas de televisão que, nos moldes do “Quiz Show” americano, fazem fortuna com a
miséria humana.
O capítulo “38. Menina” é uma das raras peças do mosaico desprovidas de relatos
trágicos. Comportando um ritmo narrativo mais tradicional, o texto apresenta o cotidiano dos
pobres que, desiludidos quanto aos valores político-sociais, têm na um projeto de vida. A
vida do casal resume-se aos deveres com o trabalho, o amor à filha concebida graças a muita
oração e aos cultos de domingo.
Para tratar disso, Ruffato substitui a experimentação radical do discurso ficcional por
um relato mais tradicional temperado com poesia. Cenas prosaicas do cotidiano são
cuidadosamente narradas de modo que o efeito estético ganhe relevo. Frases como
“pregadores cor-de-rosa beliscando a solidão do pequeno quintal” ou “a menina especula
sobre outras manhãs sepultadas na História Sagrada” confirmam a máxima do autor de que
nem todos os elementos literários devem ter uma função. Às vezes, são ornamentos, posto que
literatura também é beleza.
O sonho é algo que marca os personagens pela negativa, pois ou o personagem não
consegue concretizá-lo, ou sequer se permite possuí-lo. No capítulo “43. Gaa (orgulho)”,
170
Bernardo, oprimido pelos deveres de uma vida dita normal, em duas ocasiões, reprimiu seus
sonhos. Quando jovem
(...) sonhou largar tudo, cair na estrada, arrasar centenas de garotas histéricas para clubes
sociais de cidadezinhas do interior, cabelos longos, roupas psicodélicas, maconha e
ácido lisérgico, quem sabe gravar discos, estourar nas paradas-de-sucesso, tornar-se
famoso, enriquecer... Entretanto, na faculdade de engenharia namorou ativamente a
política estudantil (...) (EMC, p.91 e 92)
Depois, por conta da filha Fanny, voltou a criar expectativas em relação ao mundo
artístico, mas até onde sabemos, ele ainda não teve coragem para desgarrar-se das amarras
sociais, continua no plano das conjecturas, “Bernardo pensa em largar tudo, dedicar-se full
time à carreira da menina. Som!, Som!, Alô!, Alô!, A!, A!, Alô!, Um!. Dois!, Um!, Dois!
Um! Som!” (EMC, p.93)
Esse é apenas um dos traços do paulistano que, vítima do caos urbano, começa a
desenvolver alguns transtornos comportamentais. São casais que, tal como Nancy e Rafael
(cap.53. Tetrálogo”), buscam aventuras em locais que ofereçam trocas de casais em virtude
de fantasias sexuais; são médicos que, como Dr. Fernando (cap. “52. De branco”), surtam em
pleno centro cirúrgico em função de se acharem na obrigação de salvar a vida do assaltante
que coincidentementehavia aterrorizado sua família, até a infinidade de indivíduos que, no
público ou no privado, não se importam em falar sozinhos.
um número expressivo de estórias que, embora se apresentem como um diálogo,
no fim, dada a existência de um sujeito que fala ininterruptamente sem carecer de feedback de
seu interlocutor, assemelham-se a um monólogo. No capítulo “25. Pelo telefone”, temos esse
tipo de diálogo pós-moderno, no qual um sujeito em crise necessita de catarse e não hesita em
conversar com a secretária eletrônica. Trata-se de uma mulher casada que, por crer no poder
do ataque indireto à amante de seu marido, liga para a casa de Luciana, “a destruidora de lar”,
e trava uma guerra verbal e unilateral com a mesma.
171
O apelo argumentativo da mulher traída apresenta a seguinte progressão: começa com
a ofensa à amante, segue com reprodução do senso comum sobre a mulher traída (esta é a
vítima, sobretudo por conta do sofrimento dos filhos) até chegar à desconstrução do objeto de
desejo (o marido). Nessa fase, pouco importa que o único feedback de suas ligações seja a
automática mensagem da secretária eletrônica de Luciana, o que importa é registrar os
defeitos de seu marido e apresentá-lo como um homem que “não caga no vaso” (EMC, p.53),
“é incapaz de lavar um copo que seja” (EMC, p.53).
A mensagem eletrônica de Luciana é repetida 8 vezes no texto, delimitando as
instâncias narrativas até a chegada de um epílogo, segundo o qual, depois que a paixão sofre a
ação destrutiva do cotidiano, sobra apenas “a pessoa que está dormindo com você” (EMC, p.
54).
Nessa mesma vertente, temos cenas como o desabafo de um homem no banheiro
público sobre a violência no bairro onde mora, a clássica cena do taxista distraindo os
passageiros com suas confidências e ainda as conversas conjugais, nas quais uma das partes
fica fazendo um balanço da vida a dois até chegar à conclusão de que “A intimidade é a morte
da relação” (EMC, p.128).
A fala solitária desses indivíduos desenha um tempo em que a reflexividade
predomina sobre a reciprocidade. A clássica teoria do “dar e receber” vai sendo substituída
por práticas individualistas segundo as quais resta ao próprio sujeito agir e sofrer sua ação,
pois a grave crise político-social torna escasso o intercâmbio.
A comunicação entre os sujeitos pós-modernos é muito explorada. Com isso, os canais
de comunicação (carta, telefone, e-mail/internet) preenchem a cena criativamente; ora em
virtude do tipo textual (cap. “50. A carta”), ora por viabilizarem a aproximação dos textos oral
172
e escrito (cap. “25. Pelo Telefone”) ou ainda em função de serem o próprio conteúdo temático
de um capítulo (cap. “54. Via internet”).
No abordado capítulo “25. Pelo Telefone”, o texto recupera vários traços da
oralidade. De imediato as repetições da frase “Oi aqui é a Luciana. Deixe seu recado após o
sinal.” (EMC, p.52) intercaladas às mensagens deixadas pela esposa traída constroem o
aspecto de diálogo do texto. Além disso, no que tange à pontuação, o texto está mais próximo
de uma transcrição do discurso oral do que de um enunciado típico da língua escrita.
Os sinais mais empregados são justamente os relacionados à expressividade
lingüística: ponto-de-interrogação, ponto-de-exclamação. Por meio desses, toda a indignação
e revolta da esposa vai sendo traduzida. Paralelamente, os parênteses seguem acolhendo as
rubricas textuais que, seguindo a linha do texto teatral, vão colorindo a cena ao fornecerem
mais informações sobre o estado psicológico da personagem. Tudo isso fica ainda mais
oralizado quando as reticências passam a organizar as frases entrecortadas ou truncadas
típicas da língua oral.
Nesse momento, se atentarmos para o exercício ficcional de Ruffato que, em suas
obras, alterna atitudes de aproveitamento da tradição e de ruptura com o convencional,
perceberemos que, em meio a tantas renovações, Ruffato pratica certa continuidade do cânone
que precedera, à medida que dialoga com um de seus grandes antecessores- Guimarães Rosa.
Ambos são escritores que, no lugar de apenas contar, desejam mostrar, e em função disso,
usam a linguagem como limite e incentivo de criação, amalgamando-a ao tratamento temático
da obra. Dentro dessa perspectiva, não buscam uma revitalização do código como
exploram o monólogo oral, a confissão, o livre fluxo de consciência de um narrador-
personagem, enfim, empregam técnicas que, além de tratar da experiência vivida, reproduzem
o relato do relato, isto é, o que viram e ouviram.
173
A mistura da escrita com a oralidade não confere dinamismo ao relato como
enfatiza a espontaneidade de algumas cenas. Não por acaso, o texto teatral apareça
amalgamado ao texto narrativo por excelência. Segundo Lukács (2000, p.198),
“Involuntariamente, os gêneros se completam em virtude da necessidade de as formas
cercarem o mundo por todos os lados.” No caso desse romance-mosaico, a pluralidade textual
reflete o fato de o autor ter as mãos livres para passear entre os gêneros literários e suas
formas, recolhendo dos mesmos os instrumentos que melhor se encaixem em sua proposta.
Quando o diálogo tipicamente teatral não ocupa a estrutura central do capítulo, ele
vem entrelaçado a um tipo de narração voltado para a construção da cena. Textos como o
capítulo “40. Onde estávamos cem anos” ganham mais vitalidade com a mescla de
narrativa e drama, pois a exploração do texto teatral permite enxugar a narrativa de modo que
várias estórias sejam encaixadas umas nas outras sem que se perca o dinamismo do relato.
Essa peça do mosaico é composta de diversos estilhaços narrativos, pois a partir de um
instante do cotidiano, isto é, dos pensamentos de Henrique ao volante durante o
engarrafamento aparecem, pelo menos, mais duas estórias (a viagem de Henrique e sua
esposa à Itália e a estória do encontro amoroso dos avós de Henrique). Os parênteses são
usados fora do habitual na sinalização de encaixes de pequenas narrativas. Em outros termos,
enquanto a norma padrão rege que os parênteses isolam sintática e semanticamente indicações
acessórias, no capítulo em estudo, os parênteses foram empregados quatro vezes não para
isolar informações acessórias, mas para organizar as intercalações narrativas. Temos: a) como
estória-base -o Henrique no trânsito; b) entre parênteses convencionais ( ) – a viagem à Itália
e c) entre parênteses invertidos ) ( - a origem de Henrique. Entre essas idas e vindas do fio
narrativo, temos um alívio para o leitor a viagem de Henrique e a esposa à Itália mostrada
em forma de diálogo.
174
Tal recurso não concede mais vivacidade ao texto como permite a abordagem da
mudança de comportamento dos imigrantes estrangeiros em relação ao Brasil. Ao mesmo
tempo em que acompanha a viagem de Henrique e sua esposa, o leitor é alertado quanto ao
fato de que a situação político-social brasileira encontra-se tão caótica que imigrantes como
os italianos não mais vêem o porto de Santos como um bom investimento.
De modo semelhante, no último episódio do romance, o autor explora o diálogo para
alimentar o suspense narrativo bem como para tornar o leitor mais solidário aos sentimentos
de angústia e acomodação que afligem respectivamente à esposa e ao marido diante dos
gemidos do vizinho.
O dia-a-dia de São Paulo aparece marcado de sangue. Na maior parte dos capítulos,
não como apresentar a vida dos paulistanos, apagando as seqüelas da violência. O caos
urbano se impõe por meio dos mais variados sentidos: gemidos ouvidos, assaltos
testemunhados, tiros sofridos, mortos reconhecidos, enfim, o paulistano presente em Eles
eram muitos cavalos busca melhores condições de vida, mas enquanto segue abandonado pelo
poder público e pela elite, sofre as conseqüências diárias de uma cidade armada para a guerra.
No grupo Flagrantes de violência, deparamo-nos com a ditadura do medo regendo a
vida dos paulistanos. São estórias que desconhecem o final feliz e apresentam indivíduos
abatidos pelos rastros de sangue que teimam em impregnar suas vidas. O sinal de trânsito, por
exemplo, metaforiza as desigualdades sociais presentes na metrópole. Nele, sempre um
indivíduo da classe média que, em sua “bolha veicular”, aguarda a autorização para
prosseguir com os olhos grudados nos farrapos humanos vendendo balas e afins.
O policial também transita freqüentemente nas estórias e a ele são associados os
métodos escusos de investigação e punição. No capítulo “13. Natureza morta”, uma
denúncia do vandalismo típico de uma cidade em decomposição. Denúncia cuja força está,
175
entre outros aspectos, vinculada à valorização do código, pois tanto as marcas registradas
quanto o uso do diminutivo e mesmo a existência de uma seleção de objetos carregados de
ternura (desenhos, hortinhas, pipas) contrastando com a maldade revelam o quanto a
inventividade lingüística pode contribuir na construção concisa de um relato que, apesar de
curto, não se configura superficial. Aqui não temos apenas a estória de uma escolinha atacada
por vândalos, mas a denúncia do grave apagamento do sujeito.
Quando as crianças mostram a hortinha destruída a tia “(...) enterrados, brotos de
cenoura, beterrabas, alfaces, couves, tomates, tanto carinho desperdiçado, nunca mais
vingariam, as crianças caminhando, com cuidado, por entre os pequenos cadáveres verdes,
olhos baços (...)” (EMC, p.30) e sente “(...) a solidão e o desespero”. ela sabia quantas
naturezas infantis também não estariam mortas àquela altura, ninguém melhor do que ela para
temer que sua luta por um mundo com adultos melhores poderia ter se tornado inglória ali, em
face da agressão gratuita.
É justamente esse caráter imprevisível da violência que gera a síndrome do pânico e a
eterna preocupação com os familiares que assolam o morador de São Paulo. Constantemente,
os pais se vêem na mesma situação em que a mãe do capítulo “17. A espera”, ansiosos pelo
retorno de um ente querido e com pensamentos como “(...) não voltou ainda, nem telefonou,
Será que aconteceu alguma coisa meu Deus? (...) (EMC, p.40)
No capítulo20. Nós poderíamos ter sido grandes amigos”, a exploração do futuro do
pretérito mais o paralelismo sintático de algumas instâncias narrativas promovem uma
economia discursiva que enfatiza o quanto as perspectivas de cada indivíduo m-se tornado
escassas.
A violência gera uma série de pontos suspensivos nas estórias individuais. Os
personagens estão sempre muito abalados, à espera de alguém que pode não voltar ou ainda
176
estão nostálgicos pelo que não foi nem poderá ser vivido. Até o relato do seqüestro relâmpago
do vizinho seguido de morte, os verbos estão no futuro do pretérito, grifando que uma ação
futura ocorreria desde que uma condição tivesse sido atendida antes, ou seja, a amizade entre
eles tornou-se impossível por conta do não atendimento a uma condição básica: o respeito à
vida.
Depois que ele soube da morte do vizinho, os verbos passaram ao pretérito perfeito,
traduzindo a ação acabada. A chance de amizade entre eles também está acabada, ou melhor,
impossibilitada pela crueldade dos tempos modernos. Essa crueldade, por sua vez, não
aparece como um inimigo abstrato de origem desconhecida, pelo contrário, é apresentada
como o resultado matemático das desigualdades sociais e da falta de ética na política.
Em geral, os personagens não possuem nomes próprios, quando muito algum
codinome que simbolize a sina de cada um. Todavia, isso não implica uma representação
maniqueísta e estereotipada dos tipos sociais. No que diz respeito aos marginais, temos desde
Brabeza (cap. 19) que se deixa seduzir pelos apelos do consumo e, excluído do sistema social,
entrega-se ao crime, passando pelo Crânio (cap. 47), sujeito considerado esquisito na
comunidade por passar o dia lendo e não aceitar as regalias propiciadas pelo dinheiro do
tráfico, que se torna vítima da ação preconceituosa de policiais que o agrediram
irregularmente até infratores da classe alta e/ou responsáveis por chacinas urbanas.
Em algumas situações, vemos que enquanto as tragédias da vida real enterram
indivíduos, as tragédias reconstruídas no mundo ficcional de Ruffato desvelam seres
humanos, pois, se por um lado capítulos como o “9. Ratos” exibem bichos e pessoas
equiparados na composição de um mundo marginal, em outros capítulos, deparamo-nos com
o resgate de seres até então inaudíveis. Os loucos, por exemplo, são apresentados como
pessoas que não resistiram ao caos urbano e não como meros insensatos.
177
No capítulo “34. Aquela mulher”, vemos que alguns não nascem loucos, mas tornam-
se loucos por não sucumbirem à banalização da vida. O ser desgrenhado apontado por um
demonstrativo que assinala distância (Aquela mulher) pode estar muito próximo de qualquer
um de nós na condição humana, aliás, talvez seja genérico justamente por poder ser
preenchido por qualquer um que sobreviva a atos violentos.
Em termos estruturais, o paralelismo da estrutura “aquela mulher que se arrasta
espantalha por ruavenidas do morumbi (...)” (EMC, p. 70) marca a recorrência do ser humano
desprovido de dignidade vagando pelas ruas. Além disso, a seqüência de orações adjetivas
restritivas cujos termos acessórios e integrantes não foram ordenados por meio de vírgulas – e
ainda contêm neologismos como “ruavenida” – marcam a “dor que desatina”, o drama de uma
mãe de criança desaparecida. Esse dado, porém, só é revelado no meio do capítulo.
Na primeira parte, o leitor conhece uma mulher maltrapilha e desatinada como tantas
outras que vivem a perambular pelas ruas. na segunda parte, uma adversativa convida o
leitor a desvendar “aquela mulher”. Então, embora as frases rompam o alinhamento
tradicional, a preservação da logicidade sintática conduzindo o leitor à vida pregressa
daquela que se arrasta por “ruavenidas” e, em flash back, ficamos sabendo que “aquela
mulher” perdeu o juízo desde que “(...) a filha de onze anos não chegou da escola, o rosto
esbaforido na cozinha, mãe! (EMC, p.71)” e toda sua luta em busca de notícias sobre a filha
foi em vão.
178
3.1.2 A linguagem literária: fonte de experimentos e conservações.
De acordo com Luiz Ruffato, o mais importante não é a busca excessiva de inovações,
mas um uso criativo do código que permita a revigoração da linguagem literária. Nesse
sentido, quando analisamos o modo como o autor explora o vocabulário, sentimos uma
semelhança entre aspectos de sua escrita e a de Guimarães Rosa. Neologismos, resgate de
formas arcaicas, ou mesmo a exploração do caráter polissêmico das palavras constituem
traços de aproximação entre a escrita de Ruffato e a escrita roseana.
A seleção vocabular está acoplada ao perfil de cada personagem. Do evangelista
recebemos frases como “Irmãos! Elevem o pensamento aos Céus... orem comigo... irmãos! Ó
Senhor, eu... humilde servo... que nada sou, Senhor... que o simples vento aniquila... lhe
peço (...)” (EMC, p.59), repletas de termos bíblicos e com vocativo típico do discurso da
clemência religiosa. na voz da humilde Idalina, localizamos expressões como
“senvergonho passador da doença” (EMC, p.76) na referência ao marido que transmitira o
vírus HIV a sua amiga. Nesse personagem de linguagem popular, o “senvergonho” não
assume na grafia o processo lingüístico que, muito tempo, incorporou ao vocábulo a
preposição “sem” (fato chamado de lexicalização normalmente marcado, por um longo
tempo, na grafia padrão pelo uso de hífen “sem-vergonha”), como também expressa uma
concordância de gênero popular ainda considerada fora da língua culta, aqui no caso, marcada
com o masculino quando se trata de um comum de dois gêneros: “o sem-vergonha” e “a sem-
vergonha”. É importante ressaltar que, ao lado dessas indicações populares, ao longo do texto
vamos nos habituando à coexistência harmoniosa de frases que refletem esmero lingüístico
(“migalhas de seus sonhos esparramam-se nos ombros da velha” EMC, p.95) e de
179
ilustrações da linguagem coloquial (“No chat, eu faço o primeiro contato, me apresento, ali a
gente já sabe se somos ou não, digamos assim almas gêmeas”- EMC, p.116).
Mas não é em prol da caracterização dos personagens que atua a exploração do
código. Muitas vezes, a junção inusitada de certos sufixos a radicais já consagrados ou mesmo
a fusão de duas palavras num único vocábulo revitaliza a mensagem por conter indícios de
ironia ou mesmo por chamar mais a atenção do leitor para o tópico abordado. Mundogrande,
Sampaulo, simpaticão, discursama, uma ficha destamanho na polícia, novidadeira,
setemezinha, consertadeira de roupa, a desmundança, gemeção são apenas algumas
ilustrações da experimentação poética efetuada no plano lexical.
Conjugando os dados analisados com as propostas literárias de Luiz Ruffato e
Guimarães Rosa, percebemos que se, na superfície desse diálogo, uma identidade, na
verticalização do mesmo há uma forte diferença no tocante à contextualização. Em Guimarães
Rosa, o mundo é nascente, logo tudo precisa ser nomeado. em Luiz Ruffato, o mundo está
prestes a ruir, e a linguagem inovadora reflete essa desintegração.
Quando analisamos o modo como o autor exibiu sua leitura social sem perder o
dinamismo do relato, percebemos outras semelhanças entre o discurso de Ruffato e o de
alguns autores e movimentos que o precederam. Sentimos uma forte aproximação entre
alguns elementos de sua escrita e traços de James Joyce e até mesmo de vanguardas do
princípio do século XX, tais como o futurismo plástico. Se nos voltarmos para as cenas
construídas, encontraremos as aproximações entre os tipos de experimentos literários
praticados por eles na busca do movimento e da liberdade das palavras.
Similarmente ao que ocorre em Ulysses, de Joyce, em Eles eram muitos cavalos,
deparamo-nos com um largo emprego de frases e palavras evocativas. Ademais, numa
180
tendência mais futurista, uma alta incidência da parataxe, o que, obviamente, provoca uma
significativa diminuição do uso das preposições e/ou conjunções.
As falas dos personagens não aparecem aprisionadas na página e nela podemos
enxergar movimentos. A própria exploração dos tipos de fontes (para os caracteres de escrita)
e disposição do texto na macha gráfica promovem um simultaneísmo de ações, pensamentos e
cenas que nos remetem à apologia à liberdade de expressão contida nos Manifestos de
Marineti, principalmente no que se refere à tentativa de imprimir ao literário uma sensação
dinâmica.
A escrita do romance faz do negrito, do sublinhado e do itálico ferramentas
polivalentes. Em alguns contextos, esses três recursos grafovisuais servem para marcar a voz
narrativa; em outros, ora delimitam as instâncias narrativas ora sinalizam a colagem; em
outros lugares, assumem papel funcional de pôr em relevo o estado psíquico do personagem.
No capítulo “16. assim:”, a discussão de uma família sobre a situação sócio-econômica do
país é transmitida desta maneira:
não sou insensível à questão social irreconhecível o centro da cidade hordas de
camelôs batedores de carteira homens-sanduíche cheiro de urina cheiro de
óleo saturado cheiro de a mão os cabelos ralos percorre (minha mãe punha
luvas, chapéu, salto alto para passear no viaduto do chá, eu, menino,
pequenininho mesmo, corria na) este é o país do futuro? Deus é
brasileiro? Onde ontem um manancial hoje uma favela onde ontem uma
escola hoje uma cadeia onde ontem um prédio do começo do século
hoje uns três dormitórios suíte setenta metros quadrados (EMC, p.36 e
37)
Os caracteres e os recursos de destaque tipográfico são tão variados quanto
diversificadas são linhas de raciocínio presentes no texto. O negrito indica a memória
enquanto as fontes Times New Roman e Arial acrescidas das formas redonda ou itálica
distinguem constatações do presente e reflexões sobre o futuro.
181
Luiz Ruffato possui uma concepção ficcional distinta do ponto de vista de Marineti,
pois não apresenta a intensa destruição da sintaxe o tempo todo, nem pratica o completo
apagamento dos adjetivos, advérbios e até mesmo da pontuação; da mesma forma que,
ideologicamente, não glorifica a guerra ou se revolta contra museus e afins. Todavia, se no
lugar de “semelhanças literárias” pensarmos em reaproveitamento crítico de certos princípios
literários, iremos enxergar resquícios futuristas no texto do autor.
Em Eles eram muitos cavalos, a sintaxe não foi destruída, mas aparece de modo muito
peculiar, posto que o forte apelo à imagem, por meio dos planos sonoro-visuais, promove uma
série de transgressões aos critérios de ordenação das palavras em língua portuguesa. Em
muitos casos, a descontinuidade predomina sobre a ligação, sem falar na redução progressiva
de sentenças e palavras, cujo efeito estilístico permite-nos relacionar a concisão da linguagem
à velocidade dos tempos modernos. Quando visualizamos reduções tais como “quem não tem
olhos pra ver” (EMC, p,12) para “não tem olhos pra ver” (EMC, p,12) ou mesmo a cobertura
de extensas faixas temporais na diacrônica transformação do indivíduo sendo apresentadas
por meio de trechos como este:
há seis anos escorria sua pálida magreza pelas poucas sombras
das ruas tristes de muriaé cidade triste
há cinco anos vestia-se com as primeiras neves de fairfield ohio
graças a uma bolsa do american fields ganha em concurso promo-
vido pela loja do rotary club de muriaé cidade triste
há quatro anos arranhava suas incertezas no citibank
suas certezas no citibank
há dois anos ganha dinheiro pro
o velho não vai deixar porra nenhuma pra mim
há um ano cuida do caixa-dois da corretora
vai ficar tudo pros
Podemos associá-lo a este fragmento do suplemento do Manifesto Técnico da
Literatura Futurista, de Marineti (IN: TELES, 1972, p.77):
182
7. As palavras livres de pontuação se irradiarão umas sobre as outras, entrecruzarão seus
magnetismos diversos, seguindo o dinamismo ininterrupto do pensamento. Um espaço
branco, mais ou menos longo, indicará ao leitor as pausas ou os sonos mais ou menos
brancos de intuição. Suas letras maiúsculas indicarão ao leitor os substantivos que
sintetizam uma analogia dominadora.
Com base em tal associação, constatamos que, no texto de Ruffato, as sentenças foram
organizadas por meio do paralelismo sintático e do deslocamento da frase na página e não por
conta dos sinais de pontuação atualmente empregados. Ainda que as palavras não apareçam
livres e estejam agrupadas em sintagmas nominais e verbais, as sentenças encontram-se
levemente soltas e, ao irradiarem-se, entrecruzando seus magnetismos diversos, conseguem
dar uma impressão de real ao relato conciso da trajetória do personagem que, em questão de
segundos, surge dinamicamente diante do leitor como alguém que progrediu
economicamente, mas que não conseguiu crescer em termos éticos. As pausas que marcam as
incertezas e certezas no Citibank atiçam a intuição do leitor para refletir sobre as mazelas do
mercado de trabalho.
No que diz respeito ao uso de maiúsculas, vimos que, se no Futurismo elas eram
usadas com muita liberdade de expressão, em função de sua capacidade de realçar uma idéia,
nesse excerto, o uso da minúscula cumpre função parecida, pois uma exploração artística
do vocábulo em dissonância com as normas gramaticais atualmente preconizadas pela NGB,
traduzindo-se em mensagem. Não seria gratuita a referência à cidade e às grandes potências
capitalistas com letras minúsculas: rotary club, citbank nomeiam instituições que têm poder
de opressão e esmagamento do indivíduo na vida real; já, no âmbito do texto ficcional, são
substantivos comuns.
Além disso, o uso de minúsculas no início de cada frase também marca uma mudança
formal. Ao invés de se preocupar em dar conta de blocos de idéias, tal como no caso dos
parágrafos, o texto acompanha o estado dos personagens.
183
Em Eles eram muitos cavalos, paralelo ao diálogo com os escritores já consagrados no
cânone literário, encontramos um jogo lingüístico que, antes de estar vinculado à pura
experimentação, visa ao despertar do leitor para as informações oblíquas do texto. Dentro
dessa perspectiva, o convencional é colocado em xeque para que do confronto entre a ruptura
e a tradição nasça a expressividade do discurso.
No caso específico da pontuação, dizer que o autor renega a norma padrão seria uma
afirmação simplista sobre o assunto. Na maior parte dos casos, o que ocorre é uma oscilação
entre a reprodução da norma padrão e uma utilização personalizada de certas regras
preconizadas pela norma padrão vigente. Muitas vezes, a variação está circunscrita aos sinais
empregados, não incluindo os parâmetros sintáticos, prosódicos e estilísticos preconizados
pela NGB.
Raros são os fragmentos desprovidos de pontuação. Em verdade, quando analisamos a
pontuação praticada por Ruffato, temos que ter bem clara a diferença entre os sistemas de
pontuação e os elementos que concretizam seus princípios, isto é, os sinais. O sistema de
pontuação da língua portuguesa é pautado em princípios prosódicos e sintáticos e, para marcar
as indicações desse sistema dispomos de uma série de sinais. Se, sob vigência de um princípio
prosódico, quisermos marcar uma pausa forte, empregaremos a vírgula; entretanto, se
necessitarmos, sob orientação de princípios sintáticos, marcar um aposto enumerativo,
poderemos empregar os dois-pontos, e assim por diante.
Tanto o sistema de pontuação atual quanto os sinais que o concretizam obviamente,
distinguem-se daqueles que predominavam em séculos anteriores. No século XVIII, por
exemplo, o espaço vazio, o recuo de linha à esquerda ou ainda um intervalo na mesma linha
figuravam como sinais organizadores de sentenças. Essas distintas marcas não eram gratuitas,
184
inclusive porque segundo Roger Laufer (apud: MARQUILHAS, 1991), a pontuação
gramatical tinha uma função estético-visual.
Nesse sentido, em face da pontuação existente no romance-mosaico, o primeiro
cuidado que devemos ter é o de separar o respeito ao sistema de pontuação vigente somado ao
emprego de sinais não convencionais (deslocamento na página, itálicos, disposição
entrecortada de frases na mancha gráfica) do desrespeito ao sistema de pontuação vigente
propriamente dito. Isso porque, muitas vezes, a experimentação ficcional do autor, no lugar de
promover uma ruptura com as regras vigentes, faz uma leitura criativa da mesma. casos,
inclusive, em que a pontuação expressiva (ponto-de-interrogação, ponto-de-exclamação,
reticências), por si só, satisfaz o projeto literário do autor, não ocorrendo nenhum desvio da
norma padrão. Como também casos em que, embora a mancha gráfica induza à conclusão
de ruptura com os princípios sintáticos do atual sistema de pontuação, a leitura corrida dos
termos revela uma forte obediência aos mesmos.
No capítulo “7. 66”, por mais que a disposição não-convencional das sentenças na
mancha gráfica leve-nos à suposição de desrespeito das normas gramaticais, podemos
perceber que o autor respeitou os princípios sintáticos vigentes, empregou os sinais
registrados na NGB (ponto final, parênteses e dois-pontos) e fez apenas uma substituição da
vírgula pelo deslocamento de sentenças para direita:
A vibração do número de hoje estimula a realização dos
aspectos materiais da vida
(mais dinheiro e prestígio)
pode contar com a ajuda de
um amigo influente
pode receber uma promoção
ou herança:
o momento é para ser prático
e objetivo.
185
A disposição dos grupos de elementos na página acaba por ressaltar a mensagem. À
esquerda, temos os recursos com os quais o sujeito pode contar (amigo influente e herança); à
direita, as ões possíveis (poder contar e poder receber); mais centralizada, a conclusão
necessário ser prático e objetivo). Eis uma organização dos termos na página hierarquizada por
meio de deslocamentos espaciais e que imprime uma função estético-visual à pontuação.
No capítulo “34. Aquela mulher”, os dois-pontos ocupando sozinho uma linha inteira
marcam uma mudança importante no enredo, pois introduzem a explicação da loucura de “aquela
mulher” que nem sempre fora assim.
Esse deslocamento espacial dos termos cumprindo o papel da vírgula para marcar
enumerações aparece freqüentemente no romance. Em raros casos, o autor soma à vírgula o
deslocamento:
(...)e suborna a polícia,
o delegado,
o dono da boate,
as garotas de programa,
os leões-de-chácara (...) (EMC, p.12)
De modo predominante, o autor acaba substituindo o sinal convencional por uma
inovação na mancha gráfica:
(...) ouve o rangido do portão
o motor do Chevette
cães que latem
passos na calçada
vozes
um ônibus que arranca
o rangido do portão
o motor do Chevette
vozes (...) (EMC, p.27)
Quando tenta reproduzir as marcas da língua falada, o autor emprega reticências e afins tal
como se estivesse fazendo uma transcrição de entrevistas. Com isso, mostra ao leitor que os
recursos gráficos disponíveis na língua estão à serviço da obra de arte e não o contrário. Ele se
permite inclusive, importar regras ou sinais, se isso der mais vigor ao enunciado. É o que faz, por
186
exemplo, com algumas sentenças interrogativas, ao registrá-las, aproveitando-se de um traço do
sistema de pontuação da língua espanhola. No capítulo “21. Ele)”, o Office-boy, desassossegado,
inicia uma série de questionamentos sobre o dia:
?o vento embalou as nuvens no céu ou elas regaram mansamente o asfalto?
?um motoboy se esparramou na faixa-de-pedestre?
?um executivo espancou um menino-de-rua com laptop?
?um cobrador impediu um assalto?
?O mundo, o mundo acabou? (EMC, p.47)
O princípio espanhol de marcar as interrogativas duplamente (no início e no final da
frase) foi aplicado pelo autor, mas o sinal de interrogação colocado no início da fraseo foi
invertido tal como ocorre no castelhano. No lugar de ¿, manteve-se o ?. Este dado vem
ratificar a hipótese de que, para o autor a noção de certo e errado, ou mesmo de ruptura e
tradição, não se sobrepõe ao efeito estilístico. No fragmento em análise a dupla marcação de
interrogativas não sinaliza um questionamento corriqueiro. A marcação forte combina com o
grau de inquietude do Office-boy que, frustrado com a inexistência de fatos que
desestabilizem o seu cotidiano, ao verificar que o mundo não acabou e as posturas sociais
continuam as de sempre, volta ao microcomputador e enredado em seu dia-a-dia massificador,
“atraca-se ao asdfgçlkh” (EMC, p.48).
3.1.3 O mundo ficcional em tela profunda
A partir de uma seqüência não-fechada de 70 estórias, a obra capta um olhar múltiplo
e distanciado e, tal como grifa Renato Cordeiro Gomes (2004), constrói a cidade a partir do
relato. Alguns pensamentos dos personagens são como projeções de películas que somados à
diversidade de gêneros e formas narrativas privilegiam o aproveitamento de duas forças do
187
cinema moderno no que diz respeito à ilusão da reprodução da vida tal como ela é: sua
capacidade de captar o objeto em movimento e a visão do mesmo em profundidade.
De acordo com Jean-Claude Bernadet (2000, p.20), “A história do cinema é em grande
parte a luta constante para manter ocultos os aspectos artificiais do cinema e para sustentar a
impressão de realidade.” E, neste romance-mosaico, assistimos ao mesmo tipo de luta, que
neste caso, os aspectos artificiais a serem ocultados estão ligados à figura do narrador e às
clássicas estratégias ficcionais de organização das partes de um romance.
Importa-nos, contudo, destacar que, embora busque a representação da cidade de São
Paulo nos seus mais distintos ângulos e matizes, Luiz Ruffato não contempla a reprodução
mimética da sociedade paulistana. Ele renega a idéia de uma verdade absoluta, por entender
que a “verdade” constrói-se na inter-relação dos mais distintos olhares. Ainda conforme
Cordeiro (2004), o realismo documental aprisiona o real de modo reducionista, sobretudo
num tempo em que o sujeito pós-moderno enfrenta o grande mal-estar de se deparar com um
contexto sócio-político caótico e capaz de lhe minar as boas perspectivas. Sendo assim, em
períodos de inquietudes, o como narrar mundos organizados ou mesmo proclamar
respostas, restando como saída para a narração o procedimento que Piglia (2001) define como
a narração por deslocamento, isto é, no lugar de se dizer algo diretamente, o autor deve
sugerir, fazer com que o leitor veja e entenda, posto que o fruto dessa visão indireta deixará
marcas mais profundas no interlocutor. Esse projeto de escrita, ao invés de renegar o
ideológico, escamoteia-o.
Partirmos deste estudo sobre narrativa por deslocamento na obra de Ruffato elaborado
por Cordeiro (In: DIAS, 2004), para, então, analisarmos como a obra Eles eram muitos
cavalos constrói as tensões entre realidade e ficção. Para tal, observamos também a influência
188
do cinema moderno no romance bem como localizamos passagens descritivas cuja estrutura
assemelha-se à teoria de ambientações proposta por Osman Lins (1976).
No romance-mosaico de Ruffato, via de regra, uma tentativa de minimizar uma das
limitações da descrição: a impossibilidade de representar simultaneamente os objetos que no
espaço se encontram justapostos. Em nome disso, surge uma intensa relação entre espaço,
personagem e narrador resultante do emprego das três ambientações postuladas por Osman Lins
(1976): a) a reflexa aquela em que a voz narrativa encontra-se em terceira pessoa, mas o ponto
de vista expresso é o de um personagem cujo olhar aparece reflectorizado na descrição, b) a
dissimulada a que o narrador aproveita-se do caminhar do personagem para exibir o espaço no
qual o mesmo se encontra e c) a franca a que, realizada conforme os moldes tradicionais, es
impregnada de simbologia.
Tudo isso não aproxima literatura e cinema, no tocante à simultaneidade de funções
como contar e mostrar como também é capaz de tornar o relato polifônico. Segundo Barbosa
(2001, p. 146):
A focalização do espaço pode ocorrer pelo narrador ou pelo personagem. No primeiro caso, isso é obtido ora
pela ambientação franca que dissemina algumas simbologias e críticas ao longo da narrativa (...), ora pela
ambientação dissimulada que “camufla” o ponto de vista do narrador e concede verossimilhança à inserção do
elemento descritivo. Já, no segundo caso, a focalização resulta da ambientação reflexa que, além de fornecer
dinamismo à narrativa, pluralizando os olhares sobre o objeto, expõe estados da alma.
O capítulo “4. A caminho”, além de ser o primeiro dotado de um enredo ficcional com
estrutura semelhante a do conto, contém uma liberdade formal que perpassa toda a obra.
Conforme vamos avançando a leitura, fica cada vez mais forte a sensação de que os capítulos
do livro figuram como partes móveis de um grande ideograma e, por meio dos vários
estilhaços de real, verificamos o quanto a influência do cinema moderno se faz presente na
obra, principalmente, porque não uma voz panfletária a apontar as mazelas sociais de São
189
Paulo. Ao invés disso, vozes diversas (de crianças, de mães, trabalhadores, assaltantes,
empresários etc.) que, por deslocamento, sugerem ao leitor que a ligação entre os personagens
desse mosaico, tal como destaca Cordeiro (In:DIAS 2004), deve-se basicamente a três fatores:
o medo, a violência e a cidade de São Paulo.
O capítulo “6. Mãe” trata da viagem de ônibus que uma mãe enfrenta do interior até a
cidade de São Paulo para matar a saudade de seu filho. O enredo é simples, o seu
desenvolvimento, porém, traz a complexidade inerente ao tratamento do espaço como reflexo
do interior dos personagens.
O texto é dividido em seis blocos separados pela conjunção aditiva E e pelas seguintes
frases que se alternam: “o motor zunindo dentro do ouvido (zuuuummmm)” e “cuidado
cuidado cuidado cuidado cuidado cuidado”. Em todos os blocos, por meio da descrição do
espaço, o interior do personagem mãe se torna transparente aos leitores, pois, tal como numa
cena cinematográfica, as ambientações reflexa e dissimulada foram exploradas de modo que o
narrador em terceira pessoa trouxesse o ponto de vista de alguém envolvido diretamente na
trama.
O ambiente descrito traz à tona o que esse personagem pensa a respeito do local
focalizado. Dentro do ônibus, muito incomodada com a conduta do motorista e as condições
da viagem, a mãe não consegue dormir e a descrição feita pelo narrador reflete todo o seu
incômodo:
(...) o empestado ar de janelas fechadas, vidros suados, no soalho,
esparramados, papéis de bala, de bolacha, guardanapos, sacolas, palitos de
picolé, copos descartáveis, garrafas plásticas, farelo de biscoito-de-polvilho, de
pão, de broa, farinha, restos de comida, pé de sapatinho de crochê azul-menino,
noitedia, E gente inda consegue dormir, meu Deus, a bocona jacaroa, até
ronca!, até baba!, comé que?, embaralham-se distintas paisagens, cidades
enoooormes, cidadezinha que, zum!, passou, (EMC, p.16)
190
Se havia alguma dúvida que o ônibus estava sendo focalizado por um de seus
passageiros, a partir da marcação em itálico a mesma se dissipa, pois seja este fragmento uma
fala da personagem, seja este um exemplo de discurso indireto livre, o que importa é o fato de
tal sentença ratificar a reflectorização do olhar. Ademais, as frases seguintes apenas anunciam
as seqüências de ambientações dissimuladas e reflexas que estão por vir, pois, a partir desse
ponto, aparecem quatro blocos textuais compostos por uma enumeração de substantivos
justapostos que podem ser lidos como instâncias do texto, se entendermos que tais listas de
palavras dão conta do que a senhora em viagem vê e sente da janela do ônibus.
Também é por deslocamento e por meio da ambientação reflexa que o leitor toma
conhecimento do tédio vivido pela mulher do capítulo 10. No lugar de discursos feministas,
temos a focalização indireta do cotidiano de uma mulher proletária como denúncia de suas
frustrações:
A mulher pastoreia os olhos sonados por entre a fumaça azulada que
se dispersa próximo à lâmpada de quarenta velas acesa.
A vizinhança espreguiça-se
uma discussão, logo abortada
uma porta que se fecha
um rádio ligado
cachorros que latem
a porta de aço descerrada da padaria
passos rápidos na calçada
um bebê que esgoela
uma sirene, longe “polícia”?
O ônibus encosta, os passageiros apressam-se, arranca e eu decidi que
não quero mais essa vida pra mim não não quero
(O marido, impaciente, “Vou acabar perdendo a hora”,
Mas...
Cansei nada vale tanto sacrifício (...) (EMC, p.24-25)
O narrador é predominantemente de terceira pessoa, mas o ponto de vista é o da
mulher frustrada. Todos os sentidos explorados revelam o ponto de vista de alguém
191
diretamente envolvido na trama. É ela quem ouve os barulhos da manhã (choros, sirenes,
discussões), quem vê a porta da padaria, quem sente os passos rápidos na calçada, em síntese,
quem experimenta aquela manhã cinzenta já nada desejada.
Em outras situações, o personagem não apresenta alto grau de criticidade a respeito de
seu contexto, mas empresta o seu caminhar para que, sem suspender o fio narrativo, o
narrador apresente as várias gentes e espaços da cidade de São Paulo. É o que ocorre, por
exemplo, nos capítulos “21. ele)” e 22.(ela”. No primeiro, o caminhar entediado do
funcionário do escritório torna plausível e harmônica a inserção de vários elementos
tipicamente paulistanos (multidão da Avenida Faria de Lima, motoboy esparramado na faixa
de pedestres etc.) enquanto no segundo, a menina Tão leve em seus dezesseis anos,
cirurgicamente branco levita o tênis milímetros das pedras portuguesas que a Rua Direita
forram” e do seu caminhar vão emergindo os ônibus nas praças da e do Patriarca, o
Viaduto do Chá, a encruzilhada das Ruas Conselheiro Crispiniano com a Vinte e Quatro de
Maio, o Largo do Paissandu, enfim, toda a vida do centro daquela grande metrópole.
Embora a influência do cinema e da narração por deslocamento sejam mais visíveis
nas descrições espaciais, elas também são de grande valia na justaposição de imagens e/ou de
cruzamentos de mundos sociais. No capítulo “52. De branco”, a ordenação temporal, que é
característica do texto narrativo, posto que o descritivo dispensa a ordenação cronológica dos
termos, aparece obliquamente, o que contribui para o tratamento de fatos simultâneos tal
como ocorre nas telas cinematográficas. O leitor fica sabendo junto com o Dr. Fernando que o
jovem ferido era o assaltante que invadira a sua casa e, enquanto são justapostas cenas do
assalto com as cenas do centro cirúrgico, o leitor não vai tomando ciência da decisão do
médico de não salvar essa vida como vai, por si só, construindo seu juízo sobre o ocorrido.
192
Por meio dessa justaposição de cenas, temos o centro cirúrgico captado em movimento
e em profundidade. Em movimento, porque o relato começa no deslocamento da equipe
médica, passa pelos procedimentos iniciais até chegar à crise do Médico diante de suas
lembranças. Além disso, o centro cirúrgico é captado em profundidade, porque o mesmo
evento é visto por múltiplas perspectivas, isto é, temos: a respiração convulsa do paciente, os
olhos hipnotizados da instrumentadora, o silêncio do anestesista, a contrariedade do residente
e a revolta de Dr. Fernando.
São cenas como essa que, distintamente da representação que se quer direta do real,
instauram o jogo ficcional que transcende os episódios do cotidiano e devolve o leitor, mais
amadurecido, para o enfrentamento de suas grandes questões do mundo real. Em Eles eram
muitos cavalos, o ato de narrar imprime um sentido ao mundo: os graves problemas sociais
que oprimem os habitantes de São Paulo são abordados de modo a tornar a dor inédita e não
uma simples reprodução, pois a escrita do romance não é impermeável à realidade profunda.
193
3.2 Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios : angústia e desencontros
amorosos entrelaçando texto & contexto.
A tarefa da literatura continuará a ser, agora como antes,
a de atingir e a de trazer na palavra a raiz das coisas onde
se deposita a raiz do homem. (Luiz Costa Lima)
Marçal Aquino é um escritor que cultiva estreitas relações entre o cinema e a literatura.
Paulistano, nascido em 1958, jornalista, tornou-se um roteirista conceituado bem como
conquistou o respeito da crítica literária e alguns prêmios com suas obras de ficção. O autor não
se inspirou em seus roteiros para suas criações ficcionais como também escreveu roteiros a
partir de seus livros. Na edição do livro O Invasor (1991), publicada pela Geração Editorial, o
leitor tem acesso não só ao texto literário como ao roteiro de cinema do filme de mesmo título.
Em diversas entrevistas, Aquino insistiu em esclarecer que entende roteiro e obra
romanesca como artes autônomas, em outras palavras, enfatizou que suas criações para o cinema
não são meras adaptações de livros e vice-versa. Para cada tipo de produção, ele adota uma
estratégia artística específica. O que, no entanto, não nos impede de sentir os reflexos desta
“dobradinha profissional” em seu texto literário, pois muitos de seus livros contêm uma escrita
arrojada e várias técnicas de ordenação dos fatos narrados à moda cinematográfica moderna.
Antes de selecionarmos o seu último romance como objeto de análise, pensamos em
vários outros títulos seus. Trabalhar com Cabeça a prêmio (2003) talvez fosse interessante em
função das narrativas paralelas exploradas pelo autor, seus livros de conto também nos
interessaram em função da abordagem do cotidiano e da violência; Faroestes (2001), por
194
exemplo, é tido por alguns críticos como uma radicalização dos processos anteriores, em Miss
Danúbio (1994), teríamos ainda um dos contos que deu origem ao filme Os matadores, enfim, na
vasta produção juvenil e adulta do autor, percorremos vários títulos até optarmos pelo romance
Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005), uma obra de título longo, tão ao
gosto desse autor.
Depois de criar títulos como Por bares nunca dantes naufragados (1985), O amor e
outros objetos pontiagudos (1999), Famílias terrivelmente felizes (2003), Marçal Aquino, mais
uma vez deixa que sua paixão por palavras e expressões se reflita na nomeação de suas obras. Em
entrevista a Luiz Ruffato na série “Livro Aberto”, promovida pelo Cultural EMERJ
11
, ele
explicou que boa parte de seus tulos surgem em sua cabeça antes da concepção da estória. A
frase “Eu receberia as piores notícias de seus lindos bios” veio à mente de repente. Ele passou
um bom período pensando nela até que julgou ser este o título ideal para uma estória de amor.
Quando um dos primeiros leitores de seus originais, o escritor Rubem Fonseca, terminou a
leitura do romance, disse a Aquino: “O título está errado, o romance deveria se chamar Lavínia”.
Mesmo respeitando a opinião do amigo e depois reconhecendo a falta de apelo comercial, Marçal
Aquino teimou em considerar sua intuição até que, com o apoio de Schwarcz, publicou seu
romance pela Companhia das Letras em 2005.
Na época de seu lançamento, a crítica Paula Barcelos posicionou-se no Caderno Letras &
Idéias do Jornal do Brasil (28/10/2005) positivamente à obra:
Quando completa 20 anos da publicação de seu primeiro livro (Por bares nunca dantes
naufragados), Marçal Aquino se presenteia - e conseqüentemente aos leitores - com uma
11
Essa entrevista aberta ao público teve lugar no auditório da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, no dia
04/09/06. Nessa ocasião, foi possível assistir não a considerações do autor sobre o romance, bem como a uma
leitura dramatizada do conto “Uma família terrivelmente feliz”.
195
obra que surge como divisor de águas em sua carreira. Eu receberia as piores notícias de
seus lindos lábios está longe de ser a continuação de uma estrutura narrativa de sucesso -
ao menos de público - de O invasor ou Cabeça a prêmio. O mundo dos crimes por
encomenda, dos pistoleiros, do ciúme não é mais o foco. Tornou-se pano de fundo. O
rótulo de escritor de romance policial (sem querer desmerecer o gênero) não é mais
suficiente para definir sua literatura - caso o mundo literário fosse passível de definições
únicas e eternas. É o momento em que livro invade a carreira do autor com a força de seus
antigos personagens matadores e a audácia dos que mandavam matar.
- É uma celebração íntima. Deixei que a história fosse para o papel. Foram três anos
escrevendo. Considero este meu primeiro romance. Os outros são novelas - revela Aquino.
(...)
No que diz respeito à estrutura do romance, o que mais influenciou nossa escolha foi o
fato de este romance não estar tão carregado de técnicas cinematográficas e/ou narrativas
exaustivamente fragmentadas. Não que julgássemos pejorativamente tais estratégias literárias. O
juízo de valor não foi o critério adotado, pensamos sim na variedade que poderíamos imprimir ao
nosso corpus.
Embora não seja objetivo nosso fazer um inventário das representações da realidade
praticadas na virada do século XX para XXI –e de suas relações com a escrita de uma literatura
marcada pela angústia – não gostaríamos de passar, ainda que acidentalmente, a falsa idéia de que
os romances desse período se ocupam sempre de uma complexa justaposição de cenas e de partes
narrativas ou ainda de amalgamentos entre o real e o imaginário. Trabalhar com um romance que,
apesar de apresentar marcas contemporâneas do diálogo entre cinema e literatura, contém um
resgate da valorização do enredo tão praticada em movimentos literários do passado, contribuiria
com mais força para a nossa tarefa de estudar a unidade (representação da realidade no final do
século XX e início do XXI relacionada a uma literatura da angústia) a partir da variedade (as
várias formas de concretização de tal representação).
Em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005), a menor exploração de
recortes arrojados, a ausência de uma exacerbação das técnicas cinematográficas mais o respeito
à mancha tipográfica convencional podem causar a ilusão de estarmos diante de uma simples
196
estória de amor. No entanto, a ordenação dos fatos, a mescla do silêncio com a palavra, o diálogo
discreto com a Tragédia, a exploração do erotismo vão progressivamente dando corpo a uma
narrativa forte, ambígua, que sabe denunciar as mazelas sociais e simultaneamente seduzir o
leitor em torno dos encontros e desencontros de Cauby e Lavínia.
3.2.1 O tom trágico de alguns personagens
A composição de Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, sobretudo no que
diz respeito à trajetória dos personagens, traz as marcas do diálogo entre a tradição e a
modernidade, pois os personagens são construídos a partir do aproveitamento de elementos da
Tragédia- gênero complexo que, ao longo dos anos, tantas discussões tem fomentado.
Apresentando considerações sucintas acerca da Tragédia, em seu Dicionário de Termos
Literários (1999), Massaud Moisés traça um histórico sobre as várias concepções do termo, para
finalizar o verbete, declarando que a tragédia trata do destino do homem. Mesmo na
modernidade, despido de sua roupagem clássica, sem herói de elevada estirpe que trace uma
árdua luta contra a inexorabilidade do Destino, no texto trágico sempre um imprevisto, uma
mudança de sorte gerando a infelicidade. Esse foi o ponto explorado por Marçal Aquino em seu
romance.
O texto de Marçal Aquino não reproduz na íntegra as características da Tragédia Clássica,
pois o trata de “seres de caráter elevado” nem apresenta deuses no comando do destino do
homem. Além disso, a estrutura do romance não apresenta as partes comuns ao texto trágico
(prólogo, párodo, episódios, estasismos e êxodo) bem como é destituído de coro. Apesar disso, a
197
obra é marcada por um tom trágico que, se por um lado não viabiliza uma estreita relação com a
Tragédia Clássica, por outro, aproxima-a da Tragédia Moderna postulada por Raymond Williams
(2002).
Contrariando a corrente teórica que desconsidera a possibilidade de experiência trágica
nos tempos modernos, Raymond Williams propõe uma nova leitura do trágico nos tempos atuais.
Segundo Williams (2002, p.59):
A tragédia é então fundamentalmente associada às grandes crises do desenvolvimento
humano: o conflito grego entre “homem e destino” e o dualismo do homem na renascença.
Crises comparáveis são recorrentes, e na tragédia moderna o conflito se estende à própria
Idéia: “não apenas nas relações do homem como os conceitos morais devem ser debatidas,
mas também a validade daqueles conceitos morais.” (...)
Seguindo essa linha de raciocínio, o crítico apresenta a Tragédia Moderna como o conflito
entre o indivíduo e os limites que se impõem à vitória, entre ele e as forças que o destroem.
Menciona também as ressonâncias dos temas românticos (a sina do inadaptado, a dissolução do
eu) na Tragédia Moderna e, a partir desses argumentos, aborda a opção do homem
contemporâneo por uma vida fragmentada, mostrando que tal opção deixa graves seqüelas na
vida do sujeito e na de sua sociedade. As doenças sociais geradas pela valorização da
fragmentação geram uma legião de homens arruinados pelo poder e com tendências
autodestrutivas, o que, por sua vez, provoca uma série de colapsos individuais e sociais.
Em tais circunstâncias, o homem é dilacerado pelo sofrimento, mas nem sempre a
morte física como redenção. Muitas vezes, está na morte em vida a chance última da revolução.
Em Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, Cauby experimenta toda essa sorte de
tensões e a força do destino inexorável pontua o texto sob novos paradigmas. Seu destino trágico
não é comandado pelos deuses que, aliás, são retomados no texto ironicamente mas pelos
diversos conflitos sociais por ele vivenciados. As forças que o destroem derivam dos princípios
morais falidos, da hipocrisia social.
198
Desde o início da estória, uma espécie de mau presságio preenche a cena. Seus
personagens são impotentes no tocante à mudança de rumo de suas vidas. Cauby vive à mercê de
um amor destrutivo, Lavínia não consegue desvencilhar-se do lado negro de sua personalidade, o
Pastor é arrastado ao submundo por seu amor à Lavínia, ou ainda, por seu compromisso com a
conversão dos indivíduos. Até mesmo os personagens secundários são submissos às forças do
destino. Seu Altino não conseguiu se desvencilhar nem mesmo de suas memórias de um amor
platônico.
Na construção desse duelo entre os personagens e seus destinos, vários elementos foram
explorados. O espaço acompanha a sorte do elenco, ora mais iluminado, ora permeado de ventos
e sombras e o zodíaco relembra, de modo bem humorado, a “força dos Deuses”, alguns deuses
clássicos e outros inventados (Cronos, Urano) são, inclusive, citados ao longo do romance. Além
disso, a precisão da escrita de Aquino: frases objetivas e curtas seguem costurando as cenas
rememoradas por Cauby e aguçando o olhar do leitor.
Como o discurso memorialístico predomina no romance, a noção de presságio, por vezes,
pode se tornar comprometida. Em outras palavras, o leitor deve ter o cuidado de diferenciar
quando os dados textuais estão a serviço de uma premunição e quando apenas integram as
lembranças de um narrador ardiloso que, com o objetivo de manter o suspense da trama, faz
revelações homeopáticas sobre o seu passado.
Na primeira página do romance, o leitor se depara com o seguinte comentário do narrador:
Não adianta explicar. Você não vai entender.
Às vezes, como num sonho, vejo o dia da minha morte. É uma coisa meio espírita, um
flash. E, embora a mulher não apareça , sei que é por causa dela que estão me matando. E
199
tenho tempo de saber que não me deixa infeliz o desfecho da nossa história. Terá valido a
pena (ERPNLL, p11)
O leitor de primeira viagem, de fato, talvez não entenda muito bem. Talvez acredite tratar-
se de um forte pressentimento, no entanto, quem reler o romance, de imediato, perceberá que
Cauby está se referindo ao dia de seu linchamento, será capaz de interpretar os verbos ver e
matar numa concepção menos usual. Seu sonho refere-se as suas lembranças e quando diz ver o
dia de sua morte, está revivendo seu grande sofrimento. Também não é exagero dizer que pessoas
o estão matando. Apesar da sobrevivência física, o espírito e o psicológico jamais se recuperaram
do trauma sofrido. Numa perspectiva Fênix, Cauby sobreviveu às injustiças dos beatos da cidade,
retornou das cinzas, mas com seqüelas físicas e espirituais que o transformaram em outra pessoa.
Se o leitor tiver o hábito de ir coletando as pistas textuais, também pode ser que chegue a
conclusões semelhantes antes mesmo de fechar o livro, pois, em outras passagens, o narrador
retoma esse tema, sinalizando com mais ênfase essa questão da memória. Ele diz: Às vezes, eu
disse, vejo o dia da minha morte. Não é um sonho, é real. Um flash que me atormenta.”
(ERPNLL, p.23).
Na verdade, o narrador brinca com o leitor mesclando sonhos e lembranças, desvelando,
assim, seus medos e angústias. Depois de descobrir que estava envolvido com a mulher do
Pastor, Cauby concluiu que sua transgressão não passaria impune na sociedade à que pertencia e
passou a ter constantes pesadelos com um homem que se aproximava com violência para e
adverti-lo quanto ao erro de se envolver com a “mulher dos outros”. Em uma abertura de
capítulo, temos:
Estou andando pela rua e me aproximo de um estranho que, sem mais nem menos, saca
um estilete comprido e começa a me golpear na barriga. Sinto a dor, ouço o sujeito dizer
entredentes:
Pra você aprender a não folgar com a mulher dos outros.
200
Um sonho, claro. Apenas um sonho que tive. A coisa não acontecerá desse jeito. É
improvável. (ERPNLL, p.63)
Além de refletir os sentimentos de Cauby, o trecho ainda tem o mérito de acenar para
possíveis desfechos da estória e atiçar a curiosidade do leitor.
A forte idéia de presságio acaba aparecendo com maior freqüência nas passagens de
zodíaco e nas descrições do ambiente:
Hoje, a Lua está transitando por sua casa astrológica favorita. Câncer. Uma criança
nascida neste dia terá personalidade calma e cordata. Gente boa, portanto. Sofrerá num
lugar como este.
Sopra uma brisa vinda do rio e a noite está silenciosa e com um cheiro de dama-da-noite
tão intenso que chega a ser enjoativo. Faz calor ainda. À tarde, vi pássaros voando em
formação rumo ao norte. Não demora teremos frio. Menos aqui, claro. (ERPNLL, p.11)
Embora tais trechos também estejam presos ao tempo ulterior aos dramas de Cauby, eles
guardam a idéia de pressentimento, de visão do futuro. Sem falar que estão carregados de
simbologias. Aquela cidade do Pará é apresentada como o seio do sofrimento, logo terra não-
grata às pessoas de bem, daí a idéia de destino ingrato para a “gente boanascida ali. O que vem
do rio, espaço de tantas guerras entre garimpeiros e a mineradora, transforma-se nas tentações
noturnas daquele espaço sem lei, logo não pode gerar bons frutos, enjoa. Os pássaros, livres do
destino, não ficam presos àquela terra sempre quente. Um calor que depois o leitor vai descobrir
como algo não circunscrito ao clima, mas que também diz respeito às injustiças sociais, ao poder
pequeno e a todo tipo de mesquinhez humana gerada pela fome de ouro.
Essa questão dos presságios posteriores ao linchamento de Cauby é interessante também
por assinalar o desgosto carregado pelo fotógrafo, agora caolho e sem sua amada. Na pensão de
Dona Jane: “O menino volta a esticar as pernas na escada. Ouvimos o apito de um barco no rio,
um som melancólico. Como um pio de mau agouro. Mas não tenho por que sentir medo agora.
Sou um homem sem medo, o que é bem raro aqui neste lugar.” (ERPNLL, p.22)
201
A natureza continuava falante, mas não lhe importavam mais suas mensagens. Cauby
ultrapassara os limites da tristeza humana, isso lhe corroera os sonhos e sem perspectivas, não
havia do que temer. Apesar de se declarar fatalista e crente no destino, seu futuro o lhe rendia
mais grandes promessas: sua vida arruinada, seu amor internado num sanatório em busca
de si mesma, sua Pentax carente de seu olho direito, atingido por uma pedrada. Com o que se
preocuparia? Não havia mais o que perder.
Boa parte dos verbos usados para relatar os encontros e desencontros de Cauby e Lavínia
transmitem a idéia do inevitável e colocam Cauby numa postura impotente diante de seus
sentimentos em relação à Lavínia, uma mulher diferente, cujos olhos “(...) tinham antigüidade e
abismos” (ERPNLL, p.16). Quando viu Lavínia pela primeira vez, ao invés de focalizá-la, foi
capturado:
Foi na loja de Chang. Enquanto esperava que ele embalasse os filmes que havia
comprado, distraí os olhos nas fotos da vitrine. O rosto de uma mulher num porta-retrato
capturou minha atenção. Era jovem ainda, e muito bonita (...) Um rosto com uma luz
extraordinária. Cravou em mim um par de olhos cor do lodo de bauxita. Perdi o rebolado.
(ERPNLL, p.13, grifo nosso)
Mais adiante essa leitura é reforçada pelas citações empregadas pelo narrador que seguem
dando mais credibilidade aos seus pensamentos, pois citando o Professor Benjamim Schianberg,
Cauby explica:
(...) alguns homens sublimam seus desejos, projetando-os num plano apenas mental, e isso
é suficiente para satisfazê-los. Outros, diz Schianberg, apesar de resistirem com diferentes
graus de esforço, acabam por ceder às tentações. São o que ele chama de “homens de
sangue quente”. (ERPNLL, p. 14).
Com essa leitura dos sentimentos de Cauby, completamos a lista dos ingredientes para a
confecção do seu destino trágico: o local ingrato à gente boa (aquela cidade do Pará), o objeto de
desejo (Lavínia) e sua condição humana (“homem de sangue quente”). Não havia escolha, seria
202
necessário cumprir sua sina e sem atalhos, não foi à toa que rejeitou as informações de Chang
sobre sua bela amada. Quando optou por “saborear o mistério”, aceitou o risco da paixão e
sabotou qualquer chance de se proteger. Houve momentos em que ele até tentou deixar a cidade e
afastar-se de Lavínia, mas atuou numa luta inglória.
Cauby não conseguira sentir raiva de seu rival, o pastor Ernani. De algum modo, o
fotógrafo reconhecia no marido de Lavínia o inevitável sofrimento: ambos apaixonados e vítimas
da mesma sina de se tornarem amantes de uma mulher dual, linda, sensual e acima de tudo
perdida. No caso de Ernani, o “canto das sereias” foram as dores daquela jovem e não o sorriso
da foto Polaroid que encantara Cauby. Diante de Lavínia: “Ernani disse que não fumava. E não
falou mais nada, mas também não se moveu. Catatonizado por uma força magnética poderosa. O
campo gravitacional de Lavínia.” (ERPNLL, p. 85, grifo nosso)
Essa hipnose prolongou-se e Ernani não conseguiu voltar ao seu cotidiano depois de tal
encontro:
Ernani pôs a culpa no vinho. Mas a verdade é que não tirava Lavínia da cabeça. Pensava
nela como uma criatura vulnerável, que tinha cruzado o seu caminho pedindo ajuda por
baixo de uma fantasia de meretriz. Acreditava ter capturado um S.O.S daquele espírito.
Tinha obrigação de oferecer sua mensagem de conforto. (ERPNLL, p. 87)
De certa forma, Lavínia correspondia às expectativas de seus admiradores. Nela, o
fotógrafo encontrou a cor, a luminosidade de que tanto careciam suas fotos. Já, o pastor viu em
suas dores uma chance de saciar sua excitação espiritual, de preencher o vazio provocado por sua
viuvez.
Até por se tratar de um relato memorialístico com fortes marcações temporais e
revisitações de estórias de um eu do passado praticadas por um eu do presente, o romance é
repleto de metamorfoses. Cauby, de fotógrafo e amante passa a “(...) bicho exótico, de muletas e
tapa-olho, que se prestava a expiar-lhes a culpa por um erro cometido.” (ERPNLL, p. 216) enquanto
203
o Pastor Ernani torna-se marido traído, passa-se por pai e acaba sendo assassinado por questões
político-sociais.
Em meio a tantas transformações, a situação de um personagem se sobressai: a de Lavínia
e seus múltiplos eus, inclusive porque, além das transformações diacrônicas, coexiste o problema
de sua cisão interna constante. Lavínia, Lavínia-Shirley, Ex-Lavínia, Lúcia, quantas personas
contidas num único indivíduo? Essa mulher já nascera predestinada ao sofrimento, mas como não
conseguia conviver com suas dores, acabou inventando “anestésicos sociais” por meio do
imaginário. Nesse aspecto, a conduta de Lavínia lembra o citado princípio freudiano que,
segundo Rouanet (1990), o imaginário como algo necessário, para o enfrentamento de uma
realidade insuportável.
Como nem sempre conseguia criar fantasias que funcionassem como um elemento
compensatório daquilo que não existia, várias vezes, ela recorreu às drogas para suportar as
adversidades “Não conseguia ficar dentro de si nessas ocasiões, queria ausentar-se. Para não
estar em casa quando a outra chegasse.” (ERPNLL, p. 89)
Seu marido e seu amante também reconheciam a dualidade de Lavínia. Estavam diante
ora da Lavínia-Shirley, fogosa, amante excepcional, ora da Lavínia recatada e deprimida, para
quem o sexo não tinha tanto valor. O marido, inclusive, foi menos feliz que o amante, posto que,
com o tempo, para ele só restou a mulher deprimida.
Em se tratando da formação de Lavínia, o texto faz lembrar o movimento naturalista, por
exibir uma forte relação entre a formação do indivíduo e seu meio social. Ela veio de uma família
desestruturada, foi assediada e desvirginada à força por seu padrasto, desde pequena percebera a
excitação masculina com suas formas e, assim, cresceu, colecionando traumas e inquietações não
204
respondidas. Sempre foi marginalizada em casa, Ninguém viu brotar a flor esplêndida. Metade
branca, metade sombria.” (ERPNLL, p. 120)
Quando a situação em casa tornou-se insuportável, foi para as ruas: “Ali, foi sacaneada e
sacaneou, aprendeu tudo o que tinha de aprender, esqueceu o que deu para esquecer. E virou
mulher. Talvez o mais correto seja dizer mulheres. Porque ela era sempre duas. Opostas.”
(ERPNLL, p. 125)
A dualidade de Lavínia a acompanha, assinalando todos os seus conflitos, suas
contradições, suas emoções em meio a erros e acertos. A fusão das Lavínias em uma única
ocorre com o apagamento do indivíduo. Depois de se decepcionar com Cauby, perder o filho em
função de choques elétricos, é a vez de Lúcia suplantar toda a existência pregressa: (...) Desde
que chegou e puseram fogo em seu cérebro, ela deixou de ser. É outra. Em mais de um sentido.
Trocou de pele. De alma. E de nome. Por pudor o pastor a internou num sanatório distante mais
de cem quilômetros da cidade, sob nome falso. Lúcia. (...)” (ERPNLL, p. 223)
Nesse momento, Lavínia continuou existindo apenas para Cauby que, após reencontrá-la,
travou uma longa luta para que ela suportasse as dores do passado e aceitasse-se de novo. Em
verdade, não foi um reencontro, posto que não houve reconhecimento mútuo, foi sim um grande
recomeço.
Eis o fim trágico de uma estória de amor fadada à incompletude do futuro do pretérito. A
felicidade nunca atingiu sua forma plena. O Pastor teria uma esposa, amante e companheira,
Lavínia seria uma mulher inteira, Cauby teria fugido da cidade a tempo, teria concluído seu livro
para editora francesa, teria conhecido a mulher de sua vida, teria aceitado com mais ternura o
fruto desse amor, enfim (...) receberia as piores notícias de seus lindos lábios” (ERPNLL, p.
183) Entretanto, assim não quis o destino, tornou-se Lavínia o “poema sujo de sangue” de Cauby.
205
Enquanto isso foi narrado, questões densas sobre a natureza humana e sobre a sociedade
de uma pequena cidade no Pará foram enfocadas no livro, sem que se recorresse a verdades
absolutas. O “efeito de real” parece emergir de uma coletânea de flagrantes do cotidiano, na qual
a Polaroid figura como a grande metáfora do tipo de olhar que se pode lançar sobre o contexto.
Ninguém conhece o sujeito ou algum objeto ou seu espaço na plenitude, posto que a reprodução
fiel dos acontecimentos será sempre falaciosa. A totalidade é uma utopia.
A relação estabelecida entre os personagens e a máquina fotográfica reflete traços do
Hiper-realismo. Seria como se a máquina, mediadora entre o olhar do sujeito e o objeto captado,
conseguisse registrar os mínimos detalhes, livrando o enquadramento do objeto das emoções
exacerbadas do indivíduo.
Não por acaso, Cauby e Lavínia fotografam a vida. A partir de suas polaroides, temos
acesso as suas características psicológicas e aos traços da sociedade na qual se encontravam.
Enquanto Cauby fotografava um pouco de tudo, porque “(...) tentava compreender o mundo
fotografando gente (...)” (ERPNLL, p. 45), Lavínia não gostava de fotografar gente, algo muito
sintomático num ser tão atormentado por dramas existenciais.
A violência da guerra entre a mineradora e o garimpo, por exemplo, aparece com mais
ênfase pelas lentes da Pentax de Cauby, haja vista que, na ausência do fotógrafo da cidade, ele se
tornava o encarregado de “clicar os presuntos” (ERPNLL, p. 30) para posterior reconhecimento
das vítimas dessa guerra. As fotos de Lavínia, por sua vez, quase sempre, explicitam dilemas
pessoais, acompanham a sua mudança de humor. Quando foi abandonada por Alfredo, apenas
focalizava o torto e feio da vida, as pessoas até tornavam-se alvos, desde que fossem aleijadas.
Seu lado depressivo se refletia, com freqüência, em suas fotos. Certa vez, passou o dia inteiro
tirando fotos do mesmo ângulo de uma janela e tal obsessão intrigou não apenas Chang, o
responsável pela revelação, como ao próprio Cauby.
206
Até mesmo quando se recusam a posar para a foto, os personagens estão emitindo
mensagens. Como personagens duais como Lavínia caberiam na moldura de uma Polaroid?
Haveria desnudamento mais perigoso? Infinitas foram as tentativas de fotografá-la, mas várias
delas viraram “naufrágios irresistíveis”. Sobre isso, reconhecia Cauby: “(...) eu podia montar uma
exposição. E ainda assim, eu sabia, não captara Lavínia por inteiro. Faltava a foto.” (ERPNLL, p.
186)
Do mais importante consentimento de Lavínia quanto à fotografia, em função de
problemas técnicos, ele ficou com a lembrança de uma Lavínia apavorada e completamente
contrariada no visor de sua Pentax. Quando Cauby finalmente conseguiu capturá-la tal como
desejava, o que fica refletido na Polaroid, contudo, não correspondia ao seu grande amor,
continha apenas lampejos de esperança. Ao reviver essa cena, ele comenta:
Captei-a, confusa, diante do balcão multicolorido. Para minha surpresa, ela se interessou
pela câmera, perguntou se podia usá-la. Eu deixei. Lavínia manuseou a Pentax com
habilidade, mas demorou para se decidir, como no caso do sorvete. Selecionou alvos entre
os transeuntes, chegou a enquadrar alguns, mas desistia. Por fim, virou-se e me
fotografou. De estalo. Fez um close de um pirata assustado. O primeiro humano que ela
fotografava desde que eu a conhecera. Não comentei nada, mas considerei um bom sinal.
(ERPNLL, p. 228)
Afinal, paralelo ao registro das emoções mais sinceras e previsíveis estaria o olhar
anguloso e indomável da Pentax capaz de surpreender até mesmo o fotógrafo, ao captar nuanças
não planejadas no ato do retrato.
Por meio de um acervo de fotos, Cauby consegue voltar-se para sua infância com doçura,
bem como toma conhecimento de traços da personalidade de seu pai, até então inimagináveis.
Diante do espólio de seu pai, ele teve gratas surpresas:
Mas fiquei emocionado ao descobrir um punhado de registro de minha infância, fotos para
as quais, obviamente eu não me recordava ter posado. Uma imagem em particular me
tocou, um flagrante doméstico captado em preto-e-branco: eu e minha irmã numa rede no
207
quintal de casa, em companhia de Lui, um vira-lata que idolatrávamos a ponto de chorar
sua morte de velhice. (ERPNLL, p. 156)
Paralelo ao retorno a um passado feliz, Cauby também descobriu qualidades de seu pai
que se tornaram visíveis, quando ele conheceu o trabalho de seu pai como fotógrafo. Nesse
momento, por baixo da imagem do homem descuidado, quase maltrapilho, encontrou um grande
artista, cuidadoso com o seu material de trabalho, dotado de apuro técnico e sensibilidade.
A foto foi também o estopim de toda a desgraça, pois as revelações da Polaroid
atravessam a narrativa em dois planos: no simbólico, por meio do qual efetuamos a leitura das
metáforas que ela representa e no corpo narrativo, como objeto de chantagem no qual se
transformara. Foi através de fotos de Lavínia que Viktor Laurence passou a chantagear Cauby,
ameaçando tornar público o romance clandestino do casal.
Quando chegassem às mãos do povo da cidade, tais fotos despertariam a fúria local,
sobretudo por apresentarem apenas uma das facetas de Lavínia. Nelas não haveria seus dramas
internos, não apareceriam as angústias de Cauby e, como em qualquer outra situação de tentativa
de instauração da verdade absoluta, tais revelações poderiam figurar como instrumento de
injustiça. Como vemos, por meio do destino trágico dos personagens, diversas mazelas sociais e
inquietudes sobre a existência humana são abordadas.
3.2.2 O discurso memorialístico e a estrutura narrativa
Nesse livro, embora não explore a narrativa fragmentada do modo radical como fez Luiz
Ruffato, Marçal Aquino construiu um sinuoso relato que se organiza em torno de dois eixos
temporais: o presente e o passado. O presente abre o romance bem como contém os episódios
208
mais amenos do enredo: Cauby e os moradores da pensão de D. Jane reunidos sucessivas vezes
para ouvir as lembranças de Seu Altino. Já no passado, estão as angústias geradas pelas tensões
experimentadas por Cauby.
A partir das memórias de Seu Altino, Cauby se flagra construindo paralelos com suas
experiências amorosas ao lado de Lavínia. Em tais passagens, o leitor, transportado para o
passado, começa, então, a presenciar bifurcações do relato: ora acompanha os dramas de Seu
Altino e sua colega bancária, ora conhece um pouco mais sobre o passado de Cauby.
De acordo com Mendilow (1972), a relação entre as convenções da ficção e a concepção
de realidade está pautada na própria noção de tempo. A partir da preocupação dos românticos
com o crescimento do indivíduo no século XIX, a concepção classicista da literatura como uma
arte de sentido espacial vem sendo revista em função da preocupação com a transitoriedade da
existência. Desde então, vários escritores se vêem com o desafio de trabalhar ainda mais a
questão do tempo no romance. Para Mendilow (1972, p.168):
(...) O escritor não pode permitir-se ignorar o fato de que enquanto a intenção da ficção é
comunicar experiência, a experiência, ao contrário do pensamento, não acontece sob a
forma de linguagem. Mais ainda, a experiência é infinita em extensão e gradação, ao passo
que os símbolos da linguagem para os quais deve ser traduzida são altamente restritos. (...)
Diferentemente do que ocorre com as artes espaciais, uma arte temporal como a literatura
não permite que o olho de seu espectador a acompanhe em qualquer direção e velocidade. O
romance é, por natureza, extremamente marcado pela sucessividade, cabendo ao escritor
encontrar estratégias para criar a ilusão de coexistência.
Ciente de que a arte não pode dar conta da realidade de modo absoluto, posto que o
próprio real é relativo, o autor o se propõe a reproduzir esse real, mas a encontrar as suas
próprias soluções artísticas para criar a ilusão de vida real. Para isso, muitas vezes, ele recorre às
209
diversas técnicas da cinematografia moderna, sobretudo no que diz respeito à justaposição de
planos, à montagem, enfim, à ordenação das seqüências.
No caso de Marçal Aquino, no lugar de grandes superposições, close-up e cortes
cinematográficos, encontramos um engenhoso cruzamento dos períodos temporais
experimentados pelos personagens. Presente e passado praticam, pois, um intenso diálogo no
fluxo narrativo.
Quando Cauby não é atormentado pela recorrente lembrança do “dia de sua morte”,
freqüentemente o movimento memorialístico dele ocorre em espiral, isto é, um dado simples
que o faça lembrar de alguma situação que, por sua vez, traz à tona os amigos do passado. Foi
assim que aconteceu, quando, sentado na varanda da pensão, ele avistou a tatuagem que D. Jane
tentava esconder. Refletindo sobre esse gesto da senhora, Cauby lembrou-se dos pensamentos de
Chang, o china da loja, a respeito da importância de se entender as pessoas por meio do que elas
exibem. Ao pensar no china, automaticamente lembrou-se de seu grande amor e, após tal
recordação, o relato não voltou imediatamente para a varanda de D. Jane, pois o narrador-
personagem passou a relatar o encontro de Cauby e Lavínia até que, depois de aproximadamente
4 páginas, “(...) D. Jane reaparece com uma bomba de pulverizar e borrifa várias vezes em
direção à casa de marimbondos (...)”(ERPNLL, p. 18) e o cheiro do inseticida traz Cauby de volta
para o presente.
Em outros momentos, Cauby tem lembranças de fatos mais recentes, mas a dinâmica é a
mesma: um movimento em espiral delimitando o vai-e-vem narrativo. Ao longo do texto isso vai
ficando tão sistemático que a alternância entre presente e passado concretiza-se no breve espaço
da mudança de parágrafos. Apesar das rápidas trocas de relatos, a estrutura narrativa não
apresenta um caráter fragmentário que seja capaz de dificultar o acompanhamento das diversas
210
estórias contadas, inclusive porque, nas intercalações de maior porte, surge uma contextualização
do episódio narrado.
Por vezes, o narrador recorre à tão conhecida técnica do narrador machadiano, ou seja,
põe em evidência seus pensamentos e percepções, conduzindo a leitura de seu interlocutor. Para
falar de sua primeira paixão, Marieta, Cauby alerta: “Uma digressão: eu tinha quinze anos
quando me apaixonei pela primeira vez (...)” (ERPNLL, p. 39). Depois, quando deseja dar
notícias de seu reencontro com a mesma, o narrador-personagem faz uma ressalva bastante
singular: “(...) Um P.S.: reencontrei Marieta faz alguns anos. Quase setentona, uma anciã de
olhos opacos e aguados (...)”(ERPNLL, p. 40). Por meio do Post Scriptum, o narrador um
salto temporal sem comprometer a condução do relato.
Em outras situações, como no caso da estória de Marinês- amor de seu Altino, o narrador-
personagem efetua uma contextualização mais encaixada no curso dos acontecimentos do
presente. Durante uma enchente, os moradores da pensão de D. Jane começam a conversar para
amenizar a preocupação com os possíveis estragos causados pela chuva, até que um menino que
sempre aparecia na pensão faz o seguinte pedido:
Ô, seu Altino, conta a história de novo.
O careca olha para mim.
Primeiro, eu preciso saber se o seu Cauby quer escutar outra vez...
ouvi a história, pedaços dela, mas digo que quero. Sei que ele está louco para contá-la.
O menino me olha com olhar de agradecimento. O careca coloca o jornal sobre a mesinha
e começa a falar (...) (ERPNLL, p. 33)
A partir desse episódio, a narrativa aparece predominantemente bifurcada nas memórias
amorosas de seu Altino e de Cauby, pois a estória do bancário apresenta elementos que ressoam
na cabeça do fotógrafo que, por sua vez, passa a estabelecer paralelos entre o que está ouvindo e
o que viveu. Quando Seu Altino diz que Marinês tinha um noivo, Cauby lembra-se de que seu
grande amor tinha um marido. Assim como seu Altino não desistiu de seu amor nem quando ela
211
anunciou que se casaria com outro homem, Cauby reconhece que, em relação à Lavínia, também
manteve as esperanças acesas a despeito da razão.
Esse apego ao passado não é gratuito. D. Jane pouco fala de si, pois “não entregou os
pontos”, tem esperanças em relação ao futuro, do mesmo modo que o menino está mais voltado
para o presente e para o futuro, pois “tem todas as chances”. Somente seu Altino e Cauby vivem
falando do passado, afinal, eles não sabem mais se podem construir uma vida.
Nem sempre as estórias intercaladas são antecedidas de notas explicatórias ou mesmo
justificadas na cena ficcional. Os encadeamentos narrativos também são feitos de silêncio, pois
tanto a justaposição de pequenas cenas, quanto a de grandes quadros guardam em si uma
logicidade que, se por um lado não segue uma linearidade temporal, por outro, articula
importantes fatos do enredo. Talvez decorra disso a não nomeação de capítulos. Numa estrutura
romanesca tão sinuosa, a catalogação dos blocos temáticos seria capaz de prejudicar o dinamismo
promovido pelos diversos tipos de vai-e-vem narrativo.
Surge, então, um tom espontâneo na alternância de vozes narrativas, impedindo que a
obra se assemelhe a um complexo quebra-cabeças ou mosaico. As próprias partes do livro, ainda
que não contenham números de capítulos, são organizadas de modo que sejam visualizadas as
seguintes fases da obra: primeiro, a localização de um sujeito no tempo presente que, preso às
suas experiências do passado, pelo viés da memória, narra o início de seu envolvimento com
Lavínia.
Não por acaso essa parte se intitula “O amor é sexualmente transmissível”. A frase não
alude ao modo como Cauby acabou se envolvendo com Lavínia, mas também resgata a idéia
desse amor como uma doença, um vírus transmissível a qualquer um e capaz de causar prejuízos
irreparáveis contra o qual não há vacina.
212
na parte, “Carne-viva”, uma voz em off (em pessoa) substitui o narrador de
pessoa, para apresentar as cruéis estórias de vida do Pastor Ernani, de Lavínia, do encontro dos
dois e para mostrar o quanto latejavam suas feridas, no momento em que essas duas “carnes-
vivas” resolveram se unir.
Feito isso, chega o momento de, na parte, intitulada “Postais de Sodoma à luz do
primeiro fogo”, tratar dos grandes dramas vividos por Cauby e Lavínia em função do adultério
cometido por essa dual mulher casada com um pastor. São páginas repletas de desejos, medos,
aflições e muito sofrimento.
Por fim, em função da impotência de Cauby diante de todo seu sofrimento físico e
espiritual, diante da perda de seu grande amor e de seu reencontro com aquela que um dia se
chamara Lavínia, resta o registro dessa triste memória a última parte, “Um poema escrito com
bile”. Cauby localiza seu grande amor, mas depois de muito empenho só lhe é permitido recitar o
nome Lavínia, mais que uma palavra, um poema ácido por refletir toda a nova
incomunicabilidade daquele amor “sexualmente transmissível”.
A captura do passado pelo viés da memória enfatiza a impotência do sujeito diante da
totalidade dos fatos. Como as lembranças obedecem aos estímulos afetivos, todo o cenário da
pequena cidade do Pará bem como a apresentação dos diversos personagens deriva dos múltiplos
olhares sobre a vida. Da sangrenta luta entre os garimpeiros e a mineradora restam fotos, muitas
vezes, flagrantes de corpos inertes, assim como sobre personagens como Chang e Viktor
Laurence temos os olhares do Cauby inocente do passado e do Cauby ressabiado do presente. A
própria Lavínia rememorada por Cauby vai ganhando novos contornos conforme o andamento de
suas memórias.
No eixo do passado, ocorre ainda uma segunda manipulação da ordem dos fatos narrados,
ou seja, o narrador parece tentar narrar os fatos na ordem em que os mesmos aconteceram, mas
213
não se atém a um relato objetivo e, ao longo do romance, segue deixando dicas sobre o final de
sua estória com Lavínia. Surgem inclusive cenas da pensão de D. Jane pertencentes ao passado.
Afinal, fazia algum tempo que Cauby transitava naquela cidade. Tudo é muito bem planejado e o
suspense construído garante um interessante efeito surpresa ao final do livro.
Em meio a tanta subjetividade, como falar em “efeito de real”? De que forma o romance
recupera a preocupação da tradição realista de apresentar quadros sociais? Se por um lado, a obra
se afasta do realismo do século XIX por não conter o rigor científico nem partilhar da ilusão
verista da época, por outro comunga com o mesmo a fome de entendimento de uma sociedade.
Para isso, o autor construiu um tipo de representação da realidade calcado na dicotômica
abordagem de temas de cunho de público versus os referentes ao ambiente privado, postulada por
Raymond Williams (2002). De acordo com esse teórico, à medida que, no século XX, o privado
vai se tornando público, o realismo vai se transformando num irrealismo. Raymond Williams
(2002, p.183) diz que: “A condição do realismo no século XIX era de fato dada pela suposição de
um mundo visto em sua totalidade. Nos grandes realistas, não havia separação de natureza entre
fatos públicos e privados, ou entre experiências privadas e públicas.”
O romance de Marçal Aquino não assume traços de irrealismo, porque, entre outros
fatores, apresenta um grande equilíbrio entre a atitude ampla, ou seja, da abordagem da vida
pública e o enfoque da vida privada. Em Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios
(2005), temos a articulação de uma tumultuada estória de amor com a representação da realidade
de uma cidade no interior do Pará.
Os enlaces amorosos do fotógrafo Cauby aparecem de forma predominante aos olhos do
leitor, retirando um pouco o foco do contexto no qual estes amantes se encontram. Todavia, a
partir de uma análise comparativa da natureza das cenas ocorridas em ambiente privado com as
cenas pertencentes ao âmbito público da obra, percebemos um intenso diálogo do texto com a
214
concepção realista de arte, à medida que revela uma realidade social a cada momento em que os
personagens circulam ou entram em contato com a esfera pública.
A fotografia utópica de uma realidade é, assim, substituída por uma proposta de
representação que, mesmo sem apelar ao rigor científico de uma pesquisa de campo, consegue
traduzir os valores e costumes de uma época. Isso é importante por alçar o relato do caso
específico para o universal. Alguns críticos tendem a considerar Marçal Aquino como um escritor
do espaço urbano, este título, contudo, não seria o mais apropriado para definir a obra do escritor.
De acordo com as declarações de Luiz Ruffato, durante o evento “Livro Aberto”,
promovido pelo Cultural EMERJ em no dia 4 de setembro de 2006, o espaço de Aquino não é
urbano, nem rural, mas qualquer espaço em que se busque uma sobrevivência, devido à
suspensão da lei e da ordem. Além de Ruffato, o próprio autor tornou público seu interesse por
um Brasil brutal seja ele urbano ou rural. Nossa análise confirma o reflexo desse pensamento
no romance ora em foco. De fato, Aquino não se interessa por um lugar específico (espaço
urbano, interior ou fronteiras do país), mas por um lugar com pessoas em conflito.
Em entrevista ao Café Literário (2005), Marçal Aquino declarou que, no caso de Eu
receberia as piores notícias de seus lindos lábios, o seu grande objetivo foi contar uma estória de
amor. Em função disso, libertou seu texto da estrutura de romance policial e trabalhou o real
colocando-o como pano de fundo. A própria concepção do garimpo presente na obra deriva de
seu conhecimento acumulado e não de uma pesquisa específica. Até mesmo porque, é nesse
ponto que o Marçal jornalista e o Marçal ficcionista se fundem em prol da arte. Segundo
diversas declarações do próprio autor, ele se alimenta do seu olhar preciso de jornalista para
inspirar-se no mundo literário, sua literatura é contaminada pela reportagem, à medida que, sem
se prender a marcas registradas, ele tenta documentar as pessoas num gesto de realismo, quase
hiper-realista.
215
Dentro dessa perspectiva, o garimpo que abriga Cauby e Lavínia pode ser lido como um
espaço metafórico das angústias e desejos que alimentaram os diversos garimpos brasileiros. Daí
a riqueza de uma representação de realidade universalizante, capaz de transcender o imediato.
Marçal Aquino recorre à esfera pública de várias formas. Por vezes, as técnicas descritivas
assumem um forte papel, por outras, é a possibilidade de o jornal aparecer como instrumento que
aflora. situações em que são as digressões do narrador-personagem que se tornam vigorosas;
noutras, existe o paralelismo narrativo entre as desgraças da vida de Cauby e as desgraças sociais.
Enfim, multiplicam-se os meios, mas a tônica do relato é uma só: costurar as estórias da vida
privada com a vida pública e, assim, representar a trágica estória de Cauby e Lavínia em uma
cidade do interior do Pará.
O livro contém vários tipos de descrição, mas uma, ainda que comedidamente empregada,
chamou-nos a atenção: a ambiência dissimulada. Ao empregar um tipo de descrição espacial
semelhante à descrição definida por Osman Lins (1976) como ambiência dissimulada, ou seja, ao
aproveitar-se do caminhar dos personagens pela cidade para instaurar o descritivo sem suspender
o plano narrativo, Marçal Aquino exibe o espaço de uma cidade marcada pela atividade dos
garimpeiros conforme Cauby, Lavínia e demais integrantes do elenco transitam pelas ruas.
Muitas vezes, o motivador para as andanças é de cunho pessoal, como se a vivência do
espaço privado desembocasse no contexto público, tal como regem as leis básicas da vida em
sociedade. Lavínia e Cauby viviam uma estória de amor bem ao tom contemporâneo, sem
grandes idealizações da realidade, o que gerava muitos conflitos.
Certo dia, quando retornou a sua casa e percebeu que Lavínia estivera ali a sua espera
minutos antes, Cauby tentou encontrá-la nas ruas, mas no lugar da amada se deparou com a
dureza da vida local. Em suas lembranças, diz:
216
Ainda saí à rua e andei pelos arredores na esperança de encontrá-la. Mas tudo que vi foi
ordinário: putas de roupas curtas e coloridas e com pintura pesada no rosto misturadas
com mulheres e crianças opacas, que garimpavam quinquilharias das lojas de 1,99 do
centro. Na praça, velhos e desocupados jogavam dominó e ruminavam o mormaço da
tarde. Fui para casa. E passei a esperar. (ERPNLL, p 31)
Esse tipo de descrição retira o caráter artificial da apresentação do espaço, em virtude de
os passos do personagem fazerem surgir o ambiente que o cerca. Além disso, a denúncia social
eclode com força no texto por estar livre de um tom panfletário ou meramente pejorativo. Ainda
que pontuada por adjetivos fortes, a voz do narrador e seu projeto de retratar as tristezas da
corrida ao ouro passam mais despercebidamente, posto que o que preenche a cena é a andança
frustrada de Cauby e sua impaciência com tudo o que aparece em sua frente, destruindo sua
ilusão de encontrar a mulher amada. De qualquer forma, o que fica registrado a um tempo é a
coexistência dos fios narrativo (a busca de Cauby) e descritivo ( a apresentação do espaço).
Seu Altino tem prazer em conviver com as lembranças do passado. Todavia, apesar de
valorizar mais a vida pregressa do que a vida que está em construção, o Seu Altino não se
desvinculou da realidade social na qual se encontra e vê no jornal seu fio-terra com o mundo. Por
meio de suas leituras, a narrativa vai sendo pontuada de flashes sobre a sociedade local e as
indignações desse constante leitor, homem que “(...) Abre o jornal com suas mãos micóticas e
passa a grunhir a cada notícia que lê. (...)” (ERPNLL, p 11-12). Dessas cenas surgem vários
registros dos problemas sociais daquela região.
Logo no início, em meio à apresentação de Cauby, está a apresentação do problema social
que marcará a realidade a ser representada:
Vai chover, dona Jane.
Isso quem diz é o careca, sem tirar os olhos do jornal. Uma notícia se destaca na página
que consigo enxergar: estão liberando o rio para mineração outra vez. A cidade à beira de
217
um novo surto de prosperidade. É ver como aumentou o número de putas que circulam
pelo centro e pelos lados da rodoviária. Noite e dia. São as primeiras a farejar o ouro.
(ERPNLL, p 12)
Além dos informes, as leituras do Seu Altino dão conta das críticas à elite. Em várias
ocasiões, misturadas às estórias de Cauby, ouvimos as reclamações de seu Altino contra a forma
paternalista com que o governo trata a mineradora. A volta do garimpo mudaria a rotina de todos.
A própria pensão de D. Jane seria mais procurada pelo “exército de sanguessugas”, haveria nova
oferta de empregos, mas nem sempre isso se traduziria em progresso para a cidade.
Cauby era fotógrafo e também fora parar ali naquela longínqua cidade, para fazer dinheiro
com a desgraça local. Tinha a missão de, com a bolsa recebida de uma agência francesa, fazer um
livro de fotos de prostitutas que viviam no garimpo. Esse livro acaba não se concretizando, mas
várias outras estórias sobre a realidade local vão sendo contadas por suas lentes. A pedido do
investigador Polozzi, Cauby registra várias cenas de violência. Garimpeiros assassinados
sinistramente, índios que subverteram as regras da vida em sociedade e enterraram uma criança
viva para castigar uma índia que se envolvera com um branco, mulheres e crianças de beira de
estrada, enfim toda forma de dor começou a refletir-se nas fotos que registravam a vida
descolorida daquela gente sofrida, para quem o trabalho nas minas representava uma
oportunidade real de ascensão social.
Semelhantemente a outras obras contemporâneas, o livro de Marçal Aquino aborda o tema
do personagem-escritor. Sendo que dessa vez, diferentemente do acontecera com Tecla, de O
Bruxo do Contestado, Samuel, de O falso mentiroso, Carlos e Francisco, de O autor mente muito,
o processo verbal na elaboração de um livro não ganha muito espaço no corpo narrativo. Ao que
parece, o fato de o personagem-escritor tratar, agora, da composição de um livro de fotos
promove um reflexo dessa nova realidade de linguagem: a palavra está a serviço da imagem.
218
Tal mudança acompanha a própria preocupação temática do livro. Na obra de Marçal
Aquino, a crise do romance, o processo de criação, o dilema realidade versus ficção passam
obliquamente no texto. O foco central está na construção de uma literatura da angústia, por meio
da apresentação de tensões existentes nas identidades partidas do sujeito do século XXI.
Além de Cauby, há um segundo personagem-escritor: o menino que freqüenta a pensão de
D. Jane munido de gravador para registrar as lembranças de Seu Altino e, posteriormente
transformá-las em romance. Seja por meio da imagem, seja por meio do documento, os
personagens-escritores tentam “reter” flagrantes do real para composições artísticas que, em sua
maioria, têm em sua incompletude a representação da impotência do homem diante da totalidade
da vida.
Apesar de não se ater às digressões metanarrativas, Cauby é um personagem-narrador
extremamente reflexivo. Em suas considerações sobre a vida pregressa e sobre o que ainda lhe
resta a ser vivido, o fotógrafo, muitas vezes, aborda os problemas sociais da região, promovendo,
dessa forma, um cruzamento entre as desgraças individuais e as tragédias coletivas.
Quando se lembra do dia de seu linchamento, não se esquece do clima de guerra vivido na
cidade. Segundo o próprio, sua salvação deveu-se ao fato de D. Jane percorrer o corredor do
hospital, conhecido como corredor da morte por abrigar vários feridos, em busca de um parente
desaparecido. Graças a essa coincidência, ele recebeu ajuda no tempo-limite e conseguiu
sobreviver à tragédia.
Até o medo que ele e Lavínia tiveram de que seu amor clandestino provocasse uma
desgraça foi comparado ao clima de medo que impregnava toda a cidade. Ao ponderar as atitudes
do passado e constatar o quanto havia sido imprudente, Cauby verifica que usou o clima de
guerra da cidade para banalizar o seu real perigo de vida. Sobre isso se posiciona:
219
(...) não me sentisse mais em perigo do que qualquer outro cidadão do lugar. Pairava
acima de nossas cabeças uma atmosfera de ameaça fazia tempo. Tensão demais entre os
garimpeiros e a mineradora. Um clima de guerra, de acerto de contas. Se não estivesse
resfriado, você conseguia farejar a pólvora no ar. Faltava apenas alguém acender o pavio.
Era comum trombar desconhecidos andando a esmo pelo centro, que não faziam nenhuma
questão de ocultar que portavam armas. Um estouro de escapamento na rua, e vários deles
se viravam na hora e levavam à mão à cintura. (...) (ERPNLL, p 190)
Assim, fecha-se o ciclo anunciado nas primeiras páginas do livro. Os temores em relação
à reabertura das atividades de mineração no rio saem do plano das premunições para marcar o
presente sofrido. Do mesmo modo que as ilusões amorosas de Cauby antes anunciadas, a essa
altura do relato, já estão desconstruídas.
As vidas pública e privada estão alinhavadas com tanta presteza no texto que a própria
linguagem apresenta as marcas dessa combinação. Lavínia tem olhos “da cor do lodo de
Bauxita”, nesse lugar “a vida pesava menos que as pepitas”, a notícia de que Guido Girardi havia
se entregado à polícia “se alastrou pela cidade feito achamento de ouro”, enfim, uma série de
especificidades lingüísticas que, paralelamente à instauração do tom regional, reforçam a máxima
de que a linguagem e o homem formam um corpo comunicativo.
3.2.3 Sexo: simbiose de corpos e vivências
Em seu livro As ilusões do pós-modernismo (1998), Terry Eagleton dedica um capítulo ao
estudo do sujeito. Ao ponderar sobre as influências do Estado liberal sobre a vida em sociedade,
ele aborda a noção de felicidade, ressaltando que a definição de vida boa está vinculada à vida
privada enquanto as formas de se obter uma vida boa continuam circunscritas à esfera pública,
220
estuda também o fato de o homem ser, ao mesmo tempo cultural e natural, livre e determinado,
partindo do princípio de que o homem é dotado de um corpo. Este corpo é importante na
formação do sujeito, por ser dotado de uma prática autotransformativa.
De acordo com Terry Eagleton (1998, p.72):
O sujeito pós-moderno, diferentemente de seu ancestral cartesiano, é aquele cujo corpo se
integra na sua identidade. De fato, de Baktin à Body Shop, de Lyotard às malhas da
ginástica, o corpo se tornou uma das preocupações mais recorrentes do pensamento pós-
moderno. Membros mutilados, troncos arqueados, corpos engalanados ou encarcerados,
disciplinados ou ávidos: esse fenômeno se alastra nas livrarias e vale a pena nos
perguntarmos por quê.
No caso de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, verificamos que houve
um forte aproveitamento do corpo na construção das identidades de Lavínia e Cauby. Por meio
da relação sexual estabelecida entre o fotógrafo e a mulher do pastor, seus corpos passaram a
falar de seus sujeitos. Em função disso, o discurso memorialístico conseguiu expor traumas
existenciais complexos sem recorrer em demasia às digressões filosóficas e/ou de cunho
catártico.
Lavínia é uma personagem forte, transita em boa parte das cenas com muita sensualidade.
Seu corpo é fonte de prazer, capaz de enredar desde os forasteiros da cidade até um pastor viúvo,
firme em seus princípios e valores. Apesar de toda essa sensualidade, o corpo de Lavínia não
passa pelo processo de total reificação. Até mesmo no período mais difícil de sua vida, quando
efetivamente teve que se prostituir, a venda de seu corpo aparece acompanhada de uma alma
conturbada, como se o que estivesse em negociação fosse a sua capacidade de propiciar prazer e
não a sua vida.
Essa mulher, adúltera e ao mesmo tempo companheira, dialoga com os diversos perfis
femininos construídos ao longo da historiografia literária brasileira. Em momentos de alegria,
traz no rosto um sorriso que, embora não seja “mais doce que o favo de jati”, exerce o mesmo
221
encanto aos forasteiros que o sorriso da Iracema, de José de Alencar. Na relação homem-mulher,
possui um rebolado tão desconcertante e sedutor quanto o de Rita Baiana, de O cortiço. Na vida
carrega a sina da Lucíola alencariana, não por conta da dualidade mas também pelo castigo
que a sociedade lhe impõe em função da transgressão de valores sociais em prol da realização
amorosa. Lavínia ainda comunga com a Capitu machadiana a dissimulação própria de um olhar
oblíquo. Assim como as mulheres de Lya Luft, a verdade é que não nascera propensa a se
aprisionar em laços de família, vivia buscando romper a casca. O problema é que a sua noção de
vida boa infringia as regras públicas, o sexo surge, então, como forma de libertação e
transgressão.
O adultério não aparece aqui como a simples tentativa de suprir as insatisfações de um
casamento nem mesmo representa as idéias liberação sexual dos anos 60 ou ainda o
questionamento sobre a célula da sociedade (a família), típico dos anos 80. O sabor de frustração
e fracasso que Lavínia carrega não advém do seu relacionamento com o pastor, mas de sua
própria vida. De modo semelhante, o que se encontra corroída não é apenas a célula, mas a
própria sociedade que abriga o casal. Portanto, a transgressão revela uma rebeldia contra a
própria vida e não somente contra as regras sociais.
O erótico e o obsceno pontuam o texto como instrumento de busca do sublime, pois, por
meio do sexo, os personagens conseguem apaziguar suas angústias decorrentes das incertezas que
assolam o sujeito pós-moderno. Funciona como se a concretude da parte sensorial do corpo
suplantasse o lado abstrato da vida.
cenas de forte apelo ao obsceno. Essas, contudo, aproximam-se do erótico e não do
pornográfico, porque, entre outros aspectos, tal como afirma Rodolfo A. Franconi (1997, p.17):
222
(...) o erotismo não tem por objeto o enfoque do ato sexual em si, mas a infinita gama de
matizes sexuais que presidem a intimidade entre os sexos. É o despertar da excitação
sexual e o seu conseqüente prolongamento, privilegiando o estado de desejo sobre o ato
sexual consumado, de modo a envolver variadas etapas e matizes da sexualidade que
poderão ou não culminar no ato sexual.(...)
Muitas cenas eróticas culminam no ato sexual, mas a mecanicidade do prazer sexual não
constitui o fim único desejado, via de regra, tais cenas inscrevem-se como violação, como
transgressão das regras sociais. E, em tais contextos, os próprios nomes chulos ou referências
explícitas ao ato sexual estão associados ao estado de espírito dos amantes, expressando raiva,
desejos conturbados, frustrações. Isso ocorre, pois, entre outras razões, segundo Wellington de A.
Santos:
A literatura que tematiza o erotismo, em seus diferentes graus de expressão, erige-se em
modo superior de análise das contradições a que são submetidos os seres humanos,
quando se vêem divididos entre o sexo e o amor, entre o sexo e o desejo, e entre o sexo e a
moralidade pública (...) (In: MARCHEZAN & TELAROLLI, 2003, p.212)
Até sucumbir aos encantos de Lavínia, o Pastor Ernani lutou contra os seus desejos, que,
aliás, eram lidos por ele como obra de Satã, mas depois viveu cenas tórridas de amor com
Lavínia, aquela que “(...) ensinara ao pastor outras possibilidades de uso dos palavrões, em
especial se sussurrados em certas horas. Ele estremecia com aquilo (...)” (ERPNLB, p.110)
O assédio sexual sofrido por Lavínia ainda menina, seguido de estupro praticado pelo
próprio padrasto, é narrado por meio de um discurso objetivo, seco, dotado de uma agressividade
condizente com o grau de violência experimentado. O “preto que vivia com sua mãe” exalava um
“bafo de pinga”, “tinha as mãos grossas como lixa”, “resfolegava em cima dela”, isso, porque:
Tornaram-se rotineiras as incursões do padrasto ao quarto da enteada. Era sempre
idêntico, um ritual. Mudo, curto e sofrido. Ele se masturbava enquanto a acariciava, às
vezes com algum desespero e brutalidade, chegava a deixar manchas azuladas em sua
pele. Não adiantava trancar-se: o padrasto fizera pessoalmente uma reforma completa na
casa, tinha cópia de todas as chaves. Uma vez, forçou a porta do banheiro, a única com
trinco interno, no momento em que Lavínia estava no chuveiro. Ela gritou. De porre no
sofá, a mãe falou com voz mole:
223
Pára de amolar a menina. (ERPNLB, p.122)
E, durante algum tempo, o sexo marcou negativamente a vida dessa menina molestada
com o consentimento de sua própria mãe, até que Lavínia (já casada com o pastor) e Cauby (um
fotógrafo forasteiro) se apaixonaram. Só o sentimento, contudo, não teria sido suficiente para que
tivessem corrido tantos ricos. Em boa parte de seus encontros, estavam regidos pelo princípio do
prazer, deixaram-se levar pela parte instintiva e, como viviam em uma sociedade interiorana,
sofreram drásticas conseqüências. Por meio de suas dores, assistimos à construção da crítica a
uma sociedade que se relaciona de forma hipócrita com a sua realidade.
De todas as lutas travadas pelo homem, a mais avassaladora talvez seja a luta contra a
morte. De acordo com os valores predominantes na cultura ocidental, o melhor meio de garantir a
imortalidade é recorrer à reprodução. O ato de procriar pode até mesmo mecanizar o ato sexual, o
que definitivamente não ocorrera com Lavínia, pois, em suas experiências sexuais, assistíamos a
vários tipos de nascimento, mas todos oriundos de cópulas que não deixaram frutos, ou seja, não
houve multiplicação de seres e sim fragmentações de uma mulher mutante, aos olhos de quem
sexo e morte conjugaram-se com freqüência.
Dentre as várias personas, havia a Lavínia- Shirley que não tinha pudores, transava fora
da cama, deixava-se ser penetrada à moda Kama Sutra, ía ao banheiro de porta aberta enquanto
sua outra face vestia lingerie comportada. Nesse e nos demais contextos, o corpo é forte, tem
poder transformador.
Desde o título, Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, podemos sentir o
quanto corpos e emoções encontram-se misturados. Os lábios surgem como elemento de sedução
e encantamento e, embora estejam mais carregados de sensualidade que o órgão boca, também
contêm as idéias de criação e mediação. Em função de permitir a comunicação entre os sujeitos,
224
os lábios e a boca ora podem ser geradores de alegria, ora podem carregar sofrimento, tudo
depende do íntimo que revelam.
Os cabelos de Lavínia também são muito explorados ao longo da narrativa. Seja figurando
como um convite ao sexo, seja refletindo uma alma angustiada, os cabelos de Lavínia estão
freqüentemente capturando o olhar de Cauby. De acordo com Jean Chevalier (1999, p. 155), “(...)
a cabeleira é uma das principais armas da mulher, o fato de que esteja à mostra ou escondida,
atada ou desatada é, com freqüência, um sinal da disponibilidade, do desejo da entrega ou da
reserva de uma mulher. (...)” e, é exatamente dentro dessa perspectiva, que funciona a cabeleira
de Lavínia.
Quando se recorda do primeiro encontro com a amada, Cauby frisa que seus cabelos
estavam mais compridos que na foto. Lavínia, por sua vez, prendia os cabelos num rabo-de-
cavalo com elástico para retornar para a casa do marido, e mesmo com o amante,
coincidentemente, logo levou as mãos aos cabelos ou esteve com os cabelos presos, nas ocasiões
em que se recusou a ser fotografada. Em tais circunstâncias, estava insinuantemente reservada,
inclusive porque fazia parte de seu jogo dosar bem o convite e a rejeição.
É ela quem vai até a casa de Cauby e pede “Entra em mim”. Para ele, ficaram essas
lembranças: “Foi igual adentrar um território sabendo que ele tem dono: com curiosidade e medo.
Uma invasão. Lavínia livrou-se das sandálias e deixou que eu a despisse. Depois, tirou as minhas
roupas. E acabamos no chão, sobre o tapete. Ela por cima.” (ERPNLL, p 38).
Quando pediu que entrasse nela e se despiu, Lavínia não se referia apenas ao plano físico.
Em meio aos prazeres da carne, havia um enorme desejo de comunhão e de libertação. Não por
acaso, ela jogou sua aliança dentro da bolsa. Naquele momento, não podia continuar sendo a
mulher do pastor. Quem visitava Cauby era a bela da tarde. Tal situação reflete um dos
princípios de George Bataille sobre o erotismo. Para Bataille (2004, p. 28-29):
225
Toda atividade do erotismo tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no ponto onde
ficamos sem forças. A passagem do estado normal ao desejo erótico supõe em nós a
dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua (...) Toda a realização erótica
tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que, no estado normal, é um
parceiro de jogo.
A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, quer dizer ao
estado de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca da
continuidade possível além do retrair-se em si mesmo. Os corpos se abrem para a
continuidade por intermédio desses condutos secretos que nos provocam o sentimento de
obscenidade.
Na cama, as estruturas do ser fechado de Lavínia e seus amantes, via de regra,
dissipavam-se. Segundo o narrador-personagem, sua casa era “(...) um refúgio na tormenta (os
garimpeiros estavam tocaiando os funcionários da mineradora) (...)” (ERPNLL, p. 51), lá eles não
só transavam como se anestesiavam com o auxílio da maconha plantada no quintal.
Com o Pastor Ernani houve outro tipo de entrega. Ele aparecera na vida de Lavínia, num
momento de grande desespero, somente as drogas amenizavam suas dores. Antes do pastor,
Lavínia mentia a cada vez que o tópico da conversa girava em torno de si, mais precisamente de
sua biografia.
A mentira, inclusive, não é privilégio dessa mulher confusa e apresenta-se no romance
como uma fuga, uma proteção das mais variadas situações embaraçosas. Cauby também mentiu a
respeito de sua condição financeira, a fim de passar boa imagem. O pastor fingiu ser o pai dela,
por vergonha de expor seu papel de marido no sanatório. Para cada crime ocorrido, havia várias
versões e, em quase todas essas situações, podíamos perceber ressonâncias do Teorema de
Thomas. Segundo Antonio Delfim Netto (1991), o teorema apresentado pelo sociólogo
americano Robert King Merton postula que toda situação apresentada pelos homens como real
será real em suas conseqüências. Citando Merton, Delfin Neto (1991, p.7) declara: “a profecia é,
no seu instante inicial, uma definição FALSA da situação que produz um comportamento que
transforma a concepção originalmente falsa em verdadeira.(...).”
226
Isso ocorreu em vários momentos dessa narrativa, cujo clímax constrói-se exatamente em
cima de uma falsa situação com conseqüências verdadeiras. Cauby foi acusado de ter assassinado
o pastor, não teve sequer tempo de provar sua inocência, pois o boato se espalhou com tanta força
pela cidade que o seu linchamento tornou essa acusação uma situação real em suas
conseqüências.
Por outro lado, nos raros momentos em que os personagens rejeitavam a mentira, os
demais desdobramentos da questão adquiriam conotações mais próximas de suas realidades.
Antes de se entregar ao pastor Ernani, Lavínia não conseguiu mentir. De meretriz passou a sua
esposa. Ela o fez redescobrir os prazeres da carne à semelhança do que havia proporcionado a
outros homens, mas em troca não recebeu gratificações materiais, recebeu proteção e breves
momentos de paz e serenidade.
Como definitivamente, calmaria não poderia pertencer ao vocabulário da multifacetada
Lavínia, a vida sexual do casal foi curta e somente na transgressão das regras com Cauby,
Lavínia conseguia aplacar seus fantasmas. Sem o sexo da companheira, Ernani sentiu-se velho,
perdeu o viço, mas ela não. De alguma maneira, a mulher do pastor parecia buscar nos homens
um gemido que superasse o nojo e ódio que sentira de seu padrasto na ocasião em que fora
molestada por ele. O banho prolongado que havia tomado para se livrar das lembranças do
padrasto sobre si, de fato, foi em vão e impregnada de tanta sujeira, passou a vida confusa,
incapaz de encontrar sua verdadeira identidade.
A possibilidade de ter um filho de Cauby talvez tenha sido a última chance de Lavínia se
reencontrar, mas o fotógrafo não soube reconhecer a Lavínia na Lavínia-Shirley e lhe deu um
golpe letal ao titubear diante do compromisso da paternidade. Sem Lavínia, o sexo na vida de
Cauby tornou-se, segundo ele, pornografia barata; sem o apoio imediato do amante, o aborto da
existência apenas preparou o terreno para o aborto físico.
227
Ao final do romance, Lavínia e Cauby já não possuem vida sexual. Na ausência de corpos
que se comunicam livremente, anestesiados pelo prazer, não mais como recuperar vivências e
reconhecer sujeitos. Restou ao casal recomeçar por meio de um beijo casto, com cheiros e gostos
diferentes, mas impregnado de esperança.
O romance apresenta uma literatura da angústia e possui uma específica retórica da
representação de sujeitos e da realidade. O processo metafórico se faz presente e mesmo sem
conter uma trama que se queira especular da realidade, a obra é composta de revelações.
Essas não cabem no âmbito do documentário nem da reportagem. O livro está coalhado de
referências falsas e verdadeiras, sendo que as verdadeiras são as que mais parecem falsas. O
filósofo Benjamin Schianberg foi construído com todo o cuidado para convencer o leitor de sua
existência extratextual, possui até mesmo uma editora em Portugal, todavia é fruto da
imaginação. Viktor Laurence, figura que circula livremente pelo romance, é uma referência a
um pintor do mundo extradiegético.
Com esses jogos, o autor esboça uma hiper-realidade que fica mais real que o próprio real.
As revelações presentes na obra nos convidam, assim, a um repensar dos valores sociais, posto
que, independentemente de serem comprováveis ou não, denunciam a hipocrisia de uma
sociedade machista, patriarcal, cuja autoridade vem das mãos dos mais fortes e não dos mais
justos.
Dentro dessa linha de raciocínio, o erotismo funciona à serviço da crítica social. De
acordo com Franconi (1997, p.29): “(...) É necessário analisar o discurso erótico como portador
de uma imensa gama de sutilezas, onde as posições de dominador e dominado tendem a alterar-se
constantemente.” O fato de Lavínia abrigar tantas personas reforça tal preceito, pois, ao longo de
sua vida sexual, ela ora foi vítima, ora atuou como algoz. O próprio Cauby, que tantas vezes fora
apresentado como um pobre homem que sucumbiu aos encantos da amante, conseguiu feri-la
228
brutalmente quando não reconheceu um dos desdobramentos de sua vida na alcova: o próprio
filho. Por mais que, em algumas cenas, tenha sido retratada como aquela que convida o parceiro
para a cama e deita-se por cima dele, Lavínia não monopolizou o poder.
A fachada de tolerância da mineradora com os garimpeiros, do pastor com a esposa e da
própria sociedade interiorana com o casal adúltero não consegue encobrir a hipocrisia que
alimenta as mais diversas relações por interesse, calcadas em convenções morais falidas. A
linguagem forte e, por vezes, vulgar que é empregada no relato das cenas eróticas combina com
as sujeiras existenciais que atormentam o casal, do mesmo modo que retira a relação amorosa do
lugar mítico, mostrando que, somente no estado transitório e fugaz de prazer, a busca do
impossível empreitada pelos amantes poderia obter êxito.
A escrita de Marçal Aquino forma coro com as demais escritas de nosso corpus, à medida
que se ocupa de um tema recorrente da literatura contemporânea a angústia experimentada por
sujeitos em crise. Injustiças sociais, conturbações políticas, massificação da obra de arte,
desvalorizações de princípios éticos e morais tumultuam a vida do homem pós-moderno, gerando
angústias que se refletem na ficção, por meio de uma escrita problematizadora.
Em Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, constatamos que o romance
contém vários traços da proposta literária que Franconi (1997) chama de “realismo cruel”, isto é,
funciona como uma literatura capaz de pôr em xeque os dilemas sócio-culturais da sociedade
brasileira, destruindo tabus. Esse tipo de literatura, ainda segundo Franconi (1997, p.172):
(...) revela-se numa ânsia desesperada de retratar os meandros todos da realidade. Sedenta
de verdade, exaure-se numa luta encarniçada em que, insanamente, se debate em busca de
alento. (...) Esse desejo de revelar, de “fotografar”, é uma característica de um realismo de
qualquer época, filiado à necessidade de buscar a verdade para nela espelhar o estado em
que se encontra determinado grupo, sociedade ou cultura. Estamos, portanto, diante de um
período de “realismo”, no qual o autor, diferentemente de outros “realismos” anteriores, se
229
expõe ele mesmo como algoz e vítima do ato de destruir as aparências, doendo a quem
doer. (...)
Não por acaso, a figura do personagem-escritor se faça presente, menos ingênua ainda é a
presença de protagonistas envolvidos com a fotografia. Cauby e Lavínia são despidos aos olhos
do leitor, mas durante todo o processo tentam destruir as aparências, com o auxílio da Polaroid.
Apesar dos aspectos corrosivos do romance, a escrita de Marçal Aquino abriga belas
passagens de lirismo, nas quais a beleza das relações humanas teima em resistir à aridez social.
Em algumas entrevistas, o autor confessa ter a esperança de que sua literatura seja uma
declaração de amor ao humano. Podemos dizer que, afinal, ela o é: por trás de suas denúncias,
um enorme desejo de superação da crise. Não por acaso, ao fechar o livro, junto com as
preocupações político-sociais, o leitor leve também a solidariedade de D. Jane, o amor de Cauby
e Lavínia, até mesmo os minutos de felicidade do pastor Ernani.
Todo o contexto de miséria e injustiça que cerca a tentadora “corrida do ouro” encontra-se
registrado pelas lentes de Cauby. São mulheres e crianças rotas, corpos de garimpeiros
assassinados, vielas sem o devido tratamento sanitário, prostitutas de beira de estrada, enfim, o
lado preto e branco da vida pública pontua o texto independentemente dos constrangimentos que
possam causar, ficando para a cama, a vida privada, o papel de abrigar as angústias dos seres
estilhaçados que compõem este cenário.
230
4. INTERSECÇÕES E DISSONÂNCIAS NA LITERATURA DA ANGÚSTIA
A verdadeira revolução não é a revolução nas ruas,
mas na maneira revolucionária de pensar.
(Charles Maurras)
As obras estudadas formam um conjunto representativo de uma das tendências
contemporâneas na Literatura Brasileira, porque, paralelo às características peculiares a cada
uma, existem diretrizes de ordem temática e estrutural que as aproximam. No plano temático, elas
231
partilham a representação de uma realidade brutal em seus diversos matizes. E, no que diz
respeito à estrutura, apresentam, entre outros aspectos, um forte traço em comum: misturam a
estrutura típica do romance com elementos estruturais de outros tipos de texto em prosa.
Em todos os romances analisados, verificamos que o tema da angústia surge como o
resultado de uma tensão experimentada pelo eu pós-moderno, quando o mesmo se percebe
impotente em face de uma realidade brutalmente esmagadora. Em decorrência das diversas
pressões sociais, o sujeito pós-moderno sofre com a fragmentação de sua identidade e, sobretudo
com a sua impotência em combater seus problemas sociais e existenciais: as dificuldades vividas
pelos escritores (pressão do mercado editorial, a crise da representação no tocante às fronteiras
entre a mentira e a ficção e à própria concepção da obra de arte), a violência urbana, a falência
dos valores morais, a noção imprecisa de felicidade.
Essa impotência gera uma forte angústia que, de maneira diferenciada, marca a trajetória
de todos os protagonistas do nosso corpus. Tecla viveu a angústia de ser fiel à sua memória na
escrita de “O bruxo do Contestado” bem como sentiu a brutalidade dos períodos de guerra e
ditadura, a família de Gerd era composta de seres tão angustiados com a situação sócio-político-
econômica na qual se encontravam que acabou se estilhaçando; Samuel experimentou a angústia
de refletir sobre o valor da mentira na vida em sociedade, chegando até mesmo a defender o
trabalho do falsário; Carlos e Francisco foram atormentados pela pressão do mercado editorial e,
angustiados, tentaram entender seus mundos a partir do cruzamento entre a invenção e a razão; os
personagens de Eles eram muitos cavalos conviviam diariamente com a angústia de sobreviver
mais um dia na esmagadora e violenta São Paulo do mesmo modo que Cauby e Lavínia foram
marcados por uma incompletude existencial tão brutal que não conseguiram gerar nada além da
angústia e do sofrimento.
232
Esses tópicos dão origem a outros subtemas que, em diferentes graus, foram trabalhados
pelos autores. A relação dialética entre mentira e verdade, por exemplo, foi bastante abordada.
Seja como tema de discussão, seja como elemento gerador de jogos políticos e hipocrisia social, o
desafio de encontrar a “verdade” em mundos e relações interpessoais abalizados em mentiras e
falsidades aparece com força em nosso corpus. As relações maternais, via de regra, são
destituídas de amor, gerando sujeitos, como Samuel, Gerd e Lavínia, sem referências familiares,
propensos aos desvios comportamentais. Com exceção de D. Juta e algumas operárias
paulistanas, as mães e madrastas são capazes de causar traumas irreparáveis.
As relações entre homem e mulher, quando existem, são também conflituosas. A traição
ora aparece como um fantasma, tal como no caso de Gerd e Juta, corroendo as relações, ora
torna-se pública e notória, ocasionando tragédias, como a vivida por Cauby, Lavínia e o pastor
Ernani.
No cenário político e no mercado profissional, as relações falseadas se repetem. Tanto as
manobras políticas empreendidas pelos poderosos quanto os interesses capitalistas do mercado
editorial agridem o cidadão comum. Aquele que busca a realização pessoal ou profissional, caso
não se corrompa, acaba vencido por uma realidade brutal estruturada em interesses; não, em
princípios.
Apesar de tudo isso, os romances estudados não apresentam discursos céticos sobre a
vida. A angústia, longe de refletir conformação, representa o incessante desejo de transformação.
Embora não exponham soluções para os problemas atuais, essas obras nos convidam à luta por
um mundo melhor. Refletir sobre os princípios éticos e morais, bem como resgatar criticamente
zonas sombrias de nossa História não aniquilam o sofrimento, mas constituem um passo decisivo
para a construção de relações mais equilibradas.
233
Tantas tensões políticas, sociais e até mesmo existenciais resultaram em interessantes
representações da realidade. Promovendo um diálogo entre tradição e modernidade, os autores
recuperaram alguns princípios da verossimilhança aristotélica assim como transgrediram alguns
paradigmas ficcionais da tradição. Silviano Santiago, Godofredo de Oliveira Neto, Carlos
Sussekind &Francisco Daudt, Luiz Ruffato e Marçal Aquino resgataram a técnica de composição
híbrida do romance, com o intuito de aumentar o potencial de comunicação do romance e com o
fim de, cada um a seu modo, promoverem diálogos entre os vários campos da arte (Literatura e
Cinema), entre a arte e a ciência (Literatura e História).
Não é de hoje o interesse da crítica pelos intercâmbios ocorridos no interior do romance.
Segundo Tadié ( 1992), desde 1938, Albert Thibaudet destacava a capacidade de o romance
atrair para dentro de si as outras formas em prosa. Ele chegou a chamá-lo de “Gênero
imperialista”, dado o seu poder de absorção dos demais gêneros.
Os romances do nosso corpus partem dessa característica própria da obra romanesca e
promovem uma radicalização desse processo. Relato de memória, técnicas cinematográficas,
elementos da Tragédia, em resumo, as mais diversas manifestações artísticas, muitas vezes até
mesmo referentes à poesia, são aproveitadas como instrumento de revitalização da estrutura
romanesca.
Traçando um histórico do romance, Massaud Moisés (1982) identifica dois grandes
momentos. No primeiro, que vai desde as origens do romance até o Realismo, o crítico ressalta o
emprego da imaginação plástica a serviço de uma representação organizada da realidade, pautada
numa relação mais referencial entre significante literário e objeto do mundo exterior.
Com o Simbolismo, inaugura-se um segundo momento, no qual a representação da
realidade começa a absorver o caos presente no mundo externo e a perder o compromisso com a
referencialidade. Com isso, entra em cena uma imaginação cada vez mais transfiguradora. Ao
234
absorver o caos do real, sem se preocupar em ordená-lo no universo ficcional, o autor faz com
que a narrativa seja a própria realidade a ser conhecida, libertando-a progressivamente da
condição de “arte refratária do real”.
Em plena virada do século XX para o XXI, vemos que essa tendência do romance
moderno de recriar um caos simultâneo ao do mundo real não só continua sendo empregada pelos
ficcionistas como vem provocando expressivas transgressões nos elementos do romance, numa
tentativa contínua de ruptura da superfície do real e de convite à reflexão crítica sobre a vida.
Se antes o romancista enxergava a realidade para o leitor, entregando-lhe imagens
compatíveis com o seu ponto de vista; agora, o que o leitor tem recebido do autor constitui um
conjunto de perguntas e inquietações acerca de um dado tema e contexto. Ciente de que não
encontrará mecanismos literários para construir uma visão totalizante sobre os seres e o mundo, o
autor investe maciçamente na expressão do fragmentário e do simultaneismo, no deslocamento de
papéis e na descentralização do relato.
Nessas obras, a relação entre o mundo literário e o mundo não-literário agrega caracteres
tanto do documental quanto da poesia. Isso faz com que a narração, sem perder de vista a
criticidade no enfoque do contexto, seja impregnada de subjetividade. Não uma subjetividade
subordinada ao sentimentalismo ou à fuga do real. Quando grifamos o subjetivismo presente nos
romances, estamos chamando a atenção para o fato de que cada recorte da realidade responde ao
olhar de cada enunciador que se encontra destituído do compromisso de promover a visão
totalizante sobre o real - tão almejada por autores do passado.
De acordo com Vera Follain Figueiredo (2006), muitos romancistas pós-modernos optam
pela primeira pessoa narrativa, com o fim de relativizar a dita verdade absoluta. Essa primeira
pessoa, normalmente, veicula um depoimento ou uma autobiografia, por meio dos quais a figura
do narrador onisciente e pretensamente neutro sai de cena para que se deixe o outro falar, na
235
esperança de que cada um seja o narrador de sua própria estória. Dentro dessa perspectiva, que
para alguns críticos constitui uma grande utopia e para outros um desafio a ser superado, surge
uma forte necessidade de se desvelarem as mediações e, não por acaso, o romancista lance mão
de um narrador que externalize sua própria ignorância ou inquietações existenciais, frisando,
assim, que o sentido atribuído ao real depende de um determinado ponto de vista.
Dentro desse filão contemporâneo o qual chamamos de Literatura da angústia, se por um
lado, Silviano Santiago, Godofredo de Oliveira Neto, Carlos Sussekind &Francisco Daudt
partiram da crise do romance para desnudarem as brutalidades da vida pós-moderna, por outro,
Luiz Ruffato e Marçal Aquino retiraram a metaficção do centro do palco e conjugaram tema e
estrutura ficcional de modo que o literário provocasse uma série de inquietações no leitor. Ao
questionarem a escrita literária convencional e a noção de realidade dita objetiva, por meio da
transgressão dos modelos canônicos, estes autores valorizaram o plano do enunciado e criaram
uma literatura que aproveita a rotina de uma dada sociedade ao mesmo tempo em que se
sobrepõe ao cotidiano, reluzindo-o e ampliando a nossa capacidade de compreendê-lo.
Considerando que o nosso corpus representa uma variedade dentro da unidade, ou seja, é
composto de obras que traduzem de diferentes formas a fragmentação imposta ao sujeito pós-
moderno pela brutalidade de uma dada realidade, apresentaremos, neste capítulo, uma leitura
comparativa das obras, com o fim de destacarmos suas similitudes e diferenças na prática da
Literatura da angústia. Além das características comuns a todas as obras já apresentadas, existem
alguns traços literários que recaem apenas em algumas obras. Isso nos permitiu visualizar que,
dentro desse conjunto, a maior aderência temática e/ou estrutural existente entre alguns romances
viabiliza, para fins de organização das análises, a formação de dois subgrupos: os que exploram o
metaficcional e os que recorrem à experimentação. Sendo assim, na próxima seção trataremos da
análise comparativa do primeiro enquanto na última seção abordaremos o segundo subgrupo.
236
4.1 Uma personagem chamada escritor
Os estudos romanescos contidos no capítulo 2 de nosso trabalho revelaram-nos que
algumas características literárias são recorrentes. Das várias similitudes, saltou-nos aos olhos a
recorrência da figura do escritor como personagem de romance. Em O falso mentiroso, O bruxo
do Contestado e em Autor mente muito, vemos que a personagem principal dessas obras
caracteriza-se como um escritor ocupado de seu ofício.
Pode ser o inquieto escritor Samuel ocupado com a sua capacidade de mentir, a escritora
Tecla refletindo sobre seu produto final ou então a dupla de escritores Carlos & Francisco,
envolvidos com o grande desafio de lançar uma obra; não importa, em todos esses casos, muda o
enredo, mas a figura central se repete: o personagem-escritor metaforizando, em grau maior ou
menor, o papel do autor na literatura brasileira. Isso não é gratuito, pois ocupa o cerne da questão
da representação do real em obras contemporâneas.
De um modo geral, essas obras se caracterizam pelo ataque à obra romanesca e pelo
questionamento de seu próprio fundamento. A estória narrada, na maior parte dos casos, torna-se
secundária e o importante é o como se narra. Com exceção da saga da família de Gerd, de O
Bruxo do Contestado, os episódios das demais obras não deixam fortes lembranças no leitor.
Semelhantemente ao ocorrido em alguns romances estrangeiros do século XX, mais
especificamente os de nossos vizinhos aqui na América latina, os textos de nosso corpus
transformam a realidade lingüística da narração. Em seu estudo “Tradição e renovação”, ao tratar
de obras latino-americanas do século XX, Emir Rodrigues Monegal, já alertava que:
(...) o romance, ao questionar sua estrutura e sua textura, pôs em questão sua linguagem e
converteu o tema da linguagem em tema do próprio romance. Isso aparecia em Cortazar e
237
em Lezama Lima, em Cabrera Infante e em García Márquez, e aparece (ainda mais
claramente) nos novos narradores. (IN: MORENO, 1979, p. 157)
Assim como Monegal, vários críticos argentinos, mexicanos, uruguaios ocuparam-se de
matizes dessa questão. Noé Jítrik (IN: MONERO, 1979), por exemplo, empenhou-se no
entendimento da exploração da figura do escritor como personagem. O crítico nos lembra que,
embora a figura divinizada do escritor tenha sido muito valorizada pela burguesia; no início do
século XX, a mesma passou por um processo de desintegração.
O questionamento da obra e de sua estrutura não vem sozinho, traz consigo um
questionamento mais abrangente que envolve uma reflexão sobre o papel do escritor, de seu fazer
poético e da própria relação da nossa sociedade com a literatura. Desse autoquestionamento
ficcional chegamos à Teoria do Romance, pois os autores de tais obras aderem a uma
representação da realidade que, se na superfície, por vezes, apresenta-se irreal, na essência pode
ser mais real que o próprio realismo do século XIX, à medida que substitui tipos e quadros por
sujeitos e problematizações.
Quando assistimos à predominância de uma literatura mais obscura e complexa em
detrimento da literatura simples, linear e dotada de claridade, não devemos associá-la
automaticamente ao irreal, inclusive, porque, tal como Ramón Xirau afirma (In: MORENO,
1979), muitas vezes, a tentativa de copiar o real esconde uma enorme vontade de transcendê-lo e
o fato de o poeta não mais imitar, mas, criar novas realidades poéticas, por si só, não o distancia
de uma prática realista, quando muito, corrobora para a mutação do termo realismo que, a mercê
de novas definições, vai garantindo sua existência, por meio dos prefixos, adjetivos, enfim,
diversos tipos de qualificações agregados ao seu próprio nome.
De acordo com o elemento narrativo em relevo, o romance pode ser de vários tipos. Pode
ser psicológico quando estiver centrado no personagem; pode ser social, ao ter seu foco no tema,
238
entre outros. Os romances que estudamos no capítulo 2 ocupam-se, sobretudo, do
autoquestionamento, contêm, freqüentemente, uma zona de distância entre o narrador e as
personagens quase irrisória. Há, via de regra, uma fusão entre a personagem que fala em primeira
pessoa e o narrador e, como se isso não fosse suficiente, eles são personagens chamados
escritores. Essa carga de subjetividade, contudo, não restringe os textos ao confessional ou ao
trato de um ser, pelo contrário, embora comece no particular, por meio de estratégias literárias
tais como a metanarrativa, transcende o particular e passa a abarcar questões coletivas.
Essa união, senão perfeita, é eficaz, pois as fronteiras entre real & ficção começam a ruir
no elemento narrativo que, por sua natureza, atua nos planos do real e do ficcional: o narrador.
Além disso, como, nessas obras, ele é protagonista, fica ainda mais visível o emprego das
relações intercambiáveis entre os papéis de narrador e personagens. Quando Samuel, Tecla,
Carlos e Francisco tratam de seus desafios de escrita, são ao mesmo tempo narradores que
“contam” e personagens que “são contados”. No que se refere aos que exploram a biografia,
pensamos no valor da escrita na vida desse tipo de personagem e constatamos que “É impossível
saber se se permaneceu nesse mundo para escrever ou se se escreveu para ter o direito de
permanecer nesse mundo” (MAINGUENEAU, 1995, p.60). Tecla, por exemplo, dribla a morte e
mantém viva sua voz delatora das injustiças político-sociais, por meio de seu manuscrito, da
mesma maneira que encontra forças para lutar contra a leucemia e prolongar sua vida até que
consiga concluir o seu “O bruxo do Contestado”.
Com a desvalorização do papel do escritor na sociedade brasileira, ganha força a prática
da experimentação no trato romanesco. No nosso caso, vimos que, apenas em O bruxo do
Contestado, existe uma certa preocupação com a inteligibilidade da obra, isto é, embora o
romance não seja um legítimo representante da obra fechada, isto é, da obra que, segundo Jean-
Yves Tadié (1992), é terminada por seu autor, também não representa uma hipérbole da obra
239
aberta que, novamente nos termos de Tadié (1992), comungando da abertura de sentido
preconizada por Umberto Eco (1968), é, principalmente, aberta em sua estrutura. Já, nas demais
obras, vimos que a inteligibilidade do texto nem sempre está exclusivamente em si, mas na
projeção, na exortação à atuação do leitor que, a todo o momento, sente-se estimulado a comparar
verdade & ficção, a vencer o desafio de não se perder no emaranhado de capítulos nem na
justaposição dos dados.
O falso Mentiroso, O bruxo do Contestado, O Autor mente muito são obras de estruturas
marcadas pela fragmentação, boa parte de seus próprios narradores são fragmentados e m
permutabilidade no olhar. Esse tipo de fragmentação, segundo Noé Jítrik (IN: MORENO, 1979)
rompe uma tradição do contar marcado pela homogeneidade e segurança do relato capaz de
conferir status ao escritor, o ser especial, iluminado.
Quando retoma os versos de Carlos Drummond de Andrade, repetindo a expressão anjo
torto” e substituindo o verso “desses que vivem na sombra” por “desses de asa caída”, o narrador
de O falso mentiroso coloca o trabalho de Silviano Santiago em evidência. De modo semelhante,
ao retomar possíveis comentários de Paulo Coelho, o narrador de O autor mente muito reflete um
autor que enxerga o riso como elemento corrosivo. Até mesmo um discurso da ciência pode ser
inserido no corpo narrativo sem causar danos aos indícios de autoria, pois, em O bruxo do
Contestado, as referências aos documentos históricos não apagam o ponto de vista do autor, às
vezes, é justamente nessas passagens em que mais sentimos seus caracteres singulares presentes.
A fragmentação resulta de uma forte crítica ao “poder” dos moldes e técnicas romanescos.
Por meio dessa crítica aos critérios de escrita, os autores exploram a experimentação literária com
moderação, isto é, não apagam completamente os gêneros, mas, de algum modo, lembram-nos de
que, no mundo atual, a questão dos gêneros tende a se relativizar. As reflexões dos escritores
Carlos & Francisco sobre o desafio de “vencer o Coelho com o lançamento de uma grande obra”
240
metanarrativamente se dramatizam no romance. A poesia impregna as crises existenciais de Tecla
ou mesmo os “surtos satíricos” de Samuel, sem falar na experimentação da linguagem que, por
vezes, irrompe nos textos.
O procedimento narrativo dessas obras, muitas vezes, lembra a oralidade, em função do
vai-e-vem narrativo. Isso liberta o romance de sua página gráfica, pois embora o visual da página
impressa construa um aspecto estático, o relato convida o leitor a adiantar e retardar a leitura, ou
ainda, a comparar manchas gráficas de tipologias distintas.
Em tempos de estilhaços narrativos, o destaque fica com a linguagem. Além do exercício
metanarrativo, os autores também são capazes de incorporar o obsceno, o popular e até mesmo a
colagem dos tipos textuaiso-literários na grande obra. Isso tudo reflete a rejeição demonstrada
por esses autores à forma de contar obrigatoriamente com equilíbrio e transparência. De um
modo geral, eles não comungam da tônica editorial do best seller de “mastigar os dados” para os
leitores. É bem provável que as densas estruturas de O falso mentiroso e O autor mente muito
estejam criticando a literatura de fácil digestão, negando-se à mesma, constituindo-se
hiperbolicamente na contracorrente.
Como encaixar uma narrativa arrumada na atual desordem de nossa realidade? Talvez seja
a essa falsa concepção de realidade que nossos autores tenham tentado responder. A retórica
descritivo-ilusionista não mais satisfaz o homem pós-moderno. Presenciamos uma literatura
questionadora e autoquestionadora, feita por homens que se questionam e questionam sua época e
seus mundos, também à espera de soluções. Na ausência de respostas, resta a eles e a todos a
problematização.
Considerando que Língua, Literatura, Cultura e Nação estão sempre lado a lado, podemos
supor que a rejeição aos modelos literários tranqüila e linearmente estabelecidos, bem como o
desnudamento da obra de arte como um palco no qual mentira e verdade têm o mesmo status,
241
obliquamente, expressem uma luta contra a sociedade dos tempos modernos: essa que prega a
verdade, os valores morais e a qualidade de vida, entretanto cede às leis capitalistas globalizantes
e simula uma ética, mente, “mas sempre por uma boa causa”, enfim segue apagando o indivíduo
homeopaticamente.
4.2 A transcendência do mundo cotidiano.
Como não vivemos mais um tempo de pretensas certezas, todos, de alguma maneira, são
afetados pela angústia da finitude “sem hora marcada”. Mais do que nunca, torna-se imperativo
saber viver conforme a concepção de identidade cultural pregada na pós-modernidade. Para
Stuart Hall (2004, p.13):
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés
disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam,
somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades
possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos
temporariamente.
Essa nova concepção de sujeito promove uma revisitação crítica da noção de homem e
seu papel nos mais variados campos (religioso, sociológico, histórico, artístico). Durante muitos
anos, o que caracterizou a tradição histórica ocidental foi o princípio monológico. As crenças
humanas tais como a religião, por exemplo, freqüentemente se voltaram para um único elemento.
Ora privilegiando o ser, ora a Deus, ou ainda a razão; muitas religiões concentraram-se na figura
una e por mais que tenham variado na qualidade dessa figura, constituiram-se invariável no
tocante a sua quantidade. Na atualidade, contudo, essa visão de mundo torna-se insuficiente.
No século XX, reflexões sobre temas tais como a física quântica influenciaram vários
estudiosos. Esses passaram a destacar a hipótese de que além do “ser ou não ser” aristotélico,
242
fosse possível existir um tipo de conhecimento em que as coisas “sejam e não sejam ao mesmo
tempo”. Alfredo Bosi (2002, p.141) considera que “(...) o pensamento filosófico da geração que
amadureceu no fim do século XIX conheceu a coexistência dos opostos: determinismo e
relativismo, racionalismo e voluntarismo”. Nesse período, o mito do conhecimento objetivo
entrou em declínio e a consciência de que somos regidos por fatores tais como a historicidade, o
horizonte cultural e a própria língua, colocou em crise tanto o ponto de vista uno quanto o sujeito
e, conseqüentemente, a própria representação.
A História contada até então sofreu várias críticas e esses questionamentos imprimiram
novos pontos de vista. Na medida em que tomamos consciência da relatividade das perspectivas,
ou seja, a partir do momento em que foi revelada a ausência de neutralidade do discurso do
historiador, conseguimos estabelecer o foco dos vencidos e dominados, para então repensarmos a
“... história que nos formou, que nos ensinaram na escola e que até hoje nos diz: os índios são
preguiçosos; as mulheres são menos racionais, o camponês é ignorante, o negro é
supersticioso...” LEITE (1985, p.85)
Tal como na História, na literatura contemporânea, também houve quem, conforme
salienta Leite (1985), cansasse do fingimento da neutralidade e assumisse o relativo e o subjetivo
do ato de contar. Nesse sentido, deparamo-nos com uma produção literária moderno-
contemporânea cuja grande preocupação é o drama existencial, a vida interior dos personagens
e/ou do eu lírico somadas às feridas sociais.
Quando se trata de abordar a representação da realidade no fim do século XX e início do
XXI, surgem várias hipóteses de leitura. Em 1968, o crítico Pierre Daix lançou o seguinte
questionamento:
Como o modelo e o reflexo mudaram de sentido, tornaram-se ativos na arte moderna, o
realismo pode transformar-se ou será antes um conceito gasto, ligado a um período
encerrado? A arte moderna edificou-se contra o ilusionismo, identificado com o realismo
243
imitativo, mas para atingir outras relações, mais verdadeiras com a realidade exterior, com
a natureza. (DAIX, 1968, p.121)
Hoje o tema da representação continua em voga, despertando o interesse de diversos
estudiosos. Alguns críticos retomam as idéias de Massaud Moisés (1982) sobre o “realismo
lírico”, outros seguem a linha de Cláudia Nina (2006) e falam de uma “literatura para tempos de
tormenta”, além dos que como Franconi (1997) pregam a existência de um “realismo cruel”.
Enfim, variam-se os termos, mas no bojo a questão recorrente continua sendo a representação do
irrepresentável: a existência.
Segundo Schollhammer (2002, p.76):
Uma das teses mais divulgadas sobre nosso tempo é a de que estamos passando por uma
época pós-moderna, cuja característica é um questionamento radical da realidade e,
sobretudo, da sua natureza de construção através de imagens e simulações produzidas
pelos meios de comunicação e pela tecnologia em geral.
Dentre os vários posicionamentos teóricos da atualidade, encontramos no ensaio À
procura de um novo realismo - teses sobre a realidade em texto e imagem hoje”, de Karl Erik
Scholllammer, reflexões acerca da realidade muito relacionadas ao tipo de representação
praticada pelos autores do nosso corpus. Citando Hal Foster (1994), o crítico alerta para o fato de
estarmos diante de uma “volta ao real”. Seria algo distinto do realismo histórico do século XIX,
do realismo social da década de 30 ou do hiper-realismo do movimento pop da década de 70.
Para Schollhammer (2002), existe um “realismo afetivo”. Em termos mais objetivos:
(...) é possível analisar literatura e arte contemporâneas como expressão de uma estratégia
alternativa de representação, em que a tendência experimental modernista de criar formas
heterogêneas e híbridas entre diversos regimes expressivos literatura, arte, fotografia,
cinema etc. visa a ressaltar uma concretude afetiva do signo até o limite de sua
representabilidade. (SCHOLLHAMMER, 2002, p.78)
244
Sob esse ponto de vista, não basta representar, é preciso trabalhar a linguagem literária,
para explorar as fronteiras convencionais entre ficção e realidade, obtendo-se um efeito afetivo na
criação dos efeitos de realidade. Como a imagem ganhou força na cultura do fim do século,
sobretudo em função de seu poder sobre as emoções coletivas, a linguagem pictórica tem sido
amplamente empregada nas mais diversas formas de arte (pintura, fotografia, cinema, dança,
teatro, literatura).
Na literatura, o hibridismo textual, muitas vezes, possibilita a incorporação de estratégias
de representação da realidade típicas do cinema e demais artes visuais, o que estimula o lado
sensorial e afetivo do leitor. No caso de Ruffato, mais do que falar sobre São Paulo, ele expõe
imagens da cidade, o que amplia a sensibilidade do leitor para entender o sofrimento dos reféns
dessa violenta metrópole.
A melhor maneira de abordar os traumas acumulados pelo sujeito pós-moderno passa a
ser, então, a tentativa de chocá-lo também no corpo narrativo. Como qualquer tentativa de
representação dos traumas pós-modernos seria insuficiente para representar os sentimentos do
indivíduo, tentar produzir no leitor esses mesmos sentimentos tem se mostrado bastante
produtivo.
De um modo geral, nos textos de Luiz Ruffato e Marçal Aquino, os autores deixam de se
importar apenas com o fato em si, para cuidar de expor a vivência que determinado sujeito tem
durante a ocorrência desse fato. Na verdade, funciona como se eles quisessem colocar a
existência atuando concretamente diante do leitor.
Com a ênfase no mundo dos sentidos, os textos, por vezes, podem se tornar bem
imagéticos. Encontramos, nos títulos (Eles eram muitos cavalos e Eu receberia as piores
notícias de seus lindos lábios), fortes imagens cuja significação alude aos pontos-chave dos
romances. No caso de Ruffato, o diálogo com Cecília Meireles traz à tona toda a simbologia do
245
abandono social sofrido pelos operários da cidade de São Paulo. Já, em Marçal Aquino, a frase
convida à visualização das falhas de comunicação enfrentadas por seres em crise. De certo modo,
esse apelo à linguagem pictórica pode estar relacionado à dificuldade dos autores modernos para
representar uma realidade cada vez menos inteligível, mais fragmentada, caótica e repleta de
angústias existenciais.
uma constante busca de liberdade ficcional. Seja por meio de arrojadas
experimentações, seja por meio de exaustivos exercícios de escrita, tanto Ruffato quanto Aquino
visitaram o cotidiano urbano, para a instauração de uma literatura problematizante e
problematizadora que fosse capaz de gerar liberdade. Para Emmanuel Carneiro Leão (2003, p.
17):
Liberdade é sempre libertação. Não inclui negar ou recusar, mas identificar-se e lidar com
dependências. Sem necessidade não se tem liberdade. O engodo de uma liberdade sem
libertação implica pretender-se desvencilhar-se das dependências, em buscar eliminar as
necessidades e iludir-se de somente assim poder ser livre e conquistar a liberdade. Não
pertence às possibilidades do homem construir realizações sem suposições, produzir obras
sem amarras, criar mundo sem terras. A liberdade é criativa nas dependências, é
performativa nas imposições, é inventiva na heteromania.
Dentro dessa perspectiva, ambos partiram do cotidiano, lutaram contra o aprisionamento do
literário ao convencional ou à escrita datada e, sem renegá-los em absoluto, efetuaram reflexões
impregnadas de uma apologia à Libertação em seu amplo sentido. Era preciso libertar-se da
convenção ficcional canônica, libertar-se das ideologias sociais falidas, libertar-se do silêncio
imposto pela banalização da violência e pela desvalorização de princípios éticos e morais
cultuadas no tempo presente e, assim, convidar o leitor a um repensar de seu papel na sociedade.
Nesse sentido, na literatura praticada por esses autores, por meio exposição da rotina do centro
urbano paulistano ou de uma cidade do Pará, o leitor não entra em contato com traços de tais
realidades como é levado a compreender sua identidade como algo circunscrito à relação tempo-
espaço. A descrição presente nesses romances não possui uma função exclusivamente estética e,
246
em maior ou menor grau, encontra-se sujeita ao projeto de criar a ilusão de real. Embora não
estejam subjugadas ao que Roland Barthes (In: PERSPECTIVA, 1972) postula como a exatidão
do referente conforme os imperativos “realistas” do século XIX, as passagens descritivas
conservam uma representação verossímil da realidade que, para além da representação crua das
cidades de São Paulo e do interior do Pará, são dotadas de funcionalidade no corpo narrativo.
Segundo Massaud Moisés (1982, p.218):
A imaginação não descansa na contemplação da superfície do real e no arranjo de seus
componentes; ao invés, corresponde ao desafio do caos em todas as esferas, onde se
encontram: somente poderosas imaginações são capazes de aceitar o repto e sair ilesas do
combate com a anarquia do mundo. Quando o conseguem, recriam um caos simultâneo ao
do mundo, onde o leitor culto se debruça para melhor compreender-se e compreender a
realidade circundante. Realiza-se desse modo, o superior destino do romance e,
inquestionavelmente, da própria Literatura como forma de conhecimento.
Eles eram muitos cavalos e Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios partem
exatamente desse preceito que é próprio da arte romanesca, para em conjunto com a magia da
expressão plástica, do aproveitamento das técnicas do cinema moderno ou mesmo do diálogo
com estruturas clássicas como a da Tragédia construírem um discurso que, no lugar de imagens
especulares do real, exponha recriações questionadoras do real.
Quando analisados, por esse viés, os romances nos permitem traçar paralelos entre as
escritas de Ruffato e Aquino com algumas particularidades do tipo de ficção definida por Alfredo
Bosi (2002) como narrativa e resistência. No estudo de Bosi (2002) “Resistência como forma
imanente da escrita”, o teórico alerta para a possibilidade de uma narrativa conter um discurso de
resistência sem apresentar defesa ou ataque a uma cultura política específica. Dentro dessa linha
de raciocínio, Bosi expõe que grandes autores da modernidade não mais se contentam com a
idéia de que a literatura seja uma variante literária da rotina social e passam a trabalhar a tensão
do eu e do mundo em seus textos.
247
Em função disso, esses autores elaboraram uma espécie de morte da máscara social, à
medida que, com maior ou menor intensidade, negaram os tipos sociais aclamados pelo Realismo
e as teorias fatalistas do Naturalismo. A partir de tal feito, foi possível resgatar uma gama de
vozes abafadas pelas máscaras sociais.
Nessa trajetória de libertação dos tipos, podemos, inclusive, visualizar a presença de uma
narrativa lírica que, na opinião do crítico, permite uma forte transcendência da realidade. De
acordo com Alfredo Bosi (2002, p.135):
É nesse sentido que se pode dizer que a narrativa descobre a vida verdadeira, e que esta
abraça e transcende a vida real. A literatura, com ser ficção, resiste à mentira. É nesse
horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode
ser o lugar da verdade mais exigente.
O romance-mosaico de Luiz Ruffato não se limita à representação de sujeitos
automatizados em seu cotidiano, típica do Realismo praticado no século XIX. Se por um lado, os
vários tipos sociais ali dispostos viabilizam o imediato reconhecimento da sociedade paulistana,
por outro, a turbulência emocional vivida no interior desses representantes da sociedade
paulistana, ou seja, a da mulher transfigurada pelo sofrimento gerado pelo sumiço de sua filha ou
mesmo a nostalgia do morador de um prédio diante da morte abrupta de um vizinho no cenário
violento de São Paulo retiram o caráter estereotipado de alguns personagens, impregnando-os de
tensões existenciais. Com isso, o autor expõe a crise da representação convencional da realidade,
por apresentar uma leitura crítica das tradicionais estratégias literárias de aproveitamento das
máscaras sociais no corpo ficcional.
No caso do romance de Marçal Aquino, ocorre um semelhante diálogo com os
movimentos literários que o precederam. Embora na caracterização de Lavínia deparemo-nos
com lampejos naturalistas no que se refere à influência do meio na formação do indivíduo, os
sujeitos do romance, incluindo a própria Lavínia, não reproduziram mecanicamente as regras
248
sociais de seus contextos de vida. Há, sim, sempre uma forte crise entre os anseios dos sujeitos e
os valores que os relacionam às redes sociais. Em meio a personagens predominantemente planos
como o Seu Altino, D. Jane, o menino, Viktor Laurence entre outros, estão Cauby, Lavínia e
Pastor Ernani - personagens marcados por reflexões sobre a própria existência e sobre os valores
sociais capazes de iniciar um processo dialético de representação do ser que traz à tona toda sorte
de fantasmas que assombram o homem pós-moderno.
Em nossa historiografia, literatura e cotidiano estão entrelaçados de várias formas. os
que preferem a relação especular, os que abandonam qualquer ponto de contato com o real e se
restringem a delinear apenas o cotidiano que poderia ter acontecido assim como existem os
simpatizantes da paródia e do pastiche. No caso de Eles eram muitos Cavalos e Eu receberia as
piores notícias de seus lindos lábios, o que ficou da experiência de ombrear ficção e cotidiano foi
o fato de que a realidade dos tempos atuais carrega conturbações e caoticidade tão fortes que, por
vezes, torna-se difícil delimitar quando o caos social inspira o ficcional ou quando deriva da
imaginação.
Estabelecer esse tipo de fronteira, por sua vez, não é substancial. O que de fato importa é
perceber que Ruffato e Aquino praticam uma literatura da angústia, isto é, eles, juntamente com
os demais autores do nosso corpus, compõem um filão literário contemporâneo que, a um
tempo, reúne a angústia do indivíduo diante de uma realidade capaz de esmagá-lo de várias
maneiras e a preocupação com a representação do real capaz de conjugar satisfatoriamente texto
e contexto.
249
5. CONCLUSÕES
Julgue um homem por suas perguntas, mais que por suas respostas (Voltaire)
Falácias positivistas, atrocidades em tempos de guerra, pressões do mercado editorial,
violência nos grandes centros urbanos, hipocrisias sociais. Mudam as razões, mas o resultado se
repete: todas as obras de nosso corpus apresentam sujeitos esfacelados pela angústia de se
sentirem impotentes diante de uma realidade brutal. Tal constatação confirmou nossa tese de que
os romances estudados enquadram-se em um filão contemporâneo marcado pela prática
recorrente de uma Literatura da angústia.
Algumas idéias perpassam todos os livros analisados. Samuel, Tecla e Gerd, Carlos e
Francisco, os operários paulistanos, Cauby e Lavínia são personagens marcados pela ausência,
250
isto é, percorrem toda a narrativa buscando saciar um desejo inalcançável: a felicidade. Não
conseguem ser felizes, primeiro porque não lograram transformar seus contextos sociais
opressores; segundo, porque buscam verdades absolutas, num mundo de relatividades.
Inadaptados à condição fragmentada do sujeito pós-moderno, sofrem.
Um outro tema, comum à boa parte das obras, é a presença do personagem-escritor. Numa
era de incertezas, torna-se altamente complexo e, para alguns autores, artificial, insistir na
representação de mundos organizados, em narrativas lineares. No lugar de respostas, expõem-se
dúvidas e reflexões e, para isso, nada melhor do que explorar a metanarrativa a partir da
caracterização de um escritor inconformado com sua realidade e em crise com sua arte.
Comportando-se como obras pós-modernas, os textos aparecem marcados por uma
pluralidade de estilos. Enquanto, por um lado, O falso mentiroso, de Silviano Santiago, O autor
mente muito, de Carlos Sussekind e Francisco Daudt, foram constituídos a partir de jogos
metaficcionais conjugados a certas estruturas, tais como o relato confessional, por outro, O bruxo
do Contestado, de Godofredo de Oliveira Neto, acrescentou a esses elementos o aproveitamento
ficcional de dados históricos. Com isso, esses autores questionaram as fronteiras entre o mundo
ficcional e o chamado mundo real, rejeitando, pois, uma representação circunscrita à cópia do
real.
No caso de Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato e Eu receberia as piores notícias
de seus lindos lábios, de Marçal Aquino, o questionamento da literatura pós-moderna sobre as
circunstâncias de sua gênese e suas possibilidades artísticas ocorreu por meio da experimentação.
Luiz Ruffato produziu um discurso fragmentado, incorporando modernas técnicas
cinematográficas, para representar as máscaras do cotidiano. Seu romance-mosaico liberta o texto
dos significados pré-estabelecidos para problematizar as fronteiras entre a ficção e a realidade e,
desse modo, convidar o leitor a um repensar de seu papel em meio ao caos urbano.
251
Investindo menos na experimentação, Marçal Aquino aposta na valorização do enredo
para situar-se nesse entrelugar do imaginário e do real. Por meio de uma sinuosa narrativa, o
autor promove a releitura de alguns traços da Tragédia para apresentar a estória de Cauby e
Lavínia e, simultaneamente, falar do ser humano.
A prática de uma Literatura da angústia promovida nessas obras encontra-se vinculada às
estratégias de representação da realidade que, muitas vezes, colocando em xeque a própria
representação e o próprio sujeito, visam interpretar o caos da vida contemporânea e produzir
significados, a partir de uma linguagem cada vez mais pictórica. Tal como salientou Linda
Hutcheon (1991), a ficção pós-moderna não prega nem o fim das fronteiras entre ficção e
realidade, nem a aceitação passiva do jogo especular calcado na subordinação do significante ao
significado. Para essa ficção, o mais importante é problematizar essas fronteiras. Deve ser dito
que foi, exatamente por meio da problematização das tênues delimitações entre o real e o
ficcional, que os autores de nosso corpus conseguiram, sob o signo da angústia, denunciar os
diversos tipos de brutalidade que afligem o homem dos séculos XX e XXI.
252
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