
cartas de Tecla, presenciamos uma série de movimentações utópicas paralisadas pela carnificina,
pois, de uma forma ou de outra, o gesto utópico está freqüentemente esbarrando em episódios
sanguinários. A morte de Tecla vem, então, coroar a derrocada dessa utopia:
Nem tudo foi exatamente como escrito no texto, mas foi assim que me veio à cabeça. As
palavras sobre sonhos e visões saíram escritas, mas me sinto com uma enorme mão na
boca, como a mão – acho que era do Jardel Filho – no Terra em transe, do Glauber
Rocha, que vi em fins de 68 no Rio. Cruz e Sousa no “Emparedado” me traduz: Mas que
importa isso? Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é a cor da tempestade de
dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e gritos? Qual a dos meus desejos e
febre? Vocês terão lido uma história real e uma fantasia. (...) No caminho para o
aeroporto, deixarei na nossa ex-casa da avenida Paulista este meu testamento, este meu
legado. Não vou mais olhar para trás.Também não vai dar tempo para receber o meu
buquê de frailejones, nem para reconstruir uma nova América. Suerte, Jaime! (Se der
para escolher o tema, tenta valorizar o amor entre Frida e Diego!) É isso, amigo. La risa
y el llanto. É o fim. Talvez o descanso. (BC, p. 202-203, grifo do autor)
A dinâmica de finalização do manuscrito vem ditada pelo ritmo da vida da escritora.
Quando ela está bem, o trabalho corre tranqüilamente; quando o peso da morte a assombra,
irrompe o desejo de abandonar o manuscrito ou paradoxalmente de não entregar o produto final.
De um modo geral, mesmo as suas lembranças cotidianas também influenciavam no
trabalho:
A insônia me transporta inexoravelmente para Rosa, para a minha vida em Diariamente.
Releio e corrijo O bruxo do Contestado que, de alguma maneira, serão as minhas
memórias. Mudei as palavras e frases, pois já redigi há algum tempo, acrescentei ao
texto, a lápis, alguns dados e notas explicativas que julguei serem importantes para o
leitor, alterei a colocação de alguns pronomes, regências de verbos, concordâncias. Veio
me à cabeça Manuel Bandeira:
A vida não me chega nem pelos jornais nem
Pelos livros
Vinha pela boca do povo, na língua errada
do povo (...) (BC, p. 99, grifo do autor)
Ocorre, portanto, em alguns momentos a junção da voz testemunhal, via experiências
vividas por Tecla com a consciência autoral. Como um alter ego do autor, a figura de Tecla
aparece nos dois planos: no do enunciado, ela é apenas uma narradora e no da enunciação ela
atua como uma escritora que segue problematizando a questão da criação literária.
A semelhança entre a biografia do ficcionista Godofredo de Oliveira Neto e a da
personagem Tecla confere maior credibilidade ao discurso, a priori, não-testemunhal da
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