
pichadores ludibriaram a guarda do local e também ali registraram suas
mensagens debilóides e incompreensíveis. Nenhuma surpresa, já que
nada, literalmente, escapa no país à sanha dos responsáveis por essa praga
– da Igreja da Candelária, no Rio, cuja cúpula já foi objeto de vândalos há
alguns anos, da mesma forma com o ocorrido com a base do monumento
do Cristo Redentor e sua capela, até monumentos históricos, placas de
sinalização, residências particulares, bancos de praças, portas de lojas,
viadutos, muros, passarelas para pedestres, pontos de ônibus, terminais
ferroviários... é interminável a lista de alvos dessa trêfega tribo de boçais
que encontra sua razão de ser em enfear terrivelmente as cidades
brasileiras, com ênfase especial para São Paulo. (Não confundir esses
pichadores com os grafiteiros, artistas muitas vezes anônimos que,
embora nem sempre dotados de grande aptidão, têm a preocupação
estética como base).
O fenômeno desafia estudiosos. As tentativas feitas até agora não
foram capazes de fornecer explicações convincentes e, mais que tudo, não
conseguiram fazer quase nada de prático para deter a onda de vandalismo
alimentado a spray. (A exceção fica por conta de ONGs em diferentes
cidades, aqui e ali associadas a órgãos públicos, que procuram atrair os
jovens vândalos para programas de convivência social. Em alguns casos,
vem se conseguindo êxito.) Entre as muitas cabeças que se debruçaram
sobre essa praga social inclui-se até a filósofa Marilena Chauí, quando se
via na terrena condição de secretária municipal da Cultura da então petista
prefeita Luiza Erundina (1989-1993). Chauí chegou a ensaiar um ensaio
(sic) de interpretação do fenômeno pichação numa das incalculáveis vezes
em que vandalizaram o Monumento à Imigração Japonesa da escultora
Tomie Ohtake, no canteiro central da Avenida 23 de Maio, que liga o
centro ao Parque do Ibirapuera. Sem muita convicção, a secretária
arriscou uma exegese freudiana que passava pela pichação como algo
relacionado à afirmação sexual dos jovens beócios responsáveis.
(...) O crescimento desordenado e incontrolável das grandes cidades,
somado a desigualdades sociais obscenas – quadro agravado ainda por
cima por duas décadas de crescimento econômico medíocre –, levou ao
constante pisoteamento dos direitos civis dessas populações. Chegamos à
brasileiríssima situação de termos cidadãos sem cidadania. Esse cidadão,
em geral jovem, com baixo nível educacional, desempregado e sem
perspectivas, pode até ter nascido na cidade, mas não se sente um natural
dela. E, não se sente, principalmente, responsável por ela, muito menos
“dono” de uma fração ideal dessa cidade que, bem ou mal, o abriga. Ele é
alienado da cidade, no sentido primeiro da palavra – é alheio a ela. As
crises políticas, a descrença nas instituições e nos mecanismos de
funcionamento do Estado e da sociedade completaram o serviço: a cidade
não é dele, é “deles”. De alguém, dos ricos, talvez, ou dos que são vistos
como ricos, e também de um governo remoto, impessoal, ineficiente e
muitas vezes corrupto, que administra – em geral, mal – a vida que ele vê
acontecer à sua frente. Eles picham, metaforicamente, um país em que
não acreditam”
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cf. site Ibest, coluna “No mínimo”, 19/02/2004.
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