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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Paula Mastroberti
PETER PAN E WENDY EM VERSÃO BRASILEIRA:
UMA JANELA ABERTA PARA O LIVRO COMO SUPORTE HÍBRIDO
Porto Alegre, 2007.
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Paula Mastroberti
PETER PAN E WENDY EM VERSÃO BRASILEIRA:
UMA JANELA ABERTA PARA O LIVRO COMO SUPORTE HÍBRIDO
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do grau de Mestre, pelo Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Letras da
Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul.
Dr. Vera Teixeira de Aguiar
Orientadora
Porto Alegre, 2007.
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A Érico e Julia, (re)pouso após todos os meus vôos, âncoras
sem as quais eu viveria à deriva.
AGRADECIMENTOS
Pelas mais diversas razões, que variam do estímulo proporcionado por uma palavra à
indicação de uma leitura, do interesse intelectual demonstrado por esse trabalho ao apoio
emocional e afetivo, gostaria de agradecer:
A Profa. Vera Teixeira de Aguiar, mestra emotiva e fundamental, sempre aberta às
minhas propostas e inquietudes; a Profa. Adriana Rossa e a Peter O´Sagae, editor do site
Dobras de Leitura, pelas respectivas sugestões na área da neurociência e na área da semiótica,
determinantes para os rumos tomados nessa dissertação; ao corpo docente do PPGL da
Faculdade de Letras da PUCRS, cujas disciplinas cursei, representado na pessoa da Diretora
Maria Eunice Pereira, pela acolhida carinhosa e compreensiva a esta aluna “estrangeira” e um
tanto turbulenta. Também agradeço a Marília Fichtner, pela troca faiscante de idéias e
orientações recebidas na área da psicologia; a Adriana Bayer, a confiança e amizade que
recobriram nossas produtivas conversas regadas a tantos copos descartáveis de café; às
secretárias Mara e Isabel, pelos prestimosos auxílios e paciente gentileza. Gostaria ainda de
incluir os nomes de Lenice Bueno da Silva, gerente da Editora Moderna e Camila Fiorenza
Crispino, projetista gráfica, pelas informações fornecidas via email.
Além desses, quero incluir, de modo especial, a oportunidade de aprendizado e de
convivência oferecida pelo grupo de pesquisa e crianças participantes do CLIC, projeto no
qual estive inserida enquanto bolsista durante esses dois anos. Por fim, agradeço também ao
CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), órgão financiador
e suporte fundamental do trabalho de pesquisa que ora se apresenta.
Por que falar de mim? Não é decente, normal, sério que,
tratando-se de ciência, de conhecimento, de pensamento, o autor se
apague em sua obra e se dissipe em um discurso tornado impessoal?
(...)
Não é ciência anônima que se exprime por minha boca. Eu não
falo do alto de um trono de Garantia. Ao contrário, minha convicção
guarda uma incerteza infinita.
Edgar Morin
RESUMO
Este trabalho parte da concepção do livro como objeto de função estética e
comunicativa, signo que indica seu conteúdo e que chama a atenção sobre si mesmo
enquanto suporte, com potencial para ser reconhecido como objeto de arte. Para isso, a autora
recorreu às categorias classificatórias da função estética e artística na localização do livro
como objeto estético de Gérard Genette, aos escritos de Paul Valéry e às reflexões de
designers como Richard Hendel e Guto Lins, entre outros. Em seguida, analisou os discursos
verbais e visuais da edição Peter Pan publicada pela Editora Moderna, Selo Salamandra,
em 2006, dentro de uma concepção que prevê a sua integração em um composto híbrido e
sinfônico, cujas diretrizes foram desenvolvidas a partir das categorias de análise do discurso
conforme Genette, estabelecendo paralelos e inter-relações comportamentais entre a voz
visual e a voz verbal. Depois, penetrou nos seus elementos semióticos, aos quais denominou
melódicos, demonstrando a correspondência sígnica e transcriativa de uma linguagem para
outra, inspirada sobretudo em Julio Plaza, no iconologista Otto Pächt e no psicólogo cognitivo
Rudolf Arnheim. Recolheu uma amostra iconográfica histórica para exemplificar o
comportamento das diversas ressignificações visuais e o modo como elas influenciam no e
são influenciadas pelo percurso diacrônico das edições da obra de James M. Barrie. A análise
estendeu-se aos discursos em seu comportamento integrativo dentro de uma concepção de
sinfonia maestrada pelo projeto gráfico; foram incluídos comentários sobre a tradução de
Ana Maria Machado, porque considerados parte constitutiva do discurso híbrido apresentado
na edição em pauta. A autora também se ocupou do potencial receptivo do objeto-livro, a
partir da configuração de um receptor presente em sua capacidade cognitivo-intelectiva e
cognitivo-sentimental, a partir de uma reflexão de Gaston Bachelard sobre a apropriação
dinâmica ressonante e repercutiva da arte pelo sujeito. Buscando amparo teórico em Edgar
Morin, da sociologia, e António Damásio, da neurologia, em contraponto à estética da
recepção, de Wolfang Iser e Hans Robert Jauss, apresentados junto à hermenêutica da arte
conforme Otto Pächt, localizou no corpus seu potencial perceptivo sentimental e
intelectivo. Aqui, foram úteis as categorias de contraponto desenvolvidas pelas
pesquisadoras Maria Nikolajeva e Carole Scott para o modo como os discursos gráfico-
visuais e verbais se interrelacionam e se oferecem à recepção. Com base nesse levantamento,
a autora simulou um leitor-modelo no ato de manipulação e leitura das páginas do livro. Suas
considerações finais, longe de se mostrarem conclusivas, entendem essa dissertação como
provocativa a novos questionamentos. Sobretudo, no que tange a interação não apenas
intelectual, mas emo-afetiva com o objeto estético, prevê-se o prosseguimento em direção a
uma pesquisa empírica, a fim de constatar como se dão de fato as interações do receptor com
a edição analisada. Por fim, as referências visuais necessárias anexadas atuam como exemplo
e amostra onde devem repousar os conceitos levantados, deixando-se ressaltar em seu
comportamento apelativo e qualidades gráfico-visuais significativas, ao mesmo tempo em que
contextualiza o corpus selecionado.
PALAVRAS-CHAVE
Literatura infanto-juvenil — Peter Pan e Wendy — discurso híbrido — literatura e design
gráfico.
ABSTRACT
The notion of a book as an object with aesthetic and communicative functions is the
basis for this work. The book is a sign that points to its content and draws attention to itself as
a support, with the potential to be recognized as a work of art. To validate this concept, the
author uses Gérard Gennete's classification categories that determine the aesthetic and
artistic functions of the book as an aesthetic object; Paul Valéry's writings; and the thought of
designers such as Richard Hendel and Guto Lins, among others. She then provides an
analysis of the verbal and visual discourses in the book Peter Pan published by Editora
Moderna, Selo Salamandra, 2006, within a notion that establishes it as a hybrid and
symphonic composite, the guidelines to which are built upon the discourse analysis
categories proposed by Genette. In this analysis the author observes how the correlations and
interrelations between the visual and the verbal voices are established. She then delves into
its semiotic elements, which she called melodic elements, in order to demonstrate the signic
and transcreative correspondence from one language to the other, inspired mainly by Julio
Plaza, the iconologist Otto Pächt and the cognitive psychologist Rudolf Arnheim. She selected
a historic iconographic sample to exemplify how the various visual ressignifications occur
and how they influence and are influenced by the diachronic path of the editions of James M.
Barrie's work. The analysis encompasses discourses and their integrative aspect within a
conception of a symphony conducted by the graphic project. Considerations about Ana Maria
Machado’s translation are included in the analysis because the author sees it as a constitutive
part of the hybrid discourse presented in the edition discussed. Attention was also given to the
reception potential of the book as an object, assuming a receiver in possession of his/her
intellective-cognitive and sentimental-cognitive capacities, based on Gaston Bachelard’s
thought about the dynamic, resonant and reverberating appropriation of art by the subject.
She identified the sentimental and intellective perception potential in her corpus, anchored in
Edgar Morin’s sociology theory and António Damásio’s neurology theory in contrast with the
Wolfgang Iser’s and Hans Robert Jauss’s reception aesthetics, presented alongside with the
hermeneutics according to Otto Pächt. In this regard, the categories of counterpoint
developed by Maria Nikolajeva and Carole Scott for the way how the graphic-visual and
verbal discourses are interrelated and received proved useful. Based on this survey, the
author simulated a model-reader in the act of manipulating and reading the pages of the
book. Her final considerations, far from being conclusive, conceive this dissertation as a
provocative element to further discussion. Above all, in what concerns not only intellectual
but also emotional-affective interaction with the aesthetic object, she foresees a continuity
towards empirical research aiming at verifying how the interactions of the reception and the
analysed edition are actually carried out. Finally, the visual references annexed function as
examples and samples from which the concepts brought into discussion stem. These visual
references lend themselves to highlighting their enticing quality and significant graphic-
visual features while contextualizing the selected corpus.
KEY-WORDS
Children’s and Adolescent Literature – Peter Pan and Wendy – hybrid discourse – literature
and graphic design.
SUMÁRIO
A JANELA.......................................................................................................................... 11
1 A BORBOLETA .............................................................................................................. 18
2 O CONCERTO................................................................................................................. 34
2.1 Vozes.......................................................................................................................... 41
2.2 Melodias .................................................................................................................... 53
2.3 Composição sinfônica ................................................................................................ 67
3 A PLATÉIA...................................................................................................................... 75
3.1 Protoleitura................................................................................................................ 75
3.2 Recepção intelecto-sentimental .................................................................................. 83
3.3 Contrapontos ............................................................................................................. 91
3.4 Intérpretes e ouvintes ................................................................................................. 97
3.5 Ruídos...................................................................................................................... 100
A JANELA SEMPRE ABERTA........................................................................................ 106
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 112
Sobre Peter Pan e Wendy............................................................................................... 112
Sobre análise do livro ilustrado como objeto autográfico e alográfico........................... 113
Sobre a recepção do livro enquanto objeto autográfico e alográfico.............................. 114
ANEXOS........................................................................................................................... 115
CURRICULUM VITAE.................................................................................................... 126
11
A JANELA
...while she was dreaming the window of the nursery blew open, and a boy
did drop on the floor. He was accompanied by a strange light, no bigger than your
fist, which darted about the room like a living thing;
Sir James Matthew Barrie
Entendo-me como uma janela aberta. Não sou nada senão o que a medida de tudo o
que me atravessa. Tenho uma forma; mas o que eu sou depende do que permito entrever, do
lado de dentro e do lado de fora. Sou apenas uma janela; mas quantas paisagens, quantos
acontecimentos interiores e exteriores, uma única janela pode mostrar! Quantas pessoas sobre
ela se debruçam, ou através delas se exibem, quanto tempo passa, quanta coisa passa, quantos
sóis e luas, quantas mudanças entre as quatro paredes, num mundo: quanto uma simples
janela deixa entrever!
Esse trabalho pretende-se um pouco como me apresento: uma janela aberta a algumas
possibilidades. Sobretudo, possibilidades de aproximação de outra janela, apaixonante e
aberta ao imaginário o livro e, em particular, o livro ilustrado. Contudo, é através de
Peter Pan, publicação recente da Editora Moderna, sob o Selo Salamandra, que realizo um
velho sonho infantil: o de retornar ao meu personagem mais querido o Eterno Menino a
quem destinei desde sempre uma janela especial, feita de fantasias e sentimentos. Aquele que
acompanhar essa prática até a sua conclusão poderá compreender que, para mim, um
sentimento profundo de paixão não é subjacente ao trabalho intelectual e criativo, mas, como
faço questão de evidenciar, apresentam-se tão interligados quanto o objeto do qual ora me
acerco é capaz de inter-relacionar linguagens diversas.
Na verdade, tudo começou muito antes que eu me desse por conta: minha mãe
colecionava livros infantis ilustrados. Não qualquer livro, mas aqueles nos quais encontrava
prazer estético em olhar as figuras. Ela não se importava se as histórias se repetissem nas
coleções, contanto que os ilustradores fossem interessantes e diferentes. Ou seja, mais do que
preocupada com um acervo de contos de fantasia, que ela igualmente apreciava, ou com a
idéia de que tivéssemos leituras variadas a nossa disposição, preocupava-se com um acervo de
livros como objeto de arte. Encapava cuidadosamente essas edições, para que as
manuseássemos sem estragar. Devo a ela, em razão disso, dois discernimentos básicos, que
influenciariam minha visão do livro como objeto e da literatura de um modo geral: o primeiro
é a noção de que não havia apenas uma versão do mesmo conto, uma única maneira de
12
ilustrá-lo, mas inúmeros textos (e adaptações), bem como versões visuais de uma mesma
personagem, de uma narrativa, ou diversas maneiras de significá-las; o segundo, o
aprendizado de que o livro é um objeto de valor, algo a ser apreciado por si mesmo, e não
apenas por seu conteúdo verbal.
Ao tornar-me escritora e ilustradora, não houve como escapar a essa influência: para
mim escrever é bem mais do que produzir um texto literário, e publicar significa muito mais
do que ver impressas minhas palavras e minhas artes numa série de maços de papéis
encadernados. Não dissocio meu discurso de sua encarnação gráfica, mas vejo-os em sua
forma integral estética e comunicativa. Alguns atribuem o amor ao objeto-livro um caráter
fetichista, mas que arte não lida exatamente com esse movimento estésico do ser em direção
ao objeto, nem que seja com intuito de simples contemplação? Trata-se de um sentimento que
transcende o mero colecionismo: muitos visitam livrarias como quem vai a uma mostra de
arte, outros especulam sebos como quem garimpa um tesouro; folheio encadernações como
quem interage com a obra de um artista, buscando relações entre o título, a capa, as fontes, a
diagramação e o seu conteúdo. Desnecessário ou irrelevante, diriam alguns. Será? Pretendo
demonstrar que não.
Quando persegui os rastros de estudos realizados no Brasil sobre o assunto, encontrei
abordagens as mais diversas, a maioria dentro de um espírito contemporâneo preocupado com
a crise do ato de leitura, especialmente entre os jovens. Esses estudos se esforçam, sobretudo,
em especificar uma certa linguagem poético-narrativa localizada na intersecção das fronteiras
dos campos teóricos da literatura, das artes plásticas e da comunicação: o livro ilustrado. Na
área da literatura, as reflexões dão primazia aos fenômenos verbais, tratando a imagem como
algo denotativo à palavra, em detrimento de suas especificidades semióticas; na área das artes
plásticas ou comunicativo-visuais, registra-se o contrário: o texto verbal apresenta-se
analisado apenas para localizar os aspectos ícono-formais da imagem em contexto gráfico. Na
educação, encontrei uma preocupação essencial com o potencial receptivo e a aplicação
pedagógica do livro ilustrado infanto-juvenil gênero onde se concentram os interesses
referentes à produção e análise da obra poético-narrativa híbrida.
Após esse rastreamento, cujo resultado reconheço efêmero e incompleto, concluí que
não como abordar o discurso híbrido que se constitui nos livros ilustrados (estabeleçam
eles ou não uma relação simétrica entre verbo e imagem) utilizando um viés teórico que
submeta uma linguagem ao comportamento da outra; não como analisar um discurso que
se pretende híbrido, onde as linguagens se interpenetram indissoluvelmente em um mesmo
13
suporte, estudando apenas uma à exclusão da outra; é preciso, prioritariamente, analisar esse
suporte, localizá-lo no tempo e no espaço, e determinar como ele substancializa os discursos
em sua ambiência, de forma a reconstituir o modo como eles se oferecem à recepção. Percebi
também que muito das conclusões emuladas nos estudos até aqui rastreados, ao dirigirem suas
atenções ao gênero infanto-juvenil, acabam circunstanciados por uma necessidade de
aplicação pedagógica no ensino da literatura e/ou das artes em sala de aula, deixando de lado
uma reflexão estética mais ampla, que localize no livro, e em especial no livro ilustrado, o seu
potencial artístico, para além de mero auxiliar na introdução do jovem ao mundo letrado.
Também encontro algumas lacunas no que se refere às investigações sobre o livro enquanto
produto cultural cujos aspectos gráfico-visuais implicam um destinatário
1
, e enquanto
primeiro mediador entre os discursos substancializados e seu receptor, capazes de gerar por
eles mesmos uma expectativa acerca do seu conteúdo. As lacunas estendem-se aos estudos
diacrônicos acerca das atualizações gráfico-visuais de uma dada obra e de como essas
atualizações m interferido na história da sua recepção. Também constatei a necessidade de
delinear um outro tipo de receptor, apto não apenas a decodificar ambos os discursos, mas
integrá-los em sua consciência sentimental, pois o discurso visual, em razão de suas
especificidades, produz um impacto sobre a emoção, para depois ser compreendido de
modo crítico. É assim que o objeto-livro causa uma relação de empatia com seu perceptor,
através da geração de um sentimento, que se estenderá pelo conteúdo verbo-visual como um
todo. Como diria Paul Valéry:
Em resumo, um belo livro é, sobretudo, uma perfeita máquina de ler, cujas
condições são definíveis quase que exatamente pelas leis e métodos da ótica
fisiológica; ele é ao mesmo tempo um objeto de arte, uma coisa que tem contudo sua
personalidade e que porta as marcas de um pensamento próprio, sugerindo a nobre
intenção de uma organização bem sucedida e intencional.
2
(VALÉRY. 1970: 1249.
Tradução minha.)
A partir dessas amplas considerações, foi necessário fazer um recorte, cujas bordas
não poderiam delimitar um corpus qualquer, mas uma obra cujas qualidades estivessem acima
de qualquer suspeita quanto às suas qualidades artísticas e poéticas, a fim de que eu pudesse
me sentir livre para uma abordagem mais tranqüila de suas variadas apresentações editoriais
através dos diferentes suportes gráficos, além de constituir-se um objeto apaixonante de
1
Reconheço e gostaria, contudo, de destacar os esforços de Graça Lima e de Guto Lins no sentido de tentar
demarcar o que é esse produto — o livro infanto-juvenil —, qual sua origem e os modos como ele se direciona,
ou é direcionado, ao público ao qual se destina.
2
En résumé, um beau livre est sur toute chose une machine à lire, dont les conditions sont définissables assez
exactement par les lois et les méthodes de l´optique physiologique; et il est en même temps un object d’art, une
chose, mais qui a sa personnalité, qui porte les marques d’une pensée particulière, qui suggère la noble
intention d’une ordonnance heurese et volontaire.
14
pesquisa. Assim, Peter Pan entra por esta janela que ora se abre. E, com ele, toda uma história
pessoal de leitura que me acompanha desde a infância e que a partir desse momento vem à
tona. É através de uma história privada em relação à obra de Barrie e da paixão pelo livro
como suporte estético de leitura que reuni minhas reflexões, aliadas a uma observação desse
fenômeno literário que aporta no Brasil atualizado em nova edição, cuja escolha se justifica
simplesmente por ser a única edição integral disponível para pronta aquisição.
__________
Imagino que as idéias e conceitos ressoados acima passem ao largo do desejo de
muitos pelo direito a uma produção literária mais acessível do ponto de vista econômico, e
que eu deveria pensar, como pertencente a um país onde poucos têm acesso ao livro, em
termos mais práticos, simplificando ao máximo a divulgação da literatura; justifico-me
dizendo, em primeiro lugar, que acorro em defesa de uma categoria quase invisível aos olhos
da crítica, dos meios editoriais, bem como o de muitos leitores a do artista e do designer
gráfico; em segundo, que não concebo uma idéia de democratização da leitura via
empobrecimento do seu suporte, mas sou a favor do livre e opcional acesso à qualidade
artística em todos os níveis e linguagens, sem obliterar as necessárias publicações de bolso
(pocket-books), mais econômicas e que podem ser co-editadas, a exemplo das publicações
estrangeiras, ao lado das edições de luxo (hardcover) e das de encadernação mais simples
(paperback). Bom seria se as bibliotecas, preocupadas não com a qualidade, mas também
com a resistência do seu acervo, adquirissem e disponibilizassem as edições mais sofisticadas
para usufruto dos seus leitores.
Um outro ponto temático que pede uma justificativa mais detalhada é o de ter
escolhido dirigir meu olhar a uma obra inglesa, dando prioridade a algo que aparentemente
não deveria dizer respeito à pesquisa brasileira, ainda que o faça sob o viés da análise dos
trabalhos translativos que envolvem a importação do elemento cultural alheio. Parece-me que
a longevidade do seu percurso, sobretudo sua universalidade não constituem motivo suficiente
para tal escolha e que é preciso dar uma resposta àqueles que, porventura, queiram cobrar-me
a necessidade de uma ão afirmativa em relação a valores culturais que nos sejam, enquanto
jovem nação, mais pertinentes. É a esses que devo, portanto, o ponto de vista que desenvolvo
a seguir: não como revigorar nossa arte, literatura e qualquer outro pensamento de
qualidade se não nos apropriarmos desse entrecruzamento entre o popular e o erudito, entre a
tradição e a inovação, entre a indústria do entretenimento mais banal e o produto cultural de
qualidade, que constituem nossa cultura para além das fronteiras territoriais e históricas, em
15
cujo contexto estamos todos inseridos; não se constrói nada de novo nem a partir do nada,
nem a partir de um pensar ortodoxo, mono-referente, mas a arte e a cultura são, sobretudo,
tanto mais ricas quanto mais se mostrarem permeáveis às infinitas interferências e
contradições; nossa leitura do mundo é tão miscigenada quanto as linguagens que nos
atravessam e através da quais respondemos; como se o bastasse, essa leitura, essas
respostas, são todas igualmente heterogêneas, múltiplas. Assim, não posso esquecer o meu
pertencimento a um meio urbano localizado no sul do Brasil, tampouco uma imersão na
cultura européia/norte-americana, influente em maior ou menor grau sobre todos nós. Não
posso negar ou virar as costas a tudo o que formou o meu imaginário e tomou os meus
sentimentos, mas oferecer, em contrapartida, um olhar crítico e consciente, particular e
regurgitante. Peter Pan e Wendy foi incorporado, sim, como parte importante do meu
patrimônio cultural pessoal; se minha escolha recaiu sobre essa obra e não outra, foi por uma
proximidade que menos tem a ver com a localidade política ou geográfica, mas com o espaço
vivido na cultura e no afeto.
__________
Tenho por premissa, pois, investigar os aspectos sensoriais e significativos que
suportam e transportam o conteúdo informativo verbal e visual presentes na mídia gráfica
impressa em papel, em especial nesse objeto de duplo valor, preferencialmente quadrado ou
retangular, constituído de folhas de papel variadas em número, tamanho, cores e espessuras,
presas à brochura de um corpo denominado livro.
Minhas investigações foram estruturadas dentro de um discurso que se realiza da
seguinte forma: no primeiro capítulo, trabalho na concepção do livro como objeto de função
estética e comunicativa, signo que indica seu conteúdo ao mesmo tempo em que chama a
atenção sobre si mesmo enquanto suporte, com potencial para ser reconhecido como obra de
arte. Para isso, recorri ao pensamento teórico de Gérard Genette, cujas categorias
classificatórias da função estética e artística percebi adequadas na localização do livro como
objeto, e também às reflexões poético-filosóficas de Paul Valéry, cujo depoimento converge
tanto com as intenções depostas por aqueles que estão nos bastidores da produção do livro,
quanto por quem o valoriza como suporte significativo. Nesse capítulo, como em todos os
outros, o corpus escolhido — Peter Pan, publicado pela Editora Moderna/Selo Salamandra —
atuará como exemplo, uma amostra onde devem repousar os conceitos levantados, deixando-
se ressaltar em seu comportamento e qualidades gráfico-visuais significativas, ao mesmo
tempo em que é contextualizada no sistema editorial onde se insere.
16
No segundo capítulo, parto para uma análise dos dois discursos verbal e visual
do objeto-livro em questão, dentro de uma concepção que prevê a sua integração em um
composto híbrido e sinfônico, cujas diretrizes aproveito para desenvolver. Dentro dessa
primeira abordagem, recorro mais uma vez a Genette e às suas categorias de análise do
discurso, estabelecendo paralelos e inter-relações comportamentais entre a voz visual e a voz
verbal. Numa segunda abordagem, penetro na estrutura discursiva em seus elementos
semióticos, que eu denomino melódicos, mostrando como se a correspondência sígnica e
transcriativa de uma linguagem para outra. Para tanto, inspiro-me basicamente nos estudos de
Julio Plaza, com base na semiótica de Charles Sanders Peirce, além de teóricos cujos
trabalhos se detêm na área da iconologia e da percepção visual, como Otto Pächt e Rudolf
Arnheim, entre outros. Também nesse segmento recolho uma amostra iconográfica histórico-
transsignificativa, com o objetivo de exemplificar o comportamento das diversas
ressignificações midiáticas e visuais e o modo como elas influenciam e são influenciadas no e
dentro do percurso diacrônico das edições da obra Peter Pan e Wendy. Numa abordagem
final, reintegro ambos os discursos analisados dentri532(do )-e(s)6.0212.80892(s)-4.n.31915( )-26.5957(Pd(e)-2.80762( )-0.6383(c)-2.80762(e)-13.4459(p)103.4459(nt)1.405.532(o)10.6383(br)34.6166(t)1.407762(a)444]T.61789(c)-2.80762(ur)n3.21279(s( )250]TJ-on Tf56.28 0 Td[( )3.4472(at)3.21279(i)1.38762(a)444]TJ/R59(nt)1.80892(m)-9.234491.28 Tf19.92 0 057(a)-2.81021( )250]TJ- )250]TJ-22.80892(i)-9.23449(n)-9.233/R9 11.28 T40381(i)1.166( )-207446(i)-9.23384(o )-29279(a)-2.80827(ns)5.31915( )-218.085(r).0217(,)5.31.40511(v)10.6383(e)-13.4459(r)3E)6382549-2.80892(t)-9.4459(r)3.4466(om)1.dieelrPvezes abor 10.6383(a)-2.80459(r)3o.80762(e)-2( )250]TJ-oc3.4459(p)103.4462(i)-9.
17
Carole Scott, que me orientaram na detecção desse potencial. Ainda nesse capítulo, abordo as
intenções comunicativas dos discursos gráfico-visuais e verbais envolvidos na edição
analisada, a partir de um contraponto de endereçamento previamente introduzido; simulo um
receptor modelo em seu ato cinético de, ao manipular as páginas do livro, realizar a leitura do
texto literário conjugado às ilustrações ali substancializadas; por trás dessa simulação, aplico
as teorias de Iser e Jauss, somados aos procedimentos de Pächt, à psicologia cognitiva visual
de Arnheim e aos estudos técnicos sobre a cor de Israel Pedrosa. Os nomes aqui reunidos
conformaram a base para o procedimento exegético de um discurso visual não limitado ao
conteúdo significativo da forma (os aspectos denotativos, simbólicos ou alegóricos), mas
voltado igualmente para a forma e técnicas de execução como significantes em si mesmas
(aspectos conotativos relativos à escolha de um vocabulário de formas, cores, textura, traço e
material empregado na execução), realçando aspectos específicos dessa linguagem, cujos
modos de apreensão sem dúvida diferem dos da linguagem verbal. Além disso, ancorada em
Pächt, procuro situar-me dentro ainda de uma perspectiva de contextualização histórica
sincrônica onde artista e momento da criação estão inseridos e diacrônica, ao longo da
qual se manifesta e se localiza cada olhar receptivo. Em seguida, teço algumas considerações
finais; longe de se mostrarem conclusivas, elas entendem essa dissertação como provocativa a
novos questionamentos. Está claro que muito ainda por pesquisar e realizar nas áreas onde
esse trabalho se insere e às quais procura integrar. Sobretudo, a questão da percepção não
apenas intelectual, mas que englobe o envolvimento emo-afetivo no ato de interação com o
objeto estético, parece-me merecer um espaço exclusivo e especial de pesquisa e de
observação empírica, espaço esse que pretendo criar numa oportunidade futura.
Por fim, antes de encerrar, gostaria de advertir sobre a existência de um anexo em CD,
no qual reúno uma vasta amostra de ilustrações, incluindo as que compõem o corpus. Julguei
necessário também reproduzir as capas das outras edições brasileiras ilustradas de Peter Pan e
Wendy, acompanhadas de comentários considerados relevantes; embora não constituam meu
objeto de análise, suas imagens e as informações que as acompanham contribuirão, tenho
certeza, para com a formação de uma idéia do percurso gráfico-visual e editorial da obra no
Brasil.
18
1 A BORBOLETA
Atribuamos a sonhos, antes da leitura, num canteiro, a atenção que solicita
qualquer borboleta branca...
Stéphane Mallarmé
Em 13 de novembro de 2005, a colunista gaúcha Martha Medeiros confidenciava aos
leitores, em sua coluna domingueira
3
, o prazer sensorial experimentado no ambiente de uma
livraria, comparável ao de uma galeria de arte. Martha assim se refere aos inúmeros produtos
do mercado editorial dispostos em prateleiras:
É uma embalagem, o é outra coisa. Mas nem por isso é arte menor. As grandes
editoras descobriram a importância de seduzir antes de a primeira gina ser aberta,
e estão investindo na contratação de profissionais que sabem transformar uma
simples capa num objeto de desejo. (MEDEIROS. 2005: 18.)
Admitindo a intenção transpirante na embalagem do livro enquanto produto
cultural de consumo em cumprir a função de seduzir e vender-se ao leitor, não podemos,
tal como Martha, obliterar o estímulo sensorial proporcionado antecipadamente por esse
objeto aos nossos olhos e às nossas os, muito antes de ser aberto e de nos revelar seu
conteúdo, estímulo que pode estender-se ao olfativo (um sem-número de pessoas, eu entre
elas, costumam apreciar tanto o cheiro do papel e da tinta impressa em páginas novas, recém-
abertas, quanto o aroma antigo exalado pelos livros amarelados pelo tempo e uso).
A colunista exagera ao favorecer a exposição de livros numa loja especializada em
detrimento de todo o restante das mostras de artes plástico-visuais contemporâneas,
linguagem que confessa o compreender
4
; mas tem razão em exaltar o potencial do livro
como obra de arte. De fato, muitos livros que podem perfeitamente exercer essa função,
produzidos, aliás, exatamente com essa intenção. Seja ou não uma novidade conceitual
derivada dos avanços da tecnologia, com vistas a torná-lo competitivo em relação a outros
meios de divulgação e comunicação da informação, seja para destacá-lo como objeto de valor
estético-significativo ou ainda caso de uma reavaliação crítica dos conceitos ou
preconceitos que circundavam até recentemente o design gráfico industrial,
majoritariamente visto como arte menor e prostituída ao mercado de consumo, a verdade é
3
As novas galerias de arte. Jornal Zero Hora, Caderno Donna. Porto Alegre, 13 de novembro de 2005, p. 18.
4
“O desapontamento com a arte contemporânea me leva a buscar outras galerias de arte: as livrarias. (...)eu sou
do tempo em que a arte despertava alguma emoção — não necessariamente júbilo, podia também ser revolta,
espanto, medo, mas comovia de alguma maneira. E, o mais importante: havia um compromisso com a beleza,
um pacto que já não existe e que me faz falta. Esculturas, quadros e gravuras precisam estabelecer alguma
relação com os meus olhos, não apenas com o meu cérebro.” (MEDEIROS. 2005: 18.)
19
que tem aumentado, consideravelmente, no mundo e no Brasil, a preocupação com a
qualidade do material gráfico e do trabalho criativo que envolve essa produção de um modo
geral e com as reflexões críticas sobre o assunto e o seu registro
5
. No texto de apresentação
para uma publicação sobre a história do design gráfico brasileiro, de autoria de Mário de
Camargo, editor da Bandeirante S. A. Gráfica e Editora, é salientada a sua importância:
Os gráficos e seu trabalho especializado acompanham a história do Brasil pouco
mais de 150 anos. Registraram todos os acontecimentos, participaram das lutas e
glórias, compuseram todos os textos dos fatos, sendo responsáveis por nossa
memória impressa. (CAMARGO. 2003:7.)
Trata-se, sem dúvida, de uma arte controlada diretamente pelos interesses do mercado.
Porém, por trás e para além dos limites dos seus processos e interesses, rompe uma força
criativa praticamente anônima, mas que indubitavelmente provoca nossos sentidos e emoções,
partindo de um conceito que varia, como toda expressão criativa humana, conforme a época e
a localização do sujeito criador.
__________
Na verdade, a idéia de que o livro pode ser produzido com intenções estéticas ou
adquirir status de obra de arte não é nova, mas inerente à sua própria invenção. O valor
estético desse objeto tem sido especulado, desde a sua origem até a forma tal como hoje
conhecemos, bastando recordar as obras luxuosas, ricamente encadernadas, com incrustações
em ouro e pedras preciosas e ilustradas à mão, ostentadas pelos nobres feudais da Idade
Média, a exemplo do famoso calendário Trés riches heures, do Duque de Berry
6
.
Na maioria das vezes, entretanto, este status é alcançado a partir de um
reconhecimento posterior, quando o tempo se encarrega de aferir aura benjaminiana
7
ao
objeto inicialmente destinado como suporte e consumo de leitura. E, embora Stéphane
5
Graça Lima, ilustradora e professora da UFRJ, resume em sua dissertação algumas causas para o
desenvolvimento da produção gráfica no país, a partir dos anos 60: “[...] de um lado, o governo atuou como
investidor em áreas geradoras de infra-estrutura para a indústria, como transportes e comunicação; de outro,
decretou medidas que viabilizaram subsídios, reduziram impostos e taxas de importação. Esse processo foi
fundamental para as empresas gráficas e de papel, tornando possível a resolução de seus problemas básicos de
industrialização. Com isso, o setor livreiro foi amplamente beneficiado.” (LIMA. 1999: 1.)
6
Très riches heures, obra produzida pelos irmãos Limbourg entre os anos de 1412 e 1416 para seu mecenas, o
Duque de Berry, é um clássico exemplo de livro-das-horas medieval, uma coleção de textos ricamente ilustrados
à mão para cada hora litúrgica do dia, do mês e das estações do ano, incluindo calendário, orações e salmos para
momentos de íntima devoção. Possuir um livro-das-horas era um hábito entre os nobres leitores do século XV. A
peça citada encontra-se hoje no Museu Condé, em Chantilly, França. (Fonte: DUFOURNET, Jean. Les très
riches heures du Duc du Berry. Paris: Bibliothèque de l’Image, 1995.)
7
Aura essa que podemos definir como “O hic et nunc da obra de arte, a unidade de sua presença no próprio local
onde se encontra.” (BENJAMIM. 1980:7.) Segundo Benjamim: “É aos objetos históricos que aplicaríamos mais
amplamente essa noção de aura (...).” (Idem. Ibidem: 9.)
20
Mallarmé
8
e Paul Valéry
9
, bem como a poesia dadaísta e concretista, tenham explorado ou
abordado as possibilidades estéticas presentes no corpo gráfico poético e mesmo teóricos
como Yuri Lotman
10
tenham se ocupado desses aspectos, a verdade é que, pelo menos no
âmbito dos estudos das letras e nas últimas cadas, o livro como suporte gráfico tem
chamado a atenção como interferente na recepção do texto literário, talvez em razão do
aparecimento de outras mídias de acesso e de publicação do texto verbal, como a internet, o e-
book o livro eletrônico e suas variantes, com as quais o suporte tradicional em papel,
antes exclusivo, se contrasta.
No Brasil, o interesse pelo assunto, no que concerne aos estudos acadêmicos, parece
ser majoritariamente estimulado pelo desenvolvimento acelerado, quantitativo e
qualitativamente marcante da produção literária destinada ao público infanto-juvenil
11
. Ao
investigar o estado das pesquisas, críticas e ensaios publicados dentro da área da Literatura,
admirei-me da notável hegemonia do gênero presente nos corpora e exemplificações. Não
8
O livro, expansão total da letra, dela deve tirar, diretamente, uma mobilidade e, espaçoso, por
correspondências, instituir um jogo, não se sabe, que confirme a ficção.” (MALLARMÉ. 1991: 125-128.)
9
Mais à cotê et à part de la lecture même, existe et subsiste l’aspect d’ensemble de toute chose écrite. Une page
est une image. Elle done une impression totale, présente un bloc ou un systéme de blocs et de strattes, de noirs et
de blancs, une tâche de figure et d’intensité plus ou moins heureses. Cette deuxiéme manière de voir, non plus
successive et linéaire et progressive comme la lecture, mais immédiate et simultanée, permet de raprocher la
typographie de l’arquitecture, comme la lecture aurait pu tout à l’heure faire songer à la musique mélodique et
à tous les arts qui épousent le temps. [Mas, à parte da leitura ela mesma, existe e subsiste o aspecto conjunto de
toda coisa escrita. Uma página é uma imagem. Ela dá uma impressão total, apresenta-se como um bloco ou
sistema de blocos e estratos, de pretos e brancos, uma mancha de figura e intensidade mais ou menos bem
sucedidas. Esta segunda maneira de ver, não mais sucessiva e linear e progressiva como a leitura, mas imediata e
simultânea, permite aproximar a tipografia da arquitetura, como a leitura que remete a todo momento à música
melódica e a todas as artes que esposam o tempo. ] (VALÉRY, Paul. 1970: 1246-1252. Tradução minha.)
10
[] where the graphic system coincides with the phonological system and they are both present in the mind of
the native speaker as a single system, graphics more rarely become a bearer of poetic meaning. But in cases
where the automatic character of their association is disrupted and a conflict is felt between these systems, the
possibility of imbuing the graphics with poetic meaning arises. [Onde o aspecto gráfico coincide com o sistema
fonológico e estão ambos presentes na mente do falante da língua natural como um sistema único, o aspecto
gráfico mais raramente se torna um suporte poético-significativo. Mas nos casos onde o caráter automático desta
associação sofre uma ruptura e sente-se um conflito entre os sistemas, aumenta a possibilidade de o aspecto
gráfico imbuir-se de um significado poético.] (LOTMAN. 1976: 71. Tradução minha.)
11
Segundo Graça Lima, o setor livreiro foi beneficiado pela votação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, que colocou a literatura e a formação do leitor como prioridade no processo de aprendizagem,
configurando, “uma produção, acima de tudo, voltada para a caça ao leitor [...]; quer-se agradá-lo e capturá-lo
pelos meios que o momento indica serem os mais eficazes. Não se trata da preocupação do escritor para crianças
em buscar leitores, porém entre a busca e a caça há uma sutileza que demonstra uma mudança de pólo
catalisador dessa literatura que de motivadora passaria a motivada precisando encontrar novos meios para manter
e estabelecer seu vínculo com o leitor”. (LIMA. 1999: 2 e 3.) Também Vera Teixeira de Aguiar, em seu artigo A
literatura infantil no compasso da sociedade brasileira, irá traçar o percurso e a evolução qualitativa e
quantitativa da produção literária destinada ao público infantil e juvenil no Brasil como atrelada à formação de
identidade nacional desde a infância, ao consumo estimulado pela escola, à divulgação dos bens culturais via
veículos de comunicação e ao apoio do Estado: “A edição do livro infantil passa a merecer extremo cuidado no
que concerne o papel, diagramação e, sobretudo, ilustração. Muitas vezes, vale mais a linguagem visual do que o
texto escrito, o que, no mínimo, deve levar a questionar o conceito de literatura infantil. Como mercadoria, o
livro torna-se cada vez mais agradável e chamativo na busca de seus leitores.” (AGUIAR. 1994: 83.)
21
fujo à regra, como fica evidente no título desse trabalho; porém, acredito que nenhum texto
literário, qualquer que seja o gênero, escapa, em termos receptivos, à influência do objeto que
o substancializa, e que os aspectos visuais e estéticos da publicação de uma obra certamente
são considerados no momento de sua escolha na prateleira de uma livraria, ficando bem
entendido que trato aqui de uma situação ideal, ou seja, de um consumidor com poder
aquisitivo que lhe permita tal escolha.
Perguntar dos motivos que levam um leitor a escolher determinada edição de, por
exemplo, Peter Pan e Wendy para citar meu objeto de análise e não outra; ou das
razões que levam a sua possível rejeição, alheias ao valor do seu conteúdo literário
inquestionável; perscrutar os motivos pelos quais um projeto editorial adota um conceito ou
padrão estético e não outro eis o que o que me motiva nesse momento. Suponho que
muitos, a maioria de nós, leitores ou não-leitores brasileiros, conheçamos a obra de Sir James
Matthew Barrie nem que seja por ouvir falar. Os mais velhos, pela publicação de Monteiro
Lobato
12
, que introduziu as gerações brasileiras da primeira metade do século XX nas
aventuras do estranho menino que não cresce através da personagem Dona Benta; os mais
jovens, de meados do século XX aos do culo XXI, geração exposta ao cinema, ao vídeo e
ao DVD, têm normalmente seu primeiro contato ora através da clássica e mais conhecida
adaptação para o cinema de animação, produzida por Walt Disney
13
, ora através da mais
recente e belíssima produção cinematográfica dirigida por P. J. Hogan, lançada em 2003
14
.
Todas essas adaptações só confirmam o eterno fascínio que a históri
22
principal e geralmente o são). O estilo e as cores sobressaem-se em primeiro lugar; o título
vem a seguir — e isso bastará para que eu, caso seja seduzida, me aproxime e deseje
bisbilhotar o que em seu interior. Desse modo, o objeto-livro recém-lançado exerceu
sobre mim seu efeito, saiba eu ou não do que se trata. Além de possuir em si mesmo
qualidades visualmente apelativas, o produto, se lançado por uma editora disposta a arcar com
outros custos para sua promoção, ainda se destacará multiplicado em dezenas de exemplares,
dispostos em uma montagem organizada, ocupando largo espaço na vitrine ou, quem sabe,
redimensionado em proporções gigantescas no display que se interpõe entre mim e os
corredores da loja.
A3oup3-15.9574(d)4.61789( )-281q13.4459(m)1.40511( )-239.4( )-5.319l59(m)1.405ã59(m)1.4059574(po)-0.0892(.)-5.31892(i)1.40381(pa)-2.8m1(a)-2.80892(.)-5.31574(po)-0.0892(i)1.403279(r)3.21279(e)-2.80892(dor.0204(t)1.405pon0762( )-37.234(-15.9574762(nt)1.409574(po)-0.011(e)-2.80762( )-239.u574(po)-0.0079(i)-9.23319(m)1.40511(e)-2.8076(i)]TJ3009(r)3.21279(o )-90.4255(po)-0.089(i)]TJ3ont19(a)-13.4459( )-502511(or)3.21234(-15.9574762(up)10.6o3(m)-9.2344( )-239.362(15.9574762(nt)1.40255(po)-0.0762( )-239.511(t)1.405762(o )-132762(o )-239.3636 -2ue)(c)m)-9.2366(a)-2.80762(c)7.83034(c)-2.80789( )-101.064(po)-0.079(e)-13.4466(di)1.81021(e)-13.4485(e)-13.483(t)-9.23319(e)-5791021( )-292.553(d)10.6383(a)7.829485( )-250(d)/R25 11.28 Tf229.92 -355.6 Td[(di)-9.2P)-(pos)-4.827(m)1.40311(or))3.4472(r)3.21279 r
23
objeto, a ser avaliado do ponto de vista dos seus aspectos formais e visuais. Agora, se pode
ser considerado, do ponto de vista ontológico, uma obra de arte propriamente dita ou não,
muito dependerá da intenção autoral-editorial e/ou do modo como este artefato é recebido e
apropriado pelo público, em dada época e sítio cultural. Aqui, oriento-me novamente segundo
as palavras de Genette, no que se refere ao conceito de obra de arte:
[...] uma obra de arte é um objeto estético intencional, ou, o que dá na mesma: uma
obra de arte é um artefato (ou produto humano) com uma função estética. [grifos do
autor]. (Idem. Ibidem: x.)
Parece-me que nos situamos numa época particularmente atenta à valorização estética
do livro em seus aspectos gráfico-substanciais, onde por vezes seu conteúdo literário ou
informativo pode ser rebaixado a um segundo plano; meu ponto de vista pretende referir-se
especificamente à produção editorial destinada ao público jovem, mas posso sem dúvida
estendê-lo aos gêneros destinados aos leitores maduros
19
.
Para chegarmos a um consenso sobre o fato de que todo objeto-livro possui valor ou
exerce uma função estética, podendo alcançar ou não o status ontológico de obra de
arte, vou localizá-lo, dentro das categorias reelaboradas por Genette a partir da nomenclatura
proposta por Nelson Goodman, como um objeto de imanência autográfica. Por objeto de
imanência, Genette entende aquele cujas características estéticas se encontram manifestas no
corpo físico (como no caso da pintura, ou da escultura, que constituiriam objetos de
imanência física), ou para além dele (como a música e a literatura, que são ocorrências
manifestas em objetos de imanência ideal: instrumentos musicais, suportes gráficos). Essas
características de imanência, Genette afirma obedecerem a dois tipos de regime: autográfico
e alográfico. Quando a função estética do objeto se apresenta contingente ao próprio corpo
matérico
20
, ele comporta-se dentro do regime autográfico. quando a função estética se
localiza além do corpo físico, sendo nele apenas substanciada, o objeto obedece ao regime
19
Basta que eu lembre as criativas e sofisticadas edições da Cosacnaify, publicações que muitas vezes tem a
intenção de fazer refletir sobre nossos modos de interação com o suporte gráfico, como, por exemplo, em
Bartleey, o escrivão, de Herman Melville (2005), onde cada exemplar apresenta uma capa lacrada em costura
com linha vermelha e todas as páginas do conto, intercaladas pela imagem de um muro, apresentam-se unidas,
necessitando que as rasguemos com um cortador de papel que funciona ao mesmo tempo como um marcador,
incluído na edição, para termos acesso ao conto propriamente dito.
20
Estranhos ao âmbito das letras, porém usuais no campo das artes plásticas, o termo matérico ou matericidade
define uma concepção contemporânea de “estilo de pintura que explota los poderes de evocación de los
materiales [...] por la força expressiva que tienem. [estilo de pintura que explora os poderes de invocação dos
materiais (...)pela força expressiva que têm.] (Guía del arte del siglo XX. 1981: 544. Tradução minha.) Utilizarei
o conceito ao longo desse trabalho no sentido mais amplo que ela representa, tanto em relação a matéria plástica
que substancializa um objeto artístico qualquer, quanto em relação ao objeto-livro, quando sua função estética
reside em sua própria substância física. Não se trata de simples materialidade visual da forma, linha ou cor, mas
de um material que procura chamar a atenção para as qualidades estéticas intrínsecas a sua própria plasticidade
sensível também ao tato ou cheiro.
24
alográfico. Embora tenha razões para admitir que o livro, conforme veremos mais adiante em
minha análise, possa submeter-se aos dois regimes, no momento interessa situá-lo dentro do
regime autográfico, ou seja, localizar sua função estética dentro dos limites do seu suporte
físico.
Dentro do regime autográfico ao qual dado objeto obedece, Genette ainda prescreve,
como vimos, dois tipos de comportamento. Em um deles o objeto autográfico seria de
imanência única, cuja idealidade
21
se apresenta na matéria única, exclusiva de um objeto em
questão:
As obras autográficas com objeto de imanência única são, essencialmente, os
produtos resultantes de uma prática manual transformadora, evidentemente guiada
pelo espírito e auxiliada por instrumentos, e até mesmo por máquinas mais ou menos
sofisticadas, mas, por princípio, não prescrita por um modelo pré-existente (material
ou ideal) do qual ela apenas garantiria a execução. (Id. Ibid: 7.)
É onde ele inclui a pintura e todas as manifestações artesanais ou manuais realizadas
uma a uma e exclusivamente pelo próprio autor, sendo esse procedimento a origem do seu
valor perante o receptor. No segundo tipo, os objetos comportar-se-iam em imanência
múltipla, ou seja, sua idealidade material manifesta-se em um certo número de reproduções,
ainda que variáveis a partir de uma matriz concreta, onde “o objeto singular obtido na
primeira fase é, portanto, o instrumento de produção dos objetos múltiplos produzidos na
segunda”
22
.
Essa última categoria me interessa, porque permite atribuir valor artístico aos objetos
reproduzíveis por meios mecânicos: por exemplo, em uma edição de Peter Pan e Wendy,
ainda que cada exemplar seja (re)produzido mecanicamente, guardando diferenças
imperceptíveis um do outro, corresponderá a uma matriz original substancialmente diferente
(fotolitos, ou mesmo os arquivos gerados no computador
23
). Tais diferenças se acentuarão
ainda mais à medida que o livro circula e é apropriado pelas mais variadas mãos (penso aqui
em exemplares valorizados por um autógrafo, por anotações escritas à mão feitas ao longo do
material, ou mesmo por sua raridade, elevando o seu status à obra de coleção).
Ao enquadrar como obras de arte aquelas cujo valor estético está presente na
materialidade da obra, em sua substância ou, como quer Genette, em seus valores
21
O termo idealidade, para Genette, corresponde a “um tipo comum a diversas ocorrências concretas.” (Id. Ibid:
xxiv.)
22
Id. Ibid: 22.
23
Genette não se refere especificamente às matrizes digitais. A partir de suas colocações, concluo em não
considerar as matrizes digitais como alográficas, uma vez que elas ocupam um espaço, seo matérico, virtual,
arquivada em um banco de dados passível de acesso e reduzido a um finito número de backups (o que lhe
confere limitações físicas).
25
contingentes, ainda que iterativos, o teórico abre uma possibilidade para que reconheçamos o
potencial do objeto-livro como objeto de função artística, presente em seus aspectos gráficos e
matéricos, ainda que o objeto adquirido em qualquer livraria seja, na verdade, uma cópia, cuja
matriz, contemporaneamente, muitas vezes é também ela múltipla, dada aos avanços
tecnológicos da produção visual e gráfica atual, onde amesmo a ilustração impressa pode
ser resultante de uma imagem gerada a partir de softwares sofisticados.
Porém, onde a convenção — o pacto entre produtor do livro e o seu destinatário se
inicia? Uma vez que o livro é encarado, em boa parte das vezes
24
, como mero derivado
industrial, artefato produzido por máquinas guiadas por seres anônimos não-autoral,
portanto —; como instituí-lo como objeto de valor estético? Onde localizar a intenção que
pode vir a transformá-lo em algo mais que um suporte de leitura?
Para responder a essas questões, optei por reunir uma literatura de apoio que proviesse
diretamente de quem, além de co-autor gerativo, também reflete sobre a produção editorial.
Apesar de apregoar a invisibilidade do design gráfico como uma qualidade, o designer
Richard Hendel, em O design do livro, acaba por provar que, se o trabalho do diagramador
almeja de fato a invisibilidade, isso não se deve tanto a uma falta de intenção estética, mas
muito mais ao fato de que aquele que desconhece o trabalho criativo dentro de óbvias
limitações que envolve a diagramação de um texto. Mais: o trabalho do designer é alicerce
fundamental sobre o qual todos os elementos sígnicos do livro (texto, tipos, imagens,
informações, material) se estruturam em harmonia, garantindo a sua eficácia estético-
24
Quero lembrar, entretanto, das produções artesanais como o livro Feito à Mão, produzido manualmente por
sua autora, Lígia Bojunga; o mini-livro impresso e ilustrado pelo grupo de gravadores Flecha, do Rio Grande do
Sul, lançado em 2006, contendo o texto Quinta do Romualdo, de João Simões Lopes Neto; entre outras semi-
industriais, que misturam recursos variados de acabamento e impressão, como as da já citada Editora
Cosacnaify, além da literatura de cordel, fanzines, livros-arte como os do artista alemão Anselm Kiefer,
Waltércio Caldas, e tantos outros, produzidos de forma não-anônima, evidenciando a intenção de valorizar
artisticamente o suporte, ou de refletir sobre ele.
26
funcional, ajudando a estimular o interesse do seu receptor
25
. Diz Hendel, com relação ao
texto impresso:
O design do livro é diferente de todos os outros tipos de design gráfico. O trabalho
real de um designer de livro não é fazer as coisas parecerem “legais”, diferentes ou
bonitinhas. É descobrir como colocar uma letra ao lado da outra de modo que as
palavras do autor pareçam saltar da página. (HENDEL. 2006:3.)
A relação entre o conteúdo do texto e a forma como ele se substancializa no papel são
destacadas pelo designer, quando ele afirma: “Não é somente o que o autor escreve num livro
que vai definir o assunto do livro. Sua forma física, assim como a tipografia, também o
definem”
26
. Além disso, nesse tratado sobre a linguagem gráfica, é acentuada a preocupação
de localização histórica do texto a partir da tipografia (utilização de tipografias mais
modernas, que atualizam conteúdos antigos ou recuperação de tipos antigos que conferem
estilo ou atmosfera ao texto a ser impresso). Hendel cita ainda preferências de designers como
o do inglês David Carson, que querem ser parceiros eqüitativos do autor” e, dentro desta
concepção, “introduzir uma série de ambigüidades e multiplicidade de sentidos”
27
na
composição gráfica do texto. Consciente, contudo, da “invisibilidade” do trabalho de
diagramação, o autor reflete:
É claro que a maioria das alusões tipográficas é invisível ao leitor comum. Quanto a
mim, prefiro acreditar, porém, que as pessoas são sensíveis mesmo às percepções e
sensações das quais não tem consciência. Assim, prefiro acreditar que essas alusões
têm importância, mesmo para leitores que não as percebem. (Idem. Ibidem: 13.)
Através de exemplos e depoimentos de outros projetistas gráficos recolhidos por
Hendel, torna-se evidente o modo como as variações tipográficas e a composição da mancha,
sua disposição no papel e o formato da página podem interferir na recepção do livro enquanto
produto cultural e suporte perceptual de leitura. Ao fazer um exame crítico da tipografia e do
projeto gráfico de livros, apesar de defender modestamente a idéia de que sua “intenção é, no
25
Apoio-me mais uma vez em Valéry, e em suas preocupações em determinar o valor estético da tipografia: “Il y
a de très beaux livres qui n’engangent donnée à la lecture, belles masses de noir pur sur champ très pur, mais
cette plenitude et cette puissance de contraste obtenues aux dépens des interlignes, et qui semblent très
recherchées em Angleterre et Allemagne où l’on séfforce de rejoindre certains modeles du XV et du XVI siècles,
ne sont pas sans peser sur le lecteur, et sans paraître um peu trop archaïques. La litterature moderne ne
s’accommode pas de ces formes compactes et comme gorgées de caracteres. Il existe, em revanche, des livres
très lisibles, bien ajourés, mais qui sont faits sans grace, insipides à l’oeil, ou même franchement laids.” [
belíssimos livros que não levam à leitura, belas massas de puro preto sobre um campo muito puro, mas essa
plenitude e esse poder de contraste é obtido às custas da dependência das entrelinhas, que lembram certos estilos
do século XV e XVI que a Inglaterra e a Alemanha procuram recuperar, mas que pesam sobre o leitor, parecendo
demasiado arcaicas. A literatura moderna não se encaixa nessas formas compactas e como que excessivamente
rebuscadas de caracteres. Por outro lado, existem livros bastante legíveis, bem claros, mas destituídos de graça,
insípidos ao olho, ou mesmo francamente feios. ] (VALÉRY. 1970: 1247. Tradução minha.) Observaremos em
seguida a convergência das idéias do pensador e escritor francês com os depoimentos técnicos apresentados
neste trabalho.
26
HENDEL. 2006:11.
27
Idem, ibidem: 16.
27
mínimo, sair do caminho do texto”
28
, o designer americano acaba reivindicando para o seu
trabalho um olhar estético, imbuído de conceitos e intenções muitas vezes desapercebidos
pela consciência de quem lê.
Uma boa diagramação feita a partir de uma boa tipografia, harmonizada ao conteúdo
do texto, embora de efeito sutil, prova-se, segundo Hendel, importante na recepção de um
dado gênero literário, caso, por exemplo, da poesia:
[...] os livros de poesia dão mais trabalho ao designer. Poemas do mesmo autor no
mesmo livro podem ter formatos totalmente diferentes, exigindo muitas vezes
ligeiros ajustes, porque não têm a mesma extensão, a mesma largura ou a mesma
complexidade de estrutura. (Id. Ibid.: 50.)
Número de capítulos, subtítulos longos ou curtos, vocabulário e pontuação, uso de
aspas ou travessões, enfim, os hábitos de escrita de um autor podem sugerir ou modificar o
aspecto do texto impresso, e mesmo o do livro como um todo
29
. Como afirma Ellen Lupton
30
:
A tipografia ajudou a consolidar a noção literária de “texto” como obra original e
completa — um corpo estável de idéias expresso de forma essencial. Antes da
imprensa, os documentos manuscritos coalhavam-se de erros. Cópias eram copiadas
de cópias, cada qual com suas próprias irregularidades e lacunas. (...) A imprensa
ajudou a estabelecer a figura do autor como proprietário de um texto e as leis de
copyright foram estabelecidas no início do século XVIII para proteger seu direito de
propriedade. (LUPTON. 2006: 65.)
Em relação à produção infanto-juvenil, que acintosamente se utiliza de recursos
sensoriais com vistas a aliciar o jovem leitor, todos esses detalhes tornam-se especialmente
relevantes. Busquei reforço nas palavras do artista gráfico brasileiro Guto Lins para afirmar a
importância e as peculiaridades do design editorial para o livro infanto-juvenil, “um produto
onde convivem interpretação de texto, projeto gráfico, as mais variadas técnicas de ilustração
e todos os recursos de artes gráficas disponíveis
31
”. Lins discorre sobre as diretrizes básicas
que devem nortear a produção de um livro destinado a faixas etárias pré-especificadas, desde
a escolha da tipografia (por exemplo, o uso de fontes legíveis, apropriadas para leitores
inexperientes), até a massa de texto e quantidade de ginas, formato, etc. Ressalta a
competição do produto com outras mídias colaboradoras da construção do mundo cultural e
informativo infantil, afirmando a necessidade de conceber o livro que, como um “produto
dinâmico, tem que se atualizar constantemente”
32
. Critica os excessos, livros “que mais
parecem cinto de utilidades ou canivete suíço, que atraem a criança por serem mais
28
Id. Ibid.:16.
29
L’esprit de l’écrivain se regarde au mirroir que lui livre l’apresse. [O espírito do escritor se reflete no espelho
que a prensa lhe entrega.] (VALÉRY. 1970: 1249.)
30
Diretora do programa de design no Maryland Institute College of Art, Baltimore e curadora de design
contemporâneo na Cooper-Hewitt National Design Museum, Nova Iorque.
31
LINS, Guto. 2004:12.
32
Idem. Ibidem: 36.
28
brinquedos do que livros”
33
. Também aponta um dado interessante, resultado provável do
fácil acesso aos avanços tecnológicos digitais:
29
complementares entre si
38
. um outro contraste entre os volumes em sombra azulada e
luminosidade quase branca que compõem o rosto de um menino e ainda um outro, mais sutil,
entre o brilho do verniz
39
aplicado no título e o restante, tratado com cobertura a qual
podemos denominar encerada ou fosca [fig B.1]; na contracapa, o mesmo jogo se repete na
relação entre a figura menor do conhecido pirata inimigo do protagonista e o fundo; a
lombada é larga o bastante para permitir que o título, o autor, o selo editorial e a figura de
uma fada azul se instalem confortavelmente [fig B.2]. Enfim, todo o jogo de formas, texturas e
cores, provoca visualmente e faz com que o volume, multiplicado nas prateleiras, exerça uma
atração sobre seus potenciais consumidores. O título, Peter Pan, exclui a palavra Wendy
constante no original
40
, enfatizando a personagem protagonista mais popular, porém, mesmo
que não o fosse: o formato das letras sugere imediatamente que a editora pretende encaixá-lo
no gênero de aventura e fantasia infantis. O navio pirata suavemente disposto em segundo
plano reforçará essa idéia assim que nosso olhar o identificar (na sintaxe visual estabelecida
entre os elementos da capa, a imagem que representa o navio provavelmente será a última a
chamar a atenção). Também a expressão no rosto do menino — ruivo, conotando uma criança
de tez caucasiana apóia a classificação e a localiza enquanto literatura estrangeira, além de
38
“[...] as cores complementares são definidas por sua capacidade de criar um cinzento ou branco acromáticos.
Combinados aditiva ou subtrativamente, certos pares ou grupos de cores produzirão este efeito óptica, química
ou fisiologicamente.” (Idem. Ibidem: 346.) Segundo Israel Pedrosa, para “que surja a harmonia é necessária a
superação do conflito de forças contrárias, expresso pela ação das complementares. Por isso, Newton afirmava
que as complementares não são o princípio da harmonia, fundando-se esta numa maneira qualquer de identidade
das partes, e não na simples oposição das mesmas.”(PEDROSA. 2002: 160.) Sobre a harmonia das cores, ele
acrescenta: “[...] a harmonia cromática vem sendo definida como o resultado do equilíbrio entre a cor
dominante (a que ocupa maior extensão no conjunto, ou seja, a maior área na escala), a cor tônica (coloração
vibrante que, por ação de contraste complementar, dá o tom ao conjunto) e a cor intermediária (coloração que
forma a passagem, meio-termo entre a dominante e a tônica).”(Idem. Ibidem:160.) Em termos de pigmento, são
os tons púrpuras (magenta) que se opõem aos verdes na escala cromática; colocá-los lado a lado produz uma
vibração visual (um conflito), provocada pelo mútuo contraste, impedindo sua harmonização. Note-se que, na
capa da edição analisada, nem a mancha de verde, nem a de vermelho são homogêneas e puras, mas resultantes
de variações de um mesmo matiz, o que torna sua harmonização mais complexa e equilibrada. O vermelho
escolhido pela paleta do ilustrador é o alaranjado, ou seja, contém uma porcentagem de amarelo, não sendo, por
isso, uma complementar pura, assim como o tom de verde escolhido também não é a mistura de ciano (azul) e
amarelo em partes iguais. Além disso, o contraste entre elas é equilibrado pela luminosidade, em tons brancos,
róseos e amarelados, do rosto do menino e a figura azul da fada, resultando num conjunto harmônico, sem deixar
de ser vibrante.
39
A camada de verniz aplicada em partes selecionadas da capa é denominada de quinta cor pelos técnicos
gráficos. Isto porque, para cada cor impressa, é criado um fotolito de seleção (como um negativo fotográfico).
Uma impressão a cores necessita de quatro fotolitos — um para o azul ou ciano, um para o vermelho ou
magenta, um para o amarelo e um para o preto. Para aplicação do verniz, é feita, portanto, uma quinta seleção em
fotolito.
40
Na primeira edição, em 1911, o título foi grafado como Peter e Wendy, substituído por Peter Pan and Wendy
apenas quando na reedição de 1921 ilustrada por Mabel Lucie Attwell. Após a expiração dos direitos autorais de
Barrie em 1987, a redução para Peter Pan tornou-se a mais utilizada, mas é normalmente atribuída às versões
adaptativas, e não às integrais.
30
nos informar que o protagonista é uma criança de aparência levada e esperta, do tipo
predisposto a aventuras.
Ao abrir o livro, vejo que seu interior é, à primeira vista, agradável: o papel não é
branco, mas em tom marfim
41
uma preferência contemporânea, que não reflete tanto a luz
e causa menos contraste com a mancha
42
impressa em preto, proporcionando mais conforto à
visão. A mancha de texto, percebo que é constituída por tipos grandes, redondos e serifados
43
,
visando em igual facilitar a leitura [fig B.7]. Um requinte adotado pela editora, em virtude da
pouca quantidade de ilustrações coloridas: elas foram impressas em papel de gramatura
44
ligeiramente maior, e apenas no anverso da folha, deixando o verso vazio. Essas folhas foram
encartadas entre os cadernos que, costurados, compõem o miolo completo
45
, de modo que a
ilustração fique sempre à direita. Assim, a qualidade da impressão colorida melhora
possível carregar a espessura da tinta, permitindo cores mais vivas e brilhantes, sem correr o
risco de manchar o lado contrário e comprometer a leitura do texto), além de tornar-se mais
econômica, pois se criam fotolitos de seleção para quatro cores apenas em número necessário
de páginas que assim o exigem, enquanto que nas restantes é utilizado um fotolito único para
o tom preto do texto. O processo também se torna especialmente conveniente quando se
deseja uma maior liberdade em relação à disposição das ilustrações coloridas ao longo do
fluxo de páginas em preto e branco verificarei, mais adiante, em que medida a sintaxe
proposta pelo projeto gráfico favorece ou perturba o ritmo da leitura. Os capítulos, numerados
em romano e em corpo menor que o título, apresentam-se centralizados na área superior da
página, entre pequenas volutas decorativas; os títulos estão destacados mais abaixo, em
41
A edição analisada não possui cólofon, ou seja, não são fornecidos os dados técnicos sobre o livro: papel,
tipologia, fornecedor de fotolitos e nome da gráfica que o imprimiu. Segundo Crispino, o papel utilizado foi o
Chamois Duna.
42
Chama-se mancha a área que o texto ou imagem impressos ocupam na página.
43
Chamam-se serifas os arremates que espessam ou arredondam o final dos traços da letra, auxiliando a agregá-
las visualmente umas às outras, facilitando a fluidez da leitura.
44
Gramatura corresponde à medida de espessura do papel. Quanto maior a gramatura, mais espesso é o papel e
maior a sua capacidade de absorver tinta de impressão e de proporcionar vivacidade às cores, influenciando na
qualidade de impressão do livro. Em PeterPan/Salamandra foram utilizados papel 80g para o texto e 120 g para
as ilustrações.
45
O miolo de um livro é formado por todas as páginas que o compõe, executando a capa. Livros mais
encorpados costumam ter brochura, ou seja, costumam ter suas páginas costuradas em cadernos de múltiplos de
quatro, posteriormente colados à brochura. A técnica de encadernação de um livro obedece ao padrão de
montagem das gráficas e ao aproveitamento sem despe
31
tamanho bem maior. Foram usadas três fontes no projeto: duas de fantasia
46
uma para a
indicação de capítulos e de cabeçalhos, outra para o título de cada capítulo além do tipo
próprio para leitura
47
, confortável, porém não austero em demasia, para a mancha de texto.
Capitulares na mesma fonte dos títulos iniciam cada parágrafo inicial, cuja mancha toma
conta de dois terços da página, demarcando bem cada etapa da narrativa. Outros detalhes
caracterizam o capricho da edição: a falsa guarda
48
impressa em ocre do mapa imaginário da
Terra do Nunca [fig B.3]; o ante-rosto, contendo apenas o título
49
e a vinheta da Fada Sininho
[fig B.4], seguida da folha de rosto propriamente dita, com a apresentação do ilustrador, do
tradutor e dos créditos de publicação cedidos ao Hospital de Great Ormond Street, presença
obrigatória nas edições de Peter Pan e Wendy do mundo inteiro [fig B.5]; por fim, as vinhetas
em preto e branco decoram o sumário e outra, meramente decorativa, permite um respiro
antes de iniciarmos a leitura da história [fig B.6 e B.7].
Esses detalhes, aparentemente insignificantes, acabam por reunir-se num todo
macrossígnico, transformando cada exemplar e o meu também em um ícone portador
de significado estético
50
, porque apela aos meus sentidos perceptivo-visuais e às minhas
emoções, criando a expectativa de um sentimento que se formará acerca desse objeto que ora
possuo; apesar disso, não posso deixar de considerá-lo um signo indicial
51
, o porque
comunica, em primeira mão e dentro de um conceito estético adotado, algo a respeito da obra
que ele contém, mas também porque induz a pensar que esse material está obviamente
46
Chamam-se tipos de fantasia os tipos ornamentais, que climatizam o livro dentro do espírito do texto. O tipo
de fantasia (Papyrus) utilizado para os títulos dos capítulos e capitulares de Peter Pan sugere, por seus contornos
ásperos, algo como uma “inscrição em pedra”, uma “escrita rústica”, contribuindo para o clima de aventura que
se pretende evidenciar na obra literária em questão. A outra fonte (Carolina), utilizada para a enumeração dos
capítulos, sugere lâminas ponteagudas, como espadas e punhais, reforçando a imagem evocada acima. Ambas as
fontes, contudo, por sua rotundidade, não são agressivas, indicando uma preocupação em passar a idéia de que se
trata de um gênero de aventura leve e descontraído, próprio para crianças.
47
Fonte utilizada: Garamond Light 12/17 (onde 12 corresponde ao tamanho do corpo da fonte e 17 o tamanho do
espaço deixado entre as linhas).
48
Guarda é o nome que se dá às páginas decorativas que iniciam na segunda capa (o lado interno da capa),
coladas à encadernação e que se prolongam recobrindo o miolo. Geralmente aparecem em livros de capa dura,
mas tornou-se comum o uso da falsa guarda em livros de capa simples, acartonada.
49
O título na folha de ante-rosto e rosto foi impresso em fonte diferente do lettering utilizado para o título
impresso na capa.
50
Julio Plaza, ao adotar o ponto de vista de Charles Sanders Peirce em Tradução intersemiótica, considera que a
produção de uma “linguagem em função estética significa, antes de mais nada, uma reflexão sobre suas próprias
qualidades” (PLAZA. 2003:23.), sendo que, para ele, o “signo estético erige-se sob a dominância do ícone”
(Idem. Ibidem:24.), atento às suas qualidades intrínsecas materiais, ou, conforme a terminologia peirceniana,
como um representamen que contenha qualidades significativas imediatas ( qualissígnicas). Acredito que a
semiótica triádica converge em direção as classificações propostas por Gerard Genette, auxiliando no
esclarecimento da abordagem do livro enquanto objeto de função estético-comunicativo.
51
Retorno à semiótica de Peirce para categorizar o livro como macrossigno que cumpre, ao mesmo tempo, uma
função indicial, como denotar a obra literária Peter Pan, entendida aqui como seu objeto de representação
dinâmica.
32
direcionado a um potencial destinatário: a organização gráfica do livro, o número de páginas,
a capa com a face expressiva do menino, as ilustrações, tudo leva a crer que se trata de um
volume criado para atingir um público infanto-juvenil ou de grau médio de maturidade de
leitura: alguém que, seguramente, consiga ler e compreender suas 256 páginas, que julgue
interessante ou necessária a inclusão de ilustrações bem elaboradas. A preocupação editorial
em atingir determinado público é revelada na diagramação do texto para essa edição,
composta com, no máximo, 28 linhas por página, e no grau de espaçamento entre elas em
relação ao tamanho da fonte, feito de modo a não tornar a leitura cansativa para os jovens
leitores, impedindo também que o livro ficasse volumoso em excesso.
Todos esses cuidados em relação ao projeto devem ser ainda contextualizados dentro
da realidade gráfica brasileira. A publicação do selo Salamandra é, na verdade, uma adaptação
gráfica de uma edição espanhola, a Santillana, informação que não obtive através dos dados
editoriais, mas a partir da pesquisa do nome do ilustrador que, para minha surpresa, o é
brasileiro, como julguei a princípio. Conforme as informações obtidas através de contato por
e-mail com a editora, foram adaptados apenas o tamanho da mancha do texto, as fontes
utilizadas, levando-se em consideração que em português os textos costumam ser mais longos
do que em outras línguas.
A opção pela adaptação gráfica a partir de uma edição estrangeira parece ser a regra
adotada no Brasil para as edições ilustradas do texto integral da obra Peter Pan e Wendy.
Entre as registradas no catálogo da Biblioteca Nacional
52
, apenas uma entre três
53
, além da
edição aqui analisada, consiste numa produção gráfica genuinamente brasileira, com capa e
ilustrações de Walter Ono: trata-se de Peter Pan: o livro, publicado pela Quarteto/FTD,
lançado em 1992, contendo a mesma tradução de Ana Maria Machado reeditada pelo selo
Salamandra
54
.
Ao perguntar-me dos motivos dessa preponderância, imagino se Peter
Pan/Salamandra reflete apenas uma economia de recursos, se não se ressente de uma falta de
52
<http://www.bn.br >. Último acesso: 2 de dezembro de 2006, 13:11.
53
As capas das edições brasileiras do texto integral anteriores ao corpus encontram-se reproduzidas no Anexo A,
em CD. A mais antiga, já esgotada, é a da Hemus (1985) [fig. A.1], que reproduz as ilustrações de Trina Schardt
Hyman (1980, EUA); segue-se logo após a da Quinteto/FTD (1992) [fig. A.2] pelo brasileiro Walter Ono,
igualmente esgotada; em seguida, a da Companhia das Letras (1999), ilustrada por Michael Foreman (1996,
ING) [fig. A.3].
54
Note-se a variação de títulos para a mesma obra de Barrie, indiciando as mais diversas intenções editoriais,
sendo que a única a preservar o título original foi a Companhia das Letras.
33
confiança injustificável no talento dos artistas locais
55
, ou ainda se o considera os aspectos
gráficos-visuais assim tão relevantes junto ao seu destinatário, a ponto de dar-lhes uma
atenção especial. Mesmo Walter Ono tem a vivacidade bem-humorada dos seus traços
prejudicados por um acabamento gráfico demasiado econômico, principalmente se levarmos
em consideração o grau de avanço da indústria editorial e gráfica nacional na década de 1990,
visível em outras publicações do período. Nenhuma dessas edições, em suma, faz jus à obra
conhecida como um clássico do gênero, presente no imaginário universal; embora publicada
ininterruptamente em inúmeras versões e adaptações desde sua introdução por Monteiro
Lobato, ela ainda não foi apropriada pelo Brasil de modo significativo.
Peter Pan/Salamandra, afora o fato de ter retomado a tradução de uma conhecida
autora brasileira, repete o percurso da maior parte de suas edições anteriores, e também de
muitos outros textos clássicos da literatura universal, aqui reproduzidos a partir de matrizes
estrangeiras. Isso importa? Depende. Para obter uma resposta precisa, é preciso seguir
adiante, e no virar de páginas ultrapassar o suspense provocado pelas duas folhas de rosto que
me separam do capítulo inicial, onde tudo começa: Peter Pan entra em cena.
55
Em relação a essa afirmação, consta, na obra Gráfica: arte e indústria no Brasil (2003:143.): “Embora sejam
profissionais pouco conhecidos, alguns designers brasileiros alcançaram ampla divulgação entre o público em
geral.” A seguir, numa legenda sobre as reproduções de trabalhos premiados, segue a informação: “os editores da
Print [uma das mais importantes publicações sobre design gráfico, editada nos EUA] só queriam um artigo, mas
dedicaram um número inteiro da revista aos designers brasileiros em 1987: por sua consistência.” (Idem: 144.)
Ainda na mesma publicação: “A maior sofisticação e a especialização desse público [infantil] exigiram produtos
de qualidade gráfica e requinte editorial semelhantes ao que de melhor se faz no mundo.” (Id.: 159.) Além disso,
a título de exemplo, cito o ilustrador Rui de Oliveira, cujo trabalho mereceu 18 prêmios no Brasil e no exterior,
incluído na lista de honra do International Board on Books for Young People (Suíça, 2002); o artista Juarez
Machado, premiado, entre outros, com o Nakamori Intemational Prize -Best Children's Book (Japão, 1977) e,
por fim, Ângela Lago, indicada três vezes para o Prêmio Hans Christian Andersen, teve seu livro Cena de rua
(Belo Horizonte: RHJ, 1994), incluído em uma coletânea da Abrams Press (Nova York) e selecionado entre os
quinze melhores livros de imagens do mundo.
34
2 O CONCERTO
Um solitário tácito concerto se dá, pela leitura, ao espírito que recupera,
sobre uma sonoridade menor, a significação.
Stéphane Mallarmé
All children, except one, grow up
56
: assim inicia a mais famosa versão de James
Matthew Barrie, editada pela primeira vez em 1911, da obra Peter and Wendy, ou
simplesmente Peter Pan, como se tornou mais conhecida. Contudo, o estranho herói-menino
rondava a imaginação do autor escocês muito, aparecendo pela primeira vez em 1902,
no romance The little white bird, onde Barrie descreve sua origem: um bebê que ouve a
conversa dos pais sobre o que ele seria quando crescesse e resolve fugir, vivendo no Parque
Kensington em companhia das fadas. Em 1906, alguns de seus capítulos foram selecionados
pelo famoso ilustrador Arthur Rackham e publicados na forma de um livro-arte de 500
exemplares assinados pelo artista, intitulado Peter Pan in Kensington Gardens. Em 27 de
dezembro de 1904, a peça que originaria a obra Peter and Wendy estréia no Duke of York’s
Theatre, em Londres. Sua versão oficial em narrativa literária foi lançada com desenhos em
preto-e-branco de F. D. Bedford, tendo sido reeditada sempre na companhia dos mais
brilhantes ilustradores, tais como Mabel Lucie Attwell e Robert Ingpen
57
. Alguns escritores,
autorizados ou não por Barrie, e inclusive ele mesmo, adaptaram e modificaram o texto de
diversas formas, direcionando-o para o público infantil, o que, se por um lado originou uma
profusão de edições e textos de difícil catalogação onde localizar as fronteiras entre o
original e as diferentes versões?
58
—, por outro contribuiu imensamente para a popularização
da história e seus personagens. Mesmo o roteiro da peça foi publicado pela primeira vez
56
Todas as crianças crescem — menos uma. (Tradução de Ana Maria Machado.)
57
Mabel Lucie Attwell (1879-1964) nasceu em Londres. Famosa por suas ilustrações para livros infantis, foi
requisitada por Barrie pessoalmente para ilustrar a edição de 1921. Robert Ingpen (1936) é australiano e ilustrou
e escreveu mais de cem livros, ganhando a Medalha Hans Christian Andersen por sua contribuição para com a
literatura infanto-juvenil.
58
Peter Pan in Kensington Gardens is a section of the novel The little white bird, but it differs from the original
in a number of (mostly small) ways. The play Peter Pan went through a complex process of evolution and exists
in a variety of provisional forms prior to the published text of 1928 (which is not identical with the usual
performance script). The story of Peter Pan existed in a number of printed narrative forms even before Barrie's
own novelisation, Peter a7.4203(d)127(t)-3.9767.4204727474e7.42033844(o)-1y21417(n)500]TJ/R25 9.364 Tf124.68 .48259(,)-6.34447( )-6128297(w)-1a.3991(o)12.9455(s)4.48415( )-1p34603(n)0.128297(u)0.6.4712(b)0.l.9455(t)-3.98035(i)-3128297(s)-86.7976(h)12.9455(e)-4d Td[(n)0.128297( ).48102(i)-12.6889(n)12.9455( )-66.4712(1)-12.6889(9)0.1.6889(9)0.1.6889(n)1.98035( )249.999]TJ/R9 9.36n
35
apenas em 1928, numa antologia de trabalhos do autor, após modificações no texto dramático
e alterações de personagens e cenas.
Assim, Peter Pan, longe de constituir uma obra única, substancializou-se, ao longo
dos séculos XX e XXI, em diferentes formas de encenação e veiculação multimidiática,
assumindo, como diria Gérard Genette, um caráter transcendente:
O outro modo de existência das obras, que batizei de transcendência, inclui todas as
maneiras, bastante diversas e de modo nenhum exclusivas umas das outras, pelas
quais uma obra pode perturbar ou ultrapassar a relação que mantém com um objeto
material ou ideal de que, fundamentalmente, ela “consiste”, todos os casos em que
se introduz um tipo ou outro de jogo” entre a obra e o objeto de imanência. Neste
sentido, a transcendência é um modo secundário, derivado, um complemento, por
vezes um suplemento paliativo para uma imanência. (GENETTE. 2001: 159.)
Para Genette, as obras plurais (de caráter transcendente) diferem das múltiplas (de
imanência múltipla), sendo as primeiras:
...aquelas cuja pluralidade não é um artefato técnico, mas procede de uma intenção
autoral como quando um artista, depois de ter produzido um quadro, um texto, uma
composição musical, decide produzir uma nova versão dessa obra mais ou menos
diferente, mas muito próxima (e derivada) da primeira para que a convenção cultural
a considere mais como uma outra versão da mesma obra que como uma outra
obra”. (Idem. Ibidem: 162.)
Além de justificar assim a pluralidade peculiar das manifestações da obra literária
Peter Pan de Barrie, feitas por ele mesmo ou por pessoas que obtiveram autorização para
fazê-lo, tomei para mim esse conceito para explicar as variações ressignificativas gráfico-
visuais a partir de um mesmo texto literário, seja por iniciativa do ilustrador que, ao invés de
contratado por uma editora para ilustrar dado texto, resolve por conta própria interpretá-lo
plasticamente, seja por determinação editorial em atualizar uma dada edição. Nesse caso, o
texto literário acaba por tornar-se transcendente ao ser ressignificado em variadas
publicações ao longo de sua trajetória diacrônica e sincrônica e plural em suas diferentes
traduções intra ou intersemióticas
59
, ora visuais diferentes ilustrações, aspectos gráficos,
mídias diversas (cinema, desenho animado, teatro, etc.) ora verbais, como, por exemplo,
uma tradução para outra língua ou gênero.
É bom lembrar, mais uma vez, que as funções propostas por Genette não são em
absoluto categóricas, mas gradativas; e que sua distinção não depende do status ontológico da
59
A expressão tradução intra ou intersemiótica parte da definição de Julio Plaza: “tradução criativa de uma
forma estética para outra”. (PLAZA. 2003: XI), da qual obviamente deduzo que a tradução dentro de uma
mesma linguagem sígnica seria intrasemiótica, como, por exemplo, a tradução de Peter Pan da língua original
para o português. Adoto neste momento o termo tradução em referência a Plaza, mas na verdade, prefiro
transcriação ou ressignificação — para as “traduções” entre sistemas semióticos diferentes — e
transsignificação — quando as transcriações entre sistemas diferentes ou similares acabam alterando o modo de
recepção do sistema que as originou, não só por interferência dos aspectos ressignificativos ou transcriativos,
mas contingentes ao momento histórico-social de sua produção.
36
obra, mas muito mais dos aspectos culturais que a envolvem. Conforme disse
anteriormente, um exemplar idêntico a todos os outros que compõem a tiragem de uma edição
de Peter Pan pode sofrer alterações particulares (autógrafo, anotações, dedicatórias e outras
interferências), tornando-se artigo de coleção e, portanto, único, apesar de originalmente
exercer uma função de multiplicar a matriz que o originou; contudo, dois exemplares de
diferentes edições da mesma obra (por exemplo, duas diferentes traduções em português do
texto integral em inglês de Peter Pan no Brasil) são duas manifestações plurais que
comprovam o caráter transcendente da obra, pronto a assumir diferentes manifestações
conforme critérios e interpretações. Do mesmo modo, as diferentes ressignificações gráfico-
visuais desse texto, elaboradas pelos mais diferentes artistas, podem transsignificá-lo em
diferentes momentos de recepção, diferenciando-o de forma não múltipla, mas plural.
Em que pesem as inúmeras variações de sua substancialização, a obra Peter Pan e
Wendy, tal como escrita por J. M. Barrie, possui qualidades que lhe são contingentes e que a
constituem
60
, nos permitindo reconhecê-la enquanto tal. Este reconhecimento, segundo
Genette, dá-se através de uma operação estritamente mental, através da qual reduzimos o
texto literário a sua idealidade, ou objeto de imanência ideal, dependente de um suporte
sensível para manifestar-se, desde a concepção (manuscrita, datilografada ou digitada
61
) até a
reprodução impressa em livros ou mesmo sua oralização. A obra literária, ao possuir esses
dois modos de existência ideal e substancial obedeceria ao regime alográfico, onde
“uma cópia correta de um texto ou de uma partitura não passa de um novo exemplar desse
texto ou dessa partitura, nem mais nem menos válida, do ponto de vista literário ou musical,
que o original”
62
. Esse regime implica iterabilidade, ou seja, a obra de arte alográfica e, no
caso, o texto literário identificado como Peter Pan, pode ser substancializado (editado) ou
repetido (lido ou ouvido) infinita e inesgotavelmente.
Mais uma vez, ao modo de Genette, trato aqui de estabelecer uma convenção, útil para
levarmos em conta a obra de arte enquanto inserida em um contexto sociocultural. Ainda que
traduzida em outra língua e ainda que por diferentes tradutores —, acompanhada por
60
Estou aplicando a terminologia de Genette, que entende por constitutivo e contingente os qualificativos
“compreendidos como relativos à obra (ou antes, a seu objeto de imanência) e, significando, na verdade,
‘próprios à imanência’ e ‘próprios à manifestação’, seja esta considerada em seus traços genéricos [todos os
exemplares que contém a obra que identificamos como sendo Peter Pan], ou ainda, a fortiori, em seus traços
singulares [um exemplar da obra Peter Pan autografado ou mesmo ilustrado por determinado artista]”.
(GENETTE. 2001: 61.)
61
Embora Genette não se refira ao texto digitalizado no computador, atrevo-me a incluí-lo enquanto
manifestação autográfica do texto literário, da mesma maneira e pelos mesmos motivos que considerei como
autográficos as matrizes digitais que geram os objetos-múltiplos (exemplares) de uma publicação.
62
Id. Ibidem: xxiii.
37
ilustrações de diferentes artistas ou transposta em inúmeras e diferentes edições, o que confere
status ontológico à obra Peter Pan é a sua redução, ou seja, a operação mental que todos nós
fazemos quando lemos a obra e reconhecemos nela a sua idealidade.
Vejamos, agora, do que consiste esse objeto de imanência ideal, ou seja, a obra tal
como publicada em 1911. Em síntese, o texto integral da obra Peter Pan e Wendy compreende
dezessete capítulos: no primeiro, o narrador apresenta os integrantes da família Darling a
Sra. Darling, o Sr. Darling e seus filhos Wendy, João e Miguel — e seus auxiliares — a babá-
cadela Naná e a serviçal Liza; no segundo capítulo, temos a primeira aparição de Peter Pan na
casa dos Darling, onde ele perde a sua sombra; no terceiro, ele reaparece para buscar a sombra
perdida, apresenta-se a Wendy e acaba por ensinar as crianças a voar em direção à Terra do
Nunca; o quarto capítulo é tomado pela viagem à ilha de fantasia e, no quinto, temos a
descrição da Terra do Nunca, bem como de alguns dos seus habitantes fantásticos os
piratas, os meninos perdidos, os índios, o crocodilo —; o sexto capítulo narra o pouso
dramático de Wendy e a construção de uma casa para a nova mãe” que ela representa; no
sétimo, conhecemos o esconderijo de Peter e um pouco da rotina das crianças na Terra do
Nunca; o episódio da Lagoa das Sereias movimenta o oitavo capítulo e compreende o rapto da
índia Lírio Selvagem, um duelo de Peter Pan com o Capitão Gancho e seu golpe traiçoeiro; no
capítulo nono, Peter Pan recebe o auxílio do Pássaro do Nunca, freqüentemente omitido nas
adaptações em geral, presente também na peça de teatro; o décimo capítulo reúne as crianças
em torno da brincadeira simbólica de representarem uma família composta de pais e filhos;
Wendy rememora a lembrança dos pais através de uma história no décimo-primeiro capítulo,
o que faz com que as crianças r( )-196.809()1.40511(o )-37.234(u )-5.3191d[( )-58.5106(dé)7umqu23319(m)12.0541.28 Tf48251( )81489(a)7.83068(c)-2.808511(e)-13do1489(e)-13.4459(ns)6.0204.40511(q(o )-5.31915(de)-2.80762( )-5.31915(P)13.4459(e)-13.445m)1.403P5(a)-2.80adcçõere peo ulo napí.8076n383(m)-9.23319(a)78.83068(j)1.4762(i)1.40511(.40511(qv[(s)6.0204(e)-22.80762br)13.8485(a)-2.80762(s)-4.6(a)-2.81021(n 4-2.81021(nde)-11(a)-13.)250]TJ-288.21(e)-2.80892(m)-9.232( )-90.4255(br)3.212781(a)-2.85(br)3.2127(N)-1.40446(u.40511(q250(os)-4.6166( )-239[(i)-9.23384(l)1.40383(,)-15.9574.44 Td[(a)-13.446n1(o )-207.44511(e)-13.4472(i)1.403859(t)1.44(que)-2.80892( )-37.81( )-5.3191384(l)40.88 -19.56 Td[(pi)-9.23384(r)3.21273(p)10.6383(a)-2.807)-13.4459(úne)-2.8076211.28 Tf48.84 0 Td0762( )-186.80762(á)-2.80762(s)6d)1.40511(o )-37.)1.40511(b)10.64077(r)3.2127é4472(s)6.0217( )-2.8089(s)-4.61789( )0.6068(c)-2.80762(i)-9.233 —; (no )-5.31915(s)68(a)-9762(ho )5.3489(ul)1.40p(de)-13.4459( )-101.0ó0(os)-4.61781(pí)1.40251(t)-9.2351.40511(qu23319(m)12pó9(úne)-2.80762( )-37.11(e)-13.4459(m)1.4052(do )-79.7872(P)2.8a)-2.807234(a)-2.80762(s)-4.611(r)3.21275(c)-2.81021(onf)3.21m62bra , o ea oo se cacee mdo asscondea moe mosr( )-190204( )-37.234(a)-13.9( )-239.362unc no cisí aio immxto ati an(u)10.6384(a)-2.80762(s)-4.6178braianço 111.702(no)21.2766( )25ã]TJ-300.8o76211.28 Tf0892( )-37.234(a)-13.915(S)2.80892(e)-2.8021(ç)-2.80892(ã)-13.492(c)-2.80892()-4.6178(;)1.40381( )-196.8096383(e)-13.4472caLdelSeossC
38
literatura infantil propriamente dita. Dentro da minha abordagem, basta ter em mente que,
enquanto macrossigno, o discurso que totaliza a obra Peter Pan remete atualmente à idéia de
aventura e fantasia juvenil, e como tal corDe prae e(e).2.80762(s)irl-4.61789(t)1.408 m4e man
39
organizada que, ao mesmo tempo em que substancializa esse discurso, organiza de forma
criativa a sua percepção: o objeto autográfico (OA) ou o objeto-livro propriamente dito. Por
discurso híbrido (DH) quero que se entenda o discurso resultante de uma obra poética ou
narrativa que reúna e integre dois ou mais campos semióticos específicos, gerados por um ou
vários autores, mas que, devido ao modo como se interpolam em uma dada ambiência gráfica,
acabam por produzir um efeito estésico único sobre seu receptor
64
. No caso da obra ilustrada
Peter Pan/Salamandra, temos um DVr (de autoria de James M. Barrie e traduzido por Ana
Maria Machado) e um DVs (cujo autor é Fernando Vicente) reunidos e combinados como um
discurso híbrido (DH) maestrado pelo projeto gráfico (cuja autora é Camila Fiorenza
Crispino) dentro de um mesmo suporte, o objeto-livro (o OA tal como editado pela
Salamandra/Moderna).
Até então, esses discursos, tais como os classifico, teriam sido avaliados, pelo menos
no Brasil, dentro de uma dimensão predominantemente dialógico-binária, onde, conforme
Luís Camargo, “a ilustração dialoga com o texto”
65
. Normalmente, o DH é extirpado de
dentro do OA que o constitui, e desmembrado em cada um de seus campos DVr e o DVs
para serem analisados conforme suas especificidades semióticas, levando pouco em conta
as suas potencialidades afeto-cognitivas. Na verdade, como disse, eles acabam por
oferecerem-se como um fenômeno integrado, provocando um efeito estésico único através do
envolvimento de processos sensoriais e perceptuais do indivíduo-leitor e que acabam por
estimular sua consciência em diversos veis
66
. Assim, meu esforço, a partir deste momento,
será o de simular um fenômeno enunciativo, onde, ao negar a abordagem dialógica interna
dos discursos, pretendo comprovar a sua concomitância: para mim, vale como verdade que o
DVs (discurso visual) e o DVr (discurso verbal), amalgamados como um DH (discurso
híbrido), maestrado pelo projeto gráfico que forma ao OA (objeto autográfico ou o livro
propriamente dito), oferecem-se na verdade como um coro (de vozes ou de instrumentos
64
De acordo com Peter Burke, hibridismo é um termo que, como sincretismo ou fusão, se aplicam a campos
culturais amalgamados de modo a se reconfigurar numa nova variedade. Estendo essa concepção ao efeito que a
composição intersemiótica entre as linguagens verbais e visuais oferecem ao receptor, conformando uma
variedade narrativa diferente em cada ambiência do objeto-livro ilustrado. Esse efeito estésico único (único, mas
não homogêneo ou totalizante, uma vez que há um limite de caráter semiótico nessa hibridização), produzido
particularmente no receptor iniciante, comprova-se quando ele associa cognitivamente em sua memória ambos
os discursos e até mesmo o próprio objeto-livro que os reúne de maneira a estranhar o mesmo texto literário
agregado a um outro discurso gráfico-visual em outra edição. Os efeitos do discurso híbrido sobre a consciência
cognitiva serão abordados no capítulo seguinte.
65
CAMARGO. 1995: 33.
66
Penso, aqui, nos níveis de consciência propostos por António Damásio, os quais retomarei oportunamente.
Para o neurologista, “a consciência não é um monólito (...): ela pode ser separada em tipos complexos e simples,
e os dados neurológicos deixam clara essa separação.” (DAMÁSIO. 2000: 33.)
40
diversos) sinfônico
67
, onde, para prosseguir em minha analogia com a música, o DH (discurso
híbrido) seria composto de linhas melódicas contínuas (mesmo quando silenciosas, pois seu
silêncio ainda é uma perturbação na voz da outra linha melódica
68
), como numa partitura
musical. Por vezes uma se sobressai em relação à outra, a depender dos processos de leitura,
da intenção enunciativa do objeto-livro, ou ainda do potencial estésico e cognitivo
desenvolvido a partir de cada um dos discursos.
Para me fazer entender plenamente e abarcar as relações tridimensionais sobre as quais
pretendo refletir, julguei necessário dividir este capítulo em três segmentos: no primeiro, trato
de analisar o comportamento do DH (discurso híbrido), ou seja, o modo como ambos os
discursos, o DVs (discurso visual) e o DVr (discurso verbal) imanam a história Peter Pan em
linha temporal-sintagmática; no segundo, abordo a sua dimensão espacial-paradigmática,
priorizando os aspectos simbólicos, iconográficos e semânticos, sem perder de vista sua
localização no OA (objeto autográfico); no terceiro, reúno vozes e melodias na sinfonia
híbrida resultante da inter-relação dos campos semióticos que a compõem. Teço, assim, o que
eu imagino constituir uma rede teórica envolvente do objeto-livro como um todo e demonstro
que, para além do diálogo entre linguagens, ele substancializa elementos estéticos e
comunicativos que, amalgamados, apresentam-se como fenômeno integral à consciência
cognitiva.
67
O termo sinfonia, aqui, diferencia minha concepção da idéia de polifonia proposta por Bakhtin, e refere-se ao
seu sentido musical, onde as linhas melódicas comportam-se não somente em alternância, mas em sobreposição
umas às outras, agregadas em uma frase melódica resultante de um acorde de sons e timbres executados por
instrumentos diversos.
68
“A ausência de signo pode ser um signo e a expressão não é o ajustamento de um elemento do discurso a cada
elemento do sentido, mas sim uma operação da linguagem sobre a linguagem que instantaneamente se
descentraliza para seu sentido. Dizer não é colocar uma palavra sob cada pensamento: se o fizéssemos, nunca
nada seria dito não teríamos a impressão de viver na linguagem [...]”. (MERLEAU-PONTY. 2004: 72-73.) De
onde derivo a idéia de que também o silêncio (no caso, a desaparição de um discurso visual ou verbal durante
um intervalo de páginas adjacentes de um livro) é também um dado interferente no discurso híbrido como um
todo.
41
2.1 Vozes
Peter Pan e Wendy foi escrito a partir do sucesso de uma peça de teatro dirigida não só
para crianças, mas também, como foi mencionado, para deleite do público adulto
69
; nele
resquícios do modo dramático que o originou. Instalados numa espécie de teatro imaginário
tendo ao lado um narrador que, além de espectador, é comentarista intrometido e
onisciente assistimos à história desenvolver-se num discurso aparentemente linear, porém
adensado por inúmeros anúncios, antecipações e truques sintáticos que trapaceiam o tempo
diegético, tal como o eterno infante protagonista.
O tempo é o anima da obra de Barrie. Toda a história consiste num jogo contra ele ou
a seu favor; ora uma tentativa de retê-lo retendo a infância, evitando a proximidade da
morte ora ele dispara, descontrolado, em inúmeros sóis e luas na Terra do Nunca, na
ameaça do tique-taque do Crocodilo
70
. Este jogo do tempo o é dado somente pela conduta
ou consistência semântica dos seus personagens e pelas alegorias propostas pelo cenário de
fantasia que os circunda, mas reforça-se através da estrutura do discurso verbal, requerendo
atenção especial por parte das ressignificações gráfico-visuais, a fim de que, no nimo, se
faça refletir sobre suas tonalidades narrativas. Assim, tendo em vista essas peculiaridades, e
também o meu desejo em privilegiar os aspectos híbridos que envolvem imanência e
transcendência nessa obra literária, busco, mais uma vez, em Gérard Genette, os recursos
69
“[...] Peter Pan was possibly the first straight play [...] which was directly aimed at both adults and children,
each section of the audience getting something different from the play. [Peter Pan foi possivelmente a primeira
peça estritamente direcionada para adultos e crianças, e cada faixa apreende da peça algo diferente.] (MOSS. 26
de fevereiro de 2007. Tradução minha.) Além disso, foi a primeira peça de teatro cujas personagens infantis são
representadas por atores-crianças. Sobre a questão da dualidade da obra de Barrie, aponta Peter Hollindale,
crítico e pesquisador em Língua Inglesa pela Universidade de Nova Iorque: “The adult reader is a helpless
intermediary between Barrie and the child, caught in storytelling crossfire and receiving bullet wounds intended
for him or her alone. Under the surface of the children’s book is a sharp and sometimes ferocious dialetic,
exploring the collision and relation of the child and adult worlds.” [O leitor adulto é um intermediário
desamparado entre Barrie e a criança, ambos enredados no fogo cruzado da narrativa e atingidos cada um a seu
modo. Sob a superfície da obra infantil encontra-se uma dialética aguda e por vezes violenta, explorando a
colisão e relação entre os mundos adulto e infantil.] (HOLLINDALE. 1999: xxi.Tradução minha.)
70
Hollindale assinala o impasse trágico que caracteriza a recusa do protagonista em penetrar na dimensão
temporal que traz consigo a maturidade, e com ela, o envelhecimento e a morte. Para ele: “This is a play about
the boundaries between childhood and adulthood. These boundaries are ever-changing. They differ radically
between one society and another, and in the same so
42
ideais para apresentar o comportamento sinfônico, acórdico, das vozes visual e verbal
que compõem a edição analisada.
A preocupação do teórico com o sentido do tempo não o tempo diegético, mas
aquele oferecido pelos artifícios do discurso da narrativa —, manifesta-se através da
conhecida análise da obra de Proust. Os conceitos ali elaborados com a finalidade de
determinar os modos como ele se (re)constitui na recepção, pautados em compasso e
andamento pelas notações do discurso ou, conforme o próprio teórico, “este tema
impressionista das variações [...], tema daquilo a que Proust chama ‘a paisagem acidentada
das horas’”
71
dão liberdade, ao mesmo tempo em que organizam, ao olhar mais fluido que
pretendo lançar sobre as relações intra/ extra/interdiscursivas que envolvem o DH em sua
totalidade. Estenderei, portanto, a análise e categorias propostas por Genette relativas ao DVr
às modalidades, estados, ou aspectos do DVs.
Começo pela voz narrativa
72
verbal, aonde reside grande parte do encantamento que
a obra exerce sobre nós, leitores
73
. Uma voz que se declara na 1
a
pessoa no primeiro
parágrafo
74
: Imagino [grifo meu] que ela devia estar uma gracinha...
75
”. Às vezes no plural,
outras vezes no singular, essa voz nos inclui na narrativa ora porque se dirige a nós
diretamente:
71
GENETTE. s.d. 138.
72
Nesta situação narrativa, Genette considera como voz as “categorias do tempo de narração, do nível narrativo
e da ‘pessoa’, ou sejam, as relações entre o narrador e o seu ou os seus narratário(s) — e a história que conta”.
(GENETTE. s.d.: 214.) Não gostaria que essa voz genettiana fosse confundida com o conjunto total de vozes ao
qual me refiro e que compõe o coro (ou acorde) do discurso híbrido. Para tanto, utilizo o termo único voz num
sentido metafórico mais amplo, englobando todas as modalidades do discurso híbrido, visuais ou verbais,
diferenciando-o do termo voz narrativa (visual ou verbal), que, conforme Genette, diz respeito a um
determinado aspecto do discurso.
73
“O texto é ambíguo, coloca problemas interessantíssimos de enunciação, confunde fecundamente no narrador
as visões estereotipadas de língua de adulto e de criança, oscila entre extremos da linguagem, carrega-se de
alusões ao mundo adulto e seus problemas [...] . E, sobretudo, o texto expõe o narrador e o ato de narrar, perturba
as normas lingüísticas e derruba a coesão do discurso, altera a tradição de narrativa linear e brinca com o ato de
contar, no que mais tarde se identificaria como recurso permanente à metalinguagem.” (MACHADO. 1992:
205.) Ou, conforme Hollindale: “Arbitrary, comic-serious, sudden changes in the narrative voice give the
comedy its characteristic tone. Its remarkable achievement is to bring satire within children’s compass, without
forfeiting the more straightforward lures of fairy story, fantasy, and adventure. [...] however, a chinese-boxes
narrative is at work, and below the surface another narrative voice is speaking which is likely to be audible only
to grown-ups.” [Arbitrária, cômica e séria ao mesmo tempo, as mudanças súbitas da voz narrativa dão à comédia
um tom característico. Sua mais marcante contribuição é introduzir a sátira ao universo infantil, sem perda de
suas qualidades mais apelativas e diretas como narrativa de conto de fadas, fantasia e aventura. (...) entretanto,
níveis secretos e misteriosos atuam sob a narrativa, e abaixo de sua superfície uma outra voz narrativa fala de
43
Você na certa se lembra de que Gancho tinha zombado dos meninos porque eles
pensavam que cada um precisava de sua própria árvore de entrada.
76
(MACHADO.
2006: 109.)
Ora porque provoca nossa curiosidade:
É esse o homem terrível que Peter Pan vai ter que enfrentar. Quem vencerá?
77
(Idem.Ibidem: 81.)
Ora porque nos inclui no jogo de faz-de-conta proposto por ele mesmo:
Vamos fingir que estamos deitados aqui, escondidos no meio deste canavial, [...]
78
(Id. Ibid.: 76.)
Ou comenta as ações das personagens, emitindo opiniões sobre elas:
Tem gente que gosta mais de Peter do que qualquer um, tem gente que prefere
Wendy, mas eu gosto mais é dela [da Sra. Darling].
79
(Id. Ibid.: 231- 232.)
A princípio, Genette classificaria uma voz como essa que narra na primeira pessoa,
em primeira instância observadora externa aos acontecimentos como pertencente a um
narrador do tipo homo-extradiegético
80
. Ocorre que, em Peter Pan, a própria diegese sofre
interferências desse narrador; por vezes, ele desvia as ações, modifica-as conforme sua
vontade, conta-as segundo seu gosto:
Qual dessas aventuras devemos escolher?
O melhor é tirar a sorte.
Pronto! fiz o sorteio e a lagoa ganhou. Puxa, isso quase me vontade de dizer
que eu preferia que o Desfiladeiro ou o bolo ou Sininho tivesse ganho. É claro que
eu podia tirar a sorte de novo e depois fazer um desempate. Mas acho que o mais
justo é ficar mesmo com a lagoa.
81
(Id. Ibid.: 120.)
Em outras, interage com as próprias personagens, como se fosse uma delas:
É só a gente dizer que eles estão a caminho. Vamos dizer.
Foi uma pena fazermos isso, porque ela deu um pulo assustada, chamando os nomes
deles.
82
(Id. Ibid.: 232.)
Teríamos, então, um narrador-onisciente, mas presente no interior da narrativa como
personagem? Um narrador, segundo Genette, que se assume como persona, mas que narra ao
76
“Hook, you remember, has sneered at the boys for thinking they needed a tree apiece, [...].” (Idem. Ibidem:
133.) A frase prossegue no texto original, enquanto que na tradução ela é interrompida na primeira oração.
77
Such is the terrible man against whom Peter Pan is pitted. Which will win? (Id. Ibid.: 115.)
78
Let us pretend to lie here among the sugar-cane [...].(Id. Ibid.: 112.)
79
Some like Peter best, and some like Wendy best, but I like her best. (Id. Ibid.: 210.)
80
Sendo homodiegético o “narrador presente como personagem da história que conta” (GENETTE. S.d.: 244.)e
extradiegético o [narrador que exerce um] papel de observador e de testemunha”. (Idem.Ibidem: 244.)
81
“Which of these adventures shall we choose? The best way will be toss for it.
I have tossed, and the lagoon has won. This almost makes one wish that the Gulch or the cake or Tink’s leaf had
won. Of course I could do it again, and make it best out of three; however, perhaps fairest to stick to the
lagoon.” (Id. Ibid.: 139.) No texto original, a segunda frase prossegue no mesmo parágrafo.
82
“[…]but all we need whisper is that they are on the way. Let’s.
It was a pity we did it, for she hás started up, calling their names; […].”(Id. Ibid.: 210.)As orações se organizam
em períodos mais longos, separadas por vírgulas ou ponto-e-vírgula e formando parágrafos mais densos no texto
de Barrie.
44
modo de Sherazade (presente no discurso ao qual pertence, mas apenas como liga entre os
diversos contos de As mil e uma noites?) Nesse caso, ele se assumiria hetero-
intradiegético
83
. Ocorre que temos aqui uma ambigüidade: embora não-identificada, a voz
que conversa conosco existe e atua também em plano ficcional, no discurso e na diegese.
Além disso, apesar de caracteristicamente intradiegético, ou diegético propriamente dito, o
discurso que media a história de Peter Pan possui um caráter igualmente metaléptico
84
, ao
pressupor ações ou possibilidades extradiegéticas que foram excluídas da narrativa
primeira por determinação esclarecida em pleno discurso por seu narrador. Esse,
aparentemente ulterior ao tempo diegético da história, localizado como coevo de uma Wendy
avó de Margarete, a terceira menina a conviver com Peter Pan, além de estar ciente de
acontecimentos pré-diegéticos, antecipa, ad infinitum, futuras aparições do herói, sugerindo
que, embora não seja para sempre testemunha nem responsável pelo seu eterno protagonista, a
história prosseguirá, perpassando as gerações de personagens infantis que advirão. Temos,
então, no nível da voz, um narrador tridimensional, capacitado a estender-se diacrônica e
sintagmática para além dos limites da história e, por outro lado, igualmente capaz de encorpá-
la, sincrônica e paradigmática, ao atuar de modo ubíquo, interferente, atuante, ao mesmo
tempo em que a media junto ao leitor.
Haveria ainda que se falar da voz de Ana Maria Machado, que se superpõe à do autor,
alterando a última tanto em relação a sua organização sintática
85
quanto semântica, das quais,
por exemplo, a mais notória é a expressão final “enquanto as crianças forem alegres,
inocentes e de coração leve.
86
Esse não é, porém, como disse, o objetivo principal do meu
trabalho, muito embora acredite que, ao tratarmos o livro como macrossigno, devemos levar
em consideração a transcriação verbal, intrassemiótica (de uma língua para outra), necessária
na publicação de uma obra estrangeira, e suas implicações histórico-culturais e ideológicas
83
Onde heterodiegético significa “narrador ausente da história que conta” (GENETTE. s.d.: 243.) e,
intradiegético, o narrador “em segundo grau, que conta histórias das quais está geralmente ausente.” (Idem.
Ibidem: 247.)
84
As metalepeses narrativas consistem em “introduzir numa situação, por meio de um discurso, o
conhecimento de uma outra situação.” (Id. Ibid.: 233.) Talvez fosse o caso a inclusão de uma nova categoria ao
modo genettiano, onde o narrador de Peter Pan seria situado como metadiegético.
85
Conforme vimos em alguns dos exemplos acima, a tradutora divide algumas orações inteiras do texto original
em frases separadas por ponto final, e subdivide alguns parágrafos, talvez visando estabelecer um ritmo mais
apropriado a sonoridade da língua portuguesa.
86
…so long as children are gay and innocent and hearthless.” (Id. Ibid.: 226.) No texto original, “hearthless”
significa literalmente sem coração, expressão utilizada na tradução de Hildegard Feist para a Companhia das
Letras (1999). Ana Maria Machado traiu o autor “conscientemente”, segundo ela mesma, por “absoluta falta de
coragem de ser fiel ao original. O autor foi admiravelmente forte e corajoso. Eu não. Mas tenho a obrigação de
avisar o público. A última palavra do livro não é literal. [...]. Eu é que atenuei”. (MACHADO. 1992: 206.) A
justificativa de Ana Maria Machado não foi incluída na edição que estou analisando.
45
(intenções adaptativas tanto no que se refere à atualização do vocabulário e do discurso
quanto ao destinatário implícito, etc.), que o localizam em seu tempo e espaço. Por enquanto,
basta demarcar o fato de que o caso em mãos utiliza a mesma tradução de Ana Maria
Machado, publicada mais de dez anos por outra editora, excluindo o posfácio, onde ela
tecia um breve histórico sobre a obra e justificava as escolhas feitas a partir do original para o
português. Sua voz, somada à de Barrie, soma-se a mais outra ainda àquela que de fato me
interessa no momento — a voz narrativa visual.
Assim como falamos na voz verbal em termos genettianos, acredito que se possa
estender as classificações hetero/homodiegéticas e intra/extradiegéticas àquela que media a
diegese junto ao leitor em signos visuais. A voz visual, agregada às demais vozes (a da
transcriação para o português, no caso, e da verbal original), pode contribuir de forma a
realçar, nesse caso, a voz primeira (a do texto literário Peter Pan), modulando-a de forma a
privilegiar certos aspectos do DVr. Assim, dentro dos níveis narrativos propostos pelo teórico
francês para a categoria da voz, eu diria que, na edição que analiso, o autor-ilustrador optou
por comportar-se como um narrador hetero-extradiegético (ou seja, as ilustrações internas
apresentam um enquadramento predominantemente objetivo
87
, não privilegiando um ponto de
vista subjetivo, nem das suas personagens). Atenta a diegese em si, essa voz visual limita-se à
função de configurar os elementos de forma a apresentá-los, muitas vezes sem localizá-los
numa dimensão espaço-temporal; essa última característica é reforçada pelo acabamento
esboroado que evita o sangramento
88
das imagens, deixando o fundo do papel à mostra,
reduzindo, nesse caso, a informação sobre as ambiências. Trata-se, enfim, pelo menos quanto
a esses aspectos, de uma voz plana, contrária às nuances tridimensionais da voz verbal
protagonizada pelo autor e traduzidas por Ana Maria Machado.
Vimos que a voz narrativa verbal se comporta de maneira ubíqua, estando ao lado do
leitor ao mesmo tempo em que conversa ou atua ao lado e no interior dos seus personagens:
assim, o grau de informação diegético obtido é alto, tanto em nível sincrônico quanto
diacrônico, muito embora os tempos verbais estejam predominantemente no pretérito. Em
termos modais
89
, temos, no discurso verbal que constitui Peter Pan, um estado de
transposição predominantemente indireto; entretanto, ao assumir-se personagem, o narrador
parece relatar-se enquanto autor do próprio discurso. Este relato se como um discurso
87
Com exceção da ilustração da sombra de Peter, inserida entre as páginas 24 e 25.
88
Chama-se ilustração sangrada quando a mancha impressa preenche toda a página, sem deixar margens.
89
Os aspectos modais da narrativa são definidos por Genette como “diferenças no grau de afirmação, [sendo
que] essas diferenças se exprimem correntemente por variações modais” onde modo significa o “contar mais ou
menos aquilo que se conta, e contá-lo segundo um ou outro ponto de vista.” (Idem. Ibidem: 159-160.)
46
imediato
90
direcionado ao leitor a quem é transferida a história de Peter Pan propriamente
dita. Trata-se de uma narrativa de foco bastante variável, onde até mesmo as opiniões e
reações do narrador têm lugar na enunciação. No DVs, ao contrário, temos um registro baixo
de informações e de espacialidade, embora tecnicamente nada impeça de adotar recursos
formais ou de estilo que ressignifiquem a voz verbal de forma a harmonizar-se com suas
características de onisciência e mediação junto ao leitor
91
. Porém, o narrador visual esquiva-
se, como disse, de assumir qualquer ponto de vista quanto às cenas representadas: em sua
maioria, as imagens cumprem uma função meramente apresentativa, ou seja, não interagem
sintaticamente com a narrativa verbal e ressentem-se até mesmo da omissão de alguns
personagens; assim, episódios importantes são silenciados na voz visual e, com isso, perdem-
se possibilidades enriquecedoras de ressignificação
92
.
Com isso não quero dizer que ambas as vozes verbais e visuais tenham que
enunciar continuamente, sem interrupções. Minha preferência pelo termo sinfonia deriva
justamente do fato de que esse termo abrange melhor o sentido da função do silêncio de uma
voz durante o solo aparente da outra. Não entendo o silêncio, entretanto, como ausência, mas
como potência; na sintaxe do discurso híbrido do livro ilustrado diferente de uma história
em quadrinhos
93
, ou qualquer narrativa cujos discursos verbo-visuais estejam em relação
simétrica, indissoluvelmente ligados em ordem, duração e freqüência —, predomina ora a voz
verbal, ora a visual. Porém, enquanto uma assume o discurso efetivamente, a outra permanece
subjacente, influenciando o processo cognitivo de leitura como um todo. Dentro desse
comportamento, acredito ainda que uma voz não repita de modo mecânico o que a outra diz;
90
Genette classifica como discurso de transposição quando o narrador interpreta e comenta a história: “...essa
forma nunca dá ao leitor garantias nenhumas, e, sobretudo, nenhum sentimento de fidelidade literal às falas
pronunciadas ‘realmente’.” (Id. Ibidem: 169-170.) Quanto ao discurso relatado, trata-se de um discurso “tal
como é suposto ter sido pronunciado pela personagem”(Idem. Ibidem.: 168.) Ao associá-lo ao discurso
imediato — “o narrador dilui-se e a personagem substitui-se-lhe”(Id. Ibid.: 173) —, pretendo classificar o
narrador de Peter Pan como personagem, que enquanto tal assume-se numa espécie de monólogo dramático
(voltado para o leitor) variado entre a 1
a
pessoa do singular e do plural.
91
Além do papel de interpretante ressignificador do texto verbal, que entendo como discurso de transposição,
acredito que o narrador visual possa assumir um discurso do tipo relato, ao elaborar uma imagem simulando o
ponto de vista de um personagem (ou como se o personagem tivesse ele mesmo elaborado a ilustração), e, no
caso do discurso imediato, ainda incluir-se no próprio discurso, por três vias funcionais: metalingüística, onde
“a imagem terá função metalingüística quando orientada para o seu código, no caso, o código visual, ou seja,
quando o referente da imagem for o código visual ou a ele diretamente relacionado”; fática, “orientada para o
canal, ou seja, o suporte da imagem, enfatizando seu aspecto no discurso visual”; e expressiva, “quando
orientada para o emissor, ou seja, o produtor da imagem”.(CAMARGO. 1998: 48-55.)
92
Entre os quais a ausência da personagem Wendy seria o exemplo mais gritante.
93
Diz Genette, acerca da sincronia temporal nos quadrinhos: “ao mesmo tempo em que constituem seqüências
de imagens, logo, exigindo leitura sucessiva e diacrônica, igualmente se prestam, e, mesmo, convidam a uma
espécie de olhar global e sincrônico” (GENETTE. S.d.: 32.). Acredito que o mesmo possa ser aferido ao livro
ilustrado; por isso, o silêncio ou a elipse visual em relação ao DVr, nos livros onde a narrativa verbal predomina,
é tão importante quanto sua manifestação.
47
aliás, isso seria impossível, dado as especificidades semióticas de cada discurso
94
. Apesar
disso, ao se inter-relacionarem na composição do DH, temos uma narrativa repetitiva, onde
alguns episódios são contados, nesse caso, duas vezes — uma pelo DVr e outra pelo DVs —,
embora por processos diferentes, onde o DVs, especificamente no caso da edição que analiso,
se submete a linha melódica primeira (o DVr), alterando potencialmente a tonalidade acórdica
do DH
95
.
Genette irá abordar a questão da repetência quando da análise do que ele denomina de
freqüência narrativa, “isto é, as relações [...] entre narrativa e diegese”
96
; dentro desse
aspecto, ele prevê as seguintes variantes, seguidas das fórmulas que as identificam: contar
uma vez o que se passou uma vez (1N/1H), muitas vezes o que se passou uma vez (nN/1H),
ou repetir o mesmo acontecimento várias vezes (nH/1H), ou ainda — por silepses
97
descrever uma vez algo que se passa muitas vezes (1N/nH). O discurso verbal de Peter Pan é,
predominantemente, singulativo (1N/1H), apesar de o narrador sugerir que esta não é a
primeira aparição de Peter Pan, nem será a última
98
. Entretanto, a voz narrativa nos expõe a
armadilhas temporais e espaciais, típicas do gênero de fantasia: o DVr acaba por adquirir um
caráter de iterabilidade (1N/nH) ao, por exemplo, sonegar a informação de quantos dias,
semanas ou meses, se passam no tempo diegético: ora nos vemos diante de um tempo em
suspensão, ora pluridimensional, que ameaça abrir-se para outros acontecimentos
99
, ora um
tempo que se expande e se recolhe, para fora e para dentro do espaço diegético. Essa sensação
é particularmente evidente em todo o Capítulo IV: voando, onde, por vezes, a viagem das
crianças rumo a Terra do Nunca não se projeta em dimensão espaço-tempo natural, e muitos
dos acontecimentos são narrados como iterações indeterminadas:
94
Transcriar ou “traduzir latu sensu é uma operação metalingüística embutida na própria produção da
linguagem [...]. No caso da função poética, contudo, um signo traduz o outro não para completá-lo, mas para
reverberá-lo, para criar com ele uma ressonância.” (PLAZA. 2003: 27.)
95
A submissão de um discurso a outro nos níveis sintagmáticos varia conforme as intenções de produção do
objeto-livro ilustrado: se ele privilegia a imagem, ou o texto. Em alguns, ambos podem estar equalizados, ou o
DVr pode sujeitar-se, ou ainda anular-se, em detrimento do DVs (como é o caso dos livros de imagem); em
outros, seja por motivos estéticos, econômicos ou culturais, o DVs tende a sujeitar-se ao DVr, ou aparecer
eventualmente, como discurso opcional. Maria Nikolajeva e Carole Scott diferenciam os livros com imagens
(picturebooks) em illustrated books [livros ilustrados propriamente ditos, onde o texto verbal é independente],
picture narrative [narrativa de imagens] e symetrical picture book [livros onde há interdependência
verbo/visual]. Contudo, mesmo dentro dessas categorias, elas salientam a existência de gradações entre pura
narrativa verbal e pura narrativa visual.
96
GENETTE. S.d.: 113. Ou, como pretendo, entre ambas as narrativas visual e verbal e a diegese.
97
A formulação siléptica incluiria expressões como: todos os dias, toda semana, aos domingos, etc.
98
Deste ponto de vista não-iterativo, eu diria que Wendy seria a verdadeira protagonista — elemento sobre o
qual se concentra a história em seu começo, meio e fim, o que por si já bastaria para tornar injustificável sua
ausência não só no DVs, conforme constatei na edição analisada, mas também no título da obra.
99
Conforme já observei em citação anterior.
48
Às vezes estava escuro, às vezes estava claro. De vez em quando fazia muito frio,
daí a pouco fazia muito calor de novo. E será que tinha horas em que eles ficavam
com fome? Ou era de faz-de-conta, porque Peter tinha inventado um jeito o
divertido de arranjar comida?
100
(MACHADO. 2006: 61.)
A inclusão dessa e outras silepses ao longo da narrativa, reforçadas muitas vezes pelo
verbo no indicativo presente ou no gerúndio, colaboram com a sensação de que a narrativa
informa que algumas situações ou ações se repetem e continuarão a se repetir, como,
por exemplo, as ocorrências na Terra do Nunca enquanto Peter Pan está ausente:
As fadas dormem mais uma hora de manhã, as feras tomam conta dos seus filhotes,
os índios passam seis dias e seis noites comendo sem parar e, quando os meninos
perdidos e os piratas se enfrentam, botam a ngua de fora uns para os outros.
(Idem. Ibidem: 75.)
No interior do DVs, os aspectos de freqüência podem ser analisados da mesma forma
que no interior do DVr. Entretanto, em relação a esse, o DVs ou colabora no sentido de
repetência, ou apresentará características metadiegéticas. No caso do DH substancializado na
edição Peter Pan da Editora Salamandra, temos uma relação de repetência, onde o DVs
ressignifica o DVr nas seguintes passagens
101
:
a) cena do episódio da sombra;
b) apresentação do Capitão Gancho;
c) apresentação dos Meninos Perdidos;
d) apresentação da Lagoa das Sereias;
e) apresentação do esconderijo;
f) cena em que Peter Pan está tocando sua flauta, dentro do esconderijo;
g) apresentação do navio pirata e do Crocodilo;
h) cena em que Peter Pan e o Capitão Gancho enfrentam-se pela última vez;
i) apresentação/cena de Peter aparece junto à janela da casa de Wendy.
Utilizei a palavra apresentação referindo-me às imagens com características
específicas, onde ocorre o mais que uma formulação visual siléptica (a imagem sintetiza
100
“Sometimes it was dark and sometimes light, now they were very cold and again too warm. Did they really
feel hungry at times, or were they merely pretending, because Peter had such a jolly new way of feeding them?”
(BARRIE. 1999: 102. Grifo meu.) O vocábulo now no texto original, ausente na tradução, enfatiza, bem mais
que a tradução em português, a ambigüidade temporal da cena.
101
Todas as ilustrações encontram-se reproduzidas no Anexo B, em CD.
49
os elementos constantes ao longo da história)
102
; teríamos aqui, nas relações intradiscursivas
do DVs, uma narrativa iterativa. Analisemos, por exemplo, a figura do Capitão Gancho [fig
B.9]: ela não corresponde à ação que se passa nas páginas que lhe são adjacentes; mas antes
paira, anacrônica, oferecendo não mais que uma imagem sintética de apoio à imaginação do
leitor, sem contribuir com o tempo diegético propriamente. Uma imagem assim eu classifico
como de tipo indeterminado. Temos uma iteração aparente também na apresentação do navio
pirata [fig B.14], onde aparece apenas o Crocodilo em ação, sem a presença das demais
personagens, o que lhe confere o aspecto sintético de uma rotina comum na Terra do Nunca
— o Crocodilo sempre cercando o navio, atrás do Capitão —; contudo, também seria possível
determiná-la como parte da ação narrativa única — uma cena, portanto — descrita nas
páginas do capítulo entre as quais ela se insere, e especificá-la como sendo a última vez que
tal rotina irá ocorrer, pois sabemos pelo DVr que o Crocodilo aguarda o pirata, para
finalmente devorá-lo. Afora a ambigüidade dessa última, todas as demais ilustrações
assinaladas com a palavra apresentação serão iterativas, cada uma ao seu modo.
nas cenas temos ações que ocorrem apenas uma vez na história, repetidas pelo DVs
em relação ao DVr, porém internamente singulativas, todas envolvendo a personagem Peter
Pan (ou, no caso da primeira, a sua sombra [fig B.8]). Nessas, há uma correspondência direta e
única entre um acontecimento narrado verbalmente e o DVs, seja por determinação específica
da ambiência, seja pela especificidade da ação representada propriamente dita. A ilustração
em que Peter e Gancho aparecem lutando [fig B.15], por exemplo, é determinada com
especificações bem definidas (ambos estão representados, a ambiência é localizada eles
estão no convés de um navio e, pela cor do fundo, o narrador verbal nos informa de um
acontecimento diurno
103
), caracterizando sua singularidade.
Na última ilustração, em que Peter aparece à janela [fig B.16], temos uma outra
ressignificação de caráter ambíguo, do ponto de vista da freqüência interna do DVs: como não
podemos identificar quem é a mulher que está no interior da edificação configurada, devido à
ausência de referências anteriores, fica difícil situar se a imagem sintetiza uma rotina das
relações entre Peter Pan e as personagens femininas da família Darling, ou se trata da
102
Ou, nas palavras de Genette, que define uma silepse temporal como “esses agrupamentos anacrônicos
comandados por tal ou tal grau de parentesco, espacial, temático ou outro” (GENETTE. s.d.: 83, nota 129.) No
caso, os elementos constantes aos quais me refiro seriam aqueles traços e características de forma e de cor que
definem, por exemplo, a figura do Capitão Gancho, identificando-o enquanto tal, independente das variações de
ângulo, gestos e expressões e mesmo de situações da personagem em outras ilustrações do mesmo autor.
103
Informação não convergente com o DVr, que nos informa tratar-se de um acontecimento noturno: “Fifteen
paid the penalty for their crimes that night” (BARRIE. 1999: 204.) [Quinze pagaram seus crimes naquela noite”.
(MACHADO. 2006: 223. Grifo meu.)]
50
representação de uma das personagens (Wendy, Sra. Darling, ou mesmo Jane crescida e
mãe de Margarete). Se a intenção do ilustrador corresponde à primeira hipótese, essa última
ilustração sintetizaria em si todo o epílogo, numa formulação siléptica onde a mulher à janela
pode significar todas as mães citadas no DVr, caracterizando uma iteração determinada pela
frase “enquanto as crianças forem...”. Porém, se a figura feminina representa uma das
personagens (provavelmente Wendy, adulta) teríamos uma imagem singulativa.
Assim como o DVs altera a freqüência dos acontecimentos diegéticos do DVr por
repetição, pode também discursar sobre algo que não está explícito no texto, aprofundando
significados, prolongando ações, ou estabelecendo relações metadiegéticas em relação ao
DVr; porém, jamais poderá elipsar acontecimentos no DH, uma vez que eles estejam
presentes no DVr, ainda que se mantenha em silêncio sobre eles. Em Peter Pan o TD (tempo
diegético) apresenta-se indeterminado no jogo proposto pelo TN (tempo narrativo). Ao
atentarmos às suas características durativas, salientam-se as elipses implícitas propriamente
ditas
104
onde o autor ora acelera ou desacelera o ritmo temporal das cenas
105
, ora
simplesmente as corta, intercalando-as através de pausas entre um capítulo e outro,
introduzindo a cena seguinte através de um sumário e as elipses do tipo hipotéticas
106
.
Essas últimas reforçam a idéia de jogo do tempo proposto pelo DVr, onde as regras são
subjetivas e não-convencionais, dependentes da ação e do desejo, tanto da voz narrativa
verbal quanto dos seus personagens. Os episódios são, entretanto, narrados em tempo real,
expressa por verbos que variam entre o tempo presente e o pretérito. O preenchimento das
elipses do DVr pelo DVs principalmente as de caráter hipotético —, implicaria, conforme
já mencionei, em alterar potencialmente as propriedades diegéticas do primeiro, em seu
sentido sincrônico, obtendo, em hipótese, através das imagens, uma narrativa metadiegética à
proposta pelo texto literário em questão.
As ilustrações que acompanham a edição analisada, como observamos, preferem
abster-se do jogo do tempo proposto pela voz verbal; a freqüência de suas aparições ao longo
do DVr é escassa, limitadas internamente em sua maioria a formulações silépticas e iterações
pouco significativas. Em termos durativos, influenciam pouco no ritmo de leitura, uma vez
104
[...] isto é, aquelas cuja presença não está declarada no texto, e que o leitor pode inferir apenas de alguma
lacuna cronológica ou de soluções de continuidade narrativa. (GENETTE. s. d.: 108.)
105
Como, por exemplo, o Capítulo I, que começa com um sumário geral sobre a formação da família Darling,
passa por uma aceleração em direção ao diálogo entre a Sra. Darling e Wendy e desacelera levemente até a noite
em que Peter Pan aparecerá pela primeira vez.
106
“Enfim, a forma mais implícita da elipse é a elipse puramente hipotética, impossível de localizar, por vezes
mesmo de colocar onde quer que seja, [...]”. (Idem. Ibidem: 109.) A cena do vôo rumo a Terra do Nunca, no
capítulo V, é um bom exemplo.
51
que se reduzem a nove interposições entre as 256 ginas que substancializam o DH em seu
suporte autográfico. Temos uma predominância de silêncios (elipses internas ao DVs), não
devido à pouca quantidade de ilustrações, mas sobretudo à ausência de ação e de parte
significativa dos seus personagens.
Tanto quanto o DVr, o DVs obedece a uma ordem
107
ordem essa que adicionará
certas peculiaridades ao ritmo de leitura. Temos na obra Peter Pan inúmeras prolepses
108
,
casos em que o narrador pode nos antecipar um acontecimento como no Capítulo II, onde
são interpolados diálogos entre o casal Darling que ocorreriam mais tarde, após a fuga das
crianças — ou, no mínimo, advertir sobre ele:
Então, bem devagar, ela chegou o rosto para onde estava antes, dizendo muito
educada que ia usar o beijo dele no cordãozinho em volta do pescoço. E foi muito
bom que ela tenha feito isso mesmo, porque bem mais tarde isso ia salvar sua
vida.
109
(MACHADO. 2006: 45.)
Além das prolepses, o texto também retorna a um passado extradiegético para
esclarecer particularidades no comportamento dos personagens como a origem e a
educação do Capitão Gancho, narrado no Capítulo XIV ou para retomar determinada cena
de outro ponto de vista, como no Capítulo XII, onde o narrador, após contar no capítulo
anterior o que se passa no esconderijo das crianças enquanto os piratas atacam os índios do
lado de fora, retorna ao mesmo intervalo de tempo, numa analepse interna
110
, para contar o
modo como se deu o ataque
111
, evitando o que Genette chamaria de paralipse
112
e
completando o acontecimento no sentido sincrônico
113
. Em suma, a análise dos aspectos
ordenativos do DVr, torna mais nítido tudo o que pressentíamos na análise dos aspectos
anteriores: trata-se de discurso cuja voz antecipa ações futuras, faz advertências aos
107
Onde ord isf (o)12.9455( )-9]TJ/R9 o
52
personagens e aos leitores, além de informar sobre o passado mais remoto e os pensamentos
ou sentimentos mais obscuros dos seus personagens, sem deixar de ser, ela mesma, um
personagem atuante no tempo diegético presente e igualmente presente junto ao leitor.
A forma como o DVs se comporta em relação aos aspectos ordenativos depende não
dos elementos que o constituem (as ilustrações podem internamente referir-se aos aspectos
ordenativos verbais, ou ainda sugerir passados e futuros não explicitados na narrativa verbal
e de novo teríamos um DVs metadiegético), mas do modo como serão inseridas ao longo
do objeto-livro. Como mencionei, a ordem e a disposição das ilustrações ao longo do texto
dependem do projeto gráfico que, no caso da edição de Peter Pan, estabeleceu a impressão
das nove ilustrações coloridas em folhas separadas, ligeiramente encorpadas, apenas no
anverso, encartando-as da seguinte forma: a primeira aparece entre as ginas 24 e 25; a
segunda, somente entre as ginas 88 e 89 (quatro cadernos ou 64 páginas depois); a terceira
surge após um breve intervalo de um caderno (16 páginas), bem como a quarta; a quinta,
após dois cadernos, entre as páginas 152 e 153; a sexta repete o intervalo da terceira e da
quarta, aparecendo entre as páginas 168 e 169; a tima repete o intervalo dois cadernos (32
páginas); a oitava aparece após um caderno e meio e a nona, dois cadernos depois. Essa
disposição não enrijece o ritmo narrativo, dado que elas se apresentam em intervalos
irregulares, ainda que múltiplos de oito; porém, em razão do critério de distribuição adotado,
nem sempre elas interagem com a ação ou cena verbal correspondente, o que certamente
implica em alterações na ordem do próprio DH; além disso, ao se apresentarem em intervalos
menores a partir do Capítulo V, após uma longa pausa de 63 páginas a partir da primeira
ilustração, enfatizam somente os episódios referentes aos acontecimentos na Terra do Nunca,
recusando-se praticamente a contribuir com os episódios anteriores, passados na residência da
família Darling.
Conforme as categorias genettianas, teremos, na inter-relação dos discursos, duas
cenas repetidas, que posso caracterizar como analepses internas homodiegéticas do tipo
completiva [fig B.8 e B.15], ou seja, as ilustrações que surgem após o fato narrado, repetem,
acrescentando informações visuais, aquilo que foi descrito verbalmente. Temos uma única
cena proléptica, do tipo interna e completiva, em que o DH antecipa a ação de Peter Pan
tocando flauta [fig B.13] uma página antes de a personagem comportar-se dessa maneira. A
última cena [fig B.16] onde Peter Pan aparece à janela junto a uma mulher que o temos
como identificar com segurança —, comporta-se como simultânea em relação ao DVr, pois
aparece justo ao lado do epílogo e, como ele, projeta a narrativa para um futuro.
53
As ilustrações de caráter apresentativo, enquanto formulações silépticas, poderiam
estar localizadas em qualquer ponto do DH, sem interferir em seus aspectos ordenativos.
Contudo, havendo uma descrição verbal dos seus elementos (personagens e objetos de
cenário), elas acabam comportando-se como analepses quando aparecem posteriormente a
essas descrições (como é o caso de, por exemplo, a imagem do Capitão Gancho e a maioria
delas, sendo exceção proptica a ilustração da Lagoa das Sereias [fig B.11], antecipando sua
descrição antes da abertura do capítulo do mesmo nome).
Sucinta, a análise aqui apresentada pretende amostrar as possibilidades de estender a
análise do discurso genettiana ao DVs, não só em suas relações sintáticas internas mas
também em sua inter-relação com o DVr, somando-se na composição acórdica do DH. Vimos
que, no caso dessa edição da obra Peter Pan, a voz verbal se sobrepõe, rica em nuances
espaço-temporais à voz visual, dentro das categorias preconizadas por Genette. Enquanto que
no DVr, em que pese a linearidade própria do encadeamento de leitura, temos uma voz
tridimensional, expansiva no espaço e no tempo, no DVs, ao qual se costuma aferir qualidades
de espacialidade, a voz é plana, curta e objetiva, limitando-se a acompanhar alguns aspectos
do DVr; enquanto no DVr um turbilhão de ões, de sentimentos e figurações, no DVs as
ações são repetidas de um ponto de vista que se pretende neutro, onde os sentimentos e
motivações expressivas são rebaixados ao nimo, senão ausentes; enquanto na narrativa de
Barrie temos um vai-e-vem no espaço e no tempo, as ressignificações visuais propostas por
Fernando Vicente e organizadas pelo projeto gráfico em Peter Pan/Salamandra — apresentam
uma majoritária disritmia em relação aos efeitos ordenativos propostos pelo DVr. O autor-
ilustrador espanhol incluído no pacote importado pela editora brasileira preferiu ater-se aos
aspectos mais superficiais do texto (superficiais porque irrelevantes, seja do ponto de vista do
discurso narrativo, seja do ponto de vista da própria diegese), procurando ater-se ao espírito
de aventura que o permeia, obliterando muitos dos elementos que constituem e enriquecem a
obra alográfica, de modo algum uma aventura inconseqüente e superficial conforme procurei,
através da análise do DVr, demonstrar.
2.2 Melodias
As vozes que compõem o DH modulam em conjunto o tempo e o espaço diegéticos,
como verificamos, regidas pelo projeto gráfico que as inter-relaciona e substancializa no
intervalo de tempo narrativo proposto pelo OA (objeto autográfico ou, o que vem a ser o
mesmo, objeto-livro). Ainda que cada voz possua sua própria linha melódica disposta em
54
notações gráfico-visuais específicas, elas percorrem juntas o espaço físico das páginas e juntas
entoam em coro os acordes sinfônicos que constituem o DH por excelência. Quanto maior for
o grau de simetria entre elas, mais inseparáveis se tornam uma da outra ao penetrarem de
forma indelével nos vários níveis da consciência do leitor-receptor.
Estudei, no segmento anterior, ambos os discursos a partir de suas vozes, analisando
seu comportamento tanto em separado quanto interativo; parto agora para a análise das
especificidades de cada linha melódica (verbal e visual), procurando determinar o modo como
elas se interrelacionam enquanto acorde intersemiótico; no caso de Peter Pan, a partir da
transcriação do DVr pelo DVs. Já defini o texto literário Peter Pan como idealidade obediente
ao regime alográfico proposto por Genette. Sei, entretanto, que esse texto raras vezes se
manifesta sozinho em um suporte autográfico, mas está acompanhado por imagens desde a
sua primeira publicação. Essas imagens, eu as definiria como mistas dentro das categorias de
imanência: por um lado, elas são autográficas e únicas enquanto arte em si mesmas; por outro,
comportam-se como alográficas, pois as técnicas de elaboração das artes ilustrativas o se
substancializam, a não ser raramente
114
, por meio de uma multiplicação a partir da arte em si,
mas de uma matriz gerada por notações (leitura foto-analógica ou foto-digital). Assim, por
exemplo, uma ilustração elaborada em aquarela sobre papel (arte acabada em si mesma) terá
uma textura e uma gama de matizes jamais repassadas na reprodução impressa, por mais
eficiente que seja a tecnologia utilizada; freqüentemente não distinguimos a técnica artística
com que foram elaboradas as imagens de uma dada edição: grafites escurecem e são
confundidos com canetas, um tom laranja original pode alterar-se para marrom ou
simplesmente desaparecer em meio a tonalidades vizinhas e semelhantes, e a textura do
pincel, o tipo de tinta, sem contar as técnicas tridimensionais como massa de modelar,
recortes e dobraduras em papel e colagens modificam-se ao serem reproduzidas ou
redimensionadas, de modo a submeter-se ao seu novo suporte autográfico — o objeto-livro.
114
Estou me referindo às modernas técnicas utilizadas pela indústria gráfica, que eliminaram os processos
artesanais de reprodução da ilustração, como a xilogravura, a litografia e a gravura em metal, onde a matriz era,
de fato, a arte em si, substituindo pelo fotolito ou pelo scanner digital para impressão direta. Os antigos
processos, quando utilizados opcional e intencionalmente, acabam por conferir uma aura de artesania ao objeto-
livro.
55
Por isso, baseando-me nas mesmas premissas de Genette em relação ao texto verbal-
gráfico, acredito que o texto visual-gráfico
115
possa comportar-se como alográfico e
autográfico, porque produzido para ser apreciado tanto em seu estado múltiplo quanto único.
Ao obedecer ao regime alográfico, ele pode ser reconhecido através de notações, onde
mesmo as artes digitais, ao serem impressas, transferem-se dos pixeis originários para uma
matriz composta de um ou mais fotolitos
116
, que por sua vez servirão de base para a cobertura
de fina retícula em tinta industrial sobre o papel constituinte do suporte gráfico
117
.
Contrariamente ao texto literário, porém, essas artes originais que compõem o texto visual
nem sempre requerem uma operação mental redutora para que as idealizemos enquanto
aquarelas, pinturas sobre tela, colagens, etc.; é difícil, mas o impossível, o seu acesso
concreto, quando visitamos as mostras de ilustradores e as apreciamos em sua matericidade.
As mostras de ilustradores vêm de encontro a minha sugestão de atribuirmos à tessitura
gráfica-visual um comportamento alográfico, no sentido de que muitas vezes nos abismamos
ante as diferenças do aspecto de um original em relação à reprodução que conhecemos através
dos livros. Por outro lado, compreendo que as artes elaboradas diretamente em seu suporte —
livros-arte e qualquer objeto-livro feito artesanalmente —, que se utilizam intencionalmente e
chamam a atenção direta para os recursos gráficos de impressão ou multiplicação — literatura
de cordel, fanzines impressos ou virtuais, sites criativos que explorem narrativas e ilustrações
eletrônicas
118
devem manter-se incluídas no regime autográfico de imanência múltipla,
ao lado da gravura e da fotografia, assim categorizadas por Genette.
115
Ou tessitura visual: a disposição ordenada de linhas, formas, texturas e cores que compõem os elementos
iconográficos e demais padrões visuais, estendendo-se a série de imagens (ilustrações) produzidas para um dado
DVs. Numa comparação à grosso modo, poderíamos dizer que as linhas, texturas, cores e formas
corresponderiam aos morfemas ou símbolos gráfico-visuais; os elementos constituídos por elas, as palavras, ou
ícones; cada imagem (ilustração), uma frase, ou índice; o conjunto destas formaria o texto visual propriamente
dito.
116
Esse seria o processo tradicional, embora saiba que o fotolito está com os seus dias contados; de qualquer
forma, o processo de impressão digital também inclui uma leitura ótica matricial para cada cor, convertendo cada
pixel (dpi) em pontos de tinta (ppi).
117
De certa forma, Genette abre um precedente para que eu assim classifique o trabalho de ilustração gráfica
quando, ao incluir a gravura e a fotografia como objeto autográfico de imanência múltipla, ele chama a atenção
para o fato de que, na gravura e na fotografia, a matriz (pedra, madeira, linóleo, etc, da primeira e o negativo da
segunda) é apenas e unicamente um ponto de partida para a produção do objeto estético múltiplo. Isso não
ocorre na ilustração, porque os dois modos (matriz e reproduções) são valorizados enquanto objetos de função
estética, assumindo exclusivamente a primeira função após alguns anos, quando deixam de ser utilizados em sua
função adjunta a um dado texto verbal, tornando-se, portanto, obras de imanência única. Quero lembrar ainda
que, na gravura ou fotografia, o múltiplo costuma revelar claramente sua origem matricial (podemos distingüir
uma xilogravura de uma lito, pois as características matéricas da matriz estão expressas em cada cópia),
enquanto que, como já disse, nem sempre é possível determinar as dimensões nem o suporte real da arte que
originou suas reproduções gráficas.
118
Entre os quais o trabalho da brasileira Ângela Lago seria um bom exemplo.
56
A edição Peter Pan/Salamandra é um produto industrial stricto sensu; embora possa
depreender, a partir do objeto autográfico em minhas mãos, que as ilustrações de Fernando
Vicente possam ter sido elaboradas em técnica de pintura, a retícula de impressão o me
permite acesso ao tipo de tinta utilizado (pode ser ecoline, aquarela, aguada de guache ou tinta
acrílica ou mesmo ferramentas de pintura digital); a textura do papel-suporte também foi
eliminada, possivelmente por redução das dimensões originais ao tamanho do objeto-livro,
adequando-se ao seu projeto gráfico, onde mesmo as cores podem sofrer variações a partir da
sua notação reticular (analógica ou digital), ou da qualidade de impressão. Uma das grandes
falhas editoriais é a omissão dos dados técnicos das artes utilizadas; em algumas edições mais
recentes e cuidadosas, essa falha tem sido corrigida, não sendo o caso da publicação em
questão. Assim, tudo o que posso fazer é reduzi-las, através de uma operação mental, a uma
arte pintada à mão, em tintas de rias cores e espessuras aplicadas possivelmente sobre
papel. Posso atribuir-lhes certa leveza e expressividade, porque percebo transparências de
aguadas contrapostas às velaturas
119
de tinta mais opaca e traços leves, quase imperceptíveis,
que contornam seus elementos de modo irregular. As artes de Vicente, contudo, não foram
elaboradas no sentido de evidenciar cada um de seus aspectos autográficos originais, atuando
apenas de forma a relatar, sem chamar muito a atenção sobre seus aspectos substanciais, as
informações diegéticas presentes no texto literário que acompanham. Além e em vista disso,
como afirmei anteriormente, parecem fazer submergir sua voz narrativa (representada por
uma gestualidade e uma expressividade plástica que indicam a presença do sujeito criador) em
nome de uma ressignificação que se plasma objetiva, pois se submete docilmente aos recursos
notativos industriais.
destaquei o suficiente a riqueza tímbrica da voz que enuncia a história Peter Pan. A
melodia entoada por essa voz, como veremos, não é menos interessante. Ela se apóia em uma
série de elementos significativos que, reunidos nas ações e cenas apresentadas, compõem uma
tessitura semântica complexa, destinada a infinitos jogos de leitura. Basicamente, os
elementos que compõem a estrutura narrativa de Barrie seriam: personagens adultos e infantis
de variados sexos e idades ora realistas, como a família Darling, ora fantásticos, como
Peter Pan, a fada Sininho, o Capitão Gancho, as Sereias ou a índia Lírio Selvagem —; animais
com comportamento quase humano, como Naná, o Pássaro-Nunca e o Crocodilo; o cenário
real de Londres no início do século XX alternado a uma ilha fantástica a Terra do Nunca
—; ações exteriores, como as aventuras vividas pelas crianças, mas também interiores,
119
Chama-se velatura a cobertura de uma camada de verniz ou tinta de determinada cor sobre outra camada de
cor diferente, em que a primeira modifica ou interfere na percepção da segunda.
57
presentes nas atitudes e na revelação dos pensamentos e lembranças de alguns personagens;
além disso, a dimensão espaço-temporal, presente na voz e nas modalidades discursivas,
aparece materializada também, entre outras, na dicotomia Peter Pan/Wendy onde, de um lado,
temos uma menina real, que cresce e tem uma filha e, de outro, um menino, um mito-criança,
que opta pelo exílio num espaço sem contornos e num tempo suspenso que o imortaliza em
estado infante, impossibilitando-o de amadurecer e de compartilhar da realidade social e
afetiva dos outros protagonistas
120
. Novamente advirto que não é minha intenção aprofundar o
estudo dos elementos iconográficos, simbólicos e indiciais que compõem a narrativa verbal,
senão quando em relação a sua ressignificação visual. Reitero apenas que Peter Pan não
concede à leitura, enquanto gênero de aventura e fantasia, um prazer meramente escapista;
todos os elementos, da ilha evocada até o beijo escondido da Sra. Darling, conformam uma
rede de significados onde nada é supérfluo ou meramente decorativo. Podemos lê-la de
diversas formas; abordá-la em seus diversos aspectos; independente do modo como o
façamos, teremos sempre a sensação de que não a apreendemos de todo uma exegese da
obra de Peter Pan, tal como a voz que a enuncia, pode estender-se em várias direções, para
além da história propriamente narrada, cujas qualidades poético-significativas tentarei depurar
a medida em que prossigo na abordagem de ambos os discursos.
A fim de não me estender além dos limites impostos para este trabalho, concentrarei a
atenção sobre as duas personagens que dinamizam a dicotomia
atemporalidade/temporalidade, antevista na análise do discurso sob as orientações de
Gérard Genette. O par Peter Pan/Wendy centraliza forças, ora opostas e conflitantes, ora
cúmplices, em torno das quais giram as demais personagens, cenários e ações. No primeiro,
temos o masculino, o eterno, o impossível, o presente imediato e descompromissado
convivendo, ao mesmo tempo, com o impasse decorrente da imortalidade, impedindo o
registro da experiência vivida e o acesso à maturidade e a vida afetiva; na segunda, o
120
It was in Peter and Wendy that he [Barrie] polarized most successfully the ambiguities of his central vision
the child-in-adult and the adult-in-child. Peter and Wendy are perhaps the centre-piece of Barrie’s imagination:
opposite visions of the Neverchild. Wendy is the child playing adult roles and games, and in her the incipient
adult and mother already control the child; Peter is the child playing adult roles also, but in him the child is
inviolable, separate and free. For Peter being ‘father’ is fun only if he knows that is not and will not be true. The
children are playing games, and the stories about them are also a game, played out in the no man’s land
between child and adult worlds. [É em Peter e Wendy que ele (Barrie) polariza de forma mais bem sucedida as
ambigüidades de seu ponto de vista: a criança-no-adulto e o adulto-na-criança. A dupla Peter e Wendy são,
talvez, o ponto central da imaginação de Barrie: visões opostas de um não-lugar infantil. Wendy é a criança que
brinca imitando o adulto, e em seu incipiente lado adulto e maternal, controla a criança em si mesma; Peter é
uma criança que também brinca de ser adulta, mas nele a criança é inviolável, separada e livre. Para Peter, ser
‘pai’ é divertido somente se ele souber que não é e jamais será de verdade. Ambos fazem de conta, e a história
sobre eles é também uma brincadeira realizada num não-lugar entre o mundo adulto e infantil.] (HOLLINDALE.
1999: xiv. Tradução minha.)
58
feminino, a efemeridade, a possibilidade, a construção da identidade a partir da memória que
reconstitui o tempo transcorrido e o espaço experienciado na consciência, a promessa de vida
e de sua continuidade e renovação através da sexualidade e da maternidade. A forma como
esses dados semânticos se concretizam (dados reconhecidos por mim, sem renegar ou excluir
o reconhecimento de outros) no DH de Peter Pan/Salamandra, presentes no texto verbal de
Barrie e ressignificados no texto visual de Vicente, serão aqui privilegiados.
Interessante é, antes de tudo, traçar um rápido perfil transsignificativo das
representações visuais das duas personagens. Nas primeiras imagens publicadas de Peter Pan,
realizadas por Arthur Rackham no livro-arte Peter Pan in Kensington Gardens (1906), ele
aparece ainda como o bebê levado pelas fadas [fig C.1.1]
121
. No teatro, foi concebido para ser
interpretado por uma atriz, pois a peça é, em geral, encenada como uma pantomima; de
qualquer forma, a popular personagem criada por Barrie não foi imaginada como uma criança
igual às outras
122
. Na ilustração, como no cinema, as representações visuais têm dificuldade
em abrangê-lo na totalidade de suas qualidades físicas e emocionais. Embora indiciado sem
economia pelo narrador onisciente, Peter Pan escapa, ao longo da história e talvez por isso
mesmo —, a qualquer apreensão iconográfica, sendo difícil configurá-lo em uma imagem
única e nítida. O narrador de Barrie, sobreposto pela tradução de Ana Maria Machado,
começa por descrevê-lo da seguinte forma:
Era um menino lindo, vestido de folhas e do limo que escoa lentamente das árvores.
Mas a coisa mais encantadora nele era que tinha todos os dentes de leite. E quando
viu que estava diante de uma adulta, rangeu todas as suas perolazinhas para ela.
123
(MACHADO. 2006: 21. Grifos meus.)
A inclusão dos índices encantadora, dentes de leite, acrescentados do diminutivo
perolazinhas, sugere a imagem de uma criança que parece ter por volta dos quatro ou cinco
anos, uma criança de aspecto selvagem, pois está vestido de folhas e do limo
124
que escoa
lentamente das árvores e range os dentes para a Sra. Darling.
121
Ilustrações reproduzidas no Anexo C, em CD (C.1).
122
“He is at the same time a child himself and a child’s dream-figure, the archetypal hero both of magical fairy-
tale and adventure story. (…) He seems not just the invention of one writer, but character from mythology. He is
god-like.” [Ele é ao mesmo tempo uma criança em si e uma figura imaginária de criança, o arquétipo tanto de
um herói de contos de fadas quanto de uma história de aventuras. (...) Ele não parece invenção de um escritor,
mas uma personagem mitológica. Como um deus.] (CARPENTER, Humphrey. Secret gardens. Allen and
Unwin, 1985, p. 176 apud HOLLINDALE. 1999: xxvi.)
123
He was a lovely boy, clad in skeleton leaves and juices that ooze out of trees; but the most entrancing thing
about him was that he had all his first teeth. When he saw she was a grown-up, he gnashed the little pearls at
her. (BARRIE. 1999: 77.)
124
Na verdade, seiva (juices), conforme prefiro traduzir do texto no original.
59
Entre outras peculiaridades da personalidade do menino, saliento a ausência perceptiva
do tempo, própria de uma criança bem pequena. Não só ele não se dá conta da passagem dos
dias ou horas, como por vezes esquece fatos e pessoas de sua convivência:
Mais do que isso, Wendy tinha certeza de que às vezes, quando voltava, Peter não se
lembrava bem de quem eles eram.
125
(Idem. Ibidem: 64.)
A personagem também nos passa a sensação de um eu ainda em formação, não
totalmente consciente de sua individualidade; muito embora recorde sua origem, entende e
conforma o mundo a sua volta (no caso, a Terra do Nunca e seus demais habitantes) como
extensão de si mesmo
126
. Quando o Capitão Gancho, estereótipo do adulto que afronta esse
mundo por excelência, preocupado com as convenções que o qualificam como homem
maduro, pergunta: Peter, quem é você?
127
, o menino responde:
— Eu sou a juventude, eu sou a alegria! — respondeu Peter, ao acaso. — Eu sou um
passarinho que saiu do ovo.
É claro que isso era uma bobagem. Mas para o infeliz Gancho, era a prova suprema
de que Peter não tinha a menor idéia de quem era ou do que era, o que seria o
cúmulo do bom-tom.
128
(Id. Ibid.: 221.)
O modo como o menino se relaciona com Wendy também é um dado indicativo de um
grau de desenvolvimento aquém da idade de sete ou oito anos. Enquanto que em relação aos
meninos perdidos, aos irmãos João e Miguel e aos personagens fantásticos, mostra-se sempre
seguro e confiante, diante da menina e do potencial de mulher e mãe que ela representa,
assume certa fragilidade, como na cena em que não consegue recuperar sua sombra ou, mais
adiante, após ter vencido a dura batalha contra o Capitão Gancho e libertado os meninos,
quando, dormindo, deixa-se embalar em meio aos seus pesadelos:
E nessa noite ele teve um daqueles sonhos que às vezes tinha, e chorou dormindo
durante muito tempo. E Wendy o segurou no colo e abraçou bem apertado.
129
(Id.
Ibid.: 224.)
Por outro lado, nem sempre ele obtém segurança ao seu lado. Ao confundir beijos com
dedais, ao argumentar, ante a insistência de Wendy em querer saber sobre seus sentimentos
por ela:
125
Indeed, sometimes when he returned he did not remember them, at least not well. (Idem. Ibidem: 104.)
126
A Terra do Nunca e seus habitantes só ganham vida a partir das ações e reações do protagonista, conforme é
afirmado no início do Capítulo V: Feeling that Peter was only back, the Neverland had woke into life.”
(Id.Ibid.: 112.) [“Sentindo que Peter estava chegando, a Terra do Nunca acordara de novo.” (MACHADO.
2006: 75. Grifos meus.)] Nota-se que temos uma perda semântica na tradução do texto original, onde Barrie
deixa evidente a dependência existencial da ilha e seus habitantes pelo menino.
127
“Pan, who and what art thou?” he cried huskily. (Id.Ibid.: 203.)
128
“I’m joy,” Peter answered at a venture, “I’m a little bird that has broken out of the egg.”
This, of course, was nonsense; but it was proof to the unhappy Hook that Peter did not know in the least who or
what he was, which is the very pinnacle of good form. (Id. Ibid.: 203.)
129
He had one of his dreams that night, and cried in his sleep for a long time, and Wendy held him tight. (Id.
Ibid.: 205.)
60
Você é o esquisita disse ele, sinceramente intrigado. E rio Selvagem é
igualzinha. Tem alguma coisa que ela quer ser para mim, mas diz que o é minha
mãe.
130
(Id. Ibid.: 156.)
Peter atesta a imaturidade própria de uma criança cuja idade ainda não alcança o sentido e
se espanta diante da própria sexualidade. Sua negação a ela não é somente uma recusa ao
61
Tendo isso em vista, torna-se compreensível a variedade transsignificativa apresentada
pelos inúmeros ilustradores que acompanharam as reedições da obra de Barrie, comprovando
a dificuldade de apreensão, através do texto visual, dos aspectos físicos e emocionais da
personagem indiciados no texto. Enquanto F. D. Bedford (1911), o primeiro ilustrador da
versão definitiva, prefere retratá-lo como um rapazinho de aspecto selvagem [fig C.1.2],
portando o primitivo traje de folhas secas, outros ilustradores, como Roy Best (1931) ou
Mabel Lucie Attwell (1921) preferem representá-lo como um menino bem menor, e em trajes
menos rústicos, de expressão mais infantil uma personagem mais suave e romântica. Best
ainda o recobre com uma espécie de aura, como se fosse um espírito ou aparição
fantasmagórica [fig C.1.4], enquanto que Atwell o veste em trajes que o assemelham a uma
espécie de entidade mitológica ou folclórica [fig C.1.3]. em suas ressignificações mais
recentes, ele assume definitivamente uma idade próxima à adolescência e características que
mesclam sua singularidade ôntica, ou seja, uma criança transcendente, mito panteísta da
infância, como nas ilustrações de Trina Schart Hyman (1980) [fig C.1.6] ou na impressionante
configuração de Michael Hague (1987) [fig C.1.7], onde ele é visto de modo bem menos
pueril. Essa evolução transsignificativa tem origem não nas modificações do conceito de
infância e do papel social da criança na família e na sociedade, mas também no percurso
receptivo da obra ao longo do século XX, deslocado gradualmente em direção às faixas
etárias superiores.
N BR461.40446(á)-212793.21 a
62
Assim, dependendo do modo como é interpretado visualmente, Peter Pan adquire uma
tonalidade, e a história como um todo. Se traçado em feições mais infantis, evidencia seu
desamparo e o impasse trágico de sua existência; se mais juvenil, explodem diante de nossos
olhos o espírito de aventura e a inquietude que o dominam, bem como a sua arrogância e
latente sexualidade. Também o traje com que é configurado determinará sua leitura,
indiciando ora um caráter selvagem, mitológico, de um espírito que não se deixa domar pelas
convenções do mundo adulto (família, relações sócio-sentimentais), ora a visão simbólica
romântico-burguesa de uma infância necessitada de amparo e proteção.
A interpretação visual de Peter Pan está, em boa parte das vezes, relacionada
diretamente a sua principal coadjuvante, a menina Wendy Moira Angela Darling, pois é a
partir dela que ele nos é apresentado. Conforme a fala da própria personagem, que de
imediato nos informa, ao ser questionada pela mãe:
Ah, não, ele não cresceu... Wendy garantiu a ela, com toda segurança e é
bem do meu tamanho.
O que ela queria dizer é que ele tinha o tamanho exato dela, tanto no corpo quanto
na cabeça.
136
(Id. Ibid.: 17.)
Curiosamente, ao contrário de Peter e dos demais personagens infantis, Wendy não é
descrita fisicamente na narrativa; como sua idade também não é definida pelo narrador verbal,
essas informações ficarão a cargo de sua ressignificação visual. Conforme a intenção e ponto
de vista, ela comparecerá de forma a assumir os variados aspectos semânticos gerados a partir
do texto e da relação interna com os demais personagens, principalmente Peter Pan.
Na maior parte das vezes, Wendy é representada de camisola [fig C.2.1]
137
, pois é
deste modo que foge em direção a Terra do Nunca. Em outras aparecerá de avental [fig C.2.2]
e, em ressignificações mais recentes, vestida com a túnica de folhas secas e frutinhas [fig
C.2.5] ou elementos que indicam seu contágio pelo mundo fantástico de aventura e fantasia,
como no desenho da Disney [fig C.2.3] e nas ilustrações de Trina Schart Hyman [fig C.2.4].
Essas e outras pequenas variações (cabelo, expressões e fisionomia) implicam diferentes
graus de valorização da personagem e sua contextualização enquanto ser feminino no
panorama histórico-social e cultural
138
. Como Peter, Wendy terá sua semântica alterada
136
“Oh no, he isn’t grown up”, Wendy assured her confidently, “and he is just my size.” She meant that he was
her size in both mind and body;[...] (BARRIE. 1999: 75.)
137
Ilustrações reproduzidas no Anexo C, em CD (C.2).
138
Há um estudo sobre as ressignificações visuais da personagem Wendy realizado pela pesquisadora Chris
Routh (University of Reading, Reading and Language Information Center, Whiteknights, Inglaterra), intitulado
Man for the sword and for the needle she — illustrations of Wendy’s Role in J. M. Barrie’s Peter and Wendy.
Disponível em: <http://www.springerlink.com.w10058.dotlib.com.br/content/?k=Chris+Routh>. Último acesso:
2 de dezembro de 2006, 8:57.
63
conforme os índices significativo-visuais que a constituem: sempre de camisola, cabelos
longos e soltos, adquirirá um aspecto romântico-feminino, até mesmo sensual; cabelos e
roupas mais formais e civilizados conduzem à imagem maternal que ela igualmente
personifica; trajes mais rústicos, elementos naturais e/ou indígenas reforçarão, sem dúvida,
sua integração ao universo de aventura e fantasia. Em todas essas possibilidades
ressignificativas por certo haverá gradações entre elas a personagem, enquanto signo
icônico, supostamente corresponde à proposta configurativa de Peter Pan, de modo a
formarem um par estético/ético ou ideológico coerente. Outro dado interessante é que, ao
contrário de outras personagens femininas representadas em contos de fantasia, Wendy
raramente é loira. Em geral, seu cabelo varia dentro de tons castanhos claros ao castanho
escuro, talvez na tentativa de apontar sua concretude, diferenciando-a das caracterizações
etéreas e ideais em geral adotadas quando na representação de outras heroínas, como
princesas e fadas.
A importância de Wendy para a compreensão do sentido integral da narrativa é
indubitável: sobre ela, afirmei, centra-se a diegese propriamente dita. Mediadora
intra/extradiegética, é através de Wendy que nós leitores, seus irmãos, pais e mesmo a voz
narrativa que lhe serve de testemunha, nos reunimos em torno da fantasia que, juntamente
com Peter, ela protagoniza; toda a noção do tempo que passa o tempo real que Peter
procura suspender e até mesmo aniquilar depende das ações e reações dessa menina, em
cuja memória e desejo é depositada a chave do portal-janela entre a Terra do Nunca e à terra
de todo mundo
139
, ou seja, ao amadurecimento como curso natural da vida e condição para o
seu ressurgimento a partir da maternidade e do sentimento que preserva a infância dentro de
si. É em contraste a ela que Peter Pan incrementa-se de toda carga simbólica, tragicamente
significativa. Não fosse sua presença, teríamos em os apenas mais um livro de aventura e
fantasia sem outra pretensão que o entretenimento, a história de uma personagem mágica e
encantadora a conduzir crianças através de uma diversão escapista. É verdade que
encontramos a mesma dicotomia espargida em outras partes da narrativa: temos uma Terra do
Nunca que se opõe ao cenário londrino coevo ao autor; um pai confuso e inseguro,
esforçando-se para seguir as convenções do mundo adulto, correspondentes a um pirata, cuja
infância sufocada por uma educação formal (good form) o fragilizam a ponto de aterrorizá-lo
diante da contagem convencional do tempo que sinaliza a proximidade da morte
140
;
personagens-extensões de Peter Pan, como a fada Sininho, o Pássaro-Nunca, Lírio Selvagem e
139
Conforme tradução de Machado. No original: mainland (terra firme), onde vivem os adultos.
140
Pois não é outro o sentido do Crocodi(a)-13.4433(T48259(e)-17c0.624 Td[(di)-93)-12.2352(9)500]TJd5.9574(d)10.6383(a)-248 T.3162( )-111.7(r)-0.247207()500]TJd5.9574(d7( )-19.1633(v)0.12829l6(n)12.9455Td[(di)-)333]TJ/R2i6(n)12.94q7(s)4.48415( )-6.3463(v)0.13319-06(o)12.945
64
outros, amparando-o contra o mundo adulto que o atormenta e insiste em fechar seu acesso à
vida e aos relacionamentos afetivos. Desse universo de juventude versus maturidade,
fisicamente intransponíveis
141
, o beijo escondido da Sra. Darling, bem como a janela que ela
insiste em deixar aberta, tornam-se os únicos mediadores. Wendy, na qualidade de filha, sabe
disso: a confiança depositada na figura materna lhe segurança para prosseguir na aventura
até o momento em que sobrevém o desejo de retorno. Por isso entendo Wendy como a real
protagonista dessa história, pela qual Peter Pan atravessa
142
. Ou seja: a ligação entre as duas
personagens realistas femininas mãe e filha comporta um fenômeno de
renovação/perpetuação/conexão entre o ser adulto/criança, tanto em termos diacrônicos (de
uma geração para outra) quanto sincrônicos (do adulto que carrega consigo a criança que foi
um dia), alimentando o espírito panteísta infantil personificado por Peter.
Em vista disso, torna-se difícil admitir o silêncio do DVs de Fernando Vicente durante
as primeiras páginas e demais episódios ocorridos na casa da família Darling e,
principalmente, sobre as personagens femininas. Sequer posso confirmar uma ou outra, como
já disse, na mulher adulta que se coloca à janela, na ilustração da última página [fig B.16]. Sua
figura sintética nada sinaliza em termos de localização temporal ou física; ela poderia
pertencer tanto ao início quanto ao fim da história, não fosse a sua localização no DH (na
última página). Se por um lado essa figura parece corresponder, em sua indeterminação, ao
caráter panteísta de Peter, por outro, ao evitar o foco em uma das personagens — Sra.
Darling, Wendy ou mesmo Jane como mãe de Margarete —, passa uma impressão de
impessoalidade, potencializando uma relação mais fria com o perceptor. A problemática da
presença feminina no DVs repete-se em relação à Fada Sininho cuja elaboração em traços
rápidos, tons frios e escuros, só aparece em contexto extradiegético visual, ou seja, sua
figurinha não se integra à ordem sintáxica híbrida propriamente dita (o miolo que compreende
a história), aparecendo apenas na capa e como figura decorativa junto ao título [fig B.1, B.2,
141
Conforme observa Peter Hollindale (nota 70).
142
Esta parece ser a intenção da voz narrativa, quando projeta a existência do menino do passado — “At first
Mrs. Darling did not know, but after thinking back into her childhood she just remembered a Peter Pan who was
sais to live with the fairies” (BARRIE, 1999: 75.) [“No começo, a senhora Darling não sabia. Mas aos poucos foi
começando a pensar na sua infância e se lembrou de um certo Peter Pan que, diziam, vivia com as fadas.”
(MACHADO. 2006: 17.)] — ao futuro extradiegéticos — “so long as children” etc.(BARRIE. 1999: 226.)
[“enquanto houverem crianças, etc.” (MACHADO. 2006:256)] —, sujeitando-o a uma definição atemporal de
infância. Ressalto também que a invenção da personagem Peter Pan precede a obra Peter Pan e Wendy, e
prossegue em inúmeras continuações, apropriada por autores da literatura e do cinema.
65
B.4 e B.5]
143
—, e na ausência completa de Lírio Selvagem, estendida às demais personagens
indígenas. Um tanto mais expressivas que Sininho, as sereias conformam-se a partir de traços
dinâmicos e volumes dados pela diferença de luminosidade, embora o grupo tenha sido
executado em matizes próximos, formando um conjunto cuja vivacidade (onde cada sereia,
através dos traços, assume um movimento individual) é amortizada pelo quase
monocromatismo [fig B.11]. Os detalhes, pouco elaborados, e o rebaixamento das texturas,
também contribuem para achatar as figuras num único plano, despersonalizando-as em favor
do ritmo que as reúne, como se todas as sereias fossem na verdade uma entidade,
multiplicada no cenário em variadas posições. O resultado acaba sendo o mesmo da imagem
da mulher à janela: a despersonalização das personagens ressignificadas potencializa um
rompimento do vínculo de identificação e afetividade entre elas e o perceptor.
Peter Pan aparece em destaque na capa, retratado numa exuberante e complexa
gama de traços, volumes, reflexos e matizes como um menino de aparência ruiva, europeu-
caucasiana, surpreendido numa expressão esperta e maliciosa [fig B.1]. Esse menino, porém,
não se repetirá nas imagens internas ao DH: sua primeira aparição, junto aos meninos
perdidos, revela-nos um outro, mais sintético, ou seja, de traços simplificados e fisionomia
diversa (cabeça mais redonda, olhos mais separados, rosto mais largo e sem das sardas). Ao
longo desse DVs, percebo uma outra peculiaridade nos elementos indiciais significativos que
compõem o ícone Peter Pan: ele essempre de olhos fechados [fig B.10, B.13, B.15 e B.16].
Esse detalhe acaba interferindo na sua expressividade, reduzindo seu potencial comunicativo.
Sua aparição é pouca no total de nove manchas, ele aparece em quatro, sem contar a
presença da sombra —; em sua maior parte, atua em situações pouco significativas com
exceção do duelo com o Capitão Gancho, as demais ilustrações falham em sua relação ao
contexto verbal ao omitir as ações cruciais da diegese.
Além disso, o ícone Peter Pan, tal como configurado por Vicente, não se mostra como
uma entidade ou espírito panteísta, mas se assemelharia a um menino como os outros, não
estivesse “fantasiado” de modo diferente (as folhas secas são substituídas por folhas verdes,
numa referência ao estereótipo criado pela Disney), ligeiramente mais velho e mais alto. Nas
ações discursadas visualmente, ele tem pouca companhia: o bando de meninos perdidos, com
o qual não interage, e o Capitão Gancho que, como ele, se apresenta sempre de olhos fechados
143
Além disso, a figura é escura e monocromática da cabeça aos pés, o que torna sua representação visual
incoerente em relação aos dados indiciais apresentados na narrativa verbal: luminosidade “a thousand times
brighter than the night-lights” (BARRIE. 1999: 88.) [“mil vezes mais brilhante do que os abajures da cabeceira”
(MACHADO. 2006: 38.)], roupa feita de folhas secas, etc.
66
[fig B.9 e B.15]. Vale a pena um comentário a respeito desse último e sua configuração
desafinada em relação ao DVr, que o descreve como um homem:
[...] de cara morena e um ar cadavérico, com cabelo comprido penteado em cachos
longos, que de longe parecem umas velas pretas coisa que acaba dando uma
expressão especialmente ameaçadora a um rosto que até poderia ser bonito. Tem os
olhos azuis da cor do miosótis e um olhar triste e melancólico [...]. Gosta de se vestir
macaqueando a moda do tempo do rei Carlos II, [...]. E, para completar, tem sempre
na boca uma espécie de piteira dupla, que ele mesmo inventou, e que serve pára
fumar dois charutos ao mesmo tempo. Mas, sem dúvida, seu detalhe mais assustador
é a tal garra de ferro.
144
(MACHADO. 2006: 80 e 81.)
Se compararmos o Capitão Gancho de Fernando Vicente em Peter Pan/Salamandra
[fig B.9] à interpretação de, por exemplo, Johnstone [fig C.3.1 e C.3.2]
145
, compreenderemos
as perdas semânticas e alguns equívocos indiciais da primeira transcriação em relação à
segunda: enquanto uma se baseia num esquema visual convencional de composição da figura
de um capitão pirata, já automatizado (recendente a Disney), a outra, além de fugir ao
estereótipo e de atentar aos detalhes descritivos do texto verbal, tira partido da expressividade
plástica dos elementos que compõem a especificidade do texto visual, reunindo num único
golpe iconográfico as características de uma personalidade complexa, depreendidas ao longo
da leitura do texto verbal: insegurança e crueldade cínica, sentimentos reprimidos e
cavalheirismo.
Os signos icônico-indiciais do DVs incluído em Peter Pan/Salamandra compõem,
portanto, uma melodia pouco criativa entoada pela voz visual, reduzida a um débil
acompanhamento à voz verbal, desequilibrando do DH em favor do DVr. Ao contribuir com
arranjos burocráticos, conve69.1489(m-10.8 Td[(f)-13.064c92( )-409.92(r)3.21279(a)-13.4472(r)3.2121(i574)-13.4472(t))-2.807pouctiéuciístdadam
67
como uma cortina transparente, ela separa o navio do menino expressivamente representado,
indiciando os diferentes planos de realidade, sonho e imaginação
146
.
2.3 Composição sinfônica
As análises até aqui realizadas, é claro, não dão conta do DH de Peter Pan/Salamandra
em sua integridade, mas apenas sugerem possibilidades decodificadoras e interpretativas que
pretendo integradas e tridimensionais, decorrentes não da organização sintagmática
estabelecida entre as diversas tessituras (verbais, visuais e gráficas), mas dos novos níveis
paradigmáticos surgidos da inter-relação entre eles. Por isso o termo sinfonia (“realização
orquestral [...] caracterizada pela multiplicidade de executantes para cada instrumento e pela
diversidade dos timbres [grifo meu]) aplica-se melhor a essas inter-relações do que o de
polifonia (“simultaneidade de várias melodias que se desenvolvem independentemente, mas
dentro de uma mesma tonalidade
147
[grifo meu]), termo sugerido por Bakhtin para as
relações intraverbais; enquanto esse último aplica-se, ainda segundo o conceito bakhtiniano, a
um discurso de várias vozes em relação binária/dialógica, o termo por mim escolhido, além de
não excluir a dimensão polifônica, incorpora as diferenças sígnicas que compõem cada
tessitura (os timbres), bem como a sintaxe específica de cada um deles em termos
pluridimensionais (pois a característica fundamental da orquestra sinfônica é o efeito de
espacialidade instaurado pelos múltiplos “executantes para cada instrumento”). Acrescento
ainda que o termo sinfonia implica não a inter-relação entre os textos verbais e visuais-
gráficos internos ao OA, mas também a inclusão desse objeto como espaço gráfico
tridimensional que organiza as inter-relações discursivas, além de uma outra dimensão
bastante importante, mas negligenciada nos estudos de apreensão do DH: os modos
perceptivos, tal como se oferecem à consciência cognitiva, ela mesma hologramática
148
.
146
A repetição da figura do navio pode ser verificada nas imagens em anexo [fig B.1 e B.14]
147
As definições de sinfonia e polifonia foram retiradas do Novo dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Cabe, entretanto, observar a diferença entre a definição de sinfonia enquanto
termo utilizado pela teoria grega tardia e na medieval, indicando consonância ou tipos de instrumentos capazes
de produzir várias notas ao mesmo tempo, mais próxima do sentido que desejo atribuir, e de sinfonia enquanto
gênero musical desenvolvido a partir do Renascimento, como peça composta de três a quatro movimentos para
serem interpretadas por grandes orquestras e variados instrumentos. Nenhuma dessas definições exclui o termo
polifonia, que igualmente compreende a simultaneidade (e mesmo a homofonia), mas acrescenta uma dimensão
espacial necessária à inclusão do livro como ambiência onde atuam os discursos verbais e visuais.
148
Um holograma é uma imagem gravada em chapa especial a partir da superposição de ondas de um feixe de
luz laser sobre um dado objeto. A reflexão dessas ondas sobre a superfície do objeto resulta na sua reprodução
tridimensional. “É, sobretudo, para tentar compreender a representação, a inscrição em memória e a
rememoração que se pode [...] recorrer ao princípio hologramático.” (MORIN. 2005: 115.) As questões relativas
à recepção serão aprofundadas no capítulo seguinte.
68
De qualquer forma, entendo que nem o DVr se comporta em sentido único, linear ou
dialógico, mesmo nos gêneros de narrativa em prosa; a carga semântica a ele associada
através das diversas funções atribuídas simultaneamente a sua estrutura gnica criam, na
verdade, uma perspectiva de profundidade. Somado a isso, temos, no caso da edição
analisada, um palimpsesto verbal onde, além dos significados inerentes à diegese, outra voz se
sobrepõe em português à voz em ings original, e que não lhe corresponde senão pela
similaridade no uso das convenções gráficas (utilização do mesmo alfabeto). Assim, se não
entendo as relações intrasemióticas verbais como lineares e dialógicas, tampouco devo
admitir o mesmo comportamento nas relações entre linguagens verbais e visuais que, em suas
especificidades, são igualmente estrangeiras” entre si. Embora a tradução de Machado se
coloque à frente” da voz autoral de Barrie, ela não a obscurece, mas nela se aninha; estão
ambos presentes e atuantes, do mesmo modo que a voz do ilustrador Fernando Vicente que,
apesar de aparecer “ao lado”, não sufoca nem dialoga com a voz verbal, mas integra-se
como parte elementar do discurso híbrido.
Considerei a aqui as inter-relações discursivas e significativas entre os discursos,
sem justificar tecnicamente os modos e razões de como esse efeito se potencializa; em outras
palavras, falei dos pontos intersectivos que os associam dentro de um dado DH, sem me deter
nas linhas que costuram e reestruturam suas vozes e melodias em um todo sinfônico. Para
tratar dos processos gerativos de transcriação de uma linguagem para outra (nesse caso, de
como a diegese narrada primeiramente em verbo pode ser trans-ressignificada pelo DVs),
apóio-me nos estudos de Julio Plaza
149
sobre tradução intersemiótica desenvolvidos a partir
dos conceitos de Charles Sanders Peirce.
Plaza, além de tratar os aspectos de tradução estrutural-sígnica do ponto de vista
sincrônico, também oferece uma base diacrônica que me interessa, tendo em vista a natureza
do meu corpus. Sabemos que Peter Pan e Wendy foi originalmente criada para o teatro:
previa, portanto, aspectos formais-cênicos que influenciaram na sua concepção sígnica verbal
original. Ao ser transferido para texto literário, a obra sofreu modificações no que se refere à
estrutura verbal, para adaptar-se a sua nova substancialização, o suporte gráfico. O que quero
dizer é que sua idealidade, para utilizar o termo genettiano, imanou a partir de uma nova
notação, à qual, por sua vez, foram incorporadas as ilustrações de Bedford, elas mesmas uma
outra forma de notação gerada a partir da mesma idealidade. Tais adaptações da obra de
Barrie, escritas ou não por ele, somadas às adaptações do teatro para o cinema ao longo dos
149
Professor da PUCSP e USP, pesquisador e curador especialista em mídias eletrônicas e digitais.
69
dois últimos séculos, exemplificam o quanto Peter Pan — objeto alográfico cuja função
estética é imanente e transcendente necessita e depende, como qualquer outra obra verbal-
literária, ser substancializada pelas mais diversas linguagens formais e visuais, ainda que as
propriedades contingentes verbais sejam consideradas oficialmente as da sua natureza
primeira, a fim de que possa ser veiculada e percebida. Também evidencia o quanto ela pode
mostrar-se suscetível a essas substancializações, ao longo de seu percurso diacrônico.
Uma obra alográfica é, assim, passível de transporte (ou transducção, como diria
Plaza) em inúmeras encarnações sígnicas, não verbais e gráficas, mas de toda ordem,
dependendo de intenções e interesses que variam conforme as demandas culturais, históricas e
sociais que contingenciam cada atualização. Por atualização estética, Plaza entende uma
operação de recuperação da história através de uma poética sincrônica, que visa propor um
diálogo
150
com a tradição através da sua revitalização transcriativa, assim condicionada:
Estamos, porém, diante de duas chances: ou o presente recupera o passado como
fetiche, como novidade, como conservadorismo, como nostalgia, ou ele o recupera
de forma crítica, tomando aqueles elementos de utopia e sensibilidade que estão
inscritos no passado e que podem ser liberados como estilhaços e fragmentos para
fazer face a um projeto transformativo do presente, a iluminar o presente. (PLAZA.
2003: 7.)
No caso de um texto literário, é preciso reconhecer e incluir nas práticas poéticas
ressignificativas não as modificações internas do discurso verbal de ordem gramatical ou
translativa (de uma língua para outra), mas também os diversos gêneros e modalidades
audiovisuais que dele se apropriam e o transfiguram, como recursos revitalizadores orientados
por e para a sua linguagem primeira.
Deixando de lado outras formas de transcriação que hibridizam um texto literário de
variadas formas, como o cinema, o teatro e a própria tradução interlingual, detenho-me
especificamente no DH de Peter Pan entretecido pelas linguagens visuais, gráficas e verbais.
fiz perceber o quanto as transsignificações de ordem iconográfica acabam interferindo em
Peter Pan no seu discurso considerado primeiro. Ainda que sucintamente, creio ter
esclarecido o quanto elas expressam, através de escolhas estéticas, ideologias, visões de
mundo, as preferências conscientes ou inconscientes dos autores visuais. É interessante
acrescentar ainda que essas expressões passam pelo crivo de um mercado editorial, que é
quem determina a embalagem de um dado texto literário, tendo em vista um público-
150
Aqui adoto o termo diálogo, conforme Plaza, no sentido diacrônico que está por trás dos processos
transsignificativos (o diálogo do presente com o passado que procura dar sentido ao futuro). Assim mesmo, não
o faço tranqüilamente, pois suspeito de toda redução de qualquer relação à escala bidimensional, seja ela de
ordem espacial ou temporal.
70
destinatário consumidor. Infelizmente, não posso aprofundar o estudo dessas relações na
presente dissertação, mas não hesito em esboçá-las, querendo alertar sobre a sua existência,
pois, afinal, todo signo existe em/ atua sobre/ depende de um contexto
histórico/social/cultural.
No caso de uma obra longeva como Peter Pan, essas transsignificações, quando
eficientes em seu sentido poético interior e ressignificativo, ou seja, quando atuam de modo a
não se rebaixar qualitativamente perante o discurso entendido como primeiro enquanto
linguagem comunicativa e estética, possuem capacidade para revigorá-la, além de introduzir
valores próprios da época e do ato da ressignificação. Segundo Plaza, no trabalho transcriativo
ideal, as estratégias artísticas que indiciam o passado o elaboradas de forma a projetá-lo em
direção ao futuro. Por isso, o pesquisador fala em sincronia poética: trata-se de agregar à obra
original uma nova carga semântica que, sem anular a anterior, confira-lhe uma espécie de
combustível que potencialize o interesse perceptivo presente. No caso do objeto literário, esse
combustível fica muitas vezes sob a responsabilidade do design gráfico que produz e
moderniza o layout do objeto-livro, embora traduções que atualizem a linguagem e edições
revisadas pelo autor sejam igualmente importantes.
Além das intenções transcriativas, é preciso lembrar:
O processo tradutor intersemiótico sofre a influência não somente dos
procedimentos de linguagem, mas também dos suportes e meios empregados, pois
neles estão embutidos tanto na história quanto seus procedimentos. (Idem. Ibidem:
10).
Dessa forma, Peter Pan como toda obra alográfica predisposta à pluralidade
notativa dinamiza-se através de uma interface continuamente renovada não por um
ponto de vista ético/estético mutante, mas também pela própria dinâmica evolutiva da
tecnologia e da forma, que por sua vez suscita novas expressões e percepções significativas.
Assim como uma sinfonia de Beethoven não é executada hoje pelos mesmos instrumentos
fabricados na época, sob a regência do próprio compositor ou maestro coevo a ele assim
como, hoje, nós modificamos nossa audição da mesma sinfonia ao executá-la em nossa casa
num CD-player, cujas caixas redirecionam o som à nossa escolha pelo ambiente, ou mesmo
através de um MP3, com fones colocados diretamente ao ouvido assim, Peter Pan, sem
dúvida, é executada como uma sinfonia de tessituras que, em jogo sincrônico ao seu passado
literário, presentificam a obra publicada em 1911 ao receptor contemporâneo e a encaminham
à recepção futura.
71
A historicidade do signo está prevista por Peirce dentro de uma concepção tricotômica
composta, por sua vez, de tríades categorizadas conforme aspectos físicos, comportamentos e
funções
151
. Ao conceber correspondências entre os signos em suas qualidades e funções, o
semiólogo abre a possibilidade para as traduções interssemióticas em diversos níveis estético-
perceptuais e comunicativos, em que, segundo Plaza, se tornam “relevantes as relações entre
os sentidos, meios e códigos”
152
. Assim, com base na semiótica peirceneana, Plaza determina
alguns princípios norteadores para a transcriação entre estruturas sígnicas diversas: em
primeiro lugar, é necessário levar em consideração os aspectos normativos de cada campo
semiótico, presentes no comportamento legissígnico
153
. Sob esse aspecto, um signo é
obediente a uma determinada lei ou convenção reguladora de uma dada linguagem. No caso
da linguagem verbal, comportam-se como legissignos as convenções gráficas e sonoras que
compõem uma dada língua, enquanto que na linguagem visual são convenções as cores,
formas, linhas e planos executados dentro de uma determinada técnica (aquarela, fotografia,
argila, etc.). É possível, segundo Plaza, estabelecer uma correspondência entre os aspectos
normativos de cada discurso, tendo-se em vista as especificidades das linguagens
interrrelacionadas. Assim, se a partir do DVr que compõe a narrativa Peter Pan obtemos uma
perspectiva (de)codificadora predominantemente linear/temporal (leitura por varredura dos
seus sinais gráficos), sua ressignificação em DVs oferecerá a mesma narrativa a partir de uma
151
Peirce classifica o signo segundo três tricotomias (primeira tricotomia: qualissignos, sinssignos e legissignos;
segunda tricotomia: ícone, índice e símbolo; terceira tricotomia: signo remático, signo dicente e signo
argumento) definindo cada uma da seguinte forma: “a primeira, conforme o signo em si mesmo for uma mera
qualidade, um existente concreto ou uma lei geral; a segunda, conforme a relação do signo para com o seu objeto
consistir no fato de o signo ter algum caráter em si mesmo, ou manter alguma relação existencial com esse
objeto ou em sua relação com um interpretante; a terceira, conforme seu Interpretante representá-lo como um
signo de possibilidade ou como um signo de fato ou como um signo de razão.” (PEIRCE. 2005: 51.) Essas
classificações são, entretanto, combináveis entre si: “um signo pode, em seu exterior imediato, pertencer a uma
das três classes, mas também pode determinar um signo de outra classe” (Idem. Ibidem: 29.) Além disso, a
semiótica peirceneana entende o signo como mutável e dependente da sua contextualização no tempo e no
espaço consciente perceptivo: “[...] todo símbolo é uma coisa viva, num sentido muito estrito que não é apenas
figura de retórica. O corpo de um símbolo transforma-se lentamente, mas seu significado cresce inevitavelmente,
incorpora novos elementos e livra-se dos elementos velhos.” (Id. Ibid.: 40.)
152
PLAZA. 2003: 45.
153
“Um Legissigno é uma lei que é um Signo. Normalmente, esta lei é estabelecida pelos homens. Todo signo
convencional [um símbolo] é um legissigno (porém a recíproca não é verdadeira).” (PEIRCE. 2005: 52.).
Convencionou-se, por exemplo, nas línguas ocidentais, que a letra a deve ser desenhada de uma determinada
maneira (a ou a). Mas a letra a, uma lei ocidental para os diversos fonemas que representa (/a/, nas línguas
latinas ou /ei/, no inglês), não é um símbolo em si mesmo (em sua forma gráfica), mas pura convenção sonora
legissígnica. As estruturas linguais que indicam estarmos falando ou escrevendo num determinado idioma e não
em outro também são legissignos. Por isso, entendo que o DH de Peter Pan/Salamandra não só é constituído
pelo DVr interligado ao DVs, mas também pela superposição do DVr em português ao texto verbal original em
inglês. Ocorre que não é possível, no presente momento, dar conta de todos os instrumentos, ou vozes, presentes
no DH. Porém, é preciso reafirmar que, ao entender o conceito de híbrido no seu sentido mais amplo, conceito
esse que não engloba apenas a inter-relação entre linguagens a nível estético, mas também em seu sentido
comunicativo e interativo imerso em um dado sistema sócio/histórico/cultural, tenho consciência de que estou
abordando somente um dos amálgamas que compõem o DH como um todo.
72
perspectiva bidimensional/espacial (leitura multidirecional dos diversos elementos que
constituem a imagem). No primeiro, temos uma ordem prioritariamente hipotáxica, pois o
processo de leitura é realizado palavra por palavra, frase a frase, uma após a outra, em ordem
hierárquica. No segundo, temos uma ordem por coordenação, predominantemente paratáxica,
onde todas as partes tendem a ter a mesma importância, [...] segundo a idéia de conexão
como rede de relações”
154
.
Essa estrutura sígnica, entretanto, materializa-se num dado suporte, em limites espaço-
temporais delimitados. Uma das inter-relações possíveis de se estabelecer entre uma estrutura
sígnica e outra, portanto, é a sua manifestação através de um suporte comum. No caso da obra
ilustrada Peter Pan, estabelece-se uma contigüidade entre os códigos visuais e verbais
através do seu suporte gráfico; ambas as linguagens substancializam-se no objeto-livro, esse
mesmo um suporte convencional, porém responsável, segundo Plaza, pela reunião das duas
formas de representação, de modo que se apresentem como “dois estados de consciência [...]
simultâneos ou imediatamente sucessivos [que] permanecerão associados. Daí por diante, se
um deles ocorrer, tenderá a reproduzir o outro.
155
Segundo Plaza, a inter-relação estabelecida entre as linguagens verbais e visuais que
compõem o DH dentro de um objeto-livro implicariam necessariamente uma obediência à três
ordens transcriativas, em que um discurso se torna interpretante
156
do outro: a icônica,
transcriativa propriamente dita, onde se observa a carga estética específica de cada discurso
(no DVr, os aspectos estéticos presentes na materialidade e na sonoridade do signo verbal, sua
capacidade de provocação sensível; no DVs, a expressividade das formas e demais elementos
compositivos da imagem, como cores, texturas, etc.); a indicial, em que se preserva por
transposição o contato entre a linguagem primeira e sua tradução, aumentando a carga
comunicativa (dentro dessa ordem, são aprofundadas as costuras entre elementos diegéticos e
simbólicos presentes e correspondentes em ambos os discursos); e a simbólica,
transcodificadora, em que são estabelecidas as relações entre as convenções formais de cada
discurso (aqui se situa a ampliação semântica de cada elemento iconográfico/actancial
constituinte da narrativa). Ao analisar as vozes e melodias do DH, nada mais fiz do que
avaliá-lo em suas mesclas icônicas, indiciais e simbólicas, ainda que eu não tenha me servido
154
PLAZA. 2003: 74.
155
Id. Ibid.: 80.
156
Plaza busca referência na terminologia peirceneana que denomina interpretante o comportamento do Signo
em relação existencial com seu Objeto (a imagem mental que se forma da percepção da forma sígnica). Como
Ícone, o Signo atua como representâmen direto do Objeto; como Índice, o Signo atua como indicativo da
presença do Objeto e, como Símbolo, substitui a presença do Objeto.
73
dessa terminologia, cabendo apenas ressaltar que é essa imbricação, causada pelo projeto
gráfico, a responsável pelo caráter híbrido do discurso resultante, em que o visual é enxertado
ao verbal, esse por sua vez irrevogavelmente transfigurado por aquele
157
. Tal fusão é
possível, portanto, se o DH como tal estiver circunscrito aos limites de um mesmo meio, ou
suporte: assim, uma série de artes cujo tema seja a narrativa Peter Pan, ao ser exposta em
separado (numa galeria de arte, por exemplo) pode caracterizar-se como uma transcriação da
obra literária para outra linguagem estética, mas jamais comporá um DH com aquela, pois não
contigüidade entre o texto verbal e o visual que a ele se refere. Assim como uma sinfonia
musical, para ser compreendida em sua totalidade comunicativa e estética, necessita de um
espaço de execução virtual ou real onde, no primeiro, teríamos sua simulação em som
estereofônico ou surround e, no segundo, a execução com presença física de uma orquestra —
assim o DH necessita de um meio no caso, o OA para se manifestar à consciência
perceptiva e cognitiva do sujeito que usufrui do objeto-livro em suas mãos.
É preciso dizer que o meu corpus não se comporta como um bom exemplo sinfônico.
As ferramentas legissígnicas visuais foram aplicadas com displicência e economia,
desperdiçando uma boa oportunidade ressignificativa. Em primeiro lugar, do ponto de vista
transcodificativo, a iconografia simbólica de Peter Pan apresenta-se pouco e superficialmente
quando não erroneamente explorada
158
; a transposição indicial é prejudicada pela falta
de profundidade na elaboração das artes, simplificadas e não condizentes com o que está
sendo narrado no DVr; por fim, o estilo e as técnicas de representação, convencionais pois
beiram um cartunismo automatizado —, estão arranjados em freqüência rala e aos tropeços
dentro da sintaxe brida proposta pelo projeto gráfico, não satisfazendo do ponto de vista
transcriativo e estético. O DVs aparece, desse modo, encolhido, o quantitativa, mas
qualitativamente, à sombra da riqueza e complexidade estrutural da tessitura verbal proposta
por Barrie, traduzida por Machado. Tendo em vista o histórico de transsignificações da obra
Peter Pan, ao qual me referi apenas superficialmente, é constrangedor reconhecer que o meu
exemplo de análise pretere uma reflexão sobre o potencial estético visual suscitado pelo texto
verbal.
157
Nunca é demais lembrar que aqui tratamos especificamente de uma obra literária ilustrada, onde o verbal é a
narrativa primeira. Há, certamente, obras concebidas como fusão completa de discursos, onde fica difícil
distinguir qual linguagem é primária ou secundária, como narrativas onde imagem e texto encontram-se em
relação simétrica, ou mesmo narrativas em quadrinhos — onde o grau de complexidade do DVs compete com
narrativas igualmente complexas (a exemplo das graphic novels como Sin City de Frank Miller ou dos contos
gráficos de Lourenço Mutarelli, por exemplo).
158
Conforme diagnosticado no segmento 2.2 (Melodias), em relação à análise iconográfica dos personagens.
74
Até aqui, centrei minhas idéias nos limites do livro como objeto icônico e indicial de
duas idealidades, representadas pela obra alográfica de autoria de J. M. Barrie e as artes
alo/autográficas de Fernando Vicente, substanciadas e maestradas pelo projeto gráfico e
diagramação de Camila Crispino. Espero ter esclarecido que ambas só se hibridizam graças ao
seu suporte comum, mediador que as integra num único objeto autográfico dependente de
uma consciência perceptiva para ser assim interpretado e compreendido. O modo como tal
dependência se processa, ou seja, o modo como a consciência sentimental/cognitiva percebe,
é dirigida ou interage com o objeto-livro enquanto suporte estésico-híbrido, em especial com
o objeto-livro ilustrado, caso da publicação aqui analisada, somados às intenções remetentes
de produto cultural dirigido a um destinatário específico, serão abordados no próximo e
último capítulo: afinal, quem seriam as “crianças inocentes, leves e de coração leve
implícitas na edição de Peter Pan/Salamandra?
75
3 A PLATÉIA
...não esse corpo possível que é lícito afirmar ser uma máquina de
informação, mas esse corpo atual que chamo meu, a sentinela que se posta
silenciosamente sob minhas palavras e sob meus atos.
76
Mesmo agora, tantas dissecações depois, os efeitos iniciais exercidos sobre mim o
se apagam. Eu ainda não posso ler muitas de suas passagens sem me emocionar. Porém, ao
lado dessa leitora sentimental, da criança que não se cansava de esperar Peter Pan à janela ou
que assumia a personagem em suas mimeses infantis, existe aquela que se esmera em dissertar
sobre a obra em seu contexto autográfico; sinto-as em sincronia profunda na memória e no
sentimento, e julgo necessário depô-las nesse trabalho que, como já disse, não passa de mais
uma experiência de leitura.
Hans Robert Jauss explica a recepção de um dado texto literário como uma intersecção
da linha diacrônica percorrida pela obra por cortes sincrônicos transversos
161
; entendo que
mesmo esse ponto de intersecção tem sua própria rede receptiva espaço-temporal, conectada a
tantas outras redes de onde posso deduzir inumeráveis pontos de intersecção entre um leitor e
outro; do ponto de vista teórico, torna-se difícil avaliar quantos e quais pontos em comum
teriam os tantos leitores da obra de Barrie, a não ser ela mesma; porém, se como diz Jauss, é
possível traçar um percurso histórico comum da obra através de um estudo hermenêutico que
investigue os modos como ela se oferece à recepção, penso que deveria ter-se em vista os
diferentes suportes físicos que a substancializam, pois eles são um sintoma/diagnóstico do
dinamismo dessas inter-relações. Ilustrado ou não, veiculado por dias gráficas ou híbridas,
multimidiáticas, a recepção do texto verbal passa obrigatoriamente por essa primeira e
obliterada protoleitura — a leitura gráfica-visual, mediadora do texto literário ao olhar
daquele que lê, ao mesmo tempo em que localiza obra e receptor em dado tempo e espaço. Do
mesmo modo, quando Wolfang Iser fala que a obra é o ser constituído do texto na
consciência do leitor”
162
, creio poder aferir que, além das operações mentais realizadas no ato
de leitura do texto verbal, o sujeito-leitor incorpora as percepções estéticas derivadas do
objeto autográfico que o substancializa e as conjuga integralmente na consciência. Assim, se
nas obras literárias [...] sucede uma interação na qual o leitor ‘recebe’ o sentido do texto ao
constituí-lo”, ou seja, se na leitura de um texto literário o código comunicativo surge no
próprio processo de constituição “em que a recepção da mensagem coincide com o sentido da
obra
163
”, não posso desconsiderar os aspectos que presentificam todo o signo estético
161
“É preciso considerar a historicidade da literatura sob três aspectos: diacronia — a recepção das obras
literárias através do tempo [...]; sincronia — o sistema da literatura num dado momento e a sucessão dos
sistemas sincrônicos [...]; e, finalmente, a relação entre a evolução intrínseca da literatura e a da História em
geral [...].” (JAUSS. 1993:87.)
162
ISER. 1996a: 51.
163
Idem. Ibidem: 51.
77
aspectos esses previstos tanto no sistema tricotômico de Peirce
164
quanto nas funções sígnicas
de Roman Jackobson
165
. Partindo do princípio de que todo texto literário é dependente de e
inter-relacionado a uma estrutura gráfica-visual para ser apreendido, ignorar esse suporte é
ignorar parte do processo comunicativo/interativo entre mensagem (obra) e receptor (leitor).
Toda a análise, dentro da teoria proposta por Jauss e em especial Iser, relativa ao potencial
receptivo de um texto verbal artístico, derivado dos pontos de indeterminação e dos espaços
vazios gerados pela própria tessitura, pode e deve ser, portanto, estendida aos demais
elementos estruturais significativos que o substancializam ou o transfiguram em discurso
híbrido, podendo exacerbar, inclusive e principalmente, a sua estrutura afetiva.
Para a hermenêutica da estética da recepção, o suporte é inexistente, não-interferente.
Entre o autor e o leitor, ainda que envoltos por entornos tridimensionais (sistemas literários,
circunstâncias espaço-temporais de toda ordem), não há, no espaço da leitura em si, outra
dimensão comunicativa que uma linha, reta, direta e sem ruídos a pura idealidade da obra
alográfica. Contudo, basta colocar lado a lado, para ficar somente num exemplo de mídia de
veiculação impressa, as quatro edições brasileiras ilustradas de Peter Pan publicadas em sua
versão integral
166
, para percebermos o quanto elas diferem uma da outra; quão variadas são
suas propostas receptivas e, sobretudo, quão variados são os estímulos estésicos localizáveis
conforme o contexto sociocultural e histórico em que foram publicadas
167
. Todas as edições,
mesmo as que se encontram indisponíveis, permanecem coexistindo, em seus diferentes
estilos, em bibliotecas públicas ou privadas, competindo entre si pela atenção do leitor. Cada
o(m)R89(.039J)-80121p13.032(or)- 0 502(ua).13.032(oJ)-80121(on32.0851101820.617Tusr)3..407T9(/R89(.039dn32.08511u1r)3..407Ta)a.806883((10400292.28 10.6383r)- 0 5076Tt)824.688[ePs1351 33(9(-.821633Tds)R9 9.36e1.1351 33(9(t4f1 3.445-38-9.235747.87i)1.40251)]TJ032(1)R9 9)-1mur72c9820.617TaoçPs13.032(oã251)]TJ032(1-5.68( TJ/R89(5.5401.a)]TJ032/)-2.979(72(1r)3..407Tu1)R9 9)-1a5.54p/rua5.54u13.032(oa)/R89(5.54p/r)3..407T(P)0.28080(ió/r)3..407TaP7219(13.032(oa)/R89(5.54c1.13.032(oo1r)3.5168(n)r)3..407Td4)-240]Tt74-2.98035(t)-2.98035(u)r1-R9 9.039J2.04 o31.9365J/R.803.42 6f5.04003 5.hW nq8e5.54A103258185(n1)R9 9ox1r/R89(5.54A1403.438o,/R89(5.54a)-189(5.5401.13.032(om)t)1.6938(s)189(5.54C1r)50388( D1403.438o.m)R89(8569J2.04)Tj)-29096.q-eo31.9365J/R.803.42 7f5.04003 5.hW nq8e5.54In t72s/R89(5.54d4)-2211(01.13.032(om)t)1.6938(s)189(5.54f)- 0 502(ua)820.617Tl7219(13.032(o(P)0.28080(iJ/R89(5.54ns)R9 9)-1a).13.032(o)14)-2211(a)-72fPi01.13.032(o(P)0.28080(i01.13.032(on/r)3..407Tt)824.844[01.a)]TJ032d4 a 5.54t72ruaod1oõ1rod4
78
obra, mas se redimensiona na substancialização autográfica apresentada em primeira mão
diante dos olhos de quem irá optar por sua leitura. Em outras palavras, digo que essa
protoleitura pode, além de introduzir o texto verbal, dependendo do grau de importância e
destaque que lhe forem dados, influenciar no alargamento ou na limitação dos
horizontes de expectativa. É sempre e igualmente necessário esclarecer que não me refiro aqui
somente à obra literária infanto-juvenil ilustrada, mas a todo e qualquer texto verbal de
qualquer gênero ou tipo de discurso que, como objeto alográfico, necessita de uma notação
gráfica/visual para ser substancializado. Contudo, não dúvida de que é nas publicações
ilustradas, direcionadas às faixas etárias mais jovens, que seus efeitos se tornam mais
relevantes, exigindo maior cuidado e atenção, tanto por seus produtores quanto por aqueles
que têm se detido em sua análise.
A interação
169
com um DH que integre as linguagens verbo/visuais, portanto, deve ser
avaliada a partir e para além das diretrizes propostas pela estética da recepção, dirigida
prioritariamente ao texto verbal e excludente do suporte e da imagem
170
. Ela deve incorporar
os estudos da iconologia e da percepção visual, aliados à avaliação da capacidade cognitiva
visual e verbal do sujeito perceptor. Implica incluir um tipo de leitura normalmente posto de
169
Usarei o termo recepção para me referir à recepção do livro ou de um produto cultural como um todo,
agregador e substancializador de discursos verbais e gráfico-visuais. O termo percepção se referirá somente à
interação do receptor com os discursos visuais. Há uma discussão registrada por Maria Helena Wagner Rossi em
sua obra Imagens que falam (Porto Alegre: Mediação, 2006, p. 16-19.) sobre a terminologia da recepção à obra
de arte plástico-visual; o termo percepção, para alguns autores, implicaria certa passividade. No âmbito da arte-
educação, aparecem termos que vão desde vedor (em contraponto a leitor), passando por fruidor ou apreciador
até interagente (aquele que não somente contempla, mas que interage com o objeto estético). Optei por
percepção ou perceptor, porque, apesar de lidarmos com o objeto-livro de forma interativa (folheando páginas),
basicamente nos detemos passivamente diante das suas figuras. Confesso, entretanto, não estar satisfeita com o
termo, e prossigo em busca de outro melhor. Sempre que me referir ao processo cinético de leitura ou a leitura de
um DH, entretanto, usarei o termo interação, como é o caso.
170
As comparações entre imagem e verbo, feitas por Iser, tendo por base a teoria dos pontos de indeterminação e
dos vazios, com perda semântica para a primeira em relação a segunda, estão deste modo exemplificadas: “If one
sees the mountain, then of course one can no longer imagine it, and so the act of picturing the mountain
presupposes its absence. Similarly, with a literary text we can only picture things which are not there; the part of
the text gives us the knowledge, but it is the unwritten part that gives us the oportunity to picture things; indeed
without the elements of indeterminacy, the gaps in the text, we should not be able to use our imagination.” [Se
alguém vê uma montanha, então é claro que não pode imaginá-la, e o ato de figurar a montanha pressupõe sua
ausência. De modo similar, com o texto literário nós podemos unicamente figurar coisas que não estão lá; a parte
escrita do texto nos dá conhecimento, mas é a parte não escrita que nos dá a oportunidade de figurar coisas; de
fato, sem os pontos de indeterminação, os vazios no texto, nós não somos capazes de usar a imaginação.] (ISER.
1978: 283. Tradução minha.). Iser considera que a interferência da imagem junto aos textos literários limita as
possibilidades de construção do imaginário pelo leitor. Citando o exemplo do cinema e suas possibilidades de
visualização, afirma: “[...]the moment these possibilities are narrowed down to one complete and immutable
picture, the imagination is put out of action, and we feel we have somehow been chated.” [no momento em que
essas possibilidades são reduzidas para uma imagem completa e imutável, a imaginação é posta fora de ação, e
nós sentimos como se tivéssemos sido trapaceados] (Idem. Ibidem: 283. Trad. minha.). Iser também irá se
referir ao termo imagem quando em sua crítica à hermenêutica tradicional, que busca um sentido além da
tessitura verbal, e não dentro dela: “[...]imagem e discursividade [...] são duas apreensões de mundo,
independentes entre si e, por conseguinte, quase irredutíveis.” (Idem. 1996a: 33).
79
lado, que pressupõe um receptor alfabetizado também nos códigos plástico-visuais
significativos, capaz de integrar em sua consciência, de forma sensível e crítica, os aspectos
apresentados pelo DH como um todo, tendo em vista seus horizontes visuais e verbais de
expectativa. desse modo explico porque eu não pude deixar de confrontar a leitura de
Peter Pan através da adaptação de Lobato inserida numa performance visual editada pela
Brasiliense com a do desenho animado produzido pela Disney, o qual, embora diferente
enquanto transductor midiático da obra de Barrie, acabou por instalar-se no meu imaginário
durante muitos anos. Essas versões, ainda que modificadas ou planas, conformam os meus
primeiros horizontes visuais e narrativos da história, propulsores do desejo de vivê-la
profundamente, de persegui-la; à medida que tal percurso foi se fazendo, à medida que meu
horizonte verbal e visual foi se alargando, não pelo contato contínuo com a obra em
questão, mas com as mais diversas experiências visuais e verbais, meu imaginário igualmente
modificou-se e ampliou-se, e hoje sou capaz de reconhecer as diversas encarnações da mesma
obra como partes integrantes de sua alografia comparando-as, interpretando-as,
compreendendo-as ou, como agora, aplicando-as em uma discussão que pretendo a mais
ampla possível, sem nunca esgotá-la, mas certamente apoderando-me dela, tornando-a parte
do meu ser, da minha identidade e da minha constituição, do meu memorial intelectual,
espiritual e afetivo.
Acabo de mencionar a necessidade de expandir a análise de um dado livro ilustrado,
para além dos aportes teóricos limitados à exegese do texto verbal, em direção ao seu suporte
autográfico, através da inclusão dos estudos da iconologia e da percepção da linguagem
visual. Além das aplicações fundadas nos estudos de Arnheim e nas relações intersemióticas
estabelecidas por Plaza, utilizadas ao longo desse trabalho, senti necessidade de recorrer
várias vezes à metodologia interpretativa da obra de arte proposta por Otto Pächt. É com base
nela que defendo a idéia de que uma imagem não possui um significado apenas imanente, mas
estabelece um jogo de relações simbólicas e sensíveis, requerendo um perceptor não só
experimentado em termos empíricos acerca desses fenômenos, mas com capacidade para
80
refletir sobre eles
171
. Adepto de um estudo hermenêutico que preconiza a necessidade de uma
contextualização histórica da imagem desde o momento de sua gênese, onde “a boa leitura de
uma obra [no caso, aqui, da arte ilustrativa], se aquela que permite estabelecer ligações
convincentes com a arte que lhe é anterior e com aquela que se segue, e também com a que
lhe é contemporânea
172
”, Pächt vai além, aproximando-se de Iser, ao realçar a importância de
um olhar perceptivo sensível ao jogo que a obra propõe ao espectador
173
. Também se
aproxima da dinâmica de leitura conforme a ótica iseriniana, ao afirmar que “logo que
tentamos apreender a obra de arte de uma certa maneira, certas propriedades do objeto
artístico permanecem incompreensíveis, a ponto de, ao procurarmos interpretá-la de uma
outra maneira, resta sempre um resíduo de propriedades inexplicadas
174
”. Do modo
semelhante aos fundadores da estética da recepção, Pächt defende a idéia de um espectador-
modelo implícito à obra de arte, cuja estrutura formal, sensível e simbólica, oferece condições
ou regras para sua apreensão
175
, sempre considerando “a necessidade de uma
relativização dos valores estéticos que abriram caminho a uma compreensão verdadeiramente
171
Il est essentiel d’avoir une certaine experiénce de ces phénomènes, d’être capable de les vivre et de les
revivre si l’on veut s’occuper d’eux, et cette experiénce n’est pás aisément influencée par des argumments
rationnels. Aussi est-il urgent de trouver les voies et les moyens susceptibles de favouriser la formation de nos
organes de réception. Ces voies et les moyens personne ne peut les imaginer abstraitement, et seule une
démarche empirique peut donner de bons résultats. Cela ne veut pás dire qu’il ne faille pas adopter a ce propôs
une attitude réflexive; notre regard doit se porter autant sur nous, le spectateur, que sur l’objet contemple, c’est-
à-dire l’oeuvre d’art. [ É essencial obter uma certa experiência desses fenômenos, de ser capaz de vivê-los e de
os reviver se queremos ocupar-se deles, e esta experiência não é auxiliada por argumentos racionais. Também é
urgente encontrar os caminhos e meios suscetíveis de favorecer a formação de nossos órgãos receptivos. Estes
meios e caminhos, ninguém pode imaginá-los abstratamente, e só uma abordagem empírica pode gerar bons
resultados. Isso não quer dizer que não se deva adotar uma atitude reflexiva; nosso olhar deve reportar-se tanto a
nós, o espectador, quanto ao objeto contemplado, quer dizer, a obra de arte.] (PÄCHT. 1994: 11. Tradução
minha.)
172
La bonne lecture d’une oeuvre será celle qui permet de créer des liaisons convaicantes avec l’art antérieur et
celui qui vient, mais aussi avec d’autres oeuvres contemporaines. (Idem. Ibidem: 24. Trad. e colchetes meus.)
173
Nous ne pouvons pas porter um regard arbitraire ou même tout à fait autre sur l’objet, cela n’est pas em
notre pouvoir, à moins que nous n´hésitions pas à faire violence à l’oeuvre d’art. [...] La confrontation entre
celui-ci et l’oeuvre d’art doit plutôt se comparer à um jeu de questions et de réponses dans lequel il est de la
plus grande importance d’écouter attentivement afin de savoir à quelles questions l’oeuvre d’art est prête à
répondre [...]. [Nós não podemos usar de um olhar arbitrário ou mesmo totalmente alheio em relação à obra de
arte; isso não nos compete, a menos que não hesitemos em violentá-la. A confrontação entre este olhar e a obra
deverá acima de tudo se comparar a um jogo de perguntas e respostas onde é da maior importância escutar
atentamente a quais questões a obra está pronta a responder.] (Id. Ibid.: 72. Trad. minha.)
174
Lorsque nous tentons de saisir l’oeuvre d’art d’um certe manière, certaines propriétés de l’objet artistique
demeurent incompréhensibles, tandis que, si nous cherchons à l’interpréter dúne autre manière, subsiste
toujours um résidu de propriétés inexpliquées. (Id. Ibid.: 72. Trad. minha.)
175
Lorsque nous disons que l’objet pose des “conditions objectives à sa saisie” et qu’il faut s’efforcer de
retrouver la manière dont l’oeuvre d’art veut être vue, cela sous-entend que l’on doit appliquer à l’oeuvre d’art
non des critères étrangers ou inadaptés, mais des critères internes qui lui sont propres. [Quando dizemos que
um objeto coloca suas próprias condições de apreensão e que é necessário um esforço no sentido de reencontrar
o modo como a obra de arte deve ser vista, isso quer dizer que se deve aplicar não critérios estranhos ou
inadaptáveis à obra, mas critérios internos que lhe sejam próprios.] (Id. Ibid.: 73. Trad. minha.)
81
histórica da arte do passado
176
”. É fácil perceber a influência do iconologista na minha
abordagem do percurso transsignificativo da obra Peter Pan e Wendy, em especial das suas
principais personagens, através da análise da amostragem de imagens criadas por seus
diferentes ilustradores, muito embora eu o o tenha citado diretamente; contudo, se era
minha intenção no capítulo anterior oferecer um panorama simbólico e iconográfico no
sentido de auxiliar a uma melhor compreensão do discurso visual contemporâneo produzido
por Fernando Vicente, trata-se, agora, de fazer sobressair um leitor/perceptor modelar híbrido,
implícito na edição que temos em pauta, mas igualmente decorrente do histórico receptivo
depreendido através das publicações e, portanto, dos variados discursos visuais e gráficos
— que a antecederam.
Quando nos referimos a um romance, poema ou conto cuja leitura nos marcou, vem de
imediato a nossa mente a imagem da edição que possuímos, ou possuíamos. Lembramo-nos
da capa, pode ser que até mesmo nos lembremos dos tipos gráficos que compunham as
palavras que nos chamaram a atenção, chegando a visualizar as frases tal como estavam
dispostas no papel. Mais: a lembrança desse suporte pode incluir o espaço físico no qual,
recostados e portando-o em nossas mãos, vivenciamos um momento de leitura. A luz rebatida
pelas ginas, o sabor de uma estimulante xícara de café, a dobra feita por dedos ansiosos
177
,
uma anotação à margem tudo suscita lembranças de um tempo-espaço vivido, ao qual o
texto fica indissoluvelmente ligado. Da mesma forma, os aspectos gráfico-visuais de um livro
lido se conservam e conservam em nossa memória não enquanto imagens em si
mesmas, mas como referências aliadas ao texto verbal. Isso pode ser especialmente verificado
em relação às nossas leituras de infância: as imagens reproduzidas em um livro ilustrado
integram-se de tal maneira na lembrança do ato de leitura, que por vezes resistimos ao
encontrar “nossa história” reconfigurada de outra forma, por outro ilustrador, ou mesmo por
uma adaptação cinematográfica
178
. Contudo, ao contrário do que afirma Iser, considero que
essas reconfigurações operam uma renovação no imaginário, ao invés de reprimi-lo, uma vez
que o confronto entre os mais diversos procedimentos midiáticos (filmes, ilustrações variadas
176
[...] l’on comprit la necessite d’une relativisation dês valeurs esthétiques que fut ouverte la voie d’une
compréhension vraiment historique de l’art du passé. (Id. Ibid.: 73. Trad. minha.)
177
Trata-se de uma referência pessoal: eu tinha o hábito, que hoje procuro controlar, quando muito excitada por
determinadas leituras, de quebrar a beira da página com o polegar, fazendo dobradura circular que depois se
plissava ao ser desdobrada. Meus livros ficavam com a beirada toda ondulada em pequenos “babadinhos”. Não
faltavam reclamações sobre o modo como eu estragava os livros, mas, para mim, aquelas marcas significavam o
quanto eu havia me envolvido com seu conteúdo. Presto esse depoimento porque acho que não sou a única
portadora de tiques de leitura. Muitos devem ter o mesmo, ou algum outro, o que mostra o quanto nos
envolvemos, não só mental, mas corporalmente, em relação ao suporte.
178
Noto que o mesmo se dá com o texto dramático, quando interpretado por um ator inolvidável, ou mesmo um
roteiro dirigido por um determinado diretor em dada época, refilmado sob outra concepção.
82
e outras transducções) conduzem a uma reflexão sobre o próprio imaginário pré-constituído. É
claro que a obra literária, em si mesma, é perfeitamente capaz de nos causar impressões;
conjugada, porém, e no caso aqui específico, ao objeto-livro que, por sua vez, vincula-se a
uma lembrança espaço-temporal de leitura, seu significado se particulariza, resultando numa
experiência o intelectiva, mas sentimental uma história onde o texto literário se
constitui não a partir do sujeito, mas em cada sujeito. Por outro lado, como ambiência
gráfica, o suporte do texto verbal, sempre que produzido com intenções auto-referentes, ou
seja, sempre que se apresenta deliberadamente em função estética e comunicativa, traduz um
contexto histórico e social de leitura, ao combinar em si todos os aspectos gráfico-visuais
contingentes, por sua vez, a uma visão de mundo e o grau de desenvolvimento tecnológico de
uma época.
Por essas e outras razões apresentadas, entendo que a protoleitura realizada em um
livro ilustrado com competência ideal jamais preencherá ou limitará o espaço aberto às
indeterminações isernianas previstas em um texto literário de boa qualidade uma vez que
se trata de um outro campo semiótico, proponente de um tipo diverso de abordagem poética
ou narrativa —, tampouco suavizará o percurso receptivo através dos contrapontos
tema/horizonte e negação/representação. Uma série de ilustrações ou recursos gráficos cujo
potencial comunicativo e estético sejam intencionalmente destacados não se limita a explicar
ou decorar o texto, não o representa, não o substitui nem deve complementá-lo como muleta
meramente “facilitadora”, ainda que muitas vezes possam vir a exercer todas essas funções,
caso o texto mesmo o requeira ou assim determine a proposta editorial
179
; sua prioridade é
oportunizar uma dimensão impensada à leitura, aberta às possibilidades constitutivas do
imaginário. Em suma, uma narrativa visual que acompanha, é acompanhada ou se encontra
em relação de simetria com a narrativa verbal, pode estimular o enriquecimento do
vocabulário estético-visual, propiciando uma interação criativa/expressiva, sensibilizando e
enriquecendo a percepção por vias que se agregam a outras em nossa consciência
pluridimensional.
179
De fato, há textos que são criados tendo em vista um apoio visual, assim como há editoras que, por interesses
diversos, incluem a ilustração tendo por único objetivo usa-la como um chamariz de um destinatário implícito na
concepção do seu produto, sem maiores preocupações artísticas ou estéticas.
83
3.2 Recepção intelecto-sentimental
Como espero ter demonstrado, não basta conduzir minha análise da recepção implícita
à obra PeterPan/Salamandra à sombra das concepções hermenêuticas verbais de Jauss e Iser,
nem somar a essas a percepção gestáltica de Arnheim e o ponto de vista iconológico de Otto
Pächt. Para captar amplamente as interações entre o sujeito e seu objeto-suporte híbrido de
leitura que, como vimos, envolvem muito mais do que um enlace estésico ou cognitivo
intelectual, é preciso ultrapassar a concepção de um leitor/perceptor-modelo meramente
diagnosticado dentro dos limites cogitativo-computacionais.
Quando falo em recepção cogitativo-computacional, estou me referindo ao conceito
de Edgar Morin, para o qual o termo computação (do latim computare: “analisar em
conjunto, com-parar, com-frontar, com-preender”
180
) e o termo cogito incluem as atividades
cognitivas e reflexivas cujos processos operacionais ininterruptos permitem ao sujeito o
conhecimento do mundo e ao mesmo tempo o auto-conhecimento. Ao atuar de modo cogito-
computativo, o sujeito traduz, constrói e soluciona, através de símbolos, signos e formas
181
,
uma relação com o objeto diante do qual se detém, ao mesmo tempo em que essa relação
altera os procedimentos computativos do próprio sujeito. Os processos operacionais da
computação viva organizam-se de forma hologramática, pois “a organização do todo
encontra-se na parte que está no todo”
182
. Aqui, entram em jogo as estratégias cognitivas
simultaneamente complementares e antagônicas dos programas computacionais pré-existentes
que constituem a experiência do sujeito perceptor:
O programa é constituído por uma seqüência pré-estabelecida de ações encadeadas
acionadas por um signo ou sinal. A estratégia produz-se durante a ação,
modificando, conforme o surgimento dos acontecimentos ou a recepção das
informações, a conduta da ação desejada. A estratégia supõe, portanto a) a aptidão
para empreender ou procurar na incerteza levando em consideração essa incerteza;
b) a aptidão para modificar o desenvolvimento da ação em função do acaso e do
novo. (MORIN. 2005: 70 e 71.)
Entendo que essas definições convergem com à dos processos receptivos descritos por
Iser e Pächt, capazes de organizar, a partir do sistema de (re)conhecimento temático e
renovação do horizonte de expectativas, as estruturas significativas verbais/visuais, de forma a
construírem uma interação com essa estrutura, concluindo numa constituição de sentido
particular e localizável para a obra artística. Da mesma forma, ambas abordagens prevêem um
sujeito modificado ao cabo de cada processo cognitivo-computacional; um ser que, na
180
MORIN. 2005: 47.
181
Para Morin, a linguagem é, entre outras, “uma encruzilhada entre computação e cogitação [...] ao mesmo
tempo computada e cogitada.” (Idem. Ibidem: 133.)
182
Id. Ibidem: 60.
84
concepção de Morin, não somente condiciona o conhecer, mas é recondicionado pelo próprio
conhecimento
183
ou, como prefere Iser, um leitor capaz de abandonar ou reajustar suas
representações. [...] Pois assim ele poderá experimentar algo que ainda não se encontra
dentro do seu horizonte
184
”.
Ocorre que, para o filósofo francês, o cômputo cogitante consiste em apenas um dos
aspectos cognitivos do sujeito. Ao localizar a emergência do espírito, ele afirma:
[...] o espírito surge com a cogitação (pensamento) e com a consciência. O espírito é,
pois, uma emergência [...], isto é, um complexo de propriedades e qualidades que,
originário de um fenômeno organizador, [que] participa dessa organização e
retroage sobre as condições que o produzem. O espírito é uma emergência própria
do desenvolvimento cerebral do homo sapiens, mas somente nas condições culturais
de aprendizagem e de comunicação ligadas à linguagem humana; condições que
puderam surgir graças ao desenvolvimento cerebral/intelectual do homo sapiens ao
longo dessa dialética multidimensional que foi a hominização. (Idem. Ibidem.: 88 e
89.)
É em sua dimensão espiritual que o sujeito toma posse de fato do sentido constituído a
partir da leitura de uma obra literária ou, por extensão, de uma obra de arte. Tal dimensão é
gerada a partir dos processos perceptivos de um pensamento consciente, onde uma dialógica
cognitiva associa [...] dois tipos de inteligibilidade, um compreensivo, o outro explicativo [...]
contidos um no outro, embora opostos e complementares”
185
. Na compreensão
186
, o
conhecimento implica o envolvimento da subjetividade e da afetividade (empático/simpático);
na explicação, são envolvidas as capacidades abstratas e lógicas de produzir conhecimento “a
partir de dados objetivos, em virtude de necessidades causais materiais ou formais e/ou em
virtude de uma adequação a estruturas e modelos
187
”.
Como Morin, Antônio Damásio, dentro de uma perspectiva neurocientífica, também
demanda um nível de consciência para além da resultante de uma simples cognição cômputo-
cogitante e explicativa. Ao defender a idéia de que a consciência não é um bloco monolítico,
183
“Não é somente o ser que condiciona o conhecer, mas também o conhecer condiciona o ser; essas duas
propriedades geram uma e outra num circuito retroativo.” (Id. Ibid.: 58.)
184
ISER. 1996a: 104.
185
MORIN. 1999: 167.
186
Esta dimensão do inteligível não deve ser confundida com a dimensão conceitual de compreensão incluída
no processo hermenêutico tríplice de Jauss, entendida como um processo que não deve limitar-se unicamente ao
prazer artístico ou à exegese reflexiva, mas que inclui uma abordagem histórica do objeto: “L’herméneutique
littéraire connaît ce rapport entre la questione t la réponse, de par sa pratique de l’interprétation, lorsqu’il
s’agit de comprendre um texte du passé dans son altérité, c’est-à-dire: retrouver la question à laquelle il fournit
une réponse à l’origine et, partant de lá, reconstruire l’horizon des questions et des attentes vécu à l´époque ou
l’oeuvre intervenait auprès de ses premiers destinataires.” [A hermenêutica literária conhece essa relação entre a
pergunta e a resposta como prática de interpretação, uma vez que se trata de compreender um texto do passado
dentro de sua alteridade, ou seja: descobrir a questão à qual se fornece uma resposta na própria origem e, a partir
daí, reconstruir um horizonte de questões e expectativas vigentes na época em que a obra se colocou diante dos
seus primeiros destinatários.] (JAUSS.1982: 24 e 25. Tradução e grifos meus.)
187
Idem. Ibidem: 164.
85
ele a divide em estados — ou níveis — denominados por: consciência central, onde o
organismo concentra-se, a partir de um proto-self
188
, no self do aqui e agora; consciência
ampliada, requerente de um self biográfico ciente de um passado e capaz de projetar um
futuro; consciência sentimental, adquirida pela tradução dos sentimentos a partir do
reconhecimento das emoções. Assim, é possível fazer uma analogia entre os estudos da
ciência e os da filosofia no que se refere à percepção humana. Ainda que diferentes quanto à
terminologia utilizada, em ambos se encontram presentes uma preocupação em abarcar o
sujeito em todas as suas instâncias, antropo-biológicas, psicossociais, intelectuais, espirituais
e afetivas. O cômputo e o cogito de Morin podem ser relacionados, respectivamente, aos
fenômenos que Damásio define como consciência central e consciência ampliada, destas
emergindo uma outra forma de consciência, a moral (correspondente, junto com a
consciência sentimental, à instância do espírito, para Morin):
Nesse notável conjunto de capacidades possibilitadas pela consciência ampliada,
duas em particular merecem destaque: a primeira, a capacidade de elevar-se acima
dos ditames da vantagem e da desvantagem impostos pelas necessidades de
sobrevivência e, segunda, a percepção crítica de discordâncias, que leva à busca da
verdade e ao desejo de criar normas e ideais para o comportamento e para a análise
dos fatos. Essas duas capacidades não são apenas minhas melhores candidatas ao
ápice da distinção humana, mas o também as que possibilitam a função
verdadeiramente humana, captada com tanta perfeição pela singular expressão
consciência moral. o situo a consciência, no vel central ou ampliado, no ápice
das qualidades humanas. (DAMÁSIO. 2000: 294 e 295.)
Outra afirmação convergente de Damásio em relação ao filósofo francês é a de que os
níveis de consciência ou estados de conhecimento são interdependentes e indissociáveis entre
si:
O encadeamento de precedências é muito curioso: a sinalização neural inconsciente
de um organismo individual gera o protoself que possibilita o self central e a
consciência central, que por sua vez possibilitam o self autobiográfico, o qual
possibilita a consciência ampliada. No final dessa cadeia, a consciência ampliada
possibilita a consciência moral.(Idem. Ibidem: 295.)
Completando sua reflexão, ele dirá, mais adiante, sobre a retroatividade desses níveis
de consciência:
É perfeitamente possível que a consciência moral e a consciência ampliada sejam
explicadas de modo incompleto apenas porque para entendê-las dependemos em
parte da solução do problema da consciência central. (Id. Ibid.: 298.)
188
O self, termo criado por Freud para definir o ser humano enquanto ciente de si mesmo, é concebido por
Damásio o como uma entidade homogênea e estática, mas como uma ampliação da consciência a partir de um
processo dinâmico no tempo e no espaço, dialético entre o ser-em-si e sua alteridade com o mundo e o outro,
dado em três instâncias: o proto-self, ou nosso ser fisiológico, o self biográfico, ou o ser em sua dimensão
temporal e o self central, relacionado ao ser/estar aqui-e-agora.
86
Se para Damásio, o complexo da consciência pode ser concebido na consciência de
uma consciência, resultando em uma consciência moral e ampliada, de forma semelhante,
Morin conclui que o conhecimento do conhecimento, dependente da tríade
cérebro(cômputo)/espírito/cogito, é capaz de reintegrar o sujeito a si e ao mundo. Um e outro
têm em comum a idéia de que as funções cognitivas diferenciadoras entre humanos e animais
avançam para além da dimensão binário-dialógica, mas abarcam ainda uma terceira, moral ou
espiritual, constituída a partir da consciência da consciência de ser/estar no mundo, conforme
a abordagem neurocientífica ou filosófica. Enquanto isso, a teoria da recepção conforme
Iser ainda que tendo por ponto de partida um leitor empático ingardiano e que se refira às
estruturas afetivas e impressões sentimentais causadas pelo texto literário
189
, definindo a
constituição de sentido “não [como] algo a ser explicado, mas sim um efeito a ser
experimentado
190
não consegue, da mesma forma que o jogo interpretativo proposto por
Pächt, ao cabo de suas explanações, ultrapassar os limites cogito-computacionais
predominantemente explicativos do sujeito que, como um leitor cibernético, interage
dialógicamente com as estruturas artísticas tendo por base uma programática retroativa, como
se disso fosse possível emular uma concepção do processo perceptivo como um todo.
confessei minha relação existencial com a obra Peter Pan e da sua perduração na
minha memória imaginativa, incluída no histórico pessoal que em parte motivou a escolha do
corpus. Nem todos os leitores reagem assim em relação a esse texto específico, mas devem
sentir-se da mesma maneira em relação a outros. Incorporamos certas personagens como um
alter-ego ou um amigo imaginário; também certas narrativas se reconfiguram em nosso ser
como uma experiência vivida intensamente, ainda que as saibamos ficcionais; tal constituição
tem certamente mais a ver com as emoções transfiguradas em sentimentos registrados em
nossa consciência do que com uma apreensão computativa e cogitante, embora estejam inter-
relacionadas. Posso concluir, a partir da descrição de um pensamento neuro-filosófico que, à
medida que desenvolvemos nossa capacidade de computar e de refletir sobre as informações
poético-artísticas de qualquer natureza, mais retroagimos ao que nos circunda, mais
conscientes dos sentimentos elaborados a partir da interação com a obra de arte e, por
conseqüência, mais exigentes e famintos da sensação de prazer inexplicável que a arte nos
189
“[...] há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que
também pode ser de ordem sentimental e emocional.” (ISER. 1996b: 14.)
190
ISER. 1996a: 34.
87
provoca
191
. Por outro lado, nossas emoções, transfiguradas a partir dessa “fruição in-
dizível”
192
, sensibilizam-nos, afetando, de qualquer forma, nossa capacidade intelectiva, e é
deste modo para usar dos termos de Iser que nossos horizontes se alargam. A partir
desse processo, acredito na formação de um espírito ou consciência moral e sentimental,
essa última qualidade entendida em seu sentido mais amplo, não atrelada a uma semântica
adocicada, mas, sim, a um conceito mais concreto de emoção, tal como a define Damásio:
Sentir uma emoção é uma coisa simples. Consiste em ter imagens mentais
originadas em padrões neurais representativos das mudanças no corpo e no cérebro
que compõem uma emoção. [...] O conjunto de padrões neurais que constituem o
substrato de um sentimento surge em dois tipos de mudanças biológicas: mudanças
relacionadas ao estado corporal e mudanças relacionadas ao estado cognitivo.
(DAMÁSIO. 2000: 354.)
Enquanto as mudanças corporais derivadas de um estado de emoção referem-se às
transformações químicas e eletroquímicas sofridas pelo corpo de um modo geral, as
mudanças emocionais no estado cognitivo são provocadas por mecanismos virtuais, ou seja,
processam-se através de mapas sensoriais sob controle de sítios diferenciados no rebro.
Ambas são, segundo Damásio, o importantes para o reconhecimento de emoções e a
produção de sentimentos, mas também para uma classe de processos cognitivos chamados
pelo neurologista de simulação interna, gerada quando uma dada situação emocional altera
quimicamente partes do cérebro, causando mudanças perceptivo auditivo-visuais, que ficam
vinculados a estados de tristeza ou alegria, registrados na memória. As reações a uma
emoção, portanto, iniciam no nível do protoself, ou seja, no nível fisiológico do ser humano
que, por sua vez, engendra um padrão de representações que farão parte do repertório
emocional de reações do corpo, os sentimentos (ao repetir-se o mesmo estímulo emocional,
o corpo repete o quadro correspondente de alterações químicas, eletroquímicas e sensoriais).
Só então, a partir daí, é que se vai gerando uma consciência desse processo — a consciência
sentimental.
191
Minhas últimas leituras na área da neurociência tem sido no sentido de acompanhar o desenvolvimento de
uma nova disciplina, a neuroestética, cujo objetivo é o estudo da produção e a fruição das artes como uma
atividade cerebral, e na qual se encontram envolvidos nomes como o de Oliver Sacks e o de Semir Zeki, o
primeiro autor, entre outras, da recente Alucinações musicais, obra onde o cientista trata das disfunções auditivas
e das modificações na anatomia do cérebro causadas pela música, o segundo uma das maiores autoridades
mundiais em neurologia da visão, trabalhando com noções do belo e do feio, da apreciação da obra de arte e suas
repercussões em determinadas áreas cerebrais. É provável, portanto, que até mesmo a qualificação de
inexplicável atribuída ao prazer estético esteja com os seus dias contados e que se possa retomar os aspectos
receptivos da obra de arte ou de um objeto com função estética de um ponto de vista menos especulativo. Sobre
neuroestética, há um artigo publicado na Revista VEJA (São Paulo: Abril, n. 38, 26 de setembro de 2007, p. 98-
105).
192
“A fruição é in-dizível, inter-dita. [...] aquele que frui faz com que toda letra — e todo dito possível — se
88
Se as emoções por si mesmas, segundo Damásio, regulam a vida e promovem a
sobrevivência, os sentimentos funcionam como um alerta sobre as reações emocionais do
corpo diante de um objeto, prevenindo-o sobre o prazer e a alegria, o sofrimento e a
agressão. Ao desenvolvermos uma consciência dos sentimentos, podemos:
[...] planejar reações específicas e não estereotipadas que podem complementar uma
emoção ou garantir que os ganhos imediatos trazidos pela emoção possam ser
mantidos no decorrer do tempo, ou ainda em ambas as coisas. Em outras palavras,
“sentir” sentimentos amplia o alcance das emoções, facilitando o planejamento de
formas de reação adaptativa que sejam novas e talhadas sob medida para a ocasião.
(Idem. Ibidem: 360.)
As experiências mais recentes relatadas por Damásio comprovam que o aprendizado
ou qualquer inter-relação sujeito-objeto que envolva um alto conteúdo emocional é
intensificado e se aprofunda na memória e na consciência
193
.
Para Morin, “não há hierarquia entre razão/afetividade/pulsão, ou antes, há uma
hierarquia instável, em permutação, rotativa entre as três instâncias”
194
. Qualquer forma de
conhecimento mobiliza esse conjunto triúnico, mesmo o mais racional em seu princípio:
[...] em qualquer situação, afetividade é inseparável, nem que seja como companhia,
do conhecimento e do pensamento humano. Em qualquer situação, a racionalidade é
frágil, deve ser objeto de reflexão permanente, de reexame e definição. (MORIN.
2005: 106.)
Como Damásio, Morin também afirma a interligação dos fenômenos psico-afetivos,
dependentes quimicamente do corpo, à percepção e à formação de idéias e conceitos.
Ressalta que a química que traduz nossas emoções em sentimentos é, por sua vez,
dependente “das condições exteriores que oferecem oportunidades de prazer ou, ao
contrário, trazem dor e frustração
195
”. Assim, se em Damásio temos o interior do ser físico
reativo aos estímulos externos, em Morin temos a retroação de todo efeito sobre suas causas,
ou seja, um ser que reage, mas que também é afetado, fisicamente, inclusive, pelo que o
circunda.
Ambas as bases teóricas aqui emuladas, em que pesem as diferentes áreas de
procedência, provêm de uma necessidade de atualização não de um conceito de receptor
sensível ao texto literário, mas também de uma idéia corrente sobre o poder de persuasão
comunicativa atribuída à imagem e, por decorrência, aos discursos visuais e gráficos aos
quais a obra literária se agrega indissoluvelmente: afinal, tudo indica serem eles os primeiros
193
O cientista se refere aos experimentos realizados por James Mc Gaugh, publicados em revistas especializadas
a partir de 1989, tal como citado na obra utilizada nessa dissertação.
194
MORIN. 2005: 104.
195
Idem. Ibidem: 108.
89
a estabelecerem contato entre leitor e objeto de leitura. Enquanto objeto com função
intencional estética e comunicativa, o livro nos predispõe, desde a capa, a uma interação
simpática ou antipática, um grau de excitação maior ou menor
196
em relação ao seu conteúdo.
O livro, enquanto suporte, promete, sugere e direciona a recepção da obra literária e se
ilustrado, provoca emoções imediatas, convergentes ou não ao DVr ao qual se imiscui e
entrelaça. Por outro lado, isso o quer dizer que o DVs exerça uma função perceptiva de
efeito puramente emo/sentimental ou requeira, para ser compreendida, apenas uma
sensibilidade natural, nascente com o indivíduo; é preciso, para exercer plenamente o
potencial de suas qualidades, que o perceptor ultrapasse o gosto subjetivo e ingênuo e que o
seu olhar reaja ao estranhamento causado por uma imagem inusitada de forma a refletir sobre
o próprio ato de olhar
197
. A confusão relativa às linguagens visuais como “fáceis” ou
“facilitadoras” deriva muitas vezes da impressão de que se trata de um discurso de
decodificação intuitiva, requerendo habilidades inerentes à percepção natural; em geral, o
impacto sensível causado pela presentificação de um dado objeto ao olhar é aceito como
compreensivo o suficiente, talvez porque, como afirma Damásio, a imagem se antecipe à
linguagem verbal como um relato imediato formado na consciência, para depois serem
traduzidos verbalmente
198
. Entretanto, quanto mais complexas forem a estrutura formal e as
relações simbólicas estabelecidas num discurso visual de qualquer gênero ou categoria, maior
o seu potencial semântico e mais configurações de sentido são propiciadas, necessitando,
tanto quanto a compreensão do texto literário, de um exercício intelectual e interpretativo
196
Ou seja, os aspectos visuais gráficos podem estimular em grau maior ou menor a curiosidade — tanto ou mais
do que as informações verbais do título de uma obra ou do nome de um já autor conhecido. Segundo Morin, a
curiosidade é uma “‘pulsão exploradora’ ou ‘cognitiva’ [...] movida por um interesse de conhecer que não pode
ser reduzido ao conhecimento em questão. Tudo acontece como se a curiosidade, para além de suas finalidades
imediatas [...], uma finalidade em si, ou seja, uma satisfação propriamente cognitiva de descoberta e exame; em
outras palavras, o prazer de conhecer.”(MORIN. 2005: 74.). A questão da curiosidade do movimento em direção
a um determinado texto literário, através de sua substancialização autográfica, pode tornar-se essencial na
escolha de determinada obra pelo leitor, principalmente do leitor infanto-juvenil.
197
Longe de ser um registro mecânico de elementos sensórios, a visão prova ser uma verdadeira apreensão
verdadeiramente criadora da realidade — imaginativa, inventiva, perspicaz e bela. Tornou-se evidente que as
qualidades que dignificam o pensador e o artista caracterizam todas as manifestações da mente. Os psicólogos
começaram também a ver que este fato não era coincidência: os mesmos princípios atuam em todas as várias
capacidades mentais porque a mente sempre funciona como um todo. Toda percepção também é pensamento,
todo raciocínio é também intuição, toda observação é também invenção. (ARNHEIM. 2005: s.p.). Essa
afirmação, ao lado das citações de Otto Pächt, realçam a necessidade de uma consciência do olhar reflexivo
sobre a imagem.
198
“A explicação da consciência baseada na linguagem é improvável, e precisamos ver por trás da máscara da
linguagem para encontrar uma alternativa mais plausível. Curiosamente, a própria natureza da linguagem nega
que ela tenha um papel primordial na consciência. (...) Palavras e sentenças traduzem conceitos, e estes
consistem na idéia nao-lingüística do que são as coisas, as ações, os eventos e as relações. Necessariamente, os
conceitos precedem as palavras e as sentenças tanto na evolução da espécie como na experiência cotidiana de
cada um de nós. Palavras e sentenças de seres humanos física e mentalmente sadios não vêm do nada, não
podem ser uma nova tradução de um nada anterior a elas.” (DAMÁSIO. 2000: 239 e 240).
90
aliado às referências pré-existentes no imaginário e à consciência sentimental do perceptor
199
.
Uma configuração visual, portanto, nada significará por si mesma, mas é preciso que seja
reconstituída no sujeito a partir da apreensão de suas especifidades sígnicas e arranjos
estruturais; contudo, não dúvida de que os discursos visuais apresentam a vantagem do
impacto de sua imanência ao olhar consciente, e que este impacto é provocativo num sentido
de estimular o sensível e o emocional
200
. Esses efeitos são importantes e não devem ser
excluídos da minha análise do DH da perspectiva da recepção, desde que seguidos de uma
exegese visual crítica e sapiente, conjugada aos estímulos receptivos igualmente intelectivos
e sentimentais produzidos pelo texto literário.
Em resumo, as reflexões até aqui elaboradas, alicerçadas nas orientações teóricas sobre
as quais discorri brevemente, pretendem obter uma visão mais compreensiva dos fenômenos
interativos que enlaçariam um sujeito integral a qualquer objeto, com foco na inter-relação
receptor/objeto-livro desde o instante em que, ao depositar nele expectativas, o primeiro se
apropria do segundo no exercer de sua função estética e comunicativa, catalisador não de
conhecimentos e idéias, mas de prazer, emoções e sentimentos. Ao buscar o concílio entre a
teoria estética da recepção, a iconologia, as abordagens neurocientíficas de António Damásio
e as filosóficas de Edgar Morin, pretendo configurar um corpo receptor para além do mero
cibernético, interativo não apenas nos níveis intelectuais computativos e cogitantes, mas
tridimensionalizado num fenômeno que inclui uma resposta sentimental potencializada a
partir da edição Peter Pan/Salamandra. Por fim, acrescento as seguintes palavras de Gaston
Bachelard, convergentes a esse objetivo:
[...] uma pesquisa fenomenológica sobre a poesia deve ultrapassar, por imposição
dos métodos, as ressonâncias sentimentais com que, menos ou mais ricamente
quer essa riqueza esteja em nós, quer no poema —, recebamos da obra de arte. É
nesse ponto que deve ser sensibilizada a alotropia fenomenológica das ressonâncias
e da repercussão. As ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos da nossa
vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento da nossa própria
existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é
nosso. A repercussão opera uma inversão do ser. Parece que o ser do poeta é o nosso
ser. (BACHELARD. 2005: 7. Grifos meus.)
199
Ou, ainda conforme Arnheim: “Ver algo implica em determinar-lhe um lugar no todo; uma localização no
espaço, uma posição na escala de tamanho, claridade ou distância. [...] A experiência visual é dinâmica. [...] É,
antes de tudo, uma interação de tensões dirigidas.” (Idem. Ibidem: 4). Também Julio Plaza, ao falar sobre a
percepção imediata da forma sígnica, inclui o sentimento como forma mais imediata de conhecimento,
resultando numa compreensão globalizante, posteriormente reconhecida por análise em suas partes estruturais.
Contudo, mesmo dentro e após essa análise, a percepção de conjunto não se desintegra: “isto é, o conjunto de
propriedades do processo perceptivo é um só, a identificação dos aspectos universais na mensagem supera o
simples reconhecimento de suas partes.” (PLAZA. 2003: 85.)
200
“A forma assim concebida resiste à análise. É inarticulável e inefável e, sobretudo, não é discursiva; daí a
apresentar resistência à comunicação, ao familiar, ao convencional. Ela se dá pela primeira vez como
apresentação de sentimento [...].” (Idem. Ibidem: 87.)
91
Esse é, afinal, o sujeito receptor que procuro delinear: a exemplo da minha história
pessoal de leitora da obra Peter Pan, aquele capaz de apreender um dado objeto de arte, seja
ele constituído de que linguagem for, por ressonâncias na consciência sentimental e
intelectiva e, a partir dessas ressonâncias, fazê-lo repercutir em si mesmo, como parte
integrante de si.
3.3 Contrapontos
No capítulo anterior, destinado à apresentação das idéias que nortearam a análise do
corpus, procurei esclarecer a ambigüidade presente na estrutura discursiva da narrativa de
Barrie, ambigüidade evidente no modo como o narrador trata suas personagens e as relações
entre realidade e fantasia presentes na narrativa. Pois Peter Pan revigora a estrutura do conto
de fantasia com elementos retirados das novelas de aventura, em especial de pirataria e
viagens a terras estranhas e exóticas, além de apresentá-los recobertos pela trama doméstica
familiar burguesa do início do século, em que se centralizam as reflexões do autor sobre os
papéis que cada componente adulto e criança, feminino e masculino procura ou deve
desempenhar. Sobre isso tudo, paira a figura panteísta do menino além-mundo, além-tempo,
ambíguo em si mesmo, binômio maturidade/infância, sexualidade/assexualidade, morte/vida,
realidade/fantasia.
Por tratar todas as personagens dentro de um viés existencial em que as mais velhas se
deparam com o conflito de perda e recuperação da infância e, as mais jovens, com o jogo
mimético em que personificam o papel de adultas, confundindo realidade e faz-de-conta
em que até mesmo as personagens fantásticas possuem uma narrativa interior a apoiá-las suas
ações e reações —, o autor acaba por dirigir-se, de modo igualmente ambíguo, tanto a um
leitor em formação, quanto a um leitor maduro. Tal característica receptiva não é exclusiva da
92
obra em questão: Maria Nikolajeva e Carole Scott
201
a apontam em outras obras da literatura
infanto-juvenil, e podemos estendê-la às obras de Andersen, de Oscar Wilde, J. R. R. Tolkien
ou, para citar exemplos brasileiros e contemporâneos, às obras de Marina Collassanti e Lygia
Bojunga.
Da mesma forma, a recepção dual presente no texto de Barrie, diagnosticada desde a
peça de teatro que a originou
202
, perpetuando-se até os dias de hoje, deve-se também ao modo
como a voz narrativa enuncia seus personagens. Assim, uma aparente história de aventuras
fantásticas leva a uma reformulação constante do horizonte de expectativas tanto do leitor
mais maduro quanto do leitor jovem, graças ao revigoramento das características simbólicas
normalmente atribuídas ao gênero: Peter Pan o é simplesmente um garoto mágico,
mediador do universo de fantasia, mas caracteriza-se por um impasse ontológico; Wendy o
é apenas uma menina sonhadora, pronta a divertir-se de forma escapista, vivendo tudo o que
sua imaginação lhe permite, para então retornar a um mundo imutável
203
; ela é uma evolução
da personagem criança-feminina dos contos de fantasia desde Gretel
204
, a quem o autor
outorga o poder de preservar a infância descompromissada com o tempo e o mundo, ao
mesmo tempo em que assume as transformações e responsabilidades advindas do crescimento
201
Maria Nikolajeva é Professora de Literatura Comparada na Universidade de Estocolmo e na Universidade
Abo, Suécia. Carole Scott é Professora de Língua Inglesa e Professora Emérita e Coordenadora do curso de
especialização em Literatura Infantil da Universidade Estadual de San Diego, Califórnia. Na obra How
picturebooks work, as autoras apontam a problemática do destinatário na produção contemporânea infantil:
When confronted with works by certain contemporary children’s writers, we must either admit that they do not
write for children — as some of them have declared they do not, although their books are marketed as book for
children — or radically redefine our notion of what constitutes children’s literature. Increasingly, a large part of
what is today written and published as children’s literature, including picturebooks, is transgressing its own
boundaries and coming closer to maisntream literature. This phenomenon has repeatedly brought the critics’
attention to the question of the audience for whom these books are created.” [Quando confrontados com obras de
alguns autores contemporâneos, temos que admitir que, ou eles não escrevem para crianças — alguns deles
declaram que não, embora seus livros sejam catalogados como livros para crianças — ou temos que redefinir
radicalmente nossa noção do que constitui literatura infantil. Cada vez mais, uma larga parte do que hoje se
93
e da vida madura, repetindo o papel de sua mãe, e antecipando o de Jane; já Sininho não é um
estereótipo de fada no sentido etéreo, simpático e benfeitor, mas um serzinho passional,
misturando ódio e amor num mesmo rompante; nem o Capitão-pirata Gancho escapa de ser
traduzido em suas contradições de homem cuja maldade é temperada por requintes de uma
educação aristocrática e sentimentos reprimidos. Uma por uma, cada personagem salienta-se,
destacada por um relevo específico e melódico da voz narrativa, ela mesma o relevante
quanto as personagens que modula. Some-se a isso o fato de que o autor contextualiza a
diegese em uma época que é sua, mas cujos valores ainda nos dizem respeito; entrelaça,
portanto, elementos míticos e folclóricos à reflexão sobre um conceito de família, em que os
papéis de pai, mãe, filhos e filhas ainda se desempenham de modo semelhante, através dos
quais são discutidas as fronteiras entre o ser infantil e o ser adulto, dentro de uma ótica
irreverente, fluida e bastante pertinente, sobretudo se levarmos em consideração a dificuldade
contemporânea em determinar, cada vez mais, as etapas diacrônicas evolutivas
biopsicossociais do indivíduo desde seu nascimento. Como se não bastasse, em sua alegoria,
Barrie evoca a formação do eu dentro de uma perspectiva freudiana presentificada,
principalmente, nos caracteres de Peter Pan e de Wendy cujos comportamentos giram em
torno do sexo, do desejo, do tempo e da morte.
Em textos como esse, de características receptivas duais, ocorre que nem sempre o
DVs acompanha o DVr, como igualmente colocam as pesquisadoras citadas. No caso de Peter
Pan, observa-se, desde a primeira edição, que a proposta visual tem, por tradição, se
preocupado em manter o equilíbrio receptivo, ou seja, o trabalho artístico que acompanha o
texto de Barrie, pelo menos nas edições estrangeiras verificadas, é elaborado em técnica e
estilo apurados, produzindo efeitos estéticos visuais interessantes tanto para o olhar ingênuo
quanto para o olhar experimentado, obtendo resultados, por vezes, surpreendentes.
Tradicionalmente, essa é uma obra que instiga e desafia o ilustrador. Alguns, como Trina
Schart Hyman, chegam a depor:
Em 1980, eu fiquei atônita ao ser convidada a ilustrar a nova edição de Peter Pan,
de J. M. Barrie. Tratava-se de uma proposta excitante, lisonjeadora e ao mesmo
tempo assustadora. Eu tremi, porque suspeitava que não estava preparada para este
desafio. Muitos ilustradores capazes e prestigiados o haviam feito antes de mim; eu
sentia que precisava de mais experiência e habilidade.
205
(HYMAN. 1980: s.p.
Tradução minha.)
205
Back in 1980, I was atonished to be asked to illustrate a new edition of J. M. Barrie’s Peter Pan. It was
exciting, flattering, but also frightening proposition. I dithered, because I suspected that wasn´t ready for the
challenge. Too many prestigious and capable illustrators had been there before me; I felt I needed more
experience and expertise.
94
O costumeiro requinte com que têm sido elaboradas as edições ilustradas de Peter
Pan, porém, não reflete apenas os valores estéticos apreciados em cada época; seu percurso
transsignificativo visual igualmente traduz e documenta as transformações culturais e
ideológicas que auxiliam a enfatizar o tipo de relação que cada objeto-livro pretende
estabelecer com seu receptor modelo, tal como amostrei no capítulo anterior.
No Brasil, onde a tradição literária voltada para o público infantil é mais recente, e
mais recente ainda a atenção e o cuidado com a produção editorial, a partir das últimas
décadas as questões relativas à qualidade e à adequação entre o texto verbal e tessitura visual
têm se mostrado relevantes enquanto aplicação e objeto de estudo. Contudo, não se trata de
apenas objetivar os critérios de adequação desses discursos à faixa etária à qual
intencionalmente são dirigidos, mas de torná-los igualmente propiciadores de efeitos estésicos
e artísticos, garantindo ao receptor um prazer não sensorial, mas também intelectual e
sentimental, resultando na valorização do objeto-livro como mediador de leitura e como
objeto artístico em si mesmo. discorri sobre a qualidade do trabalho gráfico brasileiro,
reconhecida internacionalmente; de certa forma, ao analisar a edição que compõe o meu
corpus, antecipei algumas deduções que certamente irão agora se completar na indicação mais
precisa dos índices que implicam o seu tipo de destinatário.
Ao introduzir esse capítulo, mencionei o quanto os aspectos visuais de um dado
objeto, devido ao apelo impactante imediato sobre o perceptor, captam-no de forma a causar
uma reação de empatia ou antipatia em sua direção. Esses recursos, sabemos, são amplamente
utilizados pelos meios de comunicação e publicidade, estendem-se da mesma forma ao livro,
como produto de consumo cultural e literário. Assim, por mais interessante que seja, uma obra
literária, por sua constituição alográfica, necessita desse mediador como forma de apelo no
mínimo provocativo à curiosidade do seu leitor potencial. Relembro que o uso de ilustrações
não é uma obrigatoriedade para determinados tipos de texto, o que não implica dizer que o
suporte tenha menos valor estético e comunicativo; quando, porém, ele se apresenta integrado
a um discurso visual, obtemos o que Nicolajeva e Scott chamam de illustrated books, livros
cujo texto pode existir por si mesmo, mas que por opção editorial têm a ele agregado uma
narrativa visual. Incluo Peter Pan nessa categoria, embora eu conheça versões sem ilustração,
impressas no econômico formato de livros de bolso
206
. Justifica-se, portanto, o tamanho do
206
Apenas edições estrangeiras. Há uma particularmente interessante, utilizada para esse trabalho como
referência do texto original, editada pela Oxford University Press (NY) com apresentação e notas de Peter
Hollindale, contendo duas obras: Peter Pan in Kensington Gardens e Peter and Wendy.
95
desafio proposto ao autor visual: trata-se de interagir com um discurso cujo jogo
207
se
apresenta fechado na linguagem verbal, sendo difícil ressignificá-lo visualmente sem correr o
risco de redundância. Por outro lado, e por isso mesmo, Peter Pan provoca: repleto de
elementos ícono-indiciais e relações simbólicas sofisticados, ele fornece matéria significativa
riquíssima à transcriação pelas artes plástico-visuais. Ainda assim, é preciso, de fato, como
diz Hyman, habilidade e experiência para ilustrá-lo.
Segundo a tipologia proposta por Nikolajeva e Scott para as variações de
contraponto
208
entre o DVr e o DVs, o DH resultante pode preencher, de forma criativa, os
seguintes requisitos contribuintes para uma recepção mais rica:
a) contraponto em endereço: os vazios verbais e visuais contidos na obra literária
ilustrada podem ser preenchidos diferentemente por adultos e crianças. Assim, o
ilustrador pode jogar com os horizontes de ambos, tanto quanto o autor;
b) contraponto em estilo: forma de recriar os aspectos significativos do discurso
verbal sem cair na mera apresentação descritiva dos seus elementos (um texto antigo
pode ser renovado se ilustrado em estilo contemporâneo; uma voz irônica, seca ou
emotiva pode contrapor-se a uma voz visual diversa);
c) contraponto em nero ou modalidade: as linguagens visuais se apresentam de
modo a modificar o gênero narrativo original; acentuam ou aprofundam certos
aspectos modais da narrativa em detrimento de outros (a ilustração pode conferir
mais realidade à fantasia, ou metaforizar, através de elementos simbólicos, uma
história realista como, por exemplo, acentuar os aspectos superficiais de
aventura e fantasia em Peter Pan, deixando de lado seus aspectos mais profundos,
simbólicos ou sentimentais, e vice-versa);
207
As definições estabelecidas de Iser para o jogo da ficção concernem somente ao verbal; mas seria possível
conceber jogos de constituição híbrida, onde texto e imagem seriam pensados em relação simétrica, quando
pensados juntos desde a sua geração (a partir de um mesmo autor — que escreve e ilustra — ou de uma parceria
entre autor e ilustrador), ou mesmo nas estruturas discursivas onde o texto visual assume o lugar de narrativa
primeira, a qual se submete o texto verbal.
208
“Clearly, the picturebooks that employ counterpoint are especially stimulating because they elicit many
possible interpretations and involve the reader’s imagination”. [Os livros ilustrados que claramente empregam
contrapontos são especialmente estimulantes porque eles trazem à tona muitas possibilidades de interpretação,
envolvendo a imaginação do leitor.] (NIKOLAJEVA, SCOTT. 2006: 24. Tradução minha.) A palavra
contraponto, na linguagem musical, significa basicamente a combinação entre linhas musicais simultâneas,
onde cada uma se opõe ou contrasta em relação a outra, vindo de encontro a minha analogia do DH com o termo
sinfonia. De fato, um arranjo sinfônico pode envolver, em nome de um efeito melódico de maior riqueza e
complexidade, um jogo de contrapontos entre timbres, ritmos, notas e texturas sonoras. A tipologia aqui inserida
é uma tradução adaptada e modificada levemente por algumas considerações pessoais a partir da original que se
encontra, sob o subtítulo de Varieties of counterpoint, entre as páginas 24 e 26 da obra de referência.
96
d) contraponto por justaposição: numa abordagem metalingüística, incluir citações
visuais que funcionem como para/intertextualidade, tais como cenas paralépticas ou
de caráter extradiegético;
e) contraponto em perspectiva: o ilustrador pode e, na verdade, poucas vezes escapa
de oferecer um outro ponto de vista, inclusive ideológico, em relação aos
acontecimentos da diegese e ao discurso verbal. Também pode apresentar-se como
discurso assumido por uma personagem, ou persona diferente da voz verbal;
f) contraponto em caracterização: Aqui, requer-se sensibilidade, porque as
descrições presentes na narrativa primeira devem ser respeitadas. Porém, dentro do
limite dessas descrições, uma liberdade transcriativa, portadora de novos
significados, sejam eles de ordem estética, metalingüística, ideológica ou
comunicativa, prontos a virem à tona, como demonstrei na análise dos aspectos
iconográficos de algumas personagens de Peter Pan no Capítulo II;
g) contraponto de natureza meta-imaginária, ou seja, buscar alternativas para
substituir significados próprios da tessitura original, enriquecendo a leitura a partir
de soluções específicas da linguagem visual. Há, por vezes situações presentes no
texto verbal muito difíceis de serem transcodificadas em signos imagéticos por sua
abstração (pensamentos de uma dada personagem, por exemplo); é possível
substituí-las por metáforas e signos visuais cujo efeito comunicativo seja
semelhante (uso de cores e texturas, símbolos gráficos, expressões e gestualidades
presentes no traço, mais sujo ou mais limpo, mais estático ou dinâmico, etc);
h) contraponto em espaço e tempo, acentuando justamente as diferenças sígnicas
visuais e verbais de representação do tempo e do espaço diegéticos e miméticos,
tendo-se em vista que, na imagem, os aspectos espaciais são predominantes,
podendo funcionar como medida de tempo, enquanto que no verbo a noção de
tempo é predominante, podendo sugerir espacialidade.
Muitos dos aspectos que envolvem essa tipologia foram abordados, conforme sua
ausência ou aparição, nos capítulos anteriores
209
, dentro da análise do DH que integra Peter
209
Noto uma correspondência dessa tipologia com os modos tradutivos configurados por Plaza e já citados por
mim no capítulo anterior: o contraponto de estilo e meta-imaginário seriam do tipo icônico, ou transcriativo
propriamente dito; os contrapontos de endereço, gênero, justaposição e de espaço e tempo seriam indiciais,
ou de transposição; o contraponto de perspectiva e de caracterização corresponderia ao tipo simbólico, ou de
transcodificação. Para mim, todos os procedimentos envolvem um trab
97
Pan/Salamandra. Eles serão retomados a partir de agora dentro do primeiro contraponto, o de
endereçamento, levando em consideração sua integração a todos os outros.
3.4 Intérpretes e ouvintes
Se parto da hipótese de que o objeto-livro pode se constituir como suporte estético que
comunica um dado conteúdo, e que o ato de comunicação pode estar presente inclusive na
matericidade do próprio objeto (o formato do livro, texturas aplicadas e papel utilizado, por
exemplo), é preciso, antes de localizar a quem esse se dirige, o que ou quem é ou são
responsável(is) por essa comunicação. No caso da edição analisada, temos uma superposição
de emissores inter-relacionados em seu suporte autográfico: o primeiro emissor seria o texto
original Peter Pan and Wendy, tal como escrito por J. M. Barrie; o segundo, a tradução de
Ana Maria Machado, que se sobrepõe ao texto em inglês causando, portanto, uma
interferência sobre a obra junto ao destinatário brasileiro; o terceiro emissor seria o discurso
visual elaborado pelo espanhol Fernando Vicente, utilizado nessa edição, por sua vez co-
emissora da original espanhola, a qual se agrega na comunicação da mensagem-livro.
Sabemos que o projeto gráfico da versão Salamandra sofreu modificações em relação à da
Santillana; afora as indicações ressaltadas em entrevista pela diagramadora e projetista Camila
Crispino, nada posso afirmar sobre as possíveis modificações em relação à sintaxe
verbo/visual original. Tanto ela quanto a gerente editorial não esclareceram o motivo pelo
qual a edição espanhola foi escolhida como matriz reprodutora. Contudo, esses dados
explicam certos conflitos entre a obra de Barrie e os demais constituintes desse objeto
autográfico, pois cada emissor entrelaça ao outro uma mensagem divergente nos seguintes
pontos:
a) a tradução de Ana Maria Machado, se por um lado atualiza a história, substituindo
elementos ou expressões do texto original
210
, adaptando-o não à realidade da
língua e cultura brasileiras, mas também ao próprio contexto social e histórico do
210
Temos, como exemplo de atualizações, a substituição da expressão “no one can get into the house without
knocking” [ninguém pode entrar em casa sem bater] por “ninguém pode entrar em casa sem tocar na
campainha”; a roupa de Miguel, traduzida por macacão, no original é um avental [pinafore], conforme se usava
vestir as crianças na época; a adaptação da idade de Liza, a criada, no original uma criança de dez anos, é
traduzida por uma moça de vinte anos, condizente com a idéia de empregada doméstica atual.
98
leitor contemporâneo, por outro suaviza alguns dados semânticos da obra
211
,
esquecendo-se por vezes da dualidade destinatária da obra original que ela mesma
denuncia em comentário publicado na edição anterior;
b) a linguagem convencional adotada por Fernando Vicente para as ilustrações não se
harmoniza com o estilo informal e adaptativo da tradução de Machado, mais
confortável na ambiência da edição anterior com ilustrações de Walter Ono; além
disso, as texturas, disposição das manchas de cor, volumes e demais signos visuais
presentes na sofisticada imagem da capa apresentam-se diferentes em estilo e
execução nas imagens do miolo;
c) em relação ao texto verbal de Barrie, as ilustrações internas oferecem um
contraponto unilateral (onde predominam cenas ligadas à aventura e à fantasia
propriamente ditas e apresentações das personagens masculinas), sintético e pouco
expressivo, deixando transparecer uma incomunicabilidade entre o DVr e o DVs; o
último, em relação a si mesmo enquanto discurso narrativo independente, é
constituído por signos plástico-visuais de comportamento predominantemente
convencional, automatizados tanto em termos técnicos e estilísticos quanto em
termos de repertório iconográfico; assim, ao relegar seu potencial artístico e
estético ao segundo plano, o DVs oferece-se raso em novidades e estímulos à
(re)formulação do imaginário do perceptor.
Campo onde se localizam esses conflitos, o projeto gráfico climatiza o DH,
procurando integrá-lo dentro de uma ambiência nem sempre eficiente, que inclui a escolha de
tipos e de uma diagramação que enfatizam um destinatário infanto-juvenil e sua classificação
enquanto gênero de aventura e fantasia (desde a escolha do título, que suprime o nome de
Wendy, excluindo assim os aspectos feminino-afetivos); portanto, as autorias diversas e o-
comunicantes provocam ruídos nessa sinfonia, como se a orquestra não estivesse bem
ensaiada. No papel de maestro, o projeto gráfico, nesse caso representante de um terceiro
211
Como suavizações semânticas, temos a tradução da palavra passion [fúria, raiva], por paixão; o cocoricó de
Peter, na verdade um grito de múltiplos significados em inglês; alguns verbos de sentido mais violento ou
agressivo, presentes nas ações de Peter Pan em relação aos meninos perdidos, como, por exemplo, “Peter thins
them out” [Peter os dizima], traduzido por “Peter os seleciona”; por fim, a frase final, cuja tradução
deliberadamente pretende idealizar o sentimento infantil junto ao destinatário.
99
discurso e de uma terceira autoria
212
, procura apresentar o OA de forma convincente, através
da capa atraente e expressiva e da escolha de fontes e papel agradáveis à leitura.
Se a platéia de Peter Pan é imaginada como composta de leitores já plenamente
alfabetizados, porém em fase de maturação cognitiva-intelectual, cujo horizonte seja
completamente vazio de expectativas em relação a essa obra específica — supondo que nunca
tenham tido contato com a adaptação de Lobato ou de qualquer outra ordem, e sejam
igualmente carentes de referências visuais, como o teatro, o desenho da Disney, o filme de
Hogan ou qualquer outra — é possível que a edição Peter Pan/Salamandra cumpra com plena
eficiência o papel de divulgar e mediar o texto literário do qual se acerca. Sem possuir um
horizonte pré-formado poderá ser difícil perceber as incomunicabilidades autorais e mesmo
parte da pobreza iconográfica; talvez ele sinta certa perturbação emocional acerca do silêncio
da voz visual relativo a algumas personagens, ações ou episódios cruciais; mas o texto, nesse
caso, sobrevive por si mesmo, é capaz de dar conta desse sujeito hipoteticamente ingênuo,
para quem tal perturbação não passará de um leve incômodo. Obteremos então um receptor
cujo prazer fruitivo dependerá quase que exclusivamente do DVr, e para quem o DVs se
mostra mido em suas qualidades funcionais meramente pontuais e decorativas, deixando a
desejar em outros quesitos.
Agora, se a platéia almejada é aquela que agrega a sua maturidade média de leitura
uma expectativa, não apenas em relação à obra, mas decorrente das mais diversas
trans/ressignificações verbo-visuais (as adaptações para o cinema, a peça de teatro, a obra de
Lobato), possuindo um repertório prévio de informações acerca de ambos os discursos
(formado inclusive pelo contato habitual com outros livros ilustrados), então esse concerto
está potencialmente destinado ao fracasso; pois as incomunicabilidades autorais internas
provocam um conflito que pode ser percebido com mais facilidade, causando a renúncia
afetiva do objeto em questão e influenciando de forma negativa a receptividade emocional do
texto literário. Em outras palavras: quanto mais sensível for o leitor aqui imaginado a essas
discrepâncias, mais apático ou antipático ele se torna em relação ao livro como um todo e,
portanto, maior o seu desinteresse ou rejeição pelo conteúdo alográfico que ele substancializa,
necessitando, por decorrência, de estímulos externos indicação pedagógica ou familiar
para superar sua impressão e travar contato com a obra literária integral.
212
Nem sempre é assim: em narrativas verbo-visuais simétricas, o projeto gráfico (ou discurso gráfico) mescla-se
ao DVs, principalmente se o ilustrador é autor de ambos. Conforme Guto Lins e Nikolajeva e Scott, esse
procedimento criativo têm-se mostrado comum na literatura infanto-juvenil; o ilustrador pensa nas artes
ilustrativas tendo por premissa a sua diagramação junto ao texto, e muitas vezes determina até mesmo o tipo de
papel a ser utilizado na produção.
100
Estou considerando, acima de tudo, que, no Brasil, trata-se de uma edição direcionada
unilateralmente a um público infanto-juvenil
213
, ou seja, seu objetivo é o de captar leitores de
média capacidade de leitura, portadores de recursos financeiros para aquisição do livro, e que
101
agradáveis; surge então uma imagem cênica, o interior de uma casa [fig B.8] em tons quase
monocromáticos, a exceção de parte um lustre à gás, cujos bojos executados em tons de rosa e
amarelo contrastam com o suporte preto, o destacam em relação ao fundo não só porque o
identificamos em primeiro plano pela combinação de cores que o realçam, mas também
devido a sua posição (eles avançam para fora da mancha, quase sangrando à direita).
Sobreposta às paredes, uma mancha em forma humana, transparente e escura, que, pelo DVr,
sei que configura a sombra de Peter Pan. Percebo então que a função do lustre, ao destacar-se
em primeiro plano e em suas qualidades de cor e luminosidade, é a de fazer com que nossos
olhos interpretem a sombra como colada às paredes representadas. Ocorre que, depois de
ter lido as vinte e quatro ginas que a antecedem, espero pelo menos visualizar uma das
personagens envolvidas no episódio, com as quais construí um laço afetivo. A sombra,
solitária na imagem, em si mesma, nada me diz que eu não saiba mais e melhor, apenas
assinala algo que está no verbo, como uma vinheta pontual; considerando a tessitura verbal
rica ao evocar imagens e emoções relacionadas ao acontecimento da perda da sombra e o
envolvimento das personagens Naná e a Sra. Darling, procuro uma tessitura visual que a
torne, do mesmo modo, significativa para mim (afinal, sinto-me incluída pela perspectiva
adotada na imagem, que me coloca diante do ângulo formado entre o teto e as duas paredes).
Contudo, ao me deparar sozinha diante dela, sem a companhia cúmplice das personagens não
ressignificadas, afasto-me; sua visão não me pertence, mas a algo, ou alguém atrás de mim,
que não posso ver e com a qual não posso me identificar. Assim, a expressividade da
perspectiva e o efeito dinâmico da sombra projetada na parede tornam-se inúteis porque
uma lacuna em relação a outros elementos envolvidos nessa passag
102
junto ao diálogo verbal, a ocorrência de uma ão importante: a descoberta do esconderijo de
Peter. Se a imagem do pirata tivesse aparecido como uma espécie de vinheta pelo menos
oito páginas atrás, coincidente com a sua apresentação verbal, o efeito não seria ruim; mas ela
corta uma cena à qual não parece pertencer, quebrando o envolvimento emocional do leitor
com o que está sendo narrado, alterando o ritmo da leitura de modo a não contribuir, nem para
estimular a curiosidade, nem para fornecer qualquer tipo de informação de valor, a o ser
sobre a figura da personagem. Em relação a essa, temos um novo conflito: a imagem é pouco
convergente à descrição verbal do Capitão, embora enfatize aspectos de certa fidalguia, cor
dos cabelos, o gancho e um signo de caveira sobre duas espadas, caracterizando-o dentro da
função que exerce. As cores remetem, como mencionei, à ressignificação da Disney; os
olhos fechados em nada correspondem à semântica depreendida a partir da descrição verbal
dos olhos da personagem, um ser tão contraditório quanto sua aparência. Trata-se de uma
imagem que se configura como um ícone desgastado de chefe de piratas, ícone esse que o
índice-caveirinha colocado num chapéu de tamanho diminuto ridiculariza e acentua como
clichê; assim, toda a sua força se concentra numa expressão facial habilmente executada e no
gancho ameaçador, enfatizando apenas os aspectos mais superficiais da personalidade da
personagem. Por não estar localizada no tempo e no espaço, apela às qualidades mais
informativas e pontuais (realçando seus equívocos).
Dezesseis páginas depois, surge a terceira ilustração, onde aparecem Peter Pan e os
meninos perdidos [fig B.10]. Eles estão agrupados e portam varas nas mãos; ainda que apenas
esboçados, percebo que a maioria tem seus olhos voltados em direção além-suporte, como se
estivessem posando para minha contemplação; apenas Peter olha para baixo, e passa o braço
por cima da cabeça numa atitude de descanso. A imagem coincide sintaticamente com a
narrativa verbal, que descreve a construção da casa de Wendy. Mesmo levando-se em
consideração sua posição no DH e os elementos como as varas e o gesto de Peter, que
localizam a cena no tempo diegético, ela passa uma impressão de alheamento, pois carece de
cenário (está recortada contra o fundo do papel). As variadas tonalidades castanhas e
alaranjadas das roupas particularizam cada um dos meninos e quase todos me fitam
diretamente, incluindo-me, tal como a perspectiva na ilustração da sombra, embora por
artifício diverso. Esse recurso o olhar direto dos meninos até estimularia uma
aproximação significativa; contudo, o possível calor transmitido por esses índices acaba
quebrado pela configuração um tanto monótona e igual dos rostos, traçados de modo
repetitivo: o formato dos olhos, o tipo de nariz, as bocas retas, o mesmo ar triste ou
103
desanimado. A figura de Peter dirige seus olhos de forma ambígua — ou aos meninos
perdidos, ou a si mesmo. A não ser pela altura um tanto descomunal, pela cor e textura da
roupa, o protagonista está, apenas como mais um menino, situado no mesmo plano semântico-
visual dos demais. A quase inatividade, para não dizer desânimo, realçados pela postura
estática do grupo de personagens, rompe com a possibilidade de estabelecer um elo afetivo
com a imagem, e de incorporá-la ao imaginário como um referencial, uma vez que ela o
reflete o caráter e o espírito dessas crianças tal como nos apresenta o texto de Barrie. Trata-se
de uma ilustração que, apesar de bem posicionada sintaticamente pelo planejamento gráfico,
perde em informação significativa, reduzindo-se a mero ornamento, ao contrapor-se à
narrativa verbal, muito mais envolvente.
A essa altura, alguns horizontes estão se formando em relação ao discurso visual;
percebo que não devo esperar muito das ilustrações constituintes; não porque me deter
nelas, pois seguramente não estimulam meu imaginário no sentido de enriquecê-lo durante o
processo de leitura do texto verbal, no qual me refugio, tentando esquecer os arranjos aos
quais se hibridiza. As imagens, porém, estão ali, presentes, e chocam-se com informações
visuais obtidas através do cinema, teatro e outras edições ilustradas; chocam-se também com
o DVr ao qual se integram, causando um incômodo difícil de se ignorar. Ao buscar
referências em padrões visuais já conhecidos, com intenção de atualizar a obra junto ao leitor
contemporâneo, elas acabam simplificando em demasia os aspectos iconográficos como
acontece com a figura do Capitão Gancho. A adoção da linguagem formal — a técnica
utilizada, harmonização de cores, o gestual maneirista que se aproxima do cartunismo ou da
caricatura —, também não chega a provocar uma reflexão criativa sobre esses estilos e
padrões imagético-culturais. A ausência de relação entre as imagens do DVs e as evocadas
pelo DVr parece ter uma origem óbvia e bastante simples: o autor visual não estava a par do
discurso primeiro no momento de sua ressignificação, ou seja, não deve ter lido ou
compreendido a obra, pelo menos não na íntegra.
Um outro bom exemplo que denota possíveis conflitos perceptivos gerados a partir da
protoleitura visual seria a ilustração da árvore-esconderijo, que se segue a das sereias (sobre a
qual já discorri no capítulo anterior). Ela aparece encartada entre as páginas 152 e 153 [fig
B.12] e caracteriza-se também por anacronia, não porque a árvore o se localiza em
espaço e tempo narrativos seus galhos estão recortados contra o fundo do papel, e não se
adjunta ali nenhuma ação —, mas porque ela ainda aparece, tal como a imagem de Gancho,
em meio a um episódio bastante significativo da diegese. Sua localização só realça seu
104
alheamento: sabemos que índios vigiando o esconderijo, mas eles estão ausentes na
imagem; não o bastasse, o encontro nela correspondência com a descrição do texto verbal,
que fala em uma árvore para cada criança, cujos troncos, de vários tamanhos e larguras,
servem de acesso ao refúgio entre as raízes, escavado sob a terra
216
. Como um todo, portanto,
essa ilustração perturba da mesma forma que a do capitão pirata, o por seu silêncio
formal, mas pelas notas desafinadas emitidas em relação ao DVr. Os problemas repetem-se,
em maior ou menor grau, em todas as ilustrações seguintes: na figura solitária de Peter Pan
tocando flauta, sempre de olhos fechados [fig B.13]; na ameaça do Crocodilo a um navio-
pirata deserto [fig B.14] — uma ação que não se concretiza na minha percepção, pois não vejo
a quem ele está ameaçando, embora saiba, pela narrativa verbal, que é ao Capitão Gancho
que, nesse momento, encontra-se dentro do navio. Contudo, uma vez que a imagem minimiza
os efeitos dramáticos da cena que, sabemos, é crucial, como considerá-la significativa? Além
disso, o modo como a maioria das manchas das ilustrações permite a interferência do fundo
do papel, não permitindo uma imersão do olhar e o seu envolvimento, acabam por conferir-
lhes o aspecto de vinhetas, embora tenham uma página inteira à disposição. E ainda que assim
as considerássemos, isso não as tornaria mais eficientes: o modo como foram interpostas ao
DVr desarranja o ritmo proposto pela narrativa verbal, conflitando a leitura ao invés de abrir
espaço à pausa e respiração.
As duas últimas imagens são mais interativas; na primeira, temos uma ação interligada
ao episódio apresentado pelo DVr, a luta final entre Peter Pan e o Capitão Gancho [fig B.15];
afora o estranhamento causado pelo fato de estarem ambos de olhos fechados, a
ressignificação é razoável, embora pouco emocionante, dada a frieza resultante da
combinação
entre os elementos e cores (a ambiência o participa da ação narrada, composta
de um convés silencioso sobre um fundo azul tranqüilo, diminuindo o impacto emocional da
cena). O fato de as personagens não interagirem entre si (a falta de interação é sentida
especialmente nos olhares de ambos, na posição das armas em formação paralela diagonal que
anula seu potencial agressivo e na postura do Capitão, um tanto desajeitada com seus ombros
e braços comprimidos e os ângulos formados pelas pernas) também contribui com a falta de
apelo emocional. A ambigüidade da última cena [fig B.16] foi referida em análise anterior:
resta acrescentar que os volumes que configuram Peter Pan lhe dão certa consistência dentro
216
Conforme consta no Capítulo VII: “One of the first things Peter did next day was to measure Wendy and
John and Michael for hollow trees. [...] And how ardently they grew to love their home under the ground;”
(BARRIE. 1999: 133.) [Uma das primeiras coisas que Peter fez foi tomar as medidas de Wendy, João e Miguel
para arranjar árvores ocas do tamanho certo. (...) E como começaram a gostar de sua casinha embaixo da terra!
(MACHADO. 2006: 109-111.)]
105
da estrutura bicromática predominantemente violeta e amarelo, complementares que, neste
caso, se anulam
217
—, no entanto, ele permanece de olhos fechados, ainda que dessa vez
pareça dirigir-se à senhora da janela; essa figura é menos palpável, no sentido de que seus
contornos evidentes e rápidos reduzem a sensação de volume; por isso e por não ter como
identificá-la, não estabeleço nenhum compromisso afetivo ou sentimental com ela, e
abandono-a às cores frias que nem a luminosidade alaranjada da janela consegue minimizar,
dada a anulação resultante do arranjo cromático.
Termino a leitura com a impressão de que o DVs é completamente desnecessário; se
ele existe, é por mera pretensão editorial, que acredita na ilustração como artifício sedutor e
decorativo, subjacente ao DVr. A embalagem em capa vibrante não cumpre o que promete e
subestima o potencial da obra em atrair uma gama de leitores para além de um destinatário
infanto-juvenil, este igualmente subestimado em sua inteligência e sensibilidade perceptiva
visual. Todo o apego intelectivo-sentimental a Peter Pan/Salamandra depende do texto verbal
que ela substancializa e sabemos, após analisá-lo, o quanto ele é capaz de estimular
profundas emoções para além da diversão ou do jogo intelectual poético e simbólico que
estabelece com o leitor, o quanto ele se imiscui nas inseguranças e desejos próprios do ser
infante para além do dizível, o quanto ele pode colaborar para com a emancipação o
dentro dos domínios da linguagem e da capacidade de entendimento do mundo, mas da
consciência de sentimentos ainda obscuros, catalisados pelas emoções despertadas durante a
leitura. Da mesma forma, sinto-o capaz de emocionar o leitor adulto por despertar nele a
criança vivida, latente como o beijo escondido da Sra. Darling. Peter Pan (e Wendy) é, sem
dúvida, muito mais do que mostram os displays montados nas livrarias, e muito mais do que
nos mostram, superficialmente, as ilustrações de Fernando Vicente. Mas isso pouco importa,
porque não há, nesse momento, edição concorrente no Brasil. O livro deve vender enquanto
existirem crianças alegres, inocentes, e adultos que acreditem que elas tenham mesmo um
coração leve.
217
Conforme já foi referido em relação à imagem da capa no capítulo 1, as cores complementares, ao serem
somadas ou justapostas em partes iguais, geram um tom de cinza ou branco acromático; daí decorre a sensação
de conflito e conseqüente anulação da força expressiva ou significativa de cada uma delas para a percepção.
Enquanto que na capa tínhamos uma relação equilibrada entre verdes e vermelhos causados pela variação de
matizes, luzes e saturação (graus de vivacidade) da gama aplicada, no caso dessa ilustração, a ausência de uma
terceira cor, tônica ou dominante (uma cor que predomine ou desvie o conflito na percepção ocular) acaba
acentuando a polaridade entre os matizes azul-violetas e amarelo-alaranjados, fazendo com que o conflito não
resolvido entre elas cause a anulação de ambas. Segundo Israel Pedrosa, “a dificuldade para a harmonização das
cores puras é bem maior do que para a harmonização de valores coloridos ou incolores. Enquanto nesta última os
conflitos são eliminados pela adição do branco e do preto, na primeira o conflito só terminará através do
equilíbrio harmônico, e não pela extinção da vibração das cores conflitantes.” (PEDROSA. 2002: 160). Mais
sobre harmonização entre complementares, ver nota 38 do Capítulo 1.
106
A JANELA SEMPRE ABERTA
The window must always be left open for them, always, always.
Sir J. M. Barrie.
O primeiro contato com uma dada obra literária, sobretudo quando se tem em mente um
leitor jovem, pode ser marcante e referencial. Enquanto objeto estético, o livro que a substancializa
é muito mais do que um mero suporte de leitura. Se ele tem potencial para alcançar ou o o status
de objeto de arte, isso depende das intenções autorais e editoriais e da dinâmica funcional
correspondente ao deslocamento de interesses e modos de apropriação desse objeto ao longo do seu
percurso histórico, social e cultural. Utilizando a edição Peter Pan/Salamandra como ponto de
partida e de chegada, chamei a atenção sobre o livro como suporte interferente na recepção de
leitura, no cumprir de sua função estética e comunicativa da obra alográfica que ele substancializa;
abri uma janela para compreensão das inter-relações dos discursos presentes nesse suporte, desde
seus aspectos matéricos, como o tipo de papel e formato, passando pela capa, aas ilustrações e
projeto gráfico adotado; identifiquei alguns dos interesses e das intenções editoriais brasileiros no
que concerne à publicação da obra estrangeira Peter Pan, situando até que ponto o grau de
importância e o reconhecimento que as artes gráficas e ilustrativas vêm adquirindo no Brasil
refletem-se na produção do livro ilustrado voltado para o público infanto-juvenil e, especificamente,
no caso analisado. Com o objetivo de oferecer um pano de fundo ao discurso visual apresentado por
Fernando Vicente, apresentei um breve histórico iconográfico da obra de Barrie desde os seus
primeiros e mais marcantes ilustradores, aoutras transcriações interssemióticas visuais como o
filme de Hogan e o desenho animado da Disney, igualmente importantes na formação do imaginário
ficcional brasileiro em torno da obra; por fim, ensaiei um modelo de recepção implícita na nova
edição desse clássico da literatura estrangeira, dentro de uma perspectiva intelectivo-sentimental
que concebe um sujeito íntegro na interação com os discursos verbais e gráfico-visuais.
No livro ilustrado é aumentado, sem dúvida, o potencial estético da sua constituição
material, ou matérica, se considerar que a própria substância (papel e outros materiais) pode ser
explorada no sentido de se oferecer como signo icônico. Ao incluir o discurso visual artístico como
constituinte igualmente saliente e partindo do ponto de vista de que o texto literário, idealmente
artístico em si mesmo, lhe é contingente, desenvolvi uma nova concepção acerca dos modos como
esses discursos se oferecem, íntegros, à recepção. Dentro disso, previ uma dimensão a mais na
inter-relação entre os elementos que compõem o todo comunicativo do objeto-livro, para além de
uma relação binária ou dialógica; na verdade, conforme demonstrei, um livro, se e quando ilustrado,
107
oferece-se como uma sinfonia executada por instrumentos ou um coral de vozes —, cujas linhas
melódicas entrelaçam os diferentes timbres específicos e significativos, gerando um discurso
híbrido maestrado, por sua vez, pela estrutura material e espacial do objeto autográfico — o livro —
onde até mesmo o silêncio de uma das vozes pode interferir na composição melódica como um
todo.
Em razão dos novos conceitos aplicados nessa abordagem, obriguei-me a imaginar, da
mesma forma, um novo tipo de receptor intelectivo-sentimental, o limitado a uma interação
cogitante-computativa com a idealidade do texto literário, tampouco apreciador passivo e intuitivo
do discurso visual, mas redimensionado como um sujeito interativo às linguagens visuais, gráficas e
verbais que compõem o livro como um todo, apropriando-se da obra artística através de uma
dinâmica ressonante e repercutiva, onde “o ser do poeta é o nosso ser
218
”. Tal repercussão
providencia uma consciência emancipatória, retroativa às aproximações seguintes de todo objeto
artístico e cultural.
Não foi fácil verbalizar as impressões obtidas a partir da análise do corpus selecionado; ao
procurar agregar os diferentes discursos inter-relacionados e os modos como esses se oferecem ao
receptor, tive consciência da impossibilidade de traduzir plenamente os modos de percepção visual
através da linguagem verbal que, conforme Rudolf Arnheim:
[...] não pode executar a tarefa diretamente porque não é via direta para o contato sensório
com a realidade; serve apenas para nomear o que vemos, ouvimos e pensamos. De modo
algum é um veículo estranho, inadequado às coisas perceptivas; ao contrário, refere-se
apenas às experiências perceptivas. Estas experiências, contudo, antes de receberem um
nome, devem ser codificadas por análise perceptiva. Felizmente, a análise perceptiva é
muito sutil e pode ir além. Ela aguça a visão para penetrar uma obra de arte até os limites
mais impenetráveis. (ARNHEIM. 2005: s.p.)
Isso não quer dizer que Arnheim considere a descrição verbal a partir da análise perceptiva
prejudicial. Sua restrição direciona-se apenas no sentido de que os estudos hermenêuticos das
linguagens plástico-visuais devem transcender a tendência de procurar fórmulas e receitas teóricas
exteriores à expressão da forma em si. Assim, uma “boa teoria de arte deve cheirar a estúdio,
embora sua linguagem deva diferir da conversa coloquial dos pintores e escultores.
219
Por isso,
recorri também ao iconologista Otto Pächt, procurando não me ater apenas ao que está por trás da
imagem, mas dentro dela, no modo como ela presentifica, através dos seus dados estilísticos, idéias,
intenções e conceitos decorrentes o do ponto de vista do seu autor, mas de todo um contexto
218
BACHELARD. 2005: 7.
219
ARNHEIM. 2005. s.p.
108
histórico e sociocultural nela inscritos ou atualizados.
220
Da mesma forma, reconheço a vã tentativa
de apreensão total do texto artístico literário, cuja trama sempre resguarda um fio de mistério por
desenredar. Juntar ambas as linguagens nesse trabalho de cunho predominantemente
fenomenológico, conduzido pelas categorias genetianas e pelos estudos de Plaza, associadas a um
feeling particular, resultou, ainda que pelo exemplo inverso, dadas as características do meu corpus,
na confirmação de que, cada uma, mesmo em suas especificidades, são potencialmente capazes de
igualar-se e amalgamar-se em sua pretensão poética e em sua função comunicativa, sem a anulação
ou subjugação de uma em detrimento da outra, mas oferecendo-se, íntegras e como um fenômeno
único, à experiência estésica, sentimental e intelectiva.
Merleau-Ponty, ao comparar a atividade do escritor e do pintor, diz que ambos se apropriam
das respectivas linguagens com a mesma intenção: dizer, através de cada uma delas, aquilo que a
própria linguagem renuncia.
[...] o escritor trabalha pelo avesso: lida apenas com a linguagem, e é assim que de repente
se encontra rodeado de sentido. Se isso é verdade, sua operação o é muito diferente
daquela do pintor. Diz-se geralmente que o pintor nos atinge através do mundo tácito das
cores e das linhas, dirige-se a um poder de decifração informulado em nós que, justamente,
só controlaremos depois de tê-lo exercido cegamente, depois de ter amado a obra. O
escritor, ao contrário, instala-se em signos já elaborados, num mundo já falante, e requer de
nós apenas um poder de reordenar as nossas significações de acordo com a indicação dos
signos que nos propõe. Mas, como é isso, se a linguagem exprime tanto pelo que está entre
as palavras quanto pelas palavras? Tanto pelo que não “diz” quanto pelo que “diz”? Se há,
oculta na linguagem empírica, uma linguagem na segunda potência, na qual de novo os
signos levam a vida vaga das cores, e na qual as significações não se libertam totalmente da
ação recíproca dos signos? (MERLEAU-PONTY. 2004: 74.)
Por isso, numa linguagem híbrida, o êxito da inter-relação entre os discursos é dependente,
conforme diagnostiquei, do grau de auto-referência das próprias linguagens constituintes; quanto
mais uma linguagem nega-se a acompanhar ou submeter-se literalmente a linguagem a qual
se hibridiza, mas, ao invés, serve-lhe de contraponto sígnico, mais interessante e rico é o jogo
poético que entre elas se forma. assim elas se equilibram e valorizam o discurso híbrido e
assim ele será percebido e valorizado pelo receptor como um todo. Em outras palavras: a
disparidade, ou o contraponto, entre as linguagens hibridizadas deve provir não daquilo ao qual elas
se referem (suas denotações), mas do modo como se referem (suas conotações), gerando assim um
horizonte de expectativas tão variado e pluridimensional quanto o número de linguagens acopladas.
220
Et nous, les historiens de l’art, qui étudions des objetcts directement placés dans le domaine visuel, nous ne devions
pás chercher la signification qui se trouve non pas derrière l’image, mais dans l’image?[...] Déterminer aussi
clairement que possible ce qui, dans la creation artistique, relève des idées exprimables, formulables verbalement est,
pour notre discipline, um tache importante et legitime. Mais nous ne devons pás oublier que le sens d’une oeuvre d’art,
en tant que création esthétique, ne peut se révéler à nous que par une étude des données stylistiques. [E nós, os
historiadores de arte, que estudamos os objetos diretamente situados dentro do domínio visual, não deveríamos procurar
a significação que se encontra não somente atrás da imagem, mas dentro dela? (...) Determinar claramente, também, o
que é possível, dentro da criação artística, de extrair idéias exprimíveis, formuláveis verbalmente é, para nossa
disciplina, uma tarefa importante e legítima. Mas não devemos esquecer que o sentido de uma obra de arte, enquanto
criação artística, não pode revelar-se a nós senão por um estudo de seus dados estilísticos.] (PÄCHT. 1994: 94.
Tradução minha.)
109
Todo discurso híbrido estabelece em sua estrutura relações conotativas entre as linguagens
reunidas. É por isso que, nesse sentido, a análise de Peter Pan/Salamandra conclui-se diante de um
mau exemplo: ao não valorizar plenamente os recursos sígnicos gráfico-visuais disponíveis,
agregando um discurso visual submisso às convenções e aos padrões já automatizados, ocupando de
forma pouco significativa o lugar na ordem sintática que lhe é destinada, essa edição acaba por
perder uma boa oportunidade de atualização da obra em questão, desvalorizando-a estética e
sentimentalmente através do suporte que a substancializa diante dos olhos do receptor.
Além dessas, outras reflexões derivadas a partir dos estudos realizados e que eu gostaria
de registrar, à guisa de desfecho para esse trabalho:
a) o impacto emocional gerado pelo objeto-livro em seus aspectos estéticos e comunicativos
visuais e gráficos parece ser um dos determinantes iniciais da formação do horizonte de
expectativas a respeito da obra alográfica. A configuração da capa, o formato e tamanho,
o material utilizado na sua confecção, a escolha dos tipos e das artes a serem utilizadas
como ilustração, enfim, toda a sintaxe verbo-visual hibridizada e organizada como um
objeto-livro induzem um maior ou menor grau de empatia com o suporte de leitura,
afastando ou aproximando o receptor. Ao manipular, ao penetrar nesse objeto, tal empatia
poderá se intensificar ou esvaziar-se, a medida em que o receptor realiza o ato cinético de
mover suas páginas e perfaz o caminho produzido pela sintaxe verbo-visual
hibridizada. O texto literário em si será capaz de provocar a curiosidade do leitor
apenas se este tiver obtido algum tipo de orientação ou informação sobre sua idealidade;
de outro modo, ele dependerá de uma protoleitura implícita aos aspectos gráfico-visuais
do seu suporte que contribuem para indiciar um destinatário potencial. No caso de Peter
Pan/Salamandra, a capa sugestiva em cores e formas bem elaboradas, ainda que apresente
o rosto de um menino pouco convergente com o protagonista, juntamente com a
informação do nome da reconhecida autora e tradutora brasileira, implica um destinatário
infanto-juvenil; entretanto, ao penetrar no miolo, mesmo um receptor desprovido de
expectativas pode, paulatinamente, entrar em conflito ou tornar-se apático em relação ao
discurso visual apresentado, refugiando-se no discurso verbal, comprovadamente mais
interessante;
b) as inter-relações entre o discurso visual e o discurso verbal e sua recepção implícita
variam não somente conforme as intenções autorais (se a obra é concebida originalmente
apenas como texto verbal, como narrativa verbo/visual simétrica ou se possui uma
narrativa primeira a qual a outra se subordina) e editoriais (que aspecto terá esse livro, se
ele será ou não ilustrado, qual o tipo ou estilo de ilustração, etc), mas também conforme a
110
época, localização e cultura contingentes a cada edição; assim, torna-se necessário situar
cada objeto-livro analisado em sua intersecção dos eixos sincrônico e diacrônico a fim de
compreendermos a sua potencialidade estética e comunicativa como um todo. Como
exemplo, a edição avaliada também não é das mais felizes: ela não se apresenta eficiente
como proposta editorial contemporânea de livro ilustrado, tanto pela qualidade do
trabalho, quanto pela proposta de utilizar uma matriz estrangeira, principalmente tendo-se
em vista a crescente qualidade do material e das artes gráficas no Brasil; em relação a
outras edições de Peter Pan no Brasil e no exterior, a edição não se destaca; trata-se de
um lançamento oportuno que visa preencher um lugar vazio nas prateleiras, ao reeditar
uma obra em via de esgotamento;
c) é fato que, tanto o livro mediador de imagem e verbo em relação simétrica, quanto o livro
onde predominam um dos dois discursos, têm procurado, nos últimos tempos, ir de
encontro não ao destinatário imaturo ou em fase de amadurecimento, mas também
àquele que tem maduras a percepção estética visual e verbal. Dentro disso, caberia
averiguar de que forma as narrativas verbo-visuais brasileiras têm-se comportado frente a
esse endereçamento dual, ou se, por outro lado, a capacidade perceptiva estética-visual da
própria criança ou do adolescente não têm sido super ou subestimada, ou ainda se as
narrativas híbridas tem sido pouco exploradas em sua certa contribuição com a formação
de um olhar mais sensível e crítico. Nesse sentido, o meu corpus, além de mostrar-se
pouco atento às diversas ambigüidades reconhecidas no texto de Barrie, parece
subestimar a capacidade estésico-perceptiva do seu destinatário implícito; de qualquer
forma, nenhuma edição de Peter Pan ilustrada em tradução brasileira, das quatro que
registrei, incluindo a que avalio, mostra-se preocupada em figurar significativamente no
panorama histórico nacional ou internacional de publicações ilustradas dessa obra, dado
que três delas importam discursos visuais prontos, e a restante (Peter Pan, o livro/
Quarteto) incorpora seu DVs a uma solução gráfica sofrível.
Essas constatações, ao invés de conduzirem meu espírito a um esgotamento reflexivo,
propiciam, ao contrário, o surgimento de novas perguntas, colocadas abaixo de forma igualmente
sistemática:
a) O desinteresse pela ressignificação nacional a partir dessa ou de qualquer outra obra
estrangeira teria de fato uma origem de fundo econômico? Ou conformaria uma distração
no sentido estabelecer um diálogo inter-cultural? Generalizo a questão porque percebo
que outras edições de textos clássicos da literatura infanto-juvenil estrangeira
111
apresentam, não raramente, a mesma problemática, carecendo de um ilustrador que os
matize a partir de um olhar nosso
221
.
b) Como o jovem leitor brasileiro reage de fato a uma obra integral ilustrada Peter Pan e
em especial à edição brasileira disponível Peter Pan/Salamandra, tendo ou não por
referência as informações imagéticas cinematográficas e adaptações conhecidas? Qual
seria o percurso dessa história estrangeira na recepção intelectiva, imaginária e
sentimental brasileira? Ele será igual entre meninos e meninas, e entre jovens de todas as
classes? De que forma ela atinge a faixa etária implícita em sua edição?
c) Dentro disso, como o discurso gráfico-visual brasileiro poderia colaborar com a recepção
do texto literário Peter Pan? Que discurso seria esse? A quem ele seria dirigido? Pois se
Peter Pan é uma obra que encanta adultos e crianças, como pensar esse endereçamento
dual em termos de Brasil. Ele existe e/ou é possível?
d) Por fim: como uma teoria que prevê o discurso híbrido em comportamento sinfônico e
que afirma o objeto-livro como suporte de função estética e comunicativa pode ser
aplicada de forma a desenvolver uma metodologia capaz de simular e estimular, através
de atividades práticas, uma percepção integral, sentimental e intelectiva, ao mesmo
tempo interativa às linguagens verbais e visuais?
Tais questionamentos instigam-me a prosseguir minhas investigações, ainda que eu altere o
meu corpus, deslocando-as em direção a qualquer obra literária, seja ela estrangeira ou brasileira,
do livro sem ilustrações (sempre composto de um discurso gráfico interferente) ao livro de imagem.
Com ou sem Peter Pan, a idéia central permanece: como a janela sempre aberta da casa da família
Darling, o livro é portal entre a realidade e a fantasia. Ocorre que essa passagem não é feita de nada,
mas têm moldura, encaixes; ela é dependente de fronteiras materiais que delimitam o espaço a ser
transgredido e a indicam como ponto de encontro mágico entre os mais diversos mundos. Grande
ou pequena, em arco ou quadrada, acortinada, clarabóia basculante ou decorada com a exuberância
multicolorida dos vitrais, cada janela recorta e interfere junto ao seu perscrutador uma paisagem
distinta.
221
112
REFERÊNCIAS
Sobre Peter Pan e Wendy
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Johnstone. Nova Iorque: Gramercy, 1988.
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Foreman. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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notas de Peter Hollindale. Nova Iorque: Oxford University Press, 1999.
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Springer Netherlands. v. 36. Setembro de 2005. p. 197-215. Disponível em:
<http://www.springerlink.com.w10058.dotlib.com.br/content/?k=Peter+Hollindale>. Acesso:
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113
PETER PAN. Direção: Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske. Produção: Walt
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Inglaterra). Disponível em: <http://www.c20th.com/peterpan.htm> Último acesso: 15 de
fevereiro de 2007, 14:51.
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J. M. Barrie's Peter and Wendy. In: Children’s literature in education. Nova Iorque: Springer
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<http://www.springerlink.com.w10058.dotlib.com.br/content/?k=Chris+Routh>.
Último acesso: 2 de dezembro de 2006, 8:57.
Sobre análise do livro ilustrado como objeto autográfico e alográfico
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1995.
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to Beckett. Londres: John Hopkins, 1978.
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2006.
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GRAIEB, Carlos. O cérebro é o espírito. Veja, São Paulo: Abril, n. 38, 26 de setembro de
2007, p. 98-105.
115
ANEXOS
Anexo A — Edições brasileiras ilustradas do texto integral da obra Peter Pan and Wendy,
de James Matthew Barrie, anteriores ao corpus.
A.1 Peter Pan, São Paulo: Ed. Hemus, s.d. (aprox. 1985).
Tradução de Maria Antônia Van Acker; ilustrações de Trina
Schardt Hyman; composição e arte: Estúdio Behar. Copyright
Charles Scribner´s Sons.
Observações:O aspecto geral do livro remete a idéia de
aventura e de um Peter Pan adolescente e de aspecto selvagem.
A ilustração da capa, de autor desconhecido, destoa
completamente das ilustrações de Trina Schardt Hyman,
reproduzidas em preto e branco a partir da edição original a
cores. A expressão final é assim traduzida, em continuidade à
frase anterior: “... enquanto as crianças forem alegres,
inocentes e desalmadas.” Não informações sobre o texto ou
autor, nem colofón. Constam, no final, notas de tradução.
A.2 Peter Pan, o livro. São Paulo: Quarteto/FTD, 1992.
Tradução de Ana Maria Machado; capa e ilustrações de Walter
Ono.
Observações: A capa enfatiza aspectos de aventura e fantasia
ligadaos à irreverência e ao bom-humor, e sugere, através do
título (uma brincadeira com o clichê cinematográfico
geralmente dado aos filmes realizados a partir de linguagem
diversa) e do estilo das ilustrações, que o livro traz
informações diferentes do desenho animado da Disney. Peter
pan apresenta-se com lenço à cabeça, aspecto de duende e
dentes para fora. As ilustrações, realizadas em preto e branco,
caricaturizam os personagens e conferem às artes um aspecto
mais infantil.Trata-se da única edição que inclui ilustrador
brasileiro. Infelizmente, os traços de Ono perderam a nitidez
em sua notação impressa, fato observado em outros
exemplares da edição. A expressão final, apresentada como
uma nova frase, foi traduzida por: “Enquanto as crianças
forem alegres, inocentes e de coração leve.” A tradutora
apresenta o autor e comenta a tradução. Não há colofón.
116
A.3 Peter Pan e Wendy. São Paulo: Companhia das Letras,
1999. Tradução de Hildegard Feist; capa de Ettore Bottini a
partir das ilustrações de Michael Foreman; preparação de
Denise Pegorin.
Observações: O título e o texto da contracapa incluem Wendy
como co-protagonista da história. A capa, estrangeira, foca a
casa dos Darling e seus integrantes dentro de uma perspectiva
onírica. As ilustrações a cores são sofisticadas, conservando
um ponto de vista predominantemente infantil. O livro inclui a
biografia do autor e informações sobre o Hospital Great
Ormond Street, detentor dos direitos de publicação da obra. Na
tradução, a expressão final é traduzida como: “...enquanto as
crianças forem alegres, inocentes e sem coração.”O colofón
indica a origem dos filmes e o papel usado na confecção.
117
Anexo B — Corpus: Peter Pan. Rio de Janeiro: Moderna/Salamandra, 2006.
Tradução de Ana Maria Machado; ilustrações de Fernando Vicente; projeto gráfico e
diagramação de Camila Fiorenza Crispino a partir da edição espanhola Santillana.
Fig. B.1 Capa
Fig. B.2 Contracapa e brochura
Fig. B.3 Falsa guarda
Fig. B.4 Ante-rosto
118
Fig. B.5 Rosto
Fig. B.6 Sumário
Fig. B.7 Vinheta à esquerda; mancha de texto
com capitular, capítulo e subtítulo
Fig. B.8 Ilustração 24/25: cena da sombra
Fig. B.9 Ilustração 88/89: apresentação do
Capitão Gancho
119
Fig. B.10 Ilustração 104/105:
apresentação de Peter Pan e os
meninos perdidos
Fig. B.11 Ilustração 120/121:
apresentação das sereias
Fig. B.12 Ilustração 152/153: Apresentação do
esconderijo
Fig. B.13 Ilustração 168/169: cena de Peter
Pan tocando flauta
120
Fig. B.14 Ilustração 200/201:
cena/apresentação do crocodilo e do
navio pirata
Fig. B.15 Ilustração 224/225: cena da
luta entre Peter Pan e o Capitão
Gancho
Fig. C.16 Ilustração 256/257: cena de Peter
Pan à janela da casa da família Darling
121
Anexo C — Transsignificações em Peter Pan e Wendy (em ordem cronológica)
C. 1 Peter Pan
Fig. C.1.1 Arthur Rackham (1906)
Fig.C.1.2 F. D. Bedford (1911)
Fig. C.1.3 Mary Lucy Attwell (1921)
Fig. C.1.4 Roy Best (1931)
122
Fig. C.1.5 Disney (1953)
Fig. C.1.6 Trina Schardt Hyman
(1980)
Fig. C.1.7 Michael Hague (1987)
Fig. C.1.8 Walter Ono (1992)
Fig. C.1.9 Jeremy Sumpter como Peter
Pan (2003)
123
C.2 Wendy:
Fig. C.2.1 Alice Woodward (1907)
Fig. C.2.2 Roy Best (1931)
Fig. C.2.3 Disney (1953)
Fig. C.2.4 Trina Schardt Hyman
(1980)
Fig. C.2.5 Anne Grahame Johnstone
(1988)
Fig. C.2.6 Rachel Hurd-Wood como
Wendy; Jason Isaacs como Capitão
Gancho (2003)
124
C.3 Capitão Gancho
Fig. C.3.1 Anne Grahame Johnstone
(1988)
Fig. C.3.2 Anne Grahame Johnstone
(1988)
125
Fontes:
BARRIE, James Matthew. Peter Pan — 100th anniversary edition. Ilust.:
Michael Hague. Nova Iorque: Henry Holt, 1987, fig C.1.7.
BARRIE, J. M. Peter Pan — a classic illustrated edition. Adap.: Cooper
Edens. São Francisco, EUA: Chronicle, 2000, fig C.1.1, C.1.2, C.1.3,
C.1.4, C.2.1 e C.2.3.
BARRIE, J. M. Peter Pan and Wendy. Adapt.: Jane Carruth. Ilust.: Anne
Grahame Johnstone. Nova Iorque: Gramercy, 1988, fig C.2.5, C.3.1 e
C.3.2.
BARRIE, J. M. Peter Pan, O Livro. Trad.: Ana Maria Machado. Ilust.:
Walter Ono. São Paulo: Quinteto, 1992, fig C.1.8.
BARRIE, J. M. Peter Pan. Ilust.: Trina Schart Hyman. Nova Iorque:
Atheneum, 1980, fig C.1.6 e C.2.4.
PETER PAN. Direção: P. J. Hogan. Produção: Douglas Wick e Lucy
Fischer. Colúmbia Pictures, 2003, fig C.1.9 e C.2.6.
PETER PAN. Direção: Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton
Luske. Produção: Walt Disney Productions, 1953, fig C1.5 e C.2.3.
126
CURRICULUM VITAE
Dados Pessoais
Nome Paula Mastroberti
Nascimento 19/12/1962 - Porto Alegre/RS - Brasil
CPF 39536092034
Formação Acadêmica/Titulação
2006 - 2008 Mestrado em Programa de Pós-graduação em Letras.
Instituto de Letras da PUC, LETRAS-PUC, Brasil
Título: Peter Pan e Wendy em versão brasileira: uma janela aberta para o
livro como suporte híbrido. Ano de obtenção: 2008
Orientador: Vera Teixeira de Aguiar
Bolsista do(a): Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico
1980 - 1985 Graduação em Bacharelado Artes Plasticas.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Porto Alegre, Brasil
Formação complementar
2001 - 2001 Extensão universitária em Oficina de Criação Literária.
Pontifícia Universidade católica - Instituto de Letras, Pós Graduação, PUC-
RS/ FALE, Brasil, Ano de obtenção: 2001
Atuação profissional
1. Pontifícia Universidade católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
Vínculo institucional
2006 - 2008 Vínculo: Bolsista CNPQ , Enquadramento funcional: Estudante
pesquisador , Carga horária: 20, Regime: Dedicação Exclusiva
Produção em C, T & A
Produção bibliográfica
Artigos completos publicados em periódicos
1. MASTROBERTI, P.
A Rua dos Cataventos: impressões poético-visuais a partir da obra de Mario Quintana.
Nonada (Porto Alegre), v.9, p.39 - 50, 2006.
2. MASTROBERTI, P.
127
Artes Plásticas e educação: um diálogo urgente, necessário e possível. Reflexão e Ação. v.14,
p.55 - 64, 2006.
3. MASTROBERTI, P.
Lit Infanto Juvenil: reflexões sobre um rótulo. Logos (Canoas), v.14, p.9 - 10, 2003.
Livros publicados
1. MASTROBERTI, P.
Retorno de Ulisses. Rio de Janeiro : Rocco, 2007, v.1. p.120.
2. MASTROBERTI, P.
Heroísmo de Quixote. Rio de Janeiro : Rocco, 2005, v.1. p.136.
3. MASTROBERTI, P.
Angústia de Fausto. Rio de Janeiro : Ed. Rocco, 2004, v.1. p.136.
4. MASTROBERTI, P.
Uma Princesa e uma Ervilha?. Porto Alegre : Mercado Aberto, 2004, v.1. p.64.
5. MASTROBERTI, P.
A outra história de Rapunzel. Porto Alegre : Mercado Aberto, 2002, v.1. p.64.
6. MASTROBERTI, P.
O flautista de Hamelin. Porto Alegre : Editora Mercado Aberto, 2000, v.1. p.64.
7. MASTROBERTI, P.
Cinderela - uma biografia autorizada. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1997, v.1. p.64.
8. MASTROBERTI, P.
Os sapatinhos vermelhos. Porto Alegre : Editora Mercado Aberto, 1995, v.1. p.64.
Capítulos de livros publicados
1. MASTROBERTI, P.
Sem título. In: Autor Presente: 30 anos.1 ed. Porto Alegre : Corag, 2002, v.1, p. 1-131.
2. MASTROBERTI, P.
Os meus. In: Contos de Oficina 28.1 ed. Porto Alegre : Editora WS, 2002, v.1, p. 7-173.
Comunicações e Resumos Publicados em Anais de Congressos ou Periódicos (completo)
1. MASTROBERTI, P.
CLIC - uma proposta de inclusão através da ressignificação da leitura. In: Semana de Letras,
2006, Porto Alegre, 2006.
2. MASTROBERTI, P.
Hexagrama V In: I Jornada de Estudos da Teoria da Literatura, 2006, Porto Alegre, 2006.
128
Artigos em jornal de notícias
1. MASTROBERTI, P.
Reversões de Quixote. Zero Hora. Porto Alegre,RS, p.8 - 8, 2005.
2. MASTROBERTI, P.
Vermeer, Barrie e a condição criativa. Zero Hora. Porto Alegre, RS, p.2 - 2, 2005.
3. MASTROBERTI, P.
Em defesa das crianças extremamente sensíveis de todas as idades. Zero Hora, Caderno de
Cultura. Porto Alegre, RS, p.2 - 2, 2003.
4. MASTROBERTI, P.
A frágil torre da arte contemporânea. Zero Hora, Caderno de Cultura. Porto Alegre, RS, p.7 -
7, 2000.
5. MASTROBERTI, P.
Um passeio pela Bienal do Mercosul. Jornal Zero Hora, Caderno de Cultura. Porto Alegre,
RS, p.2 - 3, 1999.
Artigos em revistas (Magazine)
1. MASTROBERTI, P.
Arte contemporânea — para quem?. Revista Aplauso. Porto Alegre - RS, p.26 - 27, 2005.
3. MASTROBERTI, P.
Hora de repensar a educação artística. Revista Aplauso. Porto Alegre, RS, p.18 - 18, 2003.
Demais produções bibliográficas
1. MASTROBERTI, P.
A flauta mágica. ensaio. São Paulo:Dobras de Leitura (site organizado por Peter O'Sage,
2006. (Outra produção bibliográfica)
2. MASTROBERTI, P.
O Valor da arte contemporânea. ensaio. São Paulo:Digestivo Cultural (site digital organizado
por Julio Daio Borges), 2006. (Outra produção bibliográfica)
3. MASTROBERTI, P.
Peter Pan e Wendy em versão brasileira: uma janela aberta para o livro como suporte
híbrido, 2007. (Comunicação,Apresentação de Trabalho)
Produção Técnica
Demais produções técnicas
1. MASTROBERTI, P.
Escritura e leitura — aprendizado e mediação na contemporaneidade, 2007.
(Aperfeiçoamento, Curso de curta duração ministrado)
129
2. MASTROBERTI, P.
Leitura dos aspectos gráfico-visuais do livro infanto-juvenil: módulo III, 2007.
(Aperfeiçoamento, Curso de curta duração ministrado)
3. MASTROBERTI, P.
Literatura é assim, 2007. (Outro, Editoração)
4. MASTROBERTI, P.
Semana do Livro 2007, 2007. (Outro, Editoração)
5. MASTROBERTI, P.
Seminário Folclore e Escola: Adaptação de contos populares, 2007. (Aperfeiçoamento,
Curso de curta duração ministrado)
6. MASTROBERTI, P.
A literatura e sua influência em nossas vidas, 2006. (Aperfeiçoamento, Curso de curta
duração ministrado)
7. MASTROBERTI, P.
Leitura dos aspectos gráfico-visuais do livro infanto-juvenil : módulo I, 2006.
(Aperfeiçoamento, Curso de curta duração ministrado)
8. MASTROBERTI, P.
Leitura dos aspectos gráfico-visuais do livro infanto-juvenil : módulo II, 2006.
(Aperfeiçoamento, Curso de curta duração ministrado)
9. MASTROBERTI, P.
O personagem e sua ressignificação visual: posibilidades expressivas do desenho do corpo
humano, 2006. (Outro, Curso de curta duração ministrado)
10. MASTROBERTI, P.
Releituras da obra Dom Quixote, 2005. (Outro, Curso de curta duração ministrado)
Produção artística/cultural
1. MASTROBERTI, P., BORDINI, Maria da Glória, PELLIN, Vera
As cidades imaginadas de Érico Veríssimo, 2007.
2. MASTROBERTI, P.
Caleidoscópio noturno, 2007.
3. MASTROBERTI, P.
Literatura é assim:, 2007.
4. MASTROBERTI, P.
Retorno de Ulisses, ilustrações, 2007.
5. MASTROBERTI, P.
Semana do Livro FALE/PUCRS, 2007.
6. MASTROBERTI, P.
130
A rua dos cataventos - Uma homenagem a Mario Quintana, 2006.
7. MASTROBERTI, P.
Aprendiz de feiticeiro: 100 anos de Mário Quintana, 2006.
8. MASTROBERTI, P., BIAZETTO, Cristina., ZANCHETTA, Sônia.
Heroísmo de Quixote, 2006.
9. MASTROBERTI, P.
Heroísmo de Quixote (ilustrações), 2006.
10. MASTROBERTI, P.
Mapa, 2006.
11. MASTROBERTI, P., BIAZETTO, Cristina., ZANCHETTA, Sônia
Angústia de Fausto, 2005.
12. MASTROBERTI, P.
Ilustrações de Angústia de Fausto, 2005.
13. MASTROBERTI, P.
Ilustrações várias, 2005.
14. MASTROBERTI, P.
Uma princesa e uma ervilha (série); Fausto e guitarra (Angústia de Fausto), 2005.
15. MASTROBERTI, P.
Bastidores, 2004.
16. MASTROBERTI, P.
Mapa, 2004.
17. MASTROBERTI, P.
Objetos, 2003.
18. MASTROBERTI, P.
Julia, 2001.
19. MASTROBERTI, P.
O mar, 1999.
20. MASTROBERTI, P.
Ruínas de São Miguel, 1995.
21. MASTROBERTI, P.
Tridimensionais, 1994.
22. MASTROBERTI, P.
A montanha, 1993.
23. MASTROBERTI, P.
O elefante, 1993.
131
24. MASTROBERTI, P.
A praia, 1992.
25. MASTROBERTI, P.
Cozinha, 1992.
26. MASTROBERTI, P.
Montanha, 1992.
27. MASTROBERTI, P.
várias, 1992.
28. MASTROBERTI, P.
vários, 1992.
29. MASTROBERTI, P.
A praia, 1991.
30. MASTROBERTI, P.
sem título, 1991.
31. MASTROBERTI, P.
Pinturas, 1990.
32. MASTROBERTI, P.
Sem título, 1990.
33. MASTROBERTI, P.
Pintura mágica, 1989.
34. MASTROBERTI, P.
Sem título, 1988.
35. MASTROBERTI, P.
Sepé Tiaraju, 1987.
36. MASTROBERTI, P.
Um Dia na Vida de Beto e de Bia, 1987.
37. MASTROBERTI, P.
O protesto, têmpera, 1993; Sala 73, têmpera, 1983., 1983.
38. MASTROBERTI, P.
Bonecas, 1982.
Orientações e Supervisões
Orientações e Supervisões concluídas
Trabalhos de conclusão de curso de graduação
1. Andreia Meneses e Marília Helena Silva. Cinderela: mítica, princesa e fetichista. 2006.
132
Curso (Design de Modas) - Universidade Federal de Goiás
Demais Trabalhos
1. MASTROBERTI, P.
O arraial, 1997.
2. MASTROBERTI, P.
Novela, 1992.
3. MASTROBERTI, P.
Treiler, 1986.
4. MASTROBERTI, P.
As cobras: o filme, 1984.
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