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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Adriana Rodrigues
A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL COMO MÉTODO PARA LIDAR COM A MISÉRIA
SOCIAL: A TRAJETÓRIA DOS/AS SEM TERRA DO ASSENTAMENTO DOM
HÉLDER CÂMARA/PR, NO DIFÍCIL PERCURSO DE LUTA ATÉ CHEGAR “EM
CIMA DO LOTE”
FLORIANÓPOLIS
2006
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ii
Adriana Rodrigues
A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL COMO MÉTODO PARA LIDAR COM A MISÉRIA
SOCIAL: A TRAJETÓRIA DOS/AS SEM TERRA DO ASSENTAMENTO DOM
HÉLDER CÂMARA/PR, NO DIFÍCIL PERCURSO DE LUTA ATÉ CHEGAR “EM
CIMA DO LOTE”
Dissertação apresentada como requisito parcial à
obtenção do grau de Mestre em Psicologia, Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, Curso de Mestrado,
Centro de Filosofia e Ciências Humanas.
Orientadora: Profa. Mara Coelho de Souza Lago
FLORIANÓPOLIS
2006
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iii
TERMO DE APROVAÇÃO
ADRIANA RODRIGUES
A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL COMO MÉTODO PARA LIDAR COM A MISÉRIA
SOCIAL: A TRAJETÓRIA DOS/AS SEM TERRA DO ASSENTAMENTO DOM HÉLDER
CÂMARA/PR, NO DIFÍCIL PERCURSO DE LUTA ATÉ CHEGAR “EM CIMA DO LOTE”
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, Curso de Mestrado, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Santa Catarina, pela seguinte banca examinadora:
_________________________________________
Orientadora: Prof.
a
Dr.
a
Mara Coelho de Souza Lago
Departamento de Psicologia, UFSC
_________________________________________
Prof.
a
Dr.
a
Maria Aparecida Cecílio
Departamento de Teoria e Prática da Educação,
UEM
_________________________________________
Prof.
a
Dr.
a
Mirian Pillar Grossi
Departamento de Antropologia, UFSC
_________________________________________
Prof.
Dr.
Fernando Aguiar Brito de Sousa
Departamento de Psicologia, UFSC
Florianópolis, 21 de março de 2006
iv
Aos meus avós, Isaltina Garcia e Antonio José
Tavares, Dindinha e Dindinho (in memorian), que
na ausência se fazem presentes pelos exemplos de
luta, perseverança e coragem, valores construídos
e ensinados pelo vínculo do amor e do amparo.
Estas páginas contam também, um pouco da sua
história: camponeses, expropriados, sofridos,
porém fortes e íntegros ao (re)criar e nos ensinar
a desfrutar com alegria o “espetáculo da vida”.
v
AGRADECIMENTOS
Aos homens, mulheres, meninas e meninos sem terra, pela carinhosa acolhida e por me
mostrarem os sentidos das palavras solidariedade e resistência. Merecem, além do meu carinho,
minha admiração e respeito.
À professora e minha orientadora Mara Coelho de Souza Lago, pelo acolhimento e pela forma
serena e perspicaz com que orientou o trabalho, postura que contribuiu para que eu conseguisse
lidar com as distâncias entre o ideal e o real, o trabalho idealizado e o trabalho possível.
À professora e amiga Angela Maria Pires Caniato, minha gratidão pela orientação valiosa para o
desenvolvimento desse trabalho, e por ao longo do nosso convívio, me auxiliar a pensar e aplicar
a psicanálise para além da torre de marfim em que comumente habita.
À CAPES, pelo apoio financeiro que possibilitou a realização da pesquisa em condições mais
humanas.
Ao professor Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto, professora Viviana Carola Velasco Martínez,
professor Sidnei Munhoz, amigos e primeiros incentivadores na minha escolha pela vida
acadêmica.
Aos meus pais, Irma e Deoclides, aos meus irmãos Romualdo e Regina e, ao pequeno Jairo
Antonio, fontes inesgotáveis de amor, amparo, proteção e força de vida.
Ao meu amor, Matheus Felipe de Castro, por acreditar nos meus sonhos e me ajudar a buscá-los.
Pelas discussões e leituras atentas deste trabalho sempre repletas de sugestões e caminhos, os
quais devido as minhas limitações nem sempre pude trilhar. Pela alegria contagiante e pela
vi
paciência nos momentos difíceis. Pelos sacrifícios e pelo respeito ao meu momento. A você,
“todo amor que houver nessa vida...!”
vii
(...) porque ninguém tinha nada, vivia ali apenas
em baixo de um barraco de lona, dormindo em
cima de uma tarimba, cozinhando num jipão. Mas
era a morada de cada um. Ali era a sua casa, ali
era sua vida, ali era sua esperança. (Milton)
viii
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS.................................................................................................................x
RESUMO...................................................................................................................................xi
ABSTRACT..............................................................................................................................xii
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................01
1. A TRAJETÓRIA DA PESQUISA........................................................................................06
1.1
Os primeiros contatos com o campo..........................................................................06
1.1 Retorno ao campo de pesquisa..................................................................................21
12. Os detalhes técnicos da pesquisa...............................................................................28
2.CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO MST: UM ENFOQUE
PSICOPOLÍTICO.....................................................................................................................35
2.1. Algumas nuances da questão agrária a partir da década de 60: solo fértil para a
ascensão de um grande Movimento.................................................................................36
2.2. “Terra para quem nela trabalha e vive”: os primeiros passos na construção e
consolidação do MST......................................................................................................47
2.3. “Chegou uma hora que não dava mais, daí nós resolvemo vim pra acampar”: o
início do processo de adesão ao MST.............................................................................52
2.4. Frente de Massa: a porta de entrada para o MST.....................................................54
2.5. Ocupação: um processo político e pedagógico.........................................................55
2.6. “Esse negócio de barraco até os cabelo branqueou”: a vida debaixo da lona
preta.................................................................................................................................59
2.7. “Faço questão de ser conhecido como Milton Sem Terra”: o processo de
constituição de uma identidade política...........................................................................65
2.7.1 Discutindo o conceito de identidade.............................................................65
2.7.2 A simbologia e mística na construção da identidade sem terra....................70
2.8. “Não tem dinheiro que pague a conquista de uma terra”: enfim o
assentamento....................................................................................................................76
2.8.1.Os vínculos com a terra e pátria na expressão gráfica das crianças..............80
ix
3. A QUESTÃO AGRÁRIA NO PARANÁ E O DESENVOLVIMENTO DO MST.............85
3.1 Alguns aspectos sobre a questão agrária no Paraná nas décadas de 60 e 70: uma
breve contextualização....................................................................................................85
3.2. As lutas que precederam a formação do MST no Paraná.........................................89
3.3. Sem terra e sem pátria: o caso dos brasiguaios........................................................96
3.4. As lutas nos campos paranaenses a partir da década de 90....................................103
3.5. A instrumentalização do Estado pelas elites fundiárias: uma operação de horror em
curso...............................................................................................................................107
4. A VIOLÊNCIA...................................................................................................................113
4.1 A metodologia da violência.....................................................................................113
4.2. A violência institucional como método para lidar com a miséria social................120
4.3. “Elas pensava que nós não tinha gênero de pessoa”: a tentativa de desumanizar
para criminalizar............................................................................................................129
4.4. A violência sofrida..................................................................................................136
4.4.1. Despejo da Fazenda Novo Horizonte.........................................................136
4.4.2. Despejo da Fazenda Cobrinco/Figueira.....................................................140
4.4.3. Despejo da Fazenda Santa Filomena..........................................................149
4.4.4. Despejo da Fazenda Cachoeira..................................................................152
4.4.5. Despejo da Fazenda Jacutinga...................................................................154
4.5. A chegada no assentamento Dom Hélder
Câmara....................................................157
4.6. O coletivo como fonte de amparo e força de vida..................................................167
4.6.1 A (re)construção de uma cultura de solidariedade e resistência.................175
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................184
6. REFERÊNCIAS..................................................................................................................192
x
LISTA DE FIGURAS
Mapa ......................................................................................................................................9
Quadro I: entrevistados em 2005..........................................................................................31
Quadro II: entrevistados em 2002/2003................................................................................33
Foto 01: vista parcial (oeste) do centro do acampamento....................................................12
Foto 02: vista parcial (leste) do centro do acampamento.....................................................12
Foto 03: vista parcial (norte) do acampamento....................................................................13
Foto 04: em sala de aula.......................................................................................................15
Foto 05: brincando na frente de escola.................................................................................15
Foto 06: atividade em sala de aula.......................................................................................16
Foto 07: atividade com os jovens........................................................................................18
Foto 08: atividade com as mulheres I..................................................................................18
Foto 09: atividade com as mulheres II.................................................................................19
Foto 10: cerco policial........................................................................................................118
Foto 11: campo arrasado....................................................................................................118
Foto 12: despejo nas madrugadas de inverno.....................................................................119
Foto 13: ação de grupos de elite da polícia........................................................................119
Foto 14: placa de inauguração do assentamento.................................................................164
Foto 15: pedra de identificação na entrada do lote.............................................................164
Foto 16: enfim, a casa.........................................................................................................165
Foto 17: a produção “em cima do lote”.............................................................................165
Foto 18: criação de porcos “em cima do lote”...................................................................166
Foto 19: ninho das galinhas “em cima do lote”.................................................................166
Desenho 01: o vínculo com a terra e o MST na expressão gráfica de Henrique..................81
Desenho 02: o vínculo com a terra: entre o velho e novo na expressão gráfica de Guilherme
...............................................................................................................................................82
Desenho 03: o vínculo com a pátria e o lar na expressão gráfica de Laura.........................83
Desenho 04: o vínculo com a pátria e o lar na expressão gráfica de Débora.......................84
Desenho 05: um pouco brasileiro, um pouco paraguaio.....................................................102
xi
RODRIGUES, Adriana. A violência institucional como método para lidar com a miséria
social: a trajetória dos/as sem terra do assentamento Dom Hélder Câmara/PR, no difícil
percurso de luta até chegar “em cima do lote”. Florianópolis, 2006. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) – Curso de Pós Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientadora: Mara Coelho de Souza Lago
Defesa: 21/03/06
RESUMO
Esta dissertação traz a narrativa de alguns membros de uma comunidade sem terra sobre as
violências sofridas, durante a maior onda de repressão organizada contra o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Paraná. Estas violências cometidas na maioria das
vezes pelo aparato repressivo do Estado, que guardava relações de cumplicidade com as
violências cometidas também pelas milícias privadas, se concretizaram no período de 1998 a
2000, sob os auspícios do governador Jaime Lerner. Neste período foi desencadeada uma
operação de guerra para a realização de dezenas de reintegrações de posse, contando com um
modus operandi, que em sua execução violava uma série de direitos humanos. A discussão aqui
apresentada foi desenvolvida numa perspectiva psicopolítica e interdisciplinar, que buscou
contextualizar a trajetória da luta pela terra no Brasil e no Paraná, com enfoque especial sobre o
final da década de 90, momento em que se intensificou a escalada de violência contra os
agricultores sem terra neste Estado. A partir deste contexto, iniciou-se um diálogo entre os
conceitos de violência de Estado em seus desdobramentos e a criminalização do MST, em
interface com a psicanálise freudiana em seus conceitos de narcisismo das pequenas diferenças,
amor, amparo e sentimento de culpa. Essas discussões foram realizadas a partir da fala de
homens, mulheres, jovens e crianças sem terra, acerca das lembranças, vivências e significações,
desses episódios marcados por dor e sofrimento. Foram trazidas também algumas questões
relativas ao vínculo destes trabalhadores com o MST, um grupo político fortemente marcado por
valores e ideais coletivos. O fato de pertencerem a uma comunidade onde puderam trocar
experiências em nível psicopolítico com seus companheiros de infortúnio, colocou-os numa
situação ímpar, que possibilitou canalizar de formas diferenciadas sentimentos como
culpabilidade e agressividade, direcionando-os em favor da vida.
Palavras-chave: MST no Paraná; Violação de Direitos Humanos; Subjetividade.
xii
ABSTRACT
This dissertation introduces a narrative of some members of a landless workers community about
the violence they were submitted during the greatest wave of repression organized against the
Landless Workers Movement (MST) in Paraná state. Those violences, undertaken most of times
by the State repressive forces, who have carried on relations of complicity with the violences
undertaken also by private militias, had been taking place from 1998 to 2000, under the auspices
of governor Jaime Lerner. During that time was put in to work a warfare operation to take effect
dozens of property recoveries, figuring on it a modus operandi that violated a number of human
rights. The discussion presented here was developed in a psychopolitical and interdisciplinary
perspective, which sought putting in context the historical course of land struggles in Brazil and
Paraná, with a particular focalization on the end of 90’s, when the violence against the landless
peasants was intensified in the latter. From that context was introduced a discussion on the
concepts of State violence in their outcomes and criminalization of MST, having as interface the
freudian psychoanalysis and its concepts of narcissism of small differences, love, support and
guiltiness. Those discussions were based on the speeches of landless men, women, youth and
children about the memories, lived experiences and meanings from those episodes marked with
pain and suffering. It were also introduced some topics related to the bond of those workers with
MST, a political group strongly connected to collective values and ideals. The fact of those
people have been living in a community where they could exchange experiences at a
psychopolitical level with their partners in misfortune, have situate them in an unpaired position,
which have enabled to channel different forms of feelings, such as guiltiness and aggressiveness,
directing them for the benefit of life.
Key-words: MST in Paraná; Violation of Human Rights; Subjectivity.
INTRODUÇÃO
A violência e a violação de direitos humanos têm sido constantes nos campos
brasileiros. Problemas que atravessam os cinco séculos de história, sem que se consiga aplicar
uma política agrária que ataque às raízes destes conflitos, vale dizer, a concentração fundiária.
O conflito fundamental é derivado do modo como se estruturou a propriedade privada da terra
historicamente no Brasil. Dessa estrutura fundiária emergem os conflitos entre grandes
proprietários e os não proprietários.
As lutas pela terra em nosso país, se iniciam com os nativos organizados nas
reduções jesuíticas, com os quilombos, passam pela Guerra de Canudos, na Bahia, a Guerra
do Contestado em Santa Catarina, o conflito em Porecatu no Paraná, as Ligas Camponesas no
Nordeste, entre tantos outros movimentos sociais de luta no campo. Na segunda metade da
década de 1980 é formado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e nos
anos subseqüentes outros vários movimentos com bandeiras semelhantes, voltadas para a
redistribuição da terra, foram surgindo.
Um histórico de lutas que revela o nível de expropriação (Martins, 1980, p.20), ao
qual grande parcela dos camponeses brasileiros são submetidos cotidianamente. O conflito
surge como opção de resistência na luta pela sobrevivência, travada num contexto em que “a
terra vale ouro e os seres humanos, alguns gramas de chumbo moldados em balas que fazem
sangrar o destino do nosso povo sofredor” (Bogo, s.d.). Em outros termos, essa foi a
argumentação de Chico Alonso, uma das lideranças da Guerra do Contestado, que em um
bilhete relatou os motivos que os levaram a incendiar a maior serraria do mundo na época,
instalada nessa região, a Lumber Corporation:
Nós tratava de nossas devoções e nem matava nem roubava, mas veio o
governo da República e tocou os filho brasilêro dos terrenos que pertencia à
Nação e vendeu tudo para os estrangeiro. Nós agora estamos dispostos a
fazer prevalecer nossos direitos...(In: Derengoski, 1986, p.66).
2
Mesmo com intensos conflitos centenários pela distribuição das terras improdutivas,
o Brasil ocupa ainda o triste segundo lugar no ranking mundial da concentração fundiária,
perdendo apenas para o país vizinho, o Paraguai (onde o latifúndio detém 46% de todas as
terras agricultáveis). Em 2000, essa política agrária permitia que se mantivesse 44%,
praticamente metade das terras agricultáveis do país, nas mãos de 1% de latifundiários
(Barros, 2000, p.7),
Brasil é gordo de terras. São 600 milhões de terras agricultáveis. Arguto,
Pero Vaz de Caminha logo atinou que, aqui, “em se plantando, dá”. Muitos
ainda não entenderam o recado. Preferem o “em se cercando, ninguém
tasca”. Há muita terra neste país para pouca gente. Basta dizer que 44%
pertencem a apenas 1% dos proprietários rurais. E há muita gente sem-terra.
São cerca de 15 milhões deambulando por estradas e acampamentos,
teimando em sonhar que, entre tanta terra ociosa, hão de encontrar o pedaço
de chão que os redima da indigência e do risco de favelização na cidade.
Este país nunca conheceu uma reforma agrária (Betto, 2004, p.45).
No palco destes conflitos de luta pela terra, o Paraná encenou um teatro de guerra
entre os anos de 1998 e 2000. Nesse período ocorreu a maior onda de repressão organizada
contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Paraná, efetuada pelo
aparato repressivo do Estado, que guardava relações de cumplicidade com as violências
cometidas também pelas milícias privadas. Jelson Oliveira (2004), secretário-executivo da
Comissão Pastoral da Terra no Paraná, expõe em números a dimensão da intensa repressão ao
MST neste período,
sob repressão do governo de Jaime Lerner, responsável por uma onda de
violência que deixou 16 pessoas assassinadas, 31 vítimas de atentados, 47
ameaçadas de morte, 7 vítimas de tortura, 324 feridas, 488 presas em 134
ações violentas de despejo que espalharam terror por todo o Paraná.
(Oliveira, 2004, p. 57)
Nas ações de reintegração de posse realizadas pela polícia militar, crianças, mulheres e
homens tiveram seu sangue derramado na terra pela qual lutavam, em conseqüência de um
modus operandi, ou uma metodologia, que contava com treinamentos e armamentos
3
especiais, que em sua execução violava uma série de direitos humanos e transformava os
acampamentos em praças de guerra.
Com um efetivo de aproximadamente 2.000 policiais, entre eles grupos militares de
“elite” – ou seja, com treinamentos específicos para ações envolvendo situação de extremo
perigo – com “carros equipados, cães treinados, helicópteros, mais de 100 viaturas, cerca de
30 ônibus e ambulâncias, fuzis, armas automáticas e bombas de gás lacrimogêneo foram
realizados 12 despejos na região noroeste em poucos dias” (Morissawa, 2001, p.178).
De acordo com os relatos, o mais violento foi o da Fazenda Cobrinco, no dia 25 de
fevereiro de 2000, no município de Guairaçá, região noroeste do Paraná, que ficou
internacionalmente conhecido como um dos maiores casos de violação de direitos humanos
no campo, onde o governo do Estado montou uma operação de guerra para a retirada das
famílias da área ocupada.
Em 2002, em virtude destas violências sofridas, fui convidada pelo setor de direitos
humanos do MST no Paraná, para realizar um trabalho como psicóloga em um dos
assentamentos que reunia um grande número de famílias que haviam passado por vários
processos violentos de reintegração de posse, trazendo em sua bagagem histórias de dor,
humilhações, torturas, violações e violências nas suas mais diversas faces. No convívio com
estas famílias e nos relatos que faziam acerca destas experiências, despertou-me atenção o
alto nível de violência empregado pelo aparato militar do Estado, bem como pelas milícias
privadas nestas operações de despejo. Passei a me ocupar destas questões, buscando
compreender os recursos utilizados por estas famílias para lidar com a violência sofrida.
Durante aproximadamente um ano, dedicava alguns dias no mês para este trabalho de
intervenção psicossocial com grupos de mulheres, jovens e famílias.
Em seus relatos sobre os despejos, descreviam as cenas de tortura física e psicológica,
as situações de humilhação a que foram submetidos e, sobretudo, o desrespeito à sua condição
de trabalhadores rurais e seres humanos. Demonstravam um sentimento de revolta que se
misturava ao sentimento de vitória por conseguirem passar por todo esse processo e
finalmente conquistarem o seu pedaço de terra. Realizei esse trabalho como psicóloga até
2003, e em 2004 retomei estas questões já como pesquisadora do programa de mestrado em
psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
4
Em 2005 retornei ao assentamento Dom Hélder Câmara, localizado no município de
São Jerônimo da Serra, região norte do Paraná, movida pelos relatos dos sujeitos sem terra
acerca da violência sofrida durantes estes processos de reintegração de posse. Entrevistei
mulheres, homens, jovens e crianças, pertencentes a três diferentes gerações, na tentativa de
alcançar alguma compreensão acerca das formas pelas quais estes sujeitos sem terra
significaram, ou significam, as experiências de violação dos direitos humanos, nos
processos de reintegrão de posse pelos quais passaram. Outro objetivo desta pesquisa
consistiu em ampliar as discussões empírico/científicas acerca da criminalização dos
movimentos sociais, especificamente o MST e de possíveis violências daí decorridas.
A elaboração deste material resultou em um trabalho estruturado em quatro capítulos.
No primeiro, apresento minha trajetória nesta pesquisa, passando pelas vivências com esta
comunidade sem terra que me motivaram a retomar o trabalho como pesquisa acadêmica. Este
capítulo traz também uma discussão acerca do método de pesquisa utilizado, entre outros
elementos constitutivos do trabalho de campo.
No segundo capítulo, apresento alguns aspectos da modernização agrária no Brasil a
partir de 1960, entendendo estes períodos como importantes impulsionadores da formação do
MST, ocorrida na primeira metade da década de 80. Trabalho numa dimensão psicopolítica, a
constituição do MST, com sua metodologia pautada na ocupação, acampamento, mística e
assentamento. Ao abordar estes temas, a tentativa é a de clarificar alguns elementos acerca do
sentimento de pertencimento e consciência política que o movimento proporciona.
No terceiro capítulo, trabalho a problemática da terra no Estado do Paraná, passando
pelo declínio da produção cafeeira, os conflitos de Porecatu e do Sudoeste, a construção da
usina hidrelétrica de Itaipu que desalojou milhares de famílias, as famílias que rumaram para
o Paraguai em busca de terra e trabalho, o surgimento do MST no Paraná, os conflitos que se
intensificaram em função de uma atrasada oligarquia rural que, no final da década de 90,
uniu-se ao governo estadual para iniciar as operações de horror contra as famílias sem terra.
No quarto capítulo da dissertação, trabalho com os conceitos de violência de Estado
em seus desdobramentos. Analiso algumas das falas destes sujeitos sem terra a respeito da
criminalização da qual são alvo, destacando o papel dos meios de comunicação de massa que,
instrumentalizados pelas elites fundiárias e pelos governos, tentavam legitimar junto à
população a necessidade dos ataques a estes agricultores marginalizados. No tópico seguinte,
5
a violência sofrida, trabalho os relatos desses sujeitos acerca dos despejos, da forma como
vivenciaram e significaram estas experiências de horror. Em seguida descrevo a chegada
destas famílias no assentamento Dom Hélder Câmara, processo também marcado por
sofrimento. E ao fim, falo sobre a dimensão do coletivo como fonte de amparo e
solidariedade, trabalhando numa interface com a psicanálise freudiana, em seus conceitos de
narcisismo das pequenas diferenças, amor, amparo e sentimento de culpa. Nestas análises,
destaco a convivência em um grupo político com ideais e valores tão fortemente marcados,
como um elemento significativo no processo de elaboração da violência sofrida.
Neste contexto, entendo que a contribuição desta pesquisa caminha no sentido de
trazer estes sem terra para além das cercas dos acampamentos e assentamentos, vale dizer,
trazer um pouco de suas narrativas sobre estes episódios de violência e criminalizaçao, dos
sentimentos, dos pensamentos, dos desejos e sonhos de uma dessas comunidades, que a
maioria de nós conhece apenas através dos canais midiáticos – e estes, em sua quase
totalidade, trazem a realidade filtrada e adaptada ao status quo das conveniências sociais
vigentes. Tentei desenvolver nas páginas que seguem, um pouco da “história negada”
(Caniato, 1995), da “história marginal” (Coimbra, 2001), com a intenção de contribuir para
que as memórias de sofrimento e resistência na luta pela preservação da vida não sejam
apagadas.
Essa ‘história marginal’ é forjada pelos diferentes grupos e movimentos
sociais nas suas lutas, no seu cotidiano, nas suas resistências e teimosia –
muitas vezes subterrâneas e invisíveis – em produzir outras maneiras de ser,
de viver, outras sensibilidades e percepções, outras formas de existir. Estas,
por sua vez, são abertamente desqualificadas ou simplesmente ignoradas
pelas visões dominantes. A memória histórica “oficial” tem sido
produzida pelos diferentes equipamentos sociais no sentido de apagar os
vestígios que as classes populares e os opositores vão deixando ao longo
de suas experiências de resistência e luta num esforço contínuo de
exclusão dessas forças sociais como sujeitos que forjaram e estão forjando
também uma outra história, nunca narrada oficialmente. (Coimbra, 2001, p.
51, grifos meus).
6
1. A TRAJETÓRIA DA PESQUISA
Este primeiro capítulo conta um pouco da trajetória da pesquisadora desde os
primeiros contatos com os sujeitos da pesquisa em 2002, até a retomada deste contato em
2005, já com o objetivo específico de desenvolver o trabalho de mestrado. Além disso, traz
uma discussão sobre o método escolhido e a forma com foi realizada a pesquisa.
1.1. Os primeiros contatos com o campo
Os caminhos que conduzem à escolha de um objeto de pesquisa são, na maioria das
vezes, marcados por vias de objetividade e subjetividade, que ora se aproximam e se
confundem, ora se distanciam, dando-nos a clareza necessária para a realização da pesquisa.
Os temas que nos instigam, as causas que nos mobilizam, as descobertas que pretendemos,
vão delineando um percurso fortemente marcado pela subjetividade. Feita a escolha, inicia-se
um longo e, por vezes, doloroso trajeto que busca colocar o que é da ordem do desejo no
campo da ciência.
Comigo não foi diferente. Desde muito cedo minhas áreas de interesse foram
inicialmente se direcionando para o envolvimento em projetos de atendimento à comunidade.
Depois, já no final da adolescência, passaram pela política, pela psicologia e, mais tarde, pela
psicanálise freudiana e pelo materialismo histórico dialético. Numa trajetória muito marcada
por uma proposta de ruptura com o status quo, dediquei-me à intervenção no Movimento
Estudantil durante o período da graduação. Foi deste local, acadêmico e político, que surgiram
os primeiros contatos com o que viria a ser o meu campo de pesquisa. Neste cenário, conheci
alguns dos professores da Universidade Estadual de Maringá ligados ao Programa Nacional
de Educação na Reforma Agrária, o PRONERA. Por meio deles, conheci também alguns
alunos que faziam parte do projeto, além de militantes e lideranças do MST.
Ao concluir a graduação e me desvincular do Movimento Estudantil, passei a
participar das atividades do Movimento Nacional de Direitos Humanos, o MNDH. Uma das
7
professoras
1
que integrava o PRONERA também fazia parte do MNDH e quando foi
reestruturado pelo setor de Direitos Humanos do MST, o “Projeto de Apoio às Vítimas da
Violência no Campo no Estado do Paraná
”2
, ela fez a ponte entre estes dois Movimentos e me
indicou para compor a equipe multidisciplinar que iria executar o projeto. O convite era para
que eu integrasse, como psicóloga, uma equipe que era formada por mais uma psicóloga, duas
pedagogas, um advogado, estudantes de direito e militantes do MST. Fiquei muito
entusiasmada com a proposta. Era um Projeto único no Brasil e me colocava a oportunidade
de trabalhar numa dimensão psicopolítica realizando um desejo antigo, o de conhecer in loco
a realidade de alguns dos indivíduos que compunham o grande coletivo chamado MST.
Diante disso e num misto de euforia e ansiedade por imaginar as dificuldades que encontraria,
aceitei o convite.
Esse era o segundo ano do Projeto e ele agora ganhava outras nuances. No primeiro
ano, a equipe era mais reduzida, contava com uma psicóloga, um advogado e alguns
militantes e estudantes de direito. O trabalho de apoio psicológico e jurídico era direcionado a
famílias que haviam perdido algum de seus membros em conflitos com a polícia ou com
milícias privadas
3
. Na segunda etapa, o Projeto previa a continuidade do trabalho com estas
famílias e a ampliação, incluindo o atendimento ao assentamento Dom Hélder Câmara,
município de São Jerônimo da Serra, na região norte do Paraná.
A decisão de incluir este assentamento no Projeto, ocorreu em virtude da constatação
de que nele se reunia grande parte das famílias vítimas da onda de repressão e violação dos
direitos humanos aos trabalhadores do campo ligados ao MST, sobretudo entre os anos de
1998 a 2000, período que deixou uma triste marca na história recente do Estado do Paraná.
Vitimizadas por esse processo de violência implementado pelo aparato repressivo do Estado e
por milícias armadas nas ações de reintegração de posse
4
, estas famílias traziam em sua
1
Professora Maria Aparecida Cecílio (Departamento de Teoria e Prática da Educação – Universidade Estadual
de Maringá).
2
A fim de ser menos repetitiva, doravante passo a me referir ao “Projeto de apoio às vítimas da violência no
campo no Estado do Paraná”, apenas como “Projeto”, com a inicial em letra maiúscula.
3
As “milícias privadas” são entendidas aqui como grupos contratados por fazendeiros para defender suas
propriedades através do uso intensivo de armas de fogo. São o que popularmente se denomina “jagunços” ou
“pistoleiros”.
4
Reintegração de posse, para o código de processo civil brasileiro, é a ação que o possuidor de um bem pode
mover para recuperar a posse perdida, em virtude de esbulho. O termo “despejo” é definição popular desta ação.
Cf. art. 926, do código de processo civil. BRASIL. Código de processo civil. Organizadores Manoel Augusto
Vieira Neto e Juarez de Oliveira. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
8
bagagem um histórico marcado por toda a sorte de humilhações, violência física, medos e
traumas.
A área que se tornou o assentamento Dom Hélder Câmara era uma grande fazenda
que estava submersa em dívidas com a União e com particulares, fato que levou o proprietário
a aceitar a proposta de compra das terras, feita pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária - INCRA. Quando as famílias sem terra chegaram, a área estava em
processo de legalização, sem os riscos de novas reintegrações de posse. Estas famílias vieram
de diferentes regiões do Estado, sendo priorizadas aquelas que apresentavam um histórico de
sofrimento mais intenso devido aos vários e violentos processos de despejo. Segundo o relato
de um dos coordenadores do MST na região, o processo de composição do assentamento
ocorreu da seguinte maneira:
Quando saiu a imissão
5
de posse da fazenda Terplan, que hoje é
assentamento Dom Hélder, foi feito uma reunião a nível de Estado, e foi
feito um acordo de quais seriam as famílias que viriam pra cá e foi
distribuído em números. Veio do município de Sapopema 10 famílias
despejadas da fazenda Cachoeira. Vieram do município de Bela Vista, 27
famílias despejadas da fazenda Jacutinga. Vieram de Paranacity, 15
famílias despejadas da fazenda São Luis em Colorado. Vieram de Terra
Rica, 10 famílias despejadas da fazenda El. Vieram de Guairaçá, 62
família despejadas da fazenda Cobrinco. Vieram de Querência do Norte,
10 família despejadas da fazenda Rio Novo. Então, em 2003 foi feito sorteio
dos lotes, hoje o assentamento conta com 123 famílias, as quais tão hoje em
processo de construção da habitação, e instalação da energia, e as famílias
acabaram de pegar o seu recurso de investimento
6
. (Milton, 27 anos).
5
“Imissão na posse” é o nome de uma ação jurídica possessória que tem por finalidade imitir na posse o seu
detentor legítimo. O vocábulo imissão, segundo o dicionário Aurélio (Ferreira, 1986), é o “ato ou efeito de
imitir”, que significa “fazer entrar; por para dentro”. Não deve ser confundido com o vocábulo “emissão” que é,
segundo o mesmo dicionário, a “ação de emitir ou expelir de si; pôr em circulação”.
6
Esse relato é parte de uma das entrevistas que coletei na segunda etapa do trabalho de pesquisa. Ao longo do
trabalho, as falas dos sujeitos serão destacadas em itálico e negrito.
9
10
Ao fim o assentamento ficou composto por 123 famílias, muito sofridas e
miserabilizadas. Foi exatamente este assentamento e esta realidade, que me foram destinadas
como campo principal de intervenção
7
. Sem nunca ter entrado antes num acampamento ou
assentamento do MST, lá fui eu, cheia de expectativas e angústias e com uma visão bastante
idealizada da realidade que me esperava. Em companhia da minha colega de trabalho, que
além de pedagoga era militante do MST e conhecia grande parte das famílias, fiz minha
primeira visita ao campo, em novembro de 2002. Por estar em companhia de uma militante do
Movimento e com uma tarefa delegada pela coordenação estadual, as portas se abriram com
mais facilidade e fui muito bem recebida. Foi uma importante resposta aos sentimentos de
ansiedade e insegurança, próprios do primeiro contato.
As demonstrações de acolhimento com as quais fui recebida, não conseguiram
amenizar completamente o impacto que tive ao adentrar o universo daquelas famílias, vivendo
na época em condições precárias. Não que eu desconhecesse a história da luta pela terra e as
condições de vida dos trabalhadores rurais ligados ao MST – que via de regra têm sua
trajetória marcada por processos de expropriação e empobrecimento material, intensificados
ao longo das últimas décadas pelas transformações econômicas no campo – porém, conhecia-
os ainda no plano “teórico-intelectual”, no plano da idealização, das bandeiras vermelhas
tremulando nas marchas extensas e bem organizadas, das passeatas, dos atos políticos, dos
sem terra militantes que freqüentavam a universidade, das revistas, dos livros. Eram para mim
até então, “de papel”, tal como “os índios de papel”, sobre os quais fala o antropólogo
Roberto Da Mata, numa referência ao momento que antecede o contato com o universo destas
pessoas reais – “de carne e osso”.
Na fase teórico-intelectual, as aldeias são diagramas, os matrimônios se
resolvem em desenhos geométricos perfeitamente simétricos e equilibrados,
a patronagem e a clientela política aparecem em regras ordenadas, a própria
espoliação passa a seguir leis e os índios são de papel. Nunca ou muito
raramente se pensa em coisas específicas, que dizem respeito à minha
experiência, quando o conhecimento é permeabilizado por cheiros, cores,
dores e amores. Perdas, ansiedades e medos, todos esses intrusos que os
livros, sobretudo os famigerados “manuais” das Ciências Sociais teimam por
ignorar. (Da Mata, 1978, p. 24).
7
Mais tarde assumi o trabalho com duas outras famílias, em assentamentos dos municípios de Mariluz e
Palmital, também no Estado do Paraná, que em confronto com as milícias armadas, haviam perdido,
respectivamente, o marido e um filho. Ainda assim, continuei dedicando um tempo maior ao trabalho no
assentamento Dom Hélder Câmara.
11
Para sair da idealização e encontrar os “nativos de carne e osso”, percorri um
caminho de aproximadamente 240 quilômetros. Uma distância relativamente curta, porém um
longo trajeto entre embarque em Maringá; espera; baldeação em Londrina; desembarque em
São Jerônimo da Serra; nova espera e muita “sorte” para conseguir uma carona até o distrito
de Terra Nova e de lá, até o assentamento.
O pequeno município de São Jerônimo da Serra abriga uma população de
aproximadamente 11.000 habitantes
8
, residentes nas áreas urbana e rural. A cidade, como o
próprio nome revela, fica numa região de serra, cercada por morros, reservas indígenas,
fazendas, sítios e nove assentamentos do MST. Uma paisagem diferente do cotidiano urbano
no qual sempre vivi. Dentre as montanhas e os rios, chamava atenção uma cachoeira enorme,
que de longe parecia um filete branco em meio a uma montanha verde, um verdadeiro cartão
postal. Ao elogiar a beleza do local, o senhor que estava guiando e carro e gentilmente nos
dava carona, explicou que a cachoeira tinha aproximadamente 200 metros e que a prefeitura
tinha a intenção de transformar a região em local de turismo ecológico. Ele parecia bastante
simpático à idéia. Este cenário deslumbrante amenizava os solavancos da viagem pela estrada
de terra precária que ligava o município ao assentamento. Ainda assim, não conseguia
amenizar a ansiedade causada pelas expectativas da chegada, o que fez com que um trajeto de
menos de 40 quilômetros parecesse interminável.
Finalmente, minha colega avisou que estávamos entrando na área do assentamento,
mas ainda não conseguia ver nada que identificasse o local. Passados alguns metros entramos
numa região mais alta e então avistei vários barracos de lona preta circundando um grande
galpão de telhado de zinco (mais tarde soube que se tratava do cilo, local destinado ao
armazenamento dos grãos e do maquinário quando a fazenda ainda era Terplan, e que no
assentamento era o local utilizado como centro de convivência comunitária). Na medida em
que o carro ia entrando, algumas crianças e adultos saíam para ver do que se tratava e, ao
perceberem que o carro era conhecido pois o senhor que nos deu carona era assentado ali, os
adultos foram se tranqüilizando e retomando suas atividades. As crianças seguiram o carro até
o local onde ficamos, uma casa de alvenaria que tinha sido do administrador da fazenda e,
mesmo sendo a melhor construção do local, ainda mantinha o aspecto de uma casa
abandonada. Os assentados a utilizavam apenas para reuniões e encontros.
8
Dados obtidos em 2005.
12
Fonte: acervo pessoal. Foto 01: vista parcial (oeste) do centro do acampamento.
Fonte: acervo pessoal. Foto 02: vista parcial (leste) do centro do acampamento.
13
Fonte: acervo pessoal. Foto 03: vista parcial (norte) do acampamento.
Logo que descemos do carro e começamos a guardar as bagagens, as crianças e
vizinhos mais próximos foram chegando na varanda da casa, ainda um pouco receosos, até
que reconheceram minha colega. As crianças ficaram eufóricas com a presença dela,
conhecida em vários assentamentos do Estado pelo trabalho com o Projeto Político
Pedagógico do Movimento. A notícia da nossa presença correu rápido entre os barracos e em
poucos instantes eu estava sendo apresentada para as pessoas que foram se concentrando aos
arredores da casa, como a psicóloga do Projeto. Teve início então a dinâmica da convivência
com os assentados. Receptivos e livres dos comportamentos mais formais utilizados via de
regra nos primeiros encontros, eles me tratavam como companheira de longa data e aliada na
superação das dificuldades enfrentadas em seu dia-dia. Este comportamento, apresentado pela
maioria das pessoas com as quais conversava me permitiu maior flexibilidade para trafegar
nesse novo espaço. Oscilando entre sentimentos de receio e curiosidade, fui vencida por este
último e, aos poucos, as resistências, minhas e deles, foram se rompendo e o sentimento de
familiaridade despontando. Estava iniciado o processo de “transformar o exótico em familiar”
(Da Mata, 1978).
Em meio a inúmeras incertezas em relação à minha intervenção como psicóloga, uma
certeza se construía: a partir daquele momento ficava para trás toda a idealização que nutria
em relação ao MST e começava a adentrar a realidade dos integrantes daquela comunidade
sem terra. Esse choque entre ideal e real, não se deu numa escala de valores entre melhor e
pior, mas apenas no sentido de me fazer entender que no plano ideal as coisas acontecem de
forma sincronizada, bonita e organizada, numa dinâmica em que todas estas qualidades se
14
encaixam perfeitamente aos nossos desejos. No plano do real, as coisas são como são, sem
efeitos especiais, sem trilha sonora, sem o colorido e alegria dos dias de festas, sem uma
“conspiração natural” para atender a nossas expectativas e desejos, deixando espaço para
evidenciar-se a beleza do cotidiano sofrido e esperançoso daqueles sujeitos, uma beleza
singela e real.
Na primeira visita o objetivo era o de conhecer o assentamento, ouvir as famílias, as
professoras da escola, observar a dinâmica das atividades lá realizadas, a fim de traçar um
projeto de intervenção. Na fala de mulheres e jovens evidenciava-se a insatisfação pela falta
de atividades de lazer e de reuniões que atendessem outros motivos, além dos estritamente
políticos ou religiosos.
Nas primeiras observações, foi possível perceber na escola um outro ponto
nevrálgico do assentamento. A escola funcionava em três casas de madeira muito velhas, num
ambiente escuro, sendo que as janelas eram poucas e ainda de madeira, o que dificultava a
entrada de luz. O chão e as paredes repletos de buracos compunham uma estrutura física que
não contribuía muito para o processo de ensino e aprendizagem.
O material e a merenda escolar eram motivo de conflitos entre assentados e
prefeitura, que os enviava depois de muita solicitação, protestos e até ocupação da prefeitura.
Boa parte das crianças com 10, 11 anos de idade, não tinham conseguido concluir um ano
letivo sequer em virtude de tantas mudanças de localidade até chegarem ao assentamento. Em
decorrência disso, apresentavam muitas dificuldades de aprendizagem e até de coordenação
motora.
15
Fonte: acervo pessoal. Foto 04: crianças em sala de aula.
Fonte: acervo pessoal. Foto 05: crianças brincando na frente da escola.
16
Fonte: acervo pessoal. Foto 06: atividade com as crianças em sala de aula.
Diante de tantas demandas, eu e minha colega, organizamos o trabalho em quatro
frentes de intervenção: escola (crianças e professoras); jovens; mulheres e famílias.
A proposta de trabalhar com o assentamento Dom Hélder Câmara, em detrimento de
tantos outros, gerava grandes expectativas entre os que ali estavam assentados. Em princípio,
entendiam que poderíamos intervir diretamente na resolução dos problemas de um projeto de
assentamento, ou seja, um assentamento que ainda era acampamento, uma área regularizada,
porém sem a divisão de lotes e, portanto, sem os recursos do governo federal para o cultivo da
terra, criação dos animais, construção das casas, da escola e do assentamento de forma geral.
Numa realidade objetiva de tanto sofrimento pela privação das condições mais elementares de
moradia, educação e saúde, o trabalho subjetivo se tornava mais desafiador. Contudo, aos
poucos fomos desconstruindo as expectativas de que poderíamos oferecer soluções para
aqueles problemas, e nos colocamos como um ponto de apoio para superação de algumas
dificuldades, inclusive do ponto de vista organizacional.
Aos poucos fui me “familiarizando com o exótico”, com as dificuldades do local. Na
primeira visita, choveu muito no dia marcado para retornarmos e nenhum motorista aceitou
17
o desafio de enfrentar as estradas íngremes, que com a chuva tornavam-se um “sabão”, como
eles nos diziam. Como não podíamos adiar o retorno em virtude de outros compromissos,
colocamos a mochila nas costas e caminhamos por mais de 10 quilômetros descalças – porque
os sapatos não agüentaram por muito tempo – na terra enlameada, até chegarmos no distrito
mais próximo e pagarmos um preço abusivo por uma carona até a cidade.
Assim, como foi difícil entrar naquele universo, conseguir dele sair também não foi
tarefa fácil. E, contrariando minhas expectativas, essas dificuldades não diminuíram com o
passar do tempo. Durante todas as visitas, sofria um pouco com o choque de realidades e com
a adaptação às mesmas. Nos dias que decorriam do meu retorno para casa, não conseguia
desfrutar dos confortos mais elementares - como uma cama com colchão macio, uma
geladeira com frutas e guloseimas, um banho num chuveiro quente - sem antes pensar nas
dificuldades e privações que havia vivenciado com aquelas famílias nos dias anteriores. Para
lidar com esses sentimentos, inconscientemente optava pela somatização, o que fazia com o
que os meus dias de folga fossem preenchidos por um tour nada agradável, aos consultórios
médicos.
Mesmo com todas estas dificuldades, no mês seguinte estávamos lá, eu e a pedagoga
minha colega de trabalho. Iniciamos o trabalho com o grupo de jovens e também com o grupo
de mulheres. Utilizamos a mesma metodologia com os dois grupos. Nos primeiros encontros
os grupos escolheram assuntos de seu interesse para serem trabalhados nos encontros
temáticos que realizaríamos mensalmente. Enquanto os jovens escolheram temas como teatro,
drogas, sexualidade, gênero, dança e música, as mulheres escolheram temas como saúde da
mulher, convivência em comunidade, gênero, auto-estima e orientação na educação das
crianças e adolescentes. Dentro das nossas limitações, e numa perspectiva de troca de saberes,
trabalhamos um a um os temas solicitados.
18
Fonte: acervo pessoal. Foto 07: atividade com os jovens.
Fonte: acervo pessoal. Foto 08: atividade com as mulheres.
19
Fonte: acervo pessoal. Foto 09: atividade com as mulheres.
Em relação à escola e às famílias, fez-se necessário dividirmos as responsabilidades
imediatas na intervenção. Por uma questão de identificação teórica e temática, fiquei
responsável pela atuação junto às famílias – contribuindo também em atividades com as
crianças. Na época, 2002, o assentamento era composto por 126 famílias. Percebi que seria
impossível conhecê-las e reservar um tempo para ouvi-las em atividades coletivas. Decidi
então, em um primeiro momento, visitar estas famílias em seus barracos, para que me
contassem um pouco da sua trajetória desde antes de se integrarem ao MST, passando pela
vida atual num assentamento do MST e as perspectivas para o futuro. Entendia que esse
trabalho de entrevistas seria um bom instrumento para me aproximar das famílias, conhecê-las
melhor e alcançar uma dimensão mais exata da problemática ali colocada, a fim de melhor
orientar a intervenção.
As experiências das visitas e entrevistas com as famílias foram além das minhas
expectativas, revelando-se como os momentos mais prazerosos do trabalho. Ouvi-las
relatando suas histórias, suas impressões e conclusões, seus sonhos e esperanças, num
processo em que fortalecíamos os vínculos de confiança e empatia mútuos, era sem dúvida
muito gratificante. As narrativas eram, em sua maioria, bastante emotivas e carregadas com as
20
lembranças de um passado de sofrimento, marcado por agressões físicas e morais e pela perda
dos poucos bens materiais que ficaram pelo caminho. Um passado ainda muito presente em
virtude das condições difíceis que continuavam vivenciando. Entretanto, as expectativas de
futuro em relação a finalmente estarem “em cima do lote”
9
fechavam as narrativas de suas
histórias com uma chave de esperança.
Em dez meses de trabalho consegui conversar com boa parte das famílias,
alcançando o objetivo de ter um histórico do assentamento para, a partir de então, traçar um
plano de intervenção coletiva. Além disto, o setor de Direitos Humanos do MST no Paraná
pretendia preparar um material que contasse a história destas famílias. Porém, o contrato de
subsídios ao Projeto não foi renovado e a partir de setembro de 2003 não conseguimos dar
continuidade ao trabalho, uma vez que a estrutura de deslocamento para os assentamentos, os
encontros para organização dos trabalhos, enfim a estrutura material para a realização do
Projeto se extinguiu.
Durante este período cursei, como aluna especial, uma disciplina do Programa de
Mestrado em Psicologia e Sociedade da Universidade Estadual Paulista em Assis, e trabalhei
alguns excertos das entrevistas, na perspectiva da disciplina “Projeto de modernidade e
constituição do sujeito”. As análises realizadas forneceram elementos que me instigaram a dar
continuidade a esta pesquisa
10
. Assim, no período de setembro a dezembro de 2003, trabalhei
para amadurecer um pouco mais os possíveis caminhos de investigação com estes sujeitos.
Em março de 2004, ao ser aceita para cursar o mestrado no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina, passei a trabalhar juntamente com
minha orientadora, a professora Mara Lago, a proposta de voltar ao campo de pesquisa.
9
Utilizavam com freqüência essa expressão quando se referiam ao futuro, na esperança de que a vida seria
menos sofrida quando estivessem “em cima do lote”.
10
RODRIGUES, Adriana. Uma breve análise do Movimento Sem Terra no contexto da modernidade. Setembro
de 2003. Mimeo.
21
1.2. O retorno ao campo de pesquisa
Construir o retorno ao campo, agora não mais como psicóloga, mas como
pesquisadora na realização de um trabalho acadêmico, como mencionei no início deste
capítulo, colocou-me diante do desafio de trazer para o campo da ciência, experiências,
sentimentos e vivências também da ordem do desejo.
Foram necessários meses de trabalho, relendo as entrevistas realizadas, lendo
pesquisas desenvolvidas em assentamentos do MST, dialogando com autores que realizaram
trabalhos com comunidades semelhantes e com um tempo maior de convívio com elas, além
de longas conversas com a orientadora para colocar cada coisa em seu lugar, isto é, valorizar
o material e a experiência adquiridos na primeira etapa do trabalho, desvinculada da pesquisa
acadêmica. Ao mesmo tempo, retornar ao campo tendo o olhar disciplinado, não mais pela
psicologia clínica, pelo envolvimento com as causas de direitos humanos ou ainda pelas
demandas da coordenação do Projeto no MST, mas por teorias sobre psicologia social,
psicanálise, sociologia, antropologia e política, em suas relações com o tema da pesquisa.
Ao optar por um método de pesquisa, foi necessário levar em consideração toda esta
trajetória. Em decorrência dessa necessidade, aproximei-me do modelo antropológico de
pesquisa, com o qual me identifiquei por encontrar nele a possibilidade de realizar um
trabalho que me permitisse carregar a bagagem que acumulara, sem sentí-la como um peso ou
como um obstáculo mas, ao contrário, podendo incorporá-la. Nesta perspectiva, Lago (1996)
afirma que, “enquanto as correntes científicas das ciências humanas e sociais procuram a
objetividade, a imparcialidade da análise da realidade pelo distanciamento, a abordagem
antropológica está marcada pelo profundo envolvimento do pesquisador com seu objeto de
estudo.” (p. 19).
Levando em consideração que este envolvimento entre pesquisador e sujeito, no meu
caso, estava concretizado, resolvi buscar nesta metodologia instrumentos para melhor lidar
com estas circunstâncias. Definida a opção de utilizar o método etnográfico como inspiração
metodológica para a pesquisa, comecei a preparar de fato o retorno ao campo.
22
A primeira etapa da pesquisa etnográfica, de alguma forma estava cumprida.
Tratava-se da fase “teórico-intelectual”, momento em que, segundo Roberto Da Mata (1978),
os “índios são de papel”. Como relatei, depois de um encontro impactante, essas idealizações
foram desfeitas e os “nativos” saíram do “papel” e se materializaram em “carne e osso”, e
meu conhecimento já estava permeado por “cores, cheiros, dores e amores”. Contudo,
continuei a preparação teórica a fim de visualizar o mesmo cenário sob outras lentes e em
meses de pesquisas em livros, artigos, bases de dados, fui lapidando essas lentes para chegar
ao campo com um olhar mais aguçado.
Passei então para a segunda etapa da pesquisa, ou como define Da Mata, o “período
prático”. É o momento que antecede a ida ao campo, momento em que as coisas
aparentemente menos importantes na fase “teórico-intelectual”, tornam-se agora primordiais.
É a hora de pensar em como chegar até o local, quanto levar de alimento, quais remédios
levar, que tipo de roupas serão necessários, quanto levar de dinheiro para eventualidades e
ainda, quais “miçangas”
11
carregar.
Essa segunda etapa foi de bastante angústia, pois, apesar de ter convivido com eles
durante um período considerável entre os anos de 2002 e 2003, havia perdido o contato com
as famílias. Não tinha notícias, não sabia se as pessoas com as quais eu poderia contar numa
chegada inesperada ainda estavam lá. Não sabia como iriam me receber depois de
praticamente dois anos sem contato e, sobretudo, tinha medo de que não quisessem mais falar
sobre o período de maior sofrimento de suas vidas, justamente quando estavam envolvidos
com um novo momento, assentados e reconstruindo suas bases. Para aumentar a angústia,
tentei contato prévio por telefone através da Secretaria do MST na cidade de São Jerônimo da
Serra, o que não consegui efetivar. Mesmo assim, preparei a bagagem, a alimentação, os
agasalhos, pois tratava-se de um período frio e chuvoso, escolhi umas “miçangas” para os
meus entrevistados e também para outros que não pretendia entrevistar, mas que queria
presentear (como imaginei que estariam num momento de construção das suas casas, escolhi
alguns utensílios para a casa com a qual tanto sonharam) e fui.
Quando estava chegando em Londrina, ainda distante mais de 100 quilômetros do
assentamento, o tempo começou a se preparar para uma tempestade e isso ocasionava uma
série de problemas de ordem prática. Com chuva é praticamente impossível chegar até o
11
Utilizo o termo miçangas, numa referência ao antropólogo Roberto Da Mata que, no texto citado, fala sobre os
objetos de troca que levava a campo a fim de estreitar os vínculos com os nativos. No meu caso as miçangas
tinham, além do sentido de troca, o desejo de presentear.
23
assentamento, teria que pernoitar num único e precário hotel da cidade, o que de pronto me
desagradava. Além disso, estava ansiosa para chegar logo ao assentamento. Felizmente as
nuvens se dissiparam e caiu uma chuva leve, que fez com que o carro rodasse algumas vezes
na estrada de terra, porém nada que causasse maiores problemas e pude chegar ainda no final
da tarde.
As estradas continuavam as mesmas, a promessa da prefeitura local de arrumá-las,
não havia se cumprido até então. O assentamento estava totalmente diferente. Perdeu a
característica de acampamento, onde as famílias constroem seus barracos umas ao lado das
outras. Por ser um assentamento individual, cada família já estava “em cima do seu lote”,
distantes umas das outras. Em alguns lotes havia casas simples de duas águas, construídas em
madeira, algumas outras construídas em alvenaria, a maioria em fase de acabamento. Em
outros, as famílias estavam morando nos barracos de lona preta. Mais tarde me explicaram
que os recursos do governo federal para a construção das casas vêm em etapas. Algumas
famílias tinham sido beneficiadas, outras ainda não.
Era final de tarde e precisava encontrar alguma família que me recebesse naquela
noite. Tinha em mente uma da qual me aproximara durante a primeira etapa do trabalho e,
logo que avistei algumas pessoas na estrada, perguntei-lhes sobre a localização do lote desta
família. Seguindo as orientações que me foram dadas, avistei o barraco de lona preta numa
área mais baixa do terreno, às margens de um pequeno rio. Ao ouvirem o barulho do carro se
aproximando, as crianças saíram do barraco para ver quem estava chegando, em seguida saiu
a mãe. Desci do carro ainda há alguns metros do barraco, pois como estávamos num período
chuvoso havia muito barro e o carro poderia ficar atolado. De longe acenei para eles e, ao me
reconhecerem, receberam-me com um misto de surpresa e acolhimento. Convidaram-me para
um café e enquanto fazíamos um lanche, eles me contavam as novidades, tanto da família,
como do assentamento. Escureceu e me convidaram para pernoitar com eles – o casal e quatro
crianças. Fiquei um pouco constrangida por alterar a ordem cotidiana da família, que se
acomodava num barraco de dois cômodos divididos entre cozinha e quarto, e como estava
com um carro cujo espaço traseiro acomodava um colchão, e já tinha pensado nesta hipótese,
pedi que não se incomodassem, pois eu estava preparada para pernoitar no carro. Estacionei o
carro na porta do barraco e antes das 21 horas já estávamos dormindo, ou melhor, já estavam
dormindo, porque acostumada com o ritmo urbano, eu invariavelmente durmo mais tarde.
Como no lote desta família não tinha energia elétrica, a conversa se encerrou cedo, as crianças
24
deitaram porque tinham aula na manhã seguinte, a vela foi apagada e minha opção era ir para
o carro e me esforçar para dormir.
A partir desta noite, adentrei a terceira etapa do trabalho, a que Da Mata denomina
“existencial ou pessoal”. É caracterizada por um momento em que temos o conhecimento
teórico-intelectual e estamos tendo também a vivência prática, o conhecimento empírico do
cotidiano destes sujeitos. É o momento em que fazemos a interação entre as duas coisas, a
integração do conhecimento. Ou seja, ao “olhar” os barracos, as localidades, “ouvir” as
pessoas, eu o faço a partir de um local que me permite integrar esse conhecimento e
direcioná-lo para os meus interesses concretos. É o momento de “sintetizar a biografia com a
teoria, a prática do mundo com a do ofício”.
Nesta etapa ou, antes, nesta dimensão da pesquisa, eu não me encontro mais
dialogando com índios de papel, ou com diagramas simétricos, mas com
pessoas. Encontro-me numa aldeia concreta: calorenta e distante de tudo que
conheci. Acho-me fazendo face a lamparinas e doença. Vejo-me diante de
gente de carne e osso. Gente boa e antipática, gente sabida e estúpida, gente
feia e bonita. Estou, assim, submerso num mundo que se situava, e depois da
pesquisa volta a se situar, entre a realidade e o livro. (Da Mata, op.cit., p.
25).
Não foi uma noite muito agradável, acordei várias vezes e, não sem susto, com vacas,
cavalos e galinhas, ao lado do carro, fazendo barulho. Mas com o início da manhã veio
também uma sensação de familiaridade com o local e depois de um café, despedi-me da
família e fui procurar um dos coordenadores gerais do assentamento, a fim de explicar o
motivo do meu retorno e solicitar permissão para realizar o trabalho.
Essa situação me deixou um pouco ansiosa, receava não ser entendida, ou
simplesmente me ser negada permissão. Estava na coordenação um dos militantes que apoiou
muito o desenvolvimento do Projeto anterior, e que me recebeu muito bem, demonstrando
bastante interesse em apoiar e participar da pesquisa. Depois de muitas cuias de chimarrão e
depois de ter me mostrado o lote, o açude com um número razoável de peixes, o poço em
construção, a casa dos pais construída em alvenaria e bem acabada, os animais que por ali
estavam e após termos conversado bastante sobre a situação atual do assentamento, as
novidades, as mudanças, ele e sua esposa me convidaram para almoçar. O casal estava
morando em um barraco de lona e se preparando para construir a casa, no lote que dividem
25
com os pais do rapaz. Logo após o almoço, fomos acompanhar a construção do poço, há
alguns metros da casa dos pais e, depois de descansarmos um pouco entre conversas e
chimarrão, fiz a entrevista com o coordenador
12
.
A partir desta primeira experiência me dei conta de que estava novamente
adentrando o mundo deles, onde se tem a sensação de que o tempo tem outra dimensão, onde
se tem tempo para as visitas, para as conversas, para contar os “causos” e apreciar os encantos
da vida no campo. E assim foi a dinâmica com todas as famílias que visitei, todas me
recebiam com muito carinho, mostravam-me os detalhes do lote, das casas, dos animais,
falavam sobre os planos para os recursos advindos do governo federal, contavam as novidades
sobre os filhos, os vizinhos, as manifestações políticas na cidade, as reuniões, as assembléias
e missas, compartilhavam comigo sua comida, e me convidavam para pernoitar com eles –
convite este aceito prontamente, depois da experiência bastante desconfortável de dormir no
carro.
Em meio a este clima de boas-vindas, realizei as visitas e todas as entrevistas desta
segunda etapa da pesquisa. As lembranças e as falas sobre o passado de tanto sofrimento
fluíam, inevitavelmente, carregadas de emoção. Ao mesmo tempo, preservadas as
particularidades de suas experiências, predominava um sentimento generalizado de alegria
pela superação de momentos tão difíceis. Estavam bastante envolvidos com os projetos para a
casa e para o lote e essa alegria era contagiante, marcando definitivamente os dias em que
estive com eles.
Toda essa vivência de campo, formada por estes momentos que antecedem e que
seguem a entrevista, são de fundamental importância na pesquisa etnográfica. Acompanhar os
sujeitos nos momentos de construção de um poço, da colheita dos legumes para o almoço, da
ordenha da vaca, enfim, nas suas tarefas cotidianas, devem ser atividades consideradas pelo/a
pesquisador/a como material precioso de pesquisa, como discursos não falados que trazem,
nas entrelinhas elementos importantes para observar aspectos da constituição psíquica, social
e histórica de cada sujeito. O enfoque nestas nuances do campo de pesquisa, é tecnicamente
chamado de “observação participante” e, segundo o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira
(2000) é o que distingue o trabalho de campo antropológico, dos demais métodos de
observação na área das ciências sociais.
12
Trabalho com a fala dele em diversos momentos ao longo da dissertação. Chamei-o de Milton (nome fictício).
26
Trata-se de um instrumento metodológico que exige do pesquisador um longo
período de convivência com seus informantes, para que possa se “familiarizar com o exótico”
(Da Mata, 1978) e para que os sujeitos pesquisados se familiarizem com o pesquisador, de
modo que a observação e as interlocuções que daí decorram sejam as mais espontâneas
possíveis. Para Oliveira (2000) “este é um gênero de observação muito peculiar – isto é,
peculiar à antropologia – por meio da qual o pesquisador busca interpretar – ou compreender
– a sociedade e a cultura do outro “de dentro”, em sua verdadeira interioridade”. (p.34)
É também, a “observação participante”, que permite a realização do que Clifford
Geertz (1978), aponta como a característica principal da pesquisa em antropologia social, isto
é, uma “descrição densa” do cotidiano dos sujeitos. Para Cláudia Fonseca (1999), é
exatamente essa descrição detalhada e profunda das situações percebidas pelo pesquisador,
que dá ao modelo antropológico de pesquisa a dimensão de ciência do concreto: “A etnografia
é calcada numa ciência, por excelência, do concreto. O ponto de partida desse método é a
interação entre o pesquisador e seus objetos de estudo, “nativos em carne e osso”” (p.58).
No entanto, para se fazer uma descrição densa, falando de coisas que não foram
ditas, dando voz ao silêncio, é necessário o exercício das faculdades de “ouvir” e “olhar”.
Ouvir o que o informante está dizendo nas linhas e entrelinhas de seu discurso, e ver com um
olhar capaz de captar mais do que imagens, imagens em movimento, em interação com o que
é dito e com o contexto social, cultural e histórico do universo do sujeito, requer sensibilidade
e exercício de relativização. De acordo com Roberto Cardoso Oliveira (2000), é através da
fala do informante que seu universo simbólico se revela. A entrevista assume então um espaço
privilegiado, sendo condição imprescindível para que os “horizontes semânticos” do
pesquisador e do informante se abram, possibilitando o verdadeiro “encontro etnográfico”.
Mas para tanto, é necessário desconstruir verdades e ouvir o que de fato o informante
está dizendo. Em geral, desenvolvemos, ao longo da vida, a capacidade de ouvir e ver o que
nos interessa, ficando surdos e cegos ao que em algum momento nos confronta. E esse é um
dos importantes exercícios que o método etnográfico – assim como a escuta clínica – nos
impõem. É necessário que o/a pesquisador/a aceite as diferenças que aparecem na sua relação
com o informante, como situações próprias de um momento em que dois universos distintos
se encontram, o que para Oliveira (op.cit.) “é sempre um encontro político”, uma vez que
envolve sujeitos de diferentes classes sociais, gênero, etnia, entre outras condições que
exigem relativização e para as quais o pesquisador deve estar atento. Relativizar é também ter
27
sensibilidade para entender que tanto as suas concepções, como as do informante, não são
“um discurso nem falso, nem verdadeiro, mas que representa uma dimensão de uma realidade
social multifacetada” (Fonseca, 1999, p. 64).
A vivência das diversas etapas de diálogo e construção dos conhecimentos
necessários para retornar ao campo, somada às experiências que obtive através das
“entrevistas”, do “ouvir” e do “olhar”, resultaram num sentimento de bastante proximidade
com o “confronto entre dois universos”. Identifiquei-me com as palavras de Da Mata sobre
como esse confronto, através de “mediações pacientes e artesanais”, transforma-se em
“encontros”:
(...) se estabelece uma ponte entre dois universos, (ou subuniversos) de
significação, e tal ponte ou mediação é realizada com um mínimo de
aparato institucional ou de instrumentos de mediação. Vale dizer, de modo
artesanal e paciente, dependendo essencialmente de humores,
temperamentos, fobias e todos os outros ingredientes das pessoas e do
contato humano. (Da Mata, op.cit., p. 27)
Parece-me que a beleza desse modelo de pesquisa consiste exatamente em
“estabelecer uma ponte entre dois universos” distintos, significando e sendo significado nesta
relação. O que me remete ao ofício do psicanalista, quando na relação transferencial e
contratransferencial estabelecida a partir do encontro entre dois inconscientes, significa os
conteúdos que dali emergem e é também, de uma forma ou de outra, significado nesta relação.
O antropólogo Vicent Crapanzano (1991), que faz uma interlocução com a psicanálise, ao
apontar indiretamente esta dimensão transferencial e contratransferencial do trabalho de
campo antropológico, afirma que “qualquer que seja a resistência daqueles com quem
conversamos, eles sempre são um pouco nossa criação, assim como nós somos a deles” (p.
79).
E é quando se deixa o campo e se inicia o trabalho de forma solitária e isolada na
etapa do “escrever”, que essas significações e ressignificações que brotaram durante o
trabalho de campo ganham uma dimensão mais exata. É na solidão do “gabinete”, ou do
quarto de estudos, que conseguimos elaborar as observações, entrevistas, acontecimentos e
sentimentos, colocando-os sob a configuração da racionalidade do discurso acadêmico.
28
É nesta última etapa da pesquisa etnográfica, a escrita
13
, que as lembranças das
vivências do campo emergem com força maior do que se supunha. É aí que se percebe o
quanto se foi ressignificado pelas experiências vividas no “estando lá”
14
. Neste período, não
foram raros os momentos em que me surpreendi submergindo nas reminiscências do trabalho
que fiz “lá”, e de uma forma não totalmente consciente, as pessoas, as falas, as paisagens, “os
cheiros, as cores, as dores e amores”, passaram a ocupar um espaço progressivo e constante
na minha vida intelectual. Também não foram raras as ocasiões em que, ao emergir destas
águas já distantes, trazia involuntariamente à cena, personagens inusitados: tratava-se do
“anthropological blues”
15
pedindo passagem, como dimensão presente numa “ciência
interpretativa, destinada antes de tudo a confrontar subjetividades e delas tratar”. (Da Mata,
1978, p. 35).
1.3. Os detalhes técnicos da pesquisa
O trabalho de campo foi realizado durante o mês de abril do ano de 2005. Optei por
privilegiar nesta pesquisa a fala dos sujeitos. Trabalhei desenvolvendo previamente algumas
questões que utilizei como fio condutor, ou seja, uma primeira pergunta capaz de desencadear
respostas mais espontâneas sobre as lembranças e significações dadas pelos sujeitos às
experiências de violência sofridas durante as ações de reintegração de posse, sendo a análise
dos depoimentos sobre estas vivências o enfoque principal desta pesquisa.
Para registrar as entrevistas utilizei uma filmadora, buscando captar, além das falas as
imagens de meus informantes. Assim, iniciava as entrevistas resgatando de forma sintetizada
o meu primeiro contato com estas pessoas, os relatos que fizeram àquela época sobre as
13
Para Roberto Cardoso de Oliveira (2000), o trabalho etnográfico compreende diferentes (porém
interdependentes) etapas: “olhar”, “ouvir” e “escrever”.
14
Geertz, Clifford (1996).
15
O termo “anthropological blues”, segundo Da Mata, no texto citado, foi cunhado pela Dra. Jean Carter Lave,
na tentativa de nominar os elementos que aparecem de forma inusitada no campo de pesquisa, e que fogem ao
“script”, ou seja, os sentimentos, a emoção, a saudade, a tristeza, a empatia, a antipatia, enfim, “Estes seriam,
para parafrasear Lévi-Strauss, os hóspedes não convidados da situação etnográfica. E tudo indica que tal intrusão
da subjetividade e da carga afetiva que vem com ela, dentro da rotina intelectualizada da pesquisa antropológica,
é um dado sistemático da situação.”( Da Mata, op.cit., p. 30).
29
experiências de reintegração de posse, explicitando meu desejo de ouvi-las novamente acerca
do mesmo tema. Quando se diziam preparadas, ligava a câmera e iniciava as filmagens na
medida em que relatavam de forma bastante espontânea sua trajetória de vida, com enfoque
nesses processos de violência. Todos os entrevistados falaram com fluência e tranqüilidade, o
que me levou a fazer pouquíssimas intervenções durante a entrevista.
Como estava há algum tempo sem conseguir contato com o assentamento, não tinha
informações prévias sobre suas condições atuais e tampouco sabia quais pessoas encontraria
lá, portanto não foi possível determinar de antemão a escolha dos informantes. Havia definido
previamente que seria de fundamental importância a participação de uma família em especial,
cujos membros, na época em que os entrevistei, conseguiram verbalizar de forma contundente
aquelas vivências. Os depoimentos desta família, sobretudo da matriarca, foram forte
impulsionadores do meu desejo de desenvolver esta pesquisa
16
. As outras famílias que
entrevistei surgiram como parte das surpresas do campo. Algumas foram indicadas por outros
informantes, outras eu encontrei casualmente e comecei a falar sobre o tema, e elas
prontamente começaram a relatar suas experiências, então pedi licença, fiz o diálogo inicial
acima mencionado, liguei a câmera e comecei a gravar.
Em meio a este processo de entrevistas, também lhes explicava os trâmites mais
burocráticos da universidade em relação ao “termo de consentimento livre e esclarecido”.
Fazia a leitura pausada do documento com eles. Ao fim, assinavam prontamente e depois
saíam em busca do documento de identidade, que na maioria das vezes estava guardado em
alguma caixa ou bolsa nada acessível.
Neste segundo retorno ao campo de pesquisa, entrevistei um total de 11 sujeitos,
sendo quatro mulheres com idades entre 40 e 47 anos, três homens com idades entre 27 e 63
anos, três rapazes com 16 e 18 anos e um menino de 10 anos de idade. As entrevistas foram
realizadas nas casas, nos barracos e, em alguns casos, numa sombra do quintal, sendo que
algumas foram feitas em família, ou seja, o casal respondendo junto, ou a mãe e os filhos, e
em outros casos apenas com um informante. Todos, inclusive as crianças e os adolescentes,
consentiram formalmente com as entrevistas, estes últimos por meio de seus pais. Contudo, o
mais importante foi o consentimento que veio em nível mais simbólico, expresso nas boas
vindas calorosas, no café e no chimarrão feito especialmente para aquele momento, nos
inúmeros convites para almoço, jantar, pernoite que, de tantos, não foi possível aceitar a
16
Trata-se da família de Júlia (nome fictício). Cf. quadro da p. 31.
30
todos. Expressos também nas caminhadas pelos quintais e plantações mostrando as novas
conquistas, nas sacas de amendoim, mandioca, batata, abóbora, com as quais me presentearam
e que lotaram o bagageiro do carro. Enfim, o carinho com que me receberam constituiu-se na
autorização que de fato mais me interessava e pela qual ansiava durante todos os meses de
preparação para o retorno ao campo.
31
QUADRO I
Entrevistados da pesquisa realizada em 2005
Nome
17
Idade
Escolaridade
Série Grau
Quantos filhos
Estado Civil
Profissão
Família de
Origem
Tempo
de MST
Milton
27
3
a
2
o
Nenhum
Casado
Agricultor
Agricultores
6 anos
Elizeu
Irene
Eduardo (filho)
35
40
16
8
a
4
a
5
a
1
o
1
o
1
o
5 filhos - 3 meninos; 2
meninas; de 04 a 16 anos
Casados
Solteiro
Agricultores (arrendatários no Paraguai de
1990 a 1998). Voltaram para o Brasil direto
para o MST.
Agricultores
6 anos
Pedro
Clara
63
45
3
a
4
a
1
o
1
o
1 filho (18 anos)
Casados
Trabalhavam com agricultura e na mesma
fazenda onde arrendavam um lote, ele
trabalhava como pedreiro e carpinteiro e ela
como cozinheira. Voltaram integralmente
para agricultura pelo MST.
Agricultores
7 anos
Marilena (mãe)
Carlos (filho)
40
18
4
a
1
a
1
o
2
o
2 meninos,
18 e 9 anos
Casada
solteiro
Agricultora (era arrendatária no Paraguai de
1991 a 1998). Voltaram para o Brasil direto
para o MST. Carlos é estudante e agricultor.
Agricultores
7 anos
Julia (mãe)
Murilo (filho)
Junior (filho)
47
16
10
3
a
8
a
5
a
1
o
1
o
1
o
7 filhos, idades entre
10 e 20 anos
Casada
Trabalharam como agricultores até os 23
anos. Depois ele trabalhou como pedreiro ela
como cozinheira, até voltar para agricultura
pelo MST.
Agricultores
6 anos
17
Os nomes são fictícios.
32
Além das entrevistas realizadas nesta segunda etapa da pesquisa, selecionei também,
algumas das 85 entrevistas que realizei com as famílias no período em que trabalhava no
assentamento, entre os anos de 2002 e 2003. A dinâmica de realização destas entrevistas
ocasionava, na maioria das vezes, a participação efetiva de apenas um dos membros da
família, pois, via de regra, eram realizadas durante o dia. Em alguns casos, encontrava o casal
em casa e conseguia entrevistar marido e mulher. Em outros, mesmo estando os dois em casa
– num processo de decisão tácita – a entrevista ficava a cargo de um dos cônjuges, o que não
inibia os filhos, os cônjuges, parentes, e até alguns vizinhos que trafegavam pelo ambiente da
entrevista, de falarem sobre suas impressões acerca do tema abordado. Entrevistei um total de
46 mulheres, com idades entre 16 e 57 anos e 31 homens, com idades entre 21 e 70 anos, além
de oito casais nessa mesma faixa etária.
Dentre todo este material obtido em momento anterior, elegi as entrevistas de 14
sujeitos, para trabalhá-las juntamente com as entrevistas realizadas durante a segunda etapa da
pesquisa. Destes 14 sujeitos, 10 foram homens de idades entre 26 e 59 anos e, quatro
mulheres de 21, 35, 48 e 64 anos. Escolhi a fala destes sujeitos em especial, por conseguirem
expressar com eloqüência o momento das reintegrações de posse e todos os seus
desdobramentos. Não foi possível precisar os dados a respeito da escolaridade dos sujeitos
desta primeira pesquisa. É possível inferir que devam ter concluído os primeiros anos do
ensino fundamental entre quarta e, alguns, oitava série.
As entrevistas foram utilizadas como fonte privilegiada de informação. Contudo,
tiveram como suporte outros tipos de materiais, como os jornais de circulação local e nacional
que na época fizeram a cobertura dos fatos pesquisados, bem como documentários que
registraram o momento dos despejos, além de panfletos, jornais, vídeos, revistas e publicações
que se relacionam com a temática, material que venho cuidadosamente guardando ao longo
destes últimos quatro anos. Utilizei mapa topográfico, além de fotos e desenhos de acervo
pessoal, a fim de auxiliar na contextualização do local.
33
QUADRO II
Entrevistas selecionadas a partir da pesquisa realizada em 2002/2003 (dados relativos a 2002/2003)
Nome
18
Idade Estado Civil Quantos filhos
Profissão Tempo de MST
Dirceu 44 Casado 3 filhos: 1 menina de 5 anos e dois
meninos de 2 e 7 anos
Agricultor 5 anos
Leôncio 46 Separado 1 filho de 19 anos Agricultor (trabalhava como bóia-fria antes de ingressar no
MST)
5 anos
Fernando 59 Casado 2 filhos jovens Agricultor 7 anos
Vitor
26 Solteiro Nenhum Agricultor (Trabalhava no Paraguai antes do MST) 5 anos
Rui 58 Casado 4 filhos: 2 meninas e 2 meninos, com
idades entre 18 anos e 2 meses
Agricultor até 18 anos, depois tapeceiro. Voltou integralmente
para agricultura pelo MST
4 anos
Reinaldo 52 Solteiro Nenhum
Agricultor 12 anos
Vladimir
33 Casado 4 filhos: 2 meninos, 2 meninas, entre 1 e 7
anos
Agricultor (Trabalhava no Paraguai antes do MST) 4 anos
Mariano
42 Separado 1 filha adulta Trabalhava como segurança antes de ir para o MST 6 anos
Renato 32 Casado 2 filhos pequenos
Agricultor 4 anos
Valter 27 Casado 3 filhos com idades entre 0 e 2 anos Agricultor 10 anos
Heleonora 64 Casada 11 filhos, dos quais 3 moravam com ela Agricultura. Arrendava um lote no Paraguai, até que o
fazendeiro desfez o contrato e então, vieram para o MST
5 anos
Sarah
35 Casada 6 filhos com idades entre 1 e 18 anos Trabalhava como operária no Paraguai, até voltar para a
agricultura pelo MST.
5 anos
Claudia 21 Casada 3 filhos com idades entre 1 e 6 anos Agricultora, nascida no Paraguai voltou para o Brasil através
do MST
4 anos
Lucia 48 Separada 2 filhas adultas Trabalhava na agricultura, depois na cidade como empregada
doméstica, até voltar para a agricultura pelo MST
10 anos
18
Os nomes são fictícios.
O que diferencia a luta de outra profissão é que
na luta se eu ganho hoje eu não promovo só
minha família, mas todo mundo que tá junto. Se
eu tenho pão o outro também tem. Acho que o
ideal vai além da reforma agrária, é buscar uma
sociedade mais justa e igualitária. (Mariano, 42
anos).
35
2. CONSTRUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO MST: UM ENFOQUE
PSICOPOLÍTICO
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, tem sua origem na tradição das
lutas camponesas contra o latifúndio e a fome (Fernandes, 1999b), permanências que
deixaram uma triste marca na história do país, que apesar de independente da coroa
portuguesa, herdou dela a política de concentração de terras, protelando e negligenciando a
urgência em realizar uma política agrária que viabilizasse a agricultura camponesa. Na
tradição dessas lutas contra o latifúndio que se estendem ao longo dos cinco séculos de
história brasileira, surge o MST como alternativa de resistência à política de concentração de
terras que, nas últimas décadas privilegiou o desenvolvimento agropecuário e a monocultura.
Modelo (re)implementado pelo governo militar, que em conseqüência expulsou do campo
milhares de trabalhadores rurais, aumentando a concentração fundiária e a população de sem
terras.
Neste capítulo apresento uma breve contextualização deste período mais recente da
história dos conflitos agrários no Brasil, cenário em que se desenvolvem as condições
objetivas e subjetivas para o nascimento do MST. Apresento ainda, alguns momentos da
trajetória do movimento, seus primeiros passos, consolidação nacional e opção metodológica
por instrumentos como as ocupações, a construção dos acampamentos e a ênfase na criação de
uma identidade de grupo como mística do movimento.
36
2.1. Algumas nuances da questão agrária a partir da década de 60: solo
fértil para a ascensão de um grande Movimento
No início da década de 1960, as mobilizações em torno da luta pela terra começavam
a ganhar maior expressão no cenário nacional, reforçadas pelas atitudes do governo que se
iniciava e que aparentemente carregava em uma das mãos a bandeira da reforma agrária. Em
1961, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, João Goulart (PTB – Partido Trabalhista
Brasileiro) assumiu a Presidência da República. Com um plano de metas marcado pelo
nacionalismo desenvolvimentista – de matriz varguista – Jango, como era popularmente
conhecido, tomou duas medidas que enfureceram os setores ligados ao capital financeiro e aos
latifundiários.
Segundo Gorender (2003), no final de outubro de 1963, o governo de João Goulart
regulamentou a lei sobre remessa de lucros do capital estrangeiro ao exterior, até então sem
nenhum controle. Nessa situação de permissão absoluta, os investidores estrangeiros, como as
multinacionais automobilísticas que se instalaram no país durante o governo de Juscelino
Kubitschek (1956-1961), revertiam o lucro da produção no Brasil para o exterior, com pouco
ou nenhum investimento no território nacional. Esta medida que visava a proteção do capital
nacional provocou reações coléricas nos investidores estrangeiros e na elite nacional ligada ao
capital financeiro.
Passados dois meses, em dezembro de 1963, seu governo realizou algumas
desapropriações rurais e, segundo Gorender (2003), entregou 2.000 títulos de propriedade
para lavradores de Itaguaí, no Estado do Rio de Janeiro e previa outras desapropriações para o
mesmo Estado, além dos Estados do Nordeste, Goiás e Minas Gerais. Assinou em 13 de
março de 1964, um decreto presidencial, que segundo o sociólogo José de Souza Martins,
“declarava de interesse social, para fins de desapropriação, as áreas rurais que ladeavam
rodovias federais, ferrovias nacionais e terras beneficiadas por obras da União que estivessem
inexploradas ou exploradas contrariamente à função social da propriedade” (1985 p.29). O
autor afirma que a proposta de Jango não passava diretamente pela desapropriação dos
latifúndios improdutivos – considerando que ele também era um latifundiário.
Estes decretos faziam parte do plano de reformas de base – que consistiam em
medidas de cunho desenvolvimentista, ou seja, medidas que visavam desenvolver o setor
37
produtivo nacional e a partir das quais pretendia brecar a inflação, fomentando o crescimento
de um mercado consumidor interno e, como conseqüência, impulsionando a industrialização
do país. As grandes propriedades improdutivas funcionavam como um freio ao
desenvolvimento econômico, na medida em que impediam o aproveitamento do solo na
produção de alimentos compatíveis com as demandas das populações urbanas. A política de
concentração de terras, freava também o poder de compra das famílias camponesas,
diminuindo o consumo no mercado interno.
A partir destas aparentes sinalizações de apoio às bandeiras de lutas sociais, os
trabalhadores do campo, das cidades, os estudantes e outros setores da sociedade,
mobilizaram-se em apoio às reformas de base. De acordo com Jacob Gorender,
A luta pelas reformas de base não encerrava, por si mesma, caráter
revolucionário e muito menos socialista. Enquadrava-se nos limites do
regime burguês, porém o direcionava num sentido progressista avançado.
Continha, portanto, virtualidades que, se efetivadas, tanto podiam fazer do
Brasil um país capitalista de política independente e democrático-popular,
como podiam criar uma situação pré-revolucionária e transbordar para o
processo de transformação socialista. (Gorender, 2003, p. 56).
Diante deste cenário, numa medida preventiva, as elites ligadas ao latifúndio e ao
capital financeiro, com apoio das forças armadas e do governo norte-americano – que temia o
avanço do comunismo na América Latina e que estava tendo seus interesses econômicos
prejudicados em função da regulamentação da remessa de lucros do capital estrangeiro –
orquestraram um golpe de Estado. E em 01 de abril de 1964, passados pouco menos de 20
dias de seu pronunciamento anunciando as reformas, Jango foi deposto, afinal, “a classe
dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse”
(Gorender, 2003, p.73).
A política do governo militar para os camponeses consistia na repressão às formas de
organização legítima dos trabalhadores rurais por um lado
19
e, por outro, a continuação desta
19
José de Souza Martins (1985), afirma que o governo militar entendia que as reformas eram necessárias, porém
deveriam ser feitas pelo governo, excluindo ou banindo, os grupos mediadores, ou seja, as organizações sindicais
e políticas. (p.31). Até a década de 60, eram três os movimentos mais expressivos ligados aos trabalhadores
rurais: as Ligas Camponesas, o MASTER e a ULTAB.
38
repressão sem o uso explícito da violência, o que se evidenciou a partir do decreto do
Presidente Marechal Castelo Branco, em 1964, oficializando o Estatuto da Terra. O Estatuto
foi uma ação rápida – realizada no primeiro ano do golpe – na tentativa de conter possíveis
insurreições sociais decorrentes da necessidade de distribuição da terra. Em termos de
elaboração técnica, o Estatuto trouxe alguns avanços como as definições precisas de terras
desapropriáveis, não desapropriáveis, a definição de latifúndio, minifúndio e o conceito de
função social da terra. Entretanto, os avanços pararam por aí (Morissawa, 2001; Martins,
1985).
Segundo José de Souza Martins (1994, p.78), “o golpe não teria sido possível sem a
intervenção e a ação, mais ideológica do que política, de uma classe social tão amplamente
disseminada sobre o território como a classe dos proprietários de terra”. Os militares foram
levados ao poder por uma aliança de frações da classe dominante, composta de elites
industriais e financeiras, com ampla participação das velhas oligarquias rurais agro-
Ligas Camponesas: Certamente o movimento mais combativo e combatido. Organizada em 1955, atuava nos
Estados de Pernambuco, Alagoas e Paraíba e em outras regiões do Nordeste. Teve seu início com a “Sociedade
Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco”, organizada por 140 famílias que moravam e trabalhavam
na fazenda Galiléia, localizada no município de Vitória do Santo Antão. A Sociedade foi criada com o objetivo
de fundar uma escola e comprar caixões para as crianças cujas mortes eram freqüentes. Além disso, previam em
longo prazo a compra de sementes, fertilizantes, etc. Ao saber da Sociedade o fazendeiro tentou expulsar as
famílias da fazenda. As terras eram arrendadas para os camponeses, que pagavam ao fazendeiro o “foro”, uma
espécie de aluguel. Na medida em que as famílias resistiam à expulsão, aumentava o apoio e a adesão de outros
camponeses, o que os fortalecia politicamente. A Sociedade ficou conhecida como Liga Camponesa da Galiléia
e, passados alguns anos de muita luta política e jurídica, os camponeses ganharam a posse da fazenda. Durante
esse período, a Liga ganhou adesão massiva dos camponeses destas regiões, pautados no lema “Reforma Agrária
na lei ou na marra”. As Ligas resistiram até 1964 quando foram colocadas na ilegalidade, perseguidas e seus
líderes presos e condenados. (Julião, 1962; Fernandes; Stédile, 1999).
Master: O Movimento dos Agricultores Sem Terra – MASTER – surgiu no Rio Grande do Sul, em 1958, a
partir da resistência de 300 famílias de posseiros no município de Encruzilhada do Sul. Com ele surgiu também a
metodologia do “acampamento” como instrumento para pressionar o governo estadual a assentar as famílias.
Muito ligado ao antigo Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, que tinha como expoente máximo a figura de
Leonel Brizola (que governou o Estado gaúcho de 1959 a 1963) o MASTER, apesar de disseminado por todo o
Rio Grande do Sul, não conseguiu se constituir como um movimento autônomo, segundo Fernandes (1999), e
acabou entrando em descenso quando Brizola deixou o governo do Estado. Além disso, a partir de 1962, com a
conquista dos sindicatos para trabalhadores rurais (até então, um direito garantido apenas aos trabalhadores
assalariados urbanos) a orientação política do PTB era de voltar-se para a construção dos sindicatos rurais. Fato
que acabou por enfraquecer o MASTER. Com o golpe militar, veio a gota d’água, o movimento foi colocado na
ilegalidade e perseguido, acabando por se desmantelar. (Fernandes; Stédile, 1999).
ULTAB: A União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas – ULTAB, era uma organização classista criada
com a finalidade de fazer uma aliança entre operários, camponeses e assalariados rurais. Com o tempo se
consolidou por todo o país, com exceção do Rio Grande do Sul e Pernambuco, onde os agricultores se
organizavam através do MASTER e das Ligas Camponesas, respectivamente. Organizada pelo Partido
Comunista Brasileiro – PCB, as ULTAB’s tinham a finalidade de formar associações que substituíssem os
sindicatos proibidos na época. Com a legalização dos sindicatos rurais elas se incorporaram nesta estrutura. Com
o golpe militar, Nestor Veras, um de seus principais dirigentes, foi preso e provavelmente assassinado, que é
considerado desaparecido até hoje. (Fernandes; Stédile, 1999).
39
exportadoras, ou seja, os latifundiários. Em fidelidade a esta aliança, as desapropriações de
grandes propriedades improdutivas não foram realizadas. As áreas destinadas a assentar os
trabalhadores que viviam em conflitos por terra, não foram as terras sobre as quais as famílias
estavam vivendo há décadas, ou nas quais estavam acampadas. Foram-lhes destinadas terras
na região Centro-Oeste e na região da Amazônia, localizadas estrategicamente em zonas de
fronteira – cumprindo o objetivo militar de ocupar e expandir as fronteiras, evitando a
vulnerabilidade do país
20
(Branford; Rocha, 2004, p.25). As famílias eram retiradas de suas
localidades e enviadas para estas regiões chamadas zonas pioneiras, com poucas chances de
adaptação e sobrevivência pelo cultivo da terra (Martins, 1985; 1994).
Para piorar a situação dos camponeses, em 1966, dois anos depois do Estatuto da
Terra, o governo lançou um pacote de incentivos voltados às grandes empresas capitalistas,
nacionais e multinacionais, interessadas na exploração do campo, sobretudo nos setores de
agropecuária e mineração, nas regiões sul do Pará, Acre, Rondônia, oeste do Maranhão e
norte do Mato Grosso – mesmas localidades para onde havia enviado os agricultores. Esta
área recebeu a denominação de Amazônia Legal, termo cunhado a fim de abarcar, segundo
Morissawa (2001, p.122), um total de 5 milhões de quilômetros quadrados. Considerando que
a extensão de todo o território nacional é de aproximadamente 8,5 milhões de quilômetros
quadrados, tem-se uma idéia da importância econômica e política que este empreendimento
representava para o Estado.
Estes empresários pagavam ao governo um valor simbólico pela aquisição das terras,
fossem elas lícitas ou não, e recebiam em troca o capital necessário para nelas investir a fim
de torná-las produtivas. A partir de então, segundo levantamento do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária – INCRA, os investidores estrangeiros – bancos, construtoras
e grandes indústrias, de uma forma geral – adquiriram 30 milhões de hectares de terras
brasileiras (apud Morissawa, 2001, p.122).
20
Idéia intensificada a partir da Guerrilha do Araguaia, como ficou conhecida. Ação que foi levada a cabo por
militantes do PCdoB – Partido Comunista do Brasil. Em meados de 1969, o partido comprou um sítio na região
do Bico do Papagaio, onde hoje é a região norte do Estado do Tocantins e enviou para lá alguns militantes,
quadros importantes dentro do partido, com o objetivo de realizar treinamentos militares e relacionar-se com os
camponeses da região, buscando aos poucos conscientizá-los da necessidade da luta armada e do confronto com
os latifundiários e com os militares. Antes de começarem a atuar, os guerrilheiros foram dizimados numa
operação militar que envolveu aproximadamente 6.000 homens das forças armadas, exército, aeronáutica e
polícia militar, numa caçada que durou dois anos. Em janeiro de 1975, a Guerrilha do Araguaia foi extinta e, a
maioria dos guerrilheiros mortos sumariamente. (Martins, 1985; 1994, p.81; Branford; Rocha, 2004, p. 25;
Morissawa, 2001, p.101).
40
Com o objetivo de resolver vários problemas com uma única atitude, vale dizer,
sanar os crescentes conflitos no campo, ocupar a região amazônica a partir do extrativismo e
ao mesmo tempo garantir alguma segurança para as fronteiras do país, o governo acabou por
transformar estas regiões em territórios de conflitos, dos quais os camponeses saíam
invariavelmente derrotados, sendo novamente expulsos – desta vez pelas grandes empresas
(Martins, 1985; 1994).
Neste decreto de 1966, foi criada a Superintendência de Desenvolvimento da
Amazônia – SUDAM, que oficializou a opção pela exploração empresarial do campo, em
detrimento da agricultura familiar. Para José de Souza Martins, esse decreto revogava o
Estatuto da Terra, pois “a terra que estava destinada a agasalhar os pequenos produtores
expulsos de outras regiões também passa a ser destinada às grandes empresas. Então não há
mais lugar para ninguém (Martins, 1985, p.72). Com essa política de geração de conflitos, o
governo parecia agir de forma a transformar os camponeses sem terra em mão-de-obra para as
grandes empresas, voltadas à pecuária, extração de madeira, mineração, que rapidamente
ocuparam estas regiões (Morissawa, 2001, p.122).
Em vários outros Estados o processo ocorreu de forma semelhante. Para abrir
espaços a estas empresas, os camponeses eram tratados “como uma boiada que o fazendeiro
manda tocar”, como disse Cássia Cortêz, em seus estudos sobre os agricultores paranaenses
expulsos de suas terras e impelidos a procurar trabalho no país vizinho, o Paraguai (Cortêz,
1993, p.21).
Neste cenário de desigualdades, as tecnologias de mecanização e a industrialização
chegaram ao campo, levando aos empresários da agroindústria as isenções de impostos e
incentivos ao crescimento econômico, e aos pequenos agricultores, as expropriações,
expulsões e despejos. Os métodos utilizados pelos empresários para expulsar os agricultores,
eram os despejos violentos, queimas de casas e lavouras e até assassinatos dos camponeses
que resistiam (Martins, 1985).
Com esse modelo de agricultura, o governo militar não apenas deixou de fazer as
desapropriações dos latifúndios, mas impulsionou a concentração fundiária, fazendo nascer
uma “nova elite oligárquica, com traços exteriores muito modernos” (Martins, 1994, p.80).
Empresários, parte deles estrangeiros, ligados a multinacionais ou não, dedicados a outras
áreas, voltaram-se para a agricultura e, graças aos incentivos financeiros do governo,
41
investiram em tecnologia e modernizaram-se
21
, mudando as características dos campos
brasileiros. Onde outrora havia pequenas colônias e sítios, as cercas foram derrubadas.
Desapareceram as casas e a diversidade de culturas e em seu lugar, instalou-se o modelo de
produção rural capitalista com a monocultura de agroexportação.
Com o declínio do plantio de café, nascia nos campos “o grão de ouro”, a soja,
monocultura implementada com uma metodologia de plantio mecanizada, aos moldes da idéia
importada de Revolução Verde
22
, que previa a revolução da agricultura e da pecuária por meio
da mecanização do campo, desenvolvida nas grandes propriedades. Ao contrário da
monocultura do café, esse tipo de cultura dispensava mão-de-obra dos camponeses, sendo o
trabalho de arado, plantio e colheita realizado por máquinas. Neste contexto, em que a
agricultura familiar era vista como atrasada, a crise destes trabalhadores foi aprofundada.
Além de sem terra, ficaram sem trabalho (Fernandes, 1999, p.390). Em conseqüência, a
década de 70 ficou marcada como o período de maior êxodo rural da história do país
23
.
As políticas governamentais implementadas neste período significaram um
retrocesso na realidade objetiva destes trabalhadores, além de reforçar politicamente “a
irracionalidade da propriedade fundiária no desenvolvimento capitalista, reforçando,
conseqüentemente, o sistema oligárquico nela apoiado”, como afirmou Martins (1994, p.80).
21
Utilizo o termo modernização a partir da conceituação que lhe confere Celso Furtado (1992). Para esse autor, a
modernização envolve uma complexa relação entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Estes últimos
assimilam tecnologias produzidas pelos primeiros, sobretudo no setor de consumo. Atados nessa relação, os
países subdesenvolvidos não conseguem alavancar suas próprias tecnologias e não quebram o ciclo de
dependência econômica em relação às nações desenvolvidas. A conseqüência da dependência econômica é a
constante renovação do ciclo do subdesenvolvimento. No campo, a agricultura se modernizou através da
assimilação de tecnologias avançadas, que aumentaram a produtividade, mas que não alteraram substancialmente
as relações de produção, permanecendo a dependência das tecnologias desenvolvidas em outros países.
22
A “Revolução Verde” surgiu na década de 50 no Estados Unidos. Tratava-se de um pacote para agricultura
incluindo maquinários de alta tecnologia, agrotóxicos e modificação genética das sementes. Segundo Gonçalves
(2001), a denominação para este pacote, surgiu como uma espécie de contra-ataque dos norte-americanos à
“Revolução Vermelha” ocorrida na China, que nesse período “povoava o imaginário das pessoas”, sobretudo
após a Marcha de 6.000 Km realizada pela população chinesa, grande parte dela camponesa. Liderada por Mao
Tsé-Tung, um dos primeiros passos da revolução comunista, segundo Morissawa (2001), foi a desapropriação de
grandes e médias propriedades rurais, distribuindo-as entre milhões de camponeses. No esforço de tornar a China
um país desenvolvido, organizaram-se grandes cooperativas, denominadas “comunas rurais”, onde a produção
era organizada de forma coletiva. A proposta de Revolução Verde nasce como um contraponto a este modelo.
23
De acordo com o documento de fundação do MST, na década de 70, no Estado do Paraná, aproximadamente
2,5 milhões de trabalhadores deixaram o campo, no Rio Grande do Sul, 1,5 milhões e em Santa Catarina, 600
mil (In: Morissawa, 2001, p.139).
42
Diante deste cenário de injustiças, muitos trabalhadores rurais não se calaram.
Mesmo sob forte repressão ditatorial, as lutas camponesas ganharam força. Uma das políticas
do governo militar era a de destruir qualquer forma de mediação entre o Estado e o povo, ou
seja, qualquer intervenção que pudesse de alguma forma politizar o debate sobre a reforma
agrária. Assim, os sindicatos, os partidos, as organizações que funcionavam como
mediadores, eram violentamente reprimidos na figura de suas lideranças. A intenção era
esvaziar politicamente os campos e as cidades, enfraquecendo as resistências e deixando
espaço para as imposições ditatoriais (Martins, 1985, p.31). Na esteira deste processo, muitos
foram os assassinatos no campo e nas cidades. Segundo Bernardo Mançano Fernandes (2000),
a repressão era tão intensa, que no último ano do governo militar, 1985, a cada dois dias um
trabalhador rural era assassinado.
A repressão violenta não era ação exclusiva do Estado. Os fazendeiros montavam
grupos paramilitares com pistoleiros e capatazes os quais, ainda que de forma tácita,
consideravam-se e eram considerados aliados do governo na “manutenção da ordem”, o que
lhes garantia a certeza de impunidade. Para Martins, “nunca na história do Brasil o latifúndio
foi tão poderoso no uso da violência privada e nunca as forças armadas foram tão frágeis em
relação a ele quanto durante o regime militar” (1994, p.83).
Nessas condições de repressão aos intermediários das lutas sociais, os bispos da
Igreja Católica ligados à CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, conseguiram
furar o bloqueio militar e passaram a intermediar os conflitos, apoiando os trabalhadores do
campo e da cidade
24
. Os bispos ligados à região da Bacia Amazônica e região Centro-Oeste
passaram a perceber e a denunciar os problemas trazidos pelos programas de desenvolvimento
unilateral, como no caso da SUDAM, que visavam beneficiar somente os grandes
investidores.
No início da década de 1970, os conflitos na região amazônica se agravaram com a
abertura da Rodovia Transamazônica, que em alguns trechos atravessou territórios indígenas
até então isolados do contato com o homem branco. Segundo Martins (1994), este trágico
encontro trouxe às tribos indígenas uma realidade de violência, fome, doenças e mortes.
24
Por essa atuação, foram fortemente reprimidos. Muitos padres, freis, religiosos foram presos e torturados. Frei
Betto, em seu livro “Batismo de Sangue”, relata alguns episódios da repressão aos religiosos que de alguma
forma estavam ligados à Teologia da Libertação e aos movimentos de resistência no campo e na cidade. Martins,
afirma que a partir da oficialização da CPT, os agentes da pastoral passaram a ser perseguidos pelas forças
armadas, polícias estaduais e federais e pelos fazendeiros (1994, p. 84).
43
Foram contaminados por doenças para as quais não eram tão resistentes, como gripes e
doenças venéreas, que levaram inúmeros deles à morte. Aos que resistiam e defendiam seus
territórios, restavam os castigos impostos pelas chamadas “expedições punitivas” que, de
acordo com Martins (1994), não passavam de verdadeiras caçadas resultando no extermínio
quase completo das populações indígenas mais suscetíveis ao contato com os pioneiros
homens brancos (p.83, 134).
Para lidar com essa realidade, esse setor da Igreja passou por uma mudança na sua
orientação político-religiosa, entendendo que priorizar o atendimento aos pobres, significava
nesse momento, assumir uma postura de oposição explícita ao regime militar. De acordo com
Martins (1994), “era calar e consentir numa política econômica internacionalmente
denunciada como genocida ou alinhar-se com as vítimas e denunciar as brutalidades que
estavam sendo cometidas” (p.128). A Igreja Católica fez a opção de se aliar às vítimas e
organizou o Conselho Missionário Indígena – CIMI, em 1972.
Percebendo que esse processo de violência extremo também se estendia aos
camponeses e que, guardadas as diferenças regionais, os conflitos pela terra estavam
eclodindo em todo o país, os bispos organizaram também a Comissão Pastoral da Terra –
CPT, em 1975. A partir de então, os agentes da pastoral passaram a ser presença constante nos
campos de conflito em todo o país (Martins, 1994, p. 140). Iniciaram junto aos camponeses
um trabalho de resistência e conscientização que trazia um caráter ideológico bastante
marcado pela transformação dos ensinamentos religiosos em instrumentos de luta contra o
modelo econômico de exploração que os afastava do que lhes era de direito: a terra
prometida
25
. Metodologia fundamentada na teologia da libertação
26
.
25
Ou nas palavras de Heleonora, “Depois que eu comecei a ler a bíblia eu vi que a luta pela terra tava na bíblia,
isso me deu mais força pra luta pela terra” (Heleonora, 64 anos, entrevistada em 2003).
26
Segundo Morissawa (2001), “os teólogos da libertação fazem uma releitura das Sagradas Escrituras da
perspectiva dos oprimidos e condenam o capitalismo, considerando-o um sistema anit-humano e anti-cristão (...).
Na luta pela terra o Livro de Êxodo tem sido suporte para estudos e reflexões sobre a condição em que vivem os
trabalhadores rurais. (...) Essa postura foi resultado de decisões tomadas pela Igreja após o Concílio Vaticano II
(1965) e reforçada pela II e III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Medellín (Colômbia,
1968, e Puebla, México, 1979, respectivamente)”. (Morissawa, 2001, p. 105, grifos do autor). É importante
destacar, que o apoio da Igreja, foi por parte deste setor ligado a teologia da libertação, Comunidades Eclesiais
de Base – CEBs, CPT e CNBB. O fiéis ultra-conservadores da elite católica ligados à TFP – Tradição Família e
Propriedade, por exemplo, foram os propulsores da criação de movimentos de repúdio ao MST, jogando um
papel fundamental na formação da UDR – União Democrática Ruralista, criada em 1985 com a finalidade de
organizar os fazendeiros contra o MST (esse tema será melhor discutido no próximo capítulo). Sobre teologia da
libertação, ver: O que é teologia da libertação. São Paulo: Brasiliense, 1985. Sobre TFP, ver www.tfp.org.br;
www.catolicismo.com.br. Sobre UDR, ver www.udr.org.br
.
44
Particularmente nos anos de 1978 e 1979, as resistências organizadas dos
trabalhadores sem terra começavam a despontar em vários cantos do país. No Rio Grande do
Sul, durante a década de 60, algumas famílias arrendaram terras da reserva indígena
Kaingang, situada na região de Nonoai, por meio da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. O
número de famílias alijadas da terra foi aumentando com o crescimento da crise da agricultura
camponesa no sul. No final da década de 70, somavam mais de 1.400 famílias sem terra
ocupando este território. Com a crescente conscientização da causa indígena, os índios
reivindicaram a posse de seu território e, em um dia, as famílias camponesas – algumas delas
viviam ali há mais de 15 anos – foram despejadas. A maioria foi conduzida à cidade de Terra
Nova, no Mato Grosso, nos projetos de colonização do governo. No entanto, mais de 300
famílias se negaram a sair de seu Estado.
Em 7 de setembro de 1979, aproximadamente 110 famílias remanescentes deste
grupo, ocuparam a fazenda Macali. Mais tarde outras 170 famílias ocuparam a área vizinha, a
fazenda Brilhante. A ordem de reintegração de posse não tardou, mas as famílias resistiram
durante um ano sob cerco policial e, em setembro de 1980 o governador do Estado
comunicou-as que as áreas tinham sido desapropriadas. Era o primeiro assentamento realizado
com a metodologia da ocupação e acampamento. Depois destes vieram outros
27
. Era também
a ação política mais radical realizada desde 1964 (Branford; Rocha, 2004, p.27; Caldart, 2004,
p. 110).
Em maio de 1980, no Estado vizinho, Santa Catarina, agricultores sem terra
ocuparam a fazenda Burro Branco, no município de Campo Erê, no oeste catarinense. No mês
de novembro do mesmo ano a fazenda foi desapropriada e as famílias assentadas. Também no
Paraná, os trabalhadores sem terra estavam se organizando num movimento denominado
Terra e Justiça, para exigir do governo indenizações justas pelas desapropriações que
atingiram milhares de famílias de vários municípios na região do extremo oeste do Estado, em
virtude da construção da usina hidrelétrica de Itaipu. No Estado de São Paulo, os conflitos
surgiam em torno da fazenda Primavera, onde os posseiros pagavam arrendamento aos
grileiros, que mais tarde resolveram expulsá-los e destinar a terra à criação de gado. Os
27
Contudo, estas duas áreas não foram suficientes e mais de 40 famílias não tinham para onde ir. Em dezembro
de 1980, estas famílias iniciaram outro acampamento, num local que ficou conhecido como Encruzilhada
Natalino. Em poucos meses já estavam acampadas mais de 400 famílias. A experiência vivida por estas famílias
e por aqueles que as auxiliaram, foram de fundamental importância na construção do MST. Alguns autores
afirmam que ali nascia o MST. Uma descrição mais detalhada do acampamento da Encruzilhada Natalino pode
ser encontrada nas seguintes obras: Branford; Rocha, 2004, p.32–40; Morissawa, 2001, p. 125.
45
posseiros buscaram a intervenção da justiça. Com a criação da CPT na região, adquiriram
também um espaço de organização, conseguindo a desapropriação da fazenda, oficializando o
assentamento em julho de 1980 (Caldart, 2004, p.110-112).
No Mato Grosso do Sul, os grileiros arrendavam as terras para os agricultores e
utilizavam sua mão-de-obra a fim de formar as fazendas e pastagens. Quando as fazendas
estavam devidamente preparadas, os arrendamentos eram desfeitos e os agricultores tinham
que partir em busca de outras fazendas. A partir de 1979, eles decidiram resistir na terra que
ocupavam, ao invés de migrarem para outras regiões e transformaram as fazendas Entre Rios,
Água Doce e Jequitibá, no município de Naviraí, em pólos de resistência. Como os conflitos
na região foram muito intensos, o governo fez um projeto de deslocamento das famílias para a
região norte do Estado, ao qual muitas aderiram. As que ficaram, somaram forças para mais
tarde, em abril de 1984 – ligadas ao recém-criado MST – ocuparem os 18 mil hectares da
fazenda Santa Idalina, no município de Ivinhema, com a participação de aproximadamente
1.000 famílias (Caldart, 2004, p.114).
Diante de todas estas movimentações na luta pela terra no final da década de 70 e
início da década de 80, a partir de 1981, a CPT passou a organizar encontros regionais e
nacionais entre as lideranças dos trabalhadores rurais sem terra. Em 1982, dois importantes
encontros foram realizados: o Encontro Regional do Sul e o Seminário de Goiânia. No sul o
encontro ocorreu na cidade de Medianeira, no Paraná, e reuniu delegações do Estado
anfitrião, além de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo e Mato Grosso do Sul. As
deliberações que dele saíram caminhavam na linha de fortalecer o vínculo entre os
movimentos e realizar encontros estaduais e regionais (Morissawa, 2001; Stédile; Fernandes,
1999).
Dois meses depois, em setembro, o Seminário de Goiânia foi um pouco além.
Contou com a presença de delegações de 12 Estados. Neste encontro esteve presente como
consultor da CPT, o sociólogo José de Souza Martins e, a partir das discussões que surgiram
sobre a criação de um movimento nacional, Martins ponderou que um movimento que se
pretendesse nacionalmente forte e socialmente transformador deveria transpor os limites do
sul – onde os movimentos sociais rurais tinham um nível de organização mais avançado,
talvez como resultado de um nível de expropriação também maior, considerando que no Sul o
processo de modernização agrícola foi muito intenso – e organizar os trabalhadores do
Nordeste. João Pedro Stédile, uma das lideranças do MST, conta que os participantes saíram
46
deste Seminário marcados por dois desafios: nacionalizar o movimento e fazê-lo avançar para
o Nordeste (Fernandes; Stédile, 1999, p.21).
Estes encontros possibilitaram aos sem terra de diferentes localidades do país, a
reunião e, a troca de experiências que resultaram na decisão de formar um movimento
nacional de luta pela reforma agrária (Fernandes, 1999). Buscavam uma metodologia de luta
que se diferenciasse do trabalho feito pelos sindicatos rurais que erguiam também a bandeira
da reforma agrária, mas a faziam no plano jurídico e institucional, e os sem terra que estavam
participando destes Encontros e Seminários entendiam que a luta deveria ser feita com intensa
mobilização e pressão política (Medeiros, 2001; Stédile; Fernandes, 1999). No ano seguinte,
as reuniões fomentadas pela CPT foram realizadas em muitas cidades do sul do país e os sem
terra se aglomeravam em casas, igrejas, barracões, para discutir o problema da terra. Alguns
tinham a perspectiva de conseguir negociar com o governo estadual e outros começavam a
falar na necessidade das ocupações (Branford; Rocha, 2004).
Essa ebulição contagiante não era um fenômeno exclusivo das lutas rurais. O país
começava a adentrar o período de reabertura política. A ditadura militar entrava em crise e
começava a ruir. A partir de 1978, os movimentos operários, comunidades eclesiais de base,
sindicatos, estudantes, partidos, puderam voltar a atuar com um pouco mais de liberdade
política, mobilizando-se na luta pela redemocratização do país
28
.
Neste cenário, a luta pela reforma agrária somava forças às lutas urbanas, como as
históricas greves do ABC paulista em 1978, 1979
29
. Toda essa fermentação social culminou
na reivindicação das “Diretas Já”, movimento iniciado em março de 1983, numa referência ao
direito do povo à escolha do presidente, visto que no período ditatorial as eleições
presidenciais eram indiretas, ou seja, o nome indicado pelas forças armadas era homologado
pelo Congresso Nacional. Mesmo com toda a mobilização, a proposta da emenda das “Diretas
Já!” – também conhecida como emenda Dante de Oliveira, em referencia ao deputado mato-
28
Em 1978, expirou o prazo de validade do Ato Institucional n.5 – AI-5, instrumento que autorizava o Presidente
a cassar mandato de parlamentares, demitir ou aposentar servidores públicos, suspender direitos políticos, além
de enquadrar civis em atitudes contra a Lei de Segurança Nacional. Este decreto vigorou de 68 a 78, período de
violenta repressão a qualquer organização ou individuo que se levantasse contra o regime. Segundo Markun
(2004), “em dezembro de 1978, quase em sigilo, o AI-5 havia caducado. O ato tinha prazo de validade, mas, na
época, só o Jornal do Brasil registrou seu ocaso, numa sacada do jornalista Elio Gaspari, editor da primeira
página” (p.135, grifos do autor).
29
Em 1979 o DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos, contabilizou
mais de 430 greves em todo o país (Rodrigues, 2001). Ver: Kowarick, Lucio. (org). As lutas sociais e a
sociedade: São Paulo, passado presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
47
grossense que a havia proposto – foi derrotada na Câmara dos Deputados, em 25 de abril de
1984.
Três meses antes, de 21 a 24 de janeiro de 1984, reuniram-se em Cascavel, região
oeste do Estado do Paraná, 13 delegações de São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Rio
Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Espírito Santo, Goiás, Rondônia, Pará, Acre, Bahia e
Roraima, para fundar o movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Participaram
também representantes da CPT, Igreja Luterana, CIMI (Conselho Indigenista Missionário),
ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e representantes da recém-criada CUT
(Central Única dos Trabalhadores). Criava-se então, com a participação de aproximadamente
100 delegados e sob a reivindicação da reforma agrária, um movimento nacional de
agricultores sem terra (Branford; Rocha, 2004, p.40).
2.2. “Terra para quem nela trabalha e vive”: os primeiros passos na
construção e consolidação do MST
O primeiro encontro nacional do MST foi marcado mais pela importância das suas
deliberações e encaminhamentos para o avanço do movimento, do que por sua
representatividade. Segundo João Pedro Stédile (1999), um dos organizadores do encontro, as
deliberações traçaram uma plataforma de ação que, por influência da conjuntura nacional de
redemocratização do país, levou-os à ampliação da bandeira de lutas, que até então se
restringia à conquista da terra. Foram incluídos os objetivos de lutar pela reforma agrária e
por mudanças gerais na sociedade, expressos na palavra de ordem: “terra para quem nela
trabalha e vive!”.
Além da luta pela terra, oficializaram a bandeira de defesa da demarcação dos
territórios indígenas – mesmo não estando diretamente vinculados a esta causa. Em relação à
terra, a prioridade deveria ser a luta pela desapropriação de latifúndios pertencentes às
multinacionais, partindo da idéia de que um estrangeiro não deveria ter terras no país
enquanto houvesse um agricultor brasileiro sem terra, marcando desde então, o movimento
48
com um caráter nacionalista, ou “antiimperialista” (Stédile; Fernandes, 1999, p. 51). Além
disso, os participantes elegeram uma coordenação nacional para o movimento e definiram que
precisavam realizar um próximo evento com participação ampliada a todos os setores que
tivessem interesse na causa da luta pela terra.
Uma discussão importante que surgiu nesse encontro, como não poderia deixar de ser,
era relativa ao nome que o movimento deveria adotar. Segundo Bernardo Mançano Fernandes
(1999a), a terminologia sem terra, aparecia na Constituinte de 1946, quando pela primeira vez
se discutiu nesse âmbito a necessidade de uma reforma agrária. Também aparecia no nome do
MASTER (Movimento dos Agricultores Sem Terra). No final da década de 70, a imprensa, ao
se referir aos conflitos agrários do sul do país, retomou e divulgou esta terminologia.
Em várias localidades do Brasil, os trabalhadores sem terra recebiam, e ainda recebem,
uma denominação ligada às origens regionalistas. No sul se utilizava, ou se utiliza, a
terminologia colono, em virtude das colônias formadas pelos imigrantes europeus. No norte o
termo mais usado era, ou ainda é, posseiro, relativo àquelas famílias que viviam, em geral,
durante várias gerações na mesma terra, sem um documento legal de posse (Branford; Rocha,
2004, p. 43). No sul e sudeste, assalariados, ou trabalhadores volantes, são chamados de
bóias-frias. Tem-se ainda, os arrendatários ou foreiros, que alugam um lote de uma fazenda,
e os meeiros ou parceiros, que dividem a produção com o fazendeiro em troca de um pequeno
local para morar e produzir. Além de outras terminologias que vão variar de acordo com os
regionalismos. Medeiros (2001), afirma que na década de 50 começaram a surgir, por
iniciativa dos mediadores dos conflitos agrários – organizações, depois os sindicatos – termos
que procuravam unificar estas tantas denominações. Assim, surgiram os termos lavradores,
trabalhadores agrícolas, e na década de 60, o termo camponês.
Nesta mesma perspectiva, o movimento buscava um nome que unificasse todas estas
categorias, visto que uma das resoluções principais do primeiro encontro era de que o MST
deveria ser um movimento de massas, o que significava acolher a todos, de origem rural ou
não. Inicialmente não havia um consenso entre os participantes na escolha do nome. Foi
utilizada como critério para chegar a uma definição a idéia de que, independentemente das
várias denominações, todos eram trabalhadores, e trabalhadores inseridos numa sociedade de
classes. A partir de então, entraram num consenso e adicionaram trabalhadores rurais ao
nome pelo qual já eram conhecidos, constituindo-se na denominação Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, mantendo na sigla, por questão de praticidade, a
49
denominação original, MST (Stédile; Fernandes, 1999, p. 47; Branford; Rocha, 2004, p. 43).
Segundo Medeiros (2001), hoje o termo sem terra é mais do que a denominação aos
despossuídos da terra, ele passa a indicar uma identidade política (p. 107, 110).
O saldo do primeiro encontro nacional do MST consistiu, entre outras coisas, na
definição de um ideário político que buscava a autonomia da organização nascente em relação
às lutas pela reforma agrária levadas a cabo pelas organizações existentes, como no caso dos
sindicatos, por exemplo, caracterizados por trilhar vias mais institucionais. A partir desta
compreensão, definiram que utilizariam a pressão política como instrumento de negociação,
por meio da ação unificada de milhares de famílias – outra diferença importante em relação ao
sindicalismo que trabalhava com a filiação de indivíduos (Branford; Rocha, 2004, p.42). Em
contraponto ao sistema de filiação formal, o movimento optou pelo critério da adesão política
(Medeiros, 2001, p. 110).
Outro ponto importante, e de difícil consensualização, foi a discussão de
independência em relação às instituições religiosas. Ao fim, por intervenção dos próprios
religiosos que defenderam a posição de que o movimento precisava aprender a “andar com os
próprios pés” (Pedro Casaldáliga, apud, Branford; Rocha, 2004, p.41), foi definida também, a
autonomia política em relação à Igreja e aos partidos políticos
30
.
Além destes princípios, mais quatro objetivos foram definidos nesta ocasião e,
segundo Branford e Rocha, consistiam em “lutar pela reforma agrária; lutar por uma
sociedade justa, fraternal e pelo fim do capitalismo; incluir os trabalhadores rurais,
arrendatários, meeiros e pequenos agricultores na categoria de trabalhador sem terra; e
garantir que a terra seja de quem nela trabalha e dela viva” (op.cit., p.42).
Saindo do encontro, as ocupações começaram a ocorrer, porém se fortaleceram e
ganharam visibilidade nacional a partir do I Congresso do MST, realizado no ano seguinte,
em janeiro de 1985, na capital do Estado do Paraná, Curitiba. Desta vez, segundo Branford e
Rocha (2004), estavam presentes aproximadamente 1.500 delegados vindos das mais diversas
regiões do país. Dentre os delegados, participaram também líderes indígenas, sindicais, igrejas
30
José de Souza Martins (2005), contesta a afirmação de que o MST seja uma organização, ou um movimento
inteiramente independente: “O MST é certamente uma organização constitutiva do Partido dos Trabalhadores,
uma base do partido. Sem a Pastoral da Terra – da qual o MST se origina – e sem o MST, dificilmente o PT
teria se expandido tão extensamente no interior e dificilmente se tornaria o único partido brasileiro com uma
ampla base rural e popular. Em termos da extensão territorial de sua presença, o PT é muito mais um partido
rural do que um partido operário”.
50
– principalmente católica e luterana – organizações não governamentais, o também recém-
criado – em 1980 – Partido dos Trabalhadores
31
, além de delegações de organizações
camponesas da América Latina (op.cit, p.52).
Os delegados do congresso, ratificaram os princípios de independência e o método de
construção por meio das ocupações, definindo a palavra de ordem “ocupação é a única
solução”. Palavras que expressavam a linha política adotada, após um importante debate
travado nesta ocasião. Depois de duas décadas de ditadura militar, iniciava-se a construção de
um governo civil com a Nova República
32
. Muitos setores da esquerda acreditavam que o
novo governo faria a reforma agrária, setores inclusive ligados à Igreja, ao PCB e PCdoB,
como afirma Stédile. Depois de um intenso debate chegaram à conclusão de que as ocupações
deveriam continuar sendo seu melhor instrumento de luta (Stédile; Fernandes, 1999, p.51)
33
.
Definidos os princípios e linhas políticas, passaram a discutir a forma de organização
que estabeleceriam. Com a ênfase na construção de uma democracia interna sólida, optaram
pela organização de coletivos – que hoje são chamados de setores – responsáveis por tarefas
administrativas, financeiras, recrutamento, treinamento. Estes deveriam estar diretamente
interligados, fazendo a ponte entre as diferentes regiões e as diferentes instâncias do
movimento – que estavam sendo ali definidas, de forma a envolver todos os integrantes do
MST. Optaram, ainda, pela instituição de uma coordenação nacional, em contraponto à
31
Luis Inácio Lula da Silva, ou simplesmente Lula, esteve presente no congresso representando o PT e, segundo
Branford e Rocha, “fez um estimulante discurso e expressou a confiança de que, em breve, seu partido ganharia
força. Prometeu que, se eleito presidente da República, acabaria com os latifúndios, apoiaria as famílias dos
agricultores e eliminaria a miséria” (2004, p. 52).
32
Foram indicados dois candidatos à Presidência da República, para a homologação do Congresso Nacional:
Paulo Maluf, candidato da situação que teve 26% dos votos e, Tancredo Neves, candidato da oposição que
venceu as eleições com 69% dos votos. Era o início da Nova República. O Presidente eleito indiretamente, não
chegou a tomar posse. Faleceu deixando o mandato para o vice José Sarney, que assumiu a presidência em
março de 1985.
33
Alguns anos depois Stédile avaliou que essa decisão de não esperar pela reforma agrária da Nova República,
foi um acerto político: “O movimento teria acabado se aderisse à Nova República naquele Congresso. O MST
era fraco, estava apenas no seu início. Se a gente se juntasse com uma força maior e reformista, a organização
tinha acabado” (Stédile; Fernandes, 1999, p. 52). O governo Sarney elaborou o Plano Nacional de Reforma
Agrária – PNRA, com o intuito de viabilizar o assentamento de 1,4 milhão de famílias. Segundo o documento
“Quem somos”, do MST, “ao final de um mandato de 5 anos, assentou menos de 90 mil famílias sem-terra. Ou
seja, apenas 6% das metas estabelecidas no PNRA” (Disponível em: www.mst.org.br). Isso porque sofreu muita
pressão da bancada ruralista, organizada na recém-criada (1985) União Democrática Ruralista – UDR. Contudo,
no governo Sarney não houve repressão aberta ao MST. Stédile afirma que “na época do Sarney, quando o
governo não agilizava o assentamento, ninguém nos tirava da área ocupada. Virava, na prática, um
assentamento” (Stédile; Fernandes, 1999, p. 67). Situação que não se repetiu nos governos seguintes – Collor de
Melo/Itamar Franco (1990-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
51
existência de um presidente. Essa coordenação foi formada por representantes dos 12 Estados
onde o movimento existia ou estava se organizando
34
(Branford; Rocha, 2004, p.56).
Nos meses que sucederam o congresso, as ocupações começaram a se intensificar por
todo o país. De acordo com Stédile (1999), aproximadamente 5.000 famílias participaram da
ocupação de 18 fazendas no oeste catarinense, o que ele define como uma das maiores ondas
de ocupação da história do movimento em uma única região (Stédile; Fernandes, op.cit, p.52).
O MST foi se consolidando no cenário nacional, destacando-se pela forma
diferenciada de construção e ação, o que o levou a ser um dos mais expressivos movimentos
sociais da atualidade. Por meio da promoção de atividades de ação coletiva, como
acampamentos, ocupações, marchas, greves de fome e manifestações, questionam os limites
da ordem social vigente (Morissawa, 2001), por meio de ações que garantem a visibilidade do
movimento e fortalecem o que alguns autores chamam de identidade sem terra.
Cristhiane Chaves (2000), aponta a constituição da identidade sem terra como um
dos principais elementos de construção e fortalecimento do movimento, pois através dela é
possível canalizar o sonho da posse da terra, comum a milhares de agricultores excluídos do
direito de produzir sua subsistência. A força deste sonho é direcionada para a resistência e
contestação da ordem social.
Com reivindicações retiradas da existência concreta de um grande número de
trabalhadores sem terra e, segundo Stédile (1999), com uma preocupação em criar e manter
uma identidade de grupo a partir de um trabalho de “auto-estima”, o MST vem nas duas
últimas décadas, organizando trabalhadores rurais sem terra em praticamente todos os estados
do país. Em todos estes anos o movimento priorizou uma metodologia pautada na ocupação,
acampamento, criação da identidade sem terra, mística e assentamento.
34
Hoje, 2006, o MST atua em 23 Estados e tem uma coordenação nacional composta por 21 membros militantes.
Os coletivos se transformaram em setores e atualmente são divididos em seis frentes de intervenção: produção,
cooperação e meio ambiente; direitos humanos; educação; gênero; saúde e cultura. Disponível em:
www.mst.org.br
52
2.3. “Chegou uma hora que não dava mais, daí nós resolvemo vim pra
acampar”: o início do processo de adesão ao MST
Antes de vir para o MST eu trabalhava de doméstica numa chácara. Lá eu
fazia tudo. Então percebi que o que fazia na terra dos outro poderia fazer na
minha (...). Então numa época veio o Zé Rainha fazer umas palestra na
região e eu assisti e gostei, eu vi que a vida que eu tava levando como
empregada não ia me leva a lugar nenhum. Daí decidi que tinha que entra
na luta (....). Fomo eu e minhas duas filhas e tamo aqui até hoje. (Lúcia, 48
anos).
35
A vida dos trabalhadores rurais que ingressam no Movimento Sem Terra se divide
em antes e depois do MST. Ao relatarem suas histórias, estes trabalhadores falam do mundo
novo que começa a surgir a partir da decisão de aderir ao movimento. É, na maioria das vezes,
uma decisão difícil, que envolve o exercício de relativização e, por vezes, a ruptura com uma
série de crenças e princípios, resultando numa mudança de vida repentina e radical.
Roseli Caldart (2004), em seu livro sobre a pedagogia do MST, afirma ser este o
momento em que se trava uma importante batalha com dois gigantes enraizados histórica e
culturalmente na constituição psicossocial destes sujeitos: o medo e o conformismo. O medo
que se apresenta diante de uma situação inusitada, cuja demanda consiste em deixar para trás
o pouco que ainda têm, ou que acreditam ter, para ocupar uma terra e iniciar uma nova vida
num acampamento que pode durar meses ou anos, até que se conquiste a terra de fato,
enfrentando todo o tipo de adversidades. Além do medo, é preciso vencer o conformismo,
esse gigante que é “filho da autoridade com a generalidade e a lei e a regra”, como bem
definiu Da Mata (1978, p. 25). Numa sociedade composta de tantas desigualdades sociais,
uma das maneiras de manter o status quo é trabalhar com a idéia de um destino imperioso
diante do qual o miserável trabalhador é totalmente impotente e, via de regra, é levado a
acreditar que a situação tal como está poderia ser ainda pior, acabando por se conformar com
a autoridade, a lei e a regra das coisas tais como se apresentam. Para derrotar estes dois
35
Optei por respeitar a forma de expressão verbal dos/as entrevistados/as, não fazendo as correções ortográficas
e gramaticais que do ponto de vista formal seriam necessárias, mantendo as frases tal como foram ditas. As
frases consideradas mais importantes para a discussão apresentada foram destacadas em negrito.
53
gigantes é preciso pôr em movimento outros dois, maiores e mais fortes: a necessidade e a
esperança.
A necessidade, o fantasma da fome, da miséria, e a esperança de uma vida com o
mínimo de dignidade e conforto, colocaram estes homens e mulheres diante da opção de
ingressarem no MST. Ainda com uma idéia vaga do que seria a ocupação, o acampamento, a
organização política da qual fariam parte, embarcaram nessa empreitada com apenas uma
certeza: a necessidade de lutar por um pedaço de terra de onde pudessem tirar seu sustento
com dignidade. Para tanto, a organização se fazia necessária, como enfatiza Pedro ao falar
sobre as motivações que o impulsionaram, juntamente com a esposa, Clara e o único filho do
casal, a ingressarem no movimento:
Nós podia ficar o resto da vida trabalhando pros outro que nunca ia
consegui comprar um meio alqueire de terra, de jeito nenhum (...) quem
que agüenta comprar um alqueire de terra hoje? A terra por mais fraca que
seja vale 12, 15 mil o alqueire né, pobre não compra. Isso ele pode tirar da
cabeça que ele nunca vai compra (...),se a gente não for sem terra, terra ele
não compra hoje, do suor dele ele não compra um alqueire de terra, nem
meio alqueire ele compra mais, hoje em dia não. Por mais bom que seja o
emprego dele ele vai ganhar pra come se for uma pessoa que tem pouco
estudo né, agora uma pessoa que são bem estudada tem bom salário tudo
bem, agora a parte, como se diz, a parte pobre, o salário dele é de dois, três
salarinho abaixo, então ganha pra comer, não dá pra comprar nada, não
vão comprar nunca né. (Pedro, 63 anos).
Para chegar a esta conclusão, Pedro e Clara passaram por inúmeras dificuldades,
chegando a abandonar a vida no campo e, partindo para a cidade em busca de trabalho, como
relata a esposa:
O começo de nós vim parar no sem terra, foi assim, a gente morava num
arrendamento, moramo três anos lá mas era terra arrendada, sabe, e depois
daí nós desanimamo na verdade porque a gente trabalhava muito e depois
de todo o ano não livrava nada. Daí nós desanimamo e viemo embora pra
cidade. Mas ficamo lá dois anos e não arrumava emprego, não arrumava
nada, a gente vivia de bóia-fria. Daí moramo dois ano e meio lá sabe? Mas
a situação só foi cada vez ficando mais difícil, porque não tinha emprego,
uma cidadinha pequenininha, e tinha que a gente viver de bóia-fria e bóia-
fria lá é uma vez por ano só, duas vez. Daí desanimou a gente demais, a
gente viu que chegou numa situação que nós ia passar fome né? (...) Daí
viemo pra Curitiba, fomo pra lá pra Curitiba, daí chegou lá trabalhou uns
54
três mês né, a fio assim, depois não conseguia mais emprego, porque na
verdade se ia numa firma lá, eles fala que a pessoa na idade dele [do
marido] não tem validade, porque é velho já, daí não tem validade. E eu
com o menino pequeno ainda na escola (...) daí a gente foi, chegou numa
situação que pagar prestação de terreno e água e luz com salário não tinha
como mais, não tinha como, na verdade a gente comprava malemal o arroz
e o feijão só (...). Daí chegou uma hora que não dava mais, daí nós
resolvemo vim pra acampar. (Clara, 45 anos).
A história de Pedro e Clara guarda semelhanças com a história de centenas de outros
trabalhadores rurais que por motivos semelhantes aceitaram o convite, trouxeram os poucos
bens materiais, dispondo-os em baixo da lona preta e iniciando um longo período de espera,
trabalho, dificuldades e repressão.
2.4. Frente de Massa: a porta de entrada para o MST
O convite para participar do movimento pode vir de um membro da família, amigo
ou conhecido que tenha conseguido terra por meio do MST. Mas em geral é feito por alguns
militantes, que são destacados para fazer contato com trabalhadores de uma determinada
região, apresentando o MST e convidando-os à integrarem o acampamento, ou participarem
da ocupação. Mais tarde, somam-se aos militantes os primeiros moradores que aceitaram o
convite. Esta contribuição é fundamental, por serem eles conhecedores da geografia da região,
dos costumes locais e dos moradores, o que os leva a compor a frente de massas, com a tarefa
de convidar seus pares, vizinhos, amigos, familiares, e demais habitantes daquela localidade
para se juntarem ao movimento. Além desta, desenvolvem também a tarefa de ajudar a pensar
e organizar a ocupação.
Para Sue Branford e Jan Rocha (2004), esse trabalho é uma espécie de rito de
iniciação, que faz com o que novo militante se sinta parte do movimento. O Setor de Frente de
Massas foi o primeiro a ser criado. Surgiu a partir da necessidade e do interesse de alguns
integrantes diretamente envolvidos com as ocupações, preocupados em traçar táticas de
ocupação que levassem em consideração a forma de ação dos fazendeiros, via de regra
55
pautada em métodos violentos. A denominação surgiu de forma espontânea entre os militantes
e acabou por se tornar o nome oficial deste setor, responsável pelos passos iniciais de ingresso
no MST. (Stédile; Fernandes, 1999, p.93).
2.5. Ocupação: um processo político e pedagógico
Vencidos o medo e o conformismo e inebriados pelo sentimento de esperança na
conquista da terra, estes trabalhadores aceitam o desafio de “cortar o arame” e realizar a
ocupação. Mesmo que ainda não consigam compreender todo o sentido da ocupação, sabem
que se trata de um momento ímpar que pode trazer mudanças radicais na sua forma de pensar
e ver o mundo.
Derrubar a cerca do latifúndio significa também se fazer presente, colocar para a
sociedade o problema que não é de uma dezena de trabalhadores rurais, mas de milhares que,
uma vez organizados, saem do anonimato e da invisibilidade social. Derrubar a cerca do
latifúndio significa “tomar a própria vida nas mãos”, como diz Caldart (2004), colocar-se
como sujeito num processo importante de contestação e resistência, exigindo direitos como
cidadão e não mais implorando favores e recebendo em troca humilhações e miséria. É o
momento em que recuperam, ou desenvolvem, a auto-estima e o sentimento de pertencer.
Sentem-se fortes para questionar os dogmas, princípios e valores que foram ensinados a
cultivar ao longo da vida, sendo o respeito ao estabelecido um dos mais importantes. “Seu
princípio de formação era obedecer sempre ao patrão, ao padre, ao prefeito, ao coronel...
Aprenderam isso na família, nos poucos anos (ou dias) em que estiveram na escola, na igreja
que freqüentavam...” (Caldart, op.cit, p. 169). Confrontar todo este aprendizado é um ato
gigantesco para estas famílias e é também “o estopim para um profundo processo de
transformação pessoal e política” (Branford; Rocha, 2004, p. 100).
A psicóloga Bader Sawaia (1994), discutindo em um de seus trabalhos estes
momentos cruciais na transformação subjetiva dos indivíduos, afirma que o despertar da
consciência não é um processo espontâneo, autônomo e descolado da realidade, mas se inicia
com o encadeamento do pensamento às condições concretas de existência. Nestes momentos,
56
vislumbra-se a possibilidade de ocorrerem saltos qualitativos rumo à consciência crítica.
Afirma ainda, posteriormente, que apenas o despertar ou a tomada de consciência crítica não
são suficientes para promover transformações significativas na vida do sujeito, é necessário
que essa conscientização se transforme em potencialização:
Nem sempre o avanço da crítica social resulta em potência para agir em
favor de si e do outro, por isso tomada de consciência deve ser ampliada e
substituída por potencialização (...) Potencializar amplia o conscientizar,
pois une o que estava cindido: razão, afetividade, corpo e desejo, num
processo contínuo de configuração de mediações internas, pelas quais o
poder externo reforça e viabiliza a cegueira e a impotência social. Seu
objetivo é colaborar com a construção de individualidades que transcendam
qualquer pressão social que possa reprimi-la ou deformá-la (Sawaia, 1999, p.
24. Grifos da autora.).
No caso dos sem terra, estar diante da cerca a ser rompida – a cerca do latifúndio –
coloca-os numa situação concreta de repensar e ressignificar toda uma vida, e é neste
momento que ocorrem os saltos de consciência que os potencializa para ação “em favor de si
e do outro”.
Nesta nova etapa da vida, vão lentamente desconstruindo valores, sobretudo o dogma
da propriedade privada como um baluarte sagrado de sustentação social, e aprendem a pensar
e realizar o que outrora era impossível: que a propriedade privada deve estar subordinada à
vida e ao trabalho. Entendem que diante de uma situação radical de privação e injustiça, a
reação deve vir também de forma radical, na tentativa de sensibilizar a sociedade. A
metodologia da ocupação é, portanto considerada, segundo Caldart (2004), a essência política
e pedagógica do MST.
Por se tratar de uma ação radical, coloca na ordem do dia a questão da reforma
agrária e da política de concentração de terras, sendo tema de discussões nos mais variados
locais, desde os tribunais de justiça até as mesas de bares, exigindo que os mais diversos
setores, entidades e indivíduos, assumam uma posição. O MST trabalha com a política de que
“a lei vem depois do fato social, nunca antes”, diz Stédile (1999, p. 115), assim consideram
necessário ocupar a terra primeiro para depois exigir a aplicação da lei, ou seja, a
desapropriação do latifúndio improdutivo – questões que geram confrontos com as
57
instituições sociais e que são usadas, pelos meios de comunicação, para a criminalização do
movimento.
Depois da ocupação, os sem terra passam a perceber a força e a necessidade da
organização em coletivo. A representatividade de centenas de pessoas organizadas
politicamente em coletivo e exigindo um direito é considerada por eles como um ato político,
que pode ser legitimado socialmente. Se fosse realizado por um indivíduo isolado, perderia a
força e a conotação política, sendo certamente enquadrado como um ato criminoso
36
.
Mariano, um dos coordenadores do assentamento Dom Hélder, na ocasião da primeira
pesquisa, em 2003, fala sobre a necessidade da organização em coletivo:
36
É importante mencionar, que no dia 29 de novembro de 2005, foi aprovado pela Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito da Terra – CPMI, um relatório proposto pelo deputado Abelardo Lupion (PFL/PR). O deputado, em
nome da bancada ruralista, propôs a criação de uma lei que defina como ato terrorista e crime hediondo a
ocupação de terras. Além disso, propôs o indiciamento de cinco líderes do MST, sob a acusação de crimes de
formação de quadrilha, extorsão, entre outros “crimes” relacionados às práticas do Movimento. Além destes,
propuseram o indiciamento de outros dirigentes da Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca) e da
Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab). Fato considerável também é que o
deputado Lupion não era o relator oficial desta CPMI. No entanto, o relatório oficial proposto pelo deputado
João Alfredo (PSOL/PA) em suas conclusões propunha “um cadastramento de terras no país, a atualização dos
índices de produtividade, o fortalecimento dos órgãos responsáveis pela reforma agrária e a retomada da PEC
287 de 2000, que limita o tamanho das propriedades rurais”*. O estudo realizado pelo deputado João Alfredo,
apresentado como relatório, é realmente bastante denso, abrangendo todos os estados do país, enfocando os
problemas da violência no campo, grilagem de terras, trabalho escravo, entre outros temas (disponível na íntegra
no site do deputado, listado abaixo). Via de regra, as bancadas votam com o relator, porém neste caso o relatório
oficial foi derrotado por 13 votos a oito. Para o deputado João Alfredo, o relatório aprovado “incrimina as
vítimas, impede a reforma agrária e desconhece o que acontece no campo brasileiro. Não menciona em uma só
linha a grilagem nem o trabalho escravo; é indigno desta CPMI e do Congresso Nacional como um todo” **.
Aparentemente o mais grave de toda esta situação, é a indicação de se legalizar a criminalização do MST, uma
vez que nessa perspectiva, os que lutam pela reforma agrária poderão ser considerados terroristas.
*Disponível em:http://www.luci.com.br/index.php?a=mostra_ultimas.php&ID_MATERIA=367. Acesso em
05/12/2005.
**Disponível em: http://www.joaoalfredo.org.br/detimp.asp?Det=1582. Acesso em 05/12/2005.
Sobre esse episódio, o cientista político Emir Sader escreveu, em 30/11/2005, um texto intitulado: “A hedionda
direita brasileira”, publicado em diversas páginas da internet. Transcrevo abaixo alguns trechos.
“Hedionda a injustiça social no Brasil, que tem suas origens mais profundas na concentração da terra.
Hediondo o latifúndio, a apropriação indevida de terras, mantidas improdutivas, quanto milhões de
trabalhadores lutam pelo direito a viver do seu trabalho no campo brasileiro. Hedionda a violência no campo,
promovida pelos latifundiários, com suas políticas paralelas, toleradas e legitimadas pela Justiça. Hedionda a
atitude dos governos e dos políticos brasileiros, que fazem de nosso pais o único que nunca fez a reforma
agrária. (...) Hedionda a decisão da CPI do Congresso, hediondos todos os coniventes com ela. Hediondos os
que criminalizam os trabalhadores sem terra, que lutam pelo seu direito inalienável de trabalhar. Hediondo os
que protegem terras improdutivas, enquanto milhões não têm acesso à terra. Hedionda a elite brasileira,
hedionda a concentração da terra, hedionda a injustiça social, hedionda a violência contra os trabalhadores
sem terra. Hediondos os deputados da CPI que aprovaram esse hediondo relatório, que merece processos por
falta de decoro parlamentar contra o povo brasileiro.”
Disponível em: http://www.mst.org.br/biblioteca/textos/realbrasil/emirhediondo.htm. Acesso em 05/12/2005.
58
Acho que as pessoa vão se conscientizar que a terra hoje é fruto da luta
conjunta, e as conquista que virão se dão em coletivo porque ninguém vive
sozinho (...). O que diferencia a luta de outra profissão é que na luta se eu
ganho hoje eu não promovo só minha família, mas todo mundo que tá junto.
Se eu tenho pão o outro também tem. Acho que o ideal vai além da reforma
agrária, é buscar uma sociedade mais justa e igualitária. (Mariano, 42
anos).
Mariano afirma que “não tem dinheiro que pague a conquista de uma terra”, pois
são conquistas que vão para além do material, são também conquistas subjetivas. Renovam-se
os sonhos, as esperanças, os recursos emocionais e os instrumentos políticos para alcançá-los.
Recuperam a sensação de inclusão e amparo pela comunidade da qual agora fazem parte, o
que fica explícito nas palavras de Mariano, quando diz que sua família vive na cidade “em
outra realidade”, e continua: “minha família hoje é o MST. Diante disso, é possível
compreender as palavras de Caldart (2004), quando afirma que, “ao pisar a terra ocupada, os
sem terra retomam simbolicamente o direito à vida que começaram a perder quando da terra
foram arrancados.” (p.173). Percebem, a partir de então, que é possível redesenhar o curso da
vida e, ainda que com uma palheta limitada de tons, dar à ela um outro colorido.
2.6. “Esse negócio de barraco até os cabelo branqueou”: a vida debaixo da
lona preta
Uma pequena cidade de gente livre, altiva, que se recusou a morrer de fome
ou comer lixo nas grandes cidades. Legitimam-se não pela propriedade, mas
pelo trabalho, nesse mundo em que o trabalho está em extinção. Legitimam-
se porque fazem História, num mundo que já proclamou o fim da História.
Esses homens e mulheres são um contra-senso porque restituem à vida um
sentido que se perdeu, porque reinventam a humanidade, sua grandeza, suas
misérias (Tierra, 1996, p. 8 - 9).
59
A chegada no acampamento é acompanhada por uma efervescência de sentimentos.
Entusiasmo, medo, alegria, esperança se misturam às dificuldades, que vão surgindo logo nas
primeiras horas e que serão companheiras constantes no decorrer desta etapa da trajetória.
A primeira dificuldade surge com a construção do barraco de lona, o que para muitas
famílias é uma novidade, como conta Clara: “Na hora que a gente chegou assim, a gente
achou meio esquisito nunca tinha visto barraca de lona”. Apesar do choque inicial, a família
não demorou muito a se adaptar: “depois já no outro dia a gente viu que tava todo mundo
contente ali, a gente se animou também. Daí já acustumamo”. Para Lúcia, a adaptação foi um
pouco mais demorada: “a gente acostumada a morar em casa, morar em barraco é difícil”.
Os barracos de lona preta, organizados na beira da estrada, na terra ocupada, ou em
terras emprestadas – que, em alguns casos, abrigam os sem terra depois dos despejos, por
exemplo – denunciam aos que por ali passam, as desigualdades sociais. Elas agora saltam dos
noticiários dos jornais, e se configuram no cotidiano das dezenas, centenas e até milhares de
famílias que vivem meses, ou anos, debaixo da lona preta. Leôncio ainda estava no
acampamento, quando, em meio às lágrimas, proferiu estas palavras: “Cinco anos não são
cinco dia. Eu não tenho vergonha de chorar, porque é vento, é chuva, é cinco ano, vira pra
lá, vira pra cá (...) esse negócio de barraco até os cabelo branqueou”.
Além do barraco, outras adaptações difíceis se fazem necessárias. A roupa que tem
que ser lavada no rio, geralmente um tanto distante dos barracos. Os banheiros que
normalmente são precários e coletivos. Tudo tem que ser improvisado, cama, fogão, mesa,
armários. As dificuldades são muitas e, inevitavelmente assustam o recém-chegado. A fala de
Julia ilustra bem esse momento:
Quando eu cheguei lá pra mim foi horrível, por causo que quando eu tava
em Londrina, tinha água, tinha luz, casinha de material, na verdade não era
minha, mas eu tava bem. Aí que quando eu cheguei lá pra mim foi horrível,
porque eu jamais que eu ia pensar que eu ia lutar daquele jeito né. Eu
entrei numa mangueira, era um mangueirão, o chão só tinha bosta de
vaca. Fogão tive que fazer de barro sujando toda a mão pra cozinhar.
Catar guanxuma pra fazer vassoura. Água eu tinha que puxar longe.
Energia tinha energia, mas.... Pra mim foi horrível! Mas acostumei, a
gente tem que acostuma com o que é bom e com o que é ruim. (Júlia, 47
anos).
60
Como disse Júlia, é preciso se acostumar e aprender a conviver com essa nova
realidade. Para tanto a organização interna se faz necessária. Logo na chegada, as famílias se
organizam por núcleos de base, geralmente composto por famílias provenientes das mesmas
regiões. Os grupos comportam de 10 a 30 famílias, dependendo do tamanho do acampamento.
Estas famílias vão construir seus barracos bem próximos, de modo a facilitar a comunicação,
organização e defesa, em caso de despejo. Os núcleos reúnem-se com bastante freqüência e,
discutem problemas cotidianos das mais variadas ordens, desde saúde, higiene, alimentação,
educação, estudos e discussões políticas preparatórias para os momentos seguintes. Um ou
mais representantes de cada núcleo participam da Coordenação Geral do Acampamento, que
ajuda a encaminhar os problemas apresentados pelos núcleos e além disso, é responsável pela
coordenação e articulação política com o município, entidades de apoio e simpatizantes
(Caldart, 2004).
Nas reuniões em núcleo e depois na assembléia geral do acampamento, os
acampados discutem, propõem e votam as diretrizes organizativas necessárias à vida em
coletivo. Todas as decisões políticas e demais questões que possam surgir envolvendo o
acampamento são discutidas e deliberadas nestas assembléias, onde todos os acampados,
homens, mulheres, idosos e jovens, têm direito pleno à participação, à voz e ao voto.
Essa dimensão popular e participativa ganha força na medida em que as pessoas
aderem ao movimento não de forma isolada, mas trazendo consigo seus familiares mais
próximos. A adesão em família potencializa a participação dos sujeitos no coletivo. Partindo
dessa compreensão, o que se iniciou como sugestão, tornou-se condição para se manter
acampado, ou seja, uma das regras é que participem do acampamento, não só o homem ou a
mulher, mas o casal e os filhos. A dinâmica do acampamento trabalha, ainda que não
diretamente, as relações de gênero e de geração. O lugar do homem como chefe da família,
responsável por todas as decisões pertinentes a ela, figura bastante comum, sobretudo nas
famílias oriundas de tradição camponesa, começa a ser contestado na medida em que as
atividades da vida em coletivo procuram colocar mulheres, homens e jovens num mesmo
patamar de igualdade, onde possam expressar suas idéias e propostas, sendo ouvidos e
podendo deliberar sobre as decisões.
Estes primeiros passos são tímidos, mas são importantes para em longo prazo
minarem as resistências e pré-conceitos, desconstruindo valores pautados em demandas
pessoais, passando a reconstruí-los sob a ótica da coletividade e do respeito mútuo,
61
começando pela família. A batalha do movimento é para que estas relações se mantenham no
mesmo nível de igualdade e respeito no assentamento, tarefa árdua
37
.
Em meio a essa escola da vida no acampamento, as famílias precisam superar
também as dificuldades de primeira ordem, como o trabalho e alimentação. Como
alternativas, buscam trabalho como diaristas em fazendas próximas – o que nem sempre é
fácil de encontrar. Contam também com a ajuda dos assentados que enviam alimentos, com a
contribuição de entidades e pessoas simpatizantes, além de alguns recursos conquistados junto
aos governos. Quando o acampamento ocorre na fazenda que se pretende desapropriar, a
produção de alimentos básicos para o sustento das famílias se inicia, mesmo que de forma
provisória. Em muitos casos, ocorre que as famílias iniciam a produção e quando os grãos
estão prontos para a colheita, acontece o despejo, ocasionando a perda de todo o investimento,
como no caso de Clara e Pedro:
As lavoura nós perdeu tudo. Nós não tiramo nada, nada, nada. Depois de
colhido, amontoado tudo. Pelo menos vários deles não conseguiram tirar
nada. Ficou tudo, perderam tudo. Daí depois ficou parece que 20, 25 dia o
fazendeiro retirando caminhão, mais caminhão de milho, feijão [risos],
arroz. Porque teve gente que deixou colhidinho na roça. Tinha a base de uns
5.000 saco de milho. Pois ele conseguiu pagar as dívida dele com os
produto que nós deixou! Porque todo mundo tinha plantado, sabe? E deu
uma lavoura boa aquele ano, porque pegou chuva certo, aí ele conseguiu.
Ele retirou tudo. Daí nós voltamo de novo! Voltamo, tornamo a plantar,
tornamo a perder de novo! [risos]. (Clara, 45
anos).
Na tentativa de diminuir o tempo de acampamento, os sem terra realizam diversas
atividades políticas para pressionar os governos e demais responsáveis pela desapropriação de
uma determinada área, ou pela reforma agrária em geral. Ocupam prédios públicos, fazem
passeatas, greves de fome, marchas, acampamentos em lugares públicos, além de auxiliarem
em outras ocupações e reocupações de terra. O acampamento acaba se tornando um
importante espaço para mobilização permanente dos sem terra em torno do seu objetivo
primeiro: a conquista da terra. O acampamento cumpre três objetivos gerais: educar; manter a
mobilização permanente dos acampados; pressionar as autoridades e sensibilizar a opinião
37
Sobre o desafio de continuar a auxiliar na desconstrução destes valores no período de assentamento, ver o
trabalho de Giovana Salvaro (2004).
62
pública para a questão da luta pela terra e a necessidade da reforma agrária (Caldart, 2004, p.
177).
Existe uma dimensão pedagógica muito acentuada ao longo de todo esse processo.
Segundo Branford e Rocha (2004), o acampamento é, sobretudo, uma espécie de “laboratório
de consciência política”. Existe uma preocupação explícita da liderança em formar os
acampados, investindo para que se tornem militantes do movimento
38
. Assim, trabalham para
criar e oferecer desde os cursos mais elementares para a alfabetização de crianças, jovens e
adultos – geralmente realizados no próprio acampamento, com educadores do movimento –
até os cursos sobre realidade brasileira, dentre outros. Na história de Milton, que na época da
pesquisa era uma das lideranças do MST na região norte do Paraná, é possível observar o
impacto em sua vida pessoal e política, após um período de formação:
No ano de 99 meu pai e meu irmão foram acampar. Sem muita
compreensão, mas sem ter o que fazer eu fui junto com eles, só pra dar um
tempo. Mas, a partir do momento em que eu comecei a conhecer a realidade
dentro do acampamento eu comecei a contribuir como educador. No
acampamento não tinha escola, a piazada não estudava. Então no dia 19 de
maio de 99 nós ocupamo a Cajati e dentro desta ocupação eu comecei a
fazer parte da coordenação. Dentro duns 40 dias eu fui convidado a
participar dum curso sobre a Realidade Brasileira, no qual eu consegui
compreender que mesmo tendo passado 13 anos dentro de uma escola, eu
não tinha conseguido compreender a realidade. A partir daquele momento
em primeiro lugar me senti muito indignado perante as injustiças e porque
na verdade as coisas, a dominação, ela é feita pela educação e o povo
acaba sendo enganado sem saber que tá sendo enganado.
Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni – um dos mais respeitados criminólogos da
contemporaneidade – “toda a sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que
dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos
centros de decisão. De acordo com essa estrutura se ‘controla’ socialmente a conduta dos
homens” (Zaffaroni, 2002, p. 61). Afirma que esse controle social parte de meios menos
violentos ou difusos, como a educação escolar institucionalizada, meios de comunicação de
38
“O que nos salvou foi estudar, estudar, estudar. Nós temos uma regra dentro do movimento: só pode se dizer
militante do MST se estiver estudando. Então, quando o cara diz “eu sou militante do MST”, nós dizemos “em
qual curso tu estás estudando?” (....) Nós estudamos muito a realidade brasileira, os pensadores brasileiros. (...) O
MST tem mais ou menos 15 mil militantes estudando. (...) Temos convênios hoje com 42 universidades do
Brasil.” (Stédile, 2005, p. 32).
63
massa, religião, medicina, para meios mais violentos, o que o autor chama de controle social
institucionalizado, vale dizer, manicômios, asilos e prisões. Considerando que a violência
aberta é, via de regra, vista como algo ilegítimo, o controle social institucionalizado destina-se
àqueles que não se “adaptaram” a um padrão hegemônico de conduta social.
Na simplicidade de suas palavras, Milton fala sobre o controle social difuso,
igualmente violento, porém uma violência silenciosa, velada. A violência de ser enganado
para melhor ser dominado, ou nas palavras dele: “a dominação ela é feita pela educação e o
povo acaba sendo enganado sem saber que tá sendo enganado”. É o que Zaffaroni, chama de
fenômeno de ocultamento do controle social (idem). A eficácia do controle reside exatamente
no fato de ocorrer de forma oculta. Recoberto por uma roupagem de legalidade e justiça,
torna-se, aos olhos do sujeito, necessário e neutro (como no caso da educação), sedutor e
prazeroso (no caso da televisão, que aparece como forma de entretenimento e não de
controle).
De uma forma geral, os meios de controle social, desde os mais velados aos mais
explícitos, visam conseguir a adesão do sujeito a um determinado modo de conduta social,
que por sua vez respalda um modelo econômico e político correspondente. Com isso, obter-
se-ia o que Gramsci chamou de hegemonia social, que se dá por meio da aceitação da
ideologia das classes dominantes como algo natural e não como algo imposto verticalmente,
tal como explica Marilena Chauí,
A ideologia consiste precisamente na transformação das idéias da classe
dominante em idéias dominantes para a sociedade como um todo, de
modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e
político) também domina no plano espiritual (das idéias). Isto significa
que, embora a sociedade esteja dividida em classes e cada qual devesse ter
suas próprias idéias, a dominação de uma classe sobre as outras faz com que
só sejam consideradas válidas, verdadeiras e racionais as idéias da classe
dominante (Chauí, 1997, p. 94, grifos meus).
Ao se dar conta desta realidade, Milton afirma que o primeiro sentimento que lhe veio
foi o de indignação perante as injustiças, diz ele, contra as quais não podia lutar por não
conhecê-las e por não dispor de instrumentos de resistência. Dissertando sobre o processo de
aprendizagem dos acampados do MST, Roseli Caldart comenta esse sentimento de indignação
tão bem relatado por Milton:
64
(...) aprendizado que, quando se consolida, não deixa de se vincular com um
profundo sentimento de indignação diante do contraste gritante que existe
entre esta lógica de uma vida social baseada na solidariedade e uma outra
baseada na competição e no individualismo desenfreados, exatamente os
antivalores que sustentam uma sociedade que não se importa em produzir
sem terra, sem-teto, sem-escola, sem-esperança... (Caldart, op.cit., p. 180)
O MST busca, a partir de uma pedagogia própria – o que alguns chamam de pedagogia
do campo – instrumentos para levar a estes trabalhadores, desde os analfabetos até os
escolarizados, uma alternativa de aprendizagem, que ensine mais do que palavras, sentenças,
textos, mas que pretende ensiná-los a ler a história, a política, a economia, nas entrelinhas,
buscando instrumentos para resistir ao controle social velado. O processo de formação tem
para Milton o objetivo de levar o povo a fazer as mudanças necessárias:
(...) fazendo formação com o povo, o povo sabendo quais são seus direitos,
sabendo porque ele vive nessa situação, sabendo porque ele tem que
freqüentar uma fila com tantas pessoas pra ser atendida na saúde, sabendo
porque o filho dele não consegue terminar um estudo, ir pra uma faculdade,
não tem condição de escolher muitas vezes o que ele quer ser. A partir do
momento que o povo saber o porque isso acontece, o povo faz as mudança
que são necessária.
Mudanças profundas que, ao impulsionar o despertar da consciência crítica e o
potencial de ação destes trabalhadores ao longo dessa sofrida trajetória, pode lhes conferir
uma sensação de plenitude, o que leva Elizeu, que teve pouca escolarização formal, a afirmar
o seguinte sobre o sentimento de ser sem terra:
Ah, eu pra mim sê um sem terra é a mesma coisa de que se eu fosse um
formado lá da universidade. Porque é uma coisa que a gente entra
praticamente sem saber né, no primeiro grau, no primeiro aninho né,
primarinho né, pra chegar lá onde que eu cheguei né. Pra mim eu já acabei
de concluí meu estudo na universidade, já cheguei no final, pra mim já tô
formado na verdade, né. (Elizeu, 35 anos).
65
2.7. Faço questão de ser conhecido como Milton Sem Terra”: o processo de
constituição de uma identidade política
Na efervescência destas ambigüidades de sentimentos vividas no acampamento, que
carrega essa dimensão de sofrimento, mas carrega também uma dimensão de entusiasmo,
unidade e esperança, constroem-se as metodologias, simbolismos, vínculos ideológicos e
afetivos, que acabam por reforçar o sentimento de unidade e definir o que alguns autores –
Chaves (2001), Medeiros (2001), Caldart (2004), Branford e Rocha (2004), entre outros –
chamam de identidade sem terra.
2.7.1 Discutindo o conceito de identidade
Por se tratar de objeto de estudo das mais diversas perspectivas teóricas nas disciplinas
das ciências sociais, o conceito de identidade tem recebido uma diversidade de sentidos ao
longo do tempo. Trabalho aqui com a compreensão do conceito a partir das discussões
elaboradas por Lago (1999) e Costa (2003) sobre o conceito de identidade como
representação consciente do eu. Utilizo também algumas contribuições de Maheirie (1997)
para a compreensão da construção de uma identidade política.
Mara Lago (1999), recorre à psicanálise para melhor “explicitar a complexidade das
questões embutidas no conceito” de identidade. A autora vai buscar na concepção lacaniana
de Estádio do Espelho, elementos para a compreensão da construção da representação que o
sujeito constrói como identidade do eu:
a criança ainda imatura, que só percebe partes fragmentárias de seu corpo,
antecipa, pela imagem de seu reflexo no espelho, um corpo inteiro, uma
imagem completa, que ela atribui a outro (outrem). Esta imagem, no entanto,
é significada pelo Outro, confirmada, como sendo (d)ela própria – eu (ego
em Freud) (Lago, 1999, p.123).
66
Afirma ainda que este grande Outro, a cultura, está nesta situação “corporificado” pela
mãe, que confirma a imagem do espelho, como sendo (d)a criança.
A autora discute, neste artigo, a dicotomização indivíduo/sociedade e estranha as
dessemelhanças e confusões que se estabelecem entre os conceitos de identidade individual
do sujeito e identidade cultural, de grupo. Quanto à primeira dicotomia, argumenta a partir
dos ensinamentos psicanalíticos sobre o papel da cultura, da linguagem, como condição
constituinte do sujeito, e não como algo que está fora dele e o “socializa”. Ressalta o papel
que a psicanálise atribui aos processos inconscientes de identificação (aos outros, na cultura)
na organização do psiquismo, na constituição do sujeito e na construção da identidade – esta
representação consciente do eu (que segundo Mezan, 1987, p. 45, vai nos parecer a única
parte de nós, pois é somente dela que temos consciência).
Com relação à essa dicotomização entre identidade individual, pessoal e identidade de
grupo, cultural, Lago utiliza a concepção antropológica de identidade contrastiva, trabalhada
por Roberto Cardoso de Oliveira (1976), e os ensinamentos da Gestalt sobre as diferenciações
eu/outro, nós/outros, para ressaltar a semelhança dos processos de construção das identidades
pessoais e de identidades culturais, de grupos. Ambas se construindo através das
identificações e dos contrastes (eu/outro; nós/outros). Além de ressaltar o aspecto ficcional da
identidade do eu, a autora questiona exatamente a cisão que muitas teorias efetuam entre
indivíduo/sociedade, quando ressalta que não se constroem identidades, não se constituem
sujeitos fora da cultura, fora da linguagem.
Marilena, uma das entrevistadas, consegue exemplificar esse processo de identidade
contrastiva, vale dizer, a partir das diferenças nós/outros, em um relato acerca de um episódio
onde dois grupos de sem terra, pertencentes a organizações diferentes, ocupavam e lutavam
pela desapropriação da mesma área:
(...) eles tavam em 50 família e nós tava em 26. As 50 queria sê do INCRA e
as 26 do movimento. Aí nós falamo: ‘nós vai ergue a bandeira nem que nós
morra! Nem que nós derrame nosso sangue, mas nós vai erguer a bandeira!’
(...) E aí nós pegamo essas 26 família, criança e tudo, pequeno assim óh, e o
que tinha bandeira era bandeira, o que não tinha era uma sacola dessas que
tinha a imagem, né do movimento [mostra uma bolsa comemorativa dos 20
anos do MST, com a insígnia da bandeira, pendurada na parede] era boné,
o que não tinha pegava um pano vermelho e, fomo. Fomo com a força e a
coragem. Nossas arma era a, ali [e aponta novamente para a bolsa com o
símbolo do MST pendurada na parede, referindo-se à bandeira]. E
67
levantamo a bandeira! Dalí a pouco tempo o INCRA veio, tinha saído a
imissão de posse, tudo. O INCRA com o mapa da área pra cortar e tudo.
Daí eles [os sem terra do outro grupo] começaram a articular contra,
articular contra e, começaram a se reuni com o fazendeiro e articular. E nós
pensando que nós ia ganhar, quando nós vimo! [pausa] (...) Daí eu vi as
polícia! Foram rolando num minuto assim, foram chegando. Daí eu gritei
pro povo contrário ao nosso: ‘põe o crachá no peito que vem o despejo!
Vamo vê se agora vai ter divisão nessa hora! Põe o crachá de vocês no peito
agora! Porque nós reage!’ (....) ‘Olha, nós nossa luta nós vai continuar a
nós ganhar nosso pedacinho de terra! Nós não para! Nós vamo continuar no
movimento sem terra. Agora vocês, eu quero vê vocês varrendo rua e
catando papelão, mas não quero morrer ainda sem eu vê! E eu quero tá em
cima do meu pedacinho! Porque nós não desiste, só que mate nós! E vocês
eu quero vê!’ (Marilena, 40 anos)
39
.
Lago, nesse artigo, ressalta também o aspecto ficcional da identidade do eu, como uma
construção imaginaria, uma ficção – não no sentido de fantasia, invenção ou farsa – mas no
sentido psicanalítico de constituir uma representação do “eu”, organizada e realizada em nível
consciente,
Identidade, nesta concepção, é a ficção do Imaginário através da qual o
sujeito se representa como “eu” (a parte consciente do ego), procurando dar
unidade e coerência a esta representação. A identidade como representação
ficcional do eu, elaboração do registro do imaginário, procura justamente dar
conta das contradições do sujeito, organizando-as numa história coerente,
unitária, através da qual ele se referencia, como portador de um passado,
relacionado ao presente e às suas expectativas de futuro. Identidade não é
algo acabado, com peso constituinte, mas, enfatizamos, uma construção
imaginária, em permanente processo de significação, de reelaboração, de
investimento em novas identificações e novas significações (Lago,1999,
p.123).
Portanto, essa é uma concepção de identidade como “história de vida com um mínimo
de coerência e unidade”, necessária para que com essa construção imaginária, o sujeito
transite na cultura.
De forma semelhante, o psicanalista Jurandir Freire Costa (2003), afirma que em nível
consciente a identidade se apresenta para o sujeito como um a priori imutável, e concebe essa
39
Ao destacar as diferenças contrastivas entre os dois grupos, Marilena ressalta também a identificação com os
membros de seu próprio grupo e as características positivas deste. O conceito freudiano de narcisismo das
pequenas diferenças será útil pra analisar sua fala. Cf. item 4.5, p.169, neste trabalho.
68
compreensão como “ficção necessária à ação”. Vale dizer, o sujeito precisa alimentar a crença
de que sua identidade é una e indivisível, para a partir de então conseguir mobilidade no
social.
O autor também utiliza o termo ficção num sentido muito semelhante ao utilizado por
Lago, ou seja, no sentido de uma representação vivida pelo sujeito como verdade. Deste
modo, a idéia de ficção se justifica a partir do entendimento de que “só no nível consciente e
em situações pragmáticas o sujeito percebe-se ou sente-se como indiviso, constante, contínuo
ou livre de conflitos (...) Relaxada essa postura, afastadas tais situações, a identidade para o
sujeito não é mais uma certeza e sim uma interrogação”. (Freire Costa, 2003, p.111). Freire
Costa prossegue na discussão do conceito afirmando que,
Para Freud, a identidade é um amálgama de afetos e representações que o
sujeito experimenta e formula como sendo a natureza de seu Eu e do outro,
do corpo-próprio e do mundo de coisas e objetos. Estas representações e
afetos são transitivos, móveis e múltiplos. Mudam conforme a posição que o
sujeito ocupa nas relações com os outros, posição constantemente cambiante
e permutável (Freire Costa, idem).
A identidade pode ser entendida como se construindo constantemente na relação do
“eu” com o “Outro”, numa dialética entre subjetividade e objetividade, inseridos numa
realidade temporal e histórica. Trata-se, portanto, de uma importante dimensão do sujeito, este
ser cultural, que se constitui em contextos específicos.
No caso do MST, discute-se a criação de uma identidade coletiva, que ocorre a partir
da unificação das diferenças e divergências em torno de um objetivo comum. Kátia Maheirie
(1997) discute a importância da formação de uma identidade coletiva, ou uma “identidade do
nós”, que pode tornar-se um instrumento “eficaz no campo da política, como força
unificadora do coletivo, produzindo sentimentos de pertença, reafirmando a dignidade de uma
determinada categoria, através daquilo que é partilhado” (Maheirie, 1997, p. 65).
Na construção dessa identidade coletiva, o sujeito sem terra é (re)significado pelo
MST quando, por meio dele, consegue recuperar o vínculo com a terra, elemento a partir do
qual construiu a representação do seu eu. Nesse processo, ressignifica o vínculo com a terra,
atribuindo outros sentidos à sua história de vida, entendendo-a como parte de um processo
69
político e econômico de expropriação e luta pela conquista de um direito. (Re)significa e é
também (re)significado pela sociedade, que pode acolhê-lo ou hostilizá-lo, porém, fazendo-o
a partir da constatação de que agora esse sujeito possui uma identidade coletiva e política, ele
agora é um Sem Terra.
Nosso nome de sem terra nós nunca vai termina. Nós tem a nossa terra,
mas o nosso nome é sem terra, e eu quero honrar esse nome de sem terra.
Eu sou uma sem terra lutadora porque eu lutei e venci, né. Sou uma sem
terra guerreira porque eu venci e hoje eu sou feliz. (Júlia, 47 anos).
Apesar de toda a convicção de Dona Júlia – crença fundamental para o sentimento de
unidade e possibilidade de transitar na cultura – é importante frisar que a identidade é um
processo. Sempre em construção. Sempre inacabado. Sempre em movimento. Esse “nome de
sem terra”, o qual Júlia afirma que vai carregar para sempre, certamente passou por uma série
de transformações desde o momento em que ela aderiu ao MST. Em cima desse “nome de
sem terra”, elementos foram acrescentados, outros foram desconstruídos e muitos foram
mantidos, num movimento constante em busca da manutenção de uma história de vida
coerente, ou da ficção imaginária da identidade, com a qual nos movimentamos na sociedade.
2.7.2. A simbologia e a mística na construção da identidade sem terra
Os processos identificatórios no MST ocorrem inicialmente por meio de uma situação
sócio-econômica comum, somada ao objetivo claro – e tático – de lutar pela conquista da
terra. Posteriormente, vão sendo introduzidos de forma intencional símbolos e rituais a esta
ficção, elementos mais relacionados ao campo da subjetividade. Sem deixar de estar
intrinsecamente vinculados à história de vida e às experiências concretas que estão
vivenciando, os símbolos e rituais utilizados na metodologia do MST, como a mística, a
bandeira, o boné vermelho, o hino, as palavras de ordem, músicas, ferramentas de trabalho,
são marcas criadas e cultivadas com a finalidade de promover um sentimento de unidade forte
o suficiente para produzir uma identidade coletiva e, a partir de então, trabalhar o objetivo
70
estratégico do movimento, ou seja, o nascimento de um novo homem e uma nova mulher
(Branford; Rocha, 2004, p.44).
A história de vida de grande parte dos trabalhadores rurais vinculados ao MST, passa
por uma cultura camponesa fortemente marcada por elementos de tradição e religiosidade. O
MST enquanto organização respeitou estas raízes e foi nelas buscar as matrizes dos símbolos
que hoje se configuram em um jeito próprio de ser e de fazer movimento social – jeito este,
fortemente atacado e demonizado por alguns setores da sociedade. Um jeito que os leva da
invisibilidade à visibilidade social, mediada pela riqueza de seus símbolos, pelas atitudes
fortes e por vezes radicais diante do que consideram injusto e, sobretudo, por estas
características retratadas no perfil e na postura de seus integrantes e militantes.
De acordo com Branford e Rocha (2004), o movimento precisava se fortalecer e dar às
famílias a segurança necessária para a ele aderir. Precisava criar uma “contracultura”, fazendo
com que houvesse uma profunda identificação com ela (p. 328). Assim surgiu a preocupação
de transformar as decisões políticas em palavras de ordem, as bandeiras reivindicatórias em
símbolos que fossem de fácil apropriação para os sem terra e, que ao mesmo tempo se
tornassem um elemento de diferenciação e divulgação massiva do movimento. Era
imprescindível que estes símbolos não fossem escolhidos de forma vertical ou aleatória, mas
que fossem resultado da apreciação e discussão na base do recém formado MST. Fruto deste
processo de decisão coletiva, a bandeira e o hino do movimento demoraram alguns anos para
serem elaborados e aprovados por todo o coletivo.
No caso da bandeira, ela surgiu espontaneamente com o início dos movimentos
ligados à luta pela terra, no primeiro acampamento na Encruzilhada Natalino, no Rio Grande
do Sul. Posteriormente, outras localidades foram criando suas bandeiras sem uma
padronização, ou um símbolo próprio. Algumas traziam uma palavra de ordem, ou um
símbolo relacionado ao contexto local, tendo em comum, via de regra, a cor vermelha. Para
unificar a simbologia da bandeira, a direção do movimento, durante o ano de 1986, solicitou
aos Estados que elaborassem sugestões para uma bandeira que unificasse os sem terra de todo
o país. No encontro do ano seguinte, foram apresentadas três propostas e eleita a bandeira que
se tem hoje. Stédile conta como se deu o processo de elaboração dos símbolos da bandeira:
71
(...) a cor vermelha, pela tradição de luta, pela identidade da classe
trabalhadora, é um elemento ideológico muito forte. O casal que está
desenhado na bandeira foi aproveitado do cartaz do I Congresso. Para
mostrar que no mundo nada se cria, nos inspiramos num cartaz da
Nicarágua, que tinha um homem e uma mulher numa manifestação. No I
Congresso Nacional, em 1985, aquele casal, com um facão erguido,
impregnou na turma. É uma marca bem bonita (Stédile; Fernandes, 1999, p.
133)
De fato a bandeira “impregnou na turma”. Em todas os barracos ou casas que se visita
existem pendurados na parede, em cima de uma estante ou de uma mesa, uma pequena
bandeira, em alguns uma grande bandeira, em outros um boné ou uma bolsa com a bandeira
impressa. É para eles um símbolo de resistência e de unidade, como expressa Marilena, que
ao longo de todo o seu depoimento fez referência à bandeira do MST: “eu sinto muito
orgulho pelo Movimento sem terra e o que depender de mim eu sou a favor e vou até o fim!
Até o fim contando com a bandeirinha vermelha, bandeirinha do sem terra que tá aqui do
meu lado” [pega a bolsa vermelha que traz o símbolo do MST ao centro, e que fica pendurada
como enfeite na parede da sala].
O hino do MST também foi criado de forma semelhante. Depois de um concurso
aberto em vários Estados, foi eleita a letra de Ademar Bogo. Posteriormente foi musicada pelo
professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Willy Correia de
Oliveira e, gravada pelo coral da mesma universidade (Morisawa, 2001).
Outro símbolo, que se tornou companheiro inseparável dos sem terra, foi o boné
vermelho com a insígnia da bandeira. Caldart (2004) conta que no início do movimento a
marca registrada dos sem terra que se organizavam no sul do país era o chapéu de palha. Com
o passar do tempo, o chapéu foi ganhando novas formas de acordo com as tradições de cada
Estado. Chegou a ser realizado um concurso nacional, em 1987, para eleger o chapéu mais
bonito. Dentre todos saiu vencedor o Estado do Piauí. A partir de 1988, com a divulgação
massiva da bandeira, passou-se a fabricar os bonés no mesmo padrão da bandeira. O boné
acabou caindo no gosto dos sem terra, substituindo a diversidade de chapéus e passando a ser
utilizado largamente para proteção, identificação e, sobretudo, como símbolo de resistência e
adesão. A partir da década de 90, ganhou destaque colorindo as passeatas, marchas,
ocupações e demais atividades do movimento.
72
“Essas imagens transcenderam as suas origens”, afirmam Branford e Rocha, “e se
tornaram, elas próprias, poderosos instrumentos da identidade dos sem terra” (op. cit, p. 328).
A força e a visibilidade que esta identidade coletiva assumiu no cenário político nacional ao
longo das duas últimas décadas é sentida pelos integrantes do movimento nos primeiros
períodos de acampamento, quando passam a ser socialmente identificados como sem terra,
como se ganhassem um segundo nome (Caldart, 2004), como relata Milton:
Eu hoje no município, na comunidade local, faço questão de ser conhecido
como Milton Sem Terra. Porque apesar de hoje nós tá assentado, nós
continuamo sendo sem terra. sem terra enquanto organização. Pra mim é
um orgulho participar desta organização, porque luta por objetivos comum,
e a maior recompensa que se tem é vê um sorriso estampado numa
criança, num pai de família que passou por tanta dificuldade e hoje ele
tem condições de ter uma vida um pouco mais humana (Milton, 27 anos,
grifos meus).
Milton fala do orgulho de carregar esse sobrenome – Sem Terra – que pra ele
transcende ao fato de ter ou não um lote de terra. Este sobrenome é para ele, sinônimo da luta
por um objetivo comum: “uma vida um pouco mais humana”. Para superar estas dificuldades
das quais ele fala, a identidade coletiva assume uma importância fundamental. Nos momentos
de maiores adversidades, esse sentimento de unidade se traduz em solidariedade e em força
política (Maheirie, 2005). Sentimentos fortes o suficiente para dissuadi-los, quando cansados
de sofrer pensam não mais poder resistir. É por meio da solidariedade e ajuda mútuas que se
fortalecem política e subjetivamente, conseguindo então “tocar a luta pra frente”. Pois como
disse Clara, referindo-se à coordenação regional e local, “o pessoal do MST eles dão uma
força boa pra gente, daí anima a gente a ter coragem de tocar a luta pra frente, a enfrentar
essa luta. Porque se não fosse a ajuda deles também, a gente acabaria desanimando”.
Na busca por essa “vida um pouco mais humana”, os sem terra retiram “o seu
alimento ideológico, de esperança, de solidariedade”, como define Bernardo Mançano
(Stédile; Fernandes, 1999, p. 130), de um ritual de celebração, chamado de mística.
De acordo com Medeiros (2002), a palavra mística é derivada da palavra grega
mysterion, por sua vez derivada de múein, que significa perceber o caráter oculto, não
comunicado de uma realidade ou de uma intenção (p.146). Os dicionários de uso geral,
definem mística como: “estudo das coisas divinas e espirituais; “crença ou sentimento
73
arraigado de devotamento a uma idéia” (Ferreira, 1986, p.1142). Para o MST a idéia de
mística engloba estas definições e as transcende.
A mística pode ser entendida como um ato cultural, uma celebração, em que se
representa a crença na possibilidade de renascimento de um novo homem e de uma nova
mulher – objetivo impregnado de um conteúdo espiritual que se mistura a um conteúdo
racional e político – somada à crença na luta pela terra como caminho.
Contudo, a mística não é apenas o ato em si. Compreende também a simbologia que
nela se reúne. Por meio de elementos cênicos, é retomada a trajetória de luta dos sem terra,
como os acampamentos, os despejos, o sofrimento, a conquista da terra e as tarefas setoriais,
encenações que ocorrem segundo Branford e Rocha (2004), numa seqüência relacionada à
tradição religiosa de sofrimento e redenção (p.322). Freqüentemente retomam também nesta
celebração, a história das lutas no campo, valorizando e cultivando a memória dos conflitos e
dos lutadores, ou como costumam dizer, dos “companheiros que tombaram na luta pela
terra
40
(Caldart, 2004, p.211).
Antes de iniciar as atividades como reuniões, encontros, cursos de formação, dá-se
início a essa celebração, feita de modo a retomar a história e enfocar os principais símbolos do
movimento, vale dizer, a bandeira e o hino. Além destes, costumam ser representadas as
ferramentas de trabalho como enxada, facão, foice e os produtos da terra, simbolizando o
vínculo do trabalhador com a terra, com suas raízes e com o MST (Caldart, 2004).
Mesmo partilhando destes signos, não existe um script formal do que é e de como
deva ser a mística. Ela é na verdade uma criação dos militantes e integrantes do movimento.
Geralmente, em cada ocasião, um determinado grupo fica responsável por criá-la, organizá-la
e apresentá-la. Desenvolvem em torno desta simbologia uma representação que pode ser
desde a disposição dos símbolos de forma a contar ou relembrar uma história, até a encenação
de um acontecimento marcante, como foi o caso do massacre do Eldorado dos Carajás.
41
40
Participei da festa que oficializou o assentamento Dom Hélder Câmara e da preparação da mística apresentada
na ocasião. A mística encenava a trajetória daqueles sem terra, com enfoque especial aos violentos episódios de
despejo. A mensagem final era a de compensação por todo o sofrimento vivido, passando pela seqüência de
sofrimento e redenção de que falam Branford e Rocha.
41
“Em abril de 2000, 1.200 militantes do Estado do Pará fizeram uma reunião na fazenda Taba, uma luxuosa
mansão de campo que pertencia a um rico executivo de uma companhia aérea antes de ser ocupada pelo MST.
Na última noite do evento de quatro dias, os sem-terra realizaram a reunião noturna no salão de banquetes,
construído pelo executivo para suas festanças. (....) Quase todos os militantes do MST presentes naquela reunião
74
A liberdade de criação da mística foi resultante de um processo de construção.
Inicialmente estava muito relacionada ao caráter litúrgico das celebrações religiosas, que
segundo Castells (2001), utilizam essa prática político-pedagógica buscando a
conscientização dos trabalhadores a partir de um saber milenar fundado no imaginário, na
história e na religião (p.203). No início as místicas acabavam seguindo um modelo muito
formal, afirma Stédile, o que em longo prazo poderia vir a perder sua força mobilizadora, uma
vez que o ritual se repetia quase de forma automática. Foi então que começou a se pensar uma
forma de fazer a mística de modo que os únicos elementos fixos fossem as simbologias, sendo
a representação cênica criada de acordo com o momento e com a história de vida dos sujeitos
nela envolvidos (Stédile; Fernandes, 1999, p.130). Pode-se dizer que o MST ressignificou a
mística, transpondo-a do campo religioso para o político.
No plano objetivo, a mística como celebração é a reunião da simbologia que constitui
a identidade sem terra, e que consegue materializar e revelar para o conjunto da sociedade, a
força da unidade coletiva dos sem terra. Porém, sua força maior reside no plano da
subjetividade. Trabalhando com a fusão entre elementos da vida concreta – o sofrimento, a
dor, as privações, a longa caminhada para a conquista da terra – associados aos elementos que
estão para além do concreto – isto é, a esperança, a fé – cria-se um ambiente que interliga e
ressignifica passado, presente e futuro, numa dimensão de utopia, em que os sonhos mais
distantes se tornam próximos e perfeitamente possíveis. (Caldart, 2004).
A mística funciona como um lenitivo para o sofrimento e como um vigoroso impulso
para suportar e superar as dificuldades. É uma experiência pessoal, ressignificada pelo
coletivo, sob o signo da crença de que cada minuto de doação e sacrifício valem a pena em
nome de si próprios, dos que “tombaram na luta” e da herança cultural e material que
deixarão para as gerações futuras. São sentimentos permeados pela dimensão de partilha e
solidariedade, onde a sensação de união, apoio e amparo tornam-se fortes a ponto de
conheciam alguns dos 19 sem-terra mortos no massacre de Eldorado do Carajás. Após concluírem eleições
escrupulosamente limpas (e excessivamente demoradas) para eleger os novos membros do conselho estadual, os
sem-terra realizaram uma mística bem tarde na noite. Dezenove líderes recém-eleitos, envolvidos na bandeira do
movimento e cobertos com flores, deitarem-se no chão. Sob a luz de velas, enquanto uma sem-terra lia os nomes
dos 19 mártires, eles se levantavam, um a um, e diziam “presente”. No final, muita gente chorava em silêncio, no
salão. Foi uma experiência catártica para uma comunidade ainda traumatizada pelas mortes, bem como uma
expressão coletiva da vontade de continuar na luta” (Branford; Rocha, op.cit., p. 332).
75
mobilizarem a disposição e a força necessária para entrar na luta ou nela continuar
42
(Branford; Rocha, 2004; Caldart, 2004).
Medeiros (2002), chama de mística do cotidiano, a mística que transcende ao
momento da celebração e que nada tem de intencional, mas que surge espontaneamente como
um elemento indissociável do cotidiano e se traduz nas modificações na forma de pensar, agir
e na unificação em torno de um mesmo ideal, sentimentos disseminados nas pequenas atitudes
da vida em coletivo.
A mística é como algo que em silêncio fala para além da razão, fala a linguagem da
subjetividade. “Exatamente como e por que isso acontece faz parte do mistério, mas o MST
sabe da importância dessa dimensão e por isso tornou-a uma prática intencional nas suas
atividades de formação” (Caldart, 2004, p. 211). É somente partindo desta compreensão da
mística enquanto celebração e da mística do cotidiano, que podemos entender a disposição de
Marilena, em “entregar” os dois únicos filhos “pras mãos do movimento Sem Terra”:
Nós somos uma família que nós valoriza o Movimento Sem Terra. Bem
dizer meus filho se criaram dentro do Movimento Sem Terra. Um tava com
um aninho o outro tava com nove anos quando entramo. E com muito
orgulho, meu filho tá com 18 anos e tá disponível pro Movimento. Pra
trabalhar, pra contribuí no Movimento no que for preciso. Não só na minha
região mas em toda as região. Porque ele já tá estudando pra isso e eu
quero que ele vá até o fim nessa luta (....) Aí eu tenho o meu pequenininho
que entrou com um aninho, agora ele tá com nove, ele já tá estudando. Até
ele fazer a oitava série é em Terra Nova. Aí depois disso eu não olho pra
outro estudo, o meu menino é outro que tá entregue nas mão, pra
trabalhar pro Movimento Sem Terra também. Sempre tô dizendo: “ó meu
filhinho, estuda que você vai pra casa familiar”. Lá é coligado com o
Movimento. É outro que vai sê entregue pras mão do Movimento Sem
Terra. É dois filho, tô dando pra luta (...) Se eu não entrasse dentro do
Movimento Sem Terra, do povo, com os companheiro, o meu filho não ia tá
na altura que hoje ele tá, porque condições eu não tinha e não tenho, nem
pra ele nem pro outro.
42
Em certa ocasião, um sem-terra me falou sobre conflitos familiares e tensões entre posições políticas
individuais e coletivas, que o levavam a pensar em deixar o MST. Porém, sempre que participava de uma
mística, os sentimentos de pertença e da necessidade de ficar despertados pela mística, falavam mais alto.
76
2.8. “Não tem dinheiro que pague a conquista de uma terra”: enfim o
assentamento
Hoje nós somo outras pessoas.
Nós tamo num lugar que nós sabe que é nosso.
Nós conquistamo com honra e glória!
Murilo, 16 anos.
Assentamento é sinônimo de conquista, honra e glória, como afirmou Murilo – com a
propriedade de um adolescente que passou boa parte da vida em baixo da lona preta. Ao pisar
a terra conquistada e finalmente “parar de ficar rolando por aí”, como disse Dirceu, a
materialização do sonho de “estar em cima do lote”, se converte em novos desafios. Outras
inúmeras cercas precisam ser derrubadas, sobretudo as que se erguem na burocrática disputa
pelos recursos públicos para transformar a terra abandonada, em solo fértil para uma produção
que garanta a subsistência familiar.
Esse é também um momento permeado por tensões e incertezas. A dificuldade maior é
de ordem estrutural, ou seja, a política agrícola do país é voltada para a produção em larga
escala, nas grandes propriedades rurais
43
. Ao agricultor familiar restam poucas alternativas de
recursos para alavancar sua produção (Fernandes, 2000b). Administrar esses poucos recursos
na construção de um modelo de agricultura que lhe permita uma vida digna é tarefa hercúlea.
A organização da produção é uma das diferenças entre um assentamento tradicional e
um vinculado ao MST. Inseridos numa discussão política local, regional e estadual, os
assentados procuram interpretar e aplicar conforme suas possibilidades as linhas políticas do
movimento. Um dos princípios que norteia a construção do assentamento, é a compreensão
que este significa “o renascimento da vida humana e da natureza” (Morissawa, 2001, p.237).
Partindo desse pressuposto, existe um grande trabalho com as famílias para que adotem um
modelo de produção pautado na agroecologia, um modelo que se preocupa com a saúde do
agricultor e do meio ambiente, além de buscar diminuir os custos da produção. Existem
assentamentos vinculados ao movimento, voltados para produção e comercialização de
sementes orgânicas, vale dizer, cultivadas sem o uso de adubos químicos e venenos, sendo
43
Essa política possui caráter histórico na formação econômica brasileira, desde a divisão do território da colônia
em capitanias hereditárias, onde o donatário detinha o poder outorgado pela coroa de conceder sesmarias a
senhores de escravos que pudessem cultivar a terra por conta própria.
77
estes últimos substituídos por inseticidas naturais, ou pelo controle biológico das pragas.
Embora o empenho seja grande na divulgação e implementação dessa forma de produção, o
sabe-se que esse é um objetivo para longo prazo. Primeiro é necessário desconstruir um
modelo de pensamento e de produção, hegemonicamente cultivado durante séculos. Os
primeiros passos estão sendo dados
44
.
Os assentamentos assumem formas diferentes de acordo com as correlações de forças
políticas locais, regionais e, sobretudo, de acordo com os objetivos dos assentados. Alguns
abrigam 15, 20, 30 famílias – facilitando a organização da produção de forma coletiva – e
outros reúnem dezenas e até centenas de famílias. As diferenças estão presentes também na
qualidade da terra, na localização do assentamento e na infra-estrutura disponível. Contudo, a
grande diferença dentre os assentamentos do MST reside em sua forma de organizar a
produção, podendo ser individual ou coletiva.
Partindo de motivos econômicos, sociais e políticos, o MST incentiva os assentados a
adotar o modelo de produção coletiva, ou a Cooperação Agrícola – discussão que se inicia no
acampamento. Nesta perspectiva coletiva, do ponto de vista econômico a cooperação facilita a
obtenção de créditos para investimento em infra-estrutura, visando facilidade no escoamento
da produção e, em alguns casos, agroindustrialização dos produtos. Do ponto de vista social, o
argumento é de que com a proximidade das moradias – construídas no sistema de agrovilas,
em que um só lote é destinado para a construção das casas de forma a ficarem próximas umas
das outras – o acesso à escola, saúde, igreja, transporte coletivo, é facilitado. Do ponto de
vista político, promove a união dos assentados que continuam mobilizados por objetivos
específicos da cooperação e por objetivos maiores, visando a “construção de uma nova
sociedade” (Morissawa, 2001, p.232).
Entretanto, a concepção de cooperação agrícola exige uma dimensão de coletividade e
empreendedorismo que nem sempre atrai famílias sem terra acostumadas a outros modos de
vida. Segundo Castells (2001), existe para o movimento uma espécie de valoração entre as
duas formas de organização da produção, sendo a coletiva colocada num patamar mais
elevado, como um ideal a ser atingido por um sem terra ideal – postura política que tem sua
origem num ideário de cunho socialista. A autora afirma ainda que o próprio MST considera a
forma coletiva como mais complexa exigindo de seus integrantes um nível de consciência
44
Talvez o mais importante deles, seja o investimento na formação de seus integrantes em cursos técnicos em
agroecologia, promovidos pelo MST em parceria com escolas técnicas, universidades e movimentos sociais, em
várias regiões do país. Ver: www.mst.org.br/informativos/minforma/ultimas1534.htm
.Acesso em: fev/2006.
78
política mais elaborado. A autora afirma que a problemática reside no fato de que, ao se
trabalhar com este ideal, desconsideram-se as heterogeneidades comuns em um movimento
que reúne mais de 300 mil famílias (Stédile, 2005), colocando em segundo plano importantes
iniciativas familiares, que podem trazer diferentes e consideráveis contribuições do ponto de
vista econômico, social e político.
Independentemente das diferenças advindas pela escolha na forma de organização e
produção, estar “em cima do lote”, na terra conquistada, leva os sem terra – seja na produção
coletiva ou individual – a retomarem seus vínculos com a terra e com um passado constituído
na relação com ela. Leva-os ao orgulho de um passado camponês e de um passado de
acampamento e luta árdua para conseguirem vincular-se novamente à terra, construindo e
renovando sonhos para o futuro. Para Caldart (2004), esse retorno à terra sob uma nova
perspectiva, sobretudo com uma perspectiva de futuro, devolve aos sem terra suas raízes:
Dizer que o MST enraíza os sem terra significa afirmar que ele proporciona
a essas pessoas a condição de vincular-se novamente a um passado e a uma
possibilidade de futuro, que lhes permite desenvolver-se como seres morais,
intelectuais, espirituais e, poderíamos acrescentar, culturais. Enquanto
trabalhadores da terra de quem foi tirada a terra, ou a possibilidade social de
tê-la como objeto de seu trabalho, os sem terra foram desenraizados e
portanto diminuídos em sua condição humana (...) Escolheram lutar pelo seu
próprio enraizamento: ocuparam a terra que lhes devolveria uma boa parte
de suas raízes (op. cit., p.99)
A sensação de vencer a luta pelo “enraizamento” e voltar a vincular-se com a terra,
sobretudo depois de uma longa trajetória de luta e aprendizagem, responsáveis pelo resgate da
sua “condição humana”, leva Mariano a afirmar que “não tem dinheiro que pague a
conquista de uma terra”. Ou seja, não existe forma de mensurar o valor da conquista,
justamente porque vai além da terra em si. Significa a conquista de um lugar na terra e na
comunidade. Significa o resgate de uma subjetividade esmagada pela violência de uma vida
de expropriação e miséria. Clara fala sobre o MST como ponte para o vínculo com a terra e,
ao fim, fala sobre a dimensão de proteção e acolhimento que o movimento proporciona aos
pobres:
79
(...) a gente não tinha nada. Não tinha onde plantar nem um pé de abacaxi,
que nem o dizer [risos] e agora graças a Deus a gente tem onde produzi. A
gente tem os bichinho da gente, que era o sonho da gente. A gente a vida
inteira sempre teve vontade de ter pelo menos uma vaca pra beber um leite e
nunca tinha condições de ter sequer nem um cabrito no terreiro. Então tudo
isso anima a gente, deixa a gente contente porque agora graças a Deus, a
gente vê os bichinho da gente que era o sonho que a gente tinha. Saber que
agora a gente num precisa tá de porta em porta de mercadinho atrás de
empreguinho aí, ou se não trabalhando de doméstica, que nem eu vivi quase
a minha vida inteira trabalhando de doméstica, e nunca consegui compra
nem um pinto pra por no terreiro. Agora graças a Deus a gente tem as
coisinha da gente, através da luta, graças a Deus conseguimo. [silêncio] Eu
na verdade eu me orgulho de ser sem terra. Eu gosto, pra mim não tem coisa
melhor. [risos] Ah, eu gosto bastante, pra mim eu me sinto feliz de ser um
sem terra. Aqui eu sei que eu tiro o meu pão de cada dia, sei que cada dia
que amanhece eu tenho meu empreguinho, então pra mim eu tô contente.
Ganhei um lote do jeito que eu sonhava, a gente nem esperava de ter um lote
tão bom, graças a Deus tivemo. Então eu tô muito contente com isso. Cada
dia que eu levanto cedo que eu olho meu lote vejo minhas coisinhas
plantada, Deus o livre, eu acho um céu! [risos] (...) Então a única solução
pro pobre hoje em dia é vim pro sem terra mesmo, pelo menos é bem
recebido. (Clara, 45 anos).
Clara fala do prazer em poder trabalhar no que a satisfaz, na sua terra. Fala da alegria
em não ter mais que perambular oferecendo à venda sua força de trabalho como uma
mercadoria, vendo suas energias se esvaindo sem retorno algum em benefício próprio. Fala da
alegria de acordar a cada manhã longe da ameaça do desemprego. Ao olhar sua plantação, a
sensação é análoga àquela sentida ao olhar um espelho, se vê refletida no que plantou, no que
criou, na sua produção. Fala da alegria de ser acolhida. Depois de perambular em busca de
trabalho e de uma vida digna, encontrou refúgio no MST, onde foi bem recebida. Ao fim,
Clara parece dizer que a sensação de acolhimento é mais forte do que o sofrimento, ou o
sofrimento em coletivo é mais fácil de ser suportado.
Em busca do “enraizamento”, estes sem terra não foram poupados de pagar um alto
preço em valores objetivos e subjetivos, mas ainda assim, continuaram buscando a terra em
sua dimensão de amparo, proteção, realização, prazer, e como um refúgio para uma vida
psicossocial um pouco mais saudável. E a conquistaram, com “honra e glória”.
80
2.8.1 Os vínculos com a terra e a pátria na expressão gráfica das crianças
Apresento uma seqüência de desenhos das crianças do assentamento Dom Hélder
Câmara, realizados em 2002. Na ocasião solicitei que fizessem um desenho com tema livre.
Em vários deles apareceu essa dimensão de enraizamento. No desenho dos meninos, o vínculo
com a terra aparece de forma bastante contundente, expressos nas ferramentas de trabalho, as
reais (a enxada) e as sonhadas (o trator). Em alguns deles apareceu a inscrição MST. Todos,
símbolos de uma identidade constituída na relação com a terra e com o movimento. Os
desenhos das meninas traziam uma dimensão mais abrangente, uma identificação com o lar e
com algo maior – inclusive na expressão gráfica – a pátria, a nação. Os desenhos das
bandeiras do Brasil são consideravelmente maiores do que os outros elementos desenhados.
Meninos e meninas demonstram interesses diferentes em vínculos igualmente importantes na
sua constituição psíquica. Estes elementos citados aparecem em vários dos desenhos destas
crianças
45
.
45
Os nomes atribuídos às crianças são fictícios.
81
Fonte: acervo pessoal. Desenho 01: O vínculo com a terra e com o MST na expressão gráfica de Henrique.
82
Fonte: acervo pessoal.
Desenho 02: Entre o velho e o novo: o vínculo com a terra na expressão gráfica de Guilherme.
83
Fonte: acervo pessoal. Desenho 03: O vínculo com a pátria e o lar na expressão gráfica de Laura.
84
Fonte: acervo pessoal. Desenho 04: O vínculo com a pátria e o lar na expressão gráfica de Débora
85
3. A QUESTÃO AGRÁRIA NO PARANÁ E O MST
Neste capítulo, trato de questões que precederam a formação do MST no Estado do
Paraná. Enfatizo alguns aspectos do contexto econômico e político na agricultura a partir da
década de 50, com a modernização do campo, o declínio da agricultura cafeeira e a
exploração imobiliária das terras. Trato também das conseqüências deste processo, vale dizer,
o aumento dos conflitos por terra expressos na guerra de Porecatu, na guerra dos posseiros do
sudoeste, na construção da hidrelétrica de Itaipu que desalojou milhares de famílias, no
sofrimento dos brasileiros que devido à expropriação nos campos paranaenses foram para o
Paraguai em busca de sobrevivência. Na década de 90, com a atuação do MST, os conflitos se
acirraram. No final desse período, devido às alianças políticas entre governo do Estado e
ruralistas, iniciou-se uma mega-operação de repressão ao MST.
3.1. Alguns aspectos sobre a questão agrária no Paraná nas décadas de 60 e
70: uma breve contextualização
O desenvolvimento agrário no Estado do Paraná teve sua trajetória fortemente
influenciada pela ascensão e queda da cultura cafeeira no cenário nacional. A produção do
café paranaense era predominantemente localizada na região norte do Estado e, segundo Moro
(2000), representava a metade da produção brasileira e a terça parte da produção mundial, o
que em números, significava que a produção nacional resultava em aproximadamente 40
milhões de sacas de 60kg de café em grão por ano, e a produção paranaense correspondia a
uma média de 20 milhões de sacas nas safras dos anos de 1961 e 1962.
Toda essa movimentação econômica fez com que o Estado, que até a década de 50
era esparsamente povoado, se transformasse num atrativo para investidores e camponeses,
tendo sua taxa populacional elevada nas áreas rurais. Segundo Branford e Rocha (2004), os
86
investidores de São Paulo buscavam terras, sobretudo terras devolutas
46
, para o cultivo do
café, impulsionados pelo fato de que as áreas para o cultivo dos cafezais no Estado de São
Paulo já não eram suficientes.
A lavoura cafeeira exigia um grande número de trabalhadores para mão-de-obra
artesanal. Nesse contexto, era comum a figura do meeiro ou parceiro, aquele agricultor que
trabalhava na lavoura de café do fazendeiro, em troca de moradia e um lote de terra para
plantio de subsistência.
No início da década de 60, com uma demanda menor do que a oferta do produto no
mercado, o setor cafeeiro entrou em crise. Segundo Moro (2000), contribuíram para o
aprofundamento dessa crise, os números recordes de produção no norte do Paraná e a
expressiva participação do café africano no mercado mundial. Para enfrentar essa crise, em
1961 o governo federal criou o Grupo Executivo de Racionalização da Agricultura (GERCA),
que tinha como objetivos:
Erradicação, em dois anos, de 2 bilhões de cafeeiros anti-econômicos;
renovação de 500 milhões de cafeeiros com bases racionais, que
possibilitassem a produção de 6 milhões de sacas beneficiadas;
diversificação de culturas nas áreas liberadas pela erradicação do café;
investimentos na industrialização de produtos agropecuários, com vistas ao
solucionamento do problema socioeconômico resultante da liberação de
mão-de-obra empregada na cafeicultura. (Moro, op.cit, p.29).
Além destas metas, o governo lançou um pacote de incentivos ao plantio de
oleaginosas, para substituir o plantio do café. Moro (op.cit), afirma que o pacote fazia parte de
uma política de crédito rural subsidiado, voltado para a modernização da agricultura por meio
da aquisição de máquinas, insumos e sementes selecionadas que facilitassem a produção de
culturas como o trigo e a soja, pois diferentemente do café, que é uma lavoura permanente, a
soja e o trigo podem ser cultivados de forma alternada, de acordo com as estações do ano. São
as chamadas culturas de rotação, que diminuem o risco de perda para o produtor.
Ainda assim, muitos produtores continuaram por mais uma década com o plantio do
café na região norte do Paraná. O golpe final veio por meio das surpresas climáticas. De
acordo com Moro (op.cit.), a partir da segunda metade da década de 60, as geadas começaram
46
Terras devolutas são terras sem título de propriedade e pertencentes ao Estado ou à União.
87
a se intensificar, ocorrendo ano após ano, o que não permitia o tempo suficiente para a
recuperação dos cafezais, afetando drasticamente a produtividade na região. Muitas lavouras
foram contaminadas pela “ferrugem”. Entretanto, o pior ainda estava por vir, a geada ocorrida
no dia 17 de julho de 1975, devastou os cafezais do norte do Estado, o que acelerou o
processo de erradicação das lavouras cafeeiras que, segundo o autor, tiveram uma redução de
1,3 milhões de hectares, substituídos pelo binômio soja/trigo e pela pecuária.
Em conseqüência dessas transformações, o desemprego no campo atingiu proporções
catastróficas, levando milhares de trabalhadores a serem substituídos pelas máquinas. Muitos
deles migraram para os projetos de colonização na região Norte e Centro-Oeste do país,
outros migraram para os centros urbanos e outros decidiram resistir no campo.
O modelo de produção mecanizada trouxe aos fazendeiros a possibilidade de investir
numa grande quantidade de terras, com um custo reduzido e com uma margem de lucros
ampliada. Como resultado desse modelo, intensificou-se a concentração da posse da terra.
Segundo Moro (op.cit.), na década de 70, apenas no norte do Estado do Paraná, 100.385
estabelecimentos rurais de menor porte, foram engolidos pelas grandes propriedades, num
verdadeiro processo de “fagocitose”, como denominou José Graziano da Silva (1982) numa
analogia ao processo biológico onde as bactérias maiores engolem as menores que as cercam,
“é o que ocorre, por exemplo, quando uma usina de açúcar adquire um sítio em suas
proximidades, derruba as cercas e árvores frutíferas, a casa do morador, convertendo todas as
terras em canaviais, de modo que, depois de alguns anos, dificilmente se poderá identificar
qualquer vestígio da outra unidade de produção que ali existiu” (Graziano, 1982, p.54).
No oeste do Estado, a mecanização do campo também se iniciou “fagocitando” todas
as propriedades menores ao seu redor. Para se ter uma idéia da intensidade e rapidez com que
estas transformações foram se apresentando, basta analisar um dos índices de mecanização no
campo: a rápida aquisição de maquinários. Na década de 70, o número de tratores na região
oeste não ultrapassava a 1.725. Em 1980 o número atingia 16.247 e, cinco anos depois,
passava de 20.667 tratores (Fonte: tabela do IBGE – área cultivada e número de tratores
segundo as mesoregiões geográficas do estado do Paraná, em 1970, 1980 e 1985 – apud,
Moro op.cit., p.32).
Esses indicativos revelam, segundo o autor, o panorama traçado pela modernização
nos campos paranaenses – que, guardadas as diferenças regionais, ocorreram de forma
88
semelhante nos demais Estados do país – modernização que aconteceu de forma parcial,
conservadora e dolorosa:
Parcial porque limitou-se a algumas regiões do país, a alguns produtos
específicos e a certas fases da organização da produção. Conservadora
porque não rompeu com a tradicional concentração fundiária, isto é, da posse
da terra. Dolorosa porque concorreu para expoliar no campo milhares de
pessoas ligadas às atividades agropecuárias, acentuando o êxodo rural e a
miséria (Moro, op.cit., p.27).
Parcial também, porque o acesso aos benefícios da mecanização se restringiu aos
grandes proprietários de terra, restando aos pequenos o êxodo rural, ou a permanência no
campo na condição de sem terra, assalariados e bóias-frias. Os agricultores donos de pequenas
propriedades, eram pressionados a se desfazer de suas terras a fim de dar lugar aos grandes
latifúndios. Essa pressão se dava por meio dos fazendeiros, jagunços e, na maioria dos casos,
com a conivência do Estado e auxílio da polícia.
Esses problemas se agravaram a partir das décadas de 70 e 80, gerando as bases para
a organização destes trabalhadores num movimento de resistência à condição de miséria em
que foram lançados. Na tradição das guerras do Contestado, de Porecatu e do Sudoeste, os
trabalhadores paranaenses passaram a resistir à pressão para que abandonassem o campo e, a
partir de então, os conflitos, que sempre foram uma constante nos campos paranaenses se
intensificaram.
89
3.2. As lutas que precederam a formação do MST no Paraná
Entre os anos de 1947-1953, o Paraná foi palco de um intenso conflito denominado
Guerra de Porecatu. As terras devolutas da região do município de Porecatu, no norte do
Estado, foram repassadas pelo governo do Estado a preços simbólicos, para companhias
colonizadoras particulares que, segundo Batista (2003), deveriam organizar as terras de forma
a controlar as ocupações massivas que estavam ocorrendo na região norte. Porém, em virtude
da falta de infra-estrutura do local para locomoção e comunicação, muitas das empresas
fracassaram em seus empreendimentos e abandonaram os projetos de colonização. Em
conseqüência disso, o governo perdeu o controle desta área, que acabou por transformar-se
em um dos centros de ocupação de posseiros, vindos sobretudo das regiões de São Paulo e
Minas Gerais, atraídos pelas notícias de fertilidade das terras. Em meados de 1945, existiam
na região aproximadamente 1.500 posseiros, como afirma Morissawa (2001, p.90).
Segundo José de Souza Martins, a ocupação dos posseiros é por eles fundamentada
na compreensão de que a posse da terra é legitimada pelo trabalho, ou seja, aquele que
trabalha a terra deve ter direito a nela morar e produzir.
Pesquisadores tem observado, entre lavradores brasileiros, que eles próprios
podem perceber na existência direta, como costumam dizer, que ‘a terra é
uma dádiva de Deus’, por isso é de todos. Por essas razões é que os posseiros
de vastas regiões se concedem o direito de abrirem suas posses nas
chamadas terras livres, desocupadas e não trabalhadas, sem ‘sinal de ferro’,
de vastas regiões desertas, pois entendem que a terra é um patrimônio
comum, é de todos. Só é legítima a posse porque baseada no seu trabalho. É
o trabalho que legitima a posse da terra; é nele que reside o direito de
propriedade. Esse direito está em conflito com os pressupostos da
propriedade capitalista. (Martins, 1981, p. 61, grifos meus).
Esse conflito se apresenta tão logo apareçam grupos interessados nas terras para fins
empresariais ou de especulação, confrontando-se diretamente com o pensamento do posseiro
de que a posse da terra está baseada no trabalho nela desenvolvido. No Paraná não foi
diferente.
90
Em 1946, assumiu o governo do Estado o Sr. Moisés Lupion (1946-1950), que num
processo de “grilagem” passou a conceder títulos das terras do Estado para os seus
“apadrinhados”, e estes em posse do título começavam a “limpeza” da área. Iniciaram então,
por meio de jagunços e de tropas da polícia, o violento processo de despejo daqueles
moradores antigos, que começaram a povoar a região na segunda metade do século XIX.
Segundo Villalobos (2000), “os posseiros que ficaram nas terras, passaram a ser literalmente
massacrados pelos agressores, através de um processo conhecido como a quebra do milho,
onde jagunços e mata-paus, a mando dos grileiros e supostos titulares de terras, assassinavam,
no caso de se recusarem a abandonar o lote” (Villalobos, 2000, p.9).
Diante da violência e da necessidade de resistência, os posseiros solicitaram ajuda ao
PCB – Partido Comunista do Brasil que, antes do golpe militar, desempenhava um papel
importante em auxiliar a organização das lutas no campo e após o golpe foi tirado de cena
deixando espaço para as igrejas desempenharem esse papel – buscando apoio para denunciar
o repasse indevido das terras e a violência. Segundo Batista (2003), como as denúncias não
surtiram efeito, entre 1950 e 1951 os posseiros partiram para a luta armada, lutando pela
sobrevivência do seu modo de vida. O autor, afirma que a solução para o conflito veio com o
governador Bento Munhoz da Rocha (1951-1955), opositor de Lupion: “com a mudança de
governo, em 1951, os posseiros que resistiram foram contemplados com lotes cujo tamanho
variava de 15 a 50 alqueires, no município de Campo Mourão. Na região de Porecatu as terras
eram apropriadas à cultura do café e, por isso, acabaram ficando em poder dos grandes
fazendeiros” (Batista, 2003, p.28). Contudo, o conflito não foi solucionado sem antes deixar
um rastro de violências e mortes.
Antes mesmo do fim dos conflitos em Porecatu, iniciou-se, em 1950 – último ano do
primeiro mandato de Lupion – um grande conflito na região Sudoeste do Paraná, que ficou
conhecido como a Revolta dos Posseiros (1950-1957). Essa região foi desbravada e ocupada
por posseiros e pequenos proprietários que eram, em sua maioria, oriundos do Estado do Rio
Grande do Sul e instalaram-se nas regiões de fronteira entre Paraná e Santa Catarina e Paraná
e Argentina, predominantemente nas proximidades das cidades de Pato Branco, Francisco
Beltrão, Capanema e Santo Antônio.
Segundo Cortêz (2003), em 1950, o “Grupo de Moysés Lupion”, formado por
mineradoras de carvão, serrarias e fábricas de papel, adquiriu uma concessão de 425.731
hectares de terras. Como a transação era ilícita, o governador Lupion criou um cartório em
91
Santo Antonio do Oeste, especificamente para os fins de legalizar a posse destas terras. Em
1953, após tomar conhecimento deste processo explícito de grilagem de terras devolutas, a
União anulou a escritura das terras. Entretanto, era tarde, a Clevelândia Industrial e Territorial
Ltda – CITLA, estava instalada na região sudoeste desde 1951, e já implementava um regime
de terror entre os posseiros e camponeses. Morissawa (2001), afirma que “essa empresa
passou a ameaçar de expulsão os posseiros e até mesmo os trabalhadores que detinham o
título definitivo. Queria obrigar os camponeses a assinar contratos de arrendamento. Quem se
recusava era despejado à base de violência” (Morissawa, op.cit, p.90).
Em 1952, o governador Bento Munhoz da Rocha, cujo mandato foi de 1951 a 1955,
proibiu a entrada de outras empresas colonizadoras na região, até que se definisse a disputa
judicial pela posse das terras, travadas entre a União e a CITLA. Contudo, em 1955, Lupion
foi reeleito governador do Estado e, segundo Gomes (2005), reabriu a região para outras duas
colonizadoras, a Companhia Comercial Agrícola Paraná, e a Companhia Colonizadora
Apucarana.
Villalobos (2000) afirma que as ações das companhias colonizadoras estavam nas
mãos de empresários que nada tinham a ver com a agricultura e que residiam no Rio de
Janeiro, Curitiba e Porto Alegre, utilizando as terras apenas para especulação imobiliária.
Vale dizer, compravam-nas do Estado por um preço simbólico e revendiam por preços
exorbitantes para os camponeses que eram pressionados a pagar, mediante coerção dos
jagunços, como afirma Gomes (2005), ao relatar que,
(...) os jagunços passaram a percorrer as propriedades, sempre em grupos de
mais de três elementos, obrigando os colonos a assinar os contratos, dos
quais eram excluídos os pinheiros e as madeiras de lei. Caso o colono se
recusasse usavam de todo tipo de violência, desde impedir que se fizessem
as roças, como incendiar as casas, os galpões, matar animais, espancar
crianças, praticar violências sexuais contra as mulheres, prender, matar, etc.
(Gomes, op.cit, p.58).
Gomes afirma que os camponeses, em sua maioria, tinham a disponibilidade de pagar
pelo título da terra, mas logicamente, queriam um título de posse que tivesse validade legal.
Aproveitando-se desta situação, as companhias vendiam duas, três vezes, a mesma área. Em
cada momento surgia um dono diferente cobrando do agricultor o direito de posse, sendo que
92
nenhum emitia um documento que tivesse validade legal. As companhias recebiam o dinheiro
e não entregavam recibo e, quando entregavam, eram feitos em “papel de carteira de cigarro
ou em papel de embrulho. Não eram assinados pelos responsáveis da companhia, nem tinham
carimbos. Quem assinava era o próprio jagunço. E não com o seu nome. Com o apelido:
Maringá, Chapéu de Couro, Lapa, Quarenta e Quatro, etc.” (Gomes, 2005, p.59).
Além de toda a violência e a humilhação contra os camponeses, segundo Morissawa
(2001), havia um problema de corrupção estrutural. Depois de expropriadas, parte destas
terras eram concedidas como presentes aos “apadrinhados” de Lupion, sobretudo aqueles
ligados direta ou indiretamente ao banco estadual – Banestado, numa estratégia para
conseguir deste banco empréstimos altíssimos sob condições privilegiadas.
A situação na região foi ficando insustentável para os trabalhadores rurais que, em
1957, após terem procurado auxílio das autoridades que nada fizeram em conivência com a
posição do governo, decidiram resistir à sua maneira. Segundo Morissawa (op.cit), estes
trabalhadores se organizaram nas quatro principais cidades da região, no que eles chamavam
de juntas organizativas, decididos a expulsar as companhias colonizadoras.
Segundo Gomes (2005), em agosto de 1957 começou o enfrentamento armado entre
posseiros e camponeses versus jagunços e tropas militares, a partir de uma marcha dos
trabalhadores armados pela avenida principal do distrito de Verê, rumo aos escritórios da
companhias, ocasião em que um dos camponeses foi assassinado.
Na tentativa de reprimir o levante que se preparava, as companhias, na figura dos
jagunços e pistoleiros, acirraram a pressão e a violência sobre os trabalhadores. No mês de
setembro, dois mil camponeses tomam a cidade de Capanema e expulsam os jagunços e
funcionários das colonizadoras. Em outubro ocorreram rebeliões de camponeses e posseiros
em Pato Branco, Francisco Beltrão e Santo Antonio do Sudoeste.
Diante dessa situação de levante popular dos camponeses e posseiros, o governo
federal, na figura do Ministro da Guerra, marechal Lott, ordenou ao governador Moisés
Lupion que fechasse as colonizadoras e acalmasse a população, sob ameaça de intervenção
federal. O governador acatou as ordens, porém a situação não foi resolvida de imediato.
Somente em 1962, no governo de João Goulart, sendo Ney Braga o governador do Paraná,
União e Estado, cederam as propriedades das terras aos camponeses e posseiros. Onze anos
93
depois foi terminado o trabalho de medição e redistribuição dos lotes, sendo titulados 32.245
lotes rurais e 24.661 lotes urbanos.
No cerne destes conflitos que se espalharam pelo país, encontra-se o problema das
diferentes concepções da função social da terra. De um lado, os trabalhadores rurais lutando
pela terra de trabalho e de outro, os empresários lutando pela posse da terra de negócios,
como explica Martins (1981):
Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de
negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando o trabalhador se
apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. São regimes
distintos de propriedade, em aberto conflito um com o outro. Quando o
capitalista se apropria da terra, ele o faz com o intuito do lucro, direto ou
indireto. Ou a terra serve para explorar o trabalho de quem não tem terra; ou
a terra serve para ser vendida por alto preço a quem dela precisa pra
trabalhar e não a tem. (Martins, 1981, p.60, grifos do autor).
Na defesa da concepção de terra de trabalho, muitos outros foram os conflitos
ocorridos em solo paranaense. A situação que já era tensa em virtude desses conflitos pela
terra, piorou a partir da década de 70, com a construção da usina hidrelétrica binacional de
Itaipu, localizada a aproximadamente 40 km ao norte das Cataratas do Iguaçu, na fronteira do
Brasil com o Paraguai – país sócio no empreendimento hidrelétrico.
Nesse período o Brasil vivia o chamado “milagre econômico” e precisava de muita
energia elétrica para alimentar a crescente industrialização do país. O ambicioso projeto de
construir uma das maiores hidrelétricas do mundo para atender ao vertiginoso crescimento
urbano e industrial trouxe conseqüências dolorosas para os moradores das zonas rurais e
urbanas que habitavam o perímetro incluído no projeto, que abrangia a região do extremo
oeste do Paraná.
Segundo Batista (2003, p.46), para a construção da hidrelétrica, em 1975, o governo
impôs a desapropriação de 6.263 estabelecimentos rurais e urbanos com tamanho médio de 15
hectares, somando um total de 111.332 hectares que foram completamente inundados. O autor
afirma que habitavam nestas terras 42.444 pessoas, sendo 38.445 no meio rural e 3.999 no
meio urbano. De acordo com Branford e Rocha (2004), essas pessoas totalizavam
aproximadamente 12.000 famílias, que agora estavam sem teto e sem terra.
94
Segundo Morissawa (2001), os posseiros que ali habitavam foram, em sua maioria,
levados para o projeto de colonização Pedro Peixoto no Acre, e lá ficaram sem nenhuma
assistência do Estado. Aos proprietários das terras, o governo prometeu uma indenização
justa. Porém, passados três anos, a maioria das famílias não havia recebido as indenizações
devidas, e o valor das poucas indenizações pagas eram bem menores do que o valor real da
terra, o que não permitia que voltassem a ter terras no mesmo padrão das que outrora
possuíam, ou seja, terras férteis, produtivas e bem localizadas.
As famílias que permaneceram na região oeste do Paraná começaram a se organizar
com o importante apoio da CPT, da Igreja Luterana e de alguns sindicatos rurais, formando
em 1980, o movimento Justiça e Terra. Os espaços de discussão e conscientização que foram
criados pelo movimento serviram para que as famílias sem terra percebessem a importância
de se organizarem coletivamente. Iniciou-se também um cadastro das famílias que tinham
perdido suas propriedades e, em menos de um ano, mais de 6.000 famílias foram cadastradas.
Segundo Morissawa (2001), o movimento organizou um acampamento de 2.000 famílias no
trevo de acesso à hidrelétrica. Como resultado deste trabalho, conquistaram o aumento do
valor das indenizações, além de dois assentamentos no oeste do Estado para 420 famílias, 400
no município de Arapoti e 20 no município de Toledo.
O movimento Justiça e Terra desempenhou um papel importante no que se refere à
compreensão da necessidade de organização dos trabalhadores sem terra, a fim de alcançarem
suas reivindicações. Estas conquistas levaram à criação de um movimento mais amplo, o
MASTRO – Movimento Agrário Sem Terra do Oeste do Paraná, criado em 1981.
A exemplo do MASTRO, surgiram outros movimentos regionais que pretendiam a
organização dos trabalhadores sem terra, a fim de resistirem às políticas do Estado e da União,
que colocaram o Paraná em primeiro lugar no ranking da expropriação, expulsão e êxodo
rural. Surgiram então, nos anos de 1982 e 1983, no sudoeste do Paraná o MASTES
(Movimento Agrário Sem Terra do Oeste do Paraná), no centro-oeste o MASTRECO
(Movimento Agrário Sem Terra do Centro Oeste do Paraná), no norte o MASTEN
(Movimento Agrário Sem Terra do Norte do Paraná), e no litoral o MASTEL (Movimento
Agrário Sem Terra do Litoral do Paraná) (Fernandes, 2000a; Morissawa, 2001).
Em 1982, ocorreu a vitoriosa ocupação da fazenda Anoni, no município de
Marmeleiro, sudoeste do Paraná. Além desta, outras importantes ocupações foram realizadas
95
no período de 1984 e 1985. Estas ações levantaram as bases para a formação do MST no
Paraná.
O Estado oferecia as condições necessárias para impulsionar o crescimento de um
movimento nacional, ou seja, um grande número de famílias expropriadas de suas terras e um
sistema de organização política avançado, o que motivou os sem terra paranaenses a sediarem
a realização dos primeiros grandes encontros do MST: o Encontro Nacional que oficializou o
movimento (1984) na cidade de Cascavel e o I Congresso Nacional do MST (1985), em
Curitiba.
A partir de então, os movimentos regionais passaram a integrar o MST, e
intensificaram suas ações, ampliando progressivamente o número de acampamentos e
assentamentos. Em julho de 1985 havia três acampamentos no sudoeste do Paraná, com
aproximadamente 1.500 famílias e, um ano depois, este número estava duplicado.
Uma das conquistas mais importantes dessa fase inicial do MST no Paraná, foi a
reocupação da fazenda Pinhal Ralo, no extremo sul do Estado, pertencente à empresa
Giacometti-Marodin. Em 1985, os agricultores sem terra souberam, por meio da imprensa,
que as terras desta fazenda tinham sido desapropriadas pelo governo federal e destinadas à
reforma agrária. Para pressionar a regularização das terras, os sem terra ocuparam apenas
1.000, dos mais de 80.000 hectares que compunham esta fazenda (Morissawa, 2001). Os
latifundiários não tardaram a reagir e, com o apoio da Policia Militar, empreenderam uma
operação de terror. Sob a coerção de armas, torturas e humilhações, os trabalhadores foram
expulsos. Passados onze anos, em abril de 1996, a fazenda Pinhal Ralo, também conhecida
apenas por Giacometti, foi reocupada por 3.000 famílias
47
. Entretanto, somente no ano
47
O fotógrafo Sebastião Salgado acompanhou a ocupação e registrou esses momentos em fotografias que
divulgaram o MST e essa ocupação no mundo todo, sobretudo, a foto tirada no momento em que os sem terra,
empunhando foices, facões e bandeiras do MST, abrem as porteiras da fazenda e ocupam o latifúndio
Giacometti. Sebastião Salgado fez o seguinte relato acerca dessa experiência:
Era impressionante a coluna dos sem-terra formada por mais de 12 mil pessoas, ou seja, 3 mil famílias, em
marcha na noite fria daquele início de inverno no Paraná. O exército de camponeses avançava em silêncio
quase completo. Escutava-se apenas o arfar regular de peitos acostumados a grandes esforços e o ruído surdo
dos pés que tocavam o asfalto.
Pelo rumo que seguia a corrente, não era difícil imaginar que o destino final fosse a Fazenda Giacometi, um dos
imensos latifúndios, tão típicos do Brasil. Marginalmente explorados, esses latifúndios, todavia, em razão das
dimensões colossais, garantem aos seus proprietários rendas milionárias. Corretamente utilizados, os 83 mil
hectares da Fazenda Giacometi poderiam proporcionar uma vida digna aos 12 mil seres que marchavam
naquele momento em sua direção.
Anda rápido um camponês: 22 quilômetros foram cobertos em menos de cinco horas. Quando chegaram lá, o
dia começava a nascer. A madrugada estava envolta em espessa cerração que, pouco a pouco, foi se deslocando
96
seguinte, em janeiro de 1997, é que uma parte da fazenda foi desapropriada, totalizando
16.852 hectares destinados para reforma agrária.
Diante de tamanha demonstração de força, os governos estadual e federal, foram
impelidos a negociar com o MST no Paraná. Até 1990 haviam sido conquistados 60
assentamentos para 15.000 famílias. Nesta década, as constantes ocupações, manifestações e
acampamentos, mudaram as paisagens dos campos paranaenses Branford e Rocha (2004)
afirmam que apenas nos Estados de Pernambuco e Alagoas o MST crescia em maior
proporção.
Esse crescimento esteve muito relacionado ao retorno dos trabalhadores rurais que
cruzaram a fronteira do Brasil, buscando no Paraguai melhores oportunidades de trabalho na
lavoura. Com a frustração dos sonhos, esses brasileiros, ou brasiguaios, viam no MST uma
possibilidade de repatriamento e (re)construção da vida “em cima do lote”.
3.3. Sem terra e sem pátria: o caso dos brasiguaios
Com a construção da usina de hidrelétrica de Itaipu, restavam poucas opções aos
camponeses desalojados: a resistência no local de origem, aguardando uma solução de longo
prazo, opção feita principalmente por aqueles que tinham o título de posse da terra (como no
caso relatado no tópico anterior); a adesão aos projetos de colonização nas regiões Norte e
Centro-Oeste do país; ou a emigração para o Paraguai. Esta última foi a alternativa
“escolhida” por milhares de famílias camponesas, alimentadas pela ilusão da aquisição de
da terra, sob o efeito da umidade do rio Iguaçu, que corre ali bem próximo. Pois o rio de camponeses que
correu pelo asfalto noite adentro, ao desembocar defronte da porteira da fazenda, pára e se espalha como as
águas de uma barragem. As crianças e as mulheres são logo afastadas para o fundo da represa humana,
enquanto os homens tomam posição bem na frente da linha imaginária para o eventual confronto com os
jagunços da fazenda.
Ante a inexistência de reação por parte do pequeno exercito do latifúndio, os homens da vanguarda arrebentam
o cadeado e a porteira se escancara; entram; atrás, o rio de camponeses se põe novamente em movimento;
foices, enxadas e bandeiras se erguem na avalanche incontida das esperanças nesse reencontro com a vida – e
o grito reprimido do povo sem-terra ecoa uníssono na claridade do novo dia: “REFORMA AGRÁRIA, UMA
LUTA DE TODOS!” Paraná, 1996.( Salgado, 1997, p.143, grifos meus).
97
terras mais baratas e abundante oferta de trabalho no país vizinho. Cácia Cortêz (1993) afirma
que, a partir de 1975, chegavam no Paraguai de oito a dez famílias por dia.
Esse processo de migração, que se intensificou a partir da década de 70, teve início
na década de 50, no contexto da revolta dos posseiros no sudoeste do Estado. Nesse período
(1950-1969) as migrações eram motivadas pelos violentos conflitos com as colonizadoras,
pelo baixo preço e pelo bom nível de fertilidade das terras paraguaias. Os brasileiros que
foram para o Paraguai em busca de terra e uma vida digna ficaram conhecidos como
brasiguaios:
Os brasiguaios são o resultado da expropriação e expulsão violenta de
centenas de milhares de agricultores do Sul do país, iniciada na década de
cinqüenta, no sudoeste do Paraná, quando as terras devolutas, ocupadas por
colonos, foram sendo anexadas às das colonizadoras, para serem
comercializadas ou incorporadas a novos latifúndios, iniciando assim, a
concentração de terras na região (Cortêz, 1993, p. 13).
Contudo, o período compreendido entre os anos de 1970 e 1979, constitui-se no
momento de maior emigração de brasileiros para o Paraguai, motivados principalmente pelo
fato de que na política de modernização da agricultura incentivada pelo Estado, não havia
lugar para a agricultura camponesa. No caso específico da região oeste do Paraná, somavam-
se ainda as desapropriações geradas pela construção da hidrelétrica de Itaipu. A autora afirma,
que “para as famílias do oeste paranaense, restaram as terras paraguaias do outro lado do rio.
Deixaram para trás estradas, pontes, colônias e cidades que ajudaram a erguer e a povoar”
(op.cit, p.21) e o mais grave, segundo Cortêz, é que estas famílias embarcaram,
sem saber que estavam sendo objeto de um projeto previamente traçado pelo
regime militar, que previa o esvaziamento dos conflitos, limpando a região
para a instalação de grandes empresas agroindustriais e a consolidação da
monocultura mecanizada; e, ainda, da estratégia expansionista dos militares:
as fronteiras precisavam ser ocupadas, o ‘Brasil Grande’ tinha que alargar e
garantir os seus domínios (Cortêz, op.cit, p. 21).
98
Aproveitando esse momento, muitos fazendeiros paranaenses compravam grandes
propriedades no Paraguai e para lá levavam os agricultores, a fim de trabalharem como
arrendatários.
As ilusões dos camponeses brasileiros, de construir uma vida digna no país vizinho,
foram se desconstruindo em pouco tempo. A modernização que chegara nos campos
brasileiros a partir da década de 60, atingiu o solo paraguaio no início da década de 80,
levados pelas grandes empresas agroindustriais que, segundo Cortêz (1993, p. 22), tal como
no Brasil, se instalaram quando “os colonos já tinham ‘amansado’ a maioria das terras, onde
haviam construído novos povoados. E as colonizadoras passam a agir na especulação
imobiliária, retirando violentamente os agricultores de suas posses”.
Em decorrência do processo de modernização, a partir de 1985 os contratos de
arrendamento com os agricultores foram suspensos, já que o aluguel da terra para a cultura de
subsistência não era tão rentável como a produção da monocultura em larga escala. Assim, os
mais de quinhentos mil agricultores que foram empurrados para o território paraguaio, alguns
há mais de trinta anos, estavam novamente sem terra, vítimas de um novo processo de
expropriação e expulsão, e começavam a pensar em voltar para o Brasil.
A iniciativa de começar a planejar o retorno foi motivada pelas notícias do plano de
reforma agrária na nova república (PNRA) e pelo crescimento do MST no Brasil, somados ao
fim dos arrendamentos para os brasiguaios e ao abusivo valor cobrado pela documentação
exigida dos brasileiros pelo governo paraguaio, além das constantes denúncias de violência
contra os brasiguaios.
Entretanto, diferentemente da ida, a volta não foi facilitada pelos governos
envolvidos, já que a ida fazia parte de um projeto militar ligado à “estratégia colonialista
brasileira sobre o Paraguai”, como afirma o documento final de um dos congressos que reuniu
movimentos sociais, sindicais e populares, sob a reivindicação de repatriamento aos
brasileiros:
A expressiva presença brasileira no Paraguai faz parte dos acordos firmados
entre os dois países, nos quais o governo paraguaio paulatinamente foi
cedendo a soberania do país em troca da ‘modernização e desenvolvimento’,
oferecido pelos governos brasileiros desde Getúlio Vargas, passando por
Juscelino Kubitschek e culminando com a assinatura dos tratados de Itaipu,
em 1975, no governo Geisel, que previa ocupar uma área de 121.889
99
quilômetros quadrados (33 por cento do território paraguaio) com 1.200.000
brasileiros (45 por cento da população do Paraguai). Assim, estava selada a
entrega da soberania paraguaia ao subimperialismo brasileiro. Para isso, os
brasiguaios formam a cerca viva ao redor do lago de Itaipu, assegurando a
expansão da fronteira brasileira no Paraguai e garantindo o projeto
expansionista (...) Hoje os chamados brasiguaios, sem terra e sem pátria, são
calculados em torno de quinhentos mil. Ocupam as terras mais férteis,
representam mais de oitenta por cento da população da fronteira paraguaia e
quinze por cento dos eleitores. Sobrevivem como posseiros, meeiros, bóias-
frias, arrendatários e agregados, em condições de exploração e miséria.
(Trechos da Carta Dourados, de 22 de agosto de 1991, apud Cortêz, 1993.,
p.199).
O governo brasileiro não queria receber de volta os brasiguaios e, com ajuda do
governo paraguaio, foram criadas barreiras policiais nas fronteiras dos dois países.
Mesmo sabendo dessas dificuldades, algumas famílias começaram a preparar o
retorno. Em junho de 1985, aproximadamente 1.000 famílias atravessaram a fronteira entre
Paraguai e Mato Grosso, montando acampamento no centro da cidade de Mundo Novo, a
aproximadamente 14 quilômetros da fronteira. O governo do Estado correu para fechar a
fronteira e evitar que outras famílias brasiguaias se juntassem ao acampamento. As famílias
permaneceram acampadas por seis meses, período no qual 27 pessoas morreram em
decorrência das péssimas condições do local e à falta de assistência por parte das autoridades
locais. Em janeiro de 1986, as famílias acampadas foram assentadas naquela mesma região.
Em abril deste mesmo ano, aproximadamente 4.600 famílias brasiguaias iniciaram as
negociações junto ao ministro da reforma agrária no Brasil, Nelson Ribeiro, a fim de retornar.
Diante dos relatos de sofrimento destas famílias e diante da afirmativa de que as mesmas
pretendiam retornar com ou sem a ajuda do governo, o ministro prometeu garantir o direito de
retorno e de manutenção destas famílias no Brasil. Entretanto, não cumpriu a promessa.
Segundo Cortêz (1993), as barreiras policiais não permitiam que os agricultores alcançassem
sequer a fronteira do país. Os carros que cruzavam a fronteira eram revistados, os caminhões
de mudança eram detidos e as casas nas cidades de fronteira eram revistadas para averiguar se
“escondiam” brasiguaios. A segurança na fronteira era realizada pelo Grupo de Operações de
Fronteira – GOF, criado na época pelo governador do Mato Grosso do Sul, Marcelo Miranda,
e apoiado por pistoleiros armados. A autora afirma que o GOF foi denunciado pela imprensa
paraguaia, por atuar como esquadrão da morte.
100
Os anos que seguiram foram marcados por esse conflito entre as famílias que
desejavam voltar e os governos que não permitiam o retorno. No início da década de 90 foi
criada uma comissão de brasiguaios que buscava o apoio de outras organizações e entidades
que pudessem auxilia-los nesse processo de repatriamento (MST, CPT, CUT, PT, Via
Campesina, entre outras). Ao relatar a estas entidades os problemas que viviam no Paraguai,
bem como os motivos que os levavam a desejar retornar ao Brasil, afirmavam que:
O Brasil já nos rejeitou há mais de três décadas, quando nos arrancou da
terra e nos obrigou a buscar refúgio no Paraguai. Hoje o Paraguai, da mesma
forma, não nos dá condições de sobrevivência e uma cidadania digna.
Estamos sem terra e sem pátria. Nem brasileiros (pois não temos nossa
cidadania reconhecida) e nem paraguaios, pois lá somos estrangeiros. Somos
os brasiguaios e lutamos pelo direito de voltar ao Brasil e dar aos nossos
filhos uma pátria que os receba. (...) Porque as autoridades brasileiras não
nos dão o direito de retornar para o nosso país? Por que nos tomam
instrumentos de trabalho para ‘evitar’conflitos, e não desarmam os jagunços
e os fazendeiros, que estão com metralhadoras e escopetas e agem com a
proteção da própria PM? Será que somos menos cidadãos brasileiros que os
jagunços e os fazendeiros que nos ameaçam? (...) Se não tivermos o apoio e
a garantia dos nossos direitos, romperemos a primeira cerca, não só a da
fronteira, para fugir da marginalidade e da miséria que querem nos atirar.
(Trecho da carta endereçada às entidades de defesa dos direitos humanos,
nacionais e estrangeiras em 26 de maio de 1992, apud, Cortêz, 1993, p.182).
Os brasiguaios viviam um clima de terror. Os fazendeiros das regiões de fronteira
colocavam suas milícias armadas com escopetas e metralhadoras automáticas, para montar
guarda nos arredores das propriedades e desfilar pelas cidades, atemorizando os
agricultores. Mesmo assim, muitos conseguiam burlar as barreiras e cruzar a fronteira de
ônibus, caminhão, bicicleta e até a pé, tamanha era a necessidade de sair daquele país
(Cortêz, op.cit). Egídio Bruneto, um dos coordenadores do MST que acompanhou a
trajetória dos brasiguaios, afirmou o seguinte:
É um povo sem pátria em busca de sua cidadania. E, guardadas as
proporções, estão nas mesmas condições do povo palestino, pois no Paraguai
não tem condições de ter sua terra e continuam com a referência cultural
brasileira. Poucos se naturalizaram, a maioria ainda não possui documentos
de migrante. Muitos, pela teimosia em continuar como brasileiros,
atravessam a fronteira para casar e registrar os filhos no Brasil (...) esta falta
de identidade é angustiante para os jovens, que cresceram na expectativa do
regresso à terra de seus pais (...) eles estão num vácuo histórico, passaram
101
por duas ditaduras e agora, com a abertura política e a redemocratização dos
dois países, procuram voltar ao Brasil da forma que lhes é mais familiar, isto
é, migrando – desta vez em regresso – na busca de terra para produzir.
(Bruneto, apud Cortêz, 1993, p. 166).
Os brasiguaios que conseguiam retornar acampavam nas cidades de fronteira, o que
levou a antropóloga Márcia Sprandel, a afirmar que: “verifica-se um ‘rosário’ de
acampamentos de brasiguaios e trabalhadores rurais sem terra nessas mesmas regiões, o que
abre uma perspectiva de futuro onde o cidadão estaria compulsoriamente vivendo uma
situação de limbo, sem acesso aos seus direitos básicos, à terra e à cidadania. A categoria
brasiguaios está sendo empurrada para acampados, exilados dentro de seu próprio país.
(Márcia Sprandel, apud, Cortêz, op.cit., p.197).
Na década de 90, milhares de brasiguaios retornaram para o Brasil e, muitos deles,
engrossaram as fileiras do MST, como é possível constatar na formação do assentamento
Dom Hélder Câmara, onde uma parte considerável das famílias são brasiguaias. Segundo os
relatos dos assentados, o MST realizou um grande trabalho de frente de massa no Paraguai,
convidando as famílias para integrarem o MST. Um dos assentados, Vitor de 26 anos, afirma
ter conhecido o movimento através da televisão: “Conheci o MST pela televisão, e desde
criança sempre simpatizei com o MST (...) eu morava no Paraguai na época da novela Rei do
Gado e gostava de ver os sem terra na TV (...) depois de um tempo o pessoal da frente de
massa passou pelo Paraguai e convidou a gente pra vim, e nós aceitamos”.
Essa vivência no Paraguai se constitui num elemento importante na vida destas
famílias, o que é possível observar a partir do desenho de Eduardo
48
, um menino de 12 anos à
época. Eduardo retornou ao Brasil com a família por meio de um trabalho de frente de massa
do MST. A família foi assentada no assentamento Dom Hélder Câmara, depois de cinco anos
de acampamento no Brasil.
Diante da solicitação de realizar um desenho com um tema livre, Eduardo desenhou
sua família e as bandeiras do Brasil e do Paraguai lado a lado, sendo que na bandeira do
Paraguai se observa um detalhamento maior entre cores e forma, em relação ao desenho da
bandeira do Brasil. Curiosamente o que separa as duas bandeiras, ou os dois países, é um
elemento da arquitetura urbana, um prédio tão alto e imponente quanto as bandeiras. Ao lado
48
Nome fictício.
102
da bandeira do Paraguai, aparecem as siglas MST, representando, de alguma forma, o veículo
pelo qual a família conseguiu o repatriamento.
Fonte: acervo pessoal. Desenho 05: Um pouco brasileiro, um pouco paraguaio.
103
3.4. As lutas nos campos paranaenses a partir da década de 90
A década de 90 foi marcada por um crescente número de violências contra
trabalhadores rurais sem terra no Estado do Paraná. Entre 1991 e 1992, posseiros que viviam
nas proximidades do município de Pinhão, região centro oeste do Estado, em ocupações que
haviam se iniciado há mais de uma centena de anos, passaram a ser atacados por pistoleiros da
milícia armada da Madeireira Zattar. A intenção era forçar os posseiros a abandonar a área,
em favor da madeireira. Esse grupo paramilitar aterrorizou a região, efetuando ataques às
crianças nas escolas, aos assentamentos, prendendo os posseiros, queimando as casas,
ameaçando e matando os trabalhadores, inclusive crianças. Esse tipo de violência foi uma
constante na vida destas famílias de posseiros ao longo de toda a década de 90, sem uma
intervenção efetiva das autoridades competentes a fim de coíbi-los
49
.
Em 1991, 400 famílias sem terra ocuparam uma área da Fazenda Santana, no
município de Campo Bonito, região Oeste do Paraná, a 50 km de Cascavel. A Fazenda era de
“propriedade” do grupo Agroindustrial Beledelli que, segundo Villalobos (2001, p.15),
“apossou-se das terras da União, localizadas na faixa de fronteira”. Num acordo mediado pela
Assembléia Legislativa do Paraná entre os empresários e os ocupantes, a empresa se
comprometeu em doar uma parcela das terras para a criação de um assentamento, obtendo em
contrapartida a regularização da outra parte da propriedade. Entre 1991 e 1992 foram
assentadas cerca de 250 famílias.
Em 03 de março de 1993, as 150 famílias restantes, que há aproximadamente dois
anos aguardavam a desapropriação da área para o assentamento, reocuparam a fazenda, na
tentativa de agilizar a desapropriação. Neste mesmo dia, no início da tarde, três policiais à
paisana, integrantes da polícia secreta (P2), foram até o acampamento, a fim de obter
informações, papel que, de acordo com Villalobos (op.cit), não é da polícia militar e sim da
polícia civil. Temendo que fossem pistoleiros, os sem terra decidiram revistá-los. Ao se
aproximarem, dois sem terra foram dominados sob a mira de armas de fogo. Nestas
circunstâncias, iniciou-se um tiroteio “provocado pelas tensões e a negligência dos policiais
que estavam vestidos à paisana” (Villalobos, 2001, p. 15), que resultou na morte dos três
49
Maiores detalhes sobre esse e outros casos de violência na década de 90 no Estado do Paraná, estão
disponíveis no documento, A violência nossa de cada dia, disponível em: www.mst.org.br/mstpr/violenci.htm
104
policiais e alterou todo o curso do que deveria ser um ato de resistência pela reivindicação de
um direito legítimo.
A partir de então, iniciou-se uma gigantesca operação militar cercando o
acampamento. Todas as rodovias que davam acesso ao município foram controladas pela
polícia militar. Helicópteros sobrevoavam o local. No dia seguinte, 4 de março, Lourival
Castilhos, um dos sem terra que estava presente na ocasião do tiroteio, se entregou ao Capitão
Valdir Cumpetti Neves que, ao invés de apresentá-lo ao delegado, seqüestrou-o para uma
sessão de interrogatório a fim de que entregasse os outros sem terra que participaram dos
fatos. Para tanto, utilizou como instrumento espancamento, choque elétrico, afogamento e
ameaça de morte. O mesmo procedimento foi realizado com outros seis sem terra. No dia
seguinte foram presos 150 homens sem terra.
A polícia intensificou a caçada por Diniz Bento Teixeira da Silva, conhecido como
Teixeirinha, uma das lideranças dos agricultores. Segundo Villalobos (2001, p. 16), desde que
soube “que havia sido decretada pena de morte contra ele”, Teixeirinha se escondeu num
buraco próximo ao acampamento. Teixeirinha decidiu se entregar depois da notícia de que seu
filho de 13 anos havia sido preso e torturado. Entregou-se, foi preso e espancado diante das
câmeras de televisão e diante de mais de 20 testemunhas. Em seguida foi levado para a sua
roça e executado com cinco tiros, sendo dois nos joelhos – evidência de tortura – um tiro no
abdômen e dois na cabeça. Na versão da polícia, a execução foi uma reação desencadeada
pela tentativa de Teixeirinha em fugir do cerco policial.
O “caso Teixeirinha”, como ficou conhecido, ganhou repercussão nacional e
internacional, pela natureza política da execução, evidenciado na “caçada” de cinco dias, cujo
desfecho foi o esperado. O então Secretário de Assuntos Fundiários do Governo Estadual
pediu exoneração do cargo por meio de uma carta acusando o governo do Estado, na época
Roberto Requião (1991-1994), de conivência com a ação policial: “V. Excia. é o responsável,
ainda que indireto, pela execução sumária do companheiro ‘Teixeirinha’, pela reedição da
tortura, pelo desencadear da repressão militar sobre aqueles que lutam contra a opressão e, por
último, mas não finalmente, por ter dado a chave (a ordem) para que os quartéis
esparramassem o terror contra o povo”. (In: Villalobos, 2001, anexos, p.22).
Passados oito anos, em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
órgão da OEA (Organização dos Estados da América), considerou a execução uma atitude de
105
retaliação pela morte dos policiais e, segundo Ferreira (2002), condenou o Estado brasileiro
pelo encobrimento dos fatos e das investigações. Essa foi a primeira vez que um organismo
internacional reconheceu um crime de grave violação aos direitos humanos contra o MST.
Passados mais três anos, em 2004, numa decisão histórica, os juízes da Terceira Câmara Cível
do Tribunal de Justiça do Paraná, condenaram o Estado a pagar uma indenização por danos
morais e materiais à esposa e ao filho de Teixeirinha.
O “caso Teixeirinha” marcou com sangue o primeiro mandato do governo Requião
50
.
Um caso de gravidade sem precedentes na história recente do Paraná, sobretudo pela
premeditação, pelos requintes de crueldade, por colocar os agentes do Estado deliberadamente
em posição de uma milícia privada, ou seja, em retaliação a um fato provocado, em última
análise, por uma intervenção indevida da polícia secreta, quando na verdade o papel do
Estado deveria ser o de garantir aos trabalhadores a realização do acordo de assentamento por
ele afiançado. Esse foi um caso isolado dentro do governo Requião. Com o fim deste governo,
Jaime Lerner foi eleito governador e, a partir do seu primeiro ano de mandato, 1995, a
violação de direitos humanos no campo passou a acontecer de forma sistemática, tornando-se
um método de ação.
No dia 08 de novembro de 1995, no município de Santa Isabel do Ivaí, norte do
Estado, conforme dados da CPT e MST
51
, ocorreu o “projeto piloto” a partir do qual se
desenvolveriam as “táticas de guerra” para as desocupações das fazendas ocupadas por sem
terras. A Fazenda Saudade era uma área desapropriada para a reforma agrária, com 1.022
hectares. No entanto, sem mandado judicial, 90 policiais invadiram a área e despejaram
aproximadamente 30 famílias, queimando os barracos, utilizando bombas de gás
lacrimogêneo e tiros nas pernas e pés dos trabalhadores, o que levou Pedro Lopes dos Santos,
de 54 anos, a amputar a perna esquerda em virtude de ferimentos à bala e espancamento.
O governo do Estado prometeu uma solução para aquelas famílias. Passados dois anos
sem a prometida solução, 46 famílias reocuparam essa fazenda, em fevereiro de 1997. Em
setembro do mesmo ano, cerca de 80 homens encapuzados e armados com fuzis, escopetas,
50
Roberto Requião governou o Paraná de 1991-1994. Em 2003 assumiu pela segunda vez o governo do Estado,
com uma postura política bastante diferenciada, pautada no diálogo e negociação com os movimentos sociais,
sobretudo com o MST.
51
Esse caso está relatado no documento elaborado pela CPT e MST, dentre outras entidades de apoio a reforma
agrária intitulado, A violência nossa de cada dia, disponível em: www.mst.org.br/mstpr/violenci.htm
106
metralhadoras e coletes à prova de bala, invadiram a fazenda, dizendo que estavam
procurando as lideranças do MST. Queimaram todos os barracos, inclusive um carro que
estava no local, espancaram as lideranças e atiraram aleatoriamente contra todo o
acampamento. Posteriormente, os sem terra foram à delegacia para registrar a ocorrência.
Entretanto, o delegado se recusou a registrá-la. Esta atitude revelava os primeiros indícios de
uma posição política de intensificação do vínculo entre governo estadual e latifundiários,
grande parte deles organizado na UDR.
A União Democrática Ruralista surgiu quando os latifundiários, alarmados com o
crescimento do MST em todo o país, decidiram se unir e criar uma organização que exercesse
pressão política junto às instâncias do poder legislativo, representados pela bancada ruralista
no Congresso Nacional, e que ao mesmo tempo atuassem para impedir o avanço do MST por
meio de força militar paralela ao Estado, as milícias armadas. Partindo desse pressuposto,
reuniram-se em 24 de julho de 1985, no município de Santa Maria, Rio Grande do Sul, cerca
de 800 fazendeiros que, segundo Branford e Rocha (2004, p. 59), decidiram criar sua própria
organização alegando que o governo “relutava em usar a força para desalojar as famílias” e
que os obrigava a criar uma organização “para cuidar das expulsões”. De acordo com
Bernardo Mançano Fernandes (1999a, p.93), a organização foi composta “por fazendeiros
muito atrasados do setor pecuarista e contrários à reforma agrária”.
O nascimento da UDR contou também com o apoio de setores como a TFP –
Tradição Família e Propriedade, organização político-religiosa de extrema direita que
impulsionou e sediou este encontro. Nas palavras de Oliveira (2004), esse “é o pêndulo da
violência: se a polícia age contra os sem terra, os fazendeiros se abstêm. Se o governo não age
com violência, as milícias reaparecem”. (Oliveira, op.cit., p. 58).
No governo de Jaime Lerner, iniciou-se um movimento um tanto diferenciado, ou
seja, a UDR e o governo deixaram de agir de forma isolada, como coloca Oliveira, e passaram
a agir em conluio. A UDR esteve à frente dos confrontos contra os sem terra, em nível
institucional – exercendo pressão política não apenas no poder legislativo, mas nas instâncias
relacionadas à Secretaria de Segurança Pública do governo do Estado, respingando também
sua influência sobre o poder judiciário (como demonstram os relatos que trabalharemos ao
longo deste capítulo) – e também atuando diretamente com sua polícia privada, treinada para
realizar despejos, torturas, assassinatos e seqüestros de trabalhadores rurais sem terra.
107
3.5. A instrumentalização do Estado pelas elites fundiárias: uma operação
de horror em curso
A escalada da violência no governo Lerner, atingiu seu ponto máximo entre os anos de
1999 e 2001. Nesse período, o Paraná viveu um dos momentos de maior repressão política de
sua história recente, sendo os trabalhadores rurais sem terra um dos segmentos mais atingidos
pela violência estatal. Esse período corresponde ao segundo mandato deste governador.
Segundo César Sanson (2001), os principais aspectos que delimitaram os rumos da
gestão Lerner foram a modernização conservadora, o autoritarismo combinado com a
violência e a corrupção endêmica
52
. O autor afirma que as raízes conservadoras e autoritárias
do governo estão atreladas a uma escola de formação política pautada pelas cartilhas da
ditadura militar, período em que Lerner iniciou sua vida política nomeado como prefeito
interino (biônico) da cidade de Curitiba, capital do Paraná, por dois mandatos, de 1971 a 1974
e posteriormente, de 1978 a 1982. Essa tradição adquirida durante os anos de governo militar,
aprofundou suas dificuldades em dialogar com os movimentos sociais e com outros setores da
sociedade civil organizada. De 1988 a 1992, foi novamente prefeito da capital, desta vez por
meio de eleição popular. Em 1994 Lerner se elegeu como governador do Estado, sendo
reeleito em 1998.
Na primeira eleição, com a bandeira da construção de um Estado moderno, com
inserção competitiva na economia mundial, com o crescimento da industrialização, geração de
emprego e renda, Lerner teve um expressivo apoio de setores importantes da sociedade civil.
De fato, a política implementada em seu governo atraiu investimentos externos, sobretudo no
setor automotivo. A contrapartida do Estado em investimentos de infra-estrutura e isenção de
impostos a estas empresas multinacionais atingiu uma soma milionária. Contudo em virtude
da alta tecnologia empregada por estas indústrias, o número de empregos por elas gerados não
atingiu as expectativas propagandeadas pelo governo.
52
Por uma delimitação do tema, não vou entrar na discussão desse último ponto, “corrupção endêmica”, mas o
autor se refere à corrupção na privatização do banco Banestado, na privatização das estradas, nos Jogos
Mundiais da Natureza, ao caso dos ‘grampos’, do narcotráfico (envolvendo o Secretário de Segurança Pública,
Candido Martins de Oliveira, afastado do cargo em 2001, após ser indiciado pela CPI do narcotráfico no
Congresso Nacional) além dos milionários desvios de recursos nas prefeituras de Maringá e Londrina, dinheiro
do qual o caixa de campanha deste governo teria se beneficiado. Em contrapartida, Lerner teria colocado Emília
Bellinatti, esposa do prefeito de Londrina, como vice-governadora em sua chapa (Ver: Sanson, 2001, p. 25, 26;
Revista Caros Amigos, n. 27).
108
Várias das empresas de capital estadual foram vendidas a grupos multinacionais, como
caso do banco Bamerindus, vendido ao HSBC, que segundo Sanson (2001), era uma empresa
de capital sueco. Várias empresas públicas foram privatizadas, como o Banestado, no setor
financeiro, a Ferroeste, no setor ferroviário, a Telepar, no setor de comunicações e a Sanepar,
no setor de captação e abastecimento de água. Outra frente de intervenção do governo foi a
“modernização” da malha rodoviária, o chamado Anel de Integração, que em resumo resultou
na privatização da maioria das estradas paranaenses, nas quais são cobrados dos usuários
consideráveis valores em pedágio.
Na verdade, estas atitudes estavam extremamente afinadas com a política federal de
modelo neoliberal do governo de Fernando Henrique Cardoso. Essa política voltou-se para as
grandes cidades e suas regiões metropolitanas, deixando os pequenos municípios
abandonados à própria sorte.
A agricultura também estava voltada para o mercado internacional, tendo na
monocultura, especificamente no “grão de ouro”, a soja, os focos de investimento, resultando
no descaso para com as pequenas empresas agroindustriais e para com a agricultura familiar.
Neste contexto, o Paraná vendia nacional e internacionalmente a imagem de um Estado
moderno e desenvolvido, com uma base agrícola sólida e extremamente rentável. Por trás das
cifras e dos índices econômicos, escondia o descaso, a miséria e a repressão aos agricultores
familiares – fato que reflete a continuidade de um modelo desenvolvido ao longo dos anos,
em todo o país (Martins, 1984, p.88, 104).
De acordo com Sanson (2001), o governo Lerner foi marcado por uma total ausência
de mecanismos de participação popular, demonstrando uma intensa dificuldade na relação
com a sociedade civil
53
. Diante dessa dificuldade, o instrumento utilizado para substituir o
diálogo era o aparato repressivo do Estado, mais fortemente direcionado ao MST, justamente
devido a um “pacto do governo do Estado com o latifúndio” (Sanson, op.cit, p. 23). Neste
texto, afirma que a onda de violência do Estado contra o MST teve seu início em 1997,
“coincidentemente” no mesmo período em que a UDR, a Sociedade Rural do Paraná e alguns
parlamentares da bancada ruralista passaram a incitar os fazendeiros para que se armassem em
53
Exemplo disso, foi a histórica greve das universidades públicas estaduais, que devido à intransigência do
governo, tiveram durabilidade de aproximadamente sete meses, entre os anos de 2001 e 2002, tendo como
resultado final um acordo muito aquém do esperado. Além disso, este governo foi também responsável pelo
aprofundamento da crise econômica nas universidades públicas do Estado, em perfeita sintonia com a política
para o ensino superior em nível federal.
109
defesa de suas propriedades. Abelardo Lupion, ex-presidente da UDR e, na época, líder da
bancada ruralista no Congresso Nacional e presidente do PFL – Partido da Frente Liberal – no
Paraná, mesmo partido do governador, declarou ao jornal O Estado do Paraná, no dia 26 de
agosto de 1997, que “os grandes proprietários rurais vão desencadear uma violenta reação às
futuras invasões de áreas – produtivas ou improdutivas. A reação vai começar e será violenta.
Quem invadir nossas propriedades vai ser recebido à bala” (apud, Sanson, 2001, nota de
rodapé, p. 25). De fato foi o que aconteceu. Para o autor, o deputado tinha laços estreitos com
alta cúpula militar do Estado
54
.
Para Darci Frigo (1999), o acordo entre os ruralistas e o governo Lerner foi fechado no
decorrer do primeiro mandato e a partir de questões bem pragmáticas. Vale dizer, a bancada
ruralista contava com aproximadamente 20 deputados na Assembléia Legislativa do Estado,
tendo uma forte influência sobre mais uns 15 deputados ligados a outros setores, o que
resultava num número expressivo de votos. Um acordo com os ruralistas trazia a vantagem de
uma relativa tranqüilidade na aprovação das matérias que interessavam ao governo. Em
contrapartida, exigiram que o cargo da Secretaria Pública de Segurança fosse ocupada por
Cândido Martins de Oliveira, que, segundo Branford e Rocha (2004, p. 210), era parte da
“tradicional fortaleza dos ruralistas no sudoeste do Estado”. As autoras afirmam ainda (op.cit,
p. 209) que Arlei José Escher, uma das lideranças do MST no Paraná, e um de seus
entrevistados, participou de uma reunião realizada entre funcionários de alto nível dentro do
governo estadual, MST e CPT, em junho de 1997. Nesta reunião o Secretário de Segurança
Pública deu um ultimato ao MST, dizendo que o movimento deveria parar com as ocupações
de terra, caso contrário iriam sofrer as conseqüências. Para Arlei, esta reunião foi decisiva na
mudança dos rumos do governo e na ofensiva desencadeada contra o MST a partir de então.
No mês seguinte, julho de 1997, segundo o jornalista Marco Frenette (1999, p.17), o
Secretário de Segurança Pública declarou à imprensa que o MST é “um problema do governo.
Porque lá (Querência do Norte) é uma república do Movimento dos Sem-Terra e, para
fazermos os despejos, temos primeiro de destruir a organização dos trabalhadores”.
Para João Pedro Stédile (2000, p. 35), houve uma mudança entre a primeira e a
segunda gestão Lerner. Na primeira, a superintendente do Incra, Sra. Maria de Oliveira, era
54
Na página oficial do deputado, no site do Câmara dos Deputados Federais, Lupion exibe em seu curriculum os
vários cursos e palestras que realizou para a polícia militar do Paraná. Em sua reeleição contou com o apoio
direto da cúpula militar no Estado. Ver: www.camara.gov.br/Internet/deputado/Dep_Detalhe.asp?id=522187
110
“muito capaz”, e segundo ele, “desencadeou um amplo processo de reforma agrária. Cumpriu
o papel do Incra, fazer vistoria, assentar”. Contudo, no período de reeleição, Lerner percebeu
o quanto seu governo ficou centrado nas grandes cidades, o que resultou em baixíssima
popularidade nas regiões interioranas, surgindo a possibilidade de não vencer as eleições.
Diante disso,
Lerner se aliou à UDR, mais que à UDR, àquela oligarquia mais atrasada,
que vem da época de Lupion. Fez essa aliança tática e de fato conseguiu
derrotar o Requião. Vencida a eleição, o que o setor mais atrasado, do
Lupion e da oligarquia rural, pediu para Lerner? ‘Me dê a Secretaria de
Segurança Pública’. Ganharam a Secretaria de Segurança e a transformaram
no braço armado do latifúndio. Começaram a fazer tudo quanto é coisa da
vontade dos fazendeiros, desrespeitando completamente a lei. E trataram de
afastar aquela superintendente do Incra, colocando lá um preposto que não
fez absolutamente nada (Stédile, 2000, p. 35).
Além da ligação orgânica do Secretário de Segurança com os ruralistas, outro fator
complicador foi a intervenção do Major Valdir Cumpetti Neves – o mesmo que comandou a
operação que resultou no assassinato de Teixeirinha – responsável por um poderoso grupo de
atuação militar especializada. Esse grupo atuava com bastante autonomia dentro da polícia
antes ainda do governo Lerner. De acordo com Branford e Rocha (2004, p.210), embebido no
pensamento militar “linha dura”, Neves acreditava que o MST representava uma ameaça à
segurança nacional e que, portanto, deveria ser eliminado. O major comandava o Grupo
Águia, criado por ele no início da década 80, com a finalidade de atuar contra os roubos de
carga de caminhão, que na época eram freqüentes no Estado. O grupo acabou se tornando um
corpo de destacamento de elite dentro da polícia militar. No entanto, segundo Frenette (1999,
p. 17), inúmeros casos de tortura e assassinatos eram atribuídos ao grupo.
Juntos, Neves e Oliveira, o primeiro preocupado com as questões de segurança
nacional e o segundo, com o afrontamento ao direito de propriedade dos latifundiários,
decidiram arquitetar uma ação militar que, segundo Branford e Rocha (2004, p. 211), tinha o
objetivo de desmoralizar o MST tanto entre os próprios integrantes do movimento, quanto
com as comunidades locais. Para estas últimas, os acampamentos e assentamentos
movimentavam a economia da cidade, e portanto, eram bem vistos pelos comerciantes e pela
população de modo geral, como afirma Arbex, após entrevistar vários comerciantes,
111
funcionários da prefeitura, entre outros moradores da cidade de Querência do Norte (Arbex,
1999, p.13).
Tomada essa decisão, o major Neves passou a preparar a polícia para a ação. Reuniu o
grupo que comandava, Grupo Águia, ligado à polícia militar e especializado em combate a
roubos de carga e ações anti-sequestro, o Comando de Operações Especiais – COE, unidade
da polícia militar treinada para ações que envolvem barricadas e grupos fortemente armados,
ou seja, ações antiguerrilha, além do Centro de Operações Policiais Especiais – COPE,
unidade da polícia civil. Considerando os três grupos insuficientes para a realização da
“megaoperação militar”, segundo Branford e Rocha (2004), o major Neves criou, em 1998, o
Grupo de Operações Especiais da polícia militar – GOE, determinando que o mesmo deveria
ser organizado em todos os batalhões da polícia militar no Estado.
55
Além dos treinamentos relativos a cada área, esses policiais receberam treinamento
específico para a ação contra o movimento, inclusive com a participação de policiais norte-
americanos, conforme afirmação de Frigo (1999, p.18): “sabemos que esses grupos estão
sendo treinados por entidades americanas. Nesta semana [aproximadamente 20 de junho] está
aqui o TEES (Tactical Explosive Entury School), que é uma organização dos Estados Unidos
que treina policiais. O TEES está dando treinamento aqui no Paraná, treinando policiais do
Paraná”. Corroborando essa afirmação, Arbex (1999, p.12) ressalta a semelhança dos métodos
empregados pela polícia do Paraná contra os sem terra, comparados aos métodos empregados
pelo exército colombiano contra os narcotraficantes, exército que segundo o jornalista, age
“sob os auspícios, liderança e ‘apoio logístico’ de agentes da CIA (serviço secreto americano),
da DEA (agência de combate às drogas dos Estados Unidos) e da Swat (a famosa ‘elite’ da
polícia americana). Estranha coincidência, não?”.
Branford e Rocha (2004, p. 211), afirmam também que um dos policiais que
participou destes treinamentos, estarrecido com o fato de estar sendo treinado a partir da
concepção de ser o MST uma organização criminosa que deveria ser tratada com uso extremo
da violência, enviou à CPT e ao movimento cópias dos vídeos utilizados nesses treinamentos.
Segundo as autoras, “o vídeo mostrava policiais sendo treinados para abordar os
acampamentos com armamento pesado, cães e bombas de gás lacrimogêneo e para usar de
intimidação e de violência nas expulsões”. Esse policial recebeu inúmeras ameaças de morte,
55
Posteriormente, com a mudança de governo, o GOE foi desativado.
112
e precisou sair do Estado sob proteção especial do governo federal (Branford; Rocha, 2004,
p.212; Anais do Tribunal..., 2001).
Eugênio Raúl Zaffaroni (2001, p. 71), destaca o treinamento realizado em Israel em
abril de 2001, onde 10 policiais brasileiros, dentre eles seis paranaenses, participaram de “um
curso avançado de operações especiais e táticas antiterrorismo na Academia Policial das mais
avançadas do mundo no combate ao terrorismo, localizada em Karmy Yosef, cidade próxima
a Jerusalém, em Israel. São 16 dias de atividades de três turnos (manhã, tarde e noite)”. O
policial responsável pelo grupo paranaense participou pela segunda vez desse treinamento
avançado.
O grave problema foi o uso sistemático de todas estas modernas técnicas de repressão
ao crime, contra homens, mulheres, jovens e crianças sem terra, “cujo grande ‘crime’ foi ter
nascido pobre”, como bem pontuou Arbex (1999, p.11).
113
4. A VIOLÊNCIA
Neste capítulo, trabalho a violência em cinco tópicos distintos e interligados. O
primeiro trata da descrição dos métodos utilizados pelo aparato repressivo do Estado e
milícias armadas na efetivação das reintegrações de posse. O segundo, traz uma análise destes
métodos a partir dos conceitos de violência institucional e violação dos direitos humanos. A
partir da fala de alguns entrevistados, apresento no terceiro tópico, uma discussão acerca da
criminalização do MST, como fator preparatório para a legitimação da violência empregada.
No quarto tópico, trabalho a violência sofrida, ou seja, os episódios de reintegração de posse e
o sofrimento daí decorrido, a partir das falas dos sujeitos sem terra que vivenciaram estas
experiências. Para alcançar alguma compreensão acerca destes processos de violência e de
seus desdobramentos na vida destes sem terra, trabalho no quinto tópico, alguns conceitos da
psicanálise freudiana em suas possíveis interfaces com os fatos aqui apresentados.
4.1. A metodologia da violência
Foram utilizadas verdadeiras “táticas de guerra” contra trabalhadores/as, jovens e
crianças sem terra, durante as operações de despejo, que deixaram de ser apenas o
cumprimento de um mandado judicial e se tornaram operações militares meticulosamente
organizadas com a utilização de requintes militares, num método de atuação sistemático
utilizado em praticamente todos os despejos, segundo nos foi relato pelas mulheres e homens
entrevistados.
Era acionado um exorbitante contingente policial, composto de várias grupos especiais
das policias militar e civil – AGUIA, COPE, COE, GOE, CHOQUE. Policiais, alguns
encapuzados, com cães treinados, cavalaria, armas de fogo, bombas, invadiam o
acampamento e os barracos, cortando as lonas e, aos gritos, obrigavam as pessoas a saírem do
114
barraco. No pátio do acampamento, as mulheres e as crianças eram separados dos homens, o
que aumentava a sensação de terror e a insegurança. Os gritos, agressões morais, chutes, os
tiros para o alto, acompanhavam a ação da polícia ao imobilizar homens, mulheres e crianças
e obrigá-los a deitarem com o rosto virado para o chão e as mãos na nuca. No chão gelado das
madrugadas de inverno, muitas vezes molhada pelo sereno, geada, chuva, ficavam horas
intermináveis. Os barracos, os documentos, alimentos, roupas, utensílios, eram destruídos. Ao
fim, eram levados em caminhões ou ônibus que os dispersavam em várias regiões do Estado,
sob a alegação de que estavam sendo encaminhados às suas cidades de origem. Ao final da
operação, a regra era prender as lideranças.
Durante o cerco policial, as áreas eram totalmente bloqueadas aos advogados,
organizações de direitos humanos, familiares e imprensa. O jornalista Alexandre Sanches e o
fotógrafo Mário César, do jornal Folha de Londrina, foram impedidos de cobrir o despejo da
Fazenda Cachoeira na madrugada de 04 de setembro de 1998. Sanches conta que era uma
noite muito chuvosa e o carro que conduziam ficou atolado. Em posse de uma lanterna
tentaram seguir o caminho a pé:
Ao virar a lanterna eu iluminei algumas pessoas, daí eu falei: tem gente
aqui. Voltei a lanterna, no que eu voltei a lanterna, quatro policiais, todos
de preto, mascarados, sacaram da 9mm, mandaram colocar a mão na
cabeça, calar a boca e ficar quietos. Meu primeiro impulso (...) foi gritar
que nós éramos jornalistas e eu estava trabalhando na Folha de Londrina.
O policial que estava comandando os outros três mandava a gente calar a
boca e eu insistia: - nós somos jornalistas da Folha de Londrina. E ele
falava: ‘Cala a boca que eu não perguntei nada, você fica quieto, fica no teu
canto’. E eu insistia: ‘Nós somos jornalistas’. Até que ele deu a ordem:
‘Algema esse que tá falando demais’[...] eu consegui que um dos policiais
pegasse a minha carteira e eu pude puxar a credencial da Folha de
Londrina e minha identidade. Foi passado para essa pessoa ela olhou e
falou: – ‘Xii... danô!! Tira a algema rapidinho dele!’ [...] Ficamos duas
horas sentados ali no local onde nós fomos detidos, (...), não podíamos nos
mexer, em baixo de chuva, sentados na grama, um de costas pro outro, sem
poder fazer qualquer sinal, (...), e o tempo todo os dois policiais que
estavam conosco questionando quem foi que falou que estariam fazendo a
desocupação da fazenda. Passou a chuva, começou a ventar frio,
começamos a entrar um pouco em estágio de hipotermia. Até que 6 horas da
manhã vieram dois policiais e determinaram: ‘Pode acompanhá-los até o
carro’. (In: Anais do Tribunal Internacional...., 2001, p.45, 46).
115
Esse modus operandi, pautado na violação de uma série de direitos e garantias
fundamentais destes trabalhadores e trabalhadoras, foi utilizado primeiramente no despejo da
Fazenda Santa Gertrudes, município de Mariluz. Segundo Branford e Rocha (2004, p. 211),
durante a madrugada do dia 9 de julho de 1998, cerca de 700 policiais aplicaram de modo
perfeito o treinamento que haviam recebido. Além da invasão no meio da noite por policiais,
dentre eles os encapuzados das tropas de elite, com cães, bombas, armas pesadas, separação
de homens e mulheres, destruição dos barracos, alimentos, utensílios, esta operação contou
com o adendo implementado pelos policiais, ao roubarem o dinheiro de muitas famílias
brasiguaias que haviam vendido seus pertences no Paraguai para retornarem ao Brasil, e
guardavam o dinheiro para a subsistência nos meses de acampamento (Branford; Rocha,
idem; Arbex,1999, p. 16).
A região noroeste, local onde o crescimento do movimento era bastante expressivo,
tornou-se o alvo principal destas operações, sob a alegação de que na cidade de Querência do
Norte funcionava o “quartel general” do MST (Branford; Rocha, op.cit.). Durante os meses de
maio, junho, julho e agosto de 1999, um grande contingente da polícia militar se instalou na
região de Querência do Norte, fazendo um severo controle de acesso à cidade e aos
acampamentos e assentamentos. Exerciam uma intensiva coerção moral sobre militantes e
simpatizantes do movimento que circulavam pela região. Segundo Branford e Rocha (op.cit.,
p. 212), estes eram abordados e se estivessem com algum emblema do MST em bonés ou
camisetas, estas peças eram tomadas deles e queimadas, sob a ameaça de que essa atitude
seria direcionada a eles, caso fossem encontrados novamente usando emblemas e símbolos do
movimento.
De acordo com as autoras, os 2.000 policiais que se instalaram na região no início do
mês de maio de 1999, trouxeram com eles dois oficiais de justiça e 34 ordens de despejo,
além de dois funcionários da polícia civil com a finalidade de emitir ordens de prisão, caso os
sem terras cometessem crimes durante a operação. Segundo relatório da CPT e MST
56
, o
efetivo para as operações contava ainda com “carros com cachorros treinados para o ataque às
multidões, helicóptero, grupo anti-seqüestro, mais de 100 viaturas, mais de 30 ônibus,
policiais à paisana do serviço especial (inclusive com carros civis e elementos com capuz,
evitando a identificação)”. Com a cidade sitiada, a operação começou. Nesses primeiros dias,
seis áreas foram despejadas na cidade de Querência do Norte (Rio Novo, Transval, São
56
A violência nossa de cada dia, disponível em: www.mst.org.br/mstpr/violenci.htm
116
Francisco, Porangabinha, Bandeirantes e Florão), desalojando aproximadamente 300 famílias
(Arbex, 1999, p.10; Branford; Rocha, op.cit., p.212).
Para comemorar o início bem sucedido dessas “mega-operações”, reuniram-se em um
restaurante fazendeiros, policias, funcionários do judiciário e demais simpatizantes desta
causa. A juíza de direito cível e criminal Elizabeth Khater, da Comarca de Loanda – PR, à
qual Querência do Norte está subordinada, responsável por 45 mandados de reintegração de
posse contra os sem terra, participava desta comemoração quando, num deslize, revelou a um
jornalista da Folha de São Paulo, a conexão ruralistas – judiciário – polícia:
Maio,1999
Edição 25.609 Sábado, 15/05/1999 Tiragem 537,824
BRASIL
Justiça cega - 15/05/1999
Autor: . .
0584sab3Editoria: BRASIL Página: 1-4 5/5319Edição: Nacional
Tamanho: 830 caracteres May 15, 1999, Seção: PAINEL; CONTRAPONTO
Justiça cega
No último dia 7 de maio, o governo do Paraná iniciou uma megaoperação de
desocupação de fazendas invadidas no noroeste do Estado. Na região, existiam
45 mandados de reintegração de posse, determinados pela juíza Elisabeth
Khater, de Loanda. Na noite do primeiro dia, seis já haviam sido cumpridos. A
juíza Khater resolveu comemorar a operação com amigos no restaurante Balaio
de Frango.Durante o jantar, um repórter se aproximou dela. A juíza o confundiu
com um policial e elogiou:_ Parabéns pelo serviço! Eu estava agora mesmo
elogiando o trabalho de vocês para meus amigos fazendeiros.Depois
acrescentou:_ Estamos aqui comemorando. Pode ser o início de uma união entre
fazendeiros e a PM. Ao perceber o engano, a juíza ficou branca e tentou
justificar:_ Mas a amizade não influenciou (nas decisões judiciais).
57
A juíza, como afirmou Frenette (1999, p. 17), representava a “justiça cega de um olho
só – o olho que está voltado para os pobres”, e revelava em seu “deslize” um esforço conjunto
entre poderes oficiais e paralelos, na tentativa de desmantelar o movimento, que para eles
assumia uma conotação criminosa e ameaçadora.
Passados alguns dias, na madrugada de 21 de maio, aproximadamente 160 famílias
foram despejadas nas Fazendas Bello I, Bello II e Bello III, Porangaba II e Cobrinco, no
57
Disponível em:
http://fws.uol.com.br/folio.pgi/fsp1999.nfo/query=15+maio+justi!E7a+cega/doc/{@1}/hit_headings/words=4/hit
s_only?
117
município de Santa Cruz do Monte Castelo, ainda na região de Querência do Norte. Além
destes, outros despejos em áreas menores foram realizados ao longo deste período,
desalojando aproximadamente duas mil pessoas (Branford; Rocha, op.cit., p.212).
Nas fazendas onde não se conseguia via judiciário a liminar de reintegração de posse,
a UDR se encarregava de realizar os despejos. Segundo Branford e Rocha (op. cit, p. 224), no
dia 21 de novembro de 1999, a ocupação da Fazenda Santa Rosa foi despejada por cerca de
70 homens encapuzados. Passados dois dias, o próprio presidente da UDR no Paraná, Marcos
Prochet, com outros líderes desta organização e seus pistoleiros, logo após saírem de uma
reunião pública no município de Marilena, dirigiram-se à Fazenda Novo Horizonte, e ali
iniciaram um violento despejo.
Mesmo com foco na região noroeste, a polícia militar e os ruralistas realizaram essas
violentas operações de reintegração de posse em todo o Estado do Paraná.
Referindo-se apenas às violências cometidas pelo aparato repressivo do Estado, Jelson
Oliveira (2004) expõe em números a dimensão desta ofensiva ao MST, implementada durante
dois mandatos do governo Lerner:
sob repressão do governo de Jaime Lerner, responsável por uma onda de
violência que deixou 16 pessoas assassinadas, 31 vítimas de atentados, 47
ameaçadas de morte, 7 vítimas de tortura, 324 feridas, 488 presas em 134
ações violentas de despejo que espalharam terror por todo o Paraná.
(Oliveira, 2004, p. 57)
Esse modus operandi, além do objetivo de desmantelar o MST enquanto organização,
objetivava também servir como referência metodológica para os demais Estados nos quais o
MST demonstrava força e incomodava as oligarquias rurais, como está explicitado na fala de
Milton, um dos entrevistados:
E saber que esta era a realidade que o Paraná vivia, não apenas na
Cobrinco, mas em vários outros despejos que aconteceram em todo o
território paranaense, que o Paraná deveria ser o exemplo de como se
tratava o MST a nível nacional.(Milton, 27 anos, grifos meus).
118
Fonte: reprodução. Foto 10: Cerco policial.
Fonte: reprodução. Foto 11: Campo arrasado pelos despejos.
119
Fonte: reprodução. Foto 12: Despejo nas madrugadas de inverno.
Fonte: reprodução. Foto 13: Ação dos grupos de elite da polícia.
120
4.2. A violência institucional como método para lidar com a miséria social
José Vicente Tavares dos Santos (1993), considera o ato de violência como a
tentativa de se afirmar um poder, ou norma social, por meio de coerção e/ou força, com a
finalidade de atingir um determinado objetivo. Consiste, portanto, em um fenômeno composto
por elementos de racionalidade, que trazem em alguma dimensão a demanda por controle
social.
A noção de violência implica a de coerção, ou de força: supõe um dano que
se produz em outro indivíduo ou grupo social, seja pertencente a uma classe
ou categoria social, a um gênero ou a uma etnia. Envolve uma polivalente
gama de dimensões, materiais, corporais e simbólicas, agindo de modo
específico na coerção com dano que se efetiva. Força, coerção e dano, em
relação ao outro, enquanto um ato de excesso presente nas relações de poder
– do nível macro, do Estado, ao nível micro, entre os grupos sociais – vêm a
configurar a violência. (Tavares dos Santos, op.cit., p.5)
Em se tratando da violência no campo, o autor afirma neste texto que esse fenômeno
pode atuar em duas frentes: a violência política e a violência social. No caso da primeira, a
violência é efetivada por meio do aparato policial do Estado, e também por meio do poder
judiciário. Este último atuando na omissão em relação aos processos criminais que ferem os
interesses dos proprietários, ou dos agentes do Estado, na liberação de liminares com
fundamentos jurídicos insustentáveis, com a finalidade de beneficiar os proprietários, além de
atuar na “falsificação de títulos e ‘grilagem’”, afirma o autor (Tavares do Santos, 1993, p.10).
A violência social abarcaria diferentes formas: a violência nas relações de trabalho, tendo na
utilização de trabalho escravo o ápice desta modalidade de violência. Outro aspecto é o que o
autor denomina de “sistema de pistolagem”, que seria a “ponta final de um grande iceberg”,
ou seja, é uma ação como resultado final da intervenção de mentores intelectuais,
mandatários, cúmplices, enfim uma rede de proteção e manutenção deste tipo de violência.
121
Podemos traçar algumas características da violência no campo: trata-se de
uma violência difusa, de caráter social e político, com alvos selecionados
(contra as organizações dos camponeses e trabalhadores rurais); seus agentes
são membros da burguesia agrária, mediante o recurso a ‘pistoleiros’ e
milícias organizadas, e participantes do Estado, comprovado pela freqüente
participação das polícias civis e militares. Enfim, a omissão, ou a conivência
prática, de membros do Poder Judiciário, reforça o caráter de impunidade
desta violência no campo. (Tavares dos Santos, op.cit., p. 13)
O sociólogo Sergio Adorno afirmou em certa ocasião
58
, que por ser a violência um
fenômeno complexo, com uma série de definições e uma ampla abrangência, faz-se
necessário um recorte empírico e teórico muito preciso, pois para cada recorte se tem uma
literatura e um caminho específico. Afirmou ainda que, para evitar incorrer em erros, o ideal é
trabalhar a problemática da violência através de descrições densas do fenômeno, tal como
fazem os antropólogos.
No recorte desta pesquisa, o enfoque recai sobre o conceito de violência de Estado e
seus desdobramentos, vale dizer, a violência do aparato militar e judiciário contra indivíduos
ou grupos, considerada também como violência institucional (Santos, 1984) e violência
política (Tavares dos Santos, 1993).
Antes de iniciar a argumentação acerca da violência de Estado, é preciso ressaltar
que todo Estado é um aparelho de dominação que atua através do binômio
força/consentimento. Em situações democráticas a busca do consenso deveria ser a regra, e a
utilização da força, da violência, a última das hipóteses. Entretanto, violência e consenso são
duas faces de uma mesma moeda. Cara ou coroa, violência ou consenso, são utilizadas de
acordo com o contexto histórico em um determinado momento, e sobretudo, com a pressão
dos grupos que nos jogos do poder instrumentalizam o Estado para atender a seus interesses
de classe. O Estado pode atingir alguns setores com violência, outros com consenso, favores,
privilégios. Ou seja, não existe um Estado homogêneo, nem tampouco inteiramente autônomo
em relação às classes sociais em disputa pela hegemonia do poder político.
58
No dia 22 de setembro de 2004, o professor Sérgio Adorno ministrou uma palestra (ou em suas palavras,
realizou uma “conversa”), com os alunos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da linha de pesquisa
Práticas Sociais e Constituição do Sujeito, da qual faço parte, a convite da profa. Maria Juracy Tonelli.
Trabalhou conosco algumas questões metodológicas relativas a seu trabalho junto ao Núcleo de Violência da
Universidade de São Paulo.
122
Isso nos remete ao clássico texto de Maquiavel, O Príncipe (1996, p. 101), onde o
autor afirma que o príncipe – o Estado – precisa agir com a astúcia da raposa e com a
violência do leão. Precisa ser raposa, astuta, para saber identificar as armadilhas. E precisa ser
leão, porque a astúcia não basta nos momentos de conflito. É necessário recorrer à violência.
Aparece a figura de um Estado centauro, com duas faces: a face do leão e da raposa, a face da
violência e a face do consenso. Dualidade tão comum entre nós desde os tempos coloniais,
que inspiraram Chico Buarque em seu “Fado Tropical” a cantar: “mesmo quando minhas
mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, meu coração fecha os olhos e,
sinceramente, chora....”
59
.
A violência nas suas mais diversas faces, segundo Nilo Odália (1983, p. 86), tem
suas raízes na privação. O autor utiliza o termo privação no sentido de denunciar que algo foi
retirado do sujeito, os direitos como humano, como cidadão, que passa então a viver a
situação de despossuído de algo que lhe é fundamental para a sobrevivência material e
simbólica.
Toda vez que o sentimento que experimento é o da privação, o de que
determinadas coisas me estão sendo negadas, sem razões sólidas e
fundamentadas, posso estar seguro de que uma violência está sendo
cometida. Entender a violência como privação me auxilia também a dar o
primeiro passo para que os buracos que sinto dentro de mim, por me sentir
menos gente do que os outros que possuem o de que me privam, sejam
superados e forrados. (Odália, op.cit., p. 86).
As camadas pauperizadas da população convivem com os mais diversos tipos de
privações, inclusive aquelas essenciais à manutenção da vida, ou seja, alimentação, saúde,
habitação, que deveriam, em tese, ser garantidas pelo “Estado de bem estar”. Contudo, as
desigualdades causadas pela má distribuição de renda têm feito crescer vertiginosamente a
miséria social. Nesse contexto os conflitos gerados pelas desigualdades e miséria, assumem
lugar de destaque na sociedade, sendo possível parafrasear o cineasta Glauber Rocha, em seu
texto a Eztetyka da Fome, quando diz que “a mais nobre manifestação cultural da fome é a
59
Essa canção é de autoria de Chico Buarque e Ruy Guerra, composta para a peça Calabar, entre 1972/1973. A
composição trata do período da invasão holandesa no Brasil, no século XVII. Ainda assim deixa inúmeras
lacunas, ou ambigüidades, que nos levam à interpretação de que em algum grau, é também uma referência ao
violento período militar, período em que a canção foi composta, teve um trecho censurado, e a própria peça foi
proibida.
123
violência”
60
. Para administrar os conflitos criados pela estrutura social, o Estado utiliza seu
aparato repressivo contra os indivíduos ou grupos. Caracteriza-se então, a violação de direitos
humanos.
A mais importante declaração de direitos humanos surgiu na França em 1789, como
reivindicação da burguesia contra a aristocracia absolutista, no bojo da Revolução Francesa,
com seus princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Esses direitos foram ratificados
em 1948, com o fim da II Guerra Mundial, e a criação da Organização das Nações Unidas,
ocasião em que foi lançada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que prevê entre
outros, o direito à vida, à liberdade, direito de não receber tratamento degradante ou cruel, o
direito à propriedade – este último considerado sagrado e, portanto, defendido com maior
empenho.
Cecília Coimbra (2002, p.13) afirma que os direitos defendidos por estas duas
declarações, consideradas marcos históricos para a humanidade, “têm apontado para quais
direitos devem ser garantidos e para quem eles devem ser estendidos”. Afirma que os
segmentos marginalizados, pauperizados, efetivamente nunca tiveram acesso pleno a estes
direitos, pois, segundo a autora, estas “parcelas têm sido produzidas para serem vistas como
‘sub-humanas’, não pertencentes ao gênero humano”.
A conquista dos direitos humanos no Brasil, não se deu sem enorme derramamento
de sangue. Com o recrudescimento do regime militar a partir de 1968 (ano da outorga do AI-
5), restaram poucas alternativas para as organizações políticas de esquerda, e boa parte delas
recorreu à luta armada contra a ditadura. Nenhuma possibilidade de luta legal “raiava no
horizonte do Brasil”. Ao final do período de exceção, a luta contra o regime deu origem à
extensa lista de direitos que hoje se vê no artigo quinto da Constituição brasileira.
É possível observar que, no Brasil, a conquista dos direitos humanos não foi obra da
burguesia, como ocorreu na França. Resultou sim da necessidade dos trabalhadores em
reafirmar esses direitos, diante da violenta repressão durante a ditadura militar, ou seja,
consistiu em um confronto de classes entre marginalizados e Estado com suas elites
sustentadoras. Diferentemente da Europa, no Brasil, os direitos humanos foram conquistados
pelos trabalhadores, sendo possível concebê-los na atual conjuntura, como verdadeiras
trincheiras de luta para esses segmentos marginalizados da sociedade. A partir dessa
60
Disponível em: www.tempoglauber.com.br/glauber/Textos/eztetyka.htm
124
compreensão, cabe a afirmação de Coimbra (op.cit., p. 14), de que os direitos humanos
“devem ser, assim, entendidos não como um objeto natural e a-histórico, mas forjados pelas
mais variadas práticas e movimentos sociais”.
Ao se trabalhar com violação dos direitos humanos, o enfoque não recai sobre a
violência individual produzida nas relações privadas – ainda que em grande parte sejam estas
também influenciadas pelas dimensões do espaço público. As violações de direitos humanos
compreendem a violência que o Estado imprime contra o indivíduo, ou grupo de indivíduos
devidamente marcados por identidades políticas que em algum grau ameaçam o Estado,
enquanto mantenedor da ordem social vigente.
Segundo Eugênio Raúl Zaffaroni (2001, p.70), “a violação dos direitos humanos
sempre é praticada por um governo, por um Estado (....) os indivíduos podem praticar crimes,
isto é outra coisa, mas violar Diretos Humanos não”. Esses direitos são violados pelo Estado
por meio de seu aparato repressivo – polícias militares e civis, grupos de operações militares
especiais...
Além desse nível grave de violação dos direitos humanos, verificado na execução de
prisões arbitrárias, perseguições, mortes, desaparecimentos, torturas físicas e psicológicas,
realizadas por agentes públicos ou por pessoas, em nome do Estado, este em suas
ramificações, revela ainda outras faces da violência, abarcadas pelo conceito de violência
institucional.
A violência institucional, além de ser a violência implementada pelo aparato policial,
ou seja, violação de direitos humanos, abrange também um complexo de violações à
dignidade humana, gerenciado pelos órgãos burocráticos do Estado. No caso dos sem terra,
essa modalidade de violência se expressa na morosidade em fazer vistorias nas áreas
consideradas improdutivas, a fim de agilizar os assentamentos, na negligência em prestar
assistência médica e escolar aos acampados, nas liminares judiciais que, em sua maioria
beneficiam os proprietários, e sobretudo, em atitudes como o da Dra. Elizabeth Khater,
anteriormente citada. Para Juarez Cirino dos Santos, a violência institucional está,
(...) ligada ao conteúdo e atuação ou funcionamento diferencial das
superestruturas do poder político e jurídico do Estado, implementadas pelos
vários aparelhos ou órgãos incumbidos da aplicação da política social, como
125
a burocracia do executivo e seus órgãos de repressão (forças armadas,
polícia e prisão), o poder judiciário e o poder legislativo, as formas
superestruturais de existência do poder do Estado burguês. (Santos, 1984,
p.85).
A violação desses direitos essenciais se inicia quando o Estado busca respaldar a
aplicação de políticas econômicas, que privilegiam o capital financeiro em detrimento do
capital humano. Porém, ao administrar a miséria delas resultantes, manifesta-se com
exacerbado paternalismo intervencionista e, para tanto, “reivindica o monopólio do uso
legítimo da violência física”, como bem afirmou Max Weber (2003), ao definir o Estado:
(...) o Estado consiste em uma relação de dominação do homem pelo
homem, com base no instrumento da violência legítima – ou seja, da
violência considerada legítima. Por conseguinte, o Estado pode existir
somente sob condição de que os homens dominados se submetam à
autoridade continuamente reivindicada pelos dominadores (Weber, 2003, p.
61).
Ao administrar um “exército de miseráveis”, o Estado precisa dele se proteger, e o
faz através da imposição da força. De acordo com Héctor Luis Saint-Pierre (2000, p. 43), a
função do Estado, “é justamente reprimir a violência desencadeada pela desigualdade
distributiva que lhe é inerente. Daí que o Estado não funcione para toda a sociedade, pelo
menos não no mesmo sentido, mas que esteja a serviço apenas de uma das classes,
obviamente os favorecidos pela distribuição da produção”.
Nesta mesma perspectiva, Angela Caniato (2000) entende que o Estado, no sistema
capitalista, impõe a violência como forma de regular a sociedade, na tentativa de garantir, em
última análise, a manutenção do próprio sistema como modelo de produção econômica.
Enquanto realiza com sucesso a tarefa de garantir as condições necessárias para que os
detentores dos meios de produção continuem a acumulação de capital, o Estado não lança
mão da repressão direta. “Assim seu poder de árbitro só se manifesta quando a propriedade
privada está ameaçada e seu poder legal de punição se concretiza apenas quando é lesada a
soberania da propriedade privada” (Caniato, op.cit, p.13).
126
Esta política contém em si sua própria contradição. Ao priorizar e proteger o capital
especulativo, os acordos financeiros internacionais, e em última análise a “soberania da
propriedade privada”, o Estado aprofunda a crise do desemprego, criminaliza os trabalhadores
e intensifica a miséria social, que atualmente não atinge apenas os setores das camadas
populares, mas ameaça também setores médios que passam por um processo de proletarização
ou de miserabilização relativa e que tinham outrora situação econômica mais estável. Uma
vez desenhado este quadro político e econômico, que tende a acentuar-se progressivamente, a
soberania da propriedade privada dos meios de produção também fica progressivamente
ameaçada.
Com o esgotamento do ciclo histórico do nacional-desenvolvimentismo, conhecido
como “Era Vargas” (1930-1985) e a ascensão das políticas de corte neoliberal que se iniciam
com a vitória nas eleições de 1989 de Fernando Collor de Mello, e se consolidam nos dois
mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002)
61
, o Estado brasileiro foi sofrendo um
processo de sensível transformação, deixando de ser o indutor do desenvolvimento nacional,
econômico e social, que havia sido no ciclo anterior, assumindo uma posição de mero
administrador das crises geradas pelo movimento espontâneo do mercado mundial. Nesse
sentido o Estado brasileiro, na medida em que sofria um processo de atrofiamento em suas
funções econômicas e sociais, sofria um processo de hipertrofiamento em suas funções fiscais
e repressivas. O Estado foi, em muitos momentos de forma sutil, substituindo o seu discurso
de combate à miséria, por outro de combate aos miseráveis. Isso tem um sentido político: o
Estado que combatia a miséria era o Estado de Bem estar, o Estado que combate os
miseráveis é o neoliberal. O que bem pode ser observado pelas campanhas ideológicas,
produzidas pela mídia, criminalizando os movimentos sociais, sobretudo, o MST.
O MST engloba grande parte deste “exército de reserva”, trabalhadores e
trabalhadoras do campo que se recusam a aceitar o caminho da fome e da favelização nas
grandes cidades: “nós vai pra cidade pra morrê de fome? Porque a gente na cidade tem que
61
Essa mudança nos rumos da economia ocorreu em função da adesão do Brasil ao “Consenso de Washington”,
ainda no governo Collor. Tratava-se de uma espécie de cartilha neoliberal, datada de 1989, direcionada aos
países emergentes da década de 90, com indicações de um programa econômico que visava o “crescimento”
destes países a partir da observância de determinadas regras, dentre elas: redução e revisão das prioridades com
os gastos públicos, liberalização das taxas de juros e câmbio, menos barreiras alfandegárias, reforma tributária,
entre outras. Essas políticas neoliberais foram aprofundadas e consolidadas no governo Fernando Henrique
Cardoso que promoveu grande privatização de empresas públicas, consideradas estratégicas para o
desenvolvimento nacional na “Era Vargas”, e desnacionalização da economia brasileira por meio de reformas
constitucionais que abriram ao capital estrangeiro, setores econômicos anteriormente de exploração
exclusivamente nacional. Cf: Bresser-Pereira, L.C. Desenvolvimento e crise no Brasil: história, economia e
política de Getúlio Vargas a Lula. São Paulo: 34. p. 246).
127
tê bastante estudo, tem que sê novo. E daí vai na cidade lá, só se for pra comê capim! Nem
capim, porque a cidade não tem capim [risos].” (Clara, 43 anos). Engloba essas pessoas que
resistem ao atual modelo agrário-exportador, fundado no latifúndio, ficando à margem dos
valores defendidos pelo atual sistema econômico e em conseqüência, “carregam os estigmas
da suspeita, da culpa e da incriminação permanentes” (Chauí, 1986, p. 57).
Diante deste panorama, ao invés de trabalhar para reverter este quadro de progressiva
miséria social, o Estado brasileiro tem sido instrumentalizado para controlar estas massas
marginalizadas. O que bem pode ser observado na fala de Murilo, um jovem sem terra de 16
anos, que explica que antes de qualquer atitude mais radical, os representantes do movimento
procuram negociação com as prefeituras, governo estadual, federal, no que na maioria das
vezes não são atendidos. Murilo questiona, em outras palavras, o motivo pelo qual as
autoridades competentes não resolvem os problemas estruturais, optando por resolver com o
aparato repressivo as conseqüências destes problemas,
(...) o pessoal do outro lado fala: “ah, sem terra só presta pra destruí,
chegaram aqui na prefeitura fizeram isso, fizeram aquilo!”, mas por quê?
Por quê que o prefeito quando a gente pede uma coisa assim – porque antes
da gente fazer uma coisa precipitada a gente vai antes e pergunta – por quê
que eles não faz numa boa? Eles já faz aquilo, pra gente fazer o que não
deve, mas a gente tá fazendo pro bem. (Murilo, 16 anos).
Os argumentos que são utilizados para legitimar a violência institucional, vale dizer,
a canalização da força repressiva do Estado com a finalidade de manter o status quo e
preservar a propriedade privada (Saint-Pierre, 2000), são lançados contra o MST – entre
tantos outros setores também atingidos – inicialmente sob a forma de criminalização destes
trabalhadores sem terra. Octávio Ianni (1981) contribui para o entendimento do processo de
transformação do trabalhador neste estado de miserabilização progressiva, em criminoso que
necessita de tutela do Estado e repressão policial:
O povo, o trabalhador braçal da cidade e do campo, o homem simples, o
humilhado e ofendido, o operário e o camponês, esse é tutelado, suspeito,
potencialmente perigoso para os governantes, para o bloco de poder; esse
não tem cidadania, nem voz, nem voto. Da mesma maneira, os “problemas
sociais” passam a ser cada vez mais enquadrados nessa ótica de
128
criminalização. (...) A forma pela qual os governantes lidam com os
problemas do povo, do trabalhador, operário e camponês, implica a prática
da violência policial como técnica principal de administração e domínio
(Ianni, 1981, p. 163-165).
Depois de alcançado o objetivo de criminalização dos trabalhadores, o Estado obtém,
junto aos setores mais conservadores da sociedade, o apoio para implementar a violência,
pautado em leis que em última análise defendem os interesses de classe destes setores.
Marilena Chauí (1986) ao discutir, em seu livro Conformismo e Resistência, a influência dos
interesses privados definindo os caminhos dos interesses públicos, afirma que, em nossa
sociedade, a esfera pública não chega de fato a se constituir como tal, pois os governos e as
instituições públicas são marcados pela vontade e o arbítrio de seus governantes.
É uma sociedade na qual as leis sempre foram armas para preservar
privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opressão, jamais
definindo direitos e deveres. No caso das camadas populares, os direitos são
sempre apresentados como concessão e outorga feitas pelo Estado,
dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio do governante. Situação que é
claramente reconhecida pelos trabalhadores quando afirmam que ‘a justiça
só existe para os ricos’, e que também faz parte de uma consciência social
difusa, tal como se exprime num dito muito conhecido no país: ‘para os
amigos, tudo: para os inimigos, a lei’ (Chauí, 1986, p. 54).
Ainda sobre as leis que se constituem em armas para preservar privilégios e reprimir,
Matheus Felipe de Castro (2005, p. 973) afirma que “a política criminal estabelecida, não há
duvidas, é a política criminal da guerra de classes, da contenção do proletariado e, em
tempos de neoliberalismo, do exército industrial de reserva.” (grifos do autor).
Como ressalta Loic Wacquant (2001), nos dias atuais a violência institucional se
exerce no sentido de conter as massas miserabilizadas que o próprio sistema econômico
fundado no neoliberalismo criou. O que faz com que o Estado assuma uma triste feição de
Estado-policial, que busca resolver problemas sociais através da repressão aos miseráveis.
Atualiza-se o aforisma de Carl Von Clausewitz (1979), de que “a guerra não é mais que a
política continuada por outros meios”.
129
4.3. “Elas pensava que nós não tinha gênero de pessoa”: a tentativa de
desumanizar para criminalizar
Para que a política seja continuada no campo da guerra, é necessário que antes ela
atravesse outro importante campo, a sociedade em seus diversos segmentos. É necessário que
exista algum tipo de apoio prévio de amplos setores da sociedade, para que o ato da guerra
seja socialmente legitimado. Como afirmou Cecília Coimbra (2001b), existe um empenho em
construir subjetividades que aceitem e legitimem a violência do Estado contra determinados
grupos sociais. Nesse contexto são criadas as “categorias de acusação” (Velho, 1987), ou o
“mito das classes perigosas” (Coimbra, 2001a).
Para Gilberto Velho (op.cit., p. 57), as categorias de acusação atuam como uma
“estratégia mais ou menos consciente de manipular poder e organizar emoções, delimitando
fronteiras”. Assim, delimitam-se fronteiras entre os “normais” e os “estigmatizados”
(Goffman, 1988). A partir de então, as emoções, ou as subjetividades, são manipuladas a fim
de se elaborar um “ritual de exorcização envolvendo todo um aparato institucional legitimado
por um saber oficial, respaldado pela lei e pela possibilidade da coerção do aparelho de
Estado” (Velho, op.cit., p. 57).
A construção de subjetividades que identifiquem e “exorcizem” as “classes
perigosas”, tem no mass media um de seus principais aliados. Através dos meios de
comunicação de massa – rádio, televisão, jornais, revistas, internet – os medos, fantasias e
desejos dos sujeitos são por estes instrumentos absorvidos e domesticados (Coimbra, 2001a,
p.42). Nesse processo se constrói um modelo de subjetividade massiva, padronizado,
manipulado e manipulável, numa situação em que “valores, comportamentos, atitudes, modos
de ser e de viver são definidos/redefinidos/produzidos/reproduzidos/fortalecidos pelos
diferentes equipamentos sociais e, dentre eles, destaca-se a mídia” (op.cit., p. 30). Assim
segundo a autora, a mídia – por estar na mão de alguns poucos, em geral ligados às classes
dominantes –, “hierarquiza” e seleciona temas que devam ou não ser discutidos, pensados ou
debatidos, e pela via do espetáculo, do drama, do sensacionalismo, produz modelos de
identificação, simpatia ou aversão a determinadas causas.
130
Esse processo, no qual o mundo interno do sujeito é capturado e em seu lugar se
produz uma subjetividade massiva, é entendido por Jurandir Freire Costa (2003, p. 97) como
“violência simbólica”. Trabalhando sobre a violência simbólica no ato educativo, o autor
afirma que “por este termo entendemos toda a imposição de enunciados sobre o real que leve
a criança [ou o sujeito] a adotar como referencial exclusivo de sua orientação no mundo a
interpretação fornecida pelo detentor do saber. O individuo cronifica a posição de
dependência e perde ou amputa a capacidade de criar seu próprio elenco de significados”
(grifos meus).
Partindo dessa mesma compreensão, Caniato (2006, p.5) afirma que “a violência
simbólica se encarrega de capturar o mundo interno dos sujeitos e substituí-los pela
internalização desses modelos identificatórios, que interessam à manutenção da sociedade.
São difundidos em especial pela mídia e para melhor controle social, eles são comuns a todos
os indivíduos do planeta”.
Nesse cenário, o estigma de “classe perigosa” atribuído ao MST pode ser facilmente
observado por um olhar minimamente atento. Essa subjetividade padronizada que elege o
MST como classe perigosa e o criminaliza rompe as barreiras das classes sociais, abrangendo
uma parcela considerável da população, seja rica ou pobre, como demonstra Dirceu, ao falar
sobre sua percepção do movimento antes de optar por nele ingressar:
Antes o povo falava: “sem terra é vagabundo!”. E eu pensava assim
também. Hoje eu entendo que sem terra é honesto. A gente vê o trabalho da
gente, e o trabalho dos da cidade...é como a abelha rainha, que vai
construindo aos pouco. Não é fácil a vida da gente! (
Dirceu, 44 anos).
Essa idéia amplamente difundida de que “sem terra é vagabundo” por estar tentando
“ganhar” terra, ao invés de “trabalhar para comprá-la” (tão comum nos discursos dos mais
variados setores da sociedade) passa pela concepção de que os pobres que não estão inseridos
no mercado de trabalho são, como aponta Coimbra (2001a, p.91), “portadores de
delinqüência, são libertinos, maus pais e vadios. Representam um perigo social que deve ser
erradicado; justificam-se assim as medidas coercitivas, já que são criminosos em potencial”.
Ou seja, neste pensamento há uma correlação direta entre trabalho e virtude, desemprego e
crime. Mesmo sendo o/a sem terra um/a agricultor/a em busca de um direito, em busca de
131
trabalho, de sobrevivência, a relação entre sem terra e ócio é amplamente utilizada como uma
forma de esvaziar o conteúdo político dessas reivindicações, e fortalecer o estigma de
criminalidade.
Abordando este problema da criminalização do MST no Paraná, Jelson Oliveira
(2004, p. 57), afirma que a estratégia do Estado era eliminar os movimentos sociais, em
especial o MST. Para tanto, utilizava-se de duas táticas: a primeira era o treinamento
ideológico realizado com os seus agentes, em preparação para executarem com violência as
reintegrações de posse; a segunda consistia em medidas “tomadas junto à imprensa e à
sociedade, com o fim de desmobilizar, isolar e criminalizar os sem terra”. Vale dizer, com o
objetivo último de disseminar junto à sociedade a equação sem terra = criminoso.
Nesse mesmo sentido, Sanson (2001, p. 24) afirma que “houve uma política
orquestrada com o objetivo de criminalizar e desmoralizar a luta pela terra no Paraná. Essa
articulação ‘patrocinada’ pela UDR, Secretaria de Segurança Pública, Polícia Militar e
governo do Estado, conta com a expressiva ‘simpatia’dos meios de comunicação” (grifos
meus).
A consciência de que a mídia influencia negativamente a imagem que a sociedade
constrói dos sem terra está presente em boa parte das narrativas dos entrevistados, como a
apresentada por Milton, um dos coordenadores do movimento na região do assentamento
Dom Hélder Câmara:
Apesar de forte discriminação hoje do movimento, que na verdade isso
acontece na maior parte, porque os meios de comunicação estão a serviço
da burguesia e eles procuram retratar e criminalizar o movimento,
alterando muitas colocações, se aproveitando de algumas pessoas que tão
no meio do movimento que só tem interesse próprio, que não passou por um
período de luta como esse povo aqui passou, que só pensa em si particular.
Então muitas vezes os meios de comunicação usam estas pessoas pra
denegrir a imagem do movimento. Então muitas pessoas na sociedade aí
fora, boa parte do povo pobre que não tem condição de uma educação mais
clara, de conseguir entender o que acontece nesse nosso país, sem saber o
que realmente é, eles ficam crimanalizando o MST. E pela burguesia,
porque o papel deles é tentar acabar com qualquer movimento que faça a
luta em busca de direitos, e que esses direito vão contra os seus privilégios.
E como os meios de comunicação estão a serviço desta burguesia, muitas
pessoas acabam tendo uma visão distorcida do que o movimento realmente
é. Isso a gente tem clareza e certeza a partir do momento que as pessoas
vem e realmente conhecem o movimento, vem e conhecem o assentamento,
132
vem e conhecem o acampamento, vê como é organizado e de que forma se
trabalha ali. Entendendo que não é perfeito, que ali dentro mora um povo
que saiu da mesma sociedade que se vive ali fora, que conta com problemas
iguais ou parecidos com os que se vive lá fora e que não é uma exceção, que
também tem problemas, mas dentro da medida do possível, tudo se tenta
solucionar da melhor forma possível, tendo o bem comum como princípio
máximo. (Milton, 27 anos, grifos meus).
Na fala de Milton destacam-se alguns elementos importantes. Dentre eles, a
compreensão de que boa parte da criminalização ao movimento é feita por meio da mídia, e
esta por sua vez o faz por estar vinculada ao que ele chama de “burguesia”: “os meios de
comunicação tão a serviço da burguesia e eles procuram retratar e criminalizar o
movimento”. Continua afirmando que, “o papel deles [da burguesia] é tentar acabar com
qualquer movimento que faça a luta em busca de direitos, e que esses direito vão contra os
seus privilégios”. Milton expõe claramente a idéia de que os meios de comunicação estão nas
mãos de poucos, e que estes poucos tem ligação direta com as elites agrárias, que por sua vez
são incansáveis na tentativa de criminalizar o movimento, sobretudo, porque defendem
direitos que atacam diretamente “seus privilégios”. Destaca que isso não é uma atitude
exclusivamente direcionada ao MST, mas a qualquer movimento que lute por seus direitos, e
que para tanto, questione o atual sistema de coisas.
Em outras palavras, Milton coloca o problema da construção das subjetividades
massivas (Coimbra, 2001a), entendendo que esta ofensiva da “burguesia” por meio da mídia,
cala mais forte naqueles que deveriam ser seus aliados na luta pela terra e contra as injustiças,
ou seja, aqueles que estão de um dos lados socialmente visíveis do capitalismo, a pobreza
(Martins, 1984): “boa parte do povo pobre que não tem condição de uma educação mais
clara, de conseguir entender o que acontece nesse nosso país, sem saber o que realmente é,
eles ficam crimanalizando o MST”.
Essa dificuldade em “entender o que acontece nesse nosso país”, talvez
diferentemente do que Milton tenha expressado, em princípio pouco tem a ver com condição
social. Tem a ver com a aceitação de uma violência simbólica, a violência da imposição sutil
de uma idéia hegemônica como única referência para perceber o mundo (Freire Costa, 2003).
Essa posição por sua vez contribui para uma violência que nada tem de simbólica, a violência
concreta contra determinados setores da sociedade, aqueles que carregam uma identidade
política e que em algum momento ameaçam o status quo.
133
Milton afirma ainda que se propaga uma “visão distorcida do que o movimento
realmente é”. Essa visão intencionalmente distorcida do que de fato é o movimento, e de
quem são as pessoas por trás deste movimento, é preocupação também para Murilo, jovem de
16 anos, que reafirma a necessidade de se mostrar “um outro lado da história”, de mostrar
que o sujeito sem terra, ao contrário do que a “televisão” mostra, têm “gênero de pessoa”:
Quem não conhece muito, tem medo de ficar no meio do sem terra, porque a
tragédia que eles vê na televisão, vê criança, sangue, vê brigando contra
policial, vê todo aquele terror, pensa que o sem terra é um bicho né! Só que
não é, eles tinham que conhecer a vida, conhecer a história, acho que eles
via que é outro lado, que não é aquilo que eles pensa. (...) [falando acerca
das primeiras impressões que sobre eles tiveram as professoras que foram
dar aula dentro do assentamento] (...) elas nunca que pensava que nós era
outras pessoas, pensava que nós era bruto, nós não sabia conviver, que nós
não tinha, como se diz assim [pausa] gênero de pessoa, seria tudo bruto
assim, xingando, brigando, sempre brutal.
O primeiro passo rumo à criminalização de uma determinada categoria é a sua
desumanização. Retiram-se as características humanas dos sem terra, pois, em última análise,
aquele que não tem “gênero de pessoa”, não necessita ser tratado de forma humana. Partindo
dessa compreensão a implementação do processo de punição/eliminação é facilitada.
Cotidianamente, os meios de comunicação nos fazem crer que se a grande
massa excluída de nossa população age diferentemente das elites é porque
vive e, portanto, pensa, percebe e sente diferentemente de nós. Por isso, não
podem receber o mesmo tratamento. (...) Ou seja, somos levados a desprezar,
estigmatizar, discriminar os pobres, como se essas pessoas ‘não fossem
gente’ (Coimbra, 2001a, p. 61, 62).
Murilo afirma que essa imagem do sem terra distante do “gênero de pessoa”, ou seja, a
imagem do sujeito “bruto”, que “xinga”, que “não sabe conviver”, é construída pela mídia.
Esta, na sua compreensão, tem relação direta com “os fazendeiros”, as oligarquias rurais:
[Entrevistadora: E você acha que essa imagem que as pessoas têm vem do
quê?]. Vem do que, vem das invasão de fazenda e vem do despejo. Porque as
134
pessoas vê tudo aquilo lá na televisão. Porque é aquela história, o
fazendeiro nunca paga pro jornalista mostrar o sofrimento que o sem terra
que tá lá ajoelhado lá, ou talvez ajoelhado na terra, comendo terra lá, com a
cara no chão passando fome, passando frio, chovendo, eles nunca mostram
aquela parte. Mostram sempre a parte que eles são agredido. Mostra aquela
parte que os policial é agredido. Porque lógico, eu não vou vê um policial
batendo num amigo meu e não vou defende? Não vou chegar e empurra ele
pra ele não bate? Porque eu tô vendo ele ali caído? Quantas vezes eu vi
amigo meu caído assim e eu não poder fazer nada! Por quê? Porque eu tô
algemado ali e um amigo meu sendo chutado. Então essa parte eles não
mostra, eles mostra sempre aquela parte que o quê? Que um policial leva
um empurrão, que um policial leva talvez uma garrafada no peito. Porque o
quê?! Eles tem roupa de proteção, eles tem colete, eles tão com capacete.
Então eles sempre mostram aquelas parte que os policial são agredido,
nunca mostram aquelas parte que os sem terra tá sendo agredido. Então é
isso que as pessoas vê: “óh lá tá vendo óh, o sem terra não presta! Sem
terra fica agredindo policial! Sem terra é isso é aquilo!”.
Murilo demonstra uma compreensão nítida do processo de “manipular poder e
organizar emoções” (Velho, 1987), implementado com elevada precisão pelos meios de
comunicação. Fala sobre a parcialidade, o comprometimento ideológico e econômico da
maioria dos órgãos de comunicação com as elites rurais e políticas, a manipulação das
imagens e da informação, sempre a serviço do “fazendeiro”, representando aqui as demais
elites. Essa notícia meticulosamente distorcida é comprada por grande parte da sociedade, que
legitima as ações controladoras e repressivas do Estado, uma vez que “sem terra não presta”,
“sem terra fica agredindo policial”, “sem terra é isso, é aquilo”, “sem terra não tem gênero de
pessoa”, vale dizer, é preciso ser contido. Tudo que não se aproxima do “humano” assusta,
ameaça e precisa ser controlado. Cecília Coimbra (2001b), afirma que esse pensamento é
parte de uma nova “Doutrina de Segurança Nacional” que tem como público alvo, não mais
os “subversivos”, mas os miseráveis:
Uma nova ‘Doutrina de Segurança Nacional’ que tem hoje como seu
‘inimigo interno’ não mais os opositores políticos, mas os milhares de
miseráveis que perambulam por nossos campos e cidades. Os milhares de
sem teto, sem terra, sem casa, sem emprego que, vivendo miseravelmente,
põem em risco a ‘segurança’ do regime. Daí, a urgência em produzir
subjetividades que percebam tais segmentos como perigosos e,
potencialmente, criminosos para que se possa em nome da
manutenção/integridade/segurança da sociedade não somente silenciá-los
e/ou ignorá-los – o que já não é mais possível – mas eliminá-los; exterminá-
los através da ampliação/fortalecimento de políticas de segurança públicas
militarizadas que apelem para a lei, a ordem e a repressão (Coimbra, 2001b,
p.104).
135
Buscando possibilidades de desconstrução desse pensamento, Murilo aponta como
alternativa, a necessidade de fazer com que as pessoas conheçam “o outro lado da história”, e
percebam que o “sem terra não é um bicho”:
Então acho que o povo tinha que conhecer a história. Eles tinham que
conhecer a realidade. Eles tinham que vê por um outro lado da história. Se
essas pessoas que pensasse que sem terra era um bicho, se elas passasse em
cada fazenda, em cada reocupação, depois de reocupar, se eles passasse e
visse o sofrimento do sem terra, eu acho que eles não pensariam assim, eu
acho que não! (...) Lógico nós erra, não vou dizer que ninguém aqui é santo,
todo mundo erra, mas aí tem que vê também o lado que a gente também é
judiado, a gente sofre. Tem que ter, como se diz, um espírito forte porque se
não, não agüenta! (...) Eles fala: “destruíram isso, destruíram aquilo,
quebraram isso, comeram aquilo”. Mas se nós quebramo talvez nós tava se
defendendo deles mesmo. Talvez era eles que tava nos agredindo. E se nós
comia é porque nós tava com fome. Nós não comemo e jogamo lá, nós não
matamo e jogamo lá, nós tava com fome! Porque a fome [pausa] quem que
vai sobreviver com a fome? Ninguém!
O apelo deste jovem – faixa etária em que, até onde percebi, o sentimento de ser
discriminado e tratado como criminoso calava mais fundo – é para que os olhem como
sujeitos com “gênero de pessoa”, pede o reconhecimento de um direito assegurado pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual estabelece que “toda pessoa tem o direito
de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa, perante a lei” (Brandão, 2002, p. 45).
Ou seja, um apelo para que a sociedade olhe também o lado da história narrada por eles, uma
história de miséria material – pois como disse Júlia, mãe de Murilo: “pobre nós não somo,
porque pobre é outra coisa...” – de sofrimento, uma história de erros e acertos de quem busca
a sobrevivência em condições extremamente desfavoráveis. Um apelo para que se olhe para
os sujeitos ocultados pelo estigma. Um apelo para que a violência simbólica deixe de
contribuir para a violência de Estado, sendo esta primeira forma de violência, um mecanismo
preferencialmente utilizado por esses sistemas políticos de aparência democrática, onde
primeiro se obtém o consenso e depois se usa a violência.
136
4.4. A violência sofrida
Uma parte das famílias que passaram por estes violentos processos de reintegração de
posse, foram – em virtude do intenso sofrimento – contempladas com uma vaga na primeira
área que foi negociada com o INCRA, logo que cessou esta onda de violência. Assim, em
maio de 2001 chegaram à área que hoje é o assentamento Dom Hélder Câmara, cerca de 132
famílias, com relatos e histórias de vida semelhantes. Trago aqui alguns dos depoimentos
destas famílias, acerca das violências sofridas nesses processos de reintegração de posse.
4.4.1. Despejo da Fazenda Novo Horizonte
Júlia, de 47 anos, morava em Londrina, região norte do Paraná, com o marido e os
sete filhos. Seu cunhado convidou-os para acampar junto ao MST. O marido considerou a
possibilidade, conversaram e ele foi sozinho para ver se teria condições de levar a família. Ela
ficou trabalhando em uma empresa de salgados. Passados quatro meses, Júlia e os filhos se
juntaram ao marido: “porque onde meu marido luta, eu também quero lutar junto”. Foram
para o acampamento da Fazenda Novo Horizonte, no município de Nova Londrina, região
noroeste do Estado.
Júlia descreve com precisão e intensidade ímpares os momentos iniciais no
acampamento:
Quando eu cheguei lá pra mim foi horrível, por causo que quando eu tava
em Londrina, tinha água, tinha luz, casinha de material, na verdade não era
minha, mas eu tava bem. Aí que quando eu cheguei lá pra mim foi horrível,
porque eu jamais que eu ia pensar que eu ia lutar daquele jeito né. Eu entrei
numa mangueira, era um mangueirão, o chão só tinha bosta de vaca. Fogão
tive que fazer de barro sujando toda a mão pra cozinhar. Catar guanxuma
pra fazer vassoura. Água eu tinha que puxar longe. Energia tinha energia,
mas.... Pra mim foi horrível! Mas acostumei, a gente tem que acostumar com
o que é bom e com o que é ruim.
137
Passados cinco meses, os militantes do movimento chegaram ao acampamento
afirmando que havia saído a imissão de posse da propriedade. Fizeram a divisão dos lotes em
oito alqueires para cada família. Eles estavam se estruturando em cima do lote, como conta
Júlia: “nós já tinha plantado, nós já tinha passado trator nas terra, meu marido já tinha
plantado meio alqueire de feijão, eu já tinha feito uma horta, eu tinha plantado quatro
máquina de arroz, tinha porco, frango de granja, cachorro, nós tinha já de tudo um
pouquinho”.
Na manhã de 23 de novembro de 1999, foi convocada uma reunião. Júlia e o marido
foram até o local marcado. No entanto, foram avisados que havia ocorrido algum imprevisto e
a reunião foi transferida para o período da tarde. Nisso, uma amiga dela que também
participaria da reunião convidou-a para uma visita. Convite aceito, estavam as duas
conversando quando a amiga falou: “Julia do céu, tá chegando um monte de carro e é os
pistoleiro! Júlia do céu é despejo!”. Ela conta que ficou desesperada na hora. Estava
acampada há poucos meses e não sabia exatamente o que era um despejo, sobretudo um
despejo efetuado por pistoleiros, que costuma ser ainda mais violento. Aterrorizada exclamou:
“meu Deus o que será da nossa vida, tende misericórdia Jesus de nós! Eu nunca vi uma coisa
assim na minha vida!”
Conta que a partir desse momento o que viu foi horror: “Aí foi horrível, eles foi
descendo os pistoleiro, entregando as arma de um pra outro e já foram gritando: ‘bucado
de sem terra, ladrão! Vocês quer terra?!’ E já foi pegando um tanto daquela gente que tava
ali, de sem terra e já foi batendo e, já foi jogando gasolina nos barraco e, ali já foi
queimando”.
Os pistoleiros foram acuando eles num canto da propriedade e o marido dela acabou
ficando no meio dos pistoleiros: “Aí meu marido não conhecia da luta, os outros como já
conheciam da luta saíram correndo e meu marido, como não conhecia coitado, foi a primeira
vez, tava com cinco mês que nós tava ali, então coitado ele foi caçar lugar de sair e, caçar os
filho, e acabo que foi pro meio deles. Aí eles falaram: ‘não sem terra, aqui você não vai
passar, você tem que passar por ali!’. Ele não sabia exatamente o que fazer, nem para onde
correr e ficou no meio deles com os braços abertos, em sinal de rendição, na medida em que
ia tentando se afastar, mas eles não permitiam que ele saísse: “sem saber o que fazia e, eles
ali chutando, jogando pedra, tijolo, pau, ferro e, dando tiro, meu marido sentiu até o calor de
uma bala que passou em baixo do braço dele”. Conta que os pistoleiros atiraram um ferro na
138
direção exata do pescoço, na região das artérias, e que só não foi atingido porque teve um
reflexo rápido e desviou a cabeça.
Aí eu saí desesperada gritando, eu gritava: Antonio, pelo amor de Deus
Antonio, saí daí que eles vão te matar! E meu marido não falava nada, só
ficava assim no meio deles e eles: –‘sem terra, vagabundo, cretino, você
quer terra sem terra? E tacava tijolo, mas conforme meu marido, graças a
Deus tem muita fé em Deus e, só fazendo assim [gesticula com as mãos para
o alto, como se estivesse se movendo lentamente em sinal de rendição] ele
não dava as costa, dava a frente e, foi afastando, afastando, afastando. Até
que ele chegou num araminho desse tamaínho assim [aponta uns 20 cm] e
ele conseguiu passar coitado.
Ele só conseguiu esse tempo para cruzar o arame, porque exatamente nesse momento
uma senhora também tentava cruzar carregando uma criança. Enquanto a senhora passava ele
segurou a criança e foi se preparando para passar com toda a velocidade possível: “aí ele
pegou a criancinha e mostrava pra eles, aí eles gritavam: –‘na criancinha não, não bata na
criancinha só nele!’ Aí meu marido mostrando a criancinha pra eles né. Aí ele pedindo pra
Deus, pra Deus ter misericórdia dele e da criança, aí a senhora passou do outro lado do
arame, ele entregou a criança e ele conseguiu passar ali”.
Em meio a isso tudo, Júlia procurava desesperadamente os filhos: “E ali nós no meio
dos gado, eu caía, eu levantava, e caçando meus filho e, meus filho tudo ali pertinho de mim
só que eu não via, eu fiquei tão desesperada que eu não via”. Num misto de desespero e
impotência, ela encontrava na fé um lenitivo: “Aí as minhas companheira tudo chorando
desesperada, então eu peguei e falei pra uma daquelas: tenha fé companheira, que um dia
nós vamo vence, Deus é grande! Deus tá no meio de nós e ele tá cuidando de tudo”.
Quando Julia e o marido perceberam que os pistoleiros estavam incendiando os
barracos sem dar a chance de retirar qualquer objeto, o marido falou: “–‘ôh, mulher e o
rádio? E aquele dinheiro que nós tinha?”. Então ela chamou o filho Murilo e correu para
tentar resgatar algumas coisas:
Daí eu saí de quatro pé, saí de quatro pé no meio do pasto, com um short
todo rasgadinho, uma blusinha toda rasgadinha, antes dos pistoleiro tacar
139
fogo no meu barraco. Cheguei lá, tirei, era pouquinho dinheiro que meus
filho trabalhava e nós ia juntando né pra ver se mais tarde nós comprava
uma coisa melhor, aí cheguei lá catei o dinheiro, catei minha cobertinha que
eu tenho ela até hoje e, meu menino Murilo pegou o colchãozinho. Aí deu
certo menina, que quando nós ia correndo que nós chegamos na sede da
fazenda, que eu olhei pra trás vinha que nem pipoca de pistoleiro atrás de
nós...
Júlia e Murilo conseguiram salvar algumas poucas coisas, porém não foram suficientes
para conter o desespero do marido e pai, ao ver o barraco queimar com o pouco que
conquistaram ao longo da vida:
E meu marido ali triste, com as lágrima pingando. Aí chegou um
companheiro e falou assim: –‘Ôh seu Antonio, olha lá no teu barraco’. Aí
meu marido tava acocado, levantou só deu uma olhadinha assim, aí coitado
nem voz não saiu mais! Começou a chorar, porque daí ele viu a fumaça,
aquela fumaça preta das coisinha que nós tinha. Aí ele desesperou
coitadinho! Aí ele chorou, chorou desesperado de vê que eu tinha lá meu
cochoadinho, colchão, lata de banha coitadinho que ele tinha comprado,
que os filho tinha soado colhendo café pra fora. Meus franguinho que tava
com um mês, tinha uns porquinho, os cachorro. Aquilo eles acabaram com
tudo, tacaram fogo e o que era de bicho eles mataram tudo, acabaram com
tudo. Aí eles queimaram tudo, queimaram documento, queimaram dinheiro
que meus companheiro tinha, um pouquinho, uns corinho de rato que nós
fala, mas tinha. Nós pobre não fala dinheiro. Pobre não que nós não somo
pobre, pobre é outra coisa....
Passado esse momento de horror, as famílias foram acolhidas pelo fazendeiro
vizinho, que segundo Júlia, “ficou com pena de nós, recolheu nós. Nós ficamos tudo ali
desesperado!”. Muito tempo depois a polícia chegou: “as policia aí falaram: ‘e daí como é
que vocês tão?’. Aí como é que tamo, tamo sofrido com fome! Aí os polícia pegaram
arrumaram lá uns caminhão, colocaram nós dentro daqueles caminhão, aí nós fumo pra
Brizanta”.
Vitor de 26 anos, que era um dos coordenadores do assentamento na época do
despejo, fala com pesar de não ter conseguido fazer algo que pudesse ter inibido a ação dos
pistoleiros contra aquelas 16 famílias
: “Eu era da coordenação e o que eu pude fazer foi ficar
olhando tudo queimar, e as pessoas chegavam pedindo o que fazer e eu não podia fazer nada.
Era mulher e criança chorando”. Lamenta também terem perdido tudo que tinham, inclusive
140
os sonhos e planos para aquele assentamento: “saímos sem nada, queimaram tudo que tinha.
E além de tudo acabaram com os sonho, os plano que a gente tinha pra aquela terra. (...)
hoje eu trocaria tudo para voltar lá”.
Branford e Rocha (2004, p.224), afirmam que esse despejo contou com a
participação do próprio presidente da UDR no Paraná na época, Marcos Prochet, que teria
saído, juntamente com seus 80 homens aproximadamente, direto de uma reunião pública no
município de Marilena, ocasião em que se realizava uma comemoração pelo despejo realizado
dois dias antes na Fazenda Santa Rosa, utilizando o mesmo modus operandi. Segundo dados
da coordenação estadual do MST, a área de fato estava desapropriada e era considerada
assentamento. A polícia foi omissa e conivente. Chegou somente depois de muito tempo, e
esse não era o primeiro despejo realizado pelo grupo, ou seja, teriam possibilidades de intervir
na segurança dos sem terra e desarmamento destes fazendeiros e pistoleiros.
As famílias despejadas ficaram um tempo no assentamento Brizante e dá lá foram
para a o acampamento da Fazenda Cobrinco. Depois de aproximadamente três meses esta área
também foi despejada, desta vez pela polícia militar.
4.4.2. Despejo da Fazenda Cobrinco/Figueira
Na madrugada de 25 de fevereiro de 2000, a polícia sitiou a região da fazenda
Cobrinco, também conhecida por Figueira, localizada no município de Guairaçá, região
noroeste do Estado, onde cerca de 150 famílias estavam acampadas. As barreiras para impedir
o acesso à área foram colocadas a aproximadamente 15km antes da entrada principal da
fazenda. Imprensa, advogados, padres, agentes da pastoral, lideranças do MST, foram
impedidos de se aproximar do local.
De acordo com os relatos, os policiais se posicionaram numa roça de mandioca
próxima à fazenda, onde os sem terra estavam trabalhando na colheita. Familiarizados com o
cotidiano dos sem terra, os policiais esperavam que eles aparecessem no início da manhã para
continuar o trabalho. Seriam então surpreendidos com as centenas de policiais que se
141
escondiam na roça. Contudo, tiveram seus planos frustrados. Elizeu de 35 anos, conta que um
senhor que os ajudava e tinha simpatia pelo movimento avisou que a região estava sitiada, e
que certamente os policiais estavam à espera deles: “olha os policial já tá tudo dentro da
fazenda já pra pegar vocês na roça”. Diante disso, decidiram não ir trabalhar naquele início
de manhã. Ao perceberem que não conseguiriam executar seus planos tal com previsto
inicialmente, invadiram o acampamento pelos fundos da fazenda, aproximadamente às nove
horas da manhã. “Daí chegaram quando nós vimos vinham que vinham tampando o pasto,
daí já não teve mais pra nós”.
Milton, 27 anos, conta que “os policiais chegaram no acampamento já com muita
raiva”, por terem passado a noite toda esperando para “pegar os homem na hora do serviço
pra não ferir mulheres e crianças”. Quando amanheceu o dia e perceberam que os homens
não foram trabalhar, ficaram transtornados “eles chegaram no acampamento com muita raiva
e foi varrendo com violência parelho sem saber quem tava na frente homen, mulher ou
criança”.
Perguntei ao Elizeu se eles foram ao encontro dos policiais, ao que ele respondeu:
“Oh, nós fomo ao encontro mais foi de bala de borracha e bomba né porque, quando eles
chegaram já começaram a lançar aquilo contra a gente, né”. Elizeu relata que eles correram
e se reuniram em um bloco dos sem terra”. Os policiais distantes ainda 70, 80 metros,
começaram a lançar as bombas. Quando os policiais se aproximaram dos sem terra, “já não
dava mais pra vê muito polícia né, porque tinha mais fumaça de que, né... virou só em
fumaça, né”.
Elizeu conta que todos começaram a correr desesperados, mas não tinham para onde
fugir: “Aí o povo começou a correr, a saí fora, muitos ficaram enroscado, a polícia corria de
atrás, quando não podia pegar os cachorro pegava né, derrubava a pau, Deus o livre!”. No
meio dessa desesperada correria, sua filha de cinco anos estava com a mãe, Irene, se
escondendo da fumaça atrás de uma casa, de repente ela falou: “mãe olha lá o pai!, e saiu
correndo em direção a ele. Irene conta que a menina conseguiu alcançar o pai. Ela foi
correndo atrás segurando o filho mais novo, de dois anos. No meio do percurso Irene foi
atingida por uma bala de borracha na região do ouvido: “daí eu não vi mais nada, daí eu caí
com ele, nem lembro quem que pegou esse aqui também [o filho], eu só me lembro de 40
minuto depois já tava debaixo da mangueira de água”. O impacto foi tão forte que a deixou
142
desacordada. Os policiais colocaram-na debaixo de uma mangueira d’água a fim de que
recuperasse a consciência.
Em meio a isso tudo, Elizeu foi atingido por uma bomba na sola do pé e por uma bala,
“bala mesmo de verdade” na região dos genitais. Tratava-se de uma bala explosiva que se
dividiu em quatro partes: “era bala explosiva. Ela não chegou a vim reta, se ela vem reta
pode ter certeza que ia fazer mais dano, né, e assim ela não calou foi tanto. (...) segundo o
médico falou, ela pegou numa madeira ou pegou no chão, pra depois pega..., né”. Ferido e
sangrando muito, Elizeu não tinha como continuar fugindo: “não tinha mais como correr, não
naquela hora não tinha mais, né, eu perdi até a perna naquela hora, estourou debaixo do pé
né, então ali acabou o jogo da perna não tinha como correr”. Assim que parou de correr foi
preso: “eles chegavam os que eles iam derrubando eles já iam prendendo, né (...) Aí jogaram
nós na beirada da estrada e iam pinxando [jogando] um por cima do outro, assim que nem
pinxa porco num chiqueiro, iam pinxando um em cima do outro e os cachorro, cavalo em
cima cuidando de nós. Muita gente algemado, sem algemar...”
Elizeu relata que “eles [a polícia] fizeram vários grupo, eles iam pegando o que eles
iam catando aqui eles iam jogando aqui, o que eles catavam lá eles jogavam pra lá. E eram
vários bloco de preso né”. Esse procedimento era realizado com muita agressividade,
“porque eles não pegavam o ser humano e largavam ali do lado, né. Pegavam uns cinco,
seis, uns pelos braço, outros pelas perna assim, chegavam e pinxavam né, aquele pessoal
todo ensangüentado”. Afirma que mesmo sangrando muito – “tava com parte de baixo
ensangüentada né, escorrendo sangue de verdade mesmo, era bastante sangue, né” – foi
jogado nesse “bloco de presos”, em cima de um senhor que em poucos minutos a “cara dele
assim começou a lavar de sangue, né, mas sangue meu que tava escorrendo nele, e ele não
consegui tirar a cabeça, quando ele tava querendo puxar a cabeça o cachorro vinha na
cabeça dele assim [gesticula demonstrando o cachorro mordendo a nuca deste senhor] aí ele
baixava a cabeça de novo na terra”.
Júlia que também passou por mais esse episódio de horror, conta que “ali saiu tanta
coisa horrível que jamais eu gosto de pensar. Ali saiu tiro, tiro de verdade, de espingarda, de
revolver, saiu tiro de espingarda de borracha.... Relata que o pior momento foi quando
tentaram fugir daquele centro onde estava se concentrando o ataque: “meus dois menino ia
correndo e ele [policial] pegou um deles e abriu as pernas do menino que chegou deslocar.
Ele sentiu dor no meio das pernas. As polícia pegou ele e abria assim [gesticula abrindo os
143
braços] abriu e ele gritou: “Ai!”, que ele sentiu deslocar o meio das perna.” Julia e os dois
filhos menores também tentaram correr, mas não conseguiram ir longe. Foram detidos e
humilhados. Nem o menino de quatro anos foi poupado:
Eu mais esse pequeninho, nós saímos correndo, mais o Murilo, mais o
Junior. Naquela época o Junior tinha quatro aninho. Aí eles pegaram e
gritaram: “deita, deita mãe!”. Aí nós deitamos, aí o pequenininho enfiou a
carinha no chão e ali: –“come terra sem terra! Vocês quer terra!”. Ele
chutava a cara assim [faz gesto semelhante ao de quem esmaga com os pés
uma ponta de cigarro no chão] do Junior, –“quer terra sem terrinha, coma
aí, come terra!”. Pegou meu marido derrubou no chão, amarrou as mão do
meu marido, algemou e, falavam pro meu marido: –“você quer terra sem
terra? Come terra aí óh!” [repete o mesmo gesto com os pés]. E as polícia
saía pulando assim por cima deles e, deu um chute tão grande no braço do
meu filho que tirou o couro do braço do meu filho e, saía pisando assim por
cima deles. Olha, foi horrível, aquela cena foi horrível, eu não gosto de
lembrar até hoje!
Encerrado o despejo os feridos foram levados para um hospital na cidade de
Paranavaí. Irene esposa de Elizeu, estava indo para o hospital, quando percebeu que a filha de
cinco anos estava machucada: “daí na estrada que ela falou ‘mãe tá doendo aqui!’, eu vou
olhar o pé dela tava inchado, a canela tava roxa e as costela tava roxa também”. A criança
não soube dizer exatamente o que foi, mas afirmou que foi agredida pelos policiais. A mãe
que ficou desmaiada durante um considerável período de tempo e portanto não viu a agressão,
acredita que “de certo foi coice. Porque eles não respeitavam né, iam chutando”.
Outras crianças foram machucadas. Elizeu afirma que as crianças, cujos pais estavam
presos, tentavam se proteger em grupo: “aí você encontrava no meio daquele fumaceiro
daquelas bomba explodindo, seis, sete, oito grupinho assim de criança onde que ficavam que
não conseguia correr né e, tentava se proteger ali, mas não tinha como escapar, e daí onde a
gente tentava tirar aquelas criança dali né”.
Um menino de cinco anos teve sua mão ferida por uma bomba que extirpou um de
seus dedos. Além disso, os estilhaços atingiram os olhos da criança provocando sangramento
intenso. A mãe da criança, Sara de 35 anos, fala da revolta em ver o sofrimento do seu filho:
“cada vez que meu filho vem pedir benção com a mãozinha que levou a bomba, dói meu
144
coração, eu me revolto (...) apanhar de botina de polícia igual burro, ver sangue do meu filho
derramado naquela fazenda é uma coisa que eu nunca vou esquecer.”
Milton, de 27 anos, que na época era professor destas crianças afirma que elas ficaram
bastante abaladas e que durante muito tempo, qualquer noticiário de rádio ou televisão que
mencionava um despejo, as “crianças se desesperavam, choravam, gritavam, saíam correndo
durante a noite, de medo do que eles já tinham vivido”. Conta que o mais chamou a atenção
dele “foi um menino de 7 anos [um dos filhos de Elizeu] que durante 60 dias após o despejo,
ele permaneceu com um lado do rosto todo queimado com o efeito de bomba que tinha sido
lançada pelas polícia e, que hoje já passado 5 anos essa criança ainda se encontra com
marcas no rosto”.
As lembranças desse dia emergem carregadas de dor e revolta, como é possível
perceber na fala de Elizeu: “Se fosse contar tudo mesmo o que a gente viu de ponta a ponta,
Deus o livre!... Até tem hora que a gente nem gosta muito de comentar essas coisa né, é duro
né, a gente sofreu bastante”. As sofridas memórias deste episódio assumem para Elizeu uma
dimensão tal, que o leva a afirmar que a violência empregada pela polícia militar do Paraná
contra os sem terra, supera a violência empregada pela polícia norte americana no atual
conflito no Iraque: “Hoje a gente vê aquelas guerra do Iraque, pra falar a pura da verdade,
tem bem menos brutalidade do que a polícia do Paraná contra o sem terra né. Isso eu não
tenho dúvida, porque eu já participei de vários despejo e eles não tem piedade, né, eles são
bastante agressivo”. Para ele a violência policial é uma covardia: “não precisa, sem terra não
tem metralhadora nada na mão né, pra que né, é covardia”.
Covardia que se expressa também por meio do contingente policial deslocado para
essa operação, que, segundo os relatos, estima-se que cerca de 1.000 homens foram
destacados para a retirada de 150 famílias da propriedade. Elizeu, em tom de brincadeira,
afirma que a operação deveria ter contado com “90% da polícia do Paraná”. Esse efetivo
policial o deixou tão impressionado que o fez acreditar que mais da metade dos homens “era
tudo jagunço vestido de policial né, porque eu acredito que é isso, porque no Paraná não tem
aquela quantidade de policial, duvido, não tem, no Paraná não tem. A quantidade de policial
que tinha lá, pelo menos vestido de polícia, era um exército, né”
Esse foi um dos despejos mais violentos implementados pela polícia militar, durante
este período. Saindo de lá, muitos foram para o hospital e muitos também foram para a
145
delegacia em Paranavaí. As demais famílias foram levadas para o assentamento Água do
Corvo. Ali ficaram o resto daquele marcante 25 de fevereiro e, na madrugada seguinte,
iniciaram a operação para a reocupação da mesma fazenda. A coordenação regional do
movimento entendia que a reocupação era um ato de resistência, em resposta à violência do
dia anterior.
Júlia conta que ficou apavorada com a idéia da reocupação: “Ficamos ali o dia, a
noite, quando foi quatro hora da madrugada, foi horrível de novo!”. Nesse momento
chegaram os caminhões para levá-los novamente à fazenda Cobrinco: “meu marido mais os
companheiro dele saíram três hora da madrugada em cima do caminhão. E as mulherada
ficaram ali tudo chorando desesperada”. Na despedida, Júlia em meio às lágrimas, rezava e
ao mesmo tempo pedia para que eles tivessem fé e cuidado nesse novo desafio: “tenha muito
cuidado tenha cuidado! Tenha fé em Deus e muito cuidado, porque eu sei que nós vamo
reocupar a Cobrinco de novo, e eu sei que os pistoleiro tá lá, as polícia tá lá esperando nós e,
eu sei que vai acontecer cenas horrível!” Quando os homens saíram as mulheres e as crianças
ficaram chorando, “nós ficamos ali tudo chorando desesperada!”.
Os homens foram na frente e ficaram numa roça de mandioca próxima à sede da
fazenda. As mulheres e crianças foram na mesma madrugada, porém um pouco depois, e
ficaram no assentamento São Paulo, que fazia divisa com a fazenda Cobrinco. Quando chegou
o próximo caminhão as mulheres foram: “aí chegou os caminhão, aí as criança tava tudo
dormindo ali no chão. Nós acordamo nossas criança, pegamo os colchão, os bulambinho que
nós tinha ali – eu falo bulambo – e jogamo tudo em riba do caminhão”.
No meio da madrugada a chuva e a fome eram também impiedosas. O local onde
ficaram era próximo a um riacho, e tinha apenas um barraco nas proximidades: “nós tudo com
fome, chovendo e, ficamo ali naquele barraquinho”. O filho, Junior, que na época destes
despejos tinha cinco anos de idade, estava ao lado da mãe na ocasião em que a entrevistei.
Enquanto ela revirava os arquivos dessas dolorosas memórias para esse depoimento, ele
lembrou que a fome deles foi saciada com um milho que encontraram no local: –“Tinha
milho, mãe”, fala Junior bem baixinho, e ela confirma: “tinha milho filho, é verdade. Tinha
um milho ali maduro, não tava tão maduro, tava já secando e nós quebrava aquele milho e
assava pra nós comer e dá pras criança”.
146
O dia amanheceu, o conflito começou e as mulheres, de longe, ouviam os sinais da
guerra: “aí escutamo aqueles tiroteio e tiro, e tiro, e tiro, e tiro e nós desesperada! Eu falei
‘meu Deus meu marido dessa vez morreu!’, a outra ‘ô Jesus tem misericórdia, meu marido
morreu!’, outra, ‘ah meu marido morreu!’ (...) fogo, bala, tiro, olha, e eu entreguei tudo pra
Nossa Mãezinha querida, Nossa Senhora...”. Mas felizmente o desespero delas terminou com
a notícia de que “graças a Deus, como Deus é bom, não morreu nenhum, graças a Deus!”.
Segundo Branford e Rocha (2004, p.225), a fazenda estava protegida por 65 policiais
militares, que trocaram tiros com os sem terra, mas ao perceberem que eram minoria fugiram.
Alguns sem terra afirmam que quem fazia guarda da fazenda eram pistoleiros e policiais.
Outros asseguram que eram apenas pistoleiros. Fato é que a estratégia de ocupação foi
vitoriosa. Os que guardavam a propriedade fugiram e os sem terra voltaram a viver na fazenda
Cobrinco.
Aí nós fomo lá de atrás, tudo chorando, desesperada. Quando nós chegamo
os coitadinho lá tudo fraco de fome e sono e chuva. Cheguei lá meu marido
tava lá acocadinho, aí pegou e falou pra mim: –“mulher o que que vamo
fazer?”, eu falei “olha meu marido você não queria lutar? Você não me
buscou lá em Londrina pra mim lutar, pra nós lutar, então nós vamo lutar
até o fim! Se Deus quiser e Nossa Senhora, nós vamo vencer!”.
Apesar do sofrimento, o sucesso dessa reocupação foi importante, para resgatar um
pouco da força e auto-estima esmagadas naqueles dias de violência extrema. Contudo, não
conseguiram concretizar o sonho de permanecer na fazenda Cobrinco e fazer dela sua morada
definitiva, como relata Milton: “foi construído um sonho muito grande. Nós já tínhamos
discutido como nós iríamos construir o assentamento, todo em agrovila, facilitando o
convívio das família, a proximidade, facilitando a escola, horta comunitária, o transporte
escolar, facilitando a produção, linha de leite, tudo nesse sentido”.
Esses sonhos foram construídos a partir de dados concretos fornecidos pelo INCRA,
ao afirmar que os 3.400 hectares da fazenda foram classificados como improdutivos nas
vistorias de 1997/1998. O antigo proprietário da fazenda repassou-a ao Grupo Bradesco em
troca de pagamentos por dívidas bancárias. As informações na época eram de que o INCRA
estava em fase final do processo de compra da fazenda.
147
Com base nestes dados, as famílias não esperavam um segundo mandado de
reintegração de posse. Mas ele veio e foi cumprido pela polícia militar no dia 22 de novembro
de 2002. Segundo Milton esse despejo ocorreu num momento bastante tenso naquela região,
“pois no dia 21 tinha sido assassinado o companheiro Sebastião da Maia, próximo de nós, na
fazenda Água da Prata. No dia 22 de manhã fizeram o despejo da fazenda Água da Prata, e
por volta do meio dia vieram despejar nós na Cobrinco”.
Júlia conta que o filho mais novo, Junior, estava com um amigo e um senhor buscando
manga numa região mais distante da fazenda, quando foram abordados por policiais: “aí as
polícia chegou neles e falou: –‘oh, você é sem terra?’, ele falou assim –‘somo sem terra’, –
‘então não aja, vá na frente e fala pro seus companheiro não agi que nós vamo pronto. Nós
tamo pronto ou pra matar ou pra morrer! Então vocês não ajam!’. Os meninos e o senhor
correram para avisar o acampamento: –“Companheirada, as polícia tá vindo de novo e, é
despejo, só que não é pra nós agir, que eles vem pronto ou pra matar ou pra morrer! Então
não é pra nós agir”, conta Júlia. Estas ameaças dos policiais, ganhavam maior proporção
diante da força militar que demonstravam: “aí veio a base de uns... não sei quantas mil
polícia veio, sei que eles vieram. Vieram de cavalo, com cachorro, olha vieram bem armado
mesmo”. Porém, desta vez “foi um despejo, graças a Deus, tranqüilo”.
Em conseqüência das pressões que o governo havia sofrido pela violência desmedida
aplicada no despejo anterior desta mesma fazenda, a tática foi a de recuo, ou seja, despejo
com o mínimo de violência durante a expulsão das famílias. Contudo, a violência veio na
angústia gerada por rodarem, aparentemente sem destino, com as famílias durante horas, se
recusando a deixá-las nos assentamentos do MST.
Aí saímo tudo, saímo numa boa. Só que rodaram menina, rodaram! Nós
saímo dalí era meio dia, era 10 da noite eles tavam rodando. Não sei onde
eles queria levar nós! Eles entraram em Guaraçá, Marilena, Itaúna... olha,
rodavam! Não queriam soltar nós nos assentamento que nós tava [se
referindo aos assentamentos do MST]. (...) Queriam soltar nós... não sei
aonde. Não sei o que eles tavam querendo fazer. Daí atrás dos ônibus
camburão de polícia não faltava, fervia, fervia! Acho que eles tavam
querendo dá um fim em nós! (...) Eles tavam dando um jeito eu acho pra
chegar as horas morta pra eles acabar com nós! E polícia cada vez mais,
cada vez mais e, passando o rádio pra vim polícia.
148
Vladimir, que também estava presente com sua família durante esse despejo, relatou o
seguinte:
Ficaram o dia inteiro rodando com a gente, eles queria deixa a gente em
Itaúna, o prefeito disse que não tinha espaço pra 200 família. Daí o
comandante pegaram e foram na frente. Quando chegou nessa vilinha
Osmar de Barros eles disseram:–“aqui não tem querer, aqui é nós que
manda, vocês vão fica aqui mesmo!” Chegaram abriram as tampa dos
caminhão, e jogavam lá de cima fogão, louça, TV, foi quebrando tudo (...)
eles falava entre eles: –“aqui não adianta, se alguém se bobear a gente
atira, se falar qualquer coisa vão entra na bala! Não tem mais conversa!”
Ao fim, o ônibus em que estavam Marilena e Vladimir foi para o assentamento Água
do Corvo, no município de Terra Rica, onde segundo Marilena: “tava que não dava de mudar
o passo de viatura de polícia uma em cima da outra”. Ao chegar lá a cena se repetiu:
xingando nós, discutindo e jogando, as coisa uma por cima da outra assim, geladeira,
televisão, fogão, deus o livre, foi quebrando tudo! Meu fogão não quebro, porque quando eles
soltaram eu falei: ‘não solta meu fogão seus vagabundo!’ e gritei com o meu marido:
‘corre!’ e abracei o fogão, quando eu abracei, o meu marido juntou na cabeça assim que eles
soltaram, e os outros chegaram junto e acudiram.
Milton afirma que a polícia, ou não sabia ou não tinha um lugar para deixar as
aproximadamente 200 famílias, “então começou de ir um ônibus pra cada lado sem saber
nem qual era o destino certo”. Conta que ao fim foram deixados em cinco assentamentos
diferentes: Água do Corvo, Penha, Brizante, Ilgo Perusso e no assentamento do município de
Mirador. Em meio a essa confusão “as vez num lugar tava o pai, no outro lugar tava a mãe,
no outro lugar tava as criança, porque na hora de sair da fazenda nós pensava que ia ser
levado tudo pro mesmo lugar”. O mesmo ocorreu com os utensílios domésticos que “tinha
ficado perdido, porque não sabia, os objeto foi pra um lugar a família foi pro outro. Então
depois nós fomo juntando tudo os objeto de novo e as família e fomos tudo pra reserva da São
Paulo”. Nesta reserva montaram outro acampamento, a fim de “continuar mobilizado em
busca de um pedaço de terra pra conseguir cada família buscar seu sustento com dignidade”.
Em maio de 2001, algumas destas famílias foram contempladas com a possibilidade
de ir para a área que hoje é o assentamento Dom Hélder Câmara.
149
4.4.3. Despejo da Fazenda Santa Filomena
Marilena, seu filho Carlos, o filho mais novo e o marido moravam no Paraguai e
decidiram voltar para o Brasil, por intermédio do MST, motivados por um boato que corria de
que, por meio do movimento, era possível se conseguir um lote de terra em 60, 90 dias. A
família chegou e foi direto para um acampamento na cidade de Três Barras, região sudoeste
do Estado. Ficaram pouco tempo lá e foram para o município de Guairaçá, para ocupar a
Fazenda Santa Filomena. Ficaram quase um ano nesta fazenda e para Marilena, um dos
grandes sofrimentos na época eram os conflitos com os sem terra de outro grupo, que também
ocupavam a fazenda.
O despejo da área ocorreu no dia 25 de fevereiro de 2000, aproximadamente 11 horas
da manhã, realizado por parte do efetivo policial que já havia despejado a Fazenda Cobrinco.
Marilena conta que os policiais chegaram num caminhão “boiadeira” e que ela avistou de
longe, avisou os companheiros e correu para o barraco para arrumar as coisas: “Daí eu peguei
minha sacolinha que eu tenho aí, ía saíndo, daí peguei uma mamadeira de leite pro menino e
eu tinha feito um bolinho, feito em casa e deixado em cima da mesa, pensei, depois eu pego
pra levar, pros menino comerem. Aí eles já vieram, já cortaram a lona assim, já derrubaram
a tampa do fogão por cima da panela ...”.
Marilena afirma que os policiais chegaram no acampamento com uma lista com o
nome dos coordenadores, sendo um deles seu marido. As primeiras perguntas que lhe fizeram
foi sobre o paradeiro dele, que desconfiado de que estavam ocorrendo despejos na região, saiu
para averiguar. Os policiais estavam com ela no barraco e enquanto ela arrumava as coisas,
eles conversavam com o filho de dois anos, na tentativa de comprovar se o pai da criança era
de fato quem eles estavam procurando: “Ali eles começaram a pesquisar o pequeninho:
‘Como é seu nome?’ Cleiton da Silva, ele falava. Aí eu vi que um deles fez assim ó [faz gesto
de puxar algo do bolso da camisa]. Pegou no bolso, um papelzinho, olhou pro outro e fez
assim ó [gesticula balançando a cabeça em sinal de afirmação] combinou a assinatura do
Irineu né. E eu: ai meu Deus!”
Certa de que seu marido seria preso, Marilena caiu em desespero. Lembrou-se que o
filho mais velho, na época com nove anos de idade, estava na escola juntamente com outras
crianças do acampamento. Procurou os policiais e explicou a situação: “Ó vocês dê um jeito
150
de ir buscar os menino que tão num ônibus cheio de menino daqui de dentro que tá estudando
pra lá e nós não vamo deixar nossos filho!”. Depois de algumas horas o ônibus chegou. As
crianças não puderam descer do ônibus, porque o motorista não foi autorizado pela polícia a
abrir a porta. “Aí nisso o ônibus chegou, mas não abriam o ônibus. Fazia uma hora e as
criança tudo chorando, já tinha ficado uma hora e meia fechado dentro do ônibus, naquele
calorão e ali eles não abriam, não sei o que eles queriam. Aí eu endoidei.Conta que reuniu
as outras mães e foram até os policiais exigirem a liberação das crianças, que a essa altura já
estavam em prantos:
“Oh, vocês abre o ônibus e solta nossos filho, porque agora é o último
tirão!” Eu mesmo falei: “eu morro e derramo o último pingo de sangue pelo
meu fio e, por esses fio, não só pelo meu, por esses fio de cada um pai que tá
aí!”. E fui juntando pedra, quando nós ameaçamo que chegamo pra cima do
ônibus, mandaram abrir o ônibus e as criança foram saindo. As criança
saíram tão revoltada, esse menino, esse meu piá mais velho xingava, olha
dava até coice neles, porque eles tava tão morto de cansado, porque eles
amanheceram rondando a outra fazenda que eles tavam deitado, davam
coice, xingava e tudo e eles nem reagia.
Nisso o marido de Marilena chegou ao acampamento e em seguida foi detido. Ela
conta que o filho mais velho que lhe deu a notícia: “Aí menina, eu fui lá em cima e voltei!”.
Falou para os policiais o seguinte: “vocês tão levando meu marido, só que vocês vão tê que
levar tudo, os quatro, pai e mãe e filho junto! (...) Vocês vão ter que levar, porque eu quero vê
o que que meu marido fez pra vocês tá prendendo ele!”. Um policial se irritou com ela mas
outro interviu para acalmar os ânimos: “ ‘oh, mãe vamo lá pro ônibus, a senhora tá nervosa,
o nênê chorando – o pequeno começou a chorar, o outro chorando – vamo lá pro ônibus,
vamo lá que os menino não tão legal e assim irrita mais as criança e fica ruim, vamo pra lá,
depois isso aí nós resolve!”. “Não resolve, eu quero é meu marido!”. Mesmo relutante ela foi
para o ônibus com as crianças. Passados uns minutos deixou as crianças no ônibus e foi até o
camburão onde o marido estava preso. Foi trazida novamente pelos policiais. Repetiu esse
gesto mais algumas vezes, até que o marido falou: “ ‘vai, vai Marilena, vai lá pro
assentamento da nossa prima, vai lá pra onde os outros ir você vai, pode ir que daí nós vê o
que que faz!’. Ai eu embarquei” .
151
Quando estavam há uns três quilômetros do assentamento onde iriam ficar, “a
polícia queria larga nós! Já jogou dentro da cidade de Mirador tudo os caminhão,
descarregou, jogou tudo, como quem jogava um.... um bicho assim, as coisa nossa. Aquilo ia
jogando, os que tinham – que tinha muitos que tinha – toda a mudança inteira foi quebrada,
fogão de perna pra cima, guarda-roupa quebrado, foram jogando em cima né”. Os policiais
que escoltavam os ônibus e caminhões com as mudanças, não queriam permitir que os sem
terra ultrapassassem o limite da cidade de Mirador, contrariando o acordo que tinham feito
durante o despejo, de que as famílias ficariam em um assentamento do MST em outro
município. Quando estavam parados no meio da estrada, chegou uma militante do movimento
que interviu na situação:
Daí ela falou: –“ó rapaz, dentro de cinco minuto você tire essas duas
viatura da estrada aqui!”. Aí a polícia falou: –“não, não pode, ir pra frente
não pode!”. –“Vocês tire e toque pra frente, que dentro de meia hora vai ter
300, 500 família aqui e nós vamos fazer pedaço desse camburão de vocês!”.
Ah, aquilo só fez dzzzzzz [gesticula mostrando o movimento dos carros
fazendo a volta e retornando] e foi saindo.
Conseguiram chegar até a fazenda. Ao adentrar no assentamento, os quatro caminhões
com as mudanças foram retidos pelos sem terra, e utilizado como moeda de negociação, para
conseguirem a liberdade dos homens que haviam sido presos, lona para novos barracos e
alimento. Ao fim, conseguiram.
No dia seguinte reocuparam a fazenda Cobrinco. Depois de um embate entre os
homens sem terra e os pistoleiros da fazenda, a ocupação foi concretizada. Depois de oito
dias, chegaram as mulheres e as crianças, compondo o acampamento com uma média de 300
famílias. “Só que daí quando menos esperava o despejo chegou de novo!”
62
.
Depois do despejo, ficaram alguns meses no assentamento Água do Corvo e depois
foram para o assentamento São Paulo, onde ficaram por mais três meses. Só então, foram para
a área que é hoje assentamento Dom Hélder Câmara.
62
Essa segunda reintegração de posse da fazenda Cobrinco está relatada no item anterior.
152
4.4.4. Despejo da Fazenda Cachoeira
O casal Pedro e Clara, decidiu entrar para o MST em maio de 1997, acompanhado do
filho de 14 anos, na época. Contam que ficaram oito meses acampados na beira da estrada que
dava acesso à Fazenda Cachoeira, localizada no município de Sapopema, região norte do
Estado. Ao fim deste período ocuparam a área. Clara afirma que “no dia que ia fazer 60 dia
certinho, aí quatro hora da manhã veio o policiamento daí e despejo nós”. Relatam que o
efetivo policial contavam com batalhão de choque, cachorros, e em média 350 policiais,
sendo que o acampamento era composto de 42 famílias.
Clara afirma que o policiamento chegou em torno de quatro horas da manhã
63
, e que
imediatamente foram rasgando os barracos,
E colocou os cano das arma tudo pra dentro assim e daí gritava pra poder
nós saí se não eles ia atirar. Daí a porta tava fechada sabe? Daí eu demorei
pra abri a porta, porque na hora a gente se apavora né? Daí eu levantei
depressa e fui abri a porta, no que eu fui abri a porta assim, aí eles
rasgaram a lona e me catou pelos dois braço assim [coloca os dois punhos
juntos] segurou nas minhas duas mão junta, não tinha como eu abri a porta.
Daí eles meteram o chute.
Relata que durante esses minutos em que ela não conseguia abrir a porta do barraco,
foi agredida inclusive com aparelho de choque, “depois eles pegaram daí, me deram uns
empurrão em mim, me deu um tapa nas minhas costa e outro começou a bate aqueles negócio
de choque nos meus braço”. Conta que os policiais perguntavam pelos alimentos, “Eles
queria as coisa de comer, foi derrubando tudo as coisa que tinha de comer assim. Eles
jogavam, sabe? Eles não levava”. Além disso, os utensílios, panelas, botijão de gás, foram
todos arremessados para fora do barraco. Os policiais deram um prazo de cinco minutos para
que retirassem todas as coisas do barraco. Conseguiram retirar algumas coisas, o resto foi
queimado. Segundo o relato do casal, os policiais jogavam combustível na lona e ateavam
63
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5
o
, inciso XI assegura que “a casa é asilo
inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de
flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.” (grifos
meus). O Código de Processo Civil, em seu artigo 172, determina que “os ato processuais realizar-se-ão em dias
úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas.”
153
fogo, “era coisa de 5 minuto assim eles queimavam um barraco e já passava pro outro (...)
muitas coisinha nós ainda tirou do meio do fogo ainda, fogo pingando em nós e nós ainda
conseguimo tirar alguma coisinha.”
O ato do despejo iniciou às quatro horas da manhã e se estendeu até as oito horas da
noite. Durante todo esse tempo ficaram na chuva e sem alimento, sequer para as crianças.
Seguiram então para um ginásio da cidade de Sapopema.
Na ocasião do despejo, o filho de 15 anos estava compondo a equipe de “guarda” do
acampamento e foi um dos primeiros a ser detido. Foi detido aproximadamente quatro horas
da manhã, até às oito horas ficaram dentro do acampamento na chuva. O pai conta as
humilhações às quais o filho foi submetido: “lá eles faziam sentar no barro, comer bosta de
vaca. Esfregava a cara deles em cima da bosta de vaca. Eles sofreram que nem cachorro
lá!”. Depois foram levados para a delegacia mais próxima.
Segundo o casal, os policiais falavam que o motivo de toda aquela situação era o fato
de estarem “seguindo o MST, que nós não podia seguir o MST, que pra que que nós queria
terra, que fosse pra cidade. Daí nós falamo pra eles: nós vai pra cidade pra morrer de
fome?!”
Depois disso ficaram noventa dias no ginásio e voltaram a reocupar a mesma
fazenda. Ficaram oito meses acampados até ocorrer um novo despejo. Clara afirma que
ocuparam novamente, “porque era desaforo né, porque nós já tinha apanhado mesmo, já
tinha sido preso, já tava tudo processado, 18 processado. Aí nós pegamo e voltamo!”
Neste segundo despejo não foi diferente, perderam tudo o que tinham plantado
“cinco hora da manhã chegou o policiamento, daí tornou tirar nós de novo (...) no segundo
despejo não foi igual o primeiro, sabe? Porque o primeiro foi muito massacrado, o segundo
já não foi muito mais”.
Passados alguns dias fizeram uma terceira tentativa de ocupação da mesma fazenda,
porém, desta vez ficaram apenas um dia e logo foram despejados pela polícia: “não deu
tempo nem de fazer o barraco (...) chegamo lá cedo de manhã quando foi oito hora da manhã
já chegou polícia e já fez nós jogar tudo pros caminhão de novo e já trouxe os povo de volta,
de novo [risos].
154
Depois que nós tinha saído da fazenda, ninguém nem lá dentro da fazenda
não tava, daí o fazendeiro ficava acusando nós! Pegou e retirou tudo os
cavalo da fazenda, porque ele tinha uma cavalaiada lá, sabe? E daí ele
retirou tudo os cavalo, daí acusou nós, dizendo que era nós que tinha
roubado os cavalo e, ninguém tinha roubado cavalo, pois como que nós ia
roubar cavalo, pra levar pra onde? Pra dentro da cidade? Sendo que foi
eles que tirou nós, nós saímos com as mão na frente e outra atrás. Aí ele
ficou acusando, acusando, acusou nós na justiça e continuou os processo
chamando nós cada 15, 30 dia chamando nós na justiça, acusando nós de
uma coisa que nós não devia. Daí nós voltamo de novo, já que tava acusado
mesmo de coisa que nós não tinha feito, voltamo lá de novo.
Decidiram realizar a quarta tentativa de ocupação. Logo veio o despejo novamente,
no mesmo horário, cinco horas da manhã. Clara relata que os policias colocaram todos em fila
e que separaram homens para um lado e mulheres e crianças para outro, em lados opostos
dentro do mesmo barracão. Afirmavam reiteradamente que iriam matar os homens, falavam
que “os homem não era pra deixar nenhum vivo. Daí a hora que eles falaram a mulherada
escutou, daí a mulherada desesperou tudo. Cada qual agarrou seu marido daí já catou seus
filho e ficou tudo junto daí (...) se era pra matar, matava, então não tinha, era tudo né!”.
Conta que os policiais puxavam as mulheres pelos braços, pelos cabelos, a fim de retira-las de
perto dos homens, mas quanto mais repetiam esse gesto, mais resolutas elas ficavam e não
desistiam de voltar a se juntar ao marido, carregando consigo os filhos.
Depois desse despejo, algumas famílias ficaram aproximadamente um ano alojadas no
CTG (Centro de Tradições Gaúchas) de Sapopema, até conseguirem uma área. Passados
alguns meses, a família de Pedro e Clara conseguiu uma vaga na fazenda que hoje é
assentamento Dom Hélder Câmara.
4.4.5. Despejo da Fazenda Jacutinga
“O despejo é muito difícil dá muito medo. A gente pensa muito nas criança”, foi
assim que Renato começou a falar sobre o despejo da Fazenda Santa Rita do Jacutinga, ou
somente Jacutinga como era chamada, localizada no município de Bela Vista do Paraíso,
155
próximo à cidade de Londrina. Esse despejo ocorreu no dia 17 de julho de 2000. “no clarear
do dia”. Era aproximadamente cinco horas da manhã, num típico dia do rigoroso inverno
paranaense, com muita geada e umidade, quando o efetivo de cerca de 600 policiais,
cavalaria, cachorros, chegaram atirando e gritando para que todos saíssem dos barracos:
(...) acordei com tiro e até achei que era alguém que tinha ganhado na tele-
sena [risos], mas voltei ao normal e vi que era despejo (...) as polícia
chegaram gritando e batendo. E as criança se desesperaram. A gente tinha
nenê pequeno (...) eles vieram e colocaram fogo no barraco, queimaram
tudo, barraco, moto, carro, tudo! (...) Era triste de vê, o pessoal correndo
pelo pátio. Até uma velhinha tomou um tiro nas costas e o pessoal socorreu
ela.
Rui de 58 anos, estava presente com sua família na ocasião desse despejo. Conta que
“o despejo foi horroroso” e que os policiais entraram no barraco dele, onde dormia a esposa,
de 27 anos, e as duas meninas de 9 e 7 anos, e procederam da seguinte forma: “os PMs
entraram no barraco e foro colocando a arma na cabeça das meninas, dizendo que se não
reagisse não ia acontecer nada. Eles achava que era um adulto coberto, e não tirava a arma
da cabeça das criança. (...) depois as criança tavam só com a roupa de dormi e tiveram que
saí pra fora na geada, descalço. ”
Fernando de 59 anos, conta que o filho mais velho estava na equipe de segurança do
acampamento, fazendo a guarda naquela noite. Quando os policiais chegaram, ele correu para
avisar todo o acampamento. Nisso os policiais imaginaram “que ele vinha pra esconder arma,
eles correram atrás dele mas ele conseguiu fugir”. O filho mais novo acabou se juntando ao
irmão e correndo junto, contudo não conseguiu fugir “e apanhou muito. Desconfiaram que
meu menino, que tinha uns 10 anos na época, tava escondendo arma. Daí prenderam ele no
ônibus e ficaram interrogando (...) interrogaram mais um monte de criança pra saber se
tinha arma”. Fernando afirmou com pesar que: “nós não tinha como reagir. Tivemos que se
humilhar. Mandaram deitar na geada, e mandaram os cachorro mijar na gente e outras
coisa”.
Leôncio de 46 anos, afirmou que o despejo que se iniciou por volta de cinco horas da
manhã, se estendeu até as 10 horas da noite: “não comemos nada o dia todo. Viemos dentro
156
do ônibus, eles atrás, chegamo lá [no assentamento Ingá] eles jogaram tudo dentro de um
buraco, no outro dia denunciamos à imprensa, nisso veio um caminhão cheio de comida”.
Reinaldo de 52 anos na época, acampado há 5 anos no MST, afirma que “O pior
despejo foi na fazenda Jacutinga. Tava muito frio, tinha geada e deitaram a gente no gelo
com 4, 5 revolver na cabeça (...) destruíram tudo que a gente já tinha colhido e levaram
nossas ferramentas”.
Todos falaram com muito pesar, lamentaram muito ter tido que deixar aquela fazenda,
onde estavam plantando sementes e sonhos: “ficamos bastante tempo lá. Pensava que a terra
já tava certa pra assentamento. Já tava com plantação de milho, soja, o feijão já tava quase
na hora de colher. A soja já tava colhida. Tinha muita criação, gado, e perdemo tudo porque
teve despejo. [pausa] Foi triste demais, ainda mais porque era um lugar muito lindo, um lago
lindo. O lugar era muito querido pra gente. Saímo de lá chorando”
Renato também falou sobre o quanto lamentava o despejo da fazenda Jacutinga,
afirmando que esse foi certamente o pior despejo pelo qual passou porque “era um lugar que
a gente tinha muito amor”.
No meio da noite chegaram no assentamento Iraci Salete
64
. A estrutura do lugar onde
ficaram era precária, o que aumentou o sofrimento. Ao relembrar esse episódio Rui afirmou
que, “na Ingá foi horrível. A polícia chegou foi jogando toda a roupa, colchão, criação, tudo
no meio do barro. Os alimento no meio daquela bagunça desapareceu”. Ficaram 10 meses
nessa área, e de lá seguiram para a fazenda que é hoje o assentamento Dom Hélder Câmara.
Relembrando essa trajetória sofrida, Rui afirmou o seguinte: “para conseguir um lote
igual a gente tá conseguindo hoje, a gente tem que sê muito corajoso, muito lutador, não é
qualquer um que consegue. Nós sofremo demais pra isso, de chegar a beber água dos porco,
onde os porco se banhavam”.
64
O assentamento Iraci Salete localiza-se no município de Alvorada do Sul, extremo norte do Paraná. A área
desapropriada para a construção deste assentamento era denominada Fazenda Ingá, por isso os entrevistados se
referiam ao local como “Ingá” ao invés de Iraci Salete.
157
4.5. A chegada no assentamento Dom Hélder Câmara
O assentamento Dom Hélder Câmara – local onde se realizou a pesquisa – é formado
por famílias que passaram por um período médio de cinco, seis anos acampadas. Ao serem
perguntados sobre a melhor lembrança de todo o período de acampamento, grande parte
dos/das entrevistados/as respondia como o Sr. Leôncio, de 46 anos, que afirmava o seguinte:
“a melhor lembrança foi quando falaram que poderia ter minha terra (...) quero casa, água,
luz, estrada, chega de barraco, quero minha casa! [choro] (...) cinco ano vira pra lá, vira pra
cá, agora chegou a hora de nós parar!”
Em maio de 2001, a fazenda Rosental, também conhecida como Terplan, no município
de São Jerônimo da Serra, região do Norte Pioneiro, foi comprada pelo INCRA e destinada a
cumprir uma nobre missão: abrigar as famílias sem terra, especialmente aquelas que haviam
passado por diversas e violentas reintegrações de posse.
A aquisição desta fazenda, segundo Milton, um dos coordenadores da região, fazia
parte do acordo para o fim das reintegrações de posse violentas. Afirma que com o despejo da
fazenda Cobrinco e da fazenda Água da Prata, onde foi assassinado o agricultor sem terra
Sebastião da Maia, as organizações de direitos humanos, CPT e MST, solicitaram uma
intervenção do governo federal no Estado. “Desceu a ouvidoria agrária e fizeram o seguinte
acordo: que cessariam as ocupação e cessariam os despejo e que iria se procurar adquirir
áreas pras famílias despejada”.
A primeira área adquirida foi a da fazenda Rosental/Terplan. Era, segundo Milton, “o
começo do assentamento das famílias despejada”. Conta que quando saiu a imissão de posse
da fazenda, foi feito uma reunião em nível de Estado para avaliar quais seriam as famílias que
iriam para esta área. As famílias vieram de seis localidades diferentes, como demonstra a
tabela abaixo, realizada a partir das informações prestadas por Milton
65
.
65
Estas localidades estão destacadas no mapa da página 10.
158
Município Fazenda N. de Famílias
Sapopema (norte pioneiro) Cachoeira 10
Bela Vista (norte) Jacutinga 27
Paranacity (noroeste) São Luis em Colorado 15
Terra Rica (noroeste) Eloá 10
Guairaçá (noroeste) Cobrinco 62
Querência do Norte
(noroeste)
Rio Novo 10
Total Assentamento Dom Hélder
C.
134
Júlia e a família estavam acampados no assentamento São Paulo. Foi lá que receberam
a notícia de que havia uma vaga para a sua família nesta área. Ela conta que, “chegou a turma
do Movimento e falou pra nós: –‘olha companheirada, o INCRA tá dando uma terra pra
vocês. Então eu quero que vocês se arruma, que os caminhão vai vim e vocês vão embora
daqui. Se Deus quiser vocês vai viver em riba da terrinha de vocês! E vai quem quer, nós não
obriga!’”. Júlia conta que para eles: “foi a felicidade do mundo! Pra mim que Deus tinha
aberto a porta do céu pra nós!”
Porém, o sonho de pisar a terra conquistada, de início não atendeu a todas as
expectativas idealizadas durante os longos anos de acampamento. A chegada na área em que
seria o assentamento foi repleta de dificuldades e sofrimentos – elementos constantes na vida
destes sujeitos. Apesar de ser uma área em vias de legalização, sem as constantes ameaças de
despejo – expectativa confirmada pela atitude do fazendeiro que havia recebido a primeira
parcela da negociação, e logo que as famílias chegaram retirou seus pertences que ainda
estavam na fazenda – o sofrimento continuou pela falta de estrutura e auxílio do município.
Murilo, jovem de 16 anos, filho de Júlia, fala detalhadamente sobre o percurso de
dificuldades a partir do momento em que desfizeram os barracos no assentamento São Paulo,
em preparação para a viagem até o futuro assentamento. As famílias se organizaram para irem
juntas numa mesma viagem. Porém, não tinha espaço para todos, “porque veio apenas dois
ônibus e um caminhão e era muita gente, então não dava pra todo mundo vim”. Eles ficaram
para a segunda viagem. Como as distâncias eram relativamente grandes, tiveram que esperar
159
muito, com o agravante de que, “foi desmanchado tudo nossos barraco, porque nós pensamo
que ia vim tudo numa viagem”.
Tiveram que improvisar uma forma de se abrigar do tempo frio e chuvoso: “daí nós
fiquemos no tempo. Aí uns posou debaixo de uns caminhão que não deu pra sair também
porque deu uma aragem assim, um tempo feio que nem agora, frio e chuva assim, aquele
sereno e os barraco tudo desmanchado”. Amanheceu e passaram o dia todo à espera do
caminhão: “daí no outro dia a mesma coisa, aquele frio e chuva, até que aí tivemo que fazer
de novo outro barraco pra ficar até no outro dia, porque os caminhão tinha estragado e o
ônibus até vir buscar nós de novo ia demorar”.
No terceiro dia uma condução veio buscá-los e levou-os até as margens da BR na
região de Terra Rica. Murilo enfatiza o quanto esses dias foram sofridos: “pensa bem, já tinha
ido tudo, só tinha ficado nós mesmo, só ficamo só nós mesmo, só com a roupa do corpo....”.
Por volta de meio dia os ônibus chegaram e eles puderam seguir viagem: “aí fomo, pensamo
que ia sê um alívio, né. Mas daí quando nós chegamo lá [em São Jerônimo], a noite, tava
pior do que lá, tava chuva e frio”.
O tempo chuvoso e frio dificultou o acesso à fazenda. Não tinha carro que pudesse
levá-los. Conseguiram que um caminhão “boiadeira” os levasse. Marilena descreve as
dificuldades desse percurso: “viemo numa boiadeira que tava essa altura assim [gesticula
apontando uma altura de 10 cm aproximadamente] de esterco de criação. Ali nós viemo que
nem uns bicho tudo um por cima do outro, tudo, em quatro boiadeira”.
Apesar das dificuldades conseguiram chegar à fazenda. O caminhão que trazia seus
utensílios domésticos, roupa, alimentos, quebrou ao chegar em São Jerônimo e lá ficou por
alguns longos dias. “Nós chegamo aqui nesse barracão sem nada. Nós ficamo uma semana
aqui sem comida, não ficamo bem uma semana porque o meu marido saiu a doida assim, se
perdeu pra achar Terra Nova pra compra alguma coisa”, conta Marilena. Além da falta de
comida, não tinham roupa, não tinham “forro pra dormi”, nem fogão para cozinhar. Marilena
lembra que nos primeiros momentos o que os salvou foram as famílias que já estavam dentro
do barracão (as famílias que vieram das regiões mais próximas, Sapopema e Bela Vista), “as
vez as criança queriam comer eles falavam –‘tira aqui’. Ia lá tirava e fazia farta pros outro,
mas tirava uma colherzinha duas pros piá e, nós ficava ali ó!”.
160
A chuva e o frio eram constantes. Para dormir, quem conseguia vencer a disputa por
uma saca de estopa, que o fazendeiro tinha deixado no barracão, garantia sua cama: “Chuva,
chuva, chuva, chuva, nós catamo bolsa de algodão do fazendeiro né que tinha ali, bolsa de
estopa, aquilo chegava nós brigar pra fazer cama pra nós dormir”. Júnior, menino de 10
anos, filho de Júlia, relembrando esse período, afirma: “nós forramo o chão com papelão pra
dormir”. O irmão dele, Murilo, também guarda essas lembranças: “aí uns foi se ajeitando em
cima daquelas sacaria, o outro foi escorando de um lado, o que podia foi cocorando e ficou
ali do jeito que tava”
Em meio a essas dificuldades, Marilena teve a iniciativa de reunir as “comadres” e as
“companheiras”, na tentativa de encontrar uma forma de cozinhar: “achamo um pedacinho de
chapa e catamo uns tijolo, fizemo lá fora, arrumamo lá fora, e lá debaixo de chuva nós
cozinhava lá e comia. Aí nós cozinhava, aí nós tinha uns pézinho de mandioca, uns restinho
de milho verde que nós catava lá e mais um arroizinho e um feijão que ele compro e nós
cozinhava e, ali nós dividia entre a família e tudo nós que cozinhou”.
Outras famílias tiveram ainda maiores dificuldades com a falta de alimento. Murilo
conta que em virtude da chuva intermitente não tinham como sair para ver se conseguiam
alimento: “chuva o dia inteiro, o dia inteiro, chuva, chuva e não tinha como saí pra lugar
nenhum pra vê se arrumava algum recurso pra nós come”. Os coordenadores, com
dificuldades conseguiram uma caminhonete para fazer arrecadação de alimento nos arredores.
Mas o retorno não foi muito animador. Conseguiram um arroz, porém um arroz com casca:
“aí chegou um arroz só que, com casca, arroz com casca [riso irônico], quem que ia comer
arroz com casca? ninguém né, daí falou –‘óh, tem arroz só que com casca!’”. O que os
salvou da fome absoluta foram uns pés de mandioca que encontraram na fazenda: “aí
pegaram e arrumaram uns pé de mandioca, daí foi aquilo que nós cozinhamo mandioca e
comemos”.
Uma semana depois, chegou a mudança com as roupas, os utensílios, mas não tinha
lona para fazer os barracos, o que os levou a ficar “quase um mês ainda, tudo amontoado
dentro do barracão, cozinhando, comendo e dormindo numa cama a par da outra assim ó,
Pra daí até fazer o barraco. Não tinha lona, ficava pra chegar, ia chegando nas etapa aos
pouco”.
161
Foram 25 dias até conseguirem as lonas para que todos pudessem fazer o barraco.
Ainda assim era difícil porque era pouca lona para muitas famílias e, na divisão, acabava
ficando um pedaço muito pequeno. Segundo Murilo, “ficou pequeno, então daí nós cobrimo
malemal a metade do barraco, porque nós somos uma família grande então tinha que ser
muita lona. Aí pra ajudar ainda a noite o vento levou nossa lona ainda [riso tímido], ficamo
dormindo no tempo...”. Uma vereadora do município ajudou e trouxe mais lona, então
conseguiram cobrir o barraco.
Passados quase um mês, a situação começou a melhorar, como conta Murilo: “aí
nesse sofrimento, graças a Deus vencemos! Aí surgiu trabalho, parou a chuva (...) porque se
continuasse o tempo daquele jeito nós não sabia o que ia acontecer de nós”.
Vencidos estes problemas iniciais de falta de estrutura no acampamento, começaram
os problemas com o governo municipal. Antes da intervenção federal e da negociação da área
com o INCRA, a candidata à prefeitura do município utilizou como bandeira de campanha a
destinação daquela área para assentamento das famílias do município. Essa promessa de
campanha teve o aval do superintendente do INCRA na época, José Carlos. A candidata
ganhou as eleições, assumiu a prefeitura e não pôde cumprir a promessa. Segundo Milton,
essa situação “fez com que durante mais dois anos nós continuamos sofrendo nesta área,
principalmente sem acesso à educação e à saúde”.
Milton elenca os problemas que tiveram por negligência da prefeitura em atender os
sem terra recém-chegados: “Perdemo companheiros de luta por falta de remédio controlado,
de um atendimento atencioso na saúde. Perdemo uma criança que foi levada pra consultar e
no posto de saúde deram um vidro de dipirona, foi trago de volta pra casa essa criança, o pai
tornou a levar no hospital e o médico pegou essa criança morta dos braço do pai, que morreu
com meningite, isso por desinteresse do município”.
Em relação à escola para as crianças do assentamento, os problemas também foram
contínuos. Milton conta que para conseguir “escola pra nossas crianças”, foi necessário a
realizar uma ocupação da prefeitura. O assentamento contava com aproximadamente 110
crianças. Sob a alegação de que as famílias não eram cidadãs do município, a prefeitura não
concordou em recebê-las nas escolas, nem tampouco em deslocar professores para ministrar
aulas dentro do assentamento. Nesse impasse as crianças ficaram um ano sem escola no
assentamento e sem transporte escolar.
162
Foi necessário uma negociação por intermédio do INCRA com o governo estadual.
Diante desta situação, o governo do Estado “assumiu a escola de primeira a quarta dentro do
nosso acampamento, visto que nesta época as famílias já tavam sendo legalizada, cada uma
com seu contrato de assentamento”, como conta Milton. Foram contratados professores para
ministrar aulas dentro do assentamento para crianças do ensino básico, o que oficialmente
seria responsabilidade do município. Entretanto, de acordo com Milton, ainda assim
“continua uma briga dentro do município pela construção da escola aqui dentro do
assentamento, visto que ainda hoje conta com um número de mais de 100 crianças em nível
de primeira a quarta série”.
A demarcação dos lotes demorou dois anos, somente ficou pronta em 2003. Essa era
uma das principais queixas das famílias no período da primeira pesquisa de campo realizada.
Não se conformavam em ter passado por tanto sofrimento acampados em outras terras, e
continuar durante dois anos acampados na terra sobre a qual ficariam em definitivo. Somente
em 21 de junho de 2003, foi oficializado o assentamento, que recebeu o nome de
assentamento Dom Hélder Câmara
66
. De acordo com Milton esse nome foi escolhido “em
homenagem ao bispo Dom Hélder pela ajuda que nós recebemos no município, dos padres
locais, do bispo local, que fizeram várias arrecadação nas paróquia pra tentar ajudar essa
comunidade quando aqui chegou”.
Em 2005, na segunda etapa de meu trabalho de campo, o assentamento estava
composto por 123 famílias, em fase de construção das casas, instalação da energia elétrica e
investimento no lote. No dia em que visitei Júlia, os filhos estavam testando o rádio movido à
energia elétrica, demonstrando uma satisfação única pela disponibilidade da energia, depois
de ficarem tantos anos sem esse benefício.
O assentamento Dom Hélder Câmara é um assentamento caracterizado pelo modo de
produção individual. Alguns destes sem terra, quando iniciaram a caminhada dentro do MST
tinham a perspectiva de trabalhar com assentamento coletivo. Elaboraram o projeto de
66
Estive presente durante estes dias de festa pela oficialização do assentamento e fiz as seguintes anotações no
diário de campo: “No dia seguinte [22 de junho de 2003, um dia depois da festa no assentamento] iniciei o
trabalho de visita e entrevista às famílias. Pude perceber claramente uma perspectiva mais otimista. Nas
primeiras entrevistas realizadas o descontentamento e desmotivação eram generalizadas. Gradativamente as
mudanças começaram a aparecer. E quando se acenou com possíveis datas para a medição dos lotes, a
motivação começou a aumentar. Hoje o foco para estas famílias são seus sonhos e planos para a nova etapa da
luta, agora já em seus lotes”.
163
agrovila, escoamento da produção, escola, enfim tudo detalhadamente pensado para fazer um
assentamento no modelo de produção coletiva. Contudo, as dificuldades encontradas pelo
caminho, vários grupos de origens étnicas diferentes compondo o mesmo assentamento,
colaboraram para a opção pelo lote individual. Com todos os assentados que conversei, essa
discussão, ou dicotomia, entre individual ou coletivo nunca surgiu, o que denota um
pensamento de contentamento com a forma de produção individual.
Alicia Castells (2001), também observou em seu trabalho as divergências geradas,
aparentemente, pelas diferenças étnicas, situação muito semelhante à ocorrida no
assentamento Dom Hélder, onde os problemas surgidos em nível organizacional eram sempre
culpa dos “brasiguaios”, e os brasiguaios por sua vez, diziam que a culpa era “do povo do
norte pioneiro”, e assim os grupos seguiam, evidenciando as diferenças nas formas de
organização, condução dos trabalhos ou criação dos filhos. Um assentamento composto por
famílias de regiões tão variadas não é algo muito comum, geralmente a maioria das famílias
vem de uma mesma região, o que facilita a convivência em função de laços afetivos e
identificatórios anteriormente construídos. Não é o caso do assentamento Dom Hélder, e as
dificuldades de relacionamento eram uma constante no cotidiano do assentamento,
influenciando diretamente na organização do coletivo. Sobre isso Castells (op.cit., p. 106),
afirma que “os assentados tendem a manter a convivência e identidade entre os que tem a
mesma origem geográfica, relações de amizade, vizinhança ou parentesco estabelecidos com
anterioridade ou mesmo já no assentamento”.
Mesmo com os problemas, as diferenças, as divergências, estes sem terra têm hoje seu
lugar, estão “em cima do lote” e, quando os visitei na segunda etapa de pesquisa,
demonstravam grande felicidade por alcançarem com tanto sacrifício a possibilidade de ter
seu pedaço de terra. Expressavam em suas falas o desejo de esquecer os dias de sofrimento e
construir o presente e o futuro, sem deixar de valorizar o passado, com afirmou Júlia: “tenho
fé em Deus e Nossa Senhora que ele há de passar a mão na minha cabeça e eu esquecer
meu sofrimento, e que me dá força para eu vencer e até o fim valorizar esse pedacinho de
terra que tem meu sangue e sangue da minha família. Eu vou valorizar até o fim, porque foi
muito sofrido”.
164
Fonte: acervo pessoal. Foto 14: Placa de inauguração do assentamento.
Fonte: acervo pessoal. Foto 15: Pedra de identificação na entrada do lote.
165
Fonte: acervo pessoal. Foto 16: Enfim, a casa.
Fonte: acervo pessoal. Foto 17: A produção “em cima do lote”.
166
Fonte: acervo pessoal. Foto 18: Criação de porcos “em cima do lote”.
Fonte: acervo pessoal. Foto 19: Ninho das galinhas “em cima do lote”
167
4.6. O coletivo como fonte de amparo e força de vida
Freud, no texto El mal estar en la cultura (1990 [1929]), inicia suas elaborações
teóricas a partir da compreensão primeira de que o objetivo do ser humano na vida é alcançar
felicidade. Em busca da felicidade, o sujeito experiencia cotidianamente os impasses desta
relação, na qual se busca a inibição do sofrimento por meio de intensos sentimentos de prazer.
Ter-se-ia então, um caminho, ou um propósito de vida, traçado pelo princípio do prazer.
Entretanto, esse caminho, apesar de sedutor, não é compatível com a vida em sociedade,
condição para a sobrevivência humana
67
.
O problema que se coloca, é que esta felicidade tão almejada é concebida como a
sensação de um prazer intenso e, segundo Freud, este prazer intenso é um sentimento que se
constrói em contraste com um sentimento oposto. Ou seja, uma sensação de extremo prazer é
possível desde que exista uma situação de desprazer como contraponto. Essa felicidade como
realização irrestrita de desejos e necessidades, como intenso prazer, é passível de realização
apenas como um “fenômeno episódico”. De acordo com Freud (1990, p.76), quando uma
situação almejada pelo princípio do prazer consegue ser prolongada, ao invés de provocar a
desejada sensação de felicidade, produz apenas uma leve sensação de contentamento. Diante
disso, Freud constata que as possibilidades de atingir a felicidade são restritas, sobretudo
porque o sofrimento é uma ameaça constante que advém tanto do próprio sujeito como do
mundo externo.
Freud, nesse texto, trabalha a idéia de que o sofrimento humano provém de três
fontes. A primeira seria o sofrimento ligado ao orgânico, ao próprio corpo, ou seja, à
degeneração física que inevitavelmente conduz à morte. A segunda fonte advém das
dificuldades da relação do homem com a natureza, ou daquela parcela da natureza sobre a
qual ainda não tem controle, as catástrofes naturais, por exemplo. A terceira fonte de
sofrimento provém dos relacionamentos humanos, sendo esta última a mais dolorosa.
Para se evitar o sofrimento proveniente do mundo externo, seriam duas as saídas. A
primeira a escolha pela “felicidade do sossego”, ou seja, o afastamento do mundo externo, o
isolamento da comunidade humana, tendo como exemplo extremo, o caso do eremita. A
67
Como desdobramento do princípio do prazer, a vida em sociedade, exigindo o respeito aos direitos dos outros,
às leis da cultura, impõem o princípio da realidade.
168
segunda, seria a opção de se tornar membro da comunidade humana e por meio dela,
instrumentalizar-se para controlar a natureza retirando dela os benefícios necessários à vida, o
que significa, segundo Freud (1990, p.77), “trabalhar com todos para a felicidade de todos”.
Freud destaca esta opção como o método mais eficaz para amenizar os efeitos do sofrimento.
Contudo, este é um caminho pautado pelo princípio da realidade, o que pressupõe abrir mão,
em alguma medida, do princípio do prazer.
Para que a inserção na comunidade humana seja um avanço na busca pela felicidade,
é importante que ela seja um desdobramento de uma relação primeira, uma relação que tenha
no amor sexual seu eixo principal. Esta relação serve como protótipo para as demais relações
com os outros membros da comunidade, tendo a finalidade sexual inibida e desviada para o
amor fraternal. Assim, o método mais eficaz na busca pela felicidade, longe de ser o
afastamento do mundo externo, é a ligação com ele, por meio de uma relação afetiva com um
objeto do mundo externo, um objeto de amor. Uma vez que se alcançou alguma sensação de
felicidade nesta relação, ela serve como modelo para as que dela derivarão.
Me estoy refiriendo, desde luego, a aquella orientación de la vida que sitúa el
amor en el punto central, que espera toda satisfacción del hecho de amar y
ser-amado. Una actitud psíquica de esta índole está al alcance de todos
nosotros; una de las formas de manifestación del amor, el amor sexual, nos
ha procurado la experiencia más intensa de sensación placentera
avasalladora, dándonos así el arquetipo para nuestra aspiración a la dicha.
Nada más natural que obstinarnos en buscar la dicha por el mismo camino
siguiendo el cual una vez la hallamos. (Freud, op.cit.; p. 82).
O modelo de felicidade que tem como parâmetro “amar e ser amado”, pressupõe um
vínculo entre os indivíduos, que se inicia com o vínculo amoroso/sexual entre duas pessoas,
que posteriormente se desdobra em amor fraternal e se expande para a família e para a
comunidade. As comunidades surgem então como instrumento de obtenção, na relação com o
outro, de proteção contra as ameaças provenientes do mundo externo, constituindo as bases
para o processo de construção da cultura.
De acordo com Freud (op.cit, p.90), é possível entender por cultura a soma das
realizações e regulamentos que distinguem os homens dos animais, e que tem por finalidade
oferecer proteção contra a natureza e ajustar os relacionamentos humanos. Nesse texto, o
169
autor fala da cultura com um “processo”, o que significa que está em contínua elaboração.
Nesse “processo” a humanidade criou instrumentos fundamentais para a sobrevivência, como
o fogo, o cultivo da terra, a escrita, a moradia (esta segundo Freud, como um substituto
simbólico do primeiro alojamento, o útero materno, local de proteção ímpar para o qual se
deseja retornar). E em tempos modernos, desenvolveu-se uma parafernália tecnológica capaz
de fazer do homem comum um super-homem, um semi-deus. Essas realizações humanas em
forma de “órgãos auxiliares”, que fazem com que o sujeito se sinta mais completo e capaz de
enfrentar as adversidades cotidianas, foram denominadas por Freud de próteses. Com elas se
atinge um ideal de humano atribuído a deus, o homem se torna então, uma espécie de deus de
prótese, cheio de parafernálias que o fazem sentir-se mais seguro e independente (Freud,
1990, p.91).
É de fundamental importância a observação de que para se chegar nesse estágio da
cultura, em que os sujeitos são capazes de criar próteses que os auxiliem a melhor lidar com o
sofrimento advindo do mundo interno e externo, foi necessário que retirassem de si uma
quantidade considerável de energia psíquica e física, direcionando-a para a ordenação da
cultura.
Freud acreditava que, em princípio, essa ordenação teria ocorrido pela observação da
regularidade e repetição com que ocorrem os fenômenos astronômicos. Os movimentos dos
astros ordenados e com espaços de movimentação delimitados em função de uma harmoniosa
sincronia, teriam permitido uma analogia e um parâmetro para a regularidade e a ordem na
vida humana em comunidade. Fato incontestável são os benefícios trazidos por essa
ordenação.
O primeiro benefício trazido pela implementação da ordem teria sido o fim da
sujeição ao arbítrio da “lei do mais forte”. Vale dizer, o benefício proveniente da
compreensão de que para vencer o “mais forte”, ou o indivíduo isolado reinando pelo poder
do arbítrio, se fazia necessária a união dos indivíduos mais fracos. Estabelecida essa união, no
lugar da “força bruta” implementa-se “o direito”. Freud acreditava que esse momento em que
os indivíduos em grupo, utilizando o direito como instrumento, coíbem o indivíduo isolado
que utiliza o método da força bruta, é um momento crucial na formação da vida humana em
comunidade e conseqüentemente, da cultura.
170
Com a ordenação dos relacionamentos nos agrupamentos humanos, pautada na
substituição do poder do individuo pelo poder da comunidade, é possível alcançar uma
garantia mínima de segurança. É somente a partir dessa garantia que a vida em comunidade
passa a ser possível e desejada. Entretanto, “nem tudo são flores”. Essa sensação de proteção
e alívio do sofrimento impõem, em contrapartida, uma severa exigência: o sujeito deve
renunciar à satisfação de suas pulsões. Um preço alto, difícil de pagar e jamais totalmente
submisso ao seu credor. A pulsão encontra sempre válvulas de escape, formas distintas e
discretas de satisfação destes desejos, formas socialmente aceitas, justamente por desviar-se
da satisfação direta, por ser uma satisfação depurada, passada por diversos filtros, dentre eles
a sublimação
68
, os sonhos, os atos falhos, as somatizações.
O que levaria o sujeito a se submeter em pagar tal preço, seria a garantia de que essa
imposição em abrir mão da satisfação de suas pulsões se configuraria numa regra válida para
todos, ou seja, entraria em vigor o critério de justiça. Essa justiça precisaria também fornecer
a garantia de que não seria violada em favor de um individuo, ou seja, ninguém poderia fugir
a estas restrições. Pacto aceito, o indivíduo passaria a fazer parte de uma comunidade
regulada por um estatuto construído coletivamente, fundamentado em critérios de justiça.
Estaria portanto, livre dos perigos da “lei do mais forte”.
Esse estatuto que regulamenta a cultura é construído por indivíduos nela inseridos,
portanto, individuo/ordem/cultura são instâncias interligadas e interdependentes. A cultura
entendida por Freud como um “processo” evidencia sua face mutável, plástica, sempre em
construção. Tarefa realizada por homens, influenciados por valores próprios de seu tempo.
Isso significa que as demandas dirigidas ao sujeito pela cultura não são inteiramente
imutáveis, mas conservam em si os princípios fundamentais: a renúncia às pulsões. Porém, a
forma e a intensidade com que essa demanda se colocará para o sujeito estará em estrita
ligação com as especificidades de seu tempo, e com os grupos que instrumentalizam essa
68
O conceito de sublimação foi cunhado por Freud, com a finalidade de explicar o processo de direcionamento
da energia, originária da pulsão sexual, para outras áreas da atividade humana, sem qualquer relação aparente
com a sexualidade, sobretudo em áreas socialmente valorizadas, como arte, cultura, investigação intelectual, o
trabalho de uma forma geral. É um conceito que trabalha com a noção de sublime, relacionada principalmente à
arte, à elevação do homem e, ao mesmo tempo, com a noção de sublimação advinda da química que se refere à
passagem de um elemento do estado sólido para o estado gasoso, pretendendo com isso evidenciar a passagem
da energia sexual, inibida em seus fins primeiros, para um estado socialmente aceitável, culturalmente sublime.
Nas palavras de Freud: “A pulsão sexual põe à disposição do trabalho cultural quantidades de força
extraordinariamente grandes, e isto graças à particularidade, especialmente acentuada nela, de poder deslocar a
sua meta sem perder, quanto ao essencial, a sua intensidade. Chama-se a esta capacidade de trocar a meta sexual
originária por outra meta, que já não é sexual mas que psiquicamente se aparenta com ela, capacidade de
sublimação”. (Laplanche; Pontalis, 1998, p. 495).
171
cultura. A cultura, não é algo etéreo, ou além do bem e do mal. É a soma das realizações
humanas em todas as esferas.
Em determinado momento, para a manutenção da cultura não foi mais suficiente o
indivíduo abrir mão apenas das pulsões sexuais, foi necessário renunciar também às pulsões
de agressividade. As exigências sociais se ampliaram, na mesma medida em que exigiam do
sujeito a ampliação do seu amor inibido na finalidade sexual, estendendo este amor à toda a
humanidade, fundamentado no lema “ama teu próximo como a ti mesmo”. O empenho do
indivíduo em tentar cumprir essa tarefa hercúlea garante à cultura a segurança de sua
manutenção. O indivíduo, por medo de perder o amparo e proteção que ela lhe oferece,
submete-se às suas exigências. A cultura por sua vez, sabedora que é da dimensão das
exigências que faz, e com o receio de que essas pulsões se voltem contra ela, procura inibir
nas raízes o “problema” da agressividade.
Amar a todos irrestritamente, significa abrir mão de uma agressividade que pode se
colocar à favor da vida, ou seja, a agressividade necessária para discriminar e saber como
tratar as diferenciações na relação amigo-inimigo. Na proposta do “ama a teu próximo com a
ti mesmo”, parte-se do pressuposto de que todos os homens são dignos de amor. Não é
aconselhável esquecer que “o homem é o lobo do homem” (Freud, 1990, p. 108). Ou seja, o
amor em defesa da vida não pode ser irrestrito, precisa ter o discernimento suficiente para se
direcionar àqueles com os quais se tem identificação, ou por semelhanças ou por diferenças,
(neste último caso, diferenças no sentido de se constituírem como um ideal de ego, ou um
ideal a ser atingido).
Mi amor es algo valioso para mí, no puedo desperdiciarlo sin pedir cuentas.
Me impone deberes que tengo que disponerme a cumplir con sacrificios. Si
amo a otro, él debe merecerlo de alguna manera. (...) Y lo merece si en
aspectos importantes se me parece tanto que puedo amarme a mí mismo en
él; lo merece si sus perfecciones son tanto mayores que las mías que puedo
amarlo como al ideal de mi propria persona; tengo que amarlo si es ele hijo
de mi amigo, pues el dolor del amigo, si a aquelle ocurriese una desgracia,
sería también mi dolor, forzosamente participría de el. Pero si es un extraño
para mí, y no puede atraerme por algún valor suyo o alguna significación
que haya adquirido para mi vida afectiva, me será difícil amarlo. Y hasta
cometeria una injusticia haciéndolo, pues mi amor se aquilata en la
predilección por los míos, a quienes infiero una injusticia si pongo al
extraño en un pie de igualdad con ellos. (Freud, 1990, p.106, grifos meus).
172
Dessa demanda cultural por amor comunal irrestrito, surge o que Freud denominou
“narcisismo das pequenas diferenças”. Com esse conceito demonstra que “siempre es posible
ligar en el amor a una multitud mayor de seres humanos, con tal que otros queden fuera para
manisfestarles la agresión” (Freud, op.cit., p.111). Ou seja, é possível ampliar o amor fraternal
desde que se tenha uma válvula de escape para a agressão. Elege-se então um grupo, uma
categoria para a qual direcionar a agressividade. Esta por sua vez, estará fundamentada em
argumentos – pouco racionais – sobre as diferenças que depreciam determinado grupo e o
fazem merecedor da agressão. Assim, alguns grupos detém o uso privilegiado da
agressividade, enquanto a outros cabe a tarefa de aceitá-la, e a violência que a acompanha sem
deixar de amar, inclusive o agressor. Diante destas exigências ‘desumanas’, não é difícil
compreender porque é tão raro os sujeitos sentirem-se felizes na cultura, como argumentou
Freud:
Cuando, con razón, objetamos al estado actual de nuestra cultura lo poco que
satisface nuestras demandas de un régimen de vida que propicie la dicha;
cuando, mediante una crítica despiadada, nos empeñamos en descubrir las
raçie de su imperfección, ejercemos nuestro legítimo derecho y no por ello
nos mostramos enemigos de la cultura. (Freud, 1990, p.112).
Essa agressividade tem na pulsão de morte sua matriz. Freud descobriu que ao lado
da pulsão de vida, (co)existe a pulsão de morte. A partir de observações e hipóteses biológicas
sobre o começo da vida, percebeu que, ao lado da pulsão para preservar a vida e ampliar sua
área de alcance, agia também uma pulsão voltada para a desagregação do que havia sido
unido, e portanto, um retorno ao estado inorgânico. Com esse modelo, ampliou a
compreensão da coexistência destas duas pulsões em ação na vida dos sujeitos. A pulsão de
vida é mais facilmente observável e explicável, pois sua ação é mais explícita. A pulsão de
morte se expressa por meio de agressividades, hostilidades, nem sempre tão visíveis.
Para Freud a pulsão de morte expressa na agressividade, consiste no grande entrave
ao avanço da cultura, pois enquanto a pulsão de vida, ou Eros, tenta unificar, reunir a
humanidade em unidades progressivamente maiores, por meio do desenvolvimento cultural, a
pulsão de morte, ou Tanatos, procura desagregar, pôr abaixo os esforços da cultura, por meio
da agressividade. É deste embate contínuo que se origina a cultura e dele também que se
deriva sua manutenção, na luta entre Eros e Tanatos, preservação da vida em contraposição à
173
bárbarie, ao retorno a um estado inorgânico. Freud constata, a partir destas observações, que a
cultura é um processo a serviço do amor:
[a cultura] seria um processo al servicio del Eros, que quiere reunir a los
individuos aislados, luego a las famílias, después a etnias, pueblos, naciones,
em uma gran unidad: la humanidad. (...) Y ahora, yo creo, há dejado de
resultarnos oscuro el sentido del desarrolo cultural. Tiene que enseñarnos la
lucha entre Eros y Muerte, pulsión de vida y pulsión de destrucción, tal
como se consuma en la especie humana. Esta lucha es el contenido esencial
de al via en general, y por eso el desarrolo cultural puede caracterizarse
sucintamente como la lucha por la vida de la especie humana. (Freud, 1990,
p. 118)
Uma das formas de desviar a pulsão de morte que estaria destinada à cultura, é fazer
com que ela permaneça circulando dentro do próprio aparelho psíquico. Melhor dizendo, a
agressividade parte do ego em direção ao mundo externo. Porém, o estatuto da cultura, na
maioria das vezes, não permite que essa agressão seja efetuada de forma direta. Essa
agressividade frustrada em sua satisfação se volta para uma parte do ego, que se coloca em
oposição a ele. Esse dissidente opositor recebe o nome de superego, e assume essa parcela
frustrada de agressividade na forma de consciência, direcionando-a para o próprio ego. Nesse
movimento tenso entre a externalização frustrada da agressividade e sua internalização sádica
contra o ego (em última análise, sua fonte geradora), acaba resultando no sentimento de culpa,
cuja demanda fundamental é a necessidade de punição e castigo. “Por consiguiente, la cultura
yugula el peligroso gusto agresivo del individuo debilitándolo, desarmándolo, y vigilándolo
mediante una instancia situada en su interior, como se fuera una guarnición militar en la
ciudad conquistada” (Freud, 1990, p. 120).
Em outras palavras, inicialmente o sujeito é levado a renunciar a suas pulsões pelo
medo do abandono, da punição advinda da autoridade do mundo externo. Posteriormente essa
autoridade externa encarregada da punição é internalizada, ou seja, organiza-se como uma
autoridade interna ao sujeito. O medo pelas punições que essa autoridade interna possa efetuar
leva o ego a tomar uma medida mais drástica: além de renúncia à satisfação direta das
pulsões, deve renunciar também às intenções, desejos e pensamentos ligados à realização da
pulsão. A necessidade de punição surge como uma espécie de reparação ao sentimento de
culpa, que não mais se caracteriza pela execução de um ato que contrarie a cultura, mas
apenas pelo desejo de executá-lo.
174
Esse processo de tentativa de externalização da agressividade – frustração –
internalização da agressividade pelo superego – direcionamento desta contra o ego, é
cumulativo. Vale dizer, cada vez que essa agressividade é impedida de atuar no mundo
exterior, ela se volta para o interior fortalecida, intensificando a postura autoritária e
repressiva do superego. O ego sob essa (re)pressão, intensifica também o sentimento de culpa
e a necessidade de punição, efetuada pelo superego.
Da relação entre ego e cultura – ou ego e autoridade externa – e posteriormente entre
ego e superego – ou ego e autoridade interna – resulta o sentimento de culpa. Vale dizer, o
sentimento de culpa surge junto com a difícil arte de conviver em grupo. Está na raiz da
cultura. Para Freud, esse sentimento consiste no problema mais importante do
desenvolvimento cultural (Freud, op.cit., p. 130), sobretudo por não ser percebido de forma
inteiramente consciente. O sentimento de culpa se manifesta por meio de uma sensação de
mal-estar, “un descontento para el cual se buscan otras motivaciones” (Freud, 1990, p.131). O
mal-estar na cultura é portanto, o preço que se paga pela proteção e amparo de Eros, afinal
não é possível reprimir pulsões tão intensas, impunemente (op.cit., p.96).
Apesar das impossibilidades de satisfação do desejo de felicidade com base no
princípio do prazer, Freud afirma que não se deve abandonar esse projeto, pois é na busca e na
esperança em encontrar a felicidade nessa forma de prazer intenso, que o amor com o
fundamento da cultura se desenvolve e se fortalece, condição fundamental para a contínua
luta entre Eros e Tanatos (op.cit., p.83).
Freud demonstra, a partir destas argumentações, a interligação entre o processo de
desenvolvimento da cultura e o processo de desenvolvimento cultural do indivíduo, pois, “así
como el planeta gira em torno de su cuerpo central al par que rota sobre su eje, el individuo
participa en al via de desarrollo de la humanidad en tanto anda por su próprio camino vital.”
(op.cit., p. 136).
175
4.6.1. A (re)construção de uma cultura de solidariedade e resistência
“Foi queimado tudo que nem eu lhe contei, até nossa roupinha
foi queimada tudo. Mas graças a Deus, nós tinha companheiros
que já tava assentado, repartiu pra cada família daquelas uma
pecinha de roupa, deu uma vasilinha pra cada um e, aquelas vasilinha
que nós ganhamo lá na Cobrinco, daqueles companheiro que já era
assentado, nós tem até hoje”
Julia, 47 anos.
Freud, como visto, define a cultura como a soma das realizações humanas, desde
aquelas adquiridas há milhares de anos – o fogo, a escrita, a moradia, o trabalho, o alimento –
até as adquiridas em tempos modernos, as próteses do homem semi-deus. Mas como pensar as
lacunas existentes em uma cultura em que coexistem realidades tão distintas como as do
sujeito semi-deus, quase completo, e as do sujeito sem terra (dentre outros tantos segmentos
sociais em condições semelhantes), impossibilitado de desfrutar das conquistas mais antigas
da cultura humana, a escrita, a moradia (tão importante em sua analogia com o útero materno,
sinônimo de proteção e acolhimento), o trabalho, o alimento? Como fica a busca pela
felicidade numa cultura que, ao invés de oferecer a face do amor e do amparo, oferece a da
hostilidade, a da agressão?
Aqueles que instrumentalizam a cultura para a exclusão de grupos sociais negam as
condições elementares para a sobrevivência material e simbólica de milhares de homens e
mulheres. É necessário concordar com Freud, que a cultura em seu estágio atual não satisfaz
as demandas de um projeto de vida que busque a felicidade (Freud, 1990, p.112). Mas o que
deve fazer então, esse sujeito que como todos os outros, é um ser da dependência, precisa da
cultura, precisa do outro, na sua luta cotidiana pela preservação da vida, luta travada, na
maioria vezes, em um campo de condições objetivas extremamente desfavoráveis?
Como fica a busca pela dimensão de amparo da cultura quando, sob os imperativos
do narcisismo das pequenas diferenças, permite-se que um grupo direcione sua agressividade
contra outro segmento social privado dos benefícios da cultura, como no caso das elites
fundiárias “defendendo” suas propriedades contra os sem terra? Nesse caso se faz necessário
176
retornar a um momento anterior do desenvolvimento da cultura, e unir milhares de sujeitos
fracos em contraposição à “lei do mais forte”, fazendo valer por meio da união os direitos
mais elementares – o direito à vida, à moradia, ao trabalho, à alimentação, o direito de ser
reconhecido como pessoa. É neste momento, que estes sujeitos criam uma comunidade que
lhes permita acesso a seus desdobramentos de amparo e acolhimento. Um local onde os
vínculos sejam fundados no amor e na solidariedade.
No caso destes sujeitos sem terra, é possível entender que encontram no MST essas
comunidades de proteção e resistência. Não renunciam à cultura do grande agrupamento
humano, ao contrário buscam nela ser reconhecidos. Entretanto, entendem que para alcançar
esse reconhecimento precisam antes de um grupo menor, que os acolha e os fortaleça, para a
inserção gradual num agrupamento humano maior. Milton ilustra com uma de suas falas essa
necessidade social de proteção e resistência:
E as família tem clareza do que quer, elas continuam lutando em busca de
uma reforma agrária ampla, dando apoio em novos acampamento, tanto
enquanto pessoa, como contribuindo com alimentação, hoje que já tão
produzindo, porque elas sabem que sozinha elas não vão conseguir
sobreviver no campo, que hoje o nosso modelo de agricultura é um modelo
excludente, não tem lugar pros pequeno e que, pra mudar isso é preciso ser
feito uma reforma agrária ampla. Elas também contribuem porque o
processo de luta delas despertou a consciência, porque de tanto apanhar
elas aprenderam a viver, e sabe que só a união pode levar a uma vitória
maior no dia de amanhã e que os filhos dessas famílias, pra ter um lugar
futuramente nesta sociedade excludente, vão ter que continuar essa luta
pela terra. (Milton, 27 anos)
É possível inferir desta fala do Milton, que o sujeito inicialmente busca o amparo
num grupo maior, mas de tanto apanhar” acaba entendendo que precisa se unir e fortalecer
os vínculos de solidariedade, inicialmente entre seus pares, para somente então “ter um lugar
futuramente nesta sociedade excludente”.
Afirma que, ao constituírem um espaço de proteção e resistência, buscam o pacto de
justiça pautado na igualdade – também fundante da cultura como afirmou Freud. Buscam
construir uma sociedade que preze pelo “equilíbrio natural e humano” com igualdade e
reconhecimento de seus direitos enquanto “pessoa humana”:
177
(...) não queremo tirar do rico o que ele tem, queremo que o pobre tenha as
mesmas condições de viver igualmente ele vive, né, então a partir do
momento que todo mundo tenha condições de viver com igualdade,
sabendo respeitar a natureza sabendo que tem que haver um equilíbrio
natural e humano com igualdade, acho que é isso que o MST busca acima
de tudo, que o ser humano seja tratado realmente como pessoa humana,
que tenha seus direitos enquanto ser humano. (Milton, 27 anos).
É impossível deixar de notar um elemento, ou um movimento de resistência muito
importante para estes sujeitos. Elemento que me parece guardar estreita ligação com a pulsão
de vida. É um movimento de resistência pela sobrevivência, pela luta contra a fome, o
desemprego, a falta de moradia, enfim uma luta contra condições objetivas de vida que, em
estágio avançado, podem levar a um retorno ao estado inorgânico, com vitória da pulsão de
morte. Na luta entre Eros e Tanatos, pulsão de vida e pulsão de morte, esse movimento de
proteção e resistência emerge, certamente, em favor de Eros.
Resistir envolve várias dimensões: identificar as condições de vida aviltantes
e violentadoras, discriminá-las como construções humanas e, portanto,
passíveis de serem modificadas pelos sujeitos, poder discernir para negar e
se opor à existência estruturada sob destruição e, sobretudo, conseguir
solidarizar-se para com os demais, a fim de se unir num coletivo político, em
que a singularidade marcada na subjetividade possa, também, orientar a ação
desse coletivo. (Cesnik; Caniato, 2005).
É a terra como “mãe do trabalhador” que move esses sujeitos na busca pelos seus
direitos “enquanto pessoa humana”. A conquista da terra se caracteriza como uma importante
mudança na vida destes sujeitos. Significa, na maioria dos casos, a retomada de um vínculo a
partir do qual construíram sua identidade. É também o início da conquista dos direitos
elementares à sobrevivência. Uma conquista que fortalece o indivíduo e fortalece o coletivo:
Não é questão de querer terra é a questão de querer trabalhar na terra. Se
você não quiser trabalhar na terra não adianta ter terra, né. Que a terra,
tem aquele ditado, a terra é a mãe do trabalhador, né. Se você pegar terra
só pra dizer que tem terra não adianta ter terra. (Elizeu, 35 anos).
178
Júlia, uma das entrevistadas, quando lembra do dia em que conquistaram a terra, traz
na seqüência a lembrança, ou o reconhecimento da solidariedade dos companheiros que os
auxiliaram na reconstituição da vida, em sua dimensão objetiva e subjetiva, após um doloroso
golpe desferido pela elite fundiária ao realizar um despejo e queimar todos os parcos
pertences da família, deixando-os apenas com a roupa do corpo:
[falando sobre o momento em que receberam a notícia de que tinham uma
vaga no assentamento Dom Hélder Câmara] Aí, pra mim aquilo foi a
felicidade do mundo, pra mim que Deus tinha aberto a porta do céu pra nós!
Aí graças a Deus, arrumamo tudo as nossa mobilinha, que nós não tem
nada, você tá vendo, não tem nada! Foi queimado tudo que nem eu lhe
contei, até nossa roupinha foi queimada tudo. Mas graças a Deus, nós tinha
companheiros que já tava assentado, repartiu pra cada família daquelas
uma pecinha de roupa, deu uma vasilinha pra cada um e, aquelas
vasilinha que nós ganhamo lá na Cobrinco, daqueles companheiro que já
era assentado, nós tem até hoje, tá aqui as vasilinha, nós não compramo
nada, tá aqui ó [vai apontando para os utensílios espalhados sobre o fogão
de barro, uma mesa e estante improvisados] tá aí os baldinho, as panelinha,
partileirinha que nós ganhamo né, tá tudo aqui, foi tudo ganhado até hoje
nós não compramo nada, né. Graças a Deus, eles deram, né e eu não desfiz
de nada tá tudo aqui, não desfiz de nada, o que eles me deram tá tudo aqui.
A forma como Júlia reafirma que não se desfez dos objetos, parece uma tentativa de
transmitir uma sensação de gratidão por aqueles companheiros que os ajudaram em um
momento tão difícil, um momento em que parte de um agrupamento humano os agride,
enquanto o outro com o qual se identificam os acolhe e protege.
Falando sobre as benesses da inserção no agrupamento cultural MST, Marilena
afirma que o beneficio maior em fazer parte deste grupo junto com seus companheiros foi a
possibilidade que o movimento proporcionou aos seus filhos de acesso ao estudo, algo a que
como sujeitos isolados, não teriam acesso:
O que fica de melhor foi que se eu não entrasse dentro do Movimento Sem
Terra, do povo, com os companheiro, o meu filho não ia tá na altura que
hoje ele tá, porque condições eu não tinha e não tenho, nem pra ele nem pro
outro. (Marilena, 40 anos).
179
Aqueles que, como Clara, encontraram no MST essa fonte de alívio para o
sofrimento proveniente do mundo externo entendem que a categoria pobre deveria a eles se
unir: “então a única solução pro pobre hoje em dia é vim pro sem terra mesmo, pelo menos é
bem recebido” (Clara, 45 anos).
Segundo René Kaës, no livro Violência de Estado y psicoanalisis (1991, p.148), é
exatamente esse vínculo fundado no amor e na solidariedade destes grupos – que em alguma
medida ameaçam a ordem vigente – o foco da ira e do ataque do Estado e das demais
categorias que se sentem ameaçadas pela potencialidade destes laços afetivos, e que procuram
desestruturá-los ou até aniquilá-los. Para o autor os vínculos construídos no grupo são
fundamentais para a sustentação psíquica do sujeito. É o local onde cada membro reforça sua
capacidade de resistência apoiando-se mutuamente.
Mesmo diante de inúmeras investidas violentas para aniquilar os vínculos entre os
membros do grupo, e em conseqüência destruí-lo (já que para se destruir o corpo social, faz-se
necessário destruir o corpo individual [Lira, 1989, p.33]) – estes sujeitos sem terra resistiram,
e afirmam que saíram destes episódios fortalecidos em seus vínculos grupais e em seus
objetivos:
Depois da gente ter visto tudo isto, ter vivido junto com este povo após o
momento do despejo, a indignação ela fica cada vez maior e a gente sente
mais força pra lutar em busca da justiça. Muitas famílias que até ali não
tinham clareza do porque tavam acampado, que ainda imaginavam que elas
podiam encontrar saída em algum outro lugar, após esses ato de violência
eles se pegavam com isso pra continuar lutando, porque ninguém tinha
nada, vivia ali apenas em baixo de um barraco de lona, dormindo em cima
de uma tarimba, cozinhando num jipão, mas era a morada de cada um, ali
era a sua casa, ali era sua vida, ali era sua esperança. Então, a partir do
momento em que foi lavrado isso aí criou uma indignação muito maior
pra continuar lutando.
Diana Kordon (1987, p.118), analisou o processo de elaboração do luto das Madres
da Plaza de Mayo, que tiveram seus filhos desaparecidos durante o regime militar argentino, e
observou que, pela prática grupal, essas mulheres assumiam uma posição diferenciada
mediante o processo elaborativo. Via de regra, indivíduos ou famílias que passam por
momentos de terror e violência, aceitam a culpa pela agressão recebida. Segundo a autora, as
180
Madres elaboraram o luto, buscando uma transformação na sociedade a partir da prática
política. Por meio de ações coletivas como a ocupação de praças públicas, exibição de fotos,
conseguiram a inscrição política e social dos desaparecidos, rompendo a barreira do silêncio
que oculta a violência sofrida. Essa resposta social, segundo Kordon, têm no principio da
realidade, a base para elaboração da situação traumática, o que faz com que o processo de
elaboração ocorra, não apenas no nível do individual, mas no âmbito grupal. Nesse sentido, o
grupo se configura como um espaço de apoio para a reconstrução do aparelho psíquico,
espaço onde ocorre a compreensão intelectual do processo elaborativo. Kordon, afirma ainda
que a elaboração por meio da prática social permitiu que assumissem uma posição ativa nos
rumos da sua história,
Al asumir una posición activa de búsqueda del hijo desaparecido y al
organizarse grupalmente en función de dicho objetivo, las Madres fueron
transformándose a sí mismas y pudieron también preservar su autoestima
producto de una adecuada relación entre o Yo y el Ideal del Yo. (...) El
pasaje del ámbito casi exclusivamente íntimo y doméstico hacia el campo
político, jurídico y social, posibilitó la realización de procesos de
aprendizage que ampliaron sus capacidades yoicas. Capacidades tales como
la de discriminación, de síntesis y anticipación, todas ellas vinculadas ao
universo simbólico. (...) Esta comprensión permitió dirigir la agresión,
elaborada, hacia el objeto adecuado, evitando que ésta se volcara sobre el
sujeto, o se desplazara hacia el interior de la familia o grupo de
pertenencia. (Kordon, 1987, p.169,170).
O processo elaborativo da violência sofrida por estes sujeitos do MST guarda
semelhanças com o processo vivido pelas Madres e descrito por Kordon. Existe em princípio
uma internalização da violência sofrida, que se expressa na aceitação de uma parcela de culpa
pela violência recebida, sobretudo nos sentimentos e pensamentos que irrompem durante
essas vivencias, como expressa Claudia:
O pior foi vê meus filho quase morto (...) eu vi que eu não ia te mais um
filho, pensei que tava tudo morto (...) tava tudo sangrando e a pequena tava
desmaiada por causa do gás (...) foi a pior coisa, eu falei: agora por causa
da terra perdi meus dois filho! (Claudia, 21 anos).
181
Em princípio Claudia inicia o processo de culpabilização, aceitando a violência como
conseqüência da luta por um direito. Posteriormente, na vivencia em grupo com seus
companheiros de infortúnio e resistência, passou a perceber o quanto se saiu fortalecida desta
situação: “O despejo também é um meio de ajuda a gente a ter mais força pra fica na luta.”
(Claudia).
É de fundamental importância ressaltar que a violência sofrida por um grupo de
sujeitos, com objetivos comuns, conta com instrumentos que os auxiliam a compreender a
violência no plano intelectual, histórico, político e econômico, sempre com respaldo do grupo,
o que impede este sujeito de internalizar a violência sofrida e mergulhar no sentimento de
culpabilidade. Irene, ao falar sobre o despejo da fazenda Cobrinco afirma: “O meu sentido era
de voltar lá de novo. Mesmo tando tudo machucado eu não senti remorso não. O meu
sentimento era voltar de novo”. (Irene, 40 anos).
Irene não sentiu “remorso” ou culpa porque conseguiu verbalizar, nominar esse
sofrimento no grupo que, vivenciando a mesma experiência, a acolheu e apoiou, fornecendo
os elementos para a elaboração desse sofrimento. Estes sujeitos não aceitam o processo de
culpabilização em relação a esses episódios de violência (não significa que estão livres desse
processo disseminado em toda a cultura, refiro-me aqui ao caso específico dos episódios de
violência das reintegrações de posse) e, ao invés de internalizar a violência, devolvem-na para
o Estado e para os grupos que os agrediram
69
.
Elizeu demonstra que consegue utilizar a agressividade, não para sua auto-destruição
ou destruição dos seus pares, utiliza essa agressividade como força de vida, como força motriz
para a conquista da terra:
[o que que te fez continuar no MST?] A raiva, o ódio... a esperança! Porque
o que mais fez eu ficar na verdade no MST e lutar pra nós ter [a terra], foi o
ódio mesmo, foi a raiva mesmo! Porque você pensando bem você tá
lutando por um pedaço de terra, não tá roubando nada de seu ninguém, e
apanha, não tem como correr. Eu mesmo na verdade eu não corri, não
corro, mas é de raiva! Eu já lutei, nós já passamo por muita fome, não tem
que esconder, todo mundo sabe disso né, mais a gente tem que manter a
postura erguida porque é dali que vai ter que vim, não tem da onde saí.
69
Uma situação cada vez mais difícil de ser observada, visto que a maioria dos sujeitos inseridos nas
comunidades humanas aceitam e internalizam a violência social, caindo no processo de culpabilização
inconsciente, alimentando o “eterno” sentimento de mal-estar.
182
Porque estudo suficiente pra gente se virá de outras forma em cidade
grande, coisa assim não tem né... (Elizeu, 35 anos).
A partir da fala de Elizeu, é possível perceber também, que estes sujeitos não aceitam
a condição de vítima pois “tem que manter a postura erguida”. De acordo com Kaës (1991,
p.107), aceitar a condição de vítima prolonga o impacto da agressão sofrida, pois o indivíduo
não pode nominar o agressor, permanece na fatalidade e segue vivendo o horror. Estes
sujeitos, ao contrário, tal como Murilo, querem esquecer o sofrimento e lembrar apenas para
dar valor ao esforço empregado para a conquista do lote:
se for pra contar a história do começo, eu acho que eu num agüento, eu
choro. Porque se for contar tudo como começou e como terminou, vamos
dizer assim, eu não agüento, porque se for lembrar o que é que aconteceu
tudo, tudo, nem é bom lembrar. Sempre é bom a gente esquecer aquilo que
magoa a gente, aquilo que deixa a mente da gente atormentada, então eu
acho que, eu quero lembrar assim pra mim dar valor no pedaço de terra
que meu pai ganhou, pra mim lembrar que eu sofri, mas não quero lembrar
mais aquele sofrimento que eu via de primeiro, sangue, criança machucada,
eu mesmo eu era criança, mas eu já tinha um pouco mais de consciência do
que que era a dor já, eu já tinha, já sentia o que que era a dor, já sabia o
que que era. Então eu acho que aquilo lá eu quero esquecer, quero
esquecer pro resto da minha vida, só quero lembrar que eu tenho que dá
valor nas terra que meu pai ganhou que se não fosse ele, nós, nós não tava
aqui. Então eu acho que eu quero preservar um lugar assim da minha
família, sem aquela violência.... (Murilo, 16 anos).
Ao que parece, esses sujeitos fogem à lógica do conformismo e da auto-punição.
Criam uma cultura de proteção através da conscientização política, que lhes permite sair da
posição de vítima e assumir um papel de participação social. Kaës (1991), afirma que o
sujeito, ao perceber que ocupa um lugar dentro do sistema político e econômico, mesmo
sendo um lugar de opositor, ele acaba tendo mais recursos para lidar com a violência de
Estado:
Com frecuencia el militante puede hacer frente a la violência de Estado com
más lucidez y menos angustia que el simple ciudadano, en la medida en que
elo sostiene un lugar de identificacion dentro de la contradicción del sistema.
El ideal político, anclado en el sistema de valores y las idenficiaciones
183
permite la afirmación narcisista y el reconocerse incluido y partícipe en el
sistema social, ya sea por semejanza o por oposición. (Kaës, op.cit, p.106).
É possível entender ainda, que o sujeito, ao aderir ao MST – que se coloca como um
dos poucos pólos de resistência na atualidade – em certa medida, tem suas necessidades de
amparo pela cultura supridas por esse coletivo. O que não é um fato desprezível, sobretudo no
atual estágio da vida em sociedade, em que se desenha um cenário onde a solidão e o
abandono ocupam um lugar progressivamente maior (Caniato, 2006), atingindo em primeiro
plano esses segmentos marginalizados pela condição de miséria em que são lançados.
184
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não é possível encerrar um trabalho que trata da (re)construção da vida. Colocam-se
apenas algumas reticências, apontando outros caminhos possíveis para sua continuidade. Na
fala destes homens, mulheres, jovens e crianças massacrados pela violência, emergem
inúmeras possibilidades de análise e caminhos que se abrem para novos trabalhos.
Gostaria de ter conseguido trabalhar outros temas fundamentais na (re)construção da
vida destes sujeitos, temas sobre os quais falaram com muita intensidade, como família,
gênero e geração. Entretanto, existem limites para cada etapa da vida. Limites que se fazem
necessários, pois sem eles eu poderia ficar “concluindo” este trabalho por tempo
indeterminado, dias, meses, anos, o que certamente seria prazeroso, mas me impediria de
fazer o que é mais importante, compartilhá-lo, mesmo com suas limitações. Nesse espaço que
ainda tenho, pontuo algumas considerações sobre estes temas.
Destacando a categoria gênero, foi possível observar que ao evocarem as lembranças
dos momentos mais marcantes nestes episódios, em boa parte dos casos, as mulheres se
direcionavam para o núcleo familiar. Lembravam-se da reação de cada um dos filhos, do
sofrimento do marido e de seus esforços em tentar protegê-los. Além da preocupação e
proteção, elas se colocavam como fonte de apoio e força, verdadeiras “guerreiras” na
preservação da vida e da família.
Marilena ao enfrentar a polícia para proteger o marido: “eu juntei-lhe o pé numa
caixa daquela e deu lá na polícia e, falei assim ó, ‘vocês tão levando meu marido, só que
vocês vão ter que levar tudo, os quatro, pai e mãe e filho junto!’”, e Júlia ao acompanhar o
marido na vida difícil “porque aonde meu marido luta eu também quero lutar junto”,
demonstram que apesar do sofrimento, mantinham íntegro o vínculo de amor com o marido.
Neste vínculo, atuam como esse outro de amparo, esse agente da cultura a serviço de Eros.
Desta relação, aparentemente bem consolidada e fundada no amor, derivam-se os demais
relacionamentos de amor fraternal com a comunidade, expressos nos sentimentos e atitudes de
solidariedade e amparo (Freud, 1990, p.82)
185
No relato de Marilena e de Júlia aparecem também as diferenças no tratamento que
os policiais dispensavam as mulheres, chamando-as de “mãe”: –“ah mãe, calma, calma
mãe!”, dizia o policial para Marilena. Ao tratá-las como “mãe”, evidencia o que aparece
muito na literatura sobre gênero e nas teorias feministas, a essencialização das mulheres na
função de mãe. Mostra também a diferenciação feita pelos policiais ao dirigir intensidades
diferentes de violência para homens e mulheres. Possivelmente exista aí uma evidência de um
fato implícito e socialmente aceito de que no conflito homem verus homem a violência
empregada é maior.
Estas mulheres demonstram também, por meio do vínculo do amor fraternal com
suas companheiras, atitudes e lembranças de resistência e solidariedade para com a
comunidade. Heleonora descreve o sofrimento de uma companheira como um dos momentos
mais marcantes nestes episódios de despejo: Uma coisa que marcou muito no despejo, foi
que a companheira Ilda, tinha comprado um fogão novo e no dia do despejo as polícia
queriam leva o fogão. Ela começou a chorar, aí o meu filho e outro companheiro pegaram
o fogão, na frente dos policia, e colocaram no caminhão. Branford e Rocha (2004, p.215),
relatam um caso semelhante ocorrido em uma dessas ações de reintegração de posse no
Paraná. Conta que uma senhora sem terra tinha um freezer e os policiais, sob a alegação
debochada de que as famílias sem terra não tinha o direito de possuir bens valiosos, tentaram
levá-lo. Episódios ocorridos seguindo exatamente a lógica de que, se não são vistos e tratados
como pessoas, não precisam ter acesso às benesses conquistadas pela humanidade. Destes
episódios, o que é de fato fundamental, é o apoio das/os companheiras/os de infortúnio, em
lutar para impedir que a violação de direitos tomasse proporções ainda maiores.
Outro tema que apareceu com intensidade nos depoimentos foi o vínculo dos sujeitos
com a família. Sobre esse tema existe uma extensa produção bibliográfica, justamente por ser
cada vez mais necessário retomar o estudo destes vínculos que fortalecem o indivíduo e o
coletivo. Contudo, não foi possível trabalhá-lo nesta etapa da pesquisa, destaco apenas uma
das falas de Júlia que me chamou bastante atenção:
Hoje eu sou feliz, graças a Deus! E Nossa Mãe Santíssima (...) eu adoro a
Nossa Mãezinha, a mãe de Jesus: – olha Maria se não fosse você eu não
sei o que seria da minha vida! Hoje eu sou feliz Maria, por causa da
Senhora, porque a Senhora é mãe de Jesus e mãe nossa, então eu tenho
muita fé em Maria Virgem, que é a Nossa Mãe e foi ela, foi ela quem me
deu força e coragem de eu vencer, de eu sê uma guerreira, porque eu
186
venci, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e Maria eu venci e, sou feliz.
Sou feliz com o meu marido e meus filho e, espero que um dia esses dois
filho que tá ausente, que tá longe de mim, eu espero um dia eles tá junto
comigo, aí eu vou sê uma mãe mais feliz do mundo né, com a minha
família junto comigo.
Ao que me parece, Júlia evidencia uma identificação com a figura feminina de
proteção desta entidade divina, uma figura que como ela é mulher e mãe, figura a qual ela
atribui a força e a coragem que teve em vencer, em ser uma “guerreira”. A posição de mãe,
esposa, cuidadora, tendo na família, ou seja, no princípio da realidade, a fonte de satisfação de
sua busca por felicidade, a qual seria ainda mais completa se estivesse com todos os filhos.
Vale dizer, fala exatamente da família como lócus do amor, amparo e protótipo de felicidade,
de onde busca força para ampliar esses vínculos na comunidade. Quando seus braços não
podem mais abarcar as dores dos filhos que estão distantes, recorre à figura da mãe onisciente
e onipresente: “porque meu filho anda no mundo, mas eu entrego ele nos braço de Nossa
Senhora”.
Além de Júlia, os demais depoimentos trazem a dimensão de preocupação com a
família, e a importância desta na constituição do sujeito e do coletivo, posições expressas de
forma mais contundente nas falas das mulheres.
Em relação às diferenças geracionais, chamou-nos a atenção, na fala dos meninos
jovens, Carlos de 18 anos e Murilo de 16 anos, a preocupação levantada acerca da
discriminação, humilhação e criminalização por portarem a identidade política de sem terra.
Essa preocupação não apareceu de forma tão incisiva nos depoimentos de homens e mulheres
adultos. Possivelmente, porque estes jovens estejam vivenciando uma etapa da vida em que a
opinião de grupos externos, sobretudo grupos hegemônicos, parece assumir uma dimensão
maior.
Carlos fala da humilhação da qual as crianças e adolescentes sem terra são alvo, ao
freqüentarem os espaços públicos urbanos, que os identificam, estigmatizam e discriminam no
primeiro olhar:
(...) Porque hoje a criança que vai na cidade que é um sem terra, ele é
humilhado. Se ele for tudo dia de chinelo e de calção, eles fala: – “ah, mais
fulano é pobre, não sei o que” (...) se eles vê uma pessoa com chinelo ou
187
com uma bolsinha rasgada, ou até com um pacote – eu aconteceu de ir com
um pacote com o material dentro pra escola – eles pegam e criticam: “ah,
mas fulano é pobre!”, “ah, mas fulano lá é sem terra!”, só do jeito de ver
eles já conhece que é sem terra, sabe que é um sem terra! (Carlos, 18 anos).
Assim como Carlos, Murilo se esforça na tentativa de desfazer a idéia
intencionalmente construída de que eles “são um bicho”, afirmando que as condições
estruturais de miséria social os levaram a encontrar o seu meio de sobrevivência no MST,
nem por isso deixaram de ter “gênero de pessoa”.
Enquanto a geração de adolescentes e jovens demonstra preocupação com a
criminalização, os homens e mulheres adultos/as demonstram preocupação maior com a
discriminação pela idade e pela falta de estudo. Clara e Pedro, após percorrerem uma longa
jornada em busca de trabalho, contam como sofreram essas discriminações ao saírem do
campo na tentativa de uma vida melhor na cidade: “daí chegou lá ele trabalhou uns três mês
né, a fio assim, depois não conseguia mais emprego, porque na verdade se ia numa firma
lá, eles fala que a pessoa na idade dele não tem validade, porque é velho já, daí não tem
validade”. (Clara, 45 anos).
Depois de anos deambulando em busca de trabalho, chegaram ao MST. Lá
encontraram acolhimento. Na mesma medida em que foram bem recebidos pelo grupo de sem
terras, passaram a sofrer as conseqüências da inserção em um grupo político alvo dos ataques
do Estado e seus sustentadores.
Numa sociedade em que a alguns é permitido agredir e a outros apenas consentir, são
eleitos grupos, categorias para as quais direcionar a agressividade. Por meio do narcisismo
das pequenas diferenças (Freud, 1990, p.111), os sem terra, por representarem uma ameaça
ao status quo, foram eleitos como “categoria de acusação” (Velho, 1987), a eles é permitido
direcionar a agressividade. Num “ritual coletivo de exorcização”, o grande grupo se redime de
suas parcelas de culpa pela miséria a que esses grupos menores
70
são submetidos, jogando
neles próprios a responsabilidade por seus infortúnios. Nessa perspectiva, o Secretário de
Segurança Pública do Estado do Paraná, nos episódios anteriormente citados, além de não
admitir as violações e violências cometidas pelos agentes do Estado sob seu comando, tentou
70
Menores no sentido de ocuparem um espaço social marginalizado, pois na realidade estes pequenos grupos
representam uma parcela considerável da população brasileira.
188
encontrar nas ações do MST justificativas que legitimassem a forma violenta com que
realizaram estas operações,
Nos últimos anos, a partir de 1997, 1998 para cá, o MST passou a invadir
áreas produtivas. Nós temos hoje mais de vinte áreas produtivas, com
laudos técnicos do Incra considerando áreas absolutamente produtivas e que
foram invadidas (...) começou a vir gente do Mato Grosso, da Bahia,
Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, e brasiguaios.
Transformou-se numa correia de transmissão de tal forma que não há como
atender à demanda da terra. (In: Arbex, 1999, p.12,13, grifos meus).
Nos assentamentos e acampamentos onde trabalhei, não percebi esse fluxo
migratório de sem terra de outros Estados em direção ao Paraná. Mas ainda que fosse esse o
caso, jamais serviria de justificava para as violações cometidas.
Nesse processo de encontrar justificativas para a repressão a ser executada, a mídia
torna-se uma poderosa aliada. Antes de partir para a violência direta é necessário criar um
clima social que faça com que os grandes grupos sintam-se ameaçados e entendam justa e
necessária a intervenção do Estado. Assim são criados os “demônios sociais”, os “bodes
expiatórios”, categorias compostas por sujeitos miserabilizados, aos quais se faz necessário
conter para garantir a estabilidade, sobretudo daqueles que detém e sustentam o poder
econômico e político. A estes são direcionados a agressividade que é contida dentro do grande
grupo, já que sempre é possível unir as pessoas no amor enquanto for possível dirigir a outros
a agressividade contida (Freud, 1990).
Muitos sem terra conseguem resistir à hostilidade e agressão vinda de várias
direções, outros não. Durante essa onda de violência contra o MST no Paraná, muitas foram
as famílias que desistiram. Em 2005 quando estive no assentamento Dom Hélder Câmara,
Júlia relatou que um de seus filhos, Mario de 25 anos, ao participar da reocupação da fazenda
Santa Filomena, município de Guairaçá, região noroeste do Paraná, estava ao lado de Elias,
seu amigo, quando este foi atingido por um tiro desferido por pistoleiros. Elias morreu em
seguida. Desde então Mario abandonou o movimento dentro do qual militava há sete anos.
Murilo, seu irmão, fala sobre as condições que fizeram Mario optar por outros caminhos de
sobrevivência,
189
(...) ele falou que foi um desastre, quanto mais você olhava assim parecia
um terror, mesma coisa de um filme de terror ele disse, gente machucada,
baleada, sangue! Ele falou que desistiu nem foi tanto porque o rapaz
morreu, ele falou não agüentava mais, ele vendo tanta criança, tantas
mulheres, tanto homem machucado, só sangue, ele só via sangue, ele falou,
então ele falou que pra ele já não dava mais. Então ele falou pra ele que se
ele escapasse daquela ele não ia mais lutar, não ia mais querer terra, que
ele sabe que quando ele morrer ele vai ter pelo menos sete palmo de terra
pra ele. Falou que não quer, se for pra ele continuar sofrendo, vê sofrendo,
sete ano, sete ano que ele sofreu foi o suficiente dele aprender que não, que
lutar é bom mas quando você tem condições pra você ver que você
agüenta, mas quando você vê que não agüenta, que não dá, não adianta
você tentar que você não vai consegui. Porque o que ele viu ali foi sangue e
só sangue e só sangue, mais nada, aí desistiu. (Murilo, 16 anos).
Mário, um jovem de 25 anos, em busca da felicidade prefere procurar outro caminho
que lhe traga menos dor, nem que para tanto tenha que abrir mão do sonho de um pedaço de
terra, afinal um dia “ele sabe que quando ele morrer ele vai ter pelo menos sete palmo de
terra pra ele”. Seu amigo, Elias Gonçalves Moura, 20 anos, assassinado em 31 de julho de
2004, com um tiro no pescoço, teve a luta pelo sonho de um pedaço de terra
interrompida...“quando ele morrer ele vai ter pelo menos sete palmo de terra pra ele”...
– Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
– É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida
(...)
Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
Trabalharás em uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator
Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
Trabalharás numa terra
190
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
(Melo Neto, 2001, p.59,60, grifos meus)
Os que ficaram conseguiram encontrar meios de garantir sua integridade física e
psíquica, e a agressão a eles direcionada ao invés de os destruir, fortaleceu-os. Em processo
elaborativo semelhante ao das Madres da Plaza de Mayo (Kordon, 1987), ou seja, por meio da
prática grupal – das atividades políticas como atos públicos, marchas, um acampamento
realizado na praça da assembléia Legislativa em Curitiba capital do Estado
71
, além da
realização de um Tribunal Internacional para julgar estes “crimes do latifúndio”, com a
participação de diversas personalidades, organizações, parlamentares do Brasil e do exterior
(Anais do tribunal..., 2001) – conseguiram nominar seus agressores e inscrever politicamente
a violação de direitos por parte do Estado e, tal como as Madres, romperam a barreira do
silêncio que tem por finalidade ocultar a violência sofrida.
Os vínculos construídos no grupo são fundamentais para a sustentação psíquica do
sujeito (Kaës, 1991), um espaço para compartilhar o sofrimento e reconstruir a esperança,
espaço onde ocorre a compreensão intelectual e política do processo elaborativo. É a partir
desta compreensão que é possível direcionar a agressão elaborada, para o agressor, impedindo
essa agressividade de ser internalizada e agir contra o próprio sujeito, o que resultaria em uma
posição de auto-punição, acabando por incidir na degradação dos vínculos familiares e
fraternais (Kordon, 1987).
Fortalecidos pelo apoio mútuo dispensado dentro do grupo, não sucumbiram ao
processo de culpabilização, ou auto-punição, e nem tampouco à posição paralisante de vítima.
Ao contrário, souberam utilizar a agressividade em favor da vida, se recusando a internalizar a
violência sofrida e devolvendo-a para os objetos adequados, Estado e latifundiários. Afinal
como disse o poeta João Cabral de Melo Neto, “é difícil defender, só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é esta que vê, severina”.
Saíram desse processo marcados pela violência, como afirmou Valter: “ficou uma
marca para sempre (...) conseguiram tirar nossas coisa, desistir nós não desistimo nem um
minuto nesses 10 ano de MST”. Apesar do sofrimento saíram deste processo fortalecidos
71
Essa ocupação foi duramente reprimida no dia 27 de novembro de 1999, por volta de duas horas da manhã. Cf.
Anais do tribunal...., 1991, p.35.
191
como grupo e como sujeitos, e entre a dor e a esperança, fizeram prevalecer a luta pela
reconstrução da vida.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
(Melo Neto, 2000, p.79-80, grifos meus).
192
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