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nessa medida que se apresentam valorizando o fenômeno gráfico enquanto material sonoro,
morfológico rítmico, distante de comentários lógicos ou meramente descritivos.
Esse poema, composto com substantivos concretos – “mar”, “ilha”, “continente”, “ar”,
“tangente”, “pedra”, “semente”, “sol”, “pó”, “sombra”, “parede”, “afluente” “margem”,
“ambiente”, “coração”, “mente” e “serpente” – , mostra “a coisa em si” – evidenciando que
“só existe/ o que se/ sente”. Antunes (2003) confirma que continua com o mesmo processo
ao tratar da grafia e da imagem fotográfica:
Mesmo assim, há todo um tratamento gráfico que foi concebido com
muita liberdade, para adequar cada texto à página. Mantivemos o mesmo
tipo de letra, mas com variações de alinhamento, cor, fundos e, em
alguns casos, tamanho e espacialização das letras.
O vocabulário é conciso, concentrado e suscita um conceito relacionado com os elementos
do cosmo: mar, margem, afluente (água); ilha, continente, pedra, ambiente, (terra); ar (ar) e
o sol (fogo). Essas palavras são freqüentes na poética de Antunes e desenham o corpo
animal e humano pela imagem poética, apresentada na décima página do poema.
O poema é fruto da relação sonora entre signos repetidos e jogos paralelísticos: “coisa em
si/ não existe”, “coisa em si/ não existe”, “coisa em si/ não existe”, “coisa em si/ coisa só/
parida do seu próprio pó”, “não existe/ coisa assim”, “coisa em si/ inexiste” “só existe/ o
que se/ sente”. Recorre, ainda, à assonância, aliteração, paronomásia, metonímia, além das
metáforas construídas pela desconstrução da negatividade: “não existe”, “pende”,
“depende”, “inexiste”, “não há coração”, marcado também pelos advérbios “não e sem”:
“sem sombra”, “sem mar”, “sem ambiente”, “sem mente”. Os jogos metafóricos permeiam
todas as imagens verbais, contornando o desenho das estrofes, como, por exemplo, em
“tudo tende/ pende/ depende” ou em “o mar que molha/ a ilha molha/ o continente”.
Observamos, mais uma vez, a preocupação de Antunes com o projeto tipográfico. O
material artístico – música, poesia, artes plásticas – marcado pela palavra inserida na
tecnologia, nas múltiplas dimensões, articula os diferentes códigos em territórios híbridos.
A fusão dos dois códigos subverte o original, despragmatizando a imagem e descobrindo
cor, movimento, tempo, peso, tamanho, textura e simetria. É no diálogo com a palavra, que
a imagem ressurge como poesia.
As experiências de leitura, neste capítulo, visam refletir a poética arnaldiana, buscando
contribuir com a compreensão do processo criativo e autêntico dos projetos de Arnaldo
Antunes. Projetos híbridos que transitam nas interartes entre o erudito e o popular. Livro,
música, DVD, CD, shows, caligrafia e outras áreas do conhecimento interligam-se a partir
dos sentidos, constituindo o corpo inteiro de sua poética. Corpo que se encontra na
diagramação ideogramática da inserção da escrita, incorporando analogias que subvertem a
lógica da literatura, revitalizando a poesia experimental, que busca similaridades fônicas e
espaciais das coisas na poética de Arnaldo Antunes.