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Alexandra Nakano de Almeida
Os “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” de Sigmund
Freud e a Psicologia da Criança no final do século XIX
HISTÓRIA DA CIÊNCIA
PUC - SP
São Paulo
2006
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Alexandra Nakano de Almeida
Os “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” de Sigmund
Freud e a Psicologia da Criança no final do século XIX
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de MESTRE em História da Ciência sob
orientação da Profa. Dra. Ana Maria Haddad
Baptista.
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Banca Examinadora
________________________________________
________________________________________
________________________________________
Agradecimentos
À Professora Dra. Ana Maria Haddad Baptista, pela orientação e
atenção recebidas desde os primeiros momentos do meu ingresso no curso.
Ao Professor Dr. Paulo José Carvalho da Silva, pela orientação e
preciosas contribuições ao trabalho.
A todos os professores do Programa de Estudos Pós-Graduados
em História da Ciência da PUC-SP, especialmente à Professora Dra Lilian
Al-Chueyr Pereira Martins.
Aos colegas do curso, pelas impressões e questionamentos
compartilhados.
Ao Professor Dr. Flavio Del Matto Faria membro das Bancas de
Qualificação e Examinadora.
Ao Professor Dr. Sidnei José Casetto da Faculdade de Psicologia
da PUC-SP.
À amiga de longa data Andréa Masagão, pela escuta generosa.
Aos meus pais, Katsuko Nakano e Renato Rua de Almeida, pelo
apoio e incentivo que sempre me deram para o trabalho acadêmico.
À minha filha Mariana de Almeida Jacinto, pela alegria da sua
presença.
E ao meu marido Ayao Okamoto, companheiro de viagem.
Resumo
Nesta pesquisa, estudamos a concepção de infantil para Sigmund
Freud no final do século XIX e início do século XX através do exame da obra
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) em que o autor apresenta
uma teoria sobre a sexualidade infantil. Para isto, investigamos alguns
aspectos da formação e do percurso de Freud, bem como da criação da
Psicanálise a fim de identificar os pressupostos do autor para a elaboração
desta teoria que se formaliza em 1905. A teoria da sexualidade infantil foi
elaborada por Sigmund Freud principalmente a partir de problemas e
hipóteses advindos de sua atividade clínica, ou seja, a partir da tentativa de
elucidação e tratamento do fenômeno da histeria. Deste modo, a idéia de
infantil freudiana foi concebida através da “observação” do adulto e não da
criança.
No final do século XIX e nos primeiros anos do século XX, período
em que Sigmund Freud elabora a teoria da sexualidade infantil, verifica-se
que há uma valorização crescente da criança e da infância como objeto de
estudo da Psicologia. Assim, de uma forma geral, também nesta pesquisa
procuramos examinar e caracterizar as principais preocupações destes
estudos psicológicos da criança, a fim de contextualizar a formulação da
teoria freudiana e verificar as possíveis relações existentes entre a
emergência destes saberes que têm a criança como objeto de investigação
e a teoria freudiana sobre a sexualidade infantil.
Abstract
In this research, we try to understand the infantile concept for
Sigmund Freud, at the end of the XIXth century and beginning of the XXth,
by studying Three essays on the theory of sexuality (1905) in which the
author presents his theory of the infantile sexuality. For this reason, we have
investigated Freud’s background and course, as well as the creation of
psychoanalysis, in order to identify the author’s conjectures to elaborate this
theory, formalized in 1905. The theory of infantile sexuality, by Sigmund
Freud took shape, starting mainly from problems and hypotheses occurred
during his clinical activities, or otherwise, beginning from his attempts to
elucidate and treat the hysteria phenomenon. Thus, the freudian idea of
infantile was conceived by “observing” the adult and not the child.
At the end of the XIXth century and beginning of the XXth, period
during which Sigmund Freud developed the theory of infantile sexuality we
may see that there is an increasing valorization of children and childhood as
subject for psychological studies. Thus, in this research, we generally look
forward to define the main concerns of these children’s psychological studies,
in order to contextualize the freudian theory formulation and check the
possible relationship, between the emergency of this knowledge, which
considers the child as an investigation object, and the freudian theory on
infantile sexuality.
Sumário
Introdução...........................................................................................
01
Capítulo I
A criança como objeto da ciência: os estudos psicológicos do
final do século XIX.............................................................................
05
Capítulo II
A criação da Psicanálise e a emergência do infantil na teoria
freudiana.............................................................................................
29
Capítulo III
Os “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”.........................
51
3.1. O Primeiro Ensaio...................................................................
54
3.2. O Segundo Ensaio..................................................................
64
3.3. O Terceiro Ensaio...................................................................
74
Considerações finais.........................................................................
81
Bibliografia..........................................................................................
84
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução
total ou parcial desta dissertação por processos de fotocopiadoras ou
eletrônicos.
Assinatura: ____________________ São Paulo, de de 2006.
1
Introdução
Este trabalho partiu do interesse em compreender como se
estabeleceu, a partir do século XIX, a valorização crescente da criança e da
infância enquanto objeto de conhecimento e de intervenção.
Sabe-se que a criança e a infância tornam-se um “objeto de
investimento” das sociedades ocidentais do século XIX. As atenções das
famílias voltam-se definitivamente para a criança, obras literárias têm
freqüentemente a infância como tema e diversos saberes investigam a
criança e intervêm na infância.
Dentre os saberes que têm como objetivo a pesquisa da
especificidade do período primeiro da vida do indivíduo, estão os estudos
voltados para o desenvolvimento psicológico da criança.
Também neste período verifica-se a emergência da Psicanálise,
disciplina criada pelo neurologista vienense Sigmund Freud (1856-1939). No
final do século XIX, Freud tinha como preocupação principal a elucidação do
fenômeno e tratamento da histeria, de modo que a criança não era objeto de
suas investigações. Entretanto, a partir da prática clínica e da investigação
do indivíduo adulto, o autor acabará por conceber uma idéia de infantil.
Neste trabalho, procuramos analisar a concepção de infantil
proposta por Sigmund Freud que se apresenta no final do século XIX e início
do século XX; período este, justamente no qual vemos a criança figurar
como objeto da ciência.
2
Deste modo, analisamos a obra Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905), de Sigmund Freud, procurando identificar a concepção
de infantil subjacente à teoria da sexualidade freudiana.
Antecedendo o exame da obra freudiana, abordamos no primeiro
capítulo deste trabalho, alguns aspectos do conhecimento que se produzia
sobre a criança no período em questão, apontando os principais
pressupostos e objetivos destes estudos. Apresentamos sucintamente os
problemas de dois autores, Wilhelm Preyer (1841-1897) e Bernard Pérez
(1836-1903), os quais são apontados pela bibliografia secundária como
representantes da psicologia da criança do final do século XIX. Verificamos
que os estudos psicológicos da criança destes autores, mesmo
considerando as especificidades das suas obras, têm como preocupação
comum a investigação do desenvolvimento da criança. Desenvolvimento
este, entendido como os processos evolutivos das funções orgânicas que
constituirão as faculdades humanas superiores.
No segundo capítulo nos ocupamos da descrição do percurso de
Sigmund Freud, destacando os principais aspectos envolvidos na invenção
da Psicanálise e as elaborações teóricas do autor que antecedem os Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, obra na qual o autor sistematizará a
teoria da sexualidade infantil.
A obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, é composta
por três textos, nomeados como “As aberrações sexuais”, “A sexualidade
Infantil” e, “As transformações da puberdade”, acrescidos de um resumo. A
descrição e análise destes três textos compõem o terceiro capítulo e serão
3
examinados independentemente a fim de demonstrar o percurso da
exposição das idéias traçado pelo autor nesta obra, embora a concepção de
infantil freudiana deva ser compreendida no conjunto dos textos.
Publicada em 1905, a obra em questão foi modificada pelo autor
nas suas várias reedições, o que trouxe uma dificuldade do seu exame
tendo em vista o objetivo do seu estudo. Se o objetivo foi analisar o infantil
para Freud que se configura nos Três ensaios no contexto da emergência
dos saberes sobre a criança, ou seja, no final do século XIX, o foco incidiu
necessariamente sobre as idéias e os termos que foram colocados pelo
autor em 1905. Deste modo, uma das preocupações principais do estudo
desta obra foi tentar discernir as idéias e os conceitos que de fato fizeram
parte da primeira versão da obra. Para tanto, realizamos o estudo cotejando
diferentes edições que indicam as introduções feitas pelo autor, posteriores
a 1905.
1
Assim, entendemos que a relevância deste trabalho, à proporção
de uma dissertação de mestrado, está na distinção que se propõe
estabelecer entre aspectos da história da Psicologia e da Psicanálise.
Procuramos demonstrar que a Psicanálise e a Psicologia da criança do final
do século XIX têm objetos e objetivos distintos. A teoria da sexualidade
infantil proposta por Freud nos Três ensaios em 1905, muitas vezes é
assimilada como uma formulação teórica sobre a criança, de tal modo que
pode dar a impressão que Freud teria se ocupado do estudo da sexualidade
1
O estudo foi realizado através do cotejamento de quatro edições: a edição brasileira da Imago
(2002); a quarta edição espanhola da Biblioteca Nueva (1981); a edição francesa da Gallimard (1978)
e a edição argentina da Amorrortu (1995).
4
da criança, tal como outros autores ocuparam-se do estudo da inteligência e
do desenvolvimento motor; como se todos estivessem motivados pelo
“sentimento de infância” que predominava no período e imbuídos pelo
mesmo projeto de se fazer uma ciência da criança.
E é neste sentido que o emprego do termo infantil na sua forma
substantivada se faz adequada para referir-se à concepção freudiana já que
não se trata de uma formulação sobre a criança, mas de uma idéia de
infantil. Pudemos verificar que infantil para o autor é aquilo que é relativo à
infância ou à criança, mas que se faz também um predicado do adulto.
5
Capítulo I
A criança como objeto da ciência: os estudos psicológicos do final do
século XIX
Neste primeiro capítulo apresentaremos algumas características
da concepção ocidental de infância do final do século XIX. Especificamente,
abordaremos a infância e a criança como objeto do conhecimento da
Psicologia no período em questão.
Sabe-se que a noção contemporânea de infância como fase
específica do desenvolvimento do homem nem sempre existiu como tal.
Para o historiador Phillippe Ariès, nas sociedades medievais não existia uma
consciência das particularidades da infância, ou nos termos do autor, não
havia um “sentimento de infância”. É na modernidade, na transição do
século XVII para o XVIII que os sentimentos de infância surgirão, seja a
partir do interior da família, seja através dos moralistas e educadores do
período.
2
Para Ariès o sentimento de infância teria inspirado os rumos da
educação e do conhecimento sobre a criança nos séculos posteriores.
Sobre o século XIX, Michelle Perrot coloca que há uma
valorização crescente da infância no contexto da vida privada da sociedade
ocidental. Tal valorização estaria representada pela disciplina rigorosa
imposta à criança, que deveria formar o adulto que se esperava; e,
2
P. Ariès, História social da criança e da família, p. 56.
6
paradoxalmente, através da aproximação afetiva que se estabelecia entre
pais e filhos.
3
Para os historiadores citados parece haver uma relação estreita
entre a valorização da infância e os saberes que têm a criança como objeto
de suas investigações, como a Pedagogia e a Psicologia.
Verifica-se que de fato no final do século XIX a infância e a
criança são uma preocupação da Psicologia, assim como para outras
disciplinas.
4
De modo geral, sobre a Psicologia do século XIX é necessário
pontuar em primeiro lugar, que seria mais adequado se nos referíssemos a
psicologias, tendo em vista a diversidade dos saberes que se voltam para a
explicação do comportamento do homem. Entretanto, pode-se afirmar
também, que tais saberes têm como característica comum a tentativa de se
tornarem conhecimentos positivos através da aplicação dos preceitos
metodológicos das ciências naturais. Sobre tais psicologias, Michel Foucault
afirma que estão apoiadas em dois postulados filosóficos; a saber:
3
M. Perrot,Figuras e papéis”. in P. Ariès & G. Duby (orgs.) História da vida privada: da Revolução
Francesa à Primeira Guerra, pp. 153-162.
4
Entre os autores de estudos psicológicos da criança no período em questão citamos: Alfred Binet
(1857-1911) e Théodule Ribot (1839-1916), representantes da psicologia experimental francesa; o
alemão Karl Gross (1881-1946), autor das obras Die Spiele de Tieres (1896) e Die Spiele der
Menchen (1899), cuja preocupação é a compreensão do papel do jogo na adaptação e no
desenvolvimento da aprendizagem; o inglês James Sully autor da obra Studies of Childhood (1895),
cujas preocupações principais são os métodos educativos; o norte-americano Stanley Hall (1844-
1924), cuja principal obra é Adolescence (1904); e o também norte-americano James Mark Baldwin
(1861-1934), autor da obra Mental Development in the Child and the Race (1895), considerado um
dos introdutores da disciplina de psicologia experimental nos Estados Unidos.
7
“(...) que a verdade do homem está exaurida em seu ser
natural, e que o caminho de todo conhecimento científico
deve passar pela determinação de relações quantitativas,
pela construção de hipóteses e pela verificação
experimental”.
5
Michel Foucault afirma também que estas psicologias mantiveram
uma relação de reciprocidade com a prática, seja como fundamentação
científica como na Pedagogia, seja através dos problemas que a prática
trazia. O autor apresenta também três modelos de ciência sobre os quais as
diversas psicologias do final século XIX estariam baseadas: o modelo físico-
químico, o modelo orgânico e o modelo evolucionista. Este último teria
possibilitado à Psicologia que introduzisse a noção de que o fato psicológico
só tem sentido se estiver em relação com um passado e com um futuro.
O autor não trata especificamente da criança como objeto das
psicologias do fim do século XIX, mas faz referência à psicologia do
desenvolvimento; e esta está colocada pelo autor “como uma reflexão sobre
as interrupções do desenvolvimento”.
6
Kern apresenta diversos estudos sobre a criança na virada do
século XIX para o XX, destacando estudos psicológicos. Embora para o
autor o interesse pela criança tenha derivado de “correntes intelectuais e em
particular o Darwinismo”, salienta que há vários outros fatos sociais no
período em relação à criança a serem considerados. Para o autor, trata-se
5
M. Foucault, “A psicologia de 1850 a 1950”. in M. B. da Motta (org.), Problematização do sujeito:
psicologia, psiquiatria e psicanálise, p. 133.
6
Ibid., pp. 133-134.
8
de um “movimento” que envolveu várias disciplinas e que estão refletidas em
mudanças sociais, como por exemplo, no campo do direito, na instituição de
sociedades de proteção à criança, na emergência da educação pública e
mudanças nas constituições familiares.
7
Dominique Ottavi ao apresentar e discutir aspectos das origens da
Psicologia da criança coloca que esta surge a partir de um problema advindo
da ciência, e não fruto de um interesse ou de uma valorização da criança.
Estas primeiras teorias sobre a criança teriam se desenvolvido, num primeiro
momento, independentemente da questão da aplicação do conhecimento às
práticas educativas.
8
Ottavi descreve como a criança se tornará objeto das ciências
psicológicas a partir da lógica do raciocínio biológico do século XIX. A
criança tornava-se objeto da ciência muito mais por ser um meio, um
caminho para elucidação de fenômenos da evolução, do que um fim em si
mesma. E neste sentido o autor faz a seguinte afirmação:
“Assim, a teoria da ‘recapitulação’, encarnada por autores
muito diferentes como Ernest Haeckel, Herbert Spencer ou
Hippolyte Taine, constituem o ponto de partida do estudo
experimental da criança. Com obras chave cristalizam o
interesse pela criança, como verdadeiros pólos de atração
no seio da nebulosa constituída em torno do paradigma
evolucionista”.
9
7
S. R. Kern, Freud and the emergence of child psychology: 1880-1910, pp. 339-343.
8
D. Ottavi, De Darwin à Piaget: pour une histoire de la psychologie de l’enfant, pp. 5-17.
9
Ibid., p. 17. (Tradução nossa).
9
Ottavi propõe que nos interroguemos inicialmente sobre um
aspecto que considera central na Biologia do século XIX: a noção de
desenvolvimento. A invenção da ciência da criança se apresentará, para o
autor, como um prolongamento desta concepção, como uma ciência do
desenvolvimento psicológico.
Para tanto, Ottavi fundamentado na obra Du développment à
l’evolution de George Canguilhem, propõe que se faça a distinção entre duas
concepções de desenvolvimento: a concepção de desenvolvimento
preformacionista (e criacionista) e a concepção de desenvolvimento
evolucionista.
Segundo o autor, desde o século XVII e com a descoberta dos
ovários e posteriormente dos espermatozóides, uma questão estava
colocada para a ciência: como se dá a passagem do ovo fecundado à forma
adulta, ou ainda, como se explica a permanência de estruturas visíveis por
filiação. As teorias da pré-formação do século XVII, mesmo que divergentes
quanto à localização do germe (na fêmea ou no macho), tinham como
princípio a idéia de que o organismo já estaria formado no ovo fecundado.
Todas as partes do organismo já estariam presentes no germe, mas se
manifestariam ulteriormente.
Nesta perspectiva, o desenvolvimento embrionário, e depois, o
crescimento do indivíduo, nada mais seriam do que a manifestação do que
já existe. Esta noção de desenvolvimento seria, portanto, uma manifestação
do que já está dado.
10
Segundo o autor, opondo-se às teorias da pré-fomação, uma
outra concepção de desenvolvimento terá lugar a partir do século XVIII no
domínio da embriologia: a epigênese, que implica a idéia de crescimento
como uma formação sucessiva de organismos que previamente não existem
no ovo fecundado. O germe se associaria a substâncias exteriores e se
organizariam a partir de estruturas primárias inexistentes.
Se o desenvolvimento não é mais um modelo destinado a se
repetir, e sim, uma organização que se forma pouco a pouco, temos
necessariamente uma concepção de desenvolvimento que implica a noção
de tempo.
François Jacob destaca a introdução do tempo na Biologia e as
transformações que ocorreram neste campo do conhecimento a partir do
século XVIII.
10
Para Jacob, a partir do século XVII “a ciência da natureza torna-se
uma decifração”.
11
O mecanicismo aplicado à ciência da vida torna o
conhecimento dos seres vivos o reconhecimento do funcionamento de suas
estruturas visíveis. A diversidade dos seres vivos e as condições de
observação das estruturas visíveis no final do século XVII caracterizarão o
conhecimento como comparações dos seres vivos e terá como um de seus
objetivos a classificação.
As preocupações dos naturalistas do período terão, segundo o
autor, como conseqüência o conceito de espécie: “O conceito de espécie
10
F. Jacob, A lógica da vida, pp. 137-183.
11
Ibid., p. 35.
11
nasce assim, no final do século XVII, da necessidade sentida pelos
naturalistas de fundar suas classificações na realidade da natureza”.
12
A
espécie seria, portanto, uma unidade básica natural das classificações.
Jacob coloca que “com o conceito de espécie a geração torna-se
uma expressão da regularidade da natureza”.
13
Desta forma, a pré-formação
dos germes envolvidos na fecundação seria o único modo de explicar as
formas visíveis por filiação.
A idéia de preexistência e pré-formação implicava um ser vivo que
já está realizado no seu germe. É neste sentido que o autor afirmará que até
o século XVIII os seres vivos não tinham história. E é durante o século XVIII,
com conceito de reprodução, entre outros aspectos, que surge a
possibilidade dos seres vivos terem um passado e um futuro. Há uma
necessidade de elucidar fenômenos advindos da reprodução que o modelo
da pré-formação deixava de contemplar.
O ser vivo, passa a ser entendido, nos termos do autor, como
uma organização, em que estão articulados estruturas, funções e meio. Se o
ser vivo é entendido como objeto de transformações, ele está
necessariamente inserido numa dimensão temporal.
Jacob descreve o papel do tempo na gênese dos seres vivos na
passagem do século XVIII para o XIX. No século XIX a ação do tempo
incidirá não só sobre um ser vivo isoladamente; a noção de tempo que se
introduz diz respeito ao conjunto dos seres vivos, os quais sendo passíveis
12
Ibid, p. 58.
13
Ibid., p. 59.
12
de transformações, podem ser ligados através das gerações. Há, portanto, a
possibilidade de se fazer uma história do mundo vivo.
14
Neste sentido, Jacob coloca que a partir do século XIX, com as
teorias da evolução, há uma mudança radical do pensamento em relação ao
mundo vivo.
Segundo o autor, a teoria de Lamarck (1744-1829), considerando
os textos do segundo período de sua obra, ao propor que nos grandes
grupos de seres vivos ao longo do tempo e em função do meio em que se
encontram, haveria um aumento da complexidade orgânica dos seres vivos,
atribui ao tempo um papel de operador de transformações de um processo
de sentido único e progressivo.
15
As teorias da evolução de Charles Darwin (1809-1882) e Alfred
Russell Wallace (1823-1913), para Jacob se distinguiriam radicalmente do
pensamento do período anterior, pois estas implicavam a noção de
contingência. O tempo, segundo o autor não atuaria em função da utilidade;
as variações podem ser “acidentais”. A seleção natural, processo a que
estão submetidos os seres vivos, implica a noção de contingência, isto é, a
variação poderá ocorrer como uma melhoria ou não.
Nesta perspectiva, o tempo não atua mais como uma sucessão
linear através do qual vemos realizar-se uma “intenção” de antemão
14
Ibid., p. 149.
15
Faz-se necessário observar, como coloca Martins, que embora Lamarck proponha que as
transformações dos animais ao longo do tempo ocorram como um aumento da complexidade de seus
órgãos, isto não significa que para Lamarck esta escala de perfeição crescente seja linear. De acordo
com a autora, para Lamarck esta escala “apresenta ramificações devido à ação das circunstâncias,
produzindo grupos menores como, por exemplo, algumas raças de moluscos gastrópodes (caracóis)
que apresentam antenas”. L.A-C.P. Martins, Lamarck, evolução orgânica e a adaptação dos seres
vivos: algumas possíveis relações, pp. 299-306.
13
existente. Será necessário observar o que ocorrerá com o novo ser vivo e
analisar as variações que se apresentam a partir da reprodução. O autor
afirmará que a reprodução dos seres terá uma grande importância na
Biologia em meados do século XIX:
“Ela torna-se o principal operador do mundo vivo, fonte ao
mesmo tempo da permanência e da variação, processo pelo
qual se mantêm e se diversificam as estruturas, as
qualidades, os atributos dos seres. Ela é o ponto de
confluência do determinismo que rege a formação do
semelhante e da contingência que preside ao aparecimento
das novidades”.
16
Assim, segundo o autor, a Biologia terá mudanças na sua prática,
ela deixará de ser um conhecimento restrito à observação e se voltará para
a experimentação.
E é neste contexto que a Psicologia da criança emerge; como
uma ciência do desenvolvimento em meio ao debate colocado no campo da
Biologia do século XIX.
Segundo Ottavi o princípio da recapitulação representada
principalmente pela teoria evolucionista de Ernest Haeckel (1934-1919),
seria um importante pressuposto para que a criança viesse a se tornar um
objeto de estudo da Psicologia. A teoria de Haeckel ao considerar que a
ontogenia, ou desenvolvimento do indivíduo “recapitula” as etapas do
processo de desenvolvimento biológico da espécie como um todo e que a
16
F. Jacob, op.cit., p. 182.
14
alma humana é parte deste desenvolvimento biológico, teria permitido que a
criança se tornasse para a ciência um testemunho do desenvolvimento
psicológico humano, pois trazia a possibilidade de reconstituir através da sua
observação a psicogênese da espécie.
17
Neste sentido, poderíamos afirmar que a concepção de criança
está vinculada à idéia de memória, ela traz consigo a história da espécie,
uma vez que ela é um ser em desenvolvimento.
Ottavi coloca que tal concepção sofrerá uma inflexão à medida
que o processo de desenvolvimento infantil se torna também possibilidade
de intervenção. A criança será portadora de um passado, mas também da
indeterminação do futuro.
Dominique Ottavi descreve o pensamento de alguns autores do
final do século XIX que se ocuparam do conhecimento psicológico da
criança dos quais destacaremos Wilhelm Thierry Preyer (1841-1897) e
Bernard Pérez (1836-1903), a fim de desenvolver as idéias já expostas
através de uma apresentação sucinta do pensamento destes autores.
A escolha destes dois autores como representantes dos estudos
sobre a criança produzidos no final do século XIX, teve como critério o fato
de terem objetivos distintos de tal forma que possibilitam também ilustrar a
questão colocada no início deste capítulo quanto às relações que tais
conhecimentos estabelecem ou não com as práticas educativas.
17
D. Ottavi, op.cit., p. 47.
15
Verifica-se que a obra Die Seele des Kindes (1882)
18
de Wilhelm
Preyer é apontada na literatura secundária como um marco da Psicologia da
criança, ainda que considerem a relevância de outros estudos
contemporâneos e antecedentes à obra de Preyer.
19
Também parecem concordar, os autores citados, quanto aos
pressupostos do pensamento de Preyer. Esta obra do fisiologista inglês,
educado na Alemanha, teria francamente impressa a marca do
evolucionismo de Charles Darwin e Ernest Haeckel.
20
Partindo da observação diária do seu filho, três vezes ao dia do
nascimento até os três anos de idade, Preyer se ocupará, nesta obra, do
desenvolvimento mental da criança.
As observações biográficas como método de estudo da criança é
progressivamente utilizado na Europa a partir da segunda metade do século
XIX.
21
Charles Darwin utilizou o método observando seu filho nos
primeiros meses de vida. Em artigo publicado em 1877, Darwin faz
referência à publicação de Hippolyte Taine (1828-1893) a qual teria feito com
18
A obra foi traduzida para o inglês como The Mind of the Child e para o francês como L’âme de
L’enfant.
19
Ver por exemplo: M. Debesse, “La infância em la historia de la psicologia” in H. Gratiot-
Alphandéry & R. Zazzo, Tratado de psicologia del niño: historia y generalidades, pp. 31-43; S. R.
Kern, Freud and the Emergence of Child Psychology: 1880-1910, p. 215 e D. Ottavi, De Darwin a
Piaget: pour une histoire de la psychologie de l’enfant, p. 129.
20
Especificamente as idéias contidas nas obras: The Descent of Man, and Selection in Relation Sex
(1871) e The Expression of Emotions in Man and the Animals (1872) de C. Darwin e Generelle
Morphologie der Organismen, Allgemeine Grundrünge der Organischen Formen-Wissenschaft (1866)
de E. Haeckel.
21
M. Debesse, “La infância em la historia de la Psicología” in H. Gratiot-Alphandéry & R. Zazzo,
Tratado de psicologia del niño: historia y generalidades, p. 35. O autor coloca que os estudos sobre a
criança norte-americanos do mesmo período são caracterizados por outro método. Trata-se de
pesquisa mediante questionários aplicados a um grande número de sujeitos; tais como os estudos de
Stanley Hall (1844-1924).
16
que resolvesse publicar também o diário de observações do seu filho
realizadas 37 anos antes. Darwin afirma que o principal objeto das
observações de seu filho era o estudo das expressões humanas e dos
animais.
22
Wilhelm Preyer no prefácio da extensa obra A alma da criança
expõe que o estudo do desenvolvimento da criança do ponto de vista
fisiológico daria continuidade ao estudo do desenvolvimento embrionário que
já havia realizado. O objetivo de Preyer é procurar discernir os dois fatores
que constituem segundo ele a Psyche: a hereditariedade e a atividade
individual.
23
O autor inicia a obra com a descrição das primeiras observações
do bebê realizadas já aos cinco minutos de vida. Para Preyer o
desenvolvimento mental está fundado nas atividades dos sentidos e o autor
as descreve na primeira parte da obra, na seguinte ordem e em forma de
capítulos: a visão, a escuta, o tato, o gosto e o olfato. Segue ainda na
primeira parte da obra, com a descrição das primeiras sensações e
emoções: as sensações de prazer em geral, de desprazer, a fome, a
saciedade, a fadiga, o medo e o susto (espanto). Na segunda parte da obra,
Preyer tratará das primeiras manifestações da vontade, e na terceira, do
desenvolvimento intelectual.
Na primeira parte da obra, Preyer faz uma minuciosa descrição do
desenvolvimento dos sentidos na criança. Buscando sempre as primeiras
22
C. Darwin, A Biografical Sketch of an Infant Mind, p. 285.
23
W. Preyer, The Mind of the Child: Observations Concerning the Mental Development of the Human
Being in the First Years of Life, pp. IX-XV.
17
manifestações das faculdades dos sentidos na criança, as descrições das
observações de Preyer vêm sempre acompanhadas de explicações
fisiológicas do funcionamento do órgão do sentido em questão. Também,
invariavelmente, o autor descreve a manifestação das mesmas faculdades
observadas nos animais.
O aparecimento das primeiras emoções é também descrito por
Preyer como uma fisiologia do prazer e do desconforto. O autor ocupa-se da
expressão corporal e dos sinais observáveis de algumas sensações. Preyer
faz algumas referências a Charles Darwin como, por exemplo, a descrição
da expressão facial nos primeiros meses de vida diante de uma situação de
desprazer.
24
Preyer parece concordar com Darwin ao considerar que as
expressões das emoções seriam resíduos de experiências ancestrais. Ao
descrever, por exemplo, a sensação do medo na criança, Preyer afirma que
podemos observar em algumas situações a manifestação do medo como
uma sensação herdada. O argumento usado pelo autor é o de que muitas
crianças pequenas mostram-se amedrontadas ao se depararem com
animais como os cães, porcos e gatos antes mesmo de conhecerem as
qualidades de perigo que estes animais podem oferecer.
25
Darwin faz
afirmação semelhante no artigo anteriormente citado sobre a observação de
seu filho. Darwin afirma que há alguns medos reais sentidos pelas crianças
24
Ibid., p. 149.
25
Ibid., p. 164.
18
pequenas, que tendem a desaparecer, e que seriam independentes da
experiência.
26
Ressaltamos que Preyer não deixa de considerar as atividades e
experiências individuais no desenvolvimento infantil. Na segunda parte da
obra, o autor trata do desenvolvimento da vontade na criança. Para Preyer
um recém-nascido não tem vontade, pois “um ato de vontade só é possível
depois do desenvolvimento das percepções”.
27
Para o autor a vontade se
manifestará na criança a partir dos movimentos físicos, ou seja, a vontade
pressupõe certos movimentos para expressá-la. Preyer afirma que são
quatro as manifestações da vontade: as palavras, os atos, a fisionomia e os
gestos. Deste modo, o autor distingue e classifica os vários movimentos
inatos observáveis na criança, dos movimentos propriamente voluntários;
mencionando inclusive os movimentos do feto.
Os movimentos voluntários implicam um objetivo e, portanto, a
existência de uma idéia, de modo que: “Sem a faculdade das
representações intelectuais não há vontade; sem a atividade dos sentidos
não há representação; assim a vontade é de fato indissoluvelmente ligado às
sensações”.
28
Como observa Ottavi, para Preyer os movimentos são o ponto de
partida: primeiro viria o “esforço” motor; a vontade viria depois.
29
Para Preyer
os primeiros passos dados pela criança na atividade do andar, por exemplo,
26
C. Darwin, op.cit., p. 288.
27
W. Preyer, op. cit., p. 187.
28
Ibid., p. 337. (Tradução nossa).
29
D. Ottavi, op.cit., p. 132.
19
são desprovidos de um objetivo e não são aprendidos pela criança. Em
outros termos: primeiro viria a atividade motora e posteriormente a ela seria
atribuída uma significação consciente. Sobre as ações observáveis em todas
as crianças em diferentes momentos do seu desenvolvimento tais como o
sentar, o ficar de pé, o rastejar (engatinhar), o correr, o andar, o pular, o
subir, o arremessar, o autor afirma que:
“(...) estes movimentos são predominantemente ou
exclusivamente instintivos. Eles não se fazem conhecidos
pela educação. Se insistirmos em dizer que são aprendidos,
é necessário que se admita então que o são apenas numa
mínima proporção através da imitação; a uma criança que
não é imposto nenhum obstáculo para o pular, subir,
arremessar, ela irá sem fracassar executar estes
movimentos, mesmo quando ela não foi treinada para tal.
Nossos ancestrais devem ter encontrado nestes
movimentos utilidades particulares; estes passaram ao
estado de movimentos habituais e tornaram-se
hereditários”.
30
Ainda na segunda parte da obra, o autor dedica um capítulo aos
movimentos imitativos (imitação por parte da criança dos movimentos de
outras pessoas). Os movimentos de imitação da criança são para Preyer a
demonstração que a criança já tem a vontade, pois implica o triplo processo
de primeiro perceber através dos sentidos, depois de ter uma idéia do
percebido, e terceiro de executar o movimento que corresponde a esta idéia.
30
W. Preyer, op. cit., p. 281. (Tradução nossa).
20
Preyer afirma que a imitação seria, deste modo, a prova certa da atividade
do cérebro da criança ou provavelmente de certas partes do córtex
cerebral.
31
Podemos afirmar neste sentido que, se para Preyer identificamos
a emergência da vontade na imitação, e esta é conseqüência do
amadurecimento do cérebro da criança, a noção de desenvolvimento da
criança para o autor, é, sobretudo, um desenvolvimento orgânico que se
apresenta como uma sucessão cronológica de fatos observáveis.
O autor descreve os vários movimentos de imitação da criança,
sendo que os primeiros aparentam serem involuntários e conforme a criança
cresce, tais imitações vão se tornando cada vez mais complexas e perfeitas,
e também mais ligadas às experiências diárias. Preyer menciona, por
exemplo, a imperfeição dos primeiros movimentos imitativos dos bebês aos
quatro, sete e nove meses de idade. O autor menciona o aceno como um
movimento imitativo praticado cedo pelas crianças e observado em seu filho
aos dez meses de idade. As imitações observadas mais tarde, no segundo
ano de vida, tais como os movimentos cerimoniosos (cumprimento) se
distinguem destes, uma vez que, são executados sem que haja qualquer
indução ou solicitação.
Na terceira e última parte da obra, ao tratar do desenvolvimento
intelectual da criança, o autor coloca que como fruto de suas observações
concluiu que ao contrário das idéias correntes, o desenvolvimento intelectual
é independente da aquisição da linguagem.
31
W. Preyer, op. cit., p. 282.
21
Preyer coloca que é difícil estabelecer um desenvolvimento
normal, já que este está subordinado ao meio e à educação antes mesmo de
uma instrução sistemática. Entretanto, o autor se propõe a demonstrar que a
criança pensa antes de conhecer a significação de uma só palavra; isto é, o
encadeamento das idéias, o processo lógico de associação entre as
sensações que vão sendo armazenadas na memória e as novas sensações
coordenadas no espaço e tempo, precede a fala. A criança constrói os
conceitos, e em seguida os nomeiam. Nos termos do autor: “a lógica
embrionária não precisa das palavras”.
32
O autor argumenta que este processo de formação das primeiras
idéias e representações simples, inferiores, gerais, podem ser observadas
nas crianças afásicas, nos surdos-mudos e nos animais superiores. Preyer
dedicará a maior parte dos capítulos desta terceira parte da obra para
demonstrar esta tese, descrevendo as condições orgânicas para a aquisição
da fala, os distúrbios relacionados à linguagem e a observação da linguagem
nos três primeiros anos de vida da criança.
As primeiras idéias, para Preyer não são inatas, mas são
hereditárias. Como já colocado, a formação das primeiras idéias pressupõe
uma associação das sensações, de modo que não podem ser inatas. No
entanto, há sim, para Preyer uma inteligência inata, entendida como uma
capacidade orgânica, uma função potencial do cérebro para perceber as
coisas e formar idéias a qual seria transmitida por várias gerações.
32
W. Preyer, The mind of the child III., p. 2.
22
O “desenvolvimento do sentimento do eu”, para Preyer está
naturalmente ligado ao desenvolvimento intelectual. Progressivamente, a
criança adquire a consciência do eu através da percepção de que partes do
seu corpo lhe pertencem, tal como os conceitos que se formam a partir da
coordenação de sensações. Deste modo, as experiências mais complexas
permitirão que o indivíduo chegue a uma unidade do eu. O conceito abstrato
do eu é possível apenas para o indivíduo adulto, pois implica a capacidade
de abstração e a criança não teria ainda um repertório e as conexões
orgânicas necessárias para tal.
33
A criança, para Preyer, a partir de uma longa série de
experiências individuais, em particular as dolorosas, diferenciará o eu do não
eu adaptando-se ao próprio corpo. Se as partes do seu corpo inicialmente
eram percebidas como estranhas pela criança, elas deixam de ser objeto de
interesse da criança com o desenvolvimento do sentimento do eu, pois
deixam de causar novas sensações, isto é, agem sobre os órgãos dos
sentidos de forma uniforme. Assim, a criança se voltará para o mundo
externo, o que lhe causará novas impressões objetivas. E é à medida que as
impressões do mundo externo se sucedem e que a criança “experimenta ser
a causa” de tais impressões, que o desenvolvimento do eu se dá
progressivamente.
34
Preyer conclui a obra com a afirmação de que o desenvolvimento
do eu da criança é a possibilidade “de superar sua natureza animal da
33
W. Preyer, op. cit., p. 206.
34
W. Preyer, op. cit., p. 219.
23
primeira fase de sua existência”, e ao se tornar um homem pensante, atinge
o topo da experiência da vida.
35
E no último parágrafo da obra, o autor nos
explicita porque “a alma da criança” é objeto de seu estudo: “A história do
desenvolvimento da alma da criança fornece a explicação do enigma que se
coloca quando nos perguntamos como estes extremos [a natureza animal e
a humana] estão ligados um ao outro”.
36
Diferentes dos objetivos de Preyer são os de Bernard Pérez.
Como coloca Ottavi, o filósofo francês tem como objetivo afirmar a
autonomia de uma ciência da criança e estabelecer relações entre os
problemas científicos e as preocupações da educação.
37
Também aponta Ottavi que a obra de Bernard Pérez apesar de
bastante conhecida na época, teria caído no esquecimento. Para Ottavi este
“sucesso efêmero” da obra de Bernard Pérez poderia ser explicado,
sobretudo, pelo fato do autor não desenvolver propriamente uma teoria
sobre a educação e situar-se do ponto de vista do universo privado das
famílias, isto é, o universo da intimidade burguesa.
38
A primeira obra de Pérez, Les trois premiéres années de l’enfant é
publicada em 1878, sendo reformulada na edição de 1882 e acrescida de
um prefácio do psicólogo inglês James Sully na edição seguinte de 1886. A
partir da décima edição a obra passa a ter o título La psychologie de l’enfant,
les trois premières année.
35
Ibid., p. 219.
36
Ibid., p. 220.
37
D. Ottavi, op.cit., p. 144.
38
Ibid., p. 144.
24
Esta obra tem como objeto principal a Psicologia da criança em
geral. Os três primeiros anos de vida da criança seriam para Pérez, o início
de um desenvolvimento que se dá como uma sucessão de etapas em que o
psíquico interage com o ambiente. É com esta idéia de desenvolvimento
global e cronológico que Pérez publicou também a obra L’enfant de trois à
sept ans (1886).
Pérez, segundo Ottavi, teria como projeto a elaboração de uma
teoria da educação caracterizada pela presença de recomendações e
conselhos em suas obras nas quais não se percebe claramente os
fundamentos científicos sobre os quais o autor está amparado.
No prefácio da obra Les trois premiéres annés de l’enfant o autor
coloca que a sua interpretação dos fatos é conduzida segundo o espírito do
método experimental. Declara também, que “não é de nenhuma escola”
apesar de ter “preferências e tendências” entre as quais cita as explicações
de Charles Darwin e de Herbert Spencer para o processo evolutivo
humano.
39
Ainda sobre os pressupostos de Pérez, Ottavi coloca que tal como
Hypollite Taine, o conhecimento da criança é entendido como o
conhecimento da psicogênese enquanto formação da inteligência constituída
pelas experiências acumuladas das gerações.
40
Ottavi coloca também que o pensamento de Pérez poderia ser
qualificado como neo-lamarckista, ainda que o fator darwiniano da evolução,
39
B. Pérez, Les trois premières anées de l’enfant, p. II.
40
D. Ottavi, op.cit., p. 147.
25
isto é, a seleção natural não estivesse, à época, nitidamente em oposição à
idéia de hereditariedade das características adquiridas.
41
Pérez tal como Preyer também dedica a primeira parte da obra
para descrever as primeiras impressões dos bebês. Inicia com descrição das
impressões intra-uterinas e do momento do nascimento. Pérez estabelece
uma outra ordem para tratar das primeiras sensações do bebê e as
descrições são muito mais curtas, pois não se trata da descrição de
observações sistemáticas, tal como o estudo de Preyer que apresenta
explicações fisiológicas do desenvolvimento da criança. Pérez cita o estudo
de outros autores para sua argumentação, e com muita freqüência, a obra
de Preyer abordada anteriormente.
A primeira das sensações a ser descrita por Pérez é o gosto.
Enquanto que Preyer descreve as reações do bebê em relação aos
diferentes sabores (ácido, doce, etc) procurando identificar como se dá a
diferenciação destes, Pérez trata de aspectos que poderíamos chamar de
“subjetivos” envolvidos com o gosto. Pérez faz a seguinte afirmação na
seção em que trata do gosto:
“Em resumo, os mais vivos sentimentos da criança são por
muito tempo aqueles que se relacionam com o gosto. A
necessidade de alimentar-se domina por muito tempo todas
41
Sobre esta questão ver artigo de L.A.-C.P. Martins, “Herbert Spencer e o neolamarckismo: um
estudo de caso” in L.A.-C.P. Martins; C.C. Silva e J. M. H. Ferreira (eds.) Filosofia e história da
ciência no Cone Sul: 3º encontro AFHIC, pp. 281-289. A autora adverte-nos justamente do quão
problemático é qualificar o pensamento de autores como lamarckistas e neo-lamarckistas,
demonstrando através do estudo da obra de Herbert Spencer a convivência da idéia de seleção natural
darwiniana com a aceitação da herança de caracteres adquiridos para a explicação de alguns casos
como fatores da evolução orgânica.
26
as outras necessidades, mesmo a necessidade de
movimento; ele é o primeiro a se manifestar e o mais
persistente. Esta imperiosa e ativa necessidade está ligada,
para a criança, às emoções mais agradáveis. É através da
satisfação do apetite que ela se põe a conhecer e a amar
sucessivamente o seio de sua nutriz ou sua própria
mamadeira, e em seguida as mãos, o rosto, a voz, os olhos,
o riso, as carícias, a pessoa inteira de sua nutriz”.
42
Também em outras partes da obra verifica-se a presença desta
preocupação com os “aspectos subjetivos” do desenvolvimento da criança,
fazendo denotar, inclusive, no seu discurso, um certo tom de
“aconselhamento preventivo”. Estes aconselhamentos mostram-se bastante
evidentes no último capítulo da obra que trata da formação moral da criança
em que o autor se dirige aos educadores psicólogos. Estes são advertidos
quanto aos hábitos que a criança pode adquirir e da necessidade de um
direcionamento da vontade da criança.
43
Ressaltamos, entretanto, que esta preocupação com a educação
está baseada numa concepção de desenvolvimento que para Pérez é
entendido como uma sucessão de etapas contínuas. Como aponta Ottavi
para o autor não se trata de um desenvolvimento organizado em estádios
separados por rupturas tal como estabelece Jean Piaget (1896-1968).
44
42
B. Pérez, op. cit., p. 18.
43
Ibid., pp. 327-338.
44
A psicologia genética de Jean Piaget considera que o desenvolvimento psicológico da criança se dá
através da superação de grandes etapas (estádios sensório-motor, pré-operatório, das operações
concretas e operações formais).
27
Ainda segundo Ottavi a concepção de criança de Pérez se
distingue da concepção de outros estudiosos, tal como Preyer porque a
criança deixa de ser tão somente depositária da evolução da espécie, mas
também a ela será atribuído um futuro ainda indeterminado. A educação
seria, portanto, este canal que faria a partir do que é herdado, do “antigo”; o
novo.
As preocupações de Pérez de estabelecer uma psicologia
evolutiva voltada para a educação se evidenciam na obra publicada em 1888
L’art e la poésie chez l’enfant em que o autor considera a atividade artística
da criança antes de qualquer processo de aprendizagem uma forma
privilegiada de observação do desenvolvimento do processo criativo
humano.
Considerando os objetivos distintos das obras de Pérez e Preyer,
podemos afirmar que estes dois autores apresentam uma característica
comum aos estudos psicológicos da criança do final do século XIX, qual
seja, a investigação da vida mental da criança concebida do ponto de vista
do seu desenvolvimento orgânico na perspectiva das teorias da evolução.
Fazendo uso dos termos colocados por Mueller a psicologia deste
período tem como objeto “a matéria-prima da vida mental”.
45
Objeto este,
investigado principalmente à luz do método experimental que concedia à
Psicologia, entre outros aspectos, um estatuto de ciência.
Verifica-se que neste contexto a preocupação dos estudos
psicológicos da criança versa sobre os aspectos conscientes e cognitivos da
45
F-L. Mueller, História da psicologia, p. 277.
28
vida mental infantil e sobre seus respectivos comportamentos observáveis.
Podemos afirmar neste sentido, que a valorização da criança e da infância
como objeto da investigação da psicologia do final do século XIX se
consolida por ser um período da vida do homem capaz de trazer
esclarecimentos sobre o desenvolvimento e a formação da vida psíquica
humana.
Sigmund Freud, no final do século XIX também valorizará este
período primeiro do desenvolvimento do homem, isto é, para Freud a vida
infantil também terá lugar na compreensão de fenômenos da vida psíquica.
Há neste sentido, relações que podem ser estabelecidas entre a importância
que é atribuída à vida infantil na teoria da sexualidade infantil freudiana
formulada no final do século XIX e os estudos psicológicos da criança do
mesmo período? Para tanto, antes mesmo do exame do que é infantil para
Sigmund Freud no período em questão, faz-se necessário compreender os
pressupostos e o percurso do autor na criação daquilo que nomeou como
Psicanálise.
29
Capítulo II
A criação da Psicanálise e a emergência do infantil na teoria freudiana
O estudo da concepção de infantil de Sigmund Freud na obra
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de 1905 traz a necessidade de
explicitar alguns aspectos das construções teóricas freudianas.
Inicialmente vale frisar que Sigmund Freud embora conceda um
lugar privilegiado ao infantil, através da sistematização teórica que faz em
1905, não tem como objeto de suas preocupações a criança, ou seja, ela
não é objeto a partir do qual inicia suas pesquisas, nem tampouco da sua
clínica. A idéia de infantil que se configura em 1905, é, portanto, um ponto
de chegada da psicanálise freudiana, esta entendida como um método de
investigação clínica, um método de tratamento e um conjunto de
construções teóricas.
Deste modo, neste capítulo identificaremos os pressupostos
implicados nestas construções teóricas e os problemas metodológicos e
conceituais do autor que antecedem os Três ensaios.
Iniciemos com a descrição de alguns aspectos relativos à
formação médica de Sigmund Freud.
Sigmund Freud nasceu em Freiberg, na Moravia, em 1856. O
austríaco de origem judaica chega à Viena em 1860 e aos 17 anos inicia o
curso de medicina na Universidade de Viena.
Em 1873, quando iniciou o curso de Medicina, além de disciplinas
de Anatomia, Botânica, Química, Microscopia e Mineralogia, Sigmund Freud
30
também cursou a disciplina intitulada ”Biologia e Darwinismo” ministrada
pelo médico e zoólogo alemão Carl Claus (1885-1899) e “Fisiologia da Voz e
Educação” ministrada pelo professor também alemão Ernest Wilhelm von
Brücke (1819-1892).
Nos anos seguintes, 1874 e 1875, Sigmund Freud dá
continuidade aos estudos de Fisiologia e Zoologia e também realiza estudos
de Física e Filosofia.
Em 1876, Sigmund Freud realiza pesquisas em zoologia marinha
sob orientação de Carl Claus na Estação de Zoologia Marinha em Trieste.
Pesquisando sobre a estrutura gonádica das enguias, Freud dedica-se à
dissecação de enguias para o exame de estruturas histológicas. Carl Claus
que tinha chegado em Viena dois anos antes a fim de aprimorar o
departamento de Zoologia da Universidade de Viena, era um adepto do
pensamento darwiniano. Encontrava-se envolvido no debate acerca da
teoria da evolução, sobretudo numa polêmica travada sobre a questão da
gradação com Ernest Haeckel (1834-1920), um dos divulgadores do
darwinismo nos países germânicos.
46
Ainda em 1876, Sigmund Freud passa a dedicar-se a pesquisas
no Laboratório de Fisiologia de Brücke onde permaneceu até 1882.
46
L. B. Ritvo, A influência de Darwin sobre Freud, pp. 163-176. Segundo a autora Claus era um
rigoroso pesquisador, adepto de um ceticismo científico, e que considerava que era necessário um
lento processo de observações para a aplicação das idéias de Darwin, ou seja, baseado na teoria da
evolução gradual acreditava que não dispunha ainda material suficiente para estabelecer quadros
genealógicos como Haeckel fazia, considerando que este exagerava as afirmações de Darwin.
31
O médico e fisiologista Ernest Brücke a quem Freud refere-se
como um modelo, era um dos representantes da fisiologia mecanicista
alemã, conhecida por escola de Helmholtz.
47
No Instituto de Brücke investigava-se o sistema nervoso de
animais, e sobre estas pesquisas, Ernest Jones afirma que “estreitamente
vinculada a esse aspecto dinâmico da fisiologia de Brucke era sua
orientação evolutiva”.
48
Freud inicialmente realizou pesquisas microscópicas
da histologia de células nervosas de certos peixes primitivos (Petromyson).
As investigações de Freud das colunas espinhais dos Petromyson acabaram
por demonstrar que as células destes peixes inferiores (células de Reissner)
eram homólogas às células ganglionares espinhais posteriores; trabalho
este, publicado em 1878. Portanto, estas pesquisas histológicas baseadas
numa fisiologia mecanicista eram também um estudo filogenético, ou seja,
tinham uma orientação evolutiva na medida em que se buscava demonstrar
a continuidade existente entre animais inferiores e superiores.
Ritvo entretanto, procurou demonstrar a influência do pensamento
darwiniano sobre as idéias de Freud e que esta teria se consolidado através
de Carl Claus e não através de Ernest Brücke como até então se pensava.
Para a autora, não há indícios na obra e biografia de Brücke que ele
estivesse diretamente envolvido com as idéias de Darwin e o laboratório de
47
Escola de pensamento da medicina e fisiologia baseada nas ciências físico-químicas formada nos
anos quarenta em língua alemã por Hermann Ludwig Ferdinand von Helmoltz (1821-1894), físico e
fisiologista alemão; Emil Du Bois-Reymond (1818-1896), Carl Ludwig (1816-1895) e Ernest
Wilhelm von Brücke.
48
E. Jones, A vida e obra de Sigmund Freud, p. 74.
32
Brücke teria sido o espaço propício para Freud dar continuidade a seus
interesses evolucionistas.
49
Vale mencionar que Sigmund Freud não cita Carls Claus na sua
Autobiografia como o faz em relação a Brücke.
50
Peter Gay reafirma o genuíno interesse de Sigmund Freud pelo
pensamento de Darwin, e, sobretudo, pela atividade da pesquisa, mas
parece colocá-la como uma preocupação comum ao contexto e período em
questão:
“O Freud zoólogo que estudava as gônadas das enguias, o
Freud fisiologista que estudava as células nervosas de
lagostins e o Freud psicólogo que estudava as emoções dos
seres humanos estavam todos empenhados num único
empreendimento. Na rigorosa pesquisa histológica que
realizou para Brücke, Freud estava participando de um
imenso esforço coletivo a fim de demonstrar os caminhos da
evolução. Para ele, Darwin nunca deixou de ser ‘o grande
Darwin’, e as investigações biológicas agradavam mais a
Freud do que o atendimento aos pacientes”.
51
Entre 1879 e 1882 as investigações de Sigmund Freud eram as
células nervosas de lagostins. Segundo Jones estas pesquisas de Freud
situavam-se num campo para além da histologia:
“Nesses trabalhos iniciais de pesquisa Freud limitava-se
estritamente a ponto de vista anatômico, embora deixasse
claro que as suas investigações eram realizadas com a
49
E. Jones, op. cit., pp. 209-220.
50
S. Freud, Autobiografia, pp. 2762-2763.
51
P. Gay, Freud: uma vida para nosso tempo, p. 188.
33
esperança de obter uma visão interna do mistério da ação
do nervo”.
52
Sigmund Freud deixa o Instituto de Brücke em 1882, já formado,
onde tinha sido promovido à posição de Demonstrador. Por dificuldades
financeiras e apesar do interesse pelas pesquisas que vinha realizando,
passa a dedicar-se à prática da medicina. No Hospital Geral de Viena, entre
1882 a 1885, Sigmund Freud trabalhou em serviços médicos de várias
especialidades: cirurgia, medicina de doenças internas, psiquiatria,
dermatologia, doenças nervosas e oftalmologia.
Destacamos a experiência que Freud teve como assistente na
clínica psiquiátrica chefiada pelo psiquiatra Theodor Meynert (1833-1892). A
psiquiatria neste período era caracterizada pelos estudos
anatomopatológicos em que se procurava os substratos orgânicos
correspondentes à sintomatologia da doença mental. Meynert anatomista do
cérebro, inspirado no modelo herbatiano
53
era um representante da
psiquiatria na Viena do final do século XIX. Assim, é neste contexto que
Freud tem suas primeiras experiências clínicas e realiza investigações sobre
anatomia cerebral no laboratório de Meynert, tendo publicado trabalhos
sobre suas pesquisas.
Em 1885, após ser nomeado docente (Privadozent) em
neurologia, Freud obtém uma bolsa de estudos e vai a Paris atraído pelo
52
E. Jones, op.cit., p. 79.
53
A referência é ao filósofo alemão Johann Friedrich Herbart (1776-1841), cuja principal obra é A
psicologia como ciência fundada na experiência, na metafísica e na matemática.
34
renome do neurologista Jean Martin Charcot (1825-1893) e pelos estudos
sobre o fenômeno da histeria que este desenvolvia como docente da cadeira
de doenças nervosas no Hospital da Salpêtrière.
Ao submeter a histeria, ainda nos anos setenta, ao modelo
anátomo-clínico, Charcot possibilitou à histeria figurar como uma doença
nervosa. Entretanto, o modelo anátomo-clínico em que as doenças ao
apresentarem uma sintomatologia regular são remetidas às lesões orgânicas
identificáveis pela anatomia patológica, não abarcava o fenômeno da
histeria. Diante da ausência da lesão correspondente à sintomatologia,
Charcot passa a descrevê-la como uma perturbação funcional ou dinâmica
do sistema nervoso de origem orgânica. A técnica da hipnose foi utilizada
por Charcot a fim de explicar a natureza da histeria, pois se através da
hipnose era possível produzir experimentalmente os sintomas histéricos,
esta iria permitir descobrir as leis que regem a produção do sintoma.
Desta forma, segundo Charcot, havendo uma predisposição
hereditária e um trauma psíquico produzir-se-ia um estado hipnótico, o que
tornaria a pessoa suscetível de sugestão; sendo os sintomas histéricos,
manifestações corporais do trauma. Assim, o estado hipnótico produzido
experimentalmente remeteria ao estado da situação traumática de forma
temporária, podendo deste modo, os sintomas histéricos serem suprimidos.
35
Sigmund Freud retorna a Viena em 1886
54
, impressionado com os
ensinamentos de Charcot. Freud relata na sua Autobiografia o que mais o
impressionou:
“(...) a demonstração da autenticidade e normalidade dos
fenômenos histéricos e a freqüente aparição da histeria em
sujeitos masculinos, a criação de paralisias e contraturas
histéricas por meio da sugestão hipnótica e a conclusão que
estes produtos artificiais mostram exatamente as mesmas
características que os acidentais e espontâneos,
provocados com freqüência por um trauma”.
55
Freud retoma o contato com o médico vienense Josef Breuer
(1842-1925) quem havia conhecido no Instituto de Fisiologia. Em 1882,
antes da ida de Freud a Paris, Josef Breuer havia apresentado um caso
clínico, conhecido como o “caso Ana O”
56
, que estava tratando e que iria ter
um papel importante no que se refere às primeiras idéias psicanalíticas
freudianas.
Josef Breuer tornara-se amigo de Freud e passaria a ter grande
importância na vida pessoal e intelectual de Freud, especialmente no
período de 1882 e 1895.
54
Ainda em 1886 no seu regresso de Paris, Freud dedicou-se por semanas às enfermidades nervosas
infantis em Berlim com Adolf Baginsky.
55
S. Freud, Autobiografía, p. 2764.
56
Trata-se do tratamento da jovem vienense Bertha Pappenheim (1860-1936), atendida por Josef
Breuer entre 1880 e 1882 que apresentava diversos sintomas histéricos suprimidos ao longo do
tratamento e que se tornaria um dos casos clínicos emblemáticos no que se refere à criação da
Psicanálise.
36
Em 1887 Sigmund Freud conhece através de Breuer o médico
alemão Wilhelm Fliess (1858-1928) com o qual passaria a se corresponder
até 1902. Também é atribuída grande importância à interlocução que Freud
estabelece com Fliess tanto do ponto de vista pessoal, como na construção
do pensamento psicanalítico.
Após o retorno de Paris, Freud esteve voltado para a prática
clínica, especialmente para o tratamento de pacientes histéricas, passando a
dedicar-se principalmente ao seu consultório particular aberto ainda em
1886.
57
Depois de fazer uso de métodos terapêuticos como massagens,
hidroterapia e eletroterapia, adota a sugestão hipnótica que será seu
“principal instrumento de trabalho” nos anos seguintes. Em 1889 Freud vai à
França novamente aperfeiçoar a técnica da sugestão com o médico
Hyppolyte Bernheim (1840-1919) representante da escola de Nancy.
58
Em relação à sugestão hipnótica Freud afirma na Autobiografia
que a adoção da técnica “supunha a renúncia do tratamento das
enfermidades nervosas orgânicas”.
59
Em 1895 é publicada a obra Estudos sobre a histeria elaborada
em conjunto com Josef Breuer. O primeiro capítulo desta obra, cujo título é
“Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos” e o subtítulo
“Comunicação preliminar”, é uma reimpressão do artigo já publicado em
57
Freud tem também como atividade o trabalho como neurologista no Instituto de Kassowitz e os
exames críticos de diversas obras.
58
A escola de Nancy cuja fundação é atribuída a Auguste Liébeault (1823-1904), tinha divergências
em relação à escola da Salpetrière. Para Hipolyte Bernheim a hipnose era um efeito da sugestão,
opondo-se a Charcot, já que para este a hipnose estava relacionada a um estado patológico próprio dos
histéricos.
59
S. Freud, Autobiografía, p. 2766.
37
1893. Os Estudos sobre a histeria reúnem vários textos entre eles a
descrição de casos clínicos.
É necessário mencionar, entretanto, que os Estudos sobre a
histeria são precedidos de publicações em neurologia. Além das traduções
para o alemão das conferências de Charcot e da obra de Bernheim, Freud
publicara também resenhas e artigos de casos clínicos.
O primeiro livro de Sigmund Freud, publicado em 1891, Sobre a
formação das afasias: um estudo crítico é uma monografia crítica em que
Freud apoiando-se sobre as teorias do neurologista inglês John Hughlings
Jackson (1835-1911), procura substituir a compreensão dos distúrbios da
linguagem baseada na localização de lesões cerebrais para uma
compreensão do ponto de vista funcional, ou seja, através de um
associacionismo das funções psíquicas. Para alguns autores, nesta obra já
estariam presentes algumas características do pensamento freudiano, uma
vez que a compreensão da linguagem sob um ponto de vista funcional seria
o germe da futura noção de aparelho psíquico, havendo já uma preocupação
de cunho psicológico.
O que de fato nos parece legítimo afirmar é que as primeiras
idéias freudianas propriamente psicanalíticas são construídas a partir de um
contexto disciplinar específico: a neurologia.
A invenção da Psicanálise se dá pela tentativa de Sigmund Freud
tratar a histeria e na atribuição de uma origem psíquica ao fenômeno. As
formulações das hipóteses freudianas acerca dos fenômenos histéricos
38
estiveram, portanto, sempre vinculados aos problemas metodológicos com
os quais se deparava na sua prática clínica.
Na “Comunicação preliminar”, em 1893, Freud apresenta o
método hipnótico utilizado no tratamento de suas pacientes. Método este,
que modificado por Josef Breuer, passaria a ser conhecido como “método
catártico de Breuer”. Uma vez hipnotizadas as pacientes, eram interrogadas
acerca da origem dos seus sintomas, ou seja, deveriam falar dos eventos
traumáticos que teriam causado os sintomas. A recordação e a expressão
verbal do evento traumático removeria o sintoma à medida que possibilitaria
a descarga do afeto estancado que à época da ocorrência do evento
traumático não teria tido uma descarga emocional adequada. Assim, a idéia
de trauma psíquico teria uma relação causal com o sintoma histérico por
permanecer atuando como um “corpo estranho” e independente fazendo
com que os “histéricos sofressem principalmente de reminiscências”.
60
Ressaltamos que neste período a teorização freudiana está
intimamente relacionada à “parceria” existente entre Freud e Breuer. O
método de tratamento catártico é atribuído a Breuer, assim como a “teoria
dos estados hipnóides”, que seria a hipótese adotada por Freud neste
primeiro momento para os estados de dissociação psíquica que
impossibilitavam a descarga emocional adequada.
Verifica-se que é ao caso clínico conhecido por “Ana O” atendido
por Josef Breuer que se atribui estas primeiras formulações psicanalíticas.
Foi através do atendimento desta paciente que Breuer teria adotado o
60
S. Freud, “Comunicação preliminar”. in Estudios sobre la histeria, p. 44.
39
método baseado na catarse ou na ab-reação, processo nomeado por ele
como “limpeza de chaminé”. Neste sentido, o que é destacado destas
formulações iniciais para a criação da Psicanálise é a idéia da cura pela fala.
Quanto à questão teórica, ou quanto ao problema da etiologia da
histeria, na obra As neuropsicoses de defesas de 1894, Freud faz uma
distinção entre tipos de histeria destacando a histeria de defesa.
61
Este
quadro clínico tem como característica o fato dos pacientes serem saudáveis
até o momento da experiência que gerou as idéias intoleráveis. Assim, Freud
introduz a noção de “defesa”
62
do paciente perante as idéias intoleráveis que
se referem à vida sexual
63
. Estas defesas eram, neste momento da teoria
freudiana, intencionais. A tentativa do paciente de eliminar a idéia
incompatível fracassaria, pois esta deixaria um traço mnêmico e o afeto
correspondente na psique, o que na histeria teria um destino específico, qual
seja, a conversão. Para Freud, a conversão seria o processo de
somatização do afeto que separada da representação ou da idéia
incompatível, se manifestava no corpo através dos sintomas. Esta passagem
do afeto ou da excitação para a inervação corporal deixaria, portanto, que a
representação se tornasse “inofensiva” para o paciente. Entretanto, tal
processo não era definitivo à medida que o afeto retornava à consciência
61
S. Freud, “Las neuropsicosis de defensa” in Estudios sobre la histeria, pp. 170-171.
62
Segundo Roudinesco: “Sigmund Freud designa por esse termo o conjunto das manifestações de
proteção do eu contra as agressões internas (de ordem pulsional) e externas, suscetíveis de constituir
fontes de excitação e, por conseguinte, de serem fatores de desprazer”. E. Roudinesco & M. Plon,
Dicionário de psicanálise, p. 141.
63
Segundo Mezan “é neste contexto que Freud se refere com desembaraço, pela primeira vez ,ao
papel da sexualidade”. Em carta a Fliess datada de 21 de maio 1894, Freud afirma expressamente que
o conflito refere-se à sexualidade e é em relação a ela que se ergue a defesa: “O conflito coincide com
meu conceito de defesa (...) O que se rechaça é sempre a sexualidade”. R. Mezan, Freud: a trama dos
conceitos, p. 12.
40
promovendo novamente associações à representação, o que tornariam os
sintomas persistentes ou o que provocariam os “ataques histéricos”.
Embora a formulação freudiana acerca da capacidade de
conversão da histérica substituísse a teoria dos estados hipnóides de Breuer
quanto à explicação da dissociação psíquica, metodologicamente ela
justificava a catarse. No entanto, Freud se depara com um obstáculo técnico:
nem todos os pacientes eram hipnotizáveis e a catarse dependia da hipnose.
Na “Psicoterapia da histeria” de 1895, capítulo clínico dos Estudos
sobre a histeria, Freud apresenta os problemas metodológicos com os quais
se deparava, ou seja, como deveria proceder sem fazer uso da hipnose para
que a paciente recordasse dos eventos traumáticos.
Em 1894 Freud passa a adotar a “técnica de concentração”
substituindo progressivamente o método catártico e da hipnose, através do
qual o paciente deveria voluntariamente buscar a recordação desejada.
Percebendo resistências
64
por parte das pacientes durante os atendimentos,
e, suspeitando da existência de um funcionamento psíquico em que atuam
defesas erguidas sempre em relação à sexualidade da paciente, Freud se
depara com dois problemas fundamentais intrinsecamente relacionados: um
metodológico e outro teórico. O problema metodológico culminará no método
da livre associação e o teórico na hipótese da sedução.
Verifica-se que não é possível estabelecer uma data precisa da
invenção do método da livre associação. Segundo Roudinesco & Plon: “Em
64
Segundo Mezan, o termo é utilizado pela primeira vez no caso F. Elizabeth von R que fora atendida
em 1882, em que Freud relata deparar-se com dificuldades no tratamento da paciente. R. Mezan, op.
cit., p. 12.
41
setembro de 1894 Freud começou timidamente a recorrer a esse método
(...). Depois disso, renunciaria definitivamente à hipnose em fevereiro de
1896”.
65
Para Jones, “tudo o que podemos dizer dele é que evoluiu
gradualmente de 1892 a 1895”.
66
Tal método, ao qual Freud se refere como a “regra fundamental
da Psicanálise” na Autobiografia é descrita nos seguintes termos:
“Ao invés de conduzir a paciente a manifestar algo
relacionado com um tema determinado, a convidamos agora
a entregar-se à associação livre, isto é, a manifestar tudo
aquilo que lhe ocorre em seu pensamento, abstendo-se de
toda repressão final consciente”.
67
É necessário mencionar que para Freud, a livre associação está
relacionada à idéia de que o material reprimido estaria disposto de acordo
com uma ordem lógica ao redor de um núcleo central e não por acaso.
Deste modo, os dados advindos da livre associação eram providos de um
sentido.
Quanto à hipótese da sedução, esta se constituiu numa tentativa
de responder à questão do caráter penoso da sexualidade.
Freud tem como hipótese para a causa do trauma da histeria a
sedução sexual real sofrida na infância. Esta sedução sexual não seria
vivida enquanto tal pela criança, mas recalcada. A cena, evocada
65
E. Roudinesco & M. Plon, Dicionário de psicanálise, p. 649.
66
E. Jones, op.cit, p. 250.
67
S. Freud, Autobiografía, p. 2780.
42
posteriormente na vida adulta, conferiria à experiência vivida na infância o
caráter traumático, produzindo-se os sintomas histéricos.
68
Faz-se necessário frisar que para Freud esta hipótese teórica está
baseada na sua prática clínica, ou mais precisamente na fala dos seus
pacientes.
Neste período, Freud tem como objetivo formalizar uma
“psicologia do normal”, interesse que se mostra interligado ao problema da
etiologia das neuroses. Wolheim por exemplo, afirma que Freud “estava
interessado em apresentar uma teoria geral da mente”
69
não só derivada da
sua preocupação clínica em explicar o funcionamento patológico, mas
também como uma preocupação herdeira do pensamento científico em que
foi formado. O Projeto para uma psicologia científica de 1895 seria assim
fruto desta necessidade de Freud explicar o funcionamento mental, tanto
normal como patológico, a partir de um modelo neurológico.
Há ainda outro dado da construção teórica freudiana de especial
relevância que se mostra articulado aos problemas teóricos e metodológicos
apresentados: sua “auto-análise”. Trata-se da investigação de si mesmo
realizada por Freud, através da análise de seus próprios sonhos e de fatos
de sua vida. Há controvérsias entre os comentadores de Freud acerca da
duração da auto-análise, mas sabe-se que no período entre junho e
novembro de 1897, em cartas de Sigmund Freud enviadas a Fliess, a
referência à auto-análise foi intensa.
68
S. Freud, Nuevas observaciones sobre la neuropsicosis de defensa, pp. 286-287.
69
R. Wolheim, As idéias de Freud, p. 44.
43
O interesse de Freud por seus sonhos já existia e este passou a
analisar os sonhos que seus pacientes espontaneamente lhe contavam.
70
A
interpretação freudiana dos sonhos está necessariamente relacionada ao
método da associação livre, ou seja, a interpretação se dava a partir dos
relatos dos sonhos e das associações que os próprios pacientes faziam em
relação a estes.
Observa-se, portanto, que na invenção da Psicanálise estão
envolvidas rupturas com o saber e a prática médica do período, na medida
em que foram criados conceitos e métodos singulares. Entretanto, observa-
se que tais conceitos e métodos se formaram justamente a partir de um
contexto científico e de práticas médicas próprias do período.
Renato Mezan coloca que neste período, final da década de 90,
Sigmund Freud dispõe de dados que não consegue articular coerentemente:
o reconhecimento da atividade onírica como realização de desejos, uma
hipótese clínica (a teoria da sedução) e ainda, uma teoria supostamente
geral do psiquismo.
71
No final dos anos noventa, verifica-se a configuração de um
conceito fundamental da obra freudiano: o inconsciente. Em carta datada de
setembro de 1897, enviada a Fliess, Freud faz a seguinte afirmação:“Não
acredito mais em minha neurótica”. Esta afirmação é seguida de uma
explicação em que Freud fala das suas constatações de que “no
inconsciente não existe um ‘signo de realidade’, de modo que é impossível
70
Como apontam alguns autores, tal interesse pode ser verificado já em carta datada de 1883 a Martha
Bernays, sua esposa.
71
R. Mezan, Freud, pensador da cultura, p. 165.
44
distinguir a verdade frente a uma ficção afetivamente carregada”.
72
Ou seja:
as cenas anteriormente consideradas como experiência real de sedução,
têm na verdade uma “realidade psíquica”. A questão que estava colocada
para Freud era a da origem dos conteúdos trazidos pelos pacientes, uma
vez que o trauma atribuído à etiologia da histeria não podia mais ser
remetido a um fato real vivido por seu pacientes.
Desta forma, Freud constata clinicamente que os conteúdos
trazidos por seus pacientes eram fruto de fantasias, de modo que não
tinham uma realidade material, mas uma “realidade psíquica”.
Na obra A interpretação dos sonhos (1900), verifica-se a
consolidação da hipótese do inconsciente que abarcava os problemas com
os quais Freud se deparava na virada do século XIX para o XX.
73
Ao atribuir um sentido para os sonhos, isto é, ao constatar que os
sonhos são uma realização disfarçada de desejos reprimidos, Freud se
ocupará, da elucidação do processo de formação dos sonhos.
Para Freud o processo de formação dos sonhos, o qual nomeia
de “trabalho do sonho” é equivalente, ou é ele mesmo, o modo de
funcionamento do inconsciente.
74
O trabalho do sonho, através dos
72
S. Freud, “Carta 69 de 21/9/97”in Los Origens del Psicoanalisis, pp. 3578-3579.
73
Dada a importância da obra A interpretação dos sonhos no pensamento freudiano e de modo geral
na história da cultura ocidental, ressaltamos que nosso objetivo é procurar apresentar a emergência do
infantil no percurso da construção do pensamento freudiano, de modo que apontaremos apenas alguns
aspectos da obra pertinentes ao problema proposto.
74
Roudinesco & Plon, observam que embora o termo inconsciente, colocado na sua forma substantiva
como aquilo que escapa à consciência, já estivesse presente no século XIX, seja na filosofia romântica
alemã, seja na psiquiatria dinâmica, Freud proporá uma concepção muito particular de inconsciente.
Observam também que o aparecimento explícito do termo na obra de Freud data de 6/12/1896 em
carta a Wilhelm Fliess, quando o inconsciente foi definido como uma instância do aparelho psíquico e
que na época em que desenvolvia seu trabalho sobre os sonhos Freud identificava a sua concepção de
45
mecanismos de condensação e deslocamento, deformaria o conteúdo do
sonho a fim de mascarar o desejo reprimido. Processo este, análogo à
formação dos sintomas.
A questão do infantil está intrinsecamente vinculada à formulação
freudiana de inconsciente, pois este é assimilado ao recalcado (reprimido).
Para o autor no início do século XX, o inconsciente é formado por conteúdos
reprimidos referentes à sexualidade, e mais precisamente, à vida sexual
infantil.
No Capítulo V, da obra A interpretação dos sonhos, Freud tenta
responder à questão das fontes dos sonhos, isto é, qual seria a origem do
material dos sonhos. Na seção B deste capítulo, Freud trata do material
infantil como fonte de sonhos. Ao descrever e analisar seus próprios sonhos
e de seus pacientes, o autor procura demonstrar que os sonhos mesmo que
provocados por acontecimentos recentes, remetem a fontes do passado, isto
é, a impressões, cenas ou experiências infantis. Em outras palavras: mesmo
que o sonho apresente como conteúdo manifesto, experiências recentes,
seu conteúdo latente está ligado às experiências antigas. Este é justamente
o “trabalho do sonho” ao qual nos referimos anteriormente, ou seja, os
conteúdos latentes passam por uma “deformação” através da condensação
e deslocamento destes conteúdos, de tal modo que se apresentam
sobredeterminados. Freud coloca nos seguintes termos este fenômeno que
teria na sua base uma questão infantil:
inconsciente a Theodor Lipps (1851-1914) autor da obra Os fatos fundamentais da vida psíquica de
1883.
46
“Os sonhos amiúde parecem ter mais de um significado.
Não somente, como nossos exemplos têm demonstrado,
podem abranger várias realizações de desejos uma ao lado
da outra; como também uma sucessão de significados ou de
realizações de desejos podem ficar superpostos uns aos
outros, sendo o último da base a realização de um desejo
que data da primeira infância”.
75
Em outra seção deste mesmo Capítulo V da obra A Interpretação
dos sonhos, Freud também tratará do infantil. A seção D trata dos “sonhos
típicos” entre os quais estão os “sonhos sobre a morte de pessoas queridas”.
Nesta seção Freud procurará elucidar o significado dos sonhos penosos
sobre a morte de irmãos, mãe e pai:
“Se alguém sonha, com todos os sinais de dor, que seu pai
ou sua mãe, irmã ou irmão morreu, eu nunca usaria o sonho
como prova de que ele deseja a morte daquela pessoa no
momento atual. A teoria dos sonhos não exige tanto assim;
ela se satisfaz com a inferência de que essa morte foi
desejada em alguma época durante a infância de quem
sonhou. Receio, contudo, que esta ressalva não satisfaça os
opositores; eles negarão a possibilidade de terem alguma
vez nutrido tal pensamento com a mesma energia com que
insistem em que não alimentam tais desejos agora. Devo,
portanto, reconstruir uma parte da vida mental desaparecida
das crianças com base na evidência do presente”.
76
75
S. Freud, A interpretação dos sonhos, p. 233.
76
S. Freud, op. cit., p. 265.
47
Nesta seção além de ocupar-se do infantil que se apresenta nos
sonhos dos adultos como um desejo da infância, Freud trata também das
crianças. Para explicar os “sonhos sobre a morte de pessoas queridas”,
Freud dedica algumas páginas para descrever as relações que as crianças
estabelecem com os irmãos e pais. Freud faz observações sobre a relação
de rivalidade entre irmãos e das relações de amor e hostilidade que a
criança estabelece com os pais justificando os desejos da criança de morte
dos irmãos e dos pais.
Freud observa que os sonhos de morte dos pais com freqüência
se aplicam ao genitor do sexo oposto. Estes desejos de morte que datam da
primeira infância, o que é, segundo ele, confirmado pela análise dos
psiconeuróticos, teria a seguinte explicação:
“Sabemos por eles [os psiconeuróticos] que os desejos
sexuais de uma criança (...) despertam muito cedo, e que a
primeira afeição de uma menina é para com seu pai e os
primeiros desejos infantis de um menino, para com sua mãe.
Desta forma, o pai torna-se um rival perturbador para o
menino e a mãe para a menina (...)”.
77
Freud prossegue com este raciocínio, colocando que tais
sentimentos, num grau menor, podem ser observados também nos
indivíduos normais.
Vale mencionar ainda, que Freud cita a tragédia grega Édipo-Rei
de Sófocles. O autor narra a tragédia e afirma que ela apóia sua hipótese
77
Ibid., p. 273.
48
acerca do desejo incestuoso da criança. Para tanto, o autor argumenta
questionando a razão pela qual esta tragédia comove tanto o “público
moderno” quanto os gregos antigos. Para Freud, não se trata tão somente
do fato de ser uma tragédia do destino em que estão contrastados os
destinos traçados pelos deuses e a vontade humana, mas sim porque nos
identificamos com este destino:
“Se o destino de Édipo nos comove é porque poderia ser
nosso e porque o oráculo lançou a mesma maldição sobre
nós antes de nascermos. Talvez seja o destino de todos nós
dirigir nosso primeiro impulso sexual à nossa mãe e ao
nosso pai o primeiro sentimento de ódio e desejo
destruidor”.
78
Embora o autor faça esta referência ao mito de Édipo, não há em
1900, propriamente o conceito de complexo de Édipo como processo de
estruturação da personalidade.
79
É necessário colocar que a obra A Interpretação dos sonhos faz-
se crucial no que tange à questão do infantil não só porque é diretamente
abordada tal como colocamos, mas porque concentra todas as questões
teóricas e metodológicas com as quais o autor se deparou até então. Não se
trata de uma teoria dos sonhos, mas do inconsciente, e, portanto, da
questão do infantil.
78
S. Freud, La interpretación de los sueños, p. 507.
79
A referência à tragédia comparece na obra de Freud antes mesmo da Interpretação dos sonhos em
carta a Fliess de 1897, entretanto o conceito de Complexo de Édipo pressupõe formulações teóricas
muito posteriores a 1900. Nem mesmo em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
podemos falar em Complexo de Édipo, questão que abordamos no Capítulo III.
49
Em publicação posterior à obra A Interpretação dos sonhos,
Sigmund Freud aborda o tratamento psicanalítico de uma jovem vienense,
conhecido como “Caso Dora”. Na obra Fragmento da análise de um caso de
histeria, publicado em 1905, mas redigido entre 1900 e 1901, comparece
novamente o problema da etiologia da histeria.
Como já colocamos anteriormente, desde a hipótese da sedução,
Freud atribui à histeria uma etiologia sexual. Ao verificar que os traumas na
verdade são “criações” de suas pacientes, Freud se propõe justamente a
investigá-las. O fato é que estas fantasias de seus pacientes têm sempre um
caráter erótico e que remetem à vida sexual infantil. Para Freud, a formação
dos sintomas é decorrente da repressão da sexualidade infantil que se
manifestam ulteriormente como fantasias inconscientes.
Sobre a sexualidade infantil, na História do movimento
psicanalítico, Freud a coloca como uma descoberta que se deu a partir de
sua atividade clínica:
“De início, observou-se apenas que era necessário remontar
ao passado o efeito das experiências atuais. Mas os
investigadores geralmente encontram mais do que
procuram. Fomos atraídos cada vez mais pelo passado;
acreditávamos primeiro poder parar na puberdade, época à
qual se atribui tradicionalmente o despertar dos impulsos
sexuais. Vã esperança; as pistas conduziam ainda mais
para trás, à infância e aos seus primeiros anos”.
80
80
S. Freud, Historia del movimiento psicoanalítico, p. 1901.
50
Assim, é neste sentido que a concepção de infantil começa a se
fazer presente na obra de Freud, não como uma descoberta da sexualidade
na criança ou na infância, mas como uma observação e investigação da vida
adulta.
51
Capítulo III
Os “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”
Inicialmente, fazem-se necessárias algumas pontuações
preliminares quanto aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
De acordo com o exposto no capítulo anterior, as idéias
freudianas acerca da sexualidade advêm das construções teóricas que se
configuraram no final dos anos 90 do século XIX a partir de hipóteses sobre
a etiologia e tratamento das neuroses.
81
A obra em questão, datada de 1905, é de extrema importância no
conjunto do pensamento freudiano porque sistematiza, em continuidade aos
pressupostos presentes em textos anteriores, a teoria da sexualidade
infantil.
De acordo com afirmação anterior, a criança, ou a infância não é
objeto desta obra, nem tampouco faz parte das investigações de Sigmund
Freud neste período. Entretanto, mesmo que Freud tenha elaborado a teoria
da sexualidade infantil a partir da “observação” do adulto, isto é, através da
análise de seus pacientes adultos, não é possível afirmar que para a
construção desta teoria Freud não tenha feito uso algum de dados obtidos
através da “observação” de crianças. Sobre esta questão Freud afirma:
“Minhas afirmações sobre a sexualidade infantil se basearam a princípio
81
Concordamos com Fulgêncio, quando distingue na sua Tese de Doutorado aquilo que é especulação
daquilo que é fruto de observação na teoria da sexualidade de Freud: “Tomar a sexualidade como
importante para os neuróticos é um dado empírico indiscutível, mas que ela seja responsável pela
fundação do próprio psiquismo, que ela tenha a mesma importância para os pacientes não neuróticos,
é já uma suposição que ultrapassa o campo fenomênico, uma hipótese impossível de ser verificada
pela observação”. L. Fulgêncio, O método especulativo em Freud, p. 356.
52
quase exclusivamente nos resultados regressivos da análise de adultos
(...)”.
82
Em nota de rodapé dos Três ensaios Freud faz afirmação muito
semelhante: “Em 1905, foi essencialmente nos trabalhos da investigação
psicanalítica que me baseei para fazer as afirmações acima sobre a
sexualidade infantil”.
83
Entretanto, Freud afirma que suas hipóteses acerca
da sexualidade infantil foram comprovadas posteriormente quando
“observou” diretamente crianças, fazendo referência à obra Análise de uma
fobia em um menino de cinco anos (1909).
84
Os Três ensaios sofreram várias modificações nas suas
reedições. Além dos acréscimos no corpo do próprio texto, várias notas
foram introduzidas pelo autor até 1925, de acordo com o desenvolvimento
da teoria freudiana nos anos posteriores a 1905. Muitos autores destacam
este aspecto dos Três ensaios. Roudinesco & Plon por exemplo, afirmam
que “Freud nunca reescreveu, corrigiu e retificou tanto um livro quanto fez
com este, a ponto de não sabermos mais distinguir o original de suas
versões sucessivas”.
85
Renato Mezan entretanto, ao apresentar os Três
ensaios, identifica as noções que pertencem ao texto original, as
modificações e os períodos correspondentes através da citação das obras
em que os conceitos introduzidos se apresentam.
86
82
S. Freud, Historia del movimiento psicoanalítico, p. 1902.
83
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 71.
84
Trata-se do caso clínico que ficou conhecido como Pequeno Hans. O menino Herbert Graf (1903-
1973) foi atendido por Freud em 1908, mas desde 1906, Freud intervinha no caso baseado nas
observações e anotações que o pai fazia sobre a sexualidade do filho desde os três anos de idade.
85
E. Roudinesco & M. Plon, Dicionário de psicanálise, p. 771.
86
R. Mezan, Freud: a trama dos conceitos, p. 127.
53
Tendo em vista o objeto deste capítulo, qual seja, a concepção de
infantil freudiana no final do século XIX e início do XX, procuraremos
identificar e privilegiar o conteúdo apresentado em 1905. Entendemos que
tal procedimento é possível, pois além do auxílio da literatura secundária,
utilizaremos diferentes edições que serão cotejadas e que trazem as
indicações datadas das alterações do texto.
Cabe ainda colocar aspectos acerca da receptividade ou do
impacto desta obra provocada à época de sua publicação. Em estudo
realizado por Casetto
87
verifica-se que a idéia corrente de que o texto foi mal
recebido parece não condizer totalmente com o ocorrido. De acordo com
Freud em sua Autobiografia e com biógrafos do autor, o texto teria tido uma
repercussão negativa. Sobre a questão, Gay afirma que:
“Depois que Freud publicou os Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade em 1905, aqueles dispostos a acusá-lo de
pansexualista com idéias obscenas tiveram, evidentemente,
muito material fértil para suas interpretações errôneas”.
88
Entretanto, como aponta Casetto dentre oito resenhas da época
sobre os Três ensaios (seis de periódicos médicos e duas de periódicos
literários) apenas uma aparece como depreciadora da obra em questão. O
que podemos afirmar, portanto, é que a obra foi no mínimo objeto de
87
S. J. Casetto. “Em torno dos três ensaios de Freud: o impacto do texto na época e alguns de seus
referenciais do século XIX.”Comunicação apresentada no evento “100 anos de sexualidade infantil: os
três ensaios de Freud, de 1905 a 2005”.
88
P. Gay, op.cit., p. 188.
54
controvérsia no início do século XX por tratar de aspectos da sexualidade
humana tais como os que serão abordados a seguir.
3.1. O Primeiro Ensaio
O tema da sexualidade é introduzido por Freud no primeiro ensaio
cujo título é “As aberrações sexuais”. Já em relação ao título, o autor nos
adverte em nota que as colocações feitas em relação às aberrações sexuais
advêm de idéias presentes em conhecidas publicações sobre o tema,
citando vários autores.
89
O primeiro ensaio, entretanto, não é
exclusivamente uma revisão bibliográfica. Na própria apresentação e crítica
das idéias existentes sobre as aberrações sexuais, Freud introduz a noção
de sexualidade que propõe.
Freud inicia o primeiro ensaio fazendo crítica à noção existente de
que as pulsões sexuais não estariam presentes na infância. A argumentação
que se contrapõe a esta noção é feita pelo autor ao longo dos Três ensaios
e dará justamente lugar à teoria da sexualidade infantil.
89
São eles: o psiquiatra austríaco Richard von Krafft-Ebing (1840-1902) que ficou conhecido como
um dos fundadores da sexologia através da obra Psychopathia Sexualis (1886); o médico alemão
Albert Moll (1862-1939) que publicou a obra Untersuchungen Über Die Libido Sexualis (1897) com
quem Freud teria estabelecido uma relação de inimizade por conta justamente do tema da sexualidade
infantil, uma vez que em obra publicada em 1908, Das Sexualleben des Kindes, Moll não mencionava
a importância dos Três ensaios; o médico e escritor inglês Henry Havelock Ellis (1859-1939) também
considerado um dos fundadores da sexologia, autor da obra composta por vários volumes Studies of
the Psychology of Sex; o neurologista Paul Julius Moebius (1954-1907; Albert von Shrenck-Notzing
((1862-1929); o psiquiatra Leopold Löwenfeld (1847-1923); o neurologista alemão Albert Eulenburg
(1840-1917); o médico alemão Ivan Bloch (1872-1922) e o psiquiatra alemão MagnusHirschfeld
(1868-1935).
55
Para tratar das idéias existentes acerca das aberrações sexuais, o
autor faz uma distinção: os desvios que estariam relacionados com o objeto
sexual, isto é, a pessoa de quem provém a atração sexual e os desvios que
estariam relacionados ao fim sexual, que seria a ação para a qual tende a
pulsão.
No primeiro capítulo, Freud aborda os desvios referentes ao
objeto sexual que seriam os homens que não têm como objeto sexual a
mulher, mas o homem e as mulheres que não têm como objeto sexual o
homem, mas a mulher, os quais são denominados invertidos. Ao apresentar
algumas características do comportamento dos invertidos, o autor o faz
subdividindo-os entre invertidos absolutos, invertidos anfígenos (aqueles
cujo objeto sexual pode pertencer tanto ao sexo masculino como feminino) e
os invertidos ocasionais. Destacamos a questão que é colocada pelo autor
quanto à variação observável da época da manifestação da inversão, o que
coloca em pauta a origem das pulsões sexuais.
Freud apresenta as concepções existentes sobre a inversão e
examina-as separadamente. Segundo Freud, as concepções existentes para
a explicação da inversão seriam aquelas referentes à degeneração nervosa
e aquelas referentes ao caráter inato dos desvios. Freud critica o uso
arbitrário da idéia de degeneração enquanto explicação para as doenças:
“Tornou-se costume imputar à degeneração todos os tipos de manifestação
patológica que não sejam de origem diretamente traumática ou infecciosa”.
90
90
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 16.
56
O autor direciona sua argumentação a fim de demonstrar que a
causa da inversão não é a degeneração nervosa. Entre os argumentos, está
o fato de que é possível observar que não se encontra nenhum outro desvio
ou anormalidade nos invertidos e que em alguns casos verifica-se que os
mesmos destacam-se pelo desenvolvimento intelectual. Freud busca, ainda,
argumentos fora do seu contexto, ou da sua experiência médica: “é preciso
considerar que nos povos antigos, no auge de sua cultura, a inversão era um
fenômeno freqüente, quase que uma instituição dotada de importantes
funções”.
91
Em relação ao caráter inato atribuído aos invertidos, Freud
também questiona tal concepção. Para isso, salienta que o caráter inato só é
atribuído aos invertidos absolutos, ou seja, àqueles que em nenhum
momento de suas vidas tiveram outra orientação de sua pulsão sexual que
não fosse a “invertida”. Assim, Freud argumenta que se é atribuído o caráter
inato apenas para estes casos de inversão, logicamente atribui-se uma outra
origem para os demais casos de inversão.
Freud também rejeita a concepção oposta à inversão inata: a
idéia de um caráter adquirido, argumentando principalmente que as
influências acidentais não bastam para explicar a inversão.
Menciona também os casos de hermafroditismo anatômico, os
quais não coincidem com os casos de inversão. A bissexualidade para Freud
é um problema psicológico e não somático. A questão que está colocada
para o bissexual parece ser a de um conflito psicológico que se estabelece
91
Ibid., p. 17.
57
em relação ao objeto sexual. Embora o autor não utilize o termo conflito, é o
que sugere quando afirma:
“Nesses casos, portanto, como em muitos outros, o objeto
sexual não é o do mesmo sexo, mas uma conjugação dos
caracteres de ambos os sexos, como que um compromisso
entre uma moção que anseia pelo homem e outra que
anseia pela mulher, com a condição imprescindível da
masculinidade do corpo (da genitália): é por assim dizer, o
reflexo especular da própria natureza bissexual”.
92
Ainda nesta primeira parte, o autor menciona os casos em que se
têm crianças ou animais como objetos sexuais. Freud afirma que tais
práticas, em geral, seriam substitutivas da prática normal, mas
circunstanciais, e neste sentido seriam aberrações esporádicas. Rejeita a
atribuição de tais aberrações à loucura, pois se aqueles que são
mentalmente anormais também o são na sua vida sexual, muitos que têm
uma vida sexual anormal, em outros aspectos, têm um desenvolvimento
pessoal normal.
Pode-se afirmar a partir deste primeiro capítulo, que a
preocupação do autor é apontar os aspectos que considera insustentáveis
do conhecimento acerca das inversões. Deste modo, acaba por imprimir
uma crítica à concepção de desvio sexual vinculada às doutrinas da
hereditariedade-degenerescência que embasavam a sexologia do século
92
Ibid, p. 23.
58
XIX.
93
Freud afirma que não possui uma explicação satisfatória para tais
fenômenos. Entretanto, apresenta uma primeira conclusão que será de
extrema relevância para uma concepção de sexualidade que se esboça
desde já: pulsão sexual e objeto não têm uma relação tão estreita e
necessária, como se imagina. Há sim, uma independência do objeto sexual
e da pulsão sexual.
O capítulo seguinte, diz respeito aos desvios sexuais quanto ao
alvo sexual, quais sejam, as perversões. Freud salienta que na atividade
sexual normal estão os rudimentos de tais desvios. Se o alvo sexual normal
é o coito, ou seja, o ato de união dos genitais “que leva à descarga da
tensão sexual e à extinção temporária da pulsão sexual (uma satisfação
análoga à saciação da fome)”
94
, há certas atividades sexuais preliminares
que também fazem parte da dita sexualidade normal, como por exemplo o
beijo. No entanto, nas perversões haveria um distanciamento da conduta
normal que se daria basicamente de duas formas: uma fixação nestes alvos
sexuais provisórios, ou então, transgressões anatômicas que seria a
utilização de outras partes do corpo na consolidação do ato sexual.
No que tange às transgressões anatômicas, Freud menciona a
boca e o ânus como as partes do corpo que conduziriam os indivíduos
perversos à satisfação sexual. Entretanto para Freud tais regiões do corpo
93
O papel de ruptura que a Psicanálise teria operado em relação à sexologia do século XIX
fundamentada nas teorias da hereditariedade-degenerescência é abordado por vários autores, entre os
quais o filósofo Michel Foucault em História da sexualidade I: a vontade de saber, 1988.
94
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 28.
59
têm naturalmente um caráter erógeno
95
, mas que são abandonadas como
finalidades sexuais em razão do estabelecimento do sentimento de asco ou
repugnância. Nas perversões, portanto, o sentimento de asco não se
submeteria às forças das pulsões sexuais.
O autor inclui como desvio quanto ao alvo sexual os casos
caracterizados pelo fetichismo, pois a finalidade ou alvo sexual a ser
alcançado teria como condição um objeto inapropriado para servir como tal.
Para Freud o aspecto patológico estaria justamente na fixidez que se
estabeleceria em relação a tal objeto em substituição do alvo sexual normal.
Vale mencionar que Freud cita Alfred Binet (1857-1911)
96
, para
justificar a escolha do fetiche como influência das experiências infantis:
“Na escolha do fetiche manifesta-se como Binet (1888) foi
o primeiro a sustentar e como depois se comprovou
abundantemente a influência persistente de uma
impressão sexual recebida, na maioria das vezes, na
primeira infância, o que se pode comparar com a proverbial
persistência do primeiro amor”.
97
95
O caráter erógeno de tais regiões já mencionado por Freud em carta datada de 14/11/1897 a Fliess
será abordado pelo autor no segundo ensaio.
96
O médico e psicólogo Alfred Binet conhecido como autor dos primeiros testes de avaliação da
inteligência e um dos principais representantes da psicologia experimental francesa do período em
questão, é autor de diversas obras sobre o desenvolvimento intelectual das crianças, das quais citamos:
L’étude experimentale de l’intelligence (1903). Observa-se, entretanto, que a referência que Freud faz
a Binet é ao artigo L’e fetichism dans l’amour publicado na Revue Philosophique em 1887 e
posteriormente publicado compondo a obra Études de psychologie experiméntale em 1888.
97
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 33.
60
Freud afirma que o simbolismo do fetiche pode ser antiqüíssimo e
que tais conexões simbólicas podem ser encontradas inclusive em mitos.
Conclui que ainda assim não independem das experiências infantis.
Quanto à fixação nas atividades sexuais preliminares o autor
destaca a atividade do olhar quando não é tão só ato preparatório do ato
sexual, mas o fim em si mesmo. O autor salienta a dupla configuração que
este tipo de aberração pode assumir, ou seja, a complementariedade das
formas ativas e passivas, o voyerismo e o exibicionismo.
O autor aborda o sadismo e masoquismo (ou algolagnia) como
um tipo de perversão que se apresenta também através de duas formas, a
passiva e a ativa. Freud coloca que na raiz do sadismo e masoquismo há
uma normalidade entendida como características naturais e universais da
vida sexual:
“Que a crueldade e a pulsão sexual estão intimamente
correlacionadas é-nos ensinado, acima de qualquer dúvida,
pela história da civilização humana, mas no esclarecimento
dessa correlação não se foi além de acentuar o fator
agressivo da libido”.
98
Freud afirma que poderiam ser nomeados apenas como
perversos os indivíduos cuja satisfação sexual estiver exclusivamente
condicionada pela sujeição e maus-tratos infligidos ao objeto sexual. Da
mesma forma e de modo complementar é caracterizado o masoquismo.
98
Ibid., p. 37.
61
O que é ressaltado pelo autor em relação a este tipo de perversão
é o fato de que as formas ativa e passiva estão sempre presentes na mesma
pessoa, ou seja “o sádico é sempre e ao mesmo tempo um masoquista
(...)”.
99
O que os distinguiriam seria um desenvolvimento mais intenso de
uma das formas.
Freud cita a obra O instinto sexual
100
de Henry Havelock Ellis
(1859-1939), para corroborar suas afirmações quanto à coexistência de
traços masoquistas e sádicos no mesmo indivíduo. Ao tratar do sadismo e
masoquismo, Havelock Ellis afirma: “Enfim, devemos admitir como muito
provável que, em certos casos, o sadista nada mais é que um masoquista
disfarçado, e só se rejubila com a dor da vítima porque se identifica com
ele”.
101
O estudo das aberrações sexuais e, sobretudo das perversões,
encaminha o autor neste primeiro ensaio a conclusões que culminarão na
formulação do que podemos chamar de primeira teoria freudiana das
pulsões. A partir da idéia de que nas inversões e nas perversões o objeto da
pulsão sexual é de certa forma contingente e que há uma variabilidade
quanto aos seus alvos, o autor conclui que tais pulsões sexuais são de
natureza composta e é o que nomeará na parte cinco deste primeiro ensaio
de pulsões parciais.
99
Ibid., p. 38.
100
Esta obra é o volume III dos Estudos de Psicologia Sexual de 1891.Freud cita a 2º ed. de 1913,
Filadelfia: Studies in the Psychology of Sex, v. III: Analysis of the Sexual Impulse e os seguintes
capítulos: Love and Pain e The Sexual Impulse in Women.
101
H. Ellis, O instinto sexual, p. 197.
62
Antes de apresentar a definição de pulsão sexual, o autor
examina a pulsão sexual nos neuróticos tendo como base as contribuições
que a sua clínica e as formulações psicanalíticas lhe traziam nos primeiros
anos do século XX:
“Como exprimi em outro lugar, os sintomas são a atividade
sexual dos doentes. A prova dessa afirmação deriva do
número crescente de psicanálises de histéricos e outros
neuróticos que venho realizando há vinte e cinco anos, e
sobre resultados já prestei contas minuciosamente em
outras publicações, como ainda continuarei a fazer”.
102
Para Freud os psiconeuróticos, que são caracterizados como
aqueles próximos da normalidade, têm como fonte principal de seus
sintomas a energia das pulsões sexuais que não tiveram o destino esperado,
ou seja, a descarga. Assim, o autor conclui que se nas neuroses os
conteúdos vinculados às pulsões sexuais são recalcados, elas são a forma
negativa das perversões, uma vez que nestas, como já colocado, ocorre
justamente a preponderância das forças pulsionais sobre os impeditivos
(sentimentos de vergonha e repugnância) colocados pelo próprio indivíduo.
A definição de pulsão sexual apresentada pelo autor na quinta
parte deste primeiro ensaio é completamente distinta da idéia de instinto
sexual que predominava entre autores do período. O termo alemão utilizado
é Trieb e não Institik, este último é utilizado por Freud em outras obras para
102
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 42.
63
referir-se ao comportamento animal fixado hereditariamente. Para Freud “a
pulsão é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico”.
103
As
pulsões sexuais seriam, para Freud representantes psíquicos de origem
endossomática, ou seja, as pulsões sexuais teriam fontes somáticas
distintas, as quais no processo excitatório de um órgão ou de zonas
erógenas, o alvo seria aquele que suprime tal estímulo orgânico.
104
A conclusão que o autor apresenta para finalizar este ensaio
relaciona o estudo crítico apresentado acerca dos desvios sexuais com a
noção de sexualidade que propõe. Verificou-se que Freud acaba por
relativizar a questão do patológico, uma vez que os desvios passam de certa
forma por uma normalidade. Entretanto, Freud afirma que há sim algo inato
nas perversões, mas o inato seria justamente aquilo que é inato em todos os
seres humanos. Em outros termos: o que é inato são as pulsões sexuais
entendidas como uma disposição constitucional; disposição esta que pode
variar, acentuar-se ou não, de acordo com as experiências dos indivíduos. E
se tais pulsões sexuais, cujas raízes são inatas, podem assumir destinos
distintos tais como a atividade sexual perversa ou o recalcamento neurótico,
nada mais lógico que compreender os primórdios destas manifestações. E é
o que o autor fará no Segundo Ensaio ao abordar a sexualidade infantil.
103
Ibid, p. 46.
104
A especificidade do termo Trieb na obra de Freud é invariavelmente apontada por autores ao
comentarem a noção de pulsão em Freud, ver por exemplo: G. Gomes, Os dois conceitos freudianos
de Trieb, Psicologia: Teoria e Pesquisa, 17, pp. 249-255; J. Laplanche & J-B Pontalis, “Pulsão” in
Vocabulário de Psicanálise, pp. 506-510; E. Roudinesco & M. Plon, “Pulsão” in Dicionário de
psicanálise, pp. 628-632 e D. Scarfone, As pulsões, pp. 9-15.
64
3.2. O Segundo Ensaio
Sigmund Freud dá início ao ensaio “A sexualidade infantil”
também fazendo observações acerca das concepções existentes sobre o
tema.
O autor critica novamente a idéia de que a pulsão sexual não
estaria presente na infância, sendo que para a “opinião popular” a
sexualidade se manifestaria apenas na puberdade. Coloca também que a
literatura que trata do estudo do indivíduo adulto dá muito mais importância à
influência da hereditariedade e à vida dos seus antepassados que à história
e a infância do próprio indivíduo.
Para Freud há uma negligência por parte dos autores que se
dedicam ao estudo do desenvolvimento infantil quando o tema é a vida
sexual na infância. Freud afirma ainda que nos trabalhos desses autores
sempre falta um capítulo referente ao desenvolvimento da sexualidade
infantil. Em nota Freud coloca que: “As manifestações sexuais somáticas do
período anterior à puberdade só despertam atenção no contexto dos
fenômenos degenerativos e como sinais de degeneração”.
105
Para fundamentar tal afirmação, Freud cita oito obras sobre
desenvolvimento infantil e seus respectivos autores.
106
Esta bibliografia
revista por Freud abrange obras de autores de diferentes nacionalidades e
“áreas” do conhecimento: de Sanford Bell o artigo A Preliminary Study of the
105
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 52.
106
Ibid., p.52. Freud cita também outros autores e obras em notas acrescentadas em 1910 e 1915.
65
Emotion Between the Sexes (1902); do fisiologista Wilhem Preyer (1841-
1897), Die Seele des Kindes (1888); do americano James Mark Baldwin
(1861-1934), Mental Development in the Child and the Race (1895); do
filósofo e pedagogo francês Bernard Pérez (1836-1903), L’enfant de Trois à
Sept Ans (1886); de Ludwig Strümpell (1812-1899), Die Pädagogische
Pathologie (1899); do filósofo alemão Karl Groos (1881-1946), Das
Seelenben des Kindes (1904); do pedagogo vienense Theodor Heller (1869-
1938), Grundrib der Heilpädagogik (1904); e do psicólogo inglês James Sully
(1842-1923), Studies of Childhood (1895).
Freud coloca que tal negligência por parte destes autores quanto
ao tema da sexualidade infantil estaria em parte relacionada à própria
formação dos autores citados, ou seja, atribui ao silêncio destes autores
sobre a sexualidade infantil o fenômeno psíquico que nomeia de amnésia
infantil. Em outros termos: a sexualidade da criança seria tema recalcado
para os autores citados.
O fenômeno da amnésia infantil consiste, segundo Freud num
esquecimento dos fatos acerca dos primeiros anos da infância. E a questão
que coloca é por que haveria esta amnésia em relação a tal período, isto é,
até os sete ou oito anos de idade, se antes desta idade é possível observar
que as crianças têm experiências significativas e até uma capacidade
incipiente de julgamento das mesmas. Sobre a questão, em nota, Freud faz
referência a dois textos em que teria tentado resolver a questão das
lembranças infantis: Lembranças encobridoras (1899) e o Capítulo IV de A
psicopatologia da vida cotidiana (1901).
66
Nos textos citados, Freud apresenta a idéia de lembrança
encobridora. Para o autor, as lembranças encobridoras seriam as
lembranças infantis insignificantes que permaneceriam presentes na
memória e que por meio de um processo psíquico inconsciente, o
deslocamento, estas lembranças insignificantes substituiriam as “lembranças
importantes” e recalcadas, mascarando-as.
107
Deste modo, a amnésia infantil seria para Freud um processo
análogo ao processo observado nas histéricas, pois como já colocado
anteriormente, a formação histérica é justamente decorrente do
recalcamento que impede que conteúdos psíquicos cheguem à consciência.
Para Freud esta amnésia infantil “que converte a infância de cada
um numa espécie de época pré-histórica e oculta dele os primórdios de sua
própria vida sexual, carrega a culpa por não se dar valor ao período infantil
no desenvolvimento da vida sexual”.
108
Verifica-se que Freud se propõe a ocupar-se justamente daquilo
que é ocultado e negligenciado pelos autores que se dedicam ao estudo da
criança: a sexualidade. Esta preocupação de Freud com a sexualidade
infantil decorre da sua prática e da investigação clínica. Se a sexualidade
infantil torna-se objeto de investigação para Freud neste segundo ensaio, é
porque seu estudo tornou-se condição para a explicação do funcionamento
psíquico dos indivíduos. Nos termos do autor:
107
S. Freud, Los recuerdos encubridores, pp. 330-341.
108
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p.54.
67
“Já em 1896 frisei a significação da infância para a origem
de certos fenômenos importantes que dependem da vida
sexual, e desde então nunca deixei de trazer para primeiro
plano o fator infantil na sexualidade”.
109
Além de negligenciados pelo conhecimento, os fenômenos que
envolvem a sexualidade infantil, são segundo Freud, “temidos pela
educação”.
110
O autor faz referência ao papel da educação, e da cultura, nos
rumos tomados pelas pulsões sexuais dos indivíduos.
Para Freud a sexualidade seria passível de observação aos três
ou quatro anos de idade. Posteriormente haveria um declínio da sexualidade
infantil até a puberdade. Nesta fase da vida, denominada por Freud como
período de latência, as pulsões sexuais teriam seus fluxos restringidos em
forma de diques. Tais diques seriam os sentimentos de vergonha, a
repugnância e as exigências dos ideais éticos e estéticos.
A educação, para Freud, contribui muito na construção destes
diques, embora o autor afirme que o desenvolvimento destes sentimentos
faça parte daquilo que “é organicamente condicionado e fixado pela
hereditariedade”.
111
A atenção dispensada pelos educadores à sexualidade
infantil se daria como fortalecimento das forças defensivas diante da
possibilidade da manifestação sexual infantil.
Embora Freud tenha elaborado uma teoria singular da
sexualidade infantil, verifica-se que idéias sobre sexualidade infantil se
109
Ibid., p.54.
110
Ibid., p. 57.
111
Ibid, p.56.
68
mostram presentes entre autores contemporâneos de Freud e que
antecedem os Três ensaios.
112
Para Freud há já na infância manifestações da sexualidade. O
autor adverte-nos da necessidade de distinguirmos o termo sexual do
genital. Sexualidade para Freud não se restringe à atividade genital, nem
tampouco à procriação. Entretanto, Freud não se desfaz de todo de uma
certa determinação biológica. A primeira manifestação da sexualidade
infantil seria a sexualidade oral. A atividade de sucção do bebê teria uma
natureza sexual e o autor a toma como modelo para expor a idéia de
sexualidade infantil. Freud faz referência ao pediatra húngaro Samuel
Lindner, quem segundo ele, teria dedicado um estudo sobre o tema em que
teria reconhecido a atividade de sucção do polegar como uma forma de
prazer de natureza sexual.
113
A atividade de sucção (do polegar) é uma atividade auto-erótica à
medida que o que traz a satisfação é o próprio corpo. Para o autor, esta
atividade de sucção que é observada nos bebês e que pode ser estendida
até a vida adulta, estaria “determinada pela busca de um prazer já
vivenciado”. O prazer buscado na sucção (do polegar) seria aquele obtido
através da atividade do mamar no seio materno (ou em seus substitutos),
112
S. R. Kern, Freud and the Emergence of Child Psychology: 1880-1910, p. 343.
113
A obra de Lindner a qual Freud se refere é: Das Saugen den Fingern, Lippen, etc Bei Den Kinden
(Luneln), Jarbuch für Kinderheilkunde, 1879-1880,14: 68-91. Sobre Lindner e as relações entre a
sucção do dedo e a sexualidade infantil para pediatras do final do século XIX ver J. Gillis, Bad Habits
and Pernicious Results: Thumb Sucking and the Discipline of Late-Nineteenth-Century Paediatrics,
pp. 55-73.
69
atividade esta, que para Freud seria “a primeira e mais vital das atividades
da criança”.
114
A atividade de sucção do seio materno, exercida pelo bebê, o
satisfaz porque supre uma necessidade fisiológica, a alimentação; mas é a
partir desta mesma atividade que há a emergência da pulsão sexual. Assim,
no princípio da satisfação de uma zona erógena, neste caso a zona oral,
está a fome ou uma função fisiológica. A necessidade de repetir tal
satisfação torna-se dissociada da necessidade do alimento: “a atividade
sexual apóia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação
da vida, e só depois torna-se independente dela”.
115
No capítulo terceiro da obra, Freud trata do alvo (meta) da
sexualidade infantil que seria a satisfação de uma pulsão sexual através da
estimulação de uma zona erógena. O autor define zona erógena como “parte
da pele ou mucosa em que certos tipos de estimulação provocam uma
sensação prazerosa”.
116
O autor coloca que qualquer parte do corpo pode
ser considerada uma zona erógena, embora certas regiões como a zona
anal e a zonal genital sejam caracterizadas como zonas erógenas
“predestinadas” para esta função.
Embora Freud no texto de 1905 defina a sexualidade oral como a
primeira manifestação da sexualidade da criança e descreva as atividades
masturbatórias das zonas anais e genitais da criança como manifestações
114
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 59.
115
Ibid., p. 60. Na edição francesa e na edição argentina consta em nota que esta frase foi acrescida ao
texto em 1915. Entretanto, como apontam Roudinesco e Laplanche a idéia de “apoio”, peça
fundamental da concepção de sexualidade freudiana, está presente na primeira versão da obra.
116
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 61.
70
posteriores, entendemos que não se trata, de uma descrição evolutiva do
desenvolvimento sexual cronológico da criança, tal como o fazem os autores
do período em questão ocupados com o desenvolvimento psicológico da
criança.
Como aponta Laplanche e outros autores, nem mesmo a idéia de
uma sexualidade infantil organizada em fases (oral, anal e genital) estava
presente no texto original de 1905.
117
A idéia de “organizações sexuais”
surge gradualmente entre 1908 e 1923 na obra de Freud, a partir dos
apontamentos sobre erotismo anal no adulto e na criança.
118
Nos Três ensaios, no capítulo denominado “As fases de
desenvolvimento da organização sexual” acrescido à obra em 1915, o autor
define fase oral e fase sádico-anal no desenvolvimento sexual da criança
como “organizações da vida sexual em que as zonas genitais ainda não
assumiram papel preponderante”.
119
Verifica-se que, embora Freud se refira no texto de 1915, a fases
identificáveis na idade cronológica da criança e “normalmente atravessadas
sem dificuldades” por ela, a sexualidade infantil não é, para o autor, uma
seqüência de eventos dispostos numa temporalidade linear rumo a um
desfecho mais complexo. Para Freud o desenvolvimento da sexualidade
infantil tende sim para um desfecho, qual seja, a vida sexual normal do
117
J. Laplanche, Freud e a sexualidade: o desvio biologizante.,pp24-25.; R. Mezan, Freud: a trama
dos conceitos, p. 127.
118
No artigo Caráter e erotismo anal (1908), Freud relaciona traços de caráter com o erotismo anal da
criança, em A predisposição para a neurose obsessiva (1913) temos a noção de organização pré-
genital e no artigo A organização genital infantil (1923), a idéia de fase fálica.
119
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 75.
71
adulto. Entretanto, a configuração da vida sexual do adulto implica uma
escolha objetal que, segundo o autor, ocorre em dois tempos:
“Pode-se considerar como ocorrência típica que a escolha
do objeto se efetue em dois tempos, em duas ondas. A
primeira delas começa entre os dois e os cinco anos e
retrocede ou é detida pelo período de latência; caracteriza-
se pela natureza infantil de seus alvos sexuais. A segunda
sobrevém com a puberdade e determina a configuração
definitiva da vida sexual”.
120
Em relação à noção de sexualidade infantil que está colocada
explicitamente, em 1905 refere-se ao que nomeou como disposição
perverso-polimorfa da criança. Freud coloca que a criança sendo submetida
a uma situação de sedução, pode ser levada a praticar qualquer tipo
transgressão sexual, de modo que:
“Isso mostra que traz em sua disposição a aptidão para elas;
por isso sua execução encontra pouca resistência, já que,
conforme a idade da criança, os diques anímicos contra os
excessos sexuais a vergonha, o asco e a moral ainda
não foram erigidos ou estão em processo de construção”.
121
Sobre a idéia de perversidade polimorfa, Laplanche afirma que:
120
Ibid., p. 79.
121
Ibid., p. 69.
72
“Ora, o que Freud chama de sexualidade infantil é apenas
muito acessoriamente uma atividade genital; se ela é dita
‘polimorfa’, é não só quanto ao tipo de atividade, mas
também quanto às zonas que se encontram excitadas na
criança, e que Freud pensa serem múltiplas, e podem ser
até o conjunto do corpo”.
122
Concordamos com a afirmação de Laplanche, pois para Freud, na
sexualidade da criança a pulsão sexual existe enquanto um conjunto de
pulsões parciais que se manifestam independentemente uma das outras;
isto é, a satisfação das pulsões, originada em suas diversas fontes (zonas
erógenas), se dá de forma dispersa.
Deste modo, a sexualidade infantil, é caracterizada pela
disposição perverso-polimorfa à medida que está submetida à atuação das
pulsões parciais que tendem a se integrar apenas a partir da puberdade.
Também como pulsões parciais, Freud cita, entre outras, certas
tendências da criança, como a de querer ver o corpo de outras pessoas e
exibir-se desnuda. Em relação às “pulsões de ver” e a contrapartida desta, o
exibir-se, o autor coloca que não são inteiramente compreensíveis no que
tange às suas origens.
Freud coloca no último capítulo deste Segundo Ensaio que a
pulsão sexual tem também “fontes indiretas”, isto é, a excitação sexual pode
ter sua origem não na estimulação direta da zona erógena, mas em
atividades que contribuem de alguma forma na satisfação sexual. Freud
122
J. Laplanche, op.cit. p. 24.
73
descreve como fontes indiretas, as excitações mecânicas, a atividade
muscular, os processos afetivos e o trabalho intelectual.
Verifica-se deste modo, que o infantil para Freud, uma vez
caracterizado como perversidade-polimorfa refere-se à “plasticidade” da
sexualidade infantil definida por uma manifestação dispersa da pulsão
sexual que traz o germe da sexualidade adulta.
O autor, neste Segundo Ensaio, aponta em vários momentos a
semelhança entre aquilo que pode ser observado nas crianças e nos adultos
no que se refere à vida sexual, seja nos adultos sadios ou neuróticos. Nota-
se, por exemplo, que o autor faz referência à “pulsão do ver” em cada um
dos três ensaios: no primeiro ensaio na sua forma patológica (voyerismo),
neste segundo ensaio como uma curiosidade da criança, e no terceiro, como
um pré-prazer da satisfação final da atividade sexual adulta.
Entretanto, embora o autor estabeleça uma relação entre a
sexualidade da criança e a do adulto não se trata da idéia de que as
experiências do passado infantil determinam diretamente e de forma linear a
vida do adulto. Como aponta Laplanche, desde a formulação da teoria da
sedução, Freud apresenta a idéia de “posterioridade”, ou seja, é só
posteriormente que é conferida o sentido traumático do acontecimento
primeiro. Em carta a Fliess datada de 1896 Freud afirma que:
“Estou trabalhando com a hipótese de que nosso aparato
psíquico tenha se originado por um processo de
estratificação: o material existente na forma de traços
74
mnêmicos experimentaria de tempos em tempos, em função
de novas relações, uma reinscrição”.
123
Nos Três ensaios a idéia de posterioridade se apresenta
justamente através da concepção de infantil freudiano, pois é a partir da
puberdade que temos a possibilidade de uma significação das experiências
infantis.
3.3. O Terceiro Ensaio
No último dos três ensaios que tem como título “As
transformações da puberdade” o autor expõe as mudanças que ocorrem na
puberdade e a configuração da sexualidade adulta, isto é, como se dá o
encontro com objeto sexual.
Freud coloca que com a chegada da puberdade há uma
conjugação das pulsões parciais que se organizam subordinadas à zona
genital. Assim, surge um novo alvo sexual que diferencia as funções entre os
dois sexos. No homem este novo alvo “consiste na descarga dos produtos
sexuais”. Embora o alvo anterior, o infantil, também fosse a obtenção do
prazer, o autor salienta que a partir da puberdade “a pulsão sexual coloca-se
a serviço da reprodução”.
O autor neste terceiro ensaio estabelecerá as relações entre estas
duas transformações da puberdade, quais sejam, a primazia da zona genital
123
S. Freud, “Carta 52 de 6-12-1896” in Los orígenes del psicoanálisis: cartas a Wilhem Fliess,
manuscritos y notas de los años 1887 a 1902, p. 3551.
75
que traz, a princípio, uma finalidade biológica (a reprodução) e a escolha do
objeto.
No primeiro capítulo, Freud descreverá o estabelecimento daquilo
que nomeia como o primado dos genitais no desenvolvimento da puberdade.
Para isso, o autor coloca que no ato sexual há um prazer preliminar e um
prazer final. Este pré-prazer, resultante da estimulação das zonas erógenas,
conduziria ao prazer final. O primado da zona genital seria, portanto,
justamente esta relação necessária que se estabelece entre a obtenção do
prazer final e os genitais, isto é, a descarga da tensão sexual só pode
ocorrer pela via genital.
O autor associa o prazer preliminar à sexualidade infantil e o
prazer final a condições que só surgem na puberdade. Para explicitar a
ligação deste pré-prazer à sexualidade infantil, o autor argumenta que o
prazer preliminar pode ter um caráter patológico quando impede a definição
do alvo sexual normal. Este impedimento seria decorrente de uma fixação na
forma infantil de obtenção de prazer, ou seja, o prazer preliminar é, ele
mesmo, a tradução do prazer infantil para sexualidade adulta.
No capítulo seguinte Freud se propõe a examinar a origem e a
natureza da tensão sexual, o que não estaria, segundo o autor, de todo
esclarecido. E o faz a partir de hipóteses fisiológicas, ou seja, se propõe a
examinar o mecanismo fisiológico da tensão sexual relacionando-a com a
produção de substâncias sexuais e o papel dos órgãos sexuais internos. O
fato é que o autor descarta a hipótese que, segundo ele, faz parte das
doutrinas vigentes sobre o problema, citando Krafft-Ebing. A hipótese
76
descartada por Freud é aquela que atribui à tensão sexual a acumulação
das substâncias sexuais. O argumento de Freud é que não é possível falar
em acumulação de substâncias sexuais na criança, nas mulheres e nos
homens castrados, de modo que a acumulação de tais substâncias não
pode ser responsável pela tensão sexual.
124
O autor apresenta também outra hipótese sobre o que seria a
base química da excitação sexual em parágrafo modificado em 1920:
“Assim estamos autorizados a supor que na porção
intersticial das gônadas produzem-se substâncias químicas
especiais que, absorvidas na corrente sangüínea, carregam
de tensão sexual determinadas partes do sistema nervoso
central.(...) Quanto ao modo como a excitação sexual é
gerada pela estimulação das zonas erógenas, uma vez
carregado o aparelho central, e às interações surgidas no
curso desses processos sexuais entre os efeitos dos
estímulos puramente tóxicos e os dos fisiológicos, isso ainda
só pode ser tratado hipoteticamente”.
125
Entendemos que este capítulo dedicado à questão da tensão
sexual se faz relevante justamente por demonstrar a necessidade do autor
de formular hipóteses fisiológicas na pesquisa de aspectos da vida psíquica.
Hipóteses fisiológicas estas, que para o autor, não contradizem o exposto no
capítulo seguinte denominado “A teoria da libido”; ao contrário, parecem ser
complementares à explicação dos processos psíquicos.
124
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 92.
125
Ibid., p. 93.
77
Acrescido à obra em 1915, o capítulo “A teoria da libido” é iniciado
com os seguintes termos: “Combinam bem com essas hipóteses sobre a
base química da excitação sexual as noções de que nos valemos para
procurar dominar as manifestações psíquicas da vida sexual”.
126
Assim,
Freud define libido, como uma energia que se diferencia de outras formas de
energias psíquicas e que é quantitativamente variável, de modo que pode ter
como objeto de investimento o próprio ego ou objetos exteriores.
Ressaltamos que esta diferenciação entre libido do ego (libido narcísica) e
libido objetal pressupõe elaborações teóricas posteriores a 1905. O conceito
de narcisismo abordado no conjunto da teoria freudiana é explicitado apenas
em 1914 no artigo Sobre o narcisismo: uma introdução no qual verifica-se a
diferenciação de narcisismo primário do secundário.
Neste sentido, podemos afirmar que em 1905 é a noção de
autoerotismo que prevalece no tocante à sexualidade infantil, isto é, trata-se
da atividade de satisfação pulsional no próprio corpo. Como expusemos
anteriormente, a sexualidade infantil é caracterizada pela perversidade
polimorfa em que a satisfação pulsional se dá de forma dispersa, não
havendo, portanto, a idéia de um objeto entendido como totalidade.
O encontro com o objeto de amor segundo Freud, se dá a partir
da puberdade. Se a maturação biológica só observável na puberdade é a
condição para existência do novo alvo sexual, o encontro ou a descoberta do
objeto sexual não se restringe a estas condições biológicas; ela tem seus
esboços na sexualidade infantil. Faz-se necessário frisar que nos Três
126
Ibid, p.94.
78
ensaios não há a idéia de “escolha objetal” que não seja a partir da
puberdade, isto significa que os conflitos advindos desta escolha objetal são
vividos na puberdade.
A questão da escolha objetal, nos termos colocados pelo autor em
1905, traz uma ambigüidade. Neste terceiro ensaio observa-se que a
afirmação de Freud “o encontro do objeto é, na verdade um reencontro”
127
,
ao mesmo tempo em que é precedida de uma argumentação acerca do
amadurecimento da puberdade como condição para o encontro com o
objeto, é justificada com a descrição do quão modelar é a relação da criança
com a mãe na fase da amamentação para as relações amorosas adultas.
Para Freud a relação de amor que a criança estabelece com a
mãe (ou substituta) é um “amor de natureza sexual” tendo em vista que ela
desperta na criança a emergência das pulsões sexuais, as quais
ulteriormente exercerão seus efeitos. A mãe, nos termos do autor:
“Quando ensina seu filho a amar, está apenas cumprindo
sua tarefa; afinal ele deve transformar-se num ser humano
capaz, dotado de uma vigorosa necessidade sexual, e que
possa realizar em sua vida tudo aquilo a que os seres
humanos são impelidos pela pulsão”.
128
A relação com a mãe esboça a escolha do objeto sexual; esta
última sendo adiada até a maturidade sexual, permite que sejam erigidas as
barreiras do incesto. Estas são, para Freud, uma ”exigência cultural da
127
Ibid, p.99.
128
Ibid., p.100.
79
sociedade” estabelecida como “preceitos morais”. Cabe mencionar que
Freud em nota de 1915 remete-nos ao texto Totem e tabu (1912/1913) e
afirma que “é provável que a barreira do incesto figure entre aquisições
históricas da humanidade, como outros tabus morais, já tenha se fixado em
muitos indivíduos pela herança orgânica”.
129
Se a escolha do objeto de amor é esboçada na infância e se
depara com as barreiras do incesto, esta escolha se dá inicialmente na
esfera da fantasia. O termo fantasia é aí empregado pelo autor como
“representações não destinadas a concretizar-se” em que emergiriam as
inclinações infantis que se diferenciariam pela pulsão sexual voltada para o
sexo oposto.
Freud afirma que este processo vivido na puberdade, qual seja, o
desligamento da autoridade dos pais é significativo e doloroso. No entanto, o
autor coloca que a superação deste processo, permitida pelas barreiras do
incesto, traz a possibilidade da escolha do objeto do amor de tal modo que a
libido possa ser investida no “novo objeto“ de amor.
Nota-se que, embora o autor faça novamente, em nota de rodapé,
referência ao mito de Édipo remetendo-nos ao capítulo quinto da obra A
Interpretação dos sonhos (1900), o conceito de complexo de Édipo enquanto
processo de estruturação da personalidade vivido durante a fase fálica está
129
Ibid., p. 102.
80
ausente do texto de 1905.
130
No texto de 1905 o conflito inerente à escolha
do objeto se dá na puberdade.
O autor coloca que não havendo o desligamento da autoridade
dos pais, o que implica a fixação da libido nos objetos de amor infantis,
temos o adoecimento neurótico. Entretanto, Freud salienta que mesmo não
havendo esta fixação incestuosa da libido, as relações estabelecidas com os
pais repercutirão na escolha do objeto sexual futura:
“A afeição infantil pelos pais é sem dúvida o mais
importante, embora não o único dos vestígios que
reavivados na puberdade, apontam o caminho para a
escolha do objeto. Outros rudimentos com essa mesma
origem permitem ao homem, sempre apoiado em sua
infância, desenvolver mais de uma orientação sexual e criar
condições muito diversificadas para sua escolha objetal”.
131
Freud finaliza este terceiro ensaio justamente integrando os
conteúdos apresentados nos dois primeiros ensaios: a contingência do
objeto sexual e a presença do infantil na escolha do objeto de amor.
130
Bastaria mencionar que, como colocado anteriormente, não há nem mesmo a idéia de “fases” em
1905, e muito menos de fase fálica, noção esta, que aparece explicitamente, segundo Laplanche,
apenas em 1923 em A organização genital infantil. Entretanto a referência à obra Édipo-Rei pode ser
encontrada já em carta datada de 15 de outubro de 1897. Em relação à referência que Freud faz ao
capítulo V da Interpretação dos sonhos vide pp. 43- 44.
131
S. Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 105.
81
Considerações finais
Neste trabalho, verificamos que no final do século XIX e início do
século XX, estudos dedicados à investigação psicológica da criança
concebem a infância principalmente como um período da vida do homem
caracterizado pelo desenvolvimento físico e das suas funções orgânicas.
Neste sentido, a infância deixa de existir quando o indivíduo desenvolve-se e
torna-se adulto.
As obras de dois autores do período, Wilhelm Preyer e Bernard
Pérez, e as fontes secundárias em história da Psicologia, permitiram
constatar que estes estudos sobre a criança e a infância estavam
intimamente relacionados às preocupações e ao debate que envolvia as
teorias da evolução do final do século XIX.
Verificamos que também no final do século XIX e início do século
XX Sigmund Freud partindo da tentativa de elucidação do fenômeno da
histeria, elabora uma teoria da sexualidade infantil que se configura a partir
da investigação do adulto e não da criança, de modo que Freud não trata da
infância apesar de referir-se a aspectos da vida infantil.
Procuramos identificar as possíveis relações existentes entre o
fato de a criança figurar como objeto de estudos psicológicos no final do
século XIX e a formulação da teoria da sexualidade infantil freudiana de
1905. Podemos afirmar que o objeto e as preocupações de Sigmund Freud
eram de fato completamente distintas dos estudos sobre a criança e que
suas idéias sobre a sexualidade infantil são oriundas da sua prática e
82
pesquisa em Psicanálise. No entanto, verificamos que nos Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade, Freud não deixa de referir-se a estudos do
período sobre o desenvolvimento da criança. A referência crítica que o autor
faz ao conjunto destas obras, inclusive citando Preyer e Perez, nos permite
ao menos afirmar que embora a criança e a infância não fossem objeto de
suas investigações, para a elaboração da teoria da sexualidade infantil,
Freud não esteve de todo alheio ao contexto dos estudos psicológicos sobre
a criança, ainda que o contato com este contexto tenha sido através da
revisão bibliográfica por ele feita.
Pudemos constatar, em primeiro lugar, no estudo dos Três
ensaios, que ao tratar das aberrações sexuais no primeiro ensaio, Freud
parte do estudo das perversões sexuais para depois introduzir aquilo que
seria a sexualidade normal, de modo que propõe uma concepção de
sexualidade que não só aproxima a normalidade e a patologia, mas também
acaba por inverter a lógica da sexologia do período que pressupunha o
entendimento do desvio a partir do parâmetro da sexualidade normal.
E é neste sentido que verificamos que Sigmund Freud aproxima
também a sexualidade adulta da sexualidade infantil. Podemos afirmar que
uma das principais idéias no que tange à sexualidade infantil proposta por
Freud nos Três ensaios em 1905 é o conceito de “disposição perverso-
polimorfa”. Este termo empregado por Freud em 1905 designa o caráter
plástico da sexualidade infantil, o que significa que ela traz o germe da
sexualidade adulta na sua forma bruta, parcial, sem governo, e, portanto,
indefinida.
83
O que propõe Sigmund Freud em 1905 no Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade é uma concepção de infantil como aquilo que
permanece psiquicamente de alguma forma quando o indivíduo desenvolve-
se e torna-se adulto e que o infantil é desta forma também um atributo do
indivíduo adulto, neurótico ou não.
A teoria da sexualidade infantil freudiana implicou uma concepção
singular de infantil no início do século XX. A concepção de infantil freudiana
por um lado desfaz a idealização em torno da infância, rompendo com a
idéia da inocência pueril. Por outro lado, esta mesma concepção valoriza a
infância, pois para Freud, as escolhas da vida adulta remetem
necessariamente à vida infantil.
84
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