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A SERPENTE DE BRONZE
Humberto de Campos
(Conselheiro XX)
A
Arnaldo Quintella e
Jayme Poggi
SIMILIA SIMILIBUS CURANTUR
Tornaram logo os israelitas a murmurar, pelo que mandou o Senhor contra eles serpentes
venenosas, cuja mordedura queimava como fogo. E morrendo muitos com dores
atrocíssimas, veio o povo ter com Moisés, e disse: "Pecamos contra o Senhor e contra ti;
roga-lhe que nos livre destas serpentes". Anuiu Moisés ao pedido, e o senhor lhe deu a
seguinte ordem: - "Faze uma serpente de bronze, e arvora-a no alto de um poste; e todo o
que, sendo mordido, olhar para ela, será salvo". Obedeceu Moisés, e todos aqueles que
tinham sido feridos, e olharam para a serpente de bronze, ficaram curados." - D. Antônio de
Macedo Costa, Resumo da História Bíblica p. 39, pag. 71.
I - O FILÓSOFO
II - A ROSA AZUL
III - A BILHA
IV - O TROCO
V - A EPILÉTICA
VI - OS SUBMARINOS
VII - NINHO DO CURIÓ
VIII - "VITÓRIA-RÉGIA"
IX - A MULATA
X - AS PERDIZES
XI - A OBRA PRIMA
XII - MAMÂE
XIII - A INTENÇÃO
XIV - OS JASMINS
XV - EDUCAÇÃO ANTIGA
XVI - AS CRUZES
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XVII - O PERFUME
XVIII - EXPERIÊNCIA
XIX - ILUSÃO
XX - FERRABRÁS
XXI - INDEFESA
XXII - A SANTA CASA
XXIII - O GATO E O PASSARINHO
XXIV - A NOIVA DO DONATO
XXV - O DATILÓGRAFO
XXVI - O MILAGRE
XXVII - A SURPRESA
XXVIII - AS FOLHAS
XXIX - AS JACOBITAS
XXX - A CHÁCARA
XXXI - MANIAS
XXXII - FEMINICE
XXXIII - CHAVES E FECHADURAS
XXXIV - O MONSTRO
XXXV - A "FESTA DOS OVOS"
XXXVI - APARÊNCIAS
XXXVII - A COBERTA
XXXVIII - A DERRADEIRA "MORADA"
XXXIX - A PUNIÇÃO
XL - O NABABO
XLI - A CONFISSÃO
XLII - POLÍTICA
XLIII - O AMIGO
XLIV - A LIÇÃO
XLV - OS GÊMEOS
XLVI - AS CAMISAS
XLVII - O SONÂMBULO
XLVIII - O AMBICIOSO
XLIX - O SOVINA
L - CERIMÔNIAS NUPCIAIS
LI - A PEDRA DOS NAMORADOS
LII - O PORCO
LIII - REVELAÇÃO
LIV - RESPOSTA DIFÍCIL
LV - O TROPEIRO
LVI - PARÁBOLAS
LVII - A ADÚLTERA
LVIII - OBEDIÊNCIA
LIX - AS LOÇÕES MIRACULOSAS
LX - A VINGANÇA
LXI - ALTRUÍSMO
LXII - MODAS...
LXIII - OS SUSPENSÓRIOS
LXIV - A BARONESA
LXV - A FOME NO AMAZONAS
LXVI - OS "REDDIS"
LXVII - FORTUNATO
LXVIII - O LIMO
LXIX - A VIRGEM
LXX - MELHORAMENTOS...
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LXXI - A CAÇADA
LXXII - A MANICURA
LXXIII - MOCIDADE...
LXXIV - A PÉROLA
LXXV - OS MÉDICOS
LXXVI - O "BRAVO DOS BRAVOS"
LXXVII - O PÉ E O SAPATO
LXXVIII - O PATRÃO
LXXIX - AS "GAFFEUSES"
LXXX - OS HORRORES DA GUERRA
LXXXI - PAVORES DE ENFERMO
LXXXII - O ELEFANTE
LXXXIII - O RIO PURÚS
LXXXIV - REPRESÁLIA
LXXXV - O PRÊMIO
LXXXVI - A CIDADE INDISCRETA
LXXXVII - O LADRÃO
LXXXVIII - O PRESTÍGIO DO "ROUGE"
LXXXIX - A FESTA DA INTELIGÊNCIA
XC - CONSEQÜÊNCIAS DO PROTOCOLO
XCI - OS COLCHETES
XCII - O VESTIDO
XCIII - CONVENIENTES DO CIÚME
XCIV - MIOPIA
XCV - O SAPATEIRO
XCVI - ENTRE OS PAPUAS
XCVII - AS "MENINAS"
XCVIII - ELAS...
XCIX - BARBA DE BODE
C - O TRIUNFADOR
CI - A CORNUCÓPIA
CII - O MILAGRE DE S. BENEDITO
CIII - O LEILÃO
CIV - LÂMPADAS E VENTILADORES
CV - MILITARISMO
CVI - APÓLOGO SERTANEJO
CVII - AS GARRAFAS
CVIII - PELE CURTA
CIX - MALITIA SEXUS
CX - MME. LONDON BANK
CXI - EFEITOS DO TANINO
CXII - ZURTZ
CXIII - A CHUVA LUMINOSA
CXIV - PEDRAS PRECIOSAS
CXV - O BRAVO
CXVI - SÃO FILOMENO
CXVII - O JAVALI DE CALYDON
CXVIII - AUTOS E "TAXIS"
CXIX - "GIGOLÔ"
CXX - CEFALALGIA
I
O FILÓSOFO
1° de janeiro
Educado no Colégio Caraça, o coronel Venâncio Figueira, fazendeiro em Uberaba, havia se
contaminado, pouco a pouco, de filosofia e de latim, de modo a preocupar-se, mais do que o
necessário, com os graves problemas da vida. Manuseador quotidiano de certos autores
profanos, ele se punha, às vezes, a pensar, no alpendre da sua casa de fazenda:
- Sim, senhor! Esses filósofos têm razão! Este mundo é tão desigual, tão cheio de injustiças,
de irregularidades clamorosas, que qualquer mortal, encarregado de fazê-lo, o teria feito
melhor!
E acentuava, melancólico:
- Este mundo está muito mal feito!...
À noite, porém, reunida a família na sala de jantar, o velho fazendeiro arreganhava os óculos
no nariz, tomava a "Bíblia", chegava para mais perto o lampião de querosene, e punha-se a
ler, pausado, o "Livro de Jó". E começava, de novo, a meditar, diante destas palavras do
capitulo 38:
"4. Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência.
"25 - Quem abriu para a inundação um leito, e um caminho para os relâmpagos e trovões?
"41 - Quem prepara aos corvos o seu alimento, quando os seus filhotes implumes gritam a
Deus, e andam vagueando por não terem de comer?"
Certo dia, dominado pelas idéias reacionárias bebidas em autores modernos, passeava o
coronel pelo pátio da fazenda, quando, ao ver as andorinhas que voejavam por cima do gado,
voltou novamente a raciocinar:
- É isso mesmo, nãoduvida! O mundo é muito mal arranjado. Aqui está, por exemplo; este
boi. Porque, tendo ele chifres, patas, orelhas, e sendo tão forte, há de viver sempre na terra, a
arrastar-se pelo solo, quando aquela andorinha, que não tem nada disso, se locomove,
rápida, ligeira, dominando os ares?
Nesse momento, porém, uma andorinha que lhe passava por cima, deixou escapar alguma
cousa que lhe fazia sobrecarga, e que foi cair, certeira, na cabeça descoberta do coronel.
Este levou a mão instintivamente à calva, e, olhando os dedos brancos daquela indignidade,
caiu de joelhos, clamando, arrependido:
- Perdoai-me, Senhor, perdoai-me! O mundo está muito bem organizado! O que nele há, o
que nele vive, o que nele existe, foi feito com perfeição, com acerto, com sabedoria!
E levantando-se, limpando a mão:
- Imagine-se que fosse um boi....
II
A ROSA AZUL
4 de janeiro
O comendador Luiz de Faria acabava de fechar os olhos à velha marquesa de São Justino,
adoçando-lhe o momento da morte com a noticia alvissareira e mentirosa da completa
regeneração do seu neto, o estudante Guilherme de Araújo, quando o encontrei à porta da
casa funerária, à espera do seu automóvel. Abalado, ainda, pela emoção daquele instante,
em que tivera de lançar mão de uma falsidade para perfumar o último sopro de uma vida de
virtudes e sofrimentos, o antigo par do reino português aceitou um lugar no meu "taxi", e
confessou-me, em viagem:
- A mentira, meu amigo, é, às vezes, uma necessidade. Aquela de que me socorri meia
hora, para suavizar a morte de uma santa, de uma senhora cuja maior esperança consistia no
futuro de um neto que se desgarrara do lar, era tão necessária como a do prior da Cartuxa
para alegrar a agonia daquele célebre monge do Bussaco.
Eu olhei, interrogativamente, o meu companheiro de viagem, e ele, percebendo a ignorância,
indagou, com admiração:
- Não conhece, então, a lenda da rosa azul?
À minha afirmativa, que lhe pareceu estranha, o comendador apoiou as mãos robustas no
castão de ouro da bengala, e contou:
- No Mosteiro da Cartuxa, no Bussaco, em Portugal, vivia, em séculos que se foram, um
piedoso e santo monge, cuja vida se consumia, inteira, entre a oração e as rosas. Jardineiro
da alma e das flores, passava ele as manhãs de joelhos, no silencio da nave, aos pés de um
Cristo crucificado, e as tardes, no pequeno jardim da ordem, curvado diante das roseiras, que
ele próprio plantava e regava.
O comendador interrompeu um momento a narrativa, recostou-se na almofada, e continuou:
A sua paciência de jardineiro era absorvida, entretanto, por uma idéia, que era um sonho:
encontrar a rosa azul das legendas do Oriente, de que tivera noticia, uma noite, ao ler os
poemas latinos dos velhos monges medievais. Para isso, casava ele as sementes, os brotos,
fundia os enxertos, combinando as terras, com que as cobria, e as águas, com que as regava,
esperando, ansioso, o aparecimento, no topo da haste, do sonhado botão azul! Ao fim de
setenta anos de experiências e sonhos, em que se lhe misturavam na imaginação as chagas
vermelhas de Cristo e as manchas celestes da sua rosa encantada, surgiu, afinal, no
coroamento de um galho de roseira, um botão azul, como o céu. Centenário e curvado, o
velhinho não resistiu à emoção; adoeceu, e, conduzido à cela, ajoelhou-se diante do
Crucificado, pedindo-lhe, entre soluços pungentes, que, como prêmio à santidade da sua
vida, não lhe cerrasse os olhos sem que eles vissem, contentes, o desabrochar da sua rosa
azul.
Uma nova pausa, e o meu companheiro tornou:
- Em volta do santo velhinho, no catre do mosteiro, todos choravam, compungidos. E foi,
então, que, divulgada de boca em boca, foi a noticia ter a um convento das proximidades,
onde jazia, orando e sonhando, uma linda infanta de Portugal. Moça e formosa, e, além de
formosa e moça, - fidalga e portuguesa, compreendeu a pequenina freira, no jardim do seu
sonho, o valor daquela ilusão, e correu à sua cela, consumindo toda uma noite a fazer, com
os seus dedos de neve, uma viçosa flor de seda azul, que perfumou, ela própria, com
essência de gerânio. E no dia seguinte, pela manhã, morria no seu catre, sorrindo entre
lágrimas de alegria, por ter nas mãos tremulas, por um milagre do céu, a sua rosa azul!
O "taxi" parava no meio-fio da calçada, o comendador acrescentou, estendendo-me a o
agradecida:
- Feliz, meu amigo, aquele que morre, como esse monge e a marquesa, apertando nas mãos
a rosa, mesmo mentirosa, de uma roseira de que cuidou toda a vida.
III
A BILHA
9 de janeiro
Sentado em um banco de madeira tosca, colocado por ele próprio diante da sua chácara do
"Bom Retiro", a dois quilômetros de São Fidelis, olha o coronel Saturnino as grandes águas
do Paraíba, que rola, sereno e inchado, no rumo de São João da Barra. A cinco metros do
honrado fazendeiro, no leito do rio, emergem duas cabeças queridas: a do filho, o Alfredinho,
um pirralho louro, forte, vivaz, de quatro anos, feitos em setembro, e a da sua segunda
esposa, D. Florinda, cujos cabelos castanhos, soltos e molhados, lhe orlam, como um capuz
de freira, o formoso rosto moreno. O fazendeiro olha, sorrindo, os dois banhistas que lhe
enchem o coração, e dá ordens:
- Não vá para longe, Alfredo. Fique aí mesmo.
E para a esposa:
- Mergulhe, Lindinha. Está com medo?
A moça um mergulho ligeiro, e aparece mais distante, com os lindos olhos fechados, para
que lhe escorra melhor sobre o colo forte, como pérolas dissolvidas, a água que lhe encharca
os cabelos.
Diverte-se o coronel, assim, com os dois anjos que lhe constituem a família, quando, tomando
uma bilha velha e inservível que se achava próxima, se põe de pé, e a atira, longe, um
exercício dossculos vigorosos, na corrente do rio. Apanhada pela correnteza, a vasilha de
barro começa a descer, rápida, rodopiando, arrebatada pelas águas. De repente, porém, com
a boca para cima, começa a encher-se, afundando-se pouco a pouco, até que desaparece,
sem deixar vestígio, no tumulto um redemoinho fervente.
Alfredinho olha, atento, a viagem da vasilha, e, vendo-a desaparecer na voragem, franze o
cenho infantil, perguntando, intrigado, ao velho:
- Papai, por que é que a bilha foi para o fundo?
- Porque entrou água; está claro! - explicou o coronel.
- Ela não estava com a boca para cima?
- Estava, sim.
- E como entrou água?
- Porque estava furada, - tornou o velho.
O pequeno meditou um instante, franziu a testazinha inteligente, e, olhando Dona Florinda,
que se encaminhava com o rosto fora dágua, para o meio do rio, gritou, alto, alarmado, com a
vozinha fina:
- Mamãe, venha mais p'ra beira!...
IV
O TROCO
12 de janeiro
O Joaquim P'reira acabava de chegar da "terra" com o seu chapelão de abas largas e seu
sólido jaquetão de veludo, quando "sô" Manoel Guimarães, proprietário da Padaria "Flor de
Braga", o convidou para caixeiro.
- O essencial - avisou, entretanto, "sô" Manoel, - é que sejas honesto. O outro rapaz que eu
tinha, pu-lo eu ontem na rua por m'haver deitado fora dois mil réis que dele não eram.
Toma tu juízo, que, cá, comigo, prosp'rarás.
O Joaquim prometeu não bulir, jamais, em dinheiro da casa, e, dois dias depois, era admitido,
com todos os sacramentos da rosca e da farinha de trigo, como caixeiro da "Flor de Braga". E
estava já há uma semana no emprego, quando "sô" Manoel o chamou:
- "Sô" P'reira?
- Cá 'stou! - acudiu o Joaquim.
- Vá à casa do Almeida, no principio da rua, e receba esta conta de vinte mil réis.
E recomendou, prudente:
- Cuidado com o dinheiro!
O Joaquim pegou na conta, foi à casa indicada, recebeu uma cédula de vinte mil réis, e vinha,
reto, no rumo da padaria, quando se encontrou com um conterrâneo, o Moreira, a quem
não tinha visto desde a chegada. Trocados os primeiros abraços, o Moreira convidou:
- Vamos solenizar o encontro! Arre, lá! Vamos cá à cervejaria!
Aceito o convite, foram os dois, beberam duas garrafas, trocaram notícias e saudades, e ia o
Joaquim despedir-se, quando o Zé reclamou:
- E quem paga isso?
- Tu; ora essa!
- Mas eu cá não tenho um vintém; e se não pagares tu, iremos os dois bater à cadeia, o que é
pior!
Amedrontado e arrependido, o Joaquim arrancou do bolso a cédula de vinte, pagou os mil e
seiscentos da cerveja, recebeu dezoito mil e quatrocentos de troco, e ia pensando no meio de
justificar-se perante "sô" Manoel, quando teve uma idéia, que pôs em pratica. Entrou na
padaria pela porta lateral e, chamando o "Leão", um canzarrão que tomava conta da casa,
pôs-se a brincar com ele, aos pulos, até que, de repente, soltou um grito.
- Que é isso lá? - trovejou "sô" Manoel, acorrendo.
Com os olhos em lágrimas, o P'reira contou o desastre:
- Foi uma desgraça, patrão! Imagine o senhôre, que eu vinha com o dinheiro na mão, uma
cédula de vinte mil réis, e o cachorro avançou-me neles, e engoliu-os!
"Sô" Manoel franziu a testa, calculou o prejuízo, e, de um salto, estava diante do "Leão",
empunhando uma garrafa de óleo de rícino. Auxiliado pelo Joaquim, abriu a boca ao animal,
e, depois de purgá-lo, recomendou ao rapaz:
- Agora, fica-te cá, junto do bicho, à espera do dinheiro. Logo que ele o deite, segura-o. Meia
hora depois estava "sô" Manoel de volta, a saber noticias do purgante:
- Já deitou o dinheiro? indagou do empregado.
O Joaquim, que esperava, ansioso, por esse momento, abriu a mão, e mostrou, desafogado:
- Todo, todo, não senhôre; até agora só deitou 18$400!
E entregou o troco da cerveja.
V
A EPILÉTICA
16 de janeiro
- Estás, então, separado de tua esposa?
- É verdade; internei-a em uma casa de saúde.
E como se tratasse de uma palestra afetuosa, entre amigos que lia muito se não viam, o mais
moço dos dois, o Sr. Nataniel de Miranda, caixeiro viajante de uma conceituada casa da
praça, justificou a sua conduta:
- A situação em que dia me colocou era intolerável. Eu seria um perverso, um miserável, um
desumano, se conservasse na minha companhia uma senhora sabidamente enferma,
perseguida por moléstia tão delicada.
- Era, então, doente?
- Doentíssima! - confirmou o esposo inconsolável.
E como se visse nos olhos do amigo uma interrogação luminosa, um desejo de conhecer,
fase por fase, os detalhes daquela tragédia de coração,
tomou-o pelo braço e, fazendo-o
sentar-se em uma das mesas do botequim, principiou, calmo, a descrever-lhe o caso,
deixando esfriar, entre voltas de fumaça, as duas xícaras de café.
- muito tempo eu andava desconfiado da moléstia da Luisinha. Afastado sempre de casa
por exigência mesmo do meu gênero de vida, ora em excursão pelo interior de Minas, ora por
S. Paulo, era com estranheza, com mágoa íntima, que eu observava, de mês para mês, a
mudança nos modos de minha mulher. A transformação do seu caráter, das suas maneiras,
do modo, enfim, por que definhava, a olhos vistos, fazia-me triste, aflito, preocupado, na
suspeita de que alguma coisa de grave, de anormal, se estava passando na sua saúde. Em
uma dessas viagens, com a alma carregada de preocupações, confessei a um parente meu,
fazendeiro em Uberaba, a desconfiança, que eu tinha, de que ela sofria de ataques, na minha
ausência. Ele escutou-me, pensou um momento, e, chamando-me para o interior da casa,
perguntou-me porque euo tirava a limpo essa dúvida, empregando, no caso, a experiência
da tigela de leite.
- Da tigela de leite? - interrompeu o amigo.
- Da tigela de leite, sim.
E continuando:
- Esse fazendeiro explicou-me, então como era a prova. Pega-se uma tigela de leite, e põe-se
debaixo da cama, em um lugar que corresponda ao meio do colchão. Em seguida, toma-se
de uma colher, ou de uma vara de uns dois palmos, e amarra-se no estrado de arame, de
ponta para baixo, exatamente sobre a tigela, de modo que, com o peso natural de uma
pessoa, não chegue até o leite, mas de maneira que, com um movimento mais forte, como
nos ataques de epilepsia, a colher, ou coisa semelhante, molhe a ponta no liquido da tigela,
registrando o fenômeno.
- E fizeste a experiência?
- Espera aí. Chegado ao Rio, procurei um momento em que a Luisinha se achava ausente, e
fiz o que me haviam aconselhado. com a diferença, apenas, da colher, que, por ser a cama
um pouco alta, foi substituída na ocasião, por um batedor de doce, que encontrei na dispensa
da casa. Feito isso, declarei que ia a São Paulo, e parti. Dois dias depois, voltei.
- E então? - indagou o amigo, ansioso, com a curiosidade nos olhos.
- O batedor tinha batido tanto, tanto, que a tigela...
- Que é que tem? - interrompeu o outro.
E o desgraçado, enxugando os olhos:
- Estava cheia... de manteiga!...
VI
OS SUBMARINOS
18 de janeiro
À margem do Tietê, em lugar em que o rio se tornava mais claro e menos profundo, tomavam
banho, uma tarde, sete ou oito crianças, de quatro a nove anos, entre as quais uma
encantadora menina, a Lili, irmã do Armindinho, que era, no grupo, o mais insuportável e
barulhento. Com a inocência peculiar à idade, apresentavam-se todos despidinhos, nadando,
mergulhando, pulando, como um bando de golfinhos irrequietos.
O barulho que faziam, era, como facilmente se imagina, ensurdecedor. Entregues a si
mesmos, rolavam-se na areia, atiravam-se terra, empurravam-se, nadando, ora de papo para
cima, ora de papo para baixo, com as mãos em movimento dentro dágua, no "nado de
cachorro", batendo com os pés, na imitação dos navios de roda, ou de barriga para o sol,
agitando os braços ritmadamente, como escaleres em marcha pelo impulso regular de dois
remos.
Estavam os pequeninos tritões no mais aceso do entusiasmo, quando o Armindinho propôs,
gritando:
- Vamos brincar de submarino?
- Vamos! - concordaram os outros, aos pulos, com o busto fora dágua. - Vamos!
Unindo o gesto à palavra, o Armindinho atirou-se à frente dos companheiros, nadando, ágil,
de peito para o ar, meio submerso, dando marcha ao corpo com o movimento das mãos
debaixo dágua. Imitando o inovador, os outros pirralhos fizeram o mesmo, de papo para
cima,, pernas estiradas, silenciosos, como uma verdadeira flotilha de submersíveis.
Momentos depois, de volta à margem, iam repetir a proeza, quando a Lili pediu, nuazinha,
batendo as mãos:
- Eu também vou, mano, eu também vou! Sim?
O Armindinho encarou-a, com a superioridade de um oficial alemão, e protestou:
- Não; você não pode!
E virando-se para um dos companheirinhos, explicou, com a maior inocência do mundo:
- Ela não tem periscópio; não é?
VII
NINHO DO CURIÓ
20 de janeiro
Rosto em brasa, olhos vivos, cabelos alvoroçados, atravessava o Luizinho a praça do
povoado, denunciando no desalinho das roupas, no fogo das faces, no susto das maneiras, a
sua última travessura, quando, ao passar pela frente da igreja, foi detido suavemente,
brandamente, pela bondade do padre Guilherme.
- Venha cá, ó Luizinho!
O garoto tremeu, desconcertado, e o vigário, homem de uns quarenta anos, insistiu:
- Venha cá!
Luizinho chegou-se, respeitoso, de olhos no chão e chapéu entre os dedos, e o sacerdote
indagou:
- Então, por onde andou você, hoje?
- Eu?
- Sim, você.
O pequeno corou, envergonhado, e o padre, excelente pastor, pegou-lhe da mão, puxando-o
para dentro da igreja.
- Venha cá; venha se confessar.
Um minuto depois estava o Luizinho, com os olhos muito espantados, ajoelhado no
confessionário, a contar ao padre Guilherme o seu grande pecado do dia.
- Eu estive hoje na mata do outro lado do rio, tirando uns ninhos de curió... confessava o
garoto.
- Ninho de curió? - estranhou o confessor, franzindo a testa. - Você não sabe, então, que é
pecado tirar os ninhos das avezitas, roubando os pobres passarinhos ao conchego de seus
pais?
Luizinho mantinha-se cabisbaixo, vermelho de arrependimento e de vergonha, e não
respondeu. O vigário insistiu, porém:
- E onde foi que você achou esses ninhos de curió?
- Na ingazeira, junto do morro.
- E havia muitos?
- Havia, sim, senhor.
- Pois, não tire mais, não. É pecado, e pecado mortal!
Na manhã seguinte, após uma noite de apreensões aflitivas, ia o garoto procurar urnas vacas
na outra margem do rio, quando viu, ao longe, o vulto de padre Guilherme, que se
aproximava, cauteloso, da ingazeira de que lhe falara na véspera. Luizinho escondeu-se, de
um salto, em uma das moitas das proximidades, e observou tudo. Padre Guilherme chegou,
com o breviário nas os e nariz no ar, examinou, sondou, olhou para um lado, olhou para
outro, e, como não visse ninguém, descansou o livro na raiz da árvore, endireitou os óculos e
subiu. Momentos depois, assinalados pelo piar dos passaritos implumes e pelo vôo das aves
aninhadas, o servo de Deus descia da ingazeira, sustentando nas mãos os bolsos da batina,
repletos de curiós.
Luizinho viu tudo isso, da sua moita, e não disse nada. Padre Guilherme apanhou o seu
breviário e foi-se embora para a aldeia. Ele tomou, também, o seu varapau, e se pelo
mundo ganhar a vida, até que, anos depois, homem feito, voltou, de novo, à terra do seu
nascimento.
Forte, moço, querido das moças, ia, uma tarde, o Luiz pela praça da matriz, quando o
detiveram pelo braço:
- Olá, Luiz, como vai?
- Oh! o Sr. padre Guilherme! - sorriu o rapagão, feliz.
E travou-se a palestra
- Então, veio à terra para casar, não?
- É verdade, sim, senhor.
O padre deu-lhe parabéns, mas, não satisfeito, insistiu:
- E a noiva?... Afinal, quem é a noiva?
Luiz encarou, firme, o reverendo, e trovejou:
- A noiva? Eu sou tolo, então, para lhe dizer quem é?
E, dando-lhe as costas, indignado:
- Pensa, então, que isto é ninho de curió?...
E afastou-se, resmungando.
VIII
"VITÓRIA-RÉGIA"
22 de janeiro
A canoa, puxada a quatro remos, descia o pequeno afluente do Amazonas, desviando-se,
ligeira, das grandes manchas de plantas aquáticas que a correnteza preguiçosamente
arrastava, quando o velho índio Tibúrcio, sustando a remada, começou a contar-me a mais
formosa lenda daquelas ribeiras.
- Antigamente, meu senhor, este rio era limpo de toda sorte de aguapé, e de corrente tão
clara que se podia ver, de dia, as traíras, os piaus e os mandís, rabeando, no fundo, no
grande leito da areia dourada. Nesse tempo, morava na cabeceira do rio, onde as águas são
mais puras, um velho índio, o famoso Tauí, cuja filha, Jaciara, assim chamada por ser a
senhora da lua, era, com os seus olhos mais negros do que o acapú, a mais formosa moça
das redondezas.
O caboclo enfiou, de novo, o úmido remo no grande leito do rio, fê-lo roncar, soturno, nas
profundezas dágua silenciosa, e levantando-o, gotejante, continuou a narrativa:
- Um dia, voltando da caça, adivinhou Tauí, de longe, a presença de um estranho na palhoça
que lhe servia de casa. Arrastando-se, como uma cobra, sobre as folhas do chão, estava o
pobre pai a poucos passos da porta de esteira, quando de pulou um homem, que
desapareceu, de um salto, no seio da mataria.
Duas remadas ressoaram, de novo, profundas, no leito do rio, impelindo a canoa, e Tibúrcio
reatou a história:
- Furioso com a traição da filha, o índio, feroz, atirou-se contra ela, esganou-a, e abriu-lhe, de
lado a lado, com a ponta da flecha, a caixa do peito moreno. Feito isso, enfiou no seu corpo
as grandes unhas de tamanduá, e arrancou-lhe, sangrento, o coração ainda palpitante, que
atirou, da porta da palhoça, à clara correnteza do rio.
Impeliu, mais uma vez, a canoa ligeira, fazendo roncar no seio da água o seu pesado remo de
massaranduba, e rematou:
- Desde esse tempo, meu senhor, começaram a aparecer no rio estas verdes plantas
errantes, cuja flor, alva como a lua, dorme no fundo das águas, e rebenta, à noite, com grande
estampido, espalhando por tudo, em redor, a doçura do seu perfume.
E apontando-me uma "vitória-régia" que descia, alva e enorme, nos braços cariciosos das
águas, acrescentou, compungido:
- Olhe, lá vai uma. É o coração de Jaciara...
E impeliu a canoa, com força.
IX
A MULATA
26 de janeiro
Aumentados com a descoberta do Brasil os limites civilizáveis do mundo, compreendeu
Jeová, do seu trono de nuvens, a necessidade de multiplicar o homem, para povoar, em
nome da sua gloria, as novas regiões desbravadas. De que espécie devia ele encher, porém,
a terra maravilhosa, que se mostrava tão promissora? A raça branca, que ele tanto amava e
protegia, dominava, já, na Europa tumultuosa. A Ásia, berço da humanidade e dos grandes
mistérios eternos, fervilhava de homens amarelos, que a enchiam toda, e que se haviam
derramado, aventureiros, pelas ilhas circunvizinhas. À própria raça negra, que tanto se
lamentava da sua condição e do seu destino, coubera a África inteira, de que se tornara
senhora. Fazia-se mister, pois, criar um tipo novo, urna raça nova e bendita, que se
apropriasse com autoridade e com orgulho, da nova terra exumada das ondas.
Resolvido isso, tomou o Senhor do seu camartelo, do seu buril, da sua verruma, do material,
em suma, com que trabalhava na fabricação meticulosa dos seres vivos, e, misturando um
pouco da pasta com que fizera o negro, com outra, absolutamente igual na dosagem, de que
fabricara o branco, formou com as duas, uma pasta morena e macia, em que se pôs a
modelar, cuidadoso, uma figura de mulher.
Concluída a obra, o estatuário quedou fascinado. Última flor do jardim humano em que
pusera toda a sua experiência de escultor inexcedível, a nova Afrodita resumia, com os seus
olhos negros, os seus cabelos crespos, as suas linhas voluptuosas e a sua pele
acentuadamente castanha, todos os encantos e todas as graças da criação. Deslumbrado,
encantado, embevecido, Jeová mirou-a, remirou-a, examinou-a, banhou-a com a luz dos seus
olhos, e, de repente, com um sorriso, teve uma idéia. Foi ao laboratório, tomou nas mãos uma
folha de cebola, um dente de alho, amassou-os, triturou-os, diluiu-os e, voltando à estatua,
friccionou-lhe pausadamente os ombros, as espáduas e a parte superior e interna dos braços.
Em seguida, ordenou-lhe, recuando:
- "Surge et ambula!"
A estatua moveu-se, preguiçosa, e com um andar lúbrico, remexido, sensual, desceu do solo
em que fora polida.
Jeová sorriu, de novo, e, com orgulho paternal, apontou-lhe para debaixo do braço, dizendo-
lhe, como dissera a Constantino, na legenda sagrada:
- "In hoc signo vinces!"
A mulata abriu os lábios num sorriso dengoso, e, como o Criador lhe indicasse, com um
gesto, o caminho da terra, através das estrelas, rumou, enamorada de si própria, em direção
ao Brasil. Vinte e quatro horas depois, porém, batia, de novo, à porta da oficina celeste.
- Você por aqui, ainda? - estranhou Jeová, espantado.
A mulata baixou os olhos, procurando justificar-se:
- Foi impossível chegar ao meu destino, meu Senhor; e eu, então, regressei, ali, das nuvens.
- Por que? - trovejou o Criador, indignado.
E ela, corando, envergonhada:
- As almas dos portugueses não me deixaram passar...
X
AS PERDIZES
30 de janeiro
Chegado do interior de Minas, onde nasceu, vive, e não sabe se morrerá, o capitão Venâncio
Pimentel, coletor em Poço Fundo, ficou deslumbrado com o Rio de janeiro. Com uma dezena
de contos no bolso, provenientes da arrecadação semestral da coletoria, tomou o simpático
sertanejo a deliberação de conhecer a cidade, guiando-se por si mesmo, dispensando, em
tudo, o auxilio de estranhos. Teatros, cinemas, restaurantes, subúrbios, estabelecimentos
públicos, tudo isso recebeu, de passagem, a visita da sua curiosidade.
Nada, porém, lhe causou tanta admiração, como a quantidade de mulheres
desacompanhadas que encontrava na rua, principalmente nas proximidades do ponto dos
bondes da Jardim Botânico, depois das nove horas da noite. Adivinhando-lhe a procedência,
e farejando-lhe o dinheiro, essas criaturas infelizes acercavam-se do forasteiro, olhando-o de
esguelha, sorrindo-lhe com brejeirice, num desafio maneiroso e calculado. Ele fixava então, a
leviana, que tomava o bonde, e acompanhava-a até a Lapa, até o Catete, ou até a Glória, de
onde voltava ao ponto de partida, para experimentar, de novo, quatro, cinco, seis, oito vezes,
as mesmas sensações da conquista.
Uma destas noites, ia eu tomar o carro, às onze horas, em companhia do Sr. deputado
Antônio Carlos, quando este descobriu, no ponto de costume, o capitão Venâncio, a quem me
apresentou, contando-me, ao mesmo tempo, a fraqueza do seu velho correligionário e
concidadão.
- Que gosto acha o senhor nessa extravagancia, Sr. Pimentel? - perguntei eu, escandalizado,
ao mineiro, acentuando as palavras com a tonalidade proposital da minha censura.
- Gosto? - atalhou o sertanejo. - Gosto, eu não acho nenhum. Eu acho é engraçado.
- Engraçado? - estranhei.
- Sim, senhor. Eu faço isso para me lembrar de Minas, das minhas caçadas no Poço Fundo.
Cada mulherzinha dessas é mesmo que perdiz.
- Perdiz? - interveio o Dr. Antônio Carlos, admirado.
- Sim, senhor. Vossa Senhoria nunca andou caçando perdiz?
E explicou, ajudando a palavra com a mímica:
- A gente vai, às vezes, pelo mato, pisando aqui, pisando ali, cauteloso. com a espingarda
calada, quando ouve, de repente, um barulho no chão, entre as folhas. Olha, e vê: é a perdiz
que está no folhedo, imóvel, quieta, olhando p'ra gente. Sentindo-se descoberta, solta um vôo
baixo, rasteiro, junto do solo. A gente não atira: vai andando, vai seguindo, vai acompanhando
a bicha, até que ela, afinal, chega no ninho.
- E quando a perdiz chega no ninho, que é que faz? - indaguei, curioso.
E o capitão, rindo:
- Que é que faz? Deita-se!
E saltou para o estribo de um bonde, espantando uma revoada...
XI
A OBRA PRIMA
2 de fevereiro
O almirante Ribas acabava de referir às senhoras, à mesa de jantar, a origem da mulata
nacional, tal como eu a contei, aqui, poucos dias, quando o desembargador Pessegueiro,
recompondo as guias do bigode grisalho e cuidado, atalhou, com orgulho:
- engano nessa tradição, Sr. almirante: engano. A mulata não teve origem no céu,
como se diz; a sua origem, para gloria nossa, é toda terrena.
E recostando-se na cadeira, apoiando-se na mesa com ambas as mãos, começou, pausado,
a sua narrativa:
- O preto, o branco e o amarelo, que habitam a África, a Europa, a Ásia e a Oceania, foram,
realmente, modelados por Jeová, que os reconheceu, de fato, como seus filhos. Atirando-os,
aos milhares, ao mundo, ele os conhecia todos, regulando-lhes a vida e a morte. E tanto
assim, que, quando aparecia, no céu, de volta da terra, um branco, um preto ou um indivíduo
de raça asiática, ele tomava, paternal, pela mão, reconduzindo-o ao convívio dos bem-
aventurados.
Feita uma pequena pausa, o desembargador continuou:
- Certo dia, porém, bateram à porta de ouro do céu. Solícito, como sempre, S. Pedro correu a
abri-la, e recuou, deslumbrado: era a primeira mulata que, requebrada, cheirosa,
encantadora, incomparável, penetrava, triunfante, no Paraíso!
As senhoras sorriram, admirando o entusiasmo do velho magistrado, e ele, sorrindo com elas,
retomou o fio à narrativa:
- A presença daquela criatura estranha, rica de encantos, de graças, de seduções, agitou, de
pronto, a morada celeste. Anjos e serafins rodeavam-na, fascinados, tontos, embriagados de
beleza. Estrelas que viviam isoladas no azul, achegavam-se, cochichando, formando
constelações. E uma grande música religiosa ressoou pelas alturas, celebrando, num enlevo,
o maravilhoso acontecimento.
Nesse ponto, com os braços e os bios abertos, o desembargador quedou-se, como num
êxtase. Passado um minuto, continuou:
- Avisado da novidade, Jeová quis, ele próprio, ver o prodígio; e, descendo do seu trono de
pedrarias, encaminhou-se, com o cortejo de arcanjos, no rumo da porta, de se achava a
mulata, rodeada de santos e querubins. Chegando aí, ao vê-la, ele próprio recuou, tapando os
olhos com as mãos; diante dele, a cabeça pendida para um lado, os lábios entreabertos num
sorriso, e os olhos entrefechados num delíquio, a recém-chegada esperava-o, doce, linda,
maravilhosa! Passado o primeiro momento de pasmo, o Supremo Arquiteto levantou o rosto
venerável, e, com a barba soberba derramada pelo peito largo, bradou, deslumbrado:
"- Eu fiz a raça preta, que povoou a Líbia ardente, suportando, impassível, o fogo dos
desertos. A raça amarela, cujas mulheres, pequeninas e tímidas, enchem a Ásia, é obra
minha. A mulher branca, delicada, mimosa, de olhos azuis e cabelos de ouro, saiu das
minhas oficinas. Que artífice terá, porém, imaginado e realizado esta jóia, esta obra-prima da
natureza, esta flor incomparável da criação?"
Nesse momento, os bem-aventurados abriram alas, deixando ver uma figura curiosa: barba
feita, bigode retorcido, correntão de ouro atravessado sobre o colete, que lhe dava maior vulto
à obesidade, apareceu, sorridente, o Manél da Venda, exclamando, com orgulho:
- Eu, Senhor!
Ante essa confissão, Jeová não resistiu: encaminhou-se para o Manél, que o olhava
desafiadoramente, e, sem se conter, bradou, com os olhos úmidos:
"- Mestre!..."
E apertou-lhe a mão, comovido.
XII
MAMÂE
5 de fevereiro
Chepélinho de palha de grandes abas e de grandes fitas atirado para a nuca e preso ao
queixo, em baixo, por um elástico de seda que lhe flagiciava as carnezinhas tenras; calcinha
pelo joelho, cinto de mulher e bengalinha à mão, vai o Antoniquinho, com os seus três anos
de idade, pela rua Gonçalves Dias, arrebatado pela pressa elegante da sua mamãe.
Seguro pela mão esquerda, com a bengalinha na direita, debalde procura o pequenito deter-
se diante das vitrinas, para ver os manequins, os macacos de veludo, os ursos de pelúcia, os
cavalinhos de pau, as coisas galantes ou vistosas que lhe encantam os olhos. A boquita
quase do tamanho do pipo de borracha de que prescindira no ano anterior, não se cansa de
papaguear. As suas perguntas, que são as mais ingênuas e atrapalhantes, ficam, porém, sem
resposta. D. Odette vai, apressada, sem saber mesmo o motivo, e não pode prestar atenção,
ao mesmo tempo, à gentileza dos conhecidos, que a saúdam atenciosos, e à insaciável
curiosidade do Antonico.
De repente, com a atenção despertada por um rico vestido de passeio, a moça estaca, sem
abandonar a mão do pequeno, diante de um mostruário de modista. Desinteressado das
modas, Antonico prefere olhar uma vitrina da casa de flores e aves, que fica ao lado, e em
que se vê, perto de um casal de grandes galinhas pretas, alguns ovos de raça. Sem outra
coisa a perguntar no momento, o pirralho ergue os olhos muito negros e muito vivos,
indagando, em voz cantada e doce, como a de um anjo:
- Mamãe, galinha preta põe ovo branco?
D. Odete não lhe responde; toma-lhe da mãozinha tenra, miúda como um jasmim, e parte, de
novo, apressada. Adiante, porém, com a rapidez da marcha, Antonico atrapalha-se com a sua
bengala de dois palmos de cumprimento, enfia-a entre as perninhas nuas, tropeça, rodopia, e
vai ao chão, esfregando os joelhinhos no asfalto. Vem-lhe uma vontade de chorar, mais do
susto do que da queda. O beicito treme, abotoando num cravo. D. Odete prevê, porém, o
berreiro, suspende-o do solo pela mão, e infunde-lhe coragem, ânimo, dignidade, sacudindo-
lhe com o lenço o joelhinho escoriado:
- Não chore, meu filho, não chore!
E sem dar pelo que dizia:
- Seja "homem", como sua mãe!
XIII
A INTENÇÃO
8 de fevereiro
A pequenina igreja de Santa Engrácia estava quase despovoada de fieis, que se iam
retirando, um a um, molhando os dedos na água benta, quando o Onofre penetrou no templo,
desconfiado, chapéu na mão, camisa para fora da calça, à maneira da terra, procurando falar
a padre Lourenço, que se achava, no momento, arrumando a paramenta eclesiástica na
pequena cômoda da sacristia. Ao ver o caboclo, afamado em toda a vila pela sua
desenvoltura, o sacristão, o Zézinho, correu ao seu encontro, levando na mão, pingando cera,
o apagador de velas com que abafava, naquele instante, as últimas luzes do altar-mor.
- Que é que você quer, Onofre? - indagou o sacrista. - Quer falar com "seu" vigário?
- Chame ele! - respondeu o caboclo, soturno.
Cinco minutos depois, após as explicações preliminares, estava o desordeiro ajoelhado diante
do confessionário, torcendo o chapéu nos dedos, com o cabelo a cair, em cachos revoltos,
sobre a testa e sobre os olhos.
- Qual é o pecado de que se acusa, meu filho? - indagou o sacerdote, bondoso, procurando
conduzir com jeito aquela ovelha bravia.
O caboclo baixou a cabeça, e confessou:
- Eu não matei, nem roubei ninguém, não, "seu vigaro". Meu pecado é um pecadinho de
nada. É uma porcariazinha de pecado que nem presta p'ra dizê.
- Conte, filho; conte sempre! - animou o padre.
Onofre tomou fôlego, e principiou a narrar:
- O'ie, "seu"
vigaro, foi assim. Eu tinha brigado com o Chico Julião, da Lagoa Funda, e jurei
tomá um desforço, dando as tripa. dele p'r'os urubu cumê. Ontem, de tardinha, me armei, e fui
fazê o serviço. Ele tava na porta da casa com a muié e os fio dando cumê p'r'os bicho meúdo.
Eu me apiei e avancei p'ra ele disposto a matá; mas fiquei tão penalizado, "seu" vigaro, com a
vista da famia, daquela fiarada que ia ficá sem pai, que, em vez de matá o infiliz, meti a
pontinha da faca no couro dele, um pedacinho de nada. O cabra deu um pulo p'ra riba, e
ficou vivo, só com um arranhãozinho na costela, feito p'ra amedronta. "Seu" vigaro acha que
isso é pecado?
Padre Lourenço tomou uma pitada, assoou-se, com estrondo, no lenço de Alcobaça, que lhe
tirava todas as dúvidas, e obtemperou, convicto:
- É pecado, sim, meu filho; é pecado. tão grande como o de morte!
- Mas eu não matei, "seu" vigaro! protestou o caboclo.
- Não importa. Houve o pensamento, a idéia de matar. É o que vale, meu filho, é a intenção!
Onofre baixou a cabeça, humilde, e o padre continuou:
- Eu vou dar-lhe uma penitenciazinha. você não torne a cair noutra.
Assoou-se, de novo, e explicou:
- Você vai rezar quarenta e oito padre-nossos, setenta ave-marias, e setenta salve-rainhas.
Antes de sair, porém você vai pôr, ali, no cofre das almas. uma prata de dez tostões.
E levantando-se:
- Vá! O caboclo ergueu-se, pôs o chapéu debaixo do braço, exumou do bolso da calça uma
prata de dez tostões que dormia, encaminhou-se para o cofre, que ficava perto da porta, e,
jeitoso, começou a fricionar, com a moeda, a entrada da caixa, sem deixar, entretanto, que
ela escapulisse para dentro. Feito isso, ia meter de novo a prata na algibeira, quando padre
Lourenço, que o observava, gritou-lhe, de longe:
- Psiu! Que é isso? Vai levando o dinheiro?
O caboclo voltou-se, da porta, e protestou, com um risinho canalha:
- Uê! A "tenção" não vale?
E ganhou a rua.
XIV
OS JASMINS
11 de fevereiro
- Que linda flor, almirante; e que perfume!
Foi assim que a linda viúva Dagmar Antunes recebeu, num arrulho gracioso, a florzinha alva,
a mimosa estrelinha de neve, que o almirante Ribas destacara, gentil, da botoeira do seu
"smoking" impecável.
- Dona Dagmar não conhece, porventura, a história desta flor? - perguntou, risonho, o velho
marinheiro, tomando lugar ao lado da moça, no mesmo canapé.
E como a encantadora senhora lhe respondesse com o enigma de um sorriso, o almirante
começou, falando-lhe quase ao ouvido:
- Para a primeira mulher, como a senhora sabe, a expulsão do Paraíso teve a importância de
uma verdadeira calamidade. A maldição de Jeová tombava, principalmente, sobre ela, sobre
o seu destino, sobre a sua felicidade na terra. Era ela que ia sofrer, dali em diante, as dores
da multiplicação da espécie. Era sobre ela que iam recair as penas, os trabalhos, os cuidados
da vida doméstica. Era sobre ela, em suma, que iam pesar as preocupações do vestuário, da
mudança quotidiana da folha de parreira. E, por isso, era com o coração aos pedaços que ela
ia deixar, para sempre, aquele abençoado domínio do Senhor.
Nesse ponto, fez pausa, olhou os dentes miudinhos da moça, que continuava a sorrir, e
acrescentou, bordando a fabula:
- Expulsos do Éden, Adão e Eva baixaram a cabeça, e partiram, tristes, humildes, abatidos,
para a horrível solidão do degredo. Assim, porém, que ultrapassaram os limites do grande
jardim das delicias, nossa primeira mãe não pôde mais. Os lindos olhos umedeceram-se-lhe,
como violetas tocadas de orvalho. E à medida que ela ia andando, iam as lágrimas caindo
uma a uma, dos seus grandes olhos, assinalando, na areia, como pérolas do mesmo colar, as
curvas do seu caminho. No dia seguinte, porém, ao amanhecer, o rosto da primeira mulher
iluminou-se de uma divina felicidade: marcando os seus passos no Deserto, a areia aparecia
semeada de florinhas em forma de estrela, alvas como a inocência e cheirosas como o
pecado!
Virou-se mais para a moça, e explicou:
- Foi assim, das lágrimas da mulher, que nasceram os jasmins!
E olhando-lhe nos olhos, com a voz trêmula:
- E foi nas pétalas dos jasmins, D. Dagmar, que Deus talhou os seus dentes!
XV
EDUCAÇÃO ANTIGA
14 de fevereiro
As pessoas que desceram à cidade sexta-feira pela manhã, ouviram falar, com certeza, em
uma vaia de que teria sido vítima, em plena Avenida, uma senhorita inconvenientemente
vestida. Indignadas com a competência daquela atrevida, outras senhoras explodiram em
exclamações admirativas, a que os homens, para agradar à maioria, deram seguimento,
rompendo em assuada.
A mim, me custa a crer que isso tenha acontecido, por uma circunstância muito natural por
não ser possível, mais, na cidade, uma "toilette" capaz de motivar surpresa. As que se exibem
na Avenida impunemente, todos os dias, são de tal ordem, que, para causar escândalo,
pasmo, admiração, seria preciso, não, apenas, tirar o vestido de cima da pele, mas tirar a pele
de cima do corpo.
Comentava eu esse incidente, ontem, à noite, em uma roda de damas e cavalheiros, quando
uma das senhoras menos jovens, Dona Ernestina Vale, procurou uma explicação para esse
descalabro:
- O motivo dessa falta de pudor de certas moças de hoje, - começou, perspicaz - deve ser
atribuído, sr. conselheiro, aos próprios pais, ou, antes, às mães.
E expôs o seu pensamento:
- O senhor vê, hoje, como as mães vestem as crianças. Não dia em que não encontremos
na rua meninas de quatro, seis, oito e, até dez anos, com vestidinhos muito acima dos
joelhos, com os bracinhos nus, o colozinho à mostra, numa exibição completa das suas
carnesinhas tenras. Aos doze anos, mocinhas, a "toilette" dessas criaturinhas apresenta
pequena diferença. E como não tiveram, em criança, a noção do pudor físico, entram assim
na mocidade, sem tentar esconder as partes do corpo que nunca lhes disseram que deviam
ser escondidas.
- A senhora acha, então, que elas fazem isso sem maldade? - obtemperou o Dr. Austregésilo,
tomando nota na carteira.
- Perfeitamente, doutor! Elas fazem isso com a maior inocência do mundo. Os índios não se
apresentam inteiramente nus aos olhos dos civilizados? E não o fazem ingenuamente,
inocentemente, por terem sido criados assim? Criemos as meninas com decoro, vestindo-as
com discrição, e teremos moças discretas, pudicas, decorosas, ciosas do seu corpo e dos
seus encantos.
E, dizendo-me isso, acrescentou, severa, calçando as luvas, deixando-me ver, pelo vestido
decotado e sem mangas, dois sinaizinhos negros, quase imperceptíveis, que se lhe
aninhavam um pouco abaixo das axilas:
- Assim é que eu fui criada!
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