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por um lado, de ‘seu bicho’ (awẽ yoĩni), ‘sua carcaça’ (awẽ shaká) ou ‘seu corpo’ (awẽ
kaya) e ‘sua carne’ (awẽ nami) e, por outro, de ‘sua gente/pessoa’ (awẽ yora), isto é, o
‘seu duplo’ (awẽ vaká), que é o dono (ivo) de seu bicho/carcaça/corpo. O emprego do
possessivo (awẽ) é portanto essencial: um corpo é sempre de um determinado duplo.
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Com os pássaros (e também com alguns animais) ocorre uma disjunção espacial: seus
duplos/pessoas (chaĩ vaká) não estão dentro de suas carcaças (chaĩ shaká), mas fora,
vivendo em suas malocas (a vaká shovõ shokorivi) que, de nosso ponto de vista, se
apresentam como árvores. De lá, ficam a vigiar seus corpos/bichos por intermédio de
um longo caniço de inalar rapé, o rewe, um potente instrumento de mediação.
porque está assim enfocando o lado ‘carcaça’ da singularidade a que se refere (o bicho/carcaça arara, por
exemplo, mas não o seu duplo/pessoa). Por isso, a observação de Viveiros de Castro é também válida
para o caso Marubo: “as evidências etnográficas disponíveis sugerem que as cosmologias ameríndias não
utilizam um conceito genérico de ‘animal (não-humano)’ que funcione como complemento lógico de um
conceito de ‘humano’” (2007: 325). Donde a consequência fundamental, que o autor explora também em
outros trabalhos (2002, por exemplo): “a natureza não é um domínio definido pela animalidade em
contraste com a cultura como província da humanidade” (2007: 326). Descola (1998: 25) atesta o mesmo
ponto. ‘Natureza’, aliás, também não possui um termo (e um conceito) equivalente em marubo: kaniarasĩ,
‘as coisas crescidas ou nascidas’, seria o termo aproximado, que mais lembra a physis do pensamento
grego arcaico do que a noção moderna de natureza. Não me ocorreu perguntar aos Marubo se aí poderiam
estar incluídos também os espíritos. Para estudos mais aprofundados sobre sistemas de classificação da
fauna e da flora em sociedades próximas aos Marubo, o leitor pode se reportar a Almeida & Carneiro da
Cunha (2002), Valenzuela (2000) e Fleck (2000, 2002).
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O xamanismo warao também vincula o duplo de determinados animais a seus corpos através do
emprego sistemático dos possessivos (cf., Briggs 1994). No caso marubo, tal emprego está relacionado à
noção de ‘dono’ ou ‘mestre’ de animais, vegetais e outros entes comum aos xamanismos pano e outros
tantos ameríndios (ver por exemplo Gallois 1996 para os –jar wayãpi; ver o trabalho recente de Miller
(2007) sobre os Mamaindê): ivo, é o termo para ‘dono’ ou ‘mestre’ em marubo, equivalente a ibo em
shipibo-konibo (ver por exemplo Leclerc 2003 ou García & Urquizo 2002), ifo em sharanawa (Siskind
1973, Déléage 2006), ibo em kaxinawá (Capistrano de Abreu 1911, Lagrou 1998), ibgo em matis (cf.,
Erikson 1996: 180 e segs), entre outros exemplos possíveis. Nas cosmologias pano e especificamente na
marubo, a noção de ‘dono’ (ivo) inclui a noção pan-ameríndia dos ‘donos’ ou ‘mestres’ dos animais e se
expande em uma lógica recursiva. Os donos dos pássaros, por exemplo, replicam a mesma configuração
que caracteriza os donos de maloca (shovõ ivo) Marubo: ambos são chefes de suas casas, nas quais
habitam com suas famílias e seus costumes, e assim ao infinito para grande parte das singularidades
existentes. Luiz Costa descreveu recentemente a noção de corpo/dono para os Kanamari através da
recursividade, observando também o papel fundamental do emprego do possessivo: “A palavra –warah
precisa ser prefixada por um sujeito, de modo que alguém ou algo sempre será ‘chefe/corpo/dono’ de/para
algo, de alguém ou de algum povo” (2007: 8). A relação suposta por ‘corpo/dono/chefe’ acaba então por
se reproduzir em níveis distintos, tais como a relação entre o leito principal de um rio e seus tributários ou
ainda, mais fundamentalmente, da seguinte maneira: “O corpo/dono/chefe estabiliza aquilo que é
potencialmente fluido, expressado em seu prefixo; coloca-se como o um com relação àquilo que é
(potencialmente) múltiplo. Nas pessoas viventes, o corpo (-warah) é feito por um longo processo de
estabilização da inconstante matéria-alma da qual a maior parte dos seres vivos deriva. Xamãs se tornam
o ‘chefe/corpo/dono’ de seus espíritos familiares, chamados dyohko, que, sem eles, perambulam na
floresta. Mulheres são ‘corpo/chefe/dono’ de seus xerimbabos e, em alguns casos, de suas crianças.
Aldeias, um grupo de pessoas, configuram-se como unidade e grupo de parentesco através de um chefe,
que estabiliza aqueles que (...), de outra maneira, não seriam capazes de viver juntos.” (ibidem) O ‘corpo’
da pessoa marubo não é exatamente o dono de seus duplos/alma (os duplos/alma é que para si mesmos
são donos dissso que vêem como uma maloca, isto é, o nosso corpo), muito embora estabilize a dispersão
possível dos aspectos que compõem a pessoa, tal como na doença ou na morte.