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JOÃO DA MATA ROSA CESSE NETO
"O MATERIALISMO HEDONISTA DE MICHEL ONFRAY
Dissertação de Mestrado
Área de Concentração: Ética
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MESTRADO EM FILOSOFIA
"O MATERIALISMO HEDONISTA DE MICHEL ONFRAY
Por
JOÃO DA MATA ROSA CESSE NETO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Gama
Filho, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Luiz Rocha de Vasconcellos
Rio de Janeiro/2007
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"O MATERIALISMO HEDONISTA DE MICHEL ONFRAY
Dissertação de Mestrado em Filosofia apresentada por JOÃO DA
MATA ROSA CESSE NETO em 04 de abril de 2007 ao Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da UGF-RJ, e aprovada pela Comissão
Julgadora formada pelos seguintes professores:
Prof. Dr. Jorge Luiz Rocha de Vasconcellos
(Orientador)
Universidade Gama Filho – UGF
Prof. Dr.
Edson Peixoto de Resende Filho
Universidade Gama Filho – UGF
Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Rio de Janeiro, 04 de abril de 2007
Prof. Dr. Edson Peixoto de Resende Filho
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Filosofia
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Av. Presidente Vargas, 62/12º andar - Centro CEP: 20071-000. Tel./Fax (021) 2518.2028 ramal 359
e-mail: doumes[email protected]
O(A) autor(a), abaixo assinado(a), autorizo as Bibliotecas da Universidade Gama
Filho a reproduzir este trabalho para fins acadêmicos, de acordo com as
determinações da legislação sobre direito autoral, n(s) seguintes(s) formato(s)
( X ) Fotocópia ( X ) Meio digital
Assinatura do autor: _________________________________________________
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UNIVERSIDADE GAMA FILHO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
JOÃO DA MATA ROSA CESSE NETO
"O MATERIALISMO HEDONISTA DE MICHEL ONFRAY
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Área de Concentração:
Ética
RIO DE JANEIRO
2007
6
Agradecimentos
Em se tratando de uma dissertação sobre o hedonismo como ética, não poderia deixar
de agradecer aos amigos, cúmplices e parceiros senão com grande brinde à vida, ao
prazer e à alegria.
Vocês foram meus parceiros por caminhos percorridos, travados nas trincheiras da
alegria, da beleza e do prazer.
Ao grande e velho amigo Roberto Freire, o Bigode, eterna referência do que é ser
jovem; aos companheiros do Coletivo Anarquista Brancaleone: Goia, Vera, Stéfanis e
Marcelo (nossa L’Armata de Brancaleone); ao Guilherme Castelo Branco, que
primeiro me deu força para estar aqui; ao orientador Jorge Vasconcellos, que logo se
tornou um amigo e que está para além deste trabalho; ao Edson Resende, por ter a
generosidade de também fazer parte desta banca. À família, sempre querida e presente,
com seu afeto e carinho, que mesmo longe, sinto tão perto. Ao meu amor, cúmplice de
estéticas da vida, Olívia Cunha. E por último, minha amada filha, Julia da Mata. Para
todos muitos tesões nesta vida!
vii
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Epígrafe
“Por pudor sou impuro”.
Manoel de Barros
viii
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Resumo
O objetivo deste trabalho é discutir o materialismo hedonista presente na obra de Michel
Onfray. Filósofo francês contemporâneo, Onfray estabelece sua proposta ética baseada
em elementos que entende o bem como sendo moldado por valores estéticos.
Apoiando-se na figura do seu personagem conceitual, o Condottiere, Onfray parte para a
elaboração de um projeto filosófico singular, onde adota a elegância e o prazer como
bússolas em direção à estética da existência de forma afirmativa e jubilosa.
Partindo dos caminhos traçados por Onfray ao encontro do materialismo e da crítica ao
ideal ascético, abordaremos sua proposta hedonista no presente. Ao situar-se como um
“nietzschiano de esquerda”, o autor busca a excelência, a grandeza e a aceitação do
caráter trágico da existência como forma de superação do niilismo contemporâneo,
através do exercício da singularidade e da eleição hedonista.
A proposta de Onfray acena, assim, para uma filosofia do corpo e do prazer como
proposta ética para a atualidade.
PALAVRAS CHAVES: hedonismo, materialismo, Michel Onfray, ética, estética da
existência.
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Abstract
The aim of this project is to debate the hedonist materialism found in the work of
Michael Onfray. The contemporary French philosopher draws his ethical subject based
in elements that takes “The Goodness” as something built up by ethical values.
Adopting the ideal figure of the Condottiere, as the main character on his work, Onfray
have begun the development of a particular philosophical project, where the elegance
and the pleasure are the compasses to reach and understand the aesthetic of existence in
an affirmative and jubilant way.
Following the steps of Onfray in the direction of the materialism and the criticism of the
asceticism as an ideal, I go through his hedonist proposal in the present time. As a “Left
hand Nietschian”, the author looks for the excellence, the hugeness and the acceptance
of the tragic character of existence as an instrument to overcome the contemporary
nihilism through the exercise of singularity and the choice of hedonism.
Onfray defends the philosophy of the body and the pleasure as an ethical proposal to our
days.
KEY WORDS: hedonism, materialism, Michel Onfray, ethic, aesthetic of existence.
x
10
Sumário
RESUMO...................................................................................................................... ix
ABSTRACT.................................................................................................................... x
INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 1
PRIMEIRA PARTE:
Do Prazer e sua Condenação........................................................................................ 7
1.1 Preâmbulo..................................................................................................................7
1.2 A crítica radical dos cínicos.................................................................................... 11
1.3 O hedonismo dos cirenaicos.................................................................................... 16
1.4 O prazer em Epicuro................................................................................................ 21
1.5 O hedonismo fora da Antiguidade........................................................................... 26
1.6 Os materialistas La Metrrie e Marquês de Sade.......................................................31
1.7 Da condenação do prazer..........................................................................................40
1.8 O dualismo platônico................................................................................................41
1.9 O cristianismo e a radicalização do ideal ascético....................................................44
1.10 Onfray, Nietzsche e a crítica dos valores................................................................47
1.11 A crítica de Michel Onfray às religiões..................................................................53
SEGUNDA PARTE:
Por um Materialismo Hedonista.................................................................................58
2.1 Sobre o autor............................................................................................................ 58
2.2 Do materialismo....................................................................................................... 62
2.3 Em busca de uma figura............................................................................................69
2.4 Prazer e rebeldia....................................................................................................... 81
2.5 Lutar contra o niilismo............................................................................................. 92
2.6 Por uma ética dispendiosa.........................................................................................98
2.7 A amizade como conjugação de desejos................................................................ 103
CONCLUSÃO.............................................................................................................114
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................116
1
Introdução
Esta Dissertação de Mestrado tem como objetivo apresentar o
materialismo hedonista de Michel Onfray, com o propósito de pensar as possibilidades
de uma ética hedonista no tempo presente. Seu materialismo hedonista propõe um
cruzamento entre a ética e a estética da existência, constituindo uma tentativa de firmar
um pensamento ético singular, onde o Bem é moldado por valores estéticos e que tem
como propósito dar à vida um sentido libertário e jubiloso.
Michel Onfray
1
é um filósofo cuja obra ainda encontra-se em fase de
construção e desenvolvimento. Doutor em Filosofia, atualmente é coordenador da
Universidade Popular de Caen, no norte da França, cuja intenção é realizar uma
universidade aberta e libertária, com aulas gratuitas de filosofia, artes, política, entre
outros temas. Autor consagrado com importantes prêmios literários entre os mais de
trinta livros publicados, Onfray propõe um projeto ético, definido por ele como um
materialismo hedonista. Apesar da atual popularidade, no entanto, sua filosofia
hedonista ainda sofre problemas de aceitação entre seus pares de ofício, que o vêem
como um pensador não canônico.
É possível traçar paralelos entre a ética hedonista e uma postura rebelde
sem cair no lugar comum, que elege o prazer e a rebeldia como virtudes banais e
1
Para mais informações sobre as atividades desenvolvidas pelo filósofo Michel Onfray, inclusive sua
agenda de aulas na Universidade Popular de Caen, acessar o site oficial do filósofo:
http://perso.orange.fr/michel.onfray. Neste endereço é possível também encontrar sua obra completa e os
países onde foram traduzidos e publicados alguns de seus livros e textos. Recentemente foi criado
também um blog, onde Onfray tem escrito e apresentado textos sobre temas atuais e diversos:
http://michelonfray.blogs.nouvelobs.com
2
egoístas? O hedonismo, também levado à condição de banalidade e volatilidade, vem
sendo resgatado como postura ética diante do niilismo presente. Neste propósito, Onfray
tem reunido em seus estudos elementos para uma moral hedonista que está em
permanente articulação com uma forma singular e libertária de atuação que ele define
como o rebelde”. Ao utilizar a figura conceitual do Condottiere
2
, amparado por uma
interpretação peculiar e própria da filosofia nietzschiana, Onfray lança mão de uma
estética existencial hedonista. Esta noção está esboçada na forma como o autor elege a
elegância e o prazer como virtudes para a elaboração do próprio estilo, que se dará sob a
noção desenvolvida por ele de confeccionar a sua própria estátua, e como isso criar uma
escultura de si. Isto está emboçado quando o autor (1995) define seu personagem
conceitual: “O condottiere pratica uma moral elevada e de afirmação, uma inocência,
uma audácia e uma vitalidade que transbordam. Sua ética é também uma estética: às
virtudes que amesquinham, ele prefere a elegância e a cortesia, o estilo e a energia, a
grandeza e o trágico, a prodigalidade e a magnificência, o sublime e a eleição, o
virtuosismo e o hedonismo uma autêntica teoria das paixões destinada a produzir uma
bela individualidade, uma natureza artística cujas aspirações seriam o heroísmo, ou a
sanidade que permite um mundo sem Deus, desesperadamente ateu, esvaziado de tudo,
exceto das potencialidades e das decisões que o fazem expandir-se.”(p.19).
2
Os condottieri (no singular, condottiere do italiano "comandante", derivado por sua vez do latim
conducere, "conduzir") eram líderes mercenários empregados pelas cidades-estado italianas durante a
Idade Média (principalmente nos séculos XIV e XV). Surgiram a partir da necessidade de defesa das
cidades italianas, em constante rivalidade. Michel Onfray utiliza a descrição do Condottiere apresentada
por André Suarès, Le Voyage du Condottiere, onde o autor descreve com elegância e destreza a obra de
Verrochio, autor da escultura de Bartolomeu Colleoni, importante Condottiere em Veneza. O conceito de
Condottiere aqui utilizado deve-se essencialmente a essa visão estética e não a dimensão histórica dos
chefes de guerra mercenários da Itália renascentistas. também em L’amour et l’Occident, de Denis de
Rougemont, onde os Condottieri são definidos como soldados profissionais a serviço dos Príncipes e dos
Papas, eles tinham por costume muito menos fazer a guerra do que se impedir que se matasse muita
gente. Esses aventureiros, eram antes de tudo experientes diplomatas e astuciosos comerciantes. Eram
estrategistas e táticos antes de mais nada. Encaravam a existência como uma partida de xadrez.
3
Para Onfray, seu personagem conceitual procura adotar uma postura
libertária e hedonista em relação à existência. Longe da imagem que historicamente
marcou a figura do Condottiere como um mercenário, o autor o concebe como um
condutor de sua própria existência, um artífice na habilidade de conduzir-se, numa
tentativa de realizar-se como homem total: um soldado guerreiro na construção de seus
caminhos. Esta criação de caminhos está baseada na elegância e no prazer e será
conjugada aos interesses do outro. Sua busca, portanto, está na articulação permanente
entre o eu e o outro, que possibilite a construção de uma bela individualidade praticada
no exercício da vida cotidiana. Sua idéia fixa lugar numa estética da existência que
reverencia o exercício do prazer como fio condutor para esculpir a própria vida, com
ares elegantes e artísticos.
Michel Onfray destaca uma importante influência utilizada em seu
projeto na tradição cínica. Segundo o autor, o Condottiere apresenta atitudes resgatadas
do cinismo grego. “O filósofo cínico carrega em si uma incurável vontade de dizer não,
de desmascarar o conformismo através de hábitos. O cínico é a figura emblemática do
autêntico filósofo definido como ‘a consciência crítica da (sua) época’.” (Onfray, 1990,
p.29). Ao defender esta atitude, Onfray quer valorizar o hedonista como aquele que
tenta desfazer em sua luta cotidiana uma tradição de passividade, abandono do corpo e
valorização do sagrado, disseminadas na cultura ocidental pela moral cristã. Sua
preocupação está em resolver sua condição existencial de maneira estética, calcada mais
na alegria e na busca do prazer do que na repetição e na mediocridade. O autor, assim,
elabora uma moral resolutamente ligada à exaltação da vida enquanto excesso
transbordante.
O materialismo hedonista defendido por Michel Onfray busca nos atos
conscientes o exercício do prazer enquanto valor moral. Para isto, ele busca na história
4
da filosofia, em personagens como os cirenaicos, cínicos, gnósticos, pensadores do
Livre-Espírito e o Marquês de Sade, entre outros; os elementos que possam compor
uma moral queo se funda apenas nos prazeres sensíveis ou imediatos, mas nos
prazeres mais amplos, onde o Bem é baseado em valores estéticos e artísticos. Assim,
propõe uma escultura de si
3
baseada na busca da elegância e do prazer como forma de
esculpir sua existência e estabelecer seu estilo, exuberante e alegre como forma de
enfrentar o niilismo contemporâneo.
Combatendo a noção que associa o hedonismo a condição egoísta e
banal, Onfray quer valorizar o exercício da singularidade e da individualidade, apenas
possível de se realizar na interação com o outro. Está um importante elemento de
tensão no pensamento de Onfray, quando defende o individualismo e ao mesmo tempo
busca conjuga-lo à alteridade. Estabelecer uma possibilidade de gozo sem prejuízo ao
outro é uma das questões que o materialismo hedonista pretende discutir. Neste sentido,
o hedonismo é dinâmico e considera que não existe júbilo possível sem consideração do
outro. O prazer individual é possível na interação e na troca que se faz presente
como existência. A amizade, dessa forma, é o caminho encontrado pelo autor para uma
relação que se pretende horizontal, combatendo desigualdades e compartilhando
prazeres; e entendendo que é através do outro e com o outro que cada um extrai sua
própria experiência. Quando esta regra de troca e equilíbrio se desfaz ou se
3
Michel Onfray recebeu o Prêmio Médicis de 1993, na categoria Ensaio com o livro A Escultura de Si
a moral estética (1995) como um trabalho singular entre os filósofos franceses contemporâneos. Neste
livro, entre o princípio e o fim cabem quatro capítulos de busca de uma moral capaz de aproximar o
homem do ideal representado pelo Condottiere: Ética - retrato do virtuoso como Condottiere; Estética -
pequena teoria da escultura de si; Económica - princípios para uma ética dispendiosa; e Patética -
geografia dos círculos éticos. O autor se questiona como é possível alcançar a virtude em si, em
sociedade, na relação com os outros, e o que é a virtude e como se revela ela de forma conseqüente com
aquilo a que convencionou chamar-se natureza humana? Como conduzir-se em alternativa ao ideal
ascético proposto por uma via dominante e que afunda as suas raízes num pensamento tão antigo como o
de Platão? Tais questões estão espalhadas por outros títulos de sua obra, quase sempre voltados para a
elaboração do Materialismo Hedonista.
5
desequilibra, falta de simetria e há falta de ética, o que leva a uma postura
condenada pelo autor, que segundo ele, estabelece uma prática e uma tendência
egocêntrica.
Para Onfray, a filosofia deve ocupar-se em encarar o corpo por inteiro.
Desta forma, os cinco sentidos são recuperados à serviço dos prazeres e elevados à
condição pragmática contra a tradição de abandono do corpo no pensamento ocidental.
Segundo ele, o platonismo foi quem primeiro legitimou o dualismo: a submissão da
carne ao ideal de uma forma universal. O inteligível e o espiritual como visão idealista,
desprezam o sensível, o corpo e o prazer. Depois, a tradição judaico-cristã, onde o
processo de evangelização não poupou a apologia da renúncia de qualquer utilização
sensual, sexual do corpo, visto como algo impuro e desprezível.
Esta Dissertação de Mestrado está divida em duas partes. Na Primeira
Parte, intitulada “Do prazer e sua Condenação”, pretendo mostrar as principais fontes
do hedonismo como valor ético que foram utilizadas pelo autor e interpretado à sua
visão. Nesta parte constará também uma crítica ao que Onfray considera as duas
principais fontes de abandono do corpo em detrimento da alma: o platonismo e o
cristianismo.
Na Segunda Parte, intitulada “Por um Materialismo Hedonista”, buscarei
apresentar as principais características de seu pensamento, sintetizando as idéias
centrais do hedonismo no presente através da atitude rebelde e anárquica do
Condottiere. Segundo o autor, a figura do rebelde busca escapar dos jogos de poder,
exercendo seu prazer como ética e estética da existência.
Convido assim o leitor a este mergulho hedonista na obra de Onfray.
Espero com isso, mais que encontrar respostas, estabelecer uma reflexão vantajosa para
pensarmos o prazer como ética e o libertarismo como proposta política. Neste sentido,
6
não é a intenção deste trabalho abranger toda obra de Michel Onfray, mas estabelecer
um recorte especificamente sobre o materialismo hedonista como objetivo central deste
estudo. Para tanto, utilizarei uma metodologia baseada na leitura de textos, análises e
comentários sobre o materialismo hedonista presente em seus livros, assim como de
outros autores que refletiram sobre as mesmas fontes utilizadas por Onfray.
A proposta filosófica de Michel Onfray por ser uma obra em
desenvolvimento ainda apresenta lacunas, mas tem se mostrado com uma relevância
cada vez maior na filosofia francesa contemporânea, seguindo a herança e os caminhos
abertos por Nietzsche. Além do mais, este trabalho de Dissertação de Mestrado
certamente ganha importância por ser uma inédita oportunidade de estudar o
materialismo hedonista de Michel Onfray dentro do meio acadêmico brasileiro.
7
Parte I
Do Prazer e sua Condenação
“Desfruta e faz desfrutar, sem fazer mal nem a ti nem a ninguém: essa é, creio eu
toda a moral” -
Nicolas de Chamfort, pseudônimo de Sébastien Roch Nicolas (1741-1794). Escritor e
humorista francês.
“Ensinaram-nos a desprezar os primeiros instintos da vida; imaginaram, através da
mentira, a existência de uma ‘alma’, de um ‘espírito’ para nos cabo do corpo; nas
circunstâncias fundamentais da vida, na sexualidade, ensinaram-nos a ver a coisa
impura”. -
Nietzsche, Ecce Homo, Por que sou um destino.
Do Prazer
1.1- Preâmbulo
Iniciamos a primeira parte desta Dissertação acompanhando alguns dos
itinerários realizados pelo filósofo Michel Onfray, onde o autor busca identificar figuras
que defenderam o hedonismo ao longo da história da filosofia. Onfray tem dedicado-se
a uma ousada tarefa de realizar uma crítica à história da filosofia, criando assim sua
própria interpretação que busco aqui apresentar, mesmo que resumidamente, para servir
de base ao entendimento de seu materialismo hedonista. Procurarei também apresentar
as críticas que o autor lança sobre a forma pela qual o corpo e o prazer foram vítimas de
preconceito e desprezo ao longo da história pela moral cristã, mostrados por Onfray em
seus estudos mais recentes.
8
Tais críticas compõem-se no volumoso projeto que ao todo acabarão por
ser seis volumes de uma inédita “Contre-histoire de la philosophie”
4
(2005) e que
compeende os últimos sete anos de trabalho do pensador em seu seminário de filosofia
hedonista realizado na Universidade Popular de Caen
5
. O projeto pretende realizar uma
análise crítica dos 25 séculos de filosofia que, segundo Onfray, acabou por tornar-se
marginalizada. É através desta obra que Onfray apoia-se para argumentar e defender seu
materialismo hedonista. O objetivo aqui, portanto, é de criar um terreno propício e
panorâmico para que o leitor encontre na segunda parte desta Dissertação as
características mais importantes do materialismo hedonista. Em “A arte de ter prazer
por um materialismo hedonista” (1999), onde Onfray anuncia uma “gaia ciência
hedonista” (p.235), ele dedica-se na busca e na interpretação de figuras hedonistas para
basear seu trabalho. É a partir deste estudo que Michel Onfray tem desenvolvido sua
proposta de uma contra-história da filosofia. É importante aqui frisar que apresentarei
este panorama histórico através da interpretação dada por Onfray, que corresponde a
uma singular e própria maneira de entender tais correntes filosóficas.
Em sua trajetória na busca de fontes e pensadores que elegeram o
hedonismo como virtude moral, Onfray não se resume aos antigos, no entanto tem no
4
Estão publicados dois volumes de uma coleção que pretende atingir ao todo seis livros. Foram lançados
na França em 2006 os livros: Les sagesses antiques - de Leucippe à Diogène d'Oenanda, éd. Grasset, fév.
2006 e Le christianisme hédoniste - de Simon le magicien à Montaigne, éd. Grasset, fév. 2006.
5
Através do link http://perso.orange.fr/michel.onfray/accueilup.htm, qualquer pessoa pode ter acesso ao
programa das aulas gratuitas que são oferecidas na Universidade Popular dirigida por Michel Onfray. O
filósofo conta com a participação de vários outros pensadores, envolvidos num projeto em torno de uma
pedagogia libertária. Em entrevista ao “Le Monde de L'Éducation” (2005), Onfray resume sua visão sobre
a experiência em Caen: “A Universidade Popular tem tido efetivamente um grande sucesso público e
popular, gerou uma verdadeira energia alternativa, propõe um intelectual coletivo - para usar a fórmula de
Bourdieu - eficaz, que logo perturba e incomoda. É normal que a nossa aventura atraia invejas e revele os
medíocres, os invejosos, e outras figuras de ressentimento que não existem e não vivem senão por e para
a destruição. Mas s somos uma comunidade de amigos, no sentido epicurista, que vamos
experimentando o verdadeiro poder da amizade epicurista. E, depois, sejamos nietzscheanos, o que não
mata fortalece-nos. Para o resto, o Deus das universidades populares poderá dizer se a experiência
desaparecerá - sim, porque ela sempre desaparecerá -, seja como vítima da síndrome do recém-nascido ou
do catarro dos velhos, seja por suicídio próprio na flor da idade ou por um esgotamento centenário”.
Publicada no nº 338, Julho-Agosto de 2005 do Le Monde de L'Education.
9
período das tradições gregas o ponto de partida para a construção de sua obra.
Percorreremos, pois, algumas das escolas filosóficas da Antiguidade, assim como outras
correntes e pensadores de diversos períodos do pensamento filosófico, que também
situaram-se na defesa do prazer como ética. Michel Onfray, ao construir seu projeto por
um materialismo hedonista, busca assim resgatar o hedonismo como ética de vida
através desta história da filosofia, que passa à margem das grandes escolas filosóficas, e
que foi muitas vezes relegada à importância secundária, mas de crucial valor para seu
pensamento.
Ao recorrermos à filosofia antiga, num percurso situado entre as
primeiras escolas filosóficas, encontraremos o entendimento da filosofia como modo-
de-vida. É importante observar como neste momento surgia no pensamento filosófico
toda uma tradição onde o saber ou “sofia” não se torna necessariamente um saber
teórico, um conjunto de teorias para um pensamento abstrato, uma tendência doutrinal
ou uma posição teórica, mas um saber-viver que está diretamente ligado ao cotidiano.
Esta tarefa da filosofia na Antiguidade envolvia assim, uma maneira de viver para quem
por ela se interessava. Segundo Hadot (2004), nenhuma obrigação universitária orienta
o futuro filosófico para esta ou para aquela escola, mas é em função do modo-de-vida
que nela se pratica que o futuro filósofo passa a assistir as aulas na instituição escolar.
Michel Onfray irá utilizar esta noção na defesa do hedonismo como valor moral. Para
ele, a idéia de modo-de-vida está presente no seu materialismo hedonista e será
vantajosa para a defesa de seu exercício prático, vivificado na maneira de ser e colocar-
se no mundo. O hedonista que defende Onfray mostra-se, pois, interessado na realidade
tal qual ela se apresenta, assim como na prática de uma postura afirmativa diante do
mundo, que possibilite inclusive o seu próprio modo-de-vida.
10
Parte do estudo do materialismo hedonista de Michel Onfray situa-se na
filosofia da época helenística, um período extremamente vigoroso, mas infelizmente
pouco conhecido e de forma parcial devido à escassez de material conservado desse
período. Boa parte dos escritos dessa época perdeu-se no decorrer da história, e o que
nos chega até hoje são fragmentos e compilações que não representam o todo das obras
dos principais filósofos. Em função disso, é comum pensar que o período helenístico da
filosofia grega representa uma época decadente ou mesmo corrompida daquela
civilização, pelo contato com o Oriente, pela passagem do regime democrático para a
monarquia ou pelo fim da liberdade política. No entanto, é errôneo pensar que a
atividade cultural desse período não tenha continuado intensa. Para Hadot (2004), “É
comum pensar que os filósofos da época helenística, diante de sua incapacidade de agir
na cidade, teriam desenvolvido uma moral do indivíduo e teriam se voltado para a
interioridade”. (p.142). Contudo, os filósofos deste período jamais se desinteressaram
pela política, desempenhando sempre o papel de conselheiros de governantes. O
período do helenismo marcou a transição da civilização grega para a romana, em que
inoculou sua força cultural.
Durantes todos estes períodos, o que pretende Michel Onfray é chegar ao
encontro de pensadores e escolas filosóficas, que segundo ele, foram relegadas à
condição de uma filosofa marginal, mas que servem de base para a elaboração de seu
materialismo hedonista. Nesta “galeria” de hedonistas, encontram-se personagens que
proclamaram o ateísmo, o materialismo, o vitalismo e o estetismo. Em certas
circunstâncias, fora das grandes escolas e universidades, eles servirão de matéria-prima
para a sua obra, apresentando-lhe as condições necessárias para confeccionar seu
próprio hedonismo, atualizado no presente. Apesar de Onfray se dizer um aficionado
por bibliotecas, sua preocupação em resgatar estes filósofos que considera “marginais”
11
da filosofia canônica, acaba por produzir frases controversas quando afirma (1999), por
exemplo que, “é mais fácil encontrá-los numa cama ou na rua do que nas bibliotecas ou
nas igrejas” (p. 236). Neste caso, sua intenção é encontrar elementos e práticas de uma
filosofia que se afirme como experimentação, sem descartar teorias ou tratados que
possam passar distantes dessa realidade. O autor, seguindo sua intenção de uma contra-
história da filosofia, trabalha e defende uma ética que possa se tornar uma arte de viver
no cotidiano, afirme-se como materialista, hedonista e atéia. Para ele, o materialismo
fornecerá informações necessárias para as soluções, descobertas e exercício dos
prazeres, estabelecendo com isso uma filosofia do corpo.
1.2- A crítica radical dos cínicos
Começamos por esta que foi uma importante escola socrática menor: os
cínicos. Nenhuma outra escola filosófica foi mais radicalmente crítica e contrária à idéia
de Cidade-Estado e dos valores sociais que a Escola Cínica. Situando-se especialmente
no campo da ética, o cinismo estabelece uma ruptura veemente dos valores morais
tradicionais. Caracterizada pelo materialismo, os cínicos defendem seus interesses pelo
real tal como se apresentava diante de si
6
, descartando qualquer transcendência de
pensamentos e idéias. Segundo Fraile (1965), a ontologia cínica negava os conceitos
universalizantes, admitindo apenas a realidade do particular e do concreto. Para tanto,
acreditavam que as informações seriam apenas percebidas pelos sentidos, vividas no
momento presente. Para os cínicos, os pensamentos reduzem-se apenas a palavras e
como tais, não fornecem informações precisas sobre os acontecimentos.
6
Segundo Robin (1970), em “A Moral Antiga”, os cínicos decididos por seu nominalismo, demonstraram
claramente em que sentido entendem o universal: a seu ver, a noção de universalidade do bem não é
senão a de uma palavra. O que por si mesmo vale é a ação, na sua individualidade e em proporção à
tensão voluntária que exigiu do agente. O seu universalismo tem assim, um sentido diferente: proclama a
igualdade de todos os homens, quaisquer que sejam o seu país ou a sua condição, perante o valor moral, a
unidade nominal dos valores individuais de ação; exprime-se, enfim, pelo título orgulhoso de ‘cidadão do
mundo’”. Esta noção de nominalismo que observamos na postura cínica será utilizada por Michel Onfray
na defesa do individualismo como postura política e em seu materialismo hedonista como princípio ético.
12
Seu fundador Antístenes
7
(450 a.C.) de Atenas foi discípulo de Sócrates.
Pautando pelos sofistas, o mestre da escola nica defendia que apenas as coisas
singulares fossem reais, não passando os universais de simples nomes. Dentre algumas
de suas doutrinas, os cínicos pregavam o desprezo radical a todos os convencionalismos
como forma de liberdade e independência dos padrões sociais. Para tanto, acreditavam
que o sábio deveria bastar-se a si mesmo, através do ideal de auto-suficiência, de
independência e de domínio de si. Defendiam uma vida natural, sem Estado,
propriedade, matrimônio, com amor livre e com liberdade para as mulheres. Viam na
educação uma importância fundamental para transformar o homem em um ser livre.
Para Bréhier (1978), os cínicos não se limitavam a transformarem apenas a si mesmos,
mas também em auxiliarem outros a reformarem-se. A educação intelectual é provida
de prudência (frónesis), que para o cínico vem junto com uma ação maciça e imediata
de um aforismo e a meditação sobre um tema.
A principal contribuição cínica como afirmamos, reside no campo da
moral. Ela propunha um fim prático para atingir a felicidade, e para tanto, consistia
numa vida tranqüila, baseada no exercício da virtude, entendida como um Bem
8
único.
Para eles, a virtude está nos atos e para alcançá-la não é preciso de discursos e
conhecimentos numerosos. Suas propostas de virtuosidade baseavam-se também na
7
Segundo Hadot (2004), uma controvérsia sobre a autenticidade de ter sido Antístenes realmente o
fundador do movimento cínico. Em todo caso, é unânime afirmar que seu discípulo Diógenes tenha sido a
figura mais marcante e representativa deste movimento. Provavelmente, Diógenes foi o mais folclórico
dos filósofos. São inúmeras as histórias que se contava sobre ele já na Antigüidade. É famosa, por
exemplo, a história de que ele saía em plena luz do dia com uma lanterna acesa procurando por homens
verdadeiros, ou seja, homens auto-suficientes e virtuosos.
8
A noção de Bem para os Cínicos está atrelada a um esforço de abstinência e renúncia às obrigações que
a sociedade impõe e aos seus benefícios que ela procura. O mal é entendido como o que produz prazer
desnecessário, ultrapassando a mera satisfação das necessidades elementares e, com maior razão ainda, os
prazeres convencionais, resultantes da vida civilizada. Quanto às coisas a que vulgarmente se chama de
males – a pobreza, uma condição inferior, a doença, a morte – não são males, como os seus contrários não
são bens. Em “A Moral Antiga” – Leon Robin (1970).
13
renúncia de todos os bens e no abandono das convenções sociais que são estabelecidos
como verdades entre os cidadãos.
O mais importante representante entre os cínicos foi Diógenes (413-323
a.C.), que levará a escola socrática menor a adquirir popularidade. A postura defendida
por Diógenes radicaliza os princípios cínicos e estabelece uma ruptura com o que se
convencionou como valores básicos de uma vida socialmente aceita: a propriedade, o
governo e a política. Diógenes se preocupava com dinheiro, posição social estável ou
qualquer destes valores de hierarquia social. Errante e nômade, sua casa era seu dia-a-
dia. Insubmisso, este cínico desprezava qualquer autoridade e procurava
despudoradamente expressar-se de forma livre e imoral. Para Fraile (1965), Diógenes
utilizava a ironia e o sarcasmo como forma de confrontar os padrões sociais de sua
época. Os cínicos fizeram de sua filosofia uma escolha de vida, uma opção pela
liberdade e pela total independência das necessidades que consideravam inúteis.
Michel Onfray irá apoiar-se especialmente em Diógenes e sua atitude
licenciosa e debochada que ridicularizava o ascetismo de Platão, para compor seu
materialismo hedonista. O hedonismo que Onfray defende encontra na experimentação
de Diógenes e sua busca por tornar-se um ser feliz, uma importante forma de atuar no
dia-a-dia, como demonstra:
“Atuar de modo cínico significa formar a
existência como uma obra de arte: dotar de
volume, superfície, natureza, densidade,
consistência e harmonia o cotidiano, para,
desta forma, transfigura-lo. A vida deve ser
querida, pensada e desejada da mesma forma
que uma artista dedica toda sua energia a
produzir um objeto único e não duplicado”.
(ONFRAY, 1999, p. 60).
Para os cínicos, todo o desprezo pelo que é estabelecido socialmente
como modelo a ser seguido vem da observação de como tudo isto torna o homem
14
infeliz, uma vez que o deixa preso a uma malha de obrigações e condutas que deve
seguir. Em troca do poder e do prestígio que a vida civilizada oferece, o homem perde
sua liberdade. Para escapar de tais obrigações, o cínico procura estabelecer uma postura
prática de vida que possa transformar-se num exercício
9
em direção à virtude, criando
sua existência baseada na vivência da liberdade e na renúncia da posse. Na interpretação
de Michel Onfray, para que isso aconteça, o cínico valoriza a diferença. Ele buscará
“fazer diferente” diante do que está dado, criando atitudes novas que subverterão as
atitudes socialmente respeitadas da conduta humana, através da invenção e criação de
seu cotidiano. Assim, a preocupação do cínico é com uma nova atitude formada a partir
do confronto com a realidade, estabelecendo com isso seu modo-de-vida. Para tanto,
Diógenes propunha a “via curta para a virtude”: por meio da ascese, o cínico pratica um
caminho simples e econômico que se opõe ao percurso longo e detalhado traçado pelas
outras escolas, que passa pelos estudos, aquisição de conhecimento e formação teórica.
Esta noção, no entanto, não representa um caminho meramente fugaz ou banal. Para
Diógenes, a virtude depende muito mais dos atos que a assimilação de conhecimento.
Assim, a via curta passa também pelo desprezo à riqueza, pois ser pobre para o cínico
representa um caminho mais condizente com a liberdade.
Outra importante contribuição regatada por Onfray é interpretação
libertária que ele faz da postura cínica, quando eles defendiam a criação de seus valores
a partir da experiência. Para Fraile (1965), o sábio cínico recusa a pátria, as leis, a
família e as diferenças de classes. Seus irmãos e parentes são todos os homens. É
através desta noção, que Onfray entende o cínico como um ser libertário, no sentido de
9
Para Bréhier (1968), o ponto central do cinismo de Diógenes assenta numa espécie de confiança integral
no esforço, confiança baseada na experiência, que deve ser entendido não como um esforço qualquer, mas
um esforço racionalizado, já que o esforço em si não é bom, pois “esforços inúteis”. Daí porque o
papel primordial pertence à razão, e no cinismo muito intelectualismo, dado que a inteligência indica
apenas o sentido do trabalho a realizar-se. Diógenes não só levou às últimas conseqüências tudo o que seu
mestre pensou, mas soube transformar em prática com rigor e coerência radicais, que por séculos inteiros
foram considerados verdadeiramente extraordinários.
15
criar sua própria diferença em relação a um social que, segundo ele, tenta impor padrões
morais aos indivíduos. Contra a noção de valores impostos por condutas sociais,
colocadas como moral universal, o cínico quer a liberdade adquirida na experimentação
para criar e realizar seus próprios valores morais.
A moral cínica, como afirmamos, é a principal contribuição desta escola.
Segundo Bréhier (1968), o cínico ao contrário de “Platão e do próprio Aristóteles,
separa a vida moral do problema social, ao mesmo tempo em que rejeita as ciências
exatas longe da meditação intelectual do sábio”.(p.22). Com os cínicos, estas
convenções serão vistas como traços alienantes que a conveniência entre as pessoas
produz e que limitam a liberdade. Ao contrário, eles valorizavam os atos fundados sobre
o esforço e a vontade, que por meio de treinamento, colocam-se contra os valores
sociais estabelecidos. O que interessa a Michel Onfray na filosofia cínica é
especialmente a atividade prática que eles desenvolviam, fazendo de sua vida uma
demonstração viva e explícita de seus valores morais. O materialismo hedonista está
inserido dentro desta noção do real e fará da prática de vida a própria construção ética.
O autor (1995) apóia-se em Diógenes quando cita seu personagem conceitual: “Que o
Condottiere seja um pouco Diógenes, isso não me desagrada. Gosto de encontrar nele as
práticas subversivas dos cínicos antigos, esses enfants terribles de Antístenes e de
Crates, para os quais os valores verdadeiros mereciam ascese, e os falsos, o insulto”. (p
27).
O interesse de Michel Onfray é buscar na moral cínica uma postura
afirmativa e rebelde diante da vida. Seu materialismo hedonista pretende estabelecer um
cruzamento entre a ética hedonista e uma atitude libertária e insubmissa. Crer que para
isto, que a filosofia cínica seja um importante referencial. Assim como os cínicos, o
hedonista de Onfray buscará insurgir-se contra os valores que estão dados como
16
verdades, criando os seus a partir de sua experiência. Segundo Onfray, a realidade é o
que importa, pois ela pode fornecer elementos que facilitam a observação sobre o
mundo diante de si.
1.3- O hedonismo cirenaico
Michel Onfray conduz seu percurso em busca do hedonismo ao encontro
do fundador da Escola cirenaica, Aristipo de Cirene (c. 435-355 a.C.). Apesar da
austeridade e rigor do mestre Sócrates, Aristipo elegeu as virtudes dionisíacas do riso,
da festa e da libertinagem. Contemporâneo de Platão estabeleceu-se em Atenas onde foi
buscar os ensinamentos de Sócrates, formando parte de seu círculo até a morte do
mestre. Sobre Aristipo, Onfray (1999) diz: Meio termo entre o saltimbanco e o
vagabundo, terrivelmente subversivo e preocupado com seus efeitos, ele rompe com
Sócrates, de quem registrou o talento para a subversão”.(p. 236).
Proveniente de Cirene, rica colônia grega no Norte da África, teve como
discípula sua filha Aretea, que por sua vez foi mestra de Aristipo, o Jovem. Com sua
orientação hedonista, a escola cirenaica influenciará no futuro o epicurismo, que ficará
famoso pela defesa do prazer como ética. A base do pensamento de Aristipo é
materialista, com raízes em Heráclito e no sofista Protágoras. Os seus numerosos
escritos terão servido aos filósofos seguintes, mas desapareceram, deixando raros
fragmentos e apenas muitas referências. Tudo o que se conhece de sua reflexão
filosófica decorre do comentário de terceiros. Segundo Bréhier (1978), sua doutrina
10
é
de difícil reconstituição, limitando-se a documentos de Diógenes Laércio, fragmentos
10
Tem-se tentado enriquecer esse esta noção com alguns textos de Platão e de Aristóteles, nos quais se
acreditaria ver alusões a Aristipo. Esses textos podem dividir-se em duas categorias: os do Filebo, da
Ética a Nicômaco, da República, em que o hedonismo é exposto e criticado, o e Teeteto, onde Platão
exporia, sob o nome de Protágoras, a doutrina do conhecimento de Aristipo. Ver em História da Filosofia,
E. Bréhier (1978).
17
críticos no epicurismo e nos textos acerca da teoria do conhecimento dos cirenaicos nos
escritos do céptico Sexto Empírico.
Para Fraile (1965), a defesa ética dos cirenaicos está apoiada numa
doutrina do Bem
11
, onde defendem um hedonismo radical. Os cirenaicos afirmavam que
a vida prática deveria ser regulada pelas sensações corporais que, no entanto, era
importante saber distinguir e eleger entre elas. As sensações dividem-se entre as
agradáveis, dolorosas e intermediárias. As primeiras são boas, as segundas más e as
terceiras indiferentes, pois não causam prazer nem dor. Em síntese, para Aristipo o Bem
da vida consiste em buscar o prazer sensível e atual, composta por um movimento doce,
suave e ligeiro, distinguindo-se da dor que é um movimento violento. Segundo
Diógenes Laércio (1988), “há dois estados da alma: a dor e o prazer. O prazer é um
movimento suave e agradável, a dor é um movimento violento e penoso. Um prazer
difere do outro prazer, um prazer não é mais agradável que outro prazer. Todos os seres
vivos buscam o prazer e fogem da dor” (p. 130).
O prazer também é visto como algo ligado exclusivamente ao presente,
experimentado em movimento no agora e distanciando-se do passado através da
memória ou do futuro pela imaginação. Como os prazeres corporais são os mais
intensos, são também os mais desejáveis e mais importantes em relação a todos os
demais. Para os cirenaicos, não importa sua origem, pois o prazer é um bem natural e
não devem ser sujeitados ou regidos por leis ou convenções dos homens. Onfray
encontra nos cirenaicos, uma importante maneira de praticar o hedonismo, uma vez que
eles acreditavam que o prazer era o fim de todos os bens. Esta noção servirá de
11
Neste sentido, o prazer verdadeiro, essencial, é efetivamente um estado que o sábio, ser de exceção,
pode sentir. Ele gozá-lo no meio de pretensas tristezas, tal qual no meio de pretensas alegrias. Não
existe aí, para ele, senão ocasiões contingentes de se elevar até ao bem verdadeiro. Esta noção se remete a
o excesso: a total libertação, que tornaria o sábio sempre superior às conjunturas, sempre capaz de as
impedir de tomarem a dianteira e de entravarem a sua liberdade. Em “A Moral Antiga” Leon Robin
(1970).
18
importante ingrediente para a elaboração de seu materialismo hedonista. Segundo sua
interpretação, Michel Onfray (2001) a virtude ética de Aristipo como o hábito de
bem gozar o prazer - de forma dinâmica e positiva - valorizando um jogo de forças que
leva o indivíduo a aproximar-se do agradável e distanciar-se do que lhe produz dor. Seu
prazer supõe assim movimento, energia e vitalidade. Na defesa do prazer como ética,
Aristipo defendia que a vida deveria ser praticada para atingir um fim específico que era
o gozo de todo prazer imediato. Contudo, valorizava um controle racional sobre o
prazer para que não se desenvolvesse uma depêndencia deles. Os cirenaicos irão lutar na
defesa dos prazeres enquanto fenômenos que pertencem ao corpo, unicamente a ele. Os
prazeres da alma, os júbilos espirituais pertencem como tais, a moralidades corporais do
hedonismo. Para Onfray (2001), “uma vez que tudo é percepção corporal subjetiva, os
gozos, sejam quais forem suas causas ou moralidades, são apenas modificações
fisiológicas da matéria corporal.” (p. 29).
Os cirenaicos desprezavam qualquer lei cultural, social ou de direito legal
que não levassem em conta um cálculo dos prazeres. Defendiam com isto que cada um
fosse o dono de sua própria receita. Sua atitude filosófica estava inspirada num desdém
acerca da lógica, da física e da matemática, uma vez que eles não falavam das noções de
bem e de mal. Assim, ocupar-se com as ciências exatas e com todos os mandamentos
éticos coletivos era algo secundário, uma vez que sua maior ocupação seria, portanto,
levar uma vida fácil e agradável. Para Aristipo, o sábio deve então acomodar as variadas
circunstâncias, pois tudo é relativo e contingente, cabendo a ele decidir o que lhe produz
bem estar ou o contrário. Com relação ao desprezo pelas normas sociais, situa-se numa
linha semelhante a dos megáricos e dos cínicos, que conduz a uma indiferença na
postura do filósofo em relação a tais normas sociais. Michel Onfray na defesa de seu
materialismo hedonista reconhece nesta aritmética proposta pelos cirenaicos, uma
19
atitude que despreza qualquer mecanismo de cerceamento ao prazer. Segundo o autor
(1999), o materialismo hedonista defende uma atitude semelhante: “Abaixo, portanto, o
Estado, a Pátria e a Religião, que são, quase sempre, máquinas de romper gozos,
instituições devoradoras de vitalidades singulares, especializadas na absorção das
energias particulares.” (p. 241).
Para os cirenaiscos, nada é por natureza justo ou injusto; essas são apenas
distinções e convenções sociais, produto de leis e costumes que devem ser questionados
e confrontados. No entanto, por prudência, Aristipo aconselhava que o sábio soubesse
acomodar sua conduta aos costumes estabelecidos, especialmente às leis penais
12
. Um
dos resquícios do pensamento socrático em Aristipo é a concepção de uma razão
reguladora da vida, para se praticar uma existência regida pela prudência. No entanto, é
um sentido meramente utilitarista, de cálculo, para discernir a cada momento os
prazeres que podem proporcionar um gozo mais intenso e para prevenir as possíveis
conseqüências desagradáveis. O sábio, assim, deve acomodar-se às circunstâncias
através de sua liberdade interior e de sua tranqüilidade. Deve também dominar os
prazeres e não desejar ser dominado por eles. Segundo Bréhier (1978), a felicidade para
os cirenaicos não era senão o resultado da reunião de todos os prazeres, mas nunca um
fim em si mesmo. Vemos isto em Diógenes:
“O prazer é em si uma virtude e a felicidade
não o é por si, mas pelos prazeres particulares
que a compõem. A prova de que o fim é o
prazer é que na infância, e sem nenhum
raciocínio, estamos familiarizados com ele, e,
quando o obtemos, não desejamos mais nada;
ao contrário, de nada fugimos como a dor, que
é o oposto do prazer. O prazer é um bem,
mesmo que venha das coisas mais
vergonhosas: a ação pode ser vergonhosa, mas
12
Segundo Fraile, entretanto, o matrimônio, a Pátria e a família não são preocupações que os cirenaicos
se detinham. Assim como vemos também uma indiferença de Aristipo com relação às religiões e que será
acentuada em seus sucessores Evemero e Teodoro, o Ateu. Para ele, os deuses não interferem nos
assuntos dos homens. Historia de la Filosofia. Guilhermo Fraile.
20
o prazer que se extrai dela é em si uma virtude
e um bem”. (DIÓGENES, 1998, p.135).
Na elaboração de seu materialismo hedonista, Michel Onfray defende
uma atitude de luta diante da busca do prazer. Seguindo a tradição cirenaica, defende
ainda uma ética que exprima a excelência da vida e que condene a entropia, a morte e a
dor. Dizer um Sim à vida, ao prazer, à felicidade e ao agradável. Em seguida, um Não a
tudo que entrave sua positividade: ao sofrimento, à dor, à frustração e à melancolia.
Percorrer o corpo de energia, tensão, força, vontade, ou seja, tudo que leva, segundo o
autor, à saúde e à vida. Dessa forma, os cirenaicos e seu movimento de forças positivas,
são resgatados por Onfray para “confeccionaro materialismo hedonista em que o bem
viver prazeroso é o valor primordial.
1.3- O prazer em Epicuro
Epicuro de Samos
13
, filósofo do período helenístico, atomista e
materialista, defendia a doutrina de que o Bem reside no prazer e, por isso, foi um
filósofo muitas vezes associado ao próprio hedonismo. O prazer de que fala Epicuro é o
prazer do sábio, entendido como quietude da mente e o domínio sobre as emoções e,
portanto, sobre si mesmo. Segundo Fraile (1965) é a própria Natureza que nos informa
que o prazer é um bem. Este prazer, no entanto, apenas satisfaz uma necessidade ou
aquieta a dor. Assumindo-se como materialista e descendente da tradição atomista de
Demócrito, Epicuro defendia que o único prazer é o prazer do corpo e o que se chama
de prazer do espírito são apenas lembranças dos prazeres corporais. Para Epicuro, toda
13
Segundo Hadot (2004), a doutrina de Epicuro acabou tendo caráter dogmático, popular e missionário:
“o epicurismo dirige-se a todos os homens, ricos ou pobres, homens ou mulheres, livres ou escravos (...)
as discussões teóricas e práticas, podem ser resumidas para os iniciantes e os que progridem em um
pequeno número de fórmulas fortemente encadeadas, que são essencialmente regras para a vida prática.”
(p.178). Para Bréhier (1978), “Epicuro foi venerado por seus primeiros discípulos e se conhecem os belos
versos nos quais, mais de duzentos anos após a sua morte, Lucrécio rendia homenagens a seu gênio”. (p.
71).
21
filosofia torna-se inútil se não serve para consentir a felicidade. Sua ética, parte
fundamental de sua obra, está baseda nos meios adequados para se alcaçar esta
felicidade
14
.
Apesar de Michel Onfray várias vezes recorrer à Epicuro em seu
materialismo hedonista, sua crítica ao que chama de “epicurismo fechado” está presente
em sua obra, pois reconhece nela, uma defesa do prazer baseado na superação da dor e
não no exercício puro e simples do júbilo. Segundo Onfray (2001), “os epicuristas
assimilam o prazer à satisfação negativa, à quietude que atua nos cadáveres.” (p.27).
Epicuro, segundo Onfray, elabora uma filosofia eudemonista que pode ser lida de
maneira hedonista por seus seguidores. Reconhece aí, a importância para seu
materialismo hedonista em alguns desses discípulos, especialmente Lucrécio. Este poeta
atomista e materialista, mais de duzentos anos após a morte do mestre, via no
epicurismo uma oportunidade para poder desvendar os segredos do universo e garantir a
felicidade humana. Seu entusiasmado o levou a tentativa de libertar os romanos do
domínio religioso através do conhecimento da filosofia epicurista. Michel Onfray
observa em Lucrécio uma vantajosa postura hedonista. Para ele, o poeta defendia as
vantagens dadas pela utilização hedonista do corpo, assim como na recusa de seus
inconvenientes para que pudesse, enfim, reivindicar a pura volúpia. A leitura cruzada de
Epicuro e de Lucrécio inspira claramente Onfray na eleboração de um epicurismo
hedonista quase em ruptura com o epicurismo ascético do Mestre. Segundo Onfray:
“A doutrina de seu fundador a sua fisiologia
débil e o seu corpo frágil contribuem para isso
leva inevitavelmente a um epicurismo
14
Desde que procurou definir a noção de felicidade, Epicuro encontrou divergências. As morais
anteriores à época helenística tinham fornecido a essa questão respostas complexas, fazendo da felicidade
o resultado de uma dosagem sutil de elementos: a vida feliz, dizia Platão no Filebo, é um misto de prazer
e de sabedoria; para Aristóteles não felicidade se à virtude não se acrescenta um “cortejode bens do
corpo (saúde, força) e de bens exteriores (riqueza, poder, etc), o que era fazer depender a felicidade, em
grande parte, da “boa fortuna”. No helenismo, Epicuro forcene a noção de felicidade ligada diretamente
ao prazer e à supressão da dor.História da Filosofia Idéias e doutrinas. François Châtelet. Vol. I A
Filosofia Pagã.
22
ascético que defende a ética e a renúncia,
enquanto ainda durante a vida do Mestre
alguns discípulos se apóiam menos na letra do
que no espírito e propõem um epicurismo
hedonista que podemos partilhar hoje em dia.”
(ONFRAY, 2001, p. 28).
Não é que Epicuro exclua o prazer em si, em sua essência. Não
encontramos em nenhum de seus textos uma referência, nenhuma frase ou máxima que
possa ser atribuído um caráter eminentemente nefasto ao prazer positivo. Pode-se
afirmar seu aspecto negativo de forma derivada, induzida; na medida em que ele não é
capaz de eliminar dores ou sofrimentos ou que entravam a paz e a independência do
sábio. Mesmo o prazer sexual, para Epicuro, só merece descrédito como conseqüência e
quanto exige um esforço demasiado grande e atrapalhe a tranqüilidade do espírito,
evitando assim o desprazer.
Em sua doutrina moral
15
, o epicurismo distingue os prazeres em três
categorias. Primeiro, estão os prazeres naturais e necessários, como por exemplo, beber
e comer, sem os quais a própria sobrevivência está posta em risco. Depois, na segunda
categoria, estão os prazeres naturais e não necessários, como é o caso do desejo sexual.
Por fim, na terceira categoria, estão os prazeres vãos que não são naturais e nem
necessários, portanto supérfluos como, por exemplo, o luxo e o dinheiro. Desta forma,
satisfazer a fome com um pedaço de pão e a sede com um pouco de água é suficiente
para o filósofo e em nada perturba sua tranqüilidade, porque são bens de fácil aquisição,
não produzindo preocupações para ele. Mas, ao contrário, desejar beber um bom vinho
e um saboroso pedaço de carne se tornaria um prazer em direção aos desejos não
naturais e não necessários. Assim, fica escasso o suposto hedonismo de Epicuro ao
15
Segundo Robin (1970), todas as morais do período helenístico, têm em comum uma mesma intenção:
dar à ação do indivíduo uma orientação em geral tal, que este, entregue a si mesmo, seja capaz de
construir a sua salvação” na vida, quer dizer, de se precaver, de modo suficiente e o mais duradouro que
puder, contra os males que não seja a dose normal de uma experiência humana, bem como de não se
deixar esmagar por aqueles que não tenha podido evitar.
23
olhar de Michel Onfray, que busca ir mais longe que o projeto ascético apresentado pelo
filósofo. É daí também que vêm as mais importantes diferenças, segundo a
interpretação de Onfray, entre o eudemonismo epicurista e o hedonismo cirenaico. Em
sua crítica ao ascetismo de Epicuro fechado, Onfray afirma:
“O hedonismo epicurista é nada menos do que
o gozo masoquista de um São Bento em sua
gruta ou de um atleta do deserto meditando, nu
sob o sol, de pé sobre um tijolo, esperando que
seu suor o faça derreter. É um prazer perverso
do renunciante que se esforça por morrer antes
que a morte chegue, é o gozo nauseabundo do
sábio que se quer fazer semelhante a um
cadáver. Júbilo de neurótico preocupado em
fazer triunfar nela a pulsão de morte”.
(ONFRAY, 1999. p. 242).
Segundo a interpretação de Michel Onfray (1999), a diferença
substancial entre o prazer epicurista e o prazer cirenaico consiste em perceber que, para
o primeiro, o prazer consiste simplesmente em evitar a dor: é negativo e reativo. Ao
contrário, para os cirenaicos o prazer é positivo e ativo. O ascetismo epicurista quer
sufocar nele qualquer tipo de paixão, desejo e volúpia. Quanto mais se aproximar da
ascese, da quietude, maior será seu prazer. Os cirenaicos, ao contrário, lutam pela
energia que percorre o corpo, busca a volúpia e o prazer. Segundo Châtelet (1973),
“para Aristipo de Cirene, o prazer é um movimento ligeiro, no que se opõe
precisamente à dor, que é um movimento violento (...). Para Epicuro, o prazer
verdadeiro, aquele que cumpre buscar, é o prazer em repouso, tal o sentimento de bem-
estar que experimenta um homem que não tem sede e não bebe”. (p.188).
Para Fraile (1965), na doutrina epicurista, o sábio deverá modelar a
satisfação de seus apetites mediante a virtude da moderação, uma vez que o abuso dos
prazeres pode produzir a dor. Ele deve saber calcular a duração dos prazeres, sua
intensidade e suas conseqüências. Epicuro defendia uma vida austera para que se
24
possam limitar tais apetites sem moderação, ligados exclusivamente aos prazeres e as
necessidades corporais. Assim, o que interessa aos epicuristas é a aproximação mais
que possível da ataraxia. Este termo, também ligado ao ceticismo e estoicismo,
alcançou na obra de Epicuro sua maior fama. Consiste basicamente em promover a paz
interior da alma, livre de dores, de temores e perturbações, compondo assim, as
características do sábio. A ataraxia como imperturbabilidade de espírito
16
, alcançada
através da superação das paixões, do distanciamento dos desejos supérfluos e do
atendimento dos desejos naturais, terá no epicurismo, a expressão do prazer mais
intenso. Nas palavras de Fraile (1965), o “epicurismo é uma moral própria de um
homem enfermo, para quem a maior felicidade possível é a supressão de suas dores”(p.
595).
Em sua Carta a Meneceu, sobre a Moral, escreve Epicuro:
“Portanto, quando dizemos que o prazer é o
fim, não falamos dos prazeres dos pródigos e
dos prazeres da sensualidade, como acreditam
aqueles que nos ignoram, ou se opõem a nós,
ou nos entendem mal, mas falamos da
ausência de dor física e da ataraxia da alma.
Pois são as orgias, os banquetes, a possessão
dos rapazes e das mulheres, o sabor dos peixes
e outras iguarias que há na mesa do rico que
engendram a vida agradável, mas um
entendimento correto, capaz de encontrar
justas razões de escolha e aversão, a recusa das
opiniões falsas de que decorre principalmente
a angústia das almas”.
Assim, o prazer na perspectiva de Epicuro está vinculado ao exercício da
renúncia, que na visão de Onfray (1999) é o triunfo da negatividade e da ascese. O Bem
16
Para Epicuro, são três as formas de superação das causas de intranqüilidade: 1- Não que temer o
destino, pois não existe. Tudo se muda, se troca e se transforma, sem obedecer a nenhuma lei; 2- Não
que temer a morte, pois a alma humana se compõe de átomos esféricos lisos, sutis e móveis, espalhados
pelo corpo em forma de uma rede. No momento da morte, os átomos se desintegram, deixando de existir
juntamente com o corpo; 3- Não de temer os deuses, pois estes não estão interessados na vida dos
homens. A tranqüilidade da alma, então, não pode ser alcançada senão pela teoria geral do universo
presente no atomismo em que Epicuro se fez seguidor.
25
na doutrina epicurista, está associada ao prazer vivido como supressão do sofrimento.
Este discurso teórico sobre a ética epicurista promoverá uma definição dos chamados
verdadeiros prazeres, através da noção do prazer em repouso como “estado de
equilíbrio”. Como já dissemos, esta ascese será fundada na diferenciação entre os
chamados desejos naturais e os desejos não naturais. Será com o exercício desta ascese
dos prazeres que surgirá um modo-de-vida proposto pelo epicurismo.
O materialismo hedonista de Michel Onfray buscará distanciar-se da
ascese epicurista, estabelecida através da renúncia das paixões e dos júbilos corporais,
pois, segundo a moral epicurista, isto garante a tranqüilidade da alma. Ao contrário
desta noção, Onfray defende que o materialismo hedonista coloque-se em direção ao
exercício das paixões e à vivência dos prazeres corporais, não entendendo com isso
qualquer prejuízo para a paz do indivíduo. Michel Onfray (1999), mostra como a
tradição do ideal ascético iniciada pelo platonismo encontra na ascese epicurista, um
aliado envolvido em hostilizar a carne abarcada em prazeres e em gozos. No entanto,
segundo Bréhier (1978), ao contrário do que nos mostra Onfray, a ataraxia no
epicurismo e seu estado de impertubilidade da alma não são apresentados como um fim
em si. Segundo o autor, o fim para Epicuro é o prazer, e a ataraxia não é
consequentemente estimável, senão quando estiver subordinada a este fim, enquanto
produz prazer. Mais uma vez, a interpretação de Onfray segue um caminho próprio e
será a partir daí que ele constrói seu materialismo hedonista.
1.5- O hedonismo fora da Antiguidade
Com o início da era cristã, tem-se o começo de uma tradição moral que
será bastante crítica com relação ao prazer. A doutrina do cristianismo se tornará
26
presente em todo ocidente e com ela um verdadeiro abandono da matéria e do prazer,
assim como o triunfo do ideal ascético. A era cristã instala na cultura ocidental uma
valorização extrema do imaterial em detrimento do material e conseqüentemente um
abandono do prazer e do corpo. Essa tradição é rompida em certas esferas, apesar de
sofrer recorrentes perseguições por parte da Igreja, interessada em combater qualquer
forma de heresia. Por vários momentos na história do ocidente, o hedonismo foi vítima
de calúnias e desqualificações, no entanto sempre se manteve presente, estabelecendo
rupturas e exercendo rebeldias no pensamento filosófico. O que pretende Michel
Onfray, nesta história marginal da filosofia, é encontrar pensadores que navegaram de
maneira subterrânea por entre as malhas da legalidade e da normalidade. Segundo
Onfray (1999), “O hedonismo é uma gargalhada, um parti pris jovial, alegre em meio à
austeridade geral: Aristipo contra Platão; os cirenaicos contra epicuristas; Simão, o
Mago, contra Agostinho, o Santo; os gnósticos contra os padres da Igreja. A
contramoral jubilosa insere-se sempre na perspectiva de um combate contra os
defensores da morte, da renúncia e do ódio aos sentidos” (p. 252).
Neste propósito, Onfray encontra no início do cristianismo uma corrente
filosófica denominada de gnósticos licenciosos, que celebrarão a orgia e o prazer como
comunhão com o divino. Eles surgiram entre os séculos II e III da era cristã, e logo
tornaram-se responsáveis por inaugurar as primeiras heresias que o cristianismo
ocupou-se por combater. Homens e mulheres escondidos no deserto buscavam a
reclusão e a vida errante para ocupar-se de meditações e orgias. Não entendiam que o
corpo, ao contrário do que propunha a moral cristã, seria algo impuro ou local de
pecado, mas como um instrumento do prazer e da alegria. Os gnósticos licenciosos viam
o adultério e a formicação como vias privilegiadas de acesso ao divino. Dessa forma,
acreditavam que poderiam reencontrar o divino com o exercício de práticas de
27
ascetismo orgásticos. Um dos principais representantes deste movimento, destacado por
Michel Onfray, ficou conhecido como Simão, o gico. Misto de filósofo e religioso,
este personagem é mencionado na Bíblia e freqüentemente lembrado pelos autores
cristãos dos primeiros séculos como um bruxo convertido ao cristianismo. Para Onfray,
este gnóstico foi um ardente defensor da libertinagem. Segundo o autor (1999), em
virtude do princípio de que a devassidão é mais libertadora do que a ascese, Simão e
seus comparsas viviam em união livre e praticavam a troca de parceiros animadamente.
(...). Para ele, o corpo tinha uma função ética, depois metafísica”. (p. 247-248).
também uma versão gastronômica entre os gnósticos chamados de
barbelognósticos, que da mesma maneira celebravam o corpo e suas funções
fisiológicas como forma de aproximação com o divino. Devoravam esperma, buscando
com isto uma espécie de reconstituição da unidade primitiva do mundo. Beber o líquido
seminal era visto por eles como algo que continha um bem em si, uma vez que Deus
não poderia dotar o homem de potencialidades para a imoralidade. Faziam isto também
com o mênstruo da mulher, em rituais onde ofereciam e bebiam juntos, numa
celebração coletiva.
Eles não viam no corpo qualquer mal a ser combatido e estimulavam o
livre exercício do desejo. Com este salvo-conduto, os gnósticos entregavam seus corpos
a todas as fantasias possíveis. Nesta perspectiva, criticavam a monogamia, o casamento,
a família ou qualquer outra união que pudesse limitar o prazer e suas comunhões
orgásticas. Segundo Lacarrière (1988), “o homem e a mulher recolhem em sua mão o
esperma do homem, dirigem os olhos ao céu e, com uma ignomínia nas mãos,
oferecem-no ao Pai. Depois o comem e o comungam no próprio esperma, dizendo: eis o
corpo de Cristo, eis a Páscoa pela qual sofrem os nossos corpos, pela qual confessam a
28
paixão de Cristo”.(p.103). Para os gnósticos, o gozo era entendido como uma oferenda,
um presente destinado às esferas em que dançam as energias puras, entre as quais, as
que animam os corpos materiais.
Michel Onfray reconhece nestas práticas gnósticas uma forma de
transformação dos valores da moral cristã. Segundo o autor (1999), as práticas orgíacas
visam o reencontro do corpo com sua flexibilidade ética: utilizar o corpo para as
virtudes do prazer é autorizar a constituição de um laço, um caminho para a etiologia da
religião. O corpo serve como instrumento da libertação, ele se torna o recurso imanente
aos gozos promovidos a veículos com destino ao divino. Estes gnósticos exerceram uma
atitude em comum: uma vontade aguda de libertar o prazer, o corpo, a carne e de deixar
o desejo se manifestar em suas formas mais variadas. Para Onfray, seu materialismo
hedonista procura resgatar estes personagens hedonistas que elegeram o prazer como
ética, como forma de legitimar o corpo como princípios para a sua filosofia.
Outra corrente hedonista pela qual Michel Onfray interessa-se são os
Irmãos e Irmãs do Livre-Espírito, que dizem Não ao ascetismo cristão e proclamam um
grande Sim ao júbilo corporal. Novamente o corpo torna-se instrumento de salvação e
os gozos da carne são celebrados em sentido contrário à moral cristã: o que importa é
permitir o prazer puro e simples. Combatendo a hegemonia dos dogmas sagrados do
cristianismo como o Paraíso, o Inferno e o Purgatório, os Irmãos e Irmãs do Livre-
Espírito se interessavam por uma moral imanente, situada no aqui e agora e que
proporcionasse a satisfação do corpo, dos sentidos, da carne e da matéria. Para Alberto,
o Grande
17
(1193-1280), eles não acreditavam na ressurreição, nem no paraíso, negando
a moral que desprezava o prazer terreno e presente. Em seu “Exame do espírito novo”
17
Também chamado de Albertus Magnus, era um monge dominicano de grande erudição, que durante
seus 87 anos escreveu uma vasta obra composta de tratados ocultistas. Tomás de Aquino foi seu
discípulo.
29
(cerca de 1259, 1262), Alberto, o Grande, fala sobre os adeptos do Livre-Espírito:
“Quem está unido a Deus pode impunemente saciar seu desejo carnal de qualquer
maneira, com um ou outro sexo, e até invertendo os papeis”. Esses hedonistas
descartavam a possibilidade de desfrutar o prazer que não fosse vivido no instante
possível de realizar-se. Para isto, acreditavam na aceitação da necessidade, aquilo que a
Natureza “aconselha” como bom e que deverá ser vivido sem culpa nem medo. O erro
estaria em contrariar esse movimento natural das coisas e do real. Para eles, a vivência
do desejo é boa, proporciona uma satisfação que se pode oferecer e transformar-se em
caridade. Ao contrário, a impossibilidade do exercício das energias sensuais é o mal na
ética do Livre-Espírito. Condenavam assim, as vias de acesso tradicionais para se atingir
a perfeição, como os jejuns, macerações e ascetismo. O princípio de necessidade
acompanhado pelo imoralismo implica numa leitura imanente do real. Para além do
bem e do mal, o que lhes interessava era o exercício livre do desejo, visto como algo
natural. A liberdade consiste em aceitar esta necessidade natural que leva ao júbilo. Os
instintos e as paixões são bons, pois convidam naturalmente a buscar o prazer e a fugir
da dor e do desprazer. Para os adeptos do Livre-Espírito, a cultura praticada pelos
homens é que ensina a complicar e a culpar o prazer, e conseqüentemente a perda de
liberdade quando subordinado a ela. Segundo Michel Onfray:
“A ética hedonista dos Irmãos e Irmãs do
Livre-Espírito retoma a temática estabelecida
por Aristipo: o corpo é o único instrumento do
gozo; a moral é relativa, trata-se de submetê-la
ao princípio do prazer; o indivíduo é a medida
do verdadeiro, do bom e do bem, em função
apenas de seu arbítrio; o instante é a única
dimensão do real; a natureza é um indicador
confiável e a necessidade comanda o
agradável; a imanência senão o materialismo,
são as únicas verdades metafísicas, não
mundos remotos, portanto nem pecado, nem
remorso, nem culpa são legítimos; Deus, os
30
deuses, o divino, o sagrado não tem
fundamento. Restam a liberdade e o gozo.”
(ONFRAY, 1999, p. 257).
Na interpretação de Michel Onfray, os Irmãos e Irmãs do Livre-Espírito
são criadores de seus próprios valores de liberdade e prazer. Não se submeteram às
normas e às morais castradoras do cristianismo, procurando ser livres e senhores de suas
vidas. Segundo sua moral, o corpo não era visto como fonte de pecado. Eles elegiam um
conjunto de códigos gestuais, destinados a expressar o desejo, manifestando assim, a
vontade de prazer. O corpo está à disposição de cada um para o exercício do gozo,
utilizado como instrumento para obtenção da satisfação, da qual todos devem buscar,
pois é um movimento natural. A liberdade para os adeptos do Livre-Espírito está em
aproximar-se desta capacidade de exercer seu prazer de forma a atender as necessidades
naturais do júbilo. Esta é, na opinião de Onfray, uma importante postura hedonista, que
o levará a resgatar nesta corrente de libertinos, elementos a serviço da confecção de seu
materialismo hedonista.
1.6- Os materialistas La Mettrie e Marquês de Sade
O hedonismo percorre os séculos dos santos como também é chamado o
período da Idade Média com algumas presenças esporádicas. Onfray identifica nesta
ocasião passagens hedonistas, mas o poder é repressivo para quem elege esta moral.
Corre-se risco de morte qualquer um que afirme o materialismo, o ateísmo ou o prazer
da carne. Para o autor, o ateísmo é condição para o materialismo, assim como a
presença de Deus é incompatível com a noção de liberdade. Têm-se então, neste período
da história, condições suficientes para inviabilizar a ética hedonista. Tudo isso,
especialmente pela forte presença da Igreja Católica e sua noção de transcendência
31
divina
18
, que estabelece uma ruptura entre o mundo real e a abstração de um mundo
perfeito. O hedonismo torna-se então uma espécie de declaração de guerra à Igreja e
seus dogmas que restringem ou limitam o prazer. A autoridade escolástica; o idealismo
do além-mundo e a promessa de um paraíso aos que se sacrificam através do castigo ao
corpo e à matéria; o ideal ascético e suas verdades únicas transformam o hedonismo
num vilão a ser combatido. Esta noção apenas foi ultrapassada, quando o materialismo e
o hedonismo foram regatados pelos libertinos no período do Renascimento e
revigorados mais adiante pelos filósofos La Metrrie e levado ao extremo pelo Marquês
de Sade.
O início dos Séculos das Luzes é retratado por uma curiosa frase de
François Bernier (1620-1688) com um instigante axioma de libertinagem erudita: A
abstinência dos prazeres me parece um grande pecado”. Apesar da maioria dos filósofos
deste período ser, na opinião de Onfray, personagem devoto da renúncia e do ideal
ascético, encontraremos aqueles que se recusam a uma defesa intransigente desta
renúncia. Onfray destaca, então, dois pensadores que serão importantes ao seu projeto
hedonista: o médico-filósofo Julien Onfray de La Mettrie e o Marquês de Sade. Dois
personagens que irão parar no exílio ou na prisão, por defender o materialismo e
hedonismo.
O filósofo La Mettrie (1709 – 1751), provavelmente por sua prática
médica, estava mais interessado em desenvolver uma teoria que pudesse ser pensada a
partir da observação e da experimentação. Ele é autor de um lebre livro, "O Homem-
Máquina" (1983), cujo título é quase um resumo do anti-humanismo moderno. Segundo
18
Michel Onfray concentra sua crítica ao cristianismo e sua tradição milenar que impregnou a cultura
ocidental pela noção de culpa em relação ao prazer. Mais adiante, trataremos desta noção, mostrando
como através de herança nietszchiana, Onfray constrói sua crítica às religiões. Em seu “Traité
d'athéologie” (2005), expõe suas idéias sobre a existência de Deus e a impossibilidade da liberdade.
32
La Mettrie, o homem era um ser autômato, sem alma e sem livre-arbítrio. Daí sua defesa
por um materialismo radical, que se colocou contrário à visão religiosa do mundo da
época. La Mettrie resgata o pensamento de Epicuro juntamente com as descobertas do
iatromecanismo (iatros significa médico/arte de cura) para elaborar um sistema
materialista que está conjugado ao estado jubilatório. Para ele, mais importante que o
prazer em si é o estado de satisfação proveniente do gozo. Onfray (1999) resume assim
o pensamento de La Mettrie e sua proposta ao uso dos prazeres: “O gozo é uma arte que
exige distinção, sutileza e refinamento: não se pode desencadeá-lo de maneira simples e
sumária, brutal e rude. O comedimento é essencial, trata-se de alcançá-lo por um
cálculo, uma aritmética dos prazeres”.(p. 272).
Podemos dizer que uma característica central ao pensamento de La
Mettrie que consiste em propor uma ética sem raiz metafísica. O filósofo pretende
pensar a ética materialista situando-a para além de qualquer concepção de “natureza” ou
de "lei natural". Segundo La Metrrie (1983), “a lei natural não é mais que um
sentimento íntimo, o qual pertence também a imaginação, assim como o
pensamento".(p. 231). Todo seu trabalho como médico-filósofo é um esforço por evitar
a confusão entre o "natural" como artifício da razão, uma vez que para ele, o natural
simplesmente não existe. Em seu materialismo radical, La Metrrie acreditava que tudo é
matéria, inclusive pensamentos e idéias. Não nenhuma dimensão imaterial, tudo está
submetido à matéria: a máquina corporal. É ela que conhece as variações fisiológicas de
prazeres e desprazeres, energias que percorrem em fluxos produzindo uma gama de
estados, impossíveis de serem influenciados ou impedidos em seu funcionamento. La
Mettrie defende o hedonismo vivido no instante do êxtase, desfrutado no momento
seguinte ao da descarga de tensão do prazer. Este seria o momento privilegiado do
33
hedonismo de La Metrrie, um verdadeiro e longo êxtase. Onfray reconhece em La
Metrrie um importante representante das “filosofias do corpo” e do presente:
“O materialismo hedonista de La Mettrie
supõe uma exacerbação da presença no
mundo, uma adesão plena e inteira ao que
compõe a substância do real (...). Os cinco
sentidos tornam-se os instrumentos da
apreensão voluptuosa do mundo. O entusiasmo
é o motor do júbilo e os devaneios têm
virtudes metodológicas. Trata-se de investir o
presente de um máximo de densidade
afirmativa, o presente é a única verdade”.
(ONFRAY, 1999. p. 275).
Na aritmética dos prazeres de La Mettrie, o que importa é a vivência
prazerosa do momento presente. O passado e o futuro são apenas versões que são
inscritas em instantes de lembranças ou de imaginações. O médico-filósofo escreve em
“L’homme-machine(1983): “desfrutemos do presente; somos apenas o que é. Mortos
de tantos anos quantos os que temos, o futuro que ainda não é não está mais em nosso
poder do que o passado que já não é. Se não aproveitarmos os prazeres que se
apresentam, se fugirmos do que parecem hoje nos procurar, virá um dia em que os
procuraremos em vão, eles nos fugirão muito mais, por sua vez”. (p.381). Sua arte de ter
prazer privilegia o gozo atual, sem que se possa lamentar o tempo perdido. A noção de
viver cada instante como se fosse o último, numa forma de dar valor ao seu próprio
caráter efêmero, torna-se para La Mettrie sua ética. As opiniões de Julien Onfray de La
Mettrie produziram o desprezo de outros filósofos de sua época, que não tinham
grandes objeções ao seu ateísmo, mas chocavam-se com suas posições morais. Elas, no
entanto, serão resgatadas por Onfray em sua confecção libertina por uma ética
hedonista, que encontra neste filósofo mais um representante da “galeria” da filosofia
marginal que tanto lhe interessa.
34
Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como Marquês de
Sade (1740-1814), ficou famoso pelo grande público como aquele escritor pornográfico
que levou às últimas conseqüências seu erotismo pervertido e vulgar. No entanto, além
de escritor e dramaturgo, foi também um filósofo de pensamento original, baseado no
materialismo do Século das Luzes e nos enciclopedistas. Segundo Giannattasio (2000),
o Marquês de Sade é considerado um dos pioneiros da revolução sexual, com suas
idéias libertárias e permissivas. É um dos primeiros defensores a ter uma visão moderna
da homossexualidade, uma vez que defendia a existência de diferentes orientações
sexuais para a humanidade. Em “Os 120 Dias de Sodoma” (2005), Sade chega a
satirizar o predomínio do pensamento heterossexual e a antiga condenação à morte por
comportamentos considerados desviantes. Neste romance de especial estima do
Marquês, ele inverte a situação, humilhando a heterossexualidade, que é punida com a
morte pelas regras libertinas do castelo em que se realizam as orgias incestuosas,
regadas a homossexualidade e sodomia.
Para Onfray (1999), Sade “é antes de tudo um pensador radical que leva
às últimas conseqüências sua meditação sobre a Natureza e o lugar do homem nela”(p.
278). A obra do Marquês de Sade
19
representa um rico e vasto pensamento filosófico
pós-cristão, que estremeceu a metafísica de sua época. Um pensamento radical para seu
tempo, que chega até nossos dias com o mesmo vigor do passado. Sade e La Mettrie
eram parentes, e freqüentemente o Marquês utilizava fontes dos textos do médico-
filósofo. No entanto, segundo Onfray (1999), o hedonismo de La Mettrie situa-se mais
19
Toda a obra do Marquês de Sade foi em boa parte produzida durante os 27 anos em que viveu entre a
prisão e o sanatório. Dentre algumas obras, podemos destacar: Contos Proibidos do Marquês de Sade,
Justine, Juliette de Sade, Zoloe e suas Amantes, O Estratagema do Amor, Os Crimes do Amor, A
Filosofia na Alcova, Contos Libertinos, Diálogo entre um Padre e um Moribundo, Os 120 dias de
Sodoma, que foi escrito em 1785, mas só descoberto em 1904.
35
numa lógica epicurista, onde o prazer é um meio para se alcançar a volúpia; enquanto
Sade, numa perspectiva mais cirenaica, quer o prazer em si mesmo e o júbilo que ele
permite como fim. Na opinião de Michel Onfray (1999) isto fica claro quando diz: “O
hedonismo sadista é corporal de modo integral: ele visa mais o influxo e a intensidade
em si mesmo do que a razão e sua satisfação. O Marquês considera a razão e a
consciência acessórios que o prazer arrebata em seu ímpeto: trata-se de fazer a máquina
exultar e de levá-la até a beira dos abismos”. (p.287).
Tanto quanto La Mettrie, Sade defende um materialismo radical, onde a
matéria torna tudo submetido aos seus princípios. Nesta perspectiva, não há lugar para a
idéia de Deus, espírito, alma ou qualquer outra instância que não seja dada pela
imanência da necessidade. Em contraponto ao idealismo da causalidade espiritual ou
divina, Sade propõe que a máquina funciona por meio de uma sutil rede de matéria
nervosa. É através dela também que se instalam o gozo e as sensações, vistos por ele
como a fonte da descoberta da vida. Ele fala de fluidos elétricos, de átomos, de fibras e
de cursos dos licores para explicar o funcionamento do corpo. Em A nova Justine
(1967), Sade nos mostra como isso se dá: “não há no corpo humano partes mais
interessantes do que o nervo. É do nervo que dependem a vida e a harmonia da
máquina, os sentidos e as volúpias, os conhecimentos e as idéias; é, em suma, a sede de
toda a organização”. (p.546). A carne, a matéria é, pois, para Sade, o local em que se
imprimem as sensações e não nada fora dela. Daí advém no sistema sadista a noção
solipsista: a intersubjetividade coloca-se sob a forma da inadequação, impossível de
realizar-se, criando um prazer solitário.
Em função disso, muitas vezes o olhar que o Marquês de Sade dirige ao
mundo é percorrido pela melancolia e até pelo desespero. Seu anti-humanismo é uma
36
constatação pura e simples desta realidade solitária. O solipsismo
20
do Marquês de Sade
interessa-se mais pelas modalidades da matéria que venham a mobilizar e a produzir
prazer, numa perspectiva particular e não coletiva. O outro, para Sade é reduzido à pura
utilidade do júbilo. Tal materialismo é incapaz de decodificar no eu a dor ou prazer do
outro. Jamais alguém poderia identificar e sentir o mais forte sofrimento ou o mais
agradável prazer que não a própria pessoa. O amoralismo sadista defenderá, assim, pura
e simplesmente, a diversidade das possibilidades que a natureza fez em produzir seres
de maneira completamente inigualitária. Isso é o mesmo que dizer, na perspectiva
sadista, a impossibilidade de uma moral universalizante que impeça singularidades e
diferenças.
Segundo Onfray (1999), o hedonismo do Marquês de Sade nos leva a
perceber os “riscos” do abandono do prazer: energias que voltam-se contra a própria
pessoa. Tais influxos de paixões e de desejos que a razão tenta realizar seria então, para
o Marquês, uma inutilidade que mais tarde será impelida pela força da perversidade e
por uma excitação maior ainda. Para Sade (1990), “a continência é uma virtude
impossível, cuja natureza, violada, em seus direitos, nos pune imediatamente com mil
desgraças” (p. 82). Trata-se de evitar os supostos sofrimentos quando se reprimem os
desejos em nome de uma moral social. Contrariando essa lógica, o desejo em Sade visa
o maior prazer possível, seguindo em outra direção: a de buscar o excesso, o
transbordamento das forças e suas potências.
20
Este termo será empregado por Michel Onfray em algumas passagens de sua obra, quando refere-se ao
Condottiere e sua busca muitas vezes solitárias. Segundo Abbagnano (2003), este termo refere-se a tese
de que eu existo e de que todos os outros entes (homens e coisas) são apenas idéias minhas. É a
conseqüência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência
interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o
conhecimento objetivo de algo para além deles.
37
Em sua construção por um materialismo hedonista, Onfray vislumbra no
Marquês de Sade um libertino que transfigurou sua época, reivindicando o prazer até as
últimas conseqüências. Segundo o autor (1999), “Nunca um filósofo terá avançado tanto
no desprezo pela lei e no elogio do gozo. Nunca o ideal ascético terá encontrado um
demolidor que estivesse tanto à sua altura. Nunca um pensador pós-cristão terá levado
tão longe seu radicalismo. A vontade do nada a esse ponto é atordoante, mas salutar: é a
partir desses excessos que se trata de pensar uma ética hedonista viável e não tão
teórica”. (p. 288). Para Michel Onfray, o pensamento sadista atrela o sentido da
liberdade à aceitação em fazer do corpo um instrumento para gozar, uma máquina que
se destina ao gozo. Com ele, Onfray estende sua defesa hedonista no presente, no aqui e
agora, reivindicando o exercício do prazer como um guia. A proposta filosófica do
Marquês de Sade, segundo a interpretação de Onfray, quer negar o ideal ascético e
legitimar o prazer em suas múltiplas formas.
O percurso realizado por Michel Onfray por entre personagens dessa
“filosofia marginal” até aqui apresentado, busca um passeio por correntes hedonistas
nem sempre lembradas como grandes obras filosóficas e renegados como pensamento
menor. No entanto, tais obras tornam-se matéria-prima para o autor construir seu
materialismo hedonista, tentando equacionar diferenças para que juntas possam compor
um corpo libertino comum. Sua ética está envolvida numa perspectiva imanente, na
produção do presente, de forma libertária e jubilosa. Michel Onfray resume assim tais
correntes de pensamento hedonista que apresentamos:
“Os cirenaicos, os gnósticos, os Irmãos e Irmãs
do Livre-Espírito, os Libertinos eruditos
funcionam de modo semelhante, formam
cenáculos, cristalizam sensibilidades em
pequenas comunidades que experimentam suas
formas de vida sem preocupação com o social
38
de sua época. Querem menos mudar a ordem
do mundo, amanhã, do que mudar a si mesmo,
aqui e agora, hoje. Sua preocupação é
pragmática e eles vivem o que ensinam. Suas
idéias não invocam uma transformação do real
no futuro, mas uma revolução singular no
presente. A utopia não está na moda, a vida é
diretamente filosófica”. (ONFRAY, 1999. p.
290).
O autor valoriza com seu materialismo hedonista o momento atual,
lutando contra qualquer promessa de um amanhã confortável, como o cristianismo faz
crer com sua noção de Éden aos que se sacrificarem no agora. A reivindicação do gozo
dentro da ética hedonista para o autor está pautada no aqui e agora. É o corpo que
fornece as paixões que, colocadas a serviço da mecânica hedonista, fornecerão no
instante as ledices possíveis diante do real. O materialismo hedonista busca reduzir a
totalidade do que existe a combinações que não deixam nenhum espaço para a fantasia
ou para a imaginação tão presentes entre os idealistas, pouco preocupados com o real.
Busquei até aqui apresentar resumidamente os caminhos percorridos por
Michel Onfray na busca de figuras hedonistas, materialistas e insubmissas, através do
que o autor chama de uma “filosofia marginal”. Veremos agora como o filósofo localiza
na tradição filosófica do platonismo e sua “assimilação” pelo cristianismo os principais
entraves ao prazer como ética.
39
Sua Condenação
1.7- Da condenação do prazer
Michel Onfray em seu materialismo hedonista desenvolve uma crítica ao
que considera as duas fontes principais de negação ao prazer e desvalorização da
matéria: a tradição platônica e o advento do cristianismo. Pretendo mostrar uma breve
contextualização de sua crítica, assinalando como o autor encarrega-se especialmente da
influência das religiões no cotidiano das pessoas. Segundo o autor, a tradição judaico-
cristã criou na moralidade ocidental as noções de culpa, medo e pecado com relação ao
corpo, ao prazer e à possibilidade de uma vida jubilosa. Esta noção que o autor defende,
está intimamente presente na obra de Onfray, onde ele aposta na construção da
existência baseada no exercício do prazer como base para pensar seu materialismo
hedonista. A vivência da alegria, da beleza e do prazer torna-se assim, o fio condutor
para a elaboração desse modo-de-vida por ele proposto.
Partindo da afirmação nietzschiana de que “o cristianismo é o platonismo
para o povo”, o autor procura examinar a influência da tradição platônica e seu
dualismo sobre a moral cristã, onde a alma ganha espaço sobre o sensível, e com isso,
um processo de distanciamento da realidade. Tal tradição, que segundo Nietzsche foi
“adotada” pelo cristianismo, manifesta-se por um abandono do corpo, do sensível, do
real, em função da alma, das idéias, de um além-mundo. Michel Onfray identifica aí,
nesta “transmissão” do dualismo que se iniciou com o platonismo ao cristianismo, a
principal responsável pelo distanciamento do corpo e do prazer. Sua crítica volta-se
especialmente contra a moral cristã, considerada por ele (1999) como “uma máquina de
fazer anjos” (p.161), na medida em que torna o prazer sensual e sexual desprovido de
intensidade e legitimado pela Igreja apenas na esfera do casamento monogâmico.
40
Pensar, portanto, uma ética voltada à eleição do prazer, significa para Onfray
confrontar-se com esta tradição, assim como voltar-se para uma filosofia do corpo, atéia
e sensualista, que busque combater este dualismo.
1.8- O dualismo platônico
Resumidamente, pois não é o objetivo aqui o detalhamento do
platonismo, mas sim analisá-lo a partir de uma interpretação de Michel Onfray, o
projeto filosófico de Platão
21
é baseado em seu interesse pelo que é eterno e imutável
tanto no que se refere à natureza quanto à moral e à sociedade. Platão acreditava numa
realidade autônoma por trás do mundo dos sentidos a qual denominou de mundo das
idéias que, a seu ver, continha as coisas primordiais e imagens-padrão referentes a tudo
existente. O que percebe-se e o que sente-se nos dão opiniões incertas e é possível
possuir conhecimento verdadeiro e seguro sobre algo por meio da razão. Através de
uma dualidade, o homem possui um corpo - que flui - e uma alma imortal - a morada da
razão. Ele também acreditava que a alma existia antes de vir habitar nosso corpo, ela
apenas ficava no mundo das idéias, e que quando passava a habitá-lo, esquecia-se das
idéias perfeitas. Também defendia que a alma desejava libertar-se do homem e isso
propiciava um anseio, uma saudade, que chamou de Eros ou amor. E justamente porque
a alma não é material, ela pode ter acesso ao mundo das idéias.
Para o platonismo, o corpo e a alma estão separados, e mais, são
incompatíveis um com o outro. O corpo é visto como um cárcere e consequentemente
um empecilho para a prática do pensamento. É no corpo que nascem e desenvolvem-se
21
Para Abbagnano (2003), Platão lançou mão de toda uma doutrina das idéias, segundo a qual são objetos
do conhecimento científicos entidades ou valores que têm seu status diferente do das coisas naturais,
caracterizando-se pela unidade e imutabilidade. Segundo ainda o autor, e com base neste pensamento, “o
conhecimento sensível, que tem por objeto as coisas na sua multiplicidade e mutabilidade, não têm o
mínimo valor de verdade e podem apenas obstar à aquisição do conhecimento autêntico”.
41
os desejos e prazeres, os temores e as imaginações, todas elas sensações fúteis que, para
o platonismo, impedem o acesso à verdade. O que importa é a alma, e o comando que
ela exerce sobre o corpo. Para a doutrina de Platão, a função do verdadeiro filósofo é
buscar conhecer a verdade proporcionada pela alma. Para isto, então, o filósofo
desprezará a matéria, pois ela é vista como uma prisão que impedirá que se cuide das
virtudes da alma. Platão, em Fédon, sugere que se esqueça do corpo e se busque, da
melhor maneira possível, ocupar-se dos cuidados da alma para poder examinar os
objetos em si apenas com a dela. Segundo o filósofo, o corpo exige uma demanda de
cuidados por demais custosos, entre os quais a alimentação, o vestuário, o cuidado com
a saúde, entre tantos, além de sentimentos como o medo, a tristeza, o desejo, enfim, uma
demanda de sensações que atrapalham a alma a ascender ao verdadeiro conhecimento.
Através do corpo, não é possível conhecemos puramente nada. O que é preciso fazer,
para o platonismo, é afastar-se a destas sensações corporais e aproximar-se da melhor
maneira possível do conhecimento, pois este fornecerá informações precisas e
verdadeiras sobre a vida.
O dualismo platônico que aqui buscamos expressar não representa o
pensamento de Platão como um todo, mas uma interpretação adotada por Michel Onfray
para a elaboração de seu materialismo hedonista. Esta filosofia essencialmente dualista
é vista por Onfray como sendo o ponto de partida na cultura ocidental para o desprezo
do prazer, do desejo e do mundo sensível. Seguindo a crítica sobre o platonismo
realizada na obra de Friedrich Nietzsche, Onfray analisa o que considera ser a fonte
inaugural do desprezo pela matéria. Segundo o autor, inicia-se com o platonismo um
processo que mais tarde, com o cristianismo, tornará a matéria alvo privilegiado de
condenação. Interessado em estabelecer uma “filosofia do corpo”, Michel Onfray busca
caminhos que estabeleçam uma luta acirrada contra o dualismo hierarquizante da alma
42
sobre a matéria e contra o ideal ascético, onde o júbilo se no presente e tenha no
corpo sua fonte e destino. É assim que para Onfray (2001), estabeleceu-se o iniciou de
um processo que “Segundo a lógica platônica, tudo o que liga o indivíduo à
materialidade de sua carne, tudo o que leva a manifestação dos impulsos libidinosos
animais merece ser condenado sem apelo nem agravo. Pelo contrário, o único tipo de
desejo meritório exige a união da alma com o Bem que, no céu das Idéias, é o que salva
as vidas presentes e futuras”. (p. 48).
Segundo Onfray, o platonismo estabelece uma irredutível oposição entre
corpo e alma, que no cristianismo se dará sob a forma de carne e espírito. Esta dualidade
trouxe conseqüências marcantes à civilização ocidental, onde, de um lado, a alma
apresenta-se como modelo e, do outro, o corpo como exemplo horrendo a se evitar. A
preocupação com a alma salva o homem da danação de ter de suportar a carne”, escreve
Onfray em Teoria do Corpo Amoroso (2001. p.46). O mundo das idéias, perseguida
pelo platonismo, torna-se para o autor, o substrato da vida e ao mesmo tempo preconiza
o abandono cruel do corpo, o desprezo da carne e da matéria. Ao referir-se ao
platonismo, Onfray afirma:
“Nesta geografia do éter encontram-se a
essência das coisas, as coisas em si, a verdade,
a ciência, o pensamento, a justiça, a sabedoria,
em resumo o belo mundo da filosofia tal como
nos habituávamos a pensar nele. (...) O que
importa é o Amor das idéias, do absoluto,
amor do amor purificado, paixão pelo ideal, eis
o que santifica a cruzada do amor. Tudo o que
seja perder tempo com o corpo, a carne, os
sentidos e a sensualidade concreta paga-se
ontologicamente com a condenação, a punição
e o castigo” (ONRAY, 2001. p. 47-48).
O legado que chega até hoje do platonismo e de sua incorporação nas
religiões judaico-cristãs, representa a vitória de uma visão de mundo idealizada, presa
43
ao campo de imaterialidade e distante do materialismo. Onfray acredita que ainda
hoje o triunfo de uma concepção e a derrota da outra. Segundo o autor, o cristianismo
realizou um enquadramento absoluto das filosofias gregas, especialmente do
platonismo, aos limites e objetivos de sua doutrina. Para ele (2001), “O sucesso integral
do platonismo, cristianizado é apoiado pela onipotência de Igreja católica, durante cerca
de vinte séculos, e depois o recalcamento poderoso da tradição materialista – seja
democritiana, epicurista, cínica, cirenaica, hedonista ou eudemonista”. (p. 49).
O platonismo assim, para Michel Onfray, estabelece as bases de um
abandono do corpo, o desprezo pela carne e pela matéria, e conseqüentemente a
valorização da alma. Ao defender um materialismo hedonista, Onfray interessa-se por
estabelecer uma luta contra uma tradição de abandono e culpa do prazer corporal,
impregnada na moral ocidental. O objetivo do autor é mostrar como o desprezo ao
corpo, do platonismo ao cristianismo, tentou afastar a possibilidade de se ter o prazer
como virtude moral.
1.9- O cristianismo e a radicalização do ideal ascético
Para Michel Onfray, o dualismo platônico logo encontrará um forte
adepto que o tornará vivo até nossos dias. Trata-se de Paulo de Tarso
22
, que com sua
doutrina evangelizadora radicalizará o platonismo. O dualismo como vimos, estabelece
uma oposição entre o mundo intelectual e o mundo sensível, entre corpo e alma. A
negatividade associada à matéria, assim como a positividade atrelada ao mundo das
22
Para o filósofo francês Alan Badiou, Paulo de Tarso utiliza-se de um evento capaz de constituir uma
nova verdade universalista. Este evento foi capaz de produzir uma nova subjetivação ao constituir-se
como uma nova verdade. Neste caso, o autor fala da fundação do universal com base num acontecimento:
a Ressurreição de Jesus Cristo, que segundo ele cria uma ruptura com o pensamento judaico. A “fábula”
da ressurreição, mas levada por uma “fidelidade ao evento”, que implica que ele valha “para todos”.
Badiou identifica Paulo como um poeta e pensador, comparando-o a um filósofo canônico. Para o autor,
as produções de subjetivação ocorrem a partir de eventos como este, e geralmente são de raras ocasiões.
O papel da filosofia, portanto, seria o de capturar as verdades nestes tipos de evento. Para Alan Badiou, a
Igreja Católica não teria se desenvolvido sem a presença de Paulo de Tarso e o evento da Ressurreição
que ele anunciou.
44
idéias encontrará equivalência em Paulo de Tarso. Michel Onfray identifica que para
Paulo, tanto a necessidade de praticar o ideal ascético e a renúncia aos desejos e aos
prazeres, quanto a purificação da existência por meio de uma renúncia do corpo em
direção a uma transcendência divina, produz uma perfeita equivalência entre as duas
doutrinas. Segundo o filósofo, a fonte inaugural do cristianismo arquitetada por Paulo
de Tarso, adquiriu um poder de proposição inimaginável. Michel Onfray (2001) aponta
para esta união, quando enuncia que: “A religião e a filosofia dominantes encontram-se
sempre associadas ainda hoje para lançar uma maldição sobre a vida”. E propõe um
enfrentamento ao ideal ascético, afirmando que “uma teoria da libertinagem pressupõe
um ateísmo que seja reivindicado no campo amoroso clássico e apoiado
tradicionalmente por um materialismo combativo”. (p. 50).
Todo esse dualismo hierarquizante, que criou uma poderosa submissão
da carne à alma, sob a forma de uma verdade universal, foi a grande herança desta
tradição contra o prazer e o desejo. O inteligível, o espiritual, a visão idealista que
despreza o sensível, o corpo, a carne e o prazer, passa a constituir uma moral dominante
que segue firme até os dias de hoje. Para Onfray, junto a esta tradição dualista,
estabeleceu-se a tradição judaico-cristã, onde o processo de evangelização fomentou a
apologia da renúncia de qualquer utilização sensual e sexual do corpo. Com isso, a
tradição judaico-cristã propõe que o desejo e o prazer sejam deixados de lado, pois eles
corroem a alma e o espírito, o que significa também desprezar todas as informações
fornecidas pelo corpo e vinculadas pelos cinco sentidos. Segundo Michel Onfray:
“Em matéria de prazer, o grande anátema
histórico e inaugural do ocidente é lançado sem
margem de dúvida pelo pensamento judaico, em
especial no Antigo Testamento. Este, como se
sabe, abunda em imprecações contra a carne, os
desejos e os prazeres, lança insultos contra o
corpo, as sensações, as emoções e as paixões, e
o seu ódio pela vida tem equivalente na
45
aversão que tem pelas mulheres. O monoteísmo
judeu inventa a misogenia ocidental, faz a sua
formulação e carta de nobreza à descoberta.
Isso permite que o cristianismo e o islã venham
continuar a obra, criando primeiro a metáfora de
aversão ao corpo e depois a aversão à totalidade
das mulheres”. (ONFRAY, 2001. p. 84).
Onfray interpreta o platonismo e sua absorção pelo cristianismo como
uma abstração com relação à realidade prática da vida. O amor pelo absoluto, a paixão
pelo ideal que no platonismo liga-se ao mundo das idéias, encontra no cristianismo uma
provável intensificação. O platonismo metamorfoseado na moral cristã entende o corpo
como instância menor, impura, rejeitável a qualquer custo. Segundo Onfray, o
materialismo hedonista propõe que esta noção seja ultrapassada e que se possa instaurar
uma teoria libertina radicalmente atéia
23
, que reivindique um corpo apoiado por um
materialismo combativo.
Onfray, seguindo a tradição nietzschiana, desenvolve uma crítica ao
dualismo platônico que servirá de base para a confecção do materialismo hedonista.
Este, segundo o autor, procura lançar mão de uma filosofia que não despreze o corpo,
que estabeleça uma postura afirmativa diante da vida e uma luta acirrada contra o ideal
ascético. Esta é a sua aposta numa filosofia atéia, materialista e hedonista.
1.10- Onfray, Nietzsche e a crítica dos valores
23
Segundo Paulo Jonas L. Piva, duas maneiras de ser ateu. Piva baseia-se no filósofo André Comte-
Sponville, no seu Dicionário Filosófico, onde explica que uma delas é não crer em Deus, a outra, crer que
Deus não existe. No primeiro caso, temos uma ausência de crença (ausência de Deus), que Comte-
Sponville define como “ateísmo negativo”; no segundo caso temos uma crença numa ausência
(negação de Deus), posição que o filósofo classifica de “ateísmo positivo ou militante”. Não podemos nos
esquecer daqueles que não crêem nem desacreditam na existência de uma, tampouco, na existência de
várias divindades; estes, em face dos infindáveis e muitas vezes enfadonhos debatem entre ateus e
religiosos sobre qual das explicações em conflito conteria a verdade única e absoluta sobre a questão,
acabam não optando nem por uma tese nem por outra, suspendendo assim seus julgamentos. Estamos
falando dos agnósticos ou céticos. Segundo ainda Piva, o filósofo francês Michel Onfray encarna como
ninguém na atualidade esse “ateísmo positivo ou militante” do qual nos fala também Comte-Sponville.
Artigo publicado na revista "Discutindo Filosofia", número 6.
46
Foi no século XIX que Friedrich Nietzsche realizou uma das mais
contundentes críticas aos valores da modernidade, considerada por ele como niilista e
decadente. Com a sua conhecida expressão de "fazer filosofia a golpes de martelo" e ao
criticar a tradição da racionalidade científico-filosófica, ele vai defender a possibilidade
de uma filosofia que não despreze o corpo, através da crítica ao dualismo platônico e à
existência de valores transcendentais. A filosofia nietzschiana, à partir desta crítica
visa, portanto, negar este dualismo que cria uma hierarquia da alma sobre o corpo. Para
Nietzsche, isso torna-se a fonte inaugural do niilismo, que produz o ressentimento, a má
consciência e o ideal ascético. Característica marcante da cultura moderna, o niilismo é
o triunfo das forças reativas que vigora até hoje. Michel Onfray (1995) seguindo a
crítica nietzschiana onde apóia-se para defender seu materialismo hedonista, estabelece
que: “O ressentimento é a incapacidade de se desfazer do passado, ele corrompe o
presente e compromete o futuro, a vontade de otium é desejo de investir plenamente no
instante, de reduzir o real a esta forma que, aliás, é a única modalidade possível do
tempo”. (p. 135).
Em Genealogia da Moral (2004), Nietzsche vai apresentar algo que vem
a complementar outro importante livro seu, Para Além do Bem e do Mal (1999). Neste
texto, o filósofo desempenha o papel de um genealogista, numa radical crítica dos
valores morais, tarefa que segundo ele jamais fora realizada antes por alguém. Segundo
Roberto Machado (2002), “O projeto genealógico – daí toda sua relevância e ambição –
é uma tentativa de superação da metafísica através de uma história descontínua dos
valores morais que investiga tanto a origem compreendida como nascimento, como
invenção quanto o valor desses valores” (p.59). Nietzsche vem descrever como o
cristianismo criou na cultural ocidental a existência de duas formas de moral: a moral
do senhor e a moral do escravo. Sua genealogia busca dar conta do surgimento e das
47
etapas das noções de "bem" e de "mal". Segundo ele, a moral não é um valor eterno,
uma metafísica, mas algo construído historicamente, uma produção dos homens para
vida dos homens no mundo e, portanto, passível de ser modificada. Outra revelação
nietzschiana é a de que junto com a produção humana deste conjunto de valores morais,
há também a necessidade de constituição de uma verdade. A verdade nasce assim, junto
com a moral e é seu aspecto mais intrínseco. Para Machado (2002), “este é seu aspecto
mais essencial, a ponto de não poder se escapar da moral sem se libertar da vontade de
verdade” (p.60).
A verdade não é uma questão de adequação ou de correspondência à
coisa-em-si, como sendo uma essência na metafísica. A verdade, portanto, é sempre
interpretação; e interpretar não quer dizer, neste caso, comparar um determinado texto
com um critério externo, mas simplesmente criar, inventar, fabricar. A interpretação é
uma atividade produtiva, ela é uma invenção; quem interpreta o descobre a
“verdade”, mas apenas a produz. Não se trata de uma atividade hermenêutica, descobrir
um significado oculto, pré-existente, mas de criar um significado novo, inédito. Assim,
o papel do genealogista é imoral, no sentido de libertar a vida dos valores morais, de
uma verdade absoluta e mostrar a incompatibilidade dessa união. Nietzsche opõe-se à
noção do valor como algo universal e imutável, procurando com isso ultrapassar a
moral estática impregnada no cristianismo, como podemos abservar:
“A própria moralidade cristã, o conceito de
veracidade entendido de modo sempre mais
rigoroso, a sutileza confessional da
consciência cristã, traduzida e sublimada em
consciência científica, em anseio intelectual a
qualquer preço. Vê a natureza como prova da
proteção de um Deus; interpretar a história
para a glória de uma razão divina, como
permanente testemunho de uma ordenação
moral do mundo e de intenções últimas.
(...)”.(NIETZSCHE, 2004. p 147).
48
A genealogia, portanto, abre espaço para a criação e a recriação dos
valores morais. Assegurar o caráter histórico, acidental, contingente dos valores,
significa estabelecer a possibilidade de sua recriação. Isso traz possibilidades de novas
circunstâncias, novas correlações de forças e novos valores. É assim que Nietzsche
acredita na transformação dos valores, ou melhor dizendo, na transvaloração de todos
os valores. Michel Onfray procura estabelecer seu materialismo hedonista a partir desta
crítica nietzschiana sobre os valores. Ele pretende estabelecer uma filosofia baseada no
que chama (1995) de uma moral pós-cristã, distante dos ideais do cristianismo e do
ascetismo. A aposta de Onfray, seguindo esta perspectiva, dirige-se para um
materialismo hedonista capaz de cada um aceitar tragicamente sua vida, e para que se
possa construir os próprios passos e conduzir sua própria existência. Neste aspecto, para
Onfray, o niilismo deverá ser confrontado através de uma ética hedonista, materialista e
libertária, que o enfrente através da afirmação de sua potência, diante da realidade sobre
si mesmo. Com isso, o materialismo hedonista quer eleger o valor do bom como aquele
que inventa e que determina seus próprios valores, de maneira livre, potente e criativa.
Genealogicamente foi através da passagem à Grécia arcaica, no
momento de plenitude de sua arte, especialmente a epopéia, a poesia lírica e a tragédia
para a sua decadência, que se constituiu esta moralidade. Para Machado (2002), “do
mesmo modo que a filosofia socrático-platônica estabelece uma ruptura entre o trágico
e o racional, a religião judaico-cristã institui a ruptura entre ética e moral. Balizamentos
históricos diferentes, mas que tem em comum assinalar o nascimento de um período de
decadência”. (p.62). O objetivo genealógico de Nietzsche é aplicar um duro golpe nos
valores dominantes na sociedade moderna, que transformou o homem em um ser dócil,
um animal domesticado, um cordeiro dominado pelo medo. A ética hedonista de
Onfray, situando-se nesta perspectiva, investe numa postura guerreira diante da vida. O
49
hedonista, segundo o autor, quer colocar-se no mundo através da defesa uma moral
aristocrática, como atitude afirmativa - um sim à vida -, positiva - aceitação de sua
condição de bom - e livre, sobrepondo-se com isso à moral cristã.
Ainda segundo Nietzsche (2004), para o cristianismo o bem é
simbolizado na figura do homem dócil, resignado, que aceita sua condição serviu, pois
a ele é reservado o Reino dos Céus. Portanto, quanto mais humilde e dominado for,
maior será sua chance de num além-mundo ser recompensado. A moral do escravo
atrela o homem a um conjunto de valores estáticos, imutáveis e metafísicos, onde o
bem e o mal são dados como condição transcendental. Nietzsche mostra, por exemplo,
como atrás da "vontade boa" e dos princípios morais racionais agem de fato motivações
inconscientes e a vontade de poder, assim como o ressentimento resultante da
frustração da vontade de poder e que alimentaria o domínio das religiões sobre os
indivíduos.
A partir daí, a vontade de potência torna-se vontade de nada e a vida
transforma-se em fraqueza e mutilação, triunfando o negativo e a reação contra a ão.
Quando esse niilismo triunfa, diz Nietzsche, a vontade de potência deixa de querer
significar "criar" para querer dizer "dominar"; esta é a maneira como o escravo a
concebe. Por outro lado, é considerado mal aquele que não aceita esta condição,
reagindo e transformando sua vida na construção de seus caminhos. Nietzsche defende
a moral do senhor contra a moral do escravo, valorizando a moral aristocrática, visto
naquele que enfrenta suas lutas e aceita sua condição trágica de vida, como condição
imanente. A moral do senhor ou também chamada moral sadia, natural, regida pelos
instintos da vida, é propriamente uma ética.
O triunfo do niilismo é esboçado através dos três elementos principais,
como foi dito anteriormente: o ressentimento, a má-consciência e o ideal ascético. O
50
ressentimento é o predomínio das forças reativas sobre as forças ativas, que prende o
ressentido no sentimento de vingança por outro, que supõe ser o responsável por seu
estado de sofrimento e angústia. A má-consciência, também chamado de
sentimento de culpa, segundo a interpretação de Nietzsche, tem duas origens. A
primeira é a transformação do tipo ativo em culpado, oriundo do surgimento do Estado,
que abateu o instinto de liberdade do homem nômade, submetendo-o a sua consciência.
Com isso, sua potência inverteu-se contra si próprio, através da criação de uma
interiorização que, impossibilitada de expandir-se por conta de repressão social, volta-
se contra si gerando a culpa. A segunda origem da má-consciência decorre da
transformação do ressentido em culpado, produzida pelo padre ascético. Sua ira contra
quem supostamente lhe produziu o sofrimento é então, descarregado sobre si próprio. A
má-consciência torna assim, o ressentimento voltado contra si mesmo. O ideal ascético
é a tentativa de estabelecer uma outra possibilidade de vida, num além-mundo
idealizado e mistificado, pois esta vida é um erro e por isso deve ser negada. Este
mundo localizado num além, no supra-sensível, será a principal aposta da moral cristã
para criar a abstração do paraíso e levar o homem a distanciar-se da realidade. O triunfo
do niilismo representa a vitória da renúncia da vida sobre a própria vontade de potência.
É a expressão mais clara da vontade de nada, pois ela não afirma, apenas nega,
propiciando a vitória das forças reativas.
Michel Onfray acredita ser possível através de seu materialismo
hedonista, estabelecer um combate ao niilismo, regatando pra isso em Nietzsche a
necessidade de encarar a vida de forma positiva e corajosa. A vivência da ética
hedonista como postura guerreira diante da vida é a aposta para um enfrentamento com
o real tal como ele se apresenta, sem mistificá-lo e sem alienar-se com qualquer ilusão.
Isto se dá, segundo o autor (1995), aceitando a noção nietzschiana de sabedoria trágica:
51
“A ‘sabedoria trágica’ consiste em conservar continuamente presente no espírito esta
idéia de que se constrói sua própria singularidade sobre os abismos, entre blocos de
miséria lançados com toda a força dentro do nada.(...) O hedonista conhece o real
composto e fabrica arbitrariamente, artificialmente como uma coerência: pois o caos, a
desordem e o fragmento são a lei”. (p.33). Michel Onfray, seguindo esta perspectiva
nietzschiana por ultrapassar o niilismo, busca investir numa postura que se dê na
qualidade do que é imanente e constituída de uma ética hedonista, capaz de construir
esta postura combativa diante da vida. Seu materialismo hedonista representa a defesa
da imagem do guerreiro, guiado pela vontade de criar sua existência trágica e livre. Sua
atitude libertária o levará a criar seus caminhos sem que necessite hierarquizar sua
vontade sobre qualquer outro, assim como não aceitará ser subalternizado. O
materialismo hedonista, segundo Onfray, é antes de mais nada uma aposta numa ética
de luta e libertária:
“O hedonista dirá Sim à vida, ao júbilo, ao
gozo, ao prazer, à felicidade, à alegria, à
satisfação, ao agradável. Depois dirá Não a
tudo o que entrave sua positividade escolhida.
Não ao sofrimento, à dor, à renúncia, à
frustração, ao desagradável. A linha reta será o
caminho que leva aos meios de realizar a
afirmação: a energia, a tensão, a força, a
vontade, em suma, o consentimento à vida e à
saúde que percorre o corpo”. (ONFRAY,
1999. p. 240).
Preocupado em seguir seu próprio destino, o hedonista criará suas rotas,
por vezes solitárias, por vezes compartilhadas junto a outros. No entanto, sua atenção está
dirigida a estabelecer espaços libertários, capazes de criar relações horizontais e baseadas
em valores que estejam distantes da moral do cristianismo. Radicalmente ateu, inscreve-
se no real diante de si, negando qualquer forma de transcendência. Também materialista,
o que lhe vale é a matéria percorrida por fluxos de energias e forças. Seu desígnio é
52
confrontar-se com o que diminui sua potência e tenta enfraquecer sua luta, para enfim,
encontrar seu caminho.
1.11- A crítica de Michel Onfray às religiões
Michel Onfray através de sua proposta de uma teoria libertária tem
interessado-se tanto pela defesa do materialismo hedonista como por uma crítica aos
valores morais presentes nas religiões que, segundo ele, são os principais responsáveis
pelo limite ao prazer e à liberdade. O autor concentra suas críticas ao cristianismo, no
entanto amplia sua denúncia para as outras religiões monoteístas. Em sua crítica
anticlerical, para Onfray:
“A proposta religiosa monoteísta para a
questão do prazer não está com punhos de
renda e delicadeza: que se organize o
holocausto do que está vivo e que triunfe o
reino da morte. A filosofia cristã, para o
Ocidente, encarrega-se da tarefa e vai
administrar esta vasta operação ontológica de
destruição do prazer. Decorre daí a elaboração
de uma visão de mundo idealista, espiritualista,
integralmente construída sobre o desprezo da
vida. A genealogia judaico-cristã do Mal,
grande supervisor do real na sua totalidade,
está expressa no Livro do Gênesis, o livro das
bases, de todas as bases”. (ONFRAY, 2001. p.
88).
Segundo Michel Onfray, o discurso apaziguador e dócil do cristianismo,
esconde o verdadeiro objetivo de sua moral: a restrição à liberdade e à vivência do
prazer através da noção de que ao sacrificar-se o devoto recebe a purificação e seu
passe para a eternidade. É assim que as religiões sustentam a idéia do corpo como o
locus do pecado, e passam a partir daí a criar uma mistificação sobre o desejo, a
sexualidade, os homossexuais, as mulheres e o livre pensamento. A carne é sempre
53
vista como culpada, desde o fruto proibido: o erro original é a causa da sujeição da
matéria corporal ao mal. Esta noção implantada pelas religiões divide de um lado o
celeste, o divino e a alma como perfeição; e do outro, o terrestre, o humano e a carne
como o erro. Dentro da moral cristã toda materialidade deve ser combatida, pois é vista
como secundária, senão como impura. Segundo Onfray (2000), “Daí decorre o cortejo
das maldições lançadas pelas religiões e sob a influência das quais a maior parte das
pessoas vive ainda hoje o cotidiano de seus corpos: com culpabilidade, temores, medo,
angústia, revolta contra si próprio, sentido de pecado e desvalorização da carne, que
passa a ser considerada a principal indutora de coisas negativas”. (p. 85).
A maldição da religião, como demonstra Onfray (2005), presente em todas
as doutrinas religiosas e que ainda hoje influencia muitas vidas é uma das principais
formas de incriminar o prazer do corpo. O medo do Deus violento, onipotente e
onipresente, que pune e tudo vê, impregna e põe o medo e a culpa do pecado. Nesta
perspectiva, é preciso combater o desejo, as paixões, a sexualidade. Quanto maior o
esforço, mais chances terá o devoto de purificar seu espírito, e consequentemente, mais
provável sua aceitação no Reino dos Céus. Para Onfray (2000), “Quem se entrega às
delícias de um corpo feito de matéria, percorrido por desejos e atravessado por prazeres,
está a comprometer a sua vida e também a sua salvação e a sua vida eterna” (p. 48).
Assim, as doutrinas religiosas, em seu interior e como condição de sua própria existência,
criam a submissão ao Deus poderoso. Este divino - que de forma paradoxal - apresenta-se
bondoso por um lado e ao mesmo tempo aplicador de castigos do outro, induz à
obediência, à submissão e ao abandono dos prazeres do corpo. O além-mundo paraíso
tão fantasioso e distante quanto idealizado - passa a ser dessa forma a premiação àqueles
que sacrificarem-se e submeterem-se aos dogmas religiosos e seus interesses.
54
Onfray, seguindo o caminho aberto por Nietzsche, busca combater este
dualismo que durante séculos impregnou a filosofia e é a base das doutrinas religiosas.
Na defesa de seu materialismo hedonista, Onfray parte para a eleição do prazer como
ética de vida. O materialismo hedonista está, assim, presente nos seus principais livros,
inclusive em seu “Traité d'athéologie” (2005), onde propõe que o mundo vive hoje uma
impregnação do sagrado e do religioso. Em seu Tratado de Ateologia, inédito no Brasil,
ele denuncia o papel devastador das religiões na história da humanidade. "Olhar a
história é suficiente para constatar a miséria e os rios de sangue que correram em nome
do Deus único", escreve Onfray. Ele continua em suas críticas às religiões ao denunciar
a criação de Jesus Cristo que segundo ele é uma bula criada por alguns judeus
autores dos Evangelhos - Paulo de Tarso, Moisés e Maomé - com um texto ácido que
pode ser resumido na expressão "nem Bíblia, nem Alcorão". Os principais personagens
das práticas religiosas identificados por ele como padres, freiras, rabinos e pastores são
denunciados como autoritários, conservadores, retrógrados e responsáveis por
perseguições, guerras e massacres de toda espécie. A esses personagens religiosos,
Michel Onfray contrapõe a figura do filósofo, que procura encarar através do
conhecimento a realidade da vida e o temor da morte.
Defendendo um ateísmo combativo, Onfray coloca que o materialismo
hedonista encontra na postura individualista um caminho singular que se mostre como
uma opção a qualquer forma de rebanho. Assim, o hedonista busca escapar dos laços
sociais e religiosos que prendem e limitam a sua autonomia, criando com isso, uma
conduta baseada na elaboração de ética individualista. Onfray (1995), ao referir-se ao
hedonista, diz que “(...) que toda religião se define como ligação, ele decidiu ser
radicalmente ateu ao recusar-se cristalizar seu querer em formas com as quais se
constitui o social: a Família, a Pátria, o Espírito de Casta, o Social lhe causam
55
repugnância por sua voracidade e sua antropofagia” (p. 44). O percurso realizado por
Michel Onfray em seu materialismo hedonista busca estabelecer-se em direção ao júbilo
e ao enfrentamento contra o ideal ascético e contra os laços que a religião propõe.
Segundo Onfray (2005), atualmente estamos assistindo uma forte
retomada do sagrado e do religioso pelo mundo afora. As seitas fundamentalistas do
islã, a recente midiatização da morte do Papa João Paulo II e a popularização crescente
das igrejas evangélicas são alguns exemplos do que parecem ser fenômenos que
acontecem em vários pontos do planeta, numa crescente retomada do mágico e do
transcendental. Para o autor, este fenômeno está ligado ao desaparecimento das lutas
ideológicas, após o fracasso do marxismo como contraponto ao capitalismo, que tornou-
se hegemônico em sua atual vertente globalizada. Michel Onfray, reafirmando suas
críticas anticlericais, busca resumir assim suas conclusões sobre este movimento de
retomada das religiões na atualidade:
“O desaparecimento do marxismo como
ideologia que poderia resolver todos os
problemas deixou um grande vazio. Ninguém
mais acredita nas soluções políticas. O
liberalismo que tomou conta do planeta e gera
uma pobreza crescente dos mais pobres, ao
mesmo tempo em que gera o enriquecimento
permanente dos mais ricos, produz angústia,
medo, temor, sofrimentos e dores aqui na
Terra. Temos o ressurgimento da ilusão que
traz reconforto de um outro mundo que seria o
oposto deste aqui debaixo: um mundo de paz,
de serenidade, de alegria, de abundância, de
amor entre os homens. A religião é uma ilusão
que distancia as pessoas do único mundo que
existe, o aqui e agora. Ela é um auxiliar dos
poderes estabelecidos”.
24
24
Entrevista concedida à Revista “Carta Capital”, edição número 348, publicada em Junho de 2005, em
São Paulo, por ocasião do lançamento de seu livro “Traité d'athéologie” (2005) na França. O livro se
tornou best-seller em seu país e em outros países europeus e tem os direitos autorais adquiridos pela
Ed.Martins Fontes para uma possível publicação no Brasil.
56
O que interessa ao filósofo francês é ao mesmo tempo entender o avanço
das religiões após a derrocada do marxismo e as implicações que esta retomada das
doutrinas religiosas pode produzir em termos de limitações à liberdade dos indivíduos e
ao prazer do corpo. O ressurgimento dos movimentos religiosos que vem acontecendo
no mundo parece reforçar a tese de que o niilismo contemporâneo está mais vivo do que
nunca. Neste sentido, Onfray denuncia o efeito limitador e alienante das religiões
monoteístas e sua implicação na proibição do prazer como ética de vida. O materialismo
hedonista coloca-se assim, para o autor, claramente crítico em relação às doutrinas
religiosas e fará de seu exercício prático, uma possibilidade de confrontar-se a tais
doutrinas.
Neste sentido, Michel Onfray atribui ao medo da morte, à angústia diante
do sentimento de finitude e à incapacidade de muitos seres humanos de conviverem
com as dificuldades da vida de maneira corajosa, como a principal fonte da compaixão
religiosa. Em contrapartida, o autor propõe o ateísmo como uma perspectiva lúcida
diante das coisas, a forma mais racional e clara de encarar a realidade em sua crueza e
eventualmente em sua beleza. Para Michel Onfray, os preceitos das religiões
monoteístas em particular são direcionados para eliminar tudo o que resiste à sua
supremacia, isto é, a razão, o espírito crítico, a liberdade, o prazer, a autonomia, e a
felicidade. Ao mesmo tempo, as religiões valorizam a crença ingênua em seus dogmas,
que segundo ele, levam a submissão à autoridade e ao conformismo, a uma ordem
opressiva e de sofrimentos com discursos de predestinação e promessas de recompensa
aos mais obedientes num incerto e imprevisto paraíso localizado num além-túmulo. Em
oposição ao que considera uma alienação, o filósofo propõe que ao ateu positivo e
militante cabe confirmar e amplificar uma denúncia feita séculos atrás em um outro
57
tratado anti-religioso, polêmico em sua época: Tratado dos Três Impostores
25
, no qual
Moisés, Jesus Cristo e Maomé são retratados como os três maiores impostores da
história da humanidade. Seguindo esta perspectiva, Michel Onfray, acredita que a
humanidade perdeu muito tempo e pagou um alto preço por ter levado a sério as
doutrinas destes três homens que ficaram na história como salvadores.
Como temos mostrando até aqui e seguindo a interpretação de Michel
Onfray, a cisão deste dualismo dar-se-ia quando do estabelecimento do platonismo e,
mais decisivamente, do cristianismo no Ocidente, no qual o poder intelectual fica
inequivocamente do lado dos idealistas em favor dos materialistas. Mas, o que pretende
Onfray com uma filosofia materialista? Precisamente, uma forma de pensar e viver
visceralmente hedonista, uma teoria de produção de uma vida filosófica, uma filosofia
da arte de viver, de bem viver, de viver melhor. Por isto, o autor apoiou-se em sua
interpretação singular nos cínicos antigos, nos epicuristas, nos gnósticos, nos libertinos
barrocos, nos nietzschianos de esquerda, entre tantos outros.
Sua ousada tentativa, portanto, busca uma inversão que se quer luminosa
e esplendorosa, do platonismo no pensamento e do cristianismo na moral, portanto, na
vida ocidental. Nietzsche tinha definido esta intenção em toda a sua obra; Deleuze
radicalizou o projeto e Onfray segue esta linhagem intelectual.
25
Atribuído a Espinosa, este texto, recentemente redescoberto e publicado na França, é provavelmente
um dos textos mais polêmicos que alguma vez se escreveu sobre religião. Daí ter sido banido e ocultado
durante séculos. Centrando-se nas figuras de Moisés, Jesus e Maomé, o autor anônimo põe em dúvida os
mitos milenares da religião, da e do misticismo, desmistificando os enganos que lhe estão subjacentes.
Michel Onfray recorre a este texto ácido e defende seu ateísmo militante contra a noção de que as
religiões produzem o principal entrave à liberdade.
58
Parte II
Por um Materialismo Hedonista
“Sê o mestre e o escultor de ti mesmo”
Nietzsche, em A Vontade de Potência.
2.1- Sobre o autor
alguns anos, Michel Onfray apareceu na cena intelectual da França
como um nietzschiano iconoclasta, defensor de um hedonismo atualizado ao tempo
presente. Hoje, Onfray é doutor em Filosofia e um dos ensaístas mais populares e
prestigiados de seu país. Pouco a pouco suas obras estão sendo traduzidas para outros
idiomas e espalhado-se por vários países do mundo.
Nascido em Argentan, na França em 1959, lecionou por vinte anos em
um liceu para secundaristas até criar a Universidade Popular de Caen em 2002, no norte
do país, onde ministra aulas diárias e gratuitas de filosofia, política, psicanálise e artes
junto a outros filósofos para um público eclético. As aulas são gravadas e difundidas
pela rádio pública France Culture e tornaram-se sucesso de audiência. É considerado
por alguns leitores o sucessor de Michel Foucault (1926-1984), especialmente por ter
popularizado suas idéias, assim como as de Gilles Deleuze (1925-1995). Onfray tem se
tornado um autor conhecido per defender um materialismo hedonista, onde propõe o
direito do ser humano ao prazer
26
. No entanto, suas publicações também abordam temas
26
No livro “O Prazer e o Mal: Filosofia da Droga”, a italiana Giulia Sissa, recoloca a questão da relação
entre o prazer e a droga. Recorrendo a exemplos de autores como Baudelaire e Thomas De Quincey, a
fenomenologia da experiência dos drogados se em torno da busca do prazer. A autora encaminha o
debate a partir da noção psicanalítica de desejo. E para ela, o desejo não tem fim. A insaciabilidade do
prazer, que se manifesta na vida erótica, acaba servindo de modelo para a busca xica da realização.
Torna-se assim, um saco sem fundo “desejante”, e o drogado acaba por perfazer o cruel caminho
59
como a política, a gastronomia, a atualidade, a história da filosofia, a pedagogia
libertária e a estética, além de editar um jornal hedonista. A julgar pelas declarações de
Onfray, a sua proposta filosófica se quer inserida no cotidiano, articulada a
experimentacão com o real.
Seu materialismo hedonista está inspirado como vimos em filósofos
desde Aristipo de Cirene até o Marquês de Sade, entre outros. Situando-se no campo da
moral
27
, sua teoria hedonista também nos vela a pensar numa estética generalizada,
inspirada em Marcel Duchamp, que permita incluir a ética na estética. Os seus debates
buscam incluir questões: como se fabricar uma subjetividade pós-moderna? Que ética é
possível para pensar o tempo presente? Como superar o cristianismo e voltar a situar o
corpo no centro da intersubjetividade?
Ao definir-se como um “nietzschiano de esquerda”, Michel Onfray
inspira-se em Georges Palante
28
, um dos primeiros leitores de Nietzsche na França que
assumiu uma posição de esquerda. Palante demonstrou como se pode ser nietzschiano e
ser de esquerda, assumindo e difundindo esta postura. Ele é um dos primeiros a fazer
qualitativo que retira do prazer da droga todo do positivo de satisfação para gerar a completude pelo
avesso: droga-se para evitar a evidencia do vazio. Sobre esta questão, Onfray parece defender o
hedonismo não como algo banalizado ou mesmo aderido a uma idéia totalizante de prazer. Mas à uma
aritmética pessoal e à uma complexidade de arranjos de interesses possíveis diante da realidade,
valorizando inclusive o acordo com o outro.
27
Segundo Monique Canto-Sperber, no livro “A inquietude Moral e a Vida Humana” (2005), alguns
filósofos da atual cena contemporânea francesa, inclusive Michel Onfray, quando defendem uma “ética
válida” em seus estudos, não conseguem estabelecer uma conexão profunda com o que a autora define
como uma filosofia moral. Para Monique Canto, a filosofia moral, neste caso, não tem sido
suficientemente valorizada como disciplina filosófica. Para ela: “Por que não se considera, como se faria
em qualquer outra disciplina, que a ética representa um corpo de saber, uma rede de conceitos, uma
atitude constituída que persiste no que ela é, apesar dos desvios de sentido e dos absurdos de que é vítima,
e sobre a qual não se pode declarar arbitrariamente que é esta ou aquela?” (p. 25).
28
George Palante foi um individualista do início do séc. XX, que desenvolveu uma das filosofias mais
anti-conformistas que se conhece. A sua obra não admite compromisso algum; constitui de fato um
verdadeiro guia prático para o uso de seres livres que não queiram nunca deixar de o ser. Para ele, o
confronto entre o singular e o rebanho, entre o indivíduo e a sociedade é inevitável, mesmo quando o
resultado se mostra fatal para a originalidade sob qualquer forma que ela se possa apresentar. O indivíduo
livre não tem outra escolha senão a revolta, desesperada se necessário for. Este incorrigível pessimista faz
a apologia do libertário integral, uma espécie de super-homem nietzschiano esfolado vivo e sedento de
relações afinitárias. Foi professor do Lye de Saint-Brieuc, tendo encarnado o ideal do aristocrata
libertário. Palante, George “L’individualisme aristocratique”, éditions des Belles Lettres. Palante,
George “Combat pour l’individu”, éditions Folle Avoine, 1989 - Rémy de Gourmont, “Epilogues II”.
60
esta união singular entre Nietzsche e a esquerda, ainda na França pré-Segunda Guerra
Mundial. Depois de Palante vieram Roger Caillois e Georges Bataille, e por fim
Foucault e Deleuze: três gerações que, segundo Onfray, leram Nietzsche a partir de uma
postura de esquerda.
Influenciado também por pensadores libertários como Gustave Blanqui
(anarquista francês do culo XIX), Michel Onfray indaga como se pode ser anarquista
hoje em dia: longe das máquinas revolucionárias, como os partidos socialistas, por
exemplo, que aspiravam à derrocada do Estado e a criação de uma sociedade ideal. Em
“Política do Rebelde” (2001), Onfray interroga-se sobre isso, quando pensa neste fim de
milênio e início de um novo, sobre o anarquismo e uma “filosofia libertária, levando em
consideração duas guerras mundiais, o holocausto de milhões de judeus, os campos de
concentração do marxismo-leninismo, as metamorfoses do capitalismo entre o
liberalismo desgrenhado dos anos 70 e a globalização doas anos 90 e, principalmente o
pós-Maio de 68”. (p.14). Segundo o autor, para pensar o anarquismo hoje é preciso
atuar aqui e agora, libertariamente, na relação consigo mesmo, com os demais e com o
mundo. Assim, conclui que (2001) “o hedonismo está para a moral assim como o
anarquismo está para a política: uma opção vital, exigida por um corpo que se recorda”.
(p.14). Esta noção de vida libertária que o autor defende é a proposta de um anarquismo
visceral, cotidiano e que se na esfera da micro-sociedade, procurando combater as
hierarquias que se estabeleçam enquanto jogos de poder nas relações humanas.
A trajetória intelectual de Michel Onfray mistura-se com sua história
pessoal. Os primeiros anos de vida próximos à fábrica; a morada no pensionato; o
encontro com o anarquismo; a curta e angustiante vida de proletário; a demissão
marcante do emprego fabril e o contato com as obras de Marx e Nietzsche foram
algumas das passagens em sua história que tornaram-se determinantes para seu
61
pensamento. Estudou letras, depois filosofia e com pouco mais de dezoito anos, Onfray
entra contato com a obra de Marx e o conseqüente desencanto com o que observava das
experiências soviéticas. Ao fascínio com o pensamento de Nietzsche, juntaram-se as
obras de anarquistas como Max Stirner e seu individualismo radical, Mikhail Bakunin,
Jean Grave, Pierre-Joseph Proudhon e Gustave Blanqui, pensadores libertários cujas
obras o faziam ver proximidades maiores que incongruências com a obra nietzschiana.
Estes fatos parecem marcar profundamente seu pensamento. É assim que Michel Onfray
nos mostra (2001): “Eu não imagino uma filosofia sem o romance autobiográfico que a
torna possível”. (p. 15). Assim, esta é uma preocupação do autor: estabelecer uma
relação direta entre seu pensamento e uma militância prática na forma de fazer filosofia
e política. Onfray vive de seus direitos autorais, não mantém nenhum cargo público,
seja em universidades ou qualquer outra instituição. Com estes recursos mantém sua
experiência em pedagogia libertária, colocando-se de da maneira autônoma e
independente em sua ação.
Atualmente na Universidade Popular de Caen, além das aulas e
seminários que organiza, Michel Onfray dedica-se ao mais amplo e ousado projeto de
sua carreira: percorrer a história da filosofia e buscar figuras que foram “esquecidas” na
história oficial. Com a intenção de criar uma Contra-História da Filosofia, Onfray opõe-
se a uma filosofia idealista, espiritualista, ascética, em favor de uma filosofia
materialista, sensualista, utilitarista, pragmática, ateia e corporal. Michel Onfray traça
uma galeria de retratos intelectuais, na qual são referidos, para além de Demócrito;
Diógenes, o cínico e Lucrécio; filósofos frequentemente marginalizados. Sua filiação ao
pensamento filosófico segue uma forma múltipla, numa alusão à Deusa grega Métis,
que deu origem a um modo do saber que é conjuntural, nascido do encontro de
circunstâncias. Esse saber é por definição instável e múltiplo, que se fabrica ou se
62
inventa, em um tempo instantâneo, embora referido a uma infinitude. Dessa forma,
Onfray vai confeccionando seu pensamento na união de personagens variados,
procurando uni-los num saber coerente com sua proposta libertária e hedonista. Esta
trajetória que o autor estabelece na elaboração do materialismo hedonista faz com que
ele se contraponha abertamente ao ideal ascético e ao platonismo.
O pensamento de Michel Onfray não pode ser tomado como uma obra
acabada, um sistema filosófico, pois ainda encontra-se em construção. Talvez por isto,
seja possível observar pontos em que o materialismo hedonista não se sustente,
deixando lacunas a serem preenchidas com o próprio desenvolvimento de sua obra. O
propósito desta Dissertação é analisar de fora abrangente seu materialismo hedonista,
estando certo, no entanto, desta realidade quanto a construção de seu pensamento ainda
em andamento.
2.2- Do materialismo
Em praticamente toda sua obra, Michel Onfray se volta para o tema do
materialismo hedonista. Pretendo apresentar as características centrais do seu
pensamento a partir da leitura e análise crítica de seus textos. Na Primeira Parte deste
trabalho, oferecemos as fontes do hedonismo por onde Onfray baseou-se, assim como a
crítica que o autor estabelece ao abandono do corpo e do prazer ao longo da história da
filosofia e que foi adotado e radicalizado pela moral cristã. Como temos mostrado, a
partir da interpretação do autor, a metafísica que vem da tradição platônica, absorvida
nas religiões, especialmente no cristianismo, criou uma linha divisória que parte ao
meio o mundo das idéias em idealistas e materialistas; em espiritualistas ocupados com
o céu das idéias e realistas ocupados com a vida terrena. Para Onfray, as morais do ideal
ascético acabam por reduzir a importância do desejo e o prazer, quando não abatê-los.
63
Por outro lado, em seus estudos, Michel Onfray defende que a moral materialista e
hedonista torne-se a defesa do prazer e do resgate do corpo.
O projeto de Onfray defende um materialismo hedonista atrelado à idéia
de “ver” o visível, o constatável em uma imanência corporal, recusando-se ao
imaginário das religiões e dos idealistas. O materialismo nega tudo que não é matéria,
interessando-se apenas por combinações que não deixem espaços para as situações que
fujam do real. Onfray busca as idéias centrais de seu materialismo hedonista nesta
perspectiva do real, onde tem o corpo como referência permanente para o entendimento
desta realidade. O autor encontra desta forma elementos no materialismo que possam
compor seu projeto (2001): “Em ambos os registros, que têm variantes múltiplas, e
exceto aquele momento sinistro em que o materialismo foi confiscado pela dialética e a
História, gosto que se possam vislumbrar versões atomistas, antigas, racionais,
energéticas, sensualistas, dionisíacas, neuronais ou mágicas para pensar o materialismo
hedonista”. (p. 54).
O materialismo surgiu entre os pré-socráticos
29
, especialmente com
Leucipo e Demócrito entre os séculos VI e V a.C., desenvolvido por Epicuro durante o
Helenismo e, posteriormente, por Lucrécio, com “Da Natureza”. Durante o período
medieval, foi duramente combatido, que através da hegemonia do pensamento cristão, o
transformou em saber secundário. Foi regatado pelos libertinos no Renascimento,
período da civilização européia que se deu entre 1300 e 1650.
Num sentido amplo, o
Renascimento pode ser entendido como a valorização do homem - no sentido do
29
Para Châtelet (1973), Leucipo e seu discípulo Demócrito foram os responsáveis pela criação deste
sistema novo que foi o atomismo, fundamental para o materilaismo. O projeto central da “escola de
Abdera” acredita na unidade do átomo como algo imutável, não-gerado e imperecível, pleno, homogêneo.
Eles são infinitos em número e configuração. Esta vasta e vigorosa doutrina que se constituiu como
atomismo, não apenas resolve alguns problemas com seu espírito de rigor, mas também levantam outros.
A vontade de não confundir o uno e o múltiplo obrigava o atomismo a renunciar à noção de síntese, assim
como não podiam validar a existência de ser perecível algum, como a alma.
64
Humanismo - e da natureza, em oposição ao divino e ao sobrenatural, conceitos que
haviam impregnado a cultura da Idade Média, o que favoreceu bastante o resgate do
materialismo. Depois disso, foi revigorado pelos filósofos das Luzes, no final do
século XVII, quando teve início o movimento intelectual denominado de iluminismo,
que só veio a realizar-se plenamente no século seguinte. O materialismo foi defendido e
levado ao extremo pelo Marquês de Sade. Tornado revolucionário pelo marxismo e
caricaturado pelos ideólogos do stalinismo, o materialismo ainda persiste como corrente
filosófica a despeito do desmantelamento e da derrocada do socialismo soviético. Como
concepção filosófica, o materialismo é entendido como um pensamento que defende a
matéria como substância primeira e última de qualquer ser, coisa ou fenômeno do
universo, assim como descarta qualquer dualismo em que o corpo esteja submetido à
alma
30
. Para os materialistas, a única realidade é a matéria em movimento, que por sua
riqueza e complexidade, pode compor tanto uma pedra quanto os reinos animal e
vegetal, assim como produzir efeitos como a luz, o som, a emoção e a consciência. O
materialismo contrapõe-se, neste sentido, ao idealismo defendido pelo platonismo, cujo
elemento primordial e central é a idéia, o pensamento ou o espírito desvinculado da
matéria. A tradição materialista na filosofia ocidental ganha força com Demócrito no
século V a.C., que afirmou que tudo que existe compõe-se de átomos, que são partículas
invisíveis de matéria e estão em constante movimento no espaço vazio. Estes átomos
associam-se ou separam-se de acordo com seu formato. Esta teoria ficou conhecida
30
Segundo Kirk, Raven e Schofield em “Os filósofos pré-socráticos” (1994), “A alma consiste em átomos
esféricos espelhados pelo corpo, e, muito provavelmente, o espírito era considerado como uma
concentração de átomos-alma. Assim, o pensamento é um processo análogo à sensação, e ocorre, quando
os átomos-alma ou os átomos-espíritos são postos em movimento pela colisão como átomos congruentes
vindo do exterior”. (p.453).
65
como atomismo
31
e procura explicar como as mudanças nas coisas ocorrem como
conseqüência de mudanças na configuração de átomos imutáveis.
Michel Onfray utiliza como ponto de partida para criar as bases de seu
projeto ético este que é considerado um dos primeiros materialistas entre os antigos e
um singular personagem pré-socrático. Como mostramos, a teoria atomista de
Demócrito defende a idéia de que os átomos são elementos indivisíveis e presentes em
tudo, inclusive na alma. Os átomos da alma se desintegrariam no momento da morte,
comprovando sua imortalidade. Há pouca coisa disponível sobre este atomista, sua fama
supostamente tenha sido bem menor que a de outros contemporâneos seus ou mesmo de
Epicuro, considerado outro um importante materialista. Para Onfray (2001), “o
materialismo é vítima do silêncio mais ou menos voluntariamente organizado pelas
autoridades que decidem quais são as obras a circular.” (p.55).
Demócrito o desejo e o prazer como uma energia vinda de um certo
tipo de agenciamento dos átomos, uma força derivada das formas particulares da
matéria. Para ele, não a possibilidade de um prazer que não passe pelo corpo, pela
matéria. Segundo Michel Onfray, Demócrito faz a aproximação entre desejo e prazer
para reduzi-los ao seu processo atômico:
“A matéria, em Demócrito, é apreendida em
sua dimensão energética, dinâmica e difusa.
31
O atomismo começou com Leucipo (sec.V a.C) e foi desenvolvido por seu discípulo Demócrito (460-
370 a.C). quem admita o atomismo como uma evolução das idéias de Parmênides sobre a unidade e
imutabilidade do ser: o atomismo representaria, em sua origem, uma tentativa de reconciliamento entre a
tese de Parmênides e a observação da multiplicidade e transformação dos objetos naturais; os átomos
permaneceriam inalterados conquanto pudessem modificar suas maneiras em se associarem, em qualidade
ou quantidade. Em algumas de suas versões, o atomismo incorporou os quatro elementos básicos (fogo,
ar, água e terra) da doutrina de Empédocles (490-430 a.C) e, em outras, a idéia, devida a Anaxágoras
(500-428 a.C), de que existiriam tantos átomos diferentes quantas fossem as substâncias diferentes. Na
doutrina dos quatro elementos de Empédocles encontra-se também a proposição da existência de duas
forças de interação: "Amor", a unir os elementos, e "Conflito" a separá-los. A despeito de seu sucesso
inicial, o atomismo não ganhou maior destaque entre o pensamento grego; não obstante, deixou raízes, de
tal forma a se notar uma forte influência até mesmo entre os que o rejeitaram, tais como Platão e
Aristóteles. Assim, Michel Onfray em seu materialismo hedonista recorre aos atomistas como Demócrito
e Epicuro, por exemplo, para defender a importância da matéria e dos átomos em última instância.
66
As partículas são pensadas como estando em
movimento, e a matéria como um conjunto não
estável de moléculas incessantemente em
agitação, das quais algumas se desfazem do
objeto que elas mesmas emanam, continuando,
no entanto, a fazer parte dele embora
conhecendo uma nova modificação de
substância. Todos os materialistas se
lembrarão de tais lições, que reduzem o
universo a seus componentes materiais e
constituem partes desse grande todo, um puro
e simples produto das modificações diversas e
múltiplas partes que o compõem. (ONFRAY,
1999. p. 111).
É curiosa a proximidade que Onfray busca estabelecer entre materialismo
democritiano e o hedonismo. Sua tentativa é localizar no filósofo grego fragmentos que
sustentem a defesa do prazer como postura de vida, desde que não incomodem a
serenidade nem o equilíbrio. Esta aritmética hedonista busca estabelecer um arranjo,
onde os prazeres demasiados caros e complexos são substituídos pelos que venham a
não gerar desgostos ou frustrações. É assim que para Michel Onfray, o materialismo
hedonista visa o prazer e a volúpia, onde o agradável e o desagradável articulam-se em
função do útil ou do prejudicial. O desejo tem a ver com a necessidade material e
atômica e não pode ser visto como algo mal em si, pois ele está para além desta
consideração.
Onfray encontra em Demócrito aquilo que será a sua defesa por um
materialismo hedonista. Nesta conjugação de idéias sobre o materialismo, o desejo é
visto e entendido como algo que vai à direção da fisiologia e distancia-se da metafísica.
Esta noção sobre o funcionamento do desejo a partir de uma função fisiológica será
vantajosa para Onfray (1999), que visa distanciar-se de qualquer abstração ou idéia
sobre o prazer, como coloca: “digamos que importa o júbilo, o resto é livre de
interpretação e é questão de subjetividade. Corpo em movimento, carne percorrida por
67
energias agradáveis, desvencilhadas de tensões desagradáveis, órgãos suscitados pelo
que podem trazer de bem-estar, o hedonismo é uma filosofia da matéria corporal, uma
sabedoria do organismo.”(p. 239).
uma permanente busca para aproximar o materialismo da fisiologia
na da obra de Michel Onfray. O que pretende o autor é estabelecer uma tentativa de
valorizar o sensível, o corporal e a imanência em detrimento do espiritual, da
transcendência e da metafísica. Ao propor uma “filosofia do corpo”, o autor cria um
ponto de fuga ao idealismo, ao libertar a matéria das contínuas tentativas de
desqualificá-la. No topo da lista, Onfray coloca o cristianismo, que realizou um
contínuo combate ao prazer e ao corpo ao longo de sua história. Em “A Arte de Ter
Prazer” (1999), Onfray nos diz: “(...) quem se dedica ao ideal ascético é um indivíduo
contrário à natureza, preocupado em realizar o impossível e em consagrar suas forças a
anular a potência que nele na intenção doentia de fazer de seu corpo um objeto
desprezível e vergonhoso” (p. 164).
Ao materialismo de Demócrito, Onfray aproxima os cirenaicos aos
cínicos, que identificam juntos o desejo como transbordamento e excesso
32
, sem admitir
a culpa ou a carência. Esta noção de excesso transbordante é vista como importante
princípio do materialismo hedonista de Michel Onfray. Para ele, longe dos gastos que
estão associados ao negativo, os gastos em forma de júbilos, excessos que buscam a
positividade, a construção e a elaboração de vida. Segundo Onfray (2001), “o desejo
tem a ver com fluidos, forças, energias quantificáveis, mensuráveis, susceptíveis de
deixar traços que possam ser analisados pela observação, a circunspeção e o recurso a
uma matemática conceitual”.(p. 56). O transbordamento aqui é referido ao exercício do
32
Contra esta noção de desejo como transbordamento, Onfray diz que o platonismo, na cultura ocidental,
relacionou o desejo visto como carência. Em “Teoria do Corpo Amoroso” (2001), o autor afirma: “No
campo do amor e da relação sexuada, o Ocidente encontra as suas características definidoras nas teorias
platônicas do desejo como carência, do casal como forma de conseguir a plenitude, do dualismo e da
oposição moralista entre os dois tipos de amor”. (p.48).
68
prazer e a negação do sacrifício e da renúncia. Vemos isso na figura emblemática de
Diógenes masturbando-se em praça pública, inconformado em não conseguir saciar a
fome com a mesma praticidade que sacia o prazer. O propósito do qual defende Michel
Onfray em seu materialismo hedonista é de colocar-se contra o que julga ser a
hipocrisia, a moral moralista, a idéia do pecado e do medo que fazem do corpo e do
prazer algo que se deva ter aversão e horror. Por que culpabilizar o desejo e a
sensualidade, por exemplo, e não a fome e o descanso como denunciara Diógenes? São
todas elas sensações percorridas pela matéria, ou na linguagem dos atomistas, por
átomos que compõem esta matéria. São as morais ascéticas que transformaram o prazer
e o gozo em algo que se deva ter vergonha, em escondê-la pelo medo da crítica social.
Mas na verdade, são sensações fisiológicas que estão para além da classificação de bem
ou mal. Nas filosofias materialistas defendidas por Onfray, a fisiologia está a serviço da
liberdade. Esta noção de liberdade é entendida pelo autor, como a capacidade de
exercer a autonomia a partir das informações obtidas no contato com a realidade e das
impressões corporais advindas daí.
Procurando romper com a influência do pensamento dualista na cultura
ocidental, que segundo Onfray, hierarquiza a matéria à condição secundária, ele
reconhece o materialismo como condição primordial para basear seu projeto ético
hedonista. Segundo Onfray (2001), a matéria é a própria “instância” onde se origina e
se exerce o prazer, através inclusive dos cinco sentidos, que são resgatados a serviço do
combate ao abandono do corpo. Cheirar, tocar, provar o gosto de mais variados sabores,
enfim, utilizar os sentidos representa para Onfray o ponto de partida para sua proposta
de uma “filosofia do corpo”. Desejar, segundo o autor, deriva da necessidade de uma
dinâmica fisiológica, assim como de uma imanência corporal. Dessa forma, ele defende
seu materialismo hedonista inspirado, como vimos na primeira parte, em personagens
69
como Aristipo de Cirene, nos cínicos, em La Mettrie, no Marquês de Sade, entre outros
que elegeram o materialismo como condição primordial para pensar filosoficamente.
2.3- Em busca de uma figura
A estratégia utilizada por Michel Onfray para apresentar seu
materialismo hedonista se dará através da criação de seu personagem conceitual, o
Condottiere, que segundo o autor, é o emblema de um hedonista. Nos deteremos agora a
mostrar as virtudes que o autor reconhece neste personagem e os meios utilizados por
ele para pensar sua proposta filosófica. Apresentarei, pois, o materialismo hedonista a
partir do Condottiere descrito no livro “Escultura de Si” (1995). Esta figura, segundo o
autor, é o esboço de um autêntico libertário e que também sintetiza seu pensamento
materialista e hedonista. Esta noção de personagem conceitual é tomada de empréstimo
por Michel Onfray do livro “O que é a filosofia? (1997), de Gilles Deleuze e Félix
Guattari, onde os autores buscam definir a filosofia a partir da criação e fabricação de
conceitos. A filosofia possui assim uma atuação criadora de conceitos, colocando-se
claramente diante do mundo de forma ativa. Segundo eles, a criação de conceitos é
inevitavelmente uma intervenção no mundo, e como tal é a própria criação de um
mundo.
Nesta obra densa, os autores fazem a aproximação entre a filosofia e a
amizade, que nos remete à idéia de encontro com o saber. O amigo que cria esta
aproximação é o personagem conceitual, que contribui para a definição dos conceitos.
Assim, Deleuze e Guattari percebem o personagem do filósofo como alguém que está
sempre em busca da invenção dos conceitos, num incessante movimento criativo. O
filósofo é, então, o “amigo do conceito”, como mostram os autores:
70
“O filósofo é o amigo do conceito, ele é o
conceito em potência. Quer dizer que a
filosofia não é uma simples arte de formar, de
inventar ou de fabricar conceitos, pois os
conceitos não são necessariamente formas,
achados ou produtos. A filosofia, mais
rigorosamente, é a disciplina que consiste em
criar conceitos. Criar conceitos sempre novos é
o objetivo da filosofia. É porque o conceito
precisa ser criado que ele remete ao filósofo
como aquele que o tem em potência, ou que
tem sua potência e sua competência”.
(Deleuze, Guattari, 1997. p.13).
Através de uma peregrinação em busca desta figura, Onfray procura um
personagem que, segundo ele, estabeleça uma postura afirmativa diante da vida. Sua
investigação deságua em Veneza, cidade italiana conhecida por sua beleza, recortada
por canais e charme por todo lado. É que Onfray descobre a imagem esculpida por
Andrea del Verrochio
33
do Condottiere Bartolomeo Colleoni, que ganhou fama como
chefe mercenário de exércitos pagos para defender a cidade. No entanto, à partir de uma
perspectiva nietzschiana, Michel Onfray o como um soldado guerreiro, que enfrenta
de forma trágica suas batalhas de vida. Segundo o autor (1995), “o Condottiere é uma
figura de excelência, um emblema da Renascença que associa a calma e a força, a
quietude e a determinação, o temperamento artístico e a vontade de reinar sobre si
mesmo antes de qualquer outra forma de império”. (p. 19).
O Condottiere é um condutor de si mesmo, um artífice no processo de
conduzir-se. Sua ética situa-se também dentro de uma perspectiva estética, na medida
em que cria sua existência como obra de arte, inventando a vida de forma exuberante e
33
Escultor italiano, considerado um dos mais importantes do século XV, nascido por volta de 1435, com
o nome de Andrea del Michele di Cioni. Nascido em Florença, ourives e pintor que trabalhou na corte de
Lorenzo de Médici, ele é considerado o pintor mais influente de seu período. Dentre seus alunos inclui-se
Leonardo da Vinci e Sandro Botticelli mas também influenciou Michelangelo. Este fez trabalhos,
principalmente, em Veneza. Dentre as suas obras mais importantes, temos o retrato eqüestre do ‘’
Condottiero Bartolomeo Colleoni’’ (1479/1488).
71
eloqüente. Sem ocupar-se em conduzir ou ser conduzido, mas apenas a si próprio, ele
está mais interessado em estabelecer suas rotas, num constante processo de criação de
cartografias, onde o prazer é uma espécie de bússola, indicando traçados que estejam de
acordo com suas necessidades e interesses, de maneira autônoma e livre, assim como
desprovida de qualquer caráter normativo. Michel Onfray acredita que o hedonista
Condottiere procura estabelecer seus percursos livremente, não procurando criar
seguidores por seus caminhos, nem seguindo os de outros. Este procedimento, por sinal,
será um importante arranjo de forças na ética hedonista, procurando manter a liberdade
individual conjugada à relação com o outro, como diz Onfray:
“O Condottiere não inclui o outro no seu
projeto estético como um instrumento a
subjugar, a transformar em objeto, um escravo
potencial que se possa enganar, morder, como
uma raposa o faria, despedaçar como agiria o
leão, observar como os olhos de lince de
afogá-lo dentro de uma tinta que turva. A
preocupação virtuose supõe o patos da
distância, a vontade de se construir sozinho,
como diante do espelho, no projeto único de
fazer advir em si a bela forma com a qual se
possa se satisfazer”. (ONFRAY, 1995. p. 39).
Será através desta noção de criação de caminhos, que Onfray defende o
materialismo hedonista e seu interesse pelo que se estabeleça no concreto e na prática,
onde as experiências, geradas pelas emoções e pela própria existência, possibilitem o
encontro com sua virtuosidade. A virtude do Condottiere será marcada assim pela
desobediência contra a servidão e pelo ateísmo contra o ideal ascético. Ela dirige-se aos
instantes de júbilo e servirá como postura guerreira diante da vida. Os caminhos por
onde o Condottiere irá traçar sua existência, estará baseado na busca da elegância que se
constrói de forma artística, através de um modelo estético que se estabeleça pelo
afirmativo e pelo poético, pela luta e pelo enfrentamento. Se referindo ao Condottiere,
72
Onfray (1995) afirma: “ele faz virtudes maiores do inatural ou do intempestivo. A
História é para ele um reservatório produtor de afinidades eletivas, fora das quais ele
prefere a solidão”.(p. 51).
Esta postura rebelde e insubmissa que Michel Onfray localiza na figura
do Condottiere, segue uma perspectiva resgatada por ele na ética cínica. O autor
identifica seu personagem com Diógenes e seu temperamento para o desprezo das
convenções sociais estabelecidas como verdades. No entanto, como mostra Onfray, o
que lhe interessa é um cinismo ao estilo dos antigos, pouco observado nos dias de hoje.
O pensamento cínico será assim utilizado e interpretado por Michel Onfray de maneira
singular, que afirma:
“O cinismo antigo nunca deixou de ser um
antídoto contra a proliferação do cinismo
vulgar aqueles dos hipócritas, dos velhacos,
dos vendedores de mundos ocultos e dos
promotores do ideal ascético. Cínicos
devotados às instituições, às academias e às
instâncias do poder coletivo contra diogianos
guerreando pela liberdade individual e pelo
soberano prazer de desagradar, tão caro aos
dândis: a alternativa perdura. (...) Assim
vemos, em uma mesma exigência de estilo e
de virtude, os cínicos antigos e os Condottieri
da Renascença vaiaram os hipócritas, os
velhacos, os covardes, os impostores, os
bajuladores e os outros animais da corte. O
que sempre foi um bocado de gente”.
(ONFRAY, 1995. p. 27).
A filosofia cínica está presente desta forma na atitude do Condottiere,
que herda desta corrente filosófica uma postura libertária e lúdica. Esta atitude será
entrelaçada com o dandismo de Baudelaire, o individualismo radical de Stirner, o
anárquico de Jünger, o libertino de Sade, entre outros, estabelecendo assim um
personagem como uma obra aberta, que o leva à contínua elaboração de uma bela
individualidade. Esta noção de obra aberta está ligada à idéia de transformar a própria
73
vida num grande ateliê. A construção da existência como obra aberta inclui a
possibilidade de nunca fechar-se num modelo, permanecendo em constante devir e em
contínua construção de sua própria obra.
Onfray quer pensar o seu Condottiere como um ser em permanente busca
por tornar-se um homem total, ao encontro da completude em si mesmo; daí a noção de
obra aberta utilizada pelo autor, que o em permanente construção, sem nunca chegar
a um ponto final. Em sua dimensão ética, almeja a energia em busca de aplicação, numa
tentativa estética de aproximação e equilíbrio entre a exuberância e a forma. Esta
dimensão artística que o autor pretende lançar sobre seu personagem conceitual,
pretende ir de encontro ao que declaravam os gregos: fazer de sua vida uma obra de
arte. Desta forma, Onfray aposta no desígnio do Condottiere nele mesmo, na elaboração
de sua vida como obra de arte, em exercício contínuo de sua afirmação diante do real e
na elaboração de sua estátua.
Para tanto, Michel Onfray resgata a sabedoria trágica, aquela que entende
que o caminho para construção da singularidade se faz ao enfrentar os abalos e os cimos
da existência. Esta noção de sabedoria trágica será utilizada por Michel Onfray a partir
da obra de Nietzsche, esboçada pela primeira vez em “O Nascimento da Tragédia”
(1993)
34
. Tal noção representa a forma como corajosamente enfrenta-se a vida, a
mesmo o sofrimento e tudo o que é adverso e questionável na existência, seus
problemas mais duros, as maiores dificuldades, para tornar-se o que se é. A sabedoria
trágica busca combater o idealismo, o cristianismo e o moralismo, que se colocam
34
Esta obra de Nietzsche, “O Nascimento da Tragédia”, expõe o conflito entre dois universos artísticos
representados pelos deuses gregos Apolo e Dionísio. As forças artísticas apolíneas e dionisíacas irrompem
diretamente da natureza sem a mediação do homem artista e se realizam imediatamente em dois mundos
antagônicos, que, de um lado, é o mundo orico da beleza, da perfeição, o mundo ilusório e imagístico dos
sonhos; e do outro lado, o mundo da realidade inebriante oriunda do Uno-Primordial, a raiz metafísica de
toda a realidade e a fonte de todos os sofrimentos, ou seja, o mundo infinito e velado (indefinido no tempo e
espaço). o pulsões artísticas imediatas da natureza e que fazem do artista humano um "imitador". Foi o
primeiro livro de Nietzsche, publicado em 1872 e que causou polêmica por exaltar a ópera de Wagner
como renovadora do espírito alemão, numa singular mistura de reconstrução histórica, intuição
psicológica e militância estético-cultural.
74
contra a natureza humana, segundo Nietzsche, e que negam os instintos mais sadios e
inibem os sentimentos mais puros. Tudo que, em suma, adoece a humanidade e a leva,
inevitavelmente, ao niilismo. A sabedoria trágica acontece quando se enfrenta a
realidade como condição do imprevisível, pois esta nunca é nem será igual ao ideal, à
religião ou à moral, projetados por quem quer que seja. Onfray, utilizando esta noção
nietzschiana, elege a audácia que é expressa pelo Condottiere em confrontar-se com o
destino, infligir suas leis e desprezar a morte. Sua natureza individualista é também a
condição singular de sua atitude trágica diante da vida: o caos, a desordem e o estilhaço
tornam-se seu designo. O autor pretende investir claramente nesta postura ética através
de uma perspectiva individual e em pequenas esferas de sociedade. Parece pouco
provável pensar este projeto numa dimensão mais ampla da sociedade. O materialismo
hedonista de Onfray não debate claramente esta questão. O autor apresenta uma crítica
aos modelos sociais que são dados, deixando lacunas que não equacionam a relação
entre o indivíduo e a sociedade. Neste sentido, Michel Onfray apóia-se no pensamento
anarco-individualista do ideólogo libertário Max Stirner
35
, para buscar elementos que
possam servir ao seu projeto hedonista. Stirner é o principal representante do
pensamento libertário clássico no qual Onfray irá amparar-se na defesa do
35
Conhecido por defender o “individualismo radical”, Max Stirner acredita que esta idéia implica que “o
ser único” que realmente “é dono de si mesmo” não reconhece nenhum dever para com outros. Dentro
dos seus limites, ele faz o que é certo para com ele mesmo. A principal obra de Stirner, O único e sua
propriedade (2004), apareceu pela primeira vez em Leipzig em 1844. O desenvolvimento de sua filosofia,
no entanto, poderia ser relacionado a uma série de artigos que apareceram pouco antes desta obra central,
mais especificamente O falso princípio de nossa educação e Arte e religião. Em O único e sua
propriedade, Stirner faz uma crítica radicalmente anti-autoritária e individualista da sociedade prussiana
contemporânea bem como à tão citada modernidade da sociedade ocidental. Oferece ainda um vislumbre
da existência humana que descreve o ego como uma não-entidade criativa além da linguagem e da
realidade, ao contrário do que pregava boa parte da tradição filosófica ocidental. O livro proclama que
todas as religiões e ideologias se assentam em conceitos vazios, que, após solapados pelos interesses
pessoais dos indivíduos, revelam sua invalidade. O mesmo é válido às instituições sociais que sustentam
estes conceitos, seja o Estado, a legislação, Igreja, o sistema educacional, ou qualquer outra instituição
que assuma autoridade sobre o indivíduo.
75
individualismo praticado pelo Condottiere. Junto com Stirner, Michel Onfray elege uma
postura radicalmente libertária e individualista. Para o autor (1995), tal postura exprime-
se pela incapacidade visceral que o Condottiere demonstra em venerar antigos e novos
modelos como a Família, a Pátria ou mesmo a Liberdade, Igualdade e Fraternidade,
lemas ainda presentes no imaginário ético e político. O autor esforça-se em dar ao seu
personagem uma perspectiva libertária como podemos observar:
“Imanente, materialista e preocupado com o
mundo enquanto caos concreto e dinâmico, o
Condottiere não colocará nada mais alto do
que sua liberdade, sua capacidade de se
determinar de modo autônomo e independente.
Sua soberania é seu bem mais precioso, a
alienação seu risco mais temido. (...). O
contrato social visa a realização de um plano
no qual as diferenças são abdicadas. O século
XX terá sido aquele das multidões e da
quantidade, das malvadezas histéricas, para
dizê-lo como Rimbauld”. (ONFRAY, 1995. p.
48-49).
Onfray busca sustentar o individualismo na atitude do Condottiere,
elevando sua autonomia à condição de não obedecer ninguém senão a si próprio. O
desafio que Onfray encontra aqui é conjugar esta individualidade e a perspectiva de um
ser autônomo com a alteridade. Onfray defende que o materialismo hedonismo não
deve tornar-se uma prática egoísta, mas uma conjugação de desejos. Esta articulação
será especialmente defendida através da amizade, como veremos, e entendida como um
tipo de relação ideal e equilibrada. No entanto, nas relações onde não se estabeleçam
pactos de simetria e equilíbrio, o autor tende a defender uma postura solipsista em seu
materialismo hedonista.
Michel Onfray procura equacionar a perspectiva da autonomia também
através da singularidade, demarcada pelos encontros com o real que nos afeta a todo
instante. A noção aqui apresentada de singularidade e utilizada por Onfray segue a
76
perspectiva libertária por ele adotada, entendida como uma modalidade de resistência
aos modelos identitários que procuram impor-se no campo de forças característico das
relações de poder
.
Defender a singularidade é, para Onfray, resistir de maneira libertária
ao exercício de poder hierarquizado que pretende diminuir ou aniquilar o diferente em
cada um. Investe assim, no exercício da diferença como forma de distanciar-se do
homem comum, preso às verdades universalizantes e afastado de sua singularidade.
Como temos mostrado, Onfray defende uma postura libertária e
insubmissa aos pactos sociais e na elaboração, sempre que possível, de suas próprias
regras, sem que isto se torne um exercício de egoísmo ou de capricho. Também defende
uma atitude atéia, uma vez que critica os laços religiosos que impedem a autonomia e a
liberdade dos indivíduos. Estes cruzamentos desembocam num materialismo hedonista
virtuosamente elaborado, que pretende dar um sentido artístico à existência como
afirmamos. Tratando-se desta de virtude, Onfray refere-se à noção de virtù
36
como algo
incandescente, elegante e eficaz. Seu personagem conceitual busca em seus atos e
gestos algo que se mostre elegante e hábil, que exprima um estilo próprio, num trajeto
de caminhos exclusivos e desconhecidos para outros. Defende também que o
Condottiere esteja fora de instituições como o Estado e suas ramificações, pois acredita
que estas fomentam a diminuição do gesto virtuoso, além de limitar a soberania e de
mascarar a singularidade. Onfray acredita que existe sentido para o Condottiere fora
de tais instituições, num projeto individualista, ético e estético. Seu virtuosismo busca a
autonomia e o depende do subjulgamento do outro para constituir-se, transformando
este outro numa coisa ou objeto a seu serviço e interesse. Segundo Onfray (1995),
36
Este termo está presente na obra O Príncipe (1513) de Maquiavel. É no cenário da Renascença italiana
que ele escreve a sua mais famosa obra, na qual realiza uma análise política consistente sobre como deve
agir um soberano com prudência ou valor próprio, daí a expressão virtù. Segundo ele, a virtù é um dos
elementos mais dinâmicos de toda a ação social. É o apelo a um homem que concebe a vida como
movimento: aquele que demonstra ter virtù buscará saber fazer o uso virtuoso da força.
77
“alimentar a sua edificação com a subjugação do outro é comprometer sua virtuosidade
nesta condenação à morte, interdita toda elegância aferente ao uso da virtù”. (p.39).
Assim, a virtuosidade do Condottiere está ligada à noção de guiar-se
segundo sua própria cartografia, estabelecendo percursos às vezes solitárias, solipsistas,
no entanto livres. Ele é um condutor, como a etimologia da palavra anuncia: um artista
na arte de conduzir, ou melhor, na arte de conduzir-se. Suas cartografias solitárias
deixam de existir em proveito de um papel pedagógico para o outro: na possibilidade de
confederar caminhos comuns desde que não prejudique nenhuma das partes. Aqui o
autor mostra como pensa a perspectiva de autonomia a partir da alteridade:
“O pacto com o outro nunca é outra coisa além
de um pacto consigo mesmo: trata-se de estar
à altura, não tanto da promessa, que faz ao
outro, mas daquela que faz a si próprio,
tomando o outro por ocasião e não por
testemunha. Contratar é querer e formular um
projeto para sua energia. De modo idêntico, é
anunciar, ao foro íntimo com prioridade, o que
de acontecer em um tempo futuro. Do
condutor que se seduz ao contratante que se
engaja, a figura ética do Condottiere
permanece exemplar aos meus olhos”.
(ONFRAY, 1995. p.44).
O materialismo hedonista defende que sejam estabelecidos contratos com
o outro em articulações que possibilitem romper e ultrapassar o niilismo, dentro de uma
perspectiva que jamais interfira na autonomia de ambas as partes. Segundo Onfray, o
que interessa é guerrear contra as forças da indecisão, da humildade e da morte para
investir na afirmação da vida e do prazer. Definir se esta luta será realizada em conjunto
com o outro ou de maneira solitária, não é o que mais importa para Onfray. Seu
propósito maior está em defender o permanente estado de construção da liberdade e da
autonomia, seja de maneira solitária ou em companhia. E o faz através do próprio
78
convite ao prazer, numa batalha contra o que aliena e diminui a soberania do hedonista,
valorizando sua potência e sua luta.
Como vimos na primeira metade desta Dissertação, Onfray concentra
parte de suas críticas às religiões, defendendo a noção de incompatibilidade entre a
existência de Deus e a liberdade. O materialismo hedonista assume assim, uma postura
radicalmente atéia e alegre colocando-se contra o espírito religioso que, segundo ele,
busca o laço que vincula e prende pela piedade, pela caridade e pela submissão. Tudo o
que aprisiona e que faz o ser devoto ou em dívida será, para o pensador, uma forma
direta de dominação. Além das religiões, Onfray dirige suas críticas aos pactos sociais.
Seguindo uma crítica nietzschiana à sociedade, Onfray (1995) define que o
estabelecimento do contrato social é um paradoxo que promete a paz e a guerra,
propõe justiça e gera iniqüidades, anuncia a harmonia e fomenta as divergências. O
homem social, cultivado em instituições como a escola, a igreja, a família e o Estado,
torna-se docilizado e enfraquecido, proporcionando o subjugamento do indivíduo à
sociedade. Sua proposta ética não passa pela valorização deste contrato social, que
abdica da diferença, estabelece a servidão e a escravidão quando prometia a dignidade e
a liberdade. Vê-se sua vertente anarco-individualista para pensar uma nova forma de
sociabilidade mais horizontal e livre:
“Porque não se sacrifica a nenhum ideal
coletivo, o Condottiere é nominalista e trata
com o riso as novas religiosidades que se
constroem sobre a adoração de generalidades:
o Homem ou o Direito, a Lei ou o Povo, a
Nação ou a Pátria. Ele sabe, no entanto, que
existe uma multidão de homens, ricos e pobres
em suas diversidades, possantes ou doentios,
elegantes ou rústicos e alternadamente
suscetíveis a todos esses estados, conforme as
condições as quais evoluem”. (ONFRAY,
1995. p. 45-46).
79
Na opinião de Onfray, o nominalismo
37
em que busca situar o
Condottiere nega uma realidade que apóia-se numa essência do homem ou numa idéia
absoluta do justo como o platonismo fez acreditar. O nominalismo nega a realidade aos
universais, com base em que o uso de uma designação geral não implica a existência de
uma coisa geral por ela nomeada. Admite, no entanto, que deve haver alguma
semelhança entre as coisas particulares às quais a denominação geral se aplica. Para os
nominalistas, por exemplo, "beleza" não tem existência própria e é apenas um termo
geral para designar esse atributo reconhecível em alguns objetos que, por o possuírem,
são ditos objetos belos. Colocando-se contra o ponto de vista da idéias universalizante,
Onfray valoriza o nominalismo cínico de Diógenes, que entende a idéia como mera
função fisiológica, fruto de um corpo percorrido por fluxos de energia e tensão. O
sentido imanente que o nominalismo assume, segundo Onfray, se como uma crítica
vertical ao culto das abstrações que conduz para a alienação. O materialismo hedonista,
desta forma, não espera por um universalismo, seja de que ordem for, confrontando-se
com a realidade tal qual ela apresenta-se diante de nós.
O materialismo hedonista defende o exercício de uma prática de vida
eminentemente libertária, combatendo desigualdades e hierarquias que se dê no
cotidiano. Mais do que uma idéia de liberdade, uma abstração do que isso possa
significar, seu sentido parte do próprio real, uma vez que o mero conceito de liberdade
não é suficiente para sustentar-se na realidade. A liberdade percorrida na
experimentação terá para o materialismo hedonista um valor pragmático e a defesa da
soberania dentro desta perspectiva, será algo a ser conquistado. Michel Onfray acredita
37
Na obra de Guilherme de Ockham (1280-1349), chamado em sua época de Princeps Nominalium, o
nominalismo foi assim apresentado: “Nada fora da alma, nem por si nem por algo de real ou de racional
que lhe seja acrescentado, de qualquer modo, que seja considerado e entendido, é universal, pois é tão
impossível que algo fora da alma seja de qualquer modo universal (a menos que isso se dê por convenção,
como quando se considera universal a palavra ‘homem’, que é particular) quanto é impossível que o
homem, segundo qualquer consideração ou qualquer ser, seja o asno”. Dicionário de Filosofia Nicola
Abbagnano.
80
que esta noção de liberdade se dana diferença, nunca na igualdade; no exercício do
prazer, nunca no sacrifício ao outro. O Condottiere buscará desta forma, sua excelência
na produção de mônadas insubmissas à cooptação e distantes dos homens das
multidões, preso nas malhas de poder do contrato social. Seu prazer será por vezes
solipsista, deflagrando uma luta explícita pelo universal e pelo igualitarismo, que para
Onfray são noções alienantes e falsas, e distantes, portanto, do nominalismo que busca
defender.
O Condottiere, segundo Michel Onfray, buscará a elaboração de sua
liberdade em direção oposta daquela apresentada ao social pelo mercado, vinculada pela
mídia
38
e elevada à condição de desejável e útil: o conceito de liberdade atrelado à
capacidade de consumir, de possuir, de dispor de recursos materiais, de imóveis e de
dinheiro, todos glorificados como sinônimo de autonomia na sociedade capitalista. A
liberdade nestes termos está ligada ao exercício do que Onfray chama de prazer vulgar,
pois não representa um valor singular em cada um, mas uma produção de subjetividade
realizada pela economia de mercado. O prazer está meramente atrelado, desta forma,
aos interesses do consumo e lazer que o capitalismo oferece
39
. A publicidade vem
banalizando esta noção de liberdade, associando-a a capacidade dos indivíduos em
38
Neste debate, é importante a contribuição dada por Noam Chomsky (1928), Professor do MIT
(Massachusetts Institute of Technology) sobre a produção de “consensos fabricados” que discute o papel
contemporâneo da mídia na fabricação do consenso nas sociedades de massas, produzindo demandas de
desejos a partir do que é veiculado especialmente pala mídia eletrônica. Segundo Chomsky a "fabricação
de ilusões necessárias para a gestão social é tão velha como a história". Foi a partir do começo do nosso
século com o autoritarismo comunista e fascista que se criou o atual "modelo de propaganda" onde a
instrumentalização dos cidadãos se faz através dos mais poderosos meios de manipulação de massas
criados ahoje pelo o homem: a imprensa, o radio e a televisão. Controle da dia os espetaculares
feitos da propaganda. (2003). Ed. Graphia.
39
A antropóloga Rita Amaral, a partir da afirmação da escritora Chantal Thomas, quando diz que "Na
sociedade moderna muito lazer e pouco prazer", estabelece uma interessante análise entre o prazer
como ética e o prazer dentro das sociedades capitalistas. Segundo ela “Lazer e prazer são palavras que
rimam e se assemelham no significado, mas não se substituem. É muito mais fácil conquistar o lazer do
que o prazer. Lazer é assistir a um show, cuidar de um jardim, ouvir um disco, namorar, bater papo. Lazer
é tudo o que não é dever. É uma desopilação. Automaticamente, associamos isso com o prazer: se não
estamos trabalhando, estamos nos divertindo. Simplista demais. Em primeiro lugar, podemos ter muito
prazer trabalhando, é redefinir o que é prazer. O prazer não está em dedicar um tempo programado
para o ócio. O prazer é residente. Está dentro de s, na maneira como a gente se relaciona com o
mundo”. Os Urbanitas (www.aguaforte. com/antropologia ).
81
exercer o poder de compra. No capitalismo, quanto mais se dispor de recursos
materiais, mais se é livre, criando uma gica perversa de exclusão econômica. Ao
contrário desta noção de liberdade, o autor defende uma liberdade libertária, que
segundo ele visa substituir a liberdade de ter, tão disseminada pelo capitalismo, pela de
ser, como exercício de autonomia. Obviamente não se trata aqui de negar os prazeres
que o próprio capitalismo oferece. No entanto, Onfray critica a relação exclusiva de
prazer e de liberdade limitados ao poder de compra. Atrelar o hedonismo meramente ao
consumo é o mesmo que reduzi-lo a uma condição banal, na qual o materialismo
hedonista não pretende situar-se.
2.4- Prazer e rebeldia
Michel Onfray procura estabelecer um cruzamento entre a ética e
a política, entre o hedonismo e o anarquismo, e assim confecciona seu personagem
conceitual sob esta perspectiva libertária. Apesar de esta Dissertação voltar-se para uma
apresentação do materialismo hedonista do autor, é importante lembrar que tal
cruzamento com a postura anárquica do Condottiere é de suma importância para Onfray
pensar uma forma de fazer política na atualidade, especialmente de modo individualista
e inserido na esfera do cotidiano.
Como foi dito, Onfray busca atualizar o pensamento libertário,
especialmente através da noção de individualidade proposta por Max Stirner e a defesa
de seu único radical. O anarquismo de Stirner é contundente em defender sua
incompatibilidade com qualquer ordem social. Seu individualismo é elevado à condição
primordial para a defesa da singularidade, bem diferente de qualquer tipo de egoísmo
acomodado e alienado como possa parecer. O que interessa a Onfray na única obra
publicada do pensador libertário, “O Único e a Sua Propriedade” (2004), é sua posição
82
antiestadista por um lado e sua distância de qualquer projeto social por outro lado, tão
presente em diversos pensadores do anarquismo. Vemos isto no texto de Stirner:
“Todas as formas de governo estão fundadas
no único princípio de que todo direito e todo o
poder pertence à totalidade do povo. Ninguém,
com efeito, deixa de apelar a ele, tanto o
déspota como o presidente ou a aristocracia
etc., não atuando nem ordenando senão em
nome do Estado. (...) É sempre a totalidade
quem domina o indivíduo, possuindo um
poder chamado justificado, isto é, o direito.
Face ao caráter sagrado do Estado, o indivíduo
nada mais é que um poço de defeitos, no qual
somente permanecem a arrogância, a mania do
insulto, a frivolidade etc.”. (STIRNER, 2004.
p. 3).
O individualismo de Stirner é visto por Onfray como um elemento
constituinte de atitude libertária do Condottiere. Voltando-se para a construção de seu
próprio projeto existencial, ele se afastará de qualquer noção de universalidade, pois
acredita que esta tende a prejudicar o singular. Sua união com o outro se dará sem que
prejudique seu cálculo de desejos, dentro de uma perspectiva individualista, ou seja,
obedecendo a soberania de si e respeitando a do outro.
O pensamento de Max Stirner foi por muito tempo marginalizado dentro
do próprio movimento libertário. Situando-se na contramão da tradição socialista e à
margem de valores defendidos e expressados pelo anarquismo como a cooperação, o
apoio mútuo e a solidariedade, o anarco-individualismo defendido por Stirner tornou-se
um manifesto radical em defesa do eu. Onfray o resgatará, buscando em seu
pensamento a defesa da prática individualista exercida por seu Condottiere. Defende
que esta é a principal forma de ação política dentro do atual cenário, onde as ideologias
coletivas mostraram seu fracasso. Michel Onfray pensa uma proposta libertária que se
dá na prática, nos espaços da micropolítica. Neste sentido, Stirner será de grande
83
importância, uma vez que ele pensa a ação anarquista a partir do próprio indivíduo. Para
Stirner (2004), “a minha liberdade só será perfeita quando for o meu...poder; mas, tendo
este, deixo de ser simplesmente livre e passo a ser ‘proprietário de mim’”(p.135). Esta
noção será utilizada por Onfray ao pensar a postura do Condottiere como condutor de si
mesmo, criador de seus caminhos. Sua soberania se dará em seus atos e se construirá
sem fórmulas ou manuais, mas na experimentação, no encontro com o real e no
exercício de sua diferença.
Ao pensamento individualista e libertário de Stirner, Michel Onfray
soma a figura do anárquico de Ernest Jünger, presente em um de seus romances e
realçado na imagem do rebelde. Proscrito e rejeitado pela sociedade, o anárquico optou
pela solidão dos bosques por não reconhecer a autoridade que considerava ilegítima.
Sua resistência é solipsista e com ela a recusa por uma ordem social que não cessa em
tentar moldar singularidades ao interesse coletivo. Ao anárquico, o que importa é a
preservação de sua independência, tornando-se um ser de difícil cooptação pelo jogo do
poder societário. O anárquico definirá seus encontros baseando-se na realidade que se
mostra diante de si, nunca numa lei existente, que se defina em nome de um coletivo.
A construção por espaços de liberdade ocorre na relação direta com o real, descartando
qualquer condição que não se situa nesta esfera. Segundo Onfray (1995), “O anárquico
está interessado pelo poder exercido sobre si mesmo e quer reinar sobre sua
energia próxima. Daí seu desprezo pelos jogos praticados pelos outros aqueles que
não se pertencem mas gostariam de reduzir o mundo aos seus caprichos”.(p. 55).
Em “Política do Rebelde” (2001), Onfray desenvolve algo que começou
a ser formulado em “A Escultura de Si” (1995): uma visão política do anarquismo mais
contemporânea, onde ”o anárquico está para o anarquista assim como o monarca está
para o monarquista” (p.55). Segundo Onfray, as propostas e ações do pensamento
84
anarquista produzidas no século dezenove e que marcaram o movimento libertário,
especialmente nas de obras como as de Mikhail Bakunin
40
e Pierre-Joseph Proudhon
41
,
nomes importantes da ideologia libertária, não podem ultrapassar sua época. Michel
Onfray argumenta que as propostas e as ações do pensamento anarquista produzidas no
século dezenove e que marcaram profundamente o movimento libertário, estão
vinculadas a uma época, fazem parte de um momento social e político específico. Para
Onfray, o pensamento anarquista clássico, produziu um conjunto de teorias com
inegáveis contribuições nos campos da ética, da política, da sociologia e da economia,
mas que o poderiam simplesmente atender as atuais características de complexidade
que o capitalismo contemporâneo produz. Sem descartar estas influências do passado,
Onfray procura atualizar a proposta libertária, seguindo inclusive as contribuições de
Michel Foucault e Gilles Deleuze sobre a sociedade disciplinar
42
e a sociedade de
controle
43
, respectivamente.
40
Um dos principais representantes do pensamento libertário do século XIX, Bakunin defendia que as
energias revolucionárias deveriam ser concentradas na destruição do Estado, pois este seria a manutenção
da opressão e do autoritarismo. Foi o principal interlocutor de Karl Marx nas Associações Internacionias
dos Trabalhadores, defendendo a ação direta e a autogestão generalizada, em substituição a qualquer
forma de participação político-partidária. Em 1849, foi preso e condenado a morte por uma insurreição
em Dresden, mas a pena foi anulada e foi entregue ao governo russo, ficando preso em São Petersburgo e
depois exilado no Sibéria (1857). Acabou fugindo para o Japão e depois se fixou na Suíça.
Depis disso,
percorreu vários países defendendo a ação direta e participando ativamente como militante nas barricadas
e lutas dos trabalhadores.
41
Pensador libertário francês, Proudhon realizou em sua principal obra “O que é a propriedade” (1988)
um importante texto para o movimento anarquista. Ele lançou as bases de um sistema mutualista, segundo
a qual uma nova sociedade devia ser apoiada, pois seria uma cooperação livre, criada por associações,
eliminando o poder coercitivo do Estado. Foi amigo e crítico de Marx, de quem mais tarde rompeu
relações. Em maio de 1846, Proudhon escreveu uma carta dirigida a Marx e que foi o motivo para o
rompimento de ambos, pois acentua nitidamente as diferenças de visão entre tipo de sociedade com a qual
Proudhon federalista que sonhava e o projeto político de Karl Marx de tomada do poder e implantação de
uma ditadura do proletariado.
42
Michel Foucault denomina este conceito a partir das características essenciais de como se dá a
distribuição dos indivíduos em espaços individualizados, classificatórios, combinatórios, isolados,
hierarquizados, capazes de desempenhar funções diferentes segundo o objetivo especifico que deles
exige. Para o autor, estabelece-se uma sujeição do individuo ao tempo, com o objetivo de produzir com o
máximo de rapidez e eficácia. A vigilância também se expressa como um dos seus instrumentos de
controle, de maneira contínua, perpétua e permanente. No âmbito do direito penal, passa-se a enunciar os
crimes e os castigos que preconizam o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do
85
A influência libertária no pensamento de Onfray faz com que o autor
valorize a ação cotidiana em detrimento das formas de atuação das políticas
tradicionais, como partidos políticos e a democracia. Critica assim a associação
exclusiva entre o poder e o Estado como locus privilegiado de ação política. Ao
contrário, privilegia a ação de modo local, produzida no aqui-e-agora. Onfray defende
com isso um devir revolucionário dos indivíduos como uma forma possível de ação
libertária no presente. Esta noção é mais bem desenvolvida em “A Política do Rebelde”
(2001), livro de vertente mais política do autor. A partir dos acontecimentos de Maio de
1968, Onfray o surgimento de uma ruptura epistemológica capaz de dividir, entre o
velho e o novo, o homem e o humanismo de um lado e o indivíduo soberano apto a
governar-se do outro lado. O surgimento de um ser singular e livre-pensador é
entendido por ele, como um incessante movimento de transformação. Segundo Onfray
(2001), a revolução à maneira de golpe de Estado está morta, viva a revolução pelo
modo libertário, molecular, para dizê-lo com as palavras de Deleuze e Guatarri”.
(p.182). Investindo nesta perspectiva, para o autor, surge também a necessidade de lutar
contra a microfísica do poder local e global, onde se dá o desdobramento do homem e o
redobramento do indivíduo para uma libertação da sujeição do mundo. Segundo Michel
Onfray:
comportamento dos indivíduos, diferente daquela prevista no séc. XVIII, que visava tão somente a defesa
da sociedade.
43
Num artigo intitulado Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle”, o filósofo Gilles Deleuze
indica alguns aspectos que irão distinguir uma sociedade disciplinar de uma sociedade de controle. As
sociedades disciplinares podem ser situadas num período que vai do século XVIII aa Segunda Grande
Guerra, sendo que os anos da segunda metade do século XX estariam marcados por seu declínio e pela
respectiva ascensão de uma sociedade de controle. Segundo o autor, esta passagem seria marcada pela
inter-penetração dos espaços, por sua suposta ausência de limites definidos (a rede) e pela instauração de
um tempo contínuo no qual os indivíduos nunca conseguiriam terminar coisa nenhuma, pois estariam
sempre enredados numa espécie de formação permanente, de dívida impagável, prisioneiros em campo
aberto. O que haveria aqui, segundo Deleuze, seria uma espécie de modulação constante e universal que
atravessaria e regularia as malhas do tecido social.
86
“O anúncio do Deus morto proferido por
Nietzsche, o do falecimento do homem feito
por Foucault, liberam o terreno para um novo
nascimento no qual o humanismo e os direitos
do homem desaparecem, pela pura e simples
razão de que a figura solicitada pelos votos dos
nietzschianos franceses torna caduco o recurso
aos aparelhos ideológicos destinados à
reciclagem ou à aniquilação dos impulsos e
das energias reivindicadoras. Deus celebrado,
o homem civilizado não produziria, realmente,
senão a alienação e a servidão, o
empobrecimento, o enfraquecimento dos
indivíduos, seus sacrifícios aos leviatãs
multiplicados”.(ONFRAY, 2001. p. 158).
O ideal arcaico de revolução social, entendido através da tomada do
poder e da implantação de qualquer um outro, mesmo que este se afirme como
libertário, não tem sentido no pensamento de Onfray. A esta utopia superada, o que lhe
interessa é o instantaneísmo criador de identidades hedonistas em política, no ato de
qualquer prática existencial do presente, procurando mostrar-se sempre que possível
elegante e prazerosa. A atitude libertária hedonista se no aqui-e-agora, em
experiências que buscam relações horizontais, combatendo hierarquias que estabeleçam
os jogos de poder tão presentes nas sociabilidades tanto capitalistas como marxistas.
Para tanto, a valorização do individualismo passa por uma oposição permanente a
qualquer forma de poder que se coloque na relação com o outro, criando uma
resistência contínua e uma insubmissão feroz. Entretanto, como foi colocado, o autor
parece acreditar e investir mais numa possibilidade de anarquismo na esfera individual,
mesmo que esta esteja em permanente articulação com o outro, deixando lacunas para
pensar a sociedade em termos de uma macro-estrutura. Segundo ele, o Estado deixa de
ser lócus de ação política, para voltar-se à esfera do micro-social. Isto fica claro quando
87
o autor se posiciona em relação às formas tradicionais de atuação anarquista no
presente:
“Um pensamento anarquista contemporâneo
deve romper com este fetichismo do Estado,
pois este se reduz a uma maquinaria, sem
nenhum coeficiente ético, apenas um
mecanismo que obedece a ordens que se dão e
se transmitem. A contradição entre Estado e
liberdade desaparece ao mesmo tempo em que
a sociedade de controle substitui a sociedade
disciplinar” (ONFRAY, 2001. p. 171).
Defender uma postura anárquica, vivida por seu personagem conceitual,
é o contorno encontrado por Onfray para valorizar um rebelde em contínua resistência
às práticas de poder, que as considera máquinas devoradoras de potências. Para Onfray,
mais importante que qualquer doutrina anarquista, qualquer manual ou conjunto de
princípios, atuar de maneira anárquica significa construir na prática espaços de
autonomia no presente. Seu pensamento político anarquista cruza com a ética hedonista
para torna-se, na aposta do autor, uma possibilidade de construção de novos modos de
existência, mais libertário e prazeroso. Segundo o autor, Maio de 68 estabeleceu esta
ruptura, colocando ao centro do debate o indivíduo soberano em busca de sua
autonomia. Neste sentido, o materialismo hedonista luta para estar coerente com estes
princípios libertários em defesa das diferenças individuais. Segundo Onfray (2001),
“Longe dos futuros radiantes e dos amanhãs que cantam, pacificados, é preciso pensar
no devir revolucionário dos indivíduos, única ética pensável para um libertário na
virada do milênio’. (p. 182). O Condottiere assume desta forma para Onfray, uma
atitude rebelde contra o que possa diminuir, abater ou enfraquecer sua potência; da
mesma maneira que deixa de acreditar em qualquer movimento que o leve a identificar
o bom com aquele que segue o caminho da mediocridade. Não faz de seu capricho uma
88
ordem, refletindo sua ação diante das atitudes vividas para não transformarem-se em
mecanismos de imposição ao outro.
Como mostramos, Michel Onfray defende ainda que seus fins éticos
tornem-se também estéticos, ou seja, que seus atos tragam junto a beleza, a elegância, a
grandeza e a excelência. É assim que Michel Onfray indaga:
“Onde se encontra então o Condottiere? Quais
são as virtudes seguras para uma figura ética
que também faz da estética a sua maior
preocupação? Ateu, nominalista e libertário,
com certeza. Misto de dândi, de único, de
samurai, ele lembra também o anárquico de
Jünger, concordo. Enfim, ele culmina na
expressão da bela individualidade. (...) Porque
o Condottiere detesta a imbecil fatuidade dos
tolos, todos inteiramente inchados de sua
própria inconscistência. Às vistudes cristãns
da humildade, às práticas pervertidas dos
adoradores de si mesmo, ele opõe um
narcisismo flamejante, um orgulho
justificado”. (ONFRAY, 1995. p.57).
Neste panorama estético, o autor contrapõe a atitude esteta de Charles
Baudelaire e seu dandismo, à postura do artista que levará o Condottiere à criação de
espaços de liberdade conforme acredita Onfray. O dandismo, derivado do termo inglês
"dandy", originou-se como um fenômeno cujos contornos sócio-políticos se começam a
delinear entre o final do século XVIII e início do século XIX. Neste período da
Regência inglesa (1800-1830), a afetação no traje masculino torna-se unívoco a uma
postura ideológica pró-aristocrática e da conseqüente rejeição aos códigos de conduta e
aos valores burgueses. Enquanto que estes ressaltavam a igualdade, a responsabilidade e
a obstinação, o dandy opõe-lhes com um sentimento de superioridade elitista,
cultivando a irresponsabilidade no decurso de um dia-a-dia voltado ao ócio. Baudelaire,
na França da década de 1860, é a figura responsável por uma espécie de renovação do
dandismo, dando-lhe uma nova configuração do que, daí em diante, apóia-se no
89
princípio da Arte pela Arte. Para ele, vida e arte se constituem como um todo, onde não
espaço para a vulgaridade, vista como um crime sem proporção. Ao esteta e sua
atitude espetacular
44
, Onfray o confronta com a imagem do artista. Esta noção será
utilizada pelo autor para defender o encontro com o que chama de uma autêntica
expressão de elegância e excelência, numa tentativa de estabelecer uma ética que ao
encontro da vida artista. Onfray estabelece uma relação entre o artista e a prática do
individualismo, uma vez que este estabelece sua singularidade na eleição seletiva de
suas escolhas através do encontro com o outro. Vemos isto na colocação do autor:
“Só o homem da arte é apto para conduzir,
primeiro sua própria pessoa, e isto é o importa,
por caminhos que permitem escapar ao
niilismo: ele é prometéico, quer e age;
impacienta-se com os impasses e prefere
enganar-se de saída do que não tentar
encontrar uma abertura. (...) Quanto ao artista,
ele é encarnação da potência, animal de tração
que por nada se distrai do seu sulco. Seu
projeto exige inteiramente de si” (ONFRAY,
1995. P. 72-73).
Onfray pretende estabelecer uma importante distinção entre o artista e o
esteta. Esta distinção, inclusive, será vantajosa para melhor caracterizar o próprio
individualismo do qual o autor apóia-se. Segundo ele, o artista situa-se na esfera da
prática individualista e o esteta permanece na esfera do egoísta, uma vez que está mais
interessado em sua própria imagem e descolado do outro. Para Onfray (1995) “Quando
o esteta bate os pés excitado e quer uma singularidade imediata, arriscando-se a
desaparecer na fumaça no segundo que se segue, o artista mostra uma imensa paciência,
uma calma olímpica”. (p. 73). No entanto, sabemos como é comum a associação entre o
44
Esta noção remete a Jules de Gualtier, um filósofo pouco conhecido a quem deve-se o interessante
conceito de bovarismo. Segundo Onfray, a atitude espetacular é analisada em um capítulo de La
sensibilité metaphysique, Alcan. O bovarismo consiste numa insatisfação romanesca com a realidade,
numa inversão do olhar, e demonstra a incapacidade de assumir uma posição crítica em relação à ficção.
O abismo que se abre entre as duas experiências, a da realidade e a do imaginário, confere uma dimensão
ao mesmo tempo trágica e irônica ao bovarismo.
90
individualista e o egoísta. O primeiro deve perceber que é possível o exercício da
singularidade numa permanente articulação com o outro: ele escolhe, quer e seleciona
as relações que estabelece com o outro, sem subjugá-lo aos seus desejos nem descartá-
lo de interação. O segundo acredita que o outro deva adaptar-se a si, não se importando
como essa articulação possa se dar, mas apenas seguindo suas vontades e caprichos.
Para Onfray, o esteta subjuga o mundo às suas exigências, num conjunto de atitudes
egoístas e egocêntricas.
A forma com o autor defende a atuação do Condottiere está, portanto,
apoiada na elaboração de atitudes cotidianas de uma vida artista, valendo-se para isto de
sua potência. O artista busca relações em equilíbrio, numa difícil tarefa de harmonizar
os encontros. Sua atitude individualista estará imbricada com a idéia de criação de
espaços de autonomia, sem sobrepor seu interesse ao do outro, ao mesmo tempo em que
não perca de vista a elegância, elemento constituinte de sua própria virtude.
Encarando assim a vida como construção libertária e artística
45
, Onfray
acredita que seja possível constituir-se uma nova ética: o indivíduo livre cria seu
caminho, o coloca em prática e o vive. A despeito disto, o processo de singularização e
o exercício da diferença é valorizado pelo autor como a forma capaz de constituir esta
nova ética em permanente busca do equilíbrio: “O artista é o homem da relação do
equilíbrio, a individualidade capaz de produzir um sentido da distância, da medida que
permitirá o apoio do equilibrista”. (Onfray, 1995. p. 75).
Para Onfray, isto potencialmente ocorre a todo instante, em
circunstâncias que procuram encontrar o equilíbrio, para que seja possível formarem-se
45
Neste sentido, o chamado “último Foucault” é de importância primordial para o pensamento de Onfray.
Nste período final das pesquisas do filósofo francês, especialmente em “O uso dos prazeres” e “O cuidado
de si”, Foucault nos mostra um redimensionamento de suas análises e busca na Antiguidade uma atração
tão viva como a que teve por Nietzsche. Michel Foucault nos leva ao campo da estética da existência, das
práticas segundo as quais os homens tratam de fixar as regras de conduta, para fazer de suas vidas uma
obra capaz de possuir valores estéticos.
91
a completude e a excelência de cada situação vivida. O autor chama este momento de
hapax existencial, uma ocorrência singular e de difícil duplicação que acontece em
situações únicas. A palavra “hapax” vem do grego “hapax legomenon” e significa
aquilo que foi dito apenas uma vez. É o momento como categoria temporal dos êxtases,
situação ímpar a partir do qual oscila a existência. Para Onfray, tal circunstância é o
momento exclusivo da quintessência, por onde se derivam as emoções e os prazeres,
para se constituir estéticas existenciais. Segundo ele, o Condottiere procura no hapax
existencial exercer a vivência de seu prazer como substrato de sua obra aberta, dando a
forma e o contorno de sua estátua. Esta ocasião está sempre em oscilação, nunca
estagnada num modelo ou forma pré-existente e respeitando incessantemente novas
situações que surgem, num movimento que nunca se congela junto a si e nem ao outro.
Onfray argumenta que o Condottiere buscará a articulação de sua ética na
estética através da associação entre força e beleza, alegria e vontade, determinação e
elegância. Com esta postura assumida por seu personagem, que segundo o autor, é a
própria imagem do artista, eleva-se a importância da emoção junto com a reflexão. Mas
que tipo de artista? De qual arte Onfray está referindo-se?
“O Condottiere é, então, um artista cujo
principal objetivo é o êxito de sua vida
entendida como uma luta contra o caos, o
informe, as facilidades de todas as ordens.
Seus inimigos: o abandono e a flacidez, o
relaxamento e o gregário. E, para dizê-lo
conforme foi por muito tempo costume de
formulá-lo, ele quer fazer de sua vida uma
obra de arte. (...) O Condottiere é um artista,
um diretor de situações, o escultor de sua
própria estátua”. (ONFRAY, 1995. p. 68).
Onfray sugere que a obra de arte seja a própria vida, construída
elegantemente, sempre em busca da singularidade, para estabelecer-se como única. A
92
existência como obra de arte está atrelada à possibilidade de criação de caminhos novos
como condição da própria autonomia. Onfray defende que o Condottiere não ocupe o
lugar que foi dado por outro e eleja a invenção de seus caminhos, que serão
descobertos no próprio caminhar. Reconhece também no Condottiere a imagem do
filósofo-artista
46
que Nietzsche assumiu como aquele que é capaz de inventar novas
formas de existência, superando as dificuldades e incessantemente querendo diferenciar-
se do homem comum. Onfray pretende que seu personagem conceitual situe-se assim
nas trajetórias nem sempre tranqüilas, mas permeadas de cimos, extremos e abismos.
Como diz o autor (1995), sua própria economia visa gastar-se, consumir-se para
“execrar a poupança” (p.106), num movimento contínuo de afirmação pela vida. Sua
investida é que o Condottiere se produza através do belo, da potência, e da força.
2.5- Lutar contra o niilismo
Michel Onfray defende que seu materialismo hedonista é capaz de se
colocar contra e mesmo ultrapassar o niilismo contemporâneo. Esta ousada proposta
credita ao materialismo hedonista como uma postura guerreira diante da vida, que
mostra no ato da vivência uma força decidida a ultrapassar o niilismo. Para Onfray
(1995) é preciso “superar por toda parte os indiferentes, os indecisos, os padres, os
moralizadores, os amantes da compunção, da humildade, da maceração, da morte”.
(p.44), que segundo ele, são os principais personagens da disseminação do niilismo na
atualidade.
46
Sobre o tema, ver a obra de Giacoia Jr. “Os Labirintos da alma” (1997). O autor elebora a noção que
em Nietzsche é considerado um filósofo-artista, um poeta que acreditava numa filosofia que fosse
expressão das vivências genuínas e pessoais, vendo na experiência estética uma espécie de êxtase e
redenção, é, por isso mesmo, um precursor da crítica a um tipo de racionalidade meramente técnica, fria e
planificadora.
93
O aparecimento do niilismo, segundo a interpretação de Nietzsche e
adotado por Michel Onfray, é um evento absolutamente fatal e difícil de resistir, porque
o nada é um princípio que guia nossa cultura desde seu início, quando através do
platonismo e depois do cristianismo a unidade originária dionisíaca foi perdida.
Nietzsche argumenta assim, que o niilismo é uma conseqüência direta do cristianismo,
da moral e da noção de verdade da filosofia. O niilismo como manifestação do
ressentimento, da má-consciência e do ideal ascético é o triunfo de uma moralidade que
foi fruto de um destino histórico. Onfray, seguindo a crítica nietzschiana, reconhece que
esta vontade de nada, que sufoca os instintos fundamentais da vida, pode ser
ultrapassada através de uma postura afirmativa diante da vida. O autor localiza na
elaboração de uma vida artista uma importante possibilidade de enfrentamento ao
niilismo, através do exercício da potência e num projeto inteiramente baseado em si. A
aposta de Onfray (1995) é que o materialismo hedonista possa favorecer o
estabelecimento de uma virtuosidade ocupada em realizar uma ação com brio, com
elegância e com eficácia, através de uma maneira única de proceder. A virtude será
assim, indissociável do próprio estilo de quem a pratica. Como foi aprensentado, a virtú
a qual se refere Onfray mostra no ato de quem a exerce, a força determinada a
ultrapassar o niilismo, de criar a partir sua própria ordem e de estabelecer sua própria
prática de prazeres.
Com a intenção de valorizar o materialismo hedonista como ruptura ao
niilismo, Michel Onfray utiliza-se de uma argumentação radical pra rebater a noção que
elege o hedonismo como condição que despreza o outro. Para ele, o materialismo
hedonista ocupa-se em defender o exercício da singularidade e da individualidade, sem
descartar o outro. O hedonismo é, pois, dinâmico e defende que não existe júbilo
possível sem considerar este acordo entre as partes. Seguindo sua argumentação, o autor
94
coloca que o prazer individual tem sentido de constituir-se no intercâmbio e na troca
que se faz presente na própria existência, num jogo de permanente busca de simetria.
Para Onfray, o filósofo-artista encontrará seu próprio cálculo hedonista, como podemos
ver:
“Aí estão então as tarefas do filósofo-artista,
do Condottiere em combate: produzir uma
harmonia entre o indivíduo e o real dentro da
qual ele evolua, cuidar para não sacrificar a
figura do artista em benefício do esteta amante
das posições espetaculares (...) Nada de acordo
resolutório sem distribuição de intervalos que
sejam respeitosos com os equilíbrios entre as
partes”. (ONFRAY, 1995. p. 76).
Na relação com o outro, a ética hedonista irá propor um avaliação dos
prazeres e um utilitarismo jubilatório, nas palavras de Onfray (1995), buscando
estabelecer uma troca em busca de afinidades eletivas. A boa distância será perseguida
em direção a uma prática de eumetria em busca de equilíbrio, que se coloque contrária à
desmetria, que é o desequilibro entre as partes envolvidas. Este conceito (eumetria) é
utilizado pelo autor e refere-se ao equilíbrio no movimento como condição pela qual o
hedonismo se baseará no arranjo das forças entre as partes envolvidas na relação, para
que se estabeleça assim, uma relação ética. Apenas por meio desse equilíbrio é possível
pensar o materialismo hedonista e sua prática libertária no cotidiano.
Voltemos ao artista, que faz de sua vida sua própria obra de arte. Sua
obra é justamente a passagem da potência ao ato, dos blocos de vontade à ação e ao
gesto, estabelecendo a possibilidade de surgir um estilo. Este estilo, por sinal, é a
própria condição que dignifica a obra, sugere sua originalidade e garante o que de
singular na unidade. Para Onfray, o estilo é aquilo que une o que de diverso no ser,
proporcionando uma particularidade através de um querer. Em seu projeto hedonista,
Michel Onfray utiliza-se do Condottiere para exemplificar a vida artista. Segundo ele, o
95
Condottiere empenha-se em criar seu estilo, estabelecer uma bela individualidade,
abandonando o que de universal para que surja o singular. Defende que para surgir
um estilo é necessário abdicar das verdades universais, até que se descubra e se atinja o
que de diferente em cada ser. Sendo assim, o estilo é a própria assinatura, o que
de mais autêntico, a identidade assumida. Querer criar um estilo é dar à vida um sentido
artístico, imprimir sua grafia e seus contornos, e dentro da perspectiva do materialismo
hedonista, estabelecer as próprias cartografias do prazer. Onfray mostra este
cruzamento entre a intenção e a obra de arte:
“Fazer de sua vida uma obra de arte supõe esta
determinação, esta produção. O instrumento é
a vontade, o material, a vida cotidiana. Não
moral sem decisão tenaz de estruturar a
existência através do querer. Um ética visando
a forma é possível dentro do contexto de
um voluntarismo estético”. (ONFRAY, 1995.
p. 79).
Cada circunstância, por mais banal que possa parecer, é um momento
ímpar da existência e requer uma atitude singular: beber um copo d’água, sentar-se,
caminhar por entre outros, fazer sexo e tocar alguém: tudo torna-se gesto com
densidade artística. Um personagem singular, cruzando caminhos, inscrevendo suas
rotas. Seus gestos são apurados, seus passos firmes, seu olhar compõe com o restante de
seus movimentos uma elegância absolutamente própria, um estilo único, eloqüente e
cuidadoso. Cada instante será composto por momentos que desafiam a expressão deste
algo singular e do seu estilo individual. Michel Onfray acredita que o Condottiere
procure fazer de sua própria ética a fusão com uma estética generalizada
47
. Esta noção
leva o autor a defender que a arte inscreva-se na prática da vida cotidiana, num
47
Onfray defende esta estética generalizada, inspirada em Marcel Duchamp. Ele é um dos precursores da
arte conceitual e introduziu a idéia de ready made como objeto de arte, ou seja, a idéia do transportar um
elemento da vida cotidiana, a priori não reconhecido como artístico, para o campo das artes. Duchamp
passou a incorporar material de uso comum às suas esculturas. Em vez de trabalhá-los artisticamente, ele
simplesmente os considerava prontos e os exibia como obras de arte. Além disso, estendia a própria idéia
de arte para seu cotidiano.
96
exercício permanente onde a existência ocorra de forma inventiva, subvertendo o
estabelecido, o dito e o colocado. Inventar e criar é para o autor, a possibilidade
para que se permita a ética na estética e o próprio modo-de-vida hedonista. No entanto,
isto não se dará de maneira passiva ou acomodada. É preciso imprimir luta e garra, no
estabelecimento de uma vida guerreira que torne o hedonista também um libertário
militante.
Michel Onfray busca a elaboração desta expressão de arte e a criação do
estilo na escultura
48
como gesto emblemático de criação. Retirar e extrair do objeto para
alcançar no epicentro o autêntico da obra é o papel do escultor que fará de sua vida a
matéria-prima para a sua invenção. O Condottiere quer esculpir sua própria estátua, dar
seus contornos e formas na elaboração de uma arte que aconteça no cotidiano. É assim
que Michel Onfray defenderá esta ética hedonista, onde o Bem é moldado por valores
estéticos. A elegância e o prazer de si serão os guias que, segundo o autor, darão os
desenhos e as curvas, para esculpir sua própria estátua contra os moldes imposto por um
social alienante e hierarquizado que não cessa em tentar moldar individualidades. O
materialismo hedonista sugere que a busca por uma forma singular possa produzir-se a
partir do sumário, organizando o caos, imprimindo a harmonia até chegar ao advento de
um sentido. Esta ação contínua e incessante é realizada através de uma luta acirrada
contra a acomodação, a alienação ou qualquer outro motivo que diminua a potência de
vida. Investir na construção de sua própria estátua, buscar diferenciar-se na busca de um
estilo, significa assumir uma postura guerreira diante da existência. O materialismo
48
Contrário a esta noção de escultura de si proposto por Michel Onfray, ver o texto “Nietzsche e a
Imanência do Eu” da Professora de Filosofia da UERJ, Sílvia Pimenta e publicado no livro Filosofia Pós-
Metafísica, de Guilherme Castelo Branco (Org.). Neste artigo, Pimenta argumenta com base em sua
interpretação nietzschiana, sobre a impossibilidade de se ter qualquer ação consciente do eu sobre um
processo de tornar-se o que é, um devir constante que ocorre a nossa revelia. Segundo ainda a autora,
esse processo abre caminho para a diferenciação, por meio de um processo de inventar-se
permanentemente, o que não quer dizer criar uma identidade. No entanto, a noção que Onfray defende
sobre escultura de si, abre espaço para um alto grau de involutarismo. Daí surge a necessidade do
anárquico produzir um movimento intencional e voluntário com a forma, coisa diferente da identidade.
97
hedonista acredita na necessidade do enfrentamento diante das forças reativas que
impedem a singularidade.
Esta arquitetura de si, a fabricação de si mesmo como obra de arte será,
portanto, a ética defendida pelo filósofo, que buscará extrair da estética da existência a
estetização da vida. O autor defende como isto, a criação de novos modos-de-vida e de
novas formas de agir, de pensar, de posicionar-se, enfim, de constituir a singularidade
no exercício da diferença. Segundo ele (1995), “Que venha a hora de uma arte sem
museus, dinâmica, voluntária e cuidadosa com as leviandades, com os questionamentos
e com as comoções. Que advenha uma estética da liberdade e da energia nas
encarnações mais imanentes: a vida cotidiana, e existência de todos e de cada um”. (p.
91).
A noção de escultura de si está ligada à tentativa de focalizar o querer em
uma forma, organizando o caos para que surja uma ordem, uma harmonia e um sentido.
Neste sentido, Onfray coloca-se como “herdeiro” do Dadá
49
e sua noção de arte
contemporânea. Agora a matéria-prima é a própria vida e o tempo coincide com a
construção de situações e de momentos existenciais. O autor resgatará também nos
situacionistas
50
e suas formulações acerca das situações, elementos que possibilitem ao
49
O movimento Dadá ou Dadaísmo foi uma vanguarda moderna fundada em Zurique, na Alemanha em
1916, por um grupo de escritores e artistas plásticos, dois deles desertores do serviço militar alemão.
Embora a palavra dada em francês signifique cavalo de brinquedo, sua utilização marca o non-sense ou
falta de sentido que pode ter a linguagem (como na língua de um bebê). Para reforçar esta idéia foi criado
o mito de que o nome foi escolhido aleatoriamente, abrindo-se uma página de um dicionário e inserindo-
se um estilete sobre a mesma. Isso foi feito para simbolizar o caráter anti-racional do movimento,
claramente contrário à Primeira Guerra Mundial. Em poucos anos, o movimento alcançou, além de
Zurique, as cidades de Barcelona, Berlim, Colônia, Hanôver, Nova York e Paris.
50
Os Situacionistas representaram um movimento internacional de cunho político e artístico, com
presença marcante nos acontecimentos de Maio de 1968. Onfray resgata especialmente um importante
representante deste movimento: o francês Guy Debord. Seu principal livro, “A Sociedade do Espetáculo”
(1967), teve grande repercussão no cenário político francês e europeu. Dentre alguns dos conceitos
utilizados pelo movimento, a idéia de situação é aqui destecada por Onfray. Foi uma noção que circulou
em meios filosóficos, científicos e artísticos por algum tempo. A situação é ao mesmo tempo uma
unidade de comportamento no tempo, formada pelos gestos compreendidos na cena de um momento. A
situação é também a marcação de uma diferença, que produz uma ruptura com a mesmice. Mais que um
98
hedonista perceber a realidade em sua volta e elaborar sua estátua. Ele interessa-se pelo
efêmero, pelo único, pelo gesto puro que se a cada situação como parte de uma
prática experimental.
Esta trajetória que Onfray propõe através do Condottiere, indica a
possibilidade de subverter a ordem das coisas de maneira mais expressiva possível. O
percurso estético que ele assim pratica é sempre experimental: cada momento e cada
situação são constituídos de uma atitude que reforça e alimenta sua estátua. Imanente e
materialista, o corpo e a alma são intrinsecamente ligados na atividade de esculpir seu
próprio eu, na emergência de um estilo e na arquitetura de si. Na confecção de sua
escultura, o hedonista promoverá um ajuste dos prazeres onde buscará ampliar os
movimentos centrífugos, através daqueles que se expressem de dentro para fora e
diminuir os movimentos centrípetos, aqueles que buscam moldar e diminuir as
diferenças. Para Onfray (1995), o que importa é a experimentação da vida estética, a
existência artística e a arte da existência. Seu Condottiere passa então, a ser íntimo desta
noção de arquitetura de si, da fabricação de si mesmo, dentro de uma perspectiva
artística, sempre atenta na composição de situações que favorecerão isso. Sua postura
libertária levará a uma permanente invenção de vida, numa criação constante de novas
formas de viver, a partir das escolhas singulares para permanecer inventando a vida. O
espaço dessa criação é a experimentação, através dos esquemas imanentes da
existência: a carne e o corpo, como matéria-prima por excelência.
2.6- Por uma ética dispendiosa
evento, é um acontecimento. O situacionista é portanto, o indivíduo que se dedica a criar situações. Sobre
o assunto, ver o livro: Apologia do Deriva Escritos situacionistas sobre a cidade. Casa da Palavra,
2003.
99
Michel Onfray elabora seu materialismo hedonista dentro de uma
perspectiva do gasto, do gozo e da prática de uma ética dispendiosa
51
. A proposta da
ética hedonista de Onfray quer “execrar a poupança”, gastar a vida, pois esta é o
principal capital da existência e não será eterna. Para o autor, o hedonista não buscará
fixar lugar que prenda sua possibilidade de ir e vir. Quer o movimento e a mobilidade
que proporcione a maior probabilidade de gastos, mesmo sabendo que são instantes
efêmeros. Afastar-se-á do gregário, das tradições que enclausuram como as praticadas
nas famílias e nas religiões, por exemplo. Preocupado em criar sua própria
administração, estabelecerá sua economia contra aquela das riquezas materiais. A noção
do gasto será sempre permeada por uma sustentação ética, que para Onfray representa a
própria expressão do hedonismo. A partir desta noção e seguindo uma perspectiva
libertária, Onfray profere dura crítica ao que acredita ser a ética praticada pelo burguês,
que segundo ele, visando acumular, ter e possuir, não pára de amontoar dividendo e
lucro. O indivíduo atrelado à moral burguesa será, segundo Onfray (1995), a antítese do
artista dispendioso, pois busca a estabilidade, a segurança, a imobilidade. Seu interesse
está ligado à apropriação de bens e materiais, contribuindo para a supressão de qualquer
preocupação com a grandeza e a excelência.
Contrário a esta noção, o autor defende a vida como obra aberta, que
pressupõe movimento, considerando que em cada instante instala-se uma nova
aritmética de valores e gastos. O Condottiere fará de sua vida uma obra estética que não
se congela em momento algum. O movimento lhe interessa, pois será nele que
estabelecerá o equilíbrio dinâmico de sua existência. Assim, sempre em movimento, o
51
Sobre este noção de ética dispendiosa apontada por Onfray, o livro “O Luxo Eterno: da idade do
sagrado ao tempo das marcas” de Gilles Lipovetky e Elyette Roux, traz uma interessante reflexão sobre o
gasto na história das sociedades. Na parte do livro chamado “Luxo eterno, luxo emocional”, o autor traz
uma visão histórica sobre a relação luxo versus indivíduo. O autor explica que, no passado, o adequado na
vida social era ser generoso: não ostentava-se a riqueza como dividia-se em forma de festas, rituais
sagrados, etc. O luxo, portanto, na sua origem, não era exatamente “para poucos” e tinha mais relação
com o ato de esbanjar. Segundo Lipovetky (2005): “Ser nobre é viver com grandes despesas, desperdiçar,
dissipar as riquezas; não ser extremamente generoso é estar condenado ao declínio” (p. 34).
100
hedonista defendido por Onfray em sua obra, vai criando suas rotas, seus caminhos em
busca de confeccionar seu estilo. Para o autor:
“A obra aberta que é existência do Condottiere
permite que se siga, sem possibilidade de se
estabelecer definitivamente, o destino das
grandezas de excitação a fim de obter uma
cartografia. (...) A obra aberta supõe a riqueza
e a profusão do temperamento. Ela é
impensável em um indivíduo, fora da saúde,
do excesso e da abundância. O dom e a
prodigalidade assinalam a constituição
daqueles dos quais eles emanam”. (ONFRAY,
1995. p. 109-110).
Segundo Michel Onfray, o Condottiere buscará no exercício prático de
sua vida a condição singular de sua obra aberta, percorrida por lugares desconhecidos a
cada nova experiência exercida de maneira inusitada e imprevisível. Sua via estética
visará à própria ética: alegre, jubilosa, elegante. Uma ética dispendiosa exigirá assim,
um permanente estado afirmativo de graça e alegria em relação à existência. O
materialismo hedonista propõe, pois, romper as amarras da poupança existencial, que
promete um resultado compensador no futuro aos que se sacrificarem no presente. As
morais do ideal ascético, segundo o autor, buscam matar o que de potência para o
gasto, aniquilando e abatendo vidas em construção. A ética hedonista, ao contrário,
preocupa-se com o agora, o instante de cada experiência que jamais será repetido.
Assim, define o autor, viver é gastar o agora. É desta maneira, na imanência, que
Michel Onfray defende o enfrentamento ao niilismo:
“O niilismo deve ser ultrapassado. Somente
uma ética hedonista, que um lugar ao outro,
mostre qual seja, e organize suas condições de
possibilidade, pode se permitir ser chamada de
gasto. Sem isso, existem destinos infernais.
(...) Gastar é evitar que o consumo destrua o
organismo gerador da prodigalidade. E assim
economizar maiores estragos. Da forma
paradoxal, o dispendioso evita perder mais do
101
que ele dá. Eles demonstram que gastar é
economizar”. (ONFRAY, 1995. p. 118-119).
Neste sentido, Onfray defende o gasto como uma forma de economia.
Para ele, a possibilidade de estabelecer um cálculo onde se possa comprovar isto está na
perspectiva de que, em última instância, a vida será mais bem exercida. Segundo ele, a
vida pressupõe excesso e esse, por conseguinte, movimento em direção à desmedida. A
ética hedonista dirige-se a este transbordamento cujo percurso e forma serão
estabelecidos de maneira única e individual. No entanto, quanto maior a possibilidade
de conjugação entre as partes envolvidas na relação hedonista, maior será a simetria
ética. Estabelecer este arranjo dos prazeres entre o eu e o outro, ao mesmo tempo, será o
desafio do hedonista. Tal empreendimento ético terá sempre uma nova configuração,
um novo encontro e conseqüentemente uma nova disposição através de um conjunto de
forças e quereres que busquem uma tensão em equilíbrio. O ato que legitima o encontro
ético hedonista supõe o júbilo de si assim como do outro, numa busca de acordos e de
interesses que visa à justa medida. Assim, o exercício do prazer de um, altera e é
alterado pelo do outro, recortado por ações que permanentemente procuram o acordo.
Cabe a cada um encontrar e precisar as modalidades desse encontro, dirigidas à
elegância, à beleza e ao prazer, esculpindo o próprio estilo.
Michel Onfray associa seu Condottiere com a imagem do magnífico, um
homem do excesso e do transbordamento em direção ao prazer. Sua magnificência está
ligada ao gasto de energia e de vida que leve ao aumento da própria reserva energética.
O excesso é antes de mais nada, a coroação e o aumento da potência. Onfray defende
com isso, o gasto como prodigalidade visando o aumento da potência: o gasto como
enriquecimento do artista. Vemos isto em sua colocação:
“A magnificência é um motor hedonista.
Menos para os medíocres. Razão pela qual ela
102
é igualmente um princípio seletivo: ela efetua
uma triagem, clara, entre aqueles que
acumulam e aqueles que abdicam. O
magnífico compele à determinação, ele não
espaço à indiferença e obriga a cada um a
escolher seu campo. (...) Deixando para trás de
si os menos magníficos, porque mais
esgotados do que ele, mesmo ligeiramente, ele
funda sua solidão radiante em cima de um
ganho: ele conquistou a potência sobre si
mesmo, logo, sobre o real”.(ONFRAY, 1995.
p.126).
Michel Onfray ocupa-se em proporcionar uma precisa diferenciação
entre a ética hedonista e as morais praticadas pelo que ele julga práticas fora da
magnificência. Para ele, o capitalismo, o marxismo, os democratas e os defensores do
cristianismo são vistos como devoradores de excelência, de beleza e de grandeza. Em
resposta ao triunfo dessas morais, que segundo ele, estão impregnadas pelo ideal
ascético, o hedonista buscará no gesto magnífico um percurso que conduza a uma via de
excelência. Este percurso deverá ser traçado impondo-lhe importância tanto ao trajeto
como ao objetivo aonde se quer chegar. O percurso não está separado do objetivo: os
fins não justificam os meios. Para o Condottiere este movimento nunca cessa e está
sempre em construção, achegar o fim de seu percurso existencial que é a morte. Seus
caminhos levam em última hipótese, a considerar o indivíduo como ser solitário e o real
por inteiro, diante de si.
Onfray argumenta como falamos, em favor do gasto. Para ele, o
Condottiere gastará seu mais precioso capital, sua própria existência, com toda a
grandeza que lhe for possível e com toda beleza que for capaz. De um lado o autor
coloca a repetição e o comodismo; do outro a imaginação e a invenção de momentos
que levem a magnificência. De forma direta, o autor defende a escolha por caminhos
desconhecidas, para que sejam inventados por cada um na construção de sua existência.
103
Seu tempo será consumido de forma grandiosa, princípio de gasto e acessório da
invenção. O Condottiere, na condição de dispendioso procura definir que seu ritmo seja
estabelecido por si mesmo; num tempo controlado por ele e vivido por ele. A moral
dispendiosa do hedonista gastará seu tempo em cada instante exercido de forma livre.
Neste cálculo, o que leva em consideração é o agora, instante da quintessência,
momento único e eterno.
2.7- A amizade como conjugação de desejos
Michel Onfray dedica-se a pensar sobre uma das principais críticas que
marcaram historicamente o hedonismo, presente ainda hoje é: a de que ele seria uma
prática ética voltada para o egoísmo. Para o autor, é importante diferenciar o hedonismo
de um mero prazer vulgar e desconectado ao outro. Atualmente, confundido como
condição banal do capitalismo que estimula consumo e produz demandas de prazeres, o
hedonismo é freqüentemente desqualificado e comparado com o desejo barato,
irresponsável e descompromissado. Neste sentido, para Onfray, faz-se necessário pensar
o hedonismo dentro de uma discussão de valores. Qualquer discussão ética, assim,
deverá ocupar-se com a determinação dos limites: quais os marcos e linhas que serão
traçados para delinear condutas? Michel Onfray procura uma justa medida para
defender o materialismo hedonista.
O prazer pessoal, desconectado com o outro, argumenta, pode
rapidamente tornar-se um prazer contra o outro. O egoísmo e mesmo o egocentrismo
obedece à sua própria voz, desprezando os sinais e indicativos do outro. Para Onfray, a
ética hedonista reside na possibilidade de estabelecer um balanceamento dos prazeres,
que possibilite um constante arranjo de forças. Ela leva em consideração apenas a
possibilidade do prazer quando não desfavoreça a si nem ao outro. O hedonismo para
104
Onfray, pretende-se dinâmico e reconhece que não satisfação possível sem a
permanente consideração do prazer do outro. No entanto, isso não se por uma noção
de amor ao próximo, num sentido humanista, como coloca o autor. Mas por entender
que é com o outro que se estabelece o real sentido do eu. O gozo que é vivido por um
encontra seu significado e seu retorno quando a troca é simétrica. Quando esta simetria
se desfaz, falta de ética e conseqüentemente tendência para o egoísmo. Na procura
deste equilíbrio, Onfray defende a importância do outro como um espelho que auxilia
na própria identificação de cada um. Dentro de uma perspectiva utilitarista, o autor se
dirige para a produção de prazer em maior número possível de envolvidos, como vemos
em sua afirmação:
“De fato, o hedonismo é um utilitarismo, no
sentido anglo-saxão do termo, um cálculo de
interesse que permite lucros para ambas as
partes: suplemento de alma, aumentos de
volúpias, entesouramentos de prazeres, capital
jubiloso e dividendo em matéria de ser. Ele é
moral que necessita de um cálculo permanente
visando determinar, incessantemente, as
condições de possibilidades do máximo de
prazer para si e para o outro”. (ONFRAY,
1995. p. 145).
105
O Utilitarismo
52
como doutrina que considera boa ou certa a decisão ou
ação que traz mais benefícios ao bem da coletividade, e ou errada aquela que traz
menos benefícios ao coletivo, é de certa forma adotada por Onfray. O hedonismo será
tanto mais eficaz quanto visar mais pelo bem público ou a satisfação da maioria. Quanto
maior a possibilidade de haver coincidências entre o interesse particular e o coletivo -
sem que nenhum se sobreponha ao outro – melhor será o cálculo dos prazeres no
materialismo hedonista. Assim, gozar e fazer gozar é visto pelo autor como um arranjo
estabelecido entre as partes, visando um bem para a maior quantidade possível de
pessoas.
O materialismo hedonista inscreve-se contra o que Onfray define com
um utilitarismo vulgar, no qual o egoísmo funciona através de um movimento de
integração do outro numa perspectiva instrumental, que visa pura e simplesmente a sua
satisfação e a exclusão do outro. Uma relação ética hedonista leva em consideração a
satisfação dos desejos de ambas as partes. Ela instala-se quando um entendimento
52
O Utilitarismo é uma ética normativa que teve sua origem nas obras dos filósofos e economistas
ingleses do século XVIII e XIX, especialmente Stuart Mill. Para o Utilitarismo, uma ação é moralmente
correta se tende a promover a felicidade para o maior número possível de pessoas, e condenável se tende
a produzir a infelicidade de muitos, considerada não apenas a felicidade do agente da ação, mas também a
de todos afetados por ela. O Utilitarismo, assim, rejeita o egoísmo, opondo-se a que o indivíduo deva
perseguir seus próprios interesses, mesmo às custas dos outros, e se opõe também a qualquer teoria ética
que considere ações ou tipos de atos como certos ou errados independentemente das conseqüências que
eles possam ter e produzir sobre os demais
.
Segundo Julio Esteves (UERJ), o Utilitarismo foi muito
criticado, a começar pelas dificuldades implicadas nessa idéia da maximização da felicidade. Como é
possível calcular e comparar a proporção de felicidade produzida por diferentes ordenamentos político-
jurídicos? Além disso, a felicidade foi interpretada por seus defensores geralmente em termos hedonistas,
ou seja, da maximização do prazer, o que gerou a objeção segundo a qual, se o homem não tivesse
objetivo mais nobre na vida do que a busca da maximização do prazer, em nada diferiria dos porcos. Em
defesa do Utilitarismo, John Stuart Mill introduziu então uma hierarquização qualitativa no interior dos
prazeres, sustentando que determinados prazeres, os prazeres intelectuais, por exemplo, acessíveis aos
seres humanos, são em si mesmos melhores que outros, independentemente da sua quantidade. Assim,
segundo Mill, é melhor ser um homem insatisfeito do que um porco satisfeito; é melhor ser um Sócrates
insatisfeito do que um idiota satisfeito”. Contudo, a proposta de hierarquização qualitativa dos prazeres
também não resistiu a críticas.
106
do outro, conjuntamente ao meu. Como afirmei, este acordo deve ser traçado pelas
partes envolvidas, em definições que sempre necessitarão de novos acordos, pois estão
em permanente dinâmica. Por outro lado, buscará afastar-se do hedonismo vulgar, como
mostra o autor, que leva exclusivamente para a satisfação de um lado apenas. O
hedonista para Onfray, terá como compromisso ético permanentemente estabelecer o
cálculo dos júbilos com o propósito de um máximo de benefícios para um e para o
outro. Está sua condição de homem sublime: o hedonista busca sua singularidade e o
respeito à do outro. Quer conjugar sua diferença sem, no entanto, negar a diferença do
outro. O prazer vivido desta forma torna-se o princípio ético do materialismo hedonista
de Michel Onfray.
Como mostramos, o hedonista elegerá sua condição sublime a serviço da
paixão pela vida como obra aberta. Na construção desta obra aberta, percorrerá
caminhos que estão entre os cimos e recusará o instinto gregário quando possa diminuir
sua autonomia; irá aventurar-se pela solidão quando não for possível estabelecer
relações éticas hedonistas e o alto preço que isso gera do abandono de si. Seu desafio
será estabelecer o prazer como bússola que oriente traçados inexplorados, articulando
com outros traçados, onde não haja imposição de nenhuma das partes envolvidas. A
partir da afirmação de Nietzsche, em Gaia Ciência (2001): “Para mim é tão odioso
seguir quanto guiar”, Onfray elabora seu personagem como um hedonista autônomo
que encontra no outro, elementos que se conjugam aos seus para o exercício da
diferença. O confuso e o indistinto, o obscuro e o sombrio serão os locais de onde
germina o sublime, tornando-se condição ímpar para o advento da ética hedonista.
Sobre esta noção de sublime, Onfray argumenta:
“Dentro da maior plenitude do ser, dentro da
vida mais intensa, a mais elevada e a mais
profunda, dentro dos prazeres mais fortes,
mais densos, mais ricos e mais próximos das
107
partes malditas solicitadas, nos momentos de
maior proximidade com a energia psíquica
requerida, apesar dos efeitos temíveis que por
vezes se lhe devem, dentro de todas essas
formas exuberantes se encontra o sublime”.
(ONFRAY, 1995. p. 161).
Michel Onfray reivindica junto a esta postura sublime uma atitude
aristocrática na relação com o outro. O aristocrata viverá conforme sua ordem,
estabelecendo sua diferença em relação aos demais. Ele coloca-se contrário à moral
igualitarista, presente tanto no cristianismo como no comunismo, por exemplo, e
exercida pela noção de amor ao próximo. Esta abstração, segundo o autor, torna-se
contrário a diferenciação e ao exercício da singularidade. Onfray argumenta que para o
cristianismo o próximo é qualquer um, desde que seja um filho de Deus, indistinto no
meio da multidão fiel. Na moral igualitarista cristã, todos devem amar ao seu próximo
como a si mesmo, pois assim é ensinado e assim deverá ser obedecido. Quanto mais
amar o próximo, mais se agradará a Deus, e com isso a promessa de recompensa no
futuro. O outro para a doutrina de Cristo é desprovido de qualquer singularidade.
Apenas quando foge dos interesses do cristianismo, este outro passa a ser não apenas
diferente, mas visto como um mal a ser banido.
Michel Onfray defende que é preciso estabelecer no exercício da moral
hedonista e aristocrática um princípio seletivo na relação com o outro, que busque
eleger os que estão mais próximos de si, daqueles que se remetem a outros círculos
mais distantes. Esta será uma opção própria, seguindo o próprio desígnio, jamais por
imposição de uma moral universal pré-estabelecida ou por qualquer noção de Bem
que se coloque a priori. Para o autor, será o próprio julgamento, a partir das
informações que são dadas pelo demais, num conjunto de circunstância que são
transmitidas por seus comportamentos, atitudes e sinais, que se escolhe ou não pela
108
possibilidade de encontro e troca ética. O princípio seletivo será, pois, absolutamente
individual, jamais genérico; se inscreverá a cada instante de realidade e estará em
permanente movimento. A eleição das afinidades eletivas quer os prazeres mais
numerosos, no entanto, também os de melhor qualidade como mostra Onfray:
“O princípio aristocrático obriga à
atenciosidade, virtude cardinal de uma ética
hedonista. (...) As afinidade eletivas têm por
único objetivo a realização de uma aritmética
dos prazeres no sentido de um aumento das
ocasiões para jubilar, conjuntamente a uma
drástica diminuição dos motivos para sofrer. À
proximidade de si se acharão aqueles que nos
darão o máximo de prazer e a quem, em
retorno, trata-se de devolver o mesmo, ao mais
longe, àqueles que nos fornecem razões para
desconfortos e dores. (...) O instrumento desta
preocupação, da atenciosidade, é a polidez,
princípio ativo dentro da dinâmica dos
círculos”. (ONFRAY, 1995. p. 169).
O Condottiere buscará aqueles que estão mais próximos de uma troca
equilibrada, celebrando encontros que lhe possibilitarão maiores e melhores prazeres,
assim como se afastará daqueles que fornecerem motivos para desconforto e dor. O
materialismo hedonista de Onfray aposta numa diferenciação entre os seres mais ou
menos valorosos para si, estabelecendo uma tensão ocupada na relação com o outro. A
simetria será, então, perseguida como princípio básico de uma relação ética hedonista,
em maior número possível, na mais justa e precisa medida.
Michel Onfray identifica então a amizade
53
como a principal e mais
sublime das relações éticas. No alto das possibilidades das virtudes, a amizade é eleita
53
Sobre este tema, é vantajosa a análise do livro “Éticas dos Amigos inversões libertárias da vida”
(2003), onde Edson Passetti estabelece um cruzamento entre o pensamento de Niezsche e Stirner ao
afirmar: “meu amigo é meu melhor inimigo”, num encontro que desestabiliza o outro, mas não o
subordina. O que interessa ao autor é apontar para a noção da amizade como espaço de invenção libertária
de vida e exercício de singularidade. A amizade será para Passetti o referencial de uma relação horizontal
e livre.
109
pelo autor como a mais soberana e afirmativa das formas de relação com o outro. Ela é
eletiva, na medida em que se por livre associação, num encontro que passa ao lado
do jogo social. A amizade instala-se numa comunidade de pessoas concordantes por
escolha mútua, sempre provida de uma carga de afetividade. Fundada na cumplicidade,
ela tende a tornar-se a justa medida do exercício hedonista: a virtude sublime por
excelência, como afirma Onfray:
“Escolher um amigo é, de certa maneira, ser
escolhido por ele, o que demonstra as
primeiras cumplicidades, como uma
autorização para um compromisso nesta
direção. (...) Eletiva, a amizade é aristocrática
e associal. Na relação com o mundo, ela é
provedora de uma força que isola do resto da
humanidade. Através dela advém a
singularidade de cada um, que autoriza, na
escultura de si, o recurso ao outro como a um
espelho que se pode interrogar sem risco de
obter um reflexo infiel”. (ONFRAY, 1995. p.
173-174).
É no encontro entre amigos, que se inscreve um pacto de respeito e
valorização da singularidade, entre ambas as partes, para a confecção da bela
individualidade. Com o amigo é possível estabelecer um acordo de colaboração de si e
do outro, elevando a prática do hedonismo a um equilíbrio para ambas as partes. Alvo
de interesse desde os gregos
54
, a amizade na Antiguidade instalou-se dentro de uma
civilização misógina, regulando a relação entre os homens baseada na qualidade viril. A
virtude guerreira, possuidora de virilidade, era vista como modalidade de relação ideal
com o outro. Bem diferente com a entendemos hoje, a amizade na Antiguidade é
datada, seguindo esta perspectiva histórica.
54
Segundo Aristóteles, a amizade é uma virtude ou está estreitamente unida à virtude: de qualquer forma,
é o que há de mais necessário à vida, já que os bens que a vida oferece como riqueza, poder, etc., não
pedem ser conservados nem usados sem os amigos. A amizade deve ser distinguida das duas coisas com
as quais mais tem afinidade: o amor e a benevolência. Além de Aristóteles, a amizade também foi
exaltada pelos epicuristas. (Abbabnano, 2003).
110
A amizade para Onfray, sob o ponto de vista da atualidade, possibilita
novas formas de interação que garantem às partes envolvidas uma relação hedonista e
libertária. É com a amizade também que a solidão quase que desaparece, cedendo
espaço ao encontro e à troca. Nunca se está quando encontros entre amigos, numa
justa medida de convivência. No entanto, isso não exclui a total independência do outro,
uma vez que a amizade não se estabelece por um contrato social, mas apenas entre
individualidades autônomas. A amizade, desta forma, está acima das leis, do direito, da
sociedade e das instituições sociais representadas pelo Estado, pela família ou pela
Pátria. Segundo Onfray (1995), somos amigos antes de sermos cidadãos e, por vezes,
apesar e contra o estado de cidadão. Michel Onfray não coloca a amizade em choque
com o individualismo, mas ao contrário, acredita que a própria individualidade se
constitui na interação com o outro e está em permanente movimento. Já a solidão e a
necessidade de estar é uma condição diante da vida, exercida de maneira singular e
que tem no encontro com o outro, um momento de troca sem que interfira na autonomia
entre os membros da interação.
Para Onfray, a amizade instala-se nos instantes de uma relação, em
momentos únicos que podem ser desenvolvidos por longas durações, porém nunca se
torna estagnada ou definitivamente estabilizada. Seu constante movimento é a garantia
da necessidade de continuar sempre investindo nela. Sua virtude está atrelada à noção
de provas de amizade, contra a idéia de uma relação adormecida num ponto qualquer.
Assim, ela deverá sempre estar sendo exercida para que esteja viva; deve-se cuidar,
cultivar e fazer crescer por um investimento mútuo que visa o preenchimento dos
espaços que une os amigos. Segundo Passetti (2003), “A amizade supõe respeito ao
outro independentemente do respeito à lei, causa do respeito moral. Respeita-se o amigo
sem a exigência da lei, supondo um amor pelo outro a ser cultivado. É um amor
diferente daquele entre homem e mulher fundado na atração e que contradiz o respeito
por supor certo distanciamento. O amor da amizade é simpatia”. (p. 207). A amizade
então, se torna o combustível da ética libertária e hedonista: o cuidado, a doçura, a
paciência e a entrega numa relação de cumplicidade entre indivíduos.
111
A amizade inscreve-se no equilíbrio de dar e receber, equalizando o as
trocas entre as partes. Esta noção de amizade a partir de um acordo mútuo é visto por
Onfray dentro de uma perspectiva libertária
55
. Para ele, o amigo é o único a promover a
perda de sentido do isolamento e da solidão. No materialismo hedonista, a amizade é
elevada ao grau de arte, que possibilita amenizar dores, instaurar a paz interior e o
prazer. Segundo o autor (1995), “No registro hedonista, a amizade é o princípio de
harmonia pelo qual, ao realizar a partilha dos afetos, aumentam-se as alegrias e se
diminuem as dores do amado, assim como as suas próprias. A amenização da aflição
induz inevitavelmente o aumento de prazer”. (p. 177). Este encontro que possibilita a
troca é um espaço privilegiado para dividir indecisões, trazendo oportunidades de
resolução. É com o amigo que possível compartilhar-se conflitos, numa escuta que
ameniza a dúvida e leva o sujeito indeciso a formular suas conclusões, e sozinho
encontrar uma solução.
Michel Onfray valoriza o uso da linguagem como canal de comunicação
no encontro amigo com o outro. No entanto, defende a boa comunicação entre as partes
envolvidas na relação de amizade. Segundo ele, a ética fica comprometida quando
ausência de sinceridade, através de jogos de mentira, ironia e sarcasmos. Para Onfray
(1995), as virtuosidades lingüísticas exigem interlocutores dignos dela. É preciso que
haja, portanto, uma relação entre a palavra e o sentido, o verbo e o ato. Por outro lado,
havendo perda na qualidade da comunicação, conseqüente perda do equilíbrio, o que
leva à renúncia da relação sob pena de sofrimentos, dores e angústias. O hedonismo
55
Considerado um precursor do anarquismo, Éttiene de La Boétie, em seu Discurso da Servidão
Voluntária (1982), afirma: “A amizade é um nome sagrado, é uma coisa santa; ela nunca se entrega senão
entre pessoas de bem e se deixa apanhar por tua estima, mantém-se nem tanto através de benefícios
como através de uma vida boa; o que torna o amigo seguro do outro é o conhecimento que tem de sua
integridade; as garantias m são sua boa vontade natural, a e a constância. (...) Os deveres comuns da
amizade são, “amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e muitas
vezes, diminuir nosso bem estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que merece”.
(p.36).
112
assim, ocorre nas intenções manifestas, claras, dentro da realidade e da prática, nunca
nas ilusões ou nas hipóteses.
Em todos os campos da interação com o outro, a amizade procura o
mútuo consentimento. Um propõe e o outro aceita ou não o contrato de relação, dentro
de uma escolha eletiva e de uma livre associação. Segundo Onfray, na ética hedonista
não espaço para a sobreposição de um desejo sobre o outro, a imposição de um
querer sem a clara aceitação da outra parte. Isso quebraria o contrato hedonista e
libertário que Onfray busca defender. O materialismo hedonista coloca-se claramente
em defesa de uma justa medida, lançando-se no combate a qualquer forma de poder que
pretenda formar relações hierarquizadas. Desta forma, Michel Onfray assume uma
postura militante por uma arte de viver construída pela filosofia, ou seja, pela
interpretação do mundo através da razão e da reflexão. Também por um ateísmo sólido
e engajado, distante de todo niilismo. Sua obra ainda em construção procura deixar em
evidência um materialismo alegre, libertário, sensual e feliz. O encontro da moral
hedonista com o anarquismo presente em sua proposta quer ampliar, como vimos, esta
vontade de viver o prazer, em suas mais variadas formas, de maneira completa e
intensa, sem o prejuízo da autonomia de nenhuma das partes da relação. O cruzamento
entre o hedonismo e a estética da existência como forma de esculpir o próprio estilo,
encontra na atitude libertária uma maneira de atuar horizontalmente, rompendo
hierarquias e imposições de caprichos egoístas. Esta atualização do pensamento
anarquista proposta pelo filósofo é a forma encontrada por ele para contrapor-se aos
microfascismos do cotidiano. A amizade é assim, eleita como princípio virtuoso de uma
relação hedonista, inscrevendo-se no campo das sociabilidades horizontais e distantes
dos universalismos. A aposta de Michel Onfray está apoiada na construção de espaços
libertários que se dêem nas esferas do micropolítico, no dia-a-dia e que tenha no corpo
113
uma referência de prazer na militância. Esta posposta filosófica nos leva assim para o
estabelecimento de relações que aconteçam na realidade prática, de maneira hedonista,
jubilosa e libertária. Projeto ousado, que apesar de encontrar-se em desenvolvimento,
mostra como o autor pretende estabelecer sua crítica e sua postura diante da atualidade.
114
Conclusão
Este estudo propôs-se a uma apresentação do materialismo hedonista de
Michel Onfray. Provavelmente é a primeira oportunidade que a obra autor francês é
estudada dentro de uma instituição acadêmica brasileira. Este caráter inaugural que o
trabalho assume, torna uma de suas singularidades. Apesar de Michel Onfray ser um
autor bastante lido e prestigiado atualmente na Europa, especialmente na França, sua
obra e seu pensamento não faz parte de tradição universitária, nem aqui nem no exterior.
Seus livros publicados no Brasil ainda são muito pouco em relação à sua obra de mais
de trinta volumes.
Pensar a ética hedonista, num mundo marcado cada vez mais pelo
consumo descartável e pelo prazer fácil e imediato que o capitalismo pós-industrial tem
produzido, é uma tarefa bastante ousada e pretensiosa que Michel Onfray se propõe.
Seu desafio está em estabelecer as vias que possibilitem a superação do niilismo
contemporâneo, o que torna seu materialismo hedonista uma rica e contemporânea
resposta às questões de nosso tempo. O autor pretende realizar este objetivo, através da
escolha da elegância e do prazer, que servem de guia na elaboração e confecção para
que cada um possa esculpir sua própria estátua. O Bem deixa de ser assim apenas um
valor ético, para também tornar-se um valor estético. Apoiando-se no Condottiere, seu
personagem conceitual, Onfray elabora uma moral que elege a exaltação da vida e seu
caráter trágico com condição primordial da existência.
Michel Onfray nos mostra a possibilidade de estabelecer uma filosofia
onde não se despreze a matéria e o sensível em função de um mundo exclusivamente de
idéias, mundo esse tão presente em outras doutrinas filosóficas. Também nos traz a
115
possibilidade do prazer como recurso ético para a construção da existência de forma
jubilosa e alegre, numa luta explícita contra os ideais ascéticos e contra as demais
tradições. No encontro entre o materialismo hedonista e a prática anarquista, ele defende
uma postura rebelde e insubmissa, capaz de criar uma resistência feroz e contínua contra
as práticas de poder que visam aniquilar a produção da singularidade do indivíduo.
Ocupa-se dessa forma em pensar uma postura libertária no presente, atualizada ao nosso
tempo histórico e que propicie a criação da radical e bela individualidade. Contra a
proliferação de microfascismos cotidianos, a aposta no indivíduo e sua soberania, a
aposta no autogoverno, a aposta na criação cotidiana do modo de vida como obra
original e prazerosa: radical estética da existência; gozo de existir.
A proposta ética de Michel Onfray, aqui expressa através do
materialismo hedonista como vimos, parte de sua interpretação da obra nietzschiana,
para estabelecer uma possibilidade de enfrentamento e de superação do niilismo
contemporâneo. Para combatê-lo, Onfray valoriza as escolhas, a defesa da singularidade
e da diversidade e, sobretudo a eleição hedonista. Defende ainda a busca de equilíbrio
no exercício de jubilação entre o eu e o outro, que se tornará o desafio para o hedonista.
Neste sentido, o autor aponta na amizade o encontro virtuoso de uma prática hedonista
por excelência.
São estes os ingredientes que fazem de Michel Onfray um defensor do
prazer e do júbilo, para confeccionar seu projeto ético hedonista. O objetivo deste
estudo foi apresentá-lo como pensador atual, capaz de fornecer respostas originais as
questões de nosso tempo. Como afirmamos, seu pensamento ainda requer
desenvolvimento e densidade para poder sustentar-se como um sistema filosófico. Seu
desafio assim será constituir este amadurecimento, para que o materialismo hedonista
possa de fato estabelecer as condições necessárias para o enfrentamento do niilismo.
116
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