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Marcos Guterman
O Futebol Explica o Brasil:
o Caso da Copa de 70
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em História, sob a orientação
do Prof. Doutor Antonio Pedro Tota
São Paulo
Maio de 2006
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2
Guterman, Marcos
Título: O Futebol Explica o Brasil
Subtítulo: O Caso da Copa de 70
Número de folhas: 155
Grau: Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de SP
Orientador: Antonio Pedro Tota
Palavras-chave: futebol, ditadura militar, governo Médici, identidade nacional
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Banca examinadora
_____________________________________________________
_____________________________________________________
_____________________________________________________
4
Dedicatória
Dedico este trabalho à minha mulher, Patrícia,
por sua amorosa compreensão; a meus pais, Henrique e
Rachel, por terem me ensinado a lutar; e a meus filhos,
Samuel e Miguel, pela infinita inspiração.
5
Agradecimentos
Agradeço em primeiro lugar ao meu orientador, Antonio Pedro Tota, mestre
dos mestres e meu grande amigo. Agradeço também à professora Denise Bernuzzi
Sant’Anna, por acreditar em mim desde o princípio, e ao professor Fernando
Abrucio, por cujas mãos este trabalho começou.
Quero agradecer também ao Banco de Dados da Folha de S. Paulo e ao
Arquivo do Estado, que me prestaram inestimável ajuda; à banca de qualificação,
que me deu preciosas indicações no momento certo; e ao Adriano Marangoni, um
amigo que sabe ouvir.
6
Resumo
Esta dissertação tem como objetivo compreender as relações entre futebol,
política e sociedade no Brasil, considerado por todo o mundo como o “país do
futebol”.
A intenção, aqui, é ver o futebol como um dos mais importantes veículos
pelos quais os brasileiros se expressam e superam suas diferenças regionais e
sociais. A necessidade dessa abordagem é urgente, na medida em que esse esporte
de massa -- embora mobilize todo o país, praticamente o ano inteiro, há décadas --
sempre foi tratado como tema menor pela elite acadêmica do Brasil.
O auge das relações entre futebol e política -- e, igualmente, o auge do
preconceito da intelectualidade nacional em relação ao futebol -- se deu na Copa de
1970, razão pela qual esse foi o evento escolhido para este estudo.
Considerada pelo pensamento de esquerda como a prova de que o futebol
serve como meio de manipulação das massas, a Copa de 1970 é também a
realização de um certo ideal nacional -- que, claro, servia aos interesses da ditadura
militar, mas, ao mesmo tempo, e talvez em primeiro lugar, tornou-se o ambiente de
uma autêntica manifestação de regozijo pela superioridade do país em algo tão caro
aos brasileiros. Essa manifestação pode ter servido ainda para extravasar
sentimentos represados pelo sistema repressivo instalado no país, e as grandes
comemorações pelas vitórias brasileiras, em muitos momentos, podem ter sido
também oportunidades para a reocupação dos espaços públicos, seqüestrados pela
ditadura.
Este trabalho se utilizou basicamente de veículos de imprensa da época para
tentar reconstituir o clima de então. Embora sob censura, os jornais registraram em
cores vivas todo o ambiente de crise, tensão, júbilo e manipulação criado em torno
da Copa de 1970 e do projeto da ditadura de transformar o Brasil em uma potência.
7
Abstract
This dissertation is aimed at understanding the relations between soccer,
politics and society in Brazil, viewed by the entire world as the “Country of
Soccer”.
The intention here is to consider soccer as one of the most important vehicles
used by Brazilians to express themselves and to overcome their regional and social
differences. This approach is urgent, because this mainstream sport, although it
mobilizes the entire country during the most part of the year, and for the last
decades, have always been treated as a minor issue by the Brazilian academic elite.
The climax of these relations between soccer and politics -- and, equally, the
climax of the national intellectuals prejudice against soccer -- happened during the
70’ World Cup, and that’s why this event was chosen to be studied.
Viewed by the leftist thinking as the proof that soccer can be used to
manipulate people, the 70’ World Cup is the materialization of a certain national
ideal -- which, of course, served to the dictatorship interests, but, at same time, and
maybe in first place, became the environment of an authentic expression of joy
because of the country’s superiority in an area so esteemed by the Brazilians. This
expression could have also served to overflow feelings suppressed by the
repressive system settled in the country, and the huge street parties to celebrate the
Brazilian victories, in many moments, can have been also opportunities to reoccupy
the public places, “kidnapped” by the dictatorship.
This work was written basically using the account made by the newspapers
of that time, in order to rebuild that environment. Although there was censorship,
the newspapers have registered in true colors all that atmosphere of crisis, tension,
joy and manipulation which was created during the 70’ World Cup and because of
the dictatorship project designed to transform Brazil into a powerful and united
country.
8
Sumário
1. Introdução ........................................................... ...................................9
2. Futebol: modelos teóricos e debate ideológico .....................................16
2.1. Futebol como fator de afirmação social...........................................16
2.2. Futebol como elo social...................................................................19
2.3. Futebol como violência ritual e drama.............................................22
2.4. A paixão do futebol no Brasil...........................................................29
2.5. Futebol como Identidade nacional...................................................33
2.5.1. Futebol arte x futebol força....................................................33
2.5.2. Superioridade e inferioridade nacionais................................37
3. O falso dilema moral da Copa de 1970..................................................46
3.1. A má vontade da intelectualidade de esquerda.............................46
3.2. As diversas manipulações de um grande evento...........................53
3.3. Exploração política.........................................................................58
4. A ditadura e a Copa de 1970: relações..................................................61
4.1. Médici, um torcedor........................................................................61
4.2. A apropriação do futebol no discurso político................................68
4.3. Política de união nacional pela via do futebol................................77
4.4. O regime visto pela seleção brasileira: o caso João Saldanha......82
4.5 O “neo-ufanismo”...........................................................................108
5. A reação dos torcedores.......................................................................130
5.1. O efeito da televisão.....................................................................130
5.2. A mobilização nacional.................................................................136
6. Conclusão.............................................................................................147
7. Bibliografia............................................................................................150
9
1. Introdução
O futebol é um campo fértil para a produção de mitos e lendas na vida
nacional. Esse esporte, no Brasil, tem peso equivalente ao de uma religião oficial.
Diz-se que um menino brasileiro, ao nascer, recebe um nome para honrar, uma
crença religiosa para seguir e um time de futebol para torcer. Ignorar qualquer uma
dessas três heranças é visto como uma inominável traição. A importância do
futebol, portanto, o coloca como elemento fundamental para a compreensão do
mundo brasileiro, e isso obviamente inclui o campo da política.
O caso da Copa de 1970 talvez seja o melhor meio para compreender até que
ponto o futebol contamina as estruturas sociais e de poder no Brasil. O
tricampeonato mundial conquistado pela seleção brasileira no México freqüenta o
imaginário do país de várias maneiras: para os amantes do futebol, aquela equipe
representou o auge de toda a potência brasileira nesse esporte e além, isto é,
mostrou que o brasileiro pode ser forte e competitivo sem abrir mão de sua graça;
para alguns dos que se empenharam no combate ao regime militar e para boa parte
dos intelectuais de esquerda, o triunfo e os festejos que se seguiram a ele
significaram uma odiosa chancela ao arbítrio estabelecido no país pelos generais; e
para o governo de Emílio Garrastazu Médici, que teve a sorte de ser o presidente do
Brasil na época dessa conquista mágica, a vitória na Copa significou uma
oportunidade singular para se legitimar no momento em que esmagava a oposição
em busca de “união nacional” para o projeto de desenvolvimento e de poder dos
militares.
10
A historiografia e mesmo a produção artística que relacionam a Copa de
1970 e o governo Médici geralmente destacam a “manipulação” ardilosa que o
regime militar fez da conquista da seleção com o objetivo de encobrir a repressão
que foi a marca da ditadura na ocasião. Como todo episódio relacionado ao futebol
no Brasil, porém, este também é objeto de muitos palpites e pouca consistência
documental. No caso específico da Copa de 70, sobram episódios obscuros,
interpretações enviesadas e açodamento ideológico, resultando num quadro que,
no limite, tira os acontecimentos do campo da história e os joga para o campo das
paixões -- nada menos surpreendente, em se tratando de política e futebol.
Minha pesquisa se dedica a mostrar que, de fato, Médici escorou-se na
conquista do tricampeonato no México para alimentar a retórica do Estado
nacional-desenvolvimentista e justificar a repressão desenfreada àqueles que o
regime classificava de “terroristas”, mas essa utilização não pode empanar outros
tantos fatores em jogo, sobretudo, e antes de mais nada, a importância crucial do
futebol na vida brasileira, independentemente do governante de turno. Não é
possível falar desse esporte como se ele fosse uma coisa menor, extemporânea, sem
conexão com uma miríade de aspectos sociais do Brasil, quase todos fundamentais
para decifrar o comportamento dos brasileiros na época em que se localiza o objeto
desta pesquisa. Por essa razão, a parte inicial deste trabalho se dedica a entender a
paixão do futebol, desde os motivos pelos quais esse esporte se tornou um
fenômeno de alcance mundial até os fatos que o tornaram uma das principais vias
de manifestação social do Brasil, senão a principal. Antes de perceber o futebol
meramente como instrumento político a serviço das elites para o controle das
11
massas, como grosseiramente esse esporte é visto segundo certo pensamento da
esquerda brasileira, é preciso investigar a estrutura dessa prática esportiva, para
entender sua magia particular, única, aquela que lhe confere essa ubiqüidade
mundial que a distingue de todos os demais esportes de massa.
O passo seguinte é entender como um esporte de caráter planetário pode ser
tão identificado com um país em particular -- o Brasil. Em meio à mitologia do
futebol brasileiro, há aspectos muito reais e presentes que usualmente são
ignorados nas análises apressadas sobre o tema. Nesse campo, a sociologia entra
como ferramenta indispensável, antes mesmo da história, porque interessam menos
os fatos esportivos e mais os mecanismos de influência do futebol na sociedade
brasileira, em dois pontos cruciais: o efeito saneador de diferenças sociais e a
formação da identidade nacional.
Há claramente, como veremos, dois campos opostos nesse debate. O
primeiro deles defende o entendimento do futebol como um elemento agregador
fundamental para um país das dimensões do Brasil. O futebol, para esses
estudiosos, é um meio estratégico de superação de particularidades regionais ou de
classe, muitas vezes conflitantes, atingindo-se uma uniformidade temporária. Eis a
semente da identidade nacional, segundo essa visão: a partir da “trégua” nas
diferenças, surgem laços comuns que podem mover um país na direção do “novo”.
Nesse aspecto, a tese do futebol como “ópio do povo”, tão comum quando o
assunto é a Copa de 70, é vista como um obstáculo conceitual para a compreensão
geral dos fatores envolvidos no debate. A capacidade mobilizadora do futebol não é
tomada como um problema, mas sim como solução social, ainda que provisória,
12
para as diferenças classistas.
No campo dos defensores da tese do futebol como “ópio”, por outro lado,
essa destruição de fronteiras sociais é encarada como mais um poderoso mecanismo
alienante das massas à disposição das elites. Para esses pensadores, o futebol é
“aparelho ideológico do Estado”, e a celebração da Copa foi uma manipulação
grosseira da ditadura para esconder a repressão.
De acordo com essa reflexão, há somente dois elementos em questão, o
manipulador e o manipulado, sem meios termos nem nuanças. O relato de Alfredo
Sirkis em Os Carbonários (1980) sobre a reação de mal-estar do grupo armado em
que militava após o triunfo da seleção, conforme veremos adiante, ajuda a entender
esse ponto de vista: comemorar o tri significava, em última análise, compactuar
com o regime. A formação de uma identidade nacional propiciada pela celebração
dos torcedores, aqui, é encarada como uma rendição involuntária ao poder das
elites, protegidas pelo regime militar que ajudaram a instaurar.
Nem com o fim da ditadura essa conclusão foi seriamente contestada.
Cristalizada como “verdade”, ainda que não esteja escorada em documentação
séria, a idéia “impressionista” ainda freqüenta os trabalhos que mencionam a Copa
de 1970, que dão destaque excessivo à idéia de manipulação pura e simples,
ignorando o poder social e cultural do futebol no Brasil.
É preciso questionar, também, qual foi o papel da Copa de 70 naquele que se
pode chamar de “instante mágico” do Brasil, isto é, o momento em que o país
passava por um surto de crescimento econômico sem paralelo em sua história e, por
essa razão, vivia a fantasia de ser potência mundial com identidade própria. O
13
futebol vistoso da seleção tricampeã do mundo entrou em 1970 com peso
equivalente ao das obras de grande envergadura construídas pela ditadura, isto é,
servia como prova da maturidade brasileira para sair do atraso atávico e ingressar
no Primeiro Mundo, segundo se dizia na época.
Esse quadro parece dar razão aos que criticam o futebol como elemento de
manipulação popular por parte do regime militar -- segundo essa visão, Médici
fingia ser um amante do futebol como uma estratégia para identificar-se com a
massa de iletrados que, alienada, apoiaria o governo ditatorial contra uma oposição
desorganizada e sob censura. No entanto, salvo por uma ou outra iniciativa
coordenada entre ministros e políticos governistas para explorar politicamente o
futebol e exaltar a “brasilidade“ de Médici como torcedor, a “manipulação” da
Copa de 1970 não se deu de forma estruturada, isto é, não havia um projeto de
exploração do evento esportivo por parte da ditadura. E Médici efetivamente
gostava do esporte, de acordo com relatos diversos e insuspeitos, o que torna a
coisa toda muito mais complexa do que o surrado rótulo da “manipulação“ deixa
entrever. Ignorar esse perfil “torcedor” do presidente é deixar de lado um dos
aspectos mais esclarecedores da relação entre o futebol e o governo Médici, razão
pela qual um dos capítulos deste trabalho se dedica especificamente a estudá-lo.
É necessário perguntar, ainda, se o movimento ufanista que se verificou na
época da conquista da seleção no México, geralmente atribuído à ditadura, já não
estava em gestação, faltando-lhe a ignição que a Copa evidentemente
proporcionou. A mitologia de 1970 vincula ao governo slogans que haviam sido
criados fora dele, como “Brasil: ame-o ou deixe-o” -- que acabou se tornando, para
14
todos os efeitos, o mote da ditadura. Ou seja: a conjuntura da ocasião -- a Guerra
Fria, a luta armada, a retórica governista de “guerra ao terror”, a censura, o
“milagre econômico” -- era muitas vezes mais determinante para a construção do
clima de confronto nacionalista e patriótico que acabou por se estabelecer do que
propriamente as eventuais estratégias de propaganda do governo para disseminar
seus valores, como o orgulho nacional e o senso de ordem e dever. Pelo contrário, a
idéia de confronto, em alguns aspectos, contrariava os objetivos “pacificadores” do
governo militar. Estudar o contexto do país naquela época é, portanto, a melhor
forma de entender como o futebol e a seleção brasileira tricampeã do mundo se
enquadram no cenário das expectativas do governo para, digamos, “domar” o
ufanismo e colocá-lo a serviço do projeto dos militares.
É importante saber, enfim, se as massas que foram às ruas festejar a vitória
no México não estavam aproveitando a situação para um “desabafo” que a
máquina da repressão impediria em qualquer outra circunstância – ou seja,
diferentemente do que certo discurso de esquerda perpetuou, os brasileiros que
festejaram a conquista de 70 talvez não estivessem tão alheios ao que se passava no
Brasil de Médici.
É uma hipótese de difícil comprovação, mas as pistas disponíveis sugerem
sua validade. Há relatos jornalísticos que, mesmo produzidos por veículos sob
censura ou em cumplicidade com o regime, são indicativos de que houve
manifestações populares que não se limitavam a festejar o tricampeonato mundial –
elas talvez servissem também para reocupar o espaço público das ruas, fechado, no
regime de exceção, pelos seguidos Atos Institucionais, sobretudo o AI-5, de
15
dezembro de 1968.
A reconstrução histórica dessa época, portanto, exige compreender, sem o
véu das ideologias, de que modo uma expressão de cultura popular de grande
envergadura, como o futebol, foi apropriada por um governo ditatorial e quais as
respostas que esse processo desencadeou, analisando o papel de cada setor
envolvido – o governo, a seleção brasileira de futebol, os torcedores, os políticos e a
imprensa –, separadamente e no conjunto das relações sociais e políticas.
16
2. Futebol: modelos teóricos e debate ideológico
2.1 Futebol como fator de afirmação social
Os poucos estudiosos que se dedicaram a entender os efeitos do futebol
sobre a sociedade brasileira e seus desdobramentos institucionais coincidem num
ponto: o de que o futebol, por todos os seus significados, funciona como importante
elemento de aproximação numa dada sociedade. Em oportunidades críticas, como a
disputa de uma Copa do Mundo, então, essa característica é robustecida pelo
caráter nacionalista e patriótico, muito útil a regimes como o militar. O futebol “é
um poderoso instrumento de integração social”, através do qual “a sociedade
brasileira experimenta um sentido singular de totalidade e unidade, revestindo-se
de uma universalidade capaz de mobilizar e gerar paixões em milhões de
pessoas”.
1
Esse esporte resolve simbolicamente as desigualdades econômicas do
cotidiano, sendo, por esse motivo, o modo pelo qual uma parcela significativa dos
brasileiros quebra a hierarquia a que está submetida. “Num país onde a massa
popular jamais tem voz e quando fala é através de seus líderes, dentro das
hierarquizações de poder, a experiência futebolística parece permitir uma real
experiência de ‘horizontalização do poder’”, afirma o antropólogo Roberto
DaMatta, um dos maiores estudiosos dos efeitos do futebol na sociedade brasileira.
“Assim o povo vê e fala diretamente com o Brasil, sem precisar de seus clássicos
1
HELAL, Ronaldo. Passes e Impasses - Futebol e Cultura de Massas no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1997, p.25
17
intermediários, que, sistematicamente, totalizam o mundo social brasileiro para ele,
e em seu nome.“
2
Além de ser um mecanismo de atuação coletiva, o futebol no Brasil serve
para proporcionar a sensação de vitória às classes que não conhecem outras formas
de vencer em meio a um profundo desnível de oportunidades. Mas seu principal
trunfo, segundo DaMatta, é proporcionar à sociedade brasileira “a experiência da
igualdade e da justiça social”, porque, “produzindo um espetáculo complexo, mas
governado por regras simples, que todos conhecem, o futebol reafirma que o
melhor, o mais capaz e o que tem mais mérito podem efetivamente vencer”. Ou
seja, ter relações privilegiadas, pertencer a uma família importante, possuir títulos
acadêmicos, conhecer pessoas influentes e poderosas – elementos que garantem
poder e ascensão social no Brasil – não têm nenhuma importância ou lugar dentro
do campo de futebol. E DaMatta completa:
“Nesse sentido profundo, portanto, o futebol nos dá uma potente lição de democracia,
pois, vendo nosso time jogar, as leis têm de ser obedecidas por todos, são universais, são
transparentes, e há um juiz que as representa no calor da disputa. Além disso fica
assegurado que, diferentemente da experiência política corriqueira, as regras não podem ser
mudadas nem por quem está perdendo nem por quem está ganhando. (...) No futebol,
portanto, não há golpes”.
3
Mesmo eventuais desvios de conduta da parte da organização da partida
não eliminam o perfil democrático do jogo, tornando o futebol o “reino da
2
DAMATTA, Roberto (et. al.). Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1982, p. 34.
3
DAMATTA, Roberto. “Antropologia do óbvio - Notas em torno do significado social do futebol brasileiro”.
In: Revista da USP - Dossiê Futebol. Número 22, junho/julho/agosto de 1994, p. 17
18
liberdade humana exercida ao ar livre“, conforme Gramsci.
4
O pensador Florestan
Fernandes vai na mesma linha:
“Os povos elaboram sua identidade através de suas paixões ou de seu recolhimento.
Às vezes, camadas ou classes sociais distintas não se sensibilizam da mesma forma. (...) No
Brasil, nada conduz à loucura como o futebol. Durante pouco tempo atividade refinada,
irradiou-se por toda a sociedade e tornou-se o emblema da hegemonia popular sobre a
‘cultura das elites’. Estas submeteram-se ao seu desnivelamento e construíram em torno do
futebol uma arena de poder, de lucros e de mando, como atestam carreiras políticas,
administrativas e financeiras. Não é por aí, todavia, que se aprende algo profundo sobre o
‘caráter nacional’. Este se evidencia no mundo dos sonhos e de ilusões que arranca o futebol.
Primeiro, no conceito de arte, que lhe é aplicado como qualificação mestra. Segundo, no
significado que recebe entre jogadores e nas suas relações com os torcedores. (...) Trata-se de
um mundo no qual o profano, a magia e a religião se confundem e quebram a rotina da
miséria, da ignorância e da opressão, ainda que por alguns instantes e graças à fantasia”.
5
4
GRAMSCI apud COSTA, Márcia Regina da (et al). Futebol: Espetáculo do Século. São Paulo: Musa Editora,
1999, p. 6.
5
FERNANDES, Florestan. “Futebol onírico”. In: Folha de S. Paulo, 13.jun.1994, p. 1-2.
19
2.2 Futebol como elo social
Todo esporte hegemônico, caso do futebol no Brasil ou do beisebol nos
Estados Unidos, tende a representar a “consciência coletiva” de uma sociedade, no
sentido dado por Durkheim em Da Divisão do Trabalho Social (1893), isto é, o
fenômeno de organização primitiva sob o qual ocorre a solidariedade dita
“mecânica” – os indivíduos se ligam entre si devido a um conjunto de
características naturais comuns, e não por decisão pessoal. Ter um time de futebol
para torcer é algo como um traço “natural” do indivíduo, como se ele tivesse
nascido com essa determinação, algo semelhante às particularidades físicas e
culturais que o identificam com os outros membros do mesmo grupo. Portanto, os
torcedores se congregam entre si e em torno de seu time de forma automática,
irrefletida, como pessoas de um mesmo núcleo familiar ou integrantes de
sociedades ainda rudimentares. Dessa maneira, o esporte de massa é uma das
poucas manifestações que parecem resistir à individualização e à defesa de
interesses particulares como resultado da crescente complexidade social.
O futebol, no entanto, destaca-se entre os esportes hegemônicos porque
dispõe de um enorme potencial de difusão. É uma prática relativamente barata,
com regras fáceis e objetivos imediatamente identificáveis. Todos podem jogar.
“Esse jogo simples e elegante, que não é prejudicado por normas complexas e
equipamentos caros, pode ser jogado em qualquer lugar e dominou o mundo por
seus próprios méritos”, escreveu Eric Hobsbawm
6
, historiador do Reino Unido –
país que criou o futebol como o conhecemos e que o difundiu pelo mundo, no
rastro de seu império.
Entre os torcedores, por outro lado, desenvolve-se um forte sentido de
camaradagem, embora sejam na maioria estranhos uns aos outros. Conforme a
6
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 197.
20
socióloga e brasilianista norte-americana Janet Lever, une-os a profunda afeição por
uma equipe, um senso de lealdade que deve sobreviver ao desgosto da derrota e ser
cultivado como a principal qualidade da torcida. Dessa maneira, o torcedor
entrega-se a seu time muitas vezes como se dele, torcedor, dependesse o sucesso ou
o fracasso. É um exercício de dedicação extremada.
7
Além disso, continua Lever, desenvolve-se uma forte cumplicidade dos
torcedores com os jogadores, porque a maioria dos fãs conhece o jogo e o pratica,
sabendo distinguir uma façanha de uma jogada comum, um feito histórico de um
evento banal. Os jogadores são vistos como parte dessa comunidade que se forma
sob a bandeira de uma agremiação e devem honrar suas cores com coragem e
destreza. “É como se fosse da família”, diz um torcedor citado por Lever.
8
Uma vez
negociados com outros clubes, ou caso demonstrem desinteresse pelo time, esses
jogadores passam a ser tratados como traidores. Em caso exemplar relatado por
Franklin Foer em Como o Futebol Explica o Mundo, a torcida do Estrela Vermelha de
Belgrado invadiu o campo durante um treino para demonstrar violentamente sua
insatisfação com alguns jogadores do time:
“Com bastões, barras de ferro e outro porretes, espancaram três de seus próprios
jogadores. Depois do estrago, não se mostraram particularmente acanhados em anunciar
seus feitos. Nesse caso, os hooligans [torcedores violentos] disseram claramente aos
repórteres que “não podiam tolerar a falta de compromisso em campo’ ”.
9
Tudo somado – massa, cumplicidade, compromisso, heroísmo –, gera-se a
euforia que domina o futebol e o torna um poderoso instrumento social, que está à
disposição de variados interesses, dentre os quais o do Estado.
7
LEVER, Janet. A Loucura do Futebol. São Paulo: Record, 1983, p. 22
8
Idem, Janet. Op. cit., p. 33
9
FOER, Franklin. Como o Futebol Explica o Mundo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 13
21
2.3 Futebol como violência ritual e drama
O esporte de massas como o futebol é elemento agregador em sociedades
jovens ou em processo de transformação radical, cuja consolidação depende da
superação de confrontos gerados por aquilo que o antropólogo Clifford Geertz
chama de “vínculos primordiais”, incompatíveis, a priori, com as necessidades
civis. Esses vínculos dizem respeito a elementos diferenciais como língua, religião e
costume, muitas vezes conflitantes entre os grupos que deveriam formar o Estado e
submeter-se unitariamente a ele. Para Geertz, cabe ao Estado não anular esses
sentimentos, mas estimulá-los num campo de conflito controlável, e o esporte de
massa é esse campo por excelência. Nessa direção, o sociólogo francês Patrick
Mignon entende que o futebol é popular pela reprodução dos confrontos: “Opõe-se
a todas as formas de neutralização das relações entre grupos e à crença na
pacificação definitiva da sociedade. De fato, considera que a questão da relação com
o outro não pode ser evitada”.
10
O mesmo raciocínio está em Norbert Elias, que identifica na organização do
esporte o elemento efetivo do processo de “pacificação” social. Por meio do esporte,
diz o sociólogo alemão, os membros da sociedade abrem mão de resolver suas
diferenças por meio da violência, aceitando as regras de uma disputa em que não
haverá mortos reais, apenas simbólicos. Não é por outra razão que o esporte,
particularmente o futebol, é repleto de expressões belicosas: fazer o gol da vitória é
“matar o jogo”, chutar diante do goleiro é “fuzilar”, chutar forte é dar um “tiro”,
um jogo decisivo vira “guerra”.
A chave da teoria de Elias que desvenda o drama do futebol é sua explicação
para a origem do prazer do jogo, que se processa embora a partida se dê sob regras
estritas. Segundo ele, o esporte como o conhecemos foi uma invenção inglesa cujo
desenvolvimento coincidiu com o fim da guerra civil de meados do século XVII. A
cessação das hostilidades reduziu drasticamente a fonte de excitação que a luta
representava, estimulando a busca de novos mecanismos desse prazer, digamos,
10
MIGNON, Patrick. La Passion du Football. Paris: Odile Jacob, 1998, p. 29.
22
primitivo. Assim, os esportes ganham regras e um sentido de organização cujo
objetivo é exatamente estender, no tempo, a sensação de combate.
Elias cita a caça à raposa como exemplo dessa mudança. O esporte
“civilizou-se” ao proibir que os caçadores matassem a raposa – um aparente contra-
senso. De acordo com as novas regras, só os cães poderia dar cabo das raposas, e
isso depois da superação de muitos obstáculos: “Matar raposas era fácil. Todas as
regras da caça estavam pensadas para torná-lo menos fácil, para prolongar a luta,
adiar a vitória por um momento – não que se considerasse imoral ou injusto de
algum modo matar as raposas, mas porque a excitação da própria caçada se
convertera na principal fonte de gozo para os caçadores”.
11
Ao circunscrever a emoção da guerra ao ambiente do esporte, os ingleses
semearam o campo do controle social. À monotonia da vida crescentemente
regulamentada das grandes aglomerações urbanas, o esporte oferecia como
contraponto a chance de mimetizar o ambiente do confronto sem os riscos físicos a
ele inerentes. Como escreve Elias:
As condições que propiciavam a emoção forte, sobretudo a emoção socialmente
compartilhada que poderia levar à perda do autocontrole, se fizeram então mais raras e
menos toleráveis do ponto de vista social. O problema estava em como dar aos indivíduos a
oportunidade de experimentar plenamente a excitação agradável que parece ser uma das
necessidades mais elementares dos seres humanos sem os conseguintes perigos sociais e
pessoais para os outros ou para si mesmos (...). Na Inglaterra, uma das soluções (...) foi o
surgimento de uns passatempos sob a forma que conhecemos como ‘esporte’. Nesse aspecto,
foi tremendamente significativa a mudança ocorrida ao passar do interesse pela vitória ao
interesse maior ainda na prolongada emoção primitiva da luta. Depois, essa mudança
11
ELIAS, Norbert. DUNNING, Eric. Deporte e Ocio em eu Processo de la Civilización. Cidade do México:
Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 204
23
encontrou expressão na famosa ética esportiva segundo a qual o importante não era ganhar,
mas participar.
12
Elias demonstra que, nesse particular, o futebol é o esporte da luta por
excelência. O contato físico sempre iminente satisfaz a necessidade de confronto; as
estratégias e táticas são decisivas para a vitória; a capacidade individual de enganar
o adversário com destreza e conquistar feitos aparentemente impossíveis a mortais
comuns dá o caráter heróico ao atleta. Tudo isso, porém, é encontrado em outros
esportes, como o rúgbi. A diferença, no futebol, é a duração do drama.
As 17 regras do futebol, cujo estabelecimento começou em Cambridge em
1863 e se estendeu até 1938, existem para dificultar ao máximo a marcação de um
gol, pois privilegiam a defesa – a regra do impedimento, em que um atacante não
pode receber a bola de um companheiro que esteja mais atrás se entre esse atacante
e a linha de fundo do campo adversário não houver ao menos dois defensores do
time oposto, é o exemplo clássico dessa intenção; além disso, o goleiro, principal
responsável por impedir gols, é o único jogador que pode pegar a bola com as mãos
e também é protegido por regras específicas, que impedem os atacantes de tocá-lo
próximo ao gol. Quanto mais trabalhoso for executar um tento, mais interessante se
torna a disputa, como percebeu o crítico de teatro Décio de Almeida Prado:
Surpreende à primeira vista – ou surpreenderia, se já não estivéssemos tão
acostumados – a disparidade existente entre a enorme extensão do campo, mais de sete mil
metros quadrados em condições ideais, e a relativa exigüidade do gol. Parece muito campo
para pouco gol, como se a intenção de quem regulamentou o jogo fosse dificultar ao máximo
12
Op. cit., p. 212
24
a obtenção de pontos. (...) O desafio próprio do futebol, sua marca distintiva, a sua
singularidade, está em que nele se permite o uso de todas as partes do corpo, exceto as mais
eficientes do ponto de vista físico. Aprender a jogar futebol é aprender a controlar a bola sem
o auxílio das mãos, daquilo que, contrapondo o homem às demais espécies animais, constitui
sua força e sua destreza. (...) Ora, o futebol abre uma exceção a esse princípio fundador, a
essa regra geral. Ao jogador incumbido de defender o gol, em derradeira instância, concede-
se o privilégio, e unicamente a ele, de empregar braços e mãos, conferindo-lhe uma vantagem
quase desleal. Entre vinte homens manietados (por assim dizer), só os dois goleiros têm as
mãos livres para agir. (...) A missão da defesa é comparativamente mais simples. Basta, como
último recurso, despachar a bola para onde for, para os lados, para a linha de fundo (...) e até
para cima: como observou o filósofo do futebol Neném Prancha, pelo menos enquanto a bola
sobe e desce não acontece gol algum. (...) Agora já é possível descrever a espécie de emoção
causada pelo futebol. (...) O gol surge aos olhos do público como uma tal conquista que
muitos narradores não hesitam em insinuar uma mal disfarçada similaridade com o
orgasmo: “Rompeu-se o véu da noiva” (...), “a gordinha já está na rede” e outras formas,
mais imaginosas ou mais grosseiras, de sugerir sexo implícito. Dentro dessa perspectiva,
conclui-se que dois ou três gols por partida já está bem, muito bem, sendo impensável
transferir para o terreno amoroso as fabulosas contagens do bola-ao-cesto. A emoção, menos
freqüente, é mais intensa.
13
Ao contrário do que acontece em outros esportes, portanto, um jogo de
futebol em que uma equipe faça muitos gols tem grandes chances de ser
considerado monótono: mostra que um time é muito superior ao outro, o que anula
a sensação de guerra. Já um jogo que termine sem que nenhum time tenha marcado
um gol pode vir a ser chamado de “épico“.
Além do efeito das regras sobre o jogo, o futebol apresenta uma enorme
variedade de acontecimentos possíveis. A grande jogada pode se dar bem longe do
gol, executada pelo conjunto do time ou pela genialidade do indivíduo e sem que se
13
PRADO, Décio de Almeida. “Tempo (e espaço) no futebol”. In: Revista da USP - Dossiê Futebol. Número
22, junho/julho/agosto de 1994, p. 20-21
25
volte necessariamente para a marcação do tento. E não há um momento
predeterminado para que essa jogada ocorra: o jogo “surpreende” a platéia
constantemente. Entre uma surpresa e outra, há intervalos (grandes ou pequenos)
em que nada ocorre – mas a perspectiva de que algo “aconteça” a qualquer
momento eletriza as arquibancadas durante os 90 minutos do jogo, conferindo a
esse esporte toda sorte de especulações e tramas. Conforme comenta o crítico de
literatura José Miguel Wisnik: “Isto é o que dá a ele [o futebol] aquelas flutuações
fabulares e literárias, se quisermos, e pensarmos que ele admite variações épicas,
líricas, paródicas, carnavalizações, momentos dramáticos... que são instâncias que
aparecem e desaparecem, concentradas e distendidas numa temporalidade
complexa que pode fazer de uma partida, às vezes, uma verdadeira sinfonia de
Mahler”.
14
Essa característica surpreendente do futebol é muito dependente da figura
do “craque”, o sujeito cuja capacidade de reinventar o jogo está muito acima da dos
demais atletas. Embora seja um exercício de conjunto, o futebol precisa desse
jogador “mágico” para superar seus constantes dilemas. A composição entre
destreza individual e estratégias coletivas terá um papel essencial no sucesso do
jogo em uma sociedade altamente hierarquizada como a brasileira, como veremos
mais adiante. Agora, importa saber que a existência do “craque” remete o jogo de
futebol ao campo do espontâneo, do não-planejado, do impulso passional e
artístico, da criação de algo onde antes havia somente o nada, ou apenas a
expectativa. “Talvez seja apenas para vê-los que tanta gente vai ao estádio”,
escreveu Décio de Almeida Prado. “Por entre milhares de jogadas conhecidas,
óbvias, há sempre a esperança de presenciar um desses lampejos que recompensam
o público de sua longa espera. É que nesses pequenos milagres de lucidez, de
coordenação integral entre espírito e corpo, o futebol revela a sua mais alta
natureza, também de ‘cosa mentale’, como Leonardo da Vinci desejava que fosse a
pintura”.
15
14
BOLLE, Willi (org.). “Estética do futebol: Brasil x Alemanha”. In: Pandemonium Germanicum - Revista de
Estudos Germânicos. Número 2. São Paulo: Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - Área de Alemão, 1998, p. 97
15
PRADO, Décio de Almeida. Op. cit., p. 26
26
“Esse movimento contínuo”, sugere Hans Ulrich Gumbrecht, professor do
Departamento de Literatura Comparada da Universidade Stanford (Califórnia),
“implica um desafio contínuo. Em cada momento, há um desafio, não há um
momento em que o jogador poderia falar extensamente com o técnico. É
interessante observar que há menos protagonismo no futebol americano [parente
do rúgbi]; alguém como um Pelé ou um Ronaldinho, creio que seria quase
impensável.”
16
Diante do “craque”, o controle do jogo por parte dos chamados
técnicos de futebol é muito menos provável. A fluidez se traduz naquilo que
Gumbrecht chama de “complementaridade de intenções” entre dois ou mais
jogadores com o objetivo de chegar ao gol. “Se dizemos que dois jogadores ‘se
entendem cegamente’, como Bebeto e Romário no campeonato mundial de 1994,
isso é uma coisa não-planificada, acontece espontaneamente.”
17
16
BOLLE, Willi (org.). Op. cit., p. 83
17
Idem. Op. cit., p. 84.
27
2.4 A paixão do futebol no Brasil
Explica-se assim, em termos genéricos, por que razão o futebol tornou-se o
esporte apaixonante que se pratica hoje em praticamente todo o mundo. As teorias,
porém, não são suficientes para entender o fenômeno do futebol no Brasil. A idéia
de Hobsbawm já abordada neste capítulo, segundo a qual esse esporte é barato e
fácil de jogar, pode ser um bom começo. Em texto emocionado sobre seu amor pelo
futebol, o escritor indo-britânico Salman Rushdie aceita esse argumento e vai um
pouco mais longe, ao afirmar que o bom desempenho no futebol está diretamente
relacionado com a origem de seus atletas: se ricos e bem-educados, tenderão a ser
ruins; se pobres e marginalizados, tenderão a ser craques. Para provar, comenta o
desempenho negativo da seleção dos Estados Unidos na Copa do Mundo de 1998,
na França, em que a equipe americana foi eliminada na primeira fase, tendo
perdido os três jogos que disputou, inclusive para o fraquíssimo Irã (2 a 1):
“As más atuações dos Estados Unidos poderiam ser explicadas, em parte, pelo fato de
que o time parecia formado só por alunos de faculdade. O futebol não é um esporte de
universidade. É um jogo do povo, praticado com latas velhas em ruas da periferia de cidades
do Brasil. Se os Estados Unidos quiserem ter um time de futebol de primeira grandeza,
precisam parar de olhar só para as universidades (...) e voltar-se para o coração das minorias
– minorias que podiam ser vistas se amontoando em torno dos aparelhos de TV, a
compartilhar a excitação com o resto do mundo pelo maior torneio do assim chamado ‘Jogo
28
Bonito’ [Beautiful Game].
18
Hobsbawm e Rushdie sintetizam a visão do estrangeiro acerca das
qualidades do Brasil: por serem aparentemente inexplicáveis, só podem ser
entendidas por meio de certas imagens que se baseiam em modelos de
conhecimento construídos apenas a partir de um relance, sem a profundidade
necessária para a real dimensão do objeto. Segundo essa perspectiva, o sucesso do
futebol no Brasil só pode se dever ao fato de que o Brasil é um país pobre, donde
brotam talentos humanos capazes de realizar muitas façanhas com o corpo e
dotados de esperteza suficiente para iludir seus adversários. Aqui, novamente,
temos uma boa explicação, mas ela continua a não bastar. Afinal, países pobres
como o Brasil os há em grande quantidade no mundo, mas apenas o Brasil
conseguiu ser cinco vezes campeão do mundo e é notório construtor de craques que
encantam o mundo inteiro. Onde está, afinal, a diferença?
Para certo tipo de pensamento, é tentador atribuir as qualidades mágicas e
acrobáticas dos brasileiros no campo de futebol ao fato de haver mais jogadores
negros por aqui. Do ponto de vista científico, essa idéia não encontra respaldo na
realidade -- e, além do mais, é perigosa. Jocimar Daolio, professor doutor da
Faculdade de Educação Física da Unicamp, descarta o caráter biológico: dizer que o
futebol se popularizou por ser um esporte jogado com os pés, coisa que negros,
majoritários na população, saberiam “naturalmente” fazer bem, é apostar num
certo “gene” do futebol, o que beira o racismo -- afinal, se há um gene para jogar
18
RUSHDIE, Salman. “O jogo do povo”. In: CARRANO, Paulo Cesar R. (org.). Futebol: Paixão e Política>
Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 140.
29
futebol, há outro para ser inteligente. Daolio também descarta a tese funcionalista,
segundo a qual o futebol é muito fácil de jogar -- outros esportes também são fáceis
e não se tornaram populares no Brasil. Finalmente, Daolio argumenta:
Sem entrarmos no mérito das duas teorias citadas, parece ter havido uma
combinação entre o código de futebol e o contexto cultural brasileiro. Em outros termos, o
futebol demandaria um estilo de jogo, uma experiência técnica, uma eficácia e uma eficiência
que se adequaram às características culturais do povo brasileiro. Assim, o novo esporte que
chegava da Inglaterra não oferecia apenas momentos lúdicos de lazer a seus participantes,
mas permitia, principalmente, a vivência de uma série de situações e emoções típicas do
homem brasileiro. (...) O futebol seria, ao mesmo tempo, um modelo da sociedade brasileira e
um exemplo para ela se apresentar. (...) O homem brasileiro comportar-se-ia na vida como
num jogo de futebol. (...) Poderíamos supor que essa característica do futebol brasileiro deve-
se à própria forma do homem brasileiro dispor-se no mundo, conciliando e tirando vantagem
da expressão individual sobre um plano coletivo”.
19
Como abordei no início deste capítulo, o futebol funciona no Brasil como
importante elemento de ruptura da sólida hierarquização social. Aliado a isso, esse
esporte representa a materialização de um traço cultural crescentemente vitorioso e
competente em meio a tantas derrotas. O futebol é, finalmente, o local da vitória
dentro do respeito mais ou menos generalizado às regras, o que o torna ainda mais
importante para o orgulho nacional. Por meio do futebol, o brasileiro médio se
encontra, identificando ali um estilo efetivamente “brasileiro”, indistinguível em
outras áreas, dominadas por elementos externos. “O futebol, portanto, permite
descobrir a nossa ‘alma’ e o nosso ‘coração’ de modo positivo, como uma
19
DAOLIO, Jocimar. “As contradições do futebol brasileiro”. In: CARRANO, Paulo César R. (org.). Futebol:
Paixão e Política. Rio de Janeiro: DP&A, 2000, p. 33 a 39.
30
coletividade que pode, sabe e faz muito bem as coisas. Somente isso justifica a
imensa popularidade desse jogo entre nós”, diz DaMatta.
20
20
DAMATTA, Roberto (et. al.) Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1982, p. 15.
31
2.5 Futebol como Identidade nacional
2.5.1 Futebol arte x futebol força
Há, portanto, dois elementos fundamentais no que diz respeito ao efeito
social do esporte de massa: ele alimenta a solidariedade entre torcedores de um
clube e a hostilidade em relação aos clubes rivais, porque representam, cada clube,
um “modo de ser” que os distingue dos demais. Na Escócia, por exemplo, há uma
rivalidade histórica entre o Glasgow Rangers e o Celtic que só pode ser explicada se
os times forem entendidos como repositório de tradições religiosas e tribais. O
Glasgow é o time dos protestantes, e o Celtic, dos católicos, “numa luta pendente
em torno da Reforma Protestante”, segundo Foer.
21
E logo em Glasgow, cidade que,
como diz esse estudioso americano, “já deveria ter superado o antigo tribalismo”,
22
por conta da influência crescente da globalização.
Há outros exemplos de identidade, como o do Estrela Vermelha de Belgrado
como símbolo do nacionalismo sérvio e o do Barcelona como o time da esquerda
espanhola, bastião da resistência ao ditador Francisco Franco – enquanto seu
principal rival, o Real Madrid, era o time do generalíssimo. Isso significa que, por
mais que avance a pulverização das fronteiras culturais, os times de futebol ainda
resistem como orgulhosos representantes de alguma coisa: uma religião, uma idéia,
um conceito.
No nível nacional, que é o que particularmente nos interessa aqui, essa
21
FOER, Franklin. Op. cit., p. 39.
22
Idem, ibidem.
32
hostilidade entre torcedores de clubes rivais e essa defesa da honra pelas cores
locais simplesmente desaparece, ou é amortecida, para dar lugar à solidariedade
“nacional” pela seleção do país. No momento em que a seleção nacional entra em
campo, coisas abstratas como “país” e “povo” passam a ser experimentadas como
“algo visível, concreto, determinado”, conforme DaMatta.
23
A hostilidade transfere-
se, então, para fora das fronteiras, reproduzindo disputas mundiais em competições
internacionais. A Copa do Mundo é, por excelência, o campo da realização desse
confronto entre nacionalidades. A seleção nacional não é apenas uma equipe em
busca de um título. É, antes de tudo, a representação de uma identidade.
O perfil do futebol brasileiro – e, por conseguinte, o perfil do país – foi objeto
de acaloradas discussões nos meios intelectuais desde pelo menos a primeira
metade do século XX. Há um indisfarçável orgulho pelo estilo de jogo
“antieuropeu”, “brasileiro”, mas o esforço é na direção de dar certa unidade
cultural a um país tão díspare, conforme indica Gilberto Freyre, já em 1938:
“O nosso estilo de jogar futebol me parece contrastar com o dos europeus por um
conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e, ao mesmo tempo, de
brilho e de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo
Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política. Os nossos passes, os nossos pitus, os
nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança e de
capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e às vezes adoça o
jogo inventado pelos ingleses e por eles e por outros europeus jogado tão angulosamente,
23
DAMATTA, Roberto (et. al.). Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1982, p. 34.
33
tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo para os psicólogos e os sociólogos o
mulatismo flamboyant e, ao mesmo tempo, malandro que está hoje em tudo que é afirmação
verdadeira do Brasil”.
24
Mais de 30 anos depois, durante a Copa de 1970, a imprensa nacional
aceitava como um dogma essa particularidade do futebol brasileiro em relação ao
que era praticado no resto do mundo. Após a vitória do Brasil sobre a
Tchecoslováquia por 4 a 1, na primeira partida da seleção na Copa, em 3 de junho,
O Estado de S. Paulo observou que “a vitória da seleção brasileira representou algo
mais: foi a vitória de um estilo de jogo sobre outro completamente diferente”.
25
Analistas brasileiros contemporâneos dedicam-se extensivamente a esse debate,
como se disso dependesse a resolução dos impasses nacionais.
O “verdadeiro futebol brasileiro” aparece segundo as características
primárias dessa entidade chamada “o brasileiro”, seja lá o que isso signifique. Mas
o fato é que, mesmo sem compreender inteiramente a natureza daquilo que
defendem, os amantes do chamado “futebol-arte” o vinculam ao “autêntico” traço
de brasilidade, como se não fôssemos capazes de sermos eficientes tecnicamente,
como os europeus, apenas instintivamente, como os artistas africanos.
Em artigo significativo para o jornal Movimento às vésperas da Copa de 1982
-- aquela em que o futebol-arte do Brasil seria derrotado pelo futebol-força da Itália,
em memorável tragédia --, o jornalista Mauricio Azedo vincula diretamente o
24
Trecho de artigo para o Diário de Pernambuco citado em FRANZINI, Fábio, “No campo das idéias: Gilberto
Freyre e a invenção da brasilidade futebolística”. Disponível na internet via WWW. URL:
http://www.efdeportes.com/efd26
a
/gfreyre.htm. Capturado em 20 de abril de 2003.
25
O Estado de S. Paulo, 4.jun.1970, p.25.
34
abandono do lirismo do esporte em favor da técnica como resultado do regime
militar, pois cita Zagalo, o técnico campeão com a seleção em 1970, como o maior
exemplo desse estilo de jogo -- e, portanto, dessa estratégia como nação:
“Esse declínio [do futebol-arte] esteve associado ao cacoete nacional -- expressão na
área do futebol da ideologia da colonização que domina os outros campos da vida do país --
de se prostrar de cócoras diante do modelo estrangeiro, que levou o futebol brasileiro a
abdicar de sua originalidade para tentar assimilar o padrão externo, pela suposição de que só
assim poderia enfrentar o crescente poderio das seleções da Europa”. (...) Sob a batuta de
Zagalo, um técnico bem comportado, a seleção consagrou uma doutrina defensivista, que
renegava o futebol-arte típico do Brasil para consagrar esquemas em que o importante não é
fazer gol -- o principal objetivo do jogo --, e sim não tomá-lo.
26
26
Movimento, 12 a 18.jan.1981, p. 5.
35
2.5.2. Superioridade e inferioridade nacionais
Assim, quando jogam seleções de países distintos, confrontam-se modos de
ser, características singulares, capacidades técnicas, histórias. O vencedor é
considerado “superior” ao derrotado, não apenas no sentido esportivo. O que a
história registrará é o triunfo épico de uma civilização sobre outra, e mesmo seus
erros evidentes serão transformados em marca identitária da qual é quase um dever
se orgulhar. “A pátria é a seleção nacional de futebol”, escreveu o romancista
franco-argelino Albert Camus (que jogava como goleiro). E a seleção, por outro
lado, é a “pátria em chuteiras”, na memorável descrição do dramaturgo Nelson
Rodrigues.
O futebol é, dessa maneira, o campo da “magia do nacionalismo”, que
“converte o azar em destino e torna possível a transcendência comunitária do
indivíduo”, como o classificou o estudioso costa-riquenho Sérgio Villena Fiengo, ao
comentar o furor nacional com a participação da seleção de seu país na Copa da
Itália, em 1990:
“Ainda que todos os ‘cidadãos dignos e amantes de sua pátria‘ sejam compelidos a
colocar bem alto o nome da Costa Rica, seja no papel de cidadãos comuns ou de
representantes nacionais, os jogadores selecionados são os eleitos para conduzir seu povo à
glória e para redimi-lo de seus fracassos. Esse discurso messiânico dá aos jogadores a grande
responsabilidade de representar a comunidade e de dar tudo por ela, de assinalar o rumo da
nação. Seu triunfo é de todos. Seu fracasso também, ainda que sempre se busquem bodes
36
expiatórios”.
27
Para países de menor projeção internacional, sobretudo na periferia do
mundo, o futebol funciona como um veículo de aspirações à grandeza geopolítica.
O caso da Costa Rica, como foi descrito acima, é emblemático dessa utilidade do
esporte, mas talvez um dos exemplos mais significativos da transformação do
futebol em meio de afirmação perante o mundo seja o do Uruguai. País que sempre
esteve à mercê de interesses imperialistas das potências sul-americanas no século
XIX e que, por essa razão, manteve seu destino atrelado ao desses gigantes
regionais no século XX, agarra-se como pode à lembrança da glória da conquista do
Mundial de 1950, em pleno Maracanã.
A vitória sobre o Brasil, tido como favorito absoluto à taça, representava
exatamente a consagração de uma nação que se via diminuída diante dos vizinhos,
entre os quais o poderoso adversário daquela tarde de 16 de julho de 1950.
Conforme o escritor uruguaio Eduardo Galeano:
No nosso caso, há que se ter em conta que foi o futebol que pôs no mapa do mundo,
lá por volta dos anos 20, este pequeno país (...). Os uruguaios encontraram no futebol um
meio de projeção internacional e uma certeza de identidade: ainda hoje, sobrevivem com mais
vigor na nostalgia do que na realidade, mas restou o costume. O futebol continua sendo uma
religião nacional e, a cada domingo, esperamos que nos ofereça um milagre. A memória
coletiva vive consagrada às liturgias do Maracanã: o feito heróico vai cumprir meio século [o
autor escreve em 1998], e o recordamos nos mínimos detalhes, como se tivesse ocorrido na
27
FIENGO, Sergio Villena. “Imaginando la nación a través del fútbol: el discurso de la prensa costarricense
sobre ‘la hazaña mundialista’ de Italia 90”. In: ALABARCES, Pablo. Peligro de Gol - Estudios sobre Deporte e
Sociedad em America Latina. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), 2000, p.
153-154.
37
semana passada, e à sua ressurreição encomendamos nossas almas.
28
Por outro lado, no campo do derrotado, a identidade nacional fere-se de
morte: abundam questionamentos, mergulha-se em uma crise na qual mesmo as
virtudes de um país são transformadas em razões de sua inferioridade, como
aconteceu no Brasil após a tragédia em 1950. “A derrota para o Uruguai foi tomada
como uma metáfora para as ‘derrotas’ da própria sociedade brasileira, sempre
submetida às forças impessoais do destino”, conforme explica DaMatta.
29
Isto é:
para aquela geração, o Brasil seria sempre derrotado, mesmo que tivesse um time
melhor do que o do adversário, porque era um país inferior.
Essa conclusão estava diretamente relacionada ao fato de a seleção ter
negros. Um dos principais jogadores negros do time, o goleiro Barbosa, foi
particularmente responsabilizado pelo fracasso, o que ajudou a consolidar a idéia
de que os negros não tinham a fibra necessária para fazer da seleção uma equipe
vencedora. Conforme Mário Filho, no clássico O Negro no Futebol Brasileiro:
“Apareceu Barbosa, realmente um grande quíper [goleiro], grande tremedor
porém. Tremeu tanto num jogo contra os argentinos em 1945 que teve de mudar o
calção quando acabou o primeiro tempo”.
30
Essa inferioridade atávica impediria
também o Brasil de levar adiante projetos de grandeza.
A partir da conquista em 1958, a imagem desprezível do país seria
radicalmente alterada, e seu maior símbolo seria o do negro Pelé. A marchinha que
28
GALEANO, Eduardo. “Depois do Mundial: futebol em pedacinhos”. In: CARRANO, Paulo Cesar R. (org.).
Futebol: Paixão e Política. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
29
DAMATTA, Roberto (et. al.). Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1982, p. 32.
30
FILHO, Mário. O Negro no Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 1994, p. 193
38
celebrou a vitória na Copa da Suécia, naquele ano, traduz uma nova maneira de ver
o Brasil, um país forte e superior em relação aos demais, no “estrangeiro“ -- e o
futebol era o veículo essencial da mudança de atitude:
Gol!
A taça do mundo é nossa!
Com brasileiro não há quem possa!
Êta esquadrão de ouro!
É bom no samba, é bom no couro!
O brasileiro lá no estrangeiro
Mostrou o futebol como é que é...
Ganhou a taça do mundo
Sambando com a bola no pé!
No México, a transformação da personalidade brasileira atinge seu zênite.
Conforme argumenta DaMatta:
“Dentro desse quadro cultural, onde o destino ocupa um lugar tão importante, pode-
se entender a conquista do tricampeonato mundial, em 1970, como uma espécie de vingança
nacional. Um momento único, em que toda uma sociedade podia, finalmente, experimentar a
vitória contra essas forças impessoais que sempre a colocaram no fundo do poço.
Simultaneamente com esse processo, veio uma redefinição do valor da ‘raça’, sobretudo da
‘raça negra’, como fundamentalmente positiva”.
31
31
DAMATTA, Roberto (et. al.). Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1982, p. 33 e 34.
39
Mas o mesmo país que pode celebrar o “jeitinho” e a malandragem, como
faz o Brasil desde então, é capaz de considerá-los pivôs de seus problemas – tudo
vai depender do resultado do jogo, conforme atesta a historiadora Fátima Antunes:
“No Brasil, costuma-se avaliar a sociedade e suas instituições pelo desempenho da
seleção, sobretudo em épocas de Copa do Mundo, quando o que se tem, de fato, são nações
reunidas num confronto no âmbito do esporte. Se a seleção vai bem, há mais otimismo e
tende-se a valorizar o potencial do povo brasileiro, sintetizado na imagem do herói pleno de
atributos que se convencionou reconhecer como tipicamente nacionais. Se, ao contrário,
sobrevém uma derrota, os valores anteriormente exaltados são então interpretados como
contendo os germes do insucesso”.
32
Um caso bastante significativo dessa ambigüidade ocorreu na disputa do
torneio pré-olímpico de futebol em 2004. A seleção brasileira, formada por
jogadores com menos de 23 anos, era considerada a “geração de ouro” do futebol
nacional, materializada nas estrelas Robinho e Diego, os principais atletas do
Santos, que fora campeão brasileiro dois anos antes. Fora do campo, no Chile, onde
o campeonato foi disputado, ambos os craques fizeram o que deles se esperava, isto
é, muitas brincadeiras – algumas bastante constrangedoras, como quando Robinho
abaixou o calção de Diego quando este dava entrevista cercado de fotógrafos; a
imagem correu o mundo como exemplo da descontração brasileira. Dentro do
campo, porém, houve um retumbante fiasco: o Brasil foi eliminado pelo Paraguai e
deixou escapar a classificação à Olimpíada na Grécia. A reação não tardou – e foi
violenta. “Foi muito oba-oba e salto alto. Que isto [a eliminação] sirva de lição. (...)
Foi muita brincadeira e pouca seriedade”, disparou o coordenador da seleção
brasileira principal, Mário Jorge Lobo Zagallo.
33
O técnico da seleção principal,
Carlos Alberto Parreira, também expressou seu descontentamento – e revelou o
quanto o discurso sobre a “molecagem” do futebol brasileiro, que lhe serve de
marca, pode ser negativo quando o placar é adverso: “Houve um descontrole muito
32
ANTUNES, Fátima M. R. F. Com Brasileiro Não Há Quem Possa! São Paulo: Editora Unesp, 2004, p. 277
33
Folha de S. Paulo, 27.jan.2004, p. D1
40
grande. Em nenhum momento o Brasil foi uma equipe. (...) O resultado foi uma
demonstração de que talento não basta. Eles são ótimos jogadores, mas tem de
existir um excelente trabalho de grupo”.
34
Em poucas palavras, Zagallo e Parreira, que estiveram no comando da
seleção tricampeã do mundo, refizeram a ponte entre o presente tempo e a Copa de
70: a vitória no México foi atribuída pela imprensa da época, em grande parte, à
disciplina. Mas o que nos interessa aqui, por ora, é que o futebol parece capaz de
traduzir os dilemas nacionais, para o bem ou para o mal – o que, em última análise,
cria uma sensação de unidade: todos discutem o futebol e o destino da seleção
como se tivessem de decidir por este ou aquele projeto de país.
A seleção de 1970 é particularmente importante para compreender
esse processo. Ela se localiza numa época de mudanças no país, que crescia
vigorosamente e anunciava um projeto de transformação em potência que acabou
não se realizando, por razões que este trabalho não pretende discutir. O fato é que o
triunfo no México colocou em xeque muitas convicções acerca do futebol brasileiro
e, portanto, a respeito do próprio modo de ser brasileiro. Discutiu-se, na época, se o
Brasil devia manter seu estilo de jogo irresponsável ou se devia aderir aos
esquemas sólidos dos europeus – em outras palavras: se devia continuar na
menoridade, divertindo-se, ou se devia abdicar de certos traços culturais e
embarcar num projeto de potência que não dava lugar a improvisações nem à
oposição. Mesmo os jogadores da seleção brasileira de 1970 entraram no debate. Em
um artigo intitulado “Futebol bonito é secundário”, um mês antes da Copa, Carlos
Alberto Torres, lateral direito e capitão da equipe, argumentava:
34
Idem, ibidem.
41
“Quanto ao nosso time, eu gostaria de fazer uma análise que entra em choque com a
opinião de muitos comentaristas: para mim, o importante é ganhar; jogar bem, dar
espetáculo com um futebol bonito, tudo isso é secundário”.
35
Carlos Alberto falava em meio a uma imensa pressão sobre a seleção,
pressão essa que vinha de vários setores, e sua argumentação se justifica diante
disso. Mas, depois da Copa e do triunfo, ficou claro, segundo os comentaristas da
época, que a conquista no México só se deu porque a improvisação brasileira foi
domada em favor de um plano maior, isto é, a vitória. Curiosamente, a fase de
preparação para a Copa havia sido muito tumultuada, inclusive com uma troca de
técnico às vésperas do início da competição. Na época, a imprensa previa um
retumbante fiasco no México por conta dos desacertos envolvendo a seleção. Mas a
conquista alterou drasticamente esse diagnóstico sobre o Brasil.
O preparador físico da seleção na época, Admildo Chirol, disse que “não foi
só o preparo físico e técnico, mas o comportamento disciplinar perfeito – horários e
programas a cumprir com a máxima seriedade – que pesou muito para o
desempenho dos jogadores”.
36
Chirol vinha defendendo essas idéias desde o
fracasso de 1966, quando o Brasil foi eliminado da Copa da Inglaterra. Assim, havia
no ar a sensação de que à seleção brasileira faltava a compostura e a agressividade
coordenada dos europeus. Não foi necessário muito esforço para que, diante da
incontestável vitória no México, tal fórmula fosse aplicada às demais áreas da vida
35
O Estado de S. Paulo, 12.jun.1970, p. 19.
36
O Estado de S. Paulo, 24.jun.1970, p. 16
42
nacional pela elite. Fernando Pedreira, no jornal O Estado de S. Paulo sobre o
sucesso brasileiro na Copa, comentava:
“Mais do que qualquer outro país, o futebol é, entre nós, uma profunda paixão
nacional. (...) Já não somos apenas o país do Carnaval, de que falava Jorge Amado há 30 ou
40 anos. Somos o país do futebol, o que é certamente um progresso. (...) A seleção brasileira
de futebol mostrou ser a mais bem treinada e amparada, a que dispunha de melhor preparo
físico e tão disciplinada e consciente dos seus deveres quanto as que mais o fossem.
Preservamos as qualidades brasileiras, mas livramo-nos de alguns defeitos que pareciam
características inalienáveis da alma nacional: a improvisação, a irresponsabilidade, a
indisciplina, o individualismo. País do Carnaval? Nem tanto. Com um pouco de sorte, uma
Copa do Mundo pode ser ganha na base da improvisação e do virtuosismo. Mas, para jogá-la
como jogamos, desta vez, é preciso que a nação tenha chegado a um grau de maturidade e
seriedade – e até de riqueza material – que o Brasil talvez tenha atingido”.
37
Um editorial do conservador O Estado de S. Paulo resumiu essa idéia em
termos semelhantes, ao dizer que o tricampeonato “foi uma vitória da maturidade
da própria nação para a marcha, a que ora se consagra, tendo por meta o
desenvolvimento dentro da dignidade da vida democrática”. O futebol é
democrático, diz o texto, porque equilibra individualismo e espírito coletivo “na
busca e defesa dos interesses gerais”.
38
37
O Estado de S. Paulo, 21.jun.1970, p. 4.
38
Idem, 23.jun.1970, p. 3.
43
3. O falso dilema moral da Copa de 1970
3.1. A má vontade da intelectualidade de esquerda
Havia na imprensa de grande circulação, após a conquista do tricampeonato
em 1970, a impressão de que o Brasil caminhava para grandes realizações, e que a
vitória no México não fez outra coisa que apresentar ao mundo – e aos próprios
brasileiros – esse novo gigante. Não é possível imaginar o que teria sido o governo
Médici sem o triunfo no México, porque, “se outros fatores efêmeros devem ser
levados em conta, especialmente o ‘milagre econômico’, não há dúvida de que o
feito se associou às ‘façanhas’ do regime”, como analisa o historiador Boris Fausto.
39
Ou como declarou Gérson, um dos principais jogadores da seleção de 1970, ao
jornal O Pasquim:
“Graças a Deus ganhamos essa Copa, porque, se nós não ganhássemos, haveria
problema aqui no Brasil. Você sabe que o futebol é ... É a válvula de escape. O povo podia
passar fome nessas seis partidas da Copa do Mundo. Eles passariam fome rindo. (...) O
problema é que isso toca o povo, o povo quer isso. Não interessa o que ele vai passar, desde
que o Brasil ganhe a Copa”.
40
Talvez seja exatamente por essa razão que o futebol em geral, e
particularmente a vitória da seleção brasileira em 1970, tenha se tornado tão
malvisto por uma parte da esquerda brasileira. O divórcio entre a intelectualidade
39
FAUSTO, Boris. “Política e Futebol”. In: Folha de S. Paulo, 26.ago.2002, p. A2.
40
O Pasquim, 9 a 15,jul. 1970, p. 15.
44
brasileira e o futebol é notório. Nélson Rodrigues o menciona em crônica de 1965,
citada por Fátima Antunes: “Há três dias aconteceu no Maracanã a batalha entre o
Brasil e a Bélgica. Todos os brasileiros vivos e mortos estavam lá. Defuntos de
algodão nas narinas atravessaram as borboletas. Tinham pulado os muros do além
para torcer. Só um brasileiro faltou: o sociólogo. Entre cento e tantos mil patrícios,
não vi uma única e escassa flor da sociologia”.
41
Pode-se argumentar que a má vontade de Nélson com os intelectuais fosse
resultado de suas convicções políticas conservadoras. Mas o mesmo rótulo não se
aplica ao jornalista João Saldanha, o comunista militante que foi o técnico da seleção
brasileira até as vésperas da Copa de 70 – e, no entanto, Saldanha também criticou,
em entrevista ao jornal de esquerda Versus, os intelectuais brasileiros que não viam
no futebol uma expressão legítima de cultura brasileira a ser estudada: “Então você
vê companheiros e coleguinhas, no nosso ramo de atividade, acho que nós fazemos
parte, querendo ou não, da intelectualidade brasileira (...), mas você vê caras
inteiramente dedicados à cultura e que não se dedicam (...) ao esporte”.
42
Para
DaMatta, finalmente, as elites “odeiam o jogo”, porque “certamente o jogo significa
basicamente ter de se submeter a regras que valem para todos”.
43
No ambiente de confronto do regime militar, o futebol foi visto pela
esquerda como nocivo, porque, segundo sua concepção, reprime o conflito de
classes, docilizando o trabalhador em relação a seu patrão a cada vitória de seu
time, e mistifica a realidade, pois reduz a compreensão das condições materiais e
41
ANTUNES, Fátima M.R.F., op. cit., p. 248.
42
Versus, número 5, sem ano, p. 3-7
43
DAMATTA, Roberto (et. al). Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1982, p. 15.
45
sociais. O esporte de massa integra assim a estratégia das classes dominantes para
“reproduzir a dominação em dimensões mais sublimadas, com um jeito mais
suave”
44
, conforme raciocina Roberto Ramos. E ele prossegue, em artigo de 1984:
O futebol nasceu na Inglaterra, berço do capitalismo. Na década de 1860, os patrões
perceberam que o proletariado se interessava por esse esporte. Investiram na expansão do
futebol para impedir a organização política e sindical dos operários. (...) O uso do futebol
como ideologia, significando inversão da realidade, se fortaleceu”.
45
O artigo de Ramos, assim como seu livro sobre o mesmo tema, baseia-se no
conceito do franco-argelino Louis Althusser (1918-1990) a respeito dos aparelhos
ideológicos do Estado, que tornam a repressão secundária ou mesmo desnecessária.
Segundo essa teoria, os aparelhos ideológicos visam à coesão social e à reprodução
das condições de produção por imposição do modo de pensar da classe dominante
através de mecanismos culturais de disseminação. O recurso à teoria althusseriana
implica em desconsiderar o Estado como o lugar das tensões sociais: tudo seria
mera manipulação, externa ao Estado, que, por sua vez, seria o onipresente maestro
das relações de produção. É por essa razão que a argumentação de Ramos, tomada
aqui como exemplar da crítica de esquerda ao futebol, soa como teoria da
conspiração.
Em seu livro Futebol, Ideologia do Poder, Ramos decreta que o futebol, como
“aparelho ideológico do Estado”, tem a função de reproduzir as condições
44
RAMOS, Roberto. “Futebol e ideologia”. In: Mundo Jovem, nº 167, ano 22, 1984, p. 5.
45
Idem, ibidem.
46
econômicas que interessam à classe dominante.
46
Torcer e participar do futebol
seriam uma demonstração inequívoca de cumplicidade com esse estado de coisas –
colocado na perspectiva da ditadura militar em 1970, o argumento significa dizer
que comemorar o tricampeonato era o mesmo que apoiar o regime repressor. E ele
prossegue:
“[O trabalhador] não pode pensar que é dominado e explorado no trabalho. O sistema
deve ser engolido, sem reação. O futebol é importante no Brasil. Ele representa bem mais do
que um esporte. Mistifica a realidade, escondendo a injustiça social. Ao mesmo tempo,
legitima os privilégios anti-sociais da classe dominante, conduzindo a um comportamento
acrítico. Mantém o proletariado escravizado aos grilhões do desemprego e do salário
mínimo”.
47
Esse tipo de reflexão, ainda comum nas análises sobre o futebol, ignora os
diversos e complexos componentes do fenômeno, como os que aponta DaMatta ao
dizer que, embora esteja no âmbito da indústria cultural, “dentro dos mais
extremados objetivos capitalistas e burgueses, ele [o futebol] também orquestra
componentes cívicos básicos, identidades sociais importantes, valores culturais
profundos e gostos individuais singulares”.
48
O brasilianista Robert Levine demonstrou que a raiva contra o regime militar
obnubila a multiplicidade de fatores que estão em jogo.
“O problema com a tese do ópio é que ela apresenta uma visão maniqueísta dos
46
RAMOS, Roberto. Futebol, Ideologia e Poder. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 23.
47
Idem, ibidem, p. 23.
48
DAMATTA, Roberto. “Antropologia do óbvio - Notas em torno do significado social do futebol brasileiro”.
In: Revista da USP - Dossiê Futebol. Número 22, junho/julho/agosto de 1994, p. 12.
47
processos sociais. A mudança dos anseios da sociedade brasileira, e não a vontade coletiva
dos diretores dos clubes, obrigou o futebol a evoluir do modo que fez; contudo, o poder dos
meios de comunicação e a intervenção fiscal e administrativa do governo, sem dúvida,
ajudaram a plasmar essa evolução. Muitos dos argumentos usados para caracterizar o
futebol como mecanismo de controle social podem ser usados para mostrar seu papel como
agente redutor das distâncias sociais e como agente encorajador do orgulho nacional. Para
cada argumento do futebol como circo, outros podem ser contrapostos credenciando o esporte
como fator de maior autenticidade local e de redução de hostilidades entre classes.”
49
DaMatta lembra que, ao contrário do que afirmam os críticos do futebol
como instrumento de manipulação, esse esporte é o campo do imponderável por
excelência, o que impede seu controle absoluto por parte de quem quer que seja.
“Todos estamos profundamente insatisfeitos com uma matriz da análise sociológica
dominante, que é por demais economicista e que entende ser a vida um jogo direto
de forças racionais, um mercado, jamais podendo ser vista como um drama
futebolístico, onde homens lutam contra homens, e todos com regras e torcidas que
também imprimem ao espetáculo uma direção incontrolável.”
50
DaMatta identifica
ainda um traço arrogante na tese do futebol como “ópio do povo”, porque significa
dizer que só entende o papel do futebol no Brasil aqueles que ou são da elite – isto
é, os manipuladores – ou são os críticos da sociedade -- isto é, os intelectuais de
esquerda. Já a massa, bem, “a massa permanece na escuridão de sua idiotice
49
LEVINE, Robert. “Esporte e sociedade: o caso do futebol brasileiro”. In: MEIHY, J.C.S. (org.). Futebol e
Cultura - Coletânea de Estudos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1982, p. 41.
50
DAMATTA, Roberto (et. al.). Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1982, p. 14.
48
crônica, incapaz de perceber seu sistemático engano”, ironiza o antropólogo.
51
O relato do ex-guerrilheiro Alfredo Sirkis sobre sua reação e a de seus
companheiros de luta após a conquista do tricampeonato no México, ajuda a
entender o ponto de vista mais radical da esquerda e suas conseqüências:
“E como deixar de comemorar? A seleção de Zagallo, à qual João Saldanha deu o
grande impulso inicial, levou o futebol brasileiro à sua plenitude. (...) Porque queriam saber
da seleção, acompanhar todos os detalhes da Copa, dezenas de milhões de pessoas ficaram
como hipnotizadas, de olho no vídeo. (...) O governo aproveitou a ocasião para deslanchar
uma gigantesca campanha de autopromoção. Era como se a vitória do Tri lhe pertencesse.
(...) Coube a Médici fazer opereta, se popularizar através dos grandes media, naquele
momento de comemoração nacional. (...) Aquela enorme manipulação, irresistível, amargava
nossa curtição do Tri”.
52
A seleção de 1970 criou esse dilema jamais resolvido na alma da esquerda
brasileira. Como escreveu o historiador Arno Vogel: “O máximo de radicalismo
crítico era torcer contra a seleção, como uma forma de protestar contra o esquema
repressivo que o governo tinha acionado (...). Em geral, os escrúpulos da
consciência crítica duravam pouco. Ao primeiro ataque bem-sucedido da seleção
canarinho, todos viravam torcedores fanáticos”.
53
Essa desconfortável contradição
foi abordada por Henfil em O Pasquim. Em quadrinhos, o cartunista, ele mesmo um
intelectual de esquerda, desenhou um pensador crítico da mobilização nacional em
torno da seleção. O personagem lança imprecações contra torcedores acotovelados
diante da TV durante uma partida do Brasil. A seqüência com a reação do
intelectual dispensa comentários:
“Um país inteiro pára por causa do futebol, mas não pára para resolver o problema
51
Idem, ibidem, p. 22.
52
SIRKIS, Alfredo. Os Carbonários. São Paulo: Global, 1981, p. 235-238.
53
VOGEL, Arno. “O momento feliz. Reflexões sobre o futebol e o ethos nacional”. In: DAMATTA, Roberto
(et. al.). Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982, p. 110.
49
da fome... Este sim é o verdadeiro ópio do povo! Faz esquecê-lo de que são explorados,
subdesenvolvidos... Estou torcendo para o Brasil perder! Assim o povo voltará à realidade e
verá que a vida não é feita de gols, mas de injustiças... Nossa realidade não é tão infantil
como uma jogada como esta de Pelé invadindo a grande área inglesa e... Pênalti! Pênalti!
Juiz filho da mãe! Pênalti, seu safado!
54
54
O Pasquim, 11 a 17.jun.1970, número 51, p. 11
50
3.2. As diversas manipulações de um grande evento
A crítica à comemoração do tricampeonato, a despeito da censura aos jornais
mais ou menos uniforme a partir de 1968 -- em maio de 1970, às vésperas da Copa,
Médici aprovou a censura prévia a livros e periódicos, a título de banir a
pornografia --, era latente no ambiente de desconfiança estabelecido no país, que, ao
menos no imaginário da direita encastelada no poder com os militares, reproduzia
o confronto da Guerra Fria. Assim, até o tricampeonato era motivo para louvar os
esforços no combate ao comunismo, como no editorial de O Estado de S. Paulo
segundo o qual, depois da conquista no México, era vital ganhar a “Taça do Século
XX”, isto é, a disputa ideológica: “O selecionado totalitário [comunista] joga um
futebol-força, e o selecionado ocidental, um futebol-arte. (...) O campo é o globo
inteiro. (...) A bola é o poder”.
55
Criticar uma conquista que era vista nessa
dimensão significava, para a direita, cometer crime de falta de patriotismo, como
salientou o pensador ultracatólico anticomunista Gustavo Corção em O Estado de S.
Paulo:
“E digo sem rebuços: quem não sentiu fundo o valor desta vitória do Brasil não
pegou o bê-a-bá da alma humana. Andam por aí uns ideólogos que, além de não conhecerem
a alma humana, conhecem mal a história, a sociologia e a economia e, armados desse sólido
arsenal de ignorância, querem reestruturar, rearrumar, recriar o mundo em que nasceram.
Eu tenho todos os motivos para imaginar que esses ideólogos estejam furiosos com a súbita
exaltação de patriotismo de um povo grande que só quer ser um grande povo unido por
vínculos do bem-querer. Toda uma geração de pedantes e de conscientizadores tentou matar
no povo brasileiro o patriotismo, sem saber, os asnos, que o patriotismo é tão profundo na
alma como os sentimentos de família”.
56
A sensação de manipulação foi explorada em várias frentes. Uma peça de
55
O Estado de S. Paulo. 23.jun.1970, p. 3.
56
O Estado de S. Paulo, 25.jun.1970, p. 6.
51
Dias Gomes, intitulada “Campeões do Mundo” (1981), colocou em cena o seqüestro
de um embaixador estrangeiro por um grupo guerrilheiro no momento em que o
país festejava o tricampeonato. Em entrevista ao jornal Movimento, Gomes admitiu
que sua peça abdicava das metáforas para mostrar como “o cerceamento de várias
possibilidades de ação política, a tortura e o assassinato conviveram com a idéia de
um ‘milagre brasileiro’ e com a euforia provocada pela conquista do tricampeonato
mundial de futebol, habilmente capitalizada pelo regime”.
57
Mais de dez anos depois da Copa, ainda era difícil, mesmo para um
intelectual bem preparado como Gomes, entender o significado do tricampeonato
mundial para o Brasil sem vincular seus efeitos a uma espécie de chancela do
governo Médici. O dramaturgo afirmou ao Movimento: “Nada melhor para vender o
‘milagre brasileiro’ do que o campeonato mundial; é por isso que eu faço, na peça,
uma manipulação histórica, fazendo coincidir o seqüestro do embaixador com o dia
da conquista do tricampeonato”.
58
A idéia de Gomes rendeu um subproduto bastante conhecido: o filme “Pra
Frente Brasil” (1983), dirigido por Roberto Farias. Também por meio de uma ficção,
Farias mostra os agentes da repressão torturando supostos inimigos do regime
enquanto os brasileiros embeveciam-se com as vitórias no México. A diferença
importante é que o filme tem como centro a ação nos porões, enquanto a peça de
Gomes salienta a ação da guerrilha. A coincidência está na suposta alienação
popular em ambos os casos: segundo a mensagem das obras, o brasileiro médio,
anestesiado pelo futebol, desconhecia – ou não se importava com – a guerra
57
Movimento, 20 a 26.jul.1981, p. 23-24.
58
Idem, ibidem.
52
travada nos subterrâneos do país em que vivia.
Gomes argumenta que preferiu destacar os seqüestradores para mostrar o
isolamento dos que se haviam engajado na luta armada: “Enquanto o povo
comemorava nas ruas o tricampeonato, um grupo jovem, trancado numa casa,
mantinha seqüestrado um embaixador estrangeiro”.
59
Talvez seja a forma mais inteligente de ver os fatos. Afinal, como diz
Gaspari, “a violência e o arbítrio são insuficientes para explicar por que a ditadura
se manteve de pé, muito menos para compreender por que Médici conseguiu ser ao
mesmo tempo o presidente menos criticado e o mais aplaudido; o silêncio e a
tolerância que seu governo obteve foram maiores do que aqueles que a coerção
direta poderia assegurar”.
60
Gaspari refaz a trajetória do esvaziamento da oposição ao regime por meio
do espraiar do alcance do Estado na vida nacional. Não foi a esquerda o alvo
solitário da ação repressiva, mas a sociedade inteira, resultando em desmobilização
geral. Menos de mil pessoas, a maioria de classe média, se dispuseram a combater o
regime pela via armada, conforme cálculo de Gaspari.
61
Eis o isolamento ao qual
Dias Gomes se refere em sua peça.
Mesmo à esquerda, porém, houve quem preferisse ver no futebol – e na festa
pela conquista de 1970 – uma importante manifestação que devia ser tomada como
positivamente representativa do ser brasileiro. Em um texto tocante para o jornal
Pasquim, o poeta Ferreira Gullar, cuja história de perseguição pelo regime militar
não deixa dúvidas acerca de suas convicções, despejou toda a carga emocional que
o momento do tricampeonato ensejou no país:
“A gratidão do povo brasileiro pelos jogadores que venceram a IX Copa do Mundo é
uma das raras expressões coletivas legítimas numa sociedade como a nossa: é o povo
saudando a si mesmo, que o futebol não representa nenhuma outra coisa, e os craques da
59
Movimento, 20 a 26.jul.1981, p. 23-24.
60
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 231-232.
61
GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 352.
53
seleção não são nem mais nem menos que isso: povo. (...) [Futebol] é coisa de todo mundo.
Ao alcance de todos. (...) É assim o futebol, um troço aberto, democrático. A mais
democrática seleção do mais apto de que se tem conhecimento neste país: todo mundo pode
concorrer. (...) Acredito que o Brasil é tão bom no futebol por várias razões, mas uma delas,
certamente, é essa amplíssima possibilidade de participação da massa do povo, sem as
barreiras de classe. (...) Por isso é que tão pouca coisa neste país tem a autenticidade nacional
de uma vitória como a desta Copa. (...) É nacional não porque se intitule nacional, mas
porque tem profundas raízes no povo do país. Não é uma coisa inventada pela propaganda
nem imposta de cima para baixo. (...) E então se dá o milagre. O país pára. Os altos
interesses da indústria, do comércio, do Poder, são postos de lado, por um simples curto-
circuito: uma fagulha que identifica o povo com seus heróis. (...) E durante alguns dias o
povo fez valer sua vontade nas ruas”.
62
62
O Pasquim, 2 a 8.jul.1970, p. 29.
54
3.3. Exploração política
Diante de tamanha significação popular, parece claro que o futebol é um
potencial instrumento de exploração política, mas mesmo nesse terreno é preciso
ter cautela. Para João Saldanha, militante comunista, “o fato de o político se meter
em futebol não é mal nenhum. (...) Os fatos históricos desmentem que o futebol
sirva para escorar governos. O que escora governo é tanque”.
63
De fato, vitórias no campo esportivo não significam, automaticamente,
triunfos políticos expressivos. Ao longo do regime militar, por exemplo,
observaram-se efeitos diversos das Copas nas eleições. No desastre de 1966, quando
o Brasil foi eliminado na primeira fase da Copa da Inglaterra, a governista Arena
elegeu 68% dos deputados federais e 82% dos senadores. A Arena também se saiu
bem na eleição realizada após a Copa de 1970, mas foi uma vitória relativa, como
veremos adiante. O partido, assim como a seleção de 1974, sofreria um sério revés
na votação daquele ano, quando o MDB, que teve a primeira oportunidade de usar
a TV para divulgar suas propostas, elegeu 16 de 22 senadores e 44% dos deputados
federais. O Brasil voltaria a fracassar nas Copas de 1978 e de 1982, mas o governo
conseguiria manter-se como maioria no Legislativo.
Contudo, é inegável que o ambiente que precedeu a Copa de 1970 foi “o
melhor exemplo de como o futebol foi usado para emprestar legitimidade política
ao governo”, na opinião do brasilianista Robert Levine.
64
Médici não mediu esforços para associar a imagem de seu governo à da
63
SALDANHA, João. Futebol e Outras Histórias. São Paulo: Record, 1988, p. 199 e 201.
64
LEVINE, Robert. Op. cit., p. 38.
55
seleção. Popularidade era algo que ele perseguia, como deixou claro em discurso
após a posse, em 27 de outubro de 1969: “Espero que cada brasileiro faça justiça aos
meus sinceros propósitos de servi-lo e confesso lealmente que gostaria que o meu
governo viesse, afinal, a receber o prêmio de popularidade...”.
65
Com tal objetivo
em mente, consolidou-se como “torcedor número um“, deu palpites públicos sobre
os jogos e, ao final do campeonato, com o título assegurado, deixou-se filmar e
fotografar como um autêntico entusiasta do esporte.
Para alguns observadores, essa atitude é suficiente para classificar Médici
como um insidioso manipulador das ilusões das massas. Mas essa conclusão pode
ser precipitada. Como demonstra Carlos Fico ao longo de seu livro Reinventando o
Otimismo, Médici foi o único presidente a ter popularidade pessoal, apesar de todos
os esforços da máquina publicitária do governo no sentido de evitar a
personalização do regime, coisa que o identificaria com os governos de tipo fascista.
É exemplar o relato de Luiz Inácio Lula da Silva, que no governo Médici era
dirigente sindical:
“Hoje a gente pode dizer que foi por conta da dívida externa, milagre brasileiro e tal,
mas o dado concreto é que, naquela época, se tivesse eleições diretas, o Médici ganhava. E foi
no auge da repressão política mesmo, o que a gente chama de período mais duro do regime
militar. A popularidade do Médici no meio da classe trabalhadora era muito grande”.
66
Médici era bem visto entre os trabalhadores porque, como Lula bem lembra,
havia algo próximo do pleno emprego naquela oportunidade. Some-se a isso, no
entanto, sua identificação com o futebol, o esporte mais popular do Brasil, e então
teremos aí uma pequena pista da combinação de fatores que tornou o governo
Médici aquele que melhor soube aproveitar o momento e suas próprias
características para atingir um objetivo que qualquer regime de exceção almeja, isto
é, criar uma espécie de cumplicidade com a maior parte da população em torno de
65
MÉDICI, Emílio Garrastazu. A Verdadeira Paz. Brasília: Secretaria de Imprensa da Presidência da República,
1973, p. 65.
66
COUTO, Ronaldo Costa. História Indiscreta da Ditadura e da Abertura. São Paulo: Record, 1999, p. 117.
56
seus projetos de grandeza.
Em resumo, o futebol pode funcionar -- e efetivamente funciona, no caso
brasileiro -- como elemento central para a construção de uma identidade nacional,
quer patriótica, quer cultural, coisa que o regime militar do Brasil, obviamente, não
podia ignorar. Pelo contrário: tratou de capitalizar.
57
4. A ditadura e a Copa de 1970: relações
4.1. Médici, um torcedor
O interesse sobre a Copa de 70, para os propósitos deste trabalho, está
centrado nesse contexto de construção de uma realidade que identifica esse grande
evento imediatamente com a ditadura militar brasileira. E a imagem de Médici
como “torcedor comum”, incensada pela imprensa e pelo governo, joga aqui um
papel crucial. No entanto, diferentemente do que as “impressões” sobre a época
geralmente expressam, as fontes analisadas permitem supor que as relações de
Médici com o futebol não foram somente publicitárias. O presidente parecia ser um
autêntico torcedor, segundo relatos insuspeitos. O cronista Carlos Heitor Cony,
uma das vítimas da ditadura, afirma:
“Médici era fanático por futebol, e não foi armação do regime militar a divulgação de
algumas de suas fotos mais famosas – ouvindo jogo no radinho de pilha, enrolado na
bandeira nacional por ocasião do tricampeonato e fazendo embaixadas com alguma perícia, o
que revelava intimidade com a bola”.
67
Dentro do governo, ministros importantes tratavam de dar publicidade a
essa característica do presidente, vinculando-a à “brasilidade” de Médici e à sua
condição de “homem comum”. Jarbas Passarinho, que ocupava a pasta da
Educação, era um dos mais eufóricos: “Todos conhecem seu nacionalíssimo gosto
67
CONY, Carlos Heitor. Médici e FHC”. In: Folha de S. Paulo, 6.mar.2002, p. A2
58
pelo futebol. Dou meu testemunho da emoção com que o presidente assistiu a todos
os jogos, torcendo com o entusiasmo do brasileiro normal e do homem comum que
o elevado cargo não modificou”.
68
Do ponto de vista estritamente cerimonial, Médici cumpriu, como quase
todos os outros presidentes brasileiros em circunstâncias semelhantes, sua
“obrigação” de prestar apoio e solidariedade ao selecionado nacional na disputa
pela Copa do Mundo. Para usar um exemplo eloqüente, João Goulart, o presidente
que viria a ser derrubado pelos militares em 1964, aproveitou-se como pôde da
conquista brasileira na Copa do Chile, em 1962 -- sem que isso tenha sido objeto de
crítica da historiografia sobre os usos políticos do futebol no Brasil, pelo menos não
no mesmo nível da ferocidade dirigida contra Médici e a seleção de 1970.
E os objetivos de Jango, ainda que o contexto fosse obviamente diverso, eram
muito semelhante aos de Médici: incorporar o triunfo esportivo à sua imagem, com
o objetivo de legitimar-se -- afinal, é bom lembrar, o Brasil faria, naquele ano, o
plebiscito que acabou por restabelecer o presidencialismo no país, dando
finalmente a Jango poderes para governar. “Com a vitória [no Chile], Jango recebeu
os jogadores e vibrou como um torcedor comum”, relata o historiador Gilberto
Agostino,
69
que não sugere em nenhum momento que Jango talvez pudesse estar
fingindo.
No caso específico de Médici, o que se viu, a julgar pelos relatos de época (e
não pelas “impressões“ posteriores), foi uma entrega pessoal que superou, com
folga, o ritual adequado à função que ele exercia.
O presidente conhecia futebol. Havia jogado como atacante no time do
Grêmio de Bagé, sua cidade natal, e “tinha bom chute”, segundo se conta.
70
Na
Presidência, fazia questão de se qualificar como torcedor, sempre que podia. No dia
da difícil vitória sobre a Inglaterra, em 7 de junho, ele enviou um telegrama à
seleção dizendo: “Na oportunidade da notável vitória conquistada palmo a palmo
sobre a grande equipe inglesa, mando-lhes meu comovido abraço de torcedor, pela
68
Folha de S. Paulo, 22.jun.1970, p. 6.
69
AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou Morrer - Futebol, Geopolítica e Identidade Nacional. Rio de Janeiro:
Mauad, 2002, p. 154.
70
Manchete, 25.out.1969, número 914.
59
demonstração de técnica, serenidade, amadurecimento, inteligência e bravura”.
71
A linguagem de Médici também era a de um torcedor. Na véspera desse
mesmo jogo contra a Inglaterra, o presidente comentou a jornalistas que estavam no
Planalto que não esperava maiores dificuldades pois os ingleses eram, na sua
opinião, “fregueses de caderno”.
72
A idéia de que Médici fazia parte da torcida brasileira era convenientemente
reforçada pela reação dos jogadores da seleção (segundo palavras que se lhes
atribuíam). No dia da vitória sobre o Peru, em 14 de junho, o presidente telefonou
para Guadalajara, onde estava o time, e mandou cumprimentar os jogadores,
dizendo-lhes que confiava na “nossa vitória final”.
73
Fez referências “especiais” a
Brito, Dario e Everaldo, jogadores sobre os quais ele não escondia sua predileção –
coisa típica de torcedor; afinal, pelo menos em teoria, a um chefe de Estado não é
permitido gostar mais de uns que de outros.
Na conversa, perguntou particularmente sobre o estado do contundido
Everaldo, o jogador da seleção que atuava no Grêmio, time para o qual Médici
torcia. “O interesse do presidente Médici”, reportou O Estado de S. Paulo, “deixou o
jogador muito feliz.“ Everaldo dizia por que precisava se recuperar:
“O presidente é meu fã. Torce pelo Grêmio e até já anda perguntando sobre o meu
estado de saúde. Assim dá gosto a gente estar numa seleção, pois, além de estarmos jogando
certinho e ganhando de todo mundo, ainda o presidente da República pergunta sempre como
71
Folha de S. Paulo, 9.jun.1970, capa.
72
Idem, p. 31.
73
Idem, 15.jun.1970, p.30.
60
vai o time e até se lembra de um pobre jogador como eu. Estou realmente emocionado’.”
74
Em almoço de Médici com os jogadores no Rio de Janeiro, antes de amistoso
contra a Áustria, Everaldo “foi o jogador mais festejado pelo presidente, que é
torcedor do Grêmio”.
75
A resposta da seleção (ou aquilo que se dizia em nome dela) reforça essa
imagem de um Médici que se realiza como um fã de futebol, com apego autêntico à
seleção. Segundo o brigadeiro Jerônimo Bastos, chefe da delegação brasileira, “o
interesse com que o presidente acompanha os jogos de nossa seleção tem servido de
real estímulo a todos”. “‘Quando jogamos, sentimos que, entre os milhões de
torcedores que nos acompanham, está o presidente, e isso é bom’, disse à imprensa
um dos jogadores.”
76
O fato de a reportagem não mencionar o nome desse jogador
é bastante suspeito e coloca em dúvida se alguém da seleção realmente disse isso.
No entanto essa hipotética fraude é menos importante do que a constatação de que,
na mídia, Médici aparecia sempre como um apaixonado pelo esporte mais popular
do país.
Essa paixão era manifestada mesmo em situações nas quais tal
comportamento não era esperado, como quando recebeu o então embaixador da
Guatemala, Evan Drayton, em junho de 1970. Drayton estava com o braço
engessado, e Médici perguntou-lhe: “Foi no futebol que o senhor se machucou?”.
Diante da resposta negativa do diplomata, o presidente insistiu, quase a intimidá-
74
O Estado de S. Paulo, 16.jun.1970, p. 26.
75
Última Hora, 29.abr.1970, capa.
76
Folha de S. Paulo, 16.jun.1970, p. 26.
61
lo: “Mas o senhor gosta de futebol, não?”.
77
Gaspari relata que Médici antecipou a reunião com o general Ernesto Geisel
na qual lhe comunicou que seria seu sucessor apenas para não perder a transmissão
do jogo amistoso entre Brasil e Áustria, em 13 de junho de 1973, em Viena. O jogo
terminou 1 a 1.
78
Um outro aspecto que aproximava Médici dos demais torcedores era seu
hábito de dar palpites sobre todos os jogos da seleção (o que obrigava quase todos
os integrantes do primeiro escalão do governo, mesmo aqueles que nunca haviam
se interessado por futebol, a fazerem o mesmo...). O mais célebre desses palpites foi
o da final da Copa do México: Médici cravou 4 a 1 para o Brasil contra a Itália. No
dia do jogo, a Folha de S. Paulo estampou o prognóstico presidencial na manchete de
sua página esportiva. Como o resultado viria a se confirmar, reforçou-se a imagem
não só de que Médici era um torcedor de futebol, mas realmente entendia de
futebol e se relacionava com o esporte da mesma maneira que todos os outros
brasileiros. Quando o jogo acabou, em meio à festa pela conquista, o presidente fez
questão de lembrar aos que estavam a seu lado que acertara o prognóstico, coisa
que todo torcedor faz.
79
No dia do tricampeonato, Médici foi fotografado com uma bandeira
brasileira não em pose cerimonial, mas com gestos característicos de quem estava
sinceramente comemorando o título mundial. Consta que, dois dias depois, quando
recebeu a seleção em Brasília, chorou de emoção. “Este é o maior dia de minha
vida”, disse o presidente aos que o acompanhavam. O relato da festa junto com os
jogadores mostra a catarse em seu nível máximo, como se a seleção fosse um grupo
de guerreiros que acabava de trazer a cabeça do inimigo ao rei:
“De repente, a festa atinge seu ponto culminante: Carlos Alberto [o capitão da
seleção] aparece no Parlatório, em frente ao palácio, e levanta a [taça] Jules Rimet para o
povo. É um grito só, que ainda ecoa e se renova quando o presidente Médici repete o gesto do
77
Folha de S. Paulo, 19.jul.1970, p. 3.
78
GASPARI, Elio. A Ditadura Derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 225.
79
Folha de S. Paulo, 22.jun.1970, capa.
62
capitão e abraça Carlos Alberto, lágrimas brilhando nos olhos. Os aplausos são frenéticos, há
lágrimas nos olhos de todos”.
80
Em cena antológica descrita pela Folha de S. Paulo em sua primeira página no
dia seguinte à conquista da taça, lia-se:
“Ao término da partida, o presidente mandou que os torcedores que se encontravam
na praça fronteiriça entrassem para o Palácio e saiu para o meio do povo, enrolado em uma
bandeira brasileira. Os torcedores o carregaram. Quando o puseram no solo, o presidente
pegou uma bola dos netos e começou a mostrar sua habilidade no esporte em que o Brasil é
campeão mundial. Fez embaixadas e chegou a dar umas de calcanhar, sendo estimulado pelos
fãs, que diziam ‘se o Zagallo soubesse, hein, presidente...’ ”.
81
Todo o esforço publicitário do governo para aproximar Médici dos demais
brasileiros era, como se vê, bastante facilitado pela própria conduta do presidente,
que não perdia nenhuma oportunidade para reiterar sua condição “popular”. Na
mensagem após a vitória no México, Médici não deixou por menos: “Na hora em
que a seleção nacional de futebol conquista definitivamente a Copa do Mundo,
após memorável campanha, na qual só enfrentou e venceu adversários do mais alto
valor, desejo que todos vejam, no presidente da República, um brasileiro igual a
todos os brasileiros”.
82
80
O Estado de S. Paulo, 24.jul.1970.
81
Folha de S. Paulo, 22.jun.1970, capa.
82
Idem, ibidem.
63
4.2 A apropriação do futebol no discurso político
Constatado o envolvimento de Médici com o futebol, é preciso dimensionar
até que ponto o regime (e aqueles que ao redor dele orbitavam) se apropriou desse
discurso popular em proveito próprio. À medida que o sucesso da seleção brasileira
foi se tornando concreto (inesperado devido às turbulências prévias, inclusive com
a demissão de um técnico às vésperas da estréia), militares e políticos civis
procuraram capitalizar esses resultados.
Uma das estratégias era vincular o sucesso no futebol a projetos oficiais.
Numa ação de oportunismo explícito, o governo decidiu lançar o “Fundo Pelé de
Educação”, para arrecadar dinheiro “para as criancinhas pobres”, como pedira Pelé
ao marcar seu milésimo gol, em novembro de 1969. Seria lançado um carnê cujo
pagamento daria direito a adquirir um livro sobre Pelé e sua trajetória de menino
pobre até o estrelato. O próprio jogador aceitou fazer a campanha -- o mesmo Pelé
que não participou da Copa de 1974 segundo ele por discordar do uso político que
os militares faziam do futebol. Não há informação se esse fundo foi adiante, mas
tais iniciativas não eram incomuns na época.
No Congresso, os “parlamentares só falam de futebol”, segundo constatação
da Folha de S. Paulo.
83
A conquista da Copa “era, como não poderia deixar de ser, o
único assunto” entre os políticos, de acordo com o registro de O Estado de S. Paulo.
84
Contabilizavam as possibilidades políticas abertas pelo triunfo no México e,
83
Folha de S. Paulo, 24.jun.1970, p. 13.
84
O Estado de S. Paulo, 23.jun.1970, p. 3.
64
diferentemente do senso comum, os analistas da época não entendiam como
líquido e certo que o governo é quem teria mais a ganhar. “A euforia é idêntica
tanto da parte do governo quanto da parte da oposição, embora, à primeira vista, se
pudesse imaginar que, politicamente, ela fosse mais favorável ao primeiro. A
maioria dos observadores políticos, no entanto, não pensa assim“, comenta O
Estado.
85
Mas esse “equilíbrio” em relação aos efeitos políticos da Copa se desfaz
quando entra na equação o “fator Médici”. E então, O Estado concede: “É verdade
que este governo, mais do que qualquer outro, identificou-se muito com a vitória,
graças ao fato de ser o próprio presidente da República um sincero e ardoroso
torcedor”.
86
Na reportagem da Folha, dizia-se que os deputados José Lindoso e
Raimundo Parente (Arena) achavam que “o feito da nossa seleção foi bom para o
governo”, enquanto Pedro Faria, do MDB carioca, afirmava não se preocupar com
as implicações políticas do tricampeonato. “Foi bom que o Brasil tivesse ganho.”
87
Não é fácil acreditar na sinceridade do representante da oposição, mas o fato é que
nenhum político podia se arriscar a criticar a seleção ou, pior, acusá-la de servir aos
interesses do regime. E o regime, por seu lado, não escondeu sua estratégia de
explorar ao máximo os louros do tricampeonato. No almoço oferecido por Médici à
delegação brasileira após a conquista, em Brasília, o deputado Rondon Pacheco,
líder do governo na Câmara e presidente da Arena, fez questão de abraçar o
centroavante Tostão. Conforme registro de O Estado de S. Paulo, o jogador mineiro
agradeceu “discretamente” o cumprimento do político em meio a comentários:
“Com esse cabo eleitoral, o Rondon está feito em Minas”.
88
O mesmo Pacheco recomendou que os candidatos de seu partido à eleição
parlamentar daquele ano destacassem a vitória do Brasil na Copa, ao lado das
“realizações do governo revolucionário”, pois isso “constitui fator psicológico
positivo da mensagem que o partido governamental deve levar ao povo, a fim de
85
Idem, p. 3.
86
Idem, ibidem.
87
Folha de S. Paulo, 24.jun.1970, p. 13.
88
O Estado de S. Paulo, 24.jul.1970, p. 16
65
obter bons resultados nas urnas”. “O otimismo vai nos proporcionar uma cabeça-
de-ponte entre a Arena e o povo, que há de trazer bons reflexos nas urnas”, disse
Pacheco.
89
Mesmo deputados arenistas de pouca expressão tentaram achar um lugar ao
sol mexicano, como Paulo Abreu (SP), que pagou anúncio na Folha de S. Paulo para
“prestar contas” de seu trabalho, elaborar uma espécie de “sociologia do futebol” e
propor à Câmara o envio de uma mensagem à seleção: “Ressaltou o deputado
paulista que o futebol é sem dúvida um fator de união nacional e que muitos
psicólogos já constaram que ele extravasa o campo esportivo, influindo na própria
economia do país de forma positiva ou negativa, de acordo com o resultado dos
jogos. Depois de salientar que o próprio presidente Médici acaba de enviar
telegrama de estímulo e de confiança à seleção, conclui o deputado Paulo Abreu:
‘Esta Casa representa o povo brasileiro. Vive com o povo suas alegrias e suas
tristezas e, nesta hora, não pode ficar alheia à participação nacional na Copa do
Mundo’ ”.
90
O obscuro Paulo Abreu não estava sozinho: faziam parte do debate político
naqueles dias os efeitos que a eventual conquista da Copa teria no Brasil, no plano
econômico e no plano político. A imprensa destacava, por exemplo, que os
problemas de Médici na sucessão indireta dos governos estaduais – o presidente
impôs diversos nomes, segundo ele mais identificados com os “ideais da
revolução”, contrariando interesses dentro da Arena – poderiam ser aliviados pela
vitória do Brasil. A seção “Sumário”, coluna de bastidores políticos da Folha de S.
89
Última Hora, 3.jul.1970, p. 3
90
Folha de S. Paulo, 6.jun.1970, p. 13.
66
Paulo, dá conta de que a vitória do Brasil sobre a Tchecoslováquia, no primeiro jogo
da Copa do México (um arrasador 4 a 1), foi...
“...um refrigério, um bálsamo mesmo para as mágoas e chagas que o problema
sucessório nos Estados havia provocado nas almas sensíveis e sempre desejosas dos próceres
da política nacional. (...) Saibam todos que Pelé, Jair e Rivelino, com os tentos que
marcaram, conseguiram esvaziar boa parte dos descontentamentos a que aludíamos e deram
ao presidente Médici uma colaboração valiosíssima. (...) Realmente, tudo leva a crer que, se a
seleção brasileira levantar a Copa do Mundo, o acontecimento terá repercussões profundas
para o país, dentro e fora dele. Na esfera interna, nem se fala. (...) As metas de uma
administração dependem das metas nos campos esportivos. No caso brasileiro, essa
interdependência é ainda mais profunda, de vez que nosso esporte, o futebol, está entranhado
nas dobras mais íntimas da alma popular (...). Por isso mesmo o governo do presidente
Médici andou bem em emprestar apoio ao nosso selecionado que peleja nos gramados
estrangeiros”.
91
O recado foi bem compreendido pelos governistas: tratava-se de uma
oportunidade única não só de explorar politicamente o sucesso do Brasil no campo
esportivo mas de mostrar que as manifestações populares que se seguiram à
conquista do tricampeonato eram a melhor prova de que o país vivia sob um
regime democrático. O discurso do governador Peracchi Barcelos, do Rio Grande
91
Folha de S. Paulo, 5.jun.1970, p. 3.
67
do Sul (terra do gremista Médici), ao celebrar o tricampeonato mundial e receber
Everaldo, um dos jogadores favoritos do presidente, resume essa espantosa
manobra retórica:
“Vocês, com esta vitória, devem ter influído no espírito de quantos, a serviço de
causas malsãs, procuraram enxergar no Brasil um país que não é uma democracia, mas uma
ditadura. Mas quem quiser ver que isto não é uma ditadura, é uma democracia, que venha às
ruas de todos os Estados brasileiros e veja como o povo livremente se manifesta. Ninguém
lhe tolhe os passos e ele, dessa forma, testemunha ao mundo que a Revolução de Março de
1964 pode ter imposto, em certos momentos, algumas restrições, mas é uma Revolução
eminentemente democrática”.
92
Com todo esse aparato a favor, porém, a Arena obteve, naquele ano, uma
vitória de Pirro nas eleições legislativas. Segundo dados da Fundação Getúlio
Vargas
93
, o partido governista conseguiu 69,46% dos votos válidos na votação para
a Câmara e 60,43% na eleição ao Senado, mas é preciso considerar que houve
expressiva abstenção (22,6%) e um número significativo de votos em branco e nulos
(30,3%), além, é claro, a ausência de uma oposição autêntica e consistente.
Mesmo considerando-se a relatividade dos efeitos da conquista esportiva,
porém, o fato é que a nenhum dos integrantes do regime parecia ser permitido
ignorar o potencial legitimador desse acontecimento. Por essa razão, o
envolvimento de ministros com a seleção cresceu na proporção do sucesso do time.
92
Veja, 17.jun.1970, p. 34
93
Banco de Dados Políticos das Américas. Disponível na internet via WWW. URL
http://pdba.georgetown.edu/Elecdata/Brazil/legis1970.html. Capturado em 10.jan.2005.
68
Os ministros Alfredo Buzaid (Justiça) e Jarbas Passarinho, por exemplo, foram ao
México ver a seleção jogar a final. Antes dessa partida, o chanceler brasileiro, Mário
Gibson Barboza, foi pessoalmente à concentração da seleção em Guadalajara.
Declarou que estava no México apenas para torcer, mas deixou o recado que o
governo queria: “[Gibson] disse que sua vinda ao México representa a presença do
governo brasileiro junto à seleção de futebol, já que as autoridades vêm
acompanhando com bastante interesse esta campanha na Copa do Mundo”.
94
Tanto interesse que, quando a seleção venceu a Copa, o presidente Médici
entregou a cada jogador, por meio da Caixa Econômica Federal, um cheque de 25
mil cruzeiros (o equivalente hoje a 20 mil reais)
95
, numa atitude que não mereceu
reparos à época, apesar da evidente irregularidade. Por razões semelhantes, o então
prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, teve de responder a processo – ele mandou dar,
à custa dos cofres públicos, um Fusca a cada jogador tricampeão –, num episódio
que se tornou paradigmático da confusão entre o público e o privado na esfera das
administrações brasileiras e que foi duramente atacado pela imprensa da época,
que o classificou como “demagogia“
96
. Maluf, como seria seu hábito no futuro,
ignorou as críticas e, ao sancionar a lei que oficializou os presentes, capitalizou a
conquista, mimetizando o discurso oficial do governo federal: “Triunfo desse realce
só foi possível através de um persistente e dedicado trabalho desenvolvido por toda
uma equipe -- atenta às mais modernas normas da tecnologia esportiva, que se
dedicou, no extremo de seus esforços, em planificar e levar a efeito o preparo de
nossa representação no máximo torneio da modalidade“.
97
Já Médici, que alimentava sua identidade com a torcida brasileira, parece ter
sido deliberadamente poupado. Em reportagem sobre a premiação prometida por
Maluf, O Estado de S. Paulo registra a indignação de um vereador contra o prefeito,
comparando seu comportamento com o do presidente: “O vereador João Carlos
Meirelles disse que o presidente Médici deu um exemplo, torcendo como todo
94
Folha de S. Paulo, 21.jun.1970, p. 24
95
Valores atualizados levando-se em conta a inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPC).
96
O Estado de S. Paulo, 23.7.1970, p. 28
97
Última Hora, 7.jul.1970, p. 8.
69
brasileiro, mas sem tirar proveito político da situação”.
98
Em 1970, porém, além de
viver sob um regime de exceção, o que seria suficiente para justificar tanto a
arbitrariedade da premiação presidencial aos jogadores como a ausência de críticas
a ela, o Brasil parecia não se importar, diante da festa dos heróis do tri. Sabendo
disso, os jogadores tentaram aproveitar a situação e pediram ao presidente, por
meio do capitão do time, Carlos Alberto, um “jeitinho” de escapar do pagamento
de impostos sobre seus salários “até o fim da carreira“ e a “solução para alguns
problemas surgidos com a Alfândega“.
99
Já o deputado federal arenista Luís Brás
sugeriu que Médici enviasse ao Congresso um projeto de lei isentando os campeões
de pagamento de Imposto de Renda sobre os prêmios e as doações recebidas por
causa da conquista.
100
A imprensa não registra se esses pedidos foram atendidos,
mas o fato é que futebol e poder público sempre caminharam de mãos dadas no
Brasil.
101
Essa relação se acentua em duas circunstâncias: quando os clubes estão em
crise financeira ou quando interessa ao governo ampliar sua influência -- e, em
geral, essas duas condições se dão ao mesmo tempo, como ocorreu naquele ano,
1970.
A penúria dos clubes brasileiros na época pode ser resumida pela crise do
Santos. O clube, além de outras agremiações tradicionais, como Botafogo do Rio e
Cruzeiro, enfrentava colapso financeiro. Famoso no mundo inteiro devido à
geração capitaneada por Pelé, o clube passou a cobrar, depois de 1958, um cachê
superior ao da seleção brasileira para disputar amistosos no amistoso -- eram 30 mil
dólares, enquanto o Brasil levava 10 mil dólares. Mas o Santos endividou-se para
adquirir o Parque Balneário, que antes havia sido o principal hotel da cidade de
Santos no início do século XX e que entrara em decadência na década de 60. Em 5
98
O Estado de S. Paulo, 23.7.1970, p. 28.
99
Idem, 24.jul.1970, p. 16.
100
Última Hora, 1.jul.1970, p. 2.
101
Não foi só em 1970 que a euforia pela conquista de uma Copa propiciou irregularidades em que o público se
misturou com o privado de forma escandalosa. Em 1994, a seleção, que havia acabado de se sagrar tetracampeã
na Copa dos EUA, envolveu-se em um vergonhoso episódio conhecido como “vôo da muamba”. O avião que
trouxe a delegação de volta carregava 17 toneladas de bagagem, a maior parte dela equipamentos comprados
pelos jogadores nos EUA. Nada disso foi declarado à Receita Federal. Diferentemente de 1970, porém, esse caso
repercutiu mal: o então secretário da Receita, Osiris Lopes Filho, deixou o cargo, e os integrantes da seleção se
viram constrangidos a quitar os impostos devidos. Mas isso não impediu que o presidente da Confederação
Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, desmerecesse a pressão: “É irrelevante o que os jornais escrevem. O que
70
de maio de 1970, a família Fracarolli, antiga proprietária do hotel, deu 15 dias para
que o Santos fizesse o pagamento de 2,4 milhões de cruzeiros novos, ou 2,013
milhões de reais, em valores atualizados. Como forma de contornar a crise, o Santos
montou às pressas um time para disputar uma alucinante série de partidas
amistosas nas Américas do Norte e do Sul, na Europa, no Oriente Médio e no Japão.
Além disso, a diretoria santista recorreu a Médici, visto como a “esperança”.
102
Ou
seja: não bastava ao Santos ser o time mais requisitado do mundo; sua má
administração o levou a depender da boa vontade do presidente da ditadura, que,
por gostar de futebol e instintivamente compreender sua dimensão para o
brasileiro, não se ausentava nessas questões. Se isso ocorreu com o Santos, o time
brasileiro mais importante da época, é possível imaginar que muitos outros clubes
de menor projeção tenham igualmente recorrido ao mesmo expediente de buscar
ajuda com políticos e com o governo da ditadura, fortalecendo os laços promíscuos
entre os dois lados.
vale é o povo, que nos recebe com carinho”. In: Folha de S. Paulo, 5.ago.1994, p. 4-1.
102
O Estado de S. Paulo, 6.mai.1970, p.19.
71
4.3 Política de união nacional pela via do futebol
O governos da ditadura, em especial o de Médici, foram também bastante
criativos no uso do futebol como via de afirmação da nacionalidade, o que
interessava diretamente ao projeto do regime militar. Em maio de 1969, a
administração do marechal Arthur da Costa e Silva (1967-69) instituiu por decreto a
Loteria Esportiva, incluindo nela jogos de todo o país -- o que obrigava o apostador
a interessar-se pelo que acontecia em outros Estados. Como salienta a brasilianista
Janet Lever:
A simbiose entre esporte e política é talvez mais bem ilustrada pela Loteria
Esportiva. (...) Além de produzir recursos financeiros, a loteria contribuiu para uma
desejada unificação do território nacional. (...) As regras do jogo obrigavam a inclusão de
todas as regiões do país entre os 13 jogos, apesar do fato de que o melhor futebol sempre foi
praticado no sul do país. (...) A promoção da loteria levou a uma mudança direta na
estrutura do futebol brasileiro que também proporcionou unificação geográfica. O governo
pediu que a CBD [Confederação Brasileira de Desportos] estabelecesse um campeonato
nacional, para que pudesse haver loteria o ano inteiro”.
103
Então, em 1971, logo depois da conquista do tri mundial pela seleção, a CBD
instituiu o Campeonato Brasileiro, ambiente, por excelência, da realização da
política de unidade nacional e de interesses estratégicos dos militares. A disputa
substituiu o “Robertão“, como era chamado o Torneio Roberto Gomes Pedrosa,
estabelecido pelas federações de futebol do Rio de Janeiro e de São Paulo também
durante a ditadura (1967), mas que, em sua maior edição, incluía times apenas de
São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul. Em 1968, sob
pressão da CBD, o campeonato passou a ter como prêmio a chamada “Taça de
Prata” e incluiu um time da Bahia e um de Pernambuco. O Campeonato Brasileiro
103
LEVER, Janet. “Sport in a fractured society: Brazil under military rule”. In: ARBENA, Joseph (org.). Sport
and Society in Latin America. Connecticut: Greenwood Press, 1998, p. 91.
72
foi assim uma conseqüência óbvia do crescimento do certame, mas também
claramente respeitou o discurso de integração nacional liderado pelos militares.
Dessa maneira, a disputa foi cada vez mais condicionada aos projetos
governistas, e o principal sintoma disso foi o inchaço progressivo da competição:
em 1971, jogaram 20 times; em 1972, 26; em 1973 e 1974, o número quase dobrou,
indo para 40; em 1975, foram 42; em 1976, o total cresceu para 54; em 1977, jogaram
62; em 1978, o número subiu para inacreditáveis 74 times; em 1979, com a ditadura
em crescente desgaste, o Brasileiro atingiu seu pico, com 94 times. Era a época do
bordão “onde a Arena vai mal, um time no Nacional”, que algumas fontes atribuem
ao almirante Heleno Nunes, então presidente da CBD, e outras dizem se tratar de
manifestação popular.
104
Pouco importa: a acomodação política permitiu que times
sem nenhuma expressão, como o Leôncio (Bahia) e o Fast (Amazonas), entrassem
em campo para disputar o principal torneio do futebol tricampeão do mundo.
A Copa de 1970, aliada à euforia do “milagre” econômico, foi o fenômeno
que deflagrou essa embriaguez de futebol em níveis inéditos. Não surpreende que
os brasileiros estivessem cada vez mais envolvidos com o esporte e que a seleção
brasileira, em plena disputa do Mundial no México, freqüentasse o centro do
discurso do governo para reforçar os objetivos patrióticos e nacionalistas da
“revolução”.
Um dos mais importantes episódios dessa utilização foi o seqüestro do
embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, no Rio. Ocorrido em 11 de junho de
1970, o crime foi cometido pela Vanguarda Popular Revolucionária, que, em troca,
obteve a libertação de 40 presos e seu envio à Argélia. Ao longo do drama, cuja
coincidência com a Copa seguramente não foi acidental, o governo tratou de jogar a
opinião pública contra os grupos subversivos, sugerindo que a comoção causada
pelo seqüestro entre os jogadores da seleção poderia prejudicar o desempenho do
Brasil na Copa.
104
A partir de 1980, o número de participantes foi caindo até voltar aos níveis de 1971. A exceção foi o
Campeonato Brasileiro de 2000, chamado de Copa João Havelange, um torneio arranjado de última hora devido
a pendências judiciais. Resultado: o Campeonato Brasileiro mais inchado da história, com 116 times.
73
Em sua primeira página de 17 de junho, a Folha de S. Paulo dizia: “Notícias do
México dão conta da perturbação que a notícia do seqüestro provocou no ambiente
do nosso selecionado. Pelé, Rivellino e outros jogadores manifestaram-se,
condenando o ato terrorista”.
As “notícias” a que a Folha se referiu eram, na verdade, uma nota oficial do
Ministério do Exército: “Causou profundo impacto na seleção a notícia chegada ao
México sobre o seqüestro do embaixador alemão. Pelé, Brito, Rivelino, Clodoaldo e
outros craques lamentaram que maus traidores e criminosos venham a quebrar a
tranqüilidade e o entusiasmo da seleção. Lamentaram nossos craques que os
terroristas, a serviço de países comunistas, tentem com atos criminosos atingir um
país amigo”.
105
A idéia do regime era mostrar que os terroristas eram os desagregadores do
Brasil, no momento em que os brasileiros se uniam em torno do ideal de fazer deste
um país grande, com vitórias na área social, econômica e esportiva.
Em telegrama a Médici, o chefe da delegação brasileira, brigadeiro Bastos,
deu o tom da manipulação do episódio, procurando mostrar que os perpetradores
do “ato desumano” eram diferentes do “grande povo brasileiro”.
Mas também mostrou as preocupações do regime em relação ao exterior,
pois o Brasil de Médici já enfrentava críticas, na Europa e nos EUA, devido às
denúncias de tortura e arbitrariedades: “Na hora em que, no campo esportivo, nos
confraternizamos com outros povos e vimos alcançando vitórias baseadas nos
princípios da disciplina e do respeito, manifestamos, em nome da delegação
brasileira de futebol, nossa repulsa ao ato desumano contra o ilustre embaixador da
nação alemã (...), ferindo os laços de fraternidade dos nossos povos e dando ao
mundo uma imagem distorcida quanto à generosidade, fidalguia e humanidade do
grande povo brasileiro”.
106
O território entre o Brasil bom e o Brasil ruim estava
perfeitamente demarcado.
105
Veja, 17.jun.1970, p. 93.
106
Folha de S. Paulo, 13.jul.1970, capa.
74
Na mesma primeira página em que registrava a chegada à Argélia dos
militantes esquerdistas soltos e banidos do país em troca da vida do embaixador
alemão, a Folha de S. Paulo de 16 de junho dizia que o goleiro Félix, titular da
seleção, estava “com saudades do Brasil”.
75
4.4 O regime visto pela seleção brasileira: o caso João Saldanha
É bem possível que a “saudade” que Félix supostamente sentia nem existisse
ou nem fosse tão grande assim, mas foi uma das várias ocasiões que a imprensa
alinhada ao regime aproveitou para associar os heróis da seleção -- que, nessa
concepção, lutavam para elevar o nome do Brasil no exterior, enfrentando as
dificuldades próprias da batalha e a distância de seus familiares e de sua pátria -- à
própria essência desse regime, isto é, sua identificação com os supostos interesses
maiores da nação, contra a oposição irresponsável dos subversivos da ordem. Esse
ponto de contato entre a ditadura e a seleção brasileira de 1970, muito além do
simples discurso, traduziu-se em pressões reais.
O problema, nesse caso, é concluir, como verdade absoluta, que a
interferência do governo militar sobre a equipe que representou o Brasil no México
foi resultado simplesmente de uma estratégia deliberada de manipulação por parte
da ditadura, como quer fazer acreditar certo pensamento da esquerda que este
trabalho já destacou. Esse tipo de raciocínio ignora uma outra hipótese, a de que a
suposta ação da ditadura sobre a seleção de 1970 possa ter sido conseqüência de
uma pressão intensa da sociedade brasileira sobre a equipe, e então essa ação do
governo seria apenas mais um elemento de um fenômeno mais amplo (o principal
elemento, talvez, mas também isso é discutível).
O episódio mais marcante dessa possível conexão entre a seleção e a
76
ditadura foi a rumorosa demissão do técnico João Saldanha às vésperas do início da
Copa. O caso é usado pela esquerda como o mais emblemático exemplo da
intromissão do regime militar no futebol brasileiro e ainda hoje freqüenta o terreno
das questões indisputáveis. Mas uma investigação um pouco mais cuidadosa
mostra que essa conclusão talvez seja precipitada e mereça reparos.
João Saldanha, gaúcho como Médici, dirigiu a seleção de 4 de fevereiro de
1969 a 17 de março de 1970. Nesse período, o Brasil se classificou com tranqüilidade
à Copa do Mundo, batendo todos os seus adversários nas eliminatórias com um
futebol ofensivo e destemido, o que valeu ao time o apelido de “Feras do
Saldanha“. Sua escolha para o posto de técnico da seleção surpreendeu: afinal,
Saldanha era comunista militante. Mas o Brasil vinha de um estrondoso fiasco na
Copa de 66 (fora eliminado na primeira fase), e a CBD, entidade privada, estava sob
intensa pressão para renovar a seleção.
Era uma jogada arriscada do presidente da CBD, João Havelange, que desde
1969 articulava sua candidatura à presidência da Fifa – um triunfo no México era
fundamental às suas pretensões. A opção recaiu sobre Saldanha, então um
comentarista esportivo de grande prestígio, chamado de “João Sem Medo“, por não
ter receio de defender seus pontos de vista. A idéia era que, ao dar a vaga de
treinador a um de seus principais críticos, a seleção deixaria de ser criticada -- um
equívoco, como a história mostraria em pouco tempo, porque a comoção em torno
da equipe e o fracasso de quatro anos antes eram pesadelos muito maiores do que
qualquer um naquela ocasião poderia medir. A seleção era uma bomba-relógio para
seu treinador, fosse quem fosse.
77
Um ano depois de Saldanha assumir o cargo, a imprensa indicava que “o
clima emocional” em torno da seleção estava “num crescendo assustador”.
107
No
embarque da equipe no aeroporto de Congonhas (SP) para um amistoso contra a
Argentina em Porto Alegre, marcado para 4 de março de 1970, os jornalistas
tentaram adivinhar o que se passava dentro da equipe: “Os jogadores quase não
falaram, demonstrando para muita gente que há alguma coisa de errado”.
108
Eram fortes os rumores de demissão naquela oportunidade. Havia
informações de que Dino Sani, então contratado pela CBD para trabalhar como
“olheiro”, como são chamados os técnicos responsáveis por observar os jogadores
que podem integrar a seleção, seria seu substituto. Saldanha, bastante popular entre
os torcedores devido a seu trabalho como comentarista, ironizava a pressão e
sugeria que ela era resultado da briga de outros treinadores por seu cargo: “Sabe
como é, eu tenho 75% [de apoio popular] no Ibope e eles estão brigando pelos
outros 25%, contando os rádios desligados”.
109
Saldanha era visto como um “intruso” pelos outros técnicos, que atribuíam a
ele a marca de “temperamental”.
110
Os técnicos mais críticos, e por isso mesmo
vistos como os que mais cobiçavam o cargo de Saldanha, eram Zezé Moreira,
campeão paulista com o São Paulo em 1970 e que treinara a seleção brasileira em
1954; seu irmão Aymoré Moreira, técnico campeão do mundo com o Brasil em 1962,
no Chile, e que treinara a seleção após o fiasco de 1966, tendo sido substituído
justamente por Saldanha após uma série de fracassos em amistosos; Flavio Costa,
marcado na história como o técnico da derrota da seleção na Copa de 1950; e
107
Última Hora, 2.mar.1970, p.20.
108
Idem, 3.mar.1970, p. 10.
109
Idem, ibidem.
110
Idem, 17.mar.1970, p. 11.
78
Yustrich, o treinador do Flamengo conhecido na época por suas declarações e
atitudes intempestivas. Saldanha também reclamava da imprensa -- logo ela, que
deveria ser “domada” pelo cronista-treinador, mas que, em muito pouco tempo,
passou a criticar seu estilo duro e centralizador de trabalhar e revelou o tamanho e
a variedade das interferências na seleção: “Segundo essa gente [os jornalistas], eu
sou muito autoritário e auto-suficiente, dizem que eu só quero mandar... Alguns
chegam até a perguntar qual é o papel dos dirigentes, já que só eu apareço em
público. O engraçado é que até há pouco tempo a imprensa reclamava exatamente
das interferências dos dirigentes na escalação e na convocação da seleção”.
111
Em pouco tempo, porém, o fato é que Saldanha isolou-se dentro da seleção.
Quando decidiu cortar da equipe que iria para o México o lateral esquerdo Rildo,
do Botafogo, e o zagueiro central Scala, do Internacional-RS, por razões médicas,
queria fazer o anúncio da decisão ao lado do médico Lídio Toledo. Não o encontrou
e acabou tendo de dar a informação sozinho, arcando, simbolicamente, com todo o
ônus da medida -- os cortados, sobretudo Scala, fizeram posteriormente duras
críticas ao trabalho de Saldanha. Outros jogadores que estavam fora aproveitaram
para atacar o técnico. Toninho, centroavante do São Paulo cortado por bronquite,
assinalou: “Acho que o ambiente que Saldanha criou entre os jogadores, depois dos
cortes, vai trazer muitos problemas para a seleção (...). Fui informado recentemente
que os jogadores não o vêem com bons olhos. Todos andam desconfiados do
homem que fala muito e não cumpre com a palavra. Aquele negócio de ‘João Sem
Medo’ não existe mais”.
112
O sucesso de Saldanha à frente da seleção, em termos de resultados, não
escondia os diversos problemas de relacionamento entre ele e vários integrantes da
comissão técnica formada pela CBD, além de rusgas com jogadores, imprensa e
outros treinadores. Essa tensão cresceu até um ponto em que não havia mais
retorno. “Ao que tudo indica, a comissão técnica vem sofrendo violentas pressões
por parte de certos grupos que exigem a imediata destituição de Saldanha”,
111
Última Hora, 3.mar.1970, p.11.
112
Última Hora. 12.mar.1970, p. 11.
79
constatou o Última Hora publicado no dia queda do treinador.
113
O jornal não
especifica diretamente esses “grupos”, mas radiografa as pressões: “Em suma, por
que querem derrubar Saldanha? Quem quer derrubar Saldanha? A imprensa, os
cartolas, os entendidos de futebol...”. Em reportagem sobre Havelange, anos mais
tarde, a Folha de São Paulo sugeriu que Saldanha caiu por questões relacionadas
particularmente ao futebol, pois o presidente da CBD precisava ganhar a Copa.
114
Segundo testemunhas, Saldanha começou a beber demais e a brigar com todo
mundo.
Num dos episódios que podem ser tratados como a “gota d’água”, em 16 de
março de 1970, Saldanha invadiu a concentração do Flamengo para brigar com o
técnico Yustrich. Famoso por seu autoritarismo e com temperamento tão forte
quanto o do treinador da seleção, Yustrich era o mais truculento de seus críticos --
ele o chamou de “covarde“, o que provocou a reação de Saldanha. O porteiro do
Flamengo disse que Saldanha estava armado, o que ele negou -- disse que não tinha
revólver. O confronto foi evitado, mas Yustrich não se intimidou e pediu que os
militares tomassem uma providência contra o desafeto: “Se Saldanha continuar
com o mesmo comportamento que teve até agora, acho que pode haver até uma
intervenção do Exército na seleção, como já aconteceu em outros países onde, como
no Brasil, o futebol tem grande repercussão na vida nacional”.
115
Antônio do Passo,
o coordenador da seleção, avisou que a paciência da CBD com Saldanha estava no
fim. No dia seguinte, denunciou-o a Havelange.
Mas Antonio do Passo irritara-se também com outra atitude de Saldanha, e
os relatos disponíveis sugerem que esta possa ter sido a real motivação para a
queda do treinador: ele decidiu barrar Pelé.
Em 14 de março, três dias antes da demissão de Saldanha, o Brasil disputou
um amistoso contra a equipe do Bangu, e o empate em 1 a 1, além da exibição fraca,
foi motivo para que a imprensa e os torcedores criticassem duramente a seleção. Em
113
Idem, 17.mar.1970, p. 11.
114
Folha de S. Paulo, 8.jun.1998, p. Especial 3.
115
Última Hora, 16.mar.1970, p. 12.
80
sua avaliação do desempenho dos jogadores, o jornal Última Hora atribuiu a Pelé
uma nota surpreendente, em se tratando do maior jogador de futebol de todos os
tempos: “péssimo”.
116
A situação era constrangedora, porque Pelé encontrava-se no auge de sua
impressionante carreira. Estava com 29 anos e já naquela altura era considerado o
maior jogador de futebol da história. Antes da Copa de 1970, não faltaram explícitas
demonstrações de sua magnitude.
Após ter marcado seu milésimo gol
117
, em novembro de 1969, Pelé foi
condecorado pelo presidente Médici e recebera o título de comendador. Desfilou
em carro aberto como um herói em Brasília. O feito de Pelé o coroou
definitivamente como o rei do futebol e virou selo comemorativo.
O lendário Bobby Moore, capitão da seleção inglesa que enfrentaria o Brasil
num jogo épico no México, convidou o craque, antes da Copa, a enviar para
Londres calções, camisas e bolas que marcaram sua carreira, para uma exposição
sobre futebol -- Pelé aceitou, mas exigiu que cada peça do material fosse segurada
entre 110 mil reais e 245 mil reais, em valores atualizados.
Em maio de 1970, quando o Brasil desembarcou no México para o início da
preparação para a Copa, os torcedores mexicanos que foram recepcionar a equipe
pararam de gritar “viva Brasil!” e passaram a gritar “viva Pelé!” assim que viram o
jogador.
118
Quando a seleção disputou um amistoso contra um combinado local em
Guadalajara, em 6 de maio, os cartazes que anunciavam o jogo na cidade diziam:
“Hoy no trabajamos porque vamos a ver Pelé”. Uma reportagem sobre o jogo, que
terminou em 3 a 0 para o Brasil, disse que “até os teatros” de Guadalajara fecharam
suas portas por causa do jogador.
119
116
Idem, ibidem.
117
A Folha de S. Paulo de 14 de maio de 1995, na pág. Especial 1, publicou reportagem que refez a contagem
dos gols de Pelé e, segundo essa matemática, o milésimo gol havia sido marcado no jogo anterior do Santos,
contra o Botafogo da Paraíba, em 14 de novembro. A conta da Folha não foi aceita pela CBF.
118
O Estado de S. Paulo, 3.mai.1970, p. capa.
119
Idem, 7.mai.1970, p. 20.
81
Mas Pelé vinha jogando mal havia algum tempo. Saldanha então resolveu
tirá-lo durante o treino para um amistoso contra o Chile, marcado para o dia 22 de
março, em São Paulo. “Você não anda bem ultimamente”, disse o técnico ao craque,
segundo relato do próprio Saldanha publicado após sua demissão. “Se a fase não é
boa, é preciso esperar. Por isso você sai nesse jogo.”
120
Flavio Costa, o treinador da
seleção em 1950 e crítico de Saldanha, concordava com o diagnóstico, dizendo que
Pelé deveria ser colocado no banco de reservas.
121
O próprio Zagallo, que assumiria
a equipe pouco depois, atestou os problemas do jogador: “Pelé, no momento, é
nocivo à seleção”.
122
A má fase de Pelé era claríssima. Com dois quilos acima do peso, o jogador
passou a ser vaiado em alguns jogos da seleção e a ter evidentes problemas em
campo. Em um amistoso contra o Chile, no Maracanã, em 26 de março, o jogador
protagonizou cenas indignas de sua fama. Relata a Veja:
“O marcador do Maracanã estava registrando 1 a 0 para o Chile, quinta-feira à
noite, quando Pelé voltou até o meio de campo, recebeu um passe de Clodoaldo, driblou um
adversário, pôs a bola na frente e começou a correr. Quando todo o estádio prendeu a
respiração, antevendo um lance magistral e, talvez, o gol de empate, Pelé tropeçou na bola e
perdeu a jogada. Interpretando o desencanto da torcida, o locutor berra impetuosamente,
agarrado ao microfone: ‘É, torcida, Pelé já não é mais o mesmo’. Será verdade?”.
123
120
Última Hora, 18.mar.1970, capa.
121
Idem, 4.abr.1970, p. 11.
122
Idem, 19.mar.1970, p. 11.
123
Veja, 1.abr.1970, p. 82.
82
Houve ainda duras críticas à renovação de seu contrato com o Santos na
época, por 840 mil cruzeiros novos, ou cerca de 715 mil reais em valores
atualizados, por mais dois anos, para “encerrar a carreira“ no clube que o projetara
(o Santos resistira a vendê-lo ao São Paulo, que oferecera 3 milhões de cruzeiros, ou
2,55 milhões de reais pelo passe do jogador). O salário era uma fortuna na época,
coisa que a imprensa não deixou passar em branco. Como comparação, Zé Maria,
lateral-direito que jogaria a Copa de 1974, na Alemanha, pediu 500 mil cruzeiros
(409 mil reais) por dois anos de contrato com a Portuguesa. Em charge do jornal
Última Hora, Pelé aparece sentado num saco de dinheiro enquanto dá uma
entrevista em que pede ao país que “ajude as criancinhas pobres”, alusão ao
discurso que fez quando marcou seu milésimo gol.
124
Os jornais já especulavam se
aquele era o fim da carreira do maior jogador de futebol que o mundo já vira:
“A ascensão e queda de um ídolo é um fenômeno bastante conhecido (...). Pelé, o ídolo
que todos pensavam que ia ser eterno, está sentindo nos comentários desfavoráveis da
imprensa e nas vaias e decepções da torcida, que sua imagem de gênio já não tem o mesmo
brilho, ou melhor, em cada jogada desperdiçada ou infeliz, ela não se mostra tão nítida como
no começo das eliminatórias [para a Copa]. Uma pergunta, entretanto, fica pairando entre as
críticas: como estará se sentindo o maior jogador do mundo (...) enquanto disfarça, com
sorrisos tranqüilos e respostas ponderadas, o peso da vaia de seu torcedor mais fiel?”
125
124
Última Hora, 18.abr.1970, p. 11.
125
Idem, ibidem.
83
O jogador aproveitou para criticar a imprensa e sua pressão intensa sobre a
seleção:
“Quando o assunto toca no delicado problema das vaias, Pelé pretende esconder, mas
não pode deixar escapar sua irritação e de dar uma desculpa, apoiada numa explicação:
‘Infelizmente, nem a torcida nem a crônica esportiva entendem de futebol e estão sempre
dispostos a descobrir falhas e motivos para a derrota ou o empate. O torcedor acredita na
imprensa e vai ao campo preparado para ver goleadas, e, se isso não acontece, ela vaia, é
claro. Isso não me afeta, porque sinto que estão influenciados pelos jornais’”.
126
Pelé também comentou sobre a possibilidade de ser substituído em algum
momento. Ciente de sua condição extraordinária, o jogador, que se referia a si
mesmo em terceira pessoa, podia fazer demagogia e dizer que, sim, poderia ser
substituído se fosse o caso -- embora soubesse que isso jamais iria acontecer:
“Embora não pense em ser substituído, Pelé diz que não se importa em ser barrado
nem criaria caso com isso: ‘Acabou-se a lenda de que todo time era obrigado a jogar em
função de Pelé. Só Deus sabe quando o meu futebol vai acabar, mas, quando isso acontecer,
serei o primeiro a sair das quatro linhas, porque inclusive estou financeiramente bem’. (...)
126
Última Hora, 18.abr.1970, p. 11.
84
Mas, apesar das críticas, das vaias e das decepções da torcida, uma esperança ainda repousa
sobre a magia do Rei”.
127
Saldanha estava disposto a tirar Pelé do time muito tempo antes, segundo se
especulou na época, esperando testar Dirceu (Cruzeiro) ou Rivelino (Corinthians)
em seu lugar.
128
Depois de ser demitido, o treinador deu uma entrevista na qual
detalhou os problemas do jogador:
“Pelé, atualmente, tem poucas condições de disputar a Copa do Mundo, e os homens
da comissão técnica e da CBD sabiam disso desde fevereiro do ano passado. Para mim, Pelé
não seria titular da seleção brasileira, apesar de sabermos que ele é um gênio. Pode jogar boas
partidas, mas não está em boas condições físicas”.
129
Circulavam muitas versões para o estado de Pelé. Uma delas atribuía seu
mau desempenho ao consumo de dexamil, remédio param dormir, porque o
jogador estava afundado em compromissos que iam muito além dos campos --
“jogador, ator de TV, homem de negócios, publicitário, compositor, pré-
vestibulando e pai de família”.
130
Reportagem do Diário da Noite de Recife, citada
pelo Última Hora, atribui a informação a Saldanha e diz que Pelé seria afastado pelo
127
Última Hora, 18.abr.1970, p. 11.
128
Idem, 19.mar.1970, p. 10.
129
Idem, ibidem.
130
Última Hora, 3.jul.1970, p. 11.
85
técnico porque não agüentou o ritmo da seleção e que estava “doente”. A notícia,
verdadeira ou não, fez a Assembléia de Pernambuco recuar de sua intenção de
conceder a Pelé o título de cidadão pernambucano, pois não era possível premiar
um “viciado em narcóticos”.
E então Saldanha deu a explicação que entraria para a história como o maior
erro de avaliação do treinador sobre Pelé: o jogador seria míope, o que limitaria sua
capacidade de jogar à noite, por exemplo: “Cheguei a essa conclusão depois de
observá-lo muito tempo, não só em campo, mas no convívio”.
131
Saldanha passaria
o resto de seus dias sendo questionado por isso, mas o fato é que o próprio Pelé
admitiu ser míope, embora dissesse que isso não o atrapalhava. Como exemplo,
citou seu milésimo gol, marcado de pênalti em 19 de dezembro de 1969, no
Maracanã, em jogo disputado à noite.
O jogador se disse “amigo” de Saldanha e lamentou tanto sua demissão
quanto os rumores de que ele teria sido responsável por ela.
132
Um mês mais tarde,
porém, em entrevista, Pelé diria que Saldanha “nunca entendeu coisa alguma de
futebol” e que, com Zagalo, a seleção seria muito melhor.
133
Alguns dias depois, o
craque voltaria a atacar duramente o ex-treinador: “Com sete [jogadores] do Santos,
Tostão, Gérson, Jairzinho e Piazza, marcamos um monte de gols e tomamos apenas
dois. Depois, ele [Saldanha] quis inventar e começou a mudar. Então, tudo começou
a ficar mais difícil, porque o Saldanha se apavorava cada vez mais, até que o
131
Idem, 19.mar.1970, p. 10.
132
Idem, ibidem.
133
Idem, 18.abr.1970, p. 11.
86
tiraram da seleção”.
134
O discurso pacífico e conciliador de Pelé logo após a dispensa de Saldanha,
no entanto, não foi suficiente para aplacar a sensação imediata de que, por sua
influência, o técnico havia caído. Em entrevista logo após a demissão, Saldanha
arrolou os motivos pelos quais, na sua opinião, ele perdera o cargo: “Covardia, falta
de pujança do futebol brasileiro e, possivelmente, o afastamento de Pelé do jogo de
domingo contra o Chile”.
135
Coincidência ou não, o Brasil, já sob o comando de
Zagalo, derrotou o Chile nesse jogo, no Morumbi, por 5 a 0, com dois gols de Pelé.
O jornal Última Hora corroborou a versão de Saldanha:
Uma coisa é certa: Pelé derrubou Saldanha. O técnico sempre demonstrou decisão e
autoridade em tudo o que fazia. Mas, quando tentou mexer com o Crioulo, faltou-lhe o apoio
necessário para continuar”.
136
Saldanha acabou demitido por Havelange na noite de 17 de março. No
instante seguinte, foi para a rua, chamou os jornalistas de plantão e deu a célebre
entrevista em que descreveu um diálogo que teria tido com Médici, no qual o
presidente sugeriu a convocação do atacante Dario, então um dos cinco maiores
artilheiros do país, e Saldanha respondeu: “O senhor escala o seu ministério e eu
escalo o meu time”. Nunca apareceu uma única testemunha desse diálogo, mas ele
é usado até hoje como “prova” da disposição de Saldanha de não fazer o “jogo” da
ditadura. Em entrevista ao jornal O Povo, o atacante Jairizinho, um dos destaques
134
O Estado de S. Paulo, 5.mai.1970.
135
Última Hora, 19.mar.1970, p. 10.
136
Idem, ibidem.
87
do Brasil na Copa e amigo de Saldanha, afirmou que o técnico caiu por pressão dos
militares: “O que aconteceu foi que a retirada de Saldanha foi uma decisão política.
Nem política, porque era ditadura, e política não existia. Foi uma imposição do
presidente Médici. Foi um procedimento protocolar da ditadura”.
137
Jairizinho,
porém, admitiu que nunca ouviu Saldanha afirmar isso.
Como se nota, o suposto envolvimento da ditadura na demissão de Saldanha
tem várias versões e poucos fatos. Há ainda a hipótese de que o técnico foi demitido
“por sua pretensa independência política”, pois “temia-se que Saldanha chegasse
ao México com uma lista de presos políticos no bolso e, em entrevista coletiva,
diante de microfones e câmeras do mundo todo, denunciasse o desrespeito aos
direitos humanos que vinha ocorrendo no Brasil”.
138
Se isso fosse verdade, a
ditadura não teria permitido nem que Saldanha assumisse o cargo.
Além disso, os relatos da época não autorizam a conclusão de que Saldanha
criticara o presidente nem o regime no momento em que foi demitido pela CBD.
Em entrevista publicada no dia seguinte à dispensa, o treinador declarou: “O
Havelange começou dizendo que a comissão estava dissolvida. Perguntei, então, o
que era dissolver, pois eu não era sorvete para ser dissolvido assim, sem mais nem
menos. Ele disse que a comissão estava demitida. Voltei à carga: ‘Quero deixar bem
claro que eu não me demito. O senhor é que está me demitindo, é isso?’. Havelange
confirmou e eu me retirei”.
139
Não há uma única menção a Dario ou a Médici.
Um semana depois de cair, Saldanha não parecia irritado com o regime que
supostamente o havia derrubado da seleção. A seu pedido, o técnico foi recebido
em audiência pelo ministro Jarbas Passarinho, a quem entregou uma proposta de
“reformulação do futebol brasileiro”. Passarinho apelou então ao “patriotismo” de
Saldanha, para que evitasse falar mal da seleção e que superasse suas “mágoas”.
140
137
O Povo, 21.jun.2005. Disponível na internet via WWW. URL:
http://www.noolhar.com/opovo/especiais/tricampeonato/485882.html. Capturado em 20.dez.2005.
138
AGOSTINO, Gilberto. Op. cit., p. 160.
139
Última Hora, 18.mar.1970, p. 2.
140
Idem, 26.mar.1970, p. 2.
88
Zagallo, o sucessor de Saldanha, até hoje relembra com mágoa o episódio da
demissão, pois a memória popular, alimentada pela historiografia consagrada sobre
o assunto, registra que foram as pressões de Médici as responsáveis pela queda do
treinador, e não razões técnicas e pessoais. “Ele [Saldanha] saiu [da seleção] pelas
cagadas que fez. Essa é a verdade. E eu entrei no lugar dele. E tem muita gente que
quer me tirar o mérito. Quiseram dizer que eu peguei o time montado”, disse
Zagallo em entrevista em 1995.
141
No depoimento, ele diz que Médici não impôs Dario, embora, segundo
especulações na época em que o centroavante foi convocado por Zagalo, houvesse o
“desejo“ do presidente: “Dizem que Dario só foi convocado para que se atendesse a
uma vontade indisfarçável do presidente da República“, publicou o Última Hora.
142
O próprio Dario capitalizava a suposta predileção de Médici por ele: “Minha
responsabilidade é grande, pois represento o Atlético e sua torcida, além de ter a
honra de ser o preferido do presidente Médici”.
143
A família do atacante agradeceu
ao presidente pelo fato de o centroavante ter sido chamado por Zagalo. Num
desabafo, uma tia de Dario, Salete de Barros Máximo, afirmou: “Ninguém queria o
Dario na seleção. Se não fosse o presidente Médici pedir, ele nem seria convocado.
Foi o presidente quem ajudou ele”.
144
Zagalo repele a insinuação de que sucumbiu a alguma pressão da ditadura a
respeito do atacante: “O Dario foi artilheiro por onde passou. E me chamam de
141
Folha de S. Paulo, 16.jul.1995, p. 4-6.
142
Última Hora, 25.mar.1970, p. 11.
143
O Estado de S. Paulo, 1º.mai.1970, contra-capa.
144
Idem, 24.jun.1970, p.18.
89
retranqueiro. O Saldanha sempre foi um cara que me chamou de retranqueiro.
Agora, no time dele só tinha meio-campo. Eu desconvoquei o Dirceu Lopes e o Zé
Carlos, do Cruzeiro, meias, para convocar dois pontas-de-lança. Se o Médici tivesse
feito a imposição, se isso fosse verdadeiro, o Dario seria titular ou, pelo menos,
ficaria no banco. Ele não ficou nem no banco”
145
. De fato, mesmo Dario sabia que
era um mero coadjuvante na melhor seleção de futebol de todos os tempos. Pouco
antes do início da Copa, ele se disse “muito satisfeito” por apenas “viajar com a
seleção”.
146
O fato é que, se Médici queria Dario, não estava sozinho: o próprio Saldanha
admitiu, em março daquele ano, que muitos torcedores estavam pedindo o centro-
avante que atuava no Atlético-MG.
147
Gente importante no meio do futebol também
manifestava apoio a Dario, conhecido como “Dadá Maravilha”. Joel Camargo,
zagueiro do Santos que integraria a seleção campeã no México, sugeriu a
convocação do jogador, por ser “um homem de área com características de
rompedor”.
148
Com ou sem pressão de Médici para a convocação de Dario, o fato é que a
demissão de Saldanha chegou a ser tratada claramente como uma “intervenção
branca do governo federal no escrete”
149
, embora o silêncio, dentro da seleção, fosse
a norma, como expressou o massagista Mário Américo: “Não sabemos de nada.
145
Folha de S. Paulo, 16.jul.1995, p. 4-6.
146
O Estado de S. Paulo, 1º.mai.1970, contra-capa.
147
Última Hora, 11.mar.1970, p. 11.
148
Idem, 6.mar.1970, p.11.
149
Placar, 20.mar.1970, nº 1, p. 8.
90
Política não é com a gente. Nossa função é outra”.
150
A revista Placar, na ocasião,
arrolou quatro razões para a queda de Saldanha: brigas com a comissão técnica;
liberdade tática excessiva aos jogadores; falta de organização tática; e interesse do
governo pela seleção.
Em artigo sobre os bastidores da seleção, o jornalista Evandro Carlos de
Andrade, depois da vitória final no México, comentou que “o governo
acompanhava a crise muito mais de perto do que seria de se imaginar”, fruto,
segundo ele, de uma espécie de clamor popular. Após a queda de Saldanha,
segundo Andrade, “formaram-se correntes nacionais -- como se diz hoje em dia -- e
quase todas favoreciam uma intervenção rigorosa que resolvesse de cima a baixo a
organização do esporte nacional”. Havia mesmo quem acreditasse que a crise
estava relacionada diretamente ao momento político do país: “Um grupo de oficiais
radicais, entendendo que a crise com Saldanha liquidava nossas esperanças de
vitória, suspeitando que essa crise fora forjada para trazer dificuldades políticas ao
governo, farejando corrupção e subversão por toda parte -- esse grupo propôs a
intervenção na CBD e uma devassa completa nas entidades esportivas do país”. De
acordo com Andrade, Médici não aceitou esse papel. “A proposta foi levada ao
presidente Médici. Sejamos francos: sob este regime em que vivemos, tudo seria
possível, no futebol como em qualquer outra atividade. Se a intervenção sugerida se
desse naquele momento, não faltariam vozes para aplaudi-la. Revolução é para isso
mesmo: pau neles.” Andrade culpou os cronistas esportivos que, a título de agradar
o governo “poderosíssimo e supostamente ameaçador”, fizeram campanha contra
150
Última Hora, 18.mar.1970, p. 10.
91
Saldanha e a CBD, versão que é corroborada por outras fontes. Mas o jornalista
livrou Médici -- e seu relato acrescenta novas cores à imagem de um presidente
positivamente ligado ao futebol e à seleção brasileira e que, embora pudesse ser
arbitrário e repressivo em relação aos problemas da seleção, como o governo era em
outros situações, preferiu, segundo essa visão, agir de modo pacificador:
“Pois o general Médici, que domingo à tarde, após viver a emoção dos quatro gols
[da final contra a Itália] com gestos naturais de expansão, brincou com os netos fazendo
embaixadas e cabeceando uma bola de futebol, mostrou que naquele momento era possível
associar a alma ardente de um torcedor autêntico com a cabeça fria de um governante.
Rejeitou liminarmente a proposta de intervenção e determinou que tudo fosse feito para
recuperar, com a máxima urgência, o clima de paz na seleção, indispensável para chegar-se à
vitória. Tem-se escrito que o governo nada fez que o incluísse entre os credores desta vitória.
Pois ele é credor justamente por ter-se recusado a fazer, por deter no ar a mão pesada, por
confiar no conjunto de individualidades diretamente responsável pela organização e pela
atuação do selecionado e por proteger esse conjunto das investidas daqueles exaltados que
pensam tudo corrigir com a aplicação sistemática das penas extremas, sentenciadas mal se
vislumbram tropeços que o bom senso em geral supera sem deixar cicatrizes. Esses radicais
(...) teriam posto tudo a perder se não tivessem sido detidos pela mão moderadora do
presidente da República. Não é uma lição política?”.
151
Mas as atitudes do governo logo depois da demissão de Saldanha não
151
O Estado de S. Paulo, 23.jul.1970, p. 4.
92
atestam tão claramente esse caráter “moderador” da ação do Planalto. O governo
federal mobilizou-se explicitamente por causa da crise. Passarinho declarou que o
clima ruim em torno da seleção era prejudicial ao país. “Não quero que me acusem
de omissão. Como ministro da Educação, exerço também a função de ministro dos
Esportes. Por isso, pretendo explicações detalhadas sobre essa crise na seleção”,
disse, pouco antes de um encontro com o presidente da CBD, João Havelange, no
dia 18 de março.
Um dia depois, Passarinho disse que o governo federal decidira não intervir
na CBD, mas afirmou que estava disposto a “devassar” a entidade para apurar
“denúncias de corrupção” feitas por Saldanha, sem especificar quais.
152
Ele diria,
posteriormente, que não ameaçou intervir na CBD, apenas usou de “coação
afetuosa”.
153
O ministro da Educação reunira-se com Médici para discutir os
problemas da seleção e, no mesmo instante, Havelange conversava no Planalto com
os chefes do SNI (Serviço Nacional de Informações), general Carlos Alberto da
Fontoura, do Gabinete Militar, João Baptista de Oliveira Figueiredo, e do Gabinete
Civil, João Leitão de Abreu. Ao final daquele dia, Passarinho declarou que “a
discórdia nesse campo [a seleção brasileira] abala profundamente a opinião pública
do país”.
154
Logo, segundo esse raciocínio, era preciso transformar a seleção num
modelo de ordem e disciplina.
O resultado dessa preocupação não tardou a se manifestar, e o alvo da
intromissão do governo era Havelange. “João Havelange não é mais o todo-
poderoso presidente da CBD”, afirmou o jornal Última Hora. “Ele apenas dirige,
provisoriamente, uma entidade que vai entrar em rigoroso balanço, tendo de
submeter à aprovação do governo cada um dos seus atos”.
155
Apesar disso,
especulava-se, na época, que Havelange escolhera Zagalo para substituir Saldanha
porque podia controlá-lo. Um nome forte para a vaga era o do técnico Oto Glória,
que dirigira a seleção de Portugal na Copa de 1966 -- equipe que ajudou a eliminar
o Brasil da competição e que terminou em terceiro lugar. Mas Glória teria exigido
152
Última Hora, 20.mar.1970, capa.
153
O Estado de S. Paulo, 9.mai.1970, p. 13.
154
Última Hora, 20.mar.1970, p. 2.
155
Idem, ibidem.
93
total independência, enquanto Zagalo poderia se tornar “um boneco nas mãos dos
donos da CBD”.
156
E não só da CBD, mas do governo Médici. Anos mais tarde, o
técnico ainda é visto como uma espécie de agente da ditadura, sobretudo na Copa
de 1974, na Alemanha, competição em que a seleção dirigida por Zagalo terminou
em um tímido quarto lugar. O jornalista Mauricio Azedo, em artigo para o jornal
Movimento, em 1981, resume essa idéia:
“Escudado no apoio que lhe dava o regime desde o governo Médici (“eu sou do lado
de cá, enquanto ‘eles’ são do lado de lá”, dizia Zagalo, apontando o “lado de cá” como o
braço e a mão da direita, ao contestar os cronistas que o criticavam, apresentando-os como
gente de posição política de esquerda), num currículo realmente invejável, que incluía o
tricampeonato mundial, conquistado no México, graças a uma geração que teve a felicidade
de reunir Pelé, Tostão, Gérson, Jairzinho, Rivelino, Carlos Alberto Torres e Wilson Piazza, e
no apoio derramado de importante área da crônica esportiva, Zagalo deitou e rolou”.
157
A suposta subserviência de Zagalo foi bastante explorada na ocasião. Na
véspera do anúncio de quais jogadores seriam dispensados antes do embarque para
o México, a tensão na seleção era imensa. Mas, “apesar de sentir isso [o clima ruim
na seleção], o técnico Mário Jorge Lobo Zagalo continua impassível, talvez por não
ter coragem suficiente para tomar decisões sozinho, sem a ajuda dos cartolas que
voltaram com as injunções tão condenadas e que haviam perdido lugar na época de
Saldanha”.
158
As opções táticas de Zagalo, por outro lado, irritavam profundamente uma
parte da imprensa esportiva. O meia-esquerda corintiano Rivelino, adorado por
156
Idem, 7.abr.1970, p. 10.
157
Movimento, 12 a 18.jan.1981, p. 5.
94
jornalistas de São Paulo, foi preterido por Zagalo, que preferia Gérson e Paulo
César, dois jogadores que ele dirigiu no Botafogo do Rio e que atuavam de modo
semelhante. A decisão do técnico de não escalar o centroavante Tostão junto com
Pelé, por terem “características semelhantes”, também foi vista como um erro -- o
mesmo cometido por Saldanha. Na véspera de um amistoso contra o Paraguai, em
12 de abril, o jornal Última Hora resumiu: “Tostão e Rivelino têm demonstrado que
estão bem acima de Pelé e Gérson. Mas, contra o Paraguai, os dois continuarão na
reserva.”
159
O empate em 0 a 0 com o Paraguai, num jogo fraco, fez a imprensa
especular claramente sobre a queda do treinador. Na partida, Zagalo teimou:
colocou Paulo César no lugar do ponta-esquerda santista Edu e pôs Gérson em vez
de Rivelino, que nem no banco ficou. Ironicamente, Dario, que acabara de ser
convocado pelo técnico por suposta pressão de Médici, foi um dos poucos a jogar
bem, segundo o Última Hora
160
. Em novo empate sem gols, desta vez contra a
Bulgária, no Morumbi, em 26 de abril, Zagalo foi bastante vaiado. “Ele não deixou
Pelé jogar ao lado de Tostão nem Rivelino ao lado de Clodoaldo”, resumiu o Última
Hora. “[A torcida] vaiou muito, como se prevendo que com ele de técnico não
vamos ganhar a Copa. Mas a verdade é que a torcida pode ter razão”.
161
Três dias
depois, o Brasil disputaria um amistoso contra a Áustria, no Maracanã. Na véspera,
o jornal já dizia que, “nos corredores da CBD”, comentava-se que uma derrota
poderia derrubar o técnico e que Havelange estaria “profundamente decepcionado”
com Zagalo. Oto Glória, que havia chamado a preparação da seleção de “bagunça”,
e Yustrich, o falastrão inimigo de Saldanha, eram os nomes cotados para a vaga.
162
Mesmo dentro da seleção, alguns jogadores comentavam abertamente a
crise, como o cruzeirense Wilson Piazza, titular do meio-campo do Brasil conhecido
por seu vigor físico e sua disposição. Ele criticou Zagalo por fazer modificações
táticas de última hora no time, sem avisar os jogadores, e atacou a atitude de
colegas de seleção, sem dizer quais: “Só nome não ganha jogo, é preciso garra, força
158
Última Hora, 10.abr.1970, p. 11.
159
Última Hora, 8.abr.1970, p. 11.
160
Idem, 13.abr.1970, capa.
161
Idem, 27.abr.1970, capa.
162
Última Hora, 28.abr.1970, p. 11.
95
de vontade, disciplina tática”.
163
Para o Última Hora, Zagalo trazia de volta a sombra
do fiasco da Copa de 1966: “Nos oito campeonatos mundiais disputados pelo
Brasil, várias lições foram dadas. Apesar disso, estão se repetindo os mesmos erros
de outros anos”.
164
Esse clima se refletia em praticamente todo o país. O ceticismo em relação à
seleção que disputaria o título mundial no México era equivalente ao que cercou a
equipe que jogou a Copa de 1954, sob a sombra da tragédia épica de 1950. Alguns
jornalistas já se antecipavam e diziam que uma derrota na Copa não seria
inteiramente desastrosa, porque serviria para alterar “estruturas viciadas em
antigos erros, nos planos tático, técnico e administrativo”. Uma vitória, por outro
lado, seria tão surpreendente, dadas as circunstâncias, que só poderia ser explicada
pelas “virtudes do jogador brasileiro, valorizadas a partir de 1958 [conquista da
Copa na Suécia]”.
165
Desse modo, a pressão sobre a seleção às vésperas da Copa era tão intensa
que não se pode responsabilizar este ou aquele elemento pelo clima de crise que se
instalou no time. Ao defender sua equipe, dizendo que ela seria campeã por ser “o
melhor time do mundo”, Pelé desabafou contra os críticos, que pareciam vir de
todos os lados: “O público brasileiro é o pior como torcedor, porque exige demais
do jogador. Não dá tempo a nenhum treinador para organizar o time. Se
começamos a treinar hoje, amanhã já exige de nós uma perfeita situação. Assim não
é possível em nenhuma parte do mundo”.
166
O governo federal era parte atuante dessa pressão. Em avaliação sobre
163
O Estado de S. Paulo, 1º.mai.1970, p. 28.
164
Última Hora, 7.abr.1970, capa.
165
O Estado de S. Paulo, 1º.mai.1970, contra-capa.
166
O Estado de S. Paulo, 5.mai.1970, p. 29.
96
Zagalo, Passarinho mostrou que o Planalto não só estava atento ao desempenho da
seleção como fazia coro às críticas segundo as quais o técnico estava cometendo
erros, num evidente despropósito, que só pode ser atribuído ao papel especial que o
futebol tinha na administração Médici. “Zagalo está acertando”, observou o
ministro. “Sua teimosia inicial em manter Paulo César na ponta esquerda era
apenas a necessidade de uma afirmação pessoal. Agora ele já sabe que Rivelino é o
homem certo para a posição. É bom saber que, também pela esquerda, se faz gol.
(...) Tenho certeza de que o Brasil passará das quartas-de-final. Mas, quanto ao
campeão, eu garanto que Israel ou El Salvador não o serão. Vejo com bastante
otimismo a evolução da seleção. Zagalo já descobriu o time. (...) Toda a torcida não
podia admitir que Tostão e Rivelino ficassem de fora”. Na entrevista, o ministro,
que demonstrou “interesse visível” em discutir “muitos pormenores da formação
da equipe brasileira”, reiterou que a Copa era “uma questão nacional importante
neste momento” e disse que o Brasil poderia ganhá-la se ocorressem “as
transformações iniciadas no time”.
167
Alguns dias mais tarde, Passarinho deixou a desconfiança de lado e passou a
tratar a conquista brasileira como algo tão certo que já era possível discutir a
substituição da taça Jules Rimet, que, pelo regulamento da Fifa, ficaria em
definitivo com o Brasil caso a equipe conquistasse o tricampeonato mundial, o que
acabou acontecendo. Segundo o ministro, o governo brasileiro iria sugerir à Fifa a
adoção da “Taça Pelé”, idéia de alguns jornalistas que trabalhavam no Planalto,
mas que não era respaldada pela CBD. “Quando ganharmos o tri, o brigadeiro
Bastos [chefe da delegação do Brasil] anuncia lá no México o oferecimento do
167
Idem, 9.mai.1970, p. 13.
97
governo brasileiro. Antes vou falar com o presidente Médici, mas acho que ele vai
autorizar.”
168
Médici, como “torcedor número um”, não poderia deixar de participar dessa
pressão. E ele parece ter feito questão de manifestá-la publicamente. Em 28 de abril,
o presidente almoçou com os integrantes da seleção no Palácio das Laranjeiras, sede
do governo do Rio, antes do jogo contra a Áustria. Em conversa com Pelé, “Médici
lembrou que ‘o povo quer é gols’ e que só com muitos gols a seleção ficaria livre de
vaias, ainda jogando mal”.
169
Mais tarde, quando o Brasil já superara as
desconfianças e os adversários mais duros e estava prestes a conquistar o título,
Médici deixou vazar um clima de otimismo que, na verdade, soava muito mais
como uma “ordem” para que a seleção não deixasse escapar a vitória: “No Palácio
da Alvorada não se admite a hipótese de derrota [na final contra a Itália]”, relata O
Estado de S. Paulo. “A recepção de terça-feira, no Palácio do Planalto, quando o
presidente homenageará os jogadores e dirigentes de nosso selecionado, já está
sendo preparada. E, respondendo à pergunta se alguma coisa mudaria no
programa caso o Brasil perdesse, os assessores presidenciais respondem apenas: ’O
Brasil vai ganhar’.”
170
168
O Estado de S. Paulo, 20.jun.1970, p. 29.
169
Última Hora, 29.abr.1970, capa.
170
O Estado de S. Paulo, 20.jun.1970, p. 29.
98
4.5 O “neo-ufanismo”
A suposta intervenção do regime na seleção deve ser entendida no contexto
da época, e não como uma ação puramente ideológica. O Brasil dos militares era
um país em que a caserna se sentia no direito (senão no dever) de interferir em
todas as questões que diziam respeito à vida nacional, norteada, segundo o
ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, pelo desejo de atender à
classe que havia aceitado (senão estimulado) o golpe de 64: “Não há nada menos
reacionário do que o atual governo da revolução, pois ele está fazendo as reformas
necessárias ao desenvolvimento do país, apoiado pelo pensamento da classe média,
que é a dominante no país”.
171
Por meio desse raciocínio justificavam-se medidas intrusivas no cotidiano
dessa classe, como a censura, a fim de aniquilar as “ameaças” a seu bem-estar e a
seus princípios. Para o chefe do Serviço de Censura Federal, Wilson Aguiar, por
exemplo, “os autores chocantes podem ser equiparados aos terroristas que assaltam
e que matam”.
172
O ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, foi ainda mais longe,
vinculando a pornografia a um complô comunista: “O objetivo da sexualidade é a
guerra revolucionária. Acreditam os agentes do comunismo internacional que,
antes de destruir a democracia, é preciso destruir a família e desmoralizar a
juventude. Através do rádio, da TV e de outros meios de comunicação coletiva, eles
chegam até o seio da família brasileira”.
173
Curiosamente, João Saldanha, militante
comunista, também estava preocupado com “desvios” da sexualidade em relação
aos meninos que jogavam bola nas divisões de base dos clubes. Dias depois de ter
saído do comando da seleção, em meio a rumores de que teria sofrido pressão de
Médici, Saldanha declarou que era preciso banir os homossexuais que treinavam os
times de garotos. “Ninguém ignora os malefícios que essa gente causa”, disse ele,
que pediu “severa vigilância” do governo.
174
171
O Estado de S. Paulo, 3.jun.1970, p. 6.
172
Idem, 7.mai.1970, p. 18.
173
Última Hora, 21.mar.1970, p. 7.
174
Última Hora, 26.mar.1970, p. 11.
99
Para os militares, havia vários desafios a enfrentar, alguns bem mais
imaginários que reais. Era o tempo do auge da Guerra Fria, em que havia um
esforço redobrado para detratar tudo o que era produzido do lado de lá da Cortina
de Ferro e para, ao mesmo tempo, justificar a repressão e a ampla ação ideológica
em nome dessa luta. Esse anticomunismo feroz criou um tipo estranho de ideal
democrático no Brasil daquela época. O ministro Márcio de Souza Melo o
expressou em cerimônia no Planalto, em junho de 1970: “Temos não apenas de lutar
pelo desenvolvimento como também de nos empenharmos, ininterruptamente, na
defesa dos princípios basilares da democracia real, sem subterfúgios e sem
interpretações falaciosas”.
175
Essas “interpretações falaciosas”, na visão do regime,
diziam respeito não apenas à visão socialista mas também à dos liberais sobre a
democracia. “O liberalismo político, assim como o liberalismo econômico, são
velharias condenadas em virtude dos males que produziram à humanidade”,
discursou o então vice-líder da Arena na Câmara, Clóvis Stenzel, em maio de
1970.
176
Isto é, a “democracia real” era aquela que a “revolução de 1964” estava
implantando no Brasil, e não aquela que os dissidentes recalcitrantes defendiam.
Questionado sobre como classificaria o regime, em razão da vigência do AI-5, o
ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, declarou, categórico: “Democrático“. E
acrescentou: o problema é da contestação da Revolução, que está institucionalizada
e não pode admitir que seja contestada“.
177
Tal “democracia” deveria ser protegida
do perigo da subversão, cuja existência era o principal argumento para manter o
país em estado de alerta -- sinal verde para o arbítrio. Em comemoração do Dia da
Vitória na Segunda Guerra, em 8 de maio de 1970, o ministro do Exército, Orlando
Geisel, deu a extensão desse “perigo”: “O véu diáfano da paz atual já não consegue
encobrir os atos pérfidos e covardes de uma guerra planejada, dirigida e alimentada
do exterior, que arregimenta pelo engodo e deforma consciências, destruindo
famílias, aviltando princípios, arrastando jovens ao desespero do banditismo”.
178
175
O Estado de S. Paulo, 13.jun.1970, contracapa.
176
Idem, 6.mai.1970, contracapa.
177
O Estado de S. Paulo, 8.mai.1970, capa.
178
Idem, p. 7.
100
O “banditismo” a que Geisel se refere se traduz na subversão e na onda de
seqüestros que tomou o país naquela época turbulenta -- somente em 1970, ano da
Copa do Mundo, houve dois golpes militares na América Latina, e diplomatas eram
seqüestrados em várias partes do continente. A “epidemia“ era tamanha que foi
tema de declaração conjunta da Organização dos Estados Americanos, obtida após
intenso trabalho da diplomacia brasileira. Os países-membros da OEA
“condenaram solenemente o terrorismo como arma política e em especial o
seqüestro de pessoas inocentes, considerando-o um ato contra o espírito dos povos
das Américas“.
179
O ano de 1970 foi o período do regime militar em que “o seqüestro teve a
maior utilização e chegou ao esgotamento como forma de luta”, segundo Jacob
Gorender.
180
A onda de seqüestros respeitava um padrão de ação que não parece
fortuito. Eles passaram a ser a principal arma das guerrilhas para conseguir, em
troca, a liberdade de militantes detidos pelos regimes militares -- no momento em
que, pelo menos no Brasil, a guerrilha estava praticamente aniquilada, adquirira
uma “imagem negativa” por conta dos assaltos e seqüestros e vinha sofrendo
contínuo “desgaste moral” e “segregação política”.
181
Resultado: “Os terroristas,
agora, só querem saber de uma coisa: sair do país”.
182
Era também um meio de
ganhar espaço na mídia, obviamente fechada a suas reivindicações. Em tempos de
censura e repressão, os dissidentes usaram a via do “terrorismo” para debater o
modelo econômico brasileiro. Em sua mensagem de exigências após o seqüestro do
179
O Estado de S. Paulo, 1º.mai.1970, p. 12.
180
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. 4ª edição. São Paulo: Ática, 1990, p. 192.
181
Idem, ibidem.
182
Última Hora, 5.jul.1970, capa.
101
então embaixador alemão, Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, os
guerrilheiros disseram que o poder de compra dos salários caíra 30% em relação
aos anos 1963 e 1964, ou seja, antes do golpe. Os governistas se incomodaram. O
deputado arenista Benedito Ferreira (GO) respondeu: “Ocorre justamente o
contrário, pois nestes últimos seis anos houve um aumento de 60% no poder
aquisitivo, em termos de gêneros de primeira necessidade”.
183
A mensagem dos guerrilheiros deve ter tido efeito nulo, porém. Em troca de
40 dissidentes, enviados à Argélia, Von Holleben foi solto em 17 de junho, mesmo
dia em que o Brasil venceu o Uruguai (3 a 1), na famosa “Vingança do Maracanã”, o
“troco” pela traumática derrota para os uruguaios na final da Copa de 1950. É
improvável que a maioria dos brasileiros estivesse ocupada com outras coisas além
de comemorar a épica vitória, que resgatava o orgulho brasileiro das trevas do
“Maracanazo”.
Além disso, o governo, em seu bom momento, procurou capitalizar sua
atitude “conciliatória” em relação aos guerrilheiros ao libertar os dissidentes. “O
presidente continuou recebendo de todas as partes do país mensagens de repúdio
ao seqüestro do embaixador alemão por terroristas, e ao mesmo tempo de aplausos
ao governo brasileiro por sua intenção de salvar a vida do diplomata [ao libertar os
guerrilheiros].”
184
A tenacidade com que o governo procurava argumentos para manter-se
duro no combate ao que considerava obstáculos inaceitáveis a seu projeto de país
resultava também de uma crescente pressão externa, traduzida pelas denúncias,
cada vez mais freqüentes na mídia estrangeira, de torturas e execuções
183
O Estado de S. Paulo, 17.jun.1970, p. 6.
184
O Estado de S. Paulo, 17.jun.1970, p. 6.
102
extrajudiciais praticadas nos porões do regime brasileiro.
Em abril de 1970, por exemplo, o senador americano Edward Kennedy, do
Partido Democrata, acusou o governo Médici de torturar padres e estudantes. Uma
declaração desse tipo, vinda de um parlamentar com a visibilidade de Kennedy,
tinha enorme potencial negativo, razão pela qual a resposta dos governistas não
tardou, e foi dura. Mem de Sá, senador gaúcho da Arena e ex-ministro da Justiça,
rebateu as críticas vinculando o político americano “liberal” à subversão, tanto da
ordem política como da moral: “Temos falhas sim, cometemos violências e
desmandos, malferidas estão as instituições basilares, mas ainda não exibimos ao
mundo exposições de pornografia nem centenas e milhares de homens e mulheres
em nudez e promiscuidade, embebedando-se com entorpecentes ou ceando-se em
sórdido erotismo. (...) [A acusação de Kennedy] seria gostosamente subscrita por
um comunista ou por um subversivo treinado e domesticado em Havana“.
185
Mem
de Sá, no entanto, admitiu que existia violência contra opositores do regime no país,
mas, segundo um discurso que pode ser entendido como padrão de resposta do
governo a esse tipo de acusação, o senador tentou mostrar que os maus-tratos, se
havia, eram coisa de escalões inferiores, agindo segundo critérios que não eram os
adotados pelo regime, e que Médici estava tentando conter: “Não é privilégio do
Brasil o mau tratamento, a brutalidade e a violência da política contra os presos e
suspeitos de crime. (...) [Isso não desculpa] esses estúpidos crimes políticos, [mas é
preciso dizer] que os escalões superiores do poder no Brasil, o presidente, os
ministros, os governadores, todos quantos têm consciência de sua responsabilidade,
condenam, verberam, profligam com a maior indignação esses crimes que maculam
a civilização brasileira, tradicional e invariavelmente caracterizada pelo pacifismo e
pela generosidade”.
186
Já o governo enxergava nas críticas e nas denúncias contra o regime uma
orquestração subversiva com o propósito de “difamar” o Brasil no exterior. Mais de
uma vez, segundo a imprensa da época, Médici manifestou-se preocupado com a
imagem do país, o que explica em parte o empenho de seu governo para fazer da
185
Última Hora, 25.abr.1970, p. 3.
186
Idem, ibidem, p. 3.
103
seleção brasileira de futebol um vistoso contraponto às denúncias. Em nota oficial
em maio de 1970, a Presidência diz que “não há tortura” nas prisões brasileiras nem
“presos políticos”. No Brasil, segue a nota, “ninguém perde a liberdade
simplesmente por divergir da orientação democrática defendida pelo governo”.
Segundo a mensagem, o que existem são “terroristas” detidos enquanto respondem
a processo regular.
187
Para reforçar o discurso, o líder do governo na Câmara, Raimundo Padilha,
ao comentar um documento em que a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil) sugeria a investigação sobre presos políticos no Brasil, ainda procurava
sedimentar a noção segundo a qual o “terrorismo” e a “subversão” não eram
condizentes com a índole pacífica do brasileiro, sendo fenômenos resultantes de
ideologias alienígenas: “No Brasil, já disse o presidente da República, não há hoje
um só preso político, cassado ou não, adversário ou não do atual governo. A
tranqüilidade da família brasileira é a obrigação fundamental do nosso governo.
Contra a desordem provinda do exterior, a ordem interna, codificada nas leis do
país e elaboradas estas segundo o teor elevado de nossa cultura social e política e os
sentimentos mais arraigados no coração do brasileiro de concórdia e benevolência.
O terror é um produto espontâneo da embriogenia totalitária. Em solo brasileiro
não prevalecerá jamais”.
188
A resposta agressiva à crítica internacional mal esconde outra obsessão do
regime ditatorial brasileiro naquela etapa, a idéia de independência, que aqui nos
interessa porque, como já foi dito, o ano de 1970 representa o momento da
afirmação alegre e confiante da “brasilidade autêntica“ que alimentava o projeto da
ditadura.
Ao contrário do que se poderia supor, não havia alinhamento automático do
regime ditatorial com os EUA, ao menos no nível do discurso. Muito pelo contrário:
Médici, cujo posicionamento seria hoje aplaudido pela esquerda, criticou
duramente o que ele caracterizou de tentativa de monopólio do campo científico
por parte dos norte-americanos. E o Brasil enviava sinais de que, sim, estava
187
O Estado de S. Paulo, 9.mai.1970, contracapa.
188
Idem, 2.jun.1970, p. 7.
104
interessado em energia nuclear, aproximando-se da Alemanha para fazer um
acordo com finalidades pouco claras, o que certamente alarmava Washington.
Médici, no entanto, não parecia incomodar-se em proclamar que o projeto
desenvolvimentista da ditadura incluía o “grande salto tecnológico”: “Por essa
razão, o Brasil quer ter as mãos livres em todos os setores da pesquisa científica e da
aplicação pacífica de novas e ilimitadas fontes de energia. E se recusa a
comprometer seu futuro, obrigando-se por esquemas internacionais em que lhe são
negados direitos e prerrogativas, que se pretendem constituam privilégios de
alguns (...). Não admitimos que a grande revolução científica e tecnológica de nosso
tempo se faça -- como ocorreu no século XIX, com a Revolução Industrial -- em
benefício quase exclusivo de países mais desenvolvidos. Repelimos qualquer
tentativa, seja qual for o pretexto invocado, de restauração da tese de zonas de
influência ou de imposição da vontade política de um país, ou de grupo de países, a
outros”.
189
Era o tempo dos projetos grandiosos, a marca que a ditadura de Médici quis
imprimir na história. “A meta essencial de meu governo pode resumir-se numa
palavra: desenvolvimento”
190
, afirmou o presidente. Do crescimento do país, em
última análise, dependia a abertura política, segundo Médici: “Não é possível
assegurar a plenitude da liberdade política enquanto existirem conflitos sociais, de
sua maioria de natureza econômica”. Para ele, a intervenção do Estado era
necessária para “moralizar” a economia e garantir o “fim de todas as
desigualdades”.
191
Em célebre discurso na Escola Superior de Guerra, Médici
declarou: “Apesar do esforço realizado durante seis anos pela revolução de 1964,
quando nos voltamos para a realidade das condições de vida da grande maioria do
povo brasileiro, chegamos à pungente conclusão de que a economia pode ir bem,
mas a maioria do povo ainda vai mal”.
192
Jarbas Passarinho, ministro da Educação e
um dos mais ativos porta-vozes do Planalto, confirmou: o grande “inimigo” é o
189
Última Hora, 21.abr.1970, capa.
190
Última Hora, 21.abr.1970, p. 7.
191
Idem, 6.mar.1970, p. 3.
192
Idem, 11.mar.1970, p. 3.
105
subdesenvolvimento, e a questão devia ser tratada “sem sentimentalismos”.
193
A
imprensa refletia esse esforço desenvolvimentista, quer por acreditar no projeto,
quer por estar sob censura. “Hoje Médici interligará o Brasil”, trombeteou um título
do jornal Última Hora em 7 de abril de 1970
194
, referindo-se à inauguração de dois
trechos de rodovias nordestinas.
Simultaneamente, no entanto, era a época de uma das grandes secas no
Nordeste, que dividiu as atenções do presidente-torcedor com a Copa do Mundo. A
estiagem atingiu Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas
e Bahia. Cerca de 1,8 milhão de pessoas foram mandadas para as frentes de
trabalho criadas pelo governo, e outras centenas de milhares invadiram cidades e
saquearam trens, caminhões, feiras e estabelecimentos comerciais em busca de
comida e outros mantimentos. A situação catastrófica na região
predominantemente agrária ocorria no mesmo ano em que o Censo demográfico
indicou que a população urbana havia atingido 56% do total, superando a rural no
Brasil pela primeira vez, talvez como reflexo da degradação nordestina e dos
incentivos industriais no Sudeste.
Mesmo pressionado pelo terrível quadro de fome e desespero, Médici
aparentemente saiu-se bem no teste de popularidade, muito em razão de sua
atuação diante da tragédia. O presidente fez um giro pelas cidades mais afetadas
pela seca, conversou com os flagelados e anunciou medidas emergenciais, isto é,
apresentou-se como um chefe de Estado preocupado com o destino de uma parte
do país geralmente esquecida pelo poder público. O quanto essa atitude foi
resultado de um minucioso planejamento de relações públicas por parte do governo
ou de autêntico interesse por parte de Médici, é difícil saber. Mas impressiona o
desprendimento do presidente, que deve ter pesado consideravelmente a seu favor
no que diz respeito à sua já crescente popularidade.
Em cena descrita por O Estado de S. Paulo, Médici, em visita ao Ceará para
ver de perto os efeitos da seca, encontrou-se com as vítimas da catástrofe e
conversou com elas. “Depois de Deus, só o sinhô pode nos valer”, disse o flagelado
193
Idem, 5.mar.1970, p. 2.
194
Idem, 7.abr.1970, p. 7.
106
Raimundo Gomes de Souza ao presidente, que respondeu que tudo iria melhorar.
“Acredito no homem. Ele disse que vai cumprir. Ninguém mais passa fome”,
comentou Raimundo.
195
Na mesma visita, Médici explorou um gestual que, descrito pela imprensa,
salientava sua “humildade” perante a tragédia daquelas pessoas e também sua
determinação de, como chefe de Estado de um país “que vai para frente”, segundo
suas próprias palavras, resolver aquele problema o mais rapidamente possível. Em
reportagem intitulada “O flagelado sentado, o general se abaixa”, O Estado detalha
esse esforço do presidente em demonstrar disposição: “O semblante do presidente
reflete muita preocupação e seriedade. Ele chama seus assessores. Fala em
remédios. Pede a lista dos medicamentos que seu avião havia trazido. Faz que
sejam marcados nela os medicamentos mais úteis aos flagelados. Ordena aos
assessores que providenciem o transporte daqueles remédios para o local, sem a
menor demora“.
Depois de agir como presidente, dando ordens e estabelecendo prioridades,
Médici assumiu o papel de “homem do povo“, no qual parecia bem à vontade: “O
presidente, em seguida, se dirige aos trabalhadores, puxa conversa com eles,
pergunta-lhes coisas. De um grupo deles, quer saber se de vez em quando dão um
golinho de pinga. A resposta é não, imediata. Os flagelados falam da maneira como
estão -- sentados no chão, pratos nos joelhos. O general-presidente é que se abaixa
para ficar perto deles, e ouvi-los”.
196
E Médici, na terra que crê em milagres e
santos, transforma um cenário potencialmente negativo em mais uma oportunidade
para pedir união nacional em torno de sua Presidência e do regime: “Quero dizer
que não me sinto com poderes e dons para fazer milagres, mas tenho firmeza,
confiança e decisão para proclamar à nação inteira que, com a ajuda de todos os
brasileiros e com a ajuda de Deus, o Nordeste afinal haverá de mudar”.
197
Foi nesse cenário de tensões e expectativas políticas, sociais e institucionais
que a Copa do Mundo de 1970 se enquadrou: a competição flagrou o regime militar
no momento em que ele se propunha a cumprir o papel que julgava lhe caber, o de
195
O Estado de S. Paulo, 5.jun.1970, contracapa.
196
Idem, ibidem
107
garante da segurança e da paz internas para o desenvolvimento do país -- e isso,
trocando em miúdos, significava esmagar todos os movimentos de subversão da
ordem, ao mesmo tempo em que se desenrolava uma campanha cujo objetivo era
destituir os brasileiros de sua condição de indivíduos, reunindo-os sob o manto
indiscutível da nacionalidade. “O primeiro caminho para a valorização do homem
brasileiro é a integração de todos no esforço nacional”, anunciava Médici em 10 de
março de 1970, na aula inaugural da Escola Superior de Guerra. O discurso é
revelador da estratégia do governo:
“Valendo-me dos modernos meios de comunicação que a revolução de março trouxe e
que hoje já permite a identificação de todos os brasileiros, estarei sempre presente à casa de
cada um para dizer a todos a verdade, e somente a verdade. Não farei promoção pessoal nem
permitirei que outros o façam à minha sombra. A comunicação social do meu governo visa a
informar-se, a informar, a divulgar e a educar. Usarei os instrumentos a meu alcance para o
chamamento de todos à coesão, ao respeito à lei, à produtividade, à união, à esperança.
Usarei esses instrumentos para mobilizar a vontade coletiva para a obra do desenvolvimento
nacional. Deixo bem claro que não espero unanimidade em torno da administração, o que
seria incompatível com o regime democrático. Espero apenas que, todas as vezes em que
estiverem em jogo os supremos valores da liberdade, do desenvolvimento e da segurança,
compreendamos que a pátria é uma só“.
198
Esse “esforço nacional” justificava o arbítrio e a distorção da realidade e, ao
mesmo tempo, criava as condições para a explosão de ufanismo na época da Copa
do Mundo. A vitória no México foi, portanto, a centelha que deflagrou um processo
que já estava em gestação no país. Ao governo coube aproveitá-la. A revista
Realidade identificou essa onda ufanista, sem, no entanto, atribuir sua
responsabilidade ao governo – preferiu mostrar que os militares capitalizaram uma
197
O Estado de S. Paulo, 7.jun.1970, capa.
198
Última Hora, 11.mar.1970, p. 7
108
situação já existente. “Estimulada pela vitória do Brasil na Copa do Mundo, uma
onda ufanista corre o país de norte a sul”, disse a publicação, em setembro de 1970,
sob o título “O novo ufanismo”.
199
A revista identifica o movimento como “um
surto”, “um neo-ufano-nacionalismo, com todos os perigos dos ismos, certamente
uma força nova, que poderá ser boa ou má conforme o destino que lhe derem os
formadores da opinião pública. Que fazer com ela? Em qualquer escalão do
governo a mesma resposta: colocá-la a serviço do desenvolvimento”.
O regime exaltava “os valores” do brasileiro, reforçados pela conquista do
tri. Exaltava também a “unidade” em torno de um objetivo, a consistência moral
dos bons, a prevalência da “vontade coletiva” sobre o desejo individual – uma
crítica direta aos grupos que contestavam o regime, vistos, pelos militares, como
uma minoria barulhenta que tentava prevalecer diante da maioria silenciosa do
país. No discurso do dia da vitória na Copa, Médici disse:
“E identifico, na vitória conquistada na fraterna disputa esportiva, a prevalência de
princípios que nós devemos amar para a própria luta em favor do desenvolvimento nacional.
Identifico no sucesso da nossa seleção de futebol a vitória da unidade e da convergência de
esforços, a vitória da inteligência e da bravura, da confiança e da humildade, da constância e
da serenidade, da capacitação técnica, da preparação física e da consistência moral. Mas é
preciso que se diga, sobretudo, que os nossos jogadores venceram porque souberam ser uma
harmoniosa equipe, em que, mais alto que a genialidade individual, afirmou-se a vontade
coletiva. Neste momento de vitória, trago ao povo a minha homenagem, identificando-me
199
Realidade, set.1970, p. 98-103.
109
todo com a alegria e a emoção de todas as ruas, para festejar, em nossa incomparável seleção
de futebol, a própria afirmação do valor do homem brasileiro”.
200
No mesmo discurso, o presidente reforçou a imagem patriótica e nacionalista
do país ao qual oferecia seus préstimos de modesto timoneiro: “Como um homem
comum, como um brasileiro que, acima de todas as coisas, tem um imenso amor ao
Brasil e uma crença inabalável neste país e neste povo, sinto-me profundamente
feliz, pois nenhuma alegria é maior em meu coração que a alegria de ver a
felicidade do nosso povo, no sentimento da mais pura exaltação patriótica”.
201
O regime e seus simpatizantes queriam fazer crer que um novo país estava a
surgir, e a conquista da Copa nada mais era do que a prova desse nascimento. Para
alguns, inclusive, não havia nenhum problema moral com o fato de que o governo
tivesse se envolvido tanto com a seleção -- antes pelo contrário, foi aplaudido por
isso. Um empresário, José Cândido Moreira de Souza, dono da indústria de roupas
Ducal, pagou anúncio em jornais para falar das “lições da seleção” e do momento
do país como se fossem uma coisa só:
“[...] há que, com justiça, salientar o apoio ostensivo dado pelo governo brasileiro aos
jogadores e técnicos da seleção. Esse apoio, claramente expresso até mesmo pelo presidente da
República, deu aos dirigentes da seleção aquela tranqüilidade essencial para as decisões. O
governo não teve cerimônia -- nem havia de ter -- em dar cobertura aos que, no campo
esportivo, estavam lutando pelo país. O empresariado brasileiro viu, com entusiasmo, essa
atitude do governo em apoiar os que, nos diversos campos, lutam pelo desenvolvimento
200
Folha de S. Paulo, 22.jun.1970, capa.
201
Folha de S. Paulo, 22.jun.1970, capa.
110
brasileiro. Não hesitaria em incluir a disposição do governo em apoiar a seleção no programa
de desenvolvimento do país”.
202
Em um curioso editorial a respeito desse “novo momento” do país, “Festa do
povo”
203
, a Folha de S. Paulo disse que as campanhas nas Copas do Mundo desde
1958 refletiram o momento do país em cada um daqueles anos. Em 58, o Brasil
vencera “na época do desenvolvimento tumultuado que gerou euforia e confiança
nas possibilidades nacionais”. Em 62, vencemos “de maneira menos brilhante, mas
dentro do mesmo impulso do campeonato anterior”. Em 66, “a decepção”: “Nos
campos esportivos, pagávamos o mesmo preço que o país inteiro se via obrigado a
pagar pelos erros do passado: a improvisação, a falta de infra-estrutura, o
desenvolvimento ‘às caneladas’”. Em 70, por outro lado, a conquista “ocorre num
momento em que o Brasil já consertou tradicionais erros, partiu para um
desenvolvimento planejado e tem consciência clara do que é e do que almeja”. E
tome nacionalismo, que tem o condão de superar “divergências e ressentimentos”:
“A verdade irrecusável é que o Brasil levou para os campos de futebol, na disputa de
um campeonato que tanto diz à alma popular, todo o espírito que hoje anima a nossa pátria:
confiança ilimitada em suas possibilidades (...). Foi tão grande essa união (...) que ela se
estendeu pelo Brasil afora (...). De repente, demo-nos as mãos, esquecendo divergências e
ressentimentos. A bandeira nacional, símbolo não apenas da pátria, mas de uma pátria
indestrutivelmente unida e coesa, veio às ruas, às casas, aos automóveis, numa exaltação
cívica sem precedentes”.
202
Idem, 28.jun.1970, p. 15.
203
Folha de S. Paulo, 23.jun.1970, p. 4.
111
A profusão de bandeiras do Brasil nas ruas durante os festejos pelas vitórias
da seleção na Copa de 1970 resultou em parte de uma campanha oficial “pela
promoção à bandeira nacional“, conforme noticiado pelo jornal Última Hora.
204
A
respeito desse fenômeno, Marilena Chauí identificou nele um interessante contraste
com as celebrações durante a disputa em 1958. “Nas comemorações de 1958 e de
1970, a população saiu às ruas vestida de verde-amarelo ou carregando objetos
verdes e amarelos. Ainda que, desde 1958, soubéssemos que ‘verde, amarelo, cor de
anil/ são as cores do Brasil”, os que participaram da primeira festa levavam as
cores nacionais, mas não levavam a bandeira. A festa era popular. A bandeira
brasileira fez sua aparição hegemônica nas festividades de 1970, quando a vitória
foi identificada com a ação do Estado e se transformou em festa cívica”.
205
DaMatta, no entanto, discorda que o uso da bandeira denote
necessariamente um elo direto com o regime militar: “É pelo futebol (...) que se
permite à massa uma certa intimidade com os símbolos nacionais. E é só nos dias
de jogo da ‘seleção brasileira’ que se pode observar o povo vestido com as cores da
bandeira nacional, vivendo uma experiência concreta de ‘união nacional’. Nesses
momentos de ‘carnaval cívico’, criados pelo futebol, os símbolos sagrados da pátria
(que, no Brasil, são cercados de regras em termos de seu uso), deixam de ser
propriedade das camadas dominantes e, sobretudo, do ‘governo’ e das
‘autoridades’, para se disseminarem pelo meio da massa anônima, que com eles
celebra uma relação de franca e desinibida intimidade. Essa experiência (...)
transcende seus usos e abusos pelo governo“. Para o antropólogo, a mobilização
patriótica em torno do futebol está obviamente à mercê dos governos autoritários,
mas isso não pode impedir uma análise que permita perceber o quanto esse
fenômeno avança muito além disso:
204
Última Hora, 4.mar.1970, p. 3.
205
CHAUÍ, Marilena. Brasil - Mito Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Editora Perseu Abramo,
2000, p. 32.
112
“[...] As experiências de solidariedade e da vitória são, a meu ver, os ingredientes
básicos para movimentar qualquer transformação real da sociedade, sobretudo numa
sociedade onde o povo é massa e, como tal, jamais pode se fazer ouvir claramente. Longe,
pois, de ver essa experiência futebolística como o protótipo do material que governos
autoritários podem mobilizar em proveito próprio, quero acentuar o lado positivo (ou
liminar) da experiência com o futebol no seu sentido mais amplo e generoso, quando ela
permite à massa destituída ter o sentimento de totalidade nacional, do valor do povo
representado pelos seus ídolos e, mais importante que tudo isso, da vitória plena e
merecida”.
206
A despeito da argumentação de DaMatta, o nacionalismo e o ufanismo
adquiriram o grau típico dos países em que a ditadura se incorpora aos hábitos e
costumes. “Andar de carro pelas principais cidades sem bandeiras nacionais nos
pára-brisas era muito mais do que uma falta de interesse esportivo: era uma
temeridade. (...) O mais surpreendente nestes excessos de zelo patriótico foi talvez o
fato de serem cometidos não apenas por jovens habituados a um comportamento
espalhafatoso nas ruas, mas também por senhores normalmente respeitáveis e
circunspectos”, disse a revista Veja na época.
207
O relato de O Estado de S. Paulo
sobre as comemorações pela vitória contra o Uruguai
208
, na semifinal do Mundial,
dão conta do terror contra aqueles que não queriam ou pareciam não querer
participar da festa. Na avenida Rebouças, um sujeito num Fusca quase foi linchado
porque não buzinava como os demais à sua volta. “Uruguaio! Uruguaio!“,
gritavam. “Por que você não canta? Você não é brasileiro? Buzina aí, você não é
brasileiro?“. Exigia-se felicidade. “Gente triste é uruguaio, gente triste é uruguaio!“.
“Nunca tantos foram tão brasileiros como nesta hora”, diz O Estado, numa ironia
aparentemente involuntária. “Era como se o mundo tivesse sido totalizado (ou
encompassado) pelo futebol, de modo que o desempenho futebolístico servia de
206
DAMATTA, Roberto (et. al.). Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1982, p. 34.
207
Veja, 1.jul.1970, p. 30.
208
O Estado de S. Paulo, 18.jun.1970, p. 32.
113
medida para tudo”, comenta DaMatta. “Daí o carnaval cívico-nacionalista depois
da vitória final, contra a equipe italiana, com o povo cantando nas ruas a fraqueza
dos italianos e louvando o poder dos brasileiros.”
209
Esse nacionalismo, cujo caráter violento era evidente, foi visto como positivo
por uma elite que, embora fosse crítica do regime, estimulava a mensagem de união
nacional contra a ameaça “estrangeira”, sobretudo aquela representada pela
influência dos países do bloco comunista. O mesmo O Estado de S. Paulo que viria a
pedir abertura democrática em meio às festas pela conquista do título no México é o
jornal que, em editorial, elogiava “a unânime vibração popular em todos os
quadrantes do nosso imenso território, a cada vitória das cores brasileiras em todo o
transcorrer do campeonato”. E completou:
Vibrou o Brasil como um corpo só, como um bloco indivisível, como um bloco
monolítico, sem preocupações regionais, numa comovedora demonstração de nossa vocação
de unidade. E numa demonstração também de autêntica brasilidade, até mesmo na
espontaneidade com que o povo, ao derramar nas ruas ruidosamente a sua alegria, repeliu os
que lhe procuraram impingir inspirações alienígenas, para só escolher autênticas e
tradicionais canções populares como intérpretes de seu júbilo e de seus sentimentos”.
210
A valorização dessa “brasilidade” teve sua face mais vistosa no slogan
“Brasil: ame-o ou deixe-o”. Criado em abril daquele ano por um grupo de
empresários paulistas possivelmente ligados à Operação Bandeirante, sob
inspiração dos americanos defensores da Guerra do Vietnã (“America, love it or
leave it”), o slogan ganhou uma extensão não prevista por seus criadores: bancas de
209
DAMATTA, Roberto (et. al). Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1982, p. 34.
210
O Estado de S. Paulo, 23.jul.1970, p. 3.
114
jornal vendiam adesivos com a frase, e o slogan era desenhado por crianças em
aula: “Com a Copa do Mundo, a campanha brasileira se tornou ainda mais parecida
com a americana: milhares de bandeiras do Brasil invadiram as residências e os
automóveis”.
211
Desse modo, não surpreende que a história registre a impressão de que o
slogan fora inventado pelo governo, para desgosto de Octávio Costa, o general que
chefiava a Agência Especial de Relações Públicas (AERP), responsável pela
propaganda oficial, durante o governo Médici: “Não era um trabalho de
comunicação social, e eu paguei o preço (...). Juram que a mensagem foi minha! No
meu canhenho fúnebre vai constar: coronel Octávio Costa, ex-assessor de relações
públicas etc., que escreveu o ‘Brasil: ame-o ou deixe-o’, morreu, esse miserável
morreu”.
212
O slogan, como deixa entrever a declaração de Costa, na verdade
atrapalhava os objetivos e o planejamento da AERP.
Estabelecida em janeiro de 1968, a agência de propaganda oficial surgiu
depois de um intenso debate, dentro do governo, sobre a necessidade de
disseminar uma imagem positiva do regime militar. O ano da criação da AERP foi
também o ano em que se intensificaram manifestações contra a ditadura, razão pela
qual muitos dos integrantes da agência vinculam sua criação à necessidade do
governo de enfrentar a contestação.
Uma parte dos militares, no entanto, julgava desnecessário criar uma agência
para demonstrar a “verdade”, porque, na opinião deles, a “verdade” se imporia por
si mesma. Além disso, esse militares viam a propaganda política como uma
temeridade, porque seria interpretada como coisa de regime fascista -- e, afinal, os
golpistas de 1964 se julgavam democratas. Outra parte do governo, no entanto,
211
Veja, 1.jul.1970, p. 30.
212
FICO, Carlos. Reinventando o Otimismo: Ditadura, Propaganda e Imaginação Social no Brasil. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 101.
115
considerava importante estimular valores vinculados ao civismo, valores positivos,
que congregassem o país em torno de seus objetivos maiores, isto é, o
desenvolvimento e a transformação do Brasil em potência mundial. Como
demonstra Carlos Fico, em seu importante estudo sobre a AERP, o segundo grupo
venceu o debate, mas mesmo assim a agência nasceu de forma “envergonhada”,
jamais assumindo a sua condição de agência de propaganda política -- não é por
outra razão que o trabalho da AERP é de “relações públicas”.
Em sua fase mais produtiva e importante, a AERP criou um modelo de
publicidade oficial que marcou a trajetória da propaganda brasileira. Como já foi
dito neste trabalho, a agência não inventou um governo que não existia, porque era
impossível negar a repressão e o arbítrio do regime militar. Por outro lado, era
possível estimular um sentimento de união nacional, de patriotismo, de confiança
no futuro e no governo, a partir de campanhas centradas em questões comuns,
como higiene, e em valores morais e cívicos. O objetivo era “desanuviar o ambiente
de radicalização”.
213
Um slogan do tipo “Brasil: ame-o ou deixe-o”, em que
claramente se impõe uma escolha, um enfrentamento, não contribuía em nada para
os objetivos da AERP; logo, a “impressão” de que o slogan ajudou o governo
militar é, no mínimo, questionável. O surgimento de iniciativas como essa mostra
que, muitas vezes, o ufanismo saía do controle oficial e assumia uma identidade
própria, desvinculada, em sua origem, de uma ação direta dos militares no poder.
213
FICO, Carlos. Op. cit., p. 93.
116
5. A reação dos torcedores
5.1 O efeito da televisão
O ufanismo e a reação incontida de quase todo o país em relação à Copa
foram resultado direto de um outro elemento crucial no processo: a televisão. Pela
primeira vez, os brasileiros puderam ver a principal disputa do futebol mundial ao
vivo -- e isso muda tudo. Fernando Pedreira, em artigo para O Estado de S. Paulo,
resumiu esse impacto:
“Mas o campeonato mundial de futebol de 1970 deve ficar como um marco
importante ainda por um outro motivo. A febre futebolística dos brasileiros já é secular.
Nenhum outro campeonato anterior, entretanto, terá atingido o que este atingiu em matéria
de atenção e participação públicas. E a razão disso é a transmissão ao vivo, via satélite. (...)
Não deixa de ser significativo que o Brasil entre assim na era da comunicação eletrônica pelo
caminho do futebol. O que esta Copa está nos dando em termos de participação coletiva e de
vibração popular é fruto, em boa parte, dos milagres da técnica moderna. O que
experimentamos agora é uma espécie de ante-sala do mundo contemporâneo. (...) O que nos
dão as transmissões do México é uma dimensão nova da realidade, na escala própria da era
eletrônica. Os fatos podem ser os mesmos, mas a consciência que temos deles é outra e outra
é a reação coletiva. Jogamos cada um dos jogos no México à medida que vão sendo
disputados. Somos milhões de participantes-testemunhas diante de acontecimentos que antes
117
chegavam apenas como notícias”.
214
Além da ampliação do drama do futebol pela via da TV, a transmissão
reforçou o caráter “nacional” do país em construção pelo regime: 16 Estados da
Federação, além do Distrito Federal, receberam as imagens da Copa, contribuindo
para a sensação de unidade que a ditadura pretendia. Ao testemunhar um jogo da
seleção pela TV, o torcedor de São Paulo sabia que, naquele exato momento, outro
torcedor como ele fazia o mesmo no Rio Grande do Norte. Era como se todos os
brasileiros estivessem no estádio. Esse “sentido de proximidade” é próprio do
futebol, conforme salienta o pensador francês Alain Touraine, ao dizer que, “na
sociedade capitalista contemporânea, que acelera a produção de um sistema,
gerando isolamento e desenraizamento, o futebol produz relações de proximidade e
identificação entre pessoas que, em muitos casos, encontram-se espalhadas pelo
mundo”.
215
Com a televisão, esse potencial é elevado praticamente ao infinito e,
levando-se em conta o fato de que a transmissão ao vivo era uma novidade
tecnológica excitante, é praticamente impossível dimensionar a explosão de
sentimentos que a Copa de 1970 pela TV proporcionou aos brasileiros.
O total de aparelhos de TV no Brasil cresceu de forma exponencial, como
resultado da fartura de crédito ao consumidor: em 1960, apenas 9,5% das
residências urbanas dispunham de TV; o percentual foi para 40% em 1970. O Ibope
esperava uma audiência de 1.290.770 aparelhos ligados na Grande São Paulo, com
cinco pessoas por aparelho, na estréia do Brasil na Copa. Isso daria algo em torno
de 6,5 milhões de telespectadores, numa população estimada em 8,1 milhões de
pessoas, segundo dados do Censo do IBGE. A amplitude dessa proporção mostra o
poder que a televisão teve, como fator de união, em meio à mobilização pelo
futebol.
A transmissão ao vivo, naquela oportunidade, ainda carecia de tecnologia
que assegurasse desempenho e lucros às empresas brasileiras envolvidas. Cerca de
um mês antes da abertura da Copa, ainda discutia-se se seria possível transmitir
treinos e outras atividades da seleção diretamente de Guadalajara, primeira sede do
214
O Estado de s. Paulo, 21.jun.1970, p. 4.
215
TOURAINE, Alain. “Esporte cria relações de proximidade”. In: Folha de S. Paulo, 21.jun.1998, p. 4-8, 4-9.
118
Brasil. Apenas o jogo de estréia, contra a Tchecoslováquia, estava com transmissão
garantida àquela altura. Além disso, não havia receptores de TV apropriados para o
sistema PAL-M, que permitiria ver a Copa a cores -- Médici era um dos poucos a ter
um aparelho desse tipo, no Planalto, e mesmo assim só a partir do jogo contra a
Romênia, terceira partida do Brasil, em 10 de junho. Essa deficiência só seria
superada dois anos depois. Mesmo assim, a novidade da transmissão de futebol ao
vivo foi devidamente explorada no campo político bem antes do pontapé inicial da
Copa. Portugal e Itália se enfrentaram em amistoso em Lisboa, em 1970, e esse
evento protagonizou a “primeira transmissão ao vivo de um jogo feito na Europa“
para São Paulo, segundo a propaganda das emissoras Record e Bandeirantes, como
uma “homenagem da Prefeitura de São Paulo aos esportistas e às coletividades
portuguesa e italiana”.
216
As emissoras brasileiras pagaram os direitos de imagem ao Telessistema
Mexicano e pagaram também pelo uso do satélite, de modo que cada jogo custou
cerca de 48 mil reais, em valores atualizados. O valor era alto, e apenas as
Emissoras Associadas (dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand) e a Rede
Globo haviam se apresentado para a transmissão. Apesar de cada emissora ter sua
própria equipe de locutores e comentaristas, elas levariam ao ar uma única imagem,
de modo simultâneo, em sistema de “pool”, o que, embora fosse resultado de
limitação técnica, certamente facilitaria o controle sobre o que aparecia no vídeo,
evitando possíveis “excessos“. Mas o principal era, como já foi dito, a sensação de
unidade nacional propiciada pelo evento: “Segundo representantes da Embratel, a
transmissão da Copa não trará grandes lucros à companhia, mas o trabalho é feito
para que ‘todos os brasileiros possam assistir aos jogos da seleção’”.
217
É difícil dimensionar o potencial mobilizador das imagens épicas da seleção
nesse contexto, mas é lícito imaginar que seu alcance supere com folga o campo
esportivo e atinja em cheio o campo político e social. Para alguns analistas, o poder
do futebol e o da TV, somados, dispensam a manipulação deliberada do evento
216
O Estado de S. Paulo, 10.mai..1970, p. 46. A Itália venceu por 2 a 1.
217
O Estado de S. Paulo, 3.mai.1970, p. 46.
119
com objetivos político-ideológicos: a catalisação da massa se dá de forma, digamos,
inercial. Para outros, no entanto, a ação de um manipulador amplificaria esses
poderes para muito além do júbilo pela vitória, criando na população o sentido do
dever, do sacrifício pela nação. A propaganda oficial da AERP explorou isso. Numa
peça veiculada pela TV em março de 1970, que mostrava um gol de Tostão pela
seleção brasileira, dizia-se que o futebol e a vida se equivaliam: “O sucesso de todos
depende da participação de cada um”.
218
Como argumenta o cientista político
Oliveiros Ferreira, ao comentar as imagens do primeiro gol de Ronaldo contra a
Alemanha na final da Copa de 2002, vencida pelo Brasil:
“Outros fossem os tempos, e tivéssemos em outras plagas, haveria quem soubesse
transformar o primeiro gol de Ronaldo contra a Alemanha num símbolo político capaz de
arrastar multidões. (...) É dos conhecimentos da propaganda política que necessitamos para
compreender o simbolismo daquele gol e de como se poderia, outros fossem os tempos, por
meio dele mobilizar massas para as grandes tarefas de construção da Pátria Grande. (...)
Todos se recordam de como foi o gol: o goleiro alemão (até então invencível) não conseguiu
encaixar a bola, caiu e se arrastou pelo chão tentando empalmá-la, evitando o inevitável. Foi
uma cena impressionante pelo que simbolizou: o adversário caído, arrastando-se na grama,
enquanto, de perto, mas correndo, vinha Ronaldo, que chutou a bola como se o chute fosse
um tiro de misericórdia. Porque foi isso o que a cena simbolizou: alguém sendo fuzilado sem
apelação. (...) Dêem esta cena a um gênio do mal em propaganda como Goebbels ou a
qualquer cidadão nosso, bem interessado em levantar esta Pátria. Dêem esta cena -- um gol
feito numa partida decisiva -- a um país faminto de feitos que o façam lembrar, para não
218
FICO, Carlos. Op. cit., p. 103.
120
permitir que se repitam, quantas oportunidades foram perdidas na sua história,
oportunidades que lhe teriam permitido superar o que Nélson Rodrigues, pelo que ouvi, dizia
ser ‘complexo de vira-lata’ (...). Dêem-lhes esses elementos tão simples como o simbolismo de
um gol e saberão transformá-los em símbolo de grandeza ou, como diria Luiz Alberto
Sánchez, no símbolo do nosso ‘esmagado orgulho crioulo, a afirmação de nossa autonomia
política e espiritual, em suma, o mais puro de nossa beligerância’. Ou não seria esse símbolo
suficiente para mostrar como os subdesenvolvidos são capazes de humilhar, liquidar as
pretensões dos do Primeiro Mundo? Não seria ele capaz de motivar o povo a sacrifícios,
marchando para a grandeza que pode alcançar mirando-se no exemplo dos bravos, não
apenas de Ronaldo, que tiveram suas energias dirigidas para um objetivo definido, para
todos eles emocionalmente mais importante que qualquer coisa, inclusive sua própria
projeção pessoal, e que os levou, todos, a superar suas diferenças e dificuldades e conquistar o
respeito dos adversários?”.
219
Em editorial, O Estado de S. Paulo captou a essência dessa oportunidade para
um governo que tinha entre seus principais objetivos o desenvolvimento acelerado,
a inserção do Brasil no clube das potências mundiais e a formação de uma
identidade nacional coerente com seus projetos.
O jornal elogia a ciência, que propiciou a maravilha da transmissão ao vivo e,
com isso, segundo sua visão, eliminou privilégios: “A transmissão da Copa do
Mundo pela televisão, via Intelsat, graças à colaboração da Embratel, torna o
mundo mais próximo e nos aproxima mais do mundo. Ricos e pobres poderão
219
FERREIRA, Oliveiros S. “Que nos falem as chuteiras!”. In: O Estado de S. Paulo, 2.jul.2002, p. A2.
121
acompanhá-la, torcendo pelo selecionado nacional, mesmo em praça pública”.
220
220
O Estado de S. Paulo, 2.jun.1970, p. 3.
122
5.2 A mobilização nacional
Ao final de cada jogo da campanha na Copa do México, ainda sob o impacto
das vitórias brasileiras, a TV tocava a marcha “Pra Frente, Brasil”:
Noventa milhões em ação,
Pra frente, Brasil,
Do meu coração...
Todos juntos vamos,
Pra frente, Brasil,
Salve a seleção!
De repente é aquela
Corrente pra frente,
Parece que todo o Brasil deu a mão...
Todos ligados na mesma emoção...
Tudo é um só coração!
Todos juntos vamos,
Pra frente Brasil!
Brasil!
Salve a seleção!
O hino resumia tão bem o projeto do governo que até hoje há quem pense
que o co-autor da marcha tenha sido o próprio Médici. Na verdade, Médici foi, no
máximo, um contribuinte indireto: o autor da letra, Miguel Gustavo, na época um
123
famoso compositor de jingles publicitários e de sambas, usou uma frase do
presidente que teria sido dita nas tribunas do Maracanã durante um jogo do
Brasil.
221
A música foi a vencedora de um concurso promovido pelos
patrocinadores das transmissões da Copa. No entanto, a exemplo do slogan “Ame-
o ou deixe-o”, “Pra Frente Brasil” é até hoje visto como um hino feito por
encomenda da ditadura -- outra lenda que resistiu ao tempo. Afinal, tudo o que
interessava ao regime estava lá: a idéia de unidade nacional (“todos juntos vamos“),
o fim das divergências com vista a um objetivo comum (“parece que todo o Brasil
deu a mão“), a paixão pelo país e pelo brasileiro que o representava (“tudo é um só
coração”) e a ordem de avançar, de um movimento “pra frente”, numa só
“corrente”.
De maneira semelhante, não surpreende que a música “Eu Te Amo Meu
Brasil”, de Don e Ravel, composta exatamente em 1970, seja considerada até hoje
como coisa encomendada pelo regime militar, tamanha a sua identidade com os
propósitos do governo. Anos mais tarde, Ravel (Eduardo Gomes de Faria) negou a
encomenda: disse que ele e o irmão Don (Eustáquio Gomes de Faria) fizeram a
música inspirados pela conquista do tricampeonato, embora os militares os tenham
pressionado a fazer shows por todo o país.
222
Diz a letra:
As praias do Brasil ensolaradas
O chão onde o país se elevou
221
VOGEL, Arno. “O momento feliz. Reflexões sobre o futebol e o ethos nacional”. In: DAMATTA, Roberto
(et. al.). Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982, p. 110.
222
IstoÉ, “Direita, volver! - Ravel, da dupla ufanista Dom & Ravel, conta que, na verdade, foi vítima do regime
militar”, 6.jun.2001.
124
A mão de Deus abençoou
Mulher que nasce aqui tem muito mais amor
O céu do meu Brasil tem mais estrelas
O sol do meu país, mais esplendor
A mão de Deus abençoou
Em terras brasileiras vou cantar amor
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo!
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo!
Ninguém segura a juventude do Brasil
As tardes do Brasil são mais douradas
Mulatas brotam cheias de calor
A mão de Deus abençoou
Eu vou ficar aqui, porque existe amor
No Carnaval os gringos querem vê-las
No colossal desfile multicor
A mão de Deus abençoou
Em terras brasileiras vou plantar amor
Adoro meu Brasil de madrugada
Nas horas em que estou com meu amor
A mão de Deus abençoou
A minha amada vai comigo aonde eu for
As noites do Brasil têm mais beleza
A hora chora de tristeza e dor
125
Porque a natureza sopra
E ela vai-se embora, enquanto eu planto amor
Sem nenhuma sutileza, Don e Ravel interpretaram o clima vigente no ano da
Copa do Mundo exatamente como queria o governo: por meio da distorção ufanista
da realidade, sua música visava estimular um sentimento de “brasilidade” no país,
o que casou perfeitamente com os objetivos dos militares. Além de cantar as
maravilhas naturais do país, a música sugere que patriotas são os que ficam,
enquanto os que deixam o país e se exilam em outro são traidores. Não é por outra
razão que o então governador de São Paulo, Abreu Sodré, sugeriu a Médici que “Eu
Te Amo Meu Brasil” fosse elevado à categoria de Hino Nacional.
Resta saber, no entanto, se todo esse processo teve os resultados esperados
por aqueles que se julgavam no comando dos cordéis. As manifestações de júbilo
pela conquista do tricampeonato e as expressões de sentimento positivo em relação
ao Brasil podem não ter o significado que imediatamente transmitem, isto é, uma
espécie de chancela alienada da população em relação ao regime de exceção. Pelo
contrário: é plausível supor que o brasileiro comum daquela época tenha
conseguido elaborar estratégias de poder para defender seus interesses mesmo em
meio a um regime autoritário ou diante das impossibilidades formais de afirmação
social, hipótese que permite qualificar como “janela de oportunidade” as festas de
rua pelas vitórias na Copa, que em princípio contrariavam as rígidas regras que o
regime impusera às concentrações públicas.
As comemorações eram carregadas de palavrões contra “todos os países
contra os quais o Brasil jogou, vários jogadores famosos e até a rainha da Inglaterra
126
(...)”, publicou a revista Veja.
223
O Estado constatou o mesmo, não sem surpresa: “E
foi o Carnaval dos palavrões: paródias de músicas ou estribilhos -- até mesmo de
músicas sacras -- foram aproveitadas para insultos, não escapando nenhum dos
times que o Brasil enfrentou na Copa. (...) As letras que se cantavam atingiam desde
a família da rainha da Inglaterra até os parentes mais remotos do último reserva da
seleção italiana“.
224
A Veja destacou que, “em Belo Horizonte, por exemplo, a
vitória definitiva do Brasil no domingo [contra a Itália] desencadeou uma
verdadeira explosão com características de desrecalques”. A revista arriscou-se a
dizer que se tratava de uma manifestação de desabafo, “um protesto inconseqüente,
mas ao qual a classe média adere porque é o máximo que lhe é permitido”.
225
Havia alegria pela conquista, havia orgulho pela bandeira e havia autêntica
satisfação por causa do desempenho da seleção. Muito antes da vitória final contra
a Itália, os torcedores brasileiros já haviam transformado em Carnaval cada gol da
seleção. O triunfo do Brasil em seu terceiro jogo, sobre a Romênia (3 a 2), por
exemplo, alterou até mesmo a tradicional sisudez de uma cidade como São Paulo,
conforme a tocante descrição de Clóvis Rossi para O Estado de S. Paulo, num texto
intitulado “Nas ruas, um paulistano mudado“:
“Balões verde-e-amarelos sobem todos ao mesmo tempo. Famílias saem da frente dos
seus aparelhos de TV e vão abraçar os vizinhos. Milhares de carros por toda a cidade correm
pelas ruas, fecham o trânsito. Escolas de samba voltam às ruas, o ritmo é crescente. Sinais de
trânsito transformados em faróis coloridos, na batida do samba. Estoques de bebidas no fim,
farmácias vendem talco como nunca, volta das bermudas em pleno inverno, rojões, todo
223
Veja, 1.jul.1970, p. 26.
224
O Estado de S. Paulo, 23.jul.1970, p. 29.
225
Veja, 1.jul.1970, p. 26.
127
mundo cantando. 20h45. O jogo acaba. A festa começa na cidade”.
226
Mas também havia a necessidade de expressar-se fora da tutela do Estado.
As ruas emitiam sinais sutis dessa urgência, aliada à felicidade pelas vitórias. Na
véspera da final contra a Itália, os estoques de tecidos nas cores verde e amarela se
esgotaram nas lojas de São Paulo. E a venda de bebidas alcoólicas “bateu todos os
recordes”.
227
Isto é, não bastava comemorar, era preciso ir além. O resultado disso
muitas vezes era a violência, sob o olhar deliberadamente passivo dos agentes de
segurança do Estado. Nem tudo era festa. Houve incidentes em várias capitais. Em
São Paulo, na comemoração pela vitória sobre a Romênia, os torcedores viraram um
carro da polícia. No Rio, no mesmo dia, jovens tentaram interromper o trânsito.
“Em outros pontos do Rio”, relata O Estado de S. Paulo, “agentes do DOPS
[Delegacia da Ordem Política e Social], guardas de trânsito e choques da Polícia
Militar acompanhavam de perto os cortejos, para evitar excessos“.
228
A presença muitas vezes ostensiva de agentes do DOPS e de soldados da PM
pode significar que as comemorações afinal não eram tão livres assim. Mas,
segundo a estratégia traçada pelo governo para vincular a festa pelo tricampeonato
à sensação de unidade nacional e de orgulho pelo projeto dos militares, a ordem
dada por Médici e às demais autoridades aos agentes de segurança era acompanhar
os festejos sem que houvesse repressão. Em Minas, o coronel José Guilherme
Ferreira, presidente da Federação Mineira de Futebol, pediu que a polícia tivesse “a
melhor boa vontade” com os torcedores, “pois a euforia é justificada e inclusive os
excessos devem ser tolerados”.
229
Na recepção dos torcedores à seleção campeã do
mundo em Brasília, conforme relato de O Estado de S. Paulo, o tumulto não foi
controlado com violência porque isso contrariaria instruções dadas diretamente
pelo presidente:
“O avião [da seleção] chega, e Brasília começa a assistir a uma festa como nunca
vira: ninguém segura ninguém, chegam reforços, mas os soldados agora limitam-se a sorrir,
226
O Estado de S. Paulo, 11.jun.1970, p. 36.
227
Idem, 21.jun.1970, capa.
228
Idem, 11.jun.1970, p. 37.
229
O Estado de S. Paulo, 24.jul.1970, p. 31.
128
porque não podem fazer mais nada. A multidão já soma 150 mil pessoas, 150 mil bocas a
gritar Brasil, Brasil, Brasil (...). E vêm mais reforços do Exército, começa uma batalha ombro
a ombro, porque é proibido usar cassetetes ou qualquer tipo de arma. A ordem é expressa, do
presidente: nada de violência. Isto é uma festa”.
230
A Folha de S. Paulo, talvez involuntariamente, deu a dimensão do que aquelas
expressões de festa significavam para uma população que estava desde 1964 sob
regime de exceção: “Há mais de seis anos não se via uma concentração popular tão
grande como a de ontem no Anhangabaú”.
231
No Rio, houve “a maior loucura
coletiva de todos os tempos”, numa espécie de “pacto monumental”, segundo a
definição de O Estado de São Paulo, que reportou: “1 milhão de pessoas nas ruas
desde as primeiras horas da tarde, sambando, pulando, gritando, cantando -- é o
Rio de Janeiro de ontem, antes, durante e depois da chegada dos tricampeões do
mundo. (...) Gente que chorava, gente que tirava a roupa (...)”.
232
A mesma Folha
constatou: “Uma loucura. Sem lei e sem documento, o carioca vibrou como sempre
quis, sem qualquer repressão legal...”.
233
Ou seja: Médici permitiu as manifestações populares de apoio à seleção
porque elas oxigenavam seu projeto de legitimação do regime, o que era quase uma
obsessão da ditadura, conforme Gaspari, que reproduz um significativo desabafo
de Ernesto Geisel: “Bom era no tempo dos reis. O problema da legitimação era
simples. Depois inventaram esse negócio de povo. O povo. Quem é o povo?
Resultado: de Deus passou para o povo, e agora para o sabre, um sabre
230
Idem, 24.jul.1970, p. 16.
231
Folha de S. Paulo, 25.jun.1970, p. 19.
232
O Estado de S. Paulo, 24.jul.1970, p. 17.
233
Folha de S. Paulo, 22.jun.1970, p. 5.
129
enferrujado”.
234
Em meio às comemorações, portanto, o governo não perdeu tempo e tratou
rapidamente de inscrever no clima de júbilo a marca de unidade em torno do
projeto defendido pelo regime militar. Nenhuma chance era desperdiçada. Durante
os festejos em Brasília, quando a seleção campeã foi recebida por lá, um helicóptero
despejou sobre a multidão de torcedores papeizinhos amarelos com os seguintes
dizeres: “Somente com a nossa união, somente com a ordem, com a soma da
vontade de todos, com a soma da energia de todos, com trabalho, serenidade,
coragem, inteligência, determinação e patriotismo, com a participação de todos os
brasileiros haveremos de fazer a década que se inicia, sob o signo da Taça de Ouro,
a década de ouro do Brasil”.
235
A linguagem empolada não prejudica a mensagem,
isto é, a de que os brasileiros, agora irmanados pela vitória no esporte mais popular
do mundo, seriam capazes de cumprir as demais tarefas na construção do país
idealizado pelos militares, um país de “união” e “ordem” cujo horizonte era a
“década de ouro” do desenvolvimento, dentro de um projeto de poder de
longuíssimo prazo.
Mas uma parte importante da sociedade brasileira parecia estar interessada
em ir mais além do desenvolvimento econômico e também aproveitou o momento
para se manifestar nesse sentido. À incontinência da festa nas ruas somaram-se
apelos por mudanças no regime de exceção. No editorial que comentou o
tricampeonato mundial, O Estado sugeriu que o Brasil, diferentemente do que
234
GASPARI, Elio. A Ditadura Derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 233. “Sabre
enferrujado” é a crítica de Geisel ao modo como o Exército se comportava no poder e aos rumos da “revolução”
de 1964, que ele trataria de mudar.
235
O Estado de S. Paulo, 24.jun.1970, p. 16.
130
parece acreditar o governo militar, não quer ser apenas o país que vai “pra frente”,
mas que também está pronto para discutir e administrar a abertura democrática.
236
A sutileza da reivindicação pela democracia é deixada de lado no pé de um
texto sobre a influência da vitória da seleção na vida política nacional, intitulado
“Primeiras reflexões”, no mesmo O Estado de S. Paulo: “(...) A vitória no esporte,
promovendo um instante de congraçamento e um profundo sentimento de orgulho
pela nossa afirmação como povo, contribuirá para desanuviar o clima de tensão e
oferecerá ao governo os estímulos e a oportunidade para começar a promover as
tão prometidas aberturas democráticas”. Para o jornal, não há problema moral em o
governo fazer uso político do triunfo, uma vez que “há muita gente querendo
faturar prestígio e popularidade à custa dos gols de Pelé e Jairzinho”. E ataca:
“Essa demonstração de capacidade, de amadurecimento e também de talento [feita
pela seleção no México] justifica e obriga a uma revisão dos conceitos que estão influindo na
orientação do governo e nas fórmulas medíocres que vêm sendo ensaiadas para resolver os
nossos problemas políticos. Parece irrecusável a orgulhosa conclusão de que um povo que é
capaz de uma afirmação universal no verdadeiro esporte do mundo já não pode ser
internamente apontado como incapaz de praticar a democracia e de viver sob um regime de
efetivo respeito às liberdades individuais”.
237
Ainda em O Estado, o articulista Fernando Pedreira também sugeriu que o
momento era ideal para discutir a redemocratização do país: “Mas a Copa do
236
Idem, 23.jun.1970, p. 6.
237
O Estado de S. Paulo, 23.jul.1970, p. 3.
131
Mundo deixou-nos com água na boca. À espera do tempo em que os problemas
reais da nação brasileira, como a seca do Nordeste, por exemplo, ou as grandes
questões políticas, possam ser submetidas ao livre debate, à pressão das paixões
populares, ao alto grau de participação coletiva que é hoje, entre nós, um privilégio
do futebol”.
238
A esperança, em meio à ditadura, era que a vida nacional pudesse ser tão
simples quanto o futebol, e que o caráter democrático desse esporte fosse o modelo
para a resolução dos impasses do país. Como a história mostra, porém, a coisa não
funcionou desse jeito. Mas a culpa não é do futebol.
238
Idem, 21.jun.1970, p. 4.
132
6. Conclusão
A idéia segundo a qual a Copa de 70 foi o auge da alienação do país é um
dos maiores mitos que se criaram a respeito do período, tão grande quanto as
façanhas épicas da seleção canarinho. Trata-se de um equívoco em várias frentes,
mas com um único objetivo: desmerecer o futebol como manifestação popular
autêntica.
A primeira delas é a frente política. De fato, na época da Copa de 1970, o
Brasil vivia o período mais duro de sua feroz ditadura, e é claro que, com a
imprensa sob censura e com um clima de terror institucional disseminado pelo
território nacional, toda a documentação produzida na ocasião está
irremediavelmente contaminada pelo regime de exceção. É tentador e fácil,
portanto, concluir que o clima de festa que se estabeleceu no país em razão das
vitórias da seleção brasileira no México foi uma invenção articulada para servir aos
inconfessáveis propósitos da ditadura. Uma pesquisa mais detida e menos sujeita à
retórica que a esquerda perpetuou sobre a Copa de 70 mostra, no entanto, uma
situação bastante mais complexa.
Em primeiro lugar, o futebol no Brasil é claramente tratado como algo
secundário. Há uma ainda incipiente preocupação com os fatores sociais desse
esporte de massa, o que reflete uma atitude elitista diante de uma manifestação de
caráter popular, que sobrevive aos controles capitalistas como paixão. Como diz
DaMatta, guerra e trabalho são coisas sérias; futebol e Carnaval são “passatempos”;
logo, estudar o futebol é lidar com algo sem importância acadêmica. Nada mais
133
equivocado.
Como vimos, o futebol é o ambiente da realização dos dilemas nacionais.
Nem todos os livros de sociologia conseguiriam explicar a magia desse jogo e seu
alcance como espelho do Brasil e de sua sociedade. O que busquei fazer foi uma
aproximação, uma tentativa de desvencilhar o estudo do futebol dos preconceitos
acadêmicos geralmente associados a ele. O resultado certamente não é satisfatório,
pois há muito ainda a ser investigado.
No caso específico da Copa de 1970 e de sua relação com o governo Médici,
há muitas falsas imagens construídas em torno daquele período, talvez exatamente
pelo fato de que o governo Médici pertença a um período de grandes
antagonismos, razão pela qual muitos preferem fiar-se em suposições e impressões
a respeitar os fatos documentados.
E os fatos documentados mostram que a seleção brasileira campeã no
México foi, sim, objeto de imensa preocupação do governo Médici, mas que este,
por mais que quisesse ou tentasse, jamais o controlou do modo como um certo
pensamento de esquerda quer fazer notar desde então. Médici não derrubou João
Saldanha do cargo de técnico da seleção brasileira; Médici não fingia ser torcedor
de futebol com o objetivo de enganar os brasileiros e angariar popularidade; o
ufanismo que cercou a conquista brasileira não foi uma invenção de Médici. Tudo
antes pelo contrário: João Saldanha caiu porque brigou com muita gente, dentro e
fora da seleção, e entre seus desafetos estava o maior jogador de futebol de todos os
tempos, o intocável Pelé; Médici era de fato torcedor autêntico de futebol, conhecia
muito bem o esporte e acompanhava os jogos com interesse real; e, finalmente, o
134
clima de ufanismo que varreu o país naquela ocasião resultou de uma combinação
de fatores muito menos superficial e tola do que a retórica da alienação pura e
simples quer fazer ver. E a maioria desses fatores pouco tinha a ver com as
iniciativas do governo na área da propaganda: eram o resultado de uma época de
grande confiança no Brasil, a despeito da ausência de liberdades individuais e da
guerra suja do governo militar; eram a consolidação do clima de afirmação da
nacionalidade brasileira, ainda que esse conceito carregue imensa carga negativa e
implique em juízos nem sempre escorados na história; eram, enfim, o resultado do
confronto da Guerra Fria, em que a opção pela neutralidade podia significar traição
à pátria -- as comemorações nacionalistas dos torcedores nas ruas, muitas vezes
violentas e hostis contra aqueles que supostamente não festejavam, são uma das
provas desse enfrentamento.
Sobre as costas da seleção brasileira de 1970, enfim, pesa o fardo de ter
servido de veículo para a afirmação da ditadura, um fardo injusto, atirado por
gente que não gosta de futebol a priori e que não consegue enxergar nesse esporte a
autonomia de uma expressão social verdadeira dos brasileiros.
135
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O Estado de S. Paulo
Folha de S. Paulo
Movimento
Mundo Jovem (PUC-RS)
Opinião
O Pasquim
Última Hora (São Paulo)
O Povo (Ceará)
Revistas:
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