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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
ADRIANA VAZ RAMOS
O design de aparência de atores e a
comunicação em cena
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
São Paulo
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Adriana Vaz Ramos
O design de aparência de atores e a
comunicação em cena
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para a obtenção do título de
Doutor em Comunicação em Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob
a orientação da Profa. Dra. Lucrécia D´Alessio
Ferrara.
São Paulo
2008
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Banca examinadora
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Para minha mãe, com amor
Agradecimentos
À minha orientadora Profª Drª Lucrécia D’ Alessio Ferrara, por ter me mostrado e orientado o
caminho a ser trilhado nesta pesquisa, sempre com suas características generosidade e
delicadeza e, principalmente, pelo privilégio de ter sido sua aluna.
Em especial, a Fábio Sadao, amigo e parceiro de estudos, por sua incansável disponibilidade,
paciência e generosidade em dividir comigo seus conhecimentos. Salve!
À Profª Drª Irene Machado, por ter me apresentado a Escola de Tártu-Moscou e pela orientação,
no início deste meu percurso acadêmico.
À amiga Kalú Chaves, por ter me convidado a participar do grupo de estudos que, mais tarde,
passou a ser o grupo de pesquisa Oktiabr, onde encontrei os germes desta pesquisa.
Aos colegas do saudoso grupo de pesquisa Oktiabr, pelas instigantes e efervescentes discussões
que muito me estimularam.
Aos colegas do grupo de pesquisa ESPACC, companheiros de muitos projetos e descobertas.
Aos queridos amigos, parceiros de venturas e desventuras acadêmicas, Regiane, Karin, Débora,
Mirna, Neide, Paulo, Lilian e Michiko.
A todos os professores do COS com quem estudei.
À Paola Maria dos Anjos, pelo cuidado com meu trabalho.
À minha mãe que, mais uma vez, possibilitou meus estudos.
Ao Francisco, pela carinhosa, constante e preciosa companhia de sempre.
Aos meus colegas e amigos, que sempre incentivaram meu trabalho.
A todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho.
Aos queridos Kiko, Chica, Estrela e Nego Dito, pelos momentos de alegria e carinho.
Resumo
Esta pesquisa pretende analisar a linguagem utilizada para construir a aparência de atores
e personagens no âmbito de espetáculos, a qual denominamos caracterização visual de atores,
bem como dimensionar sua importância na edificação dos significados de uma dada obra artística.
A expressão caracterização visual refere-se, mais especificamente, aos relacionamentos
expressivos entre cores, formas, volumes e linhas que, de diferentes maneiras, materializam os
figurinos, as maquiagens, os penteados e os adereços, visando traduzir, em matéria plástica
sensível, a aparência geral, ou seja, a caracterização de um ator, numa cena espetacular.
Atualmente, nota-se, em espetáculos veiculados por diferentes meios, uma forma peculiar
de conceber a construção da aparência de atores, que difere da mera função de referência
usualmente apresentada pela concepção do figurino de uma obra, que, em geral, é tomado como
parte acessória da representação. O trabalho de realização de um figurino é decorrente de um
desenho mimético e referencial, que antecede o espetáculo em que se insere o ator, como é o
caso dos figurinos que retratam determinada época, por exemplo.
Neste trabalho, pretendemos refletir sobre o processo de complexidade pelo qual tem
passado a linguagem que denominamos caracterização visual de atores para, enfim, entender seu
campo conceitual e propor a existência de um outro modo de constituir essa linguagem,
conceituado como design de aparência de atores, em que o figurino é, apenas, um elemento
parcial.
A caracterização visual, como uma linguagem, pode ser organizada segundo os modos
figurino ou design de aparência. As concepções de Giulio Carlo Argan sobre as diferenças
existentes entre as noções de projeto e programa, bem como as proposições de Régis Debray a
respeito dos distintos modos de se organizar uma informação foram decisivas para que
pudéssemos formular a conceituação de design de aparência e assinalar as divergências entre
esse modo de caracterizar atores e um trabalho de figurino.
Por um mecanismo metonímico do pensamento, o senso comum costuma usar o termo
figurino apenas para se referir à aparência geral de um ator, ignorando a importância dos demais
componentes para a construção da imagem cênica. Os conceitos elaborados pelos semioticistas
da Escola de Tártu-Moscou apresentam as perspectivas teóricas necessárias para podermos
compreender a aparência de atores em espetáculos como um sistema aberto, constituído por
diálogos entre inúmeros sistemas modelizantes.
Assim, podemos dizer que a aparência de um ator é um texto cultural, resultante de um
complexo imbricamento de linguagens e que somente em meio a essa complexidade pode ser
entendido. Um espetáculo artístico é uma obra sistêmica, um feixe de relações, no qual inúmeras
linguagens atuam para a construção de um produto final. Não é possível isolar apenas uma das
linguagens constitutivas de uma obra para compreendê-la, pois é necessário fazer, sempre, uma
leitura relacional e, sobretudo, comunicante ou mediativa com o repertório de inferências que
poderá ser construído pelo receptor.
As análises realizadas buscam compreender como as imagens criadas pelo design de
aparência de atores constroem as espacialidades de uma cena artística. Para tanto, trabalhamos
com o seguinte corpus analítico: a peça Os sete gatinhos de Nelson Rodrigues, dirigida por
Antunes Filho, em 1989; a microssérie Hoje é dia de Maria, dirigida por Luiz Fernando Carvalho,
produzida pela Rede Globo de televisão, em 2005; três imagens criadas pela fotógrafa norte
americana Cindy Sherman.
Palavras-chave: design de aparência; figurino; caracterização; espacialidade.
Abstract
This study aimed to analyze the actor’s visual characterization, which is the language used
to construct the actor’s and characters’ appearance for performances, as well as to evaluate its
importance for the construction of signs in a particular artistic production. Visual characterization
specifically refers to the expressive relationships among colors, shapes, volumes and lines that
differently from the costumes, makeup, hairdo and accessories in order to translate the general
appearance into sensitive plastic material, that is, the actor’s characterization in a production
scene.
Nowadays, in performances broadcasted by different means, a distinct manner to conceive
the construction of the actor’s appearance has been noted. It differs from the simple reference
functions that are usually presented by the concept of costume design in a production, generally
considered an accessory of the representation. A costume design production results from a
mimetic referential design that anticipates the performance where the actor is inserted, like
costumes portraying a determined period in time, for example.
This study reflects on the complexity process that the language named actor’s visual
characterization has been going through, in order to understand its conceptual field and propose
the existence of another way to constitute this language defined as actor’s appearance design,
where the costume design is just a partial element.
As a language, visual characterization may be organized according to costume design or
appearance design. Giulio Carlo Argan’s concepts of existing differences between project and
program as well as Regis Debray’s propositions of distinct ways to organize a piece of information
were decisive to define the concept of appearance design and show the divergences between the
actor’s characterization form and the costume design production.
Because of the metonymic mechanism of thinking, common sense uses the word costume
to refer to an actor’s general appearance, ignoring the importance of the other components to the
construction of the scenic image. The concepts elaborated by the semioticians from the Tartu-
Moscow School present the necessary theoretical perspectives to the understanding of the actor’s
appearance in performances with open systems that consist of dialogues among several modeling
systems.
Therefore, it can be said that an actor’s appearance is a cultural text, which resulted from a
complex overlapping of languages, and that can only be understood through that complexity. An
artistic performance is a systemic production, a bundle of relations, in which innumerous
languages influence the construction of the final product. It is not possible to isolate just one of the
constituting languages of a production in order to understand it because it is always necessary to
do a relational reading, mainly a communicating or mediating one, of the inference repertoire that
may be constructed by the receptor.
The realized analyses try to understand how the images created by the actor’s appearance
design construct spatialities in an artistic scene. Thus, the following analytical corpus was studied:
Os sete gatinhos, a play by Nelson Rodrigues, directed by Antunes Filho in 1989; the micro series
Hoje é dia de Maria, directed by Luiz Fernando Carvalho and produced by Globo Television
Network in 2005; and three images made by the American photographer Cindy Sherman.
Keywords: appearance design; costume design; characterization; spatiality.
Sumário
Introdução..........................................................................................................1
Histórico da pesquisa..........................................................................................15
Capítulo 1- A caracterização visual como linguagem: o design de aparência de
atores...................................................................................................................20
1.1. Caracterização visual de atores.....................................................................20
1.2. Representação...............................................................................................22
1. 3. Espetáculo................................................................................................... 25
1.4. Os códigos da caracterização visual de atores ............................................27
1.5. Caracterização visual de atores como imagem.............................................31
1.6. Caracterização visual de atores como duplo do homem...............................35
1.7. Design de aparência de atores e figurino: dois modos de trabalhar a linguagem
caracterização visual de atores............................................................................38
Capítulo 2- O design de aparência de atores e o teatro: a construção de um
paradigma............................................................................................................51
2.1. O paradigma do teatro...................................................................................51
2.2. Espaços cênicos e a caracterização visual...................................................54
2.3. Espacialidade................................................................................................57
2.4.Teatro pós-dramático....................................................................................67
2.5. Artaud e o teatro oriental..............................................................................70
2.6. Antunes Filho...............................................................................................74
2.7. Nelson Rodrigues........................................................................................77
2.8. Os sete gatinhos.........................................................................................78
Capítulo 3- O design de aparência em fronteiras: Hoje é dia de Maria......97
3.1. Semiosfera e fronteira.................................................................................102
3.2. Modelização e tradução..............................................................................105
3.3. Hoje é dia de Maria.....................................................................................107
3.3.1 Os cinco personagens representados por Rodolfo Vaz e as sete “peles” do
Capeta Asmodeu (primeira jornada)..................................................................112
3.3.2 (1º Momento/ 1ª jornada) Maria, seu Pai e a Madrasta.................120
3.3.3 (2º Momento/ 1ª jornada) Maria, o Homem do Olhar Triste e
os Executivos..........................................................................................125
3.3.4 (3º Momento/ 2ª jornada) Maria mergulha no fundo do mar...........128
Capítulo 4- O design de aparência de atores como desconstrução do paradigma
teatral: considerações sobre a obra de Cindy Sherman...............................135
4.1. Fronteira com o teatro..................................................................................143
4.2. Fronteira com o corpo..................................................................................151
Da mediação como referência, para além da referência..............................161
Bibliografia.......................................................................................................165
Lista de ilustrações
Fig. 01: Diferentes classes sociais de maldivos, senegaleses, kandianos e hindus do
século XIX. Fonte: RACINET, Auguste. The complete costume history. Colônia:
Taschen, 2003.
Fig. 02: Kathakali - Índia. Fonte: PANI, Jiwan. World of other faces. New Delhi:
Publications Division Government of India, 1986.
Fig. 03: Ópera de Pequim - China. Fonte: (livro chinês escrito em Mandarin).
Fig. 04: Teatro europeu medieval. Fonte: HARTNOLL, Phyllis. A concise history of the
theatre. London: Thames and Hudson, 1971.
Fig. 05: Commedia dell’ arte italiana. Fonte: HARTNOLL, Phyllis. A concise history of
the theatre. London: Thames and Hudson, 1971.
Fig. 06: Cena de O inspetor de Gogol, montagem de Stanislávsky, início século do XX.
Fonte: TOLMACHEVA, Galina. Creadores del teatro moderno. Buenos Aires: Ediciones
Centurión, 1946.
Fig. 07: Obra de Cindy Sherman. Sem título, 2000. Fonte: ARTFORUM, XXXIX nº 1. New
York, setembro de 2000.
Fig. 08: Obra de Mathew Barney. Cremaster Circle, 1995. Fonte:
www.cremaster.net/#finalState . Consultado em junho de 2008.
Fig. 09: Performance de Joseph Beuys. The 20th July Aachen 1964. Foto de Heinrich
Riebesehl. Fonte: BORER, Alain. Joseph Beuys. São Paulo: Cosac&Naif, 2001.
Fig. 10: Obra de Antunes Filho. Vereda da Salvação, 1993. Fonte: DAVIS, Tony. Stage
design. Hove: RotoVision, 2001.
Figura 11: Obra de Ariane Mnouchkine. Les choéphores, 1991. Fonte: www.theatre-du-
soleil.fr/.../pix/centre.jpg>. Consultado em julho de 2008.
Fig. 12: Kazuo Ohno em cena. Admiring La Argentina, 1977. Fonte: HOFFMAN, Ethan. Et.
al. Butoh: dance of the dark soul. New York: Sadev Book Aperture,1987.
Fig. 13: Cena do filme Sin City: a cidade do pecado. Direção de Frank Miller e Robert
Rodriguez. Fonte: DVD (124min.). Cor.
Fig. 14: Cena do filme Sin City: a cidade do pecado. Direção de Frank Miller e Robert
Rodriguez. Fonte: DVD (124min.). Cor.
Fig. 15: Obra de Yukio Ninagawa. Richard III. Japão, 1998. Fonte: DAVIS, Tony. Stage
design. Hove: RotoVision, 2001.
Fig. 16: Obra de Otto Schenk. Ring cycle: the rhinegold and the valkyries. New York,
1990. Fonte: DAVIS, Tony. Stage design. Hove: RotoVision, 2001.
Fig. 17: Performance de Yves Klein. Anthropometries of the Blue Period, 1960. Fonte:
GOLDBERG, RoseLee. Performance art: from futurism to present. London: Thames
and Hudson, 1988.
Fig. 18: Kabuki. Kanjincho. Japão, 1960. Fonte: HARTNOLL, Phyllis. A concise history
of the theatre. London: Thames and Hudson, 1971.
Fig. 19: Roupas masculinas. Europa, século XVII. Fonte: BRUHN, Wolfgang; TILKE, Max.
A pictorial history of costume. New York: Arch Cape Press, 1988.
Fig. 20: Maquiagem de envelhecimento teatral. Foto de Adriana Vaz. Fonte: acervo
Adriana Vaz.
Fig. 21: Outono, pintura de Arcimboldo, século XVI. Fonte: Arcimboldo Posterbook.
Colônia: Taschen, 1992.
Fig. 22: Teatro de Bali. Baris dance. Indonésia. Fonte: MIETTINEN, Jukka O.. Classical
dance and theatre in South-East Asia. Oxford; New York: Oxford University Press,
1992.
Fig. 23: Maquiagem de Kathakali - Índia. Fonte: PANI, Jiwan. World of other faces. New
Delhi: Publications Division Government of India, 1986.
Fig. 24: Maquete da cenografia de J. C. Serroni para Paraíso Zona Norte. Foto: J. C.
Serroni. Fonte: acervo J. C. Serroni.
Fig. 25: Cenografia de Paraíso Zona Norte. Foto de J. C. Serroni. Fonte: acervo J. C.
Serroni.
Figs. 26, 27, 28: Desenhos de J. C. Serroni para os personagens de Os sete gatinhos.
Fonte: acervo J. C. Serroni.
Fig. 29: Cena de espetáculo de Butoh. Intimacy plays its trump. Yoko Ashikawa, 1986.
Fonte: HOFFMAN, Ethan. Et. al. Butoh: dance of the dark soul. New York: Sadev Book
Aperture,1987.
Fig. 30: Cena de espetáculo de Butoh. Daytime moon. Min Tanaka with Mai Juku, s.d.
Fonte: HOFFMAN, Ethan. Et. al. Butoh: dance of the dark soul. New York: Sadev Book
Aperture,1987.
Fig. 31: Cena de espetáculo de Butoh. Skylark and Lying Buddha. Byakko-Sha, s.d..
Fonte: HOFFMAN, Ethan. Et. al. Butoh: dance of the dark soul. New York: Sadev Book
Aperture,1987.
Fig. 32: Desenho de J. C. Serroni para as meninas de Os sete gatinhos. Fonte: acervo J.
C. Serroni.
Fig. 33: Desenho de J. C. Serroni para Aurora (canto direito) de Os sete gatinhos. Fonte:
acervo J. C. Serroni.
Fig. 34: Cena de Os sete gatinhos - Aurora e Bibelot (canto direito). Foto de Emídio Luisi.
Fonte: acervo J. C. Serroni.
Fig. 35: Cena de Os sete gatinhos - Silene (de joelhos), Noronha e Gorda. Foto de J. C.
Serroni. Fonte: acervo J. C. Serroni.
Fig. 36: Desenho de J. C. Serroni para o personagem Noronha de Os sete gatinhos.
Fonte: acervo J. C. Serroni.
Fig. 37: Cena de Os sete gatinhos - Noronha no centro. Foto de Emídio Luisi. Fonte:
acervo J. C. Serroni.
Fig. 38: Cena de Os sete gatinhos - Dr. Bordalho amarrado. Foto de Emídio Luisi. Fonte:
acervo J. C. Serroni.
Fig. 39: Cena de Os sete gatinhos - Silene chora. Foto de Emídio Luisi. Fonte: acervo J.
C. Serroni.
Fig. 40: Estudos para os cabelos do personagem Dom Chico Chicote de Hoje é dia de
Maria. Foto de Fábio S. Nakagawa. Fonte: acervo Fábio S. Nakagawa.
Fig. 41: Maltrapilho. Fonte das figuras 41 a 66: Hoje é dia de Maria (primeira jornada).
Direção de Luiz Fernando Carvalho. TV Globo, 2006. 2 DVDs (9h 26 min.), son, color.
Fig. 42: Homem do Olhar Triste I.
Fig. 43: Mendigo.
Fig. 44: Mascate.
Fig. 45: Vendedor.
Fig. 46: Asmodeu Original.
Fig. 47: Asmodeu Original.
Fig. 48: Asmodeu Original com luz verde no rosto.
Fig. 49: Asmodeu Sátiro.
Fig. 50: Asmodeu Brincante.
Fig. 51: Asmodeu Velho.
Fig. 52: Asmodeu Poeta.
Fig. 53: Asmodeu Mágico.
Fig. 54: Asmodeu Mágico.
Fig. 55: Asmodeu Bonito.
Fig. 56: Asmodeu Bonito.
Fig. 57: Maria.
Fig. 58: Animação da personagem Maria I.
Fig. 59: Animação da personagem Maria II.
Fig. 60: Pássaro Incomum.
Fig. 61: Pai.
Fig. 62: Madrasta I.
Fig. 63: Madrasta II.
Fig. 64: Homem do Olhar Triste II.
Fig. 65: Executivos I.
Fig. 66: Executivos II.
Fig. 67: Maria e o “mar”. Fonte das figuras 67 e 68: Hoje é dia de Maria (segunda
jornada). Direção de Luiz Fernando Carvalho. TV Globo, 2006. 2 DVDs (9h 26 min.), son,
color.
Fig. 68: Personagens-bonecos pendurados no mastro.
Fig. 69: Cindy Sherman. Film stills, # 31, 1979. Fonte das figures 69 a 71: FELIX, Zdenek;
SCHWANDER, Martin (Orgs.). Cindy Sherman: photographic work 1975-1995. New
York: Schirmer Art Books, 1995.
Fig. 70: Cindy Sherman. Film stills. Sem título, # 39, 1979.
Fig. 71: Cindy Sherman. Film stills. Sem título, # 12, 1978.
Fig. 72: Cindy Sherman. Sem título, # 150, 1985. Fonte das figuras 72 e 73: MUSEUM OF
CONTEMPORARY ART OF CHICAGO/ LOS ANGELES. Cindy Sherman retrospective.
New York: Thames & Hudson, 2006.
Fig. 73: Cindy Sherman. Sem título, # 224, 1990.
Fig. 74: Cindy Sherman. Sem título, 2000. Fonte: Fonte: ARTFORUM, XXXIX nº 1. New
York, setembro de 2000.
Fig. 75: Anotações de Cindy Sherman I. Fonte das figuras 75 e 76: MUSEUM OF
CONTEMPORARY ART OF CHICAGO/ LOS ANGELES. Cindy Sherman retrospective.
New York: Thames & Hudson, 2006.
Fig. 76: Anotações de Cindy Sherman II.
Fig. 77: Cindy Sherman. History portraits. Sem título, # 222, 1990. Fonte das figuras 77 e
78: FELIX, Zdenek; SCHWANDER, Martin (Orgs.). Cindy Sherman: photographic work
1975-1995. New York: Schirmer Art Books, 1995.
Fig. 78: Cindy Sherman. History portraits. Sem título, # 219, 1990.
Fig. 79: Il dottore da Commedia dell’ arte italiana. Fonte: EL CARNAVAL A VENECIA.
Veneza: Edizioni Storti, 1985/ 1986.
Fig. 80: Representação de um ator grego segurando a máscara trágica. Fonte:
HARTNOLL, Phyllis. A concise history of the theatre. London: Thames and Hudson,
1971
Fig. 81: Cindy Sherman. Fairy tales. Sem título, # 155, 1985. Fonte: MUSEUM OF
CONTEMPORARY ART OF CHICAGO/ LOS ANGELES. Cindy Sherman retrospective.
New York: Thames & Hudson, 2006.
Fig. 82: Boris Karloff caracterizado como Frankenstein, 1935. Fonte:
www.thetroubleshooter.blogspot.com . Consultado em agosto de 2008.
Fig. 83: Hans Bellmer. Poupée, 1930. Fonte: MUSEUM OF CONTEMPORARY ART OF
CHICAGO/ LOS ANGELES. Cindy Sherman retrospective. New York: Thames &
Hudson, 2006.
1
INTRODUÇÃO
Uma das características marcantes das últimas décadas do século
XX, ainda com força plena neste novo milênio, é a exacerbada preocupação
com a construção da aparência física das pessoas. Mas, um breve olhar
sobre as imagens de um livro de História da indumentária deixa claro quão
antiga é a noção de que a aparência de uma pessoa é fato que a distingue
dos demais entre seu grupo (fig.01). Na luta pela sobrevivência, aparecer
aos olhos do semelhante com a imagem distinta da usual, sempre cumpriu
com a necessária função de imposição de poder. A idéia de que a identidade
de um ser está relacionada à sua aparência e de que esta se constrói com
uma ordenação de objetos e materiais, entendidos como signos que têm o
poder da comunicação, parece trazer em si formas arquetípicas de expressão
humana.
Por outro lado, no âmbito de espetáculos artísticos, a emissão
consciente de significados organizados em linguagem na figura de um ator
tem uma história recente, a despeito do sentido de representação teatral
existir desde os primórdios da humanidade, em formas primitivas, surgindo,
Fig.1: Diferentes classes sociais de maldivos, senegaleses,
kandianos e hindus do século XIX.
2
inicialmente, nas pantomimas de caça dos povos da Idade do Gelo (Berthold,
2003, p. 1). O homem entendeu desde muito cedo
que “se tornar outra
pessoa” por meio da aparência física poderia conduzi-lo ao encontro de
uma realidade superior à sua. Os xamãs de diversas tribos primitivas
mascaravam-se para dialogar com entidades superiores. Reunidos em
cavernas, os caçadores das Idades do Gelo e da Pedra dançavam, em
rituais, vestidos com peles de urso, a fim de buscar uma comunicação com
seus deuses. Pinturas em cavernas e entalhes de eras passadas atestam a
existência de ritos com organização, cujas características são semelhantes
às do teatro: uso de máscaras, figurinos, adereços, músicas e até cenários
compunham os rituais, assistidos por uma certa audiência. Sabe-se que,
assim como os atuantes, os espectadores viviam uma espécie de transe
que os afastava do cotidiano e de si mesmos.
Aquele que usa a máscara perde a identidade. Ele está
preso – literalmente ‘possuído’ – pelo espírito daquilo que
personifica, e os espectadores participam dessa
transfiguração. O dançarino javanês do Djaram-képang,
que usa a máscara de um cavalo e pula de forma grotesca,
cavalgando uma vara de bambu, é alimentado com palha
(Berthold, 2003, p. 4).
A História mostra que, entre as formas pré-teatrais
utilizadas pelas diferentes sociedades arcaicas em seus
rituais místico-religiosos, o vestir de modo diferenciado do
cotidiano, com máscaras e adereços particulares e ainda o
uso de pigmentos por sobre a pele do corpo
1
, foram os índices
mais notáveis que primeiro puderam caracterizar o desejo
de estabelecer uma comunicação com outra realidade por
meio da transformação
do aspecto físico, nossos ancestrais
1
“Já muito se disse
sobre o papel dos
colorantes e,
sobretudo, do ocre, no
Paleolítico superior:
matéria-prima das
pinturas parietais,
considera-se também
que serviu para colorir
as sepulturas e os
corpos dos vivos,
simbolizando de um
modo geral o sangue e,
conseqüentemente, a
vida, particularmente a
do morto” (Leroi-
Gouhran, 1990, p. 72).
3
buscavam alcançar as esferas do sagrado e do imaginário por via da
alteração da aparência física.
Em nossos dias, mesmo distante das funções religiosas, convivemos
mais proximamente com a consciência de que uma das maneiras de
representar a identidade de uma pessoa pode ocorrer por meio dos signos
que compõem sua figura externa. Na vida real, do cotidiano, motivados por
incontáveis subjetividades, todos escolhemos o modo como nos vestimos
e os acessórios que complementam nossas roupas, determinamos a forma
e a cor dos nossos cabelos e optamos por usar ou não alguma maquiagem,
operação cujo resultado é uma composição única e pessoal: um arranjo de
formas, cores, texturas e volumes que traduz plasticamente a identidade de
uma pessoa e que a coloca, invariavelmente, em relação dialógica com o
ambiente e o contexto em que ela se encontra. Em outras palavras, a
aparência trabalhada sobre o corpo é signo da identidade.
De forma análoga, em espetáculos artísticos, os trabalhos para a
construção da aparência visual de um ator ou de um personagem baseiam-
se em índices, que o singularizam e compõem a representação do seu caráter
(ou de sua “identidade”), e expõem-nos à atividade cognitiva dos receptores.
Porém, no exemplo do teatro, os modos de organizar e apresentar
os figurinos, os penteados, os adereços e as maquiagens dos atores nem
sempre foram propriamente utilizados como uma linguagem portadora de
significados. Nossas considerações referem-se, mais especificamente, às
formas teatrais desenvolvidas no Ocidente, sobretudo na Europa, pois é
notório que entre as inumeráveis diferenças que marcam as realizações
orientais e ocidentais encontram-se as divergentes concepções de
aparências de atores em espetáculos artísticos. Não é objetivo desta
4
pesquisa aprofundar essa questão, ela será abordada apenas a título de
contextualização.
Entre o Oriente e o
Ocidente, as variadas
experimentações, feitas ao
longo de séculos da história
mundial do teatro, reúnem,
nos diferentes gêneros
teatrais, modos diversos de
conceber a aparência de atores. Desde a grande teatralidade existente nas
complexas formas do teatro do Oriente, como, por exemplo, no Kathakali
da Índia (fig.02) ou na Ópera de Pequim da China (fig.03); no teatro europeu
da Idade Média (fig.04) ou na Commedia dell’ Arte italiana (fig.05), passando
pelo desejo de espelhar a realidade presente no naturalismo e no realismo
(fig.06), os trabalhos com as aparências de atores experimentaram,
consciente ou inconscientemente, a possibilidade de distanciamento ou de
aproximação do real para, com isso, significar.
Figs. 2 e 3: Kathakali (Índia) e ópera de Pequim (China).
Fig.4: Teatro europeu medieval.
Fig.5: Commedia dell’ arte italiana.
Fig.6: Cena de O inspetor de Gogol,
montagem de Stanislávsky, início
século do XX.
5
Atualmente, nota-se não apenas no teatro, mas em espetáculos
veiculados em diferentes meios, uma forma peculiar de conceber a
construção da aparência de atores e personagens, que se destaca por
apresentar uma intrincada elaboração sígnica que, para além de apenas se
distanciar do realismo, parece significar algo a mais. Por um mecanismo
metonímico do pensamento, o senso comum costuma usar o termo figurino
apenas, para se referir à aparência geral de um ator/ personagem, ignorando
a importância dos demais componentes para a construção da imagem
cênica projetada.
A aparência de um ator é resultado de um minucioso imbricamento
de linguagens e somente no interior dessa complexidade pode ser entendida,
porque um espetáculo artístico é uma obra sistêmica, na qual inúmeras
linguagens atuam para a construção de um produto final. Não é possível
isolar apenas uma das linguagens constitutivas de uma obra, pois, para
compreendê-la, é preciso fazer uma leitura relacional.
A fim de tornar clara nossa proposição, foi necessário eleger alguns
trabalhos a título de exemplo, mesmo sabendo que, ao citar alguns nomes,
deixamos de lado outros importantes criadores. Entre incontáveis artistas,
em diferentes meios, que utilizam aparências de atores em seus trabalhos
como forma de expressão, podemos mencionar os trabalhos da fotógrafa
Cindy Sherman (fig.07), os vídeos de Mathew Barney (fig.08), as performances
de Joseph Beuys (fig.09), os espetáculos teatrais de Antunes Filho (fig.10),
assim como os de Ariane Mnouchkine (fig.11) e os de dança Butoh (fig.12).
Esses são apenas alguns exemplos de concepções artísticas que marcam
seu diferencial por meio da visualidade expressa nas complexas aparências
dos atores que nelas figuram, sem desprezar as demais especificidades
criativas de cada obra.
6
Embora tais aparências inusitadas se manifestem em meios diversos,
nem sempre representadas por atores propriamente ditos, chama a atenção
o fato de conservarem certa semelhança com o modo de proceder
característico do teatro, ou seja,
nota-se uma grande teatralidade
trabalhada nessas
caracterizações visuais. As
composições aqui estudadas não
remetem a nenhum referencial
nem apenas ilustram a imagem,
ao contrário, expressam o desejo
de significar a dramaticidade de
seus contextos artísticos.
Diante desses trabalhos,
uma reflexão impõe-se: não é
mais possível continuar com o
pensamento redutor que se volta
Obras de Cindy Sherman, 2000 ( fig.7) e de Mathew Barney, 1995 (fig.8) e performance
de Joseph Beuys, 1964 (fig.9).
Fig.10: Obra
de Antunes
Filho, 1993.
Fig.11: Obra
de Ariane
Mnouchkine,
1991.
Fig.12:
Kazuo Ohno
em cena,
1977.
7
apenas para o figurino (entendido como traje ou vestimenta), pois para tentar
compreender a complexidade que caracteriza as aparências de atores em
espetáculos contemporâneos, é imprescindível apreender os projetos
desenvolvidos para as suas construções.
Durante séculos, no teatro, a aparência dos atores não era trabalhada
como parte da dramaturgia e a metonímia mencionada deixa transparecer
a pouca reflexão dedicada à questão, terreno árido em investigação, carente,
inclusive, de expressões verbais mais adequadas para a prática analítica.
Até mesmo o pesquisador teatral Patrice Pavis, bastante citado neste
trabalho, parece igualmente padecer dessa carência, como podemos ver
por um comentário feito em seu livro A análise dos espetáculos (2003).
Pavis escreve: “O cenário colado ao corpo do ator se torna figurino, o figurino
que se inscreve em sua pele se torna maquiagem...” (2003, p. 170). Apesar
do comprometimento do autor em analisar as funções do figurino, Pavis,
assim como a grande maioria dos pesquisadores, insiste em reduzir a
aparência de um ator a esse elemento, e não hesita em classificar como
figurino tudo o que se aproxima do corpo do ator.
Entretanto, como já mencionamos, a aparência de um ator pode ser
um grande instrumento de significação a ser utilizado na construção de um
espetáculo e, muitas vezes, não se encontra unicamente no figurino com o
qual ele atua a força expressiva da edificação de tal visualidade, sobretudo
em determinados espetáculos contemporâneos.
Assim, termos utilizados no meio profissional, como figurino ou
indumentária, não são capazes de expressar o percurso de nossas reflexões
a esse respeito, pois não contemplam a visão sistêmica da atuação de
linguagens na construção da informação emitida na aparência de um ator
em um espetáculo.
8
Em geral, na esfera do teatro, o termo indumentária faz referência
apenas aos trajes usados pelos atores, assim como também aos adereços
que complementam as vestes (Vasconcellos, 1987, p. 106). Já no Novo
Dicionário Aurélio, esse termo se refere à arte do vestuário ou à sua história,
bem como aos trajes propriamente ditos (2004, p. 1098). No fazer teatral,
as maquiagens e os penteados, normalmente, são colocados à parte da
indumentária, quase sempre trabalhados por diferentes profissionais, nem
sempre com concepções convergentes. Apesar de encontrarmos nos
dicionários (2004: 399), no verbete caracterização, uma menção à técnica
que utiliza recursos materiais (maquiagens, máscaras, indumentária, etc.)
para conferir ao ator características físicas de um personagem, há ainda
quem utilize esse termo com referência apenas à maquiagem teatral, como
é possível observar em inúmeras “fichas técnicas” de diferentes espetáculos.
Esse também é o caso de José Jansen em seu livro Caracterização:
– histórico e importância (s.d.), dedicado a registrar um histórico da
maquiagem teatral. Nessa obra, por diversas vezes, o autor menciona as
vestes e os adereços dos atores para descrever a aparência deles, o que
demonstra a necessidade da criação de uma nova denominação para os
trabalhos de construção do aspecto visual de atores, para dirimir as
contradições existentes e permitir o aprofundamento do estudo de sua esfera
de participação significante em um espetáculo.
A excelente pesquisa realizada por Amabilis de Jesus da Silva, em
sua dissertação de mestrado Para evitar o “costume”: figurino-dramaturgia
(2005), apesar de ser um dos raros e sérios trabalhos na área em questão,
revela que a pesquisadora, assim como Patrice Pavis, também não
consegue se desvencilhar do termo figurino para realizar suas análises.
9
Com a finalidade de explicitar seu raciocínio, Silva cria uma série de
termos compostos, tais como “figurino-uniforme; figurino-máscara; figurino-
prótese” (2005), entre outros, sempre se ancorando na palavra figurino para
fazer referência a uma determinada imagem cênica que, nem sempre, foi
criada unicamente pelas vestes dos atores. Silva utiliza a definição do termo
figurino apresentada no Manual de teatro de Antonio Solmer: “A designação
figurino aplica-se normalmente ao conjunto de peças de vestuário e
acessórios que anunciam a diferença e o estatuto do ‘ator em determinado
contexto (numa cerimônia ou evento)” (apud Silva, 2005, p. 18). Com base
nessa conceituação, Silva define a acepção do termo figurino que utilizará
em seu trabalho, afirmando: “Via de regra, figurino é aquilo que cobre a pele
do ator enquanto está em cena, e suas funções variam de acordo com a
idéia da encenação a que estão submetidas” (Silva, 2005, p. 18).
Consideramos essa concepção uma insistência em ver apenas uma
parte em lugar do todo, pois “aquilo que cobre a pele do ator” nem sempre
é uma roupa ou um acessório. O que, na realidade, se pretende analisar, e
o trabalho de Silva se insere nessa busca, apesar de ainda preso apenas
ao figurino, é a aparência do ator em cena e como esta contribui para a
elaboração de significados dramáticos. Porém, entendemos que somente
uma visão relacional da aparência de um ator, assim como da cena
espetacular, poderá apresentar algumas respostas.
Se a aparência de um ator não era vista como um componente capaz
de expressar os significados de um espetáculo, e mesmo, até hoje, não
possui ainda uma terminologia adequada que possibilite uma reflexão
apurada a seu respeito, pode-se dizer que, contemporaneamente, ela está
sendo organizada em complexas e inusitadas composições sígnicas. Tal
constatação levou-nos a questionar o que está por trás dessas construções
10
que buscam comunicar algo além da mera visualidade e, por assim se
oferecerem ao olhar, instigam o receptor a aprofundar sua percepção.
Dessas constatações, originaram-se muitas questões que motivaram
o início deste trabalho. Entre elas, as que norteiam esta pesquisa são: em
que medida as formas de caracterizar visualmente os atores, em diferentes
formas espetaculares, podem constituir uma linguagem? E como uma
linguagem, até que ponto a caracterização visual de atores constrói a
espacialidade cênica de um espetáculo?
Ao procurar responder as perguntas apresentadas, deparamo-nos
com outras, que surgiram como o desdobramento necessário que se impõe
a quem busca percorrer uma senda desconhecida e, em seu percurso,
encontra inúmeras vias alternativas. Tal como as escolhas feitas em uma
jornada a ser empreendida, as questões levantadas funcionarão como vias
de acesso às possíveis respostas às questões centrais desta pesquisa.
Assim, entendemos que, ao longo deste trabalho, buscaremos responder
perguntas como: o que é caracterização visual de atores? Quais são os
códigos da caracterização visual de atores? Quais os modos de articulação
da caracterização visual de atores como linguagem? Quais os sistemas
que dialogam com a caracterização visual de atores? Qual o vínculo
comunicativo que se constrói entre a tessitura sígnica feita pela
caracterização visual de atores e o receptor?
Como uma conseqüência natural de todo questionamento
investigativo, estruturaram-se algumas hipóteses a serem estudadas. Em
primeiro lugar, temos a hipótese de que a caracterização visual de atores,
entendida como uma linguagem, é um sistema de representação e, como
tal, constrói uma mediação que é uma tessitura de signos. Tais signos
11
constroem a aparência de atores em diferentes espetáculos e esta é sempre
uma imagem visual.
A segunda hipótese é formulada ao estabelecermos que, para a
construção da aparência de atores em espetáculos, há diferentes elementos
compositivos predominantes e não apenas as roupas vestidas pelos atores
(os figurinos). Maquiagens, adereços e penteados são, ao lado das roupas,
de grande importância para a elaboração da imagem espetacular projetada.
A caracterização visual de atores é uma linguagem que é dada a conhecer
por meio de arranjos elaborados sobre o corpo do ator com as roupas, as
maquiagens, os penteados e os adereços, postos em relação dialógica
com os códigos próprios a cada meio que veicular um dado espetáculo.
Em terceiro lugar, há a idéia de que todo o trabalho com os signos,
ou seja, todas as relações sígnicas feitas por meio da caracterização visual
de atores, constrói um duplo do ator, que é justamente a nova aparência
ficcional, trabalhada sobre seu corpo. Entretanto, esse duplo configura-se
como uma fronteira que, primeiramente, se estabelece entre ator/
personagem para, a seguir, se desdobrar nas relações fronteiriças entre
personagem/ contexto espetacular, ator/ público e contexto espetacular/
público, caracterizando-se, portanto, como mediação e, como tal, de
impossível controle da sua ação significativa.
A quarta hipótese que se levanta é a de que a caracterização visual,
como linguagem, tem dois modos de ordenação. O mais conhecido pelo
senso comum, e metonimicamente tomado como a única forma de se referir
à aparência de atores em espetáculos, é o figurino. O outro modo de
ordenação sígnica da linguagem caracterização visual é o design de
aparência de atores, expressão cunhada, neste trabalho, tendo em vista a
busca de expressões mais adequadas ao percurso analítico que
12
pretendemos desenvolver. Entendemos como figurino um arranjo sígnico
referencial, programado e modelar que antecede a realização da obra. Sem
mais pretensões significativas, ele exige apenas competências técnicas para
sua realização. Apresenta-se como uma composição sígnica fechada e, por
isso, não pode ser considerado propriamente uma linguagem. Por outro
lado, o design de aparência de atores é um arranjo sígnico sistêmico aberto,
não referencial, que se constrói em íntima sintonia com a obra em que se
insere e, para ser realizado, depende de um projeto, pois uma nova
informação será criada com a aparência projetada sobre o corpo do ator.
A quinta hipótese é a de que por meio do design de aparência de
atores é possível pensar a linguagem caracterização visual em interação
com outras linguagens, uma vez que esse modo de ordenação se faz como
fronteira entre diferentes linguagens ou, em outros termos, podemos dizer
que o design de aparência de atores constitui uma relação intercódigos.
A sexta e última hipótese configura-se na conjectura de que o design
de aparência de atores, por meio da relação intercódigos que enseja,
constrói as espacialidades significantes do espetáculo.
Como estratégia metodológica, para pesquisar a validade das
hipóteses levantadas, elaboramos um corpus analítico por meio do qual
todas as considerações deste trabalho serão desenvolvidas. Para tanto,
selecionamos três diferentes situações espetaculares em que as aparências
dos atores são igualmente construídas pelo modo design de aparência de
organizar a linguagem caracterização visual, visto que o modo figurino não
se apresenta como uma forma aberta ao diálogo investigativo e, portanto,
não pertence ao interesse desta abordagem.
A seleção dos objetos foi feita no sentido de observar o crescente
processo de complexidade desenvolvido pela linguagem estudada. Dessa
13
forma, partimos do meio em que o design de aparência se constituiu como
linguagem para, a seguir, analisar como ele ocorre numa situação de fronteira
com outras linguagens. Para finalizar, é realizado o estudo de um caso de
extremo uso dessa linguagem e das significações que tal situação propicia.
Nosso primeiro objeto de análise será a peça teatral Os sete
gatinhos, escrita pelo dramaturgo Nelson Rodrigues, dirigida por Antunes
Filho, no ano de 1989, cuja montagem contou com o cenógrafo e figurinista
J. C. Serroni para criar os cenários e os designs das aparências dos atores.
Por entendermos que a linguagem caracterização visual surgiu na esfera
do teatro e dos demais espetáculos representados diretamente diante do
público, os procedimentos relativos aos trabalhos de construção da
visualidade de atores inerentes a esses meios tornaram-se um paradigma
para a elaboração de aparências em outros meios que surgiram mais tarde,
como o cinema e a televisão, por exemplo.
Por essa razão, julgamos necessário um estudo mais aprofundado
de como a linguagem em questão se relaciona com o meio teatral e seus
códigos específicos, a fim de buscar categorias paradigmáticas que nos
permitam analisar como o design de aparência de atores se constrói na
relação de fronteira com os códigos de outros meios.
A segunda forma espetacular a ser analisada nesta pesquisa será a
microssérie, Hoje é dia de Maria, dirigida por Luiz Fernando Carvalho,
produzida pela Rede Globo, em duas temporadas, em 2005, cujos figurinos
são assinados por Luciana Buarque e as maquiagens por Vavá Torres. Com
esse espetáculo televisivo buscaremos examinar como ocorre a construção
do design de aparência dos atores na relação de fronteira com o meio
televisão.
14
Esse caso, em particular, é bastante relevante para este estudo, pois,
além de se tratar de um excelente exemplo de design de aparência de atores,
Hoje é dia de Maria é uma obra elaborada com a utilização de inovadoras
tecnologias televisivas, a tal ponto, que suas imagens possuem certa
semelhança com o cinema. Porém, a obra é dedicada a trabalhar
tematicamente os modos de proceder característicos do teatro, fato que
nos permitirá cotejar os procedimentos específicos de cada meio ao qual
ela alude, e entender em que medida o design de aparência dos atores cria
as espacialidades dramáticas da microssérie.
O terceiro objeto a ser analisado é a obra da fotógrafa americana
Cindy Sherman. Nossas considerações partirão de três imagens criadas
pela artista, que se destaca por sempre se auto-retratar com aparências
extremamente variadas, projetadas e construídas por meio do design de
aparência. Na obra de Sherman, todas as significações se manifestam,
principalmente, pela utilização do design de aparência.
Se, no teatro e nos demais meios, o design de aparência de atores
é trabalhado para construir um corpo ficcional para o ator, no caso de
Sherman, seu próprio corpo é desenhado pelas múltiplas aparências que
assume, particularidade que nos instigou a desenvolver um olhar mais
aprofundado para sua obra.
A pesquisa desenvolve-se pelo seguinte trajeto, traçado por quatro
capítulos: 1) A caracterização visual como linguagem: o design de aparência
de atores; 2) O design de aparência de atores e o teatro: a construção de
um paradigma; 3) O design de aparência de atores em fronteiras: Hoje é
dia de Maria; 4) O design de aparência de atores como desconstrução do
paradigma teatral: considerações sobre a obra de Cindy Sherman.
15
Histórico da Pesquisa
Em 2004, decidi iniciar esta pesquisa de doutorado para elaborar,
teoricamente, questionamentos que, ao longo de muitos anos, vinham se fazendo
presentes, de forma freqüente, em minha atividade profissional. Essa decisão foi
tomada não sem uma certa dose de relutância, visto que entre a prática profissional
e o fazer acadêmico existe um abismo nada atraente, onde o inesperado habita
como um ser desconhecido que assombra os lagos e os bosques sombrios das
fábulas que narram as grandes travessias míticas.
Aceitando o convite, em 2003, de uma antiga colega de mestrado para
participar de um grupo de estudos, sediado no COS/PUC, sobre o cinema de
Sergei Eisenstein e o pensamento dos estudiosos da Escola de Semiótica de Tártu-
Moscou, penetrei novamente o labirinto da academia sem saber que surpresas
encontraria. O grupo de estudos fortaleceu-se, passou a chamar-se Oktiabr (em
homenagem a um filme de Eisenstein) e, envolvida pelo encanto com a
efervescência intelectual dos colegas, assim como com o pensamento da
mencionada escola de Semiótica, elaborei uma proposta de pesquisa para
desenvolver nesse programa. Ainda sob a orientação da Profª. Drª. Irene Machado,
também coordenadora do Oktiabr, foram esboçados os primeiros
questionamentos que serviriam de guia para esta pesquisa.
Ao longo de quase 30 anos trabalhando como figurinista e maquiadora
em espetáculos de teatro, cinema, dança, circo, shows e fotografias, sempre vivi a
inquietação de atuar em uma área que, apesar de construir visualmente grande
parte da significação dramática de uma obra artística, não possui uma reflexão à
altura, tampouco uma terminologia adequada para a nomeação de sua prática
profissional. A observação de uma crescente complexidade na forma de
16
caracterizar atores, em diversos espetáculos contemporâneos, há muito, instigava-
me a pesquisar.
Dessa forma, aprofundar a reflexão sobre o assunto e encontrar uma
nomenclatura para melhor expressar os trabalhos de construção de aparência de
atores sempre foram, dentre outros, objetivos dos meus estudos.
Sempre tive muito clara a certeza de que a aparência de um ator se constrói
por meio de uma composição de signos visuais, provenientes da forma como se
organizam os figurinos, os adereços, as maquiagens e os penteados e da relação
dialógica entre eles e o contexto espetacular em que se insere. Em virtude do
desenvolvimento dessa gama de relações, a palavra figurino tornou-se pobre para
expressar tal amplitude. Assim, iniciei experimentando usar os termos caracterização
estética ou caracterização plástica para nomear a linguagem que constrói visualmente
a aparência dos atores.
Com o apoio da Semiótica Sistêmica de extração russa, oriunda da Escola
de Tártu-Moscou, pretendia, inicialmente, estudar a relação existente entre os
modos de caracterizar atores e os diferentes movimentos evolutivos das artes
plásticas, pois essa relação, ainda que de forma indireta, existe e é possível observá-
la, sobretudo, no período das vanguardas artísticas européias do início do século
XX e nas realizações teatrais dessa época.
O objeto de análise, com base no qual seriam feitas as considerações da
pesquisa, estaria entre algum filme de Eisenstein a ser escolhido, pois esse cineasta
foi um dos primeiros artistas que se valeu conscientemente dos recursos localizados
na aparência dos atores, trabalhando-os em seus filmes com força dramática.
Em seus escritos, Eisenstein relatou como buscava relacionar diferentes
tipos de arte, procurando traços de pintura na poesia, tecendo relações entre o
haiku e o impressionismo, por exemplo (2002a, p. 37). Para formular seu conceito
de montagem, Eisenstein foi buscar nas artes de todos os tempos o que
17
considerava elementos cinematográficos, pois, para esse grande artista, o cinema
começou a ser inventado muito antes de ter sido realmente inventado, como
escreve José Carlos Avellar no prefácio do livro A forma do filme de Eisenstein.
O filme Ivan, o terrível é um excelente exemplo desse procedimento. Nele,
Eisenstein trabalhou com a pintura de El Greco, com o teatro tradicional japonês
Kabuki, com a escrita dos ideogramas orientais e com os ícones religiosos russos,
entre outras formas artísticas, como sistemas modelizantes da construção da
aparência do Czar Ivan.
Entretanto, no meio de meu percurso acadêmico, em razão de diversas
circunstâncias, foi mudada a orientação que eu vinha recebendo e a continuidade
do desenvolvimento da minha pesquisa passou para Profª. Drª. Lucrécia D’Alessio
Ferrara. Desde então, o contato com essa professora, por meio de seus preciosos
ensinamentos, das aulas e das muitas sessões de orientação, permitiu que eu pudesse
olhar de modo mais incisivo para as questões que moviam minha pesquisa e,
assim, pude, finalmente, vislumbrar uma senda a ser trilhada para chegar aos
objetivos pretendidos.
Em primeiro lugar, passei a entender a linguagem que constrói as aparências
de atores em espetáculos como uma linguagem autônoma, não mais atrelada ao
desenvolvimento das artes plásticas. Se, num determinado período, no teatro,
essa linguagem esteve relacionada aos diferentes movimentos artísticos e, nesse
contexto, surgiram os primeiros experimentos significativos com relação à
aparência de atores, hoje, os modos de caracterizá-los visualmente constituem
uma linguagem que tem sua evolução em sintonia com a complexidade
informacional da contemporaneidade, pois novos meios têm surgido, criando
novos ambientes capazes de veicular espetáculos.
Cada meio engendra variadas possibilidades comunicativas que, por sua
vez, se desenvolvem em diferentes linguagens, operacionalizadas por diversos
18
códigos. Dessa forma, concluí que se a aparência dos atores é construída por
uma tessitura de relações sígnicas a complexidade dos modos de caracterizá-los
é diretamente proporcional à complexidade dos meios comunicacionais. Passei
então a denominar caracterização visual de atores a linguagem estudada, por julgar o
termo mais adequado a ela, já que sua função é criar a visualidade do ator. As
expressões caracterização estética e caracterização plástica foram abandonadas, pelo
fato de ambos os termos, estética e plástica, serem referentes às artes plásticas e
terem sido experimentados por mim quando ainda supunha existir uma relação
mais íntima entre os modos de construir aparências de atores e os movimentos
artísticos.
A linguagem caracterização visual pode ser trabalhada de diferentes modos,
pois, na prática das diversas realizações artísticas, sempre se evidenciou que há
variadas formas de caracterizar os atores, em conformidade com as especificidades
de cada obra. Tal evidência levou-me a cunhar outro termo que exprimisse uma
forma de caracterizar atores, bastante diferente daquilo que se entende por figurino.
Desse modo, em sintonia com a complexidade das construções de
aparências da contemporaneidade, surgiu o termo design de aparência de atores, uma
expressão capaz de indicar realizações inusitadas, especialmente projetadas para
cada obra em particular. Um projeto de design permite que se realizem trabalhos
abertos, utilizando relações sincrônicas que busquem mais construir a visualidade
do imaginário que mimetizar o real.
Ante essa nova maneira de ver as formas de caracterizar atores, senti
necessidade de buscar outro corpus para análise para aprofundar o estudo do
design de aparência de atores. Os objetos foram escolhidos com o intuito de permitir
a análise do percurso evolutivo da linguagem caracterização visual de atores,
independentemente do meio espetacular que a veicula, pois não se pretende fazer
19
um estudo do processo de evolução relativo aos meios e, sim, da capacidade de
elaboração da visualidade comunicativa da própria linguagem.
Assim, como foi descrito com maiores detalhes na introdução deste
trabalho, uma peça teatral foi escolhida para ser estudada, pois o modus operandi
da caracterização visual de atores, nesse meio, se tornou um paradigma para as
construções de aparências de atores nos demais meios espetaculares. A análise
de como ocorre a realização da construção da aparência de atores em fronteira
com outros sistemas foi o que me impulsionou a escolher a obra televisiva Hoje é
dia de Maria, microssérie de Luiz Fernando Carvalho. O modo extremado pelo
qual o design de aparência de atores é utilizado na obra contemporânea da fotógrafa
americana Cindy Sherman me instigou a buscar entender o alcance significativo
dessa linguagem.
Ao trilhar o caminho da análise descritiva dos objetos de forma crescente,
pretendo testar a validade das hipóteses levantadas e, com as descobertas feitas
ao longo desta trajetória, atravessar o abismo mencionado e iniciar, com esta
pesquisa, a construção de uma ponte entre a prática profissional do designer de
aparência de atores e os estudos acadêmicos.
20
CAPÍTULO I: A CARACTERIZAÇÃO VISUAL COMO
LINGUAGEM: O DESIGN DE APARÊNCIA DE ATORES
1.1 Caracterização visual de atores
Ante a falta de expressões verbais adequadas para expressar nossas
reflexões, sentimos a necessidade de cunhar novos termos para conduzir
nossas análises e sugerimos a denominação caracterização visual de
atores, para designar a linguagem que, em realizações artísticas, é
trabalhada diretamente sobre o corpo do ator com figurinos, adereços,
penteados e maquiagens para construir sua aparência física, a fim de
traduzir, em matéria plástica sensível e concreta, os traços de caráter
ficcionais representados em uma dada obra.
De modo genérico, o verbo caracterizar designa “por em evidência o
caráter de, assinalar, distinguir” (Ferreira, 2004, p. 399). A definição faz
referência a ações praticadas com o objetivo de transmitir traços
singularizantes a respeito de algo ou alguém. Os termos utilizados sugerem
existir modos de procedimento diversos entre si para a realização das ações
mencionadas: “pôr em evidência” e “assinalar” são ações que parecem estar
relacionadas à indicação de traços inerentes à natureza do objeto a ser
definido, que devem ser mostrados e ressaltados.
A ação de “distinguir”,
além de evidenciar e assinalar, faz-nos pensar em traços que realmente
diferenciam o objeto em questão dos demais, como uma marca própria.
Conclui-se que há modos diferentes de dar a conhecer certos traços, de
algo ou de uma pessoa, e que o conjunto destes transmite uma noção a
respeito do seu caráter.
21
Há incontáveis métodos de qualificar as características de algo ou
alguém, porém, para situar a esfera de análise deste trabalho, é necessário
esclarecer que trataremos de questões relativas à caracterização como
técnica de qualificar visualmente atores e personagens em diferentes
modalidades de realizações artísticas.
Segundo o pesquisador teatral Patrice Pavis, a caracterização trata
da “técnica literária ou teatral utilizada para fornecer informações sobre uma
personagem ou situação” (2001, p. 38). O autor explica, ainda com referência
ao teatro, que a caracterização é uma das principais tarefas do dramaturgo.
Ela consiste em fornecer ao espectador os meios para
ver e/ ou imaginar o universo dramático, portanto para
recriar um efeito de real que prepara a credibilidade e a
verossimilhança da personagem e de suas aventuras. Por
conseguinte, esclarece as motivações e as ações dos
caracteres (2001, p. 38).
Aqui, o termo caracteres significa o conjunto de traços físicos,
psicológicos e morais de um personagem, tal como escreveu Aristóteles,
na Poética, os caracteres são “aquilo que nos faz dizer, das personagens
que vemos em ação, que elas têm estas ou aquelas qualidades”
(1951,1450a, p. 76).
Dessas afirmações, depreende-se que os caracteres de um ator ou
personagem podem ser expostos à atividade cognitiva por meio da escrita,
da fala ou ainda por meio de recursos cênicos como a coreografia ou a
aparência física, por exemplo. Portanto, caracterizar um personagem ou um
ator é uma ação que pode trabalhar recursos verbais ou visuais.
Etimologicamente, o significado da palavra caráter, de origem grega
(kharactêr, signo gravado), aproxima-nos do sentido que buscamos trabalhar,
pois a expressão caracterização visual de atores, conforme a utilizamos,
22
refere-se, mais especificamente, aos relacionamentos expressivos entre
cores, formas, volumes e linhas, que constituem diferentes maneiras de
materializar as vestimentas, as maquiagens, os penteados e os adereços
para apresentar visualmente os traços singularizantes de um ator por meio
de signos que compõem sua aparência geral, numa determinada realização
artística. Para além de um conjunto de traços de caráter de um personagem,
entendemos a caracterização visual de um ator como uma composição de
signos gravados em sua aparência, quando estiver atuando em uma cena
artística.
O conceito de signo desenvolvido por Charles S. Peirce esclarece
que
um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo
aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se
a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo
equivalente, ou talvez, um signo mais desenvolvido. Ao
signo assim criado denomino interpretante do primeiro
signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto.
Representa esse objeto não em todos os seus aspectos,
mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes,
denominei fundamento do representamen (1977, p. 46).
Com base na conceituação apresentada, podemos dizer que a
singularidade visual de um ser ficcional é signo representado pelas escolhas
feitas entre as diversas possibilidades de organização dos componentes
de sua aparência.
1.2 Representação
À luz do conceito de representação, ainda em Peirce, a proposição
feita anteriormente se confirma. Segundo o autor, representação significa:
23
“Estar em lugar de, isto é, estar numa tal relação com um outro que, para
certos propósitos, é tratado por alguma mente como se fosse esse outro”
(Peirce, 1977, p. 61). É certo que a semiótica de Peirce elabora “uma teoria
da representação extensa, complexa e multifacetada que, além da
representação, inclui a apresentação, a quase-representação, a
presentificação...”, como explica Maria Lúcia Santaella (2005, p. 190) ao
afirmar que, de acordo com o autor estudado, a noção de representação é
apenas uma parte do conceito de mediação. Porém, neste trabalho não
nos deteremos em desdobrar essa complexidade e tomaremos como
referência o ponto em que a teoria pierceana estabelece a correlação de
equivalência entre os conceitos de signo e de representação.
Tal relação pode ser percebida por meio da célebre declaração de
Peirce de que “não podemos pensar sem signos”, o que nos induz a concluir
que é por intermédio da função de substituição (representação) presente
na conceituação de signo que conhecemos e apreendemos a realidade.
Podemos dizer que é impossível que a atividade psíquica se refira a algo
que não seja representado, pois “o pensamento é o principal, senão o único
modo de representação” (Peirce, 1977, p. 64).
Entretanto, devemos observar que a representação como signo, é
um duplo do objeto e, enquanto tal, pode ser entendida de duas formas
distintas: como mimese ou como sombra do objeto e do mundo. Segundo
Lucrécia D’ Alessio Ferrara, essas diferenças no entendimento do processo
representacional têm marcado a cultura contemporânea e (2007, p. 12). Da
mesma maneira, serão importantes para o desenvolvimento das
conceituações que nos propomos a realizar nesta pesquisa.
A primeira das formas de compreensão do processo
representacional supõe a representação como única e mimética. Nesse
24
caso, a representação substitui o objeto, busca tornar-se idêntica a ele de
modo indistinto. Essa visão leva a entender “o objeto e, por extensão, o
mundo como fixos, únicos e estáveis” (Ferrara, 2007, p. 12). De modo
inverso, na segunda forma de compreensão dos processos
representacionais, a representação é entendida como sombra do mundo e
de seus objetos. Para Ferrara, de acordo com essa acepção, a
representação “constituiria uma forma de conhecimento de segunda mão,
mas a única que permitiria apreender o constante movimento e transformação
do mundo” (2007, p. 12).
O conceito de representação possui grande abrangência e vem sendo
trabalhado há séculos, desde a escolástica medieval (Santaella, 1999, p.
15) e, em nossos dias, as ciências cognitivas e a semiótica discutem e
utilizam tal conceito de modos diversos. Diante dessa enorme amplitude,
compete-nos delimitar a esfera do uso de tal conceituação neste trabalho,
pois escapa ao nosso escopo uma investigação direta sobre o tema, apesar
de a idéia de representação permear todos os demais conceitos que
caracterizam e definem nosso objeto de estudo, constituindo, inclusive, a
própria gênese deste. Uma vez que estamos tratando de formas artísticas,
é notório que “um dos aspectos primordiais da arte sempre esteve e continua
estando na exploração, pesquisa e criação geradoras de novas formas de
representação visual” (Santaella, 2005, p. 208).
Portanto, esclarecemos que pretendemos refletir sobre o processo
de complexidade pelo qual tem passado a linguagem que denominamos
caracterização visual de atores para, enfim, expor os modos de organização
que permitem ampliar seu campo conceitual e definir o que entendemos
por design de aparência de atores, assim como propor uma melhor
adequação de uso para o termo figurino, tendo em vista verificar como esses
25
dois modos diversos de conceber aparências de atores interferem na
construção comunicativa de diferentes meios que veiculam espetáculos.
É importante ressaltar que os trabalhos de caracterização visual de
atores têm um modo próprio de concretização para cada meio em que se
inserem. As tecnologias específicas de cada meio fazem parte dos códigos
trabalhados por essa linguagem para construir a aparência dos atores, assim
como o modo particular de recepção de cada tipo de espetáculo determinará
os processos construtivos dessa aparência. Por essas razões, devemos
estudar a natureza de cada meio, para podermos compreender a lógica
construtiva dos trabalhos de caracterização visual que deram origem às
aparências dos atores presentes em suas realizações artísticas.
1.3 Espetáculo
Teóricos do teatro contemporâneo como Hans-Thies Lehman (2007),
por exemplo, discordam de classificar como espetáculo determinadas
apresentações teatrais da atualidade, pois entendem que o “teatro de
espetáculo” (2007, p. 176) refere-se mais adequadamente ao panorama
teatral do século XIX, na Europa, época em que as pesquisas cênicas eram
voltadas para desenvolver técnicas de efeitos de ilusão. Nesse tipo de teatro
ilusionista, buscava-se um arrebatamento do receptor diante da
espetacularidade da cena assistida, situação completamente diversa dos
dias de hoje, em que as apresentações teatrais exigem a participação ativa
do público que, muitas vezes, encontra-se imerso numa situação ou num
acontecimento.
Lehman entende
espetáculo como algo a ser assistido passivamente
e procura criar outras expressões para designar uma apresentação teatral
26
dos dias de hoje. Assim, o autor aponta que: “Ao exercer seu caráter real de
acontecimento em relação ao público, o teatro descobre sua possibilidade
de ser não apenas um acontecimento de exceção, mas uma situação
provocadora para todos os envolvidos” (2007, pp. 171-172).
Por outro lado, entendemos que, mesmo perante a situação cultural
dos dias de hoje, em que se observa a proliferação de imagens geradas
por diversos meios, o que acarreta numa hipertrofia do sentido da visão,
contexto que, segundo alguns pensadores, se torna propício à alienação e
ao consumismo irracional
2
, afirmar a passividade do receptor é algo bastante
discutível. Isso ocorre porque o complexo ambiente informacional que os
modernos meios de comunicação nos proporcionam torna impossível
programar a recepção de qualquer obra. Assim, compreendemos que a
visualidade funciona como um portal que se abre para um número
desconhecido de caminhos a serem
percorridos pelo receptor, como coloca
Novaes: “o olhar consiste, pois, mais na faculdade de estabelecer relações
do que na de recolher imagens” (2003, p. 14). Essa é uma idéia que
perpassará todo este trabalho, como buscaremos demonstrar.
De modo abrangente, compreendemos espetáculo como tudo aquilo
que se oferece ao olhar. Segundo Roland Barthes, “o espetáculo é a
categoria universal sob as espécies pela qual o mundo é visto” (1977, p.
179). De acordo com Patrice Pavis esse termo é aplicado à parte visível de
uma peça de teatro, como também a todas as demais formas de
representação, como a dança, a ópera, o cinema, a mímica, o
circo, etc., sendo também utilizado para designar outras
atividades que impliquem a participação de espectadores, tais
como esportes, ritos, cultos e interações sociais (2001, p. 141).
2
Embora distante
do interesse desta
pesquisa, cabe aqui
uma menção ao
pensamento de Guy
Debord, expresso
em seu livro A
sociedade do
espetáculo. Rio de
Janeiro:
Contraponto, 2002.
27
A definição de Pavis interessa-nos, particularmente, pois leva em
consideração diferentes formas artísticas que implicam diferentes modos
de recepção, não necessariamente passivas.
O autor cita as formas
representacionais que, como o teatro, ocorrem diretamente diante de um
público, outras que são dadas a conhecer por meio de uma transmissão
técnica, como o cinema, por exemplo, e também aquelas que envolvem a
participação do público, tais como as mencionadas interações sociais. O
alcance de tal conceituação permite que possamos entender como
espetáculo não apenas obras artísticas fechadas, que calculem os efeitos
produzidos no receptor, como também aquelas abertas, que se completam
apenas com a participação ativa deste.
Importa o fato de ambas as definições apresentadas, tanto a de
Barthes, como a de Pavis, mencionarem a visualidade de uma cena como
traço característico de um espetáculo. Essas são as razões pelas quais
passaremos a utilizar o termo espetáculo para fazer referência a toda cena-
evento-acontecimento-situação, de qualquer modalidade artística, que
apresente atores em suas realizações e que tenha sido criada
intencionalmente para ser vista e apreciada, de forma mais ou menos
passiva, por, pelo menos, um receptor.
1.4 Os códigos da caracterização visual de atores
Um conteúdo que habite uma mente só pode de fato existir,
materialmente, se for veiculado ou dado a conhecer por meio da expressão
de alguma forma de linguagem. Toda linguagem possui regras de
funcionamento e essas regras, denominadas códigos, permitem, a um só
tempo, a formulação e emissão da mensagem como também a possibilidade
28
de compreensão por parte dos receptores, pois “o código age sobre a
significação em todos os circuitos comunicacionais” (Carmelo, 2003, p. 88).
A aparência de um ator é concretamente construída por meio da manipulação
da linguagem caracterização visual, ou seja, ela é dada a conhecer por
meio da organização dos recursos oferecidos pelos códigos de suas
linguagens constituintes (as roupas; os penteados; as maquiagens; os
adereços), postos em relação com o corpo do ator em questão e com as
particularidades tecnológicas de cada meio e de cada espetáculo em que
estiver inserida.
Tal idéia encontra correspondência com a definição de código
formulada pelos teóricos da Semiótica Sistêmica de extração russa.
Segundo essa corrente semiótica, código é entendido como “signo
convencional ou organização de caráter genérico a partir da qual é possível
a constituição dos sistemas e, conseqüentemente, da linguagem” (Machado,
2003, p. 155). Organizar recursos expressivos de uma linguagem é codificar.
A etimologia do termo codificar indica o significado que nos interessa
ressaltar. Codificar é um verbo transitivo, cuja origem é o Latim: codex,
acrescido do termo facere, fazer. Assim, no que concerne a este trabalho,
codificar ou trabalhar códigos é estabelecer os elementos físicos
correspondentes aos sentidos a serem transmitidos e adaptá-los a um
determinado meio (Larousse Cultural, 1998, p. 1476), pois este se utiliza
dos códigos, transformando-os de modo inusitado.
Para entendermos como operam os códigos da caracterização visual,
é importante retomar a já aludida distinção entre os espetáculos que são
apresentados diretamente diante do público e os que chegam aos seus
receptores mediados por uma máquina semiótica ou, como diria Vilém
Flusser, por “aparelhos tecnicamente programados” (2002, p. 23). No
29
primeiro caso, citamos como exemplos o teatro, o circo, a ópera, a dança, a
mímica, os happenings, as performances e as formas, anteriormente já
mencionados, que foram relacionados por Pavis (2001, p. 27), assim como
todas as modalidades espetaculares que proporcionarem
imediatidade de
comunicação com o público. Na segunda modalidade de espetáculos,
citamos a fotografia, o cinema, o vídeo, a televisão e as artes veiculadas
por computadores e celulares.
Por meio dessa diferenciação, podemos estabelecer dois modos
distintos de operacionalidade da linguagem caracterização visual de atores:
os trabalhos que são feitos direta e manualmente sobre o corpo do ator
que, em geral, correspondem ao primeiro tipo de espetáculo assinalado e
aqueles que são produzidos pela programação tecnológica específica da
máquina semiótica em que o ator figurar.
Os trabalhos de caracterização visual para construção da aparência
de atores têm, em sua gênese, o paradigma do modus operandi do teatro
e de todas as modalidades espetaculares que se manifestam diante do
público.
Todas as evoluções, tanto técnicas quanto estéticas, que surgiram
dentro da esfera de influência desse paradigma, foram posteriormente
incorporadas pelo cinema, pelo vídeo e pelos meios eletrônicos que
possuem a opção de utilizar, em parte ou por completo, os modos manuais
de caracterização visual ou mesmo prescindir deles e trabalhar apenas com
a tecnologia própria do meio para construir a aparência dos atores em seus
espetáculos.
Um exemplo disso é o caso do cinema, em filmes como Sin city de
Frank Miller e Robert Rodriguez, em que a visualização da cor da roupa da
atriz, assim como a de seus lábios, é dada apenas por efeito de
30
programação tecnológica, recurso utilizado para ressaltar, no contexto, a
feminilidade
da personagem (figs.13 e 14). De modo análogo, em
espetáculos teatrais, a iluminação sobre a movimentação coreográfica dos
corpos dos atores, em uma cena, pode conferir diferentes tonalidades
cromáticas às suas roupas e cútis e passará, assim, a ser, tanto quanto o
programa tecnológico do cinema digital, um recurso próprio do meio
determinante para a construção da aparência dos seres de ficção (fig.15).
Com esses dois casos enfatizamos a idéia de que a construção da
aparência de um ator em um espetáculo, bem como a leitura dela, só se
completa nas relações que estabelecem com o seu meio, seja este
Figs.13 e 14: Cenas do filme Sin City, de Frank Miller e Robert Rodriguez.
Fig.15: Ricardo III.
Obra de Yukio
Ninagawa, Japão,
1998.
31
apresentado diretamente diante do público ou mediado por uma máquina
semiótica. Na caracterização visual de um ator, os recursos tecnológicos
que cada espécie de meio oferece podem ter o mesmo peso daqueles
derivados exclusivamente da manipulação das maquiagens, das roupas,
dos penteados e dos adereços.
1.5 Caracterização visual de atores como imagem
Sempre que utilizamos as nossas capacidades para comunicar,
estamos criando signos. Mas, qual a natureza dos signos que a
caracterização visual da aparência de um ator gera?
Independentemente da natureza do meio e do suporte tecnológico
que apresentar um ator, devemos entender que caracterizá-lo visualmente
significa trabalhar signos que construam uma determinada aparência
idealizada sobre a figura do ator como pessoa. Trabalha-se para criar uma
aparência que exprime qualidades. As qualidades representadas são signos
dos traços singularizantes de um ser ficcional e podemos dizer que a
representação realizada pela caracterização visual de atores apresenta uma
similaridade com seu objeto.
Essa afirmação aproxima-nos da definição de imagem elaborada
por Peirce. Segundo o autor, as imagens pertencem a uma das espécies
de signos icônicos, também denominados por ele de hipoícones. Em meio
a diferentes conceituações de ícone, algumas divergentes entre si, Peirce
distinguiu as noções de ícone puro e de signo icônico. Segundo o autor, o
ícone puro não representa nada, apenas aparece como simples qualidade
na sua relação com seu objeto, porque qualidades não representam e sim
apresentam algo (Santaella, 1998, p. 63). No que tange aos signos icônicos,
32
estes são signos, pois representam seus objetos por semelhança (Santaella,
1998, p. 65). Peirce também os dividiu em três subníveis: imagem; diagrama
e metáfora, tendo em vista que a imagem desenvolve com o objeto uma
relação de similaridade de qualidade.
Desse modo, pensando a construção da aparência de um ator como
uma imagem, devemos levar em conta o fato de que, para um grande número
de teóricos, uma imagem é uma superfície plana, que pretende representar
algo. Vilém Flusser conclui: “As imagens são, portanto, resultado do esforço
de se abstrair duas das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se
conservem apenas as dimensões do plano” (2002, p. 7). Se voltarmos nossa
percepção para atores que figuram na televisão, em fotografias, em filmes
de cinema ou de vídeo, ou, ainda, em uma tela de um computador ou de um
celular, é fácil compreender que os trabalhos de caracterização visual desses
atores fazem parte da imagem transmitida por tais meios. Dito de outra
forma,
o ator caracterizado, visto por meio de cada uma das espécies de
telas mencionadas, é uma imagem e não há dúvida quanto ao caráter
bidimensional desta.
Mas o que pensar quando estamos diante de uma representação
artística em que o ator se apresenta diretamente diante do público, sem a
mediação de uma máquina, como nos casos citados?
Nas situações em que o ator representa em um palco fechado, a
visão frontal que os receptores têm do espaço de representação é recortada
pela boca de cena. Esta pode ser equiparada a uma moldura de um quadro,
pois destaca a imagem cênica da realidade e evidencia o caráter
representacional dessa imagem que, por efeito óptico, se torna quase
bidimensional (fig.16). Quando a representação coloca o ator em meio aos
receptores, como nas performances ou nos espetáculos populares feitos
33
em espaços públicos, como arenas
circulares e semicirculares, a visualidade
de sua aparência acontece de modo
direto, geral e circular, enquanto a
tridimensionalidade de sua silhueta se
evidencia
(fig.17). Também nessas
situações cênicas, podemos dizer que a
figura do ator caracterizado é uma
imagem, apesar de sua
tridimensionalidade, pois o caráter de
composição representacional que o
distingue do cotidiano está presente na superfície e nos contornos de sua
aparência, que funcionarão como uma moldura de uma visão que dialoga
com o espaço em torno, como esclarece Santaella a respeito das
representações visuais:
Representações visuais se localizam em superfícies
definidas, papel, tela, película etc. Essa superfície é
sempre recortada, emoldurada, quer dizer, tem margens
Fig.16: Ring Cycle. Dirigido por Otto Schenk, New York, 1990.
Fig.17: Performance de Yves Klein, Paris,
1960.
34
que a separam do restante das coisas. Mesmo quando se
trata de representações sólidas, tridimensionais, como é
o caso das esculturas, que não estão em uma superfície,
mas são uma superfície, seus contornos, sua
protuberância, na ocupação do espaço, são nitidamente
demarcados. Tudo isso dá à representação um caráter
de singularidade, unicidade, que a define como um objeto
que bate à porta do sentido da visão, que insiste em se
mostrar presente (2005, p.197).
Ao lado dos conceitos peirceanos apresentados trabalharemos,
neste estudo, com a noção de imagem desenvolvida por Gilles Deleuze e
Bergson. De acordo com esses pensadores, a imagem é “o conjunto daquilo
que aparece” (Deleuze, 1983, p. 78). Tal conceituação complementa e amplia
a noção de espetáculo que utilizamos. Se, conforme mencionamos
anteriormente, espetáculo é tudo aquilo que se oferece ao olhar, todo
espetáculo é uma imagem. Dessa forma, entendemos que o produto dos
trabalhos de caracterização visual gera sempre uma imagem formada por
uma somatória de índices, cujo conjunto resulta na aparência do ator, que
pede para ser vista e, ao figurar em uma manifestação artística, passa a
dialogar com os demais componentes da imagem cênica como um todo.
É importante esclarecer que a imagem gerada pela aparência do
ator em uma determinada forma artística, apesar de ser entendida como
um signo icônico, pode apresentar características que a aproximem mais
de um índice ou, por outras vezes, a aproximem mais de um símbolo, porque
as distinções classificatórias dos tipos de signos feitas por Peirce não são
absolutas, são operações lógicas para efeito de análise (Santaella, 2005,
p. 193).
Sempre tomada em relação ao contexto cênico em que se apresenta,
a imagem gerada pela aparência de um ator pode assemelhar-se, mais ou
menos, ao seu objeto (mimese ou sombra), em outras palavras, os trabalhos
35
de caracterização visual podem ser feitos
na intenção de buscar uma referência em
um existente ou podem não buscar
espelhar nada, a não ser meras qualidades.
No primeiro caso, uma maior
referencialidade na aparência do ator pode
aproximar a imagem gerada do índice,
enquanto nos casos em que a aparência do
ator busca exprimir apenas qualidades, podemos dizer que se trata de uma
imagem com grande iconicidade. Há situações também em que a imagem
da aparência do ator pode ser bastante simbólica, “com relação a uma
escala convencional de valores” (Peirce, 1977, p. 71), como, por exemplo,
nos personagens do teatro tradicional japonês Kabuki (fig.18) que, por meio
da aparência, são identificados, há séculos, pelo público.
1.6 Caracterização visual de atores como duplo do homem
A aparência de um ator trabalhada pela linguagem caracterização
visual é um dispositivo complexo, que guarda uma estreita relação com a
noção do duplo, tema que, por ser profundamente enraizado na psique
humana, é gerador de incontáveis desdobramentos em diferentes aspectos
da cultura. Segundo o semioticista da Escola de Tártu-Moscou, Iuri Lotman,
tal noção encontra-se na base da construção da cultura e origina o que ele
designa como “o dualismo semiótico de partida” (1996, p. 85), responsável
tanto pelo surgimento das línguas naturais (verbais), quanto pela formação
dos sistemas não-verbais de comunicação. As línguas naturais formam
Fig.18: Kabuki (Japão).
36
duplicações do mundo por meio da palavra e os sistemas não-verbais têm
como natureza a divisão estrutural do espaço. Lotman explica que:
Toda atividade do homem como homo sapiens está ligada
a modelos classificatórios do espaço, à divisão deste em
“próprio” e “alheio”, à tradução dos variados vínculos
sociais, religiosos, políticos, de parentesco, etc. e à
linguagem das relações espaciais. A divisão do espaço
em “culto” e “inculto” (caótico), espaço dos vivos e espaço
dos mortos, sagrado e profano, espaço sem perigo e
espaço que esconde uma ameaça, e a idéia de que a cada
espaço correspondem seus habitantes – deuses, homens,
uma força maligna ou seus sinônimos culturais – são uma
característica inalienável da cultura
3
(1996, pp. 83-84).
A origem da mencionada divisão estrutural do espaço, segundo
Lotman, encontra-se nas lendas antigas que assinalavam a sombra, o reflexo
n’água e o eco como duplicações, que passaram a ser conhecidas como
as fontes míticas dos sistemas semióticos não-verbais. Tais sistemas, para
serem capazes de cumprir amplas funções semióticas, devem possuir, assim
como os reflexos especulares, um mecanismo de duplicação ou, ainda, de
multiplicação reiterada do objeto que significam.
Ao que parece, a duplicação da figura humana, desde os primórdios
da cultura, cumpre importantes funções de geração de sentidos, a tal ponto
de ensejar a construção da noção de multiplicação incessante de
significados, encontrada no fundamento da conceituação de texto cultural
desenvolvida por Lotman e também análoga ao conceito de semiose, que
serão apresentados mais adiante, por melhor se relacionarem com a matéria
a ser tratada no terceiro capítulo.
Por ora, no que diz respeito a este estudo, devemos observar que a
caracterização visual é uma representação visual de caracteres de um ator,
portanto, é signo deste e,
como tal, é uma parte do objeto que
3
Tradução nossa.
37
representa. Assim, a caracterização visual gera uma imagem do ator, ou
seja, um duplo deste.
Na idéia de Lotman de que todos os tipos de divisão do espaço
formam construções “homomórficas”
4
, pois a cada espaço correspondem
seus habitantes, encontramos uma correlação com nossa pesquisa. O autor
aponta que, ao passar de um espaço para outro, o homem perde a condição
de igual a si mesmo e torna-se semelhante ao espaço dado; segue sendo
ele e, ao mesmo tempo, outro. Esse fenômeno, diz Lotman, é particularmente
notado em rituais, cujos espaços copiam de modo “homomórfico” o universo.
Ao penetrar o espaço ritual, o homem experimenta a sensação de duplicação,
ao ser ele mesmo e, simultaneamente, outra entidade (1996, p. 84).
Perder a condição de igual a si mesmo e tornar-se semelhante ao
espaço (ritual) são situações que podem ser vivenciadas por meio do modo
de organização da aparência de uma pessoa/ ator. Nessa idéia, a
correspondência com situações de representações teatrais é bastante
evidente e remonta, conforme foi anteriormente mencionado, aos rituais
arcaicos tidos como os primeiros indícios do sentido humano de
teatralidade, apontados pela presença de objetos usados para alguma forma
de caracterização visual, conforme mostram os estudos arqueológicos.
O autor vai ainda mais longe enfatizar, como origem das artes
plásticas, as representações do corpo que eram feitas em rituais arcaicos:
pinturas corporais, máscaras e imagens. Lotman justifica sua idéia a respeito
dessa origem afirmando: “A representação do corpo só é possível
depois que se começa a tomar consciência do próprio corpo, nesta
ou naquela situação, como representação de si mesmo” (1996, p.
84).
4
De acordo com
o Dicionário
Aurélio,
homomorfo, [De
hom(o)- + - morfo]
Adj.. Que tem a
mesma forma.
[Antôn.:
heteromorfo]
(2004, p. 1054).
38
Tal como acontece em espetáculos artísticos, o homem necessita
gerar um duplo de sua pessoa para entrar em espaços diferentes e esse
duplo é caracterizado pela alteração de sua aparência física, que cria uma
representação diversa da imagem habitual de si próprio. Nessa direção
apontam as concepções teatrais de Antonin Artaud, a serem estudadas
adiante. O autor, ao refletir sobre o teatro de Bali, observa que “o hieratismo
das roupas dá a cada ator uma espécie de duplo corpo, duplos membros –
e em sua roupa o artista quase oculto parece ser apenas a efígie de si
mesmo” (1987, p. 77). Idéia análoga à dos autores citados pode ser
encontrada nas declarações da pesquisadora Christine Greiner a respeito
de como o corpo e os espaços se constituem por meio de fluxos internos e
externos de informação e subjetividade que os permeiam. Segundo Greiner:
“O corpo metamorfoseia-se nos espaços que ocupa e assim transforma o
ambiente em um movimento de mão dupla” (2003, p.142).
1.7 Design de aparência de atores e figurino: dois modos de
trabalhar a linguagem caracterização visual de atores
A distinção entre as expressões figurino e design de aparência de
atores, assim como a nomeação da linguagem que molda a aparência de
atores, caracterização visual, espelham nossa busca para sistematizar a
pesquisa sobre as possibilidades de geração de significados trabalhados
na aparência de atores em espetáculos das mais variadas espécies. Se
por um lado, há um déficit de trabalhos teóricos nessa área, o mesmo não
pode ser dito com relação à profícua criação artística voltada para a
construção de aparências de atores em espetáculos contemporâneos. É
exatamente nessa lacuna que esta pesquisa se insere, pois a observação
39
das elaboradas criações atuais nos instiga a desvendar a complexidade
que expressam.
Pensar nos modos de organizar a linguagem caracterização visual
de atores leva-nos de encontro às diferenças entre as expressões figurino
e design de aparência de atores, construções decorrentes de distintas ações
criativas. Nosso pensamento não poderia ter sido construído sem as
conceituações de Régis Debray sobre as diferenças entre matéria
organizada e organização do material, construções organizacionais que
produzem diferentes formas de conhecimento (2000, p. 23), proposição que
se esclarecerá à medida que nossas hipóteses forem expostas. Debray
explica:
Não esqueçamos que materializar é traçar signos e
também abrir vias por onde eles possam passar. Sob a
etiqueta M. O. (matéria organizada), será possível
encontrar, segundo a midiasfera em que estiver o indivíduo,
não só tinta, placas de cobre, satélites de difusão,
pergaminho, penas ou estiletes, máquinas de escrever ou
p.c, mas também cavalos, telégrafos e automóveis. Do
lado da “instituição” (O. M.), serão colocadas as
coordenadas comunitárias, a saber, as diversas formas
de coesão que unem os operadores humanos de uma
transmissão (ou, mais exatamente, que lhe são impostas
pela natureza material dos signos e dos dispositivos
utilizáveis em função do estágio de desenvolvimento
semiótico) (2000, p. 26).
Talvez a distinção a ser exposta seja eco de antigas especulações a
respeito do fazer artístico, ainda presentes em nossos dias, diluídas nos
mais diversos temas. Questões, há muito debatidas, sobre a mímesis da
arte, propostas por Aristóteles, estão na base de nossas reflexões, ainda
que de forma indireta, iluminadas até mesmo por esclarecimentos
sociológicos sobre o momento sociocultural que atravessamos, marcado
40
pela fluidez, como define Zygmunt Bauman. Sobretudo a distinção entre as
noções de projeto e programa, elaborada por Giulio Carlo Argan, será
essencial para fundamentar nossas asserções. Em meio a tantas
referências, buscaremos esclarecer nossa proposição, recorrendo aos
teóricos mencionados e a outros que, apesar de movidos por outros
interesses e objetivos, possam nos ajudar a construir um diálogo que apenas
se inicia e não pretende se esgotar neste trabalho.
Uma ação criativa que seja distinta da mera função de referência,
usualmente apresentada pela concepção do figurino de um espetáculo que,
em geral, é tomado como uma parte acessória da representação, é o que
buscamos nomear design de aparência de atores.
Entendemos como figurino a ação criativa produtora de um desenho
referencial que antecede o espetáculo em que se insere o ator/ personagem,
como é o caso dos figurinos de uma determinada época ou de uma
determinada região geográfica, por exemplo. Por outro lado, a ação criativa
para a realização de um design de aparência de ator é análoga à ação de
um designer, pois requer um modo de ver, de atuar e de expressar suas
idéias que não se confunde com a competência técnica exigida para a
realização de figurinos.
Um figurino europeu do século XVII (fig.19), por exemplo, poderá até
mesmo ser desenhado e executado apenas por bons técnicos, como um
desenhista e uma costureira, pois a forma e a modelagem que caracterizam
esse período histórico encontram-se disponíveis para pesquisa. Entretanto,
o modo design de aparência de organizar a caracterização visual de atores
deve ser resultado de um projeto, cujo trabalho exige do designer outras
competências além da técnica do desenho, do manejo de tecidos e do
41
conhecimento da história da indumentária, pois o que se cria não é apenas
uma roupa, mas uma nova informação figurada sobre o corpo, que gera
aparências inusitadas.
O projeto é o que distingue esse modo de construir aparências de
atores, por essa razão, utilizamos o termo design que, na língua inglesa,
significa projeto (Larousse Cultural, 1995, p. 1858). Apesar de esse termo
ser aplicado com maior freqüência para se referir ao o desenho industrial,
por meio do qual a indústria poderá executar o objeto projetado para ser
produzido em grande escala, não é esse significado do termo que interessa
para esta pesquisa.
A junção de arte e técnica, visando ao propósito de desenvolver, com
materiais inusitados, objetos artísticos para o uso cotidiano e não apenas
para contemplação, objetos que estejam em constante contato com as
relações entre o homem e seu espaço, tal como idealizou a escola Bauhaus,
entre outros grupos das vanguardas soviéticas da primeira metade do século
XX (Azevedo, 2006, p. 29), é o significado que, a princípio, acompanha a
idéia de design que nos interessa perseguir.
Fig.19: Roupas masculinas. Europa, século XVII.
42
Todavia, o design de aparência de atores pertence a outro contexto,
diferente daquele que inspirou a escola Bauhaus, e, para compreendê-lo
como produto da contemporaneidade, é necessário entendermos a evolução
do conceito de design.
Se os significados apontados dizem respeito à elaboração de objetos
projetados com valor artístico e criados para o consumo de classes
economicamente menos privilegiadas, esses significados também indicam
um contexto histórico-cultural, no qual havia uma cultura de classe que
buscava a superação de sua condição, invariavelmente, imposta pelos
grupos detentores do capital. Esse era inicialmente o objetivo da Bauhaus,
no entanto, Giulio Carlo Argan (1998) esclarece que hoje vivemos um tempo
em que a cultura de classe se transformou em uma cultura de massa, vista
como um sistema global de informação. Portanto, nesse contexto, o objeto
de valor artístico deixa de ser o foco de criação, pois este se volta para a
produção de tal cultura. O autor explica que:
É evidente que uma metodologia moderna de projeto só
pode concernir à cultura de massa e ao sistema de
informação. A crise do objeto, identificando-se com a
consciência dos limites já superados de uma cultura
ocidental, não é reversível; portanto, não pode mais haver
um design dos objetos, ou um product design, seja qual
for sua escala de grandeza, mas apenas um design dos
circuitos de informação (1998, p. 263).
O design de aparência de atores pertence a esse processo e, por
isso, podemos dizer que, nesse caso, o que se projeta não é um objeto e
sim uma informação organizada sobre o corpo do ator. O produto do design
não necessita manter uma correlação com estilos anteriormente executados,
pois, como informação, ele aparece como portador de um conjunto de
mensagens organizadas pelo designer, porque seu projeto é algo que vai
43
além de um desenho, é “o momento de invenção que dá ao produto a
visibilidade que vai além da visualidade, superando a simples atração
sensível que estimula os olhos” (Ferrara, 2002, p. 56). Em outras palavras,
entendemos como figurino uma informação preexistente, já dada, enquanto
o design de aparência de atores é uma nova informação construída.
As considerações tecidas não se restringem apenas a reconstituições
históricas ou geográficas, mas a todo trabalho de caracterização visual de
atores que ignore a possibilidade de construção de nova informação por
meio da aparência de um ator ou tome essa aparência meramente como
veículo para exibições decorativas ou de criações da moda vigente.
É importante deixar claro que essas distintas nomeações são fruto
da intenção de criar um instrumental analítico e não configuram nenhuma
espécie de julgamento a respeito do trabalho que se exerce nos meios
profissionais.
Em suma, o que foi desenvolvido até o momento pode ser resumido,
em poucas palavras, na idéia de que denominamos figurino os trabalhos
de caracterização visual com predominante caráter técnico, que buscam
mimetizar o real e utilizam a aparência de atores como imagem sinalética
ou decorativa; sob a designação de design de aparência de atores estão
as caracterizações visuais que exibem aparências incomuns, muitas vezes,
sem linearidade histórica ou qualquer outro referente existente, porém
construídas em íntima sintonia com a obra em que estão inseridas e
produzem conhecimento, porque instigam o receptor a desvendar seus
significados.
Entretanto, a diferenciação proposta não se esgota na idéia
apresentada, ao contrário, encontra paralelo em diferentes discussões
44
apresentadas por inúmeros pensadores. Em seu texto A crise do design
(1998), Giulio Carlo Argan expõe como principal fator da mencionada crise
por ele analisada a “divergência crescente entre programação e projeto”
(1998, p. 251). Sem nos determos nos detalhes históricos trabalhados pelo
autor, utilizamos apenas o significado geral da diferenciação proposta por
ele para melhor explicitarmos as diferenças entre figurino e design de
aparência de atores. Referindo-se à esfera do projeto e de suas
metodologias relativas, Argan assevera que a programação é uma “pré-
ordenação calculada e quase mecânica” (1998, p. 251), que tende a não
mais preceder o projeto e sim substituí-lo. Por outro lado, o projeto contempla
todas as possibilidades do devir (histórico). Traçando um paralelo entre as
sociedades democráticas, que se autoprojetam, e as sociedades
absolutistas, que são projetadas por grupos de poder (1998, p. 253), o autor
explica que o projeto se abre para a configuração de diferentes situações
enquanto a programação impede a escolha e a decisão, conferindo-as ao
poder (1998, p. 251). Se o programa trabalha com cálculos e modelos pré-
existentes, a matéria-prima do projeto é a imaginação. Segundo Argan:
A imaginação é a faculdade que nos permite pensar em
nós mesmos de forma diferente do que somos e, portanto,
propor uma finalidade além da situação presente. Sem
imaginação pode haver cálculo, mas não projeto. O projeto
não é mais do que a predisposição dos meios operacionais
para por em prática os progressos imaginados (1998, p.
266).
Com base nas conceituações feitas por Argan, podemos dizer que o
modo figurino de organizar a linguagem caracterização visual de atores
trabalha com um programa, enquanto o modo design de aparência de atores
elabora um projeto para cada realização artística.
45
É possível que a tendência ao apego em usar a nomenclatura figurino
para designar a aparência geral de atores seja um traço hereditário do
naturalismo/ realismo, estilos em que as representações artísticas eram
valorizadas por sua capacidade de mimetizar referenciais existentes.
Um exame nos dicionários da língua portuguesa permite ver que, no
verbete figurino, há somente uma breve menção ao figurino como traje teatral
e todos os demais significados do termo indicam algo que se relaciona
com “modelo ou exemplo” (Ferreira, 2004, pp. 895-896).
Um modelo ou um exemplo é algo que existe anteriormente e indica
qual caminho deve ser seguido, copiado, imitado. Em outras palavras, um
modelo é algo que serve de referência para alguma realização. Assim
entendemos como figurino o modo técnico de organização da linguagem
caracterização visual de atores, que busca referência na realidade sensível
das formas acabadas da natureza e funciona, no espetáculo, como índice
de idade, localidade, época, fator social, etc.
É possível também que o naturalismo/ realismo, seja uma forma de
ver e pensar a arte em conformidade com os antigos paradigmas que regiam
a cultura do Ocidente, da Renascença até a metade do século XX (Ferrara,
2007, p. 29). Entretanto, como propostas surgidas em meio às vanguardas
artísticas européias, o naturalismo/ realismo guarda uma aura de experimento
entre as muitas experiências de concretizar novas formas e concepções de
arte, oriundas daquele período, e decisivas para que, no teatro, se passasse
a pensar nos modos de caracterizar atores como uma linguagem
comunicante.
O momento em que vivemos exige que padrões sólidos e
configurações pré-dados sejam revistos, pois como ensina Zygmunt Bauman
(2001), nosso tempo hoje é marcado por uma modernidade que, como um
46
líquido, não pode ser presa nem fixada e que também, por sua fluidez, derrete
tudo o que é sólido, como as convicções do passado.
Sem preocupações miméticas de espelhar a realidade, tampouco
de apresentar uma linearidade temporal ou uma coerência geográfica, as
criações de design de aparência de atores parecem sintonizar-se com o
momento atual, apresentado pela metáfora construída por Bauman, que tem
início quando tempo e espaço “deixam de ser aspectos entrelaçados” e
não mais se prendem “numa estável e aparentemente invulnerável
correspondência biunívoca” (2001, p. 15). Escreve o autor:
Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem
prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões
espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto,
diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente
a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm
muito a qualquer forma e estão constantemente prontos
(e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é
o tempo mais do que o espaço que, afinal, preenchem
apenas “por um momento” (2001, p. 8).
Para a construção de um design de aparência de atores, o designer
joga com a “possibilidade sincrônica que permite resgatar, em tempos
diferentes, espaços criativos similares que levam à superação da história
como sucessão de fatos organizados em seqüência, por força de um espaço
condicionado” (Ferrara, 1999, p. 168).
Assim procedendo, na trama formadora da aparência do ator, é
possível encontrar informações provenientes de diferentes formas culturais,
pertencentes a tempos e espaços distintos, mas que, ordenadas pelo
designer e relacionadas aos demais componentes de um espetáculo,
constroem a imagem projetada. De acordo com nossas afirmações
47
anteriores, essa nova imagem produzida configura uma informação e, dessa
forma, o designer passa a qualificar-se como um designer de informação.
Para tanto, ele necessita ter um nível cultural que possibilite a busca
de dados disponíveis na história da cultura e na fronteira de inúmeras
linguagens, para, enfim, traduzi-los concretamente. A etimologia da palavra
design complementa o entendimento da diferenciação proposta. Segundo
explica Lucrécia D’ Alessio Ferrara:
na palavra de-sign encontra-se o latim signum que designa
indício, sinal, representação e mais a preposição de que
rege, na declinação latina, o caso ablativo e quer dizer
segundo, conforme, a respeito de, saído de, segundo um
modelo, ou seja, designa origem: portanto “de-sign” supõe
um significado que ocorre com respeito a, ou conforme
um sinal, um indício, uma representação (2002, p. 52).
Torna-se claro que a idéia de design implica representação, signo, o
que equivale a dizer que o designer redesenha “uma forma pensada em
outra” (2002, p. 52) e, desse modo, propicia o surgimento de uma nova
forma, enquanto o figurino apresenta formas já vistas. Segundo Ferrara
(1988, p. 68), o redesenho é entendido como uma nova configuração sígnica
para um texto cultural já existente, noção que explica a ação criativa
característica do design de aparência de atores.
O pensamento do designer de aparência de atores deve contemplar
o conhecimento das diferentes linguagens que atuam, simultaneamente, na
realização de um espetáculo em conformidade com o meio em que é
veiculado. Sendo a aparência dos atores produto de um feixe de relações,
é da competência criativa desse profissional conhecer todas as técnicas
de caracterização visual para poder selecioná-las e ordená-las. Desde o
48
modo de proceder mais artesanal, tal como acontece nos espetáculos de
representação diante do receptor, até aqueles em que há o domínio da
tecnologia digital; o corpo do ator; o personagem a ser representado; a
movimentação coreográfica; a iluminação; o ambiente e o cenário; a relação
com a imagem cênica total, em que se incluem, evidentemente, as opções
estéticas e estilísticas da obra, são exemplos de algumas linguagens e
situações que interferem e dialogam com a aparência de um ator e devem
ser estudadas e consideradas pelo designer para realizar sua criação.
A competência para o desenho, seja este à mão livre ou
computadorizado, não é condição necessária nem suficiente para que o
designer de aparência de atores expresse suas idéias. Para a obtenção
de resultados satisfatórios, ele deve desenvolver um modo próprio de
expressão, que permita a comunicação de suas idéias aos profissionais
manipuladores de diferentes tecnologias, porque a execução da construção
da aparência de um ator é, na maioria das produções artísticas, um trabalho
coletivo no qual vários técnicos atuam.
O desenho pode ser apenas uma das indicações utilizadas pelo
designer, pois não se trata de um produto para ser industrialmente
reproduzido em série, ao contrário, a aparência de um ator é um trabalho
com características artesanais, que resulta de um pensamento-design e não
depende necessariamente de um desenho técnico para ser realizado.
Situações variáveis como o contexto sociocultural a que o espetáculo
faz referência, bem como aquele em que em que se insere a recepção deste,
devem ser levadas em conta por esse designer. Outro fator que influirá
fortemente no resultado dos trabalhos é a condição financeira em que a
obra será desenvolvida. É certo que a preocupação com esses dados vale
também para a realização técnica de um trabalho de figurino, porém as
49
variáveis são infinitamente maiores no caso de um design de aparência e,
portanto, pesam mais nesse modo de criação, pois o profissional trabalha
com uma gama de escolhas muito maior que no modo figurino de caracterizar
atores.
Assim, o designer deve ter a competência criativa para poder se
valer dos recursos que puderem ser utilizados naquele momento e criar com
eles algo novo. Com seu trabalho, ele irá modificar e qualificar o espaço
cênico, ao criar, com as aparências projetadas, novas formas e alterar
funções e usos de peças e materiais, roupas ou maquiagens, juntando-os
de modo inusitado ao contexto cênico para compor uma determinada
imagem.
É necessário frisar que, apesar de figurino e design de aparência de
atores serem construídos por meio de ações criativas distintas, há gradações
nesses modos de atuar e o designer pode optar por um ou outro modo ao
realizar seu trabalho, para atender as necessidades de um determinado
espetáculo ou, ainda, os dois podem conviver numa mesma obra. É preciso
olhar com atenção para cada espetáculo, pois há diferentes níveis de
complexidade construtiva e apenas por meio de uma análise detalhada é
que poderemos entender como foi realizada a organização da linguagem
caracterização visual de atores e em que medida o designer trabalhou com
figurino ou com design de aparência.
Entre essas duas maneiras de trabalhar a linguagem caracterização
visual de atores, é certo que há obras que buscam fazer ver algo para além
do que se mostra e, para tanto, são fruto de um projeto e não apenas derivam
de um modelo anteriormente programado.
50
Nos casos em que um trabalho de figurino extrapola suas funções
miméticas, referenciais, sinaléticas ou decorativas e apresenta significados
a serem desvelados pelo receptor, podemos dizer que temos um trabalho
de design de aparência de atores e não apenas a realização de um figurino,
pois quando um figurino permite ver mais que aquilo que se apresenta, não
é mais um figurino e sim um design de aparência de ator.
51
CAPÍTULO 2: O DESIGN DE APARÊNCIA DE ATORES E O
TEATRO: A CONSTRUÇÃO DE UM PARADIGMA
2.1 O paradigma do teatro
Ainda que de modo indireto, a principal questão que norteia este
capítulo está enunciada nessas palavras de Hans-Ties Lehmann. “De fato,
até o surgimento do cinema, nenhuma outra prática artística podia
monopolizar de modo tão plausível quanto o teatro esta dimensão: a imitação
mimética (representada por atores reais) de ações humanas” (2007, p. 56).
No primeiro capítulo desta pesquisa foi levantada a hipótese de que
os trabalhos para construção da aparência de atores têm, em sua gênese,
o paradigma do modus operandi do teatro e de todas as modalidades
espetaculares que ocorrem diante do público. Todas as evoluções, tanto
técnicas quanto estéticas, surgidas no âmbito de influência desse paradigma,
foram incorporadas pelo cinema, pelo vídeo e pelos demais meios
eletrônicos. Operacionalmente, em tais meios, há a opção de utilizarem-se,
em parte ou por completo, os modos manuais de caracterização visual ou
mesmo prescindir deles e trabalhar apenas com a tecnologia própria de
cada meio para construir a aparência de atores em seus espetáculos.
Durante séculos, a aparência de um ator/ personagem, no teatro culto
europeu, não mereceu uma reflexão particularizada. Era comum, até meados
do século XVIII, “os atores se vestirem da maneira mais suntuosa possível,
herdando vestimentas de corte de seu protetor, exibindo seus adornos como
sinal exterior de riqueza, sem preocupação com a personagem que iriam
representar” (Pavis, 2001, p. 168).
52
Os diferentes movimentos artísticos que se sucederam na Europa
imprimiram fortes mudanças no teatro, sobretudo nas concepções
cenográficas, porém a caracterização visual dos atores foi, por muito tempo,
apenas um subproduto da cenografia que se praticava a cada época. Longe
de uma preocupação dedicada à significação da aparência de um ator em
cena, os criadores teatrais da Europa concentraram seus esforços artísticos
na experimentação de diferentes formas de ocupação do palco a partir dos
cenários que, por sucessivas décadas, tiveram a incumbência de causar,
no espetáculo, ilusão de realidade e, para tanto, deveriam tentar, mesmo
em vão, esconder os mecanismos cênicos. Mas, apenas no final do século
XIX e início do século XX, as concepções artísticas que tinham o mimetismo
como escopo para suas realizações alcançaram o ápice até então almejado,
com o realismo e o naturalismo.
A busca quase obsessiva de ser fiel à vida real, de trazer uma fatia
da realidade ao palco, fez com que os criadores do realismo e do
naturalismo recorressem a especialistas, como arqueólogos e historiadores,
por exemplo, para embasar suas criações cênicas. A historiadora de teatro
Margot Berthold menciona que, nas montagens do encenador inglês, da
segunda metade do século XIX, Charles Kean, o “palco dava lições de
história” (2003, p. 442). Segundo essa pesquisadora, algumas décadas mais
tarde, Émile Zola entendia que “o método do dramaturgo naturalista
correspondia aos procedimentos da pesquisa científica, que o século
empregava com zelo febril” (2003, p. 452).
Graças a esses movimentos artísticos que buscavam um
espelhamento na realidade para a realização de suas obras, começou a
esboçar-se, no teatro europeu, a preocupação de conceber uma imagem
cênica, na qual a aparência dos atores era considerada elemento de
53
significação. O princípio de veracidade histórica que regia as montagens
realistas e naturalistas não permitia mais que um ator se apresentasse em
cena com suas próprias roupas. Sua aparência deveria estar em sintonia
com a realidade retratada no espetáculo e, assim, começaram a surgir
profissionais voltados para a pesquisa nessa área. Consta que o grande
teatrólogo russo, Stanislávski, inaugurou, no final do século XIX, o Teatro de
Arte de Moscou com sua montagem para o drama histórico Czar Fiodor
Ivanovitch de Alexei Konstantinovitch Tolstói (Berthold, 2003, p. 462). Berthold
relata que:
Durante os meses que antecederam a estréia,
Stanisláviski, sua mulher Lilina e o cenógrafo Victor Simov
haviam visitado locais históricos. Procuravam vestimentas
oriundas dos monastérios e igrejas na área entre os rios
Volga e Oka, esquadrinharam lojas de antigüidades e
mercados de trastes a fim de reunir material para uma
produção de poder emocional e ambiente “genuínos” (2003,
p. 462).
Podemos dizer que a intenção de mimetizar o real propiciou a prática
artística que, ao longo do tempo, veio a constituir a linguagem caracterização
visual para a construção da aparência de atores em espetáculos. Entretanto,
os códigos dessa linguagem não são utilizados apenas para perseguir o
mimetismo e, nesse ponto, como já vimos, encontra-se a principal distinção
entre os modos figurino e design de aparência de atores.
De um lado, o teatro culto, de elite, que na maioria das vezes era
apresentado em espaços cênicos fechados, caracterizava-se pelo desejo
de alcançar a precisão mimética. Nesse contexto, a visualidade de um ator
em cena era constituída por meio de signos referenciais, conjuntura que
assinalamos como gênese do modo figurino de organizar a linguagem
caracterização visual de atores. Por outro lado, as manifestações populares,
54
cujas criações se distanciavam da imitação mimética, sempre tiveram como
espaço cênico os espaços públicos diversificados, circulares, múltiplos ou
abertos, como praças e arenas. Entre essas espécies de manifestações
artísticas podemos citar, por exemplo, o circo, o carnaval, os Milagres e
Moralidades da Idade Média e determinadas formas teatrais do Oriente,
assim como também os experimentos da vanguarda teatral do início do
século XX , que entendemos formarem a base do modo design de aparência
de caracterizar atores.
2.2 Espaços cênicos e a caracterização visual
Com base na discussão anterior, devemos observar que, nos
espetáculos realizados diante do público, a perspectiva, entendida como o
ângulo sob o qual a cena é apresentada aos receptores (Pavis, 2001, pp.
289-290), é um fator fundamental para a condução dos trabalhos de
caracterização visual dos atores e determina os demais procedimentos de
construção cênica. Em outros termos, o espaço onde a cena teatral se
desenvolve estabelece a estratégia metodológica da construção cênica do
espetáculo, bem como determina a recepção desta. As palavras de Roland
Barthes destacam a importância do ponto de apreensão do receptor para a
realização teatral:
O teatro é, na verdade, aquela prática que calcula o lugar
para as coisas; se o colocar noutro lugar, ele não verá e
poderei aproveitar o fato para jogar com uma ilusão: o palco
é exatamente a linha que vem barrar o feixe óptico
desenhando o termo e como que o front de sua expansão
(apud Pavis, 2001, p. 290).
55
Cada tipo de palco ou espaço cênico estabelece uma relação com a
platéia e os trabalhos de caracterização visual de atores são instrumento
fundamental nesse diálogo. No palco italiano
5
, da mesma forma que em
outros espaços que estabelecem uma relação frontal com os receptores, a
cena é concebida como um “cubo-fragmento de uma realidade posta na
vitrine, o espectador se encontra como que imobilizado no ponto de fuga
das linhas da cena” (Pavis, 2001, p. 290). O fato de o olhar do espectador
estar fixado em um ponto permite “o controle do espaço e a racionalização
das figuras e objetos para a produção de um todo uniforme e ordenado”
(Ferrara, 2003, p. 38).
Nesses espaços cênicos, a relação dos atores com a platéia, por
ser sempre frontal, é determinada pelo ponto de vista estabelecido pela
perspectiva que favorece a criação, no espetáculo, daquilo que Jean-Jaques
Roubine, entre os demais pesquisadores teatrais contemporâneos, chama
de “efeitos de ilusão” (1998, p. 81). O espectador torna-se uma espécie de
voyeur, que facilmente pode identificar-se com a ficção, razão pela qual as
concepções teatrais que buscam um maior espelhamento na realidade,
assim como também aquelas que procuram esconder qualquer maquinaria
do espetáculo, adotaram o palco à italiana, ou similar, para suas criações.
Espaços cênicos desse tipo impõem determinados modos de
organizar os recursos técnicos da caracterização visual, para
que os efeitos de simulação aplicados ao corpo do ator
possam ser apreendidos pela recepção. Como exemplo de
um procedimento adequado a essa situação espacial, em que
palco e platéia estão separados por uma distância significativa
e um foco de luz ilumina os atores, mencionamos as pesadas
maquiagens utilizadas pelos atores de espetáculos realizados
5
O palco italiano é
“característico dos
teatros europeus a
partir do século XVII.
Trata-se do palco
retangular, aberto para
a platéia na parte
anterior e delimitado, à
frente, pela boca de
cena e, ao fundo, pela
rotunda ou ciclorama”.
(Vasconcellos, 1978:
146).
56
em palcos italianos ou análogos. Em tais espaços cênicos, as expressões
faciais dos atores tornam-se difíceis de serem vistas à distância, além de
serem ofuscadas ou sombreadas pela iluminação.
Conseqüentemente, fortes maquiagens devem ser trabalhadas:
executadas de forma exagerada e carregadas para marcar os traços
fisionômicos dos atores, destacam principalmente os olhos, para que eles
possam ser apreendidos à distância (fig.20). O exagero da pintura não é
notado e o resultado visível é a ilusão de naturalidade, como se o ator não
estivesse maquiado. Esse efeito ilusório Patrice Pavis denomina “efeito
Arcimboldo”, em alusão ao pintor que utilizava conjuntos de flores ou de
frutas para formar rostos humanos. Ao comentar a diferença entre a
percepção à distância e a percepção aproximada, Pavis ressalta que a
“mesma maquiagem, vista de longe, parecerá adequada e misteriosa, e
vista de perto, teatral e desmistificadora” (2003, p. 173), da mesma forma
que nos quadros do mencionado pintor, “de perto, as flores (as maquiagens)
são visíveis em seus detalhes e sua materialidade: de longe, o rosto feito de
Fig.20: Maquiagem de envelhecimento teatral. Foto Adriana Vaz.
57
flores é apenas um rosto captado em seu
conjunto” (2003, pp. 173-174) (fig.21).
No caso de arenas ou espaços
cênicos expandidos em diversas áreas de
atuação ao redor dos espectadores, a
cena pode ser apreendida a pouca
distância e sob diferentes ângulos. Por
não contarem com os efeitos que uma
cenografia construída pode oferecer e
pela situação de proximidade com os
receptores, esses espaços cênicos
sempre se prestam à criação de
espetáculos com atores caracterizados
visualmente de forma muito criativa e
distanciada do espelhamento na realidade. A caracterização visual
trabalhada em tais concepções teatrais gera imagens que, ao procurarem
ressaltar a teatralidade da aparência dos atores, fazem-na aparecer de
modo descoberto, desenham o espaço cênico e permitem a apreensão de
toda a sua tridimensionalidade. Ou seja, nessas situações, é atribuída, ao
ator e à sua aparência, a incumbência de ocupar o espaço cênico, criando,
assim, a espacialidade do espetáculo.
2.3 Espacialidade
O conceito de espaço, quase sempre atrelado ao de tempo, é, há
muitos séculos, estudado por incontáveis pensadores. Entretanto, a
diversidade das profundas conceituações, elaboradas ao longo dos tempos
Fig.21: Outono, pintura de Arcimboldo,
século XVI.
58
pelas diferentes correntes filosóficas e por demais estudiosos, não é objeto
deste estudo.
Por outro lado, a noção de espacialidade, conforme conceituação
de Lucrécia D’ Alessio Ferrara (2007), é relevante para as reflexões a serem
desenvolvidas durante as análises que serão feitas a seguir. Por meio dessa
compreensão, poderemos aprofundar a avaliação da importância
significativa da aparência do ator como componente de uma imagem cênica,
pois, conforme o que foi exposto anteriormente, das particularidades de
cada espécie de espaço cênico decorrem os processos de construção e
recepção da cena espetacular.
Segundo Ferrara, “(...) é possível estudar os conceitos de espaço e
tempo em relação às propriedades que os identificam e distinguem,
sobretudo, que os representam social e comunicativamente, qualificando-
os como signos e linguagens que atendem às especificidades daquela
representação” (2007, p. 10). A manifestação sígnica, ou o modo como
aparecem espaço e tempo interferem nas relações comunicativas humanas.
Assim, a autora considera que:
No registro daquelas propriedades de aparência e
representação, espaço e tempo são espacialidades e
temporalidades distintas e se diferenciam no curso de uma
experiência cognitiva e comunicativa. Temporalidades e
espacialidades correspondem, pois, às manifestações do
tempo e do espaço enquanto linguagens que os tornam
perceptíveis no plano da cultura (2007, p. 10).
Ferrara explica que, para o espaço ser estudado como fenômeno e
experiência do mundo, é preciso conhecer as construtibilidades que o
representam e o colocam em relação dialógica com outros signos do entorno
(2007, p. 12). Analisar toda a gama de variáveis da construtibilidade, a fim
59
de conhecer sua natureza cognitiva, implica trabalhar com três categorias
de observação. Estas são: espacialidade, visualidade e comunicabilidade.
A espacialidade é a manifestação do espaço como interação de
linguagens, pois se o espaço é algo abstrato, a espacialidade possui
elementos concretos que conferem significados a ele. Assim, como
construção sígnica a representar o espaço físico, a espacialidade não pode
se dissociar da visualidade e da comunicabilidade. Deve-se compreender
a relação dialógica existente entre essas três categorias para que se possa
apreender por completo a interação de linguagens presente numa
determinada espacialidade. Dessa relação deriva a abrangência de tais
categorias como instrumental analítico.
A visualidade dá conta do modo pelo qual o espaço, como fenômeno,
se apresenta ao olhar. “É um artefato de registro que possibilita o pronto
reconhecimento do mundo (...)” (Ferrara, 2007, p. 13). Ainda não
necessariamente no nível interpretativo, trata-se da mera observação e
discriminação dos signos que evidenciam a construção sígnica material
formadora de uma determinada espacialidade.
A comunicabilidade refere-se aos vínculos que a espacialidade gera
com diferentes esferas no plano da cultura. De acordo com Ferrara, essa
categoria permite-nos perceber como o registro visual (visualidade) pode
gerar importantes alterações culturais na sociedade (2007, p. 13). A
comunicabilidade traça o percurso da dinâmica cultural de uma
espacialidade e torna claros os vínculos que estabelece com outras
espacialidades, sobretudo com os receptores. Apenas na relação com
outras, ocorridas no interior do dinamismo da cultura, é que uma
espacialidade pode construir significados.
60
Para edificar espacialidade, visualidade e comunicabilidade há três
formas básicas de inscrição do espaço entendido como fenômeno. São
elas: proporção, construção e reprodução.
É importante frisar que o espaço se define no sistema filosófico no
qual se insere, portanto cada momento histórico-cultural levou a um conceito
de espaço e, em conseqüência deste, a uma forma de representá-lo. Assim,
a proporção, caracterizada pelo rigor geométrico e pela simetria balizada
na figura humana, é marca distintiva da Renascença. A perspectiva
determinava a espacialidade, gerando visualidades harmônicas de “um
espaço necessariamente bidimensional e ortogonal” (Ferrara, 2007, p. 14).
Nesse período, o espaço plano e simétrico torna-se matriz da visualidade e
dita as regras do processo comunicacional, indicando o modo adequado
de ver.
A construção caracteriza o momento em que a centralidade da
espacialidade renascentista passa a ser substituída pela frontalidade, que,
ao descentralizar o ponto de vista do observador, lhe apresenta a
tridimensionalidade. Volume, movimento e luz passam a hierarquizar e a
desenhar o espaço. Nessa situação, a comunicabilidade constrói-se no
contexto espacial, em que a luz desempenha importante papel: velar e
desvelar. “Essa espacialidade construtiva desenvolve-se nos descompassos
da própria Renascença do final do século XVI e expande-se, através do
Barroco, no século XVII para atingir o XVIII, até o XIX” (Ferrara, 2007, p. 15).
A partir da primeira Revolução Industrial, as inovações mecânicas
modificam o entendimento do espaço, que passa a poder ser tecnicamente
reproduzido em larga escala. Assim, a reprodução, por meio do
deslocamento e do movimento que caracterizam esse momento, permite
que o espaço se liberte da estabilidade que se apresentava, até então, como
61
“marca atávica da cultura” (Ferrara, 2007, p. 10) e passe a ser representado
de acordo com os novos parâmetros de velocidade e eficiência técnica.
Se a construção, característica do espaço barroco, é um
procedimento que supera a ortogonalidade renascentista para atingir o
volume, a tecnologia mecânica de reprodução da primeira Revolução
Industrial, com aparelhos como a máquina fotográfica, por exemplo, “faz
emergir a consciência da imagem como outra possibilidade de ver e de re-
ver o mundo” (Ferrara, 2007, p. 21).
Com base no que foi exposto, a questão das formas de construção e
ocupação do espaço cênico problematiza-se, pois ante o conceito de
espacialidade, ressalta-se a convicção de que o espaço cênico, em si, como
espaço físico e concreto, não tem a menor razão de existir, senão pelas
construções sígnicas que o preenchem e, dessa forma, o constroem e o
qualificam como espaço comunicante.
Observar as espacialidades geradas pelos diferentes tipos de
espaços cênicos vai nos permitir explorar mais verticalmente a reflexão
acerca dos modos de caracterizar atores em espetáculos que se dão diante
do público, assim como também naqueles veiculados por outros meios.
Podemos dizer que à espacialidade renascentista correspondem as
criações teatrais voltadas para a representação mimética das ações
humanas, de acordo com as observações feitas anteriormente a respeito
do teatro culto europeu, apresentado em salas fechadas, que vigorou durante
séculos como modelo a ser seguido por inúmeros criadores do teatro do
Ocidente. Essa forma de representação do espaço, caracterizada pela
centralidade do ponto de vista do observador e pela programação ordenada
da recepção, está na genealogia do modo figurino de organizar a
62
caracterização visual de atores. Nesse tipo de espacialidade, gera-se,
visualmente, uma imagem cênica bidimensionalizada pelo efeito da distância
existente entre os atores e a recepção, apesar de a cena se realizar diante
do público.
Por outro lado, as formas teatrais apresentadas em espaços cênicos
abertos, circulares e múltiplos, correspondentes às realizações populares,
entre outras formas artísticas já citadas, que acontecem perto dos receptores,
geram espacialidades construtivas que se aproximam das representações
do espaço feitas no Barroco. Essa situação representacional, em que a
tridimensionalidade da aparência do ator se evidencia, propicia, no nível da
visualidade, a criação de imagens cênicas inusitadas e menos vinculadas a
uma ordenação preestabelecida da recepção, que, em conseqüência, estão
na base do modo design de aparência de atores.
Contudo, não podemos dizer que o design da aparência somente se
aplica a espetáculos representados em espaços abertos ou que em teatros
de palco italiano só existe o modo figurino de caracterizar atores. Estudar
as espacialidades produzidas nos espetáculos contemporâneos realizados
diante dos receptores, implica perceber as peculiaridades do momento
sociocultural que vivemos.
Mesmo nos reportando a espetáculos presenciais do ator ante o
espectador/receptor, apresentados em teatros fechados, devemos levar em
consideração o ambiente tecnológico do presente, pois este imprime
decisivamente as características das visualidades e dos efeitos
comunicacionais das obras artísticas que formam o panorama cultural
contemporâneo.
Ao modo pelo qual as espacialidades são construídas em espetáculos
artísticos atuais somam-se os efeitos da maneira de representar o espaço
63
derivado da primeira Revolução Industrial. Os recursos técnicos surgidos a
partir deste período criaram a possibilidade de reprodução de imagens em
série e, em lugar da imitação mimética como forma de espacialização,
observa-se que “se fragmentava o plano para ser possível espacializar em
série” (Ferrara, 2007, p. 16). Essa nova possibilidade representacional gerou
a expansão das imagens técnicas, o que levou a uma nova e irreversível
forma de ver e representar o mundo e, nesse processo, a fotografia foi o
maior agente.
A imagem fotográfica transforma a tridimensionalidade volumétrica
do real captado em uma cópia plana e bidimensional, ou seja, duas das
quatro dimensões do espaço são suprimidas na imagem técnica e um
mecanismo de abstração reconstitui mentalmente a tridimensionalidade. De
acordo com Vilém Flusser, a capacidade de decifrar imagens produzidas
por aparelhos é diretamente ligada à imaginação. O autor afirma que imagens
Devem sua origem à capacidade de abstração específica
que podemos chamar de imaginação. No entanto, a
imaginação tem dois aspectos: se de um lado, permite
abstrair duas dimensões dos fenômenos, de outro permite
reconstituir as duas dimensões abstraídas na imagem. Em
outros termos: imaginação é a capacidade de codificar
fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e
decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginação
é a capacidade de fazer e decifrar imagens (2002, p. 7).
Ferrara completa esse raciocínio ressaltando que, para além de
reconstituir imaginariamente a tridimensionalidade da imagem, esse
mecanismo abstrato enriquece a imagem decifrada de “imaginários que
produzem outras tantas imagens” (2007, p. 21). Essa situação evolutiva que
caracterizou o mundo moderno é potencializada pelas novas tecnologias
eletrônicas e digitais, que, ainda segundo a autora, situadas nos “laboratórios
64
de espacialidades comunicativas” em que se transformaram as metrópoles
e megalópoles atuais (2007, pp. 21-22), ensejaram um novo entendimento
do mundo e da cultura, marcado pela forma como o homem se comunica
por meio da tecnologia e, assim procedendo, transforma e apropria-se das
espacialidades que constrói. Ferrara pontua:
A imagem e a imaginação estabelecem, portanto, a
possibilidade de entender que o espaço se faz representar
através de espacialidades e revelam, para a cultura de
uma “civilização da imagem” que caracteriza a
modernidade, a possibilidade imaginária que, indo além
da imaginação, faz produzir imagens de imagens e
reproduzir, perceptiva e representativamente, a mesma
capacidade que a Revolução Industrial mecânica havia
tecnicamente inaugurado e ensinado (2007, p. 22).
O design de aparência de atores, uma vez que é uma forma
contemporânea de organizar a caracterização visual, insere-se nesse
contexto, pois trabalha com a imaginação como agente da produção e
reprodução de imagens.
As visualidades geradas pelos atuais projetos de design de aparência
expressam a liquidez característica da modernidade atual, que dissolve os
sólidos padrões de outrora, que indicavam a coerência mimética sustentada
pela linearidade histórica e geográfica como procedimento adequado a ser
adotado para criar a aparência de um ator em cena. Até mesmo a solidez
das imagens teatrais edificadas em espaços cênicos fechados e de visão
frontal, como no palco italiano, por exemplo, podem ser diluídas pelas
visualidades produzidas pelo design de aparência como forma de
caracterizar atores.
Tal como procuraremos demonstrar ao longo das análises que se
seguirão, o design de aparência qualifica o espaço cênico de modo peculiar.
65
Apenas os receptores de hoje são capazes de dialogar com as construções
inusitadas das aparências dos atores dos espetáculos contemporâneos,
pois o contexto sociocultural de nossos dias, fortemente caracterizado pela
tecnologia, os capacitou a lidar com o fluxo incessante de imagens e com
os significados por elas gerados.
O atual contexto em que a cultura contemporânea está inserida
determina igualmente os procedimentos técnicos de manipulação da
linguagem caracterização visual. Isso acontece porque novos meios capazes
de veicular espetáculos com atores têm surgido em decorrência do avanço
tecnológico e cada meio possui suas particularidades técnicas que implicam
determinados procedimentos operacionais da linguagem caracterização
visual.
Conforme menciona Lehmann, na frase destacada no início deste
capítulo, antes de o cinema surgir, nenhuma outra forma artística, fora o teatro,
detinha o monopólio da imitação mimética de ações humanas. Tal afirmação
parece estabelecer o teatro como um paradigma para a reprodução
mimética de ações humanas e, se pensarmos que os recursos de
manipulação da aparência de atores também faziam parte da construção
de obras teatrais que buscavam mimetizar ações humanas, é possível
estabelecermos o mesmo paradigma para a caracterização visual.
Porém, não foi apenas imitando o real que as diferentes maneiras de
trabalhar as aparências de atores, nos meios de representação direta diante
do público, funcionaram como paradigma para as criações realizadas em
novos meios artísticos que surgiram depois. Conforme mencionamos
anteriormente, os diferentes modos de caracterizar atores em espetáculos
representados diante dos receptores experimentaram inúmeras
possibilidades organizacionais.
66
Em espetáculos de representação diante do público, esses
procedimentos são desenvolvidos para figurar diretamente sobre o corpo
do ator de modo a construir diferentes aparências, seja para trabalhar em
busca de referências miméticas ou para construir aparências inusitadas,
criadas com base em um projeto de design de aparência de atores. Em
geral, esses procedimentos são concretizados pelo uso de técnicas
artesanais como, por exemplo, tratamentos especiais nos tecidos,
maquiagens, penteados, entre outras maneiras de moldar a aparência de
um ator, tais como o uso de máscaras, enchimentos e próteses corporais.
Com o surgimento de novos meios tecnológicos de reprodução de
espetáculos artísticos, as tecnologias inerentes a cada meio se apresentam
como um recurso a mais para ser ou não utilizado na construção da
aparência de atores. O avanço tecnológico de nossos dias permite que
qualquer aparência de ator, mimética ou não, seja construída por meio da
programação tecnológica, como é o caso do cinema, por exemplo. Se hoje
é possível constatar uma evolução nas concepções criativas nos modos de
organizar a caracterização visual de atores e traçar um conceito de design
de aparência, não poderíamos fazê-lo sem tomar como base o paradigma
do modus operandi do teatro.
Porém, é sempre importante ressaltar que, mesmo que a
caracterização visual dos atores de espetáculos gerados por máquinas
semióticas tenha sido trabalhada dentro do modus operandi do teatro, ou
seja, com a utilização de recursos materiais diretamente trabalhados sobre
o corpo do ator, a captação e a recepção das imagens geradas serão
determinadas pela tecnologia de cada meio em particular.
O design de aparência de atores pressupõe, em sua genealogia, o
contexto tecnológico atual, mesmo se esse modo de caracterizar atores
67
estiver aplicado a realizações artísticas apresentadas diretamente diante
dos receptores. A “imaginação como capacidade de ver e decifrar imagens”
é parte constitutiva do homem contemporâneo e contamina todas as
manifestações culturais de nossos dias, de tal forma, que podemos,
parafraseando Flusser, considerar que a imaginação é a capacidade de
ver, decifrar e de construir imagens. Por essa razão encontramos atores
caracterizados segundo o modo design de aparência em diferentes formas
artísticas, tal como foi mencionado na introdução desta pesquisa.
No teatro contemporâneo, o design de aparência, visto como o modo
“profundamente diferente” com que a linguagem caracterização visual
trabalha os signos para construir aparências de atores em cena, parece
sintonizar-se com as colocações de Lehmann a respeito da conceituação
do “teatro pós-dramático” (2007).
2.4 Teatro pós-dramático
O pesquisador alemão Lehmann e demais estudiosos e criadores
europeus da atualidade
6
, citados pelo autor em seu livro O teatro pós-
dramático (2007), diante das diferentes formas de construção da linguagem
teatral, feitas, principalmente, a partir da década de 1970, têm se dedicado
a buscar uma expressão que possa nomear a “lógica estética do novo teatro”
contemporâneo (2007, p. 21).
Em meio a diversas tentativas, de cunhar um termo que explique o
modo como os signos teatrais têm sido usados atualmente,
Lehmann observa, como principal traço característico desse
mecanismo, o fato de que o texto não mais se encontra no
centro das realizações cênicas contemporâneas e que,
6
Lehmann cita os
pesquisadores europeus
Gerda Poschmann,
Elfried Jelinek, Ginka
Steinwachs Werner
Schwab e Rainald
Goetz (2007, p. 20).
68
nessas novas formas teatrais, há a constante situação construtiva que o
coloca apenas como mais um “elemento, camada e ‘material’ da
configuração cênica” (2007, p. 19).
Não mais seguindo os princípios de narração e fabulação, de acordo
com o ordenamento de uma lógica cartesiana, os textos teatrais da
atualidade distanciam-se do drama como gênero literário. Esta é a razão
da escolha do termo “pós-dramático”: demarcar a distância entre o gênero
que dominou o teatro europeu, e conseqüentemente todo o Ocidente durante
décadas, e as novas realizações teatrais.
No novo teatro, salienta Lehmann, a linguagem não mais se manifesta
como um discurso figurativo que consiste em declamar e ilustrar o drama
escrito, ao contrário, busca-se uma autonomia que se distancia da ilusão
mimética (2007, pp. 20- 25). O autor estabelece como início da realidade
do novo teatro a extinção da trindade “drama, ação e imitação” e sentencia:
Enquanto não nos libertarmos desse modelo, jamais
poderemos conceber aquilo que reconhecemos e
sentimos na vida como algo intensamente moldado pela
arte – por um modo de ver, de sentir e de pensar, por um
“modo de quer dizer” que é gerado somente por ela. Para
tanto, basta considerar que a formulação estética em geral,
atravessando as tramas conceituais, inventa imagens de
percepção e diversas esferas de afetos ou sentimentos,
as quais, portanto, não existem fora de sua representação
artística em texto, som, quadro ou cena (2007, p. 57).
O conteúdo da mencionada obra de Lehmann é voltado a esmiuçar
os diferentes aspectos que caracterizam o teatro pós-dramático, porém
interessam para esta pesquisa os pontos levantados pelo autor em que é
possível perceber uma relação com nossa conceituação do design de
aparência de atores. Por meio deles podemos entender que o modo design
de caracterizar atores é também parte da realidade do chamado novo teatro.
69
O autor não menciona diretamente a construção da aparência de
atores nesse novo teatro multiforme que, entre outras razões, deve sua
constituição à “onipresença das mídias na vida cotidiana desde os anos
1970” (2007, p. 27). Contudo, o espaço do design de aparência de atores
no teatro pós-dramático está na afirmação de Lehmann de que esse modo
de organização de texto teatral não trabalha com imagens previamente
definidas do ser humano, mas, sim, com “novas possibilidades de
pensamento e representação (...) aqui projetadas para o sujeito humano
individual” (2007, p. 20).
Apesar da sedução que as inovações relacionadas pelo autor
suscitam, no que se refere à maneira de caracterizar atores, não podemos
nos esquecer de que outras experiências teatrais, anteriores à demarcação
temporal por ele apontada, também tinham como base novas maneiras de
ver o ser humano. Esse fato resultou em caracterizações de atores diversas
do naturalismo, portanto, caracterizações construídas como design de
aparência, como é o caso das realizações das vanguardas européias do
começo do século XX.
Em meio a essas reflexões, pensar em um teatro em que o texto
verbal não é o principal componente da construção cênica e, de modo
inverso, é caracterizado por uma espacialidade gerada pela relação dos
demais signos teatrais, sobretudo pela aparência dos atores, que inventa
imagens ainda não vistas, remete-nos, mais uma vez, às vanguardas da
Europa e, principalmente, às concepções teatrais de Antonin Artaud.
70
2.5 Artaud e o teatro oriental
Antonin Artaud, no início do século XX, em seu livro O teatro e seu
duplo (1987), criticava o teatro europeu justamente por colocar em primeiro
plano o texto dramático, em detrimento dos demais elementos visuais do
espetáculo, que não estão contidos nos diálogos e, segundo o autor,
possuem maior poder de comunicação. Procurando distanciar-se daquele
teatro centrado principalmente nas palavras, a expressar conflitos
psicológicos oriundos de situações cotidianas, Artaud buscava encontrar
uma linguagem teatral formadora de uma poesia destinada aos sentidos,
como expressam suas palavras:
Digo que esta linguagem concreta, destinada aos sentidos
e independente da palavra, deve primeiro satisfazer aos
sentidos, digo que existe uma poesia para a linguagem e
que esta linguagem física e concreta à qual me refiro só é
verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos
que expressa escapam à linguagem articulada (1987, p.
51).
Ao conhecer o teatro que se fazia no Oriente, mais especificamente
na ilha de Bali, na Indonésia, Artaud pôde melhor formular suas concepções
teatrais, registradas em seu texto de 1931, A encenação e a metafísica,
valendo-se da comparação entre os
modos distintos de construções cênicas
praticados naquela altura, na Europa,
e aqueles derivados da tradição
oriental (fig. 22).
Nesse texto, Artaud ressaltava
que o teatro oriental fazia amplo uso de
Fig.22: Teatro de Bali (Indonésia).
71
“tudo aquilo que é especificamente teatral, isto é, tudo aquilo que não
obedece à expressão através do discurso, das palavras (...)” (1987, pp. 50-
55), e dessa forma, tornava-se possível vivenciar a linguagem física e
concreta que constituía, o que o autor denominava uma “poética teatral”.
Segundo Artaud, os orientais criavam imagens em contraposição aos
europeus, que deixavam em segundo plano as múltiplas possibilidades de
exploração da linguagem teatral e submetiam a encenação ao texto, usando
as palavras para expressar idéias, embate que nos remete ao que Vilém
Flusser definiu como “a luta da escrita contra a imagem” que, segundo esse
autor, caracteriza toda a História (2002, pp. 9-10).
O conceito de teatralidade expressa tal dualidade. Nomeia-se
teatralidade tudo o que, na representação, é especificamente teatral e
cênico, ou seja, todos os mecanismos que compõem a representação, com
exceção do texto verbal (Pavis, 2001, p. 372). Essa conceituação tem
sintonia com o pensamento de Artaud e, na mesma direção, Roland Barthes
explica o conceito de teatralidade: “é o teatro menos o texto. É uma espessura
de signos e de sensações, percepção ecumênica dos artifícios sensuais,
gestos, tons, distâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua
linguagem exterior” (1970, pp. 41-42).
A teatralidade refere-se, portanto, à concretização dos conteúdos
ocultos e latentes no texto teatral, por meio de elementos visuais e de
ferramentas cênicas (Pavis, 2001, p. 373). Assim, a construção dessa
visualidade cênica é feita pela articulação de diferentes linguagens que
constituem um espetáculo teatral.
As imagens há muito criadas por determinadas formas teatrais do
Oriente exibem grande teatralidade. Estão centradas na aparência dos
atores, visto que não há elementos cenográficos atraentes nos palcos das
72
danças balinesas, por exemplo. Seja no teatro de Bali, no Kabuki do Japão,
no Kathakali da Índia ou na Ópera de Pequim, cabe ao ator, com seus gestos
e cantos, ocupar e desenhar o espaço cênico, criando assim a espacialidade
do espetáculo.
As formas das roupas, o desenho das maquiagens e os adereços
que compõem a figura dos
atores são usados
teatralmente como
extensões de seus corpos
e comunicam o modo de
leitura da obra à qual
pertencem. Atores
representando demônios e
deuses diversos, com
vestes suntuosas e rostos tornados máscaras flexíveis, por serem cobertos
por inteiro com maquiagens fantásticas muito elaboradas
7
(fig.23), e roupas
com formas e volumes inusitados, em cores vibrantes que sublinham os
gestos coreográficos, são algumas constantes das
caracterizações visuais dos atores dessas formas teatrais
que descartam qualquer traço de mimetismo.
Segundo Artaud, o teatro oriental gera imagens,
signos que “constituem verdadeiros hieróglifos”, construindo
uma “linguagem de gestos e atitudes com um valor
ideográfico” (1987, pp. 53-54). A aparência dos atores
dessas formas teatrais orientais é trabalhada de modo que
suas roupas e demais complementos assumam a função
de objetos cênicos e Artaud também preconizava essa idéia
7
A propósito, a
maquiagem do
Kathakali leva por volta
de cinco horas para ser
feita em um ator.
Sobre a maquiagem no
teatro indiano: “Symbolic
make-up, also called
‘stylized’ or ‘fantastic’
make-up, has a far more
ancient heritage and
shares with the
venerable tradition of
masks a supra-real
approach. The mere
realistic imitation of
nature is not the aim of
art” in World of Other
Faces (Pani, 1986, p.
38).
Fig.23: Maquiagem de Kathakali (Índia).
73
em suas proposições para um novo teatro ocidental, vislumbrando figurinos
que fossem como “vestimentas cerimoniais (...) roupagens sagradas de
destino ritual (...) onde nada se exibe, além de pura suntuosidade” (Roubine,
1998, pp. 148-153).
Um teatro de imagens concretas destinadas ao espírito, imagens que,
como sombras, representassem um duplo da realidade e não um espelho
do cotidiano. Um teatro que permitisse o desenvolvimento de uma linguagem
não-verbal criadora de um simbolismo paralelo, capaz de promover a
ativação dos sentidos e de idéias e, dessa forma, gerar aparências de atores
que induzissem a uma outra realidade perigosa e primordial, cujas “imagens
sirvam de instrumentos de orientação no mundo” (Flusser, 2002, pp. 9-10).
Esse é o modo como Artaud definia o que ele chamava de “realidade virtual”,
criada pela “miragem” que ele vislumbrava ser o teatro (1987, pp. 65-67).
Talvez o design de aparência de atores faça parte da “realidade virtual”
criada pela “miragem” que é o teatro contemporâneo. Apesar de Artaud não
ter vivido para ver suas teorias efetivamente aplicadas, os seus escritos
influenciaram criadores contemporâneos que realizaram concretamente a
revolução do teatro ocidental, a partir da década de 1960. Jean-Jacques
Roubine aponta:
Se o teatro de Artaud nunca conseguiu concretizar-se, se
os projetos de Artaud, realizados ou não, revelam senão
uma contradição, ao menos uma distorção entre o teórico
e o prático, nada disso afeta, em última análise, a
importância de sua obra para o conjunto do teatro
contemporâneo. O extremismo de sua utopia permitiu sem
dúvida a esse teatro pensar a derrubada completa do
sistema de valores e de formas no qual se baseava até
então a arte da encenação (1998, pp. 65-66).
74
Criadores como Judith Malina e Julian Beck do Living Théatre (EUA),
Peter Brook (Inglaterra), Ariane Mnouchkine (França), Luca Ronconi (Itália)
e Jerzy Grotowski (Polônia) têm como germe de suas criações as
proposições feitas por Artaud. Cada artista citado conceituou, em seus
espetáculos, um modo próprio de trabalhar a aparência dos atores, mantendo
em comum uma considerável distância do mimetismo naturalista. Seus
trabalhos permitiram pensar a caracterização visual dos atores, não apenas
como um índice referencial centrado unicamente no figurino; mas, ao se
voltarem para a linguagem teatral propriamente dita, esses artistas incluíram
a metalinguagem na constituição da linguagem que constrói a aparência
dos atores, para então concebê-la de forma que interagisse com a imagem
cênica. Em outras palavras, podemos dizer que todos os criadores
mencionados trabalham com o modo design de aparência para caracterizar
os atores de seus espetáculos.
Se pensarmos no teatro brasileiro contemporâneo e no legado das
proposições de Artaud, sobretudo no que diz respeito a sua paixão pelo
teatro oriental, a figura do diretor teatral paulista Antunes Filho sobressai-se
entre os demais criadores da atualidade.
2.6 Antunes Filho
José Alves Antunes Filho, nascido em 1929, no bairro do Bexiga, em
São Paulo, é o diretor teatral brasileiro mais premiado no Brasil e no exterior
e tido por alguns críticos como o redirecionador da estética teatral brasileira,
como sentencia Carmelinda Guimarães em uma publicação a esse respeito
(1998).
75
Profundo conhecedor do Teatro, Antunes Filho demonstra, em sua
vasta obra, a busca de uma linguagem expressiva própria. Em seu
diferenciado processo criativo, o diretor disse ao Jornal da Tarde, em 10/
01/1990, embasar-se na física quântica, nas concepções sobre os arquétipos
de Jung e também no taoísmo e no budismo tibetano, para realizar suas
criações artísticas. Contudo, coloca-se longe de propor um sistema religioso
para seus atores, que, de acordo com o crítico venezuelano Leonardo
Azparren Giménez, em El Diário de Caracas de 14/04/ 1990, “alcançaram
o ideal do ator-atleta proposto por Artaud”
8
.
Além dos embasamentos citados, Antunes Filho não esconde seu
gosto por determinadas formas teatrais do Oriente, assim como também
revela utilizar o Tai-Chi-Chuan
9
e exercícios formulados pelo teatrólogo
japonês Tadashi Suzuki como método de treinamento para seus atores.
Talvez essa seja a receita para que seus espetáculos possuam uma
atmosfera bastante peculiar, caracterizada pela força comunicativa dos
elementos visuais, rigorosamente trabalhados, que, por meio de uma
meticulosa orquestração, constroem imagens inusitadas capazes de remeter
o público receptor aos rituais dos primórdios do teatro.
Esses aspectos aproximam a obra de Antunes Filho tanto das
concepções teatrais de Artaud, como das formulações de Lehmann sobre o
teatro pós-dramático, na medida em que, ao perseguir uma linguagem
diferenciada do senso comum do fazer teatral, ainda
bastante preso ao drama como norte regulador, o diretor
imprime uma nova dimensão para os signos teatrais e
proporciona, dessa forma, um nível mais profundo de leitura
ao receptor.
8
Tradução nossa.
9
Tai-Chi-Chuan: de
origem muito antiga, ligada
ao taoísmo, trata-se de
uma ginástica chinesa,
constituída por um
encadeamento de
movimentos, segundo
esquemas precisos.
(Larousse Cultural, 1998,
p. 5563).
76
As montagens de Antunes Filho transformam o espectador passivo
de outrora em um participante ativo de um acontecimento. Perante a
estranheza das imagens, o participante é obrigado a deparar-se com sua
própria presença e, ao mesmo tempo, de acordo com as propostas de
Lehmann, “travar uma contenda virtual com o criador do processo teatral”
(2007, p. 173). As palavras de Antunes Filho, proferidas em uma entrevista
a Lionel Fischer do jornal O Globo, em 08/05/1990, confirmam o exposto:
Esse teatrinho naturalista que impera no Brasil parece
unicamente empenhado em facilitar as coisas para o
espectador, como se ele só fosse capaz de digerir um
alimento que lhe chegasse exaustivamente mastigado.
Como abomino teatro degustativo, eu proponho a reflexão,
assim como estimulo a platéia a decodificar os símbolos
que utilizo.
Entretanto, o ponto de maior relevância para esta pesquisa é o fato
de que Antunes Filho trabalha de forma exemplar o modo design de
aparência para caracterizar os atores de seus espetáculos e demonstra
atribuir a esse recurso o papel de grande aliado para atingir seus objetivos
artísticos. As reflexões e questionamentos que norteiam este trabalho
começaram a ser delineados, anos atrás, ao assistirmos alguns de seus
espetáculos.
Essa é a principal razão que nos levou a escolher uma de suas
montagens como objeto de análise. Trabalharemos com a peça Os sete
gatinhos de Nelson Rodrigues, montada pelo grupo Macunaíma, sob a
direção de Antunes Filho. A peça em questão fazia parte do espetáculo
denominado Paraíso Zona Norte, de 1989. Além de Os sete gatinhos, o
diretor apresentou nesse evento, sua versão de A falecida, também de autoria
de Nelson Rodrigues. J.C. Serroni foi o responsável pela criação do cenário
e do design de aparência dos atores dessa obra.
77
2.7 Nelson Rodrigues
Pernambucano, radicado no Rio de Janeiro, Nelson Rodrigues, um
dos mais importantes dramaturgos do teatro brasileiro, de renome
internacional, era também jornalista e, por essa atividade, Gilberto Freyre o
comparou a Eça de Queiroz (2004, p. 267)
10
. O pesquisador Paulo Mendes
Campos (2004, p. 8) observa que o teatro é composto pelo diálogo de
diferentes vozes conflituosas e destaca que Nelson Rodrigues, por meio da
grandeza de sua poética no palco, “conseguiu eliminar o espectador, e deste
fazer uma voz, por sinal que nem sempre muda na poltrona, mas muitas
vezes uma voz veemente e protestante” (2004, p. 278).
Percebe-se que há um fio condutor que une as concepções de Artaud
ao teatro contemporâneo e que, ao passar pelo Brasil, une o teatro de Nelson
Rodrigues às realizações de Antunes Filho. Esse fio pode ser identificado
nos esforços de todos esses criadores em transformar o antigo status do
espectador de um mero observador passivo em um novo posicionamento,
no qual ele se torna parte integrante e ativa da obra teatral. Por meio de
diferentes recursos técnicos referentes à
composição do texto escrito, como também
à estética da montagem, o chamado teatro
contemporâneo exige do espectador/
receptor um nível mais profundo de
comprometimento com a obra.
O design de aparência de atores é
um desses recursos técnicos utilizados para
convidar o receptor a decifrar os conteúdos
latentes na configuração da aparência de um
ator, que, muitas vezes, pelo seu caráter
10
Escritor polêmico em suas opiniões
sobre sexo, política, religião, cultura,
comportamento e futebol, diariamente
registradas nas crônicas que escrevia no
jornal carioca Última Hora e mais tarde
compiladas em livro sob o título A vida
como ela é, Nelson Rodrigues construiu,
ao longo dos anos, fama contraditória.
Para alguns era tido como moralista e
reacionário, para outros, pornográfico. O
incontestável é que sua obra teatral possui
grande valor e alguns de seus textos são
reconhecidos por inúmeros especialistas
como verdadeiras obras-primas, como é o
caso de Vestido de noiva, por exemplo,
cuja célebre montagem de 1943, dirigida
por Ziembinski , tornou-se o “marco do
início de uma nova fase do teatro
brasileiro”, de acordo com Paulo Mendes
Campos (2004, p. 8).
78
inusitado, se apresenta como um hieróglifo (cf. Artaud). Na análise que se
segue, buscaremos observar como as diferentes “vozes conflituosas” que
constituem o teatro dialogam e, no espetáculo estudado, superam as
célebres dicotomias teatrais sintetizadas sob os rótulos: mimetismo e
teatralidade.
2.8 Os sete gatinhos
A peça Os sete gatinhos teve sua estréia nacional no Teatro Carlos
Gomes, no Rio de Janeiro, em 17 de outubro de 1958. O texto original é
dividido em três atos e quatro quadros, entretanto, para adaptá-lo ao seu
projeto de montagem, Antunes Filho cortou alguns diálogos originais e
reduziu a ação a apenas um ato. Todavia ressalta-se que esse recurso foi
utilizado visando alcançar a essência da obra. Da mesma maneira, Antunes
Filho também adaptou o texto original de A falecida de Nelson Rodrigues,
para integrar o espetáculo Paraíso Zona Norte e sobre esse trabalho de
cortar o texto original com precisão, a crítica Carmelinda Guimarães escreveu
no periódico de Madri, El Publico, em junho de 1989: “ele desce fundo nos
textos, utilizando um bisturi, que vai deixando expostas as vísceras de seus
personagens”.
11
A peça, classificada como uma “tragédia carioca”, retrata conflitos
das pessoas comuns do subúrbio do Rio de Janeiro, entretanto, as paixões
com que lida nos revelam que Nelson Rodrigues, na verdade, trabalha com
arquétipos do comportamento humano e que, em sua obra, até mesmo as
ações mais simples de seus personagens implicam um ritual, como explicou
Antunes Filho para Lionel Fischer, no jornal O Globo, de 08/05/1990.
11
Tradução nossa.
79
Por trás de um suposto naturalismo, o texto revela os mitos que
norteiam a vida das pessoas de nossos dias, como colocou Antunes Filho
para a revista Isto É Senhor, de maio de 1989: “Gosto mais mesmo das
peças urbanas do Nelson, porque de um aparente naturalismo você vê os
mitos saírem das xícaras, das cadeiras” A respeito da vocação trágica do
dramaturgo, o diretor opinou no periódico espanhol, El Público, de junho de
1989: “Nelson é o grande trágico do terceiro mundo. Em Atenas se discutiam
as altas virtudes dos nobres. No Brasil não existe aquele virtuosismo da
tragédia grega. Existe o grito reprimido de Nelson. A nobreza das cloacas.
Bichos que se comem uns aos outros ou não sobrevivem”
12
.
Os sete gatinhos narra a história de uma família habitante de um
subúrbio carioca, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Noronha, o
pai, um contínuo na Câmara dos Deputados e sua submissa esposa, Dona
Aracy, mais conhecida como Gorda, possuem cinco filhas. As quatro mais
velhas se prostituem para garantir um casamento de sonho à caçula, Silene,
adolescente e supostamente virgem.
O antigo mito da virgindade é o mote dessa peça, assim como
também está por trás das demais peças de Nelson Rodrigues. Como única
luz capaz de iluminar a alma sombria de todos os pecadores, a virgindade
é, na obra do autor, o ponto de partida para todos os pecados de seus
personagens e, da mesma forma, “ponto de retorno da nostalgia de pureza
que, mais do que o pecado, devora as suas criaturas”, conforme as palavras
de Paulo Mendes Campos (2004, p. 279).
Em Os sete gatinhos, esse conflito chega ao ápice, pois, nessa obra,
a própria prostituição é guardiã da virgindade. As irmãs mais velhas de
Silene, a suposta virgem da família, obtêm o dinheiro para o enxoval e
casamento da irmã mais nova, por meio da prostituição reiterada.
12
Tradução nossa.
80
O valor dramático e poético que o autor atribui à virgindade extrapola as
convenções sociais e alcança os contornos de um arquétipo. Em toda essa
obra, a dimensão realista das parcas condições sociais do subúrbio carioca,
expressa na família do contínuo, que não quer sê-lo, é transcendida pela
essência mítica contida no texto que, por vezes, nos remete às tragédias
gregas de Sófocles: Édipo Rei (425 a.C.) e Electra (415 a.C.).
É exatamente o caráter mítico que distingue os arquétipos como
traços universais comuns a todos os seres humanos que interessou a Antunes
Filho trazer aos olhos do espectador, em sua montagem de Os sete
gatinhos. De acordo com as palavras de Sábato Magaldi, transcritas no
catálogo da peça, o título Paraíso Zona Norte sintetiza bem o espírito das
tragédias cariocas de Nelson Rodrigues. Ao mesmo tempo em que alude
ao Paraíso bíblico, como mito religioso, mostra-se irônico ao chamar de
paraíso um subúrbio carioca. Todavia, é possível entender que a matéria
tratada no espetáculo são os mitos recorrentes do povo brasileiro, das
classes menos favorecidas, vítimas de injustiças sociais.
Para alcançar seus objetivos, Antunes Filho contou com a participação
de J.C. Serroni para criar a cenografia e os designs de aparência dos atores
do espetáculo, que recebeu dezenas de prêmios no Brasil e no exterior. As
duas peças foram encenadas no mesmo cenário, cujo traçado arquitetônico
buscou deixar o palco livre para ser preenchido pela movimentação dos
atores e, dessa forma, valorizar o método utilizado pelo diretor para
preparação destes.
Tal método é baseado num exercício denominado “bolha”, cujo ponto
principal é a percepção do desequilíbrio. Todos os atores do grupo de
Antunes Filho realizam esse exercício para “soltar o corpo e encontrar seu
eixo” (Serroni, 2000, p. 73). Serroni explica que “o espaço para abrigar a
81
encenação deveria ressaltar esse tipo de expressão do corpo” (2000, p.
73).
Ainda de acordo com o cenógrafo, a primeira idéia para o cenário
baseava-se em uma bolha transparente, que sugerisse a sensação de
flutuação. Materiais como vidro e estruturas metálicas retorcidas serviram
de experimentos para a construção de espaços que remetiam a redomas,
estufas e orquidários, “onde a luz e o ar eram interceptados, por mais que a
transparência e a claridade se acentuassem” (2000, p. 74). Por fim, o projeto
cenográfico resultou na construção de uma estrutura que fazia lembrar uma
antiga gare, de trem ou de metrô, desativada, de vaga inspiração Art
Nouveau
13
(fig.24).
As estações podem ser vistas como lugares onde muitas trocas
acontecem e, por isso, podem sintetizar a cosmovisão dos seres humanos.
Uma vez desativados, nesses espaços, pode-se
inferir a primazia da imobilidade por meio da presença
dos trilhos ali abandonados, que não mais levam a
13
Art Nouveua: nome dado ao
movimento de renovação das
artes decorativas e da
arquitetura que se manifestou na
Europa, no final do séc. XIX
(Larousse Cultural, 1998, p.
455).
Fig.24: Maquete da cenografia de J. C. Serroni para Paraíso Zona Norte.
82
lugar algum. A sugestão é a principal característica dessa cenografia, que
pode estar situada em qualquer tempo e em qualquer lugar do mundo ou
até mesmo em nenhum, visto que a construção translúcida e arredondada,
além de parecer uma bolha flutuante, também faz lembrar uma nave espacial
a vagar sem rumo. Há ainda quem tenha sugerido a semelhança com um
ovo que contém o mundo, como o crítico Alberto Guzik, no Jornal da Tarde,
de abril de 1989 (fig.25).
Não havia nenhum elemento no tablado, apenas a estrutura
cenográfica de material translúcido e metal a formar paredes e teto fixos e
também uma porta no fundo, utilizada como uma das entradas e saídas dos
atores. A construção envolvia todo o espaço cênico e transformava o palco
no interior de uma sala vazia, a não ser pela existência, na lateral esquerda,
do buraco de uma escada que levava ao fosso e uma alta coluna de luz
branca, semelhante a um néon urbano.
O buraco da escada funcionava também como outra entrada e saída
dos atores de cena e sua presença era bastante sugestiva, pois se
Fig.25: Cenografia de Paraíso Zona Norte. Foto de J. C. Serroni.
83
assemelhava, a um só tempo, a uma escada de uma estação, como também
fazia alusão à descida ao Inferno, ou mesmo, aos porões dos subterrâneos
da existência humana. De lá, desse submundo emergiam os fantasmas do
estupro e das muitas obsessões do inconsciente e das sombras coletivas
de que tratava a peça.
A iluminação multifacetada e sóbria esteve a cargo do designer de
luz, o suíço-alemão Max Keller, diretor do Departamento de Iluminação do
Teatro Municipal de Munique, Alemanha. Acompanhar o curso dramático e
salientar os detalhes da composição cênica, transmitindo a idéia de fazer
parte do próprio cenário, foram os objetivos perseguidos pelo iluminador,
que informou a Marcos Veloso da Folha de São Paulo, em 25/ 04/1989, ter
carregado mais nos contrastes de luz justamente na peça Os sete gatinhos.
A trilha sonora, composta por músicas dos filmes épicos bíblicos de
Hollywood, tais como Ben-Hur (dirigido por Willian Wyler em 1959) e O
manto sagrado (dirigido por Henry Koster em 1953), era mais um elemento
que pontuava as cenas, ora a causar estranhamento, ora a sugerir sensações
profundamente humanas, como horror, ternura e piedade.
Esses componentes cênicos não teriam razão de existir senão para
dialogar com a performance dos atores, pois, como já foi colocado, o teatro
resulta da interação de diferentes vozes. A construção material dessa
cenografia clama pela presença dos atores para que as espacialidades
dramáticas do espetáculo sejam transmitidas aos receptores, com toda a
riqueza de detalhes.
Antunes Filho delega à aparência dos atores em cena a função de
apresentar ao espectador/ receptor a visualidade da espessura de signos
que busca transmitir como chaves de leitura de sua obra.
84
Por esta razão, Serroni
projetou aparências de personagens
que pudessem ser tão sugestivas
quanto a cenografia (figs. 26,27 e
28). O artista informa no catálogo da
peça que iniciou sua pesquisa nas
“formas de movimento e expressão
do Butoh, que tem sempre
indumentárias despojadas que
procuram na síntese e na reciclagem
o seu valor”.
O Butoh, forma de dança
teatralizada oriunda do Japão,
surgida por volta dos anos 1960, é,
segundo a pesquisadora Nourit
Masson-Sékiné, um dos
movimentos artísticos de resistência
sociocultural decorrentes da crise de
aceitação da renovação do tratado
de segurança com os norte-
americanos (2007, p. 108). É
interessante observar que Masson-
Sékiné pontua que o Butoh se alia a
todas as ações dos artistas do pós-
guerra no mundo moderno, que buscavam abolir as influências e as amarras
das velhas tradições que ditavam as convenções estéticas e técnicas e,
principalmente, tinham a intenção de abolir a dicotomia entre ator e
Figuras 26, 27 e 28: Desenhos de J. C. Serroni para
os personagens de Os sete gatinhos.
85
espectador (2007, p. 109). Essa postura coaduna-se com as questões
tratadas neste trabalho e também influi diretamente na construção da
aparência dos atores-bailarinos de Butoh.
Como uma força de liberação, seus corpos expressam aspectos da
vida que habitualmente não aparecem e, “em meio a uma cultura de
excepcional harmonia visual, empregam o vocabulário da feiúra”
14
(Holbourn,
1987, p. 9), para a construção de outra visualidade comunicativa. Os
movimentos corporais, distantes das tradições das danças clássica e
moderna, transmitem sensações de morte, medo
e perigo. Corpos retorcidos, olhos revirados,
técnica que, segundo o mestre Hijitaka (um dos
fundadores do Butoh) “constitui um método que
gera a perda de referências”, como informa
Masson-Sékiné (2007, p. 119) (fig.29). As
aparências dos atores-bailarinos do Butoh
provocam forte estranhamento, pois procuram
traduzir visualmente imagens da alma humana,
sem qualquer referência mimética.
Nesse contexto, as caracterizações visuais dos atores-bailarinos são
meticulosamente projetadas para atingir os propósitos artísticos. Por trás
de um aparente despojamento de elementos, cada traço utilizado na
composição visual da aparência de um ator-bailarino de Butoh é carregado
de sugestões de significados. Mesmo a simplicidade dos característicos
corpos nus pintados de branco ou de dourado sempre se torna complexa
pela colocação de um mero adereço ou peça de roupa, que, perante a nudez
e a movimentação não convencional, se potencializa em possibilidades de
significação (figs. 30 e 31).
14
Tradução nossa.
Fig.29: Cena de
espetáculo de Butoh de
Yoko Ashikawa. Tókio,
1986.
86
As palavras
do mestre Kazuo
Ohno (que, com
Hijitaka, é um dos
precursores do
Butoh) sintetizam o
proposto: “O figurino
do Butoh é como
jogar o cosmos nos ombros de alguém. E para o Butoh, enquanto o figurino
cobre o corpo, é o corpo que é o figurino da alma”
15
(1987, p. 129).
Se as concepções de Artaud teceram os fios que vieram a formar a
urdidura do teatro contemporâneo e se eles, ao conduzirem essa trama,
perpassam pelo teatro de Antunes Filho e pelas peças de Nelson Rodrigues,
unindo-os no mesmo tecido, o pesquisador Mark Holbourn indica-nos que
esses fios condutores também passaram pelo Japão e estão na base do
contexto sociocultural que deu origem ao Butoh.
Holbourn menciona que a obra escrita de Artaud foi traduzida para o
japonês e serviu de inspiração para os criadores desse tipo de teatro,
principalmente por valorizar a comunicabilidade dos demais recursos cênicos
em detrimento do texto escrito (1987, p. 10). O pesquisador completa
afirmando que “com o eco do grito primal de Artaud, o Butoh derruba com
um só golpe todo o conjunto da arte supermediada para
o consumo complacente. Butoh é uma arte que vive
perigosamente”
16
(1987, p. 15).
De acordo com o exposto, podemos perceber que
o caminho escolhido por Serroni estava perfeitamente
adequado às proposições de Antunes, pois esse diretor
15
Tradução nossa do
original: The Butoh
costumes is like throwing
the cosmos onto one’s
shoulders. And for Butoh,
while the costume covers
the body, it is the body that
is the costume of the soul
(Ohno, 1987, p. 129).
Figs.30 e 31: Cenas de espetáculo
de Butoh.
16
Tradução nossa.
87
não esconde sua afeição a determinadas formas de arte orientais. Em Os
sete gatinhos, a menção ao Butoh era evidente, por meio de diferentes
pontos, tais como os feitios das roupas das meninas, os pés descalços, as
maquiagens brancas, a gestualidade e a própria temática do texto que, assim
como a forma artística em questão, trabalha para trazer à tona a profunda
escuridão da alma humana.
Todos os atores descalços, falas partidas, gestos quebrados,
retorcidos e interrompidos surgem, em Os sete gatinhos, não como
maneirismo dispensável e sim, segundo o crítico Alberto Guzik para o Jornal
da Tarde, em abril de 1989, como “o correspondente cênico da dialogação
seca, telegráfica, do dramaturgo”. Teatralidade e antimimetismo são as
diretrizes para comandar o duelo entre luz e sombras que se trava no palco
dessa montagem de Antunes Filho, em que o design de aparência dos
atores é responsável por tornar visíveis as intenções do diretor.
O projeto do design de aparência dos atores estabelece uma nítida
distinção entre os personagens femininos e masculinos e sublinha o duelo
aludido, ao estabelecer cores claras para as figuras femininas, que se
contrapõem às figuras masculinas, em cores escuras.
As quatro irmãs mais velhas vestiam roupas confeccionadas em tons
pastel, como bege, pêssego ou azul claro. Esses trajes eram compostos
por partes de tecidos incompletas que, sem se ajustarem aos corpos das
atrizes, criavam um jogo de velar e revelar. Resultavam em vestidos curtos,
como aqueles usados por meninas pré-adolescentes. Descalças e sem
meias, apenas uma espécie de tornozeleira nos calcanhares delineava o
contorno de suas pernas e permitia ressaltar a postura dos pés,
invariavelmente, voltados para dentro. Usavam grandes perucas feitas de
cabelos visivelmente artificiais e abundantes, adornados com flores falsas.
88
Seus rostos eram maquiados com base branca, olhos e lábios bem
marcados com cores escuras e faces fortemente ruborizadas.
O design das aparências das meninas fez com que elas se
assemelhassem a velhas e surradas bonecas de pano, saídas de um antigo
baú, sugestão reforçada pela iluminação suave que apagava os contornos
da imagem cênica e imprimia, nos tecidos de suas peles e roupas, uma
tonalidade de efeito envelhecido. Tal como bonecas reais, as cabeças das
atrizes que representavam as meninas foram enfatizadas e davam a
impressão de serem proporcionalmente maiores que os corpos (fig.32).
Na aparência de Silene, a caçula virgem, todas essas características
se repetiam, porém, como esse personagem tem uma maior importância
na história narrada, alguns traços foram reforçados, como, por exemplo, o
tamanho de sua enorme e improvável peruca branca. Gorda, a mãe delas,
era caracterizada de forma semelhante a das meninas, entretanto, usava
saia longa e um avental.
Fig.32: Desenho de J. C. Serroni para as meninas de Os sete gatinhos.
89
Na primeira cena da peça, Aurora, a filha mais velha, encontra Bibelot,
um cafetão por quem se apaixona. Essa cena é caracterizada por forte
teatralidade e nela podemos perceber a referência ao Butoh de modo mais
explícito que nas demais cenas da peça. A música é monumental, como a
anunciar a tragédia que se seguirá e os gestos são coreograficamente
marcados. Aurora usa um chapéu azul e segura nas mãos um guarda-chuva
fechado. Está parada com a cabeça baixa, de forma que o chapéu faz as
vezes de seu rosto, ocupando o espaço do deste. Sua pose fixa, com os
pés descalços, marcadamente voltados para dentro, remete à aludida dança
japonesa (fig.33).
Bibelot está atrás da porta do fundo do palco, mas sua figura é visível
através da transparência da cenografia. Rosto maquiado de branco, veste
terno e chapéu brancos. Descalço, caminha com passos lentamente
demarcados. Abre a porta e, nesse momento, uma luz entra, cortando o
chão num desenho geométrico. Caminha mais um pouco e, por alguns
Fig.33: Desenho de J. C. Serroni para Aurora (canto direito) de Os sete
gatinhos.
90
instantes, para numa pose semelhante à de Aurora, com o rosto voltado
para baixo, deixando o chapéu em evidência. Ele, com os braços afastados
do corpo, rígidos e sem movimentos, cotovelos dobrados, palmas das mãos
voltadas para trás; ela, fixa na pose inicial, tem o guarda-chuva como um
apoio. No lugar dos rostos dos indivíduos, apenas os chapéus, como a
assinalar o caráter universal daquele drama, ou seja, não importam os traços
de suas fisionomias, que os particularizam como pessoas, pois a matéria
que tecerá a trama da peça brota dos dramas de todos os seres humanos
(fig.34).
Essa imagem pode ser vista como um emblema da peça, uma vez
que o conflito que se desenrolará tem aí seu início, assim como o caminho
pelo qual Antunes Filho conduzirá o receptor também se apresenta neste
momento: nenhum naturalismo à vista. Bibelot levanta o rosto devagar e, só
então, fala pausada e mecanicamente: “Lin-da! Vo-cê fi-ca um es-tou-ro de
a-zul!” (Rodrigues, 2004, p. 135).
Fig.34: Cena de Os sete gatinhos - Aurora e Bibelot (canto direito). Foto de
Emídio Luisi.
91
Bibelot usa branco como uma obsessão: “Só uso branco! Tenho mais
de dez ternos como esse em casa. Ponho um por dia, chova ou faça sol!”
(Rodrigues, 2004, p. 138). Se branco pertence à gama de cores claras
escolhidas para representar as mulheres, Bibelot o usa como quem usurpa
um direito, apropria-se do branco como igualmente se apropria da virgindade
(da sexualidade) delas para obter dinheiro. É conhecido como “o homem
vestido de virgem” (Rodrigues, 2004, p. 180).
O modo estranho de falar, quase mecanizado, e os gestos
interrompidos dessa cena inicial, aos poucos, vão sendo deixados de lado
para que haja maior fluência do texto, no entanto, o design de aparência
dos atores continua a manter o espectador /receptor em constante estado
de reflexão, diante do inusitado das imagens criadas ao longo do
espetáculo.
Na cena descrita a seguir, a pretensa ingenuidade de Silene
contrastava com as figuras masculinas, não apenas pelas cores, como
também pelas formas das roupas e adereços. Vinda do colégio interno, a
menina entra no palco em paços deslizantes, onde o pai a esperava. Ela
segurava nas mãos uma pequena mala e vestia uma capa, modelo pelerine,
azul claro, que fazia lembrar
“Chapeuzinho vermelho”, traço
claramente irônico introduzido pelo
projeto do design de aparência de
atores (fig.35).
Seu Noronha, o pai moralista
e obcecado, era, em casa, o porta-
voz de uma espécie de religião e
Fig.35: Cena de Os sete gatinhos - Silene (de
joelhos), Noronha e Gorda. Foto de J. C. Serroni.
92
tornou-se vidente de espíritos. Como marca de sua autoridade religiosa,
suas filhas e esposa vestiam-no ritualisticamente: sobre uniforme de contínuo
que ele usava, da Câmara dos Deputados, colocavam um insólito vestido
longo confeccionado em tecido com estampa floral miúda sobre fundo escuro,
cujo modelo pouco difere das caracterizações mais burlescas de uma velha
senhora.
Pregas, rendinhas e
babadinhos nas mangas, gola e
bainha contrastavam com a cartola
alta e negra, adornada com uma
bandeirinha (fig.36). Seu rosto não
era maquiado de branco como os
dos outros atores, entretanto,
portava barba e cavanhaque que,
colocados ao lado do vestido,
causavam grande estranhamento
em sua aparência e remetiam,
invariavelmente, ao disfarce de
“vovozinha” do “lobo-mau” para
atacar a “Chapeuzinho vermelho”
(fig.37). Tal como um juiz veste sua
toga para ditar as leis, Noronha
cobria-se com seu vestido de
“vovozinha” para ditar, em família, as
regras da moral cristã que o
obcecava. Aurora, a filha mais velha,
explica: “Meu pai mudou muito.
Fig.36: Desenho de J. C. Serroni para o
personagem Noronha de Os sete gatinhos.
Fig.37: Cena de Os sete gatinhos - Noronha no
centro. Foto de Emídio Luisi.
93
Antigamente não ligava. Mas agora descobriu uma tal religião teofilista. Acho
que é: teofilista. Dá cada bronca, menino! E virou vidente!” (Rodrigues, 2004,
p. 137).
O diretor do colégio interno, Dr. Bordalho, chega, a seguir, para
informar que Silene estava expulsa da escola por ter matado, a pontapés,
na frente das colegas, uma gata prenhe. Silene socara a cabeça da gata e
esta, mesmo morta, dera à luz a sete gatinhos vivos.
O jogo de contrastes como marca da montagem de Os sete gatinhos
é já estabelecido no texto dramático e o design de aparência dos atores
torna visível essa intenção. Nelson Rodrigues inverte o sinal do senso comum
e provoca o espectador, tornando-o uma espécie de cúmplice das paixões
sombrias do homem. Silene, aparentemente frágil e dócil, foi capaz de um
ato de extrema violência, injustificável. Dr. Bordalho, por sua vez, vestindo
casaca longa e chapéu coco, na cor preta, remetia ao personagem
“Visconde de Sabugosa” do Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato,
constituía mais uma irônica analogia a histórias infantis, projetada pelo design
de aparência dos atores, a ressaltar a gama de contrastes do espetáculo.
De fala delicada e culta, o diretor do colégio, indignado, narra o fato
e manda que o pai leve a menina ao psiquiatra. Incrédulo e ofendido, Noronha
pede para Silene confirmar o ocorrido, enquanto ordena às outras filhas e à
Gorda que fechem as portas e amarrem Dr. Bordalho.
No palco, o extraordinário e o terrível da peça constroem-se
visualmente por meio da composição cênica e Antunes Filho sabe muito
bem orquestrá-la. Torna-se evidente o peso que o diretor deposita na
edificação das aparências dos atores como linguagem utilizada para se
comunicar com seu público. Dr. Bordalho, com o corpo amarrado por cordas,
94
é cercado e intimidado por Gorda e pelas delicadas “bonequinhas de pano”,
bastante alteradas e enfurecidas (fig.38).
Noronha, coroado pela cartola adornada com bandeirinha e usando
seu vestido longo com rendinhas, curva-se sobre Silene que, intimidada,
cai e ajoelha-se no chão (o “lobo-mau” ataca a “Chapeuzinho”) (fig.39). Não
é mais possível ver o rosto da menina, apenas sua enorme cabeleira branca
e suas costas nuas são vislumbradas através de um grande corte triangular
em seu vestido igualmente branco. Este, ao mesmo tempo em que cobre
seu corpo, descobre determinadas partes, recurso que imprime
sensualidade na figura pueril da suposta virgem.
Silene chora e suas costas contraem-se em espasmos. A
artificialidade e a teatralidade dos elementos de caracterização visual
utilizados na construção da aparência cênica da atriz contrapõem-se à
carnalidade de parte do seu corpo exposto, criando uma imagem formada
por um entrelaçado imaginário de traços de realidade e de ficção. Ela, ali
no chão, como um brinquedo aos olhos do pai apaixonado por sua
delicadeza, confessa ter mesmo matado a gata. Noronha diz: “Nenhum
colégio é digno de ti! E todo mundo inveja sua pureza! Humanidade cachorra!
Fig.38: Cena de Os sete gatinhos - Dr. Bordalho amarrado. Foto de Emídio Luisi.
Fig.39: Cena de Os sete gatinhos - Silene chora. Foto de Emídio Luisi.
95
As meninas não são meninas, são femeazinhas. Só você é menina, só você!”
(Rodrigues, 2004, p. 162).
Diante dessa cena, se imaginarmos esses personagens, no mesmo
cenário, com a mesma gestualidade, porém, sem as caracterizações visuais
descritas, dificilmente os receptores teriam vivenciado o impacto almejado
por Antunes Filho. O inusitado da ordenação sígnica que compõe as
aparências dos atores provoca um choque, pelo fato de gerar uma imagem
muito distante das cenas do cotidiano dos receptores. Assim, podemos
avaliar a importância do design de aparência de atores para a construção
da espacialidade dramática de um espetáculo.
Em resumo, descobre-se que Silene está grávida. Noronha diz que
por meio de uma informação recebida de um espírito sábio, Dr. Barbosa
Coutinho, morto em 1872, sabia que aquele que havia feito mal à Silene
chorava por um olho só. Desiludido, Noronha transforma sua casa em um
bordel, pois a última “virgem atravessada de luz” (Rodrigues, 2004, p. 165)
tinha se perdido e, então, todos podiam começar a apodrecer e a cheirar
mal (Rodrigues, 2004, p.169).
Bibelot é suspeito de chorar por um olho só e acaba morto por Noronha
com a ajuda das filhas enlouquecidas. Por fim, é o próprio Noronha quem
chora por um olho só. A fúria das mulheres volta-se contra ele, que termina
assassinado por elas, ação que desencadeia nelas um forte transe
possessivo. Sessões espíritas, possessões espirituais, assassinatos,
suicídio, incesto, cantos “teofilistas” e visitas masculinas às meninas de seu
Noronha, formam as diferentes situações dramáticas encenadas.
Ao longo da peça, no desenvolvimento dos conflitos do texto, as
dicotomias pureza/ pecado, masculino/ feminino, claro/ escuro, moral/ imoral
trocam de lugar várias vezes e aí transparece a grandeza do projeto de
96
design de aparência dos atores criado por Serroni que, por meio de suas
excelentes escolhas, pontua esse movimento e conduz o receptor a um
universo imaginativo. Um bom exemplo disso é o design de aparência do
personagem Noronha: por mais estranho e inconvencional que seu projeto
pudesse parecer, durante o desenrolar da trama, não era mais admissível
visualizá-lo com a roupa de contínuo, pois o convencional se tornou
anticonvencional e vice-versa, ou seja, o vestido longo e a cartola com
bandeirinha, a disfarçarem seu corpo masculino, eram a mais perfeita
tradução visual das características do personagem.
Assim como observou o mestre Kazuo Ohno a respeito das vestes
do Butoh, se o figurino veste o corpo do ator, o design de aparência veste
sua alma e, dessa forma, traduzindo-a em imagens, cria a espacialidade
da cena espetacular.
97
CAPÍTULO 3: O DESIGN DE APARÊNCIA EM FRONTEIRAS:
HOJE É DIA DE MARIA
A idéia de que a aparência dos atores, em qualquer espécie de
modalidade artística, é resultado de um feixe de relações vem sendo
apresentada desde o início deste trabalho, pois do entendimento da
abrangência dessa afirmação decorre a compreensão da complexidade
contida nas imagens geradas pelo modo design de aparência de organizar
a linguagem caracterização visual de atores.
A começar pela relação entre as escolhas feitas com relação às
roupas, às maquiagens, aos penteados e aos adereços, todas as
particularidades da aparência de um ator, em cena, resultam da relação
que tal aparência estabelece com os demais elementos que constroem o
espetáculo.
Apenas no cerne dessa multiplicidade relacional poderá ser
apreendida a composição plástica da aparência de um ator. É inútil tentar
isolar qualquer uma das linguagens que constroem a caracterização visual
para buscar entendê-la como portadora de significado, pois essa operação
seria equiparada a um estudo da dança que procurasse unicamente nos
pés do bailarino a origem do movimento corporal, por exemplo.
Um adereço não contém significado em si mesmo (Barnard, 2003, p.
119). Um par de óculos descontextualizado, isolado na sua condição de
óculos, tomado por si, fora da encenação, não faz parte do sistema da
caracterização visual. Podemos dizer o mesmo dos penteados e das
maquiagens. Figurinos fora de uma cena artística não são figurinos. São
vestes que podem ser usadas por alguém, como roupas cotidianas, ou
podem se tornar meras peças de museu
(fig.40).
98
Os museus dedicados à indumentária teatral não expõem figurinos e
sim peças de roupas. Ao observá-las, apenas teremos algumas indicações.
Poderemos depreender a técnica construtiva das vestimentas expostas, os
materiais utilizados, a época a que se reportam e mais ou menos por onde
passavam os conceitos que determinaram as escolhas artísticas feitas pelos
criadores delas. Porém, a completude da caracterização visual dada pelas
relações das vestimentas com a dramaturgia, com o corpo e desempenho
do ator formando um amálgama, pelo qual se mesclam a todo o contexto
cênico, não pode ser apreendida por quem visita um museu de indumentária
teatral, onde estão expostas apenas roupas que outrora foram usadas por
atores em uma encenação, pois como preconizou Roman Jakobson:
Cada objeto aparece sempre numa situação, num sistema
relacional determinado pelo tempo, o espaço ou a matéria,
que há de ter em conta para a determinação do referente.
Não podemos determinar um objeto sem ao mesmo tempo
o introduzirmos numa situação específica (2003, p. 72).
O conceito de texto desenvolvido pela Escola de Semiótica de Tártu-
Moscou é bastante elucidativo de fenômenos da cultura similares àqueles
que nos ocupam, ou seja, fenômenos constituídos pela interação entre
sistemas semióticos diversamente estruturados, como veremos a seguir.
Fig.40: Estudos para os cabelos do personagem Dom Chico Chicote de
Hoje é dia de Maria. Foto Fábio S. Nakagawa.
99
A aparência de um ator em um espetáculo pode assim ser qualificada:
um sistema semiótico estruturado no cruzamento de vários outros sistemas,
cada qual com sua própria codificação. O resultado desse entrelaçamento
sistêmico é uma imagem, de tal forma coesa em sua tessitura interior, que
nos permite considerar a aparência de atores em espetáculos como um
texto da cultura, no sentido definido pela mencionada escola russa.
De acordo com esse pensamento semiótico, a palavra texto possui
um significado mais amplo que aquele estritamente relacionado à língua
natural ou verbal, formulado por lingüistas que consideravam o texto como
um enunciado elaborado em uma linguagem qualquer, algo linear e fechado
como um portador passivo de sentidos (Lotman, 1996a, p. 78).
Lotman e seus seguidores elaboraram um novo conceito de texto
com a finalidade de estudar mensagens culturais produzidas por diferentes
espécies de linguagens formadoras de sistemas não-verbais, o que trouxe
à tona determinados mecanismos constitutivos que, reiteradamente, são
encontrados em diferentes manifestações da cultura. Desse modo, um ritual,
um quadro, um filme são considerados textos, entre inumeráveis formas
culturais que produzem mensagens.
Para que uma mensagem seja considerada um texto, os teóricos
dessa escola de Semiótica, também conhecida por Semiótica Sistêmica,
explicam que tal mensagem deve estar codificada pelo menos duas vezes
(Lotman, 1996a, p. 78), ou seja, deve ser uma mensagem construída pelos
códigos de mais de uma linguagem ou sistema, como, por exemplo, no
canto (a palavra e a música). Mais do que isso, o texto é entendido como:
um dispositivo complexo que guarda vários códigos, capaz de transformar
as mensagens recebidas e de gerar novas mensagens, um gerador
100
informacional que possui traços de uma pessoa com um intelecto altamente
desenvolvido”
17
(Lotman, 1996a, p. 82).
Podemos depreender dessas colocações que Lotman entende os
textos culturais como sistemas abertos, portanto, heterogêneos, que sofrem
crescimento durante os respectivos processos de transmissão, pois toda
deformação ou “ruído” se converte num mecanismo de geração de novos
significados (Lotman, 1998b, p. 88). Conforme foi mencionado no primeiro
capítulo deste trabalho, a idéia de multiplicação de significados explanada
é também a base do conceito de semiose.
Em resumo, no processo de semiose, ou ação dos signos, um texto
constituído por uma trama de sistemas de signos ou códigos está
invariavelmente exposto a mudanças. No momento em que é apreendido, o
conteúdo de um texto sofre um processo de recodificação, ao entrar em
contato com os códigos de quem os decifra, e, assim, modificam-se,
mutuamente, texto e destinatário.
Desse modo, no percurso que vai do emissor ao destinatário, os
significados do texto alteram-se e multiplicam-se. O mecanismo de
ampliação das possibilidades de significação resultante das relações
sistêmicas é o que podemos entender como o processo de semiose. Esse
processo pelo qual um significado se duplica infinitamente Lotman chama
de função geradora de sentidos ou função criadora (1996a, p. 88).
Na intenção de tornar claras suas proposições a respeito da função
criadora e do poder de semiose que ela enseja, Lotman dedica-se a refletir
sobre textos artísticos. Estes são constituídos por uma mescla de linguagens
essencialmente diferentes, que formam uma trama cujo resultado é um texto
17
Tradução nossa.
101
de segunda ordem, em que subtextos, em linguagens diversas, estão
dispostos no mesmo nível hierárquico (1996a, p. 79).
Para reforçar a transparente relação de tal conceituação com esta
pesquisa, ressaltamos que o autor menciona as representações dramáticas,
entre os exemplos de textos artísticos por ele citados, e explica, ainda, que
elas encerram em si uma combinação de tipos essencialmente diferentes
de semioses ou mecanismos de funcionamento dos signos.
O todo textual, diz o autor, o resultado da trama de linguagens, aponta
ainda para operações de recodificação, equivalências, trocas de pontos de
vista e combinações de diferentes vozes. No texto artístico, escreve Lotman,
todo o material “multivocal” que forma sua trama, ao ser exposto a uma dada
linguagem artística, se apresenta como uma unidade complementar portadora
de sentido (1996a, p. 79).
O exemplo utilizado pelo autor é o de um ritual que se converte em
um espetáculo de dança. Todos os subtextos ou linguagens componentes
do ritual, como gestos, atos, palavras e gritos, são traduzidos para a
linguagem da dança e, assim, duplicam-se semioticamente, ou seja, passam
a compor uma nova unidade significante, além da que carregavam em si
isoladamente.
Se utilizarmos o exemplo do autor para refletir sobre a linguagem
caracterização visual e considerarmos hipoteticamente as aparências dos
atores que executam o mencionado espetáculo de dança, podemos dizer
que essas aparências são uma “unidade complementar” construída por meio
de uma trama de semioses. As linguagens formadoras da caracterização
visual devem ser manipuladas para recodificar as informações provenientes,
tanto do ritual em si, quanto da coreografia criada e para traduzi-las em
escolhas materializadas nas vestimentas, nas maquiagens, na forma de
102
pentear os cabelos, que, por sua vez, devem se realizar em sintonia com os
corpos desses atores.
A trama de semioses de um espetáculo é ainda mais complexa, pois,
no dado exemplo, as escolhas feitas com relação à caracterização visual
dos atores, além de considerar as linguagens já citadas, devem ser
adequadas à concepção de um possível diretor e dialogar com a iluminação,
a música, o cenário, o espaço em que a cena se apresentará e também
com o contexto sociocultural a que a obra se reporta. Da mesma forma, o
contexto sociocultural em que o espetáculo e seus receptores se inserem
deve igualmente ser levado em consideração na realização dos trabalhos
de criação das aparências dos atores.
Esse entrelaçamento de diferentes sistemas e seus códigos, esse
tecido textual, do qual provém a aparência de atores em espetáculos, é
resultante de múltiplas operações de recodificação produzidas em um
determinado espaço semiótico. Em tal espaço, os significados são
organizados por meio de relações sígnicas, produzidas na fronteira da trama
de sistemas. Aqui nos deparamos com os conceitos de semiosfera e
fronteira, duas noções muito caras para a Semiótica de Tártu-Moscou e
que nos ajudam a compreender o modo como são construídas as aparências
de atores em espetáculos das mais diversas características.
3.1 Semiosfera e fronteira
Com base no conceito de biosfera formulado por V. I. Vernadski, Yuri
Lotman desenvolveu o conceito de semiosfera (1996a, p. 22). A biosfera
seria uma camada, uma estrutura completamente definida, a envolver o
planeta, responsável pela manutenção da vida na Terra, por meio de
103
transformações biológicas. Os homens, todos os organismos e seres vivos
seriam funções da biosfera em determinado espaço-tempo desta. Lotman
realiza uma analogia com essa idéia para formular seu conceito de
semiosfera:
Pode-se considerar o universo semiótico como um
conjunto de textos distintos e de linguagens fechadas, uns
com relação aos outros. Neste caso, todo o edifício terá o
aspecto de estar construído por diferentes ladrilhos. Sem
dúvida, parece mais frutífera a abordagem inversa: todo o
espaço semiótico pode ser considerado como um
mecanismo único (como um organismo). Desse modo
resulta primário um ou outro ladrilho fora do “grande
sistema” denominado semiosfera. A semiosfera é o espaço
semiótico fora do qual é impossível a existência de
semioses
18
(1996a, pp. 23- 24).
A semiosfera é então definida como um espaço semiótico delimitado,
um todo único que, à semelhança de um organismo, se comunica com todos
os seus componentes. Apenas no interior desse espaço é possível haver a
realização de processos comunicativos que resultem na produção de novas
informações. Entretanto, pensar em um espaço único, mas flexível, leva-nos
a imaginar a existência de algum limite ou fronteira que demarque tal espaço.
Fronteira, segundo o pensamento de Lotman, não se trata de uma
linha divisória cuja função é separar ou dividir, conforme o senso comum
costuma definir. O conceito de fronteira elaborado pelo semioticista dá conta
de uma região limítrofe, de encontro de linguagens, formada pela soma de
“filtros tradutores bilíngües”. Ao passar por esses filtros, um texto é traduzido
para uma ou mais linguagens que se encontram fora da semiosfera dada
(1996a, p. 24).
Em suma, a fronteira é um mecanismo bilíngüe que traduz as
mensagens externas para as linguagens internas à semiosfera e
18
Tradução nossa.
104
vice-versa, fazendo as adaptações necessárias. Esse mecanismo é capaz
de semiotizar o que entra e, desse modo, convertê-lo em informação (Lotman,
1996a, p. 26). Porém, é importante perceber que, muitas vezes, ao se
encontrarem, as linguagens se contaminam e ambas alteram-se, sem que
haja a imposição de uma sobre a outra. Podemos dizer que a semiosfera é
a organização sistêmica da semiodiversidade.
É necessário salientar que a semiodiversidade referida não aponta
para o fenômeno do hibridismo cultural descrito, entre outros autores, por
Peter Burke (2003) e sim para o conceito de dialogismo desenvolvido por
Mikhail Bakhtin (2003). Um fenômeno híbrido sugere algo que seja
constituído de dois (pelo menos dois) distintos que, ao se relacionarem,
desaparecem em suas individualidades e cedem lugar a um terceiro
totalmente diverso. Entretanto, o conceito de dialogismo afina-se melhor
com a idéia de influência mútua presente no mecanismo de tradução em
que a influência do outro é um claro e visível traço a constituir o novo.
Porém, no que diz respeito ao nosso escopo, a caracterização visual
de atores, pairam ainda questões pragmáticas do tipo: em cada meio em
particular, como
compreender os processos construtivos aos quais devem
ser submetidos os corpos dos atores para que uma determinada imagem
seja obtida? Que códigos estão operando e como os códigos de uma
linguagem se contaminam pelos códigos das demais linguagens que
penetram a semiosfera dada? Como ocorre a tradução de um meio ao outro?
Para que tais questões possam ser respondidas, assim como para
desenvolver um estudo de qualquer texto da cultura na direção de
compreender a organização solidária dos sistemas formadores da trama
textual, devemos mencionar outro fundamental conceito elaborado pelos
semioticistas de Tártu-Moscou. Estamos nos referindo ao conceito de
105
modelização que, aliado às noções de texto da cultura, fronteira e
semiosfera, compõe o campo conceitual que utilizaremos como instrumental
teórico de análise.
3.2 Modelização e tradução
De acordo com os teóricos da Escola de Semiótica de Tártu-Moscou,
o termo modelização difere da forma como é conhecido na teoria da
Semiótica discursiva de origem francesa, na qual se relaciona à construção
de modelos para criar discursos (Machado, 2003, p. 50). Nas palavras de
Irene Machado:
Modelização é um termo forjado no campo da informática
e da cibernética, particularmente porque provém desta
última a noção de sociedade como conjunto de sistemas
caracterizados pela interdependência e auto-organização,
isto é, por modos particulares de comportamento. Na
modelização os modelos são sempre generalidades, daí
sua capacidade de construir linguagem (2003, p. 50).
Modelizar é estabelecer relações com base em alguns traços
peculiares. Esses traços dizem respeito à estruturalidade de um sistema
sígnico. É preciso acompanhar o percurso conceitual desenvolvido pelo
pensamento semiótico em questão para compreender as afirmações feitas
anteriormente.
Para a transformação da informação em linguagem, é necessária a
existência de códigos, pois um signo somente é identificado pela sua
codificação, que pode ser visual, sonora, cinética, etc. Como já foi
mencionado , todo texto da cultura pressupõe, no mínimo, duas codificações
(trama), o que equivale a dizer duas linguagens ou dois sistemas. Sistemas
106
de signos são construções articuladas com organizações específicas,
denominadas estruturalidade. Aqui encontramos a distinção entre estrutura
e estruturalidade. O primeiro termo refere-se ao modo organizacional de
uma língua natural, ou seja, a uma estrutura regulada por um código definido.
Por outro lado,
a estruturalidade define o traço da cultura enquanto texto
não pelo fato de o texto ter uma estrutura (ou seja, ser
redutível a uma língua, como queria Bakhtin), mas porque
no centro do sistema cultural existe “um manancial tão
vigoroso de estruturalidade” que é a linguagem (Machado,
2003, p. 158).
Assim, modelizar é conferir estruturalidade a uma determinada
linguagem, mecanismo do qual resulta uma organização particular que pode
ser entendida como um processo de
reoperacionalização de signos. Com
essa noção delimita-se o conceito de tradução para esse pensamento
semiótico, que aponta para a idéia de transcodificação, ou seja, transferência
de estruturalidade de uma linguagem a outra completamente diferente. Em
outras palavras, modelizar é também transcodificar ou traduzir uma linguagem
em outra, por meio da transferência de estruturalidades (Machado, 2003, p.
179).
Com base no que foi exposto, podemos dizer que, no interior da
semiosfera de um dado espetáculo, ocorrem incontáveis operações
resultantes das modelizações surgidas nos encontros dos diferentes
sistemas atuantes na constituição desse espaço semiótico. As aparências
dos atores são alguns dos textos formados pelo cruzamento de diferentes
sistemas operantes na semiosfera de um espetáculo e que, por sua vez,
resultam de encontros e de traduções semióticas.
107
A conceituação apresentada é útil para que possamos compreender
como é construída a aparência de atores em todo e qualquer meio capaz
de apresentar espetáculos com atores e, principalmente, vai ajudar-nos a
entender como essa construção ocorre em meios de representação
mecânica.
Com a intenção de refletir sobre as modelizações atuantes na
elaboração das aparências de atores em espetáculos apresentados por
máquinas semióticas, trabalharemos com a microssérie televisiva Hoje é
dia de Maria, de Luiz Fernando Carvalho, figurinos de Luciana Buarque,
maquiagem de Vavá Torres, produzida pela Rede Globo, em duas jornadas,
em 2005.
3.3 Hoje é dia de Maria
Em resumo, Hoje é dia de Maria narra a fábula de uma heroína mirim,
habitante de um pedaço do sertão brasileiro, sem maiores especificações
geográficas. No desenrolar da trama, Maria vai trilhar o caminho e enfrentar
todas as adversidades da saga
19
de um herói, já descritas por Propp (cf.
Propp, 1970).
Desde o primeiro quadro apresentado na tela, percebe-se que a
microssérie é um produto televisivo que se diferencia do modo convencional
de se fazer televisão que, conforme as palavras de Arlindo Machado, se
caracterizaria pelo “uso de imagens muito pouco sofisticadas” (2005, 71).
Em lugar do costumeiro tratamento naturalista com que são elaboradas as
novelas ou a grande maioria das séries ficcionais de
televisão, nosso olhar é atraído pela estranha beleza das
19
Utilizamos, nesse
trabalho, o termo saga
com o sentido de “história
rica em incidentes”
(Larousse Cultural, 1998,
p. 5181).
108
imagens que se expõem logo de início e apontam para um espetáculo
televisivo pouco comum.
A percepção desse caráter inusitado é provocada, não só pelas
imagens especiais, mas, sobretudo pelo tratamento dado à aparência dos
personagens e pelo diálogo que ela estabelece com os demais elementos
do espetáculo, criando um modo surpreendente de se fazer televisão.
Hoje é dia de Maria é uma obra elaborada com as mais
contemporâneas tecnologias televisivas e seu tema pode ser entendido como
uma espécie de ode “ao teatro”, ao retratar a epopéia dramática da cultura
popular brasileira. Na trama composta pelos muitos encontros das
linguagens que compõem a microssérie, estão diversos contos maravilhosos
baseados na tradição das narrativas orais do Brasil e de outros países que
povoam o imaginário popular, tais como A lebre encantada (Romero, 1954,
p. 269); A princesa do sonho sem fim (Cascudo, 1997, p. 28); Maria
Borralheira (Romero, 1954, p. 115) entre muitos outros. Toda a microssérie
é repleta de ficção e fantasia, com referências a diferentes formas teatrais,
principalmente às modalidades populares, como o teatro da Idade Média, a
Commedia dell’ Arte, o teatro itinerante em carroça, o teatro oriental, o teatro
de bonecos, o circo e o teatro de revista.
Não se trata de uma adaptação de um texto teatral para a televisão e
sim de uma obra que reflete o desejo de fazer televisão como se faz teatro,
porém, utilizando modos de proceder característicos do cinema. Em outros
termos, Hoje é dia de Maria é uma obra televisiva modelizada pelas
linguagens das narrativas orais, do teatro e do cinema.
Uma enorme tenda arredondada foi construída, um domus apelidado
de “bolha cenográfica”, e todas as gravações foram feitas no seu interior.
Com esse “estúdio cinematográfico”, os criadores da microssérie
109
conseguiram a geração e o controle de efeitos bastante incomuns para uma
obra televisiva. Dentro da bolha, sem preocupações de imitar o real, foram
simulados os espaços cênicos desejados, representando cenas diurnas ou
noturnas, de interior ou de exterior, em que os personagens evoluíam no
decorrer da história. Elementos cenográficos, como pequenos córregos e
galhos, e, principalmente, a iluminação e as pinturas de diferentes céus
(manhã, entardecer, noite) feitas na superfície da tenda, representavam as
variações pretendidas, marcando as passagens de tempo. A iluminação
teatral colorida e com o amplo uso de focos de luz branca recortados sugeria
grande teatralidade, ora evidenciando por completo os personagens, ora
tingindo de cores inusitadas suas peles e roupas.
O design da aparência dos atores foi construído para reforçar e
sublinhar o clima de fantasia e artificialidade como marcas da teatralidade
trabalhadas na cenografia, na iluminação, na gestualidade e na atuação.
Desse modo, a linguagem da caracterização visual foi manipulada para
simular o teatro e observa-se, portanto, a adoção de alguns procedimentos
característicos que também nos permitem observar a atuação do mecanismo
tradutório de um meio a outro:
Maquiagens: foram feitas em mulheres e homens, trabalhadas com
recursos para criar efeitos especiais como: olhos e sobrancelhas
contornados por evidentes traços de lápis preto, faces bastante ruborizadas
e lábios pintados. Tal recurso é usado no teatro para evidenciar os traços
fisionômicos dos atores sob as luzes e na distância existente entre palco e
platéia (efeito Arcimboldo). Esse procedimento não é necessariamente
adotado na televisão, pois, nesse meio, os atores são enfocados quase
sempre em close up e, por esse motivo, aplica-se uma maquiagem
naturalista, apenas para embelezar as feições dos artistas. Além desse
110
procedimento caracteristicamente teatral descrito ter sido adotado, na
produção em questão, outros recursos de maquiagem também foram
utilizados de diferentes maneiras para trabalhar os rostos dos atores a fim
de buscar uma semelhança com bonecos de diversas espécies
(modelização).
Tratamento de vestuário: pinturas, enceramentos, lixamentos e
aplicações de materiais diversos feitos nos tecidos; costuras evidentes, falta
de arremates, são modos de proceder teatrais utilizados para criar
diferenças entre as vestes de cena e as de uso cotidiano, como aquelas
preferencialmente adotadas na programação televisiva. Tal como acontece
no teatro, destaca-se também a utilização, na microssérie, de materiais
reciclados para a confecção das roupas, como papel, invólucros de balas,
tampinhas de refrigerantes, entre outros objetos inusitados.
Cabelos: ora tingidos ou empoeirados, ora formados por penteados
incomuns ou por perucas feitas de papel ou explicitamente artificiais, marcam
o antinaturalismo empregado na linguagem adotada pela microssérie.
Adereços e objetos de cena: os personagens-marionete, por
exemplo, feitos de metal, com os fios de manipulação à mostra, foram
desenhados em sintonia com a estética teatral não naturalista perseguida
na obra e contrária ao padrão da linguagem televisiva.
É interessante observar como se processa, em diferentes níveis, o
mecanismo de reoperacionalização de signos inerente a essa realização
artística e a importância que o design de aparência de atores exerce nesse
contexto. A mencionada reciclagem de materiais utilizada para compor as
roupas e adereços dos personagens é também um dos processos de
reoperacionalização de signos presente em toda microssérie e que, como
observa Fábio Nakagawa a respeito da mesma obra analisada, trata-se da
111
criação de novos arranjos sígnicos que apontam para a circulação de “textos
e fragmentos de textos que, por algum motivo, foram considerados
ultrapassados, demasiadamente usados ou sem função, mas que possuem,
ainda, uma alta capacidade em potência de representação” (2008, p. 90).
A fronteira entre uma linguagem e outra enseja a reorganização dos
sistemas de signos e a primeira relação fronteiriça que o design de
aparência estabelece ocorre entre o corpo do ator e o personagem a ser
representado. Assim, a linguagem corporal do ator é modelizada pelas
características singularizantes do personagem representado. Coreografia,
voz e expressões faciais são trabalhadas em conjunto com a caracterização
visual e formam, dessa maneira, um duplo do ator. A partir de então, esse
duplo, o design de aparência de um personagem, passa a estabelecer
relações de fronteira com a narrativa trabalhada. Da mesma forma, o ator
caracterizado estabelece uma fronteira com o receptor que, por meio da
visualidade da construção de sua aparência, passa a se relacionar
fronteiriçamente com a narrativa. O percurso ator/ caracterização visual/
personagem/ narrativa/ receptor caracteriza o mecanismo de mediação cuja
ação significativa é imensurável.
Hoje é dia de Maria é uma obra que exibe excelentes exemplos do
modo design de aparência de trabalhar a caracterização visual. As duas
jornadas da microssérie possuem incontáveis personagens criados com
muita teatralidade e antimimetismo, cuja análise de seus projetos seria de
grande valor para explicitar o percurso acima descrito, porém, em meio a
tantas opções criativas, é necessário que façamos um recorte que possa
viabilizar a realização desta pesquisa. Por essa razão, levantaremos alguns
aspectos a respeito da execução do projeto de design de aparência de
alguns personagens da obra em questão, que julgamos ilustrar muito bem o
112
funcionamento do modo de proceder abordado e, a seguir, passaremos a
analisar três diferentes momentos da história narrada, com ênfase na figura
de Maria e nos personagens com quem a menina se relaciona em cada
uma das passagens escolhidas, com o intuito de procurar compreender em
que medida o design de aparência de ator contribui para a edificação das
espacialidades da microssérie.
3.3.1 Os cinco personagens representados por Rodolfo Vaz e
as sete “peles” do Capeta Asmodeu (primeira jornada)
Durante o desenrolar da história de Maria, a menina terá como
principal opositor o Capeta, que aqui se chama Asmodeu. Este aparecerá
em diversos momentos da narrativa, assumindo múltiplas formas, por meio
de diferentes atores, sempre no intuito de ludibriar Maria. De modo oposto,
o ator Rodolfo Vaz representa cinco personagens diferentes, que surgem e
desaparecem do nada nas situações difíceis, como num passe de mágica,
a oferecer meios para facilitar a trajetória de Maria ou de seu Pai. Assim,
temos um ator a representar cinco personagens diferentes e um personagem
representado por sete atores diversos.
Observar como acontecem as construções das aparências desses
dois blocos de personagens que movem a história de Maria vai nos permitir
compreender como o design de aparência molda de formas variadas o
corpo de um mesmo ator e também de que maneira um determinado projeto
de caracterização visual de um personagem pode adaptar-se a diferentes
corpos de diferentes atores.
113
Os projetos dos designs de aparências dos personagens
representados por Rodolfo Vaz transformaram o corpo do ator, a ponto de,
por vezes, torná-lo irreconhecível.
Maltrapilho (fig.41) é o primeiro
dos cinco personagens que Maria
encontra em seu caminho. Aparece
sentado no chão, ao lado de um córrego,
tocando uma sanfona com os pés e
cantando a canção popular infantil “Sapo
jururu” de Villa-Lobos. Suas roupas são
feitas com diferentes pedaços de tecidos
em cores claras, adornados com muitas fitas coloridas, presas nos ombros
e nas mangas. Seu rosto é maquiado de preto e, na cabeça, usa um chapéu,
um enorme adereço na forma de um pagode chinês, feito com folhas de
metal prateado. Uma canção familiar e uma figura estranha configuram um
arranjo gerador de uma imagem bastante incomum, capaz prender a atenção
do receptor no desenrolar da cena e de instigar sua imaginação a completar
as sugestões propostas delo design da aparência do personagem.
Como se falasse diretamente com o receptor a respeito da obra que,
na altura da cena descrita, apenas se inicia, Maltrapilho aconselha Maria e,
de forma indireta, refere-se também ao mundo fora do comum que se
construirá na tela:
e ocê tome tento, menina, que esse é um mundo que tá
pra ser feito e, no fundo de tudo, um defeito é degrau
importante na escala do perfeito. Torto, pobre ou malfeito,
todo vivente pode andar reto, porque humano não é ruim
nem bom, humano é ser incompleto (Abreu; Carvalho,
2005, p. 57).
Fig.41: Maltrapilho.
114
O segundo personagem
representado por Rodolfo Vaz a cruzar o
caminho de Maria é o Homem do Olhar
Triste (fig.42). O design de aparência
desse personagem será analisado mais
adiante, com maior detalhamento,
entretanto ressaltamos que essa
construção, assim como as demais, transforma o corpo do ator ao moldá-lo
para a cena, escondendo suas características pessoais. Nesse caso, o
Homem do Olhar Triste é um sertanejo, vestido com típicas roupas de couro,
mescladas a algumas peças de roupas confeccionadas no estilo teatral das
demais vestimentas da microssérie, como sua camisa de algodão surrado,
por exemplo.
Assim como as vestes feitas de couro rústico, pesado e com forte
odor, para encobrir o corpo do vaqueiro, a fim de fazer com que o homem
adquira algumas características dos animais para facilitar sua lida com eles,
os designs das aparências dos cinco personagens representados por
Rodolfo Vaz encobrem seu corpo natural para permitir a criação de corpos
ficcionais.
Mendigo (fig.43) é, talvez, o mais interessante dos cinco
personagens estudados. O design de sua aparência projetou uma figura
andrógina e o inusitado da
criação aproximou esse
personagem da visualidade de
um ator-bailarino de um
espetáculo de Butoh.
Semelhante a uma instalação
Fig.42: Homem do Olhar Triste I.
Fig.43: Mendigo.
115
artística ambulante, Mendigo é assim caracterizado: rosto maquiado de
branco, olhos esfumaçados de preto, boca colorida por batom vermelho
borrado e com os dentes maquiados para parecerem podres. Porta também
uma enorme peruca preta, no estilo dos cabelos trançados dos negros
jamaicanos, suas vestes são compostas por dezenas de bonecas de pano,
em tamanhos diferentes, a formar uma espécie de vestido. Tal como uma
assombração, Mendigo surge no momento em que Maria atravessa um árido
cemitério. A menina assusta-se com sua súbita presença e pergunta se ele
já estava ali. Mendigo responde: “Tô aqui desde que o mundo é mundo.
Você é que não percebeu. Tenho sede” (Abreu; Carvalho, 2005, p. 74).
Então Maria dá a Mendigo toda a sua água e este a bebe eufórico,
servindo também suas bonecas de pano. Como agradecimento, Mendigo
indica o rumo correto a ser seguido
naquela passagem da história.
Mascate (fig.44) é um vendedor
ambulante, caracterizado com traços do
estereótipo de um árabe dos contos
maravilhosos. Fala Português com acento
diferente, usa um turbante, barba, calças
bufantes e colete sobre camisa sem
colarinho e com mangas largas. Carrega malas e baús repletos de
mercadorias atraentes, como
bijuterias reluzentes, tecidos,
vestidos, etc.
Esse personagem
assemelha-se bastante ao
Vendedor (fig.45), outro
Fig.44: Mascate.
Fig.45: Vendedor.
116
ambulante que cruza o caminho do Pai de Maria. Vendedor, por sua vez, é
caracterizado com algumas marcas que constroem o estereótipo de um
português de séculos atrás. O bigode, claramente falso e muito volumoso e
o forte sotaque são as marcas principais de sua construção. Suas roupas
são bizarras: usa uma espécie de ceroula bufante e camisa com um colete
por cima; na cabeça, um adereço semelhante a um barrete triangular,
composto por um lenço escuro sobre um tecido branco com duas pontas
laterais, amarradas por fitas, caídas ao lado das orelhas. Como Mascate,
Vendedor carrega consigo as mercadorias que vende, mas o português
puxa uma carroça com objetos mais do uso cotidiano como, por exemplo,
panelas de diversos tipos. Esses dois personagens, assim como Maltrapilho,
oferecem objetos mágicos à Maria ou a seu Pai, que serão utilizados por
eles, mais adiante, como armas contra o opositor Asmodeu.
Nos encontros com Maltrapilho, o Homem do Olhar Triste e com
Mendigo, Maria tem a oportunidade (criada por eles) de realizar boas ações.
Com o primeiro, Maria molha a barra de seu vestido para tratar de um
machucado na perna daquele estranho homem. Com o segundo, Maria
enterra, depois de muitas peripécias, um defunto antigo, a quem foi
confiscado o direito a uma sepultura. Com Mendigo, Maria tem um gesto de
compaixão e generosidade, ao oferecer-lhe toda a água que possuía em
seu cantil.
Essas espécies de personagem pertencem ao esquema dos contos
maravilhosos apresentado por Propp (1970, p. 74), os cinco
20
personagens funcionam como anjos da guarda, guardiões com
a função de doar objetos mágicos ou mesmo de preparar uma
ação significativa que resultará no bom desfecho da história
da pequena heroína. Acredita-se que os anjos são mensageiros
20
O número cinco é
símbolo da vontade
divina que deseja a
ordem e a perfeição.
É também símbolo da
união, número nupcial,
segundo os
pitagóricos (Chevalier;
Gheerbrant, 1995, p.
241).
117
de Deus e protetores dos eleitos, cujas aparições são relatadas sob diversas
formas, “seriam seres puramente espirituais, ou espíritos dotados de um
corpo etéreo, aéreo; mas não poderiam revestir dos homens senão as
aparências” (Chevalier; Gheerbrant, 1995, p. 60).
Essa crença está implícita na escolha de atribuir a um só ator a
incumbência de representar cinco diferentes manifestações dessa entidade
mágica e o receptor tem oportunidade de “reconhecer” o anjo ao perceber
o jogo de múltiplas aparências criado pelos projetos de caracterização
desses personagens.
Asmodeu, o Capeta, é o grande opositor de Maria em toda a sua
trajetória. O projeto de design de sua aparência criou sete diferentes
configurações para representá-lo, construindo um diálogo com o simbolismo
que essa entidade possui. Simbolicamente “sete é também o número de
Satanás, que se esforça em imitar a Deus – o macaco de imitação de Deus.
Assim, a besta infernal do Apocalipse [13, 1] tem sete cabeças” (Chevalier;
Gheerbrant, 1995, p. 828). Como nunca faltam disfarces ao Capeta, as sete
peles de Asmodeu são: Asmodeu original (Stenio Garcia); Asmodeu bonito
(João Sabiá); Asmodeu sátiro (Ricardo Blat); Asmodeu mágico (André Valli);
Asmodeu velho (Emilliano Queiroz); Asmodeu brincante (Antônio Edson) e
Asmodeu poeta (Luiz Damasceno).
O projeto do design de aparência de Asmodeu original (figs.46 e
47) traduz visualmente muitos simbolismos atribuídos a esse ente mítico.
Acredita-se que os demônios “são espíritos de animais que se tornaram
humanos ou de homens que se tornaram animais” (Chevalier; Gheerbrant,
1995, p. 329) e que suas materializações tenham cabeças de bodes, cornos
e pelos por todo o corpo (Chevalier; Gheerbrant, 1995, p. 337). No domínio
118
do inferno, o homem e o animal não se
diferenciam, pois a redução a uma forma
animal é manifestação simbólica de
queda do espírito. Por tais razões,
Asmodeu original possui pequenos
chifres em sua cabeça. Estes brotam de
uma meia calvície sobre a testa,
claramente artificial, que faz lembrar as
cabeleiras calvas dos palhaços. A
cabeleira de Asmodeu original é seca,
fosca e desgrenhada e, assim como sua
barbicha e o seu bigode, possui uma
tonalidade avermelhada. Suas
sobrancelhas são marcadas e apontam
para o topo da testa, seus olhos são contornados por manchas de cor preta
e seu rosto, freqüentemente, é iluminado por uma luz verde, recurso que
destaca o personagem do contexto narrativo e o coloca numa esfera mítica
ou mágica, em relação aos demais personagens da microssérie (fig.48).
Usa uma espécie de bermuda, com o comprimento na altura dos joelhos,
confeccionada com um material de pêlos artificiais, semelhante a uma
pelúcia, que sugere a forma de
um ser híbrido, meio animal,
meio homem. Sua pele, sempre
suada, é trabalhada por
maquiagem preta, de modo que
pareça suja pelo convívio e
manuseio com o carvão e as
Figs. 46 e 47: Asmodeu Original.
Fig.48: Asmodeu Original com luz verde no
rosto.
119
brasas do inferno. Nos pés, no lugar dos
esperados cascos de quadrúpede,
Asmodeu original calça uma botina cano
curto, com uns pêlos por cima. A
coreografia de seus gestos também
busca diferenciá-lo dos humanos, por isso
Asmodeu original anda quase sempre
curvado para frente, salta e gesticula
muito.
Os demais Asmodeus são
caracterizados de formas diversas,
porém os designs de suas aparências
conservam alguns traços do projeto de
Asmodeu original, que funcionam como
índices da identidade demoníaca. Em
outros termos, as aparências dos demais
Asmodeus foram modelizadas pelo
projeto do design de aparência de
Asmodeu original. Em Asmodeu sátiro
(fig.49), brincante (fig.50), velho (fig.51)
e poeta (fig.52), os pequenos chifres, a
meia calvície ladeada pela cabeleira ruiva
e desgrenhada são praticamente iguais,
mas os traços que permanecem em todas
as sete configurações são o bigode
espetado, a barbicha e os cabelos ruivos,
assim como também a gesticulação
Figs. 49, 50, 51 e 52: Asmodeu Sátiro,
Asmodeu Brincante, Asmodeu Velho e
Asmodeu Poeta.
120
incomum e o andar marcado e coreografado, como podemos observar nas
caracterizações de Asmodeu mágico (figs. 53 e 54) e bonito (figs.55 e
56). Esses traços comuns permitem que o receptor reconheça Asmodeu
original por trás de uma nova “pele” ou de um outro design de aparência,
pois tal como ocorre com o arco-íris, o branco não é a sétima cor e sim a
soma das outras seis (Chevalier; Gheerbrant, 1995, p. 827).
3.3.2 (1º Momento/ 1ª jornada) Maria, seu Pai e a Madrasta
Maria (fig.57), a personagem central da microssérie, representada
por Carolina Oliveira, é uma menina de aproximadamente dez anos de idade,
simples e pobre, habitante de uma zona rural qualquer. Tem os cabelos
Figs. 53 e 54: Asmodeu Mágico.
Figs. 55 e 56: Asmodeu Bonito.
121
divididos ao meio com duas tranças
amarradas por laços de fitas vermelhas.
Freqüentemente descalça, usa
característicos vestidinhos de menina,
como os de Alice no País das
Maravilhas, com saia rodada e mangas
bufantes, sempre confeccionados em
cores bem claras e tecidos translúcidos.
Maria não tem sobrenome, poderia ser Alice, mas não é. Tal diálogo,
apenas sugerido, com aquela conhecida personagem é uma amostra do
caráter de múltiplas significações presentes na microssérie e que constitui,
sem dúvida, uma marca que a televisão resgata do teatro, visto que a
linguagem televisiva se caracteriza por inequívocos apelos referenciais
colhidos no cotidiano e de fácil decodificação.
Observa-se que a atividade projetiva é geradora de informação e
constitui traço definitivo de distinção entre o desenho de um figurino e o
design da aparência. No caso analisado, destaca-se que a aparência de
Maria foi projetada não para vestir a personagem, mas para fazê-la parecer
ser uma pintura ou uma ilustração saída de um livro infantil ou mesmo de um
desenho animado, como sugerem duas diferentes animações colocadas
na abertura da microssérie, no início do primeiro capítulo da primeira
temporada, uma delas dublada pela risada de Carolina Oliveira (figs. 58 e
59). As tecnologias utilizadas para a construção das animações são
Fig.57: Maria.
Figs. 58 e 59:
Animações da
personagem
Maria.
122
diferentes, porém, em ambas, vemos uma menina com os mesmos traços
característicos de Maria, ou seja, o mesmo penteado adornado com fitas, o
mesmo feitio e cor de vestido, a brincar com um balanço preso a uma árvore,
da mesma forma como veremos, mais tarde, a personagem Maria brincar
em sua casa.
Maria balança ao vento: é fluida, etérea, parece flanar no ar. Como
um anjo, a figura de Maria
parece estar relacionada a esse
elemento. Tem como guardião,
outro anjo, um pássaro que
nunca deixa de acompanhá-la
(fig.60). Esse pássaro é uma
marionete, confeccionada com
metal, cujos fios de
manipulação são aparentes. Esse detalhe deixa evidente o caráter ficcional
da obra, que se opõe, portanto, a qualquer tendência mimética de outros
espetáculos teatrais ou televisivos. Se os fios de manipulação são
desnecessários para fazer mover a marionete, funcionam para mover a
imaginação do receptor. Maria é um ponto de luz a percorrer o cenário: uma
zona rural, representada por um céu pintado e iluminado com luzes coloridas,
vegetações naturais no chão e uma casinha muito simples, onde ela mora
com seu Pai.
A aparência do Pai de Maria,
(fig.61) representado por Osmar Prado,
contrasta com a leveza da menina. É um
homem viúvo e desiludido, que bebe
muito. Suas roupas: calças, camisa,
Fig.60: Pássaro Incomum.
Fig.61: Pai.
123
colete e paletó surrados são confeccionados em cores escuras e em tecidos
pesados e encerados, artifícios que conferem peso às vestes. Com os
cabelos desgrenhados e empoeirados, a barba sempre por fazer e a pele
suada e brilhante, seu andar trôpego, muitas vezes, joga-o ao chão, onde
rasteja como um verme.
O design de sua aparência marca as oposições entre ele e Maria –
escuridão, terra e peso versus luz, ar e leveza. Porém, esses dois pólos em
oposição são ilusórios, pois, no decorrer da narrativa, se tornam
complementares: tal como a teoria de Goethe sobre as cores, pai e filha
representam trevas e luz, “os dois pólos de um organismo polar, organismo
no qual as cores se manifestam de forma cíclica” (Kollert, 1992, p. 55).
É fácil observar que o design da aparência é responsável por essa
tensão dramática, que faz parecer em oposição os personagens ou
tendências que a narrativa construirá como complementares. Desse modo,
o design da aparência evidencia o papel decisivo que desempenha na
caracterização da linguagem teatral: vive-se, em cena, aquilo que não é,
mas poderia ser, a fim de ser possível ver e viver tudo aquilo que
verdadeiramente é.
A figura da Madrasta (fig.62), representada por Fernanda
Montenegro, surge como uma viúva toda vestida de preto e irá tornar-se a
madrasta má da menina,
caracterizando um elemento
totalmente estranho àquele
pedaço de sertão, que nunca
encontrará uma harmonia com
aquele lugar e com aqueles
personagens.
Fig.62: Madrasta I.
124
Por um lado, o design da aparência da Madrasta aproxima-se do
design da figura do Pai, ao serem ambos opostos à leveza da menina,
porém a diferença entre Madrasta e Pai assinala-se desse modo: a primeira
opõe-se definitivamente ao design da heroína, enquanto o Pai apresenta
um design que se define na medida em que complementa o da filha. O
design da aparência marca as relações entre os personagens, que se tornam
visíveis pelo desenho de suas vestes e pela forma como as usam. As roupas
da Madrasta remetem a algum momento entre os séculos XVIII e XIX e
contrastam com o desenho das indumentárias do Pai e de Maria, que
parecem ser oriundas do século XX, evidenciando escolhas que marcam a
atemporalidade dos personagens, que podem pertencer a todos os tempos
e lugares.
O design de sua aparência transmite um ar jocoso à Madrasta,
assemelhando-a a uma bruxa de uma história em quadrinhos. Ela está
sempre vestida demais, com demasiados adereços, acentuando mais o
contraste com o local, a época e os personagens da história. Suas roupas
são bastante elaboradas, feitas de tecidos grossos e pesados, como os
usados em tapeçaria, adamascados e bordados. Usa saia rodada e franzida,
com anquinhas postiças para tornar proeminentes os quadris, porém o
comprimento das saias deixa à mostra as canelas finas e os sapatos com
bico pontiagudo e salto carrapeta. Seus cabelos são penteados em forma
de coque, com duas protuberâncias laterais. Nas cenas de exterior, usa
chapéu com flores, algumas vezes, com véu ou plumas, e uma sombrinha
pequena adornada com pingentes para protegê-la do sol. Porta também
xale, colar com medalha, brincos, leque e uma bolsa grande quadrada feita
de tecido tipo gobelin (tecido encorpado originário da tapeçaria francesa),
em suma, usa todos os artifícios de uma mulher ardilosa que pretende
125
conquistar algo. O peso de toda a sua indumentária, a fragilidade de suas
pernas e a instabilidade provocada pelos sapatos fazem que a Madrasta
caminhe com dificuldade pelo rústico terreno rural, tal como uma figura
circense sobre um fio de aço, desequilibrando-se e equilibrando-se com a
ajuda da insólita sombrinha (fig.63).
A Madrasta é um terceiro elemento
que se introduz entre Maria e o Pai, é o
terceiro termo que gerará o conflito. A
inicial oposição existente entre pai e filha
(escuridão, terra e peso versus luz, ar e
leveza) revela uma complementaridade,
torna-se um pólo de união em oposição à figura da Madrasta. Assim, Pai e
Maria versus Madrasta formam, definitivamente, pólos totalmente opostos,
impossíveis de se complementarem: presente/ rural/ ingenuidade versus
passado/ urbano/ esperteza.
3.3.3 (2º Momento/ 1ª jornada) Maria, o Homem do Olhar Triste e
os Executivos
Maria está a cumprir seu caminho iniciático, em busca “das terras da
beirada do mar” (Abreu; Carvalho, 2005, p. 56), fugindo dos maus-tratos da
Madrasta. Com sua leveza característica, caminha descalça por estradas
de terra e os únicos elementos figurativos de sua diáfana pessoa são a
trouxinha de roupas presa por um galho e uma boneca de pano que ela
carrega sempre consigo – a trouxinha funciona como um peso que a faz
parar de flutuar e aterrissar e a boneca é como uma réplica dela mesma, um
objeto análogo à sua figura, que caracteriza uma auto-referência do design
de sua aparência.
Fig.63: Madrasta II.
126
A certa altura de sua caminhada, ao passar por uma encruzilhada
(que popularmente simboliza o lugar onde acontecem aparições
sobrenaturais), Maria encontra o Homem do Olhar Triste, representado
por Rodolfo Vaz (fig.64). Está agachado, observando um cadáver-boneco.
Sua aparência é a de um típico homem do sertão brasileiro, um vaqueiro
que se veste com roupas de couro, chapéu modelo sertanejo. Suas roupas
são feitas de materiais orgânicos, em cores de terra. Tem um bigode fininho
contornando de perto os lábios e fuma cigarro de palha.
A leveza da figura de Maria encontra uma nova oposição no Homem
do Olhar Triste, uma vez que a menina é signo de ar e luz, enquanto o sertanejo
simboliza terra e fogo (cigarro). Trata-se, assim como no caso anteriormente
analisado de Maria e seu Pai, de uma oposição complementar, que não
caracteriza uma desarmonia,
pois juntos representam a força
vital. Maria, por ser do sexo
feminino e por ter o nome da
Virgem, que também é um
símbolo das águas geradoras,
pode ser relacionada ao
elemento água. Assim, água e
ar versus terra e fogo configuram a oposição complementar existente entre
Maria e o Homem do Olhar Triste, análoga à complementaridade inerente
aos quatro elementos cosmogônicos celebrados culturalmente.
Tal relação é abruptamente rompida pelo surgimento, em uma
motocicleta com sidecar (pequeno carro acoplado ao lado de uma
motocicleta), dos Executivos, representados por Charles Fricks e Leandro
Castilho (fig.65). Essas duas figuras são trabalhadas por meio da utilização
Fig.64: Homem do Olhar Triste II.
127
de apuradas técnicas de caracterização
visual de atores, assim como de
técnicas coreográficas e de tecnologia
televisiva para criar um estereótipo do
homem que trabalha nos grandes centros
urbanos. Este é semelhante em qualquer
cidade ou país: veste-se com cores
sóbrias, carrega pastas e maletas, move-se com rapidez e ansiedade.
Porém, é claramente datado e situado, pois é um tipo que remete a um
tempo e a lugares determinados.
O design das aparências desses dois personagens é feito para
induzir os receptores a vê-los como dois bonecos de borracha idênticos,
semelhantes ao Falcon, movidos a pilha. São figuras desarmônicas em
relação à sugerida espacialidade rural da cenografia. Criam pólos de
oposição à Maria e ao Homem do Olhar Triste: orgânicos e rurais versus
sintéticos e urbanos.
Suas roupas são feitas em látex, bastante aderidas aos corpos. São
dois macacões pretos com apenas o desenho do paletó e das calças e não
o corte destes. Do mesmo modo, a camisa branca, a gravata preta e os
botões são um tipo de ilustração feita sobre os macacões de borracha. A
cabeleira também é desenhada, não há fios de cabelos isolados. É feita
com o mesmo material das roupas, algo emborrachado que transmite a
impressão de os Executivos serem bonecos. A maquiagem, bastante teatral
e aparente, faz que os dois atores pareçam uma só pessoa ou um só boneco
replicado. Carregam pastas de executivos e usam apitos pendurados nos
pescoços para manter a ordem.
Fig.65: Executivos I.
128
A aparência dos Executivos complementa-se com a fala mecanizada
e a coreografia de gestos interrompidos e velozes, acelerados, ainda mais,
pela tecnologia televisiva, recurso que acentua a idéia de estarmos diante
de dois bonecos. Podemos dizer que a visualidade desses personagens é
composta pelo entrelaçamento das linguagens acima descritas, que
procuram transferir a estruturalidade dos códigos operantes na construção
dos bonecos para a edificação dos Executivos. A imagem deles desenha,
não só o modo de ser, mas, sobretudo, o modo de ver os burocratas, como
também explicita a interação entre os personagens em questão (fig.66).
As seleções feitas
estabelecem a relação de
fronteira entre aparência e
cultura: o rural/ urbano, a pureza/
pecado, o bem/ mal, etc. Fazem,
ainda, uma crítica ao modo de
vida urbano, em contraponto
com a zona rural, por meio de fortes contrastes e das atitudes dos Executivos,
que são facilmente ludibriados pela esperteza de Maria, simbolizando o
triunfo da sabedoria popular.
3.3.4 (3º Momento/ 2ª jornada) Maria mergulha no fundo do mar
Essa é a seqüência de abertura do primeiro capítulo, da segunda
temporada da microssérie, desta vez narrada na forma de um filme musical.
Maria, caracterizada sempre da mesma maneira, com sua trouxinha,
encontra, enfim, a tão procurada terra da beirada do mar (fig.67). Diante da
imensidão marinha, sente uma tontura. Larga a trouxa de roupas que confere
Fig.66: Executivos II.
129
peso à sua etérea figura, evitando que
flutue, e inicia, então, livre de seu “fio
terra”, uma espécie de devaneio em
forma de diálogo cantado com todos os
personagens com quem irá se deparar
nessa etapa de sua saga. Tal como as
sombras no interior da caverna de Platão,
esses personagens estão no fundo do mar e não se apresentam diretamente
a Maria, que apenas ouve seu canto. A seguir, a menina é arrastada pela
força da maré e mergulha, mas as imagens mostram apenas uma pequena
boneca a submergir.
A representação do mar é completamente antimimética, com vagas
desenhadas, recortadas e pintadas em material bidimensional, modulada
ao som de verdadeiros movimentos marinhos, o que faz lembrar o filme E la
nave va (1983), de Federico Fellini.
No fundo desse inusitado mar, vêem-se os personagens, enfileirados
lado a lado e presos a um enorme mastro pelos fios de manipulação de
bonecos marionetes, a cantar para Maria (fig.68). Uma orquestra, cujos
instrumentos soam movidos por manivelas acopladas a rodas de diferentes
tamanhos, acompanha o bizarro coro. O mastro, situado paralelo ao chão,
movimenta-se de acordo com o
ritmo das ondas, fazendo
balançar de um lado para outro
os personagens nele atados.
Assemelha-se tanto a um mastro
de veleiro, como a uma vara de
urdimento teatral (estrutura de
Fig.67: Maria e o “mar”.
Fig.68: Personagens-bonecos
pendurados no mastro.
130
madeira colocada acima do palco para sustentar operações que resultam
em efeitos cênicos), em que os bonecos de um espetáculo de marionetes
estariam pendurados à disposição do manipulador.
O trabalho de design para construção da aparência desses
personagens, assim como dos Executivos anteriormente descritos, foi feito
para simular bonecos, pois o design da aparência cria simulações que
sugerem, sem definir referencialmente e, assim, permite que o receptor
execute, por meio do imaginário, os elementos que propiciam o
desenvolvimento da semiose e da metalinguagem. Por outro lado, o figurino
cria simulacros, ou seja, busca algo que se aproxima do real e da perfeição
ao mimetizar a realidade, fazendo com que o receptor perca a noção de
que os personagens, apenas representam.
Marionetes e bonecos enfatizam a opção dos diretores da
microssérie por um trabalho marcado por forte teatralidade, pois esses
elementos são mais uma alusão ao teatro e à obra dos criadores das
vanguardas do início do século XX que, como Gordan Craig e Oskar
Schlemmer, buscavam expressar-se de modo antinaturalista e faziam uso
de bonecos em suas encenações (Silva, 2005, p. 40).
Desta vez, em Hoje é dia de Maria, os bonecos simulados são
marionetes movidas manualmente por fios. Os atores que os representam
estão caracterizados com roupas bastante coloridas, enfeitadas por
materiais brilhantes e maquiados teatralmente. Parecem pertencer (o caráter
de representação é nítido) a um espetáculo de marionetes do passado (traço
da atemporalidade do design da aparência), pois o desenho de suas roupas
e o modo como são construídas suas aparências, remetem a um trabalho
artesanal, aparentemente sem o uso de tecnologia. Na cena em questão,
todos os trabalhos de caracterização visual dos atores, assim como das
131
coreografias de seus movimentos e também dos adereços são simulações
modelizadas pelas linguagens que constroem a visualidade de bonecos.
Essa seqüência evidencia ainda mais a referencialidade ao teatro
como tema da microssérie, marcada pela busca de caracterizar uma
linguagem que construa concretamente a visualidade do imaginário. O mar,
“símbolo da dinâmica da vida, de onde tudo sai e a ele retorna: lugar dos
nascimentos, das transformações e dos renascimentos” (Chevalier;
Gheerbrant, 1995, p. 592), pode ser entendido, nessa obra, como um
ambiente no qual as interações ocorrem, em que as mudanças são
percebidas ou como o lugar onde a informação é gerada, pois ali estão
todos os personagens que, ao longo da história, definirão o destino de Maria.
Nesse ambiente informacional, o tempo não obedece a marcação
linear diacrônica, tampouco os trabalhos de design de aparência. Talvez
por esse motivo, Maria, confusa, pede que alguém a ajude a olhar o mar e
diz: “O mar é grande por demais! E essas águas vindo... minha vista
turvando... Ara! Que tempo é esse?” (Abreu; Carvalho, 2005, p. 384). Esse
é o tempo da memória, que combina o tempo de antes com o presente para
criar uma nova informação. Um tempo incerto, cuja visualidade é conhecida
por meio da construção de espacialidades que, concretamente, materializam
cenas criadas na fronteira de diferentes tempos e sistemas.
Hoje é dia de Maria, um espetáculo televisivo contemporâneo, dialoga
com gêneros teatrais do passado, como, o show business da Broadway, o
teatro de bonecos, a farsa, o circo e as demais formas já mencionadas,
assim como conversa com o cinema: tanto com o cinema do passado, ao
ser elaborado nos moldes de um tradicional filme musical e aludir a criadores
como Fritz Lang em Liliom (1934), por exemplo, como também conversa
com o cinema atual, ao buscar, por meio da tecnologia de ponta da televisão,
132
criar imagens com a qualidade visual da técnica cinematográfica de nossos
dias e, sobretudo, dialoga com o conceito de montagem, do modo pelo
qual o concebeu Sergei Eisenstein.
Esse conceito perpassa toda a microssérie. Constitui um modo de
ler a obra, em grande parte, oferecido pela forma como foi concebido o
design de aparência dos personagens. Eisenstein, antes de conhecer o
cinema, era um homem de teatro (Xavier, 2005, p. 130). Formulou seu método
de montagem cinematográfica com base na noção de “espetáculo de
atrações”, denominação criada pelo autor para definir uma oposição ao
teatro mimético naturalista. O circo e o music-hall inspiraram Eisenstein a
pensar uma forma de montar os espetáculos, inicialmente de teatro e mais
tarde de cinema, que inserissem cenas conflitantes com a causalidade linear
da obra, para gerar significados.
As imagens dos espetáculos dessa forma montados são imagens
complexas que falam algo além do que exibem, contém um significado a
ser construído pelo imaginário. A montagem eisensteiniana permite ao
receptor ultrapassar o nível da legibilidade, da constatação passiva, para
atingir o nível da leiturabilidade de um espetáculo, ou seja, proporciona ao
receptor um papel ativo, ao fazer com que seu repertório cultural seja
invocado para o desvendamento da nova informação.
O mesmo raciocínio conduz os trabalhos de construção do design de
aparência dos personagens de Hoje é dia de Maria, em que o conflito,
procedimento central do conceito de montagem elaborado por Eisenstein,
é amplamente utilizado. Seres que, aparentemente, pertencem a contextos
diferentes, com aparências que não configuram uma linearidade espacial
ou temporal, mas revelam origens culturais diversas, são colocados lado a
lado.
133
Como um editor de cinema ante uma ilha de edição, o designer de
aparência de atores pinça informações oriundas de diferentes culturas, de
diferentes linguagens e organiza-as para realizar seu trabalho. Enquanto o
figurino desempenha uma função referencial, o design de aparência trabalha
com a metalinguagem, pois idealiza novas formas para caracterizar
visualmente um ator/ personagem. Para tanto, busca dados em outras formas
culturais, utilizando os materiais e as tecnologias a ele disponíveis no
momento da criação. A seqüência analisada, com as marionetes submersas,
penduradas no mastro a cantar, enquanto esperam a ação criativa do
(designer) manipulador para compor a exposição da idéia pretendida, pode
ser entendida como um emblema dessa conduta adotada na microssérie.
Opondo-se à linearidade, o conflito causa, na obra, um efeito de
estranhamento. Sabe-se que o estranhamento, procedimento estético
descrito nos anos 1920 pelo teórico russo Viktor Chklovski, consiste,
precisamente, em quebrar a linearidade e a familiaridade da percepção
por meio da singularização dos objetos artísticos, para dificultar e prolongar
essa percepção, tornando-a mais crítica. Segundo Chklovski:
O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão
e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o
procedimento da singularização dos objetos e o
procedimento que consiste em obscurecer a forma,
aumentar a dificuldade e a duração da percepção (1976,
p. 45).
O antimimetismo artístico é ressaltado, assim como a teatralidade
se evidencia quando o estranhamento é trabalhado em espetáculos. Esse
modo de agir, aplicado ao design de aparência de atores, transforma os
códigos da caracterização visual em signos auto-referenciais, tal como os
signos poéticos que designam seus próprios códigos. Essa idéia também
134
salienta o caráter de tradução que particulariza os procedimentos do design
de aparência, que não repete referências, mas está sempre criando outros
meios feitos de códigos, ou seja, explicita-se assim o caráter semiótico da
auto-referencialidade.
Qualificando o espaço midiático e, dessa forma, edificando a
espacialidade cênica, o design de aparência de atores constrói a
teatralidade dos personagens e induz a um modo de ler a microssérie.
135
CAPÍTULO 4: O DESIGN DE APARÊNCIA DE ATORES COMO
DESCONSTRUÇÃO DO PARADIGMA TEATRAL: CONSIDERAÇÕES
SOBRE A OBRA DE CINDY SHERMAN
A obra da fotógrafa norte-americana Cindy Sherman apresenta
relevantes questões relativas a esta pesquisa. Sherman é conhecida por ter
criado uma vasta obra, formada por inúmeras imagens que retratam ela
mesma exibindo múltiplas e inusitadas aparências. Essa é uma invariante
no trabalho de Sherman, que, muito mais que as atrizes de teatro e cinema,
explora as várias formas que sua aparência pode assumir como meio de
expressão. É interessante observar que estamos diante de uma invariante
que se manifesta por meio de numerosas variáveis, pois, a cada nova
imagem criada, Sherman surge completamente modificada. Entretanto, a
fotógrafa declara não fazer auto-retratos e explica, ainda, que, ao criar seus
personagens, procura afastar-se de si mesma, tanto quanto seja possível
(Bronfen, 1995, p. 13).
A atitude de desenhar e redesenhar a própria aparência manifesta-
se, em Sherman, como uma sedução artística e emocional, pois, além de
ser uma forma de comunicar sua arte, essa busca obsessiva pela mudança
da aparência pode ser entendida como uma forma de conhecer facetas
encobertas de si mesma. É como se, a cada novo design, ela se auto-
seduzisse, com as inúmeras possibilidades que sua aparência redesenhada
pode configurar. O procedimento de transformar a aparência de seu corpo
por meio de diferentes arranjos de signos caracteriza a noção de redesenho,
traço acentuado na obra da artista que, reiteradamente, cria “uma forma
pensada em outra” (Ferrara, 2002, p. 52).
A artista parece querer reinventar seu corpo e, para atingir seus
intentos, ela dispensa os softwears de manipulação de imagens do tipo
136
photoshop e emprega todos os recursos da linguagem caracterização visual
de atores, a fim de trabalhar com o design de aparência como principal
recurso para gerar os significados manifestos em sua obra.
Nesse ponto reside nosso interesse pelo trabalho de Cindy Sherman,
pois esta característica marcante nos permite apontar dois aspectos a
respeito de sua obra, que podem contribuir para a expansão do entendimento
da ação significativa da linguagem estudada nesta pesquisa.
O primeiro dos aspectos mencionados refere-se à inequívoca
aproximação que a artista faz questão de manter com as técnicas
construtivas do teatro, em detrimento da tecnologia digital que o meio
fotográfico oferece. Entre métodos teatrais, tais como projetores de slides
e luzes coloridas, Sherman utiliza travestimentos, maquiagens (Felix, 1995,
p. 9) e todos os demais recursos oferecidos pela linguagem caracterização
visual.
Num primeiro momento, podemos dizer que a artista trabalha a
caracterização visual de forma artesanal para construir os inúmeros
personagens que povoam suas imagens fotográficas. Porém, a observação
do conjunto de sua obra e a constatação da forma extremada pela qual
Sherman realiza os designs de suas incontáveis aparências nos impõem
outra questão: se, por um lado, a artista trabalha a caracterização visual
dentro do paradigma do teatro, simultaneamente, por outro, suas imagens
levam-nos a pensar na desconstrução de tal paradigma, pois apontam para
outras direções. Buscaremos trabalhar essas questões nas análises das
imagens que estudaremos adiante.
Há inúmeros ensaios e estudos escritos a respeito do
trabalho de Sherman
21
, em geral, a maioria deles se fixa nos
aspectos psicológicos que podem ser depreendidos de suas
21
Amélia Jones lista os
escritos feitos sobre a
obra de Sherman, no
texto Tracing the
subject with Cindy
Sherman (2006, p.
50).
137
imagens. Porém, entre diversas abordagens possíveis, o fato é que sua
obra propõe um instigante diálogo com o receptor, a ponto de transformá-lo
em “participante”, segundo a Profª Amélia Jones, da Universidade da
Califórnia, Riverside (2006, p. 33). Esse diálogo é estabelecido pela maneira
por meio da qual o design de aparência é trabalhado pela artista, para criar
as centenas de imagens que instigam o receptor a aprofundar sua
percepção.
Cindy Sherman iniciou no mundo das artes na década de 1970, com
um ensaio fotográfico denominado Film stills. Trata-se de uma série de
imagens, em preto e branco, em que a artista buscou recriar a atmosfera
dos filmes B, do final dos anos 1950 (Cruz, 2006, p. 1). Em diferentes
locações e cenários, Sherman representou, nas imagens do referido ensaio,
diferentes personagens femininos, fazendo uso dos recursos da
caracterização visual para transformar-se em múltiplas mulheres (figs.69,
70 e 71).
Figs 69 e 70: Cindy Sherman. Film stills, # 31 e # 39, 1979.
138
De acordo com a
distinção proposta entre figurino
e design de aparência, podemos
pensar, a princípio, que nessa
série de fotografias, Sherman
trabalhou mais com o modo
figurino de organizar a
caracterização visual, pois as
imagens se apresentam como
construções aparentemente naturalistas e referenciais.
Todavia, como já foi mencionado
22
, essa distinção não pode ser feita
sem se levar em conta o contexto de cada obra, pois há gradações no modo
de organizar a caracterização visual e existem casos em que esses dois
modos de proceder podem conviver na mesma criação, o que tornaria
imprecisa uma classificação parcial.
Esse é o caso do ensaio em questão; apesar de, individualmente,
suas imagens sugerirem ações criativas relacionadas ao modo figurino de
organizar a caracterização visual de atores, a observação do conjunto das
fotografias possibilita a percepção de uma representação que aponta para
o design de aparência, pois parece querer dizer algo mais além daquilo
que mostra.
Um olhar mais demorado sobre esse ensaio como um todo permite
ao receptor passar da simples visualização apressada e passiva para atingir
o nível mais profundo da leiturabilidade da obra artística.
Todavia, a força significativa de Film stills não reside em uma imagem
tomada em separado e, sim, no todo. Cada imagem parece ser extraída da
narrativa de um filme diferente, porém, em cada uma delas,
22
Vide capítulo I, item 1.7
deste trabalho.
Fig.71: Cindy Sherman. Film stills, # 12, 1978.
139
há uma personagem feminina diversa, em um contexto distinto, construído
em detalhes, no qual podemos distinguir o resgate de traços arquetípicos
culturalmente atribuídos às mulheres como, por exemplo, a prostituta, a
esposa, a aflita, entre outros. Essa figuração arquetípica aproxima-se da
obrigatoriedade de referencialização que distingue todos os figurinos e, no
caso analisado, é a ferramenta necessária para apresentar as questões
que o ensaio suscita, tais como mencionam alguns críticos: o papel da mulher
perante o desejo masculino, a construção de um modelo feminino por meio
da mídia, etc (Cf. Cruz, 2006, p. 2 e Jones, 2006, p. 51).
A busca de tal referencialidade dos arquétipos e do imaginário é o
que diferencia essa realização de uma construção naturalista, que se restringe
a mimetizar fatos e situações reais. Se relembrarmos
23
as palavras de
Antunes Filho a respeito de Nelson Rodrigues, podemos pensar numa
aproximação das ações criativas de Cindy Sherman e do teatrólogo carioca,
no que se refere ao uso de um aparente naturalismo em suas obras, como
atesta a declaração de Antunes para a revista Isto É Senhor, em 03/05/
1989. Segundo Antunes, Nelson Rodrigues foi um mestre em criar situações
dramáticas em que, por trás de um aparente naturalismo, era possível ver
“os mitos saírem das xícaras, das cadeiras”, conjuntura análoga pode ser
observada em Film stills.
Por essa razão julgamos mais apropriado dizer que a ação criativa
de Sherman, na obra mencionada, vista em sua globalidade, configura um
design de aparência e não apenas a organização sígnica de um trabalho
de figurino, que as fotos, individualmente sugerem.
Observa-se que o design de aparência, por ser um arranjo sígnico
sistêmico aberto, enseja diálogos com outros textos culturais. Assim, ao
projetar com minúcias as transformações de sua aparência em
23
Vide capítulo II, item
2.6 deste trabalho.
140
Film stills, Sherman reporta-se ao
cinema como o grande meio capaz
tornar a imaginação visível e,
sobretudo, hábil para criar a ilusão
de “realidade”. Todos esses
motivos nos permitem entender
que essa criação da fotógrafa
exemplifica uma situação artística
em que os dois modos de
organizar a caracterização visual: figurino e design de aparência de atores
coexistem numa mesma obra.
Contudo, não foram somente as imagens de Film stills que
despertaram nosso interesse sobre a obra de Cindy Sherman e, sim, o
conjunto de sua obra, principalmente, suas realizações posteriores, das
décadas de 1980/90, e também as mais recentes, que deixam transparecer
de modo mais claro a importância que o design de aparência exerce em
seu trabalho como linguagem expressiva (figs. 72, 73 e 74).
Fig.72: Cindy Sherman. Untitled, # 150, 1985.
Figs. 73 e 74:
Cindy Sherman.
Untitled, # 225,
1990 e Untitled,
2000.
141
Sherman projeta meticulosamente o design de sua aparência a cada
nova imagem a ser gerada, como podemos ver nas reproduções das
anotações da artista (figs. 75 e 76). Cada vez mais, ela faz questão de deixar
à mostra os truques utilizados para simular aparências, por isso, podemos
pensar numa aproximação de seu trabalho com o teatro e com a arte-
performance, pois, ao utilizar o próprio corpo nas obras, Sherman coloca-
se não apenas como uma fotógrafa, mas também como uma artista
performer.
Segundo Amélia Jones, o trabalho de Cindy Sherman relaciona-se,
de modo particular, com as produções das artes performáticas, típicas dos
anos pós-1960, orientadas por práticas corporais que buscam trabalhar suas
questões decretando-as por meio da representação, em lugar de dissimulá-
las como se fazia no projeto modernista (2006, p. 33).
Figs. 75 e 76: Anotações de Cindy Sherman I.
142
Se, em Film stills, Sherman apresentava certa nostalgia com relação
aos velhos filmes (Cruz, 2006, p. 5) e suas construções buscavam a
visualidade do cinema ainda feito em preto e branco, nos trabalhos
posteriores da artista podemos pensar numa aproximação entre suas
imagens e a cena teatral “pós-dramática”, assim como também da arte-
performance. Essa é a razão pela qual escolhemos duas imagens de 1990
e uma de 1985 para analisar neste capítulo.
Ao utilizar, cada vez mais, a teatralidade como veia mestra de suas
criações, o trabalho de Sherman evoluiu para um caminho sintonizado com
o olhar sincrônico da “modernidade líquida”, metáfora proposta por Bauman
24
(2001) para definir a contemporaneidade, que permite ao designer superar
o tempo histórico e resgatar dados disponíveis em toda história da cultura
para compor uma dada obra.
Assim, as imagens de Sherman ora se relacionam com a pintura e
com outras formas de arte, ora com o cinema, ora parecem cenas de
espetáculos de teatro, ora se mostram como bizarras construções difíceis
de serem classificadas. Suas fotografias nada têm de referencial ou
mimético, ao contrário, sua vasta obra compara-se ao fluxo contínuo das
imagens do inconsciente, que, sem o controle do racional, assume as mais
diversas visualidades, expressas em múltiplas aparências.
Dessa forma, a criação imagética de Sherman caracteriza-se como
textos culturais produzidos por incontáveis encontros fronteiriços.
24
Vide capítulo I, item 1.7
deste trabalho.
143
4.1 Fronteira com o teatro
As considerações que faremos a seguir são referentes a duas
imagens produzidas pela artista, pertencentes à série History portraits, com
as seguintes identificações: Untitled, # 222, 1990 (fig.77) e Untitled, # 219,
1990 (fig.78)
Consta que, na série “Retratos históricos”
25
, Sherman baseou-se nas
pinturas clássicas para criar fotografias em que buscou realizar críticas à
monarquia, à Igreja e a determinadas figuras religiosas, porém sem
reproduzir nenhuma delas em particular (Cruz, 2006, pp. 11-12).
25
Tradução nossa.
Figs.77 e 78: Cindy Sherman. History portraits, # 222 e # 219, 1990.
144
Mas, como é característico de seu trabalho, a artista utilizou, no ensaio em
questão, as ferramentas teatrais e construiu suas imagens carregadas de
teatralidade.
Todavia, segundo nosso entendimento, se o ensaio objetivava dialogar
com a pintura, essa série de imagens resultou num diálogo mais expressivo
com o teatro que propriamente com a pintura clássica.
A maioria dos personagens criados por Sherman em “Retratos
históricos” tornou-se concretamente mais próxima das artes da cena que
daqueles retratados pelos pintores do passado. Por compreendermos o
trabalho da artista dessa forma, podemos dizer que, no que se refere às
duas imagens escolhidas, ela propõe um complexo diálogo entre a fotografia
e o teatro.
Esse diálogo intensifica-se ainda mais, se pensarmos que, para
atingir seus propósitos, Sherman lança mão do estranhamento,
procedimento estético elaborado por Chklovski
26
, que teve forte repercussão
ao ser transposto para o meio teatral.
Conhecido como efeito de distanciamento, tal mecanismo difundiu-
se, no teatro, por meio da obra do dramaturgo Bertold Brecht, entretanto o
pesquisador teatral Anatol Rosenfeld explica ser este um efeito antigo, que,
mesmo visando a outros objetivos, já podia ser encontrado na obra do poeta
trágico francês Racine e, a seguir, nas peças de Schiller (Rosenfeld, 2006,
p. 152). O distanciamento brechtiano, assim como a teoria de Chklovski,
consiste na utilização de técnicas que permitam tanto estranhar quanto
reconhecer o objeto artístico e é justamente em tal fluxo que acontecem os
processos de mediação. A esse respeito Rosenfeld pontua que:
26
Vide Capítulo III, item 3.3.4
deste trabalho.
145
A teoria do distanciamento é, em si mesma, dialética. O
tornar estranho, o anular da familiaridade da situação
habitual, a ponto de ela ficar estranha a nós mesmos, torna
a um nível mais elevado esta nossa situação mais
conhecida e familiar. O distanciamento passa então a ser
negação da negação; leva através do choque do não -
conhecer ao choque do conhecer. Trata-se de um acúmulo
de incompreensibilidade até que surja a compreensão.
Tornar estranho é, portanto, ao mesmo tempo tornar
conhecido. A função do distanciamento é a de se anular a
si mesma (2006, p. 152).
Chklovski propunha que a percepção de uma obra artística fosse difícil
e demorada; Brecht buscava despertar a consciência política do espectador
de suas peças por meio do controle do envolvimento emocional destes.
Apesar de apresentarem alguns pontos distintos, os objetivos desses dois
pensadores coincidiam no fato de que ambos teorizavam a respeito da
elaboração de procedimentos estéticos, apartados do mimetismo, que
obrigavam o receptor a aprofundar sua percepção para, dessa forma, torná-
la mais crítica.
Podemos dizer que o estranhamento/ distanciamento é inerente a
todo trabalho de design de aparência de atores, porque esse efeito diz
respeito à procura de métodos eminentemente anti-referenciais que visam
a organizações de signos capazes de romper com a linearidade e o
mimetismo naturalista. Toda obra de Sherman é construída sobre esse
princípio, que se torna visível por meio da linguagem caracterização visual,
mais especificamente, por meio do design de aparência, um de seus
principais instrumentos de trabalho.
A presença central da fotógrafa em ambas as imagens ressalta a
proximidade de seu trabalho com as artes da cena, pois Sherman se coloca
como uma atriz a representar um enredo complexo, do qual vemos apenas
146
uma tomada, o suficiente para sugerir ao receptor miríades de conflitos
dramáticos. Esse teor dramático é obtido pelas visualidades das duas
fotografias, que são construídas pela artista por meio da exploração de
conjuntos de índices sobre seu próprio corpo, cuja articulação com os demais
componentes das imagens cria as espacialidades das cenas apresentadas.
Sherman projeta as transformações de sua aparência, criando
volumes e formas que ocupam todos os espaços das cenas mostradas.
Assim, seu corpo coincide com o espaço cênico, gerando, dessa maneira,
uma metalinguagem da dimensão física do espaço, ou seja, estamos nos
referindo à espacialidade da cena.
Em suma, as espacialidades comunicativas das cenas são
decorrentes do corpo da artista, pois, a partir dele surgem os elementos
concretos que conferem significados às imagens fotográficas estudadas.
Conforme a conceituação do termo espetáculo, proposta no Capítulo
I, item 1.3, adotada neste trabalho, entendemos que Sherman constrói
imagens passíveis de serem classificadas como espetáculos fotográficos,
pois suas criações são representações feitas para serem vistas.
Marilena Chauí apresenta a etimologia da palavra espetáculo e todas
as diferentes acepções do termo reforçam nossa proposição:
A palavra espetáculo vem dos verbos latinos specio e
specto. Specio: ver, observar, olhar, perceber; specto: ver,
olhar, examinar, ver com reflexão, provar, ajuizar, acautelar,
esperar; species, a forma visível da coisa real, sua essência
ou sua verdade. Spectabilis é o visível; speculum é o
espelho; spetaculum, a festa pública; spectador, o que vê,
observa, espectador; spectrum é a aparição irreal, visão
ilusória; speculare é ver com os olhos do espírito.
Espetáculo pertence ao campo da visão (2007, p. 14).
147
A imagem # 222 poderia ser a foto de uma cena de um espetáculo
teatral, todavia, ela não é parte da esperada sucessão de cenas que levam
a termo uma trama ficcional. Ao contemplá-la, o receptor coloca-se diante
de um drama de uma única cena, protagonizado por uma só atriz, uma obra
que tem início, desenrola-se e finda em apenas um único quadro.
Essa fotografia compõe uma cena que permite ao receptor penetrar
a intimidade do quarto de uma senhora idosa, no momento em que esta
parece estar absorta em seus pensamentos. Tal como ocorre nos monólogos
teatrais, essa imagem sugere estarmos diante de um discurso que a
personagem criada faz para si mesma. Sentada, seminua, com os seios à
mostra, segura, com a mão esquerda, um lenço amarrotado, e sua expressão
revela certa gravidade. A cenografia é composta por diferentes tecidos
encorpados que, apenas colocados no espaço cênico, formam um arranjo
de índices a sugerir cortinas, tapete e poltrona.
A observação da imagem # 219 impõe uma ambigüidade ao receptor:
o caráter representacional e de jogo é duplamente apresentado pela
visualidade de uma face humana de perfil, com um enorme nariz postiço,
que, em meio a um fundo negro oval, é recortada de modo que se assemelha
a uma máscara teatral pendurada contra uma parede.
O design de aparência de ator trabalhado na imagem # 222 não
permite ao receptor acalentar qualquer ilusão de estar ante uma cena
naturalista. Apesar de inspirar múltiplas sensações, os elementos
representacionais constitutivos da aparência da velha senhora são
claramente artificiais. Esta exibe uma peça simuladora de um enorme par
de mamas que, apenas sobreposta ao corpo de Sherman, revela os
contornos da matéria sintética que a conforma. Na mama direita, há duas
148
marcas alusivas a profundas cicatrizes, que talvez também remetam à causa
da vagueza do olhar da mulher retratada.
Ao explicitar a teatralidade com que são representadas as mamas,
essa construção remete ao solilóquio mais famoso de William Shakespeare,
pronunciado por seu personagem Hamlet. O par de seios da personagem,
imersa em suas reflexões, equipara-se à caveira que o jovem príncipe da
Dinamarca segura nas mãos ao se questionar: “Ser ou não ser”
(Shakespeare, 1990, p. 958).
A maquiagem de Sherman é trabalhada com as técnicas teatrais de
envelhecimento e a adaptação de sua peruca grisalha não busca esconder,
na testa, a característica linha demarcatória do postiço, um aparente detalhe
que reforça o caráter ficcional da imagem e se opõe a qualquer tendência
mimética. Uma gola avulsa colocada sobre os ombros e o casquete do topo
da cabeça são elementos naturalistas que ajudam a, paradoxalmente,
compor/simular/dissimular os seios falsos e a peruca, o que imprime certa
verossimilhança a essa composição claramente híbrida: uma imagem ao
mesmo tempo familiar e estranha.
A ambigüidade que a imagem # 219 coloca ao receptor é resultado
do projeto do design de aparência, que gera imprecisões e dúvidas entre o
ser e o parecer. O que se vê poderia ser uma máscara pendurada, mas não
há elementos suficientes para dar ao receptor tal certeza.
O posicionamento recortado do rosto, que parece sair de uma fenda
diagonal feita em um pano preto, gera a impressão de flutuação e, em
conseqüência disso, estabelece a dúvida. O enorme nariz postiço que
compõe a figura pode ser visto, isoladamente, também como uma máscara,
pois há máscaras teatrais que se resumem apenas a narizes agigantados,
como a de um Dottore da Commedia dell’ Arte italiana, por exemplo (fig.79).
149
Porém, nesse caso, há uma inversão do
papel teatral da máscara, pois, tradicionalmente,
ela deve ser um objeto que esconde o rosto do
ator para revelar traços ocultos do personagem
e, dessa forma, caracterizá-lo. Na imagem de
Sherman em questão, a maquiagem feita no rosto
da artista, ao se prolongar para o nariz postiço
sugere, ao receptor, serem os traços do ator que
caracterizam a máscara e não o contrário:
portanto não se sabe a quem serve a máscara ou
o que está sendo mascarado e, até mesmo, se
existe máscara. Ela é, portanto, uma pseudomediação, ou seja, comunica-
se para não mediar.
A máscara, por si só, indica uma forte menção ao teatro, porque é
tomada, historicamente, como um dos elementos mais simbólicos da
linguagem cênica (Vasconcellos, 1987, p. 123). Sua utilização remonta aos
primeiros rituais da humanidade e às formas primitivas de representação
(Berthold, 2003, p. 1) (fig.80). A máscara
é também uma metáfora do ator em
cena, ou seja, o ator a representar
alguém diferente de si próprio.
J. Guinsburg utiliza o termo
“máscara encarnada” (2001, p. 10) para
se referir ao ator imbuindo da “(...)
intenção de suspender o fluxo do
aparecer civil e corriqueiro de seu ser e
produzir com ele, deliberadamente, (...)
Fig.79: Il dottore da Commedia dell’
arte italiana.
Fig.80: Representação de um ator
grego segurando a máscara trágica.
150
signos que o façam parecer ser, qualquer que seja o objeto de sua intenção
(...)” (2001, p. 17). Segundo esse autor, a “máscara encarnada” converte-se
no elemento central do teatro, naquilo que o distingue das demais
modalidades de comunicação artística (2001, p. 17).
Brecht fazia uso freqüente desse elemento cênico, como um dos
recursos para obter o efeito do distanciamento. Assim como as máscaras
da Commedia dell’ Arte, as máscaras utilizadas nas representações
brechtianas eram parciais e mostravam alterações faciais, como, por
exemplo, “tremendas deformidades dos narizes, orelhas, cabeças, queixos”
(Rosenfeld, 2006, p.159).
Da mesma maneira que na figura # 222, Sherman utiliza, nessa
imagem, recursos de maquiagem teatral para desfigurar seu rosto biológico
e refundar um novo semblante, um híbrido entre humano e máscara.
Além disso, mais uma vez, sem lançar mão dos recursos fotográficos
para gerar ilusão, a artista trabalha apenas com a caracterização visual,
segundo métodos pertinentes ao paradigma do teatro, para obter os
resultados pretendidos. Essa atitude deixa clara a intenção de aproximar a
linguagem teatral da fotografia, o que nos permite dizer que o trabalho
fotográfico de Sherman é modelizado pelo teatro.
Observa-se que, nesse encontro fronteiriço, ocorre um deslocamento
da linguagem em questão: se nas artes da cena, sobretudo em espetáculos
teatrais, tende a haver um equilíbrio entre a caracterização visual e os demais
componentes cênicos, na obra de Cindy Sherman essa linguagem passa a
ocupar uma posição central, pois é a principal linguagem utilizada pela artista
para comunicar sua arte aos receptores.
151
4.2 Fronteira com o corpo
As discussões que faremos a seguir tomarão como base a imagem
Untitled # 155, 1985 (fig.81), da série Fairy tales.
No decorrer das análises feitas até o presente momento, nesta
pesquisa, esperamos que tenha se tornado evidente que o design de
aparência, assim como os demais trabalhos de caracterização visual são
construções feitas sobre os corpos dos atores (e para eles) para figurarem
em espetáculos artísticos e que, apenas por meio da articulação corpo do
ator/ caracterização visual / contexto espetacular, produzem os significados
possíveis.
Fig.81: Cindy Sherman.
Fairy tales, # 155, 1985.
152
Mais especificamente, trata-se de uma prática que inicia sua
materialização na fronteira do corpo do ator com a linguagem que o pretende
caracterizar e, dessa forma, dialogar com os demais elementos cênicos.
Mas é importante notar que a espécie de diálogo que o design de aparência
trava com o receptor é proveniente do descompasso, da desconfiança,
causada pelo estranhamento que as imagens construídas por esse modo
de trabalhar a caracterização visual proporcionam.
Assim, podemos dizer que o design de aparência de ator gera um
diálogo contíguo, cuja origem se encontra nas “fraturas” provocadas pelo
deslocamento da não linearidade mimética.
Essa afirmação tem razão de ser mencionada quando olhamos com
mais profundidade para o trabalho de Cindy Sherman, visto que, em sua
obra, delineia-se um modo singular de trabalhar o design de aparência,
motivo pelo qual elegemos seu fazer artístico como objeto de estudo. A
imagem selecionada para análise, neste tópico, servirá de metonímia da
obra da artista, pois as observações a serem feitas a seu respeito podem
ser aplicadas ao conjunto de suas imagens fotográficas, porque, como declara
Vladimir Safatle sobre o trabalho de Sherman: “Sua obra porta a aspiração
silenciosa de formar um sistema no qual cada foto só ganha inteligibilidade
no interior da cadeia significante produzida pelo conjunto” (2006, pp. 132-
133).
Da mesma forma que nas duas fotografias anteriormente analisadas,
Sherman pode ser vista na imagem # 155 ocupando a totalidade da cena
apresentada. Seu corpo está disposto na diagonal que desce do canto
esquerdo superior para o canto direito inferior do quadro retangular da
imagem. Encontra-se nua e deitada de bruços no chão, entretanto seu rosto,
153
de perfil, colocado no extremo canto esquerdo superior, propicia que seu
olho esquerdo mire diretamente os olhos do receptor.
Nessa posição de decúbito ventral, é possível ver por inteiro o corpo
da artista, porém a parte que mais sobressai são as nádegas, por ocuparem
quase toda a metade superior do quadro. Essa parte do corpo está em
primeiro plano em razão da posição em que a artista se fez fotografar: a
personagem representada por Sherman parece estar deliberadamente
deitada nessa pose, apoiada sobre os joelhos e escorada pelos braços e
mãos para poder levantar os quadris e, assim, projetar as nádegas na
direção de um possível observador.
A visualidade dessa imagem é plena de elementos estranhos. Folhas
e pequenos galhos secos espalhados pelo chão sugerem que a cena esteja
situada num ambiente externo, todavia, por causa da iluminação
acentuadamente teatral, composta por luzes verdes e brancas, remete a um
espetáculo de teatro, apresentado num espaço fechado.
Da mesma maneira, a maquiagem vermelha que recobre toda a pele
de seu rosto e a peruca loira claramente artificial emprestam bastante
teatralidade à cena. As cores da imagem são verde, vermelho e branco, em
tons semelhantes sobre um fundo escuro, que estampam tanto as folhas
como partes de seu corpo.
Apesar de seu cotovelo esquerdo e de suas pernas estarem sujos
de terra e da existência de várias folhagens de cor verde a recobrir suas
costas, a cena não transmite a sensação de que a personagem estaria sendo
submetida a uma violência, ao contrário, o olhar firme e quase maroto da
artista sugere que a personagem, aparentemente familiarizada com aquela
situação, estaria a oferecer seu corpo.
154
Se a imagem descrita já possui bastante singularidade, um único
elemento acrescentado ao corpo de Sherman, projetado pelo design de
aparência, é capaz de alterar a espacialidade da cena e de transportar o
receptor para o território do estranho.
Estamos nos referindo a uma peça de material plástico, em forma de
nádegas, um postiço colocado sobre as nádegas biológicas da artista, que
cobre os seus traços anatômicos. A artificialidade dessa peça é notória,
pois, além de ser possível enxergar a dobra e o corte de fábrica feitos nela,
observa-se que não há, em seu desenho, a intenção de mimetizar o corpo
humano, porque, em lugar dos orifícios característicos dessa parte anatômica,
há apenas uma pintura rosada feita entre os glúteos.
A composição projetada pelo design de aparência faz com que o
corpo de Sherman se assemelhe, na imagem em questão, ao corpo de um
manequim. A rigidez de sua postura com os membros dobrados em várias
direções, a textura sintética de cor rosada das falsas nádegas justapostas
às suas pernas extremamente brancas, em razão da iluminação, são índices
organizados de maneira que seja sugerido
que o corpo da personagem da cena é
formado por partes de outros corpos,
humanos ou não.
A visualidade dessa personagem,
aparentemente composta por fragmentos
corporais, remete-nos tanto ao lendário
Frankenstein (fig.82), do romance de Mary
Shelley, escrito no ano de 1818, como
também ao trabalho fotográfico de Hans
Fig.82: Boris Karloff como
Frankenstein, 1935.
155
Bellmer, a série Poupée
27
(fig.83), dos
anos 1930.
Nesse trabalho, Bellmer produziu
fotografias de corpos monstruosos,
formados por partes de bonecas e por
peças de roupas e perucas femininas. Há
uma relação do trabalho de Bellmer com a
noção de informe discutida por George
Bataille, em 1929, que se baseava na idéia
de “um corpo diluído em seus próprios
contornos” (Greiner, 2005, p. 79) para
propor outros questionamentos a seu
respeito, como, por exemplo, a
desfiguração, a acefalidade e a
animalidade, motes ainda bastantes
presentes na arte contemporânea.
Por meio do design de aparência, Sherman altera os contornos de
seu próprio corpo e cria um duplo corpo teratóide, fragmentado e quase
inanimado para a personagem da imagem # 155. Entretanto, a personagem
de Sherman parece inverter a lógica da passividade de um ser inanimado,
o que nos faz conectar essas características com o conceito de fetiche,
segundo entendimento de Michel Foucault.
Tal conceito possui diferentes acepções, mas, de acordo com a
historiadora Valerie Steele (1997), o pensamento de Foucault corresponde
à teoria mais recente sobre o assunto. Em meio à complexidade que a
questão implica, Foucault (1984) define fetiche como uma perversão capaz
de desfazer a ordem sexual falocêntrica.
27
Do Francês, bonecas.
Fig.83: Hans Bellmer. Poupée, 1936.
156
Inicialmente utilizado apenas para designar a adoração de imagens
religiosas, o termo fetiche (derivado de feitiço) possui diferentes conotações.
O leque de significações desse termo foi expandido por Karl Marx, que o
explicou na sua célebre obra O capital (1982), publicada no ano de 1867,
como um resultado da falta de consciência de classe e alienação dos
trabalhadores, que atribuíam valor secreto a objetos de consumo, tornando-
os “hieróglifos sociais” a serem decifrados (Steele, 1997, p. 13).
O psicanalista Sigmund Freud, ao lado de demais estudiosos da
psique humana
28
, atribuiu à palavra fetiche uma acepção psicológica para
explicar determinados comportamentos eróticos, motivados pela idéia de
substituição de um vazio. Como explica Safatle
29
, o conceito de fetiche,
segundo Freud, refere-se a uma operação simbólica: a atribuição de valor
a objetos, relacionada ao reconhecimento da diferenciação sexual, mais
especificamente, à ausência de pênis nas mulheres. Todavia, Foucault
entende que, apesar de ter se estruturado dentro de uma ordem fálica,
...o fetiche rompe essa ordem ao fixar a sexualidade longe
do seu foco de atração... “apropriado” – isto é, os genitais
do sexo oposto – e, em última análise, longe do corpo
sexualmente definido como um todo. Ele eleva a
sexualidade em direção a uma preocupação com o
fragmento, o inanimado... e visto que o fetiche é um objeto
fora de lugar, seu poder emana fora de uma hierarquia de
“normalidade” (1984, p. 78).
O pensamento de Foucault permite-nos entender a construção # 155
de Sherman como uma imagem fetichista, criada com o objetivo de dissolver
28
De acordo com Valerie Steele (1997), Alfred Binet e Richard Von
Krafft-Ebing foram os primeiros estudiosos a usarem o termo fetiche
relacionado a desvios sexuais.
29
SAFATLE, Vladimir. Corpos flexíveis e práticas disciplinares.
Seminário Performático Fetichismos Visuais, SESC/SP, 16/08/2007.
157
o poder dos estereótipos relacionados ao feminino, pois, de acordo com
Massimo Canevacci (2005, p. 80), duplicar o fetiche, entrando nele, para
assim revelar sua artificialidade, invalida seu poder. A personagem feminina
deitada no chão, em meio a folhas e galhos, um ser híbrido entre mulher e
objeto, evoca uma sexualidade tão ambígua quanto abjeta.
Tal como uma Eva no jardim do éden, a mulher/ boneca parece
oferecer seu estranho corpo a uma serpente que rasteja a seus pés, com a
cabeça claramente voltada em sua direção.
A serpente é um símbolo que carrega em si a ambigüidade. Ora a
evocar aspectos positivos, ora negativos, esse animal está associado tanto
ao masculino como ao feminino, assim como pode simbolizar as fontes do
surgimento da vida ou a vida do submundo e da imaginação (Chevalier;
Gheerbrant, 1995, p. 814).
Relacionada, de modo ambivalente, à luz e às trevas, ao sonho e à
realidade, as características simbólicas aparentemente contraditórias da
serpente parecem ter atingido uma resolução, por meio da criação de “uma
realidade absoluta, de surrealidade”, operação conceitual proposta por
André Breton, em seu Manifesto Surrealista de 1924 (Chevalier; Gheerbrant,
1995, p. 825), movimento artístico que via esse símbolo como marca da
presença simultânea dos mundos do consciente e do inconsciente.
Talhada pelo design de aparência, de forma que parece emergida
das profundezas dos mundos dos sonhos e do inconsciente, a personagem
da imagem # 155 exibe sua incompletude, como a indicar a singularidade
monstruosa que a distingue e, ao mesmo tempo, revelar que o monstro
descende do homem. Sua figura, um emblema que representa uma
particularidade concreta, contrária às generalizações absolutas e
estereotipadas, sintoniza-se com o pensamento de Eliane Robert Moraes,
158
para quem as figuras incompletas, mulheres e monstros nos falam que somos
todos “um ‘desvio’ em relação ao suposto homem genérico e universal – e
que, nessa qualidade, cabe a cada qual a aventura sensível de uma
existência” (2005, p. 25).
A propósito, no território da arte, é possível lembrar a emergência do
impróprio, do incorreto ou daquilo que parece fora do lugar como elemento
de reiterada procura: basta lembrar a relação de equilíbrio entre proporção
e simetria da Renascença e a subversão desse equilíbrio no Barroco ou o
Maneirismo, até chegar ao caricaturesco ou ao grotesco de Bosch, Brueghel
ou Arcimboldo: ou seja, o próprio e o impróprio, a ordem e a desordem são
elementos que referenciam o mundo social.
A personagem analisada nada tem da passividade inanimada das
bonecas, ao contrário, apresenta-se ativamente postada, com olhar
zombeteiro, a esperar a ação de um possível interlocutor. Mas quem é atingido
é o receptor, pois a visualidade dessa cena onírica o conecta,
obrigatoriamente, com seu repertório cultural, caso deseje desvendar as
chaves que compõem a trama dos significados desse complexo texto cultural,
gerado de um, igualmente complexo, projeto de design de aparência de
ator.
O filósofo Michel Serres, discorrendo a respeito das metamorfoses
corporais que estão sempre presentes nas narrativas míticas, explica que
os mitos, assim como “os contos de fadas fascinam as crianças porque,
munidos da mesma liberdade que os bailarinos e os ginastas, seus corpos
se prestam a todas as transformações possíveis” (2004, p. 53).
Analisando o ensaio que contém a imagem # 155 como uma
metonímia de toda obra de Sherman, pode-se supor que essa deve ter sido
a razão de a artista ter escolhido o nome de Fairy tales para designá-lo,
159
pois seu próprio corpo presta-se a múltiplas metamorfoses, para que ela se
comunique. Da mesma maneira que uma performer, a fotógrafa constrói
diferentes discursos sobre o corpo (Glusberg, 2005, p. 56), redesenhando-
o, por meio do modo design de aparência de trabalhar a caracterização
visual de atores.
Com esse processo metalingüístico, Sherman agrega novos
significados ao corpo e questiona os papéis sociais atribuídos a ele como
território da cultura
30
.
Entretanto, o modo extremado com que a artista faz uso do design
de aparência em sua obra nos faz pensar que ela ultrapassa o paradigma
do teatro. Isso ocorre porque se, no teatro, a linguagem caracterização visual
constrói o personagem, ou seja, oferece os recursos para a materialização
de um corpo artificial para o ator, na obra de Sherman, seu próprio corpo é
desenhado pelas múltiplas aparências que assume, pois não se conhece a
forma de seu corpo biológico.
A artista faz de seu corpo um design com os envelopamentos e
duplicações que realiza sobre ele. Ela trabalha um design que se articula no
corpo, sobre o corpo e com ele, dessa forma, este se torna material e
procedimento do design. Seu próprio corpo, superexposto, por meio de
suas formas, protuberâncias, volumes e reentrâncias ensina e sugere o
design.
Sherman descobre seu corpo, deixa-o despido de carne, com ossos
à mostra a explicitar que a artista é personagem de seu próprio corpo e
realiza, nele, como espaço, intervenções culturais. Em sua obra,
seu corpo coincide com a cena, porque é trabalhado como um
espetáculo (Vieira, 2003, p. 322). Inumeráveis projetos de design
de aparências possibilitam a Sherman construir diferentes corpos
30
Ver BUENO, Maria
Lúcia; CASTRO,Ana
Lúcia de
(orgs.).Corpo
território da
cultura. São Paulo:
Annablume, 2005.
160
cênicos, para tornar visíveis as invisibilidades sempre presentes em todos
nós, pois o design de aparência de atores descarta os paradigmas do belo
e do feio e não objetiva, como o figurino, criar uma ilusão do corpo.
Assim, pela análise da obra de Sherman, podemos apreender como
o design de aparência, ao mesmo tempo em que ilude, apaga tal ilusão e,
como num processo de dissecação anatômica, revela ao receptor a crueza
de sua própria carne.
161
Da mediação como referência, para além da referência
O estudo dos objetos aqui analisados possibilitou a verificação das
hipóteses formuladas inicialmente, com base no principal questionamento
que motivou este trabalho, assim como também nos permitiu obter algumas
certezas.
A primeira delas é a de que a reflexão a respeito da aparência de
atores, como geradora dos significados construídos em uma obra artística,
apenas se inicia com esta pesquisa, pois acreditamos que, das inevitáveis
incompletudes que se fizeram sentir no decorrer das reflexões suscitadas,
surgirão os diálogos que fomentarão nossa área de interesse.
Clara também se tornou a constatação de que há diferentes maneiras
de caracterizar atores em espetáculos. A caracterização visual como uma
linguagem ou um sistema de representação, cujos recursos materiais criam
uma composição de signos gravados na aparência de um ator, pode ser
trabalhada segundo os modos: figurino ou design de aparência.
As ações criativas para compor a aparência de atores em
espetáculos veiculados por diferentes meios podem ser orientadas no
sentido de criar uma representação que seja um espelho do objeto,
apresentando, portanto, forte caráter mimético, ou, de modo inverso, podem
buscar a sombra desse objeto (Ferrara, 2007, p.12).
A representação referencial e mimética da aparência de um ator
relaciona-se ao modo figurino de organizar a caracterização visual, enquanto
a representação como sombra do objeto é a base do design de aparência
de atores, porque se trata de uma forma de compor signos que, distantes
de qualquer mimetismo, possam tornar visíveis características, de certa
forma, “ocultas” na figura de um ator em cena.
162
Toda caracterização visual gera uma imagem, um duplo do ator, pois
cria uma representação diversa de sua aparência habitual. Em meio aos
diferentes mecanismos culturais estudados, a duplicação da figura humana
é questão bastante aprofundada pelo semioticista Iuri Lotman, principal
teórico da Escola de Tártu-Moscou, cujo pensamento, ao lado de outros
importantes pesquisadores, constituiu o embasamento teórico deste
trabalho.
Segundo Lotman (1996), a noção de duplo do homem encontra-se
na base da construção da cultura e é responsável pela criação dos sistemas
semióticos não-verbais de comunicação. Por referir-se à multiplicação
incessante de significados, tal idéia é, igualmente, o ponto de partida da
conceituação de texto cultural desenvolvida por Lotman e também é análoga
ao conceito de semiose.
As perspectivas abertas pela Escola de Tártu-Moscou permitiram-
nos desenvolver as reflexões elaboradas nas análises realizadas nesta
pesquisa e, principalmente, capacitaram-nos para enxergar a complexidade
dos objetos estudados.
Com base na visão sistêmica do pensamento da Escola de Tártu-
Moscou, entendemos que a aparência de um ator em uma cena artística é
um texto cultural tecido por uma trama de sistemas postos em relação e que
ensejam semioses impossíveis de serem dimensionadas. Assim, o modo
figurino de caracterizar atores configura-se como um sistema fechado,
opondo-se ao modo design de aparência, cujo traço principal é ser um
sistema aberto que, por meio de um projeto, sem preocupações diacrônicas,
busca dados em toda a história da cultura, construindo, dessa maneira, um
feixe de relações, em que diferentes sistemas modelizantes dialogam para
compor uma determinada aparência de um ator, num dado contexto artístico.
163
O design de aparência, como um sistema aberto, é um texto cultural
que surge na fronteira com outros sistemas ou linguagens. Por essa razão,
os procedimentos técnicos relativos à caracterização visual de atores
dependem do meio em que estiverem inseridos.
Os conceitos elaborados por Giulio Carlo Argan trouxeram-nos a
compreensão de que o design de aparência é fruto de um projeto, enquanto
o figurino deriva de um programa. O figurino é um trabalho técnico e
calculado, baseado em um modelo preexistente, já o design de aparência
descarta, em seu projeto, as referências miméticas e lineares, para buscar
dados sincrônicos que possam construir uma informação sobre o corpo do
ator.
A imaginação é o maior aliado de um designer de aparência de
atores, pois, como afirmou Argan: “A imaginação é a faculdade que nos
permite pensar em nós mesmos de forma diferente do que somos (...)” (1998,
p. 266). Para penetrar no âmbito da imaginação, o designer de aparência
trabalha com os conceitos de teatralidade e estranhamento/ distanciamento
para redesenhar a figura de um ator, por meio de novas e inusitadas
configurações sígnicas.
As imagens complexas criadas pelo design de aparência de atores
propiciam o estabelecimento de um diálogo contíguo com o receptor, cuja
origem se encontra, justamente, nas frestas ocasionadas pelo descompasso
do não-mimetismo que apresentam. Estas são imagens que, tal como refletiu
o filósofo Gaston Bachelard, buscam “(...) discernir todos os sufixos da
beleza, tentar encontrar, por trás das imagens que se mostram, as imagens
que se ocultam, ir à própria raiz da força imaginante” (2002, p. 2).
O design de aparência de atores objetiva “ultrapassar a realidade” e
“formar imagens que cantam a realidade” (Bachelard, 2002, p.18). Diante
164
de tais imagens, o receptor sente-se instigado a aprofundar sua percepção,
traçando um caminho pelo qual poderá atingir o nível da leiturabilidade de
uma obra artística. Ao contrário do modo figurino de organizar a
caracterização visual, o design de aparência de atores permite uma
mediação que se projeta para além da referência.
Por essas razões, podemos dizer que o design de aparência de
atores, em diálogo com os demais componentes de um dado contexto, cria
a espacialidade comunicativa de uma obra artística, pois, por meio dos
arranjos sígnicos que constrói sobre o corpo do ator, trabalha a
metalinguagem da dimensão física do espaço cênico, ao apresentar os
elementos concretos que conferem significados a ele.
165
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