Nesse soneto, a apresentação do nome confunde-se com a sua
concepção poética. Ler o nome é ler a poesia, uma vez que o sujeito
poético se cria e recria no trânsito dos seus versos.
Nos dois quartetos finais, processa-se a inversão paródica,
anunciada pelo uso da conjunção adversativa “mas”, que estabelece uma
relação de oposição e tensão entre o que foi anteriormente dito e o que
será em seguida enunciado. Lê-se, então, a partir da adversativa, a
escolha anticonvencional do poeta, que privilegia uma das versões
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do
mitema e inverte o seu final. Na narrativa mitológica, Cila (ou Sila) é
afastada de Glauco pela sua fealdade. Na leitura glauquiana, a
monstruosidade aproxima-os.
Quando transformado em monstro marinho, a beleza de Glauco
só pode ser vista pelos deuses, os mortais estão impossibilitados de
alcançá-la. Os mortais e os deuses, diz-nos o mito, vêem de modos
distintos. Aos deuses era concedido o privilégio de uma visão além do
mundo empírico, da aparência; eles viam a beleza que não se revelava a
olhos mortais (viam a verdade, viam a forma).
Os mortais, ao contrário, estariam duplamente distantes da
beleza: não podiam ser belos como os deuses – porque não atingiam a
perfeição – e também não enxergavam a beleza. Amor, beleza e visão
são aqui associados. Cila, ser híbrido, ninfa, está incapacitada de ver a
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Foram encontradas cinco referências distintas a Glauco. Uma apresenta-o como filho
do troiano Antenor com Teanó, cúmplice de Paris no rapto de Helena. Lutou contra os
gregos na guerra de Tróia, mas foi poupado da morte por Menelau e Ulisses, que
haviam sido hóspedes de seu pai antes da guerra. Outra, como combatente troiano,
filho de Hipôloco. Guerreiro de grande coragem, foi morto por Ájax que mandou os
ventos levarem seu cadáver para a Lícia. Essa segunda versão é citada na Ilíada, de
Homero. Em uma terceira referência, surge como filho de Sísifo, a quem sucede no
trono da cidade de Êfira (depois chamada de Corinto). Teria sido morto pelas éguas de
seu carro, em jogos fúnebres, nos quais foi derrotado por Iolau. A quarta narrativa
mitológica o associa a um pescador da Beócia, Antêdon, de quem seria filho. É nessa
narrativa que surge Cila, por quem teria se apaixonado e que é resgatada pelo soneto
glauquiano. Na quinta referência, vemos Glauco filho de Minos e Pasifae. Trata-se de
um acriança que morre e é ressuscitada por Poliído. (KURY, 1992, p. 163-164). Na
Odisséia, lê-se: “Glauco, nascido de Hipóloco, e o grande e valente Tidida,/ cheios de
ardor, se avistaram no meio do teatro da luta,/ e, caminhando um para o outro, afinal
frente a frente ficaram” (Canto VI, 2001, p. 167).