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Renato Viana Boy
A QUERELA ICONOCLASTA:
Uma disputa em torno dos ícones no Império Bizantino; 726-843.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História
Social (PPGHIS), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em História.
Orientadora: Professora Doutora. Maria Beatriz de Mello e Souza
Rio de Janeiro
2007
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13
Renato Viana Boy
A QUERELA ICONCOCLASTA:
Uma disputa em torno dos ícones no Império Bizantino; 726-843.
Rio de Janeiro, ....... de .................................... de 2007.
Avaliada por:
___________________________________________________________________
Orientadora: Professora Doutora Maria Beatriz de Mello e Souza – UFRJ
__________________________________________________________________
Professor Doutor Francisco José Gomes da Silva – UFRJ
__________________________________________________________________
Professor Doutor Rogério Ribas – UFF
__________________________________________________________________
Professora Doutora Leyla Rodrigues – UFRJ – Suplente
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Boy, Renato Viana.
A Querela Iconoclasta: uma disputa em torno dos ícones no
Império Bizantino- 726-843/ Renato Viana Boy. Rio de Janeiro:
UFRJ/IFCS, 2007.
xi, 157f.
Orientadora: Maria Beatriz de Mello e Souza.
Dissertação (mestrado) UFRJ/IFCS/ Programa de Pós-
Graduação em História Social, 2007.
Referências Bibliográficas: 153-157
1- Iconoclastia. 2- Ícone. 3-Império Bizantino. 4- Cristianismo. I.
SOUZA, Maria Beatriz de Mello e. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro/ IFCS/ Programa de Pós-Graduação em História Social. III. A
Querela Iconoclasta: uma disputa em torno dos ícones no Império
Bizantino- 726-843.
15
RESUMO
Este trabalho se refere ao Oriente medieval, tendo como objetivo analisar uma
longa sucessão de debates em torno dos ícones, questão extremante importante e que
exemplifica as dinâmicas e tensões presentes no Cristianismo Ortodoxo do Império Bizantino.
Esses debates ficaram conhecidos como Querela Iconoclasta, desdobrando-se por mais de um
século (726-843). Busca-se reconstituir aqui o cenário dessas discussões, tendo como eixo das
disputas as questões suscitadas em torno do ícone de Cristo. O estudo se pauta na análise da
apropriação de discussões cristológicas apropriadas por diferentes grupos para legitimar tanto
a destruição quanto o culto dessas pinturas, além de demonstrar a existência de um vínculo
entre os desdobramentos dessa querela e a política imperial, visto que a religião cristã se
vinculava diretamente ao poder autocrático em Bizâncio.
16
Abstratc
This dissertation focuses on the medieval East. Its goal is to analyze a long
succession of debates centered on icons, an extremely relevant fact that witnesses the
dynamics and tensions present in Orthodox Christianity within the Byzantine Empire. These
debates became known as the Iconoclastic Controversy, and unfolded for over a century (726-
843). The intent is to understand the scenery of these discussions with an axis concerning the
issues pertaining to the icon of Christ. The analysis is based on how discussions on
Christological theology were appropriated by different groups in order to legitimize both the
destruction and the worship of these paintings. It also demonstrates how the Controversy
unfolded in regard to the imperial power, since the Christian religion was encompassed within
autocratic government in Byzantium.
17
À minha família, em especial, meu irmão Juninho.
18
Agradecimentos
Agradeço a Deus e à minha família. Qualquer tipo de agradecimento aos
familiares poderia parecer redundância. Entretanto, deixar de citá-los aqui seria uma grande
injustiça. A vocês, Frederico e Célia, meus pais, e Márcia, minha ir, muito obrigado pelo
carinho, compreensão pela ausência em momentos especiais e pelo apoio que nunca me
faltou. Ao meu irmão Juninho, saudades eternas.
À CNPq, que financiou esse projeto em seu segundo ano de execução,
possibilitando o alcance de um enriquecimento nos resultados finais.
À minha orientadora, a professora Maria Beatriz de Mello e Souza, que aceitou a
orientação desse trabalho, mesmo sem termos trabalhados juntos antes e tendo eu vindo de
outra instituição e outro estado. Sou grato pela confiança em mim depositada nesses dois anos
de convívio e por ter partilhado seu conhecimento sobre um período crucial da história da
Igreja.
Aos professores Francisco José Gomes da Silva e Rogério Ribas, membros da
banca avaliadora que, após uma minuciosa leitura e avaliação durante o exame de
qualificação, contribuíram enormemente para a melhoria dos resultados finais dessa pesquisa.
Ao professor Celso Taveira, da UFOP, que me orientou no bacharelado neste
tema, concluído em 2004, e com quem desenvolvi o projeto para a seleção de mestrado neste
programa. Agradeço também pela atenção sempre demonstrada em relação aos meus estudos.
Às funcionárias do PPGHIS, Sandra e Gleides, sempre atenciosas e cordiais às
questões burocráticas do programa.
Aos conterrâneos mineiros que vivem no Rio de Janeiro. A estas pessoas
maravilhosas, agradeço não por terem-me aberto as portas de suas casas, mas por toda a
boa vontade sempre demonstrada em ajudar e pelo convívio amigo proporcionado. Às essas
novas amizades constituídas, meu muito obrigado: Luciano, Regina e Jurandy, Toninho e
Cláudia. Serei sempre grato a vocês.
Ao casal de historiadores Victor de Araújo Souza e Sílvia Borges. A esses, teria
que escrever um texto tão grande quanto o dessa dissertação. O fato de sempre terem me
recebido muito bem em seu lar, das leituras de alguns textos e sugestões bibliográficas ao
longo de todo esse tempo, já seria o suficiente para isso. Mas, na ausência da família e dos
velhos amigos, esses dois se tornaram pessoas muito importantes, talvez mais do que eles
19
mesmos imaginem. Espero um dia poder retribuir a toda essa amizade. Tenham certeza de
minha eterna gratidão.
Aliás, novas amizades foram feitas e serão levadas. E cada uma delas foi
importante. Algumas por dois anos. Outras por dois semestres. Outras ainda, por dois dias. E
muitas por dois minutos de conversa amiga e acolhedora. Querer mencionar todos aqui seria
pretensioso e certamente esqueceria alguém. Mas alguns não podem deixar de ser aqui
citados: Carlos Henrique Gomes, Bruno Vieira, Janaína Girotto, Elodia Lebourg, Paulo
Romano.
À Dona Loudes, do Castelinho. Talvez ela nunca leia essa página. Mas a gratidão
que tenho a essa jovem senhora é incomensurável. O convívio sempre agradável com ela me
fez aprender muito. Sem bibliografia, sem aulas, sem leituras, sem avaliações, essa mineira de
Montes Claros me fez valorizar as coisas mais simples da vida, como uma boa conversa nas
tardes de domingo, sempre encerradas com muitas gargalhadas.
À Tamara Quírico, colega da área de História da Arte, que além da amizade,
colaborou com importantes sugestões bibliográficas, abrindo sua biblioteca particular para me
ajudar em minhas pesquisas. Alguns autores aqui citados vieram a ser conhecidos por mim
através do seu auxílio.
Aos amigos de Minas Gerais, Mário, Danilo e Carlos Henrique, pelo incentivo,
apoio e pelas sugestões, algumas inusitadas.
Um agradecimento especial à Aline, minha namorada, que conheceu o nascimento
desse projeto ainda na graduação, me apoiou no momento mais difícil pelo qual passei e sem
quem, com certeza, chegar ao mestrado teria sido um desafio ainda mais difícil pelas
circunstâncias que a vida me colocou. Mas cheguei até aqui e muito dessa conquista devo a
ela, que mesmo sem estar perto, esteve sempre junto de mim.
20
As imagens do adversário são intoleráveis quando são imagens de culto.
Serge Gruzinski, A guerra das imagens.
21
Sumário
Introdução 12
1 Configurações para a Querela Iconoclasta 32
1.1 Os ícones cristãos 35
1.2 Discussões cristológicas 46
1.3 A natureza autocrática do poder imperial 52
1.4 Iconoclastia, defesa das fronteiras e monaquismo 60
2 A primeira fase da Iconoclastia – 726-787 : origens, argumentos teológicos e
conflitos
66
2.1 O início da Querela Iconoclasta com Leão III 68
2.2 A defesa de João Damasceno - 730 75
2.3 Heresias cristológicas na iconoclastia: Constantino V e o sínodo de
Hieria – 754
90
2.4 O abrandamento da iconoclastia com Leão IV – 775-780 100
3 Nicéia II e a Segunda fase da Querela Iconoclasta – 787-843 103
3.1 Irene e os preparativos para o retorno da iconofilia 105
3.2 As decisões do Concílio de Nicéia – 787 110
3.3 Pós-Nicéia II: um breve período de restauração da iconofilia: 787-815 121
3.4 O retorno à iconoclastia no século IX 124
3.5 A nova defesa dos ícones: o Patriarca Nicéforo e o monge Teodoro Studita 132
3.6 O Triunfo da Ortodoxia: o fim definitivo da Querela Iconoclasta – 843 141
Conclusão 148
Referências Bibliográficas 153
22
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: mapa do Império Bizantino no ano 814
12
Figura 2: Cruz na Igreja de Santa Irene.
22
Figura 3: Ícone de Cristo
43
Figura 4: Mosaico com Justiniano apresentando o modelo da igreja de Hagia Sophia
para a Virgem Maria. Constantino apresenta a ela o modelo de Constantinopla
44
Figura 5: Placa fragmentada com Cristo coroando o imperador Constantino VII
54
Figura 6: Saltério de Cludov
142
INTRODUÇÃO
Existe na produção historiográfica desenvolvida no Brasil uma lacuna no que diz
respeito ao estudo do Oriente medieval, em especial do Império Bizantino. Isso se deve ao
fato de as pesquisas históricas, quando tratam de Idade Média, nos oferecerem um mero
quase exclusivo de trabalhos referentes à Europa Ocidental, relegando a segundo plano os
estudos referentes às regiões da Europa Central e Oriental. Nosso objetivo aqui é bem mais
modesto do que pretender preencher essa lacuna historiográfica. Apresentamos apenas uma
possibilidade de pesquisa a respeito de um poderoso Império, o Bizantino, que resistiu
durante onze culos a invasões, pressões fronteiriças e diversos conflitos internos. Nosso
estudo está focado nos séculos VIII e IX, quando se desenvolveu em Bizâncio a Querela
Iconoclasta, uma violenta disputa em torno das discussões a respeito da licitude do culto dos
ícones entre os cristãos.
23
Figura 1: Mapa do Império Bizantino no ano 814.
A utilização de imagens no Cristianismo é uma questão que suscita debates desde
os seus primeiros séculos. O que torna a Querela Iconoclasta bizantina (726–843) um caso
diferenciado é tanto o teor alcançado pela violência aplicada contra os defensores desse culto,
quanto pela sua estreita ligação com o poder autocrático do imperador (o que transformava
questões religiosas em questões de Estado).
Em nosso trabalho, algumas questões consideradas indissociáveis da iconoclastia
serão abordadas. Primeiramente, será necessário entendermos o tipo de representação
pictórica que veio a ser o ícone, visto que não se trata de uma imagem como as que
encontramos no Cristianismo latino. Outra é tentar entender como essa Querela teria afetado
as relações entre o Patriarcado de Constantinopla e o papado em Roma, contribuindo para
alargar o distanciamento existente entre essas duas sedes religiosas, e as do poder imperial
com os mosteiros bizantinos.
24
Para a identificação dos grupos envolvidos nas discussões, adotaremos aqui uma
terminologia utilizada pela maior parte dos autores consultados. Chamaremos de iconoclastas
àqueles contrários ao culto dos ícones e os seus defensores iconófilos. outras
denominações para esses mesmos grupos, menos citada, como iconófobos, cristãos contrários
ao uso dos ícones no culto, e iconódulos, favoráveis ao mesmo. Entretanto, para objetivarmos
nosso trabalho, optamos por utilizar apenas os termos iconoclastas e iconófilos.
A aversão aos ícones encontrava um maior número de adeptos nas províncias
mais orientais do Império. É dessa região que provinha o imperador Leão III (717-740), da
dinastia Isáurica, que em 726 promulgou o primeiro decreto contrário ao culto dos ícones. Das
províncias orientais também era a dinastia Amórica, responsável pelo retorno do iconoclasmo
ao Cristianismo bizantino, em 815. Além da corte imperial, grande parte do exército bizantino
e do clero secular compartilhava das idéias iconoclastas de Leão III.
a defesa dos ícones encontrou seus principais representantes nos monges
bizantinos. Entre estes, destacaram-se com seus textos de caráter iconófilo João Damasceno
(675–749), o primeiro a responder às determinações de Leão III de destruição dos ícones, e
Teodoro Studita (759–826), que se tornou o principal nome da iconofilia na segunda fase da
Querela. Também líderes do clero regular, mesmo dentro de Constantinopla, se posicionaram
contra a política iconoclasta. Em 730, o então patriarca da capital do Império, Germano (715-
730), manifestou sua aversão à iconoclastia. Nicéforo (c.758–828), outro patriarca de
Constantinopla, também trabalhou na defesa dos ícones cristão. Ambos foram depostos do
Patriarcado pelo poder imperial e exilados.
Como será observado, as discussões da Querela eram travadas diretamente por
membros do alto clero de Roma e Constantinopla, o poder imperial e o monástico bizantino.
Em meio a essas disputas, uma questão permanece sem resposta: qual seria o posicionamento
da população cristã leiga bizantina nesses primeiros anos da Querela Iconoclasta? Em nossas
25
fontes não foram encontradas tipo algum de manifestação popular favorável ou contrária ao
culto dos ícones, nem a participação direta de algum membro civil da sociedade cristã
envolvido ativamente da Querela, interferindo, de alguma forma, em decisões conciliares,
sinodais ou imperiais.
Mesmo a religião cristã fazendo parte do cotidiano da população bizantina, chama
a atenção o fato de ela não ter tido participação direta nas decisões sobre questões teológicas,
nem por impulso próprio, nem instigada para isso por bispos ou governos. Apesar de este não
ser um assunto exclusivo do alto clero e do poder imperial, não se verificou em Bizâncio
grandes movimentações por parte da população cristã na Querela, como aconteceu, por
exemplo, nos conflitos entre católicos e protestantes da França reformada do século XVI.
1
O objeto principal para nossos estudos é, além dos ícones enquanto pertencentes a
parte da cultura material da Igreja cristã, o corpus de questões dogmáticas, referentes aos
debates surgidos no século IV, a cerca das naturezas humana e divina em Cristo, além das
definições sobre a Encarnação divina. Não cabe aqui aprofundarmos esses debates, que
culminaram com a condenação do Monofisismo e do Nestorianismo como heresias mais de
três séculos antes da eclosão da iconoclastia. Nosso interesse está na compreensão e análise de
como estes foram reapropriados para fundamentar os argumentos favoráveis e contrários aos
ícones em Bizâncio, dentro do recorte cronológico que engloba a Querela, ou seja, entre os
anos 726 e 843.
Importa-nos ainda verificar a relação entre as idéias surgidas para embasar a
veneração dos ícones durante a Querela e as práticas de culto religioso entre os cristãos
1
Cf. MAIER, Franz Georg. Bizâncio. Vol. 13. México: Siglo Veinteuno, 1986. p. 24.
26
bizantinos dos séculos VIII e IX. Alguns autores afirmam a existência de um distanciamento
entre essas teorias e as práticas de culto cristãs entre os bizantinos no período da Querela.
2
A pesquisa enfoca a capital imperial e principal sede patriarcal do Oriente,
Constantinopla, embora alguns importantes personagens dessa Querela (como os imperadores
das dinastias Isáurica e Amórica, além do monge iconófilo João Damasceno) fossem
originários dos themas (províncias) mais orientais de Bizâncio.
Nosso objetivo nesse trabalho é compreender os argumentos através dos quais a
Igreja cristã legitimou o culto dos ícones, revertendo a consideração de que seria idolátrico.
Para tanto, iremos buscar nos argumentos iconófilos surgidos durante a Querela a
permanência das idéias do primeiro e um dos principais defensores dos ícones, o monge João
Damasceno (675 –749). Seus argumentos para a defesa dos ícones se baseavam na tradição do
uso dessas pinturas na Igreja, no mistério da Encarnação de Cristo e na diferenciação entre
essas representações e os antigos ídolos pagãos.
Também pretendemos demonstrar que, na historiografia tradicional, a
periodização da Querela Iconoclasta es diretamente ligada à convocação de sínodos,
concílios e editos oficiais do Império, e não ao surgimento de novas idéias para defender ou
condenar o culto dos ícones. Isso pode ser verificado, por exemplo, com os escritos de João
Damasceno, que redigiu sua apologia aos ícones em 730, ou seja, quatro anos após à
publicação do edito iconoclasta do imperador Leão III. Porém, suas idéias foram acatadas
pela Igreja de Constantinopla mais de meio século mais tarde, no II Concílio de Nicéia, em
787. Outro exemplo é o retorno da iconoclastia como política oficial do Estado bizantino em
815, através de um sínodo que não trazia resposta alguma ao concílio niceno, nem inovação
na teologia iconoclasta. Simplesmente, esse novo sínodo reativava as antigas condenações
contra os ícones já apresentadas em Hieria, no ano de 754.
2
Ver FREEDBERG, David. El poder de las imágenes. Estudios sobre la historia y la teoria de la respuesta.
Tradução de Purificación Jiménez y Jerónima G. Bonafé. Madri: Cátedra, 1992. p. 469, e LOWDEN, John.
Early Christian & Byzantine Art. Londres: Phaidon, 1997. pp. 150-151.
27
Uma de nossas hipóteses de trabalho é que os rumos da Querela iconoclasta foram
definidos mais pela posição oficial do imperador e pelas necessidades do Estado do que pelos
surgimentos de novas idéias teológicas a respeito do culto dos ícones.
3
Trabalhamos com a
hipótese central de que o eixo dos debates durante a iconoclastia fôra sempre o ícone de
Cristo, a partir do qual se desenvolveu toda uma teologia dessas pinturas, baseadas em
discussões cristológicas que se pautavam no mistério da Encarnação e na relação das
naturezas humana e divina em Cristo.
Encontra-se referências à Querela Iconoclasta em diversos autores que se
propuseram a tratar da história do Império Bizantino, da história da Igreja, do Cristianismo ou
mesmo da história da arte. Entretanto, uma carência de um estudo específico sobre a
Querela.
4
Os principais estudos na área são de autores estrangeiros, compondo estes quase a
totalidade de nossa bibliografia, o que demonstra que este é ainda um campo pouco explorado
pela historiografia em nosso país.
Alguns importantes trabalhos foram produzidos nos anos 1950 e 1960, traduzidos
e reeditados nas décadas de 1980 e 1990. Desse período, destacamos os trabalhos de André
Grabar
5
, Georg Ostrogorsky
6
e Charles Diehl.
7
Nesses autores, encontramos uma preocupação
comum, que era relacionar as causas e os desdobramentos da iconoclastia com questões
políticas do Império, tais como a defesa do território bizantino ou a contenção do crescimento
do poder temporal dos mosteiros. Além disso, Grabar indica uma motivação para a Querela
3
Corroboram essa hipótese BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of
art.. Trad. Edmund Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994. p. 8, e também GRABAR, André.
L’Iconoclasme Byzantin; le dossier arquéologique. Paris: Flamarion, 1998, p. 112 e 134.
4
O livro de Alain Besançon A imagem proibida; uma história intelectual da iconoclastia, se dedica ao estudo,
como o próprio autor afirma em sua Introdução, de doutrinas e idéias que m a ver com a representação do
divino, não exclusivamente na iconoclastia bizantina, mas perpassando desde a Grécia clássica ao início do
século XX. Uma exceção que deve ser aqui registrada seria a obra compilada por Boesplflug e Lossky, Nicée II
787-1987. Douze siècles d’images religieuses, que reúne uma série de artigos dedicados o exclusivamente ao
Concílio de Nicéia de 787, mas ao fenômeno da iconoclastia, desde as causas de seu surgimento em Bizâncio,
como também suas ligações com antigas heresias, repercussões no Ocidente latino, além de alguns estudos sobre
o ícone.
5
GRABAR, André. Op. cit
6
OSTROGORSKY, Georg. História del Estado Bizantino. Tradução de Javier Facci. Madri: Akal Editor,
1984.
7
DIEHL, Charles. Os grandes problemas da história bizantina. São Paulo: Editora das Américas, 1961.
28
retomada nos anos 90 por Ducellier, Kaplan e Martín, de que os themas localizados na parte
oriental do Império (como a Isáuria, a Armênia ou a Síria) tendiam a desenvolver um tipo de
Cristianismo mais intolerante em relação ao uso de imagens no culto, visando depurar a
religião de qualquer prática que o assemelhasse ao paganismo.
8
Charles Diehl discorre bastante a respeito das relações do imperador com o
patriarcado de Constantinopla e com os monges. Os mosteiros bizantinos eram instituições
muito ricas e influentes na sociedade e tinham nos ícones e relíquias de santos sua grande
fonte de crescimento. Quando fala na relação entre imperador e patriarca, mesmo ressaltando
a autoridade do imperador na administração dos negócios da Igreja, Diehl enfatiza o poder
que era exercido pelo patriarca frente ao governo. O autor chama a atenção para os
“poderosos meios de ação” do Patriarca, que em algumas situações criticava o imperador e até
o desafiava.
9
Porém, sobre a autoridade imperial, Gilbert Dagron
10
defende uma forma de
governo na qual o imperador se sobrepunha não apenas à estrutura institucional da Igreja de
Constantinopla, mas exercendo um tipo real de sacerdócio em Bizâncio, estando acima do
Patriarca inclusive em questões teológicas. Para uma explicação da Querela Iconoclasta,
seguiremos a hipótese levantada por Dagron, pois foi no início da Querela que o imperador
Leão III definiu seu poder perante a Igreja de Roma como sendo de um rei e sacerdote, além
de ocorrer durante todo o período dos debates uma sujeição do poder patriarcal frente à
autoridade imperial.
8
DUCELLIER, Alain; KAPLAN, Michel; MARTÍN, Bernadette. A Idade Média no Oriente; Bizâncio e o
Islão, dos Bárbaros aos Otomanos. Tradução de Luís de Barros. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994.
9
DIEHL, Charles. Op. cit pp. 94-95.
10
DAGRON, Gilbert. Empereur et prêtre; étude sur le “cesaropapisme” byzantin. Paris: Éditions Gallimard,
1996.
29
Causas não puramente religiosas também aparecem em livros de Franz Georg
Maier
11
e, mais recentemente, com John Haldon
12
e Hans Belting.
13
Maier trabalha com a
idéia de que na Igreja e no Império existissem um espírito (pneuma), o que fazia com que
polêmicas dogmáticas se transformassem em assuntos de Estado.
14
No caso da Querela
Iconoclasta, Maier a relaciona com disputas envolvendo questões de identidade étnica e
cultural, unidade territorial e conflitos internos (envolvendo desavenças entre Estado e Igreja,
centro e periferia, corte e monges).
Mesmo assim, Maier aponta questões religiosas como o principal fator para o
início da Querela. Entre essas, levanta a hipótese de a população cristã bizantina não diferir,
no século VIII, o protótipo de sua imagem, sendo culto de ícones comparado às antigas
práticas pagãs.
15
Uma observação semelhante foi feita também por John Londew
16
e David
Freedberg.
17
Paul Lemerle, assim como o já citado Ostrogorsky, aponta tanto questões políticas
quanto religiosas para a compreensão do fenômeno da iconoclastia. Esse duplo aspecto na
interpretação da Querela mereceu, inclusive, dois tópicos separados em seu livro. Ele liga as
causas religiosas às crenças dos imperadores e do clero das províncias centrais e orientais
bizantinas, por estes terem verificado “excessos” e abusos” no culto dos ícones, conduzindo
os cristãos a uma prática idolátrica. Na questão política, destaca os conflitos entre poder
imperial e monacal, e entre papado e o patriarcado de Constantinopla.
18
11
Trabalharemos aqui com duas obras desse autor: MAIER, Franz Georg. Bizâncio. Vol. 13. México: Siglo
Veinteuno, 1986, e Las transformaciones del mundo mediterráneo, siglos III-VIII. xico: Siglo Veinteuno,
1986.
12
HALDON, John. Byzantium; a History. Londres: Tempus Publishing, 2000.
13
BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of art.. Trad. Edmund
Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994.
14
MAIER, Franz Georg. A Op. cit.. p. 26.
15
MAIER, Franz Georg. B. Op. cit p. 365.
16
LOWDEN, John. Op. cit pp. 150-151.
17
FREEDBERG, David. Op. cit p. 469.
18
LEMERLE, Paul. História de Bizâncio. Tradução de Marilene Pinto Machado. o Paulo: Martins Fontes,
1991. pp.76-79.
30
Entre as causas religiosas do iconoclasmo, uma é encontrada em praticamente
todos os estudos, podendo ser classificada inclusive como um consenso historiográfico: o
desejo, por parte dos iconoclastas, de “purificar” o Cristianismo de práticas idólatras ou que
se assemelhassem a algum tipo de culto pagão. Soma-se a esta uma outra, apresentada por
James Hall.
19
Este historiador viu o iconoclasmo como causa da permanência das idéias
monofisistas na Igreja oriental, pois contestando a Encarnação de Cristo, os iconoclastas não
permitiam a representação pictórica de um ser divino. Alain Ducellier rejeita a idéia de uma
ligação entre o Monofisismo e o iconoclasmo, citando para isso a existência de ícones entre as
comunidades copta, armênia e siríaca, regiões de predomínio de idéias monofisista. Para ele, o
iconoclasmo estava ligado a questões políticas, referentes ao desejo de controle por parte do
Estado sobre a Igreja e ao perigo que os árabes representavam nas regiões de fronteira com
Bizâncio. Nessas regiões, o iconoclasmo teria servido como elemento de coesão frente ao
inimigo muçulmano.
20
Já Daniel Sahas traz uma opinião diferente em relação à influência das discussões
cristológicas na iconoclastia. Ele encontra uma relação entre o pensamento iconoclasta e o
Nestorianismo, uma vez que os adversários dos ícones não considerariam a união entre as
naturezas divinas e humana em Cristo, relacionando deificação com o invisível.
21
Assim, para
Sahas, a raiz da iconoclastia estaria ligada a uma hostilidade ao antropomorfismo de Cristo.
22
Todavia, tanto o Monofisismo quanto o Nestorianismo foram utilizados pelos iconoclastas
para embasar seu argumento de destruição dos ícones, acusando os iconófilos de manterem
vivos esses pensamentos, já condenados como heréticos pela Igreja.
19
HALL, James. A History of Ideas and Images in Italian Art. Londres: Albemorle Street, 1986.
20
DUCELLIER, Alain. Les Byzantines. Histoire et culture. Paris: Editions du Seuil, 1988. p. 60.
21
SAHAS, Daniel. Icône et Anthropologie Chrétienne. La pensée de Nicée II. BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N.
(Dir). Nicée II 787-1987. Douze siècles d’images religieuses. Paris: Cerf: 1987. pp. 443-444.
22
Ibid. pp. 435-436.
31
O francês Alain Besançon dedicou um extenso trabalho ao iconoclasmo, não
restrito apenas ao caso bizantino.
23
Sua obra está concentrada no estudo da imagem e sua
diversas formas de apropriações, defesas e acusações. No caso da Querela Iconoclasta, vê essa
disputa também como uma busca de “purificação” dentro da Igreja de Constantinopla, uma
vez que a população não diferenciava uma adoração de um culto de veneração, um tipo de
homenagem honrosa através de uma imagem.
Em relação às fontes dessa pesquisa, deve ser ressaltado que o II Concílio
Ecumênico de Nicéia, reunido em 787, ordenou que toda a documentação de origem
iconoclasta fosse destruída. Era uma forma de eliminar a memória do iconoclasmo. É
provável que após o sínodo reunido em Constantinopla em 843, medidas análogas tenham
sido tomadas.
24
Isso significa que o historiador que se dedica a estudar a iconoclastia
bizantina esbarra nessa primeira dificuldade: a destruição proposital das fontes iconoclastas
originais.
Toda essa destruição da documentação referente à política contrária aos ícones
representa um obstáculo para o historiador, que perdeu, no decorrer desse conflito, a maior
parte das fontes primárias iconoclastas. As idéias desse grupo podem ser conhecidas e
estudadas por uma reconstituição indireta, através dos escritos iconófilos, pois essas idéias
foram apresentadas nos Concílios e Sínodos iconófilos para serem refutadas. É a partir dessas
reconstituições que analisaremos o pensamento iconoclasta apresentado nos sínodos de Hieria
(754)
25
e Constantinopla (815)
26
, além das informações referentes aos editos imperiais de
Leão III em 726 e 730.
23
BESANÇON, Alain. A imagem proibida; uma história intelectual da iconoclastia. Tradução de Carlos
Sussekind. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
24
Ver OSTROGORSKY, Georg. Op. Cit p. 161.
25
Disponíveis numa versão em inglês no website www.fordham.edu e também em MANGO, Cyril. The art of
the Byzantine Empire, 312-1453: Sources and Documents. Toronto: University of Toronto Press, 1993.
26
Disponível em MANGO, Cyril. Op. cit..
32
Ressalta-se ainda que o II Concílio Ecumênico de Nicéia, reunido em 787,
ordenou que toda a documentação de origem iconoclasta fosse destruída. Era uma forma de
eliminar a memória do iconoclasmo. É provável que após o sínodo reunido em Constantinopla
em 843, medidas análogas tenham sido tomadas.
27
Isso significa que o historiador que se
dedica a estudar a iconoclastia bizantina esbarra nessa primeira dificuldade: a destruição
proposital das fontes iconoclastas originais.
Toda essa destruição da documentação referente à política contrária aos ícones
representa um obstáculo para o historiador, que perdeu, no decorrer desse conflito, a maior
parte das fontes primárias iconoclastas. As idéias desse grupo podem ser conhecidas e
estudadas por uma reconstituição indireta, através dos escritos iconófilos, pois essas idéias
foram apresentadas nos Concílios e Sínodos iconófilos para serem refutadas. É a partir dessas
reconstituições que analisaremos o pensamento iconoclasta apresentado nos sínodos de Hieria
(754)
28
e Constantinopla (815)
29
, além das informações referentes aos editos imperiais de
Leão III em 726 e 730.
Por outro lado, também não encontramos ao longo desse trabalho, ícones
contemporâneos e anteriores à Querela dentro do território bizantino, devido a sistemática
destruição dessas pinturas ao longo das disputas. Muitas dessas representações foram ainda
substituídas nas Igrejas bizantinas pela figura da cruz. Dessa forma, não se pôde conhecer
diretamente o que os ícones cristãos representavam pictoricamente antes e durante a Querela
Iconoclasta, a não ser pela apropriação que dessas foram feitas dessas figuras em textos como
os dos monges João Damasceno e Teodoro Studita. Aliás, Damasceno é o primeiro autor a
tecer uma teoria a respeito do significado, tradições e culto dos ícones.
27
Ver OSTROGORSKY, Georg. Op. Cit p. 161.
28
Disponíveis numa versão em inglês no website www.fordham.edu e também em MANGO, Cyril. Op. cit.
29
Disponível em MANGO, Cyril. Op. cit..
33
Figura 2: Cruz na Igreja de Santa Irene.
Constantinopla, ápice do mosaico da Cruz, após 740
A Querela Iconoclasta foi uma longa disputa religiosa em torno dos ícones, mas
que envolveu toda uma complexa teia de relações com o poder imperial e monacal em
Bizâncio. Seria demasiado pretensioso nessa pesquisa tentarmos abarcar toda essa intrincada
rede de causas e conseqüências, que nem sempre estiveram ligadas a questões puramente
cristãs. que se destacar também que as fontes que sobreviveram à Querela revelam muito
mais a história das idéias do que uma história sócio-política do período. É por conta disso que
será dada maior atenção nesse trabalho às discussões cristológicas que fizeram parte dos
debates, seguindo a cronologia dos sínodos, concílios e editos imperiais que marcaram início
e fim de cada fase da iconoclastia. Ressalta-se também que a discussão à qual nos referimos
acima será aqui reconstruída exclusivamente a partir das fontes iconófilas, uma vez que as
iconoclastas foram destruídas.
As fontes para o estudo da Querela Iconoclasta foram basicamente produzidas por
membros do clero secular ou regular bizantino. Entre os textos oficiais da Igreja estão o II
Concílio Ecumênico de Nicéia (787)
30
e o Synodikon da Ortodoxia,
reunido em 843 e que
30
Foram analisadas duas versões desse concílio transcritos para o inglês. Uma delas em MANGO, Cyril. Op. cit.
pp 150-154, 172-173. A outra se encontra no website www.fordham/halsall/medweb, na coleção Internet
Medieval Sourcebook. também excertos desse documento em português em ESPINOSA, Fernanda.
Antologia de textos históricos medievais. 3ª edição. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981. p. 63-64, e em
ZILLES, Urbano. Documentos dos primeiros oito concílios. Tradução: Mons. Otto Skrzypezak. Vol 19. Porto
Alegre: Edipucrs, 1999. p. 116.
34
significou o fim definitivo da iconoclastia. O texto original desse último sínodo foi muito
alterado ao longo dos séculos. Existe uma tradução para o inglês de um manuscrito que se
encontra na British Library (BL. Additional 28816), escrito no culo XII (1110 ou 1111),
que apresenta alguns conteúdos do texto original.
31
O distanciamento entre teoria e prática religiosa, anteriormente mencionado,
acontece por parecer não haver entre os cristãos do século VIII (embora não seja uma
exclusividade nem do período da Querela, nem da cristandade bizantina) uma distinção entre
o protótipo e sua representação numa pintura. Este seria inclusive um dos motivos para a
promulgação dos editos de Leão III em 726 e 730.
Daí a importância em se definir a relação que é estabelecida entre significado,
aqui representado pelo protótipo Cristo, a Virgem, ou os santos e o seu significante, o
ícone. Segundo Chartier, no que tange ao Antigo Regime, essa relação está “pervertida”, e
“têm em vista fazer com que a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da
representação, isto é, que a coisa não exista a não ser no signo que a exibe.”
32
Essa relação
entre signo e significado que Chartier apresenta para o Antigo Regime pode ser também
aplicada ao caso dos ícones bizantinos.
O próprio Freedberg, acima citado, afirma em seu estudo que a imagem religiosa
funciona” quando se percebe nela uma fusão com o seu protótipo, passando a
representação a ser o que se crê que ela representa.
33
O culto dessas representações dependeria
assim da ocorrência dessa fusão, pois uma separação entre o significado e o significante,
nesse caso, tenderia a debilitar a devoção dos fiéis.
34
O que permite à pintura trazer em si a
31
Essa tradução encontra-se disponível no website www.doaks.org. também uma versão em francês do
decreto sinodal, datado de 11 de março de 843, que faz parte da coletânea de GRUMEL, Venance. Le patriarcat
byzantin. Serie I, les registes des actes du patriarcat de Constantinople V.I, les actes des patriarches, fasc. II e
III. Les registes de 715 à 1206. pp. 65-66.
32
CHARTIER, Roger. Op. cit. p. 21.
33
FREEDBERG, David. Op. cit. pp. 48-49.
34
Ibid p. 452.
35
autoridade do protótipo representado é o que os iconófilos chamam de “essência” do
arquétipo, a partir da semelhança entre este e seu ícone.
35
Essa idéia de Chartier, de que é o signo quem dá vida ao significado, encontra em
Marie-France Auzépy um correspondente para o caso da iconoclastia em Bizâncio. Segundo a
historiadora, a defesa do culto dos ícones durante a Querela era, antes de tudo, uma defesa do
próprio culto dos santos. Para Auzépy, no século VIII, o santo e sua representação numa
pintura não eram dissociados, de modo que o ícone passou a ser a forma pela qual se dava a
devoção dos santos, dando a este um meio visual de existência.
36
Assim, na Querela Iconoclasta, a relação entre significado e significante é de uma
união tal que impossibilita a percepção, na prática do culto cristão, dos limites que marcam as
diferenças nas atitudes do fiel diante de cada um deles. Destruir os significantes (os ícones)
poderia significar também colocar em risco o culto dos protótipos, seus significados.
Uma reflexão em torno desses conceitos nos conduz a um problema em relação ao
estudo da iconoclastia. A legitimação do culto dos ícones pela Igreja, através do II Concílio de
Nicéia em 787 e do Synodikon da Ortodoxia 843 (que marcou o fim da Querela), afirmava que
o ícone representa o protótipo e conduz a oração do fiel a ele. João Damasceno chega mesmo
a dizer que o ícone possui a energia” do protótipo. Mas fica claro que o fiel deve ter em
mente a separação entre a pintura e o santo representado. É problemática essa separação entre
significante e significado defendida pela Igreja, uma vez que o próprio culto aos santos
dependia da fusão desses dois conceitos, como dissemos acima.
Outro conceito importante nesse trabalho é o de apropriação, aqui desenvolvido
segundo a perspectiva de Roger Chartier. Para ele, esse conceito tem por objetivo uma
35
BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of art.. Trad. Edmund
Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994. p. 153.
36
AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: defense de l’image ou de la dévotion a l’image? In: BOESPFLUG, F.
et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. pp. 162-163.
36
“história social das interpretações,”
37
pois, mais importante que a própria idéia em si, é a sua
encarnação, sua significação, o uso que delas fazem seus leitores.
38
Assim, a historicidade de
uma produção (seja ela uma obra escrita ou uma imagem) nunca é igual à que foi dada pelo
seu produtor.
Como foi dito anteriormente, algumas das justificativas para a proibição do culto
e posterior destruição dos ícones se apoiaram na argumentação de que esta prática legitimaria
pensamentos condenados como heréticos pela Igreja, a saber o Monofisismo e o
Nestorianismo. Entretanto, os iconoclastas fizeram, durante a Querela, uma releitura dessas
condenações, com o objetivo de fundamentar seus pensamentos contrários aos ícones. Os
iconoclastas, a partir do Sínodo de Hieria em 754, afirmaram que a veneração dos ícones não
consistia simplesmente num pecado de idolatria, mas sim numa heresia. A diferença desses
dois conceitos é sutil. Segundo Alain Besançon, idolatria é o culto de ídolos, ou seja, de uma
representação de uma divindade falsa.
39
Santo Tos de Aquino, seguindo aqui Santo
Agostinho, relaciona idolatria com o culto pagão de criaturas como se fossem Deus.
40
A
acusação de idolatria do período da Querela se encaixa nessa definição. heresia seria uma
doutrina considerada falsa, que contradiz diretamente os dogmas propostos pela Igreja
Católica a seus fiéis acerca do verdadeiro Deus.
41
Também os iconófilos apropriaram-se utilizaram de discussões envolvendo a
natureza humana e divina de Cristo, justificando o culto dos ícones pelo mistério da
Encarnação.
É claro que quando a Igreja definiu, no Concílio da Calcedônia em 451, seu
pensamento oficial a respeito das questões cristológicas, não se referia à possibilidade de se
37
CHARTIER, Roger. Op. cit. p. 26.
38
Ibid. p. 48.
39
BESANÇON, Alain. Op. Cit p. 109-110.
40
Tomás de Aquino, Suma teológica, Iia Iiae, q. 94, art. 1. Citado por BESANÇON, Alain. Op. Cit p. 109-110.
41
Cf. DICTIONNAIRE DE THÉOLOGIE CATHOLIQUE. Contenant l’exposé des doctrines de la théologie
catholique. Leus preuves e leur histoire. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1922.
37
representar Cristo numa pintura. Esse assunto não foi sequer citado nas atas do Concílio. Mas,
como afirma Chartier, os textos são sempre recriados a partir das novas leituras, recebendo
então novas significações.
42
Não vale dizer com isso que o sentido dos textos escritos na Calcedônia foram
alterados pelos iconoclastas, mas que estes textos foram novamente utilizados, agora num
outro contexto, em que suas idéias serviram para uma nova discussão. O que houve nesse caso
é o que Roger Chartier chama de apropriação, ou seja, uma idéia é resgatada de um texto,
reencarnada num novo contexto, e dela são feitos novos usos, que seus produtores sequer
imaginaram no momento de sua criação. No caso da Querela Iconoclasta, estas idéias são de
cunho teológico ou filosófico, como por exemplo o dogma da Encarnação. Não é nosso
objetivo traçar aqui um estudo aprofundado a respeito desses debates do culo V, mas sim a
utilização desses pensamentos no contexto da Querela.
Talvez possa se classificar esse trabalho como história das idéias, mas não é nosso
interesse defini-lo como pertencente exclusivamente a este campo, mesmo porque esta é
apenas uma entre as várias disciplinas históricas que possuem as idéias como objeto. Ressalta-
se ainda que as múltiplas denominações das disciplinas de história e as tentativas, nem sempre
bem sucedidas, de se estabelecer correspondências entre elas, demonstram que não em
história das idéias um objeto comum, homogêneo. Segundo Francisco Falcon, boa parte dos
historiadores preferem hoje a denominação história intelectual, abrangendo o estudo do
conjunto das formas de pensamento.
43
Chartier afirma ser problemática a dicotomia história popular-cultura erudita,
rejeitando-a em favor de uma noção mais abrangente, embora não hegemônica, de história
42
CHARTIER, Roger Op. cit.p. 24.
43
FALCON, Francisco. História das Idéias. In: CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. Domínios da
História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. pp. 92-93.
38
cultural.
44
Para ele, essa história da cultura compreende “o conjunto das formas de
pensamento”.
45
É inviável tentar se distinguir de antemão o que é o popular e o erudito num
contexto sociocultural. E exemplifica, afirmando que Mikhail Bakhtin apresenta, no livro
L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance
(1965) aspectos da cultura popular através de Rabelais, um erudito. Em contrapartida, Carlo
Ginzburg mostra fragmentos da cultura livresca misturada com tradição oral com Menochio,
em O queijo e os Vermes.
46
A cultura cristã, que é objeto desse trabalho deve ser abordada a partir dessa
perspectiva, pois nossa pesquisa se enquadra nesse tipo de abordagem. As posições oficiais da
ortodoxia cristã de Constantinopla e do Estado bizantino durante a Querela Iconoclasta foram
definidas a partir de editos imperiais e Concílios da Igreja, ou seja, de parte das elites política
e religiosa. Entretanto, essas decisões viriam a postular sobre uma das formas mais populares
de culto do Cristianismo, a devoção às imagens. Assim, mesmo que nossas fontes digam
respeito a um posicionamento na Querela por parte de grupos de nível mais alto na sociedade
bizantina (seja o clero secular, regular ou o poder imperial), leva-se em consideração que
essas idéias deveriam, pelo menos em teoria, alcançar diversos grupos da população cristã.
Mesmo não encontrando formas de manifestações populares no conflito em torno dos ícones,
sabemos que as idéias que partiram dessas elites deveriam ser absorvidas pela maioria dos
fiéis.
Como a Querela se refere a alguns debates cristógicos surgidos nos séculos IV e
V, pretendemos verificar as novas condições e as formas sob as quais essas idéias
reapareceram no Cristianismo bizantino do século VIII. Como essa pesquisa se dedica ao
processo que fez com que essas noções ressurgirem três séculos após suas condenações e o
44
VAINFAS, Ronaldo. História das Mentalidades e História Cultural. In: Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo.
Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 153.
45
CHARTIER, Roger. Op. cit .p. 31.
46
VAINFAS, Ronaldo. Op. cit. p. 152-153.
39
estabelecimento do pensamento ortodoxo, não nos basta apenas conhecer o significado de tais
pensamentos, o que faremos no capítulo 1. Interessa principalmente saber como, por quem e
com que finalidade essas discussões cristológicas retornaram ao centro dos debates cristãos
durante a Querela Iconoclasta. Como diz Skinner,
Os conceitos ou ‘idéias’ não se esgotam uma vez (re)conhecido o seu
significado; é necessário saber quem os maneja e com quais objetivos, o que
é possível através do (re)conhecimento dos vocabulários políticos e
sociais da respectiva época ou período histórico, a fim de que seja possível
situar os textos’ no seu campo específico de ‘ação’ ou de atividade
intelectual.
47
Foi em torno dos ícones de Cristo que boa parte das discussões da Querela se
concentrou, sendo o mistério da Encarnação e o dogma de sua dupla natureza a base tanto
para os argumentos iconófilos quanto para os iconoclastas. Por isso, torna-se indispensável
analisar como essas doutrinas foram recuperadas durante os séculos VIII e IX, e entender o
uso que delas fizeram, nesse novo contexto, os dois referidos grupos.
A apresentação dos capítulos desse trabalho foi orientada seguindo a cronologia
da própria Querela, seguindo seus editos imperiais, Sínodos e Concílios, convocados tanto por
iconoclastas quanto por iconófilos. O primeiro é mais conceitual, onde se apresentam
importantes idéias a serem trabalhadas nos capítulos seguintes. Nele encontra-se um estudo
mais aprofundado sobre o ícone, ressaltando as particularidades que o tornaram uma forma de
representação pictórica muito diferente das imagens ocidentais. Esse mesmo capítulo trata de
questões diversas, como as heresias cristológicas que serviram de base para a condenação do
culto dos ícones no século VIII e o modelo autocrático do Estado bizantino, que permitia ao
imperador interferir em questões religiosas. Além dessas questões, lembraremos aqui duas
causas não-religiosas para apontadas para a iconoclastia: a necessidade de manutenção da
unidade territorial bizantina e o uso do iconoclasmo pelo poder imperial para conter o
crescimento dos mosteiros bizantinos.
47
Citado por FALCON, Francisco. Op. cit. pp. 96-97.
40
O capítulo 2 trata da primeira fase da iconoclastia, tendo o edito imperial de Leão
III em 726 como ponto de partida, buscando entender as motivações que teriam levado o
imperador a tal atitude e os desdobramentos nas sedes das Igrejas de Constantinopla e Roma.
Além desse edito imperial, o mais importante sínodo iconoclasta de toda a Querela, o de
Hieria em 754, se reuniu nessa primeira fase do conflito e será analisado nesse capítulo. A
partir desse sínodo, convocado pelo filho e sucessor de Leão III, Constantino V, a iconoclastia
ganhou um embasamento teológico mais lido, sendo então relacionado a antigas heresias
em torno das naturezas de Cristo. O capítulo aborda também a defesa dos ícones, feita nessa
primeira fase principalmente pelo Patriarca de Constantinopla Germano e pelo monge João
Damasceno. Suas idéias foram fundamentais para embasar a argumentação que condenou a
destruição dos ícones no II Concílio Ecumênico de Nicéia, em 787.
Esse concílio será abordando no capítulo 3, quando se verificará como a
imperatriz regente Irene, a Ateniense, preparou o caminho para que este fosse reunido e onde
estudaremos também os seus argumentos em defesa do culto dos ícones cristãos. Nesse
capítulo também será abordada a segunda fase da Querela, reintroduzida na Igreja de
Constantinopla em 815 com Leão V, e definitivamente condenada num sínodo em 843.
Veremos como os argumentos contra o culto dos ícones foram novamente utilizados no
século IX para reativar a Querela. Assim como em sua primeira fase, os principais defensores
da iconofilia aqui também foram um monge, Teodoro Studita, e o então Patriarca de
Constantinopla, Nicéforo.
Também foram analisados textos produzidos pelos dois principais monges
iconófilos da Querela: João Damasceno e Teodoro Studita. De Damasceno, analisamos o seu
principal texto, uma apologia aos ícones, redigida em 730 e dirigida ao Patriarca Germano
(715–730) e à população iconófila de Constantinopla. Esse texto é de suma importância para
41
essa pesquisa, uma vez que apresenta a base da argumentação iconófila definida em Nicéia.
48
De Teodoro Studita, foram analisados alguns textos de diferentes naturezas, como um
testamento deixado ao mosteiro São João de Studios, em 826, o texto Poems on Images e
algumas cartas.
49
Além desses monges, o Patriarca de Constantinopla Germano (715–730) e o Papa
Gregório II (715–731) também deixaram escritas suas posições contrárias às medidas
iconoclastas do imperador Leão III através de cartas. Foi analisada aqui uma carta de
Gregório II, cujo conteúdo nos é apresentado numa passagem da Historia de Vitis
Romanorum Pontificum S. Gregório II, escrita no século IX.
50
O Patriarca Germano
escreveu uma carta favorável aos ícones, escrita em resposta ao edito iconoclasta de 730.
51
Por fim, contamos ainda com alguns documentos que serão aqui utilizados como
fonte de valor secundário. Nesse grupo estão as atas do Concílio Ecumênico da Calcedônia,
reunido em 451, que definiu a posição oficial da Igreja nos debates em relação às naturezas
humana e divina de Cristo, condenando como heresia o Monofisismo e o Nestorianismo.
52
Consultamos ainda uma carta do bispo Eusébio de Cesaréia a Constança (irmã do imperador
Constantino, o Grande), do século IV, a respeito da impossibilidade de se representar Cristo
48
Esses textos estão disponibilizados em inglês no website www.fordham/halsall/medweb, na coleção Internet
Medieval Sourcebook (49 páginas). Possuímos ainda excertos desses discursos em MANGO, Cyril. op.cit. pp.
169-172, e em português na obra de ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos históricos medievais. 3ª
edição. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981. p. 62.
49
O testamento de Teodoro ao mosteiro de o João de Studius foi publicado pela Dumbarton Oaks Research
Library and Collection. Harvard University: Washington D.C., 2000. Este texto está disponível na internet,
através do website www.doaks.org. O texto Poem an Images está em BELTING, Hans. Op. cit p. 508. E duas de
suas cartas encontram-se em MANGO, Cyril. Op. cit. pp. 173-175.
50
ESPINOSA, Fernanda. Op.cit pp. 60-61.
51
Esta carta encontra-se em BELTING, Hans. Op. Cit p. 503.
52
O texto desse concílio está disponível no website www.fordham/halsall/medweb
, na coleção Internet Medieval
Sourcebook (em torno de 20 páginas). Possuímos também alguns excertos dessas atas em ESPINOSA, Fernanda.
Antologia de textos históricos medievais. 3ª edição. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981. pp. 58-59.
42
numa pintura,
53
e outra da imperatriz destronada Irene, em 802, reconhecendo o caráter divino
do poder imperial.
54
Portanto, nosso estudo se volta para um tema ainda pouco explorado pela
historiografia no Brasil, abordando um dos fenômenos mais importantes do Cristianismo
oriental. Buscamos compreender aqui os argumentos criados pelos lados envolvidos na
Querela para legitimar o culto ou a destruição dos ícones, tendo como foco dos debates, o
ícone de Cristo, nas duas fases nas quais se dividiu essa disputa.
53
In: MANGO, Cyril. Op. cit pp. 16-18.
54
In: HECTOR HERRERA, C.; MARÍN RIVEROS, José. El Imperio Bizantino. Introducción Histórica y
Selección de Documentos. Santiago: Cuadernos Bizantinos Nea Ellas, Serie Byzantiní Historia I, 1998. p. 49.
43
CAPÍTULO I:
CONFIGURAÇÕES PARA A QUERELA ICONOCLASTA
Antes de iniciarmos nossos estudos sobre a Querela Iconoclasta propriamente
dita, uma breve análise faz-se necessária em relação a alguns antecedentes teóricos e práticos
que serão abordados nos capítulos seguintes. O objetivo desse primeiro capítulo é
compreender esses tópicos que fazem da Querela Iconoclasta uma disputa teologicamente
complexa e tornam o seu estudo fascinante.
Esse tipo de abordagem se deve ao fato de estarmos debruçando sobre uma
questões que se desdobraram dentro de um terreno arenoso, o das crenças cristãs, e que não se
restringiram somente à Igreja de Constantinopla, tendo envolvido inclusive o papado em
Roma. Além disso, o Cristianismo desenvolveu nas Igrejas do Oriente um tipo de culto e
representações pictóricas que em muito o diferencia do Ocidente. O ícone, enquanto objeto
principal de toda a Querela Iconoclasta, será abordado nesse capítulo a partir de textos
referentes a sua teoria, desenvolvida por João Damasceno, e tradições no culto cristão. Além
desses textos, utilizaremos ainda alguns exemplos de ícones posteriores ao século IX, uma vez
que durante a Querela, inúmeras pinturas foram destruídas pelos iconoclastas. As discussões
cristológicas que foram utilizadas no período para justificar a destruição ou defesa dos ícones,
e a forma de organização política do Império Bizantino são outros tópicos que constituem
esse primeiro capítulo.
Primeiramente, pretende-se fazer uma análise em torno do ícone, tipo de pintura
que representa Cristo, a Virgem, os santos, anjos ou profetas, sobre o qual se desenvolveram
todos os debates da Querela Iconoclasta. No tópico 1.1, será apresentado esse tipo de
representação pictórica considerada sacra entre os cristãos ortodoxos, ressaltando as suas
particularidades e as tradições que envolvem sua criação e seu culto nas Igrejas orientais.
44
Cabe ressaltar aqui que existe uma diferenciação entre os graus de culto dentro do
Cristianismo. Um deles é a adoração, da qual somente Deus é digno. É o mais alto nível de
culto cristão. Outro, apresentado a Cristo, a Virgem e aos santos e apóstolos, é a veneração,
um tipo de homenagem honrosa a essas pessoas. Essa diferenciação é fundamental na
formulação do argumento de defesa dos ícones no II Concílio de Nicéia, em 787.
Tanto nos documentos utilizados pelos iconoclastas para justificar a destruição
dos ícones, como por exemplo, a carta de Eusébio a Constança (século IV) e as atas do
Concílio Ecumênico de Calcedônia (451), quanto naqueles citados para defesa de sua criação
e culto, encontram-se complexos e bem formulados argumentos baseados em antigas
discussões cristológicas, envolvendo o mistério da Encarnação e a relação das naturezas
humana e divina em Cristo. No tópico 1.2 será feito um breve estudo em relação a duas
doutrinas, condenadas pela Igreja como heresias, e que embasaram a argumentação
iconoclasta a partir do sínodo de Hieria: o nestorianismo e o monofisismo.
Os rumos da Querela Iconoclasta estavam muito mais associados a decisões
imperiais, que variaram ao longo dos mais de cem anos de debates, do que a uma pressão
popular ou por parte da Igreja de Roma. Entender os mecanismos pelos quais esses
imperadores guiaram as discussões a respeito da destruição de ícones, impondo-a ou
proibindo-a, é fundamental para um contexto onde as decisões da Igreja de Constantinopla
praticamente não se dissociam das decisões políticas do Estado.
O tópico 1.3 apresenta um estudo de Gilbert Dagron a respeito do modelo de
governo desenvolvido em Bizâncio, e que se define enquanto tal com Leão III, o primeiro
imperador iconoclasta: a autocracia. Trata-se de um tipo de poder semelhante ao dos reis do
Antigo Testamento cristão, onde a autoridade política detém ainda um poder de natureza
religiosa. Isso se dava não apenas no sentido de um controle institucional sobre a Igreja de
Constantinopla por parte do imperador, mas era um tipo de sacerdócio exercido pelo monarca,
45
o que lhe dava o direito de intervir inclusive em dogmas cristãos. É justamente por essa
característica de ser um poder temporal e espiritual que os imperadores bizantinos dos séculos
VIII e IX tomam a frente dos rumos da Querela, através da convocação de Sínodos e
Concílios.
Devido a essa ligação entre religião e política em Bizâncio, buscaremos traçar no
tópico 1.4 um possível paralelo entre a iconoclastia e a política imperial, relacionando suas
causas e conseqüências a dois fatores não diretamente ligados ao culto dos ícones: a tradição
religiosa anicônica do Oriente Medieval e o enfraquecimento ou até mesmo eliminação do
poder dos mosteiros.
Primeiramente, a expansão islâmica por províncias bizantinas desde o século VII
poderia ser considerada como uma forma de punição divina à prática de cultuar imagens. Em
segundo lugar, o consenso historiográfico admite que destruir os ícones e proibir seu culto
seria uma forma de enfraquecer os mosteiros em uma de seus principais bases de sustentação
econômica e de influência social. Tanto os ícones quanto as relíquias de santos representavam
os pilares de sustentação dos mosteiros. Eram esses objetos de culto que atraíam grande
quantidade de peregrinos com suntuosas quantias em doações e esmolas. Além disso, pelo seu
prestígio, a vida monástica acabava por atrair também um grande número de jovens, em
detrimento da opção pela vida militar.
As fontes para esse estudo serão uma carta de Gregório Magno ao bispo Serenus,
de Marselha, que representa um posicionamento da Igreja de Roma frente à destruição de
imagens.
55
As atas do Concílio da Calcedônia, mesmo tendo sido reunido fora do recorte
cronológico traçado para essa pesquisa (451), serão importantes para o conhecimento das
definições oficiais da Igreja a respeito da relação das naturezas humana e divina em Cristo.
55
Gregório Mango, Epítola XIII. Ad Serenum Massiliensem episcopum, patrologie de Migne, t. LSSVII, col.
1128-1130. Esse documento foi aqui analisado através do referido estudo de Alain Besançon. pp. 243-246.
46
Existe ainda uma carta da imperatriz Irene, destronada em 802, na qual ela demonstra
reconhecer o caráter divino da autoridade imperial, sobre o qual discorreremos no tópico 1.3.
1.1 Os ícones cristãos
Nos primórdios de sua existência, ainda nos séculos III e IV, as representações
cristãs surgidas no Ocidente hauriam da cultura greco-romana um imenso repertório de
figuras. Essas antigas representações pagãs foram adaptadas, servindo a uma nova finalidade,
que era a de proporcionar, através das imagens, o acesso a símbolos e a narrativas das
histórias sagradas do Cristianismo. O objetivo principal dessa nova forma de representação,
nascida nas catacumbas romanas quando o Cristianismo ainda era uma religião perseguida no
Império, não era o de representar fidedignamente uma realidade. Os traços dessas pinturas não
se propunham a rebuscar com riqueza de detalhes uma cena. O objetivo primordial era
lembrar aos fiéis os ensinamentos, a misericórdia e as mensagens divinas contidas nas
Sagradas Escrituras.
No fim do século IV, com a oficialização do Cristianismo enquanto religião
oficial do Império Romano, houve uma preocupação maior por parte dos cristãos de construir
locais públicos de culto. Entre os ortodoxos, a idéia de uma harmonia entre o local dos cultos
e a liturgia foi o que conduziu à organização dos espaços e das decorações dentro das igrejas.
Tudo dentro delas, da arquitetura ao canto religioso, favorecia uma unidade harmônica. Esse é
o princípio das igrejas Orientais, lembrar ao fiel que ele está num lugar sagrado. É dentro
desse local, onde as representações pictóricas e arquitetônicas faziam parte da liturgia cristã,
que se insere o ícone.
Entretanto, as ressalvas em relação ao uso do ícone no culto se manifestavam
no Cristianismo desde os séculos III e IV. Segundo Hans Belting e Georg Ostrogorsky, os
47
debates em torno desse assunto abordavam o fato de a espiritualidade crisse ver ameaçada
pelo “materialismo” dessas representações.
56
Grande parte das suspeitas projetadas sobre as imagens cristãs, não somente no
período da Querela Iconoclasta, mas desde os seus primórdios até os movimentos protestantes
do século XVI, enfocavam o risco de que elas suscitassem no fiel apenas uma admiração de
suas formas e cores. Assim, o fiel não ultrapassaria o nível da contemplação da imagem em si
mesma e não prosseguiria num caminho de concentração e meditação. O perigo consistia em
ser atraído muito mais pelas formas da representação do que pela reflexão sobre a história
sagrada e os dogmas por ela representados.
Além disso, havia ainda o receio de que o culto cristão fosse assemelhado às
práticas pagãs, uma vez que estas cultuavam em seus templos estátuas de ídolos e
principalmente dos governantes, comparados a deuses desde a época helenística. Essa foi uma
prática tornada comum também pelos imperadores romanos.
Por conta disso, as representações pictóricas entre os cristãos ortodoxos orientais
seguiam um rígido processo de criação, baseando-se nas tradições da Igreja, cuja composição
estava em íntima relação com a teologia e espiritualidade cristã. Isso significa, como veremos
mais adiante, que esse tipo de pintura estava subordinada única e exclusivamente a uma forma
de transmissão da liturgia cristã, de uma realidade transfigurada, na qual não havia espaço
para a subjetividade do seu iconógrafo.
A palavra ícone vem do grego eikon, que significa “imagem” num sentido amplo.
Trata-se de uma representação pictórica considerada sacra, presente nas tradições da Igreja
desde o século IV, que retira seus temas das Escrituras e hagiografias. É sempre uma figura
plana, nunca uma escultura, e pretende ser uma representação fiel do protótipo, através de um
56
BELTING. Hans. Op. cit.. p. 2, e OSTROGORRSKY, Georg. Op. Cit p. 170.
48
processo de produção fixo e extremamente regrado. Trata-se de um tipo de imagem que
tampouco se curva diante das preocupações estéticas próprias do seu período ou sociedade.
Por conta dessas características, faz-se necessário aqui uma breve reflexão sobre o
ícone. que destacar toda tradição em torno desse objeto, que vai desde o momento de sua
produção pelo iconógrafo, até o culto a ele prestado por um fiel. Por isso o ícone se torna um
tipo diferenciado de representação pictórica, que não pode ser concebido simplesmente como
mais uma imagem cristã.
Diferentemente do Ocidente latino, onde as imagens religiosas ganharam status de
“Bíblia dos iletrados”, com função pedagógica e de manutenção da memória do fiel em cenas
e personagens da Sagrada Escritura, o ícone bizantino fazia parte do próprio rito cristã.
Destinava-se a reproduzir cânones, com uma fixidez quase ritual dos seus processos de
fabricação. É uma pintura que segue a “via de submissão ascética, da oração
contemplativa.”
57
Sua produção é controlada pelas autoridades religiosas, que no Oriente
dizem escrever o ícone, ao invés de pinta-lo. Seu vocabulário é limitado, uma vez que sua
“escrita” toma sempre de empréstimo temas da Bíblia, das hagiografias, dos apócrifos e da
liturgia.
58
Segundo Alain Besançon, suas formas são extremamente regradas e seus tipos
sempre repetidos devido à prática da própria tradição do ícone, que visa superar a presença de
traços pessoais do seu iconógrafo, buscando representar nem exatamente o u, nem
exatamente a terra, mas uma realidade transfigurada entre ambos.
59
O Papa Gregório Magno escreveu uma carta no ano 600 em repreensão ao bispo
Serenus de Marselha, por este ter ordenado a destruição das imagens nas igrejas de sua
diocese, com o objetivo de evitar que a população cristã daquela região caísse no pecado da
57
OUSPENSKY, L. Algumas reflexões sobre o sentido dogmático do ícone. [on line]. Artigo disponível na
irternet: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/main.htm . Acessado em 12/03/2006.
58
Cf. BESANÇON, Alain. Op. Cit. p. 221.
59
Cf. Ibid. p. 230.
49
idolatria. Nessa carta, Gregório afirma o valor didático das imagens cristãs, servindo como
objeto condutor das mensagens da Sagrada Escritura à população iletrada.
60
Apesar de essa carta ser o mais importante documento da Igreja Latina para
legitimar o uso de imagens no culto, não podemos considerá-la um trabalho de teologia em
torno dos ícones. Primeiramente, porque não referências nela especificamente ao ícone e
suas tradições, mas às imagens cristãs num plano mais totalizante. Depois, porque Gregório
não toca na questão teológica para legitimar a possibilidade de representação de Cristo, mas
fala delas como um tipo de objeto com funções didáticas e pedagógicas, uma ilustração das
Escrituras. Este documento apresenta uma preocupação muito maior com a questão da
transmissão das histórias do Antigo e do Novo Testamento através das imagens do que uma
representação do que Leonid Ouspensky chama de uma “realidade transfigurada,” uma
“deificação de seu protótipo”.
61
João Damasceno é, assim, considerado o primeiro a desenvolver uma teologia em
torno dos ícones cristãos, publicada em resposta ao primeiro edito iconoclasta do imperador
Leão III, em 730. Entre as idéias de Damasceno, que sistematizaram a defesa dos ícones no
Oriente, e as de Gregório Magno, que legitimaram o uso de imagens com fins de representar
pictoricamente passagens da Sagrada Escritura no Ocidente latino, existe uma grande
diferença teológica.
Enquanto Gregório se preocupou com a utilização de imagens como forma de
instrução dos fiéis ou transmissão das histórias bíblicas, Damasceno dedicou sua apologia a
legitimar o ícone e seu culto a partir da Encarnação de Cristo e da idéia de que essas pinturas
representam pessoas divinas, conduzindo o fiel das coisas corpóreas às inteligíveis.
Entre todos os tipos de ícones, aquele que certamente suscitou maiores discussões
em torno da licitude de sua pintura e de seu culto, sem vida, foi o de Cristo. Isso pelo fato
60
BESANÇON, Alain. Op. Cit. pp. 243-244.
61
OUSPENSKY, Léonid. Op. cit. p. 144.
50
de ser Cristo o topos central das discussões teológicas dos séculos IV ao IX. Muitos debates
da Querela se desenrolaram em torno dessa discussão, como veremos nos capítulos 2 e 3.
O referencial para a pintura dos ícones de Cristo é a tradição da face acheropta,
ou seja, não feita por mãos humanas. Segundo essa tradição oriental, o próprio Cristo teria
feito surgir uma representação do seu rosto numa toalha, na qual enxugara seu suor. Essa
toalha teria sido encaminhada ao rei Agbar, de Edessa, através de um funcionário seu. Foi
essa imagem que serviu de modelo para toda a produção iconográfica posterior. Essa tradição
não permite ao ícone receber traços de originalidade ou subjetividade por parte de seus
iconógrafos.
Segundo Belting, em Bizâncio, definiu-se que esse tipo de representação se
relacionava a uma profunda profissão de fé, um testemunho da Verdadeira Fé.
62
Isso porque,
muito mais do que uma simples representação de uma pessoa divina, o ícone de Cristo era a
expressão do dogma cristológico definido no Concílio da Calcedônia, representando o Filho
de Deus tornado homem, que reuniu em si as naturezas humana e divina. A possibilidade de
representação dessa natureza divina de Cristo suscitou controvérsias durante a Querela
Iconoclasta, como teremos oportunidade de analisar no capítulo 2. Entretanto, o pensamento
iconófilo, que prevaleceu ao fim das discussões, ressaltava que a figura de Cristo presente no
ícone não visa circunscrever sua divindade, mas antes representa a Pessoa na qual se
conjugam as naturezas humana e divina, sem confusão nem separação. O que o ícone de
Cristo propunha é representar o mistério da Encarnação.
Leonid Ouspensky sustenta que o ícone revela em suas cores e formas a face de
Cristo transfigurada e revelada aos apóstolos Pedro, Tiago e João no Monte Tabor. Para
Ouspensky, é essa face transfigurada que o ícone apresenta ao fiel, um Cristo no qual se
conjugam o humano e o divino. Como se trata de um tipo de imagem onde o simbolismo do
62
Cf. BELTING, Hans. Op. cit p. 159. “Thus the image in Byzantium gained all the more status as a profession
of faith, a testemony to the True Faith.”
51
ícone se sobressai a uma representação realista, seu objetivo não é provocar nenhum tipo de
sentimento humano natural. Ao contrário, pretende principalmente orientar os sentimentos
dos fiéis através da apresentação de um Cristo transfigurado.
63
Mesmo apresentando certa
tendenciosidade em seu texto, Ouspensky baseia sua análise nos principais documentos
referentes ao ícone, destacando as definições do Concílio Ecumênico de Nicéia, além de
textos de João Damasceno, Teodoro Studita e diversas passagens bíblicas.
O que ícone propõe não é circunscrever a natureza do protótipo, mas sim aquilo
que dele é compreendido pela inteligência, pelo conhecimento e pelo sentido, apenas sob o
modo da semelhança. Segundo Hans Belting, é essa semelhança real” com o protótipo que
confere autenticidade ao ícone, como no caso da virgem supostamente pintada por São Lucas
ou do manto de Edessa. Dessa forma, o rosto de Cristo pintado num ícone não representa sua
natureza divina, mas sim sua hipóstase, a Pessoa na qual se conjuga, sem confusão nem
separação, as duas naturezas, a humana e a divina.
64
Assim, pelo menos teoricamente, existe
uma diferenciação entre o protótipo e sua representação numa pintura, não sendo ambos da
mesma natureza. David Freedberg chama a atenção para o fato de que nas práticas de culto
dos fiéis, essa diferenciação entre a pintura e a pessoa representada tende a se diluir, havendo
um tipo de fusão entre ícone e o protótipo. Existiria, assim, um certo distanciamento entre a
teoria e a prática de culto cristão em relação aos ícones.
É baseado nessas premissas que nas Igrejas Ortodoxas não se representa o rosto
de um Cristo sofredor, como encontraremos posteriormente nas pinturas religiosas do
Ocidente. Para Ouspensky, essa forte ligação da obra com a sensibilidade humana do pintor é
que faz prevalecer a sua subjetividade, em detrimento das normas que regem a produção dos
ícones na Igreja bizantina. A presença dessa subjetividade na obra é a responsável pelo fato de
se verificar representações religiosas um Cristo no qual se destacam suas características
63
OUSPENSKY, Léonid. Op. cit. p. 163.
64
Cf. BESANÇON, Alain. Op. Cit. p. 228.
52
humanas, resultando numa imagem sem os aspectos divinos no qual se reconhece o Filho de
Deus encarnado.
65
A produção de ícones seguia, como dissemos, um controle rígido em sua
produção, o que fazia surgir, nas palavras de Besançon, uma monotonia de formas e
repetição de tipos.”
66
Isso exigia do iconógrafo uma submissão de seus sentimentos
individuais em favor da apresentação de uma obra fiel a seu objetivo final: ser a representação
de uma realidade espiritual, sem se preocupar com a representação fiel do mundo físico. A
imagem de uma face transfigurada, como pretende ser o ícone cristão, não tolera inovações ou
a marca pessoal de seu produtor. Toda essa disciplina na produção dos ícones visava uma
aproximação desse objeto com a ordem e a harmonia do Reino de Deus.
67
Mais do que ser
uma imagem de conteúdo religioso, a forma como o tema é apresentado (como por exemplo, a
figura principal sempre de frente para o fiel, despreocupação com a proporções realistas) é o
indicador de santificação da pessoa representada.
Esses tipos repetidos, aos quais se refere Besançon, por não se preocuparem com
a reprodução de cenas de maneira realista, deixam as questões estéticas de lado em favor da
busca de uma percepção de uma realidade espiritual. Nesse sentido, percebe-se que as
personagens possuem corpos em tamanhos desproporcionais entre si e algumas vezes em
relação ao cenário onde se encontram representados. A disposição dos personagens nas cenas
e as formas de sua apresentação seguem um princípio hierárquico. A figura principal – Cristo,
a Virgem ou um santo – ocupa o centro da tela e normalmente é maior que as demais pessoas.
O mesmo acontece quando se trata de ícones da Virgem, dos santos e mártires.
Além da desproporcionalidade no tamanho das figuras representadas, outra
característica é a ausência quase total de movimentos no ícone. Isso devido à severidade das
65
OUSPENSKY, L. Algumas reflexões sobre o sentido dogmático do ícone. [on line]. Artigo disponível na
Internet: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/main.htm.
66
BESANÇON, Alain. Op. cit p. 230.
67
OUSPENSKY, Léonid. Op. cit. p. 160.
53
linhas que compõem a figura e que submetem toda a composição do ícone a uma ordem e
uma harmonia necessárias à representação de uma pessoa santificada. Essa ausência de
movimentos é percebida também pela fixidez com que são representadas as roupas que
vestem Cristo, a Virgem ou os santos. Seus contornos, traçados em linhas geométricas, fazem
com que a santificação do corpo ali representado se comunique também através de suas
vestes. Esse tipo de representação é possível porque os santos pintados nos ícones quase não
gesticulam, como se estivessem em oração diante de Deus.
68
As personagens retratadas nessas pinturas, além de um imobilismo quase que
total, se apresentam de frente para quem o contempla ou, no máximo, em três quartos de
perfil. Segundo Ouspensky, é como se o santo estivesse se colocando diante do fiel, cara a
cara com ele, num espaço bem definido, o que demonstra que os ícones visam uma
aproximação cada vez mais íntima do cristão com o protótipo.
69
Fazendo parte da liturgia e do
culto cristãos, o ícone deve estar sempre em harmonia com todos os elementos do rito, desde
a arquitetura do templo ao canto executado. Numa igreja onde esse conjunto harmônico
entre todos esses elementos, a liturgia engloba os fiéis e os santos representados numa “ação
comum”, onde o culto coloca o cristão e o santo pintado numa relação de extrema
proximidade.
70
Nos ícones, os olhos são representados voltados para o espectador, como que
convidando-o a uma contemplação. Por conta dessa característica, o ponto de fuga dessas
imagens encontra-se invertida, centrada no espectador. Nas palavras de Alain Besançon, “as
verdades da fé irradiam-se em direção àquele que o contempla.”
71
68
OUSPENSKY, Léonid. Op. cit. p. 167.
69
Ibid.
70
Cf. OUSPENSKY, L. Algumas reflexões sobre o sentido dogmático do ícone. [on line]. Artigo disponível
na Internet: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/main.htm.
71
BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 220.
54
Figura 3: Ícone de Cristo. Constantinopla, século VI. Encáustica,
monastério de Santa Catarina do Sinai, Egito
Nesse sentido, a representação de perfil impediria o contato direto do fiel com o
ícone, sendo considerado “o início da ausência”. Apenas figuras que não representam nenhum
55
tipo de santidade poderiam ser representadas de perfil, como os pastores e os reis magos nas
cenas da Natividade.
72
Figura 4: Mosaico com Justiniano (esquerda) apresentando o modelo da igreja
de Hagia Sophia para a Virgem Maria. Constantino à direita apresenta a ela o
modelo de Constantinopla (532–537)
Besançon nos apresenta uma descrição básica de um tipo padrão de representação
dos santos nos ícones:
A fronte é alta e bombeada, sinal de sabedoria e inteligência. O nariz, longo,
fino, grave, nobre, com narinas frementes. As faces dos ascetas e dos
monges atestam os jejuns e as vigílias. A boca, muito fina, está sempre
fechada, porque no mundo da glória tudo é visão e silêncio. [...] Abarba é
majestosa no ritmo vigoroso das mechas.
73
A função do ícone é então representar uma realidade espiritual, na qual se perceba
uma idéia de harmonia e paz celestiais, opostas à desordem do mundo físico. É por isso que
num ícone tudo o que está ao redor da pessoa representada possui um aspecto diferenciado, de
72
Ver OUSPENSKY, Léonid. Op. cit. pp. 167-169.
73
BESANÇON, Alain. Op. cit p. 220.
56
uma realidade transfigurada, que transforma toda a desordem mundana num tipo de
organização divina, que visa aproximar o fiel de Deus.
Os questionamentos e definições a respeito da representação dos ícones de Cristo
fizeram reaparecer no século VIII uma série de debates cristológicos, ora para dar um
embasamento teórico ao iconoclasmo, ora para defender essas representações da total
destruição. O principal questionamento girava em torno da possibilidade de se representar
num ícone a natureza divina de Cristo, sem que esta estivesse separada da sua humanidade.
74
Como demonstraremos nessa dissertação, foi em torno do mistério da Encarnação que a
validade e licitude do ícone enquanto uma pintura sacra foram definidas pelos seus defensores
durante a Querela. Assim as questões estéticas estavam excluídas das discussões dos séculos
VIII e IX, que se concentraram exclusivamente em temas de cunho teológico e dogmático.
A Encarnação foi o principal argumento utilizado pelos iconófilos para a defesa
dos ícones. Esse tema perpassou todo o período da Querela Iconoclasta, sendo referenciado
desde o Discurso de João Damasceno a favor dos ícones em 730 até o Sinodikon de 843, que
marcou o fim definitivo da iconoclastia. As formas como este debate cristológico sobre a
Encarnação foi apropriado durante a iconoclastia para questionar ou fundamentar a
representação pictórica de Cristo nos ícones, serão abordados ao longo dos capítulos 2 e 3.
É pelo fato de representar pessoas santas e uma realidade transfigurada que o
ícone deveria ser cultuado, não pela sua matéria em si, mas pela pessoa que representa. São
esses aspectos que fazem do ícone um tipo de pintura diferenciada em comparação àquelas do
ocidente cristão, principalmente a partir do século XIII, merecendo assim algumas reflexões
sobre sua composição, seus temas e sua função dentro das Igrejas Ortodoxas. É devido a essas
74
Para conhecer as definições da Igreja a cerca das naturezas do Cristo, ver as definições do Concílio da
Calcedônia, em 451. Acessado em J. D. Mansi, Sacrorum Conciliolum nova et amplissima collectio, t. VII,
Florentiae, 1762, cols. 107, 115 e 118. In: ESPINOSA, Fernanda. Op. cit.. p. 59.
57
características que o ícone suscitou, nos séculos VIII e IX, tantas discussões, gerando toda
uma querela ao redor de sua definição e de seu papel no culto cristão.
1.2 Discussões cristológicas
O fato de no século VIII o ícone de Cristo ter sido o centro das discussões da
Querela Iconoclasta era um legado de três séculos de preocupações teológicas entre os
bizantinos. Já desde o século IV os cristãos se preocuparam em definir a relação entre o Deus
Pai, o Filho e o Espírito Santo dentro da Santíssima Trindade.
De uma forma geral, as primeiras heresias cristãs se referiam à definição da
natureza de Cristo, principalmente no que diz respeito à sua relação com Deus-Pai. O
primeiro Concílio Ecumênico cristão, realizado em Nicéia em 325, definiu o pensamento
ortodoxo, proclamado ainda hoje pelo Credo niceno, a respeito dessa relação. Afirma que
Cristo é consubstancial (homosios homo ousia, mesma essência) com o Pai e não criatura
Dele, apenas semelhante a Ele.
75
Desde o século IV a busca pela definição a respeito de como as naturezas humana
e divina se encontravam em Cristo havia gerado algumas doutrinas condenadas pela Igreja
como heréticas. Duas dessas doutrinas ganham especial interesse para nossa pesquisa: o
Nestorianismo e o Monofisismo, evocadas em determinações iconoclastas promulgadas no
Sínodo de Hieria, reunido em 754 pelo imperador Constantino V (741–775).
Nesse Sínodo, a justificativa para a destruição de ícones cristãos se baseou numa
alegada relação existente entre as práticas de pintura e culto dos ícones e esses pensamentos
condenados pela Igreja. O cerne das discussões era um dogma fundamental do Cristianismo: o
mistério da Encarnação, e a relação entre o humano e o divino em Cristo. Deteremos-nos na
75
JEDIN, Hubert. Concílios Ecumênicos; história e doutrina. Tradução de Nicolas Bóer. São Paulo: Editora
Herder, 1961.
58
análise das definições desse Sínodo no capítulo 2. Aqui, buscaremos conhecer as bases dessas
heresias e o porquê de sua condenação pela Igreja.
Uma nova proposição, posteriormente condenada como herética, permeou o
pensamento cristão do século V. Encabeçada pelo patriarca de Constantinopla Nestório,
afirmava que em Cristo as duas naturezas seriam distintas, sendo que a humana prevaleceria
sobre a divina. Para Nestório, uma natureza não poderia existir sem um prosôpon próprio,
tendo esse termo aqui um sentido semelhante à personalidade, designando um conjunto de
qualidades individuais. Afirma que pelo prosôpon, a humanidade de Cristo teria suas
características próprias. Assim, não haveria no Cristo um um prosôpon único, pois cada
natureza preservaria o seu prosôpon, a sua individualidade em relação a outra.
76
Dessa forma, o nestorianismo fez surgir idéia de uma separação entre as
naturezas, como se houvesse de um lado o homem Jesus, e de outro o Verbo, que o anima e o
inspira.
77
E cada uma dessas naturezas possuiria sua subsistência própria, com suas operações
próprias, mesmo após a sua união em uma mesma pessoa.
78
Segundo Alain Ducellier, o
Nestorianismo representou uma humanização quase total do Cristo.
79
Nesse mesmo sentido,
Paul Lemerle afirmou que os nestorianos consideravam que Cristo seria “um homem que se
tornou Deus.”
80
Para Nestório, a união existente entre o humano e o divino no Cristo é do tipo
χατ ευδοχιαν, termo traduzido de maneira imperfeita como “união voluntária”, pela qual
Cristo se conforma voluntariamente às inspirações do Verbo. Assim, essa união não seria
76
DICTIONNAIRE DE THÉOLOGIE CATHOLIQUE. Contenant l’exposé des doctrines de la théologie
catholique. Leus preuves e leur histoire. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1922. Verbete Nestorius. p. 152.
77
Ibid. p. 94.
78
Ibid. p. 149.
79
DUCELLIER, Alain. Op. cit p. 57.
80
LEMERLE, PAUL. Op. cit p. 33.
59
hipostática ou natural. Disso resulta que as paixões e sofrimentos procederiam exclusivamente
da natureza humana de Cristo.
81
Tal definição implicava diretamente no dogma do Concílio de Nicéia de 325 e
também na condição de Maria como mãe de Deus. Uma vez estando as duas naturezas
separadas em Cristo, o pensamento nestoriano via na Virgem a mãe somente da humanidade
de Jesus, não de sua divindade. Assim sendo, deveria ser chamada então de “Mãe de Cristo”,
e não “Mãe de Deus.”
82
Os nestorianos tiveram contra si principalmente os bispos da
poderosa sede patriarcal de Alexandria, que pretendiam estender sua influência por todo o
Oriente e alertaram Roma sobre a questão.
A visão nestoriana divergia do pensamento ortodoxo, mesmo entre as sedes
patriarcais do Oriente. Para tentar por um fim na questão, a Igreja reuniu um Concílio
Ecumênico na cidade de Éfeso, em 431, dois anos após a exposição do dogma de Nestório.
Neste Concílio, o nestorianismo foi condenado como heresia e Nestório foi deposto da sede
patriarcal de Constantinopla. Cirilo, bispo de Alexandria, saiu fortalecido dessa disputa.
Entretanto, a doutrina professada pelos alexandrinos era tampouco totalmente
ortodoxa. Ao exaltarem a natureza divina do Cristo, acabaram diminuindo a importância de
sua natureza humana. O resultado foi uma nova heresia que, surgida do combate ao
nestorianismo, acabou se enveredando pelo caminho oposto, reconhecendo em Cristo a
divindade, mas restringindo sua condição de homem, que é condição fundamental para o
dogma da salvação. Essa heresia ficou conhecida como Monofisismo.
Eutiques, abade de um mosteiro em Constantinopla, justificava o monofisismo,
definindo que [...] depois da união das duas naturezas divina e humana em Cristo, esta foi
absorvida por aquela, de maneira que nessa altura só se pode falar de uma natureza, ou seja, a
81
DICTIONNAIRE DE THÉOLOGIE CATHOLIQUE. Contenant l’exposé des doctrines de la théologie
catholique. Leus preuves e leur histoire. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1922. Verbete Nestorius. p. 150.
82
JEDIN, Hubert. Op. cit p. 24.
60
divina”.
83
O calor das discussões das quais surgiu o monofisismo, em resposta ao
nestorianismo, provocaram certos excessos nas suas interpretações, de modo que esse
pensamento foi definido por alguns teólogos e historiadores como a doutrina da natureza
mista ou dupla, constituída pela mistura e alteração recíproca da divindade e da humanidade
de Cristo.
84
Cumpre esclarecer que o pensamento monofisista não pregava uma mistura das
duas naturezas de Cristo, mas sim a sobreposição da divina sobre a humana.
O monofisismo não se posiciona contrário ao dogma da Encarnação, mas o
exprime de um modo particular. A base dessa doutrina está na significação atribuída a palavra
grega φισις (do latim natura) por Nestório, Apolinário e Teodoro de Antioquia. Para estes, o
termo seria como um sinônimo de hipóstase ou prôsopon, uma definição que não nega a
existência real da natureza humana, mas a mantém sob dependência do Verbo, que age nela e
através dela de uma forma humana. Segundo a teologia monofisista, no Cristo, a palavra
φισις guarda sempre seu sentido concreto, sendo assim relacionada ao indivíduo. É a
hipóstase do Verbo que, sem alterações, se reveste de humanidade. Essa afirmação pode
conduzir à idéia de que a natureza humana em Cristo fosse autômata, totalmente subordinada
à divina, sem liberdade ou atividades que a caracterizassem verdadeiramente como
humanas.
85
O que essa doutrina apresenta de heterodoxa é a crença de que não existiria em
Cristo nada de sua humanidade após a união das duas naturezas, que em sua individualidade
haveria apenas a sua natureza divina. Como poderiam os monofisitas considerar que em
Cristo houvesse duas φισεις, uma vez que à sua humanidade não fosse atribuída uma
natureza, um sujeito independente? Isso contraria o dogma ortodoxo, segundo o qual Cristo
teria mantido a integridade das duas naturezas após a união destas. Por este dogma, nem a
83
Ibid. p. 29.
84
DICTIONNAIRE DE THÉOLOGIE CATHOLIQUE. Contenant l’exposé des doctrines de la théologie
catholique. Leus preuves e leur histoire. Paris: Librairie Letouzey et Ané, 1922. Verbete Monophysisme
Sévérien. p. 2227.
85
Ibid. p. 2217-2218.
61
divindade se perdeu na Encarnação, nem a humanidade deixou a qualidade tangível de sua
natureza. Uma passagem bíblica utilizada pelos ortodoxos para comprovar o caráter humano
presente em Jesus pode ser encontrada na carta de Paulo aos Hebreus, onde diz: “E por isso
convinha que Ele se tornasse em tudo semelhante aos seus iros [...]”
86
A expressão em tudo
do trecho acima nada exclui da natureza humana, que seria como a de qualquer outra pessoa.
Numa tentativa de complementar as definições do I Concílio Ecumênico de
Nicéia, de 325, e ainda fixar as proposições da ortodoxia crisfrente aos debates em relação
às naturezas humana e divina em Cristo, um Concílio foi reunido, na cidade de Calcedônia,
em 451. Convocado pelo imperador Teodósio II, Marciano (450-457), esse concílio definiu
uma profissão de fé a respeito da natureza de Cristo, combatendo tanto nestorianos quanto
monofisistas. Afirmava que em Cristo existiam as duas naturezas, a divina e a humana,
inconfundíveis e inseparáveis, numa única hipóstase, sem que união anule a diferença. Esse
novo Concílio definiu que:
[...] o Filho e Nosso Senhor Jesus Cristo são um e o mesmo, que Ele é
perfeito na divindade e perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e
verdadeiro homem, com uma alma racional e um corpo, consubstancial
com o Pai segundo a sua divindade e consubstancial conosco pela sua
humanidade [...].
87
Essa definição ataca o monofisismo, ao afirmar ter Cristo duas naturezas. A
definição que ataca o nestorianismo se encontra no seguinte trecho: “[...] nascido do Pai antes
de todos os séculos segundo a Sua divindade [...]”
88
, onde se afirma que Cristo não nasceu
apenas como homem sendo mais tarde habitado pelo Verbo, como afirmava Nestório, mas
que nasceu divino. Assim, consolidava-se também a Maria o título de Theotokos (Mãe de
Deus) e não mãe apenas da humanidade do Cristo. [...] nascido da Virgem Maria, Mãe de
86
BÍBLIA SAGRADA, N.T. Hebreus, 2:17. São Paulo, Edições Loyola, 1995.
87
J. D. Mansi, Sacrorum Conciliolum nova et amplissima collectio, t. VII, Florentiae, 1762, cols. 107, 115 e 118.
In: ESPINOSA, Fernanda. Op. cit. p. 59.
88
Ibid.
62
Deus nestes últimos dias por causa de nós e da nossa salvação, de acordo com a sua
humanidade”
89
. Vê-se por esse trecho a importância da condição humana de Cristo para a
salvação.
O texto do Concílio finaliza reafirmando a consubstancialidade do Filho, e a
indivisibilidade de suas duas naturezas, também inconfundíveis:
Um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor Unigênito, em duas naturezas
inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis, [...] concorrendo numa
pessoa e hipóstase, não separada ou dividida em duas pessoas, mas um
e o mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, o Senhor Jesus Cristo, como desde
o princípio os profetas anunciaram a seu respeito e como Jesus Cristo, ele
mesmo, nos ensinou, e como credo dos Padres nos transmitiu.
90
Embora condenado pela Igreja, o pensamento monofisista continuou vivo entre os
cristãos do Oriente durante os três séculos seguintes, principalmente no Egito e na Síria, duas
das mais ricas províncias de Bizâncio. O fato de haver essa falta de unidade no pensamento
cristão, verificada entre a capital e as províncias orientais do Império, foi possivelmente um
fator facilitador para a ocupação desses territórios pelos árabes, no século VII. A forma como
essas idéias reapareceram durante a Querela demonstram o poder que elas ainda possuíam
durante as disputas em torno do ícone.
Em contrapartida, a Igreja de Constantinopla visou manter no Oriente, através de
sínodos e concílios, um pensamento cristão uniforme, sem divergências internas. Para isso, os
bispos de Constantinopla procuravam confirmar sua superioridade diante das demais sedes
episcopais do Oriente (Alexandria, Antioquia e Jerusalém). Ademais, a Igreja de
Constantinopla estava diretamente atrelada ao governo do Estado, não apenas por questões
geográficas, mas pela própria natureza do poder imperial bizantino, que unia num único
soberano atribuições de uma liderança religiosa e política.
89
Ibid. Grifo nosso.
90
Ibid.
63
1.3 A natureza autocrática do poder imperial
As motivações que são apresentadas pela historiografia para o desencadeamento
da Querela convergem para dois campos de explicações. O primeiro, como vimos, é
teológico, gira em torno da legitimidade de representação de Cristo numa pintura e,
posteriormente, o culto dessa representação.
91
O segundo relaciona-se com questões políticas
do Império, referentes à defesa do território bizantino, o controle do governo sobre a estrutura
monástica e até mesmo as convicções religiosas de alguns imperadores.
92
Essa pesquisa se
guia pela hipótese de os acontecimentos desencadeados na Querela Iconoclasta estarem
relacionados com a teologia ortodoxa da Igreja de Constantinopla, porém sem descuidarmos
de suas ligações com a política imperial bizantina.
93
Como a autoridade imperial em Bizâncio reunia as esferas de poder espiritual e
temporal, a figura do imperador tornara-se uma peça fundamental para a compreensão da
iconoclastia. Isso se devia à crença de que a figura do imperador seria uma representação
direta da vontade divina sobre um império cristão. Sendo um vice-rei de Deus na terra, as
determinações imperiais deveriam ser encaradas como ordens divinas.
A tradição de que Bizâncio seria um Império cristão, um reflexo na terra do reino
celestial, remete a Constantino, o Grande (272 337) e trazia consigo a idéia de um governo
que reuniria em torno de si um tipo de autoridade ao mesmo tempo política e religiosa. Sobre
esse ponto, comenta Michael Angold:
No palácio imperial, ele era a personificação da majestade terrena, a
encarnação da lei, o herdeiro do Imperador Augusto, mas também o legatário
91
Sobre este tema se dedicaram alguns historiadores, entre eles Hans Belting, Alain Besançon, David Freedberg.
92
James Hall, Franz G. Maier, Paul Lemerle, Georg Ostrogorsky, além do já citado Hans Belting analisam a
Querela interligando seus acontecimentos com a política do Império e as convicções pessoais dos imperadores
iconoclastas.
93
Nesse ponto, concordamos com alguns autores que abordam tanto as questões relacionadas às questões
teológicas quanto as ligadas à política do governo bizantino para a explicação da iconoclastia, como Georg
Ostrogorsky, Franz Georg Maier, Paul Lemerle e Michael Angold.
64
da conversão de Constantinopla ao cristianismo. Era que se via com mais
obviedade o imperador como vice-regente do Deus cristão na terra.
94
Dessa forma, percebe-se que o soberano desse Estado possuía uma autoridade de
natureza espiritual e temporal. É exatamente sobre esse modelo de governo que pretendemos
discorrer nas páginas seguintes. Isso porque a Querela Iconoclasta se desenvolveu a partir dos
editos publicados, sínodos e concílios convocados pela autoridade imperial, que fez ainda
prevalecer, acima da autoridade do Patriarca de Constantinopla ou do Papa, a sua posição
nesses debates.
Entretanto, questiona-se aqui uma definição que muitas vezes é atribuída a esse
tipo de poder, sobre o conceito de cesaropapismo, que consideramos reducionista. Nesse tipo
de poder, o governo de um determinado Estado se sobrepõe aos domínios da autoridade
religiosa, exercendo sua autoridade também sobre a estrutura eclesiástica. Aqui, “a soberania
temporal incorpora o domínio da religião [...].”
95
É um fenômeno típico de sociedades cristãs,
onde o poder político submete o da Igreja.
O modelo de poder do imperador bizantino não deriva apenas da união das
estruturas de poder civil e eclesiástica, como se pode supor à primeira vista, mas se constitui
num tipo de união muito mais complexa. Gilbert Dagron,
96
cuja obra analisa detalhadamente
esse modelo de governo, define-o como autocrático, demonstrando que existiu em torno da
autoridade imperial uma relação muito mais sutil entre as esferas do temporal e do espiritual
do que uma simples fusão das instituições do Estado e da Igreja. Para Dagron, colocar “nessas
duas palavras [Igreja e Estado] todas as relações mútuas e os difíceis cruzamentos que podem
envolver o imperador bizantino com a hierarquia eclesiástica é evidentemente uma falta de
94
ANGOLD, Michael. Bizâncio. A ponte da Antiguidade para a Idade Média. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
p. 25.
95
TAVEIRA, Celso. O modelo político da autocracia bizantina; fundamentos ideológicos e significado
histórico. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002. Tese de doutorado. p. 293.
96
DAGRON, Gilbert. 1996 Op. cit.
65
método”.
97
Trata-se de um sacerdócio na estrutura de poder, que se manifestaria através da
figura do imperador, “em termos de poder e o de instituição [...]”.
98
Assim, na autocracia
bizantina, a relação entre o espiritual e o temporal é muito forte, indissociável. Um estudo
simplificado, que aborde o poder imperial sobre a ótica apenas de uma união entre as
instituições da Igreja e do Estado bizantino, deixaria escapar o que esse modelo tem de mais
original e singular, a saber, a fusão numa só autoridade dos poderes sacerdotais e imperiais.
Figura 5: Placa fragmentada com Cristo coroando
o imperador Constantino VII. Século XI.
97
Citado por TAVEIRA, Celso. Op. cit. p. 301.
98
Ibid. p. 305.
66
A importância do estudo do modelo autocrático do governo imperial bizantino
para nosso trabalho está no fato de os rumos da Querela Iconoclasta terem sido sempre
determinados pela autoridade imperial. Ademais, a primeira referência conhecida pela
historiografia de um imperador definindo sua própria autoridade a partir da união dos poderes
de um imperador e de um sacerdote está numa carta de Leão III, datada de 730, ao Papa
Gregório II.
No Oriente, havia o desejo de uma sincronia ideal entre o temporal e o espiritual.
Por isso, Leão III pode ter sido um imperador religioso, a ponto de se proclamar também
sacerdote em Bizâncio. Porém, não pode ser descartada a possibilidade de ele ter assim
definido a natureza de seu poder perante o papado com o objetivo de expandir seu controle
sobre a Igreja de Constantinopla ou até mesmo a de Roma.
Têm-se referências às habilidades militares do imperado, que inclusive o fizeram
chegar ao poder. Porém, não podemos dizer o mesmo a respeito de suas convicções religiosas.
Dessa forma, Mesmo assim, não tem sentido qualquer tentativa de análise que separe essas
duas esferas, a temporal e a espiritual, visto que elas estariam unidas formando como que um
único corpo. Essa forma de governo seria devedora muito mais dos modelos de reis-
sacerdotes do Antigo Testamento do que o tipo desenvolvido no Império Romano ou nas
monarquias helenísticas.
99
Na própria legislação oficial bizantina, uma referência aos reis-
sacerdotes do Antigo Testamento. A Écloga, o código de leis elaborado por Leão III,
provavelmente no ano de 726, baseado no código de Justiniano, se referia a Isaías e
Salomão em seus preâmbulos.
100
Gilbert Dagron buscou nas obras compiladas pelo diácono Agepetos (século VI) e
por Basílio I (século IX) um conceito de “poder legítimo” (εννοµοσ αρχη) para o imperador
99
TAVEIRA, Celso. Op. cit. p. 305.
100
DAGRON, Gilbert. 1996 Op. cit p. 36.
67
bizantino.
101
E busca ainda no Velho Testamento referências ao modelo de poder onde um
sacerdócio real e não apenas litúrgico. Sobre a complexa noção de sacerdócio real, recorremos
a Celso Taveira, que assim se refere a ela:
Mais que institucional, a natureza do poder se revela ali [nos rituais cristãos
da corte bizantina] como algo simbólico que estabelece os limites e as
aproximações, marcando uma distância e ao mesmo tempo unindo basileis e
sacerdotes. Mais que legitimidade constitucional, é legitimidade
veterotestamentária e cristã.
102
A respeito do poder imperial bizantino ser supostamente legitimado por Deus, um
documento nos chama a atenção. Trata-se de uma carta escrita pela imperatriz destronada
Irene, a Ateniense, a seu sucessor, o novo imperador Nicéforo, em 802. Nele, Irene afirma
reconhecer a autoridade divina do novo soberano, e atribui a sua queda do poder a uma
punição de Deus por seus supostos pecados:
Es Dios, ciertamente, quien me ha elevado al trono, y atribuyo mi caída
solamente a mis pecados. Que el nombre del Señor sea bendito, cualquiera
que sea. Atribuyo a Dios tu elevación al Imperio, porque nada puede alzarse
sin su voluntad. Es por Dios que reinan los emperadores. Te considero, pues,
como el elegido de Dios, y me inclino delante tuyo como delante de un
emperador.
103
Nesse texto percebe-se, nas palavras da própria imperatriz que teve o poder
usurpado, o reconhecimento de que a subida de Nicéforo ao trono imperial estaria diretamente
relacionada a uma vontade divina, manifestação que teria outrora legitimado o poder por ela
101
DAGRON, Gilbert. Lawful Society and Legitimate Power: Εννοµοσ πολιτεια, εννοµοσ αρχη. In: LAIOU,
Angeliki E., SIMON, Dieter. Law and Society in Byzantium: Ninth-Twelfth Centuries. Washington D.C.:
Dumbarton Oaks, 1992. pp. 27-51.
102
TAVEIRA, Celso. Op. cit. p. 306.
103
HERRERA H., y MARÍN, J. Op. cit. “É Deus, certamente, quem me elevou ao trono, e atribuo minha queda
somente a meus pecados. Que o nome do Senhor seja bendito, qualquer que seja. Atribuo a Deus tua elevação ao
Império, porque nada pode erguer-se sem tua vontade. É por Deus que reinam os imperadores. Te considero,
pois, como eleito por Deus, e me inclino diante de ti como diante de um imperador.” (Tradução nossa).
68
exercido por mais de vinte anos.
104
Durante a Querela Iconoclasta, a crença de que o
imperador fosse um representante direto da vontade divina na terra, poderia não ser apenas
um recurso de retórica para uma legitimação desse poder diante da população. Ao contrário, a
própria imperatriz destronada Irene parece participar da crença num modelo divino de
governo.
Essa afirmativa poderia ser reforçada pelo fato de a ex-imperatriz Irene não
estar mais ocupando o trono de Constantinopla, mas apenas manifestar um reconhecimento da
vontade de Deus, tanto no que diz respeito à sua queda, quanto à ascensão do novo imperador.
Mesmo sendo impossível penetrar objetivamente nos sentimentos e pensamentos de Irene,
esta carta permite supor que, em alguns momentos, a crença num poder imperial guiado
diretamente pela vontade de Deus também fora compartilhada por aqueles que ocupavam o
trono bizantino.
Supostas manifestações de aprovação ou reprovação divina eram registradas
diante de algumas atitudes do soberano. Por exemplo, a longa duração do reinado de Leão III,
teria sido percebida pelos seus contemporâneos como uma bênção merecida pelas atitudes
iconoclastas do imperador. Sobre esse fato, cita Lowden:
“[...] God might be punishing the Byzantines for misusing religious images
and falling into idolatry. The solution appeared simple: to ban the use of the
religious images in Byzantium and hope for divine approval, which would
become apparent through political and military success. Leo’s reign of
twenty-five years longer than that of his five predecessors combined
could thus be interpreted as an indication of God’s satisfaction with
Iconoclasm.
105
104
Considerando-se o tempo que a imperatriz Irene esteve no trono como regente e, posteriormente, como
soberana bizantina, computamos que seu governo se estendeu do ano 780 até 802, quando teve o poder usurpado
por Nicéforo.
105
LOWDEN, John. Op. cit. p. 155. “[...] Deus poderia estar punindo os Bizantinos por fazer mau uso de
imagens religiosas e caindo na idolatria. A solução parecia simples: banir o uso de imagens em Bizâncio e
esperar pela aprovação divina, que se tornaria visível através de sucessos políticos e militares. O reinado de vinte
e cinco anos de Leão mais que os seus cinco predecessores juntos poderia ser interpretado como uma
indicação da satisfação de Deus com o iconoclasmo.”
(Tradução nossa).
69
Nos momentos de desentendimento entre o imperador e o patriarca de
Constantinopla verificou-se uma supremacia do poder imperial sobre o clerical, sendo a
situação deste último diretamente determinada pelo primeiro. Enquanto detentor de um poder
de natureza também religiosa, percebe-se uma constante sobreposição do governo bizantino
nas questões eclesiásticas, como por exemplo, na convocação de concílios tradição iniciada
com Constantino, o Grande, em 325 nomeação e destituição de patriarcas e, mais ainda, na
interferência direta sobre a formulação de dogmas cristãos.
Assim, o imperador mantinha seu controle também sobre a estrutura de poder
eclesiástica de Constantinopla. Por exemplo, quando Leão III publicou seu edito de destruição
de ícones em 730, Germano (715–730), que reprovou esse gesto juntamente com o papa
Gregório II (715-731), acabou destituído do cargo pelo imperador e foi substituído pelo
iconoclasta Anastácio. Portanto, no período da Querela, era imprescindível ao patriarca
comungar das mesmas idéias do imperador, pois seu próprio posto à frente da Igreja de
Constantinopla estava sujeito a aprovação do governo bizantino.
Durante toda a Querela, embora não houvesse, nem mesmo no clero secular, uma
outra autoridade que fosse superior à do imperador, seu poder era legitimado pela sujeição do
imperador a toda uma tradição das leis. Em outras palavras, para que o soberano bizantino
fosse reconhecido pela população e tivesse sua autoridade legitimada como um representante
do poder divino, tornava-se necessária a sua “conversão” e até mesmo uma submissão a toda
uma tradição de governo absolutista
106
muito anterior a sua pessoa.
Apesar das fontes não permitirem uma análise da recepção das decisões durante a
Querela por parte da população leiga bizantina, uma questão pode ser aqui levantada. Sendo o
culto dos ícones uma antiga tradição da Igreja cristã, como pode-se supor que o iconoclasmo,
106
Franz Georg Maier afirma que o governo bizantino era “absolutista e centralista”. Ver MAIER, Franz Georg.
A. Op. cit p. 10.
70
uma quebra nessa tradição, tenha sido visto pela sociedade cristã como uma atitude legítima
de Leão III?
Existia uma brecha em toda essa tradição para a atuação dos imperadores
enquanto legisladores. Gilbert Dagron chegou a questionar a idéia de que toda a fonte da lei
bizantina se baseava somente nas tradições e nas leis do Estado, denominadas
εννοµοσ πολιτεια. Ele chama a atenção para criação de leis por alguns imperadores,
resultantes das necessidades de um momento específico em que se percebe os traços da
personalidade do legislador.
107
Assim, cada lei deriva sua autoridade do imperador que a
promulga e da época de sua promulgação.
108
Embora devessem se submeter a um código de
leis estipulado e legitimado antes de sua subida ao trono, os imperadores bizantinos tinham
um certo campo de liberdade de atuação (como no caso de Justiniano e Leão III) dependendo,
é claro, das necessidades do momento.
No caso de Leão III, o citado documento redigido pelo imperador
justificando a sua autoridade para intervir em assuntos religiosos, como a proibição (726) e
destruição (730) de ícones, sem convocar um concílio ecumênico, como fora sugerido pelo
papa. Leão III convocou um concílio imperial (e não eclesiástico), reunido em Constantinopla
no ano de 730, para legitimar seu decreto. Infelizmente, os textos dos decretos iconoclastas de
726 e 730 foram destruídos, sendo hoje conhecidos apenas através de suas apropriações nos
registros iconófilos, como o Concílio de Nicéia II (787), os escritos do patriarca Nicéforo
(815) e o Synodikon da Ortodoxia (843).
Assim, nossa análise em relação às decisões tomadas pelos imperadores
iconoclastas e iconófilos, enquanto condutores dos rumos oficiais da Querela, considerará
tanto o aspecto político quanto o religioso enquanto formadores de uma única e mesma esfera
107
Cf. DAGRON, Gilbert. 1992. Op. cit p. 37.
108
Ver Ibid. p. 38.. “each law derived its authority from the emperor who promulgated it and from the date of its
promulgation” (Tradução nossa).
71
de poder. Não constitui nosso interesse optar por um desses dois campos, e sim manter
sempre em mente a fusão entre o temporal e espiritual no poder autocrático do imperador
bizantino, se sobrepondo inclusive à estrutura de poder eclesiástica.
1.4 Iconoclastia, defesa das fronteiras e monaquismo
Além de questões religiosas, a Querela Iconoclasta foi também motivada por
outros dois pontos não diretamente ligados a discussões teológicas: a política externa imperial
e o desejo de controle do autocrata sobre o clero regular.
Até a primeira metade do século VIII, houve por parte de Bizâncio a necessidade
de se defender do processo de expansão do Império Árabe. Em se tratando de um Império
cristão, qualquer ameaça de invasão e conquista por parte de inimigos externos,
principalmente os muçulmanos, poderia ser interpretada em Bizâncio como um castigo
divino, punindo a população cristã por algum tipo de desvio em seu comportamento religioso.
A questão não era o Deus cristão privilegiar o Islamismo nesse tipo de confronto, mas sim
uma forma de se perceber uma manifestação dessa punição divina, por exemplo, não
auxiliando os soldados cristãos nesse confronto, abandonando-os à própria sorte numa disputa
com um inimigo infiel. No caso da Querela, esse castigo divino se daria em punição à suposta
idolatria praticada pelos fiéis em relação aos ícones.
Além disso, o principal inimigo estrangeiro dos bizantinos durante a primeira fase
da Querela (726-787) eram os árabes. Após a morte de Maomé, em 632, os muçulmanos
iniciaram um processo de expansão e grandes conquistas territoriais, motivados não por
questões religiosas, mas também econômicas, como os ganhos com pilhagens e arrecadação
de impostos advindos desses territórios. A Síria, a Palestina e o Egito, que pertenciam ao
Império Bizantino e pareciam, segundo Bernard Lewis, culturalmente distantes dos gregos,
72
foram conquistados ainda no século VII. O corte de subsídios do governo bizantino à região e
a possibilidade de culto cristão monofisista em território islâmico, mediante pagamento de
impostos, pode ter diluído a resistência a essa conquista, fazendo com que algumas tribos da
região tomassem partido pelos invasores.
109
Ainda por volta do ano 670, os muçulmanos
tentaram invadir também a cidade de Constantinopla, voltando a ataca-la no primeiro ano do
governo de Leão III, porém, fracassando em ambas as tentativas. Esta, aliás, foi a primeira
grande vitória do novo imperador, demonstrando, após violentas sucessões no trono bizantino,
sua força militar frente a um poderoso inimigo.
Entretanto, os árabes continuaram cercando e ocupando outras regiões do Império,
localizadas na Ásia Menor. Dessa forma, a preocupação com a ameaça de um ataque
muçulmano ao território bizantino tornou-se constante durante a primeira metade do século
VIII. Durante todo o tempo em que Leão III esteve à frente do poder imperial, os árabes
invadiram alguns territórios bizantinos na Ásia Menor, ocupando Cesaréia e assediando
Nicéia, sendo derrotada definitivamente somente no ano 740, nas proximidades da Amória.
110
É sabido também que, além das armas, os árabes levaram para o Império
Bizantino a cultura de uma nova religião monoteísta, de tradição contrária ao uso de
representações pictóricas ou esculturais em seu culto. Os muçulmanos têm a imagem religiosa
como algo inconcebível, devido à sua noção metafísica de Deus.
111
É essa concepção de Deus
que impede o muçulmano de qualquer tentativa de representação pictórica em sua religião,
apesar de o Corão não apresentar uma proibição clara de produção e culto de imagens. Karen
Armstrong afirma ainda que os muçulmanos não se curvariam a qualquer outro sistema
humano, mas somente a seu Deus.
112
109
LEWIS, Bernard, Os Árabes na História. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. pp. 60-67.
110
Cf OSTROGORSKY, Georg. Op. cit. pp. 166-167.
111
Cf. BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 135.
112
ARMSTRONG, Karen. O Islão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 59.
73
Também o Judaísmo possui uma tradição contrária às representações pictóricas de
divindades. Enquanto o Corão é suficientemente transcendental para omitir uma menção a
qualquer tipo de representação, a Torá judaica traz explicitamente essa proibição, como pode
ser percebido pela citação do livro do Êxodo: “Não farás para ti escultura, nem figura alguma
do que está em cima nos céus, ou embaixo, sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra.”
113
Embora não seja possível afirmar, a partir das fontes, que o iconoclasmo bizantino
tenha nascido de uma suposta apropriação de pensamentos islâmicos ou judeus, seguimos
nesse ponto o que nos dizem Alain Ducellier, Michel Kaplan e Bernadette Martin:
O iconoclasmo traduz a influência oriental de religião de monoteísmo
intransigente judaísmo, islão e cristianismo monofisita. Não que a
argumentação teológica dos iconoclastas tenha nascido de alguma destas
correntes; mas é essencialmente a sensibilidade religiosa do Oriente que
inspira o iconoclasmo, a vontade de depurar a religião cristã do que parece
uma superstição próxima do paganismo a quase idolatria de que as
imagens tinham se tornado objeto.
114
Ducellier, como visto, afirma ainda que o iconoclasmo teria sido uma forma de
manter a coesão interna em Bizâncio para enfrentar o inimigo estrangeiro.
115
Acreditamos
ainda que a própria origem do imperador Leão III, o Isáurico (natural da Isáuria, uma
província localizada na parte oriental no Império, onde o iconoclasmo conseguiu maior
número de seguidores e a proximidade com os muçulmanos deveria ser mais intenso)
116
,
possa ter propiciado a influência da religiosidade islâmica na proposta iconoclasta. Nesse
ponto, concordamos com André Grabar, John Lowden e Michel Angold, embora não haja
fonte alguma que nos permita confirmar essa relação direta.
Nesse ponto, ressalta-se que a maior parte do exército bizantino era recrutada
entre a população das províncias mais orientais, onde as idéias iconoclastas encontravam
113
BÍBLIA SAGRADA, A.T. Êxodo, 20:4. São Paulo, Edições Loyola, 1995.
114
DUCELLIER, Alain; KAPLAN, Michel; MARTÍN, Bernadette. Op. cit p. 123.
115
DUCELLIER, Alain. Op. cit p. 60.
116
Cf. LEMERLE, PAUL Op. cit pp. 76-77.
74
maior mero de adeptos. Já que o próprio Leão III provinha dessa região, é possível que ele
trouxesse esses pensamentos intrínsecos em sua educação.
117
Dessa forma, a imposição da
iconoclastia aliava os pensamentos do imperador e da maioria dos soldados do exército, de
quem era imprescindível o apoio, devido às constantes conflitos nas regiões fronteiriças de
Bizâncio com os árabes muçulmanos.
ainda uma outra questão importante por trás da Querela Iconoclasta, não de
ordem exclusivamente religiosa, mas de dimensões social, política e mesmo econômica: a
utilização do iconoclasmo pelos imperadores bizantinos como forma de confiscar as
propriedades dos mosteiros. Essa relação entre a destruição de ícones e a perseguição aos
monges tinha sido denunciada por João Damasceno, em 730: “And now, holy Germanus,
shining by word and example, has been punished and become an exile, and many more
bishops and fathers, whose names are unknown to us. Is not this persecution?”
118
Porém, essa perseguição ficou ainda mais evidente após o Sínodo de Hieria, em
754. O crescimento e enriquecimento dos mosteiros bizantinos, isentos de impostos, era
perigoso aos olhos do Império.
119
A forma como o imperador Constantino V estendeu sua
política iconoclasta também contra as representações e relíquias de Maria e dos santos, sobre
as quais as argumentações cristológicas utilizadas pelos iconoclastas não procediam, permite
supor que a destruição dos ícones bizantinos parecia ser ainda uma foram eficaz de ataque aos
mosteiros. A Querela Iconoclasta se apresentava, assim, como uma oportunidade de o poder
imperial enfraquecer os mosteiros e controlar seu crescimento.
117
RUNCIMAN, Steven. A teocracia bizantina. Tradução de Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Zahar,
1978. p. 60.
118
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “E agora santo Germano, brilhante pela palavra e exemplo, tem
sido punido e foi exilado, e muito mais bispos e padres, cujos nomes não conhecemos. Isso não é perseguição?”
(Tradução nossa).
119
Sobre o poderio da estrutura monacal bizantina no período da Querela Iconoclasta, ver DIEHL, Charles. Op.
cit pp. 95-101, LEMERLE, PAUL. Op. cit pp. 77-79 e ANGOLD, Michel. Op. cit pp.75-78.
75
Os mosteiros representavam grandes centros, não apenas de riqueza material, mas
também de influência sobre a sociedade cristã bizantina. Graças à quantidade de ícones e
relíquias de santos que possuíam, os mosteiros tornavam-se privilegiados locais de
peregrinação de fiéis. Consequentemente, acabavam recebendo também generosas esmolas,
ofertas dos peregrinos e doações de grandes extensões de terra.
Todo esse poderio econômico e o privilégio frente ao Estado de ser isento de
pagamento de impostos fizeram com que essas instituições religiosas possuíssem uma grande
quantidade de bens, expandindo suas propriedades pelo território imperial. Pela grandeza e
pelo poder de atração exercido por esses mosteiros sobre a sociedade cristã, parte dos jovens
em condições de servir o exército teria preferido seguir a vida monástica
.
Além de absorver
uma potencial força militar, os mosteiros retiravam também para a vida religiosa braços de
trabalho do campo, que deixaram de render ao Império uma arrecadação ainda maior em
impostos, visto que os monges gozavam de isenção fiscal.
120
Dessa forma, o processo de destruição de ícones cristãos seria como uma forma de
o poder autocrático bizantino se sobrepor a essa estrutura religiosa, atacando-a diretamente
sobre um dos pilares de sua força: o culto aos ícones e relíquias de santos. Por verem nos
monges uma possível ameaça ao seu poder, os imperadores orientais desse período
acreditavam que o crescimento social e econômico dos mosteiros deveria ser contido.
No período do governo de Constantino V, em especial a partir do sínodo de Hieria
(754), a perseguição e o exílio de monges tornaram-se constantes em Bizâncio. Nessa época,
mosteiros foram fechados ou transformados em quartéis, casas de banho ou edifícios públicos,
e suas imensas propriedades rurais passaram para o controle imperial.
121
Além do confisco de
bens, monges e freiras foram ainda submetidos a humilhações públicas no hipódromo.
122
120
DIEHL, Charles. Op. cit p. 98.
121
OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 183.
122
ANGOLD, Michel. Op. cit p. 77.
76
Nesse período de intensas perseguições, muitos monges ainda foram mutilados e mortos.
Consequentemente, muitos monges emigraram para o sul da Península Itálica, estabelecendo
ali novos mosteiros e escolas.
Percebe-se assim que as causas e conseqüências da iconoclastia são muito mais
complexas do que o já intrincado debate cristológico. Este ganhou um teor muito mais
elaborado quando foi travado em torno do ícone, objeto de uma longa tradição, envolvendo
desde sua criação pelo iconógrafo até o culto pelo fiel.
Os rumos tomados pelas discussões, decididas em Sínodos e Concílios, eram
sempre comandados pela figura do imperador, que gozava do poder autocrático que, durante o
período da Querela, demonstrou sua superioridade frente a Igreja em questões administrativas
e religiosas.
123
Disso resulta que a questão iconoclasta não se atrelava unicamente ao campo
dos debates iconológicos (como a possibilidade de se representar Cristo numa tela ou o tipo de
culto que deve ser rendido a essa representação), mas se transformava numa questão de
Estado, de defesa da soberania do poder autocrático e dos territórios bizantinos.
O fato de o iconoclasmo servir, mesmo que indiretamente, como um meio de o
poder autocrático se sobrepor à estrutura monástica bizantina, enfraquecendo-a em uma de
suas bases, fez com que os monges se tornassem durante a Querela os principais defensores do
culto dos ícones. Entre estes iconófilos, dois nomes se destacaram: na primeira fase da
Querela, João Damasceno (675 –749) e na segunda, Teodoro Studita (759–826). Nos
dedicaremos à análise de seus textos nos capítulos seguintes.
123
Essa superioridade do poder imperial sobre o patriarcal em Constantinopla o foi uma constante em toda o
período de existência de Bizâncio, havendo momentos em que o patriarca se sobrepunha ao imperador. Para
tanto, ver DIEHL, Charles. Op. cit pp. 92-95.
77
CAPÍTULO II:
A PRIMEIRA FASE DA ICONOCLASTIA 726-787 : ORIGENS,
ARGUMENTOS TEOLÓGICOS E CONFLITOS
Os debates em torno da criação e culto dos ícones cristãos no Império Bizantino
se iniciaram com um edito promulgado pelo imperador Leão III (717–741) em 726 e se
estenderam até o ano de 787, quando o Concílio Ecumênico de Nicéia II pôs um fim
provisório na questão.
O culto de imagens é um tema que suscita divergências desde os primeiros
séculos do Cristianismo. O que torna a Querela Iconoclasta bizantina um caso especial, que
mereça nossa atenção nessa pesquisa, é que as discussões em torno da licitude de culto dos
ícones tomaram ali proporções até então não alcançadas. Isso tanto pelo teor de violência
algumas vezes aplicada contra os adversários da iconoclastia, quanto pela estreita relação da
Querela com questões não puramente religiosas, como por exemplo, o desejo do poder
imperial de conter o crescimento dos mosteiros bizantinos.
Na primeira parte desse capítulo, o objetivo entender como e por que a política de
destruição de ícones teria encontrado na Constantinopla da primeira metade do século VIII
um terreno fértil para sua implantação. Busca-se ainda as possíveis motivações que teriam
levado o imperador bizantino Leão III a dar início a essa política em 726, e algumas das
conseqüências imediatas dessa atitude na vida do Império e nas suas relações com as Igrejas
de Roma e de Constantinopla.
Salientamos que, mesmo a iconoclastia tendo se tornado a política oficial do
Império Bizantino a partir de Leão III, os defensores dos ícones se fizeram presentes desde o
início da Querela. A segunda parte desse capítulo, analisa a crítica do Patriarca Germano
(715-730) ao iconoclasmo, e sobretudo os argumentos do monge João Damasceno (675-749)
78
em favor dos ícones. Estes vieram a servir de base para o posicionamento oficial da Igreja no
Concílio de Nicéia II e, posteriormente, no Synodikon da Ortodoxia, em Constantinopla, no
ano 843.
Na terceira parte, será analisado como o filho e sucessor de Leão III, Constantino
V (741–775), conferiu à iconoclastia um teor mais teológico e dogmático a partir do sínodo
reunido por ele em Hieria, em 754. Aqui, objetiva-se demonstrar como a partir desse sínodo a
iconoclastia pode ter servido para que o poder imperial intensificasse sua perseguição ao clero
regular bizantino, numa tentativa de enfraquecer os mosteiros, uma vez que esses tinham nos
ícones e relíquias de santos suas principais fontes de glória e riqueza. Enfraquecer os
mosteiros poderia significar diminuir o poder de influência de uma estrutura religiosa que,
muitas vezes, rivalizava com a autoridade do governo imperial.
O último tópico desse capítulo trata da chegada ao poder do filho de Constantino
V, Leão IV. Seu governo, que durou apenas cinco anos, significou um momento de transição
na Querela, que passou das formas mais extremadas de imposição da iconoclastia a um
abrandamento das perseguições aos iconófilos. Foi também nesse período que surgiu de Irene,
esposa de Leão IV, a imperatriz regente de Bizâncio que convocou o Concílio Ecumênico de
Nicéia, em 787, que condenou a destruição de ícones.
As principais fontes para a elaboração desse capítulo II foram os textos escritos
em defesa dos ícones, fundamentando teologicamente sua existência e seu culto pelos fiéis. O
principal documento é o Discurso de João Damasceno, endereçado ao Patriarca de
Constantinopla, Germano, que deveria divulgá-lo à população cris bizantina. O Patriarca
Germano redigiu uma carta, endereçada ao papa Gregório II (715-731), na qual expressava
sua defesa dos ícones. Outra carta, do próprio papa Gregório II ao imperador Leão III,
defende os ícones contra a política imperial. Os fundamentos da iconofilia coincidem, nos
79
textos citados: a diferença entre ícones e representações de deuses pagãos e a Encarnação
como justificativa da criação e do culto de ícones.
que os textos originais de teor iconoclasta foram destruídos após a Querela, só
é possível conhecer as definições do sínodo de Hieria que foram reconstituídas no Concílio
de Nicéia II, para fins de refutação. Esse documento permite ter-se acesso à complexa e bem
elaborada teologia iconoclasta, então apresentada pelo imperador Constantino V. Nele
referências ao Concílio da Calcedônia, onde a Igreja definiu seu dogma a respeito da dupla
natureza de Cristo, a humana e a divina, que acabou sendo reapropriada como argumento
teológico para os iconoclastas procederem à proibição do culto dos ícones e sua destruição.
Como as decisões desse Concílio já foram trabalhadas no capítulo 1, este documento terá aqui
uma importância apenas secundária.
Assim, pretende-se aqui confrontar argumentos pró e contra a produção e culto
dos ícones cristãos nessa primeira fase da Querela Iconoclasta, analisando a complexidade das
justificativas teológicas de cada um dos dois lados. Deve-se também manter sempre a atenção
para o fato de a iconoclastia estar interligada à política interna (como a pretensão dos
imperadores de manter sob seu controle a estrutura eclesiástica de Constantinopla e o
crescimento das riquezas dos mosteiros), e externa (a ameaça de invasão das fronteiras
orientais) do Império Bizantino.
2.1 O início da Querela Iconoclasta com Leão III e os primeiros conflitos
O início da Querela Iconoclasta se deu com o imperador Leão III, o Isáurico, em
726. Na Isáuria, província de onde sua família era natural, o culto de ícones era rejeitado pelos
cristãos. Nessa região da Ásia Menor, a iconoclastia havia chegado ainda no início do século
80
VIII. É muito provável que Leão III tenha sido influenciado pelas opiniões dos bispos
iconoclastas dessa região, considerando esse tipo de culto um ato de idolatria
124
.
Somente quase dez anos após sua chegada ao poder imperial Leão III começou a
política iconoclasta oficial do Estado, promulgando, em 726, o primeiro edito contra os
ícones, proibindo o seu culto e retirando uma imagem de Cristo do Portão Chalke do palácio
imperial, substituindo-a por uma cruz. Embora o texto original tenha sido destruído, o
objetivo de Leão III nesse primeiro momento parece ter sido controlar a proliferação dos
ícones dentro e fora dos templos, mas não decretava sua destruição imediata.
125
Ao que
parece, um desastre natural, interpretado pelo imperador como um castigo divino por estarem
os cristãos cultuando ícones, teria sido o estopim para o desencadeamento do iconoclasmo
bizantino.
126
Nesse primeiro momento, Leão III teria apenas se pronunciado contrário ao culto
de ícones, numa tentativa de convencer a população bizantina de que essa prática desagradaria
a Deus, acarretando punições divinas ao Império.
A argumentação que embasava as atitudes iconoclastas de Leão III era embasada
em textos do Antigo Testamento, em trechos como o do Êxodo 20: 4, onde Deus proíbe ao
povo eleito a fabricação e culto de imagens. Diz a passagem em questão: Não farás para ti
escultura nem figura alguma do que está em cima, nos céus, ou embaixo sobre a terra, ou nas
águas embaixo da terra.”
127
Em se tratando de um império cristão, era natural supor que qualquer adversidade
natural, política ou militar, fosse considerada, em Bizâncio, como uma manifestação de Deus
em desaprovação a alguma atitude do imperador ou da sociedade cristã. Nesse caso, o fator
motivador seria o culto dos ícones. Assim, essa passagem do Antigo Testamento, dirigida ao
124
KNOWLES, David; OBOLENSKY, Dimitri. A Igreja Bizantina. In: Nova história da Igreja. Vol. II. A
Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 1974. p. 96.
125
ALBERIGO, Giuseppe. O Segundo Concílio de Nicéia (786/787) ou Sétimo Concílio Ecumênico. In:
História dos Concílios Ecumênicos. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 1995. P. 148.
126
Ostrogorsky e Lowden falam de um terremoto, que teria ocorrido em 726, enquanto Angold se refere a uma
erupção vulcânica na ilha de Santorini, no Egeu, na mesma data. OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 171.
LOWDEN, John. Op. cit p. 155. ANGOLD, Michael. . p. 70.
127
Ver LOWDEN, John. Op. cit. p. 148.
81
povo hebreu, com o intuito de não permitir que eles praticassem um culto idólatra, fora levada
ao pé da letra por Leão III, que o estendeu às representações pictóricas do Cristianismo.
Para que o imperador tivesse completo sucesso na imposição de suas idéias
religiosas, seria interessante contar com o apoio tanto do Patriarca Germano (715-730), de
Constantinopla, quanto do Papa Gregório II (715-731), em Roma. Entretanto, apesar de a
iconoclastia ter sido imposta a todo o território imperial, essa política encontrou resistências
desde os seus primeiros anos, sobretudo com os dois bispos mais importantes da Cristandade.
O Patriarca Germano e o Papa Gregório II oficializaram suas posições contrárias a
essa política. Ambos argumentaram que esse assunto deveria ser tratado num concílio
ecumênico, reunido pela Igreja.
128
Germano ainda chegou a escrever uma carta ao Papa
Gregório em favor dos ícones de Cristo, da Virgem e dos santos.
Germano inicia esse texto, escrito provavelmente em 730, com o argumento que
viria a se tornar básico em quase todos os documentos favoráveis ao culto dos ícones do
Cristo: a sua justificativa através do mistério da Encarnação. Diz o discurso a esse respeito:
“we contemplate the figure of the true God made man for our redemption [...], for we
remember with awe his presence in flesh on earth, which happened because of his great
compassion.”
129
Para Germano, a Encarnação não legitimaria a criação e culto somente dos ícones
do Cristo, mas também da Virgem Maria, por ser ela sua mãe. Diz ele em seu discurso:
But when we make a likeness of her who gave him birth, our pure and ever
virginal mistress, the Theotokos, a likeness beyond all our imagining, we
think of her as the all-holy house of God, who, as the only entirely pure
being on earth, was deemed worthy to become the Mother of God, and who
surpasses the spiritual natures in heaven.
130
128
ANGOLD, Michael. Op. cit .p. 70.
129
Carta do Patriarca Germano, ca. 730. In: BELTING, Hans. Op. cit p. 503. “[...] nós contemplamos a figura do
verdadeiro Deus feito homem para nossa redenção [...], para nos lembrarmos com respeito e temor de sua
presença em carne na terra, a qual aconteceu por sua grande compaixão.” (Tradução nossa).
130
Ibid. “Mas quando fazemos uma semelhança daquela que Lhe deu a vida, nossa pura e sempre virgem
senhora, a Theotokos, uma imagem além de toda nossa imaginação, nós pensamos nela como a toda santa casa
de Deus, que, como a única inteiramente pura na terra, foi considerada digna de se tornar Mãe de Deus, e quem
supera a natureza espiritual no céu.” (Tradução nossa).
82
ainda nesse texto outra justificativa para o culto dos ícones dos santos: a
lembrança que essas representações incitam no fiel, da resistência desses homens às paixões
da carne. Serviriam, assim, como exemplos a serem seguidos pelos cristãos.
When we depict the figures of those who by good works and pious deeds
have proved themselves the servants of God, we remember their
unconquered resistence to the invisible foe. For although they acted through
a perishable body, they vanquished the enemy and brought shame on the
Devil by destroying the passions of the flesh and stifled [ the Devil’s deceit
by the dispassionate blood they shed] in the battle for truth, in which they
did not spare themselves.
131
Completando seu argumento, Germano utiliza uma explicação dada por São
Basílio, o Grande (329-379), em De Spiritu Sancto, quando este afirma: “A honra rendida a
um ícone se dirige ao protótipo.”
132
Este parece ser o argumento mais antigo onde se percebe
uma diferenciação entre significado e significante. Encerrando seu discurso, diz o então
Patriarca: “When we look on an icon of a saint – and this is true for every icon of a saint – we
venerate not the panel or the paint but the pious and visible figure.”
133
Esses argumentos utilizados por Germano para construir sua defesa do culto dos
ícones já estavam presentes no Concílio In Trullo, realizado em Constantinopla nos anos 680–
681, na ordem para que Cristo fosse representado com suas formas humanas, e não mais em
alegorias, tais como o cordeiro. A justificativa era centrada na questão da Encarnação.
134
As
representações referentes à mbolos cristãos, como o cordeiro, não perecem ter sido alvo de
131
Ibid. “Quando nós pintamos figuras daqueles que por bons trabalhos e atos pios têm se mostrado como servos
de Deus, nós lembramos sua invencível resistência diante do inimigo invisível. Embora agissem por meio de um
corpo perecível, eles venceram o inimigo e levaram vergonha ao Mal por destruir as paixões da carne e reprimir
[a falsidade do Mal pelo desapaixonado sangue que eles derramaram] na batalha pela verdade, na qual eles o
se pouparam.” (Tradução nossa).
132
De Spiritu Sancto, 18, PG 32, 149 C. Citado por SCOUTERIS, Constantini. La personne du verb incarné et
l’icône. L’argumentation iconoclaste et la reponse de Saint Theodore Studite. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY,
N. (Dir). Op. cit. p. 133.
133
Carta do Patriarca Germano, ca. 730. In: BELTING, Hans. Op. cit “Quando s olhamos para um ícone de
um santo – e isso é verdade para todo ícone de santo – nós veneramos não o painel ou a pintura, mas a piedosa e
visível figura.” p. 502.
134
ANGOLD, Michael. Op. cit. p. 56.
83
destruição dos iconoclastas, uma vez que muitos ícones foram substituídos por cruzes nas
igrejas bizantinas.
Assim, quando o Patriarca Germano fala no culto dos ícones como uma forma de
o fiel se lembrar” da figura representada, percebe-se uma relação direta com as idéias do
Papa Gregório Magno. O que esses textos nos mostram é que o termo culto, empregado várias
vezes ao longo da documentação pesquisada, se refere a diferentes formas de o fiel
demonstrar sua em Cristo, Maria, nos santos e anjos, através de suas representações.
desde a adoração, da qual somente Deus seria digno, até mesmo uma prosternação honrosa,
com a intenção de manter viva, na memória do fiel, as ações dos protótipos representados.
Apesar de o Patriarca de Constantinopla Germano e o Papa Gregório II afirmarem
que esse assunto deveria ser tratado num concílio da Igreja, a atitude de Leão III foi
exatamente convocar um conselho imperial, chamado Silentium, no ano de 730, em que foi
decretada a destruição dos ícones cristãos. Como o imperador não conseguiu apoio das
principais autoridades eclesiásticas do período, a solução foi o uso da violência com força de
lei.
Embora provavelmente tivesse sido convocado ao lado de outros representantes
do clero para tomar parte do Silentium, ao que parece Germano não participou desse concílio
imperial.
135
Esse conselho era uma forma do imperador impor sua política, numa
demonstração do alcance do seu poder imperial frente à Igreja, como também a convocação
de Sínodos e Concílios Ecumênicos e a nomeação e destituição de bispos e do próprio
Patriarca de Constantinopla.
Após a decisão dessa assembléia pela adoção do iconoclasmo como política
oficial do Império, Germano, em idade avançada, foi destituído do posto de Patriarca e
135
TREADGOLD. Warren. A history of the Byzantine State and Society. California: Stanford University
Press, 1997. p. 353.
84
substituído pelo iconoclasta Anastácio. Essa atitude demonstrava que o imperador Leão III
tinha claras pretensões de manter o controle sobre a estrutura eclesiástica da capital do
Império, indicando para ocupar o posto de maior autoridade da Igreja Oriental um patriarca
que compartilhava de seus pensamentos contrários ao culto de ícones. Tendo no patriarca um
aliado, o imperador não teria, pelo menos teoricamente, obstáculos para impor sua política ao
território cristão bizantino.
Também o Papa Gregório II rejeitou o iconoclasmo de Leão III, afirmando que
este não deveria definir dogmas religiosos. Entretanto, não se sabe ao certo quantas cartas o
papa e o imperador bizantino trocaram entre si, e duas cartas que são atribuídas a Gregório II
tem sua autenticidade questionada.
136
A resposta de Leão III foi a afirmativa de que seu poder
era o de um rei e de um sacerdote ao mesmo tempo.
137
O posicionamento oficial de Roma diante da questão foi decidido num sínodo,
reunido em 731 pelo papa Gregório III (731–741), que condenou a destruição dos ícones
como uma heresia,
138
ou seja, uma idéia que se opunha a uma doutrina definida pela Igreja
como uma revelação de Deus. Também a definição do sínodo iconoclasta de Hieria em 754
(que será analisado na terceira parte deste capítulo) utiliza o termo heresia para condenar seus
adversários, por conta da produção e culto de ícones cristãos. Assim, os dois lados dessa
Querela se propunham a falar em nome de uma doutrina por eles considerada “verdadeira”.
Em retaliação ao sínodo de Roma, Leão III astutamente destacou os territórios da
Sicília e Calábria, no sul da Itália, da jurisdição romana do Papa, colocando-os sob domínio
do Patriarcado de Constantinopla, então ocupado pelo iconoclasta Anastácio, além de retirar
136
Giuseppe Alberigo afirma categoricamente que essas cartas são falsas. Ver: ALBERIGO, Giuseppe. O
Segundo Concílio de Nicéia (786/787) ou Sétimo Concílio Ecumênico. In: História dos Concílios Ecumênicos.
Tradução de José Maria de Almeida. o Paulo: Paulus, 1995. p. 148-149. Georg Ostrogorsky apresenta uma
série de estudos que questionam a autenticidade dessas cartas, entre esses os de V. Grumel, B. Schwarzlose,
Hartmann, J. Haller e A. Fagiotto. In: OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 161, nota 30.
137
Ver tópico A natureza autocrática do poder imperial, do capítulo 1.
138
TREADGOLD, Warren. Op. cit p. 354 e ANGOLD, Michael. Op cit. p. 71.
85
da jurisdição romana a região do Ilírico. Com isso, os territórios subordinados ao Patriarcado
passaram a coincidir com as fronteiras oficiais do Império. Esse é mais um exemplo de um
dos mecanismos pelo qual o imperador autocrata bizantino controlava tanto as estruturas
políticas do Estado, quanto sobre as da Igreja Ortodoxa de Constantinopla.
A partir de então, Roma ficou, em termos institucionais e religiosos, ainda mais
distante do Oriente grego, ao passo que o Império Bizantino se distanciava na mesma
proporção da romana (não da Península Itálica como um todo). Houve um
enfraquecimento da atuação do poder imperial bizantino sobre o lado ocidental do seu
território. A maior conseqüência disso foi o fato de a Igreja de Roma ter se aliado aos francos,
em 751, para se proteger militarmente da invasão lombarda, como será visto no tópico 2.3
desse capítulo. Esta conseqüência foi determinante para as relações entre Igreja e Estado na
história do Ocidente.
que a documentação contrária aos ícones foi destruída pelos iconófilos após a
Querela, é-nos hoje impossível conhecer o exato teor do pensamento iconoclasta de Leão III,
quando da promulgação do edito de 730. Michael Angold sugere que, talvez o principal
objetivo do imperador fosse mesmo “acabar com as extravagâncias da veneração das imagens,
que em alguns casos imbuíam o ícone de poderes mágicos.”
139
A luta dos iconoclastas pode
ter sido justamente contra essas atitudes consideradas abusivas que teriam diluído a
diferenciação entre representação e protótipo, rendendo um culto considerado idólatra a essas
representações pictóricas.
Acreditamos que Leão III tenha pretendido subordinar toda a Igreja a sua
autoridade. Sendo Bizâncio um Império cristão com pretensões universalistas, a expansão do
domínio territorial implicaria diretamente num domínio da autoridade imperial também sobre
a estrutura eclesiástica. Entretanto, impor sua vontade sobre o Patriarcado de Constantinopla
139
ANGOLD, Michael. Op. cit. p. 70.
86
se mostrou mais fácil do que ao papado romano, embora este último também estivesse,
teoricamente, subordinado ao governo bizantino. A distância geográfica entre Roma e
Constantinopla e a preocupação com a defesa das fronteiras no Oriente impediram que Leão
III tivesse uma atuação mais enérgica sobre seus domínios na Península Itálica. A política de
destruição de ícones bizantinos teria servido como um catalisador do progressivo afastamento
entre as Igrejas de Roma e Constantinopla.
2.2 A defesa de João Damasceno
Além da reação de Germano e dos Papas Gregório II e Gregório III, a defesa dos
ícones encontrou um de seus mais destacados representantes em João Damasceno, monge do
mosteiro de São Sabas, em Jerusalém. Após ter perdido o pai, aos vinte e três anos de idade,
abraçou a vida monástica e tornou-se o primeiro a sistematizar uma teoria dos ícones,
baseando-se nas tradições de antigas práticas cristãs, em passagens da Sagrada Escritura e em
obras da Patrística, como em Basílio. É considerado o último dos grandes padres da Igreja
cristã. Defensor da fé cristã frente à expansão muçulmana, sua obra é considerada uma síntese
da cristologia dos padres gregos.
140
Viveu sob jurisdição política do califado e, por isso, era
considerado um estrangeiro para o Império Bizantino cristão de seu tempo.
Damasceno escreveu três cartas, em forma de Discurso, a favor dos ícones,
endereçados ao patriarca Germano, numa tentativa de responder ao edito iconoclasta sobre a
possibilidade de pintura dos ícones e a licitude de seu culto. Alain Besançon sintetizou muito
bem a defesa dos ícones feita por Damasceno, comparando-a inclusive com o pensamento de
Teorodo Studita, no século IX.
141
John Lowden também trabalhou a defesa iconófila de
Damasceno, destacando nela três pontos fundamentais: o uso dos ícones, sua tradição dentro
140
DICIONAIRE DU MOYEN ÂGE. Littèrature et philosophie. Paris: Encyclopaedia Universalis et Albin
Michel, 1999. pp. 486-488.
141
Ver BESANÇON, Alain. Op. cit pp. 202-214.
87
do Cristianismo e a própria definição de ícone.
142
Passemos à análise desses três pontos
dentro do Discurso de Damasceno.
A primeira dessas questões se refere ao uso que os cristãos faziam dos ícones. O
argumento iconoclasta de que os cristãos teriam se tornado idólatras por adorarem imagens, o
que era proibido pelo Antigo Testamento (Êx. 20, 4), foi negado por Damasceno, alegando
que a atitude dos cristãos diante dos ícones não era de adoração, mas sim de veneração um
tipo de homenagem honrosa – por representarem pessoas santas, e não pela crença em poderes
milagrosos dos ícones. Dessa forma, seria ao protótipo representado por eles que essa
veneração deveria se dirigir.
Damasceno fez questão de frisar as diferenças entre adoração e veneração. A
adoração seria o mais alto grau do culto, que deve ser apresentado somente a Deus. “Worship
is the symbol of veneration and of honour. Let us understand that there are different degrees
of worship. First of all the worship, which we show to God, who alone by nature is worthy of
worship.”
143
A palavra grega latréia (λατρευειν) designa o grau maior desse culto cristão, do
qual somente Deus é digno. A atitude do cristão diante dos ícones do Cristo, da Virgem, dos
santos ou anjos deveria ser a proskinesis (προσχυνειν), uma veneração honrosa, uma
homenagem prestada a essas pessoas santas através de suas representações pictóricas.
Lowden observa o que esse argumento tem de superficial e frágil. Concordamos
com esse autor quando ele afirma que para que essa diferenciação entre adoração e veneração
fosse corretamente observada, cada cristão individualmente deveria observar essa sutil
142
LOWDEN, John. Op. cit pp. 150-152.
143
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “O culto é um símbolo de veneração e honra. Entendemos que
existem diferentes graus de culto. O primeiro entre todos é adoração, que apresentamos somente a Deus, que por
sua natureza é digno do culto.” (Tradução nossa). Como João Damasceno se preocupou em diferenciar o culto
apresentado a Deus como sendo de maior grau que aquele prestado a Cristo, Maria ou os santos, quando ele se
refere ao culto do qual somente Deus seria digno, é provavel que estivesse se referindo ao culto chamado em
grego de latréia, que em português pode ser traduzido como adoração. Por isso, adotamos o termo adoração em
nossa tradução nesse trecho.
88
distinção” entre as duas atitudes citadas.
144
Marie –France Auzepy mostra que, no século VIII,
o santo não era mais dissociado de seu ícone, que se tornava o modo mesmo de existência do
santo.
145
Por haver evidências de que, muitas vezes na história do Cristianismo, as práticas
não coincidam com as idéias pregadas, vale questionar se todo cristão possuía conhecimento
necessário para diferenciar um culto de veneração de uma adoração e, mais ainda, se
observava essas sutis diferenciações durante sua prática de culto.
David Freedberg afirma que incomoda aos teólogos iconoclastas admitirem que os
fiéis fundissem imagem e protótipo, não diferenciando assim o que seria um culto de adoração
de uma veneração. Os próprios iconoclastas poderiam crer nessa suposta fusão, uma vez que
a destruição dos ícones destruiria a atração que estes exerciam sobre os cristãos.
146
A
defesa dos ícones feita por Damasceno veio a ser também uma defesa ao culto dos santos,
pela função atribuída à pintura de conduzir a oração do fiel ao protótipo nele representado.
Damasceno chama também a atenção para o fato de que os cristãos não
venerariam os ícones por acreditarem que eles possuíssem algum tipo de santidade em si
mesmos, mas pelas pessoas que eles representam. Frisa ainda que a matéria do ícone é um
meio para conduzir o fiel a realidades inteligíveis, seguindo aqui o pensamento do pseudo-
Dionísio, o Areopagita (final do século IV e início do V), que considera as coisas corpóreas
necessárias para se alcançar as incorpóreas.
147
Diz o Discurso: They were images to serve as
recollections, not divine, but leading to divine things by divine power.”
148
E mais adiante: “I
144
LOWDEN, John. Op. cit pp. 150-151.
145
AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: défense de l’image ou de la dévotion a l’image? In: BOESPFLUG, F.
et LOSSKY, N. (Dir). Nicée Op. cit. p. 162.
146
Cf. FREEDBERG, David. Op. cit p. 452.
147
BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 207-208.
148
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “São imagens que servem como recordação, não divina, mas
conduzindo para as coisas divinas pelo poder divino.” (Tradução nossa). Existem alguns aspectos que
diferenciam as imagens, no sentido ocidental do termo, dos ícones orientais. Enquanto as imagens no
Cristianismo latino se referem a representações de Cristo, Maria, dos santos e anjos, num tipo de pintura ou
escultura que valoriza tendeu, ao longo dos séculos a uma valorização dos aspectos estéticos da obra, os ícones
são uma criação tipicamente bizantina dos primeiros séculos do Cristianismo. Neles, a representação tem um
caráter sacro, e um processo quase ritual de produção. Aqui, o simbolismo e a tradição estão presentes não
89
reverence and honour matter, and worship that which has brought about my salvation. I
honour it, not as God, but as a channel of divine strength and grace.”
149
Assim sendo, esses
ícones conduziriam a honra a eles prestado ao protótipo ali representado. Confirmando essa
idéia, afirma Damasceno: Thus, we worship images, and it is not a worship of matter, but of
those whom matter represents. The honor given to the image is referred to the original, as
holy Basil [330?–379) rightly says.”
150
Faz-se necessário aqui um breve esclarecimento. É provável que João Damasceno
teria utilizado o termo grego eikon para se referir ao ícone em seu Discurso, redigido em
grego. Porém, como a palavra grega eikon possui significados amplos para designar tipos de
representação, encontramos em grande parte da bibliografia consultada, tanto em língua
portuguesa quanto nas estrangeiras, a tradução para o correspondente imagem. É sobre o ícone
que iconoclastas e iconófilos tecem a Querela e por isto é o termo que usamos para traduções
em nota.
Damasceno argumenta que a proibição do culto de imagens no livro do Êxodo, se
refere não a imagens cristãs, mas sim aos ídolos pagãos. O monge utiliza também uma
passagem bíblica, desta vez dos Salmos, para seu argumento: “São ouro e prata os ídolos dos
gentios, são obras fabricadas pelos homens”
151
E completa: It does not forbid the adoration
of inanimate things, or man’s handiwork, but the adoration of demons.”
152
Portanto, além do
nos rituais nos quais estão presentes os ícones e nas suas formas, mas também na preparação espiritual para sua
criação, além dos seus materiais e técnicas de produção. Por conta dessas particularidades, já por nós discutido
no capítulo I, acreditamos que o termo image da versão inglesa do Discurso de Damasceno, escrito
originalmente em grego, esteja se referindo aos ícones bizantinos.
149
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Eu reverencio e honro a matéria honro aquele que tem
conduzido minha salvação. Eu honro, não como Deus, mas como um canal da força e graça divina.” (Tradução
nossa).
150
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Nós cultuamos imagens, e o é um culto da matéria, mas
daquele que a matéria representa. A honra rendida a uma imagem é referida ao original, como São Basílio
corretamente disse.” (Tradução nossa).
151
BÍBLIA SAGRADA. A.T. Salmos 135: 15. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
152
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Não proíbe a veneração de coisas inanimadas ou de objetos
90
pseudo-Dionísio, era importante que Damasceno apoiasse sua defesa dos ícones sobretudo em
trechos da Sagrada Escritura, para responder com o mesmo instrumento à argumentação
iconoclasta retirada do livro do Êxodo.
O monge insere a proibição do livro do Êxodo num contexto muito particular,
bem diferente da sociedade cristã bizantina do século VIII. Diz o documento And I say to
you that Moses, through the children of Israel’s hardness of heart, and knowing their
proclivity to idolatry, forbade them to make images.”
153
A grande questão aqui é que a
passagem do livro do Êxodo se refere a uma tentativa de proteção do povo de Israel de um
tipo de culto semelhante ao dos pagãos e dirigido a uma população que, na época do Antigo
Testamento, concebia seu Deus como indefinível, indescritível, sem forma. Leva ainda em
consideração o fato de que aquela sociedade tinha uma inclinação pela idolatria:
So into the same way the good Physician of souls prescribed for those who
were still children and inclined to the sickness of idolatry, holding idols to be
gods, and worshipping them as such, neglecting the worship of God, and
prefering the creature to His glory.
154
Segundo Gabrielle Sed-Rajna, essa proibição serviria para não colocar em risco a
coesão dessa sociedade recentemente constituída e não ameaçar também a essência da nova
religião, que era a crença e a submissão num Deus transcendente e invisível.
155
Em
contrapartida, no Novo Testamento esse Deus indescritível assumiu uma forma humana
definida, com descrições humanas, através da Encarnação do Verbo divino. É dessa forma
feitos pelos homens, mas a veneração dos demônios.” (Tradução nossa). Embora na tradução inglesa do texto de
João Damasceno por nós consultada encontremos o termo adoration, preferimos a sua tradução por veneração,
visto que o próprio Damasceno faz nesse Discurso uma importante diferenciação entre latreia, o termo grego
para adoração, de proskinesis, que significa veneração. Portanto, como o texto original foi escrito em grego,
acreditamos que as passagens que dizem respeito à defesa do culto aos ícones se refiram ao termo proskinesis,
pois somente Deus seria digno do tipo culto chamado latréia.
153
Ibid. “E eu digo a vocês que Moisés, por causa da dureza do coração dos filhos de Israel, e conhecendo sua
propensão para a idolatria, proibiu-os de fabricarem imagens. s o estamos no mesmo caso.” (Tradução
nossa).
154
Ibid. “Então, nesse mesmo caminho o bom Médico da almas prescreveu para aqueles que eram ainda crianças
e inclinados à doença da idolatria, possuindo ídolos para serem deuses, e, cultuando-os como tais, descuidando
do culto de Deus e preferindo a criatura que Sua glória..” (Tradução nossa).
155
SED-RAJNA, Gabrielle. L’argument de l’iconophobie juive. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op.
cit.p. 82.
91
que o invisível se tornaria visível, justificando assim uma representação do Cristo feito
homem.
156
Para diferenciar o ícone que representaria Cristo, Maria ou algum santo, dos
ídolos dos gentios, Damasceno afirma também: “The customs which you bring forward do not
incriminate our worship of images, but that of the heathens who make idols of them.”
157
E
para isso, além do argumento bíblico e do patrístico, como no embasamento em São Basílio,
Damasceno também se apoia nos “costumes”. Ao longo de toda a Querela Iconoclasta, as
práticas anteriores de representações pictóricas no culto cristão serviram como embasamento
e justificativa para o uso dos ícones. Era o peso de uma tradição considerada legítima.
Esse é exatamente o segundo ponto no qual a argumentação de Damasceno se
fundamenta: o apelo à tradição dos ícones dentro do Cristianismo. A questão colocada pelos
bispos do iconoclasmo era a de que o culto de ícones seria uma invenção dos seus pintores,
uma vez que não encontraram na Sagrada Escritura apoio para tal culto.
Afirma também que muitas das práticas cristãs não encontravam fundamento em
textos escritos, mas em antigas tradições da Igreja, igualmente válidas. “The eye-witnesses
and ministers of the word handed down the teaching of the Church, not only by writing, but
also by unwritten tradition.”
158
Diz ainda:
For if we neglect unwritten customs, as not having much weight we bury in
oblivion the most pertinent facts connected with the Gospel. These are the
great Basil’s word [...]. As, then, so much has been handed down in the
Church, and is observed down to the present day, why disparage images?
159
156
SCOUTERIS, Constantini. La persone du verbe incarné et l’icône. L’argumentation iconoclaste et la reponse
de Saint Theodore Studite. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit.pp. 124-125.
157
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Os costumes trazidos não incriminam nosso culto de imagens,
mas aquele dos pagãos, que fazem deles ídolos.” (Tradução nossa).
158
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “As testemunhas e ministros da palavra transmitiram o ensino
da Igreja não apenas pela escrita, mas também por tradições não escritas.” (Tradução nossa).
159
Ibid. “Se nós negligenciamos costumes não escritos, como não tendo muita influência, nós enterramos no
esquecimento os fatos mais pertinentes conectados com o Evangelho. Essas são palavras do grande Basílio [...].
92
O importante era afirmar que a prática de cultuar os ícones cristãos não era uma
recente invenção iconófila, mas se fazia presente na tradição da Igreja. Isso foi afirmado
categoricamente por Damasceno na segunda parte de sua Apologia: “Receive the united
testemony of Scripture and the fathers to show you that images and their worship are no new
invention, but the ancient tradition of the Church.”
160
Alguns historiadores inclusive corroboram este argumento. Freedberg afirma que
desde os primeiros tempos do Cristianismo se fazia presente a crença de que as imagens
ajudariam o espectador a se lembrar da passagem bíblica representada e o instigaria a imitá-
la.
161
Além da defesa teológica, havia toda uma tradição em torno da crença na eficácia
profilática do ícone, que justificaria sua criação e culto.
162
Belting chega a afirmar que os
ícones faziam parte de uma tradição autêntica” do Cristianismo.
163
E também André Grabar
e Michael Angold afirmam que, no século VI, os ícones faziam parte integrante da religião
cristã em quase toda parte.
164
Chama a atenção o fato de João Damasceno inverter a alegação iconoclasta de
ruptura com a tradição. Os bispos iconoclastas afirmavam que os ícones eram uma invenção
dos pintores, que iria de encontro a uma proibição bíblica.
165
E baseavam essa afirmativa em
textos bem anteriores à Querela, como a carta de Eusébio de Cesaréia à irde Constantino,
Como, então, tanto tem sido legado na Igreja, e é observado nos dias de hoje, por que depreciar as imagens?”
(Tradução nossa).
160
Ibid. “Recebemos a união dos testemunhos da Escritura e os padres vos apresentam que as imagens e seu
culto não são nova invenção, mas uma antiga tradição da Igreja.” (Tradução nossa).
161
FREEDBERG, David. Op. cit p.116.
162
BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of art.. Trad. Edmund
Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994. p. 442.
163
BELTING. Hans. Op. cit p. 165.
164
GRABAR, André. Op. cit p. 126; e ANGOLD, Michael. Op. cit. p. 39.
165
Essa crença dos iconoclastas de que o culto dos ícones era uma invenção dos cristãos sem fundamento bíblico
pode ser comprovada pela resposta que João Damasceno deu em seu Discurso, afirmando: “Recebemos o
testemunho da Escritura e dos Padres para mostrar a vocês que as imagens e seu culto não são nova invenção,
mas uma antiga tradição da Igreja” In: Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. St. John of Damascus:
Apologia Against Those Who Decry Holy Images.. Acessado em 25/05/2005. (Tradução nossa). Posteriormente,
Constantino V, no sínodo de Hieria, voltaria a insistir em acusar os iconófilos de inovação e rompimento com a
tradição cristã.
93
o Grande, onde o bispo afirma ser impossível fazer uma imagem de Cristo
166
, e o discutido
Testamento do bispo Epifânio, da Palestina, escrito contra o uso de imagens no século IV.
167
O que o estudo da Querela nos mostra é que, tanto iconoclastas quanto iconófilos,
se valeram das mesmas estratégias para se sobreporem uns aos outros durante os debates em
torno dos ícones: a utilização da exegese bíblica para fundamentar seus argumentos e
acusação dos adversários como heréticos, além do apoio na tradição cristã e patrística para
embasar suas idéias. Em outras palavras, em torno do mesmo objeto, o ícone, desenvolveram-
se discussões sustentadas pela apropriação dos mesmos tipos de fontes, trabalhadas de forma
a atender os anseios de cada um dos grupos envolvidos, fosse para proibir o seu culto, fosse
para justificá-lo. É aqui que se aplica o conceito de apropriação de Chartier, apresentado na
Introdução desse trabalho. Em outras palavras, há divergência quanto ao objeto, venerar ou
destruir o ícone, mas não quanto ao método de defesa e ataque utilizados pelos dois grupos.
No Discurso de Damasceno é a iconoclastia (e não o culto dos ícones) que é
abordada como uma ruptura em relação a uma tradição cristã, uma inovação na Igreja. E
recomenda ainda aos fiéis que não sigam esse caminho de inovações, contrárias a toda uma
tradição de costumes e ensinamentos.
You see what great strength and divine zeal are given to those who venerate
the images of the saints with faith and a pure conscience. Therefore,
brethren, let us take our stand on the rock of the faith, and on the tradition of
the Church, neither removing the boundaries laid down by our holy fathers
of old, (Prov. 22.28) nor listening to those who would introduce innovation
and destroy the economic of the holy Catholic and Apostolic Church of
God.
168
166
In: MANGO, Cyril. Op. cit pp. 16-18.
167
MARAVAL, Pierre. Épiphane, “docteur des iconoclastes”. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op.
cit. pp. 51-62. O bispo Epifânio teria escrito quatro textos contra as imagens por elas constituírem numa
novidade contrária à tradição do Cristianismo. se tem notícas de fragmentos desses textos. João Damasceno,
Teodoro Studita, o Patriarca Nicéforo de Constantinopla e o sínodo de Hieria (754) fazem referência a eles, mas
com exceção de Hieria, todos o refutam. Segundo Maraval, até mesmo sua autenticidade é contestada.
168
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook.. p. 34. Acessado em 25/05/2005. Você que grande força e zelo divino o dados
àqueles que veneram os ícones com fé e consciência pura. Entretanto, irmãos, vamos manter nossa resistência na
rocha da fé, e na tradição da Igreja, não removendo os limites colocados pelos santos pais do Antigo Testamento
94
Desde o início da Querela Iconoclasta os dois grupos em questão afirmavam
serem representantes de uma verdadeira tradição cristã. Tanto iconófilos quanto iconoclastas
têm consciência do peso que os costumes e a tradição não escrita possuem na definição das
idéias e das práticas cristãs. E de ambos os lados, a ruptura com essa antiga tradição é
apresentada ao fiel como um erro e um desvio de conduta no qual o cristão não deve incorrer.
Uma dessas tradições, citadas na defesa dos ícones, é a do Mandylion, considerada a
verdadeira representação do Cristo. Esta representação é chamada de acheropta, que quer
dizer “não feita por o humana.” Seria a imagem do rosto de Cristo enviada ao rei Agbar, de
Edessa, que o próprio Jesus teria feito reproduzir numa toalha, na qual enxugou seu suor.
Nessa tradição, ainda uma segunda versão, que diz que um pintor enviado pelo rei teria
retratado o Cristo. De uma ou outra forma, no Oriente, havia referências à tradição da imagem
acheropta desde o século VI.
169
Finalmente, o terceiro ponto no qual se baseia a defesa dos ícones no Discurso a
definição do objeto ao redor do qual os debates transcorriam no século VIII. Afinal de contas,
o que seria um ícone? Aqui encontra-se o grande centro da argumentação iconófila. Não se
trata de uma imagem qualquer. Possui uma série de particularidades que nos levam a destacá-
lo como um tipo de representação especial, presente ainda hoje nas Igrejas ortodoxas.
Foi no decorrer da Querela Iconoclasta que a Igreja Ortodoxa de Constantinopla
formulou as definições a cerca do ícone e seu papel no culto litúrgico. Indo além da sua
função didática e das características estéticas, o fundamental na definição do ícone proposta
nos séculos VIII e IX era a sua função de testemunho do dogma da Encarnação de Deus, base
da própria fé cristã.
(Provérbios 22, 28) nem ouvindo aqueles que introduziriam inovações e destroem a santa Católica e Apostólica
Igreja de Deus.” (Tradução nossa).
169
Sobre a tradição do Mandylion, ver BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before
the era of art.. Trad. Edmund Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994. pp. 208-218.
95
Vejamos a seguir a definição de ícone, dada pelo monge João Damasceno na sua
defesa dos ícones em 730:
An image is a likeness and representation of some one, containing in itself
the person who is imaged. The image is not wont to be an exact reproduction
of the original. The image is one thing, the person represented another; [...].
Every image is a revelation and representation of something hidden..
170
Como observou Hans Belting, o ícone adota a essência do protótipo através da
semelhança, não sendo uma invenção do artista. Dessa forma, a legitimidade desse tipo de
representação está diretamente relacionada com a semelhança “real” que possui com o
protótipo. Mesmo evidenciando que ícone e pessoa não são a mesma coisa, seria a partir desse
objeto que uma pessoa, não mais presente no mundo sensível, se apresentaria, ou como o
próprio Damasceno diz, se revelaria ao fiel.
171
Mesmo se esforçando para apresentar as
diferenças entre um ícone e um ídolo, Damasceno acaba mostrando em seu argumento traços
de uma filosofia pagã de representação, presentes, por exemplo, no caso das imagens do
imperador.
172
Damasceno tentou frisar a diferença entre o protótipo e o ícone que o representa,
embora argumentasse que ambos se refiram a mesma hipóstase.
173
Não se observa uma
correspondência direta, no caso do culto dos ícones, entre os escritos teológicos e as práticas
cristãs. Vimos que os cristãos bizantinos do culo VIII não diferenciavam claramente a
imagem da pessoa nela representada. Mesmo que os principais teólogos dos ícones, como
João Damasceno, tentassem definir de maneira clara e coerente a que o protótipo é uma coisa
170
Website www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. St. John of Damascus: Apologia Against Those Who
Decry Holy Images p. 28. Acessado em 25/05/2005. “Uma imagem é uma semelhança e representação de
alguém, contendo em si a pessoa que ele representa. O ícone o é uma reprodução exata do original. O ícone é
uma coisa, a pessoa representada outra; [...]. Todo ícone é uma revelação e uma representação de algo oculto”
(Tradução nossa).
171
Cf. BELTING. Hans. Likeness and Presence; A history of the image before the era of art.. Trad. Edmund
Jephcott. Chicago: The Chicago University Press, 1994.
172
Sobre a relação entre o imperador bizantino e suas representações, ver FREEDBERG, David. Op. cit pp. 437-
438.
173
BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 201. O termo grego hipostase significa pessoa, substância. Cf. CATECISMO
DA IGREJA CATÓLICA, website catecismo-az.tripod.com/conteudo/a-z/h/hipostase.html
Acessado em
29/09/2006.
96
e sua representação outra, o próprio culto a uma imagem depende, na consciência do fiel,
dessa fusão entre a pintura e a pessoa nele representada.
174
Besançon faz uma crítica a
Damasceno, baseado no fato de ele não se conseguir perceber o que diferencia a sua
valorização da matéria do ícone de tais práticas supersticiosas.
175
Encontramos algumas narrações de histórias do século anterior à Querela
Iconoclasta nas quais os ícones de santos aparecem como imagens possuidoras de certos
poderes milagrosos, ou seja, como se possuíssem os atributos da pessoa representada.
Citemos duas delas como exemplos. A primeira é uma narração do monge João Moschos (?–
634):
In our times a pious woman of Apema dug a well. She spent a great deal of
money and went down to a great depth, but did not strike water. So she was
despondent on account both of her toil and her expenditure. One day she
sees a man [in a vision] who says to her: Send for the likeness of the monk
of Theodoios of Skopelos, and, thanks to him. God will grant you water.’
Straightaway the woman sent two men to fetch the saint’s image, and the
lowered it into the well. And immediately the water came out so that half the
hole was filled.
176
Em outra narração da mesma época, encontramos uma descrição que nos mostra
um apego ainda maior do fiel ao ícone enquanto um objeto capaz de realizar curas. Trata-se
da prática de engolir pequenos pedaços raspados de um ícone.
[A certain woman] depicted [the saints Cosmas and Damian] on all the walls
of her house, being as she was insatiable in her desire of seeing them. [She
then fell ill.] Perceiving herself to be in danger, she crawled out of bed and,
upon reaching the place where these most wise saints were depicted on the
wall, she stood up leaning on her faith as upon a stick and scraped off with
her fingernails some plaster. This she put into water and, after drinking the
174
FREEDBERG, David. Op. cit.p. 448.
175
Ver BESANÇON, Alain. Op. cit. pp. 208-209.
176
LOWDEN, John. Op. cit p. 149. “Em nossa época, uma piedosa mulher da região da Apamea cavava. Ela
gastou muito dinheiro e foi cavar um fosso de grande profundidade, mas não jorrou água. Então ela ficou
desanimada por conta de seu trabalho e de seu gasto. Um dia ela viu um homem [numa visão] que disse a ela:
‘Mande buscar uma representação do monge Teodósio de Skopelos e agradeça a ela. Deus te concederá a água.’
Imediatamente a mulher enviou dois homens para trazer a imagem do santo e ela a abaixou até bem dentro. E
imediatamente a água começou a sair tanto que metade do buraco ficou cheio” (Tradução nossa).
97
mixture, she was immediately cured of her pains by the visitation of the
saints.
177
Aqui, o poder de cura parece estar presente no próprio material do qual o ícone é
feito. A visitação dos santos parece se dar de fato a partir do momento em que o fiel ingere
parte da sua imagem. Esse tipo de crença associa esses fragmentos do ícone ao sacramento da
Eucaristia, no qual o Cristo se faz presente através do material das espécies eucarísticas.
Em ambos os casos citados, o ícone parece ter sido utilizado pela crença nas suas
propriedades milagrosas, sem menção explícita da fé no santo por ele representado. Para esses
cristãos, o poder de curar e realizar milagres proveria da imagem dos santos, sem haver uma
distinção clara entre este e sua representação pictórica. Assim, concordamos com o
pensamento de David Freedberg, afirmando que na crença dos fiéis existe uma fusão entre o
protótipo e sua representação.
178
Há, necessariamente, uma relação de dependência entre o
culto do santo e o seu ícone, para que tal fusão na crença do fiel seja percebida. Ou seja, deve
haver uma crença anterior nos poderes de interseção de determinado santo para que o fiel o
cultue, mas esse culto se dá muitas vezes a partir da sua representação icônica.
Damasceno ainda afirma, na terceira parte de seu Discurso, que existem imagens
de diferentes tipos dentro do Cristianismo e propõe um esquema na qual essas imagens
aparecem hierarquizadas em seis níveis, onde a pessoa do Cristo aparece como elemento de
destaque, a imagem de Deus por excelência.
Assim, a primeira e mais perfeita imagem é o próprio Cristo, imagem natural de
Deus Pai. The Son is the first natural and unchangeable image of the invisible God, the
177
Ibid. “[Uma certa mulher] pintou [os santos Cosme e Damião] em todas as paredes da sua casa, como se o seu
desejo de -los fosse insaciável. [Ela então caiu doente.] Percebendo-se estar em perigo, ela rastejou para fora
da cama e, alcançando o lugar onde os mais sábios santos estavam pintados na parede, ela levantou-se inclinando
em sua como sobre um bastão e arranhou com suas unhas parte do material. Colocou-o na água e, depois de
bebe a mistura, foi imediatamente curada de suas dores pela visitação dos santos.” (Tradução nossa).
178
FREEDBERG, David. Op. cit p. 452.
98
Father, showing the Father in Himself.”
179
Para dar embasamento a seu argumento,
Damasceno cita algumas passagens bíblicas, entre elas o Evangelho de João, onde Cristo
afirma: “Quem me vê, o Pai” (Jo. 14, 8-9) e uma das cartas de Paulo diz que O Filho é a
imagem do Deus invisível” (Col. 1, 15), sendo portanto revelador de uma realidade
inteligível. nessa passagem uma correspondência com a característica que Damasceno
concede ao ícone de ser também revelação e representação de algo oculto. Durante a Idade
Média, essas passagens bíblicas serviram para legitimar as representações não somente de
Cristo, mas do próprio Deus.
O segundo tipo de imagem classificado por Damasceno corresponde ao
conhecimento de Deus dos fatos futuros por Ele determinados. “In His counsels the things
predeterminated by Him were characterised and imaged and immutably fixed before they took
place.”
180
O terceiro tipo é o homem, feito por Deus à sua semelhança pela imitação
(κατα µιµησιν): “Façamos o homem à nossa imagem e nossa semelhança” (Gênesis 1, 26).
Na definição de imago proposta por Jean-Claude Schmitt, uma síntese desses primeiros
tipos de imagens apresentadas por Damasceno: “a noção de imagem diz respeito, enfim, à
antropologia cristã como um todo, pois é o homem [...] que a Bíblia desde suas primeiras
palavras, qualifica com ‘imagem’.”
181
E conclui: “no Novo Testamento, a Encarnação
completou a relação entre homem, Deus e Cristo.”
182
O quarto se refere a tipos de imagens apresentadas pelas Escrituras para dar uma
forma perceptível a seres imateriais, como os anjos. O objetivo dessas imagens, segundo
179
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “O Filho é a primeira imagem natural e imutável do Deus
invisível, o Pai, apresentando o Pai em Si”. (Tradução nossa).
180
Ibid. p. 29. “Em seus conselhos as coisas pré-determinadas por Ele foram caracterizadas, imaginadas e
imutavelmente fixadas antes que elas tomassem lugar.” (Tradução nossa).
181
SCHMITT, Jean-Claude. Imagem. In: LE GOFF, Jaques, SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do
Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002. p. 503.
182
Ibid.
99
Damasceno, é: “[...] for a clear apprehension of God and the angels, through our incapacity of
perceiving immaterial things unless clothed in analogical material form.”
183
Esse é mais um
pensamento que Damasceno tomou de empréstimo de Dionísio Areopagita, que ele cita como
um homem experimentado nas coisas divinas.
184
Mais uma vez, um importante nome da
antiga tradição cristã legitimava o argumento. Nesse trecho, Damasceno relativiza os aspectos
material e formal dos corpos:
Only the divine nature is uncircumscribed and incapable of being
represented in form or shape, andincomprehensible.[...].
The angel, and a soul, and a demon, compared to God, who alone is
incomparable, are bodies; but compared to material bodies, they are
bodiless.
185
O quinto tipo de imagem é aquele que apresenta os atributos que prefiguram os
acontecimentos futuros na Sagrada Escritura, como a serpente de bronze hasteada por Moisés,
representando uma Cruz, através da qual se deu a cura daqueles picados pelas serpentes do
mal:
The fifth kind of images is that which is typical of the future, as the bush and
the fleece, the rod and the urn, foreshadowing the Virginal Mother of God,
and the serpent healing through the Cross those bitten by the serpent of old.
Thus, again, the sea, the water and the cloud foreshadow the grace of
baptism.
186
O sexto e último tipo de imagem classificado por João Damasceno é aquele que
retrata os homens virtuosos do passado, isto é, os santos, para que os cristãos se lembrassem
sempre de suas vidas exemplares. Assim Damasceno define essas imagens:
183
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu.
Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “[...] clarificar nossa percepção de Deus e dos anjos, por causa
da nossa incapacidade de entender as coisas imateriais a não ser revestidas em uma forma material análoga
[...]”.(Tradução nossa).
184
Ibid. “[...] as Dionysius the Areopagite says, a man skilled in divine things.” (Tradução nossa).
185
Ibid. “somente a natureza divina é incircunscrita e incompreensível, incapaz de ser representada numa
forma[...] anjos, a alma e o demônio, comparados a Deus, que é incompreensível, são corpóreos, mas
comparados com corpos materiais, são incorpóreos.” (Tradução nossa).
186
Ibid. “O quinto tipo de imagem é aquele característico do futuro, como o bosque e , a vara e a urna
prenunciando a Virgem Mãe de Deus e a serpente curando através da cruz aqueles picados pela serpente do mal.
Assim, também, o mar, água e a nuvem prenunciando a graça do batismo.” (Tradução nossa).
100
The sixth kind of images is for a remembrance of past events, of a miracle or
a good deed, for the honour and glory and abiding memory of the most
virtuous, or for the shame and terror of the wicked, for the benefit of
succeeding generations who contemplate it, so that we may shun evil and do
good.
187
Como se vê, o objetivo da contemplação ao qual Damasceno se refere nesse
trecho é moral, uma vez que visa evitar o mau” e “fazer o bem”. Nesse caso, o bem estaria
diretamente relacionado a ações como as dos santos venerados através de suas representações.
E aconselha a fabricação e culto desses ícones: “So now we set up the images of
valiant men for example and a remembrance to ourselves.”
188
Essa definição da imagem
pictórica de Damasceno é muito semelhante à que o Papa Gregório Magno escreveu para o
bispo Serenus, no ano 600, quando enfatizou o caráter didático das representações, servindo à
memória dos fiéis, apresentando cenas e pessoas a serem seguidas.
Entretanto, Damasceno divide esse sexto tipo de imagem em outros dois sub-
grupos: as palavras escritas nos livros e as pinturas. Esse fato chama a atenção, que os
iconoclastas se preocuparam não só na destruição dos ícones em si, mas também de livros que
continham ilustrações e ensinamentos referentes a eles. Entretanto, cumpre esclarecer que o
monge não fala de palavras escritas em livros necessariamente ilustrados. Nos deteremos
sobre essas práticas de destruição de ícones e livros no capítulo III.
O fato de João Damasceno classificar as obras pictóricas e os textos escritos
apenas como o sexto e último tipo de imagem não significa que estes sejam os menos
importantes, mas, ao contrário, são legitimados pelos cinco tipos precedentes, baseado nas
narrações bíblicas. Mais do que isso, esse sexto tipo tem como princípio a pessoa de Cristo,
do Verbo Encarnado, como a imagem principal. Ou seja, é o Verbo tornado imagem.
187
Ibid. “O sexto tipo de imagens é para lembranças dos eventos passados, de um milagre ou uma boa ação, para
a honra, glória e manutenção da memória dos mais virtuosos, ou para a vergonha e terror do mau, para benefício
das sucessivas gerações que a contemplam, então nós devemos evitar o mau e fazer o bem.” (Tradução nossa).
188
Ibid. “Então agora nós fazemos ícones de valiosos homens para nosso próprio exemplo e lembrança.”
(Tradução nossa).
101
Como os seis tipos apresentados formariam um grupo único de imagens cristãs,
segundo Damasceno, argumentar contra os ícones seria o mesmo que argumentar contra as
ações divinas. Um claro exemplo dessa relação é o fato da Encarnação divina, apresentada
pelo monge como a primeira e mais importante imagem, servir como justificativa para a
existência dos ícones, que ocupam o último nível. Essa formulação resistiu durante a Querela
Iconoclasta, servindo sobretudo ao Concílio de Nicéia em 787.
2.3 Heresias cristológicas na iconoclastia: Constantino V e o sínodo de Hieria - 754
A escassez de fontes para o período posterior ao edito de 730 não permite analisar
objetivamente as conseqüências da política de destruição de ícones dentro do território
bizantino, nos anos seguintes do governo de Leão III e nos primeiros anos de Constantino V,
que foi imperador de 741 a 775. Talvez por esse motivo encontremos em nossa bibliografia
opiniões divergentes sobre esse período. Como exemplo, Angold afirma que teria havido,
após o edito de 730, pouca oposição à medida de Leão III e muito pouca perseguição.”
189
Entretanto, o Discurso de João Damasceno denuncia o exílio do Patriarca Germano e a
perseguição de muitos bispos e padres.
190
Treadgold prefere ressaltar a resistência militar de
Leão III aos ataques árabes posteriores à promulgação do edito iconoclasta, ocorridos ao
longo de seu governo, concluindo que, se isso não foi suficiente para convencer a população
sobre o fato de o iconoclasmo ser correto, o imperador tampouco teria deixado provas
suficientes de que seria errado.
191
O governo de Constantino V foi um período de acirramento da política
iconoclasta, o que resultou num estremecimento ainda maior das relações entre as Igrejas de
189
ANGOLD, Michael. Op. cit p. 70.
190
Ver a nota 118.
191
TREADGOLD, Warren. Op. cit p. 356. “If his exploits head not convinced most people that iconoclasm was
right, he had not done badly enough to prove to them that iconoclasm was wrong.” (Tradução nossa).
102
Constantinopla e Roma. Durante esse período, Bizâncio precisou se defender contra as
ameaças de invasão árabe e búlgara, o que fez com sucesso. O fato de o governo bizantino ter
enfatizado a defesa dos seus territórios mais orientais, deixou em segundo plano a Península
Itálica, onde sua a autoridade havia se enfraquecido consideravelmente desde 726, com a
oposição pontifical à política da iconoclatia. Assim, a antiga idéia romana de um império
universal ficava, mais uma vez, seriamente comprometida. Discordamos de Ostrogorsky
quando este afirma que Constantino V teria sido o imperador menos interessado pela parte
italiana de Bizâncio.
192
Ao que parece, Constantino V teria ficado, durante seu governo, sem
condições de atuar com sua autoridade sobre solo ocidental, protegendo esses territórios, por
dois motivos, vistos aqui: as ameaças sofridas nas fronteiras com os árabes e com os
búlgaros e a falta de apoio dos papas à política iconoclasta dos imperadores isáuricos.
No ano de 751, um acontecimento colocou um ponto final nas relações entre o
papado e Constantinopla. Os lombardos ameaçavam diretamente a Sé romana, inclusive
tomando o território do exarcado de Ravena. Apesar das divergências religiosas, o papado
ainda acreditava poder contar que o apoio militar bizantino se faria presente no Ocidente,
assim como se fez nas fronteiras orientais. Entretanto, Constantino V não atendeu aos pedidos
de ajuda feitos pelo então papa Estêvão II, referentes à invasão dos lombardos. O imperador
enviou apenas alguns embaixadores, mas nunca tropas militares para tentar reconquistar
Ravena ou oferecer proteção a Roma.
Sem o auxílio bizantino, o papa se voltou então para o Ocidente, onde selou uma
aliança com os Francos através de seu rei Pepino, conseguindo a proteção militar necessária
contra os invasores. Esse acontecimento rompeu de vez as relações entre Roma e
Constantinopla (embora o Grande Cisma oficial entre as duas Igrejas veio a ocorrer em
1054). A aliança entre a romana e os francos proporcionou ao papado proteção suficiente
192
OSTROGORSKY, Georg. Op. cit 179: “Nigún imperador de Bizancio mostró menos interés por las
posiciones italianas del Imperio.”
103
para que este voltasse as costas para o imperador bizantino e sua política eclesiástica.
Doravante, no Ocidente, a Igreja romana desenvolveu uma cultura religiosa cada vez mais
autônoma, tanto em relação ao Cristianismo ortodoxo oriental, quanto ao poder dos
imperadores, uma vez que esta não se encontrava atrelada à autoridade temporal. Essa
situação era exatamente oposta ao que acontecia com a Igreja de Constantinopla, onde o
patriarcado se encontrava unido ao poder autocrático do imperador. O território bizantino no
Ocidente se reduziu então apenas às regiões helenizadas do sul da Península Itálica.
193
Constantino V deu seqüência à política da iconoclastia imposta aos cristãos por
seu pai, Leão III. Seu governo foi certamente o período mais violento e onde houve o maior
número de perseguições, dirigidas principalmente contra os monges iconófilos. Considerado
um imperador ainda mais culto e, segundo Ostrogorsky, “un enemigo de las imágenes aún
mas apasionado que su padre,”
194
Constantino V tratou de dar à iconoclastia um teor mais
dogmático, com justificativa teológica, para não mais ficar restrito a simples interpretações de
supostas manifestações de aprovação ou reprovação divina.
Para elaborar seu argumento contrário aos ícones, o imperador Constantino V foi
buscar sua justificativa nos debates em relação às naturezas humana e divina de Cristo,
surgidos três séculos antes da Querela Iconoclasta. Suas idéias foram apresentadas num
Sínodo, por ele mesmo convocado na cidade de Hieria, localidade próxima à capital, no ano
de 754.
É importante salientar que, quando Constantino V trouxe aos debates iconoclastas
as questões cristológicas, ele se referia a doutrinas que sobreviveram principalmente entre os
cristãos das províncias localizadas na Ásia Menor. Embora, em tese, o Concílio Ecumênico da
Calcedônia (451) devesse representar o pensamento cristão em sua totalidade, o debate
193
ALBERIGO, Giuseppe (org.). Op. cit p. 150. Ver ainda OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 179-180, e
TREADGOLD, Warren. Op. cit. p. 360.
194
OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 176. “um inimigo das imagens ainda mais apaixonado que seu pai.”
(Tradução nossa).
104
cristológico do século V. De maneira muito hábil, o imperador atrelou a produção e culto dos
ícones cristãos a pensamentos heréticos, para assim poder condenar os iconófilos, em especial
os monges.
Convocado o Sínodo, reuniram-se em Hieria trezentos e trinta e oito bispos, a
maioria da parte oriental de Bizâncio. Por não compartilharem dos pensamentos iconoclastas
de Constantino V, nem o papa, nem os patriarcas de Antioquia, Jerusalém ou Alexandria
participaram das reuniões. Por isso este Sínodo ficou conhecido como “acéfalo”, visto que
além das ausências citadas, o patriarcado de Constantinopla encontrava-se vacante naquele
momento. A presidência dos trabalhos ficou a cargo de Teodósio de Éfeso.
As atas originais, por constituírem um tipo de documentação de origem
iconoclasta, foram destruídas após Nicéia II. Assim, é através das atas desse Concílio
Ecumênico que é possível reconstituir as decisões do Sínodo de 754.
Nele, Constantino V apresentou aos bispos presentes um tratado teológico no qual
afirmava que a veneração dos ícones não consistia simplesmente num pecado de idolatria,
mas sim numa heresia. A diferença desses dois conceitos é sutil, como visto na Introdução,
relacionando a um culto de ídolos pagãos e heresia a um pensamento contrário aos dogmas da
Igreja.
Esse Sínodo pode ser considerado um divisor de águas na história da Querela
Iconoclasta, uma vez que decidiu a destruição dos ícones a partir de um argumento teológico.
Foi em Hieria que se apresentou à comunidade eclesiástica uma base teológica para refutar a
defesa dos ícones apresentada por João Damasceno, e não apenas uma exegese bíblica ou
interpretações de supostos castigos divinos. Além disso, foi a partir da promulgação das
definições desse Sínodo que a resistência monacal se apresentou como a principal defensora
do culto dos ícones em Bizâncio. Nos anos 760 assistiu-se no Império o período de maior
severidade e violência na perseguição contra os monges da capital.
105
O Sínodo considerou a representação pictórica de Cristo como objeto contrário às
decisões do Concílio Ecunico da Calcedônia, reunido em 451, onde havia sido definido
que no Cristo existiriam as duas naturezas, a humana e a divina, sem confusão, sem mudança,
sem divisão e nem separação.
195
A justificativa de Constantino V para a proibição do culto dos ícones de Cristo
admitia apenas duas vertentes: a primeira era admitir que o Verbo tivesse sido circunscrito
com a carne, combinando as duas naturezas inconfundíveis de Cristo numa só, e assim sua
representação fosse digna de culto. Nesse caso, condenava-se o cristão por prática do
Monofisismo, que se opunha à doutrina das duas naturezas de Cristo, admitindo que Nele a
natureza divina tivesse absolvido a humana, confundindo assim duas naturezas que em Cristo
são inconfundíveis. Acrescentavam os iconoclastas que a carne de Cristo era
incircunscritível
196
, por ter sido divinizada. A outra vertente era admitir que a pintura
representaria apenas Sua natureza humana, separada do Verbo divino. Nesse caso, haveria
uma clara separação das duas naturezas que em Cristo são inseparáveis, representando-se
apenas a humana, como no Nestorianismo, que afirmava que o Cristo era portador de duas
naturezas distintas.
O trecho abaixo do Sínodo relaciona a iconofilia às heresias cristológicas dos
primeiros séculos:
[...] we have found that illicit craft of the painter was injurious to the crucial
doctrine of our salvation, i. e., the incarnation of Christ, and that it subverted
the six ecumenical councils that had been convened by God, while upholding
Nestorius who divided into two sons the one Son and Logos of God who
became man for our sake; yea [sic], and Arius, too, and Dioscorus and
Eutyches and Severus who taught the confusion and mixture of the one
Christ’s two natures.
197
195
Cf. J. D. Mansi, Sacrorum Conciliolum nova et amplissima collectio, t. VII, Florentiae, 1762, cols. 107, 115 e
118. In: ESPINOSA, Fernanda. Op. cit. p. 58-59.
196
Circunscrever, do grego, perigrapho: tirar o contonro. Cf. LOWDEN, John. Op. cit p. 183.
197
MANGO, Cyril. Op. cit. p. 165. “Nós temos estabelecido que a ilícita arte do pintor era injuriosa para a
crucial doutrina da nossa salvação, i.e., a encarnação de Cristo, e que ela subverte o sexto concílio ecumênico
que tinha sido convocado por Deus, enquanto defendendo Nestório que dividiu em dois filhos o único Filho e
Logos de Deus que tornou-se homem por nossa causa; ele, e Ário também e Dióscurus e Eutiques e Severus que
106
Mais uma vez se percebe que a estratégia de ataque ao adversário durante a
Querela era o mesmo entre os dois grupos, pois o mistério da Encarnação, utilizado por
Damasceno para legitimar o culto dos ícones, foi aqui mencionado pelos iconoclastas para
justificar a destruição dos mesmos. Certamente, a exposição dessas idéias era uma resposta à
Apologia feita por Damasceno em 730, pois representava agora a primeira sistematização e
teorização dos pensamentos iconoclastas.
O texto do Sínodo condena tanto o pintor de ícones por tentar representar o
“inacessível”, quanto o fiel que os reverencia: “How senseless is the notion of the painter who
from sordid love of gain purses the unattainable [...]. So also, he who reveres [images] is
guilty of the same”
198
.
O argumento iconófilo de que a pintura pode representar a Encarnação de Cristo, a
qual pôde ser vista e tocada, e que tinha sido defendido até esse momento principalmente pelo
monge João Damasceno, foi rebatida habilmente por Constantino V. Ele considerou essa
atitude como prática herética do Nestorianismo. Afirma no Sínodo a respeito desse
pensamento:
[...] [It] is an impiety and an invention of the evil genius of Nestorius. (…)
Granted, therefore, that at the Passion the Godhead remained inseparable
from these [i.e., Christ’s body and soul], how is it that these senseless men…
divide the flesh that had been fused with the Godhead and [itself] deified, and
attempt to paint a picture as if it were that of a mere man?
199
E no final do texto, seguem condenações de anátemas, ou seja, excomunhão, aos
que se prestam a representar a figura de Cristo, seja pela via nestoriana, seja pela monofisista.
ensinaram a confusão e mistura do único Cristo em duas naturezas.” (Tradução nossa). extraído por Cyril Mango
da coleção de atas dos Concílios de Mansi.
198
Ibid. p. 166. “Que insensata é a noção do pintor de sórdido amor de alcançar o inatingível [...]. Então também,
quem reverencia [imagens] é culpado da mesma blasfêmia”. (Tradução nossa).
199
Ibid. “[...] é uma impiedade e uma invenção do gênio mau de Nestório [...] Adimitiu, portanto, que pela
Paixão a natureza divina permaneceu inseparável desse [i.e., o corpo e a alma de Cristo], que esses homens
insensatos dividem a carne que tinha sido fundida com a natureza divina e [se] deificado, e tentado pintar uma
figura como se ela fosse de um mero homem?” (Tradução nossa).
107
O trecho abaixo nos mostra que o reforço da política iconoclasta com Constantino V visava a
proibição não só do culto de ícones na Igreja Ortodoxa bizantina,
200
mas a sua própria
produção:
If anyone ventures to represent the hypostatic union of the two natures in a
picture, and calls it Christ, [...] falsely represents a union of the two natures,
let him be anathema.
If anyone separates the flesh united with the person of the Word from it, and
endeavours to represent it separately in a picture, let him be anathema.
201
Segundo Besançon, o pensamento iconoclasta tinha como insustentável a relação
entre representação e protótipo, defendida pelos monges iconófilos. Para os primeiros, a
legítima imagem deveria ser consubstancial ao protótipo para ser cultuada. Nesse sentido, a
única imagem aceitável de Cristo seria a Eucaristia.
202
Assim define o texto de Hieria:
The only true image of Christ is the bread and wine of the Eucharist as He
Himself indicated. On the other hand, the images of the false and evil name
have no foundation in the tradition of Christ, the apostles and the Fathers, nor
is there a holy prayer that might sanctify an image, and so transform it from
the common to a state of holiness; nay, it remains common and devoid of
honor, just as the painter has made it.
203
A questão que se coloca aqui é que, na doutrina cristã, a Eucaristia não é
considerada como representação de Cristo, mas seria o próprio Cristo em essência. Aqui,
protótipo e matéria partilham da mesma substância (homousios), não sendo procedente a
consciência da separação, proposta pelos iconófilos, entre protótipo e sua representação.
Segundo Besançon, essa concepção de Eucaristia se afasta da grega, que não pensava a
200
O sínodo de Hieria pretendia-se um Concílio Ecumênico, mas sem a adesão de suas idéias por parte do papa,
em Roma, e dos demais patriarcas orientais, o raio de atuação de suas determinações acabaram se restringindo ao
Patriarcado de Constantinopla.
201
Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A.D. 754. In: Website
www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Se alguém tenta representar a união
hipostática das duas naturezas numa pintura, chamá-la de Cristo, [...] falsamente representa a união das duas
naturezas, seja anematizado. Se alguém separa a carne unida com a pessoa do Verbo, e esforça para repesentá-la
separadamente numa pintura, seja anatematizado.” (Tradução nossa).
202
BESANÇON, Alain. Op. cit p. 204.
203
MANGO, Cyril. Op. cit p. 166-167. “A única verdadeira imagem de Cristo é o pão e o vinho da Eucaristia
como Ele próprio indicou. Por um lado, as imagens de nome falso e mal o tem fundamentação na tradição de
Cristo, dos apóstolos e Padres, nem uma oração santa que pode santificar uma imagem, e então transformá-la
de comum a um estado de santidade; o, ela permanece comum e desprovida de honra, como o pintor que a
fez.” (Tradução nossa).
108
imagem como tendo participação no protótipo, mas se esforçava para manter a proximidade
com a semelhança. Ao contrário, essa união entre significado e significante se aliava ao ideal
de imagem do imperador Bizantino, que exprime em si a presença do poder real.
204
Portanto, a maior preocupação das idéias apresentadas em Hieria não era a
semelhança física da representação, mas sim sua incapacidade para conter em si o próprio
Cristo em substância. A base desse argumento seria que o Cristo teria instituído a Eucaristia.
Ademais, não poderiam se santificar através de uma consagração de imagens, que lhes
conferia poderes que transcendem o aspecto puramente material. Desde os primeiros séculos
do Cristianismo, são as cerimônias de consagração que conferem o poder às imagens, não
possuindo estas valor sagrado algum antes disso.
205
Os iconoclastas recusavam também as
tradições mais recentes em favor de uma tradição bíblica.
Além do bem articulado argumento contrário aos ícones de Cristo, em Hieria
foram propostas duas justificativas para estender sua proibição também às representações de
Maria e dos santos. Para os iconoclastas estes ícones não seriam necessários, uma vez que os
do próprio Cristo haviam sido condenados como ilícitos. Outra questão se aplicava por
relacionar o culto dos ícones às práticas pagãs. Diz o texto do Sínodo:
If, however, some say, we might be right in regard to the images of Christ,
on account of the mysterious union of the two natures, but it is not right for
us to forbid also the images of the altogether spotless and ever-glorious
Mother of God, of the prophets, apostles, and martyrs, who were mere men
and did not consist of two natures; we may reply, first of all: If those fall
away, there is no longer need of these. But we will also consider what may
be said against these in particular. Christianity has rejected the whole of
heathenism, and so not merely heathen sacrifices, but also the heathen
worship of images. The saints live on eternally with God, although they have
died. If anyone thinks to call them back again to life by a dead art,
discovered by the heathen, he makes himself guilty of blasphemy. Who
dares attempt with heathenish art to paint the Mother of God, who is exalted
above all heavens and the Saints? It is not permitted to Christians, who have
the hope of the resurrection, to imitate the customs of demon-worshippers,
204
Ver BESANÇON, Alain. Op. cit p. 204. Ver também FREEDBERG, David. Op. cit pp. 437-438.
205
FREEDBERG, David. Op. cit p. 115-116.
109
and to insult the Saints, who shine in so great glory, by common dead
matter.
206
A acusação feita aqui aos ícones como um tipo de matéria morta” nos remete à
idéia de Constantino V considerar apenas a Eucaristia como imagem verdadeira de Cristo, por
ser consubstancial a Ele. Como tampouco a presença da substância da pessoa representada
nos ícones de Maria, dos santos ou dos anjos, todas elas foram considerados obras sem vida e
sem valor para o culto, sendo assim, igualmente condenadas pelas definições iconoclastas de
754.
Mais adiante, o texto do Sínodo confirma essa condenação a todo tipo de
representação dentro do Cristianismo:
Supported by the Holy Scriptures and the Fathers, we declare unanimously,
in name of the Holy Trinity, that there shall be rejected and removed and
cursed one of the Christian Church every likeness which is made out of any
material and color whatever by the evil art of painters.
207
Na proclamação final do texto, os principais defensores da iconofilia, o antigo
patriarca de Constantinopla Germano e o monge João Damasceno, foram excomungados,
considerados traidores de Cristo e do Império. Além disso, o nome do imperador foi exaltado
como defensor da ortodoxia cristã, numa clara alusão ao papel religioso que deveria ser
cumprido pela autoridade imperial através do seu poder autocrático:
206
Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A.D. 754 Website
www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Se, entretanto, alguém diz, nós podemos
estar certos em consideração às imagens de Cristo, por conta da misteriosa união das duas naturezas, mas não
está certo para nós proibir também as imagens da imaculada e sempre gloriosa Mãe de Deus, dos profetas,
apóstolos e rtires, que eram meros homens e não se constituíam de duas naturezas; nós podemos responder,
em primeiro lugar: se aqueles caíram fora, não há grande necessidade destes. Mas nós também consideramos que
pode ser dito contra estas em particular. O Cristianismo tem rejeitado todo o paganismo e o somente
sacrifícios pagãos, mas também o culto pagão de imagens. A vida dos santos está eternamente com Deus,
embora eles tenham morrido. Se alguém pensa em chamá-los de volta a vida novamente pela arte morta,
descoberta pelo paganismo, ele se faz culpado de blasfêmia. Quem ousa tentar pela arte pagã pintar a Mãe de
Deus, que é exaltada acima de todo o céu e dos santos? Não é permitido para os cristãos, que tem a esperança da
ressurreição, imitar os costumes dos cultuadores de demônios e insultar os Santos, que brilham na grande glória,
pela matéria morta comum” (Tradução nossa).
207
Ibid. “Sustentados pela Sagradas Escrituras e pelos Padres, nós declaramos unanimemente, em nome da
Trindade Santa, que deve ser rejeitado, removido e amaldiçoado da Igreja Cristã toda semelhança que é feita de
algum material e qualquer cor pela arte má dos pintores.” (Tradução nossa).
110
This is the faith of the Apostles. Many years to the Emperors! They are the
light of orthodoxy! Many years to the orthodoxy Emperors! God preserve
your Empire! You have now more firmly proclaimed the inseparability of
the two natures of Christ! You have banished all idolatry! You have
destroyed the heresies of Germanus [of Constantinople], Georg and Mansur
[mansour, John Damascene]. Anathema to Germanus, the double-minded,
and worshipper of wood! Anathema to Georg, his associate, to the falsifier
of the doctrine of the Fathers! Anathema to Mansur, who has an evil name
and Saracen opinions! To the betrayer of Christ and the enemy of the
Empire, to the teacher of impiety, the perverter of Scripture, Mansur,
anathema! The Trinity has deposed these three!
208
A argumentação de Hieria é particularmente simplista, utilizando a teologia
precedente não para justificar sua concepção, mas para tentar confundir os iconófilos, num
típico exercício de retórica e sofística. O texto do Sínodo deixa clara a existência de apenas
duas possibilidades para quem cultua ícones, ambas heréticas, não deixando espaço para
explicações de outra natureza. Dessa forma, o objetivo de Constantino V teria sido atacar os
iconófilos, a partir de uma argumentação conclusiva de valor teológico para a destruição dos
ícones.
A principal resistência às decisões de Hieria vinha dos monges bizantinos. Como
dissemos no capítulo 1, grande parte do poder econômico e social dos mosteiros provinha das
esmolas e doações deixadas pelos peregrinos ao visitar ícones e relíquias de santos dessas
instituições. Ostrogorsky afirma que a perseguição aos iconófilos nessa fase da Querela tomou
um caráter de uma campanha contra o monacato: “Ahora se perseguía a los monjes no solo
por rendir culto a las imágenes, sino simplesmente por su condición monástica, obligándoles a
cambiar de vida.”
209
208
Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A.D. 754. In: Website
www.fordham.edu. Medieval Sourcebook. Acessado em 25/05/2005. “Esta é a dos Apóstolos. Muitos anos
para os Imperadores! Eles são a luz da ortodoxia! Muitos anos para os Imperadores ortodoxos! Deus preserve
seu Império! Vocês tem agora mais firmemente proclamado as inseparáveis duas naturezas de Cristo! Vocês tem
banido toda a idolatria! Vocês têm destruído as hereisas de Germano [de Constantinopla], Georg e Mansur [João
Damasceno]. Anátema para Germano, de falsa inteligência e cultuador de madeira! Anátema para Georg, seu
cúmplice, pela falsificação da doutrina dos Padres! Anátema para Mansur, que tem um nome mal e opiniões
sarracenas! Para o traidor de Cristo e inimigo do Império, por ensinar a impiedade, perverter a Escritura, Mansur,
anátema! A Trindade tem deposto estes três!” (Tradução nossa).
209
OSTROGORSKY, Georg. Op. Cit p. 183.
111
Portanto, uma relação causal entre a Querela Iconoclasta e a perseguição dos
monges por parte do poder imperial bizantino. Entretanto, não se pode afirmar que essa
tentativa de enfraquecimento dos mosteiros tenha sido o objetivo principal da destruição dos
ícones, nem mesmo sob o governo de Constantino V.
210
2.4 O abrandamento da iconoclastia com Leão IV: 775-780
A morte de Constantino V em 775, durante uma expedição contra os búlgaros, foi
regozijada pelos iconófilos e teria sido interpretada por eles como uma punição divina pelo
seu iconoclasmo. Posteriormente, esses partidários dos ícones se referiram ao imperador como
Kopronimus, que significa Nome de Excremento”. Entretanto, Constantino V teria deixado
ainda muitos simpatizantes de suas idéias, particularmente membros do exército, que viam o
seu duradouro reinado de trinta e quatro anos como um período que teria sido tão longo
por uma suposta aprovação divina de seu comportamento contra o culto de ícones.
Seu filho e sucessor no trono imperial foi coroado aos vinte e cinco anos de idade
como Leão IV (775–780). Este fora bem mais brando em sua iconoclastia que seu pai,
buscando inclusive moderar a oposição entre os favoráveis e contrários ao culto dos ícones.
Seu objetivo teria sido reduzir as controvérsias teológicas.
211
Embora tenha mantido as
decisões do Sínodo de Hieria em vigor, Leão IV acabou abandonando as perseguições aos
monges e as medidas contrárias ao culto dos ícones da Virgem e dos santos.
Este atitude parece ter tido grande influência de dois fatores: primeiramente, as
pressões externas sobre o Império se abrandaram. Ao levarmos em consideração que o
momento de eclosão do conflito (e como veremos mais adiante, o seu retorno no século IX)
ser um período de tensões nas regiões de fronteira do Império, o fato de a iconoclastia se
210
Sobre a perseguição aos monges por parte dos imperadores iconoclastas, como forma de confisco de bens
monásticos, ver TREADGOLD. Warren. Op. cit pp. 363-366, OSTROGORSKY, Georg. Op. cit pp. 182-184,
HALDON, John. Op. cit pp. 33-35, e LEMERLE, PAUL. Op. cit pp. 77-79.
211
TREADGOLD. Warren. Op. cit p. 367.
112
enfraquecer num momento de diminuição dessas tensões militares não deve ser
desconsiderado.
Para ganhar força e um maior mero de adeptos, a iconoclastia precisava de uma
justificativa prática e não apenas teológica. Relacioná-la a uma punição divina, manifestada
através de ameaças e invasões de povos estrangeiros ao território bizantino, era uma dessas
justificativas. Num momento de diminuição dessas ameaças, a destruição de ícones perdia
importante parte de seu vigor. Também leve-se em consideração o fato de ter havido algumas
vitórias árabes na Anatólia nos últimos anos do governo iconoclasta de Constantino V, que
também foram interpretadas como manifestações da aprovação divina, contrária à imposição
da iconoclastia.
212
Em segundo lugar, havia a esposa de Leão IV, Irene. Constantino V a escolheu
como esposa de seu filho, apesar de ela ter sido sempre favorável ao culto dos ícones, porque
ter uma ateniense na família imperial seria de grande importância numa época de reconquista
das terras gregas.
Um fato envolvendo a imperatriz nos chamou a atenção. Duas semanas após a
consagração de Paulo ao patriarcado de Constantinopla, em 780, Leão IV descobriu que
funcionários ligados diretamente à Corte introduziam ícones clandestinamente no palácio
imperial para serem objetos de culto da imperatriz. Leão IV puniu severamente seus
funcionários com açoites e repreendeu Irene duramente pelo acontecido, deixando de viver
com ela na condição de sua esposa.
Provavelmente Leão IV teria tentado reconciliar-se com Irene, depois que ela foi
suficientemente humilhada e tivesse demonstrado arrependimento.
213
Entretanto, o imperador
acabou morrendo em setembro de 780, atacado por uma forte febre quando tentava colocar
sobre sua cabeça uma coroa doada por Heráclio ao tesouro da Igreja de Santa Sofia. Pelo
212
Ver OSTROGORSKY, Georg. Op.cit. p. 184. Também ANGOLD, Michel. Op. cit p. 78.
213
TREADGOLD. Warren. Op. cit p. 370.
113
menos essa é a versão relatada pela imperatriz Irene, que com o ocorrido, emergiu ao poder
como regente de seu filho, o pequeno Constantino VI, então com apenas dez anos de idade. De
fato, parece muito suspeito esse relato de Irene para a morte de Leão IV. Segundo Treadgold,
ao que parece, agentes reais teriam matado o imperador a mando da própria imperatriz.
214
A chegada ao trono de uma imperatriz iconófila veio a significar, sete anos mais
tarde, o fim do iconoclasmo, pelo menos de sua primeira fase, decretado pelo Concílio
Ecumênico de Nicéia, em 787, até ser novamente posto em vigor no ano de 815 pelo
imperador Leão V. As formas pelas quais Irene atuou para convocar o Concílio, e os
argumentos ali apresentados para justificar teologicamente o fim da iconoclastia, serão objetos
de nossa análise no capítulo 3.
214
Ibid.
114
CAPÍTULO III:
NICÉIA II E A SEGUNDA FASE DA QUERELA ICONOCLASTA: 787-843
Após mais de meio século de destruição de ícones cristãos no Império Bizantino,
uma imperatriz regente, de origem ateniense, foi a principal responsável pelo que pretendia
ser o fim da Querela. Através de um Concílio Ecumênico, reunido na cidade de Nicéia, a
iconoclastia foi condenada e o culto dos ícones restaurado. Entretanto, durante o governo de
Leão V, o Armênio, um novo sínodo convocado para a capital do Império, em 815, fazendo
ressurgir no Patriarcado de Constantinopla a destruição de ícones como política oficial do
Estado. Essa nova fase da Querela Iconoclasta atravessou o reinado dos imperadores amóricos
Miguel II (820-829) e Teófilo (829-842).
O movimento iconoclasta, entretanto, já não apresentava a mesma força que havia
demonstrado no século VIII. Reduzido à capital do Império e seus arredores, e mesmo ali não
se percebendo unanimidade em sua aceitação, esse segundo momento da Querela não teve a
mesma duração da primeira. As discussões se encerraram definitivamente num Sínodo,
reunido em Constantinopla, em 843, conhecido como o Triunfo ou Synodikon da Ortodoxia,
que marcou o fim dos debates e a vitória definitiva do culto dos ícones em Bizâncio.
Como veremos nos tópicos 3.1 e 3.2 desse capítulo, a convocação de um Concílio
para condenar a iconoclastia não ocorreu sem que houvesse pressões dos adversários dos
ícones. Nessa primeira parte, buscaremos entender a atuação da imperatriz regente Irene para
que o Concílio fosse reunido e analisaremos também as suas decisões. Para tanto, as fontes
primárias são as atas dessas reuniões, nas quais se verifica a preocupação em atrelar o culto
dos ícones com as antigas tradições da Igreja, atentando para as diferenças entre os ícones e
ídolos pagãos. Essa defesa também partia do princípio que diante do ícone, o fiel não deve
115
proceder a um culto de adoração, mas sim a uma honrosa veneração. Essas idéias tinham por
base os textos de João Damasceno.
No tópico 3.3 faremos uma breve análise da política interna bizantina e da sua
relação com o Ocidente após Nicéia II. No 3.4 veremos que a iconoclastia tinha voltando a ser
colocada em vigor em 815 pelo imperador Leão V e estendendo-se até 843. Nesse segundo
período da Querela, não encontramos inovações nos argumentos iconoclastas, mas sim uma
reativação das determinações do Sínodo de Hieria.
Assim como no século VIII, um monge e o Patriarca de Constantinopla se
destacaram na defesa da iconofilia. No tópico 3.5 procederemos à análise dos argumentos
iconófilos do Patriarca Nicéforo (c. 758–828), deposto do trono patriarcal, e de Teodoro
Studita (759–826), monge que tinha sido exilado por Leão V. Ao contrário das determinações
iconoclastas de 815, encontramos nos documentos dessas duas personagens da Querela a
apresentação de novos argumentos na defesa dos ícones, complementando e, às vezes, se
contrapondo ao Discurso de Damasceno. Entretanto, essas idéias pouco foram aproveitadas
no Synodikon da Ortodoxia, em 843. O estudo das definições finais desse sínodo, conhecido
nas Igrejas ortodoxas como Triunfo da Ortodoxia, será apresentado no último tópico desse
capítulo.
As principais fontes pesquisadas aqui, além das citadas atas do Concílio de
Nicéia II, foram os documentos de defesa dos ícones, deixados pelo monge Teodoro Studita
em poemas, cartas, um testamento beneficiando o mosteiro de São João de Studius e as obras
teológicas do Patriarca Nicéforo. A estas, adicionamos as definições finais do Triunfo da
Ortodoxia. Sobre o pensamento iconoclasta nessa segunda fase, analisamos a carta escrita
pelo imperador Miguel II a Luís, o Piedoso, em 824, na qual se encontram informações sobre
seus pensamentos iconoclastas, além das determinações do sínodo de 815. A exemplo do que
ocorreu em relação aos textos do século VIII, as fontes iconoclastas do segundo período da
116
Querela também foram destruídas, após 843. Por isso, a reconstituição das decisões de Leão V
são hoje possíveis apenas graças à obra Refutatio et eversio, do Patriarca Nicéforo.
215
Vejamos, então, como que, em pouco mais de meio século, a iconoclastia fora
condenada, reavivada e definitivamente derrotada no Impéro Bizantino.
3.1- Irene e os preparativos para o retorno da iconofilia
Quando Irene subiu ao poder no Império Bizantino em 780, como regente de
Constantino VI (780–797), todos os principais cargos dentro do governo, os bispados e os
altos oficiais do exército eram ocupados por iconoclastas. Isso se deveu aos mais de cinqüenta
anos de política oficial de destruição de ícones. que se ressaltar ainda o fato de estarmos
falando de uma mulher, o que praticamente impedia sua subida ao comando do exército, cuja
lealdade era imprescindível.
Pelo fato de ser mulher, ateniense e iconófila, a chegada de Irene ao poder não se
deu sem resistência. Segundo John J. Norwich, o exército da Anatólia teria preferido um dos
cinco irmãos de Leão IV ao trono, mas Irene rapidamente conteve essa pequena rebelião e
seus líderes foram punidos.
216
Nesse contexto, o pretendido fim da iconoclastia por Irene
deveria ser realizado com cautela.
A primeira atitude de Irene foi permitir o retorno dos iconófilos exilados. Depois,
foi substituindo aos poucos os bispos e alguns funcionários iconoclastas por outros favoráveis
ao culto dos ícones. Em 784 substituiu o Patriarca Paulo (780-784) pelo leigo Tarásio (784-
806), então secretário da imperatriz. No natal do mesmo ano, Tarásio passou pelo processo de
consagração e foi entronizado como Patriarca de Constantinopla.
215
Ed. P. J. Alexander, Dumbarton Oaks Papers, VII (1952), 58 ff. Citado por OSTROGORSKY, Georg.
História Op. cit p. 168.
216
NORWICH, John Julius. Byzantium, the Early Centuries. New York: Alfred A. Knopf, 2001. p. 167.
117
Tão logo ascendeu ao Patriarcado, Tarásio, que possuía boa formação teológica,
manifestou a necessidade de reunir um Concílio Ecumênico para colocar um fim à política de
destruição de ícones em Bizâncio. De fato, o objetivo dos imperadores isáuricos de impor a
iconoclastia a todo o mundo cristão havia malogrado, não tendo obtido apoio nem dos
Patriarcas do Oriente (Alexandria, Antioquia e Jerusalém), nem da autoridade papal em
Roma. Confinado ao território imperial , e mesmo dentro dele não constituindo uma
unanimidade, a destruição de ícones estava tornando o Cristianismo bizantino cada vez mais
isolado da Cristandade como um todo.
Tarásio convocou o concílio para o ano de 786, em Constantinopla, na Igreja dos
Santos Apóstolos. Para confirmar o caráter ecumênico desse concílio, foram convidados a
comparecerem os Patriarcas das sedes orientais e o Papa Adriano I (772795). Entretanto,
nem os demais Patriarcas nem o Papa compareceram pessoalmente ao Concílio, enviando
representantes.
Apenas iniciadas as discussões do Concílio, presidido por Tarásio, e contando
ainda com a presença da imperatriz regente e de seu filho Constantino VI, um incidente
obrigou a interrupção dos trabalhos. Soldados da guarda imperial e do exército invadiram a
Igreja dos Santos Apóstolos empunhando suas espadas e dispersando os participantes do
Concílio. Essa violenta atitude contou com o apoio de parte dos bispos presentes, de
tendências iconoclastas.
217
Apesar de Irene contar com um Patriarca iconófilo e de ter retirado alguns
iconoclastas dos mais altos postos militares e de alguns bispados, substituindo-os por
iconófilos, grande parte do exército e da guarda imperial ainda mantinha posições contrárias
ao culto dos ícones. Isso se devia, provavelmente, aos longos anos de serviços prestados ao
imperador Constantino V. Essa falta de coesão na aceitação das idéias favoráveis aos ícones
217
Sobre a dispersão da primeira tentativa de se reunir um Concílio Ecumênico iconófilo em 786, ver
ALBERIGO, Giuseppe. Op. cit.p. 152. Ver também OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 186.
118
da imperatriz foram decisivas para o fracasso desta primeira tentativa de acabar com a
iconoclastia.
A imperatriz então enviou as tropas iconoclastas do exército a uma oportuna
campanha contra os árabes nas fronteiras orientais do Império. Ao mesmo tempo, mandou vir
da Trácea tropas fiéis ao culto das imagens, confiando a elas a segurança de Constantinopla.
Em maio de 787, reuniu novamente o Concílio, desta vez, na cidade de Nicéia, onde a Igreja
havia reunido o seu primeiro Concílio Ecumênico, sob o imperador Constantino, o Grande,
em 325. Para que não haja confusão alguma em relação a este primeiro Concílio Ecumênico,
nos referiremos nesse capítulo ao concílio de 787 como Nicéia II, como grande parte dos
historiadores que tratam do tema. A essa nova reunião, presidida novamente pelo Patriarca
Tarásio, compareceram 350 bispos, mais os representantes do Papa Adriano I, dos
Patriarcados de Antioquia e Alexandria, do poder imperial, além, é claro, da própria
imperatriz regente Irene e de seu filho Constantino VI.
Entre os bispos participantes estavam os iconoclastas que, no ano anterior, haviam
colaborado para a dissolução do Concílio em Constantinopla. Era difícil para a imperatriz não
contar com a participação desses bispos, uma vez que eles compunham cerca de três quartos
da assembléia.
218
Mas, mesmo sem contar com apoio desses bispos e de parte importante do
exército, o que teria motivado Irene a manter seu objetivo de condenar a iconoclastia em
Bizâncio? Suas crenças pessoais? Pressão do Papa, que havia pedido o fim do iconoclasmo
em uma carta enviada em 785?
219
Ainda não encontramos uma resposta para essa questão.
Irene teria ameaçado os bispos com a perda de suas sedes episcopais caso se
negassem a participar desse Concílio Ecumênico.
220
A partir dessa ameaça, esses bispos
teriam que demonstrar, diante da assembléia conciliar, um suposto arrependimento por seus
218
AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: défense de l’image ou de la dévotion a l’image? BOESPFLUG, F. et
LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. p. 157.
219
Essa carta é citada por Jean-Claude Smith, em SCHMIT, Jean-Claude. L’Ocident, Nicée II et les images du
VIIIª au XIIIª siécle. BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. p. 272.
220
ALBERIGO, Giuseppe. Op. cit. p. 152.
119
pensamentos contrários ao culto dos ícones e abjurar dessa crença.
221
Essa renúncia pública
dos pensamentos iconoclastas são encontradas na Retratactio do Concílio de Nicéia II. Um
exemplo é a do bispo Basílio:
Je fais apel aux intercessions (πρεσβεια) de la Vierge, des puissances
célestes et des saints, j’accepte les reliques des saints que j’embrasse
(ασπαζοµαι) et devant lesquells je me prosterne (προσµονω) parce que j’ai
foi dans le fait que par elles je participe au processus de sainteté. De la
même façon, j’embrasse, je serre dans mes bras (περιπτυσσοµαι) et
jaccorde la prosternation de respect aux icônes de l’economie charnelle du
Christ, de la Vierge, des anges, des apôtres, prophètes, martyrs et de tous les
saints.
222
Esse suposto perdão da imperatriz em relação aos antigos iconoclastas não pode
ser visto unicamente como um ato de clemência de Irene. Para nós, essa reconciliação está
diretamente relacionada a uma atitude de defesa e precaução, haja visto que o grupo
iconoclasta, depois de cinqüenta anos à frente do poder imperial e eclesiástico, ainda tinha
muita força em Bizâncio. Marie-France Auzepy afirma ainda que, como estes compunham a
maioria dos bispos em Constantinopla, o Concílio deveria contar também com sua
presença.
223
A forma encontrada por Irene para colocar fim a essa política foi muito mais
branda do que as atitudes tomadas por Leão III e Constantino V para sua imposição. Até
porque a experiência da primeira tentativa de reunião havia deixado claro que a iconoclastia
ainda estava muito viva em Bizâncio, principalmente no exército, e que a imperatriz não tinha
o total controle da situação. Essa nova forma de tratar do assunto pode ser justificada
primeiramente pelo fato de Irene ser uma imperatriz regente, por estar falando em nome de
221
OSTROGORSKY, Georg. Op cit. p. 187.
222
Retratactio: MANSI, XII, 1010-1011; anathème: 1010 E. Citado por AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie:
défense de l’image ou de la votion a l’image? In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Nicée II 787-1987.
Douze siècles d’images religieuses. Paris: Cerf: 1987. p. 159. “Eu apelo às interseções da Virgem, aos poderes
celestes e dos santos, eu aceito as relíquias dos santos que abraço e diante das quais me prosto para que eu tenha
no fate de por eles eu participar do processo de santidade. Da mesma forma, eu abraço, eu aperto em meus
braços e concilio a prosternação de respeito aos ícones da economia carnal do Cristo, da Virgem, dos anjos, dos
apóstolos, profetas, mártires e de todos os santos.” (Tradução nossa).
223
AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: défense de l’image ou de la dévotion a l’image? BOESPFLUG, F. et
LOSSKY, N. (Dir). Nicée II 787-1987. Douze siècles d’images religieuses. Paris: Cerf: 1987. p. 157-158.
120
um imperador presente, mas que ainda não tinha idade para assumir plenamente o posto de
maior autoridade no Império.
O outro, e mais importante, era o fato de se tratar de uma mulher à frente do
Estado. Independente de ser uma regente, enquanto mulher, Irene não gozava da condição de
sacerdote inerente ao poder imperial bizantino. E essa era uma condição determinante para
que a autoridade política interferisse diretamente nos negócios da Igreja e, mais ainda, nos
próprios dogmas cristãos. Foi baseado nessa condição de sacerdote e de igual aos apóstolos
que Leão III impôs o iconoclasmo e que Constantino V deliberou a respeito desses assuntos
no Sínodo de Hieria.
224
De fato, faltava a Irene a possibilidade de gozar do máximo de sua autoridade à
frente do Império e assim poder, como seus antecessores, impor seus pensamentos num
sínodo cristão. O fato de não poder se colocar como uma sucessora legítima de Pedro definia
o limite da autoridade da imperatriz em assuntos da Igreja de uma maneira ainda mais
determinante do que o fato de se tratar de uma regente. Assim, Irene teve que caminhar com
prudência no retorno à iconofilia em Bizâncio.
Ao contrário do imperador Leão III, que destituiu de seus cargos os bispos e o
Patriarca que não compartilhavam de seus pensamentos, Irene preferiu convidar para o
Concílio de Nicéia os mesmos bispos que um ano antes haviam colaborado para seu malogro
em Constantinopla, desde que se mostrassem supostamente arrependidos.
Toda essa prudência Irene de em relação aos iconoclastas desagradou aos monges
chamados “zelotas”, que representavam a ala mais radical entre os favoráveis ao culto dos
ícones.
225
Estes não aceitavam de compromisso algum e esperavam uma punição mais severa
224
Sobre a autoridade autocrática do imperador bizantino, ver DAGRON, Gilbert. Empereur et prêtre; étude
sur “cesaropapisme” byzantin. Paris: Éditions Gallimard, 1996. Ver também, do mesmo autor, Lawful
Society and Legitimate Power: Εννοµοσ πολιτεια, εννοµοσ αρχη. In: LAIOU, Angeliki E., SIMON, Dieter.
Law and Society in Byzantium: Ninth-Twelfth Centuries. Washington D.C.: Dumbarton Oaks, 1992.
225
OSTROGORSKY, Georg. Op cit. p. 187.
121
da imperatriz aos iconoclastas por causa das perseguições aos monges iconófilos sofridas
durante o governo dos isáuricos, em especial, Constantino V.
Nessa tentativa de se colocar um fim na destruição dos ícones, não havia uma
sintonia dentro da Igreja em Bizâncio. De um lado os monges “zelotas”, que desejavam ver os
iconoclastas punidos. De outro, de tendência moderada, parte do clero secular chamada de
“políticos”, que acreditavam que deveriam adaptar-se às condições do Estado naquele
momento. Durante o Concílio, prevaleceu a ala moderada.
226
3.2- As decisões do Concílio de Nicéia – 787
Reunido o concílio, foram realizadas oito reuniões, sendo a última delas no
palácio imperial em Constantinopla. Antes de passarmos a uma análise mais detalhada das
definições apresentadas em Nicéia, devemos esclarecer que, de modo geral, as decisões do
Sínodo de Hieria em 754 foram reconstruídas e todas refutadas.
Para que o culto de imagens dentro do Cristianismo ortodoxo fosse restaurado e a
iconoclastia condenada, os bispos ali reunidos sob o Patriarca de Constantinopla Tarásio,
apoiaram-se nos Discursos do monge João Damasceno, no que diz respeito à diferença entre
ídolos pagãos e ícones e em relação à atitude que o cristão deveria demonstrar diante dessas
representações. Vejamos como isso se deu.
Primeiramente, um único ponto em que Nicéia II apresenta-se de acordo com
Hieria: no que se refere às discussões em torno das naturezas do Cristo. Nele foram
sustentadas as condenações do arianismo e do nestorianismo, realizadas pelo Concílio da
Calcedônia em 451, e a reafirmação da crença nas duas naturezas no Cristo, mantendo o título
de Maria como Mãe de Deus (Theotokos) e não mãe apenas da humanidade do Cristo.
We detest and anathematize Arius and all the sharers of his absurd opinion;
also Macedonius and those who following him are well styled "Foes of the
226
Ibid.. p. 187.
122
Spirit" (Pneumatomachi). We confess that our Lady, St. Mary, is properly
and truly the Mother of God [...],as the Council of Ephesus has already
defined when it cast out of the Church the impious Nestorius with his
colleagues, because he taught that there were two Persons [in Christ]. With
the Fathers of this synod we confess that he who was incarnate of the
immaculate Mother of God and Ever-Virgin Mary has two natures,
recognizing him as perfect God and perfect man, as also the Council of
Chalcedon hath promulgated [...].We affirm that in Christ there be two wills
and two operations according to the reality of each nature [...].
227
De fato, tanto o Sínodo de Hieria quanto o II Concílio de Nicéia mantiveram-se
coerentes em relação às decisões conciliares da Calcedônia. O principal ataque do sínodo
iconoclasta de Hieria tinha sido em relação à criação e ao culto dos ícones, identificando-os
com as antigas heresias cristológicas. Para se defender da provável acusação de nestorianismo
ou monofisismo, os bispos do Concílio afirmaram que, pelo culto dos ícones, os cristãos não
confundiam as naturezas humana e divina, inseparáveis e inconfundíveis em Cristo. Ao
contrário, teriam sido os iconoclastas a cometer tal confusão.
When, therefore, Christ is portrayed according to His human nature it is
obvious that the Christians, as Truth has shown, acknowledge the visible
image to communicate with the archetype in name only, and not in nature;
whereas these senseless people [the iconoclasts] say there is no distinction
between image and prototype and ascribe an identity of nature to entities that
are of different natures.
228
227
The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea 787. In: Website
www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Nós detestamos e anatematizamos Ário e
todos os seguidores de sua absurda opinião; também Macedonius e aqueles que o seguiram são também
intitulados “Inimigos do Espírito” (Pneumatomachi). Nós confessamos que Nossa Senhora, Santa Maria, é
propriamente e verdadeiramente e de Deus [...], como o Concílio de Éfeso tinha definido e expulsado da
Igreja os ímpios Nestório com seus colegas, porque eles ensinaram que havia duas Pessoas [em Cristo]. Com os
Padres desse sínodo nós confessamos que ele que foi nascido da imaculada Mãe de Deus e Sempre Virgem
Maria tinha duas naturezas, reconhecendo-o como perfeito Deus e perfeito homem, como também o Concílio da
Calcedônia tinha promulgado, [...]. s afirmamos que em Cristo havia duas vontades e duas operações
conforme a realidade de cada natureza [...].”(Tradução nossa).
228
Atcs of the Seventh Ecumenical Council (787). In: MANGO, Cyril. Op cit. p. 173. “Quando, portanto, Cristo
é retratado de acordo com Sua natureza humana é óbvio que os cristãos, como a Verdade tem mostrado, admitem
a imagem visível para comunicar com o arquétipo em nome apenas e não em natureza; enquanto que essas
pessoas insensíveis [os iconoclastas] dizem que o há distinção entre imagem e protótipo e relacionam uma
identidade de natureza para entidades que são de naturezas diferentes.” (Tradução nossa).
123
Em toda a documentação pesquisada, encontramos adjetivos que visavam
desqualificar o adversário durante a Querela. Nesse trecho encontramos um exemplo disso,
quando os iconófilos utilizam a expressão senseless para se referirem aos iconoclastas.
229
O texto acima visa esclarecer que um ícone não busca circunscrever a natureza
divina. Entretanto, ao se delimitar o rosto de Cristo numa representação, se delimitam ali os
traços da segunda Pessoa da Trindade, na qual se conjugam as duas naturezas, sem separação
nem confusão. E Nicéia II reafirmou a crença na dupla natureza do Cristo, a humana e a
divina, inseparáveis e inconfundíveis:
The name “Christ” is indicative of both divinity and humanity the two
perfect natures of the Saviour. Christians have been taught to portray this
image in according with His visible nature, not according to the one in which
He was invisible; for the latter is uncircunscribable and we know from
Gospel that no man hath seen God at any time.[John 1:18]
230
A pintura do Cristo não pretendia, assim, circunscrever apenas a sua natureza
humana, mas sim o que, na conjugação dessas naturezas, pudesse se tornar visível para o fiel.
Retratar o visível no Cristo não significa necessariamente separar sua natureza humana da
divina.
No Evangelho de João, de onde foi extraído esse último trecho, há ainda um
complemento: “Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único, que esno seio do Pai, foi quem
o revelou.”
231
A alusão à Encarnação divina de Cristo foi a base para a justificativa do culto
dos ícones, não em Nicéia II, mas que no Discurso de João Damasceno e na carta do
Patriarca Germano, em 730. O fato de o próprio Cristo ter se deixado perceber, ver e tocar,
229
Cyril Mango, que publicou o documento nessa versão em inglês aqui consultada, chegou mesmo a esclarecer
entre colchetes a quem se referia tal expressão.
230
Atcs of the Seventh Ecumenical Council (787). In: MANGO, Cyril. Op. cit. pp. 172-173. “O nome “Cristo” é
indicativo de ambas, divina e humana as duas perfeitas naturezas do Salvador. Cristãos têm sido educados para
retratar essa imagem de acordo com Sua natureza visível, o de acordo com aquela na qual Ele era invisível;
pois a última é incircunscrita e sabemos pelo Evangelho que nenhum homem viu Deus em nenhuma época. [João
1:18]” (Tradução nossa).
231
BÍBLIA SAGRADA, N.T. João 1:18. São Paulo, Edições Loyola, 1995.
124
tornava lícita uma representação pictórica sua através dos ícones. Como vimos com
Ouspensky, sendo o ícone um testemunho da Encarnação, o fiel que a ele se apresenta para
cultuá-lo admite a crença de que o “Filho do Homem” é realmente Deus, a Verdade revelada.
Dessa forma, além de uma função didática, como transmissão de uma mensagem teológica ao
cristão, o ícone era ainda um símbolo da fé no dogma da Encarnação.
232
Se os ícones de Cristo são legitimados pelo mistério da Encarnação e os da
Virgem e os dos santos por se tratarem também de pessoas que possuem formas definidas,
como então o Concílio se pronunciou em relação aos anjos, que são seres incorpóreos? Foi
necessário antropomorfizar esses seres. Isso foi feito pelo patriarca Tarásio, que afirmou:
“Tous les saints qui ont eté dignes de voir les anges les ont vus sous la forme humaine”.
233
Pelo fato de não perceberem nos ícones um tipo de imagem especial, que serviria
para conduzir o fiel ao protótipo nele representado, os iconoclastas também foram acusados
pelo Concílio de tratar essas representações como ídolos pagãos. Isso denota uma visão dos
iconoclastas na qual o ícone não era considerado como um objeto sagrado, não havendo
distinção entre estes e outras imagens, devendo por isso receber o mesmo tratamento que os
ídolos. Suas atitudes foram consideradas pelo Concílio como profanas e caluniadoras.
[...] following profane men, led astray by their carnal sense, they have
calumniated the Church of Christ our God, which he hath espoused to
himself, and have failed to distinguish between holy and profane, styling the
images of our Lord and of his Saints by the same name as the statues of
diabolical idols.
234
232
Cf. OUSPENSKY, Léonid Op. cit.
233
Citado por AUZÉPY, Marie-France. L’iconodulie: défense de l’image ou de la votion a l’image? In:
BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. p. 164. “Todos os santos que são dignos de ver os anjos, os
vêem sob a forma humana.” (Tradução nossa).
234
The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea 787. In: Website
www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “[...] seguindo homens profanos, sendo
desviados pelos seus sensos carnais, eles tinham caluniado a Igreja de Cristo nosso Deus, que tinham sustentado
para si, e tendo falhado em distinguir entre o sagrado e o profano, nomearam as imagens de nosso Senhor e dos
seus Santos pelo mesmo nome como as estátuas de ídolos diabólicos.” (Tradução nossa).
125
Essa é mais uma oportunidade em que se pode observar uma inversão de
acusação, com o objetivo de legitimar uma posição dentro da Querela. Em suma, o método de
acusação permaneceu o mesmo, alternando apenas o grupo que dele se aproveita. Após serem
acusados de idolatria e, em 754, de heresia por prática de um culto comparado ao pagão,
agora eram os iconófilos a imporem tal acusação a seus adversários. O procedimento em
Nicéia II foi demonstrar que, ao comparar o culto de um ícone cristão a um culto pagão, eram
os iconoclastas que não tinham sido capazes de diferenciar uma estátua pagã de um ícone que
represente Cristo, a Virgem ou algum dos santos. E o Concílio condenou com anátemas
aqueles que compararam os ícones com os ídolos condenados pela Escritura. Abaixo, seguem
as condenações de Nicéia II:
We anathematize the introduced novelty of the revilers of Christians. We
salute the venerable images. We place under anathema those who do not do
this. Anathema to them who presume to apply to the venerable images the
things said in Holy Scripture about idols. Anathema to those who do not
salute the holy and venerable images. Anathema to those who call the sacred
images idols. Anathema to those who say that Christians resort to the sacred
images as to gods. Anathema to those who say that any other delivered us
from idols except Christ our God. Anathema to those who dare to say that at
any time the Catholic Church received idols.
235
Além de destruir imagens, os iconoclastas foram acusados em Nicéia II também
de destruir páginas de livros contendo iluminuras de ícones ou textos com ensinamentos sobre
as imagens. John Lowden nos apresenta relatos do texto conciliar que registram testemunhos
desse tipo de destruição de cultura material:
Demetrius the God-loving deacon and sacristan said: ‘When I was promoted
sacristan at the holy Great Church [St. Sophia] at Constantinople, I examined
the inventory and found that two books with silver bindings with images
were missing. Having searched for them I discovered that the feretics had
235
The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea - 787. In: Website
www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Nós anatematizamos a novidade
apresentada pelos injuriadores dos cristãos. Nós saudamos as veneráveis imagens. Colocamos sob anátema
aqueles que o fazem isso. Anátema para aqueles que ousam aplicar para as veneráveis imagens as coisas ditas
na Sagrada Escritura sobre ídolos. Anátema para aqueles que não reverenciam as santas e veneráveis imagens.
Anátema para aqueles que chamam as sagradas imagens de ídolos. Anátema para aqueles que dizem que os
cristãos recorrem às sagradas imagens como deuses. Anátema para aqueles que dizem que algum outro nos
livrou dos ídolos exceto Cristo ou Deus. Anátema para aqueles que ousam dizer que em alguma outra época a
Igreja recebeu ídolos.” (Tradução nossa).
126
thrown them in the fire and burnt them. I found another book... which dealt
with the holy icons. The leaves containing passages on icons had been cut
out by these deceivers. I have this book in my hands and I am showing it to
the Holy Sinod.’ The same Demetrius opened the book and showed to
everyone the excision of the leaves.
236
Portanto, não eram apenas as representações que se prestavam diretamente ao
culto que os iconoclastas se preocupavam em destruir. Os livros que pudessem trazer algum
tipo de imagem que induzisse o fiel a um culto também eram alvos da iconoclastia. Vejamos
um outro caso:
Leontius, the holy secretary said: ‘There is, O Fathers, another astonishing
thing about this book. As you can see it has silver covers and on either side
of them it is adorned with the images of all the saints. Letting these be, I
mean the images, they cut out what was written inside about images, which
is a sign of utter folly.’...
237
Essa prática de destruir também as informações sobre os ícones nos remete à
classificação dos tipos de imagens apresentadas por Damasceno, onde as representações
pictóricas apareciam em igual condição à palavra escrita (ver capítulo II). Ao que parece, os
iconoclastas também seguiam esse pensamento, preocupando-se em afastar o fiel de toda e
qualquer possibilidade de cair no pecado da idolatria. Nesse sentido, as imagens e os livros
que delas tratam poderiam conduzir o fiel ao mesmo erro e, por isso, deveriam ser igualmente
destruídas.
Outro argumento a ser ressaltado das atas do Concílio de Nicéia II é a importante
diferenciação que o texto faz em relação às atitudes de latreia (adoração) e proskinesis
236
Atas do Concílio Ecumênico de Nicéia II. 787. In: LOWDEN, John. Op. cit p. 160. Demetrius o diácono e
sacristão amado de Deus disse: ‘Quando eu fui promovido sacristão da santa Grande Igreja [St. Sofia] em
Constantinopla, eu examinei o inventário e percebi que dois livros com prata amarrado com imagens foram
perdidos. Tendo os procurado, descobri que os hereges tinham os atirado no fogo e os queimado. Eu encontrei
outro livro... que tratava dos santos ícones. As ginas contendo passagens sobre ícones tinham sido arrancadas
por esses impostores. Eu tenho esse livro em minhas mãos e estou mostrando-o para o Santo Sínodo’. O próprio
Demetrius abriu o livro e mostrou a todos a exceção das páginas.” (Tradução nossa).
237
Atas do Concílio Ecumênico de Nicéia II. 787. In: LOWDEN, John. Op. cit p. 160. “Leontius, o santo
secretário disse: ‘Há, Ó Padres, outra coisa surpreendente sobre esse livro. Como vocês podem ver ele era
revestido com prata e dentro dele é adornado com imagens de todos os santos. Deixando estas inalteradas, digo
as imagens, eles arrancaram o que estava escrito ao lado sobre as imagens, o que é um sinal de total estupidez.”
(Tradução nossa).
127
(veneração). Essas definições foram também baseadas no Discurso de João Damasceno. O
Concílio reiterou as palavras desse monge, afirmando que às imagens são rendidas saudações
e reverências honrosas, que são diferentes da adoração, da qual somente Deus seria digno. Diz
o texto:
[...] and to these should be given due salutation and honourable reverence
(aspasmon kai timhtikhn proskunh-sin), not indeed that true worship of faith
(latreian) which pertains alone to the divine nature; but to these, as to the
figure of the precious and life-giving Cross and to the Book of the Gospels
and to the other holy objects, incense and lights may be offered according to
ancient pious custom.
238
A inclusão do ícone dentro desse grupo de objetos sagrados remete ao pensamento
de João Damasceno, que defendia a veneração do ícone enquanto matéria, da mesma foram
com eram também matéria o lenho da Cruz, os Evangelhos e os vasos sagrados. Porém,
diferente da citação de Nicéia II, Damasceno inlcuía nesse grupo também as espécies
eucarísticas, o que lhe abria o flanco às críticas iconoclastas, por aproximar sua defesa das
práticas supersticiosas, de devoção popular.
239
Em Nicéia II foi reiterada ainda a idéia de que o ícone tem a função de servir
como um meio de conduzir a prece do fiel ao protótipo que ele representa: “For the honour
which is paid to the image passes on to that which the image represents, and he who reveres
the image reveres in it the subject represented.”
240
Outro ponto importante nas atas de Nicéia II, e já presente na Querela desde João
Damasceno, é o apelo que foi feito às tradições cristãs de criação e culto dos ícones. Nesse
238
The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea - 787. In: Website
www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “[...] e para essas devem ser dadas a
devida saudação e reverência honrosa (aspasmon kai timhtikhn proskunh-sin), não aquele verdadeiro culto de
(latreian) que pertence apenas a natureza divina; mas para essas, como para a figura da preciosa e dádiva da vida
a Cruz e para os Livros dos Evangelhos e para outros objetos sagrados, incenso e luzes podem ser oferecidos de
acordo com antigos costumes pios.” (Tradução nossa).
239
Cf. BESANÇON, Alain. Op. cit p. 208-209.
240
The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea - 787. In: Website
www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Para a honra que é devida à imagem
passa pelo que a imagem representa e aquele que reverencia a imagem reverencia a pessoa representada.”
(Tradução nossa).
128
trecho do Concílio, por exemplo, percebermos a presença dessas idéias, baseadas em João
Damasceno:
To make our confession short, we keep unchanged all the ecclesiastical
traditions handed down to us, whether in writing or verbally, one of which is
the making of pictorial representations, agreeable to the history of the
preaching of the Gospel, a tradition useful in many respects, [...].
241
E esse peso que a tradição exerceu nos debates foi ligado diretamente à dos
apóstolos, aos primórdios do Cristianismo e à legislação patrística.
This is the faith of the Apostles, this is the faith of the orthodox, this is the
faith which hath made firm the whole world. Believing in one God, to be
celebrated in Trinity, we salute the honourable images! Those who do not so
hold, let them be anathema. Those who do not thus think, let them be driven
far away from the Church. For we follow the most ancient legislation of the
Catholic Church. We keep the laws of the Fathers.
242
João Damasceno insistia tanto nas tradições escritas quanto nas não escritas da
Igreja, que deveriam ser respeitadas. “We do not change the boundaries marked out by our
Fathers. (Prov. 22:28) Keep the tradition we have received”
243
, diz Damasceno. E completa:
“The making of icons is not the invention of painters, but [expresses] the approved legislation
of the Catholic Church.”
244
Essa defesa da tradição reverte se lembrarmos a acusação iconoclasta de que os
ícones seriam uma invenção dos pintores que rompiam com as tradições da Igreja, adotando
práticas semelhantes às pagãs. Tratava-se de uma inversão na direção das acusações, pois
241
The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea 787. In: Website
www.fordham.edu. Medieval Source Book. “Para fazer nossa breve confissão, mantivemos imutáveis todas as
tradições eclesiásticas a nós transmitidas, sejam por escrito ou verbalmente, uma das quais faz da representação
pictórica, unida à história de pregações do Evangelho, uma tradição usada com muito respeito.” (Tradução
nossa).
242
The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea - 787. In: Website
www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Essa é a dos apóstolos, essa é a da
ortodoxia, essa é a que tem feito forte todo o mundo. Acreditando em um Deus, ser celebrado na Trindade,
nos saudamos as honoráveis imagens! Aqueles que assim não acreditam, deixe-os ser anatematizados. Aqueles
que assim o pensam, deixe-os ser guiados para longe da Igreja. Porque nós seguimos a mais antiga lei da
Igreja Católica. Nós guardamos as leis dos Padres.” (Tradução nossa).
243
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu.
Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Nós não alteramos os limites marcados por nossos pais
(Prov. 22:28) nós mantemos a tradição que temos recebido.” (Tradução nossa).
244
Atcs of the Seventh Ecumenical Council (787). In: MANGO, Cyril. Op. cit p. 172. “A produção de ícones
não é uma invenção dos pintores, mas [expressa] a aprovada legislação da Igreja Católica.” (Tradução nossa).
129
agora eram os iconófilos que falavam em nome de uma verdadeira tradição. Se os ícones
faziam parte do culto cristão, era a sua destruição que deveria ser relacionada com uma
ruptura.
Portanto, se em Hieria a produção e culto dos ícones foi condenado como uma
prática sem embasamento na Escritura, diretamente ligada ao paganismo e guiada por atitudes
nestorianas ou monofisistas, agora o Concílio Ecumênico encontrava na tradição da Igreja um
alicerce para seus pensamentos.
Definidos esses pontos, o texto segue para as condenações finais do Concílio.
Those, therefore who dare to think or teach otherwise, or as wicked heretics
to spurn the traditions of the Church and to invent some novelty, or else to
reject some of those things which the Church hath received (the Book of the
Gospels, or the image of the cross, or the pictorial icons, or the holy reliques
of a martyr), or evilly and sharply to devise anything subversive of the
lawful traditions of the Catholic Church or to turn to common uses the
sacred vessels or the venerable monasteries, if they be Bishops or Clerics,
we command that they be deposed; if religious or laics, that they be cut off
from communion.
245
Ao proceder às excomunhões por conta da iconoclastia, o texto do Concílio se
referia tanto à não reverencia aos ícones com a honra que a eles é devida quanto tamm pela
ruptura que a destruição dos ícones provocava com as antigas tradições da Igreja.
Nas condenações finais do Concílio, não foram dirigidas excomunhões contra
Leão III e Constantino V. Isso chama a atenção porque, como vimos no capítulo II, as
definições finais do Sínodo de Hieria citavam diretamente os nomes de João Damasceno e do
Patriarca de Constantinopla Germano, que por terem encabeçado a defesa da iconofilia na
primeira metade do século VIII, foram anatematizados em 754.
245
The Decree of the Holy, Great, Ecumenical Synod, the Second of Nicea - 787. In: Website
www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em 19/07/2006. “Aqueles, então, que ousaram pensar ou
ensinar de outra forma, ou como uma heresia para rejeitar as tradições da Igreja e invertar alguma novidade,
ou ainda rejeitar alguma das coisas que a Igreja tinha admitido (os Livro dos Evangelhos, a imagem da Cruz,
pinturas de ícones ou as santas relíquias dos máritires), ou com maldade e severidade inventaram alguma
subversão às leis tradicinais da Igreja Católica ou tornaram usos comuns os vasos sagrados ou os veneráveis
monastérios, se são bispos ou clérigos, nós ordenamos que seja deposto; se religioso ou laico, que seja excluído
da comunhão” (Tradução nossa).
130
No fim do texto de Nicéia II, seguiam desejos de vida longa ao Imperador,
encerrando os trabalhos. O fim do Concílio marcava também o fim do primeiro período da
Querela Iconoclasta em Bizâncio, restaurando o culto dos ícones cristãos. Entretanto, como
veremos, a iconoclastia voltaria a se tornar a política oficial do Império a partir do ano de 815.
Encerrado esse primeiro período, uma questão pode ser levandada: que
providências poderíamos esperar do Patriarcado de Constantinopla em termos práticos? Duas
prováveis respostas poderiam surgir. A primeira seria uma punição aos antigos bispos
iconoclastas, a exemplo do que havia acontecido com os monges iconófilos após o Sínodo de
Hieria. A segunda era uma justificável reconciliação do patriarcado com a romana.
Entretanto, nem uma nem outra se concretizou.
Terminadas as reuniões, o Patriarca Tarásio não procedeu a punição alguma aos
destruidores de ícones, preferindo antes a reconciliação, a exemplo do que tinha feito a
imperatriz Irene pouco antes do Concílio. Michel Angold cita a insinuação, por parte do
monge Sabásio de Studius, de que o Patriarca estivesse apenas cumprindo ordens imperiais.
Além dele, outros monges também acusavam Tarásio de ter sido leniente demais em relação
aos iconoclastas e disposto a acatar qualquer ordem imperial.
246
Se a imperatriz não possuía as
atribuições sacerdotais do governo bizantino por ser mulher, então o que poderia fazer com
que o Patriarca lhe fosse submisso em relação a assuntos da administração eclesiástica?
Provavelmente, a resposta está no fato de Tarásio não ter sido sacerdote nem monge antes de
se tornar Patriarca da maior sede episcopal do Oriente. Tarásio era então funcionário do
Estado, um leigo com boa formação teológica e visão política. E, mais importante, era alguém
da confiança de Irene. Portanto, sua ascensão ao Patriarcado estaria mais ligada a questões
políticas, por se tratar de um iconófilo, do que religiosas. Provavelmente por conta disso,
Tarásio falasse sempre em nome da imperatriz.
246
ANGOLD, Michael. Op. cit pp. 79-80.
131
A possibilidade de uma reaproximação entre as Igrejas de Constantinopla e Roma
também não ocorreu. Tendo enviado um representante ao Concílio, o Papa Adriano I esperava
que além das medidas religiosas, Nicéia II se pronunciasse também em relação à política
eclesiástica do período. A esperança do Papa era que fosse reafirmada a primazia da
romana sobre os Patriarcados orientais e restituídos os direitos de Roma sobre os territórios do
sul da Itália e do Ilírico.
247
Porém, a questão da soberania papal sobre os territórios perdidos
durante o governo de Constantino V não foi sequer citada durante o Concílio. Ademais, foram
suprimidas de uma carta enviada por Adriano I a Nicéia passagens referentes à primazia de
Roma e a sua crítica sobre a escolha do leigo Tarásio para ocupar o trono Patriarcal.
248
Dessa forma, mesmo após a restauração do culto dos ícones em Bizâncio, as duas
maiores sedes episcopais do Cristianismo continuavam distantes, demonstrando que uma
reconciliação seria algo praticamente impossível. De fato, a influência do poder papal havia se
diluído no Oriente, enquanto que no Ocidente, não verificamos tampouco a atuação dos
poderes Patriarcal ou imperial de Constantinopla, que permaneceu à frente dos demais
Patriarcados orientais, eliminando ali a influência da Sé romana.
Tanto Roma quanto Bizâncio desejavam tornar-se o cume hierárquico de toda a
eocumene cristã. Entretanto, esse choque entre dois projetos universalistas, agravado durante
a primeira fase da Querela, demonstrou que o rompimento do corpo cristão entre Oriente e
Ocidente envolvia questões de uma política imperialista, e não somente pensamentos
religiosos.
247
OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 191.
248
Ibid.
132
3.3- Pós-Nicéia II: um breve período de restauração da iconofilia: 787-815
O abismo que separava o Oriente bizantino do Ocidente latino se alargava ainda
mais após Nicéia II. E uma das provas desse distanciamento foi a recusa por parte do
imperador carolíngio em acatar as decisões do Concílio iconófilo como representante da
totalidade da sociedade cristã.
249
Além disso, a aliança do papado com o Reino Franco no
Ocidente, agora governado por Carlos Magno, se mantinha cada vez mais sólida.
O principal foco da discussão foi uma versão errônea das decisões conciliares que
teria sido enviada ao imperador, onde tanto os termos latréia quanto proskinesis, que se
referiam a atitudes distintas, apareciam na tradução para o latim como adorare. Dessa forma,
uma discussão que ocupou boa parte dos debates em Nicéia havia sido diluída nessa tradução
equivocada. Carlos Magno teria manifestado uma atitude de neutralidade, recusando-se a
aceitar tanto as decisões iconófilas do Concílio de 787 quanto as iconoclastas do período
anterior. Esse posicionamento do rei franco ficou registrado nos Libri Carolini, quatro livros
onde Carlos Magno manifestava sua crítica tanto às idéias de Hieria quanto às de Nicéia II.
Escrito por teólogos ligados à Corte franca entre os anos 790 e 792, os Libri Carolini
representaram um posicionamento oficial dos francos frente às decisões de Nicéia, porém
baseado numa tradução incorreta das decisões conciliares, como citamos acima.
Ao rejeitar a idéia de que os ícones pudessem ser cultuados, embora servissem
como ornamentos para instrução e manutenção da memória dos eventos passados, a postura
tomada pelo imperador dos Francos se aproximava das idéias do Papa Gregório, o Grande.
Ambos concordavam que as imagens religiosas serviriam como instrumento de pedagogia
cristã, recusando assim tanto a atitude de destruí-las quanto de cultuá-las.
249
Sobre a recusa do Ocidente em aceitar as decisões do Concílio de Nicéia II, ver SCHMITT, Jean-Claude.
L’Ocident, Nicée II et les Images du VIII au XIII Siècle. In: BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. pp.
271-282.
133
Para oficializar sua posição, Carlos Magno chegou mesmo a convocar um sínodo
na cidade de Frankfurt, em 794. Ao que parece, e nesse ponto concordamos com Ostrogorsky,
Carlos Magno estaria buscando uma posição religiosa autônoma, independente da
bizantina.
250
Nesse sínodo havia representantes do Papa, o que solidificava ainda mais a
aliança entre o papado e os francos. Apesar de toda essa iniciativa, as discussões envolvendo
o culto de imagens não tiveram no Ocidente a mesma repercussão que se deu no Império
Bizantino.
Nesse sínodo decidiu-se pela permissão de imagens nos templos, embora a função
destas, segundo os bispos carolíngios, não implicaria em favorecer um transitus
251
do material
ao divino. Numa refutação preparada por Alcuíno e Teodulfo de Orleans, afirma-se:
“Também permitimos que haja imagens nas basílicas dos santos, não com um objetivo de
adoração mas para lembrar suas ações e embelezar as paredes.”
252
Sendo assim, além de
excitar a memória do fiel para as boas obras, como sugeriu Gregório Magno, ficava claro que
as imagens cristãs também teriam, no Ocidente, a função de ornamentar os espaços sagrados,
algo inconcebível entre os cristãos orientais.
Enquanto Carlos Magno tentava firmar uma posição religiosa autônoma em
relação à Igreja de Constantinopla, a década de 790 foi de constante disputa pelo trono
bizantino entre a então imperatriz regente e seu filho e herdeiro legítimo do trono,
Constantino VI. Irene pretendeu se manter no poder, mesmo após seu filho ter atingido a
maioridade, mantendo-o apenas como um co-imperador. E para isso, contou com o apoio das
tropas da capital do Império. Entretanto, parte do exército dos themas da Ásia Menor, sob
250
OSTROGORSKY, Georg Op. Cit pp. 191-192.
251
Conceito que, segundo Jean-Claude Schmitt, se refere a uma passagem entre uma forma material e o
protótipo divino. SCHMITT, Jean-Claude. L’Ocident, Nicée II et les Images du VIII au XIII Siècle. In:
BOESPFLUG, F. et LOSSKY, N. (Dir). Nicée II 787-1987. Douze siècles d’images religieuses. Paris: Cerf:
1987. p. 274.
252
BESANÇON, Alain. Op. cit. p. 247.
134
liderança dos armênios, fez forte resistência às pretensões de Irene. O resultado foi a
aclamação de Constantino VI como único imperador em 790.
Pouco depois de chegar ao poder como soberano, Constantino VI acabou sofrendo
derrotas militares diante dos búlgaros, provocando uma desilusão por parte de seus partidários
e favorecendo o retorno de sua mãe ao seu lado no trono, em 792. Além dessas baixas, o novo
imperador demonstrou ter pouca habilidade na condução do seu governo, conseguindo a
antipatia tanto dos iconófilos quanto dos iconoclastas.
Primeiro, para evitar um golpe que o tirasse do poder, mandou cegar a um tio e
cortar a ngua dos outros quatro. Mutilações dessa natureza impediam que esses homens
chegassem ao poder, pois o imperador nunca poderia ser alguém que tivesse algum tipo
deficiência física. Aliás, a aplicação desse tipo de violência para impedir a alguns homens a
ascensão ao poder não foi rara na história bizantina. Devido a atitudes como essa, as tropas do
exército que outrora apoiaram Constantino VI na subida ao poder, mostravam-se agora hostis
a ele.
Os monges zelotas também se voltaram contra o imperador. Além da insatisfação
desses monges com a clemência da regente Irene em relação aos iconoclastas, a indignação
agora se voltava contra um comportamento desviante do imperador, que havia rejeitado sua
esposa para casar-se com sua amante Teodora, dama da corte, coroando-a como Augusta.
Esse comportamento contrariava os mandamentos da Igreja, sendo completamente
desaprovado pelos ortodoxos.
Sem o apoio tanto dos iconófilos quanto da oposição iconoclasta, Constantino VI
sofreu uma derrubada do poder, sem que nenhum grupo se manifestasse a seu favor. Em 797,
sua própria mãe Irene mandou cegá-lo, eliminando-o do poder. Com isso, Irene se tornou
imperatriz soberana, sendo a primeira mulher a governar o Império Bizantino em seu próprio
nome, como soberana absoluta. Ficou no poder até de 802, um ano antes de sua morte.
135
Seu sucessor, Nicéforo I (802-811) não colocou em risco o culto de imagens,
embora tenha contribuído para alargar o distanciamento entre os monges e o poder imperial.
O motivo agora era a reconhecimento, por parte do imperador, do casamento entre
Constantino VI e Teodora, que tinha sido considerado um adultério anos antes. Os monges do
mosteiro de Studius chegaram mesmo a romper abertamente com a Igreja de Constantinopla,
expondo-se a perseguições e exílios por parte do poder imperial.
Os studitas voltaram do exílio e se reconciliaram com o poder eclesiástico no
governo de Miguel I (811-813), o último imperador antes da nova explosão iconoclasta. Nesse
período também cresceu a influência do monge Teodoro Studita, o principal nome da defesa
do culto aos ícones no século IX.
3.4- O retorno à iconoclastia no século IX
Os primeiros anos do século IX não foram favoráveis para os bizantinos no campo
militar. Os lgaros haviam conseguido importantes vitórias e se aproximavam da capital. A
incapacidade de Miguel I conter as investidas búlgaras levou à sua queda e à ascensão de um
comandante do exército ao trono: Leão V (813-820).
Seguindo os passos dos imperadores isáuricos Leão III e Constantino V, Leão V,
o Armênio, também tinha uma origem militar, vindo da Ásia Menor. Sua meta inicial no
governo foi restabelecer a força do exército bizantino diante dos búlgaros e eslavos, além de
reavivar a política iconoclasta, oficialmente condenada no Concílio de Nicéia II. Segundo sua
crença, as derrotas militares diante desses inimigos nos últimos anos teriam uma ligação
direta com uma punição divina aos cristãos de Bizâncio, por estes terem legitimado as práticas
de culto aos ícones em 787. Assim, o cenário no qual a iconoclastia retornou tinha
semelhanças com aquele de Leão III no século VIII: a crença num possível castigo de Deus ao
136
Império cristão por uma prática de culto considerado idolátrico, manifestado através de uma
ameaça de invasão e conquista estrangeira infiel.
Embora a expansão islâmica no século VII tivesse conquistado as ricas províncias
bizantinas do Egito, Palestina e Síria, Bizâncio conseguiu defender sua capital dos árabes e de
búlgaros, com quem se observam conflitos a partir da segunda metade do século VIII. Assim,
mesmo conseguindo importantes vitórias na defesa de parte de suas fronteiras, os constantes
combates contra esses inimigos estrangeiros mostram que o perigo de uma ameaça externa era
uma preocupação constante para o imperador bizantino. E nos momentos da explosão da
iconoclastia em 730, e de sua retomada em 815, esse perigo estrangeiro foi utilizado como
justificativa para uma ação contrária ao culto dos ícones.
253
Depois de algumas batalhas nos
arredores de Constantinopla, Leão V fixou uma paz de trinta anos entre bizantinos e búlgaros,
tendo tempo assim para colocar em prática seu objetivo de retorno do movimento iconoclasta.
Como era importante contar com o apoio do exército, que sempre foi de tendência
iconoclasta, e também devido ao fato de ser natural da Armênia, local onde a iconoclastia, já
antes da Querela, encontrava boa parte de seus adeptos, Leão V logo agiu a favor dos
iconoclastas. Primeiramente, em 813, tinha proibido os ícones em locais visíveis nas
igrejas.
254
Posteriormente, o então Patriarca de Constantinopla Nicéforo foi deposto, a
exemplo do que havia acontecido em 730 com Germano, e substituído no domingo de
Páscoa de 815, pelo cortesão Teodato Meliseno.
O passo seguinte foi a convocação de um Sínodo para oficializar novamente a
política de destruição dos ícones no Império Bizantino. Para esse novo sínodo, João, o
Gramático, fora encarregado de reunir a documentação necessária para colocar em vigor a
iconoclastia. Este Sínodo se reuniu na Igreja de Santa Sofia em Constantinopla, no ano de
253
Cf. OSTROGORSKY, Georg. Op. cit p. 208.
254
Informação citada Miguel II a Ludovico, o Pio, em 824 (MANSI, 14, col. 420), citado por ALBERIGO,
Giuseppe. O Segundo Concílio de Nicéia (786/787) ou Sétimo Concílio Ecumênico. In: História dos Concílios
Ecumênicos. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 1995. p. 153.
137
815. Nesta ocasião, apenas esse florilegium iconoclasta de João, ou seja, uma compilação de
textos contrários ao culto dos ícones, foi acrescentado às idéias apresentadas em Hieria. Por
conta disso, Georg Ostrogorsky afirmou que esse Sínodo carregou a marca de ser apenas uma
impotente imitação das decisões de 754.
255
Não houve, nesse segundo período da iconoclastia,
nenhuma grande inovação em seus fundamentos teológicos em relação ao século anterior.
Esse tamm pode ter sido um dos motivos para a falta de adesão da população cristã
ortodoxa nessa segunda fase da Querela.
256
Reunido o Sínodo, foram recusadas as decisões de Nicéia II e colocadas
novamente em prática as de Hieria, ordenando-se assim a destruição de todos os ícones
cristãos. Para tanto, as decisões conciliares de 787, agora refutadas, foram atribuídas não
somente ao desvio dos bispos iconófilos, mas também pelo fato de o Império ter sido
governado naquele momento por uma mulher. Assim diz o texto do Sínodo:
[...] wherefore the Church of God remained untroubled for many years and
guarded the people in peace; until it chanced that the imperial office passed
from [the hands of] men into [those of] a woman, and God’s Church was
undone by female frivolity: for, guided by most ignorant bishops, she
convened a thoughtless assembly, and put forward the doctrine that the
incomprehensible Son and Logos of God should be painted [as He was]
during the Incarnation by means of dishonored matter.
257
Existem duas afirmativas a serem ressaltados em relação à forma como o texto
desse sínodo se refere ao Concílio de Nicéia II. Primeiro, o fim da iconoclastia fora fruto da
atuação de “bispos ignorantes” através da figura da imperatriz. Como vimos, é mais provável
que Irene tenha agido através, principalmente, da figura do Patriarca Tarásio para fazer
255
OSTROGORSKY, Georg. Op cit. p. 210.
256
Cf. ALBERIGO, Giuseppe. Op. cit
257
Definitions (Horos) of the Iconcoclastic Council of 815. In: MANGO, Cyril. Op cit. p. 168. “[...] portanto, a
Igreja de Deus permanceu tranqüila por muitos anos e mantendo as pessoas em paz; até acontecer que o serviço
imperial passou [das mãos] de homens para de uma mulher, e a Igreja de Deus foi arruinada pela frivolidade
feminina: já que, guiada pelos bispos mais ignorantes, ela reuniu uma imprudente assembléia e levou adiante a
doutrina de que o incompreensível Filho e Logos de Deus podia ser pintado [como ele foi] durante a Encarnação
por meio de desonrosa matéria.” (Tradução nossa).
138
prevalecer suas convicções a respeito do culto de ícones, do que ter sido manipulada pelos
bispos iconófilos.
Depois, ao longo do texto, revela-se uma contradição, pois o peso das decisões
sempre recai sobre Irene. Ao que parece, seria mais fácil voltar a impor as idéias iconoclastas
se as decisões de Nicéia II fossem diretamente relacionadas a uma frivolidade feminina de
Irene, uma imperatriz destronada e que tinha morrido alguns anos antes.
Percebe-se novamente a questão da Encarnação no centro dos da Querela. Mas,
assim como aconteceu em Hieria, a extensão da proibição do culto alcançava ainda os ícones
da Virgem e dos santos. Aqui, a preocupação iconoclasta se justificaria com um tipo de
representação antropomórfica dos santos cristãos, à semelhança dos cultos pagãos:
She also heedlessly stated that lifeless portraits of the most-holy Mother of
God and the saints who share in His [i.e. Christ’s] form should be set up and
worshipped, thereby coming into conflict with the central doctrine of the
Church.
258
E novamente aparece no texto a discussão em torno da atitude do fiel diante do
ícone. A acusação era, assim como aquela feita em Hieria, de que os cristãos estariam
oferecendo a uma matéria desonrosa o mesmo tipo de culto do qual o próprio Deus seria
digno. Era como se toda o cuidado de Nicéia II para demonstrar a distinção entre o culto
chamado de latréia e o de proskinesis, para a legitimação da veneração aos ícones, agora
simplesmente fosse desconsiderada ou tratada de maneira equivocada pelos iconoclastas:
Further, she confounded our worship by arbitrarily affirming that what is fit
for God should be offered to the inanimate matter of icons, and she
senselessly dared state that these were filled with divine grace, and by
offering them candlelight and sweet-smelling incense as well as forced
veneration, she led the simple-minded into error.
259
258
Definitions (Horos) of the Iconcoclastic Council of 815. In: MANGO, Cyril. Op cit. pp. 168-169. “Ela
também, de maneira imprudente, decretou que os retratos sem vida da santíssima Mãe de Deus e dos santos que
compartilharam de Sua [de Cristo] forma deviam ser erguidos e cultuados, através de um esperado conflito com
a doutrina central da Igreja.” (Tradução nossa).
259
Ibid. p. 169. “Além disso, ela confundiu nosso culto pela arbitrariedade, afirmando que o que é digno de Deus
deve ser oferecido à inanimada matéria dos ícones e de forma insensata ousou declarar que esses eram cheios da
139
Como vimos acima, o texto do Sínodo de 815 afirma que a imperatriz, além de
conduzir a mente dos simples ao erro, teria ainda forçado a veneração dos ícones. Nas fontes
não encontramos indícios de que Irene tivesse, por uso de qualquer meio, imposto pela força
aos fiéis o culto dos ícones. Entretanto, para que o Concílio de 787 fosse convocado, ela teria
exigido dos bispos que no ano anterior contribuíram para o malogro dos trabalhos que estes se
abjurassem de suas idéias iconoclastas diante da assembléia. O texto de 815 não parece fazer
referência a este acontecimento.
Após essas acusações, o texto do Sínodo afirma ainda que os ícones deveriam ser
banidos das práticas cristãs, considerando que sua manufatura não era sagrada e que estes
teriam sido audaciosamente proclamados:
“Wherefore, taking to heart the correct doctrine, we banish from the Catholic
Church the unwarranted manufacture of the spurious icons that has been so
audaciously proclaimed, impelled as we are by a judicious judgment”.
260
Posteriormente, as decisões de Nicéia II foram revogadas, fazendo vigorar
novamente a política da iconoclastia em Bizâncio:
[...] passing a righteous judgment upon the veneration of icons that has been
injudiciously proclaimed by Tarasius, and so refuting it, we declare his
assembly invalid in that it bestowed exaggerated honor to painting, [...]. We
decree that the manufacture of icons is unfit for veneration and useless.
261
Percebe-se que não houve uma resposta às decisões de Nicéia II, mas o
simplesmente a sua anulação. E mais uma vez as fontes mostram que, além do objetivo de
graça divina e por oferecer-lhes candelabro e incenso com aromas assim como forçou a veneração, ela induziu as
pessoas de mente simples ao erro.” (Tradução nossa).
260
Definitions (Horos) of the Iconcoclastic Council of 815. In: MANGO, Cyril. Op. cit.. p. 169. “Portanto,
tomando para o coração a correta doutrina, nós banimos da Igreja Católica a manufatura não autorizada dos
falsos ícones que foram tão audaciosamente proclamados, impelidos como somos por um julgamento sábio.”
(Tradução nossa).
261
Ibid. “passando um correto julgamento sobre a veneração dos ícones que tem sido injuriosamente proclamada
por Tarásio e refutando-a, nós declaramos sua assembléia inválida naquilo que ela concedeu exagerada honra às
pinturas [...]. Nós decretamos que a manufatura dos ícones não é digna de veneração e desnecessária.” (Tradução
nossa).
140
desqualificar o adversário, aqueles que m a palavra nos sínodos se apresentam como
representantes da verdadeira” doutrina cristã, de um “julgamento correto”. É como se os
iconoclastas não apresentassem apenas uma defesa de seus argumentos no texto sinodal, mas
falassem em nome do único pensamento teologicamente correto. Esse tipo de discurso fora
utilizado por ambos os lados durante toda a Querela Iconoclasta.
algumas semelhanças entre o segundo período da iconoclastia e o primeiro,
não apenas em seu conteúdo dogmático, como vimos acima, mas no próprio desenrolar dos
fatos. Vejamos alguns exemplos: nas duas ocasiões havia uma ameaça de invasão eminente
por parte de um povo estrangeiro (árabes até a primeria metade do século VIII e lgaros no
IX); tanto Leão III, que iniciou o movimento em 726, quanto Leão V, que o restaurou em 815,
eram naturais da Ásia Menor e foram comandantes do exército bizantino antes de chegar ao
poder; nos dois momentos os Patriarcas de Constantinopla (Germano em 730 e agora
Nicéforo) eram contrários à imposição da iconoclastia, sendo por isso depostos. Mas dois
aspectos diferenciadores devem ser aqui ressaltados. O primeiro foi a perda da força que o
movimento iconoclasta teve em seu segundo momento, percebida, por exemplo, no fato de
não ter-se repetido toda a violência na perseguição aos iconófilos que foi observada no culo
VIII. Outro foi a ausência de novas idéias em relação à destruição dos ícones, limitando-se
aqui a simplesmente repetir os mesmos pensamentos teológicos condenados pela Igreja e
pelo Império havia poucos anos.
Após a morte de Leão V, a iconoclastia ainda sobreviveu sob o poder de seus dois
sucessores imediatos, Miguel II (820-829) e Teófilo (829-842), ambos da dinastia amórica.
Miguel II, embora fosse contrário ao culto dos ícones, chegou a proibir qualquer tipo de
discussão referente ao assunto, não reconhecendo nem as decisões conciliares de Nicéia II
141
nem as de Hieria. No seu governo, os iconófilos exilados por Leão V, entre eles o ex-Patriarca
Nicéforo e o monge Teodoro Studita, puderam retornar ao território bizantino.
262
Apesar de algumas atitudes condescendentes em relação aos iconófilos, Miguel II
parecia manter uma tendência contrária ao culto dos ícones. Sua citada carta ao imperador
franco Luís, o Piedoso, em 824, desaprova certos comportamentos dos cristãos em relação aos
ícones, criticando inclusive o comportamento de alguns membros do clero bizantino:
This, too, we declare to your Christ-loving Affection that many clerics and
layman, alienating themselves from apostolic traditions and not observing
the definitions of the Fathers, have become originators of evil practices.
First, they expelled the venerable and life-giving crosses from the holy
churches and in their stead they set up images, in front of which they placed
lights and burnt incense, and held them in the same esteem that is due to the
venerable and life-giving cross upon which Christ, our true God, deigned to
be crucified for the sake of our salvation.
263
Outras práticas relatadas foram consideradas “inadequadas” por Miguel II em
relação ao culto dos ícones cristãos, que não tinham sequer sido citadas anteriormente. E o
que chama mais a atenção é que, segundo essa carta de Miguel II, algumas dessas práticas
partiam mesmo de padres e clérigos:
262
OSTROGORSKY, Georg. Op. cit pp. 210-211.
263
Carta do Imperador Miguel II a Luís, o Piedoso (824). In: MANGO, Cyril. Op. cit. pp. 157-158. “Assim,
também, nós declaramos para seu amado Cristo que muitos clérigos e leigos, alienando-se das tradições
apostólicas e o observando as definições dos Padres, tem se tornado criadores de más práticas. Primeiro, eles
expulsaram as veneráveis e cruzes, dádivas da vida, das santas igrejas e em seu lugar ergueram imagens, em
frente das quais colocaram luzes e queimaram incensos e guardam a mesma estima que é dada a venerável cruz
sob a qual Cristo, nosso verdadeiro Deus, dignou ser crucificado por causa da nossa salvação.” (Tradução nossa).
142
Many people wrapped cloths round them and made them the baptismal
godfathers of their children. [...] Others [certain priests and clerics] again
placed the Body of the Lord in the hands of images and made the
communicants receive it there from. Others, yet, spurning the Church, used
panel images in the place of altars, and this in ordinary houses, and over
them they celebrated the holy ministry, and they did in the churches many
other illicit things of this kind that were contrary to our faith and appeared to
be altogether unseemly to men of learning and wisdom.
264
Um dos pontos mais importantes no discurso iconófilo era justamente o fato de os
ícones pertencerem a uma antiga tradição da Igreja cristã. Também destacam um ritual tanto
em torno da sua criação quanto do seu culto, além de esclarecer constantemente que o ícone
seria apenas um condutor do fiel ao protótipo que ele representa. O que se percebe na
narração acima é uma quebra com esses dois fundamentos da iconofilia, o sendo observada
a distinção entre imagem e protótipo, inclusive por membros do clero.
Nessas atitudes, fica clara a existência de um distanciamento entre o que se define
num sínodo ou concílio da Igreja a respeito de uma prática religiosa e as manifestações
cotidianas do cristão diante dos ícones. Como afirmou David Freedberg, na relação do cristão
com o ícone, existe uma grande diferença entre a teoria e a prática dos fiéis.
265
Numa demonstração de seu posicionamento favorável à iconoclastia, Miguel II
citou na referida carta a Luis, o Piedoso o Concílio de Constantinopla de 815 como
representante da sua crença e convicção em relação ao culto dos ícones:
Wherefore, the orthodoxy Emperors and most-learned bishops decree that a
local council be convened so as to examine these matters, and they came
together under the inspiration of the Holy Ghost.
266
By common decision
they forbade such practices in any place whatever, and caused images to be
removed from position near the ground lest they be worshipped by ignorants
and weak persons; on the other hand, they allowed those images that had
been placed higher up to remain in place, so that painting might fulfill the
purpose of writing, but they did not permit either lamps to be lit before them
264
Ibid. p. 158. “Muitas pessoas vestem roupas em volta delas e fazem delas o padrinho de batismo de suas
crianças. [...] Outros [certos padres e clérigos] muitas vezes colocam o Corpo do Senhor nas mãos das imagens e
fazem os que comungam recebê-lo a partir dele. Outros ainda, menosprezando a Igreja, usaram painel de
imagens no lugar dos altares, e esse em casas ordinárias, e sobre eles celebraram o sagrado ministério, e fizeram
nas igrejas muitas outras ilícitas desse tipo que foram contrárias a nossa fé e parecem ser completamente
inadequadas para homens de conhecimento e sabedoria.” (Tradução nossa).
265
FREEDBERG, David. Op. Cit, 1992. p. 469.
266
O Sínodo de Constantinopla de 815.
143
or incense to be burnt. Such also is our belief and conviction, and we reject
from Christ’s Church those who cling to the above wicked inventions.
267
Seu sucessor no trono bizantino, foi seu filho Teófilo (829-842), um imperador
ligado à arte e cultura, que também era contrário ao culto dos ícones. Pode parecer paradoxal
para um iconoclasta esse gosto pela arte. Mas os iconoclastas não eram contrários a todos os
tipos de imagens, somente àquelas que pudessem excitar o fiel a um tipo de culto considerado
idolátrico. Tanto que muitos ícones destruídos cederam seu espaço para outros temas de
pinturas, como animais e paisagens.
Foi sob seu governo que a política iconoclasta viveu seus últimos anos de vigor.
João, o Gramático, que tinha preparado a documentação para a realização do sínodo de
Constantinopla em 815, chegou ao trono Patriarcal. Entretanto, a iconoclastia não
apresentava a mesma força para sua defesa como no século anterior. Teófilo foi o último
imperador bizantino a manter a política da iconoclastia. Após sua morte em 842, a Querela
perdeu o apoio imperial, uma vez que seu filho Miguel III não poderia assumir o trono por ser
ainda menor de idade e a imperatriz regente Teodora ter se disposto a colocar um fim no
período do iconoclasmo.
3.5- A nova defesa dos ícones: o Patriarca Nicéforo e o monge Teodoro Studita.
Assim como ocorreu no século VIII, a iconofilia encontrou seus principais
defensores nas figuras do patriarca de Constantinopla e de um monge: Nicéforo (c. 758–828)
e Teodoro Studita (759–826), respectivamente. Nicéforo baseou sua defesa da legitimidade do
267
Carta do Imperador Miguel II a Luís, o Piedoso (824). In: MANGO, Cyril. Op. cit. p. 158. “Portanto, os
imperadores ortodoxos e os bispos mais sábios decretaram que um concílio local seria assim reunido para
examinar essas matérias, e eles vieram juntos sob inspiração do Espírto Santo. Por decisão comum, eles
proibiram tais práticas em qualquer lugar e as imagens deveriam ser removidas de perto do chão para que não
fossem cultuadas pelos ignorantes e pessoas fracas; por outro lado, eles permitiram aquelas imagens que tinham
sido colocadas em locais altos permanecessem nesses lugares, de modo que a pintura pudesse satisfazer o
propósito da escrita, mas eles o permitiram tampouco acender mpadas diante delas incensos para serem
queimados. Tal também é a nossa crença e convicção, e nós rejeitamos da Igreja de Cristo aqueles que se
apegam sobre más invenções.” (Tradução nossa).
144
ícone sobre a questão da possibilidade de circunscrever pictoricamente o Cristo, mesmo após
sua ressurreição. O argumento iconoclasta em Hieria menciona a impossibilidade de
circunscrever a divindade de Cristo numa imagem. E mais ainda, que após a Ressurreição,
circunscrever sua natureza humana seria impossível, pois levando em consideração a
definição da união entre humanidade e divindade em Cristo, seu corpo físico teria sido
considerado pelos iconoclastas como de incircunscritível, pois não havia mais a possibilidade
de seu corpo ser tocado ou visto.
268
Esse pensamento se aproxima das idéias monofisistas.
O que Nicéforo propõe é uma verdadeira ruptura com as determinações
iconoclastas apresentadas em Hieria, e que tinha sido novamente colocada em vigor em
Constantinopla, desde 815, de que a imagem para ser legítima deveria ser consubstancial ao
protótipo, como a Eucaristia. O Patriarca defende que representar numa imagem não seria o
mesmo que circunscrever (perigraphos), não pretendendo assim limitar numa pintura a
divindade de Cristo. Dessa forma, ele separa o protótipo de sua representação, e afirma que o
ícone não possuía a mesma natureza do representado.
Assim, os iconoclastas se preocupavam muito mais com a consubstancialidade
para que uma representação do Cristo fosse aceita como verdadeira do que com sua forma. E
os iconófilos buscam uma semelhança com o protótipo a partir de sua imagem, reafirmando
porém a inexistência de uma consubstancialidade, deixando clara a distância que existe entre
o Cristo e sua representação pictórica.
Para refutar a exigência da consubstancialidade, Nicéforo se baseia na diferença
entre a pintura ou o desenho e uma circunscrição. Diz o Patriarca: “A pintura está relacionada
com a semelhança[...], ela é pintura do arquétipo mas dele acha-se separada, subsiste à parte e
268
Essa impossibilidade de circunscrever a divindade de Cristo numa pintura se encontra nas atas do sínodo de
Hieria, por nós trabalhado no tópico 2.2 do capítulo II. Estas fontes se encontrarm transcritas para o inglês em
MANGO, Cyril. Op. cit.pp. 165-168, e no website In: Medieval Sourcebook, website www.fordham.edu
Epitome of the Definition of the Iconoclastic Conciliabulum, Held in Constantinople, A.D. 754. Há também uma
edição em português dessas definições em ESPINOSA, Fernanda. Op. cit. p. 63.
145
num determinado momento [...].”
269
Assim, o que se reproduz num ícone de Cristo não é a
sua natureza, mas o que a inteligência é capaz de apreender desse corpo que une em si
humano e divino de uma forma que ao mesmo tempo não se confundem nem se separam.
Hans Belting destaca a importância da semelhança de um ícone com seu protótipo. Afirma
que uma semelhança “real” (como no caso da Virgem de São Lucas) é o que caracteriza um
ícone como autêntico.
270
Belting ainda cita o Patriarca Nicéforo, que afirmou ser um ícone um
objeto de veneração mais valoroso que uma cruz, por possuir uma substancial similitude
(homoiôma) com o Cristo.
271
Completa Besançon: “O ícone não é uma imagem natural do protótipo, porque, se
fosse este o caso, os iconoclastas teriam razão de dizer que tal é impossível. O ícone é uma
imagem artificial, que não é da natureza do protótipo: ela faz imitá-lo.”
272
Assim, o elo
entre o protótipo e seu ícone era a forma que este assumia, mantendo uma semelhança física
com aquele que é representado. Entretanto, não nenhuma pretensão por parte dos
iconógrafos ou iconófilos de buscar uma semelhança com a natureza divina do protótipo, de
fazê-la presente no ícone, como no caso da Eucaristia.
Portanto, Nicéforo desvaloriza o poder do ícone de Cristo em si para justificar a
sua representação, que se limitaria a ter apenas uma semelhança física com o protótipo. Este,
mesmo sendo um corpo divino, não deixa de ser antropomorfo e, por isso, passível de uma
representação.
273
A defesa de uma idéia em desacordo com a posição imperial (até então não
oficializada) resultou na deposição de Nicéforo da sede patriarcal no ano de 815, pouco antes
da realização do Sínodo de Constantinopla. Essa atitude por parte do imperador Leão V
269
BESANÇON, Alain. Op. cit p. 210.
270
BELTING, Hans. Op. cit p. 4.
271
Ibid. p. 159.
272
BESANÇON, Alain. Op. cit p. 210.
273
Ibid. p. 211.
146
visava a ascenção ao trono patriarcal do cortesão Teodato Meliseno, de tendência iconoclasta,
como vimos. Era quase que um pré-requisito para o sucesso de um novo Sínodo que um
Patriarca iconoclasta estivesse à frente da Igreja de Constantinopla. O mesmo já havia
ocorrido quando da convocação para o Concílio de Nicéia II, com a subida de Tarásio ao
patriarcado.
O outro importante nome na defesa dos ícones no século IX foi o monge Teodoro
Studita. Sobrinho de um dos principais abades que havia participado do Concílio de Nicéia II,
Platão de Sakoudion, Studita também se tornou abade, em 794, do mosteiro de Studios, um
dos mais poderosos e respeitados de Constantinopla. Por seu radicalismo no que se refere a
suas posições religiosas, foi mandado ao exílio pelos imperadores Constantino VI, Nicéforo e
também por Leão V. Nem todas essas condenações estavam ligadas à questão da iconoclastia.
A base para a defesa de Studita, assim como para seus antecessores, era a
Encarnação de Cristo. Seus principais documentos na defesa dos ícones foram o seu
testamento ao Mosteiro de São João de Studius, além do texto Poems on Images e algumas
cartas.
274
Se em Nicéforo e Damasceno vimos que é possível a representação pictórica de
Cristo por causa da união da sua divindade com sua humanidade, o que fez dele também um
homem visível, agora Studita busca a resposta para uma questão trazida das definições
iconoclastas de Hieria: E a natureza divina, também poderia estar presente num ícone, ou nele
se percebe a humana? Para encontrar a resposta, Studita recorre às mesmas fontes que os
iconoclastas haviam utilizado para condenar a iconofilia, as atas do Concílio da Calcedônia.
Se em Cristo o que são suas naturezas inseparáveis e inconfundíveis, não se representa
uma ou outra em separado. Nele, “o invisível se faz ver”
275
, e os ícones representam sua
hipóstase, não sua natureza.
274
Para ver a referência dessa documentação, ver a nota 49 da Introdução.
275
BESANÇON, Alain. Op. cit p. 211.
147
Os documentos escritos por Teodoro, concordam com Damasceno ao afirmar que
o ícone poderia servir para conduzir o intelecto do fiel do sensível ao inteligível nele
retratado. E recorre a definições já apresentadas em Nicéia II, onde se afirmou que venerar um
ícone de Cristo, eqüivaleria a venerar o próprio Cristo e que recusar suas representações, seria
recusar o protótipo: “He who venerates this image therefore venerates Christ; he who does not
venerate it is wholly his foe, for he is filled with hate for him and does not wish his depicted,
incarnate appearance to be venerated.”
276
Essa idéia foi reafirmada pelo monge numa carta:
[...], as far as I know, basing myself on the doctrine of the holy Fathers, is
the reverence towards the image of Christ. If it is subverted, Christ’s
incarnation is also subverted; and if the image is not revered, our reverence
towards Christ is likewise destroyed.
277
A defesa iconófila se apoderou ainda de algumas idéias já definidas na primeira
fase da Querela. Para Teodoro Studita, assim como para João Damasceno e Nicéforo, a
questão da representação de Cristo está diretamente relacionada ao mistério da Encarnação.
Se à pessoa de Cristo for negada a possibilidade de ser pintada num ícone e,
consequentemente, o culto desse ícone também for negado, a própria crença na Encarnação
divina é então colocada em dúvida.
Para Studita, é pelo mistério da Encarnação que seria possível uma representação
pictórica da Pessoa de Cristo. E aqui ele se esforça para esclarecer que o ícone não possui a
substância de Cristo em si, mas sim que ele representa a sua Pessoa. A substância, no caso do
ícone, seria o material do qual este é feito. Diz Studita:
For the nature of painting (hulographia) is different from that of Christ,
whereas the person is one and the same, [...]. Whereas in the case of the
imitative picture and its model, i.e., Christ and Christ’s image, granted that
276
Poems on Images by Abbot Theodore of Studion. In: FREEDBERG, David. Op. cit p. 508. “Quem venera a
imagem consequentemente venera Cristo; quem não a venera é seu inimigo completo, por estar cheio de ódio
dele e não querer sua pintura, aparência encarnada ser venerada.” (Tradução nossa).
277
Carta do monge Teodoro Studita. In: MANGO, Cyril. Op. cit.. p. 174. “ [...], até onde eu sei, baseando-me na
doutrina dos santos Padres, a reverência é para uma imagem de Cristo. Se ela for subvertida, a Encarnação de
Cristo é também subvertida; e se a imagem o é reverenciada, nossa reverência para Cristo é igualmente
destruída.” (Tradução nossa).
148
the person of Christ is one and the same, the reverence is here, too, the same,
because of the identity of person, without regard to the difference of nature
between Christ and the images.
278
Havendo essa identidade entre o ícone e o protótipo, uma reverência à
representação teria o mesmo valor daquela prestada à pessoa. A partir dessas colocações,
Studita valoriza o ícone unicamente pela identidade que este mantém com o protótipo, pois
ambos tratam da mesma pessoa. Nesse ponto, Teodoro se distingue de Damasceno, que
acreditava que a matéria do ícone teria o poder de transmitir a presença do protótipo.
279
Ao
ressaltar a diferença entre a natureza da pintura e aquela do protótipo, Teodoro valoriza o
ícone por este ser a imagem de um prosôpon, de um aspecto visível que caracteriza uma
pessoa concreta, em detrimento do material do qual é feito o ícone.
280
Assim, o ícone não
seria digno de culto por si só, mas antes pela semelhança do caráter” do ícone com a Pessoa
do Verbo.
281
É seguindo essa linha de pensamento que Studita responde as acusações de
idolatria que novamente foram feitas pelos iconoclastas no Sínodo de 815:
If, however, we acknowlekdge that the reverence towards image and model
was one, not only because of the identity of person, but also that of nature,
we would be disregarding the difference between the image and the person
represented... and falling into pagan polytheism by deifying every kind of
material which is fashioned into the image of Christ.
282
Damasceno dava grande importância aos aspectos materiais, pois dizia que na
Encarnação Deus havia se dignado a habitar na matéria para concretizar o plano da Salvação.
E para justificar seu pensamento de não desprezar a matéria, afirmou:
278
Ibid. p. 173. “A natureza da pintura (hulographia) é diferente da de Cristo, enquanto a pessoa é uma e a
mesma [...]. Enquanto no caso da imitativa pintura e seu modelo, i.e., de Cristo e sua imagem, concebe-se que a
pessoa de Cristo é uma e a mesma, a reverência é aqui, também, a mesma, por causa da identidade da pessoa,
sem considerar a diferença de natureza entre Cristo e a imagem.” (Tradução nossa).
279
Ver BESANÇON, Alain. Op. cit p. 212.
280
BARBU, Daniel. L’Image byzantine: production et usages. In: Annales HSS, janvier-févier 1996, no 1, p. 73.
281
Cf. BESANÇON, Alain. Op. cit
282
Carta do monge Teodoro Studita. In: MANGO, Cyril. Op. cit.. p. 173. “Se, porém, s sabemos que a
reverência para a imagem e o modelo é uma, não apenas por causa da identidade da pessoa, mas também da
natureza, nós não estaríamos considerando a diferença entre imagem e a pessoa representada... e caindo no
politeísmo pagão por deificar todo tipo de material do qual é feita a imagem de Cristo.” (Tradução nossa).
149
Was not the thrice happy and thrice blessed wood of the Cross matter? Was
not the sacred and holy mountain of Calvary matter? What of the life-giving
rock, the Holy Sepulchre, the source of our ressurrection: was is not matter?
Is not the most holy book of Gospels matter? Is not the blessed table matter
which give us the Bread of Life? Are not the gold and silver matter, out of
which crosses and altar-plate and chalices are made? And before all these
things, is not the body and blood of our Lord matter? [...]Do not despise
matter, for it is not despicable.
283
Além da defesa dos ícones do Cristo, Teodoro se preocupou também com as
demais representações iconográficas, como as da Virgem, dos apóstolos, santos e mártires.
Para tanto, seu argumento baseia-se no Concilio de Nicéia II. Encontramos essa defesa no
testamento que o monge deixou para o mosteiro de São João de Studion, em Constantinopla
em 826. Numa passagem desse documento, diz Studita:
I also follow the Second Council of Nicaea which was recently assembled
against the accusers of Christ. I accept and revere the sacred and holy images
of our Lord Jesus Christ, of the Mother of God, of the apostles, prophets,
martyrs, and of all the holy and just. Moreover, I ask for their undefiled
intercessions to propitiate the Godhead. With faith and awe I embrace their
all-holy relics as full of divine grace.
284
Alain Besançon afirma que o corpo de Cristo não é matéria no mesmo sentido que
um ícone, o livro dos Evangelhos ainda ou um cálice sagrado. Damasceno, ao associar
diferentes materiais, acaba por se aproximar das práticas da devoção popular e supersticiosas
em relação ao ícone. Uma delas foi denunciada pelo imperador Miguel II (820-829) em uma
carta a Luís, o Piedoso (814-840), em 824. O imperador critica a atitude de alguns sacerdotes
283
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. Disponível em:
www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acesso em 25/05/2005. “Não é a três vezes feliz e três vezes sagrada
madeira da Cruz matéria? Não é a sagrada e santa montanha do Calvário matéria? E a pedra do dom da vida, o
Santo Sepulcro, a fonte de nossa ressurreição: ela não é matéria? o é o mais santo livro dos Evangelhos
matéria? Não é a sagrada mesa matéria, na qual nos deu o o da Vida? Não o ouro e prata matéria, dos quais
cruzes, pratos de altares e cálices são feitos? E antes de todas essas coisas, não é o corpo e o sangue de nosso
senhor matéria? [...] Não despreze a matéria, pois ela não é desprezível.” (Tradução nossa).
284
Testament of Theodore the Studite for the Monastery of Saint John Studios in Constantinople, 826. Publicado
por Dumbarton Oaks Reserche Library and Celletion. Washington, D.C. Trustes for Havard University, 2.000. p.
76. "Eu tambem sigo o Segundo Concilio de Nicéia que foi recentemente reunido contra os acusadores de Cristo.
Eu aceito e reverencio as sagradas e santas imagens de nosso Senhor Jesus Cristo, da Mãe de Deus, dos
apóstolos, profetas e mártires, e de todos os santos e justos. Além do mais, eu pergunto pela sua incorruptível
interseção para propiciar a graça divina. Com e temor eu aceito suas santas relíquias como cheias da graça
divina." (Tradução nossa).
150
que raspavam os ícones, para fazer cair pequeninos pedaços deles sobre os vasos eucarísticos.
Diz o imperador nessa carta: “Certain priests and clerics scraped the paint of images and,
mixing this with the eucharistic bread and wine, let the communicants partake of this oblation
after the celebration of the mass.”
285
É exatamente esse afastamento do material do ícone em relação ao protótipo que
Studita ressalta, sendo este o principal aspecto que o diferencia das idéias de João
Damasceno. Este último, ao propor que o ícone contenha em si a “energia” do protótipo,
iguala a matéria do ícone ao da espécie eucarística, colocando-o no mesmo patamar de um
dos sacramentos cristãos. Acreditamos que, por mais que Damasceno tenha defendido e
exaltado a importância do ícone no culto cristão, não teria sido sua pretensão colocá-lo em pé
de igualdade com o sacramento da Eucaristia. Entretanto, quando se percebe essa valorização
da matéria, fica difícil perceber, por exemplo, em que a sua teologia se distinguiria da prática
condenada pela Igreja de raspar ícones para serem ingeridos na comunhão.
286
Se para Damasceno, o ícone era digno de culto por uma certa energia que a pessoa
representada transmitiria através da pintura, para Teodoro Studita, seu valor estaria apenas na
semelhança que a representação mantém com o protótipo representado, evidenciando aqui
uma distinção entre as suas naturezas. Se o ícone não possuir os traços distintivos do modelo
representado, então não tem valor para o culto.
A questão da semelhança ressaltada por Teodoro Studita abre uma nova
perspectiva na defesa dos ícones dentro da Querela. Se, por um lado, o argumento iconoclasta
não havia apresentado, nesse segundo período, alterações em relação às decisões do sínodo de
Hieria, o mesmo não se pode dizer em relação aos iconófilos. Ao se apropriarem de
discussões traçadas no século anterior, fundamentadas pela questão da Encarnação, por
285
Carta do Imperador Miguel II a Luís, o Piedoso (824). In: MANGO, Cyril. Op. cit.. p. 158. “Certos padres e
clérigos raspam a pintura das imagens e, misturando-as com o pão eurcarístico e o vinho, permitem aos que
recebem a comunhão partilhar dessa oblação depois da celebração da missa.” (Tradução nossa).
286
BESANÇON, Alain. Op. cit pp. 208-209.
151
exemplo, tanto Nicéforo quanto Studita apresentaram idéias que complementavam o
pensamento iconófilo anterior existente. O Patriarca inovava ao afirmar que o ícone não
pretendia circunscrever um ser divino, enquanto o monge contesta o fato de a matéria ser
transmissora da presença divina, sendo venerada por sua semelhança com o protótipo.
Não obstante os pensamentos dos monges Damasceno e Studita se encontram na
afirmação que para ambos o ícone é considerado como veículo que leva à oração e à
veneração do fiel à pessoa representada. O próprio Damasceno, que em contraposição a
Studita, valorizava a matéria da qual era feito o ícone, procurou deixar claro que o culto não
era motivado pelo ícone em si, mas por este se constituir num caminho para a graça divina: “I
reverence and honour matter, and worship that which has brought about my salvation. I
honour it, not as God, but as a channel of divine strength and grace.”
287
Esse pensamento encontra correspondência com as idéias de Teodoro Studita.
Também para ele, o ícone é um meio pelo qual a reverência do fiel chegaria até o próprio
Cristo:
[...] the reverence is not [directed] to the substance of the image... but toward
Christ who is revered in His image, while the material of the image remains
altogether unrelated to Christ who is revered in it by virtue of similitude...
288
Portanto, mesmo utilizando um caminho diferente daquele proposto por
Damasceno, Studita também reconhece a importância do ícone como testemunha do mistério
da Encarnação e defende seu culto como um culto à própria pessoa que nele está retratada.
Devemos ressaltar aqui que essas opiniões não se distinguiram umas das outras nas definições
287
St. John of Damascus: Apologia Against Those Who Decry Holy Images. In: Website www.fordham.edu.
Medieval Source Book. Acessado em 25/05/2005. “Eu reverencio e honro a matéria e cultuo aquela que tem
conduzido minha salvação. Eu a honro, não como Deus, mas como um canal da força e graça divina.” (Tradução
nossa).
288
MANGO, Cyril. Op. cit.p. 174. “[...] a reverência não é [direcionada] à substância da imagem... mas ao Cristo
que é reverenciado em Sua imagem, enquanto que o material da imagem permanece completamente ausente do
Cristo, que é revernciado nela pela virtude da similitude.” (Tradução nossa).
152
finais sobre os ícones ao final da Querela, mas antes elas se justapuseram, sem que houvesse a
necessidade de uma opção por um desses sistemas.
3.6- O Triunfo da Ortodoxia: o fim definitivo da Querela Iconoclasta – 843
O filho e herdeiro do trono bizantino, Miguel III (842-867) não pôde assumir o
trono imediatamente após a morte de seu pai por ser menor idade naquele momento. Como o
imperador tinha apenas seis anos de idade, o governo ficou novamente nas os de uma
imperatriz regente, Teodora. Foi novamente a figura de uma mulher a comandar a restauração
do culto dos ícones na Igreja bizantina. Segundo John Haldon, Teodora teria decido pôr um
fim na iconoclastia influenciada por Theoktistos, um eunuco muito influente na corte
imperial.
289
Assim como Irene tinha feito no século anterior, a primeira atitude da nova
imperatriz regente no caminho da restauração do culto dos ícones foi nomear Metódio para
Patriarca, um iconófilo para presidir a sede de Constantinopla. É curioso o fato de, tanto na
primeira fase da Querela quanto na segunda, ter sido uma imperatriz regente a responsável
pela vitória iconófila. No caso de Irene, sua origem grega poderia explicar sua inclinação pelo
culto dos ícones. Mas o mesmo o se aplica a Teodora. O fim da iconoclastia parecia se
dever perda da força que essa política teve no seu segundo período, perdendo adeptos
inclusive na Ásia Menor, quanto à crença pessoal da imperatriz.
290
Em 843, não foi necessária
a convocação de um Concílio Ecumênico para colocar um fim na questão, pois, sem o mesmo
vigor de antes, a iconoclastia nem sequer atravessou as fronteiras da capital do Império.
Uma ilustração do Saltério de Cludov permite se fazer algumas analogias
concernentes à condenação do iconoclasmo a partir de um ponto de vista iconófilo:
289
HALDON, John. Op. Cit pp. 35-36.
290
Tanto Michael Angold quanto Alain Besançon afirmam que a imperatriz Teodora venerava os ícones, antes
mesmo do fim da Querela Iconoclasta. ANGOLD, Michael. Op. cit.. pp. 22-23, e BESANÇON, Alain. Op. cit. p.
214.
153
Figura 6: Saltério de Cludov: A Crucificação e os Iconoclastas
folio 67r, Moscou: c. 850-75.
Existem duas cenas nessa ilustração. Num primeiro plano estão representados o
Patriarca iconoclasta João, o Gramático (837-843) e um bispo erguendo uma esponja com cal
para cobrir um ícone circular de Cristo. No segundo plano, vemos uma representação da
Crucificação, onde judeu estende uma vara com vinagre ao Cristo. A conexão entre as duas
cenas é nítida. Em ambas existe um personagem estendendo uma vara ao Cristo – no primeiro
caso seu ícone e os vasos onde estão o vinagre e o cal possuem uma grande similitude. A
relação entre as cenas traz uma mensagem muito clara: ser um iconoclasta e destruir ícones de
Cristo equivaleria a se comportar como os judeus que o crucificaram.
154
O ponto final da Querela Iconoclasta acabou se dando em Constantinopla, no dia
11 de março de 843, através de um documento conhecido como o Synodikon da Ortodoxia, ou
Triunfo da Ortodoxia. Tratou-se de um Sínodo reunido pelo Patriarca Metódio, no qual se
decidiu pelo condenação da destruição dos ícones, encerrando definitivamente a questão da
iconoclastia.
Utilizamos aqui de uma versão do texto do Synodikon em francês, retirada da
coletânia de documentos do Patriarcado de Constantinopla, de Venance Grumel.
291
Consultamos também um manuscrito da British Library, do monge André de Oleni, escrito
provavelmente no ano 1110 ou 1111, que permite também reconstruir parte do conteúdo do
Synodikon.
292
Como aconteceu em todos os momentos da Querela Iconoclasta, uma das
primeiras atitudes nos momentos de definição ou reafirmação de pensamentos teológicos em
relação aos ícones, era a desqualificação do lado oposto. Os bispos e imperadores sempre se
colocavam como “porta-vozes” de uma doutrina verdadeira, sugerindo que o adversário fosse
relacionado a pensamentos falsos, heréticos e de ensinamentos não coerentes com a cristã.
Em seguida, se exaltava o nome do imperador, como o real defensor da Ortodoxia. Esse foi
também o caso do Synodikon de 843:
Des hommes ont paru, évêque indignes, qui ont tenu un sanhédrin diabolique
et enseigné des dogmes impies. Ils ont accusé d’idolâtrie le peuple saint
sauvé le Christ de l’erreur des idoles et ont détruit ou envelé les vénérables
images. [...] Nos très valeurex et très orthodoxes empereurs Michel et sa
mère Théodora n’ont pas supporté que cette peste continuât sous leur règne.
C’est pourquoi ils ont ordonné de tenir cette nombreuse assemblée dans la
ville royale pour chasser la dissension et rétablir l’uni
293
291
Examen synodal, décret rétablissant le septième concile oecuménique et le culte des images, et
anathématismes. In: GRUMEL, Venance. Op. cit. pp. 65-66.
292
Retirado do website web.ukonline.co.uk/ephrem/synodikon.htm. Acessado em 03/09/2006.
293
Examen synodal, décret rétablissant le septième concile oecuménique et le culte des images, et
anathématismes. In: GRUMEL, Venance. Op. cit p. 65. “Homens surgiram, bispos indignos, que tiveram o
sinédrio diabólico e ensinaram os dogmas ímpios. Acusaram de idolatria o povo santo salvo pelo Cristo dos erro
dos ídolos e destruíram ou arrancaram as veneráveis imagens. [...] Nossos muito valorosos e muito ortodoxos
imperadores Miguel e sua mãe Teodora o suportaram que essa peste continuasse sobre seu reino. É por isso
155
Logo nessa primeira passagem reitera-se um dos principais pontos da defesa da
iconofilia: a diferenciação entre o culto de ícones e o culto idólatra de outros deuses. Essa
idéia remete a João Damasceno e Nicéia II. Nenhuma inovação em termos teológicos ou
dogmáticos fora apresentado em 843, como aliás, também não havia ocorrido no sínodo
iconoclasta de 815. O que aconteceu foi um retorno às idéias de culto dos ícones já defendidas
em Nicéia II, tanto em relação às representações de Cristo, quanto às da Virgem, dos santos e
anjos. Assim definiu o texto do Synodikon:
Par l’inspiration du Saint-Esprit, tous ensemble, en conformité avec la
tradition de l’Église catholique, nous nous accordons avec les sept conciles
pour absolument les saintes images : du Christ selon qu’il est homme parfait
et qu’il est décrit dans le récit évangélique ; de la sainte Théotocos ; des
anges, car ils ont apparu comme des hommes ; des saints : sur les tablettes,
sur les murs, sur les vases sacrés, sur les vêtements, selon la tradition de
l’Église et les règlements des patriarches de notre doctrine et leurs
successeurs ; car c’est chose indubitablement agréable à Dieu que de vénérer
et de baiser les reproductions du Christ, de la Théotocos, des anges et des
saints, et aussi les reliques des martyrs qui ont lutté pour le Christ et ont reçu
de lui la grâce de guérir les maladies et de chasser les démons.
294
Como não houve invovações na argumentação de defesa da iconofilia em relação
ao que havia sido apresentado em Nicéia II, duas questões presentes nas discussões de 787
voltaram a servir como base para justificar a produção e o culto dos ícones. Primeiro a
diferenciação entre um ícone cristão e um ídolo pagão. No Synodikon, os iconoclastas foram
anatematizados por não procederem a tal distinção, considerando a veneração a uma
representação de Cristo, da Virgem ou dos santos como um ato de idolatria comparado às
que eles reuniram essa numerosa assembléia na cidade real para expulsar a dissenção e restabelecer a unidade.”
(Tradução nossa).
294
Examen synodal, décret rétablissant le septième concile oecuménique et le culte des images, et
anathématismes. In: GRUMEL, Venance. Op. cit pp. 65-66. “Pela inspiração do Espírito Santo, todos juntos, em
conformidade com a tradição da Igreja Católica, nós estamos de acordo com os sete concílios para receber
absolutamente as santas imagens: de Cristo, por ser homem perfeito e que está descrito na narrativa evangélica;
da santa Theotokos; dos anjos, porque eles aparecem como homens; dos santos: sobre as tabuletas, sobre os
muros, sobre os vasos sagrados, sobre as vestimentas, segundo a tradição da Igreja e os regulamentos dos
Patriarcas de nossa doutrina e de seus sucessores; pois é coisa indubitavelmente agradável a Deus venerar e
beijar as reproduções de Cristo, da Theotokos, dos anjos e santos, e também as relíquias dos mártires que lutaram
pelo Cristo e receberam dele a graça de curar doenças e de expulsar os demônios.” (Tradução nossa).
156
proibições do Antigo Testamento, como a do livro do Êxodo, 20,4. Tais atitudes foram
condenadas em 843:
Those who apply the sayings of the divine Scripture that are directed against
idols to the august icons of Christ our God and his saints: Anathema!
Those who share the opinion of those who mock and dishonour the august
icons:
Anathema!
Those who say that Christians treat the icons like gods:
Anathema!
Those who dare to say that the Catholic Church has accepted idols, thus
overthrowing the whole mystery and mocking the faith of Christians
Anathema!
295
John Haldon afirma que o culto aos ícones seria restaurado, desde que não se
condenasse o imperador Teófilo.
296
Realmente não encontramos no texto do Synodikon
qualquer condenção de anátema ao imperador. Mas não foram poupados os nomes dos
Patriarcas iconoclastas Constantino (754-766) e João, o Gramático (837-843). Portanto, não
houve condenação direta nem contra Teófilo e nem contra os demais imperadores
iconoclastas. Esse fato é curioso, uma vez que a convocação dos sínodos que impuseram a
destruição dos ícones cristãos em Bizâncio partia sempre da figura do imperador.
Mas a principal questão, que permaneceu no embasamento da argumentação
favorável ao culto dos ícones, foi a da Encarnação. O fato de o Verbo ter-se encarnado, se
feito homem visível entre outros homens, justificaria a produção de sua representação
pictórica. O Synodikon anatematizou aqueles que não aceitaram a veneração dos ícones:
On those who hear and understand the Lord saying, If you believed Moses,
you would have believed me, and the rest, and Moses saying, The Lord our
God will raise up for you from your brothers a prophet like me, and then say
that the prophet is received, but that they will not represent the grace of the
prophet and the salvation he brought for the whole world through images,
even though he was seen and lived among men and women, and cured
295
Decreto Sinodal, de 11 de março de 843. In: Synodikon of Orthodoxy. Website
www.ukonline.co.uk/ephrem/synodikon. “Aqueles que aplicam os dizeres da divina Escritura que o
direcionados contra ídolos para os nobres ícones do Cristo nosso Deus e seus santos: Anátema! Aqueles que
participam da opinião daqueles que zombam e desonram os nobres ícones: Anátema! Aqueles que dizem que os
critãos tratam os ícones como deuses: Anátema! Aqueles que ousam dizer que a Igreja Católica tem aceitado
ídolos, destruindo então todo o mistério e zombando da fé dos cristãos: Anátema!” (Tradução nossa).
296
HALDON, John. Op. cit p. 36.
157
sufferings and sickness with mighty acts of healing, and was crucified, and
buried, and rose again, and did and suffered all this for our sake; on those
who will not accept that these works of salvation, accomplished for the
whole world, may be seen in icons, nor honoured and venerated in them:
Anathema!
297
Apesar de ter envolvido representações da Virgem, dos anjos e santos, o tema
central dos debates ao longo da Querela Iconoclasta foi sempre a questão da possibilidade de
uma pintura circunscrever uma Pessoa da Trindade. Segundo a crença cristã, enquanto ser
onipresente, seria impossível delimitar um espaço no qual pudesse ser circunscrito.
Entretanto, quando se trata do Verbo encarnado na pessoa de Cristo, essa representação se
mostrara possível, uma vez que enquanto homem, Cristo fora visto, tocado e ocupou
determinados lugares. Essa questão apresenta uma singularidade em relação à iconofobia
judaica ou muçulmana. Era por isso que a Encarnação era tão importante para o argumento
iconófilo, pois a partir dela os iconógrafos teriam um embasamento teológico para
“circunscrever” (perigrapho), não a natureza divina de Cristo, mas a sua pessoa, na qual
coexistiam o humano e o divino, sem separação nem confusão.
A proclamação do Synodikon significou o fim definitivo da Querela Iconoclasta,
restabelecendo-se o culto aos ícones e condenando-se a sua destruição, baseado nas difinições
conciliares de Nicéia II e ainda nas tradições da Igreja Cristã. Entretanto, como dissemos
anteriormente, não encontrarmos nesse texto referências às novas idéias propostas pelo
Patriarca Nicéforo e pelo monge Teodoro Studita, a respeito da desvalorização material do
ícone e da valorização de sua semelhança com o protótipo. Desconhecemos o motivo de tal
omissão e não encontramos na bibliografia citada uma explicação para tal ausência, uma vez
297
Decreto Sinodal, de 11 de março de 843. In: Synodikon of Orthodoxy. Website
www.ukonline.co.uk/ephrem/synodikon. “Aqueles que ouvem e entendem o que o dito Senhor, se você acredita
em Moisés, você teria acreditado em mim, e o resto, o dito de Moisés, o Senhor nosso Deus levantaria dos seus
irmãos um profeta como eu, e então disse que o profeta é recebido, mas que eles não representariam a graça do
profeta e a salvação ele trouxe para todo o mundo através de imagens, mesmo que apesar de ele ser visto e viver
entre homens e mulheres, e curou sofrimentos e doenças com poderosos atos de cura, e foi crucificado, enterrado
e ergueu-se novamente, e sofreu tudo isso por nossa causa; aqueles que não aceitam que esses trabalhos de
salvação, consumado por todo mundo, possa ser visto nos ícones, nem honrados e venerados neles: Anátema!”
(Tradução nossa).
158
que tanto Nicéforo quanto Studita produziram seus textos na capital do Império e poucos anos
antes do Triunfo da Ortodoxia, o que não aconteceu, por exemplo, no caso de Damasceno.
Mesmo que a defesa dos ícones tenha sido complementada pelo pensamento de duas
importantes personagens na segunda fase da Querela, ao que parece, o Synodikon de 843
apenas recolocou em vigor as definições do Concílio de Nicéia II.
Essa vitória sobre a iconoclastia em 843 é relembrada ainda hoje na Igreja
Ortodoxa, como o Domingo da Ortodoxia, celebrado todos os anos no primeiro domingo da
Quaresma.
159
Conclusão
Trabalhar num campo que envolve idéias e crenças religiosas é uma tarefa
complexa, pois, como frisamos ao longo de todo o texto, esse é um assunto onde a teoria e as
práticas nem sempre caminham lado a lado. E tal é o caso da Querela Iconoclasta.
Alternando momentos de maior e menor intensidade, com perseguições,
proibições e reativações das decisões de um e outro grupo, o conflito em torno dos ícones
durou mais de um século, estando ligado, em Bizâncio, a uma intrincada rede de causas e
conseqüências, relacionadas tanto a questões dogmáticas quanto à política imperial. Não foi
nosso objetivo tentar desemaranhar toda essa teia de relações.
Optamos por seguir o caminho traçado pelos debates cristológicos que
fundamentaram essas discussões e serviram como base para a sustentação das teorias
iconológicas surgidas no período. Entretanto, em certos momentos desse estudo, foi
imprescindível abordar aspectos relacionados ao modelo autocrático do governo imperial, às
questões referentes à defesa nas regiões de fronteira e, principalmente, aos conflitos que
envolveram a corte bizantina e o crescimento do poder econômico e social das instituições
monásticas.
A opção pelas questões teológicas para o estudo da Querela foi tomada por ser
possível perceber que todas as discussões do período diziam respeito à relação das naturezas
humanas e divinas em Cristo e de como essa união seria representada numa pintura e
cultuada. Mesmo que a iconoclastia tenha estendido suas determinações também aos ícones
da Virgem, dos santos e dos anjos, o principal objeto de contestação e sobre o qual se
dedicaram a maior parte dos trabalhos tanto de iconoclastas quanto de iconófilos, foi sem
dúvida o ícone de Cristo. Por isso, em nosso texto, dedicamos maior espaço para a análise
160
desses ícones, tentando assim reproduzir o peso que essa pintura especificamente teve nos
debates da Querela.
O eixo dessas discussões era o fato de, nas crenças cristãs, Cristo ser o Verbo
encarnado, no qual se conjugam sem separação nem confusão as naturezas humana e divina.
A questão que se colocava era como representá-lo sem que, para isso, não houvesse nem uma
separação nem uma mistura de suas naturezas, não contrariando assim um dogma cristão. A
resposta iconófila se baseava numa separação, defendida por Damasceno e Studita, entre o
protótipo e sua representação numa pintura, que o segundo conduz a oração do fiel ao
primeiro, mas eles não são a mesma coisa. O problema é que nem sempre nas práticas cristãs
de culto essa separação parece ter sido observada pelos fiéis.
Práticas à parte, a condenação da iconoclastia tinha como finalidade apresentar
uma defesa teologicamente bem formulada dos ícones que não contradissesse nem as
definições da Igreja em relação à dupla natureza de Cristo, nem as proibições bíblicas em
relação à idolatria. Como vimos, as teorias formuladas a cerca do ícone apresentaram
fundamento teológico, baseadas nas idéias dos monges João Damasceno e Teodoro Studita,
além dos Patriarcas de Constantinopla Germano e Nicéforo.
Embora tenha havido a oportunidade de trabalhar as idéias dos imperadores, do
alto clero e dos monges bizantinos, não foram encontradas nas fontes manifestações populares
que permitissem fazer uma análise do pensamento dos fiéis da sociedade cristã bizantina do
período. Não foi possível perceber se a maior parte dos cristãos se colocava à favor da
iconoclastia ou se manifestava contrário à ela. Ainda assim, alguns autores falam de práticas
iconoclastas entre os cristãos dos themas mais orientais de Bizâncio.
298
Entretanto, não foram
encontradas nas fontes relatos de cristãos dessas localidades na Querela. Assim, não pudemos
298
Ver, por exemplo, LEMERLE, PAUL. Op. cit pp. 76-79, RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina.
Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1977. p. 60. DUCELLIER, Alain; KAPLAN,
Michel; MARTÍN, Bernadette. Op. cit p. 123.
161
proceder a um estudo da iconoclastia sob um ponto de vista dos fiéis bizantinos. Ressalta-se
que, além de não dispormos de fontes dessa natureza, privilegiamos em nossa análise as
definições dos seus Concílios e Sínodos, privilegiando a elaboração e propostas de
argumentos com fundamentação teológico.
O pensamento a cerca dos ícones foi definida ao longo da Querela, através dos
escritos dos monges e definições sinodais e conciliares. Segundo esse pensamento, o ícone
não representa nem somente a natureza divina do Cristo circunscrita, nem apenas a humana,
mas sim a hipóstase do Cristo, o Verbo Encarnado. Seu rosto numa pintura retrata a Pessoa na
qual se conjugam as duas naturezas, sem confusão nem separação. A recusa em cultuar uma
imagem de Cristo era considerada, segundo o pensamento iconófilo definido no Concílio de
Nicéia em 787, como a recusa na própria crença da Encarnação divina.
299
Outro objetivo aqui foi analisar a periodização da iconoclastia através da
convocação dos Sínodos e Concílios, e não unicamente pelo surgimento de novas idéias a
respeito do assunto. Isso porque o surgimento de novas idéias nem sempre significou uma
mudança da posição da Igreja de Constantinopla e do Império e, por outro lado, a convocação
de sínodos também nem sempre significava a proposta de uma nova teoria dos ícones, ou
mesmo uma resposta a questionamentos anteriores. O que se percebeu no século IX foi uma
reativação de proposições em relação ao ícone que, em alguns casos, tinham inclusive sido
condenados.
Acreditamos que ambos os objetivos aqui traçados tenham sido atingidos.
Primeiro por termos mantido a apresentação dos acontecimentos em sua ordem cronológica,
analisando a Querela a partir de seus dois períodos históricos. Depois, porque através da
análise dos documentos apresentados, foi possível perceber a importância que os ícones de
299
Essa é uma convicção comum dos iconófilos, apresentada em Nicéia II (787) e que pode ser verificada desde
os escritos de João Damasceno, nos primeiros anos da Querela. Cf St. John of Damascus: Apologia Against
Those Who Decry Holy Images In: Website www.fordham.edu. Medieval Source Book. Acessado em
25/05/2005.
162
Cristo tiveram nas definições da Querela, pois as formulações dos bem elaborados
argumentos iconófilos e iconoclastas tinham por base primeiramente a legitimação da pintura
e culto do ícone que evoca a Encarnação do Verbo divino, então se estendendo às demais
representações.
Durante a Querela Iconoclasta, a Igreja se esforçou para diferenciar o ícone de seu
protótipo. Porém, o que se percebeu entre ícone e pessoa representada foi uma relação de
dependência mútua, na qual o culto aos santos dependesse mesmo da existência dos ícones
para se desenvolver. Marie-France Auzépy intitula um artigo com a pergunta: L’iconodulie:
défense de l’image ou de la dévotion a l’image?”
300
Tendo percebido que a função do ícone
fosse não apenas pedagógico ou evangelizador, acreditamos que a defesa da iconofilia
significou, assim como pensa Auzépy, também a defesa da próprio culto aos santos. Destruir
os ícones não representaria apenas o fim de parte da cultura material da Igreja, mas também
destruir uma das manifestações de culto na piedade pessoal dos cristãos.
Em se tratando de uma Querela, nos esforçamos para analisar os dois grupos em
questão. Mas, se por um lado, a vitória da iconofilia significou a restauração do culto de
ícones cristãos, por outro, resultou em um processo de grande destruição da memória, através
da destruição dos documentos produzidos pelo lado vencido. Era interesse da Igreja de
Constantinopla não deixar nenhum vestígio que pudesse ocasionar, no futuro, um retorno ao
iconoclasmo, como já havia acontecido em 815.
Para o historiador, isso representa uma limitação nas suas pesquisas, pois as fontes
iconoclastas originais se perderam com os debates. Porém, essa limitação não impede que
essas idéias sejam reconstruídas hoje, mesmo que indiretamente, através dos documentos
300
AUZÉPY, Marie-France.. L’iconodulie: fense de l’image ou de la votion a l’image?. In: BOESPFLUG,
F. et LOSSKY, N. (Dir). Op. cit. pp. 157-165.
163
iconófilos, possibilitando assim um estudo de iconoclastia bizantina que privilegie as
discussões que formularam os argumentos de legitimação da pintura e do culto dos ícones.
Este trabalho não tem a pretensão de esgotar questões referentes ao Oriente
medieval ou, mais especificamente, ao Império Bizantino. Cuidamos de explorar uma das
inúmeras possibilidades de pesquisa sobre o Cristianismo, suas práticas e pensamentos
referentes aos ícones um aspecto importante de sua cultura material. Durante a Querela
Iconoclasta, essas pinturas atraíram uma série de debates, por vezes violentos, envolvendo
complexas discussões teológicas na busca da condenação ou legitimação de seu culto.
164
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