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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS E CULTURA REGIONAL
TÂNIA PEROTTI
NANETTO PIPETTA : MODOS DE REPRESENTAÇÃO
Caxias do Sul
2007
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1
TÂNIA PEROTTI
NANETTO PIPETTA : MODOS DE REPRESENTAÇÃO
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção de título de Mestre em Letras e
Cultura Regional – Programa de Mestrado em
Letras e Cultura Regional da Universidade de
Caxias do Sul.
Orientadora: Profª. Dr.ª Cleodes Maria Piazza
Julio Ribeiro
Caxias do Sul
2007
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2
Ao meu pai, sinto que ele compartilha da
minha felicidade...
À minha família, junto com um pedido de
desculpas pelas muitas ausências...
Ao meu amor, porque sempre tive nele um
porto seguro onde podia repousar...
3
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom maior da vida.
À minha orientadora, professora Cleodes,
pelo exercício constante em busca daquilo que
deveria ser o melhor de mim.
Aos professores do Programa de Mestrado
em Letras e Cultura Regional com vocês aprendi,
sobretudo, quão importante pode ser o exercício da
humildade na construção do conhecimento.
Aos meus professores, Cecília e Méris,
porque com vocês compartilhei o amor que sinto
pelo stranbo Nanetto. Vocês fizeram diferença na
minha caminhada.
Aos amigos que fiz nessa jornada, mais do
que colegas, pelas muitas coisas que vivemos e
aprendemos juntos.
Aos amigos que eram meus antes de tudo
isso... Obrigada pelos sorrisos, pelas palavras e pelos
silêncios que tanto me diziam!
A todos que caminharam comigo, mesmo
quando parte do percurso somente eu podia
percorrer.
Aos obstáculos que surgiram, porque foi
escalando-os que pude crescer e enxergar mais longe
do que eu veria se não os tivesse encontrado.
4
“Cada um de nós compõe a sua própria
história e cada ser em si carrega o dom
de ser capaz de ser feliz [...]”
Renato Teixeira
5
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................9
1.1 Considerações iniciais ........................................................................................................9
1.2 O autor e a obra................................................................................................................15
1.3 Sinopse da obra.................................................................................................................20
2 CULTURA, CLERO E POVO..........................................................................................24
2.1 Idéias de cultura ...............................................................................................................24
2.2 Cultura popular................................................................................................................27
2.2.1 Cultura popular / cultura douta........................................................................................27
2.2.2 O conceito de povo ..........................................................................................................29
2.2.3 A redescoberta do povo e da cultura popular ..................................................................30
2.2.4 Um novo conceito de popular..........................................................................................32
2.2.5 A transmissão de saberes e conhecimento na cultura popular e na cultura douta...........33
2.2.6 Grande tradição e pequena tradição.................................................................................35
2.3 Frades: indivíduos biculturais.........................................................................................38
2.4 Traços de uma cultura regional ......................................................................................44
3 IMIGRAÇÃO ITALIANA NO NORDESTE DO RIO GRANDE DO SUL..................48
3.1 Introdução.........................................................................................................................48
3.2 Emigração: um interesse para a Itália............................................................................49
3.3 Imigração italiana: um interesse para o Brasil..............................................................51
3.4 Partida da Itália................................................................................................................52
3.5 Italianos imigrantes e colonizadores...............................................................................56
3.6 Quem eram os imigrantes italianos.................................................................................58
3.7 Os diferentes dialetos italianos e a coiné ........................................................................62
3.8 Aspectos da vida religiosa................................................................................................65
3.8.1 As capelas........................................................................................................................65
3.8.2 Os “padres-leigos”...........................................................................................................67
3.8.3 Os frades capuchinhos.....................................................................................................69
3.9 Novos interesses da Itália nos imigrantes italianos .......................................................71
6
3.10 Jornal católico e italiano ................................................................................................73
4 A REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA DE AQUILES BERNARDI................................75
4.1 A cultura da imigração italiana.......................................................................................75
4.2 A cultura clerical nas colônias.........................................................................................76
4.3 A representação literária de Aquiles Bernardi..............................................................80
4.4 Poética de Aquiles Bernardi ............................................................................................81
4.5 A técnica da arte de ficção ...............................................................................................85
4.6 De onde fala o narrador de Aquiles Bernardi................................................................86
4.7 O narrador e o protagonista na narrativa de Aquiles Bernardi..................................91
4.8 A constituição de Nanetto e dos demais personagens....................................................92
4.9 O riso na narrativa de Aquiles Bernardi........................................................................95
4.10 O fazer que conjuga visões culturais de universos distintos.....................................107
4.11 Alguns fatores resultantes dessa conjugação .............................................................111
4.12 Uma forma particular de construção..........................................................................114
5 CONCLUSÃO....................................................................................................................119
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................123
7
RESUMO
Este estudo busca analisar determinados elementos de representação, presentes no
Nanetto Pipetta de Aquiles Bernardi (1937). Entre eles, os aspectos culturais foram analisados
de maneira mais detida, ao lado de questões sociais e políticas. A partir da análise e da
interpretação, buscou-se compreender como aconteceu o trânsito da cultura da imigração
italiana do Rio Grande do Sul de seu contexto real para os limites comportados pelo âmbito
da ficção apresentados na obra. Nesse processo de transfiguração, buscou-se compreender de
que maneira a cultura da imigração italiana e a cultura clerical colaboraram para que o texto
literário analisado assumisse os contornos que o constituem, bem como qual o resultado dessa
conjugação.
Palavras-chave: Cultura popular. Cultura da imigração italiana. Cultura clerical. Aquiles
Bernardi. Nanetto Pipetta.
8
ABSTRACT
This study has searched the comprehension about certain representation structures
found in Aquiles Bernardi’s (1937) work. Among the aspects which build up this
representation, the cultural aspects had been analysed in order to be more specific, which
doesn’t exclude social and politic questions when necessary. It’s about a route where, from
the analyses and interpretation, i tried to understand how the Italian Immigration culture from
Rio Grande do Sul changes happened from its real context to the limits concerning the fiction
aspect present in the book which is this work’s corpus. In this process i intended to
comprehend in what way the Italian Immigration and the clergy culture were helpful to the
analysed work, as welle as the result of this conjugation.
Key words: Popular culture. Italian immigration culture. Clergy culture. Aquiles Bernardi.
Nanetto Pipetta.
9
1 INTRODUÇÃO
1.1 Considerações iniciais
O presente estudo propõe um olhar sobre a representação da cultura da imigração
italiana, construída por Aquiles Bernardi, em sua narrativa Vita e stória de Nanetto Pipetta
nassuo in Itália e vegnuo in Mérica par catare la cucagna (1937). Situa-se ele na Área 1
Literatura e Cultura Regional do Programa de Mestrado em Letras e Cultura Regional da
Universidade de Caxias do Sul.
A obra literária guarda um sem-número de possibilidades de estudo e pesquisa nos
diversos aspectos que a compõem. Desde a composição literária até o caráter lingüístico, do
universo cultural representado às visões de mundo, que possam ter perpassado o momento de
sua concepção, tudo isso pode se converter em estudos possíveis para a pesquisa científica.
Esse processo de construção de representações comporta uma série de aspectos,
difíceis de contemplar em sua totalidade, dentro dos limites deste estudo. Por esse motivo,
julgou-se conveniente centrar a discussão em um aspecto específico relacionado ao processo
pelo qual se a passagem de significados, pertencentes à cultura da imigração italiana, da
realidade para a ficção. Busca-se compreender de que forma a cultura da imigração italiana
foi transfigurada, ao se inserir nos limites propostos pela narrativa de ficção de Aquiles
Bernardi.
No entanto, é preciso ressaltar que não se pretende aqui justificar um discurso pelo
outro, uma vez que se tem clara a noção de que se distingue o discurso histórico do discurso
literário. Por outro lado, não se pode ignorar o fato de que entre a História e a Literatura existe
uma ligação que, de forma parecida, permite que se traga à ficção elementos da realidade. Isso
porque, ainda que o discurso literário apresente propósitos distintos do histórico, é na
realidade, ou naquilo que possa ser imaginado como sendo real, que o autor busca os
subsídios de que necessita para construir sua narrativa. Algo como o que foi descrito por
Chaves (2004) como sendo o percurso que o autor de uma obra percorre ao construir o símil
do vero, a verossimilhança. É com relação à construção da visão do mundo de que fala
Chaves (2004), em uma de suas faces, que se pretende tratar aqui. Mais do que a análise
10
detida de aspectos lingüísticos ou estruturais, voltar-se-á a atenção para a análise da
construção dessa obra literária em seu processo de mimese, com relação à cultura da
imigração italiana no Rio Grande do Sul.
Analisando a obra literária de Aquiles Bernardi, estar-se-á buscando compreender não
apenas os processos que possam orientar a construção do discurso literário por si, mas os
indícios de um contexto cultural do qual ela é parte, como produção inserida em determinado
tempo e espaço. A maneira como os contornos da representação da cultura da imigração
italiana foram definidos por Aquiles Bernardi apontará não apenas para os caracteres do seu
texto, como obra literária, mas, de forma proporcional, indicará determinados fatores culturais
que possam ter estado presentes e que possam ser reconhecidos na construção.
Em Vita e stória de Nanetto Pipetta nassuo in Itália e vegnuo in Mérica par catare
la cucagna, embora Aquiles Bernardi aborde temas específicos e com uma linguagem
específica (que são aspectos necessários para a compreensão das construções de significado),
não é exclusivamente desses dois aspectos que resultam os efeitos alcançados na
representação do autor. um tema passível de representação e uma linguagem para que isso
se efetive, ambos são elementos que podem desencadear a identificação de uma cultura com o
que se escreve. Mas, se a construção e a maneira como os significados são elaborados não
resultarem em um produto com elementos que lhe atribuam aspectos de verossimilhança
consideráveis, elas estarão sujeitas a não alcançar o êxito que Aquiles Bernardi teve ao
construir Nanetto
1
.
Ou seja, mais do que abordar determinado assunto na linguagem de determinada
cultura, é preciso construir significados que façam sentido lingüística, histórica e, acima de
tudo, culturalmente, para que, no fim, se tenha uma obra de arte em forma de literatura.
Wellek e Warren afirmam que “o prazer que uma obra literária instila no homem é
composto por uma sensação de novidade e por uma sensação de reconhecimento”. (s.d., p.
293) Essas sensações foram alcançadas por Aquiles Bernardi ao construir Nanetto. A
narrativa de Aquiles Bernardi é uma construção envolvente pelo efeito conseguido, ao mesmo
tempo que instiga a análise de como o autor chegou a esse resultado final. A presente proposta
1
Nanetto Pipetta é protagonista da obra de Aquiles Bernardi. No decorrer do estudo, tratar-se-á de maneira mais
detida de que forma ele é construído pelo seu autor e, mais do que isso, de que maneira é apresentado pelo
narrador da história. Pode-se, contudo, afirmar de antemão que, não sem motivo, esse personagem acabaria por
conquistar a simpatia, ou talvez o sentimento de complacência de muitos de seus leitores, não sem muitos risos
carregados de significações culturais expressas por uma linguagem particular o dialeto falado pelos imigrantes
italianos da Região Colonial Italiana do Rio Grande do Sul.
11
busca compreender como se deu a construção da representação da cultura da imigração
italiana nesse processo de construção poética, contribuindo para os estudos desta obra, como
texto literário e como forma de recriação da realidade dentro do universo da ficção, através da
representação da cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul.
Entre as formas possíveis de se construir uma representação, a escolha de
determinados enfoques, ou do uso de determinados artifícios, colaborará para que se tenha um
resultado ao invés de outro. A representação da cultura da imigração italiana, construída por
Aquiles Bernardi, resulta em uma concepção particular de representação dessa cultura.
Analisar como foi construída essa representação colaborará para que se chegue a compreender
o resultado que ela contém. uma representação construída que resulta em um texto de
determinados contornos. De que forma foi construída a representação dessa cultura, de
maneira que resultasse no texto que se viu esse é o problema para o qual este estudo busca
encontrar respostas.
Para compreender como Aquiles Bernardi construiu a representação da cultura da
imigração italiana, parte-se de alguns pontos que nortearão o estudo. Primeiro, é preciso
lembrar que esse é um texto literário. Nele, a maneira como se constroem as representações,
mais do que revelar significados lingüísticos, revelará contornos de posicionamentos, que se
acredita possam trazer características moldadas por determinados modos de pensar o ser no
mundo.
Esses modos de pensar são, nada mais, que traços culturais de determinados grupos
em períodos de sua história. Analisar a representação da cultura da imigração italiana é
lançar-se à tarefa de descoberta dos sentidos culturais que ela resguarda, ao mesmo tempo
que se revela nos contornos que apresenta.
Logo, acredita-se que a representação possa se estruturar, entre outros fatores, a partir
de aspectos culturais que estão presentes no processo de construção da obra literária.
Transportando esse questionamento para a obra de Aquiles Bernardi, percebe-se que uma
representação da cultura da imigração italiana em sua obra. Para essa representação, de que
forma o autor transfigurou essa cultura ao passá-la da realidade para a ficção? Que tipo de
seleção cultural perpassou essa transfiguração? E, por último, qual é o resultado dessa
conjugação, ou seja, que contornos essa representação acaba recebendo, a partir da
conjugação de determinadas questões culturais presentes no fazer literário?
12
Para a análise da representação da cultura da imigração italiana, na obra de Aquiles
Bernardi, faz-se necessário primeiro compreender como se estruturam dois eixos culturais
presentes nessa construção. Esses eixos podem ser definidos como a cultura da imigração
italiana no Rio Grande do Sul e a cultura clerical. As duas culturas mencionadas resultam de
determinados percursos históricos o da imigração italiana e o da função do clero , que
resultariam nas características possíveis de serem percebidas. Somente depois de definidas as
constituições desses dois conceitos, é que se buscará compreender de que maneira a cultura da
imigração italiana e a cultura clerical estiveram presentes na construção da representação da
cultura da imigração italiana na narrativa de Aquiles Bernardi. Mais do que isso, que tipo de
posicionamento, presente na representação da cultura da imigração italiana, pode estar, de
alguma forma, relacionado a sentidos presentes em uma cultura ou outra? Qual é o resultado
dessa possível presença na representação de Aquiles Bernardi?
A compreensão das estruturas presentes em um texto literário pressupõe um olhar que,
com certo distanciamento de uma cultura, tenha instrumentos suficientes para realizar uma
análise crítica do objeto que investiga. Pozenato (2003), ao tratar do processo de re-
contextualização do texto, lembra que, no momento em que um texto é retirado do contexto
do leitor, para ser analisado à luz de uma disciplina científica, como a antropologia, esse
texto passa a ser visto como uma possibilidade de mediação entre o que está dito e aquilo que
está por dizer. Pozenato (2003) lembra, por conseguinte, a possibilidade de uma análise a
partir da qual o olhar que se direciona sobre o objeto poderá apontar para a presença de
determinados elementos, mesmo que em nível do não-dito. a passagem da perspectiva
ingênua do integrante de uma cultura para a perspectiva resultante de um percurso
característico de uma disciplina científica como a antropologia. A leitura de um indivíduo
sobre um texto que guarde a representação de sua cultura poderá ser, como colocou Pozenato,
ingênua, por se encontrar sujeita às interferências de quem, de certa forma, ao olhar para ela,
julga estar vendo a si mesmo. Por outro lado, ao lembrar o olhar científico da antropologia, o
autor permite que se compreenda, com mais facilidade, que o método de análise característico
da ciência que estuda o homem e suas relações permitiperceber no texto estruturas que,
pelo olhar primeiro, poderiam não ser percebidas.
Essas estruturas, simbolizadas na relação entre o dito e o a dizer, podem conduzir, ao
se proceder à análise, aos fatores constituintes da construção que o outro olhar talvez tivesse
dificuldades em contemplar. Dito de outra forma, a um estudo científico cabe a tarefa de, a
partir de uma metodologia e de um método que comporte os meios que se julga adequados
13
para o percurso de trabalho, construir um estudo o qual, à luz de teorias, possa contribuir, em
alguma medida, para a compreensão do homem e de seus fazeres nesse caso na construção
de uma representação sobre uma cultura inserida em uma narrativa de ficção. Esse nível de
construção, implícito a um olhar mais superficial, se faz presente não apenas naquilo que, nas
camadas de significados de uma língua, pode comportar múltiplos significados, mas também
em tudo o que, antes mesmo daquilo que se tem a intenção de dizer, direciona o pensamento
do que, não estando escrito, está dito da mesma forma.
Para que se consiga alcançar o objetivo proposto, far-se-á uso da análise e
interpretação, com vistas a verificar de que forma Aquiles Bernardi inseriu sua representação
da cultura da imigração italiana no universo da narrativa de ficção. A análise permitirá que se
reconheçam elementos que possam colaborar nessa tarefa, enquanto que a interpretação
tornará possível estabelecer o diálogo entre os fatores selecionados e as possíveis
contribuições culturais das quais eles são resultado. Em outras palavras, ao interpretar
representações presentes em Aquiles Bernardi, estar-se-á voltando a atenção para o estudo de
um dos fazeres do ser humano. Esse autor que a produz, sendo indivíduo pertencente a um ou
mais estratos culturais, poderá ser, em alguma medida, orientado por eles, de maneira que, ao
interpretar um texto, que é resultado de uma determinada cultura, se estará compreendendo,
em alguma medida, a própria cultura da qual ele é parte. Ricoeur sinaliza para a possibilidade
do reconhecimento de uma cultura na maneira como seus indivíduos constroem seus muitos
códigos de significados, entre eles a representação. Sobre isso afirma que “[...] nos
compreendemos pelo grande atalho dos sinais da humanidade depositados nas obras de
cultura” (1990, p. 58). Esses sinais não se fazem presentes como também podem nortear a
própria construção dos fazeres humanos.
Em um Programa de Mestrado em Letras e Cultura Regional, que preza pela busca do
diálogo entre as diversas formas de saber, essa abordagem constitui-se em uma tentativa de
mostrar como o texto literário, além dos limites do universo de ficção, possibilita essa
intersecção. Isso porque é também nos contornos de uma linguagem particular que uma obra
literária deixa perpassar indícios de uma cultura e de seus modos de vida. Esses, por sua vez,
não se constituem ao acaso. Ao contrário, resultam da evolução de um grupo em determinado
contexto, ao longo de determinado período. Assim, voltar-se para a obra de Aquiles Bernardi
é embrenhar-se em uma tentativa de compreender um pouco mais uma cultura expressa, de
maneira particular, mas, muitas vezes, com sentido universal.
14
A organização dos assuntos abordados neste estudo será feita da seguinte forma. No
primeiro capítulo, são discutidas as noções dos conceitos de cultura, povo e clero. Essa
discussão conceitual delimitará as definições dos conceitos que serão utilizados no decorrer
deste trabalho, a partir das quais se estruturarão as reflexões que forem surgindo. Enquanto as
noções de povo e clero serão analisadas em sua evolução e nas características que foram
recebendo nesse percurso, a idéia de cultura será apresentada não apenas como conceito, com
percurso de desenvolvimento próprio, mas como elemento presente também nos dois
conceitos primeiros.
A segunda parte do trabalho é dedicada aos estudos sobre a imigração italiana no Rio
Grande do Sul, como período histórico compreendido nesse contexto. Desse processo de
imigração terá origem a cultura da imigração italiana. Igual importância tem a análise das
relações culturais que se originaram nele e que podem ser fatores contribuintes à compreensão
que aqui se busca. É do conhecimento da história e da cultura dos imigrantes italianos
instalados no Rio Grande do Sul que, se acredita, surge o subsídio para a construção do
verossímil e do universo a ser transfigurado pela ficção. Ou seja, a cultura da imigração
italiana precisa ser compreendida em sua constituição no discurso histórico, para que possam
ser reconhecidos e analisados os contornos, que, no texto literário, possam ter recebido outras
formas.
No terceiro e último capítulos, tratar-se-á das relações entre a literatura e as
transfigurações que esta exerce no fato representado. Nesse momento, é possível analisar os
novos contornos que Aquiles Bernardi atribuiu à cultura da imigração italiana ao inseri-la em
sua narrativa de ficção. A essa altura do trabalho, é possível ater-se à idéia de mimese como
concepção preconizada por Aristóteles, uma vez que será a partir desse viés que se fará a
interpretação da construção de Aquiles Bernardi, no que diz respeito à cultura da imigração
italiana em sua relação com a realidade. O fazer literário poderá ser compreendido da forma
como o definia Ricoeur:
[...] a ficção é o caminho privilegiado da descrição da realidade, e a linguagem
poética é aquela que, por excelência, opera o que Aristóteles, refletindo sobre a
tragédia, chamava de a mimesis da realidade. A tragédia, com efeito, imita a
realidade, porque a recria através de um mythos, de uma “fábula”, que atinge sua
mais profunda essência. (1990, p. 57)
15
Compreender de que maneira Aquiles Bernardi construiu sua mimese da realidade, no
que diz respeito à cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul, esse é o objetivo deste
trabalho.
1. 2 O autor e a obra
Conhecendo um pouco da biografia de Aquiles Bernardi, acredita-se ser possível
compreender alguns dos caminhos a partir dos quais possa ter partido a construção da
representação de elementos culturais. Mostra-se necessário ressaltar que não a pretensão
de, a partir dessas informações, realizar uma simples sobreposição de fatores para o nível de
representações do autor. Sobre isso, é Candido quem esclarece que:
[...] a arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio
de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os
seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade
natural e social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua
configuração e implicando uma atitude de gratuidade. (1965, p. 64)
Ao conhecer o percurso do autor, objetiva-se compreender o contexto cultural,
histórico e social do qual ele foi parte.
Aquiles Bernardi, também conhecido como Frei Paulino de Caxias, é filho de Antônio
Bernardi e de Elisa Polesso. O pai, proveniente de Treviso, e a e, de Pádua, resultam na
combinação dialetal na qual Aquiles Bernardi é educado. O autor de Nanetto Pipetta nasceu
na Capela de São Bartolomeu, na 4ª Légua de Caxias do Sul, no último dia do mês de
dezembro de 1891, decorridos dezesseis anos da chegada das primeiras famílias de imigrantes
italianos ao Rio Grande do Sul. Com relação à vinda de Antônio Bernardi ao Brasil em 1879,
Costa afirma que o pai de Aquiles Bernardi chega “junto à família do tio Matteo, que faleceu
algum tempo depois, e Augusta Bernardi, que se torna proprietária de meia colônia do lote
105”. (2004, p. 12) Guardadas as devidas diferenciações, também é às voltas com o
pagamento de meia colônia que Nanetto se envolvido em sua narrativa. Sobre a e de
Aquiles Bernardi, as informações às quais se teve acesso resumem-se ao fato de sua
procedência ser padovana. Outro fato de caracteres próximos entre a realidade e a ficção
construída por Aquiles Bernardi é o relato da infância de Frei Paulino, encontrada em
Gardelin (1988). Este situa a infância do autor de Nanetto em um ambiente descrito de forma
16
não muito distante do que se veria na representação da narrativa que aqui se analisa,
2
em
episódios como os das áquile mericane e dos macacos.
Aquiles Bernardi cresce e é no momento de sua primeira eucaristia que Pe. Teófilo
sugere ao então garoto de 13 anos e meio que se torne padre. Mas o sacerdote frisa “que se
torne um padre com barba”. Era o ano de 1904 e, no mês seguinte à sugestão do padre,
Aquiles Bernardi viaja para Alfredo Chaves rumo à escola Seráfica.
3
O ingresso no seminário
resultaria, em alguns anos, na ordenação. Já em 1924, fixa-se em Garibaldi onde, trabalhando
como subdiretor do então jornal Stafetta Riograndense, inicia a publicação semanal de
Nanetto Pipetta. Além do trabalho no jornal, Frei Paulino trabalhou como pároco em Nova
Trento, Garibaldi e Veranópolis. Aquiles Bernardi também trabalhou como pároco em Paim
Filho, Itapuca e por último em Conceição de Caxias, onde também foi secretário do padre
provincial.
A publicação das histórias de Nanetto Pipetta se deu nos anos de 1924 e 1925, sendo
que a primeira edição só seria lançada em 1937, seguida das demais edições nos anos
subseqüentes. Cego nos últimos anos de sua vida, Aquiles Bernardi faleceu em Caxias do Sul
no dia 11/3/1973. Quanto ao juízo de valor que Aquiles Bernardi fazia de si mesmo, Gardelin
ressalta uma passagem onde o frade afirma: “Não tenho diplomas, nem registros. Eu
obedeci a diversos cargos. Fui sempre obediente”. (1988, p.15) Deixando-se de lado a
modéstia, parece um tanto fácil perceber que talvez o autor de Nanetto Pipetta não tivesse
muito clara a noção das variadas possibilidades de estudo que sua obra poderia vir a
comportar com o passar dos anos.
O que se tem, então, é um frade capuchinho escrevendo, através de seu personagem,
para uma cultura, na linguagem dessa cultura, de uma maneira que origina mais de um sentido
conforme o contexto de cada episódio. Dois eixos culturais dialogam e colaboram na
construção da representação de Aquiles Bernardi a cultura da imigração italiana no Rio
Grande do Sul e a cultura clerical. Esses dois eixos acabam não apenas sendo reconhecidos na
representação, mas também em quais aspectos seriam trazidos pela seleção cultural feita
durante a construção da obra. pouco falava-se que Aquiles Bernardi era um frade
capuchinho escrevendo para uma cultura na linguagem dessa cultura, mostrando conhecê-la o
2
“[...] com imensas florestas, com enormes pinheiros. ainda muitos macacos. Os bandos de papagaios caem
em nuvens sobre os pinhais. Os arroios têm peixe e muita caça pelos matos. É que Frei Paulino sente o
chão brasileiro e é por isso que ele é tão feliz e correto em suas descrições. Certos detalhes, nas aventuras de
Nanetto, só podem explicar-se por quem conhece intimamente a natureza”. (1988, p. 14)
3
A Escola Seráfica à qual se faz menção localizava-se em Alfredo Chaves e foi fundada por Frades
Capuchinhos, conforme apontam os estudos de Zagonel (1975).
17
suficiente para estar consciente de que tipos de efeitos sua construção poderia desencadear.
Ao mesmo tempo, a presença de determinados sentidos na representação denunciaria certa
“inclinação” à presença de princípios doutrinadores, característicos da cultura clerical.
Entretanto, a cultura clerical acabaria sendo assimilada de maneira peculiar por esse
descendente de imigrantes italianos, a partir do momento em que ele faz com que essa cultura
receba traços resultantes de sua inserção no universo da cultura da imigração italiana. A
cultura da imigração italiana e a cultura clerical vão sendo modificadas na mesma proporção
em que interferem entre si, o que faz com que aquilo que se reconheça na representação de
Aquiles Bernardi não sejam puros traços de uma ou outra, mas aquilo que resultou do diálogo
proposto entre esses dois contextos culturais. A seleção cultural acaba acontecendo tanto com
relação a elementos da cultura da imigração italiana quanto com relação a elementos
característicos da cultura clerical. A seleção cultural feita é que colabora no processo de
delimitação naquilo que pode se tornar risível ou não. Também é a seleção cultural que
possibilita a presença de determinados elementos na representação, enquanto outros não são
mencionados. O ponto comum entre os dois eixos culturais possibilita ao autor, utilizando-se
dos dois contextos, chegar aos sentidos que busca desencadear em sua representação. Chega-
se, em suma, a um diálogo particular entre esses dois contextos culturais no qual são
representados sentidos e medidas do risível, possíveis de serem compreendidas pelos dois
grupos e, por isso, mesmo dentro do universo da ficção, possíveis de serem reconhecidas
como pertencentes a eles.
A maneira como Aquiles Bernardi construiu suas representações acabou recebendo
caracteres que a particularizou. Essa maneira particular de construir uma representação pode
resultar não apenas da maneira como cada indivíduo vive e reconstrói suas experiências
socioculturais mas, na mesma medida, pela técnica de comunicação que utiliza em sua
representação (CANDIDO, 1965). Esse sentido de particularidade fará com que a maneira de
construir uma representação receba caracteres específicos em Aquiles Bernardi. E esses
caracteres específicos não resultam apenas da maneira como o autor utilizou determinados
recursos para desencadear o riso, mas de que situações específicas, de quais contextos
específicos partiu para a construção dessa representação.
Ao pensar a obra de Aquiles Bernardi, o que se percebe é que o riso não resulta apenas
das situações, mas também da construção da linguagem na qual foram representadas. Daí a
dificuldade e o resultado que se quando da tentativa de sua tradução. Isso porque no
texto de Aquiles Bernardi algo que Gramsci (1978) definiu como a finura, que compromete o
18
resultado ao se traduzir um texto de sua língua de origem, por exemplo, do italiano (ou de
seus dialetos). É também em Gramsci que se que esse tipo de construção (como a de
Aquiles Bernardi), ao ser traduzida, perde seu caráter de malícia ou riso que, desencadeado de
forma quase instantânea em sua linguagem original, transforma-se na ironia “[...] que tem
necessidade de ser explicada para ser compreendida”. (1978, p. 86) Em outras palavras, no
percurso de tradução, pode perder-se o encanto da sonoridade e da graça dos trocadilhos tão
importantes quanto a própria mensagem, como conteúdo lingüístico. Aquiles Bernardi, como
todo autor, tem uma maneira própria de elaborar suas representações e, nelas, também de
evocar o riso. Não apenas pela sua habilidade na construção da representação da linguagem,
mas pela sua competência cultural é que muito de sua graça se perde na tradução.
Acredita-se que, embora de maneira breve, estejam aqui as informações pertinentes à
análise, à compreensão e ao reconhecimento da presença do autor em sua obra. Assim, ainda
que se faça necessário preservar o distanciamento entre o contexto real e a ficção, eles não
são, de todo, algo desconexo na representação, uma vez que uma parte da realidade do
contexto sociocultural se faz presente na estrutura de ficção da narrativa.
A narrativa que aqui se analisa foi a primeira obra ficcional escrita em dialeto no Rio
Grande do Sul. Seu autor, Aquiles Bernardi, intitulou-a Vita e Stória de Nanetto Pipetta
nassuo in Itália e vegnuo in Mérica par catare la cucagna (1937). Quanto ao que pretendia ao
construir sua obra, o autor de Nanetto, em depoimento a Itálico Marcon (1976), declarava ter
dois objetivos com a publicação de suas histórias no jornal: a) traçar a verdadeira imagem da
América; b) aumentar as assinaturas do jornal. No fim do mesmo pensamento, o autor
sentencia : consegui os dois objetivos. A intenção de aumentar as assinaturas do jornal parece
um tanto compreensível no contexto doutrinador do qual o jornal fazia parte na época da
publicação das histórias de Nanetto. Isso porque quanto maior fosse o número de assinaturas
do jornal,
4
maior seria o contingente de pessoas em contato com a visão por ele difundida.
Quanto ao objetivo de construir uma imagem da América, que pudesse ser qualificada como
verdadeira, é possível que esse fator se mostre importante, no momento em que se pretende
compreender como foi concebida a presença de elementos culturais na constituição da poética
de Aquiles Bernardi.
4
Quanto à influência do jornal e sua definição como produto cultural de determinado grupo, Rech, ao tratar do
texto jornalístico, refere: “[...] ele se constitui em produto de uma determinada cultura na medida em que
representa o modo de viver e de pensar de uma coletividade, porque o sujeito falante que assume a sua ‘fala’
reproduz realidades culturais existentes na sociedade e, ao mesmo tempo, introduz valores e modos de pensar
através do que fala e do modo como fala”. (2004, p. 13)
19
Na constituição dessa verdadeira história da América, Aquiles Bernardi insere um
diferencial ao escolher um termo específico dentre os que compõem o título de sua obra.
Nele lê-se Nanetto vem para a Mérica par catare la cucagna. O termo-chave na
constituição de significados ali é o verbo catare que, traduzido do dialeto para a Língua
Portuguesa, significaria encontrar. Nessa escolha, que poderia passar despercebida, estão
determinados certos caracteres que se fariam presentes no decorrer da narrativa. Nanetto não
parte para a Mérica par fare
5
la cucagna, mas, par catare la cucagna. Espera, dessa forma,
encontrar o imaginário reino de delícias, sem a necessidade de dispender de qualquer esforço
(principalmente do trabalho) para alcançá-lo. Frente ao propósito do protagonista, o autor o
faz se deparar com uma realidade bastante diversa ao chegar na Mérica. Nanetto não encontra
a cucagna pronta. Se quer alcançá-la precisa construí-la. é que Aquiles Bernardi confronta
as duas realidades: aquela que ele tencionava encontrar e aquela que efetivamente encontra.
Daí talvez surja a possibilidade de compreender em que consiste essa “verdadeira” imagem da
Mérica que Aquiles Bernardi se propunha a apresentar, prenunciada em uma substituição de
termos que vem inaugurar o confrontamento entre duas realidades a cucagna que Nanetto
espera encontrar e aquela que, se quer alcançar, precisa construir - que acompanharia o
protagonista por boa parte da narrativa.
Entre as edições da obra de Aquiles Bernardi, o texto publicado na primeira edição é o
usado para o presente estudo. Isso não exclui a possibilidade de, no decorrer do trabalho,
utilizarem-se fragmentos das edições subseqüentes. Tal procedimento oportunizará observar a
evolução da obra.
6
Pressupõe-se que um olhar sobre o texto original de Aquiles Bernardi
oportunize a descoberta e a análise de elementos que, nessa primeira edição, vêm
apresentados de maneira distinta ao que ocorre nas demais edições. Dito de outra forma,
sabendo-se da preocupação de Aquiles Bernardi de, a cada nova edição, adaptar a linguagem
ao contexto cultural e lingüístico de cada novo momento de publicação, o que se busca é o
propósito inicial do criador de Nanetto. Mais do que isso, o contexto que comporta a criação
da primeira edição em termos culturais e políticos, é único, particular em suas características.
5
O grifo aqui quer destacar a questão semântica comportada nos dois vocábulos catare e fare. Enquanto o
primeiro lembra a idéia de algo que se encontra (pronto), o segundo pode ser traduzido como “fazer”. Ora, a
diferença, então, passa a ser significativa. Enquanto Nanetto pretende encontrar uma terra de fartura à espera de
quem a desfrute, a maioria dos imigrantes que parte o faz com a idéia de fazer sua fortuna e não com o inocente
pensamento de encontrá-la à sua espera do outro lado do oceano.
6
A cada nova publicação, Aquiles Bernardi tinha o cuidado de reelaborar aspectos de sua linguagem escrita, a
fim de que essa apresentasse vocábulos e expressões condizentes ao falar de uma comunidade que, na época de
cada nova publicação, já não se resumia apenas aos imigrantes italianos, mas também aos seus descendentes. A
preocupação em “aportuguesar” alguns vocábulos do dialeto ou de inserir vocábulos da ngua Portuguesa em
número crescente, a cada nova edição publicada, constitui um indicador significativo da mudança pela qual o
contexto da Região de Colonização Italiana do Rio Grande do Sul foi passando ao longo dos anos.
20
Além disso, a linguagem da primeira edição guarda, no seu vocabulário e nas expressões que
utiliza, o universo do imigrante italiano, antes das muitas influências da Língua Portuguesa.
No que concerne a referências literárias que possam, de alguma forma, ter contribuído
para a construção da narrativa, é o próprio Aquiles Bernardi quem relata a Itálico Marcon,
pouco antes de falecer, o fato de ter tido contato com romances vênetos, que tratavam da
questão da América e de sua relação com uma possibilidade de fartura e prosperidade.
7
Sobre
esses romances aos quais Aquiles Bernardi faz menção, Ribeiro (2005) esclarece a
semelhança presente entre a narrativa do autor de Nanetto Pipetta e as histórias de Frich-
Froch em alguns aspectos iniciais da narrativa, como o contexto em que os protagonistas das
duas obras são apresentados. Também a representação da viagem traz aspectos semelhantes
em Nanetto e Anzoleto. Contudo, ressalta Ribeiro,
8
as duas narrativas passam a se diferenciar
quanto ao restante da história, construído a partir de contextos diversos de representações nas
duas obras. Ainda segundo essa autora, é possível que essa diferenciação tenha sido motivada
pela realidade social, cultural e política particular em cada um dos contextos.
9
Espera-se que, com a análise da representação da cultura da imigração italiana no Rio
Grande do Sul, na narrativa de Aquiles Bernardi, possa-se chegar a respostas para que se
compreenda como se construiu uma representação que, em meio ao riso, ainda trouxesse em
si um implícito catequizar através “do que” acontecia (e “por que” acontecia) com aquele que,
eventualmente, não cumprisse os desígnios de Deus.
1. 3 Sinopse da obra
Com um conhecimento peculiar não apenas do dialeto, mas da própria cultura da
imigração italiana em suas mais variadas nuances, Aquiles Bernardi constrói sua narrativa.
Essa, em sua estrutura, lembra em muito os folhetins, não apenas pela sua constituição em
episódios, mas pela própria maneira como, antes mesmo de ser apresentada em forma de
livro, era publicada semanalmente nas páginas do então jornal Stafetta Riograndense. Quanto
ao leitor, a narrativa acabava, nas palavras de Ribeiro por “[...] prendê-lo graças à estrutura
7
Li diversos romances vênetos que falavam da América e apresentavam um ideal para quem queria uma vida
nova de fortuna e felicidade. Depois de ler esses romances, resolvi escrever NANETTO, para mostrar a
verdadeira América (1976 – contracapa da quinta edição).
8
O excerto que trata desse aspecto encontra-se em Ribeiro (2005, p. 35).
9
“[...] os códigos subjacentes do texto são os códigos culturais, éticos e dominantes naquela época e naquela
comunidade”. (RIBEIRO, 2005, p. 35)
21
episódica, ao desenrolar da história. Esse segredo de manter a atenção do leitor presa à ação
da história foi um recurso típico do folhetim do século XIX”. (2005, p. 24)
A estruturação do texto de Aquiles Bernardi lembra a narrativa episódica. Na obra, a
presença desse tipo de estruturação é explicada pelo próprio narrador, antes mesmo do
capítulo I: “Oh! ... na paroletta: La storia la spartimo in tocchi che ciamaremo Capítoli, e
quando un Capítolo xe finio ghin capita nantro, e sempre cosi”
10
(p. 3). A partir do primeiro
capítulo, as aventuras de Nanetto se sucedem até o fim da narrativa. Todo esse percurso é
mediado por um narrador,
11
que, em linguagem de estilo direto, aproxima do leitor os fatos
ocorridos. Acompanhando a jornada de seu protagonista e do narrador que medeia a
compreensão de cada episódio, Aquiles Bernardi constrói sua representação da cultura da
imigração italiana.
A obra Nanetto Pipetta é a representação do filho de italianos que vem para o Brasil
far la Mérica. Construída por Aquiles Bernardi em uma narrativa episódica, tem
características que, freqüentemente, resultam no cômico, face às situações em que o
protagonista da narrativa
de nome Nanetto Pipetta
se envolve . Desde o início da
narrativa, o personagem vê-se envolvido em múltiplos contratempos e “acidentes”. Quando
decide partir para a Mérica, em busca da cucagna, a situação não é diferente e Nanetto acaba
seguidas vezes contrafeito pelas circunstâncias do meio, que insistem em se contrapor ao
objetivo traçado pelo personagem.
Seu nascimento se em dia de luna calente,
12
freqüente argumento de justificativa
dos pais para a incorrigibilidade do filho, que parece “não ter mais jeito”. Em uma sucessão
10
“Oh!... uma palavrinha: A história a dividimos em “pedaços” aos quais chamaremos Capítulos, e quando um
Capítulo tiver terminado aparece outro, e sempre assim.” (T. da A.)
11
Sobre a construção do narrador, em Aquiles Bernardi, tratar-se-á de maneira mais detida quando for analisada
a construção de sua representação.
12
Logo no início da narrativa, o autor insere em sua representação o fato de o protagonista ter nascido na lua
minguante (luna calente), ao mesmo tempo em que faz referência às conseqüências que, julga-se acreditar,
possam ter sido desencadeadas por esse fato. No momento da narrativa em que ocorre a inserção da “força” de
um elemento da natureza, como fator determinante na constituição da personalidade de um indivíduo, algumas
considerações são necessárias. Em primeiro lugar, é possível perceber a representação da crença, citada, da
força de um elemento da natureza nesse caso a lua, em sua fase minguante , como algo que explicasse o
processo que poderia resultar em determinado tipo de comportamento. Aquiles Bernardi traz, na inserção desse
fator em sua representação, a referência à crença de uma cultura nos elementos da natureza e em sua eventual
interferência no cotidiano. Isso porque não apenas o temperamento de Nanetto, mas, na mesma medida, o
plantio, a colheita e uma série de outras atividades ligadas à terra e aos seres da natureza se viam explicados, a
partir do conhecimento do senso comum, com base em uma série de crenças. Dentre elas está a crença nos
fenômenos da natureza. O narrador de Nanetto, ao informar seu leitor do período de nascimento do personagem
e das conseqüências advindas disso, passa a apresentar, em algum sentido, a representação de uma crença,
pertencente e por isso reconhecida por uma cultura específica à cultura da imigração italiana no Rio Grande
do Sul. Nanetto é como é devido ao fato de ter nascido na lua minguante; logo, como nos demais seres da
natureza, minguadas serão as capacidades do personagem em suas relações com o meio.
22
de traquinagens, Nanetto decide vir far la Mérica, e o faz fugindo dos pais. Aliás é na fuga e
na clandestinidade que Nanetto, após uma viagem em que a fome e o medo são constantes,
acaba se lançando ao mar quando o navio estava próximo às terras brasileiras (Rio Grande)
chegando a nado e, novamente fugindo, dessa vez por medo que os agentes de viagem o
persigam, capturem e enviem de volta à Itália.
Em meio à mata brasileira, o primeiro contato com a população se dá, para a sorte do
personagem, com uma família de taliani (numa representação aos imigrantes italianos
instalados na região), em que, em um misto de descrença e de maravilhamento frente a sua
proeza, Nanetto consegue saciar sua fome aliás uma constante –, tendo na “batata-doce e no
leite” a primeira prova dos frutos desta terra.
A partir daí, a cada capítulo, sucedem-se as aventuras de Nanetto em busca da
cucagna. Segundo Ribeiro, “a cucagna que Nanetto procura é a cucagna fabulosa, de um
imaginário reino de delícias, onde não é necessário trabalhar”. (2005, p. 37) Dessa maneira,
de família em família, o personagem busca fazer sua fortuna com pequenos trabalhos,
mudando de cenário a cada vez que se vê contrafeito pela realidade do meio.
Nessa caminhada, mostra-se impressionado com as florestas, em uma alternância de
sentimentos que vão desde a alegria com a descoberta dos frutos da nova terra ao pavor dos
animais selvagens. É nesses momentos de contato com a natureza que acontecem os
episódios das áquile mericane (papagaios) e dei bulgaretti (macacos), em situações de
confrontamento – não sem medo – com os elementos da natureza até então desconhecidos do
personagem.
É também no decorrer da narrativa que Aquiles Bernardi promove o encontro de seu
personagem com alguém que lhe relata a periculosidade dei búlgari (índios – bugres), que são
descritos como seres que, ao nascer, têm o tamanho de Nanetto, impressionando o
personagem quanto ao seu tamanho e ao relato feito quanto a sua ferocidade.
Descobrindo as culturas da Mérica, Nanetto acaba por conhecer os negros,
construindo impressões que oscilam entre o respeito (como é o caso de Sior Zuca) por alguém
que sabe os segredos de como sobreviver nestas terras, e a repulsa à figura da mulher de Seu
Juca, como alguém pouco preocupada com a higiene. A figura do negro também surge
quando Nanetto é assaltado e quando busca a benzedeira Rassí do Simaron na esperança de
que ela lhe acelere a cura da perna quebrada.
23
Aliás, por duas vezes, Nanetto se vê literalmente imobilizado em virtude de “acidentes
de percurso”. Um deles quando encontra a pianta de salami e, maravilhado com a
generosidade da natureza ao lhe oferecer tão belos frutos (bananas), acaba se machucando ao
tentar desprender um cacho. A outra fratura resulta da fuga dei bulgaretti (macaquinhos) que
Nanetto pensava que fosse la tigre.
Em sua caminhada em busca da cucagna, Nanetto se mostra maravilhado com
algumas novidades, tais como o litrato (retrato) e a rivolgite (revólver). Essas novidades o
personagem, em mais de uma oportunidade, se na tentativa de contar aos pais e ao avô que
ficaram na Itália quando tenta lhes escrever cartas. Inclusive as cartas, por si, seriam uma
instigante fonte de análise, não só pelos temas selecionados por Nanetto ao redigir sua
correspondência, mas pela maneira como isso se representado, pelas mãos do personagem,
na concepção que ele demonstra ter da construção da linguagem escrita.
Quase no fim da obra, o autor constrói o surgimento e o desenrolar do afeto de
Nanetto por Gelina, quando, repleto de significações do contexto social da época, o pedido de
casamento acaba sendo feito e aceito. Todavia, o enlace não se efetiva, visto que, quando
decide realmente ter uma vida de responsabilidades, Nanetto acaba afogado no rio das Antas,
em meio a pedidos desesperados de socorro a todos santos cujos nomes lhe vêm à mente
naquela hora... Inclusive, a questão da religião, em uma narrativa escrita por um frade
capuchinho, encontra representações nos mais variados aspectos desde a resistência do
personagem, no início da obra, a aprender as orações que a mãe insiste em lhe ensinar,
passando pelo apelo aos santos, toda vez que se encontra em situação de perigo, culminando
quando, no desespero de quem que vai morrer afogado, lembra dos santos sem ter, no
entanto, o pedido atendido.
24
2 CULTURA, CLERO E POVO
2.1 Idéias de cultura
O conceito de cultura tem contemplado uma série de aspectos e uma variedade de
segmentos da experiência ao qual se ajusta, daí a necessidade de se delimitarem contornos
para seu uso no decorrer deste trabalho.
13
A gama de fazeres do ser humano, em sua interação
com a natureza, pode ser o ponto de partida para abordar o conceito que vai comportar, desde
modos de pensar, de agir, concepções sobre os alimentos e a alimentação, normas de convívio
social, elaboração de conceitos até concepções sobre a vida e a morte. Partindo dessa primeira
concepção, o início da inserção do homem no processo cultural dar-se-ia apenas a partir do
momento em que, pela primeira vez, fez da pedra uma lâmina ou tirou do contato entre duas
rochas a primeira fagulha de fogo. Esse tipo de pensamento faz com que se atribua o início da
cultura às primeiras tentativas do homem quando este, utilizando-se dos recursos naturais,
busca facilitar sua sobrevivência e se afasta do conceito de natureza.
A idéia de cultura é também relacionada à posse de determinados saberes que
facilitam o cotidiano do ser humano. Embora essa idéia tenha permanecido, ao longo dos
tempos, ligada à posse de um saber específico, a ela foi acrescida a necessidade da presença
de algo que a qualifique. Em outras palavras, uma das visões de cultura passou a pensar esse
conceito não apenas como algo que se saiba fazer, mas também como algo associado a uma
situação de prestígio, dentro de determinada sociedade ou grupo social. A partir dessa visão
da cultura, é culto aquele que apresenta um conhecimento reconhecido e valorizado pelos
indivíduos de determinado grupo. Mais do que isso, à idéia do indivíduo “culto” vai se opor
aquela dos demais indivíduos que não apresentam esse mesmo conhecimento.
Essa limitação do conceito de cultura a “sinônimo” de determinado tipo de
conhecimento, está presente no conceito de literattus, apresentada nos estudos de Havelock
13
Esse uso permitirá, por exemplo, que se estabeleçam os parâmetros na compreensão da cultura da imigração
italiana no Rio Grande do Sul e da cultura clerical: dois segmentos culturais que, acredita-se, tenham colaborado
de maneira significativa na construção da representação de Aquiles Bernardi. Para a compreensão da estrutura
dessas duas culturas, as idéias sobre clero e povo também se constituirão em importantes indicadores. Daí sua
presença neste capítulo.
25
(1996). Segundo esse estudioso literattus era o homem que, entre os gregos do século IV,
dedicava-se ao estudo da Língua Grega e, por isso, passava a ser definido como o “homem de
letras”, devido ao seu contato com a cultura escrita, ainda que esse indivíduo lesse com muito
esforço, ou mesmo que fosse incapaz de falar nessa língua. Do outro lado, ficava seu inverso,
o illiteratus, isto é, aquele homem que não possuía cultura letrada, em uma tradução literal, o
“sem-letras”. No contexto explorado por Havelock, a diferenciação se dava pelo domínio de
determinado conhecimento específico, no caso, a leitura. Contudo, o illiteratus não era um
indivíduo visto como desprovido de cultura. Iletrado era, tão-somente, o indivíduo que não se
dedicava ao estudo “das letras”.
De maneira distinta ao sentido que foi atribuído pelos gregos na cultura ocidental,
iletrado ou analfabeto passou a ser aquele indivíduo que, por não ter desenvolvido a
capacidade da leitura ou da escrita, ou seja, não dominando a cultura letrada, passou a ser
visto também como pessoa carente de inteligência média, ou mesmo pouco dotado. Essa nova
visão restringiu o conceito de cultura ao domínio de conhecimentos da cultura escrita. A partir
do momento em que cultura passa a fazer referência de modo direto ao domínio da leitura e
da ngua escrita, ficam em segundo plano os demais aspectos que, hoje se sabe, compõem
esse conceito no mesmo nível de importância.
Além do domínio da escrita, houve também o período em que a cultura passou a ser
vista como sinônimo de civilização.
14
Nesse período, julgava-se coerente a idéia da
classificação dos seres humanos em civilizados e não civilizados. Para essa divisão, eram
considerados desprovidos de cultura os indivíduos de uma sociedade que não pudessem ser
definidos como civilizados. Contudo, o conceito utilizado nessa classificação era construído
de forma um tanto arbitrária. Era considerado civilizado apenas o indivíduo que apresentasse
determinados valores e conhecimentos dentro de um grupo. Esses critérios, não por
coincidência, eram estipulados pelos indivíduos que, naquele grupo, eram os detentores de
instrumentos de poder e domínio com relação aos demais indivíduos. Quem não possuísse os
traços definidos seria, de alguma forma, excluído do grupo, passando a ser considerado um
indivíduo não civilizado.
14
O período de que se fala aqui é delimitado por Nicolas Journet em seu estudo A cultura Do universal ao
particular (2002). Segundo Journet, “no século XVIII, a palavra ‘cultura’ designa, na França, o acesso à
educação letrada e está associada à idéia do progresso universal. A Enciclopédia de Diderot define a cultura
como o acesso do indivíduo à civilização. Esse sentido se conserva durante todo o século XIX”. (2002, p. 10)
26
A partir de Tylor,
15
chega-se à definição de cultura como sendo “[...] esse conjunto
complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes e rias outras aptidões
e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. (1871, p. 208) Ou seja, o
conceito de cultura abrange os saberes do homem em sua interação com a natureza e com os
demais seres humanos. A partir dessa relação do homem com os demais indivíduos de seu
grupo, determinados códigos passariam a ser estabelecidos. Esses códigos, por sua vez, não
eram mais do que um dos resultados dessa interação do homem com o meio e com os
membros do seu grupo. Longe de serem apenas expressos pela linguagem escrita, muitos
desses códigos seriam instaurados pelo foro da oralidade, ganhando força a partir do momento
em que eram compartilhados e mostrando-se em contornos moldáveis, quando do surgimento
de novas necessidades provenientes de mudanças no contexto.
Essas concepções norteadoras ganhariam contornos determinados, dependendo de sua
função e aplicabilidade dentro da realidade do grupo de que fazem parte. Dessa maneira, os
posicionamentos, as formas de agir, de conceber a vida, em seus múltiplos segmentos, e na
própria relação com os demais indivíduos, acabavam por estabelecer parâmetros referentes às
relações sociais, culturais e políticas, ganhando contornos específicos dentro de cada grupo.
A evolução do conceito de cultura permitiu que toda a sociedade, letrada ou não,
pudesse ser reconhecida em sua importância, como detentora de uma cultura particular. Mais
do que isso, cada cultura comportaria saberes, crenças e modos de viver reconhecidos e
compartilhados pelos indivíduos que fizessem parte dela e não apenas da vida daqueles tidos
como letrados ou civilizados. Clifford Geertz, estudioso do complexo universo das relações
do ser humano, nos grupos dos quais faz parte, refere-se ao conceito de cultura por ele
elaborado, esclarecendo o fato de que:
[...] ele denota um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado
em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas
por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e suas atividades em relação à vida. (GEERTZ, 1989, p. 66)
Esse modo de vida compartilhado pelos indivíduos de um grupo social abrange toda a
gama de significados resultantes do percurso evolutivo desse mesmo grupo. Mais do que isso,
cada cultura, particular em suas manifestações, passa a ser reconhecida em sua relação com o
15
A definição de cultura aqui referida foi citada por Santaella (2003, p.37). Segundo a autora, é em seu Primitive
culture (1871) que Edwuard B. Tylor apresenta essa definição.
27
contexto do qual é parte, com o universo de significações que passa a estabelecer com esse
meio e nas características que possam conduzir à compreensão da maneira como foram
concebidas essas relações.
2.2 Cultura popular
2.2.1 Cultura popular / cultura douta
Muito embora a cultura possa parecer algo homogêneo, como conjunto de fazeres dos
indivíduos de uma mesma sociedade, esse universo cultural compartilhado pode comportar
em seu interior secções que, além do caráter social, podem ser também de caráter cultural.
Isso faz com que indivíduos que fazem parte de uma mesma sociedade se vejam, dentro dela,
pertencendo a grupos culturais distintos. Mais do que isso, como se verá adiante, o próprio
trânsito entre os diferentes estratos culturais de uma mesma sociedade é possibilitado a
determinados segmentos que compõem os grupos.
A existência desses diferentes estratos, dentro de um mesmo grupo social ou cultural,
faz Burke afirmar que “se todas as pessoas numa determinada sociedade partilhassem da
mesma cultura, não haveria mínima necessidade de se usar a expressão ‘cultura popular’.”
(1989, p. 50). A afirmação de Burke aponta para essas “culturas” dentro de uma mesma
sociedade. Para que se compreenda como se estruturaram essas classificações dentro de um
mesmo grupo, é preciso conhecer as estruturas sociais e culturais das quais elas são produto.
Os estratos, ou as diferentes classes, que compõem uma cultura podem ser
classificados por pares opositivos. Cada uma dessas classificações resulta de parâmetros
específicos, nos quais os indivíduos que pertencem a uma mesma sociedade podem ser
organizados em grupos distintos.
Uma primeira classificação pode resultar da conhecida estrutura social representada
na oposição hegemônica/subalterno.
16
Nessa primeira relação, os valores são determinados
16
Essa classificação é citada em Prandi, quando o autor esclarece o tipo de relação estabelecida entre aquilo que
ele define como “dois níveis de estratificação social”, que, embora apresentem características que os
particularizam, mantêm uma relação dialética na qual “manifestam as modalidades historicamente variáveis
daquilo que, em cada uma delas, lhe é específico e da sua recíproca influência”. (1997 b, p.199)
28
dentro de uma sociedade, a partir do poder econômico ou social dos quais determinados
estratos possuem a hegemonia, enquanto outros não (condição subalterna).
Contudo, a hegemonia não se instaura apenas pela posse de bens ou de uma posição de
prestígio dentro de um grupo. Ela se constitui também daquilo que signifique poder em
determinado meio. Assim, a classe hegemônica pode ser composta também pelos doutos. Os
doutos
17
detiveram, ao longo dos tempos, o poder a eles atribuído, como guardiões da grande
tradição. Era a cultura douta que elaborava e ditava determinadas condutas ou
comportamentos a serem seguidos. Essa prevalência dava-se pelo fato de a cultura douta
possuir o conhecimento da leitura e da escrita. Ao conhecê-los, tornava-se mais fácil
manipular os discursos, bem como os registros feitos de cada período da história. A
dominação exercida pelos doutos impunha-se pela forma como se utilizavam de seu
conhecimento dentro do grupo social. Constituía-se uma maneira diferente de se impor, ao se
levarem em conta os grupos sociais que se impunham por ocuparem determinada posição que,
em uma escala social, atribuía-lhes o prestígio frente ao que possuíam como bens materiais. A
dominação pelo saber, característica da cultura douta, expressar-se-ia por meios distintos de
outras culturas hegemônicas; entretanto, não menos eficazes dentro do contexto do qual eram
parte. O clero constituiu parte da cultura douta e hegemônica, o que explica o poder que
exercia sobre as demais culturas.
A cultura subalterna foi sendo constituída ao longo da história pelos estratos sociais
que não detinham a hegemonia. Cada período guardou uma formação particular das classes
que compunham essa cultura. De qualquer forma, subalterno é aquele que se encontra
submetido, em maior ou menor grau, às decisões políticas e sociais de um grupo, que, sobre
ele, exerce a hegemonia. Quanto à cultura, haverá também uma cisão de valores e
comportamentos distintos nas duas esferas. Nessa distinção entre manifestações da cultura
hegemônica e manifestações da cultura subalterna, passa-se a caracterizar a última também
como cultura popular, não apenas pela maneira como ela se constitui, mas pela sua
acessibilidade aos mais diferentes estratos. Contudo, definir uma cultura como popular
implica definir-se o que pode constituir, em linhas gerais, o conceito do que aqui se define
como povo.
17
As definições aqui utilizadas de cultura douta e cultura popular são resultado dos estudos de Pierre Saintyves
(1936) citados na Enciclopédia Einaudi. (1997 b, p.199)
29
2.2.2 O conceito de povo
Ainda que muitas vezes a idéia de povo possa ser associada aos estratos que ocupam
as posições de base, na estrutura de uma sociedade, o estudo do percurso evolutivo desse
conceito mostra que é capaz de comportar elementos e relações bem mais complexas do que
se acreditaria poder definir em uma primeira visão. Como acontece com as demais estruturas
sociais, também a idéia de povo tem passado por transformações e mudanças. Essas
modificações são determinadas de maneira significativa pelo contexto onde acontecem, seja
ele cultural, político ou social e pelo momento histórico do qual o povo é parte.
Estudos como o de Prandi (1997 b) mostram o percurso evolutivo da idéia de povo e
do que pode ser definido como popular.
18
Partindo desse estudo, como também de outras
fontes analisadas,
19
o que se percebe é que delimitar esse conceito à última camada de uma
sociedade, ou pensar que ele tem uma composição homogênea e estagnada, ao longo de
diferentes períodos, pode ser uma simplificação demasiado ingênua ou pouco preocupada
com os contornos que esse conceito adquiriu ao longo do tempo.
Em cada sociedade, a idéia do que pode ser povo mostra-se como algo determinado
pelas particularidades como o grupo se organiza, adquirindo caracteres que o particularizam
tanto quanto o fazem com a história da sociedade em que ele se encontra inserido. É
importante lembrar ainda que, mesmo dentro de uma mesma sociedade, a idéia de povo tende
a se modificar, se comparada entre um período e outro. Ou seja, o que constituía o povo em
um período de uma sociedade pode não ser exatamente o mesmo em outro período da
evolução desse mesmo grupo. Essas modificações, em geral, deverão acompanhar e/ou ser
determinadas pelo percurso evolutivo do grupo do qual são parte, tendo seus contornos
delimitados por esse processo.
20
18
Os estudos de que se fala aqui estão citados nas referências e dizem respeito ao título Popular da Enciclopédia
Einaudi. Nesse estudo, Prandi apresenta uma retomada do percurso evolutivo do conceito de povo e popular, em
que é possível perceber algumas das modificações pelas quais os dois conceitos passaram ao longo dos tempos.
Nesse estudo, são citadas desde a organização e o lugar ocupado pelo povo na sociedade romana até o
surgimento do cristianismo e a proposta da constituição de um só povo. (PRANDI, 1997 b, p. 198 - 228)
19
Está-se fazendo referência aqui aos estudos de Burke (1989) nos quais ele apresenta alguns apontamentos sobre
a idéia de povo ao longo do tempo.
20
Para o contexto deste trabalho, pensar-sea idéia de povo a partir da definição de Burke segundo a qual
“entalhadores, cantores, contadores de estórias e o seu público formam um grupo que está face a face,
partilhando valores básicos e dos mitos e símbolos que expressam esses valores”. (1989, p. 50) E, se aqui se
pensar o contexto da imigração italiana no Rio Grande do Sul no último quartel do século XIX, a partir da
definição utilizada, logo se verá que não somente os camponeses, como também os artífices e outros
profissionais, que emigraram para o Brasil, entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, acabavam por
compor a cultura popular da Região de Colonização Italiana no Rio Grande do Sul. E, para isso, não apenas o
fator econômico ou social tornam-se os índices que fazem com que se pense dessa maneira, mas, principalmente,
30
Ao mesmo tempo em que o conceito de povo podia se modificar acompanhando a
evolução da sociedade, a relação que a cultura denominada como popular estabelecia com os
demais estratos também se modificava. O distanciamento entre o povo e os intelectuais que se
via desde os romanos e que ainda se fazia sentir, de certa forma, até boa parte do século XVIII
acabaria sendo repensado no período seguinte. No fim do século XVIII e início do século
XIX, uma significativa modificação na relação entre os intelectuais e o povo. Os
intelectuais europeus retomam seu interesse pelo povo e pela cultura popular, uma vez que
acreditavam ser esse o estrato detentor de sua história, guardada em manifestações mais
próximas do original. Esses intelectuais seriam os que, como sempre coube à cultura douta,
fariam a observação e o registro, através de documentos escritos, do que consideravam
manifestações populares. Dessa forma, os seus registros puderam ser transmitidos de maneira
bastante preservada às gerações futuras. Em suma, a cultura popular que, por um longo
período, teve a preservação de seu conhecimento determinado de maneira exclusiva pela
oralidade e pela memória, viu parte de suas manifestações materiais e imateriais sendo
registradas pela cultura douta, que colaboraria para assegurar, ainda que a partir de uma visão
elitizada ou idealizada, a sua sobrevivência.
2.2.3 A redescoberta do povo e da cultura popular
O processo a que Burke (1989) se refere, como a descoberta da cultura popular,
21
estava ligado de maneira direta a um contexto mais amplo do que possa parecer em uma
primeira análise. O interesse dos intelectuais pela vida e pelos costumes camponeses não seria
movida pelo fim único do resgate de uma história por muito tempo esquecida. Esse processo
de reencontro com o popular encontra-se ligado de maneira direta a um contexto mais amplo,
ligado a uma reação contra o Iluminismo, da forma como era caracterizado em Voltaire
(BURKE, 1989). Em outras palavras, ficava clara a posição contrária de alguns países
a maneira como se estabeleciam as relações, como se transmitiam e se compartilhavam os saberes e os
conhecimentos, como se aprendiam os modos de viver, as regras para conviver em grupo e as formas de
sobreviver frente àquela nova ecologia. A maneira como os saberes eram compartilhados e transmitidos, a forma
como era organizada a sociedade naquele tempo e como, nela, estavam inseridos os imigrantes italianos, fazem
com que se reconheça essa cultura como parte do povo gaúcho naquele contexto. Será essa cultura popular a
cultura da imigração italiana que determinará, em proporções significativas, a construção da representação de
Aquiles Bernardi. Daí a importância de se compreender como esses conceitos – de povo e de cultura popular – se
estruturam com relação ao contexto do qual fazem parte.
21
Segue o excerto que contextualiza a expressão na obra de Burke: “Em suma, a descoberta da cultura popular
fazia parte de um movimento de primitivismo cultural no qual o antigo, o distante e o popular eram todos
igualados.” (1989, p. 38)
31
europeus ao elitismo e à postura de abandono da tradição, buscando maior ênfase na razão. O
fato de esse repúdio ter estado presente, de maneira particular na Espanha e na Alemanha,
caracterizava-se não apenas como oposição a um movimento, mas junto com isso simbolizava
uma contestação ao predomínio francês. Diferente do que vinha acontecendo nos últimos
tempos, descobrir a cultura popular de seu próprio país passou a ser uma idéia associada ao
reconhecimento daquilo que viria a constituir, em parte, a própria idéia de conhecimento.
Nesse percurso de reencontro com o povo, os estudiosos passaram a valorizar de
forma particular os camponeses, vistos como depositários de tradições que, muito tempo,
haviam sido esquecidas pelos intelectuais e pela burguesia. Mesmo que esse pensamento
guardasse uma significativa parcela de verdade, no fim do século XVIII os camponeses já não
tinham um modo de vida que lhes possibilitasse manter intacta sua cultura e suas tradições,
como podem ter pensado os intelectuais. Esses últimos, por sua vez, desprezavam o fato de
que, ainda que “protegidos” de uma interferência cultural maior do que aquela que ocorria nas
cidades, os camponeses não estavam imunes às alterações provocadas por esses contatos e
pelas conseqüências que, em maior ou menor escala, o encontro com a cultura das cidades
poderia trazer para esse estado de cultura preservada.
Não existia uma tradição popular imutável e pura nos inícios da Europa moderna, e
talvez nunca tenha existido. Portanto, não nenhuma boa razão para se excluir os
moradores das cidades, seja o respeitável artesão ou a “turba” de Herder, de um
estudo sobre cultura popular. (BURKE, 1989, p. 49)
Afirmar que a cultura camponesa do fim do século XVIII fosse a guardiã de uma
cultura popular intocada de interferências ou preservada em suas características e em seus
modos de vida, mantidos intactos, seria construir uma visão idealizada da realidade. Pode-se
afirmar apenas que os camponeses acabavam sujeitos a graus de interferências em menor
grau, se comparados com os habitantes das cidades, mas não que isso significasse uma vida
isolada de contatos com outros grupos, nos quais pudessem ocorrer trocas culturais. Até
porque a própria cultura, mesmo quando “preservada” de interferências de outras culturas,
tem em seu percurso evolutivo a presença da mudança, como algo natural no meio e na
maneira como as pessoas concebem os modos de vida em tempos diferentes.
32
2.2.4 Um novo conceito de popular
Mesmo que os moradores das cidades não pudessem ser excluídos de todo da
constituição dessa complexa categoria, por certo os camponeses, pelo tipo de vida que
levavam e pela maneira como compartilhavam os diversos tipos de conhecimentos que
possuíam, detinham em seu modo de vida aquilo que se poderia definir como a “essência” da
cultura de um povo. Isso porque, protegidos de uma série de interferências possíveis de serem
desencadeadas pelo contato com modos de vida diversos do seu, compunham uma
comunidade em que, muito mais do que apenas o convívio, compartilhavam também os
saberes de uma maneira particular.
O artífice ou o cantor caça, pesca ou cultiva o solo como outros membros da
comunidade, e estes entalham ou cantam como ele, ainda que não o façam tão bem
nem com a mesma freqüência. A participação das demais pessoas na apresentação
artística é importante. Elas respondem a charadas e cantam em coros. (BURKE,
1989, p. 50)
As comunidades consideradas guardiãs da cultura popular de determinada sociedade
caracterizam-se, dentre outros fatores, por estabelecerem uma relação peculiar com o
conhecimento. Como lembra Burke (1989), entre os camponeses podem-se encontrar artesãos
e entalhadores, os quais, por certo, realizam sua atividade com uma precisão ou habilidade
mais desenvolvidas do que os demais membros da mesma comunidade. Todavia, na cultura
camponesa, não é apenas o entalhador que sabe, conhece e domina esse saber-fazer. Os
demais membros dessa comunidade também têm esse conhecimento, a ponto de poder fazer
uso dele em um momento que julguem necessário. A questão aqui não está em discutir se o
entalhador canta melhor do que o cantor ou não. Cada habilidade está especificada na
denominação que o indivíduo daquela comunidade recebe.
Saber entalhar é um saber compartilhado, e por isso acessível, em maior ou menor
grau, a todos os elementos daquela comunidade. Por trás disso, pode estar a necessidade de
que todos saibam fazer, em alguma medida, aquilo que pode vir a ser necessário ou útil à sua
sobrevivência (ou ao seu lazer, no caso do canto). Saber fazer “de tudo um pouco” faz com
que os indivíduos dessa comunidade adquiram relativa autonomia quanto àquilo de que ela
faz uso em seu cotidiano. Os diversos saberes são patrimônio da comunidade, diferentemente
do que acontece na cidade, onde determinados indivíduos têm o conhecimento do entalhe ou
33
de um artesanato específico. Tampouco, o conhecimento é algo de acesso limitado à leitura de
livros ou registros como acontece na cultura douta. Os camponeses utilizam-se da cultura oral
e nela o conhecimento não pode como precisa ser transmitido, para que possa chegar a
outras gerações, sobreviver até elas. É dispondo dos recursos da oralidade e da memória que a
cultura popular torna-se algo ao alcance de todos os indivíduos de uma sociedade dita não-
letrada.
2.2.5 A transmissão de saberes e conhecimento na cultura popular e na cultura douta
Quando acima se falava do popular em sua relação com a cultura de tradição oral,
estava-se falando de uma das possíveis maneiras de transmissão de saberes e conhecimento. O
conhecimento produzido pelas sociedades, ao longo dos tempos, tem sido armazenado com os
meios de que cada um desses grupos dispunha em seu contexto. Viu-se o conhecimento
podendo ser armazenado e transmitido às novas gerações a partir de dois instrumentos: a
oralidade e a escrita. Enquanto a oralidade a um tempo tornou-se instrumento característico da
preservação da cultura entre as classes iletradas, a escrita realizava essa mesma função quanto
ao conhecimento sistematizado pelos doutos, aqueles que, dentro de uma sociedade,
dominavam as habilidades da leitura e da escrita.
O povo e os doutos compartilhavam e preservavam seu conhecimento de maneiras
diferentes. Os séculos XVI e XVII são citados por Burke (1989) como épocas nas quais era
possível ver essa diferença entre a preservação da cultura entre os doutos e entre o povo. Da
maneira como cada um desses segmentos construía e preservava seu conhecimento, surgiriam
as definições de “grande tradição” e “pequena tradição”, propostas por Redfield (1930, apud
BURKE, 1989). Embora essas duas definições guardem distinções entre si, elas têm a
característica comum de partirem da idéia de tradição, como algo a ser entregue às próximas
gerações. E, mesmo que cada um dos segmentos cumpra essa tarefa de maneira própria, essa
preocupação mostra-se presente tanto entre os doutos quanto entre o povo.
22
Ao se buscar compreender o que seja tradição, vê-se que a etimologia do termo
remonta à idéia de traditio, enquanto ‘consignação’ “[...] a passagem de um conjunto de
dados culturais (em sentido antropológico) de um antecedente a um conseqüente que pode
22
A idéia de grande tradição e pequena tradição é apresentada pelo antropólogo Robert Redfield (1930, apud
BURKE, 1989). Esses dois conceitos são tratados de maneira mais detida no decorrer deste trabalho.
34
configurar-se como famílias, grupos, gerações, classes ou sociedades”. (PRANDI, 1997 a,
p.166) Por esse processo de passagem é que são transmitidas às novas gerações as concepções
de uma sociedade acerca dos comportamentos humanos em suas mais variadas relações. Além
dos padrões de comportamento, de relações entre os indivíduos e de legados, que comportam
técnicas e saberes construídos de maneira própria, no decorrer das gerações, as tradições
abrangem também os costumes da comunidade. O modo como se concebe a vida, o estar-no-
mundo e os saberes de uma forma geral, que um grupo busca transmitir às outras gerações,
estão “[...] ‘inscritos’ na consciência coletiva dos grupos que delas são portadores, como
normas implícitas ou direitos tidos como adquiridos no tempo e, como tais
inextinguíveis”.(PRANDI, 1997ª, p.166) São esses saberes que também vêm colaborar para
que se delimitem determinadas condutas, comportamentos e atitudes aceitos ou não dentro do
grupo.
Com esse mecanismo de transmissão de saberes saber agir, saber fazer, saber como
se deve pensar –, os conhecimentos de determinado grupo cultural transitam de uma geração a
outra, passando por um processo de conservação/inovação em maior ou menor grau,
dependendo da forma como se essa transmissão. Dito de outra forma, mesmo passados de
geração em geração, o que fará com que um saber se preserve em maior ou menor grau será
não apenas a maneira como foi transmitido, mas o próprio contexto em que passa a ser
inserido. Será o novo contexto e a realidade que o constitui que poderão vir a colaborar para
que ele seja preservado de maneira integral ou não. Muitas vezes, sendo preservado naquilo
que constitui sua essência, mas sendo “reconstruído” em algo que o redefina nessa nova
realidade. Esse processo foi definido por De Maistre como a “[...] recuperação do passado no
presente [...]”, expressa no círculo fechado “[...] conservação tradição inovação
conservação [...]” (Apud EINAUDI, 1997a, p.179).
Os saberes transmitidos pela oralidade desencadeiam um processo que pode se
caracterizar pela neutralização ou pelo obscurecimento de suas origens. Procurando a origem
de determinadas práticas, dentro de uma comunidade de tradição oral, é possível que não raro
surjam informações do tipo “sempre foi assim”, ou, “era assim desde os nossos avós...”,
limitando o conhecimento da origem de determinada prática ao arco comportado pela
memória que a resguarda. Nesse momento, um parêntese pode ser bastante elucidativo.
Segundo Prandi (1997b, p. 200), a origem de tais saberes pode ser associada a fatores que
repensam a idéia da construção popular movida unicamente pelas necessidades do grupo e
pela criatividade frente a cada situação.
35
O antropólogo Van Gennep (apud EINAUDI, 1997b, p. 200) ao examinar a questão,
acena para a possibilidade de que parte dos fazeres, hoje reconhecidos como populares,
possam ter uma origem palaciana, em um processo caracterizado pelo autor como um
programa de aculturação pelo alto. Nesse processo, alguns saberes (ou práticas)
característicos da cultura douta teriam sido recontextualizados pela cultura popular, recebendo
por isso traços específicos. A origem dessas práticas acabaria, então, esquecida com o passar
do tempo, pelo simples fato de sua preservação estar confiada à memória do grupo que a
utiliza. No processo de preservação de um conhecimento pela memória, é possível que a
atenção maior estivesse voltada para a assimilação da nova prática e sua aplicação em seu
cotidiano, do que propriamente em resguardar dados que remontassem à sua origem.
Em síntese, a origem de determinadas práticas culturais, sua forma de manutenção e
transmissão entre as gerações acabariam por nos remeter, de certa forma, ao conceito de
tradição. Mais especificamente ao conceito de pequena tradição. Contudo, a cultura popular
que se diferenciava da cultura douta, pela forma de registro e pelo tipo de informação que
construía, passaria também a se diferenciar nas formas de preservação e transmissão dos
saberes em cada um dos dois segmentos.
A idéia de “grande tradição” e “pequena tradição” é apresentada por Redfield (1930,
apud BURKE, 1989), quando a cargo dessas duas faces da tradição ficará o resguardo da
cultura das sociedades. Cada uma das duas tradições fará essa tarefa de maneira própria, uma
vez que, além de serem distintas pela maneira como armazenam o conhecimento, serão
diferentes também quanto ao nível de acessibilidade aos conhecimentos e ao próprio tempo de
sobrevivência destes.
2.2.6 Grande tradição e pequena tradição
Muito embora a contradição que as definições possam comportar, a grande tradição
caracteriza-se por pertencer a uma minoria culta, ao passo que a pequena tradição pertence à
grande massa composta pela classe camponesa e pelos demais indivíduos que não têm acesso
aos mesmos equipamentos, que são suportes da grande tradição. Mais do que isso, enquanto
boa parte da população não tinha acesso à grande tradição, a pequena tradição era aberta a
todos, inclusive aos doutos e à elite, que compunham a grande tradição. Logo, as duas
definições justificam-se por outro motivo: tanto a grande tradição quanto a pequena tradição
36
caracterizam-se, entre outros fatores, pela maneira como preservam seu conhecimento. Para
essa tarefa, a grande tradição dispunha de indivíduos que tinham as habilidades da leitura e da
escrita e que se utilizavam desses instrumentos para fazer os registros dos saberes, e do
conhecimento que lhes era próprio. Dispondo desses recursos, conseguiam registrar e
armazenar uma quantidade significativa de informações, às quais podiam ter acesso sempre
que necessário, bastando, para isso, consultar seus registros. Ou seja, a cultura douta contava,
por dominar a escrita, com um repositório de informações de proporções significativamente
maiores do que a memória dos iletrados podia armazenar.
Essa diferença na forma de armazenamento de informações, embora possa parecer
pouco relevante, mostrou-se decisiva quanto à quantidade de informações possíveis de serem
preservadas por um longo período. A memória, recurso da pequena tradição, não apenas
apresentava uma capacidade limitada de armazenamento de informações como, ao contrário
da grande tradição, estava sujeita a lapsos ou esquecimentos, nem sempre podendo ser
acessada com a mesma facilidade e com os dados preservados com a mesma fidelidade, como
acontecia com os registros escritos da grande tradição.
O que se percebe então é que a pequena tradição não é assim denominada por ser a
depositária de um conhecimento menos importante do que a grande tradição. Ao contrário,
essa definição não resulta de um juízo de valor frente às duas tradições, mas, tão-somente,
pela disponibilidade de registro e armazenamento dos saberes e do conhecimento que cada
uma das duas formas é capaz de comportar.
As duas tradições não se diferem apenas pelo que guardam e pela maneira como o
fazem. Também a possibilidade de acesso a essas duas tradições se dava de maneira distinta
em cada uma delas. Uma dessas formas de acesso era delimitada pela linguagem de que se
utilizava cada uma das duas tradições. A grande tradição, em seus registros dos inícios da
Europa moderna, caracterizava-se pelo uso do latim ou, então, de uma forma literária do
vernáculo. Os indivíduos que faziam parte da pequena tradição, por sua vez, não falavam a
linguagem da grande tradição. Diferentemente do que acontecia na linguagem da grande
tradição, os dialetos falados pelos indivíduos da pequena tradição não precisavam, nem
poderiam, ser aprendidos em livros ou manuais. O dialeto, falado pelos indivíduos da pequena
tradição mas não exclusivamente por eles era uma linguagem que haviam aprendido de
seus pais e avós, que se podia ouvir na praça do mercado, nas conversas informais; aprendido
e compartilhado por quem estivesse disposto a descobrir suas muitas nuanças comportadas
pelo seu veículo de transmissão a oralidade – e preservadas pelos arquivos registrados pelos
37
iletrados em sua memória. A linguagem, como os demais aspectos que compõem o
conhecimento da pequena tradição, era guardada pela memória e transmitida pela oralidade.
Os locais de cada uma das duas tradições também colaboravam para que fossem
freqüentados por um estrato social mais ou menos restrito. Todos podiam freqüentar a praça
do mercado, local da pequena tradição, bastando para isso que lhes aprouvesse. Entretanto, o
mesmo não ocorria com o acesso a universidades e liceus, locais da grande tradição que “não
eram abertas a todos”. (BURKE, 1989, p. 55) A linguagem e os locais da pequena tradição
podiam ser utilizados e freqüentados pelos indivíduos da grande tradição. Mas o inverso não
ocorria. A grande tradição apresentava traços de exclusão, tanto pela sua linguagem quanto
pelos espaços em que se instituía. Ao passo que a pequena tradição podia comportar
indivíduos dos mais diversos estratos.
A grande tradição era transmitida formalmente nos liceus e universidades. Era uma
tradição fechada, no sentido em que as pessoas que não freqüentavam essas
instituições, que não eram abertas a todos, estavam excluídas. Num sentido
totalmente literal, elas não falavam aquela linguagem, A pequena tradição, por outro
lado, era transmitida informalmente. Estava aberta a todos, como a Igreja, a taverna
e a praça do mercado onde ocorriam tantas apresentações. (BURKE, 1989, p. 55)
As pessoas que faziam parte da pequena tradição não tinham livre acesso à grande
tradição. As pessoas com acesso à grande tradição, por sua vez, podiam freqüentar também os
ambientes da pequena tradição, sempre que isso lhes aprouvesse, ainda que a cada uma das
duas tradições fosse atribuída uma função diferente: a grande tradição era séria, a pequena
tradição era diversão. (BURKE, 1989, p. 55).
Entre os representantes da classe hegemônica, que podiam participar das duas
tradições nos inícios da Europa moderna, estava o clero. Este não apenas tinha o acesso
(cultural e político) aos registros e ao convívio da grande tradição, como podia participar das
manifestações características da pequena tradição, realizadas na praça ou no mercado.
Não era apenas a nobreza que participava da cultura popular; o clero também,
particularmente no século XVI. Durante o Carnaval, como observou um florentino:
[...] homens da Igreja estão autorizados a se divertir. Frades jogam bola, encenam
comédias e, vestidos a caráter, cantam, dançam e tocam instrumentos. Mesmo as
freiras são autorizadas a celebrar, vestidas como homens [...]. (BURKE, 1989, p. 53)
38
Como outros fatores, também a participação do clero nas duas tradições se
caracterizaria por um processo composto de transformações que acompanhavam as mudanças
dos grupos sociais ao longo dos tempos. O trânsito dos frades entre as duas tradições dar-se-ia
de maneira e com propósitos bastante específicos, o que viria a colaborar para que essa
interação recebesse os contornos dos quais se passará a tratar.
2.3 Frades: indivíduos biculturais
23
Dentre as pessoas que tinham acesso à grande e à pequena tradição, estavam os frades.
Contudo, essa visão dos frades, como indivíduos pertencentes à grande tradição, surgiria
apenas em determinado momento da história da evolução das sociedades. Antes disso, houve
um período em que os frades não eram formados em ambientes da grande tradição. Os
estudos de Burke (1989) apontam para o fato de que, no século XIV, os religiosos da Igreja
católica eram indivíduos de formação cultural equivalente aos seus paroquianos,
diferentemente do que acontecia nas regiões protestantes, onde os clérigos apresentavam grau
universitário. Essa situação passou a ser vista com reserva pela Igreja católica. Foi então que,
com o Concílio de Trento, os padres passaram a receber formação em seminários, com o
objetivo de tornarem-se sacerdotes “[...] mais educados, de status social superior e
consideravelmente mais distante de seu rebanho”.(BURKE, 1989, p. 292) A partir desse
momento, cada vez mais a formação sacerdotal estaria ligada à cultura douta e ao
conhecimento da grande tradição.
Com a iniciativa da Igreja. os frades, que antes compartilhavam apenas do mesmo
conhecimento que os demais indivíduos pertencentes à cultura popular, passaram a ter uma
formação douta. Entretanto, na mesma proporção dessa mudança, ocorreu o distanciamento
do clero com relação ao povo. Aliás, de maneira parecida com o que havia acontecido no
mesmo período com as demais estruturas dominantes, como a nobreza e a burguesia. Com o
movimento de redescoberta da cultura popular no início do século XVIII, o vínculo entre os
frades e o povo seria restabelecido, porém, com traços bastante distintos do que ocorrera
quase três séculos antes. O clero retornava ao povo. Contudo, agora fazia parte também da
23
A qualificação utilizada aqui para definir a figura dos frades foi cunhada por Burke e, segundo o autor, foi
elaborada seguindo o modelo de “bilíngüe”. Quando define os frades da época como biculturais, Burke refere-se
à situação desses como “membros da elite que aprenderam o que hoje chamamos de canções e contos populares
na infância, como todo mundo aprende, mas que também participaram de uma cultura ‘alta’, ensinada em escolas
secundárias, universidades, cortes, etc..., às quais as pessoas comuns não tiveram acesso”. (1989,p. 17)
39
grande tradição, e isso colaboraria para que esse retorno recebesse características particulares.
Os frades voltavam para sua atividade com o povo e, embora essa recebesse contornos que a
aproximaram da cultura popular, implícita na pregação sempre estaria um elemento da grande
tradição.
Os frades recebiam uma formação na grande tradição e precisavam realizar seu
trabalho juntamente com o povo. Essa aproximação não era difícil, uma vez que a cultura
popular caracterizava-se, entre outros fatores, pelo livre acesso que os indivíduos dos mais
variados segmentos tinham às suas manifestações. Com os religiosos não era diferente. Eles
tinham não apenas a possibilidade como também a necessidade de estar em contato com o
povo. Nas palavras de Burke: “Os frades eram anfíbios ou biculturais, homens da
universidade e homens da praça do mercado. Muitas vezes tinham formação em filosofia
escolástica e teologia e estavam interessados em transmitir em seus sermões pelo menos
algum elemento da grande tradição.” (1989, p. 96)
Para que sua pregação atraísse a atenção e o interesse do povo, era preciso que os
religiosos desempenhassem sua tarefa de modo a aproximarem-se do universo cultural
daquelas pessoas. Para tanto, conhecer o código que constituía a linguagem popular era
apenas um dos primeiros desafios. Era preciso falar do modo como falavam aquelas pessoas,
trazendo ao discurso experiências e situações que lhes fossem familiares, de forma que fosse
despertada sua curiosidade, ao mesmo tempo que o povo se visse intrigado a descobrir o que
aqueles homens tinham a lhe dizer. Na pregação popular uma linguagem rebuscada de pouco
adiantaria, porque não era a linguagem daquele povo. Tampouco histórias fabulosas ou com
complexos elementos para a compreensão poderiam compor o cenário para esse fim. “Os
frades baseavam-se em temas populares, mas constantemente alteravam-nos. Conheciam
estórias tradicionais, mas davam-lhes uma moral que não era necessariamente tradicional”.
(BURKE, 1989, p. 96-97)
É compreensível que as histórias contadas pelos frades fossem portadoras de uma
“moral” a qual fugisse dos padrões tradicionais. Isso porque, ainda que o momento da
pregação pudesse ser apresentado em contornos de uma narrativa hilária, feita com recursos
performáticos, tais como gritos ou gestos, seu propósito ainda continuava a ser o mesmo. Em
outras palavras, mesmo provocando risos, o discurso proferido continuava sendo um sermão,
com a finalidade de pregar o tipo de pensamento ou de conduta tidos como “adequados” pelo
clero. Assim, além de sua função de pregação, os sermões serviam também como veículos de
propagação de idéias que agiam como instrumento de controle social (BURKE, 1989, p. 98),
40
uma vez que era nos sermões que podiam ser perpassados juízos sobre as “corretas” formas de
agir em sociedade.
Os frades não podiam ser caracterizados apenas como religiosos que cumpriam seu
papel, uma vez que a maneira como realizavam seu trabalho não se limitava a uma pregação
pura e simples que, é provável, teria êxito menor em seu objetivo de atrair o interesse do
povo. Os religiosos pregavam de modo a conquistar a atenção dos indivíduos da pequena
tradição. Nessa tarefa, muitos frades transformaram seu trabalho em um fazer, com contornos
semelhantes ao dos artistas populares, aqueles que trabalham para o povo. (BURKE, 1989)
Ocorre que, na tarefa da pregação, os frades acabaram se sobressaindo dos demais religiosos e
é possível que isso se deva, em parte considerável, à maneira como exerciam sua atividade.
São Francisco referia-se à sua ordem como “menestréis de Deus” (joculatores
Domini), e de fato era um paralelo próximo sob muitos aspectos. Como os
menestréis, os frades andavam de cidade em cidade e freqüentemente apresentavam-
se na praça do mercado pois as igrejas não eram grandes o suficiente para conter
todos os que vinham ouvi-los.
24
Os contemporâneos estimaram algumas multidões
entre 15 mil e 20 mil pessoas, e alguns chegavam à noite, na véspera, para garantir o
lugar. Os frades parecem ter aprendido um ou dois truques com os menestréis, cujas
pegadas seguiam, pois encontram-se referências desaprovadoras a pregadores que “à
maneira de bufões, contam estórias bobas e fazem o povo rir às gargalhadas”.
(BURKE, 1989, p.124-125)
A pregação tornou-se um momento do qual o povo se sentia convidado a participar.
Para alcançar esse efeito, os frades faziam uso de determinados recursos para organizar a
linha de seus sermões. É possível que essa tenha sido uma das explicações para o fato de os
sermões chegarem a ser definidos como forma de arte popular (BURKE, 1989), referindo qu
a elaboração desses discursos estava voltada a um público de maneira mais específica
aquele composto pelos artesãos e camponeses. Mesmo que a função do trabalho dos frades
fosse determinada pela grande tradição, esta apenas ditaria os rumos que o trabalho deveria
tomar, ficando o restante a cargo da maneira como seria elaborada e conduzida a pregação.
Nessa tarefa, é possível que os recursos performáticos tenham sido um instrumento facilitador
para que o trabalho dos frades alcançasse a atenção do povo, no uso da voz e dos gestos na
24
Guardadas as diferenças de cada contexto, não é difícil perceber uma similaridade significativa entre o quadro
descrito por Burke e aquilo que se veria, no fim do século XIX, quando da chegada dos capuchinhos franceses às
comunidades de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. Também no contexto gaúcho, registros não
apenas da aceitação desses religiosos (D’Apremont e Gillonnay), como relatos de multidões que se
aglomeravam para assistir às pregações, muitas vezes chegando às capelas de madrugada, ou mesmo esperando
um ou mais dias para o atendimento religioso. Muito embora na RCI esses fatos não se devessem apenas à
simpatia dos imigrantes pelos frades, mas ao longo período em que haviam estado sem assistência religiosa.
41
legitimação do discurso feito. Segundo Zumthor, esses dois elementos desencadeiam
percepções de importância decisiva na enunciação do que o indivíduo procura transmitir. A
utilização do corpo, em consonância com o discurso, colaborava com a ênfase naquilo que os
frades pregavam ao povo.
É a voz e o gesto que propiciam uma verdade; são eles que persuadem. As frases
sucessivas que são lançadas pela voz, e que parecem unidas somente por sua
conexão, entram progressivamente no fio da escuta, em relação mútua de coesão. A
coerência última conseguida pela obra é um dom do corpo. (1999, p. 68)
Além dos recursos performáticos, os frades utilizavam-se de mecanismos
desencadeantes de reações específicas na cultura, na qual estavam inseridos. Esse
conhecimento só poderia ser alcançado por quem conhecesse uma cultura em suas mais
variadas nuanças, não pertencendo aos registros da grande tradição. Para ter acesso a ele, era
preciso ser ou tomar parte da pequena tradição, uma vez que, somente através do contato com
os saberes da cultura de tradição oral, seria possível aprender os seus significados da maneira
como são estruturados nessa tradição. “Eles aprendem ouvindo os mais velhos e tentando
imitá-los, e o que eles aprendem não são textos acabados, mas um vocabulário de fórmulas e
motivos e as regras para a sua combinação, como uma espécie de ‘gramática poética’”.
(BURKE, 1989, p.166)
Essa gramática poética deveria contar, dentre os recursos de que dispunha, não apenas
com características culturais condizentes com o meio, mas com a elaboração de personagens,
os quais, com o excesso característico dos estereótipos (BURKE, 1989), pudessem servir
como fator identificante para quem assistisse aos sermões. Também a linguagem a ser
utilizada, em sua riqueza de expressões e modos de dizer, colaborava para que as construções
elaboradas pudessem estar mais próximas da cultura popular.
Mais do que isso, a forma como se organizavam as narrativas permitia que estas
resultassem no efeito buscado pelo pregador. As formas como uma narrativa popular pode ser
organizada constituíram-se em objeto de estudo para Lèvi-Strauss e Vladimir Propp.
(BURKE, 1989) Os estudiosos identificaram uma gramática do conto popular russo ou
italiano, na qual a utilização de “[...] esquemas narrativos ou seqüências de motivos
recorrentes, tais como interdição
25
/violação/conseqüências/tentativa de fuga ou necessidade
25
Esse esquema pode ser reconhecido na narrativa de Aquiles Bernardi aqui analisada. Se atentarmos para seu
protagonista, será possível perceber que, quando não consegue resolver um problema, busca solucioná-lo de
outro jeito. Entretanto, muitas vezes, a solução traz conseqüências consideradas punitivas, devido ao seu
42
/trapaça/necessidade preenchida” (BURKE, 1989, p. 164), colaborava para desencadear
determinados efeitos. A descoberta desses esquemas estruturais da narrativa popular faz com
que se perceba que o efeito por ela desencadeado não resulta de uma combinação aleatória,
mas do cumprimento de etapas que orientam o artista em sua produção, permitindo que ele
possa chegar ao resultado que busca. Porém, o fato de os frades utilizarem esses mecanismos,
na elaboração de suas histórias, não significa que, necessariamente, os conhecessem em teoria
para a produção narrativa. É possível que estes tenham tão-somente resultado do seu uso
empírico, a partir de modelos anteriores tidos como positivos.
Os mecanismos de uso das técnicas não se bastam para a construção de uma narrativa
que possa ser definida como popular. Para isso, é preciso que esses mecanismos estabeleçam
uma relação harmônica com o universo cultural que representa. Caso contrário, poderá não
corresponder aos padrões culturais de atitudes e pensamentos e poderá não ser definido como
representação daquele grupo.
Dentre os elementos que devem estar em concordância na produção de uma narrativa
popular, é interessante ressaltar aquele definido por Gramsci como a “moral do povo”.
Segundo o autor, esse conceito deve ser compreendido como:
[...] um determinado conjunto (no tempo e no espaço) de máximas para a condução
prática e de costumes que derivam delas ou que as produziram; moral esta que é
estreitamente ligada, tal como a superstição, às reais crenças religiosas: existem
imperativos que são mais fortes, tenazes e eficientes do que os da moral “oficial”.
(1978, p. 185)
Partindo do conhecimento da moral do povo, o religioso pode encontrar subsídios
necessários para orientar a condução do seu discurso, até que se chegue à moral da Igreja ou a
outra que se caracterize como o fio condutor da produção.
Além dos elementos da cultura da pequena tradição, a grande tradição, em especial a
Igreja, tem o poder de delimitar os contornos dessa moral, conforme seus interesses. Essa
moral pode ser reconhecida tanto em meio às estórias que os frades apresentavam em suas
pregações, nas praças da Europa moderna, quanto em algumas das narrativas escritas em
dialeto na Região de Colonização Italiana no Rio Grande do Sul. Nessas narrativas, através de
uma linguagem popular, são apresentadas estórias que interessam e satisfazem o gosto
comportamento pouco adequado. Além disso, quando se vê contrafeito pela realidade do meio, resolve a situação
mudando de contexto, não deixando de configurar uma fuga frente às adversidades.
43
popular, estando implícito nelas sempre algum elemento da grande tradição, nesse caso, a
Igreja. É a partir desses pressupostos que Gramsci define por que e como uma literatura pode
ser configurada como popular. Segundo ele:
A ‘beleza’ não basta: requer-se um determinado
conteúdo intelectual e moral que seja a expressão elaborada e completa das aspirações mais
profundas de um determinado público, isto é, nação povo numa certa fase de seu
desenvolvimento histórico”. (1978, p. 90)
Da mesma forma como os sermões camuflados em histórias engraçadas conquistavam
as massas de camponeses e artesãos da Europa, os textos de Frei Paulino de Caxias obtiveram
a apreciação dos imigrantes italianos e de seus descendentes no Rio Grande do Sul.
Guardadas as distinções necessárias entre a performance oral e a narrativa escrita, as duas
conseguiam, utilizando-se de uma linguagem popular, atingir o fim de realizar a pregação da
moral que defendiam, de maneira que essa pudesse ser assimilada pelo povo.
É ainda preciso salientar que, na busca da proximidade com a cultura popular, a
linguagem exerce papel fundamental. Será ela um dos mecanismos que aproximará, em maior
ou menor proporção, o interlocutor do público que o escuta. Por isso, quando faziam suas
pregações nas praças e nos mercados, embora conhecessem o latim e o modo de falar de
prestígio na grande tradição, não era dele que os frades se utilizavam. Exatamente pelo fato de
a linguagem da grande tradição não ser característica do povo. A classe dominante e o clero
falam o idioma de prestígio. O povo fala os dialetos. Por isso, se quisessem estar próximos do
povo, os pregadores precisavam comunicar-se com as multidões, utilizando-se dele.
No texto italiano, o autor não consegue colocar-se em uníssono com o público, não
tem a perspectiva da historicidade da língua, quando os personagens querem ser
concretamente italianos diante de um público italiano. Na realidade, existem na
Itália muitas línguas “populares” e, nas conversas íntimas, nas quais se expressam os
sentimentos e afetos mais comuns e difundidos, fala-se costumeiramente os dialetos
regionais: em grande parte a língua literária é ainda uma língua cosmopolita, uma
espécie de “esperanto”, isto é, limitada à expressão de sentimentos e de noções
parciais etc. (BURKE, 1989, p.137).
Ainda que a língua oficial possa contar com uma quantidade expressiva de vocábulos
em seus registros, não é através de uma linguagem rebuscada que um falante conquista o
povo. Ao contrário, é pelo uso de expressões que, ainda que limitadas quanto à quantidade,
comportam uma série de significados possíveis de serem compartilhados por quem fala e por
quem ouve. Somente o estabelecimento desse tipo de comunicação dará a oportunidade de
uma comunicação completa, sem interditos culturais ou lingüísticos.
44
2.4 Traços de uma cultura regional
No momento em que se percebe a cultura como algo definido como os fazeres do ser
humano, logo será possível perceber que esse fazer sempre estará ligado, na mesma medida
em que estiver sendo determinado, por fatores que colaboram na construção desse modus
vivendi. A cultura, então, passa a ser algo possível de ser vinculado também à maneira como
se estabelecem suas relações em determinado tempo e espaço.
Falar em espaço pode fazer com que se associe essa definição à idéia primeira de
espaço físico e geográfico. Com a idéia do que possa ser a cultura regional, pode-se acabar
incorrendo nessa mesma visão parcial. Não são necessários esforços demasiado significativos
para que se chegue a pensar a cultura regional como sendo a cultura de determinada região.
Entretanto, se esse primeiro paralelo pode ser feito sem grandes dificuldades, a idéia que se
possa fazer do que seja região caracteriza-se por algo de contornos não estanques, tampouco
limitados à primeira definição que se possa construir desse conceito.
A idéia de região surge como algo relacionado a fatores que acabam redefinindo sua
importância e agregando-lhe novos limites. Dentre os fatores que podem interferir nessa
delimitação, surgem as questões culturais, sociais e políticas, as quais, entre outras, tendem a
colaborar com o processo a partir do qual regiões distintas passam a estabelecer uma relação
concomitante de intersecções e delimitações dentro de um mesmo espaço geográfico. Essa
multiplicidade de relações tem despertado o interesse de estudiosos provenientes das mais
diversas áreas, que têm percebido, nas possíveis constituições desse conceito, um intrigante
caminho, na tentativa de compreender o fazer do homem. Esse fazer pode se tornar objeto de
estudo tanto nas relações, que o indivíduo estabelece com o meio em que vive, quanto no seu
convívio com as outras pessoas que fazem parte de seu grupo.
Sobre esse diálogo, que o conceito de região tem possibilitado entre as diversos
segmentos do saber, Bourdieu pondera:
[...] a região é o que está em jogo como objeto de luta entre os cientistas, não
geógrafos é claro, que, por terem que ver com o espaço, aspiram ao monopólio da
definição legítima, mas também historiadores, etnólogos e, sobretudo desde que
existe uma política de “regionalização” e movimentos “regionalistas”, economistas e
sociólogos. (1989, p. 108)
45
Mais de uma vez é possível que esse olhar dos estudiosos se volte para as ações do
homem como indivíduo em constante interação. Será essa interação e a maneira como ela é
concebida e instituída que acabará determinando os contornos daquilo que se convenciona
chamar de região. É a partir dessa atitude do homem, em sua participação e com as decisões
do grupo, que se criam as regiões, entre elas a região cultural. Pozenato afirma que “[...] a
região, sem deixar de ser em algum grau um espaço natural, com fronteiras naturais, é antes
de tudo um espaço construído por decisão, seja de ordem política, seja de ordem das
representações, entre as quais as de diferentes ciências”. (2001, p.141)
Quanto ao que se refere a este estudo, estará relacionado de forma particular a uma
região específica a Região de Colonização Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul
(RCI). Dessa região será observada sua constituição histórica, bem como a maneira como
alguns dos elementos culturais que a caracterizam acabaram sendo representados na narrativa
de Bernardi.
Citar a RCI pode significar fazer referência àquela região composta por determinados
municípios da Encosta Superior do Nordeste do Rio Grande do Sul, que foram colonizados
por imigrantes italianos. Essa primeira idéia de região será definida, em um primeiro
momento, pelos contornos políticos desse espaço geográfico ocupado por imigrantes italianos
no último quartel do século XIX. Entretanto, se é possível que a idéia do que seja a RCI possa
ser vinculada, de início, aos limites políticos dessa região, uma análise mais detida será capaz
de revelar que esse talvez não seja o único critério a delimitar espaços de convivência com
caracteres específicos à cultura da imigração italiana.
Da mesma maneira como as delimitações geográficas podem caracterizar uma região,
outros instrumentos também têm a força de fazê-lo. A cultura de um determinado grupo
também é capaz de construir regiões. De maneira diferente do que ocorre com os limites
políticos, aos quais, em geral, se vincula esse tipo de delimitação do espaço físico, a cultura
de um grupo mostra-se capaz de marcar determinados espaços com a mesma força. A partir
disso, passa-se a pensar na possibilidade de existência de uma região cultural. A idéia do que
possa ser região cultural remonta aos estudos de Sauer,
26
a partir dos quais passa-se a pensar a
cultura como delimitadora de espaços, que se caracterizam pela presença de traços culturais
26
O estudo aqui referido faz menção a três pontos estudados por Sauer (1925). O segundo desse três pontos é
aqui utilizado, e que faz referência à possibilidade de “[...] identificação de regiões culturais distintas e
homogêneas definidas por artefatos materiais tais como tipos de casas e por diversos atributos culturais tais
como linguagem ou região [...]” (Apud GREGORY, 1996, p. 162-163).
46
característicos de um determinado grupo. A leitura de Sauer lança luzes sobre um dos
aspectos possíveis de estabelecer limites, os quais, ainda que não concretos, constituem-se de
uma solidez que dispensa maiores explicações. Os caracteres culturais da imigração italiana
delimitam modos de viver, de pensar e de agir, para além dos limites políticos; materializam-
se na maneira como se concebe a convivência, a vida do ser humano dentro de seu grupo,
aquilo que ele passa a conceber como certo ou errado, enfim, mostram-se os instrumentos
necessários para que se possa falar de uma região cultural da imigração italiana no Rio
Grande do Sul.
Para além dos limites ou convenções de ordem política, a região cultural tem a força
de agregar, de tornar próximo, quase familiar, alguém que demonstre compartilhar de
determinados traços, como uma maneira de falar ou a utilização de determinadas expressões
em contextos específicos. Deixa de ser estranho a essa cultura aquele que mostra compartilhar
os sentidos implícitos em um modo de falar, somente conhecidos por quem é parte dessa
cultura. Na mesma medida, as regiões culturais têm o poder de excluir o indivíduo que, dentre
outros fatores, não compartilha dos significados contidos nas conversas repletas de
significados construídos no percurso evolutivo do grupo.
Se a cultura é capaz de delimitar regiões na realidade, o que se viu na representação de
Aquiles Bernardi não é diferente. Esta, sendo texto literário, apresenta a representação de
traços da cultura da imigração italiana inseridos no universo da ficção. Não apenas a presença
desses elementos culturais na narrativa de Aquiles Bernardi, como a forma de se fazerem
presentes, atribuirá o caráter de regionalidade de que tratou Pozenato (2003). A obra de
Aquiles Bernardi é portadora de caracteres culturais tanto na constituição de seus personagens
quanto na voz de seu narrador e nos juízos de valor que perpassam a narrativa, capazes de
conduzir o leitor ao reconhecimento dentro do universo da ficção, de traços pertencentes à
cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Contudo, a presença dos fatores culturais
da imigração italiana não se restringe à presença de elementos dessa cultura em sua
representação. A própria linguagem em que é apresentada a narrativa conduz o leitor ao
reconhecimento do falar dessa cultura, representado no universo da ficção.
Ao utilizar a coiné na representação de seus episódios, Aquiles Bernardi alcança um
nível de representação da cultura da imigração italiana capaz de desencadear um
reconhecimento, de estabelecer uma identificação do público com sua representação. Todavia,
como já se referiu há pouco, o elemento que funciona como agregador de determinado
público à representação construída pode acabar, na mesma proporção, excluindo os indivíduos
pertencentes aos demais estratos culturais. Ou seja, para que se pudessem ler as narrativas de
Aquiles Bernardi era condição determinante conhecer o dialeto de forma suficiente a
47
compreender não apenas o código lingüístico ali representado, mas os significados culturais
dos quais sua estrutura é depositária. Logo, a escolha por construir a representação em dialeto
acaba se constituindo em fator decisivo na delimitação de uma região cultural caracterizada
por uma linguagem específica, capaz de ser reconhecida mesmo dentro dos limites da ficção.
O segundo efeito da utilização do dialeto, na narrativa de Aquiles Bernardi, resulta no
oposto do primeiro. Ao escrever utilizando-se da coiné, o autor de Nanetto Pipetta limita a
compreensão de muitos dos sentidos que representa àqueles que, como ele, compartilham dos
significados culturais que essa linguagem comporta. Isso faz com que, além de ser um
exemplo de regionalidade, a obra de Aquiles Bernardi é classificada também como um
exemplo de regionalismo, conforme concepção que Pozenato (2003) construiu desse conceito.
Ou seja, a cultura representada por Aquiles Bernardi delimita um espaço simbólico, uma
região cultural dentro de sua narrativa de ficção, de acesso restrito àqueles que compartilham
e compreendem as construções de sentido, presentes em sua obra. Foi capaz de agregar na
mesma medida em que, tempos depois, excluiria muitos dos descendentes de imigrantes
italianos com a utilização desse tipo de linguagem.
Ainda em tempo, é preciso que se ressalte o fato de que, embora constituídos com
traços regionais, muitos dos sentidos da narrativa de Aquiles Bernardi são universais. A
representação do indivíduo que deixa sua pátria e parte em busca de uma vida melhor talvez
possa se constituir em um primeiro exemplo dessa universalidade. Contudo, é possível que
um dos mais significativos exemplos se constitua na própria relação de uma cultura com seus
sentidos risíveis, na maneira como reprime ou apresenta, como pouco aconselháveis,
determinados modos de pensar e de agir. Por tudo aquilo que a obra de Aquiles Bernardi
comporta como registro de um olhar que, não alienado, não deixa de constituir de certa
forma aquilo que Pesavento definiu como sendo o “sintoma de uma época, como
representação do mundo”. (1997, p. 250) por isso estaria justificada sua relevância dentro
do contexto cultural de que é parte. Um contexto que, mais do que pertencer a uma região de
contornos delimitados politicamente, foi delimitando seus próprios espaços, também pela
força que guarda em suas manifestações culturais.
48
3 IMIGRAÇÃO ITALIANA NO NORDESTE DO RIO GRANDE DO SUL
3.1 Introdução
Nas últimas décadas, a imigração italiana tem sido objeto de estudos e pesquisa nas
mais diversas áreas do conhecimento. Uma das muitas contribuições desses estudos foi dar
oportunidade para que se compreendesse, de forma mais clara, esse processo iniciado quase
no fim do século XIX. Alguns desses estudos sustentam a breve retomada da questão que aqui
se propõe, servindo de parâmetro norteador para as considerações a serem feitas sobre a
representação da cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul, presente na obra de
Aquiles Bernardi.
É no contexto da imigração italiana para a Serra gaúcha, que o autor de Nanetto
Pipetta busca subsídios para a construção não apenas do cenário que constrói, mas também de
valores culturais representados em sua obra. Conhecendo os valores dessa cultura, como
indivíduo que é parte dela, Aquiles Bernardi – filho de imigrantes italianos – consegue
construir sua representação. Nela utiliza-se de forma peculiar não apenas dos elementos
externos desse contexto, mas de tudo aquilo que pode ser convertido em significado. Logo,
compreender a história da imigração italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul permitirá que
se analise de maneira mais detida não apenas esse momento, numa representação construída a
partir dele, mas que se compreenda o modo de representação de estruturas culturais presentes
nessa construção.
Inicia-se esse percurso trazendo à discussão alguns dos fatores que, anteriores ao
processo de imigração, foram desencadeadores dessa que seria uma fase de recomeço para
milhares de italianos. Partindo-se disso, pretende-se buscar uma maior compreensão do
contexto no qual se insere a imigração italiana no Rio Grande do Sul.
49
3.2 Emigração: um interesse para a Itália
Realizar o estudo da imigração italiana no Rio Grande do Sul, ainda que em grandes
traços, é necessário para compreender o contexto histórico do qual a obra de Aquiles Bernardi
foi resultado. Mais do que isso, analisando a história da imigração italiana, estar-se-á
procurando compreender um contexto real que, de certa forma, se viu transfigurado na
construção de muitas das representações da obra que aqui se analisa.
É sempre bom lembrar que tanto o contexto da Itália quanto a situação do Brasil, no
fim do século XIX, colaboraram para que o processo imigratório ocorresse nas proporções em
que se deu. Assim, atribuir a causa da imigração italiana a fatores isolados como à miséria
em que vivia grande parte dos italianos – pode resultar em uma visão parcial e simplista desse
processo complexo. A Itália não estava menos interessada do que o Brasil na imigração. E
esses interesses, embora distintos entre si, mostraram-se em concordância ao verem na
imigração uma possível solução para boa parte dos problemas pelos quais passavam.
Essa relação de interesses afins é trazida à discussão por Franzina. Sobre ela o autor
afirma:
L’ emigrazione, infatti, rappresenta um fenomeno demografico ed economico
destinato a caratterizzarsi per la duplicità dei suoi fatori formativi. Esistono un’area
di partenza e un’area di destinazione; e ancora vi sono stimoli “espulsivi” e stimoli
“atrativi”: la loro importanza o addirittura decisività variano, s’intende, col variare
delle situazione storiche di fondo, ma sempre ci riportano a un quadro complesso
ch’è quello dell’evoluzione del capitalismo dagli anni cinquanta del secolo scorso in
poi. (1976, p. 16)
27
Quanto à Itália, é possível que uma das principais causas que viria a desencadear o
processo de imigração esteja ligada ao contexto definido por Franzina como i tempi della
transizione del nostro paese da uno stadio agricolo e preindustriale a uno stadio di relativa e
del tutto specifica maturità capitalistica.
28
(1976, p.16). Mas, mesmo esse processo de
transição da agricultura para a indústria, em direção ao capitalismo, o ocorreu de forma
27
“A emigração, enfim, representa um fenômeno demográfico e econômico destinado a caracterizar-se pela
duplicidade de seus fatores formativos. Existe uma área de partida e uma área de destinação; e existem ainda
estímulos “expulsivos” e estímulos “atrativos”: a sua importância decisiva varia, se entende, com a variação das
situações históricas de fundo, mas sempre se referem a um quadro complexo que é aquele da evolução do
capitalismo dos anos cinqüenta do século passado em diante.” (T. da A.)
28
“ Os tempos da transição do nosso país de um estado agrícola e pré-industrial a um estado de relativa e de todo
específica maturidade capitalista.” (T. da A.)
50
isolada. Houve toda uma cadeia de fatores econômicos e sociais que acabariam resultando na
questão apontada por Franzina.
A Itália, por volta de 1870, reunificada após um conturbado período, havia conseguido
estabelecer seus limites políticos e territoriais. Entretanto, ainda que o movimento de
unificação tenha solucionado as questões políticas pelas quais o país passava, os problemas
socioeconômicos continuavam tomando proporções preocupantes.
A economia era dependente de poucos industriais e de muitos latifundiários ainda
afeitos a esquemas econômicos medievais de feudalismo e de exploração da força
operária e agrícola. [...] Se uma reconstrução geopolítica tivesse acarretado uma
reforma econômica de base, com uma reformulação de estatutos de terras e posses,
com uma agricultura baseada na pequena propriedade, os movimentos migratórios
que se verificaram no norte da Itália, em fins do século XIX, talvez não se tivessem
registrado nas proporções em que ocorreram. (FROSI; MIORANZA, 1975, p.11-12)
O que se viu então foi uma Itália que, mesmo unificada em seus limites políticos,
estabelecia em seu interior divisões e barreiras sociais cada vez mais nítidas. O Norte da Itália
foi atingido por essa crise de maneira particular. De um lado, com a principal concentração de
indústrias na região dependente por isso do capital externo –, não havia como ocupar a
“grande quantidade de mão-de-obra disponível”. (GIRON, 1980, p. 51); por outro lado, pela
situação em que muitos camponeses se encontravam, por não disporem de grandes recursos
que pudessem garantir sua sobrevivência. Para obterem rendas um pouco maiores muitos
camponeses trabalhavam em terras de grandes latifundiários, sendo “remunerados senão com
os meios essenciais à subsistência” (FROSI; MIORANZA, 1975, p. 13-14) e, mais do que
isso, sem perspectivas de mudanças nesse quadro. Mesmo os pequenos proprietários
mostravam-se sujeitos “à violência das crises conjunturais”. (FRANZINA, 1976, p. 19-20) À
crescente expansão do capitalismo e à situação pela qual passavam os camponeses do Norte
da Itália acrescentavam-se ainda outros fatores que contribuíam para aumentar sua situação de
pobreza.
[...] o extremo fracionamento da terra, os salários baixos e os elevados tributos eram
também um fator de pobreza no Vêneto. O cultivo dos minúsculos lotes em todo o
Norte não bastava para sustentar as famílias, em sua maioria numerosas. Era
necessário procurar outros meios de vida, emigrando para diversas partes do país, ou
do estrangeiro, procurando trabalho nas indústrias que começavam a florescer na
região, dedicando-se a algumas manufaturas caseiras como a fiação e a tecelagem de
e algodão, o fabrico de móveis rústicos de madeira, o preparo de conservas
alimentares. (AZEVEDO, 1975, p.17)
51
Não bastassem as condições adversas mencionadas e, em muitos casos, em
decorrência delas, o Norte da Itália enfrentava, no fim do século XIX, doenças epidêmicas
como a malária e as febres intermitentes. Dentre as muitas doenças, o maior dos flagelos era a
pelagra (AZEVEDO, 1975), uma doença com sintomas cutâneos, gastrointestinais e nervosos,
que surgia em decorrência da precária alimentação, constituída em grande parte de produtos
feitos a partir das farinhas de milho e de trigo, desprovida de proteínas animais e vitaminas.
É num contexto de dificuldades, fome, miséria e falta de perspectivas, que muitos
italianos decidem emigrar. A Itália parece ter visto na imigração não uma maneira de
resolver parte de seus problemas, mas um empreendimento lucrativo com as atividades de
embarcação e transporte daqueles que partiam. Essa concepção da Itália sobre o processo de
imigração é apontada por Giron, quando afirma que,
[...] além da solução individual dos problemas econômicos, a saída dos italianos
tornou-se um empreendimento altamente rentável para o Reino. A cobrança das
passagens, e, mais tarde, a remessa de lucros dos emigrantes, para seus parentes
italianos, forneceram um movimento de capital, que não pode ser deixado de lado,
nem ser desvinculado do progresso econômico apresentado pelo país na última
década do século XIX. (1980, p. 52)
Todavia, se por um lado os estímulos expulsivos eram vários, do outro os estímulos
atrativos não eram menores. Do outro lado do oceano, a imigração também era vista como
algo positivo. Dessa forma, coube ao Brasil apresentar os estímulos de atração que viriam a
colaborar para que o processo de imigração se efetivasse da maneira como ocorreu.
3.3 Imigração italiana: um interesse para o Brasil
Assim como a Itália, no fim do século XIX o Brasil também passava por uma série de
problemas para os quais a imigração mostrava-se como uma solução viável. O país via-se às
voltas com o processo abolicionista e, com ele, surgia a necessidade de substituir a mão-de-
obra que faltaria quando não pudessem mais contar com o trabalho escravo feito pelos negros.
Entretanto, a mão-de-obra imigrante não poderia simplesmente substituir o trabalho escravo,
uma vez que o trabalho servil vinha sendo substituído pelo trabalho livre e remunerado.
(GIRON, 1980, p. 54)
52
Parte dos imigrantes italianos que emigraram para o Brasil foi destinada ao trabalho
nas lavouras de café de São Paulo, substituindo a mão-de-obra escrava pelo trabalho
remunerado. Porém, mesmo que o trabalho que exercessem fosse denominado “livre”, as
condições de trabalho a que os imigrantes eram submetidos e a remuneração que recebiam
pelo seu trabalho faziam com que ficasse cada vez mais distante a possibilidade de prosperar
em terras brasileiras, como também tornava-se remota a possibilidade de ascensão econômica
ou social. Azevedo salienta que, “além das acusações e queixas abertas contra a violação de
termos de contratos e de abusos e inconvenientes nas fazendas paulistas, informava-se que
nestas os colonos não prosperavam satisfatoriamente” (1975, p.73). não era o mesmo
cenário, nem foram as mesmas razões que atraíram os imigrantes italianos para o Rio Grande
do Sul.
No que diz respeito ao contexto gaúcho daquele mesmo período, a imigração
contemplava de forma eficiente o objetivo de “[...] povoar e, mais do que isso, para renovar os
processos e as relações de trabalho e produção”. (AZEVEDO, 1975, p. 79) O projeto de
ocupação de parte do solo gaúcho, para o qual foram destinados os imigrantes italianos, dava-
lhes a oportunidade de, decorridos alguns anos da chegada, tornarem-se proprietários da terra
que lhes era vendida. Esse povoamento seria feito com a instalação das famílias de imigrantes
em lotes a serem delimitados na região pretendida para o povoamento e determinada de
colônia. Quanto ao local onde foram delimitados os lotes, Giron o descreve como uma área
“[...] situada estrategicamente entre a região dos Campos de Cima da Serra, onde habitavam
os descendentes de portugueses ocupados na pecuária [...] e a [...] Depressão Central, onde se
localizavam os alemães e a zona da Campanha”. (1980, p. 60) É nessa região que, decorrido
determinado período, muitos imigrantes italianos se tornariam também donos de suas terras.
3.4 Partida da Itália
Partensa!... partensa!... osava on marinaro. Alora tutta sta zente la se move. Tutti
se ciama, tutti se baza, tutti se saluda!... Addio popà, addio mamma... fradei addio...
steme ben... arrivedersi!.. per l’eternità... da quà on par de anni... E Nanetto
Nanetto no saluda ninsuni!... (BERNARDI, 1937, p. 20).
29
29
“– Partida!... partida!... gritava um marinheiro. Então toda essa gente se movimenta. Todos se despedem, todos
se beijam, todos se cumprimentam!... Adeus papai, adeus mamãe... irmãos adeus... fiquem bem... até logo!... pela
eternidade... daqui a alguns anos... E Nanetto?!... Nanetto não se despede de ninguém!...” (T. da A.)
53
O excerto que inaugura esse momento do estudo pertence à obra de Aquiles Bernardi
que aqui se analisa. Nele, a representação do momento da partida em muito lembra os
discursos que narram o momento em que os imigrantes italianos se despediam daqueles que
deixavam na Itália. E o discurso da narrativa de ficção se aproxima de maneira significativa
dos elementos que, é provável, tenham constituído esse momento na realidade. Todos se
despedem, menos Nanetto, porque ele parte fugido de casa. Quanto aos sentimentos que
perpassam esse momento, é também em Aquiles Bernardi que se lê: “Tanta zente: veci e
zovani, omeni e done, putei e bimbi i spetava l’ordene de imbarcarse. Chi piandeva, chi
rideva, chi osava, chi ciacolava, chi per fin cantava.”
30
(1937, p.19)
A faixa etária daqueles
que partem parece variar tanto quanto os sentimentos descritos nesse momento. Enquanto
alguns choram, outros riem e há, ainda, aqueles que cantam.
Esses muitos sentimentos representavam a maneira como cada imigrante italiano
percebia o fato de deixar seu país e partir em busca do recomeço em novas terras. Partir para
o Brasil podia significar libertação da vida de submissão e miséria que tinham na Itália.
Deixavam a realidade da Itália para partir em busca da possibilidade de tornarem-se donos das
terras que cultivariam no Brasil. No momento da partida, o desabafo e a constatação da vida
que ficava para trás resultavam em relatos como os que se encontram em Franzina. Nesses, os
imigrantes, anônimos em meio à multidão, expressavam-se com sentenças como as que se
transcrevem abaixo, em um misto de sensações talvez mais próximas da esperança de dias
melhores do que da saudade do que deixavam ao partir... “No se viveva più, se moriva...; Sarà
quel che sarà, peggio del presente non sarà certo; tentiamo la sorte, la sarà come la sarà, e
giacchè abbiamo presto o tardi da morire, tanto vale di lasciare la nostra pelle in America
come nell’Europa...”
31
(1976, p.173).
Não obstante, é possível que o próprio momento da partida tomasse os contornos da
alegria de quem se liberta de uma vida da qual fica pouca saudade e parte com a expectativa
de reconstruir sua história na América. A situação abaixo transcrita é de uma simbologia
significativa. Registrada nos estudos de Franzina, a partida de um grupo de imigrantes
italianos é descrita da seguinte maneira:
30
“Muita gente: velhos e jovens, homens e mulheres, crianças e bebês esperavam a ordem de embarque. Alguns
choravam, outros riam, outros gritavam, havia os que conversavam, e, por fim, aqueles que cantavam.” (T. da
A.)
31
“Não se vivia mais, se morria...; seja o que for, pior do que o presente não será por certo; tentemos a sorte, seja
ela como for, e que temos cedo ou tarde que morrer, tanto valerá deixar a nossa pele na América ou na
Europa...” (T. da A.)
54
Martedì scorso sfilava per la contrada di San Do una colonna di circa 200
emigranti direta alla ferrovia per Genova. Facevano punta due padri con due
bambini sulle spalle, coperti di ghirlande, ed in mezzo a loro eravi l’alfiere con una
piccola bandiera, nel cui mezzo stava scrito “Viva l’America!” Seguiva poscia um
gruppo di suonatori, i quali con una marcia regolavano l’avanzare della fitta
colonna, che procedeva ordinata fra i battimani e gli evviva dei contadini...
32
(1976,
p.204-205).
Se a partida podia comportar um misto de tristeza e esperança, a etapa seguinte se
caracterizaria, em geral, por infortúnios das mais variadas ordens. O “mal do mar”, ou seja, os
enjôos que muitos imigrantes sentiam devido aos muitos dias de viagem, não são apenas
relatados como também foram representados por Aquiles Bernardi em sua narrativa. Nela, é
Nanetto que passa pelo infortúnio descrito da seguinte forma:
Con quella gran borasca ghe xe capitá dosso a Nanetto on mal estare, on affano, na
noia, na volontá de trar in drio, na debolessa, na angonia che proprio lu ’l credeva
de morire. El gera ’l mal de mare. Squasi tutti i passigeri i lo gaveva buo, ma
Nanetto de stomego [...] el ga resistio fin a quel scolvogiamento maritimo. La
preson lo stufava, ma sto mal de mare propio el lo copava.
33
(BERNARDI, 1937,
p. 26).
A travessia feita em navios deixava os imigrantes expostos à fome, ao calor e ao frio.
Também não são raros os relatos de mortos que foram lançados ao mar durante a viagem.
Os dias de viagem pelo oceano ainda constituiriam parte de uma memória em que, não
raro, estariam presentes momentos difíceis. Dentro dos navios, nascimento e morte
compartilhavam um mesmo espaço. No que diz respeito ao período de viagem, embora esse
pudesse apresentar variações quanto ao número de dias, dependendo das condições em que a
viagem era realizada, em geral o estado das embarcações em que era transportada grande
parte dos imigrantes italianos, deixava a desejar. Em Azevedo, encontra-se o relato:
32
“Terça-feira passada desfilava na região de San Donà uma coluna de cerca de 200 emigrantes, que seguiam em
direção à ferrovia para nova. Faziam frente dois pais com duas crianças sobre os ombros, cobertas por
guirlandas, e em meio a eles estava o porta-bandeira com uma pequena bandeira, no meio da qual estava escrito
“Viva a América!” Seguia depois um grupo de tocadores, os quais, com uma marcha, regulavam o avançar da
coluna, que prosseguia ordenada entre as palmas e os gritos de viva dos camponeses.” (T. da A.)
33
“Por causa daquela intempérie, Nanetto começou a sentir um mal-estar, uma sensação de desmaio, enjôo,
vontade de vomitar, uma fraqueza, uma angústia tamanha que ele acreditava que morreria. Era o mal do mar.
Quase todos os passageiros o tinham tido, mas Nanetto, de estômago mais forte [...] havia resistido até àquela
intempérie marítima. A prisão o deprimia, e este mal do mar parecia que o matava.” (T. da A.)
55
Um dos abusos freqüentemente era a superlotação dos navios, com a promiscuidade
e toda a série de incômodos para a massa que se comprimia na 3ª classe e na proa
dos barcos, muitas vezes ao relento, desabrigados do mau tempo, da frialdade das
noites ou da canícula. Viajavam 900 e 1.000 ou mesmo 1.500 emigrantes em tais
condições, forçando a capacidade dos barcos que se anunciavam “confortáveis”, em
cartazes nos consulados e nas agências de viagem, em folhetos e guias de emigrantes
(1975, p. 122).
Não obstante as condições precárias em que eram feitas as travessias, o transporte dos
imigrantes tornou-se empreendimento lucrativo para a empresa naval italiana. Esta, pouco
preocupada com condições dignas de viagem, objetivava o lucro, que via crescente com a
fuga dos milhares de imigrantes. O lucro aumentava ao transportarem em seus navios número
de imigrantes superior ao indicado para cada embarcação. Ou seja, transportavam-se mais
pessoas sem aumentar os gastos, apenas aumentando os lucros. Sobre o transporte dos
imigrantes, Zagonel (apud MANFROI), relata a maneira como estes eram acomodados nas
embarcações e entregues nos portos: Lotavam os navios até o excesso e despejavam os
emigrantes nos portos como qualquer outro material de carga”. (1975, p.148)
Assim, após o longo percurso, os imigrantes chegavam à América. Contudo, a jornada
a partir d não seria menos extenuante. Conduzidos, às vezes, por longas distâncias,
carregavam os pertences que traziam, até chegarem aos alojamentos. Somente então eram
encaminhados para seus lotes. Em sua narrativa, Aquiles Bernardi representa o que teria sido
esse momento em que os imigrantes eram encaminhados para seus lotes. E, mesmo inserida
em uma narrativa ficcional, reconhecem-se nela elementos que a aproximam de maneira
significativa dos relatos que se encontram nos estudos consultados.
Coando sto toso i lo ga imbarcá in Portolegro, par végnare in sta colonia italiana;
elo ’l se maginava che ’l fusse on paese come a Venessia, co tutte le so comoditá de
case e strade e ponti e via te sétera. Si Sí!... Par vegnare in suso ghe ga volesto na
mucia de giornade longhe, ma longhe! E po longhe de coele che ’l passá te le
cálsere del bastimento, fora le prime!... In prinsipio i xe vegnesti tel baporin sensa
machina, fin a S. Bastian. Che fadighe! che strussi!... Magnare poço e laorare tanto,
se no i ciapava gnanca coel poco!?... Rivadi a S. Bastian, nantra vita... Lora tutti
ga ciapá ’l fagotto e via!... a pié su par na strada. Le donne portava le so creature, e
i omini le robe. Bestie par cargare no i ghin aveva?!... (BERNARDI, 1937, p. 69)
34
34
Quando embarcaram esse rapaz (entenda-se aqui Nanetto) em Porto Alegre para vir para essa colônia italiana,
ele imaginava que esse fosse um país como Veneza, com todas as suas comodidades de casas, estradas e pontes e
etc. Sim sim!... Para subir (da Depressão Central até as colônias na Serra gaúcha), foram necessários muitos
longos dias, mas longos! E ainda mais longos do que aqueles que ele passou no cárcere do navio, fora os
primeiros!...
No começo vieram com embarcação sem máquina, a São Sebastião. Que esforço! Que judiação!... Todos
precisavam se esforçar; e avante!... e adiante... Comer pouco e trabalhar muito, senão não conseguiam nem
aquele pouco!...
56
O excerto é representativo do que possa ter sido o momento da chegada dos imigrantes
italianos e, mesmo inserido em um texto de ficção, guarda elementos que o aproximam do
real, os quais, na descrição do narrador, fazem com que se relembre como foi o percurso dos
imigrantes italianos até chegarem às suas colônias.
3.5 Italianos imigrantes e colonizadores
Quando chegaram às colônias que ocupariam no Rio Grande do Sul, os imigrantes
italianos depararam-se com a mata a derrubar e nela foi que se deu aquilo que Azevedo relata
como o
[...] encontro com os bichos mais extraordinários e ferozes “leões”, tigres, ratos,
macacos que iam vendo pela primeira vez ou que a imaginação representava e
fantasiava; encontro com os terrenos, os cursos d’água, o clima e finalmente, a nova
ordenação social, a que, de logo, teriam de submeter-se. (1975, p. 171)
A mata apresentava-se como um desafio para os imigrantes e, embora nela pudessem
encontrar parte dos subsídios necessários para sua subsistência nos primeiros tempos, a idéia
primeira que surgiu talvez tenha sido aquela que corresponde à imagem de um inimigo a
derrubar e a vencer. Essa posição de prudência, frente a uma ecologia que parece uma ameaça
constante ao intento de sobrevivência, é mencionada nos estudos de Mendras:
O contraste é completo entre o cultivador africano que planta seus cafezais e
cacauais dentro de uma floresta protetora, e o camponês europeu que isola
cuidadosamente seu terreno cultivado da floresta que, pensa ele, “come” seus
cultivos. Para este último, como para o egípcio e os gregos antigos, a floresta
medo: é o domínio da natureza não-controlada, o antro das populações marginais e
de feras selvagens contra as quais se deve defender,orangotangos, lobos e
facínoras.
35
À grande e inquietante floresta da qual se protege, opõe-se a floresta
doméstica, conhecida e explorada de todas as maneiras. Nela encontram as madeiras
Chegados em São Sebastião, outra vida... Então todos pegavam seus pertences e adiante!... a pela estrada. As
mulheres levavam suas crianças, e os homens carregavam as bagagens. Animais de carga não tinham?!... (T. da
A.)
35
Se, no contexto real da imigração italiana, não são raros os relatos de medo das feras, que se poderia encontrar
na mata do Rio Grande do Sul, o mesmo receio se estendia para os povos que aqui habitavam e sobre os quais
conheciam-se relatos pitorescos. O medo das feras e dos bugres (índios) não se limitaria ao contexto da realidade
da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Ela se faria presente também na representação de Aquiles Bernardi
que aqui se analisa.
57
para o trabalho e para o aquecimento, a folha cortada da qual se nutrem os animais
no inverno [...] (1978, p. 20).
Foi na ecologia da Serra gaúcha que os então imigrantes italianos tornar-se-iam
também colonizadores daquele espaço geográfico. Nessa tarefa, cada um era responsável,
junto com a família ou com quem pudesse contar, por desbravar a mata e por obter de seu
trabalho o sustento. A única prestação de contas que deviam era ao governo, a quem deveriam
pagar, ao término de um período estipulado, que variava de três a seis anos, o lote que haviam
adquirido quando da chegada.
Quanto à denominação de colonos e sua derivação do termo colônia, alguns
esclarecimentos se fazem necessários. Em Giron lê-se que: “com a emancipação política do
Brasil de Portugal, ‘colônia’ deixa de significar a relação da dependência externa do país.
Colônia passa a significar terras despovoadas, para as quais são trazidos imigrantes
estrangeiros para a produção agrícola.” (1996, p. 20)
Como se viu, essas grandes porções de terras em territórios que deveriam ser povoados
seja pelos vazios demográficos, seja por constituírem regiões de fronteira passam a ser
denominadas colônias, e, para reforçar, seus habitantes serão chamados colonos.
Para que a Região Nordeste do Rio Grande do Sul pudesse ser dividida em lotes
coloniais, o governo imperial providenciou o trabalho de profissionais para que fizessem as
medições, que resultariam na separação dessa grande fração de terra em lotes menores à
espera dos imigrantes. A realização desse trabalho era feita da seguinte forma:
Os agrimensores dividiam em lotes enumerados as imensas florestas virgens que
cobriam uma boa parte da Província do Rio Grande do Sul. Os lotes mediam 2.200
metros de comprimento por 220 de largura. A cada 30 ou 40 quilômetros era traçado
o plano de uma futura vila com suas ruas, praças públicas e local para a igreja, etc.
Os imigrantes recebiam o número de um lote, do qual tomariam posse e, durante um
certo tempo, o Governo lhes concedia um modesto subsídio para fazer frente às
primeiras dificuldades. (D’APREMONT; GILLONNAY, 1976, p. 225-226)
Quanto à ocupação dos lotes não houve, pelo menos em grande parte, o cuidado de
instalar em lotes próximos os imigrantes italianos provenientes de uma mesma localidade.
Isso porque a preocupação do governo não era minimizar uma situação de distanciamento
cultural, mas ocupar, de maneira contínua, os lotes disponíveis. Sobre essa forma de
ocupação, Frosi e Mioranza esclarecem que “[...] o único critério, sempre seguido de modo
58
formal e sistemático, foi o de ocupar as terras em direção norte, à medida que novas levas de
imigrantes iam chegando”. (1975, p. 44) Pouco antes, os mesmos autores ressaltam o fato de
que somente quando os núcleos principais como Caxias, Conde d’Eu e Dona Isabel
apresentam condições de abrigo aos imigrantes, por um tempo maior, é que se tem “[...] casos
de organização de grupos em demanda de lotes vicinais, segundo critérios étnico-lingüísticos”
(p. 43); entretanto, essa pode ser vista como uma exceção ao contexto da época.
3.6 Quem eram os imigrantes italianos
Dos milhares de imigrantes que deixaram a Itália, entre o último quartel do século
XIX e os primeiros anos do século seguinte, os camponeses eram a grande maioria. Ao se
afirmar que parte significativa dos imigrantes italianos era camponês, é preciso que se defina
o que se compreende por essa denominação. Para tanto, a definição que Mendras (1978)
apresenta parece ser a mais adequada. Isso porque ela ressalta a idéia de unidade composta
pela família camponesa.
36
Nesse tipo de família, é necessário pensar nas bocas que
trabalham e nas bocas que precisam ser alimentadas, o que nem sempre se constitui em uma
equivalência. Há na família camponesa aqueles que trabalham além do necessário para seu
próprio sustento. Entretanto, esse aparente excesso busca compensar as necessidades das
bocas a serem alimentadas e que, nem sempre, correspondem a braços para o trabalho, ou
seja, as crianças e os idosos. Sem grandes questionamentos, parece haver um senso comum
quanto ao fato de todos saberem que passarão, ou que passaram, em algum momento, por
essas fases pouco produtivas.
A família camponesa vive de uma terra e, quanto à sua relação com o lugar onde vive,
Mendras ressalta que essa terra é sua ou lhe é própria:
[...] o que não quer dizer que tenha sempre a plena propriedade, no sentido privativo
do direito romano; mas ela dispõe ao menos de um direito de explorar essa terra,
seja por redistribuição entre as famílias da aldeia, seja por concessão do proprietário
fundiário. A estabilidade da família sobre a terra não é universal nem total, mas a
família tem uma tendência muito grande para consolidar essa estabilidade, qualquer
que seja o modo de dela dispor. (1978, p. 44-45)
36
Aqui é importante que se ressalte um dos aspectos que diferencia o camponês do agricultor. Essa diferença
está relacionada à maneira como cada um deles se coloca frente ao provimento de sua subsistência. Camponês é
aquele que produz aquilo de que necessita para sobreviver, planta o que a família consome, chegando mesmo a
produzir artefatos para o seu uso diário. o agricultor é aquele que cultiva a terra, retirando dela os produtos
que vai comercializar para garantir o provimento do que necessita.
59
Dentre os camponeses italianos, emigraram em maior número os que habitavam o
Norte da Itália, e esse fato deve-se a fatores específicos. Muitos camponeses do Norte da
Itália, em especial os que habitavam as montanhas, estavam habituados à imigração sazonal,
que praticavam em determinadas épocas do ano. Para esses camponeses, nos períodos do ano
em que as montanhas ficavam cobertas de neve, era preciso emigrar temporariamente para
outros países, a fim de trabalhar na construção de ferrovias. Sobre esse movimento, Franzina
esclarece:
L’esempio forse più cospicuo, a questo riguardo, è rappresentato da località
montane per cui disponiamo de testimonianze addirittura secolari le quali
comprovano come l’emigrazione temporanea fosse da lunghissimo tempo praticata
in Carnia donde, eccezion fatta per agosto, “tutto il resto dell’anno [andavano]
quelle genti in Alemagna, et altrove a procacciarsi il vito, e per quel solo mese [si
riducevano] alle loro case a racogliere li fieni, altro non cavando dal loro sterilissimo
paese.
37
(1976, p. 128)
Depois do degelo, os camponeses que haviam emigrado em busca de trabalho
voltavam às suas casas e retomavam suas atividades. Havia também habitantes das montanhas
que, no período da neve, dedicavam-se à construção de ferramentas, não apenas para uso
próprio, como para a venda na colina e na planície, nas feiras onde eram feitos os negócios.
O fato de morarem nas montanhas acabará por fazer com que os camponeses passem a
buscar alternativas para situações por vezes tão íngremes como a própria formação geográfica
em que habitavam. Por conseguinte, desenvolviam uma relação com o meio, com a ecologia
onde viviam, diferenciada, por exemplo, dos habitantes das colinas e das planícies. Os
habitantes das montanhas precisavam desenvolver tecnologias, ferramentas e modos de
subsistência condizentes com as condições oferecidas pelo lugar onde viviam, constituindo,
com isso, uma cultura particular.
38
Burke esclarece a origem dessas diferenças quando afirma: “Se a cultura surge de todo
um modo de vida, é de se esperar que a cultura camponesa varie segundo diferenças
37
“O exemplo talvez mais conspícuo, a esse respeito, é representado pelas localidades montanhosas, sobre as
quais dispomos de testemunhos seculares, que comprovam como a emigração temporária era bastante tempo
praticada em Carnia onde, com exceção do mês de agosto, “todo o restante do ano aquelas pessoas [iam] para a
Alemanha, e em outra parte a obter o sustento, e somente por aquele mês [se limitavam] às suas casas para
recolher o feno, outro não conseguindo retirar de seu esterilíssimo país”. (T. da A.)
38
Quando chegaram à América, os imigrantes tiveram que repensar sua cultura camponesa, recontextualizando-a
à realidade da nova ecologia com a qual se depararam. Esse seria um dos fatores que acabaria por compor aquilo
que se define como a cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul, – tratada no decorrer do estudo.
60
ecológicas, além das sociais: diferenças no ambiente físico implicam diferenças na cultura
material e também nas atitudes.” (1989, p. 57-58)
São essas diferentes atitudes que contribuirão, em alguma medida, para que se tenha
um número significativo de camponeses que, do Norte da Itália, moravam em regiões de
montanha antes de emigrarem para o Brasil. Entretanto, não se deve tornar simplista essa
relação. Não é apenas o fato de morarem em montanhas que fez os camponeses emigrarem. A
vida nas montanhas, como observou Burke, estimula que seus habitantes tenham atitudes que
garantam sua sobrevivência numa ecologia e, quando sobreviver nela não é possível, buscam
em um outro lugar (temporaria ou definitivamente) aquilo que necessitam para sobreviver.
Além dos camponeses que habitavam as montanhas, havia também camponeses
habitantes das zonas de colina e das planícies. Embora em número menor do que os habitantes
das montanhas, os camponeses das colinas também viram na imigração melhores condições
de vida do que tinham morando na Itália. Os camponeses das colinas são aqueles que, donos
de pequenas propriedades e com baixa renda, trabalham terras de outros proprietários ou
então arrendam parte de suas terras para outras pessoas trabalharem, ficando com parte dos
rendimentos obtidos com o trabalho. Nesse contexto, as famílias numerosas significam
aumento dos gastos para a subsistência, mas também, na mesma medida, melhoria nas
condições de vida quando essa prole se convertesse em mãos trabalhadoras.
Por último, havia os camponeses das planícies. Nas planícies é que estão os grandes
latifundiários. O camponês que trabalha as terras desses grandes proprietários em geral é
despossuído de propriedades e desprovido de iniciativas de mudança, frente ao quadro de
estagnação social em que se encontra. Também são os camponeses das planícies que emigram
em número mais reduzido. Parecem ter-se acomodado à sua situação; pouco estimulados a
novas buscas no meio em que vivem, também não procuram novas perspectivas em outros
lugares.
Quando os imigrantes italianos chegam à Serra gaúcha, essa se lhes apresenta como o
desafio do recomeço. É difícil recomeçar em outra ecologia, outro hemisfério, outro contexto.
Mesmo entre aqueles camponeses que realizavam as tarefas de derrubada de árvores e
preparação das terras para o plantio, nem todos prosperaram. Embora isso muitas vezes não
seja mencionado, ou então passe sem ser percebido em meio aos discursos do êxito resultante
do trabalho resignado, é preciso ressaltar que, nessa jornada, nem todos os imigrantes
italianos viram os frutos de seu trabalho. Giron é incisiva a esse respeito, ao afirmar que,
dentre os imigrantes italianos do Nordeste do Rio Grande do Sul, “[...] nem todos
61
conseguiram manter sua terra. Muitos tiveram que deixá-la por não poder cumprir seus
compromissos assumidos com o governo. Famílias inteiras foram dizimadas pela doença e
pela miséria”. (1996, p. 46)
Abordaram-se até aqui, com mais ênfase, os camponeses italianos que tornaram-se
desbravadores das matas, plantando o que lhes era necessário para a sobrevivência. Contudo,
é preciso lembrar que, juntamente com a massa campônia vieram outros profissionais como
artesãos, autônomos, como alfaiates, barbeiros e marceneiros. (IANNI, 1979) Esses, se
acredita, foram atraídos pela oportunidade do trabalho de profissionais com certos
conhecimentos técnicos. Esses outros profissionais que emigraram com os camponeses
também acreditavam ser possível encontrar na América melhores condições do que aquelas
pelas quais passavam na Europa em crise e empobrecida. Nesse percurso, nem todos lograram
alcançar o que sonharam.
Mesmo com a ajuda do Estado, fornecendo alguns utensílios básicos e alguns cereais
para o recomeço (D’APREMONT; GILLONNAY, 1976), a situação dos colonos nesses
primeiros tempos aponta para a privação nos mais diversos aspectos. Distantes da pátria e,
muitas vezes, separados por distâncias significativas dos lotes vizinhos, cada família contava
com o trabalho dos braços de que dispunha para prover o sustento. Contudo, mesmo para o
plantio, era necessário tempo até que chegassem os frutos. Nesse período, por mais de uma
vez, foi à fartura da fauna e da flora brasileira que o imigrante recorreu, a começar pelo
pinhão e pelos passarinhos que, por mais de uma vez, se converteram no alimento necessário
para a sobrevivência.
São os Capuchinhos D’Apremont e Gillonnay quem, em seus relatos, constroem um
significativo quadro de como, é provável, as primeiras levas de imigrantes italianos tenham
subsistido em meio à mata brasileira.
Os colonos, isolados nas florestas, precisavam de muita coragem para levarem
adiante a construção de uma cabana e iniciar imediatamente o trabalho de roça e
plantio... O machado não cessava de abater árvores, de esquartejá-las, para fazer
mourões e estacas, como também tábuas primitivas e rústicas, destinadas a construir
os primeiros abrigos para as famílias; depois vinha a queima de grande parte do
mato abatido e o plantio nessas clareiras; no ano seguinte, a roça era ampliada. Aos
poucos, o colono aperfeiçoava seus utensílios e instrumentos de trabalho e
reconstruía sua moradia em melhores condições, poupava um dinheirinho e então
iniciava uma era de bem-estar que lhe fazia esquecer um pouco as dificuldades do
início. (1976, p. 22)
62
É também na busca pela sobrevivência nessa nova ecologia encontrada na América,
que a cultura do imigrante italiano vai sendo moldada. Após a experiência da partida e da
longa viagem, era preciso que os imigrantes interagissem com o meio nas condições de que
dispunham. Essa interação não se limitava às situações das atividades de trabalho braçal da
derrubada de árvores e da construção de abrigos. Havia uma significativa mudança também
em outros fatores essenciais à sobrevivência. Os imigrantes não estavam mais em seus
povoados, onde podiam compartilhar um mesmo dialeto com os vizinhos. E, a exemplo de
outros aspectos da vida quotidiana, também os falares se viram envolvidos em um processo de
reorganização, que pudesse atender às necessidades de comunicação nas condições impostas
por esse novo contexto.
3.7 Os diferentes dialetos italianos e a coiné
O grande contingente de imigrantes italianos foi instalado nos lotes coloniais
obedecendo a alguns critérios como a capacidade de endividamento familiar, entre outros.
39
Nessa forma de ocupação, os fatores étnico-lingüísticos não foram observados como
parâmetros orientadores na distribuição dos lotes aos imigrantes italianos. Logo, imigrantes
procedentes de regiões distintas da Itália, por vezes, ocupavam lotes vizinhos nas
comunidades que começavam a ser organizadas. Sobre a ocorrência desse tipo de interação,
Frosi e Mioranza ressaltam o fato de que
[...] as comunidades não viviam isoladas umas das outras. É certo que laços étnico-
sócio-religiosos possibilitavam encontros freqüentes: festas dos padroeiros das
capelas e atos de culto congregavam os habitantes de diferentes comunidades;
batizados, casamentos, óbitos e comemorações uniam da mesma forma,
conhecimento, amizades e proveniência de uma mesma Região ou Província italiana
faziam com que elementos de comunidades diversas convivessem também, embora
esporadicamente, devido às distâncias e às precárias vias de comunicação. Outros
contatos eram feitos por objetivos que pudessem interessar, de igual forma, às
pequenas comunidades. Não obstante fatores adversos, a comunicação entre
habitantes de lugarejos vizinhos foi sempre um fato presente na Região. (1975,p. 62)
39
Frosi e Mioranza (1975) consideram que, mesmo sem a preocupação em ocupar os lotes segundo critérios
étnico-lingüísticos, houve casos em que algumas comunidades lingüísticas apresentavam um só dialeto ou
dialetos afins. Esse fato, segundo esses estudiosos, pode ter resultado de três tipos de fatores: de grupos vindos
da Itália em uma mesma leva (como é o caso de Nova Milano); de grupos vindos sucessivamente de uma mesma
região ou Província e que ocuparam áreas demográficas vizinhas, formando comunidades com o mesmo dialeto
ou com dialetos afins (isso teria ocorrido em Nova Vicenza); ou nos casos de reorganização de novas
comunidades quando das primeiras migrações internas (seriam casos assim as cidades de Nova Prata e Guaporé).
63
Como ocorreu com os demais elementos da cultura constituída nessa nova ecologia,
também os dialetos foram passando por transformações e sofrendo interferências no novo
contexto em que se viram inseridos. Nesse contato entre diferentes dialetos, a maior ou menor
preservação de um dos dialetos ou mesmo a utilização mais cedo ou mais tarde da Língua
Portuguesa, seriam definidos pela realidade e pela necessidade dos grupos que utilizavam essa
forma de comunicação. Quanto a isso, os estudos de Frosi e Mioranza (1975) mostram que, se
a comunidade se caracteriza pela ocorrência de um mesmo dialeto utilizado por todos os
habitantes, a tendência desse falar será de se manter preservado
em suas características, até o
momento em que se vir exposto a fatores extralingüísticos. Nessas comunidades, somente
mais tarde a Língua Portuguesa será utilizada. Isso ocorre devido ao fato de o dialeto de
origem, ou que viria a ser dominante, ter suprido as necessidades de comunicação do grupo.
Por outro lado, esses mesmos estudos revelam o fato de que, em uma comunidade
onde há diversos dialetos em decorrência da diversidade de origem dos habitantes, a tendência
mais imediata desse grupo será fazer uso de uma forma dialetal que contemple as suas
necessidades de comunicação. Nesses grupos, em que a variedade de dialetos é significativa,
há uma possibilidade maior da entrada da Língua Portuguesa mais rapidamente do que
ocorreria no caso anterior.
Essas trocas lingüísticas tanto podiam ser feitas na realização das pequenas tarefas
quanto nos encontros sociais. Importantes nessas trocas também eram as casas de serviços
como “[...] ferrarias, funilarias, moinhos [...]” (FROSI; MIORANZA, 1975, p. 63-64), onde a
necessidade de comunicação propiciava a interação e, com ela, as trocas dialetais. Com o
passar do tempo, esses dialetos foram submetidos a um processo evolutivo que resultou em
um falar correspondente às necessidades de comunicação da Região de Colonização Italiana
do Rio Grande do Sul. Para tanto, os dialetos passaram por três etapas em sua evolução. Essas
três etapas são apresentadas nos estudos de Frosi e Mioranza, sendo caracterizadas da
seguinte forma: “A primeira etapa das transformações lingüísticas poderia, pois, ser
caracterizada pela predominância de um dialeto de uma Região da Itália sobre outro da
mesma Região.” (1975, p. 64) Na segunda etapa, as comunidades
[...] se constituídas por imigrantes vênetos e lombardos (ou seus descendentes),
adotarão gradativamente um sistema lingüístico que apresentará realizações
diversas: ou predomina o lombardo, ou o vêneto, ou cria-se uma nova expressão
lingüística de caracterização mais acentuadamente lombarda ou vêneta. (p. 65)
64
Já a terceira etapa encontra-se relacionada de forma direta a algumas modificações que
ocorreram nas colônias, como a abertura de estradas e o comércio do vinho. Nessa etapa não
será a intercalação de dialetos o principal agente da mudança, mas a necessidade de
comunicação eficiente entre os núcleos que passam a interagir de forma mais freqüente com
outros grupos. É preciso que o dialeto seja um instrumento satisfatório para o novo tipo de
necessidade criada pelo contexto desse período.
[...] houve, pois, o domínio de um dialeto que passou a ser o sistema lingüístico de
comunicação de toda a Região. O fato, porém, requer uma análise mais detalhada: o
dialeto que vingou não foi um dialeto puro, mas uma soma de características
dialetais ou supradialeto, uma Koiné. (FROSI; MIORANZA, 1975, p. 66-67)
Mesmo a coiné ou fala comum mostrou-se inserida em um constante processo de
mudanças. Dentre essas mudanças está a inserção, de forma gradativa, de vocábulos da
Língua Portuguesa. Entretanto, cabe salientar que essa inserção deu-se de maneira peculiar.
Os vocábulos da Língua Portuguesa, embora guardassem em sua constituição o significado da
nova terra, recebiam uma forma falada ou escrita com características condizentes com o
dialeto em que foram inseridos. É nesses casos que o chimarrão passa a ser o simaron. A
bebida pica gaúcha mantém suas características; entretanto, o vocábulo, inserido em um
novo contexto cultural, recebe os contornos sonoros desse novo falar, nesse caso, da coiné.
Da mesma forma como os dialetos italianos foram sofrendo transformações ao longo
dos anos, também a coiné tem estado em constante processo de mudança desde seu
surgimento até os dias de hoje. Essas modificações vão ocorrendo na medida e na velocidade
correspondentes ao processo evolutivo do grupo da qual faz parte. Assim, o percurso de
constantes modificações pelas quais passaram os dialetos até que se chegasse à coiné, não se
estagnou com a formação desse novo falar.
A obra de Aquiles Bernardi que aqui se analisa pode ser considerada como um dos
exemplos escritos dessa evolução. A primeira edição, datada de 1937, é o primeiro texto de
ficção escrito em dialeto na Região de Colonização Italiana no Nordeste do Rio Grande do
Sul e é também o texto que serve de base para a realização deste estudo. Nessa edição o
dialeto representa uma das etapas de evolução da coiné, quando é possível verificar a
ocorrência pouco freqüente de vocábulos da Língua Portuguesa, se a compararmos com as
edições que a sucederam.
65
Tanto é possível perceber essa evolução que, a cada nova edição publicada, o texto era
revisto. Na quinta edição, o texto não apenas foi “revisto”, tendo sido alterada uma série de
vocábulos, bem como foi acrescida a essa edição uma “Gramática do dialeto italiano rio-
grandense e um vocabulário do dialeto italiano rio-grandense” (BERNARDI, 1975), esse
último elaborado pelo Frei Victor Stawinski. Também é dele a justificativa da necessidade de
tais acréscimos:
Como em qualquer outro idioma popular, o dialeto vêneto, usado pelo autor de
NANETTO PIPETTA, tem estrutura e características próprias. Pode, pois, apresentar
sérios embaraços e certas dificuldades de interpretação a quem não esteja
familiarizado com sua índole e terminologia. (1975, p. 3)
Em outras palavras, o novo tempo a que se referia Stawinski, demandava que fossem
acrescidas ao texto não explicações do uso de determinados termos, bem como a própria
explicação do que esses termos abrangiam em suas relações de significado. A coiné viu-se
inserida, vale repetir, em um contexto em constante mudança. Cada vez mais, expressões da
Língua Portuguesa foram sendo incorporadas à representação da fala
40
dos imigrantes
italianos. E, na preocupação de “evitar embaraços e certas dificuldades de interpretação”,
ficava nítida a tentativa de transportar os caracteres lingüísticos de uma época para a demanda
de um outro tempo.
3.8 Aspectos da vida religiosa
3.8.1 As capelas
Os imigrantes italianos trouxeram consigo além dos diferentes dialetos também a
religiosidade em suas mais variadas manifestações. Tal era a importância dada pelos
imigrantes para a religião que, nos primeiros tempos, superadas as dificuldades iniciais, a
próxima tarefa era construir, com a colaboração da comunidade, o local onde poderiam ser
feitos os cultos. Como os demais fatores que caracterizam a imigração italiana no Rio Grande
40
Sobre essas expressões, é o próprio Frei Stawinski quem elenca uma série considerável de exemplos na mesma
nota introdutória de que se fala aqui. Entre os exemplos, podem-se citar: “[...] surasco, simaron, cuia [...]” (p. 3),
característicos não apenas do novo contexto, mas de costumes típicos da cultura gaúcha churrasco, chimarrão,
cuia.
66
do Sul e a sua cultura, também o motivo do surgimento das capelas e a maneira como isso
ocorreu se caracterizaram como traços que essa cultura foi definindo, quando se percebeu
inserida em uma nova ecologia com as condições de que dispunha nesse novo contexto.
Como as condições da América mostravam-se diferentes das do país de origem, ao
invés das pequenas paróquias que formavam os paesi que os imigrantes conheciam na Itália,
aqui foram surgindo as capelas. Na obra Imigração italiana: estudos (1979), é possível ler o
depoimento de Dom Benedito Zorzi, que esclarece uma das possíveis relações entre as
pequenas paróquias da Itália e as capelas nas colônias de imigrantes italianos no Nordeste do
Rio Grande do Sul.
Parece que o que eu vou dizer pode esclarecer a origem das capelas aqui. A região
do Vêneto, que visitei em 1954, é pontilhada de paesi quer dizer cidadezinhas,
vilas, e todos com la so chiesa e il so campanile”, a igreja e o campanário. E cada
um daqueles lugares é paróquia. Não existem capelas lá, praticamente; uma ou outra
igreja isolada existe, mas muito poucas. O que existe são paróquias. A idéia deles
era: a vila, uma cidadezinha e o pároco. E muitos moravam ali, formando il paese
e trabalhando nos campos, pequenas frações de meio hectare, ao redor. E então
entendi, ou ao menos me pareceu entender, que os nossos avós que vieram para
tinham muito isso na cabeça: la chiesa e il campanile”. Aqui, queriam fazer das
capelas a sede de futuras paróquias. Depois, alguma predominou, ficando paróquia
mesmo. (p. 42)
Havia o anseio de que a capela pudesse, um dia, ter seu padre e então ser elevada à
categoria de paróquia. (DE BONI et al. 1980) A capela se diferia da paróquia não apenas
quanto ao contexto que desencadeou seu surgimento nas colônias italianas do Rio Grande do
Sul, como quanto ao processo necessário para o surgimento de uma e de outra. O surgimento
de uma paróquia somente era possível com a permissão de uma autoridade eclesiástica. A essa
autoridade caberia também a tarefa de indicar um padre que seria o pároco. O pároco
realizaria as funções de direção e coordenação das atividades da paróquia.
A capela do interior da RCI, por sua vez, era construída por decisão dos membros
daquela comunidade, sem a necessidade de aprovação de uma autoridade eclesiástica.
41
Também era o grupo da própria comunidade que delimitava normas e escolhia seus
dirigentes. Nas palavras de De Boni et al. a capela constituiu-se em “um modo diferente de
organização social, alicerçado na igualdade dos membros, na pequena propriedade, na
41
Os imigrantes italianos se encarregaram de encontrar meios para manter e expressar suas crenças, mesmo sem
dependerem da aprovação de uma autoridade da grande tradição (o clero). O povo, aqui constituído pelos
imigrantes italianos, buscava alternativas para realizar as cerimônias nas quais mantinha vivas a e as crenças
religiosas. Não as capelas, como também o surgimento dos padres-leigos acabariam por se delinear como
traços da cultura da imigração italiana no estado.
67
policultura e no trabalho familiar, teve, também, uma forma diferente de vida religiosa”.
(1980, p. 237) Esse diferente modo de organização vinha atender às necessidades daquele
novo contexto. O mesmo ocorrendo quanto à forma como os imigrantes italianos mantiveram
a realização de algumas cerimônias com os meios de que dispunham na época.
Cada comunidade, ao longo das linhas, dedicava-se à construção de sua capela. E,
tanto isso lhes era importante, que até mesmo a escolha do local a ser construída a capela ou
do santo padroeiro se constituíam em tarefa especial e, muitas vezes, motivadora de conflitos
e desavenças. Segundo Frosi e Mioranza, “a construção de capelas não atendia apenas às suas
necessidades do culto; ligava-se também ao fato sócio-econômico”. (1975, p.73-74) Isso
porque as comunidades tinham na capela não apenas a oportunidade de reforçar sua religião,
como de encontrar-se com as famílias vizinhas, dividir os anseios, contar as experiências,
enfim, alimentar uma vida em sociedade. Sobre a importância do papel da capela em cada
comunidade, Zagonel salienta que “fosse em madeira ou alvenaria, a capela era sempre uma
obra da comunidade, lugar de culto e centro social, centro comercial e sinal de progresso e
prestígio da região. A seu redor a vida se desenvolvia, desde o comércio até a escola”. (1975,
p. 53) Ter uma capela em boas condições parecia refletir, em alguma medida, que aquela
comunidade havia progredido, embora as condições adversas.
À parte o empenho dos colonos em construir sua capela, a assistência religiosa nos
primeiros tempos em muito deixou a desejar. O clero não dispunha de religiosos em número
suficiente para assistir a grande região de colonização com a freqüência de que esses
povoados necessitavam. Os imigrantes, por sua vez, quase sem assistência religiosa,
procuraram meios de manter sua religiosidade naquele novo contexto e com os recursos de
que dispunham. Para minimizar o abandono em que se encontravam, passaram a realizar suas
cerimônias sob a coordenação de membros da própria comunidade, os quais denominavam
“padres-leigos”.
3.8.2 Os “padres-leigos”
Sem a pretensão de substituir a figura do sacerdote, o padre-leigo era escolhido entre
os demais membros da comunidade para coordenar as celebrações realizadas. O padre-leigo
coordenava e presidia a realização de determinadas manifestações religiosas, que os
imigrantes procuravam realizar da maneira mais próxima possível do que recordavam dos
68
cultos feitos na Itália. Com isso, os imigrantes conseguiram manter vivas as características da
devoção e da religiosidade que prezavam. No contexto de abandono em que se encontravam,
essa foi a maneira encontrada pelos imigrantes para amenizar as necessidades que o clero, em
suas limitações durante algum tempo, não era capaz de suprir.
Mesmo antes de terem suas capelas, os imigrantes italianos se reuniam e
procuravam organizar um culto dominical. Nas palavras de Zagonel (1975) esses imigrantes
“reuniam-se em torno de alguma imagem ou quadro, eventualmente trazidos da Itália, e
procuravam os livros de devoção que, normalmente, acompanhavam a família como uma
herança preciosa”. (1975, p. 54) Nesses encontros, eram lembradas as missas, as bênçãos, as
devoções e as cerimônias alicerçadas, senão pela presença significativa de um padre, pela
resguardada pela memória daqueles que estavam reunidos.
Quanto à maneira como eram escolhidos os padres-leigos também conhecidos como
“padre” da capela –, Gillonnay, em carta ao superior na França, intrigado com a prática aqui
realizada e não sem alguma ironia, informava que os imigrantes italianos “escolhiam o mais
douto do lugar (precisava que soubesse ler) para exercer as funções de ‘padre’ da capela,
conforme sua expressão”. (D’APREMONT; GILLONNAY, 1976, p.101) Talvez se
compreenda a surpresa do frei perante a situação relatada. No entanto, se o critério pelo qual
se escolhia o padre-leigo se limitava ao conhecimento da leitura, esse terá sido, por certo, o
recurso que aqueles imigrantes, abandonados de tudo inclusive da assistência religiosa –,
encontraram para fortalecer sua fé quando tinham pouco a contar senão consigo mesmos.
Dentro de casa cabia à mãe ensinar as orações a seus filhos da melhor maneira que
pudesse fazê-lo. Também na narrativa de Aquiles Bernardi (1937), é a mãe de Nanetto que,
com empenho considerável, busca ensinar ao filho algumas orações, sem alcançar grande
êxito. Entretanto, se por um lado as orações não foram aprendidas – ou decoradas –, por outro
lado o que se percebia era que a devoção não persistia como também se manifestava,
principalmente quando o personagem via-se envolvido em situações de perigo. Zagonel faz
referência à importância desse papel da mãe na família, quando afirma que
A mãe sempre representou o elo principal da tradição religiosa, possivelmente
desde a Itália. A ela cabia ensinar as orações e devoções tradicionais e familiares
aos filhos que assim se inseriam na corrente da Tradição familiar. [...] A devoção
era algo que se herdava com o nome. (1975, p. 62)
69
Assim, em um contexto cultural em que a forma escrita era pouco presente, os
costumes, a cultura eram fixados na memória e transmitidos pela tradição oral de uma geração
a outra.
3.8.3 Os frades capuchinhos
Mesmo em condições precárias, os imigrantes italianos procuravam alternativas para
preservar sua em um ambiente repleto de condições adversas. Contudo, a situação precária
do clero não se limitava às colônias italianas. De Boni et al. mencionam em seus estudos que
à situação instalada nas colônias de imigrantes italianos somava-se outra também séria, “a
situação de decadência em que se encontrava o Catolicismo no resto do estado”. (1980,
p.237).
Frente a essa situação, bispos de todo o país se reuniram e solicitaram ajuda das
Igrejas européias. Os bispos pretendiam receber auxílio com o envio de padres e religiosos
europeus para a tarefa de retomada da Igreja católica no Rio Grande do Sul. E, de fato, o
pedido teve resposta positiva. Dentre os religiosos enviados para o trabalho em território
gaúcho, De Boni et al. ressaltam:
Os Jesuítas, chegados já em 1848, para trabalhar junto aos imigrantes alemães,
somavam aproximadamente 100 religiosos em 1900. As Franciscanas da Caridade,
no Estado desde 1872, estavam abrindo casas em diversas localidades. Desde 1856,
encontravam-se em Porto Alegre as Irmãs do Imaculado Coração de Maria, que
começavam a fundar outras residências pelo Estado só após a proclamação da
República. Em 1886, haviam aportado os Palotinos alemães. Em 1896, chegaram os
Capuchinhos franceses e os Carlistas italianos, precedidos, no ano anterior, pelas
Irmãs de Santa Catarina; [...] Ao dobrar o século, segundo dados apresentados por C.
A. Zagonel, mais de 520 padres, religiosos e religiosas europeus estavam
trabalhando no Estado. (1980, p. 240)
Dentre os religiosos das diversas congregações européias que vieram para o Brasil,
esta análise se voltará com mais ênfase à vinda dos capuchinhos franceses ao Rio Grande do
Sul. O motivo refere-se ao fato de o autor de Nanetto Pipetta ter sido um frade capuchinho. E,
para que se compreenda como se estruturam algumas linhas de pensamento que sustentam a
obra, compreender um pouco mais esse segmento religioso talvez signifique compreender o
próprio fazer literário de Aquiles Bernardi, tendo-se sempre em mente as diferenciações
necessárias entre a pessoa e o autor da obra.
70
De maneira parecida ao que ocorreu quando da vinda de imigrantes italianos para o
Brasil, também a vinda de religiosos resultava de interesses comuns do local de partida para o
local de destino. No que se refere à situação da Igreja católica no Rio Grande do Sul, não
as colônias, mas o estado em si apresentava um cenário de decadência. Desse cenário faziam
parte também o clero. (DE BONI et al., 1980) Por outro lado, a vinda dos capuchinhos
franceses para o Rio Grande do Sul interessava às autoridades francesas. A França, por alguns
fatores do contexto da época, também acabava por oferecer motivos que justificam a vinda
dos capuchinhos franceses para o Brasil.
Ao chegarem em Porto Alegre, os frades capuchinhos foram recebidos por Dom
Cláudio, tendo sido então encaminhados para a Colônia Italiana. Foi dada aos capuchinhos a
possibilidade de escolha entre Conde d’Eu e Alfredo Chaves. E, mesmo frente à peculiar
descrição feita por Dom Cláudio, os capuchinhos escolheram Conde d’Eu.
42
Após dois dias de
viagem por um caminho “cheio de barrancos e atoladouros” (ZAGONEL, 1975, p.138)
chegaram ao seu destino. Os frades, por onde passavam, eram acompanhados pelos olhares
curiosos dos imigrantes. Hospedados na casa oferecida pelo vigário, os capuchinhos franceses
deram início aos seus trabalhos nas colônias de imigrantes italianos, no Nordeste do Rio
Grande do Sul.
Afora a surpresa do primeiro encontro, os estudos apontam para o fato de os
capuchinhos franceses terem sido recebidos de maneira positiva nas colônias de imigrantes
italianos do Rio Grande do Sul. Frente à situação desse novo contexto, os capuchinhos deram
início às suas atividades de pregação, entre as quais estava o trabalho das Missões. Para essa
tarefa, o trabalho a ser desenvolvido por eles, nas colônias de imigrantes italianos, precisaria
ser adequado, em alguma medida, às condições e às necessidades daquela nova ecologia.
Também talvez pudesse se constituir em fecunda fonte para futuras discussões, a
denominação de “capuchinhos gaúchos” à qual Zagonel faz referência.
Ao se falar das necessidades impostas pela ecologia das colônias em que se instalaram
os imigrantes italianos, é provável que se perceba quão literal é essa afirmação. Isso porque, à
parte a adaptação a essa cultura diferente, a natureza, como meio, apresentava, por si, um
obstáculo a ser enfrentado na jornada capuchinha no Rio Grande do Sul. A pregação
capuchinha, caracterizada pelo trabalho de Missões, foi revista no contexto das colônias de
42
A descrição de que se fala aqui é apresentada por Zagonel da seguinte forma: Conde d’Eu é uma pequena vila
onde nenhum padre conseguiu permanecer até agora. Experimentai, se quiserdes, mas não lograreis demorar-vos
lá por muito tempo.” (1975, p. 138)
71
imigrantes italianos onde as longas distâncias e os caminhos a serem percorridos delimitariam
o ritmo com que essa atividade seria realizada.
O trabalho missionário era de estilo heróico. Incansáveis, passavam de missão em
missão, quase sem descansar. Dormiam mal e abrigados em casas construídas com
planchas apresentando frestas tão largas que a ventilação era desnecessária. O
sacrifício dos missionários era correspondido pela fome de Deus que o povo
manifestava. Tempo de missão era dia feriado. Todos acorriam para confessar-se e
para comungar, depois de longos anos de jejum. (ZAGONEL, 1975, p.141)
De maneira paralela ao trabalho das missões realizado pelos capuchinhos, alguns
conventos foram construídos. Da paróquia de Conde d’Eu, em março de 1889, os frades se
mudaram para Nova Trento. Depois desse, um segundo convento foi construído em
Esperança, seguido de outro, em Alfredo Chaves, que recebeu a Escola Seráfica. Em 1903, os
capuchinhos instalaram-se em Vacaria, mesmo ano em que chegaram as Irmãs de São José. O
trabalho dos capuchinhos franceses também se fez presente em Porto Alegre, Lagoa
Vermelha, Sananduva, Erechim e Jaguari. Entretanto, são dos primeiros empreendimentos
que os relatos dos próprios freis a que se teve acesso tratam com mais ênfase. Também o
campo de trabalho, na análise que se faz aqui, se circunscreve a esses primeiros conventos,
onde, decorridos alguns anos, seria recebido o jovem Aquiles Bernardi, mais tarde Frei
Paulino de Caxias.
3.9 Novos interesses da Itália nos imigrantes italianos
Como se afirmou, ao tratar do contexto da Itália durante os anos de imigração,
talvez um dos maiores interesses daquele país europeu fosse, naquele período, livrar-se do
numeroso contingente de italianos que, com poucas perspectivas na pátria-mãe, partiam em
busca de melhores condições de vida do outro lado do oceano. Mais do que isso, quando
possível, o próprio processo de imigração era convertido em lucros para o governo italiano,
tanto na exploração dos imigrantes, antes mesmo do embarque, quanto nas remessas de
dinheiro que, anos mais tarde, os imigrantes passariam a enviar aos parentes que haviam
ficado na Itália.
Não tardou e, frente aos sinais de êxito que seus compatriotas manifestavam nas novas
terras, houve quem passasse a se interessar pelos imigrantes italianos que estavam na
72
América. Há um fato relatado em D’Apremont e Gillonnay, datado por volta de 1901, quando
chega a Conde d’Eu um agente do governo italiano. Esse agente logo convoca os imigrantes
para uma reunião da qual poucos participariam e sabia-se bem o porquê. Não raro, ouviam-se
públicos desabafos como o que é transcrito a seguir: “Quando os pobres colonos comiam
pinhões, ninguém vinha da Itália visitá-los; mas agora que se alimentam com galinhas, todos
querem vir e compartilhar com eles.” (1976, p. 87)
O sentimento de revolta tinha justificativa. Os anos não haviam apagado as
lembranças do começo difícil e do sentimento de abandono que acompanhou o imigrante
italiano nos primeiros tempos. Oferecer-lhe ajuda quando não precisava soava como algo a
subestimar o bom senso.
Contudo, é importante ressaltar que a preocupação de manter vivos nos imigrantes os
valores patrióticos com relação à Itália não se restringiu aos agentes do governo italiano. Nos
estudos de D’Apremont e Gillonnay, é possível encontrar um exemplo disso. Neles, relata-se
a crítica feita pela revista Italica Gens ao trabalho dos capuchinhos franceses em meio às
colônias de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. Um artigo, publicado na edição de
maio/dezembro de 1913, estabelecia distinção entre aquilo que considerava bem espiritual e
os interesses patrióticos nos italianos: “[...] uma vez que estes sacerdotes estrangeiros, embora
zelosos para com os italianos, não são inclinados a favorecer nos mesmos os legítimos
sentimentos de afeição às tradições pátrias para eles desconhecidas.” (D’APREMONT;
GILLONNAY, 1976, p. 407- 408)
A afirmação foi digna de cólera por parte dos capuchinhos franceses. O fato é que a
revista questionava a idoneidade do trabalho realizado pelos frades nas colônias de imigrantes
italianos. Para tanto, a publicação partia do princípio de que freis de origem francesa
dificilmente saberiam despertar ou cultivar, nos imigrantes italianos e em seus descendentes,
os valores e o apreço que estes deveriam ter pela pátria-mãe. Mais do que isso, nas entrelinhas
talvez fosse possível ler a intenção do trabalho apostólico com fins mais próximos da questão
política do que espiritual.
Sobre o referido artigo, a resposta capuchinha foi incisiva. Em D’Apremont e
Gyllonnay, é possível ler: “Posso afirmar que nossos padres trabalham com zelo no bem
espiritual dos imigrantes, enquanto que o autor do artigo os acusa de não inculcarem nos
colonos o amor à Itália.” (1976, p. 86)
E prossegue:
73
[...] Somente os Palotinos e alguns padres seculares precederam nossos Padres
Capuchinhos de Sabóia, junto aos colonos italianos do Rio Grande do Sul. Naquele
tempo em que o colono se debatia contra as adversas condições de sua primeira
localização nas florestas virgens, não havia quase ninguém que lhe dirigisse uma
palavra de conforto ou de estímulo e partilhasse de sua sorte. Que triste e amarga
lembrança. (D’APREMONT; GILLONNAY, 1976, p. 87)
De fato, a preocupação com uma possível repercussão que esse tipo de imprensa
poderia vir a causar nas colônias de imigrantes italianos era algo que acompanhava os padres
Capuchinhos algum tempo. Foi pensando nisso que, em 1902 e 1903, os missionários
estiveram próximos de montar eles mesmos uma tipografia “para combater a imprensa”.
(1976, p.186) Todavia, envolvidos com as tarefas de direção do Seminário Diocesano, não
dispunham de pessoal suficiente para o novo empreendimento.
3.10 Jornal católico e italiano
Tempos depois, a idéia de criar um jornal católico e italiano – nessa ordem de valores–
voltou à discussão. O jornal La Libertà foi fundado em 1909 na cidade de Caxias do Sul.
Contudo, alguns desentendimentos na direção do jornal colocaram a perigo seu êxito. Foi
nesse momento que o vigário de Garibaldi, Dom Giovanni Fronchetti (D’APREMONT;
GILLONNAY, 1976), adquiriu, em parceria com alguns sócios, uma tipografia. Para o novo
trabalho contou com a cooperação dos capuchinhos para a administração da paróquia, tendo
assim tempo suficiente para se dedicar às funções do jornal. Dom Giovanni contava também
com o apoio dos capuchinhos e dos demais padres para a propaganda do jornal no interior das
comunidades. O jornal Il Colono Italiano viu-se em um percurso próspero, superando as
dificuldades que se apresentavam. Segundo D’Apremont e Gillonnay (1976), grande parte das
dificuldades se justificavam pelo fato de o jornal ser católico e italiano e não italiano e
católico. Ou seja, antes de estar envolvido com o trabalho de estímulo aos valores patrióticos,
o jornal daria prioridade à divulgação dos valores e princípios – bem como da ideologia que
caracterizava o Catolicismo, fazendo clara menção ao combate do tipo de imprensa e às
críticas feitas ao trabalho capuchinho pela revista Italica Gens.
No parecer que afirmava que “[...] o ‘Colono Italiano’ foi o único jornal católico e
italiano viável aparecido no Rio Grande do Sul” (D’APREMONT; GILLONNAY, 1976,
p.187), talvez não se imaginasse a possibilidade de que, ao longo dos anos, isso não se
74
mostraria como verdade, como se reafirmaria de maneira sólida nas comunidades de
imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. Em nota explicativa, Ribeiro (2005) ressalta que,
desde sua primeira publicação em 13.2.1909, o jornal circulou sob a denominação de La
Libertà. Somente a partir de 1910 é que passou a chamar-se Il Colono Italiano. O nome
Stafetta Riograndense surgiria em 1917 e continuaria a 1941, quando o jornal passa a
denominar-se Correio Riograndense, nome que mantém até os dias atuais.
E, decorridos alguns anos da primeira publicação desse jornal, seria ele também que
apresentaria em suas páginas, nos anos de 1924 e 1925, as publicações semanais dos capítulos
escritos pelo então Frei Paulino de Caxias. É através do Stafetta Riograndense que as histórias
de Nanetto Pipetta são apresentadas à comunidade de imigrantes italianos no Rio Grande do
Sul e aos seus descendentes. E, em um contexto onde a alfabetização não é posta como
preocupação primeira, o texto impresso é recebido de maneira peculiar.
O jornal chegava a cada comunidade aos domingos e então uma cena passava a se
repetir. Uma pessoa tomava o jornal e dava início à leitura da história da semana. Em torno do
leitor agrupavam-se ouvintes atentos que, não raro, é possível que irrompessem em
gargalhadas frente às peripécias narradas. Em comunidades e em um tempo onde eram
escassos os meios de lazer e de entretenimento, as histórias de Aquiles Bernardi cumpriam
esse papel. Daquele momento em diante, as histórias ganhariam vida, tornar-se-iam parte da
cultura de tradição oral entre os imigrantes italianos. Estes, alicerçados na memória e na
alegria de cada aventura, encarregavam-se de transmiti-la a quem ainda não a tivesse ouvido,
de tal forma que as histórias de Nanetto tornaram-se conhecidas por toda a região, mesmo por
aqueles que não as puderam ler no jornal ou nas publicações que se seguiriam.
75
4 A REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA DE AQUILES BERNARDI
4.1 A cultura da imigração italiana
O conceito que se define como a cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul
tem sido objeto de estudiosos nos últimos tempos. Quanto à reflexão que se propõe aqui está
voltada para a análise desse conceito, a partir de dois estratos culturais distintos. De um lado
para a cultura que o imigrante italiano trouxe consigo da Itália. Do outro, as transformações
culturais frente à nova ecologia que o contexto encontrado na América apresentava.
Com a decisão de partir para o Brasil, embora a cultura trazida da Itália não deixasse
de existir, ela também não continuava sendo a mesma. A cultura do imigrante italiano seria
transformada em uma série de aspectos ditados pelo processo ao qual aquelas pessoas seriam
submetidas. A decisão da partida, passando pela experiência da longa viagem de navio da
Itália até o Brasil, bem como a chegada a terras que deveriam ser desbravadas e o recomeço
haviam deixado marcas em um povo que, em sua essência, guardava o registro de
experiências de superação. Nas novas terras, o imigrante italiano se depara com a eminente
necessidade de recomeçar. O cenário do recomeço é regido pela necessidade de
sobrevivência. Esta é assegurada pela força do trabalho, o que assumiria uma posição
importante em uma cultura na qual acredita-se que, somente a partir do seu trabalho, é que o
indivíduo pode progredir.
Não bastasse a necessidade de recomeçar, o imigrante italiano se encontra às voltas
com questões culturais e sociais que o surpreende. Entre os italianos que compartilham a
mesma experiência, muitos não falam a mesma língua, por serem oriundos de diferentes
regiões do Norte da Itália. Há o contato com outras maneiras de viver... A nova terra reserva o
contato com outras culturas como o índio “bugre” e o negro –, o que acarreta um “moldar-
se” à nova realidade, regido pela necessidade determinada pelo contexto. Todos esses fatores
desde as referências culturais, passando pela experiência da imigração, até o encontro com
outras culturas acabam por compor a cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul,
uma cultura que não resulta de um único lugar. Como afirmam Hall e Woodward (2000), a
cultura da imigração comporta características que foram moldadas e localizadas por diferentes
lugares. Nesse processo a cultura vai sendo composta pela relação entre as características que
76
sobrevivem pela cultura de tradição oral e por aquelas que se vêem na necessidade de serem
reformuladas para atenderem à demanda da realidade apresentada pelo novo contexto.
Como nas demais culturas, a cultura da imigração italiana mostrou-se como algo em
constante transformação, acompanhando as mudanças da sociedade da qual é parte. Por isso,
poderia ser descrita em suas diferentes fases, chegando ao cenário que se hoje. Esse talvez
pudesse ser definido como a cultura dos descendentes de imigrantes italianos no Rio Grande
do Sul. Entretanto, os tempos são outros e trazem consigo mudanças significativas. Com o
advento da modernidade, com o aumento das cidades, fica cada vez mais difícil o acesso à
cultura da imigração italiana da maneira como era possível tempos atrás. Nessa constante
evolução, alguns fatores se perderam, enquanto outros foram reconhecidos em seu valor a
tempo para serem preservados.
Ao se utilizar neste estudo o conceito de cultura da imigração italiana no Rio Grande
do Sul, está-se fazendo referência não apenas a um conjunto de manifestações de um
determinado grupo cultural, mas a tudo o que essa delimitação significa, como região, onde
uma série de relações se estabelece de maneira particular, específica. Nesse contínuo processo
de transformação, a cultura, sendo “fazer humano”, comporta a possibilidade de ser
interpretada nas relações estabelecidas entre seus estratos sociais ou mesmo quanto ao que a
posse de determinados saberes ou conhecimentos possa implicar em cada grupo social e em
cada um de seus períodos.
Dentre aquilo que constitui o fazer humano está a construção das representações,
inclusive da representação de caráter fictício. Esta, permeada pelos saberes da comunidade a
qual o indivíduo pertence, é também uma das formas de registro dos significados de uma
cultura – a cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul.
4.2 A cultura clerical nas colônias
O conceito que inaugura essa etapa do estudo tem sido objeto de estudo de diversas
áreas. Dentre esses estudos, Ribeiro (2005) o define como elemento que “deixou marcas na
colônia italiana”, quando, anos mais tarde, surgiria também a primeira manifestação literária
de caráter ficcional escrita em dialeto no Rio Grande do Sul, objeto deste estudo. Contudo,
muito antes de realizarem seu empreendimento, em nível de imprensa católica, nas
77
comunidades de imigrantes italianos, os capuchinhos realizaram um outro tipo de trabalho. O
trabalho que os frades Capuchinhos realizaram nas colônias de imigrantes italianos do Rio
Grande do Sul caracterizava-se, entre outros fatores, pela pregação através de Missões, o que
fez com que os frades passassem a ser também missionários. As Missões eram parte das
atividades que constituíam a Ordem dos Capuchinhos. Segundo Zagonel, “o trabalho
missionário é uma das características da Ordem franciscana e São Francisco, que esteve no
Oriente, prescreveu em sua Regra as missões entre os fiéis”. (1975, p.133) Para a realização
das missões, os frades iam até as comunidades de fiéis onde realizavam os trabalhos de
assistência religiosa de que as pessoas do lugar necessitavam. Foi também com esse
propósito, entre outros, que os frades chegaram às colônias de imigrantes italianos no Rio
Grande do Sul.
Entretanto, ao ser inserida nas colônias de imigrantes italianos do Rio Grande do Sul, a
cultura clerical dos frades capuchinhos
43
viu-se modificada pelas condições impostas pelo
meio e pelas necessidades desse novo contexto. Na América, o trabalho apostólico teve que
ser adequado em mais de um aspecto, para que atendesse às necessidades que as colônias
apresentavam e às dificuldades que o meio impunha para a realização desse trabalho.
Característica da Ordem capuchinha, a rotina de horários estabelecidos para o cumprimento
das funções do dia precisou ser repensada frente às necessidades apresentadas por esse novo
contexto.
O hábito do trabalho ministerial, as longas cavalgadas para atender aos enfermos, a
pregação de missões, etc... instaurou na vida capuchinha um estilo diferente do estilo
europeu. Não obstante as recomendações e as normas sucessivamente impostas, no
sentido de controlar as atividades externas a submeter-se mais a uma regularidade, o
hábito da pressa e do ativismo se tornou “virtude adquirida” para a maioria dos
Capuchinhos gaúchos. Eles sentiam dificuldade de se identificar com qualquer
comunidade européia. A vida estabeleceu suas normas! (ZAGONEL, 1975, p.146).
O meio e as necessidades encontradas talvez tenham sido os dois principais fatores
que acabariam redefinindo os contornos do trabalho das missões e da rotina dos frades nas
colônias de imigrantes italianos. Como Zagonel coloca, o trabalho realizado pelos frades
capuchinhos, no Rio Grande do Sul, ganhava contornos que o diferenciavam de maneira
significativa do trabalho realizado na Europa, pelo simples fato de que, no Brasil, a realidade
43
O histórico da vinda dos frades capuchinhos de Sabóia para o Rio Grande do Sul foi analisado de maneira
mais detida na parte desta pesquisa, que trata das questões históricas da imigração italiana e da vinda de frades
para o trabalho nas colônias de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul.
78
ditava normas que acabariam por redefinir essas práticas. Mesmo assim, dentro do que era
possível, os frades procuravam seguir uma rotina que mantivesse ao máximo a proximidade
das características da Ordem a que pertenciam. Manter as características da Ordem, dentro da
realidade encontrada nas colônias de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul, passou a ser
tarefa dos frades. Frei Bruno de Gillonnay, um dos três primeiros frades que vieram para o
trabalho apostólico no Rio Grande do Sul, relata as recomendações sobre a forma como
deveria ser realizado o trabalho aqui.
Aproveitar todo o tempo; ter sempre um livro à mão; meditar enquanto cavalga e
saber, como São Francisco, contemplar a natureza exuberante e misteriosa que se
estende ao longo das quase impraticáveis estradas da Colônia . Bruno de Gillonnay.
Esquema de orientação para Visita Canônica em 1913. In: A-3, XII (ZAGONEL,
1975, p. 147).
Seria o meio, definido por Gillonnay, como a “natureza exuberante”, um dos aspectos
que delimitaria os contornos do trabalho realizado pelos frades nas colônias de imigrantes
italianos. É importante ressaltar que a chegada dos primeiros frades capuchinhos ao Rio
Grande do Sul
44
deu-se em um período seguinte à instalação das primeiras famílias. Por isso,
relatos que descrevem as estradas e as instalações precárias que abrigavam os imigrantes e
suas famílias nesses primeiros tempos. O contexto encontrado pelos frades capuchinhos, ao
iniciarem seus trabalhos, determinará, em parte considerável, a maneira como será realizada
essa tarefa. Essas condições fariam com que a cultura clerical trazida pelos frades da Europa
fosse remodelada pelas condições do novo meio, tornando-se, com isso, uma cultura
particular e específica dessa região. Dessa transformação da cultura clerical é que surgiriam
os traços daquilo que se definiu como a cultura clerical nas colônias de imigrantes italianos no
Rio Grande do Sul.
As condições impostas pela natureza ao trabalho capuchinho não raro são
mencionadas nos documentos da época. Entre outras coisas, esses documentos guardam as
descrições de algumas das experiências às quais os religiosos foram submetidos. O relato de
frei Bruno,
45
reproduzido a seguir, embora um pouco extenso, é compensado pela
44
Segundo os estudos de D’Apremont e Gillonnay (1976), os três primeiros frades capuchinhos chegaram ao Rio
Grande do Sul para realizar seu trabalho nas colônias de imigrantes italianos, no ano de 1896. Eram os religiosos
Reverendo Pe. Rafael de la Roche, Pe. Frei Bruno de Gillonnay e Pe. Frei Leon de Montsapey. Haviam passado
pouco mais de vinte anos da chegada dos primeiros imigrantes italianos ao Rio Grande do Sul, quando os
primeiros capuchinhos chegaram aqui.
45
“[...] Frei Bruno de Gillonnay, fundador da Missão Capuchinha no Rio Grande do Sul. Tendo chegado em
1896, a pedido de Dom Cláudio J. Gonçalves Ponce Leão, instalou-se em Conde d’Eu juntamente com Frei Leon
de Montsapey e percorreram a colônia italiana pregando missões populares e fundando conventos capuchinhos.
Era um homem apostólico, empreendedor e estrategista consumado. A Província Capuchinha gaúcha é, de fato,
obra de sua iniciativa”. (D’APREMONT; GILLONNAY, 1976, p. 222)
79
significativa presença de detalhes, feita por esse que foi um dos pioneiros no trabalho
capuchinho nas colônias de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. Certamente, uma dose
de ironia não deixa de perpassar a descrição, entretanto é a caracterização da experiência que
se pretende enfatizar.
Não me alongarei sobre as privações da vida dos nossos heróis do Evangelho: fome,
sede, longas cavalgadas, de dia e de noite, estafa física e intelectual, dificuldade de
aprendizado de idiomas, aguaceiros, chuvas torrenciais, enchentes, calor, frio, tudo é
pão cotidiano! As quedas de cavalo, com o risco de fender a cabeça nas pedras,
acontecem até aos mais famosos cavaleiros. Júlio César e Napoleão também
experimentaram algo assim. Embora afeitos à equitação, todos os missionários m
algum magnífico acidente deste gênero em seu ativo. Quanto a mim, posso contar
até seis. [...] Encontrar um leito para dois missionários é ainda (exceto nas famílias
italianas que cedem sempre o que de melhor têm aos padres) um luxo nem sempre
possível. Que os ratos nos experimentem roer o nariz ou as orelhas à noite não é
coisa estranha. Quanto aos mosquitos, pulgas e outros insetos, cujo nome soa mal na
sociedade, cada um deve se defender como pode porque os em toda a parte.
(D’APREMONT; GILLONNAY, 1976, p. 197)
Se, de um lado, o meio colaborou para definir os contornos da cultura clerical do
trabalho capuchinho no Rio Grande do Sul, de outro, a necessidade apresentada pelas
comunidades de imigrantes italianos ditou o ritmo em que seria realizada essa tarefa. Depois
de um significativo período com pouco acesso à assistência religiosa, a chegada dos
capuchinhos apontava para a oportunidade do reencontro com as práticas religiosas tão
importantes para a cultura dos imigrantes italianos. Era devido à intensidade dessa
necessidade que o trabalho era realizado pelos frades quase sem descanso. Porém, se o
trabalho dos frades seguia um ritmo intenso, os imigrantes italianos, por sua vez,
correspondiam à dedicação dos religiosos com um espírito de e de devoção frente às
manifestações religiosas. Há relatos de frades contando dos imigrantes que chegavam a passar
mais de uma noite aguardando uma confissão. (D’APREMONT; GILLONNAY, 1976) Com
os demais rituais não era diferente, sendo as missas e as Primeiras Comunhões também
exemplos da aceitação significativa do trabalho dos frades capuchinhos nas comunidades de
imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. Essa necessidade de assistência não se limitava às
atividades realizadas nas igrejas. O atendimento aos doentes fazia com que os religiosos
percorressem significativas distâncias para a realização de seu trabalho.
[...] quando os colonos perceberam que estávamos também à disposição dos doentes,
vieram dos lugares mais afastados reclamar o nosso ministério. São viagens longas,
às vezes até dois ou três dias a cavalo, feitas de dia e de noite, com qualquer tempo:
calor, frio, chuva... a morte não espera! Deve-se ir aos lugares mais inacessíveis, às
80
vezes deixar o cavalo e ir a quase gatinhando por picadas e atalhos pelas matas.
Outras vezes a dificuldade surge de um riacho; é preciso então soltar o cavalo e a
pedradas afugentá-lo até que alcance a margem oposta; depois atravessarmos nós
também o rio ou por sobre um tronco de árvore formando uma ponte provisória ou
então em frágil canoa. Contudo, as fadigas destas viagens são largamente
recompensadas, pela gratidão dos pobres doentes que, chorando de alegria, nos
cobrem as mãos de lágrimas e beijos. Carta de frei Bruno. (D’APREMONT;
GILLONNAY, 1976, p. 99-100)
As necessidades dos imigrantes italianos, instalados nas terras da Encosta Superior do
Nordeste do Rio Grande do Sul, transformariam o trabalho dos frades capuchinhos. Surgiria
uma nova cultura clerical desenhada a partir dos contornos desse novo contexto. Não obstante
os infortúnios e os sobressaltos dos primeiros tempos, foi um empreendimento que, adaptado
às condições das colônias, alcançaria lograr resultados positivos. Decorridos alguns anos, a
cargo dos frades capuchinhos estaria o comando de um dos veículos da imprensa escrita dessa
mesma região. Quanto ao êxito dessa imprensa, seria possível perceber que, ainda que com o
fim último da evangelização, não chegaria ao sucesso que alcançou se tivesse ignorado as
características culturais do contexto onde realizaria seu trabalho o contexto da imigração
italiana no Rio Grande do Sul.
4. 3 A representação literária de Aquiles Bernardi
Frisou-se o fato de com a imigração italiana, ter surgido também uma cultura de traços
característicos a cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Alguns dos traços
característicos dessa cultura, presentes em seu contexto real, viram-se representados no
universo de ficção, recebendo novos contornos a partir da produção de Aquiles Bernardi.
Bem se sabe que esse trânsito da realidade para a ficção, ainda que possível, não se
como simples transposição. Outrossim, constitui-se com base nos elementos utilizados nessa
reconstrução. Compreender o percurso da realidade para a ficção implica observar essa
metamorfose em alguns de seus muitos aspectos. Cada um desses aspectos, bem como a
escolha de determinado foco em seu processo de elaboração, parece ganhar importância
decisiva para que o autor alcance o efeito que se na obra, para que construa um texto com
contornos específicos.
O que se vê, no fim do trabalho de Aquiles Bernardi, são traços da representação de
uma cultura que, mesmo parte de um ambiente não real, mostram-se capazes de despertar a
81
impressão de realidade. Ou seja, Aquiles Bernardi consegue construir, em sua narrativa, o
trânsito de elementos de uma determinada realidade para a ficção. Esses, embora não existam
de fato, são elaborados de forma que se consiga imaginá-los. Como observa Chaves, está
claro que, quando lemos um romance ou um conto, estamos tratando com criaturas que não
são reais; elas são puramente imaginárias. E no entanto, essas personagens se impõem a nós e
participam da nossa visão do mundo como se reais fossem.” (2004, p. 9)
Essa impressão de realidade de que fala Chaves foi alcançada pelo autor de Nanetto de
forma peculiar. Não apenas como foi construída, mas os resultados que se verificam nos
posicionamentos despertam o interesse para essa maneira de produzir: onde posicionar o
narrador e que voz lhe atribuir são algumas das questões que merecem um olhar mais detido e
das quais se vai tratar.
4.4 Poética de Aquiles Bernardi
A maneira como Aquiles Bernardi elaborou aspectos da cultura da imigração italiana
dentro de sua narrativa de ficção, remete para aquilo que, no universo compreendido pelos
estudos literários, é delimitado pela definição de poética. O termo, como afirma Staiger
(1972), é de origem grega e abrevia a expressão poetikè téchne, algo que talvez pudesse ser
compreendido como a técnica da poesia. Entretanto, a real abrangência desse conceito se
estende para limites que ultrapassam aqueles cerceados pela poesia e, logo, nesse contexto, o
estudo de produções em forma de prosa também passou a fazer parte. É partindo desse fator
que se passa a denominar o fazer literário de Aquiles Bernardi como a sua poética.
Para compreender o que constitui esse fazer, volta-se para a menção de Staiger ao “[...]
antigo ensinamento da arte da poesia, de toda poética que se apóia na antiga poetikè téchne,
pressupõe o conhecimento da essência da poesia, se possível em sentido geral”. (1972, p.181)
Logo, o que se tem é uma nova indagação que conduz à tarefa de compreender o que, de fato,
constitui essa chamada “essência” da poesia. Seu sentido geral poderia abranger tanto as
questões relativas à forma que a definem como poesia quanto os elementos que, além da
forma, contribuem como constituintes semânticos do que se apresenta em cada elaboração
definida como poética. No que se refere à prosa de Aquiles Bernardi, pretende-se analisar o
segundo, compreendido a partir da maneira como é apresentado pelo primeiro. Ou seja,
compreender a poética do autor de Nanetto Pipetta implica buscar os sentidos que ele foi
82
capaz de construir, a partir dos elementos que utilizou: uma linguagem de sentidos
compartilhados por determinado grupo cultural e uma forma de lhe atribuir contornos que a
imaginação do texto de ficção permitia que lhe fossem agregados. Esses são os constituintes
da poética de Aquiles Bernardi, a partir dos quais se parte em busca da compreensão dos
sentidos construídos por esse frade capuchinho.
O cuidado revelado na tarefa de organização e composição dos elementos de uma
poesia remonta para sua origem e para os significados que lhe foram atribuídos desde seu
começo.
O tipo de composição que chamamos de ‘poética’ era ab initio um recurso inventado
para servir às necessidades de registro e preservação em uma época de comunicação
inteiramente oral. Essa preservação podia acontecer nas memórias vivas de seres
humanos reais. A sintaxe de enunciados feitos na poesia oral tinha, portanto, de
conformar-se a certas leis psicológicas que operam para garantir alguma fidelidade
na repetição. (HAVELOCK, 1996, p. 239)
Em tempos em que o legado de uma determinada cultura era preservado e transmitido
pela oralidade, a poética se definia como uma forma de organização dos enunciados
elaborados, de modo que pudessem ser preservados pela memória dos indivíduos pertencentes
àquela comunidade de cultura de tradição oral. É provável que, para tanto, as técnicas de
preservação se utilizassem de recursos que facilitassem a memorização, tais como recursos
sonoros da linguagem, como rimas e trocadilhos. Entretanto, os recursos lingüísticos por si,
não compunham toda a “técnica poética”, isso porque, além de uma forma que favorecesse a
memorização, talvez fosse necessário que a própria construção a ser memorizada não o fosse,
de todo, estranha aos sentidos conhecidos por quem a procurava memorizar. Em outras
palavras, na mesma medida em que recursos técnicos da linguagem oral colaboravam para a
preservação de determinados elementos pela memória, era necessário também que essa
mesma construção atendesse a princípios culturais que sustentassem esse processo.
A essa altura, é possível pensar em algo que talvez pudesse ser definido como a
necessidade de uma “competência cultural” na realização desse processo. Para tanto, esse tipo
de competência deveria ser compartilhado tanto por quem compunha quanto por quem
recebesse o texto produzido, isso para que a composição pudesse ser mais do que
memorizada – compreendida nos significados que propunha. No momento em que se
percebe que a elaboração de um elemento cultural comporta elementos técnicos do uso da
linguagem e, juntamente com esses, elementos culturais que a sustentem, torna-se possível
83
pensar que o processo de elaboração denominado poética possa vir a abranger mais do que a
pura técnica presente na construção de uma poesia como em sua concepção primeira , e
seja determinada também pela maneira como, nessa construção, os elementos de uma cultura
acabaram sendo representados.
Logo, o que se é que o universo da criação poética e das tentativas de compreensão
desse processo não está limitado às produções que se definem a partir da denominação de
poesia. Outrossim, a prosa passa a se mostrar como uma produção que, em alguma medida e
de alguma forma, demanda um percurso de construção de significados. No estudo da poética
da prosa, de maneira similar ao que se viu na poesia, também haverá a utilização de
determinados recursos em busca da construção de um sentido desejado. É possível que esses
recursos se voltem a questões diversas da primeira necessidade de memorização, antes
mencionada. Isso não é mais do que o fazer se estruturando a partir dos contornos de cada tipo
de produção literária, voltado para corresponder às características do período em que foi
produzido. Por outro lado, a necessidade de construir a representação de sentidos
compartilhados culturalmente se mantém. É ela que, no universo da prosa de Aquiles
Bernardi, fará com que surjam tantas expressões e modos de dizer que pela gama de
nuanças de sentidos culturais que comportam não comportam a possibilidade de ser
traduzidos em sua plenitude. Porém, mesmo assim, sendo compartilhados por quem os
produziu e por quem se depara com eles dentro de um texto literário.
Partindo-se desse raciocínio, a poética, como afirma Todorov, torna-se um conceito
capaz de abranger produções que vão da prosa à poesia, uma vez que “[...] o que ela estuda
não é a poesia ou a literatura, mas a ‘poeticidade’ e a ‘literalidade’. A obra singular não é para
ela um fim último; quando se detém numa obra e não em outra, é porque esta deixa
transparecer de maneira mais clara as propriedades do discurso literário”. (2003, p. 51).
Quando fala das propriedades do discurso literário, Todorov acaba possibilitando uma
análise que vai além das vertentes literária e lingüística. Isso porque, para se elaborarem
significados que façam sentido, em um determinado grupo, é necessário que, juntamente com
a linguagem e com a forma literária, se façam presentes representações de referências
culturais passíveis de serem reconhecidas pelo grupo que as recebe.
Dessa maneira, o que Todorov propõe em sua definição nada mais é do que o
reconhecimento de um ponto ao qual chegou o conceito de poética em seu processo de
evolução, que, mesmo passando da oralidade para a escrita, mantém-se, em algum sentido,
preservada em suas origens, uma vez que continua a ter na technè seu maior objeto de estudo.
84
Hoje, estudos da poética ainda buscam compreender as técnicas que, em outras épocas,
facilitavam a preservação de manifestações culturais com o auxílio da memória dos
indivíduos de cada grupo.
46
No entanto, passou-se também a perceber a importância de
compreender como determinado texto cultural foi elaborado, a fim de que resultasse em um
fazer de abrangências tais que o permitissem ser, ao mesmo tempo, individual e coletivo,
regional e universal em um mesmo autor, como é o caso que se na obra que compõe o
corpus deste trabalho.
Na análise aqui proposta pretende-se elaborar uma leitura da representação dos
elementos culturais da cultura da imigração italiana na poética de Aquiles Bernardi. Essa
proposta de análise é, de certa forma, mencionada por Todorov no fim de sua discussão sobre
a evolução do conceito de poética:
[...] nosso século presenciou um renascimento dos estudos de poética, vinculado a
várias escolas críticas: o formalismo russo, a escola morfológica alemã, o New
Cristicism anglo-saxão, os estudos estruturais na França (em ordem de surgimento).
Essas escolas críticas (sejam quais forem as divergências entre elas) situam-se num
nível qualitativamente diferente do que qualquer outra tendência crítica, na medida
em que elas não procuram nomear o sentido do texto, mas descrever seus elementos
constitutivos. Por isso, o método da poética tem afinidade com o que um dia se
poderá chamar de “a ciência da literatura”. (2003, p. 319)
A descrição de alguns dos elementos constitutivos da poética acima mencionados é o
que propõe este estudo. Isso porque uma análise literária, lingüística e cultural da poética de
Aquiles Bernardi que contemplasse os aspectos presentes em cada um desses segmentos na
obra demandaria um percurso que ultrapassaria ao que se considera realizável nesta etapa de
estudos. Essa análise constrói-se com a consciência da importância do diálogo com a
lingüística e a literatura, uma vez que, somente com a idéia desse “todo”, presente na poética
de Aquiles Bernardi, é que se acredita ser possível alcançar uma proposta de compreensão dos
significados construídos pelo autor de Nanetto.
A escolha do viés dos estudos culturais não se deu de maneira aleatória, mas pela
possibilidade de se analisar como foi construída, pelo autor de Nanetto Pipetta a
representação dessa que é uma das bases culturais da formação do povo gaúcho – a cultura da
imigração italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul. Mais do que isso, nesse processo de
elaboração, tem-se a oportunidade de compreender quais e que tipo de posicionamentos foram
46
É o que se em estudos como o de Havelock (1996) In: A musa aprende a escrever: reflexões sobre a
oralidade e a literacia da Antiguidade ao presente.
85
construídos a partir da questão cultural e qual sua possível contribuição à maneira como
Aquiles Bernardi construiu suas representações dessa cultura.
Quando reflete sobre a poética, Staiger afirma que “ela se anuncia como uma
contribuição da Ciência da Literatura para o problema da Antropologia Geral, quer dizer, ela
esforça-se para provar como a essência do homem aparece nos domínios da criação poética”
(1972, p.197). Ao levar em conta o pensamento de Staiger, pode-se compreender que o estudo
do texto literário colabora como indicador para que se percebam indícios que fazem com que
se reconheça aquilo que ele definiu como a “essência do homem” reconhecida naquilo que ele
produz e na forma como o faz, analisada seja em seus contornos literários, seja culturais.
Dessa forma, quando se faz menção ao termo poética, no decorrer deste estudo, estar-
se-á fazendo referência à construção conceitual que aqui se apresentou. Aqui, poética não é
algo limitado ao estudo da forma característica da poesia. É, mais do que isso, algo que
oportuniza a compreensão da representação da cultura da imigração italiana na maneira como
foi concebida na obra que constitui o corpus deste trabalho.
4.5 A técnica da arte de ficção
No prefácio à sua obra, Lubbock fornece um parâmetro adequado para esse momento
do trabalho. Momento em que se busca compreender a estrutura da narrativa de ficção e, a
partir dela, perceber as escolhas que colaboraram na construção de alguns de seus sentidos.
A técnica da ficção, não a sua arte: arte e técnica podem ser, como de fato são, a
mesma coisa, pois não é possível traçar nenhuma distinção prática entre elas.
Contudo, como parecem diferentes! A arte é uma palavra alada, livre de peias e
amarras, sempre pronta a voar para longe das disputas que a prendiam ao solo e ao
trabalho que leva o seu nome. A natureza despretensiosa da técnica não permite
essas divagações; prende-nos logo ao assunto, à coisa feita e ao modo de fazê-la;
tampouco permitemos esquecer que todo o tema está contido na forma acabada da
coisa e que foi a forma moldada pela técnica. (1976, p. 7)
Pela análise da técnica de ficção pretende-se compreender algumas estruturas da
narrativa de Aquiles Bernardi. Somente após essa tentativa de compreensão de elementos da
construção é possível verificar que efeitos essa maneira de produção desencadeou. Entretanto,
como a análise de todos os aspectos que constituem a narrativa comportaria uma investigação
86
que ultrapassa os limites propostos para este estudo, a análise se atem ao estudo da
constituição do narrador e de seu papel dentro da narrativa de Aquiles Bernardi.
Essa escolha se justifica no momento em que se busca compreender como Aquiles
Bernardi construiu, em sua narrativa de ficção, a representação da cultura da imigração
italiana no Rio Grande do Sul. Para essa tarefa, em um primeiro momento, talvez fosse
possível pensar que a análise devesse ser feita partindo-se da figura em torno da qual a
narrativa acontece. Contudo, esse pensamento logo foi descartado. Isso porque, ainda que as
ações e o próprio desenrolar da narrativa se dêem em torno de Nanetto, não é ele quem nos
conta a história. É o narrador. É pela maneira como o narrador nos apresenta cada episódio
que se é conduzido ao efeito de sentido proposto pela construção de Aquiles Bernardi.
Pelo narrador de Aquiles Bernardi se apresenta não o contexto, mas o próprio
cenário onde se desenrola a narrativa. Também é pela voz do narrador que se medeiam os
juízos de valor sobre a pouca perícia do protagonista. O próprio discurso de Nanetto vê-se
contextualizado em um ambiente estruturado, de forma a desencadear os efeitos pretendidos
por quem o construiu. Não se trata aqui de comparar ou de diminuir o rito do protagonista.
Até porque é dele que, no fim de tudo, o leitor em geral vai guardar a imagem e não a do
narrador. Quanto ao narrador, este acaba, feitas raras exceções,
47
limitado à sua função dentro
da narrativa, sem que se analise de forma mais detida a contribuição real que a visão
apresentada por ele traz no desenrolar da obra.
4.6 De onde fala o narrador de Aquiles Bernardi
Na construção do discurso do narrador, a visão que a ele, narrador, for atribuída acaba
por definir um certo rumo na apresentação de cada episódio. Mais do que isso, é a partir da
voz do narrador que o autor pode chegar a construir certos juízos de valor sobre os
personagens e sobre as situações em que estes se envolvem. O narrador de Aquiles Bernardi
não é diferente. Ele não apresenta cada um dos episódios, como conhece cada um dos
personagens de maneira peculiar. Pela voz do narrador é que são atribuídas informações sobre
os personagens, suas ões e sobre cada novo contexto em que são inseridos, de modo a
conduzir o leitor para que construa determinada compreensão de cada episódio.
47
Trata-se aqui de fazer jus ao reconhecimento dado à figura do narrador na obra de Aquiles Bernardi pela Profa.
Dra. Cleodes Maria Piazza Julio Ribeiro, quando de sua dissertação de Mestrado.
87
Representativa dessa afirmação é a passagem em que o narrador descreve o cavalo que
Nanetto usará para a sua atividade de tropeiro... Nela, não apenas as informações dadas pela
montaria, como também a maneira como é descrita a relação de Nanetto ao cavalgar, resultam
no cômico.
Pareciade ste mule carghe, el paron gá ciapá Nanetto par medo la vita e lo gá butá a
cavalo de la madrignera, na cavala vecia de sinquant’anni, sensa dinti, co la schena
tutta na piaga, piena de rogna che la fazeva schifo stando on medo meiaro de
distanza. I corbi ghe zirava sempre intorno, par vedar se la se indegnava de morire e
po magnarsela. Ansi na volta xe capitá che sta poara bestia la se butá do par
destirarse i ossi on fiantin, e lori sti mal creadi, salteghe sui oci e i la ridusesta
orba e sieca de on ocio, par via che i ghelo ga cavá e magná. Nanetto ghe pareva de
éssare on prinsipe merican!... (BERNARDI, 1937, p. 35)
48
À parte a descrição que o narrador apresenta da montaria reservada para o
protagonista, já por si repleta de detalhes que lhe descrevem a pouca condição para a tarefa de
montaria, esse não é o único item que conduz ao riso. Nanetto assume uma postura de orgulho
e satisfação por poder conduzir um animal a cavalo. Sente-se um príncipe americano, talvez
parecido com a imagem possível de construir da figura do gaúcho, não se importando com a
situação pouco satisfatória do animal que ele utilizaria na tarefa de tropeiro. Essa postura, um
tanto alheia às reais condições do animal destinado à sua viagem, não é apenas percebida pelo
narrador, como também consegue ser descrita de maneira a deixar perpassar o juízo que
aquele que narra faz do episódio narrado.
A maneira como o autor organiza a fala do narrador é definida em parte considerável
pelo lugar que o primeiro atribui ao segundo. É o lugar que o autor atribuiu à figura do
narrador que oportuniza o surgimento de um tipo de visão ao invés de outra. O narrador das
peripécias de Nanetto é colocado em uma posição que lhe possibilita narrar os fatos de forma
peculiar. A ele não é informado apenas o que vai acontecer, como também é permitido
antecipar fatos com as devidas “justificativas” cabíveis em cada situação e da maneira como
se desenrolam na narrativa. Na narrativa de Aquiles Bernardi por mais de uma vez o narrador
se refere ao pouco afortunado protagonista, considerando o fato de que Nanetto não poderia
48
“Prontas, estando as mulas carregadas, o patrão pega Nanetto pela cintura e o joga a cavalo sobre sua
montaria, uma égua velha de cinqüenta anos, sem dentes, com as costas cheias de peste, cheia de sarna que dava
nojo estando a uns quinhentos metros de distância. Os urubus voavam sobre ela, para ver se ela se dignava a
morrer para que pudessem comê-la. Uma vez aconteceu que esse pobre animal deitou-se para descansar um
pouco o velho esqueleto, e eles (as crianças) esses mal-educados, pularam nela e a deixaram cega e sem ver de
um olho, porque eles o arrancaram e comeram. Nanetto se sentia um príncipe americano!... (conduzindo tal
montaria)” (T. da A.)
88
ser muito diferente do que é, uma vez que “[...] xe sta gran desfortuná despo che ’l xe nassuo
in tel calente della luna”.
49
(BERNARDI, 1937, p. 5)
O narrador de Nanetto é colocado em uma posição em que lhe é possível antever o
desenrolar dos fatos e ainda perpassar a narrativa com seu ponto de vista sobre aquilo que
acontece e a possível causa que determina esse tipo de desfecho. Usando as palavras de
Lubbock (1976), seria possível afirmar que o lugar que Aquiles Bernardi atribuiu ao seu
narrador fez com que esse último pudesse enxergar a teia que sustenta e que conduz os
personagens em seu percurso na narrativa, do fato de conhecer tudo aquilo que conhece.
Em outras palavras, ao narrador de Aquiles Bernardi foi oportunizado ter um ponto de vista a
partir do qual pudesse ver os fatos com um certo distanciamento do momento em que eles
acontecem. Se não fosse assim, se o narrador de Aquiles Bernardi fosse posicionado junto
com o protagonista ou com algum dos personagens, não teria essa visão antecipada e global
dos fatos no momento em que esses se desenrolam. Seu campo de visão estaria limitado
àquilo mesmo que o personagem conseguiria ver. Seria uma outra perspectiva.
A construção do ponto de vista dentro da narrativa era ressaltada por Lubbock,
segundo o qual “[...] toda a intrincada questão do método, no ofício da ficção, é governada
pelo problema da relação que se estabelece entre o narrador e a história”. (1976, p.155) O
ponto destacado pelo estudioso faz com que se perceba que, dentro da estrutura da narrativa, à
figura do narrador caberá não apenas narrar, mas deixar-se perpassar pelos contornos de
determinado ponto de vista. Será, ao fim e ao cabo, esse ponto de vista, apresentado na forma
de narrar como construção, que colabora para que se construa uma visão ao invés de outra.
Assim, a visão perpassada pelo narrador se define pela visão resultante do lugar de onde ele
apresenta a narrativa.
A análise do ponto de vista atribuído ao narrador conduz para que se compreenda que
tipo de visão o autor acabou construindo, de forma próxima ao que ocorre com um observador
que, ao observar a construção, tem visões distintas, se se colocar dentro dela ou se decidir
observá-la a uma distância suficiente para perceber os contornos.
O lugar de onde o narrador apresenta o cenário e os personagens da narrativa
determina, em parte considerável, que tipo de visão ele construirá de cada um deles. O
narrador de Aquiles Bernardi é construído a partir de um certo distanciamento dos
personagens e do próprio desenrolar da história. Partindo dos estudos de Pouillon (1974), é
49
“[...] foi muito azarado depois que nasceu na lua minguante.” (T. da A.)
89
possível compreender de que maneira foi construída a visão do narrador de Nanetto. Aquiles
Bernardi posicionou seu narrador de forma que este pudesse ter uma visão por detrás
50
não
apenas dos personagens, mas do próprio desenrolar de cada episódio. A partir do momento
em que o narrador tem uma visão por detrás, passa a lhe ser possível ver não apenas o
desenrolar da narrativa, mas também aquilo que Pouillon chamou de os fios que sustentam os
fantoches.
Na narrativa de Aquiles Bernardi, o narrador, de seu lugar, é capaz de construir
ponderações, ainda que breves, que perpassam os episódios narrados. Por outro lado, ao
atribuir uma visão por detrás, o autor investe seu narrador de uma forma de narrar que
dispensa uma descrição minuciosa antes de cada episódio. Isso porque a maneira como o
narrador apresenta a narrativa pressupõe o conhecimento de determinados códigos sociais e
culturais. Esses códigos, expressos na maneira como é construída determinada linguagem,
dispensam maiores explicações a priori. Mais do que isso mostram-se, muitas vezes,
portadores de significados que, com significativa perda, poderiam ser traduzidos. O
narrador, dessa maneira, vê-se dispensado de tudo explicar, ficando os detalhes do
entendimento de cada nuança implícitos em sua forma de dizer.
O romancista dispensa-se de tudo “mostrar” porque, ao “dizer” o seu personagem
ele forneceu ou julgou fornecer a chave de todos os seus aparecimentos
possíveis. É exatamente o que acontece também na realidade quando formamos uma
idéia definitiva de alguém e, sem com isto prever o que lhe de acontecer, estamos
certos,
ou assim acreditamos de que o compreenderemos. (POUILLON, 1974,
p. 97-98)
Ao construir a visão por detrás, passa-se a ter o universo de ficção apresentado a partir
de alguém capaz não apenas de conhecer os fatos, mas de falar sobre o próprio personagem,
sobre suas ações, sobre a maneira como este interage com os obstáculos e as aventuras que
surgem durante seu percurso. O leitor, por sua vez, vê-se convidado não apenas a conhecer as
histórias, mas também a compartilhar aquilo que seu narrador lhe confidencia ao ponderar
sobre a manifestação de seus personagens.
50
Essa denominação foi elencada por Jean Pouillon em sua obra O tempo no romance (1974). A partir dela, o
narrador consegue apresentar um certo distanciamento dos personagens, tendo uma visão mais global daquilo
que narra. Diferentemente do que acontece quando o narrador é constituído com a outra visão, definida por
Pouillon como “visão com”. Na visão com o narrador o desenrolar dos fatos na mesma posição e no mesmo
momento em que estes se apresentam aos personagens, construindo um outro tipo de visão, que não se antecipa
aos fatos e que tem um foco de visão sobre a narrativa tão limitado quanto o do próprio personagem.
90
Um bom exemplo das ponderações do narrador de Aquiles Bernardi é a descrição que
ele apresenta da noite que Nanetto passa na casa do Sior Juca. O episódio é peculiar pela
descrição do ambiente, representado como pouco adequado para o repouso de Nanetto.
Co xe vegnuo l’ora de dormire i se ga ransigná tutti t’una stansetina piccoleta su do
tre pele de bestie e co i can i passá la notte. Nanetto peró no dormisto
gnente. Ghe gera on odore de salvadego, na spussa, no saria de cossa. E i simezi
i gera fatti paroni lori, e i puldi ghe contestava ’l domínio; quindi... rebolussion
medogna... tutto un bulegamento!... tutto un sassinio!... El toso seitava gratarse,
rabaltarse, russarse, móvarse, fare ’l diávolo!... (BERNARDI, 1937, p. 46).
51
A descrição da presença de insetos que incomodavam o sono do protagonista, faz
referência à representação de um ambiente com escassas condições de higiene. Os donos da
casa, por sua vez, são representados, em contrapartida ao que ocorre com Nanetto, em sono
profundo, com sonoros roncos, compassados como se fossem um coro no qual o casal
apresenta uma “sinfonia” de sons alternados entre si.Juca, elo, ronchedava come on organo;
e la Manéca ghe tegheva de primo.”
52
(BERNARDI, 1937, p. 46)
Somente porque está por detrás da situação é que o narrador consegue apresentar tanto
o que acontece com Nanetto quanto o que acontece com o casal que o hospeda. Entretanto, ele
não apenas narra o que acontece. A maneira como o faz parece dizer que o narrador, mais do
que contar o que acontece, é capaz de descrever o quanto isso incomoda Nanetto. Se, ao invés
disso, estivesse narrando os fatos com Nanetto, não conseguiria descrever as duas
perspectivas presentes no episódio. É como se, atribuindo ao seu narrador uma visão por
detrás, Aquiles Bernardi permitisse que viessem à sua representação formas de pensar
possíveis de serem assimiladas por quem visse uma situação parecida; compreendendo-a
dentro de valores e modos de pensar que pudessem remeter a uma cultura específica
a
cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul.
51
“Quando chegou a hora de dormir, eles se amontoaram todos em um quartinho pequeno sobre duas ou três
peles de animais e com os cães eles passaram a noite. Nanetto porém não dormiu nada. Havia um cheiro de
catinga, um fedor, não saberia dizer do quê. Além disso, os percevejos haviam se feito donos, e as pulgas
disputavam o domínio; daí... que revolução medonha... tudo um rebuliço!... tudo um assassinato!... O rapaz
continuava a coçar-se, revirar-se, a mexer-se, fazendo o diabo!...” (T. da A.)
52
Juca, ele roncava como um órgão; e a Manéca fazia a primeira voz.”(T. da A.)
91
4.7 O narrador e o protagonista na narrativa de Aquiles Bernardi
Falar dos personagens da narrativa de Aquiles Bernardi requer que se trate, em
primeiro lugar daquele que se sobressai e que, não à toa, é definido como o protagonista da
história. Nanetto é a representação do indivíduo que parte para a Mérica em busca de
cucagna. É filho de italianos, entretanto, dizer que ele é a representação do filho de imigrantes
italianos que parte para a Mérica, o que ocorre é uma tentativa de transposição um tanto
delicada. Ainda que Nanetto seja construído como um filho de italianos que, como tantos
outros, decide partir para a Mérica em busca de fortuna, sua constituição quanto a valores
dentro da narrativa de Aquiles Bernardi faz com que ele se distancie desse possível referente
do contexto real. mais nessa relação do que o universo estabelecido entre a realidade e a
ficção. Esses elementos presentes na narrativa de Aquiles Bernardi vão constituir essas
diferenças.
Como definido por Ribeiro (2005), Nanetto não é herói, é anti-herói. Esse
importante fator faz pensar que ele tenha sido construído como um filho de italianos que, com
valores constituídos de maneira avessa àqueles vistos nos imigrantes italianos do contexto
real, decide partir para a Mérica em busca de fortuna.
Nanetto é, pois, um anti-herói, que se comporta de modo contrário ao que se espera
de um modelo de ação. Ele deixa de ser herói ao desafiar, de certa forma, os códigos
estabelecidos e aceitos na perspectiva do narrador. Para esse, o verdadeiro herói é,
na verdade, todo o contingente de emigrados um herói coletivo. Dito de outro
modo: o comportamento de Nanetto tem muito de infantil, infantilidade que é
aceita porque não significa o comportamento padrão para um herói à procura de uma
cucagna real. Só é aceito porque é visto como um ingênuo, um sonhador, um
strambo, como o denominam algumas das personagens da história e como o vêem os
próprios leitores. A falta de êxito em suas peripécias é a prova de que o seu caminho
não deve ser seguido. (RIBEIRO, 2005, p. 38)
Quando fala de Nanetto como o anti-herói que, pelas suas atitudes, desafia um código
preestabelecido, Ribeiro possibilita que se compreenda o próprio fazer de Aquiles Bernardi ao
construir seu protagonista com esses contornos. Nanetto precisa ser assim, porque é somente
agindo da forma como age que poderá desencadear as sucessivas reprimendas do narrador.
Esse, por ver tudo por detrás e por saber que, compartilhando sua posição estão aqueles que,
como ele, conhecem e compartilham de um mesmo código cultural, social e lingüístico, tem
na maneira como Nanetto foi constituído a medida necessária para que pudesse apresentar o
92
tipo de ponderação que se vê. Ou seja, ao narrador é dado falar e apresentar um contexto em
que tem as oportunidades de que precisa para dizer o que pensa da maneira como o faz.
Nanetto é instrumento. É a partir de sua movimentação e de suas ações que o narrador tem a
oportunidade de deixar transparecer mais do que uma narrativa alheia aos valores de
determinado contexto.
À parte a delicada discussão sobre os valores reais e os valores atribuídos no universo
da ficção, já discutidos quando se tratava das relações de verossimilhança e da constituição da
ficção como o imaginável, parte-se para outros fatores na constituição do protagonista e dos
personagens de Aquiles Bernardi que merecem uma análise mais detida.
4.8 A constituição de Nanetto e dos demais personagens
Não é preciso que transcorram muitos episódios da narrativa para que se saiba como
Nanetto é. E, o que se vê é que ele vai se manter sem grandes mudanças ao longo da narrativa.
O protagonista de Aquiles Bernardi consegue manter, durante o transcorrer de toda a
narrativa, os mesmos traços que o caracterizam desde o princípio. Esses contornos fazem a
representação do desafortunado e desajeitado indivíduo do qual se podem prever, de certo
modo, as atitudes. Avesso aos grandes esforços, tanto de ordem física quanto cognitiva, segue
por boa parte da narrativa. Uma tentativa de mudança se esboça quando, quase ao término da
narrativa, Nanetto decide levar a vida a sério, quer casar e para isso busca no trabalho os
meios para adquirir sua meia colônia. Entretanto, antes de alcançar o que pretendia, acaba
morrendo afogado no rio das Antas.
Nanetto é um personagem que se mostra de todo desde o início da narrativa. A partir
daí, o leitor se envolvido não em descobrir-lhe novos traços de personalidade, mas em
imaginar como o protagonista, dentro das possibilidades que lhe foram atribuídas pelo seu
criador, reagirá frente a cada novo desafio. Nanetto talvez constitua o personagem que é, de
certa forma, previsível. E talvez seja exatamente nesse seu caráter de previsibilidade que
resida a graça frente ao indivíduo que, pelo fato de ser conhecido em suas limitações, nos
convida a acompanhar de que maneira se colocará frente às adversidades que encontrará pelo
caminho.
Personagens como Nanetto que apresentam determinados traços e que se mantêm sem
grandes modificações ao longo da narrativa, foram definidos por Forster (apud MUIR, 1928)
93
como “personagens planos”. Essa denominação refere-se à pouca ou inexistente sensação de
profundidade que esse tipo de personagem apresenta em sua forma de constituição. O
personagem plano o é exatamente pelo fato de poder ser definido sem grandes dificuldades.
Suas características podem ser reconhecidas dispensando-se a necessidade de parênteses ou
ressalvas sobre diferentes nuanças em seu modo de pensar ou de agir. Diferentemente do
personagem que se descobre ao longo da narrativa, o personagem plano reage da forma como
o faz exatamente pelo fato de se saber, desde o início da narrativa, que ele é assim e que,
sendo dessa forma, lhe resta passar pelos episódios com os “instrumentos” de que dispõe,
com as qualidades e limitações que, já de início, lhe haviam sido atribuídas.
Forster já afirmava que
personagens planos eram chamados humours” no século XVIII, e às vezes são
chamados de tipos e às vezes, caricaturas. Em sua forma mais pura são construídos
em volta de uma única idéia ou qualidade: quando mais de um fator neles, temos
o início de uma curva em direção ao esférico, [...] os personagens planos [...] são
facilmente reconhecidos sempre que aparecem e lembrados com facilidade pelo
leitor depois. (apud Muir, 1928, p. 80)
À parte a questão do humour de que se tratará mais adiante, o apontamento de Forster
sobre a constituição dos personagens planos como figuras reconhecidas e lembradas com
facilidade pelo leitor merece que se lhe dedique uma reflexão, ainda que breve. Os
personagens de Aquiles Bernardi e, com eles, também o protagonista foram constituídos
como figuras planas dentro da narrativa. Afirmar isso implica analisá-los além do limite
abrangido pelas discussões que se voltam à pura técnica literária. Explica-se. Aquiles
Bernardi escrevia para um determinado público. Seu público, além de reconhecer nas histórias
formas do dialeto que utilizava em seu cotidiano, acabou encontrando, nelas, figuras que
poderiam ser encontradas também no seu dia-a-dia. Essas figuras, por sua vez,
caracterizavam-se pelo fato de ser construídas sem grandes níveis de complexidade ou
profundidade. Isso mostra que, mais do que preocupado com a complexa organização de seus
personagens, é possível que o criador de Nanetto estivesse voltado para a construção de
figuras possíveis não de serem reconhecidas, como compreendidas e aceitas como
possíveis de serem imaginadas por quem as lesse. É possível que o foco de Aquiles Bernardi
estivesse voltado para o que poderiam representar os personagens que construía, muito mais
do que para a própria representação destes numa mais complexa construção literária.
94
Construindo personagens planos, Aquiles Bernardi possibilitou que suas criaturas
pudessem ser compreendidas e reconhecidas pelo seu leitor sem grandes dificuldades. Mais
do que isso, ao invés de voltar sua atenção para descobrir novas faces dos personagens que
pudessem surgir a cada novo contexto, o foco de atenção do leitor acabava voltado para como
os personagens, ao serem mostrados sem reservas, reagiriam frente às situações em que se
viam inseridos.
Por outro lado, ao definir Nanetto como um personagem que se aproxima do “tipo” em
sua maneira de constituição, não se estará afirmando, com isso, que ele seja uma
representação do típico imigrante italiano. Se for para ser um “tipo”, Nanetto talvez possa ser
definido como o típico sonhador, aquele que espera alcançar a fortuna, de preferência, sem
grandes esforços. Aquele que se em constante desafio frente à sua pouca destreza com
relação às situações que o meio lhe apresenta em seu percurso. Ingênuo, lhe são atribuídas
limitadas noções da realidade e de concepções de vida que, descontextualizadas da visão do
grupo, e apresentadas de forma peculiar, acabam por conduzir o leitor ao riso.
Se Nanetto é construído de forma a poder ser definido como um personagem plano,
com os demais personagens de Aquiles Bernardi não é diferente. A diferença maior talvez
seja que, de maneira distinta ao que ocorre com o protagonista da narrativa de Aquiles
Bernardi, dos demais personagens o que se sabe é o estritamente necessário para que a
narrativa possa se desenrolar. Ribeiro (2005) já ressaltava a falta de maiores descrições no que
se refere às personagens secundárias de Aquiles Bernardi. Nanetto é colocado no centro das
atenções na narrativa. Das demais personagens da narrativa o autor de Nanetto se limitou a
construir aquilo que se fazia necessário para que cada episódio pudesse ocorrer, não mais do
que isso.
O que se sabe das personagens secundárias são denominações pouco específicas,
relacionadas, em geral, com o papel que essas personagens desempenhavam ou com a
atividade que exerciam dentro do contexto em que foram representadas. figuras
conhecidas como la vécia, le donne, il paron, el dotore, dei litratadori,
53
que surgem e
desaparecem da narrativa sem que saibamos delas muitas informações além daquilo que o
nome que as designa é capaz de informar, e suficiente para que se compreenda sua
participação na narrativa.
53
Essas figuras são, respectivamente, a velha, as mulheres, o patrão, o médico e o indivíduo que tiralitrati”, ou
seja, o fotógrafo.
95
A brevidade com que essas figuras secundárias aparecem e saem da narrativa talvez
venha confirmar a idéia que se apresentava anteriormente. É possível que o autor, na
maneira como construiu os personagens de sua narrativa, estivesse mais interessado em
perpassar as lições de cada episódio do que, com detalhes ou minuciosas descrições, ater-se à
constituição de cada um de seus personagens. O que ele informava de cada personagem
parecia o suficiente, a partir do momento que, com aquelas informações, fosse possível ao
leitor construir uma idéia de que tipo de figura se fazia presente naquele contexto.
4.9 O riso na narrativa de Aquiles Bernardi
Tratar do riso em Nanetto é voltar-se a observar, de certa forma, de que maneira o
autor constituiu aquele que seria um dos traços marcantes nessa narrativa de ficção. Não
muita novidade em se afirmar que Nanetto é um daqueles tipos pouco afortunados, que
seguem seu caminho como se estivessem em um estado que os deixasse alheios à realidade.
Entretanto, somente compreendendo que recursos o autor se utilizou na construção de seu
personagem é que se poderá chegar a compreender como chegou a alcançar determinado
efeito.
algumas técnicas que podem auxiliar um autor na construção do riso. também
um código como elemento norteador dos aspectos culturais que dita as normas de convivência
para os indivíduos que fazem parte de um grupo, em determinado período de sua história.
Essas são as duas vertentes das quais se parte, aqui, na tentativa de compreender alguns dos
elementos que acabaram por desencadear o riso na narrativa de Aquiles Bernardi. E é na exata
medida entre esses dois fatores que esse autor construiu o trânsito de sua narrativa.
Por mais que a forma de construção dos personagens e do ponto de vista do narrador
pudessem ter constituído uma obra de valor aproximado àquilo que se viu na narrativa de
Aquiles Bernardi, dificilmente teriam alcançado chegar à mesma repercussão e aceitação, se
tivessem sido apresentadas a partir dos traços de um drama ou de um documentário. De outro
lado, se o riso pode ser o instrumento que traz o leitor para que se volte à narrativa, a medida
daquilo que constitui o risível, dentro de determinado contexto em uma época específica
também é tênue. Para alcançar essa medida, da forma como o conseguiu Aquiles Bernardi, é
preciso que o autor chegue a uma construção feita a partir de proporções harmônicas entre o
efeito daquilo que pode ser desencadeador de riso, a partir de determinado mecanismo, e a
96
medida em que isso é risível dentro de uma sociedade em determinado período. Em outras
palavras, a forma como se constrói o efeito do riso deve conhecer aquilo de que se permite
rir ou não dentro do código estabelecido por determinada cultura, em um dado momento
de sua história. Sobre o diálogo que o autor de Nanetto Pipetta foi capaz de estabelecer entre
esses dois elementos da produção literária é que se pretende tratar agora.
Observar Nanetto em seu percurso pode resultar em riso por mais de um motivo. Pode
causar o riso cada uma das situações em que ele se envolve, como também a maneira como
são apresentadas cada uma dessas situações pelo narrador. Entretanto, esses dois efeitos
risíveis estarão ligados a um primeiro que os antecede. A movimentação de Nanetto dentro da
narrativa se dá de maneira peculiar. Partindo das características que lhe foram atribuídas
nos primeiros momentos da narrativa, o protagonista se inserido em um meio no qual ele
precisa sobreviver com as ferramentas, que seu criador o muniu. Daí para o riso não falta
muito. O personagem ingênuo, pouco hábil e com uma malícia de traços infantis é inserido no
contexto dos episódios. É apresentado por um narrador que o conhece a ponto de narrar não
apenas seus infortúnios, mas de lembrar com freqüência ao leitor as limitações do pouco
afortunado protagonista. É na maneira como Nanetto interage em cada situação que essas suas
limitações vão sendo representadas pela voz do narrador. O excerto que segue é um exemplo
disso. Conhecendo pouco o trabalho de tropeiro, bem como os equipamentos necessários para
essa atividade, Nanetto é incumbido, a certa altura da narrativa, de providenciar o freno (freio)
para que se pudessem iniciar os trabalhos daquele dia. Quando chega à varanda ...
Lá ghe iéra sti arnesi da mula; ma a Venessia nol ghin aveva mai visto.
Qualo siralo el freno?!...
Sto qnó, ’l se diseva tra de elo solo, ciapando in man na gangáia; co sto arte no
se ciapa mule eh!...
Ma to che tacá ghe hera on arnese longheto co na asolona.
Che ’l sípia questo?!... Seguro che questo ’l da essare... altro che questo
eh!...
El lo desfíbia e via corrando...
Ecco, paron, un freno par intanto.
Brao, bauco, sito ancora drio domire?
Parcossa?1...
Te me pari inseminio, no te vedi che el xe on sotocoa el xe...
Ma!... mi no so eh, se ’l sotocoa ’l sípia cossita o come!...
97
Va lá!... va lá, che se scominsiemo cossita la nostra giornada andemo poco
distante.
Me pareva anca mi che nol gaesse mia da éssare fatto cossí sto mestiero de
freno... (BERNARDI, 1937, p. 34)
54
A maneira como o protagonista de Aquiles Bernardi reage, quando inserido em um
contexto de elementos que lhe são desconhecidos, vai revelar sua pouca perícia. Não apenas
pelo fato de desconhecer os utensílios necessários para a atividade de tropeiro, mas, na mesma
medida, por não encontrar formas de contornar sua pouca habilidade sem ter necessidade de
chegar ao ponto a que chega: de trazer um utensílio ao invés de outro. Denuncia assim uma
limitação que, mesmo não afirmada de maneira direta pelo discurso do narrador, revela-se na
maneira como é apresentada a atitude do protagonista nesse contexto específico.
Se, ao invés de Nanetto, Aquiles Bernardi tivesse construído um personagem que
demonstrasse destreza e habilidade para resolver as situações que se lhe apresentavam, talvez
pudesse chegar a algum efeito risível mas, por certo, seria de contornos bastante distintos
daqueles que, no fim, se viu nesse anti-herói. Precisou que Nanetto, ao ser inserido em suas
aventuras, mostrasse, em algum momento, sua estagnação ou a pouca mobilidade no trato
exigido pelas situações cotidianas. Isso não é o que se espera, pelo menos de um indivíduo de
traços próximos à normalidade. Outrossim, se esperaria de Nanetto habilidade, destreza e
astúcia em medidas que ele não tem. Daí uma das causas do riso.
No momento em que um indivíduo passa a agir de maneira mecânica, parece
abandonar, mesmo que por instantes, as feições que deveriam caracterizar seu fazer como ser
humano. Quando passa a resolver os problemas e as situações que surgem com a mesma
habilidade de uma máquina, apresenta algo diferente do que se espera de um ser humano.
Desse inesperado, com todas as suas conseqüências, surge o risível. Situações como essa, de
“rigidez” de corpo ou de espírito aparecem em episódios tais como o mencionado nos
estudos de Ribeiro (2005). Nesse trecho da narrativa, quando Nanetto monta em uma mula
suplica para que não batam no animal, para que ele não se mova, o contrário do que se espera
de alguém cujo instrumento de trabalho é a montaria. A pouca mobilidade a que se faz
54
“Lá estavam os tais acessórios para o trabalho com as mulas, mas em Veneza ele não os havia mais visto.
Qual será o freio?!/ Esse aqui não, ele dizia para si mesmo, pegando nas mãos uma cangalha; com essa coisa não
se pega mulas, eh!... / Mas não é que pendurado estava um equipamento comprido com uma alça grande. /– Pode
ser que seja esse?!...Provavelmente há de ser esse... outro que não seja esse não será.../ Ele o solta e sai
correndo.../ Pronto patrão, um freio para o momento./ Bravo, tapado, está ainda dormindo? / Por quê?... /
Vome parece abobado, não que é um rabicho,... /– Mas!... eu não sei se o rabicho é assim ou como deva
ser!.../ Deixe isso de lado!... deixe que se começarmos assim o nosso dia faremos poucas coisas hoje... / Eu
tinha mesmo a impressão de que não deveria ser mesmo esse negócio o tal de freio...” (T. da A.)
98
referência acaba representada nas atitudes de Nanetto, na sua pouca perícia, bem como da,
muitas vezes mencionada, fatídica data de nascimento do personagem. O narrador então
sinaliza para o fato de que não importava o tipo de tarefa da qual fosse incumbido. Nanetto
permanecia um tanto alheio a certos detalhes julgados de percepção básica para um indivíduo
comum, resultando isso na restrita habilidade que se revelava em sua maneira de realizar as
mais variadas tarefas.
Outro exemplo dessa limitação é o episódio no qual, encarregado de fazer o almoço
para os agrimensores, Nanetto se vê às voltas com o preparo de urubus para a refeição. O
personagem não se faz de rogado. Frente ao trabalho que lhe parecia extenuante, Nanetto não
exita: decide colocá-los para cozinhar com penas e tudo. Quando voltam do trabalho, tomados
pela fome, os agrimensores encontram o prato descrito pelo narrador da seguinte forma: “I se
mette a tola e Nanetto ghe porta i osei tutti in tieri, carghi de penotti;... c’on beco longo, i oci
spalancai, che i saveva da pevarin sensa pó mèterghene!”
55
(BERNARDI, 1937, p. 106).
À parte a descrição da cena por si risível o que se quer analisar aqui é a atitude
de Nanetto. Algo que seria um conhecimento compartilhado por uma cultura não o era pelo
protagonista de Aquiles Bernardi. Era necessário que alguém lhe houvesse dito da
necessidade de preparar as aves com certos cuidados antes de levá-las ao cozimento. Ao invés
disso, o cozinheiro as põe inteiras na panela, sem sequer tirar-lhes as penas direito. Ou seja, é
particular o modo como Nanetto faz o preparo. Não parece perceber a necessidade de tais
procedimentos. Reage de forma instintiva quando o incumbem do preparo. Essa pouca
mobilidade faz com que se pense naquilo que Bergson (2001) definiu como certa rigidez de
ações frente ao que se espera em determinado contexto. E que, nesse caso, conduz ao riso. É
como se Nanetto fizesse tudo de maneira mecânica, sem demonstrar qualquer tipo de perícia
em suas atitudes, passando longe de qualquer cultura que preze por tirar as penas e as vísceras
antes do cozimento de aves, à parte o fato de serem urubus. Sobre o resultado desse tipo de
ação, já afirmava Bergson que “o gido, o estereótipo, o mecânico, por oposição ao flexível,
ao mutável, ao vivo, a distração por oposição à atenção, enfim o automatismo por oposição à
atividade livre, eis em suma o que o riso ressalta e gostaria de corrigir.” (2001, p. 97-98)
Dessa forma, a pouca habilidade e a destreza limitada que o protagonista de Aquiles
Bernardi apresenta em suas ações e pensamentos, fazem com que surjam contornos cômicos
em suas atitudes. Entretanto, o sentido do risível na narrativa de Aquiles Bernardi não se
55
“Eles se colocam à mesa e Nanetto lhes traz as aves todas inteiras, repletas de penugens; ... com um bico
comprido, os olhos arregalados, cheirando a pimenta sem nem colocar.” (T. da A.)
99
desencadeia tão-somente pela rigidez de seu protagonista. As ações de Nanetto passam a ser
reconhecidas por um determinado público, a partir do momento em que trazem em suas
representações significados, modos de pensar e de agir comuns à cultura da imigração italiana
no Rio Grande do Sul. Em outras palavras, não só a pouca mobilidade de Nanetto desencadeia
o riso, como também o fato de isso ser percebido dentro de uma realidade que constrói
representações de determinado contexto, em uma época específica. Isso é o que vai ditar a
medida exata do riso construído por Aquiles Bernardi.
Mais do que constituir o riso com os traços de rigidez de seu personagem, o fato de
Aquiles Bernardi situá-lo em um tempo e em um espaço específicos vai determinar em grande
medida como se constituiria essa narrativa. Entretanto, construir sentidos que possam
desencadear o riso, a partir de determinados significados culturais, demanda um
conhecimento detido dos sentidos pertencentes a essa cultura. Esse conhecimento servirá para
que se possa delimitar a medida em que algo é risível dentro de uma cultura em determinado
período de sua história. Voltemos ao momento em que foi construída a narrativa de Aquiles
Bernardi.
Não apenas por mera coincidência, a publicação da primeira edição de Nanetto Pipetta
acontece às vésperas das comemorações do Cinqüentenário da Imigração Italiana no Rio
Grande do Sul. O material dessa primeira edição de 1937 havia sido publicado entre os
anos de 1924 e 1925 pelo Stafetta Riograndense. Logo, é nas primeiras décadas do século XX
que Aquiles Bernardi construía sua narrativa. É possível que, a essa altura, parte considerável
dos imigrantes italianos houvesse ultrapassado as condições de vida precárias a que se vira
submetida nos primeiros tempos. Talvez esses imigrantes conseguissem olhar para o
passado, mesmo que pela ficção, e até mesmo rir dele se assim tivessem oportunidade.
Contudo, dentro de uma cultura, mesmo decorrido determinado tempo, nem tudo é risível.
Aquiles Bernardi, conhecendo de maneira particular essa cultura, da qual também era parte,
conseguiu percorrer o tênue fio que separa o sagrado do risível. Foi de maneira precisa que,
aí, construiu sua representação. Com ela fez aquilo a que Marx se referia, quando citava as
tragédias gregas acerca da necessidade da representação de um período pela comédia, como
sendo essa a última fase de sua forma histórica universal. Segundo o estudioso, a comédia é
importante porque, em última instância, essa mostra-se “(...) necessária para que a
humanidade se separe alegremente de seu passado”. (apud PROPP, 1992, p.61) É essa forma
de emancipação que Aquiles Bernardi, em alguma medida, representa em sua narrativa. Uma
vez que, no momento em que consegue rir de sentidos que poderiam ser seus, mesmo que em
100
uma representação, um povo é capaz de seguir sua trajetória sem vestígios que o limitem ao
seu passado.
Aquiles Bernardi situa sua narrativa em um contexto que traz os contornos da cultura
da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Para essa representação, decide atribuir traços do
riso; logo, a construção de seus personagens passa a demandar um percurso específico. No
que concerne a Nanetto, percebe que ele não apresenta destreza limitada apenas em sua
constituição como personagem. A rigidez primeira se estende também para o contexto em que
ele transita. Nas relações representadas dentro do meio cultural, a situação desse protagonista
não é diferente. O autor de Nanetto o constrói com mobilidade e flexibilidade de pensamentos
e ações limitados, de maneira significativa dentro do contexto cultural e social representado.
O resultado não poderia ser outro. Mostrando pouca habilidade e um posicionamento um
tanto alheio aos valores preconizados pela cultura da qual é parte, Nanetto desencadeia o riso.
Sobre uma das faces dessa relação entre um contexto social e cultural de determinada
época e sobre o riso, os estudos de Propp trazem apontamentos esclarecedores sobre o
mecanismo que desencadeia o riso nessas situações. Embora um pouco extenso, o excerto é
bastante elucidativo para o que se busca tratar aqui:
normas de conduta social que se definem em oposição àquilo que se reconhece
como inadmissível e inaceitável. Essas normas são diferentes para diferentes épocas,
diferentes povos e ambientes sociais diversos. Toda coletividade, não as grandes
como o povo no todo, mas também coletividades menores ou pequenas os
habitantes de uma cidade, de um lugarejo, de uma aldeia, até mesmo os alunos de
uma classe – possuem algum código não escrito que abarca tanto ideais morais como
os exteriores e aos quais todos seguem espontaneamente. A transgressão desse
código não escrito é ao mesmo tempo a transgressão de certos ideais coletivos ou
normas de vida, ou seja, é percebida como defeito, e a descoberta dele, como
também nos outros casos, suscita o riso. (1992, p. 60)
Na ficção, a representação da cultura da imigração italiana, construída por Aquiles
Bernardi, evoca significados compartilhados pela cultura dos imigrantes italianos e seus
descendentes. É desse contexto que Aquiles Bernardi retira os significados, a partir dos quais
poderá construir as situações que desencadeiam o riso. E é nesse cenário cultural, social e
político que Nanetto atua.
Não é difícil perceber de onde vêm alguns fatores que desencadeiam o riso na
narrativa que aqui se analisa. Em um contexto cultural onde o trabalho tem um valor
considerável, demonstrar poucas habilidades em tarefas cotidianas é algo que obedecendo
101
ao código não escrito de que falava Propp pode acabar sendo “punido” com o riso. É o riso
que deflagra e que traz à tona o quão importante é a questão do trabalho dentro dessa cultura,
e por isso também no meio em que é representado. Um episódio representativo do valor das
habilidades nas tarefas cotidianas é o episódio em que Nanetto põe em pedaços o roncon,
56
a
ferramenta de trabalho com a qual lhe incumbem a tarefa de derrubar arbustos (capoeras).
E coá i ghe cata fora um roncon vecio; i ghe mola na guáda la pria e Nanetto
armá co sto arnese in spala ’l che ’l pare on generale de armata. Il lavoro xe stá
suffisiente. El ghe dava drento de gusto par drito e par raverso tanto tei sassi come
te la terra; elo no ghe badava. Tutto quel che intriga, tem che ’ndare, ’l dizeva, e do
par sti sassi.
Ció toso, cossa feto; ’l ghe dizeva ’l paron.
Laóro!...
Ma sui sassi?
I xe duri!...
Si ma te me rovini ’l roncon.
No eh! ’l xe de ferro.
Se taia la capuera, e nó i sassi...
Propio!... E strinc, su ste prede.
Pian sui sassi!
Co sta benedetta ponta se ghe urta sempre dentro, se ghe urta.
In te quela ’l vole taiare na capoeretta tra do sassotti. ’L te arca ’l roncon e sbramf
de tutta forsa... Invense de la capoera ’l ciapá ’l sasso e ’l roncon l’é ’ndá in
do tochi.
Cosa gheto fatto, birba d’un fiolo!...
’L se gá rotto?
No te lo gaveva dito de ’ndar con maniera?
Mi no saeva eh!
Ben ben!... te lavoraré finché te melo gavaré pagá adesso.
Gera propio quel che voleva dirve mi
57
(BERNARDI, 1937, p. 52).
56
A ferramenta aqui definida como roncon é uma espécie de foice com uma lâmina posta na horizontal a partir
da base de um cabo de madeira na vertical. Segurando no cabo, o operário comanda os movimentos da
ferramenta que vai cortando pequenos arbustos, também conhecidos por capoeiras. O fato é que essa lâmina,
embora eficaz no corte de arbustos, mostra-se sensível quando em contato com rochas, pedras que, geralmente,
se encontram em meio à terra. Quando essa mina se choca contra as pedras, está sujeita a se romper em
pedaços, ficando inútil para o uso. O bom operário adquire, aos poucos e com paciência, a destreza suficiente
para manuseá-la com o cuidado necessário para evitar acidentes. Não era esse o caso de Nanetto. Pouco
acostumado a esse tipo de tarefa e no ade mostrar sua capacidade em realizá-la, acaba deixando a ferramenta
em pedaços e ganhando, ao invés do reconhecimento pelo trabalho feito, uma dívida com seu patrão.
57
“E então eles trazem um roncon velho; afiam sua mina e Nanetto parte armado com essa ferramenta posta
sobre os ombros, como se fosse um general de armada. O trabalho foi suficiente. Dava golpes a torto e a direito
102
Nesse episódio, o riso é desencadeado não apenas pela quebra da ferramenta, mas,
antes disso, na limitada destreza de quem o utilizava, denunciando a falta de perícia e do
conhecimento que lhe resultaria na habilidade necessária para a realização das tarefas
cotidianas de um contexto no qual estava inserido. Como essa situação, outras se sucedem na
narrativa de Aquiles Bernardi e, em todas elas, o princípio é o mesmo: mostrar a pouca
mobilidade do personagem frente às exigências do contexto em que se integra. Mais do que
isso, saber utilizar essa e outras ferramentas era condição necessária não para o
reconhecimento dentro do grupo, como a garantia da própria sobrevivência naquele meio,
tanto em termos culturais quanto econômicos. Não saber utilizá-las é algo que se aproximava,
em alguma medida, a não ser bom trabalhador, no sentido de dispor das habilidades
necessárias para prover o sustento naquele meio.
Sobre a constituição do riso em sua relação com o contexto de que é parte, afirmava
Bergson:
[...] se traçarmos um círculo em torno das ações e disposições que comprometem a
vida individual ou social e que punem a si mesmas através de suas conseqüências
naturais, fica fora desse terreno de emoção e de luta, numa zona neutra em que o
homem serve simplesmente de espetáculo ao homem, uma certa rigidez do corpo, do
espírito e do caráter, que a sociedade gostaria ainda de eliminar para obter de seus
membros a maior elasticidade e a mais elevada sociabilidade possíveis. Essa rigidez
é a comicidade, e o riso é seu castigo (2001, p. 15).
A partir da colocação de Bérgson, é possível perceber por que Aquiles Bernardi
precisava de um tipo como Nanetto para fazer rir. Se construísse um exímio trabalhador, de
qualidades físicas, morais e intelectuais irretocáveis, teria um herói e não um personagem a
partir do qual pudesse trazer à tona pequenos “defeitos” que, não sendo perdoados dentro do
contexto cultural e social de um grupo, acabam sendo punidos com o riso. Aquiles Bernardi
precisava de um tipo gido dentro de um determinado contexto cultural e social para que, por
essa rigidez, pudesse fazer aflorar aquilo que julgava necessário para apontar as possíveis
conseqüências de determinados posicionamentos ou atitudes dentro da representação que
construía.
tanto nas pedras quanto na terra; ele não poupava. Tudo aquilo que atrapalha tem que sair, ele dizia, e mais
pancadas nas pedras./ Ô rapaz, o que está fazendo, lhe dizia o patrão. / Trabalhando!... / Mas nas pedras? /
Elas são duras!.../ Sim mas tu vai me estragar o roncon. / Não! Ele é de ferro. / Se corta a capoeira e não
as pedras.../ Isso mesmo!... E strinc, mais golpes nas pedras. / Devagar nas pedras! / Com esta bendita
ponta se acaba sempre batendo nas pedras./ Nesse momento ele quer cortar uma pequena capoeira que está entre
duas pedrinhas. Ele levanta o roncon e sbramft com toda a força... Ao invés da capoeira, o roncon acertou a
pedra e ficou em dois pedaços./ – O que você fez, esperto de um rapaz!.../ Ele se quebrou?/ – Eu não tinha dito
para ir com modos?/ Eu não sabia! / Bem, bem... tu vais trabalhar aque me tiver pago o prejuízo. / Era
bem isso que eu queria lhe dizer.”(T. da A.)
103
Se não bastasse o riso desencadeado pela própria rigidez de corpo e de caráter que
Nanetto apresenta, a maneira como esse protagonista persegue seu ideal de encontrar a
cucagna desencadeia, por si, um efeito risível. A começar pelo tipo de cucagna que ele
busca, definida por Ribeiro como o “fabuloso reino de delícias, onde não é necessário
trabalhar”(2005, p. 37). Nesse contexto, tanto o ideal utópico é risível quanto, em uma cultura
onde se pensa o progresso como resultado do trabalho, julgar ser possível encontrar a fartura
sem dispender de maiores esforços. O riso pune aqueles que acreditam na possibilidade de
progredir econômica e socialmente, sem a necessidade de esforço e trabalho.
Mais do que isso, a forma como o protagonista busca alcançar seu propósito é algo
que, na mesma medida, acaba por desencadear o riso. Como se não lhe fosse suficiente a
ingenuidade de crer em uma fartura à sua espera, Aquiles Bernardi constrói para seu
protagonista uma realidade em que o percurso aparece repleto de obstáculos que insistem em
surgir em seu caminho. Nanetto, porém, não desiste, consistindo a própria insistência em
argumento que reforça o sentido do risível. Sobre esse tipo de constituição de personagens,
afirmava Bergson:
São eles também corredores que caem e ingênuos que são mistificados, corredores
do ideal que tropeçam nas realidades, sonhadores cândidos que a vida espreita
maliciosamente. Mas são sobretudo grandes distraídos, superiores aos outros porque
sua distração é sistemática, organizada em torno de uma idéia central, porque suas
desditas também são bem conexas, conexas pela inexorável lógica que a realidade
aplica para corrigir o sonho, e porque assim provocam em torno de si, por meio de
efeitos capazes de sempre somar-se uns aos outros, um riso indefinidamente
crescente. (2001, p. 10-11)
Não parece tão distante, nesse momento, a referência nessa representação àqueles
imigrantes que acreditavam em promessas de uma vida de fartura na América. Contudo,
mesmo que acreditassem nisso, por certo não seria nas proporções em que Nanetto o fazia.
Por isso guardem-se aqui as distinções necessárias entre a realidade e a ficção. É possível que
se chegue a reconhecer, na representação de Aquiles Bernardi, os contornos de uma crítica
implícita. Esta apresenta, pelo percurso de Nanetto, o que pode acontecer ao indivíduo que,
por demais sonhador, desconecta-se das condições reais da vida e que faz seu percurso em
busca de um sonho sem que, para alcançá-lo, tenha que lançar mão do esforço e do trabalho
tantas vezes mencionado nos relatos dos imigrantes italianos e de seus descendentes. O riso
talvez surja como forma mesmo de sanção ou de medida para punir aqueles que, ingênuos,
constroem suas expectativas, esperando que elas se concretizem, sem a necessidade do
trabalho. Mesmo guardado dentro dos limites que a ficção lhe permite comportar, não
104
como não construir um paralelo entre a realidade construída e a realidade encontrada. Ambas
pertencem a universos distintos, mas permanecem ligadas por sentidos que, por serem
compartilhados, as tornam próximas.
O fato de Nanetto demonstrar pouca perícia na realização de atividades rotineiras,
como o trabalho com determinadas ferramentas, torna-se algo risível porque, no contexto
comportado pela cultura da imigração italiana, o trabalho constitui-se em um valor básico e
realizá-lo de maneira satisfatória conduz o indivíduo ao reconhecimento de suas habilidades
dentro do grupo do qual é parte ou a tornar-se motivo de riso, quando não é capaz de realizá-
lo de maneira satisfatória. A partir do momento em que Nanetto não consegue realizar a
atividade a que se dispôs, chegando ao cúmulo de deixar em pedaços a ferramenta de que se
utilizava, deixa à mostra uma falha de habilidade, permitindo que se desnude mais uma de
suas limitações. Não atendendo a um dos princípios estabelecidos pelo código da sociedade
da qual fazia parte, torna-se motivo de riso.
O que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção constantemente
vigilante, a discernir os contornos da situação presente, é também certa elasticidade
do corpo e do espírito, que nos condições de adaptar-nos a ela. Tensão e
elasticidade, estão as duas forças complementares entre si que a vida põe em jogo
(BERGSON, 2001, p.13-14).
Quando se falava das habilidades requisitadas dentro de determinado grupo, estava-se
falando, também, de certa forma, de habilidades culturais que, da mesma forma como as
habilidades em práticas como o trabalho, precisam estar em sintonia para que não surjam
situações de riso. As questões culturais e os impasses, em que Nanetto se envolvido, nesse
sentido são muitos. Na verdade, os episódios resultantes de uma certa incongruência quanto
aos códigos culturais não ocorrem apenas com relação a práticas de culturas diferentes.
Dentro de uma mesma cultura, pode ocorrer esse tipo de situação. É o que acontece na
representação de Aquiles Bernardi, quando Nanetto decide ser tropeiro.
Essa prática, representada por Aquiles Bernardi em sua narrativa de ficção, como algo
praticado por famílias de imigrantes italianos, apresenta-se nova a Nanetto. Aí é que se
desencadeia o riso. Quando lhe ordenam que busque determinado acessório para equipar o
cavalo, Nanetto traz outro. Isso porque, não conhecendo os acessórios necessários para essa
prática, tenta virar-se da maneira como pode. O resultado é o riso, e ele ocorre quando o
protagonista de Aquiles Bernardi, pela sua atitude, deixa claro o fato de não dispor do
105
conhecimento necessário para a realização da tarefa da qual o haviam incumbido. Em outras
palavras, embora não conhecesse aquilo que procurava, Nanetto demonstra certa rigidez de
espírito no momento em que, ao invés de assumir o fato que ignorava, tenta resolvê-lo de
qualquer maneira, o que denunciou sua falta de perícia.
A situação acima descrita resulta na comicidade descrita por Propp (1992) ao tratar
desse efeito quando resulta em diferenças possíveis de serem percebidas entre indivíduos de
uma mesma comunidade ou de um mesmo grupo. É em representações como essa que uma
mesma cultura pode ser vista como algo que comporta diferentes estratos, os quais, de
maneira geral, são organizados a partir de um código estabelecido. É a partir do que esse
código estabelece, que uma situação ou determinado tipo de comportamento é risível ou não.
Tratar da narrativa de Aquiles Bernardi, sem mencionar a representação de
determinadas manifestações, seria deixar de analisar como, construindo um texto com
características que conduzem ao riso, o autor de Nanetto ainda conseguia estruturar episódios
em que pudesse fazer ouvir, pela voz de seu narrador, certos ditos e formas de pensamento
característicos da cultura da imigração italiana. A importância da religiosidade, dentro da
narrativa de Aquiles Bernardi, é representada logo nos primeiros capítulos. É nessa altura da
narrativa que Nanetto é descrito em sua pouca propensão ao aprendizado das orações.
Os meios de que a mãe se utiliza para doutriná-lo nas orações são os mais diversos.
Contudo, os resultados apresentam poucos progressos. Nanetto mostra-se pouco afeito à
aprendizagem das orações. Esses momentos, não só pela situação, mas pela maneira como são
narrados, acabam constituindo um fator de comicidade, representado nas tentativas de inserir
o pequeno nos costumes desse meio. “Nanetto gaveva romai i so sié o sette anni, ma le
orasion no le ghe tacava; e si so mare no la ghe sparagnava né le promesse, ne i dolsi, né i
castighi e gnanca le botte. Tutto inutile! ... El putelo gera nassuo in tel calente de la
luna!”[...]
58
(BERNARDI, 1937, p. 9).
Mesmo quando cresce, a situação não muda de maneira significativa. Nanetto se
mostra pouco afeito às orações que a mãe, em outros tempos, havia investido em tentativas de
fazê-lo aprender. Sem demora, situações delicadas aparecem. Nanetto se vê em apertos
quando convidado a fazer orações. Troca as palavras, demonstrando pouca afeição às orações
básicas. A situação resulta no risível, não só pela denúncia dessa limitação cultural, como pela
58
Nanetto já tinha seus seis ou sete anos, mas as orações não lhe entravam na cabeça; e isso que sua mãe não
lhe poupava nem as promessas, nem os doces, nem os castigos, nem as surras. Tudo em vão!... Nanetto havia
nascido na lua minguante!(...)” (T. da A.)
106
maneira como o protagonista tenta se justificar a quem questiona sua falta de religiosidade.
Diz que não compreende a “língua”, referindo-se aos diferentes dialetos que o idioma italiano
abrange. Ou seja, denunciado em sua pouca habilidade em um conhecimento reconhecido
como importante dentro da representação de uma cultura, como a da italiana, o protagonista
tenta se justificar, enquanto ao leitor cabe rir da maneira como Nanetto o faz.
Fazer parte de uma cultura é também compartilhar crenças e determinadas formas de
expressar uma religiosidade comum, como as orações, por exemplo. Quando o protagonista
de Aquiles Bernardi demonstra pouca perícia ao fazê-lo, torna-se, de certa forma, alvo de
reprovação dentro daquele grupo. Essa reprovação poderia vir de mais de uma maneira,
inclusive pelo riso, como a denúncia de um defeito. A idéia que fica, então, é aquela de que,
mesmo dentro de uma narrativa de ficção, aspectos da cultura da imigração italiana puderam
não apenas ser representados como também “moldados”, a fim de que o desenrolar de cada
episódio, mais do que ser compreendido, pudesse ter um determinado tipo de pensamento
preservado.
Ainda que tenha construído um protagonista com pouca afeição às orações, Aquiles
Bernardi soube encontrar a medida necessária para que esse personagem ainda pudesse ser
reconhecido dentro do universo cultural no qual foi inserido. Se construísse uma figura
desprovida de crenças religiosas ou de em Deus, poderia incorrer no risco de ser uma
criatura rejeitada, quando no contexto cultural representado. Dessa forma, no meio termo
entre a extrema religiosidade e a completa falta de devoção, Aquiles Bernardi construiu seu
protagonista. Esse ponto em que o localizou era o exato, para que pudesse lhe atribuir certos
defeitos e, com eles, dar o desfecho que buscava para cada episódio e para a própria narrativa
como um todo. Os defeitos, as limitações de Nanetto são o instrumento que Aquiles Bernardi
cria e do qual se utiliza para trazer à sua narrativa a representação que, alegoricamente, faz
uma menção a determinadas sanções, ainda que essas aflorassem pelo viés do riso.
Nanetto demonstra crer nos santos e na Madonna, clamando por socorro sempre que
se em situações difíceis. E, mesmo não conhecendo de maneira decorada todas as orações
que a mãe insistia em lhe ensinar, algumas “invocações” acabaram fazendo parte dos ditos de
Nanetto, em especial nos momentos em que se em perigo. É o que acontece no capítulo
onde se anuncia a chegada de uma tormenta com raios e trovões. Nesse momento, o
protagonista de Aquiles Bernardi, de maneira imediata, invoca a proteção com os seguintes
107
dizeres: “Santa Barbara, S. Simon, tegnime lontano dalle saete e dai bruti ton.” (1937,
p.133)
59
ganha lugar a representação do indivíduo que, pouco afeito às práticas rituais,
recorre à ajuda dos santos apenas quando em situação de desespero, às vezes chegando a
agregar ao pedido barganhas associadas a promessas de mudança ou de melhora, caso seja
atendido. Há a fé, mesmo que ela se manifeste em tentativas de diálogo com um Ser superior,
de modo diferente do que nas formas das conhecidas orações da religião católica. Talvez, a
essa altura, não seja difícil perceber a menção que, de forma indireta, se denuncia com relação
àqueles indivíduos que, distantes das práticas religiosas tradicionais, buscam ajuda espiritual
apenas em seus momentos de desespero, adicionando aos pedidos promessas pouco prováveis
de serem cumpridas.
4.10 O fazer que conjuga visões culturais de universos distintos
A maneira como essas nuanças são concebidas na narrativa de Aquiles Bernardi faz
com que se retomem alguns aspectos mencionados nos primeiros capítulos deste estudo. A
forma como esse autor conjugou mais de um sentido, para que sua representação alcançasse o
resultado que se em Nanetto, conduz para que se pense como conhecimentos de mais de
uma área, ou de mais de uma origem cultural, foram conjugados para que ele alcançasse
conseguir esse misto de doutrinação e riso, em meio às aventuras daquele que se inserido
em uma representação que se utiliza, dentre outros elementos, de traços da cultura da
imigração italiana. Aquiles Bernardi foi um frade que construiu um personagem capaz de
protagonizar as situações de que seu criador necessitava em cada contexto. Entretanto,
construir não o protagonista como o narrador, e suas participações na narrativa, direciona
este estudo à tentativa de compreender que tipos de pensamento acabaram perpassados nessa
criação literária.
Burke (1989), ao falar dos frades, definia-os como indivíduos “anfíbios ou
biculturais”. Ao classificá-los dessa forma, acabava por lançar luzes sobre um tipo peculiar
não de formação, como de atuação característicos de determinados segmentos do clero.
Desde sua formação até a realização de pregações, os frades viam-se inseridos em universos
culturais de contornos significativamente distintos. Por outro lado, a esses frades cabia a
59
“Santa Bárbara, São Simão, preservem-se distante dos raios e dos feios trovões.” (T. da A.)
108
tarefa de estabelecer uma comunicação entre as realidades de dois mundos culturais a
cultura popular, aqui representada pela cultura da imigração italiana, e a cultura douta, aqui
representada pela cultura clerical –, que, embora com características distintas entre si, tinham
existência paralela. A figura do frade, a uma certa altura da história, passa a corresponder a de
um indivíduo diferenciado dos demais indivíduos da comunidade. Essa diferenciação dava-se
a partir do momento em que a ele era oferecida uma formação caracterizada pelo acesso ao
conhecimento característico da cultura douta. O frade não apenas teria acesso à cultura douta,
como a ele cabia a tarefa de encontrar formas de transmiti-la a outras esferas sociais que não a
sua.
está a questão. Os frades eram formados no conhecimento da cultura douta, mas,
depois, de certa forma, viam-se envolvidos na tarefa de reconstrução desse conhecimento,
atribuindo-lhe traços que pudessem torná-lo acessível ao povo. Para isso, o conhecimento das
universidades não bastava. Era preciso conhecer a cultura para a qual o conhecimento douto
deveria ser transmitido. Mais do que isso, era preciso que o frade compartilhasse da cultura do
povo, dos sentidos que ela guardava, da força de cada expressão, quando inserida em
determinado contexto. Somente quando conseguia reelaborar o conhecimento que tinha a
transmitir, dentro dos códigos culturais do grupo, que receberia esse conhecimento, é que o
religioso conseguia estabelecer a ponte que lhe permitiria alcançar êxito em sua tarefa: fazer
com que chegasse ao povo, de maneira compreensível, aquilo que ele estava incumbido de
transmitir. Fossem ensinamentos, a importância de determinadas práticas ou mesmo a idéia de
punição frente a determinados comportamentos, quaisquer ensinamentos da cultura douta
seriam compreendidos na cultura popular se nela fossem representados, a partir de signos
culturais e lingüísticos reconhecidos pelo grupo que os recebia.
O fazer de Aquiles Bernardi mostra que o trânsito do conhecimento, pertencente ao
universo da cultura douta para o da cultura popular, foi realizado de forma que se revelou
capaz de transmitir determinados sentidos, a partir da maneira como alguns elementos
específicos foram utilizados.
Aquiles Bernardi constrói uma representação da cultura da imigração italiana no Rio
Grande do Sul. Para que tenha conseguido chegar ao resultado que alcançou, mais do que o
conhecimento da cultura douta era-lhe essencial conhecer os traços daquilo que aqui se
definiu como a cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Conhecendo essa cultura
em suas nuanças, na significação comportada em suas muitas expressões muitas das vezes
intraduzíveis –, é que ele pôde construir episódios em que descrever uma surra, como o lugar
109
dove no bate el sole, torna-se algo de uma significação cultural de tal forma repleta de
sentidos, que uma descrição puramente lingüística deixaria a desejar, em muito, o que ela
significa.
O material de construção literária de Aquiles Bernardi constituía-se de uma cultura
que como todas as outras diferenciava-se das demais, por possuir significados e uma
maneira de viver expressos em seus sentidos particulares. A opção pela cultura da imigração
italiana não surge como fonte para a representação de maneira aleatória. Aquiles Bernardi é
filho de imigrantes italianos, faz parte dessa cultura e, por isso, compartilha seus significados
de maneira particular. Isso já se constituiria em um importante indicador na escolha de
Aquiles Bernardi. Contudo, não seria por certo o único. Quando se torna frade, Aquiles
Bernardi tem contato com a cultura douta. Mais do que isso, vê-se frente à já mencionada
necessidade de reconstruir o pensamento da cultura douta. Essa reconstrução, pensada dentro
dos limites comportados pela representação, precisaria ser estruturada a partir de elementos,
de formas de expressão, de determinados posicionamentos, que pudessem ser reconhecidos
como parte da cultura da imigração italiana. Para utilizar a definição de Burke, Aquiles
Bernardi é um indivíduo bicultural. A ele cabe a tarefa de transmitir, em suas representações,
elementos da cultura douta, de maneira que esses pudessem ser assimilados pela cultura
popular representada nesse contexto de imigrantes italianos.
Foi essa característica dos frades, como indivíduos biculturais em sua relação com o
povo e com a cultura douta, que acabou, de alguma forma, perpassando a própria construção
dos traços da representação da cultura da imigração italiana na narrativa de Aquiles Bernardi.
Ou seja, de forma parecida com o trânsito estabelecido na realidade, quando os sermões
precisam ser elaborados pelos frades, de maneira que possam ser compreendidos pelo povo,
Aquiles Bernardi conseguiu, em sua obra de ficção, representar traços da cultura da imigração
italiana, sem distanciá-los de sua relação com uma cultura, que se deixa revelar pelos
pressupostos implícitos em cada episódio, do que seja certo ou errado dentro de determinado
contexto representado em uma narrativa de ficção.
Aquiles Bernardi estabelece, em sua narrativa, o diálogo entre a cultura da imigração
italiana e a cultura clerical. Ele faz isso da seguinte forma: primeiro, conhece os significados
da cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul como parte deles. A partir do que
conhece desse universo, Aquiles Bernardi passa a se utilizar dos recursos da construção da
narrativa de ficção, para fazer com que os episódios se desenrolem e cheguem a desencadear
o efeito que ele busca. Para isso, ele não constrói personagens complexos ou portadores de
110
mistérios incessantes. Os personagens de Aquiles Bernardi se mostram ao seu leitor sem
reservas, e isso faz com que a atenção se volte não para a descoberta do que cada personagem
é, mas para a maneira como poderá agir dentro de determinada situação. Como os contornos
de cada personagem são delimitados desde cedo, acabarão por fazer com que cada
personagem se condicione a um comportamento caracterizado por alguns traços, ao invés de
outros.
As atitudes dos personagens em cada episódio em especial as atitudes do
protagonista desencadeiam, mais do que o simples desenrolar da narrativa, a menção a uma
série de significados culturais compartilhados por quem constrói e por quem a narrativa.
Com uma diferença: quem constrói, mais do que compartilhar significados representados, tem
a possibilidade de manipular a ação dos personagens, a fim de que alcance representar
determinada situação da maneira como espera, podendo apontar, com os resultados que
alcança, o que pode resultar de um posicionamento específico dentro de um determinado
contexto.
Ao conhecer alguns dos recursos de construção literária e os resultados que poderia
alcançar com sua utilização, Aquiles Bernardi passa a fazer a ponte de que se falava há pouco.
Aquiles Bernardi consegue, utilizando-se de elementos da cultura da imigração italiana,
construir em sua narrativa a representação de situações em que deixa implícitos certos
posicionamentos da cultura douta, da qual é portador. Daí o traço de doutrinação que perpassa
cada um dos episódios. É construindo uma representação com traços de uma cultura popular
que ele consegue se fazer entender pelo povo. É através dos sentidos que compartilha com
essa cultura, e neles, que consegue transmitir os valores e o conhecimento da cultura douta.
Dessa forma, acaba atribuindo à narrativa caracteres que a aproximam do tipo de texto que
tem uma moral, que é capaz de desencadear afirmações do tipo: “– Viu? Quem não agir de
determinado maneira, acaba acontecendo isso ou aquilo. Portanto, aja dessa maneira.” A
maneira recomendada, não por acaso, era a considerada adequada dentro dos parâmetros do
clero, adequados ao contexto de devoção e religiosidade presentes, tanto na cultura da
imigração italiana quanto em sua representação.
Nanetto é o instrumento que Aquiles Bernardi põe à observação de seu narrador.
Nanetto é constituído como o herói às avessas e, se não servirem para nada além do riso, suas
investidas servirão, ao menos, para se ter um exemplo de como não agir, para se chegar a
alcançar o êxito. O narrador traz consigo aqueles sentidos possíveis de serem compartilhados
pelos indivíduos da cultura da imigração italiana, e as situações que narra, mesmo não sendo
111
reais, são possíveis de ser imaginadas, uma vez que se embasam em maneiras de pensar a vida
que fazem (ou poderiam fazer) parte de um contexto real. Pelo riso desencadeado na narração,
devido as atitudes de Nanetto, têm-se as repreensões que essa cultura faz ao modo de agir do
protagonista. Nesse riso compartilhado, residem as verdades pertencentes a uma cultura, que a
sustentam naquilo em que seus indivíduos acreditam e tomam por certo.
4.11 Alguns fatores resultantes dessa conjugação
Dizia-se pouco que Aquiles Bernardi estabeleceu o diálogo entre uma cultura de
traços populares e uma cultura douta – aquela que, mesmo de forma implícita, se fazia
presente nos fios que sustentavam e norteavam a construção literária, para a representação de
sentidos com contornos bastante específicos. Fazendo parte da cultura da imigração italiana,
Aquiles Bernardi conheceu desde a importância de valores básicos que a sustentam como o
valor do trabalho e da religião até as minúcias de sentidos que determinada expressão podia
comportar em seus muitos níveis de significação. Conheceu, da mesma forma, o delicado
limite entre o risível e o não risível, dentro da cultura que decidiu representar em sua
narrativa. Talvez também seja possível afirmar que acreditasse ter, no riso, a forma de
expressar tantos significados, sem que estes ganhassem forma de pesada doutrinação ou de
saberes impostos. O autor de Nanetto conseguia representar o que pretendia, utilizando-se de
uma forma de construir seu texto literário que seria única.
Doutrinação ou representação de uma certa “moral” em cada episódio e na própria
história vista como um todo. A narrativa de Aquiles Bernardi deixa-se perpassar por uma
visão de traços que remontam para uma cultura de traços doutos, expressa em ditos populares.
É na narrativa de Aquiles Bernardi que os saberes reconstruídos de sua forma elitizada, de sua
linguagem formal, ganham novos traços e passam a se tornar possíveis de serem
compreendidos no novo universo de ficção do qual passariam a fazer parte. De forma parecida
com o trabalho de construção dos sermões, aos quais Burke se referia, Aquiles Bernardi
também constrói suas representações na narrativa. O lugar das narrativas de Aquiles Bernardi
não é a praça do mercado, mas talvez pudesse ter sido. Exemplo disso é a apresentação de
112
teatro adaptada a partir do texto de Aquiles Bernardi e apresentada na região cultural de
imigrantes italianos.
60
A forma, a maneira como Aquiles Bernardi conseguiu construir o diálogo, o trânsito
entre saberes da cultura douta para a cultura popular é o que, em grande parte, colaboraria
para que a representação da cultura da imigração italiana resultasse no texto que se viu. Pela
conjugação que propõe, Aquiles Bernardi constrói seu narrador como uma figura que intriga
de maneira particular. O narrador das histórias de Nanetto é alguém que, pela sua forma de
narrar, pela maneira como utiliza a linguagem e, na medida em que se torna uma figura
reconhecida e aceita pelo leitor, parece ter contornos de alguém que poderia ter sido parte da
cultura da imigração italiana em seu contexto real. O narrador de Aquiles Bernardi não
precisa se indagar sobre determinados significados culturais da imigração italiana e, embora
ele não o afirme, acaba fazendo-o dessa maneira, porque foi constituído como se constituiria
um indivíduo que compartilhasse dessa cultura. A ele foi instituído um saber a priori o qual
não se questiona, apenas se verifica não no que ele diz, mas na maneira como o faz, em
tudo o que o seu discurso é capaz de manter resguardado, latente em suas entrelinhas.
Por outro lado, ainda que o narrador de Aquiles Bernardi tenha essa visão próxima da
cultura da imigração italiana, sua visão não é a de um colono, de um imigrante italiano. Um
colono poderia construir sua representação com os mesmos elementos culturais de que
Aquiles Bernardi se utilizou, mas é bastante provável que os resultados não fossem os
mesmos. Essa diferença se estabelece por essa segunda visão presente no narrador de Aquiles
Bernardi. Ele não conhece apenas os traços da cultura da imigração italiana. Mais do que isso.
A voz do narrador é capaz de ponderar sobre as atitudes de Nanetto e sobre o desenrolar de
cada episódio. Essa ponderação, por sua vez, vem repleta de sentidos que remetem a um
conhecimento de traços distintos daquele puramente constituído de uma cultura popular
nesse caso, da cultura da imigração italiana. Em outras palavras, a visão que norteia o
desenrolar dos episódios não é a voz de um imigrante italiano, mas de alguém que,
compartilhando seus sentidos culturais, é capaz de, mediando a compreensão do que acontece
em cada episódio, construir, a partir deles, determinados juízos de valor que, de certa forma,
acabam instaurados na visão que se constrói do protagonista e de suas ações na narrativa.
60
A peça de teatro aqui mencionada foi apresentada pelo grupo teatral Mìseri Coloni, na década de 80, em
algumas cidades da região de imigração italiana no Rio Grande do Sul. Na peça, Pedro Parenti era Nanetto
Pipetta contando histórias o apenas de Aquiles Bernardi, mas do próprio Parenti, que, além de ator, também
foi o autor da obra que apresenta o retorno de Nanetto Pipetta.
113
Ainda em tempo, é preciso que se faça aqui um breve parênteses. A construção de
Aquiles Bernardi – a sua poética – resulta também em outro fato que instiga à análise e a uma
tentativa de compreensão. Essa tentativa consiste em observar que, a maneira como Aquiles
Bernardi construiu o seu narrador e o protagonista, o lugar e a visão que lhes atribuiu dentro
da narrativa foram de importância definitiva para o surgimento de determinados sentidos. É
possível que o leitor guarde, da obra de Aquiles Bernardi, a figura ou a lembrança de Nanetto,
de suas peripécias, de suas investidas pouco exitosas. Entretanto, não é a visão que Nanetto
tem de si mesmo, mas a visão que o narrador constrói sobre o protagonista que constitui esse
desenho último que fica para o leitor.
Falar de Nanetto pode ser, de certa forma, reforçar a imagem que seu narrador
construiu dele ao longo da narrativa. Pode-se até mencionar o modo de pensar, ou de agir,
desse protagonista, mas esse resultará não mais do que no riso, aquele de que falava Propp:
que pune ou que denuncia certos defeitos, limitações, ou que aponta para uma tal rigidez de
espírito, que se revela em cada nova investida desse protagonista. Também é possível que
esse seja o riso daquele que acha melhor relevar, compreender essas atitudes, como típicas do
strambo, não apenas em sua forma de agir, mas de pensar e se comportar, em meio a uma
série de códigos culturais preestabelecidos dentro de um grupo em determinado período de
sua história.
A sentença do narrador, no capítulo de conclusão, dispensa maiores explicações.
Ela, por si, é o espírito atribuído a essa voz que, dada sua importância, delimitou seus
contornos dentro da narrativa. Quanto ao que possa significar o far puito, por certo ele estará
ligado aos saberes de que se falava pouco. Estará presente dentro da representação dessa
cultura, delimitando modos de pensar e de agir. Mas não deve haver dúvida. Mais do que as
questões da cultura da imigração italiana, que é capaz de evocar, será o portador de uma voz
capaz de delimitar determinados modos de vida dentro de uma cultura a visão clerical.
“Cari Amissi, la storia xe finia. Chi fa puito gavarà ben, e chi no fa puito el pole spetare na
coalche desgrasia.[...] L’ Amico vostro.
61
” (1937, p. 138)
61
“Caros amigos, a história terminou. Quem ‘fizer direito’ terá o bem, e aquele que não ‘fizer direito’ pode
esperar uma desgraça qualquer. O amigo vosso” (T. da A.). Nessa tradução, as aspas foram acrescentadas devido
à significação abrangente dessa expressão. Far puito mais do que a tradução literal em fazer direito –,está
relacionado à idéia de comportar-se bem, ter boas ações dentro do que é esperado no convívio entre os
indivíduos de um determinado grupo. Essa expressão está ligada de forma particular aos parâmetros de
comportamento e de atitudes definidos nãopela cultura da imigração italiana, mas, principalmente, pelo clero,
em suas muitas investidas, na tentativa de ditar modos e formas de viver em comunidade.
114
4.12 Uma forma particular de construção
A maneira como Aquiles Bernardi construiu sua narrativa acabou por resultar em um
texto de traços particulares. A forma como esse autor constituiria o diálogo entre as duas
culturas, em sua representação, faz com que se pense em como se constituíram alguns traços
de sua poética. A poética de Aquiles Bernardi revela-se na maneira como ele construiu sua
representação e, de forma particular, na maneira como elaborou a representação da cultura da
imigração italiana dentro de sua narrativa de ficção. Entretanto, essa representação, mesmo
contando com elementos que estariam disponíveis para outras representações e, por isso,
podendo ser utilizados por outros indivíduos, guardaria no fazer de Aquiles Bernardi
características que a tornariam única. Basta analisar as demais obras que deram continuidade
à trajetória de Nanetto. Autores como Baldissera, Parenti e Baggio
62
oportunizaram que as
peripécias de Nanetto não se limitassem à obra de Aquiles Bernardi. Entretanto, nessa
passagem de Aquiles Bernardi para os demais autores, algo se modificou. À parte o novo
contexto representado em cada uma dessas obras, reconhecido em sua importância relevante,
há algo mais que diferencia a obra de Aquiles Bernardi das demais.
Para que possam ser compreendidos alguns dos fatores que diferenciam a obra de
Aquiles Bernardi das demais obras mencionadas, alguns apontamentos podem ser
importantes. Na tarefa de reconhecer parte dessas particularidades, a obra de Pedro Parenti,
intitulada Il ritorno de Nanetto Pipetta (2000) fornece elementos para análise. É na obra de
Pedro Parenti que Nanetto ressurge. Consegue sair das águas do rio das Antas, após o
desespero de ter se visto no juízo final, do qual seu anjo da guarda some, deixando-o à mercê
do diabo. Após um período desacordado, Nanetto consegue recobrar a consciência e retomar
sua jornada.
O Nanetto de Pedro Parenti depara-se com um contexto particular. Na construção
dessa representação, a utilização de certos elementos na narrativa apontam para o fato de que
um significativo espaço de tempo havia transcorrido entre a suposta morte de Nanetto e seu
retorno. Quando Nanetto ressurge, já existem a Cassa Econômica (Caixa Econômica Federal),
os fiscais do ICM e tantas outras siglas como IOF, CPMF e TR. Os bancos já fazem
empréstimos e é em busca disso que Nanetto se envolvido em um sério problema de
comunicação. Pretendendo um empréstimo de sinquanta due fiorini, o protagonista vai até a
62
Os autores citados publicaram obras nas quais há a continuidade das peripécias de Nanetto. Os dados
bibliográficos de cada uma dessas obras constam na relação de referências deste estudo.
115
agência bancária. Chegando lá, recebe a notícia de que, para conseguir o serviço, é necessário
que ele se cadastre. Nesse momento uma confusão se instala. Nanetto compreende de maneira
equivocada o significado do termo e, então...
Cossa gala dito, signorina? Vou cadastrar o senhor. Se la fa par schersar, me
lo diga súbito che lora me meto a rider. Ma se la parla sul sèrio, la sàpia che mi no
voi farme castrar parchè no son ghancora maridà e ghanca no vao via prete, e far
questi laori a un cristian l’è pemortal. Se te si rabiosa par via de to sbrego, mi no
go colpa. Se te voi cavarte a spissa, vai taiarghe via quele del gerente che lu si l’era
contento da veder el to sbrego, mi no go colpa. Mi me basta i mìseri sinquanta due
fiorini. [...] Su questo momento, el gerente, co na man in scarsela, el vien veder
cosa l’era drio suceder. A Nanetto ghe ga passà per la testa che’l podaria esser drio
tegner sconto el caniveto, e el se credea romai rovinà. Col capel davanti, el ndava
indrio cul, sercando na porta o na finestra che sia par tórsela. Incantonà, el taca
osar:
Signor Mário, potegnérvili i soldi. Go pensa meio e i me ocor gnanca
tanto. Per carità, no stè farme Del mal. Santantoni, aiuto! No stè vègnerme darente
che copo a gratoni. Qua nissun toca fin che son vivo. Ghio capio? Macachi co a
côa che si?! Vedì che’l problema za la comunicassion. Dopo che se se inrabia, l’è
ancora pi fadiga capirse. Lora l’è el colpo de fermarse, tirar el fià longo, ragionar co
la testa e méterse d’acordo, senò la vien fora che la pussa. (PARENTI, 2000,
p.37)
63
Nanetto continua sem compreender boa parte do contexto em que se encontra inserido.
Desse fato é que resultam muitos de seus infortúnios. Ainda procura a cucagna, embora a
imagine de uma forma diferente. Sua cucagna, agora, é a necessidade de dinheiro para pagar
as contas. “Son ancora drio sercar la cucagna. Solo che desso romai, ghe sento el odor parché
me go fato stradin de Santa Teresa a un salário mísero, digo, mìnimo al mese”
64
(PARENTI,
2000, p. 34).
A cucagna que Nanetto busca, nesse novo contexto, aparece relacionada de maneira
direta com a necessidade de ter dinheiro, ou então de providenciar algum tipo de ocupação
63
“– O que disse senhorita? Vou cadastrar o senhor. Se ela está dizendo por brincadeira, que me diga logo
que então eu começo a rir. Mas se está falando sério, é bom que ela saiba que não quero que me castrem porque
ainda não sou casado e também não pretendo estudar para padre, e fazer essas coisas para um cristão é pecado
mortal. Se tu estás nervosa por causa do rasgo no vestido, eu não tenho culpa. Se tu queres te tirar a coceira,
cortar fora aquelas do gerente que ele sim estava contente em ver teu rasgo. A mim me bastam os cinqüenta e
dois fiorini (...) / Nesse momento, chega o gerente com uma mão no bolso e vem ver o que está acontecendo.
Nanetto pensou que ele poderia ter um canivete escondido, e ele se via aleijado. Com o chapéu na frente, ele
foi andando para trás, procurando uma porta ou uma janela, ou qualquer coisa para fugir. Vendo-se sem saída,
ele começa a gritar: / - Senhor Mário, pode ficar com seu dinheiro. Eu pensei melhor e nem preciso mesmo dele.
Por piedade, não me faça mal. Santo Antônio, socorro! Não me cheguem perto que os mato com as unhas. Aqui
ninguém toca enquanto eu estiver vivo. Entenderam? Macacos de rabo que vocês são?! Vejam que o problema é
a comunicação. Depois que se está nervoso, é ainda mais difícil se entender. Então é a hora de parar, respirar
fundo, pensar com a cabeça, senão não dá nada que preste.”(T. da A.)
64
“Estou ainda procurando a cucagna. que, agora, já sinto seu cheiro, porque me tornei funcionário público
em Santa Teresa por um salário mísero, digo, mínimo ao mês.”(T. da A.)
116
bem remunerada. Parece mais distante a idéia de cucagna relacionada à ilusão de fortuna sem
precisar dispender de esforço ou trabalho. Para providenciar algum dinheiro, Nanetto acaba
sendo aprovado para o cargo de stradin, tornando-se, então, um funcionário público. Aliás,
não é com pouca ironia que essa tarefa é representada por Pedro Parenti, como um trabalho
realizado por pessoas que, pelo fato de serem funcionárias públicas, demonstram pouca
vontade. Aqui uma importante diferença se mostra. A voz do narrador deixa de ter a função
primeira de doutrinar, como acontecia na narrativa de Aquiles Bernardi. A crítica, em Pedro
Parenti, é a um sistema e a realidades que, aqui, parecem pouco corretas. E o que se vê, no
momento em que alguns desses funcionários iniciam mais uma jornada de trabalho e na
ausência do suor em seus rostos, parece ser o sinônimo do que se busca representar.
Romai l’era le ùndese e mesa passade e, co riva sta ora, i stradini i taca vardar el
sol, e calcular cje romai l’è ora de fermar-se, e pó, come ga dito Bernardo: El
stradin che suda l’è parchè l’è mala. Quando elstradin el suda, o la fievra p la
terìssia el ga in torno. Ma no l’è mia tuto verità nò. Ghé stradini che i laora fin masa
par la paga che i ghe dà. Ghinè qualchedun meso descontà. Un giorno ghe fa mal el
figà , un giorno ghe fa mal i rugnon, nantro la spala, quelaltro, el filon... E no ghè
dotori e ne remèdii che li fassa star meio. I ze quei che patisse del mal del quatin e,
par quela malatia, el remèdio che giova l’è el seo
65
(PARENTI, 2000, p. 52).
E, se a posição do narrador passa de doutrinação para crítica social, não só o
vocabulário utilizado, mas a freqüência com que certo tipo de termos aparece, reforçam a
idéia de que não se está mais na narrativa de Aquiles Bernardi. Embora escrita em dialeto, a
linguagem de Pedro Parenti representa a coiné falada pelos descendentes de imigrantes
italianos em um período posterior àquele representado na década de 20. uma presença
cada vez maior de vocábulos da Língua Portuguesa. E, como se falava, a constante menção de
termos que remetem a palavrões que, embora presentes no uso cotidiano dos imigrantes
italianos, não tinham espaço na narrativa de Aquiles Bernardi.
Essa diferença se revela de maneira sutil, uma vez que não chega a desencadear a
“quebra” entre uma obra e outra. Ou seja, Nanetto, depois de Aquiles Bernardi, preserva
elementos primordiais para que seu reconhecimento nesses novos contextos continue sendo
possível. Ainda assim, há elementos na construção de Aquiles Bernardi que não se encontram
65
“Já eram onze e meia passadas e, quando chega essa hora, os funcionários começam a olhar para o sol e a
calcular que já é hora de parar, e como disse Bernardo: o funcionário que sua é porque ou está com febre ou está
com hepatite. Mas não é tudo verdade. Também existem funcionários que trabalham até demais pelo salário que
recebem. m alguns meio problemáticos. Um dia dói o fígado, outro dia dói o rugnon, no outro o ombro, no
outro, i a coluna... E não doutores nem remédios que os curem. São aqueles que sofrem da doença do quati
(a preguiça) e, para essa doença, o remédio necessário é o sebo.” (T. da A.)
117
presentes nas demais construções. Não se trata aqui de estabelecer juízos qualitativos ou de
valor comparando uma obra à outra. Não é esse o objetivo. A questão é compreender por que
a representação da cultura da imigração italiana de Aquiles Bernardi apresenta traços que não
se vêem nas demais representações.
A diferença entre a obra de Aquiles Bernardi e as demais, em que Nanetto é
protagonista, poderá ser compreendida a partir do momento em que se pensar o fazer literário
como algo que, em alguma medida, vai se caracterizar como único e intransferível. Esse fator
que o individualiza pode ser percebido, por exemplo, nas particularidades percebidas quando
dois indivíduos, construindo suas representações a partir de um mesmo contexto, acabam
chegando a resultados distintos em algum sentido. Por isso, embora partindo de valores de
uma mesma cultura da imigração italiana, a construção de cada representação guarda nuanças
que a particularizam quanto a esse modo de construção. Aqui é possível que a noção de
poética passe a ser algo ligado de forma definitiva à questão da identidade. Partindo de uma
base cultural de traços comuns, é a identidade da poética de cada autor que faz com que uma
representação se apresente de uma maneira e não de outra. Nas palavras de Hall e Woodward,
essa relação entre cultura e traços identitários, dentro de sua representação em um
determinado contexto, torna-se possível de ser compreendida de forma mais nítida, no
momento em que se percebe que “a cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e
ao tornar possível optar, entre as várias identidades possíveis, por um modo específico de
subjetividade”. (2000, p. 19)
Esse modo específico de subjetividade, a que Hall e Woodward se referem, define, em
alguma proporção, que tipo de visão o autor construirá em sua representação. Em outras
palavras, entre as várias formas possíveis de construir uma representação, o autor optando por
construir sua subjetividade, a partir de determinado foco, resulta em um texto construído de
forma peculiar. Essa peculiaridade na construção literária colabora para que, dentre outras
representações que tragam Nanetto como protagonista, a narrativa de Aquiles Bernardi possa
ser reconhecida. Aquiles Bernardi, ao construir sua representação da cultura da imigração
italiana da maneira como o fez, imprimiu-lhe uma marca que a ele pertence. A marca de
sua identidade criadora está revelada nos domínios da poética que construiu, ou seja, na sua
identidade da poética. Explique-se por essa definição aquela identidade que colabora para que
uma história seja escrita de uma maneira e não de outra. Não se trata aqui da identidade da
pessoa que escreve a história, mas da maneira como, eventualmente, se essa construção.
118
Optar por determinados enfoques ou por abordagens a partir de ângulos específicos revela ao
leitor aquela visão da identidade que é resultado da maneira como a narrativa foi escrita.
Não é difícil compreender o porquê de a cultura da imigração ter sido representada em
Aquiles Bernardi de uma maneira que não se veria nos demais autores. A poética de Aquiles
Bernardi revela, em sua representação, o enfoque a partir do qual seu autor decidiu posicionar
tanto seu narrador quanto cada um de seus personagens. Era preciso que cada elemento
estivesse em seu lugar para que Aquiles Bernardi chegasse a alcançar o efeito que buscava.
Essa construção foi feita de maneira única porque, mesmo que outro autor dispusesse dos
mesmos materiais para construir sua obra, não o faria da mesma forma, uma vez que algo
na poética de um autor que a ele pertence. uma concepção de determinados elementos
na construção literária, e em sua representação de sentidos culturais, que a tornam particular,
mesmo ao tratar de sentimentos ou de temas universais.
A obra de Aquiles Bernardi é única, exclusiva; tem muitos sentidos, expressões e
modos de dizer que, somente com significativa perda, poderiam ser traduzidos. Sua
intradutibilidade faz com que boa parte de seus significados se manifestem e possam ser, tão-
somente, compreendidos por quem compartilha das visões de uma mesma cultura mas que, à
tentativa de tradução, se convertem em textos desprovidos da graça e da riqueza que uma
expressão é capaz de comportar em seus sentidos culturais e que é capaz de despertar, mesmo
quando transportada para o universo da ficção.
119
CONCLUSÃO
[...] é preciso colocar o ponto-final em algum lugar e o lugar bom é aquele onde
começa a esboçar-se a possibilidade de repetição e a partir do qual é possível tirar
algumas conclusões com certa margem de segurança ou pelo menos de
probabilidade. (PROPP, 1992, p. 170)
Buscou-se neste estudo compreender o modo de construção da ficção de Aquiles
Bernardi. Dentro dos muitos fatores que essa construção teria a oferecer, como objeto de
análise, optou-se por examinar de que maneira estavam representados, nessa narrativa de
ficção, elementos da cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul.
A revisão dos conceitos de povo e clero, oportunizou que se compreendesse como
determinadas características, presentes na construção de Aquiles Bernardi, se estruturaram.
Mais do que isso, percebeu-se que o conceito de cultura, conceito complexo e de contornos
em constante modificação, oportunizaria que se estabelecessem as pontes entre o universo da
cultura douta presente na visão clerical e o universo da cultura popular, representado nesse
contexto pela cultura da imigração italiana. Após a tentativa de compreensão da história da
imigração italiana e da vinda dos frades capuchinhos ao Rio Grande do Sul, pôde-se afirmar o
surgimento de dois eixos culturais, os quais, moldados pelo meio da instigante Mérica,
resultariam na cultura da imigração italiana no Rio Grande do Sul e na cultura clerical da
região de imigração italiana.
Examinar alguns dos aspectos que caracterizam esses dois eixos culturais fez com que
se pudesse, no decorrer da análise, compreender determinadas estruturas que se fariam
presentes na representação literária de Aquiles Bernardi. Na forma de constituição de seus
personagens, naquilo que se conseguiu entrever quanto aos significados construídos nessas
representações, a cultura da imigração italiana e a cultura clerical passaram a se revelar.
O menino, filho de imigrantes italianos, havia se tornado frade capuchinho. Foi como
frade que decidiu criar aquilo que ele mesmo definiria como “a verdadeira história da
imigração italiana no Rio Grande do Sul”. À parte as diferenciações necessárias entre o
indivíduo que escreve e as experiências que constrói em seu universo de representações,
traços dos dois eixos culturais iam se denunciando nos contornos e no próprio desenrolar da
obra.
120
A cultura da imigração italiana emprestava seus muitos significados e a maneira de
conceber a vida e os modos de viver para a representação de Aquiles Bernardi. Foi nela que o
autor de Nanetto buscou o falar, as expressões carregadas de significados culturais e
lingüísticos, bem como a idéia maior do indivíduo que deixa sua pátria em busca de melhores
condições de vida. Na cultura da imigração italiana, Aquiles Bernardi encontrou os sentidos
nos que sabia ser permitido o riso, como também a própria medida do risível. Na
representação dos valores do trabalho e das atitudes dentro dessa cultura, ele foi capaz de
representar o riso como forma de sanção a toda rigidez, a todo o sinal de falta de mobilidade
dentro dos códigos compartilhados pelos indivíduos de um grupo. O riso construído por
Aquiles Bernardi em sua narrativa foi a medida exata encontrada para permitir que uma
cultura se reconhecesse dentro de sua representação. Através dele é que pôde fazer com que
muito mais do que a cultura dos imigrantes italianos se visse representada nas peripécias do
personagem.
Contudo, se a representação da cultura da imigração italiana traz muito daquilo que a
constitui na realidade, não seria a visão dessa cultura que nortearia a construção de sua
representação. A voz do narrador de Aquiles Bernardi talvez seja o exemplo mais consistente
do que se quer dizer aqui. Embora os elementos da cultura da imigração italiana se façam
presentes em todas as áreas já citadas, é a cultura clerical que vai determinar, em significativa
medida, a construção da representação da cultura da imigração italiana. Na voz do narrador de
Aquiles Bernardi, a voz da cultura clerical se legitima nas ponderações sobre as atitudes de
Nanetto e dos demais personagens. Não é um imigrante italiano que reflete sobre as
conseqüências da pouca perícia de Nanetto, mas alguém que quer fazer com que o leitor
perceba as possíveis conseqüências desse tipo de atitude. Se a narrativa de Aquiles Bernardi –
e nela a representação da cultura da imigração italiana tem um aspecto de doutrinação, por
certo essa resulta de uma determinada visão do clero que se denuncia nos contornos da
representação, na maneira como o narrador reflete sobre os resultados de cada atitude em seu
contexto específico. Dessa conjugação entre os traços da cultura da imigração italiana com a
visão da cultura clerical de determinado período resulta a representação da cultura de Aquiles
Bernardi.
A maneira como seu autor utilizou os recursos da construção literária mostra o fazer
fictício como instrumento para que sentidos de universos culturais distintos pudessem ser
explorados, a fim de chegar a alcançar os resultados pretendidos com a representação. Essa
construção não ocorre de maneira aleatória. A seleção cultural, de que se tratava ainda no
121
início deste estudo, parece ser um bom indicador para a construção de determinados focos na
representação literária ao invés de outros. Tanto na cultura da imigração italiana quanto na
cultura clerical, o autor de Nanetto realiza um processo seletivo, e é a partir dele que se torna
capaz de construir sentidos reconhecidos nesses dois eixos culturais. Essa seleção cultural não
se efetiva a partir do momento em que se conhecem os muitos significados de uma cultura,
como também se de maneira particular em cada indivíduo. Porque cada um é parte de um
contexto, de um tempo específico e é capaz de ver as intersecções culturais de maneira única.
Daí, talvez, se possa buscar a compreensão desse caráter inédito, intransferível que perpassa a
representação literária de Aquiles Bernardi. Isso porque, mesmo que outros descendentes de
imigrantes italianos, que também tiveram contato com a cultura clerical, tenham construído
representações dando continuidade às histórias de Nanetto, nenhuma é igual à de Aquiles
Bernardi. Porque a seleção cultural feita por esse autor pertence apenas a ele, ao momento
sobre o qual ele fala e no qual constrói seus significados. Também guarda sentidos de
contornos delimitados pelo tempo e pelo espaço dos quais ele é parte.
Mais do que perceber o diálogo entre a cultura da imigração italiana e a cultura clerical
na obra de Aquiles Bernardi, sua obra merece ter reconhecida sua importância também por
outros motivos. Aqui cabe o pensamento de Candido quando afirma:
Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma
confidência, um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma
“expressão”. A literatura porém é coletiva, na medida em que requer uma certa
comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades
profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a
uma comunicação. (1965, p. 170)
Assim, sua importância está em se constituir em texto literário em que a construção
das representações mostra-se como um objeto intrigante à análise literária. Ou, se, por outro
lado, sua construção é capaz de revelar o trânsito proposto por seu autor entre as visões de
dois eixos culturais de traços distintos, a obra de Aquiles Bernardi é marca também para um
outro sentido. Como se lia na citação de Candido, a literatura é também parte dos sentidos
compartilhados por um coletivo em determinado período de sua evolução, tanto nas
expressões, no vocabulário em que é elaborada a representação, quanto nos sentidos
compartilhados em modos de falar e nos códigos culturais nele implícitos. A forma como foi
concebida a representação da cultura da imigração italiana na obra de Aquiles Bernardi é
marca dos modos de pensar de um povo em um determinado tempo. Ou melhor, talvez ela
122
comporte a representação do diálogo entre os modos de pensar entre dois eixos culturais
distintos, conjugados em um mesmo período de sua história, porque têm existência paralela e
estão inseridos no espaço das muitas significações que é o universo literário.
Logo, analisar a representação da cultura da imigração italiana oportunizou não apenas
sua compreensão dentro do universo da literatura, mas, mais do que isso, possibilitou que se
compreendesse o que esse tipo de construção representa, como instrumento na construção de
significados que são parte de um dos fazeres do ser humano, em sua interação com os demais
indivíduos que compartilham de sua cultura.
O percurso de estudos realizado até aqui oportunizou que se construísse uma visão da
maneira como a cultura da imigração italiana foi representada na obra de Aquiles Bernardi, na
forma dos resultados apresentados. Esses, contudo, não esgotam as possibilidades de estudo
que essa representação comporta. aspectos sociais, políticos e a própria análise lingüística
que se mostram como campos à espera de estudos que possam contemplar a riqueza presente
nessa representação. Esses, contudo, não foram o foco do presente trabalho, e abordá-los seria
investir em uma análise, cujas não se conseguiria abarcar. A própria questão dos aspectos que
compõem o que se chamou identidade da poética constitui objeto não menos instigante.
Talvez possa, em estudos futuros, ser investigada com a profundidade que requer.
123
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