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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
CURSO DE DOUTORADO EM LINGÜÍSTICA E LÍNGUA PORTUGUESA
METÁFORAS CONCEPTUAIS EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS:
“FRONTEANDO O NASCENTE” DAS CONSTRUÇÕES
LEXICAIS COMPLEXAS
Orientadora: Profª Drª Eliane Ferraz Alves
Doutoranda: Maria do Socorro Burity Dialectaquiz
João Pessoa-Pb
Maio/ 2008
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MARIA DO SOCORRO BURITY DIALECTAQUIZ
METÁFORAS CONCEPTUAIS EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS:
“FRONTEANDO O NASCENTE” DAS CONSTRUÇÕES
LEXICAIS COMPLEXAS
Tese de doutoramento apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
da Universidade Federal da Paraíba como
requisito parcial para obtenção do grau
de doutor em Língua Portuguesa e Lingüística
Aprovada em 07/05/2008
Orientadora: Profª Drª Eliane Ferraz Alves
EXAMINADORES:
Profª Drª MARLUCE PEREIRA DA SILVA
Prof. Dr. ONIREVES MONTEIRO DE CASTRO
Profª Drª MARIA CRISTINA DE ASSIS
Profª Drª ANA CRISTINA DE S.ALDRIGUE
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METÁFORAS CONCEPTUAIS EM PRIMEIRAS ESTÓRIAS:
“FRONTEANDO O NASCENTE” DAS CONSTRUÇÕES
LEXICAIS COMPLEXAS
MARIA DO SOCORRO BURITY DIALECTAQUIZ
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Ás minhas filhas Andréa, Marly e Ângela.
Ao meu filho Gustavo e sua esposa Rosinete.
As minhas netas Thaís, Laura, Débora e Amanda.
Ao meu neto João Pedro, esperança do esporte nacional!
Quem sabe, internacional?
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AGRADECIMENTOS
Para entender o que me foi concedido, principalmente a capacidade profissional de realizar
um estudo tão significativo para mim, estou certa de que a “mão misericordiosa de Deus”
guiou-me em todos os momentos.
Se na passagem para outra dimensão for permitido visualizar este mundo em que vivemos,
“Seu” Cícero e “Dona”Gustinha ( meu pai e minha mãe) estão contentes com minha
vitória.
À Nevinha (In memoriam), orientadora de mestrado, serei sempre grata pela irrestrita
maneira como me acatou no meio acadêmico.
A minha orientadora Prof.ª Dra. Eliane Ferraz que aceitou, sem fazer questionamentos, ser
minha orientadora, e que deu continuidade a essa orientação, apesar dos obstáculos que a
vida coloca em nossos caminhos, uns mais simples de transpor, outros tão difíceis e
dolorosos que continuam em cada um de nós, como marcas indeléveis.
Aos meus irmãos Antonio e Paulo e a minha irmã Lourdes, porque sempre me
consideraram capaz na minha profissão.
Ao CEFET, onde trabalho, representado pela pessoa do Diretor Geral, Professor João, bem
como a todos que juntos objetivam o crescimento da Instituição.
As minhas amigas, colegas, companheiras Cármem, Clécia e Salete, porque estiveram
sempre prontas a me ajudar.
Ao setor de Estágio, especialmente, a Gerlane e a Fabiana, que lidavam com as questões
de Informática e a Angélica, Severino e Terezinha, que supriram minhas ausências por
força deste trabalho.
6
“ Aprendi algumas línguas estrangeiras apenas
para enriquecer a minha[...]. A língua e eu somos
um casal de amantes que juntos procriam
apaixonadamente, mas a quem, até hoje, foi
negada a bênção eclesiástica e científica.
Entretanto eu sou um sertanejo, a falta de tais
formalidades não me preocupa. Minha amante é
mais importante pra mim.”
Guimarães Rosa
7
SUMÁRIO
RESUMO..............................................................................................................................9
ABSTRACT........................................................................................................................10
RESUMEN.........................................................................................................................11
INTRODUÇÃO.................................................................................................................12
CAPÍTULO I.....................................................................................................................17
1. Do Funcionalismo ao Cognitivismo........................................................................17
O Funcionalismo.....................................................................................................17
O Cognitivismo: algumas considerações.................................................................20
A Gramática Funcional e o Cognitivismo...............................................................23
CAPÍTULO II....................................................................................................................26
2. A Metáfora: uma trajetória......................................................................................26
A Metáfora: de ornamento à conceptualização.......................................................26
Teoria da metáfora conceptual de Johnson e Lakoff............................................ 34
Definição e conceito de metáfora......................................................................38
A metonímia......................................................................................................39
Sistematização da metáfora...............................................................................40
A metáfora e sua classificação...........................................................................41
Metáfora e coerência cultural............................................................................43
A proposta de Grady para a metáfora conceptual...............................................45
CAPÍTULO III..................................................................................................................48
3. Do léxico às Construções Lexicais Complexas ......................................................48
3.1 O léxico...................................................................................................................48
3.2 As Construções Lexicais Complexas......................................................................49
3.3
Construções Lexicais Complexas e o processo de co-composicionalidade
lingüística................................................................................................................53
CAPÍTULO IV...................................................................................................................56
4. Caracterização do autor e da obra............................................................................56
4.1 Do autor...................................................................................................................56
4.2 Da obra................................................................................................................... 58
4.3 Um compacto de Primeiras Estórias.....................................................................60
8
CAPÍTULO V....................................................................................................................61
5 .Descrição e análise do Corpus...................................................................................61
5.1 Lexias selecionadas para análise.............................................................................62
5.2 Fazendo siso das CLCs em Primeiras Estórias......................................................68
5.3 Discussão dos resultados obtidos na análise...........................................................89
5.3.1 Lexias constituídas com o verbo DAR.................................................................90
5.3.2 Lexias constituídas com o verbo TER..................................................................92
5.3.3 Lexias constituídas com o verbo FAZER.............................................................92
5.3.4 Lexias construídas com o verbo TOMAR............................................................95
5.3.5 Lexias constituídas com verbos diversos.............................................................95
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................98
REFERÊNCIAS ............................................................................................................100
ANEXOS..........................................................................................................................104
9
ABSTRACT
The idea that the metaphoric constructions, most of them, embody a cognitive value,
determined by social cultural factors, make the metaphor been considered as a conceptual
construction, which according to Lakoff and Johnson underlies daily language. Aiming at
a revision of the every day language dichotomy, that is, the regional language, the popular
expressions, phrasal, versus literary language, some 145 Complex Lexical Constructions
(constituted by Verb + Noun or + variations) selected from Primeiras Estórias by
Guimarães Rosa were analyzed. This research was based on the cognitive semantics
through a descriptive linguistic process approaching both the lexical semantic aspects of
such (CLC)s, as well as the cognitive process which constitutes them. After identifying the
conceptual basis of these (CLC)s , it was observed that the process of constructing all the
linguistic structures , selected from 21 short-stories, was characterized supported by the
cognitive process that determined the linguistic-literary creation of the Primeiras Estórias’
author.
Keywords: Verbs; nouns; cognitive; metaphor.
10
RESUMO
As construções metafóricas, em sua maioria, detêm um valor cognitivo determinado por
fatores sócio-culturais. Esta idéia vem superando, linguisticamente, a noção de que
construções metafóricas sejam consideradas, apenas, enfeites literários. Nesse sentido, o
estudo que desenvolvemos considera a metáfora como uma construção conceptual,
subjacente à linguagem cotidiana, conforme descreve a teoria de Lakoff e Johnson
([1980]2002). Assim, vislumbrando uma revisão da dicotomia linguagem do dia-a-dia, de
expressões regionais, populares, idiomáticas ou não-idiomáticas versus linguagem
literária, analisaram-se, nesse estudo, 145 Construções Lexicais Complexas CLCs
(constituídas de verbo + nome ou + formas variantes), selecionadas em Primeiras Estórias
de Guimarães Rosa. Essa investigação centrou-se na semântica de base cognitiva e
realizou-se por meio de um processo lingüístico-descritivo cuja abordagem envolveu tanto
os aspectos léxico-semânticos das CLCs, quanto os processos cognitivos que as envolvem.
Identificada a base conceptual desses (CLC)s, percebeu-se que o processo de construção
de determinadas estruturas lingüísticas, selecionadas em 21 contos, partiu de processos
cognitivos que determinaram a criação lingüístico-literária do autor de Primeiras Estórias.
Palavras-chave: verbo; nome; cognitivismo; metáfora.
11
RESUMEN
La idea de que las construcciones, en gran parte, metafóricas tienen un valor cognitivo,
determinado por factores socioculturales, hace con que la metáfora sea vista como una
construcción conceptual que, según la teoría de Lakoff y Jonhson, subyace al lenguaje
cotidiano. Vislumbrando una revisión de la dicotomía en el lenguaje diario, o sea, el
lenguaje de las expresiones regionales, expresiones populares, frases hechas, versus el
lenguaje literario, fueron analizadas en este estudio, 145 Construcciones Lexicales
Complejas- CLCs (constituida por verbo + Nombre o + formas variantes), seleccionadas
de Primeiras Estórias de Guimarães Rosa. Esta investigación se centró en la semántica de
base cognitiva y se realizó a través de un proceso lingüístico descriptivo, y cuyo estudio
abordó aspectos léxico semánticos de estas (CLC)s y los procesos cognitivos
involucrados. Identificada la base conceptual de las (CLC)s se percibe que el proceso de
construcción de dichas estructuras lingüísticas, seleccionadas en 21 cuentos, fue
caracterizado, basándose en los procesos cognitivos que determinaron la creación
lingüístico-literaria del autor de Primeiras Estórias.
Palabras-clave: Verbos; nombre; cognitivismo; metáfora.
12
INTRODUÇÃO
Por muito tempo, a metáfora foi considerada apenas uma simples figura de retórica
ou apenas um desvio de linguagem, porém, a partir dos meados da década de setenta, e em
1980, muitos estudos nessa área foram realizados, possibilitando que a noção de metáfora
ligada, exclusivamente, a uma linguagem poética, fosse rediscutida. A partir da publicação
de “Metáforas da vida cotidiana” por Johnson e Lakoff (1998), estudiosos ligados a uma
teoria funcionalista de base cognitivista, passaram a considerar que a vida mental humana
e subjetiva é capaz de imensas abstrações, e também de um sentimentalismo refinado, ou
seja, muito do que raciocinamos e visualizamos é parte de experiências vividas de outros
domínios (experiências sensório-motoras). O mecanismo cognitivo para as diversas
formas de atualização lingüística é denominado de processo de conceptualização, ou seja,
processo de construções metafóricas, caracterizadas por mapeamentos entre determinados
domínios conceptuais.
No principio a teoria da conceptualização da metáfora envolvia tão somente a
filosofia e a lingüística cognitiva em seguida, aumentou-se-lhe a área de abrangência,
envolvendo também a neurologia, a psicologia cognitiva, a inteligência artificial e a
psicologia do desenvolvimento.
O objetivo precípuo desse estudo é apresentar e caracterizar as metáforas
conceptuais atualizadas sob a forma de construções Lexicais Complexas em Primeiras
Estórias de Guimarães Rosas.
Nesse sentido, analisar os processos de conceptualização lingüística em um texto
literário significa buscar os sentidos cognitivamente construídos pelo(a) autor(a), ou seja,
significa, por meio do texto literário, vasculhar a mente do seu(sua) criador(a). Conforme
13
Johnson e Lakoff ([1980]2002,p.80-86), as teses fundamentais sobre a mente resumem-se
em:
Não há razão para que se acredite ser possível pensar sobre a mente de um
modo não metafórico;
O sistema de conceptualização metafórico não nos fornece um entendimento
unívoco, totalizante e consistente, visto que algumas metáforas conceptuais usadas para
entender a mente não são aplicadas ao mesmo tempo.
O sistema metafórico é a matéria-prima das teorias filosóficas sobre a mente,
portanto, estas dependem daquele.
Esta teoria conceptual da metáfora, configurada em bases empíricas, permitiu-nos,
neste estudo, seguindo as orientações de Johnson e Lakoff ([1980]2002), trabalhar com as
seguintes idéias:
Generalizações inferenciais (sobre padrões de inferência): vários mapeamentos de
metáforas ajustam-se a muitos casos, em que a lógica de raciocínio usada no
Domínio Alvo é a mesma do Domínio Fonte.
Generalizações de novos casos (novos casos de extensão metafórica): dessa forma,
os mesmos mapeamentos podem ser usados na explicação de casos ainda não
ocorridos. Nesse contexto, Johnson e Lakoff ([1980]2002)inferem que essa é uma
prova cabal de que as metáforas conceptuais são vivas.
Vários experimentos psicológicos realizados em laboratório, como significados de
sentenças projetadas, metaforicamente, são, facilmente, reconhecidos, o que não
ocorre com os tradicionalmente usados.
Mudanças semânticas: é possível encontrarem-se casos em que ocorreram
mudanças relacionadas a lugares, em épocas distintas, porque tais metáforas as
permitem.
14
Os estudos de ocorrência do discurso: certos discursos escritos – principalmente os
técnicos – exigem quase sempre a aplicação de metáforas para que possam ser
entendidos.
Essas constatações, entre outras mais, proporcionaram a Johnson e Lakoff
([1980]2002) o construto da Teoria da metáfora conceptual e permitiram um
redirecionamento desses estudos, existentes desde meados de 1970.
Seguindo esses direcionamentos, pode-se depreender que as idéias desses
estudiosos, além de permitirem uma descrição linguística dos processos de
conceptualização, categorização e descrição da experiência, permitem estabelecer uma
relação com o que eles denominam de cultura material, mostrando, de forma mais clara,
que, em verdade, pensamos metaforicamente e que, por mais estranhas que possam
parecer, as conceptualizações que construímos resultam das relações metafóricas
existentes em nossa mente.
Nessa perspectiva, analisaremos expressões lingüísticas, denominadas por Alves
(1998) de Construções Lexicais Complexas (CLCs) formadas por verbo + nome (ou por
verbo + formas variantes) cuja abordagem insere-se nos estudos fraseológicos. Segundo
Mário Vilela (2004), esses estudos abrangem expressões idiomáticas, lexias,
solidariedades lexicais entre outros.
Ä Guisa de explanação, cumpre lembrar que, por vezes, as expressões idiomáticas,
ou qualquer outro nome que lhes seja dado, apresentam significados arbitrários, porém, na
visão de Johnson e Lakoff ([1980]2002), elas têm um significado motivado pelo
mapeamento metafórico e por imagens que possamos ter gravadas na mente. É a partir
dessa idéia que formulamos a seguinte hipótese:
As Construções Lexicais Complexas construídas por Guimarães Rosa em
Primeiras Estórias apresentam, em seus significados originais, diferentes bases
conceptuais metafóricas, motivadas por determinados fatores sócio-culturais que são
retratados no universo literário desse autor.
Sobre as expressões idiomáticas ou similares, informam Johnson e Lakoff
([1980]2002):
Palavras podem designar porções de imagens mentais convencionais que
influenciam o significado de uma sentença, visto que este pode conter elementos
de outros domínios que não os explicitados lingüisticamente.
15
Imagens mentais podem ou não variar de pessoa para pessoa, mas podem algumas
delas serem partilhadas por grande parte de falantes.
Uma grande parte do nosso conhecimento cultural toma a forma de imagens
convencionais, uma vez que todos temos milhares dessas imagens, na nossa
memória, que ao longo do tempo vão se formando.
É possível que uma boa parte das diferenças lexicais entre línguas tenha relação
com diferenças em uma imagética convencional. O mesmo mapeamento aplicado a
imagens diferentes faz surgir diferentes expressões lingüísticas.
Explicitam ainda, que o significado do todo não é uma função simples do
significado das partes. Tal relação é muito complexa.
Assim, com essa abordagem da Teoria da metáfora conceptual, espera-se dar conta
do aspecto lingüístico dos contos de Guimarães Rosa, enquanto mesclado com o social e
com o cognitivo e não cada um separadamente, pois daria uma falsa realidade e acabaria
por configurar uma falsa teoria, porque parcial.
Em outras palavras, a nossa preocupação em não separar o cognitivo do social
implica que toda abordagem, apenas cognitiva ou puramente sócio-cultural, não
favorecerá uma análise real dos sentidos veiculados em determinadas construções
lingüísticas. Sem dúvida, este é um ponto a ser considerado, visto que buscamos, neste
estudo, descrever as metáforas conceptuais, lingüisticamente atualizadas, sob a forma de
Construções Lexicais Complexas.
Considerando essa perspectiva de análise, fez-se necessário obterem-se respostas
para:
1) As CLCs identificadas em Primeiras Estórias de Guimarães Rosa são, na sua
totalidade, de base conceptual?
16
2) Os fatores sócio-culturais presentes em Primeiras Estórias de Guimarães Rosa
determinam o processo de conceptualização meatafórica das CLCs?
3) Até que ponto a análise e a descrição das metáforas de base conceptual, atualizadas
sob a forma de Construções Lexicais Complexas, contribuem para a compreensão
do sentido de determinados itens lexicais na obra de Guimarães Rosa?
Segundo a Teoria de Base cognitiva da metáfora nos moldes de Lakoff e Johnson
(2002), nossas escolhas vocabulares, ou seja, lingüísticas, oferecem pistas acerca de nossas
concepções subjacentes da natureza, das instituições, de nós mesmos e da própria
linguagem. (Cf. MARCUSCHI, 2001 p.48).
Conforme Votre (1994, p.50) o conceito resultante da experiência de que fala
Lakoff (1987), ou seja, a experiência física direta não é predizível, entretanto, é certo que
tal conceito constrói-se numa experiência interativa, porque nosso sistema conceptual liga-
se diretamente à nossa percepção sócio-fisica. Sendo assim, dessa proposta é possível
depreender que:
1. A língua pode ser caracterizada por meio de modelos simbólicos com os quais se
dá uma relação entre informação lingüística e modelos cognitivos.
2. A experiência é categorizada em termos prototípicos. É pois, dessa categorização
que resultam as estruturas radiais.
3. Os modelos cognitivos podem ser proposicionais, de esquema em imagens,
metafóricos e metonímicos.
Considerando-se essas premissas, distribuímos os dados teórico-analíticos deste
estudo em cinco capítulos, que vão desde as considerações teóricas acerca do
funcionalismo cognivista e das “metáforas da vida cotidiana” necessárias ao processo de
descrição linguística, até a própria análise das CLCs, quando são identificadas as
metáforas conceptuais em Primeiras Estórias.
Sendo assim, entendemos que os registros de CLCs identificados e analisados
ativam correlações entre formas lingüísticas e estruturas mentais de conhecimentos
diversos (conceptualizações metafóricas) arquivadas não só na mente do autor, Guimarães
17
Rosa, mas também na nossa, enquanto leitores que fazemos uso de determinadas
estratégias, para compreender o universo lingüístico-literário desse autor. Tais
conceptualizações ficam disponíveis na nossa mente, como arquivos cognitivos que vêm à
tona, ao compartilharmos experiências físicas, psíquicas, sócio-culturais e lingüísticas,
processadas nos diversos tipos de interações verbais e daí efetivadas na comunidade
lingüística a que pertencemos.
CAPÍTULO I
1. Do Funcionalismo ao Cognitivismo
1.1. O Funcionalismo
Em determinados estudos lingüísticos, o grau de complexidade é tão grande, a
ponto de se tornar imperativo o estabelecimento de uma seleção entre os fenômenos que
os teóricos pretendam estudar. Esse encaminhamento para um processo de seleção já se
configura no “Curso de Lingüística Geral”, de Saussure, quando se refere a essa questão:
Outras ciências trabalham com objetos dados previamente e que se
podem considerar, em seguida de vários pontos de vista; em nosso
campo nada semelhante ocorre. Alguém pronuncia a palavra nu: Um
observador superficial será tentado a ver nela um objeto lingüístico
concreto; um exame mais atento, porém, nos levará a encontrar no caso
uma após outra, três ou quatro coisas perfeitamente diferentes, conforme
a maneira pela qual consideramos a palavra: como som, como expressão
de uma idéia, como correspondente ao latim nudum etc. Bem longe de
dizer que o objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de
vista que cria o objeto; aliás, nada nos diz de antemão que uma dessas
maneiras de considerar o fato em questão seja anterior ou superior às
outras. (SAUSSURE, 1972, p.15)
Mussalin e Bentes (2004, p.165) explicam que, para Saussure, a língua é vista
como sistema social, em oposição à fala, quer dizer, ao uso, que é individual,
exclusivamente particular; o sistema como social é, por assim dizer, também essencial,
opondo-se ao uso, ao levar-se em consideração seu caráter acessório e acidental. Tal forma
de idealização encontrou em Chomsky um aceite irrestrito da noção “falante-ouvinte ideal
numa comunidade lingüística completamente homogênea”.
18
Nos idos de 1970, era predominante o modelo teórico da Gramática
Transformacional em que transparecia, praticamente, a impossibilidade de ser trabalhada a
sintaxe fora dos ditames desta gramática. Com o passar do tempo, essa teoria arrefeceu,
dando lugar a outras tendências, como a Sociolingüística, a Lingüística Textual, e a
Análise do Discurso entre outras.
A rigor, afirma De Lancey (2001) nessa perspectiva o Funcionalismo trata de uma
volta ao pensamento lingüístico de estudiosos anteriores a Saussure, a exemplo de
Whitney, Gabelentz e Hermann Paul, cujo enfoque voltou-se para fenômenos lingüísticos
sincrônicos e diacrônicos, por entenderem que a explicação das estruturas da língua deve
ser vista em termos de imperativos psicológicos, cognitivos, e funcionais.
Em 1897, Whitney citado por De Lancey (2001) já afirmava que devido a
determinadas instrumentalidades, os homens, intencionalmente, apresentam seus
pensamentos, objetivando torná-los conhecidos por seus semelhantes, pois entendem que a
expressão imanente à linguagem tem como finalidade precípua a comunicação.
O Funcionalismo é estudado na Escola de Praga desde o início dos anos 20, até os
dias atuais, tendo como um dos maiores expoentes Roman Jakobson que, à sua maneira,
estendeu a noção de função da linguagem, até então restrita à referencial, na Teoria
Estruturalista, às funções Emotiva, Conativa e Fática, que levam em conta os participantes
da interação e outros fatores da comunicação, bem como a função poética e o código em
si, no caso da metalingüística. Em 1980 Câmara Jr., porém já registrara que, antes de
Jakobson, Bühler contemplou o pólo da interação ao postular as funções representativa
(referencial), expressiva e apelativa (2004, p.167).
A visão funcionalista é também assunto da antropologia americana, por meio dos
estudos de Sapir (1921; 1949) e dos seus seguidores: tanto no Relativismo Lingüístico, na
teoria de Pike (1967), em trabalhos etnográficos, quanto nos estudos de Hymes (1972), ao
introduzir a noção de competência comunicativa.
Citamos, ainda, a visão de tradição britânica de Firth e Halliday (1957 – 1970) e,
num sentido diferente, a tradição filosófica, que a partir de Austin (1962), por meio de
Searle (1969), conduziu à teoria dos atos de fala.
Além das escolas e das várias tendências funcionalistas surgiram nos Estados
Unidos, nos idos de 1970, trabalhos de grupos na Califórnia constituídos, principalmente,
por Talmy Givón, Charles Li, Sandra Thompson, Chafe, Scott, De Lancey e Dubois, entre
outros; nas cidades de Nova York e Búfalo gira uma corrente funcionalista, em torno de
Van Valin, conhecida como Gramática de Papel e de Referência (Role and Reference
19
Grammar); em Berkely, uma tendência funcional-cognitiva é apoiada por Lakoff e
Langacker. No que se refere ao grupo norte-americano, com um número maior de
lingüistas, não é correto falar de homogeneidade, ou seja, a existência de uma teoria
funcional uniforme, embora seus postulados não sejam inteiramente incompatíveis.
Pelo fato de o termo “funcional” ter sido, largamente, empregado seria mesmo
impossível que todos compartilhassem de um único modelo teórico. Uma pergunta que se
tem feito a esse respeito é o que há de comum a todos os modelos teóricos, e uma resposta
dada por Bates, citado em Newmeyer (2000), é a de que o “funcionalismo é como o
Protestantismo: um grupo de seitas antagônicas que concordam somente na rejeição à
autoridade do Papa”.
Para Mussalin e Bentes (2004), essa resposta é equivocada, nada esclarece, além de
dar valores individuais e excessivos a Chomsky, na área do formalismo. Vale salientar que
esse tipo de pesquisa surgiu muito antes da gerativista, a que se conhecia como a
Perspectiva Funcional da Sentença do Círculo Lingüístico de Praga.
A partir de 1980, o cognitivismo, embora tenha raízes na tradição
formalista/universalista/ mentalista caracteriza-se, predominantemente, pelo abandono de
um modelo formal de gramática, o que parece ter sido o maior motivo de engajamento
dessa teoria com outra de caráter funcionalista. Nesta linha, encontra-se o revolucionário
estudo de Johnson e Lakoff ([1980]2002), “Metáforas da Vida Cotidiana”, que mudou os
paradigmas até então existentes para a noção de metáfora.
Em síntese, Mussalin e Bentes (2004) entendem que parece haver, em todas essas
abordagens funcionalistas, um direcionamento para as tendências Labovianas, visto que,
através dessas, o estudioso procura demonstrar os conceitos que se conhece sobre a função
informativa no processo de interação verbal. Vejamos então como se pronunciam as
autoras:
Por trás das diferentes tendências arroladas por Labov podem-se
verificar três conceitos do termo função” definidos por Garvin (1978)
apud Dellinger (1991, p.399): função pode designar as relações (a) entre
uma forma e outra (função interna); (b) entre uma forma e seu
significado (função semântica) e (c) entre o sistema de formas e seu
contexto (função externa). O sentido de (a) tem a ver com a
posição teórica de Martinet e o (b) com as demais posições teóricas
(2004, p.170,171).
Destas diferentes tendências acima arroladas, vejamos mais detalhadamente a
citação de Martinet, (apud Labov, 1987) sobre a eficiência comunicativa:
20
A perspectiva inclui elementos lingüísticos de nível fonológico e
morfológico com base em relações paradigmáticas que definem a
função de unidades lingüísticas, a partir de seleções que excluem um
número de elementos da mesma classe.
Segundo essa perspectiva, as funções são vistas como mudanças no sistema de
oposições, quando alteram o número de outras unidades, as quais se opõem a um
determinado elemento e, por conseguinte, aumentam-se-lhe a carga funcional.
Neste sentido, Martinet propõe que uma restrição de ordem funcional comande as
condições de mudança lingüística para que seja mais relevante a informação semântica e
permaneça na estrutura superficial. Para Kiparsky (1991) “o conceito de função não se
refere à oposição entre as unidades do sistema, mas à relação direta entre uma dada forma
e seu significado referencial”. Explicando melhor, esta proposição de Kiparsky tem sido
apontada com certa freqüência pela teoria lingüística.
Conforme já mencionamos, há na teoria funcionalista, como em outras, pontos
relevantes. Apesar de apresentar várias vertentes, o Funcionalismo tem uma única base: a
que só reconhece uma análise lingüística, se esta considerar, no seu método, o notável
papel que o componente discursivo desempenha na gramática de uma língua, isto é se
levar em conta a importância da interação social bem como a forma como esta se
concretiza no texto/discurso.
1.2 O Cognitivismo: algumas considerações
A abordagem cognitivista nos estudos lingüísticos não significa um programa
acabado, mas uma espécie de agenda investigativa que tem crescido a cada dia. Esse item
fundamentado em Mussalin e Bentes (2004, p.25). Estas autoras traçam a rota que
seguiram alguns estudos cognitivos, no âmbito da lingüística, para mostrar alguns dos
fenômenos que, atualmente, têm ocupado um lugar de destaque.
Sabe-se que a questão da relação linguagem e mundo, linguagem e conhecimento,
não é recente nem tampouco exclusiva das ciências cognitivas. Existem, nesse campo,
várias abordagens e respostas, que chegaram a preocupar muitos estudiosos: filósofos,
antropólogos, psicólogos, enfim, grande parte de pesquisadores.
O cognitivismo emerge na década de 50, com um perfil que demonstrava uma forte
reação ao behaviorismo, febre do momento, cujo objetivo centrava-se no estudo do ser
21
humano baseado prioritariamente no seu comportamento, nas suas reações “a partir de
estímulos”, isto é, a partir de comportamento externamente observável, sem nenhum
recurso, a explicações que contivessem referências a estados mentais, intenções, vontades
ou qualquer outro elemento interno ou subjetivo”. A mente desse indivíduo era tida como
uma caixa inviolável, completamente inacessível para o estudo científico.
Com o passar do tempo, os estudos que envolvem as ciências cognitivas, de forma
ampla, inovaram-se no que diz respeito às investigações do raciocínio lógico-matemático,
em sua maioria realizados por lógicos. (2004, p.252). Estes estudos mostram que é
possível investigarem-se os processos inteligentes. Desse modo, a mente e seus processos
são objetos de estudo dessa nova ciência.
Citam-se obras que comprovam estudos vistos como introdutores para aqueles que
pretendem aprofundar-se neste estudo das Ciências Cognitivas. “A nova ciência da mente”
(GARDNER, 1984); “A mente funciona” (PINKER, 1997) entre outros.
Nessa perspectiva, os estudiosos cognitivistas trazem até a ciência um conceito de
mente, oportunizando a criação de métodos apropriados para esses estudos. No entanto é
oportuno esclarecer que as abordagens sobre conhecimento e mente oriundas dessa nova
perspectiva diferem das cognitivas anteriores, não necessariamente por seus métodos, mas
certamente pela nova ferramenta utilizada para esses estudos, o computador. Outra
novidade permeia essa nova ciência. Trata-se do termo cognição que, linha de estudo,
envolve campos mais abrangentes do que os utilizados nos estudos tradicionais sobre o
conhecimento que sempre estavam, via de regra, voltados para as capacidades nobres, ou
seja, para o raciocínio matemático, lógico, entre outras. Além disso, as ciências cognitivas
tiveram como conseqüência influenciar as ciências humanas, através de seguidas pesquisas
em diversas áreas e de muitas formas e, assim, foram oferecidos muitos módulos
cognitivos ou cognitivamente motivados, que envolveram as diversas capacidades
humanas e, por isso, passaram a ser preocupação para pesquisadores envolvidos com esse
campo do conhecimento.
Entretanto, por muito tempo não se conseguiram os frutos que seriam originados
dessas ciências novas e das ciências sociais, nem mesmo com os clássicos cognitivistas,
que já sabiam da dimensão social palpável, no caso da linguagem. E, como não fosse
reconhecida a evidente dimensão cognitiva, os aspectos sociais da linguagem foram
colocados em oposição numa disputa bastante acirrada. De modo que, adotar uma posição
cognitivista clássica, muitas vezes, significou deixar de lado qualquer aspecto social da
linguagem e da cognição, isto porque, apesar de ser notável a existência de uma vida
22
social , um cognitivista clássico pode chegar aos resultados que lhe interessam, sem que
seja necessário considerar o aspecto social como relevante para sua teoria.
Em outras correntes, encontram-se pesquisas cujo objetivo é dar prioridade aos
fatos sociais da língua, mas desconsideram a possibilidade de os problemas internos,
biológicos ou individuais interferirem na explicação do funcionamento da língua. Para
muitos pesquisadores, a língua é apenas um fenômeno social que se “apossa do indivíduo”
que se comunica através desse fenômeno M. e B. 2004, p.254). Dessa maneira, esses
estudos deixam de contemplar a memória e o processo mental pertinentes para um estudo
da linguagem. Observe-se que a cognitividade, nessa perspectiva, difere da clássica. Não
é, com freqüência, que se encontram pesquisas desenvolvidas por estudiosos com laços
sociais fortes e que denunciem uma possibilidade cognitiva nos modelos que propõem.
É possível, nesse caso, dizer-se que a Lingüística tem tomado para si esta relação
linguagem / sociedade, podendo até essa função ser considerada indissociável. Sabe-se que
essa inter-relação foi contemplada por muitos pesquisadores, salientando-se aqui a
hipótese Sapir / Whorf, o relativismo lingüístico. Citam-se ainda os trabalhos de
Malinovski (1934), que envolvem o pensamento primitivo.
Nessa perspectiva, é possível depreender-se que os cognitivistas clássicos,
preocupam-se, fundamentalmente, com os aspectos internos, mentais, individuais, inatos e
universais do processamento lingüístico, enquanto um outro grupo constante dos
sociolingüistas, etnolingüistas preocupam-se fortemente com os aspectos externos e
sócio-históricos da lingüística.
De forma progressiva, desde os anos oitenta, essa maneira de abordagem de cada
um desses investigadores mencionados contribuem para o desenvolvimento de novos
estudos. Assim, surgiram espaços promissores no âmbito dos estudos lingüísticos, que
ajudaram na compreensão dos fenômenos cognitivos de forma geral.
Compartilhando desse diálogo, outros investigadores que, em princípio, seguiam
essa linha da ciência cognitiva, embora não comungassem com a maneira que os
cognitivistas clássicos viam a mente, reconheciam-na como um recipiente cheio de
fenômenos, só explicados a partir de pressupostos tradicionais do cognitivismo clássico.
Entre estes que discordavam, em parte, das idéias do cognitivismo, estavam dissidentes do
gerativismo tradicional, representados por George Lakoff e Langacker. Esses estudiosos
apresentam nesse contexto de dissidência, uma nova proposta: “que a linguagem seja vista
como uma forma de ação no mundo, integrada com as outras capacidades cognitivas deste
diálogo”. (MUSSALIN e BENTES , 2004, p.255).
23
Outros componentes desse grupo, com formação nas Ciências Sociais,
apresentaram formas alternativas, pois começavam a se preocupar com a dimensão
cognitiva de seus trabalhos. Essas formas alternativas eram direcionadas ao processo
lingüístico, com o intuito de que este absorvesse as evidências sensíveis ao contexto sócio-
histórico, assim como a situação imediata com que acontecem os eventos verbais.
Esses pesquisadores têm origens diversas, mas a mesma opinião sobre a
linguagem, quando a consideram um tipo de ação conjunta. Desse ponto de vista,
compreender a linguagem é o mesmo que entender como os falantes se comportam quando
fazem algo em conjunto, utilizando ao mesmo tempo recursos internos, individuais,
cognitivos e sociais. Entretanto, a natureza, conforme explicam Mussalin e Bentes (2004,
p.255) tenderá mais tarde a explicar as ações verbais resultantes da vida psicológica de
cada indivíduo.
Neste sentido, Clark (1996 apud KOCH e LIMA) expõe alguns aspectos da língua
e seu uso quando explica:
Em alguns lugares o uso da língua tem sido estudado como se fosse um
processo inteiramente individual, como se residisse inteiramente dentro
das ciências cognitivas – psicológica cognitiva, lingüística, ciências da
computação, filosofia. Em outros lugares ela tem sido estudada como
um processo inteiramente social como se residisse inteiramente dentro
das ciências. Psicologia Social, Sociologia, Sociolingüística
Antropologia. Eu sugiro que ela pertença a duas áreas. Nós não
podemos ter esperança de entender a língua a não ser tornando-a como
um conjunto de ações conjuntas construídas a partir de ação individual.
(CLARK,1996, apud KOCH e LIMA,2004, p.255)
Essas posições, que certos pesquisadores defendem, parecem não ter nada em
comum, entretanto, com um olhar atento se detecta que só há possibilidade de opção
porque existe um certo acordo em relação aos dois lados: os cientistas que assumem a
posição cognitivista e os que acreditam na existência clara de uma diferença entre aspectos
internos e externos, inatos e apreendidos.
1.3 A Gramática Funcional e Cognitivismo
Uma concepção cognitivista da Lingüística, em especial, da Semântica, já se
encontra desde os anos 70 através de Fillmore, depois de Lakoff e mais recentemente em
Jackendoff (MOURA NEVES, 2001, p.99).
24
De modo geral pode-se dizer que, num modelo cognitivista de gramática, existe
uma estruturação das categorias lingüísticas dentro dos mesmos princípios orientadores da
estruturação das categorias humanas, a exemplo das perceptuais.
Ao se considerar a existência de uma relação icônica, entre os sistemas, é possível
se supor, então, que a teoria gramatical deve dar conta das relações lingüísticas e das
categorias cognitivas. Entretanto, alguns teóricos limitam a motivação cognitiva às
representações cognitivas, enquanto outros estendem tal motivação à Gramática, no seu
todo. Dessa forma, em última instância, significa que existe uma relação icônica entre a
gramática e a base conceptual.
Dentre os que têm essa opinião, encontra-se Lakoff (1987):
[...]que considera a gramática como categoria radial de construções
gramaticais pela qual se estabelece uma relação de correspondência
entre o módulo cognitivo que caracteriza a significação e os aspectos
correspondentes da forma lingüística. (in: MOURA NEVES , 2001,
p.100)
Nessa linha, existem um centro categorial e membros não-centrais que são tomados
como extensão motivada daquele centro. Um exemplo para melhor elucidar o que foi dito,
é o do lexema “mãe” e as extensões a partir dele. Por exemplo, os diversos tipos de mãe.
Por um lado, correspondem ao lexema central “mãe” e, por outro, tais extensões têm
correspondência com os diversos modelos cognitivos que podem se ligar a esse centro: o
da gestação, mãe-de-leite, mãe natural, mãe de criação.(LAKOFF,1987 ). É fundamental
que se tome conhecimento da rede sintática existente ao lado da rede semântica em que
certos elementos como o vocábulo “there”, que, nos estudos Lakoffianos costumam
deslizar de um tipo de construção para outro, isto é, de uma construção dêitica para uma
existencial. Dessa forma, as estruturas frasais não-centrais têm relação com as centrais
configurando, assim, a existência de uma ligação direta entre forma e significado.
( MOURA NEVES, 2000,p. 100).
De Beaugrande (1993, cap.III, p.5) entende que a gramática do tipo cognitivo é
uma gramática funcional que sempre se está enriquecendo visto que, constantemente,
registra o conhecimento de mundo, por meio dos usuários de uma língua refletindo, assim,
como uma fonte de controle para participação no discurso bem como para descrevê-lo ou
explicá-lo. É por isso que o autor em pauta defende uma gramática funcional-cognitiva
que espelhe um modelo de mundo de senso comum, e não uma análise que explicite
25
completamente a realidade. Prosseguindo a nossa investigação em torno da relação
gramática/cognição percebemos que Moura Neves (2001)comunga com o pensamento de
Givón (1991, p.84), quando conclui que a relação gramática/cognição adota tais extremos,
que podem ser pensados como duas alternativas na tradução de uma língua para outra.
Neste sentido suponha-se, por exemplo, um modelo de três linhas da transcrição
lingüística para uma oração:
Linha 1) a oração na língua fonte
Linha 2) a tradução linear, morfema por morfema
Linha 3) a tradução livre do significado
Sobre essas linhas de transcrição lingüística, veja-se, então, o entendimento de
Givón (apud MOURA NEVES, 2001, p.101-102:
Numa posição A, que Givón chama de “universalista extrema” a linha 3
constitui a verdadeira tradução da linha 1, e é, portanto, a adequada
representação do evento do ponto de vista cognitivo. Numa posição B a
que Givón chama “relativista extrema” é a tradução verdadeira da linha
1 é a linha 2, sendo esta, portanto, a adequada representação do evento
do ponto de vista cognitivo. Os universalistas extremos raciocinam
assim, da tradução para a cognição, enquanto os relativistas extremos na
esteira de Whorf raciocinam da gramática para cognição.)
No tocante a essas posições aqui expostas, Givón, após um estudo de verbos seriais
em quatro idiomas da Nova Guiné, não se coloca nessas posições extremas. Para esse
funcionalista, a relação icônica entre o “empacotamento” temporal e o “empacotamento”
cognitivo apóia-se tanto na lingüística quanto na psicologia experimental. Givón , citando
um dos exemplos, desse estudo esclarece que numa das línguas estudadas por ele foram
detectados eventos codificados em orações de multiverbos (verbos seriais), enquanto no
Inglês eventos iguais aos das orações, constituídas de verbos seriais podem ser
encontrados em orações de um único verbo sem que haja diferença significativa, já que
existe a disposição do falante para codificação desses eventos nas diferentes línguas.
Chega-se, pois, ao resultado de que as construções com verbos seriais não apontam
para um diferente modo cognitivo de dar segmento à realidade, mas constituem uma
tipologia que remete para uma posição intermediária. Dessa forma, é possível responder-se
de duas maneiras à pergunta: “a gramática reflete a cognição?”. No caso acima
apresentado, a resposta será sim ou não, a depender do traço da gramática levado em
consideração. O autor em questão afirma que, em muitas áreas da gramática, encontra-se
26
uma variedade tipológica de codificação por diferentes meios estruturais, ainda que muitas
vezes relacionadas a iguais tarefas do processamento da fala.
Vale salientar que a relação gramática/cognição é parte importante do processo de
gramaticalização. O fato de abordarmos essa questão é porque está ligada ao processo de
abstratização ou metaforização que, já sabemos, desde os anos 80 vem sendo considerado
um fenômeno altamente produtivo na linguagem principalmente no tocante ao campo das
significações lexicais.
Coube a Lakoff (1987) acentuar a sistematização da metáfora, evidenciando a
natureza metafórica do sistema conceptual humano.
CAPÍTULO II
2. A metáfora: uma trajetória
2.1 A metáfora: de ornamento à conceptualização
Este capítulo volta-se para o histórico da metáfora que tem início entre os clássicos
e filósofos da antiguidade.
Os clássicos, de modo geral, viam a metáfora, apenas, como um desvio da
linguagem. Os retóricos e filósofos comungavam com essa idéia, além de acrescentarem
sua presença indispensável à poética e a persuasão. É lícito assegurar que, para esses
estudiosos, a metáfora não possuía nenhum valor cognitivo, visão que ainda perdura em
determinados estudos. A partir de meados dos anos setenta, a metáfora começa a ser
considerada de outra forma, posto que é inserida em estudos modernos e, assim, começa a
surgir um considerável número de teorias, entre estas a de Johnson e Lakoff ([1980]2002)
que põem por terra o antigo paradigma. Este novo paradigma eleva a metáfora à categoria
de processo de cognição que envolve tanto a linguagem como o pensamento. Os trabalhos
de Davidson e Paul Ricoeur (1992), entre outros autores, também contribuíram para essa
mudança, no que se refere à metáfora. Tais estudos são o resultado de um simpósio,
Metáfora: Um Salto Conceitual, realizado em 1978 em Chicago.
Vejamos então o que infere Davidson, (1992, p.32): “Compreender uma metáfora é
um esforço tão criativo e tão pouco dirigido por regras, quanto fazer uma metáfora”. Para
ele a metáfora não é diferente de qualquer transação lingüística do dia-a-dia. Entende-se,
então, que o teórico postula a metáfora como uma comunicação através de palavras que
27
supõe, obviamente, uma interação da construção inventiva e da interpretação, sem que
sejam usados recursos semânticos além daqueles de que comumente depende. O autor em
tela é contra a idéia de que exista um outro sentido para a metáfora, além do literal.
Concorda, entretanto, com a opinião de não se poderem parafrasear metáforas, não por
dizerem algo muito novo, mas, sobretudo, porque, na sua concepção, não há nada para se
dizer além da própria metáfora, ou seja, além do literal por ela representado. Isso não quer
dizer que a metáfora não tenha um objetivo e que este não deva ser posto em relevo com
palavras somadas às que já existem. O autor alude que não deve ser comparado àqueles
que negam o valor cognitivo além do literal. A metáfora, afirma Davidson (1992, p. 36),
“é um artifício legítimo, não apenas na literatura, mas também na ciência, na filosofia e no
direito, no elogio e na ofensa, na oração e na propaganda, na descrição e na prescrição”. A
metáfora se realiza através do emprego imaginativo de palavras e sentenças e depende
totalmente dos significados comuns dessas palavras e, por conseguinte, os significados
comuns das sentenças que eles abrangem. Não adiantam explicações de como funcionam
as palavras, por que se postulam significados metafóricos ou verdades metafóricas. Isso
não explica a metáfora, ao contrário, a metáfora as explica. Ao compreender-se uma
metáfora, pode-se afirmar que foi compreendida automaticamente a verdade metafórica.
Na metáfora, afirma Davidson, com freqüência se nota certa semelhança nova entre
duas ou mais coisas. É essa observação comum e verdadeira que parece levar-nos a
concluir algo concernente ao significado das metáforas (1992): “Queira ou não, se a
metáfora está a depender de alguma maneira de novos significados ou significados
estendidos, isto quer dizer que a metáfora, de algum modo, depende dos significados
originais”. Para que se explique adequadamente a metáfora, é preciso que se reconheça a
permanência dos significados originais das palavras que abrangem essa metáfora.
Davidson (1992, p.47) entende que não existe teoria de significado metafórico ou
verdade metafórica que possa ajudar o funcionamento da metáfora. Esta percorre o mesmo
caminho lingüístico das sentenças comuns . “O que distingue uma metáfora não é o
significado, mas sim o uso – e nisso a metáfora é como uma asserção, sugerindo,
mentindo, [...]. E acrescenta:
[...] o uso especial a que submetemos a linguagem na
metáfora não é nem pode ser – dizer algo especial
(...). Porquanto uma metáfora diz somente aquilo que
mostra em sua face usualmente uma falsidade patente
ou uma verdade absurda. E essa verdade clara ou
28
falsa não precisa de paráfrase – ela e dada no
significado literal das palavras.
( DAVIDSON,1992,p 47).
O teórico em questão ressalta, que a metáfora não tem outro significado literal,
entretanto isso não significa negar que a metáfora tem um objetivo e que pode ser posto,
utilizando-se de palavras adicionais. Para esse estudioso (1992), a metáfora como um
trabalho da linguagem, ou melhor como um trabalho de sonho, exige uma colaboração
efetiva entre o sonhador e o homem acordado, ainda que sejam uma só pessoa. O próprio
ato de interpretar a metáfora é um trabalho de imaginação. Sendo assim, não há, para esse
teórico, diferença entre a metáfora e as transações lingüísticas mais rotineiras, pois “toda
comunicação, através da palavra, supõe a interação da construção inventiva e da
interpretação inventiva”. Neste estudo, a nossa intenção prende-se a tão somente mostrar
dentre as teorias que floresceram no século XX, em especial, nos meados dos anos setenta,
algumas conclusões a que chegaram os estudiosos da metáfora.
Entre os muitos teóricos que tratam desse fenômeno, optamos por Donald
Davidson de quem já expusemos as idéias e agora vamos nos centrar em Paul Ricoeur,
professor de Filosofia da Université de Paris, autor de muitas obras entre elas La
Métaphore Vive (1975). Nesta tese nos apropriamos de um dos seus escritos compilados
por Sheldon Sacks em Da Metáfora, citado anteriormente . Trata-se de um artigo: “O
processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento”. Essa escolha deve-se à
forma clara de como o autor expressa a questão da metáfora, como um processo que
envolve a mente, o ponto mais relevante da teoria de Johnson e Lakoff ([1980]2002).
Paul Ricoeur (1992, p.145), em seu texto, focaliza um problema que, de certa
forma, pode parecer meramente de ordem psicológica, vez que inclui termos como
“imagem e sentimento”. No entanto, seguindo esses direcionamentos, faz-se necessário
compreender que o uso de termos não muito concretos é próprio do campo ilimitado da
metáfora e de sua teoria. Por isso o filósofo caracteriza esses usos como um divisor de
águas, entre uma teoria semântica da metáfora e uma teoria psicológica da imaginação e
do sentimento. Para que se compreenda melhor o autor, é importante entender-se teoria
semântica como “uma análise da capacidade da metáfora de fornecer informação
intraduzível e ao mesmo tempo a pretensão da metáfora em propor um verdadeiro insight
da realidade”. Ao autor, o que interessa é verificar se tal pretensão poderá considerar-se
completa sem que se inclua um momento psicológico, habitualmente descrito como
“imagem” ou “sentimento”.
29
O que defende Ricoeur (1992 p. 146) não é apenas encontrado em teorias que não
atribuem às metáforas um valor informativo ou qualquer pretensão à realidade que
venham a determinar as imagens e sentimentos, ou seja, uma função constitutiva. Ele quer
demonstrar que muitas teorias da metáfora, inclusive a da interação de Max Black, citada
por Davidson (1992) não conseguem seu objetivo sem que se incluam imaginação e
sentimento, ou seja, sem atribuir uma função semântica àquilo que parece uma
característica simplesmente psicológica, deixando, portanto, de se preocuparem com
informações extrínsecas à metáfora. É válido deixar claro que essa argumentação não vai
de encontro ao artigo de Frege “ Sinn und Bedeutung” e Logical Investigation de Russerl,
ambos citados por Ricoeur (p. 145), ou seja, entre “Sinn ou sentido e Vorstellung”, ou
representação, caso entendamos “sentido como o conteúdo objetivo de uma expressão” e “
representação” como sua realização, e que “sentido” seja interpretado como a realização
mental deste objetivo que se evidenciará em imagem e sentimento. Continuando a leitura
das idéias de Ricoeur, fomos encontrar que a primeira análise de metáfora elaborada por
Aristóteles já sugeria algo relativo ao que Ricoeur chama de junção semântica ligada à
imaginação e, por conseguinte, ao sentimento na expressão de sentido metafórico.
Para Aristóteles (apud RICOEUR,1992 p.146), o dom de elaborar boas metáforas
está ligado à forma de como se ponderar sobre semelhanças. Além disso, a clareza de boas
metáforas, acrescenta Ricoeur, irá depender do grau de entendimento de cada um quando
se colocar frente ao sentido exposto por ela. O que se está sugerindo aqui é um tipo de
dimensão pictórica do sentido metafórico.
Reconhecer esse momento icônico, segundo esse teórico, é voltar necessariamente,
à mudança por que passou a metáfora com relação à semântica. Opõe-se, assim, à tradição
da retórica clássica, apesar de esta confirmar uma ligação com o status semântico da
metáfora que vai além de qualquer teoria da metáfora envolvendo semântica; é tanto que a
expressão “figura de linguagem” sugere que na metáfora ou em outros recursos de
expressão aparecem características da face humana numa exteriorização quase corpórea. A
partir dessa capacidade dada à mensagem, ela atua como se fosse um retrato. ( RICOEUR,
1992,p.146).
A busca por uma avaliação correta da função semântica da imaginação e, em
conseqüência, a busca pelo sentimento parece levar ao caminho da “semelhança”, porque
aí está implicado o momento pictórico ou icônico. Nesse momento, Ricoeur (1992) retoma
Aristóteles quando sugere que “elaborar boas metáforas é contemplar semelhanças” em
outras palavras é ter um insight de similaridades. Ainda a respeito da semelhança, Ricoeur
30
cita Max Black (1992,p.147) que reformula tal problema na teoria semântica caracterizada
por Black como uma teoria da interação, e dessa forma, opõe-se a uma teoria substitutiva.
Neste sentido observa Ricoeur:
O condutor do sentimento metafórico não é mais a palavra, mas a
sentença como um todo. O processo de interação não consiste
meramente na substituição de uma palavra por outra palavra, de um
nome por outro – o que em sentido restrito, define apenas a metonímia
– , mas em uma interação entre um sujeito e um predicado lógicos. Se a
metáfora consiste em algum desvio - essa característica não é negada,
mas é descrita e explicada de uma nova maneira – esse desvio refere-se
à própria estrutura predicativa. Metáfora então precisa ser descrita antes
como uma predicação alterada do que como uma denominação
alterada.(RICOEUR, 1992 p.147).
Jean Cohen (1996) refere-se a esse desvio, já anunciado por Ricoeur, sendo uma
não pertinência semântica, sugerindo, pois, a violação do código, no que tange à
pertinência ou relevância a que está ligada a predicação, quando em uso normal.
Por meio de uma nova pertinência semântica, a expressão metafórica funciona
então como a redução de um desvio sintagmático, uma vez que essa nova pertinência é
assegurada pela produção de um desvio lexical que é, por sua vez, um desvio pragmático.
Esse é o tipo de desvio de que falam os clássicos. A retórica clássica sobre este item não
estava errada na sua totalidade, entretanto, ao descrever o efeito do sentido apenas no nível
da palavra omitia, dessa forma, a produção dessa mudança semântica no nível do sentido.
(COHEN, p. 147,148).
Seguindo essa linha de pensamento, Ricoeur reforça a idéia de que a teoria da
metáfora depende de uma semântica da sentença, porque sendo mantida essa inovação
semântica é que a similaridade e, por conseguinte, a imaginação desempenha uma função
que deve ser compreendida como uma tênue impressão de perceptualidade.
O pesquisador chama a atenção, também, para a necessidade de se entender e de se
enfatizar o modo como funciona a similaridade, assim como a imaginação que é inerente
ao processo predicativo. De outro modo, pode-se afirmar que o trabalho da semelhança é
homogêneo e de acordo com o desvio e da particularidade da própria inovação semântica.
Numa segunda etapa, Ricoeur (1992, p.150) dá um passo a mais, incorporando na
semântica da metáfora o segundo aspecto, o da sua dimensão pictórica. Ao abordar essa
teoria da imaginação, o autor entende que chegou ao ponto limítrofe entre uma semântica
pura e a psicologia. Em outras palavras significa dizer que chegou ao ponto entre a
31
semântica da imaginação produtiva e uma psicologia de imaginação reprodutiva. No início
o autor já falava na questão do significado metafórico e afirmava que é exatamente esse
tipo de significado que não permite a distinção entre sentido e representação e ilustra a sua
posição, citando a oposição que faz Frege (1892) entre Sinn (sentido) e Bedeutung
(referência ou denotação). Como representação, essa distinção de limites pouco nítidos do
significado metafórico é o que propicia a exploração dos limites entre o verbal e o não-
verbal. É nessa fronteira então que surge o processo de esquematização bem como das
imagens provocadas e controladas por esta esquematização, isto é exatamente nessa
fronteira nasce uma semântica de enunciados e uma psicologia da imaginação.
Na tentativa de complementar uma teoria da semântica da metáfora com uma
análise correta do papel da imaginação, Ricoeur (1992) refere-se àquilo a que chama
“interrupção” (p.152) ou talvez ao momento de negatividade inerente à margem do
processo metafórico. Para que se entenda essa contribuição da imagem com o processo
metafórico é necessário que retomemos a noção básica de significação, quando aplicada a
uma expressão metafórica. Assim, o significado poderá ser entendido como sendo o
funcionamento interno da proposição predicativa (RICOEUR,1992).
A referência na metáfora liga-se, especificamente, ao que diz respeito à verdade, de
modo geral, à pretensão à verdade da linguagem poética. Para determinados teóricos, entre
eles Goodman (1968, p. 241), “todos os sistemas simbólicos são denotativos no sentido
em que criam e recriam a realidade”. Sendo assim, abordar a questão do valor referencial
da linguagem poética é tentar mostrar como os sistemas reorganizam o mundo e vice-
versa. Esse é o ponto em que a teoria metafórica pode misturar-se com a dos modelos,
porque a metáfora é passível de ser vista como paradigma que possa interferir no modo de
vermos o mundo.
Ricoeur (1992), sugere que, ao falar-se sobre a questão da função referencial da
expressão metafórica sejam empregados os termos “ referência dividida” visto que tais
termos portam tudo o que é necessário dizer-se sobre “ referência metafórica”. Numa
síntese, ele assegura que a linguagem poética diz tanto quanto outro uso da linguagem a
respeito da realidade, apenas de modo diferente, isto é, por meio de estratégias complexas,
que têm como componente principal, uma suspensão e, por isso, um apagamento da
referência inerente à linguagem descritiva. Na seqüência, é importante, diz o autor, que se
saliente nesse estudo o papel da imaginação no complemento do significado da metáfora
(1992, p. 154).
32
[...] o papel mediador da - suspensão ou epoché¹ – da referência
descritiva em conexão aos objetivos ontológicos do discurso poético.
Esse papel mediador do epoché no funcionamento da referência na
metáfora está em concordância plena com a interpretação que demos ao
funcionamento do sentido. O sentido de uma nova metáfora, nós
dissemos, é o aparecimento de uma nova congruência ou pertinência
semântica, a partir das ruínas do sentido literal compartilhado por
compatibilidade ou absurdez semântica. Da mesma maneira que o auto-
apagamento do sentido literal é a condição negativa para o aparecimento
do sentido metafórico, a eliminação da referência devida à linguagem
descritiva comum é a condição negativa para o aparecimento de uma
maneira mais radical de ver as coisas [...].
De acordo com Heidgger, (1992, p. 155), essa visão radical que se possa ter das
coisas está diretamente ligada à eliminação do que já se falou, isto é, a eliminação da
referência devida à linguagem descritiva esteja ela ou não relacionada à camada da
fenomenologia chamada de pré-objetiva. Essa camada constitui, por assim dizer, a linha
do horizonte de todas as maneiras de se ver o mundo.
Sabe-se que a imaginação e o sentimento sempre apareceram juntos nas teorias
clássicas da metáfora. Assim, para Ricoeur (1992), uma teoria da metáfora só estará
completa se nela houver o lugar e o papel do sentimento. Completando, ele afirma:
Minha argumentação é a de que o sentimento tem um lugar não apenas
no plano teórico da metáfora que nega o teor cognitivo da metáfora.
Essas teorias atribuem um papel substitutivo à imagem e sentimento
devido à falta de valor informativo da metáfora. Além disso, advogo que
sentimento assim como imaginação são componentes genuínos no
processo descrito em uma teoria de interação da metáfora. Ambos
alcançam o teor semântico de metáfora (RICOEUR, 1992, p.156).
Ricoeur (1992), ao estender sua argumentação, afirma que uma das funções da
imaginação é concretizar o apagamento ou epoché, próprio da referência dividida. Este é
o seu posicionamento com referência a outras funções da imaginação.
[...] a imaginação não apenas esquematiza a assimilação predicativa
entre termos pelo seu insight sintético em similaridades nem,
simplesmente, retrata o sentido graças a exposição de imagens
provocadas e controladas pelo processo cognitivo. Ao contrário,
contribui completamente ao epoché da referência usual e à projeção de
novas possibilidades de reescrever o mundo. (RICOEUR, 1992, p.158).
33
Vimos, assim, que a imaginação no processo cognitivo bem como a contribuição
desta ao epoché de referências e, também, a possibilidade de se ver o mundo por meio de
vários ângulos, é extremamente importante.
Observemos então as ponderações do autor sobre o sentimento, visto que sua
proposta inicial envolve “cognição, imaginação e sentimento”. Do mesmo modo que
descreveu a imaginação, ele fará uma descrição sobre o sentimento. (RICOUER 1992, p.
156).
Naturalmente, em se tratando de descrever sentimentos, a inclinação de qualquer
pessoa é falar em termos que, em verdade, estão ligados à emoção, isto é, afetos,
desafetos, estado interior, experiências mentais, medo, prazer, entre outros, pois a relação
que se estabelece, nos seres humanos, entre cognição, imaginação e sentimento caminha
paralelamente, visto que somos escravos dos nossos estados mentais.
Seguindo essa “teoria da imaginação”, Ricoeur (1992) explica o papel do
sentimento a partir de determinados momentos: são os sentimentos que completam e
acompanham a função de esquematização da nova congruência predicativa, que é um tipo
de insight nas semelhanças e diferenças próprias da similaridade. A apreensão imediata
dessa nova congruência não só é “sentida” como também “vista”; a congruência é sentida
porque estamos inclusos no processo conscientemente. Essa auto-assimilação predicativa
deve-se à força ilocutória da metáfora, vista como ato de fala.
Estamos quase sempre sem querer reconhecer a contribuição dada pelo sentimento
ao ato ilocutório de expressões metafóricas, porque na maioria das vezes aplicamos ao
sentimento o que usualmente, fazemos com a emoção, tanto para os estados mentais como
para os estados corpóreos.
Neste sentido, Ricoeur, (1992, p.157) cita Stephan Strasse na obra Das Gemult
(O Coração , 1956):
[...] o sentimento é uma estrutura intencional de segunda ordem, e um
processo de interiorização que segue um movimento de transcendência
intencional dirigido para algum estado objetivo da situação. “Sentir” no
sentido emocional da palavra é tornar “nosso” o que foi colocado a
distância pelo pensamento em sua fase de objetivação [...].
Acrescentando a esse pensamento, Ricoeur (1992, p.157) alega: “os sentimentos
além do citado anteriormente, acompanham e completam a imaginação”. Finalizando a
34
explicação sobre o sentimento, vejamos o que diz o autor: “A função mais importante dos
sentimentos pode ser construída em comum acordo com a característica da imaginação
[...].”
Em resumo, pode-se depreender que existem três pré-suposições básicas sob as
quais Ricoeur (1992) sustenta sua análise. a) A metáfora é antes de tudo um ato de
predicação [...]; b) A teoria do desvio não é suficiente para dar uma razão ao aparecimento
de uma nova congruência em nível predicativo; c) A noção de sentido metafórico não
estará completa sem a descrição da referência dividida que é específica do discurso
poético.
Com esse suporte, ele tenta esclarecer como a imaginação e o sentimento são
intrínsecos ao surgimento do sentido metafórico e da referência dividida. Não são
substitutos para determinadas lacunas de conteúdo informativo nas expressões
metafóricas, contemplam, no entanto, sua intenção cognitiva total.
Um outro pilar que sustenta esse estudo está centrado na idéia de que “a noção de
imagem poética e de sentimento poético precisa ser explicada de acordo com o
componente cognitivo [...]”. E assim entendido, pode-se afirmar que as fronteiras
estabelecidas entre as metáforas poéticas (de enfeite, literárias, estéticas) e as que são
consideradas exclusivamente “lingüísticas” não são tão nítidas assim, o que apaga a
questão da não conceptualidade metafórica como um todo.
2.2 Teoria da metáfora conceptual de Johnson e Lakoff
Segundo a teoria de Johnson e Lakoff ([1980]2002), a metáfora não significa uma
simples figura de retórica ou apenas um desvio de linguagem como pensavam os filósofos
da antiguidade. A metáfora surge nessa teoria como parte inerente à linguagem bem como
ao pensamento e à ação. As concepções que se fazem no sistema diário nos levam a pensar
e a agir naturalmente de modo metafórico. Sendo assim, os conceitos que trazemos no
pensamento não se limitam a atividades apenas do intelecto, ao contrário do que se
imaginou até recentemente. Nessa teoria, esses autores enfatizam a importância na língua
de todo dia.
Tais conceitos governam nossas atividades diárias, estruturando o que percebemos,
a maneira de captarmos as coisas do mundo e, ainda, como nos relacionamos com as
pessoas. Vale dizer que, apesar disto, nem sempre temos consciência do nosso sistema
35
conceptual, pois, na maioria das vezes, agimos quase automaticamente através de condutas
difíceis de serem depreendidas por nós mesmas. A linguagem, portanto, é que evidencia a
importância desse sistema conceptual.
A lingüística, até meados dos anos 70, não se interessava por estudar a metáfora,
mas a teoria proposta por Johnson e Lakoff ([1980]2002) mostra como nosso pensamento
é essencialmente metafórico. Estes nos alertam para determinados conceitos abstratos,
como por exemplo o conceito de “tempo”. Quando pensamos em “tempo”, o fazemos,
sobretudo, através de metáforas. No exemplo dado pelos autores “tempo é dinheiro”, tal
expressão abriga uma série de outras metáforas como “perder tempo”, “investindo em
tempo”, “economizando tempo”, entre outras. Para Johnson e Lakoff ([1980]2002), por
trás dessas maneiras comuns de se falar de tempo está uma concepção que deve ter
nascido numa sociedade capitalista para a qual tempo significa realmente dinheiro e ele
ratifica essa conclusão ao lembrar que trabalhamos e recebemos por isso em termos de
horas, dias e anos.
Tendo como base a linguagem e pelo fato de a comunicação acontecer alicerçada
por este sistema conceptual, os autores demonstram, por meio de estudos, que a maior
parte desse sistema conceptual inerente ao nosso pensamento é realmente metafórico. Vale
salientar que para utilizar-se essa teoria, o mais importante é saber que a essência da
metáfora é compreender e experienciar uma coisa em termos de outra. Como exemplo do
que foi dito, vejamos a expressão metafórica “dar cara amena” que significa “apresentar-se
como bonzinho”. Esta expressão (CLC), retirada do Corpus Primeiras Estórias de
Guimarães Rosa”, foi atualizada pelo autor, no seguinte contexto: “ Aquele homem para
proceder daquela forma, só podia ser um bravo sertanejo (...) senti que não me ficava bem
dar cara amena mostras de temeroso” (p.5 corpus anexo). A linguagem apresentada na
expressão não é poética nem tampouco retórica, apesar de ser retirada de uma obra
literária.
A partir do que afirmam Johnson e Lakoff ([1980]2002, p.48), um ponto muito
importante nessa teoria é que se reconheça a metáfora como conceito metafórico, isto é,
que o sistema conceptual humano seja reconhecido como metaforicamente estruturado e
definido. Para esses autores, as metáforas são vistas como expressões lingüísticas que já
fazem parte do sistema conceptual de cada um dos falantes de uma determinada língua.
Essa teoria, portanto, conceitua a metáfora como parte própria da linguagem e por isso
como parte inerente à sua construção.
36
Segundo o enfoque cognitivo mencionado por esses teóricos, o processo de
formação de conceitos e de categorização é orgânico, vez que constitui um princípio
estruturante de natureza psico-filosófica, a partir de como se expressam esses teóricos: “a
essência da metáfora é entender e experenciar uma coisa em termos de outra”. (JOHNSON
e LAKOFF, [1980]2002)
Apesar de sujeita a críticas, é sabido que a visão desses estudiosos representa,
indiscutivelmente, uma abertura significativa no que se refere aos estudos sobre a
linguagem.
Sendo assim, as propriedades pertencentes à metáfora não estão apenas intrínsecas
às unidades lingüísticas, mesmo que estas constituam o ponto de partida do qual se pode
explicar um fenômeno metafórico em termos de uma dimensão conceitual mais abstrata.
Levando esse fato em consideração é que esses conceptualistas vêem dois tipos de
categoria nas metáforas: a metáfora lingüística e a metáfora conceptual, que estão
respectivamente no nível concreto da expressão lingüística e no nível abstrato do sistema
conceptual.
Entende-se, então, como metáforas lingüísticas, aquelas que constituem
manifestações verbais de metáfora conceptuais, demonstrando que um mesmo conceito
metafórico pode ser expresso por meio de diferentes enunciados lingüísticos, a exemplo
de: A vida é uma guerra, a partir dessa metáfora conceptual existem outras que fazem
parte desse campo: Hoje, venci a 1ª batalha, fui classificada; Acertei no alvo; Na vida
nem sempre se ganha uma luta, entre outras expressões lingüísticas.
Sob o suporte dessa teoria, as expressões metafóricas são sistematicamente ligadas
a conceitos metafóricos, como já foi dito anteriormente, sendo possível então o uso de
expressões metafóricas como trilha para chegarmos à natureza metafórica de nossas
atividades. Entretanto, a sistematicidade nos faz compreender apenas um dos aspectos de
um conceito enquanto deixa encoberto outros aspectos não menos importantes. Em outras
palavras, o conceito metafórico pode abstrair outros aspectos.
Seguindo o caminho iniciado por Reddy (1979), que já investigara como se
conceptualiza metaforicamente um conceito de comunicação, numa criteriosa análise de
expressões lingüísticas por ele realizada, Johnson e Lakoff ([1980]2002) inferiram um
sistema conceptual metafórico subjacente à linguagem, que influencia a maneira de
pensarmos e, ainda, as nossas ações. Neste estudo de Reddy, denominado “The conduit
methaphor”, traduzido em português como “metáfora do canal”, ele afirma:
37
A linguagem funciona como um canal, transferindo pensamentos
corporeamente de uma pessoa para outra. 2. Na fala e na escrita, as
pessoas inserem seus pensamentos e sentimentos nas palavras. 3. As
palavras realizam a transferência ao conter pensamentos e sentimentos e
conduzi-los às outras pessoas. 4. Ao ouvir e ler, as pessoas extraem das
palavras os pensamentos e os sentimentos novamente ( REDDY 1979,
p.290).
Johnson e Lakoff ([1980]2002), porém, tratam a metáfora do canal mais
explicitamente no momento em que percebem a existência de metáforas conceptuais nas
expressões lingüísticas metafóricas. Dessa forma, algumas dualidades que na literatura
continuavam como: conceito literal x conceito metafórico foram afastadas. Enquanto a
teoria desses cognitivistas atesta a maior parte das nossas produções lingüísticas como
metafóricas, tais conceitos, chamados de literal ou metafórico, perderam a sua força,
porque a partir desse novo paradigma, o que se viu como literal restringe-se agora a
conceitos concretos, enquanto o metafórico tem uma área bem maior de abrangência, pois
ao metafórico estão circunscritas nossas emoções por força dessa teoria.
Outro ponto que merece destaque trata da linguagem de todo dia x linguagem
literária. Johnson e Lakoff ([1980]2002), de forma inquestionável, afirmam que a metáfora
não só faz parte da literatura ou da poética. Ela também está presente na linguagem usual,
ordinária. Dessa forma, desconstroem a idéia sobre a metáfora até então única que
predominou por séculos. Para esses autores, a metáfora não deve ser encarada
simplesmente como a transferência de um termo para outro significativo. No nosso
entender, tal procedimento é fundamentado na objetividade. Quando se considera
metafórico um uso lingüístico, com certeza se está usando uma estrutura conceptual bem
mais abrangente. Para esses autores, o que se pode chamar de a essência da metáfora é
“compreender e experenciar uma coisa em termos de outra”( JOHNSON e
LAKOFF[1980]2002, p. 205). Muitas vezes, porém, nossas experiências são abstratas e,
para compreendê-las, é necessário que procuremos um elemento concreto. É este fato que
estrutura o nosso sistema conceptual.
Ao abordamos a teoria de Lakoff e Johnson, apontamos o caminho por eles
seguido, ou seja, a metáfora do canal, estudo atribuído a Reddy. Revendo o prefácio de
“Metáforas da Vida Cotidiana”, achamos pertinente, neste ponto, registrar o pensamento
de Zanotto (1990) sobre a diferença entre as teorias ora citadas. Segundo essa
semanticista, o que diferencia estas teorias é que Reddy manteve-se nos conceitos que
regem a manifestação lingüística sobre a comunicação, enquanto Johnson e Lakoff
38
descobriram as metáforas conceptuais subjacentes às expressões metafóricas e,
conseqüentemente, perceberam que as metáforas lingüísticas são governadas por
generalizações, as quais chamaram de metáforas conceptuais ou conceitos metafóricos,
que regem nossos pensamentos e ações. Em outras palavras, descobriram que temos
algumas metáforas conceptuais e várias realizações lingüísticas desses conceitos.
2.2.1 Definição e conceito de metáfora
Vilela (2002, p.72) confirma o que dizem os conceptualistas em pauta: a metáfora
não é apenas um produto da imaginação poética ou da retórica, nem tampouco um uso
extraordinário da língua. A metáfora é algo que está ligado à língua na sua instauração.
Segundo esse estudioso, essa forma de se conceber a metáfora não é recente, pois
sempre foi vista como enriquecedora da língua desde que configurasse de modo diferente
a realidade. O novo é, exatamente, a pesquisa realizada por Lakoff e Johnson (1980)
envolvendo um universo considerável de pessoas com o intuito de testar e de ampliar o
caminho a que chegaram e, principalmente, a sistematização dessa teoria.
Sabe-se, também, que a metáfora sempre foi considerada alguma coisa em termos
de outra. Essa definição considerava apenas a palavra, a metáfora de palavras. Entretanto
Johnson e Lakoff ([1980]2002) vêem a metáfora além disso, isto é, no conteúdo e na
conceptualização. O que é conteúdo metafórico torna-se, na realidade, o sentido literal das
palavras, que passam a integrar, por sua vez, uma rede de sentidos metafóricos.
Considerando-se essa idéia, os conceitos metafóricos interligam-se,
sistematicamente, resultando num todo coerente. Mesmo que essa rede metafórica nos
permita compreender, de um lado um conceito em termos de outro, a sistematicidade, por
seu turno, oculta um outro lado desse mesmo conceito, o que se pode detectar na metáfora
do “canal”. Ex.: “Afogas as tuas idéias num montão de palavras”. Esse processo nos dá
um leque de opções. Dessa forma, o falante tem as idéias ou os objetos nas palavras como
se fossem caixas e assim transmite-os por um “canal” a um ouvinte que naturalmente
retira essas idéias e objetos (conteúdos) desses recipientes (VILELA, 2002, p. 74) Ex.: “ O
significado fica escondido nas palavras (que usas)”.
A esse gênero de metáforas, dá-se o nome de “metáforas estruturais”, nas quais um
conceito se encontra estruturado de modo metafórico em termos de outro conceito.
Johnson e Lakoff ([1980]2002, p.54), com base em Reddy (1979), observa que a nossa
39
linguagem sobre a linguagem é, grosso modo, estruturada pela seguinte metáfora
complexa: “Idéias ou significados são objetos”. Expressões lingüísticas são recipientes:
comunicar é enviar”.
Vale considerar que Lakoff e Johnson (p.55), ao se referirem à metáfora do canal,
afirmam que esse tipo de metáfora só terá resultados positivos se aplicados em situações
nos quais haja diferenças contextuais, que sejam irrelevantes e que não interfiram na
forma de entendimento dos seus participantes.
A metáfora é uma maneira de se conceber uma coisa em termo de outra, e a
principal função é a compreensão; a metonímia, ao contrário, tem uma função referencial,
ou seja, permite utilizar-se de uma unidade para “representar outra”. Porém, mesmo
possuindo essa função referencial, a metonímia existe para facilitar, também, o
entendimento.
A metáfora e a metonímia representam processos diferentes de conceptualização.A
diferença entre esses dois processos de representação lingüística é que a metáfora
pressupõe uma semelhança e a metonímia, uma relação de contigüidade. Melhor dizendo,
os elementos que estabelecem a metonímia estão mais próximos entre si, no que diz
respeito ao significado, do que os elementos da metáfora, posto que esta só permite
presumir semelhanças. Note-se que estas são idéias clássicas relativas a “semelhante” e a
“referente”.
Para os autores em questão (p.87), quando objetos físicos são concebidos como
pessoas acontece então o que se chama de metáfora ontológica. Isso nos permite
compreender uma grande variedade de experiências referentes a entidades não humanas
como motivações características de atividades humanas. Vejamos um exemplo: “A vida
me trapaceou”: neste exemplo percebe-se facilmente que trapacear é uma atividade ligada
a alguns seres humanos: “a trapaça”, (substantivo cognato) “trapacear” (verbo). É
importante saber que se trata de um nome abstrato, neste caso, a vida passa a agir como
pessoa. A personificação, entretanto, não é um processo geral e único, visto que cada
personificação vai selecionar aspectos humanos diferentes. A personificação é, pois, uma
categoria geral que tenta explicar coerentemente situações que não se conseguem explicar.
2.2.2 A Metonímia
Para Vilela (2004, p.80), a metáfora e a metonímia se apresentam através de
processos diferentes de conceptualização: para a metáfora designa-se uma unidade por
40
meio da transferência; uma coisa é concebida em termos de outra ao enriquecer sobretudo
a compreensão; para a metonímia, é enfatizada a linguagem referencial. Ao falar-se, aqui,
em metonímia, inclui-se a figura de linguagem denominada de sinédoque (relação
estabelecida entre a parte e o todo.
É fundamental entender-se que falar da predominância da linguagem referencial
não significa obliterar-se a compreensão. Como exemplo temos: “quando se designa
alguém por uma boa cabeça, introduz-se, ao mesmo tempo, uma nova referência por
designação, além de se salientar a propriedade para a qual apontamos: “ a cabeça como
sede da inteligência”, havendo assim um reforço de compreensão e em conseqüência de
cognição.
Complementando seu pensamento assegura Vilela: assim como a metáfora, a
metonímia não existe apenas no poético ou no retórico, esta corresponde ao nosso modo
normal de pensar e representar as nossas experiências. Exemplo: “a Casa Branca ainda não
se pronunciou a respeito do assunto”; “comprei um Peugeot”, entre outros.
Johnson e Lakoff alertam para não se confundirem metáfora de personificação
(ontológicas) com metonímia. Observemos os exemplos: 1) “A inflação roubou minhas
economias”; neste caso, não se está usando o termo destacado em referência a uma pessoa
real; 2) em “O sanduiche de presunto está esperando sua conta”, ou seja, a pessoa que
pediu o sanduíche... . A diferença é que estamos usando uma entidade para nos referirmos
a outra, constituindo, assim, uma metonímia. No exemplo 1, há uma metáfora ontológica
ou de personificação, já que a palavra “inflação” não faz referência a uma pessoa.
Reiterando o exposto, a metáfora é um modo de conceber uma coisa em termo de
outra, cuja função primeira é a compreensão. A metonímia, por sua vez, tem uma função
referencial que nos permite usar uma entidade para representar outra. A metonímia,
entretanto, não é apenas isso, pois tem, também, a função de facilitar o entendimento.
Neste ponto, é válido acrescentar que os conceitos metonímicos têm, na sua
maioria, a mesma sistematicidade das metáforas.
2.2.3 Sistematização da metáfora
Segundo a linha dos nossos conceptualistas, exporemos sobre a sistematização da
metáfora, ponto crucial da teoria em pauta.
O que há de muito importante, reiteram estes autores, é a questão da sistematização
dos conceitos metafóricos. Os padrões são os determinantes para a estruturação de
41
qualquer conceito nesse modo que se está considerando a metáfora. “Porque o conceito
metafórico é sistemático, a linguagem a ser utilizada para falarmos sobre aquele
determinado aspecto do conceito é sistemática”. (JOHNSON E LAKOFF, ([1980]2002)
Nessa forma de padronização é fundamental que se observe o seguinte: enquanto
uma expressão metafórica mostra um aspecto de um determinado conceito é provável que
esteja encobrindo outros aspectos desse mesmo conceito. Até o presente não se sabe a
razão porque há tal ocultamento, é possível, porém, deduzir-se que muitos elementos
encobertos pela expressão sejam inconsistentes com a metáfora conceptual ou talvez não
sirva para causar o efeito de sentido pretendido naquela determinada cultura, além do
contexto que é imprescindível considerá-lo.
2.2.4 A metáfora e sua classificação
Em seu estudo intitulado “Metáfora”, Sardinha (2007), classifica e apresenta como
peças centrais, as seguintes teorias:
Metáfora conceptual. Corrente fundada por George Lakoff e Mark L. Johnson,
tida como a mais influente. Defende que a metáfora é um fenômeno cognitivo
(mental) acima de tudo.
Metáfora sistemática.Vertente bastante recente encabeçada por Lynne
Cameron. Preconiza a atenção ao uso recorrente da metáfora na linguagem real,
antes de fazer alegações sobre o funcionamento da mente.
Metáfora gramatical. Esta é a teoria de metáfora criada por Michael Halliday e
que sustenta toda a sua teoria de linguagem (lingüística sistêmico-funcional).
(SARDINHA, 2007, p.17)
De acordo com este lingüista, cada uma “dessas áreas oferece um campo fértil e
ativo de idéias e metodologias sobre a metáfora” bem como “oferece contribuições
específicas sobre o estudo da metáfora.”.
Conforme já enfatizamos anteriormente, uma das principais contribuições para o
estudo da metáfora está centrada nos estudos lakoffianos. Lakoff (1987), ao apresentar as
principais características da lingüística de base cognitiva, contrapõe, inicialmente, em
termos de bases filosóficas, duas linhas de estudo: a do chamado realismo objetivista à do
realismo experiencial. A primeira estabelece uma relação quase perfeita entre linguagem e
42
conhecimento do mundo, ou seja, a realidade é apreendida a partir de uma maneira única e
correta, sem que dependa da experiência e da subjetividade do usuário de uma língua
particular. A segunda, embora tenha em comum com o objetivismo, a crença na
possibilidade de um conhecimento estável sobre o mundo, parte do princípio de que os
conceitos não só se desenvolvem a partir do organismo humano, mas também a partir da
experiência humana, individual e coletiva. Dessa maneira, na primeira, o pensamento,
entendido como “razão” é literal – formado por proposições objetivas que podem ser
verdadeiras ou falsas – e atomístico – formado através da combinação de símbolos
primitivos, ou seja, a mente é concebida como uma máquina abstrata. Na segunda, o
pensamento encontra-se enraizado não só no organismo, mas na experiência vivenciada
pelos indivíduos.
Dessa forma, a organização do sistema conceitual de base experiencialista,
proposta por Lakoff (1987), assenta-se em duas questões fundamentais: a estrutura desses
conceitos e a significatividade. Por serem, esses conceitos, estruturados tanto
internamente, quanto entre si, a organização do sistema conceitual decorre, também, de
um funcionamento cognitivo cuja organização pode ser identificada e analisada.
Em resumo, pode-se afirmar que a proposta de Lakoff (1987), para quem a
metáfora conceptual consiste em um mapeamento sistemático entre dois domínios: o
domínio –fonte (source domain) e o domínio-alvo (target domain), está centrada nas
seguintes questões :
a) a língua pode ser caracterizada através de modelos simbólicos, nos quais se dá
uma relação entre informação lingüística e modelos cognitivos;
b) os modelos cognitivos podem ser proposicionais, de esquema em imagem,
metafóricos e metonímicos;
c) a experiência é categorizada em termos prototípicos, e é desta categorização que
resultam as estruturas radiais.
Muitas dessas idéias são ampliadas ou até mesmo, em termos, reformuladas por
Johnson (1987) e Sweetser (1990), também adeptos de um cognitivismo lingüístico de
base experiencial. Ambos igualam suas teorias à de Lakoff (1987) quando, em seus
estudos, fornecem evidências de que o significado mais abstrato tem suas bases
derivacionais em um significado sócio-físico, portanto, em um significado mais concreto.
43
Vilela (2003), resumindo as idéias de Johnson e Lakoff ([1980]2002), assim define
os três tipos de metáforas básicas:
a. as metáforas orientacionais, as que estruturam os conceitos numa dimensão
linear, dando-lhes uma orientação espacial. Como se constata em: “a dor está em
baixa: sinto-me em baixo”, “alegria está em cima: ando nas nuvens”, “o futuro está
à frente / o passado atrás”: “tens um lindo futuro à tua frente embora tenhas
deixado um rasto de sangue atrás de ti”;
b. as ontológicas, as que conceptualizam como substâncias, objectos ou entidades,
numerosas experiências e eventos que carecem desse estatuto: a mente é uma
máquina, a inflação é uma pessoa ou um ser vivo (a economia engorda, emagrece;
palavras duras, palavras amargas), em que são preponderantes as chamadas
personificações;
c. as estruturais, que consistem no fato de se projetar sobre um dado conceito
complexo os aspectos correspondentes do conceito fonte, que, por sua vez, é
também complexo, por exemplo, a inflação é um inimigo que é preciso combater
(“a luta contra a inflação é o pão nosso de cada dia”).
2.2.5 Metáfora e coerência cultural
As metáforas que se engajam ao nosso sistema cultural mostram, na sua maioria,
coerência por ser este um traço da maior importância para que tal metáfora seja vista como
parte do sistema metafórico de determinada cultura.
Dando seqüência, observemos alguns exemplos que estão ligados intimamente a
valores culturais, tais como as metáforas orientacionais “para cima”, “para baixo”.Essas
expressões são largamente utilizadas na nossa linguagem corriqueira. Ex: hoje estou com a
moral em alta = “para cima”, “mas” hoje minha auto-estima está em baixa = “para baixo”.
Essas duas expressões equivalem respectivamente a se estar bem ou mal, melhor ou pior.
Vale salientar que tais expressões, muitas vezes, dependendo do contexto em que
se encontram, podem ter outra significação, senão vejamos: a expressão “para cima”
representa mais, melhor, entretanto haverá momentos em que “para cima” represente uma
ação negativa. No caso de um bebê com febre e esta temperatura subir, essa expressão
passará a significar que a saúde da criança está para baixo.
Os conceptualistas são claros ao afirmarem que nem todos os valores culturais são
coerentes com um sistema, mas aqueles que pertencem a uma determinada cultura, são
ligados ao sistema metafórico e com eles são compatíveis.
Os valores a que se referem os autores (2002) são aqueles característicos da nossa
cultura. É bom lembrar que é preciso ter-se conhecimento de que as coisas não acontecem
44
da mesma forma em todas as partes, e podem acabar por provocarem conflitos não só
entre valores, mas também com as metáforas a eles associadas.
Os conceptualistas de certa forma, afirmam que o grau de valor que se confere a
uma determinada metáfora liga-se à subcultura na qual se vive, somado aos valores
pessoais de cada um. Por essa razão, a priorização deste ou daquele valor também está
praticamente determinado por essa subcultura, ressaltando-se que as muitas subculturas de
uma cultura dominante compartilham valores básicos, mas prioridades diferentes.
No caso dos exemplos “MAIOR” e “MELHOR” (p.73) podemos observar que
estes poderão gerar determinados conflitos no caso de nos depararmos, no futuro, com
uma dúvida sobre o que queremos comprar. Por exemplo: se hoje devemos adquirir um
carro grande, cujas prestações longas irão devorar salários futuros ou se, em lugar disso,
devemos optar por um carro menor e mais barato. Há subculturas americanas que não
lidam com essa preocupação, mas existem outras que enfrentam esse problema. Já houve
um tempo em que possuir um pequeno carro dava certo prestígio, na visão de subculturas,
pois poupar recursos seria uma virtude “para cima” considerar-se-ia virtuoso quem assim
agisse. Dessa forma, indivíduos ou grupo deles fixam prioridades e definem o que lhes é
virtuoso. O que é mais importante para esses grupos, é que os valores por eles adotados
sejam coerentes com as principais metáforas da cultura dominante.
Pelo exposto, tem-se a certeza de que, Johnson e Lakoff ([1980]2002) ao
atribuírem um importante papel cognitivo à metáfora, conseqüentemente, mostram
contribuição desta na cultura, na compreensão do mundo, de nós mesmos e também
consolida as idéias de autores como HESSE e KUHN, defensores do importante papel
desempenhado pela metáfora e pelo raciocínio analógico na atividade científica.
Com base nessas idéias acerca do processo de conceptualização metafórica, e
considerando a metáfora “O AMOR É UMA VIAGEM”, os autores ([1980]2002 p.24)
fazem a seguinte observação:
A metáfora envolve a compreensão de um domínio da experiência, o
amor, em termos de um domínio muito diferente da experiência as
viagens. A metáfora pode ser entendida como um mapeamento (no
sentido matemático) de um domínio de origem – neste caso as viagens.
O mapeamento é estruturado sistematicamente. Há correspondência
ontológica de acordo com as quais as entidades no domínio do amor (os
amantes, seus objetivos comuns, suas dificuldades, a relação amorosa
etc) correspondem sistematicamente a entidades no domínio de uma
viagem (os viajantes, o veiculo, os destinos, etc ) (LAKOFF l986. p
216-217 ).
45
Nessa perspectiva, Lakoff afirma que a metáfora tema amor-como-viagem não se
constitui de expressão particular, mas do mapeamento ontológico e epistêmico entre
domínios conceptuais do domínio fonte das viagens ao domínio alvo do amor. Assim,
pelo fato de a metáfora ser uma questão de linguagem, de pensamento e razão, reflete-se
no mapeamento.
Johnson e Lakoff ([1980]2002 p.25), com o intuito de designarem o nome do
mapeamento, usam letras maiúsculas como estratégia para caracterizar os dois tipos de
domínios: DOMINIO-ALVO E DOMINIO FONTE.
Em suma, na abordagem cognitivista dos autores (2002), podem ser observadas: 1.
características: os conceitos são estruturados metaforicamente; 2. orientação: dá-se tendo
como referência a idéia de espaço (LIMITE); 3. tempo: constituído metaforicamente por
não conseguirmos apreender o tempo como uma coisa concreta, mas sim abstrata.
Em suma, para Johnson e Lakoff ([1980]2002), a metáfora é prioritariamente um
recurso do pensamento que nos faz falar, ver e agir sobre certos fenômenos dessa ou
daquela maneira.
2.3 A proposta de Grady para metáfora conceptual
Acrescentaremos a seguir a opinião de Joseph Grady (1997, p.38), para quem o
mapeamento metafórico se dá pelas correspondências das cenas primárias, e o aspecto
mais importante para se analisar uma metáfora é a identificação dessas cenas primárias dos
domínios fonte e alvo envolvidos, semelhante ao mapeamento entre esquemas de imagem
(da teoria da metáfora conceptual) que ocorreu no nível superordenado. Além disso, é
preciso compreender que, na visão de Grady, cenas detalhadas não servem como domínio
alvo.
Na proposta de Grady e colaboradores (1996), as metáforas conceptuais são
denominadas primárias ou compostas de metáforas primárias. Essas últimas, pela própria
definição, constituem-se de base experiencial indireta e independente, por isso são
compostas de elementos de experiências sensório-motoras, emocionais e de base cognitiva
que se eximem de particularidades culturais. Suas instâncias principiam-se em evidências
lingüísticas e independentes de qualquer metáfora composta, que, por sua vez, resultam de
combinações entre metáforas coerentes.
46
Seguindo a orientação de Grady (1996), a vantagem é tornar possível a
decomposição da metáfora por meio deste mecanismo abaixo enumerado:
1. Explicar ou predizer mediante regras de forma específica que os elementos de
um cenário complexo são mapeados num conceito alvo, bem como os que não o
são;
2. Fazer afirmativas de mapeamento, o mais próximo possível, isto é, o que estiver
mais de acordo com o mapeamento em si;
3. Estabelecer clara e eficientemente as relações entre metáforas complexas que
compartilham de maneira transparente alguns elementos e diferem de outros;
4. Mudar o foco para as correspondências metafóricas genuinamente experienciais.
Na teoria conceptual, as metáforas são identificadas a partir de uma análise da
expressão lingüística, em que, no primeiro momento, observa-se a sistematização. A
seguir, detecta-se a metáfora conceptual que subjaz a essa sistematização e, para obter-se o
resultado esperado, muitas outras expressões lingüísticas serão utilizadas para assegurar a
existência da metáfora. Isto significa dizer que um mesmo elemento presta-se para
identificar uma metáfora, bem como para confirmá-la.
Apesar de existirem nesses vinte últimos anos, evidências empíricas suficientes
tanto da lingüística, quanto da psicologia, sugerindo fortemente que as metáforas são uma
parte fundamental do nosso conhecimento adquirido no dia-a-dia, continuam a existir
muitas controvérsias sobre a realidade psicológica das metáforas conceptuais, entre os
psicólogos cognitivos (MURPHY,1996); (GILLIS, 1996); (KATZ,1998). Desde, pelo
menos, 1996, começam a surgir novas hipóteses sobre determinados aspectos da metáfora
conceptual, passíveis de falseamento que podem, segundo (GRADY et al.,1996) explicar
alguns pontos nublados da teoria lakoffiana que, basicamente, está relacionada a três
fatores:
(1) Pobreza de alguns mapeamentos: nem todos os aspectos das metáforas
conceptuais têm realização lingüística.
(2) Falta de base experiencial clara entre alguns domínios FONTE e ALVO, visto
que, para várias metáforas conceptuais propostas e discutidas pela teoria da metáfora
47
conceptual, falta consistência entre mapeamentos relacionados. Às vezes é difícil
determinar se as chamadas metáforas múltiplas são versões da mesma metáfora em níveis
hierárquicos diferentes ou são metáforas não relacionadas, que compartilham grande parte
de sua estrutura e conteúdo. Para explicar-se a base experiencial de algumas expressões
metafóricas, torna-se necessária a análise de grandes complexos metafóricos. Segundo os
autores, tal procedimento além de ser complexo e ligar expressões de mapeamentos pouco
relacionados um ao outro, encobre o status cognitivo e a motivação dos correspondentes
mais básicos (GRADY et al. 1996, p. 179).
Talvez, por essa razão, muitas construções metafóricas garimpadas em Primeiras
Estórias, pareçam tão “estranhas”, ou às vezes, não possibilitem o estabelecimento de uma
relação.
A proposta de Grady e colaboradores (1996) pressupõe que se evite essa
circularidade. Segundo essa teoria, ainda que suas experiências iniciem-se nas metáforas
estabelecidas pelo método circular e por métodos, essencialmente, filosóficos, o que na
realidade confirma a metáfora conceptual são as cenas primárias geradas pela correlação
dos domínios Fonte e Alvo.
48
CAPÍTULO III
3. Do léxico às construções lexicais complexas
3.1 O léxico
Com o intuito de se descrever o objeto de investigação deste Estudo, as
Construções Lexicais Complexas — CLCs, enquanto fenômeno lingüístico que se insere
nos estudos da fraseologia, passemos a apresentar algumas considerações lexicológicas, ou
seja, passemos a estabelecer uma relação entre esse tipo de construção e o léxico de uma
determinada língua.
O léxico relaciona-se com um processo de nomeação e com a cognição da
realidade” (BIDERMAM, 2001, p.13). Em outras palavras, o léxico de uma língua é um
saber partilhado que existe na mente dos falantes de uma língua e constitui-se a partir do
saber sócio-lingüístico-cultural de um grupo.
O léxico configura-se como a primeira via de acesso a um texto e, ainda, “a janela
através da qual uma dada comunidade pode vislumbrar o mundo” (VILELA, 1994, p. 10).
Esse é, pois, o nível da língua que deixa transparecer, além de registrar, valores, crenças,
hábitos, costumes, inovações tecnológicas e científicas, bem como toda estrutura política,
econômica e social de uma determinada comunidade.
Tal registro dá-se de forma peculiar à história cultural de um povo, bem como à
visão de mundo. À medida que o léxico recorta realidades de mundo, define fatos relativos
à cultura de uma comunidade, de um grupo social.
O léxico é a matéria prima de três segmentos do saber: a Lexicologia — ocupa-se
dos problemas teóricos que embasam o estudo científico do léxico; a Lexicografia —
volta-se para as técnicas de elaboração de dicionários, para o estudo descritivo da língua
realizada pelas obras lexicográficas; a Terminologia — trata do estudo de um termo, a
palavra especializada, os conceitos próprios de diferentes áreas de especialidades.
Através de uma organização do conhecimento dos conceitos ou significados, ou
seja, dos modos de se ordenarem dados, surgem as categorizações lingüísticas expressas
em sistemas classificatórios: os léxicos das línguas naturais.
Segundo Bidermam (1978), o estudo do léxico deve obedecer a duas coordenadas
básicas – o eixo paradigmático e o eixo sintagmático. A junção dessas simples
coordenadas resulta na complexidade das redes semântico-lexicais nas quais está
49
estruturado o léxico. Nesse sentido, as CLCs, ao serem consideradas como lexias,
conforme Pottier “unidade memorizada”, encontram-se inseridas em uma cadeia
paradigmática que se articula em combinações lingüísticas, dando lugar a múltiplas e
indefinidas significações.
Para muitos estudiosos do léxico, os modelos formais dos signos lingüísticos, isto
é, das palavras ou lexias preexistem, portanto, ao indivíduo. No processo de cognição da
realidade, o falante incorpora o vocabulário, ou seja, o que nomeia as realidades
cognoscentes, bem como os modelos formais que designam o sistema lexical.
3. 2 As construções lexicais complexas
Na visão de Vilela (2004) muitos rótulos são atribuídos às expressões lingüísticas,
consideradas às vezes, como expressão idiomática. Entre estes, tem-se: idioma: idiotismo,
idiomatismo; expressão: expressão idiomática, expressão figurada; frase: frases feitas,
fraseologismo verbal, nominal, adjetival, adverbial, frasema, frases esteriotipadas; grupo:
grupos fraseológicos; locução: locução verbal, locução nominal, locução adjetiva, locução
figurada; modo: modo de falar, modismo; sintagma: sintagma fixo, colocações, lexias
complexas, solidariedades lexicais e por vezes provérbios e ditados e respectivas variantes.
Optamos por transcrever essas designações referentes às combinações fixas de uma
língua a título de esclarecimento, pois, a depender do autor que se venha abordar, uma
dessas muitas nomenclaturas atinentes aos estudos fraseológicos poderá ser empregada no
decorrer do nosso estudo. Sendo assim, tais nomes funcionam como sinônimos
praticamente, à exceção de algumas combinações.
A esse estudo que abriga tantos títulos, utilizaremos o termo fraseologia para
designar a disciplina que se preocupa com tais construções fixas de uma determinada
língua.
Essas combinações podem assumir no sistema ou na frase a função e o significado
de palavras individuais ou lexemas. Tal definição espelha-se na proposta do grupo de
investigação de Mannheim – apontado por Vilela (2002) como fundador da fraseologia na
Europa – que, sobre frasemas, assim se expressa:
Os frasemas são unidades da língua reproduzidas em bloco no decurso
do discurso. Unidades construídas por, pelo menos, dois
autossemânticos e em transposição e, no seu todo, funcionam como
50
elementos frásicos ou nela se integram, mas sem construírem por si uma
frase. (MATESIC, JOSIP, 1983. In VILELA, 2002, p.11)
Martinez Marim (1996), por sua vez, afirma que os estudos fraseológicos ocupam
uma posição relevante na lingüística não apenas pela qualidade, mas, sobretudo, pela
quantidade. Enquanto temos a opinião de Martinez, reconhecendo como é importante a
área da fraseologia, Ruiz Gurillo (1997, p. 17) infere que tal área sempre foi considerada
terra de ninguém, para lá migravam investigadores de muitas escolas e signos movidos
pelo interesse que despertava neles o estudo dessas combinações fixas de palavras.
No meio lingüístico, os estudos fraseológicos, como constatamos no início,
abrangem uma terminologia diversificada, entretanto, persiste em todas essas
denominações a mais importante característica que compõe essas construções lingüísticas
que é a de serem semanticamente irregulares. Este fator lhes garante um resultado,
independente da soma dos seus constituintes.
Por serem complexas e irregulares, essas construções, via de regra, não
correspondem aos processos sistemáticos presentes nas demais unidades da língua; ainda
que consideradas como signos lingüísticos, apresentam problemas no que tange a termos
lingüísticos, quando da descrição e demarcação de limites.
Neste sentido, Corpas Pastor (1996, p. 20) considera que se essas construções
constituem-se, apenas, de duas palavras ou termos no seu limite inferior, mas, no nível da
frase, estão em nível superior.
Independente de qual seja a nomenclatura adotada pelos vários pesquisadores desse
compartimento da língua, sabe-se que esses fraseologismos ampliam o léxico da língua,
nomeando, qualificando, portando circunstâncias, e ao mesmo tempo, contribuindo para
lexicalização da conceptualização e categorização de nossas experiências. Como qualquer
outra unidade não fraseológica essas construções têm um caráter de signo e, por isso, uma
função nomeadora de modo codificado e sistemático, podendo nomear um signo, uma
classe de signos, representando esquemas mentais de objetos ou de estado de coisas.
Essa função nomeadora, no entanto, é secundária e se dá a partir de signos
mínimos; porém, é esse tipo de nomeação que redescobre novas propriedades que apontam
para uma maior expressividade e reforçando-a, caso já esteja presente.
51
Quanto às características inerentes às unidades fraseológicaas (op.cit., p.13), é
imperioso ressaltarem-se-lhes os princípios teóricos mais importantes: a fixidez que se
resume na impossibilidade de dissociação do grupo de palavras constituintes da
construção; a idiomaticidade ou semântica composicional nova, significando dizer que a
construção formada tem um sentido resultante dos significados da soma de seus itens
lexicais; a tipicidade sintática e semântica, porque além da opacidade semântica, as
unidades como tais não entram na composição de outras unidades; e o idiomatismo, que é
uma construção própria de uma língua sem qualquer correspondência sintática noutra
língua.
Na fraseologização dá-se o fato da abstração de uma situação concreta por meio de
transposição / transferência, metafórica / metonímica. Por ser mais operacional, Vilela
(2002, P.190) sugere que utilizemos o seguinte conceito: fraseologismo: “a unidade
fraseológica em que todos os componentes perdem o seu significado individual para
construir um significado novo” — (transposto metaforicamente, ou metonimicamente).
Ajustando o foco para os estudos de Cacciari e Glucberg (ANO) sobre as
construções por eles identificadas como idiomáticas, aceitando-se aqui qualquer
nomenclatura já apresentada como fraseologismo, construções complexas, unidade
fraseológica, entre outras, encontramos que esses teóricos as dividem, para melhor
esclarecimento em: composicionais opacas nas quais o significado não depende dos
constituintes; composicionais t
ransparentes em que ocorre uma correspondência
metafórica entre os componentes da expressão e; por fim, em construções quase
metafóricas, que produzem relações semânticas de mesma natureza entre os constituintes
da expressão e os componentes do sentido da construção.
Do ponto de vista formal, essas construções apresentam formas variadas, desde as
que se constituem de um só elemento até aquelas, que são parte de uma oração.
Atentando para os estudos de Ferraz Alves (1998), tais grupos fraseológicos
receberão neste estudo, conforme já foi explicado, a denominação de Construções Lexicais
Complexas CLCs, um tipo de construção que se realiza por meio de verbo + nome ou de
verbo + formas variantes.
52
Considera-se como característica fundamental dessas CLCs a perda do poder de
predicar do verbo constituinte, o qual passa a portar informações gramaticais de modo, de
marca de sujeito, de aspecto verbal, entre outros.
As CLCs podem corresponder a um verbo simples, tendo em vista que a sua
função como um todo é a de núcleo do predicado e, como tal, lhe é possível construir um
enunciado. Nessas construções, o verbo obtém um vínculo com determinados argumentos
por ele exigido. Cria-se, aí, o processo de fraseologização, transformando o sintagma livre
em uma combinação fixa de palavras.
Nessa perspectiva, torna-se imprescindível, para efeito de análise, saber-se que
essas CLCs são construções no sentido completo da palavra e que também consideradas
no seu todo (determinação de sentido) ou particularmente (identificação das estruturas que
formam a perífrase) como um conjunto total, visão que as caracterizam.
Matoso Câmara (1968) considera esse tipo de construção como “perífrase”,
caracterizando-a como de base morfológica, ou de base lexical. Outra definição de
perífrase é a de Dubois e colaboradores (1973) que a considera uma figura de retórica,
ocorrendo quando substitui um termo próprio e único por uma seqüência de palavras, uma
locução que o define ou parafraseia.
Pode-se detectar nessas definições, em linhas gerais, a idéia de paráfrase, de
substituição, de significação, presente também na gramática tradicional, deixando claro
que o tema perífrase verbal trafega em duas linhas: na Lingüística e na Gramática, por isso
não necessita subordinar-se a um comportamento nem, apenas, lingüístico, nem
exclusivamente gramatical, visto que passa a representar o conjunto de relações contido
nos elementos de construção da linguagem.
Na análise das CLCs identificadas em Primeiras Estórias, objeto desta tese,
teremos a oportunidade de aplicar esse postulado, uma vez que as CLCs serão agrupadas,
obedecendo-se-lhes as especificidades.
53
3.3 Construções lexicais complexas e o processo de co-composicionalidade lingüística
Considerando-se as características das CLCs apresentadas no item anterior, dentre
as várias formas teóricas de se descrever esse fenômeno lingüístico, optamos por uma
abordagem heterogênea, formal e discursiva, que, embora opostas, não se excluem, se
complementam. Sabe-se que cada uma dessas abordagens, como a da semântica formal e a
da semântica discursiva, liga-se a uma diferente concepção de língua, porém a última
opção não desconsidera a primeira, porque temos a certeza de que o estudo de fenômenos
caracterizados como CLCs centraliza-se, antes de tudo, no significado que deverá ser
sondado por intermédio da semântica de base formal. E, como tais construções têm, em
sua maioria, seus significados dependentes do contexto, devem ser, necessariamente,
abordadas no discurso lingüístico. Essas afirmações não são suficientes para justificarem
uma análise nos termos citados, o que parece mais relevante deve recair sobre a relação
que venha a se estabelecer nas diversas formas em que se possam realizar as CLCs, já que
não estão de acordo com o contexto, não são composicionais e, ainda, pelos diversos
significados gerados por razões cognitivas e discursivas.
Sendo assim, para que as CLCs identificadas em Primeiras Estórias sejam
analisadas, faz-se necessário que sejam esclarecidos alguns pontos referentes à não-
composicionalidade dessa espécie de construção lingüística.
A composicionalidade é um princípio lingüístico atribuído ao filósofo Frege
(1978). Para que melhor se entenda uma análise composicional fregeana, Ilari (1996, p.
36) explica que em análise dessa natureza, deve-se levar em consideração: a) as
propriedades semânticas das expressões sintaticamente complexas, que são funções das
propriedades semânticas de seus constituintes, não só a distinção entre sentido e
referência, bastante intuitivas nos nomes próprios, estendendo-se também às sentenças
completas, bem como ao período gramatical; b) considerado o valor de verdade de uma
sentença este não será afetado quando nela se substituir um termo por outro de igual
referência. Para Frege, a referência de uma sentença é o valor de verdade e reconhece
como seu sentido o pensamento expresso por ela; c) uma condição para que a sentença
tenha um valor de verdade e que esta expresse um sentido completo; outra condição é a de
que as suas expressões tenham referência e não, apenas, aparente tê-las.
54
No caso das CLCs, o nosso propósito maior na análise é explicar que tipo de
composicionalidade ocorre com as CLCs que configuram o corpus deste estudo: a obra
Primeiras Estórias de Guimarães Rosa. Por isso, buscamos nos pressupostos de
Pustejowsky (1985) explicação não só para o processo de composicionalidade, mas,
sobretudo, para o processo de co-composicionalidade que, consideramos, juntamente com
Ferraz Alves (1998), ocorrer com as CLCs.
Destarte, escolhemos para subsídio da análise das CLCs a aplicação de uma teoria
lexical composicional (PUSTEJOWSKY, 1985) porque, mesmo não apresentando uma
descrição para o fenômeno lingüístico denominado de CLCs, demonstra que o sentido das
palavras são determinados pelo contexto, não havendo, pois, restrição para o sentido que
um item lexical possa assumir.
O que se pretende é reunir em um só modelo de descrição os mais relevantes
aspectos na descrição semântica de itens lexicais que contemplem os objetivos essenciais à
uma teoria léxico-semântica. Assim, essa teoria deve: 1) explicar a natureza polifórmica
das línguas; 2) caracterizar a semanticidade das sentenças de uma língua natural; 3) captar
o uso criativo das palavras em contextos novos; 4) desenvolver uma promissora
representação semântica co-composicional.
Para atender aos objetivos acima, Pustejowsky apresenta um modelo descritivo
que, mesmo abrangente, não é difícil de ser trabalhado, pelo contrário, no momento em
que é aplicado, torna-se relativamente simples pelo seu número infinito de regras, as quais
atendem ao caráter criativo e expressivo das estruturaçõess semântico-sintático-
pragmáticas. Este modelo vem ao encontro de boa parte dos aspectos que envolvem a
relação significado e composicionalidade lingüística.
É importante salientar que esse processo de determinar o sentido a partir do
contexto não é novidade, o que é novo centra-se na forma como essa teoria de sentido
lexical é representada: as relações semânticas dependem das características do item
lexical, cujo poder alcançado por ele pode afetar a questão da designação (ou atribuição de
sentidos de várias maneiras). Assim sendo, a composicionalidade deverá defender
primeiramente, mas não somente, as categorias lexicais apresentadas por determinadas
línguas. Assim, consideramos que as (CLC)s são produções constitutivamente estáveis e
55
instáveis, pois não há como negar os elementos que as compõem nem os fatores textuais
que lhes determinam o sentido.
Retomando Pustejowsky (1995, p.60), encontramos, dada a preocupação desse
semanticista com uma descrição ampla dos itens lexicais, dois tipos de
composicionalidade que este estudioso denomina de “fraca” — sistema que só apresenta
expressividade através de um número infinito de sentidos — e o da composicionalidade
forte — mais apropriado para as descrições das (CLC)s identificadas no corpus desta tese,
na obra Primeiras Estórias, pois dependem de mecanismos gerativos que podem produzir,
co-composicionalmente, sentidos contextuais atuais, isto é, um determinado número de
sentidos lexicais que podem constar das possíveis interpretações da linguagem.
56
CAPÍTULO IV
4. Caracterização do Autor e da Obra
Vou lhe revelar um segredo, creio já ter vivido uma vez. Nesta vida,
também fui brasileiro e me chamava Guimarães Rosa. Quando escrevo
repito o que já vivi antes. E para essas duas vidas um léxico só não é
suficiente. (GUIMARÃES, Rosa. In Literatura Comentada, 1988).
Pelo fato de o corpus dessa tese ter sido retirado da obra literária de um dos grandes
escritores brasileiros, achamos indispensável tecermos, neste capítulo, considerações que
tratam do próprio Guimarães Rosa, bem como do valioso legado por ele deixado.
Em seguida o item 4.1 será dedicado com exclusividade à obra escolhida para nosso
estudo: Primeiras Estórias.
4.1 Do Autor
Esta etapa constitui-se de fatos que, em seu conjunto, delineiam a vida e a obra do
escritor João Guimarães Rosa. Para tanto, recorremos a estudos realizados por críticos,
ensaístas, entre outras declarações de pessoas ligadas ao universo rosiano. Coube-nos, tão
somente, expressar, à nossa maneira, o relato desses acontecimentos.
Guimarães Rosa inicia-se na arte de escrever, no momento exato em que a ficção
brasileira percorria, simultaneamente, dois caminhos: o regionalista e o da reação
espiritualista. Os estudiosos da obra rosiana costumam dizer que o autor não segue este ou
aquele caminho, ao contrário, seus escritos parecem sintetizar as duas vertentes: Quando
da regionalista, ao reproduzir a linguagem característica dos Sertões; e da espiritualista,
quando costeia o sobrenatural em busca da transcendência, desenvolvendo a língua em
quase todas as suas virtualidades.
Sua trajetória de escritor tem lugar no final da década de 20. Seu primeiro contato
com o público brasileiro dá-se por meio de um artigo publicado numa revista da época, “O
Cruzeiro”. A esta, outras publicações se sucederam. Uma das mais expressivas foi
“Magma”, uma coletânea de poemas, com que concorreu a um concurso promovido pela
Academia Brasileira de Letras.
57
Em 1937, candidata-se ao prêmio Humberto de Campos com um volume, Contos
que, quase dez anos depois, transformar-se-ia em Sagarana, uma das suas consagradas
obras.
Paralelamente a sua carreira de escritor, Guimarães exerce duas outras profissões, a
de funcionário público, depois de submeter-se a concurso, veiculado pelo Itamarati, e a de
médico. Esta última, de certa forma, deu-lhe uma grande contribuição no que diz respeito
ao léxico que viria a utilizar, pois na sua peregrinação de médico e, dada a sua vocação
para escritor, acompanhava de perto os costumes, as crenças, as expressões exteriorizadas
por aquela gente simples, retratando-as, mais tarde, à sua maneira, em contos e romances.
Guimarães teve uma breve, mas frutífera vida literária com duração de, apenas, 20
anos. Entretanto, a sua obra representa um dos tesouros da literatura contemporânea e é
uma inesgotável fonte para pesquisas, tanto no âmbito literário, propriamente dito, quanto
no que concerne a estudos lingüísticos.
Vejamos o que Guimarães Rosa falou de si mesmo em uma entrevista a Gunter
Lorenz e em uma carta para Mary Lou Daniel:
“ Sou precisamente um escritor que cultiva a idéia antiga porém, sempre moderna de que o
som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos”. (Entrevista a Gunter
Lorenz)
“A música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer. Nesta Babel
espiritual de valores em que hoje vivemos, cada autor deve criar seu próprio léxico e não
lhe sobra nenhuma alternativa: do contrário, simplesmente não pode cumprir sua missão”
(Entrevista a Gunter Lorenz)
“ Os sertanejos de Minas Gerais, isolados entre as montanhas, no ismo de um Estado
central, conservador por excelência, mantiveram quase intacto um idioma clássico-arcaico,
que foi o meu, de infância, e que me seduz tomando-o por base, de certo modo,
instintivamente, tendo a desenvolver suas tendências evolutivas ainda embrionárias como
caminhos que uso.” ( Carta a Mary Lou Daniel)
“ Em geral, quase toda frase minha tem de ser meditada. Quase todas, mesmo as
aparentemente curtas, simplórias comezinhas, trazem em si algo de meditação e
aventura”.( Entrevista a Gunter Lorenz )
58
“ Nunca me contento com alguma coisa...estou buscando o impossível, o infinito. E, além
disso, quero escrever livros que depois de amanhã não deixem de ser legíveis. Por isso
acrescentei à síntese existente a minha própria síntese, isto é, inclui em minha linguagem
muitos outros elementos, para ter ainda mais possibilidade de expressão”.
( Entrevista a Guter Lorenz)
“ Tudo, da forma, só para abrir planos, campos e caminhos novos, a estrito serviço do
conteúdo” ( Carta à Mary Lou Daniel )
“ Hoje um dicionário é ao mesmo tempo a melhor antologia lírica. Cada palavra é,
segundo a sua essência, um poema. Pense só em sua gênese. No dia que completar cem
anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionário. Talvez um pouco
antes. Este fará parte da minha autobiografia”. ( Entrevista a Gunter Lorenz)
“ não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas
grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de
criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo
de soldados e polícia do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário
permanente, então. Já era míope e nem mesmo eu, ninguém sabia disso.” ( Entrevista a
Gunter Lorenz)
4.2 Da Obra
Primeiras Estórias de Guimarães Rosa é uma coletânea de vinte e um contos, que
ocupam de quatro páginas, o mais curto dos contos, a catorze, o mais longo. Por ordem
cronológica de publicação, 1962, aparece após Grande Sertão: Veredas, publicado em
1956.
O título deve-se, provavelmente, ao fato de ser a primeira vez que o autor utiliza o
gênero “Estórias”, ou seja, sua primeira publicação constituída de “Contos Custos”.
O conto de abertura “Às margens da Alegria” e o último “Cismos” têm como
protagonista um menino que, ao lado dos tios, evidencia seu encantamento por duas aves:
59
um peru e um tucano, respectivamente. O cenário parece reunir as características da
construção de Brasília, isto é o que se presume.
No decorrer da leitura desses contos, encontramos valentões locais, crianças em
estado de graça, como é o caso de “A menina de lá”, além de outros relatos que nos
surpreendem pela forma como o autor trata a língua, ou seja, trabalhando com quase todas
as virtualidades da Língua Portuguesa do Brasil.
Nesta coletânea, tomamos contato com, pelo menos, duas jóias do conto brasileiro:
Famigerado e a Terceira Margem do Rio.
De forma geral, um tema é constante em Primeiras Estórias: o da viagem,
trabalhado de forma diversificada.
Neste sentido, Benedito Nunes, conhecido autor de estudos clássicos sobre
Guimarães, citado por Galvão, acrescenta: “Há também a par de muitos périplos,
andanças, partidas e chegadas em Primeiras Estórias, a peregrinação sem horizontes,
antecipação da morte e voluntária provação” (GALVÃO, 2002,p.60).
As personagens que habitam nesses contos pertencem, de modo geral, a duas
categorias: a de loucos em maior quantidade e a de crianças, em menor escala.
A obra apresenta-nos um Guimarães tido como regionalista, cuja linguagem não
segue as técnicas de outros também regionalistas, ou seja, a de utilizar indistintamente a
fala regional, ou de substituí-la integralmente por uma linguagem literária convencional.
Ao contrário, adota outras estratégias, quando permite que formas, rodeios e processos da
língua popular infiltrem a linguagem das personagens. Por isso, a forma de utilizar e de
criar palavras o diferencia dos seus colegas escritores; a maneira de expressão das suas
personagens, remete-nos imediatamente à fala popular, por meio de uma linguagem
revitalizada, evitando, assim, o lugar comum.
Paulo Ronay (1976), renomado crítico literário, ao se referir a Primeiras Estórias,
comenta que, como em obras anteriores, Guimarães não se restringe, apenas, à utilização
do tesouro da língua já codificado, registrado, ao contrário, num trabalho exaustivo de
experimentação, torna essa língua mais flexível, mais expressiva.
Ronay entende que Primeiras Estórias é uma das principais coordenadas da
linguagem rosiana, no que tange à oralidade presente, e que, em suas páginas, “porejam
modismos e fórmulas que estamos habituados a ouvir da boca do povo” (RONAY, 1976)
Em Primeiras Estórias não há uma região específica, mas reconhecível, uma vez
que Guimarães, não só nessa obra, mas também nas anteriores criou seu próprio espaço
geográfico que não se pode demarcar com instrumentos convencionais. Tal espaço, no
60
entanto, ao abrigar seus personagens, torna-se tão amplo como o mundo real.A obra
citada, apesar de contar menos de duzentas páginas, a nosso ver, reúne as características
necessárias à análise que pretendemos realizar, tendo em vista a forma incomum como
Guimarães explora as potencialidades da língua, principalmente, no uso de expressões,
denominadas de CLCs, e empiria matéria-prima do nosso estudo.
4.3 Um compacto de Primeiras Estórias
1. Às margens da alegria: descoberta da infância, lírico, psicológico.
2. Famigerado: astúcia, violência, cômico, satírico.
3. Sorôco, sua mãe, sua filha: solidariedade, loucura; dramático, insólito.
4. A menina de lá: infância, descoberta; místico, fantástico.
5. Os Irmãos Dagobé: violência, regeneração, suspense, anticlímax.
6. A Terceira Margem do Rio: misticismo, loucura, culpa, insólito, metafísico.
7. Pirlimpsiquice: espontaneidade, infância, lírico.
8. Nenhum, Nenhuma: memória, descoberta, psicológico, insólito.
9. Fatalidade: violência, fatalismo, suspense, anticlímax.
10. Seqüência: amor, destino, lírico.
11. O Espelho: inquirição,metafísica, psicológico.
12. Nada e a Nossa Condição: loucura, despreendimento, lírico.
13. O Cavalo que bebia cerveja: violência, despreendimento, lírico.
14. Dom Moço Muito Branco: Loucura, perfeição, fantástico.
15. Luas de Mel : amor senil, lírico.
16. Partida do Audaz Navegante: infância, descoberta, metalingüístico, lírico.
17. A Bem Fazeja: loucura, cômico, satírico.
18. Darandina: Loucura, cômico, satírico.
19. Substância: Amor juvenil; psicológico e lírico.
20. Tarantão, Meu Patrão: loucura, épico, cômico
21. Os Cimos: infância, superação, lírico.
61
CAPÍTULO V
5. Descrição e Análise do Corpus
Este capítulo apresenta uma análise de 145 (cento e quarenta e cinco) Construções
Lexicais Complexas (CLCs) retiradas dos 21 (vinte e um) contos que formam a obra
Primeiras Estórias.
As CLC
s
são constituídas por verbo + nome (ou por nome + formas variantes)
cujas atualizações lingüísticas possibilitam uma análise não só dos sentidos depreendidos
em cada recorte discursivo selecionado, mas também e, principalmente, dos processos
metafóricos diversificados (ontológicos, orientacionais, estruturais) caracterizados, neste
estudo, como conceptualizações metafóricas.
As estruturações lingüístico-discursivas, alvo da análise, foram identificadas,
considerando-se a base empírica proposta por Johnson e Lakoff ([1980]2000, p.80) que
classificam tais construções com base nas seguintes formas de generalizações:
a) generalizações inferenciais: a lógica de raciocínio usada no domínio alvo é a
mesma usada no domínio fonte.
b) generalizações polissêmicas: as idéias e não as palavras isoladas são
consideradas, mas o sistema de palavras de um domínio que é usado no outro.
Vale salientar que as CLCs
a serem analisadas têm o seu sentido dependente do
contexto no qual essas construções se realizam, portanto, será o contexto que determinará
o domínio cognitivo a ser ativado. Dessa forma, esta análise não dependerá apenas, dos
aspectos cognitivos, mas também do sentido geral de cada conto que compõe o contexto
da obra, ou seja, dependerá da forma como Guimarães Rosa vê o sertão, vê seus
personagens, vê sua história. Dependerá, também, das estratégias pragmáticas realizadas
pelo leitor no momento do contato com o texto.
62
5.1 LEXIAS SELECIONADAS PARA ANÁLISE
Após realizarmos o levantamento de caráter universal das CLCs registradas em Primeiras
Estórias, selecionamos, em forma de amostragem as seguintes construções, para análise
do processo de construção metafórica.
PASSAR DIAS p.7
DAVA-LHE AS COSTAS p.8
TINHAM FOME p.9
NÃO PASSEAR COM O PENSAMENTO p.10
FEZ ASCAS p.11
TOMEI-ME NOS NERVOS p.13
PEGAREM O LUGAR p.13
DAR CARA AMENA p.13
CARREGARA A CELHA p.14
TER FEITO INTRIGA p.15
AZEDAR A MANDIOCA p.17
TOMAVAM MEDO p.19
NÃO TINHA CURA p.19
NÃO DAVA [...] CONTA p.20
DAR AS PROVIDÊNCIAS p.20
DAR-SE EM ESPETÁCULO p.20
TOMANDO O EXEMPLO p.20
TINHAM DE DAR FIM p.20
DAR TRABALHO p.20
FAZER SISO p.21
FAZIA VÁCUOS p.23
63
TOU FAZENDO SAUDADES p.23
PASSANDO DESCOMPOSTURA p.22
DEI CONSELHOS p.24
ESTAVA COM A LUA p.24
FAZER MILAGRES p.24
ESTÁ TRABALHANDO UM FEITIÇO p.24
NÃO PÕE NEM QUITA p.24
TOMASSE JUÍZO p.25
DAVAM CONTA p.25
TOMAR CULPA p.25
FAZER QUARTO p.27
DESPEJOU-LHE O TIRO p.28
FAZIAM AS DEVIDAS HONRAS p.28
FIZERA PASSAGEM p.29
VER-SE EM AMARELAS p.29
DAR INFORMAÇÃO p.29
DAR A FÉ DE VIR p.29
SE ESTEJA A GOSTO p.29
PÔR URGÊNCIA p.30
NÃO FEZ NENHUMA RECOMENDAÇÃO p.32
BOTOU A BENÇÃO p.33
TOMARAM ...CONSELHOS p.33
TOMAR TERRA p.33
NÃO FEZ SINAL p.33
64
JOGAVA PARA TRÁS MEU PENSAMENTO p.34
SEM FAZER CONTA Q p.34
SEM DAR RAZÃO p.35
FIZESSE RECORDAÇÃO p.36
FAZENDO AUSÊNCIA p.36
TOMANDO IDÉIA p.36
SEM FAZER VÉSPERA p.36
FEZ O SEU TANTO p.36
PÔR FIM A FESTAS p.38
FEZ-NOS A COMUNICAÇÃO p.38
SEM FAZER CONTA p.39
BOTAVA SENTIDO p.40
DAR ATENÇÃO p.41
SENTO O BRAÇO p.42
ARMAR BADERNA p.43
DAR MAIS ALMA DE CORAGEM p.43
FAZIAM-ME GESTOS p.44
TOMEI VERGONHA p.45
FECHANDO OS DENTES p.52
DEU-LHE AS COSTAS p.53
FAZIA-LHE AINDA SINAIS DE ADEUS p.53
DANDO ORDENS p.54
VIERA DAR PARTE p.56
DAR QUERELA p.57
65
PERDEU DE VISTAS p.57
TOMAR SENTIDO p.57
DERAM TIROS p.60
FAZIA PARTE p.61
DEU PATAS A FANTASIA p.61
APANHARA A BOCA DA ESTRADA p.61
FAZ ATALHOS p.61
DAVAM-LHE NOVAS p.61
PASSAVA VERGONHA p.62
TOMOU-A EM VISTA p.62
TOMOU-ME TEMPO p.65
FAZ FRINCHA p.66
TER MEDO p.67
FAZIAM JOGO p.67
LEVEI MESES p.68
FAZIA REAIS PROGRESSOS p.69
DOU-LHE RAZÃO p.71
FAZER AS ALMAS p.72
FAZIA FACE p.73
FAZER CRER p.79
FAZER NOJO p.83
NÃO ACHAVA GRAÇA p.83
DAVA RAIVA p.83
FEZ MAU ROSTO p.86
66
DAVA BOM AR p.85
DAR FÉ p.86
NÃO TIRAVA O SENTIDO p.87
JOGAR COM PAU DE DOIS BICOS p.87
NÃO FEZ MODOS DE CRER NEM INCRER p.92
FAZER PROBLEMAS p.93
DEU COM A MOÇA p.94
TOMEI PAUSA p.96
NÃO FIZ CELHAS, NÃO DEI PASMO p.96
TOMOU A BENÇÃO p.98
NÃO se DÁ DE MELINDRADO p.98
DEI DE OMBROS p.100
DAR A RETAGUARDA p.100
FECHAR OS FÔLEGOS p.101
FAZER ACINTES p.102
DAVAM O LOURO p.104
FAZ FLORES p.105
VIVIA EM ÁLGEBRA p.105
ESTOU COM A CABEÇA MUITO QUENTE p.105
DEU RISADA p.105
LEVOU UM TOMBO p.108
FEZ CARETA p.110
TINHA MEDO p.114
DAVAM-SE BEM p.115
FAZIA ERA SOMBRA p.126
67
FEZ GESTO p.127
SE LEVAR DO DIABO p.129
NÃO se FAZER NADA p.130
TOMAVA O AR p.130
DANDO-SE COMO SUCESSO p.131
TOMOU CAUTELA p.133
DAR SALTOS p.133
FAZER-LHE UM FAVOR p.131
DEU-SE LOGO UMA REMISSÃO p.134
TEVE DÓ p.139
FAZIA CORTESIA p.139
TINHA-LHE MEDO p.140
FAZER A AÇÃO p.141
DAR VOLTA p.141
DAVA O BRAVO: TINHA RAIVA p.141
FECHAR O ROSTO p.142
TOMOU FÔLEGO p.148
ME DAVA FORTES VIGORES p.151
DAR SORTE p.153
DAVA DE TAMBÉM MIÚDO COMPANHEIRO p.153
NÃO DAVA CONTA p.153
NÃO DAVA VONTADE p.154
DANDO MUITA PANCADA p.154
FAZER GOSTO
68
5.2 “Fazendo siso” das CLCs em Primeiras Estórias
Após as considerações teóricas acerca do processo de conceptualização metafórica,
apresentamos, considerando o contexto sócio-cultural da obra Primeiras Estórias, bem
como os significados gerais veiculados em cada um dos contos dessa obra, nossa proposta
de análise para as 145 (cento e quarenta e cinco) CLCs selecionadas nos 21 contos dessa
obra literária.
Nessa análise foram considerados os sentidos contextuais e co-textuais dessas
CLCs, a sua co-composicionalidade (a determinação de um sentido uno, sem que este
sentido nem sempre resulte da soma das partes que compõem as CLCs) bem como a
identificação das respectivas metáforas conceptuais.
RECORTE DISCURSIVO
CLC
SENTIDO CONCEPTUALIZAÇÃO
METAFÓRICA
Ia um menino com os
tios passar dias no lugar
onde se construía a
grande cidade. p.7
Passar dias Tempo decorrido Tempo é movimento
O peru imperial dava-
lhe as costas, para
receber sua admiração.
p.8
Dar as costas Exibir-se Exibir-se é
movimentar-se
Tinham fome, servido o
almoço, tomava-se
cerveja. O Tio, a Tia, os
engenheiros. p. 9
Ter fome Sentir-se faminto Fome é necessidade
Cerrava-se grave, num
cansaço e numa
renúncia à curiosidade
para não passear com o
pensamento. p.10
Não passear com
o pensamento
(Não) divagar (Não) pensar é (não)
movimentar a mente
A árvore de poucos
galhos no alto, fresca de
casca clara...e foi só o
chofre ruh... Sobre o
instante ela para lá se
caiu, toda, toda [...]. O
menino fez ascas. Olhou
Fazer ascas Enojar-se
Sentir nojo
Determinadas ações
são reflexos de
sensações ruins(nojo)
69
o céu atônito de azul.
p.11
[...] um cavaleiro rente,
frente à minha porta,
equipado, exato e,
embolados de banda,
três homens a cavalo.
Tudo num relance
insolitíssimo. Tomei-me
nos nervos. p.13
Tomar-se nos
nervos
Enervar-se
Zangar-se
Alterações de estados
psicológicos são
reflexos de causas
externas
Isso por isso, que o
cavaleiro solerte tinha o
ar de regê-los; a meio
gesto
desprezivo,intimara-
os de pegarem o lugar
onde agora se
encostavam. p.13
Pegar o lugar Ocupar um espaço
(dominar)
Pegar(ocupar) um
espaço é dominar(é
passar a ser dono)
Aquele homem, para
proceder daquela forma,
só podia ser um brabo
sertanejo[...] Senti que
não me ficava útil dar
cara amena, mostras de
temeroso. p.13
Dar cara amena Apresentar-se como
bonzinho
Parecer ser bom
Jeito de ser transparece
no rosto das pessoas
Ele falou: Eu vim
preguntar a vosmecê uma
opinião sua explicada...
Carregara a celha.
Causava outra
inquietude, sua farrusca a
catadura de canibal. p.14
Carregar a celha Ficar Sisudo O que se sente
( sentimentos)
transparece(?) no rosto
das pessoas
Detinha minha resposta
não queria que eu a dessa
de imediato. E já aí outro
susto vertiginoso
surpreendia-me: Alguém
podia ter feito intriga.
p.15
Ter feito intriga Intrigar
Causar discórdia
Opiniões ruins (
malvadas) são
construídas
A gente tem cada cisma
de dúvida boba, dessas
desconfianças... só para
azedar a mandioca. p.17
Azedar a
mandioca
Alterar uma situação;um
resultado
Agir de forma errada
altera
desfavoravelmente os
resultados
70
Ele era um homenzão
brutalhudo de corpo com
a cara grande, uma barba
fiosa, encardida em
amarelo [ ...] as crianças
tomavam medo dele.
p.19
Tomar medo Temer
Sentir medo
Alterações
psicológicas são
provocadas por causas
externas
Sendo que não ia sentir
falta...das
pobrezinhas...Isso não
tinha cura. p.19
Não ter cura Não melhorar
fisicamente
(Não) curar é (não)
alterar um processo
físico
Daí com os anos elas
pioraram, ele não dava
[...] conta teve de chamar
ajuda que foi preciso.
p.20
Não dar conta Não suportar cuidar de... (Não) cuidar é (não)
resolver um problema;
É não alterar um
processo
Tiveram que olhar em
socorro dele, determinar
de dar as providências
de mercê. Quem pagava
tudo era o governo
[...].p.20
Dar as
providências
Providenciar
Resolver problemas
Providenciar é ofertar
resultados
A moça, ai, tornou a
cantar virada para o
povo, o ao ar, a cara dela
era um repouso
estatelado, não queria
dar-se em espetáculo,
mas representava de
outroras grandezas
[...].p.20
Dar-se em
espetáculo
Exibir-se Exibição é doação ( é
entrega)
E principiando baixinho,
mas depois puxando pela
voz, ela pegou a contar
também, tomando o
exemplo a cantiga
mesma da outra, que
ninguém mas entendia.
p.20
Tomar o
exemplo
Imitar
Repetir uma ação
Exemplificar é repetir (
é voltar no tempo)
Exemplos são ações já
ocorridas
Aí que estava chegando
a horinha do trem
tinham de dar fim aos
aprestes, fazer as duas
entrarem para o carro...
Ter de dar fim Encerrar um processo
Agir
Solucionar
Agir(tomar uma
determinada atitude) é
concluir um processo (
é resolver um
problema)
71
p.20
O nenêgo ainda se
apareceu na plataforma,
para os gestos de que ia
em ordem. Elas não
haviam de dar trabalho.
p.20
(Não)Dar
trabalho
( Não)Perturbar
(Não)Preocupar
Não perturbar é não
repetir ações
Perturbação é repetição
Em tanto que se
exquisitou, parecia que ia
perder o de si, parar de
ser. Assim num excesso
de espírito fora de
sentido. E foi o que não
se podia prevenir, que ia
fazer siso naquilo? p.21
Fazer siso Acreditar
Considerar como
verdade
Verdades são
construídas
( mentalizadas)
Verdades são
creditadas na mente
Nininha,que é que você
está fazendo?-
perguntava-se, e ela
respondia alongada,
sorrida,
moduladamente[...] fazia
vácuos, seria mesmo seu
tanto tolinha? P.23
Fazer vácuos Fazer pausas
Interromper
Interrupções são
espaços vazios (
vácuos) ( são
intervalos no tempo)
Espaço é tempo
De por diante Nininha
passou a chamar o sabiá
de "Senhora Vizinha" e
tinha respostas mais
longas: "Eeu? Tou
fazendo saudades". p.23
Estar fazendo
saudades
Construir ausência,
vazios,sensações de
abandono
Saudade é espaço
vazio ( ausências são
construídas)
[...] a mãe urucaiana
nunca tirava o terço da
mão, mesmo quando
matando galinhas ou
passando
descompostura em
alguém. p.22
Passar
descompostura
Ralhar, agir humilhando
( desmerecendo) as
pessoas ( atingir)
Humilhar é enviar
mensagens ruins para
as pessoas
“Outra hora falava-se de
parentes já mortos, ela
riu: – vou visitar eles...”
ralhei, dei conselhos,
disse que ela estava com
a lua. Olhou-me zombaz
[...].p.24
Dar conselhos Aconselhar Aconselhar é enviar
informações para...
72
“Outra hora falava-se de
parentes já mortos, ela
riu: – vou visitar eles...”
ralhei, dei conselhos,
disse que ela estava com
a lua. Olhou-me zombaz
[...].p.24
Estar com a lua Aluar-se
Estar fora da realidade
O que está no alto é
inatingível ( não é real)
Fazer milagres Realizar um feito
extraordinário
Agir( para o bem/mal)
é alterar o estado das
coisas
“Mas aí reto aos pulinhos
o ser entrava na sala para
aos pés de Nininha [...]
bela rã brejeira [...] visita
jamais acontecera. E ela
riu. “Está trabalhando
um feitiço”. p.24
Estar
trabalhando um
feitiço
Enfeitiçar Agir(para o bem/mal)
é alterar o estado das
coisas
Só queria muito pouco, e
sempre as coisas levianas
e descuidosas, o que não
põe nem quita”. p.24
Não põe nem
quita
Não assume nenhuma
posição ( não resolve)
( não ) decidir é (não)
concluir uma ação
( é não resolver)
Pai e mãe cochilavam
contentes: que quando
ela crescesse e tomasse
juízo ia poder ajudar
muito [...].p.25
Tomar juízo Ajuizar-se
Ter maturidade
Comportamentos são
construídos de fora
para dentro( da mente)
A mãe e o Pai e
Tiantônia davam conta
de que era a mesma coisa
que se cada um deles
tivesse morrido por
metade. p.25
Dar conta Informar Informar é transferir
idéias
“O Pai em bruscas
lágrimas esbravejou: que
não! Ah, que se
consentisse nisso era
como tomar culpa, estar
ajudando ainda a
Nhinhinha a morrer”...
p.25
Tomar culpa Sentir-se culpado
Assumir a culpa
Assumir algo( culpa) é
colocar para dentro (
da mente)
“A casa não era pequena:
mas nela cabiam os que
vinha fazer quarto todos
Fazer quarto Velar
Proteger
Proteger é
manter/preservar o
espaço de algo/alguém
73
preferiam ficar perto do
defunto.” p.27
...o quieto do rapaz, que
arranjara uma garrucha
despejou-lhe o tiro no
centro dos peitos, por
cima do coração. Até aí,
viveu o Teles. P.28
Despejar o tiro Atirar
Alvejar com arma de
fogo
Despejar é transferir de
um espaço para outro
“Aquilo podia-se
entender? Eles os
Dagobés sobrevivos,
faziam as devidas
honras serenos e até sem
folia, mas com alguma
alegria”. p.28
Fazer as [...]
honras
Receber bem Comportamentos/ações
são construídas
Honrar alguém é
agradar
[...] o que tratavam no
propor era só a respeito
do rapaz Liojorge,
criminal de legítima
defesa, por não de quem
o Dagobé Damastor
fizera passagem daqui”.
p.29
Fazer passagem Morrer Morrer é viajar ( é
passar de um espaço
para outro)
Devia de estar em o se
agachar, ver-se em
amarelas; por lá,
borrufado de medo, sem
meios, sem valor, sem
armas. p.29
Ver-se em
amarelas
Ficar em situação difícil
Amarelar
Determinadas
situações ( vexatórias)
são coloridas (ex.:
Ficar vermelho de
raiva)
Ver ( em cores) é
sentir
“Com que, alguém, que
de lá vindo voltando, aos
donos do morto ia dar
informação, a substância
deste recado”. P.29
Dar informação Informar
Comunicar
Comunicar é transferir
uma informação
E que por coragem de
prova estava disposto a
se apresentar desarmado,
ali perante, dar a fé de
Dar fé de vir Garantir a vinda
Atestar a vinda
Testemunhar é
garantir/transferir
informações
74
vir [...].p.29
“A g ente espiava os
Dabogés, Aqueles três
pestanejares. Só “Dei
está [...] – o Dismundo
dizia. O Derval – “Se
esteja a gosto”. p.29
Estar a gosto Ficar a vontade
( realizado)
(satisfeito)
Satisfazer-se é realizar
desejos
Satisfação é realização
“Queriam conciliar as
pazes, ou pôr urgência
na maldade. A estúrdia
proposição”! [...].p.30
Pôr urgência Finalizar
Resolver com rapidez
Acabar com a maldade
Urgência é tempo
decorrido com rapidez
“Nem falou outras
palavras, não pegou
matula e trouxa não fez
nenhuma
recomendação.” p.32
Não fazer
recomendação
(Não) recomendar (Não) recomendar é
(não) transferir
informações sobre...
“[...] Ele só retornou a
olhar em mim e me
botou a benção com
gesto me mandando pra
trás”. p.33
Botar a benção Abençoar
Desejar proteção para...
Proteger é transferir
bons fluidos
Os parentes, vizinhos e
conhecidos nossos, se
reuniram e
tomaram...conselhos.
p.33
Tomar conselho Aconselharam-se Aconselhar-se é
receber informações
As vozes das notícias se
dando pelas certas
pessoas – passadores
moradores das beiras até
do afastado [...]
descrevendo que nosso
pai nunca surgia a tomar
terra em ponto nem
canto [...].p.33
Tomar terra Voltar
Sair da água
Sair é transferir-se de
um espaço para outro
“Me viu, não remou para
cá, não fez sinal”. p.33
Não fazer sinal Não sinalizar
Gesticular
Ações são movimentos
( Não) agir é (não) se
75
movimentar
“Tiro por mim, que no
que queria e no que não
queria, só com nosso pai
me achava: assunto que
jogava para trás meu
pensamento”. P.34
Jogar para trás
os pensamentos
Recordar Recordação é
movimentação para
trás. É levar os
pensamentos para trás
[...] só com o chapéu
velho na cabeça por
todas as semanas e meses
e os anos, sem fazer
conta do se-ir do viver”.
p.34
Sem fazer conta
Sem se preocupar
Sem se importar com
(não) dar importância é
( não) sentir
Sentir é experimentar
(sensação física moral)
Na navegação, no ermo,
sem dar razão de seu
feito. p.35
Sem dar razão Sem perceber
Sem tomar ciência
(Não) perceber é (não)
conhecer
“Mas agora esse homem
ninguém soubesse,
fizesse recordação, de
nada mais” p.36
Fazer recordação Recordar
Lembrar
Recordar é levar os
pensamentos para trás
“Sou homem de tristes
palavras. De que era que
eu tinha tanta culpa. Se
meu pai sempre fazendo
ausência...” p.36
Fazer ausência Desaparecer
Ausentar-se
Ausências são
construídas
“Sou o culpado do que
nem sei de dor em aberto
no meu foro. Soubesse-se
as coisas fossem outras.
E fui tomando idéia
p.36
Tomar idéia Entender
Compreender
Compreender é receber
informações
Sem fazer véspera. Sou
doido? Não, na nossa
casa a palavra doido não
se falava, nunca mais se
falou, os anos todos não
se condenava ninguém de
doido”. p.36
Sem fazer
véspera
Sem preâmbulos
Sem arrudeios
Agir é administrar o
tempo
“Pai o senhor está velho,
fez o seu tanto ...
agora o senhor vem não
carece mais... O Senhor
Fazer o seu tanto Trabalhar o suficiente
O que basta
Trabalhar/construir é
quantificar (mensurar)
76
vem [...].p.36
“Depois dos padres
falaram em pôr fim a
festas dessas, no
colégio”. p.38
Pôr fim a festas Finalizar
Acabar
Encerrar
Finalizar é resolver
uma situação
“O Padre Prefeito, solene
modo, fez-nos a
comunicação. Donde
com o Dr. Perdigão ali ao
lado, rezou-se o padre-
nosso e três ave-marias
às luzes do Espírito”.
p.38
Fazer
comunicação
Comunicar Comunicar é transferir
informações
“Zé Boné, com efeito,
regulava de papalvo.
Sem fazer conta de
companhia ou conversas,
varava recreios
reproduzindo fitas de
cinema”. p.39
Sem fazer conta Sem sentir necessidade (Não) sentir é (não)
experimentar
“Sem razão, se vendo,
essas cismas. Zé Boné
nada de nada contava.
Nem na estória do drama
botava sentido a não ser
a alguma facécia ou
peripécia, logo e mal
encartada em suas fitas
de cinema”. p.40
Botar sentido Não notar
Não dar importância
(Não) dar importância
é (não) notar
Ver é colocar (botar o
olho...)
“Íamos proceder muito
bem, até o dia da festa,
não fumar escondido,
não conversar nas filas,
esquivar o mínimo pito,
dar atenção nas aulas”.
p.41
Dar atenção Dar valor a
Dar importância a
Dar importância é
notar
Valorizar e ver
“Entreguemo-nos à suma
justiça do Onipotente...”
– Joaquincas – uma tana!
Sento o braço!...” p.42
Sentar o braço Esmurrar
Bater
Agressão física
(esmurrar) é fazer
movimento
[...] chegadas as roupas
nossas teatrais, novinhas
nos embrulhos, enquanto
se dizia, que Jaozão e o
Armar baderna Badernar
Bagunçar
Ações/bagunças são
construídas, armadas
77
mão-na-lata reunindo uns
que iam amassar a gente,
armar baderna. p.43
...do que ele tinha
furtado: uma garrafa de
genebra da adega dos
padres-falava que era
para dar mais alma de
coragem. p.43
Dar [...] alma de
coragem
Encorajar-se
Sentir coragem
Sentir coragem é tomar
atitude
“O minuto parou riam,
diante de mim, aos
milhares. De lá da fila
dos padres faziam-me
gestos de ordens e de
perguntatividades
[...]”.p.44
Fazer gestos Gesticular Gesticular é construir
movimentos
(movimentos são
informações)
“O pasmatório. Num
instante, quente, tomei
vergonha: acho que os
outros também. Isso não
podia, assim!
Contracenamos”. p. 45
Tomar vergonha Decidir Decidir é vivenciar
mudanças na forma de
agir ( de atitude)
Transvisto, sem se
sofrear, fechando os
dentes, o moço argüia
com a moça, ela firme e
doçura. Ela tinha dito”...
p.52
Fechar os dentes Ficar sério Ficar sério(mudar o
humor) é interromper
(fechar) o canal de
comunicação
“Ela só olhava com
enorme amor para o
moço. Então ele deu-lhe
as costas. E a moça se
ajoelhou curvada para o
berço da Nenha velhinha,
e chorava abraçando-a -
ela se abraçava com o
incomutável, o
imutável.” p.53
Dar as costas Sair
Evitar dialogar
Virar as costas é fechar
o canal de
comunicação
É não dialogar, não
conversar
“Voltaram os olhos, já a
distância do limiar, à
porta, só o homem alto,
sem se poder ver-lhe o
rosto
Fazer sinais de
adeus
Despedir-se Despedir-se é construir
movimentos ( é
sinalizar)
78
desconhecidamente,
fazia-lhe ainda sinais de
adeus”. p.53
“Reparei em meu pai que
tinha bigodes. Meu pai
estava dando ordens a
dois homens, que era
para levantarem o muro
novo do quintal”. p.54
Dar ordens Ordenar Ordenar é transmitir
informações
... o homenzinho...se
achasse rebaixado...viera
dar parte . p.56
Dar parte Denunciar Denunciar é transmitir
informações
“Nem podia dar
querela: a marca de
autoridade, no Pai-do-
Padre se estava em falta.
A mulher não tinha como
botar os pés fora da porta
[...]”p.57
Dar querela Fazer uma queixa(por
escrito)
Queixar-se é transmitir
informações ( por
escrito)
“Falou: “Viajamos para
cá e ele nos rastros
lastimando a gente. E
peta. Não me perdeu de
vistas. Adonde vou o
homem me atravessa ...
ele.” p.57
Perder de vistas
p.57
Continuar a observar
(Não) ver é (não)
encontrar
Tenho de tomar sentido
para não entestar com
ele.” p.57
Tomar sentido Prestar atenção
Valorizar
Valorizar é ver
“No riachinho do
Gonçalves, quase findo à
mingua d’água, se deteve
para beber. Deram tiros
no campo caçando as
codornas... p.60
Dar tiros Atirar Atirar é transferir de
um espaço para outro
Fazia parte de um
gado, transportado, de
boiadeiros, gado de
coração ativo. Viera do
Pãodolhão – sua
querência”. p.61
Fazer parte Pertencer a ... Pertencer é ocupar um
determinado espaço(
físico ou psicológico)
79
“Sem cavalo murça se
aplicava indo mostrar
forma ligeira a esquipar
deu patas a fantasia.
p.61
Dar patas a
fantasia
Fantasiar Fantasiar é sonhar
com a liberdade
“Apressava-se nela o
empolgo de saudade que
adoece o boi sertanejo
em terra estranha, cada
outubro, no prever os
trovões. Apanhara a
boca da estrada para
onde caminhos
fronteando o nascente.”
p.61
Apanhar a boca
da estrada
Iniciar uma caminhada Iniciar um percurso é
encontrar o caminho
“Já o rapaz se anorteava.
Só via o horizonte e sim.
Sabia o de uma vaquinha
fugida: que de alma
marca o rumo e faz
atalhos – querençosa.”
p.61
Fazer atalhos Atalhar
Diminuir distâncias,
percursos
Percursos são
construídos
“Entretanto, ele
perguntava. Davam-lhe
novas da arribada. Seu
cavalo murça se
explicava indo noutra
forma ligeiro!. P.61
Dar novas Noticiar Noticiar é transferir
informações
“Aonde um animal o
levava? O incomeçado, o
empastoso, o desnorte, o
necessário. Voltasse sem
ela passava vergonha.”
p.62
Passar vergonha Sentir vergonha Sentir é experienciar
uma determinada
situação
“Aí e lá tomou-a em
vista. O vulto, pé de
pessoa, que a cumeada
do morro escalava
[...]”.p. 62
Tomar em vista Ver Ver é apreender uma
imagem
Se quer seguir-me, narro-
lhe não uma aventura,
mas experiência a que
me induziram. ...tomou-
me tempo. p.65
Tomar tempo Gastar tempo Tempo pode ser
apreendido( algo
concreto)
Tempo é algo valioso
80
“Ah meu amigo, a
espécie humana peleja
para impor ao latejante
mundo um pouco de
rotina e lógica, mas algo
ou alguém de tudo faz
frincha para rir-se da
gente [...]”.p. 66
Fazer
frincha
Transgredir
Distorcer o dito
Modificar um processo
“Tirésias, contudo, já
havia predito ao belo
Narciso que ele viveria
apenas enquanto a si
mesmo não se visse ...
Sim. São para se ter
medo, os espelhos”. p.67
Ter medo Temer
Sentir (ter medo) é
viver uma experiência
Sentir é possuir
“Explico-lhe: dois
espelhos – um de parede
o outro de porta lateral,
aberta em ângulo
propício – faziam jogo.
E o que enxerguei, por
instante foi uma figura,
perfil humano,
desagradável ... repulsivo
senão hediondo’. p.67
Fazer jogo Refletir uma imagem de
acordo com a disposição
dos espelhos
Jogar é construir
imagens
“O caçador do meu
próprio aspecto formal,
movido por curiosidade,
quando não impessoal,
desinteressada; para não
dizer o urgir científico.
Levei meses.” P. 68
Levar meses Passar um tempo
determinado
Tempo decorrido
registro qualificado
“Saiba que eu perseguia
uma realidade
experimental, não uma
hipótese imaginária. E
digo-lhe que nessa
operação fazia reais
progressos.” p. 69
Fazer reais
progresso
Progredir
Avançar
Progredir é construir
Dou-lhe razão. Há Dar razão Concordar Concordar é
81
porém que sou mau
contador precipitando-me
às ilações antes dos fatos
e pois: pondo os bois
atrás do carro. P.71
Aceitar uma idéia devolver/transferir
uma idéia
“Apalpo o evidente?
Trebusco. Será este
nosso desengonço e
mundo o plano interseção
de planos onde se
completam de fazer as
almas?” p.72
Fazer as
almas
Construir uma idéia Idéias são construídas
A que assombrada,
alicerçada fundo [...] e
com quantos sem uso
corredores e quantos
cheirando a fruta, flor,
couro, madeiras [...]
fazia face para a morte.
p.73
Fazer
face
Assumir uma imagem Imagens são
construídas
...dinheiro que mandava
pontual às filhas e genros
sendo-lhes levado recado
para fazer crer. p.79
Fazer
crer
Acreditar Verdades são
construídas
“Era homem estrangeiro,
de minha mãe ouvi como
no ano da espanhola ele
chegou [...] nesse tempo
não sendo ainda gordo de
fazer nojo”. p.83
Fazer nojo
Enojar Sentir é experienciar
(sensações ruins são
construídas)
“Não gosto de perguntar,
não achava graça às
vezes eu não trazia, às
vezes trazia e ele me
indenizava o dinheiro me
gratificando.” P.83
( Não)Achar
graça
Não dar importância (Não) dar importância
é não sentir
“Tudo nele me dava
raiva. Não aprendia a
referir meu nome direito.
Desfeita ou ofensa não
sou de perdoar a nenhum
de nenhuma”. P.83
Dar raiva Enraivecer Sentimentos são
experiências
provocadas por fatores
externos
“Seo Geovânio
permanecia muito
(não)Fazer (não)Fazer cara sisuda Imagens são
82
cansado, sacudia devagar
a cabeça [...] mas não fez
mau rosto.” p.86
mau rosto construídas
“Lá dentro até fedia a
coisa sempre em tampa,
não dava bom ar. A sala
grande vazia de qualquer
amobiliado, só para
espaços”. p.85
(não) Dar
bom ar
(não) cheirar bem Ares ruins ( )são
invasões de espaço
“Me mandou buscar o
cavalo o alazão canela-
clara, bela face o qual era
de se dar fé? Já avançou
avispado de atreitas
orelhas, arredondando as
ventas [...]”p.86
Dar
Acreditar Acreditar é transferir
uma informação
considerada verdadeira
...mas eu não tirava o
sentido disto e os outros
quartos da casa, o atrás
de portas? p.87
(não) Tirar o
sentido
(não) desviar a atenção Ver é valorizar ( dar
atenção a)
Eu não queria saber de
nada daqueles...nem
jogar com pau de dois
bicos. p.87
Jogar com
pau e dois
bicos
Jogar de um lado e de
outro
Não se decidir
Não decidir é não agir
Mas levaram o moço à
missa...não fez modos
de crer nem increr. p.92
Não fazer
modos de
crear nem
increr
Não demonstrar ter
tomado uma decisão
Atitudes são
construídas
(Não) decidir é (não)
agir
“No que porém acabada
de se passar aquela cena
surgia no adro Duarte
Dias, mais uns
companheiros e serviços,
para opor a surpresa de
uma exigência e fazer
problemas.” p.93
Fazer
problemas
Complicar
Arranjar confusão
Problemas, confusão
são construídos
O que foi quando ele lá
apareceu acompanhado
do preto José Kakende, e
deu com a moça muito
Dar com a moça Encontrar Encontrar é
compartilhar espaços
83
bonita, mas que não se
divertia [...]p. 94
“Seo Fifino, meu filho
banda de fora da porta
noticiou: que tendo
chegado certo sujeito, um
positivo com carta.
Tomei pausa. Prestezas
e pressas não me
agradavam”. p.96
Tomar pausa Pausar
Interromper
Parar(não agir)
Parar, interromper uma
ação é
Decidir (é tomar uma
decisão)
“E, aí meu capataz, José
satisfeito soprado
informava o nome dele o
qual – “o Baldualdo”.
Sou mosquitinho em
queixo de onça: não fiz
celhas, não dei pasmo.”
p.96
(não) fazer
celhas
(não) dar pasmo
(não) se preocupar
(não) dar importância
(não) sentir é
experienciar
(não) agir
“Esse outro se chamava o
Bibião era um brabo de
cano e coronha: me
tomou a benção. Tudo
em tudo em ordem”. p.98
Tomar a benção Pedir a benção Abençoar é transferir
proteção para...
“Povo de lá é de brasas.
E por um à Lagoa-dos-
Cavalos, por outros três –
para meu compadre
Serejeiro não se dá de
melindrado”. P.98
(não) se dar de
melindrado
(não) aparentar ser
afetado
(não) agir é (não)
parecer ser
“Bom. Dei de ombros.
Fecho um campo, e nele
eu sopro: destorcidas
claridades. Terminada a
casação”... . p.100
Dar de ombros Desconsiderar
Não se importar
Movimentos físicos
revelam sentimentos
“Se o major atacasse com
jagunços, seo Seotáziano
vinha descer em cena – a
frente de cem dos seus
homens: dar a
retaguarda de glórias
assoviei sentado.” p.100
Dar a retaguarda Defender Agir é movimentar-se
em um determinado
espaço
84
“A gente risonhas de
guerra, a qualquer conta.
Aqui, o inimigo viesse –
esses Dioclécios dianhos.
A hora de fechar os
fôlegos. Aqui a gente
esperava com luz para
mil mariposas...” p.101
Fechar os
fôlegos
Deixar de respirar
Morrer
Fechar, obstacular é
interromper um
processo
“Para não fazer acintes
do que muito me refreio.
Pois o homem não vinha
sozinho, embaixador, só
para a mim me dizer bem
– hem?” p.102
(não)Fazer
acintes
(não)Acintar
(não)Fazer pouco
(não)Desdenhar
(não) agir é (não)
construir uma imagem
Mamãe, a mais bela, seus
cabelos davam o louro
silencioso... p.104
Dar louro Assumir, passar a ter
uma cor
Agentes externos
provocam
determinadas reações
Agir é mudar
Agir é alterar
“...E o cajueiro ainda faz
flores...” – acrescentou,
observava da árvore não
se interromper mesmo
assim , com essas
aguaceirices de durante
dias... p.105
Fazer flores Florescer na adversidade Flores são
construídas/resultam
de um processo
“Brejeirinha pulou por
pirueta, – Eu sei por que
é que o ovo se parece
com um aspecto; ela
vivia em álgebra mas
não ia contar a ninguém.”
p.105
Vivia em álgebra Ter conhecimento Conhecimento é
experiência (vivência)
Tem porém inquietações.
– “Eu hoje estou com a
cabeça muito quente
isto por não querer
estudar! p.105
Estar com a
cabeça muito
quente
Ficar nervoso,
preocupado
Preocupações
esquentam a cabeça,
fervem
“Ou: – “Eu queria saber
o amor ... Pele foi quem
Dar risada Rir
Gargalhar
Rir e transferir alegria
85
deu risada. Ciganinha e
Zito erguem olhos, só
quase assustados”. p.105
Ali com efeito andavam
bois: “o boi beiçudo; aí
Brejeirinha levou um
tombo. Ela disse que
Mamãe tinha dito que
eles precisavam de ter:
coragem com juízo”.
p.108
Levar um tombo Cair
Tombar
Queda é movimento
para baixo
“Brejeirinha fez careta.
Mas nisso o ramalhete de
Pele se desmanchou,
caindo no chão uma
flores.” p.110
Fazer careta Fazer um gesto de
discordância
Movimentos físicos
revelam opiniões
Tinha medo também
disso;vocês nunca
desconfiaram. p.114
Ter medo Temer Sentir (ter medo) é
viver experiências
“Era o punir de Deus, o
avultado demo – o “cão”,
no entanto com a mulher
davam-se bem [...]
como? O amor e a vaga
indecisa palavra.” p.115
Dar-se bem Entender-se Conviver bem é
transferir
atitudes/ações
...além de dar em doido
sem fazer por quando. A
única coisa que fazia era
sombra. p.126
Fazer sombra Atrapalhar
Perseguir
Agir contra
“Nem esquecera-lhe o
elemento mímico: fez
gesto de que empunhasse
um guarda chuva. p.127
Fazer gesto Gesticular Gesticular é construir
movimentos
Movimentos são
informações
Seja se com similagens e
fictâncias! Seja se capaz
de elidir-se, largar-se e se
levar do diabo”. p.129
Levar-se do
diabo
Sumir
Desaparecer
Desaparecimento é
transferência de espaço
Foi o em que os chefes
terrestres concordaram:
apertava a urgência de
não se fazer nada. p.130
(não) fazer nada (não) providenciar
(não) agir
(não) agir é (não)
alterar um processo
(não) providenciar e
(não) construir ações
86
Tomava o ar, um ar de
antecâmara, tudo ali
aumentava de grave. A
família já fora avisada?
Não, e melhor nada
família vexa e vacila”.
p.130
Tomar o ar Adquirir um ar funebre
Perceber um
determinado clima
Perceber o que ocorre
em um ambiente é
sentir
Sentir é fazer
movimento para dentro
é inspirar
Não. Restava o que se
inesperava, dando-se
como sucesso de ipso-
facto. p.131
Dar-se como
sucesso
Concluir com êxito Concluir um processo
uma ação é ter sucesso
“O homem porém, atento
além de persistir em seus
altos intentos, guardava-
se também em trabalhos
muito ativo. Cantava
decerto com isso, de
maquinar-se-lhe outra
esparrela. Tomou
cautela’. p.133
Tomar cautela Acautelar-se
Prevenir
Prevenir é pensar com
antecedência
Prevenção é avanço no
tempo
Agir(antes) é pensar
Disparatou mais: –
“minha natureza não
pode dar saltos? ... e, a
pompa ele primava!”.
p.133
Dar saltos Saltar
Mudar
Mudar é transferir
Transferir é alterar
processo, situações,
estados físicos e
psicológicos
Mudança é movimento
“Amigo vamos fazer-lhe
um favor queríamos
cordialmente ajudá-lo ...”
produzi pelo conduto; e
houve. p.131
Fazer um favor Favorecer
Ajudar
Ajudar é agir
Agir é alterar um
processo
“Canoro, grosso, não
gracejo: “Rapazes! Sei
que gostam de me ouvir.
Prometo tudo ...” – e
verdade do que
aplaudiram-no, em
sarabando, de seus
antecedentes se fiavam.
Deu-se logo uma
remissão.” p.134
Dar-se logo uma
remissão
Interromper
Parar
(Não) agir/parar
(Não) ocorrer é
(não)alterar um
processo
87
“O dia inteiro, o ar
parava levantado, aos
tremeluzes, a gente se
perdendo por um
negrume do horizonte
para temperar a
intensidade brilhante,
branca; e tudo
cerradamente igual. Teve
dela pobrinha flor.”
p.139
Ter dó Apiedar-se
Sentir pena
Sentir é possuir é ter é
guardar dentro de si
Sentir é experienciar
ver é sentir
“Viu que, sem querer, lhe
fazia cortesia. Falou-lhe,
o assunto fora de
propósito: que o povilho
ali na samburá era muito
caprichado [...]p.139
Fazer cortesia Agradar
Conquistar
Atitudes ações são
construídas
Tinha-lhe medo, à
doença, incerta sob a
formosura. Ah era bom,
uma providência, esse
pejo de escrúpulo”. p.140
Ter medo Temer Sentir é possuir é estar
dentro
“[...] nenhuma outra
noiva, na distância.
Devia então pegar a
prova ou o desengano,
fazer a ação de a ter na
sisuda coragem, botar
beiras em seus sonhos”.
p.141
Fazer ação
Agir
Encorajar-se
Comportamentos,
atitudes são
construídos
Agir é construir
“Não receava a
recusação. Consigo
forcejava. Queria e não
podia dar volta a uma
coisa. Os dias iam.
Passavam as coisas
pretextadas”. p.141
Dar volta Retomar
Voltear
Retomar(dar volta) é
movimentar-se no
tempo
Tempo é movimento
“Tinha por onde
merecer? Olhava seus
próprios dedos, seus
pulsos, passava muito as
mãos no rosto. A diverso
tempo, dava o bravo:
Dar o bravo
Ter raiva
Enraivecer
Ficar enraivecido
Agir é mudar é alterar
um estado psicológico
Sentir é possuir é
desencadear um
88
tinha raiva a ela”. p. 141 processo
“Sinésio olhou mais sem
fechar o rosto aplicou o
coração, abriu bem os
olhos. Sorriu para trás”.
p.142
( não) fechar o
rosto
Sorrir, ser agradável e
simpático
Expor(sentimentos) é
abrir (o rosto)
(não) fechar é
demonstrar deixar
transparecer
“No clareado, se tomou
fôlego. Porém durante
esse que-o-quê, o padre à
porta da igreja,
sobrevestido se surgia”.
p.148
Tomar fôlego Aliviar Aliviar é mudar o
humor
“Era de suspender a
cabeça me dava fortes
vigores de chorar.” p.151
Dar fortes
vigores
Vontade de chorar
Sentir tristeza
Sentir é desencadear
uma reação
psicológica/física
Sentir é levar para fora
é transferir.
“Por isso tinha querido
que trouxesse os
brinquedos a Tia
entregando-lhe ainda em
mão o preferido, que era
o de dar sorte, um
bonequinho [...]”p.153
Dar sorte Proteger
Desejar o bem
Proteção/sorte é
transferência é entrega,
doação
Proteger é doar
“Devia jogar fora? Não o
macaquinho de cabeça
parda se dava de
também miúdo
companheiro.” P.153
Dar-se de
também miúdo
companheiro
Fazer companhia Acompanhar é estar
perto, é compartilhar
espaços
A gente devia poder
parar de estar tão
acordado, quando
precisasse, e adormecer
seguro, salvo. Mas não
dava conta. p.153
(não) dar conta (ao) conseguir cuidar Não cuidar é não
resolver um problema
Não agir é não
transferir
“Também não dava
vontade sair de jipe com
o Tio, se para a poeira,
gente, e terra.” P.154
(não) dar vontade (não) desejar Desejar é querer agir
89
“Deitado o menino se
sentia sustoso, o coração
dando muita pancada.
A mãe, isto é ... E não
podia logo dormir, e pela
dita causa”. p.154
Dar muita
pancada
Bater forte
Pulsar
Sentir é fazer
movimentos
Sentir é reagir
“No ninguém falar. Até o
Tio. O tio,também estava
de fazer gosto por
aquilo: limpava os
óculos”.p.155
Fazer gosto Estar bem
Estar satisfeito
Ver é sentir
Imagens são
construídas
“Se queria atinar com a
mãe doente, mal, não
conseguia ligar o
pensamento, tudo na
cabeça da gente dava um
borrão. A mãe da gente
era a mãe da gente, só;
mais nada”.p.156
Dar um borrão
( na cabeça da
gente)
Misturar as idéias
Emaranhar
Pensamentos, idéias
são registros
( confusos,
emaranhados)
“De novo, de manhã, se
endereçando só àquela
árvore de copa alta, de
espécie chamada mesma
tucaneira. E dando-se o
raiar do dia, seu fôlego
dourado”. p.157
Dar-se o raiar do
dia
Amanhecer o dia Amanhecer(raiar o dia)
é movimento que vem
de cima( do sol)
5.3.Discussão dos resultados obtidos na análise
A este capítulo reserva-se à discussão sobre os verbos que constituem as CLCs
selecionadas, aleatoriamente, nos 21 contos de Primeiras Estórias. Primeiramente,
trataremos dos verbos Dar, Ter, Fazer e Tomar, visto que houve várias ocorrências com
estes verbos, ressaltando os muitos sentidos que apresentaram, ora revelando a criatividade
do autor, ora traduzindo os sentidos metafóricos já cristalizados. Junto a estes verbos mais
presentes na análise, incluímos outros que aparecem uma só vez mas igualmente
importantes para esses resultados.
90
5.3.1 Lexias constituídas com o verbo Dar
No corpus aparecem 42 Construções Lexicais Complexas com o verbo “dar”, das quais
escolhemos algumas para comentar.
QUADRO 1
Dar providências Providenciar
Dar conselhos Aconselhar
Dar informação Informar
Dar alma de coragem Encorajar-se
Dar ordens Ordenar
Dar tiros Atirar
Dar raiva Enraivecer-se
Dar risada Rir
Dar salto Saltar
Dar volta Voltar
Neste quadro 1, pode-se observar que, das CLCs selecionadas em Primeiras
Estórias, todas puderam ser reduzidas a um só item lexical, além do fato de o verbo “dar”
ter perdido o seu valor transitivo, passando a sofrer, assim um processo de
desfuncionalização, perda de funções, que deixam de ser exercidas pelo verbo constituinte
de CLC e passa a ser desempenhadas pelo nome, também constituinte de CLC.
QUADRO 2
A. (não) Dar conta p.10
B. Dar conta p.15
Neste quadro, a CLC “dar conta” em virtude de estar atualizada em diferentes
contextos, apresenta sentidos também diferentes:
No exemplo A, o verbo Dar atualiza o sentido de “não agüentar”, “não suportar”.
No exemplo B, a mesma formação apresenta-se com o sentido de “informar”.
Portanto, faz-se necessário ressaltar que, além da perda da transitividade, no verbo
dar, o sentido co-composicional dessas duas estruturas remete para uma total dependência
de contexto.
91
QUADRO 3
C. Dar as costas p. 2
D. Dar as costas p.39
Nos dois exemplos C e D, as construções lexicais apresentam os respectivos
significados: exibir-se e evitar diálogo. A depreensão do primeiro sentido só se torna
possível para um leitor atento, que considere toda a informação veiculada em boa parte do
texto. Ver o recorte discursivo referente a cada lexia é imprescindível para um melhor
entendimento.
QUADRO 4
E. Dar patas à fantasia p.45
É notável o processo de analogia com a expressão dicionarizada “Dar asas à
fantasia”, havendo a substituição de um lexema “asas por patas” para adequar-se ao
animal presente no contexto, um cavalo murça. O sentido de ambas as lexias é o mesmo:
fantasiar. O que se nota de mais importante na lexia analisada tem a ver com a sua
construção que nos remete a Lakoff (1987), visto que este nomeia este tipo de construção
metafórica como sendo formadora de imagens mentais. Em outras palavras, quando se
entra em contato com esse tipo de construção se estabelece no leitor uma relação cognitiva
de fora para dentro. Aqui ocorre, portanto, uma conceptualização metonímica,
simbolizando a parte pelo todo.
QUADRO 5
F. (Não) Dar bom ar p.66
G. Dar fortes vigores p. 122
Nestas duas construções está bem presente o estilo de Guimarães ao substituir
expressões desgastadas por outras que denotem maior expressividade à língua portuguesa.
Por exemplo, em lugar de “não cheirar bem”, ou de “cheirar mal” é atualizada a CLC
“não dar bom ar”; e, em vez de “muita vontade” aparece no texto “dar fortes vigores”.
92
QUADRO 6
H. Dar louro p.81
I. Dar-se de companheiro p. 123
Retomando o contexto em que se insere o exemplo H encontramos nas últimas
linhas (...) “seus cabelos davam o louro silencioso” que significa aparentar um louro
discreto. Revendo-se o início do conto, percebesse que o sol não está presente, trata-se de
um dia chuvoso, sendo assim, não estão presentes os raios solares para realçar o louro dos
cabelos da personagem, por isso o “louro silencioso”, discreto.
Na construção I o verbo dar está substituindo o significado de outros verbos, por
exemplo fazer, que resultaria em uma nova lexia, “fazer companhia” “servir de
companhia”.
5.3.2 Lexias constituídas pelo verbo Ter
Neste estudo o verbo Ter entrou como constituinte de poucas CLCs
QUADRO 7
Ter fome p.3 Estar faminto
Ter feito intriga p.7 Intrigar
(não) ter cura p.10 (não) sarar
Ter de dar fim p.10 Encerrar
Ter medo p.50 Temer
Ter dó p.111 Apiedar-se
Ter raiva p.114 Enraivece-se
Destas (CLC)s comentaremos as seguintes: “Ter feito intriga” em que a carga
semântica do nome se sobrepõe ao verbo; “Ter de dar fim”: nesta (CLC) aparece o verbo
ter acompanhado da preposição “de”, indicando obrigatoriedade, haja vista o sentido
absorvido por este verbo. Na metaforização desta (CLC) vamos encontrar que há
necessidade de agir, de tomar uma atitude acionada pela expressão ter de dar.
5.3.3 Lexias constituídas pelo verbo Fazer
Da totalidade das (CLC)s compostas pelo verbo Fazer+ Nome ou formas variáveis,
escolhemos para comentários.
93
QUADRO 9
Fazer ascas p. 04 Enojar-se
Fazer siso p.11 Dar importância, acreditar
Fazer vácuos p.12 Pausar
( Estar)Fazendo saudades p. 13 Construir ausências
Fazer quarto p. 15 Velar
Fazer passagem p. 17 Morrer
Fazer seu tanto p.24 O suficiente
Fazer recordação p.23 Lembrar
(sem) fazer véspera p.24 Sem preâmbulos
Fazer frincha p. 49 Transgredir
Fazer flores p. 82 Florescer
“Fazer ascas” substitui uma expressão muito usada na língua popular “ ter asco”. Mais
uma vez aparece uma criação insólita do autor. Entende-se, ainda, que “ o menino ficou
abalado, perturbado, sofreu forte emoção com a derrubada da árvore” ( Léxico de
Guimarães, MARTINS, Nilce Sant´ana p.47). Neste Exemplo mais uma vez o sentido da
CLC aponta para uma conceptualização metafórica, informando-nos que o estado
psicológico do menino é responsável por determinadas sensações.
“Fazer siso” é dar crédito, acreditar, trata-se de uma expressão bem popular, de largo uso
informal.
“Fazer vácuos”, interromper, deixar espaços vazios, escolhida aqui, pela sua singularidade.
Em “(estar) fazendo saudades” o verbo estar comporta-se gramaticalmente como auxiliar
de fazer, portanto, sem significado, por isso o verbo fazer + saudades detém a
conceptualização metafórica: construção. Ausências são construídas.
“Fazer quarto” essa CLC é uma expressão de uso corrente principalmente, nas
comunidades interioranas
1
. Partindo do sentido atualizado pelo contexto, depreende-se que
o sentido dessa CLC “velar”, “proteger” está diretamente relacionado com a noção de
espaço (no caso, “o quarto”). Tal relação nos leva a concluir que proteger é manter, é
preservar o espaço ocupado por alguém, neste caso, o morto.
1
Comunidades interioranas neste contexto significa pessoas que moram em cidades do interior, que
conservam os costumes dos seus antecedentes.
94
A CLC “Fazer passagem” apresenta um sentido que não pode ser depreendido dos seus
constituintes, a não ser considerando o sentido metafórico e eufêmico do nome
“passagem”. Juntos, os constituintes vão denotar um só sentido: morrer. A nosso ver tal
lexia pode ser vista, por um lado, como uma metáfora aos moldes de Aristóteles, pois o
autor, ao usá-la, minimiza a carga semântica do lexema morrer. Por outro lado, em termos
lakoffianos, a metáfora conceptual da transferência, da mudança de um lugar para outro
também se instaura, com o mesmo objetivo, atenuar o sentido da palavra “morte”.
“Fazer seu tanto” mais uma vez o verbo fazer caracteriza a CLC como metafórica, mas é o
nome “tanto” que, tomando uma nova acepção, dá origem aos seguintes sentidos: fazer o
suficiente, o bastante. Neste caso, a metáfora conceptual, ligação à quantificação da ação
de trabalhar, ajuda na compreensão do sentido, uma vez que quantifica, mensura o
trabalho realizado. O lexema “tanto”, nessa expressão, passa por um processo de
substantivação, mas continua mantendo o sentido de quantidade.
A CLC “Fazer recordação” transforma-se em um lexema verbal: recordar. Em termos
conceptuais, depreendemos que “recordar” é levar o pensamento para trás e, dessa forma,
há uma atualização do passado, com a volta, a lembrança de emoções/situações já
vivenciadas. Em síntese, “fazer recordação” é “reconstruir o passado” e “reconstruir o
passado” é lembrar, recordar.
“(sem) Fazer véspera” o sentido dessa construção está ligado como as outras ao contexto,
entretanto é a metáfora implícita nessa expressão lingüística junto ao contexto que nos
esclarece o significado sem querer perder tempo. A personagem já faz o interlocutor ciente
deste fato, a partir disso chegamos a metáfora agir é administrar bem
o tempo. Neste caso
o lexema bem
entra no significado por exigência do falante.
“Fazer frincha” a (CLC) em estudo por ser de base metafórica perde o seu sentido e passa
a ser entendida como transgredir, neste caso tanto no contexto quanto na conceptualização,
transgredir é infringir um processo. Em outras palavras a infração diz respeito ao jeito que
a espécie humana está sempre distorcendo o que se quer dizer.
“Fazer flores”: florescer neste caso é continuar um processo de construção apesar da
adversidade.
95
5.3.4 Lexias constituídas pelo verbo Tomar
QUADRO 10
Tomar-se nos nervos p.05 Enervar-se
Tomar medo p.09 Temer
Tomar exemplo p.10 Imitar, repetir uma ação
Tomar juízo p.15 Amadurecer
Tomar tempo p.48 Gastar tempo
Tomar idéia p. 24 Entender
Tomar terra p. 21 Sair da água
Tomar o ar p. 103 Perceber determinado clima
Tomar cautela p. 106 Acautelar-se
“Tomar-se nos nervos”, enervar-se mudar o humor motivado por uma situação de ordem
externa. Nesta feita, o nome, o outro constituinte da (CLC), é que permanece com dando
origem semântica ao um único lexema, fenômeno bastante comum nestas (CLC)s.
“Tomar tempo”. Esta (CLC) nos remete a um exemplo citado por Lakoff e Johnson,
tendo-se a metáfora, que subjaz a referida expressão “Gastar tempo”. Este último é
considerado como um bem valioso, dessa forma chega-se a metáfora conhecida Tempo é
dinheiro, ativada em nossa mente pelo lexema gastar.
“Tomar Medo” e “Tomar Juízo”. O verbo nas duas lexias têm a mesma significação do
verbo Ter, em Ter medo e Ter juízo. Em Tomar medo a metáfora conceptual implícita é:
Ter medo são alterações provocadas por causas externas; já em Tomar juízo, significa
mudar o comportamento considerado uma construção de fora para dentro da mente.
5.3.5. Lexias constituídas por verbos diversos
QUADRO 11
Passar dias p. 01 Tempo decorrido
Pegar um lugar p. 05 Ocupar espaço
Carregar a Celha p. 06 Ficar sisudo
Azedar a mandioca p. 07 Alterar um resultado
Passar descompostura p. 12 Ralhar, agir humilhando
Estar trabalhando um feitiço p. 14 Enfeitiçar
Estar fazendo saudades p. 13 Construir ausência
(não) Põe nem quita p. 14 Não assume nenhuma posição
Despejar um tiro p. 16 Atirar com arma de fogo
96
Pôr urgência p. 18 Finalizar, resolver com rapidez
Sentar o braço p. 28 Esmurrar, bater
Fechar os dentes p. 38 Ficar sério
(não)Perder de vistas p. 42 Continuar observando
Apanhar a boca da estrada p. 45 Iniciar uma caminhada
(não)Jogar com pau de dois bicos p. 68 Não correr riscos
Fechar os fôlegos p. 79 Matar
Viver em Álgebra p. 82 Ter muitos conhecimentos
Estar com a cabeça muito quente p. 82 Preocupado
Levar um tombo p. 84 Cair, tombar
Levar-se do diabo p. 103 Sumir, desaparecer
(não) fechar o rosto p. 114 Ser agradável, sorrir
Fechar os fôlegos. Essa (CLC) se coaduna com a idéia de Marcuschi(2001) quando
afirma: “nossas escolhas lingüísticas oferecem pistas acerca de nossas concepções
subjacentes à natureza das instituições de nós mesmos e da própria linguagem, porque
indicam as metáforas tácitas de que nos valemos para dar sentido à nossa experiência”.
“Não põe nem quita”. Nessa (CLC) a metáfora conceptual que lhe é implícita, diz de outra
maneira o mesmo que “não ata nem desata”, “não aumenta nem diminui” , ou seja, quer
dizer não resolve nada, portanto, não conclui uma ação.
“Pegar o lugar” é ocupar o espaço. Segundo a conceptualização dessa expressão, ao se
ocupar um lugar, presume-se, dominá-lo, passar a ser dono dele. Entretanto o contexto dá
lugar a outra interpretação.
“Levar um tombo” e “levar-se do diabo” significam respectivamente, tombar ou cair e
sumir. Essas duas lexias com o verbo Levar têm comportamentos diferentes, não só pelo
contexto, mas também pelos nomes que as constituem. Note-se que em Levar um tombo o
verbo levar é apenas o suporte da (CLC). Na visão de Lakoff e Johnson Tombar(cair) é
movimento para baixo em oposição a para cima, que simboliza algo positivo. Em levar-se
do diabo tem o significado de sumir, desaparecer não só nesse contexto mas, em qualquer
outro o sentido será o mesmo por tratar-se de uma expressão cristalizada de uso popular.
“Apanhara a boca da estrada”. A (CLC) nos transmite que a personagem iniciará o
caminho da liberdade isto no diz o contexto. Esse resultado corrobora a afirmação de
97
Lakoff e Johnson (1999): “muito do que raciocinamos e visualizamos através de uma
expressão são parte de experiências de outros domínios.”
“Passar dias” e “Passar descompostura”. Esse par de (CLC)s traz em comum o verbo
passar + nome, vejamos o que se pode registrar sobre passar dias: é permanecer um certo
período com alguém ou em algum lugar, sendo pois um tempo decorrido cuja metáfora
conceptual é tempo visto como movimento. Passar descompostura é de uso popular,
linguagem que mais abriga expressões dicionarizadas como esta.
“Estar trabalhando um feitiço”. Nessa (CLC) ao ser utilizado o verbo trabalhar presume-se
que o autor acompanhou o costume de chamar-se “trabalho”, o que envolve feitiçaria a
exemplo de fazer um feitiço, cujas intenções variam para o bem e para o mal. Ao ler-se
essa CLC a nossa cognição estabelece um elo no caso com o substantivo trabalho. Nesse
resultado não há subjetividade, mas a certeza dessa relação mente cognição.
“Estar com a cabeça muito quente”. Segundo Lakoff, essa metáfora vai ao encontro das
experiências corpóreas. Por exemplo, a cabeça é um recipiente onde são colocadas idéias
independentemente de quantidade. Não há como parar de receber as informações do
mundo, nos levando a pensá-las metafórica e concretamente. Dessa forma, com tantas
idéias, a cabeça pega fogo, borbulha, esquenta.
“Sentar o braço”. Essa (CLC) já está incluída no léxico popular da língua, em lugar de
bater, esbofetear, isto é, agredir fisicamente é movimentar-se. A metáfora subjacente
sentar o braço traduz-se em: agredir é movimentar-se.
Feitas essas considerações nas CLCs analisadas, constatamos que a base do
processo de conceptualização dessas construções reside nas motivações sócio-culturais,
que permeiam todo o texto. A análise lingüística da natureza como foi realizada neste
texto literário, permitiu-nos chegar a algumas conclusões, entretanto, não significa a única
verdade, tanto que muito se pode ainda dizer sobre Primeiras Estórias nessa mesma linha.
A análise também nos levou a observar que essas CLCs expressam conceitos de difícil
explicação, por si só, não fossem os aspectos cognitivos ativados na mente do leitor, do
falante ou do próprio pesquisador, não seria talvez possível chegar-se a resultados
satisfatórios.
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo precípuo desse estudo esteve centrado na identificação de metáforas
conceptuais atualizadas sob a forma de Construções Lexicais Complexas nos contextos
lingüísticos de Primeiras Estórias.
Primeiramente foram trabalhados os verbos-DAR, TER, FAZER e TOMAR como
constituintes das Construções Lexicais Complexas. Os resultados do estudo mostraram
que os verbos DAR, FAZER e TOMAR apresentaram-se mais produtivos em relação ao
verbo TER, pelo menos nas CLCs que fizeram parte das analisadas. Outro foco dessa
investigação visualizou algumas lexias cujos verbos não se repetiram, à exceção de
PASSAR, constituinte de apenas duas lexias complexas; LEVAR com duas ocorrências e
o verbo ESTAR, também com duas ocorrências. As demais Lexias constituídas de verbos
que só apareceram uma única vez nas CLCs selecionadas foram igualmente analisadas
conforme prova o capítulo 5 que versa sobre a discussão dos resultados.
O processo de análise de base semântico-cognitiva permitiu-nos identificar 245
CLCs das quais, sob a forma de amostragem foram analisadas 145. Tal análise permitiu-
nos comprovar, na maioria dos casos há uma dependência do contexto, para se chegar ao
sentido de tais construções. Sendo assim, as CLCs identificadas, podem ocorrer,
entretanto, nos mais diversos ambientes lingüísticos. Foram analisadas do ponto de vista
metafórico seguindo, principalmente, as bases teóricas de Lakoff e Johnson .
Uma das conclusões a que pudemos chegar trata das metáforas conceptuais
estruturadas como CLCs resultarem de uma compreensão lingüisticamente coerente e
criativa, do autor centrada em sua experiência sócio-cultural, e não de um sentido
exclusivamente composicional. Assim, os significados das partes que compõem as CLCs
têm valor cognitivo, quando uma parte significativa do conhecimento cultural toma força
de imagem. Tais considerações permitiu-nos responder aos questionamentos formulados
na introdução deste estudo.
Vale salientar que os estudos enfocando a linguagem desde sempre caminharam ao
lado das relações entre o homem e o mundo e, é essa dimensão que, na atualidade, a
Lingüística procura levar até as últimas conseqüências. No entanto, mesmo sendo esse o
foco dos estudos lingüísticos atuais, a contribuição científica deste estudo, que não deve
ser considerado conclusivo, está particularmente centrada no ato de desvendar para
leitores que se iniciam no universo de Guimarães Rosa, os sentidos de suas ricas
99
construções lingüísticas, às vezes, difíceis de serem decodificadas. Portanto, a busca do
motivo da junção de itens lexicais tão diversificados, tomando sempre por base, um
determinado verbo, nos fez “passear com o pensamento” e “frontear a nascente” das
Construções Lexicais Complexas.
Em suma, pudemos considerar, a partir da análise realizada, que os fatores sócio-
culturais estão presentes em Primeiras Estórias de Guimarães Rosa, determinando o
processo de conceptualização metafórica das CLCs; a análise e a descrição das metáforas
de base conceptual atualizadas sob a forma de Construções Lexicais contribuíram, de
forma plena, para a compreensão do sentido da maioria desses itens na obra de Guimarães
Rosa.
Dessa forma, concluímos essa proposta de estudo investigatório, fazendo uso das
palavras de Vilela (2002), quando ressalta que “A metáfora não é apenas, nem sobretudo
um produto da imaginação poética ou ornato retórico, assim como não é um simples uso
extraordinário da língua ou algo apenas ligado a palavras, mas sim, algo que é típico da
língua e da sua construção”.
As CLCs identificadas em Primeiras Estórias, são na sua totalidade de base
conceptual. Isso se pode comprovar ao final da análise proposta.
100
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104
ANEXOS
105
CONTO 1 – AS MARGENS DA ALEGRIA
ESTA É A ESTÓRIA. Ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se
construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em
caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A Mãe e o
Pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A Tia e o Tio tomavam conta dele, justinhamente.
Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam. O avião era da Companhia, especial, de
quatro lugares. Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O
vôo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no acorçôo, alegre de se rir para si,
confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes raiar numa verdade
extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de
proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e
desconter-se-certo como o ato de respirar-o de fugir para o espaço em branco. O Menino.
E as coisas vinham docemente de repente seguindo harmonia prévia, benfazeja, em
movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades dava-lhe
balas, chicles, à escolha. Solicito de bem humorado, o Tio ensinava-lhe como era
reciclinável o assento-bastando a gente premer manivela. Seu lugar era o da janelinha,
para o móvel mundo. Entregavam-lhe revistas, de folhear quantas quisesse, até o mapa,
nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O Menino
deixava-as, fatramente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade,
o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartindo de
roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além,
baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois-assim insetos? Voavam
supremamente. O Menino
agora, vivia; sua alegria despedindo todos os raios.
Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso.
Ainda nem notara que, de fato, teria vontade de comer, quando a Tia já lhe oferecia
sanduíches. E prometia-lhe o Tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e
passear, tanto que chegassem. O Menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a
mente. A luz e a longa-longa-longa nuvem. Chegavam.
Enquanto mal vacilava a manhã. A grande cidade apenas começava a fazer-
se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares. O campo
de pouso ficava a curta distância da casa-de madeira, sobre estacões, quase
penetrando na mata. O Menino via, vislumbrava. Respirava muito. Ele queria poder
ver ainda mais vívido-as novas tantas coisas-o que para os seus olhos se
106
pronunciava. A morada era pequena, passava-se logo
à
cozinha, e ao que não era
bem quintal, antes breve clareira, das árvores que não podem entrar dentro de casa.
Altas, cipós e orquideazinhas amarelas delas se suspendiam. Dali, podiam sair
índios, a onça, leão, lobos, caçadores? Sós sons. Um-e outros pássaros-com cantos
compridos. Isso foi o que abriu seu coração. Aqueles passarinhos bebiam cachaça?
Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as
árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração.
Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão-brusco, rijo,-
se proclamara. Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a
cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo,
torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em
azul-e-preto-o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e
flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonitruante. Sua colorida empáfia.
Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando,
gruziou outro gluglo. O menino
riu, com todo o
coração.
Mas só bis-viu.
o chamavam,
para passeio.
Iam de jeep, iam onde ia ser um sítio do Ipê. O Menino repetia-se em íntimo o
nome de cada coisa. A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame-
branco, de pelúcia. A cobra-verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros
pálidos. A aparição angélica dos papagaios. As pitangas e seu pingar. O veado campeiro: o
rabo branco. As flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema. O que o Tio falava: que ali
havia "imundície de perdizes". A tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-a-índio.
O par de garças. Essa paisagem de muita largura, que o grande sol alagava. O buriti, à
beira do corguinho, onde, por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas do opaco.
Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos
aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos
armados.
Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e
desconhecido. Ele estava nos ares.
Pensava no peru, quando voltavam. Só um pouco, para não gastar fora de hora o
quente daquela lembrança, do mais importante, que estava guardado para ele, no
terreirinho das árvores bravas. Só pudera tê-lo um instante, ligeiro, grande, demoroso.
Haveria um, assim, em cada casa, e de pessoa?
Tinham fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O Tio, a Tia, os engenheiros.
Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a
107
mais levantada no mundo. Ele abria leque, impante, explodido, se enfunava ... Mal comeu
dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de
flor. Saiu, sôfrego de o rever.
Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura.
E-onde? Só umas penas, restos, no chão.- “Ué, se matou. Amanhã não é o dia-de-
anos do doutor?" Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as
mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia
acontecer assim, ao menos teria olhado o peru-aquele. O peru-seu desaparecer no espaço.
Só no grão nulo de um minuto, o Menino recebia em si um miligrama de morte. Já o
buscavam:-“Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago...”
Cerrava-se, grave, num cansaço e numa renúncia
à
curiosidade, para não
passear com o pensamento. Ia. Teria vergonha de falar do peru. Talvez não devesse,
não fosse direito ter por causa dele aquele doer, que põe e punge, de dó, desgosto e
desengano. Mas, matarem-no, também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-
se sempre mais cansado. Mal podia com o que agora lhe mostravam, na
circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões
de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo
apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de
poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o
possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o
contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava
a cabecinha.
Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto-transitavam no extenso as
compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seus dentes de pilões, as
betumadoras. E como haviam cortado lá o mato?-a Tia perguntou. Mostraram-lhe a
derrubadora, que havia também: com
a
frente uma lâmina espessa, feito limpatrilhos,
à
espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável
aspecto,
à
orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na
boca. A coisa pôs-se em movimento. Reta, até que devagar. A árvore, de poucos
galhos no alto, fresca, de casca clara... e foi só o chofre: ruh... sobre o instante ela
para lá se caiu, toda, toda. Trapeara tão bela.
Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento-o inaudito choque-o
pulso da pancada. O Menino fez ascas. Olhou o céu-atônito de azul. Ele tremia. A
108
árvore, que morrera tanto. A limpa esguiez do tronco e o marulho imediato e final
de seus ramos-da parte de nada. Guardou dentro da pedra.
De
volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade
abandonada, um certo remorso. Nem ele sabia bem.
Seu pensamentozinho estava
ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E-a nem espetaculosa surpresa-
viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor,
menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugrulhar grufo, mas faltava
em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua
chegada e presença, em todo caso, um pouco consolavam.
Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era:
o vir da noite. Porém, o
subir da noitinha é sempre e sofrido assim, em toda a parte. O silêncio saía de seus
guardados. O Menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma
força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma.
Mas o peru se adiantava até
à
beira da mata. Ali adivinhara-o quê? Mal dava
para se ver, no escurecendo. E era a cabeça degolada do outro, atirada ao monturo.
O Menino se doía e se entusiasmava.
Mas: não. Não por simpatia companheira e sentida o peru até ali viera, certo,
atraído. Movia-o um ódio. Pegava de bicar, feroz, aquela outra cabeça. O Menino
não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.
Trevava.
Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume,
Sim, era lindo!-tão pequenino, no ar um instante só, alto, distante, indo-se. Era,
outra vez em quando, a Alegria.
CONTO 2 Famigerado
FOI
de incerta feita-o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem
cabeça? Eu
estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me
à
porta o
tropel Cheguei
à
janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto
é,
vendo melhor: um cavaleiro rente, frente
à
minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo,
109
num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse-o oh-homem-oh-
com cara de nenhum amigo. Sei o que
é
influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele
homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era
alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem
olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados,
constrangidos-coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-
los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se
encostavam. Dado
que
a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos
dois lados avançava a
cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo.
Valendo-se- do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos,
enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se
apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da
topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para
proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti
que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance.
Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a
extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o
a desmontar, a entrar.
Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que
passara a descansar na sela-decerto relaxava o corpo para dar-se mais
à
ingente tarefa
de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo
à
receita ou
consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe,
talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma.
Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente,
por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
-"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada ... "
Carregara a celha
. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de
canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro,
imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza?
Reteve no
pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na
cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava
em armas-e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão,
que usado baixo, para ela estar-se
ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia
110
de braço direito pendido, pronto meneável.
Sendo
a sela, de notar-se, uma jereba
papuda urucuiana, pouco de se achar, na região. pelo menos de tão boa feitura. Tudo
de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro,
grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada
momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de
fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um sé inquietar, sem
medida e sem certeza.
-"Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... estou vindo da
serra...”
Sobressalto quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas
de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de
para uns anos ele se serenara-evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas
de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
-"Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço
do Governo, rapaz meio estrondoso ... Saiba que eu estou com ele á revelia ... Cá eu
não quero questão com o Governo, não estou com saúde nem idade... O rapaz,
muitos acham que ele
é
de seu tanto esmiolado ... "
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de
evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava.
Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se
é
que se riu: aquela
crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito
à
meia esguelha. Latejava-
lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São
Ão
,
travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de
aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e
silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava.
E, pá:
- “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que
é
mesmo que
é:
fasmisgerado... faz-me-gerado... falmis-geraldo... familhas-gerado...
?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o
gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença
dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí
outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice
de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se
famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
111
- “Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis
léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar apregunta, pelo claro...”
Se sério, se era. Transiu-se-me.
- “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o
legítimo-o livro que aprende as palavras... E gente pra infomação torta, por se
fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão
,
capaz, mas com padres
não
me dou: eles logo engambelam ... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê
me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que
é,
o que já lhe preguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
-Famigerado?
-"Sim senhor...’’ -e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva,
sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo-apertava-me. Tinha eu que
descobrir a cara.
-Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim,
em indúcias.
Como
por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até
então, mumumudos. Mas, Damázio:
- “Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram
comigo, pra testemunho...”
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
-
Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável" ...
-"Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender.
Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É
de arrenegar? Farsância? Nome
de ofensa?"
-Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
- “Pois...e o que
é
que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-
semana?"
-Famigerado
?
Bem. E
:
"importante", que merece louvor, respeito...
-"Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?" Se certo! Era
para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
-Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora
destas era ser famigerado-bem famigerado, o mais que pudesse! ...
- “Ah, bem!...” -soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se,
num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três:-"Vocês podem ir,
112
compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição ...’’ -e eles prestes se partiram.
aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse:- "Não há
como que as grandezas machas duma pessoa instruída!”Seja que de novo, por um
mero, se torvava? Disse:-“Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do
Governo era ir-se embora, sei
lá,
sei não...” Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a
inquietação. Disse:-
“A
gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas
desconfianças...
pra azedar a mandioca...” Agradeceu, quis me apertar,
a mão
.
Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão,
não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.
CONTO 3 Sorôco, sua mãe e sua filha
AQUELE carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo
com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação.
Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo
novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos
cômodos as janelas sendo de grades, feito
as de
cadeia, para os presos. A gente sabia
que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo
parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre.
O
trem do sertão passava às 12h45m.
As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para
esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um
porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do
acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo-o movimento. Aquilo quase no fim
da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-
chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de
Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela.
Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.
A hora era de muito sol-o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra
das arvores do cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava:
nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O
borco bojudo do telhadílho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de
muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito
nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as
113
mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são
mais longe.
O Agente da estação apareceu, falando de amarelo, com o livro de capa preta e as
bandeirinha verde e vermelha debaixo do braço.- "Vai ver se botaram água fresca no
carro ..." -ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate.
Alguém deu aviso:- “Eles vêm! ...” Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco.
Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba fiosa encardida
em amarelo, uns pés, com alparcatas: as crianças tomavam medo dele; mais da voz, que
era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo com o trazer de
comitiva.
Aí paravam. A filha–a moça-tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga
não vigorava certa e nem no tom nem no se dizer das palavras-o nenhum. A moça punha
os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num
aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em
cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e
faixas, dependuradas-virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um
fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem, tanto que diferentes, elas se
assemelhavam.
Sorôco estava dando
braço a elas uma, de cada lado. Em mentira, parecia entrada
em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a
chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles trasmodos e des-
propósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco-para não parecer pouco caso, Ele hoje
estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os
maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de
dó. Ele respondia:- “Deus vos pague essa despesa...”
O que os outros se diziam: que Sorôco tinha-tido muita paciência. Sendo que não
ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alivio. Isso não tinha cura, elas
não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de
morar com as duas, pelejava, Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta,
teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de
dar as providências, de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o
carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se
seguir.
114
De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da
escadinha do carro.- "Ela, não faz nada, seo Agente...” -a voz de Sorôco estava muito
branda:- “Ela não acode, quando a gente chama ...” A moça, ai tornou a cantar, virada para
o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo,
mas representava de outroras, grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para
ela, com um encanto de pressentimento muito antigo-um amor extremoso. E, principiando
baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo,
a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não
paravam de cantar.
Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer
as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço,
sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que
iam com elas, por bem-fazer na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso,
e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda
juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as
coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos; de pão. Por derradeiro,
o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas
não haviam de dar trabalho.
Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das duas, aquela
chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que
podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo
antes, pelo depois.
Sorôco.
Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para
vir pegar o carro. O trem apitou, e passou-se foi o de sempre.
Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de
barba quadrada, surdo-o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado,
embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no
oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemplosos.
E lhe falaram:- “O mundo está dessa forma...’’ Todos, no arregalado respeito,
tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco”.
Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir sembora.
Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.
115
Mas, parou. enquanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser.
Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia
fazer siso naquilo? Num rompido-ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para
si-e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava
continuando.
A gente se esfriou, se afundou-um instantâneo. A gente... E foi sem combinação,
nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram
também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos
caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase
que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso
sem comparação.
A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com
ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.
CONTO 4 A menina de lá
S
ua
casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água
limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e
arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando
galinhas ou passando descompostura em alguém.
E ela menininha, por
nome Maria,
Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.
Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria
bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se
mexia.- “Ninguém entende muita coisa que ela fala...” -dizia o Pai, com certo
espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por
exemplo:-‘Ele xurugou?”-e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo
esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto:-”
Tatu
não vê a
lua...”-ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha
que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma
mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão
de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura
vida.
Em geral, porém, Nhinhinha,com seus nem quatro anos, não incomodava
ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios.
116
Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma.
Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia
logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia
consumindo depois o resto, feijão, angu, ou arroz, abóbora, com artística lentidão. De
vê-Ia tão p
erpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. – “Nhinhinha, que é
que você está fazendo?” – perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida,
moduladamente: - “Eu ... to-u ... fa-a-zendo”. Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto
tolinha?
Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e
comentava, se sorrindo: - “Menino pidão... Menino pidão...” Costumava também dirigir-se
à Mãe desse jeito: - “Menina grande... Menina grande...” Com isso Pai e Mãe davam de
zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: - “Deixa... Deixa...” – suasibilíssima, inábil
como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas
de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila,
mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas
preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem nem havia motivo. Mas, o respeito
que tinha por Mãe e Pai, parecia mais uma engraçada espécie de tolerância. E Nhinhinha
gostava de mim.
Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. – “Cheiinhas! – olhava as
estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: -“Tudo
nascendo!” – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso.
E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. – “A gente não vê quando o vento
se acaba ...” Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a
gente é que ouvia exagerado: - “Alturas de urubuir...” Não, dissera só: - “... altura de urubu
não ir. “O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: - “Jabuticaba de vem-me-ver
...” Suspirava, depois: - Eu quero ir para lá.” – Aonde? – “Não sei”.” Aí, observou: - “O
passarinho desapareceu de cantar... De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no
escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu
disse: - “A avezinha.” De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de “Senhora
Vizinha...” E tinha respostas mais longas: - “E eu? Tou fazendo saudade
.” Outra hora,
falava-se de parentes já mortos, ela riu: - “Vou visitar eles...” Ralhei, dei conselhos
, disse
que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito perspectivos: - “Ele te
xurugou?” Nunca mais vi Nhinhinha.
117
Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres. Nem Mãe nem Pai
acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha,
só, sentada, olhando o nada diante das pessoas: - “Eu queria o sapo vir aqui”. Se bem a
ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por
vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos
pés de Nhinhinha – e não o sapo de papo, mas bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã
verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: - “Está trabalhando um feitiço...”
Os outros se pasmaram; silenciaram demais.
Dias depois, com o mesmo sossego: - “Eu queria uma pamonhinha de goiabada...”
em bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada
enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se
seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e
sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe
adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe
falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu – “Deixa... Deixa...” – não podiam
despersuadir. Mas veio, vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou, quentinha. A Mãe, que a
olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também
outros modos.
Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e
interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina,
levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber.
Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queriam versar conversar, sentiam um medo
extraordinário da coisa. Achavam ilusão.
O que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o
sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava de se estorricar.
Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. – “Mas, não pode, ué...” – ela
sacudiu a cabecinha. Instaram-na que, se não, se acabava tudo, o leite, o arroz, a carne, os
doces, frutas, o melado. – “Deixa... Deixa...” – se sorria, repousada, chegou a fechar os
olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.
Daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-
velha, sobressaído em verde e o vermelho-que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se
alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a resfrescação. Fez o que nunca se lhe vira,
pular e correr por casa e quintal. – “Adivinhou passarinho verde?” – Pai e Mãe se
perguntavam. Estes, os passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a
118
certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até
a Mãe e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar
sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde
pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes que, quando ela crescesse e tomasse juízo,
ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.
E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. Todos os
vivos atos se passam longe demais.
Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: um de
repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta
de que era a mesma coisa que se
cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se ver
quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de –
“Menina grande ... Menina grande ...” – com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos
o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não
podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.
Agora, precisavam de mandar recado, ao arraial, para fazerem o caixão e
aprontarem o enterro, com acompanhamento de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou
coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho,
Nhinhinha tinha falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara. O que fora, que
queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes ... A agouraria! Agora,
era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade?
O Pai, em bruscas lágrimas esbravejou que não! Ah, que, se consentisse nisso, era
como tomar culpa, estar ajudando ainda a Nhinhinha a morrer ...
A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro, se serenou-o
sorriso tão bom, tão grande-suspensão num pensamento que não era preciso encomendar,
nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos,
porque era, tinha de ser! – pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha.
CONTO 5 – Os irmãos Dagobé
Enorme desgraça. Estava-se no velório de Damastor Dagobé, o mais velho dos
quatro irmãos, absolutamente facínoras. A casa não era pequena; mas nela mal cabiam os
que vinham fazer quarto
. Todos preferiam ficar perto do defunto, todos temiam mais ou
menos os três vivos.
119
Demos, os Dagobés, gente que não prestava. Viviam em estreita desunião, sem
mulher em lar, sem mais parentes, sob a chefia despótica do recém-finado. Este fora o
grande pior, o cabeça, ferrabrás e mestre, que botara na obrigação da ruim fama os mais
moços – “os meninos”, segundo seu rude dizer.
Agora, porém, durante que morto, em não-tais condições, deixava de oferecer
perigo, possuindo-no acesso das velas, no entre algumas flores – só aquela careta sem
querer, o queixo de piranha, o nariz todo torto e seu inventário de maldades. Debaixo das
vistas dos três em luto, devia-se-lhe contudo guardar ainda acatamento, convinha.
Serviam-se, vem em quando, café, cachaça-queimada, pipocas assim aos-usos.
Soava um vozeio simples, baixo, dos grupos de pessoas, pelos escuros ou no foco das
lamparinas e lampiões. Lá fora, a noite fechada; tinha chovido um pouco. Raro, um falava
mais forte, o súbito se moderava, e compungia-se, acordando de seu descuido. Enfim,
igual ao igual, a cerimônia, à moda de lá. Mas tudo tinha um ar de espantoso.
Eis que eis: um lagalhé pacífico e honesto, chamado Liojorge, estimado de todos,
fora quem enviara Damastor Dagobé, para o sem-fim dos mortos. O Dagobé, sem sabida
razão, ameaçara nele, com punhal e ponta; mas o quieto do rapaz, que arranjara uma
garrucha, despejou-lhe o tiro no centro dos peitos, por cima do coração. Até aí, viveu o
Telles.
Depois do que muito sucedeu, porém, espatavam-se de que os irmãos não tivessem
obrado a vingança. Em vez, apressaram-se de armar velório e enterro. E era mesmo
estranho.
Tanto mais que aquele pobre Liojorge permanecia ainda no arraial, solitário em
casa, resignado já ao péssimo, sem ânimo de nenhum movimento.
Aquilo podia-se entender? Eles, os Dagobés sobrevivos, faziam as devidas honras
,
serenos, e, até, sem folia mas com a alguma alegria. Derval, o caçula, principalmente, se
mexia, social, tão diligente, para os que chegavam ou estavam: - “Desculpe os maus
tratos...” Doricão, agora o mais-velho, mostrava-se já solene sucessor de Damastor, como
ele corpulento, entre leonino e muar, o mesmo maxilar avançado e os olhinhos nos
venenos; olhava para o alto, com especial compostura, pronunciava: - Deus há-de-o-ter!”
E o do meio, Dismundo, formoso homem, punha uma devoção sentimental, sustida, no ver
o corpo na mesa: - “Meu bom irmão...”
Com efeito, o finado, tão sordidamente avaro, ou mais, quanto mandão e cruel,
sabia-se que havia deixado boa quantia de dinheiro em notas, em caixa.
120
Se assim, qual nada: a ninguém enganavam. Sabiam o até-que-ponto, o que ainda
não estavam fazendo. Aquilo era quando as onças. Mais logo. Só queriam ir por partes,
nada de açodados, tal sua não rapidez. Sangue por sangue; mas, por uma noite, umas
horas, enquanto honravam o falecido, podiam suspender as armas, no falso fiar. Depois do
cemitério, sim, pegavam o Liojorge, com ele terminavam.
Sendo o que se comentava, aos cantos, sem ócio de língua e lábios, num
sussurruído, nas tantas perturbações. Pelo que, aqueles Dagobés; brutos só de assomos,
mas treitentos, também, de guardar brasas em pote, e os chefes de tudo, não iam deixar
uma paga em paz: se via que estavam de tenção feita. Por isso mesmo, era que não
conseguiam disfarçar o certo solerte contentamento, perto de rir. Saboreavam já o sangrar.
Sempre, a cada podido momento, em sutil tornavam a juntar-se, num vão de janela, no
miúdo confabulêjo. Bebiam. Nunca um dos três se distanciava dos outros: o que era, que
se acautelavam? E a eles se chegava, vez pós vez, algum comparecente, mais compadre,
mais confioso – trazia notícias, segredava.
O assombrável! Iam-se e vinham-se, no estiar da noite, e o que tratavam no propor,
era só a respeito do rapaz Liojorge, criminal de legítima defesa, por mão de quem o
Dagobé Damastor fizera passagem daqui. Sabia-se já do quê, entre os velantes; sempre
alguém, a pouco e pouco, passava palavra. O Liojorge, sozinho em sua morada, sem
companheiros, se doidava? Decerto, não tinha a expediência de se aproveitar para escapar,
o que não adiantava fosse aonde fosse, cedo os três agarravam. Inútil resistir, inútil fugir,
inútil tudo. Devia de estar em o se agachar, ver-se em amarelas: por lá, borrufado de
medo, sem meios, sem valor, sem armas. Já era alma para sufrágios! E, não é que, no
entanto...
Só uma primeira idéia. Com que, alguém, que de lá vindo voltando, aos donos do
morto ia dar informação
, a substância deste recado. Que o rapaz Liojorge, ousado
lavrador, afiançava que não tinha querido matar irmão de cidadão cristão nenhum, puxara
só o gatilho do derradeiro do instante, por dever de se livrar, por destinos de desastre! Que
matara com respeito. E que, por coragem de prova, estava disposto a se apresentar,
desarmado, ali perante, dar a fé de vir
, pessoalmente, para declarar sua forte falta de culpa,
caso tivessem lealdade.
O pálido pasmo. Se caso que já se viu? De medo, esse Liojorge doidara, já estava
sentenciado. Tivesse a meia coragem? Viesse: pular da frigideira para as brasas. E em fato
até de arrepios-o quanto tanto se sabia-que, presente o matador, torna a botar sangue o
matado! Tempos, estes. E era que, no lugar, ali nem havia autoridade.
121
A gente espiava os Dagobés, aqueles três pestanejares. Só: - “Dei´sta”... – o
Dismundo dizia. O Derval: - “Se esteja a gosto!” – hospedoso, a casa honrava. Severo,em
si, enorme o Doricão. Só fez não dizer. Subiu na seriedade. De receio, os circunstantes
tomavam mais cachaça-queimada. Tinha caído outra chiva. O prazo de um velório, às
vezes, parece muito dilatado.
Mal acabaram de ouvir. Suspendeu-se o indaguejar. Outros embaixadores
chegavam. Queriam conciliar as pazes, ou pôr urgência na maldade? A estúrdia
proposição! A qual era: que o Liojorge se oferecia, para ajudar a carregar o caixão...
Ouviu-se bem? Um doio-e as três feras loucas; o que já havia, não bastava?
O que ninguém acreditava: tomou a ordem de palavra o Doricão, com um gesto
destemperado. Falou indiferentemente, dilatavam-se-lhe os frios olhos. Então, que sim,
viesse-disse-depois do caixão fechado. A tramada situação. A gente vê o inesperado.
Se a se? A gente ia ver, à espera. Com os soturnos pesos nos corações; um certo
espalhado susto, pelo menos. Eram horas precárias. E despontou devagar o dia. Já manhã.
O defunto fedia um pouco. Arre.
Sem cena, fechou-se o caixão, sem graças. O caixão, de longa tampa. Olhavam
com ódio os Dagobés-fosse ódio do Liojorge. Suposto isto, cochichava-se. Rumor geral, o
lugubrulho: - “Já que já, ele vem...” – e outras concisas palavras.
De fato, chegava. Tinha-se de arregalar em par de olhos. Alto, o moço Liojorge,
varrido de todo o atinar. Não era animosamente, nem sendo por afrontar. Seria assim de
alma entregue, uma humildade mortal. Dirigiu-se aos três: -“Com Jesus!” – ele, com
firmeza. E? – aí. Derval, Dismundo e Doricão-o qual o demônio em modo humano. Só
falou o quase:-“Hum... Ah!” Que coisa.
Houve o pegar para carregar: três homens de cada lado. O Liojorge pegasse na
alça, à frente, da banda esquerda-indicaram. E o enquadravam os Dagobés, de ódio em
torno. Então, foi saindo o cortejo, terminado o interminável. Sortido assim, ramo de gente,
uma pequena multidão. Toda a rua enlameada. Os abelhudos mais adiante, os prudentes na
retaguarda. Catava-se o chão com o olhar. À frente de tudo, o caixão, com as vacilações
naturais. E os perversos Dagobés. E o Liojorge, ladeado. O importante enterro.
Caminhava-se.
No pé-tintim, mui de passo. Naquele entremeamento, todos, em cochicho ou
silêncio, se entendiam, com fome de perguntidade. O Liojorge, esse, sem escape.
Tinha de fazer bem a sua parte: ter as orelhas baixadas. O valente, sem retomo. Feito
um criado. O caixão parecia pesado. Os três Dagobés, armados. Capazes de qualquer
122
supetão,
estavam de mira firmada. Sem se ver, se adivinhava. E, nisso, caía uma
chuvinha. Caras e roupas se ensopavam. O Liojorge-que estarrecial-sua tenência no
ir, sua tranqüilidade de escravo. Rezava? Não soubesse parte de si, só a presença
fatal.
E, agora,
se sabia: baixado o caixão na cova,
à
queima-bucha o matavam; no
expirar de um credo. A chuvinha já abrandava. Não se ia passar na igreja? Não, no
lugar não havia padre.
Prosseguia-se.
E entravam no cemitério. "Aqui, todos vêm dormir"-era, no portão, o letreiro.
Fez-se o airado ajuntamento, no barro, em beira do buraco; muitos, porém, mais para
trás, preparando o foge-foge. A forte circunspectância. O nenhum despedimento: ao
uma-vez Dagobé, Damastor. Depositado fundo, em forma, por meio de rijas cordas.
Terra em cima: pá e pá; assustava a gente, aquele som. E agora?
O rapaz Liojorge esperava, ele se escorregou em si. Via só sete palmos de
terra, dele diante do nariz? Teve um olhar árduo. A pandilha dos irmãos. O silêncio
se torcia. Os dois, Dismundo e Derval, esperavam o Doricão. Súbito, sim: o homem-
desenvolveu os ombros; só agora via o outro, em meio aquilo?
Olhou-o curtam ente. Levou a mão ao cinturão? Não. A gente, era que assim
previa, a falsa noção do gesto. Só disse, subitamente ouviu-se:- "Moço, o senhor vá,
se recolha. Sucede que o meu saudoso Irmão
é
que era um diabo de danado ... "
Disse isso, baixo e mau-som. Mas se virou para os presentes.
Seus dois outros manos, também. A todos, agradeciam. Se não é que não
sorriam, apressurados. Sacudiam dos pés a lama, limpavam as caras do respingado.
Doricão,
fugaz, disse, completou: -"A gente, vamos' embora, morar em cidade
grande ... " O enterro estava acabado. E outra chuva começava.
CONTO 6 A terceira margem do rio
Nosso PAI
era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido
assim desde
mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando
indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais
estúrdia nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe
123
era quem regia, e que ralhava no diário com a gente-minha irmã, meu irmão e eu.
Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal
com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda
fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por
uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que
nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e, caçadas? Nosso pai
nada não dizia.
Nossa casa
, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem
quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo,
de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a
canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu
um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não
fez nenhuma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas
persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou:-
"Cê
vai, ocê fique, você
nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me
acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de
vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei:-"Pai, o
senhor
me
leva junto, nessa sua canoa?' Ele só retornou o olhar em mim, e me botou
a
bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grata
do mato, para saber. Nosso pai entrou na
canoa e desamarou, pelo
remar. E a canoa
saiu se indo-a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte.
executava a
invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro
da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para
estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e
conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho
.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos
pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira.
uns achavam
o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem
sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava
para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das noticias se
dando pelas certas pessoas-passadores, moradores das beiras, até do afastado da
outra banda-descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem
canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, sôlto solitariamente.
124
Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que
tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora,
para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma
vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um
tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal
nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no
alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapa-
dura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora,
tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa,
suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de
comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer
e a seco de
chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde
tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela
mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito
não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios.
Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se
revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o dever de
desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois sol-
dados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo! avistado ou diluso,
cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar
à
pega ou
à
fala. Mesmo quando
foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar
retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a
canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a
palmos, a escuridão daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente
mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e
no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus
pensamentos.
O
severo que em, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele
agüentava. De dia e de noite, com solou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens
terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as
semanas, e meses, e os anos-sem fazer conta
do se-ir do viver. Não pojava em
nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem
125
capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da
canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia,
nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de
comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da
gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável.
Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido,
mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza
enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore
descendo-de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma.
Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se
podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para
se despertar de nova, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele,
quando se comia uma comida mais gostosa; assim corno, no gasalhado da noite, no
desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nossa pai só com a mão e urna
cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido
nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele
agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e
dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de
roupas que a gente de tempos em tempos fornecia. Nem queria saber de nós; não
tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam,
por causa de algum meu bom procedimento, eu falava:-"Foi pai que um dia me
ensinou a fazer assim ... "; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por
verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria sabe da gente, por que,
então, não subia ou descia o
rio, para outras paragens, longe, no não encontrável? Só
ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar
para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de
vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o
marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou.
Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou. Nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e
se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.
Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava
envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu
permaneci
126
com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei-na vagação, no rio no
ermo-sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme
indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse
revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse
homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada, mais. Só as
falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras
cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo,
diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha
antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apon-
tavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta,
tanta culpa? Se
o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-· -rio, o rio-pondo perpétuo. Eu
sofria já o começo de velhice-esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha
achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê?
Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do
vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio,
para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o
fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade.
Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse-se as coisas
fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se
falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido.
Ninguém é doido.
Ou
,
então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno
ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá,
o vulto. Estava ali, sentado
à
popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes.
E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz:- "Pai, o senhor
está velho,
fez o seu tanto ... Agora, o senhor vem, não carece mais ... O senhor
vem, e eu, agora mesmo, quando que seja,
a ambas vontades, eu tomo o seu lugar,
do senhor, na canoa! ... " E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do
mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá,
concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o
braço e feito um saudar de gesto-o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E
eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num
127
procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E
estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou
homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que
agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao
menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa
canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a
fora, rio a dentro-o rio.
CONTO 7
Pirlimpsiquice
AQUILO na noite do nosso teatrinho foi de Oh. O estilo espavorido. Ao que
sei, que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve. Ainda, hoje adiante,
anos, a gente se lembra: mas, mais do repente que da desordem, e menos da
desordem do que do rumor. Depois, os padres falaram em pôr fim a festas dessas,
no Colégio. Quem nada podia mesmo explicar, o ensaiador, Dr. Perdigão, lente de
corografia e história-pátria, voltou para seu lugar, sua terra; se vive, estará lá já após
de velho. E o em-diabo pretinho Alfeu, corcunda? Astramiro, agora aeroviário, e o
Joaquincas-bookmaker e adjazidas atividades-com ambos raro em raro me
encontro, os fatos recordam-se. A peça ia ser o drama "Os Filhos do Doutor
Famoso", só em cinco atos. Tivemos culpa de seu indesfecho, os escolhidos para o
representar? Às vezes penso. Às vezes, não. Desde a hora em que, logo num recreio
de depois do almoço, o regente Seu Siqueira, o Surubim, sisudo de mistérios, veio
chamar-nos para a grande novidade, o pacto de puro entusiasmo nosso avançara,
sem sustar-se. Éramos onze, digo, doze.
Atordoados, pois. O padre Prefeito, solene modo, fez-nos a comunicação.
Donde, com o Dr. Perdigão ali ao lado, rezou-se o padre-nosso e três ave-marias, às
luzes do Espírito. Aí, o Dr. Perdigão, que empunhava o livro, discursou um resumo,
para os corações da gente, à toda. Então, cada um teve de ler do texto alguma
passagem, extraindo de si a melhor bonita voz, que pudesse; leu-se
desabaladamente. Só o Zé Boné não se acanhou de o pior, e promoveu risos, de
preenchido beócio, que era. Quando o Dr. Perdigão nos despachou, lembramo-nos
de que na turma estavam de malas dois mais decididos e respeitados-Ataualpa, que
128
ia ser o Doutor Famoso, e o Darcy, o Filho Capitão. Mas os mesmos conviram logo
em precisar pazes, sem o
caso de a gente bem-oficiar se oferecendo de permeio.
Tocaram de bem, dando ainda o Ataualpa ao Darcy um selo do Transvaal, e o
Darcy a Ataualpa um da Tasmânia ou da China. Em seguida, eles, de chefes, nos
sobreolharam, e pegaram com ordens:- "Ninguém conta nada aos outros, do
drama!" Concordados, combinou-se, juramos. Careciam-se uns momentos, para a
grandiosa alegria se ajustar nos cantos das nossas cabeças. A não ser o Zé Boné,
decerto.
Zé Boné, com efeito, regulava de papalvo. Sem fazer conta
de companhia ou
conversas, varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e pulava,
à
celerada, cá e lá, fingia galopes, tiros disparava, assaltava a mala-posta, intimando e
pondo mãos ao alto, e beijava afinal-figurado a um tempo de mocinho, moça,
bandidos e xerife. Dele, bem, se ria.
O
basbaque. Mesmo assim, acharam que para o
teatro ele me passava; decidindo o padre Prefeito e o Dr. Perdigão que, por retraído
e mal-à-vontade, em qualquer cena eu não servisse. Não fosse o padre Diretor, de
bom acaso vindo entrando, declarar que, aluno aplicado, e com voz variada, certa,
de recitador, eu podia no vantajoso ser o "ponto". Sorri de os outros comigo,
amigos, mexerem. Joaquincas, o que era para personificar o Filho Padre, me deu
duas marcas novas de cigarros, e eu a ele uma prata de quinhentos-réis e o meio pão
que estava guardando na algibeira. Aí, o Darcy e Ataualpa, arranjada coragem,
alegaram não caber Zé Boné com as prestes obrigações. Mas o padre Prefeito
repreendeu-nos a soberba, tanto quanto que o papel que a Zé Boné tocava, de um
policial, se versava dos mais simples, com escasso falar. Adiantou nada o
Araujinho, servindo de o outro policial, fazer a cara amargosa: acabou-se a opinião
da questão. Não que Zé Boné à gente não enchesse-de inquietas cautelas.
O
segredo
ia ele poder guardar?
Aí, mais, teve-se dúvida. Se os outros alunos se embalassem, para
à
força
quererem fazer a gente contar a estória do drama? Dois deles preocupavam-nos,
fortes, dos maiores dos internos, não pegados para o teatrinho por mal-comportados
incorrigíveis! Tãozão e o Mão-na-Lata, centerfór do nosso time. E um, cá, teve a
idéia. Precisávamos de imaginar depressa, alguma outra es
tória, mais inventada,
que íamos falsamente contar, embaindo os demais no engano. E, de Zé Boné,
ficasse sempre perto um, tomando conta.
129
Sem razão, se vendo, essas cismas. Zé Boné nada de nada contava. Nem na
estória do drama botava sentido, a não ser a alguma facécia ou peripécia, logo e
mal encartadas em suas fitas de cinema; pois, enquanto recreios houvesse,
continuava ele descrevivendo-as, com aquela valentia e o ágil não-se-cansar,
espantantes. E o Tãozão e Mão-na-Lata no assunto do teatro nem tocavam,
fingindo decerto não dar a tanta importância. Mas, a outra estória, por nós
tramada, prosseguia, aumentava, nunca terminava, com singulares-em-
extraordinários episódios, que um ou outro vinha e propunha: o "fuzilado", o
"trem de duelo", a máscara: "fuça de cachorro", e, principalmente, o "estouro da
bomba". Ouviam, gostavam, exigiam mais. Até o pretinho Alfeu, filho da
cozinheira, e aleijado, voltava se arrastando com rapidez para a escutar, enquanto
o Surubim não o via e mandava embora.
Já,
entre nós
,
era a "nossa estória", que, às
vezes, chegávamos a preferir à outra, a "estória de verdade", do drama. O qual,
porém, por meu orgulho de "ponto", pusera eu afinco em logo reter, tintim de cor
por tintim e salteado. Descontentava-me, só, na noite do dia, dever ficar encoberto
do público, debaixo daquela caixa ou cumbuca, que por ora ainda não se tinha,
nos ensaios.
-"Representar é aprender a viver além dos levianos sentimentos, na
verdadeira dignidade" - exortava-nos o Dr. Perdigão, sobre suas sérias barbas.
Ataualpa-o "Peitudo"-e Darcy-o "Pintado"-determinavam se acabasse, em hora,
com essa tolice de apelidos. Umas donas estariam costurando as roupas que íamos
revestir, os fraques do Doutor Famoso e do Amigo, a batina do Filho Padre, a
farda do Filho Capitão, só trajes. Alvitrou-se senha de nos tratarmos só pelos
nomes em drama: Mesquita o "Filho Poeta", Rutz o "Amigo", Gil o "Homem que
sabia o segredo", Nuno o "Delegado" . O Dr. Perdigão dirimia os embaraços: em
vez de o "Criado", o Niboca chamar-se-ia melhor o "Fâmulo", Astramiro o
"Redimido", e não o "Filho Criminoso";
eu o "Mestre do Ponto".- "Lembrem-se:
circunspecção e majestade" proferia o Dr. avante-... e: "Longa
é
a arte e breve a
vida -um preconício dos gregos!" Inquietávamo-nos, não fossem destituir-nos
daquele sonho. Iamos proceder muito bem, até o dia da festa, não fumar escondido,
não conversar nas filas, esquivar o mínimo pito, dar atenção nas aulas. Os que não
éramos "Filhos de Maria", impetrávamos fazer parte. Joaquincas comungava a
diário, via-se mesmo só ideal, já padre e santo. Todas as tardes, a partir do recreio
de depois do jantar, subia-se para o ensaio, demorado, livrando-nos dos estudos da
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noite sob o duplo olhar do Surubim; essa vantagem, também, os outros nos
invejavam.- "Sus! Brio! Obstinemo-nos. Decoro e firmeza. Ad astra per áspera!
Sempre dúcteis ao meu ensinamento... " - o Dr. Perdigão observando. Suspirávamos
pelo perfeito, o estricto jogo de cena a atormentar-nos. Menos ao Zé Boné, decerto.
Esse, entrava marchando, fazia continências, mas não havendo maneira de emendar
palavra e meia palavra.
E
o dia vindo próximo, nem mais duas semanas. Por que
não o trocar, ao estafermo? Não o Dr. Perdigão:-"Senhores discípulos meus, para
persistir no prepará-los, a perseverança não me desfalece!" Zé Boné, do tom, tirava
algum entender, empinava-se inconfuso e contente. Ah, seu "ensino",
à
rija,
à
vera,
seria para ele nos pagar. Não por enquanto. Só se ansiava. Sempre juntos, no notá-
vel, relegados os planos para as férias, e mesmo só por alto lembrado o afã do
futebol.
Se não os tempos e contratempos. Troçavam de nós, os outros? Citando, com
ares, o que não entendíamos, nem. Diziam já saber a verdadeira estória do drama, e
que não passávamos de impostores. De fato, circulava outra versão, completa, e por
sinal bem aprontada, mas de todo mentirosa. Quem a espalhara? O Gamboa,
engraçado, de muita inventiva e lábia, que afirmava, pés juntos, estar dono da
verdade. O cume de cachorro! Nele, passada a festa, jurou-se também uma sova.
Por ora, porém, tínhamos de combater essa estória do Gamboa, que nos deixava
humilhados. Repetíamos, então, sem cessar, a nossa estória, com forte cunho de
sinceridade. Sempre ficavam os partidários de uma e de outra,
não raro bandeando
campo, vez por vez, por dia. Tãozão e Mão-na-Lata chefiavam o grupo dos
Gamboas?
-"Entreguemo-nos
à
suma justiça do Onipotente ... "-proferia o Joaquincas.-
"Uma tana! Sento o braço!" -o Darcy rugia, ou o Ataualpa. Mas:-"... " O réprobo,
o ímprobo, que me malsina os
dias ...
“-já,
vai vago, desembestando. O Surubim
dizia que o nosso teatro roubava ao ensino, e que não era verdade que, nas provas,
iríamos ganhar boas notas de qualquer maneira. Possível? Mão-na-Lata estava
combinando outro time, porque a gente mal treinava; misérias! Para ver se Zé
Boné enfiava juízo, valia não o deixar dar mais seu cinema? E, pronto, certas
cenas do drama, legítimas, estavam sendo divulgadas. Haveria entre nós um
traidor? Não. Descobriu-se: o Alfeu. O
gebo, pernas tresentortadas e moles, quase
de não andar direito, mas o capaz de deslizar ligeiro por corredores e escadas,
feito uma cobra; e que vinha escutar os ensaios, detrás das portas! Só que, no
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Alfeu, mesmo pós-festa, não se podia meter o braço: ele furtava, para a gente, pão,
doces, chocolate, coisas da cozinha dos padres. Tínhamos de alugar-lhe o
silêncio? Tudo, felizmente, por três dias.
o Dr. Perdigão, desistido de introduzir
no Zé Boné sua parte, intimara-o a representar de mudo, apenas, proibido de abrir
a boca em palco. Doía-me um dente, podia inchar a cara; ou não, não doía? Tudo
por dois dias, só. Tãozão e Mão-na-Lata, o que ameaçavam? Tudo por dia e meio,
pela véspera. Pelo que, fremia-se e ardia-se. Sendo, nessa véspera, o nosso ensaio
geral. - "Sus e eia! Abroquelemo-nos... " O Dr. Perdigão se passeava levemente.
Saía-nos o ensaio geral em brilho e pompa, todos na ponta da língua seus papéis-
para meu desgosto. Não iam precisar de ponto?
Nisso,
porém, sobreveio-nos o trom
de Júpiter. O padre Diretor assistira ao quinto ato. Ele era abstrato e sério: não via
a quem. Sem realces, disse: que nós estávamos certos, mas acertados demais, sem
ataque de vida válida, sem a própria naturalidade pronta ... Despejou conosco,
tontos de consternados. E já na noite tão tarde. Do nosso Dr. Perdigão, empali-
decendo até a barba:- "Senhores meus alunos... Ad augusta per angusta...-ele se
gemeu.- "Durmamos... ".
E quem disse que, no outro dia, seguinte, domingo-o dia!-íamos tornar a
ensaiar, ensaiar, ensaiar, senhor, mas-com os rebuliços, as horas curtas, poucas: a
missa demorada, a gente ganhando pão-de-mel e biscoitos no café, tendo-se de
ajudar a arrumar o teatro, a caixa-do-ponto verde, repintada fresca, as muitas moças
e senhoras aparecidas, chegadas as roupas nossas teatrais, novinhas nos embrulhos,
enquanto se dizia que Tãozão e o Mão-na-Lata estavam reunindo uns, que iam
amassar a gente, armar baderna de briga, e chegando visitas, pais, parentes, de fora,
para assistir, corriam o Colégio, se dizendo agora que o pessoal de Tãozão e Mão-
na-Lata, os Gamboas, iam dar na gente a tremenda vaia!-e o Dr. Perdigão de repente
doente, de fígado, cólicas, a gente com medo que a festa pudesse não haver, e tra-
ziam também os programas prontos do nosso teatro, até o Alfeu vestido de roupa
nova, marinheiro, a mãe dele fazia-o hoje andar com as muletas, e o Dr. Perdigão já
sarado, levantado, suas sumas pretas barbas, de tarde, o jantar cedo, garrafa de soda-
limonada, e galinha, pastéis, sobremesa de dois doces, nem pude, pois, que era que
vinha vindo, direto para dizer, o Surubim, satisfeito, bem eu tinha temido
caiporismos de última hora, passado o dia inteiro assim, de orelha com a pulga
atrás? Silêncio. O Surubim vinha para o Ataualpa. Estava na portaria o tio do
Ataualpa-o pai do Ataualpa era deputado, estava
à
morte, no Rio de Janeiro.
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Ataualpa tinha de viajar, de trem, daqui a duas horas. E o teatro, o espetáculo?
Ataualpa já ia, com o Surubim, mudar de roupa, arrumar a mala. Mas, o teatro era
para impossível de não haver, era em benefício. E ... Só quem podia ser, em vez do
Ataualpa, quem sabia decorados todos os papéis, o Doutor Famoso: eu! Ah! e o
"ponto"? Dúvida não dúvida: o ponto seria, ótimo, o Dr. Perdigão, sendo. Se disse,
se fez.
O contentamento-o medo. O fraque? O povo. O-ali, quem meio escondido,
me cutucando-o Alfeu!-"Quer um gole?"... -do que ele tinha furtado: uma garrafa de
genebra, da adega dos padres-falava que era para dar mais alma de coragem
. Eu não
quis. E os outros? Zé Boné? O Alfeu não sorria: sibilava. Eu não queria
saber dos
outros, já estavam me vestindo, o fraque só ficava um pouquinho largo, de nada. Os
outros também não deviam de gostar das senhoras e moças passando carmins na
cara da gente, o que não era de homem!-e repintando-nos os olhos. E a hora
enorme. O teatro, imensamente, a platéia:- "Ninguém mais cabe!" -o povoréu de
cabeças, estrondos de gente entrando e se sentando, rumor, rumor, oh as luzes. O
Dr. Perdigão, de fraque também:-"Excélsior!"-meio desanimado. Não era o monte
de momento, sim, não. Era a hora na hora. Parecia que nos empurravam-para o de
todo sem propósito. Me punham para a frente. Só ouvi as luzes, risos, avistei
demais. O silêncio. Eu estava ali, parado, em pé, de fraque, a beira-mundo do
público, defronte. E, que queriam de mim, que esperavam? Atrás, os companheiros
tocando-me; isto era, hora para piparotes? E oh!-súbito a súbitas, eu reconhecia na
platéia, tão enchida, todos, em cada um seu lugar: Tãozão, o Mão-na-Lata, o Gam-
boa, o Surubim, o Alfeu, o padre Diretor ... oh!-e tinha-me lembrado da terrível
coisa, meu-deus, então ninguém não tinha pensado nisso, antes? Porque, aquele
arranjo de todos nós no palco, vindos ao proscênio, ou adiante, era conforme o
escrito no programa: o Ataualpa, primeiro, devia recitar uns versos, que falavam na
Virgem Padroeira e na Pátria. Mas, esses versos, eu não sabia! Só o Ataualpa sabia-
os, e Ataualpa estava longe, agora, viajando com o tio, de trem, o pai dele
à
morte
... Eu, não. Eu: teso e bambo, no embondo, mal em suor frio e quente, não tendo dá-
me-dá, gago de êêê, no sem-jeito, só espanto.
O minuto parou. Riam, diante de mim, aos milhares. De lá, da fila dos
padres, faziam-me gestos: de ordens e de perguntatividades, danados sinais,
explicavam-me o que eu já sabia que não sabia, não podia. Sacudi que não, puxei
para fora os bolsos, para demonstrar que não tinha os versos. Instavam-me.-" Abai-
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xem o panol" -escutei a voz do padre Prefeito. O Dr. Perdigão, em seu bobo buraco,
rapava goela. Tomei a não olhar; falei alto. Gritei, tremulei, tão então:-"Viva a
Virgem e viva a Pátria!" -gritei.
Ressoaram enormes aplausos.-" Abaixem o pano!" -era ainda o padre
Prefeito, no bastidor. Porque, agora, era mesmo a hora, para ficarmos no palco só o
Doutor Famoso e seus quatro Filhos, dai o pano tomava a subir, para abrir a
primeira cena do drama. "... o pano!" Mas o pano não desceu, estava decerto engui-
çado; não desceu, nunca. Com confusão. Os que tinham de sair de cena, não saíam.
Tornamos a avançar, todos, sem pau nem pedra, em fila, feito soldados,
apalermados. E, aí, veio a vaia. Estrondou ...
A vaia, que ninguém imaginava. O que era um mar-patuléia, todos em mios,
zurros, urros, assovios: pateada. A gente, nada. Ali, formados, soldados mesmos,
mudando de cor, de amargor. -"Atenção! Submetam-se!'" -mas nem os padres
àquilo não podiam pôr cobro? Por um pouco, o Dr. Perdigão ia se surgir de lá, da
caixa, mas não venceu, e se botou abaixo. A gente, firmes, sem mover o passo,
enquanto a vaia se surriava. A vaia parou. A vaia recomeçou. Agüentávamos.-"Zé
Boné! Zé Boné!" -'-aqueles gritavam também, depois de durante, dessa vaia, ou em
intervalos. -"Zé Boné!... " Foi a conta.
Zé Boné pulou para diante, Zé Boné pulou de lado. Mas não era de faroeste,
nem em estouvamento de estrepolias. Zé Boné começou a representar!
A vaia parou, total.
- Zé Boné representava-de rijo e bem, certo, a fio, atiladopara toda a
admiração. Ele desempenhava um importante papel, o qual a gente não sabia qual.
Mas, não se podia romper em riso. Em verdade. Ele recitava com muita existência.
De repente, se viu: em parte, o que ele representava, era da estória do Gamboa!
Ressoaram as muitas palmas.
O pasmatório. Num instante, quente, tomei vergonha; acho que os outros
também. Isso não podia, assim! Contracenamos. Começávamos, todos, de uma vez,
a representar a nossa inventada estória. Zé Boné também. A coisa que aconteceu no
meio da hora. Foi no ímpeto da glória-foi-sem combinação. Ressoaram outras
muitas palmas.
A princípio, um disparate-as desatinadas pataratas, nem que jogo de
adivinhas. Dr. Perdigão se soprava alto, em bafo, suas
réplicas e deixas,
destemperadas. Delas, só a pouca parte se aproveitava. O mais eram ligeirias-e
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solertes seriedades. Palavras de outro ar. Eu mesmo não sabia o que ia dizer,
dizendo, e dito-tudo tão bem-sem sair do tom. Sei, de, mais tarde, me dizerem: que
tudo tinha e tomava o forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido,
estúrdio, de todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu, não se
podendo representar outra vez, e nunca mais. Eu via os do público assungados,
gostando, só no silêncio completo. Eu via-que a gente era outroscada um de nós,
transformado. O Dr. Perdigão devia de estar soterrado, desmaiado em sua correta
caixa-do-ponto.
Gritavam bis o
Surubim
e o Alfeu. Até o padre Diretor se riu, como ri Papai
Noel. Ah, a gente: protagonistas, outros atores, as figurantes figuras, mas
personagens personificantes. Assim perpassando, com a de nunca naturalidade,
entrante própria, a valente vida, estrepuxada. Zé Boné, sendo o
melhor de todos?
Ora, era. Ei. E. Fulge, forte, Zé Bonél-freme a representação. O sucesso, que vindo
não se sabe donde e como; alguém me disse, que estava lá; jurou como foi.
Mas-de repente-eu temi! A meio, a medo, acordava, e daquele estro
estrambótico. O que: aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim? Não havia
tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava. E fiz uma força,
comigo, para me soltar do encantamento. Não podia, não me conseguia-para fora
do corrido, contínuo, do incessar. Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi.
Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo,
sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito-o
milmaravilhoso-a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros
e no nosso próprio falar. E como terminar?
Então, querendo e não querendo, e não podendo, senti: quesó de um jeito.
Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair-do fio, do rio, da roda, do
representar sem fim. Cheguei para a frente, falando sempre, para a beira da
beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propósito, me
despenquei. E caí.
E, me parece, o mundo se acabou.
Ao menos, o
daquela noite. Depois, no outro dia, eu são, e glorioso, no
recreio, então o Gamboa veio, falou assim:-"Eh, eh, hem? Viu como era que a
minha estória também era a de verdade?" Pulou-se, ferramos fera briga.
CONTO 8 nenhum, nenhuma
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Dentro da casa-de-fazenda, achada, ao acaso de outras várias e
recomeçadas distâncias, passaram-se e passam-se, na retentiva da gente, irreversos
grandes fatos-reflexos, relâmpagos, lampejos-pesados em obscuridade. A mansão,
estranha, fugindo, atrás de serras e serras, sempre, e
à
beira da mata de algum rio,
que proíbe o imaginar. Ou talvez não tenha sido numa fazenda, nem no
indescoberto rumo, nem tão longe? Não é possível saber-se, nunca mais.
Mas um menino penetrara no quarto, no extremo da varanda, onde se
achava um homem sem aparência, se bem que, por certo, como curiosamente se
diz, já "entrado em linos"; ele devia de ser o dono de lá. E naquele quarto-que, de
acordo com o que se verifica, em geral, na região, nos casarães-de-fazenda com
alta e comprida varanda, seria o "escrítório",-há era uma data. O menino não sabia
ler, mas
é
como se a estivesse relendo, numa revista, no colorido de suas figuras;
no cheiro delas, igualmente. Porque, o mais vivaz, persistente, e que fixa na
evocação da gente o restante,
é
o da mesa, da escrivaninha, vermelha, da gaveta,
sua madeira, matéria rica de qualidade: o cheiro, do qual nunca mais houve. O
homem sem aspecto tenta agora parecer-se com outro-um desses: velhos tios ou
conhecidos nossos, deles o mais silencioso. Mas, segundo se apurou, não era.
Alguém, apenas, chamara-o, na ocasião, de nome com aproximada. assonância; e
os dois, o ignorado. e o sabido, se perturbam. Alguém mais, pois, ali entrara? A
Moça, imagem. A Moça
é
então que reaparece, linda e recôndita. A lembrança em
tomo dessa Moça raia uma tão extraordinária, maravilhosa luz, que, se algum dia
eu encontrar, aqui, o que está por trás da palavra "'paz", ter-me-á sido dado
também através dela. Na verdade, a data não poderia ser aquela. Se diversa,
entretanto, impôs-se, por trocamento, no jogo da memória, por maior causa. Foi a
moça quem enunciou,
a voz da Moça retificava-a.
Tudo não demorou calado, tão fundamente, não existindo, enquanto viviam
as pessoas capazes, quem sabe, de esclarecer onde estava e por onde andou o
Menino, naqueles remotos, já peremptos anos? Só agora
é
que assoma, muito lento,
o difícil clarão reminiscente, ao termo talvez, de longuíssima viagem, vindo ferir-
lhe a consciência. Só não chegam até nós, de outro modo, as estrelas.
Ultramuito, porém, houve o que há, por aquela parte, até aonde o luar do
meu mais-longe, o que certifico e sei. A casarústica ou solarenga-sem história
visível, só por sombras, tintas surdas: a janela parapeitada, o patamar da escadaria,
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as vazias tarimbas dos escravos, o tumulto do gado? Se eu conseguir recordar,
ganharei calma, se conseguisse religar-me: adivinhar o verdadeiro e real,
havido.
Infância é coisa, coisa?
A Moça e o Moço, quando entre si, passavam-se um embebido olhar,
diferente do dos outros; e radiava em ambos um modo igual, parecido. Eles
olhavam um para o outro como os passarinhos ouvidos de repente a cantar, ai
árvores pé-ante-pé, as nuvens desconcertadas: como do assoprado das cinzas a
esplendição das brasas. Eles se olhavam para não-distância, estiadamente, sem
sabêres,
sem
caso. Mas a Moça estava devagar. Mas o Moço estava ansioso. O
Menino, sempre lá perto, tinha de procurar-Ihes os olhos. Na própria precisão com
que outras passagens lembradas se oferecem, de entre impressões confusas, talvez
se agite a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta
incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos
qualquer verdade. Mas o Menino queria que os dois nunca deixassem de assim se
olhar. Nenhuns olhos têm fundo; a vida, também, não.
Àquela casa, como e por que viera ter o: Menino? Talvez, em desviada
viagem, sem pessoas da família. Sua estada esperara-se para mais curta, do que
foi? Porque, primeiro, todos pensavam esconder-lhe o que havia num determinado
quarto, e mesmo o passo do corredor para onde dava aquele quarto. A dúvida que
isso marcou, no Menino, ajuda-o agora a muito se lembrar. A Moça, porém, era a
mais formosa criatura que jamais foi vista, e não há fim de sua beleza. Ela poderia
ser a princesa no castelo, na torre. Em redor da altura da torre do castelo, não deviam
de revoar as negras águias?
O
Homem, velho, quieto e sem falar, seria, na realidade,
o pai da Moça.
O
Homem concordava com todos, sem tristezas se calava? As nuvens
são para não serem vistas. Mesmo um menino sabe, às vezes, desconfiar do estreito
caminhozinho por onde a gente tem de ir-beirando entre a paz
e a angústia.
Depois, porém, porque mudassem de idéia, ou porque o Menino tivesse de
sojomar lá por mais tempo, deixaram-no saber o que dentro daquele dito quarto se
guardava. Deixaram-no ver. E, o que havia ali, era uma mulher. Era uma velha, uma
velhinha-de história, de estória-velhíssima, a inacreditável. Tanto, tanto, que ela se
encolhera, encurtara-se, pequenina como uma criança, toda enrugadinha, desbotada:
não caminharia, nem ficava em pé, e quase não dava acordo de coisa nenhuma,
perdida a claridade do juizo. Não sabiam mais quem ela era, tresbisavó de quem,
nem de que idade, incomputada, 1ncalculável, vinda através de gerações, sem
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ninguém, só ainda da mesma nossa espécie e figura. Caso imemorial, apenas com a
incerta noção de que fosse parenta deles. Ela não poderia mais ser comparada. A
Moça, com amor, tratava dela.
Tênue, tênue, tem de insistir-se o esforço para algo remembrar, da chuva que
caía, da planta que crescia, retrocedidamente, por espaço, os castiçais, os baús, arcas,
canastras, na tenebrosidade, a gris pantalha, o oratório, registros de santos, como se
um pedaço de renda antiga, que se desfaz ao se desdobrar, os cheiros nunca mais
respirados, suspensas florestas, o porta-retratos de cristal, floresta e olhos, ilhas que
se brancas, as vozes das pessoas, extrair e reter, revolver em mim, trazer a foco as
altas camas de torneado, um catre com cabeceira dourada; talvez as coisas mais
ajudando, as
coisas,
que mais perduram: o comprido espeto de ferro, na mão da
preta, o batedor de chocolate, de jacarandá, na prateleira com alguidares, pichorras,
canecas de estanho.
O
menino, assustando-se, correra a refugiar-se na cozinha,
escura e imensa, onde mulheres de grossos pés e pernas riam e falavam.
A Moça e o Moço vieram buscá-lo? O Moço causava-lhe antipatia e rancor,
dele já tinha ciúmes. A Moça, de formosura tão extremada, vestida de preto, e ela
era alta, alva, alva; parecia estar de madrinha num casamento, ou num teatro? Ela
carregou o Menino, cheirava a vem de verde e a rosa, mais meigo que as rosas
cheiram, mais grave. O Moço ria, exato. Tranqüilizavam-no, diziam: que a velhinha
não era a Morte, não. Nem estava morta. Antes, era a vida. Ali, num só ser, a vida
vibrava em silêncio, dentro de si, intrínseca, só o coração, o espírito da vida, que
esperava. Aquela mulher ainda existir, parecia um desatino de que ela mesma nem
tivesse culpa. Mas o Moço não ria mais. Lá estava também o Homem calado, de
costas, mesmo de pé ele rezava o terço, num rosário de pretas camáldulas.
Diziam ao Menino, demonstravam-lhe: que a Velhinha não era sombração,
mas sim pessoa. Sem que lhe soubessem o verdadeiro nome, chamavam-na a
"Nenha". Ela ficava tão quieta, no meio da alta cama de torneados, o catre com
cabeceira dourada, que ali quase se sumia, nos panos, algo inviolável em sua exi-
güidade, e respirava. Era cor de cidra, em todas as rugazinhas-e os olhos abertos,
garços. O que ela não tinha era pálpebras? Todavia, um trêmito, uma babinha, no
murcho, a boca, "e era o docemente incompreensível. O Menino sorriu. Perguntou:-
"Ela beladormeceu?" A Moça beijou-o. A vida era o vento querendo apagar uma
lamparina. O caminhar das sombras de uma pessoa imóvel.
138
A Moça não queria que coisa alguma acontecesse. A Moça tinha um leque?
O Moço conjurava-a, suspensos olhos. A Mça disse ao Moço:-"Você ainda não sabe
sofrer ... "-e ela tremia como os ares azuis. Tenho de me lembrar. O passado
é
que
veio a mim, como uma nuvem, vem para ser reconhecido: apenas, não estou
sabendo decifrá-Io. Estava-se no grande jardim. Para
á,
tinham trazido também a
Nenha, velhinha.
Traziam-na, para tomar sol, acomodadinha num cesto, que parecia um berço.
Tão galante, tudo, que o Menino de repente se esqueceu e precipitou-se: queria
brincar com ela! A moça impediu-o apenas co
m brandura, sem o repreender, ela lá
se sentava, entre madressilvas e rosmaninhos, insubstituível. Olhava para a Nenha,
extremosamente, de delonga,
pelo curso dos anos,
pelos diferentes tempos, ela
também menina ancianíssima. Recobrira-a com u
m xale
antigo, da Velhinha não se
viam as mãos.
o engraçadinho, pueril acondicionamento, o sôrmo im
palpar-se,
amável ridicularia. Davam-lhe
à
boca comidinha mole. Tomavam-lhe
às
vezes uns
sorrisinhos, um tanger de tosse, chegava a falar-e escassamente podia ser
entendida-no semi-sussurro mais discreto que o bater da borboletinha branca. A
Moça adivinhava-a? Pedia água. A Moça trazia a água, vinha com nas duas mãos
o copo cheio às beiras, sorrindo igual, sem deixar cair fora uma única gota-a gente
pensava que
ela
devia de ter nascido assim, com aquele copo de água pela borda, e
conservá-la até
à
hora de desnascer: dele nada se derramasse.
Não, a Nenha não reconhecia ninguém, alheada de fim, só um pensar sem
inteligência, imensa omissão, e já condenados segredos-coração imperceptível. No
que vagueia
os
olhos, contudo surpreende-se-lhe o imanecer da bem-aventura,
transordinária benignidade, o bom fantástico. O Menino perguntou:- "Ela agora
está cheia de juizo?" A Moça firmou o olhar, como o luar desassombra. O rumor
da tesoura grande podava as roseiras. Era o Homem velho, de pé, de contraluz,
homem
muito
alto. O Moço pegou na mão da Moça, ele estava apaixonado. O
Menino se recolheu, olhando para o chão, numa tristeza de amuo. O Homem
velho
queria ver as flores, ficar entre elas, cuidá-las.
O Homem velho brincava com as flores.
Cerra-se
a névoa, o escurecido, há
uma muralha de fadiga. Orientar-me! -co
mo
um riachinho, às voltas, que tentasse
subir a montanha. Havia um fio de barbante, que a gente enrolava num pauzinho.
A Moça repetia
coisas
tantas, muito mansas, ao Moço. Tenho de me recuperar
desdeslembrar-me, excogitar-que sei?-das camadas angustiosas do olvido.
Como
139
vivi e mudei, o passado mudou também.
Se
eu conseguir retomá-lo. Do que
falavam o Moço e
a Moça. Do velho Homem, pai dela, desenganadamente doente,
para qualquer momento, mortal.
-“E
ele
sabe?"-o Moço perguntou. A Moça, com um lenço branco,
muito fino, limpava a sumida boca da Nenha Ve1hinha. –“Ela sabe. Mas não
sabe por que!"-ela
falou, tinha.
fechado os olhos, tesa, parada. O Moço se
mordeu, um curto.-"E quem
é
que sabe? E para que saber porque temos de
morrer?-disse, disse. A Moça, agora, era que pegava na mão dele.
Venho a me lembrar. Quando amadormo. De como fora possível que tão de
todo se perdesse a
tradição do nome
e pessoa daquela Nenha, velhíssima, antepassada,
conservada contudo ali, por seu povo de parentes. Alguém, antes de morrer, ainda se
lembrava de que não se
lembrava:
ela seria apenas a mãe de uma outra, de uma outra,
de uma outra, para trás. Antes de vir para a fazenda, ela ter-se-ia residido em cidade
ou vila, numa certa casa, num Largo, cuidada por umas irmãs solteironas. Mesmo
essas, mal contavam. Dera-se que, em tempos, quase todas as antecedentes mulheres
da família, de roca e fuso, sucessivamente teriam morrido, quase de uma vez, dornal-
de-semana, febre de parto; daí, rompido o conhecimento, os homens se mudando,
andara confiada a estranhos a Nenha, velhinha, que durava, visual, além de todas as
raias do viver comum e da velhez, mas na perpetuidade. Então, o fato se dissolve. As
lembranças são outras distâncias. Eram coisas que paravam
à beira de um grande
sono. A gente cresce sempre, sem saber para onde.
Trasvisto, sem se sofrear, fechando os dentes
, o Moço argüia com a Moça, ela
firme e doçura. Ela tinha dito:-" ... esperar, até
à
hora da morte ... " Soturno, nervoso, o
Moço não podia entender, considerar no impeditivo. Porque a Moça explicava: que
não a morte do pai, nem da velhinha Nenha, de quem era a tratadeira. Falou:- "Mas a
nossa morte ... " Sobre este ponto, ela sorria-muito-flor, limite de transformação.
Obrigara-se por um voto? Não. Mais disse:-"Se eu, se você gostar de mim ... E como
saber se
é
o amor certo, o Único? Tanto é o poder errar, nos enganos da vida. "Será
que você seria capaz de se esquecer de mim, e, assim mesmo, depois e depois, sem
saber, sem querer, continuar gostando? Como
é
que a gente sabe?" Ouvida a resposta
da Moça, o Menino estremeceu, queria que ela não tivesse falado. Reperdida a
remembrança, a representação de tudo se desordena: é uma ponte, ponte,-mas que, a
certa hora, se acabou, parece'que. Luta-se com a memória .. Atordoado, o Menino,
tornado quase incônscio, como se não fosse ninguém, ou se todos uma pessoa só,
140
uma só vida fossem: ele, a Moça, o Moço, o Homem velho e a Nenha, velhinha-em
quem trouxe os olhos.
Vê-se-fechando um pouco os olhos, como a memória pede: o
reconhecimento, a lembrança do quadro, se esclarece, se desembaça. Desesperado, o
Moço, lívido, ríspido, falava com a Moça, agarrava-se aos varões da grade do jardim.
Dissesse; que era um simples homem, são em juízo, para não tentar a Deus, mas para
seguir o viver comum, por seus meios, pelos planos caminhos! Que será, agora, se a
Moça não o quiser reter, se ela não concordar? A Moça, lágrimas em olhos, mas
mediante o sorriso, linda já de outra espécie. Ela não concordou. Ela só olhava com
enorme amor para o Moço. Então, ele deu-lhe as costas. E Moça se ajoelhou, curvada
para o berço da Nenha, velhinha, e chorava, abraçando-a-ela se abraçava com o
incomutável, o imutável. Tanto, de uma vez, ela se separava da gente, que mesmo o
Menino não podia querer ficar com ela, consolá-la. O Menino, contra tudo o que
sentisse, acompanhou o Moço. O Moço o aceitou, pegou-lhe da mão, juntos
caminharam.
O Moço viera com tropeço, apalpando as paredes, como os cegos. E entraram
no
quarto, ao extremo da varanda, no escritório. Aquela mesa escrivaninha cheirava
tão bom, a madeira vermelha, a gaveta, o Menino gostaria de guardar para si a
revista, com as figuras coloridas; mas não teve ânimo de pedir. O Moço escreveu o
bilhete, era para a Moça, ali o depositou. O que estava nele, não se sabe, nunca mais.
Não se viu mais a Moça. O Moço partia, para sempre, torna-viajar, com ele ia
também o Menino, de volta a casa. O Moço, com a capa de baeta azul, trazia-o,
à
frente da sela. Voltaram os olhos, já a distância: do limiar,
à
porta, só o Homem alto,
sem se poder
ver-lhe o rosto, desconhecidamente, fazia-lhes ainda sinais de adeus.
A viagem devia de ser longa, Com aquele Moço, que falava com o Menino,
com ele tratava mão por mão, carecia de selar palavras. Ele, o Moço, disse:-"Será
que posso viver sem dela me esquecer, até
à
grande hora? Será que em meu coração
ela tenha razão? .. " O Menino não respondeu, só pensou, forte:"Eu, também!" Ah,
ele tinha ira desse moço, ira de rivalidades. Do Moço, que outras coisas repetia, que
ele não queria perceber. Pediu: se podia vir
à
gampa, em vez de no arção? Ele queria
não ficar perto da voz e do coração desse Moço, que ele detestava. Tem horas em
que, de repente, o mundo vira pequenininho, mas noutro de-repente ele
toma a ser
demais de grande, outra vez. A gente deve de esperar o terceiro pensamento. O
Moço não falava, agora. Falido, ido, noutro confusamento, ele rompeu a chorar.
141
Pouco a pouco, o Menino, devagarinho, chorava, também, o cavalo soprava. O
Menino sentia: que, se, de um jeito, fosse ele poder gostar, por querer, desse moço,
então, de algum modo, era corno se ele ficasse mais perto da Moça, tão linda, tão
longe, para sempre, na soledade. Daí, viu-se em casa. Chegara.
Nunca mais soube nada do Moço, nem quem era, vindo junto comigo.
Reparei em meu pai, que tinha bigodes. Meu pai, estava dando ordens a dois
homens, que era para levantarem o muro novo, no quintal. Minha Mãe me beijou,
queria saber notícias de muita gente, olhava se eu não rasgara minha roupa, se tinha
ainda no pescoço, sem perder nenhum, os santos de todas as medalhinhas.
E eu precisei de fazer alguma coisa, de mim, chorei e gritei, a eles dois:-
"Vocês não sabem de nada, de nada, ouviram?! Vocês
se esqueceram de tudo o
que, algum dia, sabiam!. .. " E eles abaixaram as cabeças, figuro que estremeceram.
Porque eu desconheci meus Pais-eram-me tão estranhos; jamais poderia
verdadeiramente conhecê-las, eu; eu?
CONTO 9 Fatalidade
Foi o caso que um homenzinho, recém-aparecido na cidade,
veio
à
casa do
Meu
Amigo, por
questão de vida e morte,
pedir providências. Meu Amigo
sendo
de
vasto saber e
pensar, poeta,
professor,
ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia.
Por tudo,
talvez,
costumava afirmar:-"A vida de um ser humano, entre outros, seres
humanos,
é
impossível.
O
que vemos,
é
apenas milagre;
salvo melhor raciocínio
."
Meu Amigo
sendo fatalista.
Na data e hora, estava-se em seu fundo de quintal, exercitando ao alvo, com
carabinas, e revólveres" revezadamente. Meu Amigo, a bom seguro que, no mundo,
ninguém, jamais, atirou quanto ele tão bem-no agudo da pontaria e rapidez em sacar
arma, gastava nisso, por día, caixas de balas. Estava juntamente especulando,-"Só
quem entendia de tudo eram os gregos.
A v
ida tem poucas, possibilidades."
Fatalistas como uma louça, o Meu Amigo. Sucedeu nesse comenos que o vieram
chamar, que o
homenzinho o procurava.
O
qual, vendo-se que caipira, ar e traje. Dava-se de entre vinte-e-muitos e
trinta anos; devia de ter bem menos, portanto. Miúdo, moído. Mas concreto como
uma anta, e carregado o
rosto,
gravado, tão sumetido, o coitado; as mãos calosas, de
en
xadachim. Meu
Amigo,
mandando-lhe sentar e esperar,
conti
nuou, baixo, a
142
conversa;
fio
que, apenas, para poder melhor
observar
o outro
, vez a vez, com
o
rabo-
do-olho, apotando-Ihe
a avaliação. Do que disse:- "Se o destino são componentes
con
secutivas-além das circunstâncias
gerais de pessoas
, tempo e lugar... e
o karma...
"
Ponto é que o
Meu
Amigo
existia, muito;
não se fornecia somente figura fabulável,
entenda-se.
O
homen
zinho se
sentara na ponta da cadeira, os
pés
e joelhos juntos,
segurando com as duas mãos o chapéu; tudo limpinho pobre.
Convidado a dizer-se, declinou que de nome José de Tal, mas, com perdão,
por apelido Zé Centeralfe. Sentia-se que ele era um sujeito já arrumado em si; nem
estava muito nervoso. Embrulhava-se a falar, por gravidade:- "Sou homem de muita
lei... Tenho um primo oficial-de-justiça... Mas não me abrange socorro... Sou muito
amante da ordem... " Meu Amigo murmurou mais ou menos:-"Não estamos debaixo
da lei, mas da graça... " -cuido que citasse epístola de São Paulo; e receei que ele
não simpatizasse com Zé Centeralfe. Mas, o homenzinho, posto em cruz comprida,
e porque se achasse rebaixado, quase desonrado-e ameaçado-viera dar parte.
Apanhou o chapéu, que caíra ao chão, com a mão o espanava.
Representou: que era casado, em face do civil e da igreja, sem filhos,
morador no arraial do Pai-da-Padre. Vivia tão bem, com a mulher, que tirava
divertimento do comum e no trabalho não compunha desgosto. Mas, de mandado
do mal, se deu que foi infernar lá um desordeiro, vindiço, se engraçou desbrioso
com a mulher, olhou para ela com olho quente... -"Qual
é
o nome?" -:Meu Amigo o
interrompeu; ele seguia biograficamente os valentões do Sul do Estado.-"É um
Herculinão, cujo sobrenome Socó... "-explicou o homenzinho. Meu Amigo voltou-
se, rosnou: -''lIorripilante badameco... " Por certo esse Herculinão Socó
desmerecesse a mínima simpatia humana, ao contrário, por exemplo, do jovem
Joãozinho do Cabo-Verde, que se famigerara das duas bandas da divisa, mas, ao
conhecer pessoalmente Meu Amigo- ... "um homem de lealdade tão ilustre.- ...-
resolveu passar-se definitivo para o lado paulista, a fim de com ele jamais ter de
ver-se em confusão. Sem saber o quê, o homenzinho Zé Centeralfe aprovava com a
cabeça. Relatava.
Só para atalhar discórdias, prudenciara; sempre seria melhor levar
à
paciência. E se humilhara, a menos não poder. Mas, o outro, rufião biltre, não tinha
emenda, se desbragava, não cedia desse atrevimento.-"Ele não tem estatutos. Quem
vai
arrazoar com homem de má cabeça? Para isso não tenho cara ... " Só se para o
vir-às-mãos, para alguma injusta desgraça. Nem podia dar querela: a marca de
143
autoridade. no Pai-da-Padre, se estava em
falta. A mulher não tinha mais como
botar os pés fora da porta, que o homem surgia para desusar os olhos nela, para a
desaforar, com essas propostas.-"Somente a situação empiorava, por culpa de
hirsúcia daquele homem alheio... " Curvara-se, sempre de meia-esguelha, a ponto
que parecia cair da cadeira. Meu Amigo animou-o:-"Quanta crista!" -e aí ele
depositou no colo o chapéu, e direito se sentou.
Sucedendo-se os sustos e vexames, não acharam outro meio. Ele e a mulher
decidiram se mudar.-"Sendo para a pobreza da gente um cortado e penoso. Afora
as saudades de se sair do Pai-do-Padre; a gente era de muita estimação lá." Mas,
para considerar Deus, e não traspassar a lei, o jeito era.-"Larguei para o arraial do
Amparo...”
Arranjaram no Amparo uma casinha, uma roça, uma horta. Mas, o
homem, o nominoso, não tardou em aparecer, sempre no malfazer, naquela sécia.
Se arranchou. Sua embirração transfazia um danado de poder, todos dele tomavam
medo. E foi a custo ainda maior, e quase
à
escondida, que José Centeralfe e a
esposa conseguiram fugir de lá também, tendo pesar.
Por conta daquele.- "'Cutalmal" -proferiu Meu Amigo, meticuloso indo
ajeitar uma carabina, que se exibia, oblíqua, na parede. Pois a sala-de tão repleta
de: rifles, pistolas, espingardas-semelhava o que nunca se vê.-"Esta leva longe... "-
disse, e riu, Um tanto malignamente. Tornou a sentar-se, porém, sorrindo agradado
para o José Centeralfe.
Mas mais o homenzinho se ensombrara.
Fosse chorar?
Falou:- "Viajamos para cá, e ele, nos rastros, lastimando a gente. É peta.
Não me perdeu de vistas
. Adonde vou, o homem me atravessa... Tenho de tomar
sentido, para não entestar com ele." Durou numa pausa. Daí, pela primeira vez,
alçou a voz: -"Terá o jus disso, o que passa das marcas? É
réu? E para se citar? É
um homem de trapaças, eu sei. Aqui
é
cidade, diz-se que um pode puxar pelos seus
direitos. Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a lei... " Tanto dito, calou-se, em
silêncio médio; pedia, com olhos de cachorro.
Meu Amigo fez uma coisa. Virou, por metade, o rosto, para encarar aquela
carabina. Sério, carregando o minuto. Só. Sem voz. Mais nela afirmando a vista,
enquanto umas quantas vezes rabeava com os olhos
,
na direção do homenzinho;
em ato, chamando-o a que também a olhasse, como que a o puxar
à
lição. Mas o
144
outro ainda não entendia que ele acenasse em alguma coisa. Sem tanto, que deu:-
"E eu o que faço?"-na direta perguntação.
Surdeava o Meu Amigo, pato-mudo. $oprou nos dedos. Sempre em fito, na
arma, na parede, e remirando o outro-ao tempo que -tanto quanto tanto. De feito.
O homenzinho se arregalou-de desperto. Desde que desde, ele entendesse, a ver o
que para valer: a chave do jogo. Entendeu. Disse:- "Ah .. " E se riu: às razões e
conseqüências. Donde bem, se levantou; podia portar
por
fé.
Sem mais perplexidades, se ia. Agradecia, reespiritado, com sua força de
seu santo. Ia a sair. Meu Amigo só ainda perguntou: -"Quer café... ou uma
cachacinha?" E o outro, de sisório:"Seja, que aceito... Depois." Outras palavras
não trocaram. Meu Amigo apertou-lhe a mão. Sim, se foi, o José Centeralfe.
Meu Amigo, tão valedor, causavelmente. de vá-à-garra o deixava?
Comentou:-"'Coronha ou cano ... " O homenzinho, tão perecível, um fagamicho, o
mofino-era para esforço tutânico? Meu Amigo sendo o dono do ca
os.
Porém,
revistando sua arma se o tambor se achava cheio. Disse:- "Sigamos o
nosso
carecido Aquiles ... " Pois se pois.
Seguimo-lo.
Ele ia, e muito.
Tinha-se de dobrar o passo.
E-de repente e súbito-precipitou-se a ocasião: lá vinha, fatalmente, o outro,
o Herculinão, descompassante. Meu Amigo soprou um semi-espirro, canino,
conforme seu vezo e uso, em essas, em cheirando a pólvoras.
E... foi: fogo, com rapidez angélica: e o falecido Herculinão, trapuz,
arriado lá,
com algo entre os próprios e infra-humanos olhos, lá nele-tapando o
olho-da-rua. Não há como o curso de uma bala; e-como és bela e fugaz, vida!
Três, porém, haviam tirado arma, e dois tiros tinham-se ouvido? Só o
Herculinão não teve tempo. Com outra bala, no coração. Homem lento.
O Centeralfe se explicou:- "Este iscariotes...”
Meu Amigo, não. Disse um "Oh" polissilábico, sem despesas de emoção.
Disse:- "Tudo não
é
escrito e previsto? Hoje, o deste homem. Os gregos... "Disse:-
"Mas. " a necessidade tem mãos de bronze... "Disse:- "Resistência
à
prisão,
constatada... " Dissera um "não", metafisicado.
Sem repiques nem rebates, providenciava a remoção do Herculinão, com
presteza, para sua competente cova.
145
E convidava-nos a almoçar, ao Zé Centeralfe, principalmente. Meditava, o
Meu Amigo. Disse:- “Esta nossa Terra
é
inabitada.
Prova-se, isto ... " -pontuante.
CONTO 10 SEQUENCIA
NA ESTRADA das Tabocas, uma vaca viajava. Vinha pelo meio do
caminho, como uma criatura cristã. A vaquinha vermelha, a cor grossa e afundada-o
tom intenso de azamar. Ela solevava as ancas, no trote balançado e manso, seus
cascos no chão batiam poeira. Nem hesitava nas encruzilhadas. Sacudia os chifres,
recurvos em coroa, e baixava testa, ao rumo, que reto a trazia, para o rio, e-para
do rio-a terras de um Major Quitério, nos confins do dia, à fazenda do Pãodolhão.
No Arcanjo, onde a estrada borda o povoado, foi notada, e, vendo que era
uma rês fujã, tentaram rebatê-Ia; se esvencilhou, feroz, e foi-se, porém. De beira
dos pastos, os anus, que voavam cruzando-a, desvinham de pousar-lhe às costas. No
riachinho do Gonçalves, quase findo à míngua d'água, se deteve para beber. Deram
tiros, no campo, caçando às codornas. Latidos, noutra parte, faziam-na entrar oculta
no cerrado. Ora corriam dela umas mulheres, que andavam buscando lenha. Se
encontrava cavaleiros, sabia deles se alonjar, colada ao tapume, com disfarces:
sonsa curvada a pastar, no sofrido simulamento. Légua adiante, entanto, nos
Antônios, desabalava em galope, espandongada, ao passar por currais, donde ouvia
gente e não era ainda o seu têrmo. Tio Terêncio, o velho, à porta de casa, conversou
com o outro:-":Meo fio, q'vaca qu'é essa?"-"Nho pai, e'a n'é nossa, não." Seguia,
certa; por amor, não por acaso.
Só, assim, a vaquinha se fugira, da Pedra, madrugadamente entre o primeiro
canto dos melros e o terceiro dos galos-o sol saindo à sua frente, num céu quase da
sua cor. Fazia parte de um gado, transportado, de boiadeiros, gado de coração ativo.
Viera do Pãodolhão-sua querência. Apressava-se nela o empolgo de saudade que
adoece o boi sertanejo em terra estranha, cada outubro, no prever os trovões.
Apanhara a boca-da-estrada
-para os onde caminhos-fronteando o nascente.
Soada a notícia, seo Rigério, o dono da Pedra, disse:- "Diaba".
Ele era alto, o homem, para tão pequenina coisa. Seus sabedores
informavam: que a marca sendo a de grande fazendeiro, da outra banda, distante.
Seus vaqueiros, postos, prontos. Esse seo Rigério tinha os filhos diversos, que por
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em volta se achavam. Nem deles, para o quê, havia a necessidade. E vede de que
maneira tudo então se passou.
Só um dos filhos, rapaz, senhor-moço, quis-se, de repente, para aquilo: levar
em brio e tomar em conta. Atou o laço na garupa. Disse:-“É uma vaquinha
pitanga?" Pôs-se a cavalo. Soubesse o
que por lá o botava, se capaz. Saiu
à
estrada-
geral. Lá
indo,
à
espora leve. Ia desconhecidamente. Indo de oeste para leste.
Já a vaca. O avanço, que levava, não se lhe dava de o bastante. Ante o morro,
a passo, breve, nem parava para os capins dos barrancos: arrancava-os, mesmo em
marcha, no mesmo surdo insossego. Se subia-cabeceava, num desconjuntado
trabalho de si. Se descia-era beira-abismos, patas abertas, se borneando. Após, no
plano, trotava. Agora, lá num campal, outras vacas se avistavam. Olhava-as: alteou-
se e berrou-o berro encheu a região tristonha. O dia era grande, azul e branco, por
cima de matos e poeiras. O sol inteiro.
Já o rapaz se anorteava. Só via o horizonte e sim. Sabia o
de
uma vaquinha
fugida: que, de alma, marca o rumo e faz atalhos -querençosa. Entrequanto, ele
perguntava. Davam-lhe novas da arribada. Seu cavalo murça se aplicava, indo
noutra forma, ligeiro. Sabia que coisa era o tempo, a involuntária aventura. E
esquipava. Ia o longo, longo, longo. Deu patas
à
fantasia. Ali escampava. Tempo
sem chuvas, terrentas campinas, os tabuleiros tão sujos, campos sem fisionomia.
O
rapaz ora se cansava.
Desde aí, o muito descansou. Do que, após, se atormentava.
Apertou.
Com horas de diferença, a vaquinha providenciava. Aqui alta cerca a parou,
foi seguindo-a, beira, beira. Dava num córrego. No córrego a vaquinha entrou, veio
vindo, dentro d'água. Três vezes esperta. Até que outra cerca travou-a, ia deixando-
a desairada. Volveu-irrompida ida: de um ímpeto então a saltou:
num salto que
queria ser vôo. Vencia. E além se sumia a vaca vermelha, suspensa em bailado, a
cauda oscilando. O inimigo
vinha perto.
O rapaz, no vão do mundo, assim vocado e ordenado. Ele agora se irritava.
Pensou de arrepender caminho, suspender aquilo para mais tarde. Pensou palavra.
O estúpido em que se julgava.
Desanimadamente, ele, malandante, podia tirar atrás. Aonde um animal o
levava? O incomeçado, o empatoso, o desnorte, o necessário. Voltasse sem ela,
passava vergonha. Por que tinha assim tentado? Triste em tomo. Só as encostas
guardando o florir de árvores esfolhadas: seu roxo-escuro de julho as carobinhas,
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ipês seu amarelo de agosto. Só via os longes de um quadro. O absurdo ar. Chatos
mapas. O céu de se abismar. E indagava o chão, rastreava. Agora, manchava o
campo a sombra grande de uma nuvem. O rapaz lançou longe um olhar. De re-
pente, ajustou a mão
à
testa, e exclamou. Do ponto, descortinou que: aquela. A
vaquinha, respoeirando. Aí e lá, tomou-a em vista. O vulto, pé de pessoa, que a
cumeada do morro escalava. Ver o que diabo. Reduzida, ocupou, um instante, a
lomba linha do espigão. Aí, se afundou para o de lá, e se escondeu de seus olhos.
Transcendia ao que se destinava.
O rapaz, durante e tanto, montado no bom cavalo,
à
espora avante, galgando.
Sempre e agudamente olhava. Podia seguir com os olhos como o rastro se formava.
Só perseguia a paisagem. Preparava-se uma vastidão: de manchas cinzas e
amarelas. O céu também em amarelo. Pitavam extensões de campo, no virar do sol,
das queimadas; altas, mais altas, azuis, as fumaças desmanchavam-se. O rapaz-
desdobrada vida-se pensou:- "Seja o que seja."
Aí, subia também ao morro, de onde muito se enxergava: antes das portas
do longe, as colinas convalares-e um rio, em suas baixadas, em sua várzea
empalmeirada. O rio, liso e brilhante, de movimentos invisíveis. Como cortando o
mundo em dois, no caminho se atravessava-sem som. Seriam buracos negros, as
sombras perto das margens.
Depois dos destornamentos, a vaquinha chegava
à
beira, às derradeiras
canas-bravas. Com roubada rapidez, ia a levantar o desterro. Foi uma mexidinha
figura-quase que mal os dois chifres nadando-a vaca vermelha o transpondo, a esse
rio, de tardinha; que em setembro. Sob o céu que recebia a noite, e que as fumaças
chamava.
Outrarte o ouro esboço do crepúsculo. O rapaz, o cavalo bom, como vinham,
contornando.
Antes
do rio não viam: as aves, que já ninhavam. A beira, na tardação,
não queria desastrar-se, de nada; pensava. As pausas, parte por parte. Não ouviu
sino de vésperas. Tinha de perder de ganhar? Já que sim e já que não, pensou
assim: jamais, jamenos ... – O filho de seo Rigério. A fatal perseguição, podia
quebrar e quitar-se. Hesitou, se. Por certo não passaria, sem o que ele mesmo não
sabia-a oculta, súbita saudade. Passo extremo! Pegou a descalçar as botas. E entrou-
de peito fcito. Àquelas qüilas águas trans-às braças. Era um rio e seu além. Estava,
já, do outro lado.
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-"A vaca?"-e apertava o encalço-à boa espora, à rédea larga. Mas a vaca era
uma malícia, precipitava-se o logro. Nisso, anoiteceu. E não é que, seu cavalo, o
murça, se sentia-da viagem de pêlo a pêlo: os joelhos bambeava, descaía, quase caía
para a frente o cavaleiro.
Iam-se, na ceguez da noite-à casa da mãe do breu: a vaca, o homem, a vaca-
transeuntes, galopando.-
“Onde
e então o Pãodolhão? Cujo dono? Vinha-se a qual
destinatário?" Pelas vertentes, distante, e até ao cimo do monte, um campo se
incendiava: faiscas-as primeiras estrelas. O andamento. O rapaz: obcego. Sofria
como podia, nem podia mais desespero. O arrepio negro das árvores. O mundo
entre as estrelas e os grilos. Semiluz: sós estrelas. Onde e aonde? A vaca, essa,
sabia: por amor desses lugares.
Chegava, chegavam. Os pastos da vasta fazenda. A vaca surgia-se na treva.
Mugiu, arrancadamente. Remugiu em fim. A um bago de luz, lá, lá. Às luzes que
pontilhavam, acolá, as janelas da casa, grande. Só era uma luz de entrequanto? A
casa de um Major Quitério.
O
rapaz e a vaca se entravam pela porteira-mestra dos currais.
O rapaz desapeava. Sob o estúrdia atontamento, começou a subir a escada.
Tanto tinha de explicar.
Tanto ele era o bem-chegado!
A uma roda de pessoas. Às quatro moças da casa. A uma delas, a segunda. Era
alta, alva, amável. Ela se desescondia dele. Inesperavam-se? O moço compreendeu-se.
Aquilo mudava o acontecido. Da vaca, ele a ela diria:-"É sua." Suas duas almas se
transformavam? E tudo
à
sazão do ser. No mundo nem há parvoíces: o mel do
maravilhoso, vindo a tais horas de estórias, o anel dos maravilhados. Amavam-se.
E a vaca-vitória, em seus andes, por seus passos.
CONTO 11 O ESPELHO
SE QUER seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me
induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo
,
desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um
tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O
senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na
verdade-um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou,
149
as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.
Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um
milagre que não estamos vendo.
Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições;
todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente
imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas-que espelho? Há-os Dons" e "maus", os
que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde
situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu,
os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam.
Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas,
seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam
superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados
de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se
nunca atentou nisso,
é
porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas
mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o
falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico.
Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando.
Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de
outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal
ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das
irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-Ia, e terá notáveis
surpresas. Além de que a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores
instantâneos. Ah, o tempo
é
o mágico de todas as traições... E os próprios olhos, de
cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que
se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu
desajeitado tactear; só a pouco e pouco
é
que consegue retificar, sobre a postura dos
volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais
graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não
de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo
um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha
para rir-se da
gente... E então?
Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso
comum. E os demais-côncavos, convexos, parabólicos-além da possibilidade de
outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo, tetra ou
150
quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos
especializados, depois de mental adestramento, vieram a construir objetos a quatro
dimensões, para isso utilizando pequenos cubos, de várias cores, como esses com
que os meninos brincam. Duvida?
Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial desconfiança, quanto
ao meu são juízo. Fiquemos, porém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de
diversões, daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a mostrengos, esticados ou
globosos. Mas, se só usamos os planos-e nas curvas de um bule tem-se sofrível
espelho convexo, e numa colher brunida um côncavo razoável deve-se a que
primeiro a humanidade mirou-se nas superfícies de água quieta, lagoas, lameiros,
fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal. Tirésias,
contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si
mesmo não se visse... Sim, são para se ter medo, os espelhos.
Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a
encará-Ios, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra,
diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho.
Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e
medonha visão. Sou, porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-
me com fantásticas não-explicações?-jamais. Que amedronta dor a visão seria então
aquela? Quem o Monstro?
Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávicas?
O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a idéia
de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição
fecundo ponto de partida para a pesquisa. A alma do espelho-anote-a-esplêndida metáfora.
Outros, aliás, identificavam a alma com a sombra do corpo; e não lhe terá escapado a
polarização: luz-treva. Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-Ios contra a parede,
quando morria alguém da casa? Se, além de os utilizarem nos manejos da magia, imitativa
ou simpática, videntes serviam-se deles, como da bola de cristal, vislumbrando em seu
campo esboços de futuros fatos, não será porque, através dos espelhos, parece que o tempo
muda de direção e de velocidade? Alongo-me, porém. Contava- lhe ...
Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente,
vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos-um de parede, o outro de porta
lateral, aberta em ângulo propício-faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma
figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me
151
náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era-logo
descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?
Desde aí, comecei a procurar-me-ao eu por detrás de mim-à tona dos espelhos, em
sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem
se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz
pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito,
em certos momentos,
desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou
claro? O que se busca, então,
é
verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, pre-
existente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu,
porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio
aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para
não dizer o urgir científico. Levei meses.
Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance,
os golpes de esguelha, a longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de
pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados incessantemente.
Sobretudo, uma inembotável paciência. Mirava-me, também, em marcados
momentos-de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza.
Sobreabriam-se-me enigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta
objetivamente a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações:
e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia
é
a si mesmo. Olhos contra os olhos.
Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do
segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o
rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é
apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido, avezado;
diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais necessárias novas
percepções. Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos
translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam.
Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me compreende.
Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela
máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa -a minha vera forma. Tinha de
haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.
Conclui que, interpenetrando-se no disfarce do
rosto
externo diversas
componentes, meu problema seria o de submetê-Ias a um bloqueio "visual" ou
152
anulamento perceptivo, a suspensão de
uma por uma, desde as mais rudimentares,
grosseiras, ou de
in
ferior significado. Tomei o elemento animal, para começo.
Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu facies, é
fato. Constato-o, apenas; longe de mim puxar
à
bimbalha temas de metempsicose
ou teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara
no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou eqüinas, por exemplo, basta-
lhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, para reconhecer que os há,
muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém-a onça. Confirmei-me disso. E,
então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no
espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.
Releve-me não detalhar o método ou métodos de que me vali, e que
revezavam a mais buscante análise e o estrênuo vigor de abstração. Mesmo as
etapas preparatórias dariam para aterrar a quem menos pronto ao árduo. Como todo
homem culto, o senhor não desconhece a Ioga, e já a terá praticado, quando não
seja, em suas mais elementares técnicas. E, os "exercícios espirituais" dos jesuítas,
sei de filósofos e pensadores incréus que os cultivam, para aprofundarem-se na
capacidade de concentração, de par com a imaginação criadora... Enfim, não lhe
oculto haver recorrido a meios um tanto empíricos: gradações de luzes, lâmpadas
coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade. Só a uma expediência me
recusei, por medíocre senão falseadora, a de empregar outras substâncias no aço e
estanhagem dos espelhos. Mas, era principalmente no modus de focar, na visão
parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo. Sem ver o que,
em "meu" rosto, não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?
Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese
imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos
. Pouco a pouco, no
campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas,
quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já
aí, porém, de-
cidindo-me a tratar simultaneamente as outras componentes,
con
tingentes e
ilusivas. Assim, o elemento hereditário-as parecenças com os pais e avós-que são
também, nos nossos rostos, um lastro
evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no
ovo o pinto está intacto. E, em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, ma-
nifestadas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas
transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa idéias e sugestões de
outrem; e os efêmeros interesses, sem seqüência nem antecedência, sem conexões
153
nem fundura. Careceríamos de dias, para explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afir-
mações por seu valor nominal.
À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar,
meu esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou
bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja. E
escurecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com a saúde, comecei a sofrer dores de
cabeça. Será que me acovardei, sem menos? Perdôe-me, o senhor, o
constrangimento, ao ter de mudar de tom para confidência tão humana, em nota de
fraqueza inesperada e indigna. Lembre-se, porém, de Terêncio. Sim, os antigos;
acudiu-me que representavam justamente com um espelho, rodeado de uma serpente,
a Prudência, como divindade alegórica. De golpe, abandonei a investigação. Deixei,
mesmo, por meses, de me olhar em qualquer espelho. Mas, com o comum correr
quotidiano, a gente se aquieta,
es
quece-se de muito. O tempo, em longo trecho,
é
sempre tranqüilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um
dia... Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em
agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi.
Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima,
à
dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em
muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era-o transparente
contemplador?... Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.
Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes
buscada, por si em mim se exercitara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me.
Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e
polido nada, não se me espelhavam nem eles!
Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada,
despojara-me, ao termo, até
à
total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em
mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado? Então, o
que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal,
um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-
se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso
os raios luminosos e a face vazia do espelho-com rigorosa infidelidade. E, seria
assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças-o espírito do viver não
passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a
memória ..
154
Mas, o senhor estará achando que desvario e desoriento-me, confundindo o
físico, o hiperfísico e o transfísico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou
alinhamento lógico-na conta agora caio. Estará pensando que, do que eu disse, nada
se acerta, nada prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade, não seria mais que reles
obsessão auto-sugestiva, e o despropósito de pretender que psiquismo ou alma se
retratassem em espelho...
Dou-lhe razão. Há, porém que sou um mau contador, precipitando-me às
ilações antes dos fatos, e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos
bois. Releve-me. E deixe que o final de meu capítulo traga luzes ao até agora
aventado, canhestra e antecipadamente.
São sucessos muito de ordem íntima, de caráter assaz esquisito. Narro-os, sob
palavra, sob segredo. Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.
Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes,
de novo me defrontei-não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo
tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma
luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu
mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha,
aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser,
infira o senhor mesmo.
São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São
outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde-por último-num espelho.
Por ai, perdoe-me o detalhe, eu já amava-já aprendendo, isto seja, a conformidade a
alegria. E... Sim, vi a mim mesmo, de novo, meu rosto, não este, que
o
senhor
razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto-quase delineado, apenas-mal
emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que,
rostinho de menina, de menos-que-menino, só. Só. Seá que o senhor nunca
compreenderá?
Devia ou não devia contar-lhe por motivos de talvez. Do que digo, descubro,
deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Trebusco. Será este nosso desengonço e
mundo o plano-intersecção de planos-
onde se completam de fazer as almas?
Se sim, a "vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica-ou pelo
menos parte-exigindo o consciente alijamento, o
despojamento, de tudo o
que
obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o"salto mortale"... _digo-
o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de
155
toque e trimbre novos as comuns expressões amortecidas... E o julgamento-
problema, podendo sobrevir com a simples
pergunta:-''Você chegou a existir?"
Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruídas a concepção de vivemos
em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me
permite, espero, agora sua opinião, mesma, do senhor, sob, e tanto assunto. Solicito
os reparos que se digne dar-me, a mim, se o do senhor, recente amigo, mas com-
panheiro no amo da ciência, de seus transviados acertos e de
seus esbarros titubeados.
Sim?
Conto 12 Nada e a nossa condição
NA
MINHA
família, em minha terra, ninguém conheceu uma vez um homem,
de mais excelência que presença, que podia ter sido o velho rei ou o príncipe mais
moço, nas futuras estórias de fadas. Era fazendeiro e chamava-se Tio Man'Antônio.
Sua fazenda, cuja sede distava de qualquer outra talvez mesmo dez léguas,
dobrava-se na montanha, em muito erguido ponto e de onde o ar num máximo raio
se afinava translúcido: ali as manhãs dando de plano e, de tarde, os tintos roxo e rosa
no poente não dizendo de bom nem mau tempo. Essa fazenda, Tio Man'Antônio
tivera-a menos por herança que por compra; e tão apartado em si se conduzia
ele,
individuo e esquivo na conversa, que jamais quase a referisse pelo nome, mas, raro e
apenas, sobmaneira:_
“... Lá em casa... Vou para casa...”.
À
que-assombradada, alÍcerçada fundo, de tetos altos, longa, e com quantos
sem uso corredores e quartos, cheirando a fruta, flor, couro, madeiras, fubá fresco e
excremento de vaca-fazia face para o norte, entre o quintal de limoeiros e os currais,
que eram um ornato; e,
à
frente, escada de pau de quarenta degraus em dois lanças
levava ao espaço da varanda, onde, de um caibro, a um canto, pendia ainda a corda
do sino de outrora comandar os escravos assenzalados.
Tio Man'Antônio, esperava-o lá a mulher, Tia Liduína, de árdua e imemorial
cordura, certa para o nunca e sempre. E rodeavam-no as filhas, singelas, sérias,
cuidosas, como supridamente sentiam que o amavam. Salvavam-no, com invariável
sus'Jesus, desde bem antes da primeira cancela, diversidade de servos, gente
indígena, que por alhures e além estanciavam. Mas, ele, de cada vez, se
curvava, de
um jeito, para entrar, como se a elevada porta fosse acanhada e alheia,
156
convidadamente, aos bons abrigos. Vivia, feito tenção. Assim, a respeito dele,
muita real coisa ninguém sabia.
Só se de longe. Senão quando vinha, constante, serra acima, a retomar
viagem, galgando caminhos fragosos,
à
beira de despenhadeiros e crevassas-grotas
em tremenda altura. Da varanda, dado o dia diáfano, já ainda a distância de tanto e
légua avistavam-no, pontuando o claro do ar, em certas voltas de estrada, a apro-
ximar-se e desaproximar-se, sequer seqüente. Insistindo,
à
cavalga no burro forçoso
e manso, aos poucos avançava, Tio Man'Antônio, em rigoroso traje, ainda que a
ordinária roupa de brim cor de barro, pois que sempre em grau de reles libré; e sem
polainas nem botas, quiçá nem esporas. A tento, amiúde, distinguir-se-iam mesmo
seus omissos gestos principais: o de, vez em vez, fazer que afastava, devagar, de si,
quaisquer coisas; o de alisar com os dedos a testa, enquanto pensava o que não
pensava, propenso a tudo, afetando um cochilo. Nem olhasse mais a paisagem
Sim, se os cimos-onde a montanha abre asas-e as infernas gratas,
abismáticas, profundíssimas. Tanto contemplava-as, feito se, a elas, algo, algum
modo, de si, votivo, o melhor, ofertasse: esperança e expiação, sacrifícios, esforços-
à flor. Seria, por isso, um dia topasse, ao favorável, pelo tributo gratos, o Rei-das-
Montes ou o Rei-das-Crotas-que de tudo há e tudo a gente encontra? De si para si,
quem sabe, só o que inútil, novo e necessário, segredasse; ele consigo mesmo muito
se calava. Pois era assim que era, se; só estamos vivendo os futuros antanhos.
Demais não se ressentisse, também, de sequidão, solidão, calor ou frio, nem do
quotidiano desconforto tirava queixa. Mas debruçado, leve a cabecear, e com
cerrada boca, expirando ligeiro ofego. Debilitada a vista, nos tempos agora. Por
essa época, porém, sim; por uso. Olhava, com a seu nem ciente amor,
distantemente, fundos e cumes. Seduzível conheceu-se, ele, de encarar sempre o
tudo? Chegava, após íngremes horas e encostas.
Sua mulher, Tia Liduína, então morreu, quase de repente, no entrecorte de
um suspiro sem ai e uma ave-maria interrupta. Tio Man'Antônio, com nenhum
titubeio, mandou abrir, par em par,
portas e janelas, a longa, longa casa. Entre que as
filhas, orfanadas, se abraçavam, e revestia-se a amada morta, incôngruo visitou ele,
além ali, um pós um, quarto e quarto, cômodo e cômodo.
Pelas janelas, olhou; urgia a divagação. Passou a paisagem pela vista, só a
segmentos, serial, como dantes e ainda antes. De roda, na vislumbrança, o que dos
vales e serras vem é o que o horizonte é-tudo em tudo. Pois, noutro lanço de vista,
157
ele pegava a paisagem pelas costas: as sombras das grotas e a montanha prodigiosa,
a vanecer-se, sobre asas. Ajudavam-no, de volta, agora que delas precisava? Definia-
se, ele, ali, sem contradição nem resistência, a inquebrantar-se, desde quando de
futuro e passado mais não carecia. Talvez, murmurasse, de tão dentro em si, coisas
graves, grandes, sem som sem sentido.
Enfim, tornou para junto delas, de sua Liduína-imovelmente-ao século, como
a quisessem: num amontôo de flores. Suspensas, as filhas, de todo a o não entender,
mas adivinhar, dele a crédito vago esperassem, para o comum da dor, qualquer
socorro. Ele, por detrás de si mesmo, pondo-se de parte, em ambíguos âmbitos e
momentos, como se a vida fosse ocultáveI; não o conheceriam através de figuras.
Sendo que refez sua maciez; e era uma outra espécie, decorosa, de pessoa, de olhos
empalidecidamente azuis. Mas fino, inenganador, o
rosto, cinzento mereno.
Transluz-se que, fitando-o, agora, era como se súbito as filhas ganhassem
ainda, do secesso de seus olhos, o insabível curativo de uma graça, por quais
longínquos, indizíveis reflexos ou vestígios. Felícia, apenas, a mais jovem, clamou,
falando ao pai:- "Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá, para
a gente, algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança?" E ele, com muito
caso, no
devagar da resposta, suave a voz:- "Faz de conta, minha filha... Faz de
conta...” Entreentendidos, mais não esperaram. Cabisbaixara-se, Tio Man'Antônio,
no dizer essas palavras, que daí seriam as suas dele, sempre. Sobre o que, leve,
beijou a mulher. Então, as filhas e ele choraram; mas com o poder de uma liberdade,
que fosse qual mais forte e destemida esperança.
Tia Liduína, que durante anos de amor tinham-na visto todavia sorrir sobre
sofrer-só de ser, vexar-se e viver, como, ora, dá-se formava dolorida; falta ao uso de
afeto de todos. Tia Liduína, que já fina música e imagem.
Com ver, porém, que Tio Man'Antônio a andar de dó se recusasse, sensato
sem cuidados, intrágico, sem acentos viuvosos. Inaugurava-se grisalho, sim, um
tanto mais encolhidos os ombros. Ele -o transitório-só se diga, por esse enquanto.
Nada dizia, quando falava, às vezes a gente mal pensava que ele não se achasse lá,
de novo assim, sem som, sem pessoa. Ao revés, porém, Tio Man' Antônio concebia.-
"Faça-se de conta!" -ordenou, em hora, mansozinho. Um projeto, de se crer e obrar,
ele levantava. Um, que começaram.
Seus pés-na-chão muitos camaradas, luzindo a sol sim foices, enxadas,
facões, obedeciam-lhe, sequacíssimos, no que com talento de braços executavam,
158
leigos, ledas, lépidos. Mas ele guiava-os, muito cometido, pelos sabidos melhores
meios e fins, engenheiro e fazedor, varão de tantas partes; associava com eles, dava
coragem. –“Faz de conta, minha gente... Faz de conta... " -em seu bom sussurro,
lábios de entre-sorriso, mas severo, de si inflexível, que certo. Matinava, dia por dia,
impelindo-os, arrastando-os, de induscriação,
à
dobrada dobadoura, a derrubarem
mato e cortar árvores, no que era uma reformação-a boa data de trabalhos. Seja que
esses homens, esforçados e avindos, lerdos e mandriões, nem percebessem ali
sujeição e senhoria, senão que, de siso, estimavam-no, decerto, queriam-lhe como
quem. E em afã atacavam o inteiro rededor, que nem que medido em seqüentes
metros, acima e abaixo, com fórmulas e curvas.
À
Ieréia, aquilo, que não se entendendo por carecido ou útil, antes talvez
achassem em tudo ação de desconcernência, ar na cachimônia, tolice quase, a
impura perfunctura. Mas, Tio Man'Antônio, no se
é
o que
é
que é, as abas de palha
do chapelão abaixava, semicerrava olhos ao sol, suava, tem vez que tossia, a que
quando. Ele era um que sabia abanar a cabeça, que não, que sim. Isto, porém, que o
encoberto dele a todos se impunha, separativo. Acordado, querente, via-se. Senão
que, homem, e, como todo homem, de fracos ossos? Outra, contudo, parecendo ser a
razão por que não se cansava nunca, naquela manência, indiferentes horas. Porque
fazia ou sofria as coisas, sem parar, mas não estava, dentro em sua mente, em tudo e
nada ocupado.
De arte que inventava outro sorrir, refeito ingênuo; esquecera-se de todos os
bens passados. E seu surdo plano, enfim, no dia, se fechou. De sorte que as filhas
viram que já tudo estava pronto; e se contristaram.
Com que-e por que idéia ingrata e estranhável-pretendera ele de desmanchar
o aspecto do lugar, que de desde a antiguidade, a fisionomia daquelas rampas de
serras, que a Mãe vira e quisera? No desbaste, rente em redor, com efeito, nada se
poupara-nem o mato lajeiro, tufos ticos de moitas, e arbustos-onde ali tudo se
escampava. A ponto isto foi, de interpelá-la a filha dileta, Francisquinha, aflita
meigamente. Se não seria aquilo arrefecido sentimento, pecar contra a saudade?
Assim ele muito a ouviu, e, com quieto estar mirando-a, respondeu-lhe, se
bem que outro tanto alheio, alhures.-"Nem tanto, filha... Nem tanto... " Donde que,
ao passo que o dizia, quem sabe, em segundo soslaio, sorria, sem passar de palavra a
outra palavra. Mostrou-lhes: lá os campos em desdobra-o que limpo, livre, se
159
estendia, em quadro largo, sem sombrios, aberta a paisagem-o descampado airoso e
verde, ao mais verde grau, os capins naquela vivacidade.
Ah!-ora, que e quem, pois-e era uma enonne, feita fantasia. Porque, aquém e
além, como árvores deixadas para darem sombra aos bois no ruminar do calor, só e
muito se divisavam, consagradas, a vistosa sapucaia formidável, a sambaíba
sertaneja
à
borda da sorocaba, e, para fevereiro-março e junho-julho, sem folhas,
sendo-se só de fIores, a barrigudasea e a paineira purpúrea-quase-rubra,
magnificentes, respectivas. Outras, outras. Mas, não mais, no qual lugar, que aquelas
que Tia Liduína em vida preferira amar-seus bens de alegria!
Surpreenderam-se, as filhas, ampliaram assaz os olhos. Falava-se muito em
pouco; só se lágrimas. Realmente, reto Tio Man'Antônio se semelhasse, agora, de ter
sido e vir a ser. E de existir-principalmente-vestido de funesto e intimado de
venturoso.
Que, não
é
que, em seu dito cuidar e encaprichar-se, sem querer também
profetizara, nos negócios, e fora adivinho. Porque subiu, na ocasião, considerável, de
repente, o preço do gado, os fazendeiros todos querendo adquirir mais bois e
arrumar e aumentar seus pastos. Tio Man'Antônio, então, daquele solerte jeito,
acertara tão em pleno, passando-lhes
à
frente e sem nenhum alarde. Do que, manso
tanto, ele se desdenhava? Passara a atentar também nas verdes próximas vertentes
em campina, de olhos postos; que não apenas na montanha: alta-como
conseqüências de nenhum ato.
Nada leva a não crer, por aí que ele não se movesse, prático, como os mais;
mas, conforme a si mesmo: de transparência em transparência. Avançava, assim,
com honesta astúcia, se viu, no que quis e fez? No outro ano e depois, quando,
à
arte
de contristes celebrarem, como se fosse ela viva e presente, o dia de Tia Liduína,
propôs uma festa, e para enganar os fados.
Que deu, as filhas concordando. Elas estavam crescidas e esclarecidas.
Vieram moços, primos, esses tinham belas imaginações. Tio Man'Antônio
recebendo-os e vendo-os, a beneplácito. E as filhas, formosas, três, cada uma
incomparável, noivaram e se casaram, em breve os desposórios. Vai, foram-se, de lá,
para longes diversos, com os genros de Tio Man'Antônio. Ele, permaneceu, de
outrora a hoje-em-diante, ficou, que. Ali, em sua velha e erma casa, sob azuis, picos
píncaros e desmedidas escarpas, sobre precipícios de paredões, grotôes e alcantis
abismosos-feita uma mansão suspensa-no pérvio.
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Três, as filhas, que por amor de anos ele tinha visto renovarem a descoberta
de alegria e alma-só de ser, viver e crescer, como, ora, se dá-formavam sentida falta
ao seu querer de ternura experiente? Suas filhas, que já indivisas partes de uma
canção.
Sozinho, sim, não triste. Tio Man'Antônio respeitava, no tangimento, a
movida e muda matéria; mesmo em seu mais costumeiro gesto-que era o de como se
largasse tudo de suas mãos, qualquer objeto. Distraído, porém, acarinhando-as,
redimia-as, de outro modo, às coisas comezinhas? Vez, vez, entanto, e quando mais
em forças de contente bem-estar se sentindo, então, dispostamente, ele se levantava,
submetia-se, sem sabida precisão, a algum rude, duro trabalho-chuva, sol, ação.
Parecia lhe como se o mundo-no-mundo lhe estivesse ordenando ou implorando,
necessitado, um pouco dele mesmo, a seminar-se?
Ou-a
si-ia buscar-se, no futuro,
nas asas da montanha. Fazia de conta; e confiava, nas calmas e nos ventos.
Tanto tempo que isto, mostrava-se ele ainda não achacoso, em seu infatigado
viver e inquebrantável moleza; nem ainda encanecido, como o florir do ingazeiro,
conforme viria a ficar, pelo depois.
Tão próspero em seus dias, podia larguear, tinha o campo coberto de bois.
Tudo se inestimava, porém, para Tio Man'Antônio, ali, onde, tudo o que não era
demais, eram humanas fragilidades. Apreendesse o poder de conversar, em surdo e
agudo, as relações dos acontecimentos, dos fatos; e dissuadia-se de tudo-das coisas,
em multidão, misérias. Ele-o transitoriante. Realmente, seu pensamento não voltava
atrás? Mas, mais causas, no mundo e em si, ele, à esperança, em sua circunvisão,
condenado, descobria.
Em termos muito gerais, haveria uma mor justiça; mister seria.
Se o paiol limpo se deve de, para as grandes colheitas: como a metade pede o
todo e o vazio chama o cheio. E foi o que Tio Man'Antônio algum dia resolveu,
conseguintemente assim, se crê. Deveras, aquilo se deu. O que foi uma muito
remexida história. E eis. E pois.
Aos poucos, a diverso tempo, às partes, entre seus muitos, descalços servos,
pretos, brancos, mulatos, pardos, leguelhés prequetés, enxadeiros, vaqueiros e
camaradas-os próximos-nunca sediciosos, então Tio Man'Antônio doou e distribuiu
suas terras. Sim, tudo procedido à quieta, sob espécie, com o industrio de silêncios, a
fim de logo não se espevitar todo-o-mundo em cobiça, ao espalhar-se o saber do que
agora se liberalizava ali, em tanta e tão espantosa maneira.
161
E ele mesmo, de seu dinheiro ganho, fingia estar vendendo as terras,
cabidamente; dinheiro que mandava, pontual, às filhas e genros, sendo-lhes levado
recado, para fazer crer. Ainda bem que genros e filhas nada querendo mais ter com
aquela a-pique difícil fazenda, do Torto-Alto, senão que mesmo pronto retalhada e
ven
dida, de uma ou vêzes. A que, contudo, era a terra das terras, dele -e fria e clara.
Aí, Tio Man'Antônio não pensava o que pensava. Amerceamento justo-ou era a
loucura e tanta? O grande movimento é a volta. Agora, pelos anos adiante, ele não seria
dono mais de nada, com que estender cuidados. A quem e de quem os fundos perigosos do
mundo e os às-nuvens pináculos dos montes?- "Faz de conta, gente minha... Faz de conta
...” -era o que dava, e quando, embora, no que em dizer essas palavras; não sorria, sengo.
Seus tantos servos, os benevolenciados, irreconheciam-no. Vai, ao ver, porém, que
valia, a dádiva, rejubilavam-se de rir, mesmo assustados, lentos puladores, se abençoando.
Seus muitos, sequazes homens, que, durante o ignorar de anos, não os tinha de
verdade visto consistir-só de ser, servir e viver, como ora e sempre se dá-faziam agora
falta á sua necessidade de desígnio? Seus homens, já exigidas partes de um texto, sem
decifração.
E tudo Tio Man'Antônio deixando por escrito, da própria e ainda firme mão
exarada, feita se em termos de ajuste, conforme quis e pôs; e, quanto a razões e
congruências, tendo em vista o parecer do vulgo e as contradições gerais, para matar a
dúvida. Em engenhada vigilância, parecia adivinhar o de que seus ex-servidores e ora
companheiros pudessem ver-se acusados, pelo que, mais tarde, em rubro serão, viria
grandemente a suceder, que se verá. Cuidou disso resguardá-los, mediante declaração a
tinta, por trás da data, tempos antes do depois.
De seu, nada conservara, a não ser a antiga, forme e enorme casa, naquela
eminência arejada, edifício de prospecto decoroso e espaçoso: e de onde o tamanho do
mundo se fazia maior, transclaro, sempre com um fundo de engano, em seus ocultos
fundamentos. Nada. Talvez não. Fazia de conta nada ter; fazia-se, a si mesmo, de conta.
Aos outros-amasse-os-não os compreendesse.
Faziam de conta que eram donos, esses outros, se acostumavam. Não o
compreendiam. Não o amavam, seguramente, já que sempre teriam de temer sua oculta
pessoa e respeitar seu valimento, ele em paço acastelado, sempre majestade. Por que,
então não se iaembora então, de toda vez, o caduco maluco estafermo, espantalho? Sábio,
sedentariado, queria que progredissem e não se perdessem, vigiava-os, de graça ainda
162
administrava-os, deles gestor, capataz, rendeiro. Serviam-no, ainda e mesmo assim. Mas,
decerto, milenar e animalmente, o odiavam.
Tio Man'Antônio, rumo a tudo, à senha do secreto, se afastava -dele a ele e nele.
Nada interrogava mais-horizonte e enfim-de cume a cume. Pelo que vivia, tempo
agüentado, ele fazia, alta e serena, fortemente, o não-fazer-nada, acertando-se ao vazio, à
redesimportância; e pensava o que pensava. Se de nunca, se de quando.
Em meio ao que, àquilo, deu-se. Deu-o indeciso passo, o que não se pode seguir
em idéia. Morreu, como se por um furo de agulha um fio. Morreu; fez de conta. Neste
ponto, acharam-no, na rede, no quarto menor, sozinho de amigo ou amor-transitoriador-
príncipe e só, criatura do mundo.
Ai-de, ao horror de tanto, atontavam-se e calaram-se, todos, no amedronto de que
um homem desses, serafim, no leixamento pudesse finar-se; e temessem, com sagrado
espanto e quase de não de seu ciente ódio, que, por via de tal falecer, enormidade de males
e absurdos castigos vingassem a se desencadear, recairiam desabados sobre eles e seus
filhos.
Desde, porém, porque morreu, deviam reverenciá-la, honrando-o no usual-corpo,
humano e hereditário, menos que trôpego. Acenderam-se em quadro as grandes velas, ele
num duro terno de sarja cor de ameixa e em pretas botas achadas, colocado longo na mesa,
na maior sala da Casa, já requiescante. E tinham ainda de expedir positivos e recados, para
que mais gente viesse, toda, parentes e ausentes, os possíveis, avizinhados e distantes.
Chorou-se, também, na varanda. Tocou-se o sino.
A obrigação cumprida à justa, à noitinha incendiou-se de repente a Casa, que
desaparecia. Outros, também, à hora, por certo que lá dentro deveriam de ter estado; mas
porém ninguém.
Assim, a vermelha fogueira, tresenorme, que dias iria durar, mor subia e rodava, no
que estalava, septo a septo, coisa a coisa, alentada, de plena evidência. Suas labaredas a
cada usto agitando
um vento, alto sacudindo no ar as poeiras de estrume dos currais, que
também se queimavam, e assim a quadraginta escada, o quente jardim dos limoeiros.
Derramados, em raio de légua, pelo ar, fogo, faúlhas e restos, por pirambeiras, gargantas e
cavernas, como se, esplendidissimamente, tão vã e vagalhã, sobre asas, a montanha inteira
ardesse. O que era luzência, a clara, incôngrua claridade, seu tétrico radiar, o qual
traspassava a noite.
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Ante e perante, à distância, em roda, mulheres se ajoelhavam, e homens que
pulando gritavam, sebestos, diabruras, aos miasmas, indivíduos. De cara no chão se
prostravam, pedindo algo e nada, precisados de paz.
Até que, ele, defunto, consumiu-se a cinzas-e, por elas, após, ainda encaminhou-se,
senhor, para a terra, gleba tumular, só; como as conseqüências de mil atos,
continuadamente.
Ele-que como que no Destinado se convertera-Man'Antônio, meu Tio.
CONTO 13 O cavalo que bebia cerveja
ESSA chácara do homem ficava meio ocultada, escurecida pelas árvores, que
nunca se viu plantar tamanhas tantas em roda de uma casa. Era homem estrangeiro.
De minha mãe ouvi como, no ano da espanhola, ele chegou, acautelado e espantado,
para adquirir aquele lugar de todo de fendimento, e a morada, donde de qualquer
janela alcançasse de vigiar a distância, mãos na espingarda; nesse tempo, não sendo
ainda tão gordo, de fazer nojo. Falavam que comia a quanta imundície: caramujo, até
rã, com as braçadas de alfaces, embebidas num balde de água. Ver, que almoçava e
jantava, da parte de fora, sentado na soleira da porta, o balde entre suas grossas
pernas, no chão, mais as alfaces; tirante que, a carne, essa, legítima de vaca,
cozinhada. Demais gastasse era com cerveja, que não bebia à vista da gente. Eu pas-
sava por lá, ele me pedia:- “Irivalíni, bisonha outra garrafa,
é
para o cavalo...” Não
gosto de perguntar, não achava graça
. Às vezes eu não trazia, às vezes trazia, e ele
me indenizava o dinheiro, me gratificando. Tudo nele me dava raiva
. Não aprendia a
referir meu nome direito. Desfeita ou ofensa, não sou o de perdoar-a nenhum de
nenhuma.
Minha mãe e eu sendo das poucas pessoas que atravessávamos por diante da
porteira, para pegar a pinguela do riacho.- “Dei'stá, coitado, penou na guerra...” -
minha mãe explicando. Ele se rodeava de diversos cachorros, graúdos, para vigiarem
a chácara. De um, mesmo não gostasse, a gente via, o bicho em sustos, antipático-o
menos bem tratado; e que fazia, ainda assim, por não se arredar de ao pé dele, que
estava, a toda a hora, de desprezo, chamando o endiabrado do cão: por nome”
Mussulino". Eu remoía o rancor: de que, um homem desses, cogotudo, panturro,
rouco de catarros, estrangeiro às náuseas-se era justo que possuísse o dinheiro e
estado, vindo comprar terra cristã, sem honrar a pobreza dos outros, e
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encomendando dúzias de cerveja, para pronunciar a
feia fala. Cerveja? Pelo fato,
tivesse seus cavalos, os quatro ou três, sempre descansados, neles não amontava,
nem agüentasse montar. Nem caminhar, quase, não conseguia. Cabrão! Parava
pitando, uns charutos pequenos, catinguentos, muito mascados e babados. Merecia
um bom corrigimento. Sujeito sistemático, com sua casa fechada, pensasse que todo
o mundo era ladrão.
Isto
é,
minha mãe ele estimava, tratava com as benevolências. Comigo, não
adiantava-não dispunha de minha ira. Nem quando minha mãe grave adoeceu, e ele
ofertou dinheiro, para os remédios. Aceitei; quem é que vive de não? Mas não
agradeci. Decerto ele tinha remorso, de ser estrangeiro e rico. E, mesmo, não
adiantou, a santa de minha mãe se foi para as escuridões, o danado do homem se
dando de pagar o enterro. Depois, indagou se eu queria vir trabalhar para ele.
Sofismei, o quê. Sabia que sou sem temor, em meus altos, e que enfrento uns e
outros, no lugar a gente pouco me encarava. Só se fosse para ter a minha proteção,
dia e noite, contra os issos e vindiços. Tanto, que não me deu nem meio serviço por
cumprir, senão que eu era para burliquear por lá, contanto que com as armas. Mas,
as compras para ele, eu fazia.- “Cerveja, Irivalíni. É para o cavalo ...”-o que dizia, a
sério, naquela língua de bater ovos. Tomara ele me xingasse! Aquele homem ainda
havia de me ver.
Do que mais estranhei, foram esses encobrimentos. Na casa, grande, antiga,
trancada de noite e de dia, não se entrava; nem para comer, nem para cozinhar. Tudo
se passava da banda de cá das portas. Ele mesmo, figuro que raras vezes por lá se
introduzia, a não ser para dormir, ou para guardar a cerveja-ah, ah, ah-a que era para
o cavalo. E eu, comigo:-"Tu espera, porco, para se, mais dia menos dia, eu não estou
bem aí, no haja o que há!' Seja que, por essa altura, eu devia ter procurado as
corretas pessoas, narrar os absurdos, pedindo providências, soprar minhas dúvidas.
O
que fácil não fiz. Sou de nem palavras. Mas, por aí, também, apareceram aqueles-
os de fora.
Sonsos os dois homens, vindos da capital. Quem para eles me chamou, foi o
seo Priscílio, subdelegado. Me disse:-"Reivalino Belarmino, estes aqui são de
autoridade, por ponto de confiança." E os de fora, me pegando
à
parte, puxaram por
mim, às muitas perguntas. Tudo, para tirar tradição do homem, queriam saber, em
pautas ninharias. Tolerei que sim; mas nada não fornecendo. Quem sou eu, quati,
para cachorro me latir? Só cismei escrúpulos, pelas más caras desses, sujeitos
165
embuçados, salafrados também. Mas, me pagaram, o bom quanto. O principal deles
dois, o de mão no queixo, me encarregou: que, meu patrão, sendo homem muito pe-
rigoso, se ele vivia mesmo sozinho? E que eu reparasse, na primeira ocasião, se ele
não tinha numa perna, em baixo, sinal velho de coleira, argolão de ferro, de
criminoso fugido de prisão. Pois sim, piei prometi.
Perigoso, para mim?-ah, ah. Pelo que, vá, em sua mocidade, podendo ter sido
homem. Mas, agora, em pança, regalão, remanchão, somente quisesse a cerveja-para
o cavalo. Desgraçado, dele. Não que eu me queixasse, por mim, que nunca apreciei
cerveja; gostasse, comprava, bebia, ou pedia, ele mesmo me dava. Ele falava que
também não gostava, não. De verdade. Consumia só a quantidade de alfaces, com
carne, boquicheío, enjooso, mediante muito azeite, lambia que espumava. Por
derradeiro, estava meio estramontado, soubesse da vinda dos de fora? Marca de
escravo em perna dele, não observei, nem fiz por isso. Sou lá serviçal de meirinho-
mor, desses, escogitados, de tantos visares? Mas eu queria jeito de entender, nem que
por uma fresta, aquela casa, debaixo de chaves, espreitada. Os cachorros já estando
mansos amigáveis. Mas, parece que seo Giovânio desconfiou. Pois, por minha hora
de surpresa, me chamou, abriu a porta. Lá dentro, até fedia a coisa sempre em tampa,
não dava bom ar. A sala, grande, vazia de qualquer amobiliado, só para espaços. Ele,
nem que de propósito, me deixou olhar à minha conta, andou comigo, por diversos
cômodos, me satisfiz. Ah, mas, depois, cá comigo, ganhei conselho,
ao fim da idéia:
e os quartos? Havia muitos desses, eu não tinha entrado em todos, resguardados. Por
detrás de alguma daquelas portas, pressenti bafo de presença-só mais tarde? Ah, o
carcamano queria se birbar de esperto; e eu não era mais?
Demais que, uns dias depois, se soube de ouvidos, tarde da noite, diferentes
vezes, galopes no ermo da várzea, de cavaleiro saído da porteira da chácara. Pudesse
ser? Então, o homem tanto me enganava, de formar uma fantasmagoria, de
lobisomem. Só aquela divagação, que eu não acabava de entender, para dar razão de
alguma coisa: se ele tivesse, mesmo, um estranho cavalo, sempre escondido ali
dentro, no escuro da casa?
Seo Priscílio me chamou, justo, outra vez, naquela semana. Os de fora
estavam lá, de colondria, só entrei a meio na conversa; um deles dois, escutei que
trabalhava para o "Consulado". Mas contei tudo, ou tanto, por vingança, com muito
caso. Os de fora, então, instaram com seo Priscílio. Eles queriam permanecer no
oculto, seo Priscílio devia de ir sozinho. Mais me pagaram.
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Eu estava por ali, fingindo não ser nem saber, de mão-posta.
Seo Priscílio apareceu, falou com seo Giovânio: se que estórias seriam
aquelas, de um cavalo beber cerveja? Apurava com ele, apertava. Seo Giovânio
permanecia muito cansado, sacudia devagar a cabeça, fungando o escorrido do nariz,
até o toco do charuto; mas não fez mau rosto ao outro. Passou muito a mão na testa:-
"Lei, quer ver?" Saiu, para surgir com um cesto com as garrafas cheias, e uma
gamela, nela despejou tudo, às espumas. Me mandou buscar o cavalo: o alazão
canela-clara, bela-face. O qual-era de se dar a fé?-já avançou, avispado, de atreitas
orelhas, arredondando as ventas, se lambendo: e grosso bebeu o rumor daquilo,
gostado, até o fundo; a gente vendo que ele já era manhudo, cevado naquilo! Quando
era que tinha sido ensinado, possível? Pois, o cavalo ainda queria mais e mais
cerveja. Seo Priscílio se vexava, no que agradeceu e se foi. Meu patrão assoviou de
esguicho, olhou para mim:"Irivalíni, que estes tempos vão cambiando mal. Não laxa
as armas!" Aprovei. Sorri de que ele tivesse as todas manhas e patranhas.
Mesmo assim, meio me desgostava.
Sobre o tanto, quando os de fora tornaram a vir, eu falei, o que eu especulava:
que alguma outra razão devia de haver, nos quartos da casa. Seo Priscílio, dessa vez,
veio com um soldado. Só pronunciou: que queria revistar os cômodos, pela justiça!
Seo Giovânio, em pé de paz, acendeu outro charuto, ele estava sempre cordo. Abriu a
casa, para seo Priscílio entrar, o soldado; eu, também. Os quartos? Foi direto a um,
que estava duro de trancado. O do pasmoso: que, ali dentro, enorme, só tinha o
singular-isto
é,
a coisa a não existir!-um cavalão branco, empalhado. Tão perfeito, a
cara quadrada, que nem um de brinquedo, de menino; reclaro, branquinho, limpo,
crinado e ancudo, alto feito um de igreja-cavalo de São Jorge. Como podiam ter
trazido aquilo, ou mandado vir, e entrado ali acondicionado? Seo Priscílio se
desenxaviu, sobre toda a admiração. Apalpou ainda o cavalo, muito, não achando nele
oco nem contento. Seo Giovânio, no que ficou sozinho comigo, mascou o charuto:-
"Irivalíni, pecado que nós dois não gostemos de cerveja, hem?" Eu aprovei. Tive a
vontade de contar a ele o que por detrás estava se passando.
Seo Priscílio, e os de fora, estivessem agora purgados de curiosidades. Mas eu
não tirava o sentido
disto: e os outros quartos, da casa, o atrás de portas? Deviam ter
dado a busca por inteiro, nela, de uma vez. Seja que eu não ia lembrar esse rumo a
eles, não sou mestre de quinaus.· Seo Giovânio conversava mais comigo, banzativo:-
"Irivalíni, eco, a vida
é
bruta, os homens são cativos... "Eu não queria perguntar a
167
respeito do cavalo branco, frioleiras, devia de ter sido o dele, na guerra, de suma
estimação.- "Mas, Irivalíni, nós gostamos demais da vida... "Queria que eu comesse
com ele, mas o nariz dele pingava, o ranho daquele monco, fungando, em mal assôo, e
ele fedia a charuto, por todo lado. Coisa terrível, assistir aquele homem, no não dizer
suas lástimas. Saí, então, fui no seo Priscílio, falei: que eu não queria saber de nada,
daqueles, os de fora, de coscuvilho, nem jogar com o pau de dois bicos! Se tornassem
a vir, eu corria com eles, despauterava, escaramuçava-alto aí!-isto aqui é Brasil, eles
também eram estrangeiros. Sou para sacar faca e arma. Seo Priscílio sabia. Só não
soubesse das surpresas.
Sendo que foi de repente. Seo Giovânio abriu de em par a casa. Me chamou:
na sala, no meio do chão, jazia um corpo de homem, debaixo de lençol.-"Josepe,
meu irmão"... -ele me disse, embargado. Quis o padre, quis o sino da igreja para
badalar as vezes dos três dobres, para o tristemente. Ninguém tinha sabido nunca o
qual irmão, o que se fechava escondido, em fuga da comunicação das pessoas.
Aquele enterro foi muito conceituado. Seo Giovânio pudesse se gabar, ante todos.
Só que, antes, seo Priscílio chegou, figuro que os de fora a ele tinham prometido
dinheiro; exigiu que se levantasse o lençol, para examinar. Mas, aí, se viu só o
horror, de nós todos, com caridade de olhos: o morto não tinha cara, a bem dizer-só
um buracão, enorme, cicatrizado antigo, medonho, sem nariz, sem faces-a gente
devassava alvos ossos, o começo da goela, gargomilhos, golas.-"Que esta é a
guerra... "seu Giovânio explicou-boca de bobo, que se esqueceu de fechar, toda
doçuras.
Agora, eu queria tomar rumo, ir puxando, ali não me servia mais, na chácara
estúrdia e desditosa, com o escuro das árvores, tão em volta. Seo Giovânio estava da
banda de fora, conforme seu costume de tantos anos. Mais achacoso, envelhecido,
subitamente, no trespassamento da manifesta dor. Mas comia, sua carne, as cabeças
de alfaces, no balde, fungava.- "lrivalíni. " que esta vida... bisonha, Caspité?" -
perguntava, em todo tom de canto. Ele avermelhadamente me olhava.-"Cá eu pisco...
" -respondi. Não por nojo, não dei um abraço nele, por vergonha, para não ter
também as vistas lagrimadas. E, então, ele fez a mais extravagadà coisa: abriu
cerveja, a que quanta se espumejasse.- "Andamos, lrivalíni, contadino, bambino?" -
propôs. Eu quis. Aos copos, aos vintes e trintas, eu ia por aquela cerveja, toda.
Sereno, ele me pediu para levar comigo, no ir-m'embora, o cavalo-alazão bebedor-e
aquele tristos o cachorro magro, :Mussulino.
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Não avistei mais o meu Patrão. Soube que ele morreu, quando em testamento
deixou a chácara para mim. Mandei erguer sepulturas, dizer as missas, por ele, pelo
irmão, por minha mãe. Mandei vender o lugar, mas, primeiro, cortarem abaixo as
árvores, e enterrar no campo o trem, que se achava, naquele referido quarto.
nunca voltei. Não, que não me esqueço daquele dado dia-o que foi uma compaixão. Nós
dois, e as muitas, muitas garrafas, na hora cismei que um outro ainda vinha sobrevir, por
detrás da gente, também, por sua parte: o alazão façalvo; ou o branco enorme, de São
Jorge; ou o irmão, infeliz medonhamente. Ilusão, que foi, nenhum ali não estava. Eu,
Reivalino Belarmino, capisquei. Vim bebendo as garrafas todas, que restavam, faço que
fui eu que tomei consumida a cerveja toda daquela casa, para fecho de engano.
CONTO 14 um moço muito branco
Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca do Serra Frio, em Minas Gerais,
deram-se latos de pavoroso suceder, referidos nas folhas da época e exarados nas
Efemérides. Dito que um fenômeno luminoso se projetou no espaço, seguido de estrondos,
e a terra se abalou, num terremoto que sacudiu os altos, quebrou e entulhou casas,
remexeu vales, matou gente sem
conta; caiu outrossim medonho temporal, com
assombrosa e jamais vista inundação, subindo as águas de rio e córregos a sessenta
palmos da plana. Após os cataclismos, confirmou-se que o terreno, em raio de légua,
mudara de feições: só escombros de morros, grotas escancaradas, riachos longe
transportados, matos revirados pelas raízes, solevados novos montes e rochedos,
fazenda sovertidas sem resto-rolamentos de pedra e lama tapando o estado do chão.
Mesmo a distância do astroso arredor, a muita criatura e criação pereceu, soterradas
ou afogadas. Outros vagavam ao deus
-dar, nem sabendo mais, no avesso, os caminhos
de outrora.
Donde, no termo de semana, dia de São Félix, confessor, o caso de vir ao pátio
da Fazenda do Casco, de Hilário Cordeiro, com sede quase dentro da rua do Arraial
do Oratório, um coitado fugitivo desses, decerto persuadido da fome; o moço, pasmo.
O que foi quando subitamente, e era moço de distintas formas, mas em lástima de
condições, sem o restante de trapos com que se compor, pelo que enrolado em pano,
espécie de manta de cobrir cavalos, achada não se supõe onde; e, assim em acanho,
foi ele avistado, de muito manhã, aparecendo e se escondendo por detrás do cercado
das vacas. Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve,
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semidourado de luz; figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade.
Sobremodo se assemelhava a esses estrangeiros que a gente não depara nem nunca
viu; fazia para si outra raça. Seja que da maneira ainda hoje se conta, mas trans-
tornado incerto, pelo decorrer do tempo, porquanto narrado por filhos ou netos dos
que eram rapazes, quer ver que meninos, quando em boa hora o conheceram.
Hilário Cordeiro, sendo homem cordial para os pobres, temente e bom, e mais
ainda nesse pós-tempo de calamidade, em que parentes dele mesmo tinham sofrido
morte e arrasas totais, não duvidou em lhe deferir hospedamento, cuidando de
adequar-lhe roupa e batinas, desde lhe dar o de comer. E o que era mister de bene-
merência, porquanto o moço, com os sustos e baques, passara por desgraça
extraordinária: perdida a completa memória de si, sua pessoa, além do uso da fala.
Esse moço, pois, para ele sendo igual matéria o futuro que o passado? Nada ouvindo,
não respondia, nem que não, nem que sim; o que era coisa de compaixão e
lamentosa. Nem fizesse por entender, isto é, entendia, às vezes ao contrário, os
gestos. Dado que uma graça já devia de ter, não se lhe podia pôr outro nome, não
adivinhado; nem se soubesse de que geração fosse-o filho de nenhum homem.
De tanto que chegou lá, e nos dias, compareceram os vários moradores, por
sua causa, de há de o que achassem. Tonto, não era. Só aquela intenção sonhosa, o
certo cansaço do ar. Surpreendente, contudo, o que assaz observava, resguardado, até
espreitasse por miúdo os vezos de coisas e pessoas; o que, porém, melhor se viu pelo
depois. Gostou-se dele. Quiçá mais o preto José Kakende, escravo meio aIforriado de
um músico sem juízo, e ele próprio de idéia conturbada; por último, então, delirado
varrido, pelo fato de padecidos os grandes pavores, no lugar do Condado: girava
agora por aqui e ali, a pronunciar advertências e desorbitadas sandices-querendo pôr
em pé de verdade portentosa aparição que teria enxergado, nas margens do Rio do
Peixe, na véspera das catástrofes. Do moço, pois, só não se engraçou, antes já de
abinício o malquerendo-e o reputando por vago e malfeitor a rebuço, digno, noutros
tempos, de degredo em África e nos ferros de el-rei-um chamado Duarte Dias, pai da
mais bela moça, por nome Viviana; e do qual se sabia ser homem de gênio forte,
além de maligno e
injusto, sobre prepotências: naquele coração não caía nunca uma
chuvinha. Não se lhe deu exata atenção.
Mas levaram o moço
à
missa, e ele portou-se, não fez modos de crer nem
increr. Cantaria e músicas do coro, escutasse, no sério sentimental. Triste, dito,
não; mas: como se conseguisse, em si, mais saudade que as demais pessoas,
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saudade inteirada, a salvo do entendimento, e que por tanto se apurava numa maior
alegriacoração de cão com dono. Seu sorriso às vezes parava, referido a outro
lugar, outro tempo. Sorrindo mais com o rosto, senão com os olhos; suposto que
nunca se lhe viram os dentes. Padre Bayão, antes de com ele bondosamente
conferir, de improviso lhe representou diante o signo-da-cruz: e ele não mostrou o
desagrado da matéria. Estava nas altas atmosferas, aumentava sua presença.
"Comparados com ele, nós todos, comuns, temos os semblantes duros e o aspecto
de má fadiga constante". Traços estes consignados pelo mesmo padre, em carta de
punho e firma, para testemunho do esquisito, ao cônego Lessa Cadaval, da Sé de
Mariana. Na qual igualmente dá menção do prêto José Kakende, que na mesma
ocasião se lhe acercou, com altas e despauteradas falas, por impor sua visão da
beira do rio:... “o rojo de vento e grandeza de nuvem, em resplandor, e nela, entre
fogo, se movendo uma artimanha amarelo-escura, avo ante trem, chato e redondo,
com redoma de vidro sobreposta, azulosa, e que, pousando, de dentro, desceram os
Arcanjos, mediante rodas, labaredas e rumôres". E, com o mesmo risonho José
Kakende, veio Hilário Cordeiro trazendo de volta para casa o môço, num extrato
de desvelo, como
se o vero pai dele fosse.
Mas
à
porta da igreja se achava um cego, Nicolau, pedidor, o qual, o moço
em o vendo, olhou-o sem medida e entregadamente-contam que seus olhos eram
cor-de-rosa!-e foi em direitura a ele, dando-lhe rápida partícula, tirada da algibeira.
Ora, estando o cego debaixo do sol, e corrido de suor, a almas cristãs devia de
causar meditação o contraste de tanto padecer o calor do astro-rei aquele que nem
as belezas da luz podia gozar. O cego, apalpando a dádiva na mão, em guisa de
cogitar em que estúrdia casta de moeda ela consistisse, e se dissertando logo que
nenhuma, a levou
prestes
à
boca; ao que, seu menino guia o advertiu: que não seria
artigo de se comer, mas espécie de caroço de árvore. Então o cego guardou, com
irados ciúmes e por diversos meses, aquela semente, que só foi plantada após o
remate dos fatos aqui ainda por narrar: e deu um azulado pé de flor, da mais rara e
inesperada: com entreaspecto de serem várias flores numa única, entremeadas de
maneira impossível, num primor confuso, e, as cores, ninguém a respeito delas
concordou, por desconhecidas no século; definhada, com pouco, e secada, sem
produzir outras sementes nem mudas, e nem os insetos a sabiam procurar.
171
No que, porém, acabada de se passar aquela cena, surgia no adro Duarte Dias,
mais uns companheiros e serviçais, para opor a surpresa de uma exigência e fazer
problema: queria carregar consigo o moço, sobre fundamento de que, pela brancura
da
tez
e delicadezas mais, devia de ser um dos Rezendes, seus parentes,
desaparecidos no Condado, no terremoto; e que, pois, até o reconhecimento de
alguma notícia, competia-lhe o ter em custódia, pelo costume. Sendo que Hilário
Cordeiro pronto contestou o postulado, e o argumento por um nada terminava em
desavença séria, Duarte Dias porfiando e se excedendo, do que só tornou em si ante o
parecer de Quincas Mendanha, do Serro, notável na política e provedor da
Irmandade.
E, todavia, de seu zelo, mais para diante, Hilário Cordeiro iria ter melhor
razão, eis que tudo lhe passou a dar sorte, quer na saúde e paz, em sua casa, seja no
assaz prosperar dos negócios, cabedais e haveres. E não que o moço lhe facultasse
ajuda, na sujeição de serviço ou no vagar a algum ofício, em que, de feito, nem
pudesse dar descargo de si-com as mãos não calejadas, alvas e finas, de homem-de-
palácio. Ele andava muito na lua, passeava por todo o lugar e alhonde, praticando
aquela liberdade vaporosa e o espírito de solidão; parecesse alquebrado de um feitiço,
segundo os dizeres do povo. Não embargando que grandes partes tivesse, para o que
fosse de funções de engenhos, ferramentas e máquinas, ao que se prestava, fazendo
muitas invenções e desembaraçando as ocasiões, ladino, cuidoso e acordado. De
estranha memória, só, pois, a de olhar ele sempre para cima, o mesmo para o dia que
para a noite-espiador de estrelas. Que vezes, porém, mais lhe prouvesse o
divertimento de acender fogos, sendo de reparo o quanto se influiu, pelo São João,
nas tantas e tamanhas fogueiras de festa.
Do que adveio, justo, o caso da moça Viviana, sempre mal contado. O que foi
quando ele lá apareceu, acompanhado do preto José Kakende, e deu com a moça, mui
bonita, mas que não se divertia ao igual das outras: e ele se chegou muito a ela, gentil
e espantoso, lhe pôs a palma da mão no seio, delicadamente. Ora, sendo assim a
moça Viviana a mais formosa, tinha-se para admirar que a beleza do feitio lhe não
servisse para transformar, no interior, a própria e vagarosa tristeza. Mas, Duarte Dias,
o pai, e que a isso assistia, prorrompeu em pleiteantes brados de:-"Tem que casar!
Agora, tem de casar!"-com instância. Afirmava que o moço era homem, e um, e
ainda mancebo, e lhe infamara a filha, devendo-lhe de a tomar por consorte e arcar
com o estado de casado. O moço ouvia, de boa concórdia, e nem por isso. Mas a grita
172
de Duarte Dias só teve termo, quando o padre Bayão, e outros dos mais velhos, lhe
rejeitaram tão descabidas fúrias e insensatez. Também a moça Viviana, com radiosos
sorrisos, o serenava. Ela, que, a partir dessa hora, despertou em si um enfim de
alegria, para todo o restante de sua vida, donde um dom. Apenas que, Duarte Dias-o
que não se entende-ia produzir ainda outros lances de estupefacção, eis-aqui.
De tal guisa que, para o alvoroço de todos, no dia da missa da Dedicação de
Nossa Senhora das Neves e vigília da Transfiguração, 5 de agosto, ele veio
à
Fazenda
do Casco, requerendo falar com Hilário Cordeiro. Também o moço lá estava.
Outrovisto, e nunca desairoso-a gente espiava, e pensava num logo luar. Então,
Duarte Dias declarou: suplicava deixassem-no levar o moço, para sua casa. Que
queria assim, e necessitava, muito, não por ambicioneiro ou impostor, nem por
interesses somenos, mas por a ele ter cobrado, com contrições de escrúpulo, a
fortíssima estima de afeição! Dizia, e desgovernava as palavras, alterado, enquanto
que dos olhos lhe corriam bastas lágrimas. Ora, não se compreendendo o descabelo
de passo tão contrariado: o de um homem que, para manifestar o
amor, ainda não
dispunha mais que dos arrebatados meios e modos da violência. Mas, o moço, claro como
o olho do sol, o pegou da mão, e, com o preto José Kakende, o foi conduzindo pelos
campos -depois se soube que a terras dele mesmo, Duarte, aonde
à
tapera de uma olaria. E
lá indicou que mandasse cavar: com o que se achou, ali, uma grupiara de diamantes; ou
um panelão de dinheiro, segundo diversa tradição. Por arte de qual prodígio, Duarte Dias
pensou que ia virar riquíssimo, e mudado de fato esteve, da data por diante, em homem
sucinto, virtuoso e bondoso, suspendentemente, consoante o asseverar sobremaravilhado
dos coevos.
Mas, por contra, no dia da venerada Santa Brígida, de voz comum de novo dele se
soube: o moço, plácido. Disse-se, que saíra, na véspera, de paragem, pelos altos, num de
seus desapareceres; era um tempo de trovoadas secas. José Kakende contava somente que
o ajudara a acender, de secreto, com formato, nove fogueiras; e, mais, o Kakende soubesse
apenas repetir aquelas suas velhas e divagadas visões-de nuvem, chamas, ruídos,
redondos, rodas, geringonça e entes. Com a primeira luz do sol, o moço se fora, tidas asas.
Todos singularmente se deploraram, para nunca, mal em pensando. Duvidavam
dos ares e montes; da solidez da terra. Duarte Dias, de dó, veio a falecer; mas a filha, a
moça Viviana, conservou sua alegria. José Kakende conversou muito com o cego. Hilário
Cordeiro, e outros, diziam experimentar uma saudade e meia-morte, só de imaginarem
nele. Ele cintilava ausente, aconteceu. Pois. E mais nada.
173
CONTO 15 Luas de mel
NOS MAIS,
mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade. Naquela véspera, eu
andava meio relaxo, fraco; eu já declinava para nãoezas? Nos primeiros de novembro.
Sou quase de paz, o quanto posso. Desconto, para trás, o em que me tive, da
mocidade: desmandos, desordens e despraças. Daí, depois, da vida a sério, que, cá, de
brava, danava-se. Sou remediado lavrador, isto é-de pobre não me sujo, de rico não
me emporcalho. Defesa e acautelamento
é
que não falecem, nesta fazenda Santa-
Cruz-da-Onça, de hospitalidades; minha. Aqui
é
um recanto. Por moleza do calor era
que eu ficava a observar. Nesse dia, nada vezes nada. De enfastiado e sem-graça, é
que eu comia demais. Do almoço, empós, me remitia, em rede, em quarto. Questão de
idade, digestões e saúde: fígado. Sa-Maria Andreza, minha santa e meio passada
mulher, ia ferver um chá, já, para o meu empacho. Bom. Seo Fifino, meu filho, banda
de fora da porta, noticiou: que tendo chegado certo sujeito, um positivo, com carta.
Tomei pausa. Prestezas e pressas não me agravavam.
Seo Fifino, filho meu, lorpa nem sonsado não sendo, me explicando ele estava:
que esse-um apartara tão em socapa, que só se notou quando já estacado, a cavalo,
atrás do engenho, nem os cachorros tendo latido, nem feito ele ranger porteira; e que
com armas, todo provido, repetição a tiracolo. E, aí, meu capataz, José Satisfeito,
soprado informava o nome dele, o qual-o "Baldualdo". Sou mosquitinho em queixo de
onça: não fiz celhas
, não dei pasmo. Sabia da fama desse Baldualdo-que valendo um
batalhão, com grande e morta freguesia. Por ora, que bem me importava? Donde digo:
o meu José Satisfeito, próprio, sido já também um "Zé Sipío", mão no amarelo; para
que se me entenda. Nas eras dos tiroteios contra o Major Lidelfonso e seus soldados.
Comigo. Eu com ele, e outros. Só a vida
é
que tem dessas rústicas variedades. Eu
ponho a mesa e pago a despesa. Me mexi da rede, vim ver
quem. Aquele homem, que
chegado. Me olhou, prestes, medido o respeito, reperguntou meu nome por inteiro.
A carta, que ele trazia, para me em mãos, era de vera e alta mensagem. Reli, as três
e três vezes, o nome que essa assinava: Seo Seotaziano.
E-quero-me com esta!
o que soletreio: "Estimado meu amigo e compadre
... " Seo Seotaziano, de sua sede distante, os fatos de marca manobrando, com
estopim curto e o comprido braço. O chefe demais, homem de grande esfera,
tigroso leão feito o canguçu, mas justo e pão de bom, em nobrezas e formato. Meu
174
compadre-mor, mandador, dês que quando. E há que tempos isso fôra. Mas, agora,
se lembrava deste, aqui, neste ponto, confioso de lealdade. E com caso. Para
despautas: o que decerto havia de haver-cachorro, gato e espalhafato. Mas, tenho de
segundar, e quero. Se ele riscou, eu talho. Só os resumos, declarados: "Para um
moço e uma moça, lhe peço forte resguardo. O mais se verá, mais tarde." Essas
doidices de amor!-sorri. Saí dos suspensos para os preparos.
No quieto, do que se precisava. Temperar o vir de outras coisas, acomodar os
hóspedes, que esperados. Pondo ordens, consoante. Prevenido para valer por quatro.
Aquele dia era de sábado. Sobre-entendi, com o José Satisfeito, e com o Seo Fifíno,
meu filho: vai, que, do retiro do Meio, me trouxessem: certos homens; e, dois tantos
desses, do Munho, das roças; sempre ainda restassem outros, no hoje por hoje, para
o trabalho. Aqueles, porém, aqui
à
mão; pois, que a horas competentes, homens de
possibilidades. Tendo-se arroz e feijão à-bastança, e cargas de pólvora, chumbo e
bala. Sensato, se me se diz. Só em paz, com Deus, sossegado. Sensato, sincero e
honrado.
Sa-Maria Andreza, minha mulher, me mirava.
Aquele Baldualdo, decente:-"Se lhe respraz, meu senhor, por uns dias, aqui,
paro... "-só me disse, baixo, sabendo de cor seu mister. Ele já meu companheiro
sendo-por artes dos anjos-da-guarda. Na varanda, caminhei, uns passos,
exercitados. Os que por vir, moço e moça? Sa-Maria Andreza, minha correta
mulher, os um ou dois quartos arrumasse-toalhas, bem-estar, flores em vasos.
Seguro que de noite chegavam, sagazes-"Ah, minha velha,
vamos tocar rabecas... " -
gracejei, limpando a parabélum. Sa-Maria Andreza, boa companheira, só disse,
abanando os topes: -“ Aroeira de mato virgem não alisa... " Peguei na mão dela, meio
afetuoso. Repensei em todas as minhas armas. Ai, ai, a longe mocidade.
Sem ninguém de nós desprevenidos, de fato em meia-noite chegaram. Noivos,
amor muito. Ela, era das lindas, suspendendo as atenções; nem eu soube filha de que
pai. Só meio assombradazinha, sorrisos desabafados. O moço-rapaz!-dos bons. Vi,
com olho imediato. Tinha um rifle longo. Tinha o garbo guapo. Não, inda não eram
casal. Cearam. Nada falaram. A moça se recolheu em camarinha, no intemerato da
casa; de donzela, com recato. O moço, esse, valeroso, quis se arranchar na casa-do-
engenho. Moço esporte de forte. Apreciei. Pude me dar foros de
seu
pai. Ah, eles
tinham viajado vindo sozinhos, como se deve-de, em fugas particulares. Gostei, mais.
175
Após, hora menos hora, foi que outro cabra chegou, que, a eles dois, em boa distância,
afiançara proteção, sem eles saberem-a mando também de Seo Seotaziano.
As coisas bem feitas, medidas, como só um grão-capitão concebe. Esse outro
se chamava o Bibião, era um brabo de cronha e cano: me tomou a benção. Bom. Tudo
em tudo, em ordem, adormeci, consoante, proprietário de meu sono. Como não?
Gente minha
galopava, nessa noite e madrugada. Um próprio
à
Fazenda Conganha,
do meu compadre VerÍssimo, por três rifles, três homens, emprestados. PeIo seguro.
Povo de lá
é
de brasas. E um
à
Lagoa-dos-Cavalos, por outros três-para o meu
compadre Serejério não se dar de melindrado
. Bom. Eu tiro os outros por mim. Com
tino e consideração,
é
que o respeito
é
granjeado: com honra, sossego e proveito. De
encaminhar, me adormeci bem. Só vivo no supracitado.
Amanheci antes do sol, tudo em paz, posses e orvalhos. Admiro essas certezas,
do campo, em cheiros, enfeitado; enquanto nada. Sa-Maria Andreza, minha mulher,
me cuidava. A ela eu disse: -"Não me conste quem
é
esta onça, nem o que tenha
revelado." Não no por ora. Eu não queria saber, que senão pelo precatar: podendo ser
filha de conhecido, parente meu ou amigo. Nem adiantava. Nessa hora, sendo fiel, eu
era Seo Seotaziano. Nem pelo menos. Herói é no que doi!-bom ditado. Aquele dia, de
domingo. Almoçou-se, com-fome-mente, apesardes. A Moça e o Moço, mesmo ante
mim, ditosos se contemplavam. Tanta coisa neste mundo, bem feita. Sa-Maria
Andreza, minha conservada mulher, em cozinhar se esmerava. Se me se diz, nem
pensei, os namoros dessas gentes, são minhas outras mocidades.
A gente se mexendo, tranqüilos o tempo crescendo, parado. Do jeito,
passou·se esse dia, em Ouros e copas; enquanto nada. A linda Moça, lá dentro, no
oratório rezava. Sa.Maria Andreza, mulher, sinceros carinhos lhe dava. Nós, cá fora.
Seo Fifino meu filho desta banda, o Bibião na parte do morro, na ponte do córrego o
Baldualdo; com outros e outros homens; mas, de esconso, tão em sutilmentes, que
não se
avistavam nem notavam. Comigo, juntos, o José Satisfeito, e o Moço noivo,
de
poucas palavras: andávamos da cava para o vaIo. Sa Maria Andreza, minha, por mim
também rezasse? Eu-exagerado. Provia, não meditava. Dia e tanto. Deus louvado. Então,
veio o anoitecer, as estrelas, às esperadas. Aí, uns pós outros, chegavam, de surtos, os da
Fazenda Congonha, e os da Lagoa dos Cavalos. Esses, não riam, cm armas. Ah, as boas
amizades.
Assim mais gente, outra vez, acordou-se antes dos galos. Ali, para a incerta
segunda-feira meio redonda. Dia dos fortes chegares. Primeiro, mais uns dois homens, que
176
Seo Seotaziano enviava. Chefe bravo. Dai, conforme dado aviso, ainda outros, um par de
cavaleiro; o sacristão atrás do padre. Ave. O padre, moço, espingarda às costas? Armado
de ponto em branco; rifle curto. Se apeou, tudo abençoou, aprestado para o casamentício,
que se ia ter, bodas em casa. Tive de fazer ação de me aprontar, botei minha roupa melhor-
pelos momentos. Sa.Maria Andreza, minha mulher, com gosto dispôs o altar. Moço e
Moça impavam. Amor é só amor. Airosos. Iam os dois, braço pelo braço. Vejam como são
as paixões! Tudo bom, bem bom. Minha Sa.Maria Andreza bem vestida, figuro também
que até corada. Sou homem para bandas de músicas. O padre disse belas palavras. A essa
altura eu já soubesse: a noiva, de que família. Filha do Major João Dio
clécio, duro e rico,
forte em fato. Essas coisas são friezas... Bom. Dei de ombros
. Fecho um campo, e
nele eu sopro: destorcidas claridades. Terminada a casação, se saiu do altar para a
mesa, passou-se de sala para sala.
Aí, foi o simples banquete, que com tudo e leitão e peru, farofas, pelo
costume geral; vinhos. Comeu-se, nós todos e o padre; eu sem fastio nem
empachado. Os doces. Cantou-se um coreto. O noivo, de armas na cinta. A noiva
uma formosura, conforme com véu e grinalda. A velhice da lã é a sujeira... -eu
pensei, consoante, me vendo. Essas delícias de amor!-suspirei, mal em pensando.
Eu descia dos vales para os montes. E, inda havendo a cerimônia, meu irmão João
Norberto chegando, de longe, de sua fazenda As-Arapongas. Sabida lá a notícia,
para me ajudar ele chegava. Trazia maior novidade:-"Se o Major atacasse com
jagunços, Seo Seotaziano vinha descer em cena-à frente de cem de seus homens:
dar a retaguarda
!" De glórias, assoviei, sentado.Aquele Moço noivo, gentil, era
parente de Seo Seotaziano. Uns de meus cabras tocavam violas. Se dançava?
Olhei minha sadia Sa-Maria Andreza-contemplada.
E essa noite, das maiores! Vieram meus compadres Serejério e Veríssimo,
em pessoas. Troço de gente, para levar ao cabo empresas dificultosas. Até o padre
disse que ficava: para confessar a quem ou quem, na hora. Só que, na mesa, o livro
de rezas, mas, a pistola, do lado. Bom padre, muito virtuoso, amigo de Seo
Seotaziano. Agora, a gente esperava o Major Dioclécio e sua ja
gunçada.-"Ora, tão
certo!" -,e se dizia
-"Essas
coisas, quero ver
é
de noite!" -outro. Outro:-"E quem
é
que apaga a vela?" Aí, por toda a parte, se me se diz, patrulhas, trincheiras,
sentinelas. Passos calados, suaves, tinidos de carabinas. Ah, esta velha fazenda
Santa Cruz-da-Onça, com espinhos para qualquer beiço e goela. Ponto é que, eu, era
177
o chefe. Eu já estava meio sanguinolento: meio arvoado. Eu, com nudezas. Eu-em
nome meu e de Seo Seotaziano.
A gente tendo de saroar. Na sala. Nestes bancos e cadeiras. Aqueles
lampiões e lamparinas. Todos, os de mando. Que eu, meu irmão João Norberto,
compadres Veríssimo e Serejério, e o Noivo, mais Seo Fifino. Também a Noiva, em
seu vestido branco, e Sa-
Maria Andreza, mulher minha. Todos e todas. A furupa de
homens bons. Que, perto de mim, meu Zé Sipío. E a ceia-o enterro-dos-ossos-com
alegria. Homem comendo em pé, o prato na mão; alerta o ouvido. A gente, risonhos
de guerra, a qualquer conta. Aqui, o inimigo que viesse!-esses Dioclécios, dianhos;
A hora-de fechar os fôlegos. Aqui, a gente esperava-com luz para mil mariposas. E:
manda
o tri-o-li-olá...
-se me se diz-pique-será! Ninguém viesse? Ao ao-que-é-que-é,
estávamos.
A gente, a um passo da morte, valentes, juntos, tantos, bastantes. Ninguém
vinha. A Noiva sorria para o Noivo, em fofos; essas núpcias. E eu com a mente
erradamente, de quem se acha em estado de armado. Com o que outro míngua, eu
me sobejo. Minha Sa-Maria Andreza, mulher, me sorria. O que os velhos não podem
mais ter: segredinhos, segredados. Ninguém vinha. Madrugar, e galos cantavam. O
padre rezou, guerreiro, em destemido prazer das armas. Senti o remerecer, como era
de primeiro, nesse venturoso dia. Recebi mais natureza-fonte seca brota de novo-o
rebroto, rebrotado. Sa-Maria minha Andreza me mirou com um amor, ela estava
bela, remoçada. Nessa noite ninguém vinha? Enquanto nada! Madrugada.
O
Noivo
se retirou, com a Noiva; e mais uns, que com mais sono, já estando soprando nas
palhas. Resolvemos revezar vigias. Eu, feliz, olhei minha Sa-Maria Andreza; fogo
de amor, verbigrácia. Mão na mão, eu lhe dizendo-na outra o rifle empunhado-: -
"Vamos
dormir
abraçados... " As coisas que estão para a aurora, são antes
à
noite
confiadas. Bom. Adormecemos.
Amanheci fora de horas, me nascendo dos conchegos. A postos, todos.
Aquele dia, a terça-feira. Era o dia? A gente esperava. Meio cuidosos, meio alegres;
sérios, sem algazarra. Com que então? Nessas calmas esticadas. E, pois.
E, vai, senão, que, surgiu a nova: um recado. O camarada, vindo com ele, era
um serviçal dos Dioclécios: que, hoje, sozinho, nesta data, um patrão vinha me
visitar, de passagem. Amistoso. E, vira-me esta?! E-com quê? Me reuni, mais os
chefes companheiros, para comparar as idéias, consoante. A gente chegou
à
razão:
que eles, mais o grosso dos homens e rifles, deviam sair, por um es
paço-esperar as
178
coisas no retiro do Meio, dai a meia-légua e nada. Meu irmão João, meus dois compadres,
mais o sacristão atrás do padre. Deixar, provisório, sem povo em armas, a minha casa-de-
fazenda. Assim, assim, então. Bom. Para não fazer acintes, do que muito me refreio. Pois
o homem não vinha sozinho, embaixador, só para a mim me dizer hem-hem? Ameaçar, se
queixar, assustar, declarar guerras? Vá o que pois for. Minha porta é para o nascente. Não
vejo outra banda. Sou um homem muito leal. Sou o que sou-eu-Joaquim Norberto. Sou o
amigo de Seo Seotaziano.
Aqui recebi o homem, nesta porta do que é meu. E ele era um irmão da Noiva.
Conhecido meu, cordial, com o bom aperto-de-mão. Entrou-se. Sentou-se. Severo, sereno,
eu estava; sensato, ele, com desempeno. Não vinha embater escândalos, nem produzir in-
glesias; parecia portar-se em termos. Se
à
boa mente se conduzisse o negócio? Meu dever
e gosto sendo reconciliar, recatar e recompor, como homem-de-bem e chefe-em-armas.
Agora, era a desenrolação, do de cá e de lá, de ambas as partes. Me clareei. Convidei o
homem para almoçar. E, aí, defini: com meios-modos e trastejos, não se bota e nem se
saca. Chamei os Noivos, para a mesa!
Gente tesa-um par de toda a coragem. Vieram.
O
homem sorriu, meu visitante.
Deu a mão a ela e a ele, disse: -"Com'passou? Com'passou?" -em leal estima e franquia.
Bom. Comeu-se e conversou-se em diversas matérias. Bom. Aquilo, ao correr do cabelo.
Suavemente, com incompletas, ele convidou os dois, para irem com ele: para a benção dos
pais e uma festa, que se dava, de tornaboda. Tudo não estava certo e aprovado? Sabendo
ele do casamento. Me convidou também, eu mais Sa-Maria querida Andreza. Bom,
consoante. Eu, convenientemente, não podendo, pelos fatos. Mas mandei meu filho Seo
Fifino, representante; e ele quis, por amor da festa, decidido.
Porque os Noivos aceitaram de ir, satisfatórios, me agradecendo se despediram. E
eu, respondendo pelo direito: -"Só emendo: abaixo de Deus, só o Seo Seotazianol" -disse.
O homem, ficado em pé, para sair. E, a ele, direto, pelo seguro, na regra do bem-viver: -
"Sou o padrinho deles dois, no casório, e vou ser o p
adrinho do primeiro filho deles, se
lhes respraz!" -trovejei que disse, fingindo franco riso. Sempre era bom. E ele não ia
me entender? Pouquinha dúvida. Esta vida tem de ser declarada e assinada. O mais,
no mais, senão as carabinas!
Da varanda, Sa-Maria Andreza, e eu, nós, a gente contemplava: os cavaleiros,
na congracez, em boa ida. Tudo tão terminado, de repente, se me se diz, tudo quitado.
Nem guerra, nem mais lua-de-méis, regalo não regalado!
Olhei minha Sa-Maria Andreza que me olhava. Ai-de. Enquanto nada.
179
Lá se foram o Baldualdo e o Bibião, também, consoantes. Seo Seotaziano
estando servido, e meus deveres concordados. Meu capataz, o José Satisfeito, meio
mole fechava a porteira. Aquelas luas-de-mel, tão poucas, assim em assopro de gaita.
As passageiras consolações: fazer-de-conta-de-amor, o que era o meu cestinha de
carregar água. A gente, agora: sair das desilusões, o entrar em idade. Mas, Seo Fifino,
meu filho, um dia devia de roubar uma moça assim-em armas! Sorri, eu, Joaquim
Norberto, respeitante. Abracei minha Sa-Maria Andreza, a gente com os olhos desnu-
blados. Se me se diz? E então. Aqui nesta fazenda Santa-Cruz-da-Onça; aqui é um
recato.
Ah,
bom; e semelhante fato foi.
CONTO 16 PARTIDA DO AUDAZ NAVEGANTE
NA MANHÃ DE UM DIA
em que brumava e chuviscava,
parecia não
acontecer coisa nenhuma. Estava-se perto do fogo familiar, na cozinha, aberta, de
alpendre, atrás da pequena casa. No campo. é bom; é assim. Mamãe, ainda de
roupão,
mandava Maria Eva estrelar ovos com torresmos e descascar os
mamões maduros.
Mamãe, a mais bela, a melhor. Seus pés podiam calçar as chinelas de Pele. Seus
cabelos davam o louro silencioso. Suas meninas-dos-olhos brincavam com bonecas.
Ciganinha, Pele e Brejeirinha-elas brotavam num galho. Só o Zito, este, era de fora;
só primo. Meia-manhã chuvosa entre verdes; o fúfio fino borrifo, e agente fica quase
presos, alojados, na cozinha ou na casa, no centro de muitas lamas. Sempre se
enxergam o barranco, o galinheiro, o cajueiro grande de variados entortamentos, um
pedaço de um morro-e o longe. Nurka, negra, dormia. Mamãe cuida com orgulhos e
olhares as três meninas e o menino. Da Brejeirinha. menor, muito mais. porque
Brejeirinba, às vezes, for
mava muitas artes.
Nesta hora, não. Brejeirinha se instituíra, um azougue de quieta, sentada no
caixote de batatas. Toda cruzadinha, traçadas as per
nocas. ocupava-se com a caixa
de fósforos. A gente via Brejeirinha primeiro, os cabelos, compridos, lisos, louro-
cobre; e, no meio deles, coisicas diminutas a carinha não-comprida, o perfilzinho
agudo, um narizinho que-carícia. Aos tantos, não parava, andori
nhava, espiava
agora-o xixixi e o empapar-se da paisagem-as pes
tanas til-til. Porém, disse-se-dizia
ela, pouco se vê, pelos entrefios; _ "Tanto chove, que me gela! Aí esticou-se para
cima, dando com os pés diversos objetos. -"Ui, ui-te!”-rolara nos cachos de
bananas,
180
seu umbigo sempre aparecendo. Pele ajudava-a a se endireitar.-"... E o cajueiro
ainda faz flores... "-acrescentou, observava da árvore não se interromper mesmo
assim, com essas aguaceirices, de durante dias, a chuvinha no bruaar e a pálida
manhã do céu. Mamãe dosava açúcares e farinhas, para um bolo. Pele tentava
ajudar, diligentil. Ciganinha lia um livro; para ler ela não precisava virar página.
Ciganinha e Zito nem_rnuito um do outro se aproximavam, antes paravam
meio brigados, de da véspera, de uma briguinha grande e feia. Pele é que era a
morena, com notáveis olhos. Ciganinha, a menina linda no mundo: retrato miúdo
da Mamãe. Zito perpensava assuntos de não ousar dizer, coisas de ciumoso, ele
abrira-se
à
espécie de ciúmes sem motivo de quê ou quem. Brejeirinha pulou, por
pirueta.-“Eu sei porque é que ovo se parece com um espeto!”- ela vivia em
álgebra. Mas não ia contar- a ninguém. Brejeirinha é assim, não de siso débil; seus
segredos são sem acabar. Tem porém infimículas inquietações:- "Eu hoje estou
com a cabeça muito quente... "-isto, por não que~er estudar. Então, ajunta:-Eu vou
saber geografia." Ou:-"Eu queria saber o amor...”
Pele foi quem deu risada.
Ciganinha e Zito erguem olhos, só quase assustados. Quase, quase, se
entrefitaram,
num não encontrar-se. Mas, Ciganinha, que se crê com a razão, muxoxa.
Zito, também, não quer durar mais brigado, viera ao ponto de não agüentar. Se, à socapa,
mirava Ciganinha, ela de repente mais linda se envoava.
-"Sem saber o amor,_ a gente pode ler os romances grandes?”-Brejeirinha
especulava.-“É, hem? Você não sabe ler nem catecismo...” Pele lambava-lhe um tico de
desdém; mas Pele não perdia de boazinha e beliscava em doce, sorria sempre na voz.
Brejeirinha rebica, picuica:-“Engraçada!... Pois eu li as 35 palavras no rótulo da caixa
fósforos...” Por isso, queria avançar afirmações, com superior modo e calor de expressão,
deduzidos de babinhas.-"Zito, tubarão é desvairado, ou é explícito ou demagogo?" Porque
gostava, poetista, de importar desses sérios nomes, que lampejam longo clarão no escuro
de nossa ignorância. Zito não respondia, desesperado de
repente, controversioso-
culposo,
sonhava ir-se embora, teatral, debaixo de chuva que chuva, ele estalava numa
raiva. Mas Brejeirinha tinha o dom de aprender as tenuidades: delas apropriava-se e
refletia-se em si-a coisa das coisas e a pessoa das pessoas.-“Zito, você podia ser o pirata
inglório marujo, num navio muito intacto, para longe, lo-õ-onge no mar, navegante que o
nunca-mais, de todos?” Zito sorri, feito um ar forte. Ciganinha estremecera, e segurou com
mais dedos o livro, hesitada. Mamãe dera a Pele a terrina, para ela bater os ovos.
181
Mas Brejeirinha punha mão em rosto, agora. ela mesma empolgada, não detendo
em si o jacto de contar:-"O Aldaz Navegante, que foi descobrir os outros lugares
valetudinário. Ele foi num navio, também, falcatruas. Foi de sozinho. Os lugares eram
longe, e o mar. O Aldaz Navegante estava com saudade, antes, da mãe dele, dos irmãos,
do pai. Ele não chorava. Ele precisava respectivo de ir: Disse:-"Vocês vão se esquecer
muito de mim?" O navio dele, chegou o dia de ir. O Aldaz Navegante ficou batendo o
lenço branco, extrínseco, dentro do indo-se embora do navio. O navio foi saindo do perto
para o longe, mas o Aldaz Navegante não dava as costas para a gente, para trás. A gente
também inclusive batia as lenços brancos. Por fim, não tinha mais navio para se ver, só
tinha o resto de mar. Então, um pensou e disse:-"Ele vai descobrir os lugares, que nós não
vamos nunca descobrir ... " Então e então, outro disse:-"Ele vai descobrir os lugares,
depois ele nunca vai voltar... " Então, mais, outro pensou, pensou, esférico, e disse: -"Ele
deve de ter, então, a alguma raiva de nós, dentro dele, sem saber... " Então, todos
choraram, muitíssimos, e voltaram tristes para casa, para jantar... "
Pele levantou a colher:-"Você é uma analfabetinha "aldaz".- "Falsa a beatinha é
tu!"-Brejeirinha se malcriou.-"Por que você inventa essa história de de tolice, boba, boba?"
-e Ciganinha se feria em zanga.-"porque depois pode ficar bonito, uê!" Nurka latira.
Mamãe também estava brava? Porque Brejeirinha topara o pé em cafeteiras, e outras.
Disse ainda, reflexiva:-"Antes falar bobagens, que calar besteiras... " Agora, fechou os
olhos que verdes, solene arrependida de seu desalinho de conduta. Só ouvirá o rumorejo
da chuvinha, que estarão fritando.
A manhã é uma esponja. Decerto, porém, Pele rezara os dez responsos a Santo
Antônio, tãoquanto batia os ovos. Porque estourou manso o milagre. O tempo temperou.
Só era março-compondo suas chuvas ordinárias. Ciganinha e Zito se suspiravam.
Soltavam-se as galinhas do galinheiro, e o peru. Saía-se, ao largo, Nurka. O céu tornava a
azul?
Mamãe ia visitar a doente, a mulher do colono Zé Pavio.-"Ah, e você vai conosco
ou sem-nosco?"-Brejeirinha perguntava. Mamãe, por não rir nem se dar de alheada,
desferia chufas meigas: -"Que nossa vergonha!... "-e a dela era uma voz de vogais do-
çuras. A manhã se faz de flores. Então, pediu-se licença de ir espiar o riachinho cheio.
Mamãe deixava, elas não eram mais meninas de agarra-a-saia. De impulso, se alegraram.
Só que alguém teria de junto ir, para não se esquecerem de não chegar perto das águas
perigosas. O rio, ali, é assaz. Se o Zito não seria, próprio, essa pessoa de acompanhar, um
meiozinho-homem, leal de responsabilidades? Cessou-se a cerração do ar. Mas tinham de
182
vestir outras roupas quentes.-"Oh, as grogrolas!" Brejeirinha de alegria ante todas, feliz
como se, se, se: menina só ave.-"Vão com Deus!" -Mamãe disse, profetisa, com. aquela
voz voável. Ela falava, e choviam era bátegas de bênçãos. A gentezinha separou-se.
A ir lá, o caminho primeiro subia, subvexo, a ladeirinha do combro, colinola. Tão
mesmo assim, os dois guarda-chuvas. Num -avante-Brejeirinha e Pele. Debaixo do outro,
Zito e Ciganinha. Só os restos da chuva, chuvinha se segredando. Nurka corria,
negramente, e enfim voltava, cachorra destapada ditosa. Se a gente se virava, via-se a casa,
branquinha com a lista verde-azul, a mais pequenina e linda, de todas, todas. Zito dando o
braço a Ciganinha, por vezes, muito, as mãos se encontravam. Pele se crescia, elegante. E
ágil ia Brejeirinha, com seu casaquinho coleóptero. Ela andava pés-para-dentro, feito um
periquitinho, impávido.
No transcenso da colineta, Zito e Ciganinha calavam-se, muito às tortas, nos
comovidos não-falares. Sim, já se estavam em pé de paz, fazendo sua experiência de
felicidade; para eles, o passeio era um fato sentimental. Descia-se agora a outra ladeira,
pegando cuidado, pelo enlameável e escorregoso, poças, mas tamm para não pisar no
que Brejeirinha chamava de "o bovino"-altas rodelas de esterco cogumeleiro. Ali, com
efeito, andavam bois: "o boi, beiçudo"; aí, Brejeirinha levou tombo. Ela disse que:Mamãe
tinha dito que eles precisavam de ter: coragem com juízo. Mas, isso, era mentirinhas. E, o
que pois:-"Agora, já me sujei, então agora posso não ter cuidado... " Correu, com Nurka,
pela encosta inferior, no verdinho pasto. Pele ainda ralhou:-"Você vai buscar um audaz
navegante?" Mas, mais. Entanto, à úmida, à luz, o plano capime floriu-se: estendem-se,
entrem unhadas, as margaridinhas, todas se rodeiam de pálpebras.
O que se queria, aqui, era a pequena angra, onde o riachinho faz foz. Abaixo, aos
bons bambus, e às pedreiras de beira-rio, ouvindo o ronco, o bufo d'água. Porque, o rio,
grossoso, se descomporta, e o riachinho porém também, seu estuário já feio cheio, refuso,
represado, encapelado_pororoqueja.-"Bochechudo!"-grita-lhe Brejeirinha. Sumiu-se a
última areiinha dele, sob baile de um atoalhado de espumas, no belo despropositar-se, o
bulir de bolhas. Brejeirinha já olhou tudo de cor. Cravou varetas de bambu, marcando
pontos, para medir a água em se crescer, mudando de lugar. Porém, o fervor daquilo
impunha-lhe recordações, Brejeirinha não gostando de mar:-"O mar não tem desenho. O
vento não deixa. O tamanho... " Lamentava-se de não ter trazido pão para os peixes.-
"Peixe, assim, a esta hora?" -Pele duvidava. Divagava Brejeirinha:-"A cachoeirinha é uma
parede de água... " Falou que aquela, ali, no rio, em frente, era a Ilhazinha dos Jacarés.-
"Você já viu jacaré lá?"-caçoava Pele.-"Não. Mas você também nunca viu o jacaré-não-
183
estar-Iá. Você vê é a ilha, só. Então, o jacaré pode estar ou não estar... " Mas, Brejeirinha,
Nurka ao lado, já vira tudo, em pé em volta, seu par de olhos passarinhos. Demorava-se,
aliás, o subir e alargar-se da água, com
os mil-e-um movimentos supérfluos.
A gente se sentava, perto, não no chão nem em tronco caído, por causa do
chovido do molhado. Ciganinha e Zito, numa pedra, que dava só para dois, podiam
horas infinitas; apenas, conversando ainda feito gente trivial. Pele saíra a colher um
feixe de flores.
Mais não chuviscava. Brejeirinha já pulando de novo. Disse: que o dia
estava muito recitado. Voltava-se para a contramargem, das mais verdes, e jogava pedras,
o longe possível, para Nurka correndo ir buscar. Depois, se acocora, de entreter-se, parece
que já está até calçada com um sapatinho só. Mas, sem se desagachar, logo gira nos
pezinhos, quer Ciganinha e Zito para ouvirem. Olha-os.
-"O AIdaz Navegante não gostava de mar! Ele tinha assim mesmo de partir? Ele
amava uma moça, magra. Mas o mar veio, em vento, e levou o navio dele, com ele dentro,
escrutínio. O Aldaz Navegante não podia nada, só o mar, danado de ao redor, preliminar.
O Aldaz Navegante se lembrava muito da moça. O amor é original... "
Ciganinha e Zito sorriram. Riram juntos.- "Nossa! O assunto ainda não parou?"-era
Pele voltada, numa porção de flores se escudando. Brejeirinha careteou um "ah!" e quis
que continuou: - "... Envém a tripulação... Então, não. Depois, choveu, choveu. O mar se
encheu, o esquema, amestrador... O AIdaz Navegante não tinha caminho para correr e
fugir, perante, e o navio espedaçado. O navio parambolava. Ele, com o medo, intacto,
quase nem tinha tempo de tomar a pensar demais na moça que amava, circunspectos. Ele
só a prevaricar. " O amor é singular... "
-E daí?
-"A moça estava paralela, lá, longe, sozinha, ficada, inclusive, eles dois estavam
nas duas pontinhas da saudade... O amor, isto é... O AIdaz Navegante, o perigo era total,
titular ... não tinha salvação ... O Aldaz. " O AIdaz... "
-"Sim. E agora? E daí?"-Pele intimava-a.
-"Aí? Então... então... Vou fazer explicação! Pronto. Então, ele acendeu a luz do
mar. E pronto. Ele estava combinado com homem do farol... Pronto. E... "
-"Na-ão. Não vale! Não pode inventar personagem novo, no fim da estória, fu! E-
olha o seu "aldaz navegante", ali. É aquele..."
Olhou-se. Era: aquele-a coisa vacum, atamanha da, embatumada, semi-ressequida,
obra pastoril no chão de limugem, e às pontas
dos capins-chato, deixado. Sobre sua
eminência, crescera um cogumelo de haste fina e flexuosa, muito longa: o
184
chapeuzinho branco, lá em cima, petulante se bamboleava. O embate e orla da
água, enchente, já o atingiam, quase.
Brejeirinha fez careta. Mas, nisso, o ramilhete de Pele se desmanchou,
caindo no chão umas flores.-" Ah! Pois é, é mesmo!" -e Brejeirinha saltava e agia,
rápida no valer-se das ocasiões. Apanhara aquelas florinhas amarelas-josés-
moleques, douradinhas e margaridinhas-e veio espetá-Ias no concrôo do objeto.-
"Hoje não tem nenhuma flor azul?"-ainda indagou. A risada foi de todos,
Ciganinha e Zito bateram palmas.-"Pronto. É o Aldaz Navegante... " -e Brejeirinha
crivava-o de mais coisas-folhas de bambu, raminhos, gravetos.
aquela matéria, o
"bovino", se transformava.
Deu-se, aí, porém, longe rumor: um trovão arrasta seus trastes. Brejeirinha
teme demais os trovões. Vem para perto de Zito e Ciganinha. E de Pele. Pele, a
meiga. Que:-"Então? A estória não vai mais? Mixou?"
-"Então, pronto. Vou tomar a começar. O Aldaz Navegante, ele amava a
moça, recomeçado. Pronto. Ele, de repente, se envergonhou de ter medo, deu um
valor, desassustado. Deu um pulo onipotente... Agarrou, de longe, a moça, em seus
abraços... Então, pronto. O mar foi que se aparvolhou-se. Arres! O Aldaz Na-
vegante, pronto. Agora, acabou-se, mesmo: eu escrevi- "Fim"!"
De fato, a água já se acerca do "Aldaz Navegante", seu primeiro chofre
golpeava-o.-"Ele vai para o mar?" -perguntava, ansiosa, Brejeirinha. Ficara muito
de pé. Um ventinho faz nela bilo-biloacarinha-lhe o rosto, os lábios, sim, e os
ouvidos, os cabelos. A chuva, longe, adiada.
Segredando-se, Ciganinha e Zito se consideram, nas pontinhas da realidade.-
"Hoje está tão bonito, não é? Tudo, todos, tão bem, a gente alegre... Eu gosto deste
tempo... " E: “Eu também, Zito. Você vai voltar sempre aqui, muitas vezes? E:-"Se
Deus quiser, eu venho... " E:- "Zito, você era capaz de fazer como o Audaz
Navegante? Ir descobrir os outros lugares?"E:-"Ele foi, porque os outros lugares
ainda são mais bonitos, quem sabe?... "Eles se disseram, assim eles dois, coisas
grandes em palavras pe
quenas, ti a mim, me a ti, e tanto. Contudo, e felizes, alguma
outra coisa se agitava neles, confusa-assim rosa-amor-espinhos-saudade.
Mas, o "Aldaz Navegante", agora a água se apressa, no vir e ir, seu espumitar
chega-lhe já re-em-redor, começando a ensopação. Ei-lo circunavegável, conquanto
em firme terrestreidade: o chão ainda o amarrava de romper e partir. Brejeirinha
aumenta-lhe os adornos. Até Ciganinha e Zito pegam a ajudar. E Pele. Ele é outro,
185
colorido, estrambótico, folhas, flores.-"Ele vai descobrir os outros lugares... " "-Não,
Brejeirinha. Não brinca com coisas sérias!" "-Uê? O quê?" Então, Ciganinha,
cismosa, propõe:-"Vamos mandar, por ele, um recado?" Enviar, por ora, uma coisa,
para o mar. Isso, todos querem. Zito põe uma moeda. Ciganinha, um grampo. Pele,
um chicle. Brejeirinha-um cuspinho; é o "seu estilo". E a estória? Haverá, ainda,
tempo para recontar a verdadeira estória? Pois:
-"Agora, eu sei. O Aldaz Navegante não foi sozinho; pronto! Mas ele
embarcou com a moça que ele amavam-se, entraram no navio, estricto. E pronto. O
mar foi indo com eles, estético. Eles iam sem sozinhos, no navio, que ficando cada
vez mais bonito, mais bonito, o navio... pronto: e virou vagalumes...
"Pronto. O trovão, terrível, este em céus e terra, invencível. Carregou.
Brejeirinha e o trovão se engasgam. Ela iria cair num abismo "intacto"-o vão do
trovão? Nurka latiu, em seu socorro. Ciganinha, e Pele e Zito, também, vêm para a
amparar. Antes, porém, outra, fada, inesperada, surgia, ali, de contraflor.
-"Mamãe!"
Deitou-se-Ihe ao pescoço. Mamãe aparava-lhe a cabecinha, como um esquilo
pega uma noz. Brejeirinha ri sem til. E, Pele:
-"Olha! Agora! Lá se vai o "Aldaz Navegante"!"
-“Ei!”
-"Ah!"
O Aldaz! Ele partia. Oscilado, só se dançandoando, espumas e águas o
levavam, ao Aldaz Navegante, para sempre, viabundo, abaixo, abaixo. Suas
folhagens, suas flores e o
airoso cogumelo, c
omprido, que uma gota orvalha, uma
gotinha, que perluz-no pináculo de uma trampa seca de vaca.
Brejeirinha se comove também. No descomover-se, porém,
é
que diz:-
"Mamãe, agora eu sei, mais: que o ovo só se parece, mesmo,
é
com um espeto!"
De novo, a chuva dá.
De modo que se abriram, asados, os guarda-chuvas.
CONTO 17 A Benfazeja
SEI
que não atentaram na mulher; nem fosse possível. Vive-se perto demais,
num lugarejo, às sombras frouxas, a gente se afaz ao devagar das pessoas. A gente
não revê os que não valem a pena. Acham ainda que não valia a pena? Se, pois,
se.
186
No que nem pensaram; e não se indagou, a muita coisa. Para que? A mulher-
malandraja, a malacafar, suja de si, misericordiada, tão em velha e feia, feita tonta,
no crime não arrependida-e guia de um cego. Vocês todos nunca suspeitaram que ela
pudesse arcar-se no mais fechado extremo, nos domínios do demasiado?
Soubessem-lhe ao menos o nome. Não; pergunto, e ninguém o intéira.
Chamavam-na de a
"Mula-Marmela",
somente, a abominada. A que tinha dores nas
cadeiras: andava meio se agachando; com os joelhos para diante. Vivesse
embrenhada, mesmo quando ao claro, na rua. Qualquer ponto em que passasse,
parecia apertado. Viam-lhe vocês a mesmez-furibunda de magra, de esticado es-
queleto, e o sumir de sanguexuga, fugidos os olhos, lobunos cabelos, a cara-; as
sombras carecem de qualquer conta ou relevo. Sabe-se se assustava-os seu ser: as
fauces de jejuadora, os modos, contidos, de ensalmeira? Às vezes, tinha o queixo
trêmulo. Apanhem-lhe o andar em ponta, em sestro de égua solitária; e a selvagem
compostura. Seja-se exato.
E nem desconfiaram, hem, de que poderiam estar em tudo e por tudo
enganados? Não diziam, também, que ela ocultava dinheiro, rapinicado às tantas
esmolas que o cego costumava arrecadar? Rica, outromodo, sim, pelo que do
destino, o terrível. Nem fosse reles feiosa, isto vocês poderiam notar, se capazes de
desencobrir-lhe as feições, de sob o sórdido desarrumo, do sarro e crasso; e desfixar-
Ihe os rugamentos, que não de idade, senão de crispa expressão. Lembrem-se bem,
façam um esforço. Compesem-lhe as palavras parcas, os gestos, uns atos, e tereis
que ela se desvendava antes ladina, atilada em exacerbo. Seu antigo crime? Mas
sempre escutei que o assassinado por ela era um hediondo, o cão de homem,
calamidade horribilíssima, perigo e castigo para os habitantes deste lugar. Do que
ouvi, a vocês mesmos, entendo que, por aquilo, todos lhe estariam em grande dívida,
se bem que de tanto não tomando tento, nem essa gratidão externassem. Tudo se
compensa. Por que, então, invocar, contra as mãos de alguém, as sombras de
outroras coisas?
O cego pedia suas esmolas rudemente. Xingava, arrogava, desensofrido,
dando com o bordão nas portas das casas, no balcão das vendas. Respeitavam-no,
mesmo por isso, jamais se viu que o desatendessem, ou censurassem ou ralhassem,
repondo-o em seu nada. Piedade? Escrúpulo? Mais seria como se percebessem nele,
de obscuro, um mando de alma, qualidade de poder. Chamava-se "o Retrupé", sem
adiante. Como a Mula-Marmela, os dois, ambos: uns pobres, de apelido. E vocês
187
não vêem que, negando-Ihes o de cristão, comunicavam,
à
rebelde indigência de um
e outra, estranha eficácia de ser, à parte, já causada?
Ao Retrupé, com seu encanzinar-se, blasfemífero, e prepotente esmolar,
ninguém demorava para dar dinheiro, comida, o que ele quisesse, o pão por-deus.-
"Ele
é
um tranca!" -o cínico e canalha, vilão. Mas só, às vezes, alguém, depois e
longe, se desabafava. O homem maligno, com cara de matador de gente. Sobre os
trapos, trazia um facão, pendente. Estendia, imperioso, sua mão de tamanho. E
gritava, com uma voz de cão, superlativa. Se alguém falasse, ou risse, ele parava,
esperava o silêncio. Escutava muito, ao redor de si. Mas nunca ouvia tudo; não sabia
nem podia.
Tinha medo, também; disso, vocês nunca desconfiaram. Temia-a, a ela, à
mulher que o guiava. A Mula-Marmela chamava-o, com simples sílaba, entre dentes,
quase esguichado um "ei" ou "hã" -e o Retrupé se movia de lá, agora apalpante,
pisando com ajuda; balançava o facão, a bainha presa a um barbante, na cintura. Sei
que ele, leve, breve, se sacudira. Desciam a rua, dobraram o beco, acompanharam-se
por lá, os dois, em sobrossoso séqüito. Rezam-se ódio. Lé e cré, pelas ora voltas, que
qual, que tal, loba e cão. Como era que ficavam nesse acordo de incomunhão,
malquerentes, parando entre eles um frio figadal? O cego Retrupé era filho do
finado
marido dela, o "Mumbungo", que a Mula-Marmela assassinara.
Vocês sabem, o que foi há tantos anos. Esse Mumbungo era célebre-cruel e
iníquo, muito criminoso, homem de gostar do sabor de sangue, monstro de
perversias. Esse nunca perdoou, emprestava ao diabo a alma dos outros. Matava,
afligia, matava. Dizem que esfaqueava rasgado, só pelo ancho de ver a vítima
caretear. Será a sua verdade? Nos tempos, e por causa dele, todos estremeciam, sem
pausa de remédio. Diziam-no maltratado do miolo. Era o punir de Deus, o avultado
demo-o "cão". E, no entanto, com a mulher, davam-se bem, amavam-se. Como? O
amor
é
a vaga, indecisa palavra. Mas, eu, indaguei. Sou de fora. O Mumbungo queria
à
sua mulher, a Mula-Marmela, e, contudo, incertamente, ela o amedrontava. Do
temor que não se sabe. Talvez pressentisse que só ela seria capaz de destruí-Ia, de
cortar, com um ato de "não", sua existência doidamente celerada. Talvez adivinhasse
que em suas mãos, dela, estivesse já decretado e pronto o seu fim. Queria-lhe, e
temia-a-de um temor igual ao que agora incessante sente o cego Retrupé. Soubessem,
porém, nem de nada. A gente
é
portador.
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O cego Retrupé é grande, forte. Surge, de lá, trazido pela Mula-Marmela;
agora se conduz firme, não vacila. Dizem que bebe? Vejam vocês mesmos, porém,
como essas petas escondem a coisa singular. Todos sabem que ele não bebia, nunca,
porque a Mula-Marmela não deixava. Nem carecia de falar-lhe a paz da proibição:
dava-lhe, apenas, um silêncio, terrível. E ele cumpria, tinha a marca da coleira. Curtia
afogados desejos, índecifrava-os. Aspirava,
à
porta dos botequins, febril, o espírito
das cachaças. Seguia, enfim, perfidiado e remisso, mal-agradecido, raivoso, os dentes
do rato rangiam-no. Porque, ele mesmo, não sabendo que não havia de beber, o que
não fosse-ah, se!-o sangue das pessoas. Porque sua sede e embriaguez eram fatais,
medonhas outras, para lá do ponto. Seria ele, realmente, uma alma de Deus, hão
certeza? Ah, nem sabem. Podia também ser de outra essência-a mandada, manchada,
malfadada. Dizem-se, estórias. Assim mesmo, no tredo estado em que tacteia, privo,
mal-existente, o que
é,
cabidamente, é o filho tal-pai-tal; o "cão", também, na prática
verdade.
O pai, o Mumbungo, se vivia bem com a mulher, a Mula-Marmela, e se ela
precisava dele, como os pobres precisam uns dos outros, por que, então, o matou?
Vocês nunca pensaram nisso, e culparam-na. Por que hão de ser tão infundados e
poltrões, sem espécie de perceber e reconhecer? Mas, quando ela matou o marido,
sem que se saiba a clara e externa razão, todos aqui respiraram, e bendisseram a
Deus. Agora, a gente podia viver o sossego, o mal se vazara, tão felizmente de
repente. O Mumbungo; esse, foi o que tivera de se revoltar a um outro lugar, foi
como alma que caiu no inferno. Mas não a recompensaram, a ela, a Mula-Marmela;
ao contrário: deixaram-na no escárnio de apontada
à
amargura, e na muda miséria,
pois que eis. Matou o marido, e, depois, própria temeu, forte demais, o pavor que se
lhe refluía, caída, dado ataque, quase fria de assombro de estupefazimento, com o
cachorro uivar. E ela, então, não riu. Vocês, os que não a ouviram não rir, nem
suportam se lembrar direito do delirido daquela risada.
Se eu disser o que sei e pensam, vocês inquietos se desgostarão. Nem
consintam, talvez, que eu explique, acabe. A mulher tinha de matar, tinha de cumprir
por suas mãos o necessário bem de todos, só ela mesma poderia ser a executora-da
obra altíssima, que todos nem ousavam conceber, mas que, em seus escondidos
corações, imploravam. Só ela mesma, a Marmela, que viera ao mundo com a sina
presa de amar aquele homem, e de ser amada dele; e, juntos, enviados. Por quê? Em
volta de nós, o que há, é a sombra mais fechada-coisas gerais. A Mula-Marmela e o
189
Mumbungo, no fio a fio de sua afeição, suspeitassem antecipadamente da sanção, e
sentença? Temia-a, ele, sim, e o amor que tinha a ela colocava-o
à
mercê de sua
justiça. A Marmela, pobre mulher, que sentia mais que todos, talvez, e, sem o saber,
sentia por todos, pelos ameaçados e vexados, pelos que choravam os seus entes
parentes, que o Mumbungo, mandatário de não sei que poderes, atroz sacrificara. Se
só ela poderia matar o homem que era o seu, ela teria de matá-lo. Se não cumprisse
assim-se se recusasse a satisfazer o que todos, a sós, a todos os instantes, suplicavam
enormemente-ela enlouqueceria? A cor do carvão
é
um mistério; a gente pensa que ele
é preto, ou branco.
E outra vez vejo que vêm, pela indiferente rua, e passam, em esmolambos, os
dois, tão fora da vida exemplar de todos, dos que são os moradores deste sereno nosso
lugar. O cego Retrupé avança, fingindo-se de seguro, não dá
à
Mula-Marmela a ponta
do bordão para segurar, ela o guia apenas com sua dianteira presença, ele segue-a pelo
jeito, pelo se deslocar do ar-como em trasvôo se vão os pássaros; ou o que ele percebe
à
sua frente é a essência vivaz da mulher, sua sombra-da-alma, fareja-lhe o odor, o
lobum? Notem que o cego Retrupé mantém sempre muito levantada a cabeça, por
inexplicado orgulho: que ele provém de um reino de orgulho, sua maligna índole, o
poder de mandar, que estarrece. E ele traz um chapéu chato, nem branco nem preto.
Viram como esse chapéu lhe cai muitas vezes da cabeça, principalmente quando
ele
mais se exalta, gestilongado abarbarado e maldoso, reclamando com urgência suas
esmolas do povo. Mas, notaram como
é
que a Mula-Marmela lhe apanha do chão o
chapéu, e procura limpá-lo com seus dedos, antes de lho entregar, o chapéu que ele
mesmo nunca tira, por não respeitar a ninguém? Sei que vocês não se interessam nulo
por ela, não reparam como essa mulher anda, e sente, e vive e faz. Repararam como
olha para as casas com olhos simples, livres do amaldiçoamento de pedidor? E não
põe, no olhar as crianças, o soturno de cativeiro que destinaria aos adultos. Ela olha
para tudo com singeleza de admiração. Mas vocês não podem gostar dela, nem: sequer
sua proximidade tolerem, porque não sabem que uma sina forçosa demais apartou-a
de todos, soltou-a. Apara, em seu de-cor de dever, o ódio que deveria ir só para os
dois homens. Dizem-na maldita: será; e? Porém, isto, nunca mais repitam, não me
digam: do lobo, a pele; e olhe lá! Há sobrepesos, que se levam, outros, e são a vida.
Mas, com tanto, está que ninguém sabe o que entre os dois verdadeiramente se
compassa-do desconchavo e desacerto de assim perambularem, torvos, no monótono,
em farrapos, semoventes: do que vocês apenas se divertem, tiram graças e chocarra.
190
Se o que os há é apenas embruxar e odiar, loba contra cão, ojeriza
e osga; convocam
demônios? Ou algum encoberto ultrapassar, posto o que também há: uma irmandade
das almas más, alcatéia e matilha? Não, não há ódio; engano. Ela, não. Ela cuida
dele, guia-o, trata-a-como a um mais infeliz, mais feroz, mais fraco. Desde que
morreu o homem-marido, o Mumbungo, ela tomou conta deste. Passou a cuidá-la,
na reobriga, sem buscar sossego. Ela não tinha filhos.-"Ela nunca pariu... " -vocês
culpam-na. Vocês, creio, gostariam de que ela também se fosse, desaparecesse no
não, depois de ter assassinado o marido. Vocês odeiam-na, destarte.
Mas, se ela também se tivesse matado, que seria de vocês, de nós, às muitas
mãos do Retrupé, que ainda não estava cegado, nos tempos; e que seria tão pronto
para ser sanguinaz e cruel-perverso quanto o pai-e o que renega de Deus-da pele de
Judas, de tão desumana e tremenda estirpe, de apavor?
Seus os-olhos, do Retrupé, ainda eram sãos: para espelhar inevitável ódio,
para cumprir o dardejar, e para o prazer de escolher as vítimas mais fáceis, mais
frescas. Só aí, se deu que, em algum comum dia, o Retrupé cegou, de ambos aqueles
olhos. Souberam vocês como foi? Procuraram achar? Sabem, contudo, que há leites
e pós, de plantas, venenos que ocultamente retiram, retomam a visão, de olhos que
não devem ver. Só com isso, sem precisão de mais, e
o Retrupé parava, um ser
quase inócuo, um renunciado. E vocês, bons moradores do lugar, ficavam
defendidos, a cobro de suas infrenes celeradezas. Talvez, ele não precisasse de
danado morrer como o Mumbungo, seu pai. Talvez, me pergunto, o próprio
Mumbungo descarecesse de ser morto, se acaso, por ponto, alguém pensasse antes
nessas ervas cegadoras, ou soubesse
então de sua aplicação e efeito. Se assim,
pois, haver-se-ia agora a Mula-Marmela guiando a dois, pelas ruas, e deles com
terrível dever-de-amor cuidando, como se fossem os filhos que ela queria, os que ela
não pariu nem parirá, nunca-o dócil morto e o impedido cego. A pacto de tolher-lhes
as ainda possíveis malícias, e dar-lhes, como em sua antiqüíssima linguagem ela diz:
gasalhado e emparo. Vocês, porém, fio que nem nunca lhe escutaram a voz-à surda.
Também o cego Retrupé se intimida dessa voz, rara tanto. Sabem o que é tão
estúrdio?-que, mesmo um que não vê, sabe que precisa de apartar a cabeça: ele faz
isso, para não encarar com a mulher odiosa. O cego Retrupé volta-se de frente para o
ponto onde estão as sensatas, quietas pessoas, que ele odeia em si, pelo
desprezamento de todos, na pacatez e concórdia. Ele precisava de matar, para a fundo
se cumprir, desafogado e bem. Mas, não pode. Porque
é
cego, apenas. O cego
191
Retrupé, sedicioso, então, insulta, brada espumas, ruge-nas gargantas do cão. Sabe
que
é
de outra raça, que vem do ainda horroroso, informe; que ainda não entendeu a
mansidão, pelo temor? Então, o cego Retrupé esbarra com o impoder da cegueira;
agora, ele não pode alcançar ninguém, se a raiva mais o cega; pode? O cego Retrupé
cochicha consigo-ele ofende o invisível. Para ele, graças
à
cegueira, este nosso
mundo já é algum além. E se assim não fosse? Alguém seria capaz de querer ir pôr o
açamo no cão em dana? E vocês ainda podem culpar esta mulher, a Marmela, julgá-
la, achá-la vituperável? Deixem-na, se não a entendem, nem a ele. Cada qual com sua
baixeza; cada um com sua altura.
Saibam ver como ela sabe dar descargo de si. Sim, ela
é
inobservável; vocês
não poderiam. Mas, reparando com mais tento, veriam, pelo menos, como ela não
é
capaz de pegar estouvadamente em alguma coisa; nem deixa de curvar-se para
apanhar um caco de vidro no chão da rua, e pô-la de lado, por perigoso. Ela abaixa
assaz os olhos. Pelo marido, seu morto; pode, porque o matou sem inúteis
sofrimentos. Se não o matasse, ele se teria condenado ainda mais? Ela afasta do
botequim o cego Retrupé, turbador, remisso e bulhento. Só este
é
o seu, deles,
diálogo: um pigarro e um impropério. Ele a segue, caninamente. Vão-se; nunca
nenhum de vocês os observou, a gente não consegue nem persegue os fios feixes dos
fatos. Vivem em aterrador, em coisa de silêncio, tão juntos, de morar em
esconderijos. A luz
é
para todos; as escuridões
é
que são apartadas e diversas.
Diziam que, em outro tempo, ao menos, entre eles teria havido alguma
concubinagem. Cambonda? Vocês sabem que isso
é
falso; e como a gente gosta de
aceitar essas simples, apaziguadoras supo
sições. Sabem que o cego Retrupé, canhim
e discordioso, ela mesma o conduz, paciente, às mulheres, e espera-o cá fora, zela
para que não o maltratem. Isto, porém, faz tempo. Hoje ele está envelhecido, virou
em macilento, grisalho, as cãs assentam-lhe bem, quando o chapéu cai. Estes
tempos, durante que deixamos de conhecê-los e averiguá-los. O cego Retrupé anda
meio caído, amorviado, em escanifro e escanzelo. Parece que, ao mesmo passo, seu
modo de medo da Mula-Marmela muda e aumenta. Fraqueia-lhe também a fúria
alastradora e áspera de viver: não exerce com mesmo entono puxar pelo seu direito-
o feroz direito de pedir.
Parece que seu temor fazia-o murmurar queixumes, súplicas,
à
Mula-
Marmela. E, no entanto, ela cada dia para com ele mais se abranda, apiedada de seu
desvalor. Mas ele não crê, não pode saber, não confia dela, nem da gente. O
192
entressentir-se, entre as pessoas, vem de regra com exageros, erro, e retardo. Ele
sussurra disfarça da e impessoalmente seus pedidos de perdão; vocês notaram? A
Mula-Marmela ouvia-o, sem parecer que. Fugia de olhá-la. Sei, vocês não notaram,
nada. E, mesmo, agora, vocês se sentem um pouco mais garantidos, tranqüilos
estamos. É
de crer que, breve, estaremos livres do que não amamos, do que
danadamente nos enoja, pasma.
Conta-se-me que ele quis matá-la. Em hora em que seu medo se derramou
maior, saber-se-á lá por quê? Tido que já se estava maltreito, quando adoeceu, mal,
de febre acesa. Sentara-se à beira da rua, para arquejar. De repente, levantou-se,
sem bordão, estorvinhado, gritou, bramou: exaltado como um cão que é acordado
de repente sacou o facão, tacava-o, avançava às doidas, às mesmo cegas, tentando
golpeá-la, em seu desatinado furor. E ela, erguida onde estava, permaneceu, não se
moveu, não se intimidava? Olhava na direção do não. Se ele acertasse, poderia em
carnes trucidá-la. Mas, aos poucos, acreditou que o facão não a encontraria nunca,
sentiu-se desamparado demais e sozinho. Temeu, de todo em pé. O facão lhe caiu
da mão. Seu medo não tinha olhos para encher.
Parece que gemeu e chorou:- "Mãe... Mamãe...
Minha mãe!"
... -esganiçado
implorava, quando retombou sentado no chão, cessada a furibundância; e tremia
estremecidamente, feito os capins
dos pastos. Estava já no fino do funil,
é
de crer
que. A Mula Marmela, ela veio, se chegou, sem dizer nem o sussurrar. Apanhou-lhe o
chapéu, limpou-o, tornou-o a pôr na cabeça dele, e trouxe também o facão, recolocou-
o em sua cintura, na velha bainha. Ele, com o se apequenar de sofrer e tremer,
semelhava um bicho do fundo da floresta. Diz-se que ela teria lágrimas nos olhos; que
falou, soturna de ternuras terríveis:-"Meu filho...” E olhou para uma banda, disse a
alguma coisa mais, como se falando ao outro; soluçava, também, pelo Mumbungo,
seu reconduzido marido, por sua parte, de seu ato. Disso, vocês não quererão saber,
são em-diabas confusões, disso vocês não sabem. E, se, para que? Se ninguém
entende ninguém; e ninguém entenderá nada, jamais; esta
é
a prática verdade.
Sim, os dois, ficaram, até ao anoitecer, e pela noite entrada, naquela solidão
próxima, numa beira de cerca. Alguém os acudiu? Diz-se que ele padecia uma dor
terrivelmente, de demasiado castigo, e uma sufocação medonha de ar, conforme nem
por uma esperança ainda nem não agoniava. Só estrebuchava. Não viram, na
madrugada, quando ele lançou o último mau suspiro. Sim, mas o que vocês crêem
saber, isto, seriamente afirmam: que ela, a Mula-Marmela, no decorrer das trevas, foi
193
quem esganou estranguladamente o pobre-diabo, que parou de se sofrer, pelos
pescoços; no cuío, no corpo defunto, após, se viram marcas de suas unhas e dedos,
craváveis. Só não a acusaram e prenderam, porque maior era o alívio de a ver partir,
para nunca, daí que, silenciosa toda, como era sempre, no cemitério, acompanhou o
cego Retrupé às consolações. Vocês, distantemente, ainda a odiavam?
E ela ia se indo, amargã, sem ter de se despedir de ninguém, tropeçante e
cansada. Sem lhe oferecer ao menos qualquer espontânea esmola, vocês a viram
partir: o que figurava a expedição do bode-seu expiar. Feia, furtiva, lupina, tão magra.
Vocês, de seus decretantes corações, a expulsavam. Agora, não vão sair a procurar-lhe
o corpo morto, para, contritos, enterrá-Ia, em festa e pranto, em preito? Não será
custoso achá-la, por aí, caído, nem légua adiante. Ela ia para qualquer longe, ia
longamente, ardente, a só e só, tinha finas pernas de andar, andar. É caso, o que agora
direi. E, nunca se esqueçam, tomem na lembrança, narrem aos seus filhos, havidos ou
vindouros, o que vocês viram com esses seus olhos terrivorosos, e não souberam
impedir, nem compreender,
nem agraciar" De como, quando ia a partir, ela avistou
aquele
um cachorro morto, abandonado e meio já podre, na ponta-da-rua,
e pegou-o
às costas, o foi levando-: se para livrar o logradouro e lugar de sua pestilência
perigosa, se para piedade de dar-lhe
cova em terra, se para com ele ter com quem ou
quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária? Pensem, meditem nela, entanto.
CONTO 18 DARANDINA
DE MANHÃ, todos os gatos nítidos nas pelagens, e eu em serviço formal,
mas, contra o devido, cá fora do portão,
à
espera do menino com os jornais, e eis
que, saindo, passa, por mim e duas ou outras três pessoas que perto e ali mais ou
menos ocasionais se achavam, aquele senhor, exato, rápido, podendo-se dizer que
provisoriamente impoluto. E, pronto, refez-se no mundo o mito, dito que desataram
a dar-se, para nós, urbanos, os portentosos fatos, enchendo explodidamente o dia:
de chinfrim, afã e lufa-lufa.
-“O,seô!...”foi o grito; senão sem, de guerra:-“Ugh, sioux!...”-também
cabendo ser, por meu testemunho,
que com concentrada ou distraída mente me
encontrava, a repassar os próprios, Íntimos qüiproquós, que a matéria da vida são.
Mas:-"Oooh... " -e o senhor tão bem passante. algum quieto transeunte apunhalara?!
194
Isso em relance e instante visvi-vislumbrou-se-me. Não. Que só o que tinha sido-
vice-vi mais-: pouco certeiro e indiscreto no golpe, um afanador de carteiras. Desde
o qual, porém, irremediável, ia-se o vagar interior da gente, roto, de imediato, para
durante contínuos episódios.
-"Sujeito de trato, tão trajado... "-estranhava, surgindo do carro, dentr'onde
até então cochilara, o chofer do dr. Bilôlo.-"A caneta-tinteiro foi que ele abafou, do
outro, da lapela... " -depunha o menino dos jornais, só no vivo da ocasião
aparecendo. Perseguido, entretanto, o homem corria que luzia, no diante do pé,
varava pela praça, dava que dava.-"Pega!" Ora, quase no meio da praça, instalava-
se uma das palmeiras-reais, talvez a maior, mesmo majestosa. Ora, ora, o homem,
vestido correto como estava, nela não esbarrou, mas,
sem
nem se livrar dos sapatos,
atirou-se-Ihe abraçado, e grimpava-a, voraz, expedito arriba, ao incrível,
ascensionalíssimo.-Uma palmeira
é
uma palmeira ou uma palmeira ou uma
palmeira?-inquiriria um filósofo. Nosso homem, ignaro, escalara dela já o fim, e
fino. Susteve-se.
-Esta!-me mexi, repiscados os olhos, em tento por me readquirir. Pois o nosso homem
se fora, a prumo, a pino, com donaires de pica-pau e nenhum deslize, e ao topo se
encarapitava, safado, sabiá, no páramo empíreo. Paravam os de seu perséquito, não
menos que eu surpresos, detidos, aqui em nível térreo, ante a infinita palmeira-
muralhavaz. O céu só safira. No chão, já nem se contando o crescer do ajuntamento,
dado que, de toda a circunferência, acudiam pessoas e povo, que na praça se
emagotava. Tanto nunca pensei que uma multidão se gerasse, de graça, assim e
instantânea.
Nosso homem, diga-se que ostentoso, em sua altura inopinada, floria e
frutificava: nosso não era o nosso homem.- "Tem arte... " -e quem o julgava já não
sendo o jornaleiro, mas o capelão da Casa, quase com regozijo. Os outros, acolá, de
infra a supra, empinavam insultos, clamando do demo e aqui-da-polícia, até se
perguntava por arma de fogo. Além, porém, muito a seu grado, ele imitativamente
aleluiasse, garrida a voz, tonifluente; porque mirável era que tanto se fizesse ouvir,
tudo apesar-de. Discursava sobre canetas-tinteiro? Um camelô, portanto, atrevido
na propaganda das ditas e estilógrafos. Em local de má escolha, contudo, pensei; se
é
que, por descaridosa, não me escandalizasse ainda a idéia de vir alguém produzir
acrobacias e dislativas peloticas, dessas, justo em frente de nosso Instituto.
195
Extremamente de arrojo era o sucesso, em todo o caso, e eu humano; andei ver o
reclamista.
Chamavam-me, porém, nesse entremenos, e apenas o Adalgiso, sisudo ele, o
de sempre, só que me pegando pelo braço. Puxado e puxando, corre que apressei-
me, mesmo assim, pela praça, para o foco do sumo, central transtornamento. Com
estarmos ambos de avental, davam-nos alguma irregular passagem.- "Como
foi
que
fugiu?"-todo o mundo perguntando, do populacho, que nunca
é
muito tolo por
muito tempo. Tive então enfim de entender, ai-me, mísero.-"Como o recapturar?"
Pois éramos, o Adalgiso e eu, os internos de plantão, no dia infausto fantástico.
Vindo o que o Adalgiso, com de-curtas, não urgira em cochichar-me: nosso
homem não era nosso hóspede. Instantes antes, espontâneo, só, dera ali o ar de sua
desgraça.- "Aspecto e fades nada anonnais, mesmo a fonna e conteúdo da elocução
a princípio denotando fundo mental razoável... " Grave, grave, o caso. Premia-nos a
multidão, e estava-se na área de baixa pressão do ciclone. -"Disse que era são, mas
que, vendo a humanidade
en1ouquecida, e em véspera de mais tresloucar-se,
inventara a decisão de se internar, voluntário: assim, quanclo a coisa se varresse de
infernal a pior, estaria já garantido ali, com lugar, tratamento e defesa, que,
à
maioria, cá fora, viriam a fazer falta... "-e o Adalgiso, a seguir, nem se culpava de
venial descuido, quando no ir querer preencher-lhe a ficha. -"Você se espanta?" -
esquivei-me. De fato, o homem exagerara somente uma teoria antiga: a do professor
Dartanhã, que, mesmo a nós, seus aluDos, declarava-nos em quarenta-par-cento
casos típicos, larvados; e, ainda, dos restantes, outra boa parte, apenas de mais
puxado diagnóstico... Mas o Adalgiso, mas ao meu estarrecido ouvido:- "Sabe
quem é? Deu nome e cargo. Sandoval o reconheceu. É
o Secretário das Finanças
Públicas ... "-assim baixinho, e choco, o Adalgiso.
Ao que, quase de propósito, a turba calou-se e enervou-nos,
à
estupefatura.
Desolávamo-nos de mais acima olhar, aonde evidentemente o céu era um desprezo
de alto, o azul antepassado. De qualquer modo, porém, o homem, aquém, em torre
de marfim, entre as verdes, hirtas palmas, e ao cabo de sua diligência de veloz como
um foguete, realizáva-se, comensurado com o absurdo. Sei-me atreito a vertigens. E
quem não, então, sob e perante aquilo, para nós um deu-nas-sacuda, de arrepiar
perucas, semelhante e rigorosa coisa? Mas um 'super-humano ato pessoal, transe
hiperbólico, incidente hercúleo.-"Sandoval vai chamar o dr. Diretor, a Polícia, o
Palácio de Governo... "-assegurou o Adalgiso.
196
Uma palmeira não
é
uma mangueira, em sua frondosura, sequer uma
aroeira, quanto a condições de fixibilidade e conforto, acontece-que. Que modo e
como, então, agüentava de reter-se tanto ali, estadista ou não, são ou doente? Ele lá
não estava desequilibrado; ao contrário. O repimpado, no apogeu, e rematado
velhaco, além de dar em doido, sem fazer por quando. A única coisa que fazia era
sombra. Pois, no justo momento, gritou, introduziu-se a delirar, ele mais em si,
satisfatível:- "Eu nunca me entendi por gente!... "-de nós desdenhava. Pausou e
repetiu. Daí e mais:"Vocês me sabem é de mentira!" Respondendo-me? Riu, ri, riu-
se, rimo-nos. O povo ria.
Adalgiso, não:-"Ia adivinhar? Não entendo de política. "-inconcluía.-
"Excitação maníaca, estado demendal... Mania aguda, delirante... E o contraste não
é tudo, para se acertarem os Sintomas?"-ele, contra si consigo, opunha. Psiu, porém,
quem, assado e assim, a mundos e resmungos, sua total presença anunciava? Vê-se
que o dr. Diretor: que, chegando, sobrechegado. Para arredar caminho, por império,
os da Polícia-tiras, beleguins, guardas, delegado, comissário-para prevenir
desordem. Também, cândidos, com o dr. Diretor, os enfermeiros, padioleiros,
Sandoval, o Capelão, o dr. Enéias e o dr. Bilôlo. Traziam a camisa-de-força. Fitava
-
se
o nosso homem empalmeirado. E o dr. Diretor, dono:- "Há de ser nada!"
Contestando-o, diametral, o professor Dartanhã, de contrária banda
aportado:- "Psicose paranóide hebefrênica, dementia praecox, se vejo claro!"-; e
não só especulativo-teorético, mas pur picuinha, tanto o outro e êle se ojerizavam;
além de que rivais, coincidentemente, se bem que calvo e não calvo. Toante que o
dr. Diretor ripostou, incientífico, em atihlde de autoridade:"Sabe quem aquele
cavalheiro é?"-e o título declinou, voz vedada; ouvindo-o, do povo, mesmo assim,
alguns, os adjacentes sagazes. Emendou o mote o professor Dartanhã:-"... mas
transitória perturbação, a qual, a capacidade civil, em nada lhe deixará afetada... " -
versando o de intoxicação-ou-infecção, a ponto falara. Mesmo um sábio se engana
quanto ao em que crê-; cremos, nós outros, que nossos límpidos óculos
limpávamos. Assim cada qual um asno prepalatino, ou, melhor, apud o vulgo:
pessoa bestificada. E, pois que há razões e rasões, os padicleiros não depunham no
chão a padiola.
Porque, o nosso, o excelso homem, regritou:-"Viver
é
impossível!... "-um
slogan; e, sempre que ele se prometia para falar, conseguia-se, cá, o multitudinal
silêncio-das pessoas de milhares. Nem esquecera-lhe o elemento mímico: fez gesto-
197
de que empunhasse um guarda-chuva. Ameaçava o quê a quem, com seu estro
catastrófico?-"Viver
é
impossível!" -o dito declarado assim, tão empírieo e
anermenêutico, só através do egoísmo da lógica. Mas, menos como um galhofeiro
estapafúrdio, ou alucinado burlão, pendo a ouvir, antes em leal tom e generoso. E era
um revelar em favor de todos, instruía-nos de verdadeira verdade. A nós-substantes
seres sub-aéreos-de cujo meio ele a si mesmo se raptara. Fato, fato, a vida se dizia,
em si, impossível. Já assim me pareceu. Então, ingente, universalmente, era preciso,
sem cessar, um milagre; que é o que sempre há, a fundo, de fato. De mim, não pude
negar-lhe, incerta, a simpatia intelectual, a ele, abstrato-vitorioso ao anular-se-
chegado ao píncaro de um axioma.
Sete peritos, oficiais pares de olhos, do espaço inferior o estudavam.- "Que
ver: que fazer?" -agora. Pois o dr. Diretor comandava-nos em conselho, aqui, onde,
prestimosa para nós, dilatava a Polícia, a proêmios de casse-têtes e blasfemos rogos,
uma clareira precária. Para embaraços nossos, entretanto, portava-se árduo o ilustre
homem, que ora encarnava a alma de tudo: inacessível. E-portanto-imedicável.
Havia e haja que reduzi-lo a baixar, valha que por condigno meio desguindá-lo.
Apenas, não estando
à
mão de colher, nem sendo de se atrair com afagos e
morangos. -"Fazer o quê?" -unânimes, ora tardávamos em atinar. Com o que o dr.
Diretor, como quem saca e desfecha, prometeu:- “Vêm aí os bombeiros!" Ponto.
Depunham os padioleiros no chão a padiola.
O que vinha, era a vaia. Que não em nós, bem felizmente, mas no nosso
guardião do erário. Ele estava na ponta. Conforme quanto, rápida, no chacoalhar da
massa, difundira-se a identificação do herói. Donde, de início, de bufos avulsos
gritos, daqui, aqui, um que outro, comicamente, a ato arda pronta borbotava. E
bradou aos céus, formidável, una, a versão voxpopular:-"Demagogo!
Demagogo!...
"-avessa ressonância.- "Demagõoogo! ... "-a
belo e bom, safa,
santos meus, que corrimaça. O ultravociferado halali, a extrair-se de imensidão:
apinhada, em pé, impiedosa-aferventa da ao calor do dia de março. Tenho que
mesmo uns de nós, e eu, no conjunto conc1amávamos. Sandova!, certo, sim; ele, na
vida, pela primeira vez, ainda que em esboço, a revoltar-se. Reprovando-nos o
professor Dartanhã:- "Não tem um político direito às suas moléstias mentais?" -
magistralmente enfadado. Tão certo que até o dr. Diretor em seus créditos e
respeitos vacilasse-psiquiatrista. Vendo-se, via-se que o nosso pobre homem perdia a
198
partida, agora, desde que não conseguindo juntar o prestígio ao fastígio.
Demagogo...
Conseguiu-o-de truz, tredo. Em suave e súbito, deu-se que deu que se mexera,
a marombar, e por causas. Daí, deixando cair... um sapato! Perfeito, um pé de
sapato-não mais-e tão condescendentemente. Mas o que era o teatral golpe, menos
amedrontador que de efeito burlesco vasto. Claro que no vivo popular houve
refluxos e fluxos, quando a mera peça demitiu-se de lá, vindo ao chão, e
gravitacional se exibiu no ar. Aquele homem:- É um gênio!" -positivou o dr. Bilôlo.
Porque o povo o sentia e aplaudia, danado de redobrado:- "Viva! Viva!... "-
vibraram, reviraram."Um gênio!"-notando-se, elegiam-no, ofertavam-lhe oceânicas
palmas. Por São Simeão! E sem dúvida o era, personagente, em sua sicofància,
conforme confere e confirmava: com extraordinária acuidade de percepção e alto
senso de oportunidade. Porque houve também o outro pé, que não menos se
desabou, após pausa. Só que, para variar, este, reto, presto, se riscou-não parabolava.
Eram uns sapatos amarelados. O nosso homem, em festival-autor, alcandorado, alvo:
desta e elétrica aclamação, adequada.
Estragou-a a sirene dos bombeiros: que eis que vencendo a custo o acesso e
despontando, com esses tintinábulos sons e estardalho. E ancoravam, isto é-rubro de
lagosta ou arrebol-cujo carro. Para eles se ampliava lugar, estricto espaço de
manobra com sua forte nota belígera, colheram sobeja sobra dos aplausos. Aí já seu
Comandante se entendendo com a Polícia e pois conosco, ora. Tinham seu segundo,
comprido caminhão, que se fazia base da escada: andante apetrecho, para o
empreendimento, desdobrável altaneiramente, essencial, muito máquina. Ia-se
agir. Manejando-se marciais tempos e movimentos,
à
corneta e apito dados.
Começou-se. Ante tanto, que diria o nosso paciente-exposto cínico insigne?
Disse.-"O feio está ficando coisa... " -entendendo de nossos planos,
vivaldamente constatava; e nisso indocilizava-se, com mímica defensiva, arguto
além de alienado. A solução parecendo inconvir-lhe.-"Nada de cavalo-de-pau!"-
vendo-se que de fresco humor e troiano, suspeitoso de Palas Atenéia. E:- "Querem
comer-me ainda verde?!" -o que, por mero mimético e sintomático, apenas, não
destoava nem jubilava.
À
arte que, mesmo escada à parte, os bons bombeiros, muito
homens seriam para de assalto tomar a palmeira-real e superá-la: o uso avulso de um
deles, tão bém em técnicas, sabe-se lá, quanto um antilhano ou canaca. A poder de
199
cordas, ganchos, espeques, pedais postiços e poiais fincáveis. Houve nem mais, das
grandes expectações, a conversa entrecortada. O silêncio timbrava-se.
Isto é, o homem, o prócer, protestou.- "Pára! ... " Gesticulou que ia protestar
mais.-"Só morto me arriam, me apeiam!" -e não à-toa, augural, tinha ele o verbo
bem adestrado. Hesitou-se, de cá para cá, hesitávamos.-"Se vierem, me vou, eu... Eu
me vomito daqui!... "-pronunciou. Declamara em demorado, quase quite eufórico,
enquanto que nas viçosas palmas se retouçando, desvárias vezes a menear-se,
oscilante por um fio. A coaxa acrescentou: -"Cão que ladra, não
é
mudo... "-e já que
só faltava mesmo o triz, para passar-se do aviso
à
lástima. Parecia prender-se apenas
pelos joelhos, a qualquer simples e insuportável finura: sua palma, sua alma. Ah... e
quase, quasinho... quasezinho, quase... Era de horrir-me o pêlo. Nanja.-"É de circo...
"-alguém sus sussurrou-me, o dr. Enéias ou Sandoval. O homem tudo podia, a gente
sem certeza disso. Seja se com simulagens e fictâncias? Seja se capaz de elidir-se,
largar-se e se levar do diabo
. No finório, descabelado propósito, perpendurou-se um
pouco mais, resoluto rematado. A morte tocando, paralela conosco-seu tênue tambor
taquigráfico. Deu-nos a tensão pânica: gelou-se-me. Já aí, ferozes, em favor do
homem:-"Náo! Não!"-a gritamulta-"Não! Não! Não!-tumultroada. A praça
reclamava, clamava. Tinha-se de protelar. Ou produzir um suicídio reflexivo-e o
desmoronamento do problema? O dr. Diretor citava Empedocles. Foi o em que os
chefes terrestres concordaram: apertava a urgência de não se fazer nada. Das
operações de salvamento, interrompeu-se o primeiro ensaio. O homem parara de
balançar-se-irrealmente na ponta da situação. Ele dependia dele, ele, dele, ele,
sujeito. Ou de outro qualquer evento, o qual, imediatamente, e muito aliás, seguiu-
se.
De um-dois. Despontando, com o Chefe-de-Polícia, o Chefe-de-Gabinete do
Secretário. Passou-se-Ihe um binóculo e ele enfiava olho, palmeira-real avante-
acima, detendo-se, no titular. Para com respeito humano renegá-lo:- "Não o estou
bem reconhecendo... Entre, porém, o que com mais decoro lhe conviesse, optava
pela solicitude, pálido. Tomava o ar um ar de antecâmara, tudo ali aumentava de
grave. A família
fora avisada? Não, e melhor, nada: família vexa e vencilha.
Querendo-se conquanto as verticais providências, o que ficava por nossa má-arte.
Tinha-se de parlamentar com o demente, em não havendo outro meio nem termo.
Falar para fazer momento; era o caso. E, em menos desniveladas relações, como
entrosar-se, físico, o diálogo?
200
Se era preciso um palanque?-disse-se. Com que, então sem mais, já aparecia-
o cônico cartucho ou cumbuca-um alto-falante dos bombeiros. O dr. Diretor ia
razoar a causa: penetrar em o labirinto de um espírito, e-a marretadas do intelecto-
baqueá-lo, com doutoridade. Toques, crebros, curtos, de sirene, o incerto silêncio
geraram. O dr. Diretor, mestre do urso e da dança, empunhava o preto cornetão,
embocava-o. Visava-o para o alto, circense, e nele trombeteiro soprava.-
"Excelência!... " -começou, sutil, persuasivo; mal.-"Excelência... "-e tenha-se,
mesmo, que com tresincondigna mesura. Sua calva foi que se luziu, de metalóide ou
metal; o dr. Diretor gordo e baixo. Infundado, o povo o apupou: -"Vergonha, velho!"
-e- '1arga, larga!... " Deste modo, só estorva, a leiga opinião, quaisquer clérigas
ardilidades.
Todo abdicativo, o dr. Diretor, perdido o comando do tom, cuspiu e se
enxaguava de suor, soltado da boca o instrumento. Mas não passou o megafone ao
professor Dartanhã, o que claro. Nem a Sandoval, prestante, nem ao Adalgiso, a
cujos lábios. Nem ao dr. Bilôlo, que o querendo, nem ao dr. Enéias, sem voz usual.
A quem, então pois? A mim, mi, me, se vos parece; mas só enfim. Temi quando
obedeci, e muito siso havia mister. Já o dr. Diretor me ditava:
-"Amigo, vamos fazer-lhe um favor, queremos cordialmente ajudá-la... " -
produzi, pelo conduto; e houve eco.- "Favor? De baixo para cima?... "-veio a
resposta, assaz sonora. Estava ele em fase de aguda agulha. Havia que o questionar.
E, a novo mando do dr. Diretor, chamei-o, minha boca, com intimativa:-"Psiu! Ei!
Escute! Olhe!... " -altiloqüei.-"Vou falir de bens?" -ele altitonava. Deixava que eu
prosseguisse; a sua devendo de ser uma compreensão entediada. Se lhe de deveres e
afetos falei!-"O amor
é
uma estupefação... " -respondeu-me. (Aplausos.) Para tanto
tinha poder: de fazer, vezes, um oah-oa-oah!-mão na boca-cavernoso. Intimou
ainda:- "Tenha-se paciência!... " E:-"Hem? Quem? Rem?" -fez, pessoalmente, o dr.
Diretor, que o aparelho, sôfrego, me arrebatara.- "Você, eu, e os neutros... " -
retrucou o homem; naquele elevado incongruir, sua imaginação não se entorpecia.
De nada, esse ineficaz paralàparacàparlar, razões de quiquiriqui, a boa nossa
verbosia; a não ser a atiçar-lhe mais a mioleira, para uma verve endiabrada. Desistiu-
se, vem que bem ou mal, do que era querer-se amimar a murros um porco-espinho.
Do qual, de tão de cima, ainda se ouviu, a final, pérfida pergunta:-"Foram às últimas
hipóteses?"
201
Não. Restava o que sé inesperava, dando-se como sucesso de ipso-facto.
Chegava...
a
quê?
a
que crer?
a
próprio!
a
vero e são, existente, Secretário das
Finanças Públicas-ipso. Posto que bem de terra surgia, e desembarafustadamente.
apresso. Opaco. Abraçava-nos, a cada um de nós se dava, e aliás o adulávamos,
reconhecentemente, como ao Pródigo o pai ou o cão a Ulisses. Quis falar, voz
inarinônica; apontou causas; temia um sósia? Subiam-no ao carro dos bombeiros, e,
aprumado, primeiro perfez um giro sobre si, em tablado, completo, adequando-se à
expositura
.
a
público lhe devia.- "Concidadãos!" -ponta dos pés.- "Eu estou aqui, vós
me vedes. Eu não sou aquele! Suspeito exploração,
calúnia, embuste, de inimigos e
adversários... "De rouco,
à
força, calou-se, não se sabe se mais com bens ou que
males. O outro, já agora ex-pseudo, destituído, escutou-o com ociosidade. De seu
conquistado poleiro, não parava de dizer que "sim", acenado.
Era meio-dia em mármore. Em que curiosamente não se tinha fome nem
sede, de demais coisas qual que me lembrava. Súbita voz:-"Ví a Quimera!" -bradou
o homem, importuno, impolido; irara-se. E quem e que era? Por ora, agora,
ninguém, nulo, joão, nada, sacripante, qüídam. Desconsiderando a moral elementar,
como a conceito relativo: o que provou, por sinais muito claros. Desadorava.
Todavia, ao jeito jocoso, fazia-se de castelo-no-ar. Ou era pelo épico epidérmico?
Mostrou-o que havia entre a pele e a camisa.
Pois, de repente, sem espera, enquanto o outro perorava, ele se despia. Deu-
se
à
luz, o fato sendo pingo por pingo. Sobre nós, sucessivos, esvoaçantes-paletó,
cueca, calças-tudo a bandeiras despregadas. Retombando-Ihe a camisa, por fim,
panda, aérea, aeriforme, alva. E feito o forró!-foi-balbúrdias. Na multidão havia
mulheres, velhas, moças, gritos, mouxe-trouxe, e trouxe-mouxe, desmaios. Era, no
levantar
os
olhos, e o desrespeitável público assistia-a ele in puris naturalibus. De
quase alvura enxuta de aipim, na verde coma e frande da palmeira, um lídimo
desenroupado. Sabia que estava a transparecer, apalpava seus membros corporais.-
"O síndrome ... “-O Adalgiso observou; de novo nos confusionávamos.-"Síndrome
exofrênico de Bleuler... " -pausado, exarou o Adalgiso. Simplificava-se o homem
em escândalo e emblema, e franciscano magnifício,
à
força de sumo contraste. Mas
se repousava, já de humor benigno, em condições de primitividade.
Com o que-e tanta folia-em meio ao acrisolado calor, suavam e zangavam-se
as autoridades. Não se podendo com o desordeiro, tão subversor e anônimo? Que
havia que iterar, decidiram, confabulados: arcar com os cornos do caso. Tudo se pôs
202
em movimento, troada a ordem outra vez, breve e bélica,
à
fanfarra-para o
cometimento dos bombeiros. Nosso rancho e adro, agora de uma largura, rodeado
de cordas e polícias; já ali se mexendo os jornalistas, repórteres e fotógrafos, um
punhado; e filmavam.
O
homem, porém, atento, além de persistir em seus altos inten tos, guisava-se
também em trabalho muito ativo. Contara, decerto, com isso, de maquinar-se-lhe
outra esparrela. Tomou cautela. Contra-atacava. Atirou-se acima, mal e mais arriba,
desde que tendo início o salvatério: contra a vontade, não o salvavam! Até; se até. A
erguer-se das palmas movediças, até ao sumo vértice; ia já atingir o espique, ver e ver
que com grande risco de precipitar-se. O exato era ter de falhar-com uma evidência
de cachoeira. -"E hora!"-foi nossa interjeição golpeada; que, agora, o que se sentia é
que era o contrário do sono. Irrespirava-se. Naquela porção de silêncios, avançavam
os bombeiros, bravos? Solerte, o homem, ao último ponto, sacudiu-se, se balançava,
eis: misantropóide gracioso, em artificioso equilíbrio, mas em seu eixo
extraordinário. Disparatou mais:- "Minha natureza não pode dar saltos?... "-e,
à
pompa, ele primava.
Tanto é certo que também divertia-nos. Como se ainda carecendo de patentear
otimismo, mostrava-nos insuspeitado estilo. Dandinava. Recomplicou-se, piorou, a
pausa. Sua queda e morte, incertas, sobre nós pairando, altanadas. Mas, nem caindo e
morrendo, dele ninguém nada entenderia. Estacavam, os bombeiros. Os bombeiros
recuavam. E a alta escada desandou, desarquitetou-se, encaixava-se. Derrotadas as
autoridades, de novo, diligentes, a repartir-se entre cuidados. Descobri, o que nos
faltava. Ali, uma forte banda-de-música, briosa,
à
dobrada. Do alto daquela palmeira,
um ser, só, nos contemplava.
Dizendo sorrindo o Capelão:- “Endemoninhado...”
Endemoninhados, sim; os estudantes, legião, que do sul da praça
arrancavam?-de onde se haviam concentrado. Dado que roda-viveu um rebuliço, de
estrépito, de assaltada. Em torrente, agora, empurravam passagem. Ideavam ser o
homem um dos seus, errado ou certo, pelo que juravam resgatá-lo. Era um custo, a
duro, contê-los,
à
estudantada. Traziam invisa bandeira, além de fervor hereditário.
Embestavam. Entrariam em ato os cavalarianos, esquadrões rompentes, para a luta
com o nobre e jovem povo. Carregavam? Pois, depois. Maior a atrapalhação. Tudo
tentava evoluir, em tempo mais vertiginoso e revelado. Virou a ser que se pediam
203
reforços, com vistas a pôr-se a praça esvaziada; o que vinha a ponto
. Porém, também
entoavam-se inacionais hinos, contagiando a multa turba. E paz?
De ás e roque e rei, atendeu a isso, trepado no carro dos bombeiros, o
Secretário da Segurança e Justiça. Canoro, grosso, não gracejou:-"Rapazes! Sei que
gostam de me ouvir. Prometo, tudo... "-e verdade. Do que, aplaudiram-no, em
sarabando, de seus antecedentes se fiavam. Deu-se logo uma remissão, e alguma
calma. Na confusão, pelo sim pelo não, escapou-se, aí, o das Finanças-Públicas
Secretário. Em fato, meio quebrado de emoções, ia-se para a vida privada.
Outra coisa nenhuma aconteceu. O homem, entre o que, entreaparecendo, se
ajeitara, em berço, em
seus
palmares. Dormindo ou afrouxando de se segurar, se ele
desse de torpefazer-se, e "enfim,
à
espatifação, malhar abaixo? De como podendo
manter-se rijo incontável tempo assim, aos circunstantes o professor Dartanhã
explicava. Abusava de nossa paciência-um catatônico-hebefrênico-em estereotipia
de atitude.-"A frechadas logo o depunham, entre os parecis'e nhambiquaras... "-
inteirou o dr. Bilôlo; contente de que a civilização prospere a solidariedade humana.
Porque, sinceros, sensatos, por essa altura, também o dr. Diretor e o professor
Dartanhã congraçavam-se.
Sugeriu-se nova expediência, da velha necessidade. Se, por treslouco, não
condescendesse, a apelo de algum argumento próximo e discreto? Ele não ia
ressabiar; conforme concordou, consultado. E a ação armou-se e alou-se: a escada
exploradora-que nem que canguru, um, ou louva-a-deus enorme vermelho-se des-
dobrou, em engenhingonça, até a mais de meio caminho no" vácuo. Subia-a o dr.
Diretor, impertérrito ousadamente, êle que naturalizava-se heróico. Após, subia eu
descendo, feito Dante atrás de Virgílio. Ajudavam-nos os bombeiros. Ao outro, lá,
no galarim, dirigíamo-nos, sem a própria orientação no espaço. A de nós ainda
muitos metros, atendia-nos, e ao nosso latim perdido. Por que, brusco, então,
bradou por:-"Socorro!... "-?
Tão então outro tresbuIício-e o mundo inferior estalava. Em fúria, arruaça e
frenesis, ali a população, que. a insanar-se e in
sanir-se, comandando-a seus mil
motivos, numa alucinação de manicomiáveis. Depreque-se!-não fossem derrubar
caminhão e escada. E tudo por causa do sobredito-cujo: como se tivesse ele instilado
veneno nos reservatórios da cidade.
Reaparecendo o humano e estranho.
O
homem. Vejo que ele se vê, tive de
notá-Ia. E algo de terrível de repente se passava. Ele queria falar, mas a voz
204
esmorecida; e embrulhou-se-lhe a fala. Estava em equilíbrio de razão: isto é, lúcido,
nu, pendurado. Pior que lúcido, relucidado; com a cabeça comportada. Acordava!
Seu acesso, pois, tivera termo, e, da idéia delirante, via-se dessonambulizado.
Desintuído, desinfluído-se não se quando-soprado. Em doente consciência, apenas,
detumescerase, recuando ao real e autônomo, a seu mau pedaço de espaço e tempo,
ao sem-fim do comedido. Aquele pobre homem descoroçoava. E tinha medo e tinha
horror-de tão novamente humano. Teria o susto reminiscente-do que, recém, até ali,
pudera fazer, com perigo e preço, em descompasso, sua inteligência em calmaria.
Sendo agora para despenhar-se, de um momento para nenhum outro. Tremi, eu,
comiserável. Vertia-se, caía? Tiritávamos. E era o impasse da mágtca. É que ele
estava em si; e pensava. Penava-de vexame e acrofobia. Lá, ínfima, louca, em mar, a
multidão: infernal, ululava.
Daí, como sair-se, do lance, desmanchado o firme burgo? Entendi-o. Não
tinha rosto com que aparecer, nem roupas-bufão, truão, tranca-para enfrentar as
razões finais. Ele hesitava, electrochocado. -Preferiria, então, não salvar-se? Ao
drama no catafalco, emborcava-se a taça da altura. Um homem
é,
antes de tudo,
irreversível. Todo pontilhado na esfera de dúvida, propunha-se em outra e
imensurávél distância, de milhões e trilhões de palmeiras. Desprojetava-se, coitado,
e tentava agarrar-se, inapto,
à
Razão Absoluta? Adivinhava isso o desvairar da
multidão espa-ventosa-enlouquecida. Contra ele, que, de algum modo, de alguma
maravilhosa continuação, de repente nos frustrava. Portanto, em baixo, alto
bramiam. Feros, ferozes. Ele estava são.
Vesânicos, queriam linchá-lo.
Aquele homem apiedava diferentemente-de fora da província humana. A
precisão de viver vencia-o. Agora, de gambá num atordoamento, requeria nossa
ajuda. Em fácil pressa atuavam os bombeiros, atirando-se a reaparecê-Ia e retrazê-lo
restidigitavam-no. Rebaixavam-no, com tábuas, cordas e peças, e, com seus outros
meios apocatastáticos. Mas estava salvo. Já, pois. Isto e assim. Iria o povo destruí-
Ia?
Ainda não concluindo. Antes, ainda na escada, no descendimento, ele mirou,
melhor, a multidão, deogenésica, diogenista. Vindo o quê, de qual cabeça, o caso
que já não se esperava. Deu-nos outra cor. Pois, tomavam a endoidá-lo? Apenas
proclamou:-"Viva a luta! Viva a Liberdade!" -nu, adão, nado, psiquiartista.
Frenéticos, o ovacionaram, às dezenas de milhares se abalavam. Acenou, e chegou
205
em baixo, incólume. Apanhou então a alma de entre os pés, botou-se outro.
Aprumou o corpo, desnudo, definitivo.
Fez-se o monumental desfecho. Pegaram-no, a ombros, em esplêndido,
levaram-no carregado. Sorria, e, decerto, alguma coisa ou nenhuma proferia.
Ninguém poderia deter ninguém, naquela desordem do povo pelo povo. Tudo se
desmanchou em andamento, espraiando-se para trivialidades. Vivera-se o dia. Só
restava imudada, irreal, a palmeira.
Concluindo. Dando-se que, em pós, desafogueados, trocavam-se pelos paletós
os aventais. Modulavam drásticas futuras providências, com o professor Dartanhã,
ex-professo, o dr. Diretor e o dr. Enéias-alienistas.-"Vejo que ainda não vi bem o
que vi... "referia Saudoval, cheio de cepticismo histórico.-"A vida
é
constante,
progressivo desconhecimento... " -definiu o dr. Bilôlo, sério, entendo que, pela
primeira vez. Pondo o chapéu, elegantemente, já que de nada se sentia seguro. A
vida era
à
hora.
Apenas nada disse o Adalgiso, que, sem aparente algum motivo, agora e
sempre súbito assustava-nos... Ajuizado, correto, circunspedo demais: e terrível, ele,
não em si, insatisfatório. Visto que, no sonho geral, permanecera insolúvel. Dava-me
um frio animal, retrospectado. Disse nada. Ou talvez disse, na pauta, e eis tudo. E foi
para a cidade, comer camarões.
CONTO 19 Substância
SIM,
na roça o polvilho se faz a coisa alva: mais que o algodão, a garça, a
roupa na corda. Do ralo às gamelas, da masseira às bacias, uma polpa se repassa?
para assentar, no fundo da água e leite, azulosa-o amido-puro, limpo, feito surpresa.
Chamava-se Maria Exita. Datava de maio, ou de quando? Pensava ele em maio,
talvez, porque o mês mor-de orvalho, da Virgem, de claridades no campo. Pares se
casavam, arrumavam-se festas; numa, ali, a notara: ela, flor. Não lembrava a menina,
feiosinha, magra, historiada de desgraças, trazida, havia muito, para servir na
Fazenda. Sem se dar idéia, a surpresa se via formada. Se, às vezes, por assombro,
uma moça assim se embelezava, também podia ter sido no tanto-e-tanto. Só que a ele,
Sionésio, faltavam folga e espírito para primeiro reparar em transformações.
Saíra da festa em começo, dada mal sua presença; pois a vida não lhe deixava cortar
pelo sono: era um espreguiçar-se ao adormecer, para poupar tempo no despertar. Para a
206
azáfama-de farinha e polvilho. Célebres, de data, na região e longe, os da Samburá;
herdando-a, de repente, Seo Nésio, até então rapaz de madraças visagens, avançara-se
com decisão de açoite a desmedir-lhes o fabrico. Plantava à vasta os alqueires de
mandioca, que, ali, aliás, outro culti\'o não vingava; chamava e pagava braços;
espantava, no dia a dia, o povo. Nem por nada teria adiantado atenção a uma
criaturinha, a qual.
Maria Exita. Trouxera-a, por piedade, pela ponta da mão, receosa de que o
patrão nem os outros a aceitassem, a velha Nhatiaga, peneireira. Porque, contra a
menos feliz, a sorte sarapintara de preto portais e portas: a mãe, leviana, desaparecida
de casa; um irmão, perverso, na cadeia, por atos de morte; o outro, igual feroz,
foragido, ao acaso de nenhuma parte; o pai, razoável bom-homem, delatado com a
lepra, e prosseguido, decerto para sempre, para
um
lazareto. Restassem-lhe nem
afastados parentes; seja, recebera
madrinha, de luxo e rica, mas que pelo lugar apenas
passara, agora ninguém sabendo se e onde vivia. Acolheram-na, em todo o caso. Menos
por direta pena; antes, da compaixão da Nhatiaga. Deram-lhe, porém, ingrato serviço, de
todos o pior o de quebrar,
à
mão, o polvilho, nas lajes.
Sionésio, de tarde, de volta, cavalgava através das plantações.
Se a meio-galope, se a passo, mas sôfrego descabido, olhando quase todos os
lados. Ainda num domingo, não parava, pois. Apenas, por prazo, em incertas casas, onde
lhe dessem, ao corpo, consolo: atendimento de repouso. Lá mesmo, por último, demorava
um menos. Prazer era ver, aberto, sob o fim do sol, o mandiocal de verdes mãos. Amava o
que era seu-o que seus fortes olhos aprisionavam. Agora, porém, uma fadiga. O
ensimesmo. Sua sela se coçava de uso, aqui a borraina aparecendo; tantas coisas a renovar,
e ele sem sequer o tempo. Nem para ir de visita, no Morro-do-Boi, à quase noiva, comum
no sossego e paciências, da terra, em que tudo se relevava pela medida das distâncias.
Chegava
à
Fazenda. Todavia, esporeava.
O
quieto completo, na Samburá, no domingo, o eirado e o engenho desertos, sem
eixo de murmúrio. Perguntara
à
Nhatiaga, pela sua protegida.-"Ela parte o polvilho nas
lajes...” A
velha resumira. Mas, e até hoje, num serviço desses? Ao menos, agora, a
mudassem!-"Ela
é
que quer, diz que gosta. E
é
mesmo, com efeito... "-a Nhatiaga
sussurrava. Siionésio, saber que ela, de qualquer modo, pertencia e lidava ali, influía-lhe
um contentamento; ele era a pessoa manipulante. Não podia queixar-se. Se o avio da
farinha se pelejava ainda rústico, em breve o poderia melhorar, meante muito, pôr
máquinas,
dobrar
quantidades.
207
Demorara para ir vê-Ia. Só no pino
do
meio-dia-de um sol do qual o passarinho
fugiu. Ela estava em frente da mesa de pedra; àquela hora, sentada no banquinho rasteiro,
esperava que trouxessem outros pesados, duros blocos ele polvilho. Alvíssimo, era
horrível, aquilo. Atormentava, torturava: os olhos da pessoa tendo de ficar miudinho
fechados, feito os de um tatu, ante a implacável alvura, o sol em cima. O dia inteiro, o ar
parava levantado, aos tremeluzes, a gente se perdendo por um negrume do horizonte,
para
temperar a intensidade brilhante, branca; e tudo cerradamente igual. Teve dó dela-
pobrinha flor. Indagou:-"Que serviço você dá?"-e era a tola questão. Ela não se
vexou. Só o mal-e-mal, o boquinãoabrir, o sorriso devagar. Não se perturbava.
Também, para um pasmar-nos, com ela acontecesse diferente: nem enrugava o rosto,
nem espremia ou negava os olhos, mas oferecidos bem abertos-olhos desses, de outra
luminosidade. Não parecia padecer, antes tirar segurança e folguedo, do triste,
sinistro polvilho, portentoso, mais a maldade do sol. E a beleza. Tão linda, clara"
certa -de avivada camação e airosa-uma iazinha, moça feita em cachoeira. Viu que,
sem querer, lhe fazia cortesia. Falou-lhe, o assunto fora de propósito: que o polvilho,
ali, na Samburá, era muito caprichado, justo, um dom de branco, por isso para a
Fábrica valia mais caro, que os outros, por aí, feiosos, meio tostados...
Depois, foi que lhe contaram. Tomava ainda, a cavalo, seu coração não
enganado,
como
sendo sempre desiguais os domingos; de tarde, aí que as rolinhas e
os canários cantavam. Se bem-ele ali o dono-sem abusar da vantagem. "De suas
maneiras, menina, me senti muito agradado...”-repetia um futuro talvez dizer. A
Maria Exita. Sabia, hoje: a alma do jeito e ser, dela, diversa dos outros. Assim, que
chegara lá, com os vários sem-remédios de amargura, do oposto mundo e maldições,
sozinha de se sufocar. Aí, então, por si sem conversas, sem distraídas beiras,
nenhumas, aportara àquele serviço-de toda a despreferência, o trabalho pedregoso, no
quente .feito boca-de-fomo, em que a gente sente engrossar os dedos, os olhos
inflamados de ver, no deslumbrável. Assoporava-se sob refúgio, ausenciada?
Destemia o grado, cruel polvilho, de abater a vista, intacto branco. Antes, como a um
alcanforar o fitava, de tanto gosto. Feito a uma espécie de alívio, capaz de a
desafligir; de muito lhe dar: uma esperança mais espaçosa. Todo esse tempo. Sua
beleza, donde vinha? Sua própria, tão fina pessoa? A imensidão do olhar-doçuras. Se
um sorriso; artes como de um descer de anjos. Sionésio nem entendia. Somente era
bom, a saber feliz, apesar dos ásperos. Ela-que dependendo só
e um aceno. Se
é
que
208
ele não se portava alorpado, nos rodeios de um caramujo; estava amando mais ou
menos.
“Se outros a quisessem, se ela
gostasse de alguém?" -as asas dessa cisma o
saltearam. Tantos, na faina, na Samburá, namoristas; e às festas-a idéia lhe doía.
mesmo de a figurar proseando com os próximos, no facilitar. Porém, o que ouviu,
aquietava-o. Ainda que em graça para amores, tão formosa, ela parava a cobro de
qualquer deles, de más ou melhores tenções. Resguardavam a seus graves de sangue.
Temiam a herança da lepra, do pai, ou da falta de juízo da mãe, de levados fogos.
Temiam a algum dos assassinos, os irmãos, que inesperado de a toda hora sobrevir,
vigiando por sua virtude. Acautelavam. Assim, ela estava salva. Mas a gente nunca
se provê segundo garantias perpétuas. Sionésio passara a freqüentar nas festas,
princípios a fins. Não que dançasse; desgostava-o aquilo, a folgazarra. Ficava de lá,
de olhos postos em, feito o urubu tomador de conta. Não a teria acreditado tão exata
em todas essas instâncias-o quieto pisar, um muxoxozinho úmido prolongado, o jeito
de pôr sua cinturinha nas mãos, feliz pelas pétalas, juriti nunca aflita. A mesma que
no amanhã estaria defronte da mesa de laje, partindo o sol nas pedras do terrível
polvilho, os calhaus, bitelões. Se dançava, era bem; mas as muito poucas vezes.
Tinham-lhe medo, à doença incerta, sob a formosura. Ah, era bom, uma providência,
esse pejo de escrúpulo. Porque ela se via conduzida para não se casar nunca, nem
podendo ser doidivã. Mas precisada de restar na pureza. Sim, do receio não se
carecia. Maria Exita era a para se separar limpa e sem jaças, por cima da vida; e de
ninguém. Nela homem nenhum tocava.
Sem embargo de que, ele, a queria, para si, sempre por sempre. E, ela, havia
de gostar dele, também, tão certamente.
Mas, no embaraço de inconstantes horas-às esperanças velhas e desanimações
novas-de entre-momentos. Passava por lá, sem paz de vê-Ia, tinha um modo mordido
de a admirar, mais ou menos de longe. Ela, no seu assento raso, quando não de pé,
trabalhando a mãos ambas. Servia o polvilho-a ardente espécie singular, secura
límpida, material arenoso-a massa daquele objeto. Ou, o que vinha ainda molhado,
friável, macio, grudando-se em seus belos
braços, branqueando-os até para cima dos
cotovelos. Mas que, toda-a-vida, de solsim brilhava: os raios reflexos, que os olhos
de Sionésio não podiam suportar, machucados, tanto valesse olhar para o céu e
encarar o próprio sol.
209
As muitas semanas castigavam-no, amiúde nem conseguia dormir, o que era
ele mesmo contra ele mesmo, consumição de paixão, romance feito. De repente, na
madrugada, animava-se a vigiar os ameaços de chuva, erguia-se aos brados,
acordando a todos:"Apanhar polvilhol Apanhar polvilho!... " Corriam, em confusão
de alanne, reunindo sacos, gamelas, bacias, para receber o polvilho posto ao ar, nas
lajes, onde, no escuro da noite, era a única coisa a afinar-se, como um claro de
lagoa d'água, rodeado de criaturas estremunhadas e aflitas. Mal podia divisá-Ia, no
polvoroso, mas contentava-o sua proximidade viva, quente presença, aliviando-o.
Escutou que dela falassem:- "Se não
é
que, no que não espera, a mãe ainda
amanhece por ela... Ou a senhora madrinha. "Salteou-se. Sem ela, de que valia a
atirada trabalheira, o sobreesforço, crescer os produtos, aumentar as terras? Vê-Ia,
quando em quando. A ela-a única Maria no mundo. Nenhumas outras mulheres,
mais, no repousado; nenhuma outra noiva, na distância. Devia, então, pegar a prova
ou o desengano, fazer a ação de a ter, na sisuda coragem, botar beiras em seu sonho.
Se conversasse primeiro com a Nhatiaga?-achava, estapeou aquele pensamento
contra a testa. Não receava a recusação. Consigo forcejava. Queria e não podia, dar
volta a uma coisa. Os dias iam. Passavam as coisas, pretextadas. Que temia, pois,
que não sabia que temesse? Por vez, pensou: era, ele mesmo, são? Tinha por onde a
merecer? Olhava seus próprios dedos, seus pulsos, passava muito as mãos no rosto.
A
diverso tempo, dava o bravo: tinha raiva a ela. Tomara a ele que tudo ficasse
falso, fim. Poder se desentregar da ilusão, mudar de parecer, pagar sossego, cuidar
só dos estritos de sua obrigação, desatinada. Mas, no disputar do dia, criava as
agonias da noite. Achou-se em lágrimas, fiel. Por que, então, não dizia hás nem eis,
andava de mente tropeça da, pubo, assuntando o conselho, em deliberação tão
grave-assim de cão para luar? Mas
não podia. Mas veio.
A hora era de nada e tanto; e ela era sempre a espera.
Afoito,
ele lhe
perguntou:- "Você tem vontade de confinnar o rumo de sua vi
da?"
-falando-lhe de
muito coração.- "Só se for
já ...
"-e, com a resposta, ela riu clara e quentemente,
decerto que sem a propositada malícia, sem menospreço. Devia de ter outros signifi-
cados o rir, em seus olhos sacis.
Mas, de repente, ele se estremeceu daquelas ouvidas palavras. De um susto
vindo de fundo: e a dúvida. Seria ela igual à mãe?surpreoodeu-se mais. Se a beleza
dela-a frotice, da pele, tão fresca, viçosa-só fosse por um tempo, mas depois
condenada a engrossar e se escamar, aos tortos e roxos, da estragada doença?-o
210
horror daquilo o sacudia. Nem aguentou de mirar, no momento, sua preciosa
formosura, traiçoeira. Mesmo, sem querer, entregou os olhos ao polvilho, que
ofuscava, na laje, na vez do sol. Ainda que por instante, achava ali um poder,
contemplado, de grandeza, dilatado repouso, que desmanchava em branco os
rebuliços do pensamento da gente, atormentantes.
A alumiada surpresa.
Alvava.
Assim; mas era também o exato, grande, o repentino amor-o acima. Sionésio
olhou mais, sem fechar o rosto
aplicou o coração, abriu bem os olhos. Sorriu para
trás. Maria Exita. Socorria-a a linda claridade. Ela-ela! Ele veio para junto. Estendeu
também as mãos para o polvilho-solar e estranho: o ato de quebrá-lo era gostoso,
parecia um brinquedo de menino. Todos o vissem, nisso, ninguém na dúvida. E seu
coração se levantou.- "Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se
separar? Você, comigo, vem e vai?" Disse, e viu.
O
polvilho, coisa sem fim. Ela tinha
respondido:- "Vou, demais." Desatou um sorriso. Ele nem viu. Estavam lado a lado,
olhavam para a frente. Nem viam a sombra da Nhatiaga, que quieta e calada, lá, no
espaço do dia.
Sionésio e Maria Exita-a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco.
Acontecia o
não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um
em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamor.
Alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os
Pássaros.
CONTO 20 – tarantão meu patrão...
SUSPA!-que me não dão nem tempo para repuxar o cinto nas calças e me pôr
debaixo de chapéu, sem vez de findar de beber um café nos sossego da cozinha. Aí-
...”ai-te...’’-a voz da mulher do caseiro declarou, quando o caso começou. Vi o -que
era. E, pois. Lá se ia, se fugia, o meu esmarte Patrão, solerte se levantando da cama,
fazendo das dele, velozmente, o artimanhoso. Nem parecesse senhor de tanta idade,
sem o escasso juízo na cabeça, e aprazado de moribundo para daí a dias desses, ou
horas ou semanas.
Ôi,
tenho de sair também por ele,
se vê, lhe
i
corro todo atrás. Ao
que, trancei tudo, assungo as tripas do ventre, viro que me viro, que a mesmo esmo,
se me esmolambo, se me despenco, se me esbandalho: obrigações de meu ofício.-
211
"Ligeiro, Vagalume, não larga o velho!" -acha ainda de me informar o caseiro Sô
Vincêncio, presumo que se rindo, e:-"Valha-me eu!"rogo, ih, danando-o, epa! e desço
em pulos 'passos esta velha escada de pau, duma droga, desta antiqüíssima fazenda,
ah...
E o homem-no curral, trangalhadançando, zureta, de afobafo -se propondo de
arrear cavalo! Me encostei nele, eu às ordens. Me olhou mal, conforme pior que
sempre.-"Tou meio precisado
tle
nada... " -me repeli~, e formou para si uma cara, das
de desmamar crianças. Concordei. Desabanou com a cabeça. Concordei com o não.
Aí ele sorriu, consigo meio mesmo. Mas mais me olhou, me desprezando, refrando:-
"Que, o que
é,
menino,
é
que
é
sério demais, para você, hoje!" Me estorvo e estranhei,
pelo peso das palavras. Vi que a gente estávamos era em tempo-de-guerra, mas com
espadas entortadas; e que ele não ia apelar para manias antigas. E a gente, mesmo,
vesprando de se mandar buscar, por conta -dele, o doutor médico, da cidade, com
sábias urgências! Jeito que, agora, o velho me mandava pôr as selas. Bom desatino!
Nem queria
os nossos, mansos, mas o baio-queimado, cavalão alto, e em perigos
apresentado, que se notava. E o pedresão, nem mor nem menor. Os amaldiçoados,
estes não eram de lá, da fazenda, senão que animais escoohecidos, pegados só para
se saber depois de quem fosse que sejam. Obedeci, sem outro nenhum remédio de
recurso; para maluco, maluco-e-meio, sei. O velho me pespunha o azul daqueles
seus grandes olhos, ainda de muito mando delirados.
estava com a barba no ar-
aquela barba de se recruzar e baralhar, de nenhum branco fio certo. Fez fabulosos
gestos. Ele estava melhor do que na amostra.
Mal pus pé em estrivos, já ele se saía pela porteira, no que esporeava. E eu-arre a
Virgem-em seguimentos. Alto, o velho, inteiro na sela, inabalável, proposto de fazer e
acontecer. O que era se ser um descendente de sumas grandezas e riquezas-um Iõ
João-de-Barros-Diniz-Robertes!-encostado, em maluca velhice, para ali, pelos muitos
parentes, que não queriam seus incômodos e desmandos na cidade. E eu, por
precisado e pobre, tendo de agüentar o restante, já se vê, nesta desentendida
caceteação, que me coisa e assusta, passo vergonhas. O cavalo baia-queimado se
avantajava, andadeiro de só espaços. Cavalo rinchão, capaz de algum derribamento.
Será que o velho seria de se lhe impor? Suave, a gente se indo, pelo cerrado, a bom
ligeiro, de lados e lados. O chapéu dele, abado pomposo, por debaixo porém surgindo
os compridos alvos cabelos, que ainda tinhél, não poucos.-"Ei, vamos, direto, pegar o
:Magrinho, com ele hoje eu acabo!"-bramou, que queria se vingar. O Magrinho sendo
o doutor, a sobrinho-neto dele, que lhe dera injeções e a lavagem intestinal.- "Mato!
212
Mato, tudo!" -esporeou, e mais bravo. Se virou para mim, aí deu o grito, revelando a
causa e verdade:-"Eu 'tou solto, então sou o demônio!" A cara se balançava,
vermelha, ele era claro demais, e os olhos, de que falei. Estava crente, pensava que
tinha feito o trato com Diabo!
P'r' onde vou?-a trote, a gente, pelas esquerdas e pelas direitas, pisando o
cascalharal, os cavalos no bracear. O velho tendo boa mão na rédea. De mim, não
há de ouvir, censuras minhas. Eu, meus mal-estares. O encargo que tenho, e mister,
é só o de me
peitar perto, e não consentir maiores desordens. Pajeando um traste ancião-o
caduco que não caia! De qualquer repente, se ele, tão doente, por si se falecesse, que
trabalhos medonhos que então não ia haver de me dar? Minha mexida, no comum, era
pouca e vasta, o velho homem meu Patrão me danava-se. Me motejou:"Vagalume, você
então pensa que vamos sair por aí é p'ra fazer crianças?" A voz toda, sem sobrossos nem
encalques. E ia ter a coragem de viagem, assim, a logradouros-tão sambanga se trajando?
Sem paletó, só o todo abotoado colete, sujas calças de brim sem cor, calçando um de
batina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um colete, enfiado no braço, falando que
aquele era a sua toalha de se enxugar. Um de espantos! E, ao menos, desarmado, senão
que só com uma faca de mesa, gastada a fino e enferrujada-pensava que era capaz, contra
o sobrinho, o doutor
médico: ia pôr-lhe nos peitos o punhal!-feio, fulo. Mas, me
disse, com o pausar:- "Vagalume, menino, volta, daqui, não quero lhe fazer
enfrentar, comigo, riscos terríveis." Esta, então! Achava que tinha feito o trato com
o Diabo, se dando agora de o mor valentão, com todas as sertanejices e braburas.
Ah, mas, ainda era um homem -da raça que tivera-e o meu Patrão! Nisto, apontava
dedo, para lá ou cá, e dava tiros mudos. Se avançou,
à
frente, só avançávamos, a
fora, por aí, campampantes.
Por entre arvoredos grandes, ora demos, porém, com um incerto homem,
desconfioso e quase fugidiço, em incerta montada. Podía-se-o ver ou não ver, com
um tal sujeito não se tinha nada. Mas o velho adivinhou nele algum desar, se
empertigando na sela, logo às barbas pragas:- "Mal lhe irá!" -gritou altamente.
Aproximou seu cavalão, volumou suas presenças. Parecia que lhe ia vir às mãos.
Não
é
que o outro, no tir-te, se encolheu, borrafofo, todo num empate? Nem pude
regularizar o de meu olhar, tudo expresso e distenso demais se passava. O velho
achando que esse era um criminoso!-e, depois, no Breberê, se sabendo: que ele o
era, de fato, em meios termos. Isto que é, que somente um Sem-Medo, ajudante de
criminoso, mero. Nem pelejou para se fugir, dali donde moroso se achava; estava
213
como o gato com chocalho.-"Ai-te!"-o velho, sacudindo sua cabeça grande, sem
com que desenfezar-se:
-"Pague o barulho que você comprou!'"-o intimava. O
ajudante- de-criminoso ouviu, fazendo uns respeitos, não sabendo o que não adiar. Aí,
o velho deu ordem:-"Venha comigo, vosmicê! Lhe proponho justo e bom foro, se com
O sinal de meu servidor... " E... E de se crer? Deveras. Juntou o homem seu cavalinho,
bem por bem vindo em conosco. Meio coagido, já se vê; mas, mais meio esperançado.
Sem nem mais eu me sonhar, nem a quantas, frigido de calor e fartado. Aquilo
tudo, já se ve, expunha a desarrazoada loucura. O velho, pronto em arrepragas e
fioscas, no esbrabejo, estrepa-e-pega. No gritar:-":Mato pobres e coitados!" Se
figurava, nos trajas, de
ser ele mesmo o demo, no triste vir, na capetagem?
Só de déu e em léu tocávamos, num avante fantasmado. O ajudante-de-
criminoso não se rindo, e eu ainda mais esquivançando. Nisto, o visto: a que ia com
feixinho de lenha, e com a escarrapachada criança, de lado a mulher, pobrepérrima. O
velho, para vir a ela, apressou macio o cavalo. Receei, pasmado para tudo. O velho se
safou abaixo o chapéu, fazia dessas piruetas, e outras gesticulações. Me achei:-"Meu,
meu, mau! Esta
é
aquela flor, de com que não se bater nem em mulher!" Se bem que
as coisas todas foram outras. O velho, pasmosamente, do doidar se arrefecia. Não
é
que, àquela mulher, ofereceu tamanhas cortesias? Tanto mais quanto ele só insistindo,
acabou ela afinal aceitando: que o meu Patrão se apeou, e a fez montar em seu cavalo.
Cuja rédea ele veio, galante, a pé, puxando. Assim, o nosso ajudante de-criminoso
teve de pegar com o feixe de lenha, e eu mesmo encarregado, com a criança a tiracolo.
Se bem que nós dois montados;
se vê?-nessas peripécias de pato.
Só, feliz, que curta foi a farsalhança, até ali a pouco, num povoado. Onde o
destino dessa pobre e festejada mulher, que se apeou, menos agradecida que
envergonhada. Mas, veja um, e reveja, em o que às vezes eu uma boa patacoada. Por
fato que, lá, havia, rústico, um "Felpudo", rapaz filho dessa mulher. O qual, num
reviramento, se ateou de gratidões, por ver a mãe tão rainha tratada. Mas o velho
determinou, sem lhe dar atualmentes nem ensejos:-“Arranja cavalo e veu., sob minhas
ordens, para grande vingança, e com o demônio!" Advirto, desse Felpudo: tão bom
como tão não, da mioleira. No que-não foi, quê?-saiu, para se prover do dito cavalo; e
vir, a muito adiante. Para vexar o pejo da gente, nessa toda trapalhada. Das pessoas
moradoras, e de nós, os terceiros personagens. Mas, que ser, que haver? Os olhos do
velho se sucediam. Que estragos?
214
Se o que seja. Se boto o reto no correto: comecei a me duvidar. Tirar tem ao
tempo. Mas, já a gente
passávamos pelo povoadinho do M’engano, onde meu primo
Curucutu reside. Cujo o nome vera não
é,
mas sendo João Tomé Pestana; assim como
o meu, no certo, não seria Vagalume, só, só, conforme com agrado me tratam, mas
João Dosmeuspés Felizardo. Meu primo vi, e a ele fiz sinal. Lhe pude dar, dito:-
"Arreia alguma égua, e alcança a gente, sem falta, que nem sei adonde ora andamos, a
não ser que
é
do Dom Demo esta empreitada!" Meu primo prestes me entendeu,
acenou. E já a gente-haja o galopar-no encalço do velho, estramontado. Que, nisto de
ainc!a mais se sair de si, desadoroso, num outro assomo ao avante se lançava:- "Eu
acabo com este mundo!"
Aí, o mais: poeiras! Ao pino. E, depois de uma virada, o arraial do Breberê, a
gente ia dar de lá chegar, de entrada. O vento tangendo, para nós, pedaços de toque de
sinos. Do dia me lembrei: que sendo uma Festa de Santo. E uns foguetes
pipoquearam, nesse interintintim, com no ar azuis e fumaças. O Patrão parou a nós
todos, a gesto, levantado envaidecido:-" 'Tão me saudando!" -ele se comprouve, do a-
tchim-pum-pum dos foguetes, que até tiros. Não se podia dele discordar. Nós: o
ajudante-de-criminoso, o Felpudo filho da pobre mulher, meu primo Curucutu; e eu,
por ofício. Que, de galope, no arraial então entrou-se, nós dele assim, atrasmente,
acertados. No Breberê.
Foi danado. Lá o povo, se apinhando, no largo enorme de. igreja, procissão que
se aguardava.
Ô
velho!-ele veio, rente, perante, ponto em tudo, pá! p'r' achato, seu
cavalão a se espinotear, z't-zás... ; e nós. Aí, o povaréu fez vêvêvê: pé, p'rá lá, se
esparziam.
O velho desapeou, pernas compridas, engraçadas; e nós. Meio o que
pensei, pus a rédea no braço: que íamos ter de pegar nos b
entos tirantes do andor. Mas,
o velho, mais, me pondo em espantos. Vem chegando, discordando, bradou vindas ao
pessoal:"Vosmícês!... " -e sacou o que teria em algibeiras. E tinha. Vazou pelo fundo. Era
dinheiro, muitíssimas moedas, o que no chão ele jogava. Suspa e ai-te!-à choldraboldra,
desataram que se embolaram, e a se curvar, o povo, em gatinhas, para poderem catar
prodigiosamente aquela - porqueira imortal. Tribuzamos. Safanamos. Empurrou-se para
longe a confusão. No clareado, se tomou fôlego. Porém, durante esse quê-a-quê, o padre, à
porta da igreja, sobrevestido se surgia. O velho caminhou para o padre. Caminhou,
chegou, dobrou joelho, para ser bem abençoado; mas, mesmo antes, enquanto que em
caminhando, fez ainda várias outras
ajoelhadas: -"Ele está com um vapor na cabeça...
" -ouvi mote que glosavam. O velho, circunspecto, alto, se prazia, se abanava, em
215
sua barba branca, sujada.- "Só saiu de riba da cama, para vir morrer no sagrado?"-
outro senhor perguntava. O que qual era um "Cheira-Céu", vizinho e compadre do
padre. Mais dizia:-"'A ele não abandono, que devo passados favores
à
sua estimável
família." Ouviu-o o velho:-"'Vosmicê, venha!" E o outro, baixo me dizendo: -"'Vou,
para o fim, a segurar na vela... " -assentindo. Também quis vir um rapaz Jiló; por
ganâncias de dinheiro? O velho, em fogo:-"'Cavalos e armas!" -queria. O padre o
tranqüilizou com outra bênção e mão beijável. Já menos me achei:- "Lá se avenha
Deus com o seu mundo... " Montou-se, expediu-se, esporeou-se, deixando-se o
Breberê para trás. Os sinos em toada tocavam.
Seja-galopes. Depois de nenhum almoço, meio caminho desandado; isto
é,
caminho-e-meio. Ao que, o
velho: pá! impava. Aí, em beira da estrada-real, parava
o acampo dos ciganos.- "Tira lá!" -se teve: aos com cachorros e meninos, e os
tachos, que consertavam. No burloló, esses ciganos, em tretas, tramóias,
zarandalhas; cigano
é
sempre descarado. No entendimento do vulgo: pois, esses,
propunham cangancha, de barganhar todos os cavalos.-
p'r'-a-parte! Cruz,
diabo!" Mas o velho convocou; e um se quis, bandeou com a gente. O cigano Pé-
de-Moleque; para possíveis patifarias? Me tive em admirações. Tantos vindo, se em
seguida. Assim, mais um
Gouveia "Barriga-Cheia", que já em outros tempos, piores,
tinha sido ruim soldado. Já me vejo em adoidadas vantagens?
Assim a gente, o velho
à
frente-tiplóco... t'plóco ... t'plóco... -já era cavalaria.
Mais um, ainda, sem cujo nem quem: o vagabundo "Corta-Pau"; o sem-que-fazer,
por influências. A gente, com Deus: onze! Ao adiante-tira-que-tira-num sossego
revoltoso. Eu via o velho, meu Patrão: de louvada memória maluca, torre alta. Num
córrego, ele estipulou:- "Os cavalos bebem. A gente, não. A gente não tenha sede!"
Por áspera moderação? penitência de ferozes. O Patrão, pescoço comprido, o grande
gogó, respeitável. O rei! Guerreiro... Posso fartar de suar; mas aquilo tinha para
grandezas.
-"Mato sujos e safados!" -o velho. Os cavalos, cavaleiros. Galopada -"Mato
sujos e safados!" -o velho. Os cavalos, cavaleiros. Galopada. A gente: treze... e
quatorze. A mais um outro moço, o "Bobo’’, e a menos um “João-Paulino”. Aí o
chamado “Rapa-pé”e um amigo nosso por nome anônimo; e, por gostar muito de
folguedos, o preto de Gorro-Pintado. Todos vindos, entes, contentes, por algum
calor de amor a esse velho. A gente retumbava, avantes, a gente queria façanhas, na
espraiança, nós assoprados. A gente queria seguir o velho, por cima de quaisquer
216
idéias. Era um desembaraçamento-o de se prezar, haja solou chuva. E gritos de
chegar ao ponto:- "Mato mortos e enterrados!"-o velho se pronunciava.
Ao que o velho sendo o que era por-todos, o que era no fechar o teatro.-"Vou
ao demo!"-bramava.-":Mato o Magrinho,
é
hoje, mato e mato, mato, mato!"-de seu
sobrinho doutor, iroso não se olvidava. Súspe-te! que eu não era um porqueira; e
quem não entende dessas seriedades? Aí o trupitar-cavalos bons!-que quem visse se
perturbasse: não era para entender nem fazer parar. Fechamos nos ferros.- "Vigie-se,
quem vive!" -espandongue-se. Não era. Num galopar, ventos, flores. Me passei para
o lado do velho, junto-... tapatrão, tapatrão... tarantão... tarantão... -e ele me disse:
nada. Seus olhos, o outro grosso azul, certeiros, esses muito se mexiam. Me viu mil.-
"Vagalume!"-só, só, cá me entendo, só de se relancear o olhar.-"João é João, meu
Patrão... " Aí: e-patrapão, tampantrão, tarantão... -cá me entendo. Tarantão, então...
-
em nome em honra, que se assumiu,
se vê. Bravos! Que na cidade
se ia chegar,
maiormente,
à
estrupida dos nossos cavalos, desbestada.
Agora, o que
é
que ia haver?-:-nem pensei; e o velho:-"Eu mato! Eu mato!" Ia
alta a altura.-"Às portas e janelas, todos!" -trintintim, no desbaralhado. E eu ali no meio.
O um Vagalume, Dosmeuspes, o Sem-Medo, Curucutu, Felpudo, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-
Mo1equé, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o Bobo, o Gorro- Pintado; e o sem-nome
nosso amigo. O Velho, servo do demo-só bandeiras despregadas. O espírito de pernas-
para-o-ar, pelos cornos da diabrura. E estávamos afinal-de-contas, para cima de outros
degraus, os palhaços destemidos. Estávamos, sem até que a final... Ah, já era a rua.
A cidade-catastrapes! Que acolhenças? A cidade, estupefacta, com automóveis e
soldados. Aquelas ruas, aldemenos, consideraram nosso maltrupício. A gente nem um tico
tendo medo, com o existido não se importava. Ah, e o Velho, estardalhão?-que jurava que
matava. Pois, o demo! vamos. " O Velho sabia bem, aonde era o lugar daquela casa.
Lá fomos, chegamos. A grande, bela casa. O meu em glórias Patrão, que saudoso.
Ao chegar a este momento, tenho os olhos embaciados. Como foi, crente, como foi, que
ele tinha adivinhado? Pois, no dia, na hora justa, ali uma festa se dava. A casa, cheia de
gente, chiquetichique, para um batizado: o de filha do Magrinho, doutorl Sem temer leis,
nem flauteio, por ali entramos, de rajada. Nem ninguém para impedimento-criados,
pessoas, mordomado. Com honra. Se festava!
Com surpresas! A família,
à
reunida, se assombrava gravemente, de ver o Velho
rompendo-em formas de mal-ressuscitado; e nós, atrás, nesse estado. Aquela gente, da
assemblança, no estatelo, no estremunho. Demais. O que haviam: de agora, certos sustos
217
em remorsos. E nós, empregando os olhos, por eles. O instante, em tento. A outra
instantaneação. Mas, então, foi que de repente, no fechar do aberto, descomunal. O Velho
nosso, sozinho, alto, nos silêncios, bramou-dlãol-ergueu os grandes braços:
-“Eu pido a palavra...”
E vai. Que o de bem se crer? Deveras, que era um pasmar. Todos, em roda de
em grande roda, aparvoados mais, consentiram, já se vê. Ah, e o Velho, meu Patrão
para sempre, primeiro tossiu: bruba!-e se saiu, foi por aí embora a fora, sincero de
nada se entender, mas a voz portentosamente, sem paradas nem definhezas, no ror e
rolar das pedras. Era de se suspender a cabeça. Me dava os fortes vigores, de chorar.
Tive mais lágrimas. Todos, também; eu acho. Mais sentidos, mais calados. OVelha,
fogoso, falava e falava. Diz-se que, o que falou, eram baboseiras, nada, idéias já
dissolvidas. O Velho só se crescia. Supremo sendo, as barbas secas, os históricos
dessa voz: e a cara daquele homem, que eu conhecia, que desconhecia.
Até que parou, porque quis. Os parentes se abraçavam. Festejavam o recorte do
Velho, às quantas, já se vê. E nós, que atrás, que servidos, de abre-tragos,
desempoeirados. Porque o Velho fez questão: só comia com todos os dele em volta,
numa mesa, que esses seus cavaleiros éramos, de doida, escolta, já se vê, de garfo e
faca. Mampamos. E se bebeu, já se vê. Também o Velho de tudo provou, tomou,
manjou, manducou-de seus próprios queixos. Sorria definido para a gente, aprontando
longes. Com alegrias. Não houve demo. Não houve mortes.
Depois, ele parou em suspensão, sozinho em si, apartado mesmo de nós, parece
que. Assaz assim encolhido, em pequenino e tão em claro: quieto como um copo
vazio. O caseiro Sô Vincêncio não o ia ver, nunca mais,
à
doidiva, nos escuros da
fazenda. Aquele meu esmarte Patrão, com seu trato excelentriste-Iô João-de-Barros-
Diniz-Robertes. Agora, podendo daqui para sempre se ir, com direito a seu inteiro
sossego. Dei um soluço, cortado. Tarantão-então... Tarantão.... Aquilo é que era!
CONTO 21 os cimos
O inverso afastamento
OUTRA ERA A VEZ. De sorte que de novo o Menino viajava para o lugar
onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade. Vinha, porém, só com o Tio, e era
uma íngreme partida. Entrara aturdido no avião, a esmo tropeçante, enrolava-o de por
dentro um estufo como cansaço; fingia apenas que sorria, quando lhe falavam. Sabia
218
que a Mãe estava doente. Por isso o mandavam para fora, decerto por demorados dias,
decerto porque era preciso. Por isso tinham querido que trouxesse os brinquedos, a
Tia entregando-lhe ainda em mão o preferido, que era o de dar sorte: um bonequinho
macaquinho, de calças pardas e chapéu vermelho, alta pluma. O qual, o prévio lugar
dele sendo na mesinha, em seu quarto. Pudesse se mexer e viver de gente, e havia de
ser o mais impagável e arteiro deste mundo. O Menino cobrava maior medo,
à
medida
que os outros mais bondosos para com de se mostravam. Se o Tio, gracejando,
animava-o a espiar na janelinha ou escolher as revistas, sabia que o Tio não estava de
todo sincero. Outros sustos levava. Se encarasse pensamento na lembrança da Mãe,
iria chorar. A Mãe e o sofrimento não cabiam de uma vez no espaço de instante,
formavam avesso-do horrível do impossível. Nem ele isso entendia, tudo se
transtornando então em sua cabecinha. Era assim: alguma coisa, maior que todas,
podia, ia acontecer?
Nem valia espiar, correndo em direções contrárias, as nuvens superpostas, de
longe ir. Também, todos, até o piloto, não eram tristes, em seus modos, só de mentira
no normal alegrados? O Tio, com uma gravata verde, nela estava limpando os óculos,
decerto não havia de ter posto a gravata tão bonita, se
à
Mãe o perigo ameaçasse. Mas
o Menino concebia um remorso, de ter no bolso o bonequinha macaquinho, engraçado
e sem mudar, só de brinquedo, e com a alta pluma no chapeuzinho encarnado. Devia
jogar fora? Não, o macaquinho de calças pardas se dava de também miúdo
companheiro, de não merecer maltratas. Desprendeu somente o chapeuzinho com a
pluma, este, sim, jogou, agora não havia mais. E o Menino estava muito dentro dele
mesmo, em algum cantinho de si. Estava muito para trás. Ele, o pobrezinho sentado.
O quanto queria dormir. A gente devia poder parar de estar tão acordado,
quando precisasse, e adormecer seguro, salvo. Mas não dava conta. Tinha de tornar a
abrir demais os olhos, às nuvens que ensaiam esculturas efêmeras. O Tio olhava no
relógio. Então, quando chegavam? Tudo era, todo-o-tempo, mais ou menos igual, as
coisas ou outras. A gente, não. A vida não parava nunca, para a gente poder viver
direito, concertado? Até o macaquinho sem chapéu iria conhecer do mesmo jeito o
tamanho daquelas árvores, da mata, pegadas ao terreiro da casa. O pobre do
macaquinho, tão pequeno, sozinho, tão sem mãe; pegava nele, no bolso, parecia que
macaquinho agradecia, e, lá dentro, no escuro; chorava. Mas, a Mãe, sendo só a
alegria de momentos. Soubesse que um dia a Mãe tinha de adoecer, então teria ficado
sempre junto dela, espiando para ela, com força, sabendo muito que estava e que
219
espiava com tanta força, ah. Nem teria brincado, nunca, nem outra coisa nenhuma,
senão ficar perto, de não se separar nem para um fôlego, sem carecer de que
acontecesse o nada. Do jeito feito agora, no coração do pensamento. Corno sentia:
com ela, mais do que se estivessem juntos, mesmo, de verdade.
O avião não cessava de atravessar a claridade enorme, ele voava o vôo-que
parecia estar parado. Mas no ar passavam peixes negros, decerto para lá daquelas
nuvens: lombos e garras. O Menino sofria sofreado. O avião então estivesse parado
voando-e voltando para trás, mais, e ele junto 'com a Mãe, do modo que nem
soubera, antes, que o assim era possível.
Aparecimento do pássaro
Na casa, que não mudara, entre e adiante das árvores, todos começaram a
tratá-Ia com qualidade de cuidado. Diziam que era
pena não haver ali outros
meninos. Sim, daria a eles os brinquedos; não queria brincar, mais nunca. Enquanto
agente brincava, descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a assanhação de
acontecer: elas esperam a gente atrás das portas.
Também não dava vontade sair de
jeep,
com o Tio, se para a poeira, gente e
terra. Segurava-se forte, fechados os olhos; o Tio disse que ele não devia se agarrar
com tão tesa força, mas deixar o corpo no ir e vir dos solavancos do carro. Se
adoecesse, grave, também, que fosse-como ia ficar, mais longe da Mãe, ou mais
perto? Ele mordeu seu coração. Nem quis falar com o macaquinho bonequinho. O
dia, inteiro, servia era para se fazer o espalhamento no cansaço.
Mesmo assim, à noite, não começava a dormir. O ar daquele lugar era friinho,
mais fino. Deitado, o Menino se sentia sustoso, o coração dando muita pancada. A
Mãe, isto
é...
E não podia logo dormir, e pela dita causa. O calado, o escuro, a casa,
a noitetudo caminhava devagar, para o outro dia. Ainda que a gente quisesse, nada
podia parar, nem voltar para trás, para o que a gente já sabia, e de que gostava. Ele
estava sozinho no quarto. Mas o bonequinho macaquinho não era mais o para a mesa
de cabeceira: era o camarada, no travesseiro, de barriguinha para cima, pernas
estendidas. O quarto do Tio ficava ao lado, a parede estreita, de madeira. O Tio
ressonava. O macaquinho, quase também, feito um muito velho menino. Alguma
coisa da noite a gente estivesse furtando?
220
E, vindo o outro dia, no não-estar-mais-dormindo e não-estar-ainda-acordado,
o Menino recebia uma claridade de juízo-feito um assopro-doce, solta. Quase como
assistir às certezas lembradas por um outro; era que nem uma espécie de cinema de
desconhecidos pensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no espírito idéias de
gente muito grande. Tanto, que, por aí, desapareciam, esfiapadas.
Mas, naquele raiar, ele sabia e achava: que a gente nunca podia apreciar,
direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. As vezes, porque
sobrevinham depressa e inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou
esperadas, e então não tinham gosto
de tão boas, eram só um arremedado grosseiro.
Ou porque as outras coisas, as
ruins,
prosseguiam também, de lado e do outro, não
deixando limpo lugar. Ou porque faltavam ainda outras coisas, acontecidas em
diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas, para o completo.
Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a gente sabia que elas
estavam
caminhando, para se acabar, roídas pelas horas, desmanchadas... O Menino não podia
ficar mais na cama. Estava já levantado e vestido, pegava o macaquinho e o enfiava
no bolso, estava com fome.
O alpendre era um passadiço, entre o terreirinho mais a mata e o extenso
outro-lado-aquele escuro campo, sob rasgos, neblinas, feito um gelo, e os perolins do
orvalho: a ir até a fim de vista, à linha do céu de este, na extrema do horizonte. O sol
ainda não viera. Mas a claridade. Os cimos das árvores se douravam. As altas árvores
depois do terreiro, ainda mais verdes, do que o orvalho lavara. Entremanhã-e de tudo
um perfume, e passarinhos piando. Da cozinha, traziam café.
E:-"Pst!" -apontou-se. A uma das árvores, chegara um tucano, em brando
batido horizontal. Tão perto! O alto azul, as frandes, o alumiado amarelo em volta e
os tantos meigos vermelhos do pássaro-depois de seu vôo. Seria de ver-se: grande, de
enfeites, o bico semelhando flor de parasita. Saltava de ramo em ramo, comia da
árvore carregada. Toda a luz era dele, que borrifava-a de seus coloridos, em
momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo, suspenso esplendentemente. No topo
da árvore, nas frutinhas, tuco, tuco... daí limpava o
bico
no galho. E, de olhos
arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embrevecido instante, só
nos silêncios de um-dois-três. No ninguém falar. Até o Tio. O Tio, também, estava de
fazer gosto por aquilo: limpava os óculos. O tucano parava, ouvindo outros pássaros-
quem sabe, seus filhotes-da banda da mata. O grande bico para cima, desferia, por
sua vez, às uma ou duas, aquele grito meio ferrugento dos hicanos:-"Crrée!"... O
221
Menino estando nos começos de chorar. Enquanto isso, cantavam os galos. O Menino
se lembrava sem lembrança nenhuma. Molhou todas as pestanas.
E o tucano, o vôo, reto, lento-como se voou embora, xô, xô!mirável, cores
pairantes, no garridir; fez sonho. Mas a gente nem podendo esfriar, de ver. Já para o
outro imenso lado apontavam. De lá, o sol queria sair, na região da estrela-d'alva. A
beira do campo, escura, como um muro baixo, quebrava-se, num ponto, dourado
rombo, de bordas estilhaçadas. Por ali, se balançou para cima, suave, aos ligeiros
vagarinhos, o meio-sol, o disco, o liso, o sol, a luz por tudo. Agora, era a bola de ouro
a se equilibrar no azul de um fio. O Tio olhava no relógio. Tanto tempo que isso, o
Menino nem exclamava. Apanhava com o olhar cada sílaba do horizonte.
Mas não pudera combinar com o vertiginoso instante a presença de lembrança da Mãe-
sã, ah, sem nenhuma doença, confom1e só em alegria ela ali teria de estar. E nem a
ligeireza de idé-ia de tirar do bolso o companheiro bonequinho macaquinho, para que
ele visse também: o tucano-o senhorzinho vermelho, batendo mãos, à frente o bico
empinado. Mas feito se, a cada parte e pedacinho de seu vôo, ele ficasse parado, no
trecho e impossivelzinho do ponto, nem no ar-por agora, sem fim e sempre.
O trabalho do pássaro
Assim, o Menino, entre dia, no acabrunho, pelejava com o que não queria
querer em si. Não suportava atentar, a cru, nas coisas, como são, e como sempre vão
ficando: mais pesadas, mais-coisas -quando olhadas sem precauções. Temia pedir
notícias; temia a Mãe na má miragem da doença? Ainda que relutasse, não podia
pensar para trás. Se queria atinar com a Mãe doente, mal, não conseguia ligar o
pensamento, tudo na cabeça da gente dava num borrão. A Mãe da gente era a Mãe da
gente, só; mais nada.
Mas, esperava; pelo belo. Havia o tucano-sem jaça-em vôo e pouso e vôo. De
novo, de manhã, se endereçando só àquela árvore de copa alta, de espécie chamada
mesmo tucaneira. E dando-se o raiar do dia, seu fôlego dourado. Cada madrugada, à
horinha, o
tucano,
gentil, rumoroso:...
chégochégochégo
... -em vôo direto, jazido,
rente, traçado macio no ar, que nem um rraviozinho vermelho sacudindo devagar as
velas, puxado; tão certo na plana como se fosse um marrequinho deslizando para a
frente, por sobre a luz de dourada água.
222
Depois do encanto, a gente entrava no vulgar inteiro do dia. O dos outros, não
da gente. As sacudidelas do jeep formavam o acontecer mais seguido. A Mãe sempre
recomendara zelo com as roupinhas; mas a terra aqui era
à
desafiada. Ah, o
bonequinha macaquinho, mesmo sempre no bolso, se sujava mais de suor e poeira.
Os mil e mil homens muitamente trabalhavam fazendo a grande cidade.
Mas o tucano, sem falta, tinha sua soência de sobrevir, todos ali o conheciam,
no pintar da aurora. Fazia mais de mês que isso principiara. Primeiro, aparecera por
lá uma bandada de uns trinta deles, vozeantes, mas sendo de-dia, entre dez e onze
horas. Só aquele ficara, porém, para cada amanhecer. Com os olhos tardas tontos de
sono, o bonequinha macaquinho em bolso, o Menino apressuradamente se levantava
e descia ao alpendre, animoso de amar...
O Tio lhe falava, com excessivos de agrado, sem o jeito nenhum. Saíam-sobre o se-
fazer das coisas. Tudo a poeira tapava. O bonequinho macaquinho, um dia, devia de
poder ganhar algum outro chapeuzinho, de alta pluma; mas verde, da cor da gravata,
tão sobressaída, com que o Tio, de camisa, agora não estava. O Menino, em cada
instante, era como se fosse só uma certa parte dele mesmo, empurrado para diante, sem
querer. O jeep corria por estradas de não parar, sempre novas. Mas o Menino, em seu
mais forte coração, declarava, só; que a Mãe tinha de ficar boa, tinha de ficar salva!
Esperava o tucano, que chegava, a-justo, a-tempo, a-ponto, às seis-e-vinte da
manhã; ficava, de arvoragem, na copa dã tucaneira, futricando as frutas, só os dez
minutos, comidos e estrepulados. Daí, partia, sempre naquele outro-rumo, no antes
do pingado meio-instante em que o sol arrebolava redondo do chão; porque o sol era
às seis-e-meia. O Tio media tudo no relógio.
De dia, não voltava lá. Se donde vinha e morava-das sombras do mato,
os
impenetráveis? Ninguém soubesse seus usos verdadeiros, nem os certos horários: os
demais lugares, aonde iria achar comer e beber, sobre os pontos isolados. Mas o
Menino pensava que devia acontecer mesmo assim-que ninguém soubesse. Ele vinha
do diferente, só donde. O dia: o pássaro.
Entremeio, o Tio, recebido um telegrama, não podia deixar de mostrara cara
apreensiva-o envelhecimento da esperança. Mas, então, fosse o que fosse, o Menino,
calado consigo, teimoso de só amor, precisava de se repetir: que a 1Iãe estava sã e
boa, a Mãe estava salva!
De repente, ouviu que, para consolá-lo, combinavam maneira de pegar o
tucano: com alçapão, pedrada no bico, tiro de espingardinha na asa. Não e não!-
223
zangou-se, aflito. O que cuidava, que queria, não podendo ser aquele tucano, preso.
Mas a fina primeira luz da manhã, com, dentro dela, o vôo exato.
O hiato-o que ele
era capaz de entender com o coração. Ao outro dia
seguinte. Aí, quando o pássaro, seu raiar, cada vez, era um brinquedo de graça.
Assim como o sol: daquela partezinha escura nú horizonte, logo fraturada em fulgor e
feito a casca de um ovo-ao tenno da achãada e obscura ímensidão do campo, por
onde o olhar da gente avançava como no estender um braço.
O Tio, entanto, diante dele, parou sem a qualquer palavra. O Menino não quis
entender nenhum perigo. Dentro do que era, disse, redisse: que a Mãe nem nunca
tinha estado doente, nascera sempre sã e salva! O vôo do pássaro habitava-o mais. O
bonequinho macaquinho quase caíra e se perdera:
estando com a carinha bicuda e
meio corpo saídos do bolso, bisbilhotados! O Menino não lhe passara pito. A tornada
do pássaro era emoção enviada, impressão sensível, um transbordamento do coração.
O Menino o guardava, no fugidir, de memória, em feliz vôo, no ar sonoro, até à tarde.
O de que podia se servir para consolar-se com, e desdolorir-se, por escapar do aperto
de rigor-daqueles dias quadriculados.
Ao quarto dia, chegou um telegrama. O Tio sorriu, fortíssimo.
A Mãe estava bem, sarada! No seguinte-depois do derradeiro sol do tucano-
voltariam para casa.
O
desmedido momento
E, com pouco, o Menino espiava, da janelinha, as nuvens de branco
esgarçamento,
O
veloz nada. Entretempo, se atrasava numa saudade, fiel às coisas
de lá. Do tucano e do amanhecer, mas também de tudo, naqueles dias tão piores: a
casa, a gente, a mata, o jeep, a poeira, as ofegantes noites-o que se afinava, agora,
no quase-azul de seu imaginar. A vida, mesmo, nunca parava. O Tio, com outra
gravata, que não era a tão bonita, com pressa de chegar olhava no relógio.
Entrepensava o Menino,
quase na fronteira soporosa. Súbita seriedade fazia-lhe a
carinha mais comprida.
E, quase num pulo, agoniou-se: o bonequinho macaquinho não estava mais em seu
bolsol Não é que perdera o macaquinho companheiro!... Como fora aquilo possível?
Logo as lágrimas lhe saltavam.
224
Mas, então, o moço ajudante do pilôto veio trazer-lhe, de consolo, uma coisa:-"Espia,
o que foi que eu achei, para
Você."
-e era, desamarrotado, o chapeuzinho vermelho, de
alta pluma, que ele, outro dia, tanto tinha jogado fora!
O Menino não pôde mais atormentar-se de chorar. Só o rumor e o estar no
avião o atontavam. Segurou o chapeuzinho sozinho, alisou-o, o pôs no bolso. Não,
o companheirinho Macaquinho não estava perdido, no sem-fundo escuro no mundo,
nem nunca. Decerto, ele só passeava lá, porventuro e porvindouro, na outra-parte,
aonde as pessoas e as coisas sempre iam e voltavam. O Menino sorriu do que
sorriu, conforme de repente se sentia: para fora do caos pré-inicial, feito o
desenglobar-se de uma nebulosa.
E era o inesquecível de-repente, de que podia traspassar-se, e a calma,
inclusa. Durou um nem-nada, como a palha se desfaz, e, no comum
,
na gente não
cabe: paisagem, e tudo, fora das molduras. Como se ele estivesse com a Mãe, sã,
salva, sorridente, e todos, e o Macaquinho com uma bonita gravata verde-no
alpendre do
terreirinho das altas árvores... e no jeep aos bons solavancos... e em toda-
a-parte... no mesmo instante só... o primeiro ponto do dia... donde assistiam, em
tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao vôo ainda muito mais vivo, entoante e
existente-parado que não se acabava-do tucano, que vem comer frutinhas na dourada
copa, nos altos vales da aurora, ali junto de casa.
aquilo. Só tudo.
-“Chegamos, afinal!”-o Tio falou.
-“Ah, não. Ainda não...”-respondeu o Menino.
Sorria fechado: sorriso e enigmas, E vinha a vida.
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