Download PDF
ads:
CLAUDIA VANESSA BERGAMINI
A PRESENÇA DA MORTE E DO LUTO EM EXÍLIO DE LYA
LUFT
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Londrina
2008
2
ads:
CLAUDIA VANESSA BERGAMINI
A PRESENÇA DA MORTE E DO LUTO EM EXÍLIO DE LYA
LUFT
Monografia apresentada ao Curso de
Especialização em Literatura Brasileira da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito ao título de Especialista.
Orientadora: Profª. Ms. Maria Janaína Foggetti.
3
Londrina
2008
CLAUDIA VANESSA BERGAMINI
A PRESENÇA DA MORTE E DO LUTO EM EXÍLIO DE LYA LUFT
COMISSÃO EXAMINADORA:
____________________________________
Profª. Ms. Maria Janaína Foggetti
Universidade Estadual de Londrina
________________________________
Profº. Drº. Alamir Aquino Corrêa
Universidade Estadual de Londrina
________________________________
Profª. Drª. Giselda Melo do Nascimento
Universidade Estadual de Londrina
4
Londrina, ____ de _______ de 2008.
5
A Deus, porque sua glória
enche a terra, enche o céu e
enche a minha vida.
AGRADECIMENTOS
A minha mãe Adélia, porque com sua brandura me ensinou muito sobre a
complexidade da vida.
Aos meus filhos, Natália e Vitor, privados de minha companhia em tantos momentos,
mas sempre de braços abertos para receber meu amor.
Ao Cláudio, meu marido, companheiro e amigo de tantos anos, pela paciência e
apoio incondicional.
Aos meus irmãos Viviane e José Ricardo, por serem parte da minha história.
A minha orientadora, Professora Ms. Maria Janaína Foggetti, pela orientação segura
e por ter me ensinado, com seu silêncio, lições necessárias para o meu crescimento
como pesquisadora.
Ao casal Pr. Luis e Silene Cassemiro, pelas orações que por mim fizeram e por me
indicarem caminhos para a compreensão de muitos de meus questionamentos.
À Paula Tatiana da Silva, amiga querida, pela atenciosa leitura e correção de meu
texto.
6
A Giovana Chiquim, Érica Zanon, Flávia Unbenhaum, Vanderson Custódio e
Andressa Massoni, pela paciência em me ouvir nos momentos em que o medo e a
insegurança se faziam presentes.
Aos Professores do Curso de Especialização em Literatura Brasileira (2007/2008),
pelo prazer que senti em ser guiada por pessoas tão cheias de conhecimento.
BERGAMINI, Claudia Vanessa. A presença da morte e do luto em Exílio de Lya
Luft. 2008. 43 f. Monografia (Especialização em Literatura Brasileira) - Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2008.
RESUMO
Em 1987, Exílio, romance de Lya Luft, despontou como uma das obras mais
vendidas do Brasil. Trata-se de uma narrativa complexa, na qual se encontram
expostos os dramas existenciais que cercam a Doutora, protagonista do romance. O
suicídio da mãe, seguido do menosprezo que esta sempre dispensou aos filhos, são
fatores que a levam rumo ao luto constante. Além disso, observa-se o seu exílio,
revelado em suas ações, pela forma que expressa seus sentimentos, pela dor que
sente advinda da ausência da mãe e pelo fato de não conseguir compreender o
passado latente. Com vistas a isso, este trabalho apresenta um estudo de Exílio, em
que se procurou discutir a questão da morte, revelada como uma situação de
isolamento e como uma dor intensa advinda de traumas e decepções do passado.
Palavras-chave: morte, luto, exílio.
7
BERGAMINI, Claudia Vanessa. The presence of the death and of the mourning in
Exílio by Lya Luft. 2008. 43 f. Monografia (Especialização em Literatura Brasileira) -
Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2008.
ABSTRACT
In 1987, Exílio, novel of Lya Luft, dawned as one of Brazil’s bestseller. It is about a
complex narrative, in which the personal dramas that surround the Doctor,
protagonist of the novel, are shown. The suicide of the mother, followed by the
disdain that had always had for the children, they are factors that take it to a constant
mourning. Moreover, it’s observed the protagonist’s exile, disclosed in her actions for
the form that she expresses her feelings, for the pain that she feels because of the
absence of the mother and for the fact that she does not obtain the understanding of
the latent past. For all that were presented, this work presents a study of Exílio,
where it aimed to argue the question of the death, disclosed as an intense pain
because of the traumas and disillusionments of the past.
Word-key: death, mourning, exile.
8
SUMÁRIO
...................................................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10
1. TEMPO DE EXÍLIO ................................................................................................. 16
2. O INOMINÁVEL: A MORTE .................................................................................... 25
2.1 Perda e Morte: a tênue relação entre os termos .............................................................. 30
2.2 O Luto: a dor que não cessa .......................................................................................... 37
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 43
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 44
9
INTRODUÇÃO
Nos anos de 1980, Lya Luft despontou como uma das grandes
escritoras brasileiras. A gaúcha de Santa Cruz do Sul, que iniciou sua carreira no
âmbito literário como tradutora, produziu também gêneros como crônicas, poemas,
contos, ensaios. Trata-se de uma autora contemporânea, viva, cuja produção atual
mantém a mesma qualidade que a consagrou como um dos grandes nomes da
Literatura Brasileira Contemporânea. Em 1979, depois de um grave acidente,
entregou-se à ficção e à morte, tema presente em grande parte de seus romances,
os quais passaram a intrigar leitores e críticos com suas personagens desprezadas
pelas mães, em geral mulheres que não conseguem conciliar os vários papéis que
desempenham em seu cotidiano. Vítimas de um passado doloroso que passa a ser
relembrado em busca de modificar o futuro.
Por esse motivo, seus romances passaram a ser estudados a partir
de uma vertente feminista, em que as personagens principais, bem como as
pessoas que as cercam, vivem conflitos interiores advindos de decepções e
traumas. A autora, porém, para negar que escreve somente sobre mulheres,
defende-se afirmando que escreve sobre o que a assombra. Sua escrita contempla
suas perplexidades como ser humano: “escorre de fendas onde se move algo que,
inalcançável, me desafia” (LUFT, 1996, p. 14).
E é verdade. Por meio da leitura de seus romances, observa-se a
constituição de personagens com traumas e dores, frutos de uma vida marcada por
perdas irreparáveis. Além disso, a leitura é um convite à reflexão sobre o lugar
secreto do eu, lugar este habitado somente pelos mais íntimos sentimentos
humanos, que são aguçados pelo conflito intrigante de suas personagens.
Luft escreve sim sobre mulheres, mas, ao fazê-lo, privilegia a vida,
cheia de seus encontros e desencontros, cheia de suas perguntas sem respostas,
conseguindo devassar os segredos da interioridade de suas personagens, a
oferecer ao leitor os recantos e dores mais íntimos da alma humana, que pesam no
viver.
A análise apurada desse difícil viver está presente na dissertação
defendida, em 2007, na Universidade Federal do Paraná, por Donizete A. Batista,
cuja discussão volta-se para a construção do espaço e da identidade dentro do
romance Exílio, obra que compõe o corpus deste trabalho.
Romance escrito em 1987, cujo lançamento ocorreu nesse mesmo
ano, “fazia parte do quadro das obras mais vendidas do Brasil” (KUKUL, 2005, p. 02)
e é “considerado por muitos críticos como o ponto máximo da carreira de Lya Luft. É
um dos seus mais complexos romances” (BATISTA, 2007, p. 37). Exílio é narrado
por uma protagonista sem nome que expõe a vida da mulher a qual, diante da
descoberta de traição do marido e do envolvimento amoroso que mantém com
Antonio, decide abandonar a ele e ao filho Lucas, escolhendo para viver a Casa
Vermelha, situada na cidade vizinha, onde também vive seu irmão Gabriel.
Ao chegar a casa, a protagonista depara-se com seu passado:
reencontra o Anão, amigo imaginário com quem conversava na infância. O enredo é
fortemente marcado pela tentativa da protagonista em reconstruir a imagem da mãe
alcoólatra, a qual se suicidara quando os filhos ainda eram pequenos. E por meio
das conversas mantidas entre a protagonista e o Anão, assim como pela sua
introspecção, a protagonista vai expondo seu passado e com ele as perdas e dores
que marcaram duramente sua vida, propiciando seu isolamento.
A construção narrativa do romance permite ao leitor a identificação
da crise emocional vivida por ela. Por causa desta crise, o leitor adentra em um
universo envolto pela morte, pelo luto e pelo exílio. Luft prima pela construção de
uma narrativa que expõe os traumas interiores da protagonista, revelando a
natureza humana em sua intimidade. Esta exposição acontece por meio da
rememoração, isto é, tem-se a retomada do passado, assim como a dos
sentimentos que ele desperta. Isso acontece porque, enquanto a protagonista não
compreende seu passado, não consegue situar-se no presente, portanto, precisa
estabelecer um elo entre eles, pois o passado ainda dói e, por isso, permanece na
memória. Daí o motivo de seu exílio, de sua solidão.
Com vistas a estudar o estado de isolamento em que a protagonista
se encontra, este estudo apresenta uma análise do romance Exílio, tomando-se a
perspectiva da morte. Ressalta-se, porém, que dentro do romance a palavra morte
não se limita apenas à morte física, ou seja, quando o corpo se separa do espírito.
Há, na narrativa, uma conotação de morte como separação do mundo, das pessoas,
como uma impossibilidade de sentir-se parte de um lugar ou de um grupo de
pessoas. Ademais, discute-se também a presença de um estado de luto,
evidenciado no comportamento da protagonista e que vai direcionar a trama do
romance. Além disso, analisa-se o título Exílio, já que se vê a importância que ele
tem para a compreensão do universo da protagonista.
Universo este fragmentado e que se apresenta no romance, pouco a
pouco, pois à medida que se lê, os motivos pelos quais ela está exilada tornam-se
conhecidos. Observa-se o tênue fio que a conduz do exílio para a morte e vice-
versa, já que a morte como separação do mundo a conduz para o estado de exílio.
Assim, vê-se que há uma relação íntima entre os dois termos. Exílio, num primeiro
momento, significa estar isolado do convívio social e a morte é o fim de qualquer tipo
de convívio ou relação. Nesse sentido, observa-se que as duas palavras ligam-se à
vida da protagonista, cuja companhia é sua solidão, seus pensamentos e a dor que
o passado lhe incute.
Além disso, a presença da morte no romance vem contrapor-se à
negação da sociedade sobre ela, isto é, em sociedades passadas, as pessoas
aceitavam a morte como natural e certa. É evidente que ela é natural e certa, porém,
falar sobre ela e escancará -la tornou-se um tabu. As pessoas preferem ignorá-la,
viver sem lembrar-se de que ela chegará. Por esse motivo, o romance de Lya Luft
torna-se tão interessante, pois a morte rodeia o universo da narrativa como algo real,
próximo, sem causar medo ou sofrimento à personagem. Ao contrário, o que lhe
causa medo e sofrimento é a vida com todas as ‘peças’ que ela prega.
Tomando especificamente a questão da morte, observa-se que o
tema é intrigante e tem sido discutido há muito por diversos teóricos e, sendo a
literatura uma forma de expressão de profundos sentimentos humanos, não poderia
ela deixar de tratar deste tema. Assim, tem-se o retrato da morte a partir da
perspectiva de diversos autores em diferentes períodos.
No Romantismo, por exemplo, a morte passa a ser tema recorrente.
Para os românticos, ela está ligada ao amor, ou melhor dizer, a um amor que leva à
degradação, ao sofrimento e à morte, pois se tem a concepção de que o amor
perfeito e ideal é impossível na vida ou só é possível na morte. Deste período
literário, pode-se destacar Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, marco do
Romantismo, no qual se observa a supervalorização do sentimento em detrimento à
vida, já que Werther, diante de sua angústia por não ser correspondido por
Charlotte, se suicida.
Este momento literário influi sobre a vida de muitos jovens europeus,
que passaram a viver na realidade o que os romancistas construíram na ficção.
Sobre esse assunto, Alvarez (1999) assevera que se trata muito mais de um tipo de
suicídio do que morte propriamente dita, e “o ideal era extinguir-se sem dor à meia-
noite, quando ainda se era jovem, belo e cheio de potencial. O suicídio acrescentava
uma dimensão de drama e perdição, uma vistosa orquídea negra à selva tropical
que já era a vida emocional do período” (ALVAREZ, 1999, p. 138).
Vê-se então que esse período literário contou com a forte presença
da morte e do suicídio, e a contemplou como uma forma de salvação e libertação.
Já no Brasil, o Romantismo apresenta uma divisão “clássica” em três
períodos: a primeira fase retrata um romantismo com valorização do “nacional”, a
segunda aponta um romantismo individualista, subjetivo ou ultra-romântico
caracterizado pelo “mal-do-século” e a terceira e última fase apresenta um
romantismo político-social, no qual aparecem reflexões e questionamentos sobre,
por exemplo, a questão da escravatura.
Na realidade, essa divisão não se aplica à análise aqui proposta, as
três gerações românticas se prestam mais a uma sistematização da Literatura que,
neste trabalho, não adquire importância. O que se considera de fato é a
representação que a morte adquire no final da primeira fase e na segunda fase
romântica. Da primeira fase, destaca-se a obra dramática de Gonçalves Dias,
Leonor de Mendonça, cujo personagem Alcoforado, diante da impossibilidade de se
relacionar com D. Leonor, posto que ela é casada, aceita a morte como
representação da fuga desse sentimento. Já na segunda fase, destacam-se os
contos de Álvares de Azevedo, do livro Noite na Taverna, nos quais se encontra um
amor que leva à degradação das personagens, sendo a morte necessária para
haver a regeneração da alma. Nas duas obras comentadas, tem-se a morte como
punição a um amor não correspondido, característica marcante desse período
romântico.
Já na Escola Realista, destacam-se duas obras, nas quais a morte
se apresenta de maneira bem distinta do período romântico. Tolstoi, em A morte de
Ivan Ilitch, publicado em 1886, apresenta a morte vagarosa e dilacerante de um juiz,
cuja vida está vencida por uma grave doença, por isso, sente-se fechado num
círculo repleto de frustração. A partir desse enredo, Tolstoi abre uma discussão
sobre o viver e lança um olhar ácido sobre àqueles que só desejam ganhar com a
morte de outros. Ocorre nesse romance um esvaziamento da carga dramática o
qual, em geral, envolve a morte.
Em Germinal, outra obra realista escrita por Émile Zola, a morte é
dura e advém da pobreza daqueles que não têm o direito de comer todos os dias. O
olhar que se deve voltar para a morte dentro da referida obra é de que ela mostra a
fragilidade da vida diante de tantas adversidades, a revelar a impossibilidade do
homem de lutar contra o único e verdadeiro destino humano: morrer.
Uma gama de autores poderia ser citada para ilustrar a recorrência
da morte nos textos literários, permitindo que ela seja percebida como tema basilar.
Questiona-se: o que a faz ser assim tão explorada? Acredita-se que justamente o
fato de ela ser desconhecida. Fala-se da morte, dos sofrimentos que ela desperta,
no entanto, difícil é explicá-la, difícil é conceituá-la. Alguns escritores, porém,
apresentam e explicam a morte com maestria, falando de experiências não vividas,
capazes de fazer com que o leitor acredite que elas são realmente assim e
verdadeiramente existiram. Nesse sentido, tem o homem manifestado sua
concepção da morte descrevendo os sentimentos que ela aflora, bem como os
motivos que o levam à degradação rumo à inominável.
Por ser tão sustentada nos gêneros literários, a morte tornou-se
objeto de apreciação crítica, mas a dificuldade em teorizá-la exige que o
pesquisador busque informações em fontes ligadas à Medicina, Psicologia,
Sociologia, Antropologia. Destacam-se alguns trabalhos que contribuíram para o
enriquecimento da concepção de morte, como a pesquisa de Elizabeth Kübler-Ross,
no livro Sobre a Morte e o Morrer, cujo interesse voltou-se para o moribundo e o
processo pelo qual ele e a família passam no momento em que a morte faz-se tão
presente. Phillipe Ariès também deu sua contribuição com o livro A História da Morte
no Ocidente propiciando uma discussão sobre os símbolos e formas de conceber a
morte e o luto por diferentes sociedades; Émile Durkheim, em O Suicídio, discute a
incidência do suicídio na França no século XIX, apontando algumas razões que
podem ser estendidas para o contexto atual. Ainda destaca-se a obra Deus
Selvagem de A. Alvarez, em que se tem a discussão sobre o suicídio dentro de um
contexto literário.
No que se refere à pesquisa no âmbito acadêmico, verifica-se que a
análise da morte nos gêneros literários tem sido tema de dissertações e teses, a
revelar a importância deste assunto tão intrigante. Por este motivo, acredita-se ser a
morte um caminho seguro a ser trilhado, já que ao mesmo tempo que se oferece
como um tema tão recorrente e já estudado, mostra-se amplo devido a sua
complexidade. Complexidade esta que se faz por meio da dor que a morte provoca,
pela busca de tentar compreendê-la enquanto, na verdade, só se pode senti-la por
meio do luto, o qual se constitui como uma dor profunda, um sentimento de recusa
diante da morte que traz diversas conseqüências para a relação entre o eu e o
mundo. No caso da protagonista, vê-se a dificuldade de compreender o presente,
porque o que viveu no passado ainda não foi compreendido. Somente ficou a
experiência da dor, transformando-a em alguém diferente do que ela mesma
imaginava ser. Não é mais a médica dedicada, tampouco a mãe atenciosa, é uma
mulher em busca de respostas para o eu que há muito se ocultara em seu interior. É
a mulher que presenciou a morte do outro, ou melhor, da mãe, e agora sentencia
sua própria vida à morte, exilando-se numa casa onde reencontrará seu passado,
suas feridas e onde viverá seu luto.
1. TEMPO DE EXÍLIO
Para compreender o significado do título do romance, reportou-se ao
significado da palavra que, de acordo com o Dicionário Houaiss (2001, p. 324), é o
“afastamento forçado ou voluntário da terra natal; degredo, desterro; isolamento do
convívio social”. Exílio pode ser, então, o distanciamento do indivíduo, seja este por
coação ou espontâneo, do seu lar ou afastar-se das pessoas que ama e com quem
precisa conviver.
É possível pensar, ao longo da história, o significado do termo, a
começar pelos personagens bíblicos Adão e Eva, os quais foram exilados, ou seja,
destituídos do Paraíso a partir do instante em que desobedeceram a Deus e
provaram da árvore do Bem e do Mal. Nessa passagem, extraída do Livro de
Gênesis, tem-se o momento em que Adão e Eva são exilados da terra para eles
criada: “E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do
Éden e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da
árvore da vida” (GÊNESIS, 03:24).
Encontra-se, na Bíblia, também, uma explicação para a saga do
povo judeu, cujo exílio começa com a entrada de José, filho de Jacó, no Egito. Após
ter sido vendido por seus irmãos, José sai de Canaã e torna-se servo do rei do
Egito. Seus irmãos, arrependidos, vão ao seu encontro, adentrando na terra da qual
os descendentes judaicos seriam escravos por longos anos. Antes de morrer,
porém, José faz a seguinte declaração: “Eu morro, mas Deus certamente vos
visitará e vos fará subir desta terra para a terra que jurou a Abraão, a Isaque e a
Jacó(GÊNESIS, 50: 24). Inicia-se, então, a história da peregrinação dos judeus, os
quais conseguem, com o auxílio de Moisés, fugir da escravidão egípcia, rumo à
Canaã, a terra prometida.
Tal peregrinação perdurou por 40 anos e entende-se que nela os
judeus viveram duas situações de exílio. A primeira refere-se ao tempo que
passaram no Egito, exilados de sua terra, sofrendo os males das pragas que, de
acordo com o Livro de Gênesis, se abatiam sobre o povo egípcio devido à
descrença em Deus. Uma segunda análise que se faz sobre o exílio judaico refere-
se ao período em que divagaram no deserto, momento em que já não eram mais
escravos e ao mesmo tempo almejavam a terra prometida onde pudessem começar
a construir a identidade há tanto tempo deixada de lado.
Retomam-se aqui as palavras de Edward Said (2003, p. 46) de que:
O exílio nos compele a pensar sobre ele, mas é terrível de vivenciar. Ele é
uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre um eu e
seu verdadeiro lar. Sua tristeza essencial jamais pode ser superada [...] As
realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo
deixado para trás para sempre.
Os judeus deixaram para trás o Egito, onde embora escravos já
houvessem constituído um lar, e foram em busca de uma terra até então imaginária,
na qual esperavam reconstruir suas vidas e encontrar-se com a identidade cultural
sufocada pela cultura egípcia.
Com o movimento inicial da população de judeus, inicia-se o que
passou a ser chamado de diáspora, ou dispersão, exílio. Biblicamente, a diáspora
1
é
interpretada como o castigo que se atribui aos povos pelos pecados cometidos por
seus antepassados. Esse castigo viria sobre as futuras gerações, ou em linguagem
teológica, seria uma ‘maldição hereditária’. Assim, cada pai que não obedecesse e
guardasse os estatutos de Deus não colheria as bênçãos prometidas em
Deuteronômio (07:13): “[...] e amar-te-á, e abençoar-te-á, e te fará multiplicar e
abençoará o fruto do teu ventre, e o fruto de tua terra [...]”. O não cumprimento
acarretaria a maldição sobre as futuras gerações. O eterno retorno dos judeus até
sua terra segue até os dias de hoje, em que se têm duas linhas de pensamento. A
grande maioria dos judeus defende o retorno a Israel, outros, porém, aguardam a
chegada do Messias para que se cumpra a formação de um Estado secular.
A existência de uma maldição hereditária pode ser percebida dentro
de Exílio, embora de maneira sutil, já que se entende não ser intenção de Luft tratar
em seus romances de religião, tampouco relacionar suas personagens com
personagens ou situações bíblicas. Porém, ao analisar algumas passagens,
observou-se que a condição de exilada da protagonista foi no passado a mesma
1
Cabe ressaltar que o termo diáspora é empregado para referir-se a qualquer deslocamento de
grandes massas populacionais, não se limitando apenas ao deslocamento do povo judeu.
condição da mãe suicida, assim, pode-se dizer que há uma continuidade de muitas
das aflições que consumiram a mãe, na filha. Entende-se que tal observação pode
ser confirmada já no primeiro capítulo do romance, no qual se tem: “- VOCÊ ESTÁ
CADA VEZ MAIS PARECIDA com a Rainha Exilada grasnou o Anão, sarcástico,
empoleirado no meu criado-mudo” ( p. 13
2
).
Nessa passagem, primeiramente destaca-se a letra em caixa alta,
para enfatizar a comparação feita entre a protagonista e a mãe suicida. Atenção
especial há que ser dada ao modo como o Anão se refere à mãe: Rainha Exilada. A
palavra rainha, por si só, já sugere alguém soberano, em geral, tratado de maneira
diferenciada e cuja postura deve primar por certo distanciamento do povo, ou seja,
uma vida mais reservada. Acompanhando a palavra rainha, tem-se o adjetivo
exilada, elucidando, já de chofre, a condição da mãe e colocando a filha, isto é, a
protagonista, na mesma situação.
Esse sentimento de seguir o mesmo caminho que a mãe é
perceptível em outra passagem, na qual a protagonista começa a reviver o momento
da morte da mãe, questionando-se sobre como ela teve coragem de deixá-los num
momento em que o amor materno era fundamental.
Nossa mãe morreu há pouco tempo; vestimos luto fechado, e temos a cara
perplexa de todos os órfãos: como foi que ela nos abandonou assim, como?
Mas essa expressão também aparece nos nossos poucos retratos
anteriores; porque, de certa forma, ela nunca esteve conosco (p. 31).
Embora busque resposta à pergunta, ela sabe que já tem, admitindo
que a mãe fazia parte de outro mundo, pois “vivia isolada de tudo, como os secretos
mundos dentro daqueles pesos de papel, cápsulas de vidro que o meu pai
colecionava” (p. 13). Porém, ela acredita que “tudo o que minha mãe queria era
poder voltar, voltar como eu, hoje, quero voltar para minha casa. Duro exílio” (p. 108,
109). Vê-se que a protagonista também sente-se exilada. Deixou para trás Lucas e
veio para a Casa Vermelha, cenário de seu sofrido viver que a coloca em um mundo
tão distante quanto o que vivia a mãe.
2
Considerando que várias serão as passagens citadas do romance, preferiu-se indicá-las somente
com o número da página, estando disponível ao final do trabalho a indicação bibliográfica completa.
[...] Uma mulher tão grande, dama antiga de sólida aparência: no entanto,
toda fragilidade, medo. Sede. Perdição. Corpo de parideira, mas o coração
no exílio. Tinha uma pele muito doce: eu raramente a tocava, ela não
queria; encolhia-se toda, nossos abraços e beijos tinham de ser breves e
superficiais (p. 163 – 164).
Distante a ponto de impedir os beijos, negar o toque, assim fora a
mãe, mulher de grande beleza que é assim descrita: “O retrato dela aparecia nos
jornais: nariz perfeito, boca perfeita, olhos perfeitos, toda perfeição. Eu guardava os
recortes, lia e relia escondido. Quanto mais distante, mais amada” (p. 35).
Distanciamento e desprezo. Era este o tratamento dispensado aos filhos por ela. A
protagonista, porém, não oferece ao filho o mesmo tratamento que recebera da mãe,
mas o momento em que ela vive não permite que ofereça a Lucas a presença e o
amor maternos.
- Mamãe, quando eu quiser passear com você eu digo, tá?
- Você não gostou do carrinho novo?
- Gostei.
- Mãe, lembra as noites em que não nascia neném, e você
contava histórias pra eu dormir? (p. 154)
Observa-se que o filho refere-se a ações feitas no passado, já que
neste momento não há mais histórias e a intimidade dos dois se dissolve a cada dia.
Ao falar sobre o que sente em relação a ela e aos seus, em especial Lucas, a
protagonista assim se expressa: “Tenho pena de nós, de Gabriel, de mim, de meu
filho Lucas, que tem seis anos e não sabe por que sua mãe foi embora: alguns
traços dele aparecem nos dois rostos daquele melancólico retrato” (p. 31). Entende-
se que a personagem se lastima por evidenciar o ciclo triste e duro imposto aos
seus. Se ela e Gabriel não foram amados pela mãe, uma vez que esta viveu em
uma redoma sem querer ser incomodada, Lucas também está privado da companhia
materna. Deixá-lo para ficar com Antonio, seu namorado, é apenas uma saída, o
que se vê nessa situação é uma mulher que não consegue ser mãe, não consegue
ser esposa, pois a persegue o passado e um presente que a conduz para “uma
floresta para a qual não vejo entradas” (p. 31).
A pena que sente de si mesma e do irmão Gabriel é fruto do que ela
vê agora: dois adultos com lembranças latentes de um passado de dor, com marcas
que jamais serão apagadas. Quanto ao filho, sente pena por não saber o que
acontecerá com ele no futuro. O retrato ao qual ela se refere, exibe o irmão e ela
ainda crianças, mas já com olhos que não desmentem os fatos: duas pessoas
deslocadas, exiladas do mundo, exiladas da vida.
Assim, a relação que se pode estabelecer entre a mãe e a
protagonista é de que ambas são exiladas. A primeira sempre viveu nessa situação,
negando-se aos filhos, preferindo a escuridão do quarto em que passava grande
parte do dia. A segunda, diante do suicídio da mãe e da condição de rechaçada,
exilou-se em busca de respostas, deixando para trás todas as pessoas a quem ama,
fazendo com que o exílio seguisse seu curso dentro da família.
A protagonista deixa Lucas e o seu verdadeiro lar para viver na Casa
Vermelha, lugar que “carrega em seu bojo roído pelo tempo, habitado de ratos e
infectado de angústias, toda uma raça de exilados” (p. 47). A casa, além de abrigar
pessoas exiladas, é descrita pela protagonista como “isolada [...] parece um
ferimento no morro” (p. 32). Trata-se de um lugar desconhecido que na verdade
funciona no romance como o espaço da busca pela compreensão da identidade do
eu e nesse espaço observa-se uma constituição labiríntica e enigmática, muito
semelhante à floresta que a narradora persiste em conhecer: um lugar de fuga da
realidade, um lugar de encontro consigo mesma, a busca pela sua identidade
(BATISTA, 2007, p. 37).
Stuart Hall, ao discutir a identidade do sujeito pós-moderno, afirma
que “se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a
morte, é apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos ou
uma confortadora narrativa do eu” (2004, p. 13).
A identidade unificada, mencionada pelo autor, não pode ser
percebida no romance, pois na realidade a protagonista não se integra aos grupos
aos quais pertence, considerando que, para isso acontecer, ela precisa de respostas
para compreender sua história. É essa cômoda história sobre si que ela busca
reconstruir, o que a faz mudar sua identidade pessoal, porque ela mesma afirma não
se reconhecer, não olhar para o espelho e ver a médica decidida e mãe dedicada
que fora um dia.
Seus sentimentos são manifestados nesta passagem: “Nunca mais
terei aquelas mãos firmes, aquele jeito autoritário e sereno” (p. 46). Verifica-se um
pesar na fala da personagem por nã o encontrar mais em si as qualidades que a
faziam alguém tão forte. E segue ainda narrando o modo como se sente no
momento, deslocada e só:
Mas só tenho essa espantosa solidão; insegurança; e medo, medo. O que
será minha vida com Antonio? Poderei me reconstruir ou terei sempre essa
sensação de estar mutilada, fora do mundo, dos segredos e do afeto
alheio? (p. 56).
Por esse motivo, sua identidade é cambiante, ou seja, muda à
medida que tenta buscá-la ou compreendê-la. E ela, ao passo que retoma seu
passado, fecha-se num ciclo cada vez mais solitário, que abarca seu passado e seu
presente, mas não oferece uma possibilidade de futuro. Luft consegue, por meio da
linguagem, apresentar o universo fragmentado e suspenso da protagonista, a revelar
um ser descontínuo que se encontra em permanente busca e cuja identidade
apresenta-se também fragmentada, incompleta e desorientada. Sentindo-se assim,
tão perdida e em busca de respostas, a protagonista sabe que “o cascalho do tempo
ecoa na memória: conto fatos da minha vida como quem contasse carneiros. Só que
não quero dormir: preciso ficar lúcida, para desatar o nó do meu destino emperrado
e complexo” (p. 17).
Infelizmente, o nó do destino da protagonista não se desfaz, o que
se tem é uma narrativa que se fecha na medida em que o sofrimento dela aumenta,
levando-a cada vez mais para a condição de exilada. No entanto, ela precisa
conviver com as dificuldades que vieram com o exílio e, conseqüentemente, os
sentimentos provocados por ele:
Encalhei aqui, o tempo passa, e às vezes parece muito conseguir
sobreviver até o fim do dia. Digo a mim mesma o que disse tantas vezes às
mulheres de grandes ventres distendidos a quem ajudava a parir: Agüente
mais um pouco, um pouco só (p. 21).
Agüentar? Seria possível por mais quanto tempo, já que segue num
espaço onde todas as personagens parecem estar, de certa forma exiladas, cada
qual com seus medos, traumas, localizadas em um
lugar qualquer onde a realidade e a irrealidade se tocam. E onde a
existência das pessoas fica suspensa como num sonho [...] No exílio, a
utopia, esse espaço futuro de redenção do presente, cede lugar à atopia,
um não-lugar que congela o tempo (VIDAL, 1994 apud MONTAÑES, 2006,
p. 97).
O congelar do tempo, citado por Vidal, marca a narrativa de Exílio,
em que se tem a construção de dois espaços. O primeiro, a Casa Vermelha, é um
lugar em cujas paredes estão perpetuadas o sofrimento dos que lá vivem; espaço
em que circula o medo, a morte e a insegurança. A rememoração da protagonista
permite ao leitor a visualização de outro espaço: o espaço da memória, aquele que
faz doer o passado e ser triste o presente. Esse retomar do tempo é feito
constantemente, e em geral, somente para ressaltar o que ela viveu de mais triste,
aquilo que deixou marcas: “O cheiro dela parece deslocado nessa pensão onde
encalhei, roída de medo e culpa, atiçada de paixão, mortificada pela dúvida. O
pânico nos meus labirintos com sua cauda interminável” (p. 19).
Aqui a protagonista expõe o que está sentindo, isto é, dúvida, medo
e culpa e ao mesmo tempo revela ser perseguida pelo cheiro da mãe, cheiro este
que era um “rastro onde se mesclava um discreto odor de bebida” (p. 19). A figura
da mãe mostra-se constantemente como uma sombra que a persegue e, de certa
forma, a conduz para os mesmos caminhos que a mãe trilhou.
Sua sensibilidade é perceptível também no seu desabafo quanto ao
medo e insegurança sentidos:
As lágrimas correm livres; estou sensível como alguém a quem tivessem
arrancado a pele, tudo dói imensamente. Tenho pena de nós, de Gabriel, de
mim, de Lucas, que tem seis anos e não sabe por que sua mãe foi embora;
alguns traços dele aparecem nos dois rostos daquele melancólico retrato.
Choro por tudo e por todos. Se não sair dessa depressão, não vou nem
poder ser mulher de Antonio, nem mãe daquele seu filho problemático (p.
31).
Neste trecho, há a dor diante do que ela está vivendo, mas há
também o sentimento de pena de si mesma, do irmão e do filho, já que os três, de
certa forma, compartilham a ausência materna, cada qual à sua maneira. Lucas,
aparentemente, é uma criança feliz, tem a presença do pai e do cachorro
Moranguinho, mas não se pode prever o que o futuro lhe reserva, tendo em vista
que Gabriel também cresceu um garoto ‘normal’ e agora “vegeta numa floresta sem
saídas” (p. 31). Já a protagonista tem consciência de sua condição: “e eu deparo
com uma floresta para a qual não vejo saídas” (p. 31). Uma floresta que se fecha a
cada dia, sair dela torna-se impossível.
Dessa forma, observa-se que além da relação com o exílio dos
judeus, entende-se que a escolha do título do romance exige uma reflexão quanto
ao emprego do termo no âmbito literário, em que se nota uma maior abrangência do
significado. Ao eleger como título do romance a palavra Exílio, Lya Luft já antecipa
ao leitor parte da temática do romance: o estado de afastamento da protagonista em
relação ao mundo que a rodeia. Cabe, então, esclarecer que o significado de exílio,
dentro do romance, assume mais de uma forma, ou seja, não se refere
simplesmente ao ato de deixar sua terra, sua casa ou de ser afastado do convívio
social.
Em Luft, observa-se que a palavra refere-se à inadaptação da
personagem com o mundo, motivada por traumas que tomaram uma proporção tão
acentuada, capaz de fazer com que ela se isole. Nesse sentido, Brizuela (2003, p.
183) explica que “para ser exilado não é preciso que se tenha deixado o lugar de
origem, porque este lugar de origem, por um lado, não é fixo, mas fugidio e
escorregadio [...]", ou seja, um indivíduo para exilar-se não precisa deixar seu lar,
sua terra, basta que ele não consiga mais encontrar as características que o fazem
pertencer, sentir-se parte, fazendo com que ele nutra em relação ao lugar um
sentimento de não pertencimento.
Isso ocorre com a protagonista de Exílio, para quem o lar deixou de
fazer sentido, viver com Lucas e com Marcos passou a ser impossível e ela então
decide ir, buscar abrigo em outro lugar, porque a vida de antes já não cabia em seu
mundo, já não lhe competia mais.
Daí emerge parte de seu sofrimento, por sentir-se definitivamente
fora da vida de alguém que surgiu a partir de sua própria vida: seu filho. O maior
sofrimento, porém, advém de sua retomada ao passado, pois para encontrar-se e
responder a tantas perguntas interiores, a protagonista recompõe o passado, e é
nesta recomposição que ela passará por um processo de descoberta. Organiza os
fatos vividos, mencionando as ações do pai diante da mãe ‘doente’, a recomposição
dos lugares casa dos avós, internato, sua casa. Cada ponto rememorado dá à
protagonista a consciência de seu fim, sabe que está se despedindo da vida, pois
tem noção do abandono de si e dos seus e das coisas. Em sua vida não há alegria,
há a destruição e a presença da morte cada vez mais personificada.
2. O INOMINÁVEL: A MORTE
A morte maldita e, ao mesmo tempo, venerada, marca fortemente
Exílio. Palavra difícil de ser explicada e objeto de eterno estudo da Filosofia, num
primeiro momento, pode ser considerada “como falecimento, fato que ocorre na
ordem natural das coisas” (ABBAGNANO, 2000, p. 683), algo já esperado e
indiscutível. Como falecimento, a morte significa o fim e nada se pode fazer, pois “a
morte não é um acontecimento da vida, nã o se vive a morte” (WITTGENSTEIN apud
ABBAGNNO, 2000, p. 683), ou vive-se somente a morte do outro, como em Exílio,
pois a morte da mãe é vivida constantemente pela protagonista.
Além disso, ela é uma ameaça iminente tanto para a protagonista
como para outros personagens
3
, pois eles mostram-se “melancólicos e insatisfeitos,
[...] conscientes da crueldade do fim, não encontram outra saída a não ser caminhar
em sua direção, dignamente” (FOGGETTI, 2006, p. 53).
Ainda é possível considerá-la em sua relação específica com a
existência humana, nesse sentido ela pode ser o início ou o fim de um ciclo; ou pode
ser uma possibilidade existencial. As doutrinas, que consideram a morte como o
início de um ciclo, acreditam na imortalidade da alma e que há uma separação entre
alma e corpo e, com ela, “inicia-se o novo ciclo de vida da alma: seja ele
reconhecido como reencarnação da alma em novo corpo, seja uma vida incorpórea”
(ABBAGNANO, 2000, p. 683).
A concepção de morte como fim e início de um ciclo foi defendida
por diversos filósofos. Marco Aurélio (apud ABBAGNANO, 2000, p. 684) acreditava
que “na morte está o repouso do contragolpe dos sentidos, dos movimentos
impulsivos que nos arrastam para cá e para lá”, a morte, para ele, é então o repouso
3
Embora não seja interesse deste estudo discutir as outras personagens do romance, não se pode
deixar de exemplificar a presença da morte na Casa Vermelha. Tem-se o conflito vivido pelas duas
moças, a Loira e a Morena. Lésbicas e também exiladas na Casa, sentem a aproximação da morte,
devido ao câncer de que a Loira é vítima. Diante da morte está a Velha que no passado perdeu o
pequeno filho, a quem passou a esperar sentada no quarto da Casa Vermelha. A morte também
rodeia Gabriel, irmão da protagonista, cuja loucura permite que ele não sofra tanto quanto ela as
marcas do passado. O anão, amigo imaginário da protagonista, também encontra a morte no
romance. Ressalta-se ainda mais uma morte, a da Freira, tida pela protagonista como sua mãe, é a
única no romance que morre sem a dor do viver, é levada pela idade, pelas forças que se
dissolveram com o tempo e não como as demais personagens, cujo viver a princípio está apagado
por uma morte psíquica e, depois, pela morte propriamente dita.
que permite cessar as preocupações da vida. Para Hegel, a morte é o fim de uma
existência, que acontece porque o indivíduo não consegue adequar-se, sendo
assim, ela é “o cumprimento do seu destino” (apud ABBAGNANO, 2000, p. 684).
São Tomás de Aquino interpreta a morte como punição pelo pecado do homem, “é a
pena pelo pecado dos primeiros pais” (apud ABBAGNANO, 2000, p. 684), referindo-
se ao pecado de Adão e Eva.
Na concepção de morte como possibilidade existencial, Abbaganano
(2000, p. 684) esclarece que ela não é um “acontecimento particular, situável no
início ou no término de um ciclo de vida do homem, mas uma possibilidade sempre
presente na vida humana, capaz de determinar as características fundamentais
desta”.
Acredita-se que em Exílio é assim que a morte se apresenta, isto é,
como uma sombra muito presente, que se revela no “mistério dos que carregam e
nutrem a própria morte sem saber; ou, sabendo, interrogam o destino nas longas
noites insones: como, quando, por quê?” (p. 15). Uma sombra que se revela
subjetivamente e, por isso, é a morte difícil de ser conceituada, trata-se de uma
experiência intrínseca a cada indivíduo. Pode-se tomá-la “como um fato natural”
(MARANHÃO, 1985, p. 20) pelo qual, todos irão passar e, no momento em que ela
se fizer iminente ao indivíduo, este será “censurado, privado de linguagem, envolto
numa mortalha de silêncio: inominável” (CERTEAU, 2001, p. 294).
A morte “não se nomeia. Escreve-se no discurso da vida, sem que
seja possível atribuir-lhe um lugar particular” (CERTEAU, 2001, p. 302); é inominável
porque desperta sentimentos inefáveis de dor, sofrimento, revolta, indignação e
impotência, portanto, a morte refere-se a uma ação má, a um terrível acontecimento.
A morte é inegável e configura-se como o destino imutável de todo ser humano, ela
apresenta-se como o momento em que o ser humano se conscientiza de sua
fragilidade diante do ignoto. Por este motivo, a morte angustia o homem, traz temor,
pois é desconhecida e “na medida em que o homem se percebe finito, guarda com
ansiedade o que poderá ocorrer após a morte” (ARANHA, 1986, p. 368).
Porém, indaga-se: é possível perceber a chegada da morte? Não se
pode dar a essa indagação uma resposta concreta: alguns a pressentem; outros se
espantam com a precocidade; já outros vivem a vida sem se preocuparem com esta
questão, certos somente de que ela chegará. E estes são poucos, porém,
seguramente conseguem dar à vida leveza, sem obscurecer e destruir a alegria do
viver.
Aceitá-la quando ela se torna tão imediata não é fácil. Quando isso
ocorre, a tendência do indivíduo é negá-la, seja por medo do desconhecido, seja por
sentir que já não se pode nada fazer. Elizabeth Kübler-Ross (1981) destaca que a
aceitação à morte ocorre em estágios, sendo o primeiro deles a negação, momento
em que o moribundo tende a isolar-se. Este estágio pode ser sintetizado com a
palavra NÃO, pois o moribundo nega a tudo e a todos.
O segundo estágio é a raiva, que surge quando o sentimento
primeiro de negação se dissipa, Kübler-Ross (1981, p. 61) salienta que “quando não
é mais possível manter firme o primeiro estágio de negação, ele é substituído por
sentimento de raiva, de revolta, de inveja e de ressentimento”.
A barganha configura-se como o terceiro estágio, menos conhecido,
mas de grande utilidade, pois é possível permutar com o paciente para que este
fique calmo. A “barganha, na realidade, é uma tentativa de adiamento; tem que
incluir um prêmio oferecido ‘por bom comportamento’, estabelece também uma
‘meta’ auto-imposta” (KÜBLER-ROSS, 1981, p. 93).
O quarto estágio é a depressão, acontece quando já não se pode
negar a doença e suas conseqüências, o moribundo torna-se alheio a tudo e nutre
um profundo sentimento de perda. Por fim, a aceitação, o quinto estágio. Neste
caso, o paciente “contemplará seu fim com um certo grau de tranqüila expectativa”
(KÜBLER-ROSS, 1981, p. 119). Estes estágios foram percebidos pela pesquisadora
após entrevistar diversos pacientes, os resultados contribuem tanto para um melhor
entendimento da situação vivida por eles, como para perceber a forma como, pouco
a pouco, o moribundo torna-se propenso a aceitá-la, como se fosse uma preparação
para o fim.
No passado, as pessoas se preparavam para morrer, uma vez
pressentida a chegada da morte, iniciava-se um cerimonial: o moribundo
deitava-se no leito de seu quarto donde presidia uma cerimônia pública
aberta às pessoas da comunidade. Era importante a presença dos parentes,
amigos e vizinhos e que os ritos de morte se realizassem com simplicidade,
sem dramaticidade ou gestos de emoção excessivos (MARANHÃO, 1985,
p. 07).
Nesse sentido, o morrer era algo mais aberto, falava-se sobre ele,
sentia-se sua chegada e todos compartilhavam com o moribundo aquele momento.
No entanto, durante o século XX, “as atitudes do homem ocidental perante a morte e
o morrer mudaram profundamente, ocorrendo uma verdadeira ruptura histórica”
(MARANHÃO, 1985, p. 09). Aquilo que era presente na vida das pessoas passa a
ser motivo de interdição e o que era proibido passa a ser liberado.
Sobre esse assunto, Foggetti (2006, p. 53) salienta que o
“afastamento da morte é algo típico dos centros urbanos que maximizam o indivíduo,
forçando-o a se fechar em seu mundo particular de trabalho, consumo, prazer e,
conseqüentemente, negação da morte”.
É nesse sentido que a morte tornou-se um tabu. Não se fala em
morte, mas é ‘permitido’ falar em sexo de maneira aberta, fazendo com que “a
obscenidade não resida mais nas alusões à s coisas referentes ao início da vida,
mas sim aos fatos relacionados com o seu fim” (MARANHÃO, 1985, p. 09). Tem-se
uma concreta inversão de valores, negando às pessoas o direito de morrer, pois
antes havia tempo para o moribundo saber que ia morrer e o “homem tinha
consciência do seu fim, seja porque reconhecia espontaneamente, seja porque
cabia aos outros adverti-lo” (MARANHÃO, 1985, p. 11). Atualmente, o morrer tornou-
se algo impessoal, encobre-se o fenômeno, a pessoa morre sem dar-se conta; “a
morte não pode ser reconhecida. É preciso que ela desapareça na patologia,
submersa, perdida, desconfigurada” (MARANHÃO, 1985, p. 15). Quanto ao
moribundo, não saberá de sua situação, pois “no momento seus parentes não têm
mais a coragem cruel de dizer eles próprios a verdade” (ARIÈS, 2003, p. 84).
Além de marcar o fim da existência humana, a morte segue
intrigando aos que ficam, justamente, por ser ela uma incógnita. Marcas profundas
são deixadas em muitos que perdem os seus. É o caso da protagonista de Exílio,
pois como já mencionado, o suicídio da mãe vem marcar seus conflitos interiores. A
partir da reconstituição desse fato, a morte envolve o romance, ora como algo
distante, incerto, ora como fruto iminente e certeiro.
O suicídio é considerado um ato que faz com que a morte seja ainda
mais complexa, pois muitos a rechaçam, e o suicida a deseja, pode ainda ser visto
como uma experiência,
uma pergunta que o homem lança à Natureza tentando forçá-la a
responder. A pergunta é esta: que mudança a morte produzirá na existência
de um homem e na sua compreensão da natureza das coisas? É um
experimento canhestro, sem dúvida, pois envolve a destruição da própria
consciência que lança a pergunta e aguarda a resposta ( SCHOPENHAUER
apud ALVAREZ, 1999, p. 143-144).
A experiência realmente é canhestra, não para o suicida, mas para
os que ficam. A protagonista e seu irmão Gabriel são provas disso. Ele isolou-se do
mundo com sua loucura e ela isolou-se em busca da resposta que a mãe suicida
não encontrara. Acredita-se que o suicídio foi para a mãe “uma forma de desistir
antes mesmo de começar [...] e de mergulhar num sonho profundo e íntimo”
(ALVAREZ, 1999, p. 139). Sonho este que terá continuidade na loucura de Gabriel,
assim como no conflito da protagonista.
Para Gabriel, o suicídio da mãe representou seu fechamento para o
mundo, no romance é visível a mudança que a morte propiciou nesta personagem,
confirmando a assertiva de Alvarez (1999, p. 135) de que “uma mudança de foco na
vida de uma pessoa, uma súbita perda ou separação” são suficientes para criar
situações intoleráveis, modificações, como a que acontece com os irmãos no
romance. Na passagem abaixo, tem-se a primeira descrição do menino: “Quando
minha mãe morreu, Gabriel era um menino plácido e louro; nã o dava trabalho, não
ficava doente, não parecia ressentir-se demais das crises e ausência ou agitação da
mãe retida atrás dos vitrais de seus olhos raros” (p. 35).
O trauma vivido com o suicídio fê-lo
essa criatura imensamente triste, rápidos lampejos malignos no olhar. Teve
fases agitadas, manias repugnantes, deu muito trabalho; afinal caiu nesse
torpor do qual só sai para pintar e tocar. [...] Seria bonito se não fosse
sinistro: o rosto vazio onde não passa luz nem sombra, um grande anjo
apalermado. Olhos arregalados, são os de nossa mãe: sombras passam no
fundo tão verde (p. 67-68).
Entende-se que Gabriel ocultou em seu íntimo toda a negação que a
mãe lhe designou: o carinho, o amor e o colo. Esses sentimentos ficaram guardados
e vieram à tona, culminando numa espécie de morte, que nem mesmo sua irmã
médica poderia suportar: “Como médica, eu lidava com a vida: não queria saber
daquela espécie de morte” (p. 69). Por isso, Gabriel também se tornou parte de sua
recordação e ela lembra com doçura o que ele fora: “Lembro Gabriel menino,
quietinho, brincando com seus blocos de madeira; lembro dele olhando nossa mãe à
mesa, estendendo a mãozinha para lhe tocar o belo rosto: ela se desviou, fingindo
que era por acaso” (p. 73).
Do mesmo modo que a protagonista, Gabriel pode ter refeito as
cenas do passado, compreendido o que realmente havia de errado com a mãe e
tudo isso pode ter provocado a sua loucura. Ou seria um caminho para fugir da
realidade? Não se pode precisar, somente se observa ser ele um peso para a
protagonista e ela mesma afirma o que sente em relação ao irmão “Sinto um
cansaço enorme, meu Deus, tudo de novo” (p. 115), referindo-se a mais uma fase
de crise acentuada do irmão que ela teria que enfrentar.
Entende-se que a loucura de Gabriel é fruto da rejeição, do
sofrimento; sua irmã, porém, embora não seja vítima da loucura, tornou-se
aprisionada pelo passado, que é latente e a impede de seguir o curso da vida que se
fecha devido à presença da morte.
No romance em análise, há um fechar-se do enredo rumo à morte,
afirma-se ter esse caráter a obra, considerando os sentimentos sombrios que
habitam a vida da protagonista. Diferente de Gabriel, que convertera seu mundo em
loucura, a protagonista é lúcida e sofre, a cada dia, dores profundas e inocultáveis.
Daí, a presença da morte, relacionada às perdas que terá ao longo do romance.
2.1 Perda e Morte: a tênue relação entre os termos
Como já mencionado, a morte está ligada à perda, e esta se refere
ao ato de abster-se de algo que se tem. O termo perda, no dicionário, é apresentado
de duas maneiras: como “privação de algo que se possui ou de alguém com quem
se convivia; morte” (HOUAISS, 2004, p. 562). Neste trabalho, toma-se o termo a
partir das duas perspectivas, ou seja, como morte física do corpo, separação e como
perda de algo ou de alguém, distanciamento.
Dentro de Exílio, muitas são as perdas vividas pela protagonista, as
quais fazem com que ela expresse seus sentimentos da seguinte maneira: “[...]
ainda sinto a solidão de menina: mas me pesa muito mais. Tive perdas demasiadas
[...]” (p. 17). Ela elenca todas as perdas recentes sofridas, expondo-as como “feridas
com sangue vivo: minha casa, profissão, amigos, cidade, segurança, e meu filho
Lucas” (p. 21). Já as perdas do passado, ela explica estarem “reavivadas, e cheias
de pus; o tempo as infeccionou, e eu nem sabia: a morte de minha mãe; de meu
pai; a morte de meu irmão, pois de certa forma, embora viva aqui no andar de cima,
cuidado pelo Enfermeiro, ele também morreu” (p. 21).
Perdas do presente e do passado, colocadas lado a lado e fazendo
doer a alma. A primeira que se deseja falar refere-se a sua profissão, pois já não
existe mais a médica com êxito profissional, em nenhum momento do romance a
protagonista se sente como tal. A impressão que se tem é de que tudo que ela já
fora um dia se perdeu e restaram as dúvidas sobre algum dia retomar a profissão,
como se observa nessa passagem:
Acho que nunca mais conseguirei trabalhar. Eu que amava minha profissão;
sentia estar também parindo aqueles bebê s, vendo a vida brotar de futuras
mães com seus ventres distendidos e doces olhos um pouco assustados,
eu me sentia, forte e segura. Nunca mais terei aquelas mãos firmes, aquele
jeito autoritário e sereno (p. 46).
Nota-se que o amor antes nutrido pela profissão se dissolveu, já não
pode mais ajudar aos bebês que precisam emergir para a vida. Suas mãos
perderam a força e seu olhar já não oferece a mesma segurança que no passado o
sustentava, e uma certeza: as mãos seguras e a serenidade jamais voltarão, embora
indague sobre sua vida e sua profissão:
E minha clínica, poderei refazer isso também? Os ventres tensos, as caras
assustadas: dentro, os corações dos bebês batendo depressa como os de
passarinhos, os das mães mais graves, lentos; e eu pensando: para que eu
vou ajudar todos esses a nascer, para serem no futuro amargurados e
traídos, traidores e canalhas, e caminharem irremediavelmente para a
morte? (p. 160-161).
Dor, revolta, angústia: o que a deixa assim? Por que deixar de ser a
médica competente que fora um dia? A falta de desejo em retomar a profissão
advém de um sentimento de culpa que pesou em sua alma, pois a protagonista
acredita ser a profissão o motivo principal de seu distanciamento com Lucas e com o
marido. No momento em que descobre a primeira traição de Marcos, ela percebeu
que seu mundo estava quebrado, mesmo com a tentativa do casal em retomar o
casamento ela sentia que:
[...] alguma coisa se quebrara; meu mundo sofrera uma rachadura
importante; nosso pacto fora rompido, e eu não consegui mais sossegar.
Comecei a achar que minha profissão me mantinha longe demais de casa,
não era incomum levantar da cama e sair no meio da noite para atender a
um parto; muitos dias chegava em casa exausta no fim da tarde, mal
conseguia jantar; brincava um pouco com Lucas, distraída, e me arrastava
para a cama; ou ficava acordada até tarde, estudando um caso difícil (p.
48).
A ausência da protagonista em sua casa acarretou na negligência
com o filho, possibilitando a Marcos cuidar melhor de Lucas, pois “com um trabalho
menos absorvente, lhe dava banho quando a babá não estava; era Marcos quem lhe
contava histórias para dormir; era Marcos quem o levava a passear quando eu
estava cansada demais. Havia laços especiais entre eles: eu ficava de fora” (p. 51).
Para ela, a profissão deixava-a de fora da vida do filho, permitindo
que a intimidade com Lucas se dissipasse. Não que ela não desejasse ser sua mãe,
[...] receber Lucas nos braços, seu corpo quente, seu rosto alegre, como era
antes de sua mãe ir embora; dar-lhe banho, contar histórias; esperar que
sua respiração regular me diga que está dormindo; e então ainda ficar longo
tempo sentada segurando sua mão, e pensando no milagre de tudo (p. 56).
Tudo isso fazia parte de seu desejo, que não conseguia concretizar,
no entanto, acredita-se que não foi a profissão o pivô do distanciamento com o filho
e com o marido. Na realidade, há uma mulher que tenta cobrir os traumas do
passado com a construção de uma família, tal qual a que ela gostaria de ter tido.
Para ela, a vida estava perfeita e diferente da que ela vivera no passado: “estivera
certa de que meu casamento era sólido, minha vida resolvida; marido, filho, alegrias
e sucesso me pertenciam depois de longa orfandade” (p. 49).
As marcas do passado, porém, estão presentes em sua vida, assim
como os acontecimentos recentes como a traição do marido que são na
consciência como o soar constante de um sino, levando-a a um estado de crise, a
deixá-la cada dia mais fragilizada. Desse modo, sua condição de médica bem-
sucedida não pode apagar a criança ferida e rejeitada que ela foi um dia, já que esta
ainda continua intensamente viva dentro dela e ainda que a ausência do filho seja
tamanha a ponto de a protagonista suplicar: “Quem já teve um menino de seis anos
e o perdeu? Se teve, condoe-se de mim, e chore comigo” (p. 105) ou ainda: “Sem
ele, fiquei uma casa abandonada, portas abertas, assoalho carcomido onde correm
sinistras ratazanas” (p. 112), para ela, é impossível o retorno, prefere ficar na casa e
viver esse momento de crise existencial e dor profunda.
Outra perda marca o romance, e falar dela é inevitável a perda da
mãe embora se questione: pode-se perder aquilo que não se tem? Para a
protagonista, a mãe sempre foi alguém inalcançável e distante, Rainha Exilada de
um reino longínquo, como a definia o Anão.
Já nas primeiras páginas do romance se observa o sentimento de
repulsa da mãe em relação aos filhos. Também é visível o fascínio da protagonista
por ela, embora tenha sido sempre rechaçada e, agora, já adulta, ela tenha
consciência de que fora um incômodo para aquela intrigante mulher:
Eu fazia um ramo para minha mãe: daria tudo por um de seus raros
sorrisos. Chegando em casa, ia entregar-lhe as flores, já murchas; ela
pegava distraída, passava para uma empregada pôr num vaso. E
concordava quando meu pai repetia como eram bonitas e cheirosas (p. 20).
O descaso da mãe transformou-se com o tempo em feridas
incuráveis, que doem na alma e fazem difícil o viver. Em cada lembrança da
protagonista, o gosto amargo de saber ter sido um peso, um incômodo para a mãe.
Minha mãe não era bondosa: raramente se lembrava de mim, e era pior do
que quando me ignorava. Exigia então minha presença, eu tinha de lhe
prestar pequenos serviços: achar o livro, os óculos, um lenço. Era como se,
lembrando-se de mim, resolvesse ao menos tirar algum proveito desse
aborrecido fato: ter uma filha (p. 39).
Assim cresceram a protagonista e Gabriel, sendo privados de
abraços, carinhos maternos. Após o suicídio da mãe, ela e o irmão foram viver com
os avós paternos. No entanto, em seus pensamentos, tentava compreender o que
acontecera e onde estaria a mãe agora: “Onde andaria minha mãe? Ainda vagava,
nos caminhos da morte? Ou livrara-se dos tormentos? O que era isso, morrer? E por
que, por que nó s, que a amávamos tanto, tínhamos lhe adiantado tão pouco?” (p.
78).
Nesse momento, ela ainda nem poderia imaginar que a sombra da
mãe a seguiria por longo período. Anos depois, na Casa Vermelha, a imagem dela
seria refletida no espelho e, para evitá-la, a protagonista se desviaria com medo de
ser conduzida ao mesmo abismo para o qual caminhou a mãe.
Nestes dias, minha companhia mora naquele espelho sobre a cômoda. Não
olho para lá a não ser raras vezes, e minha mãe passa ali no fundo,
vagarosa; olhos de bruxa, e uma atração que me arrastaria a sei eu que
abismos, se me debruçasse para ela (p. 57).
A solidão física e a solidão da alma seriam amenizadas com sua
chegada ao internato, espaço em que passa a viver na adolescência e que trará a
ela paz de espírito devido à amizade que construirá com Irmã Cândida. A
importância dessa personagem para a protagonista é tanta que com a morte dela, a
protagonista assim manifesta sua dor: “Pesada de luto, subo a escada e me preparo
para mais um velório de minha mãe” (p. 186).
Logo que chegou ao internato, a protagonista comportava-se como
uma adolescente rebelde, mas quando conheceu Irmã Cândida encontrou naquela
“mulher, tão alta e quase tão pálida quanto fora minha mãe, porém com uns olhos
escuros e alertas [...] a pessoa mais importante de minha vida” (p. 37). Foi na freira
que ela encontrou companhia, amor e atenção, pois Irmã Cândida “dedicava horas a
me aconselhar, escutar, orientar. Dirigiu meu coração para problemas que eu
achava remotos, e que em minha casa não se abordavam” (p. 37).
A freira conseguiu amenizar sua inquietude, sua rebeldia, dando-lhe
somente amor e atenção. A protagonista sabia que apenas ela a “compreendia,
como ninguém mais, minha orfandade, minhas ansiedades e dúvidas” (p. 37). Na
cidade para a qual se mudou quando deixou Lucas e Marcos reencontrou a querida
Irmã, já com as marcas do tempo avisando que a morte estava próxima.
Ao despedir-se da amiga morta, escreveu um pequeno bilhete e
colocou-lhe entre os dedos com um pedido: “Me ajude, por favor” (p. 187). Órfã mais
uma vez, observa-se que esta perda é tão dolorosa quanto de sua mãe natural, no
entanto, Irmã Cândida representa no romance a junção entre o amparo e o amor.
Enquanto sua mãe natural representa a aflição e, ao morrer, não lhe traz paz, ao
contrário, persegue-lhe com sua sombra e seu perfume, conduzindo-lhe à morte.
Outra perda que marca o romance é a morte do Anão, o intrigante
amigo que passa a acompanhá-la quando descobre o alcoolismo da mãe: o Anão
apareceu em casa de meu pai no dia que descobri que minha mãe bebia. Pelo
menos, nesse dia se apresentou a mim” (p. 57). No momento em que ela chorava
por causa de sua descoberta, ele pediu que parasse e deixasse a mãe em paz.
Ao descrever o Anão, ela deixa claro não ser ele igual aos anões de
livros, tampouco ser um anão de circo ou que serve ao rei. Como se sabe, os anões
dos contos de fadas são retratados como doces homenzinhos; já a figura do anão no
circo é cômica e está ligada ao fazer graça, do mesmo modo no palácio, onde o
anão está relacionado com a figura do Bobo-da-Corte
4
. O anão de Exílio é diferente:
“usava roupa preta, séria, um chapeuzinho antiquado na mesma cor” (p. 60) e
aparecia “nas horas mais inesperadas” (p. 61).
Trata-se de uma figura emblemática dentro do romance,
acompanhou a protagonista desde que soube do alcoolismo da mãe até quando ela
chegou ao internato, já mocinha. O Anão retornaria na Casa Vermelha e é com ele
4
Embora a figura do anão seja constante em diversas obras literárias, é importante ressaltar que
ainda falta um estudo mais sistematizado sobre ela. Mesmo obras que já foram amplamente
estudadas, como Tutaméia, de Guimarães Rosa, em que nos contos Antiperipléia e Zingaresca o
anão é uma personagem importante, não apresentam um estudo específico. Acredita-se que a
existência de estudos sobre esta figura poderia ter propiciado uma melhor compreensão acerca desta
personagem.
que ela conversa e é ele quem a acusa, colocando-a de frente com a verdade. A
primeira delas é a comparação que ele faz da protagonista com a mãe, na
passagem que abre o romance, já antes comentada: “Você está cada vez mais
parecida com a Rainha Exilada” (p. 13). Será que ela tem consciência disso?
Observa-se que sim, tem consciência de que está exilada em um mundo no qual um
dia sua mãe também viveu. E para não se esquecer disso, ela tem a figura do Anão,
que é uma “espécie de consciência acusadora, lembra a Doutora insistentemente
dessa semelhança com sua mãe” (BATISTA, 2007, p. 44).
Outra verdade que o Anão lhe apresenta é sobre o filho Lucas, e
para isso, ele mexe em profundas feridas:
- Perdi tudo o que tinha gaguejo. Viver sem meu filho é como me
arrastar por aí com as duas pernas amputadas.
- Perdeu, não. Deixou! – diz ele cruelmente, e sua cara é velha e má. – Mas
apesar de tudo, você tem a sua profissão – conclui, com fingida gravidade.
- A profissão que vá à merda! – grito, chorando (p. 45).
Ela não tem coragem de admitir que deixou o filho e nã o o perdeu e
todo o entendimento acerca da verdade vem por meio do Anão. Sobre a sabedoria
dos anões, Rosane Volpatto (2008) assevera que eles são os donos da terra, do
solo e do subsolo e seu aspecto muitas vezes repulsivo não é mais do que o reflexo
da matéria bruta e primária de que são hóspedes e guardiões. Embora sejam
qualificados como feios, são muito sábios. E, em Exílio, ele se mostra sábio, é a voz
da verdade, despida de qualquer sentimento, voz dos fatos que ferem e maltratam.
As verdades que a Doutora deseja não enxergar são expostas por
ele, ou melhor, pelo tilintar de sua consciência, que sabe ser o Anão “fruto das
minhas trevas e nostalgias, companheiro de exílio” (p. 198). Ela sabe ser “Ele o filho
da minha solidão, da minha orfandade, da loucura de Gabriel, da sede de minha
mãe, filho do pântano que nos engole a todos” (p. 199). A morte do Anão já no final
do romance é para ela uma perda irreparável, é como se ele assumisse em seu
lugar a morte: “Não me quis a morte: o Anão assumiu todo o meu espaço dentro
dela” (p. 200). O choro pela morte de seu amigo é profundo e ela se pergunta: “Já
chorei assim alguma vez, eu, que tenho chorado tanto? O choro de quem dá à luz a
si mesma, abre as pernas dolorosamente e sai dali entre gemidos fundos, sangue e
gosma” (p. 198).
O desfecho trágico do Anão é o adiantamento do fim da
protagonista, já que ela, ao final, aniquila seus anseios e se embrenha na floresta
que cerca a Casa Vermelha e que durante todo o romance a ‘convida’ para explorá-
la:
Estou indo, estou indo. Vou tomar rumo. Ainda não consertaram aqueles
arames farpados. Primeiros passos, tropeçando. Cheiro de mato, almíscar,
musgos úmidos. Decomposição e nascimento, cogumelos saltando do
esterco. Depois meu passo se firma. Aqui e ali, reflexos verdes: ratazanas
não têm olhos assim. Aqui haverá enfim lugar, como nunca tive. Avanço
rápido, arfando:
- Mãe, mãe... (p. 200).
Nessa belíssima passagem, observa-se que a protagonista
encontrou seu fim, o qual se entende ser a morte. Seus primeiros passos rumo à
floresta são firmes, lá ela encontrará enfim lugar’, nota-se um sentimento de
pertencer a um espaço, não se sentir mais exilada. Depois, ela encontra
decomposição e nascimento, palavras com significados opostos. A primeira refere-
se àquilo que está se deteriorando, estragando, apodrecendo. Já nascimento,
refere-se ao novo, à vida. Assim, entende-se que neste momento ela deixa para trás
a vida arruinada por tantos episódios trágicos e se prepara para receber uma nova
vida. Vida esta que se faz com a morte, libertando-a dos males tão dolorosos.
Talvez, os reflexos verdes sejam os olhos da mãe, a quem tanto buscou na vida e
agora poderá ter encontrado na morte.
Ao escrever Exílio, Luft vai à contramão, pois não deseja esfumar a
morte, antes, porém, propõe uma forte reflexão sobre a presença constante dela,
seja como algo desejado, natural, seja como uma dor que adentra o peito e dele nã o
se retira. Dor que perdura por longo período após a morte, às vezes até mesmo por
uma vida, a esta dor dá-se o nome de luto.
2.2 O Luto: a dor que não cessa
Ao longo da História, o luto foi concebido de diferentes modos.
Durante a Idade Média, ele consistia em um ritual. A partir do momento em que se
constatava a morte, o luto era traduzido “por uma indumentária, por hábitos e por
uma duração fixados com precisão pelo costume” (ARIÈS, 2003, p. 71). Esse rito,
envolvendo os hábitos e a indumentária, nem sempre refletia os sentimentos
verdadeiros da família, mas ele jamais poderia ser quebrado, somente poderia “ser
reduzido ao mínimo por um novo casamento” (ARIÈS, 2003, p. 71).
A partir do século XIX, o luto passou a ser vivido de forma histérica,
além do pranto e das vestimentas, o jejum e o desmaio passaram a fazer parte do
ritual. Ariès (2003) explica que o exagerado luto elucida o fato de que os que ficam
aceitam com dificuldade a morte do outro, ou seja, a morte torna-se ainda mais
inaceitável. É nesse período que ela passa a ser vista como a morte do outro, dando
início ao culto dos túmulos e cemitérios.
Outra mudança em relação à forma de conceber o luto é vista no
decorrer do século XX, momento em que ainda se prima pela vestimenta preta, cuja
função é falar sobre a ausência da vida; tem-se também o respeito silencioso ao
morto.
Porém, a sociedade contemporânea exigiu do indivíduo enlutado o
controle de suas emoções,
a fim de não perturbar as outras pessoas com coisas tão desagradáveis. O
luto é mais e mais um assunto privado, tolerado apenas na intimidade, às
escondidas, de uma forma análoga à masturbação. [...] Eis aí a que a
sociedade ocidental contemporânea reduziu a morte e tudo a que ela está
associado: um nada (MARANHÃO, 1985, p. 19).
Vê-se que a sociedade hodierna reduziu a simbologia ao mínimo,
não se usa o preto, não é permitido demonstrar os sentimentos, é necessário
enterrar os mortos e com eles os ritos que, por séculos, mostravam a dor pela perda
de alguém. Deixam-se encobertos os sintomas comuns aos indivíduos enlutados
que, segundo Freud (1917), são a inibição e a perda de interesse plenamente
explicadas pelo trabalho do luto no qual o ego é absorvido.
Feliciano (2005, p. 44), ao analisar o texto de Freud, destaca que “no
luto o eu se identifica com a imagem do que foi objeto de desejo e se perdeu”. Em
Exílio, a protagonista volta-se para si a partir do momento em que perde a mãe. Este
mundo, no qual ela se fecha, torna-se ainda mais evidente quando chega à Casa
Vermelha, reencontra o Anão e, com ele, o passado, o qual traz para o seu coração
uma desconfiança que “corrói tudo, meu amor está recortado como os velhos beirais
da Casa Vermelha, trabalhados pelos cupins mais do que pela mão do artista que os
criou” (p. 54). Os recortes são feitos pelo tilintar da imagem que ela tanto recorda:
“lembro, mais que tudo, minha mãe morta” (p. 74). Ela lembra também do quanto
sua mãe a perseguia, fazendo com que tivesse “uma dolorosa insônia, acessos de
fraqueza ou medo; jurava ver a morta andando pelos corredores, ouvia seus passos,
via seu rosto nos espelhos” (p. 89).
A presença da mãe é paradoxal, isto é, embora esteja morta ela
ainda acompanha a protagonista como uma sombra, mostrando-se ora no perfume
que a persegue melancolicamente
5
, ora no espelho, quando esta vê a imagem da
mãe. Por refletir essa imagem, ela procura não olhar para o espelho, pois lá é o
lugar “onde minha mãe aparece; inclina-se para mim, como se me procurasse; tenho
medo de que me leve para a sua floresta submersa, cheia de medusas e cavalinhos”
(p. 118, 119). No entanto, embora procure desviar os olhos do espelho, há
momentos em que isso se torna impossível, pois fecha os olhos e ao abri-los:
vejo sombras no espelho da cô moda. Não quero olhar, não quero. Mas
olho: ela aparece, cada vez mais freqüentemente. Primeiro a barra do
vestido longo, depois a mão com o copo, a perna arqueada no passo, o
rosto de perfil. Tenho vontade de pedir: Me leva para casa. Nisso, ela se
vira e me encara; suas desmesuradas órbitas não estão verdes; cobriram-
se de um véu como escamas (p. 165).
5
Ressalta-se que as diferenças entre luto e melancolia são conduzidas por um tênue fio, mas a
discussão desta pesquisa não abrange a melancolia, cabendo somente uma breve distinção entre os
termos. O constante luto leva o indivíduo à melancolia, a qual se difere do luto por induzir a pessoa a
um desânimo profundo; Freud (1917) salienta que cessa o interesse pelo mundo externo, ocorre a
perda da capacidade de amar, assim como a inibição de toda e qualquer atividade; a baixa auto-
estima marca também a melancolia e junto com ela vem a auto-recriminação e auto-envelhecimento,
que desponta numa acentuada punição. Freud (1917) observa ainda que os mesmos traços da
melancolia são encontrados no luto, mas a perturbação da auto-estima está ausente no luto; fora
isso, porém, as características são as mesmas.
Essa perseguição incute-lhe dor, elemento comum do luto. Além
disso, “a presença do outro, como agente produtor da dor [...] abre passagem para
percorrer esses ‘sulcos’, revelando, pois, verdades veladas pelo tempo(MOREIRA,
2004, p. 35, 38). Verdades passadas que doem ao serem trazidas para o presente,
sobretudo, quando com elas vem o entendimento maduro da rejeição materna:
“Lembro de estar sentada no colo dela; mas não passa os braços ao meu redor:
continua rígida, apenas me suporta. Não vejo seu rosto; aninhei-me no seu peito;
mas sei que é uma máscara zangada (p. 134).
Ao reviver verdades tão doloridas, a protagonista sente o desejo de
preparar “uma injeção para me matar: injeto um líquido amarelo numa maçã
vermelha, lustrosa, que vou comer para me dissolver em esquecimento, o que me
dá uma grande alegria” (p. 95). No entanto, ela não o faz e, por isso, segue sua dor
e angústia, certa de que “continuo viva” (p. 200).
Verificam-se, ainda, sentimentos que podem ser interpretados como
luto: não sentir desejo, deixar-se vencer pelas mazelas da alma, ou como observou
Freud (1917), perda de interesse. Nessa passagem, a protagonista compara-se à
floresta, deixando em evidência o cansaço que já a dominou.
Contemplo a mata, que me fascina; rastejo dentro de mim num chão igual
ao dela: ramos caídos, madeiras podres, silenciosos vermes, cogumelos;
tudo tão longe das copas do sonho. Ou desço como quem se atira numa
funda piscina e vai, em câmera lenta, nesse túnel, até onde permitem
náusea e vertigem (p. 14).
É nítido o sentimento de entrega, tudo nela é negativo, destruído,
seus braços são como os ramos caídos, já não têm forças para trazer ao mundo os
bebês, para segurar Lucas, para amparar Gabriel; suas pernas são como madeiras
podres, não podem conduzi-la para o lugar de doces sonhos, somente para o
labirinto, em que está a morte; a vida tornou-se como uma piscina ou um túnel que
ao adentrar neles não se sabe até onde é possível suportar. O sentimento de que
tudo está se deteriorando é constante, sempre a acompanha o “cheiro de mato,
flores e uma vaga podridão” (p. 132).
Assim está a protagonista, o que permite dizer que ela vive luto pela
vida de tristeza, pela vida que não viveu com o filho e, sobretudo, com a mãe. A
ausência deles lhe traz sofrimento. Este sofrimento “se inscreve nas nossas histórias
como uma ruptura no tempo” (VASSE, 1983 apud MOREIRA, 2004, p. 36). A
vivência dele deixa marcas, cortes, a possibilitar uma recuperação constante do
passado “que agora vou retomando, nesse período de dor e reflexão” (p. 133).
Dessa forma, o luto ganha significação no romance, à medida que
ele propicia a reconstituição do passado, como tentativa de compreender a angústia
e o pesar frente à perda, não só a da mãe, como também a perda de uma infância
que jamais viveu, sem mácula, sem dor, somente a infância como a de tantas
crianças.
Além de ser o luto o período de purga de emoções, verifica-se que a
palavra luto pode ser compreendida como o sentimento de tristeza causado pela
morte de alguém, pode ainda referir-se ao uso de vestimentas e, sobretudo, pelas
atitudes que manifestam sinais deste sentimento. À procura de um conceito mais
teórico, observa-se que Freud (1917), em seu clássico estudo intitulado Luto e
Melancolia, destaca que o luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente
querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido como,
por exemplo, o país, a liberdade ou o ideal de alguém.
Entende-se, perante a observação do conceito acima, que, para
ocorrer a existência do luto, não é preciso estar a perda de alguém ou de algo
relacionada à morte, basta que as perdas envolvam o universo afetivo do indivíduo
para que se estabeleça um estado de luto.
Mazorra (2001 apud LOUZETTE & GATTI, 2007, p. 77)
complementa afirmando que “o luto é o processo de reconstrução, de reorganização,
diante da morte, desafio emocional e cognitivo com o qual o sujeito tem de lidar”, isto
é, refere-se aos processos mentais com os quais o sujeito tem que aprender a lidar.
Neste caso, o luto está relacionado à morte, salientando que esta não precisa ser
necessariamente física, pode ser a separação ou fim de algo.
Tomando especificamente o romance, há em várias passagens
acontecimentos que conduzirão a personagem a um estado de luto, de tristeza
diante das perdas constantes que sofre: quando criança o desprezo da mãe,
seguido da morte dela; já adulta, o distanciamento com o irmão devido à loucura da
qual ele é vítima; a separação de Marcos e a dolorida separação de Lucas. Já no
final do romance, tem-se a morte da madre e a morte do Anão. Acontecimentos que
levaram tudo que para ela era tão precioso, por isso, se questiona: “Onde meus
sentimentos maternais, humanos, profissionais, minha bondade natural? Afinal, me
tornei médica para ajudar pessoas. Mas agora preciso de quem me ajude” (p. 171).
Ela já não se reconhece mais, daí a necessidade de ser amparada,
ajudada, pois compreende: “Estou esmagada pela vida, pela morte, pelas perdas e
fracassos. Meu rosto no espelho ficou severo, vincado, os cantos da boca virados
para baixo” (p. 179). Todas as perdas com as quais ela teve que conviver
conduziram-na para esta situação, sente-se pequena e desamparada, mas não se
indigna frente aos fatos, somente repete: “- Meu Deus. Meu Deus com uma voz
que não parece a minha. Digo isso até me doer a garganta, apertada de medo, nojo,
ansiedade” (p. 195).
Fecha-se sua vida para a morte, por isso, agora só lhe resta esperá-
la, seguindo com a tristeza que, pouco a pouco, a corrói.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O universo de Exílio é marcado pelo mundo fragmentado da
Doutora. Seu desamparo é grande, ainda maior seu pesar diante de tantas perdas e
verdades que, pouco a pouco, emergem como um flash em sua memória. Embora
não seja seu desejo abandonar Lucas, ela assim o faz, permitindo que o destino siga
seu curso, isto é, Lucas, tal qual a mãe, crescerá longe dos afagos maternos,
privado do abraço e do carinho tão preciosos. Assim, ela dá continuidade ao estado
de distanciamento da mãe, marcando a dura sina que se volta para elas, ou seja,
viver separadas, isoladas, viver como Rainhas Exiladas de um reino distante.
Observou-se a composição do difícil viver da protagonista, marcado
por separações irrevogáveis. As perdas conduzem-na para um estado de luto e de
dor que lateja constantemente na alma. Primeiramente, marca o romance a perda da
mãe, mulher distante e indiferente aos filhos, que será o pivô da crise existencial da
Doutora. Sua paradoxal presença depois de morta assombra a protagonista e a
conduz para um estado de luto, ou seja, faz com que ela volte-se para si mesma, em
busca de respostas para o seu passado.
Outra perda sofrida é a do Anão, ou melhor, da sua consciência
acusadora e sábia. O Anão é a voz da verdade, é a figura emblemática que lhe
colocará frente a duras realidades, como o fato dela ter deixado o filho, a profissão,
o lar. Tem-se ainda a morte de Irmã Cândida, mulher que supriu grande parte de sua
solidão e desamparo. Perdê-la foi para a Doutora como separar-se da própria mãe,
com a diferença que a Freira era para ela “eterna” (p. 180), devido ao seu amor e
cuidado.
Nesse sentido, verificou-se que a morte envolve o romance. Num
primeiro momento é a morte do outro, mas à medida que ela rememora seu
passado, seu mundo a conduz para a própria morte. Morte que se apresenta como
‘maldita’ e ao mesmo tempo ‘venerada’; que por um lado é o eco de um tempo de
tristeza e dor e, por outro, representa a libertação de uma vida tomada pela aflição e
angústia. Desse modo, observou-se que a razão já não existe, o que ficou foi a
emoção que a arrasta para a floresta convidativa, para o lugar que a conduzirá
definitivamente para a morte.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Nicola Abbagnano. Trad. da
edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e
tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti ed. - São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia Sagrada: Velho Testamento e Novo Testamento.
Trad. de João Ferreira de Almeida. 3 ed. Rio de Janeiro: King´s Cross Publicações,
2005.
ALVAREZ, A. O Deus Selvagem: um estudo do suicídio. Trad. Sonia Moreira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. Maria Lúcia de
Arruda Aranha; Maria Helena Pires Martins. São Paulo: Moderna, 1986.
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias.
Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
AZEVEDO, Álvares de. Noite na Taverna. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
BATISTA, Donizete A. Espaço e identidade em Lya Luft: Exílio. Dissertação de
Mestrado. Curitiba: 2007, 95 f. Disponível em:
http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/bitstream/1884/13603/1/dissert_pdf.pdf
Acesso em 19 de julho de 2008.
BRIZUELA, Natalia. “Uma mulher; mulher” ou O exílio permanente. In: SÜSSEKIND,
Flora; DIAS, Tânia; AZEVEDO, Carlito. Vozes femininas: gênero, mediações e
práticas da escrita. Rio de Janeiro: 7 Letras; Fundação Casa Rui Barbosa, 2003.
CARREIRA, Shirley de Souza Gomes. Interpretações do eu: uma análise
comparativa de A céu aberto, de João Gilberto Noll e A cidade ausente, de
Ricardo Piglia. Disponível em:
http://www.unigranrio.br/unidades_acad/ihm/graduacao/letras/revista/numero5/textos
hirley3.html Acesso em 09 de novembro de 2007.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
DIAS, Gonçalves. Leonor de Mendonça. Disponível em:
http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?
link=http://www.biblio.com.br/conteudo/GoncalvesDias/leonordemendonca.htm.
Acesso em 30 de julho de 2008.
DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo: Martin Claret, 2008.
FELICIANO, Rosangela L. C. Luto e melancolia: reconstituição de uma história
na relação terapêutica. Pulsional Revista de Psicanálise. Número Especial, maio
2005, p. 41-45.
FOGGETTI, Maria Janaína. Fado e morte na tetralogia piauiense: uma estética
da miséria humana. 2006, 128 f. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2006.
FREUD, Sigmund (1917[1915]). Luto e melancolia. In: Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV, p. 249 - 263.
GATTI, Ana Lúcia; LOUZETTE, Fernanda Lucena. Luto na infância e as suas
conseqüências no desenvolvimento psicológico. Iniciação Científica. In: Revista
Eletrônica. Agosto, 2007, Ano I, nº. 1, p.77-79. Disponível em:
ftp://ftp.usjt.br/pub/revistaic/pag77_edi01.pdf Acesso em 03 de agosto de 2008.
GOETHE, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Martin Claret,
2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da
Silva, Guaracica Lopes Louro. 9ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
HOUAISS, Antonio. Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 2 ed. Ver. E
aum. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
KÜBLER-ROSS, Elizabeth. Sobre a morte e o morrer. Tradução Paulo Menezes.
São Paulo: Martins Fontes, 1981.
KUKUL, Vanessa Moro. Da sombra dos gabinetes aos holofotes do espetáculo: as
celebrações em torno da escritora Lya Luft e de sua obra. In: Revista Patrimônio e
Memória. UNESP – FCLAS – CEDAP, v.1, n. 2, 2005, p. 1-5.
LUFT, Lya. Exílio. Lya Luft. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
______. O rio do meio. São Paulo: Mandarim, 1996.
MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte. São Paulo: Editora Brasiliense,
1985.
MOREIRA, Jaqueline de Oliveira. Luto e Melancolia: uma leitura sobre o problema
da alteridade. In: Pulsional Revista de Psicanálise. Ano XVII, n. 179, setembro de
2004, p. 33-42.
MONTAÑÉS, Amanda Pérez. Vozes do exílio e suas manifestações nas
narrativas de Julio Cortázar e Marta Traba. Tese de Doutorado. Florianópolis,
2006, 204 p. Disponível em:
http://www.cfh.ufsc.br/~dich/amandatese.pdf Acesso em 30 de julho de 2008.
PRADO, Décio de Almeida. Leonor de Mendonça: amor e morte em Gonçalves Dias.
In: Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Perspectiva, 1993.
SAID, Edward. Fora de Lugar. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
TOLSTÓI, Leon. A morte de Ivan Ilitch. Trad.Vera Karam. Porto Alegre: L&PM,
1997.
VOLPATTO, Rosane. Anões e Gnomos. Disponível em:
http://www.rosanevolpatto.trd.br/anoesgnomos.html Acesso em 25 de agosto de
2008.
ZOLA, Émile. Germinal. 1ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
<a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-
nd/2.5/br/"><img alt="Creative Commons License" style="border-width:0"
src="http://i.creativecommons.org/l/by-nd/2.5/br/88x31.png" /></a><br /><span
xmlns:dc="http://purl.org/dc/elements/1.1/"
href="http://purl.org/dc/dcmitype/Text" property="dc:title" rel="dc:type">A
presen&#231;a da morte e do luto em Ex&#237;lio de Lya Luft</span> is
licensed under a <a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-
nd/2.5/br/">Creative Commons Atribui&#231;&#227;o-Vedada a
Cria&#231;&#227;o de Obras Derivadas 2.5 Brasil License</a>.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo