aos poucos ao universo quixotesco, às suas crenças e mesmo à sua maneira de
falar empolada e distante da popular.
A ilusão de Dom Quixote, “(…) — sua fome de irrealidade — é contagiosa e
propagou ao seu redor o apetite de ficção” (VARGAS LLOSA, Quixote: XVIII). Não
obstante, o fim dessa ‘loucura’, ou seja, passar a ver a realidade tal qual ela se
apresenta para o senso comum, significou, para o protagonista, a morte. Vargas
Llosa chega a sugerir que há algo de inverossímil no final do livro, no momento em
que Alonso Quijano abandona a fantasia quixotesca, renunciando à loucura e
voltando à realidade “quando esta, ao seu redor, já está mudada, em boa parte, em
ficção” (VARGAS LLOSA, Quixote: XVI).
A riqueza do Quixote está, entre outras coisas, na construção de um universo
em que ficção e realidade não estão muito bem demarcadas. Há um jogo constante
entre os narradores, manuscritos com versões diferentes sobre a história narrada,
relatos paralelos e discussões de crítica e teoria intercaladas. Dom Quixote e Sancho
Pança, seres ficcionais, reconhecem-se como tal: são conscientes de sua própria
qualidade de personagens literários — condição que fica explícita, principalmente, na
segunda parte do livro. Essa espécie de autoconsciência ficcional ou narrativa,
gerada pela colocação de histórias paralelas dentro da história principal, é uma das
formas de mise en abyme, ou caixa chinesa, no vocabulário crítico llosiano.
Paradoxalmente, esse procedimento narrativo, para Vargas Llosa, não inibe nem
diminui o poder persuasivo da ficção, e esse seria um dos índices do grande valor
estético da obra-prima de Cervantes e um dos elementos que garantem sua sempre
renovada atualidade.
Se Vargas Llosa afirma que a ficção é o tema central deste romance, é
possível aduzir que o mundo real, por contigüidade, também o é.
O conteúdo ético do romance, tão importante para a crítica humanista, está
não apenas nas ações pontuais de tal ou qual personagem, mas na reflexão,
permitida unicamente através da ficção, acerca de uma desrealização do real e de
suas convenções, em busca de uma ampliação e enriquecimento de nossa
experiência e vivência ética pessoal através do contato, ainda que mediado
literariamente, com novas possibilidades valorativas. Segundo Ortega y Gasset,