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novela
Cristiane Dantas
Cristiane Dantas é uma escri-
tora carioca, novata no mundo dos
livros, mas veterana no da leitura e
da escrita. Aos oito meses, já virava
as páginas de livros sem mastigar
nenhuma. Devorou as aventuras da
Turma da Mônica e discutiu com a
irmã sobre quem era mais podero-
so, o Batman ou o Zorro. Aos nove,
gostava de brincar de escritora, mas,
por vergonha, não mostrava a nin-
guém. Cursou metade da faculdade
de belas-artes e mudou para Comu-
nicação Social só para fugir das au-
las de modelo vivo. Deu certo. Hoje,
é roteirista de tevê e escritora orgu-
lhosa da qualidade de seus textos.
Da jovem sonhadora do interior
da Bahia, dada pelo pai em casamen-
to a um homem bêbado e violento em
troca de terras, à senhora de perso-
nalidade confl itante, amarga dentro
de casa, simpática e conversadei-
ra fora. Por toda a vida, Madalena
foi guerreira. Encarou o mundo de
frente e desafi ou o destino, que in-
sistiu em lhe armar ciladas até o fi m.
Teve coragem de viver a vida que
quis, e não a vida que a sociedade
escreveu para ela – e para todas as
mulheres de sua geração. Claro que
isso teve um preço, para ela e para
as pessoas que a cercavam. Mas ela
pagou esse preço.
Em seu primeiro livro, a carioca
Cristiane Dantas conta uma como-
vente história, repleta de lições de
vida, de superações, de humanida-
de, da vida como ela é, como diria o
escritor e teatrólogo Nelson Rodri-
gues. Uma história de pessoas co-
muns, com sentimentos como os de
todos nós, com as quais é impossível
não se identifi car.
Nelson olhou bem para Madalena. Olhou como não
tinha olhado até então: olhou como se fosse a primeira
vez. Viu uma moça linda, forte, sonhadora. E que só que-
ria viver um pouco. De repente, as terras para lá do rio,
a fazenda, o Manuel, seus outros fi lhos, sua mulher, ele
mesmo, tudo pareceu morto. Tudo era podre, pobre e pe-
queno diante daquela moça que só queria viver um pou-
co. Nelson teve uma vontade imensa de abrir a cancela e
deixar aquela moça, a sua Madá, sair daqueles cafundós
e viver muito, muito, muito e para sempre.
Madalena Cristiane Dantas novela
Foto: Marcos Carrão
COLEÇÃO LITERATURA PARA TODOS
Madalena
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Madalena
I Concurso Literatura para Todos
Consultora Pedagógica
Ira Maciel
Comissão de Pré-seleção das Obras
Cristiane Costa
Heitor Ferraz Mello
Júlio César Valladão Diniz
Maria da Luz Pinheiro de Cristo
Comissão Julgadora
Antônio Torres
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Jane Paiva
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Magda Soares
Marcelino Freire
Milton Hatoum
Moacyr Scliar
Rubens Figueiredo
Ministério
da Educação
Esplanada dos Ministérios
Bloco L – 7º andar – Sala 710
www.mec.gov.br
Madalena
Cristiane Dantas
novela
1
a
Edição
Brasília – 2006
Título original: Madalena
Autora: Cristiane Dantas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ano 2006
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610
de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser re-
produzida ou transmitida sejam quais forem os meios em-
pregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação
ou quaisquer outros sem autorização prévia por escrito do
Ministério da Educação ou da autora.
Dantas, Cristiane.
Madalena / Cristiane Dantas. – Brasília :
Ministério da Educação, 2006.
120 p. : il. ; 18 cm. -- (Coleção literatura para todos ; v. 1)
ISBN: 85-296-0043-6
1. Novela brasileira. 2. Literatura brasileira. I. Título.
CDD B869.3
CDU 821.134.3(81)-32
D192
Índice
Apresentação 8
Prefácio 10
Nelson – Jacuípe, 1935 13
Rubina – Jacuípe, 1943 23
João – Rio de Janeiro, 1943 35
Álvaro – Rio de Janeiro, 1945 47
Domício – Rio de Janeiro, 1958 59
Dulce – Rio de Janeiro, 1966 71
Cláudia – Rio das Ostras, 1975 82
Francisco – Rio de Janeiro, 1987 94
Entrevista com a autora 108
8
Carta ao leitor
Caras leitoras e caros leitores,
É com enorme satisfação que apresento a
Coleção Literatura para Todos, pensada e es-
crita especificamente para vocês, alunos e alu-
nas do Programa Brasil Alfabetizado e alunos
e alunas que estão dando continuidade a seus
estudos nas salas de aula de educação de jo-
vens e adultos.
Esta coleção, composta por dez livros – po-
esia, conto, novela, crônica, tradição oral, bio-
grafia e peça teatral –, é fruto de um concurso
nacional lançado em 2005 pelo Ministério da
Educação. As obras foram escolhidas entre os
mais de dois mil textos submetidos à comissão
julgadora. Muitas pessoas foram envolvidas no
processo de criação, o que representou um ver-
dadeiro mutirão, um esforço coletivo. Mas
quais os motivos que levaram o Ministério a re-
alizar o Concurso Literatura para Todos e ago-
ra lançar a Coleção Literatura para Todos?
A primeira resposta é dada pelo próprio
título do concurso e da coleção – Literatura
para Todos. O Ministério acredita que o aces-
so ao livro e à leitura é um direito de todos.
Nós todos temos o direito de ler e ter acesso a
9
livros da mesma forma que a Constituição Fe-
deral nos garante o direito à educação. Por
isso, em 2003, o governo criou o Programa
Brasil Alfabetizado, para garantir, aos jovens
e adultos que nunca tiveram esse direito, a
oportunidade de aprender a ler, escrever e fa-
zer as operações matemáticas básicas.
Acima de tudo, o Ministério foi motivado
por acreditar que o acesso ao livro e a criação
do hábito de leitura são essenciais para fortale-
cer a nossa cidadania e também como alicerce
para outras aprendizagens. A leitura nos per-
mite entender melhor o mundo a nossa volta e
conhecer melhor também quem somos nós.
Por meio da leitura, ganhamos acesso a outras
informações e novos conhecimentos.
A Coleção Literatura para Todos visa, as-
sim, oferecer um conjunto de livros, produzi-
do com muito carinho e zelo, que proporcio-
nará a vocês leitores um grande prazer – o
prazer de ler, de viajar, de criar e de fazer par-
te de uma nova comunidade: a de leitores. Pelo
menos, é assim que esperamos. Brasil, país de
todos – Brasil, comunidade de leitores!
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
10
Prefácio
Neste livro, o leitor terá o prazer de co-
nhecer a história de Madalena, personagem
inesquecível criada por Cristiane Dantas.
Com uma narrativa ágil e profunda, a obra
deixa os leitores capturados, com o coração
aos saltos, e revela como as marcas no cor-
po e na alma podem gerar histórias de vida
e colocar no rosto das pessoas um olhar de
bicho ferido e acuado ou mesmo um olhar
de peixeira ou olhos de iceberg.
A autora olha com firmeza e compaixão
as fraquezas e forças humanas, as agruras
das mulheres submetidas, as mazelas do in-
terior e da capital, os jogos do poder, o pul-
sar das relações familiares, e toda a beleza e
complexidade da vida. As personagens de
Madalena fazem um convite para olhar, sen-
tir e entender as nuances do mundo e as es-
colhas que a vida exige.
A cada capítulo entram em cena perso-
nagens decisivos para o curso da vida de
Madalena. O pai, Nelson, fazendeiro auto-
ritário, movido por interesses econômicos
e impossibilitado de demonstrar fraqueza.
11
Rubina, mulher-mãe com as mãos atadas ao
seu tempo. João, o irmão calça-frouxa que
não gostava do que via, mas nada fazia para
remediar. Álvaro, o advogado diplomata,
marido às escondidas e homem de vida du-
pla. Domício, funcionário público exemplar,
mas em dúvida sobre a quem ser leal. Dulce,
a mulher que pensava que amar era nun ca
dizer não. Cláudia, neta de Madalena, que so-
nhava em ser escritora de sucesso. E Fran-
cisco, o filho, que assistiu como se fosse um
filme às alterações da sua mãe, e que guarda,
na memória, cenas secretas e, nas entranhas,
a forte presença da mainha Madalena.
Apesar de todas essas presenças, Mada-
lena reina soberana na novela de Cristiane
Dantas. Os passos firmes da protagonista
revelam a todos nós, leitores, uma mulher
que teve coragem de enfrentar a vida e ser
senhora de si.
Não deixe de acompanhar os passos de
Cristiane Dantas, dona de olhar sensível e
agudo, de narrativa leve e densa, que inaugu-
ra o ofício de escritora com força e beleza.
Ira Maciel
Consultora Pedagógica
I Concurso Literatura para todos
12
13
Nelson
Jacuípe, 1935
Nelson continuou olhando para o sol
que já começava a cair atrás do morro, ba-
lançando a rede e pitando seu cigarro de
palha enquanto pensava na proposta que
acabava de receber. “Então é isso que esse
filho da mãe quer”. Pelo rabo do olho, pôde
ver Manuel se servir de mais uma dose da
cachaça que eles produziam lá mesmo na
fazenda. “Safado”.
– O que o senhor me diz, meu tio?
– Tô pensando, Maneco. Tô pensando.
Manuel enxugou a cachaça com uma go-
lada só, bateu o copo na mesinha com uma
força que quase quebrou o tampo de vidro
e se levantou da mureta que cercava o al-
pendre. Colocando o chapéu, encerrou a
conversa:
– O senhor pense à vontade. Proposta
melhor, não vai ter. Mande me avisar quan-
do resolver.
– Mando.
14
Manuel lhe deu as costas, andou meio
cambaleante até seu cavalo e montou com
dificuldade. “Uma hora dessa, já tá de cara
cheia”, observou Nelson. Sem tirar os olhos
do morro, gritou pela mulher:
– Rubina!
Ela apareceu imediatamente. “Escutan-
do atrás da porta. Eu sabia!”
– Que é?
– Quede Madá?
– Na horta – respondeu, recolhendo a
garrafa de cachaça e os copos; verificou se
o vidro do tampo da mesinha não estava
trincado. – O que o Maneco queria?
– Não me tire do sério, Rubina. Você ou-
viu. Me chame Madá.
Ela parou na frente dele, tapando a visão
do morro:
– Nelson, pense bem. Logo o Maneco?
Você sabe como ele é. Não acho que Mane-
co dê um bom...
Nelson detestava arenga de mulher. In-
terrompeu logo Rubina, alteando a voz:
– Me chame Madá!
Rubina entrou em casa. Nelson voltou a
olhar para o morro; deu uma tragada pro-
funda no cigarro e soltou a fumaça bem de-
15
vagar, pensativo. “Bem que ia ser bom es-
ticar a fazenda pra lá do rio, até o sopé do
morro. Não gosto de vizinho.”
Sentiu uma sombra atrás de si; era Ru-
bina. Com João. Nelson já sabia o que eles
iam dizer, e se irritou antes mesmo que dis-
sessem. Jogou a guimba longe.
– Mandei chamar Madá!
– Mas o Joãozinho...
João tentou ajudar a mãe:
– Meu pai, a mainha só quer...
Aquela voz macia de João também tirava
Nelson do sério:
– Eu sei muito bem o que ela quer! Quer
mandar nessa casa! Mas essa é a minha
casa! Quem manda aqui sou eu!
– Eu sei, meu pai. Todo mundo sabe. Mas
o assunto agora não é a casa. É Madá.
– E eu também não mando em Madá? É
minha filha, mando eu!
Rubina tentou mais uma vez:
– É minha filha também! E o Maneco não
presta!
Nelson se enfezou:
– Não presta por quê? É filho de meu
primo! É da minha família! – levantou-se da
rede. – Então minha família não presta, é?
16
– avançou para a mulher. – Me diga, Rubina,
minha família não presta?
Joãozinho colocou-se entre os pais:
– Meu pai, se acalme...
– Pois eu vou dizer quem não presta
aqui! É o senhor, seu Joãozinho! Tem essa
fala mansa, cheia de palavrório, mas não
me serve pra nada na fazenda! Não tem for-
ça pra cuidar da cana, nem jeito pra cuidar
do alambique, nem pulso pra vigiar peão.
Pra nada você me serve. Até o seminário
me devolveu você! E ainda diz que traba-
lha na estrada de ferro... E lá limpar trilho
é serviço de homem? Um calça-frouxa, é o
que você é!
– E também sou da sua família, não
sou? Sangue do seu sangue. E, conforme
o senhor mesmo disse, não presto! Igual o
Maneco!
Era a primeira vez que João o enfrenta-
va. Nelson não gostou da valentia. Era só o
que lhe faltava: “o calça-frouxa querer can-
tar de galo no meu terreiro”. Meteu a mão
no chicote que sempre trazia à cinta:
– Você não me responda!
Rubina separou a briga do jeito que sa-
bia que funcionava:
17
– Deixe seu pai, Joãozinho! Ele vai dar o
ataque!
Nelson encarou Rubina. “É só eu chegar
perto do queridinho dela, que a Rubina fala
no tal do ataque”. A epilepsia era a única
coisa que fazia Nelson se sentir fraco.
– Vira essa boca de sapo pra lá, mulher!
Faz pra mais de trinta anos que eu não te-
nho esse ataque!
– Mas se ficar nesse estado de nervos, é
capaz de ter.
Rubina foi conduzindo João para den-
tro da casa. “Sabe me parar, essa danada”,
constatou Nelson. Ela falava com o filho,
mas alto o bastante para que o marido a
ouvisse:
– Deixe, Joãozinho. Deixe. O futuro a Deus
pertence. A cada um, a sua cruz. Que a de
Madá lhe seja leve.
– Amém, mainha.
“Cambada de papa-hóstia”, pensou. Gri-
tou para os dois:
– E me chamem Madá!
A última palavra tinha que ser sempre
a dele. Nelson jogou-se na rede, mirando o
morro. Era mesmo uma excelente proposta,
a de Manuel: as terras entre o rio e o morro
18
em troca da mão de Madalena. Haviam de
ser férteis essas terras. E o Manuel não seria
louco de maltratar Madalena, a sua Madá,
bem ali, nas suas barbas. “Ele me respeita.
Bebe, mas não come merda nem rasga di-
nheiro. Não é doido. Não seria besta de fa-
zer Madá sofrer”.
A sua Madá. Já havia completado de-
zesseis anos, era moça feita. E linda. Uma
estampa, mesmo. Pele branca, nariz fino,
olho azul, cabelo bom, dourado e encara-
colado, com todos os dentes e quadril de
boa parideira. Diziam que a família descen-
dia daqueles holandeses que tinham anda-
do por Pernambuco. Podia ser; todos em
casa tinham a cara de galego de Nelson.
Menos Rubina.
“A escandalosa da Rubina... Nunca que
deixou eu segurar Madá no colo”, lembra-
va Nelson, com amargura. Era a caçula e a
única menina, mas a mulher não o deixava
carregá-la no colo. “Se você tem o ataque,
cai em cima dela e mata a criança”, era o
que ela dizia. Nem os irmãos mais velhos
podiam ficar sozinhos com Madá. “Pra não
fazer maldade”, era a desculpa. Só o calça-
frouxa podia chegar perto dela.
19
Desde que Madalena tinha doze, treze
anos, já havia
gabiru de olho nela. Nelson
tinha até desistido de deixá-la trabalhar na
venda da fazenda, de tanto peão que entra-
va lá e não saía nunca mais, só de prosa,
sem comprar nada. E agora, o Manuel vi-
nha com essa proposta. Ele tinha mais de
quarenta anos, era um pé-de-cana, mas era
parente. E estava oferecendo terras. E não,
não seria mesmo besta de fazer Madalena
sofrer. “Se fizer, mato ele”, jurou.
– Chamou, meu pai? – perguntou Mada-
lena, atrás dele, na soleira da porta.
– Chamei. Você demorou.
– O senhor me desculpe.
– O Maneco...
Ela interrompeu, sentando-se na mureta
onde, uma hora atrás, estava Manuel.
– Já sei. Joãozinho contou.
– Aquele calça-frouxa!
– Não gosto do Maneco, meu pai. Ele
fede a pinga.
– Ele bebe porque é homem solteiro. Quan-
do tiver mulher e filho, há de criar juízo.
– Ele é velho.
– Não é, não. E moço muito novo é mau
negócio. Não tem experiência da vida.
Que ou quem age
com esperteza;
patife, bilontra,
malandro, gaiato.
Conquistador
de mulheres;
mulherengo.
20
– Mas eu não gosto dele.
– Não gosta agora. Com o tempo, apren-
de a gostar.
Madalena virou-se na direção do morro,
para onde Nelson estava olhando. O sol já
tinha quase sumido atrás dele.
– O senhor vai me trocar por essa terra,
meu pai?
As palavras dela lhe doeram, mas Nel-
son não conseguiu olhar para a filha. Já
tinha tomado sua decisão. Já tinha até dis-
cutido com Rubina e João por causa disso,
não podia voltar atrás. Não podia dar pro-
va de fraqueza. Era ele quem mandava na-
quela casa.
– Não é uma troca. Você vai ser sempre
minha.
“Minha Madá...”, ele pensou. Mas não
falou. Não era homem de chamegos.
– E a terra também vai ser do senhor. Vai
ficar com tudo, não é, meu pai?
“Vou”, pensou ele. Mas também não fa-
lou. Desta vez, não teve orgulho de ganhar.
Só que ele não podia mesmo voltar atrás.
Tinha que impor respeito. Pela primeira
vez na vida, perdeu as palavras. Madalena
continuou:
21
– Lhe devo obediência. Caso com Mane-
co. Só queria uma coisa pra mim.
“Foi por isso que ela demorou; esta-
va pensando numa condição. Isso é idéia
daquele calça-frouxa, na certa”, concluiu
Nelson.
– Diga.
– Antes de casar, o senhor deixa eu fazer
o curso normal em Salvador?
– E pra que você quer mais estudo? Não
precisa de curso normal pra ter filho nem
pra cuidar de casa e marido.
– Eu sei, meu pai. Mas é só pra viver um
pouco.
Nelson olhou bem para Madalena. Olhou
como não tinha olhado até então: olhou
como se fosse a primeira vez. Viu uma moça
linda, forte, sonhadora. E que só queria vi-
ver um pouco. De repente, as terras para lá
do rio, a fazenda, o Manuel, seus outros fi-
lhos, sua mulher, ele mesmo, tudo pareceu
morto. Tudo era podre, pobre e pequeno
diante daquela moça que só queria viver um
pouco. Nelson teve uma vontade imensa de
abrir a cancela e deixar aquela moça, a sua
Madá, sair daqueles cafundós e viver muito,
muito, muito e para sempre.
22
Mas ele não podia voltar atrás.
– Então vá. Faça esse tal de curso. Acer-
to o casório pra depois da sua formatura.
– Obrigada, meu pai – e beijou a mão de
Nelson. – A sua bênção.
– Deus te abençoe – e disse essas pala-
vras tão gastas com o coração, como nunca
havia dito antes.
Madalena entrou em casa. Nelson ficou
olhando o contorno do morro no lusco-fus-
co da noitinha. Tudo parecia morto.
– Mas Madá vai viver um pouco – disse
para si mesmo.
23
Rubina
Jacuípe, 1943
Rubina torrava castanhas de caju nos
fundos da casa, na tranqüilidade das duas
da tarde, hora em que o movimento do al-
moço já tinha acabado e o do jantar ainda
não tinha começado, hora sem homens para
servir nem empregados para dar ordens,
a hora de que ela mais gostava. Com uma
ripa, revirava as castanhas que emprete-
ciam aos poucos em cima da
folha-de-flan-
dres
e cantava hinos religiosos com sua voz
forte de contralto:
– Mãezinha do céu, eu não sei rezar...
Eu só sei dizer quero lhe amar... Azul é seu
manto, branco é seu véu... Mãezinha eu
quero lhe ver lá no céu...
Ou estava concentrada demais no que
estava fazendo, ou estava desligada demais
de tudo que não era o que estava fazendo. O
fato é que Rubina só viu que Madalena ha-
via chegado com Chiquinho no colo e uma
Fina chapa de
ferro laminado
usada em diversas
aplicações, como
na fabricação de
latas.
24
25
trouxa na cabeça quando a filha, que mora-
va numa casinha lá atrás, colada no alambi-
que, já estava ao seu lado:
– Mainha, me acuda!
– Madá?! Mas o que foi...
– O Maneco tentou matar o Chiquinho!
– Jesus, Maria e José!
Rubina examinou o rosto do neto. O
menino, normalmente manhoso e birren-
to, não estava com cara de ter acabado de
escapar da morte: inteiro e rosado, dormia
placidamente no colo desajeitado da mãe.
Rubina nunca disse nada, afinal Madalena
sempre tinha sido muito correta com suas
obrigações de esposa e mãe. Mas a verdade
era que ela nunca pareceu à vontade com
o Chiquinho no colo; carregava-o como
se fosse uma jaca, um leitão, uma barra de
gelo... Enfim, carregava-o como algo que
não encaixava no seu corpo, como os cor-
pos dos filhos sempre encaixam nos corpos
das mães. Ainda mais agora, que Chiqui-
nho já tinha três anos; com a cabeça jogada
para trás e as pernas sobrando, era como se
fosse um saco de batatas nos braços de Ma-
dalena. Mas não estava com nenhuma cara
de ter acabado de escapar da morte.
26
– Tentou matar como, Madá?
Ela explodiu num choro soluçado:
– Não agüento mais, mainha! Não agüen-
to mais!
Madalena não era de se queixar. Era jo-
vem e sonhadora, fez um casamento força-
do, tinha um marido que não prestava, uma
vida dura, mas não era de se queixar. “Bom
cabrito não berra”, dizia ela. Se estava se
acabando de chorar daquele jeito, havia de
ser coisa séria.
– Se acalme, Madá. Só a morte não tem
conserto. Pro resto, sempre tem um jeito.
Venha.
Foram para o quarto de Rubina e Nel-
son. Madalena deitou Chiquinho na rede do
pai. A criança continuou dormindo. Rubina
comentou, como quem não queria nada:
– Tá calminho, né? Nunca foi assim...
– Dei chá de mastruço pra ele, pra acal-
mar. Agora tá aí, dormindo como se nada
fosse... – voltou a chorar. – Mas ainda há
pouco... Ainda há pouco foi um inferno,
mainha! Um verdadeiro inferno!
Madalena desabou sentada na cama do
casal, soluçando de não poder respirar. Ru-
bina sentou-se ao lado dela:
27
– O que é isso Madá? O que te aconte-
ceu, filha?
Madalena só chorava. Rubina resolveu
deixá-la desabafar. Encostou o rosto da fi-
lha no seu ombro; aos poucos, Madalena
foi escorregando e se aninhou no colo da
mãe. Rubina lembrou-se então de Madalena
criança, e se deu conta de que nunca a tinha
visto chorar daquele jeito quando ela era pe-
quena. Quando menina, Madalena não era
em nada parecida com o frágil Chiquinho.
Sempre foi esperta. Não perdia tempo dis-
cutindo, mas tinha lá suas idéias, e quando
cismava com uma coisa, não sossegava até
conseguir o que queria. Era independente
também; era só terminar o serviço, sumia
e ninguém sabia dela até a noite. Montava
melhor que os meninos; rodava tudo e vol-
tava para casa imunda e feliz. E ainda tinha
cabeça para os livros; formou-se professora
com louvor, e em escola forte. Tivesse nas-
cido homem, e a história de Madalena seria
bem outra, Rubina tinha certeza.
Rubina foi acariciar o braço de Madalena
e só aí reparou que ela estava usando o ves-
tido de missa. De mangas compridas. Em
janeiro. Quando sua mão resvalou nas cos-
28
tas da filha, ela se arqueou e gemeu. Rubina
tentou acariciar seus cabelos e sentiu um ca-
lombo debaixo dos dedos que, quando toca-
do, fez Madalena tirar a cabeça de seu colo
num reflexo. Havia algo errado. Rubina ten-
tou de novo, desta vez com mais energia:
– Diga logo, Madá. O que que tá acon-
tecendo?
Madalena fungou e sentou-se, enxugan-
do as lágrimas:
– Maneco tentou matar Chiquinho...
– Como?
– No berço. Quando entrei no quarto, vi
ele sufocando o menino com o travesseiro.
– Virgem Santíssima, valei-me!
– Só a Virgem mesmo, que sabe o que é
perder um filho. Fiquei cega. Pulei em cima
do desgraçado, agarrei ele pelas costas, foi
eu e ele no chão. Levantei não sei como pra
tirar Chiquinho dali. O bichinho já tava todo
roxo e molinho, coitado.
– Se você me demora mais um pouco...
– Chiquinho morria, na certa! Mas não
foi só isso: quando eu tava sacudindo o Chi-
quinho pra ele voltar a si, Maneco me puxa
pela perna. E eu com a criança no colo. Lu-
tei, mas lutei muito, o berço até virou. Aí me
29
deu um estalo: passei a mão no crucifixo da
parede e sentei ele na cabeça de Maneco.
Ele caiu, cheio de sangue na testa.
– O cão estava de cara cheia, garanto!
– Pois foi a sorte, mainha! Se Maneco não
tivesse de cara cheia, eu não conseguia tirar
ele de cima do Chiquinho, não. O infeliz é
velho, mas é forte. A sorte foi a cachaça. E
o crucifixo, que fez ele desmaiar. Também,
bati com uma raiva... Deus que me perdoe.
– Misericórdia. A que ponto chegamos...
– Pra senhora ver...
– Não foi falta de aviso.
Ficaram as duas olhando Chiquinho res-
sonar, afundado na rede. Rubina ruminava
a história que acabava de ouvir. Madalena
sacudia o pé; parecia impaciente.
– Diga, Madá... – indicou a trouxa com o
queixo – Que é aquilo ali?
– Vou embora, minha mãe – disse num
fôlego só e levantou-se.
– Embora?! – Rubina levantou-se tam-
bém. – Pra onde?
– Pra casa de Joãozinho. Ele não há de
me faltar numa hora dessa.
– Vai sozinha? Teu marido sabe disso?
– Não tenho mais marido, mainha. Ele
30
quis matar meu filho. Agora sou só eu e
Chiquinho.
– Mas... O que os outros vão dizer?
– Digam o que quiserem! Não sou ne-
nhuma vagabunda: tô levando meu filho.
– E o teu pai?
– Meu pai?! Não foi meu pai que me en-
tregou pro porco do Maneco? Não devo
nada a meu pai! Ele é que me deve! Me deve
toda essa desgraça que é a minha vida!
– Madá do céu, pense bem!
– Já pensei, minha mãe. Desse lugar,
quero só a sua bênção.
Rubina abraçou a filha bem forte. Mada-
lena se encolheu e gemeu com uma careta
de dor. Rubina a encarou, firme:
– Deixe eu ver essas feridas.
– Mainha...
– Tire já essa roupa, Madá!
Madalena obedeceu a mãe com os olhos
pregados no chão. Conforme as peças de
roupa caíam, se revelavam marcas roxas
nas costas, nas costelas, nos braços e nas
pernas. Nas nádegas e nos peitos, mordidas
quase pretas. Rubina lhe alisou a cabeça e
encontrou um galo do tamanho de um ovo.
Sentiu o estômago revirar de ódio:
31
– Filho de uma égua – disse, sem poder
segurar as lágrimas.
O carrilhão bateu três horas.
Se avie, Madá. Daqui a pouco os ho-
mens voltam da roça.
– A senhora me dá sua bênção?
– E você ainda pergunta? Se avie, vá!
Enquanto Madalena se vestia, Rubina pu-
xou sua maleta de couro de baixo da cama e
foi enfiando nela o conteúdo da trouxa: uma
meia com algum dinheiro, dois vestidos, uma
camisola, um casaco, toalhinhas, cueiros,
dois conjuntos de Chiquinho. Um espelho de
mão. E uma bruxinha de pano, presente feito
pela madrinha de Madalena para o aniversá-
rio dela de sete anos. Era um primor de arte-
sanato: calçava botas com cadarço e saltinho,
usava calçolas de renda, os cabelos eram pre-
sos num coque rebuscado, tinha seios com
mamilos e cinco dedos em cada mão, cada
um com sua unha. Rubina olhou com ternu-
ra para Madalena, que enfiava a combinação
pela cabeça gemendo de dor. Deitou cuida-
dosamente a boneca entre os cueiros de Chi-
quinho. Fechou a maleta e a encarou:
– Diga, Madá... Você fez essa trouxa
agora?
Aviar-se;
apressar-se.
32
– É! – respondeu ela, depressa demais.
– Com o Maneco desmaiado no meio do
quarto?
– É... – Madalena retesou o corpo, alerta.
– Pegou o espelho e a sua boneca com o
Maneco desmaiado no meio do quarto?
– Foi, minha mãe! – deu um muxoxo im-
paciente.
– E trocou de roupa. Com ele sangrando
no meio do quarto.
– Não, eu... – hesitou. Recomeçou: – Foi
muito de repente, eu saí correndo e...
– E você tava vestindo roupa de missa
dentro de casa? E o Maneco ficou desmaiado
esse tempo todo? Com uma pancada só, e de
um crucifixo de madeira que não pesa nada?
– Minha mãe...
Bastou um só olhar, olho no olho. E Ma-
dalena ficou sabendo que a mãe já sabia. E
Rubina ficou sabendo que Madalena já sa-
bia que a mãe já sabia.
– Me dá sua bênção?
– Deus te abençoe – e deu a mão para
Madalena beijar. – Nossa Senhora te acom-
panhe, te leve e traga em paz.
– Ela não vai me trazer, mainha. Não pos-
so voltar. Não enquanto Maneco viver.
33
Veículo grande
para transporte
coletivo; ônibus.
O carrilhão bateu três e quinze.
– Deixe eu ir. Tem uma
marinete às
quatro.
– Zefinha leva vocês de charrete. Confio
nela. Vai segurar a língua dentro da boca.
Do alpendre, ficou olhando a filha e o
neto sumirem na poeira da estrada.
Passou pelas castanhas estorricadas na
folha-de-flandres. Chegou à casa de Mada-
lena. A porta estava aberta. Entrou. Foi di-
reto para o quarto. Como ela pensava.
O berço não estava virado. O crucifixo
estava no lugar dele. Sem sangue. Mane-
co sim, jazia de boca aberta na cama, com
um corte bobo na testa. Dormia, bêbado.
A garrafa de pinga, vazia em cima do baú
que ficava aos pés da cama. “Madá embe-
bedou o cão”. A garrafa tinha um pouco de
sangue no fundo. “Mas é menos esperta do
que eu pensava”.
Rubina tratou de deixar o quarto como
Madalena havia contado que ele estava. E
bem que gostou de sentar o crucifixo com
vontade na cabeça de Manuel:
– Deus que me perdoe.
Uma, duas, três, quatro, várias vezes. E
ele nem reagiu, de tão mamado.
34
35
João
Rio de Janeiro, 1943
Só quando João terminou de falar é que
teve coragem de encarar Madalena. Sentiu
como se fosse se partir em dois com o olhar
cortante que ela lhe cravou. Os olhos azuis
eram os de sempre. Os mesmos daquele
tem po em que eles, ainda crianças, corriam
soltos pela fazenda. Mas aquele olhar ele
não conhecia. Era doído e furioso ao mes-
mo tempo. Dava pena e medo. Olhar de bi-
cho ferido e acuado. Ele também não esta-
va gostando nada de ter que dizer aquilo à
irmã. O silêncio entre os dois cravava ainda
mais fundo o olhar de Madalena na carne
de João, mas ele não tinha forças para falar
mais nada. Vai ver, ele era mesmo um calça-
frouxa, como todo mundo dizia. Ela termi-
nou o que ele tinha começado:
– Ela viu ele fazer isso?
– Ver, ver, não viu – João respondeu. –
Mas só pode ter sido o Chiquinho. A Luzia
tem o maior xodó com aquele rádio. Foi pre-
sente do pai dela, custou um dinheirão...
36
– Francisco! Francisco, venha cá! – gri-
tou ela para dentro da casa.
– Não briga com o menino, Madá, por
favor...
João teve vergonha das próprias pala-
vras. Como Madalena podia não brigar com
Chiquinho? Então ele não tinha acabado de
lhe contar que o sobrinho havia arranca-
do o botão do volume do precioso rádio de
Luzia? E não era briga mesmo que sua mu-
lher queria quando veio lhe fazer queixa do
garoto? Não era briga que ela queria desde
que Madá e o filho apareceram de repente
na casa deles, no meio da noite?
Chiquinho entrou na sala com seu passo
medroso e desconfiado. Era a única crian-
ça que tinha entrado naquela casa. Por ele,
e com ele, João tinha se transformado num
pai. E gostou disso. E achava que Chiquinho
também tinha gostado; desde a noite ante-
rior só o chamava de “papai Joãozinho”.
Os olhos de Chiquinho não tinham a
cor dos olhos da mãe, eram castanhos.
Mas o olhar era o mesmo: de bicho ferido
e acuado.
– O que foi que eu te falei, menino? – Ma-
dalena puxou Chiquinho pelo braço e come-
37
çou a gritar. – Falei pra não mexer em nada!
Em nada! Não foi isso que eu te falei?
– Foi, mainha... – murmurou Chiquinho,
recuando.
– E você mexeu no rádio! Não foi, in-
feliz? Não foi? – ela sacudia Chiquinho
enquanto falava. – Fala! Mexeu no rádio!
Não mexeu?
– Não.
Madalena largou o braço de Chiquinho
com tanta brutalidade que o menino caiu
sentado. Ela estava descontrolada:
– Não mente! – e estapeou o filho. – Você
mexeu no rádio! – e o estapeou mais, e mais.
– Você arrancou a porcaria do botão do rá-
dio! Foi você!
– Não!
Chorando, Chiquinho tentava fugir de
gatinhas pelo chão. Os tapas pegavam nas
pernas, nas costas, na bunda.
– Chega, Madá! Pára com isso, pelo amor
de Deus!
João segurou o braço de Madalena. Ela
se soltou com um empurrão. Ele se desequi-
librou na perna mecânica e também caiu no
chão. Fora de si, Madalena agarrou de novo
o braço de Chiquinho com a mão esquerda
38
e, com a direita, batia nele. De mão fechada.
Na cabeça e na cara.
– Foi ele! É culpa dele! É tudo culpa dele!
Sem apoio para se levantar, João tenta-
va deter Madalena segurando-a pelos tor-
nozelos. Não estava conseguindo. Gritou
pela mulher.
– Luzia! Acode aqui! Luziaaa!
Madalena não parava. João sabia que
ela estava batendo no filho não por causa
do maldito botão do rádio. Não era do fi-
lho que ela tinha raiva. Era da vida dela.
Mas ela não podia bater no pai que a tinha
trocado por uma miséria de terra que não
valia nada. Nem no marido que a tinha usa-
do; um bêbado desgraçado que tinha ten-
tado matar o próprio filho. Ela não podia
bater na frustração de não ter podido ser
professora e se manter sozinha. Nem na
certeza de não poder voltar para sua terra
nunca mais, agora que era fugida do ma-
rido. Nem no medo de ser jovem, bonita,
matuta e com um filho para criar sozinha
na capital.
Nem nele, João, o único irmão em quem
Madalena confiava e que não a protegeu
dessa desgraça, nem nele ela podia bater. Ele
39
agora era um aleijado. E ninguém bate num
aleijado, nem uma irmã caçula traída. Não,
Madalena não podia bater na sua vida. Todos
eram mais poderosos que ela. Só o Chiqui-
nho era mais desamparado que Madalena.
Luzia veio do quarto. Demorou uma eter-
nidade para chegar e ainda ficou parada
na porta, sem ação. O nariz de Chiquinho
começou a sangrar; ele estava a ponto de
desfalecer. Num esforço que soltou a perna
mecânica, João se arrastou e colocou-se en-
tre mãe e filho.
– Ele tá sangrando, Madá! Pára!
Madalena parou de bater, mas ainda se-
gurava o braço de Chiquinho. Os dois olha-
res de bicho ferido e acuado se encontraram.
Veio outro silêncio que cortava que nem pei-
xeira. Só se ouviam os soluços de Chiquinho.
Por fim, Luzia virou-se para João:
– Falou pra ela do rádio?
– Sai daqui – foi só o que João conseguiu
dizer.
Dando as costas para o marido que esta-
va largado no chão sem sua perna mecâni-
ca e para uma criança que sangrava, Luzia
saiu mesmo:
– Foi você que me chamou.
40
“De que ela é feita, meu Deus?”, pensou
João, ouvindo o indiferente arrastar de chi-
nelos de Luzia ecoando pelo corredor. A por-
ta do quarto deles foi batida. “Pra todo mun-
do saber que ela não liga pra ninguém aqui”,
deduziu João. “Como é que eu fui casar com
essa mulher?” E, mais uma vez naquela tar-
de, ele pensou na sua fama de calça-frouxa.
Madalena pegou Chiquinho no colo.
João ainda tentou remediar:
– Pega gelo no...
Ela já tinha sumido corredor adentro. Ou-
tra porta se bateu. A do quarto que seria do
filho que João e Luzia nunca iriam ter. Por-
que agora ele era aleijado, e Luzia tinha nojo
do coto de sua perna esquerda. Perna que ele
havia perdido num acidente na estrada de
ferro, onde tinha ido trabalhar porque Luzia
queria sair da Bahia e morar na capital. Ago-
ra viviam de favor numa casa que pertencia
ao sogro. E lá estava João, se arrastando pelo
chão do pai de Luzia, porque havia perdido
uma perna para agradar aquela pessoa que
não ligava para sangue de criança. “Como é
que eu fui casar com essa mulher?”
Ele alcançou o sofá, apoiou nele os co-
tovelos, suspendeu o corpo e sentou-se.
41
A perna mecânica estava jogada do ou-
tro lado da sala. Olhando para a perna es-
querda de sua calça pendurada, vazia, sem
serventia, inútil, ridícula, pela terceira vez
naquela tarde João pensou na sua fama de
calça-frouxa. “É... Vai ver, eles têm razão.
Sempre tiveram”. Tinha sido assim desde
criança: “O Joãozinho é um calça-frou-
xa”, diziam todos. Até os empregados. Os
irmãos mais velhos, não: eram valentes,
bons de briga. Tuninho e Juquinha eram
iguaizinhos ao pai. Nelson, mesmo depois
de velho, com três filhos homens e adultos,
ainda era quem cantava de galo em casa.
Ainda dava coça de chicote até no mais ve-
lho. Nelson, Tuninho e Juquinha eram te-
midos, ou odiados, ou temidos e odiados
por peões,
meeiros, vizinhos, parentes e
aderentes. E por João.
Quando era menino, João bem que tinha
tentado ser como eles. Mas seu físico nunca
ajudou; magro e frágil, estava sempre do-
ente. Rubina tinha um armário só para as
compressas, as
mezinhas, os xaropes, as toa-
lhas e lençóis fervidos e as vasilhas separa-
das com que paparicava João ao primeiro
espirro que ele dava.
Aqueles que
plantam em
terreno alheio,
repartindo a
colheita com o
dono das terras,
normalmente
meio a meio.
Qualquer
remédio caseiro.
42
Quando ficou rapaz, João tentou ser o
oposto dos homens da família: entrou para
o seminário, onde poderia rezar, estudar,
ler e até, quem sabe, escrever suas poesias
bem longe daquela macheza bruta de casa.
Nelson até que tinha gostado da idéia; João
nunca lhe foi útil, e filho padre sempre dava
prestígio a uma família. Rubina, católica
fervorosa que havia dado nome de santo
aos quatro filhos, até chorou de felicidade
– e ele nunca tinha visto a mãe sequer sor-
rir. João só teve que agüentar a caçoada de
Tuninho: “Só assim o Joãozinho pára de ser
calça-frouxa... Parando de usar calça!”
Mas isso foi fácil. Também foi fácil ser
aceito no seminário em Salvador e se adap-
tar à disciplina rígida dos religiosos, já que
João era temente a Deus, recatado e obe-
diente. Difícil tinha sido evitar o assédio de
um colega que se apaixonou por ele. João
não aceitou o amor do seminarista filho de
coronel. Para vingar-se, o seminarista o de-
nunciou aos padres por vaidade e exigiu sua
expulsão. Tudo porque João tinha que usar
brilhantina no cabelo que, muito liso, lhe
caía sobre os olhos, atrapalhando a leitura.
Os padres consideraram o pote de brilhan-
43
tina – e a palavra do filho do todo-poderoso
da região, que fazia gordas doações ao se-
minário – como provas indiscutíveis de que
João não era digno de ser um representante
de Deus. E ele voltou para aquela macheza
bruta de casa.
João não gostava de ver o que o pai e os
irmãos faziam para manter os peões sem-
pre em dívida com eles. No final de cada
mês, eles deixavam todo o salário na ven-
da da própria fazenda, e no dia seguinte ao
pagamento, fatalmente, já começavam ou-
tra dívida. Os meeiros não escapavam des-
sa sina; trabalhavam o mês inteiro por sua
conta, custeavam sementes e adubos, e sem-
pre deixavam muito mais do que a metade
da colheita na casa-grande. João via isso
tudo, não gostava de nada, mas também
não fazia nada para remediar a situação. A
solução que encontrou foi refugiar-se num
concurso público para trabalhar na estra-
da de ferro e desligar-se dos desmandos da
fazenda. Àquela altura, ninguém precisava
mais xingar João: ele mesmo já estava se
sentindo um calça-frouxa. Sentia que não
podia nada contra o pai e os irmãos. A úni-
ca criatura mais fraca que ele naquela casa
44
era Madalena. E nem por ela ele fez alguma
coisa, quando Nelson a entregou a Manuel
em troca de uma braçada de terras.
Uma porta rangeu no corredor. Madale-
na surgiu, com a pequena maleta de couro e
Chiquinho no colo. Cruzou a sala e, sem se-
quer cravar em João seu olhar de peixeira,
saiu, batendo a porta atrás de si.
“Eu falhei com ela de novo”, João pensa-
va, quando Luzia apareceu:
– Ela já foi?
– Já.
– Ah... Achei o botão do rádio.
E, sem se oferecer ao menos para pegar
a perna mecânica, entrou arrastando os chi-
nelos. João lembrou da mocinha atrevida
que Luzia tinha sido, se oferecendo para ele
naquela festa de São João, com a boca doce
e os olhos de promessa, doida para arrumar
um marido que a tirasse de casa. E ele tinha
caído nessa arapuca. “Calça-frouxa...”
João pegou na carteira uma fotografia
3x4 de Madalena em que ela, apesar de es-
tar no auge dos seus dezoito anos, apesar
de estar vestindo o uniforme da escola nor-
mal que para ela tinha sido uma conquista,
apesar de estar na Salvador de que tinha
45
aprendido a gostar, não consegue sorrir.
O olhar dela, que ainda não era de bicho fe-
rido e acuado, sai da fotografia e se perde
sabe Deus onde. Quem sabe, Madalena já
via o que esperava por ela.
João releu a dedicatória escrita no ver-
so da fotografia na caligrafia miúda e firme
de Madalena: “Ao bom Joãozinho: nesta
lembrança a estima da irmã que lhe quer,
Madá. 13/11/1936.” E pensou uma coisa lhe
que doeu: “Ela nunca mais vai me querer”.
Do quarto do casal veio a voz do Orlan-
do Silva cantando Podes mentir. “A vida
tem um senso de humor muito cruel”, foi o
que João pensou.
E naquele mesmo instante em que per-
deu Madá e Chiquinho, João matou seja lá
o que for que sentisse por Luzia. E chorou
tudo o que não tinha chorado até ali.
46
47
Álvaro
Rio de Janeiro, 1945
Ofegante, Álvaro desmontou e encos-
tou a bicicleta no tronco da amendoeira, ao
lado da dela. Madalena já estava na beira da
água, sem sapatos, pulando as minúsculas
ondas da praia da Moreninha com Chiqui-
nho pela mão. Os dois se viraram para trás,
o acharam entre as dezenas de amendoei-
ras da orla e acenaram, às gargalhadas. Ele
acenou de volta. Eles voltaram à brincadei-
ra, jogando água um no outro. Ele puxou
o lenço de seda, enxugou o suor da testa e,
mandando às favas o caríssimo tecido in-
glês da calça feita sob medida, sentou-se na
raiz da árvore para desfrutar a sombra ge-
nerosa e refrescante.
“O que eu tô fazendo aqui?” Álvaro não
se reconhecia. Advogado e diplomata, en-
trava e saía do Palácio do Catete quando
bem entendia, jantava com senadores, se-
cretários de governo e até ministros de es-
tado regularmente, tinha camarote no Tea-
tro Municipal, suíte no Copacabana Palace
48
e mesa cativa no Cassino da Urca, só vestia,
bebia, comia e fumava do bom e do melhor,
era disputado tanto por espalhafatosas ve-
detes de teatro de revista quanto por dig-
níssimas damas da alta sociedade... E esta-
va lá: na socialmente insignificante Paquetá.
Botando os bofes para fora de tanto pedalar
uma bicicleta alugada debaixo do impiedo-
so sol do meio-dia. Na companhia de uma
mulher que, não bastasse ser uma simples
garçonete, ainda era retirante nordestina.
E que para piorar tinha um filho a tiracolo.
Mas era tão linda...
Bem verdade que não era só o
high life
carioca que Álvaro freqüentava. Ele não
teria conseguido se tornar um advogado
de tanto prestígio sem as tramóias, as fal-
catruas, as maracutaias que o ajudaram a
subir na vida. À custa de muita chantagem,
suborno, extorsão e tráfico de influências,
Álvaro mantinha muita gente boa na pal-
ma da sua mão. Por isso todos o recebiam
tão bem e faziam tanta questão se serem,
ou parecerem ser seus amigos. E para ser
tratado a pão-de-ló pelos poderosos, Álva-
ro contava com a colaboração do lado b da
sociedade: malandros, escroques, prostitu-
A alta sociedade.
Estilo de vida
caro, glamoroso
ou elegante.
49
tas, falsários, agiotas. Para o serviço pesado
– ameaças, surras, depredações ou execu-
ções – ele contava com o monumental Jor-
jão, um armário estivador e capoeirista que
ele havia tirado do presídio da Ilha Grande.
Álvaro tinha muito orgulho de sua vida du-
pla, à qual ele devia seu sucesso e sua ver-
satilidade. Adorava poder comer caviar no
Iate Clube na companhia de empresários e
tomar um café pingado num botequim com
anotadores de jogo do bicho com a mesma
naturalidade.
Bem verdade também que Álvaro não co-
nhecia apenas os tapetes vermelhos e as en-
tradas sociais da vida; já tinha usado muita
porta de serviço, já tinha passado horas sem
fim restrito a cozinhas e lavanderias. Pois o
sofisticado doutor Álvaro era filho de uma
empregada doméstica portuguesa e analfa-
beta. Aos dezessete anos, Amália tinha visto
o marido partir num navio de carga atrás de
uma vida boa no Brasil. Dois anos depois,
tinha recebido um envelope com o dinheiro
da passagem de ida. Por mais de quarenta
dias, tinha enjoado em alto-mar, e jurado
nunca mais cruzar de novo aquele oceano
onde tinha despejado suas tripas. Já do ou-
50
tro lado, tinha conseguido que alguém lesse
o papel com o endereço do cortiço onde o
marido morava. E tinha chegado lá só para
saber que era tarde demais: o homem por
quem ela havia chorado diariamente por
dois anos, nove meses e vinte e um dias ti-
nha morrido de sífilis três dias antes. Graças
a uma mulher da vida que morava no cortiço
e se apiedou de sua história, Amália empre-
gou-se de faxineira na casa de um figurão
dono de jornal que era cliente dela. Embar-
rigou dele, foi expulsa da casa do figurão e
voltou para o cortiço. Nascido Álvaro, Amá-
lia voltou a trabalhar em casa de família e,
sem ter quem cuidasse do bebê, era obri-
gada a carregar o filho para o serviço. Mas
Amália era só ignorante, não burra. Passa-
dos sete anos, ao constatar que Álvaro era
a cara cuspida e escarrada do pai, Amália
ameaçou o figurão com um escândalo caso
ele não ajudasse no sustento do menino. O
figurão, que tinha muitos inimigos políti-
cos e dependia do dinheiro da esposa para
tudo, curvou-se à chantagem. E foi assim
que, quando ainda usava calças curtas, Ál-
varo aprendeu com aquela portuguesa anal-
fabeta que o tinha parido a lição que usaria
51
pelo resto de sua vida. E começou a ter tudo
do bom e do melhor. Em poucas palavras:
origem humilde por origem humilde, Álvaro
reconhecia que também tinha.
Mas daí a assumir compromisso com
Madalena... Era verdade que ela não pare-
cia uma nordestina morta de fome. Muito
pelo contrário. Com aquela pele de már-
more, aquele rosto quadrado, aquele porte
altivo, aqueles cabelos louríssimos e aque-
les irresistíveis olhos azuis, ela estava mais
para estrela de Hollywood; não devia nada
a
Katharine Hepburn nem a Ava Gardner.
Não era à toa que o Fritz, seu cliente ale-
mão, a tinha contratado para trabalhar no
restaurante dele. O finório só empregava
mulheres para servir as mesas, e não bas-
tava elas serem lindas: tinham que ter uma
cara bem alemã, para dar credibilidade ao
seu cardápio mais ou menos alemão. Quem
diria que seu estabelecimento, tão popular
entre artistas e jornalistas, seria apedreja-
do só porque os alemães saíram da Segun-
da Guerra como vilões... Por sorte, Álvaro
tinha ido ao Fritz antes do quebra-quebra,
e foi Madalena quem lhe serviu o famoso
chope escuro da casa.
Katharine
Hepburn
(1907-2003) e
Ava Gardner
(1922-1990),
grandes estrelas
do cinema norte-
americano.
52
Álvaro olhava Madalena e Chiquinho
muito concentrados na construção de um
castelo de areia, e começou ele mesmo a
construir seus castelos. Sim, ela fazia uma
bela figura. Faltava-lhe apenas um ver-
niz – roupa boa, modos à mesa, traquejo
social. Isso, Álvaro podia lhe dar. “E nada
melhor do que uma mulher grata”, pensa-
va. O Fritz tinha fechado; desempregada,
Madalena perderia seu orgulho, e aceitaria
que ele lhe arrumasse um bom emprego.
Por sorte ela era professora formada, não
seria difícil para ele mexer seus pauzinhos
e lhe arrumar uma vaga numa escola do es-
tado. Quanto ao casamento dela, ele podia
arrumar a separação, mesmo à revelia do
tal Manuel. E ela não podia continuar mo-
rando naquela pensão na Saúde. Quando
ela tiver um emprego público, será fácil, fá-
cil lhe arranjar um financiamento para uma
casa própria. “Quem sabe um cantinho no
subúrbio, com varanda e jardim, um belo
ninho de amor...”
O castelo de areia de Madalena e Chi-
quinho desabou e eles se acabavam de rir.
Álvaro listava mentalmente os contatos que
iria acionar: um superintendente do insti-
53
tuto de habitação, um juiz de Salvador, um
alto funcionário do Ministério da Educação,
todos lhe deviam favores. Saboreando seu
próprio poder, viu Chiquinho, só de cuecas,
correr para o mar. Álvaro olhava o garoto
jogar água para o alto, numa explosão de
alegria que ele ainda não tinha visto naque-
le menino acanhado e arredio. Gostava dele.
Gostaria de ser o pai de Chiquinho. Por um
momento, pensou no que a ciumenta Amá-
lia diria quando soubesse disso. Mas no
momento seguinte, Álvaro não pôde mais
pensar na mãe: Madalena estava só de com-
binação. E estava indo para a água. E en-
trou no mar. E mergulhou. E mergulhou de
novo. E pegou Chiquinho. E o jogou para o
alto, como o menino tinha feito com a água.
E estava vindo para ele, com a combinação
encharcada, transparente e colada ao corpo,
puxando o filho pelo braço, correndo e rin-
do toda marota, como criança que acabou
de fazer travessura. E admirando o milagre
que era aquela sereia do sertão, Álvaro se
convenceu de que afinal não seria um sacri-
fício assumir compromisso com Madalena.
Convencer Amália não era tão fácil. Por-
que o mesmo doutor Álvaro que mandava
54
e desmandava na polícia e no malandro,
na lei e na contravenção, nos famosos e no
submundo da capital da República, da por-
ta para dentro daquele sobrado onde mora-
va com a mãe no Cosme Velho era apenas
Alvinho, o filho de dona Amália. Ela é que
o tinha na palma da sua mão: aos trinta e
nove anos de idade, Álvaro só saía de casa
vestido com as roupas que ela escolhia. E só
por causa dela ele não tinha seguido a car-
reira de diplomata: “Diplomatas trabalham
noutros países, ó pá! E daqui não saio, que
não sou louca de despejar as tripas nova-
mente. E se tu me deixas, mato-me!” Álvaro
acreditava na mãe; já a vira envenenar-se
com raticida por causa de uma
crooner que
o perseguia dizendo-se grávida dele (uma
inconveniente, só Jorjão resolveu o caso).
Por isso, Álvaro tratou de preparar bem
Amália antes de lhe apresentar Madalena
e Chiquinho.
– Então queres casar com uma mulher
usada, ó Alvinho? E já com filho de outro?
– Mas mamã... A senhora também foi
uma mulher sozinha com filho pra criar.
Deve saber melhor do que ninguém como
isso é difícil.
Cantor de música
popular que canta
com orquestra
ou conjunto
instrumental.
55
– Ora se sei! E nem por ser difícil saí ati-
rando-me nos braços dos gajos solteiros!
Essa sirigaita tem que saber qual é o seu lu-
gar! E é bem longe do meu filho, pois!
– Dê uma chance a Madalena, mamã. Só
uma. Garanto que se a senhora passar uma
hora com ela, vai se encantar como eu me
encantei. E o Chiquinho é tão...
– Uma hora? – interrompeu ela.
– Uma hora – animou-se ele. – Um almo-
ço, um jantar, o que a senhora quiser!
– Pois... Uma hora basta-me.
– Tenho certeza que sim! – mal podia
acreditar que tinha sido tão fácil.
– Mas sabes que não como comida da
rua – disse, com uma cara que Álvaro ten-
tou, mas não conseguiu decifrar. – Se queres
que eu coma com essa gaja, traga ela cá.
– Obrigado, mamã – beijou a mão de
Amália. – A senhora não vai se arrepender.
– Nunca arrependo-me do que faço. Ar-
rependo-me do que não faço.
Na hora, de tão feliz com a transigência
da mãe, Álvaro não prestou atenção nessa
observação. Foi prestar dois dias depois.
Madalena e Chiquinho passaram exatos
trinta e três minutos na casa de Álvaro, o
56
tempo que levaram para chegar, dizer seus
nomes, sentar-se à mesa em silêncio, comer
o ralo caldo verde sem paio e quase sem ba-
tatas que Amália serviu sem pão e sem vi-
nho, ser informados de que ela estava com
uma dor de cabeça terrível, despedir-se e
sair. E não chegaram em casa naquela noi-
te; no carro mesmo, Madalena e Chiquinho
começaram a se contorcer de dor. Álvaro os
levou ao hospital, onde fizeram uma lava-
gem estomacal para tirar todo o veneno de
rato que tinham ingerido. “Agora ela não é
mais burra de se auto-imolar”, pensava Ál-
varo, sozinho ao volante, na volta. Quando
entrou em casa, Amália se fartava com uma
bacalhoada regada a vinho tinto:
– E não traga mais raparigas para a mi-
nha casa.
Diante de Amália, Álvaro ainda era aque-
le garotinho que, condenado a ajudá-la no
tanque, na pia ou no esfregão, ouvia sempre
a mesma sentença: “Tu só tens a mim. E eu só
tenho a ti”. Ele podia derrubar um presiden-
te. Mas não podia enfrentar dona Amália.
E não enfrentou. Mas também não ficou
sem Madalena: conseguiu para ela o em-
prego de professora numa escola normal, o
57
financiamento para a casa própria e o di-
vórcio de Manuel. E lhe propôs casamento.
Escondido.
– Escondido, Álvaro? E tem cabimento
uma coisa dessa? Você é homem feito! – re-
clamou Madalena, obviamente desapontada.
– E ela é uma mulher velha e sozinha,
Madá. Tenha compaixão. Ela só tem a mim.
– Você vai entrar aqui de noite e sair de
dia, é? – riu. – Essas mexeriqueiras da rua
é que vão se fartar! Vão sair dizendo por aí
que eu sou teúda e manteúda, isso sim!
– E você se importa?
– Nadinha. Agora posso dizer: ninguém
paga minha comida! Não preciso dessas ja-
neleiras pra nada. Cada um que cuide da
sua vida, que eu cuido da minha.
– Melhor assim. Vamos cuidar da nossa
vida, e o mundo lá fora que se dane.
– Só tem uma coisa que eu quero: mai-
nha. Depois que enviuvou, tá rolando da
casa de Tuninho pra casa de Juquinha, sen-
do destratada pelas noras... Morro de pena.
E de saudade. Vou mandar buscar ela pra
morar comigo.
– Manda, ué! – alegre com a simplicidade
do pedido, beijou-a. – A casa é sua!
58
E assim o poderoso doutor Manuel con-
tinuou a ser o Alvinho da porta para dentro
do sobrado do Cosme Velho. E dona Amá-
lia continuou a pensar, satisfeita, que ele
estava cada noite com uma mulher, porque
quem tem todas não tem nenhuma. Mas
nenhum dos dois nunca soube se era Amá-
lia que tinha a Álvaro, ou se era Álvaro que
tinha a Amália.
59
Domício
Rio de Janeiro, 1958
Olhou o relógio: exatos três minutos de-
pois da última vez que tinha olhado. “Uma e
cinqüenta e oito. Melhor ir logo. O que tiver
que ser, será”, suspirou. Mas falar era mais
fácil do que fazer. Para ganhar tempo, arru-
mou pela centésima vez naquele dia a mesa
de trabalho; alisou a capa da máquina de
escrever, verificou se todos os carimbos es-
tavam arrumados na ordem de uso, dispôs
o telefone numa linha rigorosamente para-
lela à bandeja de entrada e saída, empur-
rou o bloco de papel carbono dois milíme-
tros para a esquerda, verificou na bochecha
se todos os lápis estavam suficientemente
apontados, soprou uma audaciosa partícula
de poeira que tinha se instalado no porta-
retrato, bem no nariz de Hilária. Tudo certo.
Como se ele não soubesse.
Domício era o único funcionário da re-
partição que não só mantinha o próprio
trabalho escrupulosamente em dia, como
desafogava a mesa dos colegas e, se neces-
60
sário fosse, e sempre era, levava carradas
de processos para casa para agilizar os trâ-
mites à noite e nos finais de semana. Tudo
para zelar pela reputação do instituto de
previdência. Nada o magoava mais do que
ouvir dizerem que o serviço público não
funcionava. Tomava para si a ofensa. Afi-
nal, Domício tinha a honra de ser funcioná-
rio público. Sentia-se parte da engrenagem
que colocava o país em movimento. Mesmo
que ele fosse apenas uma arruela, achava
sinceramente que era uma peça daquela
máquina que avançaria
cinqüenta anos em
cinco
. Levava a sério seu serviço. Era um
espécime em extinção. Era um coitado.
Domício ouvia horrores. Para os colegas,
era motivo de chacota; era muito esforçado,
mas justamente por isso não seria promo-
vido nunca: era eficiente demais para virar
chefete. Para a mulher, era um idiota; só um
completo imbecil dedicaria a vida àqueles
papéis com os quais ninguém se importa-
va: “Imagina se alguém liga pra esses mor-
tos de fome pedindo esmola pro governo”,
resmungava Hilária. Para os três filhos, era
um mau exemplo: “Trabalha tanto que não
tem tempo de ganhar dinheiro”, desdenha-
Frase
que marcou
o mandato
de Juscelino
Kubitscheck,
Presidente da
República de
1956 a 1961. Foi o
responsável pela
construção de
Brasília.
61
va o mais velho, que nem tinha completado
dez anos e já achava que sabia tudo da vida.
Para os amigos, bem... Domício não tinha
amigos. E não por falta de simpatia, mas
por falta de assunto: só sabia trabalhar. Não
levava jeito para fazer algo que não fosse
sua obrigação.
Mas Domício não dava ouvidos aos cole-
gas, nem à mulher, nem aos filhos. Por nada
nesse mundo deixaria de dedicar-se de cor-
po e alma ao serviço. Seu corpo seco e sua
alma vazia; e mais dedicaria, se mais tives-
se. Graças ao instituto ele tinha conseguido
muito mais do que poderia ter sonhado nos
canaviais de Jacuípe: Hilária, uma casa só
sua, um emprego longe do cabo da enxada.
E se tudo isso ele devia ao instituto, o insti-
tuto em si ele devia ao doutor Álvaro. E aí
começavam todos os seus problemas que,
se Deus quisesse, e Ele havia de querer, aca-
bariam aquela tarde, de uma forma ou de
outra, às três, no fórum.
Olhou de novo o relógio: duas e um.
“Agora eu vou, senão me atraso. Dá pra ir
a pé, mas é um estirão”. Não foi. Passou na
copa do terceiro andar. Serviu-se daquela
água suja que só chamavam de café porque
62
era isso que estava escrito no esparadrapo
grudado na garrafa térmica, colocou umas
formigas com açúcar na xícara encardida
e ficou olhando para os azulejos rachados.
Onde estaria àquela hora, se não fosse o
doutor Álvaro? “Cortando cana. Debaixo
de chuva e sol. Sem Hilária. Morando num
alojamento de peão daqueles caindo de po-
dre, à mercê do mão-de-vaca do Tuninho ou
do maria-vai-com-as-outras do Juquinha”.
Duas e doze, gritava o relógio. Respirou
fundo, pegou o paletó dos casamentos e en-
terros e encarou os fatos: “Tenho que ir”.
Caminhava pelas ruas do Centro rumo
ao fórum como se não fosse ele dentro de
seus sapatos; desviava de buracos, carros,
camelôs e pedestres sem olhar. Domício não
queria ser ele naquele dia. Porque, como ele
sabia muito bem, antes do doutor Álvaro ti-
nha a Madalena. Pior: sem Madalena, não
haveria doutor Álvaro. E isso só dificultava
as coisas.
Domício lembrava como se fosse ontem,
e não há treze anos. Dona Rubina, sua ma-
drinha, ainda de luto fechado, mandou cha-
mar ele e a mãe: “Madá escreveu. Tá bem de
vida. Casou com um homem bom que acei-
63
tou Chiquinho. Trabalha de professora, tem
até casa própria. Quer que eu vá pra lá. Mas
só, não vou. Tenho um medo que me pélo
de viajar de marinete, são quatro dias de es-
trada. Venha comigo, Zefinha. Traga Dodô
e vamos em três. Quer?” Nem precisou per-
guntar duas vezes. Sua mãe era novidadeira
que só ela, e que novidade que era ir morar
no Rio de Janeiro, para quem não conhecia
nem Salvador! E Domício não perdeu tem-
po: pediu a bênção à dinda e correu para a
casa de Hilária.
O que tinha de formosa, tinha de orgu-
lhosa. Hilária era só da roça para casa, de
casa para a roça; não ralava cotovelo em
janela, não gastava conversa em porta de
venda, nem se dava ao desfrute em festa de
santo. Domício gostava daquele jeito fecha-
do dela, daqueles modos de quem engoliu
uma vassoura, com o pescoço duro e as
costas retas mesmo quando capinava. Gos-
tava também do seu olhar, sempre de cima
para baixo. “Coisa de gente digna, que não
se mistura”, insistia ele. Até do fato dela não
lhe dar nenhuma atenção Domício conse-
guia gostar: “É moça séria, a Hilária”. E era
isso que importava.
64
Pois foi exatamente naquele dia em que
a carta de Madalena chegou que Domício
conseguiu a atenção da formosa orgulhosa.
Pediu licença, bateu o barro dos pés na so-
leira da porta, deu boas-tardes para o pai
da moça, virou-se para Hilária e disse, sem
mais preâmbulos: “Tenho intenção de casar
consigo. Vou arrumar um trabalho digno de
você e mando te buscar. Vamos morar no
Rio de Janeiro”. Quando o nome da capi-
tal vibrou no ar, Hilária arregalou os olhos
para ele, pela primeira e última vez na vida:
“Veremos”. E viu. Domício mostrou para ela
o seu valor. Por causa de Madalena. Ou do
doutor Álvaro?
Sim, porque ir morar na capital federal
tinha sido só o primeiro passo para chegar
ao coração de Hilária. A vida de Zefinha,
Madalena resolveu fácil: a pegou para em-
pregada; afinal, a mãe de Domício, que já
era cria da casa, tinha servido àquela famí-
lia praticamente desde o nascimento. Foi o
doutor Álvaro quem arrumou para Domício
a nomeação para o instituto de previdência
e o financiamento para a sua casa própria.
E foram esse emprego e essa casa que lhe
deram moral para mandar a passagem para
65
Hilária. E de semi-leito, para ela ver bem
que ele estava podendo.
Sentado no banco de madeira do cor-
redor longo e escuro do fórum, Domício
olhava para os calçados velhos, mas impe-
cavelmente engraxados; seus pés, que só
viram sapato no Rio, ainda reclamavam da
prisão de couro barato. Ele não queria estar
ali. “Como vou escolher entre Madalena e
doutor Álvaro?” O tormento tinha começa-
do duas semanas antes, quando Madalena
telefonou para a repartição pedindo que
ele testemunhasse no processo da separa-
ção dela: “Diga a verdade”, pediu. Parecia
fácil; Domício tinha crescido com Madale-
na, sabia que era mulher de juízo, direita. Se
estava se separando pela segunda vez era
por uma fatalidade. Mas o doutor Álvaro
também telefonou: “Veja bem, Domício: eu
te dei tudo o que você tem, não dei? Então!
É só dizer isso: que eu sou um homem ge-
neroso. E de bom coração. Incapaz de fazer
mal a uma mosca”.
Domício ouviu passos no corredor. Era
Chiquinho. Olhando assim, na penumbra,
de terno, parecia um homem já:
– Oi, Dodô – estendeu-lhe a mão.
66
– Oi, Chiquinho – fez as contas. – Tá com
dezessete anos, né?
– Dezoito.
– Dezoito. Rapaz, como passa o tempo...
– procurava o que dizer, olhando para os sa-
patos. – Tudo bem?
– Não, né, Dodô? Se tivesse tudo bem, a
gente não estaria aqui.
– É verdade – ele tinha que fazer essa
pergunta boba. – Difícil acreditar... Os dois
sempre se deram tão bem...
– No passado, né, Dodô? Num passado
bem distante – e o encarou. – Você sabe o
que o desgraçado do Álvaro fez anteontem?
Mandou o Jorjão lá em casa!
– Não! – Domício conhecia o Jorjão só de
fama, e achava melhor assim; não gostaria
de encontrar com ele. – No Lins?
– Em Muriqui! Tacou fogo na casa! Ain-
da saía fumaça quando a gente chegou lá
pro fim de semana. Casa, quintal, tudo vi-
rou cinza! Não sobrou nada! Mainha quase
morreu quando viu a criação. Galinha, pato,
codorna... E a Diana! Até a cadela que ele
deu pra ela tava lá, dura, preta... Judiação!
O desgraçado sabe como a mainha gosta
daquela casa! Ela só fica feliz com o pé na
67
terra, mexendo com bicho... Ele sabia que
ia doer!
– Tem certeza que foi o Jorjão? Pode ter
sido um acidente. Sei lá, uma fatalidade...
– Fatalidade aonde, Dodô? A lambreta
que o Álvaro tinha me dado, lembra dela?
Eu deixava ela em Muriqui porque ainda
não tenho carteira, sabe qual é?
– Sei.
– Pois ela não tava lá, dentro da casa,
onde sempre ficava! Reviramos tudo, e não
vimos sinal. O infeliz pegou ela pra deixar
bem claro: fui eu que mandei fazer!
– Sei não, Chiquinho... Pode ter sido um
ladrão qualquer.
– Ladrão, nada! Que ladrão ia tacar fogo
em móvel, comida, roupa, rádio, geladeira?
Tudo queimado! Ele só levou a lambreta – e
sua voz se embargou. – E sabe por quê?
– Por que?
– Porque quando ele me deu a lambre-
ta, eu disse pra ele: é a coisa mais valiosa
que eu tenho. E sabe o que ele fez com ela
depois? Largou no portão da casa do Lins!
Quando voltamos de Muriqui ela tava joga-
da lá, toda amassada a golpe de marreta,
pneu rasgado, banco destroçado... Alguma
68
dúvida de que foi o Álvaro que mandou aca-
bar com tudo?
– Puxa, Chiquinho... Não sei o que te
dizer.
– Não diz nada pra mim, não, Dodô. Diz
pro juiz – e, como se de repente tivesse tido
um pensamento ruim. – Você veio pra de-
fender mainha, não foi?
– Claro, Chiquinho – as coisas ficavam
mais difíceis a cada momento. – Claro.
– Desculpa, mas tenho que perguntar. O
Álvaro compra todo mundo... Sei lá se você
tá aqui pra defender ele.
– Tô aqui pra dizer a verdade.
Um homem apareceu na porta do cor-
redor e chamou Domício. Tinha chegado
a hora. Chiquinho levantou-se e apertou a
mão dele:
– Obrigado, Dodô.
Domício entrou para depôr. Não, ele não
queria mesmo estar ali. Mas estava.
O tempo fez o seu papel: passou. E aque-
la tarde, para alívio de Domício, acabou. E
com ela, a audiência.
Chacoalhando no trem lotado, abraçado
a uma tonelada de processos, na volta para
casa, Domício ainda pensava no que tinha
69
dito. Fez o que achou que tinha que fazer,
sim senhor. Era um homem correto, traba-
lhador, cumpridor de seus deveres. E, aci-
ma de tudo, justo. Sabia reconhecer as ver-
dadeiras amizades. Sabia dar valor a quem
lhe tinha estendido a mão. E foi na casa de
Madalena que ele nasceu, assim como sua
mãe tinha nascido.
E morrido.
Zefinha morreu na capital, sim. Mas tísi-
ca, e no quarto de empregada. Domício cres-
ceu com Madalena, sim. Mas da cozinha não
passava. Usava roupa que Tuninho botava
fora. Comia o rejeito de Juquinha. Sapato, só
foi ter aos vinte anos. Seus filhos, não. Eles
tinham a casa deles. E roupa nova. E estudo.
Graças a Deus. E ao doutor Álvaro.
70
71
Dulce
Rio de Janeiro, 1966
Aquilo não podia estar acontecendo
com ela. Com ela, não. Dulce olhou mais uma
vez para o exame: positivo. “Isso não tá acon-
tecendo”, teimava. “Trocaram meu exame”.
Depois da mais longa e escura de todas
as noites, Dulce pegou o dinheiro da feira
e refez o exame em outro laboratório, tam-
bém bem longe de casa, usando desta vez
a aliança no anular esquerdo para evitar o
olhar indiscreto da atendente:
– Estado civil?
– Casada.
Trancada no banheiro do laboratório
com o envelope do segundo exame na mão,
Dulce já não queria mais ler o que estava
escrito. Mas tinha chegado até ali. Criou co-
ragem e leu: positivo.
– Tem uma criança dentro de mim... –
disse para o espelho, olhando pela primeira
vez sua cara de mãe.
Não adiantava mais se enganar. Se é que
algum dia se enganou. Porque seu coração
72
não havia precisado de exame nenhum para
ter certeza; já batia mais forte desde o primei-
ro atraso, conhecia por dentro aquele corpo.
“Tenho que contar pro Francisco”, pen-
sou. Eram seis anos de namoro. E quase
dois meses de noivado, desde o carnaval.
Aquele carnaval que era para ser o mais lin-
do de sua vida. Uma semana antes do sá-
bado da folia, Francisco a pediu em casa-
mento para Maria, irmã um ano mais velha
que Dulce, que respondia pela mãe delas.
E escolheu essa data por uma razão muito
prática: na condição de noivo, Francisco
podia levar Dulce para passar o reinado de
Momo em Rio das Ostras, na casa de praia
que dona Madalena estava construindo. A
casa ainda não estava terminada, não tinha
luz nem água encanada. Mas Dulce até que
achou essa precariedade muito romântica,
e se animou toda com o convite – apesar de
Francisco ter garantido para Maria que a
mãe dele ia junto.
Mas dona Madalena não foi. Pela pri-
meira vez, Dulce e Francisco estavam sozi-
nhos com quatro paredes em torno deles e
a quatro horas do Rio de Janeiro. Depois de
anos e anos de bolinações e contorcionis-
73
mos na escada do prédio dela, nas corridas
de submarino nas praias desertas e na últi-
ma fila do cinema nas tardes de segunda-
feira, Francisco finalmente exigiu a famosa
prova de amor. Dulce, muito mais do que
ser jovem na era do rock’n roll, da minissaia
e da pílula, era católica praticante, nascida e
criada em Cururupu: queria porque queria
casar virgem. Ou, pelo menos, tecnicamen-
te virgem. Mas Francisco lançou o golpe de
misericórdia na resistência de Dulce:
– Mas você vai casar comigo mesmo! Já
estamos até noivos! Pra que esperar?
Não esperaram. Era para ser tudo lindo:
uma cesta com pão, queijo e vinho tinto,
muitas velas acesas em pratos de ágata, um
colchão de casal comprado entre risinhos
num bazar de caridade da cidade mais pró-
xima, a chuva de verão tamborilando no
improvisado telhado de zinco. Porém, para
infelicidade de Dulce, Francisco também
não era tão moderno assim: queria porque
queria ter a prova da honra dela e da faça-
nha dele – a mancha de sangue no colchão.
Mas não havia sangue nenhum.
Francisco explodiu de ódio. Berrava,
xingava, exigia explicações. Dulce, conster-
74
nada, não tinha o que explicar. Sabia apenas
que nunca tinha tido relações com ninguém,
que ninguém antes dele havia sequer posto
a mão no seu traseiro, quanto mais!
– Você é uma arrombada! Uma desgra-
çada de uma arrombada! Bem que eu des-
confiei! Cheia de conversinha de pecado e
não sei o que mais, mas nunca negou uma
safadeza! Deve dar mais que chuchu na ser-
ra! E eu aqui de otário, bancando o noivo!
Verdade; Dulce nunca lhe negou nada.
Achava que amar era nunca dizer não. Nua,
jogada naquele colchão de palha com man-
chas de tudo, menos de seu sangue, desam-
parada naquele quase-casebre cercado de
nada, Dulce ouvia aqueles insultos sem ter
como rebater.
– Vai ficar aí calada, olhando pra minha
cara? Não vai dizer nada? Não vai inventar
mais mentiras, nem pra se defender? É uma
descarada, mesmo! Quem cala, consente!
Francisco enfiou as calças e saiu na escu-
ridão, no meio da chuva. Dulce ficou no col-
chão, assustada demais até para chorar. As
velas já tinham se acabado há muito quando
ela conseguiu dormir. Quando amanheceu,
viu Francisco dormindo no banco de trás do
75
carro de dona Madalena, o mesmo banco
onde tantas e tantas vezes... Bateu no vidro.
– Vambora – rosnou ele. – Meu carnaval
acabou.
Ficaram sem se falar uma semana. Aí
Francisco voltou. Mas voltou para brigar:
– Já que você é arrombada mesmo, não
preciso mais ter cuidado contigo. Quero
mais! E não vou ficar só na esfregação, não!
De hoje em diante, eu quero é tudo! Se qui-
ser ficar comigo, agora é assim!
Apesar de humilhada, injustiçada, usa-
da, Dulce continuou não negando nada
a Francisco. Achava que o amor que sen-
tia por ele justificava qualquer ato, curava
qualquer ferida. Aos poucos ele foi perden-
do a brutalidade; voltou a ser só rude, como
sempre havia sido. Dulce soube depois que
existia uma coisa chamada hímen compla-
cente, mas, quando foi falar sobre isso com
Francisco, ele nem quis ouvir:
– Tá se defendendo agora pra quê? Ago-
ra é tarde! Arrombou, tá arrombado!
E naquele pé estavam quando sua regra
atrasou. “Tenho que contar pro Francisco”.
Mas não contou: só mostrou para ele os
exames, depois de embaçarem os vidros do
76
carro de dona Madalena na lonjura do Gru-
mari. Dulce estava preparada para tudo, até
para violência física. Achou mesmo que ele
podia jogá-la para fora do carro e abando-
ná-la naquele breu. Já esperava qualquer
coisa de Francisco. Menos o que ouviu:
– Vamos falar com mainha.
Simples assim. Depois de lhe cuspir na
cara todo tipo de injúria e acusação, depois
de passar semanas abusando dela sexual-
mente, depois de martirizá-la com todo o
seu desprezo, Francisco simplesmente pe-
gou o papel higiênico no porta-luvas:
– Se limpa aí.
E Dulce se limpou. “Então, na verdade,
ele nunca duvidou de mim”, concluiu ela,
quase feliz. E nem pensou na conseqüên-
cia imediata dessa conclusão: se Francisco
nunca havia duvidado dela, a tinha suplicia-
do por quê?
– Vamos resolver isso agora – arrema-
tou, girando a chave. – Não quero que nin-
guém diga que não assumi a minha res-
ponsabilidade.
Enquanto Francisco guiava compene-
trado pela estrada ruim, Dulce ia sacole-
jando e pensando no que estava prestes a
77
acontecer. Pensava na mãe doente, naquele
entra-e-sai de hospital psiquiátrico, ora do-
pada com tranqüilizante, ora fora do ar por
causa dos choques, ora tentando se jogar
pela janela. Dos irmãos, só Dulce e Maria
eram solteiras; no Rio só tinha outra irmã
casada e com filho pequeno, o resto estava
tudo espalhado Brasil afora. Como Dulce
podia largar a mãe nas costas da irmã? Não
era justo. Maria era noiva há um ano, esta-
va montando apartamento, juntando enxo-
val, segurando lugar na fila da igreja para
casar-se no mês de maio, fazendo tudo nos
conformes, enfim. E, apesar de nunca ter
destratado Francisco, Maria tampouco gos-
tava desse namoro; sempre que podia, tra-
zia à tona esse assunto: “Cuidado com esse
Francisco. É filho de mulher separada. Não
tem emprego e fica enrolando em cursinho
pré-vestibular. Não namora em casa como
se deve, não quer conhecer os manos, sabe
que paizinho é morto, sabe que mãezinha é
doente... Abre o olho!” Dulce já imaginava
o que Maria iria dizer quando soubesse de
sua gravidez.
– Só uma coisa – disse Francisco, sem
tirar os olhos da estrada. – Isso fica entre
78
nós. Entre nós e a mainha. Teus irmãos não
precisam saber de nada. Nem Maria. Não
quero ninguém falando na minha orelha.
Vamos resolver esse problema sem eles.
Entendeu?
– Entendi.
“Esse problema” ecoou dentro da cabeça
de Dulce. Aquela criança que crescia dentro
dela agora era um problema. Um problema
só deles. E de dona Madalena. Teve um ca-
lafrio ao pensar em dona Madalena.
Dulce nunca tinha tido problemas com
ninguém. Entre os nove irmãos, era famosa
por ser a mais cordata. Para os pais, tinha
sido a mais obediente dos dez filhos. Se al-
gum dia foi atingida pela inevitável maledi-
cência que grassa no seio das grandes famí-
lias, foi justo por ser cordata e obediente em
demasia: “Aquela ali é uma sonsa”, envene-
navam as tias solteiras ou com maus filhos.
De forma que Dulce atravessou a infância
e a adolescência sem saber o que era um
bate-boca, uma mal-criação, uma cara feia,
um cospe-aqui-se-tem-coragem. A primei-
ra pessoa que gritou com ela neste mundo
foi Francisco. E a primeira pessoa que lhe
foi hostil nesta vida foi dona Madalena.
79
Não é que Dulce se desse mal com dona
Madalena. Apenas não se dava bem, como
sempre sonhou que se daria com a mulher
que tinha parido o seu amado. É que dona
Madalena tinha outros planos para o filho, e
deixou isso bem claro logo na primeira vez
em que viu Dulce. Foi quando Francisco a
levou para almoçar com a mãe, que estava
de aniversário. Na época, Dulce ainda pesa-
va menos de quarenta quilos pela depressão
que havia sofrido com a morte repentina do
pai, ocorrida dois anos antes do namoro co-
meçar. Mas dona Madalena também tinha
sua convidada para esse almoço: uma alu-
na da escola normal que ela estava empur-
rando para os braços de Francisco – e que
Dulce nunca soube se ela convidou antes
ou depois de saber que o filho ia acompa-
nhado. Ao dar com seus olhos azuis con-
gelantes em Dulce, dona Madalena olhou-a
de cima a baixo e virou-se para Francisco:
“Ela é doente?” Almoçaram a quatro, com
dona Madalena e a tal da candidata a nora
conversando e rindo e ignorando Dulce os-
tensivamente, e Francisco todo cheio, no
centro das atenções. Mesmo passados seis
anos, aquelas palavras ainda ecoavam den-
80
tro da sua cabeça sempre que ela encontra-
va dona Madalena: “Ela é doente?”
E era para essa pessoa que Dulce estava
indo agora contar o seu “problema”.
Chegaram à casa do Lins; era uma rua
larga e pavimentada, mas escura e que termi-
nava no morro. Dulce não gostava daquele
lugar. Menos ainda do ar daquela casa. Tão
diferente das casas em que viveu, nos tem-
pos de paizinho vivo e mãezinha sã. Nenhu-
ma delas era própria, mas todas eram vivas.
Havia risos, ou música, ou beijos, ou cheiro
de bolo. Ali, não havia nem luz acesa.
Dona Madalena apareceu na varanda
assim que o portão foi batido:
– Chiquinho? Chegou cedo – acendeu a
luz da sala e encarou os dois. – Algum pro-
blema?
– Mais ou menos, mainha – e ele olhou
para Dulce. – Espera aqui na sala. Eu falo
com ela.
– Tá – o que mais podia responder?
– Falar o quê? – alarmou-se dona Mada-
lena.
Dentro da cabeça de Dulce ressoava:
“Ela é doente? Ela é doente? Ela é doente?”
– Vamos lá dentro, mainha.
81
Francisco e dona Madalena sumiram na
penumbra do corredor. Dulce apurou os
ouvidos, captou um zum-zum-zum, mas não
conseguiu entender o que falavam sobre
o seu “problema”. Sentou-se na ponta do
sofá. Sentiu o esperma seco de Francisco,
mal limpo no aperto do carro, repuxar os
pêlos lá embaixo. Passos. Francisco e dona
Madalena voltaram. Na cabeça de Dulce
voltou o eco: “Ela é doente? Ela é doente?
Ela é doente?”
– Tá tudo certo, Dulce. A gente casa e
vem morar aqui.
Dulce abriu a boca, mas perdeu as pala-
vras. Dona Madalena lhe estendeu a mão:
– Passo a pasta – sentenciou, sem nenhu-
ma expressão em seus olhos de
iceberg.
E Dulce ficou sem saber se essa pasta era
um prêmio ou um castigo.
Grande bloco de
gelo fl utuante.
82
Cláudia
Rio das Ostras, 1975
“E agora a famosa escritora Cláudia
Costa ia viajar para São Paulo para lançar
mais um de seus maravilhosos livros e dar
mais um monte de entrevistas. E agora ve-
mos imagens da escritora dando autógra-
fos para uma multidão de fãs, e apertando
a mão do presidente da República, e dan-
do a volta ao mundo, e...” E um cutucão no
ombro direito fez Cláudia despertar. Estava
com a cara enfiada pela janela aberta, de
olhos fechados, abrindo a boca para engolir
vento. E pensando. Porque pensar ela po-
dia, e pensando ela podia tudo.
– O Geraldo tá mandando você sentar
direito – ralhou a avó. – Não tá vendo que é
perigoso? Se passa um caminhão, arranca
a tua cabeça!
– Desculpa, Dinda – e se ajeitou na pol-
trona, sem graça.
– Obrigado, dona Madalena – o motoris-
ta sorriu para o espelho retrovisor interno.
Madalena, que já estava perto de se apo-
83
sentar, trabalhava só dois dias na semana.
Ia para Rio das Ostras todas as quartas-fei-
ras de manhã e voltava para o Rio todos os
domingos. Sempre na poltrona dois, aque-
la bem atrás do motorista, “porque se for
bater, ele tenta salvar a pele dele, e salva a
minha também”, garantia ela. Ao contrário
da maioria das pessoas, preferia o corre-
dor; achava a vista melhor daquele ângulo,
de onde enxergava o pára-brisa inteiro. Ela
conhecia pelo nome todos os motoristas da
Macaense, perguntava pelas mulheres e fi-
lhos deles, presenteava frutas e ovos, dava
gorjetas. Mas o seu motorista preferido era
o Geraldo, que sempre fazia vista grossa
quando ela carregava animais vivos no ôni-
bus, coisa terminantemente proibida pelo
regulamento da empresa.
– Se me der aborrecimento, não te trago
nunca mais! – disse a avó.
– Desculpa.
Era a primeira vez que Cláudia e Mada-
lena viajavam juntas, só elas. A menina es-
tava completando nove anos naquela quar-
ta-feira e havia pedido de presente viajar
para Rio das Ostras com a Dinda. A sexta-
feira seguinte era feriado, e a escola ia fa-
84
zer conselho de classe na quarta e na quinta
anteriores – desculpa para
paredinha, todo
mundo sabia. Livre da escola por três dias,
Cláudia não contou tempo: pediu a viagem.
Madalena não pareceu triste nem contente
com o pedido. Dulce é que não gostou:
– Vai passar o aniversário longe da gen-
te, Cláudia?
Como se fizesse diferença... Nunca fa-
ziam coisa nenhuma, muito menos nos
aniversários! O pai não gostava de nada.
A mãe não fazia nada que o pai não fi-
zesse. A Dinda fazia um monte de coisas
legais, mas só fazia sozinha. Zoológico,
foram uma vez; a irmã do meio ficou com
medo quando soube que aquele cachor-
rão na jaula era o lobo, saiu correndo, o
pai brigou, voltou todo mundo para casa.
Circo, foram uma vez; o caçula abriu o
berreiro quando viu os trapezistas voan-
do em cima da cabeça dele, ninguém con-
seguiu calar a boca do garoto, o pai bri-
gou, voltou todo mundo para casa. Par-
que de diversões, foram uma vez; as três
crianças, verdadeiros
arigós de tanto que
só ficavam dentro de casa, morreram de
acanhamento de andar nos brinquedos,
Indivíduo
simplório;
rústico; matuto.
Feriado
prolongado.
85
não quiseram ir em nenhum, o pai brigou,
voltou todo mundo. Para casa, claro.
A única coisa que a família fazia junta
era ir para Rio das Ostras nas férias – e, por
sorte, Francisco era professor e tinha duas
férias por ano, igual às crianças. De Rio das
Ostras, Francisco parecia gostar, pelo menos
ficava mais calmo lá. E com isso toda a famí-
lia também ficava mais calma. Mesmo assim,
se estivessem na praia, no trecho deserto
que freqüentavam, e aparecesse um casal de
namorados, pronto: o pai brigava e voltava
todo mundo para casa. Não podia ver beijo
nem risada, o pai. Achava sem-vergonhice.
– Ela não gosta da gente – palpitou Fran-
cisco. – Agora só anda na frente, destacada,
já reparou? – e fez aquela cara espertinha
que Cláudia detestava.
“Que nem o senhor, né?”, pensou ela.
Quando iam à missa – o pai também não
gostava de missa, mas ia porque a Dinda
mandava – ele andava na frente, a metros
do resto da família, como se não conhe-
cesse ninguém, como se tivesse vergonha
deles. Mas Cláudia não era besta de res-
ponder ao pai. Ainda mais quando estava
fazendo um pedido.
86
E assim ela foi parar naquele ônibus com
a Dinda. Claro que ela estava careca de co-
nhecer Rio das Ostras, mas apostava que,
sozinha com a avó, tudo ia ser bem diferen-
te da vida normal. E a primeira grande di-
ferença aconteceu já na rodoviária: foi ver
como a Dinda era simpática e conversadei-
ra com os outros, como ria o tempo todo.
Porque, em casa, a avó não dava trela
para ninguém – saía, trabalhava, voltava,
viajava, saía de novo. E nem por dormir no
mesmo quarto que ela, nem por ser a neta
mais velha, sua afilhada e metida a madura,
nem por acompanhá-la nas novenas e ajudar
a limpar os santos do oratório, Cláudia des-
frutava de algum privilégio afetivo com Ma-
dalena. Mesmo assim, ela gostava de estar
com a Dinda, de olhar a avó fazer as unhas
dos pés, pintar os cabelos e exercitar-se nas
engenhocas que comprava no comércio po-
pular do Saara. “Vaidade é pecado”, comen-
tava Dulce com as filhas a título de lição de
moral, quando tinha certeza de não ser ouvi-
da pela sogra. E, de fato, Cláudia nunca tinha
visto a mãe fazer nada para ficar bonita.
Cláudia já tinha reparado que, sempre
que queria dar exemplo para as filhas, Dul-
87
88
ce usava a sogra: “bagunceira igual a dona
Madalena”, “rueira igual a dona Madale-
na”, “desligada igual a dona Madalena”,
“egoísta igual a dona Madalena”, “grudada
com bicho igual a dona Madalena”. Cláudia
também já tinha reparado que, sempre que
podia, a Dinda desdizia o que dizia a mãe:
“água do poço sem filtrar é mais gostosa”,
“estudar demais deixa a gente vesgo”, “dor-
mir com cachorro na cama não é porcaria,
bicho é mais limpo que gente”, “amendoim
alimenta mais que arroz com feijão”.
Nessa guerrinha das duas, claro, a mãe
saía perdendo. Além de ser a encarregada
de todos os nãos disciplinadores, Dulce era,
aos olhos de Cláudia, infinitamente menos
interessante que Madalena. Dulce levava
bronca do marido, que nem criança. Ma-
dalena tinha fugido do marido, que nem
heroína de romance. Dulce vestia beges e
marrons, no máximo com estampadinho de
florzinha. Madalena vestia amarelos e fúc-
sias, no mínimo com estampa psicodélica.
Dulce usava a metade de um guarda-roupa
de duas portas que vivia escancarado e só
tinha roupa, mesmo. Madalena enchia um
guarda-roupa inteiro que ocupava toda a
89
parede e ia até o teto, uma cômoda, uma
estante e um baú – este, trancado a chave,
adorável mistério. E todos os móveis dela
eram abarrufados de deliciosos bagulhos.
Sempre que sentia que a Dinda estava dis-
posta, Cláudia lhe pedia para mostrar seus
teréns. Guardanapos amarelados de um
Bar Fritz, fitas de embalagem de presente,
passagens de navio, papéis de bombom,
plumas de antigas fantasias de carnaval,
chaves enormes e enferrujadas, poemas de
amor escritos em entradas de teatro, cane-
tas-tinteiro, luvas de couro comidas por tra-
ças e caixas de charuto com melindrosas na
tampa. Mas nada, nada mesmo se igualava
àquela boneca de pano que Madalena tinha
ganho da madrinha.
– É muito linda, Dinda... – e, com a me-
lhor cara de cachorro de porta de açougue
que sabia fazer – Um dia me dá ela?
– Dou. Um dia.
“Mentira”. Cláudia sabia que nunca ia
ganhar aquela boneca. Mas uma coisa do
tesouro da avó ela ganhou: o manequim!
Um antiquado e fantástico objeto que re-
produzia o corpo de Madalena de trinta
anos atrás e que, mesmo sem cabeça nem
90
braços, Cláudia vestia e conversava e em-
purrava pela casa e brincava que era sua
mãe legal.
– Leva isso – e Dulce deu a Cláudia uma
forma embrulhada num pano de prato. – Você
não quer estar com a gente no aniversário,
mas também não precisa ficar sem bolo.
Cláudia simplesmente odiava carregar
comida; não sabia por quê, mas odiava. Só
que a mãe estava tão triste que ela não teve
coragem de fazer malcriação, e sentiu até
culpa por querer estar longe dali no aniver-
sário. Mas viajou assim mesmo.
Já em Rio das Ostras, quando Cláudia
desenformou o bolo de laranja e o colocou
em cima da mesa, Madalena foi rápida:
– Ótimo! Já temos almoço, lanche e
jantar!
E foi aquilo mesmo que elas comeram o
dia inteiro: bolo de laranja – e só. E aquela
foi a segunda grande diferença entre a vida
com a Dinda e a vida normal: no quesito
alimentação, a avó era doida. No começo,
Cláudia até achou delicioso; na segunda re-
feição de bolo de laranja, já estava enjoa-
da. Mas não reclamou, afinal, foi ela mesma
quem pediu para estar ali. E não reclamaria
91
nunca, muito menos para a mãe – para ela
não achar que tinha sempre razão. Acabado
o bolo, Dinda não economizou imaginação:
era ovo cozido com manga verde e sal, mi-
lho assado na brasa com caju, laranja com
aipim, pão com barra de chocolate dentro...
Fora o café instantâneo dissolvido no leite
condensado.
A terceira grande diferença entre a vida
com a Dinda e a vida normal era a praia.
Elas iam a pé, e a avó pedia carona para
tudo que era veículo que passava na estra-
da, fosse caminhão ou charrete, bicicleta
ou carro esporte. Essa parte foi engraçada
– exceto pela Kombi de freiras, que conse-
guiu ser mais desconfortável que a cami-
nhonete carregada de porcos. Não que as
freiras fedessem. É que a Kombi atolou no
areal, e até Cláudia teve que meter a mão na
areia quente para cavar embaixo da roda.
Deus não ajudou nadinha.
A quarta grande diferença entre a vida
com a Dinda e a vida normal Cláudia des-
cobriu na última noite: a avó falava com os
bichos. Cláudia e Madalena tinham passado
a tarde inteira chafurdando no mangue, ca-
tando caranguejo. Quer dizer: Cláudia, apa-
92
vorada, só segurava o saco de aninhagem
que, aqui e ali, era furado por uma pinça ou
uma pata que lhe arranhava de leve as co-
xas. Dinda se metia no mangue, com lama
pelos joelhos, e era só enxergar uma bolha
de ar na superfície da água que enfiava ali
a mão. Afundava o braço até quase o so-
vaco e trazia o caranguejo, às vezes até um
guaiamum. Pois enquanto elas tomavam
banho juntas para uma tirar a lama da outra
– e aí vinha a quinta grande diferença entre
a vida com a Dinda e a vida normal, que era
que ela não tinha vergonha de ficar pelada
na frente de criança – o saco de aninhagem
com todos aqueles caranguejos furiosos e
vingativos virou lá fora, do lado da bomba
d’água. E eles se espalharam pelo quintal,
que já estava escuro – e a casa ainda não
tinha luz elétrica. Cláudia não se agüentou:
chorou mesmo. Estava em pânico. E se os
caranguejos entrassem pelos buracos da te-
lha? E se eles furassem a tela das portas?
E se eles já tivessem entrado enquanto elas
tomavam banho e estivessem escondidos
embaixo das camas, só esperando para ata-
car quando elas apagassem os candeeiros
de querosene? Dinda nem se abalou:
Caranguejo que
se destaca pelo
tamanho grande,
com carapaça
de, em média,
10 centímetros,
e pelas patas
desiguais.
Também é
chamado de
caranguejo-
mulato-da-terra,
fumbamba,
goiamu, goiamum
e guaiamu.
93
Expressão
originária do
latim, signifi ca
adquirir algo
pelo uso.
– Pára com essa choradeira! Nenhum ca-
ranguejo vai entrar aqui. Já mandei todos
eles de volta pro mangue.
– Mandou, como?
– Por telepatia, claro! Prometi pra eles fi-
car vinte anos sem comer caranguejo, e eles
me prometeram não beliscar a gente duran-
te a noite. Agora chega de choro, que eu te-
nho que pensar no que a gente vai comer. A
caranguejada já era.
Jantaram graviola com sardinha em lata.
A primeira notícia que Madalena rece-
beu aquele domingo quando chegou ao Rio
foi que tinha correspondência de Jacuípe.
Ela leu a carta ali mesmo, na sala, e ficou
furiosa:
– Mas é muita audácia! As viúvas do Tuni-
nho e do Juquinha abriram um processo de
usucapião pra se apropriar da fazenda que
foi de meus pais! Como se eu não existisse!
Cláudia não sabia o que era usucapião.
Mas tinha certeza que a sua Dinda existia.
94
Francisco
Rio de Janeiro, 1987
– Joãozinho! Que bom que você che-
gou! A mainha tá preocupada!
Todo dia era aquilo: quando voltava do
trabalho, era só Francisco abrir o portão
que dava de cara com Madalena sentada na
varanda, sorrindo para ele aquele sorriso
de louca mansa. “Que ódio”, ruminava.
– Eu não sou o Joãozinho! Sou o Francis-
co! Seu filho!
E entrava em casa pisando duro. Ia di-
reto para o quarto, batia a porta atrás de
si e passava a chave. Alcançava a enciclo-
pédia caseira de homeopatia na prateleira
mais alta da estante e tirava detrás dela a
garrafa de pinga. Bebia no gargalo dando
goladas grandes, até a garganta arder com
a cachaça vagabunda ou até perder o ar, o
que acontecesse primeiro. Só aí se acalma-
va. Ficava trancado até Dulce chamar para
o almoço. Todo dia era aquilo.
Mas aquela tarde parecia que as coisas
tinham piorado um pouco. Ouviu gritos no
95
corredor do lado de fora da casa, que ia da
garagem ao portão. Era Dudu, o filho da
empregada, aquela peste de garoto. Ouviu
também gritos da mãe:
– Te mato! Eu te maaato!
Francisco olhou pela janela do quarto
e viu o filho da empregada correndo e rin-
do. Atrás dele, Madalena. Com uma faca
de cozinha. O garoto corria em volta dela
e lhe dava olés. A empregada apareceu
em seguida, mandando Dudu parar com a
brincadeira sem graça. Madalena apontou
a faca para ela também. Só quando apa-
receu o caçula de Francisco, um rapaz de
dezesseis anos enorme e doce como um
cão são-bernardo, foi que Madalena sere-
nou; era o único a quem ela atendia. Ele
falou macio com ela e, com jeito, pegou a
faca. Passou o braço pelos ombros da avó
e a levou de volta à varanda. A empregada
puxou Dudu pela orelha e lhe deu vários
cascudos, mas nem apanhando o diabo do
garoto parava de rir. Francisco assistiu a
tudo aquilo da janela, como se fosse um
filme. Não disse palavra, não interferiu.
Como se não tivesse nada a ver com aqui-
lo. E como, mas como ele queria não ter
96
97
nada a ver com aquilo. Mas não dava para
fugir. Era a mãe dele.
Mal de Alzheimer: tinha sido esse o diag-
nóstico. Madalena passou anos tendo peque-
nas falhas de memória que a família achava
até engraçadas. Começou um dia em que
saiu de carro e voltou de ônibus: “Eu? Levei
o carro? Virgem santíssima, esqueci!”, e deu
aquela gargalhada aberta e gostosa dela,
que ecoava pela casa toda. Depois, toda se-
mana esquecia a bolsa, ou o guarda-chuva,
ou o livro de orações em algum lugar. Uma
ocasião, esqueceu no banheiro da rodoviá-
ria uma caixa cheia de pintinhos doentes de
gogo que ela tinha trazido de Rio das Os-
tras para tratar. Até que Madalena passou
a guardar meias na geladeira e pedaços de
pão embaixo do travesseiro. E a esquecer
de tomar banho. E a dizer que estava morta
de fome meia hora depois de almoçar, e não
havia quem a convencesse de que tinha aca-
bado de comer. E chegou o dia em que saiu
bem cedo para a igreja, que ficava na mesma
rua de casa, e não voltou. No final da tarde,
um homem muito gentil, que morava em ou-
tro bairro, telefonou para casa de Francisco
dizendo que uma senhora loura, de cabelos
Doença
caracterizada
por demência;
perda progressiva
de memória, da
capacidade de
aprendizado,
de realizar
atos motores
e mentais;
difi culdades na
linguagem, no
reconhecimento
de objetos e
pessoas e de
organização e
planejamento.
98
curtos, olhos azuis e com vestido vinho esta-
va sentada na sala dele desde o meio-dia, e
tinha acabado de lhe dar aquele número; que
ela estava bem, mas sem bolsa nem docu-
mentos, e não lembrava o próprio nome. Foi
quando começou a tortura de Francisco.
Era a mãe dele. Foi ele quem teve que
levá-la por todos os labirintos do serviço
público, para conseguir sua aposentadoria
do magistério por invalidez. Foram semanas
e semanas de fila na biometria médica, no
instituto de previdência do estado, nos car-
tórios. Até Domício teve que dar uma mão
para desfazer o nó burocrático. Porque ela
ainda dava aulas de arte na escola normal
quando adoeceu e, se não fosse a ajuda da
diretora da escola, ex-aluna de Madalena, o
processo teria sido ainda mais longo e mais
complicado. E isso tinha que acontecer logo
com Francisco, que odiava tudo que fosse
longo e complicado.
Francisco fechou a janela, deu mais uma
meia dúzia de goladas na garrafa, deixando-
a pela metade, e jogou-se na cama. Sentiu o
corpo mais leve e a língua mais pesada:
– Tudo acontece comigo. Mãe doida e as-
sassina de criancinha. Só comigo...
99
Fechou os olhos e viu outro filme; esse,
dentro de sua cabeça. A lembrança mais
antiga de Francisco era ele e Madalena num
edifício que todos chamavam de Balança
Mas Não Cai. Era uma
cabeça-de-porco no
centro da cidade, para onde eles tinham ido
depois de saírem da casa de tio Joãozinho.
Moravam num quarto miúdo, escuro e tris-
te que fedia a mofo. Francisco lembrava de
sua mãe se olhando no espelho de mão dela,
arrumando o cabelo:
– Vou procurar emprego. Você fique di-
reitinho com a dona Zenaide.
Era a vizinha de cima, que morava em
outro quarto miúdo, escuro e triste que fe-
dia a mofo. Francisco odiava ficar com dona
Zenaide. Ela cismava de ficar lhe apertando
as bochechas, a barriga e a bunda por tudo
e por nada. E tinha mania de brincar com
a dentadura; seus dentes rolavam soltos na
boca murcha de um jeito nojento. E fazia um
angu horrível, encaroçado e cru, preparado
no quarto mesmo, num fogareiro a álcool.
Francisco abriu de novo a garrafa. Desta
vez, deu um só gole longo, encheu as boche-
chas e se recostou na cabeceira, abraçado à
cachaça. A colcha, toda repuxada já, parecia
Cortiço, habitação
coletiva; prédio
de muitos
apartamentos
pequenos.
100
a superfície de uma lagoa, e ele sentia como
se estivesse boiando numa água morna.
– Ela me largava com a velha nojenta e
saía toda bonita...
Tinha sido muito difícil ser filho de uma
mulher bonita e sozinha naquela época. Hou-
ve a noite do horror, ainda no Balança Mas
Não Cai. Aquela noite em que Francisco foi
arrancado da cama que dividia com a mãe por
um sujeito imenso – ou, pelo menos, imenso
para os quatro anos que ele tinha – que caiu
em cima dela. Ele viu os peitos da mãe sain-
do pelo rasgo que o homem fez na camisola
dela. Muitos gritos. Dela, do homem, dele,
dos vizinhos. Mais gente entrou no quarto, as
luzes se acenderam, dona Zenaide o rebocou
para o quarto dela. A gritaria continuou por
algum tempo, depois parou. Madalena foi
buscá-lo no quarto de dona Zenaide já arru-
mada e com a maleta de couro na mão. Eles
passaram o resto da noite na Central do Bra-
sil. Francisco levou anos para entender que o
homem tinha tentado estuprar sua mãe. Que
ele pensava que ela era uma prostutita só
porque era bonita e mãe solteira, e morava
num pardieiro onde muitas mulheres da vida
moravam. Francisco e Madalena nunca fala-
101
ram sobre aquela noite. Francisco não con-
tou nem para Dulce sobre essa noite. Tinha
muita vergonha dela.
Francisco virou o resto da garrafa na
boca. “Acabou”. Escorregou pela cabeceira
e deitou. O lustre do quarto começou a dan-
çar no teto.
– Me matava de vergonha, a mainha...
Mesmo no tempo das vacas gordas, quan-
do Madalena já tinha emprego seguro, casa
própria e marido, ela o matava de vergonha.
Não havia bola da molecada que caísse no
jardim deles e saísse inteira. Madalena fura-
va a bola a faca e fazia questão de jogá-la na
rua para que os meninos a vissem:
– Não quero jogo de bola na minha por-
ta! – gritava para a rua.
Por isso, Francisco nunca tinha conse-
guido fazer amigos na vizinhança. E sempre
que saía para a escola, vinha aquele coro de
garotos atrás dele:
– Comedor de bola! Vai rasgar a bola da
mãe! Tava boa a sopa de bola?
Francisco virou de barriga para baixo
para não ver o lustre dançando:
– Culpa dela. Tudo culpa dela...
Madalena nunca tinha deixado de ser
102
matuta; adorava terra, planta, bicho. Mes-
mo morando no meio da cidade, ela man-
tinha galinheiro. Para desespero dos vizi-
nhos, que acordavam toda madrugada com
o canto do galo. E para vexame de Francis-
co, que odiava roça, e odiava que pensas-
sem que ele morava na roça.
E ainda havia aquelas viagens para a
casa de Muriqui. Naquela época, era mui-
to raro ver mulher dirigindo. Dirigindo na
estrada, menos ainda. Dirigindo na estrada
um carro cheio de cachorros, bananas e en-
gradados com galos cocoricando então, era
uma festa para os motoristas:
– Vai pilotar o fogão lá de casa! – era o
que Francisco ouvia, encolhido no banco,
humilhado.
Tonto, Francisco virou de lado, para a
parede, onde nada dançava:
– Todo mundo olhava... Eu queria su-
mir... Ela xingava...
Madalena não levava desaforo para
casa. Fazia tudo o que as mulheres direitas
de seu tempo não faziam: dirigia, fumava,
trabalhava, pintava as unhas de vermelho,
era mãe sem marido. Obviamente, as mu-
lheres a evitavam; Madalena era vista como
103
uma ameaça, uma tentação para os seus ho-
mens. E nem ligava.
Francisco fechou os olhos:
– Eu ligava... Ninguém gostava da gen-
te... Ela estragou tudo.
Acordou com as batidas na porta. Era
Dulce:
– Francisco! Franciscooo! Abre essa por-
ta! O que tá acontecendo aí, Francisco?
Ele levantou com a cabeça rodando e
abriu a porta, contrariado:
– Que berraria é essa?
– Pelo amor de Deus, Francisco, são mais
de quatro horas! Tentei te acordar um mon-
te de vezes pra almoçar! Pensei que você es-
tivesse passando mal!
– Tava cansado, ué – e começou a brigar
para disfarçar o flagrante da bebedeira. – Não
posso dormir? Eu trabalho! Pago as contas!
A casa é minha, faço nela o que quiser!
Dulce lançou um olhar para cima da
cama. A garrafa vazia estava lá. Ela fez sua
cara de mártir:
– Você vai almoçar?
Como o irritava aquele jeito bonzinho de
Dulce. “Ela faz isso só pra eu parecer um
monstro”, pensou, com ódio.
104
– Não! Se quisesse almoçar, tinha almo-
çado! Você não tinha nada que vir aqui me
perturbar!
– É que a dona Madalena arrancou a te-
levisão do rack porque o Dudu tava assistin-
do desenho, e...
– Como é que é? A mainha agüentou
carregar a televisão?
– E como agüentou! E carregou pelo cor-
redor todo! Só que o Dudu foi atrás dela,
puxando o fio, e a televisão se espatifou no
chão. Você não ouviu?
Nadinha. Tinha bebido demais. Mas não
podia admitir, tinha que manter o respeito:
– Não é possível! Isso só acontece comi-
go! Além de doida, tá dando prejuízo! As-
sim não dá! Vou internar! De hoje, não pas-
sa: vou internar!
Dulce ficou ali parada, olhando para ele
com uma cara de espanto.
– É isso mesmo: vou internar! A mai-
nha tá passando dos limites – e aproveitou
para dar uma de quem estava muito atento,
em vez de estar enchendo a caveira. – Hoje
mesmo, tava correndo com uma faca atrás
do Dudu, sabia? E se ela mata ele? Olha eu
aí na justiça! Era só o que me faltava!
105
Madalena botou a cara dentro do quarto:
– Joãozinho! Que bom que você chegou!
A mainha tá preocupada!
Francisco berrou para Dulce, exaspe-
rado:
– Chega! Pra mim, chega! De hoje não
passa: vou internar!
E internou mesmo. Num asilo do estado.
Quinze dias depois, uma segunda-feira,
o telefone tocou na casa de Francisco antes
das seis da manhã: Madalena tinha sido en-
contrada morta na cama. Foi enterrada com
o corpo arqueado; seu rosto se contorcia e
os olhos que já tinham sido azuis estavam
entreabertos numa expressão de dor. Na
certa, havia falecido muitas horas antes de
que alguém se desse conta. “Falência múlti-
pla de órgãos”, dizia o atestado de óbito.
– É, dona Madalena... Tudo faliu com a
senhora. Até eu. Uma falência múltipla...
– resmungou Francisco depois do enterro,
trancado no quarto, já com a língua pesada.
E fechou os olhos para não ver o lustre
dançar.
106
107
108
Entrevista com a autora
Quando você começou a gostar de ler?
C
RISTIANE – Gosto de ler desde antes de saber
ler, não lembro de mim sem esse prazer. Não
sei de onde veio, porque ninguém lá em casa
lia, nem lê até hoje. Meu pai achava desperdí-
cio comprar livro de historinha: dizia que li-
vro a gente usa uma vez só, não vale a pena
colocar dinheiro nisso. Mas minha avó trazia
gibi para casa toda semana e comprou para
os netos a coleção inteira de livros com dis-
quinho da Disney. A única coisa chata era
que eu devorava tudo isso em poucos minu-
tos e ficava dias sem nada para ler.
Qual livro marcou sua infância ou
adolescência?
C
RISTIANE – Marcar mesmo foi um conto. Eu
tinha 10 anos. Na época, havia uma antologia
de contos que quase toda escola adotava.
Claro que não esperei a professora de portu-
guês mandar ler; agarrei o livro assim que ele
entrou em casa. E lá estava Peru de Natal, do
Mário de Andrade. Lembro que roupa eu es-
tava usando, a posição que eu estava, o cô-
109
modo da casa, a frase que eu disse: “esse cara
conhece o meu pai!” Foi um tremendo impac-
to; vira e mexe, releio esse conto.
Como nascem suas histórias e
personagens?
C
RISTIANE – Os personagens estão por aí, na
casa da gente, no trabalho, na rua, no ônibus,
na padaria. Gosto de manter os olhos abertos
e os ouvidos atentos, observar gestos, ouvir
histórias das vidas das pessoas. Depois, ora
acrescento, ora retiro, ora misturo tudo e lá
vêm os personagens.
Que lugar a leitura ocupa em sua vida?
C
RISTIANE – Para mim, ler é uma maneira de
entender e sentir o mundo. Na minha vida, a
leitura ocupa um dos lugares mais gostosos:
é sempre um momento que consigo reservar
para mim, no qual só faço o que quero.
Além de escrever, o que você também gos-
ta de fazer?
C
RISTIANE – Gosto de ler! E de cinema, praia,
viajar! Mas viajar sem pacote turístico – usar
o transporte público, pedir informação na
rua, freqüentar os lugares freqüentados pe-
los locais, comer o que eles comem e ver o
que eles vêem.
110
Leitura e cidadania
A leitura torna mais vasto o mundo de
quem lê. Também desperta a sua imaginação e
você ganha condições de aprender e desen-
volver seu senso crítico e cultural. Quanto
mais livros você ler, mais aumenta o prazer de
ler, mais alegrias você terá com a leitura. Com
isso, todos ganham, você, a sua família, a sua
comunidade e a sociedade em que você vive.
Pelo Brasil afora, muita gente tem traba-
lhado para estimular a prática e o acesso ao
livro e à leitura. Projetos, programas e ações
que envolvem todos: governos, universida-
des, escolas, empresas, ONGs e os cidadãos.
Todas as propostas fazem parte do Plano Na-
cional do Livro e Leitura – PNLL, do Ministé-
rio da Cultura. Um dos objetivos desse em-
preendimento é fazer funcionar bibliotecas
públicas em todos os municípios brasileiros.
É na biblioteca que você vai encontrar
apoio para seu desenvolvimento pessoal e
educação formal. Além disso, nesse espaço
você vai poder conhecer sobre a herança cul-
tural do seu povo, vai ter a oportunidade de
111
tomar apreço pelas artes e pelas realizações
da humanidade.
Visite uma biblioteca, pergunte ao biblio-
tecário como é que ela funciona e como você
pode ter livros emprestados. A biblioteca pú-
blica é de todos e para todos.
112
Mais informações sobre esta obra
O uso de fotos de mamulengos para ilus-
trar a novela Madalena representa uma inova-
ção. O recurso possibilitou que as cenas fos-
sem construídas com plasticidade, graças à
expressividade dos bonecos aliada aos recur-
sos fotográficos.
O mamulengo é um estilo do teatro de bo-
necos tipicamente nordestino e um dos mais
ricos espetáculos populares do país. As histó-
rias são quase sempre improvisadas e tomam
forma na mão do mestre durante o espetácu-
lo. Para encenar Madalena contamos com as
mãos do grupo Mamulengo Presepada (Ta-
guatinga – DF).
O ensaio fototográfico, feito através das
lentes do fotógrafo Sergio Alberto, foi realiza-
do em estúdio e utilizou fundo preto e ilumi-
nação indireta para captar a dramaticidade
dos bonecos.
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Brincantes (manipuladores)
Chico Simões e Fabíola Resende
Personagem: Madalena | Boneco: Rosinha do Bole Bole
Técnica: Boneca de vara | Bonequeira: Ceça Acioli
Personagem: Nelson | Boneco: João Redondo
Técnica: Luva | Bonequeiro: Chico Simões
Personagem: Chiquinho bebê | Boneco: Baltazar
Técnica: Boneco de pano | Bonequeiro: Chico Simões
Personagem: Álvaro | Boneco: Mané Gostoso
Técnica: Luva com vara | Bonequeiro: Chico Simões
Personagem: Dulce | Boneco: Margarida
Técnica: Boneca de pano | Bonequeiro: Dona Andréia
Personagem: Morte | Boneco: A alma da defunta sem vergonha
Técnica: Luva com vara | Bonequeiro: Mestre Solon
Personagem: Cláudia | Boneco: Margarida
Técnica: Boneca de pano | Bonequeiro: Dona Andréia
Personagem: Pesadelo | Boneco: Jaraguá
Técnica: Luva com vara | Bonequeiro: Agnaldo Algodão
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Outros livros desta coleção
Poesias Tradição oral
Contos Poesias
Teatro
Biografia Crônicas
Contos
Poesias
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Produção gráfica e editorial
SUPERNOVA PROJETOS EDITORIAIS
Coordenação de produção
Cristina Guimarães
Projeto gráfico e capa
Ribamar Fonseca
ribamar@supernovadesign.com.br
Projeto editorial, edição e revisão do texto
Alessandro Mendes e Iara Vidal
Fotografias
Sergio Alberto
Editoração eletrônica
Fernando Alves
Auxiliar de produção
Adriana Mattos
O papel da capa é o Duo Design 240g/m
2
e o papel do miolo é
o Pólen bold 90 g/m
2
. A fonte de texto é a Versailles, corpo 11,5,
projetada por Adrian Frutiger em 1984, serifada, baseada nos
tipos franceses desenhados no século 19. As notas explicativas
laterais foram retiradas dos dicionários da língua portuguesa
Houaiss e Aurélio e informações dos autores.
Impresso pela Gráfica e Editora Brasil para o Ministério da Edu-
cação em novembro de 2006.
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novela
Cristiane Dantas
Cristiane Dantas é uma escri-
tora carioca, novata no mundo dos
livros, mas veterana no da leitura e
da escrita. Aos oito meses, já virava
as páginas de livros sem mastigar
nenhuma. Devorou as aventuras da
Turma da Mônica e discutiu com a
irmã sobre quem era mais podero-
so, o Batman ou o Zorro. Aos nove,
gostava de brincar de escritora, mas,
por vergonha, não mostrava a nin-
guém. Cursou metade da faculdade
de belas-artes e mudou para Comu-
nicação Social só para fugir das au-
las de modelo vivo. Deu certo. Hoje,
é roteirista de tevê e escritora orgu-
lhosa da qualidade de seus textos.
Da jovem sonhadora do interior
da Bahia, dada pelo pai em casamen-
to a um homem bêbado e violento em
troca de terras, à senhora de perso-
nalidade confl itante, amarga dentro
de casa, simpática e conversadei-
ra fora. Por toda a vida, Madalena
foi guerreira. Encarou o mundo de
frente e desafi ou o destino, que in-
sistiu em lhe armar ciladas até o fi m.
Teve coragem de viver a vida que
quis, e não a vida que a sociedade
escreveu para ela – e para todas as
mulheres de sua geração. Claro que
isso teve um preço, para ela e para
as pessoas que a cercavam. Mas ela
pagou esse preço.
Em seu primeiro livro, a carioca
Cristiane Dantas conta uma como-
vente história, repleta de lições de
vida, de superações, de humanida-
de, da vida como ela é, como diria o
escritor e teatrólogo Nelson Rodri-
gues. Uma história de pessoas co-
muns, com sentimentos como os de
todos nós, com as quais é impossível
não se identifi car.
Nelson olhou bem para Madalena. Olhou como não
tinha olhado até então: olhou como se fosse a primeira
vez. Viu uma moça linda, forte, sonhadora. E que só que-
ria viver um pouco. De repente, as terras para lá do rio,
a fazenda, o Manuel, seus outros fi lhos, sua mulher, ele
mesmo, tudo pareceu morto. Tudo era podre, pobre e pe-
queno diante daquela moça que só queria viver um pou-
co. Nelson teve uma vontade imensa de abrir a cancela e
deixar aquela moça, a sua Madá, sair daqueles cafundós
e viver muito, muito, muito e para sempre.
Madalena Cristiane Dantas novela
Foto: Marcos Carrão
COLEÇÃO LITERATURA PARA TODOS
Madalena
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