
Um ato de hos...
Abandonemo-nos mais um instante a esta suposição, que será preciso depois
complicar, do modo mais catastrófico possível: estamos tratando de uma epígrafe
187
, a qual é
sempre, embora não somente: 1) uma espécie de epigrama, isto é, uma espécie de poema; 2)
uma espécie de convite, e, portanto, de resposta, de promessa – e de dom
188
.
187
Já indicamos no primeiro ato algumas das razões pelas quais isso precisa ser “posto” como hipótese.
188
Estes termos não são equivalentes, mas reenviam um ao outro de modo crônico, ou, melhor, anacrônico, já
que somente uma anacronia (crônica) poderia explicar que um remeta ao outro sem a ele se reduzir, ou ainda,
que um afete (num sentido que aparecerá a seguir) o outro de modo que este não possa simplesmente
“responder”, “prometer”, “convidar”. Tampouco são os únicos e talvez nem sejam os mais importantes conceitos
para a melhor abordagem da “frase”, que, evidentemente, não é uma simples frase. São, então, apenas entradas
ou limiares para outra coisa (o que seus nomes dizem também), a saber, se possível, alguns traços desta relação
talvez sem relação entre literatura e ética, a qual, como sugerimos, não se dá sem desvios. Se houver nesta
“frase”, como o indicam em parte alguns dos elementos do seu contexto, algum “recurso” ao “ético”, quando não
ao político, pode se pressentir, no jogo dos nomes encenados (“hospitalidade”, “poético”, e, porque não, “ser”) e
dos que nos evocaram (epigrama, poema, convite, resposta, promessa) de início desde o lugar de nos chegaram
(a epígrafe), os sintomas de uma necessidade ética e, ao mesmo tempo, do seu diferimento, até mesmo de sua
impossibilidade. Marcos Siscar adverte sobre uma demanda humanística feitos a Derrida “à guisa de leitura” e à
qual poderia, em certo sentido, estar respondendo, na “tematização intensa, a partir nos anos 1980, nos textos de
Derrida, de questões de ética, de justiça, de política”, interpretável, “se quisermos”, “como maneira de resolver
sua relação com o segredo e com a culpa, refazendo assim, à sua revelia, a cena abraâmica” (A literatura como
indesconstrutível da desconstrução. Texto (mimeo) de conferência no “Seminário Crítica e Valor – homenagem
a Silviano Santiago”, realizado de 02 a 06 de out. 2006, na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. p. 2).
Aqui já se dão a ver outras palavras, conceitos ou mais-que-conceitos (segredo, culpa) supostos na cena de
hospitalidade que é também “abraâmica”. Não seria tão árduo mostrar que os termos aqui colocados a título de
suposição se sobrepõem e se revezam na programação discursiva, certamente para dar lugar a outros, que não
tardam a aparecer, como assombrações não menos sintomáticas (e irredutíveis) no que diz respeito ao “ético”,
em qualquer sentido. Por exemplo, lê-se em “Em direção a uma ética da discussão” (Limited Inc. Op Cit.) (são
alguns dos primeiros parágrafos de uma resposta a Gerald Graff sobre os debates gerados pela análise de Derrida
das teorias dos atos de fala nos anos 70-80): “Tenho razão em insistir, antes mesmo de começar, sobre o debate,
sua possibilidade, sua necessidade, seu estilo, sua ‘ética’, sua ‘política’? O senhor bem sabe e numerosos leitores
foram sensíveis – isso, o que se passou há mais de dez anos em torno de Sec e Limited Inc... concernia antes de
mais nada a nossa experiência da violência
e da relação com a lei – em toda a parte, sem dúvida, mas de modo
imediato na maneira
como discutíamos ‘entre nós’, no meio acadêmico. Dessa insolvência, tentei então dizer
algo. Tinha tentado, ao mesmo tempo, fazer algo”. Antes de prosseguir com a citação, é bom frisar que se o
“fazer” e o “dizer” são tentativas “simultâneas” (“ao mesmo tempo”), elas não se limitam a remarcar no “dizer”
uma série de intencionalidades que possam acompanhar o dito, ou efeitos que decorrem do uso da palavra, mas
se indica ainda “algo” mais, por exemplo todas as condições e incondicionalidades que sobredeterminam o dizer,
ou, melhor, o “discurso” (ou, como foi dito, “sua possibilidade, sua necessidade, seu estilo, sua ‘ética’, sua
‘política’”). Evando Nascimento retraça a trajetória do que está em jogo no “redimensionamento” da teoria de
Austin por Derrida e do debate subseqüente (Cf. Derrida e a literatura. “Notas” de literatura e filosofia nos
textos da desconstrução. 2. ed. Niteói, EduFF, 2001. p. 149-164). Derrida continua: “Voltarei a isso nas minhas
respostas
. Atenho-me aqui a referir uma espécie de contrato amigável entre nós: é, bem entendido que esta
republicação e nossa troca devem ter, antes de mais nada, o sentido de um convite
dirigido a outros, no curso de
uma discussão aberta e por vir. (...) Além desses conteúdos teóricos ou filosóficos, o que mais conta para mim,
hoje, são todos os sintomas
que esta ‘cena’ polêmica pode ainda oferecer para ler. Estes sintomas convidam a
decifrar
as regras, as convenções, os usos que denominam o espaço acadêmico e as instituições intelectuais nas
quais debatemos e nos debatemos. Com ou sem sucesso, com um sucesso sempre desigual, estas leis
‘contêm’ e,
pois, traem todos os tipos de violência
...” (p. 150). Os sublinhados (nossos, é claro) apontam, cremos, para o
campo de forças do “dizer/fazer”. Onde, igualmente, desde os seus primeiros gestos, a cortesia de um ato de
81