
Salvador: a experiência de
simplificação – uma premissa
A partir das considerações de Lina Bo Bardi no folheto de inauguração
do Museu de Arte Moderna da Bahia, o Mamb ou MAM-Ba, de janeiro de
1960, percebe-se o grau de interesse da arquiteta pela função social
dos museus. E, assim como ela destaca a necessidade de “considerar
uma obra do passado” para não perder o próprio “passado de que o
moderno é resultado”
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, os cinco anos de experiências iniciais em Salva-
dor são essenciais para Lina Bo Bardi aplicar, na nova sede do Masp, a
experiência adquirida da inventividade criativa e desprendida das solu-
ções simples do Nordeste.
Em 1959 é fundado, em Salvador, o Museu de Arte Moderna que, inicial-
mente, funciona no foyer do Teatro Castro Alves. Convidada pelo Gover-
no da Bahia, Lina Bo Bardi segue para Salvador, com o objetivo de
orientar uma nova expressão de vivacidade cultural. Entre 1958 e 1964,
Lina Bo Bardi observa que o Brasil contempla
o esplendor de um conjunto de iniciativas que representou uma esperança
muito grande para o país todo, se estendendo do extremo norte, pelo me-
nos, até o Rio de Janeiro (...). O discurso era outro. Era um discurso sócio-
político, ligado diretamente à economia e à história do Brasil. Foi um proces-
so que ocorreu não só na Bahia, mas no Nordeste todo, e que não pode ser
abolido. [Ferraz, 1993: 153]
Lina realiza no Teatro Castro Alves, em Salvador, as cenografias da peça
de Brecht e Weill, a Ópera dos Três Tostões, encenada em 1960, e da
peça de Albert Camus, Calígula,
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encenada em 1961, ambas montadas
por Martim Gonçalves. O teatro fora acometido por um incêndio, poucos
dias antes de sua inauguração, e a expressão cenográfica de Lina tirou
partido do palco semidestruído, para sublinhar a dramaticidade dos espe-
táculos. As propostas, simples, despidas de detalhes e de caráter moder-
no, foram compreendidas pelo público, predominantemente popular
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.
Além do auditório, o Castro Alves também abriga o Mamb, Lina Bo Bardi
lembra que
a verba reduzida do M.A.M.B. não permitia grandes aquisições, mas consegui-
mos empréstimos [de obras] do Museu de Arte de São Paulo, e pudemos com
uma planificação certa dos recursos, aumentar a coleção: o Museu chegou a
ter uma importante coleção de artistas brasileiros e alguns estrangeiros. Na
rampa de acesso ao teatro instalamos um auditório-cinema para confe rências,
aulas, projeções e debates; nos gran des subterrâneos urna escola de inicia-
ção ar tística para crianças; a Escola de Teatro e o Seminário Livre de Música
da Universidade colaboravam. [Mirante das Artes (6): s/p, 1967]
Entre 1959 e 1963, Lina Bo Bardi restaura o Solar do Unhão, onde se-
riam instalados, a princípio, o Museu de Arte Popular e a Escola de De-
senho Industrial e Artesanato, inserida como atividade ligada ao museu.
O sonho da arquiteta de mais um museu-escola, a exemplo do Masp
com o IAC, é vetado pelo início da ditadura militar, em 1964, época em
que o Museu de Arte Moderna da Bahia (Mamb) já ocupava o Solar do
Unhão desde o ano anterior
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.
O projeto de recuperação do Solar é consciente com uma viabilidade
espacial do interior, dialogando com a ética de restauro promovida pelo
Movimento Moderno e preservando o patrimônio cultural tombado. Edu-
ardo Rossetti considera:
Este projeto da Escola de Desenho Industrial e Artesanato, a ser instalada no
Solar do Unhão naquele momento em que Salvador experimentava manifesta-
ções vanguardistas simultâneas a Brasília – que monopolizava todas as aten-
ções – é um outro modo de Lina Bo Bardi tencionar o quadro de procedimentos
da arquitetura moderna brasileira. O Solar do Unhão é o condensador das três
instâncias da tensão moderno/popular, pois ao mesmo tempo em que abriga o
processo de transformação das escalas de produção, seu projeto contém expe-
rimentações significativas de linguagem e quer ser um espaço público de uso
popular legítimo. O Solar do Unhão é o ponto máximo de resistência da tensão
moderno/popular em Lina Bo Bardi, cujo ícone é sua escada.
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A célebre intervenção de Lina Bo Bardi para acessar o pavimento superior
do Solar do Unhão respeita o passado histórico da edificação do século
XVI. A arquiteta encontra uma solução para a construção da escadaria,
cujos elementos de encaixe são encontrados nos carros-de-bois, um ata-
vismo arraigado na cultura material brasileira desde o Brasil-Colônia.
E, mesmo com a necessidade de pilares de madeira distribuídos unifor-
memente nos pavimentos, dois amplos salões se abrem para a instala-
ção das exposições. Nestes espaços, ela se aproxima da disposição
das peças em exposição da maneira de exibir popularmente o artesa-
nato localmente comercializado – seja em feiras ou pequenas vendas –,
como pode-se conferir no resultado da disposição das peças expostas
na Exposição Nordeste, de 1963.
Lina Bo Bardi, espaço expositivo no
foyer do Teatro Castro Alves, Salvador
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BARDI, Lina Bo. Folheto de
inauguração do Mamb., jan 1960.
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Lina desenhou inclusive os trajes
da peça Calígula. O partido
simples das premissas modernas
é também cenário de outras duas
peças, que tiveram seus palcos
planejados por Lina: Na Selva
das Cidades, também de Brecht,
encenada em 1967 no Teatro
Oficina em São Paulo, Gracias
Señor, encenada 1971 no Teatro
Tereza Rachel, Rio de Janeiro,
ambas sob direção de José Celso
Martinez Correa. Também em São
Paulo, outra cenografia que incluiu
os trajes das personagens: Ubu
– Folias Physicas, Pataphysicas e
Musicaes, com direção de Cacá
Rosset, peça de Alfred Jarry.
Estas características, adotadas
pela arquiteta, também foram
registradas em sua participação
cenográfica no cinema, com o Auto
da Compadecida de George Jonas,
filmado em 1968.
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BARDI, Lina Bo. Cinco anos entre
os “brancos”. Mirante das Artes
(6): s/p, São Paulo, dez./jan./fev.
1967.
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“O agravamento das tensões
estruturais do país que culminaram
nos acontecimentos de abril de
1964 refletiram-se também nas
atividades culturais. O sistema
‘democrático’ necessitando, para
conservar sua elasticidade, de
reformas de base, constituiu-se
num desa fio à classe dirigente, e
a susseguinte grave crise marcou
uma ‘stasi’, uma verdadeira
estagnação cultural que, com a
progressiva des moralização das
Universidades e a ingerência de
elementos alheios na cultura
nacional ameaçam gravemente as
possibilidades de saída do estádio
de colonialismo cultural.” In:
BARDI, Lina Bo. Cinco anos entre
os “brancos”. Mirante das Artes
(6): s/p, São Paulo, dez./jan./fev.
1967.
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No mesmo artigo Rossetti
argumenta: “O sentido de
resolução das três instâncias será
o seguinte: partir da arquitetura e
trabalhar as possíveis conexões
com aspectos da cultura popular e
não propriamente com seu agente,
o povo. Lina Bo Bardi estaria
operando nas zonas residuais
do modernismo, como assinala
Jameson [1996: cap.4] e também
estabelecendo conexões entre o
arcaico, o residual e o emergente,
conforme Canclini desenha este
quadro de inter-relações dos
processos culturais [1998: 189].”
In: ROSSETTI, Eduardo Pierrotti.
Tensão moderno popular. Salvador:
FAU-UFBa, 2002. [Dissertação
de mestrado]. É interessante
relacionar à pesquisa de Eduardo
Rossetti, que parte da arquitetura
e trabalha com possíveis ligações
de aspectos da cultura popular e
não propriamente de seu agente,
o povo.
Exposição Burle Marx, set. 1960
Fonte: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi