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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Gabriela Soares de Azevedo
Leituras, notas, impressões e revelações
do
Tratado Descritivo do Brasil em 1587
de
Gabriel Soares de Sousa
Rio de Janeiro
2007
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Gabriela Soares de Azevedo
Leituras, notas, impressões e revelações
do
Tratado Descritivo do Brasil em 1587
de
Gabriel Soares de Sousa
Dissertação apresentada, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em História, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Área de concentração: História
Política.
Orientadora: Profª. Drª. Lucia Maria Paschoal Guimarães
Rio de Janeiro
2007
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese.
____________________________________________ ________________________
Assinatura Data
S725l Azevedo, Gabriela Soares de.
Leituras, notas, impressões e revelações do Tratado Descritivo do
Brasil de Gabriel Soares de Sousa. - Rio de Janeiro, 2007.
149f.
Orientador: Lúcia Maria Paschoal Guimarães
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação
em História.
1. Sousa, Gabriel Soares de, 1540 – 1591 – Teses. 2. Brasil – História
– Tratado descritivo, 1587 - Teses. 3. Brasil – Política e governo, 1587
– Teses. I.Guimarães, Lúcia Maria Paschoal. II. Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Pós-Graduação em História. III. Título.
CDU- 981”1587”
À memória das minhas avós,
Maria Celeste da Silva Pereira e Margarida Soares de Sousa
RESUMO
O Tratado Descritivo do Brasil em 1587 de Gabriel Soares de Sousa é uma das
maiores referências escritas para a historiografia colonial brasileira. Rico em informações
sobre a nova terra, a autoria do texto foi identificada por Francisco Adolpho de Varnhagen,
em 1838, num exercício de crítica documental. O colono português chegou ao Brasil em
1569, tornou-se senhor de engenhos, foi explorador de riquezas pelo rio São Francisco e
apresentou seus escritos à corte de Filipe II, no período da união das coroas. Mas além do
conteúdo valioso do discurso, há uma biografia aventuresca a envolvê-lo, relacionando
diversos aspectos presentes no processo de colonização e ainda a fascinante história da
descoberta dos textos coloniais e de suas leituras.
Palavras – chave: Tratado Descritivo do Brasil em 1587, Gabriel Soares de Sousa, crítica
documental, historiografia colonial.
ABSTRACT
The text named Tratado Descritivo do Brasil em 1587, by Gabriel Soares de Sousa is
one of the greatest written references for the brazilian colonial historiografy. Rich in
information about the new land, the authorship of the text was identified by Francisco
Adolpho de Varnhagen, in 1838, in an exercise of documental critic. The Portuguese colonist
arrived in Brazil in 1569, and became gentleman of devices, explored all over San Francisco
River and presented his writings to the court of Philippe II, during the period of the union of
the crowns. But beyond the valuable content of the speech, there is an incredible biography
involving it and relating diverse aspects presents in the process of settling; there is the
fascinating history of the discovery of the colonial texts and its readings.
Keywords: Tratado Descritivo do Brasil em 1587, Gabriel Soares de Sousa, documental
critic, colonial historiografy.
LISTA DE QUADROS
Quadro n°1: As edições impressas da obra de Gabriel Soares de Sousa................................. 60
Quadro n°2: Testemunhos de Gabriel Soares de Sousa........................................................... 65
Quadro n°3: Tratado Descritivo do Brasil em 1587 – notas de Francisco Adolpho de
Varnhagen................................................................................................................................ 70
LISTA DE REPRODUÇÕES ICONOGRÁFICAS
Figura n°1: Selo comemorativo dos 400 anos do Tratado Descritivo do Brasil Gabriel Soares
de Sousa..................................................................................................................................... 48
Figura n°2: Gravura do Padre Antônio Vieira........................................................................... 49
Figura n°3: Fac-símile da cópia manuscrita do Roteiro geral com largas informações de toda a
costa que pertence ao Estado do Brasil etc., de Gabriel Soares de Sousa, do acervo da
Biblioteca de Guita e José Mindlin (São Paulo)........................................................................ 90
ÍNDICE
Lista de Quadros
Lista de reproduções iconográficas
Introdução.................................................................................................................................. 1
Capítulo 1. A historiografia e O Tratado Descritivo do Brasil em 1587................................... 4
1.1. Gabriel Soares de Sousa, um quase desconhecido............................................................ 4
1.2. Gabriel Soares revisitado................................................................................................. 37
1.3. Gabriel Soares contemporâneo......................................................................................... 43
Capítulo 2. A construção de uma obra: impressões, notas e edições........................................ 50
2.1. A descoberta de Varnhagen............................................................................................... 50
2.2. Edições e notas do Tratado Descritivo do Brasil em 1587............................................... 55
2.3. A redescoberta de Augusto Pirajá da Silva........................................................................ 81
Capítulo 3. Com a palavra Gabriel Soares de Sousa: uma leitura a partir de seus
textos......................................................................................................................................... 88
3.1. O cortesão Gabriel Soares.................................................................................................. 88
3.2. Literatura de viagem......................................................................................................... 103
3.3. O texto e a História........................................................................................................... 106
3.4. Um contexto a servir ao texto........................................................................................... 108
3.5. Gândavo, Cardim e Soares............................................................................................... 111
3.6. Gabriel Soares de Sousa, observador ou compilador? .................................................... 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................. 133
FONTES e BIBLIOGRAFIA.................................................................................................. 136
Nu`a mão livros, noutra ferro e aço,
A uma rege e ensina, a outra fere,
Mais co`o saber se vence que co`o braço.
Luís de Camões
INTRODUÇÃO
Esta dissertação pretende compreender a trama que encerra a escrita, a revelação e a
repercussão historiográfica do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, atribuído ao colono
português Gabriel Soares de Sousa.
O texto que veio a constituir o Tratado permaneceu inédito durante mais de duzentos
anos. Recuperado, tornou-se uma das fontes mais importantes da historiografia brasileira por
constituir um verdadeiro inventário da colônia ultramarina na segunda metade do século XVI.
Mas, além do conteúdo valioso do discurso, há uma biografia aventuresca a envolvê-lo,
relacionando diversos aspectos presentes no processo de colonização e ainda a fascinante
história da descoberta dos textos coloniais e de suas leituras a partir do século XIX. Enfim,
uma trama de longa duração que circunscreve diversos personagens, contextos e
acontecimentos fortuitos ou não. Remetemo-nos às palavras do historiador Paul Veyne que
associa o tecido da história a uma intriga muito pouco científica, que o historiador recorta.
Nossa intriga consiste em recontar a trajetória deste escrito do senhor de engenho português.
A crítica histórica no Brasil se iniciou justamente com o exame do texto de Gabriel
Soares, em 1838, através de um enfoque analítico até então inédito na pesquisa documental.
Apresentado por Francisco Adolfo de Varnhagen à Academia das Ciências de Lisboa e, logo
em seguida, ao recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o escrito ocuparia
um local de destaque na construção da memória e da história nacional. E é precisamente na
relação entre o texto, a imagem construída sobre o autor e os diferentes enfoques teóricos e
metodológicos da pesquisa histórica dos séculos XIX e XX que buscaremos demonstrar como
o discurso de Gabriel Soares oferece um leque multifacetado de interpretações possíveis.
A análise ecdótica ou crítica textual tem como propósito a reconstituição de um texto
original perdido com base numa tradição manuscrita ou impressa, segundo critérios
científicos rigorosos. Suas origens remontam aos filólogos alexandrinos do século III a.C. e à
chamada questão homérica. Durante o período do Humanismo e da Renascença, a
proliferação de obras gregas e latinas inaugurou uma nova fase da filologia clássica, trazendo
à tona uma série de edições, denominadas vulgatas, que fundamentaram inúmeras impressões
subseqüentes. Uma longa tradição de filólogos eruditos estabeleceu normas para a
identificação da autoria e originalidade de um texto e as orientações básicas irromperam com
maior ou menor ênfase em diversas épocas. Em inícios do século XIX, o filólogo alemão Karl
Lachman e seus contemporâneos formularam regras sistemáticas que vieram a constituir um
método de trabalho que certamente não era desconhecido de Varnhagen quando identificou a
autoria do Tratado Descritivo de Gabriel Soares de Sousa.
A ecdótica moderna possui inúmeras vertentes segundo as tradições consideradas em
cada país. A abordagem escolhida nesta dissertação inspira-se na perspectiva ecdótica atual,
que considera relevantes não apenas os aspectos filológicos, mas a história das reproduções e
recepções de um códice, os aparatos críticos aglutinados ao texto, edições, notas, formatação,
comentários e afins, além de perscrutar o texto pelo que ele mesmo diz e em seu contexto de
produção.
Ignácio Arellano descreve bem a questão em relação às crônicas da América
Hispânica, destacando como a leitura de um documento histórico perdeu, durante um bom
tempo, matizes de análise fundamentais por desconsiderar as características específicas das
narrativas e do processo de fixação do texto.
A interseção entre a análise ecdótica e a História é extremamente valorizada hoje em
Portugal e na Espanha, em relação a toda produção textual contemporânea dos primeiros
tempos da colonização ibérica do Novo Mundo. Seguindo esta direção, no primeiro capítulo,
“A historiografia e O Tratado Descritivo do Brasil em 1587”, percorreremos a historiografia
colonial brasileira nos séculos XIX e XX através de alguns autores representativos,
observando o tratamento e a utilização dados à narrativa de Gabriel Soares. Acompanharemos
como seu escrito se insere nos estudos coloniais para analisarmos a formação da imagem do
autor.
No terceiro e último capítulo, “Com a palavra Gabriel Soares de Sousa: uma leitura a
partir de seus textos”, apresentaremos novas possibilidades de interpretação do escrito do
século XVI, relacionando aspectos que apontamos anteriormente como relevantes; a inserção
do texto num contexto histórico específico; a aproximação com outros escritos coloniais; e a
compreensão do texto como discurso que obedece a protocolos e normas para sua fixação.
Como nossa pesquisa é eminentemente textual e historiográfica, nossas fontes
primárias se subdividem em dois grupos. De um lado, os escritos de Gabriel Soares,
especialmente o Tratado Descritivo e suas várias edições. De outro, seus comentadores, o que
nos leva a um confronto comparativo, que privilegia uma seleção de obras da historiografia
colonial brasileira, a serem analisadas no decorrer da nossa exposição.
CAPÍTULO 1
A historiografia e o Tratado Descritivo do Brasil em 1587
1.1. Gabriel Soares de Sousa, um quase desconhecido
Quem visitar hoje a Bahia e percorrer a cidade de São Salvador, pode descer uma
ladeira denominada Gabriel Soares, que liga o Largo dos Aflitos à Avenida Contorno, parar
no meio do caminho e beber água fresca na Fonte do Gabriel e aproveitar para conhecer o
Mosteiro de São Bento. Encontrará na capela interna uma lápide de mármore, altiva, porém
simples e fria, com a seguinte inscrição: Aqui jaz um pecador.
Tudo leva a crer que lá descansem os despojos do colono Gabriel Soares de Sousa. O
epitáfio foi um pedido que deixou em seu testamento, lavrado em vinte e um de agosto de
1584. Mas poucas informações obterá, além de saber que se tratava de um vulto importante
nos primeiros tempos da configuração da capital baiana. Qual seria sua aparência física?
Gordo ou magro, alto ou baixo, como era seu corte de cabelo? Sem respostas ou imagens,
talvez se suponha que fosse um homem pio e penitente ou, quem sabe, cometera muitos atos
iníquos que justifiquem os termos tão incisivos em seu túmulo. O que podemos dizer é que
este não era um pedido singular para as almas do século XVI e que sabemos, na verdade,
muito pouco sobre quem de fato foi o autor do Tratado Descritivo do Brasil em 1587.
Apresentemos então, sucintamente, os dados que marcam sua trajetória pessoal. É
provável que tenha nascido, por volta de 1540, em Portugal. Embarcou, em 1569, em direção
à Monomotapa, no atual Moçambique. Naquela ocasião, partiram do reino três naves com tal
destino, mas somente uma chegou. Esta expedição, relatada por um contemporâneo, Diogo de
Couto,
1
arregimentou uma grande quantidade de fidalgos e nobres com interesses nas
possíveis riquezas africanas. Gabriel Soares estava entre eles.
As três naus que saíram de Lisboa logo se separaram. Uma retornou ao reino, não
conseguindo ultrapassar as calmarias da região da linha do Equador; outra cumpriu seu trajeto
e a terceira, a nau capitânia, em que embarcara se perdeu e foi dar na Bahia onde invernou.
Refeita do erro de cálculo e reabastecida, ela retomou o rumo da África. Não sabemos se por
ter gostado do que viu ou desconfiado da incerteza dos caminhos marítimos, o jovem Gabriel
Soares preferiu ficar aonde chegou, e fez uma carreira próspera; tornou-se senhor de pelo
menos dois engenhos na região do Recôncavo baiano, proprietário de éguas, bois de carros,
escravos, móveis e índios forros, além de possuir grande quantidade de terras e casas na
cidade de Salvador. Também participou da administração da capitania e, em 1582, assinou
como vereador, o Auto de Aclamação e Juramento de Fidelidade, prestado pelo Senado da
Câmara da Bahia a Filipe II da Espanha. Em 10 de agosto de 1584 redigiu o seu testamento, e
no final do mesmo mês, partiu para a Europa com a finalidade de obter concessões para uma
empresa em busca de riquezas pelo rio São Francisco após, portanto, uma vivência de cerca
de quinze anos como morador da colônia.
Mas parece que a sorte não o favorecia nas viagens. Um novo percalço no mar,
obrigou-o a fundear em Pernambuco. Assim não se sabe ao certo a data em que partiu para o
reino. Nem quando exatamente lá chegou. De qualquer modo, em 1587, Gabriel Soares estava
em Madrid e ofereceu a D. Cristóvão de Moura, influente membro da corte de Filipe II, uma
carta dedicatória de seus escritos. Apresentou um caderno contendo várias anotações e que
veio a formar o Tratado Descritivo do Brasil em 1587 ou Notícia do Brasil, acompanhado, ao
1
Diogo de Couto (1542? - 1616), na Década IX, descreve que a notícia do empreendimento “abalou toda Lisboa
e acudiram muitos fidalgos pera se acharem nela, e tanta gente houve que sobejava pera outra armada”. Gabriel
Soares de Sousa, Notícia do Brasil. Comentários e notas de F. A. de Varnhagen, Manuel A. Pirajá da Silva e
Frederico Edelweiss. São Paulo: Ed. Patrocinada pelo Departamento de Assuntos Culturais do M.E.C., 1974. A
citação provém da “Introdução” elaborada por Augusto Pirajá da Silva, p.276. Todas as notas referentes ao
Tratado Descritivo do Brasil em 1587 procedem desta edição.
que tudo indica, de um texto denunciador das ações da Companhia de Jesus no Brasil
posteriormente denominado de Capítulos de Gabriel Soares de Sousa contra os padres da
Companhia de Jesus que residem no Brasil.
2
Em dezembro de 1590, foram despachados os requerimentos de Gabriel Soares,
conferindo-lhe uma série de concessões, como o título de “Capitão - mor e Governador da
conquista e descobrimento do rio São Francisco”; o direito de nomear, por seu falecimento,
um sucessor, que gozaria dos mesmos títulos e poder; a permissão de prover todos os ofícios
da justiça e da fazenda, no seu distrito; o direito de distribuir o foro de cavalheiros fidalgos a
cem pessoas que o acompanhassem; e, além de vários outros itens, obteria o título de
Marquês.
As prerrogativas alcançadas evidenciam o êxito das negociações e articulações na
corte, tanto assim que retornou à colônia em 1591, na urca flamenga Grifo Dourado, com
cerca de trezentos e sessenta homens e armas. Mas, como de costume, os infortúnios no mar o
acompanhavam. Ao se aproximarem da enseada de Vaza-Barris, no litoral de Sergipe, a
embarcação tombou e muitos náufragos se lançaram ao mar, afogando-se nas ondas.
O fôlego do fidalgo não cessou. Numa sétia, embarcação pequena da Ásia, remeteu os
sobreviventes, inclusive os da fazenda real, para a Bahia, enquanto ele e outros oficiais
seguiram a pé em cinco companhias. Lá chegando, o governador D. Francisco de Sousa
recebeu ordens de auxiliá-lo na reorganização da conquista. Isto feito retornou ao seu
engenho, no Jaguaribe. Os capitães Pedro da Cunha de Andrade e Gregório Pinheiro
desistiram do empreendimento. Soares partiu com duas companhias em busca do que parece
ter sido seu grande objetivo: a descoberta de minas e pedras preciosas, que naquele momento,
tudo apontava se localizarem na direção das nascentes do rio São Francisco.
2
Gabriel Soares de Sousa, “Capítulos que Gabriel Soares de Sousa deu em Madrid ao SR.D. Cristóvam de
Moura contra os padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil, com umas breves respostas dos mesmos
padres que deles foram avisados por um seu parente a quem os ele mostrou”. Introdução do Padre Serafim Leite.
Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 62: 340-381, 1942.
Contudo, dessa vez o destino lhe foi fatal: não se sabe se por doença ou por vingança -
numa das versões os índios aprisionados se rebelaram e ele foi ferido - faleceu antes de ter
visto a famosa Lagoa Dourada ou Eldorado, no mesmo lugar onde seu irmão João Coelho de
Sousa, que passou três anos no sertão baiano, sucumbira tempos antes.
3
O caderno apresentado por Gabriel Soares em Madrid, que veio a constituir um dos
registros mais importantes do primeiro século de colonização, requer duas considerações
preliminares. Em primeiro lugar a questão da obra em seu contexto espaço-temporal de
produção, em que se postulam as perguntas elementares de uma análise documental: a quem
Gabriel Soares se dirigira, como se apresentou, quais foram seus pares nesta aventura da
escrita? A historiografia recente articula estas perguntas a uma problemática em fase atual de
aprofundamento, que diz respeito à abordagem do período da União Ibérica como específico
na história das relações político-administrativas, entre metrópole e colônia.
No outro encaminhamento persiste uma questão comum a maior parte dos relatos
coloniais: a defasagem temporal entre o lugar de produção, descobrimento e valorização
historiográfica. Esta vertente interpretativa se inicia no século XIX, com a historiografia da
nação recém emancipada e segue até hoje, num refazer-se de concepções teóricas e
metodológicas e conseqüente enfrentamento e absorção do documento original.
A distância temporal que marca o momento da elaboração do texto do da sua recepção
estabelece um vácuo, uma distensão para a compreensão do discurso colonial, que passa a ser
instrumento na reconstrução ou reinterpretação de um tempo pretérito. Esta recuperação que
transforma o testemunho em fonte histórica nos insere na relação entre história e memória.
Relação sempre estreita que marca a leitura e o recorte que se fez sobre o texto e que permite
percepções diversas tanto do período original em que foi elaborado quanto do próprio autor.
3
As informações biográficas de Gabriel Soares de Sousa provêm de F. A. de Varnhagen, Pirajá da Silva,
Cláudio Ganns e José Honório Rodrigues.
Em 1914, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
4
publicou um
número consagrado ao Primeiro Congresso de História Nacional, onde o Dr. Lúcio José dos
Santos apresentou uma tese intitulada “O Domínio Hespanhol”. Com estilo personalista e
aguerrido, o estudioso formado em Direito e especialista em diversos temas, além de profundo
religioso, defende suas posições teóricas e metodológicas apresentando uma crítica ao que
considerou uma antiga interpretação do período de união das coroas, um momento de
obscurantismo, de trevas e de espera pela Restauração. Para ele, autores portugueses e
protestantes possuíam uma visão sectária, uns pela tradição, outros pela oposição ao
catolicismo exacerbado do monarca Filipe II.
O Dr. Lúcio José considera o período como singular e que representara novos tempos
promissores ao Brasil, na expansão territorial, na legislação e no culto ao patriotismo. A
neutralidade científica com que pretendia abordar o tema estava longe de significar a anulação
de suas posições políticas:
Livres, igualmente dos ardores patrióticos dos historiadores
portugueses, e dos ódios sectários dos protestantes, podemos julgar mais
serenamente este passado remoto, considerando o domínio espanhol no Brasil
como uma fase interessante de nossa vida colonial, que não reprimiu nem
conteve, antes reforçou e acelerou a nossa marcha para a liberdade que a sete
de setembro de 1822, devia coroar três séculos de lutas, de trabalhos e de
sacrifícios.
5
O tom pessoal do autor não embaçou o pioneirismo e a pertinência de suas colocações.
Tanto assim que uma perspectiva semelhante seria apresentada anos depois, na coleção
organizada por Sérgio Buarque de Holanda, História geral da civilização brasileira. Um
capítulo de poucas páginas, “O Brasil no período dos Filipes (1580-1640)”, elaborado por
Antonia Fernanda Pacca de Almeida e Astrogildo Rodrigues de Mello, dedicou-se à fase que
4
Doravante denominada apenas de Revista do IHGB.
5
Revista do IHGB. Tomo Especial. Consagrado ao Primeiro Congresso de História Nacional. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, Parte I, 7- 16 de setembro de 1914, p. 336.
os portugueses consideraram como “melancólica tragédia”. Os autores defenderam que
Passados os 60 anos que marcaram o período dos Filipes no Brasil, transformou-se
inteiramente a paisagem da colonização, como também o elemento humano da Colônia.
6
O artigo precursor indicava a época filipina como um terreno fértil em inovações, em
problemáticas historiográficas e fontes a serem analisadas. Houve ausência de uma política
colonial lusitana para a colônia ou uma mudança político-administrativa fundamental? Para
responder a esta pergunta em aberto, o artigo apontava a necessidade de novas pesquisas.
Na esteira da abordagem de Fernanda Pacca, Roseli Santaella Stella, sua orientanda no
curso de Pós-graduação da Universidade de São Paulo, averiguou o que a mestra preconizara
e analisou uma série de documentos no Arquivo Geral de Simancas.
7
Lá se encontram textos
relativos ao período do Brasil filipino. Suas conclusões aferiram uma particularidade singular
entre a autonomia portuguesa e a consciência do domínio imperial espanhol. A autora destaca
a influência castelhana nas instituições, nas atividades econômicas e nas realizações culturais.
A produção intelectual se evidencia também nesta fase. Os textos deixados por Gabriel
Soares, Fernão Cardim, Ambrósio Fernandes Brandão, Frei Vicente de Salvador são
exemplos de documentos deste período em que se esboçava a primeira escrita colonial.
O período filipino vem sendo abordado como específico na historiografia colonial, o
que redimensiona o escrito de Gabriel Soares bem como os de outros cronistas, situando-os
num contexto administrativo, econômico, político e social de exclusivas relações de poder.
O artigo “O Estado no Brasil filipino - uma perspectiva de história institucional”,
8
do
historiador Arno Wehling aponta exatamente nessa direção. Considera o período inicial da
União Ibérica, compreendendo os anos de 1580 a 1599, como a fase reativa ou preliminar do
6
Antonia Fernanda Pacca de Almeida e Mello Wright e Astrogildo Rodrigues de Wright, “O Brasil no período
dos Filipes ( 1580-1640)”. Org. de Sérgio Buarque de Holanda. História geral da civilização brasileira. São
Paulo: Difusão Européia do Livro, v.1, p.176-189, 1963, p. 187.
7
Roseli Santaella Stella, O Brasil durante el gobierno espanhol -1580-1640. Madrid: Fundación Histórica
Tavera, 2000.
8
Arno Wehling, “O Estado no Brasil filipino - uma perspectiva de história institucional”. Revista do IHGB. Rio
de Janeiro, 166 (426): 9-55, jan/mar. 2004.
novo governo, caracterizada pela resposta às ameaças estrangeiras e ao desregramento dos
costumes. Daí a conquista do Rio Grande do Norte, os ataques a embarcações e o envio a
Salvador da primeira visitação do Santo Ofício, em 1591, ano em que apareceriam as
primeiras ações efetivas ou os esboços da fase proativa, quando a presença espanhola passaria
a deixar sua marca peculiar de governo.
Uma das ações seria, junto com a reorganização das finanças e o envio da Visitação, o
apoio à expedição de Gabriel Soares em direção ao interior, devidamente incumbido de
estabelecer marcos de reconhecimento e de posse nas áreas por ele exploradas. Esta política
seria logo descartada em prol das áreas litorâneas e retomada apenas após a Restauração
portuguesa. Ainda que o colono seja apenas tangenciado no artigo de Wehling, trata-se da
primeira referência direta da relação entre os intuitos de Gabriel Soares e as especificidades
de um novo período administrativo.
O texto do Tratado Descritivo do Brasil em 1587 foi publicado pela primeira vez pela
Academia de Ciências de Lisboa em 1825. O padre Manuel Ayres de Cazal, o escritor francês
Ferdinand Denis, bem como o médico e botânico Karl Friedrich Philipp von Martius
atribuíram sua autoria a Francisco da Cunha, cujo nome foi encontrado gravado em uma das
cópias manuscritas portuguesas. Entretanto, a inscrição é uma anotação posterior. Ademais,
Francisco da Cunha foi oficial português que viveu no século XVII, quando Gabriel Soares já
não mais vivia.
A reconstituição da autoria e da autenticidade do documento só foi realizada por
Francisco Adolpho de Varnhagen, em 1838, num estudo intitulado Reflexões críticas sobre
um escrito do século XVI,
9
e significou um marco fundamental para a pesquisa histórica no
Brasil. Capistrano de Abreu enfatizou a importância daquele primeiro estudo: Quando foram
9
F. A de Varnhagen, Reflexões criticas sobre o escripto do seculo XVI impresso com o título de Notícias do
Brasil no tomo 3
º
da Coll. De Not. Ultr. Acompanhadas de interessantes notícias bibliographicas e importantes
investigações históricas. Lisboa, Typ. da Academia, 1839.
publicadas produziram o efeito de uma revelação, abriram um mundo novo às investigações
de todos aqueles que se ocupavam de nossos annaes.
10
O comentário não foi excessivo, ainda eram rarefeitos os estudos documentais naquele
momento. Isto sem falar do conteúdo valioso que estava a ser divulgado. O trabalho de
Varnhagen representava, pois, um marco na aplicação do método crítico ao levantamento de
fontes, contendo uma análise textual comparativa das cópias encontradas pelo estudioso na
Europa com o texto publicado pela Academia.
A apresentação das Reflexões críticas sobre um escrito do século XVI possibilitou um
avanço na carreira do jovem Varnhagen. A partir dela abriram-se as portas da Academia das
Ciências de Lisboa e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
11
onde seria aceito como
sócio correspondente. O “Parecer” sobre as Reflexões foi publicado pela Revista do IHGB, em
1840, avaliando a atribuição de autoria ao apócrifo.
A Comissão de Trabalhos Históricos do IHGB encarregada de examinar o estudo era
composta por três membros: um sócio fundador do Instituto, Candido José de Araújo Vianna,
formado em Direito por Coimbra, pertencente aos quadros dos políticos que participaram da
fundação do IHGB, diretor da Comissão, futuro marquês de Sapucaí e posteriormente
presidente do mesmo Instituto de 1847 até 1875; Rodrigo de Sousa da Silva Pontes,
desembargador e diplomata, e o estudioso Thomaz José Pinto de Cerqueira. Eles analisaram
cada argumento apresentado por Varnhagen e os julgaram “concludentes”.
12
Aceitaram a
sugestão do futuro visconde de Porto Seguro acerca da necessidade de mudança do título de
Notícia do Brasil, como fora publicado em Portugal, para Roteiro Geral e Memorial. A
10
Capistrano de Abreu, “Necrológio de Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto – Seguro”.
Publicado no Jornal do Commercio, de 16 a 20 de dezembro de 1878. In: Ensaios e Estudos-(crítica e história).
1
ª
série, Edição da Sociedade Capistrano de Abreu. Liv. Briguiet, 1931, p.127. José Honório Rodrigues afirma,
na introdução que elabora para esta edição, esta importância, além de ressaltar o valor do artigo de Capistrano de
Abreu que, segundo ele, por sua vez, representa o reconhecimento da importância histórica de Varnhagen.
11
A partir de então, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro será representado como IHGB.
12
“Parecer acerca da obra intitulada Reflexões críticas sobre o escripto do século XVI impresso com o título de
Notícia do Brasil do T.3 da Colleção de Notícias Ultramarinas por Francisco Adolpho de Varnhagen”. RIHGB,
Rio de Janeiro, 2: 109-112, 1840.
publicação portuguesa não estabelecia distinção ao que hoje é um consenso; o volume
comporta dois textos distintos: um Roteiro Geral com largas informações de toda a Costa do
Brasil e o Memorial e Declaração das Grandezas da Bahia de Todos os Santos, de sua
fertilidade e das notáveis partes que tem. A publicação organizada e comentada por
Varnhagen, destacou cada uma das partes e apresentou como título geral o de Tratado
Descritivo do Brasil em 1587.
O “Parecer”, ao mesmo tempo em que elogiava as indicações de erros e alterações
apontados na cópia ultramarina anteriormente publicada, não encerrava a discussão a respeito
da autoria, pois afirmava: “parece que se acha demonstrado” tratar-se de Gabriel Soares.
Revelava, por outro lado, certa condescendência com os erros da edição portuguesa, fazendo
ressalvas de que não havia um consenso entre a ortografia e a pronúncia de diversos termos. O
documento emitido pela Comissão de Trabalhos Históricos equilibra as duas partes e chega,
em determinado momento, a "declarar que está mui longe de levantar querela ao ilustre
autor". O que pode surpreender visto que as Reflexões marcavam a estréia de F.A. de
Varnhagen nos meios de saber, aos vinte e dois anos de idade! Outros fatores deveriam
determinar tal respeitabilidade, como sua filiação, os serviços já prestados na carreira das
armas, além do reconhecimento obtido dentro da própria Academia das Ciências de Lisboa.
Os pareceristas salientaram as citações que comprovavam o aprofundamento do
estudo, elogiaram as informações sobre os manuscritos consultados, mas interpuseram
também algumas observações. A primeira delas diz respeito à Varnhagen atribuir a um erro
do copista o tratamento dispensado ao rei de Espanha, ora designado de Majestade, ora de
Alteza. Segundo a Comissão, a confusão era própria de Soares por ser português e se
encontrar em Madrid. Seguidamente, destacou que houve equívoco de Varnhagen ao aferir o
local do padecimento do Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, pois os autores citados em nota
"são inexatos".
No mesmo ano em que Varnhagen apresentou as Reflexões críticas, 1838, o primeiro
número da Revista do IHGB publicava o Extrato de um Manuscrito que se conserva na
Biblioteca de S. M. o Imperador e que tem por título “Descrição Geográfica da América
Portuguesa”, que veio a ser imediatamente identificado como referente aos capítulos 51 a 70
do Tratado de Gabriel Soares.
13
O texto fora apresentado como fonte preciosa, que fazia
parte do arquivo real, mas sem identificação do respectivo autor. Coincidentemente
Varnhagen se debruçava na Europa sobre o mesmo testemunho, prestando não só um serviço
ao conhecimento histórico erudito, mas também à construção do jovem Império então em
turbulenta afirmação.
O “Parecer” do Instituto não deixou de distinguir divergências, embora evitasse
qualquer confronto direto. É notavelmente conciliador. Não nega as afirmativas de Varnhagen
ou fere os brios dos estudiosos do IHGB, nem tampouco depõe contra a edição portuguesa.
Encontrava-se o sorocabano em Lisboa, não estando presente às periódicas seções do
Instituto, mas desde então passou a participar ativamente das publicações da Revista, como
sócio correspondente.
14
A averiguação de autoria realizada por Varnhagen constituiu, sobretudo, a efetivação
do uso de um método crítico sobre um documento, enfatizando não apenas a necessidade de
publicação das fontes coloniais, mas o trabalho criterioso e científico necessário para a
confirmação de seu valor histórico. A autoria em si não era de todo desconhecida, mas nunca
fora afirmada com tais argumentos.
15
Treze anos depois, a discussão levantada por
13
José Honório Rodrigues, História da História do Brasil. Brasiliana, Vol. 21, São Paulo: Ed. Nacional; INL,
1979, p.436.
14
Seguimos de perto o estudo sobre Varnhagem apresentado por Lucia M. P. Guimarães, “História geral do
Brasil” in: Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico, com organização de Lourenço Dantas Mota. São
Paulo: Senac, 1999, págs. 77-96. José Gomes Bezerra Câmara acrescenta a descoberta do túmulo de Pedro
Álvares Cabral, em Santarém, como fator a mais para o ingresso de Varnhagen no Instituto. “Varnhagen: o
homem e o historiador”. RIHGB, Rio de Janeiro, 328:161-187, jul/set, 1980.
15
O nome de Gabriel Soares foi mencionado em algumas obras editadas em Portugal e Espanha. Uma relação
destas se encontra no estudo de Cláudio Ganns, “O Primeiro Historiador do Brasil em Espanhol”. RIHGB. Rio
de Janeiro: Dep. de Imprensa Nacional, 238: 144-168, jan/março, 1958. O levantamento de todos os testemunhos
se encontra no Quadro n° 2, desta dissertação, p.65.
Varnhagen resultou numa edição impressa sob sua supervisão, acompanhada de notas e
comentários. Durante este período nenhuma contribuição contestou ou simplesmente
comentou as investigações do jovem erudito.
Em 1889, posteriormente inclusive ao próprio falecimento de Varnhagen, Guilherme
Chambly Studart, Barão de Studart, estudioso da história brasileira, publicou no jornal
Tribuna Commercial trechos de um livro que encontrara na Biblioteca de Lisboa denominado
Descrição Geográfica da América portuguesa, que comparou com o de Gabriel Soares e
concluiu que, devido a algumas diferenças, os textos seriam complementares. Em 1906,
retornando a publicar o mesmo em ensaio na Revista do Instituto Histórico do Ceará, o Barão
anunciou que enfim “se convencera” que se tratava do mesmo documento.
16
Este foi o único
trabalho que manifestou dúvida consistente sobre a exegese do documento. E vale destacar
que as divergências das cópias confundiram o especialista.
Foi o próprio Varnhagen quem manteve acesa a pesquisa sobre a vida e a obra do
colono português. Na primeira edição brasileira do Tratado, em 1851, já acrescentara ao texto
uma informação biográfica do autor. Em 1858, ofereceu ao IHGB um artigo denominado
Memória de Gabriel Soares de Sousa, no qual adicionava aspectos colhidos pelo jornalista e
historiador João Francisco Lisboa, malgrado as divergências entre ambos, elucidando itens
desconhecidos ou controversos da vida do colono português. Nele destacava que finalmente a
importantíssima obra que Gabriel Soares de Sousa [...] ultimou em Madrid em 1587, é já
felizmente conhecida no Universo, e o nome do seu autor, desde que com provas autênticas o
restituímos à mesma obra [...].
17
Este estudo não mereceu mais acréscimos ou revisões,
sendo reimpresso em todas as edições do Tratado, com exceção apenas da de 1942, onde só
estão presentes as notas elaboradas por Augusto Pirajá da Silva.
16
José Honório Rodrigues, História da História do Brasil, p.435.
17
F. A de Varnhagen, “Memória de Gabriel Soares de Sousa”. RIHGB. Rio de Janeiro, 21, 1858. 2
ª
ed. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, p.413- 424, 1930, p.413.
Como a historiografia brasileira posterior abordou o período colonial e,
especificamente, utilizou-se do texto então divulgado de Gabriel Soares de Sousa? O século
XIX privilegiou a questão nacional como temática dos estudos históricos. Desde o concurso
do IHGB, vencido por Karl Friedrich Philipp von Martius com a tese “Como se deve escrever
a história do Brasil”, em 1847, o período colonial confirmou-se como principal objeto para a
identificação da originalidade brasileira e em especial, destacando o papel das diversas etnias
formadoras da nação. Assim como em outros países, o programa se materializou na busca das
raízes, o que significava na perspectiva de uma história científica, a busca, a revelação e a
crítica documental. Se as primeiras análises priorizavam os aspectos político-administrativos,
durante o século XX, o foco se deslocou para a formação social. Entretanto, como a colônia
permaneceu e permanece sendo um grande manancial para a busca das identidades ou
idiossincrasias da composição nacional, os elementos formadores estiveram sempre em
relevo, variando o modo como foram incorporados aos diferentes estudos.
Capistrano de Abreu ainda dava os primeiros passos quando Varnhagen trazia à luz
sua obra. O livro Capítulos de História colonial, publicado em 1907, marcou a historiografia
brasileira como um primeiro sopro de questões que seriam valorizadas posteriormente,
balançando entre o que fora e o que viria a ser a historiografia brasileira.
18
Superou a
narrativa político-administrativa associada prioritariamente às análises historiográficas
elaboradas no século XIX, revelando aspectos da economia e da sociedade. A tônica estava
nos assuntos não enfocados pela geração predecessora, em especial, as características do povo
brasileiro, dos elementos simples e do cotidiano.
O livro obedeceu à cronologia, porém recortou temas e apresentou singulares
reflexões. Sua análise da formação social brasileira não foi lá das mais positivas. Três séculos
18
Na véspera das comemorações dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil, o livro As identidades do
Brasil (de Varnhagen a FHC), de José Carlos Reis, oferecia um balanço dos autores fundamentais do
pensamento nacional. Entre eles constavam Capistrano de Abreu, Sérgio Buarque de Holanda, Nelson Werneck
Sodré, Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes, entre outros. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.
depois da descoberta, para Capistrano não havia, ainda, vida social no Brasil por um simples
fato: “porque não havia sociedade”.
19
Capistrano não viu proximidade entre os elementos
étnicos formadores da nação, assim como esteve atento aos conflitos sociais que permearam a
história colonial.
Segundo o historiador cearense, o interesse dos colonos em relação aos índios estava
revelado nos atos: fornecer matéria-prima para a mestiçagem e para os trabalhos servis. Já os
jesuítas possuíam outra visão da natureza humana e, portanto, procuravam ampará-los das
violências dos colonos. Mas nem governo, nem jesuítas, nem colonos possuíam atitudes
lineares e “uma série de tumultos trágicos ou burlescos” marcaram o primeiro século de
colonização.
20
No capítulo destinado aos sertões, analisou o período que denomina da "invasão
flamenga" destacando o tema das minas que encantaram tantos colonos:
Pereceram por fim tais e tantos os vestígios de haveres a uma
inteligência perspícua como a de Gabriel Soares, que abandonou o próspero
engenho de Jequiriçá e perdeu anos com requerimentos junto às cortes de
Lisboa e Madri para prestar à pátria o serviço de revelar-lhe as riquezas
ocultas.
21
Para Capistrano, “a tentativa em que se meteu não provou a verdade destes acertos,
mas perpetuou-lhe o nome”. Disse isto por considerar dever-se a Gabriel Soares o pioneirismo
das grandes penetrações no interior. E não foi por menos, afinal, a expedição aguçara os
interesses dos colonizadores como do próprio governador D. Francisco de Sousa e do
sertanista Belchior Dias Moréia.
Observamos que o termo “pátria” aparece tanto em F. A. de Varnhagen, quanto mais
tarde em Capistrano de Abreu e em Lúcio José dos Santos. Podemos dizer que a terminologia
19
J. Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial. (1500-1800). Rio de Janeiro: Ed. de Sociedade
Capistrano de Abreu, 1934, p.240.
20
Capistrano, Capítulos de História Colonial, p.131.
21
Capistrano, Capítulos de História Colonial, p.160.
nos indica uma visão retrospectiva e anacrônica uma vez que “pátria” referir-se-ia a um
estágio posterior da construção da nacionalidade brasileira relativo à independência, e mais
ainda, a uma concepção ideológica forjada no século XIX. Entretanto, os termos não possuem
a mesma referência para os distintos autores. A pátria de Varnhagen é uma continuidade do
Império lusitano; em Capistrano, trata-se de uma referencia à Coroa, segundo os colonos de
um determinado período; para o Dr. Lúcio pátria é a extensão de uma visão nacionalista.
Capistrano foi responsável, junto com o estudioso Rodolfo Garcia, pelas anotações à
obra História geral do Brasil de Varnhagen. Conhecedor de perto de seus textos, ele
apresentou, no entanto, uma referência muito lacônica a Gabriel Soares, valorizando-lhe o
nome somente pela sua expedição, ainda que citasse também seu "monumental" Tratado. São
nas notas à História geral que Capistrano exercitou uma de suas atividades mais efetivas e
que lhe conferiu semelhança com o mestre antecessor; a exegese documental. O
conhecimento de Capistrano sobre Gabriel Soares se dilui na obra, quase não há referências
diretas. Segundo José Honório Rodrigues: A pressa da encomenda, a rapidez com que teve de
elaborar em um ano estes Capítulos e especialmente o limite de cento e vinte páginas imposto
pelo editor - e Capistrano escreveu trezentas – o impediram de cumprir uma obrigação a que
se sentia consciente e moralmente ligado. Só isto explica a falta das citações.
22
Discípulo de Capistrano de Abreu, Paulo Prado teve a infeliz sorte de terminar seu
Retrato do Brasil pouco tempo após o falecimento do mestre que lhe havia ensinado não só o
amor pela História, mas, acima de tudo, seus métodos. Seu ensaio, publicado em 1928, teve
ampla discussão na época, porém não alcançou o espaço que outros membros da sua geração
obtiveram na historiografia brasileira. Talvez isto se dê pelo teor singular da sua obra: um
retrato triste da nação.
22
J. C. de Abreu, Capítulos de História colonial. Anotada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Publifolha, 2000, p.2.
Aristocrata, empresário, intelectual, mecenas e historiador, para P. Prado era
necessário chafurdar nos equívocos do passado para que uma percepção realista deste
permitisse a libertação de uma política torpe de sua época. Era de um nacionalismo prático e
poético. Seu pequeno ensaio avaliou a chegada dos portugueses ao mundo novo a partir de
preceitos nietzschinianos, a “Vontade individual” suplantando a “Obediência cristã”,
23
além
de enfatizar aspectos ignóbeis da natureza humana, como a cobiça e a luxúria, como motores
da história. Esta “vontade de poder” nos imigrantes ingleses que chegaram no Mayflower
estaria aliada ao utilitarismo,
24
contrariamente ao que aconteceu no trópico.
O olhar de Gabriel Soares foi extremamente útil na afirmação das teses de Paulo
Prado, visto que seus relatos evidenciam pormenores da estranheza dos conquistadores e da
luxúria a que se entregaram na Terra de Vera Cruz. Segundo P. Prado, Gabriel Soares foi “um
dos mais sagazes observadores do século”.
25
Dele obtêm subsídios como os que dizem
respeito ao Caramuru, por exemplo, evidenciando a transformação que se dava com os
primeiros homens brancos aqui advindos e como se mesclavam culturalmente. Cita partes em
que o cronista relata os costumes dos tupinambás, para ressaltar o ambiente que era
encontrado: Do contato dessa sensualidade com o desregramento e a dissolução do
conquistador europeu surgiram as nossas primitivas populações mestiças.
26
Retira de
Gabriel Soares, ainda, o termo para definir as ações dos colonizadores com suas múltiplas
variações sexuais descritas pelas Ordenações do Santo Ofício, a pedofilia, o pecado nefando,
as homilias, enfim, tudo “sujidades”.
27
Por outro lado, para Paulo Prado, Gabriel Soares também era protagonista da história
da cobiça, ao lado de Francisco Bruza de Espinhosa (que acompanhou João de Aspicuelta
23
Paulo Prado, Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Carlos Augusto Calil (org.). 8
a
edição. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.54.
24
P. Prado, Retrato do Brasil, p.132.
25
P. Prado, Retrato do Brasil, p.74.
26
P. Prado, Retrato do Brasil, p.76.
27
P. Prado, Retrato do Brasil, p.81.
Navarro), de Vasco Rodrigues, de Sebastião Fernandes Tourinho e Antonio Dias Adorno,
todos homens que partiram atrás de riquezas.
28
Porém, P. Prado identificou neles o mérito de
um povoamento e exploração organizados, diferentemente dos castelhanos em suas entradas
sangrentas pelo continente. Propôs, inclusive, uma divisão das bandeiras na ótica de
Capistrano, organizando-as e esquematizando-as.
No pandemônio dos primeiros momentos da colonização, escapavam aos vícios, duas
categorias: os jesuítas e os burocratas. Os primeiros pelo mérito que lhes era imbuído e por
representarem o que denominou de “poder moderador” afirmando que a influência dos
jesuítas foi sempre ativa, direta, constante, exercendo-se em cada família e cada indivíduo
para ser eficaz sobre a coletividade.
29
Os burocratas, que seriam aqueles que atuavam em
órgãos oficiais, não seriam contaminados pelo desregramento geral devido à apatia
administrativa. É extremamente imprecisa esta aferição, pois as esferas do público e do
privado estão imbricadas, como destacou Fernando A. Novais.
30
De qualquer modo, a análise
de Paulo Prado enfatiza a existência de uma clara distinção entre a atuação dos religiosos e
aquela empreendida pelos colonos.
Segundo P. Prado, como conseqüência da luxúria e da cobiça, viria a tristeza ou
melancolia, e seguindo este encadeamento lógico, existiriam povos alegres e povos tristes. No
Brasil, ao contrário da geografia humanista que associa clima quente à alegria, teríamos em
todo o território a tristeza, à exceção do carioca marítimo e globalizado e do cavalheirismo
gaúcho. Admira-nos sua posição contrária ao senso comum atual, pois considerava que o
alemão era jovial e o inglês alegre, frente ao brasileiro, taciturno e submisso.
31
Seja como for
28
Para maiores detalhes de cada expedição o organizador oferece notas explicativas, p. 98.
29
P. Prado, Retrato do Brasil, p.107.
30
Fernando A. Novais, “Condições de privacidade na colônia”, p.13-39. In: Laura de Mello e Souza (org.).
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
31
Interessante notar que aparece em Varnhagen o tema da tristeza de Paulo Prado: “Apesar de tanta vida e
variedade de matas-virgens, apresentam elas um aspecto sombrio, ante o qual o homem se contrista, sentindo que
P. Prado valorizou o Tratado de Gabriel Soares como fonte, certamente sempre para reforçar
sua singular interpretação o que não deixa de ser importante, pois revela uma leitura
específica que destaca os aspectos da estranheza conquistadora nas palavras do cronista.
No mesmo ano do lançamento da obra de Paulo Prado, 1928, o jornal O Brasiliense de
Salvador publicou um pequenino artigo de uma lauda, anônimo, intitulado “O jazigo de
Gabriel Soares de Sousa”.
32
O texto era direto, contundente e seu objetivo consistia em
confirmar o fato de que fora encontrado na catedral baiana o túmulo do “mallogrado avoengo
autor do Tratado Descritivo do Brasil” pelo Dr. Guilherme Foeppell. A contribuição não
assinada, confirmava o falecimento de Gabriel Soares de Sousa longe da capital baiana, em
lugar desconhecido e longínquo e o translado dos seus despojos em 1596. Declarava ainda
que seu objetivo fora alimentar a investigação histórica que pouco chamava a atenção naquele
período e afirmava que nutria a persuasão de haver deparado com o determinado local do
falecimento de Gabriel Soares. Assim, estavam sendo retificadas as verificações de
Varnhagen setenta anos após aquela breve biografia.
Naquela ocasião, apesar de não haver assinado o artigo, seu autor prontificava-se a
prestar as informações que lhe fossem solicitadas por estudiosos competentes, já que alguns
pontos da biografia de Soares permaneciam obscuros e controversos. Tratava-se de um
exemplo de valorização da pesquisa histórica aglutinando uma série de procedimentos como a
erudição, o cotejamento de fontes, a descoberta destas em arquivos e coleções e a verificação
física e pessoal. O pesquisador anônimo foi revelado, em 1958, pelo estudioso Claudio
Ganns: tratava-se de Teófilo Azevedo, que publicara o mesmo texto na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico da Bahia. A investigação realizada por Teófilo de Azevedo tanto
o coração se lhe aperta, como no meio dos mares, ante a imensidade do oceano.” História geral do Brasil . 4
ª
ed.
São Paulo: Melhoramentos, s/d., Tomo 1, p.143.
32
Teófilo Azevedo, “O jazigo de Gabriel Soares de Sousa”. RIHGB da Bahia. Salvador, 54(2): 257-261, 1928.
tempo decorrido da Memória de Varnhagen, enfatizava uma concepção da pesquisa histórica
predominante no século antecedente.
O século XIX é, sobretudo, o século do início da historiografia narrativa ou moderna,
seus antecedentes se encontram num amálgama de tendências que remetem ao Renascimento.
No alvorecer da Idade Moderna, o interesse pela Antiguidade Clássica conduz à investigação
crítica dos documentos antigos. A obra De re diplomatica, de 1681, do beneditino francês
Jean Mabillon representa uma referência histórica na genealogia do método erudito.
Entretanto, o interesse pela reconstituição do passado remonta aos próprios tempos antigos
quando já se distinguem os itens que diferenciam a História da obra dos antiquários, amadores
ou cronistas. Como expõe Arnaldo Momigliano,
33
a História serve à cronologia, apresenta
fatos e dados numa argumentação explicativa em vista de um problema e, sobretudo responde
a uma finalidade contemporânea. Os segundos utilizam um plano lógico e sistemático para
apresentar os materiais reunidos sobre um tema ou sujeito e a pesquisa possui um fim em si
mesma.
A história produzida no século XIX herda concepções da antiga história erudita e dos
antiquários, provenientes de séculos anteriores. Porém, novas questões se impõem: como a
integração do conhecimento a um sentido e papel público. O estabelecimento da História
como disciplina ainda requer que se considere a disputa de poder sobre o passado.
34
33
Arnaldo Momigliano, “L’histoire ancienne et l’Antiquaire” in: Problèmes d`historiographie. Ancienne et
Moderne. Paris: Éditions Gallimard, p. 244-293, 1983.
34
A complexidade deste período é ressaltada em diversos autores como Francisco Iglesias em História e
Ideologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 90. Arno Wehling em A invenção da História: estudos sobre
o historicismo. Rio de Janeiro: UFF-UGF, 1994. Na tese de Lucia M. Paschoal Guimarães, “Debaixo da
imediata proteção de Sua Majestade Imperial: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889)”.
RIHGB, Rio de Janeiro, 156 (380), jul./set, 1995. Manuel Luis Salgado Guimarães analisando “A Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e os temas de sua historiografia: fazendo a história nacional”, na
publicação organizada por Arno Wehling, Origens do IHGB. Rio de Janeiro: 21- 42, 1989. E no artigo “Entre
amadorismo e profissionalismo: as tensões da prática histórica no século XIX”, publicado pela Revista Topoi,
Rio de Janeiro, v.3, p.184-200, 2002. Para a parte historiográfica, nos baseamos, entre outros, em Georges Le
Fevre, El nascimento de la historiografia moderna. Costa Roca: Barcelona, 1974; e ainda em Guy Bourdé &
Herve Martin, As Escolas históricas. Lisboa: Publicações Europa América, 1996.
De forma geral, reúnem-se três tradições. A história relato ocupada essencialmente
com uma mensagem moral e pedagógica, empreendida desde a metade do século XVII. Outra
proposta é representada pelas obras de Montesquieu, Kant e Hegel que apresentam esquemas
explicativos baseados na razão; a história filosófica. Por fim, outra importante escola foi a
erudita, fundamentada na crítica sistemática de documentos, a partir dos estudos do monge
francês, que legitimiza o reconhecimento da autenticidade ou não de um documento como
respaldo fundamental para o relato historiográfico, baseado na ordem cronológica, na exegese
do documento e na verificação ortográfica. Os agentes históricos priorizados eram aqueles
relacionados aos acontecimentos políticos e religiosos. A escola erudita desenvolveu a
valorização das notas explicativas que evidenciam a importância dada à crítica documental.
A historiografia do século XIX fundamenta-se primordialmente na crítica documental
enquanto critério de cientificidade. A importância ou o status elevado que assume a função do
intelectual historiador coincide com o período de formação dos Estados Nacionais, um
modelo específico de organização da humanidade na época moderna. Desde a criação dos
Estados Unidos da América, em 1776, e do processo revolucionário pelo qual passou a
França, em 1789-1791, esta forma não cessou de se desenvolver e de se expandir.
35
Preconceitos teóricos e metodológicos marcaram o olhar posterior sobre o século XIX
ao relacionar a história então produzida a uma narrativa a serviço do poder estabelecido pelos
Estados Nacionais, moldando a leitura dos fatos em vista de uma interpretação linear sob os
preceitos historicistas. Esta imagem negativa foi especialmente pertinente para a historiografia
do início do século XX, ao preocupar-se em se distinguir daquela. Todavia, além de não
constituir um conceito homogêneo, o historicismo que foi e ainda é amplamente negado como
modelo explicativo, está presente em grande parte das análises históricas atuais, como adverte
Francisco Falcon, elencando algumas destas sobrevivências. Entre os critérios que detecta nas
35
Sobre a formação dos Estados Nacionais há uma vasta bibliografia. Utilizamos aqui, entre outras, idéias do
livro La Nation entre l’histoire et la raison, organizado por Jean-Yves Guiomar. Paris: Éditions La Dècouverte,
1990.
“novas histórias” registra: [...] o caráter histórico de qualquer fenômeno social ou humano
[...], a diferença fundamental entre fatos naturais e fatos histórico-sociais ou humanos e a
certeza de que o sujeito e o objeto do conhecimento estão igualmente imersos no curso da
História. E acrescenta a afirmação da cientificidade do conhecimento histórico, recusando seu
enquadramento como arte ou literatura, a possibilidade de construção de um conhecimento
“verdadeiro” e o compromisso com o realismo histórico.
36
Recuperando tais princípios,
Falcon destaca a presença de um paradoxo: a ausência (negação do termo e de seus
princípios) e a presença do historicismo na historiografia contemporânea.
Este pequeno apêndice justifica-se pela percepção que obtemos da coexistência de
diferentes tradições historiográficas presentes na leitura realizada da obra de Gabriel Soares.
Por ora, continuemos ouvindo os historiadores.
O Tratado Descritivo do Brasil também serviu de fonte para Gilberto Freyre no livro
Casa Grande e Senzala. Sua publicação data de 1933, considerada um marco da historiografia
e do pensamento social brasileiro. Obra ensaística, inovadora em métodos, fontes e
abordagens tratava da formação social da família patriarcal brasileira, recuperando aspectos
culturais antes relegados enquanto temática histórica.
Censurado pela visão paternalista da escravidão, aspecto, aliás, muito salientado por
seus críticos, o objetivo principal de Gilberto Freyre foi o de destacar os elementos que
considerou harmoniosos na formação do caráter nacional, valorizando as relações amistosas e
as somatórias culturais. As idéias de flexibilidade e improvisação, conseqüentemente,
ganhariam ênfase.
Na visão de Freyre, apareceriam reproduzidas algumas perspectivas analíticas
presentes em Varnhagen e Capistrano, como a dicotomia avançado-atrasado, civilizado-
bárbaro, inferior-superior. Entretanto, mais do que qualquer outro até então, ele valorizaria as
36
Francisco J. Calazans Falcon, “Historicismo: a atualidade de uma questão aparentemente inatual”. Tempo, Rio
de Janeiro, 4: 5-26, 1997, p.24 e segs.
trocas culturais presentes no processo de miscigenação. E, neste processo, apresenta
claramente as perdas da cultura dita “inferior”.
Segundo Gilberto Freyre, a sociedade brasileira se constituiu harmoniosamente em
relação à absorção de elementos culturais, o que não significou que este processo tivesse sido
propriamente harmônico. Nas relações entre colonos, jesuítas e povos indígenas, o autor
destacou:
Considerando neste ensaio o choque das duas culturas, a européia e a
ameríndia, do ponto de vista da formação social da família brasileira - em
que predominaria a moral européia e católica - não nos esqueçamos,
entretanto, de atentar no que foi para o indígena, e do ponto de vista de sua
cultura, o contato com o europeu. Contato dissolvente. Entre as populações
nativas da América, dominadas pelo colono ou pelo missionário, a
degradação moral foi completa, como sempre acontece ao juntar-se uma
cultura, já adiantada, com outra atrasada.
37
Em Freyre não encontramos uma idealização da ação jesuítica: “o missionário tem
sido o grande destruidor de culturas não européias, do século XVI ao atual; sua ação mais
dissolvente que a do leigo”.
38
Para além das perdas culturais dos povos ameríndios, Freyre
percebe que interesses materiais semelhantes aos dos colonos marcaram a ação daqueles
religiosos:
A verdade, porém é que dominou as missões jesuíticas um critério, ora
exclusivamente religioso, os padres querendo fazer dos caboclos uns dóceis e
melífluos seminaristas; ora principalmente econômico de se servirem os
missionários dos índios, seus aldeados, para fins mercantis; para
enriquecerem, tanto quanto os colonos, na indústria e no comércio de mate,
de cacau, de açúcar e de drogas.
39
Quanto aos conflitos entre os agentes colonizadores, Freyre não os desenvolveu em
detalhes, mas assinalou a sua existência. Ainda que corroborando com a idéia dicotômica de
37
Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Record,1998, p.108.
38
Freyre, Casa Grande…, p.109.
39
Freyre, Casa Grande…, p.147.
jesuítas versus colonos que iremos encontrar mais claramente adiante, poderíamos dizer que
apresentou algumas imagens invertidas: o colono ganhou em alguns momentos cores mais
leves, enquanto o jesuíta perdeu a aura santa. Os embates ou tensões sociais existentes na
colônia não constituíam o foco da análise de Freyre, mas podemos dizer que ele também
neste ponto ofereceu caminhos que só foram seguidos mais recentemente pela historiografia
brasileira.
Enfatizando especialmente o tema da sexualidade como um marco da formação da
nação, o autor esbanjou citações de Gabriel Soares, fartas neste aspecto, e avaliou o seu horror
e exagero em semelhança com os demais colonizadores: Era natural a europeus
surpreendidos por uma moral sexual tão diversa da sua concluírem pela extrema luxúria dos
indígenas; entretanto, dos dois povos, o conquistador talvez fosse o mais luxurioso.
40
Sem
uma idealização do olhar distanciado, percebeu o senhor de engenho com “sagacidade de
homem prático”.
41
Freyre apresentou, pela primeira vez, uma contextualização do colono e
de sua ótica. Convém lembrarmos que a obra de Freyre é vastíssima, muito embora Casa
Grande e Senzala seja a mais conhecida. Em outras contribuições, ele também se utilizou não
apenas de Gabriel Soares, mas sobretudo das notas preparadas por Varnhagen e Pirajá da
Silva.
42
No estudo Primeiros Povoadores do Brasil, que compõe uma série de obras sobre o
período colonial, J.F. de Almeida Prado analisou a sociedade brasileira em sua formação.
Conhecedor das fontes de história colonial, divulgador e fomentador da necessidade de
40
Freyre, Casa Grande…, p.101.
41
Freyre, Casa Grande..., p.144.
42
Por exemplo, em Sobrados e Mucambos, cita inúmeras vezes Gabriel Soares em aspectos de moradia, de
urbanização e de alimentação. Neste último aspecto, aliás, faz um comentário bastante irônico, como é bem
característico seu, ao citar o colono que dizia ser mais saboroso o pirão do que o arroz: “[...] diz-nos Gabriel
Soares, que deve ter sido o senhor de engenho mais glutão de seu tempo.” Conclusão que deve partir dos
detalhes que oferece sobre o sabor e a feitura dos alimentos. 10
ª
edição - Rio de Janeiro: Record, 1998, p.37.
conhecimento dos arquivos europeus para a construção de uma historiografia brasileira
43
valeu-se, inúmeras vezes em suas obras, de Varnhagen, de Gabriel Soares e de Fernão
Cardim, especialmente para a análise dos grupos indígenas no período colonial.
Comparou as informações dos dois autores coloniais, observando que, pela diferença
dos dados fornecidos, Cardim ocupava-se basicamente dos Tapuias, enquanto Gabriel Soares
tratava dos Tupis. Demonstrou pelas mudanças de localização e subdivisões de tribos, que
ocorreu uma movimentação surpreendente destes povos no período do descobrimento.
Considerou Cardim “sempre imaginoso ao descrever”
44
e, avaliando a relação entre brancos e
índios, permeou: Não só o branco muitas vezes ultrapassava o selvagem em ferocidade como
ainda, quase sempre, o corrompia: Gabriel Soares de Sousa encontrou o silvícola já
pervertido por cinqüenta anos de vizinhança com europeus.
45
Vale notar que esta dimensão
temporal de Gabriel Soares face aos primeiros momentos da colonização nem sempre foi
considerada por seus analistas. O mais freqüente foi a utilização de suas descrições como
testemunho da situação indígena na época do descobrimento, como se seus comentários
consistissem em um retrato de uma cultura indígena pura e intacta. Segundo Almeida Prado, a
origem das críticas feitas por Gabriel Soares sobre os vícios dos indígenas poderia ser
explicada pelas palavras do filósofo francês Michel de Montaigne quando disse que os
invasores “estoint beaucoup plus grand maistres qu’euex en toute sorte de malice”. Estas
influências dos brancos que corromperam os indígenas vieram da sorte de homens que
chegaram ao Brasil atirados pelas Ordenações do Reino, nem todos seriam “poços de
ignomínia, mas tampouco seriam santos”.
46
43
J.F. de Almeida Prado apresenta sua familiaridade e preocupações no artigo “Fontes Primárias para o estudo
das explorações e do reconhecimento geográfico no século XVI.” Nele cita como imprescindíveis a qualquer
análise as obras de Serafim Leite, Fernão Cardim, Gabriel Soares e Frei Vicente do Salvador. Publicação do
Inst. de Administração da Faculdade de Ciências Econômicas e Adm. da Universidade de São Paulo, 21, 1948.
44
J.F. de Almeida Prado, Primeiros Povoadores do Brasil. Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira.
São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1935.
45
Almeida Prado, Primeiros Povoadores..., p.186.
46
Almeida Prado, Primeiros Povoadores..., p.186.
J.F. de Almeida Prado escreveu posteriormente uma coleção dedicada à História da
formação da sociedade brasileira cuja concepção ideológica defendida foi a de que o
estudioso se liberasse de propensões, prevenções ou conveniências pessoais, num supremo
esforço para chegar à serenidade com que deve ser lida a história.
47
Este estudo de 1942 foi
marcado por um olhar perplexo saído das trincheiras, questionador das razões do mal, e
especialmente, dos caminhos conduzidos pelo progresso que, para o autor, não era em si nem
benéfico nem maléfico, mas também não pôde conduzir “à Terra-sem-males dos Tupi”.
48
No
fundo, realizara uma crítica aos caminhos conduzidos pelo pensamento de Hegel, em que o
progresso infinito conduziria ao desenvolvimento por completo do Estado. Este alcançaria o
estágio totalitário, esmagando, com seu poder, o povo, da mesma forma que o capitalismo
atingiria o mesmo fim provocando o “agravamento da situação das massas”, sem trabalho e
sem poder de consumo.
49
Outro estudo que se serve constantemente de Gabriel Soares de Sousa é a obra
História da Companhia de Jesus no Brasil, do padre jesuíta Serafim Leite, especialmente o
primeiro e o segundo volumes que focalizam o século XVI. O grande destaque de Serafim
Leite, em relação ao colonizador português, consistiu na revelação de trechos dos Capítulos
de Gabriel Soares, até então inédito, ao qual tivera acesso nos Arquivos da Companhia de
Jesus. Este texto é formado por quarenta e quatro itens intitulados Informações que relatam de
maneira negativa a atuação dos membros da Companhia de Jesus nas terras brasileiras. Foi
oferecido em segredo ao rei Filipe II, provavelmente por volta de 1587. Entretanto, logo
chegou ao conhecimento dos padres e obteve respostas elaboradas por grandes nomes da
Companhia de Jesus, em 1592.
47
Almeida Prado, A Bahia e as Capitanias do Centro do Brasil ( 1530-1626) – História da Formação da
Sociedade Brasileira. Série 5ª Brasiliana. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 247: 7-13, 247-a, 247-b, 1945, p.7.
48
Almeida Prado, A Bahia e as Capitanias do Centro do Brasil, p.11.
49
Almeida Prado, A Bahia e as Capitanias do Centro do Brasil, p.24.
Ao utilizar-se de tal documento o jesuíta Serafim Leite havia de considerar as
discórdias entre seculares e religiosos e, logo no “Prefácio’ ao primeiro tomo, adverte que os
cronistas da Companhia são em geral complacentes com os índios [...] e severos para com os
colonos. Pelo contrário, os cronistas seculares, em particular Gabriel Soares de Sousa e
Varnhagen, carregam as cores a respeito dos Índios do Brasil, para justificarem as investidas
dos colonos que assim parecem melhorados.
50
O objetivo desta anunciação preliminar seria
garantir a neutralidade do leitor para os excessos de ambos os lados. Todavia, o historiador
religioso apresenta Gabriel Soares como grande detrator dos inacianos, invejoso, movido pela
cupidez e “porta voz dos colonos” contra os padres.
51
E, quando menciona o Tratado
Descritivo, não faz nenhum daqueles elogios apontados pelos estudiosos antecedentes sobre a
sagacidade, exuberância ou inteligência do colono.
Naquela mesma ocasião, Sérgio Buarque de Holanda escrevia uma coluna no jornal
Diário de Notícias, na sessão Vida Literária - poesia e crítica, e não deixou passar em branco
a revelação surpreendente. Nos artigos dos dias 8 e 15 de dezembro de 1940, solicitou ao
ilustre jesuíta a publicação dos Capítulos na íntegra em tons que tornariam a negação de certa
forma suspeita de ocultação interessada.
O pedido foi atendido e o texto desconhecido publicado pelos Anais da Biblioteca
Nacional.
52
Convém ressaltar que Serafim Leite foi responsável pela divulgação de uma série
de documentos, como inúmeras cartas jesuíticas, que mereceram elogios por parte do
historiador Sérgio Buarque. Assim como o jesuíta agradeceu a crítica do erudito e a consulta
50
Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa; Rio de Janeiro: Livraria Portugália;
Civilização Brasileira, 10 vol., 1938-1950. Tomo I, 1938, p.XI. Certamente esta associação entre Varnhagen e
Gabriel Soares como cronistas e com objetivos semelhantes ultrapassa as necessidades de contextualização
histórica. Vale destacar que esta obra monumental foi elaborada durante dezoito anos, de 1932 a 1950.
51
Serafim Leite, História da Companhia, Tomo II, p. 212. Vale apontar que Serafim Leite apresenta outras
cartas de jesuítas fundamentais para a compreensão da atuação de Gabriel Soares de Sousa e que até hoje não
foram adicionadas aos seus estudos. Sobre este texto tão específico elaboramos o artigo “Mexericos de
Soalheiro”, publicado pela Revista Nossa História. Ano 4, n° 37, novembro de 2006.
52
“Capítulos de Gabriel Soares de Sousa...”. Op. Cit..
que realizou em sua “livraria rica em obras sobre a origem do Brasil”.
53
O que é fundamental
para a recepção do Tratado Descritivo e para a formação da uma imagem do colono será a
repercussão que esta obra obterá entre os estudiosos. A partir desta data, estão disponíveis
dois textos distintos da pena de Gabriel Soares, que podem ou não ser utilizados e
relacionados. E ainda, que ecos poderão ressoar das assertivas do padre Serafim Leite?
No caso de Almeida Prado, o viçoso documento recebeu um tratamento específico.
No livro A Bahia e as Capitanias do Centro do Brasil dedicou um capítulo aoAntagonismo
entre atividade econômica dos jesuítas e Gabriel Soares de Sousa”,
54
até hoje um dos raros
estudos que se concentrou em seus escritos e o único que avaliou seu texto a respeito da
atuação dos padres da Companhia de Jesus. Considerou que o colono português, quando da
sua estadia na península oferecendo seus escritos na corte filipina, representava o “seu partido
– dos latifundiários baianos”.
55
Para ele, Gabriel Soares, possuidor de um conhecimento
muito acima dos demais colonizadores, compôs a Notícia do Brasil aparentemente para ser
útil aos povoadores, mas no fundo oferecia um roteiro para os governantes. Despertou, assim,
uma interpretação que dava conta das intenções não explícitas na elaboração daquele
volumoso Tratado, questão que até hoje surge como controversa nas leituras de Gabriel
Soares. Enalteceu o valor histórico do tratadista, especialmente como etnólogo, pondo em
prática a isenção que deseja nas análises históricas. Mas, na contramão, defendeu de forma
tendenciosa, a Companhia de Jesus acima de tudo.
Para Almeida Prado, já havia uma má vontade dos governantes metropolitanos para
com os jesuítas e a intervenção de Soares só a intensificou. Neste sentido, ele argumentou que
quando os padres tiveram conhecimento do conteúdo exposto nas informações do senhor de
engenhos, solicitaram que os originais fossem remetidos imediatamente à colônia a fim de
apresentarem a sua versão para os acontecimentos relatados. Segundo A. Prado, o cotejo entre
53
Serafim Leite, História da Companhia, Tomo III, p. XVIII e págs. 453 e 454.
54
Almeida Prado, A Bahia e as Capitanias do Centro do Brasil, Vol. 247-a, Tomo 2°, p.229-269.
55
Almeida Prado, A Bahia e as Capitanias do Centro do Brasil, p.247.
o libelo e contra libelo é inteiramente favorável ao segundo, afinal, deixara-se perturbar
Gabriel Soares por excesso de utilitarismo, contagiado como ficou pelo modo de pensar dos
latifundiários, instigados para mais por Manuel Teles, velho desafeto dos jesuítas. Avalia que
muitos etnólogos julgaram equivocadamente Gabriel Soares ao considerarem que seria ele um
dos autores mais condescendentes e até afeiçoado aos índios, devido à minudência das
observações que ofereceu sobre os grupos indígenas, das características físicas às
peculiaridades culturais. A. Prado recusou veementemente esta posição: continuamos a
pensar que neste ponto partilhava Gabriel o deplorável modo de encarar o gentio dos demais
reinóis do Brasil.
56
A leitura de Almeida Prado expôs várias facetas do colono. Diante dos padres,
mostrou-se utilitário; no Tratado, arguto, observador e laborioso; já em respeito aos índios,
equivocado, apresador, demonstrando até mesmo horror, como os demais portugueses. Neste
último aspecto o paulista apresenta uma análise bastante pertinente do ponto de vista dos
estudos históricos atuais, pois considerou que faltavam informações fundamentais que
certifiquem algumas posições de Gabriel Soares como sobre a ausência de ciúme entre os
índios, a existência de tendas públicas e aberrações sexuais que não encontram respaldo em
outros autores. Indicou, na fala de Gabriel Soares, um olhar “peninsular eivado do ciúme
árabe”.
57
A análise de Prado apresentou uma efetiva interpretação da obra e do autor,
procurando discernir as camadas de inter-relações por detrás das palavras do colono.
Autor da primeira grande síntese marxista sobre o período colonial, Caio Prado Jr. foi
referência fundamental até a década de 70, quando os trabalhos se caracterizavam por
abordagens mais econômicas. Apesar de bastante distinto no uso de métodos e abordagens,
partilhou com Gilberto Freyre e Sérgio Buarque a preocupação de oferecer uma síntese sobre
o Brasil.
56
Almeida Prado, A Bahia…, p.253.
57
Almeida Prado, A Bahia…, p.256.
A evolução política do Brasil, de 1933, teve como tema as relações entre as classes
sociais e as estruturas de poder. Militante comunista, Caio Prado partilhou de uma visão
pessimista sobre o Brasil. Abordaremos aqui seu livro de 1942, Formação do Brasil
Contemporâneo, no qual o autor procurou analisar o sentido da colonização.
Segundo Caio Prado, as relações entre colonos e índios caracterizaram-se pelo
pragmatismo: a metrópole os via como um auxílio para o povoamento de tão extenso
território, e os jesuítas aparecem como elemento diferenciador já que direcionados por
objetivos próprios da fé. Considerou as ações da Companhia de Jesus como um todo,
enquanto projeto institucional, e, por conseguinte, não avaliou práticas diferenciadas, mas a
sua ação como oposta aos interesses imediatos dos colonos, portanto, em oposição à tarefa
colonizadora.
58
Como seu intuito era analisar as bases do projeto colonial, fez referência às
lutas que se travaram entre colonos e jesuítas, mas objetiva a ação da metrópole.
Quanto às relações que envolviam o corpo administrativo da colônia, segundo ele, a
autoridade pública muitas vezes via solapado seu poder “diante de uma desobediência e
indisciplina sistemática”.
59
A administração eclesiástica sofria das mesmas vicissitudes.
Poucos seriam aqueles que se dedicaram ao trabalho, a maioria estava ocupada em atender aos
seus interesses particulares e era a própria sociedade colonial que influía nesta desvirtuação.
O estudo de Caio Prado abarca uma longa duração, os três primeiros séculos de
colonização, onde não encontramos decerto exemplos do que seria a vida cotidiana. Mas sua
visão de conjunto nos oferece a seguinte referência: Numa palavra, e para sintetizar o
panorama da sociedade colonial: incoerência e instabilidade no povoamento; pobreza e
miséria na economia; dissolução dos costumes; inépcia e corrupção dos dirigentes leigos e
eclesiásticos.
60
58
Caio Prado Jr, Formação do Brasil Contemporâneo. 8ªedição. São Paulo: Ed.Brasiliense, 1965, p.86-87.
59
Caio Prado Jr, Formação do Brasil Contemporâneo, p. 307.
60
Caio Prado Jr, Formação do Brasil Contemporâneo, p. 355.
Comparando com o Visconde de Porto Seguro, teríamos uma visão oposta acerca da
formação do Brasil e da continuidade em relação à metrópole lusitana. Varnhagen enxerga
positivamente o sistema implantado e atribuiu as falhas às características individuais. Para
Caio Prado, o foco de todo processo de colonização estaria em suas bases materiais. Neste
enfoque, os males não estariam nos indivíduos, mas sim no sistema. Analisando o processo de
forma estrutural, Prado Jr. não destaca, portanto os sujeitos individuais no processo de
colonização.
Em 1944, foi publicada uma nova edição do texto de Gabriel Soares com o título de
Notícia do Brasil, acrescido dos comentários e notas de Augusto Pirajá da Silva. A partir daí o
texto passa a ser acompanhado de inúmeras anotações minuciosas, com fôlego maior do que o
próprio “original”. Os seus Capítulos foram referenciados nas anotações biográficas,
constatando sua existência, mas de forma bem resumida e nada elogiosa.
Alguns artigos divulgados pela Revista do IHGB, um século após a primeira edição do
Tratado Descritivo por Varnhagen, mantinham a tradição de crítica documental, tendo como
tema aspectos controversos da história de vida de Gabriel Soares. É o caso do trabalho do
historiador autodidata José Antonio Soares de Souza
61
que recuperou um antigo
questionamento: o dia exato em que Gabriel Soares chegou ao Brasil. O autor utilizou-se da
comparação de uma série de fontes, de forma exaustiva, inclusive, para revelar o dia exato
que o português desembarcou no Brasil. O artigo não apresentou, entretanto, nenhuma
perspectiva analítica, constituindo, apenas a averiguação erudita de uma datação. Mas vale
notar que o erudito percorreu um interessante caminho de pesquisa, pois procurou
documentos relativos ao governador Mem de Sá, que se encontrava no comando da colônia,
61
Nascido em 1902 de família abastada, José Antonio Soares de Sousa trabalhou sempre em funções do Estado,
mas dedicando-se a escrever em diversos jornais e revistas, sobretudo artigos dirigidos à crítica histórica das
fontes e temas da Diplomacia. Sua biografia e bibliografia foram elaboradas por Edno Rodrigues Lutterbach,
“José Antônio Soares de Souza”. RIHGB. Rio de Janeiro: 336. jul./set, 1982. O artigo trata-se de “Cidade do
Salvador – Dia de Nossa Senhora das Neves de 1569”. RIHGB, Rio de Janeiro, 215: 11-15, 1952.
que pudessem testemunhar a chegada da frota de Francisco Barreto. Segundo vários
informantes, o governador assistia a missa da festa de Nossa Senhora das Neves, no Colégio
dos jesuítas de Salvador, quando foi informado da presença de uma nau grande que julgaram
que fosse francesa. Era dia 5 de agosto de 1569. No dia seguinte, ao que tudo indica, o capitão
e todos os que o acompanhavam, pisaram em terras baianas.
Em 1958, Claudio Ganns foi responsável pela descoberta de uma cópia manuscrita do
Tratado em espanhol. Suspeitava-se já da existência desta versão, uma vez que o original
havia sido entregue a D. Cristóvão de Moura, valido da corte de Filipe II. Ganns escreveu a
introdução à publicação castelhana e a mesma foi divulgada pela Revista do IHGB, sob o
título “O Primeiro Historiador do Brasil em Espanhol”.
62
Claudio Ganns oferece uma biografia, uma análise da obra e uma bibliografia sobre
Gabriel Soares. Discordou de Varnhagen quanto ao local de nascimento daquele, divergindo
de sua hipótese de que seria natural do Ribatejo por se referir a "punjância do rio Zezére
quando se mete no rio Tejo". No seu entender, esta aferição não indicava seu local de
nascimento, afinal muitas outras digressões fez de locais onde nunca esteve. Contudo, Ganns
abriu seu texto com um elogio inusitado: "foi um inteligente colono português", e como Pirajá
da Silva, considerou os seus Capítulos escritos "injustamente” contra os padres jesuítas e
mais: Teve o mau gosto ou melhor a ingratidão de indispor-se e escrever contra os padres
jesuítas que, afinal, foram os mestres da nossa recente formação.
63
Claudio Ganns interessou-
se notadamente por compreender as intenções de Gabriel Soares. Indica que, junto com outros
colonos como Sebastião da Ponte, Fernão Cabral, Antônio Ferraz, João Batista, Diogo Corrêa
de Sande e Cristovam de Barros apresava índios e os tratava mal, o que o fez questionar:
62
Claudio Ganns, “O Primeiro Historiador do Brasil em Espanhol”. RIHGB, Rio de Janeiro: 238: 144-168,
jan/março. 1958.
63
Ganns, “O Primeiro…”, p.148.
Como conciliar essa aptidão, de cubiça desvairada, para os bens
materiais, adquiridos por forma criminosa com seu "testamento", ao qual
deixa toda a sua fazenda aos beneditinos? (...) Cupidez demaziada por
dinheiro? Espírito de aventura? Ou a febre de arrependimento que fez
mandar colocar sobre a própria sepultura a humilde inscrição "Aqui jaz um
pecador"? Por que tais disposições cristãs, se em Madri ele arremete, em
reserva contra os jesuítas?
64
Claudio Ganns procurou estabelecer coerência nas ações de Gabriel Soares e não
encontrou. Enxergou desconexões que atribuiu a falhas de caráter ou motivações pessoais.
Esta distinção entre o Tratado e os Capítulos, que em Ganns aparece aliada a um julgamento
moral, permeia praticamente toda a historiografia colonial que fez referência direta ao colono.
Porém, a crítica severa de Ganns, baseada numa postura que envolveria a monarquia
portuguesa, os inacianos e os colonos conquistadores não faz sentido. Ela é própria daqueles
que se ocupam especialmente com o levantamento, a crítica e o comentário das fontes.
Gabriel Soares de Sousa também está presente na obra de um dos autores mais
significativos da historiografia colonial brasileira, Sérgio Buarque de Holanda, especialmente
na análise da imagem mítica do Dourado apresentada no livro Visão do Paraíso, publicado
em 1959.
Considera que o colono teria sido motivado mais pelo indiscutível atrativo de minas
preciosas do que pelo fascínio da lagoa mítica.
65
Tal conclusão provém de uma análise que
relaciona os aspectos culturais aos materiais e sociais da colônia. Neste sentido, contextualiza
Gabriel Soares de acordo com as práticas comuns aos demais proprietários de engenhos,
cotejando acerca do apresamento de índios. A expedição de Antônio Dias Adorno, neto do
Caramuru, realizada em 1573, não trouxe pedras, mas principalmente índios. E "A esse
respeito é omisso Gabriel Soares, em cujas propriedades foram ter afinal estes homens”.
66
64
Ganns, “O Primeiro…”, p.157.
65
S.B. de Holanda, Visão do Paraíso. São Paulo: Ed. Cia Editora Nacional, 1969. 3ªed., p.34-35.
66
Holanda, Visão do Paraíso, p.47.
Sérgio Buarque atribui a Gabriel Soares um "robusto realismo", aproximando-se da
apreciação apresentada por de Alfred Métraux em La civilisation matérielle des tribos Tupi-
Guarani, publicado em 1928 que dizia: “Soares de Sousa a um esprit scientique étonnant pour
son époque”.
67
Para Buarque, "Gabriel Soares não sairia em busca da "alagoa grande" das
cabeceiras do Rio São Francisco, senão na esperança dos imensos tesouros que nela se
guardavam segundo fama pública".
68
Observa, portanto, os limites do imaginário,
estabelecidos pela racionalidade utilitária na experiência da vida colonial.
1.2. Gabriel Soares revisitado
A partir da década de 1970, inicia-se uma nova fase para os estudos históricos no
Brasil, encetada pelos programas de pós-graduação e estimulada por uma nova pergunta:
como se havia dado o processo de formação da sociedade brasileira? A questão abriu
caminho para o destaque dos aspectos sociais e culturais. A perspectiva estruturalista ou
funcionalista dava lugar a um enfoque relacional e, sobretudo após 1980, a colônia retomou
um papel de destaque nas análises historiográficas. Sob a influência da Nouvelle Histoire, e
mais tarde, da microhistória italiana, a América portuguesa foi revisitada por ângulos inéditos.
Trataremos de alguns autores representativos desta renovação.
Stuart Schwartz, em sua obra mais conhecida, Segredos Internos. Engenhos e
Escravos na Sociedade Colonial (1550 - 1835), de 1988, parte do exame do processo
produtivo para compreender aspectos sociais e econômicos da sociedade baiana durante uma
longa duração. Trata-se de um estudo pautado na nova história social e que pretende analisar
as relações sociais estabelecidas a partir de seu suporte material, porém considerando os
fatores culturais e ideológicos.
67
Citado como referência sobre Gabriel Soares de Sousa por A. Pirajá da Silva. Notícia do Brasil, p.258.
68
S. B. de Holanda, Visão do Paraíso, p. 102-103.
Em sua análise das formas de trabalho e produção levadas a cabo por portugueses no
Atlântico Sul, não era apenas o objetivo colonizador que se afirmava, mas a troca de
experiências e a adaptação segundo a natureza da sociedade indígena e da dinâmica interna
das percepções e necessidades dos nativos.
69
O autor mais adiante ressaltou o papel de
resistência oferecida pelas populações indígenas, especialmente no fenômeno das santidades,
culto sincrético e messiânico que se opunha à situação colocada com a colonização.
Schwartz compreendeu que colonos e jesuítas possuíam o mesmo objetivo, o de
europeizar os índios, mas que se opuseram em relação à escravidão indígena. Na análise que
faz da sociedade baiana, Gabriel Soares constituiu fonte fundamental, como o próprio autor
identificou: Seu Tratado Descritivo do Brasil tem sido usado amplamente por historiadores
desde o século XIX, mas suas poucas páginas sobre o Recôncavo são ainda a melhor
descrição da região no século XVI.
70
Impossível não lembrar das palavras quase iguais
utilizadas por Varnhagen, em 1851, para descrever o conhecimento do colono acerca da Baía
da Guanabara, “A descrição da enseada desta nossa baía não pode estar mais exata”.
71
John Manuel Monteiro lançou novas luzes sobre a questão da escravidão indígena em
sua obra Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, de 1994. Tratando
de uma questão regional e específica sobre a história das bandeiras paulistas, este autor
dedicou parte de sua obra justamente a “avaliar a história das relações luso-indígenas no
Brasil meridional do século XVI”.
72
John Monteiro enfatizou a utilização de expressões que certamente apareceram em
diversas obras da historiografia colonial desde a História geral do Brasil de Varnhagen, para
qualificar as relações entre colonos, jesuítas e índios, como: atitudes inconstantes, alianças,
resistências, subversão, colaboração. Mas a singularidade de Monteiro está no enfoque desta
69
Stuart Schwartz, Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. SP: Cia.das Letras, 1988,
p.45.
70
Stuart Schwartz, Segredos Internos..., p.82.
71
Notícia do Brasil, nota 52 de Varnhagen, p.209.
72
John M. Monteiro, Negros da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.18.
multiplicidade de relações. Ao analisar a situação da colônia, destacou a participação do índio
como força modificadora, que influenciou nas ações colonizadoras. Para além dos conflitos,
aparecem tensões envolvendo colonos e jesuítas em relação aos índios. Ampliando sua
perspectiva, o autor delimitou as transformações nas relações estabelecidas na colônia
paulatinamente. Se, num primeiro momento, houve alianças e trocas, o contato desencadeou
novas formas de dominação. Aqui, este processo é compreendido a partir das modificações
causadas pela estrutura indígena e não a partir de uma visão exclusiva do colonizador, o que
já havia sido indicado por Stuart Schwartz. Contudo, Monteiro aprofunda a oposição jesuítas-
colonos, deixando claros seus princípios de trabalho:
[...] a situação real manifestou maior complexidade, explicando,
outrossim, algumas das contradições que passaram a povoar a política
indigenista dos portugueses no Brasil. Realmente, ao passo que os colonos
não se mostravam unívocos a favor da escravidão como forma singular do
trabalho indígena, nem todos os jesuítas se opunham ao cativeiro.
73
No artigo A ótica dos colonizadores, na série de estudos promovidas pelo Jornal do
Brasil em face aos 500 anos do descobrimento, John M. Monteiro apontou uma perspectiva
inovadora para uma possível releitura da obra de Gabriel Soares. Foi o primeiro autor a
destacar o quanto o texto de Gabriel Soares vem sendo projetado para a situação original do
período das descobertas, o que não corresponde à realidade uma vez que o testemunho refere-
se ao convívio entre colonos e nativos, já na segunda metade do século XVI. Segundo o
especialista em cultura indígena, a leitura realizada por Varnhagen alimentou uma visão
estática daquelas sociedades e conclui o artigo destacando que [...] Uma simples releitura de
documentos coloniais como os de Gabriel Soares de Sousa revela que esta história foi bem
73
J. Monteiro, Negros da Terra, p. 40.
mais complexa, interessante e instigante do que a versão inaugurada por Varnhagen há um
século e meio.
74
A obra de Ronald Raminelli, Imagens da Colonização. A representação do índio de
Caminha a Vieira, de 1996, analisa fontes escritas e iconográficas sobre os índios. Seu estudo
tem como questão central ocupar uma lacuna historiográfica acerca da relação entre brancos
e índios, colonizadores e colonizados.
75
Uma distinção analítica fica expressa desde o
princípio, para o autor não há um projeto colonial, mas projetos, o que determina uma análise
multifacetada dos agentes colonizadores.
Assim como John Monteiro, Raminelli rastreia a participação indígena e traz ao
primeiro plano alianças, comércio, conflitos, resistência. A relação entre jesuítas e colonos
também não é unívoca. Tratando de um episódio de conflito entre moradores e índios nas
capitanias do Ceará, Rio Grande e Paraíba, Raminelli atenta para uma “inversão curiosa”, que
desfaz qualquer antagonismo anteriormente ressaltado entre colonos e jesuítas, através de uma
análise mais rigorosa das fontes: “os colonos empregaram a catequese como forma de
legitimar a escravidão”.
76
Ou seja, o discurso do colono passa a ser o mesmo do jesuíta,
moldando-se à situação em que se encontra.
Ronaldo Vainfas aborda, em duas obras por nós destacadas, aspectos distintos da
sociedade colonial. A primeira, Ideologia e Escravidão, publicada em 1986, examina o
discurso sobre a sociedade escravista a partir dos letrados coloniais. A segunda, Heresia dos
índios, de 1995, é um estudo de caso específico, o já referenciado fenômeno da santidade,
ampliando a complexidade das trocas culturais numa análise que relaciona a micro à
macrohistória.
74
O artigo está disponível no site www.jbonline.terra.com.br/destaques/500anos/id1ma3.html.
75
Ronald Raminelli, Imagens da Colonização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p.13.
76
Raminelli, Imagens da Colonização, p. 72.
Em seu primeiro livro, Ronaldo Vainfas examina os discursos sobre a escravidão. Ao
longo do texto, avalia através do eixo - ideologia e poder- ambigüidades muitas vezes
empiricamente aferidas, desconstruindo visões como a do senhor bondoso ou maldoso, ou a
certeza religiosa das ações jesuíticas. Revela, assim, jesuítas que criticaram a própria
Companhia de Jesus e as ações de alguns missionários, preocupações econômicas, enfim, uma
série de nuanças que destroem a imagem reta do religioso: “Mas defensores da “liberdade
indígena” não o foram (os jesuítas) no discurso, nem na prática da catequese”.
77
Este autor utiliza tanto o Tratado Descritivo quanto os Capítulos em sua análise.
Identifica a existência de uma literatura quinhentista de tom apologético, forjada na crônica
do exagero e da abundância, presente nos poucos autores contemporâneos ao senhor de
engenho, na sua maior parte religiosos. Relaciona diretamente o texto ao papel desempenhado
pelo colono dentro da arquitetura econômica colonial: a literatura dessa fase, enquanto
discurso, relacionava-se, portanto, a uma certa posição de classe.
78
Argumento que, como
vimos, J. F. de Almeida Prado havia apontado anteriormente. Vainfas, da mesma forma,
distingue dois perfis do colono, “nosso cronista, agora denunciante [...]”,
79
enfatizando
sempre a posição escravista de Gabriel Soares de Sousa.
Mas Vainfas ultrapassa essa forma de abordagem, como fica evidente no estudo A
heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial, em que privilegia uma questão
singular: a proteção dada por um senhor de engenho a uma seita anticolonialista ameríndia.
Na análise de tal contradição, aparecem em relevo as relações coloniais numa terminologia
até então pouco utilizada, as tensões sociais, e que não se restringem aos antigos e típicos
agentes sociais tratados em várias obras historiográficas: [...] tensão entre portugueses e
coloniais; tensão entre brancos e mamelucos; tensão no próprio interior dos grupos de
77
Ronaldo Vainfas, Ideologia e Escravidão. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1986, p.79.
78
Vainfas, Ideologia e Escravidão, p. 68.
79
Vainfas, Ideologia e Escravidão, p.76.
riqueza e poder na Colônia do primeiro século.
80
Reafirma sua percepção do cronista: [...] a
exemplo de nosso Gabriel Soares de Souza, forte partidário da escravidão indígena.
81
Mas
neste momento, a conclusão provém do manuseio de diversas fontes, que o levam a identificar
a proximidade entre este e o senhor de engenhos Fernão Cabral, sobre o qual incide sua
análise, chegando a inferir que ambos eram useiros em atalhar a catequese desmoralizando
os jesuítas e acenando aos índios com falsas promessas de liberdade.
82
Em O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, Luis Felipe de
Alencastro analisa a colonização brasileira nos séculos XVl e XVII numa tríplice relação
geográfica onde se imbricam redes econômicas, políticas e sociais localizadas na África,
Portugal e no Brasil. A experiência da colonização ocorria pelos três continentes e estava a
todo o tempo sendo testada e posta à prova. Neste sentido uma das questões essenciais,
destacada pelo autor, seria o enfrentamento entre autoridades, clero e colonos acerca do
controle dos nativos. E sobre a política a ser adotada em relação aos indígenas, os Capítulos
de Gabriel Soares são indicativos das posições envolvidas. As respostas dos padres a Gabriel
Soares apresentam uma proposta para a sobrevivência dos moradores que, em fins do século
XVI, viviam atemorizados. A solução oferecida pelos religiosos consistia na criação de
aldeias de gentios mansos ao redor dos engenhos e fazendas, solução esta que foi utilizada e
associada aos descimentos.
83
Para L. F. de Alencastro, o texto dos Capítulos presta-se à
percepção do intercâmbio das experiências. Dentre os padres que averiguaram as Informações
de Gabriel Soares e que estavam presentes na congregação realizada na Bahia em 1592, vários
possuíam conhecimento sobre os cativeiros na África e no Brasil, enfatizando o vai-e-vem nos
domínios ultramarinos.
80
Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p.178.
81
Vainfas, A heresia dos índios, p.48.
82
Vainfas, A heresia dos índios, p.149.
83
Os descimentos eram expedições, a princípio não militares, realizadas por missionários, com o objetivo de
descer os índios do sertão para aldeamentos junto aos núcleos portugueses. Luis Felipe de Alencastro, O Trato
dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
1.3. Gabriel Soares contemporâneo
Essa breve revisão geral de alguns autores representativos da historiografia colonial
brasileira demonstra que os estudos atuais se destacam por um recorte mais específico de seus
temas. Nas análises recentes, quase não se encontram ensaios ou sínteses que abarquem todo
o passado colonial. Nem se nota a preocupação de distinguir a identidade da nação. Mesmo
quando se trata de um estudo de longa duração, como o de Stuart Schwartz, o recorte temático
é bem delimitado.
A partir dos anos 1980, houve um deslocamento da pesquisa para um novo foco: os
grupos subjugados no processo histórico e que nunca tiveram as vozes valorizadas. Por
conseguinte, uma revisão da historiografia trouxe à tona negros, índios, mulheres, crianças,
diabos, feiticeiros, bruxas e quem mais fosse, numa vaga que sacudiu o conhecimento
histórico alhures como aqui e que transformou a História em assunto popular. Novos temas,
novas perspectivas e novas abordagens remexeram os arquivos, debateram as possibilidades
da narrativa e recusaram as perspectivas tradicionais. Neste ensejo, muitas vezes ao que se
chegou foi a uma negação ideologicamente direcionada aos trabalhos predecessores.
Mas tais resultados já foram questionados e, a partir da década de 1990, a reflexão
sobre a chamada crise epistemológica encaminhou a pesquisa e o conhecimento histórico para
uma relativização por vezes abissal. Por outro lado, trouxe uma enorme abertura para as
contribuições de diversas disciplinas, bem como uma releitura dos modelos anteriores.
Emerge, então, uma tendência à compreensão das idiossincrasias dos agentes históricos, na
medida em que a relatividade é assumida como limite dado em uma pesquisa.
Simultaneamente, longe de se tornar mais abstrato, o discurso científico apresenta-se mais
rigoroso e explícito em suas posições teóricas e metodológicas.
Francisco Adolpho Varnhagen é a maior referência para a historiografia brasileira do
século XIX. Elaborou uma pesquisa monumental com o intuito de apresentar a primeira
História do Brasil inserida numa concepção do progresso das civilizações. No labor múltiplo
de ler, descobrir, criticar os documentos, organizar, relacionar e elaborar a narrativa, não se
limitou aos fatos administrativos, ao enredo político e aos ilustres varões. Foi além e
estabeleceu relações e encadeamentos inéditos, penetrou na vida social e numa gama de
aspectos culturais. Apenas pelo deleite das analogias propostas, Varnhagen tem quase certeza
de que os Tupis descendem dos Carios, povo bárbaro citado num verso da Ilíada, proveniente
da Ásia Menor e que teria emigrado depois da queda de Tróia. Os Carios possuíam
influências egípcias e gregas que o futuro visconde identificou nos Tupis, como o formato da
canoa, o maracá, as superstições por uma ave noturna, os curandeiros, a circuncisão, todos
elementos semelhantes aos egípcios. Seus cantos heróicos já se assemelham aos dos gregos e
até mesmo na língua tupínica Varnhagen encontraria termos idênticos ao grego arcaico e ao
egípcio antigo.
84
Considerado conservador, elitista, representante máximo da ordem imperial e da
historiografia oficial relacionada a esta ordem,
85
hoje em dia, Varnhagen é visto de forma
menos suspeita.
86
Os resultados de suas investigações constituíram e constituem referência
para diversos estudos. A historiografia que respirou os ares modernistas, em trabalhos
marcados ora pelo otimismo e benevolência, como em Gilberto Freyre, ora por um
pessimismo fatalista, como em Paulo Prado, reafirma a interpretação e a pesquisa das fontes
como processos imprescindíveis para uma história que apresenta engajamentos e objetivos
84
Francisco Adolpho de Varnhagen, História geral do Brasil. 3ª edição. Tomo primeiro. São Paulo: Companhia
Melhoramento de São Paulo, p.58-59.
85
José Honório Rodrigues o define como “monarquista, adulador, conservador e cortesão”, segundo Lilia Moritz
Schwarcz, em O Espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São
Paulo: Cia das Letras, 1993, p.107. Para Nilo Odália: “Tem estilo monótono e pesado, tenta corrigir os erros do
passado.” Francisco Adolpho de Varnhagen. Visconde de Porto Seguro. (1816-1818). São Paulo: Ática, 1979.
86
Como na análise de Lucia M. P. Guimarães que observa na História geral do Brasil, um “trabalho etnográfico
cuidadoso”, destacando o tema da vida cotidiana e a erudição a serviço da análise histórica. “Francisco Adolfo
de Varnhagen: a História geral do Brasil”. In: Lourenço Dantas Moraes.(org.). Introdução ao Brasil: Um
banquete no trópico, op. cit, p. 80.
explícitos. Segundo, Arno Wehling, o encontro de culturas representa a tendência analítica
mais evidente na historiografia contemporânea, acompanhando as características de um
mundo globalizado.
87
Visto por este ângulo, Varnhagen estaria à frente de seu tempo! Quem
sabe a arqueologia ainda confirme as elucubrações do sorocabano?
O Gabriel Soares de Sousa dos nossos dias possui os traços da imagem estabelecida no
primeiro quartel do século XIX. A ausência de um estudo específico sobre o Tratado
Descritivo do Brasil em 1587 e sobre seus Capítulos contra os padres da Companhia de Jesus
certamente contribui para tal. Adicione-se ainda o fato de que todas as edições já apresentadas
do Tratado são mediadas pelas notas, comentários, omissões e escolhas elaboradas no século
XIX. Porém isto não impede que seu escrito possa ser relido por ângulos insuspeitos e insira-
se de diversas formas como referência para a historiografia colonial.
Como podemos perceber, alguns pontos permanecem historicamente marcantes na
abordagem do Tratado Descritivo do Brasil: a sua utilização como fonte inquestionável do
conhecimento sobre o século XVI, a elevação do colono como grande observador e relator do
processo de colonização e a dicotomização de seus dois textos. Os três itens se
complementam e se relacionam com os diferentes enfoques já indicados. Se o tema das
relações coloniais teve sempre como mote principal o posicionamento frente à escravização
do gentio, dependendo do papel atribuído aos colonos e aos clérigos, o olhar sobre o Gabriel
Soares de Sousa se altera.
Na passagem das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, o
lançamento de uma série de obras e projetos de intercâmbios com países da América e da
Europa, bem como a grande exploração do tema por todos os meios de comunicação,
convocou os historiadores para uma reflexão sobre o período das grandes navegações. Muitas
dessas iniciativas se limitaram a meras festividades, por outro lado, também evidenciaram os
87
Arno Wehling, “As fontes da história do Brasil colonial como memória e História. Retrospectiva e
prospectiva”. RIHGB, Rio de Janeiro, 160 (402): 31-40, jan./mar.1999.
aparatos de memória sendo remexidos. Alguns provocaram protestos retumbantes, colocando
em questão que a História não pode mais ser construída à mercê de seus agentes. Houve ainda
a ênfase na abertura dos arquivos e fontes para pesquisas supranacionais, o que, na medida em
que se efetivarem tais intercâmbios, apontará questões cruciais sobre as construções de
identidades.
O Guia de Fontes sobre o Brasil, preparado para os festejos da descoberta e pelos 190
anos da Biblioteca Nacional ilustra bem um novo processo de valorização documental. O
livro é belíssimo, com ilustrações de alta qualidade e fruto de trabalho de grandes
especialistas. Recupera autores clássicos coloniais. A obra de Gabriel Soares é citada com os
mesmos termos que apareceram em 1839: a verdadeira enciclopédia da realidade geográfica
e humana do país, produzida em língua portuguesa no século XVI. De diferente só há uma
formulação, no mínimo, curiosa: O grande valor histórico e etnográfico desse texto é o de ter
conseguido o milagre de retirar o seu autor do anonimato a que fora relegado por cerca de
três séculos.
88
É como se o texto fizesse o autor e não o autor o texto.
No Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, Gabriel Soares merece
um verbete de três páginas onde sua história de vida é narrada da forma como o fez
Varnhagen. Algumas informações são confirmadas a respeito da aquisição de tantos
conhecimentos pelo colonizador, louva-se o autor de um “gigantesco tesouro literário” que
“modestamente” denominou de “escritura e breve relação” e os Capítulos são apontados sem
alardes ou explicações.
89
Pesquisando o autor pela Internet se evidencia a sedimentação das categorias
estabelecidas por Varnhagen. Os adjetivos “enciclopédico” e “desbravador” são os preferidos,
88
Guia das Fontes sobre o Brasil. Brasiliana da Biblioteca Nacional. Org. Paulo Roberto Pereira.. RJ: Fund.
Biblioteca Nacional; Nova Fronteira, 2001, p.28. Esta publicação reproduz uma cópia manuscrita do Tratado
pertencente à Biblioteca Nacional, p.37. Este manuscrito possui 640 folhas. Nesta obra, o artigo “A Igreja no
Brasil colonial” de Luiz Felipe Baeta Neves e Maria Cristina Giosetti analisa a ação jesuítica em relação à
escravidão indígena, p.119-130.
89
Luís de Albuquerque (dir.). Dicionário de História dos Descobrimentos portugueses. Lisboa: Editorial
Caminho, 1944. Verbete: Gabriel Soares, págs.1001-1003, p.1002.
junto àquela frase lapidar em que “prevê” a construção de um poderoso Império. Raríssimas
vezes aparece qualquer referência aos Capítulos.
No Dicionário do Brasil colonial (1500-1808), publicado também no ensejo
comemorativo da descoberta, surge uma destas poucas vezes. Ronaldo Vainfas é responsável
pelo verbete. Apesar de sucinto, indica onde se pode encontrar o texto e acrescenta um
comentário pequeno, entretanto significativo, por não ocultar dados nem idealizar o colono:
“o autor defendia, por todos os meios, a escravidão indígena e combatia as práticas
missionárias dos inacianos”.
90
A título de ilustração desta superposição de imagens do colono, destacamos um selo
lançado em 1987 pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos:
91
FIGURA Nº 1
Selo comemorativo dos 400 anos do Tratado Descritivo do Brasil
90
Ronaldo Vainfas (dir.), Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2000.
Verbete: Gabriel Soares de Sousa, p.261. Quanto aos dados biográficos de Gabriel Soares eles permanecem os já
repetidamente enfatizados.
91
Elaborado por Jô Oliveira, pernambucano, nascido em 1944, formado em Comunicação Visual pela Escola
Superior de Artes Industriais de Budapeste, Hungria. Reconhecido no Brasil e no exterior, principalmente na
Itália, é jornalista, ilustrador de vários livros didáticos e obras infanto-juvenis. Cria ilustrações para os correios.
Mais uma obra comemorativa, no caso, pela passagem dos quatrocentos anos de
existência do Tratado Descritivo do Brasil. A ilustração retrata Gabriel Soares de Sousa com
barba e cabelos tosados à moda jesuítica, túnica branca, uma pena e um códice às mãos. Ao
fundo, vê se, ao lado direito da figura, o mar com uma caravela, um peixe voador, um boto,
outros peixes e um coqueiro. Á esquerda vê-se um casal de índios, um macaco, uma bromélia,
uma onça em destaque, uma anta, um pelicano, uma orquídea e folhagens exuberantes. A
imagem estilizada de Gabriel Soares e da natureza perpetua e imortaliza uma interpretação
romântica e idílica da colonização. Soares mais se assemelha a um frade do que a um senhor
de engenhos e apresador de índios. Logo Gabriel Soares, o maior desafeto dos jesuítas! Mais
uma das estratégias da memória. Como apontamos no início deste capítulo, não há nenhum
registro encontrado até hoje que possa nos indicar como seria a figura do colono. Á título de
comparação, vejamos uma gravura do Padre Antônio Vieira no livro Vida do Apostólico
Padre Antonio Vieira
92
do Pe. André de Barros:
FIGURA N° 2
Gravura do Padre Antônio Vieira
92
Pe. André de Barros, Vida do Apostólico Padre Antonio Vieira. Lisboa: Nova officina Sylviana, 1746.
A não ser pela barba e pela cor da túnica, os retratos do colono e do jesuíta não
discriminam diferenças...
CAPÍTULO 2
A construção de uma obra: impressões, notas e edições
2.1. A descoberta de Varnhagen
Quando ainda freqüentava as aulas de paleografia, mas já com o “pensamento
atrevido” de realizar uma obra de história pátria,
93
Francisco Adolfo de Varnhagen ofereceu
as Reflexões críticas ao escrito de Gabriel Soares à Academia das Ciências de Lisboa,
obedecendo a dois intuitos: estabelecer critérios científicos para análise das fontes e construir
um patrimônio documental capaz de alimentar a pesquisa histórica. Posteriormente, ao
concretizar a elaboração da História geral do Brasil, sua leitura do texto de Gabriel Soares de
Sousa insere o documento no registro da difícil tarefa que os portugueses empreenderam para
civilizar as indóceis terras tropicais.
A proclamação da independência e o Império instituído a partir de 1822 são
interpretados pelo estudioso como frutos de gerações de patrícios que enfrentaram as
dificuldades da colonização, especialmente no tocante ao clima, à natureza hostil e às lutas
inevitáveis com os nativos. Não escapam a Varnhagen as possíveis injustiças cometidas,
entretanto, o resultado final é avaliado positivamente:
E ainda admitindo que muitas vezes abusavam os superiores dos
inferiores, os senhores dos escravos, e uns e outros do índios, como é certo,
não é também certo que, à custa das lágrimas do exílio, nos legaram eles a
nós, seus herdeiros, as casas fabricadas, as fazendas criadas, as vilas e
93
A auto-definição provém do próprio autor no Prefácio à 1ª edição da História geral do Brasil antes da sua
separação e independência de Portugal. 3ª edição integral. São Paulo - Cayeiras - Rio: Companhia
Melhoramentos de São Paulo, Tomo primeiro, s. d., p.XIX.
cidades fundadas, - a vida, a religião, o comércio, a riqueza, a civilização...a
pátria enfim?
94
O perfil de Gabriel Soares de Sousa corresponde à imagem ideal do colonizador visto
como um letrado consciencioso,
95
cujas ações convergem para a elevação da “nação” que já
se vislumbraria. Nomes da envergadura do médico parasitólogo Manuel Augusto Pirajá da
Silva, que foi um dos mais importantes comentadores do Tratado de Gabriel Soares, além de
Oliveira Lima e de Afonso Costa, realizaram enfáticos elogios à obra e as ações de Soares.
Um dos mais entusiasmados, Domingos Jaguaribe, autor do livro Brasil Antigo, Atlântide e
Antiguidade Americanas, chegou ao exagero ao referir-se a Gabriel Soares como o “pai da
História Brasileira”.
96
O texto de Gabriel Soares foi recuperado através de comparações das cópias
localizadas, um conjunto que constitui a tradição direta da obra, uma vez que se tratam de
compilações da obra original ou de outras reproduções.
97
O certo é que os manuscritos
originais nunca foram encontrados. Até hoje houve nove publicações e todas se basearam na
primeira impressão de 1851, na Revista do IHGB.
Na verdade, a primeira aparição formal da obra, sem que o seu autor fosse
identificado, teve lugar na Tipografia do Arco do Cego, em Portugal, graças à iniciativa do
botânico Fr. José Mariano da Conceição Veloso. A impressão foi iniciada em princípios do
século XIX, mas não foi concluída e, portanto, não veio a público. Tratava-se de uma cópia
manuscrita do século XVII, com o título de Descrição Geográfica da América Portuguesa.
94
F.A. de Varnhagen, História geral do Brasil, Prólogo da 2ª edição, op.cit., p. X.
95
É importante destacar que a concepção de letrado no século XVI corresponde a um conhecimento específico
de línguas latinas e do complexo processo da escrita. O letrado possui uma formação específica e este não é o
caso, ao que tudo indica, de Gabriel Soares de Sousa.
96
Gabriel Soares de Sousa, Notícia do Brasil. Comentários e notas de Varnhagen, Pirajá da Silva e Edelweiss.
São Paulo: Ed. Patrocinada pelo Departamento de Assuntos Culturais do M.E.C., 1974, p.259. Todas as notas
seguintes se referem a esta mesma edição.
97
“Quando o original se perdeu, e só temos as cópias dele, manuscritas ou impressas que sejam, o conjunto das
cópias indica-se como tradição [...]”. Barbara Spaggiari e Maurizio Perugi, Fundamentos da critica textual. Rio
de Janeiro: Lucerna, 2004, p. 19.
Apesar de vasculhar arquivos e bibliotecas em diversas localidades, Varnhagen não a
conheceu.
98
Um exemplar desta primeira revelação se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro
99
e nos permite acompanhar as marcas fixadas ao texto e seu processo de divulgação.
A cópia autenticada do códice possui em todas as folhas o selo “Da Real Biblioteca” e o
sinete do Santo Ofício. A compilação foi interrompida na segunda parte, que justamente
antecede os capítulos em que Gabriel Soares discorre sobre a abundância de riquezas minerais
no sertão baiano, apontando, inclusive, suas possíveis localizações. A saber, o colono indica a
existência de serras de salitre, do qual se produz a pólvora tão necessária à defesa. Informa
que percorrendo trinta léguas a partir da Bahia, existem “minas de aço mais fino que os de
Milão”; a sessenta ou cinqüenta léguas, desvenda-se uma serra de cobre em “que há tanta
quantidade que se não acabará nunca”.
100
Do mesmo modo, assinala a existência de pedras
verdes e azuis, montanhas de cristais que se assemelham às serras da Espanha quando
cobertas de neve, além de esmeraldas de bom tamanho, pedras roxas cor de púrpura. Isto sem
falar dos metais mais preciosos, o ouro e a prata, que se poderiam encontrar grande
quantidade sem maiores investimentos.
Nesta parte em que o texto aparece cortado surge uma datação e uma assinatura: Paris,
15 de março de 1675, Duarte Ribeiro de Macedo. A seguir, na mesma página, com outra
caligrafia, lê-se a seguinte determinação: Imprima-se a obra, excepto o discurso de Duarte
Ribeiro que por ora não convém, em 21 de março de 1805. O discurso mencionado atribuído
98
Não foi citada pelo erudito sorocabano, sendo que Augusto Pirajá da Silva confirma este desconhecimento
surpreendente. Informa inclusive, sobre a inexistência de notícias desta primeira tentativa de publicação durante
muitos anos no Brasil. Foi o erudito Dr. Max Fleiüss que a apresentou a Pirajá da Silva, segundo o mesmo
informa na Introdução à Notícia do Brasil, p. 264. Frederico Edelweiss também procurou informações sobre esta
edição que foi vendida como “papel velho”, “salvando-se raríssimos exemplares”. Notícia, p.483.
99
Gabriel Soares de Sousa, Descripção Geographica da América Portuguesa. S.1., 1587. Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, manuscritos, 4, 3, 27. Uma edição paleográfica, ou seja, que reproduz fidedignamente a grafia e a
pontuação deste original, foi realizada por Agostinho Marques Perdigão Malheiros para o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro..
100
Notícia do Brasil, págs. 196-199.
ao juriscouto, diplomata e importante escritor do período da Restauração, não consta do
códice. Em seu lugar aparece uma folha com o seguinte despacho:
O Príncipe Regente, nosso senhor foi servido ordenar, que se
suspendesse absolutamente a impressão da História Geográfica da América, o
que participo a V. Sª para que assim se execute, e se não continue a referida
impressão, sem que expressamente se revogue esta Real Ordem por escripto.
Deus guarde V. Sª, Palácio de Queluz, em 7 de novembro de 1800. D. Rodrigo
de Souza Coutinho.
No fim da página encontra-se a assinatura de Frei José Mariano da Conceição Veloso,
que pode ser tomada como uma aceitação à ordem determinada. A única pista existente a
respeito da edição interrompida provém do historiador José Honório Rodrigues, que a atribui
à discórdia entre D. Rodrigo de Sousa Coutinho e Frei Mariano da Conceição Veloso.
101
Podemos, entretanto, cogitar sobre estas inscrições. D. Rodrigo de Domingos de Sousa
Coutinho Teixeira de Andrade Barbosa (1755-1812), primeiro Conde de Linhares,
desempenhou diversos cargos na corte e foi responsável por importantes idéias e iniciativas
no sentido de reformar o sistema financeiro e econômico do império português. Esteve no
epicentro da discussão sobre a exploração das jazidas minerais e suas vantagens ou
desvantagens para o engrandecimento das nações. Este debate foi constante no final do século
XVIII. Alguns setores discutiam os prejuízos causados pela mineração desenfreada,
ressaltando os conhecimentos rudimenatares empregados, o pouco lucro proveniente, além do
enfraquecimento da cultura agrícola. D. Rodrigo Coutinho defendia a exploração das minas
com técnicas apropriadas, submetidas a um projeto nacional, entendido no âmbito do império
luso-brasileiro. A interrupção do texto do colono exatamente nesta altura, portanto, nos leva a
101
José Honório Rodrigues, História da História do Brasil. 1ª Parte. Historiografia colonial. São Paulo: Ed.
Nacional; Brasília:INL, 1979, p.436.
inferir que possa ter sido causada pelo momento de redefinição de políticas internas e externas
do reino.
102
O códice existente no Rio de Janeiro difere substancialmente do texto que veio a ser
estabelecido como o mais fidedigno na organização, na apresentação dos capítulos e nos
próprios termos utilizados. Esta constatação nos remeteu à possível quantidade de
adulterações que lhe foram interpostas. Os exemplares consultados pelo futuro Visconde de
Porto Seguro, que embasaram a sua edição exegética, foram encontrados em diversas
bibliotecas e coleções européias, às quais não tivemos acesso. Por outro lado, o percurso
traçado pelo sorocabano não permite sua reconstrução exata, pois muitas informações que
apresenta são imprecisas. Uma premissa ecdótica fundamental é de que, quanto menos cópias
são produzidas de um original, menor é a probabilidade de alterações significativas. No caso
de Gabriel Soares, existem inúmeras cópias.
A suposição aventada por alguns estudiosos sobre a possível censura a que o texto fora
submetido e que explicaria o longo período que permaneceu oculto não se justifica por si só.
Afinal os selos da Coroa e da Igreja, estampados em cada página manuscrita do exemplar da
Biblioteca Nacional, testemunham a presença do controle oficial. Procedimento rotineiro a
102
As informações sobre D. Rodrigo de Sousa Coutinho provêm do Dicionário bibliographico Portuguez.
Estudos de Innocencio Francisco da Silva. Lisboa, Imprensa Nacional, 1862. Da Encyclopedia e Diccionario
Internacional. Organizado e dirigido com a colaboração de homens de sciencia e lettras brasileiras e
portuguezas. Vol.XI, Rio de Janeiro - Nova York: W.M. Jakson, Inc.Editores, s. d.. Nobreza de Portugal e do
Brasil. Dir. de Dr. Afonso Eduardo Martins Zuquete. Vol.II, Lisboa – Portugal: Eds. Zairol LDA., 2000. Além
da redação de importantes tratados de comércio estabelecidos pelo reino português, D. Rodrigo Coutinho
elaborou uma “Memória sobre a verdadeira influência das minas dos metais preciosos na indústria das nações,
especialmente a portugueza”, inserido no Tomo I das Memórias Econômicas da Academia Real das Sciencias,
4º, que ilustra o significado concedido ao aproveitamento das jazidas minerais. Exerceu inúmeros cargos, foi
fundador da Casa Literária do Arco do Cego, protetor de Frei Mariano da Conceição Veloso, defensor do Brasil
como fonte primordial para o engrandecimento do império luso-brasileiro, além de possuir estreita relação com a
vida do estudioso Varnhagen que lhe tece grandes elogios. Precursor e incentivador de estudos científicos em
diversas áreas, como cabia a um espírito ilustrado, quando Ministro da Guerra, D. Rodrigo indicou o pai de
Varnhagen, Friedrich-Ludwig-Wilhelm Varnhagen para a construção da Real Fábrica de Ferro de Sorocaba. Frei
Mariano foi responsável pela tradução de textos técnicos sobre o assunto. Sobre as relações estabelecidas ver:
Lucia M. P. Guimarães, “História geral do Brasil” in: Lourenço Dantas Mota (org.), Introdução ao Brasil: um
banquete no trópico. São Paulo: Senac, 1999, e o artigo de Testocles Cezar, “Em nome do pai, mas não do
patriarca: ensaio sobre os limites da imparcialidade na obra de Varnhagen” in.: Revista de História, vol 24, n°2,
Franca, 2005.
todas as publicações que pudessem vir a transitar pelas cortes, sendo eles contemporâneos ou
transcrições antigas.
Cursando seus estudos em Portugal, F. A. de Varnhagen familiarizou-se com os
arquivos e documentos antigos, exercitou a paleografia, desfrutou de um ambiente propício à
investigação científica e deparou-se com um texto inédito, espúrio, que oferecia informações
preciosas não só para a construção da herança colonial mas ainda argumentos a serem
averiguados em prol de necessidades emergentes na primeira metade do século XIX.
2.2. Edições e notas do Tratado Descritivo do Brasil em 1587
Em 1825, a Academia Real das Ciências de Lisboa, num esforço meritório de oferecer
material para a ilustração dos pesquisadores, publicou um códice apócrifo e incompleto sob o
título de Notícia do Brasil, conforme já assinalado.
O processo de identificação da autoria realizado por Varnhagen foi descrito por
Capistrano de Abreu:
Um livro existia, vasto como uma enciclopédia, interessante como um
romance, fértil como um punhado de verdades, roteiro, coreografia, história
natural, crônica. Longo tempo inédito, fora afinal publicado pela Academia de
Ciências, porém mutilado, anônimo, inçado de erros, eivado de incorreções.
[...] Varnhagen determinou as posições geográficas, identificou as espécies
biológicas, corrigiu os erros dos copistas e do escritor, provou a autenticidade
do escrito de modo irrefragável, ao mesmo tempo em que descobriu o nome do
autor – Gabriel Soares de Sousa.
103
Como resultado da descoberta, em 1851, uma versão corrigida, preparada e comentada
por Francisco A. de Varnhagen apareceu transcrita na Revista do IHGB. Trata-se da primeira
publicação integral do Tratado Descritivo do Brasil em 1587. No mesmo ano, a então famosa
103
Capistrano de Abreu, “Necrológio do Visconde de Porto Seguro”, em Ensaios e estudos, 1ª série, 2ª edição,
Civilização brasileira, 1975, p. 83.
Tipografia Universal de Laemmert
104
que era responsável pela impressão da Revista, editou
comercialmente o Tratado. As duas publicações são idênticas. O texto quinhentista é
antecedido por uma Carta ao Instituto Histórico do Brasil redigida por Varnhagen, em
primeiro de março daquele mesmo ano, que serve de prefácio à obra. Esta Carta foi enviada
de Madrid, propondo ao Instituto a publicação. Destacava o valor histórico do escrito
quinhentista, o labor envolvido na reconstrução textual e divulgava alguns trechos da epístola
do autor à D. Cristóvão de Moura. Para surpresa do diplomata, regressando a corte naquele
mesmo ano, Varnhagen viu não só a proposta da publicação ser rapidamente aprovada como
foi chamado a ocupar as funções de primeiro secretário do Instituto que, pelos novos
estatutos, o incubiam também da organização da Revista. Assim, acompanhando de perto a
primeira edição, acrescenta seus Breves Commentários a precedente obra de Gabriel Soares,
datados de setembro do mesmo ano e dispostos ao final do texto. Comentários bem extensos,
por sinal, com uma introdução e duzentas e setenta notas destinadas a atualizar e esclarecer o
texto.
Em 1879, a Revista do IHGB, trouxe outra edição do Tratado, também supervisionada
por Varnhagen. Tal como já ocorrera, foi lançado outro volume, desta feita pela Tipografia de
João Ignácio da Silva. Da mesma forma que as anteriores, a Carta de Varnhagen e os Breves
Commentários acompanham o texto. O estudioso acrescentou, entretanto, novas aquisições
que já havia divulgado na 2
ª
edição da sua História geral do Brasil, de 1872, sob o rótulo de
Additamento: a transcrição das concessões recebidas por Gabriel Soares e partes de seu
104
A tipografia Laemmert foi fundada em 1838 pelos irmãos alemães Eduardo e Henrique Laemmert,
acompanhando um momento de desenvolvimento da vida cultural do país e foi responsável pela edição de
inúmeras obras significativas, entre elas as duas primeiras edições da História do Brasil de Varnhagen. A
Laemmert dividiu em importância com a Garnier as publicações de meados do século XIX, entretanto não
chegavam a rivalizar exatamente pela linha que adotavam. A Laemmert concentrava-se em história e ciência
enquanto a Garnier dedicava-se, sobretudo, à literatura e escritores franceses. Laurence Hallewell, O livro no
Brasil. Sua História. São Paulo: Edusp. 2005. P. 125-177.
testamento, documentos que ainda permaneciam inéditos.
105
Vale destacar que qualquer uma
destas edições não apresenta requintes tipográficos.
Em 1938, a Companhia Editora Nacional publicou o Tratado Descritivo do Brasil,
dentro da Série Brasiliana. Trata-se de uma edição copiada da de 1879, sem qualquer
alteração. O único detalhe novo é que devido ao formato in oitavo, o volume alcançou o
número de 493 páginas.
A quarta edição veio a lume em 1945, na série Biblioteca Histórica Brasileira, pela
Livraria Martins Editora em São Paulo. Aqui a apresentação modificou-se. Retoma-se o título
de Notícia do Brasil da publicação em Lisboa. A introdução, os comentários e notas são do
Professor Pirajá da Silva. Na contracapa, informa-se que houve uma tiragem de cento e
sessenta exemplares de luxo. A capa traz a gravura de uma senhora nobre sendo carregada
numa liteira por dois negros vestidos, mas descalços. A imagem sugere o cotidiano do período
colonial, mas sua escolha é paradoxal e inadequada, pois não ilustra nenhum dos aspectos
retratados no escrito. Contém ainda um retrato conhecido do jovem Varnhagen, além da
reprodução da capa preparada e não publicada pela Tipografia do Arco do Cego, e o
Testamento completo de Gabriel Soares.
O texto propriamente dito é antecedido pela ilustração de um pórtico em que dois seres
bestiais sustentam duas colunas. Na fachada figuram animais que se assemelham a um
macaco, um tamanduá e um papagaio, cercados de frutas, aludindo à exuberância das terras
tropicais.
106
As notas de Pirajá estão dispostas na seqüência dos respectivos capítulos,
expostas de maneira diferente de todas as demais edições, anteriores ou posteriores. Apesar
das referências a Varnhagen, suas críticas documentais não foram incorporadas. Cláudio
105
Os requerimentos não são conhecidos, mas os alvarás e as aprovações datados de 1590 e 1591 se encontram
no acervo da Biblioteca do IHGB. “Coleção de manuscritos relativos à História do Brasil feita por ordem do
Imperador D. Pedro II, contendo cartas, alvarás e provisões pertencentes ao Conselho ultramarino”. Tomo I, Arq.
1-2-15.
106
Figuras que tudo indica devem ter servido de inspiração para o artista Jô Oliveira desenhar o selo
comemorativo dos 400 anos do Tratado Descritivo do Brasil, a que nos referimos no capítulo anterior, pág. 48.
Ganns, reconhecido estudioso de Gabriel Soares, avaliando esta edição, bem mais esmerada
do que as anteriores, aponta-lhe a ausência de tratamento gráfico, mas informa que a mesma
esgotou-se rapidamente.
107
Em 1971, o texto de Gabriel Soares seria reeditado, mais uma vez, como Tratado
Descritivo do Brasil em 1587, pela Companhia Editora Nacional, novamente na Série
Brasiliana, com a Carta ao IHGB e os Comentários de F.A. de Varnhagen. No fundo, tratava-
se de mais uma reprodução da edição de 1879.
A oitava edição em ordem cronológica, datada de 1974, retomou o título de Notícia do
Brasil. Organizada em comemoração do centenário de nascimento de Pirajá da Silva, integra
a série Brasiliensia Documenta do Departamento de Assuntos Culturais do então Ministério
da Educação e Cultura. A despeito de seu aspecto monumental, in folio, incômoda para o
manuseio, é a mais consultada pelos historiadores contemporâneos, visto que agrega tanto os
comentários de Francisco Adolpho de Varnhagen quanto os de Augusto Pirajá da Silva.
A nona e última edição brasileira saiu por ocasião das comemorações do quinto
centenário do descobrimento do Brasil, no ano de 2000, pela Editora Massangana da
Fundação Joaquim Nabuco de Recife, na Série Descobrimentos. O pesquisador Leonardo
Dantas Silva assina a introdução, intitulada “A obra de Gabriel Soares de Sousa na
historiografia dos primeiros anos”, em que faz um retrospecto dos escritos produzidos sobre o
primeiro século de colonização. O livro é uma duplicata da edição de 1971, ou seja, que não
traz as anotações de Pirajá da Silva. Tem o mérito de tornar o texto mais accessível à leitura e
à pesquisa por sua boa disposição, que permite estabelecer imediata relação entre o texto e as
notas de Varnhagen.
Houve, ainda, uma publicação do Tratado Descritivo do Brasil em 1587 em
castelhano, em 1958, pela Ediciones Cultura Hispânica com o título de Derrotero General de
107
Cláudio Ganns, na introdução que apresentou à obra de Gabriel Soares e que foi publicada pela Revista do
IHGB, “O primeiro historiador do Brasil em Espanhol”. Rio de Janeiro: Dep. de Imprensa Nacional, 238: 144-
168, jan-março de 1958, p.162.
la Costa del Brasil. Esta edição foi preparada por Cláudio Ganns que seguiu uma pista
indicada no Jornal do Comércio em treze de março de 1932, do grande especialista nas
bandeiras brasileiras, Afonso de Taunay. Na esteira de Taunay, Ganns dirigiu-se
imediatamente para a Biblioteca do Palácio Real, onde encontrou o códice manuscrito em
letra do século XVIII. Organizou então uma edição ilustrada por mapas antigos provenientes
da Biblioteca Nacional de Madrid, enobrecida com uma cópia microfilmada da folha de rosto
do manuscrito original em espanhol que pertencia à Biblioteca do Palácio Real, além de
apresentar em sua introdução, uma biografia do colono, a enumeração de suas edições e toda a
bibliografia existente a respeito. Preservou, como referência fundamental, as antigas notas
elaboradas por Varnhagen. A única distinção em relação ao texto reproduzido por Varnhagen,
em 1851, refere-se ao Proêmio. Esse é subdividido em Carta do autor à D. Cristóvão de
Moura e Declaração e resolução do que se constitui neste Tratado.
Naquele mesmo ano de 1958, uma edição especial foi impressa para o Ministério das
Relações Exteriores, pela Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil,
108
formada por apenas
120 exemplares, compostos artesanalmente e tirados em prelos manuais. Seu título é Bestiário
e contem somente os trechos em que Gabriel Soares descreve toda a sorte de animais da
colônia. O texto é acompanhado de belíssimas xilogravuras do artista Marcello Grassmann
que traduzem o imaginário colonial. As placas que serviram para a ilustração foram
destruídas, como é comum quando se pretende evitar novas reproduções, garantindo a
raridade e originalidade de uma obra. Os luxuosos volumes, impressos em folhas soltas de
papel Marais devidamente acondicionadas numa caixa destinavam-se ao seleto grupo de
bibliófilos, com a função de valorizar obras e artistas que diziam respeito a nacionalidade
satisfazendo o gosto dos amantes dos livros enquanto obras de arte. Pelo recorte específico e
108
A Sociedade dos Cem Bibliófilos foi fundada em 1943 e se extingui em 1969, editou 23 obras que tratam de
temas da formação nacional, ilustradas por grandes nomes das artes plásticas. Era composta por intelectuais,
diplomatas, políticos, jornalistas, juristas, enfim, membros da elite brasileira.
raridade da obra, apresentamos esta edição tão somente para divulgar sua existência e a título
de excepcionalidade.
As publicações acima relacionadas foram sistematizadas a seguir:
QUADRO N°1
AS EDIÇÕES IMPRESSAS DA OBRA DE GABRIEL SOARES DE SOUSA
TÍTULO
ANO IMPRESSOR RESPONSÁVEL CARACTERÍSTICAS
Descrição geográfica da
América Portuguêsa
Início
do XIX
Tipografia do
Arco do Cego
Frei J. Mariano da
Conceição Veloso
Publicação parcial - exemplares:
Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, Biblioteca de Guita e
José Midlin e IHGB- s/autoria-
não obteve divulgação pública.
Notícia do Brasil,
descrição verdadeira da
Costa daquele Estado,
que pertence à Coroa do
Reino de Portugal, sítio
da Bahia de Todos os
Santos
1825
Academia
Real das
Ciências de
Lisboa
Academia Real das
Ciências de Lisboa
s/autoria – saiu na Coleção de
Notícias para a história e a
geografia das Nações
Ultramarinas.
Roteiro Geral
1830 Jornal Patriota
Brasileiro-
impresso em
Paris
Jornal Patriota
Brasileiro
Incompleta- apenas os 29
primeiros capítulos -serviu-se do
manuscrito da Biblioteca de
Paris-
s/autoria.
Extrato de um Mss. Que
se conserva na Biblioteca
de S.M. o Imperador e
que tem por título
Descripção Geográfica
da América Portuguesa
1839 Revista do
IHGB
Revista do IHGB Trata-se de uma parte da obra de
Gabriel Soares que pertencia à
Biblioteca do Imperador - s/
autoria.
Tratado descritivo do
Brasil em 1587. Edição
castigada pelo estudo e
exame de muitos códices
manuscritos existentes no
Brasil, em Portugal,
Espanha e França e
acrescentada de alguns
comentários à obra.
1851 Tip. Universal
de Laemmert.
Rio de Janeiro
Francisco Adolfo
de Varnhagen
Primeira aparição com autoria
recuperada. Contém a análise
crítica de Varnhagen. Foram duas
publicações: uma pela Revista do
IHGB- Tomo XIV- e outra
comercial com a Carta ao IHGB.
Tratado Descritivo do
Brasil em 1587
1879 Tip. De João
Inácio da
Silva. Rio de
Janeiro
Saiu apenas a
edição comercial
Esta edição contém um
Aditamento que vem a ser as
notícias biográficas de
Varnhagen que haviam sido
publicadas na Revista do IHGB
em 1858 e na sua História geral,
2ª edição. No resto é igual à de
1851.
Tratado Descritivo do
Brasil em 1587
1886 Tip. De João
Inácio da
Silva- Tip.
Perseverança
2ª edição do tomo
XIV da RIHGB
Esta edição é mesma da de 1879
da Tip. De João Inácio da Silva.
Tratado Descritivo do
Brasil
1938 Cia. Editora
Nacional-
São Paulo
3ª edição da obra
baseada na crítica
de Varnhagen
Esta edição se baseia na de 1879.
Segundo J.H.Rodrigues, a melhor
é a de 1851, por Varnhagen tê-la
revisto. Esta edição contém o
testamento de Soares.
Notícia do Brasil
1945 Editora
Livraria
Martins - São
Paulo- obra
em volumes
Ed. da Biblioteca
Histórica
Brasileira. Introd. e
notas de Pirajá da
Silva-
Também a partir de edição de
1879 – s/ grande tratamento
gráfico, esgotada rapidamente- s/
as anotações de Varnhagen.
Derrotero general de la
costa del Brasil y
Memorial de las
Grandezas de Bahia.
1958 Cultura
Hispânica-
Madri
Preparada por
Cláudio Ganns
Segue o texto original em
espanhol- Introdução de Ganns e
com as notas de Varnhagen.
Tratado Descritivo do
Brasil em 1587
1971 Companhia
Editora
Nacional,
Série
Brasiliana
Companhia Editora
Nacional
Com carta ao IHGB e
comentários de F.A.Varnhagen
(copiada da edição de 1879).
Notícia do Brasil
1974 Departamento
de Assuntos
Culturais do
Ministério da
Educação e
Cultura
Sétima da série
Brasiliensia
Documenta, em
comemoração do
centenário de
nascimento de
Pirajá da Silva.
8ª em ordem cronológica
segundo a introdução de Edgar
Cerqueira Falcão.
Notas de Varnhagen, Pirajá da
Silva e F. Edelweiss.
Tratado Descritivo do
Brasil em 1587
2000 Editora
Massangana-
Recife
Leonardo Dantas
Silva com as
anotações de F. A.
Varnhagen.
Edição no ensejo das
comemorações dos 500 anos do
descobrimento do Brasil.
Fonte: Quadro elaborado por Gabriela Soares de Azevedo a partir de informações obtidas de José Honório
Rodrigues, Francisco Adolfo de Varnhagen, Cláudio Ganns e Augusto Pirajá da Silva.
Em primeiro lugar, observa-se que as edições brasileiras têm como matriz o trabalho
de Varnhagen. Além disso, todas estão relacionadas a eventos promovidos por instituições
públicas e de memória nacional. São acompanhadas de notas explicativas e, cabe ressaltar que
nenhum dos títulos que aparecem nas edições impressas corresponde aqueles das cópias
manuscritas em que se basearam. No texto do Tratado, surgem os termos “memorial” e
“roteiro”, preferencialmente. Vez por outra, Gabriel Soares também se refere ao escrito como
“lembranças”, “história”, “capítulos”, “anotações” ou “tratado”. No Quadro n° 1, registramos
quatro designações distintas para a mesma obra impressa. O estudioso Cláudio Ganns
acrescenta ainda um quinto título referente ao manuscrito espanhol, Memórias histori-
cosmográficas de la Bahia de Todos los Santos e deles afere uma crítica extremada e
surpreendente, que recai mais sobre os editores do que sobre o autor: [...] cinco indicações
diferentes para a mesma coisa, ocasionando confusões, propositadas ou não. Como se uma
só pessoa usasse cinco nomes de batismos diversos: só cáften, ladrão ou judeu!
109
De
qualquer forma, essa multiplicidade de denominações, de fato, gera inúmeros equívocos,
dificulta o reconhecimento de seu conteúdo e perpetua uma indefinição sobre a natureza do
escrito.
Na verdade, o texto publicado constitui-se de duas escritas distintas, vale reafirmar:
um Roteiro Geral e um Memorial. A inexistência de um título único que contemple o
conjunto, ao que tudo indica pelas interpolações posteriores, nos remete à concepção original
do texto e a um provável objetivo bastante restrito de circulação, limitada aos mais altos
membros da corte filipina a quem fora entregue.
Ao ser revelada e em suas primeiras edições, a obra não recebeu nenhum destaque
tipográfico ou sofisticação editorial. Mas podemos inferir que, a partir do século XX, um
processo de valorização do papel de Francisco Adolpho de Varnhagen na construção da
historiografia da nação, sobretudo enfatizando sua cientificidade, aliada a releitura da
documentação relativa ao período colonial, conferem à obra de Gabriel Soares cada vez maior
prestígio historiográfico enquanto documento singular. Percebe-se então que o texto
progressivamente passa receber um tratamento monumentalizante, bem como a análise de
grandes especialistas, como o próprio Pirajá da Silva, Rodolfo Garcia, Edgar Cerqueira
Falcão, Frederico Edelweiss e Capistrano de Abreu.
Abordar a problemática que envolve os manuscritos de Gabriel Soares, não é, de
qualquer forma, inovação nossa. Já por volta de 1933, Pirajá da Silva, citando os leitores
109
Cláudio Ganns, “O primeiro historiador do Brasil em Espanhol”, p. 160.
coloniais de Gabriel Soares, dizia: Durante muitos anos se ignorou a autoria do Roteiro
Geral do Brasil, cujas cópias foram muitas e adulteradas.
110
Sabe-se que o relato de Gabriel Soares já circulava em Portugal doze anos após a data
em que fora oferecida ao Rei, em 1587. De fato, em 1599, Pedro de Mariz cita e transcreve
trechos na segunda edição de seus diálogos. Frei Vicente de Salvador e seu confrade Fr.
Antonio Jaboatão também a “copiam ou citam”, como salienta Varnhagen, assim como Simão
de Vasconcelos.
111
Porém, é curioso que nos Apólogos Dialogais de D. Francisco Manuel de
Melo, Gabriel Soares não seja registrado entre os cronistas e escritores relacionados, no seu
“Hospital das Letras”. Podemos supor que o relato de Gabriel Soares não se enquadrasse nas
expectativas do crítico, soldado e literato português, ou então, que D. Manuel, como
circulasse com desenvoltura na corte de Madrid, provavelmente sabia que se tratava de um
documento dirigido essencialmente ao monarca.
112
De qualquer modo, mais de dois séculos se passaram sem que a obra fosse impressa.
Estas referências constituem os testemunhos de Gabriel Soares de Sousa ou sua tradição
indireta, ou seja, autores e obras que fizeram menção ao escritor e que informam sua
existência ou testemunham a perda do original. Através da tradição indireta são reunidos
todos os documentos que podem auxiliar na leitura ou interpretação do texto. Este
procedimento constitui a primeira etapa na preparação de uma edição crítica, segundo a
filologia clássica, denominada recensio, que compreende o levantamento de todos os
testemunhos diretos ou indiretos conhecidos. A indefinição de Varnhagen quanto a citar ou
110
Data aproximada da escrita da Introdução de Pirajá da Silva. Notícia do Brasil, p. 251.
111
Notícia do Brasil, p.2.
112
D. Francisco Manuel de Melo, Apólogos Dialogais, Vol.II. Edição de Pedro Serra. Coimbra: Ângelus Novus,
1999. A obra citada é de 1657 e constitui a primeira obra de crítica literária em língua portuguesa.
copiar significa que, mesmo confrontando os testemunhos, não foi possível confirmar a
escrita primeira.
113
O segundo passo, estabelecido pelo chamado método Lachmaniano, consiste na
examinatio, o exame de cada testemunho da tradição direta que é formada por todas as cópias
manuscritas e edições impressas de um texto, com o objetivo de avaliar sua autenticidade, e a
eventualidade de que possa vir a ser um original. Neste sentido, o estudioso sorocabano
descreve suas andanças por diversas bibliotecas em busca dos originais do autor, seguindo as
informações colhidas em diversas fontes. Mencionou as indicações de Nicolau Antônio,
Diogo Barbosa de Machado, Antônio Léon de Pinelo e seu adicionador Barcia. Não os
encontrou na Biblioteca de Cristóvão de Moura, existente em Valência. Na livraria do conde
de Vila-Umbrosa em Malhorca, não esteve, mas, por meio de informações, acreditava que lá
não estivessem tais manuscritos. A livraria do Conde de Vimieiro, outro provável lugar, fora
destruída pelas chamas. Enfim, a peregrinação exaustiva não alcança seu objetivo final. Os
testemunhos conhecidos até hoje sobre Gabriel Soares estão registrados a seguir:
QUADRO N° 2
TESTEMUNHOS DE GABRIEL SOARES DE SOUSA
AUTOR OBRA ANO OBSERVAÇÕES
Pedro de Mariz
Diálogos de Vária História
1ª ed. em
1594.
Coimbra - 2ª
em 1597.
Referência a Gabriel Soares de
Sousa como autor.
Frei Vicente do Salvador
História do Brasil
Escrita por
volta de 1627
(publicada na
íntegra em
1885/86)
Cita que veio ao Brasil com
Francisco Barreto, na viagem para
a Índia, e sua viagem ao rio São
Francisco.
Antônio Leon Pinelo e seu
anotador Barcia
Epítome de la Biblioteca
oriental y occidental, náutica
y geográfica
1629- Madrid
Referência ao Ms.–autor anônimo.
Simão de Vasconcelos
Crônica da Companhia de 1663 Referências a Gabriel Soares.
113
Seguimos as definições da ecdótica ou crítica textual a partir da obra de Bárbara Sapggiari e Maurizio
Peruggi, Fundamentos da crítica textual, já citados e Crítica textual e edição de textos de José Pereira da Silva,
Rio de Janeiro: o Autor, 2005.
Jesus do Estado do Brasil
Antônio Leon Pinelo e seu
anotador Barcia
Epítome de la Biblioteca
oriental y occidental, náutica
y geografica
2ª ed. - 1738 Referência ao Ms. –autor
anônimo.
Nicolas Antonio
Biblioteca Hispânica sive
hispaniorrum
2ªed. Madrid-
1738/1788
Referência a Gabriel Soares de
Sousa.
Diogo Barbosa de Machado
Biblioteca Lusitana,
História, Crítica e
Chronologia
Lisboa-1741 e
1758
Referência a Gabriel Soares de
Sousa como autor.
Fr. Santa Maria Antônio
Jaboatão
Orbe Seráfico
Lisboa-1761
Referências a Gabriel Soares.
Padre Manuel Ayres do
Casal
Corografia brasílica
1817-
Impressão
Régia-Rio de
Janeiro
Referência a Francisco da Cunha,
mas expõe dúvidas.
C. F. Von Martius
Von dem Rechtszustande
inter den Ureinssohnern
Brasiliensis
1832-
Munchen
Referência a Francisco da Cunha
como autor.
Ferdinand Denis
Le Brasil
1837- Paris
Referência a Francisco da Cunha
como autor.
C. F. Von Martius
Herbarium Florae
Brasiliensis
1837-
Munchen
Referência a Francisco da Cunha
como autor.
Fonte: Quadro elaborado por Gabriela Soares de Azevedo a partir das informações provenientes de Francisco
Adolfo de Varnhagen, Pirajá da Silva e José Honório Rodrigues.
Após a examinatio, realiza-se a collatio, processo que exige muitos cuidados, pois do
confronto ou da colação de todas as cópias encontradas, avaliando a procedência e estado de
conservação é que se determina a escolha de um texto base.
Na Carta ao IHGB, em 1851, Varnhagen comunica que examinou cerca de vinte
cópias manuscritas de Gabriel Soares: uma na Biblioteca de Paris, em 1847; três na Biblioteca
Eborense; três na Biblioteca Portuense; outras tantas na Biblioteca das Necessidades em
Lisboa; duas em Madrid, sendo que uma pertenceu ao convento da congregação das Missões;
três da Academia de Lisboa, uma delas servira ao prelo, outra está em seu arquivo, e o
terceira, na Livraria Conventual de Jesus; três cópias de “menos valor” foram localizadas no
Rio de Janeiro, uma das quais chegou a ser licenciada para a impressão; uma cópia avulsa, da
coleção de Pinheiro na Torre do Tombo; outra em Neuwied, ofertada na Bahia, entre 1815 e
1817, ao erudito príncipe Maximiliano. Notificou, ainda, o futuro Visconde de Porto Seguro,
que não encontrou na Inglaterra o códice pertencente a Roberto Southey, autor da History of
Brasil (1819), nem teve notícia de algum exemplar no Museu Britânico.
Concluída a collatio, Varnhagen eliminou exemplares inúteis por serem coincidentes
ou por estarem muito deturpados, num procedimento denominado eliminatio codicum
descriptorium (eliminação dos códices copiados) e concluiu que a cópia mais próxima ao
original se encontrava entre uma das três localizadas em Évora. Se houvesse optado por
reproduzir aquela que considerou a mais fidedigna, teria elaborado uma edição diplomática,
em que se reproduz fielmente outra edição. Entretanto, prosseguiu com a emendatio, a
correção do texto por comparação dos códices e das edições ou por conhecimento do
pesquisador capaz de identificar erros, idiossincrasias e anacronismos no cruzamento entre o
texto, o autor e a época original. Assim, a cópia que ofereceu para a impressão em 1851,
proveio desta operação de cotejamento de um mosaico daquelas reproduções pesquisadas em
confronto com a única edição existente até então, na Academia de Ciências de Lisboa. A
convivência de mais de quinze anos com Gabriel Soares de Sousa, propiciou tanta experiência
a Varnhagen, que ele deixou a revisão das provas do livro ao seu confrade do IHGB, Sr. Dr.
Silva, justamente por ser obra que quase sabia “de cor”.
114
A última operação, a constututio textus, requer uma apresentação específica, em que o
original deve vir acompanhado de informação histórica e biobibliográfica do autor, de
digressões sobre seus significados histórico, estético e científico, entre outros. Deve conter
ainda todo um aparato crítico em que se incluem as fontes, as notas, a genealogia e o elenco
das variantes, os comentários críticos, as abreviaturas utilizadas, as normas de transcrição e os
114
“Breves comentários”, Notícia do Brasil, p. 201.
procedimentos adotados. Estes procedimentos se encontram descritos nos Breves
Comentários de Varnhagen, de 1851, salvo algumas exceções, que iremos apontar.
Varnhagen não especifica as fontes que consultou, nem expõe a técnica realizada entre
a collatio e a emendatio: a sistematização das variantes, esquematizadas como uma verdadeira
árvore genealógica dos códices. Chama-se variante qualquer cópia que apresente divergência
em relação a outro grupo. Este ato metodológico, denominado stemma codicum, é o eixo de
toda crítica textual, pois daí se estabelecem os critérios de erro.
A questão do estabelecimento do stemma codicum está no centro do debate entre a
ecdótica antiga e a moderna. Por hora, não convém explorá-la. Contudo, esta problemática
não foi abandonada, pois é essencial para a credibilidade do resultado obtido uma vez que
esclarece os métodos utilizados.
O estema em si não necessita ser revelado para o público leitor, já que serve mais aos
propósitos dos estudiosos e dos editores.
115
Entretanto, quando se trata de uma edição crítica
e anotada, como é o caso, a operação costuma ser referenciada ao longo da análise.
O futuro Visconde de Porto Seguro evidencia conhecer todo processo da edição
crítica. Ele estabeleceu escolhas bastante apropriadas para a apresentação do texto de Gabriel
Soares, como explica: Para melhor inteligência das doutrinas do livro acompanho esta cópia
dos comentários que vão no fim [...] porque não quis interromper com a minha mesquinha
prosa essas páginas venerandas de um escritor quinhentista.
116
E a ausência das variantes é
justificada pela leveza do texto: Abstive-me também da tarefa, aliás enfadonha, para o leitor,
de acompanhar o texto com variantes que tenho por não-legítimas.
117
Esta atitude acabaria
impossibilitando o leitor de acompanhar a história dos códices consultados, bem como o
critério adotado para o reconhecimento do mais legítimo. A nosso ver, tal procedimento
115
O estema é a representação gráfica, em diagrama, das relações entre cópias.
116
Notícia do Brasil, p.2.
117
Idem.
corresponde a uma tradição de erudição, em que a autoridade do especialista assegura seu
testemunho.
Vejamos agora, os aparatos críticos de que Varnhagen se utilizou. O texto fixado pelo
estudioso é seguido de duzentos e setenta notas, denominadas Comentários, que traduzem,
comparam e explicam termos e informações. As notas em si constituem um texto a parte. Um
livro também a ser lido, na medida em que se referem aos interesses e preocupações próprios
da análise realizada pelo comentador, elencando e destacando temas significativos para a
cultura histórica oitocentista. Vale notar que Varnhagen realizou mais tarde outras
descobertas de autoria, a exemplo da Narrativa Epistolar, escrita pelo Padre Fernão Cardim,
contemporâneo de Gabriel Soares, que chama de "maravilhoso livrinho”.
118
Porém, nenhuma
delas recebeu uma análise tão minuciosa quanto o texto de Gabriel Soares.
O Tratado Descritivo pode ser dividido em três partes. A primeira inicia-se com uma
dedicatória ao rei, que serve de introdução ao texto. Consta de um histórico, abrangendo
desde os primeiros descobridores até o momento em que o autor escreve. Gabriel Soares
aponta as qualidades da terra e afirma que seu objetivo é informá-las ao soberano para que a
proteja, pressupondo que lhe faltem conhecimentos para tal. Encaminha, assim, a primeira
parte de seu caderno, que trata da descrição geográfica pormenorizada da costa brasileira
desde o rio Amazonas até o rio da Prata. Nesta parte inclui a narrativa da conquista do litoral
até então conhecido, registra os nomes dos primeiros capitães, as tribos nativas e as pelejas
travadas. Vale lembrar que, de um modo geral, seus informes muitas vezes não correspondem
118
A Narrativa Epistolar foi publicada, com outros manuscritos e com notas, como Tratado da terra e da gente
do Brasil. Fernão Cardim, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1980. A
obra do provincial jesuíta foi publicada pela primeira vez com o nome do autor a partir da identificação realizada
por Varnhagen, em 1847, publicando-a em Lisboa e, posteriormente, em 1902, através do IHGB. Nenhuma obra
quinhentista foi tão acrescentada quanto à de Gabriel Soares. A de Fernão Cardim recebeu notas que foram feitas
a posteriori pelo estudioso Rodolfo Garcia. Mas mesmo que extrapolemos os "cronistas", obras mais recentes
possuem notas que por seu volume, densidade de informações e diálogos que estabelecem, formam um livro a
parte, como é o caso de importantes obras da historiografia do século XX, como Casa Grande e Senzala, de
Gilberto Freyre, e Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda.
aos dados que dispomos hoje em dia.
Na segunda parte aborda a paisagem vegetal e as espécies animais encontradas no
Brasil, um longo inventário crítico e comparativo com a fauna e a flora da Península Ibérica.
Em seguida, trata dos costumes indígenas, elaborando um minucioso relato que se
assemelharia ao etnográfico. Finalmente, faz uma rápida exposição das riquezas minerais.
As notas elaboradas por Francisco Adolpho de Varnhagen seguem esses tópicos passo
a passo. Dedicam-se, especialmente, ao estudo etimológico. Varnhagen conhecia a língua
tupi, defendia o estudo das línguas indígenas e, portanto, era um dos mais indicados
estudiosos para identificar os termos utilizados pelo pretenso capitão da conquista do São
Francisco. Aliado ao interesse etimológico, está o etnográfico, fundamental tanto para a
reconstituição histórica dos povos nativos Brasil, quanto para a identificação das linhagens
dos grupos ainda existentes na segunda metade do século XIX.
Além de averiguar datas, acontecimentos ou localizações, Varnhagen acrescenta ao
texto explicações e curiosidades, confrontando o escrito do colono com os dos naturalistas,
cosmógrafos, gramáticos, cronistas, geógrafos, sócios do IHGB ou até mesmo poetas.
Como a organização do texto e as notas de Varnhagen serão sempre as mesmas,
independente da edição em questão, estabelecemos núcleos temáticos e agrupamos as notas
segundo este critério. O resultado está no Quadro n° 3, onde podemos visualizar os aspectos
mais recorrentes nas anotações do estudioso paulista. A etimologia e os juízos de valor são os
itens mais constantes.
QUADRO N° 3
Tratado Descritivo do Brasil em 1587 – notas de Francisco Adolpho de Varnhagen
Datas e
acontecimentos
Identificação
de lugares
Etimologia
Etnologia
Juízos de
valor
32 24 175 34 72
Fonte: Quadro elaborado por Gabriela Soares de Azevedo a partir das notas preparadas por F.A. de
Varnhagen.
Há, contudo, um senão nas referências de Varnhagen: na grande maioria das vezes, o
erudito menciona apenas um dos nomes dos autores que consultou, sem apontar onde
encontrá-lo e ou a que obras alude. Além disso, como se pode notar no Quadro n° 3, avultam
os juízos de valor, negativos ou positivos sobre as fontes compulsadas. Se as referências
constituem um critério fundamental de cientificidade, além de demonstrar erudição, por que
então o historiador diplomata se imiscuiria de apresentá-las? Esta questão só pode ser
ponderada em relação ao período em que escrevia e ao leitor a que destinava suas notas.
Existe uma série de referências diretas: Aqui as daremos corretas (notas) para evitar ao leitor
o trabalho de as ir ler onde estão [...], Remetemos a tal respeito o leitor para o que dizemos
em um escrito impresso por nós [...], ou, O leitor pode consultar o que ponderamos a tal
respeito no [...], ou ainda, A respeito do colégio dos padres da Companhia na Bahia parece-
nos que o leitor levará a bem que lhe demos aqui outra descrição [...].
119
As citações aqui destacadas, aparentemente servem de subsídio para orientar o leitor
a um estudo mais aprofundado. Contudo também se prestam a algumas reflexões. Na
primeira nota, Varnhagen oferece informações complementares ao texto de Gabriel Soares.
Nas demais, encaminha o leitor para as suas pesquisas, em especial, para três trabalhos: o
estudo em que defende a premissa de que os indígenas brasileiros pertenciam a uma só raça;
a análise dos três padrões iguais colocados por ordem de Martim Afonso na ponta de
119
Notícia do Brasil, notas 18, 46, 65 e 83, respectivamente. (Optamos por não inserir os números das páginas
para não aumentar ainda mais as notas e por elas serem facilmente localizadas em qualquer que seja a edição).
As notas 46 e 65 indicam estudos publicados pela Revista do IHGB.
Itacuruçá, Rio de Janeiro, que procurou in loco, em 1841, e a obra do Padre Cardim, a qual
teve o mérito de identificar o autor. Não é estranho que ele se utilize deste espaço para auto
divulgação, singular é a ausência de outras referências exatas.
Ele dialoga constantemente com um leitor “especializado”, com fácil acesso às fontes
do estudo: Este capítulo foi bastante retocado à vista das cópias mais dignas de fé, como o
leitor pode deduzir pela confrontação [...]. Ou com uma intimidade peculiar, como em:
Chamamos a atenção do leitor sobre a relação de 1:2:3 entre as classes dos defensores da
Bahia em 1587, a saber: dois mil colonos europeus, quatro mil africanos, e seis mil índios
civilizados. Pode também compartilhar os louvores da pesquisa como em Algumas variações
encontrará o leitor no nosso texto, graças à confrontação de tantos códices [...]; ou ainda
pedir paciência, Esperamos que o leitor nos desculpe a digressão que fizemos sobre esta
palavra [...].
120
Portanto, ele aproveitou a edição crítica para fazer propaganda de suas
contribuições e tornar-se ainda mais conhecido no Brasil, além de atiçar a “fogueira das
vaidades” do IHGB.
Outra evidência dessa proximidade entre comentador e ledor dá-se quando indica uma
forma de conhecimento que pretende valorizar de sobremaneira: Para melhor identificar o
leitor com a sinonímia das palmeiras, remetemo-lo ao exame da magnífica monografia desta
família do célebre Martius, precedendo a ele, se for possível, o conhecimento prático das
mesmas.
121
No Tratado Descritivo aparecem enumerados oito tipos de palmeiras,
encontradas entre o litoral e o sertão baiano. É natural que na nota, Varnhagen recomende e
elogie a leitura do naturalista alemão que, aliás, seria um dos únicos a exaltar sua História
geral pouco tempo depois,
122
mas que sugira uma visita à Bahia parece exagero! Talvez,
trate-se mais de um reforço a um método de conhecimento do que uma sugestão descabida.
120
Notícia, respectivamente notas 107, 86, 88 e 117. Varnhagen apresenta as variantes na grafia de aipim e
finaliza defendendo a ortografia que vingou, aipim, como hoje conhecemos.
121
Notícia, nota 129.
122
Lucia M. P. Guimarães confere que somente Karl F. von Martius e o francês Ferdinand Denis ofereceram boa
acolhida à obra, em 1854. “História geral do Brasil”, op. cit., p.94.
Em todo caso, vale salientar que ele não apresenta a referência exata da dita monografia do
brasilianista.
Quem seriam os possíveis leitores de Varnhagen no século XIX? Na visão crítica de
Manoel Bonfim, exaltada e corrosiva quanto às instituições e atuações imperiais e seus
reflexos, embora realista em seus dados, percebemos que a vida intelectual do Império
brasileiro era bem limitada:
[...] ao cair o Império, letrado e liberal, apenas dois por cento dos
brasileiros sabiam ler e escrever. Na própria cidade da corte (...) somente
9.000 crianças freqüentavam escolas primárias oficiais; havia um ano, apenas,
que fora devidamente regulado o funcionamento da primeira escola normal -
para a formação de professores primários. Pouco antes, em 1880, Félix da
Cunha podia afirmar: toda a instrução pública está reduzida à leitura
elementar, às quatro operações e à cartilha da doutrina cristã. (...) Não havia
instrução popular, nem profissional, nem centros de cultura desinteressada.
Tudo se resumia na continuação das célebres escolas régias, trôpegos colégios
de preparatórios, e as três escolas de intelectualismo técnico - medicina,
direito e engenharia.
123
A vista dessas palavras, um trabalho de erudição de tal monta, fruto de tamanha
pesquisa e sobre um tema tão específico, encontraria um público bastante restrito. Deduz-se,
assim, que Varnhagen não se dirige a um leitor qualquer, mas alguém capaz de reconhecer
autores e problemáticas relativas à colônia, além de familiarizado com questões
metodológicas. Ele discute com este leitor de forma direta, próxima, como se estivesse num
círculo de confrades a quem recomenda, aconselha. As indicações de consulta que faz são
geralmente referentes às suas obras, sinalizando estudos ou artigos próprios. Por outro lado,
em grande parte das vezes que discorre sobre outros autores, não informa sequer onde
123
Manoel Bonfim, O Brasil Nação. Sua primeira edição foi em 1931. Rio de Janeiro: Record, 1998, p.306.
encontrá-los. Enfim, não seria exagero afirmar que seus interlocutores são os membros do
Instituto, seus próprios pares.
124
A relação entre a fundação do IHGB e a estrutura de poder imperial foi salientada por
alguns de seus analistas. Lucia Maria Paschoal Guimarães examinou o Instituto pelo ângulo
interno, ou como designa, “na intimidade” da “Casa da Memória Nacional”. Numa pesquisa
meticulosa confrontou o projeto que legitimava a construção da instituição com a efetiva
formação, posição social, relações políticas e produção intelectual dos seus membros, desde
sua fundação em 21 de outubro de 1838 até a queda da monarquia. Revela que no grupo dos
fundadores da agremiação predominaram políticos da sociedade luso-brasileira de origem
urbana e não da aristocracia rural como poder-se-ia supor na ex-colônia agro-exportadora. A
relação entre os sócios e o poder imperial é tão extensa que a autora chega a asseverar que
“[...] até o final da década de 70, seus encontros acadêmicos mais pareciam reuniões do
Conselho de Ministros”.
125
As notas e comentários do erudito sorocabano, portanto, só poderiam fazer sentido
no âmbito do IHGB, o lugar de produção da pesquisa histórica é ao mesmo tempo aquele
que a “permite e a tolhe”, como se refere Michel de Certeau.
126
No caso de Varnhagen, é
nas notas que podemos observar o quanto fogem do programa científico, travando ora
furtiva ora expressamente, não apenas um diálogo com eruditos, mas a defesa e a divulgação
de seus pressupostos.
Por outro lado, o futuro Visconde apresenta um leque de conhecimentos que atestam
ou conduzem a deduções sobre o escrito colonial. Esta exposição de erudição, pela própria
124
Michel de Certeau avalia que a escrita da história ocorre ainda “em função de uma instituição” e nela se
estabelecem regras que “exigem ser examinadas por elas mesmas.” É neste ‘lugar’ que Varnhagen dialoga.
Como expõe: “[...] uma obra é menos cotada por seus compradores do que por seus pares e seus colegas, que a
apreciam segundo critérios científicos diferentes daqueles do público e decisivos para o autor [...]”. “A Operação
Historiográfica”, in: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, págs. 66 e 72. Grifos do
autor.
125
Lucia M. Paschoal Guimarães. Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade..., op.cit., p. 485.
126
Michel de Certeau. A escrita da História, op. cit., p. 72.
magnitude, sofistica o estudo e permite que enfatize as deficiências do saber histórico no
Brasil, aponte lacunas e incentive pesquisas em distintos âmbitos.
Varnhagen atribui a Gabriel Soares um conhecimento "enciclopédico", um estudo
"sistemático", além de eficiente observação prática. Valoriza-o em diversos momentos: [...]
tanta verdade há em sua descrição [...] ou, A topografia do Recôncavo ainda até hoje não
teve melhor, nem mais exato aluno.[...] Soares dá mais espécies de anacárdios do que as
conhecidas dos naturalistas [...], e sobre a Baía da Guanabara, derrete-se, da sua forma, em
elogios; A descrição da enseada desta nossa baía não poderia estar mais exata.
127
Entretanto, o historiador diplomata não emite apenas elogios ao colono português.
Aponta-lhe as falhas e os erros. Na realidade, estas críticas são mais indicadoras do estado
do conhecimento histórico no século XIX do que propriamente no século XVI: [...] contém
na parte histórica muitos erros, nascidos de escrever o autor, só talvez por tradição, tantos
anos após os sucessos que narra. Ás vezes é contundente na crítica: Neste capítulo, como no
que diz respeito à doutrina do 1
o
, o nosso autor não pode servir para nada de autoridade
ou, É sem verdade que Soares afirma que não havia noutro tempo formigas em São Paulo.
À título de curiosidade, notamos que a respeito das formigas paulistas, o comentador
exagera no oposto: São Paulo é desgraçadamente terra proverbial quanto às tanajuras, às
saúvas e às tocas de cupins.
128
Portanto, parece dialogar com o senhor de engenho quase
três séculos depois. Em outras passagens, discute as informações e os temas focalizados: Diz
aqui Soares que a linguagem dos carijós é diferente da de seus vizinhos; mas isto não se
deve entender mui restritamente [...], [...] confirma Soares a geral opinião de que os
indígenas de toda esta costa [...] são todos uns, e as minuciosas informações sobre o como
se fumava são hoje mui curiosa prolixidade, por isso mesmo que todos sabem o que é beber
fumo, como Soares chama ao fumar [...]. Gabriel Soares descreve o petume, designação tupi
127
Notícia,, notas 146, 81, 105, 123 e 52, respectivamente.
128
Notícia, notas 1,3, 62 e 62 novamente.
do tabaco, estendendo-se ao relatar seus efeitos curativos e a estima que tanto índios quanto
portugueses e mamelucos “bebem o fumo dela.”
129
Interessante que nosso colono dedica
quantitativamente aproximadamente o mesmo número de páginas para tratar de outras ervas
e de seus efeitos, fato não destacado por Varnhagen. A crítica detém-se, pois, num item
restrito que incomodou particularmente o erudito.
Um aspecto característico de Varnhagen é o tom pessoal com que colore as suas
aferições. Seu grande conhecedor e crítico, Capistrano de Abreu, afirmava que o
temperamento do sorocabano era responsável por posições que o levavam até mesmo a
abolir a neutralidade científica. Omitia assuntos que não lhe agradavam, ignorava autores ou
citava-os de forma enigmática, como P. da S. (Pereira da Silva), nas alusões com vistas à
posteridade chega a fazer, segundo Capistrano, concorrência ao Formicida Capanema
lembrando a criação de tamanduás para dar cabo das formigas.
130
Novamente as
formigas!
A valorização de Gabriel Soares e sua elevação como testemunho peculiar para a
História nacional e merecedor de tantos elogios, passa por um critério que excede seu
conteúdo histórico ou que não é somente alicerçado por ele, como fica explicitado no
comentário que segue:
O nosso autor que tanto entusiasmo e predileção mostra pelo Brasil, não
o contente de haver dito no proêmio que este estado era "capaz para se
edificar nele um grande império", repete esta sua aspiração à nossa
independência e nacionalidade dizendo neste capítulo que já D. João III, com
mais alguns anos de vida, pudera ter aqui edificado "um dos mais notáveis
reinos do mundo.
131
129
Sobre o processo de beber o fumo relata Gabriel Soares: “ajuntando muitas folhas destas, torcidas umas com
as outras e metidas em um canudo de folha de palma, e põem-lhe o fogo por uma banda, e como faz brasa,
metem esta canudo pela outra banda da boca, e sorvem-lhe o fumo para dentro até que lhe sai pelas ventas fora.”
Notícia, Capítulo LXI, p.109. Foram citadas as notas 68,72 e135 da referida obra.
130
C. Abreu. Necrológio, p.213-214.
131
Notícia, nota 89.
Isto fica ainda mais evidente na nota que arremata seus comentários:
Soares não contente de ter inculcado a um valido de Filipe II a grande
importância do Brasil (no livro que por vezes denomina francamente Tratado),
receoso que essa Corte, onde só se atendia às riquezas do Peru e à guerra dos
hereges, não se comovesse senão por alicientes análogos, conclui sua obra
com asseverar: 1
o
, que das minas do Brasil poderiam, quase sem trabalhos
nem despesas, tirar mais riquezas do que das Índias Ocidentais; 2
o
, que se não
cuidavam do Brasil e os luteranos viessem a saber o que por cá havia, não
tardariam em se assenhorar da Bahia, e se o chegassem a efetuar, muito
custaria a botá-los fora.
Estas duas verdades proféticas fariam por si a reputação de um homem,
ainda quando ele não houvesse escrito, como Soares, um Tratado
verdadeiramente enciclopédico do Brasil. Os holandeses vieram na América
vingar-se de Filipe II e do seu Duque de Alba, e as minas de Minas inundaram
o Universo, do século passado para cá, de ouro e diamantes. Do homem
superior que tinha entregue grande parte do seu tempo a observar, a meditar e
a escrever, nenhum caso naturalmente se fez. O seu livro esteve quase dois
séculos e meio sem publicar-se, e o autor naturalmente depois da dilatação
(como ele diz) de seus requerimentos em Madri, veio a passar a vida tão
obscura que nem é sabido quando, nem onde morreu.
132
A pena de Varnhagen transforma Gabriel Soares num precursor da nacionalidade, da
defesa da construção de um Império. Enfim, um visionário “nacionalista” e "homem
superior", qualificado pela dedicação aos estudos, a defesa da pátria, e pela louvável estratégia
de propagandear e convencer o valido do rei, o mais influente membro da corte espanhola, das
qualidades dos novos domínios aquém Tordesilhas. Mas esta estratégia é destacada
justamente pelo desinteresse pessoal: não espelha a realidade do século XVI, ou os objetivos
imediatos do colono, nem sua inserção na hierarquia social nos moldes do Antigo Regime.
Sua qualificação se dá numa genealogia dos homens que concorreram para a formação do
Império.
133
132
Notícia, nota 270.
133
Como destacou F. Falcon “o romantismo associou as idéias de povo e nação como constitutivas de uma
mesma entidade coletiva manifesta na língua, na história e na cultura comuns. Identificada como alma ou
espírito nacional, a realidade intrínseca de cada povo-nação representa uma individualidade histórica irredutível.
A história será sempre, então, a história dessas realidades únicas que têm no Estado sua expressão política.
Caberá então ao Estado-nação o lugar de honra no campo da historiografia dos oitocentos.” “História e poder”
in: Domínios da História. Org. de Ciro F. Cardoso e R. Vainfas. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997, p.65.
Varnhagen dispõem das notas para defender seus pontos de vista sobre questões que
estavam na ordem do dia, como a instrumentalização da pesquisa histórica, o papel do índio
na formação da nação, o uso e a importância da língua tupi e a história colonial entendida
como origem da nacionalidade.
134
Elementos relevantes na formação da sociedade
brasileira, no fundo, seu grande tema.
Uma crítica muito comum à historiografia produzida no âmbito do IHGB, no século
XIX, diz respeito ao seu caráter elitista e pragmático, devido a incorporações de modelos
europeus. De fato, o Instituto desenvolveu um programa coerente com o projeto de
consolidação do Estado monárquico, buscou construir a memória nacional com seus
símbolos, emblemas e heróis. Mas o projeto de nacionalidade não necessariamente é
genuíno e/ou uniforme. Por exemplo, no caso da unificação da Itália, um ministro italiano,
em 1860, exclamava: "Fizemos a Itália, agora precisamos fazer os italianos.”
135
No caso
brasileiro, como destaca José Murilo de Carvalho, a legitimação de um regime e a
elaboração de símbolos coletivos nem sempre depende apenas do esforço consciente das
elites. O resultado pode ser nulo ou inexpressivo, persistindo imagens antigas ou ganhando
os símbolos conotações imprevisíveis a priori. Como adverte Carvalho, A elaboração de um
imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime político
136
ou seja, há
sempre um processo inerente às sociedades de construção ideológica e cultural.
O Visconde de Porto Seguro opõe-se de modo contundente à transcrição da obra de
Gabriel Soares realizada pela Academia das Ciências de Lisboa. Suas censuras são
134
A questão da inserção do elemento indígena, como apresenta John M. Monteiro “foi certamente aprofundada
pelas mudanças institucionais introduzidas na década de 1840, com a implantação das Diretorias Provinciais e
com o apoio imperial ao projeto missionário dos capuchinhos. Fosse nos elegantes recintos das academias e
institutos ou no ambiente mais rude dos sertões do Império, tornaram-se cada vez mais ácidas as disputas entre
partidários da “catequese e civilização” e os defensores do afastamento e mesmo extermínio dos índios”. Tupis,
Tapuis e Historiadores. Tese apresentada para o concurso de Livre Docência. Departamento de Antropologia,
IFCH. UNICAMP. Área de Etnologia, Subárea História Indígena e do Indigenismo, Campinas, agosto de 2001.
Na Internet: www.ifch.unicamp.br/ihb/estudos/tupitapuia.pdf.
135
Eric Hobsbawn. A Era do Capital. 3ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.108.
136
Analisando o imaginário republicano, José Murilo de Carvalho conclui pelo fracasso em criar um imaginário
popular. A Formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990,
p.10.
constantes e em trinta de suas notas critica de forma veemente o texto acadêmico, incluindo
os copistas ou um copista a quem se dirige de forma bastante depreciativa: O texto da
Academia de Lisboa nomeia erradamente Clemente VII como autor da bula em favor dos
reis católicos; o que deve ter procedido de nota marginal, de algum ignorante possuidor de
códice, que o copista aproveitasse e insiste [...] o que procedeu naturalmente de má leitura
de copista [...] ou, As notas que o texto acadêmico admitiu a este capítulo [...] são
evidentemente estranhas a ele [...], O texto da Academia não mencionava o nome [...], Neste
capítulo faltam no texto acadêmico umas cinco linhas, aliás importantes [...], O texto da
academia diz tapanases em vez de papanases. Enfim, aponta uma longa lista dos deslizes da
Academia de Ciências de Lisboa. Somente uma vez incute qualidades ao copista; Do texto
da Academia consta que Salvador Correia foi nomeado governador por provisão de 10 de
Setembro de 1577. – Isto parece verdade; mas não cremos que fosse escrito por Soares,
senão erudição de algum copista.
137
O nosso erudito, por sinal muito vaidoso, curiosamente, também abre espaço para a
autocrítica: Não respondemos pela devida exatidão na ortografia dos nomes [...], ainda que
o equívoco seja retificado ou justificado pelas boas intenções: Nas Reflexões Críticas
enganamo-nos a tal respeito em várias de nossas conjecturas feitas sem fundamento e só
quase inspiradas, como em outros lugares [...], pelo desejo de acertar". Podendo, também,
ser desprovido de modéstia: Neste capítulo há no nosso texto melhoramentos de variantes
importantes.
138
A auto-referência e a censura constante à edição da Academia de Lisboa revelam a
necessidade de afirmação do significado do seu trabalho investigativo. Não apenas aquele
referente ao texto de Gabriel Soares, mas ao conjunto de suas análises, que formam um todo
de interesses que se comunicam e se complementam. Assim, mesmo num exercício de crítica
137
Notícia, notas 2, 103, 18, 25, 42, 45 e 56.
138
Notícia, notas 11, 129 e 197.
documental tão específico, o espaço é aproveitado para pôr em pauta assuntos polêmicos
como a posição do índio na sociedade brasileira e o papel exercido pelo colonizador. O
universo de Gabriel Soares é apropriado para defesa de suas opiniões. Varnhagen opunha-se,
como se sabe, à imagem idealizada do índio. Divergia de autores contemporâneos românticos
de viés indigenista como José Ignácio Abreu e Lima, Pedro de Alencastro Bellegarde, João
Francisco Lisboa, Henrique Nunes Leal, Gonçalves Dias e José Gonçalves de Magalhães
entre outros. Esses intelectuais, todos membros do Instituto Histórico, certamente ouviram ao
menos os ecos do recado do erudito apresentado por meio das notas e comentários ao texto de
Gabriel Soares de Sousa, sobretudo quando é tão contundente: Recomendamos a leitura deste
capítulo 160 aos que sustentam o pouco préstimo do nosso gentio, que por “filantropia”
(grifo do autor) estamos deixando nos matos tragando-se uns aos outros, e caçando os nossos
africanos (a que chamam macacos-do-chão) só para os comer!
139
Varnhagen usa o olhar de
Soares como bandeira para civilizar os indígenas, depõe contra o mito da sua inadaptação ao
trabalho e ainda relembra seus antigos hábitos antropofágicos.
3.3. A redescoberta de Augusto Pirajá da Silva
Se as notas de Varnhagen já nos parecem extensas e tão significativas para uma
análise, aquelas feitas por Pirajá da Silva superam-nas em muito em número e objetivos.
As informações sobre Pirajá da Silva são escassas, considerando que se tratava de um
ilustre homem de ciência. Porém, são elucidativas. Quem nos fornece é um de seus discípulos,
Dr. Edgar de Cerqueira Falcão, entusiasta do mestre, autor da Nota Liminar que abre a edição
de 1974 do Notícia do Brasil, como já dissemos, em homenagem ao centenário de nascimento
139
No capítulo a que se refere, Gabriel Soares descreve o vigor físico e inúmeras habilidades dos tupinambás,
especialmente em aprender o que os brancos ensinam, desde que não seja assunto matemático ou filosófico.
Podem trabalhar em diversos serviços manuais, tanto os homens quanto as mulheres. Notícia do Brasil, nota 234,
p. 273.
de Pirajá da Silva. No artigo “História duma grande conquista científica brasileira”
originalmente apresentado no primeiro Congresso Brasileiro de História da Medicina,
realizado no Rio de Janeiro, em 1951,
140
além de exaltar as virtudes do médico, apresenta
uma sintética biografia do pesquisador.
Manuel Augusto Pirajá da Silva nasceu em 28 de janeiro de 1873, na cidade de
Camanu, no sul da Bahia. Formou-se na Faculdade de medicina da Bahia em 1896. Segundo
Edgar de Cerqueira Falcão, “tinha pendor para a investigação minuciosa de laboratório”.
141
Dedicou-se à pesquisa microscópica, procurando por quatro anos o parasita da
esquistossomose. Em 1909, dirigiu-se para o Instituto Pasteur, em Paris. Lá conseguiu
identificar o terrível parasita. Porém, nunca foi reconhecido pela medicina como, aliás,
também não o seria pelos seus préstimos à crítica documental.
Em 1916, apresentou, junto com o Dr. Paulo Wolf, no 5
o
Congresso Brasileiro de
Geografia, uma tradução de parte da obra Reise in Brasilien de Spix e Martius, preenchendo
uma lacuna já evocada no 1
º
Congresso de História Nacional realizado em setembro de 1914,
onde se questionava porque uma obra de tal valor ainda não fora traduzida. Pirajá verteu a
parte relativa à Bahia e seu interesse é patente. Além do valor histórico, trata-se de
contribuição importante para a zoologia e a flora medicinal.
O que mais nos chama atenção em Pirajá da Silva é o fato de que usa na crítica
documental procedimento semelhante ao estudo microscópico. O detalhismo que incutiu em
suas anotações ao escrito de Gabriel Soares permite estabelecer uma analogia entre a pesquisa
médica e a crítica documental, o que nos remete ao paradigma indiciário proposto pelo
historiador italiano Carlo Ginzburg.
142
140
Edgar Cerqueira Falcão, “História duma grande conquista científica brasileira” in: Estudos sobre o
“Schistosomum Mansoni” (1908-1916). São Paulo: 1953, Biblioteca do IHGB.
141
Idem.
142
Carlo Ginzburg assim observa: “Neste sentido (individualizante), o historiador é comparável ao médico, que
utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do médico, o
Em seu exame textual, Pirajá da Silva foi tão pormenorizado quanto sua prática
laboratorial costumava exigir. Comparou e experimentou procedimentos de análise para
averiguar as anotações de Varnhagen, em busca de novas possibilidades de leitura. Para se ter
uma idéia de seu trabalho, basta dizer que indica mais de uma centena de fontes utilizadas,
num esforço realizado durante cerca de duas décadas. Identificou nomes e características de
animais e plantas, além de elaborar históricos das etimologias tupis.
Reuniu dados advindos de outros pesquisadores, que investigou em todas as partes
do país. Suas anotações legitimam o olhar de Varnhagen e o suplantam em termos de
posicionamento ideológico: É justo reconhecer o sentimento de brasilidade tão
sinceramente entranhado em Gabriel Soares, que não o cessa de proclamar, toda vez que se
refere à nossa querida Pátria.
143
Reforça a imagem heróica do senhor de engenho e
identifica Soares praticamente como um precursor da independência.
Pirajá apresenta duzentos e oitenta e oito notas só para a primeira parte dos escritos
de Gabriel Soares e mais seiscentas e oito para a segunda parte do roteiro. Ao todo são
oitocentas e noventa e seis notas. Não fosse a pressão de amigos eruditos e editores, como
Rodolpho Garcia e Frederico Edelweis, o médico não concluiria seu estudo.
144
Não
pretendemos cansar o leitor com uma análise exaustiva destas notas, por isto destacaremos
alguns elementos para estabelecer o diálogo entre Pirajá e Varnhagen.
A nota inicial de Pirajá corresponde ao primeiro item apresentado por Gabriel Soares
em seu proêmio dirigido a El-rei, referindo-se a quais e quantas são as terras do reino. O
anotador averigua os cálculos da costa do Brasil, as fontes que o colono poderia ter
conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural”. “Sinais. Raízes de um paradigma indiciário.” In: A
Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991, p.157.
143
Notícia do Brasil, p. 260. As notas de Pirajá da Silva não estão presentes em todas as edições. Desta forma,
seguem as páginas correspondentes.
144
Em correspodência entre Pirajá da Silva e José Wanderley de Araújo Pinho, político, historiador baiano e
membro do IHGB, este solicita que o parasitólogo envie logo seu “fatigantíssimo” trabalho para constar numa
publicação do Tratado, para que não seja “prejudicado” ou “inutilizado”. Carta de Pirajá da Silva comentando a
publicação de Gabriel Soares e resposta de José Wanderley de A. Pinho. 28 de julho de 1942. Arquivo do IHGB.
Coleção Wanderley Pinho, DC 1515.036.
consultado e termina por citar Pero de Magalhães Gândavo, que compara o formato da costa a
uma harpa e Frei Vicente do Salvador num trecho em que discorre sobre uma suspeita
tradição indígena que assemelha a costa a uma pomba. Conclui, então, a nota com uma
eloqüente propaganda nacionalista: Praza ao Céu, que os brasileiros, sempre em uníssono,
vibrem os acordes de brasilidade.
145
Apresenta certamente um estudo mais aprofundado e esclarecedor, já que dispôs de
conhecimentos mais atualizados sobre o século XVI. Entretanto, se o primeiro comentador
cotejava as informações, o segundo faz de cada nota uma longa digressão sobre nomes e
datas citados. Por exemplo: se Gabriel Soares fala de Pedro Alvares Cabral, Pirajá da Silva
apresenta uma enorme biografia de Cabral.
Em meio a tantas anotações, o médico não economiza no culto ao patriotismo,
valendo-se de qualquer brecha. Ao referir-se ao pau brasil, por exemplo, aproveita para
aconselhar Que a mocidade veja, no rubor da sua seiva, o símbolo incentivo do brio e do
amor a pátria, e na agudeza dos seus acúleos, o do manejar das armas contra os inimigos
da união e da grandeza do Brasil.
146
Pirajá parece reter de Varnhagen não apenas a tradição
da investigação científica, mas a utilização das notas para dialogar com seu tempo.
O parasitólogo trata com intimidade o texto de Gabriel Soares. Assim como
Varnhagen, refere-se a inúmeros especialistas, demonstrando haver realizado uma tarefa
hercúlea de averiguação de dados, na pretensão de abarcar tudo. Alguns temas são
igualmente destacados, como a antropofagia de certos grupos indígenas. Contudo, se para o
Visconde de Porto Seguro o hábito confirmava a bestialidade destas nações, Pirajá pondera
que os aimorés poderiam recorrer a este recurso pela falta de alimento, conforme a hipótese
145
Notícia do Brasil, p.308.
146
Notícia do Brasil, nota 101 dos comentários de Pirajá da Silva, p.322. A República estava longe de agradar a
todos.
aventada pelo naturalista St. Hilaire.
147
De qualquer modo, no fundo, o médico não se
diferencia no posicionamento frente aos grupos indígenas, caracterizando-os como
“selvagens e bárbaros”, tal qual o sorocabano. Não os considera presentes na formação
social brasileira, embora valorize sua arte como manifestação do folclórico e do exotismo
nacional.
148
Da mesma forma insere seus valores e opiniões ao texto, elogios e críticas, assim
como conversa com leitores obviamente pares, capazes de averiguar e embarcar na leitura de
tantos detalhes num texto especialmente rebuscado.
149
Nas descrições da flora nativa
deleita-se em demonstrar seu conhecimento médico, acrescentando usos e receitas, além de
utilizar-se de analogias curiosas para defender a pátria: conserva-se o bem-te-vi suas
características específicas e nacionais, enquanto o brasileiro se desnaturaliza.
150
Nas suas
poucas contextualizações, justifica o fato do Tratado não ter sido impresso por motivos que
já eram evidentes para o próprio Gabriel Soares, que em seu derradeiro capítulo adverte para
o perigo dos luteranos conhecerem o conteúdo de seus escritos e virem a se assenhorar da
Terra de Santa Cruz. Este aspecto merece evidentemente ser considerado na história do
códice quinhentista.
151
O diálogo através das notas e comentários não se encerra aqui. Após Varnhagen e
Pirajá da Silva, o estudioso Rodolfo Garcia e Frederico Edelweis acrescentaram outras
correções. Mas as críticas precedentes não foram substituídas e sim retificadas. Varnhagen
147
A proximidade com o colono é exagerada: “Se a História e a geografia são acordes a desmentir o absurdo do
Tratado, muito mais deve fazê-lo a natureza geológica sertaneja, que pode admitir lagoas regulares, não tão
extensas quanto aquelas, de água salobra, do que duvidamos, pois só assim são certos rios; mas, de água
essencialmente salgada, não, absolutamente, não!” Nesta nota questiona a lagoa salgada citada por Gabriel
Soares. Notícia do Brasil, nota 102 de seus comentários. As outras considerações correspondem as notas 111 e
119.
148
Segundo ele, a arte marajoara enriquece a arte nacional. Notícia do Brasil, p.310.
149
“Os deslumbrantes espetáculos do sol poente, a policromia caleidoscópica do céu, o encanto dos fugazes
crepúsculos baianos e as noites de luar não se descrevem”. Notícia, nota 9, 2ª parte, p. 347 e notas 104 e 183, 1ª
parte.
150
Notícia, nota 292, p.382.
151
Notícia, nota 608, p.411.
preencheu as lacunas, respondeu pelo autor, violentou um passado inerme, armado do poder
que lhe outorgava o discurso produzido em outro horizonte cultural. Antes que as notas
sirvam para esclarecer o objeto, acima de tudo, elas explicam a si mesmas. Pirajá não
acrescentaria novidades de interpretação. Seu trabalho não modifica o texto estabelecido
pelo autor da História geral do Brasil, só atualiza os aparatos críticos.
Os critérios e os métodos dos estudos documentais mudaram com o tempo. Hoje as
cópias dos manuscritos ou variantes são consideradas imprescindíveis à compreensão da
história do códice, não se descartando as suas diversidades ou incompatibilidade num
determinado corpus documental. A crítica genética teve origem nos anos de 1960, na
França, a partir de um grupo de pesquisadores que se debruçaram sobre os manuscritos do
poeta alemão Henrich Heine. Propôs-se a acompanhar o processo de criação através dos
manuscritos da obra literária e teve como desdobramento abarcar o processo criador de
outras manifestações artísticas. Primordial, para o nosso estudo, é que considera o processo
dinâmico que resulta no texto final, observando o manuscrito, as cópias, as reproduções. O
que foi e o que poderia ter sido, questionando as noções de autenticidade, originalidade e
erro. Mas dentro dos preceitos cientificistas dos primórdios do século XIX, a primazia era
concedida a uma das cópias resultando, por conseguinte, na repetição, tanto dos acertos
quanto dos erros. A reconstrução textual empreendida no processo de restitiu textus
pressupõe uma unicidade autoral válida para todas as épocas e que a proliferação de versões
deve ser desconsiderada como algo espúrio.
Hoje em dia este método de trabalho se mostra insuficiente, pois se considera que a
tradição escrita de uma obra, que é formada pelo conjunto de cópias transmitidas, constitui
testemunho do original. Toda cópia manuscrita contém erros, assim como as impressas
antigas. No caso daquela apresentada pela Academia das Ciências de Lisboa em 1825, por
exemplo, tiragens da mesma edição que pudemos ver na Biblioteca do Itamaraty, apresentam
variações no formato, no colofão, na distribuição do texto e mesmo nos erros tipográficos.
Portanto, a problemática que envolve o estabelecimento de um texto único não está apenas na
reconstituição dos manuscritos, mas também dos impressos. Esta discussão conduz a uma
revisão por vezes fundamental de afirmações consolidadas bem como uma compreensão da
dinâmica que envolve os escritos antigos.
152
O nexo entre autor e texto, tão fundamental para
a leitura e recuperação de uma identidade, desloca-se para a absorção dos elementos que se
envolvem na constituição de um cânone.
Tais questões teóricas e metodológicas se impõem na análise ecdótica, além de uma
série de preceitos a serem considerados como a análise genética das cópias, a distância
temporal e geográfica das reproduções e a atualização constante por que passam as línguas
vernáculas em formação. A tentativa de perceber identidades ou um cânon literário único
marcou a percepção dos discursos coloniais. Tanto a história literária quanto a historiografia
procuraram condensar regularidades e homogeneidades. Como observou Michel Foucault:
“uma repugnância singular em pensar a diferença, em descrever os desvios e dispersões, em
dissociar a forma do idêntico”.
153
O diálogo da História com a crítica genealógica e
documental pode provocar um adensamento das leituras. Este movimento se encontra em
pauta nos estudos no âmbito da nova história cultural. Como expôs Roger Chartier, seria
impossível fazer um inventário de todos os seus rumos, mas as práticas se caracterizam por
uma recusa de reduzir os fenômenos históricos a uma só das suas dimensões, e que se
afastaram tanto das ilusões do lingustic turn como das heranças redutoras que postulavam
ou o primado do político ou o poder absoluto do social. Uma constatação fundamental
considera a historicidade primeira do texto, as categorias estéticas e formais de sua fixação
152
Fernando Bouza-Álvarez da Universidade Complutense de Madrid demonstra a atualidade da questão: O livro
antigo em Portugal e Espanha – séculos XVI-XVIII, Biblioteca Nacional, Lisboa, 2002. Fundamental para a
percepção da importância do enfoque crítico textual é, para nós, o livro elaborado a partir do Quinto Congreso
Internacional de edyción y anotación de textos por Ignácio Arellano, Fermín Del Pino Díaz (Eds.). Lecturas y
ediciones de crônicas de Índias.Uma propuesta interdisciplinaria. Universidad de Navarra,
Iberoamerivcana,Vervuert, 2004.
153
Michel de Foucault. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1972.
bem como os mecanismos que os “dão a ler” e que “participam na construção do seu sentido”.
154
Mas, no Brasil, os gabinetes ainda permanecem distantes.
CAPÍTULO 3
Com a palavra Gabriel Soares de Sousa: uma leitura a partir de seus textos
3.1. O cortesão Gabriel Soares
Em agosto de 1584, Gabriel Soares de Sousa partiu de Salvador numa grande nau
carregada de açúcar que se dirigia ao porto de Lisboa. A embarcação, como era de praxe,
deveria fazer uma escala em Pernambuco antes da travessia transatlântica para abastecimento
de água e víveres. Mas a atracação se fez com dificuldade e por pouco não se perdeu toda a
carga, o que obrigou a tripulação a permanecer no Recife e aguardar a recuperação das
avarias.
Somente em finais daquele ano, Gabriel Soares conseguiu retornar a Portugal, onde
deixara duas irmãs. Ao que parece, lá chegando encaminhou um conjunto de solicitações ao
rei espanhol. Não se tem conhecimento destes requerimentos, mas pelos favores obtidos, ao
final, foi bem sucedido.
155
Os negócios de “maior monta” exigiam todo um trâmite burocrático para sua
aprovação. Durante seis anos o proprietário de engenhos amargou a espera das respostas às
solicitações que encaminhara a corte. Provavelmente deve ter transitado entre Portugal e
154
Roger Chartier, “A nova história cultural existe?” in: História e linguagens: texto, imagem, oralidade e
representações. Org. de Antonio Herculano Lopes, Mônica Pimenta Velloso e Sandra Jatahy Pesavento. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2006. P.29 – 43, p.35.
155
Os requerimentos nunca foram encontrados, mas os alvarás e as aprovações datados de dezembro de 1590 e
janeiro de 1591 se encontram no acervo da Biblioteca do IHGB-Coleção de manuscritos relativos à História
pertencentes ao Conselho ultramarino. Tomo I, Arq. 1-2-15, e foram parcialmente reproduzidos, conforme
indicamos no capítulo anterior, no Adittamneto ao Tratado Descritivo elaborado F. A. de Varnhagen.
Espanha, uma vez que a administração portuguesa manteve certa autonomia, nos primeiros
anos da união das coroas. Porém, as autorizações para empreendimentos que envolvessem as
riquezas nas colônias partiam diretamente de Madrid.
156
Neste ínterim, ofereceu ao valido do
Rei Filipe II da Espanha, D. Cristóvão de Moura, mediador entre rei e súdito, uma carta de
intenções, datada de 1º de março de 1587. No documento destaca as motivações, por assim
dizer, que o levaram a redigir e ofertar ao monarca um manuscrito descritivo das terras, povos
e costumes do Brasil:
Obrigado de minha curiosidade fiz, por espaço de dezessete anos que
residi no Estado do Brasil, muitas lembranças por escrito, do que me pareceu
digno de notar, as quais tirei a limpo nesta corte em este caderno, enquanto a
dilatação de meus requerimentos me deu para isso lugar.
157
Esta carta precederia o Tratado Descritivo do Brasil em 1587. É fundamental situá-la
como chave mestra para o acesso ao escrito e àquele que o elaborou. Ela encaminha,
apresenta e informa a respeito do autor e de suas pretensões. Ainda que tenhamos que
considerar que as apresentações usam termos formais para obter sucesso no intento, não se
pode esquecer que ao mesmo tempo imprimem uma marca pessoal, intencionalmente ou não.
156
Roseli Santaella Stella chama a atenção para as comunicações régias, os pareceres de inúmeros funcionários e
uma consulta a particulares e servidores que se fazia a respeito de tais assuntos. Assim sendo, as aprovações
dependiam de uma vasta consulta e as resoluções só eram decididas em Madrid. Brasil durante el gobierno
español – 1580-1640. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000, p.94-95.
157
A carta é apresentada na íntegra nos Comentários elaborados por Augusto Pirajá da Silva na edição de 1974
de Gabriel Soares de Sousa. Notícia do Brasil. São Paulo: Ed. Patrocinada pelo Dep. de Assuntos Culturais do
M.E.C., p.279. Todas as notas seguintes se referem a esta mesma edição.
FIGURA N° 3
Fac-símile da cópia manuscrita do Roteiro geral com largas informações de toda
a costa que pertence ao Estado do Brasil, etc.
Pela epístola ele informa o tempo em que residiu no Brasil, dezessete anos, e justifica
o impulso que o conduziu à escrita: a curiosidade.
158
Associar o escrito a uma intenção
pessoal significa destacar que não foi realizado por determinações oficiais. Segundo anuncia,
158
A curiosidade é retratada desde a Antiguidade. Os companheiros de Ulisses dela são acometidos quando
abrem o odre que recebera do deus Zéfiro e que lhes garantiria o retorno. Psique, invadida pela curiosidade
ignora as determinações de Eros e o ilumina, fazendo que o deus e a mortal se separem. Plutarco (45-120?)
elaborou um tratado sobre a curiosidade, De Curiositate, distinguindo entre a boa e a má. A má ocupa-se do
outro, a boa dedica-se ao estudo da natureza. A curiosidade, portanto, expressa uma motivação não oficial mas
não uma subjetividade individual, trata-se de um tópico recorrente da tradição antiga.
seu escrito originou-se de uma atitude individual frente à experiência colonial, sem nenhuma
obrigação formal.
159
Os procedimentos adotados também são descritos nesta apresentação e consistem
numa seleção do que era digno de menção a partir do que vivenciou. As “lembranças” as
quais Gabriel Soares de Sousa se reporta não podem ser traduzidas simplesmente como
recordações aleatórias do que presenciou. É um termo referencial ao longo do texto, que pode
expressar o sentido de anotação, registro ou referir-se a todo o tratado. Mas pode ainda indicar
a rememoração de grandes feitos ou personalidades.
Dos dezenove até os trinta e seis anos de idade viveu na Bahia e durante este período
testemunhou os sucessos e os fracassos da conquista, desempenhando papel destacado na
sociedade colonial. Na referida missiva descarta os possíveis louvores provenientes do
reconhecimento de suas anotações por entender que [...] as obras que se escrevem têm mais
valor que o da reputação dos autores delas [...].
160
Mas esta sentença não é de todo original.
Podemos observar uma atitude semelhante em seu contemporâneo, Pero de Magalhães de
Gândavo que registra no prólogo da sua História da província Santa Cruz a que vulgarmente
chamamos Brasil: [...] pois a escritura seja vida da memória, e a memória uma semelhança
da imortalidade a que devemos aspirar, pela parte que dela nos cabe, quis, movido por essas
razões, fazer esta breve história [...].
161
O valor da palavra escrita deve ultrapassar aquele que a escreve. Uma é duradoura, o
outro é contingente. Esta concepção reflete a recuperação e a circulação do pensamento
greco-romano nos quinhentos, tal como na obra De Oratore, de Cícero, em que a história era
159
A burocratização administrativa constituiu um processo característico das monarquias européias entre os
séculos XVI e XVIII, o que significa uma profissionalização de cargos aliados ao poder central, cada qual com
as devidas incumbências de prestar informações ao rei. A questão foi analisada por Stuart Schwartz em
Burocracia e sociedade colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979. 1ª parte. Assim como por José Antonio
Marraval, Teoria del saber histórico. Madrid, Rev. de Occidente,1967.
160
“Carta a D. Cristóvão de Moura”. Notícia do Brasil, p.279.
161
Pero de Magalhães de Gândavo. A primeira história do Brasil: história da província Santa Cruz a que
vulgarmente chamamos Brasil. Texto modernizado e notas de Sheila Hue e Ronaldo Menegaz. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2004, p.40.
compreendida como a luz da verdade, o testemunho da memória, a mestra da vida.
162
Assim,
o sentido da História supera a eventualidade da vida humana. Entretanto, nas palavras dos
dois portugueses citadas acima, há uma direção oposta. Enquanto Soares oblitera a
necessidade de reconhecimento pessoal, Gândavo exalta o valor da posteridade.
Além de indicar o tempo em que esteve na colônia e uma atitude perante a escrita,
projeta uma concepção de história e de futuro: como minha tensão não foi escrever história
que deleitasse com estilo e boa linguagem, não espero tirar louvor desta escritura e breve
relação [...].
163
Neste caso, a escrita da História estaria relacionada a autores que teriam
conhecimentos lingüísticos específicos e objetivos pedagógicos elevados. Gabriel Soares
revela pretensões mais modestas, pragmáticas e imediatas. Estaria aí o motivo da sua
pronunciada humildade?
Mas o que distingue o Tratado Descritivo e a História da província Santa Cruz? Se
colocarmos os dois lado a lado, muito pouco. Afora o modo como os respectivos redatores
denominaram e recomendaram seus discursos, basicamente não diferem nos temas ou na
estruturação. Apresentam uma introdução cronológica de eventos fundadores e uma divisão
de aspectos naturais.
A História, apontada pelo humanista espanhol Juan Luis Vives (1492-1540) na obra
De ratione dicendi possui sua origem no termo grego istorie, relacionado ao ver, de modo que
os historiadores seriam os que vêem ou que ouvem. Em rigor, toda História seria
contemporânea, como anunciara o primeiro historiador, Tucídides, diferenciando-a da poesia
e da épica.
164
Luís Costa Lima refere-se à mesma tradição identificada como narratio rei
162
Gândavo, A primeira história..., p.40.
163
Notícia do Brasil, p.279.
164
Não vamos aqui nos alongar na complexa tradição que marca este período transitório, apenas apontamos
referências que o norteiam. A questão é abordada por Guillermo Seres no artigo “La crônica de um testigo de
vista” in Lecturas y ediciones de crónicas de Índias - una propuesta interdisciplinaria. Ignácio Arellano y
Fermín del Pino (eds.), págs. 95-135. Publicação realizada a partir do Quinto Congresso de edición y anotación
gestae, afirmada por Isidoro de Sevilha, estabelecendo o testemunho ocular como fundamento
do relato historiográfico.
165
A tradição da Antiguidade guiava a concepção de História do
século XVI e não permite fazer uma distinção clara entre os dois gêneros neste momento.
Por sua vez, o tópico do desinteresse pessoal pode representar uma fórmula ou marca
do discurso. Não podemos extrair daí a leitura exata das “verdadeiras” intenções nem mesmo
exatidão nas indicações temporais. Trabalhamos com probabilidades, indícios e interpretação
a partir do discurso. Neste período ainda não se substancializou o autor consagrado, nem a
História como forma específica de relato. Mas uma retórica comum circulava pelos amplos
espaços das monarquias católicas. Na Historia verdadera de la conquista de la Nueva
Hespanha concluída em 1568, o soldado Bernal Díaz del Castillo que acompanhou Hernán
Cortés na conquista do México, apresenta o mesmo topos do discurso de Gabriel Soares:
Yo, como no soy latino, no me atrevo a hacer preâmbulo ni prólogo dello
[de mi “historia”]... y para podello escribir tan sublimadamente como es digno,
fuera menester outra elocuencia y retórica mejor que no la mia. Mas lo que yo vi
y me hallé em ello peleando, como buen testigo de vista, yo lo escribiré, com la
ayuda de Dios [...].
166
No fundo, estamos diante de uma característica bastante difundida nas letras ibéricas
quinhentistas, de algum modo tributária dos antigos códigos de cavalaria medievais, que
deram origem à concepção do homem cortês. Valores como a honra, a verdade, a prudência, a
coragem, são redescobertos e reformulados entre os séculos XVI e XVII.
167
O cortesão
de textos, patrocinado pela Universidade de Navarra y el Consejo Superior de Investigaciones Científicas. ( 2-4
de diciembre de 2002). Madrid: Iberoamericana; Frankfurt: Vervuert, 2004. O desenvolvimento de toda uma
discussão teórica sobre o conhecimento e a escrita da História, especialmente em relação à distinção entre
História e Literatura só ocorrerá mais tarde, com os filósofos e enciclopedistas do século XVIII.
165
Luiz Costa Lima, no livro O Redemunho do horror: as margens do ocidente, reflete sobre o discurso
histórico e o literário partindo da escrita de Fernão Mendes Pinto, português do século XVI. São Paulo: Editora
Planeta do Brasil, 2003, p.89.
166
Guillermo Seres, “La crônica de um testigo de vista”. Op.cit., p.105. O título “Historia verdadera”,
aparentemente pleonástico, era utilizado para histórias de cavalaria, novelas pastoris, entre outras, cujos autores
procuravam provocar o mesmo efeito de “admiração, exemplaridade imitação ou emulação”, p.106.
167
No conto “Ivain, o cavaleiro do leão”, que encerra o ciclo do Graal e é considerado a obra prima do romance
cortês, evidencia-se a valorização atribuída a tal comportamento numa frase exemplar: “ sou de opinião de que
quinhentista deveria obedecer algumas regras de conduta como o decoro, a espontaneidade
estudada, a urbanidade, a disciplina, a tranqüilidade de ânimo e o controle de si mesmo. A
fala de Gabriel Soares exprime além dos atributos enumerados, o conceito do discreto que
agrega, entre outras qualidades, a inteligência e a astúcia e a capacidade de dissimular
honestamente, o que lhe permite introduzir o texto com a humildade necessária ao discurso de
um cortesão correto e prudente. O estilo empregado enfatiza, pois, a compostura frente ao rei
e imbui o escrito de naturalidade e simplicidade.
168
Gabriel Soares dirigiu-se à corte espanhola, como sabemos, com o intuito de requerer
proventos e títulos necessários a uma expedição que pretendia devassar o sertão e localizar as
jazidas ocultas nas matas setentrionais. Empreendimento extremamente arriscado, em vista do
conhecido insucesso de tantos outros exploradores. Apesar de passados oitenta anos do
descobrimento, permanecia escasso o conhecimento da terra. E, em se tratando da
administração filipina, havia maior carência ainda de informações sobre os territórios situados
a leste do meridiano de Tordesilhas recentemente incorporados aos seus domínios. O êxito de
Soares significaria prestígio social, enriquecimento, significativo reforço ao Tesouro real,
além da devida propagação da fé católica em terras de idólatras.
A sociedade colonial, alicerçada nos moldes do Antigo Regime, possui uma lógica
constitutiva bem diversa da lógica moderna. A questão do prestígio nem sempre se associaria
um homem cortês morto vale mais do que um vilão vivo”. Chrétien de Troyes, Romances da Távola Redonda
2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 204.
168
Vários tratados foram publicados sobre as formas de conduta a serem observadas como O Cortesão, de
Baldassare Castiglione, publicado na Itália em 1528 e O Galateo Espanhol, de Lucas Gracián Dantisco,
publicado na Espanha, em 1585. O Discreto, de 1646, e o Oráculo manual e a arte da Prudência, do jesuíta
espanhol Baltazar Gracián y Morales, de 1647, também compunham a biblioteca do comportamento ideal do
homem renascentista. A dissimulação honesta, conforme exposto no tratado do mesmo nome do napolitano
Torquato Accetto, é um recurso que pode ser utilizado para a auto-proteção do indivíduo, evitando que o mesmo
se exponha a ponto de tornar sua imagem pública vulnerável. A dissimulação honesta pode resultar na omissão
de algumas características ou circunstâncias, mas de nenhuma maneira pode implicar na criação de uma mentira,
o que poderia ser conceituado como uma simulação em vez de dissimulação. João Adolfo Hansen aborda o
comportamento cortesão em “O discreto” in: Libertinos e Libertário, Adauto Novaes (org.). São Paulo:
Companhia das Letras, 1996. Edmir Míssio desenvolveu uma tese “Acerca do conceito de Dissimulação Honesta
de Torquato Accetto”, onde identifica as linhas retóricas presentes na concepção da obra. Disponível em
http:///libdigi.unicamp.br/document/?code=vtts000341618
.
à riqueza material. As concessões, muitas vezes requeridas aos reis em termos de títulos,
ganham importância na sociedade estamental, onde a tradição de sangue é capital na
manutenção do status e em seu conseqüente equilíbrio.
Vale lembrar que os riscos e as longas jornadas eram comuns para os homens daquele
período, bem como os complicados trâmites necessários para obter recursos para suas
empresas. Falamos de um momento em que o interesse público e o privado não estão
dissociados, as instituições são prolongamentos do poder do rei, que por sua vez é extensão
do mundo supra terreal.
Entre a chegada de Gabriel Soares à Península Ibérica e a entrega da carta e de seus
manuscritos passaram-se três anos. Durante a longa espera frente à burocracia, informa que
“passou a limpo” seu caderno de anotações. Interessante este dado, porque muitas vezes a
narrativa, ao ser imediatamente relacionada ao objetivo de angariar fundos para seus projetos,
é vista como estrategicamente elaborada quando de sua estadia entre Portugal e Espanha.
Contudo, pela dinâmica própria do texto, percebe-se que o Tratado possui uma dimensão e
um aprofundamento que extrapolam uma empreitada ligeira. Ele é um dos poucos leigos que
deixaram testemunho escrito, o que já é um dado salutar. Capistrano de Abreu
169
analisando a
questão da data de apresentação do texto à D. Cristóvão de Moura, aventa a hipótese de que
era fruto de vários anos de trabalho. Fato que, ao invés de significar descomprometimento,
estaria provavelmente associado a propósitos há muito acalentados. Como adverte o
historiador Ronaldo Vainfas, [...] a opção pelo viver em colônias ligava-se, certamente, a
expectativas de enriquecimento rápido, à busca de um prestígio ou posição social não mais
viáveis na metrópole.
170
169
Capistrano de Abreu. Introdução à obra “História Geral do Brasil” de Francisco Adolpho de Varnhagen.
São Paulo: Melhoramentos/INL, 1959, tomo I, p. 5.
170
Ronaldo Vainfas. Ideologia e Escravidão. Petrópolis: (RJ). Ed.Vozes,1986, p.47. O historiador Serge
Gruzinski comparando a situação no Brasil àquela dos Andes e do México, destaca que o processo de conquista
do território brasileiro se deu mais lentamente, devido à “fraca presença portuguesa” e, conseqüentemente,
resultou num maior jogo de interesses entre grupos ou indivíduos aqui estabelecidos. Estes, na maioria,
Talvez, ao “passar a limpo” os seus cadernos, Gabriel Soares refez, reescreveu e
reelaborou suas “lembranças”. O quanto reformulou, selecionou e acrescentou, dificilmente
saberemos, pois implicaria na descoberta não só dos originais enviados ao rei Filipe II, mas
também no paradeiro dos rascunhos precedentes, de forma a permitir a comparação. Não foi o
que se deu, por exemplo, com os textos do frei mercedário Martin de Murúa. Segundo a
especialista em seus textos, a pesquisadora Rolena Adorno,
171
todos os seus editores e
comentaristas ignoraram o que estava evidente nos manuscritos: a censura.
Vale lembrar que uma longa história envolve as edições da obra de Martin de Múrua a
partir de originais encontrados em diferentes localidades que vão da Espanha à Irlanda, desde
o início do século XX, e que passaram a servir de modelo para todas as análises subseqüentes.
O retorno aos manuscritos do frei que escreveu e reescreveu a Historia general del Peru
(1611-1613) permitiu confrontar diversas versões que evidenciam a censura política e
ideológica e a inquisitorial. Mas um outro processo é também de grande relevância; na longa
viagem que o religioso fez de Cuzco à Madrid, passando por La Paz e Buenos Aires, ora a pé
ou pelo rio da Prata, obteve aprovações e recomendações para seus escritos por diferentes
setores da sociedade. No processo de “pôr a limpo”
172
se evidenciou, segundo Rolena
Adorno, um outro tipo de interferência: a auto-censura.
Certamente Gabriel Soares também deve ter passado pelo mesmo processo. A
dilatação do tempo de espera das respostas aos seus requerimentos, por certo, parece que lhe
permitiu obter maior conhecimento sobre as questões que poderiam despertar a atenção do
monarca espanhol. É possível que nestes três anos tenha ouvido e consultado pessoas
próximas dos acontecimentos da corte, tido acesso a mapas, registros e roteiros que não
“degredados, ou seja, delinqüentes portugueses condenados ao exílio do outro lado do atlântico, e em parte
aventureiros europeus. Daí os comportamentos que valerão à Terra de Santa Cruz uma reputação corrosiva e a
proliferação de mestiçagens [...].” p.81-82. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
171
Rolena de Adorno, da Universidade de Yale, participa com o artigo “La censura de la Historia general del
Peru (1611-1613) de Fray Martin de Murúa”, no livro já citado por nós, Lecturas y ediciones de crônicas de
Índias, págs. 37-76. A autora conclui por destacar a importância do estudo sistemático dos manuscritos e das
cópias para uma leitura maior das relações entre castelhanos e andinos.
172
A mesma expressão do colono português é usada pelo frei mercedário. “La censura...”, Op.cit., p.55.
circulavam na Bahia de Todos os Santos e descobrisse a imprecisão dos conhecimentos do
monarca Filipe II sobre a Terra de Vera Cruz.
Das anotações, o postulante a Capitão-mor da conquista do São Francisco compôs uma “escritura e breve relação”
contendo o que denominou de “cosmografia e descrição deste Estado”. Reforçou, efetivamente, a importância das informações que
possuía, ao declarar que se compadecia desta pouca notícia que neste reino se tem das grandezas e estranhezas desta província [...].
173
Assim como não são nada breves os Breves Comentários de Varnhagen a Gabriel Soares, sua escritura também não o é. A
primeira parte, denominada de Roteiro, percorre a costa litorânea da América portuguesa oferecendo uma gama bastante
considerável de informações corográficas e náuticas, à primeira vista precisas e objetivamente expostas. Já o Memorial, além de ser
mais vasto, possui uma referência própria constante pois aborda o território que o colono conheceu intimamente: a Bahia.
O relato detalhado do larguíssimo percurso da costa litorânea, as noções da
profundidade de fundos e baixios para a navegação, os informes sobre a fauna e a flora,
provém de um esforço demorado e cumulativo do colono português. Ele, por certo, percorreu
toda a circunvizinhança da cidade de Salvador, por terra e por mar. Mas, provavelmente,
bebeu em outras fontes para se referir com tanta minudência ao restante do território. Isto sem
falar naquilo hoje em dia mais divulgado no Tratado, ou seja, os apontamentos sobre a cultura
indígena. Tudo isto deve ser compreendido num conjunto que abarca os objetivos pessoais, as
novas configurações políticas, a circulação do saber e as circunstâncias econômicas da época.
Porém, é preciso nuançar os argumentos, levando-se em consideração certos aspectos
fundamentais, quando se busca montar o quebra-cabeça da história de vida do colono.
Não se sabe precisamente o que impulsionou Gabriel Soares a partir para a Europa
naquele determinado momento ou quando projetou seu plano de devassar os sertões.
Estabeleceu seu roteiro segundo o curso do rio São Francisco, privilegiando a região que mais
conhecia. Mas quando teria recebido informações da malograda expedição de seu irmão?
Como adquiriu tantos conhecimentos de áreas tão diversas? Que tipo de acesso teve aos
escritos contemporâneos? Como já apontamos, a lógica construtiva da época é outra.
Dificilmente poderíamos entender o se lançar na dupla arriscada aventura, da escrita e da
173
Notícia do Brasil, p. 279.
exploração, por alguém que para a sociedade colonial já alcançara as maiores posições ao
possuir, como descreve:
[...] um soberbo engenho com casas de purgar e de vivenda, e muitas
outras oficinas, com grande e formosa igreja de S. Lourenço, onde vivem muitos
vizinhos em uma povoação que se diz a Graciosa. Esta terra é muito fértil e
abastada de todos os mantimentos e de muitos canaviais de açúcar, a qual é de
Gabriel Soares de Sousa.
174
Um roteiro e a algumas amostras de pedras preciosas, segundo registros muito pouco
averiguados, teriam embevecido o senhor de engenho e, por conseguinte, originado o
Tratado. Sabemos, retrospectivamente, que naqueles sítios até então não havia provas
concretas de jazidas. Isto nos induz a pensar que o trajeto proposto corresponde àquele
traçado por um imaginário referendado numa cartografia imprecisa e em relatos sobrepostos
desde tempos idos, que localizavam a lagoa ou serra dourada no coração do Brasil. O mito do
Eldorado esteve presente na sociedade colonial e marca o incrível trânsito exploratório.
175
O Tratado, por certo, significava um dado relevante para a aprovação de suas
petições. Mas sua apresentação foi posterior ao requerimento, portanto, uma atitude a mais
tomada pelo colono para alcançar êxito. Ao que tudo indica, Gabriel Soares não foi à corte
oferecer um Tratado, assim como não esteve envolvido com as letras, tal como Gândavo,
Cardim ou Barros. Conheceu escritos de sua época, mas provavelmente obteve, de fato,
acesso a maior quantidade de informações, na Península Ibérica. O Roteiro e o Memorial
servem estrategicamente para despertar as atenções do monarca sobre o súdito português e a
confiança em seu conhecimento colonial.
174
A mó de pedra do engenho de Gabriel Soares se encontra exposta no Solar do Unhão, na Bahia. As terras do
atual Mosteiro de São Bento da Bahia e do dito Solar pertenciam ao senhor, bem como outras, que deixou em
testamento ao Mosteiro. Convém notar que existem escassas informações sobre João Coelho de Sousa, além da
notícia da expedição fracassada. Nota de Notícia do Brasil, p. 79.
175
Sérgio Buarque de Holanda reconstruiu as várias faces do mito do Dourado e sua escassa freqüência nos
textos quinhentistas, mas sua presença no imaginário colonizador. Visão do Paraíso. São Paulo: Ed. Cia. Editora
Nacional, 1969, p.34.
Textos informativos sobre o Novo Mundo não constituíam propriamente uma
novidade.
176
No século XVI, corriam pela Europa escritos que anunciavam e popularizavam
o conhecimento especialmente aqueles relativos às “Índias”. No que tange à América lusitana,
os relatos de Hans Staden, Jean de Léry e André Thevet, por exemplo, tiveram ampla
divulgação. Para as descobertas espanholas, uma série de tratados, narrativas, crônicas e
informações chegavam à Madrid proveniente de distintos agentes sociais como capitães,
clérigos, aventureiros, historiadores espanhóis, além dos relatos dos próprios nativos
escreventes.
No caso do Brasil, as notícias apresentam-se bastante escassas, agravadas por uma
política de segredo sobre a terra. Informações impressas em letra de forma apareceram apenas
nas crônicas da conquista do Oriente como em Fernão Lopes de Castanheda, 1551, João de
Barros, 1552, Damião de Góis, 1566 e Jerônimo Osório, 1571.
177
O Oriente era o foco para
onde se voltavam os olhares maravilhados e se deslocavam os grandes homens da corte.
Três relatos contemporâneos informam sobre a América portuguesa na segunda
metade do século XVI, o do gramático Pero de Magalhães de Gândavo, o do jesuíta Fernão
Cardim e o de Gabriel Soares de Sousa. Personagens bastante distintos, mas que têm em
comum a terra de nascimento, a residência temporária no Brasil e a elaboração de uma escrita
ampla, informativa de aspectos diversos, cujo destinatário era o reino. Aproximaremos mais
adiante estes três discursos a fim de ressaltarmos as características da obra de Soares, que
176
Textos circulavam impressos na Península Ibérica desde Gutenberg. A popularização proporcionada pela
invenção dos tipos móveis foi tradicionalmente reconhecida pela História. Entretanto, a chamada revolução
impressa atribuída à invenção de Gutenberg vem sendo relativisada. Neste sentido, vários aspectos se imbricam
como a transformação operada pela criação do códice ainda na Alta Idade Média, os estudos sobre a importância
e sobrevivência do manuscrito após a imprensa, o desenvolvimento da história da escrita e da leitura,
aprofundando as diversas formas de apropriação desta e a quebra da dicotomização entre cultura popular e
cultura erudita. Um estudo sistemático e bem documentado em fontes sobre a sobrevivência do manuscrito foi
publicado por Fernando Bouza - Álvarez da Universidade Complutense de Madrid, demonstrando a atualidade
da questão: O livro antigo em Portugal e Espanha – séculos XVI-XVIII. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002.
177
Ver artigo de Paulo Roberto Pereira, “O livro e a biblioteca nas mudanças do Brasil colônia” in: Revista do
IHGB, 160 (405): 813-866, out./dez., 1999.
permitem identificá-las como próprias de uma época específica, evitando um recorte
descolado de seu tempo ou um retrato único de uma realidade.
Pero de Magalhães de Gândavo, além de escrever a primeira História da província de
Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, publicada pela primeira vez em Lisboa em
1576, também elaborou um manual de redação na língua portuguesa, Diálogo em defesa da
língua portuguesa.
178
Respondia, assim, a uma necessidade crescente do uso das línguas
vernaculares e da divulgação e circulação cada vez mais ampla do conhecimento.
Não é demais lembrar que os reinos ibéricos atravessavam uma fase de descoberta e
desnudamento.
179
Este desvendamento, porém, deveria ser limitado, nem tudo poderia ser
propalado, evitando a cobiça e a inveja, pecados contra a fé e as Coroas. A censura cortava os
textos, extinguia, escondia o que se revelava, tirava de circulação ou nem mesmo a permitia.
A própria História de Gândavo foi impedida de circular logo após a sua publicação, por
conter informações que interessariam não só aos curiosos. Por sinal, a censura não é um
estado patológico dentro do Antigo Regime. A “polícia do pensamento”
180
faz parte de um
estado natural, como demonstra Daniel Roche sobre o caso francês, mas que podemos
seguramente transpor para o português e o espanhol. Esta censura aplicada à escrita conduz a
outros desdobramentos como a confirmação da importância da palavra escrita (não só a
impressa) e as falhas do sistema de controle.
Mas voltemos aos textos que possam nos introduzir ao Tratado. Na edição mais
conhecida e consultada por pesquisadores, a de 1974, o texto vem antecedido de um Proêmio
dedicado a Sua Majestade Filipe II, que explica seu conteúdo e seus objetivos, a saber:
178
Ambos escritos foram impressos no mesmo ano de 1574, na oficina de Antônio Gonçalves, em Lisboa. Um
dos importantes estudos de Sheila Moura Hue sobre Gândavo é “A escrita da história como vida da memória.
Damião de Góis e Pero de Magalhães de Gândavo: influências e afinidades”. Congresso Internacional: Damião
de Góis na Europa do Renascimento. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia, Universidade Católica
Portuguesa, 2003.
179
O conceito de descobrimento ainda que associado ao fato não se limita a ele – a descoberta do Novo Mundo e
o novo traçar de uma referência, insere-se no próprio “projeto da modernidade” como coloca Gerd Bornheim em
O conceito de Descobrimento. Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998.
180
Daniel Roche. “A censura e a indústria editorial”. In: A Revolução Impressa. Robert Darton e Daniel Roche
(orgs). São Paulo: Edusp, 1996, p. 21.
informar as grandezas da terra para que se possa proteger, fortificar e explorar devidamente
suas riquezas, o que não estaria ocorrendo pela própria escassez de conhecimentos. É desta
introdução que se destaca a famosa profecia de Gabriel Soares: “pois estará capaz para se
edificar nele um grande império”.
181
O Proêmio nem sempre se encontra distinguido como
tal, inclusive no único manuscrito pertencente à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Provavelmente, trata-se de um encaminhamento acrescentado a posteriori, sobretudo com
objetivos de editoração. Ele faz parte do conjunto apresentado ao rei, mas seu conteúdo
laudatório e formal, precisa ser relativisado em relação às apresentações então em voga.
Antecedendo o Tratado e sem a devida contextualização, é que pode ganhar um aspecto
exemplar e premonitório.
Outros itens nos apontam o quanto o texto foi sendo alterado a partir das reproduções
e das leituras das cópias, e que é significado para a compreensão do relato de Gabriel Soares
de Sousa. No texto da Biblioteca Nacional lê-se que o roteiro foi escrito por um curioso, que
por espaço de 17 anos contínuos, girou este paíz, com indizível trabalho, fazendo lembranças
do que pode alcançar.
182
Mais adiante, no capítulo primeiro refere-se a [..] quem foi o
primeiro descobridor deste paíz [...] e em seguida registra A América portuguesa está situada
[...]. Ressaltamos estes três itens para salientar que o termo país, relacionado diversas vezes,
assim como continente que é utilizado para distinguir toda a terra, foi suprimido nas versões
atuais. País foi denominado província e América portuguesa foi substituída por Bahia.
183
E o que se revela no texto propriamente dito? O que viu ou o que foi dito visto por
quem possuía autoridade de testemunho. As palavras do autor também tentam traduzir o que
181
Gabriel Soares de Sousa. Proêmio. Notícia do Brasil, 1974, p. 5.
182
Gabriel Soares. Descripção Geographica da América Portuguesa. S.1., 1587. Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, manuscritos, 4, 3, 27.
183
É possível conjeturar que o termo paiz poderia estar presente no original, pois indicava um território, uma
região. Não estaria associado a noção de nação e pátria, com limites geográficos e autonomia política, que
adquiri no Estado moderno. A identidade é estabelecida pelo reino e pela fé cujos súditos podem estar em
qualquer parte do globo terrestre. O termo América portuguesa certamente poderia ter sido empregado mesmo
ao se dirigir à corte filipina, ou pode registrar a intervenção de um copista pós-restauração.
ouviu ou escutou de fonte sincera, sem erros, nem atropelos, na certeza do ouvir dizer.
Expressam ainda o que experimentou ou provou, como o gosto das frutas, o que mensurou, a
exemplo do tamanho da costa, ou o que o assustou, qual o monstro marinho. Trata-se de um
saber adquirido pelo método da observação e da medida do mundo. O homem, poderoso em
sua razão, pretende submeter as forças da natureza. Ver, ouvir e ouvir dizer. Tudo isto garante
a autoridade do discurso, mas também indica uma complexa relação entre o real, o imaginário
e o fictício.
184
Os sentidos e a experiência pessoal, associados à tradição se aliam na
construção do conhecimento. Ali, naquele momento estanque e longo da experiência dos
descobrimentos, vislumbrava-se aos poucos separar o homem do mundo, o corpo da mente, os
olhos da razão, a verdade da mentira, a fé da Igreja, a história do mito. Portanto, uma
compreensão outra de mundo, de um mundo que era outro, e que mistura as mais pragmáticas
e atualizadas informações marítimas, com homens marinhos e formigas assassinas de tantos
ardis que fazem espanto”.
185
3.2. Literatura de viagem
O Tratado de Gabriel Soares de Sousa não constitui uma produção historiográfica,
ainda que os relatos quinhentistas sejam mencionados nos compêndios de historiografia
colonial brasileira ou de história da literatura. Conforme afirma o historiador Francisco
Iglesias: Se a Historiografia é a arte de escrever a História ou o estudo sôbre as obras
históricas, se é o conjunto das obras de História, uma história da historiografia brasileira
184
Esta tríplice relação foi abordada por Wolfgang Iser, a respeito de textos literários, fugindo do recorte do que
seria o real ou imaginário como oposição:Como o texto ficcional contém elementos do real, sem que se esgote
na descrição deste real, então o seu componente fictício não tem o caráter de uma finalidade em si mesma, mas
é, enquanto fingida, a preparação de um imaginário. Ainda que se refira a textos ficcionais, as indagações de
Iser, apontam para a complexidade que envolve a construção e a leitura da escrita quinhentista que não é nem
histórica, nem literária. Wofgang Iser. O fictício e o imaginário, Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996, p.385. .
185
Notícia do Brasil, p.148.
deve ser o estudo dos livros que já se escreveram sobre a História do Brasil.
186
Se a
historiografia trata do discurso da história sobre a História, ela difere, portanto, daquilo que é
relato, testemunho ou crônica. Na esteira deste raciocínio, Gabriel Soares constitui uma fonte
de época. Sua narrativa indica objetivos circunscritos a uma temporalidade específica, uma
representação de mundo, uma escrita conjectural,
187
ainda que passado e presente se
misturem. Seu texto, no fundo, constitui literatura de viagem.
A perspectiva de Gabriel Soares é a do viajante ou a da projeção de um retorno ao
oikós, o que remete à noção de império ultramarino. Ele compartilha com outros
contemporâneos esta nova dimensão do mundo.
Defendemos o texto como literatura de viagem, à medida que seu autor atravessa os
caminhos e aglutina relatos que colocam em comunicação três continentes. O que caracteriza
o viajante não é seu percurso, longo ou curto, e sim o que narra da experiência vivida. Ele
requer um conto, um manuscrito, uma crônica, uma memória ou um tratado. Ele pode ser um
grego perdido nos mares à procura da Ítaca perdida, um cavalheiro em busca de honra e de
aventuras nas florestas inóspitas da Bretanha ou um metropolitano quinhentista na Província
de Santa Cruz. Mas de nada adiantará se não registrar por onde andou. Assim, ele pode ser
Odisseu, Ivain, o cavalheiro do leão, ou Gabriel Soares de Sousa, desde que se lembre de
relatar o que viu, o que pensou que viu ou o que quer que pensem que viu.
O olhar do viajante, tal como o do cronista, enxerga as miudezas, expõe impressões e
contradições. O historiador Antonio Edmilson Martins Rodrigues analisando o escritor João
do Rio, em dado momento, enumera os temas de suas crônicas: o flerte, a vida dos
trabalhadores miseráveis da ponta d’Areia, os comedores de ópio, a feitiçaria, enfim, uma
gama de temas do cotidiano carioca. Em seguida, comenta: A crônica, sem ser irresponsável,
186
Francisco Iglesias. Anais. Vol.II. 2º Encontro Internacional de Estudos Brasileiros. I Seminário de Estudos
Brasileiros. Publicação do IEB, SP, 1970.
187
“A primeira (a crônica) é um gênero menor, sem pretensão de obra acabada, e por ser escrita por quem
presenciou os acontecimentos é sempre testemunhal, viva, atual.” José Honório Rodrigues. Historia da história
do Brasil. Brasiliana: série grande formato. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, v.21, 1979, p. XVII-XVIII.
conduz a um tipo específico de convivência dos contrários e, logo adiante, apresenta uma
reflexão bastante significativa ao afirmar que a grande contribuição de João do Rio foi a de
mostrar que se pode transformar tudo o que está a nossa volta em objeto de literatura, de
jornalismo e de história.
188
É exatamente essa matéria variada do cotidiano da colônia que percebemos nos
escritos de Soares, o que torna o texto aberto às interpretações. Por mais reorganizado e
reelaborado com vistas a uma leitura interessada, e por mais submetido que esteja a segundas
intenções ou ao olhar dominador, mescla uma acumulação de dados surpreendente e uma
escrita dos sentidos. Deste modo, o que caracteriza o texto é a quantidade e variedade de
informações recebidas, entretanto, observamos que em cada parte do Tratado elas são
processadas de forma distinta.
A biografia de Gabriel Soares, a qual nos reportamos no primeiro capítulo deste
trabalho, também reflete esta dimensão de viagem numa vida cheia de tropeços, sempre à
beira de um naufrágio ou da morte iminente. Mas, apesar da fragilidade dos conhecimentos
disponíveis, emerge o espírito do desbravador que começa a sentir o mundo se tornando
pequeno; o do conhecido frente ao desconhecido. Ao mesmo tempo, representa a amplitude
do Império ultramarino, a empresa mercantil que abarcava três continentes e um projeto de fé
a ser secularizado. Gabriel Soares simboliza um momento específico da história do homem
ocidental. Sua experiência pessoal se revela cada vez com maior persistência ainda que
represente o entrelaçamento de dois mundos: o medieval e o moderno. Dando ensejo a uma
nova literatura, desvinculada do discurso oficial das correntes culturais dominantes, a
escolástica depurada e o humanismo, cujo perfil bem se define como transformadora e em
transformação, como fica explícito nas palavras de João Rocha Pinto:
188
Antonio Edmilson Martins Rodrigues, João do Rio: a cidade e o poeta - olhar de flâneur na belle époque
tropical. Rio de janeiro: Editora FGV, 2000, p.23.
Esta nova gama de escritos vem preencher novas funções e objetivos, a nova
literatura de viagens e sem precedentes no Ocidente cristão, solidarizam o real e
o imaginário, casam gesta e fábula com fatos reais, não deixando, no entanto, de
apresentar uma visão coerente do mundo, cheio de maravilhas e singularidades
de par com dados observados em primeira mão, fornecendo um Imago Mundi
tradicional e de fundo teológico, ainda não ferido pela dialética nascida da
intromissão de notícias das novas realidades geográficas e etimológicas e por
esse novo saber totalmente baseado na experiência e apoiado na visão.
189
O mundo novo precisa, portanto, ser testemunhado e esse testemunho traduz o outro e
a si mesmo. O homem renascentista se revela, pois, em Gabriel Soares, num registro que
muitas vezes foi lido como reflexo do real. Entretanto, ainda que enxergue já com os olhos da
bússola e do astrolábio, o colono também vê o paraíso, num mundo ainda quase
desconhecido.
3.3. O texto e a História
Até bem pouco tempo, os registros literários e ficcionais eram recebidos de forma
suspeita para o conhecimento da realidade. Os fenômenos culturais foram desvalorizados em
vista dos temas objetivos, concretos ou enumeráveis, como a política, as batalhas, os grandes
homens, entre outros. Esta tradição não é nada recente, como observou Carl E. Schorske: o
universalismo greco-romano produziu uma espécie de etnocentrismo da alta cultura que
condenou a abordagem cultural multifacetada da história à incompreensão por mais de 2 mil
anos.
190
Todavia, nos dias de hoje, a cultura é valorizada nos domínios de Clio. É certo que
nunca deixou de estar presente no discurso histórico, mas permaneceu em grande parte a
serviço de uma confirmação ou da negação de dados e fatos concretos. Nas análises
antropológicas e estruturais, aparece como símbolo de um continuum a ser decifrado. A nova
189
João Rocha Pinto. “Literatura de Viagens”, em Luís de Albuquerque (dir.). Dicionário de história dos
descobrimentos portugueses. Lisboa: Editorial Caminho, 1944, v. 2, p. 606.
190
C. E Shorske. Pensando com a história. Indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p.244.
história cultural passou a absorver elementos da crítica literária e da nova hermenêutica,
resultando na valorização do texto e da narrativa. Neste caminho nem tão recente, o texto não
se fecha e revela múltiplas interpretações: reforma-se, e sobrevive em temporalidades
diversas.
O texto é a trama: um tapete de vários fios que constroem uma imagem. Mas as
imagens não são vistas da mesma forma pelos espectadores, o olhar é quem faz os sentidos e
reconstrói os fios. É através deste olhar que se faz presente, individual, único e múltiplo que
podemos nos aproximar do legado de Gabriel Soares. Um livro é modificado pelo fato de que
ele não se modifica nem mesmo quando o mundo se modifica
191
diz Pierre Bourdieu.
Contradição, paradoxo do texto? Sim, mas nem por isso hermético ou evidente. Assim, o
mundo descrito por Soares não constitui a verdade do século XVI no Brasil, por simplesmente
não existir a verdade, mas ele tangencia um outro tempo.
No mundo longínquo de uma geografia do maravilhoso, o que o texto explica não é
causa e efeito e sim um mosaico de percepções. No Tratado Descritivo de Gabriel Soares, a
verdade pode ser comprovada. Os mesmos sentidos desde Homero, mas como se alteram!
Agora há um outro estatuto, não mais os sentidos enganados e confundidos por deuses ou por
poções. Doravante, a verdade pronunciada se pauta na experiência, no observado. Aliado a
isto, encontra-se o homem de estudo que conquista o conhecimento e a informação através da
leitura. Mas enxergando o texto pelo que diz, o mesmo Gabriel Soares vai dar conta de um
mundo onde duas tradições se confundem: a da mística medieval e a da experiência moderna.
Não é à toa que em pleno tempo da Escola de Sagres, um alvará promulgado por El-Rei
legisla sobre o que deveria ser feito caso algum súdito se deparasse com uma sereia. À guisa
de curiosidade, vale lembrar que quem a encontrasse deveria pagar um tributo, já que a sereia
fazia parte da classe dos pescados ou frutos do mar, pertencendo, portanto, ao rei. Nada a
191
Roger Chartier. “Texto, impressão e leituras”, in: Lynn Hunt (org.), A nova história cultural. São Paulo:
Martins Fontes, 1995, p.226.
estranhar. Afinal, naquele tempo, não foram poucos os tritões avistados nas praias do reino.
192
3.4. Um contexto a servir ao texto
Quando se aborda o Tratado Descritivo do Brasil em 1587, há uma contextualização
geral que não se pode perder de vista. Em termos econômicos, isto significa salientar a rede
mercantil na qual a colônia estava inserida; do ponto de vista político, cabe enfatizar o Estado
Absolutista em sua afirmação de autoridade. Já no âmbito social, implica em destacar os
conflitos entre autoridades seculares, eclesiásticas e colonos. Ao mesmo tempo, a tentativa de
recuperar o momento histórico onde o texto se situa é uma construção. E, no caso aqui
abordado trata-se de uma construção sedimentada em reconstruções já feitas deste passado
histórico.
No período em que Gabriel Soares viveu no Brasil não se pode falar ainda de uma
sociedade, mas sim em vida de comunidades. Na Bahia de Todos os Santos, segundo os
cálculos apresentados por Francisco Adolfo de Varnhagen, havia cerca de dois mil colonos,
quatro mil escravos africanos e seis mil índios cristianizados. Já se encontravam algumas
residências consideradas luxuosas e, na capital, viviam apenas cerca de oitocentos moradores
livres.
193
A principal produção do Brasil era o açúcar, e Pernambuco era a capitania que possuía
mais engenhos: sessenta e seis. A Bahia, em segundo lugar, contava trinta e seis, dois deles
pertencentes ao autor do Tratado. As demais capitanias possuíam juntas metade deste
192
Sheila Hue cita o interessante alvará do século XV, em Portugal ao analisar as semelhanças nos discursos de
Gândavo e Damião de Góis, como, por exemplo, no caso dos seres maravilhosos. A escrita da história como
vida da memória, op. cit, p. 665.
193
Segundo Luis Felipe de Alencastro, desembarcaram no Brasil, entre 1551 e 1575, 10 mil indivíduos africanos.
Portanto, a estimativa não está muito divergente, uma vez que o cálculo de Varnhagen se refere somente à Bahia.
O Trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, Tabela I, p.
69.
número. Bahia e Pernambuco concentravam, portanto, a principal riqueza da vida colonial. As
fortunas eram, certamente, bastantes desiguais. E, além do comércio de açúcar, um dos
principais meios de se obter recursos consistia no tráfico de negros.
Gabriel Soares de Sousa nasceu sob o reinado de Dom João III (1521-1555). Foi
contemporâneo de seu falecimento e do desaparecimento de seu desejado neto, D. Sebastião,
na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, deixando um vazio sucessório em Portugal. Já se
encontrava no Brasil quando se iniciou a disputa pelo trono, que encerrou-se com a subida ao
poder da Casa dos Habsburgos, em 1580. Desde a sua chegada a Salvador, presenciou nada
menos do que seis governos: o de Mem de Sá, o período da divisão do governo entre Antônio
Salema, no Rio de Janeiro, e Luís de Brito, em Salvador, o de Lourenço da Veiga, o governo
interino de Cosme Rangel, o de Manuel Teles Barreto e, finalmente, o de Francisco de Sousa.
Com exceção do último, que assumiu a administração da colônia por ocasião de seu retorno
de Madrid, quando seus escritos já haviam sido devidamente endereçados, todos os demais
são mencionados no relato e estabeleceram relações pessoais com o colono.
Naquele período, as monarquias ibéricas viviam intensas transformações, com a
emergência de novos grupos e configurações sociais.
194
As funções do Estado Absolutista
ainda não estão distintas. Somente no final do século XV e início do XVI que se afirmaram as
primeiras instituições. O reinado de Filipe II de Espanha representa, no contexto ibérico, o
absolutismo clássico. A vivência do colono português se deu exatamente no momento de
transição e ainda é preciso considerar que o Estado colonial apresenta singularidades.
Um empirismo administrativo marca o Estado colonial. O funcionalismo, na maior
parte das vezes, era ganho ou adquirido, pois não há uma especialização de funções. Os
194
O Estado colonial é extensão do Estado Absolutista e não podemos esquecer que a própria concepção de
Estado Absolutista é fruto da visão liberal, a partir da Revolução Francesa. O termo absolutista é usado pela
primeira vez em 1797, é valorativo, pressupõe um poder monolítico que nem sempre existiu de fato. Sobre a
questão do poder absoluto devemos destacar algumas questões: as limitações do exercício do poder, a
burocratização crescente, a transição entre a sociedade estamental e a de classes e uma permanente tensão entre o
Estado e o social. O Estado só vence, efetivamente, com a Revolução Francesa.
nobres ocupavam os cargos. Um órgão exerce várias funções simultaneamente, enquanto, os
“funcionários”, não necessitam de qualquer habilitação específica. Não há um plano geral
para colonização e nem centralização administrativa. Cada governo trazia um novo regimento.
Tudo se mostra muito casuístico, respondendo aos desafios do momento. Alguns autores,
como vimos no primeiro capítulo, defendem que com o governo filipino o Estado português
se moderniza, tanto que certos órgãos criados não foram extintos após a separação das
Coroas.
195
A sociedade colonial foi palco de controvérsias que registram uma série de problemas
a respeito dos poderes instituídos. Gabriel Soares testemunhou e participou desses conflitos,
como fica evidente em seu outro escrito, os Capítulos contra os padres da Companhia de
Jesus, que carecem de um estudo a parte. Vale notar que inúmeros exemplos se encontram
nos autos, alvarás, cartas, provisões, enfim, em toda a sorte de documentos coloniais que
evidenciam uma disputa constante envolvendo colonos, jesuítas, administradores e
representantes da justiça, especialmente, em relação à questão crucial da utilização da mão de
obra indígena.
196
A Coroa portuguesa, bem como a espanhola, possuía o controle direto sobre o clero
secular devido ao “Jus patronatus” ou “Padroado”: conjunto de privilégios concedidos pelos
papas aos monarcas ibéricos, entre 1452 e 1514. Segundo esses acordos, a hierarquia religiosa
só exerceria suas funções depois de aprovada pelas autoridades reais, de quem dependiam
financeiramente. Deste modo, o clero se transformava em veículo do poder metropolitano,
assim como mede poderes com outras estâncias.
O panorama do período histórico em que Gabriel Soares viveu transparece de diversas
formas no escrito colonial, sem esquecer que é o mesmo que serviu de pano-de-fundo às obras
de Pero de Magalhães de Gândavo e de Fernão Cardim.
195
A análise da sociedade do Antigo Regime e de sua transposição para colônia baseia-se, sobretudo em Stuart
B Schwartz. Burocracia e sociedade colonial e J.A. Marraval, Teoria del saber histórico.Ambos já citados.
196
Ver os “Capítulos” de Gabriel Soares. Anais da Biblioteca Nacional, vol. 62: 340-381, 1942.
3.5. Gândavo, Cardim e Soares
Já se disse que os escritos de Pero de Magalhães de Gândavo, de Fernão Cardim e de
Gabriel Soares de Sousa sinalizam uma proto-história brasileira ou, na ausência de uma
tipificação concludente, representariam principalmente uma história natural.
197
A maior parte
de seus relatos abrange de fato campos da história natural, enquanto os temas
tradicionalmente prioritários para a História são negligenciados, como a narrativa dos
acontecimentos políticos, a exposição cronológica e, sobretudo, a argumentação interpretativa
que une os fatos expostos. Esta percepção é própria de uma necessidade de estabelecer
formulações e datações paradigmáticas para a compreensão de um período e seu conseqüente
processo e evolução.
Os três autores esboçam os domínios portugueses do Atlântico Sul recém ocupados,
com muitas similitudes; nos três se destacam o registro da fauna e da flora exótica e as
características dos povos autóctones.
A título de exemplo, veja-se a primeira descrição que oferecem da terra. Para Pero de
Magalhães de Gândavo, a província é a vista mui deliciosa e fresca [...] de tal maneira se
comediu na temperança dos ares, que nunca nela se sente frio nem quentura excessiva.
198
Para Gabriel Soares, a terra é quase toda muito fértil, muito sadia, fresca e lavada de bons
ares.
199
Nas palavras de Fernão Cardim: O clima do Brasil geralmente he temperado de
bons, delicados, e salutíferos ares. Donde os homens vivem muito até noventa, cento e mais
annos [...].
197
Na introdução à edição de Fernão Cardim, o estudioso Rodolfo Garcia destaca esta semelhança nas obras de
Gândavo e Cardim como História antes natural do que civil, Tratados da terra e gente do Brasil, p.13. Luis
Costa Lima compreende as obras de João de Barros, Ásia, e Diogo do Couto, Décadas, como discursos que
“encaminham-se para a escrita da história” em O Redemunho do Horror, p.35.
198
Gândavo, A primeira história do Brasil, p.51.
199
Notícia do Brasil, p.1.
Em Cardim e Soares aparece outra percepção semelhante, e no mínimo, curiosa. Mas
se para o provincial: [...] em sendo manhã, logo sae o sol, e em se pondo logo anoitece,
200
o
colono o supera, levantando dúvidas científicas:
E há de se notar que, nesta comarca da Bahia, em rompendo a luz da
manhã, nasce com ela juntamente o sol... e em se recolhendo o sol à tarde,
escurece juntamente o dia e cerra-se a noite logo; a que matemáticos dêem razôes
suficientes que satisfação a quem quiser saber este segredo, porque os mareantes
e filósofos que a esta terra foram, nem outros homens de bom juízo não têm
atinado até agora com a causa porque isso assim seja.
201
Os textos têm em comum uma determinada estrutura que vai além dos vocábulos ou
expressões curiosas. Há uma retórica discursiva que consubstancializa-se em normas técnicas
compartilhadas. No caso das letras estabelecidas sobre a colônia, os autores não são sujeitos
psicologizados e identificáveis como na literatura contemporânea, a partir dos critérios de
identidade, originalidade, intencionalidade e estilo. Dividem um saber restrito da transmissão
escrita, num período em que a oralidade, assim como a estética visual, são prevalecentes
como forma de propagar informações. Mas este conhecimento específico em relação às letras
participa, por outro lado, de todo um universo comum da tradição.
Até onde se sabe, Pero de Magalhães de Gândavo reescreveu por três vezes seu
Tratado até a versão impressa final que, inclusive, foi a única que recebeu o termo História
no título. Seu labor durou anos e seu intuito fora a publicação em prol da extensão e
ampliação do Império que, por sua vez, consagrava a redenção e a extensão do desejo divino.
Dentre os três, é o mais sucinto por recortar as informações que possui para elaborar uma
escrita que desperte o interesse dos seus conterrâneos para a colônia portuguesa e, ao mesmo
200
Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil, ambas citações da p. 25.
201
Notícia do Brasil, p. 95. Vale ressaltar que estas questões que soam inusitadas foram tema de análise do
matemático Pero Nunes na obra De crepusculis, de 1542, em que trata da variada duração dos crepúsculo nas
diferentes zonas climáticas.
tempo, suprimir dados que pudessem despertar a cobiça estrangeira. A última versão do texto
de Gândavo, como já demonstramos anteriormente, foi impressa em 1576, em Portugal.
Já o padre provincial Fernão Cardim, que exerceu uma posição de destaque na
Companhia de Jesus, não escreveu para a divulgação pública e sim para os registros da Ordem
a qual pertencia.
202
Entretanto, por uma armadilha do destino, seus escritos foram parar nas
mãos do colecionador Samuel Purchas, que os publicou em inglês em 1625.
203
Gândavo e Soares utilizam a mesma forma retórica no encaminhamento dos seus
relatos. A reverência ao rei, a modéstia e humildade (falsa ou não), os objetivos
engrandecedores do reino e da fé, sua expansão e propagação em nome de uma predestinação
divina. Estes termos introdutórios não são encontrados em Cardim, por certo por não se
destinarem nem à leitura pública, nem à administração real. Entretanto, basta uma rápida
vista d’olhos para percebermos o quando obedecem à uma lógica tão diversa da atual, onde a
repetição entre agentes sociais tão distintos se faz comum.
Nos arquivos do Colégio Jesuíta do Maranhão, João Adolpho Hansen identificou cerca
de quarenta teses elaboradas entre 1700 e 1730 sobre o mesmo tema, ou seja, São Tomaz de
Aquino. São teses curtas, a maioria escrita em latim eclesiástico e que obedecem a idênticos
padrões de esquematização de pensamento e as mesmas linhas interpretativas. A inovação ou
originalidade não cabem no “horizonte de expectativas” em voga, donde conclui: Uma prática
de ensino como essa evidencia imediatamente uma outra concepção de tempo e de certas
paixões da alma, como o tédio.
204
Da mesma forma que a introdução da terra apresenta diferenciações, a despeito de uma
referência comum, o monstro marinho, tema tão caro ao bestiário medieval, é compartilhado
202
Seus escritos aqui abordados constituem parte do seu acervo.
203
Após ter sido nomeado procurador da Província do Brasil em Roma, retornava ao Brasil, em 1601, quando a
embarcação que vinha foi abordada por corsários ingleses comandados pelo lendário Francis Cook. Cardim foi
conduzido à Inglaterra e despojado de seus escritos.
204
João Adolpho Hansen, Leituras coloniais in: Leitura, história e história da leitura. Márcia Abreu (org.).
Campinas, São Paulo, 1999, p. 169-182, p. 181.
pelas três narrativas quinhentistas. Comungam, neste sentido, a aventura fantástica de
descrever o que não possui uma terminologia reconhecida. Entretanto, as perspectivas
diferentes dos discursos apontam para o processo de individualização da escrita.
Nenhum deles se deparou em qualquer momento com o monstro, mas o citam como
espantoso. A descrição do padre Fernão Cardim é a que mais humaniza o dito ser. Confere-lhe
feições de homens e às suas fêmeas a semelhança com mulheres, de cabelos compridos e até
formosas. Mas não só na aparência assim se manifestam, soltam gemidos sentimentais ao
virem sua presa morta. Num aspecto, Soares e o provincial concordam inteiramente: as
vítimas que retornam à superfície das águas apresentam apenas as bocas, os narizes e a
genitália devorados. Gabriel Soares não descreve a aparência do monstro, mas narra que além
de ter devorado cinco índios de sua propriedade, foi avistado pelo mestre de açúcar e outras
negras de seu engenho, que ficaram todos apavorados.
Já a descrição de Gândavo se encaminha por aspectos distintos, pois o gramático
expõe claramente o objetivo de separar o maravilhoso ou fantástico da história verdadeira:
Porque na verdade a maior parte dos retratos, ou quase todos, em que querem mostrar a
semelhança de seu horrendo aspecto andam errados, e além disso conta-se o sucesso de sua
morte por diferentes maneiras, senda a verdade uma só [...].
205
Reconta em detalhes sua
aparição na capitania de São Vicente, no ano de 1564, chegando a uma aparência bem menos
monstruosa.
O colono apóia sua narrativa na proximidade dos testemunhos que apresenta, o padre
recupera relatos de diversas procedências, dando ênfase aos nativos, enquanto o gramático se
pauta na história dos acontecimentos.
3.6. Gabriel Soares de Sousa, observador ou compilador?
205
Gândavo, História, págs.126-131, Cardim, Tratado, p.50 e Gabriel Soares, Notícia, págs. 237-238.
Assim como foi publicado na versão espanhola, o Proêmio que serve como introdução
ao texto do Tratado Descritivo possui duas partes bastante nítidas. A primeira consiste numa
apresentação protocolar dirigida ao rei Filipe II. A segunda, a descrição geral e apologética do
objeto que será tratado, no caso, a colônia tropical. Esta estrutura narrativa faz parte do
encaminhamento de obras dedicadas ao monarca ou à divulgação pública.
206
Neste mesmo Proêmio, Gabriel Soares enumera quatro itens que o teriam motivado a
se dirigir ao rei e que provavelmente seriam primordiais para quem vive e observa a
experiência ultramarina na perspectiva de um colonizador atento: a falta de uma política
administrativa durante os últimos vinte anos, que por sua vez provocou o isolamento e
desamparo da colônia, a má utilização e aproveitamento das riquezas naturais, além das
constantes ameaças de invasões estrangeiras. Esta introdução serve de pretexto para o Roteiro
e o Memorial. Ambos se dividem em pequenos capítulos temáticos, de extensão equivalente,
seguindo fielmente a proposta previamente enumerada do que foi “dito e prometido”.
207
A descrição histórica que integra o Roteiro geral da costa brasílica, é extremamente
fugaz. Dois primeiros capítulos abarcam mais de oitenta anos de acontecimentos e, em poucas
linhas, percorreu do descobrimento até a política de capitanias instituída no governo de D.
João III, chegando à repartição das terras americanas, na linha mental de Tordesilhas. Na obra
de Gabriel Soares não há informação aleatória. Tudo que apresenta responde a uma
finalidade. No caso, esta apresentação econômica, que poderia vir a ser repleta de
acontecimentos, é sintetizada em detrimento de objetivos precisos: apontar a localização dos
acidentes geográficos e identificar as partes do território efetivamente ocupadas.
Segue-se uma exposição do espaço compreendido entre a foz do rio Amazonas e as
terras maranhenses, por sinal, área até então bem pouco explorada. A escolha deste roteiro
206
No caso de Pero de Gândavo, a dedicatória é feita em honra do herói português da conquista do Oriente,
D.Leonis Pereira.
207
Notícia do Brasil, p.20.
parece intencional, pois permite Soares abrir espaço para exaltar a figura de um espanhol,
Francisco de Orellana, o primeiro que desceu o rio, em 1541. Do mesmo modo, refere-se ao
aventureiro português Luis de Mello, filho do alcaide-mor de Elvas, cujas relações com os
homens de Castela são convenientemente salientadas, assim como suas pretensões de
descobrir metais preciosos ao longo do rio Amazonas. Observa-se, portanto, que o relato
reflete uma dupla intenção: associar as conquistas ibéricas e chamar a atenção para as
possíveis riquezas.
A partir daí Gabriel Soares passa a descrever a paisagem do litoral em sentido norte-
sul, começando pelo Maranhão e finalizando no Rio da Prata. Nesta parte elabora um grande
tratado de navegação. Oferece toda sorte de notícias acerca das enseadas, baías, barras,
baixios, canais, surgidouros, sumidouros, cachoeiras, rios, arrecifes, ribeiras, mangues,
alagados, boqueirões, lençóis de areia, cabos, ancoradouros, ilhas, portos,
208
enfim tudo que
poderia auxiliar os possíveis conquistadores nas suas incursões marítimas, inclusive no que
diz respeito à sobrevivência. Apresenta sempre as respectivas coordenadas geográficas,
enumera os tipos de embarcação que podem atravessar determinados cursos e identifica
possibilidades de encontrar mantimentos, pescado ou águas limpas. Na medida em que
desenvolve o relato, as notícias históricas da ocupação vão sendo reportadas, informando do
êxito ou do fracasso das expedições e de empreendimentos estabelecidos, a quantidade de
moradores existentes, as construções e os engenhos. Por outro lado, adverte sobre os corsários
que arremetem a terra, franceses em geral. Focaliza os grupos indígenas e aponta os que
podem ameaçar os colonizadores, mas ainda não os aborda especificamente.
As notas sobre a paisagem geográfica são acompanhadas de indicações sobre a
existência de riquezas minerais, como uma lagoa onde se “criam pérolas” no Rio Grande,
208
Todos os termos referidos são retirados do Roteiro de Gabriel Soares. Notícia, págs. 5-59.
Maranhão,
209
ou a Alagoa Grande, “tão afamada e desejada de descobrir”, que situa na
nascente do rio São Francisco e cujo registro provém de um gentio não identificado que se
“atavia de jóias de ouro”. Refere-se ao explorador Sebastião Fernandes Tourinho, que
navegando pelo rio Doce encontrou pedreiras de esmeraldas e de safiras.
210
Revela que tais
informações foram repassadas ao governador Luís de Brito, que enviou o conquistador
Antonio Dias Adorno nesta direção. Entretanto, Adorno só pôde transportar pedras retiradas
da superfície e de baixo valor. Após vários enfrentamentos com grupos de índios, sua
expedição foi parar justo na fazenda de Gabriel Soares.
211
Portanto, a auto-referência
estrategicamente posicionada reforça a credibilidade do relato. Convém notar que, segundo
Sérgio Buarque, a expedição teria, na verdade, o objetivo de “caçar peças e não pedras”;
índios apresados que chegaram ao engenho de Gabriel Soares. De acordo com o historiador,
Soares omite a informação.
212
Há um dado relevante apresentado pelo colono que não foi mencionado por seus
comentadores. Ao descrever o rio São Francisco, local das prováveis serras de ouro e de prata,
oferece um histórico de seu desbravamento. Duas expedições dirigidas pelo capitão de
Pernambuco, Duarte Coelho, não obtiveram sucesso. A última devido a um desentendimento
com o rei português acerca das prerrogativas que o capitão solicitara. Outra jornada realizada
por Bastião Álvares, também a mando do governador Luiz de Brito, frustrou-se após quatro
anos, ao ser desbaratada pelo gentio. As causas destes fracassos são precisamente
identificadas pelo colono: o pouco conhecimento das águas do rio, a falta de gente e de
proventos necessários para arremeter contra os indígenas. Isto lhe faz apontar a última
209
Estas informações geraram inúmeros estudos dos comentadores F. A. de Varnhagen e M. A. Pirajá da Silva,
procurando identificar precisamente as localizações apresentadas pelo colono. O rio Grande é o rio Parnaíba,
mas toda a descrição do litoral do Maranhão é extremamente imprecisa e chama à atenção, evidentemente, a
“criação de pérolas” citada. A pesca de pérolas ocorre, de fato, na ilha Margarita, no litoral da atual Venezuela.
Notícia, p. 10 e p.20, respectivamente.
210
As pedras verdes exerciam um fascínio superior às demais, como registra Sérgio Buarque de Holanda, Visão
do paraíso, p.67-69.
211
Notícia, p.37.
212
Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso, p. 47.
tentativa, empreendida por seu irmão, João Coelho de Sousa, homem experiente no curso do
São Francisco, que pôde adentrar cem léguas acima de seus antecessores. No entanto, também
sucumbiu. João Coelho, como já informamos, teria deixado um mapa e algumas pedras ao seu
irmão, que a eles se refere da seguinte forma: “como se verá do roteiro que fez da sua
jornada”.
213
Ora, o roteiro não consta do Tratado, nem nunca foi conhecido. Portanto, é de se
supor que Gabriel Soares esteja anunciando que o mostrará ao rei, aglutinando mais um dado
positivo para alcançar sucesso em seus intentos. A importância deste mapa do tesouro parece
ter sido grande, pois posteriormente passou às mãos de Francisco de Sousa e Belchior Dias
Moréia. Entretanto, não se prosseguiu na exploração daqueles sítios devido à uma mudança
na política de penetração da Coroa filipina no século XVII, que passou a privilegiar os
caminhos que levavam à capitania de São Vicente.
Cada parte da descrição da costa é acompanhada da respectiva referência aos limites
das capitanias e de como se processou sua ocupação. O texto deixa claro que as ações
empreendidas pelos governadores e capitães-mores visaram assentar povoamentos, levantar
engenhos que garantissem a sobrevivência e estabelecer um comércio mercantil que servissem
de ponta de lança para “ir conquistando a terra pelo sertão até descobrir ouro e prata”, tal
como originalmente pretendeu o célebre capitão Vasco Fernandes Coutinho, herói da
conquista das Índias. Coutinho, que gastara “o melhor de sua idade” no Oriente, não se
contentou com as riquezas adquiridas e solicitou ao rei a mercê de uma capitania no Brasil.
Desembarcou no Espírito Santo acompanhado de fidalgos, colonos e projeções de
enriquecimento. Em pouco tempo fundou Vila Velha e ergueu quatro produtivos engenhos.
Retornou, então, ao reino, com vistas a obter as concessões para buscar metais preciosos.
Mas, enquanto se demorava em Lisboa, os dois fidalgos que deixara no comando da capitania
pereceram por flechadas e todas as benfeitorias construídas foram destroçadas. Vasco
213
Notícia, p. 21.
Coutinho voltou ao Brasil e foi auxiliado pelo governador Mem de Sá com armas e gente pra
combater o gentio. Nesta luta, o filho do governador foi morto, os indígenas se apoderaram
das terras e Vasco Coutinho acabou pobre em Portugal, por ter gasto tudo o que amealhara. O
único herdeiro do herói das Índias vivia na capitania mas não possuía maiores cabedais, além
do título de capitão e governador.
214
Gabriel Soares narra outros infortúnios semelhantes. Não vem ao caso enumerá-los. O
único sucesso a que faz menção, diz respeito à ocupação da capitania de Pernambuco, mas
que também já carecia de “socorro do reino”.
Ao tratar da política portuguesa, pouco se refere aos tempos próximos, limitando-se na
maior parte das vezes aos acontecimentos do reinado de D. João III. Evita, desta forma,
ultrapassar os limites que o decoro e a prudência devem resguardar. Entretanto, tais histórias
ajudam a confirmar a necessidade de auxílio da administração monárquica e o respectivo
reconhecimento aos vassalos que, de fato, lutam pelo engrandecimento do reino. Premissas
que servem reforçar suas pretensões enquanto súdito e colonizador. O colono arremata seus
capítulos sobre a costa brasileira retornando ao ponto de origem, os limites do Tratado de
Tordesilhas:
Nesta ponta do Marco se acaba a demarcação da coroa de Portugal nesta
costa do Brasil, que está em quarenta e quatro graus pouco mais ou menos,
segundo a opinião do Dr. Pedro Nunes, cosmógrafo d’El-Rei D. Sebastião, que
está em glória, que nesta arte foi em seu tempo o maior homem da Espanha.
215
Ao lado da circularidade da esquematização da escrita, Gabriel Soares integra Portugal
e Espanha, por meio da citação ao cosmógrafo Pero Nunes, figura emblemática nos dois
reinos.
214
Notícia, p.39.
215
Notícia, p.59.
A segunda parte do Tratado Descritivo de 1587 contém cento e noventa e seis
capítulos dedicados a descrição daquela parte do território em que Gabriel Soares estabeleceu
moradia, a Bahia de Todos os Santos. Trata-se de uma segunda narrativa, bem mais extensa
que o Roteiro e que apresenta inúmeras singularidades.
O Memorial e declaração das grandezas da Bahia de todos os Santos, de sua
fertilidade e das notáveis partes que tem principia com referências à organização do discurso.
Ao mesmo tempo em que complementa e dá continuidade ao Roteiro, distingui-se pela
exaltação da Bahia como parte ilustre a ser reconhecida pelo monarca espanhol. O relato
acompanha as políticas administrativas empreendidas pelos governadores Tomé de Sousa, D.
Duarte e Mem de Sá, justamente a partir da quebra por D. João III das doações aos capitães
proprietários por terem demasiada alçada, assim do crime como no cível; de que se eles
agravaram a S. Alteza.
216
Retoma, portanto, o ponto em que finalizou a parte antecedente,
guiando-se pelos mandatos dos governadores. Novamente a referência histórica serve de mote
para articular o passado e o presente. Segundo Soares, seu tempo se caracteriza pelo
amortecimento das políticas empreendidas por D. João III e sua esposa, a Rainha Catarina,
resultando num crescente abandono da colônia deixando os moradores vivendo “muito
escandalizados e descontentes”.
217
Se na primeira parte a narrativa se mostra extremamente técnica, por assim dizer, na
descrição da costa, agora surge um olhar individualizado que destaca construções bem
concertadas, ruas bem-assentadas, as mais formosas mostras de nuvens de mil cores e grande
resplendor
218
ou formosas fazendas e tão alegres da vista do mar, que não cansam os olhos
de olhar para elas.
219
A cidade de Salvador, marco inicial da descrição de toda a capitania é
216
Notícia, p.61.
217
Notícia, p.64.
218
Notícia, p.65.
219
Notícia, p.72.
incensada pelo colono: é senhora desta Bahia, que é a maior e mais formosa que se sabe pelo
mundo; assim em grandeza como em fertilidade e riqueza.
220
Gabriel Soares, através das palavras, reproduz um verdadeiro mapa de Salvador nos
anos de 1580. Pode-se acompanhar, a partir da praça central com o pelourinho onde
eventualmente correm touros, as casas dos nobres e dos governadores, localizadas ao sul e as
casas da Fazenda, alfândega e armazéns situados ao norte. No nascente encontrava-se as casas
da Câmara e Cadeia e de mais alguns moradores. E, no poente, a vista para o mar e a artilharia
ali apontada. A narrativa segue pela rua dos Mercadores, passa pela Casa da Misericórdia e
pelo hospital. Do centro, a descrição irá se expandindo gradualmente até alcançar todo o
entorno do núcleo primitivo, atingindo as ilhas e o Recôncavo. Entretanto, não toca no
contingente de índios e de escravos que circulavam pela na cidade.
O texto não só exalta e informa ao rei de suas posses, como oferece soluções práticas,
como a construção de um muro em volta da cidade, com os respectivos fortes. E justifica a
medida: a maioria dos habitantes se encontrava no interior, e custaria a socorrer a cidade de
São Salvador em caso de ataque, como dos ingleses, por exemplo, que já conheciam o quanto
era desprotegida.
221
A maior parte do relato sobre a sociedade aparece quando trata dos engenhos de bois e
de água. Identifica seus proprietários, as ermidas, a dimensão dos canaviais, a quantidade de
moradores, as vilas, as criações e animais que possuem, sem deixar de transcrever todas as
referências geográficas e hidrográficas como no roteiro anterior. Entre as informações há que
se destacar que registra o convívio com indígenas e a presença dos mamelucos na segunda
metade do primeiro século, além de mais uma referencia pessoal, pois na barra do rio
Jaguaripe,
Gabriel Soares tem começado um engenho, no qual tem feito grandes
benfeitorias, e assentado uma aldeia de escravos e um feitor que os manda. Na
220
Notícia, p.69.
221
A cidade de Salvador é descrita dos capítulos VI ao XIV, págs. 70-73.
barra deste rio tem uma roça com mantimentos, e gente com que se granjeia. Este
rio é muito provido de pescado, marisco, muita caça, e frutas silvestres.
222
Por fim, antes de passar para o próximo tema, apresenta um inventário quantitativo de
igrejas, engenhos e embarcações. A título de curiosidade, já eram sessenta e duas igrejas na
Bahia.
A crônica é rica, colorida, multifacetada e exagerada em dois sentidos, tanto na ênfase
positiva quanto na negativa. O mar, por exemplo, pode andar mais do tempo em flor, ou a
terra ser muito fraca. Pode se referir ao suntuoso Colégio dos padres da Companhia de Jesus
ou ao muito pobre Mosteiro de São Bento. Certamente, no último caso, entram suas
afinidades, pois Gabriel Soares defende a ordem beneditina e se opõe aos inacianos. Todavia,
o discurso por oposição é uma marca do escrito que se amplia a partir desta segunda parte.
Após oferecer um roteiro topográfico e do povoamento, Gabriel Soares volta a atenção
para as criações de aves e alimária, e para as plantas principais. Inicia o percurso de fora para
dentro, num sumário de tudo que foi trazido pelos europeus e que se desenvolveu no ambiente
colonial. Já havíamos notado algumas comparações apresentadas anteriormente, a saber, a
trovoada da Guiné, o gado e o frio da Espanha, ou o vasconço.
223
Todavia, a dimensão do
intercâmbio com elementos naturais é exuberante, vacas, éguas, ovelhas e cabras de Cabo
Verde, galinhas de Portugal, pombas, patos e gansos da Espanha, cana de açúcar da Ilha da
Madeira, limões franceses, gengibre e inhame de São Tomé, sem falar nas ervas e sementes
que atribui à Espanha. Tudo, na colônia, sobrepuja em grandiosidade, salutabilidade,
fertilidade e sabor aos originais. A opulência do desconhecido estabelecida em contraponto
aos outros territórios conhecidos introduz de forma vibrante a originalidade e a grandeza do
mais recente domínio filipino. E o primeiro item é emblemático neste aspecto: a cana de
222
Notícia, p.80.
223
O “vasconço” designa a língua falada nos Pirineus ou o basco, cuja particular estrutura originou uma
concepção sobre sua ininteligibilidade, impossível aprendizagem ou transcrição. Soares a compara com a língua
dos Aimorés, o mais terrível dos grupos indígenas. Notícia, p.20.
açúcar, principal produto comercial, segundo Gabriel Soares, supera em qualidade e
facilidade de plantio todos os locais em que é cultivada. Superior, portanto, as culturas da ilha
da Madeira, de Cabo Verde, de São Tomé, de Trudente, das Canárias, de Valência e da Índia.
O registro do que é natural da Terra de Santa Cruz principia pela mandioca, maior
fonte alimentícia utilizada pelos indígenas. Esta raiz, como se sabe, requer uma técnica
específica de reconhecimento e manuseio de forma a separar o que é comestível do que é
venenoso. Familiarizadas com a mandioca, as mulheres portuguesas já haviam criado suas
receitas e os seus beijus serviam “gente de primor”. Neste convívio da cultura européia e
indígena, a farinha do aipim, ou farinha-de-guerra, serviu de reforço para criados e escravos
em tempos de privação e de malotagem para os navios “que vêm do Brasil para estes reinos”.
224
Chama a atenção o fato de Gabriel Soares se posicionar em relação ao reino e não ao
Brasil, o que pode ser indicativo da sua real localização, já que se encontrava na Península
Ibérica quando transcreveu suas anotações. Mas isto também pode ser entendido como
identificação com o “pátrio ninho”, o local do retorno, ou “o lugar para o qual se volta depois
de ter percorrido os mares e os continentes.”
225
Este laço com o berço de nascimento é uma
dimensão muito presente na experiência da colonização. O século XVI é o período de um
deslocamento da concepção do “local” e do “global”. Como aponta Serge Gruzinski, o mundo
passa a ser um espaço planetário, ao mesmo tempo em que a unidade dinástica e religiosa não
é incompatível com o gigantesco espaço de dominação. O estudo do caso de Gabriel Soares
revela a maneira como estes mundos são articulados. O que se percebe na gama de espaços
citados, ou quando, por exemplo, seus preceitos podem ser postos em questão, como a
utilização do milho cozido para doentes de boubas, “o que parece um mistério”, porque o
milho é frio.
226
224
Notícia, p.90 e p.92.
225
Serge Gruzinski, “O historiador, o macaco e a centaura: a “história cultural” no novo milênio. Estudos
avançados 17(49), 2003, p.330.
226
Notícia, p. 94.
Depois da aparência de carás, milhos, tipos de favas, amendoins, pimentas, legumes,
com suas formas de plantio, tempos de colheita, pratos preparados e propriedades medicinais,
Gabriel Soares aborda as plantas frutíferas, as árvores afastadas do mar e os frutos que não
dão em árvore. Após descrever inúmeras delas, oferece uma singular introdução em que se
vale de todo um recurso de oposição retórica para nomear o abacaxi:
Não foi descuido deixar os ananaes para este lugar por esquecimento; mas
deixamo-los para ele, porque, se lhe déramos o primeiro, que é o seu, não se
puseram os olhos nas frutas declaradas no capítulo atrás; e para o pormos só,
pois se não podia dar companhia conveniente a seus merecimentos.
227
Este trecho no qual identifica a hierarquização do discurso, enuncia os processos de
repartição do todo em partes bem arrumadas para o destinatário. Valendo-se da oposição
expor/ocultar dispõe de referência históricas, retóricas, filosóficas, poéticas de proveniência
variadas, como identifica João Adolpho Hansen.
228
Além de apreciar o paladar do abacaxi...
Na seqüência, discorre sobre as árvores de virtude, aquelas em que se pode extrair um
bálsamo, um óleo, um ungüento ou sumo capazes de curar feridas, chagas, retirar sinais do
rosto, soldar quebraduras nas pernas ou eliminar cólicas, entre outras enfermidades. Seria
impossível o colono dar conta de todo o arvoredo presente na Bahia, mas ele ainda enumera
as árvores reais, aquelas de madeira nobre, as meãs, as muito duras ou muito moles, as de
bom e de mal cheiro, as de frutos que não se comem até as folhas que se encontram no mato.
227
Notícia, p.105.
228
Estas referências provêm tanto de longuíssima duração quanto de tratados contemporâneos, autoridades
cristãs, métodos escolásticos de interpretação alegórica da Bíblia, entre outros. “A representação era regrada pela
prescrição aristotélica que faz as artes imitar padrões anônimos e coletivos, repondo em cada situação os
modelos de autoridades dos vários gêneros que demonstraram a excelência técnica de seus desempenhos."
Hansen afirma a existência de uma estrutura simbólica específica entre 1580 e 1750. “A categoria
‘representação’ nas festas coloniais dos séculos XVII e XVIII”. In: István Jancsó; Íris Kantor. (org.). Festa.
Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. 1ª ed. São Paulo: EDUSP/HUITEC, 2001, p. 743.
O tema da perenidade é retomado há-de se notar que os arvoredos desta província não lhe cai
nunca a folha, e em todo ano estão verdes e formosos.
229
Como o discurso obedece a um cuidadoso encadeamento lógico, deixou para o final o
que mais despertaria a curiosidade e estranheza conquistadora. Não por acaso esses itens
seriam os mais freqüentados pelos estudiosos: a descrição dos animais e dos grupos indígenas.
A narrativa principia com os animais “que freqüentam as árvores”, os pássaros. São águias,
emas enormes como as da África, cujo testemunho é pessoal: eu vi um quarto de uma
depenada tamanho de um carneiro grande.
230
Jacus, araras, tucanos, picaçus, papagaios,
jaburus, passarinhos, uma infinidade que para ser reconhecida está sempre em comparação
com a alimária peninsular, mas em definições não muito claras como, por exemplo, do
tamanho de um “frangão” ou de um “pintão.”
231
Gabriel Soares desconhece uma
terminologia que identifique as classes dos insetos e os apresenta como outros bichos que tem
asa e mais aparência de aves que de alimárias, ainda que sejam imundícies, e pouco
proveitosas para ao serviço dos homens.
232
São os gafanhotos, abelhas, vespas, grilos, pulgas
entre outros e as moscas que apresenta fazendo um gracejo: E porque as moscas se não
queixem, convém que digamos de sua pouca virtude.
233
Estas moscas, que na verdade são
mosquitos, segundo ele “adivinham a chuva”, porque mordem antes dela chegar.
234
A descrição dos animais irá adensar a imprecisão e a estranheza. O jaguaretê, que uns
portugueses dizem que é onça e outros que é tigre,
235
o tamanduá, que compara com quatro
animais para obter alguma imagem próxima do que viu: tem tamanho de uma raposa, [...]
rosto como furão, [...] cabelos grossos como o cavalo, [...] as mãos como um cão [...]
236
e a
preguiça que não há fome, calma, frio, água, fogo, nem outro nenhum perigo que veja a
229
Notícia, p.121. As árvores citadas se encontram entre as págs. 114 e 121.
230
Notícia, p.122.
231
Notícia, p.124.
232
Notícia, p.129.
233
Notícia, p.131.
234
Idem.
235
Notícia, p.133.
236
Notícia, p.134.
diante, que o faça mover uma hora mais que outra.
237
Depois de apresentar porcos, veados,
capivaras, tatus, pacas, cutias, bugios, sagüis, chega às cobras de que tanto se fala em
Portugal. A jibóia é o tipo mais surpreendente pela dimensão, por engolir inteiro mais de um
índio e, sobretudo, por renascer igual como era antes mesmo depois de devorada por urubus
que retiram toda a sua carne, deixando apenas o espinho. Este testemunho é assegurado em
sua veracidade, pois além de consultar muitas informações dos índios e dos línguas que
andam por entre eles no sertão, cita um almoxarife de S. Vicente, homem de verdade e ainda
o capitão Garcia de Ávila, que afirmara ter visto o couro de uma delas.
238
Depois de ter
inventariado sapos e rãs, faz uma profissão de fé de homem renascentista:
Como não há ouro sem fezez, nem tudo é à vontade dos homens, ordenou
Deus que entre tantas coisas proveitosas para o serviço deles, como fez na Bahia,
houvesse algumas imundícias que os enfadassem muito, para que não cuidassem
que estavam em outro paraíso terreal, de que diremos daqui por diante,
começando no capítulo que se segue das lagartas.
239
Nesta sentença Gabriel Soares estabelece o limite entre a vontade humana e a divina.
Demonstra claramente que o mito do paraíso terreal atribuído à Terra de Santa Cruz, e que
tanto marcou o primeiro momento da descoberta, já não corresponde à experiência da
vivência colonial. A natureza não é mais apenas o signo do divino, é o desafio ao homem e as
pragas e os animais muito danosos, que virão a seguir, evidenciam bem as dificuldades
enfrentadas.
As lagartas destroem os brotos das plantações de arroz, algodão, mandioca, cana de
açúcar, as aranhas parecem saídas de um filme de terror com “dentes tamanhos como ratos” e
as formigas são responsáveis por arruinar a possibilidade da Bahia ser considerada “outra
237
Notícia, p.140.
238
Notícia, p.141.
239
Notícia, p.145.
terra de promissão”.
240
Gabriel Soares nem se estende muito no assunto para não propagar
uma imagem negativa, pois se não fossem elas a arrasar as plantações se despovoaria muita
parte da Espanha para irem povoar o Brasil.
241
É curioso ainda notar nesta parte que os
critérios não são tão racionais como podem parecer, já que um dos seres contabilizados nesta
categoria é o vaga-lume, ou caga-lume como diz, que já era conhecido em Portugal, mas que
entra no relatório do surpreendente prejudicial.
Por outro lado, descreve a abundância dos mariscos e dos pescados. Gigantescas
baleias, tubarões, peixes-boi, lagostas, ostras, caranguejos, siris, toda a sorte de espécie que se
pode retirar o azeite ou aproveitar a carne. É nesta parte relativa aos frutos do mar que aborda
o monstro marinho, de que já tratamos anteriormente. Conclui a descrição da fauna com os
caranguejos que se encontram na terra. Mais uma vez utiliza-se da exposição dos
procedimentos discursivos, estabelecendo um elo entre a escrita e o destinatário: Andei
buscando até agora onde agasalhar os caranguejos do mato, sem lhes achar lugar cômodo
[...].
242
O problema é que o caranguejo habita um lugar intermediário, uma zona movediça,
nem seca, nem molhada. Nem no mar nem na terra... difícil de se ajustar para um
quinhentista...
Finalmente chega ao aspecto mais aguardado, anunciado desde os primeiros capítulos
e de quem se tem dito tantas maravilhas, os tupinambás tão nomeados. Mais uma vez informa
que as notícias sobre a terra corriam no Velho Mundo, a par da falta de registros escritos que
pudessem ter.
Para reconstituir a história dos primeiros povoadores da América portuguesa, Gabriel
Soares recorre à tradição oral dos índios mais antigos, cuja “memória anda de geração em
geração”.
243
Esta história de tempos imemoriais relata guerras entre diferentes tribos pela
240
Notícia, p.147.
241
Notícia, p.148.
242
Notícia, p.165.
243
Notícia, as duas respectivas citações, p. 166.
ocupação do litoral baiano e as conseqüentes divisões no seio da sociedade tupinambá. A
primeira informação fornecida pelo senhor de engenhos, enfatiza uma infinita tradição
guerreira, de ódios nunca esquecidos, de terríveis rituais antropofágicos que nunca cessam,
bem como o costume de desenterrar caveiras. Porém, argumenta que são todos iguais,
possuem a mesma língua, com a mesma ausência de letras, os tão comentados F, L e R, o que
leva à dedução que nenhuma das tribos nativas poderia ser adaptada ao modelo cristão
europeu.
Apresenta, a seguir, a disposição das aldeias, a linguagem, os casamentos, as regras
para as relações sexuais, os modos da criação dos filhos, as cerimônias, a organização tribal,
as crenças, enfim, múltiplos aspectos culturais e sociais dos povos indígenas, entrando em
contradição com a observação anterior que não enxergava neles organização social,
hierarquias ou crença.
244
Este discurso sinuoso também se encontra nos últimos capítulos que
discorrem sobre os recursos naturais aproveitáveis para a defesa e os metais e pedras
preciosas. Nos dois casos, o texto oscila entre a abundância e o exagero que beiram o
fabuloso.
Na verdade, podemos perceber que o propalado referencial do maravilhoso no
discurso dos cronistas coloniais possui um determinado limite em Gabriel Soares. Como
vimos, não o encontramos na primeira parte, o Roteiro geral e nem em grande parte do
Memorial da Bahia. A descrição detalhada de toda a costa litorânea da América portuguesa
bem como a cidade de Salvador, e de toda província baiana são itens exclusivos da narrativa
de Gabriel Soares.
244
“Segundo Gabriel Soares de Sousa mostravam-se pouco promissores enquanto súditos, apesar de que,
paradoxalmente, era nessa condição que a maioria dos índios que ele conheceu vivia.” John Monteiro, Tupis,
Tapuis e Historiadores. Tese apresentada para o concurso de Livre Docência. Departamento de Antropologia,
IFCH. UNICAMP, Campinas, agosto de 2001. Disponível em www.ifch.unicamp.br/ihb/estudos/tupitapuia.pdf.
Nos trechos que destacamos anteriormente em Pero de Magalhães de Gândavo, Fernão
Cardim e Gabriel Soares, há um território comum onde a tônica do maravilhoso e do
imaginário se apresenta e diz respeito, sobretudo, aos itens acerca das plantas, dos animais e
dos costumes indígenas. A topografia, a hidrografia, bem como as atividades de ocupação do
homem ibérico, fazem parte do identificável, traduzível, conhecido, real. Atividades
conhecidas há mais de um século por navegantes, aventureiros, exploradores e colonizadores.
Assim, a escrita nas aponta uma diferenciação fundamental no Tratado. O Memorial descreve
o que reconhece ou estranha. Ao mesmo tempo, estabelece uma relação direta entre os
sentidos e a experiência. O Roteiro informa, mas não oferece nenhuma pista de vivência.
Sabemos que a tradição e a repetição marcam a forma de conhecimento e reprodução do saber
entre os séculos XVI e XVII, não sendo necessária a autenticidade e nem a originalidade.
Podemos, portanto, supor que o Roteiro foi preparado a partir de informações recolhidas
durante sua permanência na corte. As referências geográficas do colono são extremamente
imprecisas, como apontaram seus comentadores Varnhagen e Pirajá da Silva. Alguns locais,
como o Maranhão, ainda sequer possuíam qualquer mapeamento, resultando, portanto, a
descrição, de recortes e junções de toda sorte de fontes, o que lhe faz situar, por exemplo, a
ilha de pérolas venezuelana no Brasil. Gabriel Soares só faz referência à Pero Nunes,
cosmógrafo já falecido, e às crônicas das Índias, como relatos que podem informar sobre os
grandes conquistadores. Entretanto, este discurso apresenta uma escrita impessoal em relação
ao que se encontra no Memorial.
Para a historiografia, as partes referentes ao exagero, a abundância, a estranheza ou ao
discurso por oposição: o que têm - o que não têm; o maior - o menor; o sempre visto - o nunca
visto; o mais fértil - o menos fértil, constituem, sem dúvida, os aspectos mais marcantes. E
eles aparecem na descrição da Bahia, nas plantas, animais e gente que a habita. Donde se pode
deduzir que o saber “enciclopédico” de Gabriel Soares só pode assim ser referenciado pela
leitura ilustrada do século XIX. No fundo, ele compilou boa parte das informações do Roteiro,
obtendo um escrito pragmático, “científico”, geral. Possivelmente, um guia bastante
necessário, mesmo com suas incorreções. Já no Memorial, o colono tenta traduzir as
grandezas e as estranhezas valendo-se de todo o instrumental disponível para descrever o que
ainda não fora descrito.
Gabriel Soares vivenciou um contexto histórico de transição que envolveu a
linguagem, as concepções de mundo, o processo da colonização, as normas de conduta, as
relações entre os poderes, enfim, um espaço e um tempo fronteiriços. Seu texto revela as
ambigüidades de um terreno entre duas antípodas. Por um lado, neutro o suficiente para lhe
assegurar autoridade, por outro, pessoal o bastante de forma a lhe conferir legitimidade, entre
a tradição e o novo. A obra de Gabriel Soares de Sousa, longe de constituir um quadro
estático do Brasil na segunda metade do século XVI, representa uma imagem dinâmica, tanto
quanto o próprio discurso do autor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estabelecimento do texto crítico ou a constitutio textus realizada por Francisco
Adolpho de Varnhagen, entre 1838 e 1851, apresentou à historiografia brasileira um texto e
um autor. E mais do que isso, através das escolhas e dos diálogos dispostos nas notas e
comentários à obra de Gabriel Soares pelo estudioso sorocabano, foi sendo construída uma
identidade para o colono e para o discurso, embasada, na verdade, em muito poucas fontes
conhecidas.
O Tratado Descritivo do Brasil em 1587, na verdade, constitui obra da operação
ecdótica empreendida por Varnhagen, que filtrou os dois textos que o compõe, o Roteiro
geral com largas informações de toda a costa do Brasil e o Memorial e declaração das
grandezas da Bahia de Todos os Santos. Foi o futuro visconde de Porto Seguro quem
organizou seus conteúdos e concebeu uma disposição que lhes conferiu unidade. Esta
operação será consolidada por seus próximos comentadores, Augusto Pirajá da Silva e
Claudio Ganns que conheceram cópias manuscritas, e teriam recursos para questionar a
identidade estabelecida pelo “pai da historiografia brasileira”. Mas nenhum dos dois assim o
fez. O Tratado Descritivo do Brasil em 1587, nem é exatamente um “tratado”, nem apenas
“descritivo”, e muito menos corresponde à data de 1587. Tampouco seria uma “notícia do
Brasil”, conforme os dois títulos mais conhecidos com que os textos foram batizados, por
Varnhagen e Pirajá da Silva, respectivamente. Todavia, o Tratado ou Notícia do Brasil se
afirmou como documento único.
A autoria do escrito destaca o colono dentro do mundo colonial e o distingue pela
acuidade da percepção, pela grandiosidade do saber e pela articulação de um mundo quase
selvagem num projeto civilizatório empreendido pelas monarquias católicas ocidentais. Esta
perspectiva perdurou pelo século XX adentro, mas enfrentaria dificuldades de se afirmar
quando foram revelados os seus Capítulos contra os padres jesuítas, um texto que não
obedece aos protocolos existentes no Tratado e que põe em cheque a autenticidade e a
veracidade com que testemunha o seu tempo.
A historiografia brasileira, a partir da segunda metade do século XX, retomaria
progressivamente a problemática colonial com outras ferramentas analíticas, livrando-se do
compromisso de identificar a “alma” ou “espírito nacional” com a herança lusitana. A
historiografia colonial mais recente valoriza o olhar etnográfico de Gabriel Soares, obtém de
seu Tratado elementos que nutrem diversos temas dos domínios da história cultural e, ao
mesmo tempo, insere o autor na trama das relações sociais. Gabriel Soares aparece no bojo
dos conflitos entre os poderes coloniais e cada vez mais se afirma como sertanista e
escravista.
A ausência de uma leitura integral do Tratado e da sua referência enquanto construção
histórica manteve sobre ele a definição de “enciclopédico”, tão cara ao olhar cientificista do
século XIX, e a imagem de precursor da nacionalidade, que correspondia aos anseios
patrióticos de seus três anotadores. O Tratado de Gabriel Soares aborda, de fato, vários ramos
do conhecimento. Entretanto, no horizonte de perspectivas do século XVI, não havia os
saberes diferenciados que despontam no século XIX, muito menos qualquer aspiração
nacional. Mesmo o relato dos grupos indígenas apenas aparenta consubstanciar um registro
etnográfico, mas não o é. Os dois textos usam estratégias específicas para alcançar o êxito
num mundo de disputas por espaços físicos e culturais desconhecidos. A perspectiva ecdótica
pode auxiliar o historiador a compreender os mecanismos de estruturação textual e os longos
caminhos por que passaram os escritos quinhentistas.
Neste sentido, os escritos de Gabriel Soares constituem um rico inventário de modos
de convencimento e persuasão, das estruturas formais disponíveis então para as apresentações
textuais, além de caracterizar as possibilidades discursivas que vigoravam na segunda metade
do século XVI. Basta dizer que se utilizou de seis formas diferentes: um testamento, uma
epístola, uma apresentação, um roteiro, um memorial, e uma denúncia.
A lacuna que acompanha tanto uma interpretação idealizada quanto uma objetiva e
relativisada está no processo de constituição do documento como fonte. Gabriel Soares é o
possível autor de alguns documentos encaminhados ao rei da mais vasta monarquia já vista.
Tudo leva a crer que buscava despertar a atenção para a capitania da Bahia de Todos os
Santos e encher os olhos de Filipe II da Espanha para os novos tesouros a serem desvendados
nos seus domínios da banda leste de Tordesilhas. Ao mesmo tempo, procurava justificar as
demandas que apresentara ao rei, reforçando a imagem do súdito empreendedor e do colono
conhecedor profundo dos territórios que pretendia devassar.
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